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Obrando en autos, obrando en vidas:
formas e fórmulas de Proteção Judicial
dos tribunais Prevencionais de Menores de Córdoba,
Argentina, nos começos do século XXI
María Gabriela Lugones
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-
graduação em Antropologia Social, Museu Nacional,
da Universidade Federal de Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do título
de Doutora em Antopologia Social.
Orientador: Prof. Dr. Antonio Carlos de Souza Lima
Rio de Janeiro
Setembro de 2009
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Obrando en autos, obrando en vidas:
formas e fórmulas de Proteção Judicial
dos tribunais Prevencionais de Menores de Córdoba,
Argentina, nos começos do século XXI
María Gabriela Lugones
Prof. Antonio Carlos de Souza Lima
Tese doutoral submetida ao corpo docente do Programa de Pós-graduação em
Antropologia Social, Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como
parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor.
Aprovada por:
__________________________________________________
Presidente, Prof. Antonio Carlos de Souza Lima
Doutor, PPGAS/UFRJ
___________________________________________
Prof. Adriana de Resende Barreto Vianna
Doutora, PPGAS/UFRJ
___________________________________________
Prof. João Pacheco de Oliveira Filho
Doutor, PPGAS/UFRJ
___________________________________________
Prof. Claudia Lee Williams Fonseca
Doutora, PPGAS/UFRGS
___________________________________________
Prof. Beatriz Alasia de Heredia
Doutora, IFCS/UFRJ
Rio de Janeiro
Setembro de 2009
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Obrando en autos, obrando en vidas:
formas e fórmulas de Proteção Judicial
dos tribunais Prevencionais de Menores de Córdoba,
Argentina, nos começos do século XXI
Resumo
Esta tese trata de exercícios de poder administrativo-judicial realizados nos
tribunais Prevencionais de Menores da cidade de rdoba, Argentina, sobre
determinados meninas, meninos e adolescentes ‘sem conflito com a lei penal’ e
seus pais ou guardiães, nos primeiros anos do culo XXI. o exploradas
formas e fórmulas de gestão de minoridades no contexto de um processo de
readequações legais e institucionais na esteira da Convenção Internacional dos
Direitos da Criança, focalizando nas atuações rotineiras efetuadas pelas
administradoras da Proteção Judicial. A partir de uma abordagem etnográfica
das atuações judiciais portanto, estatais este texto descreve técnicas
administrativas de minorização e reflete acerca de seu viés tutelar.
Rio de Janeiro
Setembro de 2009
Obrando en autos, obrando en vidas:
formas e fórmulas de Proteção Judicial
dos tribunais Prevencionais de Menores de Córdoba,
Argentina, nos começos do século XXI
Resumen
Esta tesis trata ejercicios de poder administrativo-judicial, realizados en los
tribunales de Menores Prevencionales de la ciudad de Córdoba, Argentina,
sobre determinados niñas, niños y adolescentes ‘sin conflicto con la ley penal’
y sus padres o guardadores, en los primeros años del siglo XXI.
Se exploran
formas y fórmulas de gestión de minoridades en el contexto de un proceso de
readecuaciones legales e institucionales en la estela de la Convención
Internacional de los Derechos del Niño, focalizando en las actuaciones
rutinarias efectuadas por las administradoras de la Protección Judicial. A
partir de un abordaje etnográfico de las actuaciones judiciales por ende,
estatales– este texto describe técnicas administrativas de minorización, y
reflexiona acerca de su impronta tutelar.
Rio de Janeiro
Setembro de 2009
Agradecimentos
Agradeço ao Museu, inseparável para mim das aulas inesquecíveis e das leituras críticas
— em diferentes momentos da investigação que apresento — dos professores Lygia
Sigaud (in memoriam), Luiz Fernando Dias Duarte, Moacir Palmeira e João Pacheco de
Oliveira.
Minha gratidão maiúscula é para o Antonio Carlos de Souza Lima cujos textos
instigantes, estímulo intelectual e orientação paciente tornaram possível esta tese;
e para a Adriana Vianna, por seu generoso apoio, e seus textos iluminadores, sem os
quais este resultaria impensável.
O diálogo e a presença fraterna e amiga de María Virginia Lugones, Mario Rufer, Paula
Gaido, Gustavo Blázquez, Paola Dauría, María de Los Angeles Bonzano, Andrea
Peiteado, John Commerford, Ana Luiza Beraba, Malu e Andreia Resende, Mariana e
Facundo Lugones foram fundamentais nesses anos de vida e de pesquisas. Quero
agradecer-lhes aqui e sempre.
Meu agradecimento se estende a Mary Beloff por seu entusiasmo nesta investigação; a
Leticia Lacerda por suas interpelações; a CAPES, FAPERJ e CNPq pelo suporte
econômico com que me brindaram; a Carla Regina Paz de Freitas, Lourdes Cristina
Araújo Coimbra y Alessandra Orrico Câmara, da Biblioteca del PPGAS, por sua
gentileza e colaboração em todos estes anos.
A companhia vital e insubstituível — imprescindível também para esta tese — de
Federico Lavezzo torna insuficiente todas as formas de expressar o meu agradecimento;
apenas deixo por escrito estas palavras.
E agradeço especialmente às administradoras judiciais do foro cordovês Prevencional
de Menores, fundamentais para esta tese.
A todas e a todos os meninos, os jovens, os homens e as mulheres que passaram pelos
tribunais Prevencionais de Menores da cidade de Córdoba nos inícios do corrente século
devo o meu mais profundo reconhecimento, presente em parte ao longo das páginas que
se seguem e que é, em maior medida, absolutamente inefável.
Ao "tata" Horacio Ciriaco Lugones
e a Dom Julio Rodriguez Ortega,
meus avós.
À sra. Clara Rosa Juarez,
que queria que eu fosse “doutora”.
In memoriam.
De certo modo, acho que sempre escrevemos sobre algo
que não conhecemos, escrevemos para dar ao mundo
não-escrito uma oportunidade de expressar-se através de nós.
Mas, no momento em que minha atenção vagueia da orden
estabelecida das linhas escritas para a complexidade mutável
que nenhuma frase consegue apreender totalmente,
chego quase a entender que além das palavras há
algo que as palavras poderiam significar.
Italo Calvino
A palavra escrita e a não-escrita
Siglas
CDN: Convenção dos Direitos da Criança
CN: Constituição Nacional
CPC: Centros de Participação Comunal, pertencentes à Municipalidade de Córdoba
ILANUD: Instituto Latino-americano das Nações Unidas para a Prevenção do Delito e
o Tratamento do Delinquente
SPINA: Subsecretaria de Proteção Integral da Criança e do Adolescente, da província
de Córdoba
S.S.: “Sua Senhoria”
UNC: Universidade Nacional de Córdoba
TSJ: Tribunal Superior de Justiça da província de Córdoba
UNICEF: Fundo das Nações Unidas para a Infância
UNICRI: Instituto Inter-regional das Nações Unidas para Investigações sobre a
Delinquência e a Justiça
Obrando en autos, obrando en vidas.
Formas e fórmulas de Proteção Judicial dos tribunais Prevencionais de
Menores de Córdoba, Argentina, nos começos do século XXI
Índice
Parte I. Premissas e itinerários de investigação
I.1 Considerações preliminares 9
I.2 Trajetos e pesquisas 18
I.3 Organização desta tese 35
Parte II. Ideários, codificações e autos da Proteção Judicial da Criança
II.1 Horizontes de referências legais 38
II.2 Uma vulgata dos direitos da criança 47
II.3 A “Proteção Judicial” em autos 59
Parte III. Uma administração (não tanto) pública
III.1 O Palácio de Justiça da cidade de Córdoba 67
III.2 Entre corredores, balcões e salas dos tribunais 74
III.3 “As atuações serão reservadas” 102
III.4 “O que se toma e o que não se toma” 107
III.5 Etapas prévias 118
Parte IV. Gestões de ‘pequenas juízas’
IV.1 De tudo o que é uma audiência 126
IV.2 Mnemotécnicas para administrar fragmentações 139
IV.3 Uma ‘pequena juíza’: a empregada que leva a causa 154
IV.4 Formadas em Menores 167
Parte V. Técnicas de minorização
V.1 Formas de aconselhamento 181
V.2 Fórmulas de compromisso 193
V.3 ‘Ministério Pupilar’ 203
V.4 Reflexões finais 210
Referências bibliográficas 214
Anexos 227
A. Organograma do Poder Judicial da cidade de Córdoba /Organograma da
Subsecretaria de Proteção Integral da Criança e do Adolescente (SPINA)
B. Extrato de Estatísticas Oficiais do Poder Judicial de Córdoba
C. Panorâmica da casuística tramitada no foro Prevencional de Menores de
Córdoba
D. Relação de assistência e participação em cursos, conferências, jornadas de
debate relativos a Direitos da Infância
E. Lista de cursos do Centro de Capacitação Judicial Ricardo Núñez (Poder
Judicial de Córdoba)
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Parte I
Premissas e itinerários de investigação
I.1 Considerações preliminares
O presente trabalho trata de exercícios de poder administrativo-judicial realizados
nos tribunais Prevencionais de Menores da cidade de Córdoba, Argentina, sobre
determinados meninos, meninas e adolescentes 'sem conflito com a lei penal' e seus pais
ou guardiães nos primeiros anos do século XXI.
!
O marco é um processo, ainda em
aberto, que se presume na Argentina como de decomposição do modelo, da legislação e
das instituições do Patronato de Menores, símbolo da chamada 'doutrina da situação
irregular'. Mais especificamente, esta tese estuda as modalidades de gestão de
menoridades que estão sendo (re)produzidas por tal administração judicial “no
prevencional e civil”.
Esta tese descreve etnograficamente as práticas de Proteção Judicial,
contemplando para isto – como pano de fundo — os ideários e os debates normativos na
esteira da Convenção Internacional dos Direitos da Criança, mas procura, sobretudo,
descrever as operações da administração judicial.
d
ATENÇÃO: No presente trabalho serão utilizadas as aspas “duplas” para as citações diretas, de
literatura, documentação produzida pelo poder judicial, legislação e expressões coletadas com as pessoas
entrevistadas.
As aspas 'simples' serão utilizadas para ressaltar as palavras usadas no âmbito judicial, como nos espaços
de especialistas pertencentes ou não ao Poder Judicial de Córdoba.
Usarei itálicos e sublinhados para destacar uma palavra ou uma frase.
S.S. (“Sua Senhoria”) adota-se para denominar o/a juiz/juíza; aproprio-me do uso administrativo-judicial
de tal sigla tanto de forma escrita (em textos dos autos), quanto na linguagem coloquial no âmbito da
administração judicial em estudo.
Para o caso de empregadas e funcionárias, não se utilizará a regra que impõe a língua castelhana, segundo
a qual diante da variedade genérica prevalece a forma masculina para denominar o conjunto (no plural);
para este emprego (de um plural feminino), recordar que, ao longo de todo o texto, embora existam
alguns empregados e funcionários homens, a grande maioria de empregados/as e funcionários/as e
Assessoras de Menores desses 'tribunais' prevencionais são mulheres. Mas não os/as titulares dos
Tribunais que, nos anos de realização de minhas observações (2005 e 2006), eram dois juízes e duas
juízas no Prevencional e Civil da cidade de Córdoba.
As citações em destaque, originárias da literatura publicada em castelhano, foram traduzidas, neste texto,
para a língua portuguesa.
Os nomes utilizados para se referirem tanto às empregadas e às funcionárias do Juizado Prevencional de
Menores e da Assessoria de Menores observados, como também a meninas, meninos e adolescentes e
seus pais, tutores e guardiães, são fictícios.
9
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Minha preocupação é explorar fórmulas de gestão que sejam operadas
administrativo-judicialmente em relação a meninas e a adolescentes cujas situações de
possíveis “vítimas de delitos ou faltas, maus-tratos, negligência, exploração” ou
abandono, denunciadas junto a alguma instância (policial, judicial, subordinada ao
Poder Executivo etc.), podem dar lugar a atuações com o declarado propósito legal de
“restabelecer os seus direitos vulnerados”.
1
Para compreender a complexidade dessas operações, tentei desagregar os variados
elementos que compõem um “processo”, contestando desta forma o sentido comum, não
judicial, que naturaliza a identificação auto/processo. Para isto, considerei frutífero
rever os processos em sua elaboração, etnografá-los como uma via para produzir
conhecimento relativo aos tribunais Prevencionais de Menores.
As atuações localizam-se, como foi dito, no contexto de um processo de
reformas legais e institucionais na esteira da CDN, postulado como de adequação aos
princípios da 'doutrina da proteção integral'.
Tal contexto poderia ter contribuído para conformar uma situação privilegiada
para pesquisar reconfigurações não institucionais, mas também das práticas
administrativo-judiciais. Não obstante, aquela que imaginei — por ocasião do projeto de
tese como uma oportunidade para acompanhar uma reconfiguração dentro desses
exercícios administrativo-judiciais de poder, assim o foi, mas não porque tivessem
mudado súbita e radicalmente as práticas administrativo-judiciais em função das
reformas legais precedentes, mas sim porque sua manutenção me levou novamente a
investigar em outras dimensões que ultrapassam as transformações legais.
Em correlação com tais mudanças legais, afirma-se uma pergunta que norteou esta
investigação, e que tornou necessário o trabalho de campo realizado em Tribunais:
como, em que pesem as cambiantes e dissímiles normas vigentes, eram tramitados os
processos?
2
A tentativa de perceber e identificar quais foram as ferramentas empregadas
para processar administrativamente determinadas situações que envolvem 'menores'
1
As citações correspondem a trechos do artigo da Lei provincial nº 9053 da Proteção Judicial da Criança
e do Adolescente”, vigente na província de Córdoba desde fins de 2002, que prescreve, além disso, que o
Juiz de Menores no Prevencional e Civil “será competente para conhecer e resolver” quando o próprio
“menor de idade” comprometa gravemente sua saúde com o seu comportamento e assim o requeiram seus
pais, tutores e guardiães (parágrafo do inciso f , artigo 9° da lei citada).
2
Para um quadro sintetizado das etapas procedimentais dos processos, organizei um Fluxograma de
atuações relativas a Tribunais Prevencionais de Menores que será apresentado no item II.3, “A Proteção
Judicial em autos”.
10
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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impôs considerar atentamente as atuações da administração judicial. Quais eram, além
das legais, as ferramentas empregadas para processar administrativamente estas
menoridades exige de nós indagar como a administração judicial, sem maiores
problemas, continuava 'resolvendo', embora os marcos legais fossem altamente
contraditórios.
Bem além das remissões genealógicas possíveis que poderiam remeter a tempos
coloniais, o que pude corroborar, a partir das observações e das indagações em primeira
mão não com documentação, mas também com agentes cujas trajetórias
remontam meio século atrás nesses tribunais é a força e a persistência das rotinas
sedimentadas ao longo dos seus 50 anos de vida. Isto levou a centrar a análise na
cotidianidade desses tribunais Prevencionais de Menores; e não implica desconhecer
que essas formas de gestão foram impactadas por esse 'novo paradigma da Proteção
Integral', de definição de relações e sujeitos, baseado no direito internacional.
Este trabalho chama a atenção para a dimensão administrativa desses exercícios
de poder, definindo-a em oposição ao normativo em seu sentido legaliforme, e para
procurar me afastar não da ideia de aplicação de normas universais a casos
particulares e também para me distanciar da naturalizada “aplicação de justiça”
mas fundamentalmente para indagar, seguindo a inspiração weberiana, sobre os
aspectos factuais, pois a existência de leis não pode nos fazer deduzir obediência a elas.
3
A tentativa é pensar além da 'doutrina', para compreender como os 'sujeitos de
direito' são posicionados como objetos desta administração judicial através da
(re)produção de modalidades de gestão. Adoto a expressão legal Proteção Judicial para
diferenciá-la do significado aparente e imediato do termo “proteção” e de suas
conotações (no sentido de amparo, defesa). Falar-se-á de atuações de Proteção Judicial e
não de 'intervenções' por razões equivalentes. Usar o vocábulo “proteção” traz uma
conotação benéfica, assim como o termo “intervenção” conduz ao sentido contrário;
ambos carregados emotivamente. O que se trata de evitar é o efeito de rotulação que, em
lugar de promover uma abertura cognitiva, ajuda a obstruir possibilidades analíticas e
interpretativas.
4
3
Remeto-me aqui às formulações em relação à dominação patrimonial (Weber, 1996:180, 192) que foram
apropriadas por Adriana Vianna para pensar processos de guarda (Vianna, 2002).
4
Acolho aqui a advertência de Garzón Valdés em um texto em que trata a questão dos limites eticamente
justificáveis da intervenção em assuntos internos dos países. Vamos lê-la: “Não há de se esquecer que não
existe uma ação específica a que chamamos 'intervir', mas sim se intervém através de um espectro
11
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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O processo de pesquisa realizado entre agosto de 2005 e agosto de 2008, que teve
como epicentro o acompanhamento do cotidiano do Foro Prevencional de Menores de
Córdoba, conduziu às ideias-força que estão orientando esta tese. A primeira dessas
ideias-força posta em jogo nesta investigação é a produtividade de se tirar o foco da
ideia do Juiz de Menores como aquela figura onipresente que aparece delineada na lei.
Refiro-me com isto à maneira com que os textos legais estabelecem como referência
primordial, se não excludente, este magistrado, o que se reproduz nos autos.
Se “tribunal” implica a atuação de vários juízes, levanto a hipótese de que é
pertinente o termo usado pelas administradoras para se referirem às suas próprias
atuações, quando dizem que “o tribunal considera...”, que elas operariam “como
pequenas juízas” tal como as chamava S.S. [Sua Senhoria]. Em consequência, se nos
ativermos à convenção que sustenta o uso deste vocábulo para se referir a uma
magistratura de mais de um membro, estaríamos diante de um tribunal. Mais
exatamente, um tribunal em que as “pequenas juízas” não constituem, junto com o Juiz,
um tribunal pleno, no qual resolveriam em de igualdade com ele, com idêntica
responsabilidade formal (ou, ao menos, com uma percepção por parte das “pequenas
juízas” de que sua responsabilidade é equivalente à dele). Trata-se mais de um tribunal
especial, em que é precisamente o desequilíbrio de responsabilidade formal (entre o Juiz
titular e “suas” pequenas juízas) que possibilita operar em contextos como o observado,
com empregadas dotadas de uma ampla margem de manobras, e parcialmente
desligadas da responsabilidade formal das decisões.
5
A escolha do termo administradoras tem por objetivo materializar na escrita a
hipótese enunciada, a de uma superacentuação da figura do Juiz de Menores, não
apenas presente na literatura que aborda as administrações deste tipo, atuais e pretéritas
variadíssimo de ações e omissões. Esta circunstância permite utilizar o conceito de 'intervenção' como um
conceito não-neutro, com uma forte carga emotiva. Qualificar uma ação de 'intervenção' é colocar-lhe
uma espécie de rótulo pejorativo que exige a justificação da mesma. A intervenção é, neste sentido,
imputada a um agente que deve correr com a carga da prova e demonstrar que sua ação ou não era uma
intervenção ou, em caso afirmativo, que tinha boas razões morais para atuar como o fez” (Garzón Valdés,
1993a:396).
5
O estudo seminal de Tamar Herzog (1995) sobre a “Justiça Penal da cidade da Quito (1650-1750)”
chama a atenção a respeito da desmesurada influência dos subalternos no trabalho judicial (idem:38) e
critica o que qualifica como uma visão limitada da administração que resumiria sua atividade aos atos
públicos e ignoraria o trabalho de preparação (1995:87). Vamos escutá-lo: “O pessoal subalterno, cuja
importância é normalmente ignorada, parece ter constituído o núcleo duro do sistema” (1995:299).
12
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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na Argentina.
6
O termo usual na literatura (Guemureman, 2005:13) e nos âmbitos
acadêmicos é ‘operadores de justiça’ ou ‘operadores do direito’, denominação categorial
que inclui não os administradores judiciais, mas também advogados que, sem
pertencerem ao Poder Judicial, litigam em Tribunais. E esse nivelamento (operadores)
que aparece verbalmente em âmbitos de capacitação pois revestiria o brilho do
acadêmico é um termo que não distingue uma diferenciação básica, experimentada e
enunciada pelos que aqui chamo de administradores: os “judiciais” e os que não o são,
que engloba advogados/as que exercem sua profissão litigando, e aqueles que têm
desempenho como membros do Poder Judicial.
A segunda ideia-força é que para apreender a eficácia dessas atuações, é preciso se
concentrar no que designei de formas de aconselhamento e fórmulas de compromisso,
tentando representá-las em fragmentos que coagulam exercícios do poder.
7
Penso em
relações desiguais de poder e de forças relativamente estabilizadas, que não podem
prescindir de manobras rotineiras para perpetuarem dinamicamente as assimetrias de
potencial nelas presentes. Nesse universo, considero que as ações de menorização
desempenhavam um papel-chave. Os tribunais, em sua cotidianidade, exerciam um tipo
de poder que tinha em seu núcleo ações de menorização, entendendo-as como a
produção de uma posição subordinada não para os legalmente consagrados como
menores, mas também para seus pais ou guardiães.
As rotinas administrativas do foro Prevencional de Menores devem ser
compreendidas fundamentalmente como criadoras e produtoras de menoridades através
de atuações administrativo-judiciais. Uma instância da administração que tutelava, e não
apesar de sua lassidão, mas talvez graças a isto, resultava efetiva. Proteção Judicial:
relações assimétricas que (re)produziam desigualdades, e também vinculavam
segmentos sociais heterogêneos, articulando-os material e moralmente em processos
judiciais nos quais havia uma recíproca gestação de tutores e tutelados.
A partir do acompanhamento do cotidiano desta administração, entendo que as
atuações observadas são tramitações de fragmentação e procedimentos de integração da
fragmentação. Nessa dinâmica é que se “substancia” o processo, dá-se “corpo” a uma
série de procedimentos com algum grau de referência às leis vigentes e com um forte
6
Sorá (2000:308); Costa & Gagliano (2000:112); para uma caracterização a respeito dos juízes de
menores na prov. de Bs. As., Guemureman & Daroqui (2001:14, 268); Guemureman (2005:13). Para uma
análise dos juízes de menores na cidade de Bs. As., Villalta (2004:294, 304).
7
A opção como estratégia narrativa e conceitual será explicada mais adiante nesta introdução.
13
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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viés proveniente dos saberes das pessoas.
8
Estes saberes incorporados pelas
administradoras ao longo de sua própria prática de gestão eram especialmente
marcantes se considerarmos que a empregada que levava a causa se convertia em uma
referência mais forte que os autos. A centralização simbólica de todos os trâmites na
figura do Juiz ou de um tribunal genérico invisibiliza as atuações das administradoras e
cria um efeito de coerência no processo que não corresponde ao cotidiano dos tribunais
Prevencionais de Menores.
Trata-se de descrever e analisar práticas consideradas enquanto regulações das
formas de ação, costumes consolidados institucionalmente, e com frequência
condensadas escrituralmente nesta administração judicial de menores 'sem conflito com
a lei penal', sendo consideradas como atuações (re)produtivas de menoridades. Aqui,
esta categoria não remete a nenhuma qualidade especial de meninos, meninas e
adolescentes, que também inclui pais, tutores e/ou guardiães, e tampouco remete à
categoria legal de menor,
9
mas sim a fenômenos de natureza administrativo-judicial
portanto, estatal — que (re)produzem determinadas formas de menorização.
10
Como procurarei demonstrar, as atuações em estudo menorizam não só os sujeitos
legalmente consagrados como menores pelo Código Civil, ou socio-historicamente
produzidos como tais, como também seus pais, tutores e/ou guardiães. Desse conjunto
de recorrências na gestão administrativo-judicial resulta uma modalidade particular de
menorização e algumas menoridades para a administração judicial e a partir dela. Sobre
o modo com que se (re)produzem tais menoridades é que se coloca o foco da presente
investigação.
8
Aproprio-me do que Foucault entende por “saberes dominados”, isto é, por um lado, os conteúdos
históricos que foram enterrados ou velados em sistematizações formais e, por outro, uma série de saberes
desqualificados por serem considerados inferiores em relação ao conhecimento científico, que o autor
chama “saber das pessoas”. “Trata--se de ativar saberes locais, descontínuos, desqualificados, não
legitimados, contra a instância teórica unitária que pretenderia depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los em
nome de um conhecimento verdadeiro, em nome de uma cncia detida por alguns” (Foucault, 1986:170-171).
9
O Código Civil argentino, a esse respeito, prescreve o seguinte: “Art.126. – São menores as pessoas que
não tiverem completado a idade de vinte e um anos. /Art.127. São menores impúberes aqueles que
ainda não tiverem a idade de quatorze anos completos, e adultos os que forem desta idade até os vinte e
um anos completos. /Art.128. Cessa a incapacidade dos menores em função da maioridade no dia em
que fizerem vinte e um anos, e em função de sua emancipação antes que sejam maiores” (Código Civil
Argentino, Primeiro Livro: Das Pessoas Primeira Seção: Das pessoas em geral Título IX: Dos
menores).
10
Souza Lima demonstrou para o caso brasileiro as amplas implicações da “tutela” como forma de
expressar certas ideias e como modelo de definição dos termos de um problema político. Mas também
como, além do status jurídico de índio, na prática cotidiana da proteção, os quadros administrativos
definiam o que era ser índio, e sobre que terras intervir (1995:214-222).
14
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Fragmentos
Para dar conta dessas formas e fórmulas, pontuais e personalizadas, de Proteção
Judicial dos tribunais Preventivos de Menores de Córdoba, em começos do século XXI,
e de práticas e saberes que elas (re)produzem, elaborei como instrumento, por sua vez
narrativo e analítico, o fragmento.
11
O objetivo deste constructo é representar/apresentar
como se exerce o poder nesses tribunais. Trata-se de uma tentativa de capturar tais
exercícios de poder, de representar a experiência vivida, o sofrimento episódico, e de
textualizá-los.
Inspirada nas formulações de Foucault, tendo em vista os fins deste trabalho,
procuro com isto acessar o que o autor chama o como do poder esclarecendo
mecanismos atuantes entre as regras do direito que o delimitam formalmente e os
efeitos de verdade que produz (e que por sua vez o reproduzem), colocando em outra
direção a análise, procurando ressaltar como o direito — e não o está pensando somente
enquanto lei, mas sim no conjunto de aparatos, instituições e regulamentos com que põe
em prática — veicula relações de dominação (1986:179-180).
12
É mister diferenciar esses fragmentos que se apresentaram ao longo da tese
daquilo a que me referi anteriormente em termos de fragmentação, pois, embora
procurem descrevê-la e interpretá-la, não correspondem mimeticamente ao observado e/
ou ao registrado em minhas notas de campo. Tampouco correspondem às condições de
observação que foram, forçosamente, fragmentárias. Em qualquer ponto em que se
iniciasse a observação do dia-a-dia nesses tribunais impunha-se, por um lado, restringir-
se à observação de parcelas do que estava acontecendo simultaneamente em diferentes
salas. Impunha-se também observar atuações que se referiam, muitas vezes, a processos
11
A fim de distinguir claramente os fragmentos das entrevistas e do resto do texto desta tese, eles serão
consignados com um afastamento da margem esquerda, e uma dupla linha vertical, também do lado
esquerdo, que abrange toda a sua extensão.
12
Seguindo Foucault, “por dominação eu não entendo o fato de uma dominação global de um sobre os
outros, ou de um grupo sobre outro, mas as múltiplas formas de dominação que podem se exercer na
sociedade [...] o sistema de direito, o campo judiciário são canais permanentes de relações de dominação,
de técnicas de sujeição polimorfas. O direito pode ser visto como um procedimento de sujeição, que ele
desencadeia, e não como uma legitimidade a ser estabelecida. É evitar a questão central para o direito
da soberania e da obediência dos indivíduos que lhe são submetidos e fazer aparecer em seu lugar o
problema da dominação e da sujeição (Foucault, 1986:181-182).
15
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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iniciados antes da minha presença ali, e das quais, muitas vezes também, desconheceria
suas derivações futuras.
A partir deste recurso metodológico a exposição de fragmentos o
propósito, além disso, de considerar como condições de possibilidade o que
costumavam ser entendidos como obstáculos para as atuações: o número sempre
insuficiente de empregadas, segundo as próprias administradoras, a eterna “sobrecarga
de trabalho”, que são vistos nesta tese como coadjuvantes para poder administrar e lidar
com as situações, geralmente dramáticas, que se processam.
Nesse sentido, sustentar a figura do Juiz permite às empregadas e às funcionárias
— “pequenas juízas” que “levam as causas” — ir modulando e elaborando decisões sem
a carga de uma responsabilidade não legal ou administrativa, mas principalmente
moral. É imprescindível reconhecer que assim como neste universo dos tribunais de
Menores os embates morais e afetivos intrínsecos às situações em jogo impactavam as
administradoras de modo que, por um lado, eram “tomadas” por elas, por outro,
distanciavam-se para (sobre)levar a causa. Também é preciso explicar que tais situações
exerceram em certas ocasiões sobre a própria pesquisadora um forte impacto emocional
inerente a esses fenômenos imensamente moralizadores que envolvem a infância.
Os fragmentos permitiriam representar, na própria escrita deste trabalho, uma
modalidade de gestão de menoridades destinada, como havia levantado a hipótese, a
permitir lidar com as situações dramáticas que enfrentam cotidianamente essas
administradoras. Este modo de administração fragmentado, por sua vez, potencializa a
eficácia das atuações das administradoras judiciais através de formas de
aconselhamento e fórmulas de compromisso que, por seu próprio caráter, são em
princípio difíceis de resistir. É meu propósito aqui fazer um movimento analítico-
interpretativo que suspenda os juízos em benefício da intelegibilidade, empregando
fragmentos como forma de produzir conhecimento, recriando ferramentas usadas
precisamente pela administração que se deseja compreender, o que é ao mesmo tempo
uma tentativa de representar as angústias, até certo ponto irrepresentáveis.
Esta recriação, com fins analíticos, do mecanismo das próprias administradoras —
que administram suas ações em instâncias pontuais para (sobre)levá-las não
procurará (re)construir processos judiciais nem tampouco selecionar, para reconstruir,
um número exemplar de casos para a discussão. Em lugar disso, os fragmentos
16
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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pretendem descrever atuações recorrentes para identificar e indagar significados
construídos e compartilhados no âmbito do foro Prevencional de Menores cordovês. E
pôr em relevo aqueles exercícios que, por sua aparente insignificância, produzem a
'experiência de fundo' que é apreciada como elemento definidor em uma hierarquização
tribunalícia dos administradores, a qual excede as hierarquias formais, e que neste
trabalho são consideradas chaves para a inteligibilidade dos exercícios de poder
indagados. Os fragmentos procuram destacar, do mesmo modo, que o foco deste
trabalho não está posto sobre os 'menores' e nem diz respeito aos seus familiares, mas
sobre modalidades de gestão administrativo-judicial.
A opção escolhida é apresentar fragmentos em torno do processo de construção
dos processos judiciais, e representar os exercícios específicos de poder efetuados antes,
durante e depois da tomada de (re)soluções. A rigor, esta parte da administração judicial
é caracterizada, precisamente, por ir assumindo resoluções ao longo do processo (e dos
autos), em lugar de uma resolução final, que quase nunca chegava a ser produzida. A
resolução com ‘autos interlocutórios’,
13
o envio ‘a arquivo’ de autos sem sentença, o
fato de não serem tomadas as audiências 'do artigo 33' (resolutivas) e outras medidas
acionadas regularmente, assinalam a importância neste universo de apresentar como
provisórias as gestões empreendidas e as medidas tomadas. Assim, o importante parecia
irrelevante e o decidido parecia transitório. Tais formas de operação delineavam a
imagem de um represar situações, entrando as decisões administrativo-judiciais em um
cone difuso de sombras.
Os fragmentos que se apresentaram pretendem alertar contra as ilusões
totalizadoras de qualquer investigação e dos próprios autos judiciais. Mostrar em
fragmentos traços recorrentes e característicos da cotidianidade destas administrações,
por um lado, afasta a ilusão vã da descrição completa; por outro, implica assumir a ideia
da pesquisa como uma atividade prática portanto, limitada neste caso, em
confronto com outras práticas levadas a cabo nesses tribunais; e recupera a maneira
13
A respeito dos autos interlocutórios, tecnicamente, “Em linguagem processual e empregada a palavra
no singular [auto], refere-se à classe especial de resoluções judiciais intermediárias entre a providência e a
sentença. En geral, se pode dizer que, embora a providência afete questões de mero trâmite, e a sentença
ponha fim à instância ou ao juízo, o auto resolve questões de fundo que se estabelecem antes da sentença.
Claro está que esta nomenclatura varia conforme a legislação dos diversos países” (Ossorio, 1997).
17
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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fragmentária dessas atuações, reconvertendo-a em uma forma de apresentar o material
empírico e analisá-lo.
I.2 Trajetos e pesquisas
Este trabalho se baseia em um roteiro de pesquisas que começou no Arquivo
Geral de Tribunais da Província do Córdoba, no ano 2000, construindo um corpus
documentário conformado por autos referidos a 'menores', substanciados em uma
Defensoria de Menores e nos dois primeiros Juizados de Menores da cidade de
Córdoba, em meados do século XX. Desse corpus documental de minha autoria recortei
como referência empírica para minha dissertação de mestrado, em 2002, um conjunto de
autos referentes a processos judiciais correspondentes à Secretaria de Prevenção do
primeiro Juizado, criado em 1957, e os últimos e únicos processos da Defensoria
de Menores, cuja documentação encontra-se no arquivo.
Nessa “visita aos expedientes (Lugones, 2004) examinei documentação que diz
respeito ao conjunto de situações que são processadas judicialmente pelos Juizados de
Menores no Prevencional e Civil que estudo nesta tese em que tramitavam
processos de meninos, meninas e adolescentes ‘sem conflito com a lei penal’; conjunto
de situações englobado na categoria prevenção’. Explorei dimensões extranormativas
dos processos judiciais, descrevendo essa ‘administração de justiça de menores’ a partir
dos registros de suas atuações administrativo-judiciais. Interpelava os autos para me
distanciar das tomadas de posição normativas, que as dramáticas situações de vida de
tantos e tantos meninos parecem impor. Procurei descrever atuações que não estavam
estritamente determinadas pelas leis de então para entender a eficácia desta instância
administrativo-judicial. Naquela tentativa de etnografia documental realizei um ensaio
de construção do objeto que é tratado nesta tese.
Embora uma boa parte das percepções e perguntas que orientam esta investigação
tenham se originado nos anos 2000 e 2001, no Arquivo Geral de Tribunais da Província
de Córdoba e na convivência com autos de processos judiciais referidos a menores,
algumas delas, como se disse, foram abordadas em relação aos primeiros exercícios
desta administração judicial institucionalizada em um Juizado de Menores em minha
dissertação de mestrado. Portanto, acessei o universo de referência empírica desta tese
18
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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com um conjunto de saberes, produto de anteriores trabalhos de investigação que, de
algum modo, orientaram a seleção do locus de pesquisa: tribunais Prevencionais de
Menores. Desse conjunto de saberes são inseparáveis as questões surgidas, e que
provavelmente estão na base de minhas preocupações, a partir do debate teórico-político
na Argentina em torno da Convenção dos Direitos da Criança, de que tinha
conhecimento mesmo antes de estudar sistematicamente, com fins analíticos, a
literatura.
No projeto desta investigação estava implícita a ideia de pesquisar a ‘implantação’
das reformas legais, e investigar os modos pelos quais a transformação dos princípios
reitores da “menoridade” era materializada nos tribunais Prevencionais de Menores da
província de Córdoba. Bem, depois de meses de observação intensa em um Juizado
Prevencional de Menores e em uma Assessoria de Menores da cidade de Córdoba, em
2005 e 2006, fiz um levantamento de investigações e investigadores argentinos
ocupados na problemática dos Direitos da Criança, levando em conta a nova situação
legislativa para se adequar à CDN, posso afirmar que estas práticas administrativo-
judiciais que me ocupam precisam ser analisadas bem além da ideia de “implantação”.
Daí a produtividade de se estudarem as atuações transformadas em hábito.
Além disso, no meu interesse por conhecer como efetivamente eram
administrados os processos, procurava contornar a sempre viva tentação de ‘aplicar’
modelos criados a partir de outras situações nacionais: no caso da literatura argentina, a
pregnância do caso francês conforme o analisa e entende Jacques Donzelot, em seu
clássico A polícia das famílias (2008 [1977]); ou do movimento estadunidense abordado
por Anthony Platt, Os “salvadores da criança” ou a invenção da delinquência (2001
[1965]). Compreensivelmente, foram convertidos textos canônicos, pela força
persuasiva dos argumentos modelares que oferecem.
A reconstrução do trajeto de pesquisas e da situação etnográfica implica
necessariamente expor algo de minha própria trajetória que, para realizar esta
etnografia, retornei em 2005 à cidade a que cheguei para estudar na Universidade
Nacional de Córdoba, cidade na qual vivi e trabalhei até 2002. Considero que realizar
uma aproximação fortemente localizada como esta pode contribuir para o conhecimento
de um espaço social o destes tribunais onde todo mundo se conhece, mesmo que
seja apenas de vista, ou através de relações em comum. Uma análise da própria posição
19
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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e das relações travadas no curso da investigação evidencia um processo de
reconhecimento em alguma medida impossível de ser controlado por si próprio, mas ao
menos em parte identificável, como se tentará fazer mais adiante.
14
Exporei imagens subjacentes que se incorporaram a esta investigação para
identificá-las e exercer sobre elas uma vigilância metodológica (Becker, 2008:29), para
tentar, por um lado, minimizar os seus efeitos condicionadores das minhas análises e
interpretações e, por outro, começar a nos aproximar não da situação etnográfica,
mas também do cotidiano desses tribunais. Ao mesmo tempo, seguindo Becker, é
preciso não confundir estas imagens com estereótipos, pois não era para mim um mundo
inteiramente desconhecido o dos tribunais cordoveses — os estereótipos seriam só o que
temos em face das esferas da vida social que desconhecemos mesmo antes de
começar a estudá-los sistematicamente.
A esta investigação cheguei trazendo imagens dos anos 1993 a 2000, em que
trabalhava como secretária de um estudo jurídico e realizava trâmites no Palácio de
Tribunais, edifício em que funcionavam (e funcionam) os tribunais de Menores. que
antes de cursar história havia feito os primeiros anos em advocacia, mantive vínculos de
amizade com ex-companheiros de estudos da Escola de Advocacia da Faculdade de
Direito da Universidade Nacional de Córdoba, que exercem a ‘profissão liberal’ e
ocasionalmente ‘litigam’ no foro de Menores. Mantinha relações também com
professoras desta mesma casa de estudos, algumas das quais trabalham, além disso,
como funcionárias do Poder Judicial da província de Córdoba. Esta rede de relações
trouxe a possibilidade do meu acesso a autos do Arquivo Geral de Tribunais nos anos
2000, 2001, 2003 e 2005, assim como obter autorização para acompanhar as atuações
cotidianas de um Juizado e de uma Assessoria de Menores da cidade de Córdoba nos
anos 2005 e 2006.
14
Reconheço aqui a dívida com as proposições de Florence Weber em sua tese de etnografia do trabalho,
que emprega como princípio metodológico a autoanálise de elementos biográficos para localizar sua
posição e as relações ao longo de sua investigação, efetuada em uma cidade do interior da França, de
onde provinha (1989:19, 24-25, 29-30). A respeito da “autoanálise sociológica da etnografia”, que
apresentarei nesta parte, quero destacar que não bebe em fontes psicológicas, mas sim no tipo de
exercício que Hoggart apresenta em seu livro clássico sobre a cultura das classes populares (The Uses of
Literacy). Na apresentação à sua edição francesa, Passeron afirma que embora a experiência
autobiográfica não seja per si um protocolo de observação metódica, pode constituir-se como tal recurso
se for organizada em um plano etnográfico de observação (Passeron, 1970). E é deste modo que pretendo
instrumentalizar a informação que exponho.
20
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Revejamos essas imagens. Uma: corredores dos tribunais de Menores, que se
distinguiam dos outros corredores de Tribunais pela escassa presença de pessoas que
pudessem ser reconhecidas como advogados pelo uso de terno e gravata, ou por
levarem autos debaixo do braço e também porque ali numerosas crianças,
corredores sempre cheios de gente, de diante dos balcões, ou esperando nos escassos
bancos disponíveis. Em outros corredores do mesmo edifício podem ser vistos
advogados, ocasionalmente acompanhados de seus clientes.
Outra: autos em que não abundam as referências legais nem doutrinárias, em
contraste com outros autos substanciados no foro trabalhista, por exemplo, aqueles que
eu conhecia com antecedência. Autos nos quais tampouco apareciam textos de
advogados de defesa particulares, mas sim uma participação (ao menos nos registros,
secundária) de funcionários do poder judicial que, como parte de suas funções, davam
representação gratuita a algum pai ou mãe, tutor/a ou guardião/ã.
Uma imagem mais: o protagonismo das empregadas judiciais no andamento, na
obstaculização, na aceleração e, em geral, na modulação das tramitações. Protagonismo
que conhecia por havê-lo presenciado enquanto fazia “a procuração” de processos
trabalhistas que eram defendidos no estudo jurídico em que estava empregada; e por
haver observado como os advogados ‘litigantes’ recorriam aos empregados e
precisamente era àqueles a quem solicitavam favores para agilizar um trâmite etc.
protagonismo invisibilizado nos registros documentais que estudei anos depois.
Uma última imagem surgida da leitura de centenas de autos: a aparição ocasional
de registros de irmãos, que estariam na mesma situação da criança ou do adolescente
que estava sendo objeto seguindo os autos de um processo supostamente
originado nessas mesmas condições, mas que, segundo a documentação, não eram
alcançados de forma alguma pela atuação judicial. Quer dizer, processos movidos
pontualmente em relação a uma criança, desconhecendo outras potenciais ‘situações de
risco’ de seus irmãos e/ou irmãs que, inclusive, conviviam com ela.
A partir destas imagens foram prefigurando-se algumas das perguntas que estão na
base desta tese. Como apreender uma administração judicial na qual não operava o
advogado particular com um papel de mediador-chave, em que os únicos profissionais
atuantes eram administradoras judiciais? Quais eram as ferramentas utilizadas nesses
processos, que pelo menos em seus registros não privilegiavam as remissões legais, nem
21
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a argumentação apoiada na doutrina? Que implicações há, no estudo deste universo, ao
se seguir uma visão legaliforme que concede exclusivamente ao Juiz de Menores
“competência para conhecer e resolver”, sem menção alguma de que, no mínimo, se
trata de uma administração na qual tomam conhecimento e modulam decisões também
as empregadas hierarquicamente subalternas?
Diante de atuações acionadas seletivamente sobre algum menino dentro de um
grupo de irmãos em similares condições, segundo podem ser lidas em numerosos autos,
como entender esta constatação em relação à imagem que projeta a literatura argentina
(Reartes, 2001; Guemureman & Daroqui, 2002) de um processo de enorme alcance no
país, postulado como a “judicialização da infância pobre”? Daí a pergunta sobre se
haveria uma identificação entre a intensidade e o impacto das atuações judiciais sobre a
vida de determinadas meninos que entram ‘sob a jurisdição’, e a extensão de tais ações
em amplos segmentos de população que compartilham as mesmas ‘situações de risco’.
As imagens rememoradas incentivaram, além disso, a necessidade de estudar as
dimensões produtivas das práticas rotineiras. E de focalizar na atuação das
administradoras sem me circunscrever a magistrados e a funcionáriosque são os que
ficam registrados como operadores se alguém se remeter aos registros documentais — e
nestas formas de exercício de poder em suas facetas menos legais e institucionalmente
prescritas. Estas questões foram reforçadas a partir do acompanhamento do cotidiano
em um Juizado Prevencional de Menores e em uma Assessoria de Menores da cidade de
Córdoba, que realizei em 2005 e 2006, assim como em virtude das entrevistas realizadas
com diversos atores da administração judicial e do Poder Executivo levadas a cabo entre
agosto de 2004 e agosto de 2008; e por minha presença e participação em eventos
dedicados à discussão e à reformulação da ‘problemática da menoridade’ não em
Córdoba, mas também em outras regiões argentinas.
Para este roteiro de pesquisas, foi imprescindível conhecer inicialmente partes do
léxico tribunalício mais geral que é empregado não nos escritos, ou seja, o que
significa “abrir vista”, o que quando se fala de “acordos” ou acordadas se refere
especificamente aos Acordos Regulamentares do Tribunal Superior de Justiça. Esse
conhecimento é básico para ler os autos, assim como para estabelecer diálogo com as
administradoras judiciais, para entender procedimentos e para assistir a reuniões (e
compreender o que ali se dizia) de advogados e especialistas como as da Sala da
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Criança, do Colégio de Advogados, ou conferências do Centro de Capacitação “Ricardo
Núñez”, pertencente ao Poder Judicial provincial.
O acompanhamento cotidiano das atuações mostrou mais especificamente a
terminologia utilizada nos tribunais de Menores, e me instigou a indagar como se
procura neste trabalho sobre as possibilidades analíticas das tensões entre a
linguagem de uso das administradoras, que guarda correlação, embora não seja idêntica
à linguagem dos direitos ou ao que está “na letra da lei”, com a linguagem de uso
corrente.
15
Apresentarei a seguir outros elementos relativos ao itinerário desta investigação,
por considerar que se trata de uma via régia de aproximação com o conhecimento deste
universo dos tribunais de menores, ao mesmo tempo em que implica expor
condicionantes que, como é sabido, impactam, abrindo e limitando simultaneamente
possibilidades analíticas e interpretativas.
Começo por me referir ao lento e delicado trabalho que precedeu à realização de
observações em um Juizado Prevencional de Menores da cidade de Córdoba. A partir do
mês de agosto de 2004, retomei vínculos com conhecidas minhas que trabalhavam
como empregadas e funcionárias do foro de Menores, e mantive uma série de conversas
com ex-companheiras de estudo da escola de advocacia que trabalhavam como
administradoras judiciais, ou então que se desempenhavam como advogadas “do outro
lado do balcão do Juizado”. Trabalhar de um lado ou do outro do balcão diferencia, no
foro local, os advogados, conforme exerçam sua profissão como dependentes do Poder
Judicial ou como letrados particulares. Isto indica o valor do divisor de águas atribuído
neste mundo social ao ‘balcão’.
Os diálogos eram possibilitados por certa confiança gerada no marco de velhos
conhecidos, o que produzia não uma abertura em minha direção, mas também uma
reflexão crítica em relação ao seu próprio trabalho. Ao mesmo tempo, impedia a
15
Adoto aqui a observação do Bourdieu a respeito de que a linguagem jurídica, enquanto linguagem
“sábia”, consiste no uso particular da linguagem ordinária, assim como sua formulação sobre a
insuficiência de entender isto como um “efeito de contexto” (2000:181-183). Mas o que me interessa
particularmente não é a constatação que poderia se realizar, segundo o autor, acerca de que a dualidade
dos espaços mentais entre profanos e especialistas, correlativa aos espaços sociais distintos que a produz,
levaria, de acordo com Bourdieu, à “colisão homonímica”; mas ao contrário pensar, não em termos mal-
entendidos, mas nos particulares entendimentos que, conforme pude observar, se dão no âmbito desta
administração judicial quando designa com palavras da linguagem ordinária, por exemplo, nomeando
como “recomendações” determinadas atuações da Assessoria de Menores.
23
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desconfiança que logo percebia claramente ao entrar em contato, apenas a partir da
investigação com algum funcionário ou empregada nos Tribunais, assim como os
remorsos iniciais que tive que superar no Juizado pelo fato de que, à exceção de duas
funcionárias, o resto das administradoras não me conhecia anteriormente.
Essa modalidade foi mantida ao longo da investigação, e contribuiu para que os
relatos que me faziam em relação às suas experiências em Tribunais fossem testados
pelas outras escutas (de pares, também advogadas, pertencentes ou não ao Poder
Judicial), que conheciam o foro de Menores e, além disso, as conheciam de larga data.
Tinha como inconveniente certa obrigatoriedade de busca de coerência biográfica nas
narrativas e uma sofisticação das argumentações para poder efetuar críticas e, ao mesmo
tempo, escusar-se da acusação tácita de cumplicidade com ‘más práticas’. Mas isto era
compensado pela enorme vantagem de me possibilitar perguntar sem disfarces a
respeito de questões sobre as quais nos tribunais, em geral, não se falava
explicitamente.
16
Na primavera de 2004, com o auxílio de uma advogada, professora da Faculdade
de Direito da UNC e então funcionária do Poder Judicial da província de Córdoba,
imaginamos uma forma de possibilitar meu “ingresso” para realizar observações em um
Juizado Prevencional de Menores da cidade de Córdoba.
17
Ali começaram suas
tratativas, em conversações informais com S.S., para que permitisse que eu efetuasse
um acompanhamento do trabalho cotidiano do tribunal do qual era titular.
Meu “ingresso” em Tribunais se iniciaria através de minha participação em um
projeto referente à “Efetividade do direito da criança de ser ouvida nos tribunais
16
Valem para estes encontros as afirmações de Boltanski relativas ao trabalho de campo levado a cabo na
França entre 1976 e 1981, referente a uma investigação sobre a construção da categoria “quadros
dirigentes”, em torno aos quais o autor disse: “As entrevistas mais interessantes foram realizadas a partir
de um dispositivo reprovado pelos manuais metodológicos, que parece romper com as exigências de
exterioridade, de neutralidade, de objetividade e de não-implicação que durante largo tempo foram
considerados critérios de cientificidade na relação entre investigador e investigado. Estas entrevistas se
produziam, com efeito, no curso de uma refeição ou em noitadas em que se encontravam presentes os
amigos comuns que tinham orquestrado a reunião. [...] Este dispositivo que, segundo a classificação
proposta em E. G. [ref. Les economies de la grandeur, 1982], poderia ser qualificado como doméstico
apresentava numerosas vantagens para o objeto da investigação [...]” (Boltanski, 2000:18).
17
Esta funcionária, atualmente magistrada do Poder Judicial desde 1999 é uma figura-chave em minha
trajetória de pesquisas, que ela apoiou e possibilitou em parte, continuando a fazê-lo desde 2004 em
função de suas gestões de bons ofícios perante S.S. que tem por ela, conforme me disse, “confiança
pessoal e respeito profissional”, além de algumas “dívidas de honra” e mais tarde perante a titular da
Assessoria de Menores em que também realizei observações, neste último caso, pela relação de amizade
que as unia.
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Prevencionais de Menores da cidade de Córdoba”. Logo soube que era um tema de
especial interesse de S.S. O próprio título do projeto indica o interesse em verificar se
está ‘sendo efetivado’ um direito consagrado na CN desde 1994, quando foi incorporada
a ela a Convenção dos Direitos da Criança. Por um lado, os supostos do mencionado
projeto ajustavam-se ao enquadramento teórico-político pró-CDN, e não coincidiam
com minhas próprias premissas, que não estavam orientadas para constatar a vigência
de direitos. Mas, por outro lado, seu objeto claramente justificava meu pedido de
observar o cotidiano do Juizado.
Tal projeto foi apresentado em março 2005 à Secretaria de Ciência e Tecnologia
da Faculdade de Direito (SECyT/FD/UNC). Uma vez aprovado, em maio de 2005,
realizei uma série de entrevistas com S.S., nas quais lhe apresentei oficialmente o
projeto, sobre o qual o consultara em sua fase de elaboração, e expliquei-lhe que no
que me concernia pessoalmente, além do fato de esse projeto estar inscrito em uma
linha de investigação em marcha levada adiante por uma das cadeiras de Direito
de Família meu interesse em acompanhar o cotidiano do Juizado originava-se da
escolha dos tribunais Prevencionais de Menores de Córdoba como o locus privilegiado
de investigação para minha tese de doutorado. O projeto permitiu que, de junho de 2005
até fins de dezembro de 2006, acompanhasse as rotinas de um Juizado Prevencional de
Menores da cidade de Córdoba. Tal acompanhamento foi concluído em março de 2006,
entre outras questões, por ter terminado o prazo do projeto que justificava minha
permanência no Tribunal.
Em seguida, em abril de 2006, comecei os acordos que me permitiram realizar
observações em uma Assessoria de Menores, quando (re)contactei tinha sido
entrevistada por mim por ocasião das pesquisas de minha dissertação de mestrado
uma funcionária judicial em exercício como titular de uma Assessoria de Menores, e
realizei com ela outra série de entrevistas em seu escritório, quando comentei a respeito
de minhas pesquisas para esta tese, e solicitei-lhe poder acompanhar as tarefas
cotidianas da Assessoria. Uma vez mais, aquela advogada e funcionária, cujas gestões
permitiram minha presença no Tribunal, foi quem encarnou a ‘fiança pessoal’ de minha
permanência na Assessoria para minhas observações, realizadas no último trimestre de
2006.
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Não obstante, em ambas as ocasiões, antes de poder efetivamente começar a
realizar o acompanhamento cotidiano, tanto no Juizado como na Assessoria,
transcorreram meses em “antessala”, experimentando assim, embora de outro lugar, o
que de pronto observei continuamente, ou seja, como a espera é uma forma de exercício
cotidiano de poder, como esta espera gera não ansiedades, mas também certa
sensação de que poderá se mover nos limites permitidos para isto. Assim, a
Assessora, paralelamente ao fato de consentir em que eu realizasse o acompanhamento
de suas tarefas, ia adiando seu início.
O que foi narrado conforma uma primeira aproximação a um traço relevante deste
foro de Menores, em particular, e do âmbito dos Tribunais, em geral. Buscou-se indicar,
desta maneira, que se trata de um mundo de conhecidos entre si bastante circunscrito, e
onde o peso de estar na rede de relações de interconhecimento é determinante. Como se
procura mostrar mais adiante, no momento de descrever as atuações desses tribunais, a
eficácia de tais relações se verifica no curso e nas modulações particulares que vai
tomando cada processo, segundo quem sejam os especialistas atuantes, o grau de
confiança e respeito pessoal e/ou profissional que dispensem ou neguem entre eles, e
suas respectivas trajetórias ‘em Menores’.
