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Janine Resende Rocha
LIMITES DO SENTIDO:
HERMENÊUTICA LITERÁRIA E O PAPEL DO LEITOR
NA CONTEMPORANEIDADE
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2009
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Janine Resende Rocha
LIMITES DO SENTIDO:
HERMENÊUTICA LITERÁRIA E O PAPEL DO LEITOR
NA CONTEMPORANEIDADE
Dissertação apresentada à Faculdade de Letras
da Universidade Federal de Minas Gerais,
Programa de Pós-Graduação em Letras:
Estudos Literários, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Letras:
Estudos Literários.
Área de concentração: Mestrado em Teoria da
Literatura.
Linha de pesquisa: Poéticas da Modernidade.
Orientador: Prof. Dr. Luis Alberto Ferreira
Brandão Santos.
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da UFMG
2009
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Dedico este trabalho aos meus pais, José Onofre e Anunciação,
ao Olavo, à Juliana, ao Adilson, à memória dos meus avós e do
tio José Geraldo.
4
AGRADECIMENTOS
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo
financiamento desta pesquisa.
Agradeço efusivamente ao professor Luis Alberto Brandão, pela confiança, pelo apoio
e incentivo e por sua orientação exigente e generosa, que contribuiu substancialmente para o
amadurecimento da argumentação deste trabalho e da sua escrita.
Aos professores Élcio Cornelsen, Georg Otte, Marcus Vinícius de Freitas, Myriam
Ávila, Reinaldo Martiniano Marques e Silvana Pessôa, do Programa de Pós-Graduação em
Letras: Estudos Literários, da UFMG, pelas aulas, pela solicitude e pelo diálogo. À professora
Sabrina Sedlmayer que também integra esse Programa –, pelas dicas e sugestões
bibliográficas.
Ao professor João Cezar de Castro Rocha, da UERJ, pelo estímulo e diálogo na fase
inicial desta pesquisa.
Aos meus pais, José Onofre e Anunciação, e aos meus irmãos, Olavo e Juliana, pelo
esteio, carinho e companheirismo.
Ao Adilson Barbosa Júnior, pelo afeto e entusiasmo, por me ajudar sempre a encontrar
as palavras e por tornar a minha vida mais feliz.
A Alice Bicalho, Ana Martins, André Pereira, Daniel Teixeira, Davidson Diniz, Elaine
Monteiro, Fernando Viotti, Flávia Lins, Manuela Barbosa, Márcia Junqueira, Marcílio França,
Maria Elvira Malaquias, Maria Judith Possani, Mariana Camilo e Thereza Junqueira, pela
partilha da amizade, de dúvidas e leituras. Agradeço especialmente a Emílio Maciel e a Pedro
Dolabela, pois, além de se oferecerem a essa partilha, contribuíram de maneira inestimável
para que eu concebesse esta pesquisa. Em especial agradeço também a Beatriz Fam e a
Marília Carvalho, amigas muito carinhosas que me ajudaram com as traduções.
Aos alunos, por terem me instigado a aprender mais.
5
Não é possível ler todas as combinatórias possíveis para encontrar a
que nos interessa. Por isso, talvez a literatura responda acima de tudo
a uma consciência aguda de limites, consciência da mortalidade, ou
melhor, do morrer em cada instante como único vestígio da
experiência marca de memória, na memória, que permanece
expectante e imperceptível na linguagem que em nós se deteve para
passar.
Silvina Rodrigues Lopes, “Literatura e hipertexto”.
A gente nunca acaba de ler, ainda que os livros se acabem, assim
como a gente nunca acaba de viver, ainda que a morte seja um fato
certo.
Roberto Bolaño, “Dentista”.
6
RESUMO
Esta dissertação propõe uma reflexão sobre as condições de emergência do sentido, reflexão
que demanda aqui a pesquisa de dois temas: a hermenêutica do texto literário e o papel do
leitor diante desse texto, pensados a partir das Estéticas da Recepção e do Efeito
representadas respectivamente pelas teorias de Hans Robert Jauss e de Wolfgang Iser e por
intermédio de estudos da recepção crítica às obras de Franz Kafka e de Machado de Assis.
Na contemporaneidade, o debate voltado para o sentido e o leitor grava os limites do sentido
como um impasse incontornável, circunscrição que aponta necessariamente para a autonomia
do leitor diante do texto literário. Na configuração desse debate pretendemos observar como o
sujeito interpretante isto é, o leitor conquistou um destaque teórico com a negativa ao
princípio segundo o qual a interpretação seria capaz de veicular a expressão do autor ou a
expressão literal do texto. Paralelamente, observaremos como a ausência de diretrizes fixas e
de valores hegemônicos que caracteriza o cenário teórico contemporâneo dificulta a definição
de limites para o desempenho do leitor.
ABSTRACT
This thesis intends to reflect on the condition of emergence of the meaning, which demands
the research of two themes: the hermeneutics of the literary text and the reader's role before
the text, thought in relation to the Reader-response criticism represented by the theories of
Hans Robert Jauss and Wolfgang Iser and by the studies of the critical reception of Franz
Kafka's and Machado de Assis' works. In our days, the discussion on sense and on the reader
is marked by the limits of understanding as an unsurmountable impasse, a condition which
necessarily points to the reader's autonomy before the literary text. In the configuration of this
discussion we intend to observe how the interpretive subject that is the reader acquired a
theoretical highlight with the negation of the principle that interpretation would be capable to
reveal the author's expression or the literal expression of the text. At the same time, we
observe how the absence of fixed guidelines and hegemonic values which characterizes the
contemporary theoretical landscape hampers the definition of limits to the reader's
performance.
7
SUMÁRIO
Apresentação Paleta de sentidos.............................................................................................08
Capítulo 1 À procura do sentido..............................................................................................15
Modernidade literária: o sentido posto em xeque.........................................................20
Ao leitor, as advertências..............................................................................................32
A literatura de ficção e o “lugar do incerto”: sentido e verdade...................................40
“Um crítico é um leitor que rumina”.............................................................................49
Capítulo 2 O que é hermenêutica literária?............................................................................58
Hermenêutica literária e a tradução do sentido.............................................................63
Estímulos e obstáculos à compreensão.........................................................................70
Hermenêutica e o peso dos conceitos............................................................................77
Hermenêutica literária e o estatuto do ficcional............................................................84
Capítulo 3 A hermenêutica literária na contemporaneidade..................................................98
A máquina da interpretação.........................................................................................103
Considerações finais..............................................................................................................122
Bibliografia............................................................................................................................126
8
APRESENTAÇÃO
Paleta de sentidos
9
A chegada de um camponês à entrada da lei perfaz uma espacialidade que define o
interior e o exterior da lei. Diante dessa entrada, o camponês descobre contrariado que o
preceito segundo o qual a lei deve estar ao alcance de todos não se confirma. Na sua acepção
espacial, essa negativa significa que o camponês não poderá adentrar o interior da lei,
resguardado por porteiros poderosos que personificam obstáculos intransponíveis. Em vão, o
camponês permanece sentado do lado de fora da lei até o fim de sua vida, na companhia de
um dos porteiros. Além do trecho correspondente a essa breve paráfrase, na sua íntegra a
passagem que destacamos do nono capítulo do romance O processo, de Franz Kafka, inclui
uma sequência de interpretações conflitantes para a historieta do camponês, que averiguam,
entre outros detalhes, se tal porteiro enganou o camponês, se cumpriu o seu dever ou se foi
enganado.
Na medida em que as opiniões sobre o caráter, as palavras e as atitudes do porteiro se
sucedem, vemos como elas concebem um outro texto que pressupõe a condição criativa do
intérprete, fundamento para a diversidade das interpretações que o texto original recebe,
apesar de permanecer inalterado. Reconhecer a condição criativa do intérprete implica o
abandono de uma concepção que almeja o sentido imanente ao texto e, como observamos
na passagem de Kafka, esse reconhecimento leva ao questionamento sobre os limites do
intérprete diante do texto, que o alertariam na hipótese de estar modificando a história.
Entretanto, como a passagem aventa, a acentuação desses limites é devedora de fatores
externos ao texto, como a opinião de outros intérpretes ou de uma autoridade legitimadora.
No caso da passagem, o sacerdote, interlocutor de Josef K. na catedral, pretende exercer essa
autoridade, e sugere que tais opiniões precisam se apresentar como sistemas argumentativos
convincentes para que possam ser validadas.
A literatura de Kafka inspira um debate em que a interpretação e as propriedades do
ficcional encontram-se relacionadas. Segundo Luiz Costa Lima avalia na obra Limites da voz,
10
Kafka é um autor dos mais importantes para se desacreditar a “estabilidade semântica da obra
de ficção”
1
, estabilidade a que corresponde a expectativa pela interpretação verdadeira dessa
obra. Na esteira dessa avaliação a passagem de O processo anteriormente lembrada
exemplifica a “instabilidade semântica que atravessa o texto kafkiano”
2
, por ilustrar a
“impossibilidade de aprisionar-se a letra em um único sentido”
3
. Porém, ainda que o discurso
ficcional coloque a verdade em perspectiva, a descrença na estabilidade semântica e na
interpretação verdadeira da obra de ficção não parece ser um consenso para a crítica literária,
nem mesmo na contemporaneidade, época em que a noção de verdade é depreciada com
frequência nos meios intelectuais.
Valemo-nos do destaque conferido a Kafka para traçarmos os pilares desta
dissertação, que propõe um estudo sobre os limites do sentido perante a hermenêutica literária
e o papel do leitor na contemporaneidade, mais especificamente do leitor crítico. Este estudo
procura, assim, problematizar o gesto hermenêutico, com o propósito de se avaliarem
mecanismos e impasses presentes na atribuição e na produção de sentido pelo crítico ao texto
literário na época atual, segundo referências tomadas das Estéticas da Recepção e do Efeito,
representadas respectivamente pelas teorias de Hans Robert Jauss e de Wolfgang Iser, e por
intermédio de trabalhos que constituem a recepção crítica às obras de Kafka e de Machado de
Assis. Sob o prisma das Estéticas da Recepção e do Efeito, estudaremos o leitor não
através da sua inserção sócio-histórica, prevista por Jauss, mas detalharemos também, com o
auxílio da teoria iseriana, mecanismos que perpassam a leitura.
Esta dissertação, que tem como norte nosso interesse pelo leitor na teoria da literatura
contemporânea, revela o desejo de entendermos a potencialidade semântica do texto literário,
tópico que promove as seguintes indagações: como equacionar o caráter relacional do sentido
do texto literário no qual se imprimem as marcas do leitor com as delimitações do texto,
1
COSTA LIMA. Limites da voz: Kafka, p.61.
2
COSTA LIMA. Limites da voz: Kafka, p.66.
3
COSTA LIMA. Limites da voz: Kafka, p.127.
11
para que esse sentido não pareça arbitrário? A “instabilidade semântica” correspondente ao
texto de Kafka seria uma característica da literatura como um todo ou apenas de textos que
primam pela negatividade, ou seja, de textos pródigos em lacunas e omissões narrativas?
Como conciliar a “instabilidade semântica” que caracteriza, em princípio, parte dos textos
literários com o fato de a crítica literária ter que apresentar conclusões ou, nos termos de
Luis Alberto Brandão a respeito do discurso crítico, ter que “produzir inferências válidas a
partir do que é exposto”
4
? O que valida uma interpretação? Como tratar a literatura
institucionalmente para que essa validação o se transforme apenas num controle de
terminologias e conceitos e para que o papel do intérprete não seja reduzido meramente ao de
um aplicador de fórmulas teórico-metodológicas? A se concordar com Jean-François Lyotard,
que vê na dissolução dos metarrelatos – como o da “hermenêutica do sentido” – um índice da
condição pós-moderna
5
, como avaliar a hermenêutica literária? Poderíamos pensar que na
contemporaneidade uma supervalorização do como se , depreendida numa espécie de
loquacidade teórica motivada pela heterogeneidade das teorias em vigor?
Através dessas indagações buscamos não elucidar a problemática que cerca esta
dissertação, mas também realçar que a hermenêutica literária e o papel do leitor na
contemporaneidade apontam para um tópico profícuo do ponto de vista da crítica e da teoria
da literatura. Estimulada primeiramente pela leitura de A história da literatura como
provocação à teoria literária, de Jauss
6
ensaio determinante para o surgimento da Estética
da Recepção como proposta teórico-metodológica –, esta pesquisa intenta uma reflexão sobre
a potencialidade inerente ao texto literário quanto ao seu sentido, potencialidade que,
manifesta na renovação das leituras, confere visibilidade a distintos “sistemas histórico-
literários de referência”
7
e sistemas teórico-metodológicos. Para encaminharmos essa reflexão
4
BRANDÃO. Rituais do discurso crítico, p.11.
5
Ver LYOTARD. A condição pós-moderna.
6
Ver JAUSS. A história da literatura como provocação à teoria literária.
7
JAUSS. A história da literatura como provocação à teoria literária, p.28.
12
evidenciaremos o papel do leitor como uma maneira de analisarmos não fatores que,
externos ao texto literário, possam justificar tal potencialidade, como também fatores
intrínsecos ao texto, pertinentes, por exemplo, à negatividade e às lacunas textuais.
Evidenciaremos, ainda, como o fictício, na sua interseção com o imaginário, representa um
elemento de grande relevância para se sublinhar o papel do leitor. Nessa direção, a teoria de
Iser deve ser vista como uma referência obrigatória.
Ao estudarmos o leitor, elegemos as Estéticas da Recepção e do Efeito como
referencial teórico principal, pois conceitos basilares dessas perspectivas teóricas são de
grande valia para se perquirir o sentido do texto literário. Não cumpriremos um estudo
cronológico e sistemático dos conceitos desses teóricos, mas sim tentaremos salientar
aspectos que nos parecem fundamentais para uma discussão sobre o sentido, visto junto a um
debate sobre a crítica literária e a teoria da literatura. Como advertimos, o estudo sobre o
leitor a ser aqui desenvolvido privilegia o leitor crítico, que, via de regra, a leitura decorre
de um gesto menos reflexivo para o leitor comum do que para o leitor crítico, e talvez por isso
aquele leitor reflita menos sobre o processo que protagoniza ao atribuir e produzir sentido.
A análise da recepção da literatura é uma maneira de se explicitarem vetores que
interferem no sentido e compõem a relação assimétrica entre texto e leitor. No ensaio
“Que significa a recepção dos textos ficcionais?” Karlheinz Stierle afirma: “Para que a função
comunicativa da literatura [...] se imponha, entre outras coisas se requer o pressuposto formal
de uma competência recepcional, a ser teoricamente refletida”
8
. Com a finalidade de
investigarmos essa competência, ao longo da argumentação deste trabalho dialogaremos com
estudos importantes da recepção crítica às obras de Kafka e de Machado de Assis. Além
disso, recorreremos a trechos das obras desses autores que tenham nos inspirado a pensar a
hermenêutica literária e o papel do leitor.
8
STIERLE. Que significa a recepção dos textos ficcionais?, pp.136-137.
13
Na contemporaneidade, o debate voltado para o sentido e o leitor grava os limites do
sentido como um impasse incontornável, circunscrição que aponta necessariamente para a
autonomia do leitor diante do texto literário. Na configuração desse debate pretendemos
observar como o sujeito interpretante isto é, o leitor conquistou um destaque teórico
mediante a objeção ao “campo hermenêutico”
9
, campo que pressupõe uma congruência entre
a expressão do autor e o sentido atribuído ao texto pelo intérprete. Paralelamente,
observaremos como a ausência de diretrizes fixas e de valores hegemônicos que caracteriza o
cenário teórico contemporâneo dificulta a definição de limites para o desempenho do leitor.
Sendo assim, conjeturamos que o enredamento do sentido torna-se ainda mais tortuoso com
tal objeção.
Como veremos no capítulo inicial, o impasse que recai sobre os limites do sentido
vincula-se a uma incompatibilidade estrutural, em razão de o texto literário condicionar um
sentido inexaurível e, ao mesmo tempo, ter que limitar os passos do leitor. No
aprofundamento das questões aliciadas pelo sentido e pelo leitor, a serem detalhadas no
primeiro capítulo, ressaltaremos como elas acabam por fomentar uma discussão de natureza
hermenêutica. A hermenêutica, pauta do segundo capítulo, alicerça uma problemática cara ao
estudo da literatura, pois uma discussão dessa natureza busca averiguar as condições que
perpassam a tradução do sentido. Conduzida pelo crítico, essa tradução que, estimulada
pelo texto literário, resulta num novo texto coloca em xeque o princípio segundo o qual a
hermenêutica agenciaria a decodificação do sentido profundo e verdadeiro do texto.
Contrariando esse princípio, neste trabalho a hermenêutica abraça questões referentes à
multiplicidade do sentido, através da qual a subjetividade do leitor é explicitada. No terceiro
capítulo analisaremos aspectos pertinentes à hermenêutica literária na contemporaneidade, à
luz do conceito de “campo não-hermenêutico”, cunhado por Hans Ulrich Gumbrecht no
9
Cf. GUMBRECHT. O campo não-hermenêutico ou a materialidade da comunicação.
14
ensaio “O campo não-hermenêutico ou a materialidade da comunicação” em contraposição ao
“campo hermenêutico”.
Ao invocarmos a hermenêutica, temos como motivação o exame de aspectos que
atuam na definição da hermenêutica literária, ainda que possa haver grande variação
conceitual em torno do tema. Na verdade, essa variação é derivada da própria complexidade
da literatura, pois o entendimento do crítico sobre o gesto hermenêutico é indissociável da sua
compreensão de literatura, associação que baliza por si o papel do leitor e demonstra como
esse gesto não pode ser visto separadamente do leitor. Assim, ao articularmos a hermenêutica
literária e o papel do leitor, indagaremos sobre as alterações suscitadas pela ênfase concedida
ao leitor, motivo pelo qual as influências de âmbito institucional, histórico-cultural, político e
teórico que engendram mecanismos de limitação e de controle do sentido serão
exacerbadas.
15
CAPÍTULO 1
À procura do sentido
16
Sobre a realidade, opino como Proust, que dizia que por desgraça os olhos
fragmentados, tristes e de longo alcance, talvez permitissem medir as
distâncias, porém não indicam as direções: o infinito campo de
possibilidades se estende e caso o real se apresentasse diante de nós ficaria
tão fora das possibilidades que, num desmaio brusco, iríamos de encontro a
esse muro surgido de repente e cairíamos pasmados.
O que vemos quando acreditamos ver algo de verdade, então? Eu diria que
quando isso ocorre, quando parece que nos encontramos diante do real,
estamos mais do que autorizados a ironizar sobre a realidade, ainda que seja
somente para conjurar a possível aparição casual do que é realmente real e
desse muro que nos deixaria, sem ironia alguma, desmaiados.
Enrique Vila-Matas, Paris não tem fim (grifos do autor).
A ficção de Enrique Vila-Matas estiliza o universo literário através da ênfase à
literatura e ao gesto da escrita, numa articulação que inclui, por exemplo, o diálogo com
livros, autores e teóricos, anedotas literárias, reflexões sobre o processo criativo de escrita, a
experiência propiciada pela literatura e a relação entre ficção e realidade. Há, assim, um halo
em torno dos livros, manifesto através do efusivo destaque atribuído ao mundo bibliográfico –
mundo gerido, no caso, pelos recursos da citação, mis-en-abyme, metanarrativa e metaficção:
recursos que, entre outros, apontam para as instâncias do texto, da escrita, autoria, leitura e
para a potencial capacidade de a literatura interferir na realidade.
O romance Paris não tem fim, de Vila-Matas, consiste na palestra homônima sobre o
tema da ironia, ministrada pelo narrador num simpósio em Barcelona. Antes de proferir essa
palestra, o narrador esteve em Nantes, onde também apresentou um trabalho sobre esse
mesmo tema. Em Nantes, ele convida o público a apresentar “interpretações” para o conto “O
gato debaixo da chuva”, de Ernest Hemingway, pois nunca conseguiu entendê-lo. O narrador
pede aos ouvintes, contudo, para desconfiarem do apelo ao sentido aparente ou literal do
conto:
Para interpretá-lo [“O gato debaixo da chuva”], não percam nunca de vista que Hemingway
foi um mestre na arte da elipse e que em todos os seus contos conseguia que o mais importante
da história que contava não aparecesse no relato: a história secreta do conto se construía com o
17
não dito, com o subentendido e a alusão. Isso explicará que o relato possa parecer-lhes muito
trivial, se não souberem que Hemingway opera tecnicamente com os subentendidos e as
alusões
10
.
Depois de contar a história do jovem casal num quarto de hotel, na Itália do pós-
Segunda Guerra, o narrador escuta do público “interpretações” variadas; entre elas:
1) O relato lembrava outro também de Hemingway no qual se falava de elefantes brancos e na
realidade a história secreta era a da gravidez de uma mulher e seu silenciado desejo de abortar.
2) O conto parecia estar falando da insatisfação sexual da jovem, que era o que a levava a
desejar um gato. 3) O conto na verdade apenas retratava a suja atmosfera de uma Itália que
acabava de sair de um conflito bélico no qual haviam necessitado da ajuda dos norte-
americanos. 4) O relato descrevia o tédio depois do coito. 5) A recém-casada estava cansada
de usar o cabelo curto à joãozinho para assim satisfazer os desejos homossexuais de seu
marido. 6) A recém-casada estava apaixonada pelo dono do hotel. 7) O conto explicava que os
homens não podem ler um livro e ao mesmo tempo escutar a esposa, e tudo isso vinha desde a
época das cavernas, de quando eles saíam para caçar e elas ficavam em casa preparando a
comida: eles aprenderam a pensar em silêncio e elas a falar das coisas que as afetavam e a
desenvolver relações baseadas nos sentimentos
11
.
Na sequência dessa enumeração, continua o narrador:
Finalmente, uma senhora de certa idade disse: “E se o conto for assim e ponto? E se não
houver nada o que interpretar? Talvez o conto seja totalmente incompreensível e nisso esteja
sua graça”.
Nunca havia pensado nisso, e me deu uma boa ideia para concluir o conto que pensava em
escrever no dia seguinte em Paris.
“Amanhã”, disse-lhes, “escreverei meu conto sobre o que aconteceu aqui hoje e o terminarei
com o que disse esta senhora, suas palavras me lembraram de que sempre sinto uma grande
alegria quando não entendo algo e ao contrário: quando leio algo que entendo perfeitamente,
abandono, desiludido. Não gosto dos relatos com histórias compreensíveis. Porque entender
pode ser uma condenação. E não entender, a porta que se abre.”
12
Em Paris não tem fim, Vila-Matas apresenta uma discussão cerrada que visa a
questionar a legibilidade de verdade do real, isto é, o autor problematiza a forma como
tomamos consciência do mundo e a ele imputamos sentido: a diversidade de aspectos do
mundo obriga igualmente que os sentidos sejam múltiplos, razão pela qual a plausibilidade de
10
VILA-MATAS. Paris não tem fim, p. 20.
11
VILA-MATAS. Paris não tem fim, pp.21-22.
12
VILA-MATAS. Paris não tem fim, p.22.
18
haver uma forma de ver o mundo que seja asseguradamente peremptória ou conclusiva é
digna de desconfiança. No romance, a apologia ao fake e ao embuste exemplifica como o
sentido verdadeiro pode resultar numa procura e, além do mais, essa verdade seria
improvável.
Num dos momentos em que o narrador do romance exalta o fake, conta ter assistido F
for fake, de Orson Welles:
Os temas do filme eram borgesianos [sic]: a falsificação, a lábil fronteira entre realidade e
ficção, por exemplo. F for fake me fez lembrar de Vicky Vaporú [personagem caracterizada
como travesti] na fila do pão, perguntando-me se não era verdade que ela era uma falsificação
verdadeira. O filme, embora nunca nomeasse Borges, para mim revelou tramas, fraudes e
labirintos sobre os quais podia escrever se continuasse querendo chegar a ser um escritor de
verdade. Para sê-lo, tinha de saudar a invenção do verdadeiro, do mesmo modo que tinha de
inventar a mim mesmo se de verdade quisesse ser escritor. F for fake fez com que aumentasse
minha paixão pelos livros apócrifos, pelas resenhas de livros falsos, pelo mundo dos grandes
impostores, dos homens que se fazem passar por outro, homens que são alguém e que não são
ninguém
13
.
Ao observarmos o jogo entre embuste e verdade proposto por Vila-Matas, não queremos
dizer, porém, que uma maneira de se compreender o mundo na sua essência
14
. Com esse
exemplo, pretendemos sublinhar como os referenciais do mundo ou do texto literário
podem ser constituídos pela trapaça, sem que a verdade deixe de ser sustentada como uma
ideia reguladora. Ainda que haja uma tensão entre o real ou verdadeiro e o falso ou mentiroso,
que perturba o sistema de certezas e os códigos, o regime da verdade permanece atuante, pois
não deixa de haver a intenção de se fazer com que o falso seja posto no lugar do verdadeiro.
13
VILA-MATAS. Paris não tem fim, p.203.
14
Ademais, como Jacyntho Lins Brandão argumenta no livro A invenção do romance: “[...] é falsa a distinção
tradicional entre aparência e o que está por trás, ou, para usar termos consagrados pela teoria literária, entre
forma e conteúdo. Ainda que Platão tenha admitido que o que está por trás ultrapassa o mundo das aparências,
instituiu-o como um mundo de ideias objetos, portanto, de visão ou, se quisermos, de certa forma, nada mais
que aparências verdadeiras, diferentes das demais apenas na medida em que não nos aparecem desenfocadas.
Abstraído o valor direcional, essencial na formulação do modelo platônico (ideia mundo mimese), tanto a
ideia quanto a representação se afastam um grau da aparência sensível e talvez justamente por isso Aristóteles
considere que a poesia, por natureza, é mais filosófica que a história, por ultrapassar o indivíduo e representar o
paradigma por meio da mimese”. BRANDÃO. A invenção do romance, p.16 (grifos do autor).
19
Um imbróglio desse tipo revela como a compreensão aparente – do mundo ou do texto
literário – pode ser enganosa e como se espera que o sujeito produtor de sentido seja
perspicaz, uma vez que o sentido pode se constituir em camadas. Assim, o sentido estimula
um processo, que é mais bem realizado quando se acolhe a dúvida sobre o resultado
semântico concatenado ou sobre a impossibilidade de esse resultado ser diferente. Tal
imbróglio revela também como o mundo e as manifestações artísticas são construídos, em
muitas das vezes, por estratégias e anteparos que embaralham os referenciais, de maneira que
o sentido deve ser questionado a priori.
No caso da literatura na acepção moderna do termo, ou seja, pós-segunda metade do
século XVIII
15
–, ela credencia, contudo, um questionamento cognitivo que vai além da
procura pelo sentido. Como Jacques Rancière explica, a literatura diz respeito ao próprio
“lugar do incerto”
16
por ela criado:
“Literatura” é um desses nomes flutuantes que resistem à redução nominalista, um desses
conceitos transversais que têm a propriedade de desmanchar as relações estáveis entre nomes,
ideias e coisas e, junto com elas, as delimitações organizadas entre as artes, os saberes ou os
modos do discurso. “Literatura” pertence a essa delimitação e a essa guerra da escrita onde se
fazem e se desfazem as relações entre a ordem do discurso e a ordem dos estados
17
.
Ao realçar a ficcionalidade e as liberdades linguística e formal, o “lugar do incerto”
constitutivo da literatura imprime um modo de funcionamento discursivo que dramatiza a
própria definição do objeto literário, do domínio semântico imanente a um texto e da sua
referencialidade. Sendo assim, a problemática que circunda a proposição dessas definições
mostra como o texto literário engendra necessariamente segmentos exteriores ao próprio
texto, articuladores de valores e sentidos, pois esse funcionamento veda a possibilidade de
uma autojustificação.
15
A propósito da distinção entre “belas-letras” e “literatura” e das vinculações teóricas dela resultantes, ver o
ensaio “A literatura impensável”, de Jacques Rancière (in: RANCIÈRE. Políticas da escrita, pp.25-45), e
Limites da voz, de Luiz Costa Lima.
16
Ver LOPES. A legitimação em literatura, pp.411-425.
17
RANCIÈRE. A literatura impensável, p.27.
20
Modernidade literária: o sentido posto em xeque
[...] o estatuto do cavaleiro errante, fábula que simboliza a modernidade
literária, é o da dispersão da letra num mundo em que o advento dos poderes
da palavra impressa coincide com o apagamento do Verbo encarnado. A
retirada da promessa da verdade viva é, também, a aventura da
multiplicidade dos destinos desviados pelo trajeto da letra sem pai.
Jacques Rancière, Prefácio a Políticas da escrita.
Há sempre o risco de fabricar hermenêuticas mais herméticas do que o texto-
fonte.
Alfredo Bosi, “A interpretação da obra literária”.
Um dos caminhos relevantes de conceituação da modernidade literária postula a
mudança e a negação como princípios indispensáveis, matizes do paradigma de autonomia da
arte, alheio a instâncias normativas e de controle. Em outras palavras, na orientação moderna
do termo, a literatura traz na sua base o questionamento das condições de possibilidade de
emergência das estruturas de sentido
18
, pois desacredita a unidade e a totalidade, além de
minar critérios estáveis para o julgamento, seja quanto ao valor, seja quanto à autoridade de
um centro exegético centro regido, em hipótese, por critérios tais como autor, contexto
empírico, imanentismo textual, metodologia teórica –, e torna a procura pelo sentido uma
tarefa ardilosa para o crítico.
Ou, mais incisivamente, a literatura coloca em questão se o exercício crítico requer
ou, até mesmo, comporta – essa procura, já que a modernidade literária acentua o que Jacques
Rancière designa como “regime errante da letra órfã”
19
, em que essa letra é desprovida da
legitimidade de um “pai”. Esse regime que catalisa a autonomia da literatura marca uma
inflexão na maneira como a recepção do texto literário se desdobra, pois deixam de haver
regras para as relações entre autor e texto, entre texto e leitor e entre autor e leitor. A ausência
18
GUMBRECHT. O campo não-hermenêutico ou a materialidade da comunicação, p.147 (grifos do autor).
19
RANCIÈRE. Prefácio a Políticas da escrita, p.09.
21
de regras exibe uma espécie de excesso constitutivo da literatura, visto que ficam afastados os
desígnios do esgotamento do sentido, em prol da sua multiplicidade e do heterogêneo.
Na acepção moderna, pois, a literatura pode ser definida pelas poéticas da
negatividade, que não só desafiam como legitimam toda uma tradição teórica, já que o sentido
do texto não se restringe a um domínio único, como o da representação, e é incompatível com
a relação verdadeiro-falso. Ao utilizarmos a expressão poéticas da negatividade, pensamos,
junto com Wolfgang Iser, em “[...] lacunas e negações [que] conferem ao texto ficcional uma
densidade característica, por meio de omissões e cancelamentos, revelando traços não
explicitados”
20
. A negatividade ressuma uma espécie de texto não formulado, isto é, não
escrito. Na opinião do autor:
A negatividade, no verdadeiro sentido do termo, não pode ser deduzida das realidades
referenciais por ela questionadas e não pode ser vinculada a uma ideia substancialista que ela
anunciaria. Assim como a não formulação do ainda não compreendido, a negatividade faz
mais do que simplesmente assinalar uma relação com aquilo que põe em questão,
estabelecendo um elo básico entre o leitor e o texto. Se o leitor é levado a conceber a causa
subjacente àquele questionamento do mundo, isso implica que ele deve transcender esse
mundo para ser capaz de observá-lo de um ponto exterior a tudo aquilo em que de outro modo
ele estaria tão inextricavelmente enredado. Desse modo, a função comunicativa da literatura se
evidencia e se realiza. A negatividade enquanto componente básico da comunicação é portanto
uma estrutura capacitadora
21
.
Desde os Formalistas Russos e poderíamos lembrar também os fragmentos de
Schlegel e de Novalis –, os caracteres da negatividade são avaliados teoricamente; e, com
recorrência, esses caracteres são reconhecidos por diferentes perspectivas teóricas como um
veio em potencial para se pensar a relação entre política e literatura, que remonta a Platão
22
.
Além disso, do destaque conferido à negatividade por essas teorias, emerge, de modo geral,
20
ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.31.
21
ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.33.
22
Como Jacyntho Lins Brandão nos lembra em A invenção do romance: “É também de um ponto de vista
político que Platão propõe sua teoria dos três gêneros, buscando responder à questão sobre que tipos de poetas
seriam acolhidos na pólis construída com o lógos. Esse dado é importante para situar suas conclusões que,
curiosamente, reconhecem duas categorias não bem de poesia, mas de poetas: os que narram e os que
mimetizam. Assim, é equivocado entender, tout court, que Platão expulsa os poetas da cidade, pois, na verdade,
ele condena apenas a literatura narrativa mimética, de uma perspectiva pedagógica”. BRANDÃO. A invenção do
romance, pp.39-40.
22
uma consciência do exercício da crítica literária
23
. No caso de Iser bem como no de Hans
Robert Jauss –, ainda que não haja a especificação do papel do leitor crítico, a crítica pode ser
aventada a partir do descredenciamento de normas para a interpretação. O imanentismo
textual deve ser desacreditado em prol da interação entre sujeito e objeto – ou seja, entre leitor
e texto –, concretizada na medida em que se assume que a literatura é uma via de
comunicação.
