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condições de trabalho e de uso da voz e, ainda, sentirem-se culpados pela própria doença, quando na
verdade muitas vezes são vítimas.
Procurando tentar distinguir, até onde fosse possível, os fatores contextuais dos fatores pessoais na
gênese das doenças relacionadas à voz, realizei um estudo
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no qual foi observado que para incentivar
a participação dos alunos, dirigir e ritmar a turma, os professores respondiam às exigências das tarefas
pedagógicas por meio de mecanismos de hipersolicitação da voz, como distorcer a voz, gritar e falar
em alta intensidade. Esses comportamentos foram identificados tanto no ensino do conteúdo quanto
na organização do processo da aula e em parte eram causados pela competição com ruídos. Nesse
estudo observou-se, ainda, que os professores desenvolviam estratégias de autopreservação vocal,
como usar meios didáticos alternativos que não sobrecarregavam a voz, evitar a competição com o
ruído ou praticar higiene vocal (beber muita água, comer maçã no intervalo, usar pano úmido para
apagar o quadro, não gritar e outras atitudes simples que visam à proteção da voz). Essas estratégias às
vezes eram desenvolvidas por eles próprios, a partir da sua experiência, com vistas a se
autopreservarem e às vezes resultavam de orientações colhidas com especialistas, como
fonoaudiólogos. Contudo, mesmo sabendo de um modo ou do outro o que teriam que fazer para
preservarem sua saúde vocal, eles nem sempre podiam mobilizar as estratégias desenvolvidas e
acabavam incorrendo em hipersolicitação vocal.
Os resultados da pesquisa sugerem que mudanças na organização do trabalho docente, como
diminuição do nível de ruído e do número de alunos por sala e implementação da pedagogia de
projetos, podem contribuir para a prevenção da hipersolicitação em sala de aula e, conseqüentemente,
da disfonia ocupacional entre os docentes, melhorando, assim, a qualidade de vida desses
profisssionais. Pode-se também recomendar que sejam criadas sessões de formação para professores
nas quais eles possam compartilhar as estratégias de autopreservação – até então, em sua maior parte,
individuais – servindo para a elaboração de estratégias coletivas.
Conclusão
Gostaria agora de retomar a questão levantada anteriormente sobre se o trabalho docente seria mesmo
um trabalho realizado por um “profissional da voz”. Supondo que nosso trabalhador hipotético com
“deficiência respiratória por uma doença nos pulmões” viesse a trabalhar em uma escola, seu
desempenho profissional estaria comprometido, não é mesmo? Por mais bem intencionado e esforçado
que fosse esse professor, dificilmente ele conseguiria superar a sua jornada de trabalho. Seria
improvável que ele, sozinho, conseguisse ministrar conteúdos durante várias horas e vários meses para
barulhentas turmas de trinta alunos em diferentes estágios de aprendizagem, diferentes origens sociais
e diferentes habilidades, tudo isso sem agravar seus problemas de saúde. Apesar da forte tendência em
acreditar que não, que ele não seria capaz, há um exemplo na história da pedagogia que nos faz
questionar estas crenças: Célestin Freinet.
Célestin Baptistin Freinet (1896-1966) foi um importante pedagogo, idealizador da Pedagogia Ativa,
um método de ensino que revolucionou o modo de pensar a relação ensino-aprendizagem, deixando
discípulos e inspirando a obra de muitos intelectuais como Dewey, Anísio Teixeira e Paulo Freire.
Freinet era, também, o portador das desvantagens descritas no início do texto: “deficiência
respiratória, doença nos pulmões, não conseguia falar por mais que dez minutos”, deficiências que se
relacionam de modo essencial com sua pedagogia, pois, segundo seus biógrafos, foi esta sua
dificuldade que o levou a procurar uma nova maneira de dar aulas.
Seu método defende a praticidade e a integração de idéias no trabalho na sala de aula e a centralidade
do trabalho desenvolvido pelo aluno no processo de construção de sua aprendizagem. São idéias que
colocam o professor no papel de facilitador e buscam valorizar a autonomia e a capacidade criativa
dos alunos, os quais deveriam, eles sim, ter “voz ativa”. Tal era o valor que Freinet atribuía à ação e ao
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Estudo realizado no âmbito de meu mestrado em educação “Uso profissional da voz em sala de aula e
organização do trabalho docente”. (FaE/UFMG, 2003)