O que relatei, além de expor certas condições de acesso e interlocução, assim
como as tentativas de controle sobre o emprego que desse às informações que obtinha,
deslocam completamente, no caso desta pesquisa, a possibilidade de se equiparar com
uma relação de conhecimento travada em uma situação colonial. Estas condições da
atividade de pesquisa impõem desnaturalizar a ideia, muitas vezes ficcional, imposta
por necessidades narrativas, a respeito de encontros estritamente episódicos entre os
antropólogos e os estudados.
O que foi investigado e a maneira de fazê-lo não dependeu estritamente de
meu interesse, ou de definições puramente acadêmicas, mas também de um
enquadramento das administradoras a respeito da minha pesquisa e, particularmente, ao
modo que me era permitido de acompanhar o cotidiano desses tribunais. Isto me
obrigava a reformular decisões anteriores às instâncias de observação. Assim, minha
postura de consultar os administrados a respeito de se concordavam ou não com minha
presença nas atuações que os envolviam se viu inviabilizada de fato, como resultado da
dinâmica, que se descreverá por extenso nesta tese, de atuações sem solução de
26
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continuidade, e em que estava implícito, nas autorizações que as administradoras me
davam, que não deveria interferir, interromper alguma atuação ou desviar a atenção dos
administrados da interpelação da qual estavam sendo objeto.
De tanto acompanhar instâncias como as audiências compreendi, por outro lado,
que minha consulta dirigida aos administrados a respeito de se aceitavam ou não que
presenciasse as atuações teria se convertido em uma pergunta retórica. Dadas as
assimetrias presentes entre administradoras e administrados, em função de que o fato de
que eu estivesse autorizada a estar ali pelas especialistas judiciais (e em certas ocasiões,
inclusive, era apresentada às crianças ou aos seus responsáveis, por S.S., a Assessora)
minha pergunta tornaria-se uma formalidade: era um espaço onde as regras eram, em
princípio, impostas por quem fazia parte da administração judicial. Em outras instâncias
como a de compartilhar as esperas com os administrados nos corredores era
possível eu me apresentar como investigadora que estudava os tribunais de Menores
Prevencionais. E, nessas ocasiões, minha decisão foi a de não consultá-los nem
perguntar pelos processos que os haviam trazido aos Tribunais, limitando-me apenas a
escutar e, em todo caso, a manter diálogos que mães e/ou crianças, também na espera,
iniciavam.
O acompanhamento das tarefas cotidianas de uma Assessoria de Menores me
possibilitou observar atuações em outros dois Juizados Prevencionais, distintos daquele
em que realizei minhas observações, o que representou a oportunidade de me aproximar
do dia-a-dia de outras secretarias, e presenciar as tarefas de outras empregadas e
funcionárias quando auxiliavam a Assessoria, ou quando a Assessora auxiliava os
Juizados. Isto me permitiu obter uma visão mais geral desses tribunais Prevencionais de
Menores, e poder reparar, uma vez mais, no caráter de círculos relativamente estreitos
27
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de vinculações interpessoais entre os profissionais,
18
assim como perceber
denominadores comuns no que se refere às formas e às fórmulas de gestão.
Além disso, por ocasião do meu acompanhamento do trabalho da Assessoria,
assim como antes no Juizado, pude também revisar autos que estavam nesse momento
sendo substanciados, os quais se somaram aos autos de arquivo recente (dos anos 2002,
2003 e 2004) estudados em 2005 no marco da equipe de investigação da Faculdade de
Direito-UNC. Pude, a partir do confronto da leitura dos autos com as minhas
observações, desnaturalizar a identificação autos/processo, que costuma estar assentada
no universo desses tribunais. Pois embora, por um lado, sejam referidos como idênticos
autos e processos, assim, quando as administradoras diziam “meus autos”, não
necessariamente estavam se referindo ao conjunto de documentos escritos, mas sim
poderiam estar aludindo ao processo que tinham a seu cargo como tarefa atribuída; por
sua vez, S.S. dizia: “aqui vais ver as coisas, porque os autos são muito frios”,
reconhecendo uma distância entre como faziam sua tarefa cotidiana e como elaboravam
o que supostamente devessem ser registros que cristalizavam as suas atuações.
As atuações que substanciam os processos estudados aqui se realizaram
principalmente ‘em sede judicial’. Não obstante, da leitura dos autos e das observações
surgiu a conveniência de realizar uma aproximação com a gestão administrativa
dependente do Poder Executivo provincial. Apesar da existência de um corpo técnico
formado por psicólogos, licenciados em psicologia e em trabalho social, que pertence à
administração judicial, o Juizado que observara preferia encarregar as tarefas destinadas
às equipes técnicas aos dependentes do Poder Executivo, por questões de conhecimento
18
Está ainda por ser escrita uma história da composição de empregados, funcionários e magistrados do
Poder Judicial da província de Córdoba, que em âmbitos políticos é chamada, não sem ironia, a “família
judicial”. Nesse sentido, um empregado do Centro de Documentação Histórica do Arquivo Geral de
Tribunais, onde se encontram depositados os dossiês correspondentes ao pessoal judicial, resumia
dizendo: “Basta uma dúzia de sobrenomes, e você poderá nomear a grande maioria”. Sergio Carreras,
jornalista local, publicou um trabalho sobre as vinculações familiares presentes em grande parte dos
atuais membros da Justiça Federal cordovesa (Carreras, 2001). Esta última mantém, até o presente,
sistemas de nomeações de empregados e funcionários “a partir de proposta dos juízes” e carece de um
sistema de concurso público, processo de seleção adotado para o Poder Judicial da província de Córdoba.
Tal reforma poderia ser objeto de outro estudo, no qual teria que se considerar se foi produzida ou não
uma transformação na estrutura do pessoal judicial. Para o caso portenho, Sarrabayrouse Oliveira expõe
que a carreira judicial começa geralmente por designações que se efetuam a partir de solicitações de um
familiar ou sob o auspício de algum professor da Faculdade de Direito-UBA (2003:55). A autora
interpreta estas nomeações, a partir de Mauss, em termos de criadores de certo parentesco entre os
mediadores, que criam obrigações e reforçam os vínculos mantidos entre aqueles que chama, a partir dos
termos de uma resolução judicial do foro penal do Poder Judicial da Capital Federal, “conformadores de
uma verdadeira família judicial” (idem:57-58).
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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pessoal dos profissionais pertencentes ao mesmo. Da sua parte, a titular da Assessoria,
cujas atuações acompanhei, tinha uma extensa 'antiguidade no foro', em função do que
também não se remetia ao corpo técnico judicial recentemente criado para as
Assessorias de Menores, como em numerosos processos recorria a profissionais do
âmbito administrativo subordinado ao Poder Executivo.
Aliás, a legislação nacional de 2005 tornou previsível uma nova e radical
atribuição de funções, extinguindo os Juizados de Menores no Prevencional e Civil, e
colocando o organismo subordinado ao Poder Executivo como “autoridade local de
aplicação” da lei.
19
Foram precisamente estas as transformações que não se produziram
em Córdoba e, até o presente, continuam exercendo suas funções os Juizados de
Menores no Prevencional e Civil.
Pelo exposto acima, realizei, no decorrer de 2006, uma série de entrevistas com
profissionais técnicos (licenciados em psicologia e em trabalho social) que trabalhavam
em três programas específicos da Subsecretaria de Proteção Integral da Criança e do
Adolescente (SPINA),
20
particularmente vinculados ao Juizado Prevencional e à
Assessoria de Menores da cidade de Córdoba, onde fiz minhas observações.
19
A lei nacional de “Proteção Integral de Direitos de Meninos, Meninas e Adolescentes”, de N° 26016, de
2005, em seu artigo 33, refere-se às medidas de “proteção integral de direitos, que devem ser tomadas por
um órgão administrativo de competência local”, em face de situações de violação ou ameaça de violação
de direitos, assim como em relação às medidas excepcionais previstas no artigo 39°, como aquelas a
serem tomadas em situações em que as crianças estejam separadas de seu meio familiar, ou cujo interesse
superior assim o exija. Em seu artigo 40 estabelece que “[...] será a autoridade local de aplicação que
decidirá e estabelecerá o procedimento a seguir [...] devendo notificar de fato, dentro do prazo de vinte e
quatro horas, a medida adotada à autoridade judicial competente em matéria de família de cada jurisdição
[...]”. Segundo o último parágrafo do mesmo artigo, esta autoridade judicial competente deverá, em um
prazo de 72 horas, resolver a respeito da legalidade da medida, a qual, uma vez feito isto, “deverá
encaminhar o caso à autoridade local competente de aplicação, para que esta implemente as medidas
pertinentes”. Em breve, os tribunais ficariam como instâncias de controle da legalidade das medidas
adotadas pelo órgão dependente do Poder Executivo.
20
A SPINA é a subsecretaria subordinada à Secretaria de Proteção Integral da Criança e do Adolescente,
destinada a crianças e a adolescentes ‘sem conflito com a lei penal’, criada por uma lei provincial (n°
9060 de 2002), contemporânea à de Proteção Judicial (nº 9053). Esta Secretaria, por sua vez, estava
subordinada, em 2006, à Secretaria de Justiça e, através desta, ao Ministério de Justiça e Segurança do
Poder Executivo da província de Córdoba. A dependência ao Ministério de Justiça reatualiza um lugar
subordinado à administração judicial. Esta área, além das mudanças de organograma e nomenclatura
(Direção Geral do Menor, Conselho Provincial de Proteção ao Menor), que foram trocadas nas diferentes
gestões governamentais, manteve, como função estável desde 1957 (ano de criação do primeiro Tribunal
de Menores da província) ao menos o cumprimento dos requerimentos da administração judicial de
Menores: realizar ‘constatações’ e ‘retiradas’, dar resposta aos ofícios judiciais nos quais se solicita a
confecção de ‘relatórios ambientais e familiares’, realizar visitas domiciliares, entre outras (ver
Organograma, em Anexo A, em que se especificam os programas em relação aos quais se concentraram
as indagações para esta tese, e suas respectivas incumbências).
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Para poder acompanhar, como foi dito, o trabalho cotidiano em um Juizado de
Menores e em uma Assessoria, tive que realizar gestões perante os titulares de tais
espaços, no caso das pesquisas que efetuei, relativas ao trabalho da SPINA e não
por se tratar de entrevistas (algumas realizadas distantes dos despachos oficiais, e
outras, nos lugares de trabalho) eu o fiz sem prévia autorização dos funcionários
responsáveis pela área. Coloquei a informação obtida em contraste com minhas próprias
observações das interações em Tribunais entre alguns desses técnicos e as
administradoras judiciais, assim como também trabalhei com a versão publicada das
tarefas que executam, de livre acesso através da informação que a SPINA põe à
disposição do público no website do Governo da Província de Córdoba, e em cotejo
com a leitura de autos de arquivo recente e em marcha.
A escolha dos entrevistados foi realizada, em parte, pela via de relações geradas
no acompanhamento do trabalho nos tribunais, e através de outras relações, construídas
a partir da participação em eventos dedicados ao debate de questões, como o maltrato
infantil, dos quais participavam majoritariamente psicólogas e assistentes sociais que
trabalhavam ou em instituições subordinadas ao Poder Executivo, ou privadas, ou na
própria SPINA. Também no caso destas entrevistas, como antes, nos acordos prévios
para obter as autorizações para poder acompanhar as rotinas, tanto do Juizado como da
Assessoria de Menores, foram determinantes certas garantias pessoais que, em algumas
ocasiões, podia ativar devido a contar com amigos ou conhecidos em comum, terceiros
que agiam como fiadores, produzindo uma mudança notável na recepção às minhas
perguntas e no tipo de diálogo que se estabelecia.
Uma distinção clara surgiu por ter entrevistado estes técnicos da SPINA. Por
contraste, iluminou-se o espírito de corpo e o forte sentido de pertencimento ao ‘foro’, a
‘Menores’ como dizem as administradoras. A tal ponto que, em uma conversação, fora
do âmbito dos Tribunais, com uma administradora à qual estou unida por vínculos
estreitos, ela mesma reconhecia: “Enquanto te digo tudo isto, sinto-me uma empregada
infiel”. Em contraposição a isto, as respostas, os relatos e as críticas dos técnicos da
SPINA podiam ser pensados mais a partir dos termos que, em uma análise formal e
tipológica, é formulada por Weber: O “senhor político” encontra-se na posição do
“diletante” que se opõe ao “perito”, enfrentando o funcionário treinado que se coloca
dentro da direção da administração” (Weber, 1974:269). Assim, os técnicos da SPINA
30
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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manifestavam claramente o seu desdém em relação aos seus superiores que ocupavam
os cargos 'políticos', valorizando sua própria perícia técnica e treinamento específico,
sem aquela fidelidade ao órgão no qual se desempenhavam.
O que foi anteriormente exposto não procura pôr de relevo as dificuldades a serem
superadas quando, como nesta pesquisa, investiga-se a respeito daqueles que têm o
hábito de serem eles os que podem “conhecer e resolver”, e não serem os observados,
mas sim reconhecer a centralidade das relações pessoais e das redes informais
sustentadas no interconhecimento na produção das atuações administrativo-judiciais em
foco. Por outro lado, gerava-se uma espécie de compensação ao desconforto para as
administradoras pela realização desta investigação, não os pequenos intercâmbios
que descreverei a seguir, produzidos no marco da convivência cotidiana e das relações
interpessoais, mas também um tipo de avaliação prospectiva a respeito de algum
benefício que pudesse lhes trazer, às administradoras, a própria pesquisa.
Dentro das relações estabelecidas a partir do próprio trabalho de campo,
solicitaram-me uma série de “favores” que me vi compelida a atender, uma vez que isto
facilitava que aquelas que os solicitavam se predispusessem a colaborar comigo. Trago
para consideração o exemplo de uma das administradoras que, tendo iniciado gestões
para obter sua transferência para uma Assessoria de Família, e que uma das vias
possíveis para que esta se realizasse era ‘agilizar o trâmite’ formal de transferência
conseguindo “que alguém te peça”, isto é, que alguma autoridade da área para a qual se
queira ir manifestasse interesse nisso, e sabendo de meu contato assíduo com uma
magistrada do foro de Família, pedia-me que eu a “ajudasse” com a transferência.
Em outra ocasião, como sabiam que eu fazia parte de uma equipe de investigação
pertencente a uma das cadeiras de Direito de Família, outra empregada que estava
interessada em se inscrever nessa cadeira em 2006, e diante da dificuldade de fazê-lo
em função da grande quantidade de candidatos, consultava-me como poderia fazer para
ter acesso a alguma das professoras que decidiam sobre o ingresso dos candidatos.
Considere-se aqui que, em que pese a sua condição de formada pela faculdade de
Direito, trata-se de uma instituição massiva e, portanto, não existe um reconhecimento
pessoal dos professores em relação aos seus alunos. Em breve, ingressei nos circuitos de
intercâmbio que se davam não dentro dos tribunais, mas também em redes mais
31
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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amplas embora com intercessões com o foro de Menores como nos exemplos
referidos.
21
Procuro explicitar como o trabalho de fazer esta etnografia e a pesquisa que a
fundamenta se efetuou através de uma malha de vínculos sociais em que os outros
atores também redefiniram parâmetros e estabeleceram novos fins para as interações, e
onde é impossível um estrito controle das expectativas e das impressões mútuas e
uma recíproca manipulação de interesses e valores em ocasiões divergentes
viabilizada pela superposição e pelo entrecruzamento de significados que, em certas
ocasiões, são aparentemente compartilhados. Com isso, refiro-me ao reaproveitamento
de meu interesse por conhecer a gestão cotidiana desses tribunais que foi, para a equipe
da Faculdade de Direito, uma maneira de ampliar, a partir de outra perspectiva
disciplinar, os dados e a análise que se pensava em obter apenas por meio do estudo de
autos de arquivo recente.
Além disso, minhas observações se realizaram em um Juizado em que seu titular
explicitamente como me foi dito depois tinha especial interesse em que “se
conheça como eu trabalho”, em virtude de um momento particular de sua trajetória
profissional. Em meu afã de (re)conhecer como se o processo de formação das
administradoras no próprio foro, realizei um acompanhamento sistemático do
desempenho como empregada, através de encontros semanais de fevereiro a dezembro
de 2007, de uma advogada, empregada judicial de um Juizado Prevencional de Menores
distinto daquele em que fizera minhas observações. Tais diálogos serviram-lhe para
neutralizar tensões acontecidas em seu trabalho, ao encontrar em minha interlocução
não só uma escuta atenta e interessada, mas também argumentos para se opor às práticas
21
Sarrabayrouse Oliveira analisa o caso das escusas na “causa do necrotério judicial” no final da última
ditadura militar argentina, e chama a atenção para as relações de intercâmbio no âmbito da justiça penal
portenha. A autora expõe como os magistrados, para poderem se afastar das causas, opõem, como causa
de escusa, a “amizade íntima” que os unia a outros integrantes da Câmara, e a “frequência do convívio”.
Na mesma direção do observado nos tribunais de Menores de Córdoba, a respeito da relevância das
relações pessoais, Sarrabayrouse aponta: “O ponto que me interessa destacar nestes 'incidentes
escusatórios' é o tipo de argumentos utilizados para sua sustentação, porque estes argumentos têm a
particularidade de mostrar o modo com que operam simultaneamente duas lógicas diferentes: por
um lado, a lógica do universo regido por regras de caráter universal as leis e as normas; por outro, a
lógica que corresponde ao universo das relações pessoais. [...] isto nos permite dizer que, embora a partir
de uma definição normativa o poder judicial seja um aparato legal-burocrático, universalista e igualitário,
que se encontra regulado por um sistema de regras abstratas e codificadas submetidas à ordem legal
estabelecida pela Constituição, as relações desdobradas em seu interior estão atravessadas pelo status, a
hierarquia, o parentesco e as lealdades de distinta ordem” (2003:51-55).
32
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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dos tribunais que convencionalmente se consideram fora de discussão: “isto aqui se faz
assim”.
É importante ter em mente que o que foi descrito em termos esquemáticos como
circuitos de intercâmbio não corresponde a uma reciprocidade isolada em relação a um
domínio formalizado de intercâmbios, mas sim se imbrica com um compartilhar o
cotidiano dos tribunais de Menores para dar conta de suas atuações, indubitavelmente
afetadas pelas críticas situações de vida que eram geridas neles.
Por outro lado, a partir de maio de 2005, assisti a e participei regularmente de
eventos e congressos “especializados na matéria”, Jornadas de Direito de Família e
Menores, de Investigação social relativa à Infância no marco da CDN em distintas
cidades argentinas (Buenos Aires, Morón, La Plata, Rosario, Salta, entre outras).
22
Para
não ter como único ponto de referência as descrições e a análise da situação da cidade e
da província de Buenos Aires, que é principalmente oferecida pela literatura argentina
(Villalta, 2004; Guemureman & Daroqui, 2001; Guemureman, 2005a; Nocetti, 2001;
Vive, 2005), procurei, como foi mostrado, instâncias em que pudesse me aproximar de
investigadores com trabalhos inéditos.
23
Com o objetivo de tomar conhecimento da situação dos debates em nível local,
também participei de conferências, jornadas e eventos na cidade de Córdoba,
focalizando em instâncias de discussão e formação especializada, assim como de outros
espaços de discussão, como as da Sala da Criança do Colégio Profissional de
Advogados, para conhecer a respeito da participação ou não das administradoras em
22
Uma lista detalhada de minha participação em eventos, reuniões e na realização de entrevistas com
investigadores e diferentes especialistas no estudo da problemática dos Direitos da Criança consta do
Anexo D.
23
Em relação à situação jurídica da minoridade na cidade de Rosário, província da Santa Fé, e do “mapa
institucional”, tanto no âmbito do Poder Executivo quanto no dos Poderes Legislativo e Judicial, pode ser
consultado em Polola, 2005a; para um enfoque sobre a reestruturação institucional sobre as instituições
relativas aos menores de idade em conflito com a lei penal, veja-se Polola, 2005b. Em outros casos, como
o da província de Entre Rios, María Elena Murga, responsável pela Secretaria de Proteção Integral,
subordinada ao Poder Executivo provincial, dizia, nas Jornadas de Rosário (2005), referindo-se ao
processo de adequação à CDN: “a lei foi impulsionada pelo Poder Executivo, que fez primeiro sua
reforma de acordo com a CDN e sem lei, retomando as indicações da UNICEF para que se reformasse a
administração”. E, como prova disso, apresentou o processo de desinstitucionalização de crianças sem
contar com uma lei específica. Quanto à situação na província de Mendoza, uma equipe de investigação
da Faculdade de Direito da Universidade Nacional de Cuyo, trabalhando com autos judiciais, centrou-se
no estudo do “exercício da função tutelar que a lei 6354 da Criança e do Adolescente outorga ao juiz de
família os processos decisórios que ela põe em jogo e a instrumentalização de políticas de proteção em
face de situações de risco da criança-adolescente” (Eschilardi et al., 2005).
33
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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estudo de tais instâncias e seus posicionamentos fora de 'tribunais', no caso de assistirem
a esses eventos.
Estas pesquisas possibilitaram uma constatação a respeito de qual seja o espaço de
formação-chave dessas administradoras judiciais de Menores, característica que
considero sinal da administração judicial em estudo, qual seja, a da centralidade da
“experiência no foro”, combinada com um relativo isolamento em relação ao conjunto
de debates de especialistas que, em nível interprovincial, ativam instâncias de discussão
a partir da perspectiva pró-CDN. A isto se soma a escassa oferta de instâncias
sistemáticas de estudo em Direito de Menores. O que se pode extrair, como um dado, é
a escassa ou nula participação de administradoras desses tribunais de Menores, ou
melhor, para ser fiel ao observado, sua ausência, tanto nos eventos de debate realizados
em âmbitos acadêmicos, quanto nos organizados em âmbitos judiciais em Córdoba. Nos
distintos encontros que tiveram lugar em outras cidades, não encontrei nenhuma
administradora que deles participasse.
Em julho, agosto e setembro de 2006 realizei também encontros quinzenais com
uma ex-titular de um Juizado Prevencional de Menores. Meu interesse a respeito de sua
trajetória profissional radicava em que se tratava de uma administradora que em sua
própria carreira judicial fez parte, desde 1960, da história desses tribunais de Menores, a
partir de um par de anos posteriores à criação do primeiro Juizado de Menores até
virtualmente o seu cinquentenário, em 2007. Tenhamos presente que se tratou de uma
pesquisa a posteriori de minhas observações no Juizado, onde tinha podido constatar
minha hipótese a respeito de não ser um rastreamento dos mandatos normativos, o que
poderia dar conta das continuidades e das descontinuidades acontecidas entre o
momento inicial dos Juizados de Menores em Córdoba e a situação que acompanhei nos
últimos anos. Pude então contar com uma interlocutora privilegiada em relação às
costumeiras formas de gestão desta administração judicial.
Para impor uma vigilância metodológica às condições de pesquisa descritas (que,
como se sabe, limitam algumas perspectivas e abrem outras), empreguei diversas fontes,
trabalhei com diferentes materiais, instrumentalizando-os como via de produção de
dados e, juntamente, de controle das interpretações construídas a partir de minhas
observações. Em outras palavras, minhas próprias imagens expostas as
representações da literatura argentina sobre o tema e minhas pesquisas anteriores foram
34
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contrastadas com observação nos tribunais do foro Prevencional de Menores cordovês,
somada à análise de autos (de arquivo recente, ou em curso, no momento de minhas
observações).
Bem além das dificuldades para a exploração deste espaço do mundo social o
foro Prevencional de Menores onde, como na administração judicial em geral, a
observação é exercida pelos próprios administradores e ser objeto de indagação é, em
princípio, impensado, ao longo destes anos de pesquisa acentuaram-se os traços da
investigação como uma atividade dialógica, localizada. Assim, mantive a posteriori das
minhas observações, comunicações pessoais com administradoras do Juizado e da
Assessoria cujos cotidianos acompanhei, ocasiões em que pus em discussão
interpretações sustentadas nesta tese, como a da centralidade da 'empregada que
(sobre)leva a causa', e recolhi suas réplicas e as suas próprias interpretações.
Especificamente, além disso, no último ano de redação deste trabalho, tive conversas
pontuais com empregadas do foro e com advogadas que ‘litigam’ no âmbito
prevencional desses tribunais, a fim de discutir arestas específicas de minhas pesquisas,
pondo em contraste suas descrições sobre, por exemplo, as audiências e as minhas
próprias.
Em suma, este percurso procurou redelinear a situação etnográfica, retraçando
reflexivamente as pesquisas.
I.3 Organização desta tese
Iniciei esta introdução assinalando o fato de que esta tese trata de mecanismos de
gestão da Infância no contexto das mudanças legislativas a partir da Convenção dos
Direitos da Criança. Em termos resumidos, o movimento seguido na estruturação das
partes deste texto dirige-se de uma atenção aos planos mais codificados desse processo
para aqueles mais capilares e, em certa medida, menos visíveis nos debates públicos
sobre esta questão na Argentina.
Na Parte II, que se desenvolve a seguir, busco traçar o horizonte de referências
normativas que funcionam um tempo como remissões legais e ideários em relação à
gestão da Infância. Para isto, procuro assinalar aqueles que são considerados como os
35
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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marcos mais relevantes da trajetória legal e, sobretudo, o que é pertinente à formatação
administrativo-judicial. Exploro também aquilo que denominarei de vulgata dos
Direitos da Criança, termo que indicaria a formação de uma constelação de valores que
ultrapassam os âmbitos específicos do direito ou da política para se converterem em
uma linguagem moral que define os contornos dentro dos quais se pode falar da
Infância e sua gestão. Compreender os termos em que tal vulgata se estabelece e circula
implica forçosamente recorrer à produção daqueles que entendo como autores-atores
responsáveis pela constituição de um campo de argumentação que é a um tempo
acadêmico e político. Ainda nesta Parte II, será abordada a administração judicial em
foco a partir de uma análise de autos judiciais relativos a Menores Prevencionais de
arquivo recente realizando uma leitura das peças documentais em correlação com
seus horizontes legais de referência.
A Parte III, intitulada "Uma administração (não tão) pública", marca uma entrada
na “sede judicial”, explorando os usos do espaço e de uma temporalidade propriamente
tribunalícios. Nessa direção se concebe a gestão em análise como uma composição não-
fortuita entre esperas, barreiras, temores que delimitam as possibilidades de
diferenciação e as desigualdades atuantes nesse “passar pelo foro de Menores”.
Descrevo, também aqui, as modalidades particulares de seleção das situações que eram
enquadradas como sob a Proteção Judicial, sujeitas ao escrutínio das administradoras
que separavam e hierarquizavam aquilo que era grave e/ou urgente daquilo que podia
ser direcionado para outras instâncias. A partir de uma detalhada atenção às práticas das
administradoras judiciais em suas atuações com os “menores e seus maiores
responsáveis”, revisito as dinâmicas entre as vias prévias ao Juizado Prevencional de
Menores e suas derivações.
Na Parte IV, procuro descrever etnograficamente a composição das audiências,
assim como as estratégias das administradoras para recordar, registrar e integrar as
atuações judiciais de Menores. Tais procedimentos permitem perceber como se a
transformação de experiências fundamentalmente fragmentárias em causas que são
especialmente dotadas de inteligibilidade e continuidade na empregada que as leva.
Neste ponto, o personagem principal são as Pequenas Juízas, as encarregadas de lidar
com as situações em questão, de levar com elas uma espécie de gestão das impressões
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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que não ficam registradas nos autos, mas que têm relevância justamente por sua
opacidade.
Entanto, na Parte V trato do que entendo como técnicas de menorização.
Adquirem destaque aqui as formas de aconselhamento concebidas como procedimentos
de gestão administrativo-judicial, que permitiam por sua vez viabilizar (re)soluções e
formatar pedagogicamente certos modos de conduta, de apresentação de si, e que
delimitavam as possibilidades aceitáveis de se ser responsável por um menor e,
particularmente, de se ser mãe. Não era banal que nas atuações administrativo judiciais
se engendrassem com regularidade compromissos, expressos sob fórmulas prescritas.
Embora estas formas de aconselhamento e as fórmulas de compromisso apareçam,
segundo uma visão normativa, como diferentes em sua “natureza dos procedimentos
propriamente judiciais, eu as entendo, ao contrário, como parte central desta
administração Prevencional de Menores.
Ainda nesta parte, delineio a imagem do Ministério Pupilar exercido pelas
Assessorias de Menores como metáfora de uma administração judicial, portanto estatal,
que consegue “minorizar” relativamente pais, tutores e guardiães, ao mesmo tempo em
que estende sua presença através da demarcação dos limites e das obrigações daqueles
responsáveis por uma criança. Sugiro, por último, uma reflexão a respeito das
implicações e da potência da modalidade “caseira” dessas gestões tutelares que extraem
de sua aparente fragilidade as possibilidades de sua efetividade para obrando en vidas,
obrar en autos.
37
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
Parte II
Ideários, codificações e autos da Proteção Judicial da Criança
II.1 Horizontes de referências legais
A legislação nacional referida aos poderes estatais em relação aos menores de
idade esteve regida até fins de 2005 pela lei nacional 10.903, de 1919, em cujo texto
estava prevista a faculdade de o Juiz dispor do ‘menor’ que fora considerado “em estado
de abandono, ou perigo material ou moral”.
1
Esta 'lei do Patronato' modificou o Código
Civil argentino e redefiniu o pátrio poder, conjunto de direitos e obrigações dos pais
sobre as pessoas e os bens de seus filhos enquanto estes fossem menores de idade,
separou a titularidade do pátrio poder de seu exercício, e prescreveu a possibilidade da
suspensão ou da perda de ambos.
2
Em tais casos, os ‘menores’ ficavam “sob o
Patronato do Estado”.
A lei 10903 é conhecida, tanto na literatura quanto nos âmbitos jurídicos como a
Lei do Patronato e, entre os especialistas, também como Lei Agote.
3
Foi sobre esta lei
do Patronato e suas ‘aplicações’ que se construíram as críticas doutrinárias e políticas ao
1
Art. 21 lei nacional 10.903: “Aos efeitos dos artigos anteriores se entenderá, por abandono material
ou moral ou perigo moral, a incitação dos pais, tutores ou guardiães à execução pelo “menor” de atos
prejudiciais à sua saúde física ou moral; a mendicidade ou a vadiagem por parte do “menor”, sua
frequência a lugares imorais ou de jogo, ou com ladrões ou gente viciosa ou de mal viver, ou que, não
tendo completo dezoito anos de idade, vendam periódicos, publicações ou objetos de qualquer natureza
nas ruas ou lugares públicos, ou quando nestes lugares exerçam ofícios longe da vigilância de seus pais
ou guardiães, ou quando estejam ocupados em ofícios ou empregos prejudiciais à moral ou à saúde.”
2
Podem ser consultados em relação a esta legislação os trabalhos de Zapiola (2003), Epstein (2003) e,
para a disputa a respeito de quem exercia o Patronato estatal, veja-se Villalta (2002).
3
Esta Lei do Patronato, ou “Lei Agote”, em homenagem ao médico Luis Agote que, enquanto presidente
do Patronato da Infância da cidade de Buenos Aires, apresentou, como deputado nacional pela província
de Buenos Aires, reiterados projetos de lei de “proteção à infância”. Para uma aproximação com esse
Patronato da Infância, instituição de grande importância na assistência filantrópica portenha em princípios
do século XX, veja-se Epstein (2003).
38
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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modelo da ‘situação irregular’ na Argentina.
4
A ela se opôs, como mencionei, a
chamada “doutrina das Nações Unidas para a proteção da infância”.
5
A lei do Patronato não criou os Juizados de Menores na Argentina, que foram
surgindo anos depois, dependendo das formas locais de ‘administração de justiça’.
Assim, o primeiro tribunal de Menores foi criado na cidade de La Plata, capital da
província de Buenos Aires, em 1937 (Sorá, 2000). Na província de Córdoba não foram
criados como consequência imediata da vigência da Lei do Patronato os tribunais
especiais. Naquelas situações, em que um menor de idade, 'sem conflito com a lei
penal', ficava “sob jurisdição”, intervinham as Defensorias de Menores instituições
de origem colonial que no âmbito cordovês foram redefinidas pela Lei Provincial
3364, de 1925. Esta lei, em seu artigo 96°, estabelecia que o “Patronato do Estado” seria
desempenhado por Defensores e Assessores Letrados de Menores, aos quais
correspondia a representação “dos incapazes enquanto interessasse a sua pessoa e bens”
(art. 108°, Lei 3364). Cabe demarcar que os Defensores de Menores foram eximidos do
requisito geral de ter título de advogado para o exercício da magistratura; deviam, sim,
ser cidadãos argentinos, maiores de 40 anos, e “gozar de um conceito de idoneidade e
venerabilidade notórios” (Lei 3364, art. 97).
Em 1957, pelo Decreto Lei 6986, foi criado o primeiro Juizado de Menores, e
para a Primeira Circunscrição Judicial, isto é, para a cidade-capital e suas
adjacências. A criação do Juizado específico pôs fim à Defensoria de Menores, e
instaurou um ‘foro especial relativo a menores’. Desde então, rege em Córdoba o
4
A onipresente referência acusatória à Lei de Patronato se apoia na afirmação de que seria a lei a que
constrói o sujeito menor, premissa de base compartilhada por García Méndez (1998 [1989]), Larrandart
(2002), Domenech & Guido, (2003) Beloff (2004:24). Um estudo comparável ao de Adriana Vianna
(2002), trabalhando com os arquivos policiais no Rio do Janeiro de princípios do século XX, que põe em
questão as teses que outorgam caráter criativo do sujeito social menor à lei, ou que rastreie o
enraizamento e a operatividade em nossa região das instituições do direito indiano relativas aos menores e
à sua continuidade ou descontinuidade durante o século XIX, até onde eu conheço, não foi produzido na
Argentina. Não obstante, tanto Domenech quanto Beloff, em suas respectivas conferências ditadas no
marco das IV Jornadas de Investigação Social de Infância e Adolescência, afirmaram que o Patronato
excedia a legislação minoril: Domenech (2005) colocou que o Patronato teria sido conformado antes da
Lei Agote, de 1919, com leis administrativas, referidas a questões educativas e sanitárias; entanto, Beloff
(2005b) afirmou a intuição de que foi por meio de práticas e decretos policiais que se teria construído o
Patronato.
5
A afirmação de que existe um antes e um depois da CDN na América Latina teria se apoiado na enorme
do poder das leis para mudar a realidade. Segundo Beloff, into havia se dado em um contexto de
estreita proximidade entre o que chama de “organizações de cooperação internacional e a reflexão
teórica”. E assinala –o que eu suscribiria– que “provavelmente nesse momento não havia outra forma de
pensá-lo sem os recursos das Nações Unidas para a Infância. Mas neste momento é preciso refletir
criticamente sobre a CDN” (Beloff, 2005b).
39
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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princípio de especialização da administração judicial, que impõe a divisão segundo a
condição do sujeito (‘menor’) acima da matéria (civil, penal, trabalhista, administrativa,
entre outras).
Esa norma de 1957 foi substituída pelo “Estatuto da Menoridade” (Lei provincial
4873), de 1966. Esta lei, embora com modificações, continuou vigente até finais de
2002, quando foi sancionada a lei 9053, em vigência até hoje. Antes da estruturação
institucional do Foro de Menores, quer dizer, antes da norma provincial de 1957 (que
criava o Juizado de Menores), estava em funcionamento, desde 1949, a Direção
Geral do Menor, subordinada ao Ministério de Governo da Província de Córdoba.
A legislação cordovesa vigente no segmento temporário correlativo aos autos de
arquivo recente que foram examinados para esta tese são a lei 4873 e a lei 9053, de
dezembro de 2002, em vigor durante as observações realizadas em um Juizado e em
uma Assessoria de Menores. Ambas são leis provinciais, que prescreveriam acerca do
‘procedimento’, segundo a arquitetura idealizada em termos de uma das interpretações
possíveis das prescrições da Constituição Nacional, isto é, que por princípio a legislação
de ‘fundo’ é de ordem federal, e a ‘de forma’ ou procedimento é reservada aos estados
provinciais.
6
Além das discussões doutrinárias, que não serão objeto de tratamento nesta
tese, o acompanhamento das atuações administrativo-judiciais nos leva a pensar, ao
contrário desta cisão fundo/procedimento, em uma trama inconsútil e quanto é
impróprio o esquema modelar de divisão entre a “forma” dos procedimentos e o
“fundo” das leis para dar conta das atuações administrativo-judiciais em análise.
O sistema republicano-federal argentino, como disse, reconhece autonomia
legislativa e jurisdicional às províncias, ou seja, a “proteção integral” tem que ser
(re)configurada localmente de maneiras diversas. A Constituição Nacional argentina,
que fixa as bases da organização judicial desde 1853, estabelece a independência do
Poder Judicial em relação aos outros poderes do Estado e, também, o direito das
províncias de interpretarem e aplicarem a lei comum através de sua própria
‘administração de justiça’. Além disso, as províncias podem ditar as leis 'de forma' ou
6
Beloff (2005a), contra este entendimento mais ortodoxo em relação às faculdades de legislar, cedidas à
Nação ou reservadas às províncias, argumenta, apoiando-se em autores da segunda metade do século XIX
contemporâneos à redação de nossa Constituição Nacional, para afirmar que a proteção da infância não se
conta entre as matérias taxativamente cedidas à Nação para que esta dite a legislação comum. Em
consequência, seria uma faculdade das províncias o ditado das normas relativas à infância, tanto ‘de
fundo’ quanto ‘de forma’.
40
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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'adjetivas', isto é, as leis de procedimento, se não contradisserem os preceitos
constitucionais nem as leis 'de fundo'.
Na província de Córdoba, a lei provincial de 1966 voltou a atribuir o exercício do
Patronato estatal prescrito pela lei nacional de 1919 aos Juízes de Menores.
7
Naquilo
que é de nosso interesse — o “prevencional” — estes tribunais tramitavam os processos
iniciados segundo a figura do “abandono material ou moral”. A lei cordovesa de 1966
quase não previa nenhum formalismo nem exigência procedimental, à exceção de uma
audiência (prevista em seu art. 16), que devia ser anterior à “resolução definitiva da
situação do menor submetido ao Patronato”. Segundo a prescrição da mesma lei de
1966, vigente até 2002, era essa a única instância na qual se exigia a copresença do Juiz,
do Assessor de Menores, da Secretária, dos menores em questão e seus pais ou
guardiães.
8
Essa norma foi modificada pela lei provincial cordovesa 9053, promulgada 10
anos depois da aprovação por nosso país da CDN, e oito anos desde a outorga de
hierarquia constitucional à citada Convenção dos Direitos da Criança (a partir da
reforma da CN de 1994). Esta lei 9053 (2002), de “Proteção Judicial da Criança e do
Adolescente”, enumera, listando as situações que habilitariam legalmente a atuação do
Juiz Prevencional de Menores.
9
Prescreve uma série de procedimentos, mais pautados
7
O art. 1 ter da lei provincial 4873 fixa a competência prevencional dos Juízes de Menores ao prescrever
que eles “serão competentes para: “[…] Conhecer e resolver a situação dos menores de idade que
apareçam como vítimas de delitos ou faltas ou de abandono material ou moral ou de maus-tratos, de
correções imoderadas […]; Conhecer e resolver a situação dos menores de 18 anos que sejam vítimas ou
autores de infrações […]; Conhecer e resolver a guarda de menores submetidos ao Patronato do Estado”.
8
O artigo 16º da lei de 1966 diz: “ [...] o Juiz de Menores resolverá o que mais convenha à saúde material
e moral do menor, com prévio informe do Conselho Provincial de Proteção ao Menor ou do Corpo
Técnico de Assistência Judicial, em audiência oral e com a participação do Assessor de Menores, do
Delegado ou Inspetor que tenha atuado no caso e de outros interessados [...]”.
9
O artigo 9º da lei de 2002, estabelece: “O Juiz de menores no Prevencional e Civil será competente para
conhecer e resolver: a) Na situação das crianças e dos adolescentes vítimas de delitos ou faltas, quando
forem cometidas por seus pais, tutores ou guardiães; b) Na situação das crianças e dos adolescentes
vítimas de maus-tratos, correções imoderadas, negligência grave ou continuada, exploração ou grave
menosprezo de sua personalidade por parte de seus pais, tutores ou guardiães; c) Quando, havendo
exposição, filiação desconhecida, ou impedimento legal dos pais, seja necessário prover a criança ou o
adolescente de medidas de proteção; d) Na situação das crianças e dos adolescentes cujos pais
manifestarem expressamente sua vontade de desprendimento definitivo, mesmo que para ulterior adoção;
e) Quando a criança ou o adolescente tiver sido deixado pelos pais, tutores ou guardiães em instituição
pública ou privada de saúde ou de proteção, se o tempo transcorrido levar a presumir que se desligaram
injustificadamente de seus deveres para com o mesmo; f) Quando com seu próprio comportamento a
criança ou o adolescente comprometer gravemente sua saúde e o solicitarem seus pais, tutores ou
guardiães; g) Nas questões referentes a mantimentos, vênias supletivas matrimoniais e outras autorizações
41
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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que na lei anterior (conhecida nestes tribunais como de “procedimento mínimo”), assim
como distintos tipos de medidas de que poderá ‘dispor’ o Juiz: as “urgentes”, na
primeira audiência; as tutelares, de resolução provisória enquanto se pratica a
investigação”; e as “complementares”, definidas como de orientação, apoio e
acompanhamento temporário à criança ou ao adolescente e/ou à sua família, quando for
determinada a situação familiar; as medidas transitórias, para evitar a internação, o Juiz
pode ordenar “confiar transitoriamente a criança ou o adolescente a uma pessoa ou a um
casal substituto”.
No texto da lei cordovesa 9053 de 2002, os Tribunais estão divididos em
Prevencionais e Correcionais, isto é, se atenderia por separado ao “menor vítima” do
“menor delinquente”. Por isto, tal lei modifica a denominação dos Juizados, que não
serão mais Juizados de Menores apenas, mas sim Juizados de Menores no Prevencional
e Civil, alguns deles, e Juizados de Menores no Correcional, os restantes.
10
Pesquisando a trajetória do foro, sabemos que tal partição havia sido
determinada por uma disposição interna do Poder Judicial da Província que data de
1984, pela qual se outorgava competência específica em assuntos correcionais (isto é,
sobre menores em conflito com a lei penal) a um dos Tribunais de Menores, ficando os
outros com a competência Prevencional. Até esse momento, cada Juizado de Menores
contava com Secretarias de Prevenção e de Correção; tal divisoria foi materializada,
quase vinte anos antes da ley de 2002, através da redistribuição das Secretarias.
11
a respeito de crianças e adolescentes sujeitos à proteção judicial; h) Nas diligências necessárias para
outorgar certeza aos atributos da personalidade de crianças e adolescentes sob sua proteção; i) Nas
autuações sumárias indispensáveis para garantir a crianças e a adolescentes as prestações sociais e
assistenciais, mesmo que não estejam sujeitos à proteção judicial [...]”
10
Para um esquema do Foro de Menores da cidade de Córdoba, veja o ANEXO A.
11
Em função de Acordo Regulamentar 86 Série “A” do Tribunal Superior de Justiça da província de
Córdoba (STJ), de 12/11/1984, atribui-se competência específica em matéria correcional ao Juizado de
Menores de 1ª Nominação. Assim, este Juizado começa a funcionar em três Secretarias Correcionais, e os
restantes, Juizados de 2ª e 3ª Nominação, a funcionar com duas Secretarias de Prevenção e uma Secretaria
Civil. Pelo Acordo Regl. do STJ 193, de 23/03/90, entra em funcionamento o Foro de Família
(composto por uma primeira instância de Juizados de Família, e uma segunda instância, constituída pelas
Câmaras de Família, que atuam como tribunais de alçada para os Juizados Prevencionais de Menores,
pois a Câmara de Menores, prevista tanto pela legislação de 1966 quanto pela de 2002, não foi criada até
a atualidade), ficando as Secretarias Civis dos Juizados de Menores, de fato, 'sem função', que tal
competência foi transferida aos Juizados de Família. Os Juizados que anteriormente tinham competência
Civil, ficaram conformados por três Secretarias de Prevenção, com o que se consuma a divisão do 'Foro',
pois daqui em diante haverá quatro Juizados unicamente gerindo sobre assuntos prevencionais, e outros
quatro para assuntos exclusivamente correcionais. Assim, os Juizados de Menores da Circunscrição
funcionam até hoje, sem que esta estrutura tenha sido afetada pela lei de 2002.
42
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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O que foi dito anteriormente mostra que aquilo que se converteu em lei seria uma
codificação da experiência, da prática. Isto quer dizer que esta divisão entre “menores
vítimas” e “menores delinquentes”, que foi um dos aríetes da luta pelos direitos da
criança, realizou-se nesta administração e prestemos atenção às datas quatro anos
antes, inclusive, da CDN, pelo que tal separação se deveu à consideração daquilo que
em Tribunais é chamado de ‘o mero trâmite’, uma razão de ordem administrativa.
Àquela que no âmbito tribunalício era outorgado um caráter novidadeiro, segundo
a expressão de empregadas e funcionárias, era a questão relativa aos prazos que a lei
provincial 9053 de 2002 prescreve para cada processo. Esta lei estabelece que a
“investigação [...] deverá ser cumprida dentro do prazo de seis meses corridos e
inevitáveis”; e que cada processo tenha uma parte de “investigação, que deverá se
cumprir dentro do prazo de seis meses corridos e inevitáveis, no qual se poderão tomar
medidas transitórias”. Superados esses meses, o Juiz poderá pedir uma prorrogação de
três meses, que poderá se ampliar excepcionalmente a três meses mais, por motivos
fundamentados, ou seja, prevê-se na lei um prazo estipulado para cada processo de, no
máximo, um ano.
Empregadas e funcionárias do Juizado, cujas atuações observara, manifestavam a
respeito desses prazos sentirem-se “apressadas”, e os consideravam exíguos,
sustentando que para um “acompanhamento cuidadoso de cada caso” os seis meses
eram insuficientes para elas. Por sua vez, atribuíam em boa medida esta escassez de
tempo às demoras de outros especialistas (membros das equipes técnicas subordinadas
ao Poder Executivo) em realizarem informes, 'constatações' e as demais diligências
ordenadas pelo Juizado Prevencional de Menores. Tanto a partir dos autos quanto das
minhas observações, emerge que, além da prescrição legal que estabelece uma duração
limite, para cada processo, de um ano, prevalecia como característica a de manter os
processos abertos por um tempo maior, e sem resoluções que deram fim às atuações.
Outra prescrição enunciada pelas mesmas administradoras como novidade da lei
provincial de 2002 é aquela que se intitula “a questão do patrocínio letrado”, e que está
relacionada ao mandato legal que impõe que, quando do comparecimento dos
‘interessados’ maiores de idade perante o Tribunal, deve-se intimá-los para que
designem advogado. No caso de não designarem um, é preciso que lhes seja destinado
43
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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gratuitamente um Assessor Letrado do Ministério Público, isto é, devem contar,
obrigatoriamente, com assistência letrada.
12
Esta questão assim como aquela que se refere à mudança de denominação
(Prevencionais e Correçionais) pode ser vista como a consagração legal de uma
prática anterior, posto que em certos processos era concretizada antes da lei 9053 de
2002. Novamente encontramos uma questão percebida como novidade legal, que retoma
o que já vinha sendo praticado nesses tribunais: ao menos, conforme consta nos autos de
substanciados e arquivados antes da lei 9053 de 2002, pode ser constatada a designação
de assessores letrados para representar pais, tutores e/ou guardiães.
Agora, em relação às situações em que pode intervir, segundo a norma vigente,
um Juizado de Menores: a sua competência os pressupostos legais que habilitariam a
atuação judicial se compararmos as leis de 2002 com a lei vigente anterior de 1966 e,
finalmente, com o Decreto Lei de 1957, podem ser indicadas somente algumas
modificações. No primeiro decreto-lei de 1957, o Juiz de Menores era ‘competente’ para
tomar conhecimento e resolver em casos de “delitos, faltas ou atos de conduta
cometidos por menores; nas situações em que menores aparecessem como vítimas de
delitos ou faltas, de maus-tratos ou correções não-moderadas, ou infrações”. Também
estava facultado para atuar nas situações de ‘menores’ cujos pais, guardiães ou
estabelecimentos privados de educação ou assistência assim o requeressem; e em
questões referentes ao pátrio poder, alimentação e guarda desses mesmos menores.
Como se pode notar, na legislação de 1957 acumulavam-se as competências dos
Juizados que a lei de 2002 outorga separadamente aos Juizados no Correcional e aos
Juizados no Prevencional, por outro. Em outras palavras, ainda que da lei de “Proteção
Judicial da Criança” de 2002 foram excluídas as fórmulas “menores submetidos ao
Patronato do Estado”, e “menores vítimas de abandono material ou moral” presentes
nas leis anteriores – as competências legais são mantidas, em boa medida.
13
12
Em um trabalho sobre processos de Menores Prevencionais substanciados alguns anos antes da
vigência da lei provincial de 2002 de que trato aqui, Reartes menciona que nem sempre era realizada tal
emprazamento para apresentar-se uma assessoria letrada (2000).
13
Porém continuavam presentes tais fórmulas em textos correspondentes a processos iniciados logo
depois da entrada em vigência da lei de 2002. Assim era frequente, em pedidos de “informes
socioambientais”, ou de “constatações” solicitadas pelo Juizado ao organismo técnico-administrativo,
encontrar trechos nos quais se lê: “[...] com fins de conhecer a situação moral e/ou material do menor [...]
se constatem estado e condições materiais e/ou morais em que se encontram os menores [...]”. É notável a
pregnância daquelas ‘fórmulas de rigor’; assim, era habitual ler nos ofícios: “[...] se corriam perigo moral
e/ou material, deveriam ser retirados e internados [...]”.
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Mesmo depois de reformada a legislação nacional, em 2005, em Córdoba se
manteve a competência dos Juizados Prevencionais de Menores primeiro, por
resoluções do Tribunal Superior de Justiça da Província, e depois, paradoxalmente, em
função dos prazos de suspensão da aplicação da Lei Nacional 26061 que estabeleceu a
propria lei provincial de adesão à norma nacional. Inicialmente, por meio de um Acordo
(08/11/05), sustentava-se que a lei provincial de Proteção Judicial estava conforme a
CDN (incorporada às constituições argentina e cordovesa) e, em maio de 2007, a sanção
por parte da legislatura provincial da mencionada lei de adesão não modificou o
panorama, mantendo-se os Juizados Prevencionais de Menores.
Em Córdoba evidenciou-se a força do esquema institucional judicial para manter-
se funcionando, sem maiores modificações, diante de um horizonte normativo mutante
e, em certas ocasiões, contraditório, surgindo razões mais que suficientes para
atenderem às suas atuações. Em vinculação com isto, é preciso observar a (de)mora de
parte do Poder Executivo para assumir as funções que a legislação nacional de 2005 lhe
impunha.
Foi com a sanção da Lei Nacional 26061 de Proteção Integral, de 2005 que, como
foi dito, se produziu uma situação imprevista na ocasião de projetar esta pesquisa, já que
além do debate acadêmico-político que precedeu à lei, e dos termos com os quais
prescreve a Proteção Integral, esta Lei implicaria, seguindo uma das interpretações
possíveis do texto legal,
14
o desaparecimento da parte do Foro de Menores onde centrei
minha investigação, qual seja, o Prevencional.
Resumindo, a lei nacional de Proteção Integral,26061, de 2005, como disse,
não resultou na transferência da competência dos tribunais Prevencionais para a
“administração” aquela exercida pelos Poderes Executivos (tanto o provincial como
o nacional). Além disso, transcorridos vários anos da sanção da Lei Nacional 26061,
não tinham-se realizado reestruturações institucionais na SPINA que possibilitem que
esta parte da administração subordinada ao Poder Executivo exija para si o poder de ser
14
No Art. 40º da Lei Nac. 26.061, referente a quando devem “proceder às medidas excepcionais”
(definidas no art. 39º, aquelas que se adotam quando crianças e adolescentes estejam temporária ou
permanentemente privados de seu meio familiar, ou cujo melhor interesse exija que não permaneçam
nesse meio), prescreve-se que “será a autoridade local de aplicação quem decidirá e estabelecerá o
procedimento a seguir, ato que deverá estar juridicamente fundado, devendo notificar fidedignamente,
dentro do prazo de 24h, a medida adotada à autoridade judicial competente em matéria de família de cada
jurisdição”. Em breve, esta Lei de Proteção Integral não tem prevista a intervenção dos tribunais de
Menores.
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quem ‘aplica a lei’. Na província de Córdoba se mantinha o órgão administrativo do
Poder Executivo provincial, com funções “auxiliares da Justiça”.
15
O título deste ponto II.1 Horizonte de referências legais procurou anunciar o
que esta tese busca mostrar em relação à administração judicial dos tribunais
Prevencionais de Menores de Córdoba: que as leis operavam como um horizonte de
referências, e não estritamente como foi colocado como a ferramenta
privilegiada para ser “aplicada”. Este texto procura uma aproximação antropológica à
lei, em que o campo do normativo-legal é considerado um pano de fundo para o
conhecimento dessas atuações administrativo-judiciais.
16
15
Veja-se o quadro em relação à Secretaria de Proteção Integral (SPINA), no Anexo A, no qual se
condensou esquematicamente informação referente à sua estrutura e aos programas.
16
Retomo aqui as afirmações da Sally Falk Moore a respeito do fato de uma antropologia social do
campo normativo ter abandonado a questão de uma definição “do legal” universalmente aplicável, para
perguntar-se sobre como são executadas as normas, como são justificadas moralmente, atendendo de
perto aos diferentes contextos sociais, políticos, intelectuais, e considerando a interação da pluralidade de
normativas entre os níveis locais, nacionais e transnacionais (Moore, 2005:1-4).
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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II.2 Uma vulgata dos direitos da criança
Uma legislação que acolha os princípios da CDN foi e continua sendo
segundo os promotores da ‘doutrina da proteção integral’, uma obrigação dos Estados
nacional e provinciais. Não obstante, a tão reclamada ‘adequação’ da legislação
nacional e local à CDN foi na Argentina não demorada ao longo dos últimos quase
20 anos, mas também parcial: até o presente não se reformou a ‘matéria penal juvenil’;
e, além disso, foi sobreposta, pois se realizaram primeiro as reformas legislativas no
âmbito de algumas províncias, como a de Córdoba e depois se reformou a lei nacional.