Nas perspectivas das Estéticas da Recepção e do Efeito, propostas respectivamente por
Jauss e Iser, a negatividade é, paradoxalmente, um fator imprescindível para a comunicação
literária, ou seja, a negatividade potencializa essa comunicação. Esse fundamento as
distingue, por exemplo, de uma perspectiva como a de Maurice Blanchot, cujo pensamento
moldado pela negatividade de Kafka, Hölderlin, Mallarmé, entre outros autores do cânone
moderno atribui à linguagem literária as marcas do indisponível e da recusa
24
. Para Iser, a
literatura deve contribuir para que o leitor repense o mundo em que vive, mas, para tanto, a
experiência de leitura não pode se coadunar com a previsibilidade, o automatismo ou a
padronização – por isso, conforme Karl Erik Schøllhammer salienta, “[o] romance moderno é
objeto de análise privilegiado [...]”
25
na teoria iseriana. Nessa direção professava Jauss em
A história da literatura como provocação à teoria literária, texto fundador da Estética da
23
Nessa direção, aludimos ao prefácio a Estâncias, no qual Giorgio Agamben evoca, de maneira taxativa, a
afinidade entre negatividade artística e crítica. Segundo o autor, essa afinidade consolida-se não em função da
vocação criativa que a crítica poderia ter, mas por a crítica ser também regida pela negatividade, como é o caso
de Origem do drama barroco alemão, de Walter Benjamin. Nas palavras de Agamben: “O que fica fechado na
‘estância’ da crítica é nada, mas esse nada contém a inapreensibilidade como o seu bem mais precioso”.
AGAMBEN. Estâncias, p.13.
24
Ver especialmente os textos “A literatura e o direito à morte”, de A parte do fogo, “A solidão essencial” e “A
obra e a comunicação”, de O espaço literário. Do último, destacamos a seguinte explicação para que se ressalte a
concepção blanchotiana de literatura, segundo a qual a literatura aglutina oposições inconciliáveis: “A
comunicação da obra não está no fato de que ela tornou-se comunicável, pela leitura, a um leitor. A própria obra
é comunicação, intimidade em luta entre a exigência de ler e a exigência de escrever, entre a medida da obra que
tende para a impossibilidade, entre a forma onde ela se apreende e o ilimitado onde ela se recusa, entre a decisão
que é o ser do começo e a indecisão que é o ser do recomeço. Essa violência dura tanto tempo em que a obra é
obra, violência jamais apaziguada, mas que é também a calma de um acordo, contestação que é o movimento do
entendimento, entendimento que perece desde que deixa de ser a abordagem do que é sem entendimento”.
BLANCHOT. O espaço literário, pp.198-199.
25
SCHØLLHAMMER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.126.
23
Recepção em que o autor, além de defender uma função social da literatura, condiciona o
cumprimento dessa função a uma arte que negue a representação
26
.
A negatividade angaria fatores importantes para se avaliar o sentido do texto literário.
Iser aposta na ideia de que a literatura é inverificável ideia vinculada a uma preferência do
autor por uma caracterização não representacional da literatura –, sendo que as lacunas e
negações constituem “precondição fundamental da comunicação”
27
e demarcam, assim, um
lugar estrutural no seu pensamento. A literatura cria uma “realidade virtual”
28
, uma realidade
inexistente até então, que se submete a uma poiesis radical e que, para existir efetivamente,
depende da atuação do leitor razão pela qual o sentido do texto ganha um “matiz
subjetivo”
29
. Há, então, uma espécie de simbiose entre a negatividade literária, a comunicação
literária e o papel do leitor. Assim, a definição desse papel está submetida à configuração
textual, pois, como Iser dispõe: “Ao leitor cabe achar a motivação para o que a negativa possa
dar a entender. Dessa forma, o leitor explicita o que não está expresso, e nisto parece residir
uma característica importante do texto literário”
30
.
No pensamento de Jauss, a proposição de uma “semântica histórica”
31
é devedora do
choque, que consubstancia uma equação diretamente proporcional: além de ser uma categoria
estética, o novo elabora uma categoria histórica, pois uma obra torna-se mais histórica quanto
mais diferente ela for
32
. Quanto maior for a “distância estética”
33
de uma obra, maior será seu
valor:
A distância entre o horizonte de expectativa e a obra, entre o já conhecido da experiência
estética anterior e a “mudança de horizonte” exigida pela acolhida à nova obra, determina, do
26
Ver especialmente a última tese, a de número doze, de A história da literatura como provocação à teoria
literária.
27
ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.30.
28
ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.21.
29
ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.33.
30
ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.29.
31
ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.20.
32
JAUSS. A história da literatura como provocação à teoria literária, p.45.
33
JAUSS. A história da literatura como provocação à teoria literária, p.31.
24
ponto de vista da estética da recepção, o caráter artístico de uma obra literária. À medida que
essa distância se reduz, que não se demanda da consciência receptora nenhuma guinada rumo
ao horizonte da experiência ainda desconhecida, a obra se aproxima da esfera da arte
“culinária” ou ligeira. Esta última deixa-se caracterizar, segundo a estética da recepção, pelo
fato de não exigir nenhuma mudança de horizonte, mas sim de simplesmente atender a
expectativas que delineiam uma tendência dominante do gosto, na medida em que satisfaz a
demanda pela reprodução do belo usual, confirma sentimentos familiares, sanciona as
fantasias do desejo, torna palatáveis – na condição de “sensação” as experiências não
corriqueiras ou mesmo lança problemas morais, mas apenas para “solucioná-los” no sentido
edificante, qual questões já previamente decididas
34
.
Na mirada da Estética do Efeito de Iser, a constituição moderna da literatura interfere
na sua interpretação
35
, que deixa de ser norteada pela procura da intenção autoral ou da
mensagem da obra para refletir o efeito provocado no leitor pelo texto:
A busca da intenção autoral foi substituída pelo exame do impacto que um texto literário era
capaz de exercer num receptor potencial. Não sendo mais obrigatória a identificação da
mensagem da obra, surgiu um interesse pelo que, desde então, se denominou processamento
do texto (text processing), isto é, o que acontece ao texto no ato da leitura. Por fim, a relação
triádica entre autor, texto e leitor se tornou objeto de estudo
36
.
De acordo com Iser, esse processamento do texto contempla matizes, isto é, níveis ou
instâncias de efeitos e sentidos, que vão do efeito estético provocado pelo apuro linguístico de
um texto ou pelo impensado que apresente em relação ao senso comum a uma
compreensão mais racionalizada, a uma interpretação, portanto.
Em síntese, o fator preponderante volta-se para a “relação dialética entre texto e
leitor”
37
, que implica necessariamente a defesa de um sentido multívoco para o texto literário.
Do entendimento de Iser depreendemos, contudo, que a ideia de “sentido” seria considerada
como medida de equivalência de certa rigidez semântica, incompatível com a indeterminação
do texto prevista pela estética literária moderna. Por esse motivo, parece que o autor privilegia
34
JAUSS. A história da literatura como provocação à teoria literária, pp.31-32.
35
Encontramos em Jauss um posicionamento análogo, uma vez que o autor enfatiza o declínio da “estética da
mimesiscom a arte moderna. Dessa maneira, o leitor estaria desobrigado a reconhecer o mundo e, assim, não
estaria suscetível a uma verdade ao entrar em contato com a literatura moderna. Como frisa o autor, a
“importância cognitiva da arte” é resguardada na medida em que ela propicia novas experiências ou novas
perguntas. Ver especialmente: JAUSS. A história da literatura como provocação à teoria literária, p.39.
36
ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, pp.24-25.
37
ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.20.
25
menos o sentido do que o efeito, como elucida esta passagem, que alude a uma mudança de
paradigma nos estudos literários: “Em lugar da mensagem e do sentido, a recepção da
literatura e o seu efeito sobre o leitor se tornaram as principais questões. Não se tratava mais
de determinar o que o texto significava, porém o que incitava nos receptores”
38
.
Embora Iser emparelhe mensagem e sentido nessa passagem, deve-se ter em mente
que as duas palavras não absorvem conceitos equivalentes. Como o próprio autor comenta no
debate à terceira sessão do colóquio que deu origem ao livro Teoria da ficção: indagações à
obra de Wolfgang Iser, mensagem refere-se à hipótese de desvelamento das intenções
recônditas do texto, enquanto sentido refere-se à ausência da pretensão de se reconstruírem
tais intenções. Ainda que Iser não se mostre tão assertivo, vale conferir a passagem do debate:
Apesar de concentrar minha análise na produção de sentido através do texto, confesso que me
sinto hesitante sobre esse tema [a definição de sentido]. Não mais procuramos a mensagem de
uma obra literária, como era a regra do jogo no século passado [século XIX]. Nesse ínterim, a
mensagem foi substituída pelo sentido, visto como preocupação central dos que lidam com
literatura. Porém, assim como a mensagem se tornou um conceito histórico, o foco sobre o
sentido pode também ser relegado ao passado
39
.
Vemos reforçado nesse trecho, portanto, o desfavorecimento que o sentido recebe.
Entretanto, não parece plausível que o “efeito” provocado pelo texto fique restrito a
uma esfera de pura fruição, apartada de alguma evidência mensurável, como é o sentido. O
sentido é congruente com a materialização semântica do texto, a ser levada em conta segundo
gestos que designem o processamento do texto. Sem que nos afastemos da teoria iseriana e
por maior que seja a variedade de aspectos teóricos associados à palavra sentido –,
localizamos, entre esses gestos: atribuição ou constituição de sentido, no caso do
preenchimento de espaços vazios ou lacunas isto é, da negociação entre o expresso e o não
expresso pelo texto –; produção de sentido, fruto da descontinuidade textual e do fato de a
literatura criar referenciais, cuja validade difere da validade dos referenciais da realidade.
38
ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.26.
39
ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.133.
26
Entendemos que distinguir esses gestos não significa negar a combinação de um gesto
com o outro; ao contrário do disposto por Antoine Compagnon, que restringe a atuação do
leitor aos “pontos de indeterminação do texto”:
A liberdade concedida ao leitor está na verdade restrita aos pontos de indeterminação do texto,
entre os lugares plenos que o autor determinou. Assim, o autor continua, apesar da aparência,
dono efetivo do jogo: ele continua a determinar o que é determinado e o que não o é. Essa
estética da recepção, apresentada como um avanço da teoria literária, poderia bem não ter sido,
afinal de contas, mais que uma tentativa para salvar o autor, conferindo-lhe uma embalagem
nova
40
.
O fictício evoca um imaginário operante em tempo integral durante a leitura
41
, motivo pelo
qual a atuação do leitor não estaria circunscrita apenas ao gesto de atribuição de sentido.
Ao postularmos o sentido do texto literário, não deixamos de reconhecer, contudo, as
interferências provenientes do efeito estético sobre o sentido, mas frisamos que o efeito tem o
elã do difuso e do virtual. No seu limite, a esse elã corresponde uma experiência de leitura
cujo caráter episódico parece ser incompatível com o exercício da crítica literária. Ainda que
tenha consciência da precariedade do enunciado literário, a crítica literária deve perseguir um
lastro de assertividade – que não se confunde com a restrição da crítica a uma função
meramente instrumental, segundo a qual seria vista como veículo do sentido do texto.
É imperativo que tal exercício esteja atrelado a uma proposição argumentativa, a ser
transmitida a outros leitores, uma vez que a crítica literária não se coaduna com o evasivo,
com explicações que deixem de verbalizar o plausível. Resta indagarmos pelos passos
galgados do sentido até a interpretação, ou melhor, pelo caminho que, iniciado com o efeito
pura e simplesmente, passa pelo sentido e chega à interpretação, sem que esta parada seja
entendida como a fixação transcendental do sentido do texto, mas como o empenho realizado
pelo leitor em prol da formulação de hipóteses e de uma proposição argumentativa. O efeito
40
COMPAGNON. O leitor, p.155.
41
Ver O fictício e o imaginário, de Wolfgang Iser.
27
ou a experiência estética deve resistir até o final, pois negar a reverberação do efeito seria
como negar a ação do imaginário nesse percurso. Sendo assim, antes de ser a amostra de uma
competência, o ato da leitura é uma maneira de se concretizar a realidade fugidia do
imaginário.
Mesmo no caso da interpretação palavra que suscita uma rigidez semântica ainda
mais grave do que a suscitada pelo “sentido” –, o “fechamento” do sentido do texto debilitaria
a “relação dialética entre texto e leitor” caracterizada por Iser, pois, para haver esse
fechamento, o texto literário não poderia veicular sentidos tão multívocos como se imagina,
isto é, seria possível exaurir o sentido do texto. Ainda que Iser cogite o sentido como hipótese
para se atingir tal fechamento, no debate à primeira sessão do colóquio que deu origem ao
livro Teoria da ficção: indagações à obra de Wolfgang Iser, o autor argumenta:
A “descoberta” do sentido pode ser um meio [de se atingir o fechamento]. No entanto, o
sentido do texto não é ocultado pelo autor para que o leitor ou o intérprete possa então resgatá-
lo. Pelo contrário, o sentido do texto deve ser reunido pelo leitor, e o sentido se torna sentido
dependendo da precisão que o leitor alcança no ato de leitura. Portanto, os leitores são
seletivos no que se refere à reunião de sentido e tal seletividade constitui uma necessidade
inerente à possibilidade do fechamento
42
.
Sublinhamos, então, que o sentido decorre não propriamente de uma decisão do autor,
mas do empenho do leitor o que significa, conforme os termos iserianos, que o sentido não
está oculto no texto, mas que ele emerge
43
do texto. Sublinhamos também que o fator
categórico para a gradação do efeito para o sentido e do sentido para a interpretação consiste
no aprimoramento da precisão mencionada por Iser. Há, portanto, uma interdependência entre
efeito, sentido e interpretação, como Luiz Costa Lima faz supor ao refletir sobre o
42
ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.56.
43
Sobre a emergência do sentido, valemo-nos da explicação de Iser no referido debate: “[...] o que emerge é
praticamente imprevisível. Noutras palavras, em si mesma, emergência não possui uma qualidade específica,
assim como o sentido de um texto não a possui. Quando chegamos a um sentido, ele se encontra modelado e
perspectivizado, construindo um processo que aponta para uma decisão pragmática sobre o que o sentido deve,
afinal de contas, significar. O mesmo é verdadeiro para o conceito de emergência, o qual também é
pragmaticamente interpretado”. ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.60.
28
pensamento de Iser: “[...] é o efeito (produto de orientações e valores) atualizado no leitor que
lhe serve de filtro para emprestar sentido à indeterminação contida no texto”
44
.
Os vários níveis ou instâncias de efeitos e sentidos demonstram, assim, a
complexidade do enunciado literário. Se a inexistência de um sentido imanente ao texto
poderia diminuir a pertinência do estudo do sentido, essa breve incursão pelas Estéticas da
Recepção e do Efeito mostra, ao contrário, que o sentido deve ser, irrefutavelmente, objeto de
reflexões teóricas. Entre essas reflexões, os limites do sentido ou seja, os limites da
autonomia do leitor representam um tópico candente, ainda que a pergunta pelo quinhão de
liberdade do leitor diante do texto deva ser entendida como um exemplo de pergunta retórica.
Apesar de haver muitos pontos de contato entre as teorias de Jauss e Iser, os autores
atribuem esses limites de modo distinto. Ambos pressupõem uma relação dialógica entre texto
e leitor, além de defenderem um sentido multívoco para o texto; porém Jauss privilegia a
dimensão histórica da literatura como um condutor do sentido, e Iser, a dimensão estética.
Seria um erro negar a presença do elemento estético em Jauss; no entanto, ressaltar a
dimensão histórica da literatura no pensamento do autor é uma maneira de compararmos a
Estética da Recepção com a Estética do Efeito.
A relação entre literatura e história pode ser vista em conceitos tais como “sistemas
histórico-literários de referência” e “horizonte de expectativa”, que, potencialmente, afiançam
diferenças entre as leituras do passado de uma obra e as do presente. Essas diferenças que,
no seu conjunto, montam a história da recepção dessa obra não impedem, contudo, que
Jauss defenda pretensiosamente a possibilidade de se reconstruir o “horizonte de expectativa”
de uma obra:
A reconstrução do horizonte de expectativa sob o qual uma obra foi criada e recebida no
passado possibilita, por outro lado, que se apresentem as questões para as quais o texto
44
COSTA LIMA. Prefácio à segunda edição de A literatura e o leitor, p.24.
29
constituiu uma resposta e que se descortine, assim, a maneira pela qual o leitor de outrora terá
encarado e compreendido a obra
45
.
Essa defesa da reconstrução do horizonte de expectativa que é idealizada, pois ela nega a
passagem do tempo como princípio de mudanças, ou seja, ela nega a modificação do passado
pelo presente
46
acaba por projetar a atuação da crítica literária: mesmo que o autor não faça
uma menção específica a ela, a crítica vale como um instrumento eficaz de divulgação dos
horizontes de recepção e de visualização, não exatamente das perguntas respondidas pelo
texto, mas das diferentes perguntas suscitadas pelo texto.
O “horizonte de expectativa” veicula referências e diretrizes, limitadoras do sentido,
como podemos verificar na recepção à obra de Machado de Assis, em que um mesmo tema,
como a identidade nacional, estimula respostas discrepantes. Para justificarmos rapidamente o
exemplo, recortamos três momentos decisivos – ou de inflexão – dessa recepção, que balizam
tal identidade. A recepção inicial do autor, imersa nos princípios estéticos vigentes naquela
época, mostra como os expoentes das gerações de 1870 e 1890 viam o elemento nacional sob
os preceitos do positivismo e do evolucionismo, que condicionavam a literatura – bem como a
interpretação da obra à representação da história. Sendo assim, conforme João Alexandre
Barbosa conclui: “Interpretar [...] era, antes de mais nada, localizar na literatura os momentos
de aproximação ou recuo àquilo que se afirmava como fundamento da história”
47
. Ilegível
para os leitores contemporâneos ao autor, a propagada presença da identidade nacional em
Machado o que quer que ela represente transformou-se na tônica da recepção brasileira a
sua obra
48
. Roberto Schwarz consagra Machado como um dos principais críticos da formação
45
JAUSS. A história da literatura como provocação à teoria literária, p.35.
46
Ver ELIOT. Tradição e talento individual, p.40.
47
BARBOSA. A paixão crítica: forma e história na crítica brasileira, xvi.
48
Porém, antes de ser um traço da recepção machadiana, a procura pela identidade nacional cerceia a tradição
crítica brasileira, como João Alexandre Barbosa explica no ensaio A paixão crítica: forma e história na crítica
brasileira”: “Ora, se nos ativermos a alguns dos principais textos críticos que constituem a nossa tradição entre a
segunda metade do século XIX e inícios do século XX, não será difícil verificar de que modo todos eles estão
configurados sob uma perspectiva que eu chamaria de paixão interpretativa. Era natural: desde o começo das
reflexões críticas no Brasil, mesmo as menos sistemáticas, empreendidas pelos próprios criadores entre os
30
social brasileira, ao creditar à ousadia da forma narrativa talhada pelo escritor a precisão com
que dramatiza a tessitura social do país. No último nódulo deste esboço crítico, localizamos
uma descrença quanto à exegese do nacional, como Abel Barros Baptista demonstra ao
cunhar o paradigma do pé atrás: nos termos desse paradigma, em razão do próprio jogo entre
autores ficcionais e autor empírico, “nunca saberemos mais do que a própria possibilidade”
49
.
Baptista problematiza a rigidez com que a fina flor da recepção machadiana atribuiu um
significado ao nome “Machado de Assis”, através do qual se procurava “uma identidade
anterior à ficção e ao abrigo dos seus efeitos, que funcionasse como centro estável, seguro,
perceptível, a partir do qual todas as distâncias se pudessem medir”
50
. Hélio de Seixas
Guimarães argumenta que a restrita circulação da literatura no século XIX, em meio a um
escasso público leitor, colocava em dúvida o “projeto de um romance nacional extensivo,
capaz de abarcar todo o país, formulado pelos românticos e desenvolvido por José de
Alencar”
51
.
Esse quadro crítico de reflexão mostra como o “horizonte de expectativa” é visível
a partir do momento em que leituras são registradas ou documentadas. Por isso, a crítica acaba
por merecer um lugar de destaque assim como o leitor que vira escritor –, uma vez que a
leitura do leitor comum se perde. Além disso, esse quadro evidencia que a comunicação
literária é “contaminada” por motivações históricas, mas, ainda que essas motivações possam
ser recuperadas, não há como afirmar que elas possam ser recuperadas tal como aconteceram.
O exemplo que traçamos à luz da recepção machadiana enfatiza como um “horizonte
de expectativa” agencia uma conjuntura de fatores determinantes da historicidade do sentido,
que concretizam, portanto, substratos da multiplicidade semântica do texto literário. Ao
séculos XVII e XIX, o debate centra-se na busca de uma diferença com relação à Europa e, portanto, pela
identidade nacional. Neste sentido, a interpretação da literatura era subsidiária da preocupação maior em
identificar os traços culturais que serviam de base para uma identificação abrangente do país”. BARBOSA. A
paixão crítica: forma e história na crítica brasileira, xv.
49
BAPTISTA. Autobibliografias, p.370.
50
BAPTISTA. A formação do nome, p.15.
51
GUIMARÃES. Os leitores de Machado de Assis, p.32.
31
mesmo tempo, porém, esses fatores cerceiam a crítica e explicam por que ela pode ser
organizada a partir de mônadas ou núcleos, como os que vimos anteriormente. Em outras
palavras, temos um mesmo embasamento para duas proposições contrárias, mas igualmente
corretas: 1. a integração entre literatura e história revela um potencial de sentido, isto é,
desencadeia leituras múltiplas; 2. a integração entre literatura e história elabora horizontes de
expectativas, que, apesar de se renovarem periodicamente e não se constituírem como agentes
unificadores de leituras, ajudam a justificar o fato de leituras vizinhas no tempo e no espaço
compartilharem preocupações e argumentações.
As referências pautadas por esse horizonte ocupam um lugar central no projeto
historiográfico de Jauss, pois elas valem como dispositivos por meio dos quais o sentido é
controlado, sem que incorra no psicologismo ou no impressionismo. Vale lembrar que o
“horizonte de expectativa” é, por definição, um conceito que pressupõe valores a serem
assimilados coletivamente. A dúvida que deve ser posta é se não uma refração desses
valores que comprometa um eixo de integração como o do “horizonte de expectativa”,
principalmente numa época como a atual – época “da contingência e da disseminação”
52
–, em
que uma alta dosagem de desconfiança incide sobre caracterizações que tendem para a
homogeneização.
a fenomenologia da leitura de Iser acalenta a experiência de um leitor particular,
sendo que os limites do leitor são pautados pelo próprio texto. Assim, podemos deduzir que a
tradição pós-romântica imprimiu novas fronteiras para a interpretação ou novos sistemas
interpretativos, por assim dizer –, uma vez que essa tradição aboliu prescrições técnicas e de
gosto, que condicionavam a recepção do texto e os efeitos produzidos por ele. Dessa maneira,
tal como o ato da escrita literária, o ato da leitura comporta a disjunção como fator sine qua
non.
52
BARRENTO. Que significa “moderno”?, p.39.
32
Ao leitor, as advertências
Um bom prefácio tem de ser, ao mesmo tempo, a raiz e o quadrado do livro.
Friedrich Schlegel, fragmento 08 do Lyceum.
A alteração em tais sistemas pode ser visualizada através da prática de escrita de
prefácios, balizada pelo romantismo. O prefácio – dotado de nomes variados, entre eles
prólogo, apresentação, advertência, nota – é um gênero singular, instância do limiar, da
passagem, que, de acordo com João Barrento, mais do que o “texto que precede”, deve ser
visto como o “texto que acompanha”
53
. Definidos de maneira genérica, sem que façamos
distinções entre uma modalidade literária e outra crítica, os prefácios evidenciam a dimensão
institucional da literatura e projetam uma orientação de leitura, isto é, pretendem “explicar por
que e como se deve ler”
54
.
Ainda que os prefácios apontem para o modo como a literatura estimula uma rede de
comentários e análises, no caso dos prefácios literários eles podem aspirar a uma espécie de
programação da recepção, como se, dessa maneira, os equívocos de leitura pudessem ser
evitados. Vemos nesses prefácios uma estratégia retórica que, junto à pretensa validação de
uma intenção autoral e de um guia de leitura, eventualmente cumpre um resultado contrário
ao pretendido se o leitor verificar como pode haver diferença entre o que se afirma nos
prefácios e o que acontece durante seu próprio ato de leitura. Diante desse quadro, aventamos
que essa estratégia nutre-se, antes de mais nada, de uma preocupação com o leitor.
A posição lateral do prefácio escrito pelo crítico decorre de ser ele a apresentação a um
texto de outro autor, escrita ensaística tergiversa cuja natureza é a da cumplicidade entre o
texto do prefácio e o prefaciado. No caso do prefácio literário, temos uma congruência autoral
53
BARRENTO. Pela porta dos afetos, p.10.
54
JOUVE. A leitura, p.67.
33
e uma interação entre a verve criadora e a crítica, sem que seja necessariamente projetada uma
relação de cumplicidade do autor para com o leitor. Essa autoria coincidente gera a
curiosidade quanto às motivações que justificam um tipo especial de prefácio: o escrito pelo
próprio autor.
Vale pensar, assim, qual relação o prefácio mantém com a respectiva obra, como ele
oferece uma consciência reflexiva da escrita literária ou, para falarmos junto com Jorge Luis
Borges em “Prólogo de prólogos”, como ele acaba por expor uma estética, amparando, assim,
uma forma indireta de crítica
55
. A se pontuar especificamente o romance moderno, talvez seja
válido supor que esse gênero foi acompanhado inicialmente por prefácios, caminho para
formação dos leitores, por ser um gênero sem teoria até a Idade Moderna
56
.
A conciliação da atividade de cunho literário com a de cunho crítico pelos escritores é
uma das características da modernidade. Segundo Leyla Perrone-Moisés:
Esse exercício particular da crítica, que é a crítica literária, se inscreve num contexto filosófico
maior, de profanização da esfera dos valores, de valorização da subjetividade, de perda de
respeito pelas autoridades legiferantes e concomitante reivindicação do livre exame e do livre-
arbítrio
57
.
Essa conciliação, derivada da abolição de referências normativas e de valores fixos que ocorre
com o romantismo, cria um canal através do qual o escritor corrobora seus preceitos e sua
atividade literária. Ainda nas palavras de Perrone-Moisés: “A crítica dos escritores não visa
simplesmente auxiliar e orientar o leitor (finalidade da crítica institucional), mas visa
principalmente estabelecer critérios para nortear uma ação: sua própria escrita [...]. Nesse
sentido, é uma crítica que confirma e cria valores”
58
.
55
Ver BORGES. Prólogo de prólogos, pp.13-14.
56
Ver BRANDÃO. A invenção do romance, p.30.
57
PERRONE-MOISÉS. Introdução a Altas literaturas, p.10.
58
PERRONE-MOISÉS. Introdução a Altas literaturas, p.11.
34
Os prefácios que os autores escrevem para seus textos figuram como um espaço que
não é exatamente correspondente à crítica a que se refere Perrone-Moisés, mas que vai ao seu
encontro. Neles os autores congraçam princípios que orientaram a escrita das respectivas
obras, como William Wordsworth manifesta no prefácio às Baladas líricas: o poeta o escreve
movido pelo propósito de empreender uma “defesa sistemática da teoria que presidiu à sua
criação”
59
. Assim, os prefácios acentuam a individualidade autoral, determinante, como já
observado, para a concepção moderna de literatura.
Destacamos os prefácios – ou advertências – que acompanham grande parte das
edições dos romances de Machado de Assis. Em alguns desses prefácios, Machado demonstra
a preocupação com a recepção crítica a sua obra, preocupação que segue rente à avaliação
feita pelo escritor da sua produção literária. Contudo, a se julgar pelos prefácios dos
romances, essa preocupação revela-se decrescente ao longo das suas publicações.
Potencialmente, a atenção com o leitor fomenta o questionamento dos processos
através dos quais a literatura condiciona o sentido. Ou seja, a pergunta pelo leitor aponta para
a complexidade do enunciado literário na medida em que o sentido ressalta: 1. o gesto de
escrita pelo autor; 2. a configuração textual; 3. o estatuto do ficcional, isto é, do referencial
criado pela literatura; 4. o ato da leitura. Na obra de Machado de Assis, esses elementos
recebem um destaque proeminente, sendo que uma das maneiras de analisá-los pode ser
através dos prefácios.
A importância decrescente conferida por Machado ao leitor nas advertências aos
romances que, segundo se observa, diz respeito especialmente ao leitor crítico parece se
confirmar no entrecho das narrativas, como Hélio de Seixas Guimarães argumenta no estudo
Os leitores de Machado de Assis. Estimulado, sobretudo, pela teoria de Iser, Guimarães
sublinha nos romances machadianos as relações entre narrador e leitor, no âmbito ficcional, e
59
WORDSWORTH. Prefácio às Baladas líricas, p.169.
35
entre escritor e público empírico, no âmbito histórico. O crítico defende que a escassez do
público alfabetizado, evidenciada por meio da divulgação de um censo em 1876, teria afetado
a forma com a qual Machado desenha a relação entre narradores e leitores. Por isso, segundo
a hipótese defendida por Guimarães, desde as Memórias póstumas, os romances acentuam a
precariedade da relação entre narrador e leitor, razão pela qual os leitores ganham um espaço
cada vez menor em suas páginas.
Na medida em que a obra do escritor caminha para a maturidade, percurso que
imprime lacunas e omissões narrativas a que designamos como negatividade, verificamos um
descuido performativo com o leitor. Ou seja, na medida em que a negatividade presente na
obra machadiana passa a demandar mais o empenho do leitor, o autor faz um aceno hirto para
o leitor ou finge ignorá-lo.
A se julgar literalmente as advertências aos primeiros romances, encontramos um
autorretrato do escritor, complementado com as advertências redigidas para as edições
subsequentes dos mesmos. A advertência à primeira edição de Ressurreição mostra um
escritor inseguro e humilde ao experimentar um novo gênero, um escritor clemente do
comentário da crítica, por entendê-lo como uma oportunidade de aperfeiçoamento. Temos
aqui uma visão da crítica contraposta à imagem do crítico narrada por Brás Cubas nas suas
Memórias póstumas. No capítulo intitulado “O Bibliômano”, o narrador cogita suprimir o
capítulo anterior: segundo ele, “[...] entre outros motivos, [ali], nas últimas linhas, uma
frase muito parecida com despropósito, e eu não quero dar pasto à crítica do futuro”
60
. Na
sequência, Cubas perfila a imagem desse crítico:
Olhai: daqui a setenta anos, um sujeito magro, amarelo, grisalho, que não ama nenhuma outra
coisa além dos livros, inclina-se sobre a página anterior, a ver se lhe descobre o despropósito;
lê, relê, treslê, desengonça as palavras, saca uma sílaba, depois outra, mais outra, e as
restantes, examina-as por dentro e por fora, por todos os lados, contra a luz, espaneja-as,
esfrega-as no joelho, lava-as, e nada; não acha o despropósito.[...]
60
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.488.
36
O pior é o despropósito. Lá continua o homem inclinado sobre a página com uma lente no
olho direito, todo entregue à nobre e áspera função de decifrar o despropósito. Já prometeu a si
mesmo escrever uma breve memória, na qual relate o achado do livro e a descoberta da
sublimidade, se a houver por baixo daquela frase obscura. Ao cabo, não descobre nada e
contenta-se com a posse. Fecha o livro, mira-o, remira-o, chega-se à janela e mostra-o ao sol.
Um exemplar único!
61
A comparação dessa imagem com a subserviência com a qual Machado se refere à
crítica no prefácio de Ressurreição potencializa um sistema interpretativo demarcado pelas
duas fases do autor. Ao contrário da imagem do crítico proposta por Brás Cubas, na
advertência à primeira edição de Ressurreição Machado demonstra uma confiança respeitosa
na crítica, pois ela teria o mérito de decidir a “qualidade” da obra apresentada pelo autor. o
crítico esboçado pelo defunto autor
62
recebe contornos sarcásticos pelos quais se depreende o
exercício da crítica literária a partir de um atributo inócuo. O crítico seria um leitor
despreparado para entender os “enigmas” do texto literário, restando-lhe apenas um fetiche
livresco.
Como vemos no retrato do crítico feito por Cubas, o exercício da crítica literária
projeta-se sobre o propósito de o crítico decifrar o texto ou descobrir o enigma dele emanado.
Esse propósito, que acaba por sublinhar a vontade de se recuperar a intenção autoral e, em
contrapartida, encolhe a liberdade do leitor –, não parece, contudo, ser estimulado por Cubas
no prefácio que assina. Nele, o defunto autor
63
frisa a independência da obra perante as
possíveis “dicas” do autor:
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um
prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos coisas, ou o que as diz de
um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que
empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas no outro mundo. Seria curioso,
mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma
é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se não te agradar, pago-te com um
piparote, e adeus.
