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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Lilian Wurzba Ioshimoto
Natureza irreal ou fantástica realidade?
Uma reflexão sobre a melancolia religiosa e suas
expressões simbólicas na obra de Hieronymus Bosch
DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
SÃO PAULO
2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Lilian Wurzba Ioshimoto
Natureza irreal ou fantástica realidade?
Uma reflexão sobre a melancolia religiosa e suas
expressões simbólicas na obra de Hieronymus Bosch
DOUTORADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Tese apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do
título de Doutor em Ciências da Religião,
área de concentração: Fundamentos das
Ciências da Religião, pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, sob
a orientação do Prof. Doutor Luiz Felipe
de Cerqueira e Silva Pondé.
SÃO PAULO
2009
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B a n c a E x a m i n a d o r a
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Àqueles que acreditaram que este
trabalho seria possível.
Em especial à minha mãe,
ao meu marido e meus filhos,
à Alê e à Duda.
AGRADECIMENTOS
Escrever uma tese se constitui, a priori, em um trabalho solitário. Mas, ao
mesmo tempo, como compor um texto sem um material bibliográfico que lhe sirva de
estofo? Como seguir uma intuição primeira, sem o apoio necessário à sua
sustentação? Como manter-se firme diante dos obstáculos que inevitavelmente
emergem durante o percurso? Como permanecer no caminho se tantos eventos
outros surgem que facilmente desviariam a rota? Diante de tantas incertezas, como
continuar sem a confiança de que se é capaz de alcançar a meta desejada? Enfim,
como dar “vida” a uma idéia sem o acalento do afeto que garante a existência?
Questões que se nos apresentam contínua e simultaneamente e que se não
tivessem obtido respostas este trabalho não teria sido realizado. É assim que meus
agradecimentos se dirigem a todos aqueles que me responderam, direta ou
indiretamente, e se os elenco em uma ordem, esta não reflete uma importância, mas
antes uma equivalência:
- à CAPES, pelos subsídios financeiros que me possibilitaram a permanência
em Madrid, onde tive acesso ao material disponível no Museo del Prado, local onde
melhor se pode estudar o fantástico mundo de Jheronimus Bosch, local em que fui
recebida com muito carinho por Paloma, Yolanda, Sonia, Argel e Rocío
(conservadora do Museo que participou da restauração do Jardim das delicias, de
Jheronimus Bosch), que me forneceram inestimável auxílio; onde tive acesso,
também, ao curso de História da Arte, na Universidade Autónoma de Madrid,
ministrado pelo Prof. Dr. Fernando Marías, cujo aceite como co-orientador foi de
especial relevância para a consecução desta pesquisa; e de onde pude rumar a
Toledo, cidade do Prof. Dr. Luis Peñalver Alhambra que carinhosamente
compartilhou seus conhecimentos sobre o pintor de s’Hertogenbosch, além de me
ter cedido uma entrevista, publicada na revista Agnes; não esquecendo do
cuidado com que fui tratada por Luciana Tirolli e Ana Lilia, o que coloriu, de um tom
muito especial, minha estada em Madrid;
- ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da PUC-
SP, pelo fomento à pesquisa, em particular aos professores Eduardo Cruz, que
lançou a idéia de que eu realizasse o PDEE em Madrid; José J. Queiroz e Afonso M.
L. Soares, por seus aportes na qualificação do meu projeto; Edênio Valle, por seu
carinho e compreensão no trato de minhas dificuldades; e à Andréia, por sua
“irritante” tranqüilidade e disponibilidade para a resolução das questões práticas;
- à Prof.ª Dr.ª Olgária Matos, cuja avaliação do meu projeto foi decisiva para a
aprovação do PDEE em Madrid;
- à Roseli Hadad, cuja intervenção garantiu minha viagem a Madrid;
- à minha querida amiga Rosely Quartucci Simon, cujo estímulo não me
deixou esmorecer;
- à Dr.
a
Lia Rachel Romano e ao Roberto Rosas Fernandes, pelo carinho com
que cuidam da minha saúde do corpo e da alma;
- à minha mãe, Geny, fundamento único da minha existência; ao meu marido,
Carlos, sem cujo apoio e dedicação não poderia ter me voltado a este trabalho; aos
meus filhos, Andreza e Laerte, por seu amor incondicional; à Alessandra e à
Daniela, pela admiração gratuita a mim ofertada;
- às amigas especiais Maria Cristina M. Guarnieri e Maria JoCaldeira do
Amaral, cujas mãos sempre estendidas me sustentaram e me guiaram quando eu
não mais acreditava poder seguir o caminho;
- ao Waldemar Magaldi e Simone Magaldi, companheiros de jornada há vários
anos, pelo incentivo, compreensão e respeito, substantivos essenciais para a
nutrição de uma verdadeira amizade;
- aos meus alunos e supervisionandos que com seus questionamentos me
instigam cada vez mais a buscar recursos para a difícil tarefa de compreensão da
natureza humana;
- à minha irmã Erica que, embora longe geograficamente, sempre esteve ao
meu lado;
- aos meus pacientes, que não me deixam esquecer que a dor da existência
é, ao mesmo tempo, a possibilidade de superação;
- à Dr.
a
Juliana Nonato Medeiros, por sua presteza no diagnóstico e
cuidadosa condução no tratamento daquilo que poderia ter se tornado o maior
obstáculo à finalização deste trabalho;
- ao meu orientador Prof. Dr. Luiz Felipe Pondé, por sua confiança e respeito,
o que me possibilitou liberdade no percurso;
- à Márcia Turrini Coutinho, que não me permitiu paralisar, fazendo-me,
literalmente, andar rumo à meta desejada; sua sustentação e condução foram
decisivas para a consecução de mais um passo em meu caminhar;
- a Deus, pela dádiva da vida, cuja trama tecida de encontros e desencontros,
agraciou-me com um reencontro, sem o qual este trabalho não teria sido concluído.
Deus é uma experiência universal que só
é obscurecida por um racionalismo imbecil
ou por uma teologia igualmente imbecil.
Carl Gustav Jung
A efetiva realidade é sempre irrealística.
Franz Kafka
RESUMO
Esta pesquisa aborda a melancolia religiosa e suas expressões simbólicas na
obra pictórica de Hieronymus Bosch. A partir da definição de Robert Burton,
investiga a pertinência do conceito de melancolia religiosa como descrição da
paradoxal condição humana. Percorrendo desde suas primeiras definições, na
medicina hipocrática ou na filosofia, passando pela teologia medieval, até a
psiquiatria moderna, e apoiada nos aportes da psicologia analítica de Carl Gustav
Jung, verifica que, para além de uma patologia, pode-se entendê-la como um
símbolo que expressa o processo típico da alma, um estado psíquico que marca a
dualidade da existência humana: separada de sua identidade ontológica, para se
tornar realidade no tempo e no espaço, deve-se reconhecer como um fragmento real
e não um todo irreal, deve aceitar que é criatura e não Criador. Tal processo,
ultrapassando a compreensão racional, pois significa a relação do eu com as
profundezas abissais da psique, só pode ser traduzido em imagens que vão desde o
sublime e incompreensível até o perverso e grotesco. Imagens fantásticas como as
encontradas na trama figurativa da obra bosquiana que, ademais de uma sátira ou
predicação, revela não o medo da morte ou a falta de fundamento do homem, mas a
permanente tensão eu-mundo-Deus, a angústia de viver. Este trabalho, assim,
configura-se como uma análise simbólica das pinturas de Hieronymus Bosch,
apoiado em seus comentadores, nas teorias sobre melancolia desenvolvidas ao
longo da história e no referencial junguiano, com o objetivo de identificar, nas
paisagens labirínticas bosquianas, a melancolia religiosa, característica essencial do
humano.
Palavras-chave: condição humana; Hieronymus Bosch; melancolia religiosa,
símbolo.
ABSTRACT
This research deals with religious melancholy and its symbolical expressions
in the Hieronymus Bosch’s pictorial work. Starting from Robert Burton’s definition, it
investigates the appropriateness of the concept of religious melancholy as a
description of the paradox of human condition. Going all the way from the first
definitions of the phenomenon, in the Hippocratic corpus or in philosophy, through its
presence in medieval theology, until reaching as far as modern psychiatry, it claims,
based on the categories of Carl Gustav Jung analytical psychology, that it can be
best understood as a symbol expressing the soul’s most typical process, a psychic
state representative of the duality of human existence, rather than as mere
pathology. Severed from its original ontological state of identify to become something
a being in time and space, the soul must recognize itself as fragment of what is
real rather than as an unreal whole; it must accept that it is a creature, not the
creator. This process, going as it were beyond rational grasp (since it is
representative of the relation of the “I” with the depths of the psyche), can only
translate into images, from the sublime and incomprehensible to the perverse and
grotesque. Fantastic images like the ones found in the figurative universe of Bosch’s
work, which, apart from its open satirical and pedagogical purpose, displays not the
fear of death or man’s lack of foundation, but the on-going tension between the I, the
world and Godthe angst of living. The present work is, thus, a symbolic analysis of
Hieronymus Bosch based on the many commentators of his ground-breaking body of
work, on the theoretical views on melancholy developed throughought history and
Jungian concepts, with the purpose of identifying religious melancholy in Bosch’s
labyrinthic landscapes as an essential feature of the human condition.
Keys-word: human condition; Hieronymus Bosch; religious melancholy; symbol.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1 Autoretrato. Arras Compendium. Arras, Bibliotèque Municipale. 1550.
Figura 2 A adoração dos magos. Filadélfia, Philadelphia Museum of Art. Óleo sobre
madeira, 94 x 54 cm. Detalhe.
Figura 3 Coroação de espinhos. Monasterio de San Lorenzo de El Escorial. Óleo
sobre madeira, 165 x 195 cm. Detalhe.
Figura 4 Tentações de Santo Antão. Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga. Óleo
sobre madeira, 131,5 x 119 cm. Painel central. Detalhe.
Figura 5 Tentações de Santo Antão. Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga. Óleo
sobre madeira, 131,5 x 53 cm. Painel esquerdo. Detalhe.
Figura 6 Jardim das delicias. Madrid, Museo Nacional del Prado. Óleo sobre
madeira, 187,5 x 76,5 cm. Painel esquerdo. Detalhe.
Figura 7 Filho pródigo. Rotterdam, Museum Boijmans van Beuningen. Óleo sobre
madeira, diâmetro: 71,5 cm.
Figura 8 Os três filósofos. Giorgine. Viena, Kunsthistorisches Mseum. Óleo sobre
madeira, 144 x 126 cm. Detalhe.
Figura 9 Livre des heures. Catherine de Clèves, 1440. New York, Pierpont Morgan
Library, MSM 945, fl. 168 v, 19,2 x 13,1 cm. Detalhe. In: SILVER, Larry, Bosch.
Paris: Citadelle & Mazenod, 2006, p. 346.
Figura 10 Carro de feno. Madrid, Museo Nacional del Prado. Óleo sobre madeira,
147 x 112 cm. Painéis externos.
Figura 11 Saturno e seus filhos. Berlim, Staatliche Museen Preussischer
Kulturbesitz, Kupferstichkabinett. In: KLIBANSKY, Raymond; PANOFSKY, Erwing;
SAXL, Fritz, Saturno y la melancolia. Madrid: Alianza Editorial. Figura 39.
Figura 12 Saturno e seus filhos. In: KLIBANSKY, Raymond; PANOFSKY, Erwing;
SAXL, Fritz, Saturno y la melancolia. Madrid: Alianza Editorial. Figura 40.
Figura 13 Saturno e seus filhos. Tubingen, Universitätsbibliothek, MS. Md. 2, fl.267.
In: KLIBANSKY, Raymond; PANOFSKY, Erwing; SAXL, Fritz, Saturno y la
melancolia. Madrid: Alianza Editorial. Figura 41.
Figura 14 Estudos dos deficientes ou mendigos. Viena, Graphische Sammlung
Albertina. 28,5 x 20,8 cm.
Figura 15 Estudos dos deficientes ou mendigos. Bruxelas, Bibliothèque Royale de
Belgique. Cabinet des Estampes. 26,5 x 19,9 cm.
Figura 16 Mesa dos pecados mortais. Madrid, Museo Nacional del Prado. Óleo
sobre madeira, 120 x 150 cm.
Figura 17 Extração da pedra da loucura. Madrid, Museo Nacional del Prado. Óleo
sobre madeira, 47,5 x 34,5 cm.
Figura 18 O melancólico. Diagrama de cauterização. Prescrições para a
cauterização. culo XIII. Erfurt, Wissenschaftliche Bibliothek, MS. Amplon. Q. 185,
fl. 247 v. In: KLIBANSKY, Raymond; PANOFSKY, Erwing; SAXL, Fritz, Saturno y la
melancolia. Madrid: Alianza Editorial. Figura 74.
Figura 19 Trepanação. Hans von Gersdorff, Feldbuch der Wundartznei, Strasburg,
1517. In: DIXON, Laurinda, Bosch. London: Phaidon Press Limited, 2003, p. 57.
Figura 20 Médicos consultando. Hildegard von Bingen. Causae et Curae (Physica),
Strasburg, 1533. In: DIXON, Laurinda, Bosch. London: Phaidon Press Limited, 2003,
p. 57.
Figura 21 Tabla de Cebes, Matthäus Merian, 1638. In: SCHWARTZ, Lía (ed.). Las
Sátiras de Quevedo y su recepción. Antologia crítica. Centro Virtual Cervantes,
2004. http://cvc.cervantes.es/obref/satiras_quevedo.
Figura 22 O carro de feno. Museo Nacional del Prado, Madrid. Óleo sobre madeira,
147 x 212 cm. Tríptico aberto.
Figura 23 O carro de feno. Madrid, Museo Nacional del Prado. Óleo sobre madeira,
147 x 112 cm. Tríptico fechado.
Figura 24 O jardim das delicias. Madrid, Museo Nacional del Prado. Óleo sobre
madeira, 250 x 192 cm. Tríptico fechado.
Figura 25 O jardim das delicias. Madrid, Museo Nacional del Prado. Óleo sobre
madeira. Painel central: 190 x 175 cm; painéis laterais: 187,5 x 76,5 cm. Tríptico
aberto.
Figura 26 A nau dos loucos. Paris, Musée du Louvre. Óleo sobre madeira, 57,8 x
31,9 cm.
Figura 27 Alegoria da gula. New Haven, Yale University Art Gallery. Óleo sobre
madeira, 35,8 x 31,5 cm.
Figura 28 A morte do avaro. Washington, National Gallery of Art. Óleo sobre
madeira, 93 x 30,8 cm.
Figura 29 Filho pródigo. Rotterdam, Museum Boijmans van Beuningen. Óleo sobre
madeira, diâmetro: 71,5 cm.
Figura 30 Juizo Final. Viena, Gemäldegalerie der Akademie der Bildenden Künste.
Óleo sobre madeira. Painel central: 163,7 x 127 cm, painéis laterais: 163,7 x 60 cm.
Tríptico aberto.
Figura 31 Juízo Final. Viena, Gemäldegalerie der Akademie der Bildenden nste.
Óleo sobre madeira. 163,7 x 127 cm. Tríptico fechado. São Tiago e São Bavo.
Figura 32 São João Evangelista em Patmos. Berlim, Gemäldgalerie, Staatliche
Museen. Óleo sobre madeira, 63 x 43,3 cm, cada. Reverso e Anverso.
Figura 33 São João Batista em meditação. Madrid, Museo Lázaro Galdiano. Óleo
sobre madeira, 49 x 40 cm.
Figura 34 São Jerônimo em oração. Ghent, Musée des Beux-Arts. Óleo sobre
madeira, 77 x 59 cm.
Figura 35 São Cristóvão. Rotterdam, Museum Boymans-van Beuningen. Óleo sobre
madeira, 113 x 71,5 cm.
Figura 36 Tentações de Santo Antão. Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga. Óleo
sobre madeira. Painel central: 131 x 119 cm, painéis laterais: 131 x 53 cm. Tríptico
aberto.
Figura 37 Tentações de Santo Antão. Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga. Óleo
sobre madeira, 131,5 x 119 cm. Tríptico fechado.
Figura 38 Ecce Homo. Frankfurt, Städelsches Kunstinstitut und Städische Galerie.
Óleo sobre madeira, 61 x 75 cm.
Figura 39 Cristo carregando a cruz. Ghent, Museum voor Schone Kunsten. Óleo
sobre madeira, 76,7 x 83,5 cm.
SUMÁRIO
Introdução ...................................................................................................... 14
Capítulo I: Hieronymus Bosch Pintor Insigne ................................................. 25
I. 1 Quem foi Hieronymus Bosch? ....................................................... 27
I. 2 Jheronimus van Aken e ‘s-Hertogenbosch .................................... 36
I. 3 Excessos e ambiguidades do final da Idade Média ....................... 44
I. 4 A arte de Jheronimus Bosch por seus comentadores ................... 52
Capítulo II: A melancolia: doença do corpo, enfermidade da alma ................ 70
II. 1 A patologia atrabiliar ..................................................................... 74
II. 2 A doença da alma ......................................................................... 96
II. 3 Saturno, o planeta da melancolia ............................................... 108
II. 4 A melancolia como mbolo......................................................... 123
II. 5 A melancolia religiosa ................................................................. 131
Capítulo III: O espelho do homem ................................................................ 138
III. 1 Mesa dos pecados mortais ......................................................... 152
III. 2 Extração da pedra da loucura .................................................... 157
III. 3 O Carro de feno .......................................................................... 163
III. 4 O Jardim das delícias ................................................................. 172
III. 5. O Novo tríptico ............................................................................ 182
Capítulo IV: Vozes no deserto ...................................................................... 189
IV. 1 Juízo Final .................................................................................. 191
IV. 2 O dilema dos Santos .................................................................. 195
IV. 3 Tentações de Santo Antão ......................................................... 204
IV. 4 O Salvador ................................................................................. 209
Conclusão .................................................................................................... 214
Referências .................................................................................................. 217
14
INTRODUÇÃO
Falar sobre Hieronymus Bosch (1450-1516) se constitui em uma jornada rumo
ao desconhecido; “passear” em suas paisagens labirínticas é se aventurar no
absolutamente misterioso. Suas imagens revelam ocultando e ocultam revelando.
Desfilam aos sentidos para tocarem a alma. Provocam um misto de fascinação e de
repulsa. Chocam e contrariam qualquer lógica da razão. Tecida com elementos
irracionalmente e antiorganicamente ligados, sua estranha trama “desrealiza” o real
e “realiza” o irreal. Por que abordar uma obra tão enigmática que dista quase cinco
séculos de nós?
Meu encontro com o pintor de ‘s-Hertogembosch se deu no jardim, no Jardim
das delícias, sem dúvida seu mais celebrado tríptico, em cujo painel central figura
uma dança. Uma dança que provoca vertigem, pois nos lança a uma outra realidade:
a variedade e complexidade do mundo e da alma. Não podendo ainda adentrar aos
recônditos desse Jardim, segui meu caminho na busca de compreender o
significado da dança, objeto de minha pesquisa no Mestrado
1
. Incapaz de definir o
que é a dança, inverti o sentido do percurso, isto é, substitui a pergunta “o que é?
por “a que serve?”, ou melhor, o que a dança pode proporcionar, que se trata de
uma atividade humana presente, ao longo de sua história, em todos seus momentos
solenes, alegres ou tristes nascimento, iniciação, plantio, colheita, caça, guerra,
morte. Tomei, então, as modalidades de ser no mundo sagrada e profana –, duas
situações existenciais estudadas pelo historiador das religiões Mircea Eliade (1907-
1986), e o modelo de psique proposto pelo psiquiatra e psicólogo suíço Carl Gustav
Jung (1875-1961), pois, além dos questionamentos surgidos durante minha vivência
1
Intitulado A dança da alma. A dança e o sagrado: um gesto no caminho da individuação, foi
apresentado ao Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências da Religião da PUCSP em maio
de 2000.
15
como dançarina, minha experiência, enquanto psicóloga clínica, apontava para uma
reflexão sobre o agir, pensar e sentir humanos como processos que vão além da
consciência empírica, encontrando no aspecto religioso seus matizes mais
profundos.
Durante um breve percurso sobre sua história, deparei-me com os mais
variados tipos de dança: desde o ritual de fertilidade, semelhante ao que figura no
tríptico de Bosch, até a denominada Dança Macabra, cujo tema é a morte, presente
em um longo peodo, aproximadamente do século XI ao XVIII, peodo marcado
pela guerra, morte, fome e peste. Executada nas igrejas para lembrar a loucura
oriunda do pecado ou pintada nos muros dos cemitérios, a dança macabra apontava
simultaneamente a fragilidade e vacuidade das coisas terrenas e a igualdade dos
seres humanos, mas sobretudo evidenciava a condição básica do humano: sua
limitação e finitude. Ao final desse caminho, algo mais inquietante surgiu: se ao
dançar o homem religioso das sociedades arcaicas, e mesmo pré-modernas,
harmoniza-se com os poderes cósmicos, participa e vivencia o sagrado, reitera o
tempo primordial, enfim, funda um mundo e, de forma análoga, o homem moderno
resgata a originalidade de sua existência individual ao mesmo tempo em que
penetra nas fontes profundas de significado, então o homem, desde as origens,
sente-se apartado de algo que o transcende e busca de alguma maneira unir-se a
esse algo. E quando isso acontece? Em momentos que denominamos críticos, ou
de crise, que, como a própria etimologia da palavra indica – do grego krisís, ação de
distinguir, julgar, decidir; do verbo krinó, separar, discernir –, são momentos nos
quais a ambigüidade humana se revela: o homem não é mais um, mas dual. “De um
lado, as forças biológicas voltadas em direção à perpetuação da vida, à busca de
prazeres; de outro, a consciência do sofrimento e da morte inelutável.”
2
Mortal, o
homem se desenraiza da natureza animal, pois sabe que vai morrer. E, como disse
Políbio, “se o homem fosse um, ele jamais sofreria”
3
.
Sofrimento esse experimentado quando percebemos nossa fragilidade, nossa
impermanência, nossa instabilidade, nossa finitude, enfim, quando nos deparamos
com as dificuldades da existência, quando tomamos consciência das contradições
insolúveis de nossa condição de humanos; sofrimento que o homem ocidental traduz
2
Georges MINOIS, Histoire du mal de vivre, p. 6.
3
Apud Yves HERSANT, Méllancolies, p. V.
16
como melancolia, loucura, mal de viver, fadiga de viver ou taedium vitae, tristeza,
desespero, desgosto, pessimismo, ennui, náusea, niilismo, acédia e, mais
recentemente, depressão.
4
Todavia, entre a patologia e o que é próprio da condição
humana emerge um sofrimento com o qual me deparo diariamente em minha prática
como psicoterapeuta.
Diante disso é inevitável a lembrança do Jardim. Quão tranqüila seria a vida
se pudéssemos permanecer imersos nesse Jardim de delícias! Brincar nesse lugar
de exuberante luminosidade, deleitar-se com seus enormes frutos, correr livremente
por essa paisagem, desfrutando dos seus prazeres. Será que Bosch quis
representar, tal como Thomas Morus, uma Utopia? Mas, estendendo o olhar pelo
tríptico, deparamo-nos com imagens infernalmente assustadoras, que assombram e
encantam a um tempo, figuras monstruosas sem o menor sentido, mas que nos
enlaçam, como num abraço forte, tornando-nos quase cativos, cujo movimento
frenético nos provoca vertigem. O que Bosch estaria indicando, por exemplo, com
aquele misto de homem-árvore situado no centro do painel direito? Um homem com
seu corpo oco, como um ovo quebrado, cujas pernas são galhos secos de árvore,
com o olhar que parece voltado para lugar nenhum, que tem estampada em sua
face a mais profunda dor. Que imagens contraditórias! Tão contraditórias como
nossa própria realidade de humanos: seres de natureza, encarnados, limitados e
finitos, mas, por isso mesmo, capazes de intuir o ilimitado e o infinito. Seria, então,
isso que Bosch reflete em seu quadro: um retrato do humano, sua relação com a
potência divina, seu fundamento espiritual, figurado no painel esquerdo, e com seu
destino de criatura mortal?
Mas um retrato apenas intuído, que a assombrosa multiplicidade de
imagens que nele “passeiam”, configurando uma dinâmica frenética e infernal,
misturando a serenidade das cores com elementos monstruosos, induz-nos a um
sentido que pode ser captado, pois ultrapassa a percepção visual e a conclusão
intelectual, afigurando-se uma espécie de apreensão instintiva. Esta é, aliás, a
4
Cf. Yves HERSANT, Méllancolies. Nesta obra volumosa, o autor, antes de refletir sobre a
melancolia, reflete a partir dela, deixando-a “falar” através de extratos de textos desde a Antiguidade
pagã um texto egípcio de 1850 a. C., aproximadamente até Sartre, para depois apresentar os
autores que pensaram a melancolia desde Políbio a Freud. Cf. tamm Georges MINOIS, Histoire du
mal de vivre. Estruturado de forma semelhante, nesse livro o autor percorre textos de alguns
intelectuais melancólicos para defender a idéia de que o mal de viver” é sinal do progresso do
pensamento e da consciência, portanto a “única razão de viver”.
17
característica do símbolo: não é de natureza racional, nem irracional. Porque a carga
de pressentimento e significado que lhe constitui impressiona tanto a razão quanto o
sentimento, e sua plasticidade atinge igualmente os sentidos e a intuição. Seu
caráter é impactante, pois representa o indizível de forma insuperável.
Foi assim que adentrei o ao Jardim, mas à obra bosquiana, tomando-a
como objeto de pesquisa para o doutorado. Devido ao pouco conhecimento que
temos sobre sua vida e obra, não só porque o próprio pintor não deixou nada escrito,
mas também em função do parco material bibliográfico disponível aqui no Brasil,
surgiu a necessidade de ampliarmos nossa pesquisa em Madrid, local onde se pode
melhor estudar o extraordinário mundo de Bosch, pois é no acervo do Museo del
Prado que se encontra reunida a maior coleção do mundo de uma obra
escassamente conservada. Adquirida por Felipe II, dos herdeiros de Felipe de
Guevara, essa coleção foi enviada ao Monastério de San Lorenzo del Escorial, à
Casa Real del Prado e ao Palácio Real de Alcázar. Muitos desses trabalhos estão
hoje perdidos, principalmente em função dos saques e da destruição pelo fogo
durante a Guerra de Sucessão Espanhola, entre os anos 1702-1714. Com esse
intuito, participei do Programa de Doutorado no País com Estágio no Exterior
(PDEE) em Madrid, com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES), onde todo material que fundamenta essa pesquisa foi
recolhido.
A obra de Hieronymus Bosch tem provocado as mais diversas impressões
desde 1517, um ano após sua morte. Desde então, muito se tem discutido tomando
como referências diferentes aspectos: técnicos, iconográficos, conteúdo temático e
estilo, entre outros. O pintor de ‘s-Hertogenbosch foi considerado como herege e
como cristão ortodoxo; como inventor de monstros e quimeras e como realista; como
alucinado e como pensador; como adepto de seitas e idéias esotéricas e como
pregador; como pessimista e como anedotista; como crítico social e político e como
defensor dos valores burgueses; como neurótico obsessivo e como surrealista avant
la lettre. Os comentários mais antigos apontam para suas invenções fantásticas ora
como figurações de diabos, ora como extravagâncias, disparates ou horríveis
sonhos, ora para seu caráter moral e didático, como representação das paixões e
pecados humanos. Durante o século XVII, algumas poucas considerações técnicas
foram feitas permanecendo, pom, a ideia de Bosch como inventor de “caprichos”.
18
Cada vez mais o pintor brabantino foi se tornando o protótipo do monstruoso, do
insólito e misterioso como o qualificaram autores do século XVIII, ao mesmo tempo
em que permaneceu a ideia de seus “disparates” como expressões dos vícios
humanos. Em fins do século XIX, tem início um estudo mais crítico e uma tentativa
de cronologia, pois Bosch não datou nenhum de seus quadros. Se de um lado havia
uma preocupação em mostrar o desenvolvimento artístico do pintor com base em
um aumento progressivo de realismo, por outro, afirmou-se sua característica de
autêntico artista que, como tal, não se interessava em representar a realidade, mas
sim seu próprio universo, sua predileção pelo anormal, horrível e disforme, o que
explicaria seus temas fantásticos.
Com o desenvolvimento da psicanálise de Sigmund Freud, Bosch passa a ser
visto como um “torturado psicológico” que se auto-pune por seus desejos sensuais,
ao mesmo tempo em que se converteu no “pai” de artistas surrealistas como
Tanguy, Dali ou Max Ernest. Por outro lado, a ideia de sua ortodoxia religiosa é
reforçada, acrescida tanto da crítica política como social, o faltando as
interpretações astrológica e alquímica e até mesmo a opinião de que Bosch teria
pintado os princípios da seita dos Irmãos do Espírito Livre ou dos cátaros, posições
rechaçadas pela maioria dos comentadores.
No culo XX três grandes exibições marcam as investigações da obra
bosquiana. A exposição de 1936, em Rotterdan, produziu vários trabalhos, com
destaque para Charles De Tolnay que se tornou referência no estudo da arte de
Bosch. Outra exposição importante ocorreu em 1967, em ‘s-Hertogenbosch, cujos
esforços concentraram-se na pesquisa dos arquivos da cidade e cercanias, bem
como na pesquisa técnica e simbólica. na exibição de 2001, ano de Hieronymus
Bosch na Holanda, as pesquisas se concentraram principalmente no ambiente
imediato do pintor com o objetivo de explorar os temas por ele desenvolvidos. Mais
recentemente, em maio de 2007, em ‘s-Hertogenbosch teve lugar uma segunda
conferência na qual, em continuidade às discussões científicas iniciadas em 2001,
foram abordadas as possíveis fontes das obras de Bosch.
Diante da profusão de imagens que se espalham na obra bosquiana e da
diversidade de interpretações que as acompanham, algumas inquietações emergem:
por que uma obra do final da Idade Média ainda desperta a atenção dos estudiosos?
Pelo prazer de decodificar sua “hieroglificidade”? Desvendar o “enigma” Bosch?
19
Desvelar seu mistério? Por consistir em sermões pintados? Por tratar do Mal? Ou
porque poderia conter, tomando emprestado as palavras de Merleau-Ponty, mais
que idéias, matizes de idéias, na medida em que “se instala e nos instala num
mundo cuja chave não temos”
5
? Essas questões somadas aos aspectos heréticos,
anticlericais, eróticos, alquimistas ou reformistas da obra bosquiana, como
apontaram os comentadores; aos seus monstros híbridos; à sua multiplicidade de
sentido ou ao vazio do sem-sentido; enfim, à sua natureza irreal ou sua fantástica
realidade, remete-nos à indagação: estaria Bosch refletindo sobre a condição
humana pós-queda, retratando a contingência, a insuficiência, a fragmentação, a
solidão, o exílio, enfim a condição trágica do homem decorrente da ruptura e do
afastamento de sua essência sobrenatural?
O universo bosquiano, sem vida, é inquietante: composto de elementos
religiosos, fundamentalmente cristãos, parece não refletir apenas um aspecto ideal
da religião a serviço do culto, como pode ser observado em obras de outros artistas.
Esse universo nos lança diretamente para as questões mais profundas sobre a
existência humana, o que nos remete ao tema que aqui será tratado e que desde a
tradição clássica grega tem intrigado filósofos, médicos, artistas, poetas e, mais
recentemente, psiquiatras e psicólogos de todas as correntes: a melancolia.
Nos quadros de Bosch não encontramos uma simples reprodução
iconográfica de um texto ou de uma situação social; suas imagens o são um
retrato do mundo externo, mas sim representações imediatas que se relacionam
com a percepção do mundo externo apenas indiretamente. Neste sentido,
poderíamos considerá-las como símbolos, ou seja, a melhor expressão possível de
uma realidade inexprimível e misteriosa. Embora apresente elementos morais,
satíricos e religiosos, penso que estaríamos reduzindo sua significação se a
considerarmos apenas como advertências, como sermões pintados ou como crítica
social. Uma obra que se diferencia daquela de seus antecessoresos denominados
“primitivos flamengos” bem como de seus contemporâneos, pois reflete um
pensamento sobre a existência humana. Esse foi o critério que me conduziu à
escolha da obra bosquiana como objeto de pesquisa: apesar da sua distância no
tempo, trata de uma questão intemporal.
5
MERLEAU-PONTY, Signos, p. 81.
20
A presente pesquisa, portanto, não tem como preocupação a pessoa ou a
personalidade de Hieronymus Bosch, ainda que encontremos na literatura várias
afirmações sobre sua possível neurose, loucura, ou pessimismo, ou mesmo o
provável “exorcismo” que ele teria feito, a partir da pintura, de seus próprios
demônios. Nosso objeto são as próprias pinturas que, por sua cronologia incerta,
serão agrupadas em dois temas: o espelho do homem e as vozes no deserto.
Pinturas que apresentam uma gama de elementos ambíguos que muitas vezes são
negligenciados em detrimento daqueles facilmente identificados com intenções
moralizantes e didáticas.
Ora, considerando que a obra de Bosch, um marco na história da arte bem
como da religião, como afirmam muitos estudiosos, ainda que não tenha em seus
títulos qualquer refencia à melancolia como, por exemplo, em Albrecht Dürer ou
Lucas Cranach o Velho, apresenta símbolos que nos remetem aos filhos de
Saturno”, como demonstrou Luis Peñalver Alhambra
6
; considerando, também, que
suas figuras monstruosas e grotescas revelam um mundo estranho, alheio, e que
essa perspectiva, segundo Kayser, aponta para o horror que nos assalta frente a um
mundo, o nosso mundo, “cuja segurança se nos mostra como aparência”
7
e, assim,
não se refere ao medo da morte, mas antes à angústia de viver, acredito que a obra
bosquiana, para am de satirizar ou advertir, traduz, a partir de seus símbolos, a
melancolia religiosa, revelando-se como uma profunda reflexão sobre a paradoxal
condição humana.
Nessa medida, o objetivo deste trabalho é identificar a melancolia religiosa
nos quadros do pintor brabantino e refletir sobre essa condição humana de
“privação” e de “laceração”
8
. Assim, não se configura como um estudo do ponto de
vista artístico da obra bosquiana, mas uma análise simbólica das imagens,
fundamentada na psicologia analítica de Carl Gustav Jung (1875-1961). Análise
essa possível se pensarmos que a arte, em sua manifestação, constitui em uma
atividade psicológica, isto é, enquanto processo de criação artística e não a arte em
6
Luis PEÑALVER ALHAMBRA, Los monstruos de El Bosco.
7
Wolfgang KAYSER, O grotesco, p. 159.
8
Mario Galzina diz que A melancolia é ainda a distância impreenchível entre o sujeito que deseja e
os objetos de seu desejar; nome que condensa com singular potência agregativa, experiências
distintas, mas freqüentemente entrelaçadas, de uma privação, de uma laceração.” Cf. Olgária
MATOS, O iluminismo visionário: Benjamim, leitor de Descartes e Kant, p. 84.
21
si, que pode ser objeto de considerações estético-artísticas. É preciso deixar
claro, no entanto, que o se trata de um estudo psicológico do autor, mas de uma
análise dos símbolos presentes em sua obra, entendendo símbolo como uma
imagem psíquica.
A imagem na obra de arte, de acordo com Jung, deve ser vista em seu
sentido mais amplo, isto é, devemos reconhecê-la como mbolo, pois assim ela
será passível de análise: “se não conseguirmos descobrir nela um valor simbólico,
estaremos constatando que ela nada mais significa [...] que ela é para nós nada
mais do que aquilo que aparenta”
9
. Uma imagem é simbólica “quando implica
alguma coisa além de seu significado manifesto e imediato”
10
, ou seja, ela contém
um aspecto mais amplo que nunca é definido nem totalmente explicável, porque nos
conduz a ideias que estão fora do alcance da razão. Essa imagem não é produto da
psique individual do artista, mas pertence ao patrimônio comum da humanidade,
aquela esfera da psique à qual Jung chamou de inconsciente coletivo. Assim, na
criação artística não devemos procurar pela causa, mas sim pelo sentido. Visto
como causa, estaríamos nos referindo à produção do pintor apenas como um
sintoma, algo como alguns comentadores de Bosch que insistem em apontar seus
quadros como nada mais do que reflexos de uma psique neurótica. Usar o aporte
junguiano nos possibilita ir além da determinação de sintoma, pois nessa concepção
o símbolo é produto da atividade criadora da psique.
A pintura de Bosch está além dele mesmo, além da dimensão social; ela nos
remete à nossa própria condição humana e, portanto, à dimensão arquetípica. Os
arquétipos são elementos estruturais inerentes à natureza humana. São disposições
herdadas, irrepresentáveis, que se tornam observáveis a partir dos efeitos que
geram: as imagens e os motivos arquetípicos. O arquétipo é uma virtualidade, vazio
de conteúdo, é uma forma, uma possibilidade de representação, mas não a própria
representação; adquire conteúdo e transforma-se em imagem quando encontra
um fato empírico que, ao tocar as predisposições inconscientes, infunde-lhes vida,
tornando-se um símbolo. Assim, o solo no qual nasce a obra e do qual ela se nutre
sem dúvida é importante, mas não é determinante. Como diz Jung, uma obra de arte
9
Carl Gustav JUNG, O espírito na arte e na ciência, p. 68.
10
Idem, O homem e seus símbolos, p. 20.
22
“não é apenas produto ou derivado, mas uma reorganização criativa justamente
daquelas condições das quais uma psicologia causalista queria derivá-la”
11
.
É necessário precisar, também, que uma expressão simbólica pode ser
explicada a partir de uma perspectiva histórica, filosófica, social, cultural, religiosa e
psicológica, e, portanto, uma compreensão exaustiva seria alcançada se
utilizássemos métodos adequados a essas perspectivas. Todavia, cientes de nossa
limitação, abordaremos o símbolo considerando seu aspecto psicológico, pois o
estamos tomando, juntamente com Jung, como expressão de uma situação psíquica
total, que inclui fatores conscientes e inconscientes, racionais e irracionais, ou seja,
como uma imagem cujo sentido manifesto nos remete a um sentido oculto. Dessa
forma, recorreremos aos conceitos desenvolvidos por Jung bem como ao modelo de
psique por ele proposto.
Poder-se-ia objetar que uma análise simbólica a partir de uma perspectiva
psicológica é anacrônica. Porém, o homem sempre teve uma psique, uma alma que
se manifesta em atitudes, ações, pensamentos e sentimentos. Para Jung, que
considerou os símbolos religiosos como de fundamental importância para a psique,
cuja função básica é religiosa, fazer qualquer afirmação sobre a entidade divina
seria uma transgressão dos limites da ciência. Não se preocupava com a natureza
de Deus, pois sobre isso nada poderia ser dito a partir da ciência, mas sim com a
imagem de Deus impressa na psique humana. Portanto, uma análise simbólica
permite-nos uma aproximação das imagens que aqui nos remetem às questões
fundantes da alma humana, sua origem e destino, da trajetória melancólica de um
ser que reflete sobre sua condição e busca uma compreensão da sua presença na
vida, um significado para sua existência. Diante de tal realidade, entendemos que
um estudo mais aprofundado da obra de Bosch é de grande importância para as
Ciências da Religião, dado que, além de contribuir para um maior conhecimento
sobre a condição humana, acreditamos que o pensamento religioso, presente nas
imagens de seus quadros, funciona de forma crítica não só à sua época, mas,
devido ao seu caráter simbólico, é intemporal, reafirmando, assim, a religião como
noesis. Esperamos também contribuir, com esta pesquisa, para a ampliação do
conhecimento da obra bosquiana, dada a escassez de material, apontada
11
Carl Gustav JUNG, O espírito na arte e na ciência, p. 60.
23
anteriormente, bem como com o resgate do conceito de melancolia na sua relação
com a religião.
Essa tese está estrutura em quatro capítulos. No primeiro capítulo, teremos
ocasião de conhecer alguns dados da vida e obra de Hieronymus Bosch, que nos
fornecem as pesquisas recentes nos arquivos de sua cidade natal, ‘s-
Hertogenbosch, bem como nos registros das contas da Confraria de Nossa Senhora,
instituição à qual pertenceu o pintor. Também será abordado o momento histórico,
social e cultural da cidade sem esquecer, no entanto, do contexto mais amplo: o
período de crise do final da Idade Média. Serão ressaltadas as interpretações de
seus comentadores numa tentativa de nos aproximarmos de sua obra tão
enigmática quanto complexa.
O capítulo II percorrerá brevemente a história do termo melancolia, tomando
como base algumas referências não do seu campo de origem, a medicina
hipocrática, no qual foi cunhado, mas dos outros domínios, como a filosofia, a
teologia, a astrologia, a psiquiatria moderna e a psicologia, que se ocupam deste
tema tão ambivalente quanto díspar, com o objetivo de compreender a melancolia
religiosa que, segundo nossa hipótese, estaria retratada na obra bosquiana. Para
tanto, serão utilizados alguns textos originais desses vários campos do
conhecimento, cujos fragmentos estão reunidos nas antologias de Yves Hersant e
Patrick Dandrey, além das obras clássicas no estudo do tema: Saturno y la
melancolia, de Klibansky, Panofski e Saxl, e The anatomy of melancholy, de Robert
Burton, base para nossa reflexão, que pode ser atualizada a partir das
considerações da psicologia analítica de Carl Gustav Jung.
A seguir, penetraremos no universo de Bosch. Um universo repleto de
símbolos que, vistos em seus detalhes ou em sua globalidade, conduzem-nos a
caminhos ao mesmo tempo tão familiares quanto inquietantes, pois refletem, tal qual
um espelho, a condição de encarnação do ser, a marca da ruptura necessária para a
construção da aliança sagrada, o mistério da vida e da morte. Sob o enfoque
simbólico, veremos como se delineia a experiência da melancolia religiosa como
característica essencial da condição humana. Como nosso objetivo não é
estabelecer um catálogo da obra, a sequência adotada não se baseia em uma
possível cronologia, aliás, bastante divergente entre os especialistas, que Bosch
não datou nenhum de seus quadros. Só a título de curiosidade, é suficiente assinalar
24
que os historiadores da arte utilizaram diferentes métodos para tentar ordenar as
pinturas bosquianas: iconográfico, formal, estilístico, a partir da concepção da
paisagem e, mais recentemente, com o uso de técnicas laboratoriais, como raios-x,
reflectografia infra-vermelha e o estudo dendrocronológico, o que possibilitou
constatar, por exemplo, que Coroação de espinhos (Escorial) e Bodas de Canaã
(Rotterdan) não podem ter sido pintadas por Bosch, já que a madeira que lhes serviu
de suporte é de um período posterior à sua morte.
12
Assim, como nosso interesse é
uma análise simbólica das imagens, escolhemos alguns quadros que, em nossa
opinião, expressam a questão que norteia toda a obra do pintor brabantino: em que
consiste a vida e o destino humanos?
Dessa maneira, no capítulo III serão abordadas: Mesa dos pecados mortais
(Prado), Extração da pedra da loucura (Prado), Carro de feno (Prado), Jardim das
delícias (Prado) e o Novo tríptico que, sabemos hoje, foi composto por Nau dos
loucos (Louvre), Alegoria da gula (New Haven), Morte do avaro (Washington) e Filho
pródigo (Rotterdan), verdadeiros espelhos do homem. Enquanto no capítulo IV,
veremos a dor, experimentada na carne, frente à esmagadora e paradoxal realidade
do mistério da vida nas imagens do Juízo Final (Viena), no dilema dos santos São
João Evangelista em Patmos (Berlim), São João Batista em meditação (Madrid), São
Jerônimo em oração (Ganthe); São Cristóvão (Rotterdan), Tentações de Santo
Antão (Lisboa), e em Ecce Homo (Frankfurt) e Cristo carregando a cruz (Ganthe).
Concluindo, poderemos dizer então, que as imagens bosquianas, entre o
grotesco e o sublime, apontam a paradoxalidade da condição humana, que só
adquire significado na experiência encarnada, na materialidade do corpo, cuja
existência é sustentada pela imaterialidade da alma, revelando, assim, o processo
típico da alma humana, o caráter melancólico da existência presente em sua obra.
12
O trabalho mais recente sobre a cronologia da obra bosquiana que conhecemos é o de Fredéric
ELSIG, Jheronimus Bosch. La question de la chronologie. Genève: Droz, 2004. Este livro é uma
versão da tese de doutorado defendida na Universidade de Genève em fevereiro de 2003. O autor,
considerando todos os anteriores, propõe um novo critério utilizando os resultados
dendrocronológicos, a documentação que se tem sobre a procedência da obra e o possível cliente
que a encomendou, e a iconografia. Depois desta análise, que o autor denomina de externa, segue
uma interna, na qual é estabelecida uma seqüência dos diferentes grupos estilísticos e interpretado, a
partir da evolução dos componentes culturais, o percurso do artista.
25
CAPÍTULO I
HIERONYMUS BOSCH PINTOR INSIGNE
Obitus fratum: Anno 1516, Hieronimus Aquen, alias Bosch, insignis pictor.
Em 8 de agosto de 1516, na Capela da Confraria de Nossa Senhora, em ‘s-
Hertogenbosch, foram celebradas as exéquias de Hieronymus Bosch, presididas
pelo decano da Confraria, Pe. Willem Hameker, assistido pelo diácono e
subdiácono, por um organista, coristas e cantores. Os gastos do funeral e as
doações aos pobres foram pagos por seus amigos, como era costume na época.
Com esses dados, registrados no livro de contas da Confraria
1
, de 1516-1517, têm
fim as poucas referências documentais sobre a vida do pintor brabantino que nos
deixou apenas um rastro, seu verdadeiro mistério: sua própria obra.
Uma obra que não pode ser vista como fruto de uma mente perturbada, como
dizem alguns comentadores, ou como forma de exorcismo de seus demônios. A
neurose não cria a arte e não é por ela criada. Por outro lado, também não podemos
qualificar uma obra de arte como uma representação iconográfica de algum texto ou
situação social, pois, dessa forma, reduziríamos o universo simbólico da obra de arte
a predicações ou sátiras pintadas. E, além disso, como explicaríamos a inquietação
1
Cf. principalmente G.C.M. van DIJCK, Hieronymus van Aken / Hieronymus Bosch: His life and
‘portraits’. In: Jos KOLDEWEIJ, Bernard VERMET (ed), Hieronymus Bosch. New insights into his life
and work, p. 14; Mia CINOTTI, La obra pictórica completa de El Bosco, p. 85. Como a única
referência que temos em língua portuguesa é Walter BOSING, Bosch, todas as citações deste
trabalho, que estão em espanhol, francês e inglês, foram traduzidas por esta autora.
26
e o assombro que ela despertou, e desperta ahoje, como nos testemunho o
sem número de escritos, entre estudos, artigos e livros, a seu respeito
2
?
Da mesma forma que uma planta não é simples produto do solo do qual ela
brota, ainda que dele se nutra, a obra de arte não pode ser considerada nem como
produto exclusivo da subjetividade de seu autor, nem como mero retrato do mundo
no qual ele vive. Antes, a obra de arte, cujo alicerce se encontra na alma da
humanidade, exprime o que é inexprimível de uma dada época. Como diz Román
de la Calle, a arte “catalisa em si, por sua natureza bifronte, tanto as possíveis crisis
humanas como as eventuais crisis históricas, com assombrosa pontualidade”
3
.
Neste sentido, se pretendemos uma aproximação ao universo simbólico
bosquiano, não basta um estudo das formas, que pode nos conduzir apenas ao
estilo de um artista, que as formas expressam objetos e eventos de uma
determinada época. Assim, por exemplo, sabermos que as faces rústicas e os
gestos dos torturadores no Ecce Homo aproximam esse quadro de Bosch às
iluminuras holandesas, anteriores a ele
4
, nada nos diz sobre os conceitos ou temas
específicos ligados a esses motivos, isto é, quais imagens, estórias ou alegorias
estão sendo por eles expressas. Dito de outro modo, é necessário estarmos
familiarizados com o tema da Paixão de Cristo, transmitido através de fontes
literárias, neste caso, da literatura bíblica, para que possamos afirmar que Ecce
Homo trata do julgamento e apresentação de Cristo ao povo. Mas que atitude
religiosa esta pintura manifesta? Uma atitude ortodoxa ou herética? Ou seja, não
podemos esperar encontrar em um texto os “princípios subjacentes que revelam a
atitude básica de uma nação, de um peodo, classe social, crença religiosa ou
filosófica qualificados por uma personalidade e condensados numa obra”
5
.
Podemos afirmar que foram as palavras de João 19,5 (E Pilatos lhes disse: Eis aqui
2
Só na Biblioteca do Museo del Prado, de Madrid, pode-se encontrar cerca de 160 títulos, entre livros
e artigos dedicados diretamente ao estudo da obra bosquiana, tanto em língua espanhola, inglesa,
francesa ou alemã, e outros tantos que dela tratam indiretamente. Tamm a bibliografia do catálogo
da exposição de 1967, ocorrida em ‘s-Hertogenbosch, colhida por H.M.F.M.C. Van Cripen, apresenta
cerca de 500 títulos publicados a partir de 1858 relacionados direta ou indiretamente ao pintor: livros,
artigos e catálogos tanto em alemão, espanhol, inglês, francês, italiano, holandês e russo.
3
Apud Luis PEÑALVER ALHAMBRA, Los monstruos de El Bosco, p. 239.
4
Cf. Walter BOSING, Bosch, p. 18-9.
5
Erwin PANOFSKY, Significado nas artes visuais, p. 52.
27
o homem) que levaram Bosch a pintar Ecce Homo? Além disso, qual o sentido desta
imagem para aquele momento?
É necessário, pois, dispormos de algumas referências que nos possam
revelar o solo no qual a obra bosquiana floresceu. Sabermos quem foi Hieronymus
Bosch, em que ambiente social e cultural viveu, quais as tendências espirituais de
seu tempo e as possíveis influências que recebeu, o que dizem os comentadores e
críticos de sua obra, são dados que nos podem auxiliar a avançar na compreensão
de sua pintura e favorecer o entendimento da obra à luz do pressuposto de ser ela
uma atualização e uma modalidade própria e original de manifestação de potências
humanas universais. É desta forma, portanto, que se configura este capítulo.
I.1 QUEM FOI HIERONYMUS BOSCH?
As descrições dos primeiros biógrafos Felipe de Guevara (1560),
Lampsonius (1572) e Karel Van Mander (1604) dão a impressão de uma
personalidade envolta em lenda, ainda que Bosch fora muito estimado por seus
contemporâneos insignis pictor, como aparece por ocasião de sua morte
provavelmente não só por sua arte, mas também como cidadão e confrade jurado da
Confraria de Nossa Senhora de ‘s-Hertogenbosch. Foi necessário, no entanto,
esperar por Carl Justi (1889) para que esses escassos dados fossem corrigidos e
complementados. Contudo, um estudo mais fundamentado foi realizado no
século XX, com J. Mosman (1931, 1947, 1950), M. J. Ebeling (1948), F. W. Smulders
(1955, 1957, 1959), arquivistas brabantinos que, segundo Pe. Gerlach (1968)
6
,
tiveram muitos méritos, mas o responsáveis, ao mesmo tempo, pelas inexatidões
de muitas informações sobre Bosch que temos hoje, porque tomaram como
referência a obra do arquivista bruxelense A. Pinchart, de 1860, que, por sua vez,
utilizou os apontamentos fornecidos pelo arquivista de Bois-le-Duc (versão francesa
de ‘s-Hertogenbosch), M. van Zuijen. Entre os trabalhos biográficos encontramos
também Mia Cinotti (1968), que estabelece uma cronologia documentada sobre o
pintor, bem como Roger Marijnissen (1987), que recolhe não dados biográficos,
mas também sumariza as várias interpretações dadas por diferentes autores, ao
6
GERLACH, Pe., Les sources pour l’étude de la vie de Jérome Bosch, Gazette des Beaux Arts, p.
100-16.
28
longo dos séculos, à obra de Bosch.
7
Pom, graças à extensa pesquisa realizada
pelo historiador C.G.M. Van Dijck
8
, diretamente nos arquivos da cidade de ‘s-
Hertogenbosch e nos registros e contas da Confraria de Nossa Senhora, e a Ester
Vink
9
, historiadora e medievalista que investigou os arquivos de várias cidades dos
Países Baixos, entre elas ‘s-Hertogenbosch, dispomos hoje de dados mais seguros
referentes à vida do pintor, embora nos permitam não mais que algumas
inferências.
O mistério está presente ao redor de seu nome: Jeroen van Aken, Jeroen
Bosch ou Hieronymus Bosch, como frequentemente aparece na literatura,
principalmente de língua inglesa? Nenhum deles está citado seja nos documentos
de ‘s-Hertogenbosch ou nos da Confraria de Nossa Senhora. Segundo van Dijck, em
tais documentos encontramos: Jheronimus, 36 vezes e Joen, 9 vezes; enquanto
Jeroen apenas 2 vezes. Entre 1511 e 1516, o nome latino Jheronimus aparece
numa forma derivada como Jheronimo, ainda que o contexto seja holandês,
havendo também uma menção como Jheronimi. Para Dijck, seu nome oficial era
Jheronimus van Aken, como mostra um registro da Confraria de 1509-1510:
“Jheronimus van Aken, scilder ofte maelder, die hem selver scrift Jheronimus Bosch”
(Jheronimus van Aken, pintor, que assina ele próprio Jheronimus Bosch)
10
, nome
esse escolhido por seus pais provavelmente em função da afeição pelo santo, pois
parece não ter sido usado antes nem na família materna, nem na paterna. E, de fato,
São Jerônimo alcançou grande popularidade nos séculos XV e XVI, graças ao
7
Mia CINOTTI, La obra pictórica completa de El Bosco, obra na qual o autor apresenta não só dados
biográficos, mas também uma lista das diferentes interpretações dadas à obra bosquiana até 1965.
Roger H. MARIJNISSEN, Hieronymus Bosch: the complete works. Neste livro, escrito com a
colaboração de Peter RUYFFELAERE, o autor faz o que ele denomina de exegese do enigma
Bosch”, desde Felipe de Guevara (1560) até Paul Vandenbroeck (1986) (cf. p. 23-47).
8
G. C. M. van Dijck, historiador e musicólogo, doutor pela universidade de Utrecht em 1973 com a
tese sobre a Ilustre Confraria de Nossa Senhora, investigou os registros de negócios envolvendo o
patrimônio real bem como outras transações nos arquivos da Prefeitura de ‘s-Hertogenbosch,
documentos conhecidos nos círculos arquivistas como “Protocolo Bosch” que es preservado no
Velho Arquivo dos Arquivos Municipais de ‘s-Hertogenbosch. Tamm pesquisou os documentos da
Confraria de Nossa Senhora que foram entregues aos cuidados dos Arquivos do Estado do Norte de
Brabante em ‘s-Hertogenbosch. Cf. G.C.M. VAN DIJCK, Hieronymus van Aken / Hieronymus Bosch:
his life and ‘portraits’. In: Jos KOLDEWEIJ, Bernard VERMET (ed), Hieronymus Bosch. New insights
into his life and work, p. 9-16.
9
Ester VINK, Hieronymus Bosch’s life in ‘s-Hertogenbosch. In: Jos KOLDEWEIJ, Bernard VERMET
(ed), Hieronymus Bosch. New insights into his life and work, p. 19-23.
10
Apud Ester VINK, Hieronymus Bosch’s life in ‘s-Hertogenbosch. In: Jos KOLDEWEIJ, Bernard
VERMET (ed), Hieronymus Bosch. New insights into his life and work, p. 19, nota 6. A autora
compartilha com a opinião de van Dijck.
29
movimento conhecido como Devotio Moderna. Foi adotado como santo padroeiro
dos Irmãos de Vida Comum, que se tornaram conhecidos como jeronimitas, e
fundaram uma casa em ‘s-Hertongenbosch em 1424, não muito distante de onde
Bosch nasceu. Também um altar a ele foi construído em 1459 na Igreja de São
João, em ‘s-Hertogenbosch. Outra referência é um documento que se conserva nos
Arquivos do Norte, em Lille (Ducado de Borgonha), de 1504, no qual está registrada
uma encomenda, da qual nada mais se sabe, feita pelo então Duque, Felipe o Belo:
“um grande quadro pintado de 9 pés de altura e 11 pés de largura [2,915m por
3,565m] onde deve aparecer o julgamento de Deus, quer dizer, o Paraíso e o
Inferno, a Jheronnimus Van aeken dit Bosch paintre
11
. E é dessa forma que
encontramos nos poucos trabalhos que assinou, como, por exemplo, nos trípticos
Carro de feno e A adoração dos magos, ambos do Museo del Prado, em Madrid.
Assim, essa seria uma das maneiras de se avaliar a autenticidade de uma obra sua:
se houver alguma inconsistência no nome trata-se de uma cópia, pois sempre
assinava Jheronimus, com Jh e i ao invés de y, embora o número de cópias ou
falsificações seja extenso.
Bosch não foi o primeiro artista de ‘s-Hertogenbosch a adotar o nome da
cidade como sobrenome, nem foi o último: Wilhelmus de Buskoducis (William de ‘s-
Hertogenbosch) (1373); Michel de Bois-le-Duc, o joalheiro Arian de Bosleduc (1468);
Johaanes Bell de Buscoducis (1480) e muitos outros, inclusive um número de
escultores, ativos na metade do século XVI na Espanha, adotaram o nome De
Bolduque. Um contemporâneo de Jheronimus, o arquiteto e gravurista Alart
Duhameel
12
(1449? - 1507), adotou também o nome da cidade em estampas que ele
produziu durante o tempo em que esteve em ‘s-Hertogenbosch (aproximadamente
entre 1478 e 1494-1495) a serviço na construção da Igreja de São João. Ele deve
ter tido algum relacionamento profissional com Jheronimus, pois algumas de suas
estampas mostram claramente sua familiaridade com o trabalho do pintor. Uma
segunda referência é, até agora, um pintor anônimo cujo estampa Job Consoled by
11
Arquivos departamentais do Norte em Lille, Tribunal de Contas. Cf. Monique Van SCHOUTE-
VERBOONEN, Biografia de El Bosco. In: Carmen GARRIDO; Roger Van SCHOUTE, El Bosco en el
Museo del Prado. Estudio técnico, p. 205-10.
12
Seu nome aparece pela primeira vez em um contrato assinado com a Igreja de São João de ‘s-
Hertogenbosch em 19 de outubro de 1478. Nesse mesmo ano, ele ingressou na Confraria de Nossa
Senhora.
30
Musicians tem sido vinculada a Jheronimus Bosch. Segundo Koldeweij
13
, trata-se do
monogramista Michiel van Gemert que também trabalhou em ‘s-Hertogenbosch
como um mestre em prata. Finalmente, são mencionados os pintores Aert e Gielis
van den Bossche apelidado (van) Panhedel. Gielis aparece nas contas da Confraria
de Nossa Senhora de 1521-1523 em conexão com os volantes que ele pintou para
um altar, nos quais Jheronimus Bosch trabalhara anteriormente. Mais tarde (1545-
1546), uma outra referência como “Gielis van den Bossche tot Bruessel
woenende” (Gielis van den Bossche, residente em Bruxelas). O fato de Bosch
também ter tomado o nome de sua cidade natal leva Koldeweij a supor que era
conhecido além dos muros da cidade.
Nos dias de Bosch, o nome van Aken era muito comum devido ao influxo de
imigrantes de Aachen, cidade da Alemanha, próxima à Colônia.
14
É possível, então,
que sua família seja originária desta região, pois os arquivos da cidade registram a
chegada de um forasteiro, em 1426, cujo nome aparece com certa regularidade em
documentos locais durante os seguintes 25 anos: Jan Van Aken, avô de Bosch
15
.
Seu nome também aparece nos livros de contas da Confraria de Nossa Senhora,
inscrito como membro em 1430-1431 e relacionado a trabalhos de restauração ou
de pintura e um projeto de trajes destinados aos membros da Confraria.
16
Porém, há
dados de que teria se estabelecido primeiro em Nijmegen, antes de chegar à ‘s-
Hertogenbosch em meados do século XIV.
17
Alguns comentadores apontam que foi graças ao seu casamento que Bosch
pôde alcançar uma vida econômica confortável. Porém, parece que sua família
desfrutava de uma boa posição. Seu pai, Anthonius van Aken, em 1462, comprou
uma casa de pedra, com quintal e jardim, na Praça Central de ‘s-Hertogenbosch ou
Praça do Mercado. Em uma época em que a maioria das casas era de madeira, isso
13
Cf. Jos KOLDEWEIJ, Hieronymus Bosch and his city. In: Jos KOLDEWEIJ; Paul
VANDENBROECKl; Bernard VERMET (ed), Hieronymus Bosch. The complete paintings and
drawings, p. 23-4.
14
Apud Lynda HARRIS, The secret heresy of Hieronymus Bosch, p. 71. Cf. também Ester VINK,
Hieronymus Bosch’s life in ‘s-Hertogenbosch. In: Jos KOLDEWEIJ, Bernard VERMET (ed),
Hieronymus Bosch. New insights into his life and work, p. 19.
15
Cf. Ton W. FRENKEN, El Bosco, pintor insigne, Goya, n. 83, p. 273.
16
Cf. Monique Van SCHOUTE-VERBOONEN, Biografia de El Bosco. In: Carmen GARRIDO; Roger
Van SCHOUTE, El Bosco en el Museo del Prado. Estudio técnico, p. 207.
17
Cf. Ester VINK, Hieronymus Bosch’s life in ‘s-Hertogenbosch. In: Jos KOLDEWEIJ; Bernard
VERMET (ed), Hieronymus Bosch. New insights into his life and work, p. 19.
31
mostra que a família dispunha de uma situação econômica diferenciada. Há também
um documento nos arquivos da cidade, de 5 de abril de 1474, no qual aparece o
nome de Anthonius e de seus quatro filhos Goossen, Jan, Jheronimus e Katherijn
referente a um arrendamento de terra. Aliás, é a primeira vez que aparece o nome
Jheronimus.
Sobre sua educação não se tem nenhum registro. É possível que tenha
freqüentado a escola de Latim em ‘s-Hertogenbosch. É muito provável que Bosch
tenha aprendido os aspectos técnicos e artísticos de sua pintura no atelier da
família, que não referências de que em sua cidade natal houvesse alguma
associação de pintores. Além de seu avô e de três tios pintores, seu pai aparece nos
registros da cidade, de 1474-1476, como den maelre, o pintor, bem como nos da
Confraria de Nossa Senhora, de 1465-1466, com relação a uma restauração das
portas de um retábulo danificado por um incêndio. Anthonius morreu em fins de
1480, quando era o encarregado do atelier da família.
18
Geralmente é aceito que Bosch tenha nascido em 1450, ainda que não haja
nenhuma evidência conclusiva para isso; há sim uma evidência circunstancial: ele foi
mencionado pela primeira vez como uma pessoa legalmente constituída no
documento de 1474, acima mencionado. Como acreditam os historiadores, uma
pessoa era considerada adulta, naquela época, quando contasse 24 anos e,
portanto, Bosch teria no mínimo essa idade, tendo nascido, assim, em 1450.
Contudo, como seu pai também está representado no mesmo documento, uma
dúvida se realmente ele já teria essa idade.
19
Sobre a juventude de Bosch se pode dizer pouco: depois do documento de
1474, não nenhum registro até 3 de janeiro de 1481
20
, no qual é citado pela
primeira vez como pintor. Trata-se da cessão em favor de um de seus irmãos,
Goossen, de uma propriedade situada na Praça Central de ‘s-Hertogenbosch,
sendo, portanto, de disposições relativas à herança de seu pai. O fato de estar
18
Cf. Monique Van SCHOUTE-VERBOONEN, Biografia de El Bosco. In: Carmen GARRIDO; Roger
Van SCHOUTE, El Bosco en el Museo del Prado. Estudio técnico, p. 205.
19
Cf. C.G.M. VAN DIJCK, Hieronymus van Aken / Hieronymus Bosch: his life and portraits. In: Jos
KOLDEWEIJ; Bernard VERMET (ed), Hieronymus Bosch. New insights into his life and work, p. 10.