17
De uma revisão da literatura produzida por autores-atores (Castro Faria, 2002:26)
argentinos em relação à temática, desde perspectivas teóricas e metodológicas diversas
surge, em linhas gerais, que esses textos reelaboram o que chamo de uma vulgata dos
direitos da criança, assentada sobre a dicotomia dos “paradigmas da situação irregular”
e da “proteção integral”. Recuperando uma esquematização de Castro Faria (2002:33),
poderíamos afirmar, parafraseando-o, que esta vulgata seria a recorrência de antinomias
constitutivas na reflexão da problemática da ‘menoridade’ das quais não se liberta,
segundo minha consideração, em geral, a literatura produzida na Argentina. Daí a
conveniência de ter presente, para o “paradigma da proteção integral”, o que Castro
Faria afirmou em relação à teoria da evolução social do século XIX tida como
paradigma:
[...] ela determina o que pensar, como pensar e como ordenar as coisas
pensadas. Ela preestabelece o que deve ser incluído e, portanto, o que deve
ser excluído; não preenche o pensamento, mas também o esvazia. O
pensar de acordo com esse paradigma importa em falar das mesmas coisas e
silenciar sobre as mesmas coisas que foram faladas e silenciadas por outros
que pensaram de acordo com ele (2002:45).
Chamo-a de vulgata aludindo à vulgata editio, que, como sabemos, é a tradução
para o latim de uso corrente da Bíblia, realizada por São Jerônimo em começos do
século V, com o objetivo de facilitar o entendimento dos textos sagrados para poder
expressar a força que foi adquirindo, tendo o poder de divisor de águas, havendo se
17
Aproprio-me nesse sentido da advertência de Claudia Fonseca, analisando o processo no Brasil em
torno do ECA, de que: “Não nada automático, portanto, na maneira como cada país traduz o espírito
da legislação dos direitos humanos” (Fonseca, 2004:112).
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convertido no marco interpretativo politicamente correto. Em outras palavras: vulgata
em virtude do caráter que foi adquirindo de verdade revelada, indiscutível que, tal qual a
Vulgata Latina, imprimiu-se e reimprimiu-se, tanto na literatura como em instâncias
públicas de debate.
Tal versão tem como núcleo sólido a ideia de que haveria um novo paradigma (o
da Proteção Integral), consagrado pela CDN, que redefiniria a posição dos meninos, das
meninas e dos adolescentes no mundo social, recolocando-os como 'sujeitos de direito',
e não mais como meros 'objetos de intervenções'.
18
Na Argentina, a vulgata foi originariamente postulada por autores-atores
provenientes de posições conhecidas como de direito penal crítico.
19
A intervenção
estatal, segundo estas posições (García Méndez, 1991; García Méndez & Beloff, 1998;
Larrandart, 1991), sob a “ficção da proteção”, se teria materializado na
institucionalização, uma forma de privação da liberdade exercida sobre sujeitos
vulneráveis.
20
Em tais textos radicalizam-se as críticas à legislação minoril e sua
18
Nessa direção, Beloff tem arguido que “A Convenção implica, na América Latina, uma mudança
radical do ponto de vista jurídico, histórico e muito especialmente cultural. Com sua aprovação
pelos países da região, gera-se a oposição de dois grandes modelos ou cosmovisões para entender e tratar
a infância. As leis e as práticas que existiam antes da aprovação da Convenção em relação à infância
respondiam a um esquema que hoje conhecemos como 'modelo tutelar', 'filantrópico', 'da situação
irregular' ou 'assistencialista', que tinha como ponto de partida a consideração do menor como objeto de
proteção, circunstância que legitimava práticas penais, de custódia e de repressão encobertas. A partir da
Convenção, a discussão sobre a forma de entender e tratar a infância, tradicionalmente encarada desta
perspectiva assistencialista e tutelar, cedeu diante de uma formulação da questão em termos de cidadania
e de direitos para os mais jovens” (Beloff, 2004:4). O paradigma formalizado juridicamente pela
Convenção sobre os Direitos da Criança implicaria, segundo Jaime Couso “[...] o desafio de reentender a
posição das crianças na vida política, social, econômica e cultural dos países que aderiram a ela [...]
promove-se que as crianças são sujeitos que [...] têm competência para definir suas necessidades e
interesses e a quem se deve reconhecer cada vez mais autonomia na decisão dos assuntos que afetam suas
vidas” (2000:27).
19
O teórico de referência nesta perspectiva é Alessandro Baratta, cujo livro Criminologia crítica e
Crítica do direito penal, de 1991, é amplamente citado, mas cujo texto de ponta, repetido e citado em
múltiplos outros trabalhos relativos a esta problemática na Argentina é Infância e Democracia, publicado
em uma compilação efetuada por García Méndez & Beloff, Infancia, ley y democracia en América Latina
(1998), cuja primeira edição é de Bogotá, teve uma segunda edição ampliada e atualizada, de 1999, e
uma terceira, de 2004. Outro denominador comum a estes autores é que, além de sua condição de
especialistas em direito, apoiam-se em seus textos em argumentações que excedem o que
tradicionalmente se entendeu como história do direito, e entram em diálogo com uma literatura produzida
a partir de outro marco disciplinador, o historiográfico. Uma ilustração clara disto pode ser encontrada em
Beloff (2005:768-776).
20
Esta linha de argumentação remete a sujeitos vulneráveis, obstruindo a constatação básica de que,
conforme impõe o Código Civil argentino, em seu Art.126.- São menores as pessoas que não tiverem
completado a idade de vinte e um anos. […] Art.128.- Cessa a incapacidade dos menores pela
maioridade, no dia em que completarem vinte e um anos, e por sua emancipação antes que sejam maiores.
Quer dizer, os “menores” estão sendo definidos como sujeitos incapazes, e é precisamente com esta
denominação que reiteradamente são nomeados não nos autos de meio século atrás, mas também nos
recentemente arquivados (correspondentes a processos judiciais tramitados nos últimos cinco anos) que
analisei.
48
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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aplicação. Estes autores postulam que a categoria menor se articularia
fundamentalmente a partir de práticas jurídicas e de modalidades de institucionalização.
A vulgata foi retomada depois por trabalhos de cunho historiográfico (Sorá, 2000; Carli,
1994), sociológico (Guemureman & Daroqui, 2001; Daroqui, 2005), do direito de
família (Minyerski & Herrera, 2008; Mihrazi, 2008), das ciências sociais (Eroles,
Fazzio & Scandizzo, 2001).
Concentrou-se na crítica do Patronato, e opôs, antiteticamente, o “modelo tutelar,
ou da situação irregular” (pré-CDN), ao “modelo de proteção integral dos direitos”
(pós-CDN). Tal vulgata inclui segundo a minha leitura dois componentes-chave: o
primeiro, a reforma legislativa “imprescindível” para a materialização dos postulados da
CDN, quer dizer, ‘tornar efetiva’ a proteção integral dos direitos de meninos, meninas e
adolescentes. O segundo, a questão da ‘desjudicialização’, isto é, a convicção de que,
subtraindo da administração judicial o processamento e a resolução de problemáticas
'assistenciais' ou 'sociais' de meninos, meninas e adolescentes 'sem conflito com a lei
penal', seriam superados a discricionariedade, a arbitrariedade e o caráter abusivo das
intervenções que são imputadas aos Juízes de Menores.
Para descrever resumidamente essa vulgata, reproduzo um quadro de autoria de
Mary Beloff,
21
preparado para o Foro de Legisladores Provinciais sobre Direitos da
Criança, realizado em 1997, e que em seguida foi usado e reutilizado, como a autora
mesma reconhece, em dezenas de reuniões, seminários e conferências, publicado,
inclusive sem remissão da situação argentina na revista Justicia y Derechos del
Niño, editada pelo UNICEF em Santiago do Chile, em seu primeiro número de 1999, e
igualmente em múltiplas ocasiões públicas, por diferentes atores, empenhados na
promoção dos direitos da criança (Beloff, 2004:1). No quadro (como na vulgata) se
21
A advogada Mary Beloff, professora da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires e atual
Fiscal Geral da Procuração Geral da Nação, é uma das principais autoras-atrizes no debate pela reforma
legislativa concernente à CDN, não só na Argentina, mas também em outros países latino-americanos. Foi
por isso que escolhi o quadro de sua autoria como condensação da vulgata. Susana Villarán de la Puente,
segunda vice-presidenta da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e designada relatora dos
direitos da infância de tal comissão, no prólogo do livro de Beloff que contém o quadro que se reproduz,
define a autora como “advogada perita na matéria”, que reúne o acadêmico e o ativismo (Beloff, 2004:III-
V). Na transcrição do quadro de Beloff, não foram reproduzidas as partes do mesmo correspondentes ao
“conteúdo e às características da intervenção estatal em face dos casos de imputação de delito ao menor
de idade”, por se encontrarem além do que é enfocado nesta tese, isto é, uma administração judicial
relativa a ‘menores sem conflito com a lei penal’.
49
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
opõem, ponto por ponto, o “modelo tutelar, ou da situação irregular (pré-CDN), e o
modelo de proteção integral dos direitos (pós-CDN)”.
22
Modelo tutelar
ou da situação irregular
Modelo da proteção integral de direitos
(pós-CDN)
Marco teórico ! Menores
! incompletos
! incapazes
! objetos de proteção
! infância fragmentada
! o importa a opinião da criança
! Crianças e jovens/adolesc.
! pessoas em desenvolvimento
! capazes relativos
! sujeitos de direito
! universalidade da infância
! é central a opinião da criança
Suposições que
permitem a
intervenção
estatal
! “Situação de risco ou perigo moral ou
material”, ou “situação irregular”, ou
“circunstâncias especialmente
difíceis”
! “Menor em situação irregular
! Direitos ameaçados ou violados
! Adultos, instituições e serviços em
“situação irregular”
Características
da resposta
estatal
! Centralização
! O assistencial confundido com o penal
! Judicialização
! Descentralização
! O assistencial separado do penal
! Desjudicialização
Características e
papel do juiz
! Juiz executando política social /
assistência
! Juiz como “bom pai de família”
! Juiz com faculdades onipotentes
! Juiz em atividade jurisdicional
! Juiz técnico
! Juiz limitado por garantias
Conteúdo e
características
da intervenção
estatal diante
dos casos de
proteção
! Proteção que viola ou restringe
direitos
! Separação da criança da família e
internação como principal intervenção
! Medidas coativas por tempo
indeterminado
! Proteção que reconhece e promove
todos os direitos que têm os adultos,
mais direitos específicos
! No há intervenções estatais coativas
para garantir direitos
! Medidas de proteção de direitos por
tempo necessário até restabelecer o
direito vulnerado
Utilizo a noção de atores-autores para assinalar não o caráter politicamente
interessado que tem a atribuição de sentidos nos mencionados textos, mas também para
sublinhar as trajetórias desses textos que foram insumos concretos tanto para as
reformas legislativas provinciais (Beloff, 1997), quanto para a “acompanhamento da
adequação” normativo-institucional aos princípios da CDN (Guemureman, 2000a:7-8).
Textos produzidos a partir da participação ativa de seus atores-autores em instâncias
judiciais ou da administração subordinada aos Poderes Executivos Nacional ou
22
Um quadro de similares características pode ser encontrado no livro no qual Domenech & Guido
estudam o paradigma do Patronato (2003:82-84).
50
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Provinciais concernentes à menoridade (Murga, 2005; Diloretto, 2005; Rodríguez,
2005); ou fruto de experiências pró “direitos da criança” (Reartes & Bazo Queirolo,
2005; Massari & Oliva, 2005). Ao mesmo tempo, começaram a ser discutidas em
certos textos algumas noções, como a de criança sujeito de direito, emanada da CDN
por estabelecer “[...] significados ambivalentes, alguns mais próximos da ideia de
submissão ou de dominação do que de um âmbito de liberdade e possibilidade”
(Magistris, Ortiz Luna & Reinoso, 2005:12). Estas últimas autoras criticam a CDN por
sua qualidade de “instrumento jurídico universal”, advertindo o quanto os discursos de
“defesa dos direitos da criança” são ativados por aqueles que exercem funções de
especialistas na matéria.
Os autores-atores advogam, como dito, pela reforma legislativa e pela
implementação de políticas públicas que garantam os direitos da criança consagrados
constitucionalmente e que, por falta de vontade política, pelo conservadorismo da
“corporação judicial”, ou incapacidade de aggiornamento da burocracia argentina, não
se veem efetivados na prática. Alguns (Beloff, 2004; Fucito, 2002; Domenech, 2005)
promovem a mudança da “cultura jurídica” e, em certas ocasiões, promovem a tomada
de posição ativa dos “operadores judiciais e cidadãos em geral” (Reartes, 1999). Da
mesma forma, elogiam a participação das ONGs “distanciadas da beneficência” como
uma circunstância de capital importância na defesa dos direitos da criança (Domenech
& Guido, 2003). Impõe-se, além disso, reconhecer que a repetição de uma chamada
“aos princípios” colaborava, tal como observei, para que fossem desestimados pelas
administradoras não judiciais que deviam tomar decisões em face de urgências
irrefutáveis.
Um dos pontos salientes da leitura da literatura argentina é o impacto que tiveram
Emilio García Méndez e Mary Beloff tanto na revisão histórico-crítica do Patronato
estatal, quanto nas ações destinadas a conquistar a transformação legislativa de acordo
com a CDN. Além disso, foi importante sua ascendência em relação àquele conjunto de
atores-autores na Argentina dos últimos vinte anos, no marco de uma reconfiguração do
campo dos legitimados para falar da problemática da infância, seja que estes
provenham de espaços acadêmicos e aqui acredito serem fundamentais os que
provenham do âmbito do direito assim como na constituição de todo um conjunto de
atores-autores que formam núcleos em torno de fundações, ONGs e institutos de
51
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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investigação.
23
A vulgata dos direitos da criança, pois, é aquele enquadre argumental de
autores articulados a partir da luta política e teórica por trás da implantação dos
princípios da CDN consagrados na Constituição Nacional.
24
Por outro lado, diferentes estudos históricos rastrearam as infâncias, no plural,
entendendo como estas a dos menores e a das crianças, dois mundos que organizariam
de maneira desigual instituições, discursos e formas de regulação. Nesses textos,
menoridade e pobreza se associariam através da judicialização e da internação
(Ciafardo, 1992; Carli, 1994; González, 2000:175; Costa e Gagliano, 2000; Cowen,
2000; Zapiola, 2003; Aversa, 2003; Villalta, 2007). A ação de ‘internar’ se legitimaria
na intenção de neutralizar aqueles que se consideram socialmente perigosos. A
classificação de certos sujeitos como menores seria consequência direta dos dispositivos
legais e institucionais, em um processo no qual o papel do Estado teria crescido
notavelmente nas elaborações legislativas. Em relação à problemática da menoridade,
sustenta-se que teria emergido na cena argentina em fins do século XIX. Essas
produções ressaltam a necessidade de conhecer o status legal para um entendimento da
condição social dos menores.
Sob o impulso de organismos como UNICEF, UNICRI, ILANUD, efetuou-se uma
série de estudos de corte histórico, cujos autores advindos do direito como García
Méndez conceberam que eram precisos estudos e pesquisas que rastreassem
historicamente as infâncias latino-americanas, propondo como resultado dessas
23
Em relação a estes autores-atores, atenho-me a retomar elementos que considero estritamente
necessários para um entendimento do efeito de enquadramento daquilo que estou chamando de vulgata.
Bem se poderia, com outros fins e em outro momento, aprofundar a respeito deste conjunto heterogêneo
de produtores intelectuais adensando a utilidade analítica desta categoria genérica “autores-atores” que
estou utilizando.
24
Como já foi dito, Emilio García Méndez e Mary Beloff seriam os autores mais referenciados e citados
a respeito destas questões. Nenhum dos dois se restringe ao estudo do caso argentino: García Méndez
refere-se às legislações infanto-juvenis na América Latina para compreender o que considera a doutrina
da situação irregular e lutar em prol da reforma legislativa, especialmente no caso da implantação do ECA
no Brasil. García Méndez, atual deputado nacional pela cidade de Buenos Aires e diretor da Fundação Sul
Argentina, foi partícipe do processo de reforma legislativa não na Argentina, e é atualmente um dos
principais impulsionadores do regime penal juvenil. Trabalhou no ILANUD, na Costa Rica; participou
também do processo de implementação do ECA, no Brasil. Atualmente, a fundação que dirige e cujo
propósito explícito é “contribuir para a efetividade dos direitos da infância” leva adiante, junto com o
UNICEF, diversos projetos nessa linha. Veja-se www.surargentina.org.ar. Beloff adota também uma
perspectiva latino-americana, a partir do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos
relativos à infância, ali sustentando que tanto os que consideram o estereótipo “menino de rua = menino
perigoso”, quanto o anterior “menor abandonado = delinquente” seriam parte de uma problemática
comum latino-americana (Beloff, 2004:68-9).
52
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investigações a hipótese de que a história da infância seja a história de seu controle. E,
em vinculação com eles, surgiram textos que desde a historiografia, por exemplo,
começaram a pensar a partir de categorias que evidentemente estão em relação com a
disputa a respeito da adequação legislativa e institucional aos princípios estabelecidos
pela Convenção sobre os Direitos da Criança (CDN).
25
Na Argentina, sobretudo a partir da incorporação da CDN à Constituição Nacional
na última reforma de 1994, o debate apresentado acerca do caráter vinculador e da
obrigatoriedade da ‘aplicação’ desses instrumentos internacionais foi intenso (Beloff,
1997). A Lei 114, de 1998, da Cidade de Buenos Aires de “Proteção Integral dos
Direitos de Meninos, Meninas e Adolescentes” incorporou textualmente aquela
Convenção. Não aconteceu tal incorporação no texto da “Lei de Proteção Judicial da
Criança e do Adolescente” (Lei Provincial cordovesa 9053 de 2002), o que tornou
mais discutível/discutida a questão da ‘operatividade’ dos princípios da CDN com
hierarquia constitucional.
26
25
Em um texto em que Cowen trata de nascimentos e partos na Buenos Aires de fins do século XVIII e
princípios do século XIX, e após se referir à prolífica adoção das teses de Ariès em relação à invenção da
infância, Cowen adota como título da introdução no segundo capítulo de seu trabalho: “Sujeitos de direito
ou sujeitos de proteção?”, no qual afirma: “o conhecimento do status legal que tinham as crianças é
fundamental para compreender sua consideração social” (2000:49). Em outro trabalho, também de cunho
historiográfico sobre “infância e beneficência” na Buenos Aires de princípios do século XX, González se
dedica especialmente à “construção sociopenal da criança” (2000:70), categoria quase idêntica à utilizada
por García Méndez no texto fundante e de muito ampla circulação, “Para uma história do controle
sociopenal da infância: a informalidade dos mecanismos formais de controle social” (1998 [1989]).
26
É importante assinalar, embora não seja objeto de tratamento, que o contexto da aprovação da
Convenção Internacional dos Direitos da Criança das Nações Unidas, por lei nacional N°23.849, de
setembro de 1990, foi o do acidentado final da transição democrática. Um ano antes, o Presidente da
República, Raúl Alfonsín, teve que abreviar o período de exercício de seu mandato e passar a presidência
ao eleito Carlos Menem, no marco de uma crise econômica, social e política que pôs fim à efervescência
redemocratizadora que caracterizou os chamados períodos de transição à democracia na América Latina.
Também é relevante ponderar que a incorporação deste tratado internacional que estabelece direitos de
crianças e adolescentes à Carta Magna argentina se produziu no contexto de uma reforma constitucional,
fruto do chamado “Pacto de Olivos” entre Menem e Alfonsín, e que, entre outras tantas modificações, ao
habilitar a reeleição do presidente Menem, viu minguada sua legitimidade. Ainda concordando com
Beloff em relação à importância de ressaltar que na América Latina a incorporação da Convenção aos
sistemas normativos de cada país se deu no marco de processos de transição democrática (Beloff,
2004:5), gostaria, porém, sublinhar as distâncias entre esse processo de adoção da CDN por parte da
Argentina e o processo brasileiro análogo, no qual o ECA se inscreve no contexto da Constituição Cidadã
de 1988. Por último, sugiro que pode ser frutífero vincular a ‘demora’ na produção de legislação de
acordo com os princípios da CDN na Argentina com a larga década menemista e as políticas neoliberais
decididamente levadas à frente por esse governo.
53
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Seja que se considere a preeminência que a Constituição Nacional aos tratados
internacionais, ao outorgar-lhes ‘hierarquia superior às leis’, ou seja por meio de sua
condição de texto incorporado a ela, a Convenção dos Direitos da Criança entrou em
nosso universo legal como ‘lei suprema da nação’. Este foi um dos aríetes dos
promotores do modelo de proteção integral para acionar os legisladores provinciais,
propiciando as reformas legislativas em seus respectivos âmbitos, assim como para
exigir dos juízes que a ‘apliquem’.
27
A Lei do Patronato, de 1919, estava evidentemente
em desacordo com os princípios da CDN, e é por isso que a sanção da lei nacional de
Proteção Integral dos Direitos de Meninos, Meninas e Adolescentes, 26.061, de
outubro de 2005, foi celebrada como o fim do Patronato e do modelo da situação
irregular na Argentina, e criticada por cortar “poderes do Poder Judicial”.
Em relação com isso, na última década houve uma discussão ativada pelos
defensores da desjudicialização, entendendo esta como um imperativo a ser cumprido
para tornar efetivos os direitos das crianças e duramente contestada pelos defensores da
função judicial. Houve, ao mesmo tempo, uma discussão dos mesmos aparelhos
administrativos estatais a respeito de quem seriam os encarregados do exercício da
proteção de meninos, meninas e adolescentes cujos direitos, reconhecidos legalmente,
não estejam suficientemente resguardados, ou tenham sido vulnerados.
28
Ambas as
disputas estão vinculadas, mas seus matizes e implicações são diferentes.
27
Como a própria autora do quadro do qual me vali para apresentar, condensada, a vulgata, essa
modelização em paradigmas dicotômicos tem sido fruto de elaborações latino-americanas a posteriori da
ratificação da CDN pelos diversos países, e que, segundo ela adverte no texto já clássico Un modelo para
armar ¡y otro para desarmar!: protección integral de derechos del niño vs. derechos en situación
irregular, “[...] é importante ter em conta que estes modelos foram pensados como instrumentos
metodológicos, pedagógicos, como modelos explicativos e com uma finalidade clara de serem úteis para
provocar transformações no âmbito da prática. O uso indiscriminado atual destas categorias, em nível
teórico, impediu de desenvolver uma investigação científica rigorosa, mais sofisticada e profunda em
torno do tema” (Beloff, 2004:31). Por ocasião de uma conferência pública, em outubro de 2005, Mary
Beloff fez conhecer a dura “autocrítica” a respeito daqueles que, como ela, tinham acreditado em demasia
no poder transformador da lei, e tinham ocupado simultaneamente os papéis de promotores, comentaristas
e até autores de legislação e, além disso, tinham superestimado a CDN como um marco ou ruptura, que
dava respostas que então considerava inconsistentes em vários pontos à pergunta de “Como
proteger uma criança?”, ela sustentou que era necessária a “desconstrução crítica da CDN e do conteúdo
da proteção integral, assim como da noção de interesse superior da criança, e o slogan desjudicializar e
administrativizar”.
28
Cf. em Villegas (2005) a disputa político-judicial que entre os anos de 2000 e 2003 se manteve na
província de Buenos Aires como resultado da sanção da lei 12607 (uma lei “pró-direitos da criança”),
cuja vigência foi suspensa até 2003 devido à oposição do Ministério Público, que estabeleceu
judicialmente a sua inconstitucionalidade.
54
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Recuperemos mais uma vez a constelação de autores/atores (Beloff, 2005; Famá
& Herrera, 2005; García Méndez, 2008; Musa, 2008; Crescente, 2008; Reartes, 2008)
que valorizam a sanção da Lei Nacional 26061, em boa medida porque com esta
legislação se abririam vias para novas formas de resolução das situações de meninos,
meninas e adolescentes “vítimas”, que tal circunstância não os 'condenaria' a entrar
no âmbito judicial por 'problemas sociais'.
Em sentido contrário, Zannoni sustentou que: “a função judicial é, ou deveria ser,
garantia do devido processo em tudo aquilo que corresponde a menores de idade”. Em
sua interpretação, a nova lei nacional outorgaria faculdades de dispor medidas tutelares
a órgãos administrativos de competência local, sem aquilo que medeia uma decisão
judicial anterior. “Isto não obedece à ignorância ou à estupidez do legislador […] É
algo muito mais grave, que tem nome: denomina-se totalitarismo, porque é fruto do
avassalamento da divisão de poderes” (Zannoni, 2005:4). O autor atribui esta
responsabilidade ao “legislador”, que esquece que “uma adequada proteção dos
menores carentes e suas famílias não consiste em enunciados normativos […] que não
suprem a efetiva execução de políticas […] Porque legislar parece ser muito mais barato
que fazer […] Não é concebível que a administração pretenda atuar substituindo os
juízes” (Zanonni, 2005:4). Estes extratos correspondem a um comentário seu na
prestigiada revista jurídica argentina La Ley, e eu os incluo porque dão conta das
acusações em jogo.
29
Pois bem, para os propósitos deste trabalho, esta discussão a favor ou contra a lei
nacional de Proteção Integral dos Direitos da Criança chegava pela via dos textos legais
(assim como antes o tinham feito os debates pró-CDN através da lei cordovesa de 2002)
ao universo da administração judicial cordovesa, e eventualmente por meio dos
comentários que são considerados 'doutrina', produtos da glosa jurídica a respeito de
uma norma, e publicados em revistas de direito, de estrito consumo de advogados; é
assim que as administradoras dos tribunais estudados tinham contato com a vulgata em
sua versão mais jurídica.
Para a situação cordovesa foram estudados os tribunais Prevencionais de Menores
em dois trabalhos apoiados em documentação produzida por tais tribunais. O primeiro
29
Em uma linha de argumentação similar à anterior, critica-se, além disso, o estado de desproteção em
que teriam ficado crianças, por exemplo, vítimas da violência intrafamiliar, produto de outra reforma
legislativa e institucional e de 'modelo' realizada na cidade de Buenos Aires, seguindo os preceitos da
CDN (Viar, 2005).
55
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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trabalho é de Reartes, especificamente a partir de informação recolhida de autos
interlocutórios e de sentenças de dois Juizados de Menores (das secretarias
Prevencionais dos mesmos), que foram arquivados entre 1996 e 1997, escolhendo um
tribunal antigo e outro de recente criação (2000). O segundo trabalho está centrado na
declaração de estado de abandono (Laje & Bisig, 1989). Ambos os estudos
correspondem à documentação anterior à lei de Proteção Judicial, de 2002.
30
Em síntese, até outubro de 2005, a lei nacional vigente era a do Patronato; em
seguida, a Lei de Proteção Integral dos Direitos de Meninos, Meninas e Adolescentes.
Em ambos os momentos, a administração judicial cordovesa encontrava-se, para dizê-lo
em uma palavra, 'desenquadrada'. Segundo a interpretação judicial, a lei cordovesa de
Proteção Judicial de 2002 seguiria os preceitos da Convenção e, portanto, não estaria na
linha do Patronato. Ao contrário, tal lei provincial e as “competências” que ela
prescreve não se ajustariam ao que manda a lei nacional de 2005, segundo as leituras
emolduradas na vulgata, que entendem como foi exposto que esta lei nacional
de 2005 implicaria, para a administração judicial cordovesa, o desaparecimento de uma
das partes do foro de Menores: a Prevencional e Civil.
Em Córdoba, porém, mostrou-se “a fortaleza dos 50 anos do foro” — como disse
um de seus Juízes, a partir da ratificação da competência Prevencional para os Juizados
de Menores, ratificada em agosto de 2008 pelo Superior Tribunal de Justiça da
Província com o que se manteve até hoje, sem maiores modificações, funcionando
em face de um horizonte normativo cambiante e até contraditório. Poder-se-ia afirmar
que triunfou a interpretação judicial.
A distância entre a vulgata e os tribunais de Menores pode ser rastreada a partir
dos léxicos que enunciariam posições. Para os militantes pró-direitos da criança,
existem termos não utilizados, palavras proibidas. Resulta inadmissível porque
carregaria todo o estigma falar de menores. Nos tribunais estudados nesta tese, o uso
oral deste vocábulo é incomum (fala-se de 'as crianças, as garotas, o garotinho, e eles
30
Em relação aos Juizados de Menores em sua face correcional, relativa a crianças e a adolescentes 'em
conflito com a lei penal', María Inés Laje realizou diversas pesquisas sobre a vida de adolescentes e
jovens infratores ou supostos infratores da lei penal durante sua internação reclusiva em
instituições correcionais da cidade de Córdoba (Laje, 2006). A respeito de jovens “institucionalizados”,
como parte de uma investigação sobre juventude e violência estatal para sua dissertação de mestrado em
antropologia. Graciela Tedesco explora o ponto de vista dos jovens “internos” de um dos institutos do
sistema correcional cordovês (Tedesco, 2005). Em relação às práticas da apropriação de crianças durante
a última ditadura militar, Elena Flores (2004) estudou o que restou do arquivo da ex-Casa Cuna da cidade
de Córdoba.
56
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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são chamados por seus nomes de pia), enquanto nos autos se utiliza reiteradamente e se
emprega alternativamente com a categoria classificatória do Código Civil 'incapaz'
— como já foi indicado.
Eis uma amostra de como o repertório lexical usado na administração judicial
estudada é distinto do léxico da 'linguagem dos direitos' e, embora tenha áreas de
intercessão, não se replica automaticamente essa retórica dos direitos das crianças (vg.
“direitos dos menores de idade”). Era, por um lado, remetido em grande parte às
próprias autuações administrativo-judiciais (vg. o 'retiro', para referir-se à atuação
quando não se dispõe de 'colocação familiar', nem com os pais, nem com os membros
da família extensa) e, por outro lado, reconhecia como referência a lei provincial de
Proteção Judicial.
31
A seguir, reproduzo um extrato do texto que a página na web do Poder Judicial da
Província de Córdoba publica com o propósito de mostrar como coexistem, na
linguagem de uso tribunalício, vozes e noções provenientes do 'paradigma de proteção
integral', como 'proteção e formação integral', 'direito de ser ouvido', com outras
advindas do supostamente perimido 'paradigma da situação irregular', como 'menor',
'abandono moral ou material', 'tutela estatal' e seu próprio rótulo na Argentina:
'Patronato de Menores'.
O Foro de Menores do Poder Judicial de Córdoba intervém em todas as
questões relacionadas com o comportamento do menor, vinculadas à
problemática que surge de sua condição. Por isso, os organismos que o
integram se encontram dedicados a desenvolver atividades tendentes [...] à
resolução dos conflitos quando resultam vítimas de delitos ou faltas,
infrações às disposições vigentes a respeito da instrução ou do trabalho,
abandono material ou moral, maus-tratos ou correções não-moderadas, para
prover a sua proteção e formação integral (competência dos Juizados
Prevencionais), tudo no marco de princípios e garantias que preveem as
Constituições Nacional e Provincial, a Convenção sobre os Direitos da
Criança
32
[...] O juiz de menores com competência prevencional procede, por
31
Supiot define a temporalidade própria do discurso jurídico nos seguintes termos: “Como qualquer
sistema dogmático, o direito não se situa dentro do continuum do tempo cronológico, mas sim em um
tempo sequencial, no qual a lei nova vai reiterar um discurso fundador e ao mesmo tempo vai gerar novas
categorias cognitivas” (Supiot, 2007:22). E trago-no a colação, pois poderia dever-se também a isso a
reprodução dos termos cristalizados pela legislação antiga.
32
Junto ao extrato citado encontrava-se o texto completo da Convenção sobre os Direitos da Criança
e do Adolescente no website do Poder Judicial, na página correspondente ao Departamento de Direitos
Humanos e Justiça, criado em 1999 com o objetivo de “[...] proporcionar ajuda, informação e orientação
às distintas áreas de atendimento aos cidadãos, em situações que derivem de conflitos vinculados a
violações aos Direitos Humanos”. O menu contextual desta página contém os seguintes itens (de cima
para baixo): “Informação Geral, Vítimas de delitos, Direitos da Criança, Publicações”. O texto completo
da CDN encontra-se na aba “Direitos da Criança”.
(www.justiciacordoba.gov.ar/site/Asp/DerechosHumanos.asp) (Última consulta: em 24/03/2008).
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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denúncia ou oficiosamente, a fim de averiguar o fato que teria por vítima o
menor, mas dando intervenção desde o primeiro momento ao assessor de
menores que exerce a representação legal. Deve ouvir a criança, assim que
seja possível, e seus pais, tutores ou guardiães, garantindo a participação de
todos os interessados para que façam valer seus interesses e/ou pretensões.
Colabora com o trabalho judicial a Secretaria de Proteção Integral da
Criança e do Adolescente subordinada ao Poder Executivo provincial
órgão administrativo que oferece assistência técnica e execução às
medidas ditadas pelos tribunais de Menores. [...] O juiz pode adotar medidas
tutelares
33
que podem ser provisórias ou definitivas. As primeiras têm lugar
durante a sustentação do procedimento; as segundas, a partir da sentença que
sujeita o menor de idade à tutela estatal (denominada patronato de
menores). Tende-se a mantê-lo em meio familiar, principalmente o de
origem, embora possam confiá-lo, quando as circunstâncias assim o
favoreçam, à proteção em uma instituição especializada.
(www.justiciacordoba.gov.ar/site/Asp.Estadisticas/ESt2004Menores.asp - última
consulta: 24/03/2008. Os grifos são meus).
Note-se que este documento, aberto à consulta pública, na Internet, no qual o
Poder Judicial da Província de Córdoba apresenta o seu Foro de Menores, mantém,
passados vários anos da aprovação da Lei Nacional 26.061 de 'Proteção Integral de
Meninos, Meninas e Adolescentes', que modifica o 'Patronato de Menores', uma
justaposição de noções supostamente antitéticas se seguirmos a partição da vulgata
dos direitos da criança.
34
E o anterior mostra como a consolidação de uma vulgata e a
disseminação de seu uso não excluem que seu vocabulário seja (re)apropriado com certa
lassidão, e ressignificado a partir do momento em que é posto em prática junto com
outras noções aparentemente mais coerentes com as referências normativas e
paradigmáticas às quais os valores da vulgata se opõem. Entretanto, isto não deve ser
percebido como uma debilidade desse corpo argumentativo e moral, e sim como uma
parte de sua força, na medida em que essa lassidão relativa permite que seja acionado e
modulado em situações muito variadas, como veremos a seguir.
33
“Medidas tutelares” é a fórmula usada na lei de 2002 para se referir a 'medidas provisórias', e que
podemos ler no resumo citado.
34
Seria objeto de outra investigação rastrear as mudanças de sentido, geralmente tornadas imprecisas
pelas continuidades léxicas, formalizadas, por exemplo, como vozes inteiramente identificadas ao novo
paradigma da CDN, como a “proteção integral”, que foram palavras de ordem nos Congressos Pan-
americanos da Criança, dos anos 60 do século XX (Iglesias et al., 1992:445).
58
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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II.3 A “Proteção Judicial” em autos
O exame efetuado anteriormente sobre as leis pertinentes à administração judicial
em foco incluiu uma referência sumária aos seus conteúdos e regras de procedimento.
Agora, serão retomadas as referências legais, baseadas em como aparecem em autos,
assim como mais adiante a atenção será posta no cotidiano desses tribunais, e nesse
marco se reconsiderarão algumas questões legais. Procura-se ir além das atribuições
funcionais e das morfologias administrativas prescritas legalmente por meio de uma
leitura de peças documentais em contraste com as normas, sem enfocar as narrativas dos
processos, para mostrar como a experiência acumulada na gestão administrativa judicial
está presente na lei provincial vigente.
A partir do trabalho realizado em equipe no marco do Projeto de Investigação
(SECyT-UNC, 2005) “A Efetividade do Direito da Criança de Ser Ouvida nos Processos
Judiciais Tramitados perante os Juizados Prevencionais de Menores da Cidade de
Córdoba”, mencionado, antes e durante meu acompanhamento da rotina de um
Juizado com competência prevencional da cidade de Córdoba, dediquei-me ao estudo
de autos referentes a processos, recentemente arquivados, produzidos nos quatro
Juizados 'Prevencionais' de Menores da cidade de Córdoba, designados como Juizados
de Menores de Segunda, Terceira, Quinta e Oitava Nominação. A seguir, eu me
remeterei principalmente àquela aproximação com a administração judicial cordovesa
recortada na parte Prevencional de Menores, realizada através do estudo de autos dos
juizados prevencionais, conforme três critérios:
a) autos de processos iniciados e arquivados antes de novembro de 2002, isto é,
anteriores à sanção da lei provincial (N° 9053);
b) autos iniciados antes de novembro 2002 e arquivados sob a vigência da lei
9053;
c) autos sobre processos iniciados e arquivados sob o 'império' da legislação
provincial de 2002.
Todos os autos selecionados tinham sido iniciados com posterioridade à reforma
constitucional de 1994, isto é, posteriores à incorporação da CDN à Constituição
Nacional argentina. O corpus documentário estudado inclui autos arquivados nos
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
distintos anos selecionados de, pelo menos, uma Secretaria de cada um dos Juizados que
enviaram autos ao Arquivo Geral de Tribunais da Província do Córdoba.
35
O instrumento desenhado para a produção de dados elaborados a partir do estudo
de cada um dos autos foi uma ficha, projetada para resenhar a informação contida,
descrever as atuações de distintos “operadores intervenientes” nos registros (Juízes,
Secretárias, Assessoras de Menores, integrantes do corpo técnico auxiliar, tanto
subordinados ao Poder Judicial quanto ao Poder Executivo provincial); assinalar a
legislação mencionada ao longo do auto (leis de 'fundo' e de 'procedimento') e os
argumentos expostos nas resoluções; e identificar dimensões extranormativas que
informam as resoluções.
Dessa leitura de autos é possível extrair alguns elementos característicos. As peças
escriturais estão construídas sem incluir quase remissões a argumentações doutrinárias,
que a rigor fazem parte de peças similares produzidas em todos e em cada um dos
restantes foros da administração judicial. Outra aresta nos autos é que, regularmente,
nas resoluções assinadas pelos juízes e nos pareceres subscritos pelos Assessores de
Menores incluía-se, em geral, como única referência legal a lei provincial vigente e,
de modo excepcional, aludia-se ao 'marco constitucional' ou à CDN.
Em numerosos processos citava-se apenas o artigo 9°, incisos a e b, da Lei
provincial 9053, que assinalavam a competência do Juiz de Menores “para conhecer e
resolver” (Exp4 Leg6 / 2003).
36
Em tantos outros, substanciados sob a lei anterior
4873, citava-se tão somente a parte da lei referida à “suspensão do exercício do
Patronato”, dando por finalizadas as autuações (Exp1 Leg1 / 2003),
37
ou seja, que as
argumentações usuais remetem ao 'contato direto e pessoal' que se teria tido com algum/
35
O segmento de autos analisados configurou-se em 15% de cada um dos seguintes arquivos: Arquivo
Ano 2002: Juizado de Menores de 3ª. Nominação Sec. Nº 4, com um total de 82 autos constitutivos de 64
processos; Arquivo Ano 2003: Juizado de Menores de 2ª. Nominação Sec. 9, com um total de 99 autos
constitutivos de 91 processos; Juizado de Menores de 5ª. Nominação Sec. 5, com um total de 113 autos
constitutivos de 94 processos; Arquivo Ano 2004: Juizado de Menores de 5ª. Nominação Sec. 5, com um
total de 53 autos constitutivos de 44 processos. Juizado de Menores de 8ª. Nominação Sec. 7, com um
total de 198 autos constitutivos de 175 processos.
36
Todos os autos citados correspondem a processos substanciados em Juizados Prevencionais de menores
da cidade de Córdoba, e arquivados em 2003. Para evitar sua identificação, omitiu-se a informação a
respeito de quais são o tribunal e a secretaria específicos em que foram substanciados, indicando-se,
segundo a ordem em que constam no Arquivo Geral de Tribunais, o número do auto, o número do dossiê
(conjunto de autos reunidos em um bloco objetivando o seu arquivo) e o ano em que passaram a fazer
parte do Arquivo Geral. V. gr.: Exp4 Leg 6 / 2002.
37
Recordemos a obrigação de magistrados e funcionários judiciais de fundamentarem legalmente suas
resoluções (art. 155 da Constituição Provincial), e a exigência de que tal fundamentação respeite a
cláusula da supremacia constitucional e do direito federal (art. 31 da Constituição Nacional).
60
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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ns dos envolvidos: “Senhor Juiz: Informo a V.S. que no momento de solicitar as visitas,
o Sr. A. foi entrevistado pela subscrita, impressionando como sério e preocupado pela
sorte destas crianças [...]” (Exp4 Leg11 / 2003).
A maneira com a qual as tramitações eram elaboradas nos autos apresentava
significativas variações, entre a documentação correspondente a 'causas' produzidas
durante a vigência de normas diversas (a lei 4873 de 1966, e depois a atualmente
vigente 9053, de 2002), mas também em autos produzidos no marco da mesma lei
provincial (9053) e, em ambos os casos, as variações se apresentavam ainda em autos de
uma mesma Secretaria de Juizado. Tais variações emergiam dos registros
administrativo-judiciais referentes a situações que, através de uma leitura do auto,
poderiam ser encontradas outras análogas.
Em autos correspondentes a processos substanciados durante os últimos anos de
vigência da lei 4873, do chamado procedimento 'mínimo' que previa a realização de
uma audiência antes da resolução definitiva da situação do menor, era costume não
haver registro da sua realização. Eram transcritas, em determinados autos do mesmo
período (correspondentes geralmente a um dos Juizados), audiências em que, segundo
as atas, havia um contato direto entre S.S. e o/os menor(es) em questão. Isto quer dizer
que não encontramos quase referências a essa única audiência prevista, mas sim este
outro tipo de “audiências”. Assim, por exemplo, nos autos de um processo anterior à
vigência da Lei 9053 de 2002, podem ser lidos diversos textos nos quais o Assessor de
Menores pede reiteradamente que se cite o 'menor' (Exp10 Leg6 / 2003).
Uma vez mais, o que fora codificado na lei provincial de 2002, se seguirmos as
“constâncias de autos”, como a audiência de contato direto e pessoal com o menor e
seus pais, ou guardiães, aparecia antes nos autos. Surge assim um indicador que
confirmaria as representações de empregados e funcionários de tal Juizado, quem não
atribuiam maior impacto nas suas tarefas cotidianas à incorporação da CDN à
Constituição Nacional.
Um elemento invariante nos autos estudados é que não contavam com 'atas' das
audiências de resolução final da lei 9053, nem da única audiência da lei anterior. Os
autos eram arquivados com três tipos diferentes de 'último escrito'. Na maioria dos
casos, considerava-se que a situação que tinha dado origem ao processo havia sido
superada, fosse porque o 'menor' alcançara a maioridade, ou porque tinham mudado
alguns fatores a respeito da situação do menor em questão, que faziam com que ele
61
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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fosse considerado fora da situação de risco. Em menor medida, por uma 'cessação
antecipada da intervenção', logo depois das primeiras atuações, ou que, com as
primeiras medidas tutelares, se considerasse superada a 'situação de risco'. Portanto, não
se havia produzido uma sentença, que pode ser ditada, segundo a lei de 2002, depois
de uma audiência de 'resolução definitiva' ('do 33').
O que constava em autos claramente indicava o proveito de se pesquisarem outras
variáveis. É por isso também que se empreendeu nesta tese um exame da formação, das
trajetórias, e notadamente das atuações rotineiras destas administradoras, advindas da
sedimentação de práticas no 'foro' e em correlações sempre instáveis e cambiantes com
as ações dos 'administrados'.
Encontramo-nos diante de uma documentação que, tal como a que examinei por
ocasião de minha dissertação de mestrado, correspondente a processos prevencionais de
meados do século XX destes tribunais, impôs explorar dimensões extranormativas dos
processos judiciais, assim como trouxe a clara impressão de que as atuações
administrativo-judiciais não eram idênticas aos autos. Isto não devido à própria
retórica de neutralização e universalização, conforme propõe Bourdieu (2000),
38
da
linguagem jurídica, e o apagamento administrativo-judicial das marcas gestuais,
emocionais, personalizadas, mas também porque nem todas as atuações são registradas
nos autos, que é um dos produtos desta gestão, não a gestão mesma.
Procurar-se-á explorar um elemento que pode objetivar esta não-identidade autos/
processo: a capa. Na materialidade dos autos, sua capa nos abre uma via de
conhecimento não derivada estritamente de nenhuma norma legal, e circunscrita ao
próprio exercício administrativo-judicial. A capa é a peça fundante e identificadora dos
autos. Não obstante, as atuações se iniciam antes do ato de encapar que uma
administradora realiza; e ainda nos casos em que a peça documental seguinte à capa não
remeta para algum tipo de intervenção extrajudicial (policial, por exemplo) anterior ao
encapamento, são producidas atuações judiciais anteriores ao encapar, que não estão
registradas nos autos, por exemplo, a atuação de enquadrar alguma situação que se
38
Aproprio-me, para descrever esses autos, do formulado por Bourdieu em relação à linguagem jurídica e
à sua retórica de impessoalidade e neutralidade, na busca de produzir uma “neutralização da pessoa
enunciadora, para constituí-la imparcial e objetiva (vg. “Avoca-se o subscrito ao conhecimento das
presentes autuações, aquelas que foram tramitadas conforme a lei 9053”); assim como o efeito que
Bourdieu chama de “universalização”, a partir de certo emprego das conjugações verbais (vg. “[...]
compromete-se”), e o emprego de referências a valores que mostram evidentemente uma ética
compartilhada (vg. “pelo bem-estar da criança”) (Bourdieu, 2000:165-166).
62
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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presenta no balcão em algum dos supostos legais que habilitam a competência de um
Juizado Prevencional e Civil de Menores.
Nos autos estudados, tanto os de arquivo recente (anos 2003 e 2004) quanto
aqueles de meio século atrás, podemos perceber uma invariante evidente na ‘carátula’.
39
Carátula significa, em língua castelhana, “máscara que oculta a cara”. E caratular,
como o verbo usado na língua de uso tribunalício, é o que faz a empregada judicial para
começar a dar 'corpo' aos autos, que será, em seu começo, apenas uma folha de papel
com a fórmula padronizada do 'Avocamento'.
Na capa, onde se colocará a data de início do auto, a denominação do tribunal, os
nomes de S.S., da Secretária e, embora não haja um lugar formal na pré-impressão, o
nome também da ‘empregada que leva a causa’, poderemos encontrar um ponto de
materialização do registro da conversão de uma situação em um processo judicial de um
menino, uma menina ou um adolescente em um menor; de seus pais, tutores e guardiães
em denunciantes ou denunciados. Isto claramente excede o enquadramento normativo,
seja do Código Civil (estabelecendo uma faixa etária, até os 21 anos, dos 'incapazes'),
seja da própria legislação específica da 'tutela estatal'. O ato de encapar (caratular),
considero, é uma boa metáfora do modo particular de produção e gestão de menoridades
destes tribunais, porque, como se procura mostrar nesta tese, a administração judicial
em foco mascara, invisibiliza atuações e agentes centrais (como as 'empregadas que
levam as causas’).
A capa não manteve quase sem modificações seu formato ao longo de
cinquenta anos, como também manteve a maneira de mascarar (isto é, caratular) todos
os processos como de “Prevenção”. Trata-se de autos judiciais que não revelam o
assunto de seu tratamento a partir de suas capas, que são unificadas, de acordo com
esse rótulo geral, todas as situações nas quais atuam. Detenhamo-nos neste emprego de
uma única categoria (Prevenção), que distingue, em sua indistinção, esses autos de
quaisquer outros autos da administração judicial.
40
Isto permite abordar uma tática desta
39
A 'carátula' é um elemento material central de distinção de um auto em relação a qualquer outro
conjunto de papéis reunidos. Chama-se 'carátula' à capa identificatória de cartolina, de uma cor diferente
do branco, de um tamanho conhecido como “legal”, que está impressa para ser completada à mão. No
cabeçalho lê-se: “PODER JUDICIAL - Córdoba”, abaixo do qual, centrado, está escrito “TRIBUNAL”.
Na parte central linhas pontilhadas, previstas para serem completadas com o que nomeia os autos: o
sobrenome, seguido do nome de batismo do (ou dos) menor(es) em questão, seguido da palavra
“PREVENÇÃO”.
40
Assim, por exemplo, no caso de um auto correspondente ao foro penal, após o nome do acusado, o que
se informa é o delito típico em que se enquadra a ação em função da qual foi iniciado o processo. E, como
consequência, se poderá ler: “Pérez, Juan P.S.A. [Por Suposta Autoria de] Homicídio simples”. No caso
63
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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administração judicial relativa a menores 'sem conflito com a lei penal', que aparece,
como se disse, materializada nos autos em sua capa: no próprio ato de encapar
mascara-se não só, como foi dito, determinados atores, mas também a situação
originária que se considerou para dar início ao processo judicial.
Na capa não se declarava uma situação como circunscrita a alguma categoria
legal, o que exporia o ato interpretativo da administradora, mas ao mesmo tempo
demarcaria as atuações de x sujeitos e de x supostos. Mas não é isto o que se faz com a
categoria 'Prevenção', que não indica os direitos vulnerados, nem as demandas
específicas realizadas por pais, tutores ou guardiães, nem as denúncias. O rótulo
PREVENÇÃO, inscrito em todas as capas, é o umbral para uma série diversa de
atuações que podem se efetuar a partir dali, no processo, sobre o 'menor' em questão e
seus responsáveis. Isso que foi construído inicialmente a partir da informação que
oferecem os autos, pôde ser confirmado no meu acompanhamento do trabalho cotidiano
nesses tribunais, entanto tendia a possibilitar uma maior margem de manobra estratégica
por parte das administradoras.
Os autos prevencionais tampouco consignavam sempre os nomes de todos os
'menores' envolvidos no processo: da leitura da documentação surgiram, em reiterados
autos revisados, outros 'menores' irmãos dos que figuram na capa, ou que
coabitavam com eles que não tinham sido inscritos na 'capa', embora com
posterioridade tenham sido objeto dessas mesmas atuações por parte desta
administração judicial, sempre de acordo com os textos desses autos.
Uma amostra desta tática de mascarar 'prevenção', sem taxonomia alguma,
podemos encontrar nos autos que se iniciaram em 6 de fevereiro de 1999, a partir de
uma denúncia efetuada na Polícia pela avó materna de cinco crianças de 13, 8, 7, 5 e 3
anos de idade, manifestando que o marido de sua filha grávida, mãe das crianças,
“castiga seus netos”. Logo depois de uma série de operações (constatações; pedidos de
informações ao Hospital Infantil; ao Posto de Saúde do bairro; à Direção de Assistência
à Vítima do Delito; reiteradas pesquisas ambientais e familiares), apenas foi em maio de
2001, que em um escrito, o segundo Assessor de Menores que atuou neste processo
disse o que segue:
de autos em matéria civil e comercial, e/ou trabalhista, logo depois dos nomes completos do demandante
e do demandado, incluir-se-á a remissão ao tipo de demanda disposta (v.gr. “pagamento de pesos”,
“desocupação” em um processo civil e comercial, ou “demissão”, “acidente de trabalho”, em um de foro
trabalhista).
64
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Senhor Juiz: Atento ao que consta nos autos, este Ministério Pupilar adverte
que o motivo pelo qual se iniciaram estas atuações não está ainda
classificado, tendo se desviado a instrução nestas atuações. Portanto, solicita
que, em primeiro lugar, seja citada a denunciante para conhecer o tratamento
que o senhor M. dispensa a seus filhos e à sua esposa. Do mesmo modo,
solicita que seja feita uma pesquisa em que especifique tal extremo (Exp8
Leg1 / 2003. Grifo meu).
Outra questão relacionada com a anterior aproxima-nos de como se dava
continuidade, ao longo dos processos, a este uso estratégico da rotulação geral de
“prevenção”. Pode se ler no 'auto interlocutório' de outros autos, que “resolve a
suspensão da proteção judicial”, logo depois de três anos transcorridos entre 9 de abril
de 2001 (início do auto) e este último texto (de 26 de abril de 2004),
41
em que se alega
(sem mencioná-las) que “[...] as problemáticas que deram origem à intervenção foram
superadas” (Exp12 Leg1 / 2004). Falar de “problemáticas” é uma maneira de continuar,
no último escrito dos autos, sem especificar qual estritamente tenha sido a situação (ou
as situações) que foram ponderadas por uma administradora para iniciar o processo.
As recorrências descritas (rotular tudo como Prevenção, a extensão dos processos além do
previsto pela lei vigente, a ausência de audiências de resolução final, a relevância dada ao contato
direto e pessoal com o menor, embora não estivesse previsto na lei em vigor até dezembro de
2002, e que só foi exigido pela lei mais recente) demonstram o que já se afirmou aqui: a
insuficiência de analisar o desenho legal/institucional. É por isso que os enfoques concernentes à
norma ou aos organogramas institucionais projetam imagens que nos aproximam, talvez, de
outras dinâmicas burocráticas, mas que nos afastam das formas particulares de atuação de nossas
administrações.
Recapitulando, delineou-se o horizonte de referências legais, o ideário de discussões
teórico-políticas e suas correlações com aquele; introduzimo-nos, através de autos judiciais, na
maneira como se dá aProteção Judicial da criança e do adolescentenos tribunais Prevencionais
de Córdoba. Para explorar como se exerce, vamos entrar agora no 'Palácio de Justiça'.
41
Os autos analisados de arquivo recente mostram que a duração média dos processos gira em torno de
três anos, e tenhamos em mente dois elementos: o primeiro, que não se trata de uma amostra estatística,
mas sim de uma média aproximada dos autos arquivados; mas fundamentalmente tenhamos em mente
que em 2005 tinham transcorrido dois anos da vigência da lei que prescreve este prazo máximo de
apenas um ano, por isso, todos os autos já deveriam estar arquivados.