64
61
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.488.
62
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.415.
63
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.415.
64
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.413 (grifos nossos).
37
Ao iluminar a obra, Cubas sinaliza que ela suscita entendimentos diversos, fato que implode o
alcance efetivo de um programa de leitura ditado pelo autor. Em outras palavras, Cubas
parece questionar plataformas que influenciem o leitor, na medida em que o defunto autor
65
privilegia a obra, e não as pretensões do “autor”.
Paradoxalmente, através do reconhecimento da obscuridade da obra e da recusa a um
caminho autoexplicativo isto é, ao transpor os parâmetros da negatividade –, Machado
realça o papel do leitor e a crítica literária. Conforme Guimarães afirma:
Uma das mudanças mais notáveis de Iaiá Garcia para as Memórias póstumas tem a ver com o
tratamento dispensado pelos narradores aos leitores e com o vel de exigência de leitura e
interpretação a que estes, os leitores, são submetidos pelos romances da chamada segunda
fase
66
.
Essa alteração quanto à interpretação, isto é, quanto à expectativa do autor ao pensar no
sentido encabeçado pelo leitor, estaria anunciada de antemão nos prefácios. Ao deixar de
explicar suas pretensões narrativas, Machado se furta a instruir a recepção, escrevendo
prefácios que mais parecem antiprefácios.
A convencionada “segunda fase” dos romances machadianos enfatiza, então, como a
abertura de sentido propiciada pelos parâmetros da negatividade torna o papel do leitor mais
luminoso. Daí a dúvida: como conciliar o inacabamento do texto, pressuposto pela ideia da
negatividade, com a definição iseriana segundo a qual os limites do leitor são outorgados pelo
próprio texto? Essa dúvida revela a dificuldade em se conciliar o fato de o texto literário ter
como característica a inexauribilidade do sentido e, ao mesmo tempo, limitar a atuação do
leitor, isto é, regular sua leitura.
Podemos reformular essa dificuldade nos seguintes termos: num nível abstrato-teórico,
a inexauribilidade do sentido é uma prerrogativa obrigatória para a estética literária moderna –
65
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.415.
66
GUIMARÃES. Os leitores de Machado de Assis, p.35.
38
uma vez que essa estética problematiza a origem e a totalidade do sentido –, porém, na sua
concretude, a leitura e a interpretação ocorrem sob parâmetros limitadores. Sendo assim,
parece haver certa idealização da interpretação quando se afirma que a legibilidade do texto
literário guarda um caráter infindável, como o faz Silvina Rodrigues Lopes:
Quando lemos um poema podemos dizer que, para além de atendermos à ordem sequencial
dos seus elementos, somos solicitados por hipóteses de associação e de confronto que rompem
essa ordem. Temos sempre presente a composição como um jogo que desconhece as suas
regras e que nos leva a reinventá-las na dependência das circunstâncias da leitura, efêmeras,
por definição. Podemos dizer que, por mais reduzido em termos de extensão que seja o poema,
a sua interpretação é infinita, o seu limite é ilimitação. É por isso que o poema não é a soma de
um plural de significados, mas sim um lugar de disseminação dos significados
67
.
Ainda que o argumento acima mencione apenas o texto poético, podemos estendê-lo ao texto
ficcional. Apesar das diferenças entre esses regimes textuais inclusive do ponto de vista da
doação de sentido –, a “disseminação dos significados” é válida para ambos os gêneros
literários.
Segundo Iser, a interpretação é “um esforço cognitivo que busca produzir sentido a
partir daquilo a que fomos expostos”
68
. Ao reforçar que o sentido é estimulado pelo texto,
essa definição explicita, por outro lado, que o sentido exige um esforço do leitor, isto é, que
há limites circunscritos à sua esfera. Além de sublinhar os limites do leitor, o “esforço
cognitivo” mencionado pela definição implica também um apelo à linguagem, pois os
domínios do sentido e da interpretação são erguidos via linguagem. Em outras palavras,
podemos dizer que tanto o sentido quanto a interpretação obrigam a tradução do texto
literário em outros ou novos termos, como conjura o conto “Pierre Menard, autor do
Quixote”, de Borges, ao ilustrar como o ato da leitura é também um ato de reescrita do texto,
67
LOPES. Literatura e hipertexto, p.133.
68
ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.132.
39
sem que haja uma polaridade entre um ato e outro. E reescrever o texto significa assumir a
incompletude e o afastamento da objetividade como marcas
69
.
No ensaio “A interpretação da obra literária”, Alfredo Bosi explica a conjunção entre
interpretação e tradução:
Interpres chamavam os romanos àquele que servia de agente intermediário entre as partes em
litígio. Com o tempo, interpres assumiu também a função de tradutor: o que transporta o
significado da sua forma original para outra; de um código primeiro para um código segundo;
o que pretende dizer a mesma mensagem, mas de modo diferente. A interpretação opera nessa
consciência intervalar, e ambiciona traduzir fielmente o mesmo, servindo-se dialeticamente do
outro. O outro é o discurso próprio da literatura
70
.
Da citação, interessa-nos destacar a correspondência aludida entre interpretação e tradução.
Porém, discordamos de Bosi na medida em que o autor promove o intérprete como agente
capaz de veicular, de forma coincidente, a mensagem do texto lido no texto reescrito.
Acreditamos, ao contrário, que tal correspondência operacionaliza não uma repetição,
mas uma différance na acepção de Jacques Derrida –, que questiona a origem e a essência.
Em termos iserianos, podemos dizer que, em respeito à assimetria entre texto e leitor, a leitura
deve ser pensada como um ato de estranhamento ou de interrupção, que obriga o jogo e a
distinção entre a expressão literária e a da leitura crítica ou não. A correspondência entre
interpretação e tradução acaba por enfatizar a textualidade da própria crítica; e, através desse
aspecto, observa-se que o papel do leitor concorre para a exploração do sentido via
linguagem
71
.
69
Uma breve síntese do impacto dessas marcas na produção de ensaios críticos pode ser vista no artigo “O
ensaio na crítica literária contemporânea”, de Rachel Esteves Lima (in: Revista de Estudos de Literatura, v.3,
pp.35-42).
70
BOSI. A interpretação da obra literária, p.277 (grifo do autor).
71
Ver Texto, crítica, escritura, de Leyla Perrone-Moisés. A partir do estudo do pensamento de Roland Barthes, a
autora explicita a indistinção entre escrever e ler. Nas palavras de Perrone-Moisés: “Barthes vai notar que um
texto se reescreve indefinidamente à medida que é sucessivamente lido e, ainda mais, que ele se escreve no
momento em que é lido, que a leitura é a condição da escrita e não o inverso, como antes se postulava”.
PERRONE-MOISÉS. Texto, crítica, escritura, p.05.
40
A literatura de ficção e o “lugar do incerto”: sentido e verdade
É triste explicar um poema. É inútil também. Um poema não se explica. É
como um soco. E, se for perfeito, te alimenta para toda a vida. Um soco
certamente te acorda e, se for em cheio, faz cair tua máscara, essa frívola,
repugnante, empolada máscara que tentamos manter para atrair ou assustar.
Hilda Hilst, Cascos & carícias & outras crônicas.
O porteiro portanto enganou o homem disse K. em seguida, fortemente
atraído pela história.
Não seja precipitado disse o sacerdote. Não acolha sem examinar a
opinião de estranhos. Contei-lhe a história segundo as palavras do texto. Ali
nada consta a respeito de engano. [...]
Por que você acredita que ele cumpriu seu dever? perguntou K. Ele não
cumpriu. Talvez o seu dever fosse repelir todos os estranhos, mas precisasse
deixar entrar este homem para o qual a entrada estava destinada.
– Você não dá atenção suficiente ao texto e altera a história – disse o
sacerdote.
Franz Kafka, O processo.
Dissemos anteriormente que, apesar das diferenças entre o texto ficcional e o texto
poético, a “disseminação dos significados” é válida para ambos os neros literários.
Contudo, essas diferenças impulsionam matizes irrefutáveis no que diz respeito aos processos
de doação de sentido. Ainda que tal disseminação seja pertinente a ambos os gêneros, é
preciso observar que o gênero poético oferece uma resistência maior ao sentido. Ou seja, a
poesia distingue melhor a intransitividade como característica, erigida pela linguagem poética
e por aspectos não semânticos dessa linguagem, como som e ritmo. Por essa razão, uma
postergação no acesso ao sentido, pois ele é definido enquanto falta
72
e, nesse caso, a teoria
da literatura reconhece comumente a primazia do excesso de sentido no gênero poético.
Conforme Tzvetan Todorov destaca no texto “A noção de literatura”, a definição
estrutural da literatura como sendo uma ficção passa pela distinção entre o texto ficcional e o
texto poético, pois este texto dificilmente comporta as noções de ficção e de representação.
72
Ver Resistência da poesia, de Jean-Luc Nancy.
41
Neste trabalho, adotamos o texto ficcional como categoria preferencial, pois, além de
lidarmos com um sistema conceitual que privilegia a ficção
73
, o estudo da interpretação do
texto poético exigiria uma longa discussão a respeito dos fatores intrínsecos a esse texto e da
repercussão deles na emergência do sentido – discussão que, aliada ao estudo da interpretação
do texto ficcional, seria inviável para os contornos deste trabalho.
O estatuto do ficcional importante elemento caracterizador da literatura gera o
questionamento do referencial criado pelo texto literário, pois, ao mesmo tempo em que esse
texto pode acolher o mundo real, ele cria um outro mundo possível, com elevada
complexidade cognitiva. Além disso, o sentido desse referencial não está alheio às
interferências ou mediações presentes no ato da leitura, sejam elas de natureza empírica,
axiológica, histórico-cultural, política ou teórica, motivo pelo qual esse referencial recusa uma
fixação unívoca e perene.
O ficcional deve ser pensado, indissociavelmente, a partir de uma força centrífuga
que favorece a conexão com o mundo empírico, seja no processo de produção do texto, seja
no de sua recepção e de uma construção linguístico-formal, que remete, portanto, para o
desenho do texto. Ainda que possa haver o predomínio de uma dessas instâncias sobre a outra
conforme o estilo do autor, entendemos o ficcional numa via que não comporta a distinção
dicotômica entre uma visada realista e outra de cunho formal, diferentemente da
compartimentação presente na ilusão romanesca depreendida por Marthe Robert a partir da
história do romance:
Genericamente, e sem levar em conta inumeráveis formas transitórias, a ilusão romanesca
pode ser tratada de duas formas: ou o autor faz como se ela não existisse em absoluto, e a obra
passa por realista, naturalista ou simplesmente fiel à vida; ou exibe o como se que é sua
principal intenção, e, nesse caso, a obra é dita onírica, fantástica, subjetiva, ou ainda
classificada sob a rubrica mais ampla do simbólico. Há, portanto, dois tipos de romance, um
que pretende haurir sua matéria no vivo para se tornar uma “fatia da vida” ou o famoso
“espelho que desfilamos por um caminho”; outro, que, ao admitir previamente não passar de
um jogo de formas e figuras, mantém-se quite com toda obrigação que não decorra
73
Nessa direção, ver: JOUVE. A leitura, pp.14-15.
42
imediatamente de seu projeto. Dos dois, naturalmente é o primeiro que engana mais
solidamente, que faz de tudo para escamotear a ilusão; além disso, chama atenção para o
engodo do segundo, pois se o escrito e o vivo apresentam entre si não analogias, mas pura e
simplesmente graus de passagem que todo autor pode esperar transpor até o último, o romance
de pura fantasia é necessariamente percebido como falso ou, no mínimo, como retrógrado no
nível do puro entretenimento [...]
74
.
A se ratificar essa distinção, seria forçoso reconhecer que uns romances o mais
verdadeiros e outros, com quimeras generosas, são totalmente falaciosos, o que certamente
asseguraria um critério valorativo cevado na identificação do real pelo leitor ou numa
concepção de mundo autoevidente dos mais duvidosos: ora, como pensar, por exemplo, que
o efeito de estranhamento criado por Franz Kafka através da deformação do real e do
deslocamento dos sentidos habituais pode ser taxado de infiel à vida?
na década de 1930, Günther Anders avalia Kafka como um escritor realista, no
ensaio Kafka: pró & contra: “[...] Kafka deslouca a aparência aparentemente normal do nosso
mundo louco, para tornar visível sua loucura. Manipula, contudo, essa aparência louca como
algo muito normal e, com isso, descreve até mesmo o fato louco de que o mundo louco seja
considerado normal”
75
. A se concordar com Anders, trata-se de frisar, portanto, que há
maneiras menos óbvias de um texto se apropriar do mundo real do que as concebidas pelo
modelo de ficção realista stricto sensu, segundo o qual a obra deve estar próxima do contexto
em que foi gerada, isto é, o referencial extraliterário pode ser transposto, em tese, para o texto
literário, sem que sejam previstos, para tanto, processos deformativos e de desautomatização.
Conforme Marthe Robert lembra, o exemplo mais contundente da frenética
sobreposição de configurações empreendida pela literatura e do desafio teórico daí decorrente
reside na teoria do romance:
Tendo deixado o status de gênero menor e desacreditado a uma potência provavelmente sem
precedente, ele [o romance] é agora praticamente único a reinar na vida literária [...]. Com essa
liberdade do conquistador cuja única lei é a expansão indefinida, o romance, que aboliu de
74
ROBERT. Romance das origens, origens do romance, p.53 (grifos da autora).
75
ANDERS. Kafka: p& contra, p.15 (grifo do autor).
43
uma vez por todas as antigas castas literárias – as dos gêneros clássicos –, apropria-se de todas
as formas de expressão, explorando em benefício próprio todos os procedimentos sem nem
sequer ser solicitado a justificar seu emprego. E, paralelamente a essa dilapidação do capital
literário acumulado por séculos, apodera-se de setores cada vez mais vastos da experiência
humana, vangloriando-se de conhecê-la profundamente e da qual faz uma reprodução, ora
apreendendo-a diretamente, ora interpretando-a à maneira do moralista, do historiador, do
teólogo e, até mesmo, do filósofo e do cientista. [...] Gênero revolucionário e burguês,
democrático por opção e animado por um espírito totalitário que o leva a romper obstáculos e
fronteiras, o romance é livre, livre até o arbitrário e até o último grau de anarquia
76
.
Vale ressaltar, entretanto, que as definições de Robert e de Mikhail Bakhtin para quem o
romance é “[...] um gênero que eternamente se procura, se analisa e que reconsidera todas as
suas formas adquiridas”
77
apresentam uma visão idealizada de romance, uma vez que, por
mais liberdade formal que o romance possa ter ou por mais longe que seus tentáculos
consigam alcançar, trata-se de um gênero inexoravelmente realista.
Segundo a orientação ampla do termo, o aludido “realismo” diz respeito aqui a
categorias representacionais elementares isto é, sujeito, tempo e espaço das quais não se
pode fugir; como ilustra o romance Se um viajante numa noite de inverno, de Italo Calvino,
em que o autor cria uma classificação para o gênero – composta por tipos tais como “romance
da angústia”, “romance lógico-geométrico”, “romance da perversão” –, que, apesar das
diferenças entre os tipos, realça a ubiquidade dessas categorias.
Apesar da ubiquidade de tais categorias, na sua acepção moderna, a literatura de ficção
configura-se como o “lugar do incerto” e acentua a mudança no sistema operativo tanto da
produção do texto literário como da sua recepção, conforme Silvina Rodrigues Lopes dispõe:
Se a ruptura com o postulado do sagrado é uma característica da modernidade, esse
movimento é indissociável da emergência de um novo tipo de discurso a literatura –, o qual
ao construir os seus referentes põe em evidência a não adequação da linguagem ao exterior, e
consequentemente a impossibilidade de pensar a relação verdadeiro/ falso a partir daquela. Por
outro lado, a literatura separa-se dos discursos suscetíveis de serem avaliados segundo essa
mesma oposição verdadeiro/ falso. Traz por isso consigo a necessidade de se não confundir
sentido e verdade: o sentido de um texto literário não é a sua verdade (verdade do seu espírito,
ou da sua letra, ou da aliança dos dois), mas o que ocorre na experiência da leitura
78
.
76
ROBERT. Romance das origens, origens do romance, pp.12-13.
77
BAKHTIN. Epos e romance (sobre a metodologia do estudo do romance), p.427.
78
LOPES. A legitimação em literatura, p.412.
44
Se a literatura está suscetível a um sentido, e não a uma verdade, vemos de início delineada
uma tensão: seria pertinente a pergunta quanto à existência de um sentido errôneo,
caracterizado na medida em que se excede um limite de possibilidades aceitáveis para o
sentido, ou atrás desse questionamento estaria disfarçada uma procura pela verdade?
Considerando que a modernidade literária cria não o problema hermenêutico ou
seja, o do sentido do texto –, como também o engasgo na hora de se responder à pergunta o
que é literatura?, é preciso relevar: ainda que a literatura não seja dada a comprovações e
precise quase que de uma zona de indistinção entre o verdadeiro e o falso, desde o surgimento
oficial da teoria da literatura como disciplina científica com os Formalistas Russos – e
poderíamos lembrar também os fragmentos de Schlegel e de Novalis –, o impasse sobre o
sentido textual e a definição do literário é permanente e molda uma polarização entre as
diversas perspectivas teóricas.
Entre elas, umas garantem uma maior asserção de sentido, como a Teoria Sociológica,
e outras relativizam essa asserção, como as Estéticas da Recepção e do Efeito, ao associarem
a poética da ficção a uma poética da negatividade. Mesmo que a preocupação com o sentido
textual seja uma constante entre as perspectivas teóricas, curiosamente, no traçado histórico
percorrido por elas, constatamos que o leitor ficou no limbo dos estudos literários durante um
bom tempo, pois o rigor científico que se pretendia no estudo da literatura ficaria abalado ao
se avaliar positivamente o papel do leitor, que essa avaliação implicaria admitir que o
sentido sofre a interferência de variáveis e de fatores incertos.
A despeito do domínio autônomo consolidado pela literatura na sua acepção moderna,
vemos ainda como a literatura instrumentaliza discursos que primam pela produção de
verdades. Segundo Silvina Lopes, “[...] o paradoxo essencial do literário decorre da fundação
da instituição literária em que, excluindo-se da justificação, a literatura não pode deixar de ser
45
crítica e, portanto, de incluir o jogo da justificação [...]”
79
. Dessa maneira, a paradoxalidade
da fundação da instituição literária
80
promove discursos, como o teórico e o crítico, base de
um locus institucional que atua na definição do sentido e do literário. Ou seja, mesmo a
literatura sendo dotada de um enunciado que desautoriza verdades, ela está sujeita a
“descrições prescritivas”
81
e a produzir conhecimento, que se organizam através daqueles
discursos, além de aliciar material em prol do objeto de outras disciplinas, como história,
sociologia, filosofia.
A complexidade da literatura regida pelo “como se”, garantia da sua afirmação
ficcional, e não como obediência a um referencial peremptório provê um dilema: como
produzir sentido sem que essa produção retire da “literatura a dimensão crítica para a tornar
não um elemento classificável e perfeitamente controlável, mas sobretudo para a reduzir
apenas a um fator de fixação e estabilização”
82
? Especificando melhor esse dilema, temos que
a institucionalização da literatura, depreendida na escolha de metodologias e de material para
o seu ensino o que alude à manutenção de um cânone literário e crítico-teórico –, pode
conduzir estratégias de controle que induzem competências de leitura e que podem impor
conceitos como dogmas ou segundo modismos teóricos. Se fosse possível, contudo, libertar as
investigações institucionais de teorias e metodologias, a legitimação de leituras seria orientada
por princípios nebulosos que poderiam seguir o encalço de interesses específicos e por
empatia ou carisma pessoal.
Trata-se de perceber como a institucionalização da literatura oferece uma via de mão
dupla: os tentáculos da instituição direcionam a tomada de consciência, por parte do crítico,
do seu papel e dos seus limites, mas, ao mesmo tempo, podem derivar num sistema
79
LOPES. A legitimação em literatura, p.414.
80
Alusão ao título do capítulo, que ora destacamos, do livro A legitimação em literatura, de Silvina Rodrigues
Lopes, pp.411-425.
81
LOPES. A legitimação em literatura, p.414.
82
LOPES. A legitimação em literatura, p.415.
46
condizente com uma catequização. A instituição respalda também a legitimação do exercício
crítico, como Frank Kermode detalha no ensaio “El control institucional de la interpretación”:
Un número muy amplio de personas, de las que formo parte, se consideran a mismas
intérpretes de textos. Todo aquel que comenta un texto (no importa a qué nivel) y todo aquel
que le pone notas críticas es un intérprete. Y tal persona no puede abordar el trabajo de
interpretación sin tener cierta conciencia de las fuerzas que limitan, o tratan de limitar, tanto lo
que él pueda dicir como los modos en que pueda decirlo. Estas fuerzas pueden provenir del
pasado, mas por lo general serán consideradas como sanciones ejercidas por los propios
contemporâneos. [...] Existe una organización de la opinión que puede tanto facilitar como
inhibir el modo personal de hacer la interpretación, que pescribirá qué puede ser
legítimamente objeto de un escrutinio interpretativo intensivo y determinará si un acto
particular de interpretación debe ser considerado un éxito o un fracaso, si deberá ser tenido en
cuenta o no en futuras interpretaciones lícitas. El medio de estas presiones e intervenciones es
la institución.
En la práctica, la institución con que tenemos que habérnoslas es la comunidad profesional
que interpreta la literatura secular y enseña a otros a hacer lo mismo. Hay instituciones mejor
definidas y más despóticas, pero su existencia no invalida el sentido que damos aquí a la
expresión. [...] Puede afirmarse con seguridad que estamos hablando de algo fácilmente
identificable: una comunidad profesional dotada de autoridad (no indiscutible) para definir (o
indicar los límites de) un tema, imponer valoraciones y dar validez a interpretaciones. Tales
son sus características. Tiene complejas relaciones con otras instituciones. En la medida en
que tiene, de modo innegable, un aspecto político, penetra en el mundo del poder; pero por
misma, añadiremos, es poco el poder que tiene, si entendemos por tal el poder para atar y
desatar, para imponer la conformidad y anatemizar la desviación. La institución de que
estamos hablando es, comparada con otras, bastante débil. Mas no por ello disminuye su
parecido familiar respecto de las demás
83
.
83
KERMODE. El control institucional de la interpretación, pp.91-92. “Um grande mero de pessoas, das quais
faço parte, se consideram intérpretes de textos. Todo aquele que comenta um texto (não importa em que nível) e
todo aquele que acrescenta a ele notas críticas é um intérprete. E tal pessoa não pode empreender o trabalho de
interpretação sem ter consciência das forças que limitam, ou que tratam de limitar, tanto o que ela pode dizer
como os modos em que pode dizer-lo. Essas forças podem proceder do passado, mas geralmente são
consideradas sanções exercidas pelos próprios contemporâneos. [...] Existe uma organização da opinião que pode
tanto facilitar como inibir o modo pessoal de se fazer a interpretação, que indicará que pode ser legitimamente
objeto de um escrutínio interpretativo intensivo e determinará se um ato particular de interpretação deve ser
considerado um êxito ou um fracasso, se deverá ser levado em conta ou não em futuras interpretações lícitas. O
meio de tais pressões e intervenções é a instituição. Na prática, a instituição que temos que enfrentar é a
comunidade profissional que interpreta a literatura secular e ensina a fazer o mesmo. instituições mais bem
definidas e mais despóticas, mas sua existência não invalida o sentido que damos aqui à expressão. Pode-se
afirmar com segurança que estamos falando de algo facilmente identificável: uma comunidade profissional
dotada de autoridade (não indiscutível) para definir (ou indicar os limites de) um tema, impor valores e dar
validade a interpretações. Tais são suas características. Apresenta complexas relações com outras instituições. À
medida que tem, de modo inegável, um aspecto político, penetra no mundo do poder; mas por si mesma,
acrescentamos, é pouco o poder que tem, se entendermos por tal o poder para atar e desatar, para impor a
conformidade e condenar o desvio. A instituição de que estamos falando é, comparada a outras, bastante fraca.
Mas isso não diminui seu familiar, e parecido, respeito das demais”.
47
Em seu texto, Kermode compreende a interpretação numa chave da qual discordamos:
para ele, a interpretação ao se afastar do sentido dito literal desvenda o sentido oculto do
texto. O leitor vinculado à instituição teria um acesso privilegiado ao sentido, diferentemente
do leigo, que não teria essa prerrogativa. O autor parece acreditar que, na instituição, todo tipo
de contato com o texto ocorre via interpretação, ou seja, todo e qualquer sentido produzido
pelo leitor crítico é resultado de um processo de semantização definido nos moldes da
interpretação descrita anteriormente. Sendo assim, o papel da instituição seria prover a
formação necessária para que o leitor crítico tenha a “destreza adivinatoria"
84
. Apesar da visão
datada sobre interpretação que Kermode apresenta nesse texto escrito nos fins da década de
1970, concordamos com o autor na medida em que ele sublinha que a interpretação não
resguarda um gesto automático. Por isso, o papel da instituição é importante, pois ela confere
valor e autoriza maneiras de se interpretar um texto
85
, o que acaba por convencionar limites
para a interpretação.
Mesmo com as ressalvas apontadas, é com as considerações de Kermode em vista que
voltamos à passagem da “interpretação” do conto de Hemingway criada por Vila-Matas, em
que uma senhora defende que “não nada o que interpretar”, para o agrado do narrador, que
se diverte com a ideia de o conto ser incompreensível, subsidiando a negativa para a pergunta:
sempre haverá um sentido para o texto literário? A instabilidade das percepções do mundo e
do texto literário fator que põe em relevo a própria diversidade de aspectos do mundo e do
texto literário não deve motivar, contudo, a defesa da inacessibilidade ao real e ao sentido
desse texto, e sim a pergunta pelo sentido. O narrador, no entanto, sugere uma ambivalência
no seu comentário, ao dispor que textos mais complexos são mais instigantes, pois desafiam a
proposição do sentido pelo leitor com maior intensidade: assim, não se trata de negar o
sentido propriamente, mas de problematizar a sua definição em textos cuja negatividade se
84
KERMODE. El control institucional de la interpretación, p.111.
85
KERMODE. El control institucional de la interpretación, p.111.
48
mostra mais expressiva. Devemos ressaltar, entretanto, que não apenas as opções
interpretar e não compreender, uma vez que a relação com o texto não é prioritariamente
semântica ou cognitiva. Dessa maneira, pode haver a negativa do sentido, caso ele seja
entendido somente num laivo cognitivo.
A partir de uma construção metaficcional, tal passagem enfatiza o funcionamento do
enunciado literário ao mostrar como um mesmo texto enseja “interpretações” diversas, que
podem até beirar o absurdo. Essa diversidade aponta para questões importantes para esta
pesquisa: de início, observamos a necessidade de se diferenciar a produção de sentido pelo
leitor comum e pelo crítico, por haver uma distinção em potencial entre os sistemas de
legibilidade do texto de um e de outro leitor, como explica Kermode e como se depreende da
passagem de Vila-Matas. Inferimos que as “interpretações” elencadas nesse exemplo não são
condizentes com leitores que teriam alguma predileção pela crítica: ao se lançar numa ego trip
ou numa leitura de fundo impressionista, o leitor pode estar menos disposto a atrelar a sua
produção de sentido ao texto, e sim a satisfazer a sua imaginação e o fato de sua leitura ser
extravagante ou pouco convencional não será exatamente um problema. Ao passo que à
leitura crítica corresponde um decoro que não prevê a produção de um sentido equivocado ou
falacioso, ainda que a liberdade do crítico seja grande, uma vez que o papel do crítico não é
mais correlato ao de um decodificador da verdade textual.
Outra questão importante aponta para a dificuldade de se fundamentar um excesso de
sentido condizente com a “superinterpretação”
86
, mesmo que se recorra, para tanto, a uma voz
legiferante de âmbito institucional. Dito de outra maneira, poderíamos indagar: o campo de
possibilidades da interpretação tem limites? É razoável pensar, ainda hoje, que haja um
sentido de verdade do texto literário?
86
Ver Interpretação e superinterpretação, de Umberto Eco.
49
Além disso, a passagem sugere uma ligação entre o texto e o tipo de comportamento
interpretativo exigido por ele, ao destacar como diferentes configurações literárias – dispostas
entre uma configuração que articula o sentido com grande precisão e outra que o obscurece
demandam posturas igualmente distintas por parte do leitor. Na esteira dessa ligação,
lembramos que o texto ficcional e o texto poético também ensejam comportamentos
interpretativos distintos, conforme já advertimos.
“Um crítico é um leitor que rumina”
Um crítico é um leitor que rumina. Por isso, deveria ter mais de um
estômago.
Friedrich Schlegel, fragmento 27 do Lyceum.
Neste trabalho, estamos voltados para o leitor crítico, pois, assim, poderemos nos valer
do que, comumente, constitui uma diferença entre o leitor comum e o leitor crítico: este leitor
torna público o sentido que constrói e, por estar vinculado a um contexto institucional, dialoga
com a teoria e a crítica literárias
87
. A leitura do crítico – que pode, então, sair da virtualidade e
do anonimato, próprios da solidão do leitor comum demonstra as relações implicadas na
leitura, que a leitura “interage com a cultura e os esquemas dominantes de um meio e de
uma época”
88
e possibilita a emergência de um plano coletivo, como o imaginário que a
crítica perfaz
89
.
Ao escolhermos o leitor crítico, traduzimos metodologicamente o que Ricardo Piglia
formula em O último leitor:
87
O fato de privilegiarmos o leitor crítico não implica qualquer espécie de valoração hierárquica; ao contrário de
Virginia Woolf, que faz o elogio do leitor comum, face ao crítico e ao professor, no ensaio “O leitor comum” (in:
WOOLF. O leitor comum, pp.11-12).
88
JOUVE. A leitura, p.22.
89
A respeito da distinção entre o leitor crítico (leitor “profissional” ou leitor “especializado”) e o comum (leitor
“amador” ou leitor “leigo”), ver o ensaio “Notas sobre o leitor na academia”, de Heidrun Krieger Olinto (in:
Revista Tempo Brasileiro: Ler e interpretar, pp.69-78).
50
Para definir o leitor, diria Macedonio, primeiro é preciso saber encontrá-lo. Ou seja, nomeá-lo,
individualizá-lo, contar sua história. A literatura faz isso: dá ao leitor um nome e uma história,
retira-o da prática múltipla e anônima, torna-o visível num contexto preciso, faz com que
passe a ser parte integrante de uma narração específica.
A pergunta “o que é um leitor?” é, sem sombra de dúvida, a pergunta da literatura. Essa
pergunta a constitui, não é externa a si mesma, é sua condição de existência
90
.
Através dessa escolha, procuramos analisar quem é aquele que lê”
91
, com o objetivo de
avaliarmos a interferência das condições de leitura, que, potencialmente, limitam o sentido do
texto literário.
Essas condições geram questões importantes para este trabalho, a saber: quais
mecanismos operam na hermenêutica do texto literário? Como explicar por que determinados
autores ou obras estimulam uma recepção crítica mais caudalosa e diversificada, numa
dimensão comparativa, quanto ao seu sistema teórico-metodológico? Como postular limites
para o exercício do leitor, considerando a caracterização não pragmática da literatura? Como
aferir a “criticidade” do texto literário?
92
Por que e como determinadas críticas se tornam mais
profícuas e, assim, são mais evidenciadas –, atuando, com eficácia, na manutenção de
paradigmas ou na proposição de novas leituras?
Na tipologia dos leitores sugerida por Piglia no ensaio “O que é um leitor? que
prevê, entre outros, o leitor insone, viciado, tradutor –, o leitor crítico exemplifica o “leitor
criminoso”: aquele “[...] que utiliza os textos em benefício próprio e faz deles um uso
indevido, funciona como um hermeneuta selvagem. [...] Lê-se um livro contra outro leitor.
Lê-se a leitura inimiga”
93
. Ler a leitura inimiga” seria o requisito para o leitor crítico se
cadastrar como um “leitor efetivo”, como se deduz dos termos de Vincent Jouve, nos quais se
nota o rastro de Jauss:
90
PIGLIA. O último leitor, p.25.
91
PIGLIA. O último leitor, p.24 (grifo do autor).
92
Aludimos ao conceito sistematizado por Luiz Costa Lima em Limites da voz.
93
PIGLIA. O último leitor, p.34.
51
O leitor efetivo remete não somente ao público contemporâneo da primeira publicação da
obra, mas também a todos os públicos reconhecidos que a obra vai encontrar no decorrer de
sua história. Se é interessante considerar esses públicos reconhecidos é porque toda leitura de
um texto é disfarçadamente atravessada por leituras anteriores que foram feitas dele. Não se
leria Montaigne da mesma forma se ele não tivesse sido lido, anteriormente, por Pascal. Do
mesmo modo, nossa leitura de Édipo rei está, desde então, marcada pela análise de Freud
94
.