20
Para Ester Vink, Jheronimus Bosch seria uma pessoa legalmente constituída nesta data e, desta
forma, não teria nascido antes de 1457. Cf. Ester VINK, Hieronymus Bosch’s life in ‘s-Hertogenbosch.
In: Jos KOLDEWEIJ, Bernard VERMET (ed), Hieronymus Bosch. New insights into his life and work,
p. 20.
32
ausente dos arquivos existentes deste período, provavelmente entre seus 24 e 31
anos, leva os pesquisadores a supor que pudesse ter estado fora da cidade. Sabe-
se, porém, que ele não estudou na Universidade de Colônia ou de Louvain nesta
época, pois, do contrário, teria sido documentado ou claramente mencionado. É
possível que tenha estado trabalhando com seu pai no atelier da família ou, ainda
que não haja certeza absoluta, Bosch poderia ter ido para o exterior. Uma evidência
plausível de que ele poderia ter permanecido fora do país, inclusive, é o registro nos
arquivos municipais de 26 de julho de 1474 que se refere a um empréstimo. Se ele
morava com seus pais, por que precisaria de dinheiro?
21
Brans
22
afirma que Bosch,
por volta de 1474, visitou Amberes, Louvain, Bruxelas e Gante, onde teria visto as
grandes criações dos primitivos flamengos e aprendido sobre a arte da composição
e a técnica das cores preparadas com óleo. Porém, não há nenhuma evidência
desta viagem e, como veremos, o estilo de Bosch difere de seus antecessores.
Existe uma discussão acerca da possível visita de Bosch à Itália, pois além da
lacuna documental apresentada anteriormente outra que particularmente chama
a atenção dos estudiosos: entre 1499 e 1503-04, pois esse período termina com o
contrato mais importante da vida do artista o retábulo encomendado por Felipe o
Belo, citado anteriormente. O historiador da arte Bernard Aikema
23
, especialista no
Renascimento Italiano e Barroco, considera dois motivos principais que apontam
para a possível estada de Jheronimus na Itália, mais especificamente na região de
Veneza: o primeiro, de acordo com uma fonte do início do século XVI, é que a
coleção do Cardeal Domenico Grimani (1461 1523) continha três trabalhos do
pintor brabantino; o segundo é a presença de três pinturas de Bosch no Palácio
Ducal de Veneza o tríptico Mártir crucificada, o tríptico Santos eremitas, e quatro
painéis que são usualmente descritos como Visões do outro mundo –, que se
acredita ter pertencido à coleção de Grimani, embora o sejam provavelmente
idênticos aos trabalhos descritos na fonte mencionada, cujos temas parecem não
concordar. Aikema se indaga então como Grimani teria adquirido as pinturas, ou se
haveria razão para Bosch ter viajado à Itália, ou ainda, se isso fosse verdade,
21
Cf. C.G.M. van DIJCK, Hieronymus van Aken / Hieronymus Bosch: his life and portraits. In: Jos
KOLDEWEIJ; Bernard VERMET (ed), Hieronymus Bosch. New insights into his life and work, p. 11.
22
Cf. J.V.L.BRANS, Hieronymus Bosch (El Bosco) en el Prado y en el Escorial, p. 9.
23
Hieronymus Boshc and Italy? In: Jos KOLDEWEIJ; Bernard VERMET (ed), Hieronymus Bosch.
New insights into his life and work, p. 25-31.
33
traços italianos na obra de Bosch ou seu próprio trabalho interferiu na pintura
italiana? Para tentar responder a estas perguntas, o autor considera o manuscrito do
veneziano Marcantonio Michiel Notizia d’opere del disegno no qual estão
descritas as importantes coleções de arte e alguns dos maiores trabalhos de arte
públicos do norte da Itália visitados por esse autor nas primeiras décadas do século
XVI. Contudo, depois de examinar as colocações, tanto deste manuscrito como de
rastrear outras evidências, Aikema mantém a posição de que é pouco provável que
Bosch tenha estado na Itália e que a relação entre ele e “o norte da Itália
renascentista foi apenas insignificante e indireta”.
Jheronimus Bosch casou-se com Aleyt Goyarts van den Meervenne, oriunda
de uma família muito próspera, não antes de 1476-77, período em que ela aparece
como solteira em várias transações imobiliárias. Sua herança consistiu de várias
propriedades na cidade e arredores. Bosch aparece pela primeira vez como seu
marido em 1481, em um documento referente a um litígio que ela teve com seu
irmão. Depois disso, os dois estão citados juntos nos vários registros de transações
imobiliárias, de venda ou herança. Não referências de que tenham tido filhos. A
partir de 1492, o nome de Aleyt não figura junto ao de seu marido porque os
documentos agora não mais se referem aos bens, mas a uma compra de madeira
(1494), uma cobrança de crédito (1498) e um imposto de guerra (1507-1508), que
Bosch assinou sozinho. Aleyt morreu seis anos depois de seu marido, entre outubro
de 1522 e julho de 1523. Os gastos com o funeral de Aleyt estão registrados nos
livros de contas da Confraria de Nossa Senhora, de 1522-1523, à qual pertencia
antes de seu casamento.
24
24
Os documentos referidos datam de 11 de abril de 1482, 3 de janeiro e 21 de março de 1483, 29 de
dezembro de 1487, 1 de outubro de 1488, 7 de fevereiro de 1492, todos referentes a pequenos
negócios, envolvendo as propriedades herdadas por Aleyd, registrados no cartório de ‘s-
Hertogenbosch. Cf. Monique van SCHOUTE-VERBOONEN, Biografia de El Bosco. In: Carmen
GARRIDO; Roger van SCHOUTE, El Bosco en el Museo del Prado. Estudio cnico, p. 206; C.G.M.
Van DIJCK, Hieronymus van Aken / Hieronymus Bosch: his life and portraits. In: Jos KOLDEWEIJ;
Bernard VERMET (ed), Hieronymus Bosch. New insights into his life and work, p. 14; Isidro B.
TORVISO; Fernando MARÍAS, Bosch. Realidad, símbolo y fantasia, p. 50.
34
Alguns schorlars acreditam que a figura que aparece no Arras Compendium
25
(fig.1) seja um retrato de Bosch.
26
Outros pensam que o próprio pintor teria se auto-
retratado em seus quadros: no A adoração dos magos, de Filadélfia, um dos reis
com uma espécie de relicário na mão direita (fig.2); no Coroação de espinhos, do
Escorial, o homem que está no canto superior esquerdo, de cabelo encaracolado
(fig.3); a estranha figura com cabeça e pernas, do tríptico Tentações de Santo
Antão, de Lisboa, que está sobre a escada olhando diretamente para o santo (fig.4),
ou um dos homens que auxiliam o santo no painel esquerdo do mesmo tríptico
(fig.5); o homem árvore do Jardim das delícias (fig.6); a personagem principal de
Filho pródigo, de Rotterdan (fig.7). quem diga que Os três filósofos de Giorgine
(fig.8) seriam: o da esquerda, um jovem grego, o próprio Giorgine; o do meio,
Jheronimus Bosch, como um sábio do Zoroatrismo persa; e o da direita, um
sacerdote egípcio, seria Leonardo da Vinci.
27
Fig. 1. Autoretrato. Arras Compendium. Fig. 2. A adoração dos magos.
Filadélfia. Detalhe.
25
Uma coleção de 275 desenhos de famosos artistas compilados por Jacques Le Bouc, publicada
sob o título Recueil d’Arras, em 1560. Este retrato foi copiado por Hieronymus Cock, ao qual
Lampsonius acrescentou um poema em latim (veja abaixo, p. 54) e publicou em 1572. Cf. nota 74 e
75. Cf. principalmente Van DIJCK, Hieronymus van Aken / Hieronymus Bosch: his life and portraits.
In: Jos KOLDEWEIJ; Bernard VERMET (ed), Hieronymus Bosch. New insights into his life and work,
p. 15; Mia CINOTTI, La obra pictórica completa de El Bosco, p. 85 ; Marcelle GAUFFRETEAU-SÉVY,
Hieronymus Bosch “el Bosco, p. 19-20.
26
Para Plokker, “o desenho de Arras não é um retrato nem um auto-retrato de Bosch [...] [pois]
nenhum dos autores do século XVI que falam do pintor Guevara, Guicciardini, Vasari, De Molina,
Lomazzo mencionam um retrato ou auto-retrato do artista”. J. H. PLOKKER, Jèrôme Bosch et sa
vision du monde. In: Roger H. MARIJNISSEN, Jheronimus Bosch, p. 191.
27
Cf. Lynda HARRIS, The secret heresy of Hieronymus Bosch, figura 12.
35
Fig. 3. Coroação de espinhos. Monastério del Escorial. Fig. 4. Tentações de Santo Antão.
Painel Central. Lisboa. Detalhe.
Fig. 5. Tentações de Santo Antão. Painel esquerdo. Fig. 6. Jardim das delícias. Museo del Prado.
Lisboa. Detalhe. Painel esquerdo. Detalhe.
36
Fig. 7. Filho pródigo. Rotterdan. Fig. 8. Os três filósofos. Giorgine. Detalhe.
Quem foi Jheronimus Bosch? Afora esses poucos registros e esses diversos
supostos retratos, o que sabemos do pintor de ‘s-Hertogenbosch? Nada de sua
história pessoal, seus conflitos domésticos, seus traumas infantis, suas preferências,
suas alegrias, seus medos, suas decepções, enfim, nenhuma evidência que nos
permita fazer qualquer afirmação sobre sua personalidade e, menos ainda, sobre
sua saúde mental.
I. 2 JHERONIMUS VAN AKEN E ‘s-HERTOGENBOSCH
Pesquisas recentes mostram que ‘s-Hertogenbosch, cidade onde nasceu e
viveu Jheronimus van Aken, tinha uma diversificada e rica vida cultural, nos séculos
XV e XVI, atraindo muitos artistas e artesãos, principalmente devido à presença
ocasional da aristocracia e à posição destacada da Igreja e das instituições
religiosas.
28
Assim, conhecermos um pouco do clima cultural da cidade nesse
período pode nos auxiliar nessa aventura que é percorrer as paisagens fantásticas e
os labirintos bosquianos.
28
Cf. Jan van OUDHEUSDEN, The cultural climate in ‘s-Hetogenbosch in the fifteenth and sixtenth
centuries. In: Jan van OUDHEUSDEN; Aart VOS (ed), The World of Bosch, p. 50.
37
Na segunda metade do século XIV, ‘s-Hertogenbosch era a segunda maior
cidade do norte dos Países Baixos depois de Utrecht e, no final do século XV, uma
das quatro maiores cidades do Ducado do Brabante, menor que Antuérpia e
Bruxelas e tão grande quanto Louvain. Fundada no final do século XII por Henrique
I, sob o governo do primeiro duque de Brabante, Godofredo III, no século XIII a
cidade era bastante desenvolvida para sustentar seus artesãos graças,
principalmente, às várias instituições religiosas que consistiram em uma fonte de
trabalho para eles. O Wilhelmite Monastery of Baseldonck, por exemplo, foi fundado
em 1205, e a construção da primeira igreja, dedicada a São João o Evangelista,
teve início no primeiro quarto do século XIII. No curso do mesmo século,
Franciscanos (1228-1229) e Dominicanos (1286) se estabeleceram em ‘s-
Hertogenbosch e uma beguinage foi fundada, cuja capela foi construída por volta de
1300. Também uma casa de repouso com uma capela foi erguida em 1274. Durante
o século XIV e XV, muitas igrejas, capelas, monastérios e confrarias surgiram,
chegando a 30 no início do século XVI. Dez anos após a morte de Bosch, havia 930
monges e freiras, e 160 beguines viviam nas fronteiras da cidade. Os artesãos
ligados a essas instituições se dedicavam à fabricação de sinos, à construção dos
prédios e à impressão de livros, especialmente tratados religiosos e cartas de
indulgência, bem como edições de autores clássicos, dos primeiros cristãos e dos
humanistas contemporâneos. É interessante notar que o primeiro livro impresso na
cidade foi A visão de Tondal, em 1484, apontado por muitos schorlars como uma
das possíveis fontes para os Infernos de Bosch, que uma certa similaridade
entre as imagens bosquianas e o que está descrito no livro.
29
Trata-se de um poema
que conta a mais macabra das visões medievais: um cavaleiro irlandês, que viveu
no século XII Tondal –, levava uma vida ímpia e cheia de vícios. Deus, em sua
misericórdia, permite que seu espírito visite o mundo do além-túmulo, onde ele
monstros, serpentes, condenados a penas refinadas, como passar pelo paraíso
cheio de esplendor antes de chegar ao inferno. Depois de três dias, Tondal regressa
arrependido.
30
29
Cf. Jos KOLDEWEIJ, Hieronymus Bosch and his city. In: Jos KOLDEWEIJ; Paul
VANDENBROECK; Bernard VERMET, Hieronymus Bosch. The complete paintings and drawings, p.
23-4.
30
Cf. Mia CINOTTI, La obra pictórica completa de El Bosco, p. 84.
38
É importante lembrar que nessa época ‘s-Hertogenbosh integrava o ducado
de borgonha, período de prosperidade tanto para o comércio e indústria, quanto
para as artes. Antuérpia era a maior cidade portuária e sua indústria têxtil era a mais
importante. Nas províncias meridionais ocorreu uma expansão da pintura,
principalmente com Jan van Eyck, pintor da Corte de Felipe o Bom, que se tornou
célebre com seu A adoração do cordeiro místico, bem como Hans Memling, Gerard
David, Roger Van der Weyden, Thierry Bouts, Hugo van der Góes, os denominados
“primitivos flamengos”. No entanto, após a morte de Felipe o Bom, em 1467, a
situação começou a se modificar. Com seu filho, Carlos o Temerário, no poder, teve
início um longo peodo de lutas sangrentas, saques e guerras que terminaram
com sua morte, em 1477, na Batalha de Nancy. A dinastia de Borgonha chegou ao
fim com a morte de Maria, em 1482, quando, por ser a única herdeira de Carlos o
Temerário, a regência passou para seu marido Maximiliano, da casa de Habsburgo,
que seu filho Felipe o Belo era muito jovem para assumir o poder. Inábil para
restabelecer a paz nas províncias, Maximiliano se tornou cada vez mais impopular
com seus atos imprudentes até que foi preso e colocado a assistir as torturas às
quais foram submetidos seus partidários. Porém, com a ajuda de soldados alemães,
Maximiliano sitiou Gante o que provocou a reação das cidades de Brabante e ele foi
obrigado a sair dos Países Baixos em 1489, deixando a região empobrecida com os
seis anos de luta inútil. Seu filho, Felipe o Belo, estranho aos Habsburgos, pois
sequer aprendeu a falar alemão, governou os Países Baixos até sua morte
prematura em 1506. Em função de seu casamento com Juana de Castilla, os
interesses dos Países Baixos ficaram subordinados à Espanha e, quando seu filho,
Carlos V, tornou-se rei, em 1516 (ano da morte de Bosch), a dependência se tornou
definitiva.
31
Assim, Bosch assistiu a glória da corte borgonhesa, bem como
presenciou as lutas sangrentas e mortíferas até sua derrocada total.
‘s-Hertogenbosch, mesmo não tendo uma residência real, como Breda que
abrigava o Palácio dos Condes de Nassau, recebia visitas regulares dos pncipes
de Borgonha e Habsburgo, por semanas ou até meses, o que possibilitou a
introdução da sociedade de Bois-le-Duc nas extravagâncias e no esplendor da
cultura da Corte. Um exemplo foram as celebrações de 1481 por ocasião da festa da
31
Cf. MINISTÉRIO NEERLANDÊS DE NEGÓCIOS ESTRANGEIROS, História dos Países Baixos, p.
12-5. Cf. também Marcelle GAUFFRETEAU-SÉVY, Hieronymus Bosch “el Bosco”, p. 23-5.
39
Ordem do Velocino de Ouro quando, por várias semanas, a cidade recebeu Maria de
Borgonha, Maximiliano e várias figuras ilustres dos Países Baixos que, geralmente,
hospedavam-se na casa de nobres cidadãos ou no monastério dos dominicanos,
como aconteceu no inverno de 1504-1505, período que permaneceram ali
Maximiliano e seu filho Felipe o Belo, enquanto a nova esposa de Maximiliano,
Bianca Sforza, foi acolhida por um vizinho de Bosch, na Praça do Mercado.
Podemos supor que esse fato possa estar relacionado com a encomenda feita por
Felipe o Belo, da representação do Juízo Final, anteriormente citada, bem como a
uma compra, também feita por ele em 1505, para presentear seu pai, de um grande
tríptico figurando a história de Santo Antão, tema tão explorado pelo pintor
brabantino. Sua irmã, Margarida de Áustria, também possuía um painel devotado a
Santo Antão feito pelas mãos de Jheronimus Bosch.
32
O que marcou o caráter de Bois-le-Duc, no período de vida de Bosch, foi seu
aspecto burguês-comercial, pois não possuía universidade, como Louvain, ou uma
corte de pncipes, como em Bruxelas, ou diocese, como Utrecht.
33
Mesmo assim,
podemos imaginar quão intensa era a sua vida social e religiosa: estima-se que em
1526, pelo menos um a cada 19 habitantes de ‘s-Hertogenbosch pertencia a alguma
ordem religiosa. Seu maior símbolo, que reúne tanto a quanto a prosperidade
comercial, é a Catedral de São João, que foi concluída apenas no século XVI, uma
obra da arquitetura gótica brabantina (foi restaurada no século XIX, sofrendo
algumas mudanças) que exibia fileiras de estranhas figuras adornando as colunas
de apoio, seres fantásticos e sobrenaturais que nos lembram as criaturas de Bosch.
suspeitas, sem quaisquer evidências mais conclusivas, que Bosch poderia ter
ajudado o arquiteto e escultor Alart Duhamaeel que, no final do século XV, desenhou
essas estátuas.
34
Por outro lado, ainda que sem referências históricas, alguns
comentadores, incluindo De Tolnay
35
, apontam que o avô paterno de Jheronimus,
Jan van Aken, tenha pintado o mural da Crucifixão de Cristo do coro da Igreja.
32
Cf. Jan van OUDHEUSDEN, The cultural climate in ‘s-Hetogenbosch in the fifteenth and sixtenth
centuries. In: Jan van OUDHEUSDEN; Aart VOS (ed), The World of Bosch, p. 56. Cf. também
Marcelle GAUFFRETEAU-SÉVY, Hieronymus Bosch “el Bosco”, p. 27.
33
Cf. Walter BOSING, Bosch, p. 11-2.
34
Cf. Lynda HARRIS, The secret heresy of Hieronymus Bosch, p. 45-6; Walter BOSING, Bosch, p. 12.
35
Cf. Charles DE TOLNAY, Jérôme Bosch, p. 12.
40
A Catedral de São João, tanto exterior quanto interiormente, é o maior
testemunho de suntuosidade histórica, com a diversidade de formas com as quais a
vida religiosa da Idade Média se expressava. Uma descrição do interior da igreja,
feita por J.B.Gramaye, em 1610, e por Jacobus van Oudenhoven, em 1649, que
tiveram como base um texto em latim nunca publicado, diz: “o altar do coro e o altar
de Nossa Senhora na capela da Confraria ainda ostenta os painéis com cenas feitas
na arte extraordinária de Hieronymus Bosch. O primeiro mostra o opus creationis
hexameron mundi, o processo de seis dias da criação do mundo, enquanto o outro
mostra a história de Abigail e David, e Salomão e Betsabá”. O texto também declara
que na capela com a estátua miraculosa da Virgem Maria havia uma representação
dos Três Reis, feita por Bosch. No altar de São Michel encontrava-se um retábulo
recontando a história de Judith e Holofernes em quatro cenas (o cerco de Bethulia, a
morte de Holofernes, a luta e a derrota da armada assíria e a vitória graças a Judith)
e aquele de Esther, provavelmente em duas cenas (Esther e Moderchai, e o triunfo
da libertação do povo judeu). Nada mais é sabido destes painéis que imortalizou as
heroínas do Antigo Testamento, Judith e Esther. Os volantes pintados por Bosch
podem bem ter pertencido a um enfeite de altar esculpido, mas, por serem temas do
Antigo Testamento, é provável que não fossem o tema principal, pois
tradicionalmente nos Países Baixos eles estavam subordinados ao tema central que
era do Novo Testamento.
36
O bispo que realizou uma visita episcopal em 1615 à Catedral de o João
não teve a mesma impressão dos autores citados acima. Três dias após sua
chegada, ele convocou um dos padres para uma inspeção de todas as esculturas e
pinturas da igreja e ordenou que fossem removidas aquelas imagens imorais ou com
uma mostra excessiva de nudismo, especialmente uma estátua de Santa Maria do
36
Cf. Jos KOLDEWEIJ, Hieronymus Bosch and his city. In: Jos KOLDEWEIJ; Paul
VANDENBROECK; Bernand VERMET, Hieronymus Bosch. The complete paintings and drawings, p.
67. A descrição citada toma como base um texto em latim, que nunca foi publicado, mas muitas
vezes consultado e citado, escrito por três homens sábios – Everswyn, Loeff e Van Balen – ,
contratados pelo Conselho da cidade de ‘s-Hertogenbosch, em 1609, para escrever uma cronologia
que contaria a história da cidade das origens até 1565 Historia chronologica oppidi Buscoducis. Cf.
também Lynn F. JACOBS, The triptych unhinged: Bosch’s Garden of Earthly Delights. In: Jos
KOLDEWEIJ; Bernard VERMET (ed), Hieronymus Bosch. New insights into his life and work, p. 65-
75. Neste artigo, a autora mostra como Bosch inverte o uso tradicional do tríptico: além de empregar
cenas do Antigo Testamento, o pintor brabantino dá a elas um lugar central e não as vincula a temas
do Novo Testamento; a imagem externa, do tríptico fechado, é de igual importância à imagem interna,
sendo que tradicionalmente o exterior subordinava-se ao interior; unidade no conjunto, ou seja,
não quebra na imagem pintada nos volantes exteriores do tríptico e continuidade entre o
exterior e o interior.
41
Egito, um Julgamento final e uma tabula creationis mundi retro sedem episcopalem
extra”, ou seja, um painel mostrando a criação do mundo que possivelmente se
localizava no deambulatório ou atrás da cadeira designada ao bispo ou, ainda, como
retábulo no altar maior, possivelmente o mesmo descrito por Gramaye e van
Oudenhoven. Trata-se, provavelmente, de uma outra versão do tão conhecido
tríptico Jardim das delícias.
37
No início do século XVII, uma crônica de 1606-1609, que fala do painel da
Criação citado acima, também atribuiu a Bosch as cenas de Abigail e David em
combinação com Salomão e Betsabá que aparecem nos volantes de uma peça de
altar na capela da Confraria de Nossa Senhora. A “Ode para a Igreja de ‘s-
Hertogenbosch” (1550) também elogia a pintura se referindo aos dias em que estão
expostas, em dias de festas, e a linda história que se revela aos olhos.
38
A importância da igreja de São João, no entanto, não se restringiu ao rico
espetáculo de seu colorido interno, seus altares brilhantemente decorados (no início
do século XV eram 37), pinturas, estátuas de santos e retábulos. Além do serviço
paroquial, foi um destacado local de peregrinação. A partir de 1381, quando
aconteceram alguns eventos miraculosos ao redor da imagem de Virgem Maria, até
então pouco valorizada, o número de peregrinos aumentava a cada ano. Em
gratidão à Virgem Maria de ‘s-Hertogenbosch, por suas intervenções miraculosas,
cujos depoimentos estão registrados no Livro de Milagres da Catedral, os peregrinos
faziam oferendas, o que colaborou para a construção e decoração da igreja.
Todavia, a veneração à Virgem Maria em ‘s-Hertogenbosch data do início do
século XIV. Em 1318, com aprovação episcopal, foi fundada a Confraria de Nossa
Senhora, que tinha sua capela no interior da igreja de São João. Composta por
clérigos, nobres e proeminentes cidadãos, homens e mulheres, da cidade e de
outras regiões, sua primeira ocupação foi com o culto da Virgem. Mas, no século XV,
possivelmente influenciados pelos Irmãos de Vida Comum, passaram a fazer obras
de caridade. Como as inumeráveis confrarias e irmandades surgidas no mundo
cristão medieval, seu objetivo era promover a vida religiosa, fomentar e encaminhar
37
Cf. Jos KOLDEWEIJ, Hieronymus Bosch and his city. In: Jos KOLDEWEIJ; Paul,
VANDENBROECK; Bernand VERMET, Hieronymus Bosch. The complete paintings and drawings, p.
67-8. Cf. também Fernando MARÍAS, El Bosco y las tablas de meditación. In: FUNDACIÓN AMIGOS
DEL MUSEO DEL PRADO, El Bosco y la tradición pictórica de lo fantástico, p. 247-8.
38
Jos KOLDEWEIJ, Hieronymus Bosch and his city. In: Jos KOLDEWEIJ; Paul VANDENBROECK;
Bernand VERMET, Hieronymus Bosch. The complete paintings and drawings, p. 69.
42
as ações de caridade de seus integrantes. Esse impulso piedoso apareceu nos
Países Baixos no século XIV, com o teólogo e místico Jan van Ruysbroeck (1293-
1381), um dos iniciadores da nova corrente espiritualista cristã – Devotio Moderna –,
de quem falaremos mais adiante.
Foi nesse espírito religioso que a Confraria de Nossa Senhora de ‘s-
Hertogenbosch se tornou um centro social e cultural, pois além das atividades
religiosas semanais, organizava e realizava as festas religiosas, a procissão anual
em honra da Virgem, o banquete anual “do cisne” e valorizava a música, sendo
muitos de seus membros músicos ou integrantes do coro durante os festivais. O
número de membros foi aumentando chegando a dez mil no final do século XV.
Importante ressaltar que entre eles figuraram Henrique III de Nassau e Diego de
Guevara, ambos possuidores de obras de Bosch. A família do pintor brabantino
também integrava o quadro de membros da Confraria. Seu pai Anthonius é citado
em um texto que registra a reunião da qual participaram ele e seus filhos, alguns
membros jurados e o mestre Adriaen van Wesel, escultor de Utrecht, para discutirem
a confecção de um retábulo a ser colocado no altar da capela. Embora nem seu
nome, nem de seus irmãos apareçam expressamente neste texto, pode representar
uma indicação da profissão de Bosch, que aparecerá como pictor no documento
de 3 de janeiro de 1481, citado anteriormente.
39
O ingresso efetivo na Confraria, ainda que como membro comum, deu-se em
1486. Pom, Bosch se tornou membro jurado por volta de 1488, sendo admitido
por sua profissão, o que constitui num evento raro, lembrando que os requisitos para
ser membro jurado eram ou ser clérigo ou laico com muita riqueza. Isso nos leva à
idéia de que Bosch, neste momento, era um artista reconhecido. Alguns autores,
no entanto, acreditam que ele só passou a “mestre” em 1488, por ocasião do
“banquete do cisne” por ele presidido para os confrades da irmandade.
40
Contudo, já
aparece ao lado do seu nome de maelreem um documento de 1480-1481 quando
39
Cf. Jan van OUDHEUSDEN, The cultural climate in ‘s-Hetogenbosch in the fifteenth and sixtenth
centuries. In: Jan van OUDHEUSDEN; Aart VOS (ed), The World of Bosch, p. 66.
40
Ebeling, Vinck e Gerlach afirmam que o jantar foi a oficialização de Jheronimus como insigne
pintor. Cf. Ester VINK, Hieronymus Bosch’s Life in ‘s-Hertogenbosch. In: Jos KOLDEWEIJ; Bernard
VERMET (ed), Hieronymus Bosch. New insights into his life and work, p. 22; Mia CINOTTI, La obra
pictórica completa de El Bosco, p. 85; Monique Van SHOUTE-VERBOONEN, Biografía de El Bosco.
In: Carmen GARRIDO; Roger VAN SCHOUTE, El Bosco en el Museo del Prado. Estudio técnico, p.
208.
43
ele comprou os dois volantes do velho retábulo da Confraria que seu pai, Anthonius,
teria restaurado em 1461-1462.
Não se tem registros das obras mais importantes de Bosch, com exceção do
Juízo Final, possível encomenda de Felipe o Belo, mencionado. Porém, no livro
de contas da Confraria aparecem alguns de seus trabalhos para a irmandade. Em
1492, fez o desenho de um vitral realizado por Willem Lombard em 1493-1494, para
a capela na igreja de São João. Os brasões feitos em 1503-1504 para três
eminentes confrades são considerados, por alguns comentadores, como sendo de
algum assistente, bem como o desenho da cruz de 1511-1512, pois um grande
pintor como Bosch não faria trabalhos menores. Opinião contestada por Cinotti, bem
como por De Tolnay, para quem o pintor brabantino não diferia de Durer e Tiziano
que, entre outros, realizaram obras de menor importância.
41
Outra intervenção de
Bosch ocorreu em 1508-1509 quando os priores da Confraria pediram conselho a
ele e ao arquiteto da capela, Jan Heyns, sobre a forma de policromar e dourar o
retábulo do altar maior da Confraria, que havia sido pintado por Bosch em 1489-
1490, cuja parte central fora esculpida por Adriaen van Wesel. O último registro é de
1512-1513 de um desenho para um candelabro que seria confeccionado em bronze.
Uma última ocorrência, que muitos autores apontam como importante
inspiração para o pintor brabantino, foi um incêndio de proporções consideráveis, em
1463, que teve início a poucos passos da casa de Bosch, na Praça do Mercado, e
se estendeu rapidamente destruindo várias casas de ‘s-Hertogenbosch.
42
Se, por um lado, parece que Jheronimus Bosch pôde desfrutar de uma rica
vida social e cultural, mantendo contato com a Corte e a nobreza, através da
Confraria, tendo acesso às obras impressas, compiladas, ou decoradas com
iluminuras nas comunidades religiosas da cidade, o que deve ter favorecido sua
erudição, por outro, podemos indagar que experiências discrepantes pode ter vivido.
Pensemos no luxo e suntuosidade dos estados de Borgonha e Habsburgo e na
prisão que se localizava nos fundos de sua casa na Praça do Mercado; sua própria
condição econômica, que, parece, se diferenciava da maioria, e as centenas e
centenas de peregrinos que todos os anos rumavam a ‘s-Hertogenbosch em busca
41
Cf. Mia CINOTTI, La obra pictórica completa de El Bosco, p. 85; Charles DE TOLNAY, Jérôme
Bosch, p. 15.
42
Cf. Marcelle GAUFFRETEAU-SÉVY, Hieronymus Bosch “el Bosco”, p. 34.
44
dos milagres da Virgem; ou ainda nas torturas públicas que aconteceram nas praças
dos Países Baixos, durante os anos 1460, não esquecendo do fogo que destruiu
parte da cidade. Que impressões tocaram a alma de Jheronimus Bosch diante
dessas assombrosas situações?
I.3 EXCESSOS E AMBIGUIDADES DO FINAL DA IDADE MÉDIA
Os aspectos discrepantes vividos por Bosch e seus contemporâneos se
estenderam am de sua cidade natal: marcaram toda uma época o “outono da
Idade Média”, como a chamou Johan Huizinga, que a descreve brilhantemente em
sua obra clássica O declínio da Idade Média. Por isso, o que vai ser apresentado
aqui se constituirá tão somente em apontamentos daquelas características que nos
possam auxiliar na compreensão da atmosfera desta que foi considerada como a
mais crítica época da história do Ocidente. Uma época em que foram intensamente
vividos os excessos, as ambigüidades e os violentos contrastes: sofrimento e
alegria, adversidade e felicidade, doença e saúde, riqueza e miséria. Da mesma
forma que os grandes senhores exibiam orgulhosamente e cruelmente, incitando a
inveja e o temor, suas armas, sua escolta, seus luxuosos trajes, os mendigos e
leprosos mostravam suas misérias e deformidades. O povo, chorando
piedosamente, acompanhava procissões por dias e até meses para rezar pela vitória
de um rei em batalha. As execuções comoviam tanto quanto as pregações, levando
às lágrimas o povo, os magistrados, o baixo clero e até mesmo os prelados. As
emoções e arrebatamentos do espírito eram iguais diante de um discurso político ou
acompanhando um cortejo fúnebre. A necessidade exagerada de justiça, cuja
reparação ao ato criminoso era caracterizada pela vingança, coexistia com a
clemência aconselhada pela Igreja: ou o criminoso era morto, ou era perdoado.
Contudo, o horror ao pecado, somado ao ideal de justiça, conduziu a uma crueldade
na retaliação tão assustadora quanto a satisfação e excitação do povo ao
contemplar as torturas e execuções.
43
Ou seja, uma época que converteu a dor e a
crueldade em espetáculo; uma época na qual os excessos e desequilíbrios deram o
tom à vida.
43
Cf. Johan HUIZINGA, O declínio da Idade Média, p. 13-30.
45
A outrora elevada espiritualidade entrou em decadência; o sentimento
religioso foi se debilitando por uma profanação progressiva. Não havia limites entre o
pensamento religioso e as preocupações mundanas, entre o espiritual e o temporal.
Nesse clima de desordem espiritual a Igreja era impotente para fazer respeitar os
lugares sagrados. As procissões e festas religiosas eram ocasiões para exibições de
luxuosas indumentárias, bem como de celebrações de orgias. A burguesia, cada vez
mais rica com o comércio florescente das cidades, ostentava uma vida cheia de
prazeres: gosto por uma boa mesa, luxo dos trajes, jóias exibidas sem pudor,
costumes licenciosos, paixão pelo jogo. Mas, ao mesmo tempo, um exagerado
sentimento de culpa e uma necessidade imperiosa de penitência conduziam a
ardorosas manifestações de piedade. Felipe o Bom, por exemplo, conhecido por sua
ambição, extravagância e aventuras galantes tem-se notícias de que teve dezoito
filhos bastardos passava quatro dias da semana a pão e água, com uma profunda
devoção.
44
A obsessão pelo pecado e pelo inferno desorientou o homem do fim do
medievo. Como explicar a ocorrência de tanta desgraça senão como castigo pela
maldade dos homens? A Guerra dos Cem Anos, a Guerra das Rosas, as lutas
sangrentas sob liderança de Carlos o Temerário, o fracasso da dinastia de
Borgonha, o Cisma do Ocidente, a fome, a peste negra, a crescente ameaça turca,
esses e outros catastróficos acontecimentos foram vistos como resultado do pecado
dos homens. No final do século XV se acreditava que ninguém entraria no Paraíso
depois do Cisma do Ocidente. Se até a menor falta era uma ferida infligida a todo
universo, como insistiam os pregadores e os teólogos, era necessário castigar e
eliminar tudo o que pudesse representar tal perigo: a caça aos feiticeiros, bruxas,
hereges alcançou uma amplitude sem igual. Nesse clima, a bula Summis
desiderantes affectibus, de Inocêncio VIII (1484), e o Malleus Maleficarum (1487)
fomentaram a busca daqueles que eram suspeitos de ligações com Satã. Enquanto
a bula deu início às grandes perseguições contra feiticeiros e bruxas, o Malleus, de
autoria do inquisidor alemão Henricus Kramer e de Jacobus Sprenger, discípulo de
Alain de la Roche, afirmou que, para castigar a humanidade, Deus permitiu que Satã
44
Cf. Marcelle GAUFFRETEAU-SÉVY, Hieronymus Bosch “el Bosco”, p. 35-6.
46
se estabelecesse na terra e fundasse uma casta de bruxos; além de descrever suas
práticas e o modo de combatê-las.
45
Diante de tantas calamidades e da iminência da vinda do Anticristo, tantas
vezes anunciada, o mundo parecia estar chegando ao fim. Jean Gerson (1363-
1429)
46
o via como um velho delirante, vítima de fantasias, sonhos e ilusões
47
; Pierre
Viret o descreve como um “velho edifício em ruínas”
48
. Freis, como o dominicano
Vicente Ferrer, vão de cidade em cidade, desde o início do século XV, exortando o
povo a se arrepender de seus pecados frente aos fins dos tempos
49
. Artistas
representam o tema do Juízo Final em esculturas, livros, vitrais e tapeçarias,
detalhando morbidamente os suplícios do inferno. No Livre des heures de Catherine
de Clèves (1440)
50
, por exemplo, o inferno é representado como uma boca satânica
monstruosa, ardendo em fogo, engolindo as almas dos condenados (fig.9).
Fig. 9. Livre des heures. Catherine de Clèves, 1440. Detalhe.
45
Cf. Jean DELUMEAU, La Reforma, p. 5-7. Cf. também Mia CINOTTI, La obra pictórica completa de
El Bosco, p. 85.
46
Teólogo, educador e poeta francês, Jean Gerson foi chanceler da Universidade de Paris e um dos
proeminentes teólogos no Concilio de Constança. Seu misticismo está fundado em um conhecimento
experencial de Deus.
47
Cf. Johan HUIZINGA, O declínio da Idade Média, p. 177.
48
Jean DELUMEAU, El miedo en Ocidente, p. 349.
49
Ibid., p. 334.
50
Cf. Larry SILVER, Bosch, p. 346.
47
A desesperança, o medo da condenação, a dúvida quanto à salvação levou
ao enorme valor atribuído à morte. Figurada na literatura, nos livros de horas, nos
afrescos ou nas danças, a morte foi a grande personagem da época. A antiga dança
dos mortos se transformou em dança da morte e, em seguida, em dança macabra
(termo surgido no século XIV), que não era executada, mas também pintada em
paredes de cemitérios – a mais famosa é a do cemitério dos Inocentes, em Paris, de
1425 ou em quadros como de Brueghel o Velho O triunfo da morte ou, ainda,
dramatizada como o fora no palácio de Bruges em 1449, por ordem de Felipe o
Bom. Também foi absorvida pelo teatro religioso que a levou para as igrejas com o
propósito de representar “a insanidade causada pelo pecado”
51
. Ao mesmo tempo
em que a daa macabra lembrava a fragilidade e vacuidade das coisas terrenas,
mostrava a igualdade entre as pessoas: homens e mulheres, pobres e ricos,
camponeses e burgueses, laicos e clérigos.
52
Nestes tempos em que a morte, horrenda e ameaçadora, reina, a busca para
se livrar dos tormentos eternos faz com que se exalte a figura de Cristo crucificado,
não mais o Deus da beleza dos séculos anteriores, mas Aquele que tornado homem,
encarnado, padece em sua flagelação. Gerard David, Hans Memling, Jan van Eyck,
são alguns exemplos de artistas que pintaram a crucifixão; Hugo van der Góes, a
Lamentação; e a descida da cruz é mostrada por Roger van der Weyden em uma
enorme pintura exposta no Museo del Prado, de Madrid. A devoção à Virgem, e
do Salvador, aquela que com seu manto protege os aflitos, é cada vez mais
difundida. Lembremos das inúmeras Confrarias que surgem no século XIV, inclusive
em ‘s-Hertogenbosch, dedicadas ao culto de Nossa Senhora. A veneração aos
santos também alcança proporção sem igual: além da proteção contra as
enfermidades e a morte, os santos davam “garantias” para o além túmulo. O culto às
suas relíquias e imagens dava ao pecador indulgências, o que possibilitava livrar-se
do inferno. Acreditava-se que uma espécie de bônus, pelo rito de Jesus, da
Virgem e dos santos, significava uma atenuante na hora do Juízo Final.
53
Este clima
talvez explique o êxito alcaado pela obra Ars Moriendi, do início do século XV, de
autoria anônima, mas que se acredita inspirada em uma obra de Jean Gerson. A
51
M. PORTINARI, História da dança, p. 53.
52
Cf. Johan HUIZINGA, O declínio da Idade Média, p. 129-35. Cf. tamm Jean DELUMEAU, La
Reforma, p. 8-9.
53
Cf. Jean DELUMEAU, La Reforma, p. 10-11.
48
mais antiga edição conhecida é de 1465, possivelmente de Colônia, e noventa
edições registradas entre 1465 e 1500, das quais oito foram impressas nos Países
Baixos.
54
Nela, um moribundo está rodeado de anjos e demônios. Estes induzem o
agonizante a dúvidas, ao desespero, à blasfêmia, a ligar-se às riquezas terrenas e
permanecer no orgulho e na soberba. Ao mesmo tempo, os anjos o ajudam a resistir
a essas tentações. Imagens semelhantes podem ser vistas em A morte do avaro, de
Washington, de Bosch.
Uma situação espiritual tão comprometida em que não se distinguia mais o
sagrado do profano; em que a religião se banalizava na vida cotidiana; em que a
irreverência era a marca da prática religiosa; em que a reprovação de alguns
teólogos, como Pierre D’Ailly e Gerson, preocupados com a superfluidade no
desenvolvimento das observâncias, das imagens, dos santos, da prolixidade do
serviço, com seu crescente número de orações e hinos, vigílias e jejuns, não
conseguia frear uma tendência a reduzir o infinito ao finito; em que havia um
desprezo pelo clero, enfim, um momento de profunda confusão, incerteza e
insegurança, conduziu a uma necessidade de resgatar a religião em sua
simplicidade primeira.
55
Foi neste clima que místicos alemães e flamengos se
afastaram da teologia tradicional em busca de um contato direto com a divindade
insondável. Tal foi o caso de Meister Eckhart, Tauler, Dionísio o Cartusiano e Jan
van Ruysbroeck que, como indicamos anteriormente, foi um dos iniciadores da nova
corrente espiritualista cristã difundida nos Países Baixos Devotio Moderna –, que
nos interessa mais particularmente, pois, como apontam alguns scholars, foi uma
das importantes influências sobre a obra de Jheronimus Bosch.
De 1343 a sua morte, Ruysbroeck permaneceu no bosque de Soignes,
próximo a Bruxelas, no mosteiro de Groenendaal. Neste período, o mais ativo de
toda sua carreira, escreveu tratados dogmáticos, nos quais se mostrou como um fiel
filho da Igreja, explicando, ilustrando e fazendo cumprir seus tradicionais
ensinamentos. Segundo Altmeyer, ele “era pouco literato e adquiriu simplesmente
pela experiência o conhecimento desta teologia mística na qual se sobressaiu; o que
foi uma razão a mais para que o considerassem como inspirado”
56
. Em seus textos
54
Cf. Roger MARIJNISSEN, Hieronymus Bosch: the complete works, p. 22.
55
Johan HUIZINGA, O declínio da Idade Média, p. 142-7.
56
Apud Marcelle GAUFFRETEAU-SÉVY, Hieronymus Bosch “el Bosco”, p. 39.
49
ascéticos ressaltou as virtudes de humildade e caridade, enquanto em seus escritos
místicos enfatizou a união mística, a íntima unidade entre o homem e Deus, porém
fez uma ressalva: “Onde digo que somos um em Deus, deve ser entendido no
sentido de que somos um em amor, não em essência e natureza”
57
. Talvez essa
afirmação tenha sido a responsável pela pecha de pré-reformista, como alguns o
apontaram na época, embora mais tarde, em 1908, o Papa Pio X o tenha
beatificado. De qualquer forma, foram seus escritos místicos, em dialeto brabantino,
que atraíram vários discípulos, entre eles Johanes Tauler e Geert Groote (1340-
1384), este último fundador da Confraria dos Irmãos de Vida Comum, em Denver,
que posteriormente, em 1387, foi convertida na Congregação de Windesheim, cujo
maior expoente foi Thomas Kempis, geralmente apontado como autor de Imitatio
Christi
58
, o texto mais representativo da Devotio moderna.
O novo espírito da vida religiosa por eles pretendido consistia, de um lado, na
luta contra as seitas heréticas que floresciam em Flandres e, de outro, na batalha
contra a corrupção interna do clero. Almejavam uma união mais pura e profunda
com Deus, fora da Igreja oficial e dos claustros lugar dos falsos e corrompidos
“irmãos” –, no mundo, teatro dos pecados e das heresias. Naturalmente, essa
posição suscitou desconfianças: Groote defendeu publicamente um dos irmãos em
1384 e em outras ocasiões contra acusações dos Freis Menores, até que no
Concílio de Constanza, em 1418, a Irmandade ficou livre de quaisquer suspeitas,
exercendo livremente suas atividades.
59
Os Irmãos de Vida Comum levavam uma vida exemplar, entre a pregação e o
estudo. Não deviam possuir nenhum bem, mas não eram mendicantes: viviam do
produto de seu trabalho. Ajudavam aos pobres e enfermos, procurando encontrar a
caridade e simplicidade do cristianismo próximo dos apóstolos. Condenavam a
ignorância do baixo clero e de alguns monastérios. O número de comunidades
chegou a cento e quinze no final do século XV. Eram chamados jeronimitas, como
dito anteriormente, em função de seu padroeiro, São Jerônimo. Em ‘s-
57
Cf. The Catholic Encyclopedia, v. XIII.
58
Quanto à autoria desse texto, uma dúvida, pois existe uma referência de que Jean Gerson,
quando em seu retiro em Lyon, durante os dez últimos anos de sua vida, teria traduzido ou
adaptado para o latim um escrito sobre a eterna consolação que, mais tarde, se tornou muito famoso
sob o título Imitação de Cristo e que foi atribuído a Thomas Kempis.
59
Cf. Walter BOSING, Bosch, p. 13-4; Isidro Bango TORVISO; Fernando MARÍAS, Bosch. Realidad,
Símbolo y Fantasia, p. 51-3; Mia CINOTTI, La obra pictórica completa de El Bosco, p. 84.
50
Hertogenbosch, fundaram duas escolas: em 1424 e 1480, em uma das quais
permaneceu durante três anos o humanista Erasmo de Rotterdan. Tornaram-se um
centro intelectual importante, pois, am da atividade educacional, escreveram,
copiaram manuscritos, decoraram com iluminuras e encadernaram livros, imprimiram
obras de autores gregos e latinos, dando preferência a Sócrates e Platão.
Não temos notícias sobre que outros títulos poderiam ter sido impressos por
essas comunidades, ou mesmo obtidos pela Confraria de Nossa Senhora de ‘s-
Herotgenbosch, da qual Jheronimus Bosch foi membro durante os principais anos de
sua carreira como pintor. Mas sabemos, por exemplo, que um dos de seus membros
Simon van der Couderbech (d. 1526) deixou parte de seus livros, incluindo
Boécio e Petrarca, para a Confraria.
60
Contudo, alguns autores que muito
provavelmente Bosch teve acesso, como Jean Gerson, já citado, ou Dionísio o
Cartusiano (1403-1471), cujos sermões muito se aproximam do espírito da Devotio
moderna. A cidade de Deus, de Santo Agostinho, cujos ensinamentos tiveram uma
poderosa influência sobre as atitudes teológicas e morais na Idade Média, foi
publicado em Louvain em 1488. Também são citadas várias impressões dos escritos
de Alberto Magno, ao final do século XV, que muitos scholars colocam em conexão
com as pinturas de Bosch. Outra obra importante, traduzida para o holandês no final
do século XIV, foi Legenda Áurea, de Varazze, contendo a vida dos santos. Não
podemos esquecer, ainda, de Pélegrinage de vie humaine, escrito por Diguileville,
em 1330-31, que teve várias adaptações durante o século XV, tendo uma versão em
holandês que apareceu em Harlem, em 1486
61
, além de The travels of Sir John de
Mandeville, provavelmente de 1356-57, amplamente difundido na Europa com 250
ou 300 manuscritos e várias versões impressas.
62
E lembremos, também, de
Narrenschiff, de Sebastian Brant, que teve sua primeira edição em Basiléia, de 1494,
e rapidamente foi traduzida para o francês (1497) e para o holandês (1500) , cujos
temas estão em relação com A nau dos loucos (Louvre) de Bosch.
60
Cf. Jos KOLDEWEIJ; Paul VANDENBROECK; Bernard VERMET, Hieronymus Bosch. The
complete paintings and drawings, p. 58.
61
Cf. Roger MARIJNISSEN, Hieronymus Bosch. The complete works, p. 19-22.
62
Acaba de sair a tradução para o português, de Susani S. L. França, pela Edusc, sob o título
Viagens de Jean de Mandeville. Nesta obra, o autor relata suas viagens por terras estrangeiras onde
encontra criaturas fantásticas, fontes da juventude, nudistas, palácios fantásticos, gigantes,
hermafroditas, vale de demônios, enfim, muitas figuras que se aproximam daquelas que encontramos
nas pinturas de Bosch.
51
Não podemos encerrar essa breve indicação dos aspectos que marcaram
esse período crítico sem considerar a presença da astrologia. Se no início do
cristianismo houve um combate por parte dos Padres da Igreja contra a crença na
predestinação astral e nos deuses antigos, no decurso desta batalha, como sempre
acontece no combate às heresias, segundo apontam Klibansky, Panofsky e Saxl, “a
mesma refutação de tais teses heterodoxas serviu para conservá-las”
63
. Com as
traduções dos árabes do século XII, o Ocidente conheceu as doutrinas astrológicas
orientais e o clima de incertezas e inseguranças do final da Idade Média propiciou a
assimilação da contraditória figura de Saturno. Não é o lugar para nos determos
nessa idéia, que será assunto do próximo capítulo, mas é importante assinalarmos
que o mais sinistro e ambivalente dos planetas sintetiza os excessos e a
ambigüidade que caracterizaram esse período crepuscular: filho da eternidade e pai
do tempo, Saturno carrega, por isso mesmo, o peso da velhice, com sua
deterioração física e mental, solidão e desesperança; mas também preside as coisas
duráveis e permanentes como a terra e o trabalho do campo; protege os piedosos,
os pobres, os escravos, os marginais, os deformados; governa a riqueza e a retidão;
por outro lado, é cruel, demoníaco, rege o ódio, a aflição, a lamentação, a avareza, o
orgulho, a solidão, a morte.
64
A Idade Média se despediu, assim, regida pelo “senhor” da melancolia,
Saturno, envolta em uma atmosfera de pessimismo e inquietude, de insegurança e
desorientação, de crueldade e desordem, que, parece, provocada pela irrupção do
demônio, expressou-se em uma proliferação de monstros saídos das margens dos
Livros de Horas ou dos claustros lembremos de São Bernardo quando pergunta:
“Que significam nos claustros, onde os irmãos fazem a leitura, essas
monstruosidades ridículas?”
65
para habitar as misericórdias dos assentos das
cadeiras nos coros das igrejas.
66
Como disse Henri Focillon, “esse microcosmo
medieval que parecia estável, de repente explode, como se uma revanche furiosa se
desatasse sobre a arquitetura divina”
67
.
63
KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolia, p. 168.
64
Ibid., p. 142-4.
65
Apud Robert L. DELEVOY, Bosch, p. 66.
66
Cf. Isabel MATEO GÓMEZ, Temas profanos na escultura gótica espanhola: Las sillerías de coro, p.
292-3; Jurgis BALTRUSÄITIS, La Edad Media fantástica, p. 36-9.
67
Henri FOCILLON, Art d’Occident : Le Moyen Age roman et gothique, p. 669.
52
I.4 A ARTE DE JHERONIMUS BOSCH POR SEUS COMENTADORES
Uma coisa ouso afirmar de Bosco, que nunca pintou coisa fora do natural em
sua vida, se não fosse em matéria de inferno ou purgatório, como tenho dito. Suas
invenções se apoiaram na busca de coisas raríssimas, mas naturais: de maneira
que, pode ser regra universal, qualquer pintura, ainda que assinada por Bosco, em
que haja alguma monstruosidade ou coisa que ultrapasse os limites da natureza, que
é adulterada e falseada, é, como digo, uma pintura que contém em si inferno, ou
matéria dele.
Estas palavras foram escritas por Felipe de Guevara, em 1560, em seus
Comentários de la pintura, uma das primeiras obras em língua espanhola sobre arte,
na qual o autor defende Jheronimus Bosch que fora acusado de pintar fantasias sem
sentido
68
. Esta defesa consiste, à primeira vista, em uma justificativa do
“naturalismo” empregado por El Bosco, como ficou conhecido na Espanha. Mas, um
olhar mais atento faz emergir algumas indagações: quais invenções se “apóiam em
coisas raríssimas, porém naturais”? Monstruosidade é aquilo que ultrapassa os
limites da natureza? No início desta mesma obra, o autor relaciona as pinturas de
Bosch com um gênero de pintura da Antiguidade gryllos que, de acordo com
Plínio
69
, foi um estilo inaugurado pelo greco-egípcio Antiphilos que o teria aprendido
de Ctesidemus, consistindo em cenas com figuras semi-humanas ou semi-animais.
O comentário de Guevara, considerado o primeiro juízo crítico com relação à
obra de Bosch, inaugura uma discussão que perpassa os séculos, chegando aos
nossos dias ainda inconclusa e, quiçá, um dia termine.
70
Todavia, a obra do pintor
brabantino desperta a atenção em 1517, apenas um ano após sua morte, do
capelão italiano Antonio de Beatis que relata, em seu diário de viagem, sua visita ao
Palácio de Henrique III de Nassau, acompanhando o Cardeal Luiz de Aragão. Nele
68
Cf. Isidro B. TORVISO; Fernando MARÍAS, Bosch. Realidad, Símbolo y Fantasia, p. 14-6. Mia
CINOTTI (La obra pictórica completa de El Bosco, p. 10) aponta esse mesmo texto como parte de
uma carta enviada por Felipe de Guevara para Felipe II em 1563.
69
PLÍNIO, o Velho, The Natural History, book XXXV, cap. 37 . Um extenso estudo sobre gryllas é feito
por Jurge BALTRUSÄITIS em La Edad Media fantástica, p. 11-53.
70
Felipe de Guevara, considerado um grande comentarista da pintura clássica e primeiro
colecionador das obras de Bosch, é apontado como o primeiro a redigir um juízo crítico sobre o valor
artístico das obras do pintor de ‘s-Hetogenbosch. Porém, a partir de 1948, quando Marques de
Lozoya publica seu artigo “Algo más sobre la fortuna del Bosco en España”, no Boletín de la Real
Academia de la Historia, vem à luz um novo texto do historiador Ambrosio de Morales que em 1548,
portanto antes de Guevara, faz, segundo Lozoya, la descripción más exacta, extensa, profunda y
bella del famoso tríptico del Carro de Heno conocida”, quando afirma, no fim de seu comentário sobre
a Tabla de Cebes, que o tríptico de Bosch é “casi imitación de aquélla”. Cf. Abdon M. SALAZAR, El
Bosco y Ambrosio de Morales, Archivo Español de Arte, p. 117-8. Essas considerações serão
retomadas adiante.
53
encontramos a primeira referência ao que é “natural” e, ao mesmo tempo,
“fantástico”:
Vimos também o castelo do Conde de Nassau, que fica em uma região
montanhosa, ainda que próximo ao planalto, onde o castelo do Rei Católico está
situado. O dito castelo é grande e magnífico, no estilo germânico [...] Nele muitas
pinturas lindas, entre outras um “Hércules e Djanira”, desnudos e com belos corpos,
e uma “História de Pariscom as três deusas perfeitamente apresentadas. Há vários
painéis com diversas fantasias onde estão representados mar, céu, bosque e campo
com muitas outras coisas; alguns saindo de uma concha, outros defecando grou,
homens e mulheres, tanto brancos como negros, em várias ações e posições,
pássaros e animais de todos os tipos e com natureza muito verdadeira, coisas tão
agradáveis e fantásticas que é completamente impossível descrevê-las para aqueles
que não as viram.
71
O interesse pelas obras de Bosch foi imediato e se estendeu do Brabante à
Espanha rapidamente, não só pelos laços estreitos entre as duas regiões, mas
também pela fama que alcançara seus trabalhos, alargando-se pela Europa a
partir dos inúmeros seguidores, copistas e imitadores Felipe de Guevara havia
chamado a atenção para esse fato –, o que tem, aliás, dificultado a identificação da
autenticidade de suas obras. Mas essa é uma preocupação mais recente. Naquele
momento, muitas críticas foram tecidas às obras do pintor brabantino. E, para os
nossos objetivos, é importante termos presente o que diziam seus comentadores,
porque, ainda que algumas dessas obras não sejam de Bosch, como mostram
estudos técnicos mais recentes, elas pertencem à sua herança espiritual.
O historiador florentino Ludovico Guicciardini (1521-1589), que viveu e
trabalhou nos Países Baixos, descreve de forma literal este país como está no título
de sua obra Descrittione di tutti i Paesi Bassi, altrimenti detti Germânia inferiore,
publicada em 1567, em Antuérpia, com mapas e planos em xilogravura. Nela, o
autor define Bosch como “um criador, admirável e maravilhoso, de imagens
estranhas e cômicas e cenas bizarras pouco comuns”
72
, além de afirmar que
Brueghel, o Velho, seria um segundo Bosch. Nessa mesma linha, o pintor, arquiteto
e escritor italiano, Giorgio Vasari (1511-1574) que, na primeira edição, em 1550, da
obra que se tornou uma fonte inestimável de informações, principalmente
71
Apud GOMBRICH, The heritage of Apelles. Studies in the Art of the Renaissance, p. 79. Esse texto
foi originalmente citado por este autor num artigo no Journal of the Warburg and Courtauld Institutes
em 1967. Sabemos hoje que a descrição de Antonio de Beatis se referia, provavelmente, ao Jardim
das delícias.
72
Apud Jos KOLDEWEIJ, Introdução. In: Jos KOLDEWEIJ; Paul VANDENBROECK; Bernard
VERMET, Hieronymus Bosch: The complete paintings and drawings, p. 11; Roger H. MARIJNISSEN,
Hieronymus Bosch, p. 23; Mia CINOTTI, La obra pictórica completa de El Bosco, p. 10.
54
biográficas, dos primeiros artistas italianos, Vite de’ piú eccelenti arquitetti, pittori et
scultori Italiani, torna famoso o termo Rinascita ou Renaissance, em sua segunda
edição, de 1568, amplia sua abordagem além de Itália e considera como diferentes
os tipos de demônios e “fantásticas invenções” de Bosch quando comparados com
Bruegel, o Velho. No mesmo ano, Marcus van Vaernewijk, um Conselheiro de
Gante, define Bosch como “um criador de diabos, que ninguém poderia se igualar ao
pintar demônios”
73
.
Referências a fantasmas e monstros do inferno também são encontradas no
poema em latim que o humanista e artista de Bruges, Dominicus Lampsonius (1532-
1599), acrescenta ao suposto retrato de Bosch que pertence a uma série de 23
retratos de artistas dos Países Baixos, previamente entalhados por Hieronymus
Cock
74
, que compõem o Pictorum aliquot celebrium Germaniae inferiores effigies
75
,
de 1572:
Quid sibi vult, Hieronyme Boschi O que vê, Hieronymus Bosch
Ille oculus tuus attonitus? Quid estes teus olhos atônitos? Que
pallor in ore? Velut lemures si et palidez em teu rosto? Acaso vês diante
Spectra Erebi volitantia coram de ti os monstros e fantasmas voadores
Aspicores? Tibis Ditis auari do Érebo? A ti, os avaros de Plutão
crediterim patuisse recessus puderam sair do recesso e abrir a casa
Tartareasque domos; tua quando dos infernos, pois você foi capaz de
quicquid habet sinus imus Averni pintar o que de mais profundo o
tum potuit bene pingere dextra!
76
Inferno contém!
O maior colecionador das obras de El Bosco, Felipe II, em uma carta que
escreve aos seus filhos, em 1581, quando visita Lisboa, lamenta que eles não
pudessem ter visto a procissão de Corpus Domini e comenta: “ainda que haja alguns
diabos semelhantes aos dos quadros de El Bosco, penso que o haveriam
espantado”. Não muito diferente é o que diz Gian Paolo Lomazzo
77
em seu Tratado
73
Apud Jos KOLDEWEIJ, Introdução. In: Jos KOLDEWEIJ; Paul VANDENBROECK; Bernard
VERMET, Hieronymus Bosch: The complete paintings and drawings, p. 13.
74
(1510-1570) Pintor e entalhador flamengo, seu trabalho mais significativo, porém, foi como editor e
distribuidor de estampas, principalmente de trabalhos de Hieronymus Bosch e de Brueghel o Velho.
Graças a esse trabalho hoje temos cópias de algumas obras de Bosch que foram destruídas.
75
Obra que Lampsonius publicou em seu próprio nome, depois de acrescentar a cada retrato um
poema em latim, ainda que os retratos tenham sido entalhados por Hieronymus Cock, que morreu
antes que ela estivesse completa.
76
Apud Paul LAFOND, Hieronymus Bosch. Son art, son influence, ses disciples, p. 9.
77
(1538-1600) Pintor italiano; sua obra foi importante para o desenvolvimento da crítica de arte, pois
apresenta uma codificação sistemática da estética e os três aspectos que devem ser abordados
numa visão crítica das obras de arte. Cf. Paolo Roberto CIARDI, Scritti sulle arti, v. II.
55
dell’arte della pintura, de 1584: [...] foi singular e verdadeiramente divino
representando estranhas figuras e espantosos, horríveis sonhos”. Ou ainda, Karel
van Mander (1548-1606), pintor flamengo e escritor que, em 1604, em uma
volumosa obra bibliográfica sobre pinturas de várias épocas Shilderboeck
78
–,
aponta o quanto “árduo seria descrever as surpreendentes, estranhas, fantasiosas
imagens de espectros e de monstros infernais, frequentemente tanto repugnantes
quanto espantosos que J. Bos [sic] concebeu em seu cérebro e expressou com um
pincel”.
79
Enquanto Guicciardini, Lampsonius, Vasari, van Vaernewijk, Lomazzo, van
Mander, e mesmo Felipe II, se detêm nos aspectos fantásticos do pintor, Guevara
tenta mostrar o sentido naturalista, ainda que considere suas “monstruosidades
como “matéria de inferno”, Frei José de Sigüenza afirma a e a moralidade dos
trabalhos de Bosch, agora acusado de herege. Na Terceira parte de seu livro
Historia de la Ordem de San Jerónimo, de 1605, no qual descreve o Monastério de
San Lorenzo do Escorial bem como a vida e a morte de Felipe II, seu fundador,
Sigüenza afirma que suas pinturas não são “disparates”, loucura sem sentido, mas
antes “livros” contendo os sacramentos, estados e graus da Igreja, bem como os
mistérios da Redenção. Portanto, seriam uma espécie de sátira pintada dos pecados
e desvarios dos homens. Em suas palavras: “[…] a diferença que há, na minha
opinião, entre as pinturas deste homem [Bosch] e as dos outros é que os demais
procuraram pintar o homem qual parece por fora; este só se atreveu a pintar-lhe qual
é por dentro”
80
. Além disso, como se explicaria a presença de quadros de Bosch nos
aposentos do devoto rei Felipe II? Interessante notar aqui que as idéias religiosas de
Felipe II estão intimamente ligadas ao movimento do século XVI, na Espanha, que
Marcel Bataillon denominou “pré-reforma espanhola a Devotio Moderna , bem
como que Frei José de Sigüenza teria sido absolvido do tribunal da Inquisição por
interferência de Felipe II. Isto faz Rutgers
81
concluir que as origens dos trabalhos de
Bosch estariam no contexto da Devotio Moderna, já que a espiritualidade de Frei
78
Esta obra é comparável à Vite de Vasari.
79
As citações deste parágrafo foram colhidas da obra de Mia CINOTTI, El Bosco, que apresenta uma
antologia crítica, a documentação conhecida e um catálogo das obras de Hieronymus Bosch até
1968. Cf. também Roger H. MARIJNISSEN, Hieronymus Bosch: the complete works, p. 23.
80
José de SIGÜENZA, Tercera parte de la Historia de la Orden de San Jerónimo, p. 212.
81
Cf. Jaco RUTGERS, Hieronymus Bosch in El Escorial. Devotional paintings in a monastery. In: Jos
KOLDEWEIJ, Bernard VERMET (ed), Hieronymus Bosch. New insights into his life and work, p. 33-9.
56
José de Sigüenza bem como as ideias religiosas do devoto rei e de outros
elementos da corte estão intimamente relacionadas à espiritualidade deste
movimento. Podemos observar, dessa maneira, inauguradas as três grandes
correntes de discussão que se seguirão em torno da obra bosquiana: naturalismo,
irrealismo e ortodoxia religiosa.
À opinião de Sigüenza se contrapõe Francisco Pacheco
82
que, em Arte de la
pintura, de 1649, afirma que no seu entendimento “uma excessiva honra foi prestada
por Padre Sigüenza, que viu verdadeira naquelas licenciosas fantasias que mal
convém aos pintores”
83
.