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Parte III
Uma administração (não tão) pública
III.1 O Palácio da Justiça da cidade de Córdoba
O “Palácio da Justiça” ou, como geralmente é conhecido entre os cordoveses,
“Tribunais”, é um imponente edifício de quatro andares de estilo neoclássico que ocupa
um quarteirão na zona central da cidade. Três marcos históricos registram seu caráter
significativo ao longo da história da cidade. O primeiro remete-se ao tanque que foi
construído por ordem do Marquês de Sobremonte, último vice-rei de nossa história
colonial. O segundo localiza a Exposição Nacional no solar, organizada pelo então
presidente da República, Domingo Sarmiento, em 1871. O terceiro é a construção do ali
Palácio da Justiça, cujas obras começaram em 1927.
Os três marcos históricos assinalados aconteceram em uma cidade, dentre as
primeiras do atual território argentino, fundada em 1573 por um adelantado espanhol,
com o nome de Córdoba da Nova Andaluzia. E foi nela que os jesuítas, no primeiro
quarto do século XVII, abriram um Colégio Máximo, atual Universidade Nacional de
Córdoba, que desde 1622 começou a conferir graus universitários. Esta universidade é,
depois de San Marcos de Lima, a mais antiga da América do Sul e, em seu primeiro
século e meio de existência, teve um perfil teológico-filosófico, até que se incorporaram
os estudos de leis, com a Cátedra de Instituta de 1791, que é a base da Faculdade de
Direito e Ciências Sociais. Os primeiros graduados em direito saíram no final do século
XVIII. Isto é relevante para a compreensão da profundidade histórica da Faculdade de
Direito, onde se graduaram as administradoras judiciais, cujas atuações são o objeto de
estudo desta tese. Esta cidade é conhecida desde a época colonial e até o presente como
“la Docta” por seus doutores — em Direito — e a universidade caracteriza a cidade. Ao
67
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mesmo tempo, é a “Córdoba dos sinos”
1
, pelas páginas memoráveis que Sarmiento lhe
dedicou no seu Facundo, retratando o impacto no espaço urbano de suas igrejas.
no último terço do século XIX, Córdoba poderia ser pensada nos termos em
que foi caracterizada cem anos depois, isto é, a partir de uma tensão não resolvida
entre o tradicional e o moderno, e de uma bifrontalidade do cenário político e cultural
cordovês que escaparia desta dicotomia, assim como da a interpretação clássica de
Gino Germani, que esboçara para a Argentina um centro” moderno e de imigrantes,
localizado em Buenos Aires e nas províncias litorâneas, e uma “periferia arcaica e
crioula no interior (Tcach, 1991:11).
2
1
Nas últimas décadas do século XIX, Córdoba viveu um processo de modernização com características
peculiares devido ao enorme influxo que o catolicismo tinha na sociedade. Não obstante, produzem-se
mudanças em favor da secularização que afetaram o plano simbólico, anteriormente estruturado em torno
da religião como grande portadora de sentido e de legitimidade moral das normas. E é onde se
desenvolve a tese de doutorado de Ramón José Cárcano, que representaria um deslocamento, não no
normativo-jurídico, ao questionar leis impregnadas de teologia (Ansaldi: 251-253; Roitenburg, 1998:256,
257). Em outro trabalho, ocupei-me da tese De los Hijos adulterinos, incestuosos y sacrílegos que o
advogado Cárcano apresentou para alcançar o grau de doutor em Jurisprudência (1884), e a sua
postulação em termos absolutos do princípio de igualdade civil dos filhos, qualquer que fosse a sua
origem. O formulador da tese se opôs à doutrina consagrada no Código Civil Argentino, redigido por
Velez Sarsfield, por considerar que se impunha uma condenação aos filhos nascidos de uniões
extramatrimoniais, através da proibição da investigação de sua filiação, e a privação de seus direitos
sucessórios e as condições desiguais em que a lei então vigente os colocava. A postulação de
Cárcano sobre o direito inalienável de os filhos reclamarem sua filiação, está imbuída de princípios
semelhantes aos que guiam a regulação da filiação no direito argentino, a partir da reforma introduzida no
Código Civil pela Lei 23.264 de 1985 (Do Pátrio Poder Compartilhado. Equiparação de filhos
extramatrimoniais). Segundo a minha leitura, Cárcano propiciava uma reforma legislativa orientada para
dois dos princípios reitores das leis atuais: o da igualdade dos filhos e o da verdade biológica. No mesmo
sentido, encontro enunciado na sua tese, o chamado hoje em dia de direito à identidade. Tal direito à
identidade está prescrito pela Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989, reconhecidos
explicitamente em nossa legislação pela Lei 23.849 de 1991, e com categoria constitucional desde a
reforma da Constituição Nacional de 1994. Na crítica acérrima de Cárcano ao tratamento que a lei de
então impunha aos filhos “ilegítimos”, revela-se uma concepção análoga que é impregnada pela doutrina
da Proteção Integral, uma concepção da proteção entendida em termos de reconhecimento de direitos. E,
por sua vez, o reconhecimento dos direitos à filiação, à herança, à pensão alimentícia exigidos para
todos os filhos sem nenhuma distinção de classe aparece na tese de Cárcano como se previsse
situações como o reformatório e a prisão, nos quais os filhos seriam jogados quando se vissem sem a
proteção de seus pais, reforçando a sanção legal. Cárcano postula como princípio geral a igualdade entre
os filhos legítimos e os ilegítimos, e coloca como único antecedente legislativo o da Revolução Francesa,
que, em sua época, instaurou a igualdade dos filhos sem considerações a respeito de sua origem,
eliminando, portanto, toda a diferença estabelecida. Como veremos, tal revolução é usada como metáfora
da CDN pelos atuais defensores dos direitos da Criança.
2
Em palavras de um historiador cordovés contemporâneo, “Não é em vão que seus políticos
experimentaram durante tanto tempo a sensação de viver em uma espécie de Cidade-Estado, onde se
julgava o êxito ou o fracasso dos governos nacionais: assim ocorreu na década de 30 [século XX], quando
a democracia cordovesa sobreviveu à era da fraude [eleitoral] em 1955 com a “Revolução Libertadora”
[autodenominação do golpe militar que derrubou o presidente Perón, e estourou em Córdoba], em 1963
junto a Illia [presidente cordovês eleito], em 1969 em face de Onganía [presidente de fato]... Certamente,
é difícil encontrar uma cidade argentina que tenha projetado no país imagens tão diversas e que perduram.
Muitos perceberam em Córdoba uma cidade católica e tradicionalista, de campanários e de “doutores”, de
sobrenomes ilustres e notas sociais nos jornais; outros, em compensação, preferiram ver nela o centro de
uma cultura de resistência, onde se conjugam, como em um caleidoscópio, a Reforma Universitária de
1918, a escola radical progressista de Sabattini [governador da província que inaugurou o Palácio da
Justiça], a intelectualidade gramsciana dos anos 60 [século XX], o sindicalismo democrático e combativo
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Desde o momento da inauguração do Palácio da Justiça, em 1936, funcionaram
ali as Defensorias de Menores, as Assessorias de Pobres e Menores e, desde 1957, os
Juizados de Menores, até a atualidade. Esta localização dos tribunais relativos a
Menores tem uma densidade histórica e uma firmeza e centralidade das quais carece,
por exemplo, a sede do Poder Executivo provincial, cuja Casa de Governo não foi
desenhada para tal fim. As dependências administrativas do Poder Executivo
destinadas a dar atenção às questões da infância se encontrem dispersas em diferentes
setores da cidade, sendo de difícil localização e acesso, inclusive para quem, como eu,
havia marcado entrevistas prévias com profissionais que desempenham ali suas
funções. Mais ainda, a Subsecretaria de Proteção Integral funciona em uma velha
casa, que o pode ser associada morfologicamente a um edifício blico, e carece de
um cartaz de identificação.
3
etc.” (Tcach, 1991:12)
3
Um dos psicólogos que entrevistei, que trabalhava especificamente junto aos Juizados Prevencionais de
Menores, dizia: “isso é para que as pessoas não venham...”.
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Como se pode ver no mapa, a centralidade do Palácio de Justiça contrapõe-se à
dispersão das dependências do Poder Executivo Provincial, que funcionavam em
diferentes sedes. Isto se torna relevante em uma cidade como Córdoba, na qual, apesar
de seu extensíssimo espaço urbano (um quadrado de 24km de lado), o centro histórico
segue concentrando fortemente a maior parte da administração pública, a atividade comercial e
universitária, e onde o sistema de transporte público de passageiros está estruturado de maneira
radial, tendo como epicentro, precisamente, a antiga planta urbana espanhola da fundação em
forma de tabuleiro de damas. Portanto, qualquer cidadão leigo que busque denunciar ou levar
perante a Justiça’ alguma situação vai ao Palácio da Justiça. Isto é especialmente relevante em
relação aos tribunais de Menores, porque se um advogado particular fosse previamente
consultado, obter-se-ia informação específica, por exemplo, sobre o foro de Família, sua
localizão e competência, mas sem um assessoramento prévio, para os cordoveses,
Tribunaisé esse edifício, o Palácio de Justiça.
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Este é um edifício monumental, isolado, e se localiza em frente a duas praças que
permitem vê-lo à distância. Destaca-se não só do seu contexto imediato, mas também de
outros edifícios monumentais do centro histórico, por ser dotado de quatro fachadas.
Todas as entradas se encontram precedidas de uma escada que separa o interior em
relação ao nível da calçada, e que continua ainda dentro, estabelecendo halls de entrada,
antes de chegar aos núcleos de escadas, elevadores e corredores.
A iluminação interior, artificial, é difusa, o rmore dos andares, as escadas, as
aberturas de madeira, os muros robustos poderiam ser pensados como táticas de uma
arquitetura institucional destinada a criar uma sensação de que se está em frente e
dentro de uma estrutura inalterada, antiga, sólida, opaca. O que dos halls de
distribuição da circulação interna se pode ver, em um primeiro momento, são os
extensos corredores, balizados com altíssimas portas de cada lado.
Outro elemento que pode ser pensado como tático relaciona-se ao caráter
simétrico de sua planta, que se repete nos quatro lados e nos respectivos andares, a
partir de dois eixos ortogonais simétricos, o que faz com que a localização de um
determinado gabinete ou escritório’ seja difícil. De fato, nos ‘formulários de
notificações’, documentos oficiais através dos quais qualquer cidadão é citado nos
tribunais, o modo de dar alguma indicação é utilizando, através das referências que
possuem, os nomes das ruas externas e o andar.
Assim, as pessoas citadas pelos tribunais Prevencionais de Menores deviam
subir ao primeiro andar da ala que se estende paralela à rua Duarte Quirós e, uma vez
ali, com o papel na mão, perguntar a qualquer pessoa que encontre qual é a porta do
tribunal para o qual foram convocados, já que ao longo dos quase cem metros dessa
ala funcionam os quatro Juizados Prevencionais de Menores, com três Secretarias
cada um; cada Secretaria conta com seu próprio balcão’, que é o primeiro ponto de
atendimento ao público, disposto ao longo dos corredores. As placas de identificação
que existem são de difícil legibilidade, e o se veem à primeira vista, que são
placas metálicas fixas nas paredes.
Mesmo sem ser frequentador do edifício como as ‘empregadas’, as
‘funcionárias’ e os advogados particulares podem ser percebidas determinadas
diferenças, o circunscritas à materialidade espacial que, como foi dito, é similar em
todas as suas alas e andares. Essas diferenças estão na paisagem humana. Assim, a ala
71
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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que ocupa o Tribunal Superior o é um setor muito frequentado por advogados
litigantes, e menos ainda pelo blico em geral, à diferença dos corredores onde
funcionam Juizados Civis e Comerciais, que são basicamente frequentados por
advogados ‘litigantes’ ou empregados de estudos jurídicos, que se ocupam do
seguimento dos trâmites e dos processos (fazem ‘a procuração’). Os corredores dos
Juizados de Menores se distinguem pela presença maciça de crianças e adolescentes, o
que é notório em um edifício onde majoritariamente circulam adultos. Além do mais,
vimos, ocasionalmente se vêm nesses corredores advogados particulares,
acompanhados ou não de seus clientes. Estes profissionais são facilmente
identificáveis por certos elementos de sua “fachada” (Goffman, 1981); no caso dos
homens, pelo uso generalizado de paletó e gravata e, para advogadas e advogados,
porque a rigor estão levando nas mãos autos e documentos; além disso, em caso de
não serem nem empregados nem funcionários judiciários e, portanto, virem de seus
estudos particulares para permanecer no Palácio da Justiça, em certas ocasiões, por
horas levam portfólios e pequenas valises com rodas que servem para transportar
muita documentação. Nesses corredores, que m uma largura de uns 2,50m e tetos a
uns 5m de altura, que o possuem janelas para o exterior (há salas de um lado e de
outro), e estão iluminados artificialmente com luzes tênues, geralmente circula ou
permanece algum agente da polícia provincial, homem ou mulher.
Como pude reiteradamente apreciar durante minhas observações, a dificuldade
de quem não trabalha ali não é de chegar pela primeira vez até o Juizado ou à
Assessoria de que se tratainclusive tendo recebido indicações de algum empregado
a respeito de para onde se dirigir mas também de voltar a esse mesmo lugar em
outra ocasião: trata-se, recordemos, de um edifício em cuja arquitetura existem poucos
pontos de referência que permitam distinguir se um se encontra em um corredor ou em
outro, em um andar ou em outro; um edifício de forte simetria, com portas, janelas,
escadas, corredores, balcões idênticos entre si. Outra dificuldade que se apresenta é
quando se lhes indica que se dirijam a alguma das Assessorias: para alguém não
familiarizado com o edifício, é difícil saber como chegar, apesar das indicações. As
Assessorias ficam no subsolo, a uma quadra e meia dos Juizados Prevencionais de
Menores (pelo interior do edifício). Tornam-se evidentes, vívidas, as características
arquitetônicas em sua capacidade de produzir desorientação nos leigos e,
particularmente, a sensação de insuficiência e de dependência em relação a quem
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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conhece, por trabalhar nos ‘Tribunais’, de como chegar aos lugares onde foi
convocado, ou onde se apresentar para fazer uma denúncia, principalmente na enorme
maioria das situações referidas aos tribunais de Menores, nas quais os administrados
não vão ao Palácio acompanhados de seu advogado particular.
Procurei, descritivamente, discernir as “táticas arquitetônicasgerais do edifício,
de seu particular uso nas atuações dos tribunais de Menores, que um
acionamento específico diante de condições espaciais análogas. Além disso, uma outra
discriminação deve ser feita em relação ao fato de que este uso diferencial do espaço
se restringe às administradoras judiciárias dos tribunais Prevencionais de Menores
que, como mostrarei, gestionavam pelos corredores, o que não se observava no caso
de empregados e funcionários de outros foros. Assim, também é distintivo o uso que
deste espaço faziam os administrados leigos e seus ‘letrados’; nos corredores dos
outros foros, notava-se claramente que eram os advogados que se amontoavam diante
dos ‘balcões’, o mais próximos se possível, e no caso de estarem acompanhados por
seus representados’, estes permaneciam um pouco mais atrás, algo retirados. Nos
Juizados Prevencionais de Menores, uma vez atendidos, os administrados costumavam
retirar-se do balcão e esperar em algum lugar do corredor.
A não-transparência entre as salas interiores e os corredores é comum a todo o
Palácio da Justiça, que os escritórios o iluminados e ventilados da rua ou dos
pátios interiores, e as portas que conectam os interiores dos tribunais com os
corredores estão visualmente bloqueadas, pois ou são de madeira ou, quando têm
vidros, estes são esmerilados. Mas, além disso, não têm, do lado do corredor,
maçanetas, e somente podem ser abertas das salas. Sobre as portas fechadas havia
cartazes impressos no computador que diziam: O atendimento ao público é pelo
balcão. Não insista. Obrigado”. Só outras empregadas e funcionárias do Poder Judicial
infringiam a indicação destes cartazes bem visíveis, à altura dos olhos, e batiam nas
portas para que lhes fossem abertas. Quem também não se ajustava ao indicado nos
cartazes eram os ‘operadores(as)’, tal como são conhecidos(as), tanto nos âmbitos das
dependências do Poder Executivo quanto no do Judicial, empregados(as) da
Subsecretaria de Proteção Integral (SPINA), de menor hierarquia que os profissionais
‘técnicos’, que trabalhavam nos institutos de internação de meninos, meninas e
adolescentes, e que os acompanhavam quando, por ordem judicial, tinham sido
convocados pelos tribunais.
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Os(as) ‘operadores(as)’, à primeira vista, poderiam ser confundidos com
qualquer pai, e, ou guardião daqueles que estavam no corredor. O que os
diferenciava era não acatarem a indicação de serem atendidos ‘pelo balcão’ que as
administradoras faziam cumprir à risca quando se tratava do ‘público’ e, mesmo
que nem sempre faziam com que entrassem diretamente para as salas do Juizado,
recebiam das administradoras uma primeira atenção no umbral de alguma das portas.
Embora não ingresassem diretamente e devessem esperar junto ao ‘menor’ que
estavam acompanhando, estariam em um vel intermediário, entre o ‘público’ e
outrasempregadas’ e/ou funcionárias judiciárias, o tão sujeitos, poder-se-ia dizer, à
temporalidade própria da gestão das administradoras.
Os ‘balcões’ são portas em que foi fixada uma espécie de balcão fixo de
madeira, de até 1,20m de altura, com um tampo de mármore. O que poderia ser visto
do corredor, através da abertura do balcão, em relação às salas interiores, geralmente
foi bloqueado por alguma estante ou móvel. Deste modo, dificilmente alguém situado
no corredor pode ver as salas dos Juizados, o que em termos práticos gerava uma
situação na qual se minimizavam as possibilidades de as administradoras judiciárias
dos tribunais de Menores se sentirem interpeladas pelo olhar de quem estavam
esperando no corredor, evidentemente desconfortáveis e provavelmente aflitos.
Detenhamo-nos nas esperas do corredor, nas entradas e saídas das pessoas entre as
salas do Juizado e, como esta administração judicial os fazia jogar em suas gestões em
termos de compassos de espera, de duração mais ou menos prolongada, em que os
administrados, estando ‘fora’, separados, em um espaço de tempo em modo subjuntivo,
permaneciam diante de um leque de possibilidades; esse estar no corredor dos
administrados era parte operativa, ativa, produtiva, fazia parte das atuações.
III.2 Entre corredores, balcões e salas dos tribunais
Nos ‘corredores de menores’, como eram chamados pelos demais empregados
judiciários, as esperas são habitualmente longas, e não havia bancos suficientes para que
as pessoas esperassem sentadas; também não existiam bebedores nem banheiros
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próximos, portanto, para comprar algo para beber, deviam sair do edifício e atravessar a
rua, até algum quiosque, ou percorrer uma longa distância até o primeiro banheiro de
acesso livre ao público. Dificuldade não menor para quem estava com uma criança nos
braços e mais duas ou três, e devia percorrer o corredor, descer as escadas, sair à rua,
atravessá-la, para logo ter que voltar e fazer o percurso inverso. Em ocasiões nas quais
as administradoras queriam evitar que as crianças estivessem presentes, a menos que
tivessem vindo acompanhados por algum outro adulto o que possibilitava que não
ficassem esperando sozinhas no corredor elas permaneciam em alguma sala do
Juizado. Se bem que isto extrapole para a situação mais ampla de atenção judicial ao
público, em Menores é diferente: em nenhum outro foro se registra, em função do tipo
de gestão judicial, uma vasta concorrência dos envolvidos e, muito menos, de garotos.
Nos anos de 1998 e de 1999, foram levadas a cabo reformas para dotar de maior
espaço e comodidades os Juizados de Menores, mas tais condições não foram
modificadas. desde as primeiras vezes em que fui ao Palácio da Justiça com o
objetivo de realizar minhas observações no Juizado Prevencional de Menores, pude
observar que, entre as 8 e as 14 horas, que é o horário de atendimento ao público de
‘Tribunais’, não só havia uma afluência numerosa de administrados, como estas pessoas
entravam em um lugar que tem um caráter de rigidez, peso e imponência, mas também
uma temporalidade regulada por esta administração judicial.
E embora tendo sido convocados com dia e hora definidos, o que pude observar é
que, a partir do momento em que alguém se apresentava, os tribunais começavam a
dispor amplamente de seu tempo. É preciso dividir entre eventualidades e recorrências.
As primeiras podem ter sido ocasionadas, por exemplo, pela ausência na jornada de
trabalho de uma administradora. O recorrente, em compensação, era que os horários das
convocações ao tribunal não se ajustavam ao que se consignava no ‘formulário de
notificação’. Estes horários não eram, senão, uma indicação de se fazer presentes esse
dia perante os tribunais. Nesse sentido, o tribunal era também um lugar de
temporalidade distinta.
O ‘atendimento ao público’ começava, durante o transcurso de minhas
observações, com uma interlocução no ‘balcão’ de alguma das Secretarias de cada
Juizado com a empregada que, circunstancialmente, estava ‘atendendo no balcão’. Em
caso de os pais terem sido convocados, tutores ou guardiães (com ou sem as crianças),
estes adultos se apresentavam diante do ‘balcão’, e esta empregada chamava, então, a
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‘empregada que leva a causa’. Esta administradora lhes dizia que deviam esperar. Tal
espera, segundo pude constatar acompanhando o trabalho cotidiano do Juizado, na
maioria das vezes não correspondia ao fato de que a administradora em questão
estivesse ao mesmo tempo ocupada com outro assunto. Por ser assim ocupada no
telefone, ou diante de seu computador, ou atendendo a outras pessoas pedia
diretamente à empregada no balcão que lhes dissessem ‘que me esperem’. Além da
conveniência prática de procurar liberar rapidamente um espaço que por si é
exíguo para as próprias administradoras, segundo pude notar, mesmo nas ocasiões em
que as salas estão relativamente vazias, esta prática se repetia. Esta espera condensava o
que se entende aqui por um (re)estabelecimento de posições, materialização de uma
correlação diferencial de forças entre quem devia atender mas o faza a seu tempo,
estabelecendo a temporalidade do tribunal e quem devia esperar para ser atendido,
inclusive no caso de ter sido chamado a se apresentar ali.
A espera inicial, de praxe, posterior ao primeiro intercâmbio ‘no balcão’, era
seguida de um chamado para passar para alguma das salas do Juizado. Ali, a
administradora digitava em seu computador algum dado ou assunto, recebia ou entregava
alguma documentação ou solicitação, conversavam, (re)combinava uma ação a seguir.
Logo, fazia com que voltassem ao corredor para continuar esperando até que fossem
chamados e acompanhados, por exemplo, ao escritório de S.S. Atendidos ou não por S.S.,
no caso de terem sido convocados para uma ‘audiência’, voltavam a esperar no corredor
até que estivesse completamente concluída a ata da ‘audiência’, a qual lhes era lida em
parte para que a assinassem. Ou se retiravam do Juizado, depois que a ‘empregada que
leva a causa elaborasse um texto tecnicamente denominado ‘comparendo’ por nele se
encontrar a fórmula: “Compareceu perante este Tribunal... E disse:...”.
4
Esses momentos no corredor podem ser pensados como a fase liminar de uma
espécie de rito de passagem (Van Gennep, 1978), depois do estágio (que se tentou
mostrar) de separação das condições cotidianas ordinárias, anteriores à entrada no
âmbito dos tribunais de Menores, em que aconteceria essa transição. E havia ocasiões
nas quais uma mãe que vinha fazer uma denúncia, em função de alguma situação que
afetava seus filhos, afastada de seu universo ordinário e cotidiano para entrar em
Tribunais (e seus filhos, com ela), logo após as instâncias de transição, liminares, do
4
‘Comparendo’ é a forma técnica e de uso administrativo-judicial para denominar o texto que se produz
para declarar que algum interessado se apresentou ao Juizado e realizou alguma solicitação, ou informou
ao Juizado a ocorrência de alguma situação.
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corredor, se sua denúncia era reconvertida em um processo de “Proteção Judicial da
Criança ou do Adolescente”, o menino, a menina ou o adolescente mudava
objetivamente de status, para o de menor. Seus pais permaneciam em uma situação
liminar, de transição, na qual o pátrio poder - que os coloca legalmente em uma
posição era posto em dúvida; para outros adultos, parentes ou não do/a menino/a ou
adolescente, a passagem pelos tribunais podia sacralizá-los em guardiães.
Aproximamo-nos do que podemos pensar como uma faceta dessa transição, desse
estado liminar como estado de perigo.
Na sexta-feira de julho de 2005, e depois de me ter feito anunciar
‘no balcão’, encontrava-me esperando para poder falar com S.S.,
sentada em um banco no corredor próximo do seu escritório, quando
uma administradora fez com que entrasse um adolescente de uns 14
anos, que estava com sua mãe e outros três irmãos de menos idade.
“Vamos, Pablo”, disse ao jovem, e lhe indicou, com um gesto de
mão, a porta na qual iam entrar. A e de Pablo imediatamente se
levantou do banco onde nos encontrávamos sentadas, com um bebê
nos braços, tomou a o do menininho menor, demonstrando a
intenção com um gesto de irem todos juntos com Pablo. Diante deste
movimento, a administradora dirigiu-se à mulher, virando-se para ela
e, portanto, interpondo-se entre Pablo, que havia caminhado alguns
passos em direção à porta, e sua mãe e irmãozinhos. E com um tom
de voz amável e firme ao mesmo tempo, disse-lhe: Depois a deixo
entrar, senhora”.
O fragmento anterior apresenta uma das primeiras oportunidades em que pude
observar o nervosismo que esta prática provocava nos adultos que ficavam esperando
no corredor. Retomando o que acabo de apresentar, pude acompanhar essa ‘senhora’ que
esfregava as mãos repetidamente, mudava de posição no banco, e mudou o tom da
conversa que havíamos mantido até esse momento em troca de uma evidente ansiedade,
intercalando comentários sobre temas banais, frases como as seguintes: “Como
demoram, não?”, “Será sempre assim?”, claramente não esperando nenhuma resposta
minha. Começou inclusive a impacientar-se com os movimentos e as reclamações de
seus filhos pequenos. Depois que os repreendia enfaticamente para que se mantivessem
quietos e calados, sentados no banco, dizia-me em tom de autojustificação: “É que
deveriam estar no médico, porque os dois estão doentes”, referindo-se a Pedro e a Hugo,
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dois menininhos de 4 e 5 anos, respectivamente. A espera da mulher durou 10 minutos,
transcorridos entre a entrada de seu filho mais velho no escritório de S.S. e o momento
em que este voltou ao corredor e a fizeram entrar com o bebê nos braços, ficando Pablo,
seu filho mais velho, no corredor cuidando dos irmãozinhos.
No corredor, por volta do meio-dia, reconheci algumas senhoras que
havia visto bem cedo pela manhã, e que continuavam sentadas em
um banco, embora o tenha visto mais as crianças que estavam
de junto delas, mas imediatamente as vi sair pela porta da sala de
S.S. E a senhora que se encontrava mais próxima de mim pôs-se
rapidamente de e, fazendo um sinal imperativo com a cabeça,
chamando aquele que supus ser seu filho mais velho, disse-lhe: “Vem
cá, vem, o que te falaram?”, e pegando-o pelo braço, afastaram-se,
tanto de mim quanto das outras pessoas, cochichando.
Assim presenciei, em numerosas ocasiões como as descritas do fragmento acima, o
que era habitual no Juizado, a saber: que se estivessem presentes crianças ou adolescentes,
eram majoritariamente eles os que primeiro eram chamados para entrar, fosse para falar
com S.S., com a ‘empregada que leva a causa’ ou com a Assessora de Menores; e só mais
tarde faziam entrar seus pais ou guardiães, procedendo, desta forma, à suspensão das
condições anteriores de seu exercício do pátrio poder. Ela, a mãe, fora dos tribunais seria
quem poderia dispor estar ou não presente quando alguém falasse com seu filho.
Uma administradora apareceu no balcão e chamou os três
irmãozinhos homens que estavam esperando junto de sua mãe, e que
haviam saído das salas do Juizado para o corredor uns minutos antes.
Quando os garotos, a seu pedido, aproximaram-se do balcão, ela
perguntou aos dois mais jovens, que teriam entre cinco e sete anos,
se sabiam escrever. E diante de suas respostas afirmativas, disse-lhes,
“Bom, então entrem para assinar os três”, referindo-se a assinar uma
ata.
O fragmento anterior procura apresentar o que acredito ser um momento que
confirma subjetivamente, para as crianças e seus pais ou guardiães, essa passagem à
condição de menor nos tribunais. Tenha-se presente que não outra circunstância, na
vida além dos tribunais, na qual seja solicitada a assinatura de uma criança, menos ainda
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de muito pouca idade. Nas cadernetas de notas escolares, os que assinam são as
autoridades da instituição educativa e os pais ou guardiães; o mesmo acontece com as
carteiras de vacinação, que levam a assinatura do agente sanitário que realizou a
vacinação e as os pais, que deram a autorização. É unicamente perante o Registro Civil
das Pessoas que, aos 8 anos de idade, e por ocasião da primeira atualização do
documento nacional de identidade (DNI), no qual se agrega uma foto, a impressão
digital do polegar direito e a assinatura da criança, embora seja requisitado que esteja
acompanhado de seus pais ou tutores. Ainda nessa oportunidade, a assinatura não
representa consentimento algum. Cabe acrescentar que, nas ocasiões em que estava
presenciando as crianças assinarem alguma ata com sua declaração, elas mostravam
uma mistura de entusiasmo e incredulidade a respeito deste pedido: “Ah, sim? Eu tenho
que assinar?”. Ao mesmo tempo, isso poderia representar um certo empoderamento dos
meninos.
Nessa situação de incerteza que representava a espera no corredor, de suspensão
das condições habituais, outra recorrência que pude notar no transcurso de minhas
observações entre os pais ou guardiães que estavam com crianças no corredor era a
de estarem atentos para que os garotos mantivessem um ‘bom comportamento’,
fazendo-os entender isto com reiterados “Comporte-se bem”, “Não grite”, “Pare de
correr”, “Ajeite a camiseta”, “Levanta do chão, você vai se sujar”, mostrando, de
diferentes maneiras, que estavam (pre)ocupados com a impressão que eles davam às
outras pessoas que estavam ali: “O que vai pensar a senhora se vir que você toma leite
na mamadeira?… Dê-me o leite!”, e tapava a boca da criança quando ela queria
começar a chorar em protesto porque lhe tiraram a mamadeira.
Isto, que pode ser habitual em outras situações sociais em que se encontram pais e
filhos em presença de outros adultos, quando estes exercem determinados papéis que os
colocam diante de um olhar de possível avaliação (como o da professora, ou o do
médico), permitiu que me aproximasse da clara percepção das administradas a respeito
de um dos traços fortes desta administração judicial, tal é o impacto que, no decurso do
processo, tinham as impressões com as quais ficavam as diferentes administradoras. Em
sua particular gestão das impressões, elas recolhiam esses detalhes e, em parte, os
verbalizavam nitidamente através de expressões que indicavam, por exemplo, a
observação sobre a apresentação das crianças, em frases dirigidas a elas: “Como fica
lindo esse penteado em você, cheio de tranças!”, “Que gostoso esse perfuminho que
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você tem!”, “Ai, mas que linda a sua camiseta da Barbie!”. Do seu lado, costumavam
dizer aos adultos em tom elogioso, mais para eles do que para as próprias crianças:
“Como o Johnatan se comporta bem!”.
Em que pesem as minhas tentativas ao longo dos meses em que acompanhei as
atuações de um Juizado Prevencional de Menores e de uma Assessoria de Menores,
permanecendo algumas horas de cada jornada no corredor, lugar onde era levada a cabo
parte das atuações que me interessavam conhecer, isto foi progressivamente se tornando
difícil. Se chegasse ao ‘Palácio’ e, em lugar de bater na porta de alguma das salas para
entrar diretamente, como faziam as outras administradoras — e elas tinham me indicado
que fizesse o mesmo e ficasse no corredor, de ou sentada, até minha presença ser
notada por alguma das administradoras ao assomar ao balcão, ou ao atravessar o
corredor, elas me perguntavam o que estava esperando, e por que não havia batido na
porta para que a abrissem para mim. Assim, se depois de me despedir das
administradoras do Juizado decidia permanecer ainda no corredor, e então me viam ali,
também me questionavam sobre por que ainda não havia me retirado. Portanto, não
tinha sentido para as empregadas e as funcionárias que eu permanecesse no corredor a
partir do momento em que, como sintetizou uma das administradoras falando de mim
para uma conhecida em comum, “ela é como uma companheira a mais”.
Da mesma forma, no transcurso de minha pesquisa na Assessoria de Menores,
permanecer nos corredores também se tornava difícil, pois embora não estivesse
presente a Assessora em seu escritório, o empregado me fazia entrar na sala logo que
abria a porta para atender a alguém e me via, ou ele mesmo saía para o corredor a fim de
levar adiante determinadas atuações, e decidia que eu deveria ficar na sala da
Assessoria, e não no corredor. Aqui se expressava uma topografia classificatória tempo-
espaço, definidora das posições e dos níveis.
O que relatei é útil para mostrar que o lugar que me concediam, uma vez tendo se
acostumado com minha presença, era junto delas, e não entre as pessoas que para ali
iam; é, ao mesmo tempo, um meio para referir à correlação entre posição
(administradora ou administrado) e a maneira diferencial de conceber quais são os
lugares de cada um. Me associar, umas vezes com o conjunto das administradoras,
outras com o dos administrados, reiterou-se em muitas ocasiões: dependia em grande
medida do lugar no qual me encontrasse. E isto revela a produtividade do espaço físico
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como marcador de outros lugares, no processo administrativo-judicial, que não
variava, por exemplo, minha apresentação em termos de vestuário.
Mesmo que em diferentes lugares eu observasse, escutasse, fizesse algum
comentário ou pergunta, era a atitude de espera no corredor que reforçava a associação
com os administrados. Em compensação, se me encontrasse nas salas do Juizado ou no
escritório único da Assessoria os administrados, tanto adultos como adolescentes ali
presentes, eles me dirigiam a palavra ou o olhar, perguntando, solicitando ou explicando
alguma coisa, ou apenas procurando algum assentimento gestual de quem, presumiam,
fosse alguém que também poderia decidir sobre o que estava em questão. Esta
recorrência impôs que me mantivesse impassível, apesar da força das interpelações,
verbais ou gestuais, forçada ao silêncio pelo enquadramento que as administradoras
exerciam, em virtude de que estava ali presente como pesquisadora, e porque eticamente
não me permiti alentar ou desalentar qualquer expectativa.
Retomando a explicitação de como era identificada, é preciso também relatar que
se eu me encontrasse sentada em um banco dos corredores, ou simplesmente parada em
atitude de espera, outros administrados, sentados ao meu lado ou próximos,
perguntavam-me, por exemplo: “A senhora está esperando uma permissão?”. Ou: “E a
senhora, vem por qual de seus garotos?”. “É a primeira vez?”. “Para que veio?” “Faz
muito tempo que está esperando?”. E nas dezenas de vezes em que, por estar no
corredor, fui incluída na conversa, uma vez causei estranheza a uma senhora, que de
maneira inquisitiva perguntou-me, “O que a senhora faz?... O que está anotando?”,
porque eu estava escrevendo em meu caderno, sobre a saia. Em geral, comentavam — e
isto prova que ali, esperando no corredor, não estava sendo vista como mais uma
administradora quando passava alguma administradora e, na cumplicidade da voz
baixa: “Viu a cara de bruxa que ela tem?”, ou, escutando uma conversa de uma
administradora com outras pessoas no corredor, compartilhavam comigo sua avaliação:
“Para mim, essa é louca”, referindo-se à administradora em questão, ainda antes de eu
me apresentar como pesquisadora externa aos tribunais. Portanto, se alguém está do
lado de ‘fora’ do balcão, presume-se que está sendo processado.
Os poucos advogados que transitavam pelas salas do Juizado, se me viam ali,
momentaneamente sentada em alguma das escrivaninhas, “tratavam-me de doutora”,
isto é, saudavam-me dizendo, como era costume nos ‘Tribunais’, “Doutora, como vai”,
e suponho que me consideravam uma empregada ou mais uma funcionária. E assim era,
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porque esta costuma ser uma das formas de saudação entre colegas ‘do outro lado do
balcão’ e, quando é usada dirigindo-se a um ‘funcionário judicial’, é na busca de
estabelecer certa proximidade com alguém, cujo nome e cargo desconhecem. Ao
contrário, não me “tratavam de doutora” se me encontrassem no corredor, nem tentavam
através da saudação travar qualquer diálogo. Mais uma vez, a posição a mim atribuída
mudava se eu estivesse no corredor.
No ‘foro’ local, é lugar comum referir-se a si mesmo ou a outra pessoa como
estando ‘de um lado ou do outro do balcão’. Isto indica uma distinção básica entre quem
é empregado ou funcionário judicial e quem é advogado ‘litigante’ particular, o que se
articula de outro modo nesses tribunais, onde não era frequente a presença de
advogados particulares, e nos quais as atuações não se restringiam aos limites físicos
das salas dos tribunais. Assim, ter sido vista pelos administrados como mais uma
administradora estava em estreita relação com minha permanência contínua dentro das
salas, ou ocasionalmente revisando alguns autos, presunção que talvez acrescentavam
porque eu também escutava, eu também folheava os autos, atividades que eram
identificadas com as ações próprias da tarefa cotidiana das administradoras.
O Assessor de Menores apareceu no corredor, perguntou pela
senhora X., a quem se apresentou como Assessor, e ficou
conversando com ela. Em seguida, o Assessor foi chamando uma por
uma as crianças que estavam com ela, para que, antes de entrarem
nas salas do Juizado, pudesse falar com elas, e fez isto afastando-se
da área de escuta da mãe, que podia vê-los.
O corredor constituia-se então, em um lado de fora do tribunal somente em termos
relativos, pois além que não foram previstas condições para uma permanência
medianamente confortável nele, era também não um lugar de circulação de
empregados e funcionários, mas um lugar onde aconteciam, onde eram produzidas
atuações. Ali, administradoras e familiares dos/as meninos/as dialogavam, e as
Assessoras interagiam com seus ‘representados’, antes ou depois de estarem em alguma
sala do Juizado ou da Assesoria.
No corredor havia um barulho provocado por crianças correndo, gritando, pedindo
alguma coisa (serem levados ao banheiro, que lhes comprassem alguma bebida),
sobretudo os mais pequenos; e pelas próprias conversas entre os que esperavam, e com
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as administradoras. Assim como nas salas do Juizado, observava-se um contínuo
trânsito de empregadas e funcionárias, em percursos labirínticos entre mesas, já que não
havia áreas livres de circulação interior no Juizado, mas através dos espaços livres entre
mesas, cadeiras e estantes lotadas de autos. A única impressora de todo o Juizado
encontrava-se em um escritório situado em um dos extremos do sucessivo conjunto de
salas do Juizado. Os empregados e os funcionários que não trabalhavam no escritório
mencionado deviam atravessar os espaços intermediários, ou o corredor, para alcançar e
retirar as folhas impressas, enviadas pela rede interna de informática.
As salas do Juizado em que realizei minhas observações estavam dispostas de
forma contígua ao longo do corredor. Este esquema era similar ao de outros Juizados e,
em geral, do de Juizados de outros foros, determinado pela direção longitudinal das
circulações pelos corredores: eles se comunicavam com cada uma das salas. Por outro
lado, a arquitetura do edifício previu uma circulação entre salas, paralela ao corredor,
através de portas altas, de madeira (como são as janelas, esguias, ou seja, muito mais
altas que largas).
Os tetos das salas eram altos, embora ao estar lá se tenha a impressão de que eram
ainda mais altos em relação às dimensões da planta de cada sala. A existência de uma
dupla circulação, conformada por dois eixos longitudinais paralelos (uma, o corredor, e
outra, através do eixo que trespassa as portas de comunicação entre salas), e seus usos
combinados (ora através de salas, ora pelo corredor, ora pelas salas e pelos corredores)
deram lugar a uma disposição das mesas das administradoras que não deixou liberado o
eixo de circulação entre salas, e o percurso, por lá, podia ser feito, mas através das
mesas e dos móveis que cada Secretaria dispôs para guardar autos.
A sala de S.S. localizava-se em um extremo e, em outro, encontravam-se o
banheiro e uma pequena cozinha, que funcionava adicionalmente como ‘arquivo’ de
autos. As salas, além das mesas das administradoras, suas cadeiras e outras cadeiras
(uma ou duas, diante de cada mesa), tinham, em geral contra as paredes, móveis com
estantes e divisórias verticais, abertas, onde cada administradora dispunha,
organizados por ‘letra’, ‘seus autos’.
Em algumas salas, estesveis (osescaninhos’ de autos) eram utilizados como
divisórias interiores do espaço. A combinação de disposições de móveis, circulações
entre mesas e a quantidade dos mesmos em relação à superfície das salas (3 x 4
metros) resultava em âmbitos lotados, acumulados, como pode ser visto no esquema
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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gráfico do Juizado. Os parapeitos das janelas permitem visualizar a rua, ou os pátios
interiores (um nível abaixo) para quem esteja parado junto a elas. Tubos fluorescentes
nos tetos reforçavam a iluminação natural que entrava pelas janelas; a luz acentuava o
clima abarrotado das salas.
Este meio arquitetônico tem uma firmeza evidente que o torna uma das
invariantes a se levar em conta ao nos aproximarmos destas atuações administrativo-
judiciais. E se pensarmos a gestão em termos de uma atuação [performance], como
assinala Goffman — “[...] os que usam um meio determinado como parte de sua atuação
não podem começar a atuar até terem chegado ao lugar conveniente, e devem terminar
sua atuação quando o abandonam” (1981:34) . Salientar tal meio em que os exercícios
de poder estudados eram efetuados é uma via magnífica de exploração das modalidades
de gestão destes tribunais Prevencionais de Menores.
No organograma desta página, o respeitadas as hierarquias estabelecidas na Lei Orgânica do Poder Judicial no
que se refere à preeminência “S.S. Secretária Pró-secretaria”. No caso do conjunto de empregados de cada
uma das Secretarias, eles são ordenados pela antiguidade que tinham nessa Secretaria. Por fim,o registrados os
estagiários que não são empregados, e uma administradora contratada por apenas uns meses (desde novembro de
2005). Os nomes utilizados são fictícios.
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Os esquemas gráficos anteriores servem para acompanhar o fragmento que
exponho a seguir, em que tento representar, em toda a sua densidade, as atuações
coetâneas que aconteciam simultaneamente em lugares reduzidos, justapondo-se
espacial e sincronicamente. Uma dinâmica que procuro representar no fragmento
referido a uma hora nas salas de uma das três Secretarias de um Juizado Prevencional de
Menores cordovês. Os números entre parênteses indicam as mesas de cada uma das
administradoras.
Por volta das 11h30 de uma quinta-feira de setembro de 2005,
5
acompanhava duas crianças de menos de 5 anos que esperavam na
sala compartilhada pela Secretária (2) e a Pró-secretária (3) de um
Juizado Prevencional de Menores para seus familiares que estavam no
escritório de S.S.(1). Saíram então do escritório duas mulheres de seus
30 e 40 anos, e um jovem de uns 20 anos, todos com caras aflitas, com
uma das empregadas do Juizado, e se dirigiram, todos juntos
(inclusive os menininhos), à mesa de Soraya (4), localizada na sala de
empregadas, contígua a esta. Na mencionada sala, a Secretária
conversava com Laura (5), outra empregada, que digitava em seu
computador a parte ‘resolutiva’ da ata de uma audiência. Em uma das
mesas adjacentes podia se escutar o que dizia enfaticamente uma
senhora de uns 60 anos, de cabelo um pouco grisalho e baixa estatura,
que por seu sotaque era oriunda da província de Mendoza, dirigindo-
se a Diana, outra empregada: “E os garotos querem vir comigo...”.
Enquanto isso, Belkys (6), outra empregada, em sua mesa, escutava
uma jovem mulher, de uns 28 ou 30 anos de idade, que lhe falava
entre soluços, sentada diante dela, como se fosse para si, com os olhos
em seu colo, com as costas inclinadas para frente. Enquanto a
escutava, Belkys levantou acima de sua mesa o menininho que estava
sentado no colo da mulher, delicadamente, como era característico
dela, entregou-me Franquito, e peguei-o em meus braços, um menino
de 2, talvez 3 anos, e me fez um sinal com os olhos, de que o afastasse
da mãe, que continuava falando em voz muito baixa e chorando.
Dirigi-me, então, levantando o menino, à sala contígua. Procurava
fazer com que Franquito olhasse pela janela que para a rua, para
distraí-lo, porque mesmo estando em outra sala (a da Secretária e da
5
Omitiu-se a referência exata à data da observação, pois dada a publicidade do sistema de turnos no qual
se divide a tarefa dos tribunais, seria factível identificar de qual Juizado se trata, entrando na página da
web do Poder Judicial da Província de Córdoba e procurando o Acordo Regulamentar do Tribunal
Superior de Justiça que cada ano atribui tal divisão, “por turno e por secretária”, a cada um dos Juizados
Prevencionais de Menores. Foi esta identificação que procurei evitar.
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Pró-secretária), ainda estávamos muito perto do lugar onde sua mãe
continuava falando com Belkys: e a porta que comunicava ambas as
salas era mantida constantemente aberta. Estava nisso quando vi que
uma das Assessoras de Menores, acompanhando uma menina de uns
12 anos, deu uma breve recomendação à Laura (outra empregada da
mesma secretaria, cuja mesa (5) estava colada a de Belkys), dizendo-
lhe, “precisa de ajuda terapêutica”, referindo-se à menina, e lhe ditou
três ou quatro frases. Depois soube, por comentários de Laura, que se
tratava de uma menina cujos pais estavam separados, que não queria
viver mais com sua mãe, que tinha ‘a guarda’. De imediato a
Assessora se retirou e, aproveitando a abertura da porta, uma
advogada a quem conhecera antes entrou na sala dos empregadas, que
‘litigava’ fundamentalmente com processos no foro de Família, e que
vinha acompanhando um homem de meia-idade, com uma expressão
séria, mas tranquila. Pelo que escutei era o pai da menininha de 12
anos. A advogada, sem esperar ser chamada, sentou-se e começou a
ditar para Laura umas frases para que fossem incorporadas à ata que
esta empregada estava redigindo, enquanto seu cliente observava a
empregada e escutava as frases de sua advogada atrás dela, em um
segundo plano. Enquanto observava tudo isto através do vão da porta
que comunicava ambas as salas, seguia tentando distrair Franquito,
cuja mãe continuava chorando, como ensimesmada, falando diante de
Belkys. Também pude ver que a senhora de Mendoza, com a voz
quebrada e os olhos vítreos, continuava falando com Diana, que tão
logo a Pró-secretária se desocupou estava atendendo uma chamada
telefônica na sala dos empregados em uma mesa contígua (8)
perguntou-lhe se “o pedido de regime de visita se faz aqui ou em
Mendoza”. Quando percebeu que Diana (7) consultava a Pró-
secretária, que estava de pé, a senhora de Mendoza levantou-se,
aproximando-se ainda mais, e dirigiu-se diretamente a esta para
contar-lhe a situação que, segundo manifestava, deixava-a muito
aflita, para arrematar com a seguinte frase: “O pai está enlouquecido
porque quer vê-los”. Diana ficara fisicamente meio relegada e em
silêncio, e a Pró-secretária perguntou à mulher pela “idade de seus
netos” (filhos de seu filho), e a senhora respondeu que “tinham 6 e 7
anos”; diante disso, a Pró-secretária observou: “Geralmente nessas
idades não deixam eles irem na prisão... O juiz não autoriza... A
senhora se preocupe com o pai [dos meninos, seu filho], que está
preso”. A senhora assentiu com a cabeça, e voltou a dizer-lhe, “mas se
a senhora visse a quantidade de garotos que vão...”, e continuou
argumentando, acusando sua nora e mãe de seus netos que “nem fala
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deles para o pai”. Esta mulher continuou reclamando para conseguir a
autorização para que seus netos visitassem o pai na prisão, e a Pró-
secretária lhe explicou que, além disso, devia ir a outro Juizado, onde,
pelo que havia escutado, a senhora havia recorrido para solicitar a
autorização, sendo-lhe negado o pedido. Mas a mulher voltou a insistir
em sua demanda. Então, taxativa, a Pró-secretária lhe disse: “nós não
podemos questionar os atos de outros juízes”, ao que a senhora
replicou: “Mas a senhora lava as mãos, e me atenderam muito
mal!”. A Pró-secretária começou a se afastar em direção à sua sala de
trabalho, embora sem deixar de olhar fixamente esta avó e, antes de se
retirar, dando por terminado o diálogo, imputou-lhe em um tom de voz
imperativo — e, segundo seus gestos, visivelmente contrariada — “Ou
seja, a senhora veio questionar o Tribunal?”. Diante dessa
contundência, a senhora de Mendoza permaneceu um instante calada,
e logo disse: “Obrigada, doutora, muito gentil”, e voltou para recolher
suas coisas na mesa de Diana, que se despediu timidamente,
digitando em seu computador, parecendo estar ocupada. No mesmo
momento, retiraram-se a advogada particular que mencionei e seu
cliente. Franquito, que continuava sob meus cuidados na sala da
Secretária e da Pró-secretária, pediu-me para ir ao banheiro. Por isso,
dirigi-me para lá, levando-o nos braços. Para chegar ao banheiro,
devia atravessar a sala das empregadas. E quando estava abrindo
uma porta rumo ao banheiro do Juizado, Laura, uma administradora
que sempre se mostrou firme, tanto diante de seus superiores
hierárquicos quanto dos advogados intervenientes que não pertenciam
ao Poder Judicial, seca, deteve-me com a pergunta: “Aonde você
vai?”. Respondi-lhe que o levava ao banheiro, que ele me havia
pedido; então, Laura, sem me dirigir a palavra, fez um sinal que
significava um claro “Não”. Laura disse à sua companheira de mesa,
Belkys, que o menininho queria ir ao banheiro. Belkys repetiu isto
para a mãe do menino e, quando esta se levantava para levá-lo ao
banheiro, interrompeu o que fazia para acompanhá-la, indicando-lhe o
caminho. A mãe de Franquito pegou o menino nos braços e saiu da
sala. Quando a mulher e o menininho tinham saído, Laura me
explicou: “Nem você nem ninguém que não seja a mãe pode levá-lo
ao banheiro, porque daqui a pouco o médico forense tem que
examiná-lo… a mãe está denunciando o pai por abuso [sexual]”.
Nesse momento, bateram na porta correspondente ao balcão. Laura
estava ocupada discutindo com a Secretária, Belkys havia se retirado
com Franquito e sua mãe, então atendi a uma senhora que, do outro
lado do balcão, e com um bebê nos braços, me pedia, “diga à Soraya
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que voltei”. Depois de transmitir esta mensagem, vi que Diana saía
do escritório de S.S. acompanhando uma menina, Marina, que ficou
também aos meus cuidados, porque sua mãe e Diana entraram no
escritório de S.S. Fiz com Marina o que era frequente no Juizado:
procurar algum papel e lápis ou lápis cera que tinham ali para que
fizesse um desenho, enquanto esperava na sala da Secretária e da Pró-
secretária. Fui então procurar os lápis (geralmente Laura tem uma
caixa em sua mesa (5)), quando Belkys voltou a entrar na sala e
contou à Laura e à Secretária o que havia dito à mãe de Franquito,
dizendo, sem esperar comentário nem réplica: Tomo-o. Referia-se ao
fato de que se deveria iniciar um processo. Nesse momento, tornou a
entrar com seu cliente a advogada mencionada, e Laura leu para
eles uma parte da ata da audiência antes que a assinassem. Enquanto
isso, Diana sentou-se novamente à sua mesa, agora com a mãe de
Marina. Voltei à sala da Secretária e da Pró-secretária, onde Marina
continuava desenhando, e ali vi sair do escritório de S.S. uma senhora
de uns 40 anos com duas garotas adolescentes, visivelmente pesarosas.
A seu pedido, eu servi um copo de água às adolescentes; a mãe
(presumo, pelo tipo parecido entre as três), falando comigo, repetia
com a voz entrecortada e os olhos chorosos: “Nunca imaginei que ia
acontecer comigo... ter que passar por Menores”. E referindo-se ao pai
de suas filhas, dizia-me, entre lágrimas: “As garotas têm medo
dele, não pude fazer outra coisa”. Soraya saiu do escritório de S.S. e,
passando pela sala em que estávamos, apontou para a mulher, que a
acompanhou (“Vem, vamos”), e disse às filhas: “Esperem, garotas,
depois chamo as duas”, o que foi uma indicação vã, porque as garotas
saíram atrás de sua mãe, e foram sentar-se a uma mesa muito próxima
(5) do lugar em que sua mãe falava com Soraya, (4) que terminava de
redigir a ata da audiência. Enquanto isso, a mulher, visivelmente
alterada, através de seus gestos e do tom agressivo de voz, continuava
fazendo acusações de diferentes tipos para o pai de suas filhas. Deste
modo, as adolescentes escutavam sua mãe e ouviam, como eu, que
estava bem mais distante, a discussão entre Diana e a mãe de Marina,
que queria “agregar umas coisinhas” ao que lhe era lido, isto é, uma
parte da ata de ‘sua’ audiência. Ao que Diana, interpôs em voz baixa e
persuasiva, “mas senhora, está mencionado... se a senhora notar
bem, está escrito...”. Enquanto isso, pude observar mais uma vez
como Laura elaborava a ata de outra audiência. Sentada a seu lado,
pude ver na tela de seu computador o documento no qual estava
trabalhando, e como cortava e colava os parágrafos de outra ata
(escrita em outro documento que tinha aberto). O texto que
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reelaborava se referia a um senhor de uns 50 anos, que estava
esperando no corredor, de sobrenome Bustos, segundo podia ler, e
também segundo o que estava escrito pai de um rapaz de 15
anos que havia fugido de sua casa. Para fazer novos adendos aos
parágrafos que estava copiando de seu ‘modelinho’, utilizava as notas
manuscritas que havia tomado durante a parte da audiência realizada
com S.S., no escritório desta última, com o pai. E, assim, os novos
parágrafos agregavam-se ao que tinha escrito quando entrevistara o
senhor Bustos antes de tudo que foi narrado, o qual esperava mais
de uma hora no corredor.