Esse trânsito discursivo, importante diferenciador entre o leitor crítico e o leitor comum,
desvela, na multiplicidade dos aspectos da obra, o seu sentido
95
e baliza como uma leitura
crítica acaba por fixar referenciais que serão respeitados por outros leitores, influenciando o
sentido produzido por eles.
Interessa-nos perceber a diferença entre o leitor crítico e o comum a partir desse
extrato institucional, para que consideremos o devido lugar onde se opera tal trânsito, que é
determinante para uma análise mais apurada dos processos de produção de sentido.
Entretanto, essa diferença se dilui se frisamos que o sentido existe para o leitor tour court,
pois leitores dependem igualmente de um imaginário, disposto não segundo matizes
idiossincráticos, mas também culturais. Além disso, é preciso pensar que, para ambos os
leitores, as condições de possibilidade de emergência das estruturas de sentido
96
advêm do
que Iser designa como jogo caracterizado como as negociações empenhadas entre texto e
leitor e entre fictício e imaginário –, que incita uma produção de sentido apartada de
predeterminações semânticas.
Se o papel do crítico não é mais posto segundo a tarefa de decodificação da verdade
textual tarefa que pressupõe a existência de uma verdade a ser descoberta por ele e que
aponta para uma tradição de leitura preocupada em gerir o sentido do texto a partir de um
paradigma filológico –, precisamos definir o alcance teórico que uma mudança como essa
acarreta. O quadro definido por essa tradição de leitura pode ser visualizado a partir da síntese
de Silvina Lopes:
94
JOUVE. A leitura, p.37.
95
STIERLE. Que significa a recepção dos textos ficcionais?, p.120.
96
GUMBRECHT. O campo não-hermenêutico ou a materialidade da comunicação, p.147 (grifos do autor).
52
O facto de o paradigma filológico ser dominante nos estudos literários resulta em grande parte
desta recusa de pôr em evidência a institucionalização do literário. Admitindo-se que a
verdade do texto reside no texto em si, sendo apenas necessário extraí-la, evita-se
problematizar o pressuposto que preside a tal atividade, o de que a literatura é por excelência e
naturalmente um lugar da verdade. É o que se verifica a partir da concepção romântica da
crítica (enquanto percurso para a perfeição de uma origem, o Absoluto), segundo a qual a
poesia pode criticar a poesia, isto é, segundo a qual é o próprio poema a desdobrar-se
infinitamente através da reflexividade própria da palavra poética, assegurando assim uma
autoridade primeira em nome da qual se exerce circularmente a crítica, embora o círculo
nunca se feche, convertendo-se em espiral. É o que se verifica igualmente quando se
estabelecem regras de acesso ao sentido do texto identificado com a intenção do autor ou da
obra. Ou ainda, quando se funda uma ciência concebida como ciência das formas literárias,
colocando cada texto particular em relação com um conjunto de regras ditas do seu
engendramento
97
.
Mesmo que a autonomização da literatura nos termos da sua acepção moderna tenha
significado uma inflexão na maneira como são entendidos o texto literário e o seu
funcionamento linguístico, vemos como essa tradição de leitura ainda opera com a expectativa
de se revelar um sentido profundo e oculto do texto literário, expectativa que, vale repetir, diz
respeito ao âmbito da crítica literária, e não ao leitor comum ou leigo.
Um dos poemetos derivados do poema intitulado “Quantula”, de Robert Frost, faz
alusão a um segredo permanentemente inacessível: “We dance round in a ring and suppose,/
But the Secret sits in the middle and knows”
98
, que seria como esse sentido, a ser resgatado
por privilegiados. Deixar de ver o papel do crítico como o de decodificador de uma verdade –
escorada em algum critério específico – quer dizer assumir o confronto com a incerteza diante
da produção de sentido, incerteza que pode estar associada a uma desmesura ou a uma
indecidibilidade
99
, sustentadas até certo ponto na medida em que o crítico deixa de ser o
guardião do grande sentido textual, recebendo, assim, a prerrogativa de não explicar tudo.
97
LOPES. A legitimação em literatura, p.415.
98
O título do poemeto em questão é “The secret sits”, in: FROST. Collected poems, prose, & plays, p.329.
“Dançamos em círculo e supomos,/ Mas o Segredo senta no meio e sabe”. Tradução de Sandra Vasconcelos (in:
CULLER. Teoria literária, p.30).
99
No ensaio Kafka: pró & contra, Günther Anders explica as razões dessa indecidibilidade, que, a despeito de
estar projetada na obra de Kafka, adere à negatividade literária como um todo: “[...] no plano literário, a
indecisão assume sem cessar a forma do que é multívoco. Quando não são tomadas decisões, sempre entram em
cogitação, ao mesmo tempo, vários significados, embora muitos deles sejam duvidosos. Isto é: a ‘superfície’ do
texto literário não apresenta o seu significado abertamente, porque o texto tem vários, ou seja, oferece área de
manobra à ‘interpretação’. Mas se o observador vê, num texto, vários sentidos ao mesmo tempo (que entram em
53
Negar que o sentido reverbere um segredo não quer dizer, contudo, que as
proposições críticas permanecerão num nível de superficialidade tacanha. Ao contrário, trata-
se de sublinhar como a pretensão de se postular o sentido secreto esconde uma grande dose de
arbitrariedade. A correspondência entre verdade e sentido é devedora de algum critério que
autorize essa correspondência, como a intenção do autor ou a da obra, critérios
potencialmente vagos que não questionam nem a subjetividade do intérprete ou seja, do
leitor – ao arbitrar essas intenções, nem a interferência de desígnios institucionais.
A fragilidade dessa correspondência é articulada com jocosidade pela personagem
criada por Vladimir Nabokov, o professor universitário Charles Kinbote, no final do prefácio
que o professor escreve para Fogo pálidopoema de John Francis Shade, disposto em quatro
cantos –, que mostra também como a competência, atribuída ao crítico, de desbravador da
verdade do texto literário assegura a ele automaticamente um atributo majestoso e imponente:
Permito-me dizer que, sem minhas notas, o texto de Shade simplesmente não possui nenhuma
realidade humana, porque a realidade humana de um poema como o dele (demasiado recatado
e reticente para ser uma obra autobiográfica), com a omissão de tantos versos expressivos
rejeitados sem maiores cuidados por ele próprio, tem de depender por inteiro da realidade do
autor e de seu ambiente, seus afetos e assim por diante, uma realidade que apenas minhas
notas podem proporcionar. Provavelmente, meu querido poeta não teria subscrito tal
afirmação, mas, para bem ou para mal, é o comentador que tem a última palavra
100
.
Nesse exemplo, vemos como o postulado da verdade do texto precisa abortar, por
definição, qualquer imprevisibilidade ou interferência de contingências relacionadas ao
intérprete: a ele cabe exclusivamente fazer com que a verdade do texto que não tem como
não ser forjada – saia das suas profundezas mais recônditas e venha à tona. Com essa
negativa, é creditada a possibilidade de se atingir um nível satisfatório de objetividade
consideração), então ele enxerga este ou aquele ‘no’ ou ‘atrás do’ texto: essas características ‘espaciais’, ‘em’ ou
‘atrás de’, porém, geram, por seu lado, a aparência da assim chamada ‘profundidade’ – e, por certo, isso não quer
dizer que, por derivar da indecisão, o fenômeno tão difícil da ‘profundidade’ esteja esgotado”. ANDERS. Kafka:
pró & contra, p.51.
100
NABOKOV. Fogo pálido, p.25.
54
correlato à verdade. Nesse contexto, o sentido não comporta variantes semânticas, nem sofre
variações históricas.
Depois de caracterizarmos tal postulado e suas implicações, podemos concluir: ainda
que o texto literário comportasse uma verdade a ser desvendada, ela seria inacessível – por ser
inexplicável –, como sugere Franz Kafka na parábola “Prometeu”, que enumera e narra quatro
lendas contadas sobre esse titã, controversamente tido como o criador dos homens segundo a
mitologia grega
101
:
Pela primeira – por ter traído os Deuses junto aos homens, foi ele posto a ferros numa penedia
do Cáucaso e os Deuses mandavam águias a fazer de pasto o seu fígado sempre renovado.
Pela segunda atormentado pelos bicos que o laceravam, Prometeu foi encolhendo-se cada
vez mais de encontro ao rochedo até formar com ele uma coisa única. Pela terceira a traição
de Prometeu esqueceu-se nos séculos: os Deuses esqueceram, as águias, ele próprio... Pela
quarta – cansaram-se, todos, daquele processo sem fundamento: cansaram-se os Deuses,
cansaram-se as águias, cansada fechou-se a ferida. Ficou o inexplicável monte de pedra. A
lenda busca explicar o inexplicável: como surgiu de um fundo de verdade, tinha de acabar
todavia sem explicação
102
.
Prometeu propicia, simbolicamente, a produção de conhecimento pelos homens,
depois de roubar e dar a eles o fogo exclusivo dos deuses garantindo a superioridade do
homem perante os outros animais –, motivo pelo qual recebeu o castigo de ter seu fígado
devorado. Giorgio Agamben explora essa parábola no texto “Defesa de Kafka contra os seus
intérpretes”:
Sobre o inexplicável correm as mais diversas lendas. A mais engenhosa encontrada pelos
atuais guardiões do Templo ao remexerem nas velhas tradições explica que, sendo
inexplicável, ele permanece como tal em todas as explicações que dele foram dadas e
continuarão a sê-lo nos séculos vindouros. São precisamente essas explicações que constituem
a melhor garantia da sua inexplicabilidade. O único conteúdo do inexplicável e nisto está a
sutileza da doutrina consistiria na ordem (verdadeiramente inexplicável): “Explica!” Não
podemos subtrair-nos a esta ordem, porque ela não pressupõe nada de explicável, ela própria é
o seu único pressuposto. Seja o que for que se responda ou não responda a esta ordem
mesmo o silêncio será de qualquer modo significativo, conterá de qualquer modo uma
explicação. [...]
101
Segundo o Dicionário de mitologia grega e romana, de Georges Hacquard, haveria duas versões referentes à
lenda de Prometeu: numa lenda, tardia, ele teria criado os homens a partir da terra argilosa; em outra,
proveniente da Teogonia, de Hesíodo, ele cumpriria o papel de benfeitor da humanidade, previamente criada.
102
KAFKA. Prometeu, p.34.
55
De facto, as explicações não são mais que um momento na tradição do inexplicável: o
momento que toma conta dele, deixando-o inexplicado. Privadas do seu conteúdo, as
explicações esgotam assim a sua função. Mas no momento em que, mostrando a sua
vacuidade, elas o abandonam, também o inexplicável vacila. Inexplicáveis eram, na verdade,
apenas as explicações, e para as explicar inventou-se aquela lenda. Aquilo que não podia ser
explicado está perfeitamente contido naquilo que não explica mais nada
103
.
A partir do texto kafkiano, Agamben enfatiza a interdependência entre o inexplicável que,
analogicamente, diz respeito a essa pretensa verdade textual, ao “segredo” aludido por Frost
no seu poemeto e os discursos que o revelam, ou seja, algo é dito como inexplicável,
como verdadeiro, porque há esses discursos para afirmá-lo.
Paradoxalmente, a se considerar que a literatura abriga uma verdade, ela seria
inacessível em decorrência de existir apenas como um dado intrínseco à literatura. Como
mencionamos, a literatura suscita discursos exteriores a ela, que não podem ser afiançados
como coincidentes ou sinônimos ao texto literário ou seja, a verdade da literatura seria
possível se ela não precisasse ser extraída. Em outras palavras, parece contraditório defender
um sentido imanente à literatura, já que, ao disponibilizá-lo, o crítico estará produzindo
necessariamente um discurso cuja natureza é a da alteridade.
Ainda que se afaste da noção de verdade do texto literário, o sentido perfaz uma
injunção laboriosa, que pode reservar níveis heterogêneos de dificuldade interpretativa
conforme o tipo de caracterização do texto literário. A esse respeito, lembramos a expressão
“narrativa em palimpsesto”, cunhada por Luiz Costa Lima ao discorrer sobre Machado de
Assis.
No ensaio “O palimpsesto de Itaguaí”, de 1976, posteriormente modificado, Costa
Lima trata a narrativa machadiana como palimpsesto e observa os efeitos políticos dela
advindos. Uma síntese desse conceito pode ser lida neste trecho:
Sua primeira camada [do texto machadiano] é de aparência aguada e insossa. As entrelinhas
entretanto contrabandeiam pequenos indícios da camada borrada, o texto-palimpsesto. Por
103
AGAMBEN. Defesa de Kafka contra os seus intérpretes, pp.135-136.
56
este, alcança Machado uma terceira via: nem o declamatório de saudades e imprecações
rimadas, nem a desigualdade genial de um Sousândrade
104
.
no texto “Machado e a inversão do veto”, cuja primeira versão data de 1982, Costa Lima
desenvolve possíveis justificativas para tal caracterização da narrativa machadiana. Segundo o
autor afirma:
Como Machado vivia em um meio provinciano e sob um Estado clientelístico, precisou
desenvolver uma técnica que Flaubert não teria necessitado; técnica que temos chamado
narrativa em palimpsesto, i.e., formada por duas camadas, uma aparentemente cordata, a
esconder da tinta visível a virulência crítica, deposta na segunda
105
.
Com a expressão “narrativa em palimpsesto”, de Costa Lima, queremos enfatizar que
pressupor o sentido segundo gestos de atribuição e de produção, e não como uma imanência,
acarreta necessariamente o debate sobre as condições de possibilidade de emergência das
estruturas de sentido
106
, debate que passa pela discussão do papel do leitor e da sua
autonomia na emergência do sentido. Nessa discussão, parece inegável supor que estudar o
sentido a partir de uma imanência ou segundo gestos de atribuição e de produção implica
modos distintos de se compreender a literatura. Enquanto a imanência do sentido encerra uma
visão orgânica da literatura como corolário, esses gestos presumem que a literatura suscita
efeitos polivalentes de leitura e, assim, afastam um gerenciamento uno e totalizante do
sentido.
O sentido estimula reações antagônicas da crítica e, mesmo sendo a verdade uma
convicção problematizada pela literatura, não podemos dizer que a verdade esteja plenamente
afastada nem nos tempos atuais –, como se ela rondasse não o imaginário dos críticos,
como o dos próprios escritores, haja vista que certa fração da literatura contemporânea,
104
COSTA LIMA. O palimpsesto de Itaguaí, p.254
105
COSTA LIMA. Machado e a inversão do veto, pp.259-260.
106
GUMBRECHT. O campo não-hermenêutico ou a materialidade da comunicação, p.147 (grifos do autor).
57
herdeira de Borges, explora uma tensão irresolúvel entre embuste e verdade
107
, elegendo-a
como mote privilegiado. Mas, a se concordar que o papel do crítico não se vincula mais à
decodificação da verdade textual, podemos dizer que o crítico deve se ater, precipuamente, à
tarefa de definir ou decidir um sentido, isto é, à tarefa de propor e justificar critérios ao
interpretar o texto literário, que não um critério certo ou regiamente estipulado o que
pode haver são critérios com insuficiência de justificação, que comprometem a validação de
uma interpretação. O crítico ganha, portanto, uma liberdade, que lhe permite até uma incursão
criativa no trabalho institucional com a literatura
108
.
107
A título de exemplo, pensamos nas narrativas de Bernardo Carvalho, Enrique Vila-Matas, Paul Auster e
Ricardo Piglia.
108
A esse respeito, ver o ensaio Rituais do discurso crítico, de Luis Alberto Brandão. Nesse ensaio, Brandão
explica e problematiza, com exemplos, o alcance teórico de uma “crítica híbrida”. Além disso, o ensaio vale
também como exemplo desse hibridismo.
58
CAPÍTULO 2
O que é hermenêutica literária?
59
The interpretation of texts is the daily bread of anyone who deals with
literature, whether as a subject of study or simply for pleasure
109
.
Manfred Frank, “What is a literary text and what does it mean to understand it?”.
Neste trabalho, contemplamos os gestos de atribuição e de produção de sentido que
dizem respeito, em outras palavras, a um gesto hermenêutico –, denotados por um variado
campo semântico, do qual, além da hermenêutica, fazem parte interpretação, exegese e
leitura. Segundo Wolfgang Iser distingue no livro The range of interpretation,
[…] hermeneutic is just a prominent genre dealing basically with texts that are opened up for
understanding. But when it comes to interpreting something that is neither textual nor scripted,
such as culture, entropy, or even the incommensurable, the procedures of interpretation are
bound to change
110
.
Apesar da distinção, Iser se refere à hermenêutica do texto literário valendo-se da
interpretação, sugestão de que ambas as expressões autorizam alguma permuta.
A argumentação do autor frisa dois pontos básicos, concentrados na seguinte
afirmação: Interpretation is an act of translation, the execution of which depends on the
subject matter to be interpreted as well as on the context within which the activity takes
place”
111
. Esses pontos enfatizam características fundamentais do sentido: 1. ele resulta na
produção de objeto distinto da matéria interpretada; 2. sofre variações de acordo com o objeto
interpretado e com a contingência do sujeito interpretante. Portanto, uma teorização sobre a
hermenêutica do texto literário concebe aspectos que podem não estar presentes na
hermenêutica jurídica ou psicanalítica, por exemplo. Essa diversidade de aspectos base do
109
“A interpretação de textos é o pão diário de qualquer pessoa que lida com literatura, seja como objeto de
estudo ou simplesmente por prazer”.
110
ISER. The range of interpretation, ix. “[...] hermenêutica é somente um gênero proeminente que trata
fundamentalmente de textos abertos ao entendimento. Mas quando se trata de interpretar algo que não é textual
nem manuscrito, como cultura, entropia ou até o incomensurável, os procedimentos da interpretação estão
destinados a mudar”.
111
ISER. The range of interpretation, p.145 (grifos nossos). “Interpretação é um ato de tradução, cuja execução
depende do assunto a ser interpretado bem como do contexto no qual a atividade se realiza”.
60
que Iser designa como range of interpretation – também pode ser observada através da
variação conceitual com a qual a atividade hermenêutica ou interpretativa é distinguida numa
mesma área disciplinar.
Importa perceber como e por que variam, com discrepâncias inconciliáveis, tanto o
que se define como sentido textual e o como se lê, quanto a compreensão do literário
manifesta pelo crítico a partir dessa maneira; ou seja, a maneira pela qual o crítico conduz o
gesto hermenêutico traduzirá, inevitavelmente, uma compreensão da literatura. Não pensamos
a hermenêutica segundo uma via de domesticação do sentido, que pretenda exaurir todas as
camadas semânticas do texto e que contrarie a contingência. Pelo contrário, entendemos a
hermenêutica segundo uma concepção ampla, capaz de tratar de questões pertinentes ao
sentido e que remete a uma diversidade de possibilidades semânticas admitida por um mesmo
texto, mas que pressupõe uma decidibilidade, como Miguel Tamen articula: “É talvez
possível empregar de um modo geral ‘hermenêutica’ porque usando essa designação nos
referimos a um certo número de processos e dificuldades que todo o procurar compreender
tem, de uma forma ou de outra, de ultrapassar”
112
.
Ainda que o estudo da hermenêutica não implique necessariamente o do papel do
leitor, julgamos que o gesto hermenêutico é indissociável da análise desse papel e vice-versa,
pois ambos estão relacionados diretamente com o sentido e o texto, além de catalisarem
influências de âmbito institucional, histórico-cultural, político ou teórico. Ademais, como
Karl Erik Schøllhammer explica no texto “Fundamentos da estética do efeito: uma leitura”, a
propósito da obra de Iser:
A mudança fundamental que a obra de Iser introduz, se comparada a abordagens
hermenêuticas similares, está na compreensão do sentido do texto como um processo de
interpretação em que o leitor reconhece a sua própria participação. A princípio, esse processo
se caracteriza por normas limitadoras, hábitos e leituras convencionais. Num segundo
momento, o envolvimento criativo embora não intencional da imaginação dos leitores.
112
TAMEN. Hermenêutica e mal-estar, p.15.
61
O sentido do texto vai sendo então paulatinamente constituído por meio da experiência que o
leitor tem da sua própria imaginação, uma experiência desencadeada pela relação que se
processa na leitura entre a ficção e os esforços interpretativos que ele realiza
113
.
A relação entre texto e leitor é necessariamente ladrilhada de sistemas valorativos,
pois leitores definem posições quando leem e quando escolhem o livro a ser lido: desse modo,
a escolha dos textos a serem lidos deve ser observada, por aludir à manutenção de um cânone
literário ou, até mesmo, de um cânone crítico. Essa definição de posições pelo leitor pode ser
visualizada junto ao conceito de antropologia literária, de Iser. Com esse conceito, Iser
enfatiza a imersão da literatura no bojo da cultura, razão pela qual a literatura expressa uma
dimensão antropológica e lança luz sobre uma forma peculiar de conhecimento e experiência,
que permite ao leitor acessar não um “passado cultural”
114
, como também outros mundos
distintos do seu. Para Iser, a ficção literária engendra uma realidade construída como se fosse
real, cujos referenciais apreendidos do mundo empírico são transgredidos, isto é, a ficção
literária é marcada pela superação dos limites dos referenciais extratextuais. Essa superação
faz do texto literário um “sistema autônomo”
115
, mas, a despeito disso, a literatura cria, em
tese, a possibilidade de o homem explorar a si próprio.
A menção ao conceito de antropologia literária visa realçar como a literatura promove
uma discussão sobre a cultura, tanto no seu âmbito constitutivo manifesto no modo
operacional da ficção literária –, como no âmbito do leitor, pois o sentido é devedor do
diálogo do leitor com a cultura e a história e da sua capacidade de exercitar a alteridade.
Sendo assim, os gestos de atribuição e de produção de sentido que aqui pensamos sob a
rubrica da hermenêutica passam pelas interferências que assaltam o leitor
116
, como Thomas
McLaughlin reitera:
113
SCHØLLHAMMER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.118.
114
ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.175.
115
ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.172.
116
Lembramos o comentário de João Cezar de Castro Rocha no texto “Entre a heurística e a hermenêutica: a
reflexão de Wolfgang Iser como alternativa à história literária”, segundo o qual a antropologia literária de Iser
abarca operações de cunho interpretativo. Nas palavras de Castro Rocha: “[...] trata-se de uma pesquisa que
62
As writing, literature is implicated in systems of language and culture that open it to the
working of reading. Recent theory has emphasized the work of the reader who actuates the
potential meanings made possible by the text and by the interpretative practices through which
the reader works. […] value and meaning are the outcomes of an active process, and that the
process always occurs within a specific cultural and political context. It is the reader who
produces meaning, but only by participating in a complex of socially constructed and enforced
practices. Value and meaning do not transcend history and culture, just as literature itself does
not. Interpretation – the process of producing textual meaning is therefore rhetorical. It does
not live in a realm of certain truths; it lives in a world where only constructions of the truth are
possible, where competing interpretation argue for supremacy. Terms perform at least two
functions within interpretation: they set the boundaries within which interpretation may
proceed, and they help enforce the rhetoric of an interpretation by setting the terms of the
debate. In a context in which we begin with the premise that no single “correct” interpretation
is possible, since interpretation is always rhetorical, we find that terms serve the function of
shaping our reading process and of enforcing the rhetorical power of the writing that comes
out of that reading. Terms, that is, wield power in an open interpretative field
117
.
Ao lembrar que conceitos crítico-teóricos também interferem no sentido, McLaughlin
corrobora o fato de o sentido estar sujeito a campos disciplinares: isto é, a escolha do crítico
por conceitos e teorias compromete e limita o sentido, pois conceitos e teorias atuam como
sistemas de referências e, assim, valem como um princípio de controle
118
.
Por dizer respeito “a certos problemas peculiares que caracterizam o ‘procurar
compreender literatura’”, a hermenêutica do texto literário pode ser nomeada como
“hermenêutica literária”
119
, e aponta para uma empreitada conflituosa que, não por acaso, se
busque compreender como e por que produzimos sentidos particulares para as obras de ficção que criamos. Na
verdade, esse é o passo que Iser está agora ensaiando, através do estudo da interpretação, compreendida como
disposição humana básica. Isto é, o ato de interpretação também adquire dimensão antropológica”. ROCHA.
Entre a heurística e a hermenêutica: a reflexão de Wolfgang Iser como alternativa à história literária, p.19.
117
McLAUGHLIN. Introduction of Critical terms for literary study, pp.06-07. “Como escrita, a literatura está
inserida em sistemas de linguagem e cultura que se tornam acessíveis com o processo da leitura. A teoria atual
tem enfatizado o papel do leitor na ativação dos sentidos potenciais possibilitados pelo texto e pelas práticas
interpretativas através das quais o leitor atua. […] valor e sentido são produtos de um processo ativo, processo
que sempre ocorre num contexto cultural e político específico. É o leitor que produz sentido, mas somente
mediante a participação num complexo de práticas socialmente construídas e subjugadas. Valor e sentido não
transcendem história e cultura, como a própria literatura também não. A interpretação o processo que produz o
sentido textual é consequentemente retórica. Ela não vive num campo de verdades absolutas; vive num mundo
em que somente as construções da verdade são possíveis, onde interpretações conflituosas competem por
supremacia. Os termos desempenham pelo menos duas funções na interpretação: determinam os limites dentro
dos quais cada interpretação pode proceder e ajudam a impor a retórica de uma interpretação, determinando os
termos do debate. Num contexto em que começamos com a premissa segundo a qual nenhuma interpretação
‘correta’ é possível, que a interpretação é sempre retórica, descobrimos que os termos funcionam como
modeladores do nosso processo de leitura e como determinadores do poder retórico da escrita que resulta
daquela leitura. Os termos, então, exercem poder num campo interpretativo aberto”.
118
Ver o texto “Pastiches críticos”, de Leyla Perrone-Moisés (in: Terceira Margem, n.2): um sucinto e irônico
texto, porém efetiva demonstração da relação existente entre programas teóricos, sentido e práticas
institucionais.
119
TAMEN. Hermenêutica e mal-estar, p.15.
63
firma atualmente como uma questão relevante para os estudos literários. Na opinião de
Tamen:
Ainda que inventada por outros campos, tais como a teologia, o direito, a história e, por fim, a
filosofia propriamente dita, a questão da interpretação tornou-se nos últimos trinta anos uma
preocupação proeminente das regiões fluidas da crítica e da teoria literárias, a ponto de,
nalguns sítios, o seu destino se ter ligado ao destino da própria teoria literária e se ter tornado
fonte de uma abundante literatura
120
.
Devemos questionar, assim, o motivo que faz a hermenêutica ser tida como uma questão
proeminente nos estudos literários, conforme Tamen alude em Maneiras da interpretação,
livro concluído no fim da década de 1980.
Hermenêutica literária e a tradução do sentido
Dividido entre, de um lado, a necessidade de intervir com suas luzes
interpretativas para ajudar o texto a explicitar a multiplicidade de seus
significados e, de outro, a consciência de que toda interpretação exerce sobre
o texto uma violência e uma opinião, o professor, diante das passagens mais
difíceis, não encontrava nada melhor para facilitar a você a compreensão que
começar a ler tudo na língua original.
Italo Calvino, Se um viajante numa noite de inverno.
Ainda que, como designação de uma ciência específica, o termo “hermenêutica” tenha
surgido só em 1629, na obra de Johann Conrad Dannhaeur, “as operações de exegese textual e
as teorias da interpretação religiosa, literária, legal remontam à antiguidade”
121
. Segundo
Luiz Costa Lima esboça no ensaio “Hermenêutica e abordagem literária”:
A palavra hermenêutica deriva de Hermes, aquele a que os deuses confiaram a transmissão de
suas mensagens aos mortais. A partir mesmo de sua etimologia, a hermenêutica aparece como
uma atividade de mediação, tradutora de uma linguagem incompreensível a seus destinatários.
Entendida como a arte da interpretação, ela é conhecida desde a época clássica ateniense,
120
TAMEN. Maneiras da interpretação, p.09.
121
PALMER. Hermenêutica, p.45.
64
quando seus pensadores buscavam apreender o significado da epopeia homérica, não mais
diretamente captável pelos contemporâneos
122
.
A respeito de Hermes, Antenor Nascentes comenta no Dicionário etimológico da Língua
Portuguesa: “Platão, no Crátilo, ligou a eiro, falar, Eirémes, por elegância Hermês: ‘... parece
que vem do discurso; os atributos de intérprete, mensageiro, ladrão, enganador com palavras e
traficante, todos eles se prendem à força da palavra’”
123
.
A grande tarefa do mensageiro dos deuses na mitologia greco-romana – isto é, do deus
da eloquência, dos comerciantes, dos ladrões e das estradas consiste na interpretação da
vontade dos deuses, a ser transmitida aos mortais:
Poder-se-iam multiplicar as missões e as comissões de Hermes, mas o que interessa mais de
perto nesse deus tão longevo, que faleceu, se é que faleceu, no século XVII, “são suas
relações com o mundo dos homens, um mundo por definição ‘aberto’, que está em permanente
construção, isto é, sendo melhorado e superado. Os seus atributos primordiais astúcia e
inventividade, domínio sobre as trevas, interesse pela atividade dos homens, psicopompia
serão continuamente reinterpretados e acabarão por fazer de Hermes uma figura cada vez mais
complexa, tornando-o, ao mesmo tempo, civilizador, patrono da ciência e imagem exemplar
das gnoses ocultas”. [...] Hermes é o que sabe e, por isso mesmo, aquele que transmite toda
ciência secreta
124
.
As diversificadas tarefas de Hermes podem ser concentradas em torno de palavras-
chave tais como competência linguística, comunicação, discurso, compreensão,
interpretação
125
. Assim, como Costa Lima salienta, a hermenêutica referencia, na sua
orientação etimológica, um trabalho de mediação
126
, uma vez que Hermes incorpora a busca
pela compreensão e promove a comunicação entre deuses e mortais, como um tradutor que
verte a linguagem dos deuses em outra, acessível aos homens, por ser fluente em ambas.
122
COSTA LIMA. Hermenêutica e abordagem literária, p.65.
123
NASCENTES. Dicionário etimológico da Língua Portuguesa, p.139.
124
BRANDÃO. Dicionário mítico-etimológico da mitologia grega, p.551 (grifo do autor).
125
Ver TESCHE. Interpretação, p.44.
126
A caracterização do trabalho de mediação constituído pela hermenêutica pode ser reiterada na seguinte
passagem do ensaio citado: “Desde sua versão antiga, o aparecimento e/ou o florescimento da hermenêutica
coincide com momentos de crise, especificamente aqueles em que um tempo não se percebe imediatamente
vinculado à produção oriunda de um certo passado”. COSTA LIMA. Hermenêutica e abordagem literária, p.69.
65
A representatividade mitológica de Hermes realça a definição da hermenêutica como
um conjunto de princípios e teorias que orientam a compreensão e a interpretação de textos,
definição que fica incompleta na tradução latina do termo, como Fernando Romo Feito
ressalta:
Hoy, que una difusa sensibilidad para los problemas hermenéuticos recorre las ciencias
humanas, es habitual encontrar vinculados los términos de hermenéutica e interpretación y
algo menos exégesis. Si se atiende a la etimologia, se trata de historias distintas: hermenéutica
y exégesis proceden del griego y valen más o menos como “expresión, proclamación del
sentido” frente a “movimiento de entrada en la intención de un texto o mensaje”. Interpretatio
en cambio es latín y constituye la traducción tradicional del primer término griego
mencionado. Pero el latino se vincula a la tradición retórica y jurídica: el fidus interpres es el
intérprete autorizado y fiable de un documento, y la palabra, desde luego, subraya el aspecto
de la intermediación.
Por lo general, se entiende por exégesis el trabajo concreto de comprender los textos e
interpretalos, mientras que la hermenéutica se plantearía más bien el problema teórico de
cómo es posible llevar a cabo una actividad semejante
127
.
Vemos que a origem etimológica da palavra hermenêutica desvenda o atributo da
mediação desempenhada pelo hermeneuta sinônimo de exegeta, intérprete. Devemos
observar também que esse atributo permite a Hermes ser o deus dos ladrões e o protetor dos
caminhos. Essa dupla incidência parece ser um tanto reveladora, pois vemos nela a sugestão
de uma ambivalência: ao mesmo tempo em que Hermes agencia os caminhos da comunicação
e do sentido, ele tem o potencial de atuar como um “ladrão” de sentidos
128
.
127
FEITO. Hermenéutica, interpretación, literatura, p.13. “Hoje, que uma difusa sensibilidade para os
problemas hermenêuticos recorre às ciências humanas, é habitual encontrar vinculados os termos hermenêutica e
interpretação e, um pouco menos, exegese. Ao se considerar a etimologia, tratam-se de histórias distintas:
hermenêutica e exegese derivam do grego e valem mais ou menos como ‘expressão, proclamação do sentido’
frente a ‘movimento de entrada na intenção de um texto ou mensagem’. Interpretatio, no entanto, é latim e
constitui a tradução tradicional do primeiro termo grego mencionado. O termo latino, porém, se vincula à
tradição retórica e jurídica: o fidus interpres é o intérprete autorizado e confiável de um documento, e a palavra,
desde sempre, sublinha o aspecto da intermediação. Geralmente, se entende por exegese o trabalho concreto de
compreender os textos e interpretá-los, ao passo que a hermenêutica representa melhor o problema teórico de
como é possível realizar uma atividade semelhante”.