Ao longo do século XVII, Bosch se torna popular entre os escritores
espanhóis como Lope de Vega (1634)
84
que aponta suas “moralidades filosóficas”,
ou ainda como Filippo Baldinucci
85
que, em 1681, analisa a forma com a qual Bosch
manuseia o pincel e as cores que emprega sem, porém, deixar de fazer referência
ao seu poder de “inventar caprichos de coisas extremamente terríveis e
espantosas”, ao mesmo tempo que afirma ser a busca dos bons pintores reproduzir
o mais verossímil possível a natureza:
Sendo certo que todo bom pintor busque, em sua obra, imitar no que é
possível a natureza e a verdade, é digno de admiração ver entre tantos arfices
maneiras tão diversas entre si e somente seguindo os ditames de seu próprio talento
cada um se faça mestre em sua própria maneira, melhor do que se tivesse
conseguido fazer seguindo as maneiras dos demais. Isto se especialmente em
Jerônimo Bos, que floresceu em Flandres.
86
Jheronimus Bosch vai, cada vez mais, se convertendo no protótipo do
monstruoso, horripilante, enigmático, grotesco, bizarro, como o qualificam, durante o
século XVIII, autores como Orlandi (1719), Palomino (1724), Félibien (1725),
82
(1564-1654) Pintor espanhol e tratadista, sua influência foi muito importante para a iconografía da
época. Suas obras como historiador da arte não só apresentam dados, tendências, escolas e artistas,
mas também uma explicação das técnicas pictóricas.
83
Francisco PACHECO, Arte de la Pintura, p. 129.
84
Cf. Xavier de SALAS, El Bosco en la literatura española, p. 30 et seq.
85
O italiano Filippo Baldinucci (1624-1696), biógrafo e historiador da arte, é considerado um dos
maiores historiadores da arte do período barroco. Sua obra Notizie de’professori del disegno da
Cimabue in qua, um dicionário biográfico de artistas, começa a ser publicada em 1681, continuando
até 1728, perfazendo um total de 6 volumes. Seu trabalho meticuloso amplia o de Vasari, que
escreveu apenas sobre artistas italianos, adicionando artistas franceses e flamengos que foram
omitidos por Vasari. Cf. edição de Studio per edizione scelte, Firenze, 1974-5, em 7 volumes. Notizie
de ‘ professori del disegno..., v. II, p. 139-40.
86
Filippo BALDINUCCI, Notizie deprofessori del disegno, v. II, p. 139.
57
Descamps (1753), Gori (1771), ao mesmo tempo em que, do ponto de vista
religioso, confirmam a opinião de Siguenza comentadores como De Mayans (1776)
e Ponz, que consideram o significado alegórico dos “disparates” de Bosch como
expressões das paixões e pecados humanos.
87
Durante o século XIX, o biógrafo de artistas holandeses Johannes Immerzeel
(1842)
88
fala da qualidade artística da obra bosquiana e que, de vez em quando,
“Bosch é capaz de pintar coisas sérias”, ainda que seus temas sejam
desagradáveis, extravagantes, despertando medo no espectador, em vez de prazer.
Opinião compartilhada por Stanley (1855)
89
que acrescenta ser esses temas
“alucinações de alguém sofrendo os efeitos de um cérebro destemperado”. Por outro
lado, ainda neste período, provavelmente por influência do Romantismo e de Max
Dvoräk, e a chamada escola vienense, uma mudança na abordagem da obra
bosquiana: não mais as formas puras, mas o conteúdo espiritual passa a ser o foco
de interesse. Assim, por exemplo, para Alfred Michiels (1845) Bosch, como Milton e
Dante, “vaga no seio de trevas visíveis”, e com sua inteligência sombria e
melancólica, “via o nada das coisas humanas”: mostrou os horrores mais secretos
da vida, arrancando-lhe a máscara atrás da qual está o rosto da morte.
90
Paralelamente, na esteira do movimento Realista que se seguiu ao Romantismo,
alguns scholars afirmam a preocupação de Bosch em representar a realidade,
chegando a apontá-lo como “precursor do realismo moderno”
91
. É assim que, em
seu artigo Die Werk des Hieronymus Bosch in Spanien
92
, de 1889, Carl Justi o
considera: um agudo observador do mundo da natureza e do homem, ele “sabia
captar as coisas menores como as maiores”, denunciando a loucura humana de
forma dura e sem piedade. Da mesma forma, René van Bastelaer critica alguns
autores que, ao tomarem algumas aparências grotescas ou alguns aspectos como
malícia, negligenciam “a face mais verdadeira e mais considerável de sua
87
Apud Roger H. MARIJNISSEN, Hieronymus Bosch: the complete works, p. 24.
88
Apud Jos KOLDEWEIJ, The ouvre of Hieronymus Bosch. In: OUDHEUSDEN, Jan van; VOS Aart
(eds), The World of Bosch, p. 99.
89
Apud Roger H. MARIJNISSEN, Hieronymus Bosch: the complete works, p. 25.
90
Joseph Alfred X. MICHIELS, Histoire de la peinture flamande et hollandaise, p. 379-87.
91
Além de Carl JUSTI e René van BASTELAER, citados, cf. tamm M.G. GOSSART, La peinture de
diableries à la fin du moyen-âge. Jérôme Bosch, le efaizeur de dyablese de Bois-le-Duc, passim; L.
MAETERLINCK, A propos d’une ouvre de Bosch au mesée de Gand, Revue de l’art ancien et
moderne, p. 259-307.
92
Carl JUSTI, Jahrbuch der Preussischen Kunstsammlungen, X, p. 121-44.
58
genialidade: seu amor à realidade, sua busca das formas características,
exageradas algumas vezes até uma preferência decidida pelas raridades e
monstruosidades naturais”. E completa, mais adiante, referindo-se à habilidade
extraordinária de Bosch para representar a realidade a partir de formas concretas de
uma paisagem, por exemplo, com peixes, plantas, ssaros e insetos, unidas a
coisas inertes, ou a singularidade dos traços fisionômicos, porém, ainda acrescenta,
“com desconcertantes associações”:
De cestos entrançados, engenhos metálicos e objetos bélicos extrai seres
vivos revestidos de cascas e conchas; com utensílios domésticos e de trabalho
fabrica instrumentos de suplício, com uma capacidade de renovação e sentido
pictórico extraordinários, uma facilidade para assimilar e harmonizar incomparável.
93
O crescente interesse pela obra de Bosch resulta, no século XX, em uma
abundante investigação. Ao contrário de van Bastelaer, Max Rooses em Histoire
générale de l’art Flandre, de 1913, diz que Bosch diferia de seus contemporâneos
realistas porque enquanto estes buscavam a verdade na interpretação integral da
natureza, qualquer que fosse, agradável ou repugnante, grosseira ou notável, ele, de
uma habilidade extrema, “não se limitava a imitar, ele inventava. Sua fantasia foi
inesgotável, audaciosa e desconcertante. Em suas cenas da vida real, ele realça a
verdade mais banal por meio de detalhes divertidos ou a ela mistura a ficção mais
disparatada”
94
. Para Paul Lafond, Bosch “é ainda e sobretudo o precursor da escola
realista dos Países Baixos. [...] surpreende por suas imaginações assombrosas, pela
abundância e riqueza de suas invenções [...] O que o artista inventa existe; sua
fantasia não é senão uma expressão do real”.
95
Opinião que Friedländer o
partilha:
Tudo o que é anormal e disforme, ao contrário, coloca em movimento a
concepção pessoal de Bosch. À sua aversão pela arquitetura, simetria e regra, ele
junta um prazer diabólico à aparente anarquia das formas orgânicas. O inesperado
lhe interessa, a norma o deixa indiferente. [...] Como observador do homem Bosch é
certamente um precursor de Brueghel, mas de visões nascidas de uma imaginação
cruel que deforma a natureza, corrompendo, oprimindo, perturbando seu sentido de
93
René Van BASTELAER; Georges Hulin DE LOO, Pieter Brueghel l’Ancien, son ouvre et son temps,
p. 7-10.
94
Max ROOSES, Histoire générale de l’art Flandre, p. 133. Nascido em 1839, Rooses estudou
filosofia e literatura, tornou-se escritor e crítico literário, chegando, a partir de 1876, a Diretor do
Platin-Moretus Museum, de Antuérpia, cidade onde morreu em 1914.
95
Paul LAFOND, Hieronymus Bosch. Son art, son influence, ses disciples, p. 11-7.
59
realidade. [...] A imaginação de Bosch desafia as leis da natureza, não se importa
com a distinção entre homem e besta, entre as criações do homem e a obra da
natureza.
96
Até 1936, observamos alguns comentários acerca do aspecto moral, da fé,
seguindo a linha de Siguenza, ou a forma humorística e irônica com a qual Bosch
abordaria o mal, permanecendo, ainda, quem chame atenção às suas fantasias que,
agora, se deveriam ao medo do inferno, medo característico dos seus dias. Porém,
com o desenvolvimento da Psicanálise e o nascimento do Surrealismo, movimento
artístico influenciado pelas teorias de Sigmund Freud, Jheronimus Bosch passa a
ser visto como um torturado psicológico” que se auto-pune por seus desejos
sensuais, um perverso sexual que satisfazia seus desejos por meio de suas
representações picturais, um neurótico cujo trabalho o preservou de se tornar um
doente mental; ao mesmo tempo em que se converteu no “pai” de artistas como
Tanguy, Dali ou Max Ernest. Por outro lado, na tentativa de explicar sua inovação no
que ficou conhecido como pintura de “gênero”, introduzindo as categorias de cômico,
anedótico e de ironia, alguns comentadores reforçaram a idéia de sua ortodoxia
religiosa e persuasão moral, acrescentando, por vezes, seu intento de crítica tanto
política, como social. Outros, ainda, deram ao simbolismo bosquiano um sentido
astrológico, alquímico, como se seus quadros fossem a ilustração de algum texto,
desvalorizando, assim, seu poder criativo.
Paralelamente às divagações mais ou menos doutas e, talvez, por causa
delas, alguns scholars se preocuparam em estabelecer um estudo mais sistemático
da obra bosquiana. A primeira tentativa de uma cronologia rigorosa das pinturas de
Bosch que não datou nenhum de seus quadros – foi de Ludwig von Baldass
97
cujo
objetivo era mostrar o desenvolvimento artístico do pintor com base em um aumento
progressivo de realismo. Para este autor, Bosch era um homem medieval com uma
visão de mundo profundamente pessimista; seus quadros não possuíam elementos
96
Max J. FRIEDLÄNDER, De van Eyck a Brueghel: les primitifs flamands, p. 73-4. Cf. também Mia
CINOTTI, La obra pictórica completa de El Bosco, p. 11; Carmen GARRIDO; Roger Van SCHOUTE,
El Bosco en el Museo del Prado, p. 13-5; Roger H. MARIJNISSEN, Hieronymus Bosch: the complete
works, p. 27.
97
Ludwig von BALDASS, Jahrbuch der preussischen Kunstsammlungen (1917); Jahrbuch der
Kunsthistorischen Sammlungen (1926, 1935); Annuaire des Musées royaux des Beaux-Arts de
Belgique (1938); Hieronymus Bosch (1943), obra na qual o autor publica um catálogo das obras do
pintor flamengo. Cf. também, Roger H. MARIJNISSEN, Hieronymus Bosch: the complete works, p. 32;
Mia CINOTTI, La obra pictórica completa de El Bosco, p. 82; Carl LINFERT, Bosch, p. 9; Carmen
GARRIDO; Roger Van SCHOUTE, El Bosco en el Museo del Prado, p. 16.
60
políticos ou sociais, mas antes mostravam a insensatez, a loucura, e a maldade do
ser humano. O primeiro catálogo da obra de Bosch, no entanto, foi organizado por
Max J. Friedlander, em1927.
uma renovação nos estudos consagrados ao pintor brabantino a partir de
1936, quando teve lugar uma grande exposição sobre Bosch, em Rotterdan.
Destacam-se os trabalhos de Baldass, citado, e o de Charles De Tolnay (1937),
para quem a arte de Bosch é “uma linguagem que ele torna ppria para exprimir
uma concepção de mundo”
98
. Mas, não se trata de uma crítica social ou política,
mas antes uma reflexão sobre a condição do homem medievo, que se aproxima
daquela desenvolvida por Siguenza em 1604. O autor conclui:
Ao mesmo tempo em que atraído pelo gozo carnal e seduzido pelo apelo do
ascetismo, muito crente para se inclinar em direção à heresia e muito clarividente
para não penetrar nos desregramentos da Igreja e nas misérias do mundo,
deslumbrado pela beleza, o fantástico da natureza, e negando lhe outorgar um valor
divino ou humano, se resignando enfim à “Docta ignorantia”, Bosch aponta as
antinomias de sua época para nelas fazer a trama de sua criação artística [...]
Sintoma característico de toda fase tardia de uma civilização, no quadro singular da
Idade Média decadente, o mundo interior, o único verdadeiro, domina a mentira do
mundo exterior.
99
Todavia, a interpretação mais provocante foi de Wilhelm Fraenger
100
que
lançou a tese de que Bosch teria pintado para dois diferentes clientes, o que
explicaria a ambigüidade de seu conteúdo temático. Para os Irmãos do Espírito
Livre
101
, um grupo herético que surgiu no século XII, muito difundido na Alemanha e
Países Baixos, ele teria pintado o Jardins das delicias, Carro de feno e Tentações de
98
Charles DE TOLNAY, Jérôme Bosch, p. 13. Este livro foi reeditado com algumas modificações,
feitas pelo próprio autor, em 1967.
99
Ibid., p. 47.
100
Fraenger estudou detalhadamente vários quadros de Bosch. Em 1947 lançou um estudo sobre o
Jardim das delícias; em 1948, São João em Patmos; em 1950, Bodas de Canaã; em 1951, Filho
Pródigo, do Museu Boymans-van-Beuningen, de Rotterdan; em 1957 e 1958, Adoração dos Magos e
Santo Antão, do Museo del Prado, de Madrid; em 1963 uma grande análise de Santo Antão, do
Museu de Arte Antiga, de Lisboa. Todos esses trabalhos estão reunidos em Hieronymus Bosch.
101
Composta por homens e mulheres, esse grupo acreditava que toda a humanidade estava
destinada à salvação; que não havia inferno; que o bem e o mal dependem da vontade divina; o
homem não merece a vida eterna; a repressão dos pecadores é mais grave que o próprio pecado;
não há ressurreição da carne; portanto, a oração e todas as observâncias religiosas são inúteis. Suas
doutrinas religiosas consistiam, basicamente, na união do homem com Deus, pela contemplação
mística, e uma vez unido com Deus, o pecado se torna impossível ao místico, portanto ele pode fazer
tudo o que deseja: o roubo, a mentira, as licenciosidades sexuais estão permitidas. Seus rituais eram
caracterizados por deleites sexuais, pois a união sexual e espiritual garantiria o retorno à identidade
primeira de Adão e, por isso, ficaram conhecidos como adamitas. Para Fraenger, o painel central do
Jardim das delicias representaria parte desses rituais. Cf. Mia CINOTTI, La obra pictórica completa de
El Bosco, p. 84.
61
Santo Antão (de Lisboa) reproduzindo, nestes quadros, suas doutrinas religiosas.
Para a Igreja, Bosch teria realizado as cenas da Paixão de Cristo como Ecce Homo,
por exemplo. Em outros quadros, como Adoração dos magos (do Prado), os
símbolos seriam apenas acessórios. Para Fraenger, embora suas pinturas estejam
repletas de moral, Bosch estaria alheio aos conceitos ortodoxos do cristianismo.
À interpretação de Fraenger seguiram menos adeptos do que adversários.
Uma autora que caminhou em sua esteira, embora discordando com a pertença de
Bosch à seita adamita, foi Lynda Harris (1985) para quem os misteriosos símbolos
de Bosch manifestavam sua que, segundo ela, é secreta, herética e mística: o
catarismo, uma religião gnóstica que vê, como todo Sistema Gnóstico, o mundo da
matéria esfera da escuridão e da morte, criado e governado pelo demiurgo
totalmente separado do mundo do espírito domínio da luz e da vida, mundo do
Deus Verdadeiro. Sua tese é de que, mesmo Bosch parecendo um cristão
convencional, sua aparente piedade era superficial, pois, ainda que místico, ele não
foi seguidor de Ruysbroek ou dos Irmãos da Vida em Comum como sugeriram
alguns scholars que, embora criticassem o clero e fossem dualistas, aliás, bem
menos do que Bosch, mantinham a Igreja e o Papado.
102
A maioria dos comentadores, porém, rechaça a idéia de heresia, situando
Bosch no contexto de seu tempo. Para Jacques Combe (1946), por exemplo, o
pintor brabantino foi profundamente influenciado pela stica medieval,
particularmente por Ruysbroeck, porém usou livremente o simbolismo sexual,
filosófico e esotérico da alquimia contemporânea. Também Dirk Bax (1949)
acreditava na piedade de Bosch e o caracterizou como um intelectualista moral que
apresentou quase todos os vícios como “loucura”, já que são produtos dos excessos
de cada um. Essa correlação entre vício e loucura, ou virtude e sabedoria, é
característica da “literatura da loucura” do século XV, como encontramos em
Sebastian Brant ou Thomas Murner. De acordo com Bax, o fato de empregar
simbolismo mágico e demoníaco não significa que ele admitisse a existência de
bruxaria ou feitiçaria. Como alguém que viveu no período de transição entre a Idade
Média e o Renascimento, seu espírito se aproxima dos retóricos: intelectualidade,
fascinação por rébus e jogos de palavras, simbolismo erótico, fantasias
102
Cf. Lynda HARRIS, The secret heresy of Hieronymus Bosch. Cf. também Lílian WURZBA, Seria
Hieronymus Bosch um cátaro?, Agnes, (3), p. 10.
62
extravagantes, impulso moralista e argumentação didática.
103
Hoje, está totalmente
descartada a tese de Fraenger.
Outras tantas interpretações se seguiram sem, porém, nada novo ser
acrescido ao que havia sido produzido anteriormente. Contudo, a exibição de 1967,
no Noordbrabants Museum de s’Hertogenbosch, não despertou o interesse do
público em geral, mas também marcou a oportunidade de uma renovação nos
estudos sobre o pintor brabantino. As pesquisas se concentraram, principalmente,
nos arquivos da cidade e arredores, tanto quanto na técnica pictural de Bosch e do
simbolismo por ele empregado. Como resultado, destaca-se o trabalho de Pe.
Gerlach, comentado, que apontou as inexatidões quanto aos dados da vida de
Bosch presentes na literatura moderna, e a importante contribuição de Roger van
Schoute que, com a ajuda de métodos laboratoriais (fotografia infra-vermelha)
104
,
pôde observar o desenho subjacente na obra atribuída a Bosch, com o objetivo de
verificar sua autenticidade, que o pintor brabantino, além de não ter datado seus
quadros, assinou apenas alguns deles.
A partir de então, as investigações focalizaram cada vez mais o trabalho
historiográfico. Esse foi o esforço da exibição de 2001, ano de Jheronimus Bosch na
Holanda, promovida pelo Museum Boijmans van Beuningen de Rotterdan, com a
realização da First International Jheronimus Bosch Conference Jheronimus Bosch
revealed?The painter and his world , cujo foco de atenção foi o contexto do mundo
cultural e artístico dos Países Baixos no tempo de Bosch, incluindo a cultura visual
da elite bem como da população comum, que se acreditou que ao considerar o
ambiente imediato do pintor seria possível também explorar em maior profundidade
alguns temas que o próprio artista desenvolveu em detalhe: iconograficamente,
tematicamente ou de acordo com o significado tradicional ou simbólico. Desta
exposição resultou um volume
105
com artigos de alguns scholars historiadores,
103
Cf. Dirk BAX, Ontcijfering van Jeroen Bosch. Tradução inglesa: Hieronymus Bosch: his picture-
writing deciphered, p. 86.
104
Usados pela primeira vez por Roger Van SCHOUTE, da Universidade Católica de Louvain, autor
de vários estudos nos quais são examinados os desenhos subjacentes à pintura. Cf. Roger Van
SCHOUTE, lène VEROUGSTRAETE, Carmen GARRIDO, Bosch and his Sphere. Techmique. In:
Jos KOLDEWEIJ, Bernard VERMET (ed), Hieronymus Bosch. New insights into his life and work, p.
103-119; Roger Van SCHOUTE, La problemática de la obra de El Bosco. In: Carmen GARRIDO;
Roger Van SCHOUTE, El Bosco en el Museo del Prado. Estudio técnico, p. 13-21.
105
Cf. Jos KOLDEWEIJ; Bernard VERMET (ed), Hieronymus Bosch. New insights into his life and
work.
63
medievalistas, historiadores da arte, arqueólogos, musicólogos, curadores e
cientistas sociais que poderíamos dividir em dois grupos: no primeiro estão os que
abordam de forma descritiva a vida de Bosch, dando continuidade às pesquisas
iniciadas nos arquivos de ‘s-Hertogenbosch e da Confraria de Nossa Senhora, bem
como sua obra, considerando sua técnica e cronologia, incluindo os estudos
laboratoriais iniciados anteriormente, os inventários do Monastério de San Lorenzo
de El Escorial e inventários reais espanhóis, tais como de Felipe de Guevara, Felipe
II, Casa Real do Prado, do Palácio Real de Alcázar; no segundo grupo, estão
aqueles que tentam uma interpretação de alguns símbolos presentes na obra de
Bosch como o sapo, por exemplo, ou objetos que pertenceriam ao cotidiano dos dias
de Bosch, am de incluir um estudo sobre a presença da dança e da música na
obra do pintor, bem como uma pesquisa sobre o formato tríptico por ele utilizado.
Todavia, uma concordância entre os autores de que a obra bosquiana é
moralizante, atesta as doutrinas da Igreja da Queda, da Redenção e do caminho
para a salvação, apresenta símbolos evidentes do mal, do demoníaco, da fragilidade
humana, ou seja, está totalmente inserida no contexto cultural e tradicional do final
da Idade Média.
Em maio de 2007, foi realizada a Second International Jheronimus Bosch
Conference
106
The sources of Bosch –, em ‘s-Hertogenbosch, na qual scholars
como Larry Silver, Paul Vandenbroeck, Roger Marijnissen, Fernando Marías, J.
Koldeweij, Bernard Aikema, entre outros, deram continuidade às discussões
científicas iniciadas em 2001, focalizando a atenção nas possíveis fontes das obras
de Bosch. Entre as mais citadas estão: a Bíblia, Legenda áurea, The Pilgrimage of
Man, Ars Moriendi, The Vision of Tundale, The Travels of Sir John Mandeville, além
dos textos místicos e teológicos incluindo Santo Agostinho, Ruysbroeck, Alberto
Magno, Denis o Cartusiano e Jean Gerson, aos quais nos referimos anteriormente.
Essa amplitude de possíveis fontes, contudo, atestam a independência de Bosch
como um artista criativo, a sua erudição, bem como demonstra a importância de sua
obra quase como síntese de uma época.
No espaço limitado deste trabalho ser-nos-ia impossível abordar todos os
estudos realizados sobre a obra bosquiana, por isso apresentamos apenas algumas
breves indicações. Vimos, a partir dessa síntese, que o monstruoso e o fantástico
106
Cf. www.jheronimusbosch-artcenter.nl
64
ocupam lugar central, ora entendido como representação do real, ora como forma de
afirmar sua moralidade e ortodoxia religiosa, ora como expressão de fantasias sem
sentido, ou até mesmo sugerindo uma suposta patologia psíquica. No entanto, é
importante lembrarmos que aquilo que os comentadores do século XVI
consideravam “horríveis sonhos” não deve ser entendido tal como o é pela
psicanálise contemporânea. No culo XVI, sogni dei pittori indicava a vivência de
uma ruptura de qualquer ordenação, a participação de um mundo diferente,
estranho, “sobre cujo teor de realidade e verdade o pensar jamais alcaou bom
termo”
107
. Como poderíamos pensar essa “vivência de uma ruptura”?
O que nos chama a atenção, contudo, é o fato de que em nenhum momento
as pesquisas recentes se voltarem para o tema da melancolia, que fora
mencionado por Alfred Michiels em 1845 (ver acima), ainda que o autor não o tenha
desenvolvido; tema que, como vimos acima, e afirmam historiadores como Huizinga,
Delumeau, Minois, entre outros, dá o tom ao crepúsculo da Idade Média: “nos fins da
Idade Média pesava sobre a alma do povo uma tenebrosa melancolia”
108
. Ou como
mostram Klibansky, Panofsky e Saxl, em Saturno y la Melancolia, é um tema
presente tanto na arte literária quanto na pictórica. Se a obra bosquiana pertence à
tradição de seu tempo, como concordam os comentadores, por que não foi
considerado este aspecto tão marcante?
Andrew Pigler (1950), em seu artigo Astrology and Jerome Bosch, foi quem
primeiro se aproximou do tema da melancolia quando, comparando a personagem
central do chamado Filho pródigo, ou O viajante, de Rotterdan (fig.6, acima), com o
Mercador, ou o Vagabundo (fig. 10), do reverso do Carro de feno, de Madrid,
identificou-o com um tipo de “filho de Saturno”, “de rosto exíguo, com disposição ao
abandono e à melancolia, com os movimentos lentos de um homem que não pode
decidir-se”
109
. Também apontou as semelhanças destes personagens com uma
gravura de 1470 (fig.11)
110
, mas apenas assinalou a presença dos motivos
saturninos: a forca, cena de violência e pilhagem e a presença do cachorro como
animal associado a Saturno. Lott Brand-Philip (1958) concordando com Pigler, viu o
107
Wolfgang KAYSER, O grotesco, p. 20.
108
Johan HUIZINGA, O declínio da Idade Média, p. 31.
109
Andrew PIGLER, Astrology and Jerome Bosch, The Burlington Magazine, XCII, p. 132.
110
Uma xilogravura intitulada Saturno e seus filhos, cópia alemã provavelmente de um original
holandês perdido. Cf. KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolia, fig. 39.
65
Filho Pródigo como um “filho de Saturno”, porém sua interpretação permaneceu no
nível astrológico, propondo, inclusive, a existência de um suposto tríptico no qual
Bosch teria representado os quatro temperamentos com os planetas e os elementos
a eles correspondentes: o melancólico, Saturno, terra em o Filho Pródigo; o
sanguíneo, Mercúrio, ar em A extração da pedra da loucura (do Prado); o
fleumático, Lua, água em O prestidigitador (de Saint-Germain-en-Laye); e o colérico,
Sol, fogo em Hog-Hunt of the Blind, que teria desaparecido.
111
Ainda que a hipótese
de Brand-Philip seja atraente, não encontramos quaisquer referências a esta última
pintura embora outras obras também hoje perdidas sejam citadas em algum dos
textos mais antigos ou nos inventários já mencionados – e, além disso, só as
diferenças estilísticas indicam que esses trabalhos foram realizados em datas
diversas, como acertadamente comenta Peñalver Alhambra, o que inviabiliza a
hipótese de formarem um tríptico.
112
Fig. 10. Carro de feno. Museo del Prado. Fig. 11. Saturno e seus filhos. Berlim, Staatliche
Painéis externos Museen Preussischer Kulturbesitz
111
Lott BRAND-PHILIP, The Pedlar by Hieronymus Bosch. A study in detection, Nederlands
Kunsthistorich Jaarboeck, p. 1-21. A reconstituição do suposto tríptico, a autora apresenta à p. 66.
112
Cf. Luis PEÑALVER ALHAMBRA, Los monstruos de El Bosco, p. 60. Hoje sabemos, graças aos
estudos dendrocronológicos, que A extração da pedra da loucura (do Prado) tem data de execução
muito anterior ao Prestidigitador (de Saint-Germain-en-Laye) e o Filho Pródigo (de Rotterdan) foi,
provavelmente, o exterior de um tríptico constituído, em sua parte interna, por A nau dos loucos (do
Louvre), a Alegoria da gula (de New Haven) abaixo à esquerda, e A morte do avaro (de Washington),
à direita, o que corrobora a posição de Peñalver Alhambra. Cf. Bernard VERMET, Hieronymus Bosch:
painter, workshop or style? In: Jos KOLDEWEIJ; Paul VANDENBROECK; Bernard VERMET,
Hieronymus Bosch. The complete paintings and drawings, p. 88.
66
As interpretações de Pigler e Brand-Philip foram rechaçadas, entre outros, por
Dirk Bax e De Tolnay. Para este último, é evidente a expressão melancólica das
personagens em questão, mas isso não quer dizer que sejam “filhos de Saturno”,
que “a significação secundária astrológica destas obras não é de nenhum modo
certa, pois o planeta não está aí representado”
113
. Porém, como mostra Pigler, nas
figurações mais populares, principalmente no norte da Europa, são omitidos os
deuses planetários, pois a atenção se focalizava no que acontecia na terra.
114
Além
disso, De Tolnay poderia estar certo se a hipótese estivesse baseada apenas no
Filho Pródigo e no seu correspondente no verso do Carro de feno. Contudo, como
observa o filósofo espanhol Luis Peñalver Alhambra (1995), “uma investigação mais
profunda e atenta pode demonstrar que a preocupação saturnina impregna toda a
obra e o pensamento de nosso pintor”
115
. De fato, quando se olha algumas gravuras
do século XV, como as das figuras 11, 12 e 13
116
, nas quais estão representados os
“filhos de Saturno”, é possível reconhecer a semelhança com os motivos recorrentes
na obra bosquiana: camponeses, coveiros, ladrões, presos, vagabundos, mendigos,
amputados, que se espalham em uma paisagem rural, na qual podem ser vistos
instrumentos como o arado, a foice e a pá, relacionados à agricultura como também
à morte, além da forca e animais como o cachorro e o porco, todos associados a
Saturno.
113
Charles DE TOLNAY, Jérôme Bosch, p. 343.
114
Andrew PIGLER, Astrology and Jerome Bosch, p. 132.
115
Luis PEÑALVER ALHAMBRA, Los monstruos de El Bosco, p. 61.
116
A figura 12 é uma gravura italiana da segunda metade do século XV, enquanto a figura 13 é uma
obra alemã da primeira metade do mesmo século, ambas intituladas Saturno e seus filhos. Apud
KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, fig.40 e fig.41.
67
Fig. 12. Saturno e seus filhos. Fig. 13. Saturno e seus filhos. Tubingen,
Universitätsbibliothek.
Mas o que significa a presença desses personagens saturninos na obra
bosquiana? De acordo com Peñalver Alhambra, Bosch, conhecedor que era da arte
de seu tempo, empregou essas figuras, irregulares e instáveis, todas melancólicas,
bem como o monstro e o monstruoso, o grotesco e o escatológico, o feio e o
diabólico e o fez a partir de uma perspectiva puramente pictórica ou estilística e,
portanto, estética –, para “transmitir uma experiência inédita que não encontramos
entre seus predecessores e contemporâneos flamengos e holandeses”
117
: uma
experiência “da angústia emergente de uma subjetividade que se manifesta
sobretudo na alma melancólica do artista”
118
; do artista criador que, como
Michelangelo – para quem “a minha alegria é a melancolia”
119
–, sofre “em meio aos
maiores fastios e mil ameaças”
120
. Mesmo considerando a impossibilidade de que o
pintor brabantino pudesse ter conhecido a obra de Agrippa de Nettesheim (1485-
1535), Oculta philosophia, na qual o pensador renano desenvolveu sua teoria sobre
os três tipos de melancolia – a imaginativa, a racional, a espiritual –, o autor acredita
em uma espécie de “parentesco” entre Bosch e Albrecht Dürer, no que tange a “uma
117
Luis PEÑALVER ALHAMBRA, Los monstruos de El Bosco, p. 266.
118
Ibid., p. 265.
119
Ibid., p. 277.
120
Apud Yves HERSANT, Mélancolies, p. XIII.
68
sensibilidade especificamente nórdica que implica certo mister tgico no modo de
entender a natureza saturnina e o talante melancólico do artista, um denominador
comum que é estranho ao neoplatonismo italiano”
121
. E, sendo assim, antes que
Dürer pintasse seu Melancolia I, a representação da primeira da série de Agrippa
122
– a melancolia artística inspirada –, Bosch teria inaugurado, segundo Peñalver
Alhambra, um novo estilo de pintura, pois enquanto na Itália os novos métodos se
voltavam para o naturalismo e para a representação fiel da realidade visível, a arte
bosquiana, muitas vezes utilizando os mesmos meios, mostra “que a pintura pode
refletir também o invisível, aquilo que ninguém viu porque constitui a paisagem
interior da alma”
123
. Neste sentido, para o autor, a reflexão desenvolvida por Bosch,
uma reflexão puramente pictórica, um pensamento figurativo apoiado na poética das
imagens, expressa “uma interioridade que não se sente imagem divina senão
espaço interior ameaçado por potências desagregadoras ou ‘demoníacas’”
124
,
potências estas que “nos cobram o preço de sermos homens, pois não redenção
da ‘pena’ de sermos mortais, e os pecados são tão grandes que não pecados
que purgar”
125
; ou seja, uma interioridade que não encontra seu fundamento na
Providência divina, vivendo em um mundo do qual foi arrebatada a Graça
126
.
Peñalver Alhambra conclui, assim, que Bosch, vivendo entre duas épocas uma
periclitada e outra ainda por se pronunciar –, embora com raízes na tradição
medieval, “se adianta a seu tempo, e o faz levando a tradição medieval cristã e suas
concepções sobre o mundo e sobre o homem até suas últimas conseqüências”
127
,
pois com ele “culmina e transborda – com esse excesso violento e cruel do qual abre
uma nova época – a visão niilista do mundo própria do cristianismo que havia
definido o aqui como o reino dos ímpios ou, o que é o mesmo, do diabo
128
.
121
Luis PEÑALVER ALHAMBRA, Los monstruos de El Bosco, p. 269.
122
Proposição de Klibansky, Panofsky e Saxl, discutida na quarta parte de Saturno y la melancolía (p.
271-379), com a qual partilham vários scholars, entre eles Francis Yates em The Occult Philosophy in
the Elizabethan Age, especialmente às p. 50-9.
123
Luis PEÑALVER ALHAMBRA, Los monstruos de El Bosco, p. 267.
124
Ibid., p. 266.
125
Ibid., p. 334.
126
Ibid., p. 339.
127
Ibid., p. 343.
128
Ibid., p. 341.
69
Por nossa parte, concordaríamos com a brilhante análise desenvolvida pelo
filósofo espanhol, uma análise, ressaltemos, estritamente estética, a não ser por um
aspecto: ainda que coloque a descoberto a evidência trágica e grotesca do mal,
acreditamos que Bosch, para além de sua própria melancolia, de sua consciência de
um mundo precário o mundo medieval nascido sob o “signo de Saturno” e de
sua percepção visionária de uma época por vir, que vai culminar na “morte de Deus”,
“responde” a seus contemporâneos mostrando a paradoxalidade da existência
humana que carrega em si a materialidade do corpo e imaterialidade da alma, “a
misteriosa contradição que está no coração da condição humana”, e que consiste,
como afirma Robert Burton, no fundamento da melancolia. Este será o tema do
próximo capítulo.
70
CAPÍTULO II
A MELANCOLIA:
DOENÇA DO CORPO, ENFERMIDADE DA ALMA
Se o homem fosse um ele jamais sofreria;
Pois onde estaria a causa do sofrimento?
Políbio
Quem não é louco, quem está livre da melancolia?
[...] Quem não é governado pela paixão, pela angústia,
pelo desejo, pela insatisfação, pelo medo e os sofrimentos?
Robert Burton
Dois mil anos separam Políbio de Robert Burton; e deste distamos mais três
séculos. Com o primeiro nasce a história do termo melancolia; com o segundo, ela é
dissecada, anatomizada; e hoje foi expulsa dos quadros nosográficos dos manuais
de psiquiatria, como o DSM (Diagnostic and Statical Manual of Mental Disorders),
por exemplo. Durante esse período, a melancolia foi experimentada, narrada,
pensada, discutida, medicada, pintada e esculpida. Sua mais antiga expressão
conhecida vem do Egito, cerca de 1850 a.C., num poema intitulado O homem que
estava fatigado de viver, no qual um homem, desgostoso com o que no mundo e
sentindo-se abandonado por sua “alma”, aspira a morte. Mesmo sendo de uma
cultura e época determinadas, seus termos se apresentam intemporais:
É muito penoso que minha alma não fale comigo.
É tão insuportável que inclusive gritar torna-se inútil, tanto que ela me ignora.
Que minha alma não parta! Que ela me seja favorável vendo meu desamparo!
[...] em meu corpo com uma corda,
Pois é impossível que ela escape de mim no dia do infortúnio!
Mas veja, minha alma se afasta de mim, porque eu sou incapaz de escutá-la!
71
Assim, me arrasta infalivelmente em direção à morte, antes que esta me sobrevenha,
porque ela [a alma] me abandona agora em minhas dores, consumido sem
recursos.
1
Essa solidão e o sofrimento do abandono também foram experimentados por
Belerofonte, como nos relata Homero nos versos 200-203 do Canto VI da Ilíada,
episódio considerado por Starobinski como a primeira apresentação de um quadro
sintomático de melancolia: “Mas quando alvo do ódio dos deuses, [Belerofonte]
errava solitário nas planícies de Ale, com o coração devorado pela dor e afastado
dos passos dos homens”
2
. Valente e justo, o herói Belerofonte não tinha nenhum
motivo para essa existência errante, pois não havia cometido qualquer crime contra
os deuses.
3
Ao contrário, sua virtude foi responsável pelas desgraças que lhe
sobrevieram, pois, rejeitando as pretensões da rainha Antéia de “unir-se
clandestinamente” a ele, foi vítima da ira de seu marido Preto, rei de Tirinto, que,
não podendo matá-lo, como havia pedido sua mulher, enviou-o ao seu sogro, rei da
Lícia, com uma carta pedindo que desse morte ao portador. Pom, para não sujar
suas mãos, o rei lhe incumbiu quatro missões, todas vencidas com bravura por
Belerofonte: matou a Quimera, lutou contra os ferozes e belicosos sólimos
(habitantes das vizinhanças da Lícia), confrontou as temíveis Amazonas e, por fim,
liquidou os soldados do rei que lhes havia ordenado que fizessem uma emboscada e
acabassem com o herói.
4
Contudo, depois de ter enfrentado e superado as
dificuldades impostas pelos homens, conquistado sua terra e sua esposa, não teve o
merecido descanso. O que teria acontecido? De acordo com Schaerer
5
, no mundo
homérico as relações entre os homens e a retidão do caminho se dão com a
garantia divina. Assim, quando os deuses negam esse favor, o homem é condenado
à solidão, a errar sem rumo e sem sentido. Foi o que aconteceu a Belerofonte que,
1
Poema completo In: Yves HERSANT, Mélancolies, p. 3-10.
2
Apud Jean STAROBINSKI, Historia del tratamiento de la melancolía: desde los orígenes hasta 1900,
p. 11.
3
Na versão homérica, pois em Píndaro, Ovídio e Plutarco, Belerofonte teria ofendido os deuses com
sua hybris, pois, acreditando-se imortal, quis voar aos céus montado em Pégaso. Cf. Jean
STAROBINSKI, Historia del tratamiento de la melancolía, p. 11, nota 1.
4
Cf. Junito de Souza BRANDÃO, Mitologia grega, p. 207-19, v. III.
5
René SCHAERER, L’homme antique et la structure du monde intérieur: D’Homère à Socrate, p. 93-
9.
72
desamparado, acometido por uma misteriosa ira dos deuses, “vai errando no vazio,
longe dos deuses, dos homens, em um deserto ilimitado”
6
.
Outro exemplo dessa existência errante encontramos em Orestes, de Ésquilo,
talvez o louco mais lebre da tragédia grega. Impotente, desesperado, entre
cumprir a ordem de Apolo para que vingue a morte de seu pai, matando sua mãe, e
a certeza da condenação a sofrimentos, mesmo cumprindo o desígnio do deus,
Orestes antevê sua solidão, tristeza e segregação dos homens:
[...] não sei aonde levará esta minha corrida. Sou como um auriga que tenta controlar
os cavalos, fora da estrada. Sempre sou vencido; o ânimo não tem mais freios e
me arrasta. E o terror, sobre o coração entoa o seu canto e em uma dança louca,
a esse canto, o coração se descontrola. [...] E agora vou, exilado e errante, vivo ou
morto, longe de minha terra e de mim...
7
Poderíamos elencar aqui outros tantos textos, pagãos ou religiosos, nos quais
o tema da melancolia está presente, antes mesmo de ser nomeada pela medicina
hipocrática, na Antiguidade. Desde então, vem ocupando o pensamento ocidental
não só nos escritos médicos, mas também filosóficos, teológicos, bem como nas
obras de arte literárias ou plásticas. Um testemunho nos fornece a exposição
ocorrida em 2005, no Grand Palais de Paris, intitulada Mélancolie, génie et folie en
Occident, na qual foram reunidas 284 obras de arte entre gravuras, esculturas,
tapeçarias e pinturas, datadas desde o século V a.C. até 2003, ou autores
contemporâneos como Yves Hersant, Patrick Dandrey e George Minois que
apresentam, em suas antologias, textos, ou extratos de textos, que tratam deste
tema tão permanente quanto diversificado.
8
Afecção da alma para alguns, doença do corpo para outros, a melancolia é
muito instável semanticamente: fadiga de viver ou taedium vitae, tristeza, desespero,
loucura, desgosto, niilismo, acédia, náusea, ennui e, mais recentemente, depressão,
ao mesmo tempo que temperamento ou sinal de genialidade. A ambivalência é sua
marca fundamental: astenia e energia, estupor e potência, inibição e criatividade,
bestial e divino, contrastes que nela se enlaçam tornando sutil a fronteira entre a
6
Jean STAROBINSKI, Historia del tratamiento de la melancolía, p. 11.
7
Apud Isaias PESSOTTI, A loucura e as épocas, p. 26.
8
Yves HERSANT, Mélancolies; Patrick DANDREY, Anthologie de lhumeur noire; George MINOIS,
Histoire du mal de vivre. Interessante notar que enquanto o último tem sua primeira edição em 2003,
os dois primeiros são publicados também em 2005, ano da exposição acima citada.
73
abulia ou o furor da doença e o talento ou a genialidade dos artistas, poetas e
filósofos. Suas manifestações são díspares: abatimento e entusiasmo, desejo e
culpa, agressividade e recolhimento. Amarga ou doce, religiosa ou erótica, estéril ou
fecunda, suas formas representativas perpassam os séculos: negro, pesado,
abismo, labirinto, outono, crepúsculo, oceano, espinho na carne, hemorragia,
inferno, queda, buraco e vazio são alguns dos termos que se repetem nos discursos,
da mesma forma que na pintura aparecem as imagens que aludem aos filhos de
Saturno, planeta da melancolia, ou aquela que se tornou a imagem característica do
melancólico – palma da mão aberta sustentando a cabeça, olhar vago ou perdido no
infinito.
Consagrar um estudo a este tema tão complexo e, portanto, com a
profundidade que ele exige, fugiria ao escopo deste trabalho. Mas, ao percorrermos
alguns textos nos quais, como bem aponta Hersant, “a melancolia fala” e outros nos
quais a melancolia é pensada, chama-nos a atenção a dificuldade, quiçá a
impossibilidade, de discernir, desde suas primeiras definições, na medicina
hipocrática ou na filosofia, passando pela teologia medieval, até a psiquiatria
moderna, o que é causa e o que é sintoma, o que é secreção, material, e o que é
paixão, espiritual, o que é corpo e o que é alma, o que é psíquico e o que é
somático, o que é humor, como matéria orgânica, o que é humor enquanto
manifestação espiritual. É o excesso de humor negro que com seus vapores turvam
nossa visão fazendo-nos enxergar o mundo negro ou é a paixão da alma que
provoca no corpo o aumento da atrabile? Sejam quais forem os desdobramentos
das teorias sobre a melancolia, no entanto, podemos observar que ela sempre
esteve associada ao desequilíbrio entre a alma e o corpo. Como diz Olgária Matos:
“a angústia melancólica encontra seu fundamento ontológico na desarmonia
preestabelecida entre a materialidade dos corpos e a imaterial transcendência da
alma. O otimismo da imanência se altera com o pessimismo da transcendência”
9
.
Esta dualidade da melancolia, cunhada já no termo que a nomeia, para além de uma
patologia, não estaria refletindo a dispersão própria da existência humana? Seria a
melancolia unitária, como apontou Burton, uma característica da mortalidade? E,
desta forma, poderíamos dizer que a melancolia é essencialmente religiosa?
9
O iluminismo visionário: Benjamin, leitor de Descartes e Kant, p. 86-90.
74
Este capítulo, assim, não pretende uma pesquisa exaustiva, mas tão somente
indicar em linhas gerais as principais referências que nos auxilie na compreensão da
melancolia religiosa que, segundo nossa hipótese, estaria retratada na simbólica
bosquiana. Para tanto, percorreremos alguns textos originais da tradição médica,
filosófica, teológica e poética, cujos fragmentos estão reunidos nas antologias de
Yves Hersant e Patrick Dandrey, além das obras clássicas no estudo do tema:
Saturno y la melancolia, de Klibansky, Panofski e Saxl, e The anatomy of
melancholy, de Robert Burton, base para nossa reflexão, e das considerações da
psicologia analítica de Carl Gustav Jung.
II.1 A PATOLOGIA ATRABILIAR
O termo melancolia
µέλαινα χολή, µέλαγχολία –, formado pela associação
de µέλαζ (mélas, negro) e χολή (kholé, bile), aparece pela primeira vez, no século IV
a.C., em um dos textos que compõem o Corpus Hippocraticum, intitulado Da
natureza do homem, para nomear um dos quatro humores, ou princípios, que
constituem o corpo humano. Para seu autor, provavelmente Políbio, genro de
Hipócrates, “o corpo do homem tem em si sangue, fleuma, bile amarela e negra; é
isto o que nele constitui a natureza e o que nele cria a enfermidade e a saúde”
10
,
pois uma mistura equilibrada entre esses humores seria garantia de saúde,
enquanto a falta ou excesso de um deles, causa de enfermidade. Os humores
eram conhecidos pela tradição médica empírica ou como causa, ou como sintomas
de doença, observados em vômitos ou fezes; eram considerados como resultado da
porção dos alimentos que não são digeríveis, pois a parte digerida seria convertida
em sangue, ossos e carne.
11
Políbio retomou esta idéia e a associou à definição
pitagórica de saúde como equilíbrio entre distintas qualidades e, portanto,
enfermidade como desequilíbrio e à doutrina dos quatro elementos de
Empédocles, também derivada da filosofia pitagórica. Assim, os humores foram
relacionados às quatro qualidades, às quatro estações e às quatro idades do
homem. Dessa forma, o sangue, quente e úmido, aumentaria naturalmente na
primavera e prevaleceria na juventude; a bile amarela, quente e seca, no verão e na
10
Extrato do texto Da natureza do homem in: Yves HERSANT, Mélancolies, p. 512-4; Patrick
DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 26-34.
11
Cf. KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, p. 32-5.
75
idade adulta; a bile negra, fria e seca, no outono e na maturidade; a fleuma, fria e
úmida, no inverno e predominaria na velhice. Mas se os humores são causa ou
sintoma de doença, como dito acima, e em cada estação do ano prevalece um ou
outro humor “naturalmente”, como explicar então a enfermidade a partir do
desequilíbrio entre os humores? Essa questão conduziu os próprios hipocráticos a
introduzirem a idéia de constituição de cada indivíduo como aparece no Corpus, em
um texto intitulado Do ar, da água e das partes enfermas, pertencente ao
Enfermidades III: “um verão e um outono demasiado seco convém aos fleumáticos,
mas causa danos aos coléricos, que correm perigo de secar-se por completo, pois
secam-lhe os olhos, tornam-se febris e alguns caem em enfermidades
melancólicas”
12
. Aqui encontramos as bases nas quais se desenvolveu,
posteriormente, a doutrina dos quatro temperamentos, bem como a noção de que
“melancólico” poderia significar enfermidade ou atitude constitucional.
Outra questão decorrente da teoria humoral se refere ao sangue e à bile
negra que, desde o início, ocupavam posições excepcionais dentro do sistema. O
sangue não poderia ser classificado como excremento, pois era a parte mais nobre
do corpo, e em excesso não era causa de patologia, mas antes sinal de saúde por
excelência. Por outro lado, a melancolia ou bile negra foi considerada como uma
degeneração da bile amarela ou do sangue e, enquanto enfermidade, era a única
que tinha como sintomas alteração mental que variava desde o medo, a misantropia,
a tristeza até a loucura. Podemos observar, então, que a definição de melancolia, na
sua origem, traz um misto de estados aflitivos da alma e de uma substância
concreta, corporal, capaz de a materializar, como encontramos no Aforismo VI, 23
de Hipócrates: “Se temor e tristeza persistem por muito tempo, o caso é
melancólico”. De acordo com Dandrey, esse aforismo consiste em uma síntese do
sistema dos quatro humores, exposto no Da natureza da alma, com a descrição
sintomática da “preocupação mórbida” que aparece no Enfermidades II, um dos
textos do Corpus, de origem desconhecida, mas provavelmente tamm do século
IV a.C., no qual podemos ler:
Preocupação mórbida [φρντίζ], doença difícil. O doente parece ter nas
vísceras algo como um espinho que lhe punge; a ansiedade o atormenta; ele foge da
luz e dos homens, prefere a escuridão; está tomado pelo temor; o septo frênico se
12
Apud KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, p. 37.
76
projeta para fora; sente dor quando é tocado; ele tem medo; tem visões
assustadoras, sonhos horríveis e, às vezes, vê pessoas mortas.
13
A definição de melancolia proposta pela medicina hipocrática consistiu, na
verdade, em uma tentativa de explicar os transtornos do comportamento a partir da
constituição física do corpo humano, excluindo, portanto, a intervenção sobrenatural.
Medo, tristeza, loucura, furor e a temível licantropia, que conduzia suas timas a
vagar pela noite, uivando como lobos famintos, eram considerados, no final do
século V a.C., como efeito de uma “substância” que evocava a idéia de mal e de
noturno denominada µέλαζ, cujo significado ultrapassava o de “cor negra”, pois era
apontada como a causa de demência, como aparece, por exemplo, no emprego do
verbo µελαγχοάν (melagcholân) como sinônimo de µαίνεσθαι (maínesthai), “estar
louco”.
14
Inclusive Platão usou esse termo em Timeu como loucura, uma doença da
alma que resultava das diversas alterações humorais que perturbavam o
funcionamento dos diversos órgãos, o que está de acordo com o sistema
hipocrático: “[...] as [doenças] da alma que são devidas à condição do corpo surgem
do seguinte modo. Nós temos que concordar em que a perda da razão é uma
doença da alma e que dessa doença duas espécies, uma das quais é a loucura
[...]”
15
Porém, em Fedro, esse mesmo termo designava o um mal, mas um “dom”:
“mas de fato recebemos do furor os maiores benefícios, isto é, enquanto é enviado
como um dom divino”
16
. Mesmo que Platão não tenha associado a melancolia ao
furor divino, a idéia de uma alta espiritualidade foi vinculada, naquele tempo, ao
furor, principalmente em função dos heróis míticos. Lembremos, ainda, que os
mesmos sintomas temor, misantropia, dores viscerais foram experimentados
pelos heróis Ájax, Hércules ou Belerofonte, entre outros, quando atingidos pela
loucura enviada pelos deuses.
Foi neste contexto que Teofrasto, no Problema XXX,1, antes atribuído a
Aristóteles, perguntou: “por que todos aqueles que se sobressaíram na filosofia, na
política, na poesia ou nas artes eram manifestamente melancólicos, e alguns ao
ponto de sofrerem ataques causados pela bile negra, como é dito de Hércules nos
13
Apud Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 34.
14
Cf. KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, p. 39-40.
15
Apud Isaías PESSOTTI, A loucura e as épocas, p. 60.
16
Apud KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, p. 40.
77
mitos heróicos?”
17
Ou seja, nesta pergunta encontramos uma afirmação: os homens
que se destacam são melancólicos, restava saber o porquê. Para resolver esse
paradoxo, o autor fez uma analogia entre os efeitos do vinho que, diferente de
outras bebidas, provocava alterações no comportamento como aqueles da bile
negra, que também era o único humor que afetava a disposição mental, ou seja, os
dois eram de natureza aérea, pneumática. Assim como o vinho tornava os homens
tristes ou alegres, taciturnos ou entusiasmados, apáticos ou enlouquecidos, a bile
negra também era responsável pelos mais variados estados mentais. Mas o autor
observou, ainda, que o comportamento alterado produzido pelo vinho quando, por
exemplo, aqueles que eram geralmente silenciosos se tornavam loquazes era
normal em outros, e que enquanto o efeito do vinho era passageiro, o da
constituição de cada um era permanente. Além disso, os principais fatores que
determinavam a maneira de ser, para o autor, eram o calor e o frio. E a bile negra,
naturalmente fria, poderia ser afetada, como o ferro e a pedra, por um calor
imoderado, produzindo alegria, êxtase e estados semelhantes, ou por um frio
também imoderado, causando apoplexia, medo ou torpor. Desta forma, estava claro,
para Teofrasto, que aqueles homens em que esse humor predominava de uma
maneira “temperada” tendiam aos extremos: “isso faz com que todas as pessoas
melancólicas sejam pessoas fora do comum, não devido à doença, mas por sua
constituição natural”. A melancolia poderia ser considerada, pois, como uma
enfermidade? Se, por um lado, todas as pessoas fora do comum são melancólicas,
por outro, segundo o autor, as pessoas comuns estão também sujeitas aos mesmos
afetos:
Assim ocorre também com o abatimento que se na vida cotidiana, pois
com freqüência estamos em um estado de dor mas não saberíamos dizer por que,
enquanto que em outros momentos nos encontramos alegres sem motivo aparente.
A esses afetos e aos anteriormente citados estamos todos submetidos em algum
pequeno grau, pois todos temos um pouco dessa tendência.
18
Patologia ou inspiração criativa? Se a idéia da melancolia como fonte de
genialidade, seria retomada e transformada no início da Idade Moderna, com
Marsílio Ficcino, a necessidade que agora se impunha era a de distinguir de forma
17
O texto completo Problema XXX,1, em grego e traduzido para o espanhol, está citado em
KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, p. 42-53, do qual extraímos os trechos
aqui apresentados.
18
Ibid., p. 50.
78
clara entre o “natural” e o “enfermo”. As investigações médicas prosseguiram, ora
confirmando, ora rejeitando a teoria hipocrática. Asclepíade, por exemplo, médico,
filósofo e retórico que viveu em Roma provavelmente no século I a.C., apontou três
categorias de loucura que, para ele, é uma das doenças que não tem “sede precisa”:
uma forma aguda, acompanhada de febre, denominada frenesi; e outras duas sem
febre uma mais curta, que consiste em uma tristeza que parece provir da atrabile
(bile negra na versão latina), e uma mais longa, que poderia emergir de um
transtorno da imaginação, às vezes triste, às vezes alegre, ou de um transtorno do
entendimento. Não seria, então, apenas a bile negra a causa da melancolia? O que
nos chama a atenção é que ao mesmo tempo em que se referiu à atrabile como
possível causa do transtorno, prescrevendo dietas alimentares como tratamento, o
médico romano apontou estados afetivos como responsáveis pela alteração
comportamental do doente.
19
Percebemos, nesta descrição, uma confusão entre
mania e melancolia, mas lembremos que, nesta época, essas eram as duas formas
clássicas de loucura, geralmente denominadas “delírios melancólicos”, presentes
nos poemas homéricos e nos trágicos, por exemplo, nas figuras de Medéia e Fedra,
ou de Orestes e Ájax.
A distinção entre mania e melancolia foi feita pelo médico Areteu de
Capadócia, no século I de nossa era: “na mania o espírito se dirige tanto à tristeza
quanto à alegria, na melancolia o espírito permanece constantemente triste,
abatido”
20
. Para o autor, enquanto na mania a loucura que atinge o doente não varia,
fazendo com que cometa os mesmos atos de furor e violência, na melancolia o
objeto de sua demência é sempre variável: alguns imaginam que lhes querem
envenenar, outros buscam a solidão, outros, ainda, se tornam supersticiosos ou têm
aversão pelo dia e pela vida. O que marca a definição de melancolia de Areteu, no
entanto, é sua relação com a imaginação (phantasia): uma afecção sem febre em
que “o espírito triste permanece sempre fixado em uma mesma representação, e a
ela se liga obsessivamente”
21
. Mas a melancolia permanece como uma doença
orgânica, pois, adepto da corrente pneumatista, e neste sentido um precursor de
19
Cf. Traité de médecine, III, XVIII, de Aulus Cornelius Celsius, médico romano que teria seguido as
proposições de Asclepíade e as reproduzido em sua obra. In: Patrick DANDREY, Anthologie de
l’humeur noire, p. 103-7
20
In: Yves HERSANT, Mélancolies, p. 851-4.
21
Ibid.
79
Galeno, Areteu a concebeu como uma alteração do pneuma que se torna quente e
seco.
Por outro lado, contemporâneo de Areteu, Soranus de Éfeso, médico que
também viveu em Roma, considerou um “verdadeiro erro” a afirmação de que a bile
negra seria a causa da enfermidade com o mesmo nome, pois não é o fato de ela
estar presente nos vômitos que a indicaria como origem, mas antes o ato de
vomitar
22
, como outros transtornos digestivos que ele descreveu. Como herdeiro da
escola metodista, que, em oposição à hipocrática, considerava todas as doenças
como produto de “constrição e relaxamento” dos tecidos e órgãos, Soranus definia a
mania como constrição do sistema nervoso, afetando principalmente a cabeça,
enquanto a melancolia afetaria o estômago, posteriormente doença dos
hipocôndrios.
23
Todavia foi Rufus de Éfeso quem marcou por mais de mil e quinhentos anos a
concepção dica da melancolia, embora dele se saiba muito pouco, apenas que
provavelmente viveu em Roma no final do século I e início do século II. De sua obra
se conhece alguns fragmentos e citações; seus ensinamentos chegaram até nossa
época graças à adesão de Galeno, que considerou sua De melancholia como a
melhor apresentação do tema, e dos grandes autores árabes do século IX. Dentre
estes, destaca-se Ishāq ibn ‘Imrān cujo tratamento dado à melancolia, baseado na
obra de Rufus, serviu de fonte para Constantino Africano, principal expoente no
desenvolvimento da medicina ocidental na Idade Média.
24
O principal feito de Rufus foi a retomada do Problema XXX,1. Teofrasto havia
distinguido dois tipos de melancólicos: os por acidente de regime (alimentação) que,
embora suscetíveis às doenças da bile negra, não tinham sua capacidade mental ou
seu comportamento afetados, e aqueles por constituição que, por seu
temperamento, estavam sujeitos a estados de êxtases e maníacos, quando do
superaquecimento de sua atrabile, ou à tristeza e ao temor provocados pelo
resfriamento da bile negra, mas que, em uma temperatura moderada, gerava
22
Interessante lembrar que a obra de Jean Paul Sartre, de 1938, tinha como título original
Melancholia cuja alteração para A Náusea foi sugestão do editor Gaston Gallimard. Cf. Yves
HERSANT, Mélancolies, p. 505.
23
Cf. Isaías PESSOTTI, A loucura e as épocas, p. 67-8; Patrick DANDREY, Anthologie de lhumeur
noire, p. 107-11.
24
Cf. KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, p. 70; Patrick DANDREY, Anthologie
de l’humeur noire, p. 112-30.
80
qualidades intelectuais importantes, dado a instabilidade própria da atrabile.
Enquanto Teofrasto se interessou pelos últimos, a atenção de Rufus se voltou em
direção aos primeiros, pois a estes poderia ser ministrado um tratamento tendo em
vista uma cura. Assim, Rufus elencou os sintomas do que poderíamos chamar uma
“psique” melancólica, distribuindo em duas categorias: de um lado, os melancólicos
em geral, prostrados e sombrios; de outro, aqueles que se tornam melancólicos por
adustão da bile amarela, passando por uma fase de excitação mania – que depois
do resfriamento do humor se tornam “cheios de tristeza e temor”
25
. Rufus não
inverteu o interesse dado aos melancólicos no Problema XXX,1 como também a
nosografia. Ele tomou a instabilidade própria ao humor natural e a projetou na
mistura sanguínea para daí elaborar a etiologia do humor negro: ou o sangue
resfriado imoderadamente, ou o superaquecimento da bile amarela se converteria
em atrabile. Mas com isso, a bile negra, enquanto um dos quatro humores primários,
já não se referia mais ao humor melancólico que passou a ser uma corrupção da bile
amarela. Dessa forma, Rufus estabeleceu as bases clínicas da melancolia em dois
tipos: a bile negra natural, um dos humores sempre presentes no corpo, um resíduo
espesso e frio do sangue, que não necessariamente produzia enfermidade; e a bile
negra enferma, isto é, produto da adustão da bile amarela.
Os ensinamentos de Rufus foram considerados por Galeno que, no culo II,
associando-os à sua experiência clínica e à reflexão filosófica, elaborou uma
doutrina da melancolia a partir da síntese das três maiores heranças do pensamento
da Antiguidade: Hipócrates, Platão e Aristóteles. Doutrina esta que se tornou critério
de autoridade até o século XIX: não impôs o humoralismo hipocrático à
Antiguidade romana e à Idade Média árabe, mas também penetrou a escolástica
medieval e alcançou o humanismo ocidental. Assim, em primeiro lugar, Galeno
afirmou a existência de um humor frio e seco que Erastrato (310-250 a.C.)
26
tinha
negado, descrevendo o funcionamento do corpo e a formação do sangue. O corpo
consiste em um conjunto de órgãos cujas funções estão harmoniosamente
distribuídas: o estômago assimila e transforma o alimento em chylo, o bolo alimentar,
25
Fragmento 70, Aetius, VI, IX, In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 119.
26
No tratado Das faculdades naturais, II, IX, Galeno descreve pormenorizadamente como não é
possível considerar apenas a existência de três humores correspondentes às misturas das
qualidades quente e úmida, quente e seca, fria e úmida (sangue, bile e fleuma), pois ainda uma
combinação fria e seca para a qual a “laboriosa natureza” criou um órgão de purificação: o baço.
Cf. Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 146-9.
81
cujos elementos não aproveitáveis são enviados aos intestinos; o fígado, por sua
vez, transforma uma parte do chylo em uma mistura sanguínea que tem em si o
humor sangue, a fleuma, que fora destilada no estômago, e resíduos amargos e
ácidos que dão origem às biles amarela e negra; a vesícula biliar atrai o excesso dos
resíduos amargos enquanto o baço, receptáculo natural da atrabile, recolhe os
resíduos pesados e negros; a umidade aquosa inútil vai para os rins que a lança em
forma de urina na bexiga. Saindo do fígado, o sangue é levado pelas veias aos
outros órgãos que dele se alimentam por assimilação. A parte mais pura vai para o
coração que, por ação do calor, se converte em pneuma vital”. Este, associado ao
ar dos pulmões e transportado pelas artérias em forma de vapor, aquece e ventila o
sangue venoso, bem como atinge os órgãos cujo funcionamento é reflexo. Essa
idéia de pneuma, que Aristóteles havia associado a uma alma, Galeno traduziu em
espíritos (spiritus) e dividiu em três categorias, seguindo a tradição platônica da
tripartição da alma
27
: além do pneuma vital, existem o psíquico e o natural. O
pneuma psíquico, ou “espíritos animais”, consiste no vapor produzido nos
ventrículos encefálicos, a partir do sangue enviado do coração ao rebro; sua
função é levar as ordens da alma ao corpo. Os espíritos animais funcionam, assim,
como uma espécie de “mensageiros” que, distribuídos pelos nervos sensitivos e
motores, chegam aos órgãos capazes de efetuarem essas funções. o pneuma
natural consiste na mistura sanguínea resultante da atividade do fígado. Com esse
sistema pneumático triplo espíritos animais, vitais e naturais –, Galeno explicou as
três categorias de canais corporais veias, artérias e nervos a partir dos três
órgãos envolvidos na elaboração do sangue: a rede nutritiva no fígado, a respiratória
no coração, com o trabalho conjunto dos pulmões, e a psíquica no cérebro.
