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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Medicina Social
Vanessa Jorge Leite
SEXUALIDADE ADOLESCENTE COMO DIREITO?
A VISÃO DE FORMULADORES DE POLÍTICAS PÚBLICAS
Rio de Janeiro
2009
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA
Vanessa Jorge Leite
Sexualidade adolescente como direito?
a visão de formuladores de políticas públicas
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Saúde Coletiva, pelo
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, do
Instituto de Medicina Social, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração:
Ciências Humanas e Saúde.
Orientador: Profº. Drº. Sérgio Luis Carrara
Rio de Janeiro
2009
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CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CBC
L533 Leite, Vanessa Jorge.
Sexualidade adolescente como direito?: a visão de formuladores de políticas públicas /
Vanessa Jorge Leite. – 2009.
165f.
Orientador: Sérgio Luis Carrara.
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de
Medicina Social.
1. Sexo e direito – Teses. 2. Direitos dos adolescentes – Teses. 3. Adolescentes – Teses. 4. Direitos
das crianças – Teses. I. Carrara, Sérgio. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Instituto de Medicina Social. III. Título.
CDU 159.922.1:342.7
_______________________________________________________________________________
Vanessa Jorge Leite
Sexualidade adolescente como direito?
a visão de formuladores de políticas públicas
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do título de Mestre em Saúde Coletiva, pelo
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, do
Instituto de Medicina Social, da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Área de concentração:
Ciências Humanas e Saúde.
Banca Examinadora:
___________________________________________
Prof°. Dr. Sérgio Luis Carrara (orientador)
Instituto de Medicina Social da UERJ
___________________________________________
Profª. Drª. Adriana de Resende B. Vianna
Museu Nacional da UFRJ
____________________________________________
Profª. Drª. Ester Arantes
Faculdade de Educação da UERJ
_____________________________________________
Profª. Drª. Maria Luiza Heilborn
Instituto de Medicina Social da UERJ
Rio de Janeiro
2009
Para Mainah, Gal e Sérgio,
Na seqüência em que entraram na minha vida,
e a transformaram.
AGRADECIMENTOS
O término dessa dissertação acontece quando estou completando quarenta anos. Trago assim,
uma longa história que fez toda a diferença na forma como atravessei esse percurso. Esse
trabalho é reflexo das influências e do muito que aprendi com as pessoas com quem trabalhei
e convivi, que forjaram em mim o que sou hoje. Aos amigos e companheiros de jornada tenho
muito a agradecer, e gostaria de aproveitar essa oportunidade pública para reafirmar minha
gratidão a algumas pessoas para as quais nunca poderei “pagar” tudo que devo. Para
representá-las, dedico um especial agradecimento a minha primeira mestre, a amiga Maria
Augusta Delgado, a quem devo minha entrada, há vinte anos atrás, na “área da infância e
adolescência”. E a Antonio Carlos, amigo e parceiro de minha primeira experiência
profissional onde pude articular adolescência e sexualidade. A eles devo muito das bases que
formaram a profissional que chegou ao mestrado no IMS.
O curto percurso de dois anos do mestrado operou grandes transformações em mim e na
minha vida. E ao chegar ao final, acumulei mais “dívidas”, por ter tido, felizmente, a
oportunidade de aprender muito na companhia de pessoas que se tornaram especiais para
mim. Não tenho palavras que possam expressar corretamente o quão fundamental foi a
companhia de meu orientador, o professor Sérgio Carrara, no percurso do mestrado. Não à toa
esse trabalho também é dedicado a ele. A meu mestre, no melhor sentido que essa palavra
pode ter, quero agradecer sua extrema generosidade, ao valorizar minhas capacidades e
respeitar meus limites.
A convivência no IMS foi muito boa e quero agradecer a acolhida dessa instituição na figura
da funcionária da Secretaria Simone, que com simpatia e gentileza, sempre estava disposta a
nos ajudar. Um agradecimento sincero aos professores, especialmente à Jane Russo, Fabíola
Rohden, Maria Luiza Heilborn e Kenneth Camargo, em cuja companhia pude ter os
momentos mais instigantes de aprendizado. A Jane e Fabíola que estiveram mais próximas ao
longo dos dois anos, agradeço pela atenção e cuidado.
Agradeço a oportunidade de contar com a especial presença das professoras Adriana Vianna,
Esther Arantes e Maria Luiza Heilborn na banca de defesa da dissertação. São pessoas que
respeito e admiro e contar com suas contribuições foi uma honra para mim.
Tive a rara oportunidade de ter uma turma grande no mestrado. Éramos um grupo bastante
heterogêneo, mas que se apoiou muito, especialmente no primeiro ano. Quero agradecer aos
colegas da turma pelo apoio nos mais diferentes momentos. Agradeço especialmente a
Marcos e Gustavo pela gostosa parceria e troca que construímos em nosso grupo de
orientação. São amigos que conquistei e que espero manter na vida. E a Ana Melo, que
chegou depois no grupo e o enriqueceu.
Nesse período, conjuguei o mestrado com o trabalho em algumas instituições a cujas equipes
devo muito. Agradeço a toda a equipe da Fondation Terre des hommes pelo profundo respeito
ao longo dos anos de trabalho e estímulo quando decidi me afastar da instituição para me
dedicar mais ao mestrado. Aos parceiros da Rede Rio Criança agradeço pelo respeito
construído no encontro entre diferentes. Às amigas de Criola, agradeço a parceria no curto
período de trabalho conjunto e por sempre lembrarem de mim quando o assunto é
“adolescentes”. E um agradecimento especial à equipe do CLAM, que tão bem me acolheu
nesse último ano.
Quero agradecer aos meus entrevistados, que generosamente me “encaixaram” em suas
agendas difíceis e “se abriram” para mim em longas entrevistas. A voz de cada um é o que há
de mais importante nesse trabalho.
A presença de algumas pessoas foi muito importante nesse período de mudanças e de
transição que vivi nesses dois anos. Agradeço às queridas Ana Lucia, Ana Claudia, Luciane,
Daniele, Júlia, Ilma e Kátia cujo amor aquece a minha vida, pelo apoio de cada uma, a seu
jeito.
A meu pai, Wagner, apesar da distância, agradeço por trazer dele a formação humanista, pelo
apoio em diferentes momentos e por saber que sempre estará torcendo por mim.
Aos meus queridos irmãos, Mana, Junior, Wainer e Vivian pelo imenso amor que nos une,
agradeço a torcida e o apoio sempre que me lanço em coisas novas na vida. Aos meus
sobrinhos por me iluminarem, especialmente ao Ray, por seu amor e orgulho pela “tia
mestranda”.
A Lucas, que chegou em nossa família, pela torcida e por trazer alegria a nossa casa.
A minha mãe, Marisa, agradeço o apoio a todas as decisões que tomei na vida, pelo estímulo e
orações na reta final desse trabalho, e por saber que sempre poderei contar com ela.
A Gal, agradeço pelo estímulo cotidiano e por tudo que pude aprender com ela. Contar com
sua parceria na vida fez toda a diferença. Sou grata pela oportunidade de aprendermos juntas
que a vida só é possível reinventada.
A Mainah, por sua existência dar sentido a minha vida e pela força do amor que nos une.
Agradeço pelo apoio à mãe novamente estudante, e por me dar a oportunidade de
experimentar nos acertos e erros cotidianos minhas crenças em relação à forma de lidar com
adolescentes.
A política é um esforço tenaz e energético para atravessar grossas vigas de madeira.
Tal esforço exige, a um tempo, paixão e senso de proporções.
É perfeitamente exato dizer – e toda a experiência histórica o confirma –
que não se teria jamais atingido o possível se não se houvesse tentado o impossível.
Max Weber (A Política como Vocação)
RESUMO
Essa dissertação tem como objetivo identificar as percepções e representações de
Conselheiros de Direitos da Criança e do Adolescente sobre a possibilidade de afirmação da
sexualidade como um direito dos adolescentes, explorando como diferentes perspectivas em
relação à sexualidade adolescente se articulam no discurso e atuação de atores do campo de
garantia de direitos de crianças e adolescentes. Foram realizadas sete entrevistas qualitativas
envolvendo conselheiros de direitos do Município e do Estado do Rio de Janeiro e do
Conselho Nacional, tanto representantes governamentais quanto não-governamentais. O
trabalho discute a emergência no cenário político dos direitos humanos de novos direitos e de
novos sujeitos de direitos. A construção do ideário dos direitos sexuais, e do paradigma das
crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, trazido pela mudança no marco legal
brasileiro, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), servem de
base para uma debate acerca da possibilidade dos adolescentes serem titulares dos direitos
sexuais, a partir das percepções dos conselheiros entrevistados. O trabalho se propõe a
contribuir para uma reflexão mais geral sobre o quanto a sexualidade adolescente coloca em
xeque tanto o ideário dos adolescentes sujeitos de direitos como o processo de
universalização dos chamados direitos sexuais.
Palavras-chave: sexualidade; adolescência; direitos sexuais; conselhos de direitos.
ABSTRACT
This dissertation aims to identify the perceptions and representations of Child and Adolescent
Rights Counselors regarding the possibility of sexuality affirmation as an adolescents’ right,
exploring the way by which different perspectives towards adolescent sexuality articulate
themselves in the discourse and acting of the actors involved in the assurance field of children
and adolescents. Seven qualitative interviews with Rights Counselors from the Municipality
and the State of Rio de Janeiro, as well as the National Council, were made, which included
both governmental and non-governmental representatives. The work discusses the emergence
of new rights and new subjects of rights in the Human Rights political scenario. The
construction of the sexual rights ideology and the paradigm of children and adolescents as
subjects of rights, brought by the shift in the Brazilian legal landmark with the promulgation
of the Child and Adolescent Statute (ECA) serve as a basis for a debate concerning the
possibility of adolescents being holders of sexual rights, according to the perceptions of the
interviewed counselors. The work intends to contribute to a more general reflection about
how much adolescent sexuality calls into question both the ideology of adolescents as
subjects of rights and the universalism process of the so-called sexual rights.
Keywords: sexuality; adolescence; sexual rights; Councils of Rights.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
CEDCA – Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente
CMDCA – Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente
Fórum DCA – Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
LGBT – Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais
ONG – Organização não-governamental
MSE – Medidas socioeducativas
SINASE – Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
SUMÁRIO
Introdução ............................................................................................................................. 12
O contato com os entrevistados e suas trajetórias ............................................................. 18
CAPÍTULO 1 - CRIANÇAS E ADOLESCENTES: DA “SITUAÇÃO IRREGULAR” A
“SUJEITOS DE DIREITOS” .............................................................................................. 34
1. 1. Adolescência: uma aproximação conceitual ............................................................... 35
1.2. A trajetória dos direitos humanos na afirmação de “novos direitos” e “novos
sujeitos de direitos” ............................................................................................................... 37
1.2.1. De que “direitos humanos” estou falando? ................................................................... 41
1.3. De “menor” a “sujeito de direitos” ............................................................................... 44
1.3.1. O Haiti é aqui, mas a Moldávia não ............................................................................. 44
1.3.2. Contexto internacional dos direitos da criança e do adolescente .................................. 47
1.3.3. Breve histórico do direito e das políticas voltadas às crianças e adolescentes no Brasil ..
...................................................................................................................................................50
1.3.4. O contexto do movimento pelos direitos de crianças e adolescentes ........................... 53
1.4. A implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente 18 anos após sua
promulgação .......................................................................................................................... 57
CAPÍTULO 2 - A CONSTRUÇÃO DE UM NOVO ATOR POLÍTICO: OS
CONSELHOS DE CONTROLE SOCIAL ......................................................................... 66
2.1. O processo de democratização do país e a movimentação constituinte .................... 67
2.2. A Constituição de 1988 e o controle social ................................................................... 70
2.3. Os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente .............................................. 72
2.4. A experiência dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente – avanços e
tensões do campo de garantia de direitos de crianças e adolescentes .............................. 77
CAPÍTULO 3 - SEXUALIDADE ADOLESCENTE E DIREITOS SEXUAIS: A
PERCEPÇÃO DOS CONSELHEIROS DE DIREITOS................................................... 95
3.1. A construção do ideário dos direitos sexuais ............................................................... 96
3.1.1. O encontro da jovem pesquisadora com a jovem travesti ............................................. 96
3.1.2. A sexualidade no campo dos direitos humanos ............................................................ 98
3.1.3. Da saúde aos direitos: a construção dos conceitos ...................................................... 100
3.1.4. Direitos sexuais: trajetória e impasses ........................................................................ 104
3.2. A sexualidade adolescente: conquistas e impasses .................................................... 108
3.2.1. A sexualidade adolescente na perspectiva dos direitos humanos ............................... 108
3.2.2. A sexualidade adolescente na visão dos Conselheiros de Direitos ............................. 111
3.2.2.1. Como o tema da sexualidade é tratado nas instituições que têm projetos voltados a
crianças e adolescentes .......................................................................................................... 117
3.2.2.2. Como o tema da sexualidade adolescente é tratado nos Conselhos de Direitos da
Criança e do Adolescente ...................................................................................................... 138
Considerações finais ............................................................................................................ 149
Bibliografia citada .............................................................................................................. 155
Apêndice – Roteiro de entrevista ......................................................................................... 164
Introdução
Benditas coisas que eu não sei
Lugares onde não fui
Os gostos que não provei
Meus verdes ainda não maduros...
Benditas coisas que não sejam benditas
(Mart’nália & Zélia Duncan)
Optei por começar a apresentação da dissertação a partir da minha história, das
preocupações que me trouxeram ao mestrado, e das experiências vividas na trajetória de
realização da pesquisa. Acredito que, assim, ficarão mais claras minhas motivações e
escolhas.
Sou de uma geração que não tinha o mestrado como caminho quase “natural” após a
graduação, como vemos atualmente. Terminei o curso de psicologia em 1990, e seguindo
contra uma corrente em minha profissão - que migrava mais para o trabalho clínico ou para
empresas, busquei por escolha político-ideológica, uma atuação em trabalhos sociais. Mais
especificamente, desde a graduação me inseri em organizações não-governamentais que
atuavam com crianças e adolescentes. Vinculei-me a partir de 1988 a entidades que
trabalhavam com meninos e meninas de rua, como os designávamos à época. Fazendo uma
mirada mais histórica, fiz parte de uma geração de universitários que buscava conciliar sua
atuação profissional com o “sonho” de contribuir com mudanças na sociedade, e alguns deles
se dedicaram ao trabalho com crianças e adolescentes em uma perspectiva educativa
emancipatória e de construção da autonomia destes sujeitos. Faço parte de uma primeira
geração de pedagogos, psicólogos, cientistas sociais e assistentes sociais que, no país pós-
ditadura militar e pós-Constituição de 1988, identificavam-se como “educadores sociais” e se
tornaram não apenas profissionais, mas, sobretudo, ativistas pela garantia dos direitos de
crianças e adolescentes.
Acompanhei como profissional e ativista os debates para a elaboração do Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA), a efervescência dos movimentos sociais organizados na
efetivação em lei do novo paradigma da proteção integral de crianças e adolescentes, na
perspectiva de compreendê-los como sujeitos de direitos. Nesse campo construí uma carreira,
que começou com um trabalho direto junto às crianças e adolescentes, passando pela
coordenação de projetos, e mais tarde pela formação de outros educadores sociais e por
assessorias a projetos de ONGs. Nesses vinte anos de atuação em organizações não-
governamentais no Rio de Janeiro, pude acompanhar experiências das mais diversas e
trabalhar com projetos sociais que atuavam com diferentes públicos infantis e adolescentes
(“em situação de rua”, “moradores de comunidades”, “em conflito com a lei”) e que tinham
diferentes focos (reintegração familiar, cumprimento de medidas socioeducativas, acesso a
atividades culturais, complementação escolar, saúde sexual e reprodutiva etc).
Em determinado momento de minha carreira, pelos idos de 2000, pude atuar durante
um curto período de tempo em um projeto de oficinas educativas com adolescentes numa
ONG que buscava em suas iniciativas articular a intervenção técnica a um esforço
investigativo, e lá trabalhei questões ligadas ao exercício da sexualidade. Naquele momento,
despertei para a temática, que ficou, contudo, limitada àquela experiência, que - acho hoje -
ficou germinando dentro de mim. Quando me vi mais madura profissionalmente e desejando
me dedicar com exclusividade a uma temática, decidi fazer isso qualificando-me e
pesquisando o tema. Daí a decisão de só em 2006 concorrer ao mestrado no IMS/UERJ, onde,
sabia, havia um grupo de professores que se dedicava a refletir sobre possíveis conexões entre
sexualidade e direitos humanos. Este seria a meu ver o espaço ideal para conjugar minha
atuação profissional, ligada aos direitos humanos, e o tema no qual desejava focar minha
carreira.
A entrada no mestrado promoveu em mim enormes mudanças. Estava naquele
momento de minha vida (início de 2007) atuando em uma organização internacional que
apoiava o desenvolvimento de projetos por ONGs locais. Tinha chegado, na área em que
atuava, a um lugar profissional seguro e confortável. Tentei no primeiro semestre, a partir de
uma negociação com a instituição, conciliar as aulas e o trabalho de quarenta horas semanais.
Além das dificuldades concretas relacionadas à gestão do tempo, surgiram dificuldades
subjetivas, pois fui alçada a um novo lugar: a profissional experiente virou uma simples
mestranda, aprendiz de pesquisadora. Novamente uma “aprendiz de feiticeira”, logo eu que já
era respeitada como uma “bruxa experiente” no campo em que atuava. Tive que lidar com as
dificuldades de incorporar esse novo papel e uma certa perda de status que ele implicava.
Foi se tornando cada vez mais difícil conciliar a paixão por aquele novo mundo que se
abria para mim, o desejo de me dedicar ao estudo do tema, e o conforto da experiência
técnica. Ao final do primeiro semestre, decidi sair do emprego para poder me dedicar mais ao
mestrado e me lancei completamente ao novo, inclusive a uma certa instabilidade profissional
e financeira. Foi uma manobra de risco, mas que se mostrou fundamental para que eu pudesse
construir algum estranhamento àquele campo, pudesse tomar alguma distância que permitisse
forjar em mim uma pesquisadora. Condição inclusive posta pela banca de qualificação para
que eu pudesse desenvolver bem o que me propunha. Lembro claramente da forma enfática
com que as professoras Adriana Vianna e Jane Russo me alertavam da necessidade de
“desentranhar” do discurso e do lugar de “nativa” para que conduzisse a bom termo a
dissertação.
Cheguei ao mestrado com uma proposta vaga de pesquisar questões situadas na
interseção entre adolescência, sexualidade e as ações das ONGs. O que me mobilizava em
relação ao tema se devia ao fato de que, ao longo de minha trajetória como profissional e
ativista, identifiquei uma dificuldade, presente na maioria dos projetos e organizações com
que tive contato, de elaboração/efetivação de propostas concretas de vinculação dos direitos
sexuais e reprodutivos à “garantia de direitos” (tão propalada por estes movimentos) dos
adolescentes. O que pude observar foi que a sexualidade não era tematizada pela maioria das
organizações e espaços de formulação de políticas para esse público. A sexualidade não está
na agenda dos projetos educacionais e assistenciais voltados a crianças e adolescentes.
Quando ela aparece, é numa perspectiva negativa, vinculada de forma direta e freqüentemente
acrítica a supostos “problemas”, como a gravidez (dita “indesejada”), às doenças sexualmente
transmissíveis/Aids e à violência (especialmente ao abuso sexual intrafamiliar e à exploração
sexual). A maioria das experiências educacionais no campo da sexualidade voltadas a
adolescentes baseia-se fundamentalmente no repasse de informações e mantém uma
perspectiva controlista dos comportamentos sexuais e reprodutivos.
A minha experiência mostra que a reflexão acerca da sexualidade, em suas múltiplas
facetas e como uma arena de exercício de direitos, não está presente no conjunto de espaços
de intervenção junto aos adolescentes e na esfera pública onde se encontram os diferentes
atores sociais que atuam na formulação, gestão, execução e controle das políticas sociais
voltadas a eles. A realidade descrita me fazia acreditar que essa área de intervenção não
conseguia “descolar” a sexualidade de um pano de fundo de valores intensamente negativos.
Em outras palavras, a sexualidade é abordada quase sempre na perspectiva do risco e não na
do direito, parecendo manifestar um esforço de controle moral sobre os adolescentes.
Acredito que a idéia de exercício da sexualidade como direito baseia-se em princípios que
podem moldar uma nova perspectiva de atuação junto a esse público, focada no prazer, na
autonomia, na possibilidade de liberdade, de exercício de direitos e, por isso também, em um
novo patamar de cidadania destas pessoas.
Pretendia em um primeiro momento pesquisar como os direitos sexuais e reprodutivos
estavam presentes (ou não) em ações de organizações não-governamentais que atuam junto a
crianças e adolescentes. Ao longo do caminho, burilando essa intenção inicial, decidi focar
mais nos rumos da política que norteia a área do que no atendimento prestado nos projetos das
organizações. Optei por focar minha pesquisa na percepção dos conselheiros de direitos da
criança e do adolescente sobre a possibilidade de afirmação da sexualidade como um direito
dos adolescentes, a fim de analisar suas concepções sobre o exercício da sexualidade e a
autonomia dos adolescentes. Escolhi os conselheiros como interlocutores dada sua
importância na formulação, execução e controle das políticas públicas destinadas a essa
categoria social. O fiz também por saber que encontraria como conselheiros, em geral,
pessoas que tinham uma trajetória extensa nesse campo e poderiam me fornecer leituras mais
aprofundadas sobre ele. Assim, me lancei ao trabalho de campo, buscando entrevistar
conselheiros municipais, estaduais e nacionais.
Tinha como proposta, dadas as limitações de uma pesquisa de mestrado, entrevistar
dois conselheiros de cada esfera (presidente e vice-presidente), o que resultaria em seis
entrevistas. Frente às dificuldades que enfrentei para conseguir entrevistar a vice-presidente
do CONANDA
1
, representante do governo federal no Conselho, acabei realizando sete
entrevistas, envolvendo três conselheiros municipais e estaduais e apenas um conselheiro
nacional. As entrevistas aconteceram em diferentes contextos: na sede de algumas
instituições; na sede do conselho municipal, no gabinete profissional de um conselheiro
(experiência que relatarei adiante) e, no aeroporto de São Paulo, onde fui expressamente para
encontrar a representante do CONANDA, em uma “brecha” de sua agenda.
A aventura do trabalho de campo foi mais surpreendente do que esperava. Como
antiga atuante da área, tive a ilusão que seria muito fácil acessar esses atores, muitos dos quais
eu conhecia pessoalmente. Apesar da gentileza e disponibilidade de todos, em um primeiro
momento tive que “perseguir” alguns de meus interlocutores, até conseguir efetivar as
entrevistas. A necessidade de “perseguição” talvez se explique porque eu os convidava a falar
de um tema que ou aparece muito negativado, sempre ligado a inúmeros “problemas”, ou
simplesmente como alguns disseram, porque não aparece. De todo modo, ela revelava um
sentimento de desconforto ou incômodo, que permeou quase todo o trabalho de campo.

1
Consegui estabelecer contato com a vice-presidente do CONANDA, mas apesar de minha disponibilidade para
ir a seu encontro em Brasília e adequar-me a sua agenda, em função de seus inúmeros compromissos, não foi
possível marcarmos a entrevista dentro das possibilidades temporais de minha pesquisa.
Como jovem pesquisadora, caí em alguns momentos, na armadilha de ser enredada
pelos argumentos de meus interlocutores. Especialmente após algumas entrevistas, quase fui
“contaminada” pelo sentimento de que realmente estava preocupada com uma questão menor.
A situação das crianças e adolescentes no país seria, na visão de alguns dos entrevistados, tão
“calamitosa” (SIC), que pensar a afirmação da sexualidade como um direito, em um contexto
em que quase todos os outros direitos “mais fundamentais” (SIC) não são garantidos, pode
parecer uma certa futilidade, um desperdício de recursos intelectuais, inclusive. Passada a
crise com o tema, pude elaborar a hipótese de que a importância do exercício da sexualidade
como algo positivo só é menor porque estamos no campo que atua com menores, e não com
sujeitos de direitos plenamente constituídos. Esse é um dos caminhos que esse trabalho
percorrerá: a discussão sobre até que ponto o campo de garantia de direitos de crianças e
adolescentes conseguiu romper com uma postura tutelar, incorporando o paradigma proposto
pelo marco legal que é lidar com os adolescentes como sujeitos de direitos, que têm
autonomia para fazer suas escolhas, inclusive sexuais.
Sabia que tinha me proposto a investigar um campo minado. Se tratar de sexualidade,
principalmente sob a perspectiva dos direitos humanos, já não é tarefa fácil, articular esse
tema delicado à adolescência mostrou-se ainda mais desafiante. Essa combinação de
sexualidade, direitos e adolescentes, na qual convidei meus interlocutores a mergulhar, trouxe
à tona aspectos dos mais diversos que espero abordar ao longo do texto, sem, obviamente a
pretensão, de aprofundar todo o conjunto de temáticas que essa investigação abarca. Vejo hoje
esse trabalho como um primeiro esforço de discutir como o campo de garantia de direitos de
crianças e adolescentes, a partir do olhar de atores fundamentais, os conselheiros de direitos,
lida com o exercício da sexualidade adolescente, sem ter como foco a violência ou a doença.
O diferencial desse trabalho, em relação ao que hegemonicamente tem sido produzido no
campo, é justamente discutir a possibilidade de construção de uma agenda positiva em relação
aos direitos sexuais dos adolescentes.
O trabalho tem o seguinte percurso: o primeiro capítulo se propõe a refletir sobre o
processo recente vivido pela sociedade brasileira de mudança no marco legal referente às
crianças e adolescentes, como reflexo da trajetória dos direitos humanos no contexto
internacional. A partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), pelo
menos no plano legal, as crianças e adolescentes deixam de ser vistos e tratados como vítimas
ou algozes, como propunha a doutrina da situação irregular, e passam a ser considerados
sujeitos de direitos próprios e adequados a sua condição peculiar de desenvolvimento.
Proponho a reflexão acerca dos desafios e limites do caminho percorrido de “menor” a
“sujeito de direitos” nesses dezoito anos do ECA. No segundo capítulo apresento um dos
princípios fundamentais do ECA, que tem um de seus pilares no controle social, a partir da
participação da “comunidade” na elaboração e formulação de políticas públicas. Apresento,
assim, esse novo ente político, foco de minha pesquisa, que são os Conselhos de Direitos da
Criança e do Adolescente, formados paritariamente por membros do governo e da sociedade
civil, e que têm, como dito anteriormente, o papel de formulação e controle das políticas
públicas destinadas a crianças e adolescentes nas esferas municipal, estadual e nacional. A
partir da história dos Conselhos e da sua atuação, apresentarei aspectos da realidade vivida
por meus interlocutores nos Conselhos e um certo retrato que fazem do campo de garantia dos
direitos de crianças e adolescentes. O que auxilia a construir um pano de fundo para melhor
entender a forma como a sexualidade adolescente é tematizada no campo, seja nas ações das
instituições, seja nos debates e deliberações dos Conselhos, o que compõe o terceiro e último
capítulo, onde apresentarei de modo mais amplo as idéias formuladas por meus entrevistados.
Nele, me debruço sobre o processo de construção da noção de direitos sexuais dentro do
ideário dos direitos humanos. Ao percorrer esse caminho poderemos ver que o conceito de
direitos sexuais estrutura-se como um dispositivo político no campo dos direitos humanos. E,
à primeira vista, a plena implementação de tal dispositivo tem na sexualidade adolescente um
dos limites mais delicados. De maneira mais geral, o trabalho pretende contribuir para a
discussão do processo de construção das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos no
contexto em que a sexualidade começa a ser considerada como campo de exercício de
direitos, ou seja, no momento em que emergem os direitos sexuais. Trata-se de uma reflexão
sobre o quanto a sexualidade adolescente coloca em xeque tanto o ideário dos adolescentes
sujeitos de direitos como o processo de universalização dos chamados direitos sexuais.
O contato com os entrevistados e suas trajetórias
Realizei sete entrevistas e pude estabelecer contato com atores que considero
representativos das diferentes tendências do campo de garantia de direitos de crianças e
adolescentes no Brasil, como abordarei mais adiante.
Minha primeira entrevistada foi Vitória
2
, a quem conhecia há muito tempo, pois na
década de 1980, havíamos sido militantes do mesmo partido, mas em estados diferentes, e já
havíamos desenvolvido trabalhos juntas. Decidi convidá-la a ser minha primeira entrevistada
exatamente por ter com ela uma relação antiga, o que facilitava o contato e me deixava mais à
vontade para, de certa forma, “testar” o alcance do roteiro e da minha performance como
pesquisadora deste tema. Vitória, entre 35 e 40 anos, foi “criança e adolescente assistida por
uma organização não-governamental” de sua cidade de origem. Iniciou sua trajetória de
trabalho com crianças e adolescentes em 1986, na instituição onde antes era atendida e que
segundo ela
“... tinha todo um trabalho mais na área social e tal, da assistência em comunidades pobres do
Nordeste. Eu fazia parte daquele contexto. Terminei aos dezessete anos o segundo grau, fiz
uma seleção, porque antes não tinha profissional da área da comunidade. Foi a primeira vez
que eles abriram para ter.”
Sempre trabalhou com adolescentes e jovens em atividades ligadas à formação, “mais
com oficinas, mais na parte cultural”. De um início de carreira como educadora, passou a
fazer a coordenação pedagógica e de projetos. Em 1993, vem para o Rio de Janeiro onde,
como afirma, “reiniciou”. Perguntada quanto à natureza das organizações pelas quais passou,
ela respondeu de forma enfática:
“Sempre não-governamentais. Desde a minha primeira experiência profissional foi em
organização não-governamental. Já prestei serviços de consultoria, mas nunca tive motivação
para fazer concurso público para estar vinculada.”

2
Todos os nomes aqui utilizados são fictícios, de modo a preservar o anonimato dos entrevistados e de outras
pessoas citadas por eles. Os informantes assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido, onde eu me
comprometia em não identificá-los. Contudo, enfrento um impasse ético, pois as pessoas que entrevistei ocupam
cargos públicos e são pessoas bastante conhecidas na área da infância e juventude, onde atuam. Esse fato
possibilita que possam ser reconhecidos por pessoas dessa área que por ventura leiam esse trabalho. Até o
momento, não soube como lidar bem com esse dilema, pois meus interlocutores se posicionaram abertamente
sobre diversos temas delicados em seu campo de atuação. Assim, como pesquisadora e também participante do
campo, fico duplamente preocupada: como proteger a identidade de meus entrevistados sem comprometer a
caracterização necessária para um bom entendimento de seu discurso e lugar no campo?
No Rio de Janeiro, começou a trabalhar como educadora em uma instituição que atua
com adolescentes e jovens em situação de rua, onde está até hoje, e ao longo dos anos
assumiu diferentes tarefas e cargos. Trabalhou com questões de gênero e sexualidade, e com
um projeto de moradia alternativa para jovens. Atualmente, Vitória é secretária executiva da
instituição. Nesse processo, terminou no Rio de Janeiro a graduação em pedagogia e fez
mestrado em educação. Questionada em relação à sua motivação para participar de conselhos
de políticas, Vitória afirmou:
“Em todas as organizações em que eu estive, a gente sempre teve essa perspectiva de que o
nosso trabalho, ele não [se] encerra na ação direta apenas. Só tem um sentido, na perspectiva
de contemplar essas ações com políticas públicas. Então sempre tive uma atuação. Em [sua
cidade de origem],fui uma das primeiras conselheiras não-governamentais do Conselho
Estadual. Coordenei a comissão de garantia de direitos também lá. Aqui, quando eu vim para o
[instituição em que atua], [a instituição em que atua] já fazia parte de cargos do Conselho. A
gente tinha dado um tempo, por conta exatamente de ser uma função não remunerada. Essa
questão da atuação do Conselho, você tem uma dificuldade para manter essa atividade com
qualidade. E na última eleição, a instituição foi indicada e foi eleita e a gente está no Conselho
há um ano”.
No contato com Vitória, ficou bastante evidente que, revestida de um forte ativismo,
sua atuação é muito mais que profissional, e que seu posicionamento no campo a vincula a um
grupo que pode ser entendido como “mais ligado aos direitos humanos”.
Com Célia, minha segunda entrevistada, tive um longo encontro na sede da instituição
em que atua. Ficamos em uma sala aberta e fomos interrompidas diversas vezes, por motivos
diversos. Em função de nossa atuação, Célia e eu também nos conhecemos de longa data e
temos uma relação bastante amistosa. A entrevista foi em larga medida conduzida por ela, ao
imprimir o ritmo do encontro e demonstrar uma grande disponibilidade em contar sua história
pessoal, ou seja, como chegou ao trabalho em ONGs.
Célia, entre 45 e 50 anos, é uma figura de referência no campo dos direitos da criança
e do adolescente no Rio de Janeiro e nacionalmente. Ela hoje é uma das coordenadoras de
uma grande instituição que, como no caso da ONG em que Vitória trabalha, poderia ser
classificada entre as mais ligadas aos “direitos humanos”. Em sua atuação institucional, Célia
coordena há muitos anos um centro de formação e está envolvida com o tema do
enfrentamento à exploração sexual de crianças e adolescentes. Isso fez com que a discussão
com Célia tenha sido fortemente marcada por uma reflexão (proposta por mim) acerca do
papel que o trabalho com o tema da violência sexual tem para o campo e suas repercussões, o
que debaterei mais adiante.
A entrevistada já foi conselheira no CONANDA, e já esteve tanto no CMDCA quanto
no CEDCA. Uma passagem importante de sua experiência é sua participação no Fórum
Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Fórum DCA). O Fórum é um espaço
político que, segundo Célia,
“foi criado em 1988, quase que na mesma época da Frente Parlamentar Pelos Direitos da
Criança, da criação do ECA. O Fórum Nacional foi extremamente importante, ele tem uma
origem no Movimento Nacional de Meninos de Rua, que foi um grande articulador político da
década de 1980 e na década de 1990.”
Dessa experiência no Fórum, Célia trouxe interessantes informações sobre as unidades
de internação de adolescentes
3
, que ela teve a oportunidade de visitar em todas as capitais do
país. Célia é uma figura histórica do campo. Começou sua trajetória como professora de uma
escola particular “alternativa”. Após fazer um concurso para ser professora do município,
acabou se envolvendo na construção de um projeto de educação juvenil. Nessa passagem,
Célia relatou o início do seu envolvimento com o campo, quando chegou à escola municipal
onde deveria atuar como professora, marcada por certas concepções sociais, segundo as quais
os adolescentes pobres devem ser considerados como necessariamente perigosos, os ditos
“menores”:
“Fui lá conhecer a escola. O primeiro contato foi assim... assustador. Eu fiquei muito
assustada com os meninos, né? Com os rapazes... foi... eu falei: ‘gente, os caras tudo tem cara
de bandido mesmo, de folha de jornal, sabe? Notícia de jornal policial...’. Então eu fiquei
muito assustada com o ambiente da escola, mas eu achei que era legal, e era no sambódromo.
Mesmo sem ter assinado ainda, mesmo sem ter tomado posse, topei assumir e começar a ir na
escola (...) E aí fui lá, comecei a trabalhar com essa meninada (...) Aí eu fui mordida, aí o
tempo passou, aquela esquisitice, aquele estranhamento inicial foi sendo superado aos poucos.
Vivi experiências fantásticas com aqueles meninos, me ensinaram muita coisa... sei lá,
arrumaram a minha cabeça. Foi 1984, 1985.”
E prossegue relatando sua intensa conversão de professora à educadora, um processo
que a transforma também em ativista e desestabiliza seus comportamentos sociais,
repercutindo inclusive em suas relações pessoais e objetivos, produzindo rupturas geradoras
de novos significados:
“Nessa época da escola, a gente não tinha só... não trabalhava numa perspectiva só da sala de
aula, do conteúdo, mas de uma articulação política, da importância de participar de um
movimento mais político e tal. E aí eu comecei a representar a escola no movimento nacional
de meninos de rua (...) E aí assim, e aí eu fui aprendendo. Aprendendo, desarrumei a minha
cabeça. Dei uma pirada eu acho! Hoje, já mais madura eu vejo assim, nossa! É aquela coisa

3
Unidades existentes em todo o país onde adolescentes autores de ato infracional cumprem medida
socioeducativa de internação.
que a gente passa, a gente vai... se identifica com os meninos. Aí começa a se vestir de uma
forma, a se comportar, né? Quer dizer, isso num primeiro momento dá meio que uma
misturada mesmo, então é “quem sou eu, o que que eu tô fazendo?”. Fora a resistência, né? Eu
era casada com um cara, pai dos meus filhos, que dizia ‘ah, é absurdo trabalhar com esses
meninos, e não ganha dinheiro... e é ideologia... vai lá no posto de gasolina, oferece ideologia
lá pros cara encherem o tanque’. Então tudo foi muito... mexeu mesmo com a minha vida, deu
uma mexida assim, enlouquecida. E foi lá que eu fiquei (...) Eu acho que foi uma escolha
ideológica mesmo, né? Aí fui, fui feliz [grifos meus].”
Célia se envolveu no movimento em relação às crianças e adolescentes que deflagrou
a mudança de paradigma no marco legal no país. Dos sete entrevistados, cinco participaram
de alguma forma nesse processo que o país viveu no final da década de 1980, que articulava
trabalho educativo com crianças e adolescentes e uma ação política no campo, capitaneado
pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. Sobre sua relação com o contexto
mais amplo da política nacional, ela relata:
“Participei de todo o processo, 1988, movimentos, da Constituição, ECA, e depois fui
convidada para assumir um projeto de atendimento a meninos de rua.”
A terceira entrevistada, Regina, entre 35 e 40 anos, tem uma trajetória e um perfil
bastante diverso do das anteriores. O encontro com ela me impactou por trazer idéias bastante
diferentes das que eu já tinha entrado em contato durante o trabalho de campo. Encontrei
Regina na sede da instituição que ela criou e coordena. Ao começar a entrevista, solicitei que
ela me falasse um pouco de sua trajetória profissional, sua formação, e como ela entrou no
trabalho com crianças e adolescentes. Regina então me apresenta o seu contato com o que
chamo “Brasil–Haiti”
4
, país marcado pelas desigualdades sociais e pouquíssimas
oportunidades para as crianças e adolescentes das classes populares:
“Bom, eu sou por formação bailarina clássica e sou formada em Belas Artes. Trabalhei sempre
como professora de balé clássico, desde os dezesseis anos, uma menina de classe média alta.
E, na questão de Belas Artes, eu trabalhei muito tempo com paisagismo, fazendo figurinos e
cenários para peças de teatro. Quando eu vim morar em [bairro da cidade], há uns dez anos
atrás, aí eu levando o meu filho para escola - essa história já foi contada no prêmio do ECA
5
e,
agora no Criança Esperança
6
, essa história foi contada outra vez, eu vivo contando essa
história. Tem algumas reportagens também sobre essa história. E aí, uma menina de cinco
anos me parou na rua e me perguntou, me fez duas perguntas: Uma, se eu era professora de