No extenso texto apresentado expliquei minha presença, assim como evitei as
separações entre parágrafos, expondo em um só bloco textual, maciço, como um recurso
escritural para não obstruir as condições de observação, e para representar a densidade
das dinâmicas observáveis nesses tribunais. Densidade que é, ao mesmo tempo,
copresença, em espaços exíguos, de empregadas, funcionárias, ‘administrados’ e, em
poucas ocasiões, advogados particulares, em interações simultâneas; e também
densidade emocional, inseparável do tipo de situações que são geridas. Elementos que
estão fundidos neste fragmento, como estão nas dinâmicas que, em suas fricções,
produzem constantes reacomodações nas correlações de forças. Em outras palavras, as
desavenças que se tentaram mostrar neste fragmento nos permitiriam abordar
modalidades administrativo-judiciais recorrentemente exercidas.
Voltemos à insistência da avó de Mendoza para obter a autorização que, em outro
Juizado, lhe havia sido negada para que seus netos pudessem visitar seu pai na prisão
contra a vontade da mãe das crianças que, no exercício do pátrio poder, não o permitiu.
Diante da expressão de dúvida da administradora, que consultou sobre se o ‘regime de
visitas’ devia ser ‘tramitado’ nos tribunais de Córdoba ou em ‘diferente jurisdição’ (ou
seja, nos de outra cidade, a de Mendoza), esta avó dirigiu-se diretamente a quem era
consultada a Pró-secretária para expor novamente sua aflição e seu pedido. E a
administradora começou a colocar a sua opinião, comentando que, tendo em vista a
pouca idade das crianças, “o juiz não autoriza”, assinalando que ela, em lugar de
continuar insistindo, deveria ocupar-se de seu próprio filho, preso. Mesmo quando pais
ou guardiães devam se ocupar, caso sejam incumbidos, a (pre)ocupação a respeito dos
‘menores’ é do tribunal.
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Através de fazer verbalmente presente a S.S., esta administradora veiculava sua
própria opinião e resolução sem ter feito nenhuma consulta a S.S. que poderia, para este
‘caso’ particular, modificar resoluções anteriores. Tendo acompanhado o cotidiano
nesses tribunais, é possível supor que tampouco foi consultada Sua Senhoria do outro
Juizado, mas que alguma empregada ou funcionária tenha negado o pedido, inclusive,
verbalmente. Na atuação da Pró-secretária, quero chamar a atenção para uma
identificação dupla e variável, entre “Juiz” e “tribunal”, e entre o “Tribunal” e ela
mesma. Consideremos que estamos no marco de uma situação que não foi convertida
em um processo por este Juizado, na qual, em um mesmo ato, esta administradora
estava optando por ‘não acolher’ esta reclamação e, ao mesmo tempo, resolvia isto
invocando uma hipotética decisão de S.S., apoiando-se nela para reforçar sua própria
autoridade, o mesmo se dando com sua postura corporal, de pé, erguida e encarando a
mulher, expressando claramente cada uma de suas palavras.
Diante do novo embate da avó de Mendoza, queixando-se de ter sido mal atendida
em outro Juizado, e acusando a administradora de descompromisso com sua aflição e
com o problema de seus netos (“a senhora lava as mãos”), a Pró-secretária modificou
sua postura, começando a retirar-se dando por finda a desavença e, elevando o tom de
voz, tornando-o sentencioso, contra-acusou a mulher de estar questionando “o Tribunal”
isto é, no mesmo ato, tirou o próprio corpo, literalmente, e se omitiu de assumir a
responsabilidade do que efetivamente estava negando, a autorização solicitada. Assim,
ela se converteu no “Tribunal”, sem responder na primeira pessoa do singular a uma
acusação que estava sendo dirigida a ela, especificamente. E não invocou, como poderia
ter feito, na qualidade de especialista, ‘razões de direito’, que teria como argumentar
sobre a impossibilidade de iniciar um processo que estava, como diz a ‘letra da lei’,
para “conhecer e resolver” em outro Juizado.
A partir dos pontos de referência propostos por Goffman em Frame Analysis
(2006), pontualmente a respeito de como o enquadramento dos acontecimentos pode
conduzir à ambiguidade, ao erro ou a disputas sobre o marco, podemos interpretar que a
senhora de Mendoza estava tentando enquadrar de modo altamente personalizado a
controvérsia com a Pró-secretária, até que a imposição de outro marco, de tipo
“institucional” por parte desta última, fez com que a senhora compreendesse que não
podia seguir em sua acusação, isto é, os gestos, o tom imperativo, o olhar frio da Pró-
secretária indicavam claramente à mulher como estava sendo (mal) recebido o que dizia
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(Goffman, 2006:230). Segundo este autor, “Nossa muito considerável capacidade de
discriminação perceptiva a respeito das questões sobre o marco parece ser o que nos
salva junto ao cuidado que os outros têm em comportar-se de modo categórico”
(2006:357). A avó de Mendoza teria-se visto compelida a enquadrar-se e, talvez por
isso, a dizer esse “Obrigada, doutora, muito gentil”, como indicador de sua retirada, mas
também de sua insistência no marco que estava tentando colocar: voltou a agradecer à
‘doutora’, e não estava se dirigindo nem ao Tribunal nem ao Juiz, aludindo a uma
amabilidade com um resto de ironia.
Retomemos agora o gesto de Belkys que, logo depois de escutar o relato da e de
Franquito, buscou afastar o menino da possibilidade de ouvir o que a e estava
denunciando sua suspeita de que seu esposo, pai do menino, houvesse abusado
sexualmente dele e o entregou a mim, a fim de que eu o afastasse e o distraísse. O que
sucedeu depois, quando eu, sem ter recebido nenhuma advertência, decidi levá-lo ao
banheiro do próprio Juizado que é de uso exclusivo das administradorasmovimento
que passou despercebido de Belkys, em que pese o fato de eu quase ter esbarrado em sua
mesa, sugere que esta administradora, que logo dirá “Tomo-o”
6
ao mesmo tempo a
expreso de sua própria decisão e de sua notificão à superior hierárquica, a Secretária —
estava tomada afetivamente pelo relato desta mãe, curvada sobre a mesa e que lhe falava
entre soluços. Por isso, acredito, Belkys (mesa 6) não percebeu o que para sua companheira
de mesa foi evidente: a possibilidade de malograr o ‘exame’ do menino pelo dico legista,
que deveria ser realizado imediatamente após o início do processo, que Laura (mesa 5)
tinha certeza de que seria aberto, a partir do que ela havia escutado a e de Franquito
contar a Belkys, e da evidente aflão da mãe. Nesta geso em que as impreses atuavam
de maneira decisiva, elas adquiriam prepondencia em termos do que para Goffman seriam
asindicações” que cada parte fornece à outra:
[...] nossa compreensão das pessoas parece estar ligada a uma teoria tácita da
expressão ou da indicação. Certamente, existem coisas tais como relações,
sentimentos, atitudes, caracteres e coisas parecidas, e que diversos atos e
posturas que de alguma maneira, intencionalmente ou não, oferecem
evidência direta a respeito destas coisas (Goffman, 2006:480-481).
Foram percebidas como inequívocas as indicações da mãe de Franquito, e como
evidência de uma situação grave e verossímil. Nesse sentido, reparemos que a mulher
6
No ponto “O que se ‘toma’ e o que ‘não se toma’”, analisar-se-á o uso deste verbo no tribunal, e como as
administradoras ‘tomam’ as situações convertendo-as em processos, e também em ‘seus’ autos’, e como
são, ao mesmo tempo, elas mesmas ‘tomadas’ pelas situações das ‘pessoas’, cujas ‘causas’ (sobre)levam.
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chorava, soluçava, falava em voz baixa e entrecortada pelas lágrimas; também era entre
lágrimas que a mãe das adolescentes contava que suas filhas temiam o pai, e que
não tinha mais outro recurso do que aquele que estava utilizando: “passar por Menores”.
A avó de Mendoza pedia com os olhos vítreos, e acompanhava as verbalizações de sua
aflição. Ao longo de meu acompanhamento, tanto no Juizado quanto na Assessoria,
pude constatar a força das lágrimas das mães. Eram elas quase que exclusivamente as
choravam, como também as mães das mães as avós as guardiãs; diferentemente
dos pais e dos meninos, que raramente o faziam, mas até o início da adolescência, em
algumas ocasiões, pude observar o pranto das ‘garotas’.
Isto impõe recordar a ênfase de Mauss sobre o emprego extremamente
generalizado, e moral, das lágrimas, tratando, no caso, dos rituais funerários
australianos. Primeiro, em relação a que são sobretudo as mulheres aquelas que
aparecem obrigadas a essa expressão de sentimentos. Segundo, que essa regularidade
não exclui em absoluto a sinceridade, constituindo-se ao mesmo tempo em uma
manifestação social obrigatória e em uma expressão da intensidade dos sentimentos. Em
terceiro lugar, o pranto e suas variações (as lágrimas vivas, os soluços mais baixinhos,
os olhos vidrados pelas lágrimas contidas) manifestavam às administradoras e a si
mesmas os sentimentos (Mauss, 1980 [1921:56, 59-61]).
Mas todas estas expressões coletivas, simultâneas, de valor moral e de força
obrigatória dos sentimentos do indivíduo e do grupo, são mais do que
simples manifestações, são signos de expressões compreendidas. Numa
palavra, são uma linguagem (idem:62).
Acrescentaria que para estes tribunais Prevencionais de Menores, e neles, não é
qualquer língua, mas uma lingua franca que procura representar seu caráter coletivo, no
sentido de compartilhado; e possibilita-nos apreender, a partir dessa língua falada por
administradoras e administradas, um plano de pertencimento a uma mesma comunidade
moral, à diferença da língua escrita nos autos, da qual as administradoras são, ao mesmo
tempo, autoras e intérpretes. Esta lingua franca é compreendida sem necessidade de
tradução.
7
7
Kemper, em sua leitura dos modelos sociológicos de explicação das emoções (2000:45-58), indica as
variações nas experiências emocionais, de acordo com marcadores sociais (como a ocupação e o gênero,
entre outros). Nessa linha, poderiamos pensar que esta é uma lingua franca marcada fortemente pelo
gênero, assim como entender esta lingua franca, como parte de uma matriz social, que prevê que
emoções devam ser expressadas, quando, onde, por que razões, por quem, e perante quem. Estes
parâmetros, na proposta de Kemper, expressam as dimensões de poder e de status das inter-relações
sociais, e o autor entende as emoções como reações aos sentidos de poder e status implicados nas
situações. Nessa linha, podemos entender haver um reconhecimento da senhora de Mendoza em relação
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Voltando ao fragmento, a pretensão da mãe de Marina de “agregar umas
coisinhas”, isto é, aclarar o que ela entendia que deveria constar na ata que era lida em
partes para ela pela administradora, era limitada em lhe mostrar de forma evidente que
não estava entendendo bem o que estava escrito: “mas senhora, já está mencionado...
se a senhora prestar bem atenção, já está escrito...”. Em outras palavras, a
administradora, para evitar que a mãe de Marina introduzisse mudanças em sua
particular competência os autos utilizava implicitamente como recurso sua
condição de especialista, não no feitio, mas na leitura dos autos, dando sua versão
como a ‘estabelecida’.
Esta fricção revela como na própria instância prevista pela norma legal de
procedimento, como a situação em que um administrado pode e deve corroborar
a correspondência entre seus dizeres e o consignado nos autos, era transformada pela
administradora em uma instância de ratificação da posição subordinada do leigo, o
não-letrado, em relação ao especialista. No entanto, no mesmo fragmento,
encontramos uma variante reiterada, segundo pude observar, quando advogados
particulares intervêm a de que se esperava e se aceitava como admissível que estes
‘letrados’ lhes ditassem, em seus termos, recriando as palavras faladas por seu cliente,
nessa ocasião, o pai de uma menina que manifestava não querer viver mais com sua
mãe e guardiã. Isto punha limites, demarcava domínios, recriados como de
competência de especialistas. Enquanto se discutia a pretensão da e de Marina de
realizar averbações à ata, à advogada particular era concedida a possibilidade de
realizar um ditado que, não obstante, como se pode observar, foi depois corrigido pela
administradora que elaborava esse documento. Outra variante que também pudemos
ler no fragmento anterior quando a Assessora ditava umas frases à mesma
administradora refere-se ao fato de que se outra administradora judiciária fazia o
ditado, eram respeitados os termos que ela indicara para serem textualizados.
A centralidade das administradoras, das “pequenas juízas”, ocorria não na
primeira recepção dada às pessoas e às situações que se apresentavam, mas ao longo
ao ‘status’ de especialista da administradora, sua demonstração de consideração (ainda que talvez provida
de ironia) na despedida; e, embora possamos considerar que esta Pró-secretária, no âmbito do tribunal,
representa uma ameaça potencial do uso da força, ou de privação do que a senhora de Mendoza considera
valioso, é na firmeza de seu olhar, em sua postura corporal altiva diante dos desafios da avó, na maneira
com que interrompe, que ela realiza um exercício de poder que pode ser pensado no quadro proposto por
este autor para duas das importantes emoções negativas que estaria ativando a administradora: a culpa ou
a vergonha pelo filho preso (2000:46-47).
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do processo; e era a partir de seus saberes compartilhados, de suas impressões, assim
como da avaliação da urgência e da gravidade da situação que eram realizadas as
seleções, nas quais, como havia mencionado antes, os sentimentos manifestados
interpretavam um papel importante.
O cotidiano implica rotinas e, ao mesmo tempo, certa dose de imprevisibilidade.
É na pluralidade do cotidiano desses tribunais que em uma ocasião, na sala das
empregadas que correspondia a uma das Secretarias do Juizado, uma empregada
interrompeu uma conversa comigo para aproximar-se da porta do escritório de S.S. e
escutar ‘o tom’ em que se desenrolava uma audiência. Imediatamente se desculpou e
me explicou: “É para saber se tenho que chamar o policial”. E acrescentou: “É que
uma separação…”. Estava se referindo à circunstância em que vão separar um
menino, uma menina ou um adolescente de seus pais ou guardiães. Isto é relevante,
pois não devemos esquecer que a ameaça tácita de atuar ‘com o auxílio da força
pública’, como rezam os autos, põe em ato no mesmo instante o poder legalmente
consagrado de destituição do pátrio poder .
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Uma sexta-feira de dezembro de 2006, às 11h30, bateram na porta da
Assessoria. Quando abri, uma mulher corpulenta, mas de estatura
baixa, por volta dos 40 anos de idade, disse-me: “A doutora está? E
Marta?”. E imediatamente me disse: “Eu vim por causa de uma
situação de risco de meu filho”. Ao abrir a porta, a mulher de
perceber que a Assessora não estava presente nesse momento e, sim,
Marta, a empregada da Assessoria, que continuou sentada diante do
computador, e dali respondeu: “Espere-me”, ao que a mulher se
dirigiu a Marta com um “Pois o”. E ficou no corredor, onde
estavam outras mulheres, algumas acompanhadas de crianças,
esperando de . Depois que fechei a porta, Marta me fez o seguinte
comentário depois de um instante de silêncio. “Vou fazê-la esperar,
foi convocada para a semana que vem”. E logo assinalou: “Não
nada grave”.
Ao seu lado, de pé, encontrava-se uma estagiária que, com uma rie
de autos nos braços, ia formando uma pilha na mesa de Marta à
medida que lhe dizia: “Estes protocolos [textos nos quais se notifica
alguma citação] estão prontos, aqui há duas vistas feitas [vista:
resposta escrita, assinada pelo Assessor, pela qual se notifica de
algum movimento em um processo]...”. Marta saiu para o corredor,
interrompendo a estagiária em duas ocasiões, para falar com duas
mulheres diferentes. Na primeira vez, dialogou com a senhora a
quem eu havia aberto a porta nesta manhã cedo, que me disse: “Vim
porque meu filho não me ouve”.
A Assessora entrou depois na sala e, junto com ela, a senhora a quem
eu havia aberto a porta. Ambas se sentaram diante da mesa,
continuando uma conversa que, pelo que pude ouvir, havia se
iniciado no corredor. E, então, a mulher, agora com a voz rouca,
tremendo, repetia para a Assessora: “Eu fui ao Juizado... mas não
me deram o dia e a hora da visita [referia-se às autorizações para
visitar o seu filho que estava sob a guarda do pai], enquanto relatava:
“Os vizinhos me dizem que [o pai] anda com meu filho para todos os
lados, que não passou de ano. As pessoas me dizem que não o vêem
bem [referindo-se ao filho]”. E acrescentou, chorando: “O que eu
quero é que vejam como está meu filho. Ele está em uma situação de
risco”. Ao que a Assessora respondeu: Tranquilize-se, querida”, e
tratava de explicar-lhe: Se fosse grave, não a mandariam para cá.
Assim funciona isto... Eles entenderam do seu relato que o era
necessário”. A mulher, entre lágrimas, e levantando ou tom de voz,
disse à Assessora: “Você o acredita em mim... Escute-me, por
favor. Você não me escuta... Ele não es bem”. A Assessora,
96
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tentando acalmá-la, disse: “Mas, mainha, eu estou escutando vo
meia hora...”. A mulher continuou, incomodada: “Mas você o me
entende”. Então a Assessora, levantando-se da cadeira, e com voz
firme, disse-lhe: “Já entendi senhora. Mas conheço minha função, e
não vamos levantar hipóteses”. E perguntou à e: “Como estava
Julito na última vez que o viu?”, em uma pergunta que não parecia
esperar resposta, porque sem solução de continuidade, seguiu
falando. Não obstante, a e de Julito conseguiu dizer: “bem...”, e a
Assessora continuou: “Bom, isto é a única coisa que importa, porque
os nossos parâmetros o são os seus. Agora, deixa eu redigir um
certificadinho e, assim, a senhora fica livre”, e ficou de ao lado de
Marta, que estava sentada no computador. “Deixa que eu redijo o
‘comparendo’”, pediu Marta à Assessora, que lhe cedeu o lugar na
frente do computador.
Enquanto a Assessora escrevia, Marta procurou em uma das gavetas
de sua mesa, tirou um pequeno caderninho editado com o texto da
Lei 9053 e, dirigindo-se à mãe de Julito, disse-lhe: “Escute-me”. E
começou a ler para ela o artigo no qual estavam listadas as situações
nas quais “o Juiz de Menores do Prevencional e Civil terá
competência para conhecer e resolver”. Então, a mulher, logo após
escutar as primeiras linhas, interrompeu-a, dizendo-lhe: Eu não
estou dizendo que o juiz se equivocou. Eu quero que me mostrem
o garoto”. Ao que Marta lhe respondeu: “Tudo isso é de Família
[referindo-se ao foro de Família]... o Juiz [de Menores] compartilha a
opinião da Assessora... A questão é que em Família demora. Melhor
com um advogado”. Então, a mãe de Julito lhe disse: “Bom,
desculpe-me”.
Incessantemente batiam na porta pessoas que iam chegando à
Assessoria com um papelzinho na mão, que lhes havia sido entregue
no ‘balcão do Juizado, no qual estava escrito o número da
Assessoria e o nome da Assessora precedido de ‘Doutora’. A mãe de
Julito voltou a dirigir-se à Assessora, que estava imprimindo o
texto que imediatamente começou a ler para ela. Depois disto, a
senhora, antes de assinar, pediu-lhe uma pia, ao que a Assessora
lhe disse que “uma cópia, não, mas posso preparar-lhe um certificado
de comparecimento”. Então, a senhora respondeu: Sim, se não for
muito incômodo...”.
Retornemos ao cotidiano do foro Prevencional de Menores, desta vez, enfocando
as dinâmicas da Assessoria de Menores onde realizei minhas observações. Como se
97
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tenta mostrar aqui, as atuações eram similares ao que apresentei no primeiro fragmento
desta parte, tomando por base uma hora cronológica das dinâmicas no Juizado.
Detenhamo-nos em algumas dimensões que no fragmento anterior podemos
vislumbrar. A primeira delas guarda relação com o que já se analisou a respeito da espera,
e mostra novamente como a expressão “Espere-me”, de Marta, vai se construindo uma
relação interpessoal que se condensa neste uso verbal que, embora tivesse um conteúdo
imperativo, significava que era a Marta a quem a senhora devia esperar. Isto se articulava
de uma maneira particular quando, com a finalidade de ratificar sua própria avaliação da
situação de Julito, o filho da mulher (“Não há nada grave”), Marta fez presente ao Juiz de
Menoresque, segundo pude observar ao longo de todo o meu acompanhamento do
trabalho no Juizado, não era comunicado pelas administradoras que atendiam no ‘balcão’
das situações que elas mesmas enquadravam como não-merecedoras da abertura de um
processo, e conduziam, portanto, a situação para a ‘etapa pré-jurisdicional’; uma instância
na qual a ‘intervenção’ se circunscreve na Assessoria de Menores, tal como a própria
Assessora lhes recomendou: “Se for grave, não a mandam para cá”, indicando que de
outro modo, no Juizado, teriam aberto um processo. Assim também, estabeleceu uma
fronteira ao dizer-lhe: “Porque os nossos parâmetros não são os seus”.
8
Marta também
recorreu à leitura da ‘letra da lei’ para a mulher, como um recurso adicional ao utilizado
pela Assessora quando se levantou da mesa à qual se havia sentado, como em todas
as ocasiões em que acompanhei seu trabalho, dizendo a seu/sua interlocutor/a: “Estou
escutando-a” — para começar a redigir o texto relativo a esta atuação.
Um outro traço a destacar é a utilização de uma categoria-chave nesta
administração pela mãe de Julito, a ‘situação de risco’, que fazia parte das perguntas de
praxe que as administradoras realizavam com pais, mães, guardiães, vizinhos,
professoras que, por diferentes motivos, convergiam ao Juizado: “Mas uma situação
de risco para fulaninho?”. Isto transforma o uso desta categoria por parte da mãe de
Julito, imediatamente depois que lhe abriram a porta da sala, em uma táctica, que ela
esperava funcionasse como um “abre-te Sésamo”.
8
Para este espaço judicial específico são eficazes as afirmações de Bourdieu a respeito de que “a
constituição de uma competência propriamente jurídica, domínio técnico de um conhecimento sábio,
frequentemente antinômico das simples recomendações do senso comum, contém a desqualificação do
sentido de equidade dos não-especialistas e a revogação de sua construção espontânea dos fatos, de sua
«visão de mundo»” (2000:181). Assim, também me aproprio da afirmação deste autor a respeito de que o
estabelecimento de um divisor de águas entre a visão vulgar do administrado e a sábia do especialista não
é exterior, mas constitutiva das relações de poder.
98
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Mais um elemento característico, que foi assinalado, é o pranto, que remete em
termos de Mauss à expressão obrigatória dos sentimentos; pranto que acompanhou o
pedido da mulher de obter um ‘regime de visitas’ para seu filho. Tenhamos presente,
quando começou a falar esta lingua franca a das lágrimas que a Assessora se
dirigiu à mulher com os apelativos “querida”, “mainha”, instando-a a se tranquilizar.
Por fim, notemos a mudança da correlação de forças que se deu através das
atuações que se procurou representar neste fragmento. A acusação feita pela mulher
contra a Assessora por não ter sido escutada por ela, chamando-a de você, que em nossa
linguagem comum remete à proximidade (“você não me escuta”), passou ao pedido de
desculpas que ofereceu à Marta, tratando-a também de você, e o esclarecimento de que
ela não estava dizendo que “o juiz [leia-se o Juizado e a Assessoria] se equivocou”. Por
último, esta mulher terminou agradecendo, como se lhe fizessem um favor, a entrega de
um certificado: “sim, se não for muito incômodo...”.
A Assessora e a única empregada da Assessoria trabalhavam em um mesmo e
único escritório com duas mesas e um computador localizado, como foi dito,
em um dos corredores do subsolo do Palácio de Tribunais, perto dos Juizados
Correcionais de Menores, que também funcionam no mencionado subsolo, ainda que
em outra ala do edifício e distante do corredor do andar, sobre a rua Duarte Quirós,
onde se encontram os Juizados Prevencionais de Menores. Assim, os corredores
também funcionavam como salas de espera e lugares de atenção ao público. E se a
Assessora tivesse que se dirigir até os Juizados de Menores com alguns de seus
representados, como em uma ocasião precisou fazê-lo com três menininhos, então lhes
dizia: “Vamos fazer uma expedição”. E começavam a caminhar pelos corredores de
Tribunais até encontrarem um banco disponível, onde finalmente podia falar com eles
sentados.
As Assessorias trabalhavam com uma Mesa Geral de Entradas, onde se
desempenhava uma funcionária comum para todas elas, com o cargo de Secretária, cujo
trabalho é auxiliado por estagiários.
9
Na maioria dos casos, tanto nas Assessorias quanto
nos Juizados, não havia distinção quanto ao tipo de tarefas que os estagiários
desempenhavam e que lhes eram atribuídas em relação às dos empregados ‘do quadro’,
9
Os estagiários são estudantes da Faculdade de Direito que se inscrevem como postulantes, e são eleitos
em virtude da média de suas notas, mas que não são empregados contratados nem empregados do Poder
Judicial, embora recebam por seu trabalho uma compensação pecuniária muito menor que o salário dos
empregados.
99
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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embora os estagiários tivessem uma carga horária menor que a dos empregados (duas
horas menos).
Poder-se-ia apresentar em fotogramas uma jornada de trabalho das
administradoras destes tribunais. Desta forma, verificar-se-ia como chegavam minutos
antes das 8 da manhã ao Palácio de Justiça, cujas portas já tinham sido abertas uma hora
antes. Imediatamente após entrarem e, enquanto ligavam os computadores e trocavam
alguns comentários a respeito de suas vidas pessoais, começava o atendimento ao
público, assim como as chamadas telefônicas. Começavam a serem ouvidos nas salas os
chamados de alguma companheira que dizia, “Maria, estão procurando você”, ou “aqui
está a mãe que você convocou”.
As atuações começaram, ou talvez seja melhor dizer que eram retomadas, dentro
de um espaço e de uma temporalidade próprios de cada processo, reguladas por esta
gestão judiciária. Pessoas esperavam no corredor, entravam nas salas, voltavam a
esperar, os garotos corriam pelo corredor e, quando estavam nas salas, pediam para usar
os computadores, onde algumas administradoras possuiam inclusive ‘joguinhos’ para
que “o garoto se entretenha, enquanto uma delas fala com a mãe”, como relatava uma
das administradoras.
S.S. chegava em torno das 9 da manhã, ou mais tarde, naqueles dias nos quais
realizava alguma ‘visita’ aos institutos onde estavam internados meninos, meninas e
adolescentes ‘à disposição do Juiz de Menores’, ou a algum dos hospitais de crianças
da cidade, no caso de alguma dessas crianças estivesse hospitalizada. Por volta do meio-
dia, Alfredo, que era um estudante de advocacia de final de curso, empregado da
SPINA, vinha trazendo os ‘relatórios’ realizados por algum dos membros da Equipe
Técnica, e formulários com denúncias realizadas pela linha telefônica 102, e após
recorrer às diferentes secretarias, retirava-se levando, desta vez, novos pedidos de
relatórios e de ‘constatações’.
Perto das duas da tarde, que seria o horário oficial de ‘fechamento do atendimento
ao público’ por parte das empregadas, produzia-se um tipo de aceleração, tendente a
“despachar” as pessoas, isto é, conseguir desocupar-se o mais rápido possível. Ainda
que a obrigação funcional prescrita de permanecer em um horário estendido além das 2
da tarde vigorasse somente para as Secretárias, Pró-secretárias, S.S. e Assessores/as de
Menores, é “muito mal visto que a gente queira ir embora às duas em ponto”, dizia uma
das empregadas, que era solteira e não tinha filhos. Assim, pequenas táticas eram
100
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acionadas para justificar a saída pontual no final da jornada de trabalho, como ir
antecipando, em um comentário, que marcaram uma consulta médica, ou que tinham
que realizar alguma diligência com hora marcada. Quem não necessitava dar este tipo
de explicações eram as administradoras que tinham “filhos para cuidar”, e também não
necessitavam se justificar em relação às chamadas telefônicas pessoais, pois era parte do
cotidiano escutar como monitoravam alguma tarefa escolar, ou o horário de almoço, ou
um pedido da escola de seus próprios filhos. Em uma palavra: uma obrigação moral
com os próprios filhos justificaria delimitar o ‘compromisso’ a situações cuja gravidade
não correspondia muitas vezes aos horários prefixados.
Bem, estes fotogramas opacificariam duas questões que são inerentes a esta gestão
administrativo-judicial. A primeira é o ‘plantão’, uma semana em que cada Secretaria de
um Juizado era a única habilitada para abrir processos. Esses plantões eram fixados por
resoluções do TSJ ao término de cada ano, através das quais todas as administradoras,
antes de se iniciar cada ano de trabalho, sabiam exatamente quais seriam as semanas em
que estariam “de plantão”. E isto estruturava não o calendário anual ‘na sede
judicial’, mas também o calendário de suas outras atividades fora do Palácio de Justiça.
Assim, pude escutar reiteradamente fora de ‘Tribunais’ quando se dirigiam a amigos
ou familiares, ou outros colegas da faculdade que em tal ou qual semana não
poderiam participar de tal reunião ou realizar tal atividade, “porque estou de plantão”,
ou “passemos para a semana seguinte, quando acabar o meu plantão”. Em termos de
prescrições funcionais, a obrigação das empregadas na semana dos ‘plantões’ era a de
trabalhar as horas que forem necessárias ‘por razões de serviço’, o que na prática se
transformava em uma extensão do horário de trabalho, até às 4 ou 5 da tarde. a
Secretária deveria permanecer de plantão, durante as 24 horas, o que concretamente
cada uma delas fazia depois das 8 da noite, auxiliadas pelo telefone celular em suas
casas.
Por um lado, o ‘plantão’ mostra o quanto dessas atuações que as administradoras
(sobre)levam não se remetiam estritamente ao tempo em que trabalhavam ‘na sede
judicial’. Assim, para qualificar o ‘plantão’, distinguindo-os entre si, diziam-me: “Este
plantão está difícil”, e se referiam a uma equação que não correspondia estritamente à
quantidade de processos iniciados, mas ao tipo de situações que se apresentavam. Um
‘plantão’ era considerado difícil pelas administradoras quando se abriam numerosos
101
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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processos ‘por abuso’, expressão utilizada nesses tribunais para se referir ao abuso
sexual, ou por maus-tratos físicos que teriam deixado lesões graves ‘nos garotos’.
A outra questão era resumida por uma administradora, que dizia: “o mais difícil
do plantão é que as pessoas ficam depois do plantão”. Referia-se tanto aos primeiros
dias da semana seguinte ao ‘plantão’ (chamados de ‘pós-plantão’) — quando
continuavam tomando as audiências iniciais de cada processo, e que também eram dias
particularmente marcados no calendário (não só) judicial das administradoras — quanto
aos processos iniciados durante o plantão e seus envolvidos, que se somavam e faziam
parte de uma dimensão especial desta gestão, incorporada em cada administradora, que
não começava nem terminava necessariamente em seus horários de trabalho, pois ficava
a (pre)ocupação para com os administrados.
III.3 “As atuações serão reservadas
O termo atuações, na ‘letra da lei’ 9053, de “Proteção Judicial da Criança e do
Adolescente”, é aplicado à totalidade do procedimento, isto é, o conjunto de ações
efetuadas ‘perante o foro de Menores’. Mas, além disso, em seu artigo 29 (Caráter das
atuações), identifica as atuações com os autos, como pode ser lido a seguir: “As atuações
seo reservadas e não podeo ser retiradas do Tribunal [...]”. Estas duas acepções para o
termo atuações eram ‘‘empregadas’’ no âmbito dos tribunais não nas fórmulas
escritas, mas também no uso coloquial, no qual este vocábulo volta a apresentar a
identificação entre autos e o processo judiciário em sua totalidade. Aqui se
instrumentaliza a ambiguidade que reveste este termo para mostrar que o “caráter das
atuações” — não só os autos — era reservado.
Este caráter se objetiva na demora e até a resistência que no Juizado se opunha à
entrega de cópias de ‘seus’ autos aos advogados que assim as solicitavam. Os autos
eram ‘emprestados’ para sua leitura no tribunal, e circulavam unicamente entre as salas
do Juizado e as da Assessoria de Menores, isto é, dentro do foro. Assim, por exemplo,
uma funcionária do Poder Judiciário, embora não fosse do foro de Menores (tratava-se
de uma Assessora Civil), reclamou reiterada e insistentemente, segundo consta em
autos, a entrega de fotocópias dos autos relativos a um processo em que intervinha
como Assessora Letrada da mãe de várias crianças sob Proteção Judicial.
102
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Mas como foi mencionado, a questão da “reserva das atuações” é entendida nesta
tese em relação não os autos, mas às atuações no sentido de gestão da Proteção
Judicial. Não obstante, como foi mostrado, o que caracterizava as dinâmicas, tanto no
Juizado quanto na Assessoria, era uma falta de reserva, auditiva e visual, na qual os
administrados relatavam as situações ou efetuavam suas denúncias perto de outros
administrados. Para destacar tal falta de reserva, consideremos que alguém sentado em
um dos bancos do corredor do Juizado, como foi meu caso em muitas ocasiões, podia
escutar e se inteirar do que uma pessoa estava perguntando à administradora no
‘balcão’, e o que esta lhe indicava ou respondia.
Pelas características do uso do edifício que era feito nesses tribunais e dos hábitos
das administradoras, tratava-se no corredor de detalhes da intimidade e da vida
doméstica das crianças envolvidas nos processos. Não nos processos abertos, mas
na instância preliminar em que se decidiria abrir ou não um processo, as pessoas os
relatavam a quem estava atendendo no balcão de atendimento, muito perto de outras
pessoas. Esta proximidade repetia-se nas salas do Juizado, onde uma pessoa que estava
sendo atendida por alguma empregada e discutindo assuntos referidos a um processo
(fosse uma mãe ou uma guardiã) era ouvida por outras pessoas que, simultaneamente,
estavam sendo também ouvidas em outra mesa.
Ao mesmo tempo, isso se transformava em uma possibilidade de escutar e
observar sem que minha presença fosse tão notória; a agitação e o barulho, a falta de
espaços livres nas salas e a presença simultânea de muitas pessoas poderiam também ter
se transformado em um silêncio ao avesso, no qual as administradoras conseguissem,
nessa reversão do silêncio, a oportunidade de preservar um espaço para a interlocução
que não expusesse tanto os administrados, usando a proximidade física e o volume da
voz em um nível perceptível para o interlocutor que necessitasse expor assuntos de
sua vida familiar à administradora.
Embora que não era frequente a publicidade das atuações
10
em meios massivos de
comunicação, o que era evidente é que nem a ‘privacidade’, nem o ‘direito à intimidade’
das crianças, eram observáveis. Mas além da observância ou da inobservância dos
mandatos normativos, a dualidade que se quer ressaltar aqui é a dos hábitos das
administradoras que concebiam e atuavam, ao mesmo tempo, impondo a falta de
‘reserva’ auditiva e visual aos administrados e estendendo a reserva de suas atuações,
10
Artigo 30. Publicidade. Proibição. Trâmite da sanção. É proibida toda a publicidade a respeito das
atuações no foro de Menores, salvo autorização expressa dos magistrados [...] (Lei provincial 9053).
103
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obstaculizando e dificultando a leitura dos próprios registros aos administrados, que
se realizava parcialmente antes de solicitar que fossem assinados os documentos (ata de
uma ‘audiência’, ‘comparendo’, por exemplo).
O relevante é perceber que a ‘reserva’, mais do que proteger os ‘menores’, parecia
proteger a administração e suas práticas da exposição. E protegendo a si mesma,
opacificando suas atuações, reafirmava sua posição predominante em relação aos
administrados. Nessa direção, considero, valem as afirmações de Weber, tratando a
posição de poder predominante de uma burocracia desenvolvida no marco do Estado
moderno, quando sustenta que
Toda a burocracia busca aumentar a superioridade dos que são
profissionalmente informados, mantendo secretos seus conhecimento e
intenções. A administração burocrática tende sempre a ser uma
administração de “sessões secretas”, na medida em que pode ocultar seu
conhecimento e a ação da crítica [...] ou o interesse da burocracia no poder,
porém, é muito mais eficaz além das áreas em que os interesses puramente
funcionais determinam o sigilo. O conceito de “segredo oficial’ é invenção
específica da burocracia, e nada é tão fanaticamente definido pela burocracia
quanto esta atitude que não pode ser substancialmente defendida além dessas
áreas especificamente qualificadas (Weber, 1974:269-270).
Que o caráter ‘reservado’ das atuações ampararia as administradoras pode
perceber-se a partir das modificações (como a especial atenção às formalidades
processuais) que eram introduzidas em sua gestão caso ocorresse a intervenção em
certos processos de algum advogado particular exercendo o ‘patrocínio letrado’ de um
familiar das crianças e dos adolescentes, ou seja, um advogado independente do Poder
Judiciário.
A partir do acompanhamento do cotidiano desses tribunais, pude contrastar a
maioria dos processos sem um ‘letrado externo’ da minoria em que um advogado ‘da
matrícula’ (e não um assessor letrado gratuito, funcionário do Poder Judiciário)
intervinha em algum processo; os administrados patrocinados por advogados
particulares geravam toda uma série de atitudes por parte de empregadas e funcionárias
e de S.S., que se desculpavam, por exemplo, pelas demoras em atendê-los, assim como
também se esforçavam no momento da redação das atas em serem “fiéis ao que fora
dito na audiência”.
A mencionada presença de advogados particulares era escassa, devido
principalmente à falta de recursos da maior parte dos administrados, o que lhes
dificultava (quando não impossibilitava) o pagamento da assistência de advogados, ou
104
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contar com tal patrocínio a partir de relações de amizade com algum advogado
particular. O que acontecia era que os ‘representantes’ tanto das crianças quanto de seus
pais ou guardiães faziam parte do Poder Judiciário, exercendo as funções em virtude das
disposições de ‘patrocínio gratuito’ (como Assessores de Menores e Assessores Civis).
Portanto, estes representantes mantinham relações de conhecimento, companheirismo,
às vezes de longa data, com quem ‘levava as causas’.
Em relação a isto, é necessário ponderar que esta ausência de participação de
advogados ‘da matrícula’ nos processos se dava não em função da falta de estímulo
pecuniário para isto, mas também pela falta de outros estímulos, no caso, profissionais,
que ‘litigar em Menores’ não outorgava prestígio no foro local. Isto impactava no
sentido de que os advogados ‘litigantes’ não fossem, em geral, especialistas em
Menores, nem estivessem familiarizados com os procedimentos do foro, nem
mantivessem relações de conhecimento com empregadas e funcionárias judiciais de
Menores todos estes requisitos que se verificavam no caso dos advogados que
‘litigavam’ nos outros foros. Em alguns dos casos que pude observar, os advogados
particulares intervenientes nem sequer conheciam ‘a letra da lei’ vigente.
11
As poucas ocasiões em que advogados especialistas ‘litigavam em Menores’,
inclusive sem cobrar seus honorários, eles o faziam no tempo que sobrava de suas
demais ocupações profissionais remuneradas.
12
Também era frequente que os advogados
não tivessem podido estudar detalhadamente os autos (devido à resignificação do
caráter de reserva das atuações, que se fazia factível diante do desconhecimento do
advogado particular de seu direito inscrito na lei de solicitar uma cópia “por razões de
seu ministério”). Em algumas ocasiões, conheciam os autos momentos antes de
participar de alguma atuação vinculada ao seu patrocinado.
11
Leiamos uma evidência disto em uns autos em trâmite até 2008, quando foi pedido o arquivo das
atuações. O texto com o qual se inicia, termina com uma emenda manuscrita, que diz: “DIGO OUTRO
SIM: FUNDAMENTO LEGAL: PROTEÇÃO JUDICIAL... (Lei 9053), arts. 1, 2; 3; 4; 6; 9 b e f; 21; 22;
31; 57...”. Esta averbação à mão foi escrita, segundo me relatou uma administradora, quando a empregada
que acolheu o texto advertiu à advogada que o apresentava que a remissão legal à lei vigente no texto era
errônea, pois estavam citando a primeira lei criadora do foro de Menores na província de Córdoba, de
1957, derrogada 20 anos, e omitiam a referência à lei vigente em Córdoba, que devia reger a
tramitação do processo, isto é, a lei 9053 de 2002.
12
Uma tentativa mais sistemática de garantir este patrocínio letrado de advogados independentes do
Poder Judiciário, levado à frente durante 2004 e 2005, reuniu um conjunto de advogados
‘comprometidos’ com a defesa dos direitos da criança, mas terminou se desfazendo por falta de
financiamento que cobrisse minimamente o que corresponderia aos honorários profissionais, apesar do
mencionado programa contar com o reconhecimento da Unicef.
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Esta questão do ‘patrocínio letrado’ permite apreciar como se efetuava na
administração judicial em estudo uma instrumentalização da ‘reserva das atuações’,
coadjuvando uma produção de opacidade, que assinalamos, em relação à maneira de
encapar os autos, usando uma categoria a de ‘Prevenção’— que não deixava
transparecer as situações que estavam sendo processadas judicialmente. Inclusive, em
certos autos, a informação que se escrevia na capa não dava conta de todos as crianças
que estavam sendo ‘protegidas’ judicialmente.
A particular maneira com que se conjugavam nesta administração os mandatos
normativos e as formas e as fórmulas de gestão tinha implicações significativas, pois se
tornavam de grande relevância para os processos as relações de interconhecimento dos
próprios administradores, e se produzia uma opacidade que não se harmoniza com o
ideal de transparência que se imagina e se prescreve para os processos judiciais. Nesta
administração, atuavam os filtros polarizadores assinalados, de caráter não só legal, mas
fundamentalmente emersos das práticas administrativas, que iam em um sentido e não
em outro, habilitando visibilidade de maneira unidirecional para os que administravam e
não para os administrados.
Esta administração judiciária referida a Menores ‘sem conflito com a lei penal’
não corresponderia à definição de Bourdieu de campo judicial como espaço
organizado, no qual e pelo qual se opera a transmutação de um conflito direto entre as
partes diretamente interessadas em um debate juridicamente regulado entre profissionais
atuantes na representação de seus clientes” (Bourdieu, 2000:185). Tal transmutação não
se produziria nesta administração judiciária, como se procurou expor nos fragmentos e
na análise da ‘reserva’ das atuações, pois as fricções não necessariamente se produziam
entre profissionais atuantes, mas se travavam mais assiduamente entre as
administradoras judiciárias e os administrados, sem a mediação de profissionais
particulares. Assim, embora se contasse sempre com este patrocínio, na maioria das
situações se tratava de outras administradoras judiciárias. Mas isto não interrompia a
intervenção dos próprios administrados.
Em breve, não estamos nesses tribunais estritamente em face de litígios entre
especialistas. Em relação a isto deve ser considerado que no resto dos foros os
administrados não se apresentam em qualquer ‘balcão’ de um Juizado de primeira
instância para solicitar a ‘intervenção do Juiz’ sem patrocínio de um letrado, isto é, sem
um advogado particular que, uma vez aberto o processo, deve em caso de
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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procedimentos exclusivamente escritos, como no foro Civil assinar todos e cada um
dos documentos que se apresentem. Embora este trabalho não trate das complexidades a
respeito da divisão de competências entre o foro de Menores e o foro de Família e
além da importância assinalada a respeito de que no foro de Família haveria outro
público, pertencente a segmentos sociais mais favorecidos (Beloff, 2004:24) a
distinção que se ressalta aqui é a participação fundamental de advogados particulares
patrocinando os administrados no foro de Família, e as implicações relativas a sua
ausência no foro de Menores.
A seguir, tentarei dar conta dos procedimentos de seleção das situações a serem
processadas por esta administração judiciária relativa a Menores Prevencionais,
dedicando a análise à atuação de conversão em causa de uma denúncia, pedido ou
reclamação.
III.4 O que ‘se toma’ e o que ‘não se toma
Estas expressões sintetizam o que será tratado: exercícios de gestão efetuados por
esta administração judiciária, através dos quais uma situação referente a um menino,
uma menina ou um adolescente chegava a se transformar em um processo e,
particularmente, quem e como era efetuada essa conversão (‘tomar’, verbo que na
linguagem dos tribunais se emprega em lugar do vocábulo técnico, ‘avocação’, usada
somente nos autos). Isso possibilita apreender o marcante da atuação das
administradoras e a importância de seus esquemas de percepção e interpretação, ao
mesmo tempo, cognitivos e valorativos; e como as pessoas estavam sujeitas à coação de
dar conta do por que as condutas denunciadas que conheciam de longa data não
foram denunciadas antes. Vejamos isto nos seguintes fragmentos.
Uma senhora magra e jovem estava sentada com seis crianças em um
banco do corredor, compartilhado por dois Juizados Prevencionais de
Menores, conversando com os garotos. A mais velha das crianças,
que tinha uns 12 anos, e o menor, 4, aparentemente pareciam ser
irmãozinhos e filhos da mulher. Era sexta-feira, último dia útil do
plantão, 3 da tarde. Havia poucas pessoas nos corredores. Uma
empregada de um dos Juizados passou caminhando e a mulher magra
107
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lhe perguntou pela doutora M., e a empregada lhe respondeu
indicando como chegar à Assessoria de Menores. A mulher se retirou
do corredor e meia hora depois voltou, desta vez dirigindo-se
diretamente ao balcão do outro Juizado (ou que estava no ‘plantão’),
e começou a falar com uma administradora. A mulher falava com a
administradora calma e pausadamente.
Comecei a escutar quando a empregada do balcão lhe perguntou
enfaticamente: “Mas, mainha, é ou não é mau-trato?”. A senhora
estava de em frente ao balcão, enquanto seus filhos haviam
voltado a se sentar em um banco, folheando umas revistas infantis. À
pergunta, a mulher respondeu sem duvidar: Não, não é mau-trato...
É mau-trato psicológico. Eu vim na semana passada, e estive com
a doutora M. [Assessora de Menores], que me disse que lhe mandaria
uma citação, para ele ir embora… E agora dizem na Assessoria que
ela [M.] está de férias...”. A administradora, logo após lhe perguntar
detalhes sobre o que haviam feito na Assessoria, finalmente
acrescentou: “Mas a senhorao tem para onde ir com os garotos? E
a mulher respondeu: E para onde eu vou ir...? vou pensar para
onde irei no fim de semana…”, e começou a contar que “todos os
garotos estavam na escola à tarde”, que saíra dizendo ao pai das
crianças que ia levá-los à escola. “Assim, eu não posso voltar… ele
virá em cima da gente Eu já lhe pedi calmamente que fosse
embora, mas eleo vai… Em vez de levá-los à escola vim para cá”.
A empregada então lhe pediu que esperasse uns minutos e, quando
voltou ao balcão, chamou a mulher e lhe disse algo que não pude
escutar, para logo depois despedir-se dela dizendo: “Tem que vir
mais cedo, porque agora está fechado… Preste atenção da próxima
vez”. E diante desta resposta da administradora, a mulher se retirou
com os seus seis filhos.
No fragmento anterior, a administradora procurou estabelecer, em primeiro lugar,
se os garotos sofriam maus-tratos. “Mas, mainha, é ou não é mau-trato?” E diante da
resposta da mãe de que o mau-trato era psicológico, entendeu que não havia tal mau-
trato, se considerarmos que não tomou a medida que lhe era solicitada pela mulher: tirar
o marido de casa.
13
Para tomar essa medida, teria sido preciso abrir um processo,
13
A lei provincial 9053 prescreve, em seu artigo 25, “Exclusão provisória do lar. Quando das
circunstâncias do fato resultar verossímil que a convivência da criança ou do adolescente com seus
progenitores ou responsáveis prejudique gravemente sua saúde física, psíquica e moral, o Juiz de Menores
poderá excluir provisoriamente do lar o suposto responsável, para proteger o direito daquele de
permanecer em seu meio familiar”.
108
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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‘tomar’ o caso, o que daria por terminada a ‘etapa prévia’ que se desenvolvia
exclusivamente no âmbito da Assessoria de Menores, e sobre a qual a administradora
perguntou insistentemente, para saber o que haviam feito anteriormente na Assessoria.
Advirtamos que a resposta “já vou pensar para onde irei no fim de semana” pôde
dar a entender que a mulher poderia ficar em alguma outra casa, assim como havia
tomado a iniciativa de ir a ‘Tribunais’ pela segunda vez. Esta mãe, por outro lado,
esgrimia o argumento do esforço que havia tido que fazer para tirar seus filhos da escola
com a finalidade de que dessem ‘curso’ a seu pedido. Por último, a administradora se
despediu dela com uma recomendação a respeito do horário de atendimento ao público,
“Preste atenção da próxima vez”, distorcendo o argumento da mulher contra o seu
pedido: se mesmo com dificuldades tinha procurado tribunais, poderia voltar a fazê-lo,
porque estava mostrando ser capaz de encontrar recursos anímicos, táticos
(aproveitando o horário escolar dos garotos, para que não se notasse sua ausência em
casa), monetários (porque podia dispor de dinheiro para se deslocar com todos os
garotos de um bairro da periferia de Córdoba para o centro da cidade), e tinha a quem
recorrer (podia pensar para onde iria no fim de semana).
Nesse mesmo dia, também depois do horário de atendimento ao
público, outra empregada chamou uma senhora de 30 e tantos anos,
de baixa estatura, miúda, que esperava muito quieta de no
corredor, cabisbaixa, para se aproximar do balcão. Eu continuava
sentada em um banco que estava ao lado do balcão, o que me
permitiu escutar o que foi dito depois de um primeiro intercâmbio
entre ambas. A empregada disse à mulher: “E a senhora, por que
veio...? Quer que tiremos o seu marido de casa?”, ao que a mulher
respondeu outra vez, sem olhá-la: Não, o, está bem”. E
acrescentou: Mandaram-me da Assessoria”. Enquanto a mulher
permanecia de diante do balcão, a empregada se retirou, para
voltar um momento depois. Nós vamos lhe tomar a causa, e vamos
citá-la com seu marido”. A senhora, em uma voz muito baixa e sem
levantar os olhos, respondeu-lhe: “Já posso ir tranquila para minha
casa? E a empregada, em um tom marcadamente interrogativo: E
por que o iria tranquila? A empregada retirou-se novamente do
‘balcão’ e, minutos depois, saiu para atender no balcão a Secretaria
do Juizado, que lhe disse: Senhora, temos uma denúncia de
violência… Mas, diga-me, seu marido bate nos garotos?”, ao que a
mulher respondeu: “Não”, sem maiores comentários. A Secretária,
109
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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como se o tivesse escutado a resposta, seguiu dizendo: “Senhora,
se seu marido bate nos garotos, teria que ser retirado da casa…
Vamos citá-los, a senhora, ele e os garotos. In-de-fec-ti-vel-men-te
vai ter que vir com os garotos. Seu marido bebe? [referia-se à bebida
alcoólica]. A mulher respondeu como se sentisse vergonha e em voz
muito baixa: “Sim”. A Secretária terminou dizendo-lhe: “Já vamos
designar um advogado para seu esposo e para a senhora”, depois de
lhe ter explicado que deveriam ir ao tribunal com o ‘patrocínio de
um letrado’, e ter lhe perguntado se podiam pagar um advogado
particular. A mulher se despediu dizendo, “Muito obrigada”, e se
retirou, caminhando muito lentamente pelo corredor.
Neste fragmento vemos outra mãe que recorreu, sem seus filhos, ao Juizado
Prevencional de Menores, o que permite nos aproximar da maneira pela qual as
administradoras tentavam reconstruir uma cena do que acontecia em torno das crianças;
novamente, colocou-se ênfase no fato de se o pai batia ou não nos filhos. Apesar da
resposta negativa da mãe, a Secretária tentou de outro modo cercar o assunto, dando por
não respondida a sua pergunta. De maneira pedagógica e recorrendo ao condicional, a
Secretária explicou à mãe o que deveria ser feito em caso de efetivamente ele bater nos
garotos: “Teria que ser retirado da casa...”. Nesse “teria” da Secretária estava a
indicação de um curso de ação possível e, ao mesmo tempo, o que a mulher deveria
fazer (se fosse verdade que o pai batia em seus filhos), e o que o ‘tribunal’ faria, com ou
sem a sua solicitação ou anuência.
Além disso, a administradora continuou tentando (re)construir a situação,
perguntando, de maneira direta, se o pai dos garotos era alcoólico, ativando uma
associação de longa data entre a violência denunciada e o ‘vício’ da bebida, em um tipo
de imputação moral que a mulher confirmou, visivelmente afetada, respondendo
envergonhada: “Sim...”. Nesta atuação, a administradora colocou a mulher em uma
posição moralmente duvidosa, pois, apesar de ter dito claramente que não queria que
seu marido fosse ‘retirado de casa’, reconheceu envergonhada que ele bebia.
Em relação a este fragmento, nas listas que a Pró-secretária elaborava, resenhando
as informações iniciais do que ‘se tomava’ em cada ‘plantão’, constava no mês em curso
o seguinte texto sobre esta situação:
C.J. V. 12, W. 5 PRE Linha 102 lhe passa uma denúncia, que poderia vir da
escola, de que as crianças são vítimas de um alto grau de violência conjugal
e estariam desamparados por ambos os pais, muito introvertidos, pai muito
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violento, também no trabalho, à tarde estão sozinhos com o pai, mãe trabalha
todo o dia, mãe muito acanhada e temerosa, não quer se separar.
Constatação com família extensa FALTA.