A partir desse esquema, Galeno distinguiu três formas de patologia
melancólica: uma hipocondríaca, produto de uma desordem na função nutritiva do
fígado; uma sanguínea, resultante da disfunção do calor e da ventilação do sangue,
associando, pois, coração e pulmões; e uma da alma que está localizada no
encéfalo. Contudo, essas três formas apenas localizam a origem do mal, mas não
eliminam a dualidade psico-fisiológica, pois, de qualquer maneira, seja por excesso
27
Platão dividiu a alma em três categorias: uma imortal, sediada no cérebro, responsável pelo
pensamento; uma vegetativa e mortal regendo os instintos e localizada no fígado; e uma mista, fonte
dos mais nobres sentimentos, residindo no coração. Da mesma forma, para Galeno haviam três
almas: a racional, no cérebro; a irascível no coração; e a concupiscível, no fígado. Cf. Isaías
PESSOTTI, A loucura e as épocas, p. 69.
82
da bile negra natural no sangue, ou da corrupção da mistura sanguínea e da
temperatura dos órgãos provocada pela adustão da bile amarela, como Rufus
propusera, o humor negro atinge a razão alojada no cérebro não só quando o
desequilíbrio ocorre especificamente neste órgão; o espírito pode ser lesado pelos
vapores corrosivos que sobem dos hipocôndrios à cabeça, ou pelo sangue
corrompido pelo superaquecimento que é enviado do coração ao cérebro, ou, ainda,
pela adustão da bile amarela cujo ardor pode também o obscurecer. Esse
obscurecimento se manifesta em sintomas: principalmente o medo e o temor, como
apontara Hipócrates, a misantropia, o desejo de morte para alguns, o medo da
morte para outros e, para os mais “bizarros”, temor e desejo de morte ao mesmo
tempo. Nas palavras de Galeno:
Assim, Hipócrates parece com razão ter reduzido sob dois termos todos os
sintomas próprios aos melancólicos: o temor e a tristeza. É por conseqüência dessa
tristeza que os melancólicos odeiam tudo aquilo que eles vêem, e parecem
continuamente desgostosos e cheios de pavor, como crianças e homens ignorantes
que tremem em uma profunda obscuridade. Da mesma forma, com efeito, que as
trevas exteriores inspiram medo a quase todos os homens [...] a cor da bile negra,
obscurecendo, como fazem as trevas, a sede da inteligência, engendra o temor.
28
Interessante notar que depois de descrever a fisiologia corporal, mostrar a
formação da bile negra e a diferenciar dos outros humores, indicar os lugares por ela
afetados, distinguir as formas da patologia melancólica, Galeno apontou os
principais sintomas da melancolia – tristeza e temor – a partir da cor do humor e não
como resultado de suas propriedades termo-químicas. Ou seja, a medicina galênica
não conseguiu superar a idéia de µέλαζ conhecida dos gregos do século V a. C.
De qualquer maneira, como diz Starobinski, “as obras médicas da Idade
Média, do Renascimento ou do Barroco não são, em sua maioria, senão aplicadas
paráfrases de Galeno, mais ou menos adornadas com novas provas e enriquecidas
com uma ou outra receita inédita”
29
. E, de fato, mesmo tendo perdido sua
intensidade no Ocidente, como toda a tradição clássica, depois da queda do Império
Romano, o sistema hipocrático-galênico permaneceu vivo na medicina bizantina,
reapareceu nas traduções árabes, ressuscitou no sul da Europa para, em seguida,
ser reintroduzido no mundo europeu medieval, permanecendo no Renascimento,
28
Des lieux affectés, III, X, In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 166.
29
Jean STAROBINSKI, Historia del tratamiento de la melancolía, p. 25.
83
alcançando a psiquiatria nascente do século XIX com Pinel. Mesmo tendo sofrido
alguns golpes como, por exemplo, nos anos 1540 quando as observações do
anatomista Andreas Vesallius conduziram a demonstrações de erros na teoria de
Galeno, ou com a descoberta do mecanismo da pequena e da grande circulação
sanguínea por William Harvey, em 1628
30
, a doutrina hipocrático-galênica foi
questionada enquanto teoria, mas na prática continuou a ser empregada, como
podemos observar em Thomas Willis médico que na sua obra de 1664, Cerebri
anatomi, cunhou o termo “neurologia” que negou qualquer função de um “humor
melancólico” na patologia melancólica, mas tratava seus pacientes como tinha sido
até então, principalmente recorrendo à sangria.
31
Ainda que a medicina bizantina não tenha acrescentado nada em matéria de
teoria ou doutrina, pois estava voltada para a prática, isto é, aos processos e
procedimentos curativos, seu trabalho de compilação, ordenação e sistematização
dos escritos médicos da Antiguidade, principalmente de Galeno, permitiu a
conservação de informações que, de outra forma, estariam perdidas. Neste sentido,
com o objetivo de facilitar o diagnóstico para ministrar, assim, uma terapêutica mais
adequada, os médicos bizantinos imprimiram à nosografia melancólica uma
estrutura binária que perdurou por toda a sua existência doutrinal, talvez refletindo a
ambigüidade própria da melancolia: dualidade etiológica, isto é, sua origem poderia
ser idiopática no cérebro ou simpática no corpo todo, esta também variando
entre sanguínea e hipocondríaca; dualidade fisiológica, considerando o humor
negro, resultante da cocção do chylo no fígado, e a atrabile produzida pela adustão
da bile amarela ou da bile negra no hipocôndrio, no sangue ou no cérebro; dualidade
patológica dividida em mecânica, quando da obstrução dos meatos cerebrais pela
bile negra, e corruptiva, isto é, química em função da bile negra adusta, que poderia
se localizar, por exemplo, no cérebro, ou indireta, através dos vapores produzidos no
hipocôndrio e conduzidos pelo sangue ao corpo todo; dualidade térmica, que a
bile negra, seca e fria por definição, poderia ser oriunda de calor ou frio imoderados;
dualidade nosológica, variando entre mania e melancolia; e dualidade temporal, ou
seja, se a doença é recente ou crônica. Este quadro, ainda que importante na
definição do tipo de tratamento a ser aplicado – purgativos, sangria, banhos, regimes
30
Cf. Yves HERSANT, Mélancolies, p. 677.
31
Cf. Noga ARIKHA, La mélancolie et les passions humorales au début de la modernité, In: Jean
CLAIR (org.), Mélancolie, génie et folie em Occident, p. 233.
84
alimentares, aplicação de emplastros e ungüentos, ou mesmo alguns medicamentos
utilizados na Antiguidade, como o heléboro ou a mandrágora –, conduziu a uma
lista de sintomas tão imprecisa quanto numerosa, levando Alexandre de Tralles, no
século VI, a dizer que: “portanto, que as causas do estado atrabiliar são diversas
como as partes atingidas, os impulsos e sintomas que afetam os doentes, eu estimo
que convém aos médicos, preocupados com sua arte, estudarem cada caso
separadamente e buscar de onde provém [a doença].”
32
Mas essa localização o era garantia de eficácia do tratamento, pois como
podemos observar nos textos não de Alexandre de Tralles, como também de
Oribase de Pérgamo (séc. IV), de Aetius d’Amida (séc. VI) ou de Paulo de Egina
(séc.VII)
33
, existia uma preocupação quanto à duração da enfermidade e sua
“rebeldia”. Alexandre de Tralles, por exemplo, depois de ter ministrado várias
terapêuticas sangria, purgativos, regime alimentar, banhos prolongados, repouso,
conversas com amigos, passeios ao ar livre , e o paciente o alcançando
nenhuma melhora, concluiu que “o mal, uma vez crônico, e as idéias bizarras
passadas ao estado habitual, nada é muito potente, seja a palavra, seja a
imaginação, para agir eficazmente sobre a doença”
34
. Ora, se a melancolia consiste
em uma doença orgânica, produto de uma disfunção da fisiologia humoral, por que
sua persistência e resistência ao tratamento? E mais, por que o uso da palavra e da
imaginação? Não seria porque a melancolia estaria ligada o à χολή, mas à µέλαζ,
ou à µελαίνεται, “tornar-se negro”, ao escurecimento do brilho na maturidade, à
secura do outono, à imobilidade e frieza da terra, à “lucidez” da loucura, ao silêncio e
ao crepúsculo da morte, metáforas que ilustram a obscuridade do humor
responsável pelo mal?
Talvez os médicos o tenham percebido, ainda que não claramente, pois,
mesmo com uma orientação essencialmente fisiológica, apontando para uma
variedade sintomática, etiológica e nosográfica que se reflete em uma terapêutica
32
Alexandre de TRALLES, Les douze livres de médecine, obra referência para os médicos árabes
dos séculos X e XI, entre eles Rhazès ou Razi que a cita muitas vezes. In: Patrick DANDREY,
Anthologie de l’humeur noire, p. 253-64.
33
Fragmentos de textos desses autores In: Patrick DANDREY, Anthologie de lhumeur noire, 234-70.
34
Des états atrabiliares (mélancoliques) déjà anciens, In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur
noire, p. 261.
85
tão diversificada, não desconheciam a origem moral
35
da melancolia. Parece haver,
assim, uma incursão em outra dimensão: a emocional e a imaginária, ou, por que
não, a psicológica. Dimensão essa que aparece na medicina árabe, ainda que de
forma incipiente.
A herança da medicina grega em geral, e mais especificamente do sistema
humoral hipocrático-galênico, depois de sintetizada, organizada e até simplificada
pela medicina bizantina, foi interpretada e repensada pela medicina árabe. Após a
queda do império intelectual alenxandrino, que durou aproximadamente do século III
ao século VII, teve início uma “arabização” da ciência grega e uma “helenização” dos
conhecimentos árabes, graças ao trabalho de recuperação, tradução e interpretação
dos chamados “enciclopedistas árabes” embora entre eles houvesse sírios, como
Johannitius, persas, como al Răzĭ, ‘Alī ibn ‘Abbās e Avicena, e mesmo judeus, como
Maimônides. Essas obras penetraram no mundo ocidental cristão da Idade Média
por meio das escolas médicas de Salerno, principalmente representada por
Constantino Africano, e de Toledo, na figura de Gerard de Cremona, e daí
passaram, no século XIII, aos quadros das grandes Universidades de Bolonha, Paris
e Montpellier. Constantino, durante a segunda metade do século XI, no Monastério
de Monte Cassino, verteu para o latim, entre outros, o texto de Ishāq ibn ‘Imrān
Maqăla fĭ l-mălĭkŭliyă –, cuja base foi o tratado de mesmo título de Rufus de Éfeso,
que se tornou De melancholia na versão latina, como citado anteriormente; e
Gerard de Cremona que, em Toledo, no século XII, traduziu, principalmente, a
célebre enciclopédia médica de Avicena – Kitâb al Qânûn ou, em latim, non.
Ishāq ibn ‘Imrān, depois de prestar uma homenagem a Rufus na introdução
de seu livro, observou que o termo melancolia, como vinha sendo empregado, se
referia à causa imediata do mal e não ao mal em si, que ele definiu como “um certo
sentimento de abatimento e isolamento que se forma na alma em função de alguma
coisa que os pacientes acreditam real, mas que não é, no entanto, senão irreal”
36
.
Definição que no Livro Primeiro ele reforça: “a melancolia, portanto, é a certeza
errônea que vai sobrevir alguma coisa pouco afortunada.” E é possível se supor que
se trata de uma “certeza errôneaem virtude do temor e da angústia em relação a
35
Moral como um ramo da filosofia prática que analisa as condutas individuais, suas normas e regras
e suas exceções.
36
In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 296.
86
coisas que não acontecerão. Seria a melancolia, pois, uma doença da imaginação?
Mas apesar da referência à crença em algo irreal como responsável pelo mal,
segundo o médico árabe, são os vapores da bile negra, que sobem ao cérebro, que
turvam o pensamento impedindo-o de “compreender o que estava habituado a
compreender, mas também o que é necessário compreender”. E a bile negra se
forma, em primeiro lugar, devido a uma má constituão física original, fria e seca ou
quente e seca, que predispõe o corpo todo à enfermidade, ou apenas o cérebro
tornando suas faculdades organizadoras (“virtutes ordinativae”) imaginação,
memória e razão confusas e debilitadas; ou a bile negra pode ser oriunda de um
excesso de alimentos e bebidas, ou de um desequilíbrio nas “coisas necessárias à
vida”, como Galeno apontara: movimento e repouso, sono e vigília, o vazio e a
saciedade, a comida e a bebida, o ar e os acidentes da alma. A instabilidade
promovida por esses fatores provocaria um aumento de bile negra em função da
transformação dos humores que se tornariam saturados no corpo (adustão dos
humores). Porém, se de um lado Ish
āq ibn ‘Imrān seguiu os ensinamentos de Rufus
e confirmou o sistema humoral, por outro, o acento dado, em suas reflexões, aos
“acidentes da alma”, isto é, perturbações nas três faculdades organizadoras,
enriqueceu e ampliou a análise da enfermidade melancólica: paixões e desejos da
alma, trabalho e tensão do espírito conduzem ao mal. Em suas palavras:
A alma, portanto, tem suas próprias ações sujeitas a variações, como passar
da raiva ao sossego, da tristeza à dor, e da mesma maneira do temor à audácia. São
as ações da alma vital. Para a alma racional, o excesso de pensamento, de
raciocínio, de lembranças a reter, a busca atenta das coisas incompreensíveis, o
receio, a esperança, a imaginação, os julgamentos realizados e os inacabados: tudo
isso, se a alma trabalha muito profundamente e frequentemente, a faz fundir-se na
melancolia.
37
Esta passagem nos lembra a inversão realizada por Rufus do Problema
XXX,1: não mais a eminência intelectual era conseqüência da melancolia natural,
mas a atividade da alma poderia ser geradora da enfermidade melancólica, pois,
para Ishāq ibn ‘Imrān, “o corpo todo sofre destas afeões [insônia, emagrecimento,
desordens gerais na sua fisiologia], que o corpo segue necessariamente a alma”.
Assim, embora a atenção de Ishāq ibn ‘Imrān, como de toda medicina árabe,
estivesse voltada para o corpo, o que pode ser visto no desenvolvimento e aplicação
37
Livro Primeiro. In: Patrick DANDREY, Anthologie de lhumeur noire, p. 303.
87
de uma terapêutica cada vez mais diversa, seja alimentar, higiênica ou climática,
seja medicamentosa, que a farmacopéia se encontrava em pleno
desenvolvimento, torna-se cada vez mais clara a ambigüidade da melancolia: uma
doença da alma que afeta o corpo, ao mesmo tempo que uma doença do corpo
sediada no cérebro ou nos hipocôndrios, de onde sobem os vapores sombrios para
a cabeça, sede da alma.
Da mesma maneira procedeu Avicena que, em seu Cânon, dedicou cinco
capítulos à melancolia, cuja definição muito se aproxima a de Ish
āq ibn ‘Imrān:
Chama-se melancolia uma mudança de opiniões e pensamentos indo contra o curso
natural em direção à alteração, ao temor e à aflição, em função de uma compleição
melancólica que torna o espírito [situado] no interior do cérebro temeroso ou
entristecido e que lhe faz temer suas próprias trevas, assim como as trevas
exteriores provocam tormento e temor.
38
A melancolia não nomeia a bile negra, mas seus efeitos que, de acordo
com o autor, poderiam ser: um julgamento errôneo, um temor sem causa,
irascibilidade, desejo de solidão, vertigem, imaginação de coisas que não são reais,
risos ou lágrimas em abundância, desejo de morte ou temor a ela, entre outros, pois
“essas características são ilimitadas”, nas palavras do próprio autor, dependendo da
localização da melancolia. E, de fato, Avicena elenca uma lista tão grande quanto
diversa de possíveis manifestações da patologia atrabiliar de acordo com a
localização (cérebro ou resto do corpo), com as formas de lesão (sem agente
material, isto é, um desequilíbrio do temperamento, ou por intermédio de agente
humoral) e as formas do agente (bile negra natural ou adusta, oriunda de qualquer
um dos quatro humores do sangue, da fleuma, da bile amarela ou da própria bile
negra). Assim, se no cérebro, prevalecem a superabundância de pensamentos, uma
inquietude ininterrupta, um olhar fixo em direção à terra ou a um objeto (imagem
explorada pela iconografia posterior), insônia e até mesmo a cor dos cabelos, dos
olhos e da pele; se no corpo, um apetite exagerado, e interessante, não de
alimentos, mas também sexual, dores em diversas partes do corpo, náusea,
digestão difícil, ao mesmo tempo que dor da alma, uma intensa alegria que se torna
uma profunda tristeza, risos abundantes que levam, em seguida, a choros copiosos.
Como podemos perceber, a melancolia é multiforme em sua manifestação, como
também o é em sua etiologia.
38
Cap. 18 De la mélancolie. In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 343.
88
A partir dessa sistematização, Avicena indicou a terapêutica que, além dos
purgativos e outros remédios, sangria, regimes alimentares, banhos e outras
prescrições em uso, foi enriquecida com indicações como “é necessário alegrar a
alma e a encantar”
39
. Porém, esse cuidado em pacificar e equilibrar o espírito foi
muito discreto, pois, mantendo a tradição médica, Avicena lembrou que se alguns
médicos acreditavam que a melancolia fosse produto do demônio, ao médico isso
não importava, pois “se ela é produto do demônio, ela é então produzida de maneira
a mudar a compleição em bile negra”
40
e caberia ao médico restabelecer o equilíbrio
do corpo habitado pela atrabile. Assim também ele considerou a licantropia e a
enfermidade amorosa que, se já tinham sido citadas pelos médicos bizantinos, agora
ganham o estatuto “naturalizado” de patologia, às quais Avicena dedicou um capítulo
específico. A primeira, ele definiu como uma espécie de melancolia, cujos sintomas
característicos seriam: o indivíduo evita seus semelhantes, deseja se aproximar dos
mortos, vaga pela noite, prefere a solidão e foge dos homens (como Belerofonte?),
inquieto anda por todos os lugares sem saber para onde ir e, com isso, volta-se para
si mesmo, em silêncio, com um abatimento e tristeza profundos. Entretanto, depois
dessa descrição, Avicena encerrou dizendo que “a causa dessa doença é a bile
adusta e a melancolia”
41
e, assim, o tratamento deveria ser estritamente médico-
farmacêutico. Tratamento também aplicado na enfermidade amorosa
(posteriormente melancolia amorosa, erótica ou heróica) que, para ele, era como
“uma perturbação melancólica semelhante a uma melancolia”. Essa formulação
coloca claramente em paralelo a ontologia e analogia melancólicas. E, além disso,
reintroduz o conflito entre médicos e filósofos: no ano de morte de Avicena, 1037-
1038, Abu Sa ‘îd ibn Bahsû, autor de Risâla fît t-tibb wa l-ahdât na-nafsânîya
(Sobre a cura das doenças da alma e do corpo)
42
, opondo-se à pretensão de um
filósofo anônimo de que caberia ao moralista o tratamento do sofrimento amoroso,
sustentou que uma patologia poderia ter início no espírito e afetar em seguida o
corpo e, portanto, o dico estaria autorizado a nela intervir. É interessante notar
que essa questão estivera presente nas Cartas Hipocráticas, datadas
39
Capítulo 20, Du traitement. In : Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 356.
40
Capítulo 18, De la mélancolie. In : Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 349.
41
Capítulo 21, al-chatrab (De la rage lupine ou canine, ou lycanthropie). In : Patrick DANDREY,
Anthologie de l’humeur noire, p. 360.
42
Cf. Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 341.
89
provavelmente do culo I, que, mais que uma fábula médico-moral, como se avalia
hoje, refletem o confronto do médico com o filósofo que se exatamente diante do
tema da melancolia ou da loucura. Mas, para além da discussão de competências,
parece que o próprio conceito de melancolia ultrapassa os limites estreitos da
fisiologia corporal, o que discutiremos mais adiante.
Uma contribuição importante para esse debate encontramos nas reflexões de
Averröes que considerava a medicina prática, isto é, a análise das particularidades,
no máximo como arte, pois a verdadeira ciência seria a teoria geral da medicina,
competência da filosofia. É dessa forma que ele compôs sua obra Kitâb al-Kullîyât,
traduzida para o latim, em 1285, sob o título Colliget, na qual reuniu o essencial da
medicina antiga em sete livros: anatomia, fisiologia, patologia, sinais, remédios,
higiene e terapêutica. E é dessa maneira, também, que ele analisou as doenças da
cabeça, em um dos capítulos do livro terceiro
43
: as disfunções do cérebro, onde se
localizam, segundo ele, as faculdades do espírito imaginação na porção anterior,
pensamento e razão na mediana, memória na parte posterior. Mas, para explicar a
forma e a origem das afecções que atingem estas faculdades, Averröes se utilizou
dos efeitos da bile negra. Para ele, essas afecções podem ocorrer de forma total ou
separadamente, podem ter origem no próprio cérebro ou em partes contíguas a ele,
sendo suas causas a compleição fria, que gera a apoplexia e a letargia, e a bile ou
melancolia que, engendrando uma compleição, as conduz a um mau
funcionamento. Considerando que seu interesse estava nos princípios gerais da
medicina e não nas particularidades de cada doença, podeamos dizer, então, que
a melancolia seria o princípio que rege as faculdades do espírito?
De qualquer maneira, ainda que essa teoria não fosse totalmente nova
como vimos anteriormente, Asclepiades havia distinguido um transtorno
melancólico da imaginação e outro do entendimento; Areteu associara a melancolia
à imaginação; Ishāq ibn ‘Imrān apontara os transtornos das três “virtutes
ordinativae”; e Posidonios, médico do século IV, relacionara as perturbações da
imaginação, do entendimento e da memória com lesões das regiões anterior, média
e posterior do cérebro, conforme nos relatou Aetius
44
, foi a partir da formulação de
Averröes que os delírios melancólicos, frenesi, furor ou mania e melancolia, foram
43
Cf. fragmento deste capítulo In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 365-71.
44
Apud KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, p. 108.
90
considerados pela medicina da Idade Média cristã como transtornos das faculdades
do espírito.
E qual a origem da compleição? Para Averröes, é resultado de apostema
ou da bile, natural ou adusta, que provocam perturbações no temperamento do
cérebro, isto é, na sua qualidade. O calor, por exemplo, provoca alucinações,
prostração e, muitas vezes, transtornos no pensamento e na memória, enquanto a
compleição melancólica é acompanhada de “medo desprovido de causa,
pensamentos funestos, tristeza e medo de coisas impossíveis [...] e esta impressão
se produz na alma em função da compleição melancólica, que é negra”
45
.
Entretanto, se Averröes parecia estar de acordo com a tradição galênica, aqui ele
introduziu uma oposição:
Mas sua negrura não está em causa, contrariamente ao que dizem os
médicos: pois a cor não é a causa substancial da corrupção das faculdades da alma,
mas esta causa é resultado de uma espécie de compleição, como nas outras
doenças. [...] aqueles que dizem que a alma é afetada pelo terror sob efeito do
humor negro melancólico, como um homem é afetado pelo terror no escuro, não
fazem senão poesia: é impossível que a alma seja afetada pelo negro, a menos que
haja uma privação da visão racional [suficiente], pois a alma não no corpo no
sentido onde se poderia dizer que ela experimenta o terror devido à cor negra.
46
Duas observações emergem: a sua desconfiança com relação à medicina
prática, que “não fazem senão poesia”, e sua crítica à literalidade da analogia entre
as idéias negras e a cor da atrabile, ou seja, a equivalência do real e do simbólico,
mostrando, portanto, que a medicina não seria capaz de considerar o que está além
do espaço físico.
Todavia, essa analogia o perdeu sua força. Bernard de Gordon, por
exemplo, em sua obra Lilium medicine, um tratado de patologia de 1305, considerou
o humor melancólico como causa do mal, “que infecta o cérebro perturbando os
espíritos e obscurecendo a alma”
47
. É verdade que como professor em Montpellier,
principal centro da ptica médica no Ocidente do século XIII, seu interesse estava
voltado para a ptica e, apoiado em Galeno e Avicena, Gordon, para explicar como
se essa perturbação, combinou causa determinante atrabile adusta – com
45
In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 369.
46
Ibid.
47
Extrato do texto no qual o autor trata da melancolia In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur
noire, p. 418-27.
91
causas “antecedentes”, isto é, coadjuvantes, mas de mesmo valor tristeza, temor,
inquietude e coisas semelhantes. Seguindo a tradição, apontou que a atrabile adusta
se origina de qualquer um dos quatro humores naturais, em função da alimentação,
de um desequilíbrio patológico ou de uma desordem na temperatura orgânica que
pode produzir corrupção, obstrução ou perturbação do temperamento do rebro.
Clara e cuidadosamente, o autor apresentou os sinais especificando e distribuindo
de acordo com cada um dos quatro humores dos quais procede a bile adusta,
responsável pelo mal, e com o local onde a afecção tem início. E, ao indicar a
terapêutica, baseada, simultaneamente, em purgativos, regimes alimentares e de
higiene, bem como no uso da música e de todas as coisas que “alegram a alma”, e
do afastamento de qualquer coisa, seja situação ou pessoas, “que provoquem dor
ou ira”, Gordon confirmou a analogia instituída anteriormente, tratando a alma
idéias negras – em termos do corpo – bile negra. Ou seja, a ambigüidade do modelo
melancólico permanece.
Ambigüidade esta também presente na abordagem do médico e teólogo
inglês Timothy Bright que, em 1586, em sua obra Treatise of Melancholy, diante “das
diferentes maneiras de se entender o termo melancolia, e dos diversos sentidos
atribuídos a este nome único”
48
, acreditava ser necessária uma compreensão clara
do tema a fim de poder auxiliar os doentes. Portanto, é como prático, médico do
hospital São Bartolomeu de Londres, que ele escreveu. Mas, apesar de seu intento,
no máximo, esclareceu a ambivalência da melancolia:
O humor ou a emoção são coisas diferentes: a melancolia varia em
conseqüência conforme se trate de um ou outro. O humor, seja um suco nutritivo,
seja um excremento inútil, eu não o defino senão como a parte do sangue
naturalmente a mais grosseira, e designo por excremento sua superabundância. Se
esta se putrefaz, se lhe atribui ainda o nome de uma coisa muito diferente de
temperamento e de natureza: a bile negra. Quanto à paixão melancólica [emoções],
é um extravio [aberração] da razão devido a um medo injustificado causado pelo
humor melancólico.
49
Observamos que a definição de Bright é semelhante à de Rufus de Éfeso: um
humor natural, parte constitutiva do sangue, e um humor corrompido, a atrabile,
proveniente do calor excessivo que provoca “sobre o pensamento efeitos
48
Capítulo Primeiro, Des diverses sens quon donne au mot mélancolie. In: Yves HERSANT,
Mélancolies, p. 610.
49
Ibid., p. 611.
92
espantosos que atormentam o coração, embotam os espíritos, transformam um rosto
alegre em imagem de luto e fazem as pessoas afligidas perderem o gosto pela vida,
aspiração suprema de todas as coisas na natureza”
50
. Contudo, para explicar como
a melancolia afeta o espírito, o autor recorreu à teologia, fazendo uma analogia entre
a inspiração espiritual, enviada por Deus para que o corpo possa receber a alma,
com o que os filósofos denominam “espírito vital”. Esse espírito vital é nutrido, de
acordo com o autor, por meio dos alimentos, vegetais ou animais, que contém uma
“substância corporal, mas igualmente uma substância espiritual, da qual todo
alimento é mais ou menos dotado”, e como “sem esse espírito vital nenhuma criatura
[porque criada por Deus] não poderia nos alimentar, esse é o nculo que une nossa
alma ao nosso corpo”
51
. O espírito vital é, pois, o elemento na natureza humana que
faz a intermediação entre o corpo e a alma “inspirada por Deus, natureza eterna e
divina” –, o único meio, portanto, pelo qual o corpo pode afetar o espírito, porém,
provocando uma insatisfação e não uma alteração em sua natureza, na medida em
que a alma “é inacessível a qualquer mudança”. Essa insatisfação, Bright compara
àquela que acontece quando um escritor hábil não tem um instrumento adequado
para escrever (ele se refere a uma pena mal talhada): o talento não é nada
diminuído por isso, apenas a arte pode perder uma bela produção. A analogia, como
percebemos até aqui, permanece a única ferramenta capaz de explicar a melancolia.
Até o século XVII, nenhuma novidade em matéria médica foi aportada ao
esquema humoral, ainda que muito se tenha escrito sobre o tema: André du Laurens
(Discours des maladies mélancoliques, 1594) e Jourdain Guibelet (Discours de
l’humeur mélancolique, 1603), na França; Andrés Velázquez (De la melancholia,
1585); Alfonso Ponce de Santa Cruz (Dignotio et cura affectuum melancholicorum,
1622), na Espanha; Ercole Sassonia (De melancholia tractus, 1620), entre tantos
outros, não esquecendo do Traité de l’essence et guérison de l’amour ou De la
mélancolie érotique, de Jaques Ferrand, publicado em 1610, obra na qual o autor
tratou o amor como uma doença fisiológica, ligada às perturbações melancólicas,
como havia sido apontado anteriormente por Avicena, depois dos médicos
50
Capítulo VIII, Nature e causes de la bile aduste. In: Yves HERSANT, Mélancolies, p. 618.
51
Capitulo IX, Comment la mélancolie fait naître dans l’esprit de terribles passions. In: Yves
HERSANT, Mélancolies, p. 619-20.
93
bizantinos.
52
Com a publicação, em 1628, de Exercitatio anatomica de motu cordis et
sanguinis in animalibus, do grande anatomista William Harvey, que confirmou a
hipótese da dupla circulação sanguínea, a fisiologia galênica foi abalada
principalmente no que se refere à formação e composição do sangue, responsável
pela existência da atrabile, como se acreditava desde a Antiguidade. Porém, o maior
golpe à doutrina humoral foi dado por Jan Baptist Van Helmont, médico que, em seu
Tratado dos Humores
53
, negou que o sangue fosse composto por quatro humores.
Segundo Van Helmont, a partir da observação que no sangue havia uma substância
esbranquiçada e gelatinosa e outra que era serosa e amarelada, os primeiros
médicos as denominaram fleuma e bile amarela. Mas para fazer a correspondência
com os quatro Elementos, “eles inventaram um quarto que podia ser comparado à
terra, que eles nomearam melancolia, ou atrabile, um humor formado da bile
amarela adusta.” Em seguida, o autor discutiu ponto por ponto a teoria galênica
guiado por duas questões: “onde a bile adusta seria produzida?” e “ como um humor
de fogo se transformaria de verde e amargo para negro, ácido e terrestre sob a
frieza de nossa vida?” Sua conclusão é de que “não portanto um humor
melancólico no corpo humano”.
Também o médico inglês Thomas Willis, que estudou principalmente a
anatomia do sistema nervoso central e a circulação do sangue, negou a teoria
humoral. No entanto, para explicar o temor e a tristeza, sintomas característicos da
melancolia, o autor se referiu, em sua obra De anima brutorum, de 1676, a partículas
salinas presentes no sangue que, por não serem inflamáveis, não “acendem” o
suficiente para brilhar nem nos pulmões, nem no coração, nem nos vasos; essa falta
de brilho origem à tristeza e ao temor. Além disso, definiu o delírio melancólico
como conseqüência de uma desordem do cérebro e dos espíritos animais que se
encontram, que se tornam “obscuros, opacos, tenebrosos, em vez de ser
transparentes, sutis, luminosos; por isso a imagem das coisas que nos dão está
como que coberta de sombra e trevas”
54
. Essa desordem resulta de uma alteração
52
Cf. Hélène PRIGENT, Mélancolie, p. 70-1; Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 594-
5.
53
Uma das partes de sua obra mais ampla – Ortus medicinae id est initia physica inaudita,
progressus medicinae novus in morborum ultionem ad vitan logam , publicada em 1648, por seu
filho, após sua morte ocorrida em 1644. Extrato do Tratado In: Patrick DANDREY, Anthologie de
l’humeur noire, p. 700-12.
54
Apud Jean STAROBINSKI, Historia de la melancolía, p. 46.
94
“ácida e corrosiva” dos espíritos animais que, então, atingem o cérebro e o sistema
nervoso de forma irregular, e seus eflúvios, que estão em movimento contínuo,
provocam uma agitação do pensamento alimentando, assim, os delírios. Dessa
forma, para que se possa iluminar os espíritos animais, o autor propôs, como
terapêutica, a sica, o canto, a dança, lugares claros e agradáveis, e, quando a
doença melancólica provocara uma lesão orgânica, o médico recorria ao uso de
sangria, de purgativos e da farmacopéia, como a tradição já prescrevera. Ou seja, as
colocações de Willis em nada diferem da tradição: localização cerebral, espíritos
animais e, no lugar do humor atrabile, substâncias salinas; a medicina continua
tentando encontrar uma base natural que justifique a melancolia, ainda que a lesão
orgânica, como ele apontou, seja posterior.
Apesar da negação de Van Helmont e de Willis, o autor do verbete
“melancolia” da Encyclopédie, do século XVIII, o dico Ménuret de Chambeaud,
depois de fazer uma síntese da patologia melancólica, reconheceu a validade da
teoria humoral, porém enquanto transtorno fisiológico, pois rechaçou o
obscurecimento da alma, revelando a dificuldade em se precisar o mecanismo pelo
qual o humor negro produz idéias negras, ou seja, a dificuldade da explicação
organicista:
Dos fatos citados acima, se poderia deduzir que a bile negra ou atrabile que
os antigos acreditavam sobrecarregar os hipocôndrios, não é tão ridículo e
imaginário como a maior parte dos modernos têm pensado; além dessas
observações, se constata que os melancólicos expelem pelas fezes e vômitos
matérias enegrecidas, espessas como o pez e que frequentemente as evacuações
são salutares; [...] mas como e por qual mecanismo, uma semelhante sobrecarga no
baixo ventre pode excitar o delírio, sintoma principal da melancolia, é o que se
ignora. É suficiente ter o fato constatado, uma pesquisa ulterior é difícil, puramente
teórica e de nenhuma importância; seria ridículo dizer, com alguns autores, que os
espíritos animais, sendo infectados por este humor negro, são perturbados,
perdendo sua nitidez e sua transparência, e, em conseqüência, a alma veja os
objetos confusamente, como em um espelho embaçado ou através de uma água
lamacenta.
55
Mais uma vez, a terapêutica sugerida ultrapassa os limites do corpo: “é
necessário na cura da melancolia, para que o sucesso seja assegurado, começar
por curar o espírito e em seguida atacar os vícios do corpo, quando se lhes
55
Apud Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 754; Cf. para o verbete completo Yves
HERSANT, Mélancolies, p. 685-91.
95
conhece”
56
. Parece que o autor não tem certeza da possibilidade de identificação
dos transtornos físicos causadores da patologia atrabiliar.
O golpe definitivo à teoria dos humores, no entanto, foi dado pelo “pai” da
psiquiatria, Philippe Pinel: “deve-se lhes perdoar [os médicos da Antiguidade] as
opiniões vulgares que a [melancolia] relacionam com a atrabile, e os diversos
movimentos que lhe atribuem, já que o estado de infância no qual estava a anatomia
não podia lhes permitir dar noções mais exatas”
57
. Mas, se de um lado, ele rompeu
com a tradição humoral galênica, por outro, sua posição nos remete a Areteu da
Capadócia
58
:
A característica própria da melancolia consiste em uma lesão das funções
intelectuais e efetivas, isto é, o melancólico é como que possuído por uma idéia
exclusiva ou uma série particular de idéias com uma paixão dominante, e mais ou
menos extrema, como um estado habitual de espanto, de tristeza profunda, uma
aversão ou um entusiasmo pela religião, um amor violento ou uma louca e irradiante
alegria.
59
Nesse sentido, a primeira indicação terapêutica para a melancolia, de acordo
com Pinel, consistiria em “fazer cessar o delírio exclusivo”, ou seja, destruir as idéias
ilusórias que dominam o melancólico. E qual o método? O tratamento moral, isto é,
mostrar ao doente que sua idéia é fantástica, apoiado no fato de que a faculdade da
razão, na melancolia, normalmente não se encontra comprometida. Método este
muito semelhante ao utilizado por Cícero e Sêneca, ou pelos Padres do deserto,
como veremos mais adiante.
Se a melancolia na tradição hipocrático-galênica estava vinculada a uma
alteração material definida a bile negra presente no hipocôndrio, no sangue ou no
cérebro –, com os avanços nos conhecimentos de anatomia, principalmente, do
sistema nervoso, a partir do século XIX, houve uma mudança em sua sede: do baço
ao cérebro, órgão a partir de então responsável pelo comportamento do indivíduo.
Definitivamente, µέλαζ se separa de χολή. A melancolia é deixada aos moralistas e
56
Apud Yves HERSANT, Mélancolies, p. 689.
57
Artigo publicado, em 1816, na Encyclopédie méthodique. In: Yves HERSANT, Mélancolies, p. 693-
713.
58
Cf. p. 78.
59
In: Yves HERSANT, Mélancolies, p. 696.
96
poetas por Etienne Esquirol
60
que a substituiu por lypemania (monodelírio) para, em
seguida, ser transformada em depressão nos manuais de psiquiatria, como o DSM
IV, nos quais humor não mais significa sangue, fleuma, bile amarela ou negra, mas
sim afeto. Hoje não são mais os vapores ou os espíritos animais corrompidos pela
bile negra adusta que provocam perturbações nas regiões cerebrais da imaginação,
razão ou memória, antes uma alteração nos neurotransmissores: noradrenalina,
noraepinefrina, dopamina e serotonina, este último conhecido como
“neurotransmissor da felicidade”. Mas, se os antidepressivos aumentam o tônus
psíquico e melhoram o humor, em relação a ainda inexplicável melancolia eles nada
podem.
II.2 A DOENÇA DA ALMA
Vimos que a marca fundamental da melancolia é a ambigüidade, cunhada
não só em seu próprio nome como também em sua definição primeira: µέλαζ e χολή;
uma substância material, a bile negra, ao mesmo tempo que estados aflitivos da
alma. A medicina antiga e medieval, buscando a diferenciação de seu campo de
estudo e atuação, afirmava que a causa da patologia atrabiliar era física e, assim,
desde o início, como ao longo dos séculos, sua preocupação foi localizar, distinguir,
dosar a bile negra, explicar seu mecanismo de formação, identificando suas causas
para, com isso, buscar medidas para extirpá-las ou, ao menos, minimizá-las,
restabelecendo o equilíbrio do corpo e, assim, sua saúde. Mas, se a patologia
atrabiliar implicava uma enfermidade física e, por isso, pedia um tratamento para os
transtornos do corpo, como eliminar uma idéia fixa que tornava o espírito triste? E a
localização no corpo hipocôndrios ou cérebro garantia a cura, isto é, era capaz
de dissipar os sofrimentos da alma?
Uma ilustração dessa discussão encontramos nas Cartas Hipocráticas que,
para além do confronto entre o médico e o filósofo, como citado anteriormente,
apontam para a relação corpo e alma refletida exatamente no tema da melancolia ou
da loucura, como se referiu Demócrito. Datado provavelmente do século I, ainda que
60
Verbete no Dictionnaire des sciences médicales, de 1819. In: Yves HERSANT, Mélancolies, p. 713-
31.
97
tenha sido considerado, na Antiguidade, entre os escritos originais de Hipócrates
61
, o
texto relata o encontro do renomado médico Hipócrates, que fora chamado pelos
cidadãos de Abdera, com o filósofo Demócrito que, segundo eles, estava louco, pois
permanecia acordado dia e noite, descuidado de si e dos outros, isolado, rindo por
qualquer motivo, fossem alegrias ou tristezas, perdido em seus pensamentos. Diante
dessa descrição, Hipócrates pensou que o filósofo não estaria louco, pois,
provavelmente, seria devido à sua força e eminência de espírito que “tenha se
afastado das pessoas e coisas, levando uma vida retirada, o que é próprio dos
melancólicos que são taciturnos, solitários e desejosos de desertos, fugindo da
conversação com amigos ou estranhos, [...] e não sem razão, pois assim
poderiam se dedicar à sabedoria”. Percebemos, aqui, uma alusão ao Problema
XXX,1, de Teofrasto. Além disso, Demócrito poderia estar tomado de melancolia,
pois seu riso era desmedido, indiscriminado frente a situações de alegria ou tristeza.
Quando Hipócrates dele se aproximou, indagando sobre o que escrevia pois o
médico encontrou o filósofo escrevendo árdua e entusiasticamente –, Demócrito
respondeu: “sobre a loucura [...] o que ela é, como ela advém aos homens e de que
maneira se pode acalmá-la”. Demócrito dissecava animais buscando encontrar a
natureza e a sede da bile negra, “pois ela é, como tu sabes, o que perturba o espírito
dos homens”. Surpreso, Hipócrates comentou que o filósofo era feliz, pois desfrutava
de uma tranqüilidade que não poderia ser compartilhada por todos, já que “o campo,
a casa, os filhos, os deveres, as doenças, a morte, os escravos, o casamento e o
resto nos ocupam todo o tempo”. Depois de uma grande gargalhada, Demócrito
explicou a Hipócrates, que insistia em saber qual o motivo de seu riso: “tu atribuis a
causa de meu riso aos bens e aos males; mas eu rio de um único objeto, o homem
pleno de desvario”, elencando, em seguida, os comportamentos humanos tão
díspares quanto contraditórios e concluindo que “de nascimento, o homem é doente:
na infância, é inútil e precisa que o ajudem; crescendo, ele se torna presunçoso,
insensato, sob a condução de seus mestres; em sua maturidade, ele é arrogante; no
ocaso, ele é miserável e colhe os males que seu próprio desvario semeou.” E
quando Hipócrates afirmou que ele o saberia melhor falar sobre as misérias dos
mortais, mas que era necessário agir, ou seja, que o homem não deveria ficar ocioso
61
Cf. Yves HERSANT, Mélancolies, p. 522- 39. O texto recolhido por este autor consta de oito cartas,
sendo que a melancolia aparece expressamente nas Cartas III e V, e a carta VIII relata o encontro de
Hipócrates com Demócrito. Destas cartas retiramos as citações aqui apresentadas.
98
frente aos afazeres necessários que a vida impõe e caberia ao médico “purgar as
doenças do corpo”, Demócrito, uma vez mais, apontou que a medicina não poderia
curar o homem de sua própria natureza, pois, como ele mostrou a Hipócrates, não
foi possível encontrar a bile negra, que “perturba o espírito dos homens”, no físico,
isto é, na dimensão animal: “Você não que meu caminho é falso também, eu que
busco a causa da loucura matando e dissecando animais? É no homem que é
necessário buscá-la.”
A mesma sobreposição do discurso naturalista da enfermidade melancólica,
imputando à bile negra os delírios do espírito, com o discurso moral, que aponta as
perturbações da alma como resultado das idéias negras, foi feita pelos filósofos
Cícero e Sêneca, romanos dos culos I a.C e I da nossa era, respectivamente.
Ainda que a preocupação de ambos não fosse o tema da melancolia diretamente, os
inumeráveis sintomas elencados por eles nos remetem à patologia atrabiliar: em
Cícero, a tristeza, o temor, o desejo, a cólera, enfim, a aflição de uma alma inquieta;
em Sêneca, o tormento da instabilidade do humor ora alegria desmesurada, ora
tristeza profunda –, o desgosto, o desejo, a insatisfação que não permite repouso, o
isolamento, em uma imagem, o “mal do mar”, a náusea provocada pelas flutuações
de uma alma incerta, descontente, abandonada. Some-se a isso que para o
estoicismo, doutrina filosófica em que ambos se apoiaram, a virtude, a sabedoria,
poderia se perder em duas situações: na embriaguez e na melancolia, e que o sábio,
mesmo jamais sendo atingido pela loucura, poderia ser acometido de “imaginações
estranhas [...] como conseqüência da melancolia ou do delírio”.
62
Para Cícero
63
, as perturbações da alma não são devidas unicamente à bile
negra e, neste sentido, apontou a inexatidão dos gregos ao se referirem à tristeza,
ao temor, à cólera, ao desejo, à alegria desmesurada, como “doenças”: mais
adequado seria o termo perturbationes, pois são “movimentos da alma que não
obedecem a razão”. O termo insania é preferível para se referir ao que os gregos
chamaram loucura, na medida em que se a saúde da alma, conforme os estóicos,
está na tranqüilidade e constância, então uma alma perturbada está em um estado
de não saúde insanitas , da mesma forma que não saúde (sanitas) em um
corpo doente. E como dementiam é uma afecção da alma que consiste na falta de
62
Apud Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 47.
63
Tusculanes III, extratos In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 50-8.
99
luz da inteligência (mentis), o autor concluiu que “a sabedoria é a saúde da alma, e a
falta de sabedoria uma espécie de não saúde (insanitas) que é loucura (insania) e
também demência”. Assim, devemos entender por sãos (sanos) aqueles cujo
espírito não está perturbado por esses movimentos e, consequentemente, por
insanos os que se encontram em estado contrário. Este estado difere, porém, do
arrebatamento pelo desejo ou pela lera que acontece quando “não se está mais
em seu próprio poder”, o que ocorreu, por exemplo, a Ájax ou a Orestes. Por isso,
segundo o filósofo romano, o termo latino furor seria mais adequado do que o grego
µελαγχοάν (melagcholân), pois se trata, neste caso, de “uma completa cegueira do
espírito”. Aqui vemos que a ênfase do autor está na ideia de µέλαζ, na escuridão, e
não na substância atrabiliar que ele prefere não considerar. E completou: “ainda que
este estado pareça mais grave que a insania, é, no entanto, o que pode se encontrar
no sábio, enquanto que a insania não pode”. Percebemos, assim, que, para cero,
loucos são todos os não sábios, isto é, aqueles que se deixam perturbar pelos
movimentos da alma, como os cidadãos de Abdera que viram sua própria loucura
em Demócrito. Isso não significa, contudo, que os sábios não sejam por eles
atingidos, afinal, como diz ele, “não somos feitos de pedra”. Mas, é preciso verificar
a verdade tanto do que nos parece ser um mal, quanto um bem. E é esta reflexão,
que seria, segundo ele, impossível sem a filosofia, o remédio que pode curar a alma:
a “consolação”. Esta consiste em mostrar que nada que acontece ao homem é
inesperado, ainda que possa ser novo e, por isso, não se trata de eliminar o mal,
mas de aliviar a dor, a tristeza que acomete o indivíduo, pois “nascemos sob uma lei
tal que ninguém está isento do mal para sempre”. Por isso é necessário fazer com
que o indivíduo compreenda que sua dor não é o mal; que entenda o que é a
condição humana; e que é “pouco razoável e vão estar agoniado por uma dor, que
não pode servir a nada”. De acordo com o autor, a dor da alma é “a opinião de um
mal presente, acompanhada da ideia de ser obrigado a acolher a dor” e, assim, o
trabalho do consolador é “provar ao homem aflito que sua aflição vem de seu próprio
julgamento”. Essas considerações de Cícero nos remetem tanto à relação
estabelecida por Areteu da Capadócia entre a imaginação e a melancolia
64
, quanto
ao método empregado por Pinel, no século XIX.
64
Cf. p. 78.
100
Por seu lado, o texto de Sêneca
65
é ele mesmo um exemplo da terapêutica
empregada pelo filósofo para curar a “afecção da alma”. Procurado por Serenius,
que lhe pede um remédio capaz de deter as flutuações que o agitam, Sêneca
responde com uma análise dessa doença que inquieta o espírito com perturbações
da imaginação, tal qual em um estado febril, que ele denominou taedium vitae, em
substituição ao termo melancolia. Para ele, o “mal do mar”, a náusea oriunda da
instabilidade da alma, da agitação perpétua se manifesta por meio de “inumeráveis
sintomas, mas eles têm um único efeito, é o descontentamento de si”. Não mais um
agente externo, uma substância concreta, seja a bile adusta oriunda dos alimentos
ou do desequilíbrio da temperatura corpórea, seria responsável pelas paixões da
alma. Para Sêneca,
[...] o mal que nos acomete não vem de alguma parte, mas de nós mesmos que não
temos força para suportar nada: dor, prazer, esforço, nós mesmos, todas as coisas
do mundo nos são um fardo. Há pessoas que chegam ao suicídio: como suas
perpétuas mudanças lhes fazem voltar indefinidamente ao mesmo círculo, sem
qualquer novidade, são tomados por um desgosto pela vida e sentem aumentar em
si o grito dos corações que corrompe o gozo: O quê! Sempre a mesma coisa?
66
E como se livrar deste desgosto de si, destas paixões que asfixiam, deste
turbilhão de uma alma que em nada se fixa? De acordo com Sêneca, é necessário
combinar repouso e ação, solidão e conversação, não se deter por muito tempo na
busca de um determinado fim, variar entre trabalho e diversão, não esquecer dos
cuidados com o corpo sem, contudo, neles se exceder, em resumo, buscar a
tranqüilidade da alma. Mas, o se entenda com isso encontrar uma boa medida,
um grau médio das paixões, pois seria o mesmo que dizer: sejamos moderadamente
loucos ou moderadamente doentes, disse Sêneca. O diálogo, a reflexão, deve
conduzir à supressão das paixões, pois elas são como os vícios, “que chamamos
doenças, como a avareza, a crueldade, o orgulho desenfreado”
67
.
O domínio incerto da melancolia – doença do corpo que afeta a alma; paixões
da alma que perturbam o corpo o possibilitou as reflexões filosóficas, mas
favoreceu a aproximação de uma outra esfera: a religiosa. Os efeitos da bile negra
65
De la tranquilité de lâme I. In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 58-61. De la
tranquilité de lâme II – V. In: Yves HERSANT, Mélancolies, p. 541-8.
66
De la tranquilité de l’âme II – V. In: Yves HERSANT, Mélancolies, p. 543-4.
67
Carta a Lucilius. In: Yves HERSANT, Mélancolies, p. 550.
101
ou das idéias negras também foram experimentados pelos anacoretas, só que agora
como resultado da acédia. Evágrio Pôntico, no século IV, descreveu claramente
como esse mal afeta as faculdades da alma:
O demônio da acédia, que é chamado também “o demônio do meio-dia”, é o
mais pesado de todos; [...] Primeiro ele faz com que o sol pareça lento ao se mover,
ou imóvel, e que o dia pareça ter cinqüenta horas. Em seguida, ele força [o monge] a
ter os olhos continuamente fixos nas janelas, saltando fora de sua cela [...] Em outro,
ele inspira a aversão pelo lugar onde está, por seu estado de vida, pelo trabalho
manual [...] Ele induz então a desejar outros lugares, onde ele [o monge] poderá
encontrar facilmente o que precisa, e exercer um ofício menos penoso.
68
Originalmente, o termo ακηδία (acédia) aparece na literatura pagã significando
negligência, indiferença, abandono dos mortos sem sepultura, recusa de si e do
outro. Mas, é encontrado também na Septuaginta, em particular nos Salmos e em
Isaías, designando tristeza, abatimento.
69
Contudo, é a partir do século III, com
Orígenes e, especialmente, com a Vida de Santo Antão, de Atanásio, que o termo foi
introduzido no vocabulário cristão para indicar um dos efeitos gerados na alma pela
aparição dos demônios e, com Evágrio, a acédia passou a ser considerada a mais
temível das tentações.
70
Em seu Tratado Prático, é identificada como o “demônio do
meio dia” e está na sexta posição da lista dos oito logismoi, isto é, maus
pensamentos genéricos ou vícios que originaram os pecados capitais: gula, luxúria,
avareza, tristeza, cólera, acédia, glória vã e orgulho. Vícios estes que são suscitados
pelos demônios a partir das esferas irascível e concupiscível que formam, com a
racional, as três faculdades da alma. O Tratado consiste, portanto, em detalhar
esses maus pensamentos para que o monge seja capaz de identificá-los e erradicá-
los, aplacando, assim, as paixões da alma.
É interessante notar que Evágrio diferencia a tristeza da acédia. A primeira é
uma paixão superficial, isto é, de origem concupiscível – frustração dos desejos – ou
irascível da cólera de se estar frustrado –, enquanto a acédia, “companheira da
tristeza”, ainda que sua origem seja a mesma, nela a irascibilidade e a
concupiscência se combinam: desgosto do que é e desejo do que não é,
simultaneamente e por longo tempo. Assim, diferente da tristeza que se limita a uma
68
Apud Yves HERSANT, Mélancolies, p. 780. Cf. também extratos do Tratado Prático de Evágrio In:
Patrick DANDREY, Anthologie de lhumeur noire, p. 201-5.
69
Cf. Hélène PRIGENT, Mélancolie. Les métamorphoses de la dépression, p. 22-3.
70
Cf. Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 202.
102
crise e é passível de ser consolada, a acédia é a paixão das paixões, nenhuma outra
vem depois dela, “primeiro porque ela dura, e depois porque ela contém em si quase
todos os pensamentos”
71
. E, de fato, enquanto cada um dos vícios está ligado a um
objeto definido a gula à comida, a luxúria à mulher, as honras ao orgulho, etc. à
acédia há uma indeterminação ao mesmo tempo que uma infinidade de objetos.
Saindo dos desertos, a acédia penetrou nos monastérios a partir do século V
quando o monge italiano João Cassiano, em suas obras Instituições cenobíticas (De
Institutis conoebiorum) e Conferências, utilizando-se dos ensinamentos dos Padres
do deserto, com os quais conviveu durante quinze anos, descreveu e organizou a
vida monástica. Como Sêneca, que substituiu melancolia por taedium vitae, ele
preferiu taedium cordis à acédia, uma espécie de tristeza superlativa que consome a
alma como uma febre cotidiana, em horas fixas, provocando um horror pelo lugar em
que se encontra, desgosto pela cela, desprezo pelos companheiros, uma inação,
uma inquietação sem conseguir repouso, um desejo de procurar outros lugares, os
olhos acompanhando o movimento lento do sol. “Uma confusão mental sem razão
se apropria dele [do monge] e afoga seu espírito em espessas trevas. Cessa a vida
espiritual, restando a esterilidade, o vazio!
72
Mas, ao mesmo tempo que considerou
a acédia como um vício, Cassiano se referiu a ela várias vezes como “doença”,
como quando disse, por exemplo que se “deve expulsar propriamente essa doença,
da mesma forma que as outras, dos recônditos da alma
73
ou quando se refere ao
Apóstolo Paulo como médico espiritual que indicava “medicamentos salutares
[contra] esta doença [acédia]”.
Se Cassiano, seguindo Evágrio, manteve a lista dos oito cios e a acédia na
sexta posição, diferenciando-a de tristeza, Gregório Magno, no século VI, agregou
os efeitos de uma a outra, suprimindo a acédia da lista.
74
Por outro lado, ao
descrever os “sintomas desta doença”, Cassiano apontou que “a preguiça cega o
espírito”
75
, o que talvez tenha contribuído para a redução da acédia à preguiça. Essa
ideia penetrou facilmente os meios laicos, ao longo da Idade Média: se para
71
De acordo com um salmo da tradição oriental. Apud Hélène PRIGENT, Mélancolie, p. 28.
72
In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 214.
73
Ibid., p. 217.
74
A lista foi fixada em sete vícios por Pierre Lombard, no século XII, enquanto a expressão “pecados
capitais” é posterior a 1270. Cf. Yves HERSANT, Mélancolies, p. 778.
75
In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 216.
103
combater a acédia o monge deveria se entregar à oração e ao trabalho manual,
como advertira Cassiano, seguindo os ensinamentos do Apóstolo Paulo
76
, ao
homem comum caberia o trabalho, pois da mesma maneira que a acédia ataca o
monge que não busca o bem divino, ela atinge o homem ocioso. E é interessante
que Cassiano descreva “aqueles que se deixam vencer pela acédia” como “largados
em sua cela, inertes” ou, quando fora dela, como andarilhos, “instáveis e
vagabundos”. Imagens estas que aparecem na iconografia da Idade Média.
Ainda que não encontremos nenhuma referência à bile negra em Evágrio ou
Cassiano, não se pode negar a semelhança entre a melancolia e acédia.
Semelhança já percebida por São Jenimo que, no século IV, advertiu:
Os monges, com a umidade de suas celas, seus jejuns prolongados, o
desgosto da solidão, uma leitura prolongada, o ruído que ressoa em seus ouvidos dia
e noite, que são acometidos de melancolia, eles têm necessidade dos remédios de
Hipócrates, mais que de nossos conselhos.
77
Como diferenciar a doença do corpo da enfermidade da alma? Claro está que
não se poderia confundir a espiritualidade dos Padres com a materialidade dos
médicos, mas se a acédia designava o maior dos pecados, a melancolia era a mais
devastadora das doenças. A analogia é tão marcante que São Tomás de Aquino, no
século XIII, em sua Suma Teológica, indagou se a acédia seria ou não um pecado,
pois se trata “de uma tristeza tão opressiva que produz no espírito do homem uma
depressão tal que ele não deseja mais nada, da mesma forma que as coisas que,
corroídas pelo ácido, se tornam frias: por isso a acédia produz o desgosto pela
ação”
78
. Esta menção ao ácido nos lembra, inevitavelmente, a descrição que deu
Galeno à bile negra: “como um ácido, [...] corrói a terra, incha, fermenta, faz nascer
bolhas como aquelas que se elevam em um pote em ebulição
79
.
Ao longo da Idade Média, embora pecado e doença sejam distintos, os
“sintomas” teológicos confundem-se com os médicos: o desgosto do acedioso é o
mesmo do melancólico; igual sentimento de dissolução, de vazio, de abandono;
76
Livro X, Capítulo VII, Testemunhos do Apóstolo contra o espírito da acédia. In: Patrick DANDREY,
Anthologie de l’humeur noire, p. 217-21.
77
Apud Yves HERSANT, Mélancolies, p. 778.
78
Apud Hélène PRINGENT, Mélancolie, p. 33.
79
Des lieux afectés. In: Yves HERSANT, Mélancolies, p. 830-7.
104
mesma busca de reclusão no silêncio ou de uma conversação sem medida; igual
inquietação. Semelhança que levou David de Augsbourg, no século XII, a designar
os homens que se corroem de “negros vapores” como presas ideais da acédia.
80
Ou
como os padres que, a partir do culo XIII, identificavam como “acediosos em
potencial” os cristãos “secos e terrosos”, elaborando, assim, uma fisiognomia do
pecado, colocando em paralelo o vício e a compleição física resultante da bile negra.
Lembremos que uma fisiognomia e uma caracteriologia melancólicas
aparecem no Corpus hipocraticum que, enriquecidas com as discussões de
Teofrasto e, posteriormente, de Rufus e Galeno, originaram o sistema de
temperamentos sintetizados, provavelmente pela primeira vez, em um tratado grego
de autor anônimo, intitulado Da constituição do Universo e do Homem, escrito ao
redor do século II ou III, no qual se lê: “aqueles que são governados pela bile negra
são indolentes, tímidos, sofredores, e no que concerne a seus corpos, eles têm a tez
morena e o cabelo negro”
81
. Mas o texto que será referência por toda a Idade Média
e que traz a descrição dos temperamentos associados aos humores é a Carta a
Pentadius
82
, escrito pelo médico, poeta e jurista Vindicianus, no século IV, no qual o
autor observou que “a bile negra lhes faz velhacos, irascíveis, avaros, temerosos,
tristes, sonolentos, invejosos, frequentemente atingidos de arranhaduras negras nos
pés”. Arranhaduras estas indicando a licantropia que, como apontamos
anteriormente, fazia com que suas vítimas vagassem solitárias pelos campos.
Interessante é que Vindicianus opôs claramente o temperamento melancólico ao
sanguíneo: “condescendente, simples, natural, moderado, sedutor, euchymos, isto é,
cheio de encanto”. Esse sistema influenciou diretamente Isidoro de Sevilha que, no
século VII, associou o termo sanguis a suavis, relacionando-o à suavidade do
temperamento sanguíneo, e encontrou na palavra µέλαζ a etimologia do termo latino
malus, mal, doença, ou seja, uma conotação negativa.
83
A melancolia penetrou, assim, o campo de referências da acédia, como
podemos observar nas reflexões do teólogo Hugues de Fouilloi. Preocupado com o
ideal de perfeição monástico e como a ele chegar, o teólogo desenvolveu em sua
80
Apud Hélène PRINGENT, Mélancolie, p. 33.
81
Ibid., p. 35.
82
In: Patrick DANDREY, Anthologia de l’humeur noire, p. 230-2.
83
Cf. Hélène PRINGENT, Mélancolie, p. 36.
105
obra De medicine animae, do século XII, como o próprio título indica, uma reflexão
médico-moral, com base no sistema dos temperamentos tanto de Vindicianus
quanto de Isidoro, com o objetivo de apresentar as condições de saúde espiritual de
uma alma em luta contra as forças do mal. Ele advertia que:
É necessário velar para que a doçura espiritual não seja perturbada pela
amargura temporal, e se guardar em deixar a doçura carnal corromper a amargura
resultante do pecado; da mesma forma é necessário tomar cuidado para que a
tristeza saudável não seja perturbada pelo ociosidade e apatia, e que o espírito não
seja transtornado pelas coisas ilícitas.
84
À doçura espiritual, Hugues relacionou, como Isidoro, o temperamento
sanguíneo, temperamento natural que estaria na origem, antes da Queda: “pelo
sangue, tu conhecestes outrora a doçura do Amor”; enquanto a amargura resultante
do pecado estaria associada à melancolia: “pela bile negra ou melancolia, tu
conheces no presente uma aflição conforme teus pecados”. Ainda que o teólogo não
tenha mencionado o termo acédia, a analogia entre esta e a melancolia é expressa
quando ele disse que “na bile negra [...] se pode entender uma tristeza tal como
aquela que nos afeta por nossas más ações”, ou quando localizou a sede da bile
negra e a dos pecados: “a bile negra governa a parte esquerda do corpo, porque ela
está submetida aos vícios, que se situam do lado esquerdo [...] ela tem sua sede no
baço”. Mas se a melancolia e acédia estavam associadas ao mal, ao diabo,
enquanto aquele que suscita o pecado, o vício, também significavam, segundo o
teólogo, uma possibilidade de salvação: “mas se pode dizer que um outro tipo de
tristeza, aquela do espírito atormentado pelo desejo de alcançar Deus”, possibilidade
esta apontada por Cassiano que, por sua vez seguiu Paulo
85
. Hugues viu na
melancolia figurar, simbolicamente, a condição dual do homem entre a consciência
de sua miséria e a esperança de encontrar Deus. Essa distinção entre aquele que
está aflito pelo afastamento de Deus e o pecador que Dele se distancia, voltando-se
para o mundo, não seria semelhante àquela entre o bio pagão da Antiguidade,
que se entrega à meditação sobre os erros humanos, e o melancólico, cuja tristeza
84
Fragmento do capítulo em que Hugues de Fouilloi trata da bile negra. In: Patrick DANDREY,
Anthologie de l’humeur noire, p. 375-80.
85
Cassiano se apoiou na seguinte passagem de Paulo para mostrar a “única vantagem da tristeza”:
“A tristeza, que é conforme Deus, opera um arrependimento salutar e durável, no lugar em que a
tristeza do mundo opera a morte” (II Cor. 7,10). In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire,
p. 211.
106
sem causa é o seu próprio mal? A bile negra toma o lugar do diabo e as idéias
negras, aquele dos vícios.
A relação entre melancolia e acédia foi, assim, asseverada: ou o diabo
convocado pela acédia suscita o humor melancólico, ou ele encontra o terreno
preparado pela melancolia e inspira a acédia, ou, ainda, ele suscita o humor negro
que torna o homem acedioso, como descreveu Hildegard von Bingen,
contemporânea de Hugues de Fouilloi:
Quando Adão que conhecia o bem fez o mal comendo do fruto proibido, a
melancolia surgiu nele sob o efeito desta contradição; já que esta não se encontra no
homem, quer ele durma ou esteja em vigília, sem a intervenção do diabo: com efeito,
a tristeza e o desespero vêm da melancolia que ocorreu a Adão como resultado de
seu pecado. Porque, desde que ele transgrediu o preceito divino, a melancolia se
coagulou em seu sangue, da mesma forma que a claridade desaparece quando se
apaga a luz, restando apenas uma fumaça hedionda. Assim ocorreu a Adão: quando
se apagou nele a luz, a melancolia se coagulou em seu sangue: tristeza e
desespero nele se elevaram, pois o diabo, no momento da queda de Adão, insuflou-
lhe a melancolia, o que torna o homem tíbio e incrédulo.