128
Lembramos o livro Ladrões de palavras, de Michel Schneider, em que o autor estuda o plágio, visto junto ao
pensamento, à psicanálise e à literatura. A respeito da amplitude de seu estudo, Schneider explica: “É certamente
com abuso deliberado que dou à palavra plágio uma extensão que vai bem além de seu sentido estrito e a faço
designar as influências, a partilha dos pensamentos e a intertextualidade das formas escritas”. SCHNEIDER.
Ladrões de palavras, p.39. Tanto na conotação de Schneider para “ladrões de palavras” como na conotação que
vinculamos a Hermes para “ladrão de sentidos” destacamos a maneira segundo a qual a voz do outro é tratada.
66
Nessa perspectiva, seria possível a Hermes “traficar” um sentido adulterado ou
“inventar” sentidos através da tradução que lhe é dado realizar, ou seja, seria possível a
Hermes levar aos destinatários um sentido diferente do intencionado pelos deuses
129
. No
entanto, por ser considerado o detentor dos sentidos ocultos e dos segredos encobertos, não
caberia a desconfiança quanto ao sentido proferido por ele. Além de tal ambivalência, essa
dedução etimológica aponta para outro dado que nos interessa destacar. Por fazer a mediação
entre dois mundos incompatíveis, o mundo dos deuses e o dos mortais, Hermes deve se
adequar ao mundo dos homens para que a comunicação seja viável; podemos dizer, portanto,
que ele deve se adequar às demandas dos destinatários, em constante alteração.
Desse modo, na sua etimologia, a hermenêutica apresenta a criatividade, a evidência
do público e a sapiência como enclave. Os itens dessa enumeração assinalam pontos
importantes para se pensar a tradução entre linguagens, que, num entendimento amplo, pode
abranger tanto o processo de doação de sentido ao texto literário realizada pelo crítico
literário, como o de transposição linguístico-formal da língua do original numa língua
diferente
130
.
129
Nessa direção, Goiamérico Felício Carneiro dos Santos afirma no ensaio “Agruras de um leitor aquém e fora
do texto”: “Filho de Zeus e de Maia, o astuto Hermes Trimegisto três vezes magistral tem por ofício ser o
mensageiro dos deuses. Diz-nos o mito que esse deus alado e ladrão, que tanto vagou pela Ásia Menor em meio a
memoráveis peripécias, distinguiu-se por disseminar a mentira e o engano entre os Senhores do Olimpo e
também entre os habitantes da Hélade. Apanhado em seus erros, Hermes prometeu que não mais apregoaria a
mentira, mas deixou uma ressalva de que não estaria obrigado a dizer a verdade por inteiro. O mensageiro
Hermes é tido, juntamente com Dionísio, como o menos olímpico dos deuses, por preferir estar entre os homens,
guardando seus caminhos, ajudando-os em momentos cruciais. Assim, esse dispensador de bens notabiliza-se por
beneficiar os homens. Porém, em se tratando de Hermes, vale mais uma ressalva: os seres humanos recebem a
sua ajuda, sim, principalmente no que concerne às tentativas de interpretação das linguagens humanas, bem
como à sisífica tarefa de buscar os sentidos para os fatos do mundo humano. É salutar, contudo, desconfiarmos
da ajuda desse insidioso deus que muito tem nos desencaminhado de caso pensado”. SANTOS in
NASCIMENTO; OLIVEIRA (Orgs.). Leitura e experiência, pp.188-189.
130
Como Richard Palmer pontua, os problemas que o tradutor enfrenta ao transpor a língua do original para
outra são congruentes com os enfrentados pelo crítico literário, mesmo que essa transposição não seja necessária:
“O fenômeno da tradução é o próprio cerne da hermenêutica: nele se confronta a situação básica da
hermenêutica, de ter que compor o sentido de um texto, trabalhando com instrumentos gramaticais, históricos e
outros para decifrar um texto antigo. E, no entanto, [...] esses instrumentos apenas são formalizações explícitas
de fatores implicados em qualquer confrontação com um texto linguístico, mesmo na nossa própria língua. Há
sempre dois mundos, o mundo do texto e o mundo do leitor, e por consequência sempre a necessidade de que
Hermes ‘traduza’ de um para o outro”. PALMER. Hermenêutica, p.41.
67
No tocante a essa transposição, teorias recentes enfatizam a tradução como uma
prática regida por parâmetros tais como reescrita, subversão e transcriação
131
, que acenam
para a necessidade de intervenções ao se realizar uma tradução, até mesmo para que se chegue
mais próximo do original ou do público leitor. Esses parâmetros acabam por conceber um
exercício hermenêutico, como Haroldo de Campos elucida a respeito da tradução de Sófocles
feita por Hölderlin, numa comparação com Ezra Pound:
Se Hölderlin é um tradutor exegeta, pratica uma espécie de tradução litúrgica, transubstancia a
linguagem do original na linguagem da tradução como o oficiante-hermeneuta de um rito
sagrado que procurasse conjurar o verbo primordial [...], Pound, ao contrário, é um tradutor
pragmático, laico exercendo a tradução como uma didática, como uma forma crítico-criativa
de reinventar a tradição. Mas ambos se assemelham pelos resultados a que, por diverso
caminho, acabaram chegando. Traduzir a forma é, para ambos, um critério básico. [...] No que
toca a Hölderlin, uma característica do seu método de verter é a literalidade exponenciada, a
literalidade à forma (antes do que ao conteúdo) do original. Trata-se de uma
“supraliteralidade” na expressão de Schadewaldt (e aqui cabe recordar que o nosso Mário de
Andrade falava em “supertradução”, para conceituar uma tradução onde a “ordem de
dinamogenia” das palavras do original fosse captada)
132
.
Ao atribuir à tradução uma “forma privilegiada de leitura”
133
, Haroldo de Campos
destaca a argumentação de Walter Benjamin no ensaio “A tarefa do tradutor”, segundo a qual
o texto original passa por intervenções ao ser traduzido
134
numa tentativa, inclusive, de se
ter uma inserção histórica –, uma vez que o essencial na tradução, bem como na literatura, é
da ordem da forma, e não da informação ou do enunciado, que, constituído de linguagem,
pode se manter não comunicável. A questão preponderante parece estar na ausência de valor
que a comunicação da mensagem do original recebe; como Haroldo de Campos afirma, ao
131
Ver LAGES. Walter Benjamin: tradução e melancolia, pp.73-97.
132
CAMPOS. A poética da tradução, pp.97-98 (grifos do autor).
133
CAMPOS. A poética da tradução, p.115. Como Susana Kampff Lages conclui: “Evidentemente, o tradutor
não pode ser equiparado aos leitores em geral; no âmbito de seu ambiente cultural, ele é antes de mais nada o
leitor por excelência, e leitor privilegiado do texto que irá traduzir”. LAGES. Walter Benjamin: tradução e
melancolia, p.69 (grifos da autora).
134
Segundo Walter Benjamin pondera: “[...] pode-se comprovar não ser possível existir uma tradução, caso ela,
em sua essência última, ambicione alcançar alguma semelhança com o original. Pois na continuação de sua vida
[...], o original se modifica”. BENJAMIN. A tarefa do tradutor, p.197. Em síntese, nas palavras do próprio
Benjamin: “[...] a relação do conteúdo com a língua é completamente diversa no original e na tradução”.
BENJAMIN. A tarefa do tradutor, p.201.
68
dialogar com o ensaio de Benjamin: na tradução, “o essencial não é a reconstituição da
mensagem, mas a reconstituição do sistema de signos em que está incorporada esta
mensagem, da informação estética, não da informação meramente semântica”
135
.
Frisamos que a argumentação de Benjamin no ensaio mencionado dispõe a tradução
numa acepção que é subsidiária ao entendimento do autor sobre literatura, no que diz respeito
à comunicação empreendida por ela:
O que “diz” uma obra poética
136
? O que comunica? Muito pouco para quem a compreende. O
que lhe é essencial o é a comunicação, não é o enunciado. E no entanto, a tradução que
pretendesse comunicar algo não poderia comunicar nada que não fosse comunicação, portanto,
algo de inessencial. Pois essa é mesmo uma característica distintiva das más traduções. Mas
aquilo que está numa obra literária, para além do que é comunicado (e mesmo o mau tradutor
admite que isso é o essencial), não será isto aquilo que se reconhece em geral como o
inaferrável, o misterioso, o “poético”? Aquilo que o tradutor pode restituir ao tornar-se, ele
mesmo, um poeta? De fato, daí deriva uma segunda característica da má tradução, que se pode
definir, consequentemente, como uma transmissão inexata de um conteúdo inessencial. E
assim é, sempre que a tradução se compromete a servir ao leitor. Mas se ela fosse destinada ao
leitor, também o original o deveria ser. Se o original não existe em função do leitor, como
poderíamos compreender a tradução a partir de uma relação dessa espécie?
137
A equação benjaminiana que articula os fatores compreensão e comunicação da literatura e da
tradução – sendo que quando a compreensão estiver em alta, a comunicação acompanhará em
queda – rende o elogio ao inapreensível ou a um abismo poético, por assim dizer. Abismo que
alinha essa equação junto à visão romântica de Friedrich Schlegel, representada no fragmento
117, do Lyceum, que apregoa “Poesia pode ser criticada por poesia”
138
, da mesma maneira
que, para ser bem traduzida, a poesia deverá receber uma tradução poetizada.
O domínio estético condiciona mediações dotadas de implicações teóricas,
engendramento também presente no processo de doação de sentido ao texto literário, processo
aqui designado como hermenêutica literária. A hermenêutica literária pressupõe a
135
CAMPOS. A poética da tradução, p.100 (grifos do autor).
136
Ao contrário da opção feita por outros tradutores do ensaio de Benjamin, em que o termo Dichtung é
traduzido por “obra literária”, na tradução que citamos aqui, a tradutora circunscreveu o termo apenas ao texto
poético.
137
BENJAMIN. A tarefa do tradutor, pp.189-191.
138
SCHLEGEL. O dialeto dos fragmentos, p.38.
69
comunicabilidade da literatura: mas, caso não haja a pretensão de se esgotar o sentido do texto
literário e de se agregar uma verdade a esse sentido, essa hermenêutica pode se conciliar com
o inapreensível ou com a ilegibilidade. Essa conciliação não exclui, contudo, o fato de a
hermenêutica literária demandar a definição do sentido, que emerge do texto literário com o
empenho do leitor e que resulta num entendimento embasado nas seguintes hipóteses: 1. a
literatura instaura uma via de comunicação; 2. os fatores compreensão e comunicação podem
receber, conjuntamente, uma equalização elevada.
Ao discutirmos a hermenêutica literária, os fatores compreensão e comunicação não
têm natureza normativa e não estão comprometidos com o sentido último do texto literário,
conforme já comentamos. Sendo assim, apesar da diferença premente, parece possível
vislumbrarmos pontos de convergência entre a argumentação de Benjamin e o entendimento
que apresentamos em torno da hermenêutica literária, com a justificativa de que ambos
ratificam a prerrogativa da criação. Isto é, as intervenções necessárias nos processos de
tradução e de doação de sentido ao texto literário promovem um feixe de alterações entre o
original e a versão traduzida, entre o texto literário e o que diz o texto nas palavras do leitor
ou intérprete, que distingue exigências de ordem estética, que a compreensão e a
comunicação em tais processos não são estimuladas apenas pelo aspecto semântico do texto.
Tal convergência acresce na medida em que ambos os processos apresentam uma conexão de
fundo histórico, pois a tradução e a hermenêutica literária validam a vida póstuma do texto
original, realçando procedimentos demandados pela tradição literária.
Portanto, a hermenêutica literária não se reporta ao sentido oculto do texto literário,
desvendado por um leitor autorizado como o leitor crítico, ou a um saber unívoco. Por um
lado, a ausência da pretensão de se revelar o sentido oculto poderia desfazer a aura da
sapiência particularizada pela etimologia da palavra hermenêutica. Mas, por outro lado, o
esforço pressuposto pela mediação, presente tanto no gesto hermenêutico como na tradução,
70
reivindica saberes linguísticos, históricos, culturais isto é, saberes de diversas ordens, que
resguardam tal aura. Assim, essa mediação suscita semelhanças entre a tarefa do hermeneuta e
a tarefa do tradutor, pois ambas são condizentes com uma descontinuidade que implica uma
relação de derivação entre o texto lido e o texto do intérprete ou do tradutor. Contudo, há uma
diferença fundamental entre tais tarefas, uma vez que o hermeneuta deve produzir um texto
que apresente uma semantização explícita do texto original, ao contrário do tradutor, que deve
se preocupar em gerar os efeitos do texto traduzido, ou seja, o tradutor deve propiciar a
experiência de leitura desse texto.
Estímulos e obstáculos à compreensão
A interrupção, grande tema de Kafka, a interferência que impede que se
chegue ao destino. A suspensão, o desvio, a postergação: isso é clássico nele,
que sempre o narra, mas define também o registro de sua escrita. Seu estilo é
uma arte da interrupção, a arte de narrar a interferência.
Ricardo Piglia, O último leitor.
Nos termos de José Manuel Cuesta Abad, podemos dizer que
[...] no existe creación literaria que no presuponga el concepto de comprensión: la actitud
hermenéutica es la condición de posibilidad de la Literatura. En la obra literaria se hacen
evidentes las exigencias de la comprensión, el lenguaje espejea en la densidad expresiva de
sus constituyentes. Antes que nada, un poema o un relato requieren interpretación, y avisan de
su requerimiento a través de una introversión del lenguaje, enfatizando ostensivamente sus
pliegues y repliegues de signos. Así como el lenguaje experimenta en su doblez un
extrañamiento, la interpretación se convierte en un juego especular, tematizándose,
problematizándose en busca constante del sentido
139
.
139
CUESTA ABAD. Teoría hermenéutica y literatura, p.11 (grifo do autor). “[...] não existe criação literária que
não implique o conceito de compreensão: a atitude hermenêutica é a condição de possibilidade da Literatura. Na
obra literária se tornam evidentes as exigências da compreensão, a linguagem reflete a densidade expressiva de
seus constituintes. Primeiramente, um poema ou um relato requerem interpretação, e sinalizam sua demanda
através de uma introversão da linguagem, enfatizando ostensivamente suas dobras e dobras de signos. Assim
como a linguagem experimenta em sua dobra um estranhamento, a interpretação se converte num jogo especular,
se programando e se problematizando numa busca constante pelo sentido”.
71
O gesto hermenêutico junto ao enunciado literário ressalta o papel do leitor, por ser a leitura a
condição de o texto literário ganhar vida – ou seja, adquirir sentido e valor –, motivo que faz a
recepção ser um fator preponderante para se pensar a literatura
140
. O enunciado literário não é
prescritivo como o da lei civil, não está sujeito às verificações do método empírico como o
científico e não é denotativo como o jornalístico ou o histórico
141
. A hermenêutica literária
demonstra, por conseguinte, a complexidade de um enunciado que convoca, na sua leitura, as
mais heterogêneas e incompatíveis perspectivas históricas, críticas e teóricas, diversidade que
pode ser exemplarmente demonstrada nos estudos críticos sobre as obras de Franz Kafka e de
Machado de Assis. Assim, é preciso r em relevo o sujeito que interpreta o leitor –, como
também os procedimentos metodológicos junto aos quais se interpreta.
Ao falar sobre a obra de Kafka no ensaio “Anotações sobre Kafka”, Theodor Adorno
evoca a tensão que deve haver no ato da leitura, fundamento para seu desagrado perante
frames que inserem Kafka em ordens preestabelecidas, como o existencialismo, tônica da
recepção à obra do autor até então. Nos termos da reivindicação de Adorno, desde que
enfatizados “os aspectos que dificultam o enquadramento”
142
, a demanda da obra por
interpretação teria o devido destaque. Ora, não seria essa demanda inerente ao enunciado
literário, sem que se façam distinções? Apontando a obra kafkiana como baliza, parece-nos
importante identificar em certos autores ou obras a razão pela qual a hermenêutica coloca-se
como questão metateórica, pois, assim, vislumbramos um caminho para se explicar por que
determinados autores ou obras incitam uma recepção crítica mais caudalosa e diversificada,
em termos comparativos, quanto ao seu sistema teórico-metodológico.
140
Nessa direção, Karlheinz Stierle (2002), Ricardo Piglia (2006) e Vincent Jouve (2002) advertem: é imperativo
que a reflexão teórica sobre a recepção literária seja acompanhada pela reflexão sobre a especificidade do
ficcional.
141
Ver a tipologia dos enunciados caracterizados em denotativo, performativo e prescritivo proposta por
Jean-François Lyotard em A condição pós-moderna, pp.15-19.
142
ADORNO. Anotações sobre Kafka, p.239.
72
A complexidade da questão pertinente à hermenêutica literária faz com que Adorno
defenda posições um pouco ambíguas. Para o filósofo:
As criações de Kafka se protegem do erro artístico mortal que consiste em crer que a filosofia
que o autor injeta na obra seja o seu teor metafísico. Se fosse assim, a obra teria nascido
morta: ela se esgotaria naquilo que diz e não se desdobraria no tempo. Para se prevenir contra
o curto-circuito causado pelo sentido prematuro visado pela obra, a primeira regra é tomar
tudo literalmente, sem recobrir a obra com conceitos impostos a partir de cima. A autoridade
de Kafka é a dos textos. Somente a fidelidade à letra pode ajudar, e não a compreensão
orientada. Em uma escrita que continuadamente obscurece e esconde o que quer dizer, todo
enunciado determinado contrabalança a cláusula geral da indeterminação
143
.
O que o filósofo propõe como “princípio de literalidade”
144
ou o “assim é” sugere um
imperativo kafkiano do não interpretar
145
; contudo, no decorrer do referido ensaio, Adorno
apresenta várias determinações semânticas à obra de Kafka. Ainda que sob a dificuldade de
um texto que simula a explosão do sentido como a querer indagar se os termos do sentido
tangenciam o indeterminado, o provisório ou o antagônico
146
–, é insustentável defender que
tal “princípio de literalidade” não esconde um gesto hermenêutico, ou, em outras palavras,
que a leitura pode ser dissociada desse gesto, como se ao leitor fosse dado produzir sentido
sem que, para tanto, houvesse mediações.
A ambiguidade observada na argumentação de Adorno expressa o problema fulcral em
torno da hermenêutica literária por mostrar como o sentido do texto literário está sempre
pendente e, assim, como a atribuição e a produção desse sentido não se realizam sem a
interferência de valores exteriores ao texto e sem a criação de um discurso paralelo ao texto,
que inviabiliza tal literalidade. A participação do intérprete parece, contudo, estar
contemplada nas preocupações de Adorno, na medida em que o autor prevê o esforço do leitor
para compreender a obra:
143
ADORNO. Anotações sobre Kafka, p.242 (grifos nossos).
144
ADORNO. Anotações sobre Kafka, p.242.
145
Para Adorno: “Cada frase diz: ‘interprete-me’; e nenhuma frase tolera a interpretação”. ADORNO. Anotações
sobre Kafka, p.241.
146
A esse respeito, deve ser lembrado, como passagem exemplar, o capítulo nono de O processo, intitulado “Na
catedral”.
73
A violência com que Kafka reclama interpretação encurta a distância estética. Ele exige do
observador pretensamente desinteressado um esforço desesperado, agredindo-o e sugerindo
que de sua correta compreensão depende muito mais que apenas o equilíbrio espiritual: é uma
questão de vida ou morte. Um dos pressupostos mais importantes de Kafka é que a relação
contemplativa entre o leitor e o texto é radicalmente perturbada. Os seus textos são dispostos
de maneira a não manter uma distância constante com sua vítima, mas sim excitar de tal forma
os seus sentimentos que ela deve temer que o narrado venha em sua direção, assim como as
locomotivas avançam sobre o público na técnica tridimensional do cinema mais recente
147
.
A se concordar que o sentido do texto literário esteja sempre pendente e, por isso, deriva
principalmente de um gesto hermenêutico no domínio institucional –, esse gesto assume
grande envergadura na instância dos estudos literários. Sendo assim, é necessário
esquadrinhar os limites do intérprete e a incidência de estratégias de controle que incorrem no
sentido a ser produzido e legitimado.
Nos textos de Kafka reiteradamente um espaço inacessível, seja no momento de
entrada, seja no de saída, como exemplificam o romance O castelo, o capítulo “Na catedral”,
de O processo, e o conto “Uma mensagem imperial”. Graças à caracterização de um espaço
vedado, sobressalta-se a impossibilidade de se conhecer uma mensagem ou os princípios que
regem a administração do mundo criado. Essa impossibilidade problematiza, por
consequência, o sentido a ser composto pelo leitor, que ela acaba por predicar o texto com
um caractere enigmático. Formulamos, então, uma explicação para o estranhamento
produzido pelo texto de Kafka, que o tom da recepção crítica à sua obra: à constituição do
espaço cujos atributos intercalam o interditado, inalcançável, insólito, labiríntico, precário,
intermitente, imprevisto, ambivalente ou surpreendente corresponderia um dos principais
pilares da assinatura kafkiana. A assimetria, remetida à palavra e à forma de expressão, seria,
portanto, garantida pela disposição espacial, que, por sua vez, implica o obstáculo ao
conteúdo como se disse e também uma despreocupação com o mimético ou o
realismo
148
.
147
ADORNO. Anotações sobre Kafka, p.241.
148
Entre outros, são esclarecedores os contos “A ponte”, “À noite”, “Uma confusão cotidiana”, de Narrativas do
espólio.
74
Paradoxalmente, no romance O processo, o espaço é construído enquanto
desestabilização: um espaço móbile, por se fazer, desfazer e refazer repetidamente como se
ocupasse a mesma base, sendo condição para ser refeito a desconstrução do que antes a
ocupava, à maneira de um espaço cênico. K., o protagonista, não consegue conceber uma
visão do todo espacial onde circula; o mesmo ocorre com o leitor, que acompanha a trajetória
da personagem admirado com os desdobramentos de signos que lhe são caros no mundo
efetivo como pensão, tribunal, cartório, banco, catedral –, mas que, no romance, recebem
um tratamento que privilegia o deslocamento e a exterioridade. Por esse motivo, o espaço não
se instaura nem em termos definidos, nem, muito menos, definitivos, o que impede uma
correspondência funcional, frustrando as expectativas de K..
Atentamos para a desrealização espacial que assola K. nas cenas em que se encontra
no cartório e na catedral. Nessas cenas, K. manifesta sua desorientação, numa demonstração
de que a cartografia espacial ganha nuances específicas para essa personagem, próximas de
uma denotação labiríntica. Ainda que se perceba uma forma concisa e um “sistema gico
149
operante, há, em contrapartida, uma inexauribilidade do sentido como força motriz. Essa
denotação labiríntica associa-se também ao próprio processo: “não era impossível que [K.]
recebesse da parte dele [do sacerdote] um conselho decisivo e aceitável, que lhe mostrasse,
por exemplo, não como o processo talvez pudesse ser influenciado, mas sim como se poderia
sair dele, como se poderia contorná-lo, como se poderia viver fora dele
150
. O processo
significa, habitualmente, a materialidade de um caderno com capa e folhas ajuntadas, mas,
nesse caso, exprime uma dimensão espacial, que reitera a obscuridade e o tortuoso,
impressões de K. para lugares empiricamente espaciais. A partir dessa “realidade” processual,
paralela e sinuosa, surge uma série de questionamentos quanto à veracidade inspirada por ela
e ao seu sentido. Podemos pensar que o romance conduz a uma discussão sobre o modo como
149
Ver ADORNO. Anotações sobre Kafka, p.252.
150
KAFKA. O processo, p.260 (grifos nossos).
75
percebemos e validamos os referenciais do mundo, pois, ao longo das suas páginas, vemos
uma sucessão de comentários reveladores do artifício como liga mestra do mundo
151
, válidos,
de maneira análoga, para a teoria da ficção
152
.
Tentamos uma aproximação entre a problemática quanto à “verdade” do processo para
K. e o tipo de “pacto” caro ao leitor de literatura, com o objetivo de atentarmos para as
aporias hermenêuticas que o enunciado literário provê. O desenvolvimento da narrativa de O
processo tem seu ponto crucial no capítulo intitulado “Na catedral”, que apresenta uma
relativização num nível paroxístico. A título de exemplo, lembramos o momento em que o
sacerdote alude à “interpretação” dos deveres cumpridos pelo porteiro nos “textos
introdutórios à lei”
153
: “‘A compreensão correta de uma coisa e a compreensão dessa
mesma coisa não se excluem completamente’”
154
. O capítulo propõe uma demonstração
cerrada da vertigem em que consistem a atribuição e a produção de sentido, isto é, o quanto a
asseveração de um referencial é tergiversa, tendo em vista a pulverização hermenêutica a que
um mesmo texto está sujeito. Como o sacerdote explica a K.: “Você não precisa dar atenção
demasiada às opiniões. O texto é imutável, e as opiniões são muitas vezes apenas uma
expressão de desespero por isso”
155
. No romance, a ironia latente, relacionada à
decidibilidade do sentido é revelada através de uma composição eminentemente espacial. O
espaço interditado desnuda, assim, a ignorância constitutiva do conhecimento, sempre por vir,
mas, no entanto, irremediável.
A leitura que traçamos da interrupção espacial em Kafka deve ser entendida como
alegoria literária da problemática teórica que cerca este trabalho, por mostrar como o sentido
exacerba dois aspectos consideravelmente avessos entre si: o estímulo e o obstáculo à
151
No ensaio que escreve sobre Kafka, Walter Benjamin aponta para essa direção ao afirmar que “[o] mundo de
Kafka é um teatro do mundo. Para ele, o homem está desde o início no palco”. BENJAMIN. Franz Kafka: a
propósito do décimo aniversário de sua morte, p.150.
152
A respeito da teoria da ficção, referenciamos a teoria de Wolfgang Iser.
153
KAFKA. O processo, p.261.
154
KAFKA. O processo, p.265.
155
KAFKA. O processo, p.266.
76
compreensão e à interpretação do texto. O texto literário convida o leitor a produzir e a
atribuir sentido, pois o texto existe enquanto “mera virtualidade”
156
e depende do leitor para
ser atualizado. Porém, o texto também oferece resistências, uma vez que, ao protagonizar essa
atualização, o leitor deve compor, através do seu imaginário, um mundo que, em tese, é
diferente do mundo empírico, exigindo, assim, do leitor que “transcend[a] a sua posição no
mundo”
157
. Na composição desse mundo, o leitor deve ainda ter esmero para completar as
omissões narrativas apresentadas pelo texto.
Apesar das discordâncias existentes no âmbito da literatura, a hermenêutica pode ser
vista a partir de alguns pontos comuns, que, admitidos como exemplo e hipoteticamente, são
organizados em torno de tais aspectos, ou seja, do estímulo e do obstáculo à compreensão e à
interpretação do texto. Na expansão dessa hipótese, conjeturamos que a maneira como se
entende a hermenêutica literária é congruente com sistemas de legibilidade do mundo e com
teorias da subjetividade, que se apresentam junto à hermenêutica, isto é, junto a reflexões
teóricas sobre a compreensão da literatura, sobre as relações e possibilidades admitidas no
processamento do texto. Conjeturamos, ainda, que o estudo da hermenêutica literária instiga a
reflexão sobre estratégias de poder e controle, uma vez que o processo que revela o sentido
pretensamente oculto pode disfarçar algum tipo de imposição ideológica. Mesmo que não haja
essa revelação, ao se produzir sentido, conceitos e teorias são necessariamente deduzidos,
bem como valores, inferências culturais, sócio-históricas e políticas e deduções como essas
já regulam e controlam a compreensão e a interpretação do texto, pois elas impõem uma série
de negociações semânticas.
Importa avaliar se os percalços encontrados no processamento do texto são revertidos
em alguma espécie de benesse e se acarretam questões específicas. Quanto ao primeiro ponto,
podemos admitir, por exemplo, a hipótese segundo a qual, ao recusar a representação
156
ISER. O ato da leitura, p.123. v.1.
157
ISER. O ato da leitura, p.146. v.1.
77
mimética, uma escrita como a de Kafka desencadeia um questionamento do sentido, que, no
seu desenvolvimento, instiga o leitor a analisar o mundo em que vive. Nesse caso, sob o
estranhamento motivado pelo estilo kafkiano, o leitor pode ser provocado a impugnar as
relações de poder e autoridade que estão à sua volta. Ou seja, a partir do esforço que, em tese,
o leitor dedica ao entendimento de uma literatura marcada pela negatividade como a de
Kafka, poderá haver uma chance maior de se fazer da leitura de um texto, que cria um mundo
nada familiar, a devida oportunidade de inflexão num cotidiano costurado normalmente sob
rotina, atitudes e pensamentos mecânicos. Quanto ao segundo ponto, podemos admitir que,
num texto em que os obstáculos ao sentido como exemplificam as lacunas textuais sejam
mais protuberantes, a doação de sentido, maneira de solver esses obstáculos, poderá ser feita
em diferentes níveis
158
e de diferentes maneiras, o que faz esse texto ser mais polivalente do
que outros
159
.
Hermenêutica e o peso dos conceitos
It´s possible to use a term in a new way, but it is not possible to escape the
term´s past
160
.
Thomas McLaughlin, Introduction of Critical terms for literary study.
Entre a variação conceitual referente à hermenêutica, visões incompatíveis com a
visão, adotada aqui, segundo a qual o sentido não se sob termos definitivos, não se reporta
158
Ver o ensaio “Ironia intertextual e veis de leitura”, de Umberto Eco. Nesse ensaio, Eco classifica os níveis
de leitura em semântico e semiótico ou estético.
159
No ensaio que escreve sobre Machado de Assis, Antonio Candido aponta para essa direção ao afirmar: “Nas
obras dos grandes escritores é mais visível a polivalência do verbo literário. Elas são grandes porque são
extremamente ricas de significado, permitindo que cada grupo e cada época encontrem as suas obsessões e as
suas necessidades de expressão. Por isso, as sucessivas gerações de leitores e críticos brasileiros foram
encontrando níveis diferentes e vendo nele um grande escritor devido a qualidades por vezes contraditórias”.
CANDIDO. Esquema de Machado de Assis, p.18.
160
“É possível usar um termo de um modo novo, mas não é possível escapar do passado do termo”.
78
a uma verdade
161
, nem a um saber original ou oculto. Distanciamo-nos de uma definição
como esta, sugerida por Vincent Jouve: “A hermenêutica defende [...] a ideia de uma leitura
‘centrípeta’, isto é, de uma interpretação centrada e racionalizante que tenta subsumir a
complexidade dos textos em um sentido unitário”
162
.
No arco histórico do conceito, há divergências tanto no âmbito de disciplinas diversas,
como no âmbito disciplinar próprio à literatura; divergências que nos lembram um preceito
fundamental: “[...] terms have a history, that they shape how we read, and that they engage
larger social and political questions. [...] the meaning of the term is a matter of dispute, which
is simply true in todas theoretical environment”
163
. Apesar dessas divergências, é possível
lidar com o pressuposto, como o faz Miguel Tamen em Hermenêutica e mal-estar, segundo o
qual
a noção de ‘hermenêutica’ [...] diz respeito [...] a uma série de atividades [...] que apresentam
entre si diferenças e incompatibilidades mas que, apesar de tudo, são de certa forma
homogeneizadas por graça da função que desempenham e dos problemas que levantam: os
processos, os recursos, os dispositivos que usamos para interpretar, bem como os problemas
que surgem ao querermos interpretar
164
.
Uma definição abrangente da hermenêutica, como esta proposta por Josef Bleicher,
também parece aceitável:
161
Segundo Fernando Romo Feito explica, a associação recorrente entre hermenêutica e verdade remonta à
hermenêutica bíblica: “Pues en el fondo, siempre hay una cierta correlación entre hermenéutica y verdad,
procedente acaso de su origen ligado a la exégesis bíblica que ella reconoce como antecedente suyo, ante la cual
algunas formas de interpretación desearían liberarse de compromisos ontológicos”. FEITO. Hermenéutica,
interpretación, literatura, pp.49-50.
162
JOUVE. A leitura, p.94.
163
McLAUGHLIN. Introduction of Critical terms for literary study, p.03. “[...] termos têm uma história, eles
moldam a maneira com que lemos e estão comprometidos com maiores questões sociais e políticas. [...] o
significado do termo é um assunto em disputa, o que é a verdade simplesmente no ambiente teórico atual”. Sobre
as principais tendências da hermenêutica contemporânea, ver os livros: Hermenêutica contemporânea, de Josef
Bleicher, que percorre um trajeto que vai de Friedrich Schleiermacher a Paul Ricouer, e Hermenêutica, de
Richard E. Palmer, focado especialmente em Schleiermacher, Dilthey, Heidegger e Gadamer. Ver também
Hermenéutica, interpretación, literatura, de Fernando Romo Feito, e Teoría hermenéutica y literatura, de Jo
Manuel Cuesta Abad: nesses livros, os autores discutem a hermenêutica não só junto à filosofia, como também à
teoria da literatura.
164
TAMEN. Hermenêutica e mal-estar, p.69.