4
Trata-se aqui de uma licença poética que faz referência à conhecida música de Caetano Veloso & Gilberto Gil,
“Haiti”, cujo estribilho “o Haiti é aqui”, faz referência à densidade das questões sociais na realidade brasileira.
5
Trata-se de um prêmio oferecido a pessoas e profissionais que de alguma forma colaboram para a
implementação do ECA por iniciativa da Fundação Telefônica em parceria com a Agência de Notícias dos
Direitos da Infância (ANDI), ONG que atua na área de comunicação.
6
Projeto desenvolvido em parceria pela Rede Globo de Televisão e Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF), que através de uma grande campanha nos meios de comunicação estimula que a população doe
dinheiro ao projeto, que apóia ações sociais voltadas a crianças a adolescentes pobres.
balé. E dois: quando é que eu ia dar aula para ela. Aí eu procurei saber de onde era a menina.
A menina era do [nome da comunidade]. E aí pela primeira vez na vida, eu entrei numa
comunidade. Nunca tinha pensado em fazer trabalho social algum. Não sabia nem da
existência do Estatuto da Criança e do Adolescente há dez anos atrás. Ouvi falar que existia,
mas nunca tomei conhecimento. Mas a menina me deu uma sacudida. Aí eu fui ao [nome da
comunidade], procurei a Associação de Moradores e me ofereci como voluntária para dar aula
de balé dentro do morro. Comecei com doze crianças, só que aí, ao final de dois meses, já
eram quarenta crianças. Não tinha mais como ficar dentro da Associação, porque eu também
sempre fui acostumada a dar aula de balé em sala que nem essa aí [a entrevistada aponta a
atual sala da instituição, com piso de madeira e espelho em toda a extensão]. E lá era um
subsolo na Associação de Moradores... tinha uma vala que passava no meio da sala e a gente
tampava com umas tábuas. Era completamente precário. Fora que a violência... é muito difícil
conseguir desenvolver trabalhos dentro do morro, porque as crianças faltam muito a aula.
Toda hora é incursão policial, então as aulas ficavam muito prejudicadas.”
A entrevista transcorreu com Regina falando da sua incursão, a partir dessa
experiência voluntária, no trabalho social com crianças e adolescentes, que redundou na
criação da ONG que dirige e, posteriormente, na sua entrada no Conselho, onde está em sua
segunda gestão.
O principal aspecto da entrevista foi a forte presença do catolicismo na atuação de
Regina. Este aspecto só apareceu claramente ao final da entrevista, depois do gravador ter
sido desligado. Conversávamos ainda no hall de entrada da instituição, onde a entrevista se
desenrolou, quando percebi a imagem de uma santa católica. Perguntei a ela do que se tratava
e descobri que era uma evocação de Santa Teresa d’Ávila. Regina afirmou então que as
melhores voluntárias da instituição que coordena (que vive fundamentalmente a partir do
trabalho voluntário de profissionais), são as freiras que vivem em clausura junto ao santuário
de Santa Teresa d’Ávila, na Itália. Segundo ela, as orações delas é que fazem o trabalho mais
importante da instituição. Nos primórdios da instituição, Regina, ela mesma devota de Santa
Teresa, fez uma promessa à Santa, de que se conseguisse uma sede adequada, iria visitar o
santuário dela na Itália. Cumprindo sua promessa e chegando lá, conseguiu estabelecer
contato com as freiras que vivem enclausuradas, por acaso, no único dia do ano em que estas
são autorizadas à comunicação com pessoas externas. Certa de que a possibilidade de almoçar
e conversar com elas foi em si mesma, um desígnio divino, a entrevistada pôde contar às
freiras o que fazia no Rio de Janeiro com crianças de favelas. Desde então, as irmãs tornaram-
se “voluntárias da instituição” aqui no Rio, através de suas orações.
A compreensão deste aspecto fortemente religioso foi reveladora ao me permitir
compreender o desconforto que permeou toda a entrevista com Regina. Mantive durante a
entrevista a impressão de uma certa contradição entre um discurso pautado na afirmação dos
direitos legais das crianças e adolescentes, e um outro, presente no relato das práticas
institucionais – especialmente as que envolvem a gestão da sexualidade – característico de
setores mais conservadores da sociedade.
Essa característica da entrevista denotou que a entrevistada representa uma outra
posição do campo, que denomino aqui de “assistencial ou filantrópico”. Apesar de Regina
coordenar uma ONG, forma mais moderna e laica de organização social, suas posturas face a
determinadas situações discutidas, parecem ter forte inspiração nas concepções católicas.
Tanto que seu discurso, principalmente no que tange à sexualidade foi bastante parecido com
o de outro entrevistado que eu entrevistei posteriormente, e que declarou sua forte vinculação
com a igreja católica. Toda a articulação política dela, e sua conseqüente entrada no Conselho,
deram-se por sua aproximação com uma federação de instituições beneficentes e assistenciais,
que também passaram a se envolver com uma ação “mais política” do campo.
O quarto entrevistado, Paulo, é também um histórico do campo. Decidi entrevistá-lo
por ele ser ligado a uma instituição com forte vinculação católica. Conheço Paulo de longa
data, mas não tivemos até então uma proximidade maior, apesar de nutrirmos respeito mútuo.
A entrevista foi realizada na sede da instituição onde atua. Fui muito bem recebida e
convidada a conhecer toda a instituição, onde era apresentada aos outros funcionários como
“uma parceira nossa que está fazendo um trabalho de pesquisa”. Tivemos um longo encontro,
a portas trancadas “para não sermos interrompidos” e, após a entrevista, fui convidada a
almoçar e ainda pudemos conversar um pouco mais, só que sobre outros assuntos.
Paulo, 51 anos (declarados espontaneamente), conta que chegou ao Rio de Janeiro em
1977. Ele “já vinha de uma atuação e militância na área da igreja”, pois em sua cidade esteve
ligado pessoalmente a um bispo, “historicamente conhecido pela sua atuação e paixão na
defesa dos direitos humanos”. No Rio de Janeiro, Paulo foi atuar junto à ala da igreja católica
dita progressista na Baixada Fluminense, com uma militância nas pastorais sociais. Paulo
mostra durante todo o tempo da entrevista, a força da formação católica em seu trabalho.
Segundo suas palavras,
“porque na Igreja, como qualquer instituição humana, tem avanços e retrocessos. Naquela
época, a conjuntura nos ajudava a uma Igreja que fazia uma leitura bíblico-teológica, uma
releitura bíblica de um Deus que é fiel à promessa que faz e que é presente na vida do povo.
Principalmente o povo sofrido, excluído, sem vez e sem voz. Essa era uma atmosfera muito
forte naquela época: a parte da Teologia da Libertação. E a gente respirava e vivia isso com
muita intensidade. Chegando em [município da Baixada Fluminense onde mora até hoje], eu
percebi que era possível dar continuidade a essa maneira de ser e celebrar a vida e a fé. Fiz
Filosofia e tinha uma militância a partir das chamadas Pastorais Sociais, que envolvia a
questão das favelas, o conflito do posseiro, as lutas. Inicialmente na Baixada, com um
movimento popular onde fui participar da criação do chamado Conselho Comunitário de
Saúde, em 1985, que é visto até hoje como um fórum popular de saúde.”
Paulo começou a ter contato com a área da infância e adolescência em 1987, quando
diz que a instituição a qual se vincularia em seguida, estava envolvida em um movimento
chamado “A vida pede passagem”, que era pró-ECA, como muitos outros setores da igreja
“progressista”, que estavam envolvidos na mobilização para o processo constituinte. Relata
assim, ter acompanhado toda a movimentação para aprovação do Estatuto e sua futura
implementação.
Em 1991, Paulo começou a atuar diretamente no campo. De educador social a
atualmente coordenador executivo, coordenando o que chama “linha emergencial”, que em
suas palavras “é tudo o que tem a ver com menino de rua” e também o “advocacy”, o que dá a
Paulo a responsabilidade de acompanhar os Conselhos de Direitos.
A trajetória dele é longa nos Conselhos, onde teve assento em diferentes gestões, o que
lhe deu uma compreensão bem ampla desse ente, especialmente nas esferas municipal e
estadual. Boa parte da entrevista foi tomada pela reflexão do entrevistado acerca da realidade
dos conselhos, o que inicialmente julguei muito rico para a minha pesquisa. Contudo, depois
de refletir um pouco, pareceu-me que tanto eu, quanto ele, precisamos dar algumas “voltas”
antes de “falar de sexo”. Depois das voltas, falamos até bastante sobre o tema da sexualidade
e, em alguns momentos, o encontro ficou mais emocionado, pois ele demonstrou o quanto
suas concepções e ações calavam fundo em sua alma católica. Tanto que ao falarmos sobre
aborto, Paulo chegou às lágrimas ao dizer:
“considerando toda essa dimensão que detona na realidade um outro e um terceiro, a Igreja,
você pode dizer assim: “é uma contradição. Vocês dizem que não façam, não usem e quando
engravida vocês não deixam que façam o aborto”. Fazemos tudo para que essa vida não surja
nessa doideira que é. Mas uma vez que ela foi concebida, nós dizemos:“agora vai para além de
nós”, e aí nós nos curvamos diante da vida. A sociedade nunca vai nos entender. O governo
nunca vai nos entender. As ONGs nunca vão nos entender. Porque é matéria de fé. Diante da
vida, olha, paralisa tudo.”
A tensão sobre como os setores católicos vêem algumas questões no campo e seu
próprio posicionamento, foi a marca da entrevista com Paulo. Ao discorrer sobre os
conselhos, ele fez um sofisticado diagnóstico de como os diferentes setores governamentais e
não-governamentais se comportam nos conselhos e em relação a estes. Após uma avaliação
dura em relação ao lugar que o conselho vem assumindo, levando a “uma desmotivação de
quem compõe aquele fórum e ao mesmo tempo, um descrédito por parte da sociedade”, Paulo
fez uma crítica aos poderes constituídos. Questionei então se a sociedade civil consegue
ocupar o seu lugar, apontar as questões e atuar efetivamente na perspectiva de elaboração de
políticas. Ao que Paulo responde, começando por um preâmbulo:
“eu acho que aqui eu não posso faltar com a verdade, considerando da importância que é um
trabalho acadêmico. Acho que tem um papel de contribuir para a reflexão de outros que vêm
depois, e para sistematização daquilo que a gente possa esperar como melhora para o amanhã.
Eu acho, não posso falar da sociedade civil no Brasil em geral, mas posso falar do Rio de
Janeiro...”
Seu preâmbulo, como resposta à minha pergunta, que ele chamou de “boa
provocação”, me fez perceber o possível lugar que passei a ocupar frente a esses antigos
colegas de trabalho e ativismo. Fui alçada à posição de quem faz um trabalho acadêmico e,
em função disso, mesmo sendo até então alguém do campo, poderia ouvir as duras críticas de
Paulo a “nossos parceiros da sociedade civil”.
Minha quinta entrevistada, Ana, entre 35 e 40 anos, atua em uma Secretaria de
governo, da qual ela é funcionária há quatorze anos. Após se tornar fonoaudióloga em 1990 e
trabalhar em consultórios particulares e empresas privadas, em 1994 Ana ingressou no
governo, onde se tornou gerente de um programa que atende crianças e adolescentes na faixa
de zero a quatorze anos, com ou sem deficiência. Sob sua coordenação estão duas grandes
unidades de atendimento. Ana está em sua segunda gestão no Conselho. Na primeira gestão,
em 2004, ela relatou ter ingressado por indicação da gestora de sua Secretaria. Depois, ela se
afastou, pois sua Secretaria deixou de ter assento no Conselho, retornando em 2007, por nova
indicação da secretária. Questionada sobre qual era seu sentimento em relação a chegar ao
Conselho por indicação de sua chefia, visto que nunca tinha se envolvido em ação parecida,
ela me responde que
“A bancada governamental funciona dessa maneira, né? (...) Na realidade, num primeiro
momento, eu fiquei bastante assustada porque eu não tinha nenhum conhecimento desse
espaço de Conselhos. Então fiquei bastante assustada. Mas, ao mesmo tempo, me deparei com
uma situação aqui que era de um trabalho na comissão de garantia de direitos com que eu logo
me afinei, logo eu me apaixonei. Então esse trabalho para mim, deixou de ter tantas
interrogações. Porque aí eu fui estudar, eu fui mesmo correr atrás do prejuízo. (...) Era uma
temática que eu não dominava. Mas aí foi muito bom também, porque eu fui me deparar com
um outro universo, que é a situação de rua, que é a violência doméstica. Fui aprendendo com
os colegas que estão hoje, que lidam diretamente com a temática.”
O encontro com Ana, que por sua sugestão aconteceu na sede do Conselho, foi durante
todo o tempo um pouco formal. Apesar de ser extremamente gentil, fiquei com a sensação que
havia uma incerteza da parte dela acerca do que poderia falar ou não, visto ser ela uma
“pessoa do governo” e saber que eu tinha uma trajetória na sociedade civil. Ou ainda, por ela
não poder se permitir sair do lugar de conselheira, não podendo assim, apontar as fragilidades
do Conselho. Fiquei com a sensação que ela foi à entrevista preparada para me apresentar o
discurso oficial. E assim fez. Busquei de várias formas “furar o bloqueio” que ela me colocou,
e alguns pontos apareceram nas entrelinhas.
A entrevista com Ana foi a mais curta, pois tive grande dificuldade para aprofundar a
conversa. Assim, como não conseguia penetrar em suas concepções, em alguns pontos,
especialmente os ligados à sexualidade, usei uma estratégia, criada na hora: a de pedir que não
a gestora, a representante do governo falasse, mas que “a cidadã, a mãe, respondesse”. E
assim, conseguimos aprofundar alguns temas. Pois como Célia anteriormente havia me dito
“quem está à frente acaba pautando o conselho, não tem jeito!”. Ou seja, aqueles que estão no
Conselho, especialmente os que estão em cargos dirigentes, acabam influenciando, senão
determinando, o que vai ser priorizado, debatido no conselho. Eles facilitam ou dificultam a
entrada de um tema. Concordo com Célia e acredito que essas pessoas pautam, não apenas por
determinação legal ou convicção técnica, mas segundo suas concepções e prioridades
pessoais.
Assim, procurei conhecer as concepções de Ana em relação à sexualidade adolescente,
pois dessa maneira, estaria me informando sobre como lidaria com o tema no Conselho.
Contudo, Ana me apresentou uma outra forma de ver a questão, quando ao final da entrevista,
ao ser questionada sobre como o Conselho ou o próprio Executivo poderiam atuar, na
perspectiva do exercício da sexualidade ser um direito dos adolescentes, ela responde que
“eu vejo assim: o caminho seria inclusive quando você, por exemplo, terminar, quando você
defender a sua tese, você trazer isso para o Conselho. Porque, com certeza,você vai trazer
dados importantíssimos sobre a temática. Então, eu sempre vejo que o caminho é que a
academia, que os pesquisadores estejam sempre trazendo para esse Conselho esse tipo de
estudo, esse tipo de levantamento, de diagnóstico. Então penso assim: que você finalizando
esse trabalho é uma porta, uma possibilidade de trazer para uma assembléia, para que então a
gente tome publicamente notícia dessa sua pesquisa e que a gente, de fato, tome providências.
Então, acho que é sempre interessante que um estudo como esse se torne público num espaço
como o espaço de Conselho (...) o Conselho precisa ser provocado. Essa sua contribuição vai
ser muito bem-vinda. Sugiro que você traga essa discussão para esse espaço de assembléia. Eu
acho que é o caminho.”
Saí do encontro com Ana pensando em como ao final da jornada de elaboração desse
trabalho, eu poderia, como ela sugeriu, provocar os conselhos na perspectiva de garantir os
direitos sexuais dos adolescentes. Mas fiquei com a dúvida se eles querem realmente ser
provocados. O encontro me trouxe, sobretudo, a inquietação de como transpor a resistência à
entrevista por agentes governamentais. Até porque vivi outras experiências nesse sentido.
Tentei entrevistar uma outra representante governamental que me respondeu friamente que eu
deveria submeter o projeto a uma comissão de sua secretaria que, após análise, autorizaria ou
não a entrevista. Isso, sem sequer me indicar como acessar a referida comissão. Ainda tentei
exaustivamente entrevistar uma representante do governo federal no CONANDA, e o
encontro tornou-se impossível.
Meu sexto entrevistado, Dario, entre 55 e 60 anos, é membro de alta esfera do
Judiciário. Ele é uma pessoa bastante conhecida, pois foi sempre atuante em sua trajetória
profissional. Ademais, é inegável que o Judiciário ainda mantém em nossa sociedade uma
certa aura de superioridade em relação a outras esferas do Estado. Assim, eu não estava indo
entrevistar apenas um conselheiro de direitos da criança e do adolescente, eu convidei um
importante membro do Judiciário, que também é conselheiro, para uma entrevista sobre
sexualidade. Receei que ele não aceitasse me conceder a entrevista, mas Dario desde meu
primeiro contato declarou-se disponível. Contudo, sua agenda como membro do Judiciário,
aliado a um período de férias, fez com que eu tivesse que esperar um longo tempo para
conseguir entrevistá-lo, o que só aumentava minha ansiedade para esse encontro.
A entrevista me foi concedida em seu gabinete. Chegando lá, aguardei-o por alguns
minutos, e ele me recebeu, de forma gentil, sentado à sua mesa em uma cadeira de respaldo
alto, onde os membros do Judiciário sentam e nos fazem sentir pequenos. Tive naquele
momento a sensação de que não conseguiria estabelecer o diálogo que pretendia se não
conseguisse quebrar um pouco a distância que nos separava. Assim, agradeci sua
disponibilidade em me receber e disse: “como vou entrevistar o conselheiro de direitos, me
darei a liberdade de chamá-lo por você”. Ao que Dario assentiu positivamente. Sorri, e
iniciamos um diálogo, onde Dario no meio da entrevista me interrompeu e solicitou uma
cópia da transcrição, pois declarou estar fazendo “um desabafo que nunca fez”.
O “desabafo” a que Dario se refere foi uma análise da situação dos Conselhos de
Direitos, onde tem assento há muitas gestões. Foi uma análise dos empecilhos ao avanço da
perspectiva do conselho se tornar efetivamente um formulador de políticas e ainda do
delicado papel dele, como membro do Judiciário que se dedicou à área da infância e
juventude e se propôs a compor um Conselho de Direitos. Aproveitei o encontro com Dario
para refletir com ele, já que tinha a oportunidade de estar com um ativo membro do
Judiciário, sobre a construção em nossa sociedade do novo paradigma trazido pelo ECA, da
proteção integral a crianças e adolescentes e da real incorporação na sociedade e por
diferentes segmentos sociais da concepção de crianças e adolescentes como sujeitos de
direitos, pois Dario distinguia o “velho direito” e o “novo direito”. Essa foi, de certa forma, a
marca da entrevista. Depois de já termos percorrido um longo caminho, conseguimos chegar à
discussão sobre sexualidade.
Minha sétima e última entrevistada, Lúcia, entre 40 e 45 anos, é membro do
CONANDA, e entrevistá-la foi a maior aventura do trabalho de campo. Durante um longo
período tentei combinar com ela, via troca de e-mails, uma ida minha a Brasília (onde fica a
sede do CONANDA) para entrevistá-la, ou ainda uma ida a sua cidade, onde é vinculada a
uma universidade e atuante em um projeto de uma ONG (que funciona na própria
universidade) de atendimento a crianças e adolescentes vítimas de violência. Contudo, a
agenda dela era muito difícil, ainda mais à distância e, dados seus inúmeros afazeres, ela tinha
dificuldade inclusive de me responder. Eu já estava bastante desanimada. Em uma mensagem
definitiva, falei a ela que entrevistá-la era muito importante para o meu trabalho e que eu iria
a qualquer lugar onde ela pudesse me encontrar por uma hora. Dois dias depois, recebi uma
mensagem de que no dia seguinte de manhã ela estaria em São Paulo (SP) para um evento.
Chegaria mais cedo ao aeroporto e se eu quisesse poderíamos conversar lá. Não tive dúvidas e
segui à noite de ônibus para São Paulo. Chegando lá, ainda meio sonolenta da viagem
noturna, a entrevistei durante duas horas em um banco no aeroporto de Congonhas.
Lúcia, em função de sua atuação profissional, está muito envolvida com o tema do
enfrentamento à violência sexual, e essa é uma certa marca da entrevista. Ao meu esforço
constante para “tirar” a discussão da sexualidade adolescente do enfoque da violência,
ampliando a discussão, Lúcia reagiu positivamente e deu grandes contribuições, até porque
ela já trazia em seu discurso, embutido na idéia de enfrentamento à violência, o ideário da
sexualidade como um direito. Diferentemente de outros setores do campo, as instituições e
grupos que atuam na área de enfrentamento à violência sexual já trabalham a partir da idéia de
direitos sexuais. Ou seja, da necessidade da articulação da sexualidade das crianças e
adolescentes aos direitos humanos. No encontro com Célia, que também atua nessa área, isso
já tinha ficado claro para mim.
A trajetória de Lúcia está ligada à sua atuação como psicóloga ligada à afirmação dos
direitos humanos. Ela já tinha vivido a experiência de ser conselheira estadual em função de
seu trabalho junto a crianças e adolescentes. Lúcia está envolvida com o campo desde a
década de 1980 e acompanhou todo o processo de elaboração do ECA e de mudança das
propostas de trabalho juntos às crianças e adolescentes em função da mudança do marco legal
e dos desafios que foram postos para a sociedade brasileira na redemocratização.
Contudo, para mim, o mais forte do encontro com Lúcia foi sentir a capacidade de
análise que estar em um espaço que é nacional, o CONANDA, possibilita. A abrangência
nacional da atuação no CONANDA favorece a aquisição de um olhar bastante panorâmico
sobre o campo, suas correlações de força, bem como seus avanços e entraves na
implementação dos direitos das crianças e adolescentes por todo o país. Em determinado
momento da entrevista, Lúcia permitiu mais claramente que eu percebesse isso ao falar que
“pelo CONANDA, a gente tem... acaba ficando num lugar privilegiado de um grande
observatório. Desse lugar você começa a observar tudo: a forma de organização, de proteção à
criança e adolescente no país pela via do Estatuto e do que ele foi possibilitando... para a gente
é uma experiência única. Ter conselhos organizados de participação comunitária a nível
nacional, estadual, municipal. E ter os Conselhos Tutelares nessa grande teia capilar que é o
que dá conta de alcançar no Brasil a criança e o adolescente. Então, a gente tem um sistema de
plena capilaridade humana. São pessoas engajadas na luta. Que fazem coisas certas, fazem
coisas erradas. Mas é gente que topou um projeto de sociedade que está complicado de
implementar.”
O encontro com os entrevistados me trouxe muito mais material do que eu esperava ao
iniciar o trabalho de campo. Eu pretendia apreender suas percepções acerca da forma como as
instituições do campo e os Conselhos lidam com o exercício da sexualidade adolescente. De
início, como não centrei as questões sobre suas próprias opiniões sobre o tema, meus
interlocutores puderam em certa medida ficar no confortável lugar de quem fala dos outros.
Como dito anteriormente, os encontros tiveram algo de desconfortável, não só pelo
tema, mas também (e só me dei conta disso depois, na análise dos dados), porque fui disposta
a pôr em cheque o discurso do direito, que sei estar completamente incorporado ao discurso
dos atores desse campo. Não fui deliberadamente à procura de contradições na fala dos meus
interlocutores, mas busquei ao longo das entrevistas conquistar sua parceria para refletir para
além do discurso institucional, mais formal. Também não pretendi apenas obter informações
para depois analisá-las. Tentei envolvê-los nas minhas questões de pesquisa e convidá-los a
refletir comigo. Tanto que apresentei claramente a todos, em algum momento da entrevista,
minhas questões de pesquisa, minha inquietação quanto a pouca presença de uma agenda mais
positiva em relação ao exercício da sexualidade adolescente.
Obtive assim, um instigante panorama sobre os limites e possibilidades de trato do
tema no campo. Além disso, os encontros me trouxeram também um extenso material sobre a
realidade do campo de garantia de direitos de crianças e adolescentes. Pude refletir com eles
sobre o processo de incorporação do novo paradigma da criança e do adolescente como
sujeitos de direitos e também obtive deles reflexões bastante interessantes sobre o exercício de
construção dessa nova experiência, que são os Conselhos de Direitos. Este tema valeria uma
outra dissertação e, sobre ele, trabalharei apenas alguns dos aspectos levantados em relação ao
papel dos conselhos, sem a pretensão de esgotar sua análise.
Dos sete entrevistados, três me conheciam bastante bem, dois já tinham me visto
formalmente em eventos da área e dois não me conheciam. A impressão que tenho é que no
processo da pesquisa, meu lugar de membro do campo foi sendo ressignificado, tanto por eles
como por mim. O lugar que assumi de pesquisadora, me possibilitou, acredito, obter de meus
entrevistados relatos bastante críticos às organizações que compõem o campo, o que imagino
não ouviria se estivesse por exemplo desenvolvendo um trabalho ligado a alguma das
organizações do campo. Por isto, ao final de algumas entrevistas, fiquei com a sensação que
deveria sair o mais rapidamente possível, como que ao término de uma “confissão”, onde
segredos são revelados. Contudo, também tive a sensação durante algumas das entrevistas,
particularmente dos que me conheciam, de que havia uma opinião formada acerca do que eu
pensava e do que esperava que eles respondessem.
Durante o processo de pesquisa vivi duas experiências que considero tão importantes
quanto as próprias entrevistas. Tive a oportunidade de apresentar minhas reflexões iniciais em
dois eventos que envolviam profissionais que atuam em organizações que trabalham com
crianças e adolescentes. No primeiro fui convidada a falar em um evento para representantes
de Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de todo o país. Fui bastante
tímida apresentar minhas primeiras reflexões para um conjunto de profissionais ligados à área
do direito. Fiz uma reflexão crítica acerca das dificuldades do campo em incorporar a
dimensão da sexualidade como um direito
7
. E, como o encontro se propunha a discutir o
enfrentamento à homofobia, provoquei a todos quanto ao fato de que “se o campo não assume
nem o exercício da sexualidade adolescente heterossexual, o quanto ainda há a caminhar para
um efetivo respeito à diversidade sexual”. Estava bastante apreensiva quanto à reação da
platéia às minhas afirmações. Inclusive, utilizei como “escudo” o fato de ser eu mesma um
membro do campo. Logo, eu criticava a “todos nós”. Para minha surpresa, recebi retornos
extremamente positivos. Várias pessoas se manifestaram, concordando com meus argumentos
e falando da importância para o campo das reflexões que eu estava desenvolvendo. Que

7
O título da apresentação foi “Possibilidades de afirmação da sexualidade como um direito dos adolescentes:
desafios ao campo de garantia de direitos de crianças e adolescentes” e ocorreu durante a “Oficina de
Sensibilização e Capacitação dos Centros de Defesa para o Enfrentamento à Homofobia contra Crianças e
Adolescentes”, promovida pela Organização de Direitos Humanos Projeto Legal e Associação Nacional dos
Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (ANCED), nos dias 25 a 27 de junho de 2008.
realmente precisávamos romper com o discurso do problema e da vitimização, quando o
assunto é sexualidade adolescente.
Em outra oportunidade, fui apresentar um trabalho
8
em um seminário internacional
sobre a situação da infância e adolescência na América Latina. Minha primeira surpresa foi
que, entre vários grupos de trabalho, a comissão organizadora dispôs a minha apresentação na
seção sobre “violência”. Fui colocada como última a apresentar no grupo. Ouvi paciente e
apreensiva a apresentação de seis trabalhos que discutiam violência sexual contra crianças e
adolescentes. Iniciei minha fala questionando minha presença naquela mesa, já que ao
contrário de todos os colegas, eu pretendia discutir a possibilidade de uma agenda positiva em
relação ao exercício da sexualidade adolescente. Buscava articular a sexualidade adolescente
a prazer, direitos, autonomia. Não à violência.
Fiz minha apresentação e ao final agradeci a paciência de todos ao me ouvirem, já que
tinham escolhido uma seção para discutir violência sexual. Fui ainda mais surpreendida do
que no primeiro evento, pois recebi diversas declarações de que o campo precisa discutir o
tema de outras formas, como eu vinha apontando. Ouvi várias dúvidas de profissionais que
atuam junto a adolescentes de como lidar de forma positiva com o tema. Recebi várias
solicitações de bibliografia e depois alguns e-mails solicitando ajuda para desenvolver uma
ação ligada a sexualidade sob outra perspectiva. Para mim, essas experiências reforçaram
ainda mais a necessidade de encontrar, nesse caminho de pesquisa com os Conselheiros de
Direitos, brechas que contribuam para a afirmação da sexualidade adolescente como um
direito.

8
O título da apresentação oral foi Possibilidades de afirmação da sexualidade como um direito dos
adolescentes: desafios ao campo dos direitos humanos” e ocorreu durante o II Seminário Internacional “Direitos
humanos, violência e pobreza: a situação de crianças e adolescentes na América Latina hoje”, realizado por
iniciativa do Programa de Estudos de América Latina e Caribe (PROEALC), ligado ao Centro de Ciências
Sociais da UERJ nos dias 5 a 7 de novembro de 2008.
CAPÍTULO 1
Crianças e adolescentes: da “situação irregular” a “sujeitos de direitos”
1.1. Adolescência: uma aproximação conceitual
Esse trabalho se propõe a refletir sobre a adolescência, e assim, julgo importante iniciá-
lo desenvolvendo uma breve reflexão sobre diferentes concepções que envolvem essa
categoria social. A concepção de que existe uma fase definida do desenvolvimento humano
demarcada por aspectos biofisiológicos, psicológicos e sociais, correspondente ao que
atualmente se designa adolescência, trata-se de uma construção histórica e social que atinge
sua maturidade durante o século XX. Assim, o conceito de adolescência é um constructo
historicamente datado e, na civilização ocidental moderna, corresponde a um período de
passagem da infância à idade adulta, que foi sendo expandido com o desenvolvimento da
urbanização e com o aprofundamento das relações econômicas de mercado (Pirotta & Pirotta,
2005:75).
Como Ariès (1978) observou, na Idade Média não existia uma concepção clara de
infância, muito menos uma fase correspondente à adolescência. A idéia de infância era
referenciada à dependência da criança à mãe e, quando elas podiam viver sem os cuidados
maternos diretos, eram incorporadas ao mundo adulto. Assim, os/as que hoje denominamos
adolescentes eram considerados adultos. O conceito de adolescência tornou-se mais nítido no
período entre o final do século XIX e meados do século XX.
Buscando contemplar diversos aspectos envolvidos no processo que se convencionou
chamar adolescência, a organização Mundial da Saúde (OMS) definiu, em 1974, na Reunião
sobre Gravidez e Aborto na Adolescência, um conceito amplamente reconhecido na área da
saúde. Segundo essa definição, a adolescência é caracterizada por ser uma fase do
desenvolvimento humano em que: a) O indivíduo passa do ponto do aparecimento inicial dos
caracteres sexuais secundários para a maturidade sexual; b) Os processos psicológicos, o
indivíduo e as formas de identificação evoluem da fase infantil para a fase adulta; c) Ocorre
uma transição do estado de dependência econômica total a outro de relativa independência.
Apesar de procurar abranger desde aspectos biofisiológicos, psicológicos e sociais, o conceito
proposto pela OMS centra sua atenção na maturação sexual e remete ao pressuposto da
existência de um consenso sobre o que é ser adulto e o que é ser criança, já que define
adolescência como a passagem entre esses dois “estados”. Nessa perspectiva, a adolescência
pode ser considerada uma etapa de preparação para a vida adulta.
Bock (2004) afirma que inúmeros estudos buscaram a caracterização dessa fase e, em
quase toda a produção sobre o assunto, especialmente na psicologia, a adolescência tem sido
tomada como uma fase “natural” do desenvolvimento. Ela ressalta que a sociedade apropriou-
se desses conhecimentos, tornando a adolescência algo familiar e esperado, um período
marcado por transformações corporais, rebeldia, insatisfação e onipotência, e por tudo aquilo
que a psicologia “tão cuidadosamente, registrou e denominou adolescência”. Segundo a
autora,
“torna-se necessário revisitar e rever o conceito, porque, em suas concepções, a psicologia
naturalizou a adolescência. Considerou-a uma fase natural do desenvolvimento, universalizou-
a e ocultou, com esse processo, todo o processo social constitutivo da adolescência” (2004:33)
Opondo-se ao conceito de adolescência, a sociologia contemporânea tem operado com
o conceito de juventude, como representativo do caráter que as novas gerações trazem à
sociedade, e assumem o entendimento desse termo como um processo social de passagem ou
entrada na vida adulta. Contudo, como explicitado por Adorno et al, o termo adolescência, a
partir de sua institucionalidade passou a ser também utilizado como uma plataforma de
direitos, no sentido de reconhecimento da própria condição “especial” através da qual a
sociedade instituiu o jovem como grupo específico da população. Assim, os dois termos,
“adolescência” e “juventude” habitam trabalhos ligados a diferentes campos do conhecimento
para se referir a esta parcela da população, que também vem sendo definida na esfera nacional
e internacional por intervalos etários nem sempre coincidentes (2005:18).
Observamos a dificuldade em definir com exatidão limites etários para a adolescência.
Como propõe Heilborn, os marcos etários que delimitam as fronteiras entre as fases do ciclo
de vida ou categorias de idade são móveis e variam ao sabor de novas concepções sociais
acerca do humano e das relações intergeracionais (2006:39). Contudo, diferentes instituições
sociais como a saúde, educação, instituições jurídicas e políticas têm investido na definição de
marcos etários. Como exemplo desta variedade de definições, a maior parte da literatura no
campo da saúde tem considerado a adolescência, o período entre os dez e dezenove anos.
No âmbito jurídico, não há um consenso internacional sobre a definição de
adolescência e seus limites etários. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança
definiu de forma genérica, criança, como o indivíduo até os dezoito anos, não distinguindo
infância e adolescência. A abrangência internacional da Convenção determinou a escolha por
não definir rigidamente a divisão entre infância e adolescência para que não houvesse uma
imposição de limites a partir de um instrumento jurídico internacional, evitando-se assim
desrespeitar a multiplicidade de possibilidades nas diferentes culturas. No marco legal
brasileiro, com o qual esse trabalho dialoga, o ECA define “crianças”, como os indivíduos até
doze anos incompletos, como “adolescentes” os que têm entre doze e dezoito anos, e a partir
dos dezoito anos, os sujeitos são denominados “jovens”.
A adolescência nas sociedades ocidentais modernas é considerada um período de
duração variável, em que o indivíduo se prepara para assumir responsabilidades da vida adulta
e buscar autonomia. Ela é, grosso modo, enfocada como um período de transição. Apesar de
não se incorporar a idéia de um modelo-padrão, há um certo entendimento comum de que as
adolescências se referem a uma fase de maturação, não apenas das funções e capacidades
biológicas, mas também das socioculturais
9
. Utilizo no trabalho os termos criança e
adolescente, tendo como referência os limites etários estabelecidos na legislação brasileira
(Estatuto da Criança e do Adolescente). Optei por esse marco de definição porque dialogarei
com o campo de garantia de direitos de crianças e adolescentes, que se organiza a partir da
definição legal.
1.2. A trajetória dos direitos humanos na afirmação de “novos direitos” e “novos
sujeitos de direitos”
Como surgiu e se desenvolveu o que chamamos hoje de direitos humanos? Refazer esse
caminho seria muito instigante, contudo extremamente exaustivo, e possibilitaria perder o
foco. Assim, utilizo nesse trabalho as reflexões desenvolvidas por Bobbio (1992), Dornelles
(2006) e Vianna (2004) para apresentar alguns fragmentos do significado dado a essas
palavras, e apresentar a leitura feita por esses autores da trajetória dos direitos humanos nos
últimos séculos, quando o termo entrou definitivamente para o cenário sociopolítico das
relações internacionais. Assim o faço para subsidiar o entendimento acerca do meu foco de
interesse, o campo de garantia dos direitos das crianças e adolescentes
10
. O discurso dos

9
Ao longo deste trabalho, me aproximo da perspectiva de que a adolescência não configura um fenômeno
homogêneo, o que leva a considerar diferentes adolescências, pautadas por processos sociais distintos e
atravessadas por diferentes marcadores sociais de diferença como classe social, gênero e raça.
10
Trabalho com a concepção de campo inspirada pela proposta por Bourdieu. O autor apresenta sintética
definição no texto Questões de sociologia. Ali, Bourdieu define campos como (...) “espaços estruturados de
posições (ou de postos) cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas
independentemente das características de seus ocupantes” (...) Há leis gerais dos campos: campos tão diferentes
como o campo da política, o campo da filosofia, o campo da religião, possuem leis de funcionamento
invariantes.” (...). Para que um campo funcione, afirma Bourdieu, "é preciso que haja objetos de disputas e
pessoas prontas para disputar o jogo, dotadas de habitus que impliquem no conhecimento e reconhecimento das
leis imanentes do jogo, dos objetos de disputas, etc.". (1983:89). Para uma leitura das idéias de Bourdieu ver,
entre outros, Loyola (2002). Por campo de garantia dos direitos da criança e do adolescente entendo ser o
conjunto das arenas e dos atores que atuam em nossa sociedade, no sentido de desenvolver diferentes ações para
ampliar a garantia do conjunto de direitos a que crianças e adolescentes são titulares. Nessa perspectiva,
compõem esse campo, setores do Executivo, Legislativo e Judiciário envolvidos com a temática da infância e
juventude; o conjunto de organizaçõeso-governamentais que desenvolvem ações ligadas a essa categoria
direitos humanos foi fundamental para a afirmação desse campo, pois sua conformação se deu
a partir do impacto de um ideário dos direitos humanos, que se fortalecia internacionalmente,
no que poderíamos denominar um “campo da menoridade” no Brasil. Como abordaremos
adiante, a mudança do paradigma em que se baseava o atendimento à infância pobre no país,
fazendo com que os menores se tornassem crianças e adolescentes sujeitos de direitos, é fruto
da emergência no espaço político dos direitos humanos
11
de “novos sujeitos de direitos”.
O significado dos direitos humanos não é estático, ao contrário, passou por profundas
mudanças ao longo dos dois últimos séculos. Assim, o que passou a caracterizar a evolução
dos direitos humanos durante o século XX – principalmente após a Segunda Guerra Mundial
– foi a sua progressiva incorporação no plano internacional, enquanto o século XIX se
caracterizou por ser o momento do reconhecimento constitucional, em cada Estado, dos
direitos fundamentais (Dornelles, 2006).
Vianna (2004) apresenta a partir do proposto por Bobbio, que a trajetória dos direitos
humanos relaciona-se ao nascimento de uma concepção individualista de sociedade, que
trabalha com a premissa de que cabe aos indivíduos um conjunto de direitos inalienáveis,
centrados, sobretudo, na sua liberdade individual. Essa concepção supõe a existência de um
conjunto de “direitos naturais” que devem ser defendidos frente ao Estado. Dessa concepção
individualista e burguesa, nasceu a moderna idéia de cidadão e de uma relação contratual
entre os indivíduos, na qual a propriedade, a livre iniciativa econômica e uma certa margem
de liberdade política e de segurança pessoal deveriam ser garantidas pelo poder público. Está
aí a base para o que se denomina a primeira geração dos direitos humanos, os direitos civis e
políticos, que têm como marco, as declarações de direitos norte-americanas e francesa, no
final do século XVIII. Os direitos humanos em sua chamada primeira geração, são a
expressão das lutas da burguesia revolucionária, contra o despotismo dos antigos Estados
absolutistas. Tem como base uma idéia de defesa do indivíduo frente ao Estado, sendo a

social (seja pelo atendimento direto, pela pesquisa ou pelo advocacy); bem como estruturas criadas para efetivar
os direitos de crianças e adolescentes, como os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente, nas esferas
nacional, estadual e municipal, e os Conselhos Tutelares. Nesse trabalho especificamente, lidei com atores
governamentais e não-governamentais que estão nos Conselhos Nacional (CONANDA), do Estado do Rio de
Janeiro (CEDCA) e do Município do Rio de Janeiro (CMDCA).
11
Entendo por espaço político dos direitos humanos, o conjunto de atores, organizações e movimentos que
historicamente se envolvem no esforço de efetivação de direitos, a partir da luta pela garantia de direitos
violados, não respeitados, ou pela construção e promoção de “novos direitos”, como os chamados direitos
sexuais, que abordaremos adiante. É importante salientar, todavia, que o conceito de direitos humanos é variável
de acordo com a concepção político-ideológica que se tenha. A falta de uniformidade conceitual é clara, embora
alguns setores insistam em apresentar uma única e definitiva maneira de definir os direitos humanos (Dornelles,
2006:15).
expressão formal de necessidades individuais que requerem a abstenção do Estado para o seu
pleno exercício (Dornelles, 2006).
Os primeiros setenta anos do século XIX foram marcados pela consolidação do Estado
liberal e pelo desenvolvimento da economia industrial, fazendo surgir uma classe
trabalhadora, que se encontrava submetida às mais duras condições de vida. O fosso existente
entre a igualdade e liberdade para todos os seres humanos proclamada nas declarações de
direitos e a realidade de vida da maioria, fazia emergir críticas cada vez mais contundentes em
relação aos princípios liberais dos direitos humanos. As lutas sociais do século XIX
reivindicavam a presença efetiva do Estado na vida econômica e social para garantir direitos.
Não mais direitos individuais, mas sim de natureza social que garantiriam as condições da
existência humana. Esse processo contribuiu para uma progressiva ampliação do conteúdo
dos direitos humanos que, nas primeiras duas décadas do século XX, deixaram de ser
entendidos apenas como direitos individuais e passaram a incorporar a idéia dos direitos
coletivos, de natureza social. Surge assim, a denominada segunda geração dos direitos
humanos, os direitos sociais, econômicos e culturais, que propugnam a defesa não apenas da
liberdade individual, mas também da proteção social.
A ampliação do conteúdo dos direitos humanos seguiu o caminho indicado pelas
diferentes lutas sociais e pelas transformações socioeconômicas e políticas. Com o final da
Segunda Guerra Mundial, as nações mais importantes do mundo resolveram estabelecer um
foro definitivo para a discussão de interesses comuns, através de uma organização capaz de
promover, exigir e garantir a coexistência pacífica de seus membros através de uma paz
duradoura, daí resultando a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), englobando
progressivamente uma significativa quantidade de Estados membros, até que, atualmente,
conta com uma adesão praticamente universal. Um marco significativo nesse processo é a
promulgação da Declaração Universal dos Direitos do Homem, em 1948. Segundo Bobbio,
“com essa Declaração, um sistema de valores é - pela primeira vez na história - universal,
não em princípio, mas de fato, na medida em que o consenso sobre sua validade e sua
capacidade para reger os destinos da comunidade futura de todos os homens foi
explicitamente declarado. (...) Somente depois da Declaração Universal é que podemos ter
a certeza histórica de que a humanidade - toda a humanidade - partilha alguns valores
comuns; e podemos, finalmente, crer na universalidade dos valores, no único sentido em
que universal significa não algo dado objetivamente, mas algo subjetivamente acolhido
pelo universo dos homens” (1992:28).
Ainda segundo o autor, o caminho contínuo, ainda que várias vezes interrompido, da
concepção individualista de sociedade progride lentamente, indo do reconhecimento dos
direitos do cidadão de cada Estado até o reconhecimento dos direitos do cidadão do mundo,
cujo primeiro anúncio foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem. A Declaração de
1948 constrói um sujeito de direitos e um conjunto de princípios que se pretendem
universalmente válidos, mas que deveriam ser garantidos politicamente através de
mecanismos também universais, pelo próprio sistema ONU
12
. Vianna acrescenta que “a
transformação provocada pela chamada segunda geração de direitos humanos vem do fato de
que certas responsabilidades individuais e/ou coletivas passam a ser representadas como
direitos, recaindo sobre os Estados o peso de sua provisão” (2004:17). Os direitos humanos
passaram a assumir um duplo caráter segundo a autora, passando a contemplar a defesa do
indivíduo frente ao Estado e a defesa do indivíduo pelo Estado. E o momento de marcação
efetiva desse processo no cenário internacional é a elaboração em 1966 de dois pactos que se
propõem complementares, o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos e o Pacto
Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Contudo, apenas em 1993, na
Segunda Conferência Internacional de Direitos Humanos, realizada em Viena, é que a
universalidade, interdependência e a indivisibilidade dos direitos humanos é mais
efetivamente retomada.
A conferência de Viena teve importância em diferentes aspectos, inclusive por ter sido
a primeira Conferência Internacional onde a sexualidade aparece de forma mais explícita,
ponto que abordarei mais adiante. Contudo, um aspecto fundamental ressaltado por Vianna
(2004) diz respeito ao destaque dado em Viena não mais aos direitos de indivíduos, mas de
sujeitos específicos. Processo definido por Bobbio, como de especificação dos direitos
humanos. O texto final da Conferência se refere a sujeitos compreendidos como minoritários,
seja pelo sexo, idade, raça ou religião, orientando definitivamente a tendência dos tratados,
regimentos, leis nacionais e internacionais passarem a se dirigir a grupos de sujeitos cada vez
mais específicos. Como apresenta Bobbio,
“(...) manifestou-se nestes últimos anos uma nova linha de tendência, que se pode chamar de
especificação; ela consiste na passagem gradual, porém cada vez mais acentuada, para uma
ulterior determinação dos sujeitos titulares de direitos. Ocorreu, com relação aos sujeitos, o
que desde o início ocorrera com relação à idéia abstrata de liberdade, que se foi
progressivamente determinando em liberdades singulares e concretas (de consciência, de
opinião, de imprensa, de reunião, de associação), numa progressão ininterrupta que prossegue
até hoje (...) Assim, com relação ao abstrato sujeito ‘homem’, que já encontrara uma primeira
especificação no ‘cidadão’ (no sentido de que podiam ser atribuídos ao cidadão novos direitos
com relação ao homem em geral), fez-se valer a exigência de responder com nova
especificação à seguinte questão: que homem, que cidadão? (...) esta especificação ocorreu

12
É importante destacar que tal processo constitui uma contradição, pois quem realmente pode promovê-los são
os Estados nacionais.
com relação seja ao gênero, seja às várias fases da vida, seja à diferença entre estado normal
e estados excepcionais na existência humana” (1992:62) [grifos meus]
O processo de especificação configura mais claramente novos sujeitos de direitos,
como o autor descreve. Essa universalidade (ou indistinção, ou não-discriminação) na
atribuição e no eventual gozo dos direitos de liberdade não vale para os direitos sociais, e nem
mesmo para os direitos políticos, diante dos quais os indivíduos são iguais só genericamente,
mas não especificamente. Com relação aos direitos políticos e aos direitos sociais, existem
diferenças de indivíduo para indivíduo, ou melhor, de grupos de indivíduos para grupos de
indivíduos, diferenças que são até agora relevantes (Bobbio, 1992:71).
Com o peso político de um pacto internacional, o texto de Viena incorpora uma
tendência, que já tinha aparecido em alguns documentos nacionais como a Constituição
Brasileira de 1988, de assumir que setores não-governamentais possam se envolver na
efetivação dos direitos humanos através da elaboração e implementação de políticas públicas.
Essa tendência explicitada e de certa forma ratificada em Viena se liga diretamente ao foco
desse trabalho, os Conselhos de Direitos de Crianças e Adolescentes, por assumir a
importância dos movimentos sociais e das organizações não-governamentais na afirmação dos
direitos humanos, tanto no plano nacional como internacional, através da implementação de
políticas públicas.
Em relação às crianças e adolescentes, o documento de Viena incorpora aspectos já
apontados na Convenção dos Direitos da Criança, de 1989, documento de referência
internacional na construção dos marcos legais nacionais, o que debateremos adiante. Contudo,
antes de avançarmos nessa discussão, acho importante apresentar, de forma breve, reflexões
que desenvolvi acerca do lugar em que se encontra a ação por efetivação dos direitos humanos
no plano local, contextualizando o objeto de pesquisa no cenário de efetivação dos direitos
humanos de crianças e adolescentes.
2.1. De que “direitos humanos” estou falando?
O processo de universalização dos mecanismos de proteção dos direitos humanos tem
sido marcado não apenas pelo reconhecimento formal desses direitos, mas principalmente
pelas lutas dos povos contra a opressão, contra a exploração econômica e contra a miséria, o
que passou a exigir a efetivação dos direitos enunciados pelos diferentes documentos
internacionais (Dornelles, 2006:43). No Brasil, como no resto da América da Latina, não
existe uma arraigada tradição cultural de valorização dos princípios de direitos humanos. As
lutas de oposição contra os regimes autoritários acabaram despertando o conjunto da
sociedade para o problema das liberdades, garantias e direitos. A colocação na ordem do dia
da questão dos direitos humanos pelos movimentos de oposição ao regime militar demonstrou
a capacidade de confrontação com um tipo de poder político que violentava sistematicamente
os direitos mais elementares da pessoa humana. De certa forma os movimentos de defesa dos
direitos humanos recuperaram uma idéia de direitos individuais, inerentes à pessoa humana.
No entanto, no contexto latino-americano, o respeito aos direitos da pessoa humana,
converteu-se em ação política real contra os autoritarismos, exclusões e injustiças. Assim, os
direitos humanos aparecem nesse contexto como um meio de fazer política, de intervir no
jogo político, na perspectiva de contribuir para a construção de alternativas ao poder
instituído, excludente e a serviço de uma minoria. Resgatava-se assim, o caráter
eminentemente político dos direitos humanos.
Falar de direitos humanos, a partir da ação das entidades de defesa de direitos na
América Latina, aponta desse modo, para um entendimento mais amplo desses direitos. Não
apenas estão em jogo os direitos individuais, mas também, e fundamentalmente, os de caráter
social. Sua prática política mostra que todos esses direitos estão necessariamente interligados
e são interdependentes, na perspectiva apresentada anteriormente. Segundo Dornelles (2006),
supera-se na prática sociopolítica desses grupos a falsa dicotomia proveniente das ortodoxias
liberal e marxista
13
. A definição ampliada de direitos humanos, com a qual estou trabalhando,
passa a perceber a necessária e inevitável complementaridade que existe entre os chamados
direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) e os de segunda geração (direitos
sociais, econômicos e culturais), dentro de um contexto cultural plural como os das
sociedades contemporâneas.
As ações de grupos e associações de defesa dos direitos humanos buscam através de
sua prática social, construir experiências que ampliem os espaços democráticos e de exercício
efetivo da cidadania, na perspectiva proposta por Rios (2007). Segundo o autor, a evolução
dos instrumentos internacionais de reconhecimento e de proteção dos direitos humanos, desde
a Declaração Universal de 1948 até a afirmação de direitos econômicos, sociais e culturais,
passando pela atenção a questões concretas relacionadas, por exemplo, a gênero e geração,

13
Ou seja, a concepção liberal ortodoxa baseia-se apenas nos direitos civis e políticos (direitos individuais), e a
concepção marxista ortodoxa entende serem direitos fundamentais aqueles que se vinculam à ordem econômica,
social e cultural, e que portanto, exigem a presença do Estado como agente promotor e regulamentador desses
direitos (Dornelles, 2006).
permite constatar a ampliação do conceito de “cidadania”, que se associava tradicionalmente
somente ao status jurídico adquirido em virtude da pertinência nacional. Mais e mais, o ser
humano é visto como sujeito de direitos que vão muito além do mero pertencer a um Estado
Nacional (Rios, 2007:15).
Essa ampliação do conceito de cidadania está ligada a um processo social onde
cidadania e democracia são idéias centrais na construção de uma sociedade pautada pelo
respeito aos direitos humanos. Ainda segundo Rios, há uma compreensão cada vez mais
difundida de que demandas por inclusão social, econômica, política e cultural são dimensões
requeridas para a construção de uma sociedade democrática. Contudo, para o mesmo autor,
dentre os aspectos implicados nestas dimensões, a sexualidade se afirma como um dos mais
polêmicos e de difícil implementação.
Ao voltarmos nosso olhar para a realidade de contínua violação de direitos dos povos
latino-americanos nas últimas décadas, ficam claras as dificuldades das democracias
representativas, recém constituídas, de dar respostas adequadas ao quadro de profunda
desigualdade social que possibilita o permanente e histórico desrespeito aos direitos humanos.
Assim, falar de direitos humanos no Brasil é falar necessariamente de políticas de
desenvolvimento, de uma ação que conecta direitos humanos a desenvolvimento, aqui
entendido, como propõe Correa (2008), como esforço contínuo para construir sociedades e
um sistema global baseados na democracia, justiça social e na expansão das capacidades
humanas.
Apesar de o marco legal se referenciar a todas as crianças e adolescentes do país, o
campo de garantia de direitos de crianças a adolescentes baseia-se em ações político-
educativas voltadas às crianças e adolescentes das classes populares, que historicamente
tiveram seus direitos menos garantidos. O percurso desse trabalho pretende explorar como os
Conselheiros, formuladores de políticas para crianças e adolescentes, lidam com a
possibilidade da sexualidade ser considerada um direito. Como dito anteriormente, a trajetória
dos direitos humanos vem forjando novos direitos, bem como novos sujeitos de direitos.
Antes de discutir a entrada do ideário dos direitos sexuais no campo de garantia de direitos de
crianças a adolescentes, acredito ser importante refletir até que ponto os adolescentes já são
considerados efetivamente sujeitos de direitos, que poderiam, assim, ser titulares de direitos
sexuais. A reflexão que se segue pretende percorrer o processo que levou os “menores” a se
tornarem “crianças e adolescentes sujeitos de direitos” na sociedade brasileira, e apresentar as
percepções dos entrevistados do quanto o novo paradigma foi incorporado pelo campo.
1.3. De “menor” a “sujeito de direitos”
1.3.1. O Haiti é aqui, mas a Moldávia não
E não importa se os olhos do mundo inteiro
Possam estar por um momento voltados para o largo
Onde os escravos eram castigados
E hoje um batuque, um batuque
Com a pureza de meninos uniformizados
de escola secundária em dia de parada
E a grandeza épica de um povo em formação
Nos atrai, nos deslumbra e estimula
Não importa nada:
Nem o traço do sobrado , nem a lente do fantástico,
Nem o disco de Paul Simon, ninguém, ninguém é cidadão
Pense no Haiti, reze pelo Haiti
O Haiti é aqui
(Caetano Veloso e Gilberto Gil)
Ao final da entrevista com Regina, ela me contou entusiasmada sobre o que está
acontecendo na Moldávia. Transcrevo o “diálogo” travado entre nós por julgá-lo bastante
interessante para as reflexões propostas nessa seção.
“No Canal Futura está passando uma série de documentários da ONU sobre situações
extremas em várias partes do mundo (...) Agora um caso que me chamou a atenção, foi a
Moldávia. A Moldávia fazia parte dos países da União Soviética. Com a separação dos países
[pós Perestroika], a Moldávia virou um país, só que passou a ter um problema muito sério: a
Moldávia não produz absolutamente nada. Então deixou de ter dinheiro. Qual é a saída? A
imigração. Só que imigravam os adultos e as crianças ficavam. E aí, os orfanatos só aceitam as
crianças de menos de seis anos de idade, porque não tem vaga para tanta criança. As crianças
maiores de sete anos ficam sozinhas. Aí apareceu uma diretora numa escola, ela dando aula
virou para a turma e perguntou: “quem aqui tem pais fora do país?” Oitenta por cento da turma
levantou a mão: tinha pai e mãe e fora do país. Os outros vinte por cento, só tinham um dos
dois fora do país. Aí foram acompanhar o dia-a-dia de uma das meninas. A menina está
sozinha desde os nove anos. O pai morreu, a mãe foi para a Itália trabalhar como
acompanhante de uma idosa há cinco anos. Aí, ficou ela e o irmão. Só que o irmão acabou o
ensino médio, foi fazer faculdade na capital. E aí, quando ela estava com onze anos, o irmão
também foi embora. Ela passou a ficar sozinha. A mãe põe dinheiro no banco, ela faz compra,
ela paga as contas. Ela lava, ela passa, ela cuida, é ela e ela. A menina só tem quatorze anos,
passou pela adolescência inteira absolutamente sozinha. A companhia dela é a vizinha, que
também é sozinha. Não têm carros quase transitando pelo país, porque não tem quem dirija os
carros. Porque só tem criança. O número de adultos é ínfimo. A professora, que era professora,
teve que virar diretora e professora, porque o diretor também imigrou. Aí tem os avós, porque
aí sobraram os velhos. Só que os velhos também não dão conta de ver todos os netos. Então,
cada semana, vai à casa de um neto. O neto só vê o avô uma vez por mês.
O positivo para a entrevistada é que os adolescentes da Moldávia estão provando que
podem se virar sozinhos: “Não, interessantíssimo é como as ruas são limpas, as casas
arrumadas, as crianças vão para a aula. A casa da menina, uma casa de classe média, de dois
andares, TV 29’, toda equipada. Casa arrumadíssima. E a menina tira notas boas na escola”.
Pondero que talvez essa seja uma demonstração de que eles possam mais do que imaginamos,
idéia que ela praticamente não ouve por parecer colidir com o pressuposto, de que os
adolescentes entregues à própria vontade são incapazes de escolhas sensatas. A esse respeito,
ela diz:
“Eu falei com os meus filhos: “vou mandar vocês para a Moldávia”. O que me chamou a
atenção não é dizer que é bom ou ruim. É novo. O que será? Eu quero saber como vai estar a
Moldávia daqui a dez anos. Olha, vou até pesquisar mais sobre a situação, porque é uma
situação completamente nova, como é que eles estão conseguindo se organizar em uma nova
estrutura.”
Confrontada com os limites de suas concepções, Regina conclui que, talvez valha a
pena aprender um pouco com eles, mas com ressalvas assentadas no perigo social que a
experiência de autonomia adolescente possa representar:
“É horrível, a menina fala que ela preferia morar numa casa bem pobre, mas ter alguém. Ela
não tem referência. Falou: ‘como será que eu vou criar o meu filho? Eu não tenho nenhum
exemplo’. Ela não consegue lembrar da mãe dela dentro de casa. Tem uma que estava com
dez, um irmão com sete. Porque ele tem sete, eles não podem ir para um orfanato. E mesmo
num orfanato, o número de funcionários é tão pequeno que são os mais velhos que cuidam dos
mais novos. Olha, vale a pena estudar o caso da Moldávia, se eles estão construindo uma nova
sociedade. E bicicletas, né? Pelas ruas. Porque eles não podem dirigir, então as crianças se
deslocam de bicicleta. É bicicleta para tudo quanto é lado. Eu achei interessantíssimo. Quero
ver daqui a dez anos como é que vai estar a Moldávia.”
Pensando ainda na Moldávia como metáfora da autonomia adolescente, perguntei a
Regina, como ela pensa que seria a sexualidade destes adolescentes, como iriam
experimentar, descobrir. Argumentei que talvez tenhamos o discurso dos adolescentes como
sujeitos de direitos, mas acreditamos pouco neles. E ela me responde falando do papel da
professora. A professora da Moldávia torna-se então também quase uma metáfora do papel do
técnico com os adolescentes no tema da sexualidade, frente a pais omissos ou inexistentes:
“imagina a adolescência. Não tem ninguém. A professora se sente muito sobrecarregada
porque ela acaba sendo referência para tudo. Ela disse que sai de lá com uma preocupação. Ela
fica imaginando em casa o que os meninos estão fazendo. Só que são tantos alunos que ela não
consegue mais lembrar o que fulano pode estar fazendo, e Beltrano, e Cicrano.... não tem
como dar conta e ela tenta. Ela virou uma pessoa muito esgotada. Agora ela está vendo que
eles estão conseguindo caminhar mais sozinhos. Ela está conseguindo ficar um pouco mais
leve. , no início, era enlouquecedor. Porque cada dia, um aluno dizendo que vai sair: “não,
agora você não sai”. Foi vendo os alunos, um a um, perdendo os pais. São os órfãos de pais
vivos.”
Mas há algo na Moldávia que, para Regina, torna a experiência menos problemática:
“e, detalhe: os pais mandam cartas e telefonam. O garoto quer ir para um baile, não sei o quê,
liga para o pai: ‘não, você não vai’[diz o pai]. E ele obedece”. Por ser o que a entrevistada
considera a construção de uma “nova sociedade”, o documentário chama muito a sua atenção
porque aponta para a possibilidade de uma sociedade em que a construção de “limites” não
seja feita apenas por adultos, mas assumida pelos próprios adolescentes. Segundo ela
“esse documentário me chamou muito mais atenção do que os estupros no Haiti. Muito mais
atenção do que o país que está acabando na África, porque é a construção de uma nova
sociedade, com parâmetros completamente diferentes do que nós entendemos de limite. Eles
estão tendo que se dar limites.” [grifo meu]
A Moldávia metafórica liberaria os adultos do ônus, seja o de fazer por eles, seja o de
fiscalizá-los e isso faz com que a entrevistada identifique um bônus na autonomia, mas é uma
autonomia onde os adolescentes fazem o que os adultos esperam sem necessidade de um
ostensivo controle, sejam eles seus atendidos ou seus filhos:
“me chamou a atenção e eu falei: “que absurdo”. Aí começou a mostrar as casas. Falei: ‘pera
aí, tem alguma coisa aí que talvez seja muito interessante, porque não é o caos que a gente
imagina’. Não sei se você tem filhos [respondo que tenho uma, de dezessete anos]
. Eu tenho
três em casa. Eu sei o caos que eles são. Agora eu falo para eles: ‘vou mandar todo mundo
para Moldávia, porque lá vocês vão arrumar a cama, vão fazer tudo, porque não vai ter
ninguém para fazer. Vou mandar vocês para a Moldávia. Vocês vão ser novas crianças’”.
Durante o relato de Regina, por mais que eu tentasse interferir propondo alguma
reflexão sobre o que ela contava, articulada ao tema da autonomia dos adolescentes, tive a
sensação que não era ouvida. Saí da entrevista sem me dar conta da riqueza metafórica da
Moldávia. Ao voltar à entrevista, já na análise, percebi que tinha um bom achado do campo.
O entusiasmo de minha interlocutora com a Moldávia e a minha total incapacidade de,
naquele momento, estimular uma reflexão dela sobre o porquê achamos tão surpreendente
adolescentes serem autônomos e sobre os limites do que concebemos como autonomia, trouxe
à tona concepções hegemônicas de nossa sociedade em relação aos adolescentes, e como eles
são tratados por uma parcela significativa das instituições e políticas voltadas a eles. O Haiti é
aqui, mas a Moldávia não. Os adolescentes dos quais estamos falando não são os da
Moldávia. Esse é um tema que percorre toda a discussão desse trabalho. Os adolescentes
efetivamente são sujeitos de direitos em nossa sociedade?
1.3.2. Contexto internacional dos direitos da criança e do adolescente
Ao reconstituir a caminhada da comunidade internacional em favor dos direitos das
crianças, Costa (2006b) afirma que esta teve início em 1923, quando a União Internacional
Save the Children” redigiu e aprovou um documento que ficou conhecido como Declaração
de Genebra. Essa declaração de cinco pontos continha os princípios básicos de proteção à
infância. Em 1924, a Assembléia da Sociedade das Nações aprovou a Declaração de Genebra
e propôs aos países que pautassem sua conduta em relação à infância a partir de seus
princípios. Era assim assumido pelo sistema internacional de direitos humanos, o primeiro
documento que expunha a preocupação em reconhecer direitos a crianças e adolescentes. Ao
terminar a segunda Guerra Mundial, a já Organização das Nações Unidas (ONU), aprova uma
Declaração que amplia um pouco os direitos contidos no texto de 1924. Onze anos depois, em
1959, a ONU aprova a Declaração Universal dos Direitos da Criança, um texto com dez
princípios, elencando os direitos aplicáveis à população infantil. A Declaração foi o grande
marco no reconhecimento de crianças como sujeitos de direitos.
O governo da Polônia, em 1978, apresentou à comunidade internacional uma proposta
de convenção internacional relativa aos direitos das crianças
14
. A ONU, atenta aos avanços e
anseios sociais, especialmente no plano dos direitos fundamentais, na perspectiva de atualizar
o documento da Declaração, examinou a proposta da Polônia e estruturou em 1979 um grupo
de trabalho para elaborar um texto definitivo. Durante dez anos o texto foi intensamente
debatido, envolvendo o grupo de trabalho indicado pela ONU e um grupo ad hoc de ONGs
formado especialmente para esse fim. Em 1989 o Projeto de Convenção foi apresentado à
Comissão de Direitos Humanos da ONU e em 20 de novembro desse ano a Assembléia-Geral
aprovou por unanimidade o texto da Convenção Internacional dos Direitos da Criança.
No período de trinta anos entre a aprovação da Declaração e da Convenção, as Nações
Unidas elaboraram vários documentos que contribuíram para a evolução do direito infanto-
juvenil. Vale destacar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos ou Pacto de San José
da Costa Rica, de 1969, que estabeleceu uma co-responsabilidade entre família, sociedade e
Estado na proteção de crianças e adolescentes. E ainda as Regras Mínimas das Nações Unidas
para a Administração da Justiça Juvenil, ou Regras Mínimas de Beijing, aprovadas em 1985,