86
Acédia e melancolia, doença da alma e patologia atrabiliar se confundem
nesta interpretação que Hildegard fez do texto do Gênesis: a acédia, enquanto falta,
produz a melancolia, isto é, o pecado corrompe o sangue do homem, outrora puro,
fazendo nele surgir o humor negro que provoca, na alma, a tristeza e o desespero.
Mas, o diabo alcança êxito porque encontra o terreno preparado pela melancolia:
“a tentação do diabo, frequentemente, se une à melancolia, e ela torna o homem
triste e desesperado”. Segundo a mística renana, o homem foi modificado, tanto em
sua alma, quanto em seu corpo, após a transgressão de Adão do preceito divino: a
pureza de seu sangue foi transformada em amargura, isto é, “o que agora é bile no
homem brilhava nele como um cristal [...] e o que agora é melancolia brilhava nele
como uma aurora”. Contudo, para Hildegard, a tristeza é provocada por uma
“espécie de nuvem” que recobre o coração do homem como resultado da contração
do coração, do fígado e de suas veias, contração esta realizada pela alma todas as
vezes que ela experimenta, nela mesma ou no corpo, uma ferida. Observamos, em
sua descrição, uma linguagem mista de elementos teológicos e médicos: “quando o
homem vê, entende ou pensa alguma coisa que provoca sua tristeza, a nuvem de
tristeza que invadiu seu coração faz nascer um vapor quente que coloca sua bile em
86
Extratos do Livro II e Livro III de Causae et curae In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur
noire, p. 385-401; e Yves HERSANT, Mélancolies, p. 560-9.
107
movimento, e assim a cólera nasce da amargura da bile e se eleva silenciosamente”.
Lembramos, aqui, dos vapores da teoria de Galeno bem como da formação da bile
adusta descrita pelos médicos. Entretanto, mesmo que a alma “afetada pelo
desgosto de seu corpo” pareça adormecida, ela retoma suas forças e, em seguida,
faz com que “o homem se encontre de alguma forma renovado, como se ele tivesse
um novo caráter”. Assim, também em Hildegard, observamos o duplo aspecto da
melancolia/acédia, pois, se de um lado, ela é resultado da fratura introduzida entre
Deus e a criatura pela desobediência de Adão, por outro, ela tem um significado
espiritual mais alto, na medida em que a tristeza e o temor podem despertar, no
homem, a esperança de alcançar Deus.
A melancolia, seja como doença, seja como temperamento, passou a ser
vista com suspeita, pois o melancólico, corrompido pelo humor ou fragilizado por sua
disposição natural, seria presa fácil do demônio: a acédia fora assimilada pela
melancolia. É interessante que Petrarca, no século XIV, em seu De secreto conflictu
curarum mearum, uma espécie de confidência feita pelo poeta italiano a Santo
Agostinho, utilizasse os dois termos como sinônimos na seguinte fala do bispo de
Hipona: “Tu fostes atingido de uma terrível doença da alma, a melancolia, que os
antigos chamavam agritudo, e que se chama agora acidia.”
87
Dessa forma, é
compreensível por que os teólogos, durante a Idade Média, buscavam maneiras de
erradicar a melancolia. Uma exceção foi Guilherme de Auvergne que, em sua obra
De universo, escrita entre os anos 1231-36, colocou a melancolia mais na ótica de
Deus que do diabo. Retomando autores como Rufus de Éfeso, Galeno, Teofrasto e
as lições dos Padres do Deserto João Crisóstomo, Evágrio e João Cassiano –, o
teólogo apontou que “os melancólicos são próprios à iluminação”. Para ele, que,
como afirmara Rufus, os melancólicos possuem “a faculdade de imaginar o que vai
se seguir”, que se transforma em capacidade de profetizar, como havia reconhecido
alguns autores árabes, isso não implicaria que “a iluminação pelo fogo divino poderia
beneficiar uma disposição natural inerente à compleição do sujeito?”
88
Assim, antes
que Marsílio Ficcino retomasse o Problemata XXX,1, de Teofrasto, para afirmar a
característica de excepcionalidade dos melancólicos, Guilherme de Auvergne já
discutira a compleição atrabiliar como favorável às iluminações divinas.
87
In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 449.
88
Extratos In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 404-10.
108
Todavia, na Idade Média, foram raros os autores que, como Guilherme de
Auvergne, valorizaram o temperamento melancólico. A maioria das descrições, tanto
nas obras teológicas e morais quanto nas obras vulgares e nos almanaques, que
logo se difundiram, apresentavam os melancólicos de forma a não inspirar muita
simpatia: embotado, misantropo, frio e seco como a terra, coração amargo,
inconstante, alterna tristeza e riso
89
, velhaco e avaro, sombrio e atormentado,
solitário, inquieto, lento e “pesado”, enfim, traços que não mais se referem
unicamente aos sintomas da doença da alma ou da patologia atrabiliar, mas definem
agora um perfil característico. Perfil este que se confunde com aquele dos nascidos
sob a influência de Saturno.
II.3 SATURNO, O PLANETA DA MELANCOLIA
Mais ou menos contemporaneamente à composição de De medicinae animae
e Causae et curae, o teólogo, filósofo e poeta Alain de Lille escreveu Anticlaudianus,
uma expressão poética de questões sobre filosofia natural, na qual encontramos um
retrato de Saturno:
Seguindo seu curso, Prudência leva seus passos
Em direção aos deuses do alto, além de Júpiter
E seus pórticos. Nas moradas de Saturno, que se estendem mais ao longe
Ela penetra; tremendo do frio invernal e das escarchas do solstício,
Ela se assombra como o frio intumesce o calor do verão.
Ali o inverno ferve, o verão esfria, e o grande calor
Se congela; o esplendor divaga, a chama se amorna.
As trevas ali brilham, a luz escurece; e aí,
Se faz noite na claridade, se faz dia na noite;
Aí Saturno percorre o espaço, com um passo
Avarento, avançando pesadamente, se atrasando com tempo.
Suas escarchas saqueiam as alegrias da primavera;
Ele rouba do prado seus adereços e das flores seu esplendor;
Seu calor é gelado, ferve sua frieza; ele transborda
Secura, brilha obscuro, envelhece jovem.
E sem que sua voz degenere nem se afaste do canto,
A seus companheiros ele supera os ditos, em uma viril harmonia
Que o canto não atenua e que torna saborosa
A doçura de sua voz.
Sofrimento e dor reinam aqui: lágrimas, discórdia, terror,
Tristeza e angústia, dor e danos.
90
89
Hugues de Fouilloi, seguindo Plínio o Velho, apontara que o baço é a sede da bile negra, mas
também do riso. Eu penso que é muito lógico que os melancólicos tanto riam quanto chorem”. In:
Patrick DANDREY, Anthologie de lhumeur noire, p. 377.
90
Poursuivant sa course, Prudence porte ses pas / vers les dieux d'en haut, par-delà Jupiter / et ses
portiques. Dans les demeures de Saturne, qui s'étirent plus au long, / elle pénètre; tremblant du froid
109
A linguagem antitética utilizada pelo autor, intencionalmente ou não, reflete as
contradições próprias à ideia de Saturno desde sua origem na Antiguidade.
Percorrendo a análise minuciosamente realizada por Klibansky, Panofsky e Saxl, na
obra que se tornou referência ao tema – Saturno y la melancolía –, podemos
perceber que contribuíram para a formação dessa ideia elementos mitológicos,
astronômicos e astrológicos. O conhecimento dos planetas como corpos celestes foi
transmitido aos gregos pelos babilônios que os consideravam como deuses do
destino. Assim, ao lado de Mercúrio, Vênus, Marte e Júpiter, Saturno foi por eles
associado ao deus Ninib, ou Ninurta, representante noturno do Sol e, por isso
considerado o mais poderoso dos cinco planetas. De acordo com Epígenes de
Bizâncio, astrônomo grego que viveu ao redor do ano 200 a.C. e dizia ter estudado
na Caldeia, onde se originou a astrologia, Saturno tinha grande influência sobre os
movimentos dos outros corpos celestes, daí, talvez, a relação Ninurta/Saturno como
“segundo Sol”.
91
É interessante observarmos que Ninurta era o deus da agricultura,
que curava as enfermidades bem como afugentava os demônios, ao mesmo tempo
que deus do Vento Sul, aquele que venceu o dragão Zu, resgatando as Tábuas do
destino que este tinha roubado do deus Enlil, tornando-se, assim, o guardião das
Tábuas e, posteriormente, do próprio destino, poder que lhe foi outorgado pelos
deuses em reconhecimento à sua coragem e êxito.
92
É possível, assim,
compreendermos que quando este conhecimento chegou aos gregos, estes só
poderiam relacioná-lo a Kronos, o mais contraditório e ambivalente dos deuses.
na Ilíada de Homero e na Teogonia de Hesíodo, o caráter dual de Kronos aparece
claramente: pai dos três senhores do mundo Zeus, Posidon e Hades –, deus da
agricultura, senhor da Idade de Ouro, na qual imperava a abundância, deus da
edificação das cidades, ao mesmo tempo que destronado e castrado por seu filho
hivernal et des frimas du solstice, / elle s'étonne que le froid engourdisse la chaleur de l'été. / Là l'hiver
est bouillant, l'été froid, et la grande chaleur / se glace; la splendeur extravague, la flamme s'attiédit. /
Les ténèbres ici brillent, la lumière s'enténèbre; et lá, / il fait nuit dans la clarté, il fait jour dans la muit;
/ Saturne parcourt l'espace, d'un pas / avaricieux, s'avançant lourdement, s'attardant à loisir. / Ses
frimasmettent à sac les joies du printemps; / il vole aux prés leur parure et aux fleurs leur éclat; / sa
chaleur est gelée, brûlant sa froidure; il déborde / de sécheresse, brille obscur, vieillit jeune. / Et sans
que sa voix dégenère ni ne s'écarte du chant, / des ses compagnons il surpasse les dires, en une
adulte harmonie / que le chant n'émousse pas et que rend savoureuse / la doceur de sa voix. /
Souffrance et plainte gnent ici: larmes, discorde, terreur, / tristesse et pâleur, douleur et mauvais
coups. In: Yves HERSANT, Mélancolies, p. 570. (tradução livre)
91
Cf. http://www.mallorcaweb.net/masm/mitsat.htm.
92
Cf. http://en.wikipedia.org/wiki/Ninurta.
110
Zeus, com a mesma foice que o fizera com seu pai Urano, Kronos habitava, triste e
solitário, os confins da terra e os abismos do mar, era o senhor do submundo e,
mais tarde, deus da morte e dos mortos; de um lado, pai dos deuses e dos homens,
de outro, devorador de tudo, como Cronos, deus que devora o Tempo, a quem
também foi associado, como aparece nos textos dos estóicos Cleantes, Crisipo e
Cícero.
93
Seguiu-se, então, a fusão de Kronos ao deus romano Saturno, o que
acentuou as contradições, pois embora este fosse, em princípio, benigno, deus dos
campos, das colheitas e da fertilidade, cujo reinado foi cheio de abundância e paz,
sua soberania foi exercida, no entanto, a partir de seu refúgio em Lácio, de onde
ensinou a agricultura aos homens.
Ao lado da identificação mítica Saturno-Kronos, as qualidades físicas do
planeta foram combinadas às suas propriedades astrológicas. A mais antiga
expressão conhecida neste sentido é a obra Astronómicon de Manílio
94
, um poema
escrito por volta do ano 10, no qual o autor retratou Saturno como um senhor celeste
de caráter sombrio, destronado e expulso do céu, exercendo seus poderes “no lo
oposto do eixo do mundo”, de onde regia os fundamentos do universo e, da mesma
maneira que seu destino mítico fora determinado por sua paternidade, passou a ter,
enquanto potência planetária, poder sobre os destinos dos pais e dos homens
velhos. Disse Manílio:
Mas, na parte onde o céu, no pólo oposto, embaixo, se assenta, a ocupar as
fundações, a qual observa, acima, o outro lado do orbe, e que jaz sob o meio da
noite, Saturno exerce, ali, as suas influências, despojado ele mesmo, outrora, do
império do céu e do trono dos deuses, e como pai que é, exerce o seu poder sobre
os destinos dos pais e sobre a fortuna dos velhos. O nome que a Grécia lhe pôs,
Demônio, indica poderes dignos do nome.
95
Todavia, foi Vettius Valens, astrólogo do século II, que, em sua obra
Anthologiarum libri novem
96
, descreveu detalhadamente a natureza e influência dos
93
Cf. KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, p. 149.
94
Há uma versão espanhola: Marco de MANÍLIO, Astrología. Madrid: Gredos, 1996.
95
At qua subsidit converso cardine mundus / fundamenta tenes adversum et supicit orbem / ac media
sub nocte iacet, Saturnus in illa / partes suas agitat vires, deiects et ipse / império quondam mundi
solioque deorum, / et çater in patrios exercet numina casus / fortunamque senum; priva est tutela
duorum, / [nascentum atque patrum, quae tali condita pars est] / asper erit templis titulus, quem
Graecia fecit / daemonium, signatque suas pro nome uires. Apud KLIBANSKY, PANOFSKY E SAXL,
Saturno y la melancolía, p. 151, nota 49. (tradução livre)
96
uma versão francesa com comentários de Jöelle-Frédérique Bara: Vettius VALENS
D’ANTIOCHE, Anthologies Livre 1. Leiden: Brill, 1989.
111
planetas, condensando, de forma mais plena, em sua caracterização astrológica, a
concepção mítica aliada à visão astronômica, que serviu de base para o
desenvolvimento posterior da astrologia. Assim, em sua exposição de Saturno
aparecem as experiências vividas por Kronos, como o abandono de crianças, a
orfandade, a viuvez, a malevolência; sua associação aos tristes, aos mendigos, aos
maltratados, aos solitários, reflete sua prisão no Hades; os atributos de autoridade e
de fama mostram sua posição original como senhor do mundo; sua relação com as
lágrimas, com as enfermidades provocadas pelo frio e pela umidade, com a bexiga e
com a morte por afogamento, baseiam-se na definição órfica e pitagórica de Kronos
como deus marítimo e fluvial. Do Saturno romano, deus das colheitas, derivam as
características de governo da agricultura, dos campos, da madeira, da pedra, e sua
proteção aos viajantes se deve à fuga para Lácio. Por outro lado, de suas
propriedades astronômicas e físicas derivaram determinadas naturezas e destinos: a
lentidão da revolução do planeta conferia aos nascidos sob sua influência o caráter
de indolência, bem como o tornava senhor do chumbo e gerador de contendas
prolongadas; sua qualidade de frio provocava doenças e sua associação ao
elemento terra lhe outorgava poder sobre as partes duras do corpo humano, tais
como os ossos, os joelhos e as articulações em geral, estando relacionado, talvez
por isso, ao reumatismo.
97
Podemos observar que na ideia astrológica de Saturno,
desenvolvida por Valens, não mais ocorria uma equiparação como, por exemplo,
assim como Kronos habitava triste e solitário os confins do mundo quando fora
destronado, os filhos de Saturno são acometidos de solidão e tristeza; mas sim,
como o reumatismo é causado pelo frio e a qualidade essencial de Saturno é o frio,
então o reumatismo é próprio de Saturno. Esse sistema de analogia se apresentou
como um terreno propício para a inclusão de outros campos do conhecimento que
se desenvolviam no mesmo peodo: a fisiognomia e a caracteriologia
98
.
Desde o Corpus hipocraticum e, sobretudo, de Teofrasto, havia uma
preocupação com a estrutura física e mental do homem. E, da mesma forma que os
tipos “naturais” que a ciência descreveu assemelhavam-se aos tipos planetários, as
doenças provocadas pelos astros coincidiam com as ideias da medicina. Assim
como os humoralistas utilizaram a fisiognomia e a caracteriologia para compor os
97
Cf. KLIBANSKY, PANOFSKY E SAXL, Saturno y la melancolía, p. 152-3.
98
Cf. p. 104.
112
quatro temperamentos, como vimos anteriormente, a astrologia empregou o mesmo
método para construir seus tipos planetários. Dessa forma, os “filhos de Saturno”
foram adjetivados como mesquinhos, egoístas, avaros, cheios de preocupações,
infelizes, abatidos, desanimados, ásperos, com olhar fugidio, chorosos, delirantes,
preguiçosos, sonolentos, e, então, foram identificados aos melancólicos. Contudo,
uma conexão entre Saturno e a melancolia enquanto enfermidade ou como
temperamento foi estabelecida na Idade Média, pois o sistema dos quatro
temperamentos, como apontado, alcançou uma forma estável no século IV.
Além disso, a astrologia caiu, por algum tempo, no esquecimento e voltou ao
ocidente medieval graças às traduções latinas das obras dos astrólogos árabes que,
como acontecera com os escritos médicos, recopilaram e interpretaram as obras
gregas da Antiguidade. Mesmo assim, encontramos em Valens e seus sucessores,
alguma relação entre Saturno e a bile negra, ainda que não de forma definida e
constante. Para Valens, Saturno governava o baço; Julius Firmicus Maternus (século
IV) afirmou que uma determinada localização de Saturno no firmamento, com a Lua
em conjunção com Marte, gerava insanos e melancólicos; e, segundo o astrólogo
Doroteo de Sidone (aproximadamente, do final do século I), a conjunção entre o frio
Saturno com o quente Marte ativaria a bile negra.
99
Se, por um lado, a maioria dos autores retratava Saturno de forma negativa e
suas influências geralmente como desfavoráveis, por outro, estes mesmos autores
afirmaram que o planeta poderia também produzir grande fama, como apontou
Valens, ou gerar “na quinta casa, reis, estadistas e fundadores de cidades [...] na
nona casa, até famosos magos e filósofos, assim como excelentes adivinhos e
astrólogos, que sempre profetizam corretamente, cujas palavras possuem, por assim
dizer, autoridade divina”
100
, como afirmou Firmicus. Lembremos que essas
características aparecem nos mitos de Kronos, como apontara Hesíodo, como
também do Saturno romano. Porém, as qualidades puramente mentais, como a
capacidade para a reflexão filosófica profunda, para a profecia e para o sacerdócio,
não tinham fundamentos nem na mitologia, nem na astronomia, nem na astrofísica.
Como observam Klibansky, Panofsky e Saxl, elas derivaram do neoplatonismo que,
na busca de uma unidade metafísica que desse sentido à existência física, utilizaram
99
Cf. KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, p. 156-8.
100
Ibid., p. 160, nota 78.
113
os mesmos dados míticos e científicos que a astrologia. E na medida em que, no
sistema neoplatônico, os corpos celestes simbolizavam os diversos graus da
estrutura do Todo, bem como representavam os princípios cosmológicos através dos
quais se davam as emanações do Uno ao mundo material, nenhuma influência
planetária poderia ser negativa. Somado a isso, Saturno fora considerado pelos
babilônios como o planeta mais importante, o “segundo Sol”, o pai de todos os
planetas, ocupando o lugar mais alto no céu. E tendo por base o princípio de Platão
de que o gerador tem precedência sobre o gerado, bem como o de Aristóteles de
que quanto mais elevada a posição no espaço, maior o valor metafísico, Kronos, o
pai dos deuses, passou a simbolizar o intelecto
Νοϋζ e, assim, Saturno adquiriu
o poder do pensamento mais puro e elevado. Aquele que gerava os indolentes, os
vulgares, os malevolentes, ao mesmo tempo passou a ser adorado como o planeta
da contemplação mais elevada, o planeta dos anacoretas e dos filósofos.
101
Foi sobre essa ideia de contrastes que a analogia de Saturno com a
melancolia se fundamentou. Mas não porque as qualidades de frio e seco se
aplicavam ao planeta e à bile negra, ou em função da tristeza e da solidão
compartilhada entre o melancólico e o saturnino; sobretudo porque da mesma forma
que a melancolia, Saturno, o “demônio dos contrários”, ou “Astro de Némesis”
102
,
como o denominavam os gregos, dotava a alma tanto de lentidão e inépcia quanto
de capacidade reflexiva e contemplativa; como a melancolia, Saturno poderia
provocar em quem estivesse sob sua influência tanto a tristeza profunda quanto o
desespero; como a melancolia, Saturno era gerador de genialidade e de loucura.
Todavia, foram essas mesmas características contraditórias de Saturno que
serviram de armas para a guerra travada pelos Padres da Igreja contra a ideia de
predestinação da astrologia e contra a nos deuses pagãos. Santo Agostinho
comentou a respeito:
Eu realmente não sei o que fazer com uma gente que, tentando interpretar os
deuses e efígies de seus deuses em melhor sentido, reconhecem que seu deus
maior, pai de todos os demais, é o Tempo. Pois, que outra coisa dão a entender
101
Cf. KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, p. 163-7.
102
É interessante lembrar que Némesis, a deusa grega filha da noite (Nix), também chamada de a
inevitável, figurava a justiça divina e tinha como função essencial o restabelecimento do equilíbrio
quando ocorria algum excesso hybris. Cf. Junito de Souza BRANDÃO, Mitologia grega, p. 112-3 e
232, v. I.
114
senão que todos seus deuses são temporais, posto que fazem seu pai o próprio
Tempo?
103
Mas, embora tenham se ocupado em mostrar o equívoco dessas crenças, foi
um teólogo, contemporâneo de Santo Agostinho, quem abriu caminho para uma
aproximação do cristianismo à especulação cosmológica: Santo Ambrosio, que
relacionou o sistema cósmico aos dons do Espírito Santo, ainda que sem qualquer
vínculo com a astrologia. Esse ponto de vista foi retomado por Alexander Neckam,
scholar inglês do século XII, que deu um tratamento astrológico à doutrina de
Ambrosio. Se a lista dos sete dons em Isaías começava com a sabedoria e
terminava com o temor de Deus, para Neckam, então, a sabedoria poderia ser
atribuída a Saturno, pois como o planeta “demora um tempo considerável em
completar sua revolução, assim a sabedoria gera de si mesma maturidade”
104
. Essa
opinião foi compartilhada por Bertoldo de Ratisbona, no século XIII, que havia
comparado os planetas não aos sete dons, mas às virtudes, tendo atribuído a
“continuidade” a Saturno. Na mesma linha, para Santo Tomás de Aquino, Saturno,
como o planeta mais alto, outorgava também o dom mais alto a estabilidade da
existência; e em um sermão atribuído a Meister Eckhart, o planeta é visto como
purificador: “de modo que no céu da alma, Saturno é um limpador que pureza
angélica e produz uma visão da divindade”.
105
De maneira semelhante, para o
teólogo Guilherme de Auvergne, para quem a compleição melancólica favorecia a
iluminação divina, como já fora comentado
106
, Saturno teria como objetivo “iluminar e
guiar a ‘virtus intellectiva’ e conduzi-la ao conhecimento do reto e útil, às vezes até à
luz da profecia”
107
.
Se o combate da Igreja dos primeiros séculos fez com que a astrologia
ficasse reduzida a apenas um tema de discussões teóricas, a partir das traduções
das obras árabes, o ocidente medieval o conheceu a doutrina astrológica da
Antiguidade, como também a conexão entre os humores e Saturno, Marte, Júpiter e
Lua traçada pelo astrólogo árabe Alcabitius, que viveu no século X. Embora se
103
Apud KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, p. 171.
104
Ibid., p. 174.
105
Apud Hélène PRINGENT, Mélancolie, p. 42.
106
Cf. p. 107.
107
Apud KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, p. 176.
115
encontrasse em alguns autores do século IX, como Ab
ū Ma‘šār (†885), em seu
Introductorium maius, vertido para o latim por João de Sevilha no século XII,
Alcabitius deu uma ordenação mais sistemática para os efeitos produzidos pelos
planetas. Na exposição do autor, percebemos a dualidade, a ambigüidade e as
contradições das características de Saturno e de seus efeitos: seco, o planeta
também é úmido; rege a retidão e a traição; os ofícios respeitáveis e os vulgares; a
riqueza e a pobreza; os piedosos e os demônios; em suas palavras:
É mal, masculino, durante o dia é frio e seco, melancólico, [...] rege os pais, a
velhice [...] a sinceridade na fala e no amor, o guardar um segredo, o silêncio, o
entendimento e a faculdade de distinguir; rege as coisas duradouras e permanentes
como a terra, a criação de gado, a agricultura [...] os ofícios respeitáveis que têm a
ver com a água, como o comando de navios, [...] a sagacidade, o orgulho, os
servidores dos reis, os povos piedosos, os fracos, os escravos, os preocupados, os
pobres, os pesados, os mortos, magos, demônios e gente de má fama [...] rege o
ódio, a obstinação, o cuidado, a aflição, o temor, a suspeita entre os homens [...] a
ganância, a avareza, as viagens longínquas, a ausência [...] a preferência pela
solidão, a prisão, as dificuldades, a dor [...] rege também os ofícios vulgares como
curtidor, coveiro, venda de quinquilharias e objetos de chumbo e osso [...] A ele
pertence a compreensão, o humor viscoso, pegajoso, negro e espesso [a bile negra],
o baço, a bexiga, os ossos [...] as enfermidades crônicas [...] o chumbo, o ferro, os
remédios, a madeira, a pimenta, a cevada, o terebinto e tudo que é negro, as cabras
e as novilhas, as aves aquáticas, as cobras negras, as montanhas.
108
A doutrina astrológica introduzida pelos árabes, combinada aos escritos de
Teofrasto, à medicina galênica e ao sistema dos temperamentos, também
transmitidos pelos árabes, levou à consolidação e à difusão da conexão entre
Saturno e a melancolia e, conseqüentemente, à equiparação dos melancólicos aos
“filhos de Saturno”. Inclusive se atentarmos para as descrições dadas pela astrologia
e pela medicina, observaremos que as palavras são coincidentes: pele escura, olhos
fundos e olhar vago ou voltado para o solo, voz fraca ou fala confusa, silencioso,
tristeza profunda; ora ri, ora chora; solitário; estúpido, de compreensão lenta;
preguiçoso, avarento, misantropo; mas, ao mesmo tempo, com boa memória,
grande capacidade de reflexão e contemplação, dom da profecia, etc. E se
lembrarmos, ainda, que os sintomas médicos confundiam-se com os “sintomas”
teológicos, como vimos acima nas considerações sobre a acédia, poderemos
108
Apud KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, p. 143; Hélène PRINGENT,
Mélancolie, p. 41.
116
compreender por que a melancolia chegou ao final da Idade Média sob a tutela de
Saturno e de Satã, como afirmou Hélène Pringent.
109
O melancólico, que até então fora visto ou como um enfermo atingido pelos
efeitos maficos da bile negra, ou como um pecador arrebatado pela tentação do
demônio, ou ainda como aquele que traz em si as marcas da influência de Saturno,
ganhou um novo significado a partir da sua popularização: passou a representar,
também, um “estado da alma”, uma “tristeza sem causa”, que foi rapidamente
absorvida pelos poetas, como, por exemplo, Francesco Petrarca. Em seu De secreto
conflictu curarum mearum, escrito provavelmente entre 1347-1353, mas
publicado em 1473, depois da sua morte, o autor, em um diálogo fictício
estabelecido com Santo Agostinho, discute a morte, a glória, o Destino, o sentido do
sofrimento e a difícil conciliação entre a verdade cristã e a experiência pessoal.
Nesse debate, presidido pela “Verdade silenciosa”, Petrarca se depara consigo
mesmo: enquanto encontra em seu corpo “um servidor muito obediente”, da sua
alma ele não pode dizer o mesmo, embora seja ela “quem comanda”. E, pela boca
de Santo Agostinho, disse ainda: “Quisera Deus que ela fosse submetida ao império
da razão!” Petrarca tomou consciência de sua divisão e suas contradições o
conduziram à anxietas. Utilizando uma lista inumerável de termos acedia,
aegritudo, tristitia, taedium, maestitia, pestis, perturbatio, languor, anxietas,
nauseam, fastidium...
110
– o poeta parece mostrar a impossibilidade de circunscrever
o sentimento que o acomete: uma vacuidade, um transtorno, para os quais não
encontra explicações.
A melancolia, assim, outrora oriunda de um agente externo, adquiriu um
sentido subjetivo, uma dor experimentada a partir de uma consciência intensificada
do “eu”, alimentada pela contradição entre finito e infinito, entre o tempo e a
eternidade, como apontou Jacques Legrand, na primeira metade do século XV, para
quem as ideias de morte, melancolia e consciência de si mesmo estavam unidas.
Segundo este autor, “à medida que o conhecimento vem, a inquietação cresce, e o
homem se torna mais e mais melancólico, de acordo com seu conhecimento mais
109
Cf. Hélène PRINGENT, Mélancolie, p. 42.
110
Cf. Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 449-63, em cuja tradução francesa de um
fragmento do texto de Petrarca, o autor apresenta as palavras do original em latim. Cf. tamm
extrato In: Yves HERSANT, Mélancolies, p. 64-78, do qual foram retiradas as citações constantes
neste parágrafo.
117
verdadeiro e perfeito de sua condição”
111
. Tornar-se melancólico passou a ser,
então, sinônimo de “reflexionar-se”, no sentido de “curvar-se”, de “concentração do
espírito sobre si mesmo”, “ensimesmar-se”. Essa também foi a experiência de
Marsílio Ficcino que, como Petrarca, pensou a melancolia a partir de sua biografia.
Mas, enquanto a discussão de Petrarca se fundou em uma ótica cristã, moral e
analógica, isto é, aquela da adia, Ficcino vai além, questionando a ambivalência
da fatalidade saturnina na ótica da melancolia “ontológica”, ou seja, ao mesmo
tempo humoral e moral: a ótica do Problema XXX,1, de Teofrasto, que ele tratou a
partir de Galeno, médico do corpo, e de Platão, médico da alma, como ele
considerava.
“Filósofo platônico, médico e teólogo”, como ele mesmo se apresentou nas
traduções e comentários da obra de Platão
112
, Ficino encontrou no paradoxo do
Problema XXX,1, uma possibilidade de síntese de seus questionamentos não menos
paradoxais. Se “a alma se fortifica quando o corpo enfraquece” e esta é a condição
para que “nela brilhe as verdadeiras imagens das realidades divinas”
113
, refletiu
Ficcino a partir de Platão, então para que a alma possa se dedicar à especulação
mais pura, ela deve ser o menos possível afetada pelas necessidades do corpo.
Mas, observou, a alma dos literati é “atormentada e às vezes impedida mais que
outras de se entregar à contemplação”
114
em função da debilidade de seu corpo,
pois, considerou ainda, mesmo que o corpo não possa agir sobre a alma, que
enquanto esta tem sua vida própria, aquele vive mediado por ela, um corpo doente
pode desviar a alma de sua vocação espiritual, na medida em que ela passa a se
ocupar com o sofrimento do corpo. E não enfermidade mais preocupante do que
a melancolia que, estando sediada no cérebro, obscurece o espírito. Espírito este
que “é definido pelos médicos como um vapor do sangue puro, sutil, quente e
luminoso, o qual, pelo calor do coração sendo gerado do sangue mais sutil, envolve
o cérebro e dele se serve a alma continuamente para exercer tanto os sentidos
interiores quanto os exteriores”
115
, lembrou o filósofo baseando-se em Galeno.
111
Apud KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, p. 230.
112
Ibid., p. 250.
113
Theologia platonica , apud Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 470.
114
Apud Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 470.
115
Livro I, capítulo 2, De vita triplici. In: Patrick DANDREY, Anthologie de lhumeur noire, p. 478-9.
118
Acrescente-se, ainda, o fato de que como “filho de Saturno” que era, Ficcino
experimentou a malignidade do mais alto dos planetas, como podemos observar em
uma carta ao seu grande amigo Giovanni Cavalcanti: “nestes momentos não sei, por
assim dizer, o que quero, ou quiçá seja que não quero o que sei, e quero o que o
sei. A segurança que te garante a benignidade de teu Júpiter em Peixes, nega-me a
malignidade de meu Saturno retrógrado em Leão”
116
. Foram essas inquietações,
essa separação entre o saber e a vontade, ou o desejo, vivenciada por Ficcino, que
fundamentaram a composição do seu Liber de vita, em 1489, ou De vita triplici, na
edição veneziana de 1498, ou simplesmente De vita, nas numerosas reedições
117
:
um conjunto de três livros nos quais o autor tem como objetivo indicar aos literati
como escapar dos malefícios da bile negra e da melancolia, apresentando uma
etiologia, uma fisiologia e uma terapêutica, incluindo alguns cuidados, como horário
de sono, uma dieta, uma farmacopéia, recorrendo ao conhecimento médico reunido
até então, bem como uma magia astral, a partir do uso de talismãs.
Todavia, se em um primeiro momento sua visão da melancolia parece
negativa, na verdade Ficcino revalorizou a patologia atrabiliar bem como Saturno,
seu planeta sede. A bile negra, disse ele, por sua semelhança com a Terra que
conduz o que nela está ao centro, obriga a alma a “se retirar do exterior em direção
ao interior, como da circunferência ao ponto central e, durante a reflexão, se fixar
firmemente, por assim dizer, no próprio centro do homem”. Da mesma maneira, a
bile negra impulsiona o homem a buscar o centro das “coisas singulares” e, assim,
eleva-o à “compreensão das coisas mais sublimes”, principalmente por sua afinidade
com Saturno, “o mais alto dos planetas”, aquele que raramente origina “caracteres e
destinos ordinários, antes pessoas que se distinguem das demais, divinas ou
bestiais, felizes ou oprimidas pela dor mais profunda”
118
. E, assim, ao se recolher
constantemente sobre si mesma, “a contemplação adquire uma natureza
semelhante à melancolia”.
119
É por isso que, para Ficcino, os literati, que se
entregam à especulação e à contemplação mais profundas, são os que mais sofrem
de melancolia, pois, sufocados pela bile negra, “arrancam seu pensamento do corpo
116
Apud KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, p. 252.
117
Esta obra teve 26 edições em latim em apenas um século e inúmeras traduções. Cf. George
MINOIS, Histoire du mal de vivre, p. 119.
118
Livro III, capítulo 2, De vita triplici. In: Yves HERSANT, Mélancolies, p. 606.
119
Livro I, capítulo 4, De vita triplici. In: Patrick DANDREY, Anthologie de lhumeur noire, p. 477-80.
119
e das coisas corporais, para uni-lo às incorporais”, e, assim, eles se tornam “semi-
vivos” e, portanto, melancólicos.
120
Podemos perceber nesta afirmação que se a
busca do “mais sublime” conduz a uma cisão entre o corpo e o espírito e à
instabilidade que caracteriza o efeito maléfico da bile negra, como já apontara
Teofrasto, é a própria bile negra, segundo Ficcino, que impulsiona o pensamento
para fora do corpo. E já não são só os saturninos dotados para o trabalho intelectual,
mas também o próprio trabalho intelectual coloca o homem sob a regência de
Saturno. Para Ficcino, então, o homem saturnino (e, poderíamos acrescentar,
melancólico) não pode fazer outra coisa a não ser entregar-se a seu destino, como
ele afirma no Livro III, capitulo 22: “mas aqueles que recorrem a Júpiter não são os
únicos a evitarem a influência desastrosa de Saturno, para desfrutar de sua
influência benéfica: os mesmos benefícios atingem aqueles que se entregam de
corpo e alma à contemplação divina, da qual o próprio Saturno é ilustração”
121
.
Um pouco mais de um século depois de Ficcino, um outro “filho de Saturno”, o
teólogo inglês Robert Burton, lançou sua monumental The anathomy of melancholy,
em 1621, uma verdadeira síntese de todas as interpretações da “doença da alma”
no contexto da tradição humoral. Sob o pseudônimo de Demócrito nior, de quem
admitiu ter “usurpado o nome, o título e o tema”, o autor assumiu a tarefa de dar
seqüência à obra inacabada do grande sábio de Abdera: investigar a sede da bile
negra ou melancolia, de onde procede e como é gerada no corpo humano. E de fato
o fez. Nas suas quase mil páginas, o autor apresentou as causas, os sintomas, a
cura, articulando os conhecimentos da medicina, da filosofia, da teologia, da poesia,
da astrologia e da mitologia, que ele sistematicamente distribuiu em três partes,
cada uma delas em seções, membros e subseções. Assim, tentar resumir essa obra
é tarefa impossível, seria o mesmo que tentar colocar em algumas linhas os estudos
desenvolvidos durante dois mil anos. Mas, o que nos chama a atenção, ainda que
alguns scholars considerem a obra de Burton apenas uma mostra de erudição, uma
anatomia não da melancolia, mas do discurso sobre a melancolia, é que depois de
todo seu percurso, estabelecendo relações e tentando organizar os saberes tão
diversos quanto paradoxais, como ele mesmo disse “a Torre de Babel jamais
produziu tanta confusão de línguas como o caos de sintomas diferentes da
120
Livro I, capítulo 4, De vita tríplice. In: Patrick DANDREY, Anthologie de lhumeur noire, p. 480.
121
In: Yves HERSANT, Mélancolies, p. 609.
120
melancolia”
122
ele concluiu que a melancolia é essencialmente unitária, embora
possa assumir diferentes formas. Em suas palavras:
De modo que tomes a melancolia no sentido que quiseres, própria ou
impropriamente, como disposição ou hábito, para prazer ou dor, desvario,
descontentamento, temor, tristeza, loucura, parcial ou totalmente, verdadeira ou
metaforicamente, é tudo uma coisa só. O próprio riso é loucura [...] e os sábios
tampouco são melhores [pois, como diz Qohélet] “onde abunda a sabedoria,
abundam as penas, e quem acumula sabedoria, aumenta sua dor”.
123
Além disso, Burton observou a grande diversidade daqueles que podem ser
acometidos pela melancolia:
[...] as pessoas no horóscopo das quais a Lua, Saturno e Mercúrio estão mal
posicionados; aquelas que vivem em clima muito frio ou muito quente; aquelas cujos
pais são melancólicos; aqueles que violam as seis coisas não naturais, que são
como que tingidos de preto ou de um temperamento muito sanguíneo; aqueles que
têm pequenas cabeças, que tem um coração quente, um cérebro úmido, que tem um
fígado quente e um estômago frio, que tem estado por muito tempo doente; as
pessoas que são naturalmente solitárias, que se aplicam ao estudo, que se entregam
a uma meditação profunda, que são ociosos, que vivem afastados de toda atividade
todos estes são atingidos pela melancolia. Os homens como as mulheres [...] O
outono é a mais melancólica estação do ano. Quanto à idade, a melancolia natural é
freqüentemente a companheira inseparável da velhice, mas, quando ela não é
natural, ela é mais freqüente em pessoas de idade madura.
124
Entretanto, não as características observadas nos indivíduos intrigavam
Burton, mas também os inúmeros fatos horríveis e catástrofes que lhe chegavam
através das notícias:
Todos os dias recebo novas notícias e rumores de guerras, pragas, incêndios,
inundações, roubos, assassinatos, massacres, meteoros, cometas, espectros,
prodígios, aparições; de cidades tomadas, pras sitiadas na França, Alemanha,
Turquia, Pérsia, Polônia, etc., revistas militares e preparativos diários, [...] batalhas
com muitos homens mortos, combates singulares, naufrágios, pirataria, tratados de
paz, alianças, estratagemas e novos perigos. Uma enorme confusão de promessas,
desejos, ações, editos, petições, pleitos, alegações, leis, proclamas, ofensas [...]
Novos livros a cada dia, panfletos, [...] novos paradoxos, opiniões, cismas, heresias,
controvérsias filosóficas e religiosas, etc.
125
122
Robert BURTON, The anatomy of melancholy, Parte I, Seção III, Membro 1, Subseção 2, p. 397.
123
Burton se refere a Ecl 1, 18. Ibid., Demócrito Júnior ao leitor, p. 40.
124
Robert BURTON, The anatomy of melancholy, Parte I, Seção I, Membro 3, Subseção 2, p. 172.
125
Ibid., Demócrito Júnior ao leitor, p. 18.
121
Diante de tantos dramas, como não ver “que o mundo inteiro está louco,
melancólico?” E em mais de uma centena de páginas, Burton elencou um sem
número de razões para mostrar que o mundo é uma “jaula de loucos”. Assim, se a
melancolia ou loucura não se restringe ao individual, mas acomete também o
coletivo, como poderíamos pensar em uma patologia oriunda de um desequilíbrio
humoral? Recorrendo à tradição médica, e não é pequeno o número de autores que
ele citou, o teólogo observou quão diversificada e confusa é a “matéria” da
melancolia, isto é, da bile negra, no que consiste, qual sua origem, afirmando o
quanto é difícil “em tal obscuridade, variedade e mistura confusa de sintomas, de
causas, [...] chegar a qualquer certeza ou distinção entre tantas incidências, desvios,
quando raras vezes dois homens estão afetados de maneira semelhante em
tudo!”
126
E, de fato, diferentes espécies de causas podem provocar a melancolia: a
natureza de nossos pais, uma dieta inapropriada, a má qualidade do ar, uma longa
exposição ao sol ou a um extremo frio, a falta ou excesso de exercício físico, a falta
ou o excesso de sono, uma grande tristeza, uma desgraça, a vergonha, a raiva, uma
grave preocupação, a inveja, desejos insatisfeitos, um medo súbito, a ambição, o
orgulho, o amor imoderado ao jogo, o luto, o exílio, um casamento infeliz, a perda da
liberdade, da beleza ou da saúde, um tremor de terra, a visão de um espectro, a
pobreza, vizinhos desagradáveis, a sujeira, a perda de amigos, qualquer tipo de
alteração ou deformação física nas mãos, no rosto, nas pernas, a magreza, a
palidez, o rubor, etc. –, causas às quais Burton empregou cerca de 200 páginas
analisando uma a uma. Ao se ler este inventário, percebe-se a impossibilidade de se
evitar a melancolia. E esta realmente parece ter sido a intenção do teólogo inglês,
pois, segundo ele,
[...] destas disposições melancólicas não está livre nenhum homem vivo, nem sequer
o estóico: ninguém é tão sábio, ninguém é feliz, ninguém tão paciente, tão generoso,
tão divino, tão piedoso que possa se defender; ninguém está tão bem disposto que
em um ou outro momento não sinta dor, mais ou menos. A melancolia é, neste
sentido, o caráter da mortalidade.
127
Burton realizou, assim, não uma anatomia da melancolia, mas da
existência humana. Os diversos nomes, as inúmeras causas, a variedade de
126
Robert BURTON, The anatomy of melancholy, Parte I, Seção I, Membro 3, Subseção 4, p. 177.
127
Ibid., Parte I, Seção I, Membro 1, Subseção 5, p. 144.
122
sintomas apresentados pelos diferentes autores, serviram para que o autor
mostrasse que o fundamento da unidade da melancolia reside na misteriosa
contradição que está no coração da condição humana: a experiência do afastamento
e da distância divina, acentuada pela opacidade do corpo. É interessante notar que
depois de ter atravessado séculos de discussões sobre a patologia atrabiliar e/ou a
doença da alma, ele culmine, na terceira e última parte da sua obra, na melancolia
religiosa, não sem antes tecer algumas considerações sobre a melancolia amorosa
ou heróica ou, ainda, erótica. Esta não é, como afirmaram outros autores, um tipo de
melancolia, mas antes também sintoma. Para Burton, o amor, de forma geral
definido como um desejo, deste se diferencia na medida em que enquanto amamos
o que está presente, o desejo se dirige para aquilo que está ausente. O homem ama
tudo o que lhe apraz: saúde, moradia, sucesso, dinheiro, objetos materiais diversos,
atenção e reconhecimento recebidos de outrem, a beleza, os atrativos e a graça de
uma mulher (por isso foi chamada de “erótica”), enfim, tudo o que lhe possibilita
sentir-se bem, e quando os perde o “prazer se converte em dor, provocando-nos
uma tristeza e descontentamento profundos, lavrando-nos nossa desgraça posterior
e, no final, causa-nos melancolia”
128
. E, mesmo quando não há perda, disse Burton,
[...] não prazer que não seja acompanhado de dor e o arrependimento vem em
seguida. Se me alimento abundantemente é provável que adoeça ou rapidamente
me encontre com indigestão; se vivo frugalmente, minha fome e sede o se aliviam,
não me sinto bem nem quando estou alimentado nem quando estou em jejum; se
vivo honestamente, queimo na luxúria; se me entrego ao prazer, canso e firo meu
corpo e alma. Para tão pouca alegria, quanta pena! Depois de tão pouco prazer, que
grande miséria!
129
Todavia, nessa constante busca de prazer, o homem vai substituindo seus
objetos de amor, o que demonstra sua ilusão de que possa alcançar a felicidade,
cometendo, assim, os mais absurdos erros e desvarios. Advertiu Burton:
Concede-me certa margem de tempo e porei ante seus olhos, sumariamente,
um oceano prodigioso, vasto e infinito de insensatez e loucura inacreditáveis; um mar
cheio de rochas e escarpas, de bancos de areia e golfos, de estreitos e marés
contrárias, coalhado de monstros terríveis, formas selvagens, ondas estrondosas,
tempestades e calmas sereias: mares “alciônicos”, definitivamente; exporei
desgraças indescritíveis, comédias e tragédias, acontecimentos tão absurdos e
ridículos, tão terríveis e lamentáveis, que não sei se merecem mais compaixão ou
128
Robert BURTON, The anatomy of melancholy, Parte III, Seção I, Membro 2, Subseção 2, p. 22.
129
Ibid., Parte II, Seção III, p. 178.
123
riso, que não sei se serão acreditados. Não obstante, vemos que tudo isso continua
ocorrendo todos os dias em nosso tempo, e contamos assim com novos exemplos e
casos recentes de insensatez e miséria semelhantes, que se apresentam dentro e
fora de nossas casas, entre nós e em nós mesmos.
130
Em suma, para Burton, o homem é infeliz, porque, em última instância, vive
constantemente a impossibilidade de preencher uma ausência. E, assim, ele
concluiu sua imensa obra tratando da melancolia religiosa e mostrando o que ele
havia anunciado no início: a melancolia é a “medula de todas as enfermidades”,
pois ela consiste na “privação ou destruição da imagem de Deus
131
, uma “doença
do Absoluto”. Mas não se pense que com essa afirmação Burton, como teólogo que
era, estivesse criticando ou acusando o ateísmo ou outras religiões. Para ele, os
rituais pagãos não diferiam do judaísmo, do islamismo ou do cristianismo: “são tão
absurdos e ridículos por um lado, quanto lamentáveis por outro [...] Quando eu vejo
um padre rezar a missa com tantos gestos simiescos, sussurros, etc., quando leio os
costumes em vigor nas sinagogas judias ou nas mesquitas maometanas, eu não
posso senão rir destas loucuras”
132
. E, para finalizar seu livro, Burton tomou as
palavras de Santo Agostinho: “Desejas livrar-te das vidas? Queres escapar das
incertezas? Medita sobre tudo isso agora que teu espírito é iluminado.”
133
II.4 A MELANCOLIA COMO SÍMBOLO
A introdução da dualidade e do paralelismo mente-corpo e corpo-alma,
presentes em todas as concepções desde que o termo melancolia foi cunhado,
evidencia a dificuldade de se compreender os mecanismos de integração e
diferenciação das causas e manifestações da patologia atrabiliar. O insucesso na
busca de uma definição e localização de uma “matéria” da melancolia, como Burton
colocou em relevo, o que fora também apontado por Demócrito “é no homem
que é necessário buscá-la” –, somado aos resultados dos estudos em anatomia
realizados por Harvey e Van Helmont
134
, seus contemporâneos, que mostraram não
existir um humor melancólico no corpo humano, culminou, no século XIX, no fim da
130
Robert BURTON, The anatomy of melancholy, Parte III, Seção IV, Membro 1, Subseção 1, p. 313.
131
Ibid., Parte I, Seção I, Membro 1, Subseção 1, p. 131.
132
Robert BURTON, The anatomy of melancholy, Parte III, Seção IV, Membro1, Subseção 3, p. 347.
133
Ibid., Parte III, Seção IV, Membro 2, Subseção 6, p. 432.
134
Cf. p. 93.
124
teoria humoral. Uma indagação, todavia, assalta-nos: qual seria, então, a natureza
da relação causal entre bile negra e melancolia?
Segundo Starobinski, a bile negra “é uma metáfora que se desconhece a si
mesma e que quer se impor como fruto da experiência”
135
. De fato, desde o início da
história do sistema humoral, a bile negra se distinguia dos outros humores, porque,
além de resultar da adustão da bile amarela ou dos resíduos pesados do sangue,
era o único humor que provocava uma gama enorme de perturbações: não se era
acometido de ataques de sangue, de fleuma ou de bile amarela, isto é, os efeitos
patogênicos destes humores, característicos e facilmente reconhecíveis, não
afetavam o espírito ou a visão de mundo. Talvez isso explique o fato de que,
diferente das outras enfermidades, a melancolia não tenha ficado circunscrita ao seu
campo de origem, à medicina, mas tenha atingido outros domínios como a filosofia,
a teologia, a literatura e a arte. No final do medievo, designava não apenas um
humor orgânico, mas também um humor através do qual se percebe o mundo; não
só uma substância que produz determinados efeitos, mas os próprios efeitos; não só
um humor que prepara o terreno para a atuação do diabo, mas resultado desta
atuação; não um “estado de ânimo” ao qual seu uso vulgar o havia reduzido
(melancolia não é a mesma coisa que tristeza, como diferenciara Evágrio), mas
uma consciência da cisão de si mesmo, como descreveu Petrarca ou até mesmo
Ficcino. Consciência esta que se converteu, no pensamento moderno, em uma
consciência trágica de si mesmo e um sentimento da vacuidade do mundo, que
encontrou na literatura poética sua melhor forma de expressão. A melancolia não
era apenas a enfermidade causada pelo excesso de humor negro, cujos vapores
perturbam a razão; antes, uma consciência aguda de uma condição que foge à
lógica da razão, como lemos, por exemplo, no Canto IV de Paraíso perdido, de John
Milton (1667) que, segundo Jackson, foi influenciado por Burton
136
:
Ó consciência! Em que precipício de terrores
E horrores me tens lançado? Para dele sair
Nenhum caminho encontro, mergulhado
em um abismo no mais profundo abismo.
137
135
Jean STAROBINSKI, Historia del tratamiento de la melancolía, p. 45.
136
Cf. Holbrook JACKSON, Prefácio, In: Robert BURTON, The anatomy of melancholy, p. xxviii.
137
Ô conscience! Dans quel gouffre de craintes et d’horreurs mas-tu poussé ? Pour en sortir je ne
trouve aucun chemin, plongé d’un abîme dans un plus profond abîme ! In : Yves HERSANT,
Mélancoies, p. 137.
125
Uma consciência também experimentada por René de Chateaubriand que se
descobre como um outro que ele não é, despossuído de si, que vive sua vida como
um exílio, como uma trágica separação, pois nada encontra em suas buscas
relatadas em Mémories doutre-tombe (1850) a não ser a vacuidade das coisas:
“eu me cansei da repetição das mesmas cenas e das mesmas ideias. Eu me pus a
sondar meu coração, a me indagar o que eu desejava. Eu não sabia. [...] busco
somente um bem desconhecido.
138
Desejo que revela uma falta que a realidade
cotidiana, efêmera como a embriaguez e a alegria provocadas pelo vinho que “afoga
a angústia vigilante da alma”, como disse John Keats em Ode on melancholy
(1820)
139
, não pode preencher. A melancolia moderna se refere a uma falta,
portanto, de algo irrepresentável, porque indefinível e incomensurável, que
poderia ser, assim, aludido. Não materialidade na melancolia “poética”, da
mesma forma que, com o advento da Psiquiatria, a melancolia perde definitivamente
sua substância concreta: a χολή. No entanto, os mesmos sentimentos de solidão,
desamparo, abandono, de vida errante, de exílio, separação, tristeza, medo,
inquietação, furor, exaltação, entre outros, que marcam a experiência dos poetas
modernos, foram evidenciados pelos poetas da Antiguidade e constituem a
sintomatologia da melancolia ao longo dos séculos. Sentimentos esses, o nos
esqueçamos, que também estão presentes na idéia de µέλαζ dos gregos do século
V a.C., no taedium vitae de Sêneca ou na acédia dos monges, bem como aparecem
no ennui do século XVII, no spleen de Baudelaire, no niilismo do século XIX ou na
náusea de Sartre, além de serem característicos nos filhos de Saturno. Mas se falta
significa ausência, privação ou supressão de algo, então implica uma perda.
Entretanto, qual seria o objeto da perda? Poderíamos pensar, junto com Burton, na
perda ou privação da imagem divina?
Desde a Antiguidade, uma das possíveis causas da melancolia é a perda do
objeto amado. Os médicos bizantinos e, depois deles, Avicena, haviam apontado
que se a paixão contemplativa do melancólico impulsiona a paixão amorosa,
reciprocamente o amor subverte o equilíbrio humoral. Da mesma maneira, Ficcino,
em seu De amore (1469), disse que “a alma do amante é arrastada em direção à
imagem do objeto amado, inscrita em sua imaginação, e em direção ao próprio
138
Extratos In : Yves HERSANT, Mélancolies, p. 195-215.
139
Cf. KLIBANSKY, PANOFSKY, SAXL, Saturno y la melancolía, p. 236-7.
126
objeto amado; os espíritos são atraídos em direção ao mesmo objetivo, mas seu voo
obsessivo lhes esgota [...] O corpo resseca e se debilita, e os amantes se tornam
melancólicos”
140
. Para Jacques Ferrand, contemporâneo de Burton, “o amor é uma
espécie de loucura procedente do excessivo desejo de gozar o objeto amado”, que
ele nomeia melancolia quando essa espécie de loucura se apresenta “sem febre,
acompanhada de medo e tristeza”, pois suas vítimas, incapazes de submeter seus
desejos à razão, “tornam-se tristes, pensativas, inquietas, solitárias e temerosas”.
141
Porém, Ferrand, seguindo a tradição dica da época, considerou a bile negra
como a causa do mal e, portanto, uma enfermidade fisiológica que enquanto tal
deveria ser tratada.
Com os avanços das pesquisas científicas do século XIX, a atrabile não
mais figurou como a origem da melancolia, mas a perda do objeto amado ainda foi
considerada entre as causas do mal na medicina moral de Pinel e Esquirol e se
tornou central nas considerações do “pai da psicanálise”, Sigmund Freud (1856-
1939). E embora paralelamente ao desenvolvimento da psicanálise, Emil Kraepelin
publicasse seu Manual de Psiquiatria (1899) a partir do qual a melancolia, enquanto
entidade mórbida isolada, deixava de ser incluída na nosografia psiquiátrica dando
lugar à depressão, Freud, ainda que tenha utilizado os termos melancolia e
depressão muitas vezes como sinônimo, preferiu melancolia nos textos em que
formulou as noções fundamentais sobre esta questão. É o caso do Manuscrito G
(1895), no qual apareceu pela primeira vez a tese freudiana de que na melancolia
trata-se de “algo que foi perdido e, por isso, sua proximidade ao luto: “o afeto
correspondente à melancolia é o luto, ou seja, o desejo de recuperar algo que foi
perdido”. Considerando seu principal sintoma, a anorexia, Freud pensou que “não
seria difícil partir da ideia de que a melancolia consistiria em um luto pela perda da
libido”. E foi assim que ele elaborou mais claramente sua concepção em Luto e
Melancolia (1917)
142
. Observando essas duas condições, o psicanalista vienense
constatou que ambas se referiam a uma perda do objeto amado e se caracterizavam
por “um desânimo profundamente penoso, cessação de interesse pelo mundo
140
Apud Giorgio Agamben, Estância: a palavra e o fantasma na cultura ocidental, p. 41.
141
Traitée de lessence et guérison de lamour (1610). Extratos In : Yves HERSANT, Mélancolies, p.
625-30.
142
O texto Luto e melancolia aqui utilizado está no volume XIV das Obras Completas de Sigmund
Freud da Imago Editora, p. 269-92. Mas encontra-se tamm em Yves HERSANT, Mélancolies, p.
760-72, bem como está disponível no site: br.geocities.com/paxpsi/arquivos/LUTOEMELANCOLIA.pdf
127
externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda e qualquer atividade”.
Entretanto, diferiam em dois aspectos: enquanto o luto consiste em um trabalho que
absorve o eu até que seja rompida a ligação da libido com o objeto perdido,
disponibilizando a energia psíquica para ser investida em um novo objeto, na
melancolia, a libido retirada do objeto perdido volta-se para o eu, estabelecendo uma
identificação deste ao objeto abandonado e, desta forma, a perda de objeto se
transforma numa perda do eu. Assim, “no luto, é o mundo que se torna pobre e
vazio; na melancolia, é o próprio ego”. Além disso, na melancolia “uma
diminuição dos sentimentos de auto-estima a ponto de encontrar expressão em
auto-recriminação e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de
punição”, que não aparece no luto. Segundo Freud, a ambivalência nas relações
amorosas se evidencia quando ocorre a perda de um objeto amoroso. Assim, na
melancolia, com a perda do objeto, o amor por ele se refugia na identificação
narcisista e “o ódio entra em ação nesse objeto substitutivo” degradando-o e o
fazendo sofrer, o que explicaria a auto-recriminação. Isso sugeriu a Freud que há no
ego humano uma parte que se opõe à outra, que ele, mais tarde (1933), denominará
superego ou consciência moral, que na melancolia desempenha um papel de
destaque. Em suas palavras:
O traço mais marcante desta enfermidade [a melancolia], acerca de cuja
causa e mecanismo sabemos muito pouco, é o modo como o superego – ou
consciência moral – trata o eu. [...] o superego se torna hiper severo, insulta, denigre,
maltrata ao pobre eu, lhe faz esperar os mais graves castigos, reprova-o por ações
de um passado longínquo que em seu tempo foram tomadas superficialmente, como
se durante todo esse intervalo se tivesse dedicado a reunir acusações e
aguardasse seu atual fortalecimento para apresentar-se com elas e sobre essa base
formular a condenação.
143
Sem nos aprofundarmos nas reflexões freudianas acerca da melancolia, com
o que vimos até aqui podemos nelas reconhecer a intuição psicológica dos Padres
do Deserto, principalmente de Evágrio, cuja comparação entre tristeza e acédia
muito se aproxima daquela entre luto e melancolia
144
, bem como a de Sêneca
quanto ao “descontentamento de si”, ou a de Burton no que se refere à incessante
busca de prazer empreendida pelo homem. Freud também se aproximou da
“consciência trágica de si mesmoda literatura poética ao considerar que a auto-
143
31.ª Conferência, A dissecção da personalidade psíquica, p. 83.
144
Cf. p. 101.
128
crítica, a característica marcante da melancolia, segundo ele, pode promover uma
compreensão de si mesmo, “das fraquezas de sua própria natureza”, citando como
exemplo a opinião que Hamlet tinha a respeito de si e dos outros. Contudo, afirmou,
em seguida, que “não pode haver dúvida” que se trata de uma doença, pois as auto-
acusações, na verdade, aplicam-se ao objeto amado, isto é, trata-se de uma auto-
punição com o objetivo de vingar-se do objeto que ocasionou sua desordem
emocional. Mas Freud deteve-se aqui, considerando a melancolia a partir da
biografia individual e da causa libidinal e, desta forma, diferenciou-se da acédia dos
monges como possibilidade do conhecimento divino, da busca de sentido da vida da
melancolia poética, assim como da melancolia religiosa tal como apontara Burton;
introduziu um referencial bio-causal e, ao focalizar as relações objetais, apontou as
vicissitudes da condição humana expressas nos vínculos amorosos.
Com a psicanálise, a melancolia retomou seu status de “doença da alma”, ao
mesmo tempo em que os psiquiatras reconheceram que o médico não cura, que
esta é “o ato arbitrário e misterioso pelo qual o organismo, ao seu modo, responde
aos socorros que lhe aportam”, como observou Starobinsky, que complementou:
“quiçá, na melancolia, o corpo não esteja em disposição de responder...
145
. Talvez
porque a melancolia não se reduza a um evento biológico e tampouco a psique
humana seja apenas produto das atividades bioquímicas cerebrais, como pretende a
psiquiatria moderna. Ao contrário, como disse Romano Guardini, “a melancolia é
algo muito doloroso, ela se insinua muito fundo até às raízes da existência humana,
para que possamos abandoná-la aos psiquiatras [...] é um estado d’alma onde se
revela, em suma, o ponto crítico da nossa situação humana”
146
, posição de um
teólogo do culo XX que reforça a concepção de melancolia religiosa de Burton:
misteriosa contradição que está no coração da condição humana. Uma condição
que, como aponta Karl Kerenyi
147
, “se faz consciente e se expressa” como
conseqüência da desobediência de Adão. E qual a pena? Segundo Enrico Castelli,
“a pena da inocência perdida é a perda do próprio sentido da inocência, e o desejo
de buscar o que não se conhece (ainda sabendo que ignoti nulla cupido) é a pena
da contradição entranhada no processo cognitivo (o fruto da árvore do
145
Jean STAROBINSKI, Historia del tratamiento de la melancolía, p. 92.
146
Romano GUARDINI, De la melancolie, p. 9.
147
Karl KERENYI, La pena de Prometeo. In: Enrico CASTELLI et al, El mito de la pena, p. 94.
129
conhecimento)”
148
. Ou como observara Hildegard von Bingen, quando Adão
cometeu a transgressão, a luz da inocência se ofuscou nele e seus olhos, que
outrora viam as coisas celestes, se apagaram; a bile se converteu em amargura e a
melancolia em uma negra impiedade; e o homem foi completamente
transformado”
149
. Todavia, como entender essa condição paradoxal da existência
humana? Como é possível considerar a melancolia religiosa depois da “morte de
Deus”?
Pelo que vimos no decurso deste capítulo, parece não haver vida de que a
melancolia seja uma “enfermidade da alma”, pois se sua história tem origem na
tradição médica com a tentativa da escola hipocrática de excluir as intervenções
sobrenaturais materializando a µέλαζ na χολή, o que perdurou ao longo dos séculos,
esta mesma tradição preferiu eliminar o termo, não sem inúmeras controvérsias,
chegando a formulações como a do psiquiatra Adolf Meyer, para quem a melancolia
“implicava um conhecimento que não possuímos”
150
. Além disso, a presença dessa
estranha substância no corpo, a bile negra, “corresponde também àquelas emoções
mais universais e reações mais arrebatadas à nossa própria auto consciência, à
nossa finitude, nossa vacuidade, nossa mortalidade
151
, temas de que se ocuparam,
e ainda se ocupam, a filosofia e a teologia e que alcançam sua melhor forma de
expressão na arte, poética ou plástica, ou seja, em imagens. Por outro lado, as
várias concepções encontraram na analogia entre a bile negra corporal e ideias
negras da alma o único instrumento para explicar a melancolia, o que revela o
caráter dual da existência humana, como fora apontado por Políbio, citado em
epígrafe neste capítulo. Sinônimo do maior dos vícios, a melancolia é ao mesmo
tempo marca de distinção, está associada à busca de algo desconhecido, sublime e
representa a esperança de encontrar Deus. Isto nos autoriza a pensar, então, que a
melancolia se refere a algo que não pode ser expresso de maneira unívoca e que
ultrapassa nossas categorias de linguagem; não se trata de um conceito, mas antes
de uma experiência que, como demonstra a história do termo, já extensamente
148
Enrico CASTELLI, El problema de la pena. In: Enrico CASTELLI et al, El mito de la pena, p. 14.
149
Extratos do Livro II e Livro III de Causae et curae. In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur
noire, p. 385-401; e Yves HERSANT, Mélancolies, p. 560-9
150
Apud Satnley W. JACKSON, Melancholia and depression : From hipoccratic times to modern
times, p. 123.
151
Noga ARIKHA, La Mélancolie et les passions humorales au début de la modernité. In : Jean CLAIR
(org.), Mélancolie, génie et folie en Occident, p. 238.