Dito por extenso: esta situação que acabava de se transformar em um processo
judicial nesse plantão do mês de julho de 2005, havia tido uma ‘etapa pré-
jurisdicional’ (“PRE”) em alguma das Assessorias de Menores, onde chegou em virtude
de uma denúncia “anônima”, que se presumia viria da escola frequentada por Victoria,
de 12 anos (“C.J. V. 12”), e por Washington, de 5 anos de idade (“W. 5”). A mencionada
denúncia foi feita pela Linha telefônica gratuita 102 da SPINA, que recepta todo tipo de
denúncias referentes a meninos, meninas e adolescentes em ‘situação de risco’. E logo,
no texto citado, estão as impressões das administradoras do Juizado (mãe muito acanhada
e temerosa). A ‘constatação’ a ser executada pelo pessoal da SPINA, por ordem do
Juizado, consiste em uma visita ao domicílio onde as crianças vivem, para ali ‘constatar’
as condições de moradia, de saúde etc. Em relação à indicação, “com família extensa”,
especifica a medida do Juizado de contatar algum membro da família extensa das
crianças.
Os fragmentos anteriores permitem objetivar os ‘critérios do tribunal’ como
dizem as administradoras para se referirem à sua maneira específica de entender
determinadas variáveis (gravidade e urgência da situação, se é ‘coisa de adultos e não de
garotos’, a existência ou não de ‘outra intervenção’), para dirimir as situações que ‘se
tomam’ e as que ‘não se tomam’, ou seja, aquelas que serão transformadas em um
processo judicial, e aquelas que serão ‘derivadas’.
Diante de duas situações aparentemente próximas, com variáveis em comum a
Assessoria de Menores atuou em ambas se trataria de pais/maridos ‘violentos’, ou
que representariam uma potencial ‘situação de risco’ para as crianças, o que era preciso
dirimir é se era ‘coisa de adultos’ ou se batiam (também) nos garotos. Foram os
esquemas de percepção e interpretação das administradoras, que finalmente ponderaram
as variáveis para operacionalizar ‘critérios’ diferentes. Em uma situação, ponderou-se
que o status quo deveria ser mantido (que a Assessoria de Menores continuasse
atuando, sem abrir um processo judicial stricto sensu), e na situação apresentada no
segundo fragmento, abriu-se um processo.
Podemos ver em ato saberes de gestão, incorporado pelas ‘administradoras
judiciárias’ e sua pregnância na conversão de uma situação determinada em um
111
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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processo Prevencional de Menores. Discerniram primeiro o que podiam reconhecer
como sofrimento (da mãe das seis crianças, podendo afetá-las também), e o que
interpretaram como mercendo ‘intervenção’ do Juizado, por supor que Victoria e
Washigton foram vítimas de maus-tratos físicos por parte do pai e de falta de proteção
por parte da mãe, que foi citada aos tribunais, à diferença da mãe das seis crianças que,
apesar de todas as suas dificuldades, recorreu motu proprio aos tribunais, levando seus
filhos, presumindo-se, por isto, que estava em condições de ‘amparar os garotos’. As
impressões que estão textualizadas na resenha da Pró-secretária (“mãe muito acanhada e
temerosa”) confirmam o que foi dito a respeito da importância dos esquemas
interpretativos das administradoras judiciárias.
A seguir, exploremos as diferentes vias pelas quais as situações chegavam ao
‘balcão’ do Juizado nas semanas de seu respectivo ‘plantão’. Umas reconheciam um
périplo administrativo (judicial ou não) anterior; dentre estas, as mais frequentes eram
as seguintes: a) as originadas de denúncias em geral anônimas à linha de telefone
102, que era administrada pela área de menoridade subordinada ao Poder Executivo e
que deveria realizar uma ‘primeira intervenção’ que nem sempre se verificava; b) as
‘derivações’ realizadas por alguma unidade policial ou judiciária; c) as ‘derivações’
provenientes de algum organismo do governo provincial ou municipal (hospitais,
ambulatórios de atendimento básico de saúde, Direção Municipal de Grupos
Vulneráveis).
Eram diversas as situações e majoritarias durante o período em que
acompanhei o cotidiano do Juizado de Menores nas quais as pessoas chegavam
diretamente ao ‘balcão’ do Juizado de plantão para realizar ali uma denúncia, efetuar
uma ‘consulta’ ou um pedido, sem via prévia, e que podiam ser ou não ‘tomadas’. Como
foi mencionado, neste foro um cidadão se apresenta sem patrocínio de um letrado, ao
que é importante acrescentar que não se requer o pagamento da ‘taxa de justiça’, não
sendo necessário, inclusive, realizar nenhum trâmite para se eximir do mencionado
pagamento, pois a ‘litigiosidade’ no foro de Menores é gratuita, a menos que se conte
com patrocínio letrado de um advogado particular; neste caso, sendo preciso pagar uma
taxa, além da contribuição para a sua aposentadoria. E a Linha 102, os programas da
SPINA, as Assessorias de Menores em sua função pré-jurisdicional, não constituiam um
112
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passo obrigatório. Está legalmente previsto e de fato assim era feito dirigir-se
diretamente com a denúncia ou o ‘problema’ ao Juizado de Menores de plantão.
Em ambas as situações (com vias prévias ou não) os esquemas orientadores do
trabalho das empregadas eram relevantes, pois eram elas que ouviam o relato de um
responsável, vizinho, professora sobre alguma criança ou adolescente, que interagiam
cara a cara, dialogavam com essas pessoas, para determinar o que seria convertido (ou
não) em um processo judicial.
14
As definições relacionadas a ‘tomar um caso’ não se
apoiavam e justificavam na preexistência de outra ‘intervenção’, como também
operavam o que se entende aqui como a colocação em prática de pressupostos
compartilhados e o acionamento de um determinado treinamento para interpretar e
classificar.
15
Nos ‘plantões’ do Juizado que acompanhei, pude constatar que as situações
consideradas pela empregada que atendia no ‘balcão’ como ‘coisas de adultos’ (vg.,
principalmente, as mais diversas desavenças conjugais ou de casais), eram derivadas
para o foro de Família; ou se derivavam ou se mantinham na ‘etapa pré-jurisdicional’
(como a da senhora, mãe de seis crianças, a quem me referi no fragmento deste ponto),
instância da qual eram responsáveis as Assessorias de Menores. Supunha-se que por
serem ‘coisas de adultos’ não implicariam grave risco para os menores: não eram, nas
palavras das administradoras, ‘problemas de garotos’.
16
Uma variável-chave era a que se sintetizava na palavra ‘grave’. Durante o período
em que acompanhei as atuações do Juizado, quando acreditavam nas denúncias de
algum tipo de ‘abuso’ [sexual] ou de ‘mau-trato’ [físico], apoiando-se em diversos
elementos (entre eles, em suas próprias impressões), no caso de a criança estar presente,
imediatamente a enviavam para um exame médico com um perito forense, ou para uma
14
A tentativa ensaiada nestas páginas é indagar, de maneira aproximada à empregada por Boltanski
(2000:22), quando do estudo das cartas de leitores enviadas ao jornal Le Monde a respeito de quais eram
as condições de admissibilidade das “demandas”, quais seriam as regras para que sejam consideradas
dignas de serem “tomadas”.
15
Junto à formulação geral de Simmel a respeito de que “[...] o homem não pode separar o que
realmente vê, ouve, averigua daquilo em que se transformam estes dados à mercê de suas interpretações,
adições, deduções, transformações” (1977[1908]:403), aqui se pode pensar em termos de chaves e
marcos (keyes and frames) que as administradoras compartilham para interpretar os atos dos
administrados, e que através desses moldes de interpretação se agrupam, classificam e acionam;
seguindo a colocação realizada por Goffman, em Frame Analysis (2006 [1975]) sobre certas maneiras de
interpretar a ação dos outros a partir de “marcos” compartilhados, poderíamos entender aquilo que no uso
do tribunal são denominados ‘critérios’, aproximando-nos destes marcos.
16
Respeito dessa classificação, aproprio-me da advertência de Becker:Isto pode parecer óbvio, mas às
vezes as distinções que as pessoas estabelecem são o comuns, tão triviais, que o prestamos muita
atenção a elas” (2008:202).
113
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entrevista psicológica com a Equipe Técnica de Menores, que também funcionava no
Palácio de Justiça.
17
Em relação à variável da ‘gravidade’, é revelador o comentário
conclusivo de um texto de um dos atuais Juízes Prevencionais de Menores, no qual se
propõe a oferecer “pautas práticas que pudemos recolher ao longo do tempo, referidas à
abordagem judicial do mau-trato de crianças na sede dos Juizados de Menores”; nele
afirma que os Juizados de Prevenção de Menores seriam “a terapia intensiva dos
direitos do menor” (Carranza, 2000:85). Diretamente vinculada à anterior, outra variável
chave era o que se ponderava como ‘urgência’, e que habitualmente correspondia às
situações nas quais as denúncias se relacionavam com ‘crianças abandonadas’ em um
hospital, ou cuja mãe houvesse manifestado em alguma instância sua ‘vontade de
desprendimento definitivo’.
mencionamos aquelas outras situações nas quais se chegava ao Juizado por
indicação de alguma instância judicial, policial, escolar, sanitária ou administrativa do
Poder Executivo provincial. Diante destas situações, derivadas de uma via oficial
prévia, a definição sobre se ‘se tomava’ ou ‘não se tomava’ estava em correlação com a
variável ‘coisa de adultos’/’coisa de garotos’, combinada com as outras duas: gravidade
e/ou urgência. Carmen, uma das administradoras, destacava “a celeridade do processo
de Menores… Em Família fazem fila desde as 5 da manhã se vão sem advogado e,
ainda que tenham advogado, demoram meses até que lhes concedam uma audiência”. A
17
Para descrever este corpo auxiliar, remeto-me ao texto de sua confecção, no qual se
apresentam publicamente na página da web do Poder Judiciário, que oferece a vantagem de
nos permitir mais uma vez notar a impregnação no léxico do ‘velho paradigma’. Cito: “A
Equipe Técnica do Foro de Menores foi criada [...] em 1984. Os Auxiliares Técnicos têm como
função específica o assessoramento imediato aos Srs. Juízes de Menores em exercício no
Patronato Provincial, confiado pela Lei 10.903. Derivam-se aqueles casos de maior gravidade
e urgência e a tarefa encomendada deve ser respondida no mais breve prazo possível de
acordo com a natureza da atividade requerida. A informação é reservada, devendo a mesma
constar nos autos. [...] Sua intervenção no processo de menores, sempre motivada e não
vinculatória, orienta-se segundo um critério de assessoramento ao Magistrado em torno das
medidas concretas no exercício do Patronato, com fundamento técnico-racional e norteamento
posto nos valores sustentados no plexo normativo vigente (cuidado com a saúde, educação e
moral da criança e promoção da mesma). Responde-se à demanda dos Srs. Juízes através de
um estudo diagnóstico ou perícia, psicológica e social, de grupos familiares e menores em
risco. [...] Dada a problemática proposta e a fim de evitar que se (re)vitimizem os menores, em
2001, cria-se [...] um Programa de Abordagem Integrado da Criança Vítima de Mau-trato
Físico e/ou Psíquico, ou de delitos contra sua Pessoa, sua Liberdade ou sua Integridade Sexual
(P.A.N.). [...] É importante destacar que neste esquema de intervenção incorpora-se a
possibilidade de interação dos profissionais técnicos com o Magistrado no momento em que a
criança produz informação relevante pela primeira vez, que complementa as impressões que se
obtenham da observação da entrevista psicológica, que pode, em suas etapas finais, solicitar
informação específica e requerer portanto a gravação em vídeo, assim como sua adequada
guarda, como meio de prova útil.” Disponível em: www.justiciacordoba.gov.ar (última
consulta: 24/03/2008; itálicos meus).
114
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isto o pessoal do Juizado atribuía frequentemente o fato de que “as pessoas intentam
que pareça de Menores, e não de Família”.
Nesse sentido, Ana, a outra empregada, reconheceu: “Com o tempo você começa
a perceber quem é espertinho e quem não é”. E era possível observar que mais que tipos
de relatos, para captar a atenção da administradora e conseguir que o caso fosse
‘tomado’, atuava como lingua franca a expressão obrigatória dos sentimentos, a qual
valia tanto ou mais que papéis certificando ‘estados’ (como certificados médicos, de
escolaridade, de frequência às sessões de terapia psicológica).
Uma situação que não pude acompanhar ao longo dos meses de minha observação
pela irregularidade de sua ocorrência, e que conheci através dos relatos das
administradoras, era a que se produzia quando alguma pessoa se apresentava com um
advogado particular e uma apresentação escrita. “Se aparecem com um escrito e com
um letrado, se toma. E depois a gente ve”. Foi este o modo pelo qual uma
administradora resumiu o ‘critério’ adotado diante dessas situações excepcionais.
Considero que se presumia, diante da presença de um advogado particular e de um
escrito, que haveria razões que deveriam ser avaliadas mais detalhadamente e
‘conforme o direito’, isto é, respondendo sobre a pertinência ou não do escrito
apresentado, a partir da realização de uma interpretação (oposta ou coincidente com a
do advogado particular), principalmente a respeito da lei de procedimento.
O quadro do que ‘se toma’ e do que ‘não se toma’ que acabo de expor buscou
extrair quais eram os ‘critérios’ efetivamente em jogo. Em síntese, não se podem
compreender as variáveis mencionadas (‘coisa de adultos’, ‘gravidade’, ‘urgência’,
‘intervenção prévia’, ‘participação de letrado patrocinador’) sem se considerar sua
combinação e suas interseções. Mas também não se pode apreendê-las sem o filtro das
administradoras judiciais que operavam seleções e derivações decisivas. E ali a
preeminência das suas interpretações era nítida, ia bem além das ‘competências’ que a
‘letra da lei’ prevê. Tratava-se de esquemas sutis incorporados nas administradoras que
iam operando a conversão de uma situação em uma ‘causa’.
As seleções e as derivações são inapreensíveis nos registros documentais, nos
quais podemos ter acesso ao que “foi tomado” e foi o que me levou a prestar-lhes
especialíssima atenção durante minhas observações no Juizado. A seleção que as
empregadas faziam cada vez que o Juizado estava de ‘plantão’, entre as situações que
seriam convertidas em um processo judicial e as que seriam derivadas para outro foro,
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como o de Família, ou para a etapa pré-jurisdicional, ou simplesmente as que eram
desconsideradas como assuntos ‘sujeitos a julgamento’, mostra uma dimensão verbal e
performativa crucial desta administração judicial.
Consideremos a partir de outro ângulo a preeminência dos esquemas
interpretativos das administradoras na hora de discriminarem o que ‘se toma’ do que
‘não se toma’. Das listas mencionadas correspondentes ao que ‘se tomou’ em três
‘plantões’ de uma das Secretarias de um Juizado Prevencional de Menores em junho,
setembro e dezembro de 2005, pude reconstruir o número dos processos iniciados
nesses ‘plantões’, que passam de 33 no de junho, a 62 e a 64 processos em setembro e
dezembro, respectivamente.
A eclosão pública do ‘caso Ludmila’
18
foi utilizada por parte das empregadas e
funcionárias do Juizado para explicar o aumento de quase o dobro do número de
processos abertos. Incremento que justificavam como causado pela proliferação de
denúncias ‘das pessoas’ incentivadas pela ressonância imediata do caso. O fato de que
eu tivesse podido presenciar as atuações nesses períodos permitiu-me verificar que
aquela explicação das administradoras não correspondia a um aumento notório de
pessoas que afluíam ao ‘balcão’ do Juizado, nem ao incremento de denúncias
telefônicas através da ‘linha 102’ da SPINA. O aumento de situações que se
transformaram em um processo ao chegar ao Juizado se explicaria melhor pela aflição
das próprias administradoras de não ‘deixarem passar’ nenhuma situação que pudesse
terminar na morte de um menino, uma menina ou um adolescente. Como me disse uma
das administradoras, “se acontecesse comigo, não poderia pregar mais o olho”.
O ‘caso Ludmila’ repercutiu também no interior da SPINA, cujos técnicos
tomaram especial cuidado em demarcar e limitar suas responsabilidades. Cito a seguir
manifestações que me foram formuladas a esse respeito da parte de profissionais da
SPINA, especificamente uma psicóloga e uma assistente social. A psicóloga expressou
em uma entrevista, referindo-se ao episódio: “Depois de Ludmila, [os Juizados
Prevencionais de Menores] levam mais tempo para tomar uma decisão. Inclusive nós”.
Em relação a isto, a assistente social dizia: “O que se escreve é muito delicado. que
ter cuidado com o que se diz por escrito. Ninguém pode fechar um diagnóstico. O que
18
Trata-se de um caso que gerou uma enorme comoção o em nível local, na época do trabalho de
campo que realizei no Juizado a partir de junho de 2005. Morreu uma bebê que estava ‘sob a proteção
judicial de outro Juizado Prevencional de Menores da Cidade de Córdoba em função dos maus-tratos
de seus pais. Voltaremos a este caso na Parte IV.
116
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tem que ser escrito é “hoje está assim... e mediando uma intervenção psiquiátrica...”.
Sua preocupação, expressada por alguns lugares comuns (como “cobrir-se”, “que não
lhe manchem os dedos”, “não sair nos jornais”), centrava-se principalmente nas formas
de produzir a documentação que supostamente registra as “suas intervenções técnicas”,
de maneira que se minimizem as possibilidades de ser responsabilizado.
Tais preocupações dos profissionais de adotarem recursos de isenção e de
autodefesa eram também as que poderiam imaginar-se dentre as administradoras do
Juizado, tratando-se não de advogadas mas, precisamente, de empregadas e
funcionárias judiciais. No entanto, o que se explicitava continuamente era a
preocupação com a consciência, com a carga de responsabilidade moral que impregnava
suas manifestações e não se manifestava a respeito de potenciais imputações por falta de
cumprimento de seus deveres legalmente prescritos. Esta despreocupação poderia ser
vinculada, no caso das empregadas, ao fato de que formalmente elas não ‘assinam’ as
resoluções, mas não se justificava no caso de S.S., das Secretárias e das Pró-secretárias,
que também expressavam (obrigatoriamente?) seu sentimento de aflição ‘pelos garotos’.
Preciso é acrescentar que os fragmentos com os quais este capítulo foi iniciado
referem-se às atuações anteriores à lei provincial de Violência Familiar de março de
2006, da qual é preciso considerar ao menos dois aspectos. O primeiro é como outra vez
se ratifica legalmente que as situações de ‘violência familiar’ “são de ordem pública e
de interesse social” (artigo 1, lei 9283). O segundo é como a obrigação de denunciar,
estabelecida pela lei de Proteção Judicial das Crianças e dos Adolescentes, que recaía
sobre os empregados e os funcionários públicos, ‘profissionais da arte de curar’ e
autoridades dos estabelecimentos educacionais e assistenciais, deixa de ser uma
obrigação declarada pela lei, cujo descumprimento não previa sanções especiais, mas
que estão taxativamente estabelecidas pela lei de Violência Familiar de 2006, “quando
as vítimas forem menores de idade”, e não só quando se tome conhecimento, mas que se
ordena denunciar também em caso de que “se tenham sérias suspeitas” (artigo 14). As
sanções não são unicamente monetárias, mas são previstas também penas de prisão.
Em torno das situações catalogadas como de ‘violência familiar’, durante o
transcurso do trabalho de campo em Tribunais foi produzida a sanção da referida lei da
província de Córdoba que tornou mais complexa ainda a divisão da ‘competência’
em termos jurídicos, o conjunto de pressupostos pelos quais um Juiz está habilitado a
117
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‘conhecer e resolver’ entre o foro de Família, criado em 1990, e o foro de Menores
em sua parte Prevencional. Tal “Lei de Violência Familiar” busca alcançar “todas
aquelas pessoas que sofrem lesões ou maus-tratos físicos ou psíquicos por parte de
algum dos integrantes do grupo familiar”, que é definido como o surgido de
matrimônios, uniões de fato ou relações afetivas, incluindo “ascendentes, descendentes
e colaterais” (artigo 4°).
Como vimos ao tratar a legislação passada e presente, quando este tipo de situação
envolve menores de idade, está previsto que entrem sob a égide do Juiz de Menores. É
por isso que foram necessários dois Acordos Regulamentares do Tribunal Superior de
Justiça para esclarecer os limites da ‘competência’ entre Família e Menores que, em
uma palavra, está delimitada a partir da consideração de que se o “sujeito passivo” da
violência for um menor de idade, neste caso corresponderia a Menores.
Afinal, mais
uma vez foi a autoridade judicial e não a lei quem precisou os limites formais
daquilo que se deveriam gerir as administradoras.
III.5 Etapas Pré(vias)
Gastón, o único empregado do Juizado, dizia que “a etapa PRÉ [refere-se à ‘pré-
jurisdicional’] não é obrigatória… na prática, quando vemos que não é muito grave,
derivamo-nos”. Derivações é a maneira como estes tribunais nomeiam a frequente
prática de ir (re)encaminhando para outra instância — seja judiciária ou não — algumas
das situações que chegam ao ‘balcão’.
A etapa ‘pré-jurisdicional’, introduzida pela lei provincial 9053 de 2002, era
considerada nos Juizados como uma ‘derivação’ que permitia, ao mesmo tempo, manter
a situação apresentada na órbita judicial. O nome de etapa ‘PRÉ’ ou ‘prévia’, apos dos
‘plantões’ do Juizado e da Assessoria que acompanhei, era anti-intuitivo: as situações,
como foi mostrado, eram majoritariamente colocadas primeiro no ‘balcão’ do Juizado, e
ali se efetuavam as derivações, assim, a Assessoria transformava-se de fato em uma
etapa pós. Não estou me referindo aqui estritamente à peregrinação das pessoas que
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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eram orientadas, mas que se constituia em uma etapa pós (posterior), fundamentalmente
porque a gestão (das impressões) já havia começado no ‘balcão’ do Juizado.
A prática habitual era que a administradora do Juizado que havia atendido e
realizado a derivação, na chamada telefônica seguinte, das dezenas de chamadas que se
realizavam diariamente à Assessoria, aproveitasse, junto com qualquer outra consulta
ou indicação, para compartilhar suas impressões sobre o que havia derivado para a
Assessoria. “Oi, Marta, estou te mandando parauma avó que acho que é psiquiátrica,
olha só... mas como ela diz que a filha é muito descuidada com os garotos...”.
Pude compreender que quando era dito ‘etapa PRÉ o se aludia
exclusivamente à lei que denomina esta instância de atuão pré-jurisdicional’, mas
a duas ordens de pressupostos. O primeiro relacionava-se com o fato de que se
supunha esta atuação como uma insncia pvia, que provavelmente se transformaria
em um processo em algum dos Juizados. O segundo vinculava-se a que com essa
derivação se materializava uma pré-ocupação. Em outras palavras, derivava-se para a
Assessoria, mantendo a situação dentro do alcance administrativo-judicial, sem se
ocupar imediatamente, pré-ocupando-se diante da possibilidade “de que o deixar
passar uma situão de risco”, um bordão das administradoras do Juizado.
19
A gestão das impressões era compartilhada o só entre as administradoras do
Juizado, mas entre estas e a Assessoria, efetuando-se contínuas trocas de pareceres. A
Assessora, por exemplo, em uma conversa telefônica com Diana, uma empregada do
Juizado, disse-lhe: Por que mandou para mim? Se é um assunto de Família... o
entendo por que você acha que eu tenho que tomá-lo”. Em outra oportunidade, Marta,
a empregada da Assessoria, logo as fechar a porta, fazendo um homem e uma
mulher esperarem no corredor, disse à Assessora: “Eles vêm da parte de Eugenia, do
Juizado ...”. Como a Assessora estava falando pelo telefone com alguém do Juizado,
quando terminou o assunto que havia motivado a chamada, pediu: Posso falar com a
Eugenia, por favor?”. E logo após cumprimentá-la, perguntou-lhe: “Como é a
história?”. depois de escutá-la, disse a Marta (referindo-se às pessoas que
esperavam no corredor): Faça-os entrar”. Em breve, o que a Assessora ia escutar
19
Devo a Becker a seguinte advertência metodológica sobre [...] os usos e significados dos termos que
parecem, quando os ouvimos pela primeira vez, estranhos e até ininteligíveis. Fazer com que as pessoas
nos expliquem o que não compreendemos, e confrontar isto com o que vemos e ouvimos, produz as
premissas que faltam nos raciocínios que elas fazem rotineiramente para explicar e justificar suas
ações” (2008:202), e que me levou a indagar sobre o uso da expressão ‘etapa PRÉ’, evitando a priori
imputar-lhe um sentido diretamente remetido ao título da Lei de Proteção Judicial da Criança e do
Adolescente (“Atuação pré-jurisdicional”).
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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dessas pessoas já estava previamente modulado pelas impressões da outra
administradora, e era com aquelas primeiras impressões em mente que iria confrontar
as suas próprias.
Isto era possível também porque habitualmente as pessoas diziam quando
chegavam à Assessoria: “mandaram-me do Juizado”, ou “mandaram-me de cima”,
oferecendo o papelzinho, ou esclareciam, venho da parte de Diana”. As
administradoras da Assessoria, de praxe, perguntavam: “Com quem o senhor falou no
Juizado?”. Se as pessoas desconheciam o nome da empregada, as administradoras as
consultavam a respeito das caractesticas sicas da empregada do Juizado, para
localizá-la e saber com qual administradora especificamente entrariam em contato a
respeito da situação colocada. Assim, as pessoas respondiam: “Uma garota alta,
loura, jovenzinha”, ou “Uma que fala esquisito, que não é de Córdoba”.
Então, se a empregada que atendia no balo no ‘plantão’ do Juizado
considerasse que o assunto que lhe expunham não era suficientemente grave ou
urgente, e tampouco ‘coisa de adultos’, não iniciava imediatamente as atuações que
abririam um processo, mas considerava que podia continuá-las na ‘etapa PRÉ’, e
como se dizia no Juizado: “Tou te mandando o pessoal”.
Embora os Juizados contassem com um formulário pré-impresso,
20
no qual
estava previsto um espaço para completar o ordinal do plantão da Assessoria, que é a
denominação de uso oficial (vg., Assessoria de Menores do 8° Plantão”), com a
finalidade de se realizar ali a atuão pré-jurisdicional’, seu emprego, tal como foi
previsto pela forma impressa, não era frequente. As pessoas chegavam à Assessoria
frequentemente com um papel no qual a administradora do Juizado havia escrito à
o o nome da Assessora e, em certas ocasiões, até o nome da empregada da
Assessoria junto à indicação: “Subsolo, na rua Bolívar”, para que se pudesse chegar,
que o pedido mais comum dos administrados neste ponto era anote para mim
onde tenho que ir”. Em outros casos, o que as pessoas traziam à Assessoria e
imediatamente ofereciam era o pprio formurio, mas o preenchido como estava
previsto, nem assinado pela Secretária, mas a folha do formulário usado como
suporte material para consignar o nome da Assessora, dado que não tinha um espaço
20
Reproduzo a seguir o conteúdo do formulário pré-impresso, cujo emprego estou tratando: “Córdoba,
aos___dias do mês de___ do ano____, os senhores_______ , expondo a situação dos menores______,
atento a enquadrar a mencionada situação no artigo 20, atuação pré-jurisdicional, remete o solicitante à
Assessoria de Menores em plantão, para seus efeitos”. O formulário prevê lugares para as assinaturas de
S.S., a Secretaria, o carimbo do Juizado e a assinatura do “solicitante”.
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específico dentro do formurio pré-impresso, ou tampouco a indicão da ubicação
da Assessoria dentro do Pacio de Justiça. O que pode nos dar uma amostra de como
se personalizava a derivação é este modo de uso do formulário, com as duas
informações que a administradora do Juizado considerava relevantes: a indicação do
nome da Assessora e como encontrar o seu gabinete.
Uma manhã de dezembro de 2006, durante o plantão da Assessoria,
enquanto Marta atendia no corredor a uma idosa, acompanhada de
sua neta adolescente que tinha uma gravidez avançada, a Assessora
escutava o pedido de uma senhora de 60 anos, de fala pausada e
eloquente que, expressando contrariedade, dizia-lhe: “Imagine,
doutora, que minha casa está sempre aberta para Martín. Mas
tivemos tantos problemas... E ele não quer fazer terapia, por isso foi
para a outra avó. Agora quer voltar, e s o sabemos o que
fazer...”. Esta a estava sentada à mesa, e acompanhada de seu
filho, que de hora em hora acrescentava algum detalhe ao relato de
sua e. Pelo que eu escutei, tratava-se de uma senhora vva que
vivia com este filho, solteiro, e Juliana, a irmã de Martín. Os
adolescentes eram filhos do outro filho dela, que havia sido tima
de homidio por parte de sua esposa, a mãe de seus netos, que se
encontrava presa. O que a a pedia era que obrigassem Martín a
fazer um tratamento psicológico.
Depois de conversar por uns 20 minutos, nos quais era a a quem
falava o tempo todo de maneira dominante, que insistia a respeito de
que “Os senhores m que chamá-lo para que entenda”, ao que a
Assessora lhe respondeu: Eu o posso obrigá-lo, senhora, a fazer
terapia, entende? Posso chamá-lo para uma entrevista. Mas se é
como a senhora me diz, que nem sequer vai querer vir...”.
Finalmente, a Assessora, depois de explicar-lhes as “funções” da
Assessoria e do Juizado, e de deixar novamente sobre sua mesa o
que tinha nas mãos enquanto lhes dava essas explicações (seu
exemplar da lei 9053), deu por terminada a conversa, dizendo à
empregada:Marta, você poderia acompan-los enquanto eu faço a
ata?”, referindo-se a que os levasse novamente ao Juizado. E
despediu-se deles, dizendo-lhes: Milhões de desculpas, no Juizado
pensaram que eu poderia solucionar isto, mas eu estimo que não”.
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Quando todos saíram, a Assessora espontaneamente comentou
comigo: “Ai, fiquei preocupada com este garoto...”.
Este fragmento busca indicar como também funcionava a preocupação,
fundando uma nova derivação, desta vez, da Assessoria para o Juizado. Antes
de me manifestar sua preocupação, disse-me: Dei-me ao trabalho
explicando-lhes a lei (referindo-se às funções da Assessoria e do Juizado).
Podemos novamente perceber como se efetivava uma pedagogia da lei, que era
acionada para reforçar a decisão que estava sendo tomada, como vimos no
fragmento anterior. A Assessora, enquanto explicava o que ela podia fazer na
etapa PRÉ, tomou dentre as centenas de papéis de sua mesa abarrotada de
autos sua lei, ou seja, a cartilha que cada administradora tinha da edição da
lei 9053, e à qual referiam-se desse modo (Você não viu onde deixei minha
lei?), e como havia avaliado que a situação não estava dentro de suas
funções, mas também que a situação do adolescente era para se preocupar,
resolveu encaminhá-la novamente ao Juizado, explicando-me sua atuação da
seguinte forma: Em minha estrutura consta que o garoto não pagará o custo de
um mau procedimento, aludindo ao fato de que considerava que estava mal
derivada”.
Outra via prévia que era reconvertida nos tribunais Prevencionais de
Menores em uma derivação (em um sentido inverso ao previsto
normativamente), era a Linha 102. Antes das seleções e das derivações que já
foram descritas, acontecia, em algumas ocasiões, uma pré-seleção que se fazia
através da Linha telefônica gratuita 102 no âmbito de um dos Programas da
Subsecretaria de Proteção Integral da Criança e do Adolescente (SPINA),
subordinada ao Poder Executivo da província. Esta linha funcionava
teoricamente por 24 horas, nos 365 dias do ano e, através dela, podiam ser
realizadas denúncias, inclusive anônimas, de maus-tratos, abusos ou qualquer
situação de risco envolvendo meninos, meninas e adolescentes.
Depois do atendimento de uma chamada ao 102, a operadora (empregada
da administração pública provincial do baixo escalão e sem qualificação
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profissional) que a houvesse recebido começava a elaboração de uma ficha na
qual anotava dia e hora da denúncia, o fato ou fatos denunciados e outros dados,
como o endereço dos garotos, o nome e o endereço de pessoas de referência
que poderiam ser contatadas para maiores informações. Era esta a ficha que se
levava ao escritório que funcionava em outro edifício, distante, no qual
trabalhavam os membros da Equipe Técnica encarregada de efetuar as
constatações em um prazo urgente, que deveriam consistir em visitas à casa
onde vivia o menino, entrevistando os vizinhos e constatando o estado do
menor.
Segundo o que uma profissional dessa equipe me informou em uma
entrevista que fiz com ela, pela falta de meios [como viaturas necessárias para
transportar algum membro da equipe para bairros distantes ou localidades da
periferia da cidade de Córdoba] e de profissionais, o que se fazia eram
averiguações, principalmente através do telefone. Para isso, contavam com um
caderno confeccionado por uma empregada administrativa ao longo de seus
anos de trabalho com nomes, cargos, telefones inclusive os números de
celulares particulares de médicos pediatras, ginecologistas, diretoras de
escolas, dirigentes de associações de bairros ou de grupos vizinhos, de Cáritas
etc., aos quais acorriam para indagar a respeito do menor e seus responsáveis.
Seguindo a narrativa desta integrante da equipe técnica da Linha 102, só
depois dessa primeira constatação,
21
definiam se a situação merecia ou não a
intervenção judicial, ou encontravam uma solução a partir de suas próprias
ações. Estas definições de prioridade no tempo ou periculosidade da situação
para que fosse judicializada, ou se considerasse plausível de ser resolvida
por técnicos da SPINA, ou, ainda, não fosse levada em conta por falsidade, não
eram comunicadas aos tribunais de Menores e ficavam reservadas a este âmbito
subordinado ao Poder Executivo.
21
Chamada ‘pré-constatação’ nos tribunais para diferenciá-la daquela ‘constatação’ que é ordenada por
um Juizado Prevencional de Menores, enquanto a ‘ordem judicial’ deveria ser realizada e informada por
escrito, com a assinatura do profissional técnico interveniente.
123
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À primeira hora da manhã, quando a Assessora estava entrando
em seu escritório, e eu esperando-a no corredor, uma senhora
que vinha com o papelzinho do Juizado na mão abordou-a,
dizendo-lhe: Doutora, tenho que ir a uma consulta médica, mas
me disseram lá em cima que tinha que falar com a senhora, e
lhe entregou o papel que trazia na mão. Ainda com a porta
aberta, embora sem entrar, a Assessora falou, diga-me. Ao
que a mulher do papelzinho respondeu: Olha, os menininhos
de minha vizinha choram e choram todo o dia... Acho que a mãe
não cuida deles, escuto-a sempre aos berros com os garotos.
Pensei que os senhores poderiam fazer algo.... A Assessora
continuou lhe perguntando se ela tinha conhecimento de que os
garotos iam à escola, se havia visto que batiam neles, se a
vizinha lhe parecia uma pessoa violenta. Não, não sei o que lhe
dizer... Sim, vão à escola de meu bairro.... Então, a Assessora
começou a explicar-lhe que existia uma Linha 102 de mau-
trato infantil para efetuar denúncias, e acrescentou: Mas não
chame pelo telefone. Vá para a rua Vélez Sársfield, daqui a seis
ou sete quadras, e pergunte por M. Conte a ela, eles irão ver o
que está acontecendo.
O fragmento anterior procura representar o que se antecipava a respeito
desta suposta instância prévia (a Linha 102), que acabava sendo, inúmeras
vezes, uma derivação. Mais uma vez emerge a personalização das atuações.
Note-se que a Assessora não derivou a vizinha a procurar ajuda só para a Linha
102, mas também a uma psicóloga dessa equipe técnica, a quem conhecia de
longa data, pois ambas trabalharam por décadas em casos em que intervieram
juntas.
Por outro lado, embora a Assessora houvesse orientado a vizinha
denunciante rapidamente, de pé, sem fazê-la entrar na sala da Assessoria, não se
desinteressou pelo assunto; nos termos aqui expostos, se pré-ocupou. E esta
derivação personalizada era uma das formas de não se desinteressar, já que,
como pude presenciar em outras situações, quando a Assessora, em função de
algum assunto qualquer, se comunicava com M., da SPINA, costumava lhe
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perguntar, de memória, por pessoas que havia-lhe derivado nesses dias: Me
diga uma coisa, foi lá essa senhora que esteve comigo na quarta-feira passada
por causa de uns garotinhos do bairro Nueva Italia?. Em breve, a pré-ocupação
existia, fazendo parte das atuações da administradora, mesmo na situação que
foi apresentada antes, que havia sido encaminhada por fora da sede judicial.
Nesta parte procurei mostrar as particularidades dos usos do espaço e do
tempo nesses tribunais, a resignificação praticada a respeito da reserva das
atuações, as seleções e derivações, sem as quais não seria possível segundo
entendo apreender a eficácia desta administração judicial de Menores. Para
compreender melhor os procedimentos descritos se dará especial atenção na
Parte IV ao protagonismo das pequenas juízas, para o qual começaremos
explorando suas atuações no marco das audiências.
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Parte IV
Uma gestão de ‘pequenas juízas’
IV.1 De tudo o que é uma audiência
O fragmento que segue procura representar uma audiência na qual as pessoas
foram citadas por meio de um ‘protocolo de notificação’ oficial. O documento é
entregue em domicílio por um agente da polícia provincial, e nele consta, além do dia,
da hora e do tribunal em que devem se apresentar para a audiência aqueles que foram
‘notificados’, o ‘apercebimento legal’ de que em caso de não-comparecimento sem
justificativa “poderão ser conduzidos com o auxílio da força pública”.
1
Este
‘apercebimento’ consiste em um trecho de um artigo do Código de Procedimento Civil,
que é reproduzido em todos os ‘protocolos de notificação’ dos diferentes foros. Nesses
tribunais de Menores, o que sempre ocorria é que diante do não-comparecimento à
audiência reiterava-se a citação, com novos dia e hora.
Eram quase três da tarde de uma sexta-feira de novembro de 2006, e
Marta estava no corredor com uma mulher que levava uma dessas
maletas para poder se deslocar carregando muitos autos, de uso
frequente em Tribunais; ela estava acompanhada de duas
adolescentes, e uma delas estava com um bebê de poucos meses no
colo. Depois de dez minutos de conversa, de pé, próximo à porta da
Assessoria que estava entreaberta, Marta entrou na sala após pedir à
mulher e às adolescentes que esperassem ali um minutinho, por
favor” e, desculpando-se porque tinha que se retirar, disse à
Assessora: “Esta é a advogada que atendi na segunda-feira. Tinha
citado ela para hoje, mas estou atrasadíssima. E eu teria que ir
embora, mas estão esperando tanto tempo...”. A Assessora disse:
1
Guemureman, sobre os juizados de menores da província de Buenos Aires, faz referência à experiência
anterior que possam ter as crianças e seus pais na relação com o juizado, e como esse conhecimento
anterior lhes permite agir diante de uma notificação que os cite ao juizado. “Desse modo, quando não
são novatos, e sabem que ‘nada vai acontecer’, não têm a situação como coativa e, sendo assim, nem
mesmo o não-comparecimento seria vivido como ‘violação’” (2005:136).
126
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“Bem, bem, tomamos a audiência e pode ir embora. Mas conte-me
então vo que já a escutou... O que é que ela quer... Quantos anos
tem a filha?”. Marta resumiu a situação em poucas frases, contando-
lhe que a garota, mãe do bebezinho, tinha 17 anos, que moravam as
três e o bebê na mesma casa, e que “a garota rouba o dinheiro da
mais nova e bate nela; quando a mãe lhe diz algo, começa a quebrar
as coisas, e some por rios dias com o bebê... Eu acho que esta
mulher perdeu o controle da situação”. Vamos ver, mande entrar a
senhora depois que vo sair”. Marta saiu e entrou com a advogada,
uma mulher de quase 50 anos, com o cenho franzido e muito séria. A
Assessora, apontando uma cadeira em frente a uma mesa, disse:
“Sente-se, doutora, que vou escutá-la”. A advogada demorou uns
minutos, que se fizeram longos pelo silêncio e pelas visíveis marcas
de aflição que expressava seu rosto. Finalmente, como se escolhesse
as palavras, disse: “Ai, me desculpe doutora... Quando nós
advogados estamos deste lado não sabemos o que fazer... É minha
menina”.
E começou lentamente a relatar à medida que ia se lembrando dos
episódios que contava sobre as vezes em que sua filha lhe roubava
dinheiro, como batia na irmã e que, quando queria repreendê-la, a
filha atirava coisas no chão, contra as paredes, quebrava o que
tivesse nas mãos, ao tempo que falava em prantos, desviando o olhar
da Assessora (e de mim) em direção à janela que dava para a rua,
sentada na ponta da cadeira. Terminou dizendo: “Quando se aborrece
e o bebê chora, umas sacudidas no pequeno e, então, temos que
tirá-lo dela...”.
A Assessora então lhe perguntou: “Qual é seu pedido?”. A advogada
não respondeu a esta pergunta e continuou, secando as lágrimas com
um lenço, dizendo: “Faço o possível, mas não consigo, porque anda
com um rapaz de uma banda de rock de Argüello, e leva Federico no
meio da noite para ir às boates onde ele toca...”. A Assessora
perguntou: Mas desde quando ocorrem essas condutas? Não tentou
levar sua filha a um psicólogo?”. A advogada, novamente sem
responder à pergunta, continuou dizendo: “Eu me preocupo porque
ela não cuida do bebê quando não estamos em casa, ele fica todo
sujo, a roupinha vomitada, não leva nada para trocá-lo...”. A
Assessora interrompeu-a para atender o telefone.
Depois voltou: “A tutora legal de Rocío é a senhora, não se esqueça
disto. A senhora tem que se colocar nesse lugar... E vou lhe dar um
conselho: quando começarem essas crises na sua casa, ligue para a
ECCO [empresa de emergênciasdicas]... geralmente, quando vem
um terceiro de fora a coisa se acalma. Deixe o médico entrar, pode
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dizer que é uma crise...”. A advogada respondeu: ... mas ela va
embora, doutora...”. Neste momento entrou a Secretária da Mesa de
Entradas da Assessoria, com uma pilha de autos, deixando-os sobre a
mesa do computador e, depois de breves explicações à Marta (que
estava em sua mesa, olhando para a advogada) sobre os papéis que
trazia, foi embora.
Enquanto isso, a Assessora continuava perguntando à mulher:
“Então, a senhora acha que isso pode esperar a a semana que vem,
ou tem muita urgência? Agora vou falar com sua filha, por favor,
deixe que Rocío entre sozinha”. Quando Rocío entrou na sala, ouviu-
se o barulho de crianças e conversas dos empregados saindo dos
Tribunais. A Assessora cumprimentou-a, apresentando-se como
Assessora de Menores e, quando estavam sentadas, uma diante da
outra, fez o seguinte comentário: “Meu filho do meio também tem
vários piercings, ficam lindos”. Rocío, com seu filho no colo, não fez
nenhum comentário, ficou olhando para sua criança, e respondia às
perguntas da Assessora secamente: Não, larguei o ensino médio no
ano passado”, Não, não trabalho”. Então, a Assessora perguntou:
“Mas minha filha, o que está acontecendo na sua casa?”, e Rocío
respondeu: “Nada”. Diante disso, Marta interveio, dirigindo-se à
adolescente: “Mas isso não é o que diz a sua mãe”.
Então, a Assessora começou uma longa interpelação, dizendo-lhe:
“Vo agora é mãe, tem que ser responsável pelo Federico. E se quer
sair à noite, deixe-o com sua e, ela vai cuidar dele. E se precisar
de dinheiro, pedir a ela...”. O que acontece é que minha e o
entende nada”, foi a resposta da adolescente. Nesse momento
bateram na porta e, quando abri, um homem perguntou pela
Assessora: “Venho do Juizado... A doutora J. está?”. Por cima do
meu ombro, a Assessora disse em voz alta, “estamos em audiência”,
ao que o homem respondeu, “ah, me desculpe, espero então”. Depois
dessa nova interrupção, a Assessora retomou o diálogo com a
adolescente: Veja, sua mãe já esclareceu a situação aqui nos
Tribunais. Então, você vai ter que tomar juízo e cuidar do Federico.
Sua mãe é a avó, mas é tutora legal de seu filho... Você não pode ir
embora assim, sem mais nem menos”. Rocío respondeu, com
desgosto: Bem, sim”. Ao que a Assessora lhe indicou: Terão que
me esperar lá fora um pouquinho, assim fazemos a ata”. Marta,
despedindo-se, disse à Assessora enquanto juntava suas coisas para
ir: “Já está pronta a ata”. E saiu.
A ‘ata’, construção escritural dessa audiência conforme pude ler após terem
assinado mãe e filha — apresentava um segmento único em que haviam estado reunidas
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a Assessora, a mãe e a filha, e no qual a Assessora, depois de ouvir os ‘interessados’,
expressou a ‘recomendação que estimou adequada’, de que fosse iniciada uma terapia
psicológica, que ambas se comprometeram a realizar. Em síntese, havia sido
parafraseado o artigo 20 da lei 9053, que diz: “Em tais casos, e depois da entrevista com
o requerente, que será registrada, os interessados serão convocados para uma audiência
no prazo de cinco dias. Depois de ouvidos os mesmos, o Assessor expressará as
considerações e as recomendações que estimar adequadas [...]”. E foram omitidas na
ata, a participação da empregada, que tinha redigido grande parte dela, com dados da
primeira entrevista que ela havia realizado com a advogada alguns dias antes. A
copresença restringiu-se ao momento em que mãe e filha entraram juntas na sala e,
sucessivamente, leram a folha impressa que lhes entregou a Assessora, para então
assiná-la.
O que foi apresentado através deste fragmento guarda semelhança com o
observado nas audiências ‘tomadas’ no Juizado, que eram constituídas por um conjunto
de passos unificados não somente no registro dos autos, através da ‘ata’, mas também
na fala das administradoras, que manifestavam “estou em audiência” mesmo que
estivessem atendendo o telefone recebendo a progressão do relatório de uma
assistente social de alguma das equipes técnicas subordinadas à SPINA em relação a
outro processo em uma sala diferente em que estivesse seu computador, e do
gabinete de S.S., lugares físicos onde acontecia a ‘audiência’.
Aquelas que chamavam de “audiências de seguimento”, que eram ‘tomadas’
cotidianamente no Juizado, independentemente do plantão, não estavam prescritas pela
lei de Córdoba de 2002. Neste texto legal estão previstas as que estabelecem o artigo 22
(lei 9053), que devem ser realizadas no prazo de 48 horas depois que um Juizado de
Menores no Prevencional e no Civil tenha resolvido intervir em uma determinada
situação (chamadas por isso nos tribunais de ‘audiência do 22’), e as indicadas pelo
artigo 33, de ‘resolução definitiva’ (conhecidas como ‘audiências do 33’).
2
As
2
Cito a seguir a lei 9053, “Proteção Judicial da Criança e do Adolescente”, de 2002. “Art. 22:
Conhecimento da criança e do adolescente. Avocado o Juiz, deverá conhecer e ouvir direta e
pessoalmente a criança ou o adolescente e seus representantes legais no prazo de 48 (quarenta e oito)
horas. / Também disporá das medidas urgentes que corresponderem, e ordenará os relatórios e as perícias
conducentes ao estudo da personalidade da criança ou do adolescente e das condições familiares e
ambientais em que se encontrem.” [...] “Art. 33: Resolução definitiva. Concluída a investigação e
reunidos os estudos e as perícias legais, o Juiz abrirá vista ao Assessor de Menores pelo prazo de três (3)
dias. Se da opinião deste resultar que a criança ou o adolescente deva ser entregue definitivamente a seus
pais ou encarregados, o Juiz assim o resolverá, arquivando os autos. Caso o Juiz discorde do Assessor de
Menores a respeito do caso, ou o Assessor estime que seja preciso dispor da criança ou do adolescente, o
Juiz fixará uma audiência na qual citará os interessados. / Lidos os estudos e as perícias, o Juiz concederá
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audiências ‘do 22’ eram realizadas durante a semana de plantão do Juizado, e durante os
primeiros dois dias da semana seguinte, nesse período especial que foi abordado, o
plantão’ portanto, tendo lugar periodicamente, em ciclos determinados pelo plantão, ao
longo do ano. As chamadas ‘audiências do 33’, porém, somente eram realizadas
excepcionalmente em determinados processos. Aquelas que ocorriam todos os dias
eram as audiências não previstas pela lei, chamadas “de acompanhamento” no Juizado
onde realizei as observações.
Acompanhei no Juizado de Menores, durante os plantões do segundo semestre de
2006, as audiências ‘do 22’, isto é, as primeiras audiências dos processos deste Juizado,
e também audiências das quais participava a titular da Assessoria, cujas atuações
acompanhei em outros dois Juizados de Menores no ano seguinte. Nelas, como resumiu
uma empregada, “as pessoas não diferenciam quem é S.S. e quem é Assessora, se está,
quem representa quem”. Conforme pude observar, Sua Senhoria cumprimentava com
um “bom dia”, ou um “boa tarde” e, então, a Secretária ou a Pró-secretária se
estivessem presentes ou S.S. começava a formular perguntas. O que de fato sabiam
os administrados era que estavam no gabinete de S.S., pois assim havia anunciado a
empregada ao fazê-los passar desde o corredor, ou acompanhá-los a partir de sua mesa:
“Vamos ao gabinete de S.S.”. O supracitado se modificava quando se tratava da parte da
audiência da qual participavam meninos, meninas ou adolescentes e, para eles, S.S.
apresentava-se como tal, e se estava acompanhada pelo/a Assessor/a, apresentava-os,
acrescentando: “Este é o seu/sua advogado/a”. No caso de estarem ali a Secretária ou a
Pró-secretária, elas não eram apresentadas.
Os lugares em que cada um dos participantes se encontrava na parte da audiência
que era ‘tomada’ no gabinete de S.S. não eram fixos nem delimitados por uma linha
virtual constituída pela mesa de Sua Senhoria. A saber: na grande maioria dos casos,
S.S. estava sentada na sua poltrona, atrás de sua mesa, as pessoas de quem se ‘tomava’
audiência sentavam-se em duas outras poltronas diante da mesa, ou em cadeiras, em um
dos lados da mesa. E também nesse lado, em uma cadeira mais próxima à mesa,
costumava se sentar uma das Assessoras de Menores que atuava naquele Juizado.
Quanto ao outro Assessor de Menores, ele se sentava em uma das duas poltronas diante
a palavra aos interessados e ao Assessor de Menores por sua vez. Poderá moderar suas intervenções,
fixando limites de tempo, no entanto, os interessados terão direito a anexar memoriais escritos com suas
alegações. / O juiz ditará sentença no prazo de quinze (15) dias, que será apelável sem efeito suspensivo.”
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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da mesa, ao lado e muito próximo dos administrados. Assim como a empregada
que ‘levava a causa’, que ficava de pé, geralmente ao lado da porta que ligava o
gabinete e o corredor. E a Secretária, ou a Pró-secretária, podiam tanto permanecer perto
da outra porta do gabinete (precisamente aquela que o comunicava com o resto das salas
do Juizado), ou em uma posição mais próxima à mesa, de pé. Em suma, não se produzia
uma disposição das administradoras que, à primeira vista, deixasse evidente “quem era
quem” para os administrados. Quanto às partes da ‘audiência’ que ocorriam na mesa da
empregada que ‘levava a causa’, os administrados não ficavam necessariamente diante
dela, mas ao lado, juntos à mesa.
Em uma das primeiras conversas com uma empregada, esta me dizia, “[S.S.]
prefere estar nas audiências com a empregada que leva a causa”, afirmação que
corroborei na maioria das ‘audiências do 22’ observadas. E era a ‘empregada que leva a
causa’ quem contava a S.S. brevemente a situação, reconhecia e localizava as pessoas
no corredor, a fim de fazê-las entrar no gabinete de S.S. Depois, continuava com eles
em sua própria mesa, terminando de redigir a ata da audiência que havia começado
com as primeiras trocas produzidas nesse dia com os administrados no ‘balcão’, no
corredor, ou junto à sua mesa.
A empregada que levava a causa fazia anotações manuscritas em um papel de
rascunho enquanto ocorriam estas interlocuções, ou então em seu computador, se
estivessem reunidos junto à sua mesa. Nesse mesmo papel anotava as breves indicações
feitas por Sua Senhoria que, uma vez retiradas as pessoas envolvidas no processo, dizia-
lhe qual era a medida a ser tomada, que era antes discutida com ela e a Secretária ou
Pró-secretária, se estivessem presentes, e indicava algumas expressões que tinha ouvido
e que estava especialmente interessada que fossem ‘registradas por escrito’. Para o resto
dos depoimentos, S.S. usava um bordão: tomale cortito [“resuma”], isto é, que na
parte da ‘audiência’ que a empregada ‘tomava’ diante do seu computador, fizesse uma
breve síntese dos fatos. Nestas ‘audiências do 22’, também as crianças e os adolescentes
envolvidos eram levados às mesas de trabalho da empregada que ‘levava a causa’, ou ao
gabinete da Secretária ou da Pró-Secretária, onde havia sido redigida a ata da audiência,
para que a assinassem.
Em suma, a ‘audiência’ se tratava de uma sucessão de passos que somente as
administradoras concebiam como uma unidade, um continuum. Era uma performance
enquanto atividade que implica superposição de esferas e de âmbitos, que tinha a
131
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qualidade que Schechner (2000) considera distintiva de uma performance, de conduta
restaurada. E esta qualidade repetitiva, definidora a partir de minha leitura, não é
somente da ‘audiência’, mas também das outras atuaçoes, estaria na base da experiência
de fundo das ‘administradoras judiciárias’ e delimitaria suas categorias de percepção e
interpretação.
3
Para os administrados, por sua vez, estas características da audiência geravam um
efeito de reforço da desorientação que havia sido instalada, como foi dito, em relação
ao uso do corredor e da instrumentalização da espera como parte desta gestão, e que
aumentava a sensação de dependência dos administrados diante da ‘empregada que
levava a causa’. Tanto os adultos quanto as crianças deviam esperar ser chamados por
esta administradora e ser conduzidos a um lugar ou outro, sem que lhes fosse explicado
o passo seguinte. É isto o que busca condensar o seguinte fragmento.