14
Uma convenção é um instrumento de direito mais forte que uma declaração, pois enquanto esta sugere
princípios pelos quais os países devem guiar-se, aquela estabelece normas, isto é, deveres e obrigações aos países
que a ela formalizem sua adesão. Uma Convenção confere aos direitos contidos nela uma força de lei
internacional.
que estabeleceram diretrizes para a justiça especializada, especialmente nos processos ligados
a adolescentes em conflito com a lei. Ainda nesse campo, em 1990 foram aprovadas regras
preventivas da delinqüência juvenil, conhecidas como Diretrizes de Riad, que formariam a
base das ações e medidas socioeducativas previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente
no Brasil (Amin, 2006:14).
A Convenção trata de um amplo conjunto de direitos, fazendo das crianças - no
documento, entendidas como todas as pessoas menores de 18 anos - titulares de direitos
individuais, como a vida, a liberdade e a dignidade, assim como de direitos coletivos
(econômicos, sociais e culturais). Ela tem como base a idéia de que as crianças e adolescentes
devem ter todos os direitos que têm os adultos e que sejam aplicáveis a sua idade. E, além
disso, devem contar com direitos especiais decorrentes de sua condição de “pessoa em
situação peculiar de desenvolvimento pessoal e social”. Ligada a essa perspectiva, de uma
visão da criança e do adolescente como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, a
Convenção prevê que, em cada etapa de sua evolução, em função de sua idade e da sua
maturidade, a criança e o adolescente possam expressar e ter a sua opinião levada em conta
em assuntos que lhe dizem respeito. Como afirma Costa (2006b), a Convenção é um poderoso
instrumento para impulsionar a mudança das maneiras de entender e agir de pessoas, grupos e
sociedades, e produzir mudanças no panorama legal, suscitando o reordenamento das
instituições e promovendo a melhoria das formas de atenção direta a crianças e adolescentes.
O novo instrumento internacional de direitos humanos colocou na irregularidade a
velha doutrina da situação irregular, pano de fundo de todas as políticas jurídicas e
socioeducacionais vigentes na América latina desde a promulgação, pela Argentina, em 1919,
da primeira legislação de menores da região. O Código de Menores do Uruguai, que data de
1927, consagrou o modelo, e passou, desde então, a servir de base para todas as legislações
menoristas da região. O Código de Menores brasileiro, fruto do esforço do juiz Mello Matos à
causa menorista, não foge a essa tendência. A doutrina da situação irregular foi a concepção
de base desses códigos e também a base do Código de Menores de 1979. Essa doutrina
começou a ser erradicada da região latino-americana pelo Brasil, o primeiro país a alinhar sua
legislação ao espírito da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, cuja concepção
sustentadora é a doutrina da proteção integral, que se apóia em bases conceituais antagônicas
às da doutrina da situação irregular. Trabalhar pela implementação da Convenção no Brasil é
trabalhar pela plena implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069, de
novembro de 1990), o ECA.
É o ECA que estabelece as disposições para a implantação e implementação de uma
política de proteção integral para a infância e adolescência brasileiras. Ele é o reflexo, no
direito brasileiro, dos avanços obtidos na ordem internacional em favor das crianças e
adolescentes. Ele representa o esforço do país, recém saído de uma ditadura, em traduzir os
avanços internacionais no campo da promoção e defesa dos direitos humanos da população
infanto-juvenil. Segundo Costa (2006a), o Estatuto está ligado a um novo projeto de
sociedade, calcado na garantia dos direitos humanos, e demanda a construção de uma nova
relação do mundo adulto com a infância e adolescência. Essa relação vive um conjunto de
mudanças e desafios, ao ter que lidar com as novas concepções que o marco legal impôs à
nossa sociedade: i)crianças e adolescentes são sujeitos de direitos exigíveis com base nas leis.
Não são mais apenas portadores de necessidades e meros objetos de intervenção do Estado, da
família e da sociedade; ii)são pessoas em condição peculiar de desenvolvimento. Assim, são
detentores de todos os direitos que têm os adultos e que sejam aplicáveis à sua idade. Além
disso, têm direitos especiais, decorrentes das peculiaridades do seu processo de
desenvolvimento pessoal e social; iii) crianças e adolescentes são prioridade absoluta para a
sociedade e o Estado brasileiros, segundo a lei. Devem ter primazia na formulação e execução
de políticas sociais públicas e destinação privilegiada de recursos públicos para sua proteção
integral.
Os desafios impressos nessas mudanças dizem respeito fundamentalmente à
necessidade de reflexão acerca dos valores e concepções construídos historicamente em nosso
país em relação à infância e que se traduzem em políticas e programas de atendimento a essa
categoria social. Para relatar o movimento que começa a se articular no Brasil no início da
década de 80, em defesa dos direitos de crianças e adolescentes, desembocando na aprovação
do Estatuto, e refletir sobre a ambiência de possibilidades de construção de um novo
paradigma no trato com crianças e adolescentes, faz-se necessário remontar mesmo que
brevemente, à história do atendimento à infância e juventude pobre no país, aos ditos
menores”. Tal resgate histórico associa-se à recomendação de Adorno et al: “para
compreender a infância e a juventude, devemos recorrer à história das instituições que a
sociedade construiu para enquadrá-los” (2005:18).
1.3.3. Breve histórico do direito e das políticas de atendimento às crianças e adolescentes
no Brasil
A nossa sociedade foi historicamente autoritária e tutelar com as crianças. No Brasil
Colônia, para resguardar a autoridade parental, ao pai era assegurado o direito de castigar o
filho como forma de educá-lo, excluindo-se a ilicitude da conduta paterna se no “exercício
desse mister” o filho viesse a falecer ou sofresse lesão (Amin, 2006:5) Durante o Império tem
início a preocupação com os infratores, e a responsabilidade penal era alcançada aos sete anos
de idade. Em paralelo, no campo não infracional, o Estado agia através da Igreja. Já em 1551
foi fundada a primeira casa de recolhimento de crianças do Brasil, gerida pelos jesuítas, que
buscavam isolar crianças índias e negras da má influência dos pais, com seus costumes
“bárbaros”. Consolidava-se o início da política do recolhimento. No século XVIII, aumenta a
preocupação do Estado com órfãos e expostos. Como solução, importa-se da Europa a Roda
dos Expostos, mantidas pelas Santas Casas da Misericórdia. O início do período republicano é
marcado pela fundação de entidades assistenciais que adotavam práticas de caridade ou
medidas higienistas, estas fundamentadas em noções de eugenia e na preocupação com a
degenerescência. Assim, o pensamento social oscilava entre proteger ou se defender dos
menores. Casas de recolhimento são inauguradas no início do século XX dividindo-se em
escolas de prevenção, destinadas a educar menores em abandono, escolas de reforma e
colônias correcionais, cujo objetivo era regenerar menores em conflito com a lei.
Segundo Amin (2006), em 1912, o deputado João Chaves apresenta projeto de lei
alterando a perspectiva do direito de crianças e adolescentes, afastando-o da área penal e
propondo a especialização de tribunais e juízes, seguindo uma tendência internacional, visto
que em 1911, realizou-se em Paris, o Congresso Internacional de Menores. As influências
externas e os debates nacionais levaram à construção de uma Doutrina do Direito do Menor,
baseada no binômio carência – delinqüência, duas faces da mesma moeda, onde proteção e
punição se articulam em um processo que criminalizava a infância pobre. Delineava-se a
doutrina da Situação Irregular, que desembocou na aprovação em 1927 do primeiro Código de
Menores do Brasil, o Código Mello Matos, que unia justiça e assistência. De acordo com a
nova lei, o Juiz de Menores exerce total poder sobre os destinos dos menores “tanto
abandonados quanto delinqüentes”, exercendo uma autoridade centralizadora, controladora e
protecionista sobre a infância pobre, potencialmente perigosa. Estava consolidada a categoria
menor, conceito estigmatizante que acompanharia crianças e adolescentes até 1990, com a
promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente. A tutela à infância, nesse momento
histórico, caracterizava-se pelo regime de internações com quebra dos vínculos familiares,
substituídos por vínculos institucionais. Reforça-se um processo de desqualificação da família
pobre e um incisivo questionamento de sua capacidade de cuidar de seus filhos. E esse
processo conta com o respaldo do saber científico, bem como encontra amparo no arcabouço
legal. Segundo Vianna,
“o período entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX caracteriza a
emergência do problema da menoridade no sentido da demarcação de um campo de interesse e
atuação de diversas instituições e saberes. Nesse aspecto, trata-se de um período no qual é
consolidada a representação de um problema social cristalizado na massa diversificada de
crianças pobres passíveis de serem enquadradas em classificações que denotassem sua
situação anormal frente a um modelo de infância e família” (1999:42).
A autora afirma que a partir de um entrecruzamento de preocupações com a higiene, a
reformulação do espaço urbano e a repressão à criminalidade, os menores tornam-se o foco de
atenções de diferentes profissionais e objeto de regulamentações legais. Nessa mesma
perspectiva, Arantes (1999) afirma que através de um artifício que transformou pobreza em
irregularidade jurídica, a criança pobre passou a ser definida como “menor carente” ou
“menor infrator” e, através de um conteúdo médico-psico-social atribuído a estes menores, as
medidas (ou penas) para sanar tal situação, dita de irregularidade, foram deslocadas para os
próprios menores, e não para a situação. A autora pontua que a partir da investida médico-
higienista em meados do século XIX, com a extinção da Roda dos Expostos e o início da
legislação sobre a infância nas primeiras décadas do século XX, a criança passa de objeto da
caridade para objeto de políticas públicas. Ela ressalta que
“é nesta passagem que vamos encontrar os especialistas: os assim chamados técnicos ou
trabalhadores sociais. A investida neste setor, inicialmente por parte dos médicos, mas logo
seguida por outros profissionais, visava sobretudo a uma maior racionalidade da assistência
através da intervenção do Estado em um domínio até então considerado essencialmente
caritativo. Ao oferecerem uma “natureza” da irregularidade, os técnicos não apenas legitimaram
como ajudaram a produzir uma das mais curiosas e perversas distinções encontradas na prática
social brasileira: a que separa “criança” de “menor” - curiosa distinção que não diz respeito à
faixa etária, mas à classe social, e que faz com que a “sentença” recaia no menor, e não na
situação. É o menor que passa a ser visto como irregular, já que porta sua “natureza”: valores
anti-sociais, carências de todos os tipos, comportamentos inadequados, agressividade,
periculosidade, etc.”(1999:258)
As mudanças legais correspondem à percepção social diferenciada que recai sobre
crianças pobres e ricas. O Código de 1927 transformou a categoria menor, tida antes como
termo jurídico para se referir a uma dada faixa etária, em uma categoria exclusiva da infância
pobre. A criança tida como “normal” (leia-se não-pobre) passou a ser objeto de atenção na
Vara da Família, quando da solução de algum conflito, e a criança pobre passou a ser objeto
de atenção do Juizado de Menores (Gohn, 2000). No imaginário da população brasileira o
termo menor define uma parcela determinada do público infanto-juvenil. Menores são as
crianças ou adolescentes advindos das classes populares, submetidos a variados tipos de
violência. As crianças das camadas médias e altas da população nunca foram identificadas
como menores. Segundo Gohn, associadas ao termo menor, outras representações permeiam o
imaginário social. Eles são os trombadinhas, moleques de rua, pivetes, infratores, ou ainda os
carentes, abandonados, desassistidos. A classificação menor é aplicada a crianças e
adolescentes em situação de desamparo ou crime, considerados vítimas ou algozes, não
sujeitos. Essa perspectiva permeou também os programas e políticas sociais voltados a esse
público. O Código de Menores, legislação vigente de 1979 até 1990, aplicava-se aos
indivíduos em situação irregular, como dito anteriormente, contribuindo em muito para a
estigmatização da infância pobre no Brasil.
Em linhas gerais, pode-se dizer que a história do Direito Brasileiro do “Menor”
conheceu três fases: a primeira (1927 – 1979) foi marcada pela execução de normas e
diretrizes repressivas e discriminatórias; a segunda (1979 – 1989), na qual se delineia uma
política nacional caracterizada pela proteção e amparo paternalistas, sem perder, contudo, sua
perspectiva correcional; a terceira, inaugurada em 1990, fundada na concepção da criança e
do adolescente como cidadãos, passíveis de proteção integral (Adorno, 1999). No que diz
respeito às políticas governamentais de atendimento aos menores podemos alinhá-las em
quatro etapas. Uma primeira etapa, a do SAM – Serviço de Assistência ao Menor, criado em
1942, foi marcada pelo modelo correcional-repressivo. Suas unidades, tanto urbanas quanto
rurais, se organizavam nos moldes dos estabelecimentos prisionais. Apesar de só funcionar no
Distrito Federal, o SAM tinha seus congêneres nos estado. A partir da década de cinqüenta, o
modelo baseado puramente na repressão, começa a não mais dar conta das demandas de
atendimento e uma série de denúncias começam a chegar à opinião pública, quando a
imprensa começa a se referir ao SAM como “Universidade do Crime”. Com o advento do
golpe militar, é elaborada a Política Nacional de Bem-Estar do Menor, cujo órgão executor
passa a ser a FUNABEM – Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor. Segundo Costa,
“o delinqüente nato, indivíduo anti-social, de índole má, propenso ao delito e dotado de alto
grau de periculosidade, do SAM, começa a ser substituído, no discurso institucional, pelo
menor privado de condições mínimas de desenvolvimento. O famoso carente
biopsicossociocultural passa a prevalecer nos relatórios técnicos e nas decisões jurídicas dos
tempos da curva ascendente do regime militar” (2006a:49)
Contudo, a FUNABEM, que assume um discurso técnico avançado, de enfrentamento
aos castigos físicos e violência, herdou a estrutura e o corpo de funcionários do SAM. Assim
sua trajetória é marcada pela ambigüidade. Ao fim, estabeleceu-se um acordo tácito entre os
setores educacional/humanitário e correcional/repressivo. Como relata Costa, que em sua
trajetória assumiu cargos dirigentes na instituição, “um técnico fazendo colocações avançadas
em um seminário de política social, e ao mesmo tempo, um adolescente sendo vítima de
tratamento desumano e degradante em uma das unidades”, eram as duas faces da FUNABEM,
ao longo de sua tortuosa trajetória político-institucional.
A FUNABEM se mantém até 1990, quando o Brasil legalmente já havia rompido com
a doutrina da situação irregular. Ela se torna o CBIA (Centro Brasileiro para a Infância e
Adolescência), que nasce com a missão de efetivar um reordenamento institucional, que na
prática não se efetivou. Pois o CBIA teve vida curta e foi extinto pelo governo Fernando
Henrique Cardoso em 1995. Desde então, não há uma coordenação das ações governamentais
ligadas ao atendimento a crianças e adolescentes. O grande desafio continua sendo a
constituição de uma institucionalidade que possa dar conta da complexidade da implantação
de uma política nacional de promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente,
baseada no ECA. Esse desafio está de certa forma ancorado hoje na Secretaria Especial de
Direitos Humanos, ligada diretamente à Presidência da República e a qual é vinculado o
CONANDA.
1.3.4. O contexto do movimento pelos direitos de crianças e adolescentes
Por parte da sociedade civil, desde o fim da década de 1960 começaram a ser gestados
programas com concepções diferentes do projeto caritativo-filantrópico, assim como dos
projetos higienistas estatais. As principais idéias desse movimento que tomou corpo na
década de 1980 eram que as crianças deveriam ser “sujeitos do processo pedagógico”, além
de atendidas e trabalhadas no contexto sociocultural do qual faziam parte. Estas idéias
começaram a provocar mudanças nas bases filosóficas do projeto de assistência e atendimento
à infância no país. Assistimos na década de 1980 ao surgimento no Brasil do que
denominamos ONGs – organizações não-governamentais
15
. Contudo, a denominação ONG,
ligada a uma perspectiva de atuação mais politizada e coletiva, não abarca o conjunto de
organizações da sociedade civil que atuam junto a crianças e adolescentes. Utilizando a
mesma denominação (ONG), Gohn (2000) as diferencia, ao afirmar que podemos dizer que o
campo de atuação das ONGs têm sido o do assistencialismo (por meio da filantropia), o do
desenvolvimentismo (por meio dos programas de cooperação internacional, entre ONGs e
agências de fomento, públicas e privadas), e o campo da cidadania (por meio das ONGs
criadas a partir de movimentos sociais que lutam por direitos sociais). Embora haja uma
seqüência histórica entre o surgimento desses “modelos”, na atualidade eles coexistem no
tempo e, às vezes, no mesmo espaço. É importante ressaltar que as principais ONGs
16
brasileiras não são assistenciais/filantrópicas, mas as “cidadãs”, embora as filantrópicas sejam
a maioria em termos numéricos. Esse conjunto de organizações que atuavam junto a crianças
e adolescentes no país, articulada a profissionais dos órgãos governamentais, começou a
gestar uma movimentação para construir uma nova forma de lidar com as crianças e
adolescentes no Brasil.
Na efervescência do processo de democratização da sociedade brasileira, construiu-se
uma grande aliança de setores da sociedade civil e política em torno da problemática das
crianças e adolescentes no Brasil. Articulava-se o Movimento de Defesa dos Direitos da
Criança e do Adolescente, que contou com o envolvimento de diferentes atores sociais:
profissionais que atuavam com crianças e adolescentes, movimentos populares, ONGs
nacionais e internacionais, partidos políticos, jornalistas, membros do Judiciário e igrejas.
Essa grande frente foi se conformando como um movimento que construiu estratégias de
sensibilização da opinião pública, denunciando prisões ilegais, torturas, assassinatos, toda
sorte de violação de direitos da população infanto-juvenil pobre no país. Essa mobilização se
fortaleceu no período constituinte e teve seu primeiro êxito ao conquistar o reconhecimento
dos direitos sociais básicos, não mais dos menores, mas de todas as crianças e adolescentes
brasileiros, independente de classe social ou raça, no texto constitucional de 1988, através dos
artigos 227 e 228. O artigo 227 preceitua que

15
Segundo Gohn, no Brasil o termo ONG refere-se a um tipo peculiar de organização da sociedade. Trata-se de
um agrupamento de pessoas, organizadas sob a forma de uma instituição da sociedade civil, que se declara sem
fins lucrativos, com o objetivo de lutar e/ou apoiar causas coletivas. A autora relata que há concepções de que as
ONGs são canais de participação das camadas médias da sociedade, que exercem atividades na esfera pública,
traduzindo interesses e demandas populares em arenas sociais de conflitos. Ela afirma concordar com essas
afirmações no que se refere à parcela significativa das ONGs cidadãs (2000:60).
16
Para aprofundamento da reflexão acerca do surgimento e papel das ONGs no cenário brasileiro, bem como de
sua relação com os movimentos sociais consultar Gohn (2000)
“é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com
absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de
colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência,
crueldade e opressão” (Constituição Federal, 1997:137).
o artigo 228, preconiza que são penalmente inimputáveis os menores de dezoito
anos, sujeitos às normas da legislação especial (Constituição Federal, 1997:138). A
regulamentação dos artigos 227 e 228 se efetivou na elaboração do ECA, aprovado pela Lei
n°8.069, de 13 de julho de 1990. O ECA possibilitou ao Brasil ser o primeiro país da América
Latina, e um dos primeiros do mundo, a alinhar sua legislação com o que havia de mais
avançado na normativa internacional em relação aos direitos da infância e juventude. Além da
Convenção Internacional dos Direitos da Criança, as Regras de Beijing, as Regras Mínimas
das Nações Unidas para os Jovens Privados de Liberdade, a Convenção 138 da OIT e outros
dispositivos tiveram seu conteúdo assimilado pela nossa legislação.
O Estatuto superou legalmente o desgastado modelo da doutrina da “situação
irregular”, substituindo-o pelo paradigma da “proteção integral”, abrangendo todas as crianças
e adolescentes. As linhas de ação da política de atendimento compreendem: as políticas
sociais básicas (consideradas direitos do cidadão e dever do Estado); a política de assistência
social (voltada àqueles que dela necessitem); a proteção especial e a defesa de direitos. Com a
instituição do paradigma da proteção integral, crianças e adolescentes passaram a ser
considerados sujeitos de direitos
17
, em condição peculiar de desenvolvimento
18
, que devem
ser prioridade absoluta da família, da sociedade e do Estado. Essa substituição tem implicado
na busca de mudanças nos métodos de intervenção, que não devem ser mais punitivos, mas
educativos, e de respeito ao seu desenvolvimento (Carvalho, 2000).
O ponto-chave dos direitos humanos estendidos às crianças e adolescentes é quando
eles passam a ser considerados sujeitos de direitos próprios e adequados a sua condição
peculiar, com vistas à preservação de seus interesses, e não como objeto de uma legislação
regulamentadora da disciplina e da correção de eventuais desvios do que é considerada uma

17
Segundo Costa, “sujeito de direitos” é a capacidade para alguém exercer, nos termos da lei, faculdades
normativamente reconhecidas. É o exercício pleno por um cidadão da titularidade de seus direitos (2006c:153).
18
Costa conceitua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento tendo como base o entendimento de que os
direitos não se aplicam a todas as crianças e adolescentes ao mesmo tempo e de forma indistinta. Eles dependem
do grau de maturidade e autonomia em cada fase do crescimento pessoal e social dos indivíduos, em termos de
sua evolução física, cognitiva e emocional, com o correr dos anos. Por isso, o artigo 12 da Convenção
Internacional dos Direitos da Criança utiliza o conceito autonomia progressiva da criança (2006c:141).
conduta normal (Pirotta & Pirotta, 2005:84). A grande mudança introduzida pelo ECA é o
rompimento com a divisão entre “situação irregular” e “regular”, ao se dirigir a todas as
crianças e adolescentes e reconhecer que estes têm interesses próprios, que podem ser
conflitantes com os de seus familiares ou responsáveis. O Estatuto ao forjar a concepção da
criança e do adolescente como sujeito de direitos se coaduna a um movimento global de
afirmação dos direitos humanos como direitos de cidadania.
Segundo Pilotti & Rizzini, no tocante ao tema da infância, o Brasil tem sido apontado
como um caso paradigmático em duas direções marcadamente diferentes. Por um lado, o
Brasil é apresentado como o exemplo da violência que atingiu limites extremos e assiste ao
extermínio de suas crianças. Visto por outro ângulo, ele é o exemplo mais expressivo do
avanço da sociedade civil na tentativa de mobilização e articulação de diferentes grupos em
prol da causa da criança. São contrastes que permitem a simultaneidade de uma situação em
que o país desenvolve uma das mais avançadas legislações em defesa dos direitos da criança e
do adolescente, ao mesmo tempo em que atrai a atenção internacional com um elevado índice
de crianças violentamente assassinadas. É uma realidade que aponta para uma evidente
discrepância entre o discurso e a prática no trato com a questão. (1999:52)
Com o Estatuto construiu-se um novo paradigma para o direito infanto-juvenil.
Formalmente sai de cena a Doutrina da Situação Irregular, de caráter filantrópico e
assistencial, com gestão centralizadora do Poder Judiciário. Em seu lugar, implanta-se a
Doutrina da Proteção Integral, com caráter de política pública. Crianças e adolescentes
deixam de ser objeto de proteção assistencial e passam a titulares de direitos subjetivos. Para
assegurá-los é estabelecido um Sistema de Garantia de Direitos, que se materializa no
Município, a quem cabe estabelecer a política de atendimento dos direitos da criança e do
adolescente, através dos Conselhos Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente,
bem como, numa co-gestão com a sociedade civil, executá-la. Assim, novos atores entram em
cena. Contudo, implantar o sistema de garantias é o grande desafio dos operadores da área da
infância e juventude. Inicialmente, se faz necessário romper com o sistema anterior, não
apenas no aspecto formal, como já o fizeram a Constituição de 88 e o Estatuto, mas e
principalmente no plano prático. Trata-se de uma tarefa árdua, pois exige conhecer, entender e
aplicar uma nova sistemática, completamente diferente da anterior, entranhada em nossa
sociedade há quase um século (Amin, 2006:11).
1.4. A implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente 18 anos após sua
promulgação
Tive a oportunidade de realizar o trabalho de campo no ano em que o Estatuto “atingia
sua maioridade”, como os ativistas do campo falavam. E no contato com os entrevistados
pude conversar com alguns deles sobre como viam esse processo de construção de uma nova
forma de olhar e lidar com as crianças e adolescentes, que a mudança no marco legal impôs a
todos os atores envolvidos com a garantia de seus direitos. Pois como Costa propôs, “a
enorme mudança de paradigma incorporada ao plano jurídico-legal, aponta que o sistema de
atendimento, ou seja, o aparato institucional destinado a operar as novas regras, a por em
prática os novos conceitos, deverá passar por um amplo, corajoso e profundo processo de
reordenamento institucional (2006a:46). No contato com meus entrevistados, essa idéia de
processo se manteve. No discurso de todos havia um tom de que “estamos avançando”, como
propunha Célia. Há um entendimento da maioria de que, há muito a ser feito, pois como disse
Lúcia, “do escrito para o exercício prático, que é esse mar de coisas que a gente tem que aos
poucos ir construindo”.
Perguntei a meus entrevistados se os adolescentes já são efetivamente considerados,
por aqueles que os atendem e pelos formuladores de políticas como sujeitos de direitos. Dario
me deu uma resposta que de certa forma contempla essa visão processual, que foi hegemônica
entre os entrevistados. Ele me respondeu que
“isso é um instituto que está em mutação. O Estatuto tem dezoito anos, mas ele ainda não foi
assimilado pela sociedade e nem pelo poder público. Muito menos ainda pelo poder público.
Mas avançamos muito. Já se fala nesses conceitos com outra visão, com um outro olhar. Pelo
menos com o olhar de discussão, de debate.”
E alguns de meus entrevistados ressaltam a importância do Estatuto como instrumento
de construção de uma nova realidade social, articulada ao respeito aos direitos humanos.
Lúcia afirma que o ECA está em uma contramão na conjuntura política na atualidade, ao
propor um maior envolvimento tanto do Estado quanto da família na garantia de direitos de
crianças e adolescentes. Segundo ela,
“existe uma proposta de sociedade na linha de defesa dos direitos humanos que vai na
contramão da proposta que está colocada no mundo. A gente tem uma legislação que convoca
o Estado para ter responsabilidades, mas ao mesmo tempo você tem o Estado recolhido. O
Estatuto está nessa contramão. Acho que sempre esteve nessa contra mão, nessa desafiadora
posição que é de olhar para um sujeito que não se olha e lá você estar colocando uma co-
responsabilidade. Ele chama o Estado, a família. Não só o Estatuto, mas também a
Constituição, que chama o Estado, a família e a sociedade.”
Em relação ao envolvimento das famílias, Lúcia chama a atenção para uma
desqualificação histórica da capacidade das famílias de cuidarem de seus filhos, que tanto as
legislações quanto as políticas governamentais desenvolveram ao longo dos séculos em nosso
país. As políticas de internação de menores propiciaram que as famílias não acreditassem na
sua capacidade de se responsabilizar pelos seus filhos. Segundo ela
“a família, ela está lá também enunciada na Constituição Federal como uma das cuidadoras,
responsáveis. Só que durante anos a família não foi vista assim, não foi tratada assim, não foi
colocada assim. E não se colocou assim como cuidadora. Ela sempre foi mediada pelas tutelas
do Estado. Então até hoje a gente escuta a velha e famosa frase que ‘não tem jeito, não dou
conta desse menino’. Então tem uma frase de entrega, mas na frase de entrega que eu avalio,
pelas poucas leituras e um pouco da vivência, que é meio como se fosse um lugar construído,
um lugar que sempre foi poupado da família. Nunca foi fortalecida essa vivência da família
com seus filhos (...) Essa entrada da família, ela entrar num papel protagônico na criação de
seus filhos. É como se ela tivesse medo de fazer isso, como ela tivesse receio ainda de ocupar
um lugar que nunca ocupou. Porque sempre ela teve de entregar para alguma instituição o
menino que ela não dá conta.”
Ainda em relação ao lugar da família, nessa nova configuração social, onde ela passa a
ser entendida como um agente na garantia de direitos das crianças, Lúcia fala dos desafios de
mudança de relações historicamente desenvolvidas com as crianças e adolescentes. Ela utiliza
como exemplo o castigo físico, que ainda é muito presente e bastante aceito na sociedade,
fruto de uma forte herança de autoritarismo em relação às crianças e adolescentes. Pois,
segundo ela, “o lugar que mais se viola fisicamente as crianças é na privacidade do lar”. Um
lugar que deveria ser do cuidado, “do aconchego”, torna-se o lugar da contradição, pois “é um
lugar de muita desigualdade. É um lugar que promove muita violência, muita violação”. A
família é, para Lúcia, em conformidade com grande parte da literatura nacional sobre
violência doméstica contra crianças e adolescentes, um lugar em nossa sociedade onde se
aprende a violar. E aponta esse como mais um desafio dos atores comprometidos com a
efetivação do marco legal, no que tange a proteção integral das crianças e adolescentes. Por
este motivo, a convivência familiar e comunitária tem sido um dos temas prioritários do
CONANDA, que mobilizou os Conselhos de todo o país na construção de um Plano Nacional
de Promoção, Defesa e Garantia do Direito de Crianças e Adolescentes à Convivência
Familiar e Comunitária. Ela ainda reforça que a construção de uma sociedade que respeite as
crianças e adolescentes como sujeitos de direitos passa, entre outros aspectos, por mudanças
nas relações familiares. E isso se deve, segundo Lúcia,
“às contradições da sociedade que estão dentro da família, mas é como se a gente tivesse que
dar e não soubesse, não desse conta (...) Então falta nutrir os vínculos afetivos. Parece que esse
espaço que é um pouco a chamada que o Plano faz, mas é um Plano que vem e ele vem entrar
num processo histórico que nós vamos ter que ter muita luta. Num processo cultural de como
as relações familiares foram se construindo ao longo da história brasileira. Como que a família
foi vendo a criança e como que a criança foi vendo a família. E aí você vê realmente nesse
campo de convivência muitas desavenças, muito pouco encontro. E como nós, e como a
política pública, como a própria legislação nossa tem que lidar com essas contradições.”
No que tange à responsabilização dos governos, Dario também acredita que este é um
dos grandes avanços trazidos pelo ECA, que se coaduna ao arcabouço ideológico do “novo
direito”. Mas a construção desse “novo direito”, segundo ele, ainda enfrenta resistências
dentro de esferas do próprio Judiciário. Como ele disse,
“A própria evolução do Direito, como o Estatuto da Criança e do Adolescente levou para a
competência da área da infância e juventude questões de altíssima relevância, como as ações
civis públicas, uma responsabilização do Estado, dos Municípios, dos governantes. Então eu
acho que hoje ela é, inevitavelmente, uma das partes mais importantes do Direito, mas ainda
não reconhecida. E não é reconhecida porque as administrações do Tribunal [de Justiça], elas
ainda estão apegadas ao direito antigo. Mas o futuro dirá que o investimento maior tem que ser
na área da infância e da juventude.”
A despeito dos avanços apontados por Dario, Célia faz uma crítica ao que ela chama
de “judicialização da área da infância”. Pois, após a promulgação do Estatuto, no intuito de
“fazer a lei pegar”, o campo como um todo, tendo os Conselhos como exemplo, tem assumido
uma postura muito presa à área do direito, como se a partir disso, tudo pudesse ser resolvido.
Ela afirmou que
“então assim, se você for assistir uma plenária do Conselho Estadual, uma plenária do
CONANDA, os advogados, as pessoas do campo jurídico são os que mais falam. E tudo
resolve com ação civil pública, tudo se resolve com o que tá na lei. Eu acho que a gente ficou
naquela coisa de “vamos fazer a lei pegar; existe a lei; existe a lei”, e muitas vezes os
argumentos deles param por aí (...) Que aí eu acho que como toda mudança dá uma
radicalizada e eu acho que, eu tenho sentido isso em vários campos (...) Sabe, então acho que é
assim, todas as coisas que a gente encaminha no Conselho temos que oficiar não sei quem, aí
cabe uma ação civil pública, é o que você mais ouve hoje.”
A ênfase na “judicialização da política” pode comportar possíveis conseqüências
indesejáveis, quando se canaliza a luta política na linguagem dos direitos, como sugere
Carrara (2009):
“é interessante lembrar que, até pouco tempo atrás, a justiça (burguesa, como se dizia então)
era parte do problema e não de sua solução. Vivemos hoje um cenário oposto em que parece
imperar certa “utopia jurídica”, segundo a qual espera-se da justiça que resolva todos os
problemas, produzindo uma espécie de “terra sem males”. Isso não parece razoável, caso
consideremos, entre outros muitos aspectos, o fato de as próprias desigualdades sociais
reproduzirem-se no acesso diferencial à justiça e à sua aplicação; além, é claro, de a justiça ter,
enquanto estrutura burocrática, limites evidentes para acolher todas as demandas a ela
dirigidas.”
A “judicialização da política” torna-se estratégia ainda mais complexa, quando
percebe-se que, dentro do próprio Judiciário, ainda há resistências para a incorporação do
novo paradigma das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos, proposto pelo ECA.
Segundo Dario, as resistências do Judiciário se devem em grande medida à dificuldade em
lidar com mudanças muito grandes, sejam as de paradigma, sejam as do papel que o Judiciário
passou a assumir, mas que em muito se avançou ao longo desses dezoito anos:
“talvez tenha sido o Judiciário um dos institutos dos poderes que mais reagiram, mais
resistiram à implementação da lei. Porque a mudança de paradigma foi muito grande. Você sai
da situação irregular, você sai do marginal para o sujeito de direitos, para a proteção integral.
Então uma mudança de paradigma para o julgador que é muito grande. E o julgador também
passou por uma transformação, que ele era o todo-poderoso, que decidia políticas públicas
judicialmente, ele baixava portarias, ele disciplinava. E ele passa a ser apenas um instrumento
de justiça como em todas as outras áreas do Direito. Aí é uma falsa perda de poder.”
Mas Dario complementa que essas resistências se deveram também ao fato de que,
diferente das outras legislações para crianças e adolescentes no Brasil, a elaboração do ECA
está ligada a uma história de mobilização, ele é fruto de um processo coletivo vivido em nossa
sociedade. O que possibilitou que ele fosse uma lei construída por diferentes atores. E nesse
processo acabou mexendo com certas vaidades institucionais e um corporativismo do
Judiciário. Ele afirmou que houve um “corporativismo intelectual”, porque
“todas as leis, até então, tinham sido feitas por juízes: Código Melo Matos, Código de
Menores, todos esses saíram da cabeça de juízes. O Estatuto da Criança e do Adolescente que
foi uma concepção da nacionalidade, da sociedade reagindo e indo ao encontro do cenário
internacional que impunha ao Brasil uma adaptação à Convenção das Nações Unidas sobre os
direitos das crianças. Isso causou então um certo ciúme intelectual. E aí os próprios juízes, de
uma forma corporativa, resistiram à implementação do Estatuto da Criança e do Adolescente
(...) de forma que esse corporativismo, essa foi uma grande resistência dentro do Poder
Judiciário que hoje a gente já não vê mais. A gente ainda vê algum ranço de menorismo, no
próprio vício de linguagem, muita gente fala menor ainda. Falam o menor e o adolescente,
cometem esses erros crassos. Mas isso faz parte da própria cultura assimilada pelo magistrado.
E aí demora um pouco mais a mudar.”
Em relação ao que Dario chamou de “ranço menorista”, não é só o Judiciário que o
mantém. De alguma forma, há um entendimento dos entrevistados de que a sociedade ainda
não rompeu completamente com uma visão das crianças e adolescentes como objetos dos
interesses e desmandos dos adultos. Nas palavras de Vitória, os adolescentes vivem em um
mundo “onde a história do humano, ela só tem valor, só tem respaldo, só tem fala no adulto”.
Essa é uma crítica também levantada por Lúcia, de que nossa sociedade mantém-se em uma
postura adultocêntrica, e que nesse contexto muito há por se fazer na perspectiva de
construção de um entendimento das crianças e adolescentes como sujeitos autônomos. Um
outro aspecto levantado por Lúcia diz respeito à permanência de uma relação da sociedade
com as crianças e adolescentes que os mantém no lugar dos menores, as vítimas ou os
algozes, pois “ainda permanece a idéia da criança coitada e da criança perigosa”. Segundo
Lúcia,
“você ainda vive, na leitura e da forma como a criança é apresentada na sociedade, tanto a
família, a própria mídia ajuda muito isso. Porque assim... a criança ainda vem sendo
representada. Quando ela vem, comparece nos grandes temas, é assim. Ou ela vem como
vítima ou ela vem como violenta. Essa ambivalência ainda perpassa. Então acho que isso é
uma coisa para ser vencida.”
Para Lucia, mesmo com uma legislação que fala dos direitos e deveres da criança, a
sociedade em geral só enfatiza o direito. Ela acaba utilizando essa legislação, que em sua base
propõe uma relação diferente com as crianças, na manutenção de uma lógica antiga. Assim o
ECA é visto como o que dá direitos demais, o que estimula que os violentos não sejam
punidos. E então se desenvolve na sociedade todo um movimento de redução da maioridade
penal. Em um movimento paralelo e na direção oposta, a sociedade assume o lugar de
denunciar quando as crianças são vítimas, “as coitadinhas violentadas”. Não ocorre, contudo
uma auto-crítica: a mesma sociedade que acha tão horrível e denuncia a violência sexual por
exemplo, é a mesma que viola uma série de outros direitos das crianças e adolescentes.
Violenta-os inclusive fisicamente, julgando correta essa violência em conformidade com uma
herança cultural que associa educação à disciplina. Como disse Lúcia, “a sociedade, tem hora
que parece que ela não se deu conta que ela está denunciando ela mesma”. Assim, assistimos
a um quadro contraditório, pois a denúncia à violação de direitos se expande em uma
sociedade em que vemos também a expansão da intolerância. E os adolescentes e jovens das
classes populares se mantêm no lugar de ameaça social. Lúcia apresentou essa reflexão
ressaltando que
“na verdade esse Estatuto, ele fala de concepções, ele fala de rupturas importantes na forma de
olhar o ser humano, na forma de conceber a criança. Então quando você vê que ainda está lá
na condição de menor, mas não menor pela idade, mas menor de menos valia no processo de
ator social. Então aí tem muito a fazer ainda. (...) eu acho que avançou demais. Foi uma coisa
importante, mas também contraditória. A forma como a sociedade, essa questão das
denúncias. Então assim, o movimento de denúncia e intolerância da sociedade cresce. Com
isso vai ter que crescer o nosso sistema de proteção e de reflexão. Porque quem faz isso é a
sociedade, a mesma que está denunciando. Então como que a gente vai devolver isso, esse
material, em forma de posicionamento para a sociedade? Porque não é um extraterrestre que
está querendo rebaixar a idade penal.”
E esse status diferenciado na sociedade de acordo com a classe social de origem é para
Vitória, uma marca de menorismo que se mantém. Como nos tempos de Código de Menores
onde havia as crianças e os menores, e o que determinava essa diferenciação era a classe
social a que a criança fazia parte, para Vitória esse ainda é um limite na implementação dos
novos paradigmas. Ela afirma que na sociedade brasileira quem tem valor ainda é o adulto, e
ressalta que “nas classes populares mais ainda”, pois segundo ela
“existe até uma compreensão de que existe um direito da criança, mas esse direito, ele não é
contextualizado para qualquer criança. Não se pensa. Exatamente quando se vê outro ali não
se pensa que aquele ali tem o mesmo direito do seu filho. São duas crianças antes de classes
sociais que têm essa diferenciação.”
Tendo encontrado essa leitura de meus entrevistados quis saber deles o que pensavam
acerca da incorporação dos novos paradigmas pelo campo de garantia de direitos de crianças e
adolescentes, mais especificamente, do campo formado pelas organizações da sociedade civil.
Mesmo sabendo ser este um grupo heterogêneo, questionei como era vista a relação dessas
organizações com as crianças e adolescentes. Se a idéia de incorporação do paradigma de
sujeitos de direitos se efetivou, ou ainda se era mantida uma certa relação de tutela, como era
visível em outros setores. Lucia me respondeu com certa discrição, de certa forma poupando
seus pares da crítica e a dirigindo para o conjunto da sociedade. Ela afirmou que
“ela vem se efetivando parcialmente. Por que parcialmente? Porque eu acho que tem partes
ainda que não estão, não alcançaram o estágio ainda da gente olhar para um sistema e falar:
Olha, está em curso também. Por exemplo, a questão da participação das crianças, da
autonomia desse sujeito criança. Ainda é tutelado. Porque todos os espaços dessa criança são
espaços de se é permitido ou não. Dentro de casa é assim, na escola é assim, na relação com os
amigos é assim. Culturalmente é assim. Então tem passos ainda a serem dados nessa direção.”
Todavia, o discurso de Vitória foi menos discreto quando falamos das possibilidades
em nossa sociedade de afirmação da sexualidade como um direito dos adolescentes, e ela
afirma:
“ainda na perspectiva de mudança cultural, acho que avançou-se muito pouco. O universo de
pensar os direitos, ainda é um universo adulto: ou você cria alguma estratégia que essas
pessoas usam para se promover, se identificarem como adulto ou então você ainda não é tido
como sujeito de direito.”
Face ao ceticismo da minha entrevistada, perguntei então de forma provocativa se o
“menor” ainda existe, ao que ela me responde muito tranqüilamente, como se apenas desse
continuidade à linha de pensamento:
“o menor ainda existe. Está presente. O Código de Menores nesse sentido, da perspectiva
desse sujeito como sujeito de direitos, ele é o que... Acho que a gente avançou menos. Vê
pelos meios de comunicação, pela reação da sociedade...”
Insisti perguntando se isto ocorre também no campo de garantia de direitos da criança
e, para minha surpresa, ela confirma:
“Principalmente. O que eu acho que reforça muito é o campo de garantia de direitos, porque
no momento em que você não consegue legitimar esse sujeito, você nega a fala, você nega
espaço, você também utiliza como controle, você também não promove. Principalmente na
questão dos adolescentes. Então assim, você também tem ainda essa compreensão.
Inconscientemente também, talvez não tão deliberado, você também ainda tem uma
duvidazinha se realmente ele é capaz, [se] ele tem realmente condições, não vai vacilar. É tido
como vacilão, que vai fazer merda. Existe ainda essa dúvida de que realmente eu posso
acreditar, posso apostar. Essa mudança de comportamento em relação a essa compreensão
ainda está em construção.” [grifos meus]
A percepção dos adolescentes como “vacilões”, acompanhou-me no restante do
trabalho de campo e se tornou base para um conjunto de reflexões que desenvolvi ao longo do
trabalho. Inclusive ligadas à idéia de proteção integral, que é outra premissa do novo marco
legal. Pois, de que proteção se está falando no campo de garantia de direitos de crianças e
adolescentes? Do cuidado que estimula o desenvolvimento do outro, ou do controle das
ações do outro, no qual não confiamos muito? É preciso proteger as crianças e adolescentes
do quê? E as famílias, não são capazes de fazer isso?
Regina, em determinado momento da entrevista, falava de mais um “perigo” a que as
crianças e adolescentes estão expostos: a internet, sobre a qual, segundo ela, “os pais não têm
a menor noção, de que o inimigo mora ao lado”. Afirmou que debaterá esse tema com os pais,
pois já está vislumbrando “todas as situações de vulnerabilidade que as crianças podem
passar”, face à facilidade de acessar diferentes conteúdos, inclusive pornográficos. Ela relatou
que ficou chocada por ter acessado sem querer um site de pedofilia. E que assim como ela as
meninas do projeto também poderiam ter acesso a esses conteúdos. Sem maiores
constrangimentos, ela afirma:
“Ainda bem que aqui elas têm abertura e elas vêm e falam essas coisas. A gente consegue
pegar essas coisas. Eu e [outro membro da instituição], nós fizemos orkut para poder cuidar
das meninas no orkut. Volta e meia, sento eu e [outro membro da instituição] aqui e ficamos
fuxicando os orkuts delas para saber quem foi que entrou. Mas é, gente. Nós temos que
proteger. A gente chama: ‘que é isso? Está errado’. Porque não tem limite em casa. Os pais
não dominam a máquina. [grifos meus]
Em nome da necessidade de proteção, muito controle tem se produzido e se
generalizado como legítimo por parte de pais e, neste caso, dos educadores. Tais
comportamentos reafirmam que, apesar da generalização no campo do discurso do direito,
ainda está distante a afirmação dos adolescentes como sujeitos
19
. É sabido que nos processos
sociais, a transição entre o velho e o novo freqüentemente não se dá de maneira automática e
tranqüila. E ao que parece, o campo de garantia de direitos de crianças e adolescentes resiste a
mudanças desta ordem. Tal resistência pode ser melhor compreendida através do pensamento
de Bourdieu. Para ele
“sabe-se que em cada campo se encontrará uma luta, da qual se deve cada vez, procurar as
forças específicas, entre o novo que está entrando e que tenta forçar o direito de entrada e o
dominante que tenta defender o monopólio e excluir a concorrência (...) Para que um campo
funcione, é preciso que haja objetos de disputas e pessoas prontas para disputar o jogo,
dotadas de habitus que impliquem no conhecimento e no reconhecimento das leis imanentes
do jogo, dos objetos de disputas etc” (1983:89)
Contudo, para que um novo paradigma se afirme, vigore de modo pleno, é necessário
que se enfrente não só as reações daqueles que defendem explicitamente o velho, mas também
o próprio velho que se mantém dentro do novo que se tenta construir. Como explica Schuch, a
promulgação dos direitos da criança não se fez através de um consenso entre visões de mundo
e perspectivas sobre a administração dessa população. Ao contrário, envolveu disputas acerca
do sentido desses direitos e da forma de garanti-los, confrontos que explicitam um
entrecruzamento importante entre relações de poder e de sentido, na medida em que implicam
o debate entre filosofias políticas particulares, expressando muito mais do que valores
consensuais (2006:60). É importante ressaltar, que tais lutas entre posicionamentos políticos e
filosóficos distintos não se encerram no promulgar das declarações, normas e leis. O processo
de implementação das leis torna-se, desta forma, uma brecha, na qual é possível seguir
refletindo e debatendo. Mas ao que parece, no que tange aos direitos das crianças e
adolescentes vivemos um processo rico, mas complexo, de transição. Para que esse processo