130
evidenciada na análise desenvolvida por Burton, não é única e nem sempre tem a
mesma expressão. Neste sentido, como bem observou o filólogo Jackie Pigeaud, a
melancolia seria uma “enfermidade” singular, “única em sua essência”, na qual estão
juntos, “de maneira problemática, um sofrimento do corpo e a suspeita de que este
sofrimento signifique mais do que ele mesmo, expressando o sentido de ser e o
conhecimento de si”, uma doença que se refere à “unidade do ser”
152
. Opinião que
encontra eco nas palavras da historiadora Noga Arikha: “a melancolia seria, então,
uma manifestação do desejo de uma unidade que pré-existe à consciência seja
uma agravação do medo da morte que vem com o reconhecimento da encarnação,
ou uma recusa desta verdade, um desejo de ultrapassá-la”
153
.
Essa breve reflexão sugere que, para além de uma descrição de sintomas
reunidos para caracterizar e definir uma patologia através de fisiologismos,
formulações técnicas e argumentos causais, o termo melancolia envolve fatores de
tal complexidade que, como aquelas coisas fundamentais, não podem ser senão
revertidos em conceitos verbais ambíguos numa tentativa de abarcar a experiência
vivida. Mais que uma metáfora, uma figura de linguagem, a melancolia seria, então,
uma manifestação simbólica. Diferente de um conceito, um símbolo não explica ou
define, não é uma conclusão lógica de argumentos racionais. Antes, expressa uma
realidade complexa que, ultrapassando a horizontalidade da consciência, manifesta
a verticalidade da alma, isto é, exprime uma experiência psíquica que emerge do
contato profundo com as fontes de significação da existência. Aproximamo-nos,
aqui, do ponto de vista da psicologia analítica de Carl Gustav Jung (1875-1961) para
quem um símbolo é “uma expressão sensoriamente perceptível de uma vivência
interior”
154
, isto é, uma expressão material, visível, de uma experiência psíquica.
Considerando desta perspectiva, é possível entender o papel que desempenhou a
bile negra, a µέλαζ χολή, ao longo da história da melancolia. Todavia, uma
inquietante questão se instala: qual acontecimento psíquico a melancolia estaria
simbolizando? A realidade da melancolia, descrita por um corpo que sofre e uma
152
Jackie PIGEAUD, em sua tese de doutoramento intitulada La maladie de l’âme. Édude sur la
relation de lâme et du corps dans la tradition médico-philosophique antique, defende a idéia de que a
melancolia, ligada à loucura e à criação, principalmente à criação poética, é uma metáfora. Cf.
Métaphore et mélancolie, Littérature, Médicine, Societé, Université de Nantes, n. 10, 1989, p. 32-43.
153
Noga ARIKHA, La Mélancolie et les passions humorales au début de la modernité. In : Jean CLAIR
(org.), Mélancolie, génie et folie en Occident, p. 240.
154
Carl Gustav JUNG, Cartas 1906-1945, p. 75.
131
alma que agoniza, poderia ser compreendida pelo sentido espiritual da condição
humana?
II.5 A MELANCOLIA RELIGIOSA
O entendimento da psique humana proposto por Jung pode contribuir para o
desenvolvimento de uma perspectiva diferenciada de análise de fenômenos
humanos complexos. Integrando a dimensão subjetiva e objetiva das vivências, Jung
resgatou o significado espiritual da vida e o apontou como a fonte das motivações e
realizações humanas. Destacou a realidade da alma e sua expressão simbólica
como o movimento no qual o gênero humano se reconhece, se une e se solidariza
com sua essência. Como um dado de experiência, uma presença existencial tanto a
si mesmo quanto ao seu relacionamento com o mundo, a alma funciona como o
espaço referencial onde a potência espiritual ganha corpo e assume-se como
criatura diante de seu Criador. Seu ponto de partida, como o próprio Jung relatou em
suas Memórias, foi o que Fausto deixara de lado: “o respeito pelos direitos eternos
do homem, a aceitação do antigo e a continuidade da cultura e da história do
espírito”
155
. Assim, mesmo não tendo abordado o tema diretamente como fizera
Freud, os aportes da psicologia analítica não nos permite uma compreensão da
melancolia enquanto símbolo como, desta forma, também possibilita uma
atualização da melancolia religiosa de Burton.
Para o psiquiatra e psicólogo de Zurique, a concepção de homem e de mundo
do materialismo racionalista do final do culo XIX apresentava respostas
insuficientes à questão sobre o sentido do sofrimento humano, pois teorias pouco ou
quase nada influenciam a atitude. Certamente, disse ele, o que fizera Buda não fora
uma teoria, mas antes “o espetáculo da velhice, da doença e da morte que lhe
abrasou a alma”
156
. Assinalou que o pensamento científico moderno, para o qual
é real aquilo que pode ser visto com os olhos ou tocado com as mãos, ou seja, é
verdadeiro o que pode ser explicado a partir dos sentidos ou que tenha causa
material, é muito recente na história, pois em diferentes épocas e lugares, outras
idéias sobre o mundo dominaram o pensamento humano. Para o homem primitivo, o
155
C.G. JUNG, Memórias,sonhos,reflexões, p. 210.
156
Idem, A Natureza da psique, p. 313.
132
mundo era povoado por espíritos, influências e forças que, embora ligadas à
realidade física, possuíam uma realidade independente. Assinalou que o homem
primitivo “[...] vive realmente em dois mundos. A realidade física é, ao mesmo tempo,
a realidade espiritual...[pois, para ele] [...] o mundo dos espíritos é tão real quanto o
mundo físico”
157
. Analogamente, o homem medieval reconhecia que, além das
forças palpáveis desse mundo, existiam “potências igualmente influentes que era
preciso levar em conta”
158
. Para o pensamento moderno, porém, essa visão
equivaleria a uma heresia. Poderíamos dizer, entretanto, que essas idéias são
ilusórias, puras superstições, e deixá-las nas brumas do passado? Qual a diferença
entre a dor provocada por uma chama que queima, que se refere a um processo
físico, e o medo gerado pela ideia de ser consumido pelo fogo do inferno, de origem
espiritual? Ambos são reais e experimentados da mesma maneira: são imagens
psíquicas, pois só a vida psíquica é passível de experiência. Reconhecendo a
existência de dois aspectos no mundo o das coisas físicas e o das coisas
espirituais, Jung colocou-nos diante do plano psíquico, no qual o conflito entre
natureza e espírito parece se resolver por si, pois passam a designar a origem dos
conteúdos psíquicos que irrompem na consciência integrando dois pólos de uma
mesma realidade. Desta forma, “a verdade sensorial talvez satisfaça à razão, mas
não revela jamais um sentido da existência humana que suscite e expresse também
nossas emoções”
159
.
A valorização do material e do racional, operada a partir da Idade Moderna,
constitui-se, na verdade, em um movimento de oposição ao misticismo que era
preciso combater. Mas, se o corpo humano tem uma pré-história anatômica de
milhões de anos, deixando transparecer, em sua forma atual, as etapas prévias e o
resultado do seu desenvolvimento até o presente, por que com a psique seria
diferente? A partir de sua experiência pessoal, aliada à sua prática clínica e apoiado
em documentação referente ao desenvolvimento histórico das ideias no âmbito da
cultura ocidental, Jung observou que a psique e seus conteúdos não podem ser
considerados como simples invenções arbitrárias ou produtos mais ou menos
ilusórios de conjeturas e opiniões, [visto que] certas ideias ocorrem quase em toda a
157
C.G. JUNG, A natureza da psique, p. 242.
158
Ibid., p. 156.
159
Ibid., p. 299.
133
parte e em todas as épocas, podendo formar-se de um modo espontâneo
160
, ou
seja, não são criadas pelo indivíduo, mas lhe ocorrem. A psique humana não se
reduz à consciência ou às experiências pessoais, como quer a psicologia moderna,
mas antes inclui um substrato mais amplo de natureza suprapessoal ou transpessoal
que se manifesta em padrões e imagens universais, observados nos mitos e nas
religiões. É esta base complexa que estrutura o “eu” e o conduz ao longo da vida.
Se do ponto de vista biológico existem formas típicas de reação os instintos
–, também do ponto de vista psicológico há formas típicas de apreensão que
constituem a camada mais profunda da psique: o elementos formais inatos e
universalmente presentes que, como os instintos, são impessoais e funcionam como
forças motrizes que “perseguem suas metas inerentes antes de toda
conscientização”
161
. Estes elementos estruturais, denominados, por Jung,
arquétipos, são autônomos, isto é, não se submetem à vontade consciente nem à
intencionalidade, antes se apresentam como dinâmica do impulso, em uma esfera
biológica, e como imagens ou ideias, em uma esfera espiritual. No primeiro caso,
correspondem “aquele modo inato pelo qual o pintinho sai do ovo, o pássaro constrói
seu ninho, um certo tipo de vespa atinge com seu ferrão o gânglio motor da lagarta,
a enguia encontra seu caminho para as Bermudas”
162
, enfim, um pattern of behavior;
enquanto no segundo, equivalem aos “motivos” ou temas da pesquisa mitológica, ao
conceito de representations colectives de Levy-Brühl, ou às “categorias da
imaginação” como definiram Hubert e Mauss no campo das religiões comparadas
163
.
Os arquétipos, assim, não são ideias herdadas, antes se constituem como
núcleos de significado, carregados de energia
164
que, quando constelados
165
,
exercem uma atração sobre a consciência, que os percebe como uma atividade
160
C.G. JUNG, Psicologia e religião, p. 9.
161
Idem, Os arquétipos e o inconsciente coletivo, p. 54.
162
Idem, A vida simbólica, v. 2, p. 91.
163
Idem, A natureza da psique, p. 58.
164
O termo energia aqui é usado para indicar a intensidade de um processo psíquico e seu valor
psicológico.
165
Constelação é um termo usado, em Psicologia Analítica, para indicar que uma situação, individual
ou coletiva, desencadeou um processo psíquico de atualização de determinados conteúdos. A
constelação individual é resultante da situação da consciência individual enquanto a constelação
coletiva diz respeito à situação da consciência coletiva. A constelação é um processo automático,
ativado pelo sistema auto-regulador da psique, para compensar uma carência ou unilateralidade da
consciência.
134
emocional. Os conteúdos da consciência relacionam-se com o arquétipo dando-lhe a
configuração e o sentido necessários para que se expresse através da imagem,
podendo dar origem a um símbolo. Neste sentido, o símbolo é um mecanismo
psicológico transformador desta energia que comporta material consciente e
inconsciente, racional e irracional, revelado e oculto; é bipolar; funciona como
mediador, como ponte entre a esfera inconsciente e a consciência, transformando
energias antagônicas numa nova forma de energia. Os símbolos são sempre a
melhor expressão possível de algo desconhecido, do intuído, do não sabido; incluem
o que foi, o que é e o que poderá ainda vir a ser. Aparecem como representações
da psique; são projeções de todos os aspectos da natureza humana. Expressam
não somente a sabedoria humana acumulada como também representam os seus
níveis de desenvolvimento, além de manifestarem as possibilidades futuras. Podem
referir-se a conteúdos essenciais da alma humana ou expressar verdades eternas
que, embora passando por processos de transformação e atualização, guardam sua
numinosidade
166
original; são as imagens coletivas que despertam emoções
profundas, a exemplo daquelas encontradas na arte, nos mitos e nas religiões. É
assim que podemos entender a ambigüidade da melancolia, definida, ao longo da
história, ora como patologia atrabiliar, ora como enfermidade da alma. Enquanto
símbolo, a melancolia é uma manifestação de um processo psíquico desconhecido,
por isso inconsciente, mas que revela um aspecto da natureza humana. Resta-nos
saber, porém, que aspecto poderia ser este.
Como vimos acima, para Jung, os seres humanos não nascem como uma
tabula rasa, mas com um potencial inconsciente, uma unidade original
indiferenciada, da qual emana a consciência. Esse padrão de totalidade original
pressupõe a existência de um centro organizador e impulsionador do
desenvolvimento psicológico da individualidade empírica, que Jung nomeou Self, da
mesma maneira que o “eu”, ou o ego, será o centro e sujeito da consciência. Por
conseguinte, o Self é a autoridade suprema à qual o ego está submetido; é o
arquétipo estruturante e, enquanto tal, representa uma totalidade de caráter
numinoso, isto é, de efeito fora do comum, um valor sentimental apriorístico,
podendo somente ser expressa em símbolos. Todos os temas e imagens que
166
Jung toma o termo numinoso de Rudolf Otto para designar o inexprimível, o misterioso, “o
totalmente outro”, propriedades que possibilitam a experiência imediata do divino, do sagrado; uma
força extraordinária que é sentida na experiência religiosa.
135
apontam para um centro, para a unidade, para a união de opostos, como, por
exemplo, o eixo do universo, o centro do mundo, as formas circulares ou esféricas,
imagens quaternárias, motivos de vasos e o chamado simbolismo das mandalas”
167
,
a união paradoxal do orgânico e do inorgânico, a eternidade em oposição à
temporalidade, o elixir da vida ou, ainda, as “personalidades superiores”, como
profetas, salvadores e divindades que figuram nos mitos, enfim, toda imagem
investida de um valor supremo pode ser vista como uma manifestação do Self. Por
isso, empiricamente, como destacou Jung, é impossível distinguir o Self da imago
Dei. Em suas palavras: “o fator psicológico que, dentro do homem, possui um valor
supremo, age como ‘Deus’, porque é sempre ao fator psíquico avassalador que se
o nome de Deus”
168
. Neste sentido, a relação entre o ego e o Self assemelha-se,
falando de uma forma simples, o que de fato não o é, à relação entre o homem e
seu Criador, tal como descreve a mítica religiosa. Dito de outra maneira, o mito da
Criação seria a expressão simbólica da relação entre o ego e o Self.
O que aparece descrito nos mitos como o estado original do homem, por
exemplo, na Idade de Ouro de Hesíodo, ou no “homem primevo redondode Platão
ou, ainda, no mito do Jardim do Éden, reflete o início desta relação quando o ego,
ainda incipiente, encontra-se identificado ao Self: um estado de unidade e perfeição
inconscientes, que é experimentado tanto no nível pessoal, subjetivo, quanto no
histórico, objetivo, como estado paradisíaco. Isto significa, em termos simbólicos,
que na sua origem a psique humana era completa e auto-suficiente, percebida como
a própria divindade. É o estado do homem primitivo ou, no nível pessoal, da infância,
no qual indivíduo, mundo e divindade não se distinguem, formando uma unidade
indivisível que atua ingenuamente e sem o conhecimento do “outro”. Neste período
inicial, as limitações externas, mesmo contrapondo-se aos impulsos subjetivos, não
representam fatores de perturbação da harmonia interior, pois o indivíduo ou a elas
se submete ou as evita. Em outras palavras, não diferenciação. Esta aparece
“quando aquilo que é uma limitação exterior se torna uma limitação interior, isto é,
quando um impulso se contrapõe a outro [gerando] uma divisão interior do próprio
indivíduo”
169
. Este percebe que não tem todos os poderes que imaginava ter, que
167
C.G.JUNG, A vida simbólica, v.2, p. 57.
168
Idem, Psicologia e religião, p. 86.
169
Idem, A natureza da psique, p. 341.
136
não é a deidade que acreditava ser. É retirado de seu estado de inocência e deve
abdicar de uma condição de completude. Tem início a dissolução da identificação do
eu à totalidade psíquica, a separação do ego de sua fonte original: nasce a
consciência e, com ela, a diferenciação eu-mundo-divindade. Em termos simbólicos,
o homem se separa de Deus: ele é expulso do paraíso. Separação necessária para
a criação e desenvolvimento da consciência, que se repete ao longo da vida, porém
perigosa, pois, não mais inocente, o indivíduo corre o risco constante da presunção
ao se considerar detentor de um conhecimento e de uma totalidade da qual
participa, mas não lhe pertence. Esta tentativa arrogante de apropriação de um
saber é descrita pelos gregos como hybris, destacada por São Paulo na Epístola aos
Coríntios e denominada por Jung como inflação de ego, retratando a imprudência do
humano ao não se reconhecer como criatura, cometendo o pecado do orgulho.
Mas, se “somente a separação, o desligamento e o confronto doloroso
através da oposição, pode gerar consciência e conhecimento”
170
, esta mesma
condição, marcada pela dor e pelo sofrimento da separação, apropriadamente
denominada por Edinger
171
de alienação, provoca uma espécie de ferida incurável
que o eu experimenta como abandono, vazio, falta de sentido, falta de valor,
desespero, estado este simbolizado por imagens como queda, exílio, ferida sem
cura. Não são exatamente estes os sintomas e as imagens da melancolia referidas
ao longo de sua história? Não é o afastamento ou a privação da imagem divina que
caracteriza a melancolia que Burton concebeu como essencialmente religiosa? Se
entendermos, juntamente com Jung, que fenômeno religioso se refere não a uma
forma instituída de credo ou fé, mas à disposição anímica para considerar aqueles
fatores concebidos como potências que infundem significado para o existir e que
demandam uma atitude de reverência ao superior e ao numinoso, a melancolia não
estaria simbolizando o desamparo da criatura e o desejo de aproximação e
reconciliação com seu Criador, fundamento de seu ser?
A melancolia, sob este enfoque, poderia ser entendida como um processo
típico da alma, um estado psíquico que marca a condão do humano. Uma
170
C.G. JUNG, Os arquétipos e o inconsciente coletivo, p. 172.
171
Cf. Edward F. EDINGER, Ego e arquétipo. Como Jung focalizou o processo psicológico que se
na idade adulta, Edinger, assim como fizera também o analista junguiano Erich Neumann (História da
origem da consciência, A criança), partiu das concepções de Jung e explorou os estágios iniciais do
desenvolvimento psicológico.
137
condição paradoxal na qual, para se tornar realidade no tempo e no espaço, o ego
deve renunciar sua identificação com a unidade inconsciente original, separando-se
de sua identidade ontológica, da mesma forma que para assegurar sua existência
deve reconhecer-se como um fragmento real e não um todo irreal, deve aceitar que
é criatura e não Criador. Tal processo, no entanto, ultrapassa nossa compreensão
racional, pois significa a relação do eu com as profundezas abissais da psique, uma
vivência que pode ser traduzida em imagens que vão desde o sublime e
incompreensível até o perverso e grotesco, evidenciando o aspecto paradoxal da
vida e de suas manifestações. Imagens fantásticas como as de Jheronimus Bosch
que parecem revelar não o medo da morte ou a falta de fundamento do homem, mas
a permanente tensão eu-mundo-Deus, a angústia de viver.
138
CAPÍTULO III
O ESPELHO DO HOMEM
Quanto os homens fazem, seus desejos,
seus medos, fúrias, apetites vãos,
seus gozos, suas alegrias,seus discursos,
de toda minha pintura é o sujeito.
1
Peixes alados no céu, aves mergulhadas no rio; insetos com garras de ave,
ave com asas de borboleta; homem com focinho de porco, porco com corpo de jarro;
ovo quebrado no qual entram inúmeras figuras humanas; figuras humanas
“engolidas” por mexilhão; corpo sustentado por galhos; pernas terminadas em
barcos; cabeças com pernas; galhos secos como braços que enlaçam; árvores
enraizadas em pedra; morangos, framboesas e cerejas enormemente deliciosos;
flores ardentemente espinhosas; facas, punhais, espadas, machados que cortam,
perfuram, atravessam, traspassam; gaitas expelindo fumaça, harpas crucificantes;
chamas que consomem, fogo que devora; demônios que torturam... Eis o universo
de Jheronimus Bosch, onde tudo se inverte, se desloca, se desmembra para depois
se recompor em uma nova forma, disforme, horrivelmente fantástica,
monstruosamente deslumbrante. Os limites entre os reinos animal, vegetal e mineral
são eclipsados: a natureza é desnaturada; a realidade se torna quimera; a
regularidade, capricho; o verdadeiro, fantasia. A ambigüidade reina soberana. A que
apelos responde essa profusão de imagens? Seriam caprichos sem sentido de uma
mente perturbada? Sermões pintados de um ortodoxo moralista que reprovava os
1
José de SIGÜENZA, Tercera parte de la Historia de la Orden de San Jerónimo. p. 212. Para Frei
José de Sigüenza, os versos do poeta romano Juvenal (final do sec. I, início do sec.II) bem poderiam
servir de argumento para as pinturas de Bosch: Quidquid agunt homines, votum, timor, ira, voluptas,
gandia, discursus nostri est fárrago libelli. Et quando vberior viciorum copia. (Satires, I. 81-86)
139
excessos de seu tempo? Auto-punição por seus desejos eróticos? Crítica frente à
corrupção social, política e religiosa de seus contemporâneos? Exorcismo de seus
próprios demônios? Ou nelas se configuraria uma reflexão profunda sobre as
qualidades essenciais da condição humana: um retrato da fragmentação, do exílio,
da contingência, da ruptura e da insuficiência do homem pós-Queda? Quais seriam,
enfim, as fontes dessa série inesgotável de figurações?
A escassez de registros e as lacunas nas informações sobre a vida e carreira
do pintor de ‘s-Hertogenbosch, como vimos no capítulo I, têm levado a inúmeras
hipóteses. A crítica tem apontado, por um lado, a herança de uma tradição:
enquanto suas obras de juventude apresentariam alguma conexão com as escolas
nórdicas de Haarlem e Delft, aquelas da maturidade se vinculariam aos primitivos
flamengos do sul, existindo, no que se refere ao aspecto diabólico e monstruoso,
alguma relação com a escola alemã, sobretudo com as xilogravuras e os gravados
de Martin Schongauer (1448-1491), de Hausbuchmeister (sec. XV) e do Mestre E.S.
(1420-1468), e com os bestiários medievais tais como aparecem nos Livros de
Horas. Ainda, dentre as fontes pictóricas ou estilísticas, também o citados os
gravados astrológicos, em especial os da série dos Planetenkinderbilder.
2
De fato,
alguma similaridade, por exemplo, nos esquemas de Adoração dos Magos (do
Prado) de Bosch e Natividade (Musée des Beaux-Arts, Dijon) do Mestre de Flémalle,
possivelmente Robert Campin (1375-1444), bem como nos interiores domésticos,
dos mesmos autores, vistos na Mesa dos Sete Pecados Mortais e em Santa
Bárbara, ambos do Prado. Mas, ao contrário, não qualquer ponto em comum
entre os infernos bosquianos e os corpos enlaçados pintados por Roger van der
Weyden (1400-1464) para sugerir o inferno em seu Último Julgamento (Hotel-Dieu,
Beune), ou entre seus híbridos e as figuras monstruosas dos bestiários góticos ou
das iluminuras borgonhesas. E ainda que Bosch tenha composto suas paisagens em
amplos espaços, com a diversidade do mundo exterior e com os efeitos de luz
proporcionados pelo uso das cores, de forma análoga aos seus predecessores ou
contemporâneos, elas apresentam uma perspectiva infinita de seus horizontes,
sugerindo uma visão universal, diferente da limitação por rochas e colinas dos
planos de fundo tradicionais. Além disso, as escalas dos elementos tomados da
2
Para informações mais detalhadas sobre os estudos que tentam identificar as possíveis fontes
plásticas da arte bosquiana cf. Roger H. MARIJNISSEN, Hieronymus Bosch: the complete works, p.
18-22. Cf. também Mia CINOTTI, La obra pictórica completa de El Bosco, p. 86-7.
140
natureza e da realidade, animados ou inanimados, como os peixes, os ssaros e
os frutos do painel central do Jardim das delícias (do Prado), ou os objetos da vida
cotidiana, como as facas, os vasos e os instrumentos musicais, do painel direito do
mesmo tríptico ou das Tentações de Santo Antão (de Lisboa), não encontram
paralelo na arte flamenga até então. A desproporção em relação ao restante das
figuras, tornando-os muito maiores, o que confere à paisagem um caráter fantástico,
manifesta, como diz Pilar Silva Maroto, “essa busca do infinito que caracteriza toda
sua produção”
3
. Por certo é difícil supor que Bosch desconhecesse a arte de seu
tempo, mas não se pode falar em mera dependência de modelos de estilo ou de
forma de seus predecessores. Ademais, como afirmou Henri Focillon, uma análise
estilística-formal não contempla “o mundo das intenções e das fábulas que configura
o contexto significativo da obra de arte”, não sendo possível, portanto, explicar o
universo simbólico e humano da obra de arte unicamente “através das formas”
4
.
Por outro lado, é evidente, também, que Bosch tenha encontrado uma
abundante fonte de inspiração nas narrativas bíblicas, nas hagiografias, nas obras
teológicas, místicas ou piedosas em geral, na literatura de viagens, como discutiram
os estudiosos na Conferência de 2007, em ‘s-Hertogenbosch, citada anteriormente,
ou mesmo na linguagem e nos costumes populares de seu tempo, como afirmou
Dirk Bax. O pintor brabantino poderia, por exemplo, ter ouvido as pregações de Alain
de la Roche, considerado por muitos como representante da “devoção fantasista
devotio moderna e da expressão religiosa ultraconcreta do século XV”
5
, que o
dominicano viveu o último período de sua vida nos Países Baixos, e morreu em
Zwolle, no ano de 1475. Suas visões do Inferno, que integram sua obra junto aos
seus sermões, são caracterizadas por uma monstruosa realidade e por um excesso
de imaginação sexual:
[...] ele vê os animais representativos dos vários pecados dotados de horríveis
aparelhos genitais e lançando torrentes de fogo que obscurecem a Terra com
fumaça. a prostituta da apostasia conceber os apóstatas, ora devorando-os e
vomitando-os, ora beijando-os e acariciando-os como uma mãe.
6
3
Pilar Silva MAROTO, Realidad, fantasía y búsqueda de lo infinito en los paisajes de El Bosco. In:
FUNDACIÓN AMIGOS DEL MUSEO DEL PRADO, El Bosco y la tradición pictórica de lo fantástico, p.
329.
4
Henri FOCILLON, La escultura románica: investigaciones sobre la historia de las formas, p. 166.
5
Robert L. DELEVOY, Bosch, p. 67.
6
Johan HUIZINGA, O declínio da Idade Média, p. 182. Cf. Mia CINOTTI, La obra pictórica completa
de El Bosco, p. 84.
141
Poderia, igualmente, ter visto as imagens terrificantes também traçadas pelo
grande teólogo flamengo Denis de Rijckel, mais conhecido como Dionísio o
Cartusiano, fundador do Convento de Chartreux, de ‘s-Hertogenbosch, que se
esforçava para despertar o medo do pecado:
Imaginemos um forno aquecido ao rubro, e que neste forno está um homem
nu, sem nunca poder de sair. Não é certo que a simples visão disto nos parece
insuportável? Quão miserável julgaríamos um tal homem! Imaginemos como ele se
contorceria no forno, como soltaria uivos e rugidos: em suma, como viveria e qual
não seria a sua angústia ao compreender que esse sofrimento insuportável não teria
fim.
7
Todavia, considerar a obra bosquiana como advertências, sermões pintados,
crítica social ou representação iconográfica de textos seria reduzir sua significação,
e quiçá desfigurá-la em seu sentido profundo. Embora nela se apresentem
elementos morais, religiosos e satíricos, julgá-la como intencionalmente didática ou
ética seria manter-se em um nível superficial de compreensão, da mesma maneira
que interpretar seus monstros como deformações com o propósito de satirizar ou
ironizar os vícios e debilidades humanas. Uma obra de arte não é uma mera
reprodução de um texto prévio em imagens, nem tampouco a construção de um
enredo intencional, baseado em conceitos abstratos e generalizantes. Não é
possível interpretar as paisagens labirínticas e as formações híbridas bosquianas
como produto de uma racionalidade que a partir de si mesma coloca ordem no
mundo. No universo de Bosch, toda é qualquer ordenação é aniquilada: suas
imagens desestabilizam, desfazendo conformações simétricas, desequilibrando
relações harmônicas, misturando domínios e alterando as proporções. Como
explicar o misto de fascínio e assombro que elas despertam? Como entender a
estranheza que elas provocam? Se Bosch tivesse produzido sua obra de forma
totalmente intencional, dever-se-ia esperar que em nenhum lugar ela ultrapassasse
os limites da compreensão consciente. Ao contrário, ela parece desafiar qualquer
tentativa de interpretação racionalizante. É verdade que para alguns comentadores,
como Delevoy, a dificuldade em compreender a mentalidade do final do medievo é
do observador moderno que nela acaba “projetando nossos sonhos, nossas
inquietudes, nossas angústias, nossas necessidades de evasão, nossas intuições”
8
.
7
Johan HUIZINGA, O declínio da Idade Média, p. 197.
8
Robert L. DELEVOY, Bosch, p. 15.
142
Entretanto, não seria porque a arte bosquiana ressoa em nós, provocando o mesmo
assombro, a mesma vertigem suscitada desde sua época, incitando-nos a buscar
respostas às inumeráveis indagações formuladas por seus primeiros estudiosos?
O estudo iconográfico se revela, assim, insuficiente, pois a identificação e
reconhecimento dos temas não esgotam o significado da obra de arte e deixam de
lado sua característica própria, como bem afirmou Focillon: “a iconografia não
conseguia me dar sempre seu sentido porque não me explicava e não tinha por
quê, não é seu objeto a poética das formas”
9
. Além disso, poder-se-ia indagar por
que Bosch escolheu determinados temas em detrimento de outros. O que o levou a
preferir pintar os santos eremitas ao invés das façanhas miraculosas e martírios
espetaculares que tanto fascinaram o fim do medievo?
Ao lado das análises estilística e temática há aquela que, seguindo o método
psicanalítico, atribui como fonte dessas imagens uma possível neurose ansiosa
acompanhada de sentimentos de agressão”, como diagnosticou Gauffreteau-Sévy
10
,
ou como Schenk para quem Bosch sofria de uma clara “neurose obsessiva e sádica
no domínio anal”, ou ainda um temperamento esquizóide com tendências quase
maníaco-depressivas, como postulou Huebner que, a partir do suposto auto-retrato
de Arras, viu no pintor de ‘s-Hertogenbosch “um dos representantes mais puros da
categoria dos leptossômicos”. Interessante que esse mesmo auto-retrato levou
Krestovsky a considerar Bosch como “uma mistura de bufão dentro do
extraordinário”, cuja obra apresenta “uma tal alegria, humor, fantasia, tal riqueza de
variedades humanas e animais [...] que qualquer um se esquece da filosofia para
desfrutar dessa dissimulação cheia de vida”
11
. Como observaram Rudolf e Margot
Wittkower
12
, é muito fácil ver formas fálicas e vaginais na figuração bosquiana e usar
as palavras mágicas “repressão”, “sublimação”, “complexo de Édipo”, “neurose”,
“medo de castração”, tal como se pronunciasse “abre-te samo” para descobrir os
segredos da alma humana. Mas, o que Bosch estaria reprimindo ao pintar, por
exemplo, O carro de feno ou as Tentações de Santo Antão? E de que forma esse
9
Henri FOCILLON, La escultura románica: investigaciones sobre la historia de las formas, p. 16.
10
Marcelle GAUFFRETEAU-SÉVY, Hieronymus Bosch, “el Bosco”, p. 153.
11
Estas e outras descrições psicanalíticas e tipológicas dadas a Bosch, J.H. PLOKKER resume em
seu capítulo “Jérôme Bosch et sa vision du monde". In: Roger MARIJNISSEN, Jheronimus Bosch, p.
189-99.
12
Rudolf e Margot WITTKOWER, Nascidos bajo el signo de Saturno, p. 267 et seq.
143
tipo de “diagnóstico” contribuiria para o entendimento da obra do pintor de ‘s-
Hertogenbosch?
Interpretar uma obra de arte como neurose ou psicose é confundi-la com um
fenômeno psicopatológico e tomar o artista como um caso clínico. Naturalmente, na
medida em que uma obra de arte é uma atividade humana, sua realização depende
das mesmas condições psicológicas a que estão sujeitas todas as pessoas, quer se
trate de um artista, um neurótico ou um indivíduo normal, pois todos tiveram um pai
e uma mãe, e um suposto complexo paterno ou materno, bem como possuem
sexualidade e dificuldades nesta esfera comuns a qualquer ser humano. o se
pode negar, assim, que a obra de arte esteja relacionada com o artista, mas explicá-
la a partir da psicologia de seu autor seria análogo a explicar a essência da planta a
partir das características do solo do qual ela brota, embora o conhecimento de seu
habitat possa revelar algumas de suas particularidades. Porém, quanto mais
elementos pessoais possuir uma obra, menos se tratará de arte, pois o sentido
especial da verdadeira obra de arte reside exatamente no fato de ela “poder se
libertar das estreitezas e dificuldades insuperáveis de tudo o que seja pessoal,
elevando-se para além do efêmero do apenas pessoal”
13
. Ou seja, a obra de arte é
algo suprapessoal, autônomo, não podendo, assim, ser julgada a partir de critérios
pessoais. Investigar as condições prévias às quais estão sujeitas todas as pessoas
se justifica, portanto, quando puder auxiliar na compreensão do sentido da obra
de arte, pois esta não consiste em um produto ou derivado dessas condições, mas
antes em uma realização criativa que delas se utiliza de forma livre. Como bem
observou Gadamer, “o subjectum da experiência da arte, que subsiste e perdura,
não é a subjetividade daquele que a faz, mas a ppria obra de arte”
14
.
Todavia, se o que nos oferece uma obra de arte, seja ela poética ou plástica,
são imagens e estas variam, em que consiste esse subjectum e o que ele promove?
Para o filósofo Gaston Bachelard (1884-1962), uma obra de arte perdura porque a
13
C.G.JUNG, O espírito na arte e na ciência, p. 60.
14
Hans-Georg GADAMER, Vérité et méthode, p. 28. Demos preferência à versão francesa (Le
subjectum de lexperience de lart, qui subsiste et perdure, n’est pas la subjectivité de celui qui la fait
mais l’ouvre d’art elle-même), pois, parece-nos, contempla melhor o significado que o autor atribuiu à
arte do que a tradução em português: a experiência da obra de arte sempre ultrapassa, de modo
fundamental, todo horizonte subjetivo de interpretação, tanto o do artista quanto daquele que recebe
a obra” (Vozes, 1999, p. 18), tendo em vista que o termo latino subjectum deriva do grego
υποκειµενον (hypokeimenon), significando aquilo que permanece invariável à mudança em toda
transformação.
144
imagem, por sua repercussão, situa-nos na origem fazendo-nos “experimentar ecos,
ressonâncias, lembranças”
15
. Isto significa que essa imagem não pode ser um mero
retrato pquico de um objeto exterior; antes se constitui em uma representação
imediata que se manifesta à consciência, relacionando-se com o objeto exterior
apenas indiretamente. Dito de outro modo, uma obra de arte permanece viva
quando as imagens que ela oferece “dizem” mais do que aparentam, desafiando a
compreensão, suscitando indagações para as quais uma reflexão crítica não oferece
respostas satisfatórias, pois não se referem a conteúdos da vida cotidiana, às
alegrias e dores que se repetem indefinidamente na esfera do humano,
“demasiadamente humano”, que se movem nos limites do que é psicologicamente
compreensível. Antes evocam aqueles pressentimentos inquietantes que habitam
nos recantos obscuros da alma; em uma palavra, quando são símbolos, isto é,
quando expressam uma concepção para a qual ainda não se encontrou outra ou
melhor. Uma obra de arte reconhecidamente simbólica, como julgamos ser a obra
bosquiana, é “cheia de pressentimentos [...] Daí o fato de a obra simbólica nos
sensibilizar mais, mexer mais com o nosso íntimo e raramente permitir que
cheguemos a um deleite estético puro”
16
. Ela provoca um misto de confusão,
surpresa, desconfiaa e, até mesmo, repugnância, como declarou Rooses, por
exemplo, ao definir “tais pinturas [as bosquianas] mórbidas, e a graça ou sutileza
que o pintor busca engendrar é incapaz de superar a repugnância que todos aqueles
monstros inverossímeis e insólitos desperta em nós”
17
.
Basta lançar um olhar sobre os quadros de Bosch para se perceber que suas
imagens expressam conteúdos que estão além da experiência ordinária da vida,
ultrapassando a extensão da sensibilidade e compreensão humanas. Mesmo
quando seus temas parecem indicar algo familiar à consciência genérica, não se
pode dizer que suas imagens sejam alegorias, isto é, que foram intencionalmente
escolhidas para exprimir uma realidade conhecida. É sabido, por exemplo, que na
época de Bosch, ter uma pedra na cabeça era o mesmo que estar louco. Mas será
que A Extração da pedra (do Prado) é uma alegoria da insensatez humana, quando
um olhar mais atento verifica que não é uma pedra o que é extraído, e sim uma flor?
15
Gaston BACHELARD, La poética del espacio, p. 12.
16
C.G.JUNG, O espírito na arte e na ciência, p. 65-6.
17
Max ROOSES, Histoire générale de l’art Flandre, p. 135.
145
Suas imagens são desconcertantes, alteram e deformam as aparências, ferem a
natureza, explodem os limites das possibilidades humanas; facilmente podem ser
vistas como exageros, falsificação dos fatos, meros caprichos, simulações ou
invenções fantásticas, típicas de uma “imaginação rica”, produto de uma mente
equivocadamente criativa ou perturbada. A compreensão da obra de arte como
tendência cultural, como retrato crítico de uma época ou como demonstração de um
estado emocional do artista encontra nessas imagens um terreno fértil para
especulações e tentativas de interpretação que se revelam simplistas. E a obra de
Bosch “parece constituir uma tentação permanente para os hermeneutas
imprudentes”
18
, como advertiu Lascault.
A psicologia, em muitos momentos, tem contribuído para esse tipo de visão.
Focalizando a motivação da obra na psicologia de seu autor, traduz suas imagens e
temas como material ilusório, por vezes inadequado, fruto de substituição,
sublimação ou repressão de desejos. Deste modo, desvia-se da psicologia da obra
de arte, afastando-se do processo criativo e, por conseguinte, da possibilidade de
vislumbre do caráter profundo, originário e atemporal da obra e de seu
correspondente conteúdo visionário. Tal é, porém, a perspectiva da psicologia
analítica, uma ótica diferencial que, tomando como objeto o processo criativo,
evidencia a alma e a natureza humana presentes na obra de arte, destacando sua
força imagética e vigor simbólico. Perspectiva esta que, mais uma vez, será tomada
como norte em nosso percurso, pois acreditamos que a obra bosquiana esteja
alicerçada não na pessoa de Jheronimus Bosch, do qual, como vimos, quase nada
sabemos, mas sim na alma da humanidade que se manifesta no ato criador,
impessoal, que nele habita. Em que consiste, pois, esse ato criador?
Como foi apresentada a forma de abordagem da psique humana sob a
ótica junguiana no capítulo precedente, é suficiente recordar aqui que símbolo, nesta
perspectiva, é uma imagem psíquica, uma “expressão da experiência de um mistério
inefável e uma resposta a isso”
19
. Esta experiência, denominada por Jung “vivência
originária”, é de tal intensidade que sua manifestação ora é “demoníaca, grotesca e
desarmônica, destruindo valores humanos e formas consagradas, [...] ora irrompe
18
Gilbert LASCAULT, Le monstre dans l’art occidental, p. 273.
19
C. G. JUNG, Cartas (1956-1961), p. 15. Carta a Miss. Maud Oakes de 11.02.1956.
146
como uma manifestação cujos altos e baixos a intuição humana não pode sondar”
20
.
Parece mesmo que se refere a outro mundo, pois sempre remete a uma metafísica
obscura e, por isso, recebe o qualificativo de fantástica: é o mundo dos sonhos, das
angústias noturnas, dos monstros e fantasmas que despertam enquanto dorme a
razão. Talvez não tenha sido por acaso que Goya inscreveu em um de seus mais
conhecidos Caprichos que el sueño de la razón produce monstruos
21
. Contudo, é
dessa esfera noturna que, desde tempos imemoriais, emerge tanto o terror da
dissolução quanto a esperança da transformação. Ora, não é esse o tipo de visão
que encontramos nas pinturas bosquianas, o sogni dei pittori, como definiram os
comentadores do século XVI? É preciso ressaltar, no entanto, que se o fantástico
tem sua origem nessa esfera noturna, em linguagem psicológica, no inconsciente
coletivo, em sua formulação ele utiliza de formas conhecidas para se tornar
inteligível e comunicável. É por isso que o sobrenatural pode se manifestar em
termos naturais e o fantástico é composto de fragmentos do cotidiano, do ordinário.
Se “poetar quer dizer fazer ressoar o verbo primitivo que está por trás das
palavras”
22
, como afirmou o escritor alemão Gerhart Hauptmann (1862-1946),
poderíamos dizer, então, em termos psicológicos, que atrás das imagens de uma
obra de arte ressoa a “imagem primordial”. De acordo com Jung, esse é o princípio
do processo de criação artística, que consiste “numa ativação inconsciente do
arquétipo e numa elaboração e formalização na obra acabada”
23
. A imagem
primordial, ou arquétipo, lembremos, é sempre coletiva, é uma figura seja ela
demônio, ser humano ou processo comum a todos os povos e épocas,
coincidindo, assim, com os motivos mitológicos, raízes dos ritos e das religiões. E o
artista, tomado por seu impulso criativo
24
, incorpora estes motivos e como que
“transcreve” para a linguagem presente uma imagem primordial. Construindo
expressões de sua vivência originária autêntica, símbolo real de uma essencialidade
20
C.G.JUNG, O espírito na arte e na ciência, p. 78.
21
Estampa 43 da série de 80 Caprichos, Museo del Prado, Madrid.
22
Apud C.G.JUNG, Símbolos da transformação, p. 295.
23
C.G.JUNG, O espírito na arte e na ciência, p. 71.
24
Jung considera o processo criativo como uma essência viva implantada na alma do homem que se
torna, assim, um veículo da criatividade. Enquanto uma das forças motivadoras do processo psíquico,
a força criativa é um fator psíquico de natureza semelhante ao instinto, pois se comporta
dinamicamente como este: é compulsivo, embora não seja universal. Cf. C.G.JUNG, A natureza da
psique, p. 54-5.
147
desconhecida, ele plasma em sua obra imagens primordiais capazes de suprir a
carência e a unilateralidade da consciência coletiva. Tal qual a alma individual, toda
época tem suas tendências espirituais características, o que revela uma
unilateralidade e, por conseguinte, exclusão. Isto significa que muitos conteúdos
psíquicos, incompatíveis com a consciência geral, não podem participar da vida,
necessitando, assim, de uma compensação. Dessa maneira, uma obra de arte
simbólica, ou visionária, como a bosquiana, possui uma estrutura singular, que a
capacita a perdurar em si mesma, pois representa muito mais que o destino pessoal
de seu autor: ela responde às necessidades anímicas de um povo. Esta é, segundo
Jung, a função social da obra de arte: educar
25
o espírito da época, pois significa a
possibilidade de “reimergir na condição originária da participation mystique, pois
nesse plano não é o indivíduo, mas o povo que vibra com as vivências; não se trata
mais das alegrias e dores do indivíduo, mas da vida de toda a humanidade”
26
. De
forma análoga, Cassirer disse que
a arte nos apresenta os movimentos da alma humana em toda a sua profundidade e
variedade. [...] o que sentimos na arte não é uma qualidade emocional simples ou
única. É o processo dinâmico da própria vida: a oscilação contínua entre pólos
opostos, entre alegria e pesar, esperança e temor, exultação e desespero.
27
A que movimentos da alma humana as imagens desenvolvidas nas pinturas
de Bosch estariam se referindo? A que imagem primordial do inconsciente coletivo
poderiam elas ser remetidas? Tanto para a psicologia analítica quanto para os
historiadores das religiões, “um símbolo revela sempre, qualquer que seja o
contexto, a unidade fundamental de diversas regiões do real”
28
. As regiões
exploradas pelas imagens bosquianas sugerem a consideração da realidade
psicológica única, misteriosa e insondável da alma humana, inequivocamente
pressentida – e anunciada – e equivocamente vivenciada. Bosch dá relevo ao
insuspeito, criando a justaposição e o entrelaçamento de extremos em suas
imagens, apresentando o humano para si mesmo de modo inquietante e dúbio. Sua
25
Importante ressaltar que educação, para Jung, consiste no processo de formação da consciência e
não na reprodução mecânica de conteúdos meramente “decorados”. Cf. C.G.JUNG, O
desenvolvimento da personalidade, principalmente capítulos III e IV que constituem em uma série de
conferências apresentadas em Congressos Internacionais de Educação.
26
C.G.JUNG, O espírito na arte e na ciência, p. 93.
27
Ernest CASSIRER, Ensaio sobre o homem, p. 244.
28
Mircea ELIADE, Imagens e Símbolos, p. 177.
148
trama estranha, tecida com elementos irracionalmente e antiorganicamente ligados,
ainda que compostos de fragmentos de formas conhecidas, “desrealiza” o real e
“realiza” o irreal, chocando e contrariando qualquer lógica da razão. O inconcebível
torna-se real, o acento sombrio dado às formas e aos conteúdos faz desfilar o
diabólico e o simbólico em sua obra, criando um estonteante e oscilante rodopio
entre memória e premonição, apresentando a origem e o destino humanos em carne
e cores vivas. Arranca do observador, ao mesmo tempo, risos frente às
deformidades, asco diante do horripilante e monstruoso e, sobretudo, um assombro,
uma angústia perplexa, como se o mundo tivesse perdido o eixo, não havendo
qualquer ponto no qual se apoiar, e a qualquer momento tudo fosse desmoronar. É
surpreendente observar, por exemplo, a composição de uma das figuras, sem
dúvida, mais enigmáticas de Bosch: o homem-árvore do painel direito do igualmente
enigmático tríptico O jardim das delícias (do Prado), que tem por corpo um ovo
quebrado, troncos secos de árvore como pernas e barcas na função de pés. Quão
precário é seu equilíbrio! Como também o é o das várias figuras no painel central: o
globo no centro da parte superior, flutuando na água, não parece poder sustentar a
fonte que está sobre ele; “se qualquer pessoa colocada sobre essa estrutura fizer
um movimento, se um só dos pássaros sair voando, a fonte virá abaixo”
29
. As
estruturas ao fundo, para além de sua aparência fantástica, não apresentam
qualquer apoio e o material que as constitui também parece não ter solidez: seria
uma composição de metal, mineral e vidro ou poderia ser de nuvem ou espuma?
Sobre a estrutura da parte superior direita, um acrobata, apoiado sobre um em
uma superfície esférica, faz malabarismos com um globo e, não muito longe dali, um
urso se equilibra de cabeça para baixo sobre uma vara sustentada por dois homens.
O mesmo se aplica a outras figuras espalhadas pelo tríptico, como a bola
transparente, na parte inferior esquerda, em cujo interior há um casal se acariciando,
que lembra uma bola de sabão que pode se desfazer a qualquer momento; bola esta
que está sobre um fruto esférico que, por sua vez, flutua na água; ou os homens
realizando as mais incríveis acrobacias e contorções sobre montarias diversas no
centro do painel. Tudo aponta para uma instabilidade, uma impermanência:
volubilidade da alma?
29
E. H. GOMBRICH, The Heritage of Appelles, p. 81.
149
O mundo de Bosch parece um mundo visto pela loucura; um mundo ao revés,
estranho, alheado, pois aquilo que parecia familiar se torna, subitamente, adverso e
sinistro, num movimento frenético, uma situação de tensões ameaçadoras, como
aquela, por exemplo, do painel central do Carro de feno, no qual uma multidão de
pessoas segue um carro carregado de feno arrastado por figuras monstruosas.
Todas as categorias que nos servem de apoio e de orientação falham. A paridade da
ordem humana ou diurna é invadida por uma legião de criaturas grotescas,
disformes, mutiladas, marcadas pela falta, pela diferença e, por conseguinte,
estigmatizadas, como os aleijados e mendigos que perambulam nos Estudos que se
conservam em Albertina (fig. 14) e na Biblioteca Real de Bruxelas (fig. 15). São
seres que vagam erráticos, que excedem os limites da razão e da emoção,
disparatados e separados de todas as naturezas, claudicantes, rastejantes, em
queda livre no abismal e vacilantes em seus caminhos. A jornada se inicia num
terreno insólito e movediço, transgressor, envolvida por uma atmosfera de ironia que
anuncia uma ordem outra: a impar que, definida por categorias sombrias, dotadas de
poderes mágicos e misteriosos, sejam benéficos ou maléficos, conduz a uma esfera
de experiências que sublinham o anômalo. Diferente do anormal, daquele que está
fora das normas, das regras, um anómalos (ανόµαλως) é aquele que é desigual,
desarranjado, mal equilibrado, é a negação da semelhança, é o contranatural. As
anomalias, tão presentes na obra de Bosch, em oposição às anormalidades,
apontam para um fundamento mais profundo que o desvio das normas sociais: elas
nos remetem ao campo do ontológico. Não se trata de uma condenação aos
mendigos, criminosos, prostitutas, vagabundos, escravos, camponeses pobres e
“todos cuja ‘inutilidade’ os tornaram suspeitos aos olhos dos cidadãos e
autoridades”, como afirma Paul Vandenbroeck
30
, para quem a atitude de Bosch
refletia a ideologia da burguesia urbana, grupo ao qual pertencia o pintor brabantino.
Mais que uma ameaça social, esses seres mutilados, disformes, evidenciam a
desigualdade consigo mesmo e em si mesmo. Provocam repulsa e temor porque
denunciam nossa própria desigualdade, nossa própria existência precária; porque
mostram, em sua carne dilacerada, nossa própria alienação e fragilidade.
30
Paul VANDENBROECK, Hieronymus Bosch: the wisdom of the riddle. In: Jos KOLDEWEIJ; Paul
VANDENBROECK; Bernard VERMET, Hieronymus Bosch. The complete paintings and drawings, p.
113.
150
Fig. 14 Estudo dos deficientes ou mendigos. Fig. 15 Estudo dos deficientes ou mendigos.
Viena, Graphische Sammlung Albertina. Bruxelas, Bibliothèque Royale de Belgique.
Coxos, mancos, amputados, entrevados, mutilados, esses desvalidos,
autênticos filhos de Saturno, expressam a ambigüidade da existência humana:
efêmera, consumida pela temporalidade, marcada por uma série de rupturas ao
longo de sua história e, por isso mesmo, capaz de descortinar o intemporal, o
imaterial e o transcendente, pela necessidade e possibilidade de transformação e
superação geradas, pois “o único sentido da existência humana é acendermos a luz
nas trevas do ser puro e simples”
31
. Tal como os Labdácidas, esses mutilados, para
além do desvio social, explicitam uma ferida espiritual. Contudo, a marca que trazem
naqueles órgãos que representam o caminhar, a marcha Lábdaco, o coxo, Laio, o
cambaio, Édipo, o de pés inchados –, não pode ser entendida apenas como uma
maldição para expiar uma falta ancestral. O estigma que carregam também parece
indicar que não o início, mas a totalidade da trajetória contém elementos
singulares que, via de regra, apontam para percalços, obstáculos, desafios e
convites inquietantes para penetrar em um terreno estranho, no qual uma derrota
pode significar uma vitória, ou em termos psicológicos, no campo de uma
consciência diferenciada. Neste sentido, pode estar anunciando a possibilidade de
31
C.G.JUNG, Memórias, sonhos, reflexões, p. 282.
151
um caminhar em uma dimensão especial onde o encontro e a reconciliação com o
espírito podem ocorrer, tal como vemos realizar Édipo
32
, ou, em uma perspectiva
bíblica, Jacó que, depois do combate com o anjo de Deus, “viu que nascia o sol;
mas ele coxeava de uma perna” (Gn 32, 31).
É significativo que tanto na mitologia grega quanto na tradição religiosa
judaico-cristã, pilares do pensamento e da cultura ocidental, o tema do estigma
esteja na origem da existência humana. Prometeu, que roubou o fogo dos deuses
para os homens, teve sua carne ferida: foi acorrentado a um rochedo onde, durante
o dia, uma águia lhe comia o fígado que, ao longo da noite, se recompunha. De
forma análoga, depois de comerem o fruto proibido, Adão e Eva carregaram em sua
carne a dor e o sofrimento (Gn 3, 16-19). Em termos psicológicos, esses dois mitos
expressam essencialmente a mesma temática: a consciência nasce como uma
ferida. Ferida incurável e caractestica inalienável do humano que traz, no corpo e
na alma, o suporte divino e o desejo de a Ele retornar. Ferida como aquela exibida
na perna do Filho pródigo, que mostra, em seu caminhar, as vicissitudes da
peregrinação pela vida.
Inumeráveis são os motivos e imagens que desfilam diante de nossos
sentidos ao contemplarmos a obra bosquiana. Uma obra, como veremos a seguir,
repleta de símbolos que, vistos em seus detalhes ou em sua globalidade, conduzem-
nos a caminhos ao mesmo tempo tão familiares quanto inquietantes. Tal qual em um
espelho, miramo-nos na humanidade e nela nos reconhecemos e resgatamos o
fundamento espiritual da vida e da realidade. Mais que uma sátira ou uma
predicação moral, como têm insistido os comentadores, Bosch nos apresenta a
condição de encarnação do ser, a marca da ruptura necessária para a construção da
aliança sagrada, o mistério da vida e da morte. Uma vez mais, sob o enfoque
simbólico que vimos adotando, delineia-se a experiência da melancolia religiosa,
percebida e por nós conceituada como dor, desejo e ânsia pela presença do Criador
na vivência de cada coisa criada, num frenético e ardente movimento de separação
e de reunião a uma realidade na qual o jorro divino adquire significado.
32
Junito de Souza Brandão desenvolve um estudo interessante sobre os Labdácidas baseado,
principalmente, na pesquisa realizada por Marie Delcourt que, diferente das diversas interpretações,
sugere, fundamentada na etimologia dos nomes, que a deformidade pode designar tanto a punição
por uma falta como um episódio relativo à libertação. Cf. Junito de SOUZA BRANDÃO, Mitologia
grega, p. 233-86, v. III.
152
III.1 MESA DOS PECADOS MORTAIS
De acordo com Linfert
33
, a obra inteira de Bosch é um desenvolvimento do
tema dos Pecados Mortais, com o qual ele inicia.
34
De fato, parece que o pintor
brabantino apresenta neste quadro, verdadeira peça única na pintura dos Países
Baixos, a questão que lhe serve de ponto de partida: em que consistem a vida e o
destino humanos? na forma da composição é possível observar uma concepção
unitária: um grande círculo, dividido em sete partes trapezoidais, inscrito em uma
quadratura, com um círculo menor em cada um de seus ângulos. De Tolnay
35
foi o
primeiro a sugerir que esta estrutura de conjunto da composição lembra as
representações do Universo e que o jogo de tons claros e escuros dá a aparência de
uma esfera, refencia, sem dúvida, ao globo terrestre. Seria uma imago mundi
como aquela que se pode admirar nos painéis externos do tríptico Jardim das
delícias? Não esquecendo que Bosch pode ter se inspirado nas mais variadas
fontes, ainda que os scholars afirmem que não se conhece nenhum modelo que lhe
possa ter servido de antecedente iconográfico, interessa-nos, como assinalamos
acima, o significado simbólico da obra do pintor de ‘s-Hertogenboch. O círculo, em
termos psicológicos, é uma clara alusão à unidade, à totalidade da alma humana, ao
Self. Jung demonstrou, baseado em estudo comparativo
36
, que a “quadratura do
círculo” é um dos mais importantes temas arquetípicos do ponto de vista funcional.
Ocupando um lugar central nos documentos históricos basta observar, por
exemplo, o esquema das imagens divinas nas visões de Ezequiel, Daniel e Enoch
ou na imagem de Hórus com seus quatro filhos
37
, tem também um significado
transcendente no nível do sujeito. Em geral, a mandala, designação sânscrita para
círculo, aparece em estados de desorientação psíquica oferecendo um continente e
uma ordenação concêntrica à multiplicidade dos elementos contraditórios e
33
Cf. Carl LINFERT, Bosch, p. 37-8.
34
Não dispomos, ainda, de uma cronologia da obra bosquiana, apesar dos extensos estudos
desenvolvidos nesta área. De qualquer maneira, embora por critérios diferentes, uma
concordância entre os scholars de que a Mesa dos pecados mortais faz parte do período de
juventude do pintor, sendo provavelmente uma de suas primeiras obras. Cf., por exemplo, Charles
DE TOLNAY, Hieronymus Bosch, p. ; Mia CINOTI, El Bosco, p. 87; Marcel GAUFFRETEAU-SÉVY,
Hieronymus Bosch “el bosco”, p. ; Roger H. MARIJNISSEN, Hieronymus Bosch: the complete works,
p. 330.
35
Charles DE TOLNAY, Jérôme Bosch, p. 328.
36
Jung estuda o tema da mandala em várias obras, mas principalmente em Os arquétipos e o
inconsciente coletivo; Psicologia e alquimia e Psicologia e religião.
37
Apud C.G.JUNG, Os arquétipos e o inconsciente coletivo, p. 386.
153
irreconciliáveis. Ora, diante dos excessos e desequilíbrios que marcaram sua época,
Bosch não estaria refletindo na Mesa, tal qual em um espelho, a imagem da
natureza humana em sua totalidade?
Fig. 16 Mesa dos pecados mortais. Madrid, Museo del Prado.
Todavia, embora a imagem do espelho seja freqüente nos tratados morais da
época
38
, para que o observador pudesse se confrontar com sua própria alma
desfigurada pelos vícios e, assim, reparar seu caminho de pecados, a interpretação
da Mesa como uma pintura didática nos parece superficial. O que mais chama a
atenção é a disposição das cenas: no centro do círculo, Cristo, ereto no sepulcro,
exibe suas chagas: uma recordação da possibilidade de redenção ou a lembrança
da ferida da encarnação? Nas partes quadrangulares (trapézios) que compõem a
periferia do círculo, estão representados os sete pecados mortais, o como figuras
alegóricas, mas como experiências da vida cotidiana, aliás uma das grandes
inovações de Bosch, como demonstraram os vários comentadores. Observe-se que
38
Cf. Walter S. GIBSON, Hieronymus Bosch, p. 37.
154
todas as cenas parecem acontecer ao mesmo tempo e no mesmo local. uma
continuidade no céu e na paisagem em todas elas, mesmo naquelas que ocorrem no
interior de um recinto qualquer como a Soberba, a Gula e a Acédia –, como se
pode ver através das janelas. Ainda que Bosch não tenha usado a técnica da
perspectiva, que daria a ideia de tridimensionalidade no plano, trata-se de uma
representação vertical, isto é, o observador olhando de cima precisa dar a volta na
mesa para poder ver todas as partes desenhadas. É como se Bosch o incluísse no
quadro. As cenas também não obedecem a uma seqüência, um sentido horário ou
anti-horário, o que aponta para o dinamismo próprio do ser humano que é
determinado pela temporalidade da vida concreta, mas traz algo de intemporal
intrínseco a ele: seu fundamento espiritual, representado por Cristo no centro do
círculo. Da mesma maneira, a disposição dos pecados na parte externa, periférica,
circundando a figura de Cristo, mostra a diferenciação da unidade inicial na
multiplicidade das experiências vividas. São, com efeito, “os mil incidentes da vida
de cada dia que nos dão ocasião de pecar”
39
. Ocasião esta que, em termos
psicológicos, é um elemento necessário no processo de formação e ampliação da
consciência. Como disse Honório de Autun, “a criatura concebida na mente divina é
simples, invariável e eterna, mas em si mesma ela é múltipla, variável e
transitória”
40
. Desta forma, para além do aspecto moral, do olho de Deus que tudo vê
muitas vezes interpretação dos raios dourados que circundam a figura de Cristo,
onde aparece a inscrição Cave, cave, D[omi]n[u]s videt (Cuidado, cuidado, Deus vê)
–, o espelho reflete aqui uma outra imagem: o homem descobrindo-se como criatura,
desdobrando-se em aparências em busca da sua essencialidade. É importante
ressaltar que reflexão não significa reprodução de uma imagem, nem o simples ato
de pensar; como bem indica a palavra reflexio, isto é, “inclinação para trás”, a
reflexão é uma atitude, como nos lembra Jung, um ato espiritual, uma relação e um
confronto com o presenciado; por conseguinte, “deve ser entendida como uma
tomada de consciência”
41
.
Chama-nos a atenção, também, que Bosch apresente entre os sete pecados
a acédia, que não mais figurava entre eles desde o século VI, quando Gregório
39
J.V.L.BRANS, Hieronymus Bosch (El Bosco) en el Prado y en el Escorial, p. 10.
40
Apud C.G.JUNG, Mysterium Coniunctionis, p. 271.
41
C.G.JUNG, Interpretação psicológica do Dogma da Trindade, p. 46.
155
Magno a suprimiu, agregando seus efeitos aos da tristeza, como foi mencionado
no capítulo precedente. Além disso, recordemos que, do ponto de vista fisionômico e
caracteriológico, os saturninos ou melancólicos eram avaros, luxuriosos, cobiçosos,
coléricos e, sobretudo, preguiçosos, todos presentes nas cenas retratadas ao longo
do rculo. É interessante notar, ainda, que no lugar de honra, ocupado pela
Soberba ou Orgulho na Idade Média, está a Ira, em linha direta à figura de Cristo.
Entretanto, as pilastras que dão suporte ao “olho de Deus” encerram entre elas a
cena da Inveja e, seguindo um pouco adiante, parecem encaixar o círculo do ângulo
inferior esquerdo, no qual está representado o Inferno, ainda tímido se comparado
às composições monstruosas do Jardim das delícias e do Carro de feno. Por que
Bosch destaca essa cena? Seria uma alusão ao desejo do homem de ser como
Deus? De possuir o que Ele detém, o conhecimento do bem e do mal? E às
conseqüências inevitáveis que este conhecimento traz?
O conceito teológico de pecado, em termos psicológicos, associa-se à ideia
de inflação. Dissemos, anteriormente, que a apropriação de conteúdos e qualidades
que ultrapassam os próprios limites, que pertencem a outrem, é definida por Jung
como inflação, numa analogia ao conceito grego de hybris que, originalmente,
significava violência ou paixão voluptuosa que emergem do orgulho. Encontramos,
na mitologia, diversas descrições desse estado inflado. Íxion, por exemplo, quando
tentava seduzir Hera, foi surpreendido por Zeus que, como punição ao seu pecado
da luxúria, aprisionou-o a uma roda de fogo que girava interminavelmente no céu.
Em termos simbólicos, a roda, enquanto estrutura mandálica, designa a totalidade, o
que significa que quando a identificação do homem à divindade se prolonga, ou, em
linguagem psicológica, do ego ao Self, pode se converter em tortura.
42
Mas, foi
Santo Agostinho quem apresentou de forma mais vívida o estado de inflação,
quando, em suas Confissões, mostrou a natureza do pecado como uma tentativa de
imitação da divindade.
O orgulho imita a altura; mas Vós, meu Deus, sois excelso sobre todas as
coisas. Que busca a ambição senão honras e glórias, embora Vós tenhais o
direito a ser honrado e glorificado eternamente? A sevícia dos poderosos aspira a
fazer-se temer; mas quem deve ser temido senão Deus? [...] A curiosidade parece
ambicionar o estudo da ciência, quando Vós é que conheceis plenamente tudo!
[...] À preguiça parece apetecer apenas o descanso; mas que repouso seguro há fora
do Senhor? A luxúria deseja apelidar-se saciedade e abundância; Vós, porém, sois a
plenitude e a abundância interminável da suavidade incorruptível. [...] A avareza quer
42
Cf. Edward EDINGER, Ego e arquétipo, p. 56.
156
possuir muito; e Vós possuís tudo. A inveja litiga acerca da “excelência”; mas que ser
é mais excelente que Vós? A ira procura a vingança; e quem se vinga mais
justamente que Vós? [...] A tristeza definha-se com a perda dos bens em que a
cobiça se deleita porque desejaria que nada, como a Vós, se lhe pudesse tirar. É
assim que a alma peca, quando se aparta e busca fora de Vós o que não pode
encontrar puro e transparente, a não ser regressando a Vós de novo. Imitam-Vos
perversamente todos os que se afastam de Vós e contra Vós se levantam. [...] As
almas não buscam, em seus próprios pecados, senão uma espécie de semelhança
com Deus.
43
Todavia, buscar uma semelhança com Deus é não se reconhecer criatura, é,
em linguagem psicológica, permanecer em um estado infantil, de indiferenciação, de
inflação e, portanto, de inconsciência. Essa ideia aparece nas faixas colocadas na
parte superior e inferior da Mesa, onde estão inscritos os versos do Deuteronômio.