79
A hermenêutica pode ser definida, em termos genéricos, como a teoria ou filosofia da
interpretação do sentido. Surgiu recentemente como tema central na filosofia das ciências
sociais, na filosofia da arte e da linguagem e na crítica literária apesar de sua origem
moderna remontar aos princípios do século XIX.
A percepção de que as expressões humanas contêm uma componente significativa, que tem de
ser reconhecida como tal por um sujeito e transposta para o seu próprio sistema de valores e
significados, deu origem ao “problema da hermenêutica”: saber como é possível este processo
e como tornar objetivas as descrições de sentido subjetivamente intencional, tendo em conta o
facto de passarem pela subjetividade do próprio intérprete
165
.
No estudo da hermenêutica, um ponto central reside, então, na expectativa pela objetividade
do resultado hermenêutico, ou, em outras palavras, na validade que esse resultado recebe
frente à arbitrariedade e à contingência do sujeito interpretante.
O “problema da hermenêutica” articula respostas divergentes para questões como a
transparência do gesto hermenêutico e a visibilidade do trabalho do intérprete
166
. Mesmo num
fulcro disciplinar específico como o dos estudos literários –, o complexo emaranhado de
matizes e de perspectivas pertinentes ao sentido faz da hermenêutica um exemplo de umbrella
term, ou seja, de um termo que comporta um amplo espectro conceitual. Assim, o gesto
hermenêutico perante o enunciado literário pode ser entendido de maneiras variadas, com a
possibilidade de haver o triunfo de uma maneira sobre as outras num dado contexto.
De acordo com Cuesta Abad, no prólogo ao livro Teoría hermenéutica y literatura:
La experiencia del sentido tiene lugar en un proceso dialéctico por el que, en un momento
dado, espacio y tiempo se acoplan en una unidad ambivalente: sincronía-diacronía,
univocidad-plurivocidad, realidad-ficción, etc. Ningún texto reúne tal cantidad de contenidos
hermenéuticos autorreflexivos como el literario. Conjunción y disyunción de valores,
coincidencia y divergencia de normas estéticas y éticas, vigencia y desfase de códigos
culturales son expuestos a la máxima potencia por el lenguaje estético transformando la
lectura, la interpretación, en un acto inevitablemente metahermenéutico. Y sólo una
comprensión que, en la totalidad de su alcance, encierra lo comprendido, la comprensión de la
165
BLEICHER. Hermenêutica contemporânea, p.13.
166
A respeito da diversidade dos fundamentos filosóficos da hermenêutica, José Manuel Cuesta Abad dispõe:
“Por una irónica evolución de la filosofía moderna, la hermenéutica se ha convertido en un mosaico de
teorizaciones que impiden formular su definición precisa, al menos históricamente perfilada, sin afrontar a un
tiempo las críticas que se han interpuesto en el camino de su formación multívoca. Un status quaestionis de la
hermenéutica requeriría un estado de la cuestión sobre los estados de la cuestión, tal es la espesura crítica que ha
alcanzado el problema de la interpretación”. CUESTA ABAD. Teoría hermenéutica y literatura, p.19.
80
compresión postulada por lo comprendido y el proceso mismo por el que se ha llegado a
comprender puede ser estética
167
.
Diante das variáveis através das quais o gesto hermenêutico pode ser levado a cabo, é preciso
que o crítico explicite a maneira pela qual entende esse gesto, pois essa maneira molda e
condiciona a compreensão do texto. É preciso haver uma reflexão meta-hermenêutica, uma
reflexão que faça a descrição crítica dos pressupostos defendidos, até para que o resultado
hermenêutico deixe de ser pensado num plano individual e tenha condição de ser
legitimado
168
. Para o leitor crítico, uma polifonia teórica que oferece reflexões e
mecanismos a respeito da compreensão e da explicação de um texto; e, além de proceder à
análise do sistema teórico empregado na hermenêutica do texto, se for o caso, o crítico deverá
proceder também à análise dos referenciais extraliterários, como os de natureza sócio-
histórica e cultural. Desse modo, podemos dizer que a hermenêutica literária tem não o
texto literário como objeto
169
.
O estudo da hermenêutica na sua acepção contemporânea ou seja, a hermenêutica
moderna inaugurada por Friedrich Schleiermacher, desvencilhada das deas dos teólogos,
167
CUESTA ABAD. Teoría hermenéutica y literatura, p.12 (grifos do autor). “A experiência do sentido ocorre
por meio de um processo dialético no qual, num determinado momento, espaço e tempo se acoplam numa
unidade ambivalente: sincronia-diacronia, univocidade-plurivocidade, realidade-ficção, etc. Nenhum texto reúne
tal quantidade de conteúdos hermenêuticos autorreflexivos como o literário. Junção e disjunção de valores,
coincidência e divergência de normas estéticas e éticas, vigência e defasagem de códigos culturais são expostos à
máxima potência pela linguagem estética, transformando a leitura, a interpretação, num ato inevitavelmente
meta-hermenêutico. E só uma compreensão que, na totalidade de seu alcance, encerra o compreendido, a
compreensão da compreensão postulada pelo compreendido e o próprio processo através do qual se chegou a
compreender pode ser estética”.
168
Com relação ao destaque conferido à reflexão meta-hermenêutica, Richard Palmer sentencia: “[...] a
hermenêutica chega à sua dimensão mais autêntica quando deixa de ser um conjunto de artifícios e de técnicas
de explicação de texto e quando tenta ver o problema hermenêutico dentro do horizonte de uma avaliação geral
da própria interpretação. Deste modo, implica dois polos de atenção, diferentes e interatuantes: 1) o facto de
compreender um texto e 2) a questão mais englobante do que é compreender e interpretar. Um dos elementos
essenciais para uma teoria hermenêutica adequada e, consequentemente, para uma teoria adequada da
interpretação literária, é uma concepção da própria interpretação que seja suficientemente lata”. PALMER.
Hermenêutica, pp.19-20.
169
Ademais, segundo José Manuel Cuesta Abad esclarece: “La comprensión consiste en la percepción-
construcción del sentido de un texto. La realidad no tiene sentido fuera de la indeclinable actitud hermenéutica
del sujeto. Es decir, el ser comprensible del mundo adviene por medio de un estatuto perceptivo-constructivo sui
generis en función del cual la realidade (las cosas, los acontecimientos naturales, las acciones intencionales...)
adquiere la forma de ‘texto’. lo el texto puede tener un sentido; por tanto, sólo el texto es objeto de la
comprensión”. CUESTA ABAD. Teoría hermenéutica y literatura, p.19.
81
juristas e filólogos ampara uma discussão sobre os horizontes que delimitam as tarefas
clássicas da hermenêutica: compreensão, explicação ou interpretação e aplicação. As
definições desses horizontes assentem, ao mesmo tempo, com proposições que almejam uma
interpretação objetivamente válida e com proposições que reconhecem a ingenuidade desse
propósito, dualidade que se firma não entre os fundamentos filosóficos da hermenêutica,
mas também entre os fundamentos teóricos no âmbito da literatura. Em outros termos, as
definições de tais horizontes assentem com uma polaridade entre texto e leitor, como vemos
neste trecho, destacado do verbete “hermeneutics”, da compilação intitulada A dictionary of
cultural and critical theory: “Hermeneutics has nearly always involved a tension between the
idea that the interpreting subject should surrender to the transformative power of the text and
the idea that the meaning of a text can only emerge via the creative initiatives of its
interpreters”
170
. Assim, podemos dizer que, via de regra, os estudos de natureza hermenêutica
debatem os limites do sujeito interpretante diante do texto.
No caso da hermenêutica literária, marcada pelo antidogmatismo implicado na relação
entre literatura e estética, a premência dos limites do sujeito interpretante diante do texto
pauta um debate teórico em que a sugestão de que o desempenho do leitor pode resultar
numa leitura incorreta. Vemos em Jouve a medida desse debate:
Dado o caráter específico da comunicação literária, podemos nos perguntar se cada leitor não
tem o direito de interpretar o texto como quer. Na medida em que, cortada de seu contexto, a
obra é raramente lida como seu autor queria, não é lógico desistir de ressaltar qualquer
intenção primeira e ver apenas no texto o que se quer ver?
Se [...] não se pode reduzir a obra a uma única interpretação, existem entretanto critérios de
validação. O texto permite, com certeza, várias leituras, mas não autoriza qualquer leitura
171
.
170
PAYNE (Ed.). A dictionary of cultural and critical theory, p.241. “A hermenêutica tem implicado quase
sempre uma tensão entre a ideia de que o sujeito interpretante deve se render ao poder transformativo do texto e
a ideia de que o sentido do texto pode surgir somente das iniciativas criativas de seus intérpretes”.
171
JOUVE. A leitura, p.25.
82
A classificação dicotômica entre leitura válida ou correta e leitura inválida ou incorreta,
suscitada por uma reflexão como a de Jouve, é questionada pela própria definição de
hermenêutica, que desacredita o ideal de uma interpretação correta ao constituir a
dependência do sentido perante a subjetividade do intérprete dependência que inscreve o
caráter relacional ou contingencial do sentido.
Contudo, esse ideal pode perpassar o controle institucional da interpretação, uma vez
que os críticos atribuem a pecha da falácia a interpretações cujos critérios sejam julgados
insuficientes ou equivocados. Essa suposição mostra como o exercício interpretativo anda
pari passu com decisões valorativas, seja quando a compreensão e a interpretação são aferidas
pelo leitor, seja quando o resultado dessa aferição é avaliado institucionalmente. Como
Fernando Romo Feito acentua, essas decisões valorativas estão presentes também no
momento em que o intérprete um texto sob o jugo da literatura
172
, que as definições das
tarefas de compreender e interpretar passam pela definição do respectivo objeto a ser
interpretado.
Ler um texto sob o jugo da literatura significa reconhecer que o elemento estético
demanda valores exteriores ao texto e que, no domínio institucional, esses valores regem os
estudos históricos, críticos e teóricos da literatura. Nessa direção, Fernando Romo Feito
analisa a aplicação, que, associada à compreensão e à explicação, compõem as tarefas
clássicas da hermenêutica. O autor indaga pela especificidade da aplicação no caso da
hermenêutica literária, tarefa de fácil distinção na hermenêutica bíblica e na jurídica. A
resposta concebida pelo autor destaca a dinâmica dos valores numa dupla perspectiva:
172
Nas palavras do autor: “[...] la literatura es inseparable del valor, o dicho de otro modo, ser literatura no es un
predicado descriptivo sino valorativo, por lo que interpretación y valoración son inseparables. Por consiguiente,
bien podemos decir [...] que, desde el punto de vista hermenéutico, son literarios aquellos textos para los que la
interpretación nos lleva a reconocer un valor estético, donde por estético hay que entender la síntesis de
entendimiento e imaginación sugerida por unas palabras que no desaparecen en la transmisión de los
contenidos”. FEITO. Hermenéutica, interpretación, literatura, pp.102-103.
83
[...] podríamos decir que el hecho de participar en una tradición, esto es, en la transmisión de
unos textos y obras con preferencia a outros, ya constituye una aplicación. El mero hecho de
leer tal o cual cosa contribuye a su pervivencia, en el mercado editorial, en nuestra conciencia,
por medio de la enseñanza. Lo que es la contrapartida de que viva a través del tiempo aquello
que socialmente se juzga valioso, por ejemplo, Homero ya no es el educador de Grecia pero
sigue estando ahí. Pero además, ya que las obras encarnan valores, tan aplicación será que
veamos en ellas alguna forma de verdad, como quiere Gadamer, como que, de acuerdo com
Jauss, las disfrutemos sin más o incluso que contribuyan a configurar normas sociales
173
.
A aplicação comporta matizes, que a interação entre texto e leitor aponta para um
potencial indefinido de efeitos e sentidos, que se atualizam no processo da leitura, segundo a
teorização de Iser. Ao se falar em “leitura”, deve-se ter em mente um processo conduzido pela
experiência do imaginário que pode ser realizado de maneiras diversas, como vemos nos
diferentes aspectos aliciados em torno do leitor, vistos aqui a partir dos tipos de leitor
reunidos por Iser no livro O ato da leitura: leitor ideal, leitor contemporâneo, arquileitor, de
Michel Riffaterre, leitor informado, de Stanley Fish, e leitor intencionado, de Erwin Wolff.
O leitor ideal deve esgotar o potencial de sentido do texto em sua leitura, princípio que
não se verifica empiricamente, pois é inviável sustentar que um leitor possa apresentar toda a
variação de sentidos possíveis ao ler um texto. Em oposição a esse conceito, o conceito de
leitor contemporâneo destaca a recepção da literatura num dado momento, sublinhando que o
sentido do texto recebe influências do contexto histórico e cultural em que se encontra o
leitor. Na síntese em que Iser caracteriza os demais leitores temos que:
O arquileitor apresenta um meio de verificação que serve para captar o fato estilístico pela
densidade de codificação do texto. O leitor informado é uma concepção didática que se baseia
na auto-observação da sequência de reações, estimulada pelo texto, e visa a aumentar o caráter
de informação e assim a competência do leitor. Por fim, o leitor intencionado é um tipo de
reconstrução que permite revelar as disposições históricas do público, visadas pelo autor
174
.
173
FEITO. Hermenéutica, interpretación, literatura, p.123. “[...] poderíamos dizer que o fato de fazer parte de
uma tradição, isto é, da transmissão de uns textos e obras em detrimento de outros, constitui uma aplicação. O
simples fato de ler tal ou qual coisa contribui para a sua sobrevivência, no mercado editorial, na nossa
consciência, por meio do ensino. O que é a contrapartida de que perdure no tempo aquilo que socialmente se
julgue valioso, por exemplo, Homero já não é o educador da Grécia, mas continua em voga. Mas, além disso,
que as obras encarnam valores, para que haja aplicação devemos ver nelas alguma forma de verdade, como quer
Gadamer, devemos desfrutá-las até o fim, de acordo com Jauss, ou inclusive elas devem contribuir para
configurarem normas sociais”.
174
ISER. O ato da leitura, p.72. v.1.
84
Conforme Iser avalia os tipos de leitor: “Nessa diferenciação gradual se encontram
premissas que decidem se devemos evidenciar estruturas de efeito ou provar efeitos
experimentados”
175
. No tocante à aplicação, trata-se de uma tarefa que privilegia a maneira
pela qual essa experiência é externada, ou ainda, a maneira como o leitor vive a realização
prática da experiência estética
176
, uma vez que essa tarefa hermenêutica diz respeito à
circulação da literatura pelos leitores.
Hermenêutica literária e o estatuto do ficcional
Durante a narração, se fosse possível ir beber um chope por e a máquina
continuasse sozinha (porque escrevo à máquina) seria a perfeição. [...]
sei que o mais difícil vai ser encontrar a maneira de contar [...]. Vai ser
difícil porque ninguém sabe direito quem é que verdadeiramente está
contando, se sou eu ou isso que aconteceu, ou o que estou vendo [...] ou se
simplesmente conto uma verdade que é somente minha verdade, e então não
é a verdade a não ser para meu estômago, para esta vontade de sair correndo
e acabar com aquilo de alguma forma, seja lá o que for.
Julio Cortázar, “As babas do diabo”.
Constatamos que a multiplicidade dos sentidos admitida pelo texto literário exige uma
discussão sobre os limites e as potencialidades do sentido, discussão respaldada pela
hermenêutica literária, assunto determinante para a teoria da literatura. Nessa discussão, é
preciso refletir sobre os aspectos teóricos e metodológicos que interferem na atribuição e na
produção de sentido, como Iser avalia no ensaio “Teoria da Recepção: reação a uma
circunstância histórica”, em que o autor explicita o contexto em que surgiram as Estéticas da
Recepção e do Efeito.
175
ISER. O ato da leitura, p.63. v.1.
176
ISER. O ato da leitura, p.58. v.1.
85
Segundo Iser, uma preocupação central, que motivou o surgimento dessas perspectivas
teóricas, consistia em justificar por que o texto literário alimenta sentidos múltiplos, apesar de
permanecer inalterado:
Ao se perceber tal problema [o da alteração do sentido], criou-se uma consciência de que os
pressupostos nos quais se fundava a interpretação eram em larga medida responsáveis por
aquilo que o texto interpretado devia significar. Daí em diante, a pretensão de ter encontrado o
sentido implicaria a necessidade de fundamentar a presumida validade da conjetura feita, a
necessidade de explicitar os pressupostos requeridos para realizar o ato de interpretação. O
esclarecimento dos pressupostos envolvidos ocasionou o que dali em diante ficaria conhecido
como a querela das interpretações
177
.
Essa “querela” evidencia uma competição entre os veios interpretativos tais como
marxismo, psicanálise, estruturalismo e pós-estruturalismo, entre outros –, mas, na opinião de
Iser, o que mais sobressai desse conflito é a constatação das limitações de todos esses
pressupostos teóricos.
Ainda que a recepção possa ser programada, em tese, pelo texto – a se concordar que o
texto define os limites do sentido –, é de se supor que esses limites também são demarcados
junto à interpretação e ao leitor, explicitando, assim, que a multiplicidade dos sentidos
corroborada pela hermenêutica literária não é compatível com um propósito arbitrário. Num
nível extremo, esse propósito resultaria numa situação de anomia, em que o sentido deixaria
de ser uma questão importante, uma vez que, nessas condições, seria possível propor qualquer
sentido.
Os limites requerem dispositivos capazes de legitimar ou validar o resultado
hermenêutico, e, conforme Miguel Tamen adverte, esses dispositivos acabam por pontuar um
paradoxo, estimulado por certa incompatibilidade entre a comunicação literária e a assimetria
entre texto e leitor:
177
ISER in ROCHA (Org.). Teoria da ficção, p.22 (grifo do autor).
86
À força de usarmos expressões metafóricas como ‘comunicação literária’ ou de configurarmos
também sob metáforas da verbalidade o que se passa quando queremos perceber perdeu-se,
quem sabe, a noção de uma assimetria fundamental que rege as atividades hermenêuticas:
refiro-me ao facto simples de textos não dizerem coisas ou de não podermos recorrer a nada (a
uma instância fixa e manifesta) para decidir da legitimidade das nossas afirmações. Parece
possível pensar que desta assimetria derivam não apenas perturbações típicas [...] como
sobretudo que as atividades hermenêuticas envolvem a postulação de relações absolutamente
simétricas (entre outros motivos porque tendem a entender referencialmente o problema da
validade das proposições em que se exprimem).
Conhecem-se diversas cristalizações (por vezes tidas como antagônicas) dessa necessidade: o
autor, o texto, a história, a tradição, a sociedade, o inconsciente. E a absoluta universalidade
deste processo de “recuperação de equilíbrio” deriva então da necessidade de certas
suposições características das diversas variantes da hermenêutica: da necessidade de supor que
ao corresponde alguma modalidade de existência (de que decorre o sentido do que fazemos
). [...]
A postulação de polos referencializantes pode, consequentemente, ser vista como a postulação
de princípios de certeza, com o que de infundamentável existe em toda a certeza: o
infundamentável de uma necessidade: e o facto de o problema específico da interpretação não
se colocar independentemente do da legitimidade das asserções produzidas parece indicar
justamente a configuração dessa necessidade
178
.
Tamen ressalta a dependência da validação de um resultado hermenêutico como uma questão
pertinente às teorias hermenêuticas. Contudo, parece-nos que essa dependência é decisiva no
caso específico da hermenêutica literária.
Em contraste com textos que prezam uma verificabilidade de cunho pragmático, o
texto literário compreende uma dimensão imagética, razão pela qual apresenta um referencial
cuja topografia é imprecisa, por não se encontrar nem no texto, nem do lado de fora do texto.
Importante elemento caracterizador da literatura, o estatuto do ficcional promove a dúvida
quanto à realidade do objeto literário espécie de objeto ausente e problematiza a ideia
segundo a qual a verdade do texto possa estar em correspondência com a realidade, colocando
em xeque as certezas prévias do leitor. No entanto, conforme Iser teoriza, a literatura não
escusa a realidade: “Como o texto ficcional contém elementos do real, sem que se esgote na
descrição deste real, então o seu componente fictício não tem o caráter de uma finalidade em
si mesma, mas é, enquanto fingida, a preparação de um imaginário”
179
. O imaginário
178
TAMEN. Hermenêutica e mal-estar, pp.16-17 (grifos do autor).
179
ISER. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p.957.
87
distingue uma realidade não manifesta, que invalida preceitos substancialistas e que sublinha
a fração de autonomia do leitor no processo interpretativo.
De acordo com Iser, o fictício alicia uma mediação entre o imaginário e o real: e essa
tríade, cujos elementos se influenciam reciprocamente, atua de maneira categórica no
processo de doação de sentido ao texto literário. Nas palavras de Iser:
Se a semantização e os atos de doação de sentido resultantes derivam da tensão que se apossa
do receptor do texto ficcional, em virtude do caráter de acontecimento do imaginário, então o
sentido do texto é apenas a pragmatização do imaginário e não algo inscrito no próprio texto
ou que lhe pertencesse como sua razão final. Se assim considerarmos, o sentido do texto não
seria nem sua palavra final (sein Letztes), nem seu termo originário, mas sim uma operação
inevitável de tradução, provocada e tornada necessária pela força de acontecimento da
experiência do imaginário. Se, ao contrário, nos inclinarmos a entender o sentido do texto
como sua palavra final ou seu termo originário, é de se indagar se com esta suposição não
interpolamos ao texto, como sua razão constitutiva, algo que é inevitável à experiência do
imaginário.
[...] a semantização produz, do lado dos receptores, o mesmo processo de tradução que o
fictício efetua no lado dos produtores. Se o fictício é a tradução do imaginário na configuração
concreta para o fim de uso, a semantização é a tradução de um acontecimento experimentado
na compreensão do produzido. São estes processos complementares de tradução do imaginário
que comprovam que este é a energia constitutiva do texto ficcional
180
.
Ao priorizar o imaginário como condição de possibilidade do sentido – instância caracterizada
como difusa, informe e pré-semântica –, Iser mostra como o texto literário oferece resistências
ao entendimento pelo qual o sentido poderia ser decifrável, decodificado ou exaurível.
O estatuto do ficcional incorre num mecanismo de dispersão, em que a intenção
autoral deve ser relativizada como um princípio de autoridade para o sentido, apesar de a
intencionalidade não ser desconsiderada. O autor pratica atos através dos quais decompõe
referenciais extratextuais, recompondo-os com a transgressão dos seus limites anteriores, ou
seja, o autor pratica atos de fingir designados como seleção e combinação, que apontam para
a intenção autoral e que restringem a interpretação. A enumeração desses atos não ficaria
180
ISER. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, pp.980-981 (grifos nossos).
88
completa sem a menção ao autodesnudamento, que compreende os signos do fingimento, isto
é, signos que indicam “para o destinatário da ficção que ela deve ser tomada como tal”
181
.
Através do autodesnudamento, o texto literário explicita suas pretensões e motivações,
procedimento que distingue a ficção literária de outras formas ficcionais
182
. Em relação ao
autodesnudamento Iser determina:
É característico da literatura, em sentido lato, que se a conhecer como ficcional, a partir de
um repertório de signos, assim assinalando que é literatura e algo diverso da realidade.
Normalmente, no entanto, os diversos signos ficcionais não indicam que por eles se opera uma
oposição à realidade, mas antes algo cuja alteridade não é compreensível a partir dos hábitos
vigentes no mundo da vida (Lebenswelt)
183
.
Esses signos ficcionais são reconhecidos como tal na medida em que “convenções
determinadas, historicamente variadas, de que o autor e o público compartilham”
184
, que
sustentam o pacto ficcional a ser firmado entre autor e leitor.
A ênfase no imaginário impulsiona a superação da polaridade entre texto e leitor
polaridade que, como já observamos, é uma tônica nos estudos de natureza hermenêutica –,
pela qual Iser reitera a interdependência entre autor, texto e leitor. Em virtude de a demanda
imaginativa exigida pelo texto literário, entendemos que a hermenêutica literária depende, de
forma acentuada, da validação de um resultado hermenêutico no domínio institucional.
Porém, o consenso pressuposto por essa validação contrasta com tal demanda, que representa
a abertura para um mundo arquitetado em terrenos paralelos ou duplicados, cujos referenciais
requerem a afirmação da subjetividade do leitor e assumem uma concretude com vida própria.
O descentramento a que o texto literário está sujeito fica ainda mais patente se
levarmos em conta que o estatuto do ficcional pode receber matizes diferenciados, inclusive
entre os leitores comuns, como se depreende da leitura dos romances de Machado de Assis,
181
ISER. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p.982.
182
ISER. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p.970.
183
ISER. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p.969.
184
ISER. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional, p.970.
89
em que a metaficção é recorrentemente caracterizada, entre vários outros elementos que
recebem atenção permanente. No livro Metafiction, Patricia Waugh explica a abrangência
desse conceito:
Metafiction is a term given to fictional writing which self-consciously and systematically draw
attention to its status as an artefact in order to pose questions about the relationship between
fiction and reality. In providing a critique of their own methods of construction, such writings
not only examine the fundamental structures of narrative fiction, they also explore the possible
fictionality of the world outside the literary fictional text
185
.
Encabeçada pela prática da escrita, a metaficção catalisa as relações entre o mundo criado
através da ficção e o mundo da realidade empírica ou, também, entre a literatura e a vida.
Complementando essa definição, observamos que a metaficção pode explorar o impacto da
leitura de romances na vida do leitor, como exemplificam Dom Quixote e Madame Bovary,
representações literárias emblemáticas da confusão ingênua entre realidade e ficção.
Um ponto-chave no estudo da metaficção consiste na averiguação do impacto
provocado nas narrativas pela reflexão de ordem metaficcional. Nos romances machadianos a
metaficção parece ressaltar o jogo das máscaras sociais. Em paralelo, notamos que ela
contribui, de maneira vigorosa e arguta, para o questionamento da repercussão da literatura no
século XIX brasileiro, época em que “a representatividade da literatura e suas possibilidades
de circulação”
186
eram assuntos de primeira ordem, como Hélio de Seixas Guimarães detalha
no estudo Os leitores de Machado de Assis. Ao evidenciar os meandros da criação ficcional
por meio da escrita, Machado oferece ao leitor uma espécie de instrução sobre o modus
operandi narrativo. Se, por consequência, o gesto pelo qual o autor desenha a metaficção
viabiliza a exposição da realidade social, elucidando para o leitor a dinâmica de encenação e
185
WAUGH. Metafiction, p.02. “Metaficção é um termo dado para a escrita de ficção que intencional e
sistematicamente chama atenção para seu status de artefato a fim de questionar a relação entre a literatura de
ficção e a realidade. Ao produzir uma crítica dos seus próprios métodos de construção, tal escrita não examina
apenas estruturas fundamentais da narrativa de ficção, como explora também a possível ficcionalidade do mundo
exterior ao texto literário de ficção”.
186
GUIMARÃES. Os leitores de Machado de Assis, p.96.
90
interesses da sociedade oitocentista, temos que esse gesto se reverte em prol de uma
pedagogia, ainda que enviesada. Ou seja, a escrita metaficcional ensina o leitor a como se
portar diante do texto literário e também socialmente, uma vez que salienta os bastidores da
ficção e das rodas sociais, rodas que referenciam dados fundamentais da cultura brasileira,
como Roberto Schwarz analisa em seus estudos sobre Machado.
Os romances machadianos convocam um vasto repertório de signos que desnudam a
ficcionalidade, como é o caso das inscrições que exacerbam referências pertinentes ao
universo livresco, referências examinadas detalhadamente por Abel Barros Baptista em
Autobibliografias. Da argumentação desse estudo lembramos, a título de exemplo, o
protagonismo do capítulo, que, segundo Baptista, corresponde a “uma noção decisiva da
solicitação do livro na ficção machadiana”
187
. Esse protagonismo mostra a imponência do
espaço concedido à materialidade do livro em Dom Casmurro e realça a concepção estrutural
do romance, o projeto de escrita do narrador-autor, bem como as inúmeras instruções de
leitura dadas pelo narrador, instruções que caracterizam também outros romances de
Machado.
Conforme vemos em Ressurreição, matizes específicos aos decoros literários
moldam as construções narrativas. Em outras palavras, essas construções são reguladas muitas
vezes por preceitos de escolas literárias ou de estilo, como o do “defunto autor”
188
de
Memórias póstumas, que as escreve sob um método “sem gravata nem suspensórios”
189
. Para
apresentar o desfecho de Lívia em Ressurreição, depois de sofrer uma decepção amorosa que
a afasta definitivamente das segundas núpcias tão sonhadas, Machado contrasta o
comportamento da protagonista com a praxe nos romances de outrora:
187
BAPTISTA. Autobibliografias, p.77.
188
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.415.
189
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.426.
91
No tempo em que os mosteiros andavam nos romances, como refúgio dos heróis, pelo
menos, – a viúva acabaria os seus dias no claustro. A solidão da cela seria o remate natural da
vida, e como a olhos profanos não seria dado devassar o sagrado recinto, a deixaríamos
sozinha e quieta, aprendendo a amar a Deus e a esquecer os homens.
Mas o romance é secular, e os heróis que precisam de solidão são obrigados a buscá-lo no
meio do tumulto. Lívia soube isolar-se na sociedade
190
.
Machado explicita, assim, a incidência de decoros na expressão literária e a possível
interferência desses decoros no destino das personagens. Porém, o autor mostra o decoro para
em seguida negá-lo, como se percebe na citação anterior e neste trecho de A mão e a luva:
Duas vezes viu ele [Estevão] a formosa Guiomar, antes de seguir para S. Paulo. Da primeira
sentiu-se ainda abalado, porque a ferida não cicatrizara de todo; da segunda, pôde encará-la
sem perturbação. Era melhor, mais romântico pelo menos, que eu o pusesse a caminho da
academia, com o desespero no coração, lavando em lágrimas, ou a bebê-las em silêncio, como
lhe pedia a sua dignidade de homem. Mas que lhe hei eu de fazer? Ele foi daqui com os olhos
enxutos, distraindo-se dos tédios da viagem com alguma pilhéria de rapaz, rapaz outra vez,
como dantes
191
.
O trecho finaliza o primeiro capítulo do romance. O curioso é que, até então, a caracterização
de Estevão obedecia ao propósito de ridicularizar as personagens românticas e
sentimentaloides como ele. Além de confundir momentaneamente o leitor quanto à
caracterização efetiva da personagem, o trecho carrega uma ambiguidade interessante. O
narrador, em terceira pessoa, raramente chama atenção para si mesmo ao longo do romance,
mas, aqui, ele se projeta na cena narrada: ao mesmo tempo em que parece gravar seu poder de
decisão sobre os rumos da personagem, ele disfarça-o, escondendo as suas decisões com a
autonomia da personagem. Entretanto, a despeito da negativa de tal caracterização romântica
encontrada no trecho destacado, Estevão é uma personagem que se alinha ao lado de Lívia e
Meneses, de Ressurreição, igualmente sonhadoras e diferentes de Guiomar e Luís Alves,
personagens ambiciosas e racionais do segundo romance.
190
ASSIS. Ressurreição. In: ASSIS. Obra completa, p.106.
191
ASSIS. A mão e a luva. In: ASSIS. Obra completa, p.117 (grifos nossos).
92
Outro exemplo da moldura conferida pelos estilos literários é extraído de Memórias
póstumas de Brás Cubas:
Tinha [Brás Cubas] dezessete anos; pungia-se um buçozinho que eu forcejava por trazer a
bigode. [...] Ao cabo, era um lindo garção, lindo e audaz, que entrava na vida de botas e
esporas, chicote na mão e sangue nas veias, cavalgando um corcel nervoso, rijo, veloz, como o
corcel das antigas baladas, que o romantismo foi buscar no castelo medieval, para dar com ele
nas ruas do nosso século. O pior é que o estafaram a tal ponto, que foi preciso deitá-lo à
margem, onde o realismo o veio achar, comido de lazeira e vermes, e, por compaixão, o
transportou para os seus livros
192
.
Disciplinado com a “pena da galhofa”
193
que fermenta a maturação da escrita do autor, esse
exemplo é o mais completo dessa sequência de passagens em que Machado desnuda conceitos
caros às escolas literárias em voga na época em que escrevia e publicava sua obra.
Nem todos os signos que designam o desnudamento da ficcionalidade descortinam,
por derivação, conjeturas metaficcionais o que não procede nessas passagens, pois, nelas, o
autodesnudamento canaliza uma reflexão metaficcional. Nas citações referentes aos dois
primeiros romances, sobressai a condição de artifício da ficção, de um processo engenhoso
que absorve referências de natureza romanesca. Esse processo – que enfatiza a tradição
literária e a construção narrativa indica que as referências da literatura têm uma
fundamentação imprecisa, que elas não comportam a asseveração de um sentido único ou
verdadeiro nem uma correspondência exata com o mundo empírico. Na citação referente às
memórias de Brás Cubas, temos um indício de um movimento contrário a esse, sendo assim
um movimento centrífugo que indaga pela referência oriunda da rua, e não dos livros.