19
Segundo Pirotta & Pirotta, o processo histórico que culminou com o advento do ECA demonstrou que a
proteção das crianças e dos adolescentes passa pela defesa de seus interesses jurídicos próprios e pela atribuição
de direitos que compensem sua histórica situação de inferioridade perante os adultos. Pode-se dizer, portanto,
que a proteção está intimamente ligada ao “empoderamento” das crianças e dos adolescentes, atribuindo-lhes
direitos e garantias e evitando-se a instituição de restrições que, sob, a justificativa de protegê-los de sua própria
incapacidade, reiteram a subalternidade atribuída ao grupo (2005:85).
avance é importante o fortalecimento do sistema de garantia de direitos de crianças e
adolescentes. E esse fortalecimento passa pela afirmação do lugar protagônico dos Conselhos
de Direitos da Criança e do Adolescente, novo ente proposto pelo ECA, que precisa deliberar
e decidir sobre os rumos, as prioridades e a destinação de recursos para a política de atenção à
infância e à juventude. A meu ver, estes são espaços fundamentais para que a transição da
intenção à realidade se efetive.
CAPÍTULO 2
A construção de um novo ator político: os conselhos de controle social
2.1. O processo de democratização do país e a movimentação constituinte
O modelo de modernização implementado pelo regime militar a partir de 1964,
representou a exacerbação das relações assimétricas de poder do Estado em relação à
sociedade. Ele sustentava-se em fortes mecanismos repressivos contra os opositores, no
silenciamento das contestações, na suspensão do Estado de Direito e de órgãos de
representatividade (em um primeiro momento), na instauração de uma democracia
representativa de fachada (em um segundo momento), com um artificial sistema bipartidário
convivendo com o terror de estado (Ministério da Saúde apud Faleiros, 2006).
As contradições da política macroeconômica do regime autoritário produziram
impacto nas condições de vida das classes trabalhadoras, assim como começaram a criar
descontentamento em setores de sustentação do regime: os empresários e as camadas médias.
Imerso em uma crise de legitimidade perante a sociedade, o Estado autoritário enfrentava no
início da década de 1980 a crise de suas políticas setoriais, entre as quais a saúde e a
previdência, como resultado da recessão, do desemprego, do aumento da dívida pública e da
queda da arrecadação. Além disso, as denúncias amplamente divulgadas na imprensa
internacional, da truculência do regime militar no enfrentamento das dissidências políticas,
contribuíram para enfraquecer as bases de seu poder. Parcelas das elites política e econômica
começam a retirar seu apoio ao governo e a engrossar as fileiras da oposição. Iniciava-se o
processo de transição democrática, quando se assistiu à constituição de diferentes movimentos
de defesa dos direitos humanos por todo o país (Adorno, 2008).
O Brasil foi, dos países da América Latina, o que viveu o caminho mais longo de
abertura democrática. Um processo longo e tortuoso, que se estendeu por dez anos. Tiveram
uma grande importância nesse processo os movimentos sociais, os sindicatos e diversos
movimentos populares. Identifica-se nesse período o ressurgimento da sociedade civil
20
, que
começa a ganhar espaço no cenário de desgaste da ditadura militar e que teve papel
fundamental na derrocada do regime autoritário. Assim, os direitos humanos transitaram de

20
As concepções de sociedade civil adotadas baseiam-se nas elaborações de Antonio Gramsci, e estão
incorporadas à análise no contexto da tradição gramsciana da teoria ampliada do Estado. Estabelecendo novos
nexos e articulações entre economia e política, sociedade civil e Estado, estrutura e superestrutura, a contribuição
de Gramsci enriquece a teoria marxista “clássica” de Estado. Para o autor, o Estado comporta duas esferas: a
sociedade política, ou Estado, e a sociedade civil, constituída pelo conjunto de organizações responsáveis pela
elaboração e/ou difusão das ideologias, como os sindicatos, partidos, igrejas, imprensa, organizações
profissionais e, mais recentemente, as denominadas ONGs (organizações não-governamentais). São essas duas
esferas que formam o Estado no sentido amplo. Para aprofundamento em relação à noção de sociedade civil,
consultar Bobbio (1982).
uma perspectiva mais ligada à resistência à ditadura militar para uma questão pública,
incorporada à agenda política nacional.
A década de 1980 foi palco de uma progressiva movimentação social em torno das
políticas públicas
21
, como de saúde e educação, que passaram a ser vistas pela sociedade civil
como direitos de cidadania. Entretanto, o debate internacional vinha de encontro a toda a
movimentação cidadã no Brasil. Este sugeria a redução da presença governamental, tanto na
economia como nas questões sociais. Via-se o avanço das idéias neoliberais no cenário
internacional. Tomando a saúde como exemplo, a posição que ganhava força, através do
movimento da Reforma Sanitária, estava em franco contraste com posições de organismos
internacionais, como o Banco Mundial. Corroborando esta afirmação, Mattos relata que em
1987 o Banco publicou um texto provocativo onde afirmava que “a abordagem mais comum
para os cuidados de saúde nos países em desenvolvimento tem sido tratá-la como um direito
do cidadão e tentar prover serviços gratuitos para todos. Essa abordagem geral não funciona.”
(World Bank apud Mattos, 2000:40)
Em 1985, depois da luta pelas eleições direitas, que mobilizou uma grande frente de
oposição ao regime militar, o país teve que conviver com a instauração de um governo civil,
mas eleito de forma indireta. Inaugurava-se a “Nova República”. Em 1986, instalou-se uma
Assembléia Nacional Constituinte, com congressistas já eleitos. Nos espaços abertos pelo
processo de transição política e redemocratização, ganhou visibilidade também, o embate
entre setores privatizantes e segmentos sociais estatizantes. A Constituinte foi a arena de
maior disputa, onde os contrários à expressão dos direitos sociais se articularam em um bloco
conservador. Os setores mais progressistas em contrapartida também se mobilizaram e
“costuraram” alianças.
Os defensores da Reforma Sanitária se articularam na Plenária Nacional de Saúde,
visando à inserção das deliberações da VIII Conferência Nacional de Saúde no texto
constitucional. Em agosto de 1987, foi apresentada no plenário da Constituinte uma proposta
de emenda popular, assinada por 54.133 eleitores, representando 168 entidades congregadas
na Plenária: movimentos populares, centrais sindicais, federações, conselhos, entidades
científicas, entre outras (Ministério da Saúde, 2006). De forma semelhante, o Movimento de

21
Adoto a concepção de política pública tal como explicitada por Raichelis (2000b:59): a linha de ação coletiva
que concretiza direitos sociais declarados e garantidos em lei. É mediante as políticas públicas que são
distribuídos ou redistribuídos bens e serviços sociais, em resposta às demandas da sociedade. Por isso, o direito
que as fundamenta é um direito coletivo e não individual. Embora as políticas públicas sejam de competência do
Estado, não devem representar decisões autoritárias do governo para a sociedade, mas envolvem relações de
reciprocidade e antagonismo entre essas duas esferas.
Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente mobilizou mais de 600 grupos de trabalho
por todo o país, que elaboraram uma lista de recomendações à Assembléia Constituinte sobre
os direitos das crianças e adolescentes e conseguiram assim exercer forte pressão na
formulação da Carta Magna de 1988 (Carvalho, 2000).
Segundo Pilotti & Rizzini, uma das lições mais importantes da década de 1980 foi a
reafirmação do papel protagônico que coube aos movimentos sociais nos esforços orientados
para a solução dos problemas mais agudos das comunidades pobres. Trata-se,
definitivamente, do fortalecimento da sociedade civil, o que, por sua vez, tem um íntimo
relacionamento com o processo geral de democratização, mediante o qual se expandem as
possibilidades de intervenção e controle das maiorias, nos mais diversos âmbitos da vida
coletiva. Esta afirmação criou e garantiu novas opções de participação nos diversos planos da
realidade: na economia, na vida política, na operação do Estado. Intimamente vinculados a
isto vieram os esforço para acelerar os processos de descentralização política e administrativa
e o correspondente reforço das instâncias regionais e locais de decisão, controle e participação
(1999:46).
A Constituição de 1988, conhecida como “constituição cidadã”, aprovada e
promulgada em 05 de outubro de 1988, teve como uma de suas marcas o reconhecimento de
muitos direitos de cidadania, tendo contudo, um conjunto de contradições, fruto da acirrada
correlação de forças que marcou seu processo de elaboração. Segundo alguns analistas a
Constituição Federal de 1988 configura-se como liberal, democrática e universalista,
expressando as contradições da sociedade brasileira e fazendo conviver as políticas estatais
com as políticas de mercado nas áreas da saúde, da previdência e da assistência social.
Conseguiu-se no plano econômico, a defesa de certos monopólios estatais; no plano social, o
avanço dos direitos das mulheres, das crianças e adolescentes, dos índios, dos trabalhadores
rurais; e a inclusão do conceito de seguridade social que compreende direitos universais à
saúde, direitos à previdência e à assistência social (Faleiros, 2000).
É importante ressaltar que são considerados inquestionáveis os avanços no domínio
dos direitos humanos a partir da Constituição de 1988. Segundo Adorno, na experiência
constitucional brasileira, desde o Império, nenhuma outra carta foi tão arrojada no elenco de
direitos civis, sociais e políticos afinados com a agenda dos direitos humanos. Pois nesse
domínio, a Constituição não se limitou a colher enunciados jurídico-filosóficos e a inscrevê-
los na ordem constitucional como se fossem princípios ou orientações gerais a serem
seguidos. Além de nomear os direitos, a Constituição indicou instrumentos para sua garantia e
efetividade (2008: 192). É importante frisar que todo o processo histórico de elaboração da
Constituição, estava impregnado por uma ambiência de efetivação internacional de direitos
humanos e reconstituição de sociedades democráticas, bem como ligado às lutas pelo retorno
ao Estado de direito no Brasil. A Constituição de 1988 alargou o leque de direitos humanos
como também os sujeitos de direitos.
Para Carrara & Vianna, a especificação de sujeitos de direitos, tão cara ao processo
mais geral de re-elaboração dos direitos humanos no século XX, tem seu lugar no texto
constitucional de 1988 em diversos momentos, indicando a necessidade de se reconhecer a
qualidade diferenciada dos problemas que atingem “segmentos” diversos - mulheres, crianças,
povos indígenas etc (2008:353). Subjacente à carta constitucional encontra-se a noção de
sujeito universal de direitos, sob dupla perspectiva. O sujeito titular de direitos individuais e o
sujeito coletivo, a quem devem ser assegurados pela ação do Estado o conjunto de direitos de
cidadania. A Constituição articula direitos individuais e coletivos e os declara indivisíveis. Ao
Estado é atribuída na nova Carta a proteção dos cidadãos contra todo tipo de violação de
direitos humanos, bem como de promoção, mediante políticas públicas, do acesso aos direitos
econômicos, sociais, políticos e culturais (Adorno, 2008).
Passadas duas décadas da promulgação da nova Carta um aspecto que sobressai
daquele processo diz respeito à incorporação de novos personagens institucionais da
sociedade civil na “comunidade de intérpretes da Constituição” (Lessa, 2008:365). E essa
incorporação se dá pela abertura para os cidadãos de novos lugares de representação de sua
vontade, ao garantir em sua formulação e em leis infraconstitucionais como o ECA, a
participação de segmentos organizados da sociedade civil na formulação, gestão e controle
social das políticas públicas.
2.2. A Constituição de 1988 e o controle social
O termo controle social, na sua expressão literal, foi empregado inicialmente na
sociologia com um significado praticamente oposto ao que temos utilizado. Segundo
Carvalho (1995), na tradição sociológica clássica, tem sido usado por diversos autores para
designar, grosso modo, os processos de influência da sociedade (ou do coletivo) sobre o
indivíduo. Na perspectiva utilizada recentemente, controle social corresponde a uma moderna
compreensão da relação Estado – sociedade, onde à participação da sociedade cabe
estabelecer práticas de vigilância e controle sobre aquele.
A participação da sociedade nas decisões tem sido cada vez mais valorizada. O
aprofundamento da idéia de controle social tem envolvido um largo debate acerca das
relações Estado-sociedade civil, e as noções de público e privado na construção de uma esfera
pública
22
, aqui articulada à possibilidade de engendramento de novas modalidades de relação
entre estes entes. Estas modalidades transcendem as formas estatais e privadas, para constituir
uma esfera, na qual o público não pode ser associado automaticamente ao Estado, nem o
privado se confunde com o mercado, ainda que transitem nesta esfera interesses de sujeitos
privados. Sem me propor aprofundar esta discussão, trabalho com a concepção de que o
controle social, sendo um elemento constitutivo da esfera pública, implica o acesso aos
processos que informam decisões da sociedade política, que devem viabilizar a participação
da sociedade civil organizada na formulação e na revisão das regras que conduzem às
negociações e arbitragens sobre os interesses em jogo, além da fiscalização daquelas decisões,
segundo critérios pactuados (Raichelis, 2000a:42)
Na Constituinte, travou-se uma disputa em torno da definição de novos procedimentos
e regras políticas que regulassem as relações do Estado com a sociedade, visando criar uma
nova institucionalidade democrática. Instrumentos de democracia direta como plebiscitos,
referendos e projetos de iniciativa popular, foram instituídos como mecanismos de ampliação
da participação da sociedade nas decisões políticas. Nessa mesma perspectiva a Constituição
de 1988 estabeleceu os Conselhos de gestão setorial das políticas sociais, que constituem uma
das principais inovações democráticas neste campo (Raichelis, 2000b).
A Constituição de 1988 acabou agregando as reivindicações sociais no tocante aos
princípios de participação da população nos processos decisórios e à mudança das práticas de
elaboração e execução das políticas públicas. As políticas de saúde, de educação, da infância e
adolescência e assistência social foram municipalizadas com controle social previsto para os
respectivos conselhos. Estes conselhos devem ser paritários, com o mesmo número de
representantes da sociedade civil e representantes do governo. Em cada área, a Constituição
regulamentou diretrizes que foram posteriormente desenvolvidas a partir de legislação
complementar.
A temática do controle social provoca alterações na organização do poder e do Estado
nas suas relações com a sociedade. Os conselhos surgiram como canais de democracia

22
Esse debate é desenvolvido e aprofundado por Raichelis (2000b).
participativa dentro de relações de poder estabelecidas na ótica da descentralização, como
afirma a própria Constituição de 1988, em seu artigo 198. As relações Estado-sociedade
passaram de um paradigma clientelista-opressor, subordinando à sociedade mediante relações
de poder assimétricas e hierárquicas, para um paradigma da cidadania (Ministério da Saúde,
2006).
Carvalho afirma que no terreno das políticas públicas, a existência de órgãos
colegiados setoriais vinculados ao Executivo, em geral com funções de assessoramento e
articulação, não é fenômeno novo no Brasil. Com composição variada, diversos órgãos desse
tipo, em geral denominados conselhos, têm sido criados no cenário da administração pública
brasileira ao longo da história. Entretanto não há na história do Estado brasileiro nada que se
assemelhe aos conselhos de controle social propostos pela Constituição na atualidade, seja
pela representatividade social que expressam, seja pela gama de atribuições e poderes legais
de que são investidos, seja pela extensão em que estão implantados por todo o país, nas três
esferas governamentais. (1995:30). Embora não sejam os únicos canais de participação da
sociedade, os Conselhos revestem-se de características particulares, pois são canais
permanentes e contam com garantia jurídico/formal. Após a Constituição de 1988 vários
conselhos de representação descentralizada e paritária foram criados, cobrindo diferentes
setores da política social, e outros, já vigentes, sofreram atualizações, assumindo caráter
deliberativo.
2.3. Os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente
No que se refere aos direitos sociais básicos da criança e do adolescente, estes foram
reconhecidos, como discutido anteriormente, com o ECA, que se estrutura em torno de três
diretrizes: a descentralização; a proteção integral; e a participação da sociedade. Essas
diretrizes compõem o arcabouço teórico e político que fundamenta o marco legal do campo da
infância e juventude. A nova lei trouxe mudanças de conteúdo, método e gestão na relação do
Estado e da sociedade civil com aquela categoria social. No que tange às mudanças de gestão
trazidas pelo ECA, na política voltada a crianças e adolescentes, este introduziu uma nova
divisão do trabalho social, não só entre os três níveis de governo – União, Estado e Município
- como também entre o Estado e a sociedade civil organizada.
A descentralização político-administrativa presente na concepção estrutural do ECA
foi consubstanciada no artigo 204 da Constituição. No referido artigo as ações
governamentais seriam formuladas de acordo com a diretriz da descentralização político-
administrativa, cabendo a coordenação e as normas gerais à esfera federal e a coordenação e
execução dos programas às esferas estadual e municipal. Assim, foram eliminadas as práticas
de corte vertical, centralizado e descolado do contexto das realidades locais (Carvalho, 2000).
A construção desta descentralização da gestão de políticas e programas foi completamente
articulada à proposta de participação da sociedade.
O controle social a ser exercido pelos Conselhos de Direitos da Criança e do
Adolescente (nas esferas nacional, estadual e municipal), significa não só a consideração da
diversidade regional e municipal, mas a possibilidade da sociedade civil permanecer
interferindo efetivamente na formulação, implementação e fiscalização de políticas públicas.
A criação dos Conselhos de Direitos está prevista no ECA como uma das diretrizes da
Política de Atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente. Essa Política deverá ser
realizada através da construção e manutenção de um Sistema de Garantia de Direitos, que se
estrutura a partir de três eixos: promoção de direitos; defesa de direitos; e controle social.
O eixo de promoção de direitos abarca a garantia ao acesso universal e prioritário de
crianças e adolescentes aos serviços públicos básicos. Os instrumentos que viabilizam esse
eixo são as políticas sociais implementadas pelo poder executivo e, na sua falta, os programas
especiais de atenção, elaborados pelos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente. O
eixo de defesa de direitos é responsável pela responsabilização do Estado, da Sociedade e da
família pelo não-atendimento, atendimento irregular ou violação dos direitos da criança e do
adolescente. É o espaço dos Conselhos Tutelares, do Juizado da Infância e Juventude, do
Ministério Público, dos Órgãos e Secretarias de Defesa da Cidadania e Segurança, da
Defensoria Pública, dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente e de outras
instituições legalmente constituídas para esse fim. Os instrumentos para viabilizar as ações
desse eixo são medidas administrativas, medidas jurídicas e ações civis públicas iniciadas
pelo Ministério Público. O eixo de controle social é responsável pelo monitoramento da
Política de Atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente e o uso dos recursos
públicos para a área da Infância e Juventude. É o espaço da sociedade civil organizada que
elege seus representantes para participar dos Conselhos de Direitos, além do Ministério
Público na função de fiscalização das ações governamentais e não-governamentais voltadas a
crianças e adolescentes (Wenceslau, 2007).
Os Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente são órgãos do Poder Executivo,
formados de forma paritária por representantes do governo e da sociedade civil organizada e
têm o papel de formulação e controle de políticas públicas na perspectiva de garantirem a
efetivação dos direitos de crianças e adolescentes. Os conselheiros de direitos exercem função
de interesse público relevante e não remunerada, cujo exercício é considerado prioritário,
consoante aos artigos 89 do ECA e 227 da Constituição Federal.
O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) detém
uma representatividade na esfera democrática de conduzir e institucionalizar o novo
paradigma da proteção integral da criança e do adolescente. Desta forma, a sua finalidade
maior é deliberar e controlar a política de promoção e defesa dos direitos da criança e do
adolescente no nível federal. Foi instituído pela Lei nº 8.242, de 12 de outubro de 1991 e
atualmente está vinculado administrativamente à Secretaria Especial de Direitos Humanos,
órgão da Presidência da República. Quanto a sua estruturação, o CONANDA, é um colegiado
de composição paritária, integrado por quatorze representantes do Poder Executivo que são
indicados pelos Ministros de Estado, assegurada a participação dos órgãos executores das
políticas sociais básicas e, em igual número, por representantes de entidades não-
governamentais de âmbito nacional de atendimento, promoção, defesa e garantia dos direitos
da criança e do adolescente. O seu funcionamento é exercido pela Plenária que se reúne em
assembléias ordinárias mensais, com o auxilio das Comissões Temáticas e dos Grupos de
Trabalho.
Dentre as principais competências legais do CONANDA, pode-se destacar: I -
elaborar as normas da Política Nacional de Atendimento dos Direitos da Criança e do
Adolescente, fiscalizando as ações de execução previstas no Estatuto da Criança e do
Adolescente; II - buscar a integração e articulação com os Conselhos Estaduais, Distrital,
Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, Conselhos Tutelares, os diversos
Conselhos Setoriais, Órgãos estaduais, distritais e municipais e entidades não-
governamentais; III - avaliar as políticas nacional, estaduais, distrital e municipais de
atendimento dos direitos da criança e do adolescente, bem como, a atuação dos Conselhos
Estaduais, Distrital e Municipais dos Direitos da Criança e do Adolescente, na execução
dessas políticas; IV - promover e apoiar campanhas educativas sobre os direitos da criança e
do adolescente, com indicação de medidas a serem adotadas nos casos de atentados, ou
violação desses direitos; V – estimular, apoiar e promover a manutenção de bancos de dados,
com o intuito de propiciar o fluxo permanente de informações sobre a situação da criança e do
adolescente; VI - acompanhar a elaboração da Proposta Orçamentária e a execução do
Orçamento da União, indicando as modificações necessárias à consecução dos objetivos da
política formulada para a promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente; VII -
gerir o Fundo Nacional para a Criança e o Adolescente – FNCA (CONANDA 2009
23
).
O Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDCA-RJ) foi criado
pela Constituição do Estado do Rio de Janeiro de 1989 (art. 51 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias) e regulamentado pela Lei Estadual nº 1.697 de 22 de agosto de
1990. Durante seus 17 anos de existência, o CEDCA-RJ esteve vinculado a diversas
secretarias estaduais. Atualmente o CEDCA - RJ está ligado à Secretaria de Estado da Casa
Civil. O Conselho é um órgão normativo, consultivo, deliberativo e fiscalizador da política de
promoção e defesa dos direitos da infância e adolescência no Estado do Rio de Janeiro. Ele
congrega dez representantes do setor público e dez da sociedade civil empenhados em criar as
políticas públicas para garantir os direitos das crianças e adolescentes no Estado. O CEDCA-
RJ possui quatro comissões permanentes responsáveis, cada uma, por uma área específica
dentro do Conselho. Existem ainda comissões temporárias, criadas em ocasiões especiais e
válidas por tempo determinado. O objetivo das comissões é analisar e deliberar sobre um
determinado assunto; submeter suas propostas ao colegiado para aprovação; e encaminhá-las
para execução. As comissões permanentes são: comissão de Políticas Públicas; comissão de
Garantia de Direitos; comissão de Administração; comissão de Comunicação e Articulação
(CEDCA 2009
24
).
O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro -
CMDCA-Rio é um dos conselhos de direito representativos da sociedade civil da cidade,
colaborando na formulação de políticas públicas e setoriais. O CMDCA-Rio propõe e controla
as políticas municipais para a garantia dos direitos fundamentais da criança e do adolescente
previstos em lei. A função do CMDCA é proteger as crianças e adolescentes de qualquer
forma de negligência, abandono, omissão, exploração, violência, crueldade e opressão, além
de organizar o processo de escolha dos Conselheiros Tutelares. O CMDCA – Rio conta com
dez conselheiros representantes de órgãos governamentais e dez de organizações da sociedade
civil. Ele se organiza através de quatro comissões de trabalho: comissão de Políticas Básicas;

23
Informações obtidas através da página eletrônica WWW.conanda.gov.br, acessada em 20 de março de 2009.
24
Informações obtidas através da página eletrônica http://www.cedca.rj.gov.br, acessada em 20 de março de
2009.
comissão de Garantia de Direitos; comissão de Orçamento e Finanças; comissão de
Comunicação (CMDCA 2009
25
).
Os Conselhos de Direitos promovem a cada dois anos as Conferências de Direitos da
Criança e do Adolescente, enquanto espaço de mobilização e participação dos diferentes
segmentos da sociedade envolvidos com a garantia dos direitos da criança. As Conferências
têm como perspectiva a avaliação e o levantamento de diretrizes para a Política de
Atendimento dos Direitos da Criança e do Adolescente. Enquanto os Conselhos de Direitos
têm a função de formular e controlar a execução da política pública, as conferências surgem
como uma das arenas nas quais a participação popular aponta as demandas e se antecipa à
formulação da política de atendimento. Diferentes setores se mobilizam para desenhar os
princípios, diretrizes e pressupostos que devem orientar todo o processo de construção de
estratégias no período seguinte ao das Conferências. Elas começaram a acontecer em 1991.
Desde 1995, a cada dois anos, foram convocadas as Conferências no país, as quais tiveram os
seguintes temas:
Quadro único – Conferências Nacionais dos Direitos da Criança e do Adolescente
1994 I Conferência Tema: Implantando o Estatuto da Criança e do
Adolescente
1997 II Conferência Tema: Crianças e Adolescentes, Prioridade Absoluta
1999 III Conferência Tema: Uma década de história rumo ao terceiro milênio
2001 IV Conferência Tema: Crianças, adolescentes e violência
2003 V Conferência Tema: Pacto Pela Paz – Uma construção possível
2005 VI Conferência Tema: Controle social, participação e garantia de direitos –
por uma política para crianças e adolescentes
2007 VII Conferência Tema: Concretizar Direitos Humanos de Crianças e
Adolescentes: Um Investimento Obrigatório
A cada dois anos o CONANDA define um tema para a Conferência e eixos de
discussão, que devem ser a pauta de Conferências em todo o país. É proposto a todos os
municípios do país que realizem Conferências, que levam suas deliberações para
Conferências Regionais, e em seguida uma Conferência Estadual. Assim, todos os estados da
federação participam com delegados na Conferência Nacional. Até 2005, as Conferências

