que a gente passa, a gente vai... se identifica com os meninos. Aí começa a se vestir de uma
forma, a se comportar, né? Quer dizer, isso num primeiro momento dá meio que uma
misturada mesmo, então é “quem sou eu, o que que eu tô fazendo?”. Fora a resistência, né? Eu
era casada com um cara, pai dos meus filhos, que dizia ‘ah, é absurdo trabalhar com esses
meninos, e não ganha dinheiro... e é ideologia... vai lá no posto de gasolina, oferece ideologia
lá pros cara encherem o tanque’. Então tudo foi muito... mexeu mesmo com a minha vida, deu
uma mexida assim, enlouquecida. E foi lá que eu fiquei (...) Eu acho que foi uma escolha
ideológica mesmo, né? Aí fui, fui feliz [grifos meus].”
Célia se envolveu no movimento em relação às crianças e adolescentes que deflagrou
a mudança de paradigma no marco legal no país. Dos sete entrevistados, cinco participaram
de alguma forma nesse processo que o país viveu no final da década de 1980, que articulava
trabalho educativo com crianças e adolescentes e uma ação política no campo, capitaneado
pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Sobre sua relação com o contexto
mais amplo da política nacional, ela relata:
“Participei de todo o processo, 1988, movimentos, da Constituição, ECA, e depois fui
convidada para assumir um projeto de atendimento a meninos de rua.”
A terceira entrevistada, Regina, entre 35 e 40 anos, tem uma trajetória e um perfil
bastante diverso do das anteriores. O encontro com ela me impactou por trazer idéias bastante
diferentes das que eu já tinha entrado em contato durante o trabalho de campo. Encontrei
Regina na sede da instituição que ela criou e coordena. Ao começar a entrevista, solicitei que
ela me falasse um pouco de sua trajetória profissional, sua formação, e como ela entrou no
trabalho com crianças e adolescentes. Regina então me apresenta o seu contato com o que
chamo “Brasil–Haiti”
4
, país marcado pelas desigualdades sociais e pouquíssimas
oportunidades para as crianças e adolescentes das classes populares:
“Bom, eu sou por formação bailarina clássica e sou formada em Belas Artes. Trabalhei sempre
como professora de balé clássico, desde os dezesseis anos, uma menina de classe média alta.
E, na questão de Belas Artes, eu trabalhei muito tempo com paisagismo, fazendo figurinos e
cenários para peças de teatro. Quando eu vim morar em [bairro da cidade], há uns dez anos
atrás, aí eu levando o meu filho para escola - essa história já foi contada no prêmio do ECA
5
e,
agora no Criança Esperança
6
, essa história foi contada outra vez, eu vivo contando essa
história. Tem algumas reportagens também sobre essa história. E aí, uma menina de cinco
anos me parou na rua e me perguntou, me fez duas perguntas: Uma, se eu era professora de
4
Trata-se aqui de uma licença poética que faz referência à conhecida música de Caetano Veloso & Gilberto Gil,
“Haiti”, cujo estribilho “o Haiti é aqui”, faz referência à densidade das questões sociais na realidade brasileira.
5
Trata-se de um prêmio oferecido a pessoas e profissionais que de alguma forma colaboram para a
implementação do ECA por iniciativa da Fundação Telefônica em parceria com a Agência de Notícias dos
Direitos da Infância (ANDI), ONG que atua na área de comunicação.
6
Projeto desenvolvido em parceria pela Rede Globo de Televisão e Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF), que através de uma grande campanha nos meios de comunicação estimula que a população doe
dinheiro ao projeto, que apóia ações sociais voltadas a crianças a adolescentes pobres.