Acima se lê: Gens absque consilio e[st] et sine prudentia / Utina[m] Sapere[n]t et
i[n]telligere[n]t ac novíssi[m]a providere[n]t (Porque são gente falha de conselhos e
neles não entendimento. Oxalá eles fossem sábios! Que isto entendessem, e
atentassem para seu fim!) (Dt 32:28-29). E, abaixo: Absconda[m] facie[m] meã[m]
ab eis et considerabo novíssi[m]a eorum (Esconderei o meu rosto deles, verei qual
será o seu fim) (Dt 32:20). Estes versos falam de uma inconsciência, de uma
ignorância da realidade que traz, como conseqüência, o afastamento de Deus. O
que em linguagem religiosa é visto como um castigo devido à desobediência das leis
divinas, em termos simbólicos, significa que enquanto o homem permanecer
identificado às energias suprapessoais, utilizando-as para fins de prazer e de poder
pessoais, preso aos seus anseios e desejos, será consumido pelo fogo ardente de
suas paixões. Isto está representado na cena do Inferno, na qual cada tormento é
nomeado pelo pecado correspondente, cena que, curiosamente, como indicamos
acima, parece encaixada entre as pilastras da Inveja. Paradoxalmente, é essa
experiência de separação da unidade original, essa desobediência, que torna
possível o reconhecimento do substrato espiritual da existência e de sua condição
de só poder participar da unidade enquanto criatura única.
É assim que podemos entender a circularidade da figura: o homem, em
seu constante caminhar imagem que Bosch retoma no reverso do Carro de feno e
no Filho pródigo –, passando por todas as experiências encarnadas, pode descobrir
sua ascendência divina, não como modelo de conduta, uma mera formalidade, mas
43
Santo AGOSTINHO, Confissões, p. 71-2.
157
como seu próprio fundamento. E é exatamente na experiência da morte
representada no canto superior esquerdo, provavelmente a prefiguração da Morte do
avaro –, esta “situação limite”, tomando emprestado a expressão de Karl Jaspers,
que se nos apresenta a possibilidade de tomada de consciência do nosso próprio
ser. Talvez a primeira vivência dos opostos, a diferenciação eu-outro, essencial ao
nascimento e desenvolvimento da consciência, tenha sido o contraste entre o vivo e
o morto presenciado pelo homem primitivo e que se tornou personagem principal na
época de Bosch. Ao mesmo tempo em que a morte evidencia a finitude, a pequenez
do ser humano, sua maior fraqueza, e, portanto, sua unicidade, que é sinônimo de
limitação, possibilita, justamente por isso, a conscientização do ilimitado, do infinito.
Bosch parece colocar tudo sobre a Mesa: a existência humana adquire
significado quando se torna consciente, quando se choca com seus limites. E este
choque ocorre na multiplicidade vivida na experiência encarnada. Contudo, o
homem consciente pode reconhecer que não é dono de si mesmo, que é regido por
forças que estão para além dele, como aparece nos círculos à direita. Acima, o Juízo
Final pode ser entendido, psicologicamente, como o encontro da consciência com o
inconsciente, do ego com o Self. Observe-se que na cena do Paraíso, no canto
inferior direito, local onde se gozaria da Glória da eternidade, Bosch coloca uma
figura demoníaca, negra, que tenta puxar uma das almas que está adentrando ao
pórtico. Seria para lembrar que a vida humana nunca podealcançar a perfeição,
quiçá a plenitude?
III. 2 EXTRAÇÃO DA PEDRA DA LOUCURA
O que sente o homem quando se percebe vulnerável às forças externas e
internas a ele e que o instigam a envolver-se no mundo? Talvez o mesmo que
Lubbert Das, personagem central deste quadro onde se lê Meester snijt die Keye ras
/ Myne name is lubbert das (Mestre arranca rapidamente esta pedra, meu nome é
Lubbert Das), circundando a figura. Qual seria o sofrimento deste homem?
158
Fig. 17 Extração da pedra da loucura. Madrid, Museo del Prado.
Extrair uma pedra da cabeça significava, na linguagem popular dos Países
Baixos, desde fins do século XV até o século XVII, estar louco. Isso pode ter
contribuído para se fixar o título da obra, pois Bosch não datou ou intitulou qualquer
um de seus quadros. Ao mesmo tempo, era objeto de mofa acreditar que se poderia
extrair a loucura da cabeça de alguém por meio cirúrgico, considerada uma prática
de curandeiros e charlatães
44
. Somado a isso, na literatura holandesa o nome
Lubbert designava a estupidez e a credulidade humana
45
, o que levou os
comentadores a interpretarem essa pintura como uma sátira anedótica, uma crítica à
insensatez humana. Para Marijnissen, entretanto, trata-se de um nome cristão, pois
havia, em 1445, um vigário na Igreja de São João de ‘s-Hertogenbosh chamado
Lubbertus Sprakelar.
46
Dentre as várias interpretações deste quadro, a do filólogo e
historiador da arte flamenga, Domien Roggen, é a mais picante: um homem, que
44
Cf. Ludwig von BALDASS, Hieronymus Bosch, p. 225-6.
45
Cf. Walter S. GIBSON, Hieronymus Bosch, p. 40.
46
Cf. Roger H. MARIJNISSEN, Hieronymus Bosch: the complete works, p. 443.
159
teria surpreendido sua esposa com um clérigo, é convencido por ela com a ajuda de
seu cúmplice de que está sofrendo de alucinações e que é necessário curar-lhe o
mal.
47
Hipótese duvidosa que, como observou Marijnissen, nenhuma Cluyte van
Lubbert Das, a suposta esposa, figura nos documentos mencionados.
48
Também
não se encontrou provas históricas para a interpretação de Fraenger que, seguindo
sua teoria de que Bosch pertencera à seita dos Irmãos do Espírito Livre, apontou
que se trata de uma cena de circuncisão ritual
49
, ou ainda para a sugestão de Lynda
Harris
50
de que seria uma ilustração de um batismo espiritual cátaro. Para Bax, que
investigou a relação das obras bosquianas com os provérbios e o folclore local, seria
uma tradução visual de uma das representações que tinham lugar sobre os carros
de cortejo de uma Ommegang (procissão), como a que foi celebrada em Amberes,
em 1563, na qual foi encenada uma operação da loucura.
51
Marijnissen chama a
atenção, no entanto, para um documento de 1550, “que tem sido ignorado pelos
historiadores e que poderia nos fornecer alguma luz sobre o significado da obra ou
mesmo a intenção de Bosch”
52
sem, porém, aprofundar-se na discussão. Trata-se
de um pedido de permissão ao Conselho da cidade de Gante para uma cirurgia de
remoção de uma pedra que causava “enorme e intolerável sofrimento”. Mas, estaria
a pintura de Bosch ilustrando uma realidade médica ou refletindo os textos e
provérbios moralizantes de seu tempo?
De fato, na Idade Média, entre as terapêuticas para a cura da loucura
melancólica figurava uma que aparece descrita e ilustrada em vários tratados de
cirurgia medievais a trepanação –, como, por exemplo, nos “diagramas de
cauterização”
53
, como o de Erfurt, do culo XIII (fig. 18); no tratado do cirurgião
Hans Gersdorff, de 1517 (fig. 19); em uma publicação de 1533 do texto de Hildegard
47
Apud Charles DE TOLNAY, Jérôme Bosch, p. 328.
48
Ibid., p. 440.
49
Cf. Wilhelm FRAENGER, Bosch, p. 203-6.
50
Cf. Lynda HARRIS, The secret heresy of Hieronymus Bosch, p. 160.
51
Cf. Dirk BAX, Hieronymus Bosch: his picture-writing deciphered, p. 127.
52
Roger H. MARIJNISSEN, Hieronymus Bosch: the complete works, p. 443. O referido documento foi
publicado por Prudens van Duyse, em 1840, sem qualquer comentário adicional (Belgisch Museum,
4, 1840, p. 380-1).
53
Cf. PANOFSKY; KLIBANSKY; SAXL, Saturno y la melancolía, lâmina 74.
160
von Bingen, citado anteriormente
54
(fig. 20); ou, ainda, no tratado do médico
hispano-árabe Albucassis, que se converteu em texto imprescindível aos cirurgiões
europeus até o início da Idade Moderna
55
. Lembremos, também, que desde a
Antiguidade a melancolia esteve associada aos transtornos das faculdades do
espírito imaginação, entendimento e memória, sediadas no cérebro –, embora
essa sistematização tenha ocorrido com Averröes. Ideia expressa em linguagem
poética, por Alain Chartier que disse, em seu Espérance ou Consolation des Trois
Vertus, de 1428, “[...] que Dama Melancolia oprimia com suas duras mãos, senti que
o órgão situado no meio da cabeça, na região da imaginação (que alguns chamam
‘fantasia’) se abria e entrava em fluxo e movimento [...]”
56
.
Fig.18. O melancólico. Diagrama Fig. 19. Trepanação. Hans Fig. 20. Médicos consultando.
de cauterização. Prescrições para Gersdorff, Feldbuch der Hildegard von Bingen,
a cauterização. Efurt, séc. XIII. Wundartznei, 1517. Causae et Curae, 1533.
Não se pode negar a semelhança entre essas imagens e o quadro de Bosch,
mas, igualmente não se pode afirmar que ele delas tivesse conhecimento. Mas,
supondo que sim, elas apenas lhe teriam servido de inspiração. A suposta cirurgia
do quadro de Bosch difere das ilustrações dos tratados, pois é realizada ao ar livre,
54
Causae et curae. Na edição impressa de 1533, do manuscrito do século XII, o editor Johann Schott
acrescentou uma gravura que mostra quatro médicos consultando um homem que parece estar
sofrendo alguma espécie de doença no crânio. Cf. Laurinda DIXON, Bosch, p. 56-7.
55
Cf. Enrique GONZALEZ DURO, Historia de la locura en España, p. 110-2.
56
Apud PANOFSKY; KLIBANSKY; SAXL, Saturno y la melancolía, p. 224.
161
em uma ampla paisagem, outra inovação do pintor brabantino na arte holandesa.
Isso parece ser uma indicação de que não se trata de um doente em particular, mas
de um representante do gênero humano no palco do mundo, o que pode ser
reforçado pelo semblante quase uniforme das personagens que compõem a cena.
Além disso, a combinação de cores ocre, verde e azul sugere, como apontou
Delevoy
57
, “um sentimento de profundidade” que confere um valor universal à
paisagem. Seria, então, uma crítica à estupidez humana, ou ao saber médico ou,
ainda, ao clero como têm insistido os comentadores? Ou poderíamos pensar que
essa imagem reflete a dor da angústia de viver, a tensão sempre experimentada
pelo homem que carrega a marca da finitude no corpo e a intemporalidade de seu
existir na alma, como tanto sofrera, por exemplo, Ficcino?
O contraste de tons escuro, no primeiro plano, e claro, ao fundo, mostra o
jogo dos opostos. Em termos psicológicos, podemos entender a oposição entre a
consciência e o inconsciente, e não experiência de totalidade sem a vivência dos
opostos. A estrutura mandálica, com as quatro personagens, uma vez mais aponta
para a ideia de totalidade, como uma imagem que reflete a condição do homem que
traz em si, na cabeça, algo que lhe provoca sofrimento: a dor da eterna ferida
incurável como a de Prometeu? A conquista da consciência confere poder e fere o
indivíduo ao convocá-lo, inevitavelmente, a suportar o peso da responsabilidade que
esta conquista implica. Sede das faculdades intelectuais, morada da alma, a cabeça
simboliza o princípio espiritual que governa a vida. Como diz um texto alquímico, “a
inteligência existe naquele órgão [a cabeça], e ela governa a alma e a ajuda na
libertação dela”
58
. Representa, para os alquimistas, por sua forma esférica, o vaso
onde ocorrem as transformações. Se atentarmos para a imagem, a cabeça de todas
as personagens estão destacadas: a do paciente, a do médico que usa um funil
como chapéu, a do monge, acentuada pela calvície e “coroada” por cabelos
brancos, e a da mulher, que equilibra um livro sobre ela. Se, como nos sonhos, em
termos simbólicos, cada personagem representa uma faceta do sonhador, e o
protagonista neste quadro é o homem suplicando para que dele seja extraído a
causa de seu mal, poderíamos pensar que cada um desses elementos pertence a
ele. O funil, cuja ponta está tocando o céu, indicaria que a “cura”, representada pelo
57
Robert L. DELEVOY, Bosch, p. 24.
58
Apud C.G.JUNG, Mysterium Coninctionis, p.270.
162
médico, poderá ocorrer se houver uma ligação entre as esferas material e
espiritual da existência, o que é reforçado pela presença do monge, no centro da
figura. Mas não basta o intelecto, o espírito, representado pela ciência (medicina) e
pela teologia (monge). É necessária a sabedoria do elemento feminino, que aparece
deles separada pela mesa, na qual ela se apóia em linha direta com o paciente.
Símbolo da emoção, da lua, dos ritmos biológicos, da e que gera a vida, da alma
que anima a carne, a mulher também está associada à matéria e,
consequentemente, ao mal
59
. Isto significa que só o confronto com a realidade
concreta, encarnada, é capaz de ativar a dimensão dual da existência e constelar, a
partir daí, a necessidade de integração da alma com o espírito criador.
Do ponto de vista simbólico, confrontar o mal, sofrer suas tentações e viver
profundamente sob a força de seu assédio, move o indivíduo a procurar se libertar
da dor. Tentando dela se esquivar, volta a mergulhar no inumano mundo da
inconsciência instintual, perdendo sua condição humana. Buscando enfrentá-la,
precisa se comprometer com a recém adquirida consciência e com o fardo que isso
significa. É que enfatizamos a melancolia como palco de experimentação desta
dualidade do ser: o mais inconsciente de sua condição incompleta e finita,
ansiando por completude e eternidade, refugia-se na busca do elo perdido e no
retorno ao seu fundamento originário. De forma magnífica, na obra de Bosch, da
pedra brota a flor, numa referência a efemeridade da vida e à grandeza
transformadora do humano em conquistar a beleza naquilo que parecia aridez e
abandono, pois, embora a flor caia no campo, como disse o profeta Isaías (Is 40, 7),
é ela que engendra o fruto. A consciência brota como a mais plena possibilidade de
participação do humano no mistério da criação da vida extraindo da dor a flor. A flor
é significado que germina e integra dor e graça, numa alusão ao retorno ao centro,
imagem tanto da pedra filosofal, dos alquimistas, quanto da flor de ouro, da filosofia
59
De acordo com Gerard Dorneus, médico e alquimista do séc. XV, no segundo dia da criação,
quando separou as águas superiores das águas inferiores, Deus criou o Binarius, a dualidade, e,
diferente de todos os outros dias, não disse “que era bom”. E como a dualidade é feminina, o diabo
tentou Eva, pois não tinha certeza de alcançar algo com Adão, que fora assinalado com a marca do
um, ímpar, masculino. Dessa forma, o mal ficou associado ao segundo dia, dies lunae, ao diabo, ao
feminino e à matéria. Cf. C.G.JUNG, Psicologia e religião, p. 65; ______ Interpretação do Dogma da
Trindade, p. 2, p. 61.
163
chinesa, símbolos de totalidade e de reunião do espírito e da matéria, a união dos
opostos
60
.
III. 3 O CARRO DE FENO
“Toda carne é feno, e toda a sua glória é como a flor do campo” (Is 40, 6). De
acordo com Frei José de Siguenza (1605) são estas palavras de Isaías que
fundamentam este tríptico que, na sua opinião, refere-se à corruptibilidade da carne,
à futilidade e à ambição do homem. Desde então, uma concordância entre os
scholars quanto à natureza moralista da obra que, para muitos, é uma sátira da
estupidez, do egoísmo e da cupidez humana, uma alegoria do caráter passageiro
das coisas mundanas e da concupiscência dos bens terrestres efêmeros,
representados pelo feno.
61
De fato, o termo hooi (feno), designava, na língua
holandesa antiga, a efemeridade das coisas, o que levou De Tolnay a supor que o
quadro seria uma ilustração do provérbio flamengo: De Werelt is een hooiberg; elk
plukl ervan wat hij krijgen (O mundo é como uma montanha de feno; cada um toma
dela o que pode colher).
62
Todavia, pouca atenção tem sido dada ao que, sabe-se
hoje, foi o primeiro comentário à obra de Bosch: a comparação feita pelo historiador
espanhol Ambrosio de Morales (1513-1591) entre o Carro de feno e a Tabla de
Cebes, apenas mencionada por alguns comentadores.
63
Na terceira parte de seu
60
Foi graças ao texto chinês Segredo da flor de ouro, enviado pelo filólogo Richard Wilhem, em 1928,
que Jung entrou em contato com a alquimia chinesa. Daí em diante, estudou profundamente a
Alquimia, em suas vertentes oriental e ocidental, pois percebeu a conexão histórica da psicologia
do inconsciente. Comparando os símbolos presentes no processo de metamorfose alquimista com
aqueles que emergem durante o processo de desenvolvimento psicológico, observados tanto no nível
individual, nos sonhos e fantasias, quanto no coletivo, nos diferentes sistemas religiosos e na
transformação de seus símbolos, Jung pode compreender que o inconsciente é um processo que
gera e sofre transformações. Tanto as declarações sobre a pedra filosofal quanto aquelas referentes
à flor de ouro, quando consideradas do ponto de vista psicológico, descrevem o arquétipo da
totalidade, o Self. Por isso encontramos alusão a esse tema em toda obra de Jung, mas
principalmente em: O segredo da flor de ouro, Psicologia e alquimia e Mysterium Coniunctionis.
61
Cf. Charles DE TOLNAY, Jérôme Bosch, p. 337; Mia CINOTTI, La obra pictórica completa de El
Bosco, p. 95; Roger H. MARIJNISSEN, Hieronymus Bosch: the complete works, p. 52-8; Walter
GIBSON, Hieronymus Bosch, p. 70-2; Laurinda DIXON, Bosch, p. 107- 11.
62
Apud Charles DE TOLNAY, Jérôme Bosch, p. 23.
63
O texto La Tabla de Cebes foi citado pela primeira vez por Juan de Contreras, Marques de Lozoya,
(Algo más sobre la fortuna del Bosco em Espana, Boletín de la Real Academia de la Historia,
CXXXIII, out-dec, 1948, p. 285-94), que disse tratar-se de um autor anônimo, publicado em 1701.
Mas foi graças às pesquisas desenvolvidas por Abdón M. SALAZAR, que sabemos tratar-se de
Ambrosio de Morales que acrescentou ao seu Theatro Moral de la vida humana “la Tabla de Cebes
por ser una de las mejores cosas de la Antiguedad, y por ser una verdadera Pintura de la Vida
Humana”. Ambrosio de MORALES, Theatro Moral de la Vida Humana, en cien emblemas; con el
164
Theatro moral de la vida humana, escrito, provavelmente, entre os anos 1524 e
1531, o autor afirma que o tptico é “quase imitação” da Tabla de Cebes, um quadro
traçado pelo filósofo tebano, discípulo de Sócrates, chamado Cebes (c.440 a.C), que
retrata a vida humana do início ao fim, que fora colocado, como afirma seu autor, no
templo de Saturno em Atenas. Acredita, Peñalver Alhambra, que este fato apoiaria
sua interpretação de que o tríptico de Bosch seja uma versão pessoal do carro de
Saturno, pois “o verdadeiro protagonista da vida dos homens na terra de pecado não
é outro, portanto, que o tempo, cuja presença está acentuada pela vacuidade dos
bens temporais simbolizados pelo feno”
64
.
Contudo, como vimos anteriormente, Saturno, o planeta da melancolia, o mais
contraditório e ambivalente dos planetas, o “segundo sol”, está associado, também,
à contemplação mais elevada, à vida espiritual, à sabedoria que se alcança com a
maturidade, depois de uma série de vivências que engendram desprendimento e
desapego, libertando o homem de sua vida instintiva e de suas paixões. E a pintura
de Cebes (fig. 21) expressa esse caminho, “porque a declaração desta Tabla é
muito semelhante à pergunta que a Esfinge aos homens propunha: quem a
entendesse ganhava a vida, e quem não soubesse dela desembaraçar-se, ficava
perdido”
65
. Ao longo de três círculos, que formam uma montanha em espiral, o ser
humano se depara com inúmeras situações que tanto podem salvá-lo como destruí-
lo, dependendo da atitude tomada. Uma multidão de pessoas entra na vida no amplo
círculo da base, no qual os homens são movidos apenas por seus instintos e
paixões; no segundo, são as falsas opiniões que os conduzem; o percurso vai se
estreitando cada vez mais chegando ao terceiro círculo, no qual reina a “verdade
que se apóia em uma pedra quadrada”
66
que conduz quem a ela chega até “o lugar
mais alto onde parece que ninguém habita, antes representa uma grande solidão”
67
.
Porém, são poucos os que conseguem alcançá-lo, porque o caminho é muito
apertado e “parece muito difícil e áspera a subida”. Mas aquele que o atinge,
“destruiu terríveis monstros que antes o tragavam, o afligiam e o tinham posto em
Enchiridion de Epicteto, y la Tabla de Cebes, philosofo platônico. Cf. também Abdón M. SALAZAR, El
Bosco y Ambrosio de Morales, Archivo Español de Arte, tomo XXVIII, n. 110, p. 117-138.
64
Luis PEÑALVER ALHAMBRA, Los monstruos de El Bosco, p. 115.
65
Ambrosio de MORALES, Theatro Moral de la Vida Humana, p. 239.
66
Ibid., p. 243.
67
Ibid., p. 242.
165
penosa servidão. Tudo isso venceu e [...] se fez Senhor de si mesmo”
68
. Em termos
simbólicos, a Tabla de Cebes destaca as agruras e as dificuldades ao longo da
trajetória humana, apontando seus enlaces e desafios bem como as respostas ou
atitudes que o indivíduo é capaz de acessar ao longo de seu desenvolvimento.
Desenvolvimento este marcado desde seu início pela ânsia e pela angústia da
tomada de consciência e pelos inúmeros esforços solitários para a atribuição de
significado às experiências vividas. Ânimo, coragem e firmeza de propósito tornam-
se condições necessárias nesta senda para que se atinja a bem-aventurança. É
importante ressaltar, no entanto, que o alvo a ser atingido não é a fugacidade de
alguns ganhos, materiais ou não, e tão pouco um contentamento ilusório, tolo e
passageiro. Trata-se, com efeito, da conquista de um estado de aceitação de sua
própria condição e da confiança de se estar a salvo do abismo do sem sentido. A
subida íngreme, o medo da queda e o patamar da confiança definem momentos de
um processo solitário, árduo, inadiável que culmina na aguda percepção da tensão
que separa o indivíduo criado de sua fonte de criação. Eis a presença sempre
marcante da melancolia, mote de dor ao mesmo tempo que possibilidade de
superação da falta de significado da existência.
Provavelmente, Bosch não conheceu a obra de Cebes, pois a primeira
representação estampada da Tabla é uma xilogravura usada como frontispício na
edição da tradução latina de Aesticampianus, publicada em 1507.
69
Isto, no entanto,
serve para reforçar nossa hipótese sobre a natureza simbólica da obra do pintor
brabantino, acreditando, assim, que desfiguraríamos o sentido mais profundo do
tríptico se o considerássemos como uma simples alegoria moral, uma pregação para
que os homens arrependam-se dos seus pecados ou uma figuração do tempo que a
tudo corrói. Sem dúvida, esses elementos estão presentes, mas, para além deles, as
imagens bosquianas, como aquelas de Cebes, parecem espelhar as condições
próprias da existência humana, existência marcada, desde seu início, pelo
antagonismo.
68
Ambrosio de MORALES, Theatro Moral de la Vida Humana, p. 245.
69
Cf. Sagrario López POZA, La Tabla de Cebes y los Sueños de Quevedo, In: Lía SCHWARTZ (ed.),
Las Sátiras de Quevedo y su recepción. Antologia crítica. Centro Virtual Cervantes, 2004.
http://cvc.cervantes.es/obref/satiras_quevedo.
166
Fig. 21 Tabla de Cebes, Matthäus Merian, 1638
Nos painéis internos do tríptico, Bosch mostra a entrada do homem na vida e
as vicissitudes de sua jornada. No painel esquerdo, observa-se a criação de Eva, a
tentação pela serpente e a expulsão do Paraíso, como está descrito no Gênesis. No
entanto, o pintor brabantino inova não na concepção do formato tríptico,
apresentando as cenas em continuidade o que até então consistia em imagens
separadas, com dois painéis flanqueando o painel central que, normalmente,
continha uma cena do Novo Testamento
70
–, mas também introduzindo, diferente do
relato bíblico, a queda dos anjos rebeldes, representada por uma legião de diabos-
70
Cf. Carl LINFERT, Bosh, p. 58. Cf., também, nota 36, p. 40.
167
insetos que se precipita das nuvens, acima das quais está Deus sentado em seu
trono. Por que essa alusão a Lúcifer? Bosch parece mostrar, intuitivamente, que
mesmo antes que o primeiro par humano comesse o fruto proibido, existia um
principio de contraposição a Deus no Paraíso. Em termos psicológicos, é este
princípio que possibilita a consciência, pois sem uma vontade própria, como disse
Jung, “ou, eventualmente, uma vontade contrária à do seu Criador e qualidades
diversas das dele, como as de Lúcifer”, um ser não poderia ter uma existência
autônoma, sendo, no ximo, uma máquina que funcionaria quando acionada
por seu Criador, ou seja, um ser inconsciente. Mas, de acordo com Jung, “porque
assim o quis, Deus dotou o homem, segundo Gênesis 3, da capacidade de querer o
inverso do que Ele manda”
71
, o que está expresso no drama da tentação e da
queda: diz a serpente que quando “vós comerdes desse fruto, se abrirão vossos
olhos; e vós sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal” (Gn 3, 5). O
conhecimento do bem e do mal, dos opostos, característica essencial da
consciência, é induzido pela serpente que simboliza, assim, a necessidade de
autorealização do homem. O mito representa o nascimento do ego e, como efeito
desse processo, a separação de suas origens. O pecado original, a hybris cometida
por Adão e Eva tomados pelo desejo de serem como Deus, que numa visão
teológica é fonte de todo mal na natureza humana, ao mesmo tempo, numa
perspectiva simbólica, é o alicerce da construção da alteridade, pedra angular do
relacionamento autônomo com o outro. Outro enquanto possibilidade de
diferenciação (criação, discriminação e ampliação da consciência) e como
anunciação ou, em outras palavras, como revelação e desdobramento do Uno.
A consciência nasce, então, com a queda, trazendo consigo a dor, o
sofrimento e a morte, uma espécie de ferida incurável, o espinho cravado
permanentemente na carne. Contudo, é significativa a cena da expulsão do casal
transgressor do primeiro plano. Na espada que empunha o anjo dois peixes,
como que pousados sobre ela, o que indica que estão vivos apesar de fora de seu
ambiente natural. O peixe tanto no Egito antigo, como na Fenícia e, principalmente,
na Mesopotâmia (Oannes, o deus-peixe) representa o Revelador, e na hermenêutica
patrística, pode se referir ao demônio ou a Cristo.
72
Ou seja, considerando a
71
C.G.JUNG, Interpretação psicológica do Dogma da Trindade, p. 85.
72
Idem, Aion, p. 67-8.
168
ambigüidade característica do símbolo, poderíamos pensar que na própria expulsão
está embutida a ideia de salvação. Interessante notar, ainda, que da parede de
pedra da caverna, logo atrás do anjo, brota um estranho fruto do qual se alimenta
um ssaro (fruto que aparece novamente em São Jenimo em oração, em São
João Batista em meditação e no Jardim das delícias); germinação esta análoga
àquela que vimos na Extração da pedra. Seria uma alusão à fecundidade, à
posteridade numerosa, tal qual aparece no painel central? Ou talvez fruto de uma
mandrágora, planta que contém em si os elementos masculino e feminino, que
possui, ao mesmo tempo, qualidades afrodisíacas
73
e propriedades curativas,
principalmente dos males espirituais, usada, desde a Antiguidade, no tratamento da
melancolia?
Fig. 22 O carro de feno. Museo del Prado, Madrid. Tríptico aberto.
No painel central, a existência no tempo e no espaço segue seus desígnios. O
homem, agora no mundo, busca preencher o vazio resultante da cisão original,
entregando-se a toda sorte de experiências, sem delas extrair um sentido que as
73
Na Idade Média, esta planta herbácea, por suas propriedades narcóticas e alucinógenas, foi
associada à bruxaria e à magia do amor e encabeçava a lista das plantas zoomórficas e falantes.
Dizia-se que quando dela se colhe, ela se queixa, chora e grita”. Cf. Jurgis BALTRUSÄITTIS, La
Edad Media fantástica, p. 132.
169
justifique. Um grande número de pessoas, das mais variadas estirpes pobres,
vagabundos, dignatários, prelado, homens e mulheres –, rodeiam um veículo
carregado de feno que está sendo puxado por seres monstruosos. O carro, apoiado
sobre rodas as mesmas que simbolicamente movem os ciclos da vida –, parece
inclemente na direção a seguir; ora puxado, ora seguido e até mesmo arrastando
aqueles que se interpõem à sua rota, distribui enganos, equívocos e anuncia
igualmente o inevitável enfrentamento da paradoxal condição humana que mescla a
irrealidade da natureza e o universo fantástico da realidade.
No topo do carro de feno temos celebrado um encontro coroado por
presenças sutis. Amantes parecendo alheios a toda manifestação e agitação que
envolve o carro, ladeados por faces angelicais e diabólicas, desfrutam de prazeres
ternos, tendo a árvore verde da vida como tela na qual tudo se projeta e os olhos
como aqueles que tudo vêem. Olhos da coruja, que vêem clareza na escuridão, e o
olhar de Deus que, a exemplo da Mesa, contempla e preside tudo que se move,
agora pairando nas nuvens, envolto pelo círculo solar. Dentro de uma compreensão
psicológica, isso significa que a fonte originária da consciência (Self) procura seu
constante espelhamento e reconhecimento, nutrindo, amparando e libertando o ego
para o ato criativo e original. Daí que o maior atributo do homem é a consciência,
mas também seu maior pecado. Pretendendo-se absoluta, porque se sabe falível e
carente, a consciência que deveria iluminar acaba por cegar e lançar o homem
numa violenta batalha na qual ele não é o algoz, mas também a vítima.
Acreditando-se “senhor em sua própria casa”, não percebe que está servindo a
“terríveis monstros”, como contemplamos de forma inequívoca no painel central.
Monstros que arrastam a todos, independente de sua posição ou origem, para o
painel direito onde um fogo (como Bosch já havia indicado na Mesa), não iluminador,
mas sim abrasador consome os condenados por suas próprias paixões. Isso nos
remete a Orígenes que, em seu tratado On First Principles, ao comentar o
significado do “temido fogo eterno”, equipara o fogo às paixões do homem,
lembrando as palavras de Isaías (Is 50,11): “Andai no lume do vosso fogo, e por
entre as labaredas que ateastes”. Para o teólogo alexandrino,
Estas palavras parecem indicar que cada pecador ateia ele mesmo seu
próprio fogo, não sendo atirado a um fogo que alguém ateou previamente ou que
existia antes dele. Desse fogo, o alimento e o material são nossos pecados,
chamados pelo apóstolo Paulo madeira, feno e palha [...] na própria essência da
170
alma, aqueles mesmos desejos daninhos que nos levam ao pecado produzem certos
tormentos. Considera o efeito das faltas da paixão que com freqüência acometem os
homens, como ocorre ao ser a alma consumida pelas chamas do amor, atormentada
pelo fogo do ciúme ou da inveja, tomada pela raiva furiosa ou consumida pela
intensa melancolia, lembrando como alguns homens, por considerarem o excesso
desses males um peso demasiado para ser suportado, julgaram mais tolerável
submeter-se à morte do que arcar com essas torturas.
74
Observamos, aqui, uma notável interpretação psicológica do fogo do inferno.
Ela demonstra que se o homem não possuir um conhecimento mais apurado a
respeito de sua própria natureza não poderá avançar no caminho da vida. Como
disse Cebes, “a ignorância é a Esfinge para o homem
75
. Ignorância que,
psicologicamente, significa inconsciência. Entretanto, ter consciência não é
simplesmente agir de acordo com um código moral, de forma autômata; antes
significa lançar luz sobre dois modos possíveis de comportamento, o que gera,
inevitavelmente, conflito, pois implica julgamento e escolha. “A consciência significa
uma exigência que se impõe ao sujeito em geral, ou, ao menos, lhe traz grandes
dificuldades.”
76
A consciência é, pois, anterior ao código moral, exigindo que o
indivíduo obedeça à sua voz interior; é uma forma particular de conhecimento que
comporta, de um lado, um ato de vontade ou um impulso para a ão, que não tem
como base um motivo consciente e, por outro, um julgamento para o qual o intelecto
não é suficiente, isto é, não pode ser qualificado como moral, conforme aos
costumes (mores). Como assinalou Jung, é necessária a força criadora do etos, que
representa a pessoa inteira [...] um entendimento e cooperação entre os fatores
conscientes e inconscientes, expresso na linguagem religiosa como a razão e a
graça
77
.
Essa experiência, porém, traz um sentimento de derrota e fracasso, de
abandono e solidão, tal como expressa o Vagabundodo reverso do tríptico. Bosch
mostra, aqui, o peregrino da vida. Peregrinação que, como nos recorda Jung, é a
imagem da nostalgia, “do anseio nunca aplacado que em parte alguma encontra seu
objeto”
78
; imagem tão vivamente descrita por René de Chateaubriand, que apenas
74
Apud Edward F. EDINGER, Anatomia da psique, p. 48.
75
Ambrosio de MORALES, Theatro Moral de la Vida Humana, p. 239.
76
C.G.JUNG, Civilização em transição, p. 173.
77
Ibid., p. 180. (grifos do autor)
78
Idem, Símbolos da transformação, p.190.
171
sabia que buscava um “bem desconhecido”, como vimos anteriormente
79
. Um
homem, que não é jovem, muito magro e com suas vestes puídas, imagem que
guarda muitas semelhanças com o Filho Pródigo de Rotterdan, bem como com a
Tabla de Cebes, percorre, fatigosamente, uma via que leva a uma ponte estreita e
frágil, indicando os perigos e as incertezas inerentes ao caminho da vida. De
Tolnay
80
recorda, a esse propósito, o Salmo 25,4 – “Mostrai-me, Senhor, os
Fig. 23 O carro de feno. Madrid, Museo del Prado.
Tríptico fechado
vossos caminhos, e ensinai-me as vossas veredas” –, ao que poderíamos
acrescentar os versículos 16, 17 e 18: “que me vejo só e desvalido. Aliviai as
angústias de meu coração, e livrai-me de minhas aflições. Vede a minha miséria e
meu sofrimento”. Identificado como filho de Saturno por Pigler
81
, esse representante
79
Cf. p. 125.
80
Charles DE TOLNAY, Jérôme Bosch, p. 337.
81
Cf. p. 64.
172
do homem mortal (Elckerlijc
82
), melancólico, assinala a tensão permanente entre a
inflação e a violência por ela gerada, representadas na cena do roubo, à esquerda, e
a serenidade na celebração sugerida pela dança que tem lugar em uma paisagem
harmônica, à direita. Testemunha da trágica condição humana, ele não vaga errante,
mas avança em direção a uma ponte: para onde ela o conduzirá?
Significativamente, Bosch não nos mostrou a outra margem. Apenas sugeriu a
marca da humanidade na sua estrutura mais básica, essencial e permanente,
simbolizada pelos ossos ao lado do caminho, que apontam tanto para a mortalidade
quanto para a imortalidade.
III.4 O JARDIM DAS DELÍCIAS
Se diante do Carro de feno, “esta labiríntica composição do humano em
multidão”, como o descreveu José Ángel Valente
83
, o visitante da sala 56a do Museo
del Prado é tomado de um misto de maravilhamento e assombro, ante esta “pintura
da variedade do mundo cifrada em diversos disparates [...] que chamam de El
Madroño”, como se no inventário das obras que Felipe II enviou ao Monastério de
San Lorenzo de El Escorial, em 1593
84
, pode ser surpreendido por uma vertigem, tal
a complexidade deste, sem dúvida, mais enigmático quadro de Bosch. Sem
paralelos que forneçam qualquer orientação quanto às suas verdadeiras intenções,
esta obra extraordinária é a que mais tem recebido a atenção dos scholars, porém
com pouca convergência de opiniões. Apresentá-las, pois, constituiria, por si só, um
outro trabalho. É suficiente assinalarmos que tanto a mística de seu tempo, como a
heresia adamita, a astrologia, a alquimia, o folclore, até a psicanálise, foram
referências tomadas na tentativa de explicar esse tríptico que nem sequer sabemos
seu título original. Se o conhecêssemos, talvez, como disse o historiador espanhol
Joaquín Yarza Luaces, fosse possível “que muitas dúvidas sobre seu significado se
82
Cf. Roger H. MARIJNISSEN, Hieronymus Bosch. The complete works, p. 57.
83
José Angel VALENTE, Variaciones sobre el pájaro y la red; precedido de la piedra y el centro, p.
29.
84
Os Inventarios de los bienes de Felipe II estão agrupados nos volumes dos Inventarios Reales que
podem ser consultados na Biblioteca do Museo del Prado, Madrid. Cf., também, Julián ZARCO
CUEVAS, El inventario de las alhajas, relicarios, estatuas, pinturas y otros objetos de valor y
curiosidad donados por el rey Felipe II al Monasterio de El Escorial. Años 1571 a 1598, Boletín de la
Real Academia de la Historia, v. 96, n. 846, p. 156 (entrega n. 6).
173
dissipassem”
85
. Tão pouco temos informações sobre seu destino primeiro. Teria sido
um retábulo da Catedral de São João de ‘s-Hertogenbosch, a tabula creationis
mundi retro sedem episcopalem extraretirada do altar maior por ordem episcopal,
em 1615?
86
Ou teria servido ao afã colecionista tão característico da Corte de
Nassau?
87
Contudo, a interpretação mais difundida é a moralista-didática, que tem suas
raízes nos comentários de Frei José de Siguenza (1605), para quem o quadro
representava “a gloria vã e o breve gosto do morango ou do medronho e seu aroma,
que mal se sente já passou”
88
. Ainda que com algumas discrepâncias, a maior parte
da crítica é concorde em alguns aspectos: o tríptico fechado mostra o terceiro dia da
criação, de acordo com o Gênesis (1, 9-13); no painel esquerdo interno, a criação do
primeiro casal humano e, especialmente, o momento em que Deus apresenta a
primeira mulher ao primeiro homem e os abençoa; o painel central representa um
jardim de delícias, onde jovens desnudos, de ambos os sexos e da raça branca e
negra, vivem entregues ao gozo dos prazeres dos sentidos, figurados nos dons da
natureza e nos jogos de amor; e no painel direito interno está pintado o inferno,
embora de maneira bastante original. Aspectos estes bastante óbvios num olhar
mais superficial. Mas, tomando a perspectiva simbólica, nosso interesse, alguns
pontos chamam-nos a atenção: por que Bosch escolheu o terceiro dia da criação?
Por que não representou a tentação e a expulsão no painel esquerdo do tríptico,
como o fizera no Carro de feno e no Juízo final (de Viena)? Como, então, entender o
painel central? Seria o “paraíso das delícias”, descrito no Gênesis 2 (10-15), ou o
mundo das paixões, s-Queda, no qual o homem se entrega aos prazeres da
carne? E o inferno, como considerá-lo como local de condenação pelo vício da
luxúria, se ali são “castigados” outros vícios como o jogo, a gula, a avareza, a
85
Joaquín YARZA LUACES, El Jardín de las Delícias de El Bosco, p. 15.
86
Cf. p. 41.
87
Cf. Hans BELTING, Hieronymus Bosch. Garden of earthly delights, p. 71-84. O autor apresenta o
percurso do tríptico desde o Palácio de Nassau (sabe-se, hoje, que Henrique III de Nassau herdou o
tríptico de seu tio Engelbert van Nassau), onde foi visto por Antonio de Beatis, que o descreveu em
seu diário de viagem, em 1517, (cf. p. 53 ) até chegar a D. Fernando de Toledo, prior da Ordem de
São João de Jerusalém, passando, em seguida, para a Corte Espanhola nas mãos de Felipe II. Cf.,
também, Fernado MARÍAS, El bosco y las tablas de meditación. In: FUNDACIÓN AMIGOS DEL
MUSEO DEL PRADO, El Bosco y la tradición pictórica de lo fantástico, p. 249.
88
José de SIGÜENZA, Tercera parte de la Historia de la Orden de San Jerónimo, p. 214.
174
embriaguez, a música – que, inclusive, foi tomada para nomear o painel como
Inferno musical –, vícios dos quais parecem estar livres os habitantes do jardim?
Observemos, em primeiro lugar, o tríptico fechado. Na parte superior se :
Ipse dixit et facta su[n]t e Ipse ma[n]davit et creata su[n]t, o que corresponde ao
Salmo 32, 9 “Ele disse e as coisas foram feitas. Ele o ordenou e elas foram
criadas”. Deus, no canto superior esquerdo, com um livro na mão esquerda e com o
Fig. 24 O jardim das delícias. Madrid, Museo del Prado.
Tríptico fechado.
indicador da direita em riste, aponta para sua criação: o mundo com a terra abaixo,
da qual brotam plantas e árvores, e o céu acima, como uma esfera de cristal: é o
terceiro dia da criação, quando aparece o elemento árido, isto é, a terra. Diferente do
ar, volátil, e da água, quida, que se moldam ao recipiente que os contém, a terra é
o elemento que possibilita a concretização em uma forma particular, sólida; é o
elemento do qual se originará o homem, ou seja, o elemento capaz de engendrar a
175
existência. Interessante lembrar que é o elemento de Saturno que, na Alquimia,
governa a coagulatio, a operação da materialização. Segundo Jacob Böhme (1575-
1624)
89
, “como o Sol é o coração da vida, e matriz de todos os espíritos do corpo
desse mundo, assim também Saturno é iniciador de toda a corporeidade,
compreensibilidade ou palpabilidade”
90
. Recordemos que Saturno é o planeta da
melancolia, fundamento da experiência humana encarnada e separada da unidade
original. Psicologicamente, podemos dizer que aqui já estão os alicerces, a condição
indispensável para a criação e desenvolvimento da consciência. Forma,
permanência, limite e estabilidade são algumas das qualidades estruturantes do
elemento terra inerentes à construção de um ser enraizado no tempo e no espaço.
A desproporção entre o tamanho diminuto da figura divina e o grande globo
que ocupa todo o espaço da tela assinala não o afastamento de Deus ou sua
permanência fora do mundo, mas antes a imagem como um espelho da divindade,
com símbolos que evidenciam a unificação. Nela contemplamos o Universo em sua
totalidade com claros vislumbres do jogo dos opostos, expressos em luzes e
sombras, nos planos celeste e ctônico, superior e inferior, destro e sinistro, simbólico
e diabólico. O formato circular dividido horizontalmente e verticalmente, inscrito
numa estrutura quadrangular, uma vez mais aponta a quadratura do círculo, tema do
qual também deriva o símbolo do cristal, exemplo da união dos contrários. Sua
transparência indica um plano intermediário entre o visível e o invisível, entre o
material e o espiritual. Ainda que exista como matéria, é como se não existisse, pois
é possível se ver através dela. Jung nos lembra que a chamada “estrutura do cristal”
é única e a mesma precondição de milhões de cristais de mesma composição
química: embora não visível na solução-mãe, ela representa seu sistema axial ao
qual se agregam os íons e depois as moléculas. É por isso, diz ele, que “nenhum
cristal individual pode falar de sua estrutura, pois ela é única e a mesma precondição
de todos (e nenhum deles a realiza perfeitamente!)”
91
. É assim que se configuram os
conteúdos do inconsciente coletivo: imperceptíveis, não representáveis, em toda
89
A obra gigantesca de Jacob Böhme, que utiliza muito a linguagem alquímica, consiste em uma das
referências tomadas por Jung em seus estudos sobre a relação da psicologia com a Alquimia,
sobretudo por estar sob o signo da revelação do antagonismo incompreensível de Deus. Para o
místico e filósofo alemão, o bem e o mal são necessidades existenciais, pois tanto o “amor de Deus”
quanto a “ira de Deus” pertencem inseparavelmente um ao outro, em termos psicológicos, aspectos
opostos da totalidade. Cf., principalmente, C.G.JUNG, Mysterium Coniunctionis, v. 2, p. 96.
90
Apud Edward EDINGER, Anatomia da psique, p. 109.
91
C.G.JUNG, Cartas 1946-1955, p. 13.
176
parte e “eternamente” os mesmos, são condições prévias da constituição psíquica
em geral. Simbolicamente, então, Bosch retrata nesta imagem o princípio de tudo, o
germe do vir a ser. Em termos psicológicos, ela representa a unidade original
indiferenciada da qual a consciência aflora em sua especificidade e se torna capaz
de reconhecer, na totalidade, seus aspectos múltiplos.
Multiplicidade que se descortina no tríptico aberto com uma diversidade de
símbolos que exprimem a origem e a natureza da vida humana, sua dinâmica e
desdobramentos. No painel esquerdo, o paraíso terreno, observa-se a criação
completa: plantas e árvores florescem, animais de diversas espécies povoam
terra, água e ar, e os astros já foram criados, o que está indicado pelos tons claros e
brilhantes. Bosch, porém, introduz imagens que diferem das tradicionais. As
enormes formações rochosas pontiagudas, prefiguradas no painel externo, são,
paradoxalmente, de um azul brilhante, como o céu e as águas. A mais imaterial das
cores, o azul indica a altura e a profundidade; traz em si mesmo as contradições e
as alternâncias, como o dia e a noite, que dão ritmo à vida humana; é a cor da pedra
dos alquimistas, a quinta essência.
92
A fonte da vida, no centro do painel, está
apoiada numa estrutura esférica, de formato estranho, semelhante a uma carapaça
de crustáceo, muitas vezes associada ao signo de Câncer e, portanto, a um
significado solar e cristológico.
93
No centro oco da fonte se encontra uma coruja,
símbolo de maus presságios e também de sabedoria. Vale ressaltar que uma das
alegorias de Cristo na hermenêutica patrística é a coruja.
94
Isso parece representar o
anúncio da vida alicerçada na unidade que contém em si a polaridade: de um lado, a
ignorância, entendida como inconsciência, e, de outro, o conhecimento que advém
da aquisição da consciência. Ainda na fonte, dispostos em sua verticalidade,
encontram-se as vertentes dos quatro rios do Paraíso apontando, novamente, a
revelação da totalidade através da quaternidade. Contudo, aparecem dois braços
de rio, como que para reforçar a ideia de dualidade e oposição na experiência vivida.
Do lado esquerdo, a vida flui em seu curso ordinário, com animais figurados em sua
forma natural. à direita, a vida se manifesta de forma extraordinária e fantástica,
num desfile de animais monstruosos e inusitados que saem da água e escalam uma
92
Cf. C.G.JUNG, Psicologia e alquimia, p. 222 et seq.; Psicologia e religião, p. 104-5.
93
Cf. Joaquín YARZA LUACES, Reflexiones en torno al significado de El Jardin de las delícias, p. 55.
94
Cf. C.G.JUNG, Aion, p. 67.
177
rocha constituindo uma imagem de uma cabeça, identificada, muitas vezes, como
sendo a do diabo. Interessante notar, que nesta rocha está fincada uma árvore, que
podemos reconhecer como a da ciência do bem e do mal, pois nela se enrosca uma
serpente. Assim, diferente da descrição tradicional, não é a árvore da vida que está
junto à fonte, mas aquela que produz o fruto proibido, a que traz o princípio da
separação. Daí depreende-se que, simbolicamente, a existência humana se revela
na oposição e que só adquire significado e finalidade se enraizada na consciência.
Ao mesmo tempo, é da fonte que flui a força vital em incessante renovação. Como
verdadeiro regente, a fonte orquestra toda a cena, alinhando-se com Cristo, no
primeiro plano, de modo a formar um eixo ordenador que, em termos psicológicos,
podemos traduzir como o eixo ego-Self, o eixo que sustenta e alimenta o
desenvolvimento do ego, o centro da consciência.
Fig. 25 O jardim das delícias. Madrid, Museo del Prado. Tríptico aberto.
No primeiro plano, não é Deus quem abençoa o primeiro casal, mas Cristo, o
que prefigura as ideias de encarnação e de redenção. Atrás deles, a árvore da
vida, representada por uma planta exótica, possivelmente um dragoeiro (Dracaena
draco). Nativa das Canárias, esta árvore, que atinge enorme tamanho e vive por
muitos culos, ficou conhecida por seus poderes curativos: exsuda uma resina
vermelha denominada “sangue de sapo”, ou “sangue de dragão”, que estanca o
178
fluxo de sangue e promove grande resistência.
95
Afora as várias interpretações que
poderiam ser elencadas, lembremos apenas que a árvore simboliza não a fonte
da vida, mas também o processo de transformação, o mistério de vida, morte e
renascimento, am de incluir os três níveis: o infraterrestre, com suas raízes; o
terrestre, com seu tronco; e o celeste com seus galhos que atingem as alturas. É
importante salientar que essa verticalidade faz da árvore um símbolo de ligação
entre o terrestre e o celeste. Bosch assinala essa verticalidade não no eixo entre
a fonte e a figura de Cristo, mas também ao colocar Adão entre a árvore e Cristo,
acentuando a analogia já existente na tradição cristã: a árvore da Primeira Aliança e,
também, da cruz, da Nova Aliança. Ou seja, a árvore que os frutos da vida, e
assegura a imortalidade, também fornece a madeira para a crucifixão. Além deste
significado geral, a árvore aqui é um dragoeiro que, com seu simbolismo
ambivalente, traz em si aspectos demoníacos e divinos, maléficos e benéficos; seu
“veneno” é remédio que cura. A obscuridade da cena é acentuada pelo lago circular
de água escura, à frente, onde se pode ver alguns animais de aparência fantástica,
que devoram uns aos outros, como sinais que ameaçam a aparente estabilidade.
Em termos psicológicos, essa imagem contém todo o caráter antitético do arquétipo
do espírito revelado na ambiguidade do símbolo da árvore e do sangue o fluxo de
energia curativa proveniente do Self – e na ideia de que o desenvolvimento espiritual
e a aquisição de significados ao longo da vida só poderão ocorrer com raízes
concretas. Como disse Jung: “Deus quer realizar-se na chama cada vez mais alta da
consciência humana. E quando esta não tem raiz na terra?”
96
Ou seja, sem o
homem a quem se revelar, Deus permaneceria Uno; sem uma consciência o se
pode experimentar o fundamento originário, o Self.
O processo psíquico humano é de natureza estruturante e tem como parte de
sua constituição essencial a busca de um relacionamento significativo com os
mistérios da vida. Não podemos conhecer os mistérios, mas, por nossa natureza,
somos compelidos a nos colocar numa relação significativa com eles. Dessa forma,
se entendermos a alma como a encarnação e a representação desses mistérios,
está implícita aqui a necessidade humana de vinculação e enredamento na trama
simbólica, expressão de motivos recorrentes e padrões primais que estruturam o
95
Cf. Robert A. KOCH, Martin Schongauer’s Dragon Tree, Print Review 5, p. 115-9.
96
C.G.JUNG, Cartas 1906-1945, p. 80.
179
processo psíquico. Tais motivos nos chegam através da consciência e “são
expressos em formas vivas e dinâmicas que se acham, por sua vez, expostas a
múltiplas influências de natureza tanto interna como externa. Por isso quando
falamos de conteúdos religiosos, situamo-nos em um mundo de imagens que se
referem a um determinado inefável”
97
. A consciência capta e a alma traduz em
significados a experiência vivida, religando-a ao seu fundamento originário.
Adentrando alguns passos no Jardim, percebemos que não uma
separação entre o painel esquerdo e o central. Como assinalamos anteriormente,
Bosch não figura a criação de Eva a partir da costela de Adão, nem a tentação e sua
conseqüente expulsão. Ao contrário, observando de perto o painel central, é
possível observar uma continuidade na paisagem evidenciada pelas montanhas,
águas, relva e árvores, e pelo igual matiz brilhante e luminoso das cores, que lhe
confere uma tonalidade harmoniosa tão contrastante com a desordem e obscuridade
espectral do painel direito. Seria um falso paraíso, como insistem alguns
comentadores, ou uma “utopia pintada”, uma narrativa ficcional do artista que a
humanidade vivendo no Paraíso intocado pela Queda, um mundo além dos limites
do tempo
98
? Atentemos, no entanto, ao relato bíblico do sexto dia da criação:
Disse também Deus: façamos o homem à nossa imagem e semelhança, o
qual presida aos peixes do mar, às aves do céu, às bestas, e a todos os répteis que
se movem sobre a terra, e domine em toda a terra. E criou Deus o homem à sua
imagem: fê-lo à imagem de Deus, e criou-os macho e fêmea. Deus os abençoou e
lhes disse: crescei e multiplicai-vos, e enchei a terra, e tende-a sujeita a s, e
dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, e sobre todos os animais que
se movem sobre a terra. Disse-lhes também Deus: eis vos dei eu todas as ervas,
que dão as suas sementes sobre a terra; e todas as árvores que têm as suas
sementes em si mesmas, cada uma segundo a sua espécie, para vos servirem de
sustento a vós, e a todos os animais da terra, a todas as aves do céu e a tudo o que
tem vida e movimento sobre a terra, para terem de que se sustentar. E assim se fez.
E viu Deus todas as coisas que tinha feito, e eram muito boas. E da tarde e da
manhã se fez o dia sexto. (Gn 1, 26-31)
97
C.G.JUNG, Resposta a Jó, p. 2.
98
Cf. Hans BELTING, Hieronymus Bosch. Garden of earthly delights. Opondo-se à opinião corrente
de que Bosch estaria condenando o pecado da luxúria, pintando um “falso paraíso” para mostrar o
engano do homem ao se entregar aos prazeres dos sentidos, como apontaram, entre outros, Marcel
Gauffreteau-Sévy, Joaquín Yarza Luaces, Luis Peñalver Alhambra, Belting, apoiado na literatura de
ficção, como as descrições do Novo Mundo e a ilha de Thomas More, propõe que o Jardim das
delícias representa um novo conceito de arte, inaugurado por Bosch que coloca a pintura em diálogo
com a literatura.
180
Essa descrição não se aproxima, pois, das imagens plasmadas por Bosch
nos painéis esquerdo e central do tríptico? O casal abençoado, no painel esquerdo,
poderia ser, então, o primeiro homem, feito à imagem e semelhança de Deus,
feminino e masculino, andrógino, tal qual o “homem primevo redondo” de Platão, ou
o “nosso homem interior e invisível, incorpóreo, imaculado e imortal”
de Orígenes,
ou, ainda, o homem “de natureza incorruptível” de Filon, para citar somente alguns
exemplos.
99
Desse modo, o painel central não seria o mundo pós-Queda, um
“sonho erótico” ao qual se entregam os descendentes de Adão e Eva que
“abandonaram o verdadeiro paraíso por causa de um falso”
100
, como afirma Gibson
para quem Bosch reproduz os “Jardins de Amor” medievais, principalmente apoiado
nas cenas populares do “banho de Vênus”. No Jardim bosquiano não vemos a
luxuosa arquitetura, a rica vestimenta e os instrumentos musicais, elementos
essenciais desses jardins. Ao contrário, parece representar a vida no paraíso, onde,
o homem “vivia como queria, porque queria o que Deus havia mandado [...]
[onde] a abundância de alimentos o livrava da fome [...] e sua carne gozava de
perfeita saúde, e sua alma, de tranqüilidade absoluta”
101
. Essa descrição de Santo
Agostinho faz eco àquela que fez Heodo da primeira idade do homem, a Idade de
Ouro, na qual o homem “viveu num estado divino, sem a mais remota angústia e
livre da labuta e do sofrimento. [...] a terra fértil oferecia, espontaneamente, frutos
em abundância, ilimitadamente. Vivia em conforto e em paz em suas terras [...] rica
em rebanhos e amada pelos deuses bem-aventurados”
102
. Na parte superior, nota-
se a fonte da vida, agora com seus quatro rios que “regavam o paraíso” (Gn 2, 10).
Inúmeros animais servem de montaria aos homens, indicando seu domínio sobre
eles. Enormes frutos amoras, cerejas, medronhos e morangos , sem cultivo
algum, servem de alimento ao sem número de homens e mulheres, brancos e
negros, que se espalham pelo painel: parece ser o cumprimento da ordem divina
99
Sobre a natureza contraditória de Adão cf. C.G.JUNG, Mysterium Coniunctionis, p. 160-7, em que
apresenta material histórico sobre a ideia do Anthropos que está na origem do desenvolvimento do
pensar alquímico. Entre outros, o autor cita Orígenes: “Deus plasmou o homem, isto é, ele o formou
do barro da terra. Mas este outro que foi feito à imagem de Deus e à sua semelhança, é nosso
homem interior, invisível, incorpóreo e imortal”; e também Filon, que distingue o Adão feito de barro e
mortal daquele outro criado à imagem de Deus: “O que foi formado segundo à imagem de Deus é
uma ideia ou um gênero ou um sinete, espiritual, incorpóreo, nem homem nem mulher, de natureza
incorruptível”.
100
Walter GIBSON, Hieronymus Bosch, p. 93.
101
Santo AGOSTINHO, A cidade de Deus, Livro XIV, cap. XXVI, p. 167.
102
Apud Edward EDINGER, Ego e arquétipo, p. 28.
181
“crescei e multiplicai-vos”. As figuras humanas, de silhueta e fisionomia muito
semelhantes, estão desnudas, isto é, despojadas do característico atributo mundano
a vestimenta. Todavia, há duas figuras vestidas no canto inferior direito que nos
chamam a atenção: saindo de uma gruta, uma mulher coberta por uma fina túnica
transparente, segura um fruto com a mão direita – o fruto proibido? – tendo a cabeça
apoiada na mão esquerda e o olhar como que perdido, o que nos lembra a imagem
característica do melancólico; atrás dela, apontando-a com o indicador direito, está
um homem, com uma espessa túnica escura, que parece fitar quem contempla o
quadro. Se, como afirmam os comentadores
103
, trata-se de Adão e Eva, não
poderíamos pensar, então, em outro lugar senão no paraíso de delícias (Gn 2, 10).
Dessa forma, o painel direito, do qual eles estão a um passo, não expressaria
o inferno, o lugar dos castigos pelos pecados cometidos no mundo. Antes, seria o
próprio mundo. Observemos que, em contraste com os painéis anteriores, nos quais
tudo parece ter saído diretamente das mãos de Deus, nele se espalha toda sorte de
invenções humanas: facas, espadas, aparelhos musicais, que se convertem em
instrumentos de suplício. Até o fogo que consome uma cidade uma construção
humana –, na parte superior, é resultado do incêndio provocado por uma guerra
travada por uma multidão de monstros que se misturam com seres humanos. As
delícias da inocência do painel central se perdem, e são substituídas pela dor do
desespero, da violência, da solidão, da ferida da separação. Dor estampada na mais
enigmática figura bosquiana: o homem-árvore, com seu corpo quebrado, ferido na
perna direita, navegando à deriva em águas negras, plúmbeas, com a cabeça virada
para trás, mas olhando para lugar nenhum. Este gigantesco monstro, que ocupa o
centro do painel, curiosamente a mesma posição da fonte da vida do painel
esquerdo, que deixava entrever em seu centro, oco, o olhar de uma coruja, abriga,
em seu corpo, também oco, uma espécie de taberna, onde algumas pessoas se
deleitam com o vinho, e na sua extremidade uma figura, na tradicional postura
saturnina, contemplando a realidade do homem no mundo. Bosch sintetiza nessa
imagem a mais pura expressão da alma melancólica que experimenta na carne os
“terrores e horrores”
104
gerados pela aguda consciência do vazio que nada pode
103
Cf. Isabel MATEO GÓMEZ, El Bosco en España.
104
Cf. p. 124.
182
preencher, nem a alegria provocada pelo vinho que “afoga a angústia vigilante da
alma”
105
.
A multidão de símbolos espalhados por todo o tríptico é a expressão mais
clara do mistério da alma humana que, não sendo acessível diretamente à
consciência, precisa de numerosas e diferentes imagens para poder expor a
multiplicidade de seus aspectos. Tal qual o arquétipo como descrito por Jung, ou
como as Ideias expressas por Platão, o tríptico prefigura o humano, sua relação com
o divino e seu destino, apresentando o padrão formativo impessoal e universal da
Criação. Tudo isso colocado a um passo do painel direito que nos põe diante da
realidade material, representada pelos diferentes instrumentos forjados pelo homem.
Bosch apresenta de forma assombrosa o contraste e o conflito entre a realidade
transcendente e a imanente; entre o que eleva espiritualmente e o que aprofunda,
corporificando o martírio, a angústia e a tensão, símbolos vivos da melancolia
religiosa. Fonte de inquietação íntima é desespero, mergulho nas trevas e,
simultaneamente, anseio pela totalidade, renascimento na luz.
III. 5 O NOVO TRÍPTICO
Anseio que acompanha a jornada humana, marcada por obscuridades e
indeterminações como as que podemos reconhecer neste conjunto de imagens que,
graças aos estudos técnicos iniciados nos anos 1960
106
, sabemos hoje que,
provavelmente, formara um tríptico. Filho pródigo (de Rotterdam) teria sido o painel
externo, cujo painel interior central está perdido, tendo à direita, na parte superior,
Nau dos loucos (do Louvre) e, na parte inferior, Alegoria da gula (de New Haven), e
à esquerda a Morte do avaro (de Washington). Ainda que haja controvérsias em
função do estilo pictórico, a crítica é quase unânime com relação ao tema abordado:
uma sátira à loucura e estupidez humana, uma condenação moral aos pecados e
vícios do homem. De acordo com Marijnissen, se realmente formaram um tptico,
trata-se do mesmo motivo da Mesa dos pecados mortais.
107
. De fato, como em toda
sua obra, Bosch continua explorando sua preocupação inicial: o paradoxo que é a
105
Cf. p. 125.
106
Cf. p. 62.
107
Cf. Roger H. MARIJNISSEN, Hieronymus Bosch: the complet works, p. 315.
183
condição humana, com os grandes riscos que se interpõem durante seu caminho, o
perigo de se manter inconsciente de sua própria realidade e de seus limites.
Essa, porém, parece ser a condição da tripulação amontoada na Nau dos
loucos: navegando à deriva numa embarcação sem timoneiro, cujo mastro inclinado
mostra sua condição frágil e instável. Estariam eles loucos, entregues ao desvario
de acreditar na ilusória felicidade promovida pelos prazeres, como advertiu
Burton?
108
Ou estariam desenraizados de sua verdade ôntica dada pelo fundamento
de sua existência?
Como o homem-árvore, essa estranha barca navega em águas escuras,
plúmbeas. Seu leme é um galho seco no qual se assenta uma figura cuja
indumentária nos remete ao bobo da corte ou ao louco. Figura ambígua, o louco,
aquele que parece ter se perdido do mundo e de si mesmo, destituído de razão, é o
mesmo que recobra e se move por uma razão sentimental, cujos significados se
relacionam pelo apelo emocional e seu característico poder de transformar. O louco
descortina os sentidos e conduz para uma nova realidade. Da mesma forma que o
carro, a nau é o veículo que transporta de um lugar a outro, de uma realidade à
outra; é o símbolo da viagem, tema insistente na obra bosquiana: a peregrinação
pela vida que, inelutavelmente, culmina na morte. Mas Bosch, significativamente,
não indica nem a origem nem o ponto de chegada; sugere a turbulência do
movimento com seus percalços e equívocos, não apontando uma clara direção.
Estaria se referindo ao perigo da navegação como finalidade em si, isto é, não como
um trânsito, uma possibilidade de evolução? Ou estaria insinuando que a escolha da
direção a seguir é uma responsabilidade que cabe ao homem assumir?
Bosch aponta o desmoronamento do plano invisível que sustentava o plano
visível. A natureza do ser e das coisas é dessacralizada deixando a alma à deriva.
Neste momento, o humano apresenta um julgamento equivocado do seu caminho e
destino, uma vaidade inflacionada que se arroga capacidades que não possui.