A comparação entre as duas primeiras passagens e a última alude a uma aparente
indefinição, por assim dizer, que encontramos ao longo dos romances, pois deparamos com
afirmações que relacionam, de maneira contrária, a literatura e a vida. Para significar a vida,
192
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.433.
193
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.413.
93
de um lado, está o uso de um variado campo semântico tradicionalmente associado à
literatura. De outro, a invalidação dos atributos literários nessa significação.
Sintetizando rapidamente o primeiro caso, verificamos: a analogia entre a vida das
personagens e gêneros (ou subgêneros) literários, como é a vida de Félix, de Ressurreição,
uma “singular mistura de elegia e melodrama”
194
; a promoção de episódios da vida das
personagens, como namoros, a capítulos ou prólogos de livros; o espelhamento (ou
aproximação) de livros literários nesses episódios e a presença de procedimentos demandados
pela literatura, tais como: metáforas, representação ou simulação, verossimilhança e leitura,
na descrição de cenas do cotidiano das personagens.
É preciso observar também que o gozo na memória que vemos destacado em Dom
Casmurro e na “obra difusa”
195
de Brás Cubas, por exemplo revela manobras que não
deixam de pôr em voga estratégias essenciais da literatura. Das memórias do autor casmurro,
emerge uma vida ficcionalizada; como ele sinaliza logo no início do livro: “não consegui
recompor o que foi nem o que fui”
196
. Talvez por reconhecer a confusão que sente quanto à
realidade dos fatos narrados, confusão agravada por sua imaginação borbulhante, o autor
ficcional solicita a nós leitores que deixemos nossa imaginação correr com a rédea solta,
sendo esse um mecanismo pelo qual preencheremos as lacunas do seu livro omisso. Nas
memórias escritas com “pachorra”
197
e “galhofa”
198
, o “defunto autor
199
dispensa “leitores
pesadões”
200
e, assim, não quer ser prolixo nem linear, porém quer ser franco, que a
franqueza é a primeira virtude de um defunto”
201
. Em ambos, contudo, a recomposição do
passado é declaradamente um exercício criativo cercado por dúvidas, uma vez que não
provas dos acontecimentos que são narrados (ainda mais sendo narrados diretamente do
194
ASSIS. Ressurreição. In: ASSIS. Obra completa, p.33.
195
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.413.
196
ASSIS. Dom Casmurro. In: ASSIS. Obra completa, p.730.
197
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.418.
198
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.413.
199
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS Obra completa, p.415.
200
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.444.
201
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.446.
94
túmulo) e não se consegue reviver as experiências tal como elas foram vividas. Dessa
maneira, temos que esse exercício criativo guarda uma simetria com a escrita literária de
ficção. Essa escrita também pressupõe uma seleção, trabalhada pelo autor, cuja atualização
distingue uma realidade a ser elaborada pelo leitor com o auxílio do imaginário.
Cabe ainda emendar que o leitor não deve questionar a veracidade dos fatos narrados.
A vontade de iluminar essa negativa poderia justificar, inclusive, a frequência ostensiva com
que Machado ladrilha os romances com a expressão “a verdade é que”, junto a suas tantas
variações, como se, através de um efeito performativo via enunciação, um mundo estivesse
sendo de fato criado. Essa retórica da encenação remete à condição da ficcionalidade e,
potencialmente, pode fazer com que o leitor compare o mundo encenado com o mudo em que
vive.
Essa condição da ficcionalidade isto é, a condição de um mundo irreal, mas que
existe como se fosse real não é compatível, no entanto, com a equivalência entre o mundo
do texto e o mundo da realidade: deve-se imaginar que a ficção constrói mundos reais, mas
sem que eles sejam igualados aos mundos reais. Em Machado, as associações entre literatura
e vida mostram de tal forma a vida como um livro que chegamos a pensar que a realidade
representa a literatura, e não o contrário; como ilustra esta cena do início de Esaú e Jacó, em
que Natividade e Perpétua estão no morro do Castelo para uma consulta com uma cabocla que
prevê o futuro:
Natividade deu o nome de batismo somente, Maria, como um véu mais espesso que o que
trazia no rosto, e recebeu um cartão, porque a consulta era de uma, com o número
1.012. Não que pasmar do algarismo; a freguesia era numerosa, e vinha de muitos meses.
Também não que dizer do costume, que é velho e velhíssimo. Relê Ésquilo, meu amigo,
relê as Eumênides, verás a Pítia, chamando os que iam à consulta: “Se aqui Helenos,
venham, aproximem-se, segundo o uso, na ordem marcada pela sorte”... A sorte outrora, a
numeração agora, tudo é que a verdade se ajuste à prioridade, e ninguém perca a sua vez de
audiência. Natividade guardou o bilhete, e ambas foram à janela
202
.
202
ASSIS. Esaú e Jacó. In: ASSIS. Obra completa, p.876 (grifos do autor).
95
Nessa cena, a referência literária é utilizada para afastar qualquer incredulidade quanto ao
interesse avantajado nas previsões, confirmado, então, por “provas” literárias. Aventamos a
hipótese pela qual essa associação feita de maneira tão direta pretende mostrar para o
leitor como o mundo criado pela literatura, mesmo que seja irreal, é assustadoramente
parecido com o mundo que está a sua volta. Ao se projetar a irrealidade da literatura na
realidade, o leitor poderia reconhecer que a realidade também é dotada de situações arranjadas
sob a lógica do fingir. A lógica do como se iluminaria a lógica das aparências e dos papeis
sociais, cumpridos de maneira velada, maneira com a qual se cumpriam ainda as campanhas
amorosas e os interesses matrimoniais, tratados por Machado em sua obra.
Um profícuo episódio narrativo para esse argumento pode ser lido em Memórias
póstumas, no capítulo intitulado “Geologia”, em que Brás Cubas apresenta “o homem mais
probo” que conheceu em sua vida: Jacó Tavares. A integridade do caráter “tão exemplar”
203
desse sujeito é ironicamente caracterizada com um episódio doméstico em que Jacó manda
dizer a uma visita inoportuna que não estava em casa. A visita ouve a ordem e adentra a sala,
mesmo sabendo que era persona non grata. Brás Cubas, que presenciou a cena e a maçada da
visita, assim narra o momento em que volta a ficar a sós com Jacó:
Retirou-se o Doutor B. e respiramos. Uma vez respirados, disse eu a Jacó que ele acabava de
mentir quatro vezes, em menos de duas horas: a primeira, negando-se; a segunda, alegrando-se
com a presença do importuno; a terceira, dizendo que ia sair; a quarta, acrescentando que com
a mulher. Jacó refletiu um instante, depois confessou a justeza da minha observação, mas
desculpou-se dizendo que a veracidade absoluta era incompatível com um estado social
adiantado, e que a paz das cidades só se podia obter à custa de embaçadelas recíprocas...
204
Com a consciência do estatuto do ficcional revelada, os romances machadianos nutrem
uma crítica da dissimulação social, crítica que, paradoxalmente, é incrementada pela própria
invalidação dos atributos literários na significação da vida. Conforme já notamos, há uma
espécie de indefinição nos romances, que poderia pôr em conflito duas posturas diferentes
203
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.500.
204
ASSIS. Memórias póstumas de Brás Cubas. In: ASSIS. Obra completa, p.500.
96
quanto à metaficção: uma que dispõe a literatura e a vida de maneira convergente e outra que
as apresenta em caminhos opostos.
Nos termos dessa oposição, a literatura seria um sonífero, um entretenimento das
leitoras, que “descansa[m] da cavatina de ontem para a valsa de hoje”
205
, ou a origem das
ilusões de algumas personagens, como Lívia, de Ressurreição, que, segundo Viana, seu
irmão, “tem esse defeito capital: é romanesca. Traz a cabeça cheia de caraminholas, fruto
naturalmente da solidão em que viveu nestes dois anos, e dos livros quede ter lido”
206
. Via
de regra, as ilusões estão associadas a “ideias cor-de-rosa”
207
, a paixões e venturas
desregradas, em contraste com a realidade e a verdade dos fatos. Ou, dito de maneira literária,
temos um contraste entre “pieguices poéticas”
208
e construções em prosa, apresentadas pelos
romances machadianos como medida de objetividade. Ensinando que “não se vive como se
romanceia”
209
, Machado parece querer dizer que, no livro da vida, ser um leitor ingênuo,
desses leitores que não distinguem a realidade da ficção, pode ser fatal. É o que acontece com
Rubião, que, depois de se permitir ser bastante explorado pelos “amigos” da corte carioca,
termina a vida de maneira quixotesca, entretido com suas aventuras imaginárias.
Com o incurso nos romances machadianos, ressaltamos como uma reflexão sobre o
estatuto do ficcional consagra, simultaneamente, o trabalho do autor, a disposição do texto e o
papel do leitor. A partir da leitura desses romances observamos que, ao escrever o texto, o
autor pratica atos de fingir seleção, combinação e autodesnudamento que são condizentes
com a compreensão, interpretação e aplicação, tarefas hermenêuticas realizadas pelo próprio
autor e que reverberam no texto, haja vista que o autor também é um leitor e, além disso, pode
idealizar a maneira pela qual espera que essas tarefas sejam cumpridas.
205
ASSIS. Dom Casmurro. In: ASSIS. Obra completa, p.849.
206
ASSIS. Ressurreição. In: ASSIS. Obra completa, p.36.
207
ASSIS. Ressurreição. In: ASSIS. Obra completa, p.103.
208
ASSIS. Ressurreição. In: ASSIS. Obra completa, p.68.
209
ASSIS. Ressurreição. In: ASSIS. Obra completa, p.89.
97
A partir da leitura desses romances observamos também como a hermenêutica literária
é condicionada pelo entendimento do intérprete quanto ao estatuto do ficcional, ou seja, a
maneira como se concebe o estatuto do ficcional interfere na autonomia do intérprete. Caso o
leitor espere que os tentáculos da ficção capturem o mundo da vida, as suas experiências
pessoais ou a sua perspectiva teórica mais dileta, o domínio do sentido ficará restrito à esfera
do familiar e do preconcebido. De outro modo, o leitor poderá reconhecer que o estatuto do
ficcional, apesar de não vetar a presença das referências do mundo na literatura, demanda o
intercâmbio do mundo real do leitor com o mundo encenado pelo texto. O embate entre uma
ilusão referencial e o questionamento da possibilidade de se afirmar o referencial de modo
definitivo mostra como o estatuto do ficcional aponta para condições diferentes de se atribuir
e produzir sentido, e orienta, assim, a hermenêutica literária
210
.
210
Nessa direção, ver o ensaio “Que significa a recepção dos textos ficcionais?”, de Karlheinz Stierle.
98
CAPÍTULO 3
A hermenêutica literária na contemporaneidade
99
É precisamente a ausência de um objeto último do conhecimento que nos
salva da tristeza sem remédio das coisas. Toda a verdade última formulável
num discurso objetivamente, ainda que na aparência feliz, teria
necessariamente um caráter destinal de condenação, de um ser condenado à
verdade.
Giorgio Agamben, Ideia da prosa.
A insustentabilidade da hegemonia estruturalista mostra a ruína de um saber unívoco
ou dominante, através do qual poucos sistemas axiológicos e de referências ficariam
consagrados. Junto com João Cezar de Castro Rocha no texto “A materialidade da teoria”,
vemos que essa ruína resulta no seguinte quadro:
A característica mais saliente da teoria literária contemporânea é a pluralidade: traço, aliás,
presente em outras áreas do conhecimento. De fato, no âmbito das ciências humanas, o
estruturalismo representou o último movimento que, por algum tempo, pretendeu impor-se
como teoria hegemônica, unificadora de métodos diferentes
211
.
Assim, num nível paroxístico, a contemporaneidade desvela, independentemente da
disciplina, a coexistência de perspectivas heterogêneas, um dos possíveis propulsores da atual
preocupação em torno da hermenêutica, segundo Gianni Vattimo atesta no ensaio “A
educação contemporânea entre a epistemologia e a hermenêutica”:
Dissolução da crença no progresso ligada ao fim do colonialismo e ao eurocentrismo;
consciência aguda do caráter histórico prático e político da tarefa científica e dos limites da
objetividade das ciências; sobretudo, peso crescente dos problemas étnicos (manipulação
genética, por exemplo) e ecológicos propostos pelas ciências e pelas técnicas: estão os
principais fatores daquilo que me propus a chamar de passagem do ideal epistemológico ao
ideal hermenêutico na educação. Para compreender o sentido desta passagem e,
eventualmente, extrairmos dela consequências no plano operativo, é necessário levar em conta
o primeiro destes fatores: isto é, o fato de que a perda de autoridade do ideal científico de
formação ocorre num quadro amplamente determinado pelo fim da crença no progresso que,
por seu lado, depende da dissolução da ideia de unidade em história. A hermenêutica
apresenta-se como possível sucessora da epistemologia, enquanto ideal diretivo da educação,
num momento em que a atitude científica característica da mentalidade europeia da idade
moderna se evidencia, justamente, como um aspecto desta mentalidade e nada mais. A própria
noção de civilização e de cultura, de Bildung, não pode se referir inocentemente ao ideal do
conhecimento objetivo da natureza, considerado como tarefa própria da humanidade etc.
211
ROCHA. A materialidade da teoria, p.09.
100
Bildung e civilização devem ser, neste momento, caracterizados em termos hermenêuticos,
como a capacidade de se abrir a uma pluralidade de paradigmas, a diferentes sistemas de
metáforas para se falar do mundo
212
.
A problematização do saber, desvencilhado do ideal da Bildung, está na base do que
Jean-François Lyotard denomina a condição pós-moderna no seu estudo homônimo, de 1979.
Nessa configuração, a condição pós-moderna “[d]esigna o estado da cultura após as
transformações que afetaram as regras dos jogos da ciência, da literatura e das artes a partir do
final do século XIX, com a crise da ciência”
213
. O efeito dessa crise conduz à derrocada de
valores tais como totalidade, verdade, sujeito, razão, progresso, pois ser pós-moderno
significa desacreditar o metadiscurso filosófico metafísico e as idealizações atemporais e
universalizantes.
Os impasses anunciados por Lyotard parecem adquirir uma intensidade ainda mais
candente no caso dos estudos literários. O desencantamento de um metarrelato como o da
“hermenêutica do sentido” além de afetar o primado da atribuição e produção de sentido
pela crítica e reforçar a referida insustentabilidade de um bloco teórico hegemônico, fazendo
com que a teoria da literatura seja constantemente editada sob a pecha do “fim da teoria” ou
da sua “crise” produz o efeito contrário, isto é, ao invés de as questões correlatas ao sentido
deixarem de ser importantes, elas ganham importância redobrada, que o sentido não se
organiza mais em torno de eixos promotores de um denominador comum.
O entendimento da hermenêutica programado por Lyotard pode ser depreendido
através do campo hermenêutico” proposto por Hans Ulrich Gumbrecht no ensaio “O campo
não-hermenêutico ou a materialidade da comunicação”, ensaio estimulado pelos preceitos
apresentados por Lyotard no estudo citado, entre outros autores. O ensaio de Gumbrecht
evidencia a associação entre a pluralidade de paradigmas vigente na contemporaneidade e o
seu impacto na hermenêutica.
212
VATTIMO. A educação contemporânea entre a epistemologia e a hermenêutica, pp.14 -15 (grifos do autor).
213
LYOTARD. A condição pós-moderna, xv.
101
Gumbrecht postula duas linhas para a hermenêutica: a primeira é descrita como
“campo hermenêutico”, cuja premissa básica reside na correspondência entre expressão e
interpretação:
Num texto hermenêutico, sempre que a palavra expressão é mencionada o que se tem em
mente é a premissa do campo hermenêutico segundo a qual o sentido nasce na profundidade
da alma, podendo contudo ser expresso numa superfície a superfície do corpo humano ou a
do texto. No entanto, e eis a importância do campo hermenêutico, a expressão, porque limitada
à superfície, permanece sempre insuficiente quando comparada ao que se encontra na
profundidade da alma. Deste modo, não apenas o corpo é um instrumento secundário de
articulação, também a expressão se revela insuficiente. Em virtude desta premissa, no interior
do paradigma hermenêutico se impõe a necessidade da interpretação. Interpretação: ou seja:
processo que, principiando pela insuficiência de uma superfície qualquer, dirige-se à
profundidade do que vai na alma de quem se expressa. Como resultado, estabelece-se uma
identidade entre o que o sujeito desejava expressar e o entendimento do intérprete
214
.
A segunda linha, designada por “campo não-hermenêutico”, pode ser vinculada ao
raciocínio de Vattimo, por assinalarem o declínio dos metarrelatos unificadores e totalizantes.
Gerido pelo questionamento ao “postulado de uma interpretação correta”
215
a partir da década
de 1970, esse campo é pautado, segundo Gumbrecht, pela “convergência no que diz respeito à
problematização do ato interpretativo. Convergência capaz de associar pontos de vista sem
dúvida distintos. No contexto contemporâneo, o que mais importa é a absoluta ausência de
uma teoria hegemônica”
216
.
O “campo não-hermenêutico” ressalta as forças simultaneamente diversificadas e
contrastantes –, que revelam um “mundo sempre menos estruturado e sempre mais viscoso e
flutuante”
217
. Podemos pensar que esse campo é compatível com uma concepção de crítica
literária que não pretende a verdade do texto literário, a totalidade do sentido ou a
referencialização exata desse texto. Podemos pensar também que esse campo acaba por
ratificar a assimetria entre texto e leitor, que demanda a reflexão sobre o papel do leitor, ou
214
GUMBRECHT. O campo não-hermenêutico ou a materialidade da comunicação, pp.139-140.
215
GUMBRECHT. O campo não-hermenêutico ou a materialidade da comunicação, p.143.
216
GUMBRECHT. O campo não-hermenêutico ou a materialidade da comunicação, p.144 (grifos do autor).
217
GUMBRECHT. O campo não-hermenêutico ou a materialidade da comunicação, p.138.
102
seja, demanda a reflexão sobre a maneira pela qual o leitor procede diante do texto, sobre os
limites do sentido do texto e sobre fatores que interferem na atribuição e na produção desse
sentido.
Ressaltamos, assim, que a atribuição e a produção de sentido não acontecem de
maneira espontânea, razão pela qual o estudo da hermenêutica literária sem a devida
verificação do papel do leitor parece ser insuficiente e pouco plausível, pois concordamos
com a interdependência, prevista por Wolfgang Iser, entre gesto hermenêutico, subjetividade
e as formas que esse gesto assume:
For a long time, interpretation was taken for an activity that did not seem to require analysis of
its own procedures. There was a tacit assumption that it came naturally, not least because
human beings live by constantly interpreting. We continually emit a welter of signs and
signals in response to a bombardment of signs and signals that we receive from outside
ourselves. In this sense we might even rephrase Descartes by saying, We interpret, therefore
we are. While such a basic human disposition makes interpretation appear to come naturally,
however, the forms it takes do not. And as these forms to a large extent structure the acts of
interpretation, it is important to understand what happens during the process itself, because the
structures reveal what the interpretation is meant to achieve.
Nowadays, there is a growing awareness of the effective potential of interpretation and of the
way this basic human impulse has been employed for a variety of tasks
218
.
A inflexão do “campo hermenêutico” para o campo não-hermenêutico” implica,
portanto, uma alteração no status da subjetividade: a se pensar a interpretação segundo um
gesto espontâneo, como Iser descreve, ou segundo a escavação da verdade – seja a verdade da
obra, seja a do autor –, cobiçada por aquele campo, o como duvidar de um caráter
pretensamente pleno da subjetividade, ou seja, esse entendimento da hermenêutica é devedor
218
ISER. The range of interpretation, p.01. “Por um longo tempo, a interpretação foi exercida como uma
atividade que parecia não demandar a análise de seus próprios procedimentos. Havia uma presunção tácita de
que a interpretação era natural, até porque o homem vive constantemente interpretando. s emitimos
continuamente uma confusão de signos e sinais em resposta ao bombardeio de signos e sinais que recebemos de
fora de nós mesmos. Nesse sentido podemos refazer a frase de Descartes dizendo, Interpretamos, logo existimos.
Enquanto essa disposição humana fundamental faz a interpretação parecer natural, não obstante, as formas que a
interpretação adquire não o parecem. E como essas formas estruturam em grande medida os atos de
interpretação, é importante entender o que acontece durante o próprio processo, pois as estruturas revelam o que
a interpretação pretende alcançar. Atualmente, uma conscientização crescente do potencial interpretativo em
vigor e da maneira com que esse impulso humano fundamental tem sido empregado numa variedade de tarefas”.
103
de uma concepção de sujeito autocentrado. Contudo, o “campo não-hermenêutico” leva a uma
problematização irrefutável da subjetividade e reforça a tensão entre sujeito e mundo, fulcral
para se caracterizar a própria modernidade. Desse modo, assinalamos um processo através do
qual o sentido refoge a uma totalidade, apesar de as metodologias de leitura contemplarem
teóricos, propostas e conceitos diversos. A diversidade de teorias e de sistemas de legibilidade
do texto literário registra, ao contrário, a impossibilidade de se dominar essa totalidade.
A máquina da interpretação
Se os observadores e beligerantes dos recentes debates críticos pudessem
concordar em alguma coisa, seria que a teoria crítica contemporânea é
perturbadora e confusa. Se algum dia foi possível pensar a crítica como uma
atividade única praticada com ênfases diferentes, a acridez dos debates
recentes sugere o contrário: o campo da crítica é controversamente
construído por atividades aparentemente incompatíveis. Até mesmo tentar
uma listagem estruturalismo, crítica à resposta do leitor [sic],
desconstrução, crítica marxista, pluralismo, crítica feminista, semiótica,
crítica psicanalítica, hermenêutica, crítica antitética, Rezeptionsästhetik... é
flertar com um transtornador vislumbre do infinito que Kant chama de
“sublime matemático”. A contemplação de um caos que ameaça submergir o
poder de percepção pode produzir, como sugere Kant, uma certa exultação,
mas a maioria dos leitores sente-se apenas aturdida ou frustrada, e não
inundada de admiração.
Jonathan Culler, Sobre a desconstrução.
A interpretação de uma obra corre o risco de se tornar uma prática
“industrial” quando se lamina a matéria-prima para que caiba nas
especificações exigidas para o produto. foi assim que se passou a ter um
Kafka freudiano, outro heideggeriano, um religioso, um Kafka revolucionário
ou o que mais seja. Não se diz que sejam apropriações arbitrárias, senão que
desprezam a tensão própria ao texto kafkiano e ignoram sua especificidade
ficcional.
Luiz Costa Lima, Limites da voz: Kafka.
As argumentações de Vattimo, Gumbrecht e Lyotard parecem autorizar a premissa
segundo a qual a hermenêutica catalisa a pluralidade, a divergência e a contingência como
predicados importantes na contemporaneidade. Desse modo, o sentido recebe matizes a partir
104
do contexto concreto de sua atribuição e produção, condicionamento que enfatiza a descrença
quanto ao imperativo da interpretação correta, uma vez que a melhor interpretação de um
texto só pode ser conjeturada de acordo com destinatários, fins e contextos específicos.
Podemos pensar, assim, que a contemporaneidade pontua uma inflexão no entendimento da
hermenêutica, inflexão que pode ser vista junto à teoria da literatura, seara onde também se
observam mudanças metodológicas na maneira como a interpretação é avaliada.
No prefácio à segunda edição do livro O ato da leitura, Iser analisa essa alteração no
regime interpretativo nos seguintes termos: “Do ponto de vista histórico-científico, os anos 60
marcaram o fim de uma hermenêutica ingênua da análise literária
219
. Essa ingenuidade
presume a ausência de uma reflexão sobre os pressupostos abraçados numa interpretação,
ausência justificada pelo propósito de se identificar a interpretação do texto com o próprio
texto. Sobretudo, esse propósito era equacionado, na opinião de Iser, por um “modo de
interpretação que pergunta pela intenção do autor, pela significação ou pela mensagem da
obra, assim como pelo valor estético enquanto interação harmônica das figuras, tropos e
camadas da obra”
220
.
À luz dos autores citados, a hermenêutica ganha uma renovação em que se apresentam
impasses caros à contemporaneidade. Em outras palavras, a atribuição e a produção de sentido
ocorrem mediante a tensão entre texto e leitor aglutinadora de outros elementos tais como
teorias, história, cultura –, através da qual é possível destacar o potencial de sentido
propiciado pelo texto, sendo que essa tensão se agrava na contemporaneidade em virtude da
ausência de uma referencialização transcendental, como se depreende da pluralidade de
paradigmas em vigor simultaneamente.
219
ISER. O ato da leitura, p.07.
220
ISER. O ato da leitura, p.08.
105
Essa pluralidade é evidenciada na recepção de autores cuja obra agencia um
verdadeiro mosaico teórico, numa demonstração patente da “babel crítica contemporânea”
221
.
Um exemplo desse quadro pode ser visto na descrição que Heidrun Krieger Olinto faz da
recepção recente à obra de William Shakespeare:
Não deveria espantar, então, que, segundo levantamento estatístico, estudiosos americanos de
literatura inglesa publicaram, em um ano, 544 trabalhos sobre Shakespeare. Mas espanta!
Ainda que, certamente, não seja suficiente para saciar o apetite do leitor da academia. Se
articularmos essa informação com um dos anuários das atividades profissionais na área dos
estudos literários, publicados regularmente pela Modern Language Association, teremos uma
ideia do tamanho e da complexidade desse campo. O relatório assinala, em cinco volumes,
espantosos 2.716 itens diferentes, distribuídos entre notas, edições, artigos, coletâneas,
monografias e livros, reconhecendo, em ordem alfabética, a vigência das seguintes abordagens
teóricas da literatura: estruturalista, feminista, filosófica, hermenêutica, linguística, marxista,
narrativista, neo-historicista, pós-estruturalista, pós-modernista, pragmática, psicanalítica,
psicológica, reader-response criticism, recepcional, retórica, semiótica e sociológica
222
.
Ao revelar seu espanto, Heidrun Olinto chama atenção para o exercício crítico na
contemporaneidade, para o exercício complexo do “leitor do final deste milênio; do leitor
confrontado, nas últimas décadas, com uma série de revoluções paradigmáticas em seu campo
disciplinar que provocaram certa sensação de worldless, como diria E. W. Said”
223
. Heidrun
Olinto acredita que a profusão de teorias disponíveis para o leitor acadêmico no cenário
contemporâneo fez com que “o próprio objeto de estudo, mas, igualmente, o campo da sua
investigação [se tornasse] opaco. Ele [o leitor acadêmico] não sabe mapear e arquivar a
hiperabundância de ofertas e torná-las disponíveis para uma atuação eficaz”
224
.
221
COSTA LIMA. Limites da voz: Kafka, p.58.
222
OLINTO in Revista Tempo Brasileiro: Ler e interpretar, pp.75-76.
223
OLINTO in Revista Tempo Brasileiro: Ler e interpretar, p.74.
224
OLINTO in Revista Tempo Brasileiro: Ler e interpretar, p.76.
106
Reiteramos o aludido mosaico teórico com uma rápida descrição da recepção
machadiana
225
, feita em concordância com o princípio postulado por Karlheinz Stierle no
ensaio “Que significa a recepção dos textos ficcionais?”, segundo o qual
[o] significado da obra literária é apreensível o pela análise isolada da obra, nem pela
relação da obra com a realidade, mas tão-só pela análise do processo de recepção, em que a
obra se expõe, por assim dizer, na multiplicidade de seus aspectos. Se esta abordagem se
presta a revelar, nos grandes paradigmas do cânone literário, os conceitos mutáveis condutores
da recepção e a conexão argumentativa, “dialógica” deles entre si e deles com a obra, torna-se
possível antes uma história da interpretação da recepção do que uma história da recepção
226
.
Embora Stierle não sistematize a diferença efetiva e a projeção cognitiva quanto ao
entendimento da “história da interpretação da recepção” e da “história da recepção”,
deduzimos que o autor sublinha, naquele tipo de história, a influência de conceitos teóricos e
de estudos críticos como os estudos mais citados, seja pela legitimação deles advinda, seja
por condicionarem a possibilidade de outros trabalhos.
Essa influência produz filiações, ou seja, uma crítica em rede, como um sistema que
“produz uma descrição de si mesmo, estabelecendo assim uma referência interna”
227
. Esse
sistema acaba por exercer a função de legitimar o resultado hermenêutico, pois, na falta dos
metarrelatos e diante da pluralidade de paradigmas, a exigência pelos parâmetros da
legitimação fica ainda mais aguçada. Trata-se de enfatizar, então, mecanismos ou pré-
disposições receptivas que limitam o sentido e que garantem sua articulação. Com a indicação
de tais mecanismos na instância da produção da crítica e na da revisão dessa crítica, o
conceito em destaque, ou seja, o de “história da interpretação da recepção”, reforça
225
Esclarecemos que a descrição da recepção machadiana que faremos a seguir é bastante simplificada perto do
volume e da complexidade dos estudos suscitados por essa recepção. De modo algum essa descrição revela a
pretensão de se totalizar as inúmeras ramificações de tal recepção.
226
STIERLE. Que significa a recepção dos textos ficcionais?, p.120.
227
GUMBRECHT. O campo não-hermenêutico ou a materialidade da comunicação, p.144. Nesse caso a acepção
de “sistema” remete à teoria de Nicklas Luhmann; conforme Gumbrecht explica: “a noção de sistemas
autopoiéticos parte do pressuposto segundo o qual os sistemas são ‘cegos’ em relação ao que lhe é exterior. Na
teoria dos sistemas, a percepção de um mundo exterior nada seria senão um produto secundário da
autorreferência produzida”. GUMBRECHT. O campo não-hermenêutico ou a materialidade da comunicação,
p.144.
107
duplamente um gesto hermenêutico, por balizar a relação entre a leitura e as condições que a
determinaram.
Além de suscitar uma recepção crítica volumosa – que supera a marca dos 5600
verbetes, “um número sem precedentes, quando se trata de autor brasileiro
228
, como Ubiratan
Machado constata em Bibliografia machadiana 1959-2003 –, a obra machadiana engendra
análises que, no seu conjunto, revelam uma multiplicidade hermenêutica. Manifesta em
leituras cujos referenciais teóricos alcançam da Escola de Recife” à Desconstrução, essa
multiplicidade comporta grande diversidade tanto de aspectos e temas abordados, como de
visões sobre um mesmo aspecto ou tema, e impõe, ainda, o confronto com perspectivas sócio-
política, histórica, cultural e teórica. Nesse processo, a escolha por determinada linha teórica
pelo leitor contribui para a consolidação de uma referência para o texto. Essa referência
gerencia um aspecto ambivalente, pois o diálogo entre teoria e texto pode restringir o sentido
deste diante de inúmeras possibilidades e, ao mesmo tempo, pode proporcionar uma
legibilidade capaz de renovar o sentido ao longo de distintos “sistemas histórico-literários de
referência”
229
e sistemas teórico-metodológicos.
Não deixa de ser surpreendente como um mesmo texto absorve tantas possibilidades
teóricas e argumentativas, conforme Roberto Schwarz indaga no ensaio “Leituras em
competição”, em que o crítico traça uma espécie de paralelo entre a recepção brasileira e a
estrangeira à obra de Machado, através do impasse entre o local e o universal:
Quanto à academia, a pesquisa machadiana desenvolvida nos Estados Unidos acompanhou as
correntes de crítica em voga por lá, como era natural. O patrocínio teórico vinha entre outros
do New Criticism, da Desconstrução, das ideias de Bakhtine sobre a carnavalização em
literatura, dos Cultural studies, bem como do gosto pós-moderno pela metaficção e pelo bazar
de estilos e convenções. A lista é facilmente prolongável e não para de crescer. Mais afinada
com a maioria silenciosa, indiferente às novidades, havia ainda a análise psicológica de corte
convencional. A surpresa ficava por conta do próprio Machado de Assis, cuja obra, originária
de outro tempo e país, não não oferecia resistência, como parecia feita de propósito para
ilustrar o repertório das teorias recentes. O ponto de contato se encontrava no questionamento
228
MACHADO. Bibliografia machadiana 1959-2003, p.10.
229
JAUSS. A história da literatura como provocação à teoria literária, p.28.
108
do realismo ou da representação, e em certo destaque da forma, concebida como estrangeira à
história. aqui uma questão que vale a pena enfrentar: como entender a afinidade entre um
romancista brasileiro do último quartel do século XIX e o conjunto das teorias críticas em
evidência agora, nas Metrópoles?
230
A respeito das características de uma recepção e outra, Schwarz ressalta que a recepção
estrangeira tem como peculiaridade o estudo de um autor que, apenas a partir de meados do
século passado, começa a ganhar certa notoriedade, ainda que Machado seja visto como um
autor importante para o cânone universal. Além disso, Schwarz ressalta que uma série de
questões específicas no caso da recepção brasileira, tais como a singularidade do lugar
ocupado por Machado na literatura brasileira e a preocupação com a definição da identidade
nacional na obra do autor.