25
Informações obtidas através da página eletrônica http://www.cmdcario.rj.gov.br, acessada em 20 de março de
2009.
possuíam status de recomendação, e a VII Conferência, realizada em 2007, tornou-se um
marco na história das Conferências, pois teve caráter deliberativo.
Segundo dados do CONANDA, em 2007 foram realizadas 3.186 Conferências dos
Direitos da Criança e do Adolescente no país, sendo 2.754 Conferências Municipais, 405
Regionais e 27 Estaduais e do Distrito Federal. A realização de conferências municipais
alcançou o índice de 49,52% dos municípios brasileiros. Os dados indicaram ainda que as
conferências estaduais congregaram um público estimado de 13.606 pessoas. Da VII
Conferência Nacional participaram cerca de 1500 pessoas, das quais 1.200 eram delegados.
Um diferencial da última Conferência foi seu tema, que estabeleceu uma vinculação
clara e direta dos direitos da criança e do adolescente com os direitos humanos, o que para o
CONANDA supõe uma postura diferente de lidar com o tema, indicando para os governantes,
em todos os níveis, e para a sociedade em geral, o dever ético, moral e legal de investir na
infância e juventude no país. Os eixos que balizaram a discussão dos direitos foram: o Plano
Nacional de Convivência Familiar e Comunitária; SINASE – Sistema Nacional de
Atendimento Socioeducativo; e o Orçamento. (CONANDA 2009). As Conferências, pelo
menos em tese, seriam a expressão máxima da democracia participativa, onde todos aqueles
envolvidos com a garantia dos direitos das crianças e adolescentes poderiam opinar nos rumos
da política de atendimento. Em contrapartida, refletem uma estrutura verticalizada, onde o
CONANDA define os temas a serem debatidos. Mas ao mesmo tempo, essa estrutura
possibilita que nos mais diferentes lugares do país, as prioridades definidas pelo CONANDA
sejam debatidas.
2.4. A experiência dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente – avanços e
tensões do campo de garantia de direitos de crianças e adolescentes
Os entrevistados em geral usaram bastante o tempo das entrevistas “nas preliminares”,
demorando para chegar no “sexo”. Em algumas entrevistas, como relatado anteriormente,
tanto eu quanto meus entrevistados precisávamos de um tempo para conseguir falar do tema,
havia uma tensão no início e uma tendência em falar de coisas que eram mais confortáveis. Eu
tirei as pessoas de uma certa zona de conforto, ao propor-lhes um tema que é incômodo. Eles,
contudo, trouxeram um material muito rico como “pano de fundo” das discussões que eu
pretendia desenvolver, pois pude construir um certo retrato da situação vivida pelos
Conselhos e também do campo de garantia dos direitos de crianças e adolescentes. Não
pretendo aprofundar essas reflexões, que não constituem o foco deste trabalho, embora elas
tenham se apresentado com muita expressividade na maioria das entrevistas. Elas trazem
importantes pistas a serem melhor desenvolvidas em esforços investigativos posteriores.
Contudo, acredito que esse breve retrato pode auxiliar no entendimento do campo, de seus
desafios e possibilidades.
Paulo fez uma apresentação do papel dos Conselhos na história recente de nosso país,
ressaltando a importância do controle social para uma sociedade que buscava democratizar-se
e envolver-se mais nas políticas públicas. Em tom eufórico ele me dizia que
“defendo que os Conselhos são o que tem de mais bonito no resgate da democracia
participativa, na história da redemocratização do país. É algo muito novo porque numa
trajetória de vinte anos de Constituição é muito pouco. Um país que a gente vai relendo a
história desde o início da República. De golpes e golpes, uma golpeação. Tivemos um período
muito curto de democracia e que já vinha um golpe militar. Você imagina a loucura que é a
história democrática desse país. O Conselho é o que há de mais belo. Acho que os
constituintes até por toda essa trajetória de golpes e desencontros políticos criam esse
instrumento chamado de controle social e participação da comunidade.”
Nessa perspectiva de maior envolvimento da sociedade na formulação de políticas
públicas, Dario saldou o avanço conquistado com o ECA, no sentido de possibilitar ao Poder
Judiciário cobrar do Poder Executivo a implementação de políticas, especialmente as
aprovadas pelos Conselhos. Ele ressalta inclusive o avanço que a própria noção de políticas
públicas representa, ao ser incorporada aos pressupostos dos atores ligados aos direitos das
crianças. Como afirmou, “política pública hoje é um instituto diferenciado, que está na
Constituição de oitenta e oito, mas é um instituto novo. Não se falava em políticas públicas.
Hoje se fala e hoje se considera direito fundamental a implementação de políticas públicas.”
Dario fez uma afirmação utilizando linguagem bastante interessante, considerando-se que
meu foco de discussão é sexualidade. Ao relatar como ele vê a experiência dos Conselhos,
afirma:
“a experiência democrática de participar de um Conselho, ela é uma experiência muito excitante
e pouco produtiva. Ela é excitante porque ela conduz aos debates permanentes, mas ela é pouco
produtiva porque existem correntes que freiam qualquer avanço. Como se estivéssemos
degladiando e não estivéssemos como companheiros de uma jornada.”
Essa idéia de que os Conselhos são uma proposta importante de democratização na
formulação de políticas públicas, mas que ainda não conseguiu se efetivar em sua plenitude, é
apresentada por outros entrevistados. Regina relata que nos seus primeiros contatos com o
CMDCA não teve uma boa impressão, “porque eu ia para as assembléias e ouvia um
blábláblá sem fim. Para quem não entende... Eu comecei a ir para as assembléias e percebi
que aquele troço era um saco. Falava-se muito e fazia-se muito pouco”. Essa idéia de que há
muita discussão e pouca execução também aparece na avaliação de Dario que afirma haver
questões dentro do Conselho, “que predominantemente elas são de caráter discursivo. Elas
não passam do discurso, do debate”.
Contudo, o aspecto mais enfatizado pelos entrevistados foi a existência de lutas
internas no Conselho, que aparecem de diferentes formas. Os entrevistados comunicaram as
dificuldades de convívio democrático entre governo e sociedade civil, bem como as disputas
entre diferentes tendências dentro da própria sociedade civil. Dario explanou sobre o processo
vivido ao longo dos anos, de construção de uma convivência mais harmoniosa entre governo e
sociedade civil nos Conselhos de Direitos. Relata uma evolução nessa relação, pois
“no início era como se nós tivéssemos numa arena conselheiros governamentais contra
conselheiros não-governamentais. Então era como se todos fossem inimigos. Até que nós
avançamos, e houve muito investimento nesse sentido para que nós desmistificássemos essas
questões de ser governo, não ser governo, ser governo e ser oposição permanente. Começamos
a nos dar conta de que nossos objetivos são comuns, a gente tem que discutir políticas
públicas. Havia até um certo ódio. Quando aparecia alguém do governo para falar, aparecia
logo alguém da sociedade civil para desmontar aquele discurso. Mas isso já não há mais.”
Questiono se não há mais rixas e ele diz que não há mais de uma forma “tão rotineira”.
Ressalta que há diferenças, e acha bom que elas existam, mas relata um avanço, ao afirmar
que “hoje nós já nos sentimos companheiros”. Contudo, se por parte da sociedade civil
historicamente houve uma postura de oposição permanente ao governo, por parte dos poderes
constituídos há uma desqualificação do papel do Conselho. Segundo Dario, “o Conselho não
é reconhecido como um instrumento de formulação de políticas públicas. Não é reconhecido
pelo Executivo, nem pelo Legislativo, porque ele sequer é conhecido”. Ele relata um total
desconhecimento de setores dos primeiros escalões dos governos, pelo menos no Estado do
Rio de Janeiro, onde ele atua, do papel deliberador de políticas públicas delegado aos
Conselhos pelo ECA. Quando não há desconhecimento, há uma desqualificação que leva a
que os representantes dos governos nos Conselhos sejam muitas vezes funcionário de baixo
escalão, que não têm poder efetivo de representação de seu órgão, não têm poder de decisão,
pois o que é debatido e deliberado nos Conselhos, não tem rebatimento concreto nas ações das
Secretarias de Governo. Dario relata que para enfrentar essa realidade, sua primeira atitude
como presidente do CEDCA foi, utilizando inclusive o status que o cargo de desembargador
lhe dá, visitar os secretários de estado para apresentar o Conselho. E relata que para sua
surpresa
“todos, inclusive aqueles que têm assento no Conselho, não sabiam o que era o Conselho, o
que fazia o Conselho. Todos. Inclusive eu tive que dizer para alguns: “Mas a sua secretaria
tem representação lá”. Inclusive eu tive que pedir para eles, eu disse assim: “Eu preciso que
você tenha uma representação que seja mais autêntica. Porque não adianta você botar um
funcionário de quinto escalão que vai lá bater ponto e nem sequer diz para você o que foi
discutido lá. Então não adianta nada a gente discutir sexo dos anjos ou discutir uma política de
combate à exploração sexual de crianças e adolescentes se você não tiver servidores dessa
área, de ação social, de segurança pública, do Judiciário que leve isso a cabo, que leve essas
discussões, essas deliberações aos organismos de decisão.”
Essa desqualificação do papel dos Conselhos por parte dos governos faz com que eles
continuem a definir suas políticas e projetos sem que isso seja sequer debatido pelos
Conselhos. Dario foi enfático nesse aspecto, ao relatar que, “ainda hoje, a Secretaria de
Educação têm lá os seus projetos, nunca submeteu um projeto ao Conselho porque não
reconhece o Conselho como fórum. O secretário de saúde, idem. Eu falei isso tudo para eles.
O que eu estou falando para você. Eu fui falar para eles”.
O entrevistado ressaltou que só conseguiu debater esses temas diretamente com os
secretários de governo, em função da poderosa posição que ocupa no Judiciário. O que ele
avalia como uma importante contribuição que dá ao Conselho, ao afirmar que “isso é uma
outra questão que dá um status de poder ao Conselho. O presidente do Conselho é um
desembargador que pode chegar e falar com o secretário como eu falo. Não só é um
desembargador como tem uma história”. Contudo, nesse ponto, o desembargador também
relata as dificuldades que mesmo ele, enfrenta para assumir um lugar no CEDCA, e que sofre
discriminações que partem tanto do Judiciário quanto do Executivo e da sociedade civil. Em
relação a ser discriminado pela Justiça ele explicou:
“como eu acredito que a mudança se faz dessa forma, no investimento e no respeito aos
direitos fundamentais de crianças e adolescentes, eu sempre me dediquei a essa área do
Direito. Não é uma área muito valorizada pela Justiça. A Justiça olha para a área da Infância e
Juventude como uma área de menor importância. Tanto que antes, o juiz era “juiz de
menores”. Não só pela questão semântica, pela questão da nomenclatura, porque antes,
crianças e adolescentes eram chamados de “menor”, mas também porque tradicionalmente
ali se supunha que estava um juiz de menor capacidade intelectual, de menor
conhecimento jurídico, de menor capacidade de trabalho. O que sempre foi um engano,
porque neste lugar sempre estiveram grandes homens que deixaram seu nome na história (...)
Eu tive essa antevisão, de me dedicar àquilo que alguns colegas acham que foi uma perda de
tempo, um atraso do seu ponto de vista de carreira para mim. Mas o que eu discordo,
absolutamente. Foi sempre para mim, bastante realizadora a minha participação nessa área.”
[grifo meu]
Em relação à sociedade civil, Dario se refere a uma antiga polêmica do campo, onde
muitos setores não concordam com a presença do Judiciário nos Conselhos, na perspectiva de
que a composição deve se dar de forma paritária entre representantes do Executivo e da
sociedade civil, e o papel do Judiciário é fiscalizar esse ente, não fazer parte de sua
composição, já que os Conselhos seriam considerados órgãos do Executivo. Contudo, a lei de
criação do CEDCA aponta em sua composição uma representação do Judiciário. Em relação à
discriminação sofrida por ele, por parte da sociedade civil, Dario afirma que:
“ao mesmo tempo há segmentos da sociedade que discriminam o Judiciário. É uma
discriminação de parte a parte. Tanto que há no CONANDA uma resolução que sustenta que o
poder Judiciário não deve fazer parte dos Conselhos, o que é discriminatório. Porque, se por
um lado a gente tem o poder Judiciário elitizado, o poder Judiciário encastelado, o poder
Judiciário que não se mistura, o poder Judiciário que não discute, que decide, que manda; por
outro lado, quando o poder Judiciário se dispõe a ir ao encontro da sociedade para debater a
questão social, para discutir o próprio Judiciário, um segmento da sociedade civil, ou do
próprio governo, discrimina o poder Judiciário: “não, continua no seu castelo, continua no seu
poder, continua distante.”
Dario reafirma o sentimento de discriminação aos membros do Poder Judiciário nos
conselhos, relacionada inclusive à criação de um estereótipo, o de que um juiz que tenha
assento num conselho, não é um juiz “normal”:
“Então, esse preconceito eu enfrento dos dois lados. Eu enfrento o preconceito enquanto
membro do poder Judiciário que se dispõe a servir à sociedade na área da infância e juventude,
e aí vem aqueles estereótipos de que “ele quer aparecer, ele quer ocupar um cargo político, ele
gosta de mídia, ele é polêmico”. Isso tudo faz parte do estereótipo que se cria para marcar
espaço, para marcar limites: “esse cara não é juiz normal, ele é um juiz que gosta de aparecer,
que ele gosta de polêmica”. (...) Aí, por outro lado, eu sou discriminado porque eu vou ao
encontro da sociedade para sentar, debater e discutir (...) Uma questão interessante,
contraditória. E a gente enfrenta com serenidade, porque a gente acredita naquilo que faz. E
faz porque gosta daquilo.”
Apesar de seu envolvimento com o CEDCA desde sua criação, há dezessete anos,
Dario não deixa de fazer uma crítica ácida a tais espaços de participação, afirmando a
existência de uma postura pouco ativa e propositiva dos conselheiros. Ele afirma que há um
“fosso intransponível”, que faz com que, em sua opinião, o Conselho permaneça isolado e
sem poder deliberativo:
“Nós não nos comunicamos. Somos incapazes de chegar à sociedade como Conselho. A gente
não vai à rua. Se reúne duas vezes por mês e aquilo acaba ali. Quando as pessoas vão, o
governo não vai. Mas quando as pessoas vão, elas se limitam a assinar, assistir, discutir ,
debater. Dos vinte, nós temos uma meia dúzia que participa dos debates, os outros são mero
assistentes.”
Esse isolamento dos Conselhos contribui inclusive para que não participem das
discussões sobre orçamento, em função de o Legislativo, que discute e aprova o orçamento,
também não reconhecê-los como definidores de políticas. E, como bem disse Regina, “não se
faz política pública sem dinheiro”. Mas para que possam ser espaços efetivos de controle
social, também seria necessário que os Conselhos contassem com um corpo de funcionários
que desse respaldo técnico à sua ação política. Em relação a esse tema, levantado por vários
entrevistados, uma dificuldade enfrentada pelos Conselhos para ocupar o papel que a
legislação lhes outorgou, e que estaria ligada ainda à desvalorização do executivo, diz respeito
à pouca estrutura que é dada para seu funcionamento pelos órgãos governamentais, o que
sobrecarrega os Conselheiros e dificulta que o Conselho atue em diferentes frentes. Regina
descreveu este aspecto problemático:
“durante os seis primeiros meses desse ano tomou o Conselho de assalto a eleição do
Conselho Tutelar. Que é uma atribuição muito louca. A gente fazer uma eleição. É uma
loucura. Porque o TRE dá apoio, mas até as zonas eleitorais quem divide somos nós
conselheiros. Você imagina, eu, bailarina, a assistente social... tendo que organizar uma
eleição. Então esse primeiro semestre foi dedicado basicamente à questão da eleição do
Conselho Tutelar.”
Dario também foi enfático ao afirmar que fez um grande investimento junto ao
governo estadual para garantir uma infra-estrutura ao Conselho, que não existia,
especialmente em relação a um corpo de funcionários que viabilize seu funcionamento e
assessore os Conselheiros tecnicamente. Pois segundo ele “nenhum conselheiro, por mais
dedicado que seja, é capaz de chegar lá, discutir e fazer executar suas deliberações. A gente
não conseguia publicar uma deliberação, hoje a gente consegue”.
Vitória também relatou dificuldades na sociedade civil em ocupar esse lugar de
conselheiro, pelo ônus que isso representa para as organizações, por ser esta uma função não
remunerada. Para assumir efetivamente a função de conselheiro, é necessário um grande
investimento em tempo e dedicação e, em geral, são os quadros mais qualificados das
organizações que vão para a representação política. Segundo ela, sua instituição durante um
período “tinha dado um tempo, por conta exatamente de ser uma função não remunerada”. Ela
acrescenta que “essa questão da atuação do Conselho, você tem uma dificuldade para manter
essa atividade com qualidade”. Se os Conselhos, além do envolvimento que já exigem, ainda
não contarem com infra-estrutura de suporte para o exercício de suas atribuições, eles acabam
não conseguindo assumir seu papel. A maioria das organizações não tem condições de
disponibilizar integralmente um de seus quadros de direção para a atuação no Conselho, pois
isso representaria prejudicar a contribuição desse profissional na condução das ações da
organização. E, em função da crescente dificuldade enfrentada pelo terceiro setor na captação
de recursos financeiros para seus programas e projetos, as equipes tendem a ficar mais
enxutas. Assim, fica cada vez mais difícil que as organizações da sociedade civil possam se
dedicar a essa função.
Em contrapartida, ouvi de outros entrevistados, críticas em direção contrária: afirmam
que o espaço dos conselhos, especialmente os municipais, é percebido por algumas
instituições não-governamentais como um espaço de busca de alternativas de financiamento e
não como espaço de formulação. O Conselho capitalizaria as instituições proporcionando a
elas visibilidade pública, maior legitimidade junto a potenciais instituições de fomento e
informação sobre alternativas de financiamento. Por este motivo, as instituições teriam uma
relação utilitarista com os Conselhos, o que faz com que haja inclusive possibilidade de
processos de cooptação destas instituições não-governamentais pelo governo, que ganha o
voto de alguns representantes da sociedade civil, acenando com recursos para tais instituições.
Isto é apontado tanto por entrevistados que são conselheiros governamentais, quanto pelos
próprios não-governamentais. Faleiros apontou esse aspecto ao afirmar que “vive-se um
processo de conflito entre um modelo de garantia de direitos, descentralizado e participativo e
uma política clientelista, de distribuição de favores, cooptadora e fragmentada, que usa os
recursos públicos para fins privados” (2000:50). Paulo levantou esse aspecto em relação ao
Conselho Municipal, já que naquele espaço muitos projetos são aprovados. Ele próprio,
representante não-governamental, avaliou:
“acho que um dos problemas que nós vivemos hoje nos municípios (estou falando da
sociedade civil) é a carência de recursos para manter seus projetos. Que muitas vezes leva o
fulano a pleitear espaço [no Conselho] na lógica de imaginar que aquilo vai lhe abrir portas ou
fazer entrar recursos. Na lógica da barganha ou muitas vezes farinha pouca, meu pirão
primeiro. Eu vou para garantir nesse bolo qual é a minha fatia. Isso é uma mera ilusão. Alguns
se convertem e percebem o equívoco e dão rumo à vida. Outros ficam nesse emaranhado em
volta desse negócio. No nível estadual é diferente porque ele não tem dinheiro para pagar
projetos de ninguém. É de alguma forma uma projeção política.”
Dario reforça este mesmo aspecto, mas em relação à experiência do Conselho
Estadual, afirmando que, também na esfera estadual, há interesses que não só o de visibilidade
e projeção política, mas interesses institucionais, que não necessariamente se coadunam à
perspectiva de representação de um coletivo e de formulação de políticas públicas. Dario se
diz muito a vontade para fazer essas críticas, pois “eu não ganho nada para ser conselheiro e
nem quero nada do Conselho para mim”. Mas afirma ver que
“na sociedade civil as entidades que estão ali, elas buscam os seus interesses institucionais.
Então são aqueles projetos que já desenvolvem, sempre procurando puxar a brasa para sua
sardinha. Isso tira um pouco da pureza conceitual de Conselho que representa a sociedade
civil. É como se você tivesse um deputado da bancada ruralista, que vai lá defender os seus
boizinhos. É como se você tivesse um deputado médico, que vá lá defender o seu hospital, não
a saúde como um todo. Se ele fosse defender a saúde, ele estava defendendo a saúde como
política pública, mas o cara quer defender o seu hospital, quer defender o seu curral. Então
isso se reproduz, de uma certa forma, dentro do Conselho.”
A complexa relação dos movimentos sociais brasileiros com o Estado tem como um
de seus nódulos principais, a questão financeira, segundo Gohn. A autora afirma que todos os
movimentos reivindicam e apregoam a autonomia e a independência ante o Estado. Mas, na
prática, o total isolamento nunca existiu, porque não é possível obter as demandas que os
movimentos populares reivindicam fora da esfera estatal. O Estado tem definido linhas de
atuação aos movimentos à medida que cria programas sociais, com subvenções e
financiamentos. A questão estaria na postura que o movimento adota perante essa realidade
(2000:32).
Paulo também fez uma forte crítica à forma como os poderes lidam com os Conselhos.
Em relação ao executivo ele afirma que há um movimento de engessamento dos Conselhos,
que se deve à sua vinculação a uma secretaria de governo, que faz com que as decisões dos
conselhos fiquem presas no emaranhado burocrático do Poder Executivo: “delibera, mas não
executa”. E ainda há uma tradição nos governos de decidirem sozinhos. Assim, mesmo que a
lei afirme que as políticas devam ser debatidas e deliberadas no espaço dos Conselhos, os
governantes, fazem um jogo de cena, enviando representantes mas, em última instância, são
eles que decidem e executam os programas e projetos de sua conveniência. Ele justifica suas
opiniões dizendo:
“porque a lei diz que ele [o Conselho] é autônomo, é paritário, é deliberativo, mas os vincula a
uma secretaria, a um órgão administrativamente. Os caras, sabendo disso, criam muitas vezes
na trajetória, um emaranhado que você ganha, mas não leva. Delibera, mas não se executa.
Então, na verdade os Conselhos sofrem hoje, pena que em tão pouco tempo já isso, a sensação
de cair no descrédito, de ser um arauto que fala para ninguém, que o que diz e anuncia nada
acontece. Só fica belo no papel, mas não se executa, não se cumpre. Não porque não tenha
condição, mas porque a nossa elite tem a cultura de: sentei no trono, sou dono do cofre, sou
dono da chave. Eu tenho a coroa, o trono e o cetro. Isso vale para prefeito, isso vale para
governador, isso vale para secretários.”
O entrevistado acrescenta que essas posturas acabam trabalhando para o esvaziamento
desse rico processo de democratização do qual os Conselhos são instrumentos, através do
fortalecimento da democracia participativa. Paulo ressalta que esse processo “leva a uma
desmotivação de quem compõe aquele fórum e ao mesmo tempo, um descrédito por parte da
sociedade”. O Conselho passa a ser questionado inclusive na sua pertinência. Mas ele ressalta
que
“acho que eles [setores que estão fora dos Conselhos] sabem que o problema não está no
Conselho em si, mas sim naqueles que deveriam com seriedade pôr em execução, em prática,
aquilo que os conselheiros decidem (...) Os três poderes entender o papel e a importância que
têm esse espaço democrático. Na verdade, ouvir esse Conselho, e a quem é de direito executar,
implementar o que esse Conselho delibera. Não sei se consciente, inconsciente, conivente ou
inconiventemente, cada um, como poder autônomo e independente nas três esferas de
governo, e nos três poderes, dão o esvaziamento. Tem até o discurso de valorização, mas tem a
prática de desvalorização.”
Em contrapartida, o Judiciário, na figura do Ministério Público que teria o papel de
fiscalizar a implementação do que é deliberado pelos conselhos, não cumpre o seu papel de
fiscalizar os governos. Essa é uma crítica unânime dos conselheiros municipais e estaduais da
sociedade civil entrevistados. Segundo Paulo, o Ministério Público que teria o poder de
acionar judicialmente o executivo, não o faz, segundo ele por acordos estabelecidos entre os
poderes constituídos. Regra esta que não valeria na mesma medida, para deslizes que por
ventura as organizações da sociedade civil venham a cometer, por isso ele questiona
provocativamente:
“Onde está o Ministério Público que é o fiscal da lei que nem precisava ser provocado? Uma
vez que percebe que o deliberado não foi implementado pelo Executivo, que ele tem a
obrigação de implementar, porque a sua representação já estava naquele fórum democrático,
deliberativo. E, quando cria o bloqueio, o Ministério Público já devia imediatamente assumir.
Mas por razões que não se justificam, mas a gente até entende, de conivência, de aliança de
governo e dos grandes e dos poderosos que sempre tem quando interessa. Porque quando os
chamados delitos, que eu chamo isso de delitos, são cometidos por alguma instituição da
sociedade civil, o Ministério Público já se põe de pronto para ser um fiscal da lei, cumpra-se a
lei. Quando isso acontece por parte do poder constituído, quer o Executivo, ou Legislativo, ou
sei lá, até mesmo o Judiciário, quando abusa e arbitra do seu poder, o Ministério Público não
está com a mesma prontidão.”
Busquei a opinião de Ana acerca da efetividade das ações do Conselho visto que ela
seria uma das poucas entrevistadas representante do governo. Em determinado momento da
entrevista a questionei sobre a efetiva capacidade do Conselho em formular políticas e ela me
fala da existência de “duas realidades”. A primeira delas reforça o êxito da convivência entre
o governo e a sociedade civil nas comissões de trabalho:
“então, a experiência que estou relatando para você é experiência que eu já vivi aqui com as
duas comissões. Muito interessante. A gente trabalhou muito bem. Tanto lá na comissão de
garantia de direitos, quanto agora, com a comissão de políticas públicas, nós fizemos, eu
avalio, um excelente trabalho (...) Então, nosso papel hoje, cada vez mais, é fortalecer para que
essa discussão nas comissões se dê de forma bastante significativa. A gente está tentando com
isso fortalecer. Eu acredito que esse seja o caminho. Porque a gente aqui dentro consegue, aqui
as comissões conseguem conversar, discutir, negociar. Eu acho que esse é o caminho.”
Insisti para saber a outra realidade da experiência dela como presidente, e então Ana
procurando as melhores palavras diz:
“mas aí tem um outro lado, o outro lado agora, assumindo a presidência, compondo a mesa
diretora. Então, assim, essa negociação, ela é bastante árdua. Mesmo que as coisas sejam
pactuadas em comissão, elas ficam pactuadas em mesa diretora, é possível que quando chegue
em assembléia as coisas mudem. Porque a assembléia é soberana. É o espaço mesmo público,
onde a gente negocia efetivamente. Então, quando chega lá é que realmente muitas das vezes o
conflito se dá, é normal, natural (...) Então, assim, é uma situação que ainda... acho que a gente
pode avançar. Sempre avalio que a gente pode avançar esquecendo um pouco dessa coisa da
bancada governamental, da bancada não-governamental, porque a gente tem um objeto
comum que é a criança e o adolescente (...) Então o grande desafio é alinhavar para ter esse
objeto comum sempre como centro das nossas questões.”
Também busquei saber de Ana sobre o posicionamento dos governos em relação aos
conselhos de direitos. Perguntei se ela achava que os governos têm conseguido levar em conta
o que é proposto e deliberado nos Conselhos, por julgar que este é um aspecto fundamental
para refletir sobre a efetividade do que se propõe que sejam os Conselhos. Não foquei minha
pergunta no contexto local, contudo, como ativista do campo, sabia do difícil relacionamento
entre o governo municipal e a sociedade civil nessa gestão do Conselho, e todos os
entrevistados anteriores tinham de alguma forma abordado esse problema, falando do quanto
a gestão municipal desrespeitava o Conselho como espaço autônomo e deliberativo. Assim,
busquei a opinião de Ana sobre esse tema, e ela me responde:
“Olha: eu vou falar um pouco da realidade que eu vivencio mais, que é o governo no âmbito
do município. Eu digo que sim. Porque assim, o Conselho é uma instância de deliberação e os
governos, mesmo que de alguma maneira não concordem, eles precisam acatar. Porque existe
essa soberania. O Conselho está aqui pensando e formulando políticas. Então, assim, se não
acata têm de responder em alguma instância por isso. Então a gente tem procurado fazer desse
trabalho um trabalho autônomo. Aí você me pergunta: isso tem acontecido efetivamente? A
gente está batalhando, a gente está costurando para que isso ocorra. Agora, cem por cento, isso
acontece? Seria bastante mentiroso da minha parte dizer que sim. Mas a gente está
construindo.”
As outras duas representantes do CMDCA também explicitaram o quanto no
município do Rio de Janeiro tem sido difícil o processo de construção de um lugar de
autoridade para o Conselho frente às gestões municipais. Elas denunciaram que a prefeitura
teria utilizado os recursos do Fundo Municipal da Criança e do Adolescente em projetos
próprios, sem autorização do Conselho, e de que os representantes governamentais no
Conselho utilizaram de diferentes estratégias para dar respaldo a essas atitudes, o que gerou
obstáculos para que o Conselho investisse em outros temas e causou embates bastante difíceis
entre o governo e a sociedade civil. Além disso, ampliou-se o confronto com o Ministério
Público. Regina que assumiu a presidência do conselho e agora é vice-presidente, durante
toda a sua entrevista, ressaltou as dificuldades enfrentadas na relação governo–sociedade
civil:
“agora eu sou vice-presidente de uma gestão que também já está completamente conturbada.
Porque ele [secretário de assistência social] novamente tirou o recurso do Fundo. Eu na
presidência do Conselho ele retirou recursos do Fundo e eu entrei com uma representação
junto ao Ministério Público. Estou até pensando, inclusive, em denunciar o Ministério Público
Estadual agora ao Ministério Público Federal, por omissão. E agora, na última assembléia,
nessa segunda-feira [agosto de 2008], teríamos que aprovar o Plano de Aplicação de 2009 e de
2008 também. Porque eu não consegui aprovar até agora [o de 2008]. Porque a coordenação
da comissão era do governo e o governo não ia às reuniões porque o que o governo queria era
aprovar a prestação de contas de 2007 e fazer com que o plano de aplicação de 2007
continuasse valendo em 2008. Para garantir que eles tirassem mais recursos do Fundo para
financiar o Família Acolhedora [um projeto governamental].”
O poder dos setores ligados à assistência social na área da infância é algo questionado
por algumas entrevistadas. No Rio de Janeiro, e acredito que no restante do país não seja
diferente, a área da infância historicamente esteve muito ligada à assistência social. Assim, os
Conselhos em geral são ligados a essa área do governo, que assume a condução das atividades
no Conselho e coordena a ação das outras secretarias. Tanto que ao relatar a situação de sua
Secretaria no Conselho, Ana afirmou que o Secretário de Assistência Social, em determinado
momento, decidiu pela saída da Secretaria da composição do Conselho e depois definiu por
seu retorno. Essa vinculação retrata concepções em relação ao papel do Conselho, e fala
também de concepções ligadas à própria forma de lidar com a questão da infância e
adolescência.
Célia reforça essa crítica ao fazer uma leitura sobre como os Conselhos tem lidado
com alguns temas. Ela afirma que há na área uma tendência a reduzi-la à assistência, e que na
própria assistência ainda há um olhar mais reducionista e equivocado, que se exprime na
composição dos quadros da secretaria, que entende que quem deve atuar na assistência social
são apenas assistentes sociais e não equipes multiprofissionais. Ela afirmou que a questão da
infância:
“é uma questão do sistema de garantias [do direito de crianças e adolescentes], e nesse sistema
de garantia um dos atores é a assistência social, como é a saúde, como é a educação. Então
assim, há uma tendência também de puxar, da assistência puxar, “não, isso é problema meu”.
Aí você vê a Secretaria Municipal de Assistência Social, tá coalhada de assistente social, até
assim: secretária executiva do Conselho é assistente social, não é uma secretária executiva,. Aí
todos os quadros, na grande maioria são assistentes sociais. Eu trabalhei quando ela era
Secretaria de Desenvolvimento Social (...) a gente tinha na equipe central advogado, arte-
educador, músico, pedagogo, eu sou pedagoga. Entendeu!? Então quer dizer, dá uma
oxigenada no campo e traz outras perspectivas.”
Como já relatado, historicamente as crianças e adolescentes foram tratados pela
perspectiva da filantropia, da caridade. A área passou a contar com outro paradigma, que tem
como base a noção de direito, mas ao que parece, as concepções em que se organiza a política
de atendimento ainda não mudaram completamente. E o embate entre essas concepções acaba
se apresentando mais claramente nos Conselhos:
“O Conselho acabou de fazer pela primeira vez um plano operacional onde a gente conseguiu
trazer demandas diferentes do que era tratado antes. Porque antes o Conselho era tratado mais
como um braço da assistência [social]. Era o Conselho bem da assistência. Então se pensava
muito em formas para amenizar a questão da falta de comida, os direitos básicos que deveriam
ser resolvidos pelo poder público e eram transferidos. O que a gente pensa é que o Conselho é
exatamente o contrário. O Conselho é exatamente para fazer políticas especiais que possam vir
a contribuir na implementação de políticas públicas. Então, o Plano de Ação que a gente
conseguiu aprovar 2008/2009, já traz essa discussão das drogas. Ainda pelo lado da questão da
prevenção e dependência e por conta da história do crack. E DST/aids. Mas eram coisas que
antes nem eram tocadas. Agora já aparece no plano de ação, na perspectiva de fazer uma
discussão mais na questão de políticas públicas.” (Vitória)
Raichelis (1998) aponta que os Conselhos são espaços de disputa de concepções, de
propostas e projetos políticos, espaços de confronto, mas também de negociação, articulação e
construção de alianças, nos quais os avanços ou recuos são mediados pela correlação de
forças num dado momento. Contudo, a autora apresenta um aspecto importante já relatado,
que diz respeito ao fato de nem sempre o resultado depender dos sujeitos presentes naquele
espaço, pois estes atores muitas vezes não dispõem da representatividade e legitimidade
necessárias, como também não detêm o poder de decisão requerido, como é o caso recorrente
no segmento de representantes governamentais. Todavia, um aspecto fundamental é que esse
embate de concepções não se dá somente entre governo e sociedade civil, ele se coloca
também entre diferentes tendências ou posições existentes na sociedade civil. Meus
entrevistados demonstraram claramente a exisncia de um embate de concepções no campo
que diz respeito à história, às vinculações ideológicas e a forma de atuar das organizações da
sociedade civil. No decorrer das entrevistas pude, a partir do que os entrevistados me
apresentavam, construir um certo quadro das posições que compõem o campo e como isso
determina seu posicionamento nos Conselhos. Cada posição refere-se à outra de uma maneira
peculiar.
Paulo relatou como um problema que a sociedade civil enfrenta nos Conselhos é que
“se cria muitas vezes a situação de blocos”. Mas o que pude constatar ao longo do trabalho de
campo é que isto está na base da formação deste campo e se refletiu ao longo de todo o meu
trabalho. O entrevistado faz uma classificação que se divide entre “a garantia dos direitos” e a
“defesa dos direitos”. Ou seja, para Paulo os embates no Conselho se dão entre: as instituições
que estão na ação junto às crianças e adolescentes, “aqueles que têm uma ação direta, que
dependem da moeda para dar café, pão, comida, roupa, passagem, caderno, tratamento de
drogas para o menino”; e as instituições de pesquisa e advocacy. Em relação a essa divisão ele
fala:
“Quando que se dá o conflito na sociedade civil? É entre quem tem ação direta (eu chamo de
ação direta o menino para atender), e o que fica no mundo da idéia, da pesquisa, que consegue
o seu recurso para fazer a pesquisa. A defesa conceitual da garantia. Não basta defender o
direito. Precisa garantir o direito. Defender direito de comer é ótimo. Tem que haver a defesa
do direito, mas você tem que garantir a comida, porque senão fica inócuo, eu querer garantir o
direito de comer se na verdade eu não dou isso na prática...”
As instituições que estão ligadas mais à ação política mantêm a idéia de que o papel
dos conselhos é cobrar do governo a implementação de políticas públicas e, segundo Paulo,
elas acabam não valorizando aqueles que estão ocupados com a manutenção dos seus
projetos. Ele critica uma postura que segundo ele, se prende à discussão filosófica e política e
perde um certo pragmatismo. Como ele relata,
“na sociedade civil tem aqueles que ideologicamente dizem: “Cabe ao poder público bancar
toda a política pública”. Eu gostaria, só que eu não tenho um poder público consciente da idéia
de bancar toda política pública dele e mais os recursos que possam vir para a sociedade civil
conveniada. Se fica num mundo de conceitualização, de defender a lógica do conceito da
abstraticidade do Estado macro. Isso vira uma elocubração ideológica muito boa e quando
chega na prática isso se inviabiliza. Enquanto não têm o ideal, eu faço o possível dentro do
real. Esses dois mundos de visão da sociedade civil se confrontam no cenário de Conselho, de
fórum etc.”
Segundo Paulo, esse embate acaba enfraquecendo a sociedade civil, pois ela se divide
no enfrentamento com o governo (que aparece em bloco quando tem algo de seu interesse
para votar), pois os grupos ficam sob acusações mútuas. Segundo ele, vão se formando
“castas”. Existem os “cabeçudos” (os ditos intelectuais) e os “cabecinhas” (os “tarefeiros”). E
essa divisão se reflete em diferentes momentos no Conselho. Com isso, a sociedade civil, que
diferente do governo, é muito presente no Conselho, não constrói uma unidade. Paulo, apesar
de afirmar ser próximo das “instituições maiores”, as dos “intelectuais”, é muito crítico aos
“cabeçudos”, por achar que estes desqualificam os “tarefeiros”, sob a acusação de que
despolitizam o Conselho. Ele defende que “politização é um processo”.
Contudo, acredito que a separação entre as organizações não é simplesmente entre
ação direta e ação política/pesquisa. Pois a composição dessas duas tendências tem como base
diferenças de concepções e não de ações. Existe um grupo ligado fortemente à assistência, à
filantropia e a uma base confessional e outro que tem uma feição mais laica, vinculada ao
advocacy e ao campo dos direitos humanos.
A igreja católica sempre esteve à frente deste primeiro grupo de instituições. Elas são
mais numerosas, e historicamente não se vincularam, em sua maioria, à ação política. As
ONGs - mais politizadas - são um fenômeno mais novo. Esse segundo grupo vem de uma
formação mais recente e tem como perspectiva levar o campo dos direitos da infância e
juventude da área da assistência social para a dos direitos humanos. Célia se coaduna a esse
entendimento e afirma que essa divisão sempre existiu. Para ela, sempre houve essas duas
tendências no campo e essa divisão permanece. Ela relata que na composição da primeira
gestão do Conselho Municipal, houve uma tentativa de articular estes dois grupos. Alguns
atores do campo tentaram balancear a composição do primeiro conselho, com integrantes dos
dois grupos. Apesar das disputas, Célia relembra esse período com algum saudosismo:
“Tem umas histórias engraçadas. A gente foi implantar o Conselho, aí tem um negócio muito
interessante que assim, tinha a galera que era de frente, que tava sempre nas coisas, que
tomavam conta do campo, do campo mais de articulação política e tal, e tinham outros mais da
assistência, da filantropia e tal. Eu transitava nos dois campos [e fala no nome de vários atores
dos dois grupos]. Aí eu tava lá, circulava ali, e tinha um grupo, uma galera, desse povo aí, da
filantropia, que se organizou pesado, com a Pastoral do Menor, não sei o que, pra entrar,
trazendo alguém do campo mais da articulação política, mas pra pelo menos garantir algumas
vagas pra eles. Porque se deixasse com o campo dos caras mais politizados, mais da política
da coisa, provavelmente essa galera da filantropia teria muito pouca chance de entrar. Então
foi interessante, foi o primeiro Conselho, lembro da eleição, [eu] tava ali brigando.”
Esta divisão entre diferentes posições colaboraria para o enfraquecimento da sociedade
civil nos Conselhos e para sua baixa capacidade de efetivação de controle social. Contudo,
como Lúcia afirmou, a própria igreja, através de suas instituições, não é um bloco monolítico
e também se divide em alguns momentos. Ele deu como exemplo a última eleição para a
presidência do CONANDA, onde havia um candidato ligado a uma instituição religiosa,
embora a própria Lúcia (sem ligação com a igreja) tenha sido escolhida, contando inclusive
com o apoio de setores da igreja
26
.
Uma outra característica do campo, levantada por Lúcia quando falava de sua eleição
como presidente do CONANDA, diz respeito à dificuldade em enfrentar as assimetrias de
poder definidas pelo gênero. Entrevistei mulheres que historicamente assumiram espaços de
poder em suas instituições e nos Conselhos. Contudo, isso ainda não é hegemônico. O campo
é formado fundamentalmente por mulheres, mas os espaços estratégicos de poder, em sua
maioria, ainda estão com os homens. Lúcia falava disso ao relatar que foi a primeira mulher
presidente do CONANDA, representante da sociedade civil. E que aproveitou o momento de
sua candidatura para levantar essa reflexão no Conselho. Do quanto o “discurso dos direitos”
(SIC) aparece dissociado. Um campo que se baseia na garantia de direitos das crianças e
adolescentes, mas que ainda tem dificuldade em refletir sobre os direitos de outros grupos,
como o das mulheres, por exemplo.
27
Lúcia relatou seu discurso junto a outros conselheiros:
“Gente, engraçado, nós somos a maioria mulheres, eu também estou no Conselho Estadual
onde a maioria é de mulheres e eu estou olhando, aqui no CONANDA nunca teve uma mulher
na presidência. O que isso significa para a gente? Nós estamos lutando por direitos de que
natureza? O que a gente está pensando? O que a gente está conseguindo refletir, devolver para
a sociedade?” Enfim, toda uma preocupação que veio na hora. Mas assim, nada contra os
homens, nada apedrejando as mulheres. Mas assim: Como a gente é cruel com a gente mesmo
(...) A maioria são educadoras, a maioria são conselheiras, tutelares e de direitos...”
A entrevistada ressaltou o fato de ser uma mulher negra. Esse aspecto levantado por
ela foi relevante, pois apontou uma dificuldade bastante presente no campo: lidar de forma
articulada com os diferentes marcadores de diferença. As discussões acerca de geração e
classe social (muito presentes nesse campo) constantemente se apresentam de forma
desarticulada de outros marcadores como gênero, raça e orientação sexual, como se estas
fossem questões menores. Há uma tendência a lidar com uma criança e um adolescente
universal, não se dando conta que esses sujeitos são “atravessados” por diversas
especificidades.

26
Em direção semelhante à tendência apontada pela informante, Ribeiro (2001) afirma que a Igreja Católica,
inserida em um processo permanente de transformação, enquanto instituição social, não se apresenta de forma
unívoca, pois nela se cruzam discursos e práticas contraditórias, o que determina posicionamentos políticos
diferentes de setores ligados à igreja, mesmo atuando nos mesmos espaços sociais.
27
Em relação aos limites no trato com as questões de gênero, Carrara & Vianna apontam que “se tomamos as
relações de gênero como relações de poder complexas, outras frentes, como as que envolvem o acesso a bens
sociais variados, necessariamente precisam também ser afetados pelo recorte de gênero” (2008:342).
A forte presença de instituições religiosas no campo, apontada por todos os
entrevistados, está ligada a um envolvimento histórico da igreja com a causa da infância e
juventude. Muitos integrantes do campo, atuantes na formulação do próprio ECA, têm sua
origem nas comunidades de base da própria Igreja, como Paulo, por exemplo. E há o
entendimento de que essa presença é determinante da pauta, dos temas e do que é
efetivamente debatido nos conselhos. A composição dos conselhos reproduziria essa
característica do campo, contando com um grande número de entidades religiosas e
dificultando a afirmação da laicidade daqueles espaços. Célia reafirma esse aspecto ao dizer
que
“hoje as igrejas tão dominando esse cenário. Se você pegar o CONANDA, quantas igrejas
estão, têm assento no CONANDA: Pastoral do Menor, Pastoral da Criança, ACM, que tem o
pé na igreja, você tem a obra não sei das quantas do Santo Agostinho. Então você tem um
universo de organizações ligadas, que são igreja, explicitamente igreja, ou que são ligadas à
igreja, muito grande. E aí, o Rio de Janeiro vai fazer o evento dos 18 anos do Estatuto, é
“Chacina da Candelária”, com uma missa na igreja da Candelária. Eu fui contra e fui voto
vencido, entendeu.”
Assim, há um entendimento entre os atores deste campo da necessidade de uma certa
negociação no momento da divisão dos assentos no conselho, buscando-se uma certa
participação das diferentes tendências. Nem sempre esse acordo é possível, como relatado por
Paulo em relação às eleições no Conselho Municipal, onde os “cabeçudos” durante um longo
período articularam chapas apenas dos seus aliados. Mas há uma tendência, também relatada
por Paulo de construção de composições entre os diferentes grupos. Algo que de certa forma
já está mais amadurecido no plano nacional como apresentou Lúcia:
“na verdade, a gente sabe muito da influência dos espaços, na configuração como está um
pouco esse equilíbrio de forças. No Conselho a representação, por exemplo, das entidades
religiosas é forte. É algo que tem sido colocado sempre em debate nos Estados essa
participação igualitária. E isso também acontece dentro do CONANDA.”
Porém, apesar de dividida, segundo a maioria de meus entrevistados, “é a sociedade
civil que leva os Conselhos”, como afirmou Lúcia. A participação dos representantes
governamentais, com algumas exceções, é formal. No cenário municipal e estadual, os
representantes do governo tendem a só se envolver efetivamente nas discussões que são do
interesse do Executivo, como por exemplo, quando vai ser discutida a destinação dos recursos
dos fundos.
O que me pareceu com a experiência do trabalho de campo foi que algumas tensões
existentes nas esferas municipal e estadual, não estão superadas, mas de certa forma já
avançaram um pouco mais no plano nacional. O CONANDA tem buscado efetivar seu papel
de mobilizador e articulador nacional no enfrentamento de certas temáticas presentes no
campo, o que possibilitou a construção de planos e propostas nacionais, que chegam aos
diferentes estados. Nessa perspectiva, me chamou atenção a capacidade do CONANDA em
pautar todo o país, buscar inserir na agenda de todos os conselhos do país os temas que define
como prioritários, a partir da estrutura que o campo tem de conferências nacionais, estaduais e
municipais a cada dois anos, onde todo o país discute os mesmos temas, que são efetivamente
definidos pelo CONANDA. Questionei a Lúcia se ela achava que as discussões do
CONANDA incidem de fato em todo o país, e ela me responde de forma evasiva como quem
afirma e, simultaneamente, questiona esta incidência:
“Chega, mas agora chega numa estruturação que caminha um pouco no modelo que a
gente tem feito de debates mais políticos ao nível dos Conselhos. Como a gente
estrutura em formato de conferência, então quase que você sai com pautas
tematizadas. Então eu acho que tem uma pauta tematizada que vai partir desse
funcionamento mais orgânico dos conselhos, que sai do Conselho Nacional. Que são
as grandes preocupações (...) Então, de alguma forma, dentro dessa pauta tematizada, a
gente pauta a sociedade.”
Então, Lúcia, deixa mais claros os limites desta incidência. Para ela, isso não garante
que a realidade dos municípios vá se alterar e, como já havia afirmado Paulo anteriormente,
“a gente vive nos municípios, as crianças e adolescentes são atendidos no município” e é lá
que, em última instância, as concepções precisam ser alteradas. Célia já havia dado um
exemplo interessante desta dificuldade na efetiva municipalização das políticas do
CONANDA, citando um exemplo de 2004, quando o tema da orientação sexual entrou na
pauta das Conferências. Descrevendo aquele momento ela disse, “foi um debate difícil, o
CONANDA resolveu colocar isso na pauta da Conferência, foi muito pouco discutido nos
estados, em alguns municípios o tema passou batido”. Ainda assim, a possibilidade que o
CONANDA tem de fazer com que o país inteiro debata, ou pelo menos tente debater um
tema, sua capacidade de interferir nas realidades locais, e essa possibilidade de ser como um
espelho da correlação de forças que atuam no campo, deu-me a sensação de que aprofundar a
reflexão sobre a dinâmica desse ente nacional e sua efetiva capilaridade seria um desafio
interessante para outros trabalhos acadêmicos.
Segundo Gohn (2000), de fato o ECA é um grande avanço na discussão sobre políticas
públicas e seu controle, porque representa um mecanismo efetivo de participação da
sociedade civil na gestão de políticas governamentais. Entretanto, os Conselhos têm se
conformado como arenas de lutas e confrontos. O Estado tem apresentado resistências na
institucionalização dos Conselhos; a tendência nas políticas estatais têm sido incluir os
Conselhos como partícipes consultivos, mas não deliberativos. Eles são ouvidos na hora do
planejamento, mas não têm tido, segundo a autora, lugar à mesa na hora da decisão. A meu
ver, isso ocorre principalmente na execução das políticas públicas. Historicamente, os
governos decidiram sozinhos as prioridades em políticas a serem desenvolvidas. Em
contrapartida, a sociedade civil, acostumou-se ao lugar de oposição e não de proposição e
efetivo controle. Mudar isto, portanto, demanda um esforço de transformação da postura e
busca de qualificação para intervir de forma propositiva nos Conselhos. Este processo
“implica também a superação de um certo maniqueísmo que atribuía identidades prévias ao
processo político – um povo bom e uma burocracia ruim – inaugurando o reconhecimento de
que os sujeitos políticos constróem-se no processo recíproco de interpelações” (Fleury apud
Carvalho, 1995:27).
Não é possível perder de vista que a criação dessas formas institucionais de
participação, que os conselhos constituem com seu pluralismo, não instaura de forma mágica
nem mecânica uma mudança de concepções e formas de atuar politicamente. A experiência
dos Conselhos na história do país é muito nova. O que se pode afirmar é que eles
concretamente saíram do papel e ganharam vida a partir da atuação muitas vezes contraditória
dos atores comprometidos com a causa da infância. A palavra de ordem é processo. De nossa
parte interessa entender a ambiência para a discussão acerca da sexualidade adolescente
nesses espaços.
CAPÍTULO 3
Sexualidade adolescente e direitos sexuais: a percepção
dos conselheiros de direitos
3.1. A construção do ideário dos direitos sexuais
3.1.1. O encontro da pesquisadora com a travesti
Outubro de 2008. O Rio de Janeiro tinha acabado de viver sua “semana da
diversidade”, um conjunto de atividades envolvendo a comunidade LGBT, tendo como ponto
alto a 13
a
Parada do Orgulho LGBT, que reuniu como as anteriores, milhares de pessoas. No
dia seguinte à Parada, me vi no Tribunal de Justiça, em seu andar mais importante, onde estão
os gabinetes de desembargadores. Fui até lá entrevistar um conselheiro de direitos que
também é desembargador. Já tinha realizado várias entrevistas, mas assim mesmo sentia a
ansiedade comum aos jovens pesquisadores, principalmente naquela entrevista, onde eu teria
que buscar uma interlocução com uma autoridade judiciária (fazer perguntas “sobre sexo” ao
desembargador!). Cheguei ao prédio suntuoso e me foi solicitado que esperasse um pouco
enquanto meu entrevistado terminava uma atividade. Permaneci, portanto, durante alguns
minutos, sentada em um hall, junto a um balcão onde estava uma recepcionista e com ela
conversando, uma faxineira que trabalha no local.
Enquanto aguardava, de repente, a porta de vidro se abriu e de lá saíram a assistente do
desembargador, que eu já conhecia, acompanhada de uma jovem travesti negra, de cabelos
longos e discretamente vestida, sem abrir mão do salto alto. As duas passaram e se dirigiram a
outro andar. Os olhares das funcionárias acompanharam os passos das duas e, logo após
saírem, acompanhei a comoção que se desencadeou, envolvendo diferentes funcionários da
“Casa”. A faxineira exclamou: “é a dama!
28
Você viu? No Tribunal de Justiça! Como pode
isso? É estagiária. Ao invés de darem a vaga para a minha filha estagiar, dão para a dama”.
Daí se sucederam vários comentários envolvendo o policial que guardava o andar, as
mulheres sugerindo que a dama tinha “olhado para ele”. E ele era questionado por elas “se ia
encarar”, aderir ao aliciamento pressuposto no comportamento da travesti. Outro funcionário
que se aproximou da cena, ao ser questionado se tinha “gostado”, reclama: “em vez de
colocarem mulher bonita para trabalhar, colocam isso” (SIC).
A conversa perversa e jocosa estendeu-se por vários minutos sob minha observação, e
transitava entre o absurdo de uma travesti trabalhar no prédio da Justiça, “tomando o lugar”
de “moças de verdade” até o “perigo” representado por aquela pessoa que, na fantasia de
todos, não conseguiria estabelecer no ambiente de trabalho, relações para além das sexuais.

28
Referindo-se jocosamente ao nome do pioneiro projeto da Secretaria Municipal de Assistência Social que
trabalha na capacitação e inserção profissional de travestis e transexuais, o Projeto “Damas”.
As mulheres demonstravam desprezo por aquele “exemplar falso” da própria “espécie”, e os
homens uma necessidade de, a partir da travesti, reforçar sua masculinidade, afirmando que
não gostavam “daquilo”. Fui tomada por uma indignação e, ao mesmo tempo, por uma dúvida
sobre qual seria a atitude mais acertada a tomar diante da cena. Contive meu ímpeto de
enfrentar diretamente a atitude discriminatória daquelas duas mulheres à minha frente e decidi
concentrar minhas energias no desafio que me esperava imediatamente.
Logo em seguida, fui chamada a entrar no gabinete de meu entrevistado. Respirei
fundo e felizmente conseguimos estabelecer um encontro bastante produtivo de cerca de uma
hora. Mas, esperei ao longo da entrevista por uma oportunidade para relatar a ele o que tinha
presenciado na sala de espera. Por sorte, ao fim da entrevista, meu entrevistado relatou a nova
experiência de abrir a vaga para uma travesti estagiar em seu gabinete. Pude assim comentar o
ocorrido, o que não causou surpresa a ele, que já tinha enfrentado anteriormente
questionamentos acerca da sua decisão. Ele me relatou que, ao saber do projeto, quis
participar, mas ao comunicar que o faria a sua equipe, o primeiro comentário ouvido foi “e se
ele cantar as pessoas aqui?” Sua resposta foi a de que qualquer funcionário e até ele próprio,
poderia “cantar” ou “ser cantado” no espaço de trabalho. Sorrimos e nos despedimos. Saí dali
feliz com o sucesso da entrevista, mas ainda impregnada das sensações desconfortáveis
oriundas da situação que presenciei antes dela. Um aspecto interessante da conversa que tive
com meu entrevistado sobre o ocorrido, é que eu me referia à travesti como “ela” e o
desembargador dizia “ele”. Falávamos, será, da mesma pessoa?
Ao poder refletir com meu orientador sobre a experiência que vivi, ficou claro que, se a
primeira vista, a situação nada tinha a ver com minha pesquisa (afinal discuto sexualidade e
adolescência), na verdade, os “anjos protetores” dos jovens pesquisadores, tinham me dado de
presente aquela situação. A partir dela pude ver o quanto o contexto muitas vezes nos diz
tanto quanto (ou até mais que) o discurso de nossos entrevistados. É preciso apurar o faro,
olhar em volta, que as respostas vêm. Até para aquelas perguntas que ainda não fizemos.
Saí daquela entrevista com um certo amargor. Eu, que na semana anterior, pelos
ambientes em que convivi, estava cheia do sentimento de que o mundo estava mudando, que o
novo mundo com que sonhamos - respeitoso e aberto às diferenças - existia, me vi com a
sensação de que tinha caído no mundo real. Que o mundo na verdade era aquele do saguão do
Tribunal de Justiça. Fui levada, entretanto, a refletir que esses dois mundos coexistem e
coabitam, e é nesse contexto contraditório que o ideário dos direitos sexuais se constrói. A
imagem do encontro entre a travesti, a velha ativista, mas jovem pesquisadora e o
desembargador, funciona como uma bela síntese do conjunto de arenas, atores, perspectivas e
desafios em que “passeiam” todos aqueles que buscam refletir e atuar na perspectiva da
sexualidade como um direito humano. Além disso, o contexto que estimula minha conversa
com o desembargador, definido pela idéia do exercício da sexualidade adolescente como
direito, é o mesmo que possibilita a presença de uma travesti como estagiária no Tribunal de
Justiça. Tal contexto é um dos indicadores de que a idéia de direitos sexuais vem incidindo
para a transformação da moral sexual em nossa sociedade. Assim, abro a seção com essa
imagem do trabalho de campo, por achar que ela reúne de alguma forma um conjunto de
questões que pretendo discutir.
3.1.2. A sexualidade no campo dos direitos humanos
Debater a construção do ideário dos direitos sexuais é acompanhar um processo ainda
em construção e muito recente, e que envolve, um conjunto heterogêneo de atores. Não
pretendo “contar” essa história, na qual só recentemente mergulhei. Mas sim, buscar
apresentar esse percurso, construído nos últimos quinze anos no campo dos direitos humanos,
como ele é contado por algumas ativistas e pensadores, em sua maioria, autodenominados
feministas. Visto que o surgimento da idéia de direitos sexuais está intimamente ligado ao
movimento feminista e às suas lutas nas últimas décadas. Dario relacionou diretamente o
movimento de mulheres, ao avanço nas possibilidades atuais dos adolescentes no plano da
sexualidade:
“o adolescente, modernamente, ele está se liberando dessa amarra da hipocrisia. Está se
assumindo com mais autenticidade. O que eu fazia na minha adolescência escondido, hoje os
adolescentes levam para casa. Isso não aconteceu do dia para a noite. Esse é um processo
revolucionário que vem desde a queima dos sutiãs.”
Segundo Dora (1998), o movimento de mulheres começou a operar uma radical
mudança na discussão sobre os direitos humanos, visto que a doutrina tradicional impunha
uma separação entre o espaço público e o privado, e limitava o raio de ação dos direitos
humanos à defesa e proteção das vítimas. Além dessa questão, o movimento de mulheres
também colaborou para um maior equilíbrio da hierarquia dos direitos humanos,
tradicionalmente separados em gerações, na qual os direitos civis e políticos vinham antes dos
econômicos e sociais. As mulheres criticaram essa concepção, propondo a idéia de que todo
ser humano tem seu contexto de classe, de etnia, de gênero, o que vai definindo a sua
vulnerabilidade às violações de direitos e, também, as suas necessidades e lutas. Segundo a
autora, por introduzir estes temas, o movimento de mulheres contribuiu para o
redimensionamento da própria doutrina dos direitos humanos, das práticas das organizações
nacionais e internacionais e do sistema das Nações Unidas.
Como afirma Rios, as questões relativas à sexualidade surgem no âmbito dos
instrumentos internacionais de direitos humanos, a partir do reconhecimento da situação de
vulnerabilidade das mulheres. Após as proclamações genéricas relativas ao direito à vida, à
saúde, à igualdade e não discriminação, à integridade corporal e à proteção contra a violência,
ao trabalho e à educação
29
, sucederam-se documentos internacionais e conferências
preocupadas especificamente com a reprodução e, neste contexto, com a condição feminina
(Rios, 2007:16). Foram marcos desse processo: a Primeira Conferência Internacional de
Direitos Humanos (Teerã – 1968), reconhecendo a importância dos direitos humanos das
mulheres; a determinação pela Assembléia Geral das Nações Unidas do decênio 1976-1985,
como especialmente voltado para a melhoria da condição das mulheres; e a Convenção sobre
a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, assinada em 1979.
A despeito desse processo, como afirma Petchesky, nenhum instrumento internacional
relevante, anterior a 1993, faz qualquer referência ao mundo proibido do “S” (além do “sexo”,
o sexo biológico); isto é, antes de 1993, a sexualidade e suas manifestações estão ausentes do
discurso internacional sobre direitos humanos (1999:16). Ainda segundo a autora, até esse
momento, a vida sexual era aceita apenas de forma implícita no discurso dos direitos
humanos, estando ainda confinada à reprodução e ao casamento heterossexual. Nesse sentido,
conforme dito anteriormente, a Segunda Conferência Mundial de Direitos Humanos em Viena
teve papel fundamental, pois declarou que os direitos humanos das mulheres são parte
“inalienável, integral e indivisível dos direitos humanos”, devendo assim ser garantida sua
participação em igualdade de condições sociais e a erradicação de todas as formas de
discriminação baseadas no sexo e de todas as formas de violência contra a mulher (Rios,
2007:17). A Declaração de Viena, como ficou conhecido o documento resultante da
Conferência, teve importância por introduzir o “sexual” na linguagem dos direitos humanos,
mas este surge ligado à violação de direitos.