Anunciam-se efeitos deletérios que poderão ser evitados com o compromisso
humano de assumir a responsabilidade pelo sentido de suas próprias ações e a
incumbência de sua própria salvação. Imersos na vivência do sem sentido, esses
passageiros podem se perder. Contudo, ainda que não percebida, a Árvore da
108
Cf p.122.
184
Vida
109
, servindo de mastro, sugere a sustentação, a ligação sempre presente entre
o humano e o divino. Uma coruja, quase imperceptível, que se confunde com a
folhagem da copa, parece tudo observar: seriam os olhos que tudo vêem? Cabe ao
homem o resgate, através da ampliação de sua consciência, do fundo arquetípico de
sua existência, realizando e atualizando seus motivos primordiais na experiência
cotidiana.
Fig. 26 A nau dos loucos. Paris, Musee du Fig. 28 A morte do avaro.
Louvre (acima). Fig. 27 Alegoria da gula. New Washington, National Gallery of Art
Haven, Yale University Art Gallery
109
Cf. Marcel GAUFFRETEAU-SÉVY, Hieronymus Bosch, “el bosco”, p. 96. O autor considera que se
trata da Árvore de Maio, cujo simbolismo coincide com o da Árvore da Vida.
185
Tomado pela angústia de ansiar pela luz e pela eternidade e imerso em seu
distanciamento, o homem se encontra no espaço de diferenciação entre a vontade
divina e as pulsões humanas. Na tentativa de se encontrar e de tudo conhecer, forja
um estado de saturação para o preenchimento de um vazio que se instaurou. A
Alegoria da Gula simboliza esta avidez e voracidade de tudo se apropriar. Na gula
busca a completude, mas subvertendo as necessidades essenciais e se entregando
à incorporação do supérfluo e artificial. O excesso e a incorporação indiferenciada
de tudo o que alcança desloca-o do foco de sua jornada, como esse homem
barrigudo que navega nas mesmas águas escuras, sobre um barril de vinho.
Comete mais uma vez a hybris atribuindo valores invertidos às suas verdades e
necessidades, substituindo-as por demandas materiais compulsivas. Agarrado aos
seus instintos mais primitivos, pode se dissolver em aspectos materializantes
(involução da consciência) ou ser conduzido a uma esfera espiritualizante
(diferenciação e ampliação da consciência).
Excesso que Bosch focaliza, também, na Morte do avaro. Um moribundo,
despido de suas vestes suntuosas, de suas armas e de toda sua riqueza, agora nas
mãos de pequenas figuras monstruosas, recebe a visita da morte. Sua cobiça
nada pode contra aquela que tudo devora. Não se trata, porém, como têm insistido
os comentadores, da indecisão da alma entre o bem e o mal, a vitória do anjo ou do
demônio, da salvação ou condenação eternas da alma, tema amplamente difundido
pelo Ars Moriendi. Antes, do confronto do homem com sua imagem refletida na face
da morte: espelho que revela sua limitação e finitude. Morte como condição que lhe
define e lhe pertence e o como ameaça, como castigo ou punição pelos seus
delitos e falhas. A percepção profunda e transcendente da morte constrói o caminho
tanto para a compreensão da própria vida plena de significado como para
entendimento da dor fundamental que separa Criador eterno da criatura efêmera. E
a própria vivência desta efemeridade se constitui na essência da melancolia
religiosa.
Bosch mostra, na parte interna do tríptico, o que o peregrino da vida,
representado no painel externo, encontra durante seu caminhar. Filho pródigo, título
que apareceu com Glück (1904), seguido por alguns comentadores, como
Friedlander e De Tolnay, foi considerado infundado por outros, como Gibson e
186
Peñalver Alhambra.
110
De fato, para além de uma ilustração da parábola do
Evangelho de Lucas (Lc 15, 11-32), como um sermão que mostra o homem
arrependido de seus pecados, parece indicar o contínuo, inevitável e solitário
percurso humano. A figura desse homem, já maduro, com suas vestes puídas,
lembra-nos a triste condição da alma humana colocada nos versos de Freidank:
“não sei quem sou, nem onde devo ir”
111
.
Fig. 29 Filho pródigo. Rotterdan, Museum Boymans-van Beuningen.
Entretanto, essa dúvida aparece no ser consciente, naquele que não
tem a confiança inconsciente na natureza, que se desprendeu de qualquer traço de
infantilismo e de animalidade. Essa condição é simbolizada pela forma de
110
Cf. Charles DE TOLNAY, Jérôme Bosch, p. 40; Luis PEÑALVER ALHAMBRA, Los monstruos de
El Bosco, p. 225; Walter GIBSON, Hieronymus Bosch, p. 104.
111
Ichn weiz selbe nit wol / wer ich bin und war ich sol. Apud Mia CINOTTI, La obra pictórica
completa de El Bosco, p. 112. Com o nome de Freidank Bescheidenheit se conhece uma coleção de
sentenças que tratam de questões políticas e religiosas, datadas da primeira metade do século XII.
Cf. Isidro B. TORVISO; Fernando MARÍAS, Bosch. Realidad, símbolo y fantasía, p, 171.
187
apresentação circular, agora inscrita em uma estrutura octogonal, o que nos remete,
novamente, à imagem da totalidade, tal como um espelho espelho da realidade.
Mas não se trata da totalidade inicial, indiferenciada, pois o número oito, símbolo do
infinito em matemática, é múltiplo de quatro e, assim, a totalidade se apresenta,
agora, desdobrada. Este estado provoca, porém, um sentimento de solidão, de
orfandade e de abandono: a melancolia que podemos observar no rosto abatido
deste andarilho, que exibe a ferida da encarnação na perna esquerda e mostra seu
contínuo caminhar pela vida, incerto, desequilibrado, com um na esfera terrena e
outro, na espiritual, o que é indicado pelo uso de sapato em um pé, e de chinelo no
outro. Semelhante ao Vagabundo, dos painéis exteriores do Carro de feno, traz nas
costas um cesto: qual seria o seu conteúdo? Talvez a bagagem das experiências
pelas quais passou, “pelos excessos e privações”, nas palavras de Brion
112
, que
conduzem a uma consciência mais ampliada capaz de reverenciar um poder maior,
por exemplo, ao tirar o chapéu e segurá-lo em uma das mãos. Na outra, um bastão,
instrumento de defesa, que serve para afastar o cão raivoso, símbolo do instinto, ao
mesmo tempo de apoio e de autoridade, ele parece conhecer os riscos do homem
puramente natural, mostrados na parte interna do tríptico. Seu olhar para trás,
representa um gesto de reflexão, uma tomada de conscncia, uma atitude de
inclusão dos diferentes momentos de sua jornada, compreendendo a continuidade
da vida temporal (o andar para frente) e reconhecendo sua dimensão espiritual. O
caminho conduz a uma paisagem depois da porteira, quadrangular com um triângulo
e um ssaro sobre ela, e um boi como guardião. Sem nos aprofundarmos na
questão dos números três e quatro como símbolos da totalidade, extensivamente
discutida por Jung
113
, é-nos suficiente lembrar que ela carrega a hesitação entre o
espiritual e o físico. O mesmo pode ser verificado pela presença do pássaro, símbolo
da relação entre terra e céu, e do boi que, de acordo com Dioniso o Areopagita,
“marca a força e a potência, o poder de cavar sulcos intelectuais para receber as
fecundas chuvas do céu”
114
. Igualmente, pode-se observar na árvore ao lado da
porteira, uma coruja, ave sempre presente nos quadros de Bosch, pousada sobre
112
Marcel BRION, Bosch, p. 12.
113
Cf. C.G,JUNG, Psicologia e alquimia, passim.; ______ Interpretação psicológica do Dogma da
Trindade, passim.; ______ AION, passim.
114
Apud Jean CHEVALIER; Alain GHEERBRANT, Dicionário de símbolos, p. 138.
188
um galho seco, e o pássaro carpinteiro, símbolo do Salvador
115
, acima da cabeça do
andarilho. Isto significa, em termos psicológicos, que na indiferenciação inicial não
oposição, mas quando o inconsciente se manifesta, quando a consciência, cuja
essência é a diferenciação, tem origem, ocorre a cisão dos opostos, como na
Criação, e a meta do desenvolvimento anímico consiste na sua reunião na totalidade
diferenciada.
Na obra bosquiana instala-se, assim, o paradoxo da essência e da existência
humana. Em cada detalhe da obra, imagens desfilam diante de um espelho que
reflete a imagem do homem, seus encontros e descaminhos, sua melancolia e sua
busca de iluminação. Como imagem e semelhança do Criador, o homem deve, em
sua trajetória, refletir a divindade e criar novas realidades. O universo se
desdobrado e multiplicado em imagens opostas que poderão se encontrar numa
unidade conforme o juízo, a expressão e a finalidade que a elas atribuirmos.
115
Cf. Mia CINOTTI, La obra pictórica completa de El Bosco, p. 122.
189
CAPÍTULO IV
V
OZES NO DESERTO
Deus opera por meio de opostos, de modo que o homem se sente perdido
precisamente no momento em que está prestes a alcançar a salvação. Quando Deus
está prestes a perdoar o homem, amaldiçoa-o. Aquele a quem Deus quer tornar vivo
primeiro deve morrer. O favor de Deus é de tal forma comunicado através da ira que
a graça parece mais distante precisamente quando está à mão. É preciso que antes
o homem se lamente, dizendo que não cura para si. É preciso que o homem se
veja consumido pelo horror. Esse é o sofrimento do purgatório. [...] Em meio a esses
distúrbios, a salvação tem início. Quando um homem sente que está profundamente
perdido, surge a luz.
Martinho Lutero
1
Encontramos nessas palavras de Lutero a expressão máxima da melancolia
religiosa, manifestando a natureza paradoxal de Deus e a ambigüidade do humano:
um ser encarnado no tempo e no espaço sob a égide do Espírito. O homem se sente
perdido quando não encontra mais onde se apoiar; quando descobre que não é
capaz de tudo dominar; quando percebe, enfim, que tudo aquilo que acreditava dar
sentido à sua vida se revela fugaz. Diante disso, mergulha perplexo em um doloroso
dilema. A dor é o grande pilar da existência, perpétua companheira do ser senciente,
sua aliada na tormentosa jornada da alma e presença constante que anuncia os
limites materiais da vida e atesta a separação da totalidade primordial que tudo
continha e que tudo sustentava. A dor configura a condição insuficiente, insegura e
incerta da experiência encarnada, assim como prepara o humano para o retorno à
unidade originária. Percebida, a dor separa e reconhecida, reúne. Em termos
psicológicos, a dor registra na carne o início da jornada da alma, o clímax da
melancolia religiosa: a angústia pela separação vivenciada como desespero,
1
Apud Edward EDINGER, Ego e arquétipo, p. 90.
190
abandono e tormento. Isso evidencia a necessidade da experiência de separação
como prelúdio à experiência religiosa. Vale lembrar que, na perspectiva junguiana,
religião o é uma confissão de fé, uma crença professada por um grupo
organizado. Derivado de religere considerar cuidadosamente, examinar de novo,
refletir bem –, o termo é tomado para indicar “uma cuidadosa observação e
consideração dos numina divinos”
2
. O homem pode experimentar a existência de
Deus quando não estiver identificado inconscientemente com Ele. Deus, visto como
Outro pelos olhos da consciência, constela-se como dimensão a ser apreendida,
adquirindo uma realidade em oposição à humana. A criatura, nos diferentes
enfrentamentos e embates com o Criador (a luta e a relação entre o ego e o Self),
tanto pode se reconhecer e enriquecer no contato com as fontes divinas como se
deformar na tentativa de incorporá-las ou projetá-las como se a ela pertencessem. A
dinâmica desse embate reflete as provações, as privações e as tentações às quais o
humano está submetido na busca da substância espiritual de sua alma. Igualmente
remete à dor do mortal frente à esmagadora e paradoxal realidade do mistério da
vida. Mistério esse que clama por se revelar e por assegurar o destino e a finalidade
da existência de cada ser. Tal é a ambigüidade do homem que, em sua
materialidade, “dentro de toda a monstruosa desordem biológica, aparentemente
sem sentido”, como diz Jung, tem a “responsabilidade cósmica” de superar os
antagonismos na imagem de Deus, induzidos pela consciência.
Vivenciar esse embate, entretanto, é se experimentar esvaziado, estéril, tal
qual as terras áridas e desoladas do deserto. Não é por acaso, pois, que esta é a
imagem clássica da melancolia. Covil dos demônios, lugar de castigo e das
tentações, conforme se nos relatos bíblicos, é também no deserto que Deus se
manifesta, enviando o maná, o alimento milagroso. Na imagem da solidão, do
desamparo, da desolação, a ambivalência do mbolo se expressa: esterilidade sem
Deus, fertilidade com Deus. Neste sentido, retirar-se para o deserto não significa um
afastamento, uma fuga das alegrias e prazeres do mundo. Antes, simboliza o
confronto consigo mesmo. Confronto que observamos vivamente retratado nas
2
C.G.JUNG, Cartas 1946-1955, p. 440. Cf., também, Psicologia e Religião, p. 10, onde Jung lembra
que, para Cícero, religião “é aquilo que nos incute zelo e um sentimento de reverência por uma certa
natureza de ordem superior que chamamos divina”. Essa natureza divina pode ser entendida como
“fatores dinâmicos concebidos como potências: espíritos, demônios, deuses, leis, ideias, ideais, ou
qualquer outra denominação dada pelo homem a tais fatores” que, no mundo da experiência,
mostram-se tão poderosos, perigosos ou mesmo úteis que merecem respeitosa consideração por sua
grandiosidade.
191
imagens bosquianas do Juízo Final, de Santo Antão, dos Santos e, sobretudo, em
Cristo, Deus que se fez homem, que foi tentado no deserto, que sofreu a Paixão em
sua carne mortal, carregando a cruz da natureza humana e sentindo o abando do
Pai.
IV. 1 JUÍZO FINAL
Um tema tão caro à época de Bosch, como vimos anteriormente, o Juízo Final
adquire sob os pincéis do pintor brabantino uma versão única, sem precedentes. De
acordo tanto com a tradição bíblica quanto com a artística, depois de ressuscitar a
humanidade e reuni-la diante de Seu trono, Deus julgará os mortos conforme suas
ações no mundo, separando os justos, que terão a glória da vida eterna, dos
condenados, que serão lançados no fogo, também eterno. Imagem que se
assemelha àquela da cena do canto superior direito da Mesa dos pecados mortais.
Mas neste tríptico denominado Juízo Final, não eleitos, nem tão pouco castigo
correspondente a cada um dos pecados, como na Mesa. O único elemento comum
com a tradição é a figura de Cristo como Juiz, ladeado pelos apóstolos e anjos, que
aparece num semicírculo celestial mais claro, quase como um globo de luz que se
eleva sobre a cena trevosa, cuja disposição alude ao mesmo formato esférico,
dando a ideia, a um tempo, de centro e periferia de um círculo. Uma vez mais, a
totalidade se apresenta com todo seu jogo de opostos: superior e inferior, luminoso e
obscuro, celeste e ctônico, central e periférico, mas não como na Mesa, em um
plano, e sim insinuando um volume, sugerindo a ideia de concretude, o que nos leva
a pensar que Bosch estaria representando a realidade e a necessidade da vivência
dessa totalidade. Vivência que se mostra como um confronto direto, sem a
intermediação da Virgem Maria e de São João Batista, que sempre desempenharam
a função de intercessores entre o ser humano e o Juiz, e que aqui foram relegados
para uma posição posterior a Ele. Em termos psicológicos, já não se trata do choque
entre o indivíduo, o eu, com as normas e regras da vida consciente pessoal ou
coletiva. Antes significa o embate entre o ego e o Self, entre a consciência e o
inconsciente, ou, na perspectiva teológica, entre o homem e Deus. Como nos diz
Jung,
O si-mesmo [Self] em seus esforços de autorealização, vai além da
personalidade-ego em todas as direções; graças à sua natureza de elemento que a
tudo abarca, o si-mesmo é mais claro e mais escuro que o ego e, por essa razão,
192
confronta-o com problemas que ele gostaria de evitar. A força moral ou a percepção
pessoal ou ambos os elementos falham, até que o destino final decida [...] o indivíduo
tornou-se vítima de uma decisão tomada à revelia de sua mente e que lhe desafia o
coração. A partir disso podemos ver o poder numinoso do si-mesmo, que dificilmente
pode ser experimentado de alguma outra forma. Por essa razão,a experiência do si-
mesmo sempre representa a derrota do ego.
3
Também diverso da tradição é a inclusão do paraíso terreno no painel
esquerdo, com a criação de Eva, no primeiro plano, a tentação e a expulsão no
plano intermediário e, coroando o painel, a queda dos anjos rebeldes, em forma de
diabos-insetos e Deus em seu trono, como aparece no Carro de feno
4
, ainda que em
ordem inversa. Como comentamos anteriormente, a queda dos anjos simboliza o
princípio de contraposição a Deus. Isso significa, do ponto de vista psicológico, que
a vontade e a contravontade, o bem e o mal, estão contidos na própria imago Dei.
Segundo Jung,
quem se submete, a priori, à lei ou à expectativa em geral, comporta-se como o
homem da Parábola, que enterrou o seu talento. O processo de individuação [a
realização do Self] constitui uma tarefa sumamente penosa, em que sempre um
conflito de obrigações, cuja solução supõe que se esteja em condições de entender a
vontade contrária como vontade de Deus.
5
Mesmo que se trate daquele quadro supostamente encomendado por Felipe o
Belo em 1504, no qual deveria “aparecer o julgamento de Deus, quer dizer, o
Paraíso e o Inferno”
6
, a complexidade das imagens bosquianas o colocam numa
posição singular, pois não há mortos ressuscitando, nem Paraíso onde os eleitos
viverão eternamente na Glória, nem Inferno. Diferente, por exemplo, do altar de
Roger van der Weyden (Hotel-Dieu, Beune), no qual a ênfase reside no ato do
julgamento, que ocupa a maior parte do políptico, mostrando tanto a felicidade do
salvo quanto o sofrimento dos condenados, no quadro de Bosch uma verdadeira
orgia de ódio, vingança, furor cego e destruidor, insaciável de variações fantásticas e
aterradoras cobre quase todo o tptico, estendendo-se pelos painéis central e
3
C.G.JUNG, Mysterium coninctionis, p. 303, v.I. (grifos do autor)
4
Cf. p. 167.
5
C.G. JUNG, Interpretação psicológica do Dogma da Trindade, p. 87.
6
Cf. p. 29. As medidas do tríptico de Viena (5 ½ x 7 ½ pés), contudo, o são as mesmas que
constam do documento de Lille (9 x 11 pés), o que tem provocado muitas discussões entre os
scholars. Haveria diferença entre a escala de medidas medieval e moderna? Seria uma cópia do
original perdido? O trabalho encomendado teria sido concluído, uma vez que Felipe o Belo morreu
em 1506? Cf. Laurinda DIXON, Bosch, p. 290.
193
direito. Não se trata apenas das covas e fornos ardentes, lagos e rios onde homens
são torturados, sapos, dragões e serpentes que rastejam sobre as rochas
deliciando-se com as entranhas de suas vítimas, ou dos homens fabulosos da
literatura de viagens ou das criaturas legendárias do Oriente que invadiram o
imaginário medieval
7
. Os monstros de Bosch, criaturas bizarras constituídas de
partes da anatomia humana e de animais irracionais, ou mesmo de objetos
inanimados
8
, já não vivem às margens do mundo ou em outro mundo; antes habitam
o espaço da vida cotidiana, com um realismo brutal, uma vitalidade tão intensa, que
não podem ser considerados como mero capricho ou um jogo da fantasia sem
limites. Como acertadamente afirma Basltrusäitis, “já o são mais as máscaras
greco-romanas, nem figuras grotescas de extravagâncias marginais, mas
verdadeiros retratos”
9
.
Retratos que expressam, no mínimo, uma parte essencial da alma que, por
ser desconhecida, inconsciente, manifesta-se em imagens protéicas e assustadoras.
Imagens deformadas, pois desdobrada em opostos não encontra seu ponto de
reunião, encerrando em si uma contradição interna. Imagens absurdas como aquela
do canto inferior direito do painel central, semelhante a um pássaro que ajuda a
carregar uma faca gigantesca: seu tronco termina num rabo de peixe de onde saem
duas pernas humanas enfiadas em jarras. Ou, ainda, as várias cabeças ora com pés
humanos, como a do canto inferior esquerdo, ora com garras de aves e cauda de
réptil, como o barbudo que tem um caldeirão vermelho como chapéu, na parte
central esquerda. Ver nesse panorama gigantesco e horrendo uma representação
do nascimento do pecado e suas conseqüências, como têm apontado os
comentadores, seria, pois, perder a profundidade que ele abriga.
7
Cf. Henri FOCILLON, Art d’Occident : Le Moyen Age roman et gothique; Jurgis BALTRUSÄITIS, La
Edad Media fantástica; Gilbert LASCAULT, Le monstre dans l’art occidental: un problème esthétique.
8
Em seus Comentários de La pintura, Felipe de Guevara aproximou “os personagens curiosos e
estranhos de El Bosco” ao nero de pintura da Antiguidade denominado grylla. O nome grylla,
segundo o texto de Plínio o Velho se relacionava com “a caricatura de um tal Grylos (leitão) realizada
por Antiphilos o Egípcio, contemporâneo de Apeles. Utilizado primeiro genericamente para designar o
gênero satírico da pintura com grandes deformações, o nome acabou sendo aplicado exclusivamente
à glíptica que representava seres cujo corpo se compunha de cabeças”. Jurgis BALTRUSÄITIS, La
Edad Média fantástica, p.23 e p. 53.
9
Jurgis BALTRUSÄITIS, La Edad Media fantástica, p. 53.
194
Fig. 30 Juízo Final. Viena, Gemäldegalerie der Akademie der Bildenden Künste.
Tríptico aberto.
Entretanto, se tomarmos a Expulsão e o Juízo Final como faces de uma
mesma moeda forjada à luz de uma consciência, que reconhece a separação e a
mortalidade como indispensáveis para o nascimento em outra perspectiva de
compreensão da vida, vemos que a trajetória humana curva-se sobre si mesma e se
recolhe nos mistérios do espírito conferindo profundidade à experiência interior.
Experiência interior animada e movida por uma atenção diferenciada à convocação
sagrada de assumir a responsabilidade pelo significado de cada existência particular
e pela participação no destino coletivo. O Juízo, antes de ser uma separação entre
pecadores e eleitos, ou uma condenação aplicada aos ímpios, mostra-se como uma
necessidade de atribuição de valores espirituais à experiência ordinária. Trata-se
menos da condenação do indivíduo possuído pela hybris, ou seja, o castigo para o
pecador, como aparece na Mesa, e mais do impulso natural e inerente ao ser em se
dobrar e reverenciar a força de manifestação do Uno na criação de orientações de
sua alma; é ânsia e desespero em participar da divindade e de diminuir o vácuo
criado entre Criador e criatura. O humano revela-se como um vazio escancarado a
ser preenchido de coragem e escolhas e também como o frágil fio suspenso sobre o
abismo de uma existência incerta, ameaçada por terrores abissais, sobre o qual
precisará realizar sua travessia. A irrupção de imagens tão poderosas, como as que
figuram no tríptico de Bosch, denuncia a imersão do humano no necessário
distanciamento da totalidade e, ao mesmo tempo, revela a convocação feita pelo
195
Self à participação nos mistérios da criação, o embate fundamental para a
construção de um encontro, de uma significação transcendental para a vida.
Significação que é o elo que une os homens entre si e também ao mistério. Bem e
mal aparecem como engrenagens que movimentam a jornada espiritual, traduzindo
a inquietação íntima profunda que se revela tanto nas figuras monstruosas e
protéicas quanto no fogo dilacerante. Como comparou Jung, o fogo das profundezas
da psique é aquele que nos “cozinha na fornalha da aflição”, que, nas palavras de
Isaías, “é a vontade do próprio Deus”
10
. Estamos diante de um dinamismo que exalta
o paradoxal na medida em que a busca de reunião com a totalidade só se dá a partir
da experiência prévia e fundamental da separação e de seu, conseqüente,
desdobramento em polaridades. Torturas e horrores parecem ser experimentados
como epítomes da perda de vinculação com a totalidade ao mesmo tempo em que
demonstra o anseio por luz e eternidade, num tempo de trevas e morte. Não são os
poderes normativos da tradição cristã que se explicitam na obra de Bosch, mas sim
a angústia existencial, o ápice da experiência da melancolia religiosa. A melancolia
religiosa, com enorme pujança, deflagra a tensão homem-mundo-Deus e mostra a
vida humana como combustível para a iluminação espiritual ou como palco de dores
infinitas que consomem e levam à destruição.
IV.2 O DILEMA DOS SANTOS
Como mostra Delumeau, o culto aos santos e à Virgem nunca foi tão
divulgado quanto no final do medievo, pois, diante das tantas calamidades da época,
eram os únicos que poderiam oferecer proteção e refúgio contra as enfermidades e
a morte e, também, uma espécie de “bônus” para livrar-se do inferno no momento do
Juízo Final.
11
Vários foram os santos cultuados nesse período, cada um responsável
na cura de um mal: o Sebastião, São Roque, São Lázaro, São Valentin, das
epidemias; São Mauro, da gota; São Simão e São Judas, dos falsos testemunhos; e
muitos outros.
12
Sem nos esquecermos de Santo Antão, considerado o mais
10
“Por amor do meu nome alongarei o meu furor: e enfrentar-te-ei com meu louvor, para que não
pereças. Eis aqui estou eu que te tenho acrisolado, mas não como a prata, tenho-te testado na
fornalha da aflição. Por amor de mim, por amor de mim o farei.” (Is, 48, 9-11). Jung cita essa
passagem em uma carta de março de 1955. Cf. C.G.JUNG, Cartas 1946-1955, p. 404.
11
Jean DELUMEAU, La Reforma, p. 10.
12
Johan HUIZINGA, O declínio da Idade Média, p. 158-60.
196
“curandeiro” de todos pela fé popular. Era invocado na cura do “fogo de Santo
Antão”, uma enfermidade que hoje, sabemos, é o ergotismo, uma intoxicação
causada por um fungo que contamina o centeio e outros cereais. Os acometidos por
esse mal se retorciam e gritavam de dor, como se fossem consumidos por um fogo;
tinham alucinações em que se viam atacados por monstros e demônios;
convulsionavam como os epilépticos. Estavam, pois, a um passo da fogueira, já que
eram acusados de possessão pelo demônio, como as bruxas e as feiticeiras.
Bosch também se interessou pelos santos, mas sua preocupação, no entanto,
não recaiu sobre os milagres ou a vitória sobre algum mal. Sua escolha parece estar
voltada para a peregrinação em busca de Deus, uma vida que atravessa o deserto,
locus privilegiado da revelação e também da solidão, onde a presença e ausência de
Deus perseguem o peregrino. É o caso de São Tiago, o Maior, ou Santiago de
Compostela que, juntamente com São Bavo, compõe os painéis externos do tríptico
Juízo Final. Esse fato é tomado, muitas vezes, como prova de que se trata do
quadro encomendado, em 1504, por Felipe o Belo, pois o primeiro é patrono dos
espanhóis e o segundo, de Flandres.
Fig. 31 Juízo Final. Viena, Gemäldegalerie der Akademie der Bildenden Künste.
Tríptico fechado. São Tiago e São Bavo.
197
Por que Santiago e São Bavo anunciando o Juízo Final? De acordo com a
Legenda Áurea, Tiago, junto com seu irmão João Evangelista, foi o discípulo mais
íntimo de Jesus, que lhes deu a conhecer a Transfiguração no Monte Tabor, por
ocasião da ressurreição de uma menina, e no Monte das Oliveiras, pouco antes da
prisão de Cristo. Ambos destacaram-se dos outros apóstolos pela preocupação em
saber sobre o dia do Juízo e o que estava por vir. Rumou até Espanha, para
evangelizar os pagãos, mas não obteve sucesso. Retornou a Jerusalém, onde foi
decapitado por ordem de Herodes Agripa, rei da Judéia, no ano de 44, como está
narrado na Bíblia: “E neste mesmo tempo enviou o rei Herodes tropas para maltratar
alguns da Igreja. E matou, à espada, a Tiago, irmão de João” (At 12, 1-2). Segundo
a tradição, seu corpo teria sido sepultado na Galizia, Espanha, em um lugar
chamado Compostela. Ainda que não se tenha como comprovar historicamente,
acredita-se que as relíquias encontradas, em 814, por um eremita chamado Pelaio,
que tivera uma revelação em sonho, eram de Tiago. Sobre o túmulo foi erguida a
Catedral de Santiago de Compostela e o caminho que leva ao seu santuário, um dos
mais famosos lugares de peregrinação. É essa a imagem que Bosch nos apresenta:
o peregrino Santiago que, descalço, conhecedor de sua realidade, entrega-se ao
caminho cheio de ameaças, como o Vagabundo, dos painéis exteriores do Carro de
feno, consciente de que não pertence a si mesmo.
Por outro lado, São Bavo, oriundo de uma família nobre, converteu-se ao
cristianismo logo após a morte de sua esposa, depois de ouvir um sermão de um
monge, Santo Amando. Decidiu, então, reparar sua própria vida, doando sua riqueza
aos pobres e seguindo o monge em sua peregrinação pela França e Flandres. Viveu
recluso em um tronco de árvore e depois no mosteiro construído na cidade de
Gante. Geralmente é representado como um nobre, empunhando uma espada na
mão direita e um falcão, na esquerda. Mas a cena mais popular é o momento de sua
conversão. Bosch também reproduz o santo como um nobre, mas introduz uma
mulher com duas crianças, que parecem pedir-lhe esmolas, e um mendigo,
provavelmente, com o “fogo de Santo Antão”, a julgar pelo colocado de forma
ritualística sobre um pano branco, como aparece também no painel central de
Tentações de Santo Antão, de Lisboa, do qual falaremos mais adiante.
É interessante notar que os dois santos são peregrinos. Um símbolo religioso
que, como falamos anteriormente, remete-nos à situação do homem sobre a terra,
198
em meio a provações e tentações em busca de um preparo de iluminação do seu
próprio eu e da revelação divina. Um apóstolo e um nobre, aparentemente opostos,
cuja conversão os coloca na mesma direção: diante do mistério de como as coisas
são de fato. Os santos são aqueles que revelam, com a própria biografia, a
experiência da melancolia religiosa, uma poderosa experiência que coloca o santo
diante da ambigüidade de atender o chamado de Deus ou de permanecer no próprio
sofrimento. Isso significa, segundo Jung,
que até mesmo o homem iluminado permanece aquilo que é, nada mais do que o
seu próprio eu colocado em face daquele que habita em seu íntimo, cuja figura não
tem limites definidos e reconhecíveis, e que o envolve por todos os lados, profundo
como os fundamentos da terra e imenso como a vastidão dos céus.
13
No quadro São João Evangelista em Patmos vemos aquele que recebeu “a
revelação dos mistérios concernentes à Divindade do Verbo e ao fim do mundo”
14
. É
conhecido pela tradição que durante seu exílio na ilha de Patmos, o João
Evangelista teria escrito o Apocalipse, a segunda grande revelação que teve lugar
nos alvores do cristianismo que anuncia a vinda do Anticristo. Interessante notar que
Bosch, o pintor de monstros e demônios, escolhe a cena da mulher solar e não dos
monstros apocalípticos para pintar. O que isso significa? Para Jung, a mulher solar
representa a união do elemento tenebroso ao elemento numinoso, a união dos
contrários que reconcilia a natureza com o espírito.
15
O filho que ela carrega é o
símbolo dessa unificação. Unificação mostrada no reverso do quadro com as cenas
da Paixão dispostas em uma forma circular, em cujo centro encontramos o pelicano,
aquele que alimenta seus filhotes com sua própria carne e com seu próprio sangue.
Chama-nos a atenção que essa figura de um círculo menor envolto por outro maior é
a representação do “Pelicano Filosófico” da alquimia, o vaso “onde inferior e o
superior se encontram em um e o mesmo círculo”, quando não é mais possível
discernir “o exterior e o interior, o inferior e o superior: mas tudo seria um num
único rculo ou vaso”
16
. Conhecida alegoria de Cristo, o pelicano não só simboliza o
sacrifício e a ressurreição, mas também a chaga do coração de onde flui o sangue e
a água da vida. Como escreveu Angelus Silesius, “desperta, cristão morto, vê, nosso
13
C.G.JUNG, Resposta a Jó, p. 113.
14
Jacopo de VARAZZE, Legenda Áurea, p. 113.
15
C.G.JUNG, Resposta a Jó, p. 81.
16
Idem, Psicologia e alquimia, p. 139.
199
Pelicano te rega com seu sangue e com a água de seu coração. Se a recebes bem
[...] estarás em um instante vivo e salvo”
17
. Bosch parece indicar a Paixão como
tema central: a paixão de Cristo, de um lado, e a paixão do próprio homem, na figura
de João, que se reconhece criatura diante do Criador. Sofrimento do homem e
sofrimento de Deus formam uma complementaridade, o que significa, em termos
simbólicos, a “revelação de uma vida divina no homem”, o que gera um efeito
compensador, possibilitando que seja conhecido o verdadeiro significado de seu
sofrimento: o homem “como parte do divino processo da vida”
18
.
Figura 32 São João Evangelista em Patmos. Berlim, Gemäldgalerie, Staatliche Museen.
Reverso e Anverso.
Na imagem de São João Batista em meditação reconhecemos o Precursor,
pela indicação do “Cordeiro de Deus” (Jo 1,29), pois, por certo, aqui o estamos
diante do austero asceta que pregou no deserto da Judéia, anunciando a vinda do
Salvador.
17
Apud Jean CHEVALIER; Alain GHEERBRANT, Dicionário de símbolos, p. 705.
18
C.G.JUNG, Interpretação psicológica do Dogma da Trindade, p. 45.
200
Figura 33 São João Batista em meditação. Madrid, Museo Lázaro Galdiano.
Abandonado na relva, não usa vestes de pele de camelo (Mt 3,4), nem o
pouco se encontra nas terras áridas do deserto da Terra Santa, onde se alimentava
de gafanhotos e mel silvestre (Mt 3,4), enquanto se preparava para a vinda do
Salvador. Apoiado sobre uma pedra, na clássica postura melancólica, João medita
apontando um cordeiro. Essa imagem nos remete àquela do alquimista diante do
opus (obra alquímica). Sua atitude, frente à dificuldade e aflição da alma, é de
meditatio, isto é, “um diálogo interior com alguém invisível que tanto pode ser Deus,
quando invocado, como a própria pessoa ou seu anjo benigno”
19
. Em termos
psicológicos, não se trata de uma simples reflexão, mas de um diálogo interior, uma
relação viva com o “outro” em nós, com os poderes invisíveis da alma, com o
inconsciente. Outra atitude era a imaginatio, que não significava uma fantasia
insubstancial, mas “um extrato concentrado das forças vivas do corpo e da alma”,
19
Definição de meditatio do Lexicon Alchemie, de Ruland, datado de 1612. Apud C.G.JUNG,
Psicologia e alquimia, p. 286.
201
uma representação e realização da “coisa maior que a anima [alma], como ministro
de Deus, imagina criativamente e extra naturam
20
. Em termos psicológicos, é a
atividade formadora de símbolos que permite a concretização de conteúdos do
inconsciente.
João, com os olhos fechados, mergulhado em sua profunda melancolia,
entrega-se ao diálogo com os símbolos invisíveis que o rodeiam. A paisagem clara,
verdejante, à primeira vista parece transmitir placidez e harmonia, mas, uma vez
mais, Bosch introduz alguns elementos ambíguos e inquietantes. A planta que está
enraizada na rocha, ao lado do santo, a mesma mandrágora que observamos no
Carro de feno, densa e opressiva, ameaça atacá-lo como se fosse uma planta
carnívora, uma espécie de “réptil vegetal”, como a denomina Delevoy. Um fruto seco
rompido que pende de seu galho alimenta um pássaro, identificado como um
picanço, uma ave invariavelmente solitária, que tem sua morada no tronco oco de
árvore, e não se alimenta de vegetais, mas de insetos e pequenos vertebrados e
utiliza espinhos para capturar suas presas. Seria novamente uma alusão à Paixão?
Ao mesmo tempo, ele é símbolo de proteção e segurança alimentava Rômulo e
Remo e imagem libertadora do pensamento.
21
Em um galho seco, dois peixes
pendurados e noutro, pousado sobre uma cabaça, está um corvo, símbolo de mau
agouro, prenúncio de desgraça, e, simultaneamente, mensageiro dos deuses, como
já aparecera em São João em Patmos. Lembremos, ainda, que peixe e corvo
simbolizam, na hermenêutica patrística, tanto Cristo quanto o demônio.
22
A meditação e a oração, se compreendidas em sua forma mais profunda,
podem se constituir como um meio de elevação da alma para Deus. Para Jung, um
meio de alterar a condição da mente, necessária “porque torna diretamente real o
além que supomos e conjecturamos e nos transpõe para a dualidade do eu e do
obscuro outro”
23
. A oração indica a dificuldade do caminho, assim como o retorno a
si; sua meta é tornar-se cada vez mais transparente a Deus, como fica evidente na
imagem de São Jerônimo em oração.
20
Apud C.G.JUNG, Psicologia e alquimia, p. 290 e 295.
21
Idem, Símbolos da transformação, p. 341.
22
Idem, Aion, p. 67.
23
Idem, Cartas 1906-1945, p. 343.
202
Figura 34 São Jerônimo em oração. Ghent, Musée des Beux-Arts.
De acordo com Laurinda Dixon
24
, o interesse crescente, no século XVI, na
imagem de o Jerônimo como representante da melancolia foi introduzido pelo
próprio Bosch que, como visto anteriormente
25
, recebe seu nome, provavelmente,
em homenagem ao santo. Pom, tradicionalmente, o santo era figurado como um
intelectual em sua cela, como, por exemplo, em Dürer. Diversamente, o Jerônimo
bosquiano parece encarnar a intensa agonia da alma atormentada, como ele mesmo
descreveu: “lágrimas e gemidos eram minha porção diária e se arriscasse
adormecer para superar minha luta contra isso, meus ossos descobertos, que quase
não se mantinham juntos, chocavam-se contra o solo [...] Indefeso, eu me laava
aos pés de Jesus”
26
. Seu exílio no deserto, o santo define tomando a passagem
24
Laurinda DIXON, Bosch, p. 168.
25
Cf. p. 28.
26
Apud Laurinda DIXON, Bosch, p. 169.
203
bíblica: “as raposas têm buraco, e os pássaros, ninhos; mas o filho de Deus não tem
lugar para deitar sua cabeça” (Mateus, 8:20-22)
27
.
A galeria de santos de Bosch culmina no “Christum ferens”, “aquele que
carrega Cristo”.
Figura 35 São Cristóvão. Rotterdam, Museum Boymans-van Beuningen
Pouco se conhece da vida de São Cristóvão que, segundo a Legenda
Áurea
28
, chamava-se Réprobo, tinha um aspecto terrível e estatura gigantesca. Em
sua busca do “maior príncipe do mundo”, serviu primeiramente a um rei, mas deixou-
o quando percebeu que ele temia o diabo. Partiu, então, à procura deste, servindo-o
27
Apud Laurinda DIXON, Bosch, p. 169.
28
Cf. Jacopo de VARAZZE, Legenda Áurea, p. 571-5.
204
por algum tempo, até observar seu medo ao passar por uma cruz na estrada.
Concluiu, assim, que havia alguém mais poderoso que ele: Cristo. Andou por longo
tempo a procura de Cristo para servi-lo, mas ninguém lhe dava qualquer informação.
Até que um eremita lhe instruiu que atravessasse as pessoas por um rio perigoso, o
que ele seguiu prontamente. Um dia, uma criança pediu que ele a ajudasse na
travessia. Mas, durante o trajeto, Réprobo experimentou uma profunda angústia,
pois a água subia e o peso da criança em seus ombros se tornava mais e mais
insuportável, como se carregasse o mundo em suas costas. Ao atingir a outra
margem, soube então que se tratava de Cristo e, passou, daí, a chamar-se
Cristóvão. Saber-se condutor de Cristo, em termos psicológicos, significa tomar
consciência da orientação interna autônoma que, distinta do ego e muitas vezes
antagônica a ele, pode ser um enorme alívio, mas também uma carga descomunal.
Observando aspectos de identidade na pintura desses santos, é possível
perceber que Bosch deu voz para aqueles que, no silêncio do deserto, expressam
nossa realidade gritante: a solidão e a angústia, o caráter agônico da existência,
esse Mysterium Magnum enraizado na alma humana. Mistério que Bosch, o “pintor
de Santo Antão”
29
, como o denominou André Chastel, figurou de forma mais
vividamente detalhada no tríptico de Lisboa, Tentações de Santo Antão.
IV. 3 TENTAÇÕES DE SANTO ANTÃO
O que mais surpreende neste tríptico é a proliferação de figuras monstruosas
em um tema que não é nem inferno nem Juízo Final, ainda que na literatura da
época ou na iconografia sejam encontradas inúmeras imagens grotescas que
poderiam ter servido de fonte para Bosch. Em Vida de Santo Antão, escrita por
Santo Atanásio e traduzida para o holandês em 1490, vários diabos, em forma de
leão, dragão, urso, lobo, serpente, infligem tormentos ao eremita em seu retiro no
deserto egípcio; igualmente, ocorre em A Legenda Áurea, de Varazze, cuja primeira
impressão holandesa veio à luz em 1478, e em Vitae Patrum, vertido para o
holandês nos anos 1480, além dos relatos da superstição popular e das inúmeras
29
André CHASTEL, La tentation de Saint-Antoine ou le songe du mélancolique. Gazette des Beaux-
Arts, XV, p. 218.
205
descrições feitas pelos inquisidores dos rituais de bruxaria, com suas cavalgadas
pelo ar, seus sacrifícios humanos e das cenas infernais da missa negra.
30
Fig. 36 Tentações de Santo Antão. Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga. Tríptico Aberto.
Sem dúvida, alguns motivos do tríptico de Lisboa estão relacionados à
hagiografia tradicional. O episódio no qual o santo, em êxtase, é arrebatado e
transportado por demônios pelos ares e, depois de sua queda, sustentado por dois
monges antoninos e um personagem laico, identificado algumas vezes como auto-
retrato do pintor
31
, está indicado no painel esquerdo. O encontro do santo com a
rainha que se banha no rio
32
, parece retratado no painel direito, que mostra uma
mulher desnuda, que se oculta sensualmente na fenda de um tronco de árvore seco.
A torre semidestruída do painel central lembra a fortaleza abandonada às margens
do Nilo, na qual, segundo Santo Atanásio, o eremita ficara recluso.
33
Esses
momentos da vida do santo, mesmo que representados em meio a uma diversidade
de criaturas heteróclitas e de elementos alheios ao tema, como a missa negra no
painel central, por exemplo, têm sido tomados pelos comentadores, que tendem a
uma opinião moralizante, para explicar o tríptico como uma advertência de Bosch
30
Cf. Mia CINOTTI, La obra pictórica completa de El Bosco, p. 106.
31
Cf. cap. I, p. 35, fig. 5. Cf., também, Dirk BAX, Hieronymus Bosch, his picture-writing deciphered,
p. 40; Charles DE TOLNAY, Jérôme Bosch, p. 337; Walter GIBSON, Hieronymus Bosch, p. 142.
32
Cf. Dirk BAX, Hieronymus Bosch, his picture-writing deciphered, p. 41.
33
Cf. Charles DE TOLNAY, Jérôme Bosch, p. 338.
206
quanto aos extravios humanos em um mundo de pecado, império de Satã, uma
crítica às superstições populares que trocam o reto caminho de Cristo pelos saberes
ocultos, demoníacos, da magia, da astrologia e da alquimia.
Todavia, lembremos que foi escrevendo sobre a vida do eremita, que
Atanásio introduziu a ideia de acédia no vocabulário cristão para indicar um dos
efeitos gerados na alma pela aparição dos demônios. Ideia que influenciou
fortemente Evagrio que lhe dispensou especial atenção, dedicando-lhe o mais longo
dos oito capítulos do seu Tratado Prático. Desde então, a acédia passou a designar
a mais temível das tentações. É interessante notar que o contrário de acédia, na lista
das virtudes, é a paciência (hipomonè), entendida, em seu sentido forte, como
“resistência”.
34
Dessa forma, sua essência não pode estar sob o signo da preguiça,
como se popularizou posteriormente. Segundo Evagrio, a dor e os pensamentos
obsessivos que pesam sobre o acedioso de nenhuma forma se devem à indolência
ou à apatia; esse peso é “tensão interior, impaciência febril ou prostrada, ennui
35
.
Ou seja, seu caráter distintivo é a angústia e o desespero. Também, de acordo com
São Tomás de Aquino, é falsa a afirmação de que a acédia é preguiça, “pois a
preguiça opõe-se ao zelo, e a satisfação espiritual opõe-se à acédia”
36
. A partir da
reunião, numa síntese rigorosa e exaustiva, das observações dos Padres em sua
Suma Teológica, São Tomás definiu a acédia como um recessus a bono divino, um
afastamento do bem divino; uma fuga de Deus; uma separação dramática.
37
Por
conseguinte, não é a consciência de um mal o que aflige o acedioso, mas sim a
dificuldade de assumir o compromisso diante de Deus e a responsabilidade pelas
possibilidades espirituais, fundamento da experiência encarnada. A acédia não é um
pecado da ação, mas um pecado do coração, aquele “desgosto do coração” como
assinalou João Cassiano
38
, ou a “apatia do coração” da qual fala Walter Benjamin
em sua sétima tese da história da filosofia
39
. O acedioso retrai-se na busca do
caminho da realização espiritual que daria significado e sustentação para sua
34
Cf. Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 202, nota 2.
35
Tratado Prático. In: Patrick DANDREY, Anthologie de l’humeur noire, p. 203.
36
Apud Giorgio AGAMBEN, Estâncias, p. 29.
37
Cf. Michael THEUNISSEN, Anteproyectos de modernidad: antigua melancolía y acedia de la Edad
Media, p. 51 e p. 57.
38
Cf. p. 102.
39
Apud Michael THEUNISSEN, Anteproyectos de modernidad: antigua melancolía y acedia de la
Edad Media, p. 53.
207
existência. Assim, vive uma ambigüidade essencial que se manifesta como
desespero e ao mesmo tempo como apatia. Deseja ardentemente o encontro com o
divino e desesperadamente toma a dificuldade de fazer o caminho necessário como
inevitável desistência. Em termos psicológicos, a necessidade de atualizar as
potências arquetípicas, sendo ou não reconhecida pela consciência, é imperativa e
se expressa inequivocamente. O indivíduo tem sua consciência retraída,
obscurecendo o reconhecimento da determinação do significado espiritual de seu
desenvolvimento. A despeito desse movimento unilateral da consciência, o Self se
expressa em sua magnitude e exuberância, convocando todo o ser a espelhá-lo em
suas ações. O acedioso não deixa de desejar o encontro com a totalidade, mas se
prostra diante da missão, paralisando-se num deserto de incertezas e dúvidas que
lhe inspiram profundo terror. Como acertadamente diz Agamben,
A retração do acedioso não delata um eclipse do desejo, mas sim o fato de
tornar-se inatingível o seu objeto: trata-se da perversão de uma vontade que quer o
objeto, mas não quer o caminho que a ele conduz, e ao mesmo tempo deseja e
obstrui a estrada ao próprio desejo.
40
A sabedoria psicológica dos Padres do Deserto parece que foi ignorada pelos
comentadores da obra bosquiana em detrimento de uma interpretação superficial
que a reduz a uma denúncia moral que opõe a virtude ao vício. Bosch, pom,
intuitivamente expressou no tríptico de Lisboa essa tentação das tentações, que
traduzimos como melancolia religiosa, o processo da alma humana que tal como o
forno dos alquimistas
41
, com seu fogo lento, “tortura” a matéria para que ela se
transforme. Paixão das paixões, não imagem que a circunscreva, que o objeto
que ela designa é indefinido.
42
O que tenta o santo não é a luxúria ou a gula, que
aparecem no painel direito, facilmente rechaçáveis quando se tem um firme
propósito, mas o abismo incomensurável “que se abre entre o desejo e o seu
inapreensível objeto”
43
. Por isso, suscita imagens sem fim, como as que se
espalham pelo tríptico. Enumerá-las, pois, seria nos perder nessa confusa e rica
rede de detalhes, exatamente como quer o “demônio do meio-dia”. É isso que Bosch
40
Giorgio AGAMBEN, Estâncias, p. 29.
41
Acedia era o nome dado pelos alquimistas ao forno no qual a matéria passava pelo processo de
transformação. Cf. Yves HERSANT, Mélancolies, p. 781.
42
Cf. p. 101.
43
Giorgio AGAMBEN, Estâncias, p. 30.
208
provoca no observador, de forma tão viva e impressionante: o desespero de não se
poder fixar em nenhum ponto e, ao mesmo tempo, a curiosidade de investigar cada
pormenor. Desespero que, como suspeita Pascásio Radberto, é assim chamado
porque a ele falta o para andar no caminho de Cristo
44
. Suspeita essa que pode
ser apenas uma audaz especulação, mas que pode, também, ter um significado
simbólico. Observemos que no meio do painel central, em uma espécie de
plataforma, a maior extensão o ocupada por qualquer figura, se comparada ao
resto do tríptico, esum pé cuidadosamente colocado sobre um pano branco (como
em São Bavo), em linha direta com Santo Antão e com o Cristo crucificado, quase
imperceptível, dentro da construção em ruínas. Teria sido esta a intenção do pintor
de ‘s-Hertogenbosch?
Notemos que Santo Antão, situado no ponto médio do painel central, é o eixo
do tríptico sobre o qual se fecham os painéis exteriores, onde estão pintadas duas
cenas da Paixão. À esquerda, a tortura no Jardim do Getsêmani, onde Jesus
experimenta a mais profunda angústia e, no entanto, exclama: “Não se faça contudo
a minha vontade, senão a tua!” (Lc 22,42). O que podemos entender, numa
perspectiva psicológica, como modelo de resistência e de entrega: a alma aflita que
reconhece sua pequenez bem como sua responsabilidade em refletir o fundamento
da existência. À direita, o momento em que Cristo, a caminho do Calvário, sucumbe
ao peso da cruz e Verônica limpa-lhe o suor do rosto. Mais uma vez a presença do
elemento feminino, que surge aqui como uma alusão ao sustento do esforço na
busca da integralidade. Elemento essencialmente de relação, potência estruturante
para o encontro, ou seja, força motriz da reunião, o feminino funciona como
verdadeiro “vaso alquímico”, um recipiente acolhedor e germe de toda união.
Elemento fecundante que acolhe, recolhe e aprofunda o contato com o princípio
criador, no plano do intuído e do desejado. Neste sentido, o feminino representa o
desejo e a nostalgia (dor pelo lar) do encontro e da recuperação de um estado uno,
único e essencial.
44
Apud Giorgio AGAMBEN, Estâncias, p. 30.
209
Fig. 37 Tentações de Santo Antão. Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga.
Tríptico fechado
Santo Antão encarna, assim, para o pintor brabantino, a alma humana em seu
constante e contraditório movimento de fuga de e fuga para”, tomando
emprestado as palavras de Agamben
45
. Talvez Bosch, quase cinco séculos antes,
poderia ter dito com Aldous Huxley que a acédia, que podemos ler como a
melancolia religiosa, “não é nem pecado, nem uma doença dos hipocôndrios; ela é
um estado de espírito que nos impôs o destino”
46
.
IV. 4 O SALVADOR
Terminamos esse percurso pelas obras bosquianas com uma imagem que o
próprio Bosch apresenta: Ecce Homo. Neste quadro de Frankfurt, observamos a
expressão do homem “consumido pelo horror”, solitário e desamparado. O homem
45
Giorgio AGAMBEN, Estâncias, p. 32.
46
Apud Yves HERSANT, Mélancolies, p. 782.
210
Jesus, com as mãos amarradas, coroado com espinhos, quase nu, mostra sua carne
sangrando pelos golpes de chicotes. Pilatos, às suas costas, distante e indiferente,
entrega-o a uma feroz multidão que grita: Crucifige eu[m] (crucifica-o). Apenas dois
perfis sombreados, no canto inferior esquerdo, quase imperceptíveis, suplicam:
Salve nos Chr[ist]e r[e]de[m]ptor.
Figura 38 Ecce Homo. Frankfurt, Städelsches Kunstinstitut und Städische Galerie.
A multidão indiferenciada, como um rebanho monstruoso, movida pela paixão
do poder, toma a Paixão de Cristo, feita humanidade em carne viva, como alvo de
sua fúria, terror e condenação. A massa indistinta de pessoas procura manter alijado
de si e projetado no outro aquilo que lhe pertence e lhe define. A fragilidade, a carne,
o sangue e o pathos ficam retratados em Cristo e reconhecidos por poucos, ainda
imersos em sombras, por representarem a insipiência de uma consciência que se
esforça em emergir. Cristo catalisa o mistério de morte e de ressurreição que deve
se realizar em cada ser; promove uma iniciação, uma tomada de consciência da
filiação divina que o Logos revela e desperta em cada um. É neste despertar único e
211
individual que o ser caminha para dentro de si e encontra toda a humanidade,
fazendo cumprir a finalidade espiritual e o destino sagrado da existência. É o
momento em que o indivíduo está no mundo em sua forma encarnada ao mesmo
tempo em que se percebe não ser deste mundo por pertencer à totalidade infinita.
Como disse Jung: “o drama da vida de Cristo nos uma descrição, através de
imagens simbólicas, daquilo que se passa tanto na vida consciente como na vida
que está além da consciência do homem, o qual é transformado por seu destino
mais alto”
47
. Isso significa que se o homem pode perceber a si mesmo como um
ego, e a totalidade psíquica, o Self, não sendo passível de qualquer descrição,
manifesta-se indistintamente como imago Dei, o processo de desenvolvimento
psíquico, isto é, de criação e ampliação da consciência, em termos religiosos ou
metafísicos, é análogo à encarnação divina. Como esse processo consiste em uma
“tarefa heróica ou trágica [...], ela implica o sofrimento, a paixão do ego, ou seja, do
homem empírico, do homem comum, atual, quando entregue a um domínio mais
amplo e despojado de sua ppria vontade, que se julga livre de qualquer coação”
48
.
Se Bosch inicia sua reflexão sobre a vida e o destino humanos colocando
sobre a Mesa a necessidade da diferenciação da unidade inicial na multiplicidade
das experiências vividas, com sua conseqüente ferida, no quadro de Frankfurt
mostra sua expressão máxima na figura de Cristo que assinala a diferenciação e a
aproximação Criador-criatura numa vivência que toma por referência a imagem
semelhança: é o Outro e, ainda assim, o Mesmo. A experiência da dor de Cristo, o
clamor por amparo, a necessidade de compreender o sentido das coisas vividas e o
profundo sentimento de solidão, representado pelo mais absoluto abandono, que faz
ansiar por uma urgente comunhão com o Uno protetor, revelam, de modo
inequívoco, um percurso necessário, doloroso e solitário de encontro de significados
que coroem esse calvário de glória. Glória que advém da possibilidade de
transformar desespero em seu contrário: a paz de ver uma orientação e uma direção
no caminho percorrido. Caminho, tema insistente na obra bosquiana, aludido na
própria disposição da pintura em quatro planos, formando uma cruz: o posterior, no
qual se observa uma cidade longínqua, inconsciente da cena brutal que se
47
C.G.JUNG, A interpretação psicológica do Dogma da Trindade, p. 45.
48
Ibidem.
212
desenrola no primeiro plano, o anterior; e o esquerdo, com Cristo sendo entregue à
massa enfurecida, no direito. Caminho que indica o destino de Cristo, a crucificação.
Caminho que também vemos retratado em Cristo carregando a cruz,
expressão direta do drama.
Figura 39 Cristo carregando a cruz. Ghent, Museum voor Schone Kunsten
Paradoxalmente, o pintor brabantino não recorre à perspectiva, utilizando
um único plano para todas as figuras. Não há espaço, não há mundo. Como escreve
Delevoy, é um “mundo sem dimensão. Mundo sem mundo. Espaço sem espaço.
Inferno do inferno.”
49
Cristo, com os olhos fechados, recolhido em sua profunda dor,
despido de seus atributos divinos eternos e infinitos, carrega a cruz da natureza
humana, em meio a uma multidão de faces grotescas e bestiais, que lembram as
criaturas monstruosas do Juízo Final ou das Tentações de Santo Antão, que
agora em sua forma humana. Uma forma deformada, como se fosse uma máscara,
construída pela inconsciência e pela hybris, reduzida às aparências e que podem se
tornar grotescas ao não contemplar o ser em sua identidade original, desvinculado
de sua alma e de sua missão. Máscaras que desfiguram e simulam uma existência
49
Robert L. DELEVOY, Bosch, p. 60.
213
que se perdeu na poeira da alienação e da simulação de uma nobre humanidade
não reconhecida e muito perdida. No próprio movimento de afastamento do Self,
temos a perda da face humana que este contato promove, com a consequente
denúncia da marca sombria infringida. Na imagem pintada por Bosch, Cristo aparece
de olhos fechados, numa clara representação da visão interior que não se deixa
descaracterizar pelas aparências. É a reconciliação do homem com Deus. Como diz
Mestre Eckhart,
Agora o homem pode reconhecer claramente por que e donde lhe vem o desconsolo
em todos os seus sofrimentos, desventuras e males. Ele nasce sempre e tão-
somente do seu distanciamento de Deus, da falta de liberdade em relação à criatura,
da desigualdade com Deus e da frieza no amor a Deus.
50
Todavia, a obra de reconciliação não é um pagamento de uma dívida, não se
trata de uma imitatio Christi de forma exterior. Bosch mostra, em suas pinturas, que
o critério moral não se resume à lei ou à convenção, mas à consciência reflexa, isto
é, a vivência genuína daquele que se entrega à sua própria natureza, vivendo, como
Cristo, sua própria vida com todas as suas conseqüências, experenciando o
desconhecido (inconsciente) com seriedade e sacrifício, assumindo a
responsabilidade de realizar em si mesmo a união de suas próprias antinomias,
ciente de não poder se libertar do “espinho fincado na carne”. É um caminho de
sangue e de sofrimento, semelhante a qualquer outro passo na estrada da evolução
da consciência humana. Contudo, poderia o homem suportar um aumento de
consciência? A obra de Bosch, que expressa de forma magistral a realidade
paradoxal da condição humana, talvez pudesse ser sintetizada nas palavras de
Cristo: “Ó homem, se sabes o que estás fazendo, és feliz; se, porém, não sabes o
que estás fazendo, és um maldito e um transgressor da lei”
51
.
50
MESTRE ECKHART, O livro da divina consolação e outros textos seletos, p. 68.
51
Apud C.G.JUNG, Resposta a Jó, p. 76. Trata-se de uma interpolação apócrifa de Lc 6,41.
214
CONCLUSÃO
Cientes de que esse trabalho constitui tão somente mais uma tentativa, dentre
tantas, de aproximação a uma temática tão profunda quanto perene, encerramos
essa nossa peregrinação pelas paisagens labirínticas bosquianas sem que nossas
dúvidas tenham se dissipado. E nem poderia ser diferente, pois o “enigma Bosch” é
assim denominado não sem razão: em suas imagens vemos estampado o próprio
enigma da vida. Imagens que funcionam como inspiração, como verdadeira
impressão, que mobilizam, que e-mocionam, pois tocam nosso ser mais profundo
despertando a memória no sangue, o que permite reconhecer em seus motivos e
temas aquilo que sempre estará vivo na arte: sua capacidade de nos remeter a uma
outra realidade e nos fazer reconhecer a finalidade de realizarmos nossa
humanidade compartilhada. Esse é o caráter universal da verdadeira obra de arte:
simbólico e transformador, é capaz de nos colocar em contato com aquilo que nos
define íntima e estruturalmente, elevando o destino pessoal ao destino da
humanidade.
No intuito de conhecer um pouco mais sobre esse pintor, cuja vida é tão
enigmática quanto sua própria obra, iniciamos nosso percurso com os poucos dados
que nos chegaram de sua história, através dos registros de sua cidade natal,
material pouco evidente que se mescla com as mais diversas e contraditórias
interpretações sobre a sua obra, sem deixar de considerar o contexto de crise que
se apresentava no final do medievo, peodo em que viveu o pintor brabantino.
Chamou-nos a atenção, no entanto, que, se de um lado, alguns comentadores
afirmaram seu caráter de predicação, por outro, houve aqueles que apontaram para
a vivência de um conteúdo espiritual que poderia refletir a própria existência
215
humana: a vivência de uma ruptura, o sogni dei pittori. Mas à qual ruptura estaria se
referindo a obra bosquiana?
Movidos pela hipótese de que a obra bosquiana é uma atualização de um
processo típico da alma humana, a contradição cravada no “coração da condição
humana”, fundamento da melancolia, seguimos, no capítulo dois, fazendo um
levantamento da história deste conceito que aponta para uma dualidade expressa no
próprio termo que o nomeia, como foi cunhado em sua origem na medicina
hipocrática. Mapeando sua trajetória, foi possível perceber que a dificuldade em se
precisar o conceito de melancolia, restringindo-o ao campo da medicina, deve-se ao
fato de que, para além de uma patologia, a melancolia se refere a uma experiência
e, como tal, não pode ser expressa de maneira unívoca em um conceito, pois
ultrapassa nossas categorias de linguagem. Essa ambiguidade do tema indica seu
caráter simbólico, sustentando o conceito de melancolia religiosa que nos serviu de
apoio para a interpretação das imagens bosquianas. Interpretação essa que foi feita
a partir da psicologia analítica de Carl Gustav Jung, que vê na obra de arte o ressoar
da imagem primordial. Uma análise simbólica, a partir de uma perspectiva
psicológica junguiana, remeteu-nos a questões fundantes da alma humana, sua
origem e destino, da trajetória melancólica de um ser que procura um significado
para sua existência
A obra de Bosch, para nós, tal qual um espelho, reflete nossa condição de
humanos. Retrato intuído a partir das imagens que buscamos analisar nos capítulos
III e IV. Um retrato do humano e sua relação com a potência divina, seu fundamento
espiritual, e com seu destino de criatura mortal. Um retrato do homem pós-queda,
sua condição trágica resultante do afastamento de sua essência sobrenatural, cuja
existência é marcada pela melancolia. A melancolia que, como símbolo, ultrapassa
a horizontalidade da consciência e alcança a verticalidade da alma, é o sentido
espiritual da condição humana refletindo no sofrimento do corpo a agonia da alma, o
afastamento e a privação da imagem divina. A melancolia simboliza o desamparo da
criatura e o desejo de aproximação e reconciliação com seu Criador, fundamento de
seu ser. Portanto, um processo típico da alma, um estado pquico que marca a
condição do humano.
As imagens de Bosch refletem, assim, uma questão intemporal: a existência
humana, sua paradoxal condição de laceração e privação. Neste sentido, o caráter
216
religioso da obra de Bosch o se reduz à pregação ou à moral tomada a partir de
um código moralizante e de costumes. Antes se refere ao aspecto ético, isto é, à
atitude do homem em assumir a responsabilidade de sua existência no mundo,
consciente de seu fundamento originário, ciente de que suas decisões não são
produto apenas de sua consciência racional, mas emergem das águas escuras das
profundezas do seu ser. Bosch evidencia uma nova forma de experimentação
religiosa, construída na intimidade e na interioridade. Suas imagens, entre o
grotesco e o sublime, apontam a paradoxalidade da condição humana, que só
adquire significado na experiência encarnada, na materialidade do corpo, cuja
existência é sustentada pela imaterialidade da alma, revelando, assim, o processo
típico da alma humana, o caráter melancólico da existência presente em sua obra. É
assim que o pintor responde aos seus contemporâneos mostrando a realidade da
natureza humana para um mundo que vivia a religião de maneira formal, instituída e
secular. Natureza esta que se afigura irreal se considerada do ponto de vista
racional, mas que se entendida em seu significado maior, como graça, transforma-se
numa fantástica realidade.
217
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