Ao comparar a recepção americana à obra de Machado no final do século passado com
a brasileira, Paul Dixon reitera essa especificidade topográfica:
As universidades fazem hoje parte da economia mundial e podemos questionar a lógica de
analisar “Machado de Assis nos Estados Unidos” ao reconhecer que Roberto Schwarz e John
Gledson, influentes estudiosos machadianos no ambiente brasileiro e europeu, estudaram nos
Estados Unidos. No entanto, forças institucionais que aqui tendem a determinar a natureza
dos estudos literários e que portanto conduzem a uma análise de Machado um tanto diferente
da brasileira. De uma forma geral (e notáveis exceções), os estudos machadianos entre nós
estão menos interessados na brasilidade de Machado (nos seus aspectos históricos ou
políticos) do que nas qualidades que possam fazê-lo participar do forum internacional
231
.
Em complementação às características da recepção norte-americana, Dixon afirma que são
recorrentes os estudos sobre Machado de cunho comparativo e com embasamento numa
teoria, técnica literária e questão filosófica ou num gênero.
No ensaio mencionado Schwarz defende, porém, que tal desinteresse pela “brasilidade
de Machado” impede que se visualize a destreza de um “dramatizador malicioso da
experiência brasileira”
232
. Como era de se esperar, ao responder à pergunta “como entender a
230
SCHWARZ. Leituras em competição, p.62 (grifos do autor).
231
DIXON. “Penas de Águia”: Machado nos Estados Unidos, p.318.
232
SCHWARZ. Leituras em competição, p.63.
109
afinidade entre um romancista brasileiro do último quartel do século XIX e o conjunto das
teorias críticas em evidência agora, nas Metrópoles?”, o crítico reforça a tradicional linha
sociológica do seu trabalho e argumenta que a falta de uma reflexão que vincule a literatura a
seu contexto de produção faz com que as análises norte-americanas estejam blindadas quanto
à particularidade histórica e à “cor local” representadas na obra machadiana, segundo ele,
com uma “acuidade mimética”
233
–, blindagem favorecida também pela “neouniversalidade
das teorias literárias”
234
.
Na avaliação de Schwarz: “As teorias literárias com vigência nas principais
universidades do mundo, hoje sobredeterminadas pelas americanas, buscam entender o seu
campo de aplicação, como se fossem firmas. O interesse intelectual não desaparece, mas
combina-se ao estabelecimento de franquias”
235
. Da argumentação do crítico, interessa-nos
destacar menos a querela entre o local e o universal do que a opinião segundo a qual as teorias
contemporâneas, como a Desconstrução e a Pós-Modernista, poderiam comprometer a
legibilidade do texto. Ora, o risco de uma teoria imprimir um automatismo na interpretação do
texto, em que o intérprete galgaria mais o engrandecimento da teoria do que o do texto, não é
intrínseco a determinadas teorias. Esse automatismo não varia de acordo com a teoria
escolhida, e sim de acordo com a maneira como o intérprete conjuga a teoria com o texto, se
ele a entende como uma “forma puramente instrumental” ou como um “poder operatório”,
uma “habilidade formulativa”
236
.
Sendo assim, a preocupação com a contextualização sócio-política e histórica do texto
literário não ampara um princípio de autoridade indubitável. Até mesmo porque essa
233
SCHWARZ. Leituras em competição, p.76.
234
SCHWARZ. Leituras em competição, p.68.
235
SCHWARZ. Leituras em competição, p.66.
236
Essa e as duas outras expressões são de autoria de Luis Alberto Brandão. Nas palavras do autor: “Pretende-se
que a teoria seja exercida em seu poder operatório, o que não corresponde a tomá-la de forma puramente
instrumental, e sim reconhecer sua habilidade formulativa, sua potência concretizadora (isto é, ficcionalizadora),
sua vocação propositiva imprescindível. Trata-se, também, de se recusar qualquer fetichismo teórico, segundo o
qual, pelas razões mais diversas e por meio da mera repetição, sacraliza-se o pensamento de um autor ou da
corrente em que se insere”. BRANDÃO. Grafias da identidade. p. 18.
110
contextualização pode apontar para referenciais diferentes. Como o próprio Schwarz lembra,
ao longo do percurso traçado pela recepção brasileira à obra de Machado uma divergência
quanto à definição da identidade nacional na obra do autor, ou seja, o “significado histórico da
formação social”
237
na obra machadiana é controverso. Portanto, não é tarefa exatamente fácil
ordenar a crítica machadiana a partir da reincidência do caráter nacional, já que a pluralidade
da obra de Machado de Assis não permite conceber esse caráter sob um único princípio.
Junto a outros autores como Raymundo Faoro e John Gledson, Schwarz preconiza,
contudo, a identidade nacional como um princípio inquestionável para se atingir a verdade da
obra machadiana. Apesar de haver divergências frente a outras metodologias, esta associação
exerce grande fascínio na “história da interpretação da recepção” machadiana, influenciando
estudos. Sidney Chalhoub, por exemplo, declara no livro Machado de Assis, historiador: “não
veria História nenhuma nas histórias de Machado de Assis sem a experiência de ler outros
intérpretes dele, com os quais tento estabelecer um diálogo mais direto. Refiro-me,
principalmente, a John Gledson e a Roberto Schwarz”
238
.
A argumentação de Schwarz, sintetizada brevemente no ensaio Leituras em
competição”, mostra como a complexidade da obra machadiana engendra leituras cerradas.
Na sistematização do crítico:
[...] a composição, a cadência e a textura do romance machadiano foram vistas como
formalização artística de aspectos peculiares à ex-colônia, apanhados onde menos em falta e
mais civilizada ela se supunha. Explorados pela inventiva do romancista, esses aspectos
ganhavam conectividade e expunham a teia de suas implicações, algumas das quais muito
modernas, além de incômodas. As peculiaridades prendiam-se a) ao padrão patriarcal; b) a
nosso mix de liberalismo, escravidão e clientelismo, com os seus paradoxos estridentes; c) à
engrenagem também sui generis das classes sociais, inseparável do destino brasileiro dos
africanos; d) às etapas da evolução desse todo; e e) à sua inserção no presente do mundo, que
foi e é um problema (ou uma saída) para o país, e aliás para o mundo
239
.
237
SCHWARZ. Leituras em competição, p.64.
238
CHALHOUB. Machado de Assis, historiador, p.13.
239
SCHWARZ. Leituras em competição, pp.63-64 (grifos do autor).
111
A pergunta “como entender a afinidade entre um romancista brasileiro do último quartel do
século XIX e o conjunto das teorias críticas em evidência agora, nas Metrópoles?”, disposta
por Schwarz em tal ensaio, pode induzir um entendimento errôneo pelo qual se acreditaria que
os leitores contemporâneos a Machado teriam, então, uma facilidade maior para explicitarem
o contexto sócio-político e histórico da obra do autor ou seja, para identificarem o caráter
nacional nessa obra –, por viverem na mesma época retratada nos livros.
Ao contrário disso, o horizonte de expectativa que pautava a recepção machadiana da
primeira hora dificultava o reconhecimento do caráter nacional na obra do autor. Nessa
direção, José Veríssimo, um dos críticos mais lúcidos de sua geração, sentencia na resenha
que escreve no final do século XIX, em razão da publicação de Quincas Borba em livro:
A obra literária do Sr. Machado de Assis não pode ser julgada segundo o critério que eu peço
licença para chamar nacionalístico. Esse critério, que é o princípio diretor da História da
literatura brasileira e de toda a obra crítica do Sr. Sílvio Romero, consiste, reduzido à sua
expressão mais simples, em indagar o modo por que um escritor contribuiu para a
determinação do caráter nacional, ou, em outros termos, qual a medida do seu concurso na
formação de uma literatura, que por uma porção de caracteres diferenciais se pudesse chamar
conscientemente brasileira. Um tal critério, aplicado pelo citado crítico, e por outros à obra do
Sr. Machado de Assis, certo daria a esta uma posição inferior em nossa literatura
240
.
É importante realçar a opinião de Veríssimo, pois, ainda que o crítico veja Machado como um
autor inadequado ao critério “nacionalístico”, ele atribui valor à obra machadiana,
constatando, então, “a insuficiência dos parâmetros disponíveis diante da singularidade e da
grandeza da obra de Machado de Assis”
241
.
Sílvio Romero descrevia Machado como uma “tênia literária”
242
, alguém que “sem
o auxílio de uma preparação conveniente, entrou a ser um parasita, espécie de comensal
zoológico, vivendo à custa de uma combinação do classicismo e do romantismo”
243
. A
animosidade de Sílvio Romero com Machado expõe como os conceitos de nação e cultura
240
VERÍSSIMO in MACHADO (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração, p.155.
241
GUIMARÃES. Romero, Araripe, Veríssimo e a recepção crítica do romance machadiano, [online].
242
ROMERO in MACHADO (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração, p.145.
243
ROMERO in MACHADO (Org.). Machado de Assis: roteiro da consagração, p.146.
112
praticados naquela época, junto aos princípios estéticos até então em vigor, dificultaram a
análise da obra do autor. A obra machadiana, por não se enquadrar facilmente em tais
conceitos, vedou a criação de uma ilusão extratextual, ou seja, impediu que a realidade da
nação fosse reconhecida pelos leitores, base para o desconforto gerado inicialmente pela obra.
Assim, a recepção machadiana da primeira hora reiterou um gosto específico,
compartilhado entre os leitores e caracterizado pela subordinação a modelos formais e pela
representação do nacional segundo os paradigmas do evolucionismo, positivismo,
determinismo, romantismo e naturalismo. Como Hélio de Seixas Guimarães detalha no ensaio
“Romero, Araripe, Veríssimo e a recepção crítica do romance machadiano”, a obra de
Machado por apresentar grande distância frente ao horizonte de expectativa oitocentista
desafiava a crítica, uma vez que tais paradigmas não se sustentavam ao serem aplicados na
obra.
Se a recepção machadiana da primeira hora encontrou dificuldades em perceber a
presença do caráter nacional na obra de Machado, a recepção contemporânea, num segmento
contrário ao defendido por Schwarz, registra uma desconfiança quanto à possibilidade de se
decodificar ou até mesmo apreender esse caráter. Nessa direção, citamos como exemplo
os estudos: Os leitores de Machado de Assis, de Hélio de Seixas Guimarães, A formação do
nome e Autobibliografias, de Abel Barros Baptista.
Guimarães trabalha com a hipótese segundo a qual a dimensão exígua do público
leitor na sociedade brasileira do século XIX colocava em xeque a fundação do caráter
nacional via literatura. De modo oposto ao que acontecia na Europa, onde um público
heterogêneo estava em formação, a literatura, no Brasil oitocentista, circunscrevia-se a grupos
limitados, a pessoas próximas ao escritor, fato que possibilitava “uma forte personalização da
relação entre autor e público”
244
. Na conclusão de Guimarães, temos que:
244
GUIMARÃES. Os leitores de Machado de Assis, p.80.
113
O fato de ser escrito para poucos colocava dificuldades para o romance brasileiro, uma vez
que a missão de sintetizar e difundir noções da nacionalidade não casava bem com um veículo
que de saída excluía a grande maioria da população, marginal não ao universo do romance,
da literatura e das letras, mas a tudo mais. A missão nacional e patriótica decerto aumentava a
frustração dos escritores, que tomavam para si o papel de porta-vozes de um público pouco
numeroso e muitas vezes amorfo diante das coisas literárias. A impossibilidade concreta de
fazer do romance um veículo eficiente de divulgação de um imaginário nacional não será
percebida pelos primeiros romancistas, ocupados em criar representações literárias
devidamente idealizadas para as paisagens e costumes locais, o que será considerado
suficiente para conferir originalidade à produção nacional.
Machado de Assis não ficou insensível a nenhuma dessas questões
245
.
Baptista, por sua vez, pressupõe que “Machado lança a indeterminação sobre o esforço
de construção de uma literatura nacional”
246
, e essa indeterminação sobressai em virtude da
“tensão entre resistência à significação nacional e garantia de disponibilidade para assumir
uma significação nacional”
247
, o que, segundo o crítico, é fundamental para se avaliar a
modernidade literária na obra machadiana. A essa indeterminação adere-se a ênfase que o
crítico confere ao princípio de interpretação
248
, de acordo com o qual “a questão nacional
deslocar-se-ia da esfera da produção para a esfera da recepção literária
249
. O princípio de
interpretação inviabiliza a averiguação substancial do caráter nacional, visto como um “efeito
de leitura”
250
, e, assim, esse caráter “ca[i] por inteiro no âmbito da responsabilidade do
leitor”
251
. Em síntese, Baptista assegura a Machado a “responsabilidade da não resposta que
define o romancista”
252
: “Por isso, é inútil discutir se Machado era ou não um escritor
empenhado, lúcido, crítico das instituições e das ideias de seu tempo: ele era, antes de tudo, se
não apenas, um romancista [...]”
253
.
A sucessão de matizes exemplificada com esses três núcleos críticos – correspondentes
à crítica contemporânea a Machado, à crítica de Schwarz e de seus epígonos e à crítica recente
245
GUIMARÃES. Os leitores de Machado de Assis, pp.101-102.
246
BAPTISTA. A formação do nome, p.42.
247
BAPTISTA. A formação do nome, p.42.
248
BAPTISTA. A formação do nome, p.103 (grifos do autor).
249
BAPTISTA. A formação do nome, p.103.
250
BAPTISTA. A formação do nome, p.17.
251
BAPTISTA. A formação do nome, p.17.
252
BAPTISTA. Autobibliografias, p.400.
253
BAPTISTA. Autobibliografias, p.400.
114
de Guimarães e de Baptista produz uma impressão que é compatível com a análise de
Baptista: a impressão segundo a qual o caráter nacional não deve ser visto como uma
configuração que pode ser decodificada ou conhecida na sua essência, mas como uma
configuração existente em função de determinada perspectiva teórica e por ela legitimada.
Através da sucessão de matizes concebida em torno do caráter nacional, sublinhamos como
Machado perfila um tipo de escrita que o caracteriza como um autor-matriz
254
, escrita
inerente a certos autores, “cuja obra, pela própria complexidade, autoriza a pluralidade de
abordagens, pois elementos diversos de sua obra podem ser valorizados através de
articulações teóricas igualmente diversas”
255
.
No texto em que cunha a expressão autor-matriz João Cezar de Castro Rocha defende
que essa pluralidade – estimulada, por exemplo, pela obra de autores como Machado de Assis,
Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Guimarães Rosa contribui para o “eterno retorno de
querelas hermenêuticas e metodológicas”
256
, mantendo o sistema intelectual permanentemente
ativo e renovado. Castro Rocha indica Machado como o “autor-matriz da história da literatura
brasileira”
257
: na definição desta primazia o crítico ressalta a vocação da obra de Machado
para gerar polêmicas – como a célebre discordância travada entre Sílvio Romero e José
Veríssimo –, mesmo nos tempos atuais, haja vista a constituição dessa obra, que dialoga não
com a “cor local”, como também com a tradição literária. Essa vocação para gerar
polêmicas representa, então, um índice da polivalência da obra machadiana, polivalência vista
com contundência na sua recepção crítica.
O enquadramento do “campo não-hermenêutico” campo cunhado por Gumbrecht
que designa a problematização do gesto interpretativo, ou seja, a problematização de
mecanismos e impasses que perpassam a atribuição e a produção de sentido pelo crítico na
254
ROCHA. Introdução: O que deseja um seminário: à roda de Machado de Assis, p.13 (grifos do autor).
255
ROCHA. Introdução: O que deseja um seminário: à roda de Machado de Assis, p.13.
256
ROCHA. Introdução: O que deseja um seminário: à roda de Machado de Assis, p.14.
257
ROCHA. Introdução: O que deseja um seminário: à roda de Machado de Assis, p.14 (grifos do autor).
115
contemporaneidade promove essa polivalência. Assim, a divergência de interpretações que
observamos rapidamente na sucessão de matizes angariados pelo caráter nacional na recepção
crítica à obra de Machado não deve ser vista como uma sucessão de erratas, isto é, de
interpretações que se sobrepõem com a intenção de corrigir equívocos traçados nas
interpretações anteriores.
Conforme Castro Rocha acentua, as polêmicas literárias como a protagonizada por
José de Alencar e Gonçalves de Magalhães – podem render questionamentos do tipo: “Qual o
método mais eficaz para a leitura de determinado autor? Qual a abordagem mais fecunda para
tratar de certa temática? Como assegurar a formação mais sólida para futuras gerações de
professores e pesquisadores de literatura?”
258
. Ao transpormos esses questionamentos para o
estudo da recepção literária no contexto do “campo não-hermenêutico”, vemos que eles são
igualmente válidos, por sinalizarem tanto a possibilidade de o texto literário ser lido de
maneiras diferentes, como os dilemas provenientes dessa possibilidade: dois aspectos dos
mais importantes nesse estudo. No entanto, o alcance de tais questionamentos será maior se
eles forem vistos enquanto propulsores de novos problemas, e não como perguntas com
garantia de resposta.
A variação de interpretações a que o texto literário está sujeito como assinalamos
junto à recepção crítica à obra de Machado abre um horizonte de suspeição pelo qual se
vislumbrará sempre um sentido diferente para o texto. Isso corresponde a afirmar que o gesto
hermenêutico não é digno da verdade, mas da dúvida, fato que evidencia como a questão
hermenêutica carrega uma complexidade ainda mais candente com a superação do “campo
hermenêutico”. Sendo assim, o “método mais eficaz” e a “abordagem mais fecunda” acabam
sendo aqueles que obtiverem maior respaldo institucional ou que agregarem mais estudos na
“história da interpretação da recepção”, uma vez que o “campo não-hermenêutico” é
258
ROCHA. Introdução: O que deseja um seminário: à roda de Machado de Assis, pp.12-13.
116
incompatível com a proposição de um modelo único de interpretação, seja ele o mais eficaz
ou fecundo.
Ainda que bastante limitado, o repertório de trabalhos machadianos mencionado,
composto por interpretações consolidadas na recepção crítica à obra do autor, baliza a
desconfiança quanto à indicação de tal método e abordagem. Ora, como comparar a eficácia e
a argúcia reveladas nesses trabalhos tendo em vista que elegem métodos e abordagens
totalmente distintos? Sob quais parâmetros é possível afirmar, por exemplo, que a
interpretação conduzida por Schwarz é mais profícua do que a conduzida por Baptista?
Na medida em que se desacredita o ideal da interpretação correta ou verdadeira
presumido pelo “campo hermenêutico” é que esse tipo de impasse torna-se plausível. Como
observamos, o “campo não-hermenêutico” apresenta uma incompatibilidade de natureza
fundadora com a verdade. Contudo, na avaliação singular de cada método e abordagem dos
trabalhos machadianos, parece haver a pretensão de que os contornos de suas respectivas
premissas teóricas e conjeturas ofereçam uma segurança e uma assertividade hermenêuticas
condizentes com um sistema de legibilidade ou de limitação do sentido. Queremos dizer
que as próprias perspectivas teóricas pensadas como sistemas que performatizam a
legibilidade da gina e que não deixam de criar referências internas induzem o sentido do
texto: quando definem, por exemplo, a referência como presença ou como negatividade, o que
pode ser visto no confronto entre a escola sociológica e a iseriana ou a derridiana.
Assim, mesmo que uma teoria hegemônica operante seja hoje insustentável, ao se
eleger determinada perspectiva teórica num trabalho crítico espera-se que ela seja a mais
adequada ou a mais correta perante a obra a ser estudada. A despeito dos predicados da
hermenêutica literária na contemporaneidade – sejam eles, vale lembrar, a pluralidade, a
divergência e a contingência –, há a formação e a cristalização de mônadas teóricas, conforme
117
é possível depreender da “história da interpretação da recepção” machadiana, como se a
interpretação fosse quase preexistente à obra.
No texto “As novas razões da mentira”, Jacques Rancière ressalta a condição das
interpretações preexistentes que o objeto em desfavorecimento no caso abordado por ele
não é a literatura, mas os fatos empíricos. O autor retrata um pseudo-fato ocorrido na
França
259
, em que uma jovem judia e seu bebê teriam sofrido um ataque violento, praticado
por “adolescentes magrebinos e negros”
260
num trem de subúrbio, sem que recebessem
socorro dos demais passageiros. O ataque, no entanto, não passou de uma encenação
concebida pela própria jovem.
Rancière relata que interpretações para o fato foram aventadas em profusão durante os
dois dias em que essa mentira perdurou. A partir desse episódio, o autor argumenta que:
A invenção “individual” dessa agressão racista era possível e plausível porque o
acontecimento era de certo modo esperado pela máquina social de fabricação e de
interpretação dos acontecimentos.
Precisemos as coisas. Não se trata de dizer, como alguns críticos da mídia, que a tela de TV
torna a realidade e o simulacro equivalentes e que acontecimentos não têm mais necessidade
de existir de verdade porque suas imagens existem sem eles. Não importa o que digam esses
críticos, não é a imagem que constitui o núcleo do poder midiático e de sua utilização pelos
poderes. O núcleo da máquina de informação é, mais exatamente, a interpretação
261
.
Assim, a máquina da informação engendra um paradoxo, pois os acontecimentos são
compreendidos e explicados antes mesmo de se concretizarem. Essa inversão faz com que os
acontecimentos sejam moldados previamente pela interpretação, que dificulta a análise dos
mesmos depois de realizados, como se a interpretação preexistente criasse uma barreira.
Nessa direção Rancière questiona: “Do fato de nenhuma testemunha ter-se manifestado,
nenhum comentador pensou em tirar a conclusão mais simples: se nenhuma testemunha do
259
O autor não explicita a data em que esse caso ocorreu sabemos apenas que foi no verão europeu. No Brasil,
o texto do autor foi publicado em agosto de 2004.
260
RANCIÈRE. As novas razões da mentira, p.03.
261
RANCIÈRE. As novas razões da mentira, p.03 (grifos nossos).
118
acontecimento fez alguma coisa, é talvez porque nada havia a fazer, é porque o acontecimento
não ocorrera”
262
.
Com o destaque conferido à argumentação de Rancière, reiteramos a presença da
hermenêutica nos debates contemporâneos. Como o texto do autor sustenta, a interpretação
adquire uma autonomia impensável na máquina da informação ao prescindir do próprio objeto
interpretado. Ao sublinharmos essa autonomia na argumentação do autor voltamos a indagar
pela inflexão que a contemporaneidade inflige no entendimento da hermenêutica.
No decorrer desta dissertação insistimos em dizer que o leitor é um elemento dos mais
importantes no estudo da hermenêutica literária, estudo que busca uma reflexão sobre o
desempenho do leitor diante do texto. Portanto, o desprezo pelo texto no caso de haver
interpretações prévias como as descritas por Rancière para os fatos empíricos – é um desvio
inaceitável, que esse desprezo seria equivalente a prometer a interpretação de um texto
como subterfúgio para que outras questões sejam abarcadas, sem que estejam em relação
direta com o texto. Em hipótese, essas questões podem até ser “possíveis e plausíveis” para a
máquina da interpretação no domínio institucional, mas implicam um procedimento através
do qual não o texto é depreciado como também deixa de propiciar o questionamento das
ideias prontas, isto é, ao invés de o leitor aventar questões e teorias mediante a leitura de um
texto, ele sobrepõe questões e teorias ao texto com um gesto fetichista e tautológico em que
conceitos são aplicados desbragadamente.
Esse procedimento resvala a literatura num simples estímulo capaz de colocar a
máquina da interpretação em funcionamento, explicitando regras e protocolos presentes no
domínio institucional. Subordinar a literatura ao cumprimento desse estímulo seria
transformá-la num “simples objeto interpretável”, o que, na esteira de Silvina Rodrigues
Lopes, deve ser combatido:
262
RANCIÈRE. As novas razões da mentira, p.03.
119
As obras literárias estudadas enquanto tais o são simples objetos interpretáveis, mas sim
matéria de análise que, ao mesmo tempo que revela a complexidade do uso da linguagem, vem
perturbar a estabilidade do conhecimento do uso da linguagem, vem perturbar a estabilidade
do conhecimento do mundo, através da abertura de perspectivas múltiplas e contraditórias, que
incitam a pensar mas não determinam o pensamento
263
.
No decorrer deste trabalho insistimos também em dizer que estudar a literatura sob o
prisma do leitor envolve avaliar a polivalência do texto literário, condicionada, do ponto de
vista dos fatores externos ao texto literário, pelas determinações pessoais do leitor e de âmbito
institucional, histórico-cultural, político ou teórico. Como destacamos, essa avaliação requer
que os preceitos como a intenção do autor, o imanentismo textual e a referencialidade do
sentido –, pelos quais se acredita que o sentido do texto possa ser capturado, sejam
problematizados. Portanto, a problematização desses preceitos permite que o leitor tenha
liberdade para explorar o sentido em várias direções.
No livro O ato da leitura, Iser pontua que o gesto teórico que privilegia o papel do
leitor diante do texto é inconciliável com o juízo pelo qual a interpretação comporta a
decifração do sentido, que leva o sentido para a esfera do familiar. Ao contrário disso, o
entrelaçamento conceitual de Iser pretende que a interação entre texto e leitor assegure um
efeito estético que repudie as disposições existentes, os “significados conhecidos; pois se o
efeito estético significa o que advém ao mundo por ele, então ele é o não idêntico ao de
antemão existente no mundo”
264
. Em complementação a essa premissa, Iser sentencia: “Esse
efeito, em um primeiro momento, pode ser definido como recusa à categorização ou ainda
como situação em que o receptor se afasta de suas classificações”
265
.
A propósito da “história da interpretação da recepção” machadiana, observamos a
vinculação teórico-institucional da crítica literária, exemplarmente referenciada nessa
recepção. Diante da premência de tal recusa postulada por Iser, perguntamos pela maneira
263
LOPES. A paradoxalidade do ensino da literatura, p.131.
264
ISER. O ato da leitura, p.53.
265
ISER. O ato da leitura, p.53.
120
como o crítico define o efeito estético, não obstante a crítica ter como alicerce três
procedimentos, designados por Luis Alberto Brandão no ensaio “Rituais do discurso crítico”
como autorização, categorização e conclusividade. Nas palavras de Brandão, a autorização
“engloba todos os recursos que dizem respeito à elaboração de um sistema de referências,
manifesto no jogo das citações ou no uso de determinados quadros terminológicos e
conceituais”
266
; a categorização “indica a necessidade de se elaborar, ou colocar em operação,
categorias, seja em termos de modelos taxonômicos que classificam dados de um corpus, seja
em termos de conceitos, entendidos, bem amplamente, como formas de propor linhas de força
ao pensamento”
267
e a conclusividade ressuma “a meta de se produzir inferências válidas a
partir do que é exposto”
268
. Ao perguntarmos pela maneira como o crítico define o efeito
estético, devemos desdobrar essa definição em dois momentos: de início, ela caracteriza o
efeito experimentado no ato da leitura e, posteriormente, a repercussão desse efeito no texto
do crítico.
Como conciliar esses procedimentos a serem adotados pelo crítico – nos quais se nota,
conforme dissemos, que as perspectivas teóricas dão referência ao sentido e que um
imaginário aliciado pela crítica acaba por se formar com a recusa pelas classificações,
categorias e disposições semânticas preexistentes, assinalada no pensamento iseriano? Mesmo
que a interpretação proposta pelo crítico não tenha a função de decifrar o sentido do texto,
função incompatível com o “campo não-hermenêutico”, a hipótese pela qual esse leitor
conseguiria, no ato da leitura, ficar imparcial ao conhecimento prévio que carrega seja ele
teórico, advindo da crítica ou da própria tradição literária – parece improvável.
No caso de haver a formação e a cristalização de mônadas teóricas como as que
depreendemos da “história da interpretação da recepção” machadiana, ao atribuir e produzir
sentido dificilmente o leitor deixará de reconhecer referências extratextuais no texto. Além
266
BRANDÃO. Rituais do discurso crítico, p.06.
267
BRANDÃO. Rituais do discurso crítico, pp.08-09.
268
BRANDÃO. Rituais do discurso crítico, p.11.
121
disso, quando se detiver na explicação do texto, o crítico precisará recorrer a referências que
justifiquem o sentido, mas sem que sejam sobrepostas ao texto. Apesar de a hermenêutica
literária pressupor na contemporaneidade predicados tais como pluralidade, divergência e
contingência, ela não abdica de limites quando promove a tradução do sentido. Assim, o
“campo não-hermenêutico” torna o juízo da perfeição exegética menos flagrante do que os
mecanismos de controle, que almejam a adequação conceitual em prol de um melhor
desempenho argumentativo.
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Apesar de os pensadores da contemporaneidade sublinharem recorrentemente a
divergência como uma característica dessa época, parece haver consenso em torno de uma
característica fundamental: trata-se de uma época que não comporta prismas substancialistas.
Consequentemente, o uso do termo contemporaneidade aponta para uma problematização
123
seminal dos sentidos absolutos, a partir da qual sobressaem caracteres tais como diversidade,
dispersão, flexibilidade de valores, fragmentação.
No tocante à teoria da literatura, a crise de parâmetros hegemônicos sancionada com a
derrocada do estruturalismo deu lugar a novos horizontes metodológicos e a uma variedade de
perspectivas teóricas. Nesta dissertação refletimos como essa mudança imprimiu uma
preocupação, antes rarefeita, com o sentido do texto literário, preocupação que nos levou a
pensar na maneira pela qual a hermenêutica literária se constitui e, num momento posterior,
na maneira pela qual ela se constitui na contemporaneidade.
Na medida em que se desacredita a existência de um sentido imanente ao texto, o
estudo da hermenêutica literária torna-se indissociável da relação entre texto e leitor. Sendo
assim, procuramos evidenciar, junto às Estéticas da Recepção e do Efeito, propostas
respectivamente por Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser, fatores que interferem em tal relação
tanto no que diz respeito aos fatores pertinentes à instância do texto como aos que
acometem o leitor – e que justifiquem a diversidade semântica do texto literário.
Entre esses fatores, ressaltamos que a literatura de ficção estimula um regime
interpretativo que se diferencia do regime do texto poético, diferenciação que se verifica
também no caso de um texto apresentar mais lacunas e omissões narrativas do que outro.
Além de privilegiarmos o texto ficcional, fizemos outra escolha importante para os rumos
desta discussão sobre a hermenêutica literária ao nos centrarmos no leitor crítico, pois, ao
contrário do leitor comum, aquele leitor acaba revelando publicamente as interpretações que
realiza e os critérios adotados ao realizá-la, e, por estar submetido ao contexto institucional,
dialoga com a teoria e a crítica literárias.
Nesta dissertação, o destaque conferido ao leitor implicou uma reflexão sobre as
condições de possibilidade do sentido, associadas aos fatores que estimulam e que criam
obstáculos a atribuição e a produção de sentido. No exame desses fatores, detivemo-nos
124
especialmente nos de natureza textual e linguística, sócio-histórica, subjetiva, teórico-
metodológico e institucional. Observamos que uma ambivalência fundadora os cerca, pois, ao
mesmo tempo em que esses fatores concretizam substratos da multiplicidade semântica do
texto literário, eles valem como controladores ou limitadores do sentido.
Temos, então, que o sentido deve ser pensado junto a vetores exteriores ao texto, pois
os gestos de atribuição e de produção de sentido não ocorrem sem que tais fatores sejam
exemplificados. Na esteira de Iser, vimos que esses gestos consistem num ato de tradução
pelo qual o processo de doação de sentido é externado, que nenhum sentido se confunde
com o texto. Esse processo tem como pressuposto a diversidade semântica do texto literário e
se apoia na autonomia do leitor.
Contudo, uma discussão sobre a liberdade do leitor diante do texto literário deve
observar, como contrapartida, que o sentido circunscreve limites. Assim, mesmo que os
atributos da contemporaneidade antes mencionados possam favorecer a dispersão, esta
pesquisa apontou que os desdobramentos do sentido são acentuados de acordo com tais
fatores, razão pela qual o sentido não pode ser pensado sem que suas condições de
possibilidade sejam consideradas. Apesar de o sentido não obedecer a uma referencialização
transcendental, é possível perceber, como o fizemos a partir da recepção crítica à obra de
Machado de Assis, que sistemas de legibilidade do sentido são formados, assegurando pré-
disposições interpretativas.
Na contemporaneidade, o caráter heterogêneo desses sistemas baliza a diferença não
das orientações metodológicas, como das definições de literatura. Porém, ao ressaltarmos
tais sistemas, observamos que eles refreiam o sentido, não o deixando seguir cursos tão
imprevistos e subjetivos. Ainda que essa heterogeneidade seja facilmente notada, o sentido
circula entre mônadas teóricas que conferem veracidade às interpretações, como
depreendemos da “história da interpretação da recepção” machadiana.
125
Esta pesquisa mostrou, então, como o texto literário promove um enredamento do
sentido, à maneira da mensagem imperial transmitida pelo imperador, no seu leito de morte, a
um súdito. Na pequena narrativa intitulada “Uma mensagem imperial”
269
, de Franz Kafka,
depois de ouvir o último comunicado do imperador, o súdito não consegue sair do palácio,
apesar da destreza e dos esforços empenhados, permanecendo nos seus aposentos. Mesmo que
conseguisse deixá-los, o súdito teria que percorrer pátios, outros palácios e escadas ao longo
de milênios.
269
KAFKA. Uma mensagem imperial. In: KAFKA. Um médico rural.
126
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