29
Inscritos na declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos,
no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e na Convenção Americana de Direitos
Humanos.
Apenas na Conferência Mundial sobre População e Desenvolvimento do Cairo em
1994, é que a sexualidade apareceu como algo positivo, não necessariamente ligada à
violência. O Plano de Ação da Conferência do Cairo afirmou os direitos reprodutivos como
categoria no interior dos direitos humanos já reconhecidos em tratados internacionais. Cairo é
um marco por ampliar o enfoque em que a sexualidade é abordada no campo dos direitos
humanos. Até então, ela só aparece na perspectiva da violência sexual que deve ser
combatida, violência sofrida pelas mulheres e pelas meninas. A partir dessa Conferência, no
espaço político dos direitos humanos, a sexualidade - pelo menos na dimensão reprodutiva -
apareceu permeada por uma positividade e ligada a idéia de liberdade, ao se constituir como
um direito. As questões de sexualidade no contexto dos direitos humanos partiram assim da
idéia de direitos reprodutivos e possibilitaram a construção da idéia de direitos sexuais, que
permeou as discussões na IV Conferência Mundial da Mulher em 1995 (Beijing).
3.1.3. Da saúde aos direitos: a construção dos conceitos
No Brasil, assim como no resto do mundo, até a década de 1980, a saúde integral da
mulher foi o conceito utilizado para se referir à “questão da mulher”, articulando aspectos
ligados à reprodução biológica e social ao ideário dos direitos de cidadania, através do apelo
sanitário. A saúde da mulher surgiu como instrumento que traduziria no debate público e nas
propostas de políticas o lema feminista do final dos anos 70, “nosso corpo nos pertence!”.
Segundo Corrêa e Ávila, “essa palavra de ordem, radical para o seu tempo, implicava o
reconhecimento de que o corpo de cada uma/um é o lugar primeiro da existência humana a
partir do qual ganham sentido as experiências individuais no cotidiano e nos processos
coletivos da história.” (2003:19)
A transição do termo saúde da mulher para o conceito de direitos reprodutivos
começou a ser forjada no I Encontro Internacional de Saúde da Mulher realizado em
Amsterdã em 1984, quando as feministas americanas o introduziram. Lá começou a se
construir um consenso internacional de que o conceito de direitos reprodutivos era mais
completo e adequado para abarcar a extensa pauta da autodeterminação reprodutiva das
mulheres (Corrêa e Ávila, 2003). Nos anos seguintes, o conceito foi sendo refinado pelas
feministas que o criaram, bem como por ativistas e acadêmicos dos direitos humanos. Todos
esses esforços se concretizariam na agenda política internacional na Conferência do Cairo,
quando o conceito foi assumido pelas Nações Unidas, incorporado em seus documentos e
reiterado na IV Conferência Mundial sobre a Mulher em Beijing, em 1995. A Plataforma de
Ação do Cairo afirma que
“os direitos reprodutivos abrangem certos direitos humanos já reconhecidos em leis nacionais,
em documentos internacionais sobre direitos humanos e em outros documentos consensuais.
Esses direitos se ancoram no reconhecimento do direito básico de todo casal e de todo
indivíduo de decidir livre e responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a
oportunidade de ter filhos e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de
gozar do mais elevado padrão de saúde sexual e reprodutiva. Inclui também seu direito de
tomar decisões sobre a reprodução livre de discriminação, coerção ou violência, conforme
expresso em documentos sobre direitos humanos” (FNUAP e CNPD, s.d., parágrafo 73 apud
Corrêa e Ávila, 2003)
A gradativa legitimação dos direitos reprodutivos se deu em paralelo ao
amadurecimento das noções de “saúde sexual e reprodutiva” forjadas não nos movimentos
sociais, mas no contexto institucional, através dos esforços da Organização Mundial da Saúde
(OMS). A denominação “saúde reprodutiva”, formulada pela OMS na segunda metade da
década de 1980, representava uma extensão do conceito global de saúde à área da reprodução
humana, visando ampliar a perspectiva convencional de controle demográfico e de
planejamento familiar, que predominava até então nas discussões e propostas. Sob o impacto
da pandemia de HIV/Aids, na década de 1990, a noção de saúde sexual seria reformulada.
Ambas as definições foram assumidas nos debates e documentos de Cairo e Pequim. O
Programa de Ação de Cairo afirma que
“a saúde reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não a
simples ausência de doença ou enfermidade, em todos os aspectos concernentes ao sistema
reprodutivo e a suas funções e processos. A saúde reprodutiva implica, por conseguinte, que a
pessoa possa ter uma vida sexual segura e satisfatória, e tenha a capacidade de reproduzir e a
liberdade de decidir sobre quando e quantas vezes deve fazê-lo. Em conformidade com a
definição acima de saúde reprodutiva, a assistência à saúde reprodutiva é definida como a
constelação de métodos, técnicas e serviços que contribuem para a saúde e o bem-estar
reprodutivo, prevenindo e resolvendo problemas de saúde reprodutiva. Isso inclui também a
saúde sexual, cuja finalidade é a intensificação das relações vitais e pessoais e não simples
aconselhamento e assistência relativos à reprodução e a doenças sexualmente transmissíveis”
(CIPD, Programa de Ação, parágrafo 7.2, 1994). (grifos meus)
O conceito de direitos sexuais só começa a ser forjado na década de noventa, com a
contribuição dos movimentos de gays e lésbicas europeus e norte-americanos, e passa também
a ser assumido por setores do movimento feminista. A despeito da idéia de direitos sexuais ter
sido, ao longo do tempo, assumida por outros movimentos e atores e vir sendo incorporada
por vários grupos sociais, diferentes setores ainda a articulam única e diretamente à pauta de
reivindicações da população LGBT. Desta maneira, ao ser perguntado se já teve algum
contato com a discussão, com a idéia de direitos sexuais, Dario afirmou que:
“não, eu não participo das discussões, mas eu enfrentei em decisões minhas, essa questão. Fui
um dos primeiros juízes do Brasil a defender a adoção para homossexual. Hoje se apresentou
aqui no meu gabinete, está trabalhando comigo, um travesti. Que é uma coisa inédita no
Tribunal de Justiça.”
Na Conferência do Cairo algumas delegações introduziram o conceito de direitos
sexuais como estratégia de barganha para que se garantissem os direitos reprodutivos. Como
já era esperado pela correlação de forças na Conferência, a expressão não apareceu no
documento final. O mesmo ocorreu em Beijing. O conceito de direitos sexuais foi retomado
na Conferência, mas desapareceu dos documentos finais. O parágrafo 96 da Plataforma de
Ação de Beijing atestava em sua formulação original “os direitos sexuais das mulheres”, mas
na versão final do documento o termo foi trocado pela expressão “os direitos humanos das
mulheres” (Petchesky, 1999). Contudo, a Conferência de Beijing, avançou alguns passos no
sentido de incorporar a sexualidade, não apenas associada à reprodução, no escopo dos
direitos humanos, ao incluir mais explicitamente que nos documentos do Cairo o termo saúde
sexual em sua Plataforma de Ação. Após um complicado processo de negociação, o texto
final de Beijing afirma que
“os direitos humanos das mulheres incluem seu direito a ter controle sobre as questões
relativas à sexualidade, incluída sua saúde sexual e reprodutiva, e decidir livremente a respeito
dessas questões, sem se verem sujeitas à coerção, à discriminação ou à violência. As relações
sexuais e a reprodução, incluído o respeito à integridade da pessoa, exigem o respeito e o
consentimento recíprocos e a vontade de assumir conjuntamente a responsabilidade das
conseqüências do comportamento sexual” (CNDM, 1996, seção C, parágrafo 96 apud Corrêa
e Ávila, 2003).
No Brasil, torna-se possível que sexualidade e reprodução instituam-se como campo
legítimo de exercício de direitos a partir da Constituição de 1988. Carrara & Vianna apontam
que, assim como em outros países latino-americanos, no processo de democratização vivido
no país na década de 1980, a luta pelo restabelecimento dos direitos políticos clássicos (voto,
livre expressão política, liberdade de associação etc) conjugou-se a uma agenda de direitos
humanos mais ampla:
“para tal processo convergiram não apenas as forças de esquerda, afastadas pelo regime
militar, mas também a ação de novos atores políticos que, ao longo dos anos de ditadura,
organizaram-se em torno das problemáticas do gênero e da sexualidade. Desse modo, foram
também trazidos à tona os direitos reprodutivos de mulheres e os direitos sexuais de diferentes
minorias sexuais” (2008: 334).
Ventura também descreve que a incorporação dos conceitos de direitos sexuais e
direitos reprodutivos articulou-se no Brasil com a perspectiva de entender a saúde como um
direito, o que veio a ser assumido pela Constituição de 1988. Para a autora, articular os
direitos sexuais e reprodutivos e o direito à saúde, favorece avanços significativos para a
concepção e ampliação do conteúdo desses direitos. O direito à saúde no contexto brasileiro,
contempla “direitos individuais, coletivos e sociais fundamentais para a promoção dos direitos
sexuais e reprodutivos” (2005:42). Assim, além de ser incorporada a perspectiva da
autodeterminação sexual e reprodutiva das mulheres, construiu-se o entendimento de que a
saúde das mulheres deveria ser assumida pelo Estado, pois as dificuldades que elas
enfrentavam no acesso a serviços se davam em função tanto da desigualdade de poder entre
homens e mulheres, quanto pelas desigualdades econômicas.
Contudo, essa estreita aproximação dos direitos sexuais com o campo da saúde pode
ser vista sob uma outra perspectiva, não muito favorável à afirmação da sexualidade como um
direito dos indivíduos, pois ao se “colar” à saúde, o tema da sexualidade corre o risco de
permanecer refém das políticas e profissionais dessa área, que em muitos momentos focam
em aspectos negativos do exercício da sexualidade, e na dimensão reprodutiva. Como afirmou
Vitória, “nas políticas públicas esse tema [da sexualidade], é um tema que ainda está na saúde
e na saúde na perspectiva da doença, do controle, da não gravidez, não na perspectiva dos
direitos humanos”. E ao ser perguntada se já teve contato com o conceito de direitos sexuais,
ela replicou:
“muito pouco. Aqui o pessoal da Secretaria [de saúde], porque a gente faz parte do GT de
DST/aids que compõe Estado, Município e três organizações da sociedade civil que tinham
projetos ligados ao Ministério da saúde e tal. O estado aqui tem uma discussão nessa história
dos direitos sexuais. A gente até ficou de pautar essa discussão no próprio GT. É uma coisa
que já está pautado que eles vão puxar, vão trazer, e a gente vai discutir no GT. Mas ainda
direitos sexuais e reprodutivos. Mas eles lançaram uma cartilha, o núcleo aqui do Rio de
Janeiro, um trabalho interno que eles fizeram de estudos do próprio grupo para começar essa
discussão. Mas ainda é uma coisa completamente desconhecida dos profissionais. Até dos
ditos especialistas em prevenção.” [ênfase dada pela entrevistada]
Corrêa (2004) provoca a discussão acerca da importância da “distinção conceitual”
entre direitos sexuais e direitos reprodutivos, visto que os direitos sexuais têm sido aplicados
predominantemente como estando associados aos direitos reprodutivos, numa perspectiva
heterossexual e, em geral, “sob o manto mais aceitável (e bem comportado) da saúde”. Para a
autora, a idéia de direitos sexuais, desde a sua concepção, tem sido utilizada como um
instrumento político para tratar questões ligadas à reprodução e não exatamente para
assegurar direitos no campo das sexualidades:
“o discurso sobre os direitos sexuais no sistema internacional de direitos humanos ganhou
legitimidade inicialmente na Conferência de População, que significou um deslocamento das
políticas de controle demográfico das décadas de 60, 70 e 80 na direção de um enfoque que
privilegia direitos humanos e saúde. Mas, quando o fim do Programa de Ação do Cairo é
examinado mais de perto, verifica-se que nele há mais ênfase em saúde do que em direitos
humanos” (2004:12).
O mesmo aconteceu em Pequim, quando o parágrafo relativo aos direitos humanos das
mulheres no terreno da sexualidade (citado acima), foi situado na seção de saúde, e não na
seção que trata dos direitos humanos. Segundo Petchesky (1996), modelar a saúde em termos
afirmativos no contexto dos direitos humanos significa conceitualizá-la como um bem social,
básico para a dignidade e o bem-estar dos seres humanos, e não apenas tratar do assunto como
um problema médico, técnico e econômico, e isso implica enormes obrigações e o
redirecionamento de recursos por parte dos governos. Cornwall & Jolly ampliam a discussão
ao apontar que a epidemia da aids pode ter aberto espaços para que a sexualidade ganhasse
maior proeminência nas estratégias das agências de desenvolvimento. Porém, as
representações do sexo e da sexualidade nos discursos sobre aids são, não apenas
persistentemente negativas, como também, profundamente normativas. Assim como o tema
da população, a sexualidade permanece sendo tratada como um problema a ser contido, e não
como parte essencial da experiência humana, fonte de alegria e prazer, assim como de
sofrimento e dor (2008:30).
3.1.4. Direitos sexuais: trajetória e impasses
Corrêa (2004) afirma que a linguagem dos direitos sexuais e reprodutivos ganhou
legitimidade no contexto de luta pela garantia dos direitos de cidadania das mulheres, numa
perspectiva de autodeterminação de seus corpos e relações. Contudo, é preciso reconhecer que
o uso e o entendimento do conceito de direitos reprodutivos ainda não é universal entre as
mulheres e outros sujeitos potenciais desses direitos. Menos ainda o é o de direitos sexuais,
pois, além de sua formulação ser muito mais recente, diferente dos primeiros, que surgiram e
amadureceram no campo feminista, o refinamento do conceito de direitos sexuais exige o
envolvimento de outros atores e perspectivas, o que torna a tarefa de desenvolvimento pleno
do conceito, ainda mais complexa.
O “famoso parágrafo 96”, de Pequim, afirma em sua primeira parte, que os direitos
humanos das mulheres em matéria de sexualidade, implicam que esse exercício seja livre de
discriminação, violência e coerção. Já na sua segunda frase, apresenta um conteúdo
marcadamente heterossexual. Corrêa amplia a reflexão, afirmando que a legitimação dos
direitos humanos das mulheres ao longo dos anos, não foi acompanhada por um avanço
equivalente no que se refere aos direitos humanos no campo da chamada “diversidade sexual”
(2004:8). Uma aceitação maior dos direitos da mulher ligados à sexualidade, não teve
correspondência no que tange a outros sujeitos. A autora se refere à população LGBT e aos
profissionais do sexo, mas acredito que podemos estender essa afirmação também para os
adolescentes e jovens.
O conceito de direitos sexuais foi forjado na perspectiva de descolar a sexualidade da
reprodução e da patologia. Ele dissemina a idéia da sexualidade como algo positivo em si
mesma, um direito humano, não necessariamente ligada à violência, ao casamento ou à
reprodução. O conceito de direitos sexuais estrutura-se assim, como um dispositivo político
no espaço político dos direitos humanos. Contudo, o processo de construção e refinamento do
conceito naquele espaço não tem confirmado necessariamente essa perspectiva.
Segundo Sheil (2008), na esfera dos direitos humanos internacionais, passados mais de
dez anos desde que a idéia de direitos sexuais permeou a Plataforma de Ação de Pequim, não
houve grande progresso, mas houve muita oposição. Nos encontros de revisão do Plano de
Ação de Cairo e Plataforma de Pequim (Cairo + 10 e Pequim + 10), já era esperado que
alguns Estados questionassem os direitos sexuais. Mas, além disso, alguns países também
fizeram oposição ao conceito de direitos reprodutivos, cujo escopo já estava estabelecido há
bastante tempo no cenário internacional de direitos humanos. Segundo a autora, este
questionamento dos ganhos obtidos nas conferências mundiais da ONU dos anos 1990
constitui um ataque ao marco dos direitos humanos.
É de fundamental importância a reflexão desenvolvida por diferentes autores do
processo de negativação em torno dos direitos sexuais, o que marca constantes avanços e
retrocessos em sua trajetória de afirmação. Este aspecto, em certa medida, já se demonstrava
na gênese desse conceito no marco das Conferências Internacionais, pois para Sheil:
“a Plataforma de Ação de Pequim nos oferece uma concepção de direitos sexuais que se aplica
somente às mulheres, enfatiza as violações e, em grande medida, foi adotada em razão da
maior conscientização sobre os impactos da pandemia do HIV/AIDS. Se quisermos realizar
plenamente a promessa dos direitos sexuais, devemos ir além do modelo protecionista dos
direitos humanos, que enfatiza as violações. Refiro-me ao modelo que focaliza somente a
expressão negativa dos direitos: o direito de ‘estar livre de’, que se centra na proteção contra
as doenças, danos e perigos, e que busca somente limitar os direitos sexuais. Essa fórmula é
muito distinta da idéia de ‘ser livre para’” (2008:95).
Acredito ser importante a reflexão desenvolvida por Petchesky, ao afirmar que as
campanhas em favor dos direitos humanos das mulheres receberam em geral maior atenção
quando enfatizaram os piores horrores a que estas estavam submetidas. Tais campanhas
capitalizaram a imagem das mulheres como vítimas. Um problema é que essa construção
negativa dos direitos sexuais permeia o discurso geral sobre os direitos humanos.
Historicamente, a violação dos direitos humanos sempre recebeu a maior atenção (1999:26).
Parece-me que esse impasse está na própria história de afirmação dos direitos sexuais como
direitos humanos nas sociedades modernas. Célia confirma esta perspectiva, ao falar sobre a
dificuldade de inserção do tema da sexualidade nas discussões do campo. Afirma que a
discussão sobre sexualidade “entra na perspectiva do direito, só enquanto direito violado, mas
não na perspectiva de garantir esse direito saudavelmente”.
Segundo Corrêa, esse debate em torno da violação está entre os desafios colocados
para aqueles que pretendem contribuir com uma delimitação mais clara dos conteúdos dos
direitos sexuais, pois está relacionado à tensão teórica e política entre as ênfases em
objetificação e vitimização, por um lado, e prazer, erotismo e recriação, por outro. Em sua
opinião, é preciso explicitar nos debates, as diferenças de posição no que se refere ao
“sentido” que os diferentes atores do campo dos direitos humanos atribuem à sexualidade
como terreno da experiência humana (2004:13). Se o campo permanecer fixado em uma idéia
de sexualidade ligada ao abuso, violência e coerção, dificilmente poderemos avançar na
elaboração de legislações, políticas públicas e programas de intervenção comprometidos com
uma agenda positiva dos direitos sexuais como direitos humanos.
Alguns autores vêm fazendo releituras dos direitos fundamentais na perspectiva de
buscar nos tratados e convenções internacionais (tanto relativos à garantia dos direitos civis e
políticos quanto dos direitos econômicos, sociais e culturais) brechas que possibilitem a
legitimação dos direitos sexuais. Segundo Sheil, estes são como um pivô ao redor do qual se
articulam direitos civis, políticos, econômicos, culturais e sociais. Portanto, eles não devem
ser vistos de forma separada das metas do movimento mais amplo por direitos humanos, já
que os direitos humanos são universais, indivisíveis e inalienáveis.
Ainda segundo a autora, os direitos sexuais incluem direitos humanos já reconhecidos
em legislações nacionais e em parâmetros internacionais de direitos humanos. Os tratados
existentes não se referem explicitamente aos direitos sexuais, mas incluem direitos que têm
influência direta sobre estes: o direito à vida e o direito à liberdade e segurança (Pacto
Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, artigos 6 e 9.1); o direito à saúde e o direito
de desfrutar dos benefícios do progresso científico (Pacto Internacional sobre os Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, artigos 12 e 15.1b); o direito à liberdade de expressão,
incluindo o direito de receber e transmitir informação e o direito de contrair matrimônio e
formar uma família (Pacto sobre os Direitos Civis e Políticos, artigos 19 e 23); o direito de
acesso igual aos serviços de saúde para as mulheres, incluindo o planejamento familiar
(Convenção sobre a eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a mulher, artigo
12) (2008: 92).
A elaboração dos chamados “direitos sexuais”, representa o resultado positivo de uma
estratégia discursiva dos movimentos feministas e LGBT que, utilizando-se da linguagem dos
direitos, têm o objetivo de melhorar as condições sociais e pessoais desses segmentos, para o
livre exercício da sexualidade (Ventura, 2008:146). Postulo que a idéia de direitos sexuais
como direitos humanos, construída a partir das lutas feministas e LGBT, ao ganhar expressão
no campo dos direitos humanos, abre espaço para que novos sujeitos passem também a ser
titulares desses direitos. Os direitos sexuais podem se generalizar, passando a ser não mais
direitos de alguns, mas de todos.
Proponho discutir que os direitos sexuais, em uma perspectiva positiva, possam
compor a agenda de direitos humanos fundamentais dos adolescentes, para além da
perspectiva negativada (ligada à violência ou às doenças), que historicamente eles assumiram
nas políticas e ações voltadas a esse público. Contudo, ainda há uma resistência de diferentes
setores - inclusive no próprio campo dos direitos humanos - de incorporar o ideário dos
direitos sexuais a outros sujeitos de direitos para além dos gays, lésbicas, bissexuais e
transexuais e das mulheres adultas, sendo que a estas, na maioria das vezes, são referenciados
apenas os direitos reprodutivos. Em perspectiva semelhante, Carrara (2008b) aborda o debate
atual como tensionado pelas idéias de os direitos sexuais serem direitos de certos grupos
claramente definidos ou de serem direitos democráticos à sexualidade. Desta forma, muitos
nesse campo têm preferido falar de direitos democráticos à sexualidade, ao invés de direitos
humanos de gays, lésbicas, travestis e transexuais, por exemplo, na medida em que isso
levaria à reificação de certas identidades e a uma maior fragmentação social.
Para Ventura (2007), ao longo da última década, a proposta de direitos sexuais vem
avançando, o que determinou que alguns consensos normativos internacionais relativos à
sexualidade fossem alcançados, com a afirmação de um rol de direitos humanos – civis e
sociais – que passam a ser incorporados a legislações nacionais e garantidos pelos governos.
Porém, como pondera a autora, não podemos perder de vista que os direitos sexuais são “um
produto em construção” e que enfrentam dificuldades políticas, sociais, e culturais para seu
efetivo reconhecimento e afirmação. A discussão acerca da possibilidade de afirmação da
sexualidade como um direito dos adolescentes pode desvelar algumas das mais complicadas
dificuldades dessa construção. Os adolescentes em nossa sociedade são sujeitos de direitos?
Seriam os adolescentes, assim, sujeitos de direitos sexuais? Essas questões são base para as
reflexões que se seguem.
3.2. A sexualidade adolescente: conquistas e impasses
3.2.1. A sexualidade adolescente na perspectiva dos direitos humanos
Como dito anteriormente, minha experiência empírica apontava que a sexualidade
adolescente nas políticas e programas voltados a este grupo, promovidos por organizações
governamentais e não-governamentais, articulava-se à perspectiva dos riscos potenciais das
experiências sexuais, vinculadas ao “dano” da gravidez e/ou de doenças. Esta perspectiva do
risco aparece ainda no enfoque das diversas violências a que os adolescentes podem estar
submetidos, com ênfase no abuso e na exploração sexual.
Ao iniciar o levantamento bibliográfico para esta dissertação, o entendimento acima
exposto se validou, pois verifiquei a escassa produção teórica que supere essa perspectiva e
amplie a reflexão acerca das sexualidades adolescentes, articulando-as aos direitos humanos.
Em contrapartida, tomei contato com profissionais de diferentes áreas do conhecimento
(saúde pública, direito, antropologia, psicologia social) que começam a articular um discurso
contra-hegemônico, explicitando a necessidade de referenciar o tema da sexualidade e da
reprodução adolescentes de uma forma menos normativa, mais aberta a experiências, à idéia
de prazer e à da pluralidade
30
.

30
Diferentes produções de Rubens Adorno, Miriam Ventura, Samanta Biglione, Wilson Pirotta, Daniela Knauth,
Maria da Penha Vasconcelos referenciam essas novas concepções. Artigos destes e outros profissionais estão
Esta contratendência parte do pressuposto de que o tema demanda ampla discussão em
relação ao marco legal e aponta para a importância de perceber como se orientam e são
tratadas essas questões pelas instâncias de participação da sociedade mais envolvidas com o
tema, como os Conselhos de Saúde e Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente. Há
pouca produção acadêmica que discuta o posicionamento dessas instâncias, o que reafirma a
pertinência desse estudo.
Para autores desta contratendência, a reflexão e o debate acerca da sexualidade
adolescente precisam basear-se nas seguintes premissas: a da necessidade de ampliação da
reflexão acerca da sexualidade adolescente na perspectiva dos direitos humanos e articulada
com as discussões nos Fóruns Internacionais sobre direitos sexuais e reprodutivos; da
importância de pensar a sexualidade como constitutiva da vida dos adolescentes, e que se
manifesta de forma prazerosa e independente da reprodução; bem como a da necessária
reflexão crítica dos modelos de atenção aos adolescentes, que quando reconhecem sua
sexualidade, o fazem associando-a a violência, à reprodução e à heterossexualidade (Adorno
et al, 2005:16).
Um dos desafios éticos emergentes quando se trabalha a afirmação dos direitos sexuais
dos/as adolescentes parece ser a questão da autonomia versus tutela. Se, por um lado, os
limites da autonomia adolescente são consideravelmente mais largos que a infantil, dada a
amplitude do seu próprio estágio de desenvolvimento (inclusive sexual), por outro lado, os
programas de saúde e educação tendem a reforçar o discurso da irresponsabilidade e
desorientação dos adolescentes no que tange à sexualidade, o que justificaria uma postura de
tutela por parte dessas políticas. Adorno et al (2005) ressaltam que a própria questão da
adolescência dentro do campo da saúde pública tem sido abordada a partir da ótica do risco
ou da vulnerabilidade, o que também se reflete nos programas e pesquisas dirigidos a este
grupo social.
A “inexperiência” adolescente é comumente percebida como um aspecto da sua
vulnerabilidade, especialmente face a relações sociais onde ele/a é confrontado/a com as
exigências do mundo adulto. É questionável ainda a validade de um marco exclusivamente
etário na definição de uma suposta prontidão do adolescente para o enfrentamento dos
desafios adultos. Contudo, confrontamo-nos com concepções de adolescência
“naturalizadoras”, determinadas pelo aspecto biológico. É reforçado um entendimento da
adolescência a partir da teoria dos instintos e dos hormônios, onde a sexualidade adolescente

reunidos no livro “Jovens, Trajetórias, Masculinidades e Direitos”, fruto de seminário realizado na Faculdade de
Saúde Pública da USP em dezembro de 2001.
estaria completamente submetida a uma força biológica
31
, que precisa ser “controlada”, e
frente a qual os adolescentes estariam especialmente vulneráveis.
A permanente tensão entre autonomia e tutela que parece ser inerente à discussão da
sexualidade adolescente, coloca em alguma medida em xeque, a prerrogativa dos direitos
sexuais, pois junto com a afirmação do lugar do/a adolescente como sujeito de direitos,
emergem questionamentos mais ou menos radicais acerca de sua real capacidade de resposta
aos possíveis efeitos desta autonomia. Um aspecto importante desse debate é a forma como a
sexualidade adolescente aparece no marco legal, tanto o ligado aos direitos da criança e do
adolescente como o dos direitos sexuais e reprodutivos.
As agendas trazidas pelas Conferências Internacionais e os movimentos nacionais na
esfera do direito e da cidadania propiciaram o alargamento da discussão de questões relativas
aos direitos humanos, que vem se tornando desde as últimas décadas do século XX, uma
plataforma de discussão de princípios e ação em torno dos ideais de autonomia, igualdade,
empoderamento e o direito às diferenças, quando a igualdade oprime (Adorno et al, 2005:26).
Como apontado anteriormente, o Plano de Ação de Cairo (1994) e a Plataforma de
Ação de Beijing (1995), referências na normativa internacional em relação aos direitos
sexuais e reprodutivos, inseriram os adolescentes como sujeitos que devem ser alcançados
pelas normas, programas e políticas públicas. Em 1999, a ONU realizou o encontro Cairo + 5,
de revisão e avaliação do programa da Conferência anterior e neste avançou em relação aos
direitos dos adolescentes, pois não manteve o direito dos pais em todas as referências aos
adolescentes e garantiu outros direitos, como o direito à privacidade, ao sigilo, à assistência à
saúde sexual e reprodutiva e à educação sexual a ser incluída nos currículos escolares.
Ventura (2005) ressalta que o reconhecimento pelas Nações Unidas da criança e do
adolescente como sujeitos sociais portadores de direitos e garantias próprias, independente
dos direitos de seus pais e/ou familiares e do próprio Estado, foi a grande mudança de
paradigma. Tal mudança estabeleceu obrigações do conjunto da sociedade no sentido de
assegurar políticas que favoreçam o pleno exercício da cidadania desse segmento. Para a
autora:
“todos os princípios fixados nas recomendações internacionais já se encontram incorporados
expressamente à legislação nacional ou afirmados genericamente. Porém, verifica-se a
necessidade de estabelecer leis e/ou políticas nacionais que de forma mais específica afirmem
os direitos sexuais e reprodutivos do adolescente, notadamente aqueles relacionados com a
saúde sexual e reprodutiva, considerando as diversas interpretações, por vezes desfavoráveis,

31
Esta tendência essencializadora e biologizante é também a abordagem predominante nos trabalhos acadêmicos
sobre a sexualidade em geral, como afirma Vance (1995).
do acesso dessa população às ações, serviços e informação referentes à sexualidade e
reprodução” (Ventura, 2005:39)
Os desafios colocados no plano nacional se devem ao fato de na sociedade brasileira
este tema constituir um paradoxo. Por um lado, o ECA, como dito anteriormente, inclui as
crianças e adolescentes na lógica de regulação do direito, tornando inevitável que sejam
reconhecidos como sujeitos portadores de direitos próprios, autônomos e livres. Entretanto, o
reconhecimento no plano normativo, não significa imediata compreensão e aceitação desta
nova concepção pela sociedade, determinando fortes controvérsias legais e, sobretudo,
políticas, que condicionam os ataques dos setores mais resistentes à mudança de paradigma.
Ventura & Corrêa ressaltam que o paradoxo torna-se mais profundo, pois ambivalências em
torno da dimensão da tutela e da autonomia desses sujeitos são identificadas na própria
legislação, em especial quando se toca na esfera da sexualidade e reprodução (2006:1506).
Apesar das inequívocas transformações propostas pelo ECA, ele apresenta limitações no que
tange a uma postura mais explícita em relação aos direitos sexuais do/a adolescente. O texto
legal apresenta certa neutralidade em relação às questões de gênero, aspecto fundamental
quando nos remetemos ao diferencial de autonomia experimentado por meninas e meninos em
nossa sociedade, em função das marcantes assimetrias de gênero existentes. Além disso, o
texto legal não se refere a aspectos ligados à sexualidade adolescente que não sejam aqueles
relacionados ao abuso e à exploração sexual. No plano legal, apesar das transformações
progressistas, de certa forma, afirma-se o impasse relacionado à possibilidade de afirmação de
uma vivência prazerosa e autônoma da sexualidade na adolescência.
Outro aspecto do paradoxo que envolve o tema, diz respeito à diretriz da proteção
integral, um dos princípios fundamentais do ECA, que em diferentes circunstâncias, é
entendida como (e torna-se instrumento para) afirmação de uma subalternidade desses
sujeitos, estabelecendo desigualdades que negam direitos fundamentais e contrariam a
intenção normativa. A idéia protetiva contida no ECA pode ser utilizada para reforçar, de
certa maneira, a condição dependente e não autônoma da adolescência como fase da vida.
Ao buscar as percepções e concepções de Conselheiros de Direitos da Criança e do
Adolescente procurei contribuir com esse debate examinando aspectos que possam colaborar
na superação de entraves para uma efetiva garantia dos direitos sexuais dos adolescentes.
3.2.2. A sexualidade adolescente na visão dos Conselheiros de Direitos
A interlocução com os entrevistados acerca do exercício da sexualidade adolescente,
realizada durante o trabalho de campo, teve por finalidade refletir sobre o tema sob diferentes
perspectivas. Buscava construir, a partir das percepções deles, um certo diagnóstico de como
o tema se apresenta ou ainda as dificuldades para tratá-lo, nos variados espaços do campo,
especialmente nos programas e projetos das organizações não-governamentais, nas políticas
governamentais e no espaço de discussão e formulação dos Conselhos. Ao conversar com os
entrevistados sobre a abordagem do tema pelas instituições, onde a ação junto aos
adolescentes concretamente se efetiva, pude dialogar sobre algumas dimensões do exercício
da sexualidade: homossexualidade e travestilidade; gravidez; a sexualidade em situação de
abrigamento ou internação para cumprimento de medidas socioeducativas; bem como sobre as
formas a partir das quais as hierarquias de gênero produzem formas diferenciadas do trato
desses temas para meninas e meninos.
Apreendi dos entrevistados quais vêm sendo os temas prioritários nas pautas dos
Conselhos nas três esferas – municipal, estadual e nacional - e como o tema da sexualidade
tem se apresentado nestas instâncias. Busquei as posições dos Conselhos em relação à
temática da sexualidade adolescente, e as possíveis dificuldades em abordar o tema em seu
interior. Em alguns momentos, obtive consensos do conjunto dos entrevistados, mas em
relação à maioria dos temas, houve concepções e opiniões bastante diversificadas que se
relacionam aos variados posicionamentos existentes no campo, como debatido anteriormente.
Também em relação à sexualidade, a postura dos conselheiros entrevistados retratou a
existência de um confronto de posições no campo. O que ficou claro, é que a forma como o
tema vem emergindo nos Conselhos é descrita como semelhante a que ele é tratado na ação
cotidiana das instituições.
Em relação às concepções de sexualidade identificadas no discurso dos conselheiros
entrevistados, uma idéia presente entre alguns entrevistados (notadamente os mais ligados ao
discurso religioso), é a de precocidade. A sexualidade na adolescência foi percebida como um
marcador da violação do “caminho natural” a partir do qual a sexualidade é pensada na vida
dos sujeitos. Um bom exemplo disso, é a fala de Paulo:
“a gente percebe que no mundo em que vivemos hoje, das informações tão rápidas e tão
abundantes, às vezes abundantes até demais, nossa juventude, nossa adolescência, de alguma
forma, é levada a uma vida ativa, a uma sexualidade ativa precocemente. Eu considero
precoce porque o que eu tenho ouvido de meninos de 9,10 anos. Estou falando dos de rua. Mas
isso não é exceção, porque eu creio que lá nas ditas casas de família, aconteça o mesmo, só
que de forma camuflada.”
Nessa perspectiva, a sexualidade teria uma data para aparecer, num processo que é
visto como fragmentado em etapas fixas. Paulo ao falar desse tema, afirma achar que tem uma
“idade certa para se viver a sexualidade”, que na concepção dele seria por volta dos dezesseis
anos. A definição dessa idade ideal se daria, como afirma, “não por causa de eleição e nem
por causa dessas firulas na área política”. Ela se deveria ao que Paulo entende como uma certa
“ordem natural das coisas”, pois para ele o desenvolvimento humano, assim como das plantas,
é determinado pela natureza:
“Eu considero o ser humano que vai num processo. É como uma plantinha. Determinadas
coisas vai organicamente. Eu digo orgânica, química, psíquica, etc. Vai se dando. Quando a
menina vai virando mocinha, quando o menino vai virando rapaz. As primícias do que está por
vir. Já é latente, já é presente, mas na maturação natural entre o físico, o psíquico (...) Uma
coisa que vai surgindo sem ninguém forçar.”
Regina partilha da mesma concepção naturalista e etapista. Ela vê como um grande
mal da “nossa sociedade” uma certa banalização da sexualidade:
“a sociedade começou a vislumbrar a sexualidade infantil de uma forma sem importância.
Supervaloriza a sexualidade de uma forma errada porque você trata precocemente do assunto.
A criança tem sexualidade, mas uma coisa é uma criança, uma coisa é um adolescente e outra
coisa é um adulto. E o que a gente vê são exemplos adultos servindo para crianças. E aí você
tem, quem são os fãs da Tiazinha? Os fãs da Carla Perez? E os pais acham bonitinho a
criancinha de três anos dançar o créu.”
32
Ela aponta um aspecto tamm abordado por Paulo, o de que a mídia teria um papel
de produzir uma “sexualização da infância”, que vem encoberta por um processo de
“glamourização”, queimando etapas do processo “normal” de desenvolvimento sexual dos
sujeitos, acarretando uma série de problemas que se acumulam em complexidade crescente.
Regina afirmou que no Brasil esse “apelo sexual muito forte” é tolerado em função da
importância da TV, pois:
“como é um apelo que vem da mídia e normalmente associado a glamourização, as pessoas
não vêem isso como um incômodo. O problema é que as pessoas nunca pensam nisso. Você vê
a sexualidade das crianças aflorar de uma tal forma através da mídia. Depois que a Xuxa
33
virou apresentadora de TV depois de ter feito um filme pornô, eu acredito em qualquer coisa
(...) E aí com essa sexualização na infância a impressão que eu tenho é que as coisas

32
Para melhor entendimento, relembra-se que a “Tiazinha” é uma personagem criada por uma modelo, que
usava uma fantasia que se aliava a um estereótipo sado-masoquista, muito popular em programas de televisão
alguns anos atrás. Carla Perez foi uma famosa dançarina de axé-music, que fazia danças sensuais. E “dançar o
créu” é uma expressão criada pelo funk carioca recentemente, cuja dança faz alusão ao ato sexual.
33
A Xuxa é uma famosa apresentadora de programas de televisão infanto-juvenis.
ganharam um tom de normalidade completamente anormal. Acho que a sociedade passa a
ficar insensível.”
Paulo anuncia também o “problema das meninas estarem menstruando mais cedo”.
Articulada a concepções naturalistas/biologizantes da “precocidade”, as meninas estariam
entrando na puberdade mais cedo por causa dos hormônios que ingerem na carne de frango e
isso também explicaria a precocidade das suas práticas sexuais. Como disse Paulo, “talvez
pelos agrotóxicos ingeridos nos vários alimentos (...) desde o agrotóxico usado na planta, na
comida, no frango que faz os hormônios desencadearem um processo acelerativo, precoce de
novo.”
Outra idéia correlata a de precocidade é a da influência do sistema capitalista na
produção da sexualidade como veículo da propulsão do consumo, pois mesmo produtos não
diretamente ligados à sexualidade, seriam vendidos de forma sensual nas propagandas. Aqui
mais uma vez aparece como pano de fundo a idéia de um homem natural, de uma natureza
humana violada por uma estrutura social doente. Paulo acredita que por uma lógica de
mercado “tudo vira produto”, pois:
“há um contexto sociopolítico, econômico, cultural atual que leva irreversivelmente a uma
situação de muito mais cedo, ou quanto mais cedo, o despertar para esse universo da vida
sexual ativa. Não estou falando daquilo que é vaidade ou sensualidade, mas a ação da relação
sexual em si. (...) Na lógica de mercado, que todo mundo quer criar lucro, eu creio que a
sexualidade, além de estar sendo vista como um produto, está sendo colocada como super
produto.”
Dario ao refletir sobre a possibilidade de afirmação da sexualidade como um direito,
reforça a percepção de que na sociedade, através da “mensagem da mídia”, a sexualidade é
transformada em produto:
“A gente conta com elementos muito fortes na sociedade, formadores de opinião pública, que
se contrapõem a esses objetivos de elevar a sexualidade a uma situação de direito subjetivo
das pessoas. O que predomina na mensagem da mídia é a sexualidade como um ato de
comércio, de subjugar as pessoas, de sedução com objetivos escusos. O que você vê nas
novelas de televisão é um exibicionismo da sexualidade como um ato de egoísmo e não de
doação. Você vê as mulheres bonitas que seduzem os homens porque são ricos ou porque
querem um lugar, um cargo na sociedade, ou na política” [grifo meu].
Ao reforçar uma certa demonização da mídia como instrumento de uma sociedade que
só visa ao lucro, Dario também expressa a idéia de que há o sexo bom e o sexo ruim, o que a
meu ver, está completamente articulado à idéia da sexualidade como algo da esfera da
natureza. Como ele mesmo afirmou, “a atividade sexual é uma atividade instintiva, o bebê faz
isso.” Contudo, ele também apresenta a idéia de uma natureza a ser controlada: “mas se você
não preparar o homem para isso, você animaliza o sexo”. Em seu discurso, prevalece a
afirmação de que os instintos têm que ser domesticados pela sociedade, para que sejam
utilizados de uma forma saudável. Sua crítica vai no sentido de que, em sentido contrário, tem
sido estimulada (inclusive nos adolescentes e jovens) uma “sexualidade animal”. Em outras
palavras, a dita sociedade doente, apontada por Regina, não daria conta de disciplinar os
corpos
34
como deveria:
“o que se vê com muito mais freqüência, quase que predominante, é o exercício da
sexualidade animal, instintiva. E não a saudável prática sexual. Isso porque não se promove a
discussão educacional da sexualidade como se discute as questões fundamentais da vida (...)
Então você tem uma dificuldade muito grande, se você não trabalhar isso, a partir da criança.
Se você não formar a criança com esses valores de que a sexualidade é um direito da criança,
do adolescente, mas que precisa ser auto-disciplinada.” (Dario)
Essa “auto-disciplina” é que, de certa forma, daria à sexualidade um status de direito
a ser gozado, pois vista como um instrumento que pode ser utilizado para o bem ou para o
mal, é fundamental que se promova um processo educativo para que esse direito possa ser
utilizado de forma construtiva: para o prazer e não o prejuízo da própria pessoa e de outros.
Dario afirmou, inclusive, que este seria o papel das políticas públicas, no sentido de efetivar a
sexualidade como um direito, como algo positivo e não só pela violência:
“a autodisciplina na sexualidade, ela vem da formação do caráter, da personalidade da pessoa.
Eu posso usar o meu corpo na sexualidade para os contatos mais devassos possíveis, mas eu
tenho que ter uma formação intelectual e cultural, sob o ponto de vista da saúde e social, de
que aquele instrumento, aquele direito à sexualidade, eu devo usar a meu favor e em favor do
bem. Isso é política pública.”
O entrevistado percebeu o corpo como um “instrumento de prazer natural”,
reafirmando-se a idéia de que a boa natureza do sexo deveria prevalecer sobre a má, e que
essa fonte de prazer deveria ser melhor utilizada:
“Então, uma imagem que me apareceu agora, que eu acho interessante: que tanta gente busca
o prazer com prejuízo social grande e com prejuízo à sua saúde, como nas drogas, nas bebidas
alcoólicas, quando nós temos no nosso corpo, nas nossas endorfinas, os nossos líquidos, os
nossos mecanismos de afeto, um prazer que só causa prazer. Que não causa mal nenhum, se
nós soubermos usar bem. Porque você também pode usar o sexo para a prática de crimes, para
a prática de abusos, para a prática de estupros, para a prática do lenocínio, para a prática da

34
Entende-se aqui que esta disciplina dos corpos tenha importância no sentido atribuído por Foucault: “o controle
da sociedade sobre os indivíduos não se opera simplesmente pela consciência ou pela ideologia, mas começa no
corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que, antes de tudo, investiu a sociedade
capitalista. O corpo é uma realidade bio-política” (1982:80).
exploração de crianças, para a prática da pedofilia. Quer dizer, você pode transformar um
instrumento de prazer natural em um instrumento de agressão ao outro.”
Dario falou entusiasmado de “nossos líquidos”, de “nossas endorfinas”, que seriam a
base da sexualidade humana, definida a partir de processos fisiológicos. Tal idéia torna-se
mais presente ainda quando se fala de sexualidade adolescente. Célia também abordou a
sexualidade adolescente sob a égide dos hormônios: essa força incontrolável que não permite
que a pessoa “se controle”. Em mais de um momento, a entrevistada remeteu à “coisa
hormonal” em relação à sexualidade adolescente. Encontrei assim, explicitamente, ou como
expressivo pano de fundo do discurso de meus entrevistados, essa idéia da sexualidade
naturalizada e submetida aos ditames do processo hormonal, processo que determina o
comportamento dos jovens
35
. O exercício da sexualidade apareceu assim, hegemonicamente
ligado a algo que se vive antes do tempo ou de uma forma ruim, porque não educada.
Embora minoritárias, houve vozes no trabalho de campo que referenciam o exercício
da sexualidade como um processo permeado pela realidade sociocultural dos sujeitos
36
e que,
por isso, pode ser vivida também pelos adolescentes de uma forma bastante positiva. Trata-se
de enfocar os adolescentes na perspectiva dos direitos, procurando descaracterizar a idéia da
adolescência como problema. Esta perspectiva apareceu no discurso de Vitória ao afirmar
que:
“hoje você vê os adolescentes vivenciando a sexualidade a partir dos doze anos, decidem
quando vão ter filhos. A vivência da sexualidade não significa gravidez, não significa doenças
sexualmente transmissíveis. Não é isso. É possível vivenciar (...) É ilusão você achar que vai
pregar a abstinência na adolescência. Eu acho até cruel. Um processo completamente
interessante, de vivência com o outro, de descoberta, você não proporcionar as condições
ideais de vivência daquilo, desse momento. A vivência da sexualidade, ela não está envolvida
só a questão do acesso à informação, ela está ligada a vivência mesmo da sexualidade (...) não

35
Partilho da concepção de que a sexualidade é uma experiência complexa que envolve aspectos culturais,
sociais, históricos e políticos, além da dimensão biológica e psicológica. Assim, não deve ser entendida como
uma mera questão de instintos, impulsos e hormônios. Como propõe Buglione (2005) “as questões sobre
sexualidade e reprodução sempre foram palco de normalizações morais, vinculadas prioritariamente a uma
essencialização do sexo (...) A sexualidade dos adolescentes torna-se uma das questões mais difíceis de observar
[como direito] nesta essencialização que concebe a sexualidade de forma ‘natural’ e a-histórica. As expressões e
conseqüências dessa sexualidade no comportamento dos jovens são explicadas, costumeiramente, por uma
‘natural’ explosão hormonal desta fase do desenvolvimento. Ignorando-se quase que por completo os aspectos
socioculturais.
36
Aqui me posiciono, como proposto por Heilborn, numa perspectiva construtivista da sexualidade, que busca
desnaturalizar esse domínio. O argumento da construção social do sexual, considera que essa dimensão humana
não é natural, nem universal em sua forma de expressão, nem inata e, de um ponto de vista sociológico, não pode
ser interpretada como pulsão psíquica ou função biológica. Os antropólogos e sociólogos consideram que a
expressão da sexualidade se dá em um contexto social muito preciso, o que orienta a experiência e a expressão
do desejo, das emoções, das condutas e práticas corporais (2006:43).
tem como discutir sexualidade a não ser pela perspectiva do prazer. Pelo menos a gente
compreende assim. Como é que as pessoas podem vivenciar a sexualidade realmente com
prazer.” [ênfase dada pela entrevistada]
Entende-se que a forma de conceber a sexualidade possa impactar diretamente na forma
como os sujeitos lidam com o tema nas instituições em que trabalham
37
e também nos espaços
em que atuam politicamente, como os Conselhos. O tópico a seguir busca apresentar algumas
destas concepções.
3.2.2.1. Como o tema da sexualidade é tratado nas instituições que têm projetos voltados
a crianças e adolescentes
Todos os entrevistados afirmaram que a grande maioria das instituições não trata
formalmente o tema da sexualidade com os adolescentes, de certa maneira, negando essa
dimensão da vida dos sujeitos. E, quando elas o fazem, é numa perspectiva de prevenção da
gravidez e das doenças sexualmente transmissíveis. Ouvi de mais de um entrevistado que os
adolescentes são tratados como “assexuados”. Célia, por exemplo, ao ser perguntada como os
projetos lidam com o tema afirmou: “pois é, eu acho que, na maioria dos casos, é na negação,
é fingindo que isso não existe. Acho que, de um modo geral, as pessoas não encaram essa
discussão”. Também em outro momento, referindo-se a instituições de abrigo e internação, ela
afirmou de forma enfática:
“não se lida, eles não têm sexualidade, eles são assexuados. Pra esses projetos, eles são
assexuados. Essa não é a questão. Essa questão, ela só é abordada quando vai falar de
prevenção, de gravidez, aí aborda, aí esse é o caminho, disso pode falar. Tá evitando que o
menino pegue uma doença, tá evitando que o menino se contamine, tá evitando uma gravidez
indesejada. Mas falar disso de forma tranqüila...”
O silêncio em relação à sexualidade é “muito cruel na vida desses meninos e
meninas”, pois o olhar sobre o adolescente não está voltado a entendê-lo a partir de sua
sexualidade. Não há uma perspectiva de articular a dimensão sexual a outras na vida dos

37
Como propõem Adorno et al (2005), esse modelo biológico, que reforça uma compreensão a partir da teoria
dos instintos e hormônios, onde os adolescentes estariam submetidos a essa “erupção biológica”, junto a um
imaginário social de temor em relação às gerações mais jovens, tende a construir como resposta, ações em saúde
e educação comprometidas com o controle desses aspectos, o que não contribui para a afirmação da autonomia
desses sujeitos.
adolescentes e, essa postura, está ligada a uma dificuldade dos profissionais em lidarem com o
tema, como Vitória confirma:
“Você não vê, na perspectiva nem do entendimento do próprio contexto de vida que ele está
fazendo. Você até às vezes vê um relato de uma psicóloga preocupada com o sentimento,
tristeza, alguma forma diferenciada que o adolescente está vivendo... agora, nunca, isso
relacionado a uma abertura que o adolescente vem falar de alguma coisa da sexualidade dele.
Esse estudo e essa contribuição do emocional não passa pela perspectiva de que isso tem uma
questão também do momento da sexualidade que ele está vivendo. Porque tenta se esconder
alguma coisa que acha que não se dá conta. Não se dá conta, porque exatamente não existe
uma perspectiva de investimento para você poder contribuir exatamente com esse momento
[grifo meus]
Contudo, os motivos que levam ao silêncio e à negação da sexualidade são
interpretados de diferentes formas. A maioria dos entrevistados fez mais uma descrição sobre
o porquê do tema não aparecer do que sobre como ele aparece. Neste sentido, foi a descrição
de uma ausência. Não obstante, há uma leitura partilhada por todos os entrevistados de que
esta é uma dificuldade dos profissionais. A inabilidade destes, relatada pelos entrevistados,
não seria apenas técnica, mas fundamentalmente ética, porque eles estariam imbuídos de
preconceitos. Ana me relatou a dificuldade das famílias em lidar com o tema, pela “falta de
diálogo dentro da família (...) porque vai achando sempre que o menino ou a menina aprende
[sozinho/a]. Que esse é um tema que não precisa falar tanto.” Questionei a ela então, se a
dificuldade era só das famílias, e ela me retorquiu:
“Não! Muito também dos profissionais. Porque eu acho que é um tema que o profissional
ainda traz um juízo de valor muito grande. Então, quando ele vai falar com a família, ele
também encontra dificuldade. Ele embute aí no tema seu juízo de valor. E aí isso compromete
essa conversa. Isso compromete essa ambientação. Isso compromete esse diálogo. Então, isso
também é uma dificuldade. Ainda é um problema também que o profissional dessa área
encontra.”
Em alguns momentos, a falta de conhecimento sobre o tema viraria justificativa para
não discuti-lo com os adolescentes, transforma-se em um pretexto para não se investir nele em
função de outras dificuldades. Como Vitória reiterava, “não se dá conta” porque a instituição
e os profissionais não tomam uma atitude política de se qualificarem para desenvolver tal
trabalho. Nesse aspecto, meus entrevistados se dividiram. Alguns defenderam que a ausência
do tema está ligada a um problema enfrentado pelas instituições, que é trabalhar temas que
não são ligados diretamente à sua vocação principal, como argumenta Regina:
“Eu acho que as instituições têm um foco e normalmente trabalham naquele foco. Eu não vejo,
por exemplo, uma instituição como a gente, que trabalha na área de artes, de repente levantar a
temática da sexualidade ou das drogas. A instituição trabalha com música, vamos dar aula de
música (...) Então acho que os profissionais ainda estão muito pouco preparados para você
estar tratando de um tema e, de repente, ver que ela, na outra ponta, quer falar de sexualidade
ou falar de drogas. E é uma situação que pode acontecer na minha aula de balé, na aula de
música, na aula de reforço escolar. Ou seja, todos os profissionais da instituição deveriam ter
um mínimo de jogo de cintura para saber lidar com aquela questão (...) Eu sinto que as
instituições ainda não estão preparadas para isso. A maior parte não aborda o tema. Ou então
quando abordam o tema são instituições que têm foco na questão da sexualidade. Acho que as
coisas às vezes não fluem naturalmente.”
Regina evocou outros dois aspectos que outros entrevistados corroboraram: a baixa
qualificação dos profissionais para trabalhar com o tema, o que justificaria o “silêncio”, e a
tendência à especialização temática das instituições. Em relação à inabilidade dos
profissionais, o “silêncio” se faria por desconhecimento do tema por parte deles. Regina
associa a ausência da sexualidade às dificuldades financeiras enfrentadas atualmente pelas
instituições não-governamentais:
“O que eu vejo atualmente, existe uma discussão, é a questão de pobre dando aula para pobre.
É o pobre de informação dando aula para a criança também que é pobre em informação. O
investimento, até na hora de você conseguir patrocínio, eles sempre pagam o profissional mais
barato. E aí você tem muita dificuldade de conseguir nas instituições colocar nesses quadros
profissionais com potencial que consigam abordar bem esse tema (...) E aí, realmente quando
você pega aquela pessoa que teve uma formação frágil, estudou em faculdades ruins, é pobre
de informação e ainda carregada de preconceitos, querer que esta pessoa faça esse trabalho
com os adolescentes não vai dar certo.”
Essa baixa qualificação seria “compensada” freqüentemente com o convite à vinda de
profissionais externos, “especialistas”, para “falar sobre o tema”, seja com os adolescentes,
seja com suas famílias. Mesmo Regina - que diz não viver essa limitação financeira em sua
instituição - entretanto, em determinado momento, relatou que “mês que vem o nosso tema é
sexualidade. Vem uma profissional aqui para conversar com elas
38
”. Paulo também descreveu
que na instituição em que trabalha fizeram um “retiro” de dois dias com quarenta meninos e,
entre os temas a serem debatidos, os meninos disseram querer “discutir sexo”. E então, a