A empregada que levava a causa fez passar para a sua mesa de
trabalho um homem e uma mulher, que se apresentaram como os pais
de Pedro. A administradora começou a registrar em seu computador
sobre se haviam feito ou o uma denúncia policial ou algum tipo
de diligência a respeito defuga do lar’ de seu filho; perguntou sobre
seus dados pessoais e filiação, e pediu a eles que lhe mostrassem os
documentos originais e que depois trouxessem fotocópias (a libreta
de familia
4
e a certidão de nascimento do filho). A Pró-secretária
aproximou-se da mesa por alguns minutos, e então foi atender ao
telefone. Depois, a empregada lhes disse que deveriam continuar
esperando no corredor. Nos dias de plantão havia outras audiências
que começavam enquanto ocorria esta, e tinham que esperar
desocupar o gabinete de S.S. O homem, então, lhe perguntou:
“Desculpe, não entendo... estou meio perdido. Aonde temos que ir?”.
3
Schechner propõe a performance como “um tipo de conduta comunicativa que faz parte de ou é contígua
a cerimônias, rituais mais formais, reuniões públicas e outros vários meios de trocar informação,
mercadoria e costumes” (2000:14); e nelas seria crucial “[...] a qualidade do que chamo “conduta
restaurada”, ou “conduta praticada duas vezes”; atividades que não são realizadas pela primeira vez, mas
pela segunda vez e ad infinitum. Esse processo de repetição, de construção (“ausência de originalidade”)
é a marca distintiva da performance, seja nas artes, na vida cotidiana, na cerimônia, no ritual ou no jogo”
(2000:12-13).
4
A libreta de familia é um documento que o Registro Civil expede depois de realizado o casamento civil,
no qual são consignados os nomes, as idades, o domicílio dos cônjuges, nela havendo páginas previstas
para a incorporação dos filhos que podem vir a nascer do casamento.
132
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Em ‘audiências do 22’ que observei em outros Juizados, a empregada ‘que levava
a causa’, ou a Secretária ou Pró-secretária, davam-lhe a S.S. verbalmente algumas
referências sobre o processo e em relação à sua situação atual, um ‘estado da situação’
antes que Sua Senhoria entrasse em ‘contato pessoal’ com as pessoas envolvidas.
Novamente, advertimos sobre a modulação prévia das atuações por meio da transmissão
de impressões e seu impacto em cada instância do processo, o que tratei como uma
gestão compartilhada das impressões.
Em relação ao mencionado anteriormente, coloco que frequentemente a Assessora
não estava presente nas ‘audiências do 22’ e, em consequência, abria-se lhe vista, isto é,
fazia-se saber que havia sido ‘tomada’ essa audiência, e os termos do que havia sido
falado e resolvido nela, a fim de que dera o seu parecer em um escrito específico a
vista. Os autos eram levados para a Assessoria, que tinham anexada a ata da
audiência. Interpreto essa apresentação do ‘estado de situação’ exposta no parágrafo
anterior como outro ‘abrir vista’. Assim como a partir do ‘abrir vista’ por escrito se
levava para a Assessoria a ata da audiência que incluia sempre a fórmula “o que foi
visto e ouvido por S.S.” naquelas apresentações verbais efetuadas por alguma das
administradoras imediatamente depois da audiência, as administradoras transmitiam à
Asessora o visto e o ouvido por elas. Isso se reiterava se a Assessora de Menores
participava de somente uma parte da audiência, após a qual se retirava, às vezes
deixando antes por escrito o seu relatório sobre o assunto, sentando-se no próprio
computador da empregada ou ditando-o para ela.
O fragmento que vem a seguir visa abordar as ‘audiências de acompanhamento’,
como eram denominadas no Juizado aquelas que eram ‘tomadas’ no dia-a-dia, não
circunscritas às semanas dos plantões.
Uma terça-feira de agosto de 2005, por volta de 9 da manhã, estava
no gabinete de S.S. junto com a Assessora de Menores, e entraram
duas crianças, acompanhadas de Ana, a empregada ‘que levava a
causa’, que permaneceu de pé entre a mesa de S.S. e a porta pela
qual tinham entrado, que dava para o corredor. A Assessora estava
sentada em uma das poltronas diante de S.S., e indicou Valeria, a
irmã mais velha de 12 anos, que sentasse na poltrona que estava a
seu lado. Depois de cumprimentá-los e apresentarem-se como S.S. e
a Assessora de Menores, lhes perguntavam, dirigindo o olhar e
falando para Valeria, como iam na escola e no jardim de infância, se
133
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tinha muitos amigos no bairro, se os colegas da escola eram vizinhos
ou o, se estavam contentes ou o em sua casa. Ao que Valeria
respondia monossilabicamente, com timidez, Bem”, “Sim”, “É”.
Seu irmãozinho, de uns 5 anos, aparentemente desligado da situação,
perambula pela sala, até que se sentou diante do computador que
estava ligado e com a cadeira livre. Então S.S. perguntou a Valeria:
“Me fale, querida, seu pai bate em vocês de vez em quando?”. Nesse
momento, o irmãozinho deixou o assento em que estava e parou
junto à irmã quando ela, quase chorando, disse: “Não... o que
acontece é que minha mãe tem outro homem”. A Assessora, ao seu
lado, segurando o seu braço e fazendo dessa forma que Valeria
olhasse para ela, pois até aqui a menina se dirigira a S.S., que lhe
havia perguntado: “Não fique aflita, são coisas de adultos. Você e seu
irmãozinho o m nada a ver com isso...”, e sem esperar que a
Assessora concluísse, S.S. completou: “Aqui o importante é que
ninguém, nem sequer seus pais podem bater em vocês, está me
entendendo? Não importa se vocês se comportaram mal”. Ao que
Valeria respondeu: “Não, meu pai não bate na gente... Ele se irrita,
simplesmente”. “Bem, agora vamos conversar com eles, então vocês
podem ir um pouquinho com Ana [a empregada] aqui, para a sala ao
lado”, disse então S.S. em tom de despedida. E a Assessora deu um
beijo em cada um.
Este fragmento visa representar uma parte de uma ‘audiência de
acompanhamento’ das quais Gracia, uma empregada do Juizado, me explicava em uma
conversa: “Em uma audiência do 22, Sua Senhoria tem que tomar conhecimento do
menor e dos pais… Esta é sua única obrigação. Mas S.S. continua vendo-os, e isso
atrasa tudo”, e depois completou: “as pessoas que têm que esperar horas para serem
atendidas... alguns nos insultam, e com razão”. Presenciei por várias vezes que S.S., ao
receber as pessoas na ‘audiência’, se desculpava pela demora em atendê-los, o que
mostra a consciência de estavam fazendo esperar as pessoas, embora considerassem de
alguma forma, inevitável. Da fala da administradora também se pode concluir que
compartilha a mesma opinião sobre a necessidade do acompanhamento; o que, no caso,
criticava de S.S., era que pretendesse ‘vê-los’ pessoalmente, e não considerara suficiente
que as crianças fossem ‘vistas’ pela empregada ‘que levava a causa’.
Manifesta-se quão significativo era para esta administração judicial ‘ver’ os
administrados’, sobretudo as crianças, o que era insistentemente destacado pelas
empregadas ‘que levavam as causas’, que pediam para as mães ou guardiãs: “Quando
134
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trouxer a certidão, me traga os garotos. Assim eu posso vê-los”. Aqui é possível notar a
personalização deste pedido, expressada na forma verbal: as ‘pequenas juízas’ querem
vê-los. Também S.S., se lhe comentavam que estava no Juizado para algum trâmite um
dado pai ou guardião, fazia questão de ‘ver’ as crianças, e pedia às empregadas que os
fizessem entrar um momento na sua sala. A partir dos relatos coincidentes de
empregadas e funcionárias de outros Juizados, assim como de advogados particulares
que eventualmente litigavam em Menores, posso afirmar que, embora o
acompanhamento fosse uma modalidade de gestão compartilhada pelos distintos
Juizados, não era, pelo contrário, a prática de S.S., que instruía as administradoras que,
quando ‘as pessoas’ viessem ao Juizado, passassem por sua sala.
O seguimento serve para apreender um traço de esta modalidade de gestão
administrativo-judiciária, que alicerça sua confiança mais em sua experiência para ‘ver
os garotos’ do que nos relatórios e nas constatações dos profissionais das equipes
técnicas. Muitas vezes as administradoras justificavam a necessidade de ‘ver as
crianças’ pela demora dos relatórios, o que objetivamente acontecia. No entanto,
também se reiterava que, mesmo contando com o relatório, oficialmente enviado ou
‘adiantado’ verbalmente (pelo telefone), se queria ‘ver as crianças’. Isto, conforme pude
perceber, estava relacionado intimamente a uma ultima ratio de ordem moral, qual seja,
a busca de uma tranquilidade de consciência que permitisse às administradoras poderem
“conciliar o sono”. S.S. ressaltava, ao dirigir-se à Secretária ou à empregada que levava
a causa de uma menina que, estando internada, havia tentado se suicidar: “Eu quero
poder dormir tranquila esta noite”. Manifestação que não deve ser identificada com esse
processo, mas sim com uma recorrência por mim observada nas administradoras: a de
declararem sua necessidade de, no mínimo, poderem obter ‘tranquilidade de
consciência’ em relação às atuações.
Tal preocupação moral-profissional não se reduzia ao fato de que os registros das
atuações que lhes competiam e/ou o registro das medidas que fossem tomadas não
pudessem representar um perigo hipotético de ajuizamento, mas que acionavam
justificações morais, colocadas em uma dimensão tal que serviam como última
justificativa, isto é, pensando em termos de fundamento moral e emocional (Garzón
Valdés, 1990:127) e de um tecido inconsútil entre direito e moral.
5
5
Garzón Valdés, em um texto onde postula a falsidade da separação entre direito e moral, tanto em nível
conceitual quanto empírico, diz: “Não é possível excluir do conceito do direito (existente, positivo) sua
vinculação com a moral, se é que se quer entendê-lo tal como ele é, e como funciona na realidade”. Aqui
135
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Por outra parte, as condições da escuta descritas, impostas por uma maratona de
audiências de breve duração temporal, os deslocamentos entre as salas que envolvem a
audiência, a elaboração descontínua do texto da ata impõem, por um lado, indicar que
assim como a ênfase nominativa da palavra utilizada (audiência) remete a uma escuta,
a ‘aplicação do direito da criança de ser ouvida’, consagrado normativamente, era
efetivada pelas administradoras principalmente como uma ‘vista’; por outro lado,
assinalar que aquelas condições constituídas também pelas interrupções
colaboravam para (sobre)levar situações muitas vezes dramáticas, que eclodiam nas
audiências.
Todo esse conjunto de sequências, nos autos, ficava registrado em uma ata, com
as ‘formalidades da lei’, como se a audiência tivesse ocorrido com a copresença de
todos os que figuravam como participantes; ata na qual era omitida a presença da
empregada, que também ‘tomava’, em parte, a audiência e que produzia a peça
documental que viria a ser parte do corpo dos autos. Assim, a presença da Secretária,
que constitui una obrigação legal que é a única que pode dar pública dos
depoimentos em uma audiência ou em um ‘comparendo era construída na própria
escrita do texto, sob armula: “perante a Secretária que autoriza”.
No ponto II.3, por meio de uma análise de autos de arquivamento recente, expus
como os processos judiciais referidos a ‘menores sem conflito com a lei penal’ não
terminavam, no sentido de seu envio ao arquivo com uma sentença ditada a posteriori
de uma audiência final resolutória, que tanto a lei de Córdoba de 1966 quanto a lei de
Proteção Judicial de 2002 —‘audiência do 33’— preveem. De fato, nos meses de
observação do trabalho do Juizado, apenas ‘se tomaram’ duas ‘audiências do 33’.
O habitual nesses tribunais Prevencionais de Menores era ir resolvendo as coisas
provisoriamente, e isto se traduzia no tipo jurídico de resolução, através
principalmente de ‘decretos’ resoluções realizadas durante a tramitação de um
processo. Nesse sentido, os dados estatísticos que o próprio Poder Judiciário de
Córdoba oferece em sua página da web confirmam o que se ressalta a partir da análise
de autos: de um total de 5.459 ‘medidas tutelares’ correspondentes ao ano 2004,
apenas 77 eram sentenças.
6
o autor fala de moral em termos de ‘moral positiva’ (Garzón Valdéz, 1990:102).
6
Para uma correlação entre o total de medidas tutelares realizadas e as sentenças, entre os anos 2000 e
2004, ver o Quadro 1 do Anexo B, construído a partir das estatísticas oficiais.
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Esta audiência ‘do 33’ era realizada, em sua maior parte, no gabinete de S.S., e
podia contar com uma parte inicial e outra final, no computador da empregada que
‘levava a causa’, ou da Secretária e/ou da Pró-secretária. E nessas partes, aqueles que
estavam mais próximos da administradora que elaborava a ata eram os letrados, a
Assessora de Menores ‘representando’ as crianças em questão, e outra Assessora de
Menores (ou um Assessor Civil), ‘representando’ os pais.
Na parte que ocorria no gabinete de S.S., repetia-se o que foi descrito sobre a
aleatoriedade dos lugares em torno da mesa de S.S., localizada no centro do gabinete,
cujo único lugar fixo previsto era a poltrona da juíza. Também por ocasião dessas
audiências, aconteciam a entrada e a saída momentâneas de outras administradoras
judiciárias, fossem elas do Juizado ou de alguma das Assessorias. Devido a isso, neste
exíguo espaço para sete ou oito pessoas presentes para o que haviam sido trazidas
cadeiras extras para que pudessem permanecer todos sentados os lugares se
modificavam por causa de tais saídas e entradas momentâneas.
Consideremos um trecho de uma ata correspondente a uma ‘audiência do 33’.
Conforme o texto, estavam presentes na audiência a mãe de uma menina de 3 anos,
seu companheiro, a Assessora de Menores, uma licenciada em assistência social da
equipe técnica de Menores, uma psicóloga da mesma equipe técnica, outra licenciada
de uma unidade municipal de atendimento de saúde, e a advogada particular da mãe.
A menina tinha sido institucionalizada por ordem judicial, por ter sofrido agressões
em um episódio que estava sendo processado no foro penal, no qual tinham
participado a e, seu companheiro, vizinhos da pensão na qual viviam e policiais.
Depois destes dados, a ata registra o seguinte: Aberto o ato por S.S. e concedida a
palavra à progenitora, senhora Graciela Ferreyra, manifesta: Que agora está
entendendo o que é a audiência do 33”. Finalmente, foi decidida a “restituição de
Cláudia [a menininha] à sua mãe”.
Tal trecho é importante aqui porque oferece uma amostra inequívoca do que se
vem apresentando em relação à desorientação que as diversas atuações, nas
modalidades descritas, provocavam nos administrados. E isto ficou cristalizado na ata
desta ‘audiência do 33’, e se deve ao fato de era uma instância na qual ou a
‘empregada que levava a causa ou a Assessora letrada que patrocinaba os pais, ou
S.S. nas audiências do 33’— em diferentes momentos e de diversos modos, diziam
aos administrados que estavam diante de uma instância da qual surgiria uma
137
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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‘resolução definitiva’. Em face da minha pergunta sobre a frase citada (“Que agora
está entendendo o que é a audiência do 33”) que era inusitada, até mesmo para quem
leu centenas de autos, a administradora que levou essa causa e elaborou a ata naquela
oportunidade me disse: “E eu ao cumprimentá-la devo ter dito a ela, como faço nas do
33, olhe mainha, depois disto, tudo se resolverá definitivamente... E S.S. ou a
Secretária também lhes dizem que depois da audiência será tomada uma decisão
definitiva”.
A mesma empregada explicava que a audiência do 33’ era a audiência “que se
toma logo depois de ser coletada a prova e esgotado o tempo da investigação para
resolver definitivamente”, remetendo diretamente, mais que às atuações, à definição
legal dessa audiência. Pois na ata mencionada antes constava que faltava um elemento
de prova’ que os participantes consideraram necessário: um psicodiagnóstico do
companheiro dae da menininha, que não havia sido colhido como prova, apesar de
a advogada da mãe o ter oferecido como tal, e a Assessora o havia solicitado para
poder emitir seu parecer. E foi também essa mesma administradora que me
proporcionou a leitura de uma segunda ata de uma audiência ‘do 33’, na qual, como na
maioria dos processos, não haviam sido cumpridos os prazos legais, que estabelecem
que a investigação deve ser realizada em três meses, sendo prorrogada
excepcionalmente por outros três, depois dos quais S.S. pode dispor de mais 15 dias
para ditar sentença, porque a audiência ‘do 33 estava sendo realizada era de um
processo que havia sido iniciado três anos antes.
A respeito das audiências “do 33“, outra empregada do Juizado, me dizia: “O
que as pessoas te dizem, você tem que redigir. O Assessor, por outro lado, te dita”. E
referindo-se à sentença, introduzida por uma ‘relação de causa’, que era redigida antes
da audiência por uma empregada do Juizado. E nos ‘considerandos’,
7
como resumia
Laura, S.S. quer coisas práticas… Não tanta jurisprudência e doutrina”. Laura era
uma voz autorizada, que não era qualquer empregada que elaborava as sentenças.
Em cada Secretaria, além das hierarquias formais, havia uma administradora
encarregada de redigi-las, trate-se ou não de processos que ela tenha acompanhado.
Em outro Juizado, diverso daquele que observara, para a empregada que realizava essa
tarefa usavam um título específico: “relatora”.
7
Trata-se da parte de um texto resolutivo, no qual devem constar os fundamentos da resolução que se irá
tomar ou, ao menos, as questões que foram levadas em consideração para isto.
138
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Por último, no Juizado cujo trabalho acompanhei, cada Secretaria seguia um
cronograma de ‘audiências’ autônomo, no qual habitualmente os dias e os horários de
‘audiências’ se sobrepunham, em função do que, sem solução de continuidade, ocorriam
as ‘audiências’, e eram atendidos meninos, meninas e adolescentes e seus pais,
guardiães, tutores em cada uma das jornadas de trabalho, em uma dinâmica de
superposições, simultaneidade e fragmentações que procurei descrever neste ponto.
IV.2 Mnemotécnicas para administrar fragmentações
O trabalho de acompanhamento do cotidiano dos tribunais Prevencionais de
Menores de Córdoba e sua textualização e (re)conversão em material analítico na forma
de fragmentos, trata-se de uma apropriação circunscrita qual venho me referindo
desde as Considerações preliminares) à maneira com que essas administradoras
procediam nas suas atuações: de modo fragmentado. As administradoras geriam e
lidavam com um grande número de situações que envolviam uma carga de
dramaticidade, tramitando fragmentões de ordens distintas, mantidas na sua
própria meria administrativa, que era exercitada, reordenada e acionada para
integrar, atras delas mesmas, as atuações de cada um dos processos judiciais.
A fragmentação da realidade cotidiana nesses tribunais era interpretada pelas
administradoras como um “obstáculo ao bom desempenho de suas funções”. Proponho
entendê-la aqui como uma condição de possibilidade desses exercícios de poder, que
para abordar situações tão complexas e muitas vezes dramáticas, a fragmentação dos
afazeres cotidianos coadjuvaba a lidar com a moralização exacerbada, inerente às
questões relativas à infância
8
e, sobretudo, à infância situada no lugar de vítima de
abusos, de maus-tratos, de negligências.
8
Gostaria de chamar a atenção para esse substantivo que é usado por razões de economia discursiva, sem
esquecer que ele encobre as enormes diferenças que existem entre os distintos meninos e meninas;
especificidades que devem ser reconhecidas e, em seu estudo, evitada uma naturalização que oculte sua
condição de sujeitos histórica, social e culturalmente construídos como tais. Nesse sentido, reconheço
“[...] a eficácia instrumental dessa expressão que reside em ter formalizado uma ideia capaz de abrigar os
mais pequenos em uma nomenclatura explícita que lhes outorgou consistência categorial e permitiu que
se configurasse um objeto social. Mas também consideremos que este coletivo convoca os riscos do
essencialismo infiltrado em um fragmento do social” (Giberti, 1997:54).
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A fragmentação das atuações permitia lidar com uma tensão entre a necessidade
de manter algum controle da rotina de trabalho e o fato de estar em contato cotidiano e
permanente com demandas e necessidades de muito difícil resolução, carregadas de
conotações afetivas, emotivas e morais
9
. Trata-se, ao mesmo tempo, de condições
inerentes às rotinas do foro; às constrições legais, infraestruturais, adicionavam-se
outras, originadas em suas próprias práticas administrativas. Acredito que uma boa
mostra disto era que não se seguisse um princípio de organização que parece evidente
(unificar em uma única agenda do Juizado o ‘calendário de audiências’ de suas três
Secretarias), o que gerava uma sobrecarga relativa de trabalho, que ao mesmo tempo
e daí minha interpretação — facilitava que se limitassem no tempo as interações com os
administrados, oferecendo uma justificativa não somente para estes, como também para
as próprias administradoras, na ‘espera’ que existia.
A busca para abreviar a duração das atuações em cada nova instância poderia ser
sintetizada, como em uma instantiânea, na pequena placa branca de acrílico, com a
forma de um porta-retratos, que ficava sobre a mesa de S.S., na qual com letras azuis
muito escuras estava escrito: “Este é um lugar de trabalho. Seja breve” [o sublinhado
pertence à placa descrita].
No fragmento seguinte busca-se condensar a pressão que exerciam as pessoas que
estavam na espera, que muitas vezes reclamavam explicitamente pelo atendimento; e
que era reconvertida em um fator que facilitava justamente que, além das situações
difíceis que estivessem sendo atendidas, a atuação fosse pontual, restrita no tempo, de
uma maneira funcional e moralmente justificável.
Na manhã do dia 22 de junho de 2005 estava esperando em um dos
bancos do corredor do Juizado, e participei de uma conversa entre
Mara, que trabalhava como empregada doméstica, conforme contou
para mim e outra mulher, que também estava no mesmo banco. Mara
contava que Lucas, seu filho de 10 anos, estava no sexto ano do ensino
fundamental, enquanto se queixava dizendo: “Já estou cansada. Uma
tem cinco crianças, a outra cuida de uma casa em Carlos Paz
9
Estou retomando aqui indicações de Howard Becker e Anselm Strauss que, ao esboçarem um modelo
para estudar as identidades pessoais a partir das “carreiras”, indicam que haveria padrões recorrentes de
tensões e problemas, segundo o tipo particular de trabalho. E justamente o exemplo que dão é pertinente,
pois remete a ocupações cuja função principal é a prestação de serviços a clientes externos, advertindo
também a respeito do diferencial das variações que se produziram de acordo com a posição de cada um
(1956:253).
140
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[referindo-se às suas irmãs, que também tinham sido citadas ao
Juizado]... Lucas também veio para Tribunais...”. A outra mulher
interveio, dizendo: “Eu já me queixei com a Belkys... além de tudo me
pedem novamente para trazer as crianças...”. No banco da frente,
Lucas brincava com outro garoto, enquanto Mara continuava a nos
contar que uma de suas irmãs tinha dito à Juíza: “Por que não dão um
subsídio à Mara de uma vez, alguma ajuda...?”. Estávamos próximas à
porta do gabinete de S.S., e vimos que uma mulher e um homem, que
Soraya tinha chamado para conversar com ela no corredor, entraram
junto com ela no gabinete de S.S. antes que Paula viesse buscar Lucas,
que entrou com ela no gabinete de S.S. dez minutos depois. Cinco
minutos mais tarde chamaram para que entrasse Mara, que antes de ir
nos contou que o pai de Lucas “já veio ao Juizado na outra vez”. E
fazendo um esforço para conter as lágrimas, com o mesmo lenço com
o qual assoava o nariz, nos disse que ela queria que o homem ficasse
com o menino, na casa dele, onde vivia com sua esposa e seus outros
dois filhos, irmãozinhos de Lucas, um bebê e outro de 3 anos, além do
irmão maior por parte de pai, que tinha 21 anos e era filho de outra
mãe. Mara continuou: “...eu o tive quando era solteira, e viveu sempre
com os avós, falecidos já, e ele [referindo-se ao pai de Lucas] tem casa
própria em Unquillo”. A outra mulher disse, mas olhando na minha
direção: “Eu entendo você... eu tenho três e é muito difícil...”. Após 10
minutos, vi sair Mara e Lucas da sala das empregadas do Juizado;
nesses minutos haviam se somado mais seis pessoas à espera, e no
corredor éramos 10 ou 12. Sua Senhoria apareceu na porta de seu
gabinete e me chamou para entrar. Depois de nos cumprimentarmos,
imediatamente me disse: “Isto é uma loucura, como você vai ver
[referindo-se à quantidade de gente]… eu atendo às crianças primeiro.
Mas tenho que me apressar”.
Recupero com este fragmento, além da recorrente queixa dos administrados de
que “nos fazem vir mil vezes aos tribunais”, outra: a queixa das administradoras de que
“sempre vem muita gente”, que era, em alguma medida, um efeito também da própria
organização do trabalho nos tribunais, que, salvo nos dias de plantão, a maioria das
pessoas estava ali respondendo a uma ‘citação’ do próprio Juizado ou da Assesoria.
Combinava-se nesta gestão o hábito de abreviar os encontros com a repetição dessas
atuações pontuais — como foi exposto em relação à insistência em ver as crianças
ao longo de processos que se estendiam, as vezes, durante vários anos.
Em resumo, na contramão do que no âmbito dos tribunais Prevencionais de
Menores era explicado como as deficiências desse ‘serviço de Justiça’ as carências
141
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de caráter diverso, a falta de infraestrutura dos prédios públicos, de pessoal
argumenta-se aqui que tais condições contribuiam para a execução das próprias
atuações, pois possibilitavam, apesar das duras circunstâncias, os procedimentos
cotidianos. É preciso também considerar que se tratava de um conglomerado de
variáveis em jogo, entre as quais, as urgências que se apresentavam constituíam outro
elemento coadjuvante. Enfim, o acompanhamento que realizara dessa administração
judiciária enfatizou a importância das dinâmicas fragmentárias com as que se
realizavam as atuações. A fragmentação das atuações, na qual eram feitas ações
pontuais e conjunturais a respeito de cada processo, permitia também ir padronizando,
por meio de um conjunto de práticas recorrentes como a ‘tomada de audiências’, a
gestão das esperas, a personalização dos trâmites situações de altíssima
variabilidade.
A seguir transcrevo uma gravação realizada em maio de 2007 em uma das
reuniões com Ignacia, empregada de um dos Juizados Prevencionais de Menores, que
acompanhei através de encontros semanais que mantínhamos fora do horário e do seu
lugar de trabalho no Palácio de Justiça, durante um ano de seu desempenho laboral.
Uma das constantes desses diálogos consistia em que me contasse, em detalhe, seu dia
anterior de trabalho. Em uma dessas conversas, pedi-lhe que reconstruísse como era
uma hora típica no seu cotidiano.
Eu chego, e normalmente tenho três autos pendentes para decretar desde a
véspera, porque nós, pelo ‘Código de Procedimento Civil [da província de
Córdoba], temos três dias para decretar; três autos distintos de causas
distintas, com coisas distintas que deram origem à intervenção. Cada um é
diferente, tal vez em um haja uma criança com problemas de dependência
de drogas, em outro uma vítima de violência, e no outro, um abuso. Então
começo, possivelmente tenho pendente um decreto, porque um
comparendo do dia anterior. Pego um e faço uma coisa, por exemplo, no
caso da dependência de drogas, tenho o comparendo da mãe, do dia anterior,
que manifesta que a criança continua se drogando, que está mal, que solicita
a internação, é típico das mães que chegam nas últimas, quando o garoto
está passado [expressão coloquial que alude ao abuso de drogas ilegais,
psicofármacos etc.]. Então você vai e o comenta com S.S., ou com a
Secre[tária] e tem que decretar. Geralmente, primeiro a gente fala com a
Secre[tária], dizendo, bem, vamos enviá-lo ao Programa Alternativas
Terapêuticas, e pedir uma avaliação psiquiátrica.
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Então me sento à minha mesa e tenho que fazer o decreto: “...atendendo ao
solicitado anteriormente pela senhora fulana de tal, e de acordo com o que
consta nos autos, e nos artigos 3 e 23 da [lei] 9053...”. Assim eu estou
habilitando para que S.S. intervenha, tenho que colocar a 9053 na qual
estão as ‘medidas tutelares’, porque senão, não poderia habilitar a
intervenção, e eu faço assim em todos os meus autos. Então vou e coloco,
“Córdoba... (a data)”, e faço assim com o decreto e o ofício, e os deixo para
que a Secretária assine, e depois ela vai ao gabinete de S.S. para que S.S.
assine. Antes de assinar, a Secre às vezes fiscaliza que esteja bem feito, que
o endereço da criança esteja correto.
Volto à minha mesa e pego o outro [autos] que tinha, por exemplo, o da
menina vítima de abuso. Dou uma olhada, posso ter, por exemplo, um
escrito da advogada do progenitor, que solicita algo. no meio vem uma
citada minha [pessoa que foi citada mediante notificação para que
compareça ao Juizado], ai eu procuro os autos para ver para que tinha sido
citado a ela, você não pode ter tudo no cérebro, a gente não se lembra de
tudo, e dou uma olhada no motivo da citação, por exemplo, que traga
comprovação da realização de tratamento psicológico. Então eu a faço
entrar, imagina que é a progenitora, e lhe digo: “Como está o fulaninho?
A senhora está indo ao Programa de Violência Familiar? Trouxe para mim
os comprovantes de realização do tratamento psicológico?”. Você lhe faz
como um pequeno interrogatório, “A assistente social foi à sua casa?”,
porque eu tinha pedido um controle, e ainda não chegou até mim um
relatório.
Então vem a Secre[tária] e te diz, “Te mandaram o relatório tal? Não?
Bem, então chame a SPINA para ver se o fizeram”. Termino de fazer o que
estou fazendo e ligo daí a pouco. Porque às vezes fizeram a constatação
mas não mandaram o relatório. Então me despeço da senhora.
Bem, continuo te contando. Antes de me esquecer, ligo para a SPINA para
perguntar o que me pediu a Secre[tária], ligo: “alô, sim, olá, aqui é
Ignacia, do Juizado de Menores de tal nominação, Secretaría mero tal,
poderia falar com beltrana? (que é a assistente social que teria que fazer o
relatório)”. Ou você a encontra, ou te perguntam quais autos, que bairro e,
se es feita [a constatação] te dizem, e se está assinada, a enviam por fax
para você.
Volto à minha mesa e me ponho a fazer outras coisas pendentes.
Provavelmente, o telefone vai tocar e a mãe de uma menina me diz: “Aqui
quem fala é fulana de tal, a mãe de fulaninha... Você não sabe, a fulaninha
continua se drogando, foge da minha irmã” (porque está ‘sob a guarda’ da
tia). Ai eu faço uma certidão: “Certifico que nesta data, se comunicou por
telefone com pessoal desta Secretaria (outras Secretarias colocam o nome
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e o sobrenome do empregado que atendeu) a fim de informar que a jovem
fulaninha continua consumindo entorpecentes etc., etc.”, e o que a senhora
disser você tem que colocar. Então vo vai e diz à Secre[tária], “O que
fazemos?”. Nesse momento toca novamente o telefone, e se as minhas
companheiras estão ocupadas, eu tenho que atender, e se te perguntarem
por alguém e você dizer que está ocupada, então te pedem, por exemplo,
“Diga a ela que a tia de beltraninho ligou, do bairro Los Naranjos”. Assim
se aprende tudo, vo vai vendo e fazendo.
Volto à minha mesa para o que estava fazendo. Mas tenho citadas outras
pessoas... e depende para que foram citadas e a gravidade do assunto, se é
fácil, então você toma a audiência, e nem entra no gabinete de S.S. Se não
tiver que tomar uma medida no momento, o toma a audiência, mas
realiza um comparendo, e depois faz o decreto. Depende, vo isso. Ai
chegam o pai e a mãe de umas meninas que tinham vindo 15 dias antes, e
tinham dito que queriam ficar com a mãe e passar os finais de semana com
o pai. A menorzinha de 5 e a outra de 12. Antes de fazé-las passar, você
liga para a Assessora [de Menores] e lhe pergunta se pode vir. Na
maioria das vezes não podem vir, então ela diz para vo tomar [a
audiência], que pergunte a elas o que querem e, em todo caso, ela depois
fará o parecer, agora tem que ir a um interrogatório em Correcional [parte
do foro que resolve a respeito de “menores em conflito com a lei penal”].
Faço entrar as meninas, primeiro uma, depois a outra. Se o me
conhecem me apresento, “olá, eu sou fulana, a advogada que leva os autos
de vocês aqui no Juizado, vem , entra por favor, se senta aí”. E então
trato de quebrar um pouco o gelo, e pergunto a elas “tudo bem como você,
como vai a escola?”, “com quem está morando, quantos moram na sua
casa?” (já para saber se o excluído do lar, que é o companheiro da mãe,
está ou não está morando ali). E continuo perguntando um pouco, se quere
morar com a e ou se prefere ir com o pai e a avó, e aí vão te contando
aos poucos. Eu então anoto e trato de ser o mais fiel possível, sem colocar
perguntas, como se ela tivesse falado tudo aquilo espontaneamente. Depois
chamo a outra irmãzinha, e faço a mesma coisa. crianças que não se
importam que os outros as escutem, as olhem, porque o quatro mesas
grudadas à minha, e tem vezes que na mesa ao lado está a Assessora [de
Menores] falando com outro garoto, uma colega com outra pessoa, e outra
está decretando algo, e outra atendendo ao telefone.
Bem, como isso foi há quase 15 dias, então, por essa razão, e também
porque uma das Assessoras exerce o papel de advogada dos pais (um
progenitor tinha como advogado uma Assessora Civil, e o outro, uma de
Menores), eu havia pedido que fosse fixada audiência para que se
determine um regime de visitas e pensão alimentícia. A audiência foi
tomada por mim. Estão todas as partes. Falo com as Assessoras:
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“Doutoras, falem com suas clientes”. Vão [ao corredor do Juizado] e
voltam sala de empregados, onde está sua mesa], porque conversaram e
chegaram a um acordo. Volto a fazê-las sair. Então eu escrevo o que foi
decidido, “...o que ouvido por S.S., disse:”. E coloco o que S.S. diz.
Antes fui consultar a Secre[tária]: “Olha, chegaram a um acordo, e
coloquei tal e tal coisa na audiência” [refere-se à ata de audiência].Bem,
me diz, tudo bem”. Então vou e decreto, na mesma audiência. “Com
notícia [fórmula para indicar que deve ‘abrir vista’ ao Assessor de
Menores que representa as ‘menores’ no processo]. Com isto se deu por
terminado o ato, que previa leitura e ratificação de lei, assinam os que
compareceram depois de Sua Senhoria, perante mim, que dou fé” [O
pronome apenas pode se referir à Secretária, única habilitada legalmente
para dar ‘fé pública’ de qualquer ato]. Supõe-se que tudo isso tenha
ocorrido diante da Secretária e S.S.
Então imprimo, faço a eles entrarem novamente e leio para eles a ata.
Explico a todos, antes de ler, que se quiserem modificar algo ou
acrescentar alguma coisa que me digam. Por isso o ideal é antes de lhes
dizer “vão um pouquinho pra fora, assim posso conversar com S.S., e
vemos o que decide”, é ler antes [a ata] para eles. Porém, estamos em
outra situação e leio em voz alta para eles a audiência e faço com que eles
assinem abaixo, porque tem que estar [na folha da ata] primeiro a
assinatura de S.S. e por último a da Secretária. E leio para eles o que S.S.
ordenou, por exemplo, que apresentem certidões de realização de um
tratamento psicológico. Porém, pelas duas da tarde, S.S. assinará,
quando a Secretária for ao gabinete levar-lhe os autos...
Acompanhamos o relato que uma administradora fez, referido a uma hora de seu
trabalho, e que condensa este modo de tramitar a fragmentação e, ao mesmo tempo,
sustento ao viés interpretativo que propus tendo como base o observado
recorrentemente.
É oferecida aqui uma amostra da condição das administradoras de primeiras
crentes e praticantes da identificação entre autos e processo judicial, pois, como foi
exposto, refere-se alternativamente a ambos, quando diz “a advogada que leva os
autos”, ao se apresentar, e depois, atendendo ao telefone, referindo-se à “que leva a
causa tal”. Assim também identificava a audiência com a ata relativa à mesma, que ela
redigira: “coloquei tal e tal coisa na audiência”, quando o que colocou são “coisas” em
um escrito. Isto, ainda, se conjugava com a linguagem da escrita judicial, que contribuía
para um distanciamento em relação às reconfigurações na vida dos administrados que as
atuações administrativo-judiciais promovem.
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Por outro lado, emerge de sua narração uma representação difusa de uma
dimensão ficcional destas atuações. Ao mesmo tempo em que a administradora
representava-se como consultando a Secretária, reconhecia que, por meio de um
acréscimo seu no qual introduzia uma referência legal, ela “habilita S.S.”.
Paralelamente, invisibilizava sua própria atuação, ao omitir suas perguntas na hora do
‘comparendo’ e dizer que fazia de conta que foram declarações espontâneas vindas da
pessoa que ‘comparecia’; ou quando relatava “então coloco o que S.S. diz”, ao mesmo
tempo em que contava que S.S. não estava presente, e que saberia desta audiência
depois de finalizado o horário de atendimento ao público, quando a Secretária levaria ao
seu gabinete a ata para que a assinasse.
Reparemos especialmente a quando se referia a que teria posto o que havia
solicitado S.S, enquanto dizia que fez sair os advogados e seus clientes a fim de
consultar a S.S., consulta que nunca realizou em uma operação dupla de cumprir
desta maneira com as prescrições legais (apenas S.S. pode decidir, conforme o mandado
normativo), mas o mais importante é como, sustentando performativamente o poder
decisório de S.S., se subtraía moralmente do peso da decisão que teria tomado “Sua
Senhoria”.
Sobre essa representação de estar ao mesmo tempo se apoderando e se eximindo
moralmente, consideremos que por sua condição de empregada as responsabilidades
legais de sua decisão dificilmente poderiam alcançá-la, portanto, é improvável que o
temor ficasse radicado ali. O que pesaria seria o cargo de consciência. E isto estaria na
base do que entendo como a (re)produção de uma “microcultura da negação” (Cohen,
2005:31, 74, 87), que não seria produto de um discurso oficial, mas uma aprendizagem
para a manutenção de silêncios que se referem ao que poderia ameaçar a própria
imagem de estar atuando ‘pelo melhor interesse da criança’.
10
A negação está sendo
pensada como uma situação sociológica, e não enquanto propriedade da personalidade, ou
condição psicológica. Seguindo esta ideia, estas tácticas e estratégias possibilitariam
10
Stanley Cohen, em seu trabalho sobre os pedidos de reconhecimento em textos de anistia de 1992 a
1998, seção britânica e norte-americana, afirma que “Existem microculturas de negação dentro de
instituições particulares. As ‘mentiras vitais’ mantidas pelas famílias e os acobertamentos dentro das
burocracias governamentais, a polícia ou o exército novamente não são nem pessoais, nem o resultado de
um ensino oficial. O grupo censura a si mesmo, aprende a manter o silêncio a respeito de assuntos cuja
discussão aberta ameaçaria a própria imagem [...]. As organizações dependem de formas de ignorância
treinada, diferentes níveis do sistema que se mantêm desinformados sobre o que acontece em outro lugar.
Dizer a verdade é tabu: é ser um dedo-duro, colocar a boca no trombone, dar fôlego ao inimigo” (Cohen,
2005:31). O que o autor acrescenta a respeito “...da necessidade de serem inocentes de um
reconhecimento perturbador” (2005:44) seria particularmente instigante para pensar as representações das
administradoras sobre se próprias.
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anular dúvidas pessoais, fazer circular justificativas, sendo empregadas tanto para
“massacres administrativos”, quanto para “insignificantes mesquinharias organizacionais”
(Cohen, 2005:74, 87). Tratar-se-ia de formas de censura treinada, e mecanismos habituais
para se justificar perante os outros.
O relato traz uma nova reconstrução do que foi descrito das dinâmicas das
atuações: em que se operava de forma fragmentária, pontual, episodicamente, agregava-
se e integrava-se não somente nos autos, mas na empregada que ‘levava a causa’, que
realizaria um tipo de montagem do fragmentário. As administradoras, na fragmentação
de suas atuações conjunturais, minimizavam a carga moral, e integravam como uma
unidade nos autos e nelas aquilo que nunca teve esse caráter. Por fim, aparece na
narração desta empregada o uso dos autos como ferramenta mnemotécnica, “porque
você não se lembra de tudo”; e por sua eficácia pragmática merecem especial atenção as
mnemotécnicas exercitadas pelas administradoras judiciais destes tribunais.
S.S. tinha, assim como a Assessora de Menores a quem acompanhei em seu
trabalho cotidiano, uma aguda memória para circunstâncias e pessoas de cada processo.
Isto podia ser observado também nas empregadas. A memorização tornou-se
mecanismo que imitei para poder acompanhar as atuações que observava, o que me
possibilitou compreender algumas mecânicas de divisão do trabalho, como a que desde
o início fosse a empregada ‘que ia levar a causa’ quem atendesse às pessoas em questão.
A organização interna do trabalho de cada Juizado impactava, assim, nas formas do
exercício das atuações. Efetivamente, o princípio de divisão entre as empregadas de
cada Secretaria era o da divisão dos processos conforme a letra inicial do sobrenome do
menino, da menina ou do adolescente, letra que figuraria, especialmente destacada, na
capa dos autos. Desta maneira, cada empregada tinha a ela atribuídas determinadas
letras do alfabeto, o que determinava quais processos ‘levaria’.
Uma memória específica, reforçada pelos comentários que eram feitos a respeito
das pessoas e das situações envolvidas em um processo possibilitava que, diante da
ausência circunstancial da ‘empregada que leva a causa’, outra empregada, a Secretária,
ou a Pró-secretária, continuasse atuando a partir das impressões e das categorizações
que a ‘empregada que levava essa causa’ tinha em uma narrativa consensual, não-
textualizada nos autos.
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Quase acabando o horário de atendimento ao público, apresentou-se
uma senhora de uns 60 anos, perguntando por uma empregada pelo
seu nome de pia, que era quem ‘levava a causa’. Não estando essa
empregada, uma colega recebeu a seguinte indicação da Pró-
secretária: Ei, atende a louca do bairro Matienzo”, tal como a tinha
categorizado a empregada que ‘leva a causa’. Tinha dito isto somente
pelo fato de ter escutado que a mulher, ao se apresentar, dissera:
“Sou a avó de fulaninho”, mesmo a Pró-secretária não a conhecesse
pessoalmente, conforme me disse depois.
Mary Douglas oferece ferramentas para pensar planos institucionais de lembrança
e esquecimento. Nessa chave, podemos observar determinadas práticas desses tribunais,
orientadas pragmaticamente para objetivos imediatos que faziam surgir histórias que,
em certas ocasiões, explicitavam detalhes minuciosamente discriminados, assim como
escureciam outras áreas (1998:75). Esta memória específica integrava, nas
administradoras, a vasta fragmentação da gestão a partir de distintos vetores. No
primeiro vetor, estaria a memória incorporada na empregada que ‘leva a causa’. Em um
segundo vetor, uma memória compartilhada entre as administradoras que haviam
‘intervindo’ em um determinado processo, ou seja, a empregada que ‘levava a causa’, a
Secretária, a Pró-secretária, S.S. e a Assessora de Menores.
Esse segundo vetor de memória era traçado em uma negociação reativada entre as
administradoras, que se objetivava através de recordações do tipo: “lembra que esta é
aquela que um dia veio em cima da hora, carregando todas as crianças, que a mandamos
para a Família?”. Recordações que não procuravam apenas remarcar a memória da outra
administradora, mas principalmente negociar uma versão consensual dos administrados
e das situações em um determinado processo.
Um terceiro vetor dessa memória projetava-se sobre a base de reiteradas
recordações, sucessivas e espaçadas no tempo, sobre conversas pontuais, comentários
ditos de passagem, queixas de uma empregada diante de alguma companheira de
trabalho, escutas ocasionais de partes de audiências ou ‘comparendos’ de outra
administradora. Este terceiro vetor de memória não se restringia a cada Secretaria nem
às empregadas que compartilhavam a mesma sala. Contribuíam para essa projeção, por
um lado, o uso característico do espaço arquitetônico — lembre-se que as passagens que
utilizavam as empregadas para se movimentarem entre as salas do Juizado eram
múltiplas, que as salas eram atravessadas, em diferentes percursos, entre estas e o
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corredor. Por outro lado, as administradoras do mesmo Juizado compartilhavam certas
circunstâncias (um café em comum, reuniões de comemoração de aniversários), nas
quais também eram comentadas questões referentes aos processos, especialmente sobre
casos ou situações que as haviam impactado: a desnutrição severa de um menininho, ou
uma denúncia de incesto.
Este terceiro vetor se tornava mais nítido em relação a casos ou a situações
excepcionais, e portava, por exemplo, a história de um menino de 10 anos, órfão de
mãe, que vivia com seu pai, a sua nova mulher e o irmãozinho de 6 anos em uma
pequena localidade muito próxima à cidade de Córdoba. O pai dos meninos trabalhava
como viajante, desta forma estava ausente de casa de segunda a sexta, e eles ficavam
sob a responsabilidade da mulher, que os maltratava fisicamente. Em um horário de
sesta, quando ambos os irmãos iam sozinhos para a escola, distante poucos quarteirões
de sua casa, o mais velho deixou o mais novo na escola, e pediu ajuda a uma vizinha,
solicitando que o acompanhasse a uma delegacia de polícia a fim de denunciar que
naquela manhã a mulher de seu pai tinha batido neles. Foi a partir dessa denúncia que se
iniciou um processo judicial do qual conheciam detalhes não a empregada que
‘levava a causa’, suas companheiras de sala e S.S., a Secretária e a Pró-secretária, mas
também outras administradoras do Juizado, às quais tinha impressionado a atitude
decidida deste menino; além disso, várias delas tinham conversado com ele e
lembravam de sua eloquência e “da cara de nada do pai”.
Além disso, este terceiro vetor podia projetar-se para os outros Juizados
Prevencionais de Menores, como no recesso judiciário, ou seja, na suspensão do
funcionamento corrente de todo o Poder Judiciário, todos os anos, durante os meses de
janeiro e durante uma quinzena dos meses de julho. Para trabalhar durante o recesso
judiciário, eram selecionadas por sorteio empregadas e funcionárias entre os quatro
Juizados de Menores, visando compor o ‘Juizado do recesso’, sob a titularidade de um/a
S.S., mais uma das Secretárias, uma das Pró-secretárias e um número reduzido de
empregadas. Por outro lado, este ‘Juizado do recesso’ podia ver alterada, durante os
meses de janeiro, sua composição a cada quinze dias (uma composição para a primeira
quinzena, outra para a segunda).
Em cada Juizado do recesso, não apenas se conheciam outras empregadas,
funcionárias e S.S. (pois, surgidas do sorteio, não necessariamente eram as mesmas com
as quais se dividia o cotidiano ao longo do ano), como também se conheciam pessoas e
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situações pelos processos iniciados durante o recesso que, depois de concluído, seriam
divididos em partes iguais entre os quatro Juizados de Menores. Desse modo, uma
empregada que ‘havia tomado’ uma situação durante o recesso comentava depois entre
suas companheiras habituais de sala algum detalhe daquela situação; ou então, ao
escutar um comentário de alguma colega reconhecia aquela situação que ‘havia tomado’
durante o recesso. E ali se produzia uma troca de impressões e um ajuste ou correção
das memórias por meio da atualização das recordações, consolidando traços sobre as
pessoas envolvidas em um processo. Também observei que na contínua circulação por
entre as salas do Juizado e pelos corredores, que são compartilhados por dois
Juizados — uma empregada reconhecia e cumprimentava alguém que tinha atendido no
recesso, e como esse processo estava sendo ‘levado’ por outra administradora,
compartilhavam com ela sua memória formada no recesso judiciário.
Conceituo como recordações o que era transmitido através dos distintos vetores,
para enfatizar a dimensão emocional que traziam neles, porque o que se fazia, no
sentido etimológico do verbo recordar, era re-cordare, “voltar a passar pelo coração”
impressões, afetos, pois o que ativava esta memória eram os marcadores afetivos, a sua
carga emocional.
A respeito desses três vetores de memórias, os autos operavam como um recurso
mnemotécnico, em cujo cotejo habitual as administradoras iam reatualizando as
memórias que tinham dessa ‘causa’; o que os autos forneciam aos vetores eram prazos,
citações, detalhes de algum relatório socioambiental e/ou psicológico, datas, dados de
filiação, e não as impressões sobre pessoas e situações, que iam se construindo a partir
da gestão cotidiana e das distintas atuações, e que não entravam em consenso nos autos,
mas com outras administradoras.
Quarta-feira, 3 de agosto de 2005, estava no gabinete de S.S. e
presenciei uma agitação entre as administradoras. Haviam notado o
desaparecimento de uns autos que tinham ficado em cima da mesa de
Soraya no dia anterior. No meio do muito nervosismo da Secretária e
da busca pelos autos, que começou na sala onde Soraya, a empregada
que levava a causa, tinha sua mesa e se estendeu pelas outras salas,
S.S. buscava no seu gabinete. Consegui reconstruir que se tratava do
processo que se referia a uma adolescente que tinha tentado se
suicidar em um logradouro público, e que depois, internada no
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Hospital de Crianças, contou que seu irmão abusava sexualmente
dela, e de acordo com o que ia escutando nos comentários das
administradoras, antes da tentativa de suicídio tinha contado para a
mãe e esta lhe havia dito que se calasse.
Na medida em que iam entrando no gabinete de S.S. e passavam pela
sala de Soraya, as outras administradoras ficavam sabendo do roubo
dos autos, e a elas era fornecido o sobrenome da garota, para que
buscassem no seu lado, em seus próprios escaninhos e salas e, para
situá-las, Soraya dizia “é a aquela garota que tentou se matar no
parque”.
perto do meio-dia, estava novamente no gabinete de S.S. e
entraram um homem e uma mulher, que pelo que escutei eram os
pais da “garota do parque”, junto com a Secretária e Soraya. A essa
altura, se sabia que nessa manhã bem cedo tinham estado ali os
pais e tinham batido na porta da sala das empregadas, e haviam
passado para avisar a Soraya, que estava sozinha na sala, que
voltariam mais tarde, porque tinham um negócio para resolver no
centro. E após de se despedir deles tinha saído da sala. Daí se podia
concluir que não tinha deixado a porta fechada, e que a mãe da
adolescente tinha voltado para dizer mais alguma coisa e, ao ver a
sala vazia e os autos com a capa com o nome de sua filha, em cima
da mesa, a poucos metros da porta do corredor, os havia levado.
Em seu gabinete S.S., de pé, começou sem preâmbulos nem
cumprimentos a se referir à gravidade do acontecimento”, falando
em voz alta e enfatizando suas palavras com as mãos. Disse-lhes que
sabiam “perfeitamente” o que havia acontecido, e a e lhe
respondeu quase aos gritos: “Eu o tenho nada a ver com a questão
dos autos!”, diante do que S.S comunicou-lhe que podiam denunciá-
la penalmente pelo que tinha feito, e que com aquilo não se
conseguia nada, pois os autos seriam refeitoa. Depois os fez sair de
seu gabinete pela porta que dava para a sala da Secretária e da Pró-
secretária. E pude ver pelo vão da porta que na sala contígua o
homem e a mulher cumprimentaram uma jovenzinha que estava lá, e
que tinha estado antes falando com S.S. no seu gabinete. No entanto,
foi pelo cumprimento que pude associar que se tratava da filha desse
casal. Depois daquele cumprimento entre a adolescente e seus pais,
estes lhe falaram com voz muito baixa. Logo após dos pais saíram
para o corredor Soraya e S.S., que parou junto à jovem, também de
pé, pegou-lhe a mão e também lhe falou em um tom inaudível para
mim. S.S. indicou para a Secretária que informasse à advogada dos
pais o que estava ocorrendo com seus clientes, e que a desculpassem
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por não ter esperado sua presença em função da gravidade do
ocorrido.
Soube depois, pelos comentários que eram feitos, que “é quase certo
que foi a mãe”, e concordavam sobre isto por algo que eu o sabia
no dia do “roubo dos autos”, mas que era dado como certo. A mãe da
jovem se havia negado a fazer a denúncia penal contra seu filho, em
representação legal da filha, quando lhe foi dada essa oportunidade
no Juizado. E pela frieza que tinha” essa mulher, concordavam que
ela devia ter ajudado seu filho, também adolescente, a fugir. Esta
cumplicidade entre e e filho estava estabelecida como um fato
entre as administradoras, e que esta teria sido a razão da tentativa de
suicídio da adolescente, conforme ela havia contado para S.S.
quando esteve internada no Hospital de Crianças.
Este fragmento foi apresentado com o intuito de esclarecer como se produzia a
integração da fragmentação nas administradoras. Nesse sentido se deve atentar para o
que foi proposto sobre os três vetores de memórias e assinalar uma sorte de cálculo
entre eles, do qual deveio uma resultante naquela oportunidade: que tinha sido a mãe “a
do roubo”, sem mencionar, por exemplo, o pai, que estava naquela manhã com ela.
Por outro lado, podemos observar no fragmento anterior um plano de crenças
compartilhadas não somente entre os ‘letrados’, que identificavam, como foi mostrado,
autos e processo: a mãe tinha roubado os autos no convencimento de que assim acabaria
o processo. Concedendo crédito à versão compartilhada no Juizado o consenso
vetorial, digamos de que os autos teriam sido roubados por essa mãe, é provável
inferir que o fizesse compartilhando a crença das administradoras judiciárias a respeito.
Poderemos coincidir com que ali estava também convergindo a alta estima que
todo o nosso horizonte de referências históricas atribui aos documentos, ao que se
acrescenta o valor instrumental que tem os autos, e sua importância no âmbito judicial
mais geral, ainda que com diferenças significativas, conforme o tipo de processos de
que se trate. Nos autos está reunida a documentação que constitui ‘prova’, que perderia
parte de seu valor como tal se não se contasse, por exemplo, com seu original. Tal é o
caso hipotético, em um juízo trabalhista, de um recibo assinado por um empregador e
apresentado como ‘prova’ por alguma das ‘partes’, o qual, em face da eventualidade de
se ter que reconstruir os autos, deveria ser substituído por uma fotocópia, que diante de
uma possível prova caligráfica da assinatura desse recibo careceria de elementos de
avaliação, como o papel do original e as tintas da assinatura.