38
Rohden & Carrara ao relatarem o percurso de uma experiência de formação de professores em gênero,
sexualidade e raça/etnia afirmam ter encontrado entre os educadores envolvidos no curso uma postura
semelhante à descrita pela informante: de afirmação do desconhecimento sobre os temas, bem como a
necessidade de recorrer a especialistas. Os autores afirmam a importância de romper com essa expectativa, visto
que “discutir gênero, sexualidade e raça/etnia e lutar contra o preconceito deve ser uma tarefa de todos/as. Nesse
sentido, ao contrário de relegar o assunto para um especialista a ser convidado eventualmente para discutir com
os alunos, procuramos destacar o comprometimento dos/as cursistas e incentivar a sua procura por formação e
informação de diversas formas” (2008:24)
equipe decidiu convidar uma enfermeira para falar disso, que chegou lá e propôs aos meninos
conversar sobre DST/aids. Esse é um aspecto que se relaciona com o que Célia já tinha
apontado, ou seja, quando há uma iniciativa em discutir sexualidade, foca-se na prevenção das
doenças, o que liga diretamente o tema a um profissional de saúde. Mas, mesmo aqueles que
em suas instituições têm essa postura, vêem as limitações dessa opção, como Ana relatou:
“Quando a gente percebe que é um tema ainda pouco falado, pouco conversado, a gente então
convida uma pessoa para tratar desse tema com as famílias. E aí eu percebo que ainda é um
olhar muito técnico, muito médico. Eles falam muito da questão da preservação e falam pouco
no acesso, falam pouco do carinho, falam pouco da necessidade dessa relação (...) E então eu
vejo assim, focam muito... (aí é uma avaliação que eu faço) focam muito nessa coisa assim:
“vamos ensinar que a camisinha usa assim... que a pílula faz assado...”
Paulo fez uma síntese em relação à qualidade da abordagem do tema da sexualidade
pelas instituições que atuam com crianças e adolescentes. Ele categorizou as mesmas em
duas vertentes: “eu não falo disso” ou “eu só falo disso”. Existem as instituições que não
falam e as que “falam, falam, falam...”. Entre as que não falam, também existiriam dois tipos
de instituição. No primeiro grupo se encontram as instituições ligadas à igreja, ou que
“comungam daquilo que é o ser igreja”, como a dele, e a maioria destas não toca no assunto
mas, se os meninos tocarem, haverá um retorno. Como ele disse, “eu vejo desabrochar e
responder objetivamente aquela questão que foi feita e não faço abertura para nenhuma outra”
[grifo meu]. Contudo, meu entrevistado fez questão de ressaltar que tais instituições não o
fazem deliberadamente, pois dispõem inclusive de informação sobre o assunto:
“A Igreja não fala por opção, por escolha. Mas ela exige de nós o estudo, o aprofundamento, o
detalhamento de causas e conseqüências decorrentes. Todos da Igreja, por mais que não falem,
têm conhecimento de causa. A partir de uma lógica de uma política (...) Uma conversinha com
uma freirinha lá, a minha congregação diz que eu respondo ao menino, porém não tenho que
fazer ... mas ela conhece profundamente a situação, a anatomia do não sei o quê....
Em contrapartida, há o segundo grupo descrito por Paulo: as instituições que não estão
no campo religioso, mas que não lidam com o tema da sexualidade por “um não
conhecimento de causa”. Assim como proposto por Regina e Ana, Paulo tamm acredita
que, por não dominar o tema, os profissionais “não entram nesse campo. E aí fica aquela
resposta superficial ou sai pela tangente”. Em função do tema ser um “tabu para a sociedade
toda”, Paulo afirma:
“nas ongzinhas, que a menina está lá e ele diz: “olha, eu só sei que deitando e fudendo dá o
filho. Se usa camisinha, pode não pegar filho e doença”. Para além disso, o que eu falar, eu
fico num território pantanoso, então não entro.” [grifo meu]
O mais interessante do relato de Paulo, é que pelo referido “tabu” em relação à
sexualidade, o tema só tem permissão para ser tratado na perspectiva da gravidez ou da
doença, ambos aqui colocados em um idêntico patamar: o de problemas a serem prevenidos.
Contudo, Paulo me apresentou um outro grupo de instituições que seriam as que “falam
muito”. Elas o fazem, sobretudo em função de linhas de financiamento governamentais
especialmente destinadas ao trabalho com a temática, particularmente com recursos oriundos
do Ministério da Saúde para a prevenção das DST/aids. Como exemplo, meu entrevistado
relatou que, no Rio de Janeiro (RJ), existe uma rede de instituições que atuam junto a
crianças, adolescentes e jovens em situação de rua que é composta por dezessete instituições.
Dessas dezessete, sete delas têm ação direta nas ruas. Destas sete, cinco trabalham com o
tema da sexualidade. As outras duas que não trabalham com o tema são religiosas.
Paulo avaliou que a conjuntura de ampliação de linhas de financiamento em função da
epidemia da aids para projetos de prevenção (que incluem distribuição de preservativos),
acabou determinando a vinculação de um conjunto de instituições que atuam com
adolescentes e jovens a essa temática. Esta, na visão de Paulo, acabou sendo uma importante
fonte de financiamento das ações institucionais. Embora faça explicitamente esta crítica, ele
faz questão de ressaltar que acha “muito bom” que o Brasil seja referência no enfrentamento à
aids, e que o governo nas três esferas busque parceria com ONGs para realizar esse trabalho.
Até porque,
“quantos interesses se coadunam aos do próprio governo, como políticas públicas, que repassa
para o Estado, que repassa para o Município, que por não ter uma capilaridade, nem como
chegar às populações mais vulneráveis. Essa população nem sempre chega espontaneamente
como demanda para os postos fixos. Aí busca parceria com aqueles que saem de suas quatro
paredes. Então, são as ONGs que vão ao encontro dessa população. Eu acho correto.”
Mas Paulo finaliza sua análise fazendo uma nova crítica, a da excessiva focalização na
aids: “que pena que isso não vale para todas as políticas”. Essa perspectiva trazida é
interessante, pois reafirma algo já abordado por outros pesquisadores, ou seja, o quanto o
apoio financeiro, especialmente do Ministério da Saúde a ONGs que atuam junto a
determinadas categorias sociais, tem favorecido substancialmente o envolvimento destas com
a prevenção às DST/aids, e o seu fortalecimento, de certa forma, contribuindo na criação de
demandas antes não identificadas
39
. O que Paulo aponta, talvez não seja um fenômeno
generalizável ao campo de garantia dos direitos de crianças e adolescentes, mas sinaliza uma
tendência pelo menos das instituições que atuam com um público específico: os adolescentes
e jovens em situação de rua. Visto que os financiamentos a projetos de atendimento genérico
a esse grupo escassearam na última década, isto pode ter forçado as instituições que atuam
com esse público a se abrirem ao trabalho com novas temáticas, como as de saúde, em função
da criação de um “novo” nicho de financiamento que surgiu com o enfrentamento à aids no
país
40
.
A despeito da reflexão levantada por Paulo, há outra forma de ver a divisão entre as
instituições no que tange a forma como lidam com a sexualidade. Vitória faz uma crítica à
dificuldade de incorporação efetiva da temática pelas ONGs. Para ela haveria um estímulo à
especialização em sexualidade por algumas ONGs, e que a existência delas agiria como uma
cortina de fumaça impedindo a crítica ao descompromisso do restante das organizações com o
tema.
Vitória atua em uma instituição que pode ser considerada “especialista”, como ela
mesma se referiu, ou ainda, “temática” (como alguns dos outros entrevistados se referiram a
instituições como esta), pois é uma das instituições que atuam diretamente ligadas ao tema da
sexualidade, seja pelo viés das questões de gênero, seja pelo trabalho de prevenção das
DST/aids. Ao falar da atuação de sua instituição em sexualidade, Vitória já de saída apontou
sua concepção de como o tema da sexualidade poderia ser introduzido de forma mais efetiva
nos trabalhos das organizações do campo. Ela defendeu a “transversalidade do tema”, como
uma forma de trabalho, e afirmou que, concretamente, o trabalho com sexualidade vem se
materializando na maioria das organizações como uma simples devolução dos adolescentes ou
das “situações-problema” às instituições públicas de saúde, como descrito no trecho abaixo:
“acaba-se criando as instituições especialistas em sexualidade e na prevenção. Então, assim,
esse não é um tema transversal nas instituições. As instituições religiosas acham que têm que
encaminhar para os postos de saúde. Então, se o garoto sentir vontade, ele vai no posto de
saúde, vai assistir aquela palestrinha e vai receber os preservativos. Fora disso, não existe
nenhum outro trabalho. Acaba criando as instituições que trabalham com esse tema mais como
um eixo, um eixo transversal em todos os projetos. A questão da sexualidade, do uso das
drogas não tem como conviver, como fazer qualquer outra ação se você não traz duas coisas

39
Almeida (2005) aprofunda essa discussão a partir da experiência das organizações de lésbicas.
40
Carrara & Vianna (2008) apontam que tal fenômeno ocorreu em relação a organizações ligadas ao movimento
LGBT, que a partir da década de 1990 passaram a contar com o financiamento do governo federal, através do
Programa Nacional de Aids, para atividades de prevenção ao HIV ou de apoio aos doentes. Ao que parece, essa
possibilidade, só agora, em meados da década de 2000, se apresentou mais claramente para as organizações que
atuam especificamente junto a adolescentes e jovens.
que são vivenciadas de uma forma muito intensa, especialmente pelo adolescente e pelo
jovem. Isso é possível trabalhar em qualquer outra coisa. Seja na capacitação no curso de
rádio, seja na iniciação a informática. São temas que dá para trabalhar em qualquer... se você
tem exatamente eles como perspectiva, dá para trabalhar até na bijouteria.”
Aqui ficaram bastante claras as divergências entre o que denominei as “tendências” ou
“posições” do campo, quando os/as entrevistados/as se dividiram e esboçaram críticas uns aos
outros pelas posturas assumidas. Vitória criticou a forma como as instituições religiosas lidam
com o tema, simplesmente encaminhando os adolescentes aos postos de saúde e, segundo ela,
desresponsabilizando-se da construção de processos e estratégias educativas para lidar com o
tema. Em contrapartida, Paulo, ligado a uma instituição religiosa, confirmou que a estratégia
acionada pelos profissionais é o encaminhamento aos postos de saúde (“para quem desejar”),
sustentando a correção deste procedimento na necessidade de não interferir na gestão da vida
sexual dos adolescentes, embora proponha como correto “refletir com eles acerca de suas
decisões”. Por outro lado, abriu frontalmente uma crítica às instituições que, ao assumirem
um trabalho de prevenção, envolvem-se em uma distribuição indiscriminada de preservativos
e dão à sexualidade um lugar de destaque no trabalho desenvolvido com os adolescentes, pois
segundo ele, “o sexo tem que ser visto como qualquer outro desejo, outro direito”. E completa
descrevendo como atua:
“Não posso dizer ao menino: “vá ou não vá com a menina, use ou não use camisinha”. Você
pode ir com a menina sim, você está numa idade em que tem todas as condições para. Agora,
você tem como ir com ou sem camisinha. É uma opção. Você pode deitar ou não deitar, você
pode deitar com ou sem camisinha. E, uma vez deitando sem, as conseqüências chegam e ou
se trata, ou não se trata. Ou dissemina isso para Deus e o mundo ou... e aí a decisão é... Eu
estou dizendo em tese, porque eu nunca sentei com um menino, eu mesmo. Mas a
orientação ao educador é que essa reflexão seja permanente. Conscientemente, sabemos que
todos com os quais trabalhamos e lidamos têm uma vida sexualmente ativa. Nós não estamos
aqui para inibir. E não somos distribuidores de camisinha. Aí é fazer cada um assumir o seu
papel. Existem os chamados postos de saúde. Até encaminhamos para um programa de
planejamento e orientação sexual. Em alguns postos, fomos ver até para adolescentes. Nessa
matéria eles são mais sabedores do que nós. [grifo meu]
Existe uma tensão visível no trecho acima, “a sexualidade e suas conseqüências” é
claramente assumida pelo entrevistado como algo importante na preparação dos educadores
que têm o contato direto com os adolescentes, mas ele próprio um educador com muitos anos
de experiência, admite que em sua trajetória “nunca sentou com um menino”, ou seja, nunca
elegeu a educação em sexualidade como parte do seu papel na relação direta com os
adolescentes.
Gostaria de resgatar uma reflexão apontada anteriormente: a de que em sua grande
maioria, as instituições (exceto as “especialistas” em sexualidade), quando confrontadas com
o exercício da sexualidade adolescente, remetem-se diretamente à discussão da prevenção das
DST/aids e à gravidez, mantendo a meu ver uma postura de controle sobre o exercício da
sexualidade, em última instância, uma postura de controle repressivo sobre os adolescentes,
sem uma efetiva vinculação com a garantia de seus direitos. Vitória apontou essa questão ao
refletir que:
“na questão da sexualidade o controle vem por todos os mecanismos ditos de informação e de
formação. Se você for pensar que você trabalha hoje só na questão do uso, prevenção no uso
da camisinha, não ter uma discussão exatamente dos direitos reprodutivos, dos direitos sexuais
do ser humano. Então assim, a camisinha, acaba sendo uma forma de controle de uma
sexualidade, não de discussão de uma ampliação de direitos, entendeu? (...) Então existe uma
abordagem, um trabalho que se diz um trabalho de prevenção que faz muito mais trabalho de
controle, do que de fato permitir o conhecimento do corpo, da sexualidade.”
Essa perspectiva de controle repressivo sobre os corpos incidiria de forma diferente
em relação a meninos e meninas, pois as convenções de gênero aparecem para demarcar uma
forma diferenciada de lidar com o tema. Mais de um entrevistado apontou que, em relação às
meninas, esse controle está mais explícito, em função de a gravidez, segundo eles, ser tratada
como um “problema de meninas”, também pelas instituições. Como afirmou Vitória, “no caso
das meninas, é porque na mulher parece que a sexualidade está mais presumível, por conta da
reprodução. Então, quando se pensa na sexualidade das meninas, se pensa pela perspectiva do
controle da reprodução, da questão dos filhos”. Essa tradicional vinculação entre sexualidade
e reprodução, faz com que as meninas sejam alvo maior de preocupações, pois seriam elas as
responsáveis pelo (malfadado) “problema da gravidez precoce
41
”.
Em relação ao tema da gravidez, obtive diferentes opiniões e leituras. Paulo
questionou a própria idéia de “precocidade”, sob uma argumentação histórica e, de certa
maneira, dissonante do posicionamento hegemônico sobre o tema. A esse respeito, ele ressalta
que, em outros contextos, o que é considerado atualmente “problema social”, já foi bastante
natural:

41
Referindo-se a um artigo de Zuenir Ventura, Heilborn (2008) discute “o mal estar brasileiro” em torno da
gravidez adolescente. Para ela, o autor, ademais como diversos outros articulistas da grande imprensa, caiu numa
armadilha que volta e meia se traveste de preocupação com a infância pobre. A armadilha se pauta numa
equação reducionista que associa reprodução entre os pobres à “invasão das hordas de criminosos que assolam as
grandes metrópoles brasileiras”. Acredito que também neste contexto estudado, esta equação se atualize e dê
direção a algumas das práticas institucionais.
“Eu lembro de épocas. Essa realidade não é nova. Porque hoje se fala em doenças sexualmente
transmissíveis, mas em outras épocas nós tínhamos os pais que levavam os meninos aos
dezesseis anos para o prostíbulo para ter a primeira experiência na casa da luz vermelha, para
saber se o menino era viril ou não. A chamada gravidez precoce... que hoje chamamos
precoce... que não tem precocidade nenhuma. Se a gente vai olhar na história, o que houve é
uma consciência de que o estudo é algo que se tornou importante e só quando a menina se
forma então deveria pensar nisso. Porém no interior desse Brasil, até a década de cinqüenta,
sessenta, 65% da população na zona rural, no interior aos 12, 13, 14 anos a menina era dada
em casamento e tinha aquela enxurrada de filho, que era um casamento duradouro (...) Quer
dizer, é só fazer uma leitura do cenário. Onde é que está o espanto?”
Desta forma, Paulo propõe a rediscussão dos motivos que, hegemonicamente têm
justificado o trato da gravidez adolescente como “problema social”. Mas ele o faz, com uma
preocupação diferente: a de esvaziar a necessidade de projetos em sexualidade. Embora numa
outra perspectiva, Dario de certa forma, compartilha das concepções hegemônicas na
sociedade, que articulam gravidez na adolescência, pobreza e violência. Ele foi enfático ao
falar que:
“Nós temos aqui uma praga, fruto da ignorância, que é a questão da gravidez precoce. Que
causa todas essas conseqüências que a gente está vendo aí. Crianças abandonadas, crianças
vítimas de violências, de maus-tratos. Porque são crianças gerando crianças sem preparo para
a maternidade. Isso por quê? Porque esse direito à sexualidade não está sendo burilado no
processo de saúde e educação.”
O discurso de Dario é bastante representativo das concepções analisadas por Brandão,
em cujos termos, a gravidez na adolescência aparece sob o signo do alarme moralista,
associada à pobreza, marginalidade social, desestruturação familiar, e a uma série de riscos
sociais, médicos e psicológicos. Ela estaria na contracorrente das normas que regulam a
reprodução. A gravidez implicaria a assunção de um papel social de adulto – o de pai e mãe –
e a adolescência despertaria no imaginário coletivo atributos como instabilidade, imaturidade,
crise, incompatíveis com a representação dominante sobre a parentalidade (2006:62).
Segundo a autora, esse conjunto de idéias acerca da gravidez na adolescência encontra-se
presente em grande parte da produção acadêmica e técnica, em âmbito internacional e
nacional, condicionando a percepção do fenômeno no senso comum e na mídia.
É interessante notar que Dario apesar de fazer coro com uma perspectiva que poderia
ser considerada mais conservadora, por articular necessariamente a gravidez na adolescência a
mazelas sociais, conclui seu argumento defendendo o direito ao exercício da sexualidade na
adolescência, desde que permeado por processos educativos. Tal defesa pode ser considerada
um passo a frente ao que temos até então construído no campo, mas pode também nos trazer
de volta ao controle da sexualidade adolescente, como discutido anteriormente. Arrisco pensar
que aos adolescentes é concedido o direito ao exercício da sexualidade desde que eles façam
tudo certo, ou seja, o que é esperado deles pelos adultos. Relembro a imagem trazida por
Vitória do “adolescente vacilão”. A dúvida que paira sempre é se eles serão capazes de fazer a
coisa certa.
Sob o argumento que “adolescente pensa no hoje, e não nas conseqüências futuras”, ao
debater a gravidez, Regina, outra entrevistada fortemente católica, diz acreditar que as
adolescentes engravidam por não terem perspectivas de futuro. Ela afirma que em sua
instituição o índice de gravidez é “zero”, e completa: “e a gente nunca trabalhou diretamente
com sexualidade”. A entrevistada credita o índice “positivo” ao fato de que “na realidade elas
não ficam grávidas porque não está no plano de vida delas, porque elas conseguem visualizar
que elas têm outras perspectivas na vida. Elas podem estudar, elas podem trabalhar”. E essa
perspectiva de futuro teria sido possibilitada pelo envolvimento no projeto social. Mas, como
observa,
“nem todas as meninas têm essas perspectivas. O quadro de uma coisa puxa a outra. Muitas
vêem a sexualidade como moeda de troca, forma de ascensão social, forma de ser respeitada
no seu grupo social. E elas não têm maturidade para julgar essas coisas (...) Hoje em dia, o que
a gente vê, são meninas de doze, treze anos ficando grávidas. Estou vendo que a sociedade
está enfrentando isso, incomoda às vezes, mas normalmente só incomoda quando essa menina
fica grávida, quando ela começa a ter um filho atrás do outro e essas crianças vão parar na rua.
Aí a questão da sexualidade passa a ser um ponto a ser discutido.”
Instigante a concepção que permeia o discurso de Regina, a de que não seria preciso
debater o tema da sexualidade para que ainda assim as meninas tivessem uma “maturidade” e
fizessem a coisa certa: quisessem estudar, trabalhar e não ter filhos na adolescência. A
participação em um projeto social interessante, já seria o suficiente. E àquelas a quem não
fosse dada essa oportunidade, continuariam “sem maturidade” para fazer as escolhas certas.
Historicamente, permeando os trabalhos assistenciais com crianças, adolescentes e jovens, soa
familiar essa concepção de que os projetos são como uma tábua de salvação para os
atendidos, que precisariam da madura e sábia orientação dos adultos, a guiá-los pelo melhor
caminho
42
. Este discurso tradicional permanece, convive e coabita com a mudança do marco
legal do campo, baseado contraditoriamente no discurso do direito e da autonomia dos
adolescentes.

42
No entanto, cabe questionar se os/as jovens que vivendo em comunidades em condições adversas, procuram
projetos sociais para adquirirem novas habilidades, já não eram anteriormente jovens que, em si, se
diferenciavam do grupo social ao qual pertencem, por já se sentirem em condições de adquirir novas habilidades
e quiçá um novo status.
Tal convivência entre discursos mais “tradicionais” e hierárquicos e outros mais
“modernos” e igualitários emergiu em inúmeros momentos no contato com meus
entrevistados. Contudo, a afirmação de Regina trouxe um outro aspecto à reflexão, que, por
outro viés, foi trazido por Vitória. Trata-se da forma como a gravidez é vista em determinados
grupos sociais, especialmente oriundos das classes populares. A chamada “ascensão social”
que a gravidez traria às adolescentes é proposta por Vitória ao afirmar que a gravidez
possibilitaria às meninas um status diferenciado. Ao abordar esse aspecto ela deixa claro que,
para os adolescentes das classes populares, a gravidez dá visibilidade às meninas e as
“empodera”, pois passam a ser consideradas mulheres:
“No momento em que ele vive sexualidade, ele não é mais criança. Ele deixa de ser
compreendido como criança. Ele não vive a sexualidade como criança. Ele se promove a partir
do momento, as meninas falam isso, “eu sou mulher”, a partir do momento. Porque aí o papo é
reto, é de igual para igual, porque a sexualidade me promove. A gente fez uma discussão uma
vez sobre: “ah, quais são os problemas depois que vocês são mães para vocês continuarem
vivendo?” Não, é o contrário: “Eu que sou promovida. Porque aí o papo é reto, é de mulher
para mulher. Então minha mãe me respeita porque eu já sou mulher”.
A leitura de Vitória em relação ao processo se coaduna ao que aponta Brandão ao
relatar os resultados de uma pesquisa desenvolvida junto a adolescentes pobres de Piracicaba
(SP). Segundo a autora,
“as adolescentes entrevistadas relataram que engravidaram como estratégia de melhoria de
qualidade de vida. Esta é entendida não como via de ascensão social, mas como redefinição do
modo como se relacionavam com suas famílias de origem, deslocando-se da posição de filhas
e irmãs para a de esposas e mães. Trata-se de uma estratégia de inserção no universo adulto.
Elas não se consideravam adolescentes, tendo assumido desde a mais tenra idade
responsabilidades de adulto relativas ao cuidado doméstico e dos irmãos ou sobrinhos mais
novos, bem como ao trabalho extra-doméstico em casas de família” (2006:72).
Vitória também enxerga um paradoxo: não há uma legitimação social para o exercício
da sexualidade na adolescência e, ao mesmo tempo, esse exercício legitima o sujeito, fazendo
com que este não seja mais considerado criança. E, como crianças e adolescentes ainda não
são considerados sujeitos em nossa sociedade, o exercício da sexualidade torna-se um
passaporte para aquisição de respeito social em contextos adultocêntricos:
“A sexualidade me afirma uma condição que foi colocada. Para ter sexualidade tem que ser
adulto? Então se eu vivo aos nove anos, eu vou ser uma adulta a partir dos nove anos.
Legitimidade pela sexualidade que eu já comecei a vivenciar. Vou ser cobrada, vou dialogar,
vão me cobrar reações, atitudes de um adulto. A sexualidade me promove a ser adulto. É isso
que eu acho nessa questão da vivência cada vez mais cedo. Primeiro, que ele está num mundo
onde a história do humano, ela só tem valor, só tem respaldo, só tem fala no adulto. Então,
assim... se para eu ser adulto, eu preciso vivenciar a sexualidade, a sexualidade me promove
eu ser adulto, eu vou viver ela aos nove anos. Porque aí eu tenho uma legitimidade de adulto”.
Ainda nos aspectos ligados aos diferentes papéis de gênero, em relação à gravidez e às
representações de maternidade e paternidade, Vitória, articulando condicionantes da classe
social, reflete sobre o papel que teria a gravidez, especialmente para os meninos:
“eu acho que os meninos das classes populares têm mais essa necessidade de mostrar
exatamente a sua masculinidade através da reprodução, porque é uma coisa cultural. Foi assim
com o pai. Os meninos adolescentes hoje, de classe média, não têm mais, não precisam disso.
Exercitam sua sexualidade sem necessariamente utilizar a questão da reprodução para mostrar
a masculinidade. Nas classes populares, isso ainda é muito forte. Existe um desejo da
paternidade, que acaba sendo uma paternidade não responsável, mais pelo desejo de afirmação
da sua masculinidade.”
Se o “problema” das meninas é que elas engravidam, o “problema dos meninos” é a da
construção de uma masculinidade em oposição a uma possível homossexualidade. Assim, a
forte perspectiva de controle no exercício da sexualidade das meninas, com o intuito de evitar
uma gravidez, não emerge como tão pertinente em relação aos meninos, como se eles não
precisassem ser educados sexualmente, exceto se forem gays ou travestis:
“os meninos, eu acho que é aquela história de que é permitido na questão da relação
heterossexual. Se for heterossexual está bem e tal. Agora, qualquer outro tipo de experiência
sexual, que não seja essa heterossexual é... foge completamente do controle.” (Vitória)
Os entrevistados mais imbuídos do entendimento da sexualidade como um direito,
fizeram uma leitura de que o campo é extremamente preconceituoso, “que existem
instituições que agem com homofobia, da mesma forma que a maioria da sociedade age.”
Para eles, o campo avançou “muito pouco” neste aspecto. Vitória, por exemplo, afirmou que
os adolescentes “sofrem muita violência com a vivência da homossexualidade”, o que a leva a
falar para os jovens que “tem que ser muito macho para assumir a sexualidade que seja
diferente da sexualidade padrão. Tem que ser realmente uma pessoa que tenha muita
convicção que isso vai fazer parte do processo de luta dele”. Como ilustração desta questão,
ela descreveu experiências que sua instituição vivenciou ao assessorar alguns abrigos para
adolescentes:
“Nós já trabalhamos com instituições que o diretor da instituição tinha chegado a pagar um
tratamento, aí holístico... (sei lá o que era) com valor altíssimo de recursos, que era para
recuperar, para tirar a homossexualidade daqueles garotos, de alguns garotos que
manifestavam e moravam no abrigo.”
Nessa perspectiva de entender que o campo ainda não consegue, majoritariamente,
admitir o exercício da sexualidade em suas diferentes manifestações, como um direito dos
adolescentes, Célia sinaliza que a expressão da homossexualidade torna-se uma questão bem
mais problemática, até em relação aos próprios profissionais, pois sugere que, “falar de
sexualidade é falar da sua sexualidade. É complicado, né? Um bando de gente enrustida aí...”.
Célia registra aí uma dificuldade, também das instituições (para além de uma auto-aceitação
dos próprios profissionais) de “aceitar” a homossexualidade dos próprios profissionais. Já
seria um ganho, segundo ela, poder trabalhar em uma instituição que não discriminasse os
profissionais em função de sua orientação sexual, mas ela afirma que a expressão pública da
orientação sexual pode causar dificuldades profissionais em determinadas situações, também
neste campo de atuação. Como forma de ilustração do seu argumento, referiu uma situação
que viveu no seu trabalho de formação de educadores:
“nós fizemos algumas capacitações pra uma ONG ligada à igreja [católica], aí depois, a
instituição pediu pra gente escrever um projeto porque eles iam ter um financiamento que
incluiria capacitação, que a gente faria a capacitação. Começamos a organizar, só que um dos
educadores, que é homossexual, que fez o curso com a gente aqui, foi lá pro padre e falou
“olha, lá naquele curso, eles pregam a homossexualidade, a Célia é homossexual, ela vive com
mulher, olha só...”, não sei o quê e tal. E impregnou o padre. O padre me chamou pra
conversar: “não Célia, é que vocês têm algumas posições sobre sexualidade, orientação sexual,
sobre drogas... eu não acho interessante, eu acho que a gente não vai conseguir fazer essa
parceria”. E não aconteceu o curso.”
Minha entrevistada relatou que ainda tentou argumentar que sabia que estaria fazendo
um curso para uma organização da igreja e que teria que “tomar cuidado com relação a alguns
temas”, ou seja, “se a missão da gente, eu acredito que seja contribuir para melhorar a
qualidade de vida de todo mundo, então a gente tem que comer mingau pelas beiradas”. Esse
“comer mingau pelas beiradas” seria uma forma daqueles que desejam inserir algumas
discussões no campo o fazerem, mas cuidadosamente, propondo reflexões algumas vezes
indiretamente. Esta estratégia estaria sendo acionada segunda ela, por exemplo, na discussão
sobre violência sexual, o que abordarei mais adiante.
Ficou claro também que a discussão sobre homossexualidade e travestilidade foi a que
mais pôs em xeque o discurso dos direitos, de forma mais geral, bastante incorporado por
todos os atores. Quando o tema foi diversidade sexual, ficou mais evidente a dificuldade da
maioria dos entrevistados em lidar com os adolescentes como sujeitos, e eles claramente
assumiram “preconceitos” ou, mantendo o discurso do direito, explicitaram suas contradições.
Ao tentar conseguir de Ana suas concepções acerca da homossexualidade na adolescência,
apelando aí para que ela colocasse suas opiniões, ela afirmou
“eu avalio que a criança, ela é formada, ela é educada para ter uma opção heterossexual, que
existe uma dificuldade enorme da gente... e aí eu me incluo também, obviamente, de aceitar
um filho, um parente, homossexual. Outro dia, inclusive, eu assisti um debate exatamente
onde uma mãe dizia o quanto para ela foi penoso ter ouvido do filho a opção sexual dele (...)
Me fez pensar também porque ela dizia assim: “o quanto foi duro para mim e hoje estou aqui
batalhando por essa causa, hoje eu entendo que, para além dessa homossexualidade do meu
filho, ele hoje é feliz”. Mas assim... não existe, de forma alguma a priori, esse entendimento de
que “eu quero o meu filho feliz acima de qualquer coisa, mesmo que homossexual”. A
sociedade não encara dessa forma. “Quero meu filho feliz e heterossexual. Homossexual
nem pensar” (...) Eu também. Não vou enganar. Não sei como é que eu iria lidar com isso,
mas seria muito difícil para mim, saber que meu filho, minha filha, é homossexual. Não vou
enganar nem nada. Agora, como vou agir em relação a isso? Quero muito que meus filhos
sejam obviamente felizes. Isso me causaria infelicidade no primeiro momento? Claro, não
posso negar.” [grifos meus]
A fala dos que estão mais ligados ao campo pela via do discurso religioso, condensou
uma aceitação da “opção” destes sujeitos, mas sem reflexão sobre os possíveis preconceitos
subjacentes as suas práticas profissionais. Ouvi de mais de um entrevistado a expressão
“opção sexual”, por exemplo, o que me mostrou que a idéia de “orientação sexual”, na
perspectiva de algo que as pessoas não escolhem, ainda não está incorporada por uma parcela
significativa dos atores desse campo
43
.
Ouvi de Regina e Paulo a descrição de duas situações vividas por eles que, acredito,
retratam bem estas dificuldades com esta expressão da sexualidade. Perguntei a ela se já tinha
vivido alguma situação ligada à homossexualidade em sua experiência institucional. Ao que
ela secamente respondeu “sim”. Insisti para saber um pouco mais e ela descreveu que:
“comigo assim, um caso que chamou muito a atenção, o menino era travesti e acabou saindo
da instituição, ele foi desligado por falta. Falaram: “Ah, você precisa dar outra chance”. Não,
ele tem que seguir as mesmas regras que todo mundo. É vinte por cento de faltas, é vinte por
cento de faltas. Ele não vem à aula, não vem à aula, tá fora.”
Questionei a sua opinião sobre o porquê das faltas do adolescente, se ela conversou
com ele sobre isso, e ela me respondeu: “ele não estava a fim. Ia para festa de noite, não
acordava na hora. Não, aqui a regra, e aí independente da cor, da sexualidade, da idade, vai ter

43
Para Carrara (2008), essa oposição resulta de uma compreensão de que nossos modos de pensar, sentir e agir
são reflexos de nossas experiências sociais e não atos individualmente voluntários. Nesse sentido, é importante
que se afirme a expressão “orientação sexual” que vai contra a noção de “opção”, compreendida como uma
escolha deliberada, supostamente tomada de forma autônoma pelos indivíduos, independentemente de seu
contexto cultural.
que ser seguida. Porque senão a gente não consegue avançar com todo mundo”. E prosseguiu
dizendo que, em relação à reação do grupo de alunos/as ao ingresso da travesti, “não foi nada
de anormal. No início, até achei que as crianças fossem... não iam aceitar”.
Como minha entrevistada relatou, não houve “nada de anormal”, nem ela nem a
instituição teriam problema algum em lidar com adolescentes travestis, mas percebemos que o
único naquele contexto institucional que se permitiu enfrentar o estigma e ingressar em um
projeto social de dança, foi expulso. Não parece ter havido a compreensão da eqüidade como
um valor necessário aos profissionais e instituições a fim de que promovam a inclusão e a
permanência de todos os sujeitos nos projetos sociais. A dita “igualdade” no cumprimento das
regras, tornou-se objetivamente, neste caso, uma via de exclusão.
Ao perguntar a Paulo como ele via o tema da orientação sexual no cenário das
organizações no campo da infância e adolescência, ele respondeu que “nas ONGs, acho que
há um trato tranqüilo disso. Há uma serenidade no perceber. Aqueles que falam, falam, falam.
Na fala, não sei como é na prática, falam do direito, só não diz que incentiva”. Em seguida,
meu entrevistado apresentou suas concepções a respeito: “eu acho que tudo também na
juventude, e aí é visão minha, acho que todos nós na época da adolescência, da infância, tem
aquela fase da onda” [grifo meu
44
]. Ele prosseguiu, apresentando a forma como lida com a
questão em sua instituição, principalmente em relação à travestilidade:
“às vezes, chega aqui um menino, menino de rua mesmo, com aquela sobrancelha, com um
turbante, entra aqui na minha sala. Digo: ‘Vamos conversar. Não tenho nada com a sua
opção. É um direito seu’. Essa é uma conversa minha com eles: ‘Mas você vai ter que de
alguma forma...’ uma coisa é a sua opção, outra coisa é a chamada retratação que você faz
disso, a visibilidade que você dá a isso. Querendo ou não, nós somos uma casa que tem
tantos outros... você não pode se expor numa situação de se vestir... que cria uma situação
ridícula para você, de chacota, e que termina num conflito. Essa conversa eu tenho. Não sei
como é que outras fazem. Como muitas vezes, a menina chega aqui meio machão e eu digo:
‘Você tem que ter uma postura, você tem que ser o mais discreta possível no cenário’” [grifos
meus].
Paulo argumenta que não pode permitir que haja uma “ridicularização” do/a travesti,
que não nega o direito dele/a ao comportamento sexual, mas se cria problemas ao convívio
do grupo, “chamo todos para o respeito à liberdade daquele um” (SIC), mas precisa solicitar
ao/a adolescente discrição para que não tenha que dizer “infelizmente você não...” (SIC). Seu
posicionamento deixa claro que o maior problema são os/as travestis, pois estes incomodam,

44
Compreender a homossexualidade ou a travestilidade como “onda” denota uma visão etapista e generalista da
própria sexualidade, onde as diferentes expressões da sexualidade são até toleradas, desde que como parte de
uma espiral cuja culminância é a heterossexualidade.
porque rompem com uma certa regra do silêncio. Rompem com a lógica de que “você pode
até fazer, mas não pode expressar”.
A “visibilidade” traz à tona o incômodo, que não assumido pela instituição, volta-se
contra o adolescente que ousa revelá-lo. Segundo o mesmo entrevistado, se não houver um
acordo, o adolescente “será o prejudicado, será o vitimizado, não sei se vitimizado, não sei se
é escolha, se é um prazer, mas veja, essa realidade não é nem consensual nem homogênea
nessa sociedade.” Mesmo que “haja acordo” com a instituição (adesão às roupas e
comportamento esperado do gênero a ele atribuído, para que seja “protegido da violência dos
outros”), esse adolescente será vitimizado por desrespeito à sua identidade de gênero. Em
relação a esse silêncio imposto pelas instituições, Vitória tem uma postura bastante crítica ao
afirmar que:
“é essa a hipocrisia da sociedade. Que você não pode se manifestar. Tá, você pode até viver a
homossexualidade, mas você não pode ser uma pessoa afetada, que demonstre em gestos.
Porque aí você transfere isso, de que a sociedade lá fora vai te discriminar. Mas você está
discriminando dentro daquele espaço que é público, né?
Os entrevistados permitiram que me defrontasse com um aspecto bastante interessante
em relação à discussão acerca da orientação sexual e da identidade de gênero dos/as jovens,
pois como Carrara & Vianna (2004) demonstram, ao discutir o assassinato de homossexuais,
“há uma tendência em culpabilizar as vítimas. Uma idéia de que ela foi responsável por seu
destino”. Não discutimos neste trabalho a violência letal, mas frente a essa clara afirmação de
violência institucional, a reflexão sugerida pelos autores me parece pertinente, visto que o
adolescente acaba sendo responsabilizado por possíveis problemas vividos na instituição,
efeito da homofobia tanto dos outros adolescentes quanto dos próprios profissionais, aqui
encoberta pelo discurso da proteção.
Uma outra discussão importante trazida por Carrara & Vianna, diz respeito à reflexão
sobre a violência sofrida por travestis, que ao que parece, “trazem mais problemas” às
instituições. Para os autores:
“sujeitos cuja identidade não heterossexual (suposta ou certa) é mais evidente através da
exibição ou incorporação de atributos de gênero não-conformes ao sexo designado no
nascimento, são proporcionalmente mais atingidos por diferentes modalidades de violência e
discriminação. A desestabilização provocada por sua performance de gênero, constantemente
associada a um conjunto de esteriótipos negativos sobre a homossexualidade em geral, torna
as travestis, as vítimas preferenciais de violência homofóbica em diferentes contextos”
(2006:234).
Um outro espaço do “silêncio” em relação à orientação sexual dos adolescentes, são os
abrigos. Segundo Vitória, enquanto os adolescentes estão vivendo em abrigos, eles tendem a
reprimir a manifestação clara de práticas homossexuais e/ou da travestilidade. E afirma isso
baseada em sua experiência com jovens em repúblicas
45
, onde, segundo ela, ao chegar em um
espaço institucional onde podem se manifestar, os jovens mudam rapidamente seu
comportamento e tendem a manifestar uma identidade homossexual e/ou travesti:
“no Programa das Repúblicas é impressionante, porque é um comportamento de uma forma...
quando eles estão vindo de um abrigo, um dia depois você vai na república, é outro
comportamento completamente diferente de encarar, de se manifestar, de falar (...) De repente
vai para casa dos meninos é uma gaiola das loucas. Viraram homossexuais os meninos na
república? Não. Os meninos já eram, já tinham essa vontade de viver esse tipo de sexualidade.
Só não tinham espaço nos abrigos em que eles estavam. É um lugar [a república] onde ele
sente condições de bancar”.
Dario também descreveu as dificuldades dos espaços de internação
46
com a orientação
sexual e a identidade de gênero dos adolescentes. Segundo ele, “não há preparo para isso. Há
o preconceito, há a discriminação permanente. As pessoas não estão preparadas, as pessoas
agridem os meninos e as meninas.” Meu entrevistado deu um exemplo para explicitar o
desrespeito à individualidade dos adolescentes nesses espaços, apesar de não conseguir, ele
próprio, diferenciar claramente orientação sexual e identidade de gênero. Ele afirma:
“eu me recordo, quando era juiz dos adolescentes infratores, era costume naquela época (e não
sei se ainda é, deve ser), que o adolescente quando entrava, cortavam o cabelo dele. Em
algumas vezes, entraram meninos-mulheres, meninos-travestis, meninos-homossexuais, e que
se sentiam muito constrangidos ou ofendidos porque cortavam aquilo que era sua
representação feminina. Eu proibi que isso fosse feito naquela ocasião. Determinei à diretora
que não podia cortar cabelo de ninguém. E, muito menos desses meninos que se apresentavam
como meninas. Eles tinham que ter um tratamento respeitoso, e respeitoso à sua personalidade.
Se apresentavam como tal, e como tal, deveriam ser respeitados.”
Em contrapartida, Célia propôs uma reflexão acerca dos desafios da gestão das
instituições de abrigamento para lidarem com as identidades e comportamentos sexuais dos
adolescentes. Por ser o abrigo um espaço de moradia desses jovens, como construir estratégias

45
Trata-se de um projeto desenvolvido pela instituição em que Vitória trabalha e que acolhe jovens oriundos de
abrigos, com mais de dezoito anos e que, por motivos diversos, não têm condições de retornar às suas famílias de
origem. As repúblicas são espaços de construção de autonomia, para que esses jovens possam no futuro se
manter sozinhos.
46
Instituições onde os adolescentes que cometeram algum ato infracional cumprem medida socioeducativa de
internação.
que respeitem sua identidade, mas mantenham sua integridade física? Assim, a entrevistada
questiona:
“o menino entra na casa de acolhida, no abrigo, ‘como é que é, onde é que é o banheiro, qual
é o quarto que dorme?’ Então, esse é um dilema. Porque assim: se bota pra dormir com as
meninas, na verdade, fisiologicamente, biologicamente, ela não é menina; se bota pra dormir
com os meninos, vai virar mulherzinha dos meninos, vai ser a comidinha da noite. Então como
é que protege esse garoto, né!?”
Esses dilemas institucionais também estão colocados aos espaços de internação de
adolescentes em conflito com a lei. O exercício da sexualidade em geral nos espaços de
internação é outro tema polêmico no campo. Questionei meus entrevistados sobre sua opinião
acerca da visita íntima para adolescentes cumprindo medida socioeducativa de internação,
pois esta discussão esclarece os termos da polêmica. Encontrei posicionamentos diferenciados
a esse respeito. A maioria deles se diz favorável, mas aponta uma série de dificuldades na
execução da proposta, o que na prática acabaria inviabilizando sua implementação.
No Rio de Janeiro, a proposta já apareceu no CEDCA, mas não se concretizou em
ação. Como Paulo relatou, “há uns seis anos atrás houve uma discussão que foi polêmica no
Conselho (...) A discussão foi pra lá, foi pra cá, e sei que a matéria foi retirada”. Mas em
vários estados, foi implantada a visita íntima para os adolescentes, contudo apenas para casais
heterossexuais. Célia, favorável à proposta, relatou longamente sua experiência de visitar
unidades de internação de todo o país, como membro do Fórum Nacional DCA, no bojo da
discussão de implementação do SINASE
47
. Dario, contrário à proposta, também debateu
longamente a questão. Não vou aprofundar o tema, pois, por si só, a reflexão acerca do
exercício da sexualidade por adolescentes cumprindo medida de internação, já seria uma
discussão bastante instigante para o desenvolvimento de uma pesquisa específica. Todavia,
entre os entrevistados que são contrários à proposta, ou têm dúvidas acerca de sua
exeqüibilidade, há o argumento de que o sistema de atendimento não tem infra-estrutura para
garantir aos adolescentes a visita íntima.
A avaliação de Dario, por exemplo, é de que a situação da execução de MSE ainda é
tão caótica no país, os adolescentes não têm direito a quase nada, portanto esta não seria uma
prioridade. Haveria também a necessidade de um trabalho educativo anterior. Segundo suas
palavras,

47
O SINASE (Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo) foi uma proposta debatida nacionalmente e
aprovada pelo CONANDA em 2006, que propõe a adequação do sistema de atendimento aos adolescentes em
conflito com a lei, especialmente no que tange à privação de liberdade, ao novo marco legal.
“você sabe que eu sempre me posicionei contra. Eu sempre me posicionei contra, até com
alguns argumentos contraditórios. Porque eu acho que é uma questão de educação para a
sexualidade. E você promover a sexualidade oficialmente, sem que isso venha cercado com a
formação para a sexualidade, é um ato de irresponsabilidade do Estado. Porque o Estado,
enquanto guardião desses adolescentes, ele tem outras prioridades. Então, antes da visita
íntima ele tem que ter um bom processo de educação, um bom processo de saúde, um bom
processo de lazer, um bom processo de reintegração familiar. Então, essa não é uma prioridade
para mim. A sexualidade promovida pela instituição guardiã, não é uma prioridade.”
Mas entre meus entrevistados que são favoráveis, predominou a concepção de que este
é um direito dos adolescentes internados. Célia descreveu que em todas as palestras de que
participou pelo país sobre o SINASE, falou do tema, e defendeu sua opinião:
“o adolescente tá privado de liberdade, ele tá privado do direito de ir e vir, mas ele não pode
estar privado do direito à saúde, educação, ao exercício da sexualidade, o direito a comer, o
direito a beber, o direito a esporte; isso ele não tá privado, tá privado do direito de ir e vir. Ele
tem que ficar lá no castigo um tempinho pensando na vida, mas os outros direitos ele tem que
ter preservados.”
Minha entrevistada articulou a discussão do respeito à orientação e identidade sexual
dos adolescentes à discussão da visita íntima, visto que mesmo nos lugares onde o serviço foi
estruturado, nem sequer se pensa em garantir esse direito aos casais homossexuais. Ela
defendeu que não só a visita íntima é um direito, mas também para os adolescentes que não
são heterossexuais, mas a discussão sobre o respeito à orientação sexual é ainda mais difícil,
“essa discussão não pegou de fato”.
Célia teve, entretanto, uma postura otimista em relação ao avanço da discussão de
alguns temas considerados polêmicos no campo, pois segundo ela, “a gente já rompe com
algumas dificuldades. Pelo menos a gente já fala disso, que antes a gente nem falava. Menina
homossexual... que isso?” Contudo, ela evocou a existência da dificuldade para que o
conjunto da sociedade entenda de forma tranqüila o exercício da homossexualidade na
adolescência. Utilizou como exemplo desta dificuldade, uma experiência vivida com sua filha
adolescente, que fruto do seu segundo casamento, conviveu desde pequena com posteriores
relacionamentos da mãe com outras mulheres. Ela descreveu a conversa com a filha:
Aí outro dia eu me surpreendi com a minha filha, né, “mãe, a amiga de não sei quem, que
também é minha amiga tá namorando com a fulana”, aí eu disse “ih que legal, é verdade que
você tem uma amiguinha que é homossexual?”, aí ela falou assim “mãe isso não é bom, não
pode”. E eu disse “mas por que não pode?” [a filha respondeu]“Ah, elas têm a minha idade!
Eu acho que aquela que é mais velha é que tá influenciando a outra, ela não pode ter certeza
disso, ela não pode saber que é isso que ela quer, ela é muito novinha; eu fico muito
preocupada com ela”, eu digo, “peraí, mas e eu?”[a filha respondeu] “ah mãe, mas você já tem
mais idade, já teve filho, já é mais madura, você já sabe o que quer, você já sabe escolher”.
Devolvi a ela então, que o discurso da filha parecia reforçar a idéia de que o
adolescente ainda não sabe escolher. E Célia concorda. Diz que o que está por trás do discurso
da filha é uma antiga idéia de que o adolescente é levado, “influenciado pelas más
companhias”. Algo que seu pai disse a ela, mas que ela nunca passou aos filhos. A
entrevistada disse ter ficado “meio impactada” com a posição da filha, pois sempre teve uma
postura que estimulava a autonomia dos filhos, a responsabilidade de cada um em relação aos
seus atos e não esperava da filha a negação desta autonomia: “eu acho que, assim, a fala da
[filha dela] permeia essa coisa toda, né, traz um pouco o que tá nesse cenário aí, porque a
gente não tem isso, isso não é uma questão do adolescente”. A reflexão de Célia sugere que a
homossexualidade ainda não é vista como algo que pertença ao mundo adolescente. A
dificuldade, entretanto não é situada por ela e os demais entrevistados, apenas no exercício da
homossexualidade, mas no exercício de qualquer expressão da sexualidade na adolescência.
Nessa seção, ao discutirmos alguns posicionamentos dos entrevistados sobre a atuação
das organizações em que atuam com relação ao tema da sexualidade adolescente, nos
referimos na maior parte do tempo à ação das organizações da sociedade civil. Contudo, as
políticas e programas governamentais que lidam com a sexualidade adolescente, em geral,
também não rompem com a perspectiva de trabalho do tema a partir das doenças ou da
gravidez, para os entrevistados. O tema se encontra fundamentalmente ligado às instituições e
profissionais de saúde, dentro de programas que focam na prevenção de DST/aids, e não
trabalham com uma dimensão mais integral de saúde. Além disso, as instituições de saúde e
seus programas, quando reconhecem a sexualidade adolescente, tendem a relacioná-la
exclusivamente com a heterossexualidade (Adorno et al, 2005). Vitória descreve essa
perspectiva:
“No Rio de Janeiro você não tem acontecendo, nesse momento agora você não tem nenhum
projeto, fora aquela palestrinha de algumas unidades de saúde do adolescente, que você tenha
hoje essa perspectiva de trabalhar sexualidade. Se ele quiser camisinha, ele vai procurar um
posto que tenha saúde do adolescente, vai assistir uma palestra de como usar a camisinha e vai
receber a camisinha. Um número X [de camisinhas] que todo mês ele vai ter que ir lá e tal.
Agora, programa de educação continuada, de discussão de sexualidade, não. E lá não se faz a
discussão de sexualidade, se faz a discussão de uso da camisinha. É diferente.”
Para vários entrevistados, as experiências existentes se mantêm, como foi abordado
anteriormente, ligadas a uma perspectiva de controle repressivo da sexualidade adolescente.
Vitória corroborou esse aspecto ao afirmar que:
“quando se fala hoje mesmo em termos de campanhas, ainda se fala na perspectiva do controle
(...) Nas políticas públicas esse tema é um tema que ainda está na saúde e na saúde na
perspectiva da doença, do controle, da não gravidez. Não na perspectiva dos direitos humanos.
Você não vê isso nem tocado pela Secretaria Nacional dos Direitos Humanos (...) E na
assistência pela questão também do controle. Mas ainda está ligada muito a uma perspectiva
de saúde, mas não no sentido de saúde como a gente defende.”
Ao refletir com meus entrevistados sobre como o tema da sexualidade adolescente
aparece nas políticas públicas, questionei sobre o papel das políticas de educação e o retorno
que obtive foi de que o tema é quase inexistente nas escolas. Historicamente, foi a saúde que
se envolveu com o tema, na perspectiva que relatamos. Meus entrevistados, em geral,
afirmaram que a educação tem se envolvido muito pouco com o tema e a maioria das escolas,
assim como a maioria das ONGs têm muita dificuldade para trabalhar o tema com os
adolescentes. Quando o fazem, com freqüência, não rompem com a perspectiva “controlista”.
Uma certa novidade diz respeito a programas que começam a ser desenvolvidos nas
escolas, ligados ao tema da diversidade sexual, focando no respeito à orientação sexual dos
sujeitos. Vitória considera positivo as escolas se abrirem para a discussão da diversidade
sexual, pois:
“começa a sair um pouco da questão da saúde. A gente já vê algumas coisas nas escolas. Que
antes também era uma coisa completamente... Adolescente na escola era um ser assexuado.
Não se tocava muito. E tem rolado na escola, mesmo trabalhando com essa história da
sexualidade e diversidade, como se isso fosse sexualidade. Para tratar de outras manifestações
sexuais se coloca a diversidade. Mas ainda se traz.”
Todos os entrevistados afirmaram que a sexualidade ainda é um tabu para a
“sociedade como um todo”. Para Dario, há uma dificuldade de se lidar, de modo geral, com o
tema da sexualidade. Ele afirmou que “a nossa sociedade é absolutamente hipócrita, sob o
ponto de vista de ver ainda como o pecado de Adão e Eva, qualquer ato sexual. Qualquer ato
sexual é um pecado. Então, se é um pecado, não vamos nem falar sobre isso, vamos deixar só
para debaixo do lençol.” Tal postura religiosa interferiria efetivamente na atuação
profissional, como também é destacada por Vitória: “acho que tem uma questão cultural, tem
a questão da formação das pessoas que acaba transferindo, exatamente, para sua profissão.
Tem toda a questão cristã, de formação religiosa e acaba transferindo sua visão pessoal para
as ações”
48
.
A sexualidade adolescente, face à relação tutelar construída com estes, torna-se ainda
mais incômoda para os profissionais do campo. No contato com os entrevistados isso ficou
evidente durante todo o tempo. Se os entrevistados foram unânimes em afirmar o exercício da
sexualidade como um direito
49
, o problema é como converter a fala do direito em prática do
direito no cotidiano das instituições. Permanece um obstáculo que está sempre nos “outros”
do campo.
A vitimização dos adolescentes em relação à sexualidade, claramente emergiu entre
meus entrevistados, em função da forte presença do tema do enfrentamento à violência sexual
contra crianças e adolescentes no campo. Duas das entrevistadas (Célia e Lúcia) já haviam
trabalhado com esse tema e todos o abordaram ao falarmos dos Conselhos, seja evocando o
problema do abuso seja o da exploração sexual. A pregnância do tema da violência, que foca
na idéia da criança e do adolescente como vítima, contribui para a dificuldade da afirmação da
sexualidade como direito, reflexão que lancei a meus entrevistados e abordarei adiante, pois
esse debate se articula nitidamente à forma como o tema da sexualidade aparece nos
Conselhos.
3.2.2.2. Como o tema da sexualidade adolescente é tratado nos conselhos de direitos da
criança e adolescente
Iniciei a abordagem de meus entrevistados sobre os Conselhos perguntando a eles que
temas estes espaços têm debatido, quais têm sido seus temas prioritários. Pude constatar que
nas três esferas, com algumas especificidades, os temas são recorrentes. Isso se deve ao fato
de que o CONANDA, como dito anteriormente, define pautas nacionais a serem reproduzidas

48
Segundo Novaes, em relação à força do discurso religioso em nossa sociedade, especialmente da igreja
católica, que se espraia para muito além das instituições confessionais, é possível falar de uma “cultura brasileira
católica”. Para a autora, tal cultura não se respalda apenas na maioria estatística, que embora diminuída, ainda
persiste. Nem é apenas uma conseqüência geográfica da presença da Igreja Católica por todo o território nacional
fazendo-se historicamente presente na construção de nossa sociabilidade. Tampouco se trata só de um reflexo do
lugar que esta Igreja garantiu politicamente, no decorrer do tempo, junto ao Estado, marcando uma presença
institucional que se evidenciou na área da educação, da saúde, da assistência social, no calendário de feriados
religiosos reconhecidos pelas autoridades civis. A existência de uma “cultura brasileira católica” resulta da
conjugação de todos estes fatores estatísticos, geográficos, históricos e políticos (2001:09).
49
Como procuramos demonstrar nos capítulos anteriores, em função do discurso do direito estar fortemente
impregnado no campo, devido às mudanças paradigmáticas vividas por este.
pelos conselhos estaduais e municipais. Por isso mesmo, o CONANDA tem um papel de
fomentador de alguns temas, até porque o campo se organiza a partir de conferências que
acontecem em todos os municípios, estados e nacionalmente a cada dois anos e é ele que
define os temas destas conferências.
Nas falas dos conselheiros das três esferas, os temas prioritários têm sido: o “sistema
de cumprimento de medidas socieducativas”, os “conselhos tutelares”, os “fundos da criança e
do adolescente”, a “convivência familiar e comunitária”, e a “violência sexual - abuso e
exploração sexual”. No plano estadual, o tema apontado como mais presente foi o “sistema
socioeducativo”, por ser a esfera estadual responsável pela execução deste sistema. No plano
municipal, temas muito presentes têm sido a “situação de rua”, a “política de abrigamento” e a
“violência doméstica”, também por ser de responsabilidade imediata do município a gestão
desses problemas, a partir do princípio constitucional da descentralização das políticas
públicas.
Em relação à sexualidade, a dinâmica nos conselhos não foi apontada como muito
diferente da de outros temas. Como exemplo disso, verifica-se que foi o CONANDA que
acabou influenciando fortemente no processo que levou o tema do enfrentamento ao abuso e
exploração sexual ao nível dos estados e municípios. Meus entrevistados afirmaram que foi
por isso, que esse tema tornou-se tão presente tanto no CEDCA fluminense quanto no
CMDCA carioca. Além da violência, meus entrevistados relataram que a prevenção das
DST/aids e a gravidez na adolescência (com menor intensidade), também tornaram-se temas
ligados ao exercício da sexualidade com que os Conselhos Municipal e Estadual, de alguma
forma já se envolveram.
Além dos temas acima, obtive relatos de que a visita íntima e a orientação sexual
também foram temas debatidos pelos Conselhos. Em relação à visita íntima aos adolescentes
internados, Paulo relatou que houve uma grande polêmica no CEDCA, como já citado,
quando o tema foi trazido para a pauta por um membro do Judiciário, presidente do Conselho
à época. Porém, frente às dificuldades de se chegar a um entendimento, o proponente retirou
sua proposta e o tema nunca mais voltou. Já a discussão sobre orientação sexual foi tema
proposto pelo CONANDA na Conferência de 2004 e, como Célia relatou, foi um debate
difícil e, apesar da orientação nacional, muito pouco discutido nos estados e municípios.
Em relação à dinâmica dos Conselhos no que tange a definição das temáticas
prioritárias das gestões, Célia ressaltou um ponto levantado por mais de um entrevistado,
relativo ao fato de que quem compõe a gestão do Conselho, o pauta, especialmente se estiver
na presidência ou vice-presidência (dependendo, é claro, da “correlação de forças” no
momento). Os Conselheiros definem, de certa maneira, os temas prioritários da gestão. Ela
utilizou como exemplo a inclusão do enfrentamento à exploração sexual na pauta do CEDCA,
pois a despeito de algumas resistências encontradas entre os próprios conselheiros à época,
como ela estava na presidência e na referida gestão contava com outros atores comprometidos
com o tema, o CEDCA investiu no tema. Ela relatou que:
“como eu tava na presidência do Conselho Estadual, disse ‘opa, agora vamos nessa, vamos
aproveitar que eu tô na presidência do Conselho e vamos levar, vamos fazer com que o
Conselho puxe isso’, porque a gente precisava de recurso, uma série de coisas (...)
talvez [o
tema do enfrentamento à violência sexual] só tenha emergido no Conselho, porque na verdade
éramos nós que estávamos no Conselho, que fomos nós que trouxemos. Porque tem isso:
quem tá à frente, você termina pautando o Conselho, você tem que estar pautando o conselho.
Não adianta”
Outro ângulo que influencia a dinâmica de abordagem e encaminhamento dos temas
nos Conselhos, diz respeito à forte presença da igreja que, historicamente, envolveu-se com a
causa da infância e juventude, como relatado anteriormente. Há por parte de todos os
entrevistados o entendimento de que essa presença é determinante da pauta, dos temas e do
que é efetivamente debatido nos conselhos. Trava-se assim, na arena dos Conselhos, uma luta
ideológica, de concepções. Segundo Lúcia, quando o tema é sexualidade, esta luta fica clara,
ao afirmar que:
“eu acho que começa a existir algumas nuances de abertura, mas em pontos estratégicos, de
conseguir fazer avançar a sociedade. Aí eu digo da igreja liderando a sociedade civil, a gente
ainda padece de grandes reflexões, porque tem um endurecimento em posições, são posições
que elas entram em conflito com a autonomia de direitos, com a garantia da liberdade do
sujeito. Tem um front aí bem... ligado à discussão do Estado laico. O conselho é um espaço
deste confronto.”
Vitória corroborou esse argumento, afirmando que assim como as instituições, os
Conselhos ainda não conseguem trabalhar com o tema da sexualidade adolescente na
perspectiva de garantia de um direito. Ela relaciona essa dificuldade a “uma questão cultural”,
e ressalta que “tem a questão da formação dessas pessoas, tem toda a questão cristã, de
formação religiosa e acaba transferindo sua visão pessoal para as ações, para sua profissão.”
Ao questionar os entrevistados se o tema da sexualidade adolescente estava presente
nas discussões dos Conselhos, quase todos afirmaram em um primeiro momento que sim e
apresentaram a discussão acerca do enfrentamento ao abuso e exploração sexual. Vitória
explicitou que, na perspectiva do direito, o tema da sexualidade não está presente nos
Conselhos. Ele aparece pela via do enfrentamento à violência sexual e da prevenção das
DST/aids:
“se você for fazer uma pesquisa no CMDCA esse tema não está presente. No Conselho nós
conseguimos aprovar um Plano de Ação [em 2008, para ser executado em 2009] onde entra a
questão da prevenção de DST/aids e entra a questão da política de proteção à questão do abuso
e exploração sexual. Uma política municipal. [a prevenção da doença e enfrentamento à
violação]. É. Isso ainda é na perspectiva do que a gente estava falando. Fora disso... é muito
difícil. Até pautar a temática é difícil.
Questionei a entrevistada sobre como o Conselho, a partir da experiência dela, se
posiciona em relação ao tema, nos debates que por ventura foram travados, e ela me devolveu
de forma irônica:
“normalmente o Conselho não trava esses debates. Os adolescentes, em geral, da cidade não
têm essa vivência nem têm essa demanda, entendeu? [Risos] Não têm sexualidade. Esses
temas não são tocados, entendeu? Não existe. E nós assistimos, uma vez, uma pessoa foi lá
para fazer uma coisa de uma cartilhinha e tal, ainda é na perspectiva de recuperar a visão mais
tradicional. Ainda pela história de sexualidade, amor. Como se essas coisas todas fossem
completamente cartesianas.”
Mas a visão de Vitória não foi majoritária entre meus entrevistados. Encontrei
opiniões bastante diversas ao entrevistar as outras duas conselheiras municipais, Ana e
Regina. Ambas afirmaram que o tema da sexualidade está contemplado no Plano de Ação do
CMDCA, a partir da questão da violência sexual contra crianças e adolescentes, que entrará,
assim como o tema da prevenção às DST/aids, no plano operacional de 2009. Questionei se,
de alguma outra dimensão da sexualidade já apareceu nas discussões do Conselho, e Ana diz
lembrar que houve um debate no CMDCA sobre a gravidez na adolescência que, segundo ela,
foi “lá em 2004, lá na outra gestão, eu me lembro da conselheira da saúde, que também era da
comissão de garantia de direitos, discutindo muito essa questão da gravidez na adolescência.
Esse tema foi muito discutido lá naquela ocasião.” Mas, o tema era então uma proposta de
trabalho da Secretaria de Saúde, e a representante da referida Secretaria no Conselho sugeriu
o tema, mas “isso ficou muito focado na pessoa dela, na Secretaria dela”.
Ana e Vitória afirmaram a mesma coisa, só que sob perspectivas antagônicas.
Afirmaram que o Conselho estava envolvido com o enfrentamento à violência sexual e a
prevenção às DST/aids, mas enquanto Vitória afirmou que o exercício da sexualidade não é
debatido nos Conselhos, Ana entendeu que a sexualidade foi totalmente contemplada através
da perspectiva da violação de direitos. Sugeri que, assim como as instituições, o Conselho
também não consegue lidar com a afirmação da sexualidade como um direito, discussão que
poderia se desdobrar no desenvolvimento de possíveis políticas e programas. Ela então,
respondeu que nunca tinha pensado antes nessa possibilidade, como uma atribuição do
Conselho. Por isso, ela manteve sua dúvida, mesmo após ter se dito “convencida” que era
necessário lidar com o tema para além da violação:
“Eu acho que é isso mesmo. Acho que a gente tem que pensar de outras maneiras sim. A gente
tem focado na questão do abuso, da violência, mas pouco esse outro âmbito que a gente está
conversando aqui agora. E também não sei se esse espaço aqui [do Conselho] é um espaço, se
esse é o espaço para a gente tratar dessa sexualidade de uma outra forma. Porque até agora eu
não tinha pensado. Até essa conversa com você, aqui nesse espaço de Conselho, não tinha
pensado nessa possibilidade, senão mesmo na questão do abuso e da violência. Então será que
esse é o espaço?”
Se, para Ana resta a dúvida se os Conselhos devem ou podem avançar a discussão para
além do enfrentamento à violência sexual, para Regina, o Conselho ainda não conseguiu se
envolver em outros temas ligados à sexualidade, não pela dificuldade em pautar o tema da
sexualidade, mas por uma certa hierarquia de “emergências”:
“não é dada prioridade. A gente só dá prioridade para a emergência. É tanto problema, tanto
problema... que não se consegue dar conta nem dos problemas. Dentre os conselhos que eu
freqüento, acabam sendo Conselhos de grandes capitais, você vê que as pessoas têm mais
facilidade de discutir o tema. Dentro desses conselhos e de algumas instituições não é a
negação não. É realmente a situação de vulnerabilidade e emergência”.
Regina e outros entrevistados defendem a hierarquia de emergências, porque há tantos
problemas a serem resolvidos que sexualidade não é uma prioridade. Enfrenta-se a situação de
crianças morrendo de fome, morrendo de dengue, sendo exploradas nas ruas, fumando crack,
e a sexualidade não pode ser uma emergência. Essa perspectiva apareceu em outros discursos,
uma hierarquização não só das necessidades, mas também dos direitos
50
. Contudo, Regina ao

50
Em resposta a essa perspectiva, diferentes autores apontam que os direitos sexuais devem ser entendidos não
como um supérfluo, mas como um direito básico que é essencial para reivindicar qualquer outro direito e que
deveria compor os processos de construção de um novo patamar de cidadania para diferentes sujeitos. Como
propõem Cornwall & Jolly (2008), a sexualidade tem ramificações em cada uma das dimensões da pobreza e
implicações para vários aspectos do desenvolvimento. Além disso, há o entendimento que os princípios de
integralidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos baseiam-se no fato de que as violações
de certos direitos afetam os demais, indicando um enfoque da sexualidade inter-relacionada aos direitos à
educação, saúde, trabalho entre outros. Nesse sentido, sem o reconhecimento das implicações da sexualidade
para tudo aquilo que constitui o desenvolvimento, os esforços para melhorar a vida das pessoas que vivem na
pobreza seriam menos capazes de fazer uma diferença genuína e duradoura. Também para Armas (2008), os
direitos sexuais não são menos importantes do que os direitos à educação, à saúde ou ao trabalho. Para o autor,
apesar do consenso teórico sobre a integralidade, formuladores/as de políticas raramente tentam levar em
consideração os muitos vínculos reais e práticos entre os direitos sexuais e outros direitos.
apresentar essa exclusão do tema, não assume a hierarquia como sua, mas própria da lógica
dos conselhos:
“o problema é que os Conselhos vivem de apagar incêndio. Agora que nós conseguimos fazer
um plano de trabalho. Mas os Conselhos não têm plano de trabalho. E aí a gente acaba
apagando incêndio, como eu falei. A emergência é o que? A emergência é a situação de rua
por conta de menino que vai para cá, que vai para lá, os abrigos fechando. Então acaba que os
Conselhos ficam movidos pela emergência. A questão da sexualidade nunca foi
emergência.” [grifo meu]
Fiquei intrigada com a premissa de que a sexualidade não é uma emergência, uma
urgência. E o que seria emergência? Quem definiria o que é emergência? Para minha
entrevistado o lugar de um tema na hierarquia das emergências pode ser definido pelo espaço
concedido a ele pela mídia:
“para mim é uma questão de emergência quando vejo a situação das crianças se prostituindo.
A gente tem pontos de prostituição claros na cidade do Rio de Janeiro (...) eu acho que isso
acaba não virando emergência, porque você não tem isso publicizado. A publicidade faz muita
diferença. Quando você tem o Copa Bacana
51
, que aí a sociedade reclama porque incomoda a
sociedade, aí você cria uma emergência (...) Entrou na pauta a questão da dengue. Por quê?
Porque as crianças estão morrendo e aí morrem crianças de tudo quanto é classe social. Então
você vê que a mídia também colabora muito com isso. Porque acaba virando emergência
aquilo que a população coloca como emergencial no entendimento dela.
Em outro momento da entrevista, compartilhei com Regina minhas inquietações de
pesquisa (como fiz com todos os meus entrevistados), e disse que percebia uma tendência a
negar o tema da sexualidade adolescente no campo, que se expressaria claramente nos temas
(não) debatidos nos Conselhos. Regina replicou que a sexualidade é um direito, mas que não
tem sido tratada como se o fosse. Em sua opinião, o problema do tema nos Conselhos seria,
como disse, “a questão das emergências”. Questionei então novamente minha entrevistada se
ela conseguia, como conselheira de direitos, responsável pela formulação de políticas públicas
para crianças e adolescentes, vislumbrar uma outra realidade para esta discussão, mas
reafirmou-se a visão da sexualidade como direito subalterno:
“acho que vamos conseguir sim, mas não consigo visualizar isso em curto prazo não. Porque
infelizmente as questões emergenciais são tão emergenciais. O Rio de Janeiro se afundou nos
últimos quatro anos de uma forma trágica. Quando você tem criança morrendo de dengue, aí
infelizmente questões ligadas à sexualidade ficam em segundo plano sim. Como você pode
discutir o desenvolvimento sexual da criança quando ela está morrendo? Quando o primeiro

51
Trata-se de iniciativa da Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro, de reordenamento urbano do bairro de
Copacabana, que teve como uma de suas principais ações o recolhimento compulsório da população em situação
de rua, inclusive crianças e adolescentes.
direito dela está sendo violado? A realidade é muito dura. Para a gente que está dentro do
Conselho, dentro de uma realidade dessas é muito, muito duro”.
Ao percorrer o mesmo caminho com Ana, esta também aderiu à hierarquia das
emergências, embora tenha abordado de forma mais crítica quando sugeri a negação da
sexualidade nas pautas dos Conselhos:
“Eu acho que a gente acaba focando nessa necessidade, nessa urgência que a cidade apresenta
para a gente. Por exemplo: quando a gente pensa em sexualidade, a cidade hoje mostra a
situação que essas crianças em vulnerabilidade [em situação de rua] acabam vivendo. Então
por ser esse um cenário bastante preocupante [“as crianças se prostituindo para conseguir
drogas”, e “tendo relações sexuais na rua”], a gente acaba focando nesse lado, conforme você
falou, negativo da sexualidade. Não consegue vislumbrar que é sim, uma coisa extremamente
positiva (...) Então eu acho que o gestor, o formulador da política acaba focando muito mais
nesse cenário preocupante que a gente se depara todos os dias. Então acho que é um pouco
isso que acaba levando os nossos olhares muito mais para esse viés negativo e menos para esse
outro do desejo, do acesso. Essa é a avaliação que eu faço.”
As posições de meus entrevistados dão os contornos de um bom retrato do conjunto de
desafios colocados para o campo quando o tema é sexualidade. Chamou minha atenção o
argumento que evoca entes externos como definidores das prioridades. Seriam a “sociedade”
e a “mídia” que definiriam o que é prioridade. Lúcia me afirmou por exemplo, que “o
conselho é o espaço do confronto [entre as diferentes concepções que compõem o campo],
mas também do confronto com a própria sociedade”. Todos os entrevistados concordam que a
dificuldade de discussão da sexualidade está “na sociedade” e, por conseqüência, em cascata,
está no campo, nas instituições, nos Conselhos. Contudo, a “sociedade” abarca diferentes
atores e perspectivas, dependendo de quem fala e do momento em que fala.
A “sociedade” pode ser aqueles que só se preocupam com o próprio bem estar, na
imagem criada por Regina, “é quem está no seu apartamento, é quem está jogando golfe”; “a
sociedade” pode ser a mídia, que segundo Paulo faz a sexualidade estar sendo vista como um
produto, “estar sendo colocada como um super produto”; a “sociedade” pode ser “os outros”
do campo, que segundo todos os entrevistados, têm muitos preconceitos e dificuldades com o
tema (especialmente os ligados à igreja); mas, fundamentalmente, trata-se do desafio de lidar
com a “sociedade” que “somos nós”, como disse Célia, “a sociedade não é uma abstração, a
sociedade somos nós, né?” A sociedade em que meus próprios entrevistados se vêem, onde a
sexualidade é direito subalterno, tem força mesmo quando eles não têm dificuldade em lidar
com o tema da sexualidade com os adolescentes dos projetos ou com os educadores sociais
em cursos de capacitação. Seus limites podem emergir inesperadamente no trato da
sexualidade com os próprios filhos por exemplo, como descreve Célia, que preferiu dividir tal
responsabilidade com uma médica:
“por exemplo, eu acho que eu não falo disso [exercício da sexualidade] com dificuldade, acho
que eu não tenho dificuldade de trabalhar isso, eu já vivi situações várias, se for contar aqui,
com adolescentes, com jovens, com menino atendido, e acho que pude trabalhar
tranquilamente. E acho que aqui nos cursos que a gente organiza a gente brinca muito com
isso, e com isso, a gente vai trazendo a discussão pra pauta. Mas então, assim, eu mesma,
quando a minha filha ficou menstruada, ‘e aí, como é que conversa isso?’. Então assim, levar
pra pediatra foi ótimo, porque, assim, a pediatra conversa com ela, depois era muito mais fácil
eu como mãe, entendeu. Então isso não é fácil, não é um tema fácil.”
Em relação ao posicionamento de Célia e Lúcia, que partilham várias idéias e valores,
pois ambas atuam na área de enfrentamento à violência sexual, existe a perspectiva de que o
tema do enfrentamento à violência é positivo para o campo, pois ela seria uma “porta de
entrada” da discussão sobre sexualidade. Célia é mais enfática ao apresentar essa perspectiva.
Tanto que, ao ser questionada como o tema da sexualidade entra nos Conselhos, ela fez em
resposta, toda uma retrospectiva da entrada do tema do enfrentamento à violência sexual no
campo.
Célia relatou que aquela discussão teve início em um encontro realizado em
Estocolmo, na década de 1990, quando “o mundo começou a se dar conta da questão do
turismo sexual e do tráfico de crianças e adolescentes pra fins de exploração sexual”. E o
Brasil participou do encontro em Estocolmo, onde foi assumido o compromisso de construir
planos nacionais de enfrentamento à violência sexual contra crianças e adolescentes. O Brasil
fez uma série de oficinas com vistas à construção desse plano e promoveu um encontro no
Rio Grande do Norte, onde se elaborou a Carta de Natal, contendo princípios que iriam
nortear o plano nacional. Segundo Célia, o país inteiro estava representado naquele encontro.
E o Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente teve papel importante naquele
momento, passando a ser um articulador da questão no país. Mas, durante o processo se
entendeu que eram necessárias instâncias específicas pra trabalhar essa questão da violência
sexual e criou-se o Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e
Adolescentes. O comitê então, a partir do encontro em Natal, começou a realizar uma série de
reuniões pra criar o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual. Célia afirmou que
a partir daí, o tema ganhou força.
No Rio de Janeiro, Célia relatou que articulou com pessoas que tinham afinidade com o
tema, e como estava na presidência do CEDCA, estimulou que o Conselho “puxasse a
discussão” sobre o tema no Estado. Contudo, ela descreveu várias dificuldades enfrentadas
para manter o tema na pauta com a mudança de gestão no CEDCA. O presidente seguinte não
estava convencido da importância do tema, muito menos comprometido, e isso criou uma
série de entraves para que o Plano, cuja elaboração teve início na gestão de Célia, fosse
lançado. Ela relatou que nesse período, a instituição em que atua lançou alguns cards que
falavam dos direitos sexuais e reprodutivos da criança e do adolescente, pois eles começaram
a trabalhar, segundo ela “nessa lógica”: num deles era um menino nu, olhando no espelho, no
outro era uma menina nua, olhando no espelho. O lançamento dos cards transformou-se em
“uma polêmica no campo”. Célia ressaltou que a expressão “direitos sexuais” também estava
no Plano Estadual de Enfrentamento à Violência Sexual, e que isso tamm criou problemas:
“no lançamento do Plano Estadual também foi uma polêmica porque o presidente [do
CEDCA] quis rever todo o material, falava sobre direitos sexuais na apresentação, e como é
que era isso (...) pro Conselho? Quando a gente foi lançar o Plano foi uma crise. Foi uma crise.
Então, pra eles era assim: a gente tava defendendo que criancinha podia trepar ‘é festa, todo
mundo pode transar com todo mundo, viva a vida’ (...) Mas foi feito o lançamento, foi feita a
publicação a duras penas, e tudo mostra que esse é um tema menor, um tema que não precisa
muito”.
A entrevistada devota a resistência em torno do Plano Estadual à “falta de
compreensão do que são direitos sexuais de crianças e adolescentes, e à questão do
preconceito, do tabu que permeia toda discussão sobre sexualidade em várias esferas, seja
junto à igreja, seja junto ao Estado”. É por isso que ela entende que o tema da violência sexual
já é um avanço para o campo, mesmo concordando com a minha afirmação de que ele não
rompe com a premissa da vitimização das crianças e adolescentes:
“é desse jeito que tem sido possível introduzir a discussão; eu acho que é com esse mote que
se consegue discutir a sexualidade. Eu acho que a gente não consegue discutir sexualidade a
partir de uma outra perspectiva (...) Tem que comer o mingau pelas beiradas, então tem que
aproveitar essas pautas pra introduzir uma discussão mais crítica sobre a sexualidade, mas
ainda o que é possível é fazer desse jeito. E eu acho que a discussão do enfrentamento à
questão da violência sexual, mesmo que seja por esse, essa seja a porta de entrada, eu acho que
ela tem pelo menos colocado isso na agenda; de alguma forma você não tem como fugir da
discussão.”
Essa idéia de “comer o mingau pelas beiradas” também esteve presente no discurso de
Lúcia, pois pelo fato de estar no CONANDA, ela pode ter uma visão panorâmica dos desafios
de introduzir a discussão sobre sexualidade sob outras perspectivas no campo. Mas fiquei com
a sensação de que, apesar de ter bastante incorporada a concepção de sexualidade como um
direito e entender os limites da perspectiva centrada na violência, Lúcia de certa forma está
confortável nessa vertente de trabalho. Ou seja, acredita que o espaço da discussão da
violência sexual é suficiente para as condições atuais do campo. É bem verdade que os atores
do campo que lidam com violência sexual já estão de certa maneira envolvidos com o ideário
dos direitos sexuais, diferentemente dos demais. Isso ficou claro no encontro com Célia e
Lúcia. Dos meus entrevistados, elas são as únicas a utilizarem a expressão “direitos sexuais”.
Para Lúcia, o Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual indica a
perspectiva da sexualidade como um direito humano do adolescente e sua implementação
permitiria a divulgação na sociedade de tal entendimento, embora isto não possa ser realizado
sem o enfrentamento de vários desafios:
“ele [o Plano] tenta hoje buscar essa afirmação de direitos. Do jeito que tem sido colocado,
isso é uma coisa que tem sido trazida à tona sempre que o comitê [Comitê Nacional de
Enfrentamento à Violência Sexual] se reúne. Mas eu acho que é um debate que a gente vai
demorar um tempo ainda para colocar ele numa agenda de um direito humano (...) Então acho
que é um debate que vai ter que avançar muito ainda. Primeiro, é corajoso, mas a coragem
nossa foi de ter colocado dessa forma né? Por conta acho que de todas essas nossas heranças
aí.”
Lúcia, apesar de seu ativismo no enfrentamento à violência sexual e de ter falado
muito do tema na entrevista, formulou críticas em relação à forma como o tema tem sido
apresentado e aos perigos da discussão sobre violência encerrar-se em si mesma, sem avançar:
“em relação à violência sexual, eu acho que a gente corre por duas vertentes. Eu acho que ela
vai numa linha de preocupação, mas uma linha de preocupação que fica dividida. Primeiro, em
não se pensar em direitos sexuais como direitos humanos e de se olhar para a questão da
sexualidade só como violência, só como violação (...) Então assim, é uma coisa que a gente,
enquanto sociedade, não conseguiu colocar, e que no Plano está posto, de proteção integral. O
campo da sexualidade é algo ainda intocável. Sexualidade, não estou falando violência sexual.
É algo intocável. E que começa a ter uns flashzinhos, inclusive a partir mesmo do próprio
movimento de crianças e adolescentes, que busca essa reflexão.”
Um outro aspecto sugerido por minha entrevistada, que vai ao encontro de reflexões
desenvolvidas anteriormente, diz respeito à forma como a sociedade vê a criança e o
adolescente. A sociedade ainda não conseguiu romper com uma representação da criança
como vítima ou como violenta, “ainda permanece a idéia da criança coitada ou da criança
perigosa”.
O quadro apontado por meus entrevistados, acerca do modo como as questões ligadas à
sexualidade estão ou já estiveram presentes nos Conselhos, confirma as minhas impressões
iniciais de que há uma negativação do exercício da sexualidade no campo, tanto na ação das
instituições, quanto no espaço dos Conselhos, arena privilegiada deste campo. Contudo, não
encontrei em um primeiro momento das entrevistas uma perspectiva crítica de meus
entrevistados em relação a esse tipo de abordagem do tema. Para a quase totalidade dos
entrevistados, a abordagem da sexualidade associada à violência, a gravidez ou a doenças é de
forma naturalizada, sinônimo de trabalho com sexualidade.
Tive, portanto que desenvolver com quase todos os entrevistados um caminho de
desnaturalização da presença do tema da sexualidade nos Conselhos. Desenvolvi com eles um
processo de desestabilização de algumas verdades pactuadas no campo, para conseguir refazer
um caminho de reflexão que possibilitasse desvelar as dificuldades, limites e contradições da
abordagem deste tema. Talvez aí esteja a explicação para o forte incômodo que acredito ter
sido a marca do trabalho de campo. Eu não só propus a reflexão sobre um tema
assumidamente difícil para todos os seus atores, mas, de certa forma, os desloquei de uma
zona de conforto para uma (ainda que temporária) de inquietação, pois convidei meus
entrevistados no contexto da entrevista, a refazerem seu discurso, ao pôr em xeque um acordo
tácito de que é suficiente discutir a sexualidade adolescente sob limites estreitos.
Os Conselhos são arenas privilegiadas para o confronto das diferentes tendências e
concepções do campo. O contato com o discurso dos conselheiros me possibilitou perceber
que a discussão da sexualidade, esse “território pantanoso”, nas palavras de Paulo, pode se
fazer presente desde que se mantenha a criança e o adolescente no lugar da vítima, da que vai
ser cuidada, protegida. A sexualidade adolescente não pode aparecer como o território do
prazer. A violação na sexualidade parece atuar como a frágil ponte, que possibilita a
comunicação entre tendências que têm concepções muito diferentes, por vezes antagônicas,
tanto em relação à adolescência quanto à sexualidade.
A perspectiva da violação possibilita a construção de alianças e de uma agenda
comum, pois é mais difícil rejeitar a discussão da sexualidade quando ela é feita em nome da
proteção das pobres crianças violentadas. Contudo, a perspectiva da violação pode também
atuar como uma providencial parede de vidro, a que todo o campo se submete, um limite
concreto e pouco visível, estabelecendo até onde se pode ir no tema, até onde existe acordo.
Na presença da parede, não será preciso construir um mundo em que os adolescentes sejam
efetivamente sujeitos e façam claramente suas próprias escolhas, inclusive sexuais, sobretudo
se elas não se confundirem com as nossas. Elaborar políticas sob a perspectiva do exercício da
sexualidade como um direito dos adolescentes demanda desse campo refletir e enfrentar suas
próprias concepções e práticas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todo o trabalho foi marcado por permanências e busca por rupturas. Poderia dizer que,
em certo sentido, a “palavra de ordem” nessa pesquisa é processo. A idéia aparece no discurso
analisado, em cujos termos o novo paradigma das crianças e adolescentes como sujeitos de
direitos está em processo de construção na sociedade brasileira. Busca-se a ruptura com um
antigo paradigma, mas todo o trabalho de campo realizado demonstra que ele permanece
muito forte no campo de garantia de direitos de crianças e adolescentes, que se esforça para
deixar de ser o campo da menoridade, mas efetivamente ainda não o conseguiu por
completo
52
.
Fui também confrontada com o difícil e tortuoso processo vivido pelos Conselhos de
Direitos. Assistimos aí a mais uma demonstração da permanência de papéis sociais
historicamente assumidos pelos atores que compõem esse novo ente político. Os governos
mantêm-se em seu lugar de determinação e definição de políticas, e a sociedade civil também
enfrenta dificuldades para romper com uma postura utilitarista ou pouco propositiva nesses
espaços. Há uma fixação em antigos lugares de “situação e oposição”, ou traços de
manutenção do governo como aquele que distribui benesses, mantendo relações de cooptação,
o público confundindo-se com o privado. Os esforços de ruptura com essa forma de fazer
política enfrentam fortes resistências, e os Conselhos tendem a ficar em um lugar figurativo.
Nesse sentido, o conjunto de entrevistados relatou o difícil processo de afirmação dos
Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente como espaços efetivos de formulação de
políticas públicas para crianças e adolescentes.
Em relação à construção dos direitos sexuais a idéia de processo também aparece. No
cenário político dos direitos humanos, tem-se encontrado bastante dificuldade para afirmação
da sexualidade como um direito ou campo de exercício de direitos, se não estiver vinculada à
reprodução, à violência e às doenças. Quando se pensa sexualidade para o conjunto de
sujeitos de direitos, o enfoque do risco ou da vitimização permanece, e não só para os
adolescentes. A grande ruptura nesse campo seria a afirmação da sexualidade como espaço do

52
Nessa direção, Adorno faz uma provocação interessante segundo a qual “na medida em que o eixo central do
novo texto legal repousa na concepção de que crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, torna-se
imperativo, na formulação e implementação de diretrizes, olhar o ponto de vista desses sujeitos e não o ponto de
vista dos adultos. Esse imperativo recomenda, por conseguinte, mutação significativa nas mentalidades
profissionais, que agora deverão se manifestar mais sensíveis à cultura infantil e de adolescentes. A pergunta que
se pode fazer é: os quadros profissionais existentes estão dispostos e habilitados, inclinam-se mesmo a promover
essa mudança radical de mentalidade? (1999:110)
prazer e da autonomia, como um direito. Como relatado, mesmo para as mulheres, os direitos
sexuais ainda não estão completamente incorporados. Bem como para a população LGBT,
que enfrenta fortes preconceitos. No que tange a sexualidade adolescente, foco desse trabalho,
identificamos que, se para outros sujeitos de direitos há dificuldade de incorporação da
sexualidade como um direito, para eles, sujeitos historicamente tutelados, sua postulação
enfrenta reações ainda mais violentas ou céticas. Todo o percurso do trabalho demonstrou a
dificuldade de incorporação dessa discussão junto aos atores que oficialmente têm o papel de
efetivação dos direitos infanto-juvenis e que, em tese, compõem o segmento social mais
comprometido com a sua afirmação.
O trabalho se propôs a contribuir para a reflexão acerca da emergência no cenário
político dos direitos humanos de novos direitos e de novos sujeitos de direitos, buscando
articular direitos sexuais e adolescentes, na visão de formuladores de políticas públicas. O
percurso do trabalho demonstrou ser esta articulação uma tarefa nada simples, visto que
falamos da afirmação de um direito que não é plenamente considerado direito (os direitos
sexuais), para uma categoria social, os adolescentes, que não são considerados efetivamente
sujeitos. Depreende-se daí, o quanto a sexualidade adolescente coloca em xeque tanto o
ideário dos adolescentes sujeitos de direitos como o processo de universalização dos
chamados direitos sexuais.
Ao finalizar o trabalho, não tenho a pretensão de concluir o conjunto de discussões
levantadas, mas sugerir pistas que possam contribuir para futuras investigações e para a
continuidade do debate iniciado. Pretendo, inicialmente, apontar algumas lacunas que ficaram
ao longo do percurso. Além disso, como no trabalho de campo insisti fortemente junto aos
entrevistados para obter deles possíveis “brechas” que contribuíssem na construção de uma
agenda positiva em relação aos direitos sexuais dos adolescentes, tratarei de tais “brechas”
depois de falar das lacunas.
Ao refletir sobre a história da concepção de menoridade na sociedade brasileira e de seu
“entranhamento” em nossa cultura, poderia ter aprofundado a discussão a partir de alguns
importantes estudos já realizados
53
. Esse conjunto de reflexões aponta a força da categoria
menor no imaginário social em nosso país e, com certeza, contribuem para o entendimento da
dificuldade de rompimento com a relação tutelar construída junto a crianças e adolescentes.

53
Ver Vianna (1999 e 2002), Rizzini (1995 e 2008), Arantes (1995), Costa (1990).
Além disso, há uma larga discussão acerca das concepções de “adolescência” e “juventude”
ligadas a diferentes campos do conhecimento, que mereceriam aprofundamento e debate
54
.
Em relação ao papel do Estatuto da Criança e do Adolescente, também há reflexões
importantes apontando que, dada a conjuntura em que ele foi gestado e da necessidade de se
transformar em um “escudo” para a “luta” contra a força da menoridade na sociedade, tornou-
se para muitos atores do campo (e neles me incluía), uma “bíblia”, limitando-se assim a
capacidade crítica para visualizar seus limites (Fonseca, 2004).
Na discussão desenvolvida acerca do papel dos Conselhos de Direitos, muito poderia
ainda ser debatido. Uma das novidades nessa discussão é visualizar que a política pública não
é algo só do Estado e que as novas formas de organização da sociedade ocupam um lugar
protagônico no pensar e construir o público. E que vivemos uma realidade em que o Estado
em muitos momentos assume interesses privados. Há uma grande produção nas ciências
sociais sobre o papel do Estado, as relações Estado-sociedade civil e sobre esfera pública e
privada que também poderiam ser aprofundadas
55
.
Quanto à discussão sobre sexualidade, muitos aspectos podem ser refinados. Entendo
esse trabalho como uma primeira incursão no conjunto de discussões aqui levantadas, e sua
finalização marca o início de minha vinculação com as reflexões desenvolvidas pelas ciências
sociais, especialmente a antropologia, em relação a gênero, sexualidade e sua relação com os
direitos humanos. No desenvolvimento do trabalho, transitei, sem condição de aprofundar,
por discussões que acredito inovadoras e que podem se tornar objeto de futuras investigações.
Entre elas destaco: o exercício da sexualidade por adolescentes que vivem em abrigos ou que
estão internados em instituições de cumprimento de medidas socieducativas; e ainda o modo
como a homossexualidade e a travestilidade na adolescência são tratadas pelos profissionais
que trabalham com esses sujeitos.
Em relação às “brechas” apontadas pelos entrevistados para abordagens diferenciadas
da sexualidade adolescente, um caminho proposto para o enfrentamento dessa dificuldade, já
discutido ao longo do trabalho, seria a entrada do tema no campo a partir do enfrentamento à
violência sexual. Considero esse caminho a agenda negativa. Admito resistir a essa escolha,
proposta por alguns entrevistados e que tem sido de certa forma hegemônica também nos
estudos ligados à sexualidade adolescente. Resisto à entrada na discussão a partir da violência
sexual, da gravidez na adolescência e na prevenção de DST/aids. A meu ver, estas são

54
Ver Ozella & Aguiar (2008); Bock (2004 e 2007); Becker (1989); Castro & Abramovay (1998).
55
Ver Raichelis (2000), Bobbio (1994), Arretche (1999).
armadilhas fáceis para se continuar focalizando em uma perspectiva negativa do exercício da
sexualidade na adolescência. Por mais que os autores assumam uma leitura mais ampla desses
fenômenos sociais, acredito que a ruptura não se concretiza. O discurso hegemônico “captura”
a discussão e ela permanece sob a ótica do risco. Postulo que uma ação que se pretenda
emancipatória junto a adolescentes e jovens não pode focar nas “ausências”, ou seja, nas
dimensões que os sujeitos ainda não desenvolveram, nem no “problema”. O
“empoderamento” dos sujeitos, que possibilita inclusive que tenham um comportamento
sexual responsável, passa fundamentalmente pela afirmação de suas competências
56
. É a
afirmação da possibilidade de uma vivência autônoma e prazerosa da sexualidade, que poderá
efetivamente proteger os adolescentes da violência e das doenças. A meu ver, lidar com os
adolescentes como sujeitos de direitos, é apostar na construção de uma agenda positiva em
relação ao conjunto de aspectos de sua existência, inclusive a sexualidade. Os fatores de risco
devem estar na ação educativa, mas não ser sua principal via de expressão.
Uma outra brecha proposta pelos conselheiros seria o poder da academia de interferir
nos espaços de formulação de políticas públicas. Uma entrevistada claramente me “provocou”
no sentido da necessidade de utilizar as reflexões desenvolvidas nas universidades como
instrumento para “pautar” os conselhos. Outra entrevistada, ligada à universidade, também
explicitou sua dúvida sobre a real possibilidade de o conjunto de reflexões desenvolvidas no
meio acadêmico repercutir na vida dos sujeitos. Nesse sentido, fica aqui o desafio de buscar
caminhos de interlocução, que talvez não sejam tão fáceis, pois como afirmei anteriormente,
não estou certa quanto à disponibilidade dos Conselhos em serem “provocados” com esse
tema incômodo. E pergunto-me ainda, até que ponto as correlações de força no campo,
permitiriam que esse tema entrasse na pauta.
Outro aspecto levantado pelos entrevistados, diz respeito à dificuldade de interlocução
da área da infância com outros movimentos, o que seria importante nesse processo de
ampliação da abordagem do tema da sexualidade. Mais de um entrevistado falou da
importância de movimentos sociais que, de certa forma, já atuam numa perspectiva do
exercício da sexualidade como um direito, referindo-se especificamente ao movimento
feminista e ao movimento LGBT, de incluírem os adolescentes em sua agenda de reflexões.
Mas, ao mesmo tempo, apontam-se alguns entraves: além de esses movimentos em geral, não
discutirem a situação dos adolescentes, é identificada uma dificuldade histórica de

56
Nesse sentido, me aproximo das reflexões desenvolvidas por Paiva (1996, 1999).
interlocução entre os movimentos organizados de garantia de direitos de diferentes categorias
ou sujeitos sociais.
Um ponto bastante abordado pelos entrevistados e que, de certa forma, determinaria a
manutenção da sexualidade adolescente na esfera do risco e da doença, é a sua exclusiva
vinculação às políticas públicas de saúde. Nesse sentido, uma brecha apontada como
instrumento para uma afirmação mais positiva do exercício da sexualidade adolescente, seria
a construção de propostas intersetoriais. Crianças e adolescentes são público para todas as
políticas setoriais e, na perspectiva de a sexualidade ser uma dimensão fundamental da vida
desses sujeitos, as políticas e programas vinculados a esse tema deveriam ser elaboradas de
forma articulada.
Aliada a essa questão, um outro ponto bastante abordado pelos entrevistados diz
respeito à importância da educação na vida das crianças e adolescentes. Há um entendimento
de que a política de educação precisa assumir o tema da sexualidade como seu, “assumir essa
pauta”. Não apenas como um tema transversal, mas a partir de programas de educação
continuada, numa perspectiva de educação em direitos humanos. Assim, a iniciativa das
escolas começarem a assumir para si essa temática, como apresentado por uma entrevistada, é
alentadora. Contudo, a sexualidade tem chegado às escolas junto à discussão da diversidade
sexual, o que mantém, de certa forma, o tema ligado ao “problemático” - no mínimo ao
exótico - dentro do cenário das escolas. Dessa forma, o tema em sua perspectiva mais ampla,
acaba não sendo assumido pelos espaços educativos.
Finalmente, gostaria de ressaltar um aspecto que apareceu indiretamente no discurso de
alguns entrevistados e que nos leva à reflexão acerca do lugar que as crianças e adolescentes
efetivamente ocupam no próprio campo de garantia dos direitos de crianças e adolescentes.
Diferente de outras categorias sociais, o campo não tem como ator fundamental os próprios
sujeitos cujos direitos são defendidos ou promovidos. Como proposto por Castro (2007), “a
sociedade estratificada pela idade instituiu determinados centros de enunciação nos quais os
adultos desempenham o papel de atores principais, e porta-vozes das crianças e adolescentes”.
Ou seja, os direitos das crianças e dos adolescentes foram gestados pelos adultos, que falam e
decidem por eles, e o fazem tendo como respaldo o seu “compromisso” com esse grupo e seu
conhecimento técnico-profissional sobre ele.
Dois entrevistados trouxeram essa idéia de que os próprios adolescentes estão
construindo seu espaço de fala e mudando essa realidade. Seria a participação e organização
dos adolescentes que poderia fazer a grande ruptura nessa relação tutelar que insiste em
permanecer. As crianças e adolescentes sempre foram traduzidos por outros, e continuam
nessa situação. A outorga de direitos não os faz sujeitos. Enquanto os adolescentes forem
objetos da política voltada à garantia de seus direitos, e não forem os protagonistas desse
processo, dificilmente chegarão ao lugar de sujeitos de direitos. E esse desafio está colocado
para o campo de garantia de direitos de crianças e adolescentes. Segundo Rua (1998), embora
os jovens manifestem disposição para atuar socialmente, faltam canais de participação novos,
ou seja, sem os vícios das instituições tradicionais.
Nessa perspectiva, seria na construção de um lugar ativo, onde realizassem o seu
direito de participação, que os adolescentes poderiam se tornar sujeitos e agentes reguladores
de sua própria sexualidade. Para que os adolescentes assumam um lugar de sujeitos, sintam
que efetivamente têm capacidade e direitos, é necessário que a experiência cotidiana o
confirme. Para que isso se concretize, será necessário que o campo de garantia de direitos da
criança e do adolescente converta o discurso do direito na prática do direito no cotidiano dos
projetos e políticas. E a pesquisa demonstrou que será necessário muito investimento para que
esse processo se concretize.
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APÊNDICE
Roteiro de entrevista
Bloco 1: Trajetória
Motivações para a escolha desta área de atuação
Formação profissional
Áreas de atuação no campo
Tempo de atuação no campo
Funções exercidas
Organizações governamentais e não-governamentais a que esteve ou está vinculado
Motivações para atuar como conselheiro
Tempo de atuação no campo
Qualidade da atuação (estritamente profissional e/ou ativismo)
Bloco 2: o tema nas instituições – diagnóstico da situação
Ação das instituições governamentais e não-governamentais em relação à temática
Como a sexualidade adolescente é tratada pelas instituições e serviços de atendimento a
este público
Dificuldades de trabalhar sexualidade na adolescência no interior das instituições de
atendimento a este público
Papel do executivo, legislativo e judiciário para a efetivação de propostas e ações ligadas à
sexualidade adolescente
Bloco 3: o tema no conselho
Temas prioritários nas pautas do conselho nesta gestão
A presença do tema da sexualidade na pauta do conselho
A posição do conselho em relação à temática da sexualidade adolescente
Qual o papel dos conselhos com relação à temática da sexualidade
Possíveis dificuldades de abordar o tema da sexualidade no interior dos conselhos
Bloco 4: o exercício da sexualidade adolescente
O entendimento sobre adolescência
O entendimento sobre sexualidade
Relevância do debate público sobre sexualidade na adolescência
O que deve ser tratado com adolescentes em relação à sexualidade
Apresentação de “casos” envolvendo os seguintes temas:
homossexualidade/bissexualidade/travestilidade, gravidez e aborto, exploração sexual,
abuso sexual, educação sexual, adolescentes abrigados, adolescentes em cumprimento de
MSE (internação), a fim de que se posicione face aos mesmos
Possíveis diferenças em relação aos temas apontados com relação ao gênero
Posicionamentos dos demais atores do campo em relação às temáticas abordadas
Bloco 5: sexualidade e direitos
Percepção da relação entre sexualidade e demais direitos
Possibilidade da afirmação da sexualidade como um direito de todos/as os/as adolescentes
Conhecimento acerca do conceito “direitos sexuais”
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