152
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
Em outros foros (Civil e Comercial, Trabalhista, de Família
11
) os autos podem ser
entregues “emprestados” aos advogados que intervêm em juízo. No entanto, é pelo
particular emprego do ‘caráter reservado das atuações’ no sentido de autos que
nos tribunais de Menores em estudo este recurso documental adquire outra aura. Como
foi explicado, não faziam parte da paisagem habitual desses tribunais advogados que
não foram funcionários judiciais. E mesmo se tratando de outros funcionários judiciais,
como os Assessores Letrados Civis não pertencentes ao foro de Menores esta
‘reserva’ adquiria conotações tais que se objetivavam em documentos de autos. Por
exemplo, escritos, apresentações de uma das Assessoras Civis, que representava uma
avó, reclamando insistentemente que não podia cumprir adequadamente com sua função
de advogada gratuita que não lhe proporcionavam cópias dos autos. Observei que
eram maiores os receios no Juizado com os advogados particulares e, em caso de o
pedido de fotocópias dos autos não ser formal e por escrito, verbalmente era sugerido ao
advogado que “estudasse os autos no tribunal”, lugar nada propício para isto se
voltarmos às descrições das dinâmicas, que já foram expostas.
Voltando ao fragmento, gostaria por fim de chamar a atenção sobre que a
integração mais importante da fragmentação do cotidiano fundamentava-se também nos
vetores de memória que tenho discriminado: o primeiro, portado pela própria
empregada que ‘levava a causa’ (que foi, desta forma, o principal artífice na
‘reconstrução’ dos autos roubados); o segundo, o vetor mnêmico elaborado na
negociação das recordações e impressões de S.S. e funcionárias que haviam atuado em
alguma(s) das instâncias de tal processo. E o terceiro vetor de memórias, expressado em
11
Contrastar com as atuações no foro de Família permitiu visualizar que a presença ou não de advogados
particulares é um divisor de águas. Nos tribunais de Família, as práticas que serão expostas mais adiante,
em termos de formas de aconselhamento, se davam entre os advogados particulares e seus clientes, e os
acordos entre advogados, representando seus clientes, não são análogos às fórmulas de compromisso,
abordadas na Parte V. Em ‘Família’, são os advogados particulares que se dirigem ao balcão para saber do
estado dos autos e tratar com o empregado que leva a causa. Quando as pessoas se apresentavam nos
tribunais de Família perguntando por suas causas, os empregados os encaminhavam direta e
imediatamente para falar com seus advogados ou com os Assessores de Família. Em todo caso, as
administradoras 'dão assessoria' a outro letrado não-especialista que esteja litigando em algum processo
do foro de Família. Outra diferença: a prática contínua de apelações (recursos à Câmara), contra medidas
dos Tribunais de Família. Em Menores, depois de mais de 50 anos de criado o foro, não foi fundado ainda
um tribunal de alçada ao qual dirigir um recurso de apelação pelas medidas adotadas pelo tribunal. E se
argumenta que não foi criado por não haver um volume suficientemente elevado de recursos em queixa
ou apelação, por isso, em caso de existirem, resolve a Câmara de Família (criada simultaneamente com o
foro de Família, em 1990).
153
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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como as administradoras dos outros Juizados conheciam e comentavam entre elas do
caso do roubo dos autos e da “garota do parque”.
IV.3 Uma ‘pequena juíza’: a empregada que leva a causa
Busca-se a partir do título deste ponto voltar a chamar a atenção em relação às
empregadas que ‘levam as causas’, chamadas de “pequenas juízas” por S.S. de um dos
Juizados de Menores no Prevencional e Civil da cidade de Córdoba. Não circunscrever
as atuações administrativo-judiciais a magistrados e funcionários, que são os que ficam
consignados nos registros documentais, permite apreender, em sua face menos
legalmente prescrita, estas formas de exercício de poder.
Ainda que a ‘pequena juíza’ atuasse no marco de uma instituição hierárquica a
judicialesse ‘levar a causa’ nos adverte que as resoluções que se tomavam a respeito
dos processos não correspondiam a linhas estritas de mando-obediência, nem mesmo
entre as próprias administradoras judiciais. O observado permite afirmar que,
majoritariamente, se tratava de atuações consensuais, e não apenas no sentido de que as
opiniões da empregada que ‘levava a causa’ eram consultadas e levadas em conta, mas
também pelo seu rol protagónico na modulação das atuações, a partir daquilo que ela
transmitia, de como o fazia e das ações anteriores e posteriores às resoluções que tinha
instado e do que deixava de instar, do que omitia fazer.
É importante reiterar o que se apontou em relação às empregadas, que eram elas
que realizavam a seleção das situações que seriam enquadradas como processos
judiciais. E ainda elas disseram, em certas conversas, que não selecionavam (“porque os
pressupostos que habilitam a intervenção estão muito clarinhos na lei”, ou “eu sempre
consulto a Secretária ou a Pró”), tal como foi mostrado no O que se toma e o que não se
toma, sua seleção estava embutida na sua leitura dos “pressupostos legais”, e na
própria consulta, em como era apresentada — no caso de que a fizessem efetivamente.
As empregadas que levavam a causa recebiam requerimentos, pedidos por parte
dos administrados, comunicavam-se com outros profissionais que intervinham
(assistentes sociais, psicólogos); iam, em consequência, modelando aquilo que seria
gerido. Por exemplo, nas chamadas telefônicas para comentar os “resultados” de uma
entrevista psicológica de diagnóstico que fazia uma empregada para uma psicóloga de
154
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uma equipe técnica, nesses relatórios orales ia se determinando que se convocasse
algum outro membro da família extensa, prevendo que não seria positivo o ‘diagnóstico’
e que se tinha que recorrer a outro potencial guardião.
Era a empregada que ‘levava a causa’ aquela a quem se dirigiam as pessoas
envolvidas em um processo, chamando-a pelo nome, quando eram convocados a
Tribunais; com ela pedia para falar a Assessora de Menores, para perguntar detalhes
antes de emitir um parecer, ou a Assessora Civil, que representava algum pai, mãe ou
guardião; a ela recorria S.S. para relembrar um processo. Funcionava como um
repositório de saberes a respeito dos envolvidos, dos trâmites realizados, do estado em
que estava os autos, de quanto tempo fazia que (os autos) ‘não andavam’.
Nessas atuações as empregadas que ‘levavam a causa’ eram aquelas que
estabeleciam uma relação mais sustentada no tempo com os administrados. Em meio a
atuações fragmentadas, episódicas, breves, a empregada que ‘levava a causa’ era quem
integrava o processo judicial de Menores Prevencionais. A integração era pessoal, e
quem a fazia era ‘o pessoal’. É por esse viés que se efetuava a integração das atuações
através da pequena juíza, que não necessariamente registrará sua ‘intervenção’ oral.
O anterior se manifestava na prática sistemática de que, mesmo nos
sobrecarregados dias do plantão, a administradora que estivesse no balcão perguntasse,
antes de mais nada, qual era o sobrenome dos meninos, para saber a ‘letra’ e, então, qual
das suas companheiras deveria chamar para que fosse ela, desde esta primeira atuação
‘tomá-lo’ ou ‘não tomá-lo’ quem conhecesse pessoalmente os denunciantes de
uma situação, ou os requerentes de uma ‘medida’.
As atuações deveriam ser realizadas, o quanto possível, sempre pela mesma
pessoa, conhecida e referenciada, correndo-se o risco de frustrar as possibilidades de
se obter obediência. Para atingi-la, privilegiava-se este vínculo personalizado; além
disso, as pessoas envolvidas em um processo deveriam buscar a empregada que ‘levava
sua causa’, e se não a encontrasse ou estivesse ocupada, esperá-la até poder falar: ela
sabia o que tinha acontecido, assim os administrados evitavam então voltar ao início, a
contar ou a denunciar a situação, muitas vezes penosa, que os tinha levado ao balcão do
Juizado. Era para usar o jargão tribunalício uma forma de não voltar à ‘folha
zero’.
Nos modos de tratamento no marco das relações personalizadas estabelecidas
entre as empregadas que ‘levavam a causa’ e os administrados (“Avise a Laura que
155
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voltei”), podia se perceber uma familiaridade por meio do nome de pia e o tuteo
[tratamento por “tu”] que se tornava significativa se consideramos que nos
encontrávamos no Palácio de Justiça, e que a administradora era uma advogada. É
relevante assinalar, porém, que este tratamento não implicava paridade, a questão mais
importante não era alcançar a maior intimidade possível no trato, mas converter-se em
uma autoridade reconhecida.
Por parte das administradoras usava-se certa familiaridade no trato, o que
confirmava esse reconhecimento, ao mesmo tempo em que representava uma utilidade
instrumental, porque permitia simultaneamente, como vimos no relato de Ignacia,
“romper o gelo” e obter informação. Por sua vez, este trato era habitualmente retribuído
pelos administrados com pequenos presentes, como levar-lhe umas flores do jardim,
deixar de presente um desenho feito pelas crianças, ou trazer-lhe um pequeno artesanato
produzido por alguma mãe. Concordamos que emerge aqui claramente a perspectiva da
obrigatoriedade da reciprocidade explorada por Mauss (2003).
Além disso, neste mundo de inter-conhecidos — ao qual nos referimos retraçando
a presente pesquisa no ponto I.2 a gestão administrativo-judiciária de Menores era
personalizada em outro sentido, pois enquanto se ‘levava a causa’, como reconheciam
as administradoras, ao receber relatórios, ou diagnósticos, a primeira coisa em que
prestavam atenção era em quem assinava. E, conforme essa autoria, era ponderado o
conteúdo ‘técnico’.
12
Uma característica comum entre os empregados de Tribunais dos distintos foros
era a identificação do processo com os autos,
13
como foi dito, que se condensava em
expressões verbais usuais: “Onde está essa minha causa?”, “Os seus [autos] estão a
12
O fato de que foram entrevistados, no decorrer da pesquisa, profissionais técnicos da SPINA, se deve
somente, segundo minhas observações, e muito esporadicamente, ao fato de que as administradoras do
Juizado recorriam a tal equipecnico-judicial. Quando indaguei sobre o porqdessa preferência, não
me responderam diretamente, e se comentava que os profissionais da ‘equipe técnica de menores’
estavam sobrecarregados de trabalho. Contudo, como era esse o argumento que as administradoras
atribuíam às demoras em receber relatórios ou fazer diagnósticos por parte dos técnicos subordinados à
SPINA, por meio de meias palavras e comentários ditos de passagem, pude perceber que a causa era
uma certa desconfiança de administradoras do Juizado a respeito de algumas profissionais da ‘equipe
técnico-judicial’. Era neste tipo de escolhas que se percebia como os nculos pessoais entre
especialistas também modulavam as intervenções. É necessário expor aqui que tais escolhas operadas
pelos administradores dos profissionais cnicos que iriam intervir em seus processos’ também
estavam abertas à possibilidade legal de trabalhar ou com profissionais da equipe técnica ‘judicial’, ou
com os da Subsecretaria de Proteção Integral, subordinada ao Poder Executivo provincial.
13
Estudando tribunais portenhos pertencentes ao foro penal, Sarrabayrouse Oliveira (2004) ressaltou
“[…] que a causa passa a ter um dono: o funcionário responsável por acompanhar seu trâmite. Isto é,
deixa de ser ‘os autos tanto’ para se converter na ‘causa do funcionário X’”; a intenção aqui é a de
sugerir outra aresta ao que a autora propõe como “[…] esta metodologia de ‘apropriação’ das causas que
são tramitadas em um juizado […]”.
156
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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despacho”.
14
O específico nesses tribunais Prevencionais de Menores era que não
somente os autos levavam o pronome possessivo, mas também as “crianças” (“Já
vieram os meus? Os López, chegaram? Me avise quando chegarem”). Eram de
emprego generalizado expressões como “este é meu” ou “o seu”, não somente
designando o corpo material dos autos mas alguma criança ou adolescente. Também as
administradoras diziam: com os meus não houve maiores novidades”, por exemplo,
para comentar que com “seus” autos e “suas crianças”
15
não tinham acontecido novas
apresentações por ocasião do recesso dos meses de janeiro ou julho.
As administradoras, reiteradamente, comentavam comigo a importância que para
cada uma delas tinha o fato de “levar os autos”. Isto era altamente estimado como um
diferencial compensatório por trabalhar em um foro desprestigiado (tanto dentro de
“Tribunais” como no foro local em geral). Nas palavras de uma das administradoras, “[...]
no Civil, você fica anos plantado no balcão, arrumando escaninhos... as Secretárias não te
deixam decretar...”, referindo-se ao que se conhecia a respeito das empregadas judiciárias
de outros foros que, por um lado, deviam ‘cortar um dobrado’ durante anos e, por outro,
que funcionaria nesses outros âmbitos da administração judicial uma divisão de tarefas
mais correlatas aos cargos, tal como são oficialmente dispostos.
Tal compensação articulava-se com autoimagens relativas a um “interesse pelo
social”, que eram reforçadas por uma visão coletiva de que estavam oferecendo “um
serviço”. E era isto que verbalizavam como um dos motivos para estarem trabalhando
nesse foro.
16
Nesse sentido, destacavam a relevância do “acompanhamento”, que ao
longo do processo elas mesmas efetuavam (“Você sente que está fazendo algo pelas
crianças”).
14
Estar a despacho: é quando algum documento espera pela assinatura do juiz. Literalmente, se trataria de
indicar a localização dos autos no gabinete do magistrado que estivessem à espera de sua assinatura a fim
de continuar formalmente o trâmite. O ponto é o uso que se faz desse “estar a despacho”. Quando era
empregada com um advogado particular, lhe impunha uma espera, porque legalmente o empregado não
pode atuar e os advogados o sabem sem essa assinatura. Novamente, permite mostrar como na
administração judicial a gestão das esperas contribui à eficácia dos exercício de poder.
15
Seria objeto privilegiado para outra pesquisa o rastreamento em longa duração dessas designações.
Nesse sentido, a pesquisa baseada em documentação relativa a processos penais na Córdoba colonial, de
Beatriz Bixio, mostra que a fórmula de rigor do Protetor de Naturais conforme consta nos protocolos
— para se referir a outros menores (os índios) era o dito meu menor (Bixio, 1996:37).
16
Uma via de inteligibilidade para esta retórica da preocupação com o social e com o oferecimento de um
serviço pode ser encontrada naquilo que sustentam Becker e Strauss a respeito dos “postos indesejáveis”,
marcando como estes postos não são abertamente vistos como tais, mas sim que estão recobertos por uma
retórica especial, que os tornaria mais aceitáveis (1956:255) .
157
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Em outra linha, uma administradora desses tribunais dizia sobre suas “funções”:
“como eu sou pinche,
17
não vou assumir atribuições...”. Na mesma direção do
proposto a respeito de que se advertia uma necessidade de minimizar o peso moral das
atuações efetuadas por parte das administradoras, aqui, para sua própria representação,
esta administradora reforçava os limites do que lhe era não somente exigido, mas
também permitido normativamente. Este recorte não era condizente com o que pude
observar de suas atuações, de suas ‘derivações’ e de sua participação ativa nos
processos, em que, do seu lado, era consultada pelos funcionários de maior hierarquia.
Observei reiteradamente que as empregadas consideravam que suas próprias atuações
não eram decisivas, para o que contribuía sua invisibilidade nos autos (“Você não assina
nada...”); esta consciência a respeito de que as decisões são de outro (de S.S.)
conjugava-se com a linguagem escritural legalista que colaborava para um
distanciamento em relação aos efeitos, na vida dos administrados, das atuações que
realizavam; colaborava, além disso, o caráter fragmentado e rotineiro de cada atuação,
na simultaneidade do dia-a-dia em que as administradoras atendiam a numerosas
‘causas’.
18
Sobre essas empregadas que levavam as causas, outro/a S.S. afirmava que entre
suas obrigações estava o que vou sintetizar aqui como (sobre)levar a causa.
19
Segundo
S.S., “[...] os empregados não podem quebrar-se, porque assim não podem levar uma
causa”, e começava a dar exemplos de processos, como o de um avó que abusava de três
netos sob sua responsabilidade, “que eram assim”, fazendo um sinal com a mão perto
do chão, aludindo à pouca idade e à pequenina estatura das crianças. Podemos
interpretar este imperativo expressado por S.S. para poder (sobre)levar a causa como
um limite, uma interdição que cada uma das administradoras deveria impor à empatia,
entendida de uma maneira não apenas cognitiva enquanto capacidade de tomar o
lugar do outro, adotando sua perspectiva, que seria a definição estabelecida por Mead; a
concepção de S.S. referiria à empatia como uma resposta afetiva assumindo o estado
17
‘Pinche’ é o termo de uso corrente para se referir àqueles que têm um baixo posto dentro da
administração pública.
18
A respeito disto, que interpreto como uma forma cotidiana de negação, aproprio-me do que propõe
Stanley Cohen: “Mecanismos psicopatológicos como dissociação’ são bastante dramáticos para
transmitir as formas cotidianas de distanciamento de papel, compartimentação e segmentação mediante
as quais as pessoas se distanciam do que estão fazendo(2005:113).
19
O verbo sobrelevar pode ser útil para a síntese se adotarmos as seguintes acepções dicionarizadas em
Caldas Aulete: “[...] 2 Superar, suplantar [td.: Seus méritos sobrelevam seus erros] 3. Fig. Suportar,
resignar-se com [td.: sobrelevar uma crise] 5 Demonstrar resistência a; aguentar, suportar [td.:
Sobrelevava um trabalho insano]” (Aulete, 2009).
158
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emocional do outro, experimentando-o de modo empático; e ainda que envolva um
componente afetivo além de cognitivo implica, ao menos, alguma distância em
relação àquele estado (Eisenberg, 2000:677).
Atentemos agora para um manual oficial para os aspirantes ao ingresso e
ingressantes nesses tribunais “Orientação para o estagiário e meritório
20
que ingressa
no Foro de Menores” — que explicita na parte final de sua introdução:
Ao ingressar no Poder Judicial o estagiário e meritório transforma-se no
OPERADOR JURÍDICO, motivo pelo qual deve testemunhar uma série de
ações cujo destinatário é o JUSTICIAVEL.
É importante destacar que a pessoa da sociedade civil que se apresenta
para colocar uma situação que pode ou não se enquadrar na competência
material chega ao balcão com uma carga emocional, produto de uma crise
familiar na qual estão imersos seus filhos com o significado vivencial que
as crianças representam. Resulta indispensável que o empregado escute
atentamente o pedido e ordene o discurso do requerente, para enquadrar
juridicamente o caso.
Deve se levar em conta que reclamam restabelecer direitos vulnerados os
excluídos sociais, os marginalizados, as pessoas que estão em situação de
emprego assalariado, trabalhador autônomo, assalariado informal e
excepcionalmente aquelas pessoas que pertencem a um estrato social alto.
Isto motiva que o empregado deve contar com a qualidade humana
21
para
abordar conflitos e conhecimento jurídico para resolvê-los.
[...]
Em concreto, o estagiário e meritório deve indicar ao justiciável o lugar de
derivação, caso se trate do poder administrador ou de outra instituição,
porque é com a articulação correta que se oferecem canais para encontrar
uma aproximação da solução da questão.
Estas palavras de introdução servem simplesmente como um dispositivo
para que os Senhores estagiários e meritórios compreendam que fazem
20
Meritório é aquele ingressante durante o período em que ainda não foi confirmado como empregado
judicial.
21
Assim como neste material, pensado para os “novatos” ingressantes no foro, destaca-se a qualidade
humana, em um dos “considerandos” dos Acordos Regulamentares 522 e 525 série A do TSJ de outubro
de 2007, que convocam “aspirantes para preencher as vagas de Secretário e Pró-secretário para os
juizados de Menores da Área de Prevenção do Centro Judiciário da Capital”, pode ser lido: “Que em
função do posto do cargo pretendido, a convocatória deverá considerar suas características próprias, a
especificação das aptidões requeridas para cada papel, em relação à condução, à organização e à
administração dos âmbitos de exercício funcional no seu cenário sociocultural (dimensão de gerência e
administrativo-comunitária) e as incumbências funcionais do cargo (dimensão técnico-jurídica do papel
[...] concurso orientado para a seleção e a avaliação integral do postulante conforme objetivos cognitivos,
de atitudes e operativos inerentes ao papel”.
159
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parte de uma equipe de trabalho, e de um poder do Estado, A JUSTIÇA, que
oferece um serviço [itálicos meus].
O mencionado fragmento foi citado neste ponto com o intuito de propor uma
leitura que busca compreender a exigência de “qualidade humana” para as
administradoras. Tal requisito não se reduziria então a poder sobrelevar a causa sem
quebrar-se, mas também ter ‘qualidade humana’ para considerar a carga emocional que
implicaria chegar até o balcão, assim como considerar certas propriedades sociais dos
administrados. Em uma palavra, considerar a situação de vulnerabilidade na qual se
achariam. Uma administradora me dizia: “Eu pergunto a eles se precisam de ajuda para
os cospeles...
22
porque nós podemos preencher um formulário pedindo para que dêem
o dinheiro dos cospeles para os [que foram] citados”. Depois perguntei a ela se a
oferta era feita a todas às pessoas citadas, ao que me respondeu:
Não, você vê se a pessoa precisa ou não, porque já vai vendo os relatórios da
assistente social, você percebe, não apenas pelo endereço da pessoa, mas
porque você conhece os autos. Você sabe pela cara, pela roupa, por tudo
você sabe.
Aqui, instrumentalizando os conceitos de Goffman em relação aos modos de
adquirir informação acerca de outros, pondo em jogo a que possuímos,
23
na situação
narrada eram os sinais exteriores (a roupa, o rosto) o que possibilitava reconhecer se a
pessoa precisava ou não do subsídio para os cospeles.
Distingamos uma “qualidade humana”, que seria um pré-requisito no qual
valoram-se condições e propriedades anteriores dos que chegam ao tribunal, do que se
aprende na própria gestão cotidiana de menoridades, como ‘não se deixar quebrar’ para
poder levar a causa, e também desenvolver um ‘olfato’ específico que permita, como
foi exposto, dirimir quando se trata de ‘coisas de crianças’ e ‘coisas de gente grande’;
reconhecer a urgência e medir a gravidade de uma situação a partir do processamento de
impressões, algo que se aprende na própria prática, com o passar do tempo,
conformando uma ‘experiência em Menores’.
22
Em Córdoba, os cospeles são fichas para o pagamento do transporte público de passageiros.
23
Instrumentalizo a colocação segundo a qual “Para os presentes, muitas fontes de informação se
mostram acessíveis e aparecem vários portadores (ou ‘veículos de signos’) para transmitir esta
informação. Se não estão familiarizados com o indivíduo, os observadores podem coletar indícios de
sua conduta e de seu aspecto que lhes permitirão aplicar sua experiência anterior com indivíduos
aproximadamente semelhantes a ele que estão à sua frente ou, o que é mais importante, classificá-lo
com estereótipos que ainda não foram comprovados” (Goffman, 1981:13).
160
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Neste sentido, voltemos ao mencionado ‘caso Ludmila’, que se refere a um
processo judicial do foro Prevencional de Menores da cidade de Córdoba, para objetivar o
quanto era considerada uma exigência e, portanto, possível de ser recriminada, a falta de
‘olfato’. Para que compreendamos este caso, que se encontra nos antípodas da quase
totalidade dos processos geridos nos tribunais, que ficavam sob o véu da ‘reserva das
atuações’, segue abaixo um trecho de uma notícia do jornal portenho de circulação
nacional, La Nación, de 14 de setembro de 2005:
O caso de Ludmila: sofreu uma parada cardíaca
Morreu em Córdoba o bebê agredido
[...]
Porém o antecedente mais grave, e que disparou uma controvérsia sobre as
possibilidades cabíveis que existiram a fim de evitar esta tragédia, foi uma
fratura que Ludmila sofreu no braço esquerdo, no último dia 13 de julho.
Nessa ocasião, a avó paterna da menina denunciou perante a juíza de
Menores, Amalia García de Fabre, que “suspeitava” que sua neta sofria
maus-tratos.
Depois de obter os relatórios técnicos de praxe, que não corroboravam (de
acordo com as avaliações realizadas) que na casa houvesse uma situação de
violência, a magistrada decidiu que a menina podia permanecer com seus
pais.
24
Sobre o ‘caso Ludmila’ foram publicadas inúmeras informações em meios de
comunicação de massa de Córdoba, Buenos Aires (com circulação nacional), e do
exterior.
25
Esse processo, como se disse, pode ser visto à maneira de contraexemplo de
todos os outros processos geridos em uma opacidade, que (re)converte à ‘reserva das
atuações do mandato normativo em um trâmite ‘em sede judicial’ o qual resguarda os
administradores, a menos que exista um trabalho social de produção da denúncia pública
que, a partir de um caso particular como o caso Ludmila consiga se constituir como
de interesse social e político ao ser exposto publicamente, e que em Córdoba esteve
relacionado, inclusive com o previsto na Lei de Violência Familiar, de 2006. No entanto,
24
(http://www.lanacion.com.ar/nota.asp?nota_id=738642 última consulta: 25.10.08). Os grifos em negrito
e os itálicos foram utilizados aqui para representar as diferentes partes da notícia de jornal, e não me
pertencem, mas correspondem ao que foi publicado (subtítulo, título, remissão, corpo do texto).
25
A título de exemplo, pode ser lido na seção correspondente, a “cobertura internacional” do DIARIO EL
PORVENIR, da cidade do México (http://www.elporvenir.com.mx/notas.asp?nota_ id=27780), de 11 de
setembro de 2005.
161
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aqui se tem o intuito de qualificar essas atuações administrativo-judiciais enquanto gestão
de impressões. Em relação a isto, seguem abaixo trechos de notícias correspondentes a
outro jornal de abrangência nacional da cidade de Buenos Aires, PÁGINA/12, de 17 de
setembro de 2005.
26
[...]
O caso, que tem comovido a província, é muito complexo, porque até a
própria juíza está sendo investigada, que se acredita que não tomou as
providências necessárias para resguardar a menina.
[...]
Da investigação surgiu que o caso já estava judicializado, porque dois meses
antes uma das avós da criatura havia afirmado que Ludmila era agredida por
seus pais.
[...]
“Acredito que esta morte, com toda a dor tenho que dizê-lo, poderia ter
sido evitada. Eu tenho que ser muito franca. Pode ser que algum
mecanismo tenha falhado, isto sem dúvida, mas temos que perceber que a
medicina não é uma ciência exata. Não sei se os médicos podem saber se é
um mecanismo provocado ou acidental e, se o sabem e não informam,
bem...”, declarou a juíza, conforme informa o jornal La Voz del Interior, de
Córdoba.
A doutora García de Fabre rechaçou sua suposta negligência e também
colocou em dúvida a informação que deram os médicos do Hospital
Italiano, no sentido de que a menina havia sido agredida.
Sobre a primeira vez que tomou conhecimento da situação de Ludmila,
quando a internaram pela fratura do braço, a juíza disse que pensou que
“podia ter sido acidental, devido à manipulação da menina no berço, o que
atestou o médico forense”. Declarou também que, “independentemente
dessa fratura”, a criatura estava “em bom estado geral” de saúde. Fabre
disse que uma assistente social fez uma visita à casa da família e não pôde
comprovar nenhuma anomalia. “Não tinha outro tipo de provas, ainda que
fosse por olfato tinha que ter previsto que poderia acontecer uma coisa
assim, mas lamentavelmente não tinha provas para investigar a fundo”,
disse a juíza.
Sobre o relatório da assistente social, a juíza insistiu que nele dizia que “não
se encontraram indicadores que fizessem pensar que a menina estivesse em
situação de perigo”, enquanto os forenses “não observaram (a presença de)
lesões compatíveis com maus-tratos” [Itálicos e sublinhados meus].
26
http://www.pagina12.com.ar/diario/sociedad/3-56317-2005-09-11.html; última consulta: 25/10/08).
162
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Em relação às declarações da Juíza, ela, apesar de reconhecer que a morte poderia
ter sido evitada, se exime da responsabilidade, responsabilizando por sua vez os
médicos e a inexatidão da medicina para discernir entre lesão acidental e lesão
provocada, complementando ainda que a assistente social que havia realizado o relatório
não tinha nele acrescentado provas. No entanto, entre os mecanismos que tinham
falhado não figurava apenas o diagnóstico dos médicos ou o relatório da assistente
social (não havia provas para investigar a fundo). Porém, o que mais interessa aqui é
outro mecanismo que falhou: o ‘olfato’. Ela reconheceu assim o que entendo como um
traço característico desta gestão, ao dizer que “ainda que fosse por olfato” deveria ter
previsto um desfecho fatal. É este ‘olfato’, treinado para reconhecer supostas situações
de perigo ou de risco, que as diferenciam de outras que possam “ter um cheiro”
parecido, mas que não seriam revestidas do mesmo caráter. E é na experiência no foro
e esta juíza tem uma longa trajetória de mais de vinte anos ‘em menores’— que este
olfato devia ser desenvolvido.
Em seguida, vejamos como a Associação de Magistrados da Província de Córdoba
posicionou-se sobre o pedido de Júri contra a Juíza de Menores no Prevencional e Civil
que havia atuado no caso Ludmila:
O caso Ludmila colocou na picota quem, 21 anos, desempenha o cargo
de juiz de menores com dedicação e esmero, mas também está arrastando
outros que têm igual competência, e que, como aquela, conheceram a
infâmia em apresentações mal-intencionadas realizadas perante o Júri de
Ajuizamento. Não é o mais grave que qualquer um possa levantar seu dedo
acusador, pois faz parte da vida republicana que sejam julgados se
corresponder aqueles que exercem cargos, mas sim que a atuação que se
questiona dependa em grande parte dos serviços prestados pelas
dependências do Poder Executivo, cujos referentes muitas vezes abonam
temerárias imputações e omitem a parcela de responsabilidade que lhes
cabe. Em um tempo difícil como o que passamos, no qual a opinião pública
e seus meios formativos se mostram tão sensíveis e reativos quando se trata
da gestão judicial, não bastam as expressões privadas de apoio nem os
gestos oficiais de compreensão àquela que chamam de Cinderela do Poder
Judiciário’, mas que a mesma justiça reclama uma posição institucional
firme, que exija dos juízes o melhor de si, porém que, ao mesmo tempo, os
proveja com os recursos materiais indispensáveis, exigindo o equivalente do
Poder Executivo. / Em caso contrário, por não contar com a infraestrutura
163
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
necessária, sempre estarão expostos a práticas invasivas e indevidas por
parte de terceiros, cujos interesses excedem o marco do propriamente
legal… e a um passo do banco dos réus (Boletim Informativo da Associação
de Magistrados, Nº 178, de 14/10/05) [Itálicos meus].
O título deste texto é “Magistratura e vulnerabilidade” e permite abordar
novamente além da defesa corporativa de uma juíza em especial e, de forma mais
ampla dos magistrados do foro Prevencional de Menores uma série de questões
significativas para este trabalho. Em primeiro lugar, a insistência em referir-se ao “Juiz
de Menores”, construindo uma figura que mostra como está generizado esse papel, ou
seja, é concebido como “Juiz” aquele que possui a titularidade de um Juizado, ainda que
seja, como neste caso, uma mulher que exerça tal cargo.
Em segundo lugar, na defesa de uma magistrada, sua própria Associação destaca,
em 21 anos de exercício de suas funções, duas características: “dedicação e esmero”
que, concordaremos, não remetem nem ao direito nem à competência técnico-jurídica,
nem ao correto cumprimento de seus deveres funcionais e mandatos legais, mas à sua
antiguidade no foro e a características idealizadas e exigíveis de uma mãe.
Em terceiro lugar, o uso, como defesa diante de supostos ataques, do argumento
da falta dos “recursos materiais indispensáveis”, podemos pensá-lo como análogo à
situação de uma mãe que apesar da sua “dedicação e esmero”, pouco pode fazer se não
estiver provida dos recursos mínimos.
Em quarto lugar, está a forma como é apresentada esta administração judicial de
Menores Prevencionais, como a “Cinderela do Poder Judiciário”, vulnerável diante das
“carências” de todos os tipos com as quais supostamente deve lidar. podemos
encontrar uma chave de explicação para o título da nota, que conjuga magistratura e
vulnerabilidade. A figura da Cinderela porta toda a vulnerabilidade de uma órfã de mãe,
maltratada por sua madrasta e suas irmãs postiças, submetida a um tratamento de criada
e às obrigações abusivas do trabalho doméstico. E era em termos de domesticidade que
as administradoras se referiam não somente ao foro (“este é meu lar”, definia uma Pró-
secretária aludindo ao Juizado de Menores onde tinha trabalhado por mais de 20 anos),
mas também aos procedimentos que efetuavam. Assim, Zulema, uma das Secretárias
do Juizado observado, ao se referir à lei 9053 de Proteção Judicial da Criança e do
Adolescente, de 2002, destacava “que está bem ter um procedimento. Deixa de ser tão
164
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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caseiro… embora as pessoas esperem da Justiça a solução de um problema que não
seja jurídica”. Em uma palavra, reconhecia que continuava caseiro’, ainda que nem
tanto.
Por outro lado, a quantidade de ‘causas’ que levava cada uma das administradoras
do Juizado Prevencional de Menores era, em 2005, em média, de 60 processos por
empregada. Esta quantidade de processos judiciais constituía uma massa crítica de
trabalho que, apesar de seu volume, não impedia as gestões personalizadas, nem o
funcionamento dos vetores de memória expostos. E, ao mesmo tempo, tal massa
crítica contribuía, através dessa gestão da fragmentação, para “(sobre)levar as causas”.
Não era apenas um conjunto de operações burocráticas, de formatação administrativa —
tal como uma breve carta que resumia uma situação familiar, quando se enviava uma
pessoa à Assessoria para começar a etapa pré-jurisdicional ou os autos, como
ferramenta mnemotécnica que substancializava o processo, mas também a tramitação
fragmentária imposta por essa relativa sobrecarga de trabalho, a qual contribuía para a
efetividade desta gestão de menoridades.
27
Para objetivar o protagonismo da empregada que ‘leva a causa’, analizaremos
agora duas alterações, das quais fiquei sabendo a partir dos comentários feitos pelas
administradoras a respeito de seus ofícios’.
28
A primeira consistiu em um adendo
introduzido nas fórmulas de escrita dos “ofícios de constatação e eventual retirada”.
Uma administradora inseriu uma cláusula que indicava ao pessoal técnico da área do
Poder Executivo que realizava as constatações no endereço onde a criança estivesse,
para que, em caso de se avaliar in situ que se deveria retirar a criança desta casa (por
uma ‘situação de risco’), ela seria consultada à qual pessoa adulta de sua família
extensa poderiam recorrer, antes de acudir diretamente a uma “internação”, lugar onde
a criança deveria passar a noite, ou o final de semana, até que fosse levada ao Juizado.
Conforme me disse esta administradora, havia feito o adendo acima descrito em
sua convicção de que isto era o que deveria ser feito”, seguindo os princípios da
27
É radicalmente diferente, em termos de magnitude de trabalho, o quadro retratado por Guemureman
(2005a) a respeito de tribunais de menores em regiões do conurbano bonaerense, onde cada empregado
era responsável por milhares de causas e, portanto, era impossível que tivesse as relações personalizadas
que caracterizam o vínculo tutor-tutelado observado no foro prevencional de menores de Córdoba.
28
Os ofícios são peças textuais nas quais se solicita formalmente, a partir de alguma instância judicial,
que seja realizada uma gestão ou uma diligência de qualquer tipo.
165
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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CDN e o que manda” a lei nacional interna que a retoma, e foi imitado por outras
empregadas de sua mesma Secretaria. Tal torsão, que não foi discutida nem com a
Secretária nem com S.S., há meses vinha sendo realizada regularmente, coexistindo
com a fórmula anterior, pela qual, em caso de retirada, indicava-se que o menor fosse
colocado provisoriamente em algum instituto. Esta alteração mínima é de incidência
máxima se levarmos em conta que, ao mesmo tempo em que se transformava a criança
em alguém que podia por si mesma oferecer uma ‘alternativa familiar’, evitava-se a
“internação”, por mais provisória que seja.
Em outras palavras, são literalmente vitais as implicações que tem o fato de que
em um “ofício de constatação” pelo qual se autoriza, inclusive, a entrada em um
domicílio particular com o uso da força blica se for necessário seja redigido
ordenando que “[...] Em caso de ser comprovada uma situação de grave risco à
integridade psicofísica, deve se proceder, como medida de proteção, a imediata
retirada, provisória, e posterior transferência ao domicílio que [...] este indique”
(prévia constatação que os mesmos profissionais que realizavam a retirada deveriam
efetuar no domicílio proposto pela própria criança).
A segunda alteração remete a como outra empregada introduziu em um decreto
(consideramos aqui que devem ser assinados por S.S.) remissões à Lei Nacional de
Proteção Integral 26061. Não é de menos importância dizer que tal decreto pedia,
no marco das novas políticas governamentais que tendiam àdesinstitucionalização de
menores’, que se outorgasse um subsídio que evitasse a “internação” de dois pequenos
irmãos por dificuldades econômicas de sua e. Esta solicitação, fundamentada no
novo marco legal, ressignificava uma prática que era no Juizado considerada
“tradicional” a de solicitar que algum organismo do Poder Executivo outorgasse
determinados subsídios e passou despercebida, introduzindo sub-repticiamente um
novo sentido a uma atuação.
Por último, sobre a base daquilo que foi mostrado até aqui, e que se intenta ser
de contribuição no sentido contrário ao prefigurado pela legislação, que refere
exclusivamente ao Juiz de Menores, construindo uma figura que, no meu entender, foi
reforçada a mesmo pelos críticos mais afiados de sua arbitrariedade. Esta poderia ser
a contribuição de um trabalho como este, empenhado em uma indagação microfísica
de determinados exercícios de poder estatal.
166
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IV.4 Formadas em Menores
Depois de expor a centralidade da empregada que ‘leva a causa’ nas atuações dos
tribunais Prevencionais de Menores de Córdoba, este ponto busca delinear suas
trajetórias profissionais e, a partir da constatação de que sua formação está circunscrita à
própria administração judicial, serão exploradas as formas de transmissão de saberes
nesta “escola”. Entre as ‘pequenas juízas’ devem ser incluídas duas funcionárias: a
Secretária e a Pró-secretária de cada Juizado, pois, além de suas tarefas de chefia de
pessoal e de organização interna das tarefas no Juizado, levam junto a estagiários,
29
contratadas e empregadas que estão começando, os processos judiciais (e os autos) sob a
a responsabilidade destas últimas em função da divisão do trabalho ‘por letra’
descrita. Além de levarem juntas a causa, de tom didático, as Secretárias e as Pró-
secretárias subsidiam e respaldam o ‘levar a causa’ das outras empregadas.
30
Para o tratamento das trajetórias dessas administradoras, foram omitidas as
remissões diretas ao organograma de empregadas e funcionárias do Juizado, assim
como os seus lugares específicos de trabalho nas salas do Juizado, apresentado no
ponto III.2, a fim de evitar uma fácil identificação. Os dados apresentados a respeito de
suas trajetórias de trabalho foram construídos a partir das informações que elas mesmas
me proporcionaram, e indicam o impacto e o nítido viés que a carreira judicial deixou
como socialização secundária. Dentro dos limites fixados para esta textualização, as
29
O ingresso como estagiário se dentro de um regime de estágios, estabelecido entre a Escola de
Advocacia da Faculdade de Direito e Ciências Sociais da Universidade Nacional de Córdoba e o Poder
Judiciário da província, através do qual a Faculdade seleciona estudantes interessados, segundo uma
ordem de mérito estabelecida pela média de suas qualificações nas matérias realizadas na carreira de
advocacia, diferente do sistema de ingresso dos empregados, que é realizado através de um processo de
seleção estabelecido pelo próprio Poder Judiciário. Os estagiários trabalham duas horas a menos que o
restante dos empregados, recebem uma remuneração menor que não constitui salário, por carecer de
contribuição previdenciária e outros benefícios sociais e trabalhistas. No entanto, o antecedente e/ou a
qualidade de estagiário representa uma pontuação na hora de prestar concurso para entrar como Meritória
no Poder Judiciário. Os ingressantes, através deste processo de seleção judicial, antes de se tornarem
empregados devem fazer “méritos” durante seis meses, para serem confirmados na folha de pessoal
permanente do Poder Judiciário.
30
Podemos instrumentalizar a respeito da ideia de Bourdieu sobre o fato de que “A influência dos grupos
poderosamente integrados, cujo limite (e modelo prático) é a família convencional, e se deve em grande
medida ao fato de que estão unidos por uma collusio na illusio, uma cumplicidade fundamental na
fantasmagoria coletiva, que garante a cada um de seus membros a experiência de uma exaltação do eu,
início da solidariedade baseada na adesão à imagem do grupo como imagem encantada do próprio eu”
(2006:21).
167
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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trajetórias irão se agrupar em conjuntos por postos formalmente estabelecidos,
31
sem
especificar a relação com uma determinada Secretaria (divisão tripartida que cada
Juizado de Menores tem de seu pessoal e do trabalho, como foi exposto a respeito dos
‘plantões’).
A seguir, serão resumidas as trajetórias das ‘pequenas juízas’, estabelecendo como
convenção a categoria funcionárias, que é a usual no foro local para se referir, entre
outros, aos cargos de Secretárias e Pró-secretárias; para as restantes administradoras,
agrupam-se as de empregadas, contratadas e estagiárias.
Funcionária A. Era empregada do Poder Judiciário 30 anos, para o qual entrou
ainda sendo estudante de Direito. Trabalhou até 1990 no foro Civil, e 15 anos
trabalhava no de Menores, três dos quais atuando no Juizado Correcional de Menores, e
12 em uma Assessoria de Menores.
Funcionária B. Desde sua entrada no Poder Judiciário, em 1985, sendo
advogada, trabalhou no foro de Menores, na sua parte Prevencional. Nos primeiros 18
anos esteve em outro Juizado de Menores (com uma breve interrupção, na qual
trabalhou no Poder Judiciário provincial, mas fora da cidade de Córdoba), e dois
anos trabalhava no Juizado observado.
Funcionária C. Começou a trabalhar em Tribunais enquanto ainda era estudante de
Direito, como empregada em um Juizado Prevencional de Menores, 19 anos atrás.
Depois de graduada, trabalhou dois anos nos tribunais de uma cidade do interior
provincial, no foro Civil. Trabalhava neste Juizado há 4 anos.
Funcionária D. Havia entrado no Poder Judiciário 25 anos, quando cursava o
ano da carreira de Direito. Seus primeiros cinco anos foram como empregada em
uma Vara Civil, depois do qual começou a trabalhar no foro de Menores, em uma
Assessoria. Depois de dois anos ali, passou a outro Juizado Prevencional de Menores, e
há três anos foi confirmada no cargo que ocupava neste Juizado.
31
O escalão dos empregados do Poder Judiciário da Província de Córdoba prevê os seguintes postos:
Meritório, Auxiliar, Escrevente, Maior, Oficial, Oficial Maior, Secretário, Pró-secretário. Para o ingresso
como empregado, é realizada uma prova de seleção. Uma vez lá dentro, a primeira mudança de posto (de
Meritório a Auxiliar) não tem uma correlação estrita com os anos de antiguidade, mas sim ficam a critério
do Tribunal Superior de Justiça. As mudanças de postos restantes ocorrem em virtude da antiguidade no
cargo e dos antecedentes do próprio desempenho no cargo, que incluem presença, pontualidade, entre
outros. Pode se subir, também por disposições do TSJ, provisoriamente, aos cargos de Secretário e Pró-
secretário. No entanto, tal subida de posto se estabiliza depois de aprovado nos respectivos concursos.
168
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Funcionária E. Ingressou na carreira judicial como escrevente no foro Trabalhista,
sendo graduada em direito, onde trabalhou durante nove anos. Nos últimos 25 anos,
trabalhou no foro de Menores, na área Prevencional, e neste Juizado há 6 anos.
Funcionária F. 18 anos, quando ingressou em Tribunais, trabalhava no foro
Prevencional de Menores atuando em dois Juizados de Menores diferentes com
exceção de um ano em que trabalhou em um Juizado Correcional de Menores.
Empregada a). Tinha começado a trabalhar no Poder Judiciário três anos,
alguns meses antes de se graduar como advogada. Enquanto estudava, trabalhou como
estagiária na mesma Secretaria do Juizado na qual continuava trabalhando.
Empregada b). Ingressou no Poder Judiciário, e neste Juizado Prevencional de
Menores dois anos, sendo advogada, e havia trabalhado em duas Secretarias
diferentes deste mesmo Juizado.
Empregada c). Trabalhava neste Juizado cinco anos. tinha se desempenhado
em uma Assessoria de Menores e em outro Juizado Prevencional de Menores.
Trabalhava no foro de Menores 16 anos e, embora estudasse Direito ao ingressar em
Tribunais, não concluiu seus estudos.
Empregada d). Trabalhou no Poder Judiciário durante seus últimos dois anos
como estudante de Direito, como estagiária em outro Juizado Prevencional de Menores.
E três anos fazia-o neste Juizado; completava, portanto, cinco anos no foro de
Menores.
Empregado e). Trabalhava desde seu ingresso em Tribunais 10 anos, neste
mesmo Juizado Prevencional de Menores. Antes disso, tinha abandonado a Faculdade
de Direito.
Empregada f). Em 1999 começou a trabalhar como estagiária neste Juizado de
Menores; foi contratada em 2002, e transferida para o foro Civil. três anos se
desempenha novamente neste Juizado Prevencional, em função do que completou seis
anos ‘em Menores’.
Empregada g). Havia trabalhado como estagiária durante dois anos no foro de
Família, o primeiro em um Juizado e o segundo em uma Assessoria de Família. um
ano e meio trabalha em uma das Secretarias deste Juizado, depois de ser aprovada no
processo de seleção para empregados.
Empregada h). Era estudante avançada de Direito, e tinha começado como
empregada há três anos neste mesmo Juizado de Menores.
169
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Empregada i). Começou a trabalhar no foro de Menores como estagiária em uma
Assessoria de Menores, onde atuou durante dois anos. No último ano, trabalhou como
empregada neste Juizado, e estava a ponto de se graduar como advogada.
Empregada j). Ingressou depois do processo de seleção para empregados um
ano e meio, sendo já graduada em Direito.
Empregado k). Trabalhava um ano neste Juizado, como estagiário, e estava
cursando o último ano da carreira de Direito.
Cabe ressaltar ainda que, com exceção de uma das empregadas (que tinha nascido
em outra província argentina), todas as funcionárias e os empregados eram oriundos da
cidade ou da província de Córdoba, e que, salvo uma empregada que realizava seus
estudos de Direito na Universidade Católica de Córdoba, todos estudavam ou o
tinham feito na Escola de Advocacia da Faculdade de Direito da Universidade
Nacional de Córdoba. Quanto às suas idades, as funcionárias estavam na faixa que vai
dos 40 aos 50 anos; as empregadas, entre os 30 os 40 anos; e os estagiários e as
contratadas, entre 25 e 30 anos. As funcionárias, exceto uma que estava divorciada,
eram todas casadas, e tinham em média dois filhos. Dentre as empregadas, seis delas
eram solteiras e sem filhos; duas estavam casadas e não tinham filhos, e quatro eram
casadas e tinham ao menos um filho.
Com exceção de uma das funcionárias, que tinha ingressado através de um
concurso para seleção de empregados que foi convocado excepcionalmente em 1980, as
demais funcionárias de longa data tinham ingressado como empregadas no Poder
Judiciário por recomendação de algum funcionário ou magistrado judicial; à diferença
das empregadas, que tinham sido selecionadas através de um processo regular de
seleção comum a todo o Poder Judiciário provincial de antecedentes, prova
escrita e prática (de informática), sistema em vigência durante a última década. Como
resultado desse processo, havia uma ordem de mérito dos aprovados, que deveriam
informar quais eram os três foros de sua preferência. A maioria das empregadas
enfatizava que o foro de Menores estivera entre suas opções naquele momento; e com
exceção de duas administradoras, ou eram advogadas, ou estavam próximas de se
graduarem como tal.
Eis uma diferença entre as primeiras décadas do foro de Menores de Córdoba. Por
meio de entrevistas com uma ex-magistrada que havia ingressado no foro em 1959, dois
170
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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anos depois da criação do primeiro Juizado específico, soube que a condição de
graduado universitário em Direito não era a regra, mas uma exceção. De fato, somente
ela, o juiz e um dos Secretários eram “letrados” em tal Juizado nos anos 1960. Embora
o título de advogado trouxesse possibilidades de ascensão à magistratura como foi o
caso desta ex-juíza, que no início dos anos 1970 assumiu o cargo de Assessora de
Menores isto não impossibilitava como nos últimos anos exercer os cargos de
Secretário e Pró-secretário. Tais ascensões em cargos eram a proposta de superiores
hierárquicos, e não estava prevista a realização de concursos, nem sequer para o acesso
à titularidade de um Juizado. Até a última reforma da Constituição da Província de
Córdoba, em 1987, o sistema de eleição dos magistrados provinciais consistia na
nomeação, por parte do Governador da Província, de um candidato de um trio proposto
pela Legislatura Provincial.
Em breve, da indagação sobre as trajetórias profissionais das administradoras do
Juizado Prevencional de Menores cujas atuações eu acompanhei, bem como da
Assessoria de Menores, e do resto do foro de Menores cordobês, na sua parte
Prevencional, surgiu como regra a permanência no interior do foro de empregadas,
funcionárias e magistrados, desde o início de sua atividade de trabalho até a sua
aposentadoria. São excepcionais as trajetórias que incluem como a desta ex-
magistrada, que se aposentou em março de 2006 um exercício da profissão de
advogado fora de Tribunais, anterior ou posterior ao seu ingresso no foro, e a aquisição
de estudos não restritos ao âmbito jurídico (como esta ex-juíza Prevencional de
Menores, que também era graduada em psicologia. Conforme me foi dito, “Estando
como Secretária [no Juizado de Menores] eu me dei conta de que o direito não era
suficiente”).
Outra comum denominador dos integrantes do foro de Menores nos últimos anos
mostra majoritariamente uma circulação intra-foro e, em grande parte, dentro da área
Prevencional. Trata-se de empregados que tinham iniciado sua vida profissional como
estagiários e/ou empregados, geralmente no mesmo foro de Menores. E as funcionárias
apresentavam décadas de experiência em Menores.
32
O não-pertencer de longa data ao
foro era recorrentemente utilizado como motivo de impugnação das opiniões daqueles
32
Instrumentalizando para estas carreiras judiciais as propostas dos modelos de Becker e Strauss,
estaríamos próximos a um modelo de movimento em direção ao interior desta instituição que pode ser
esquematizado nos seguintes termos: os novatos entrariam nas posições mais baixas, menos remuneradas
e de pior prestígio, e subiriam de posto na medida em que adquirissem antiguidade, habilidades e
experiência (Becker & Strauss, 1956:258).
171
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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que, através de concurso, tiveram acesso a cargos sem terem trabalhado anteriormente
como empregados em Menores. Assim, eram desqualificadas as opiniões de uma Pró-
secretária que, sem ter trabalhado anteriormente como empregada não apenas do foro,
mas tampouco de Tribunais, exercia seu cargo por concurso, depois de uma longa etapa
de seu trajeto profissional nas dependências do Poder Executivo provincial.
Para ponderar quão ‘formadas em Menores’ eram as ‘pequenas juízas’, abordemos
agora o desenvolvimento recente das distintas instâncias de formação acadêmico-
profissional relativa a Menores, começando pela Faculdade de Direito da Universidade
Nacional de Córdoba, que é o âmbito em que grande parte destas administradoras
obteve os títulos de graduação, para depois nos referirmos a outros âmbitos de
capacitação, especialmente o Centro Núñez de Capacitação subordinado ao Poder
Judiciário de Córdoba.
A Escola de Advocacia da Faculdade de Direito da UNC não contava em seu
plano de estudos de 1983 (anterior ao currículo atualmente vigente), nem conta até hoje,
com uma disciplina obrigatória o Direito de Menores como possivelmente se
intitularia tal disciplina — ou dos Direitos da Criança, tal como seria denominada hoje.
No Centro de Pesquisas Jurídicas e Sociais (CIJS), é oferecido desde 1996 um
“Seminário Interdisciplinar de Pesquisa sobre os Direitos da Criança”, que é publicitado
como “um espaço de capacitação específica, de formação e pesquisa em temas
vinculados aos direitos da criança e do adolescente”. Tal seminário era de participação
voluntária, e não outorgava créditos conforme o plano de estudos do currículo vigente
até 1999 na Escola de Advocacia. Também era ministrado nesta faculdade outro
Seminário sobre Direitos da Criança. Ambos eram ministrados por docentes
publicamente associados às demandas pró-implementação dos princípios da CDN, e
eram cerca de 20 estudantes os que deles participavam — em uma faculdade de mais de
8 mil alunos; e nenhuma das administradoras do Juizado, nem aquelas que conheci ao
longo de meu trabalho de campo tinham participado de nenhuma destas instâncias.
O currículo implementado a partir de 2000 para a formação de advogados prevê a
realização de disciplinas opcionais, que podem começar a ser cursados uma vez
completado o segundo ano da carreira de Direito, ou o quarto semestre da mesma.
Reparemos, portanto, que tais disciplinas começaram a ser ministradas, com o
reconhecimento de créditos para o estudante, desde os anos 2003 e 2004, e apenas para
aqueles estudantes que tivessem iniciado a carreira a partir de 2000. Recentemente,
172
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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desde 2006, começaram a ser ministradas as primeiras matérias opcionais em relação
aos direitos da infância.
A partir do plano de estudos 2000 da carreira de advocacia, prevê-se a realização
de práticas profissionais em Tribunais por parte dos alunos dos últimos anos. Uma das
opções oferecidas era a de realizá-las nas Assessorias de Menores, mas por objeção das
Assessoras, que alegavam falta de espaço físico, durante o tempo de minhas
observações somente uma estudante realizava tal prática. Conforme o que me contou,
consistia em “acompanhar a Assessora” em audiências, entrevistas e demais atuações.
A oferta de capacitação extracurricular era variada, ao mesmo tempo em que
intermitente, e não necessariamente organizada por instituições acadêmicas. Assisti a
cursos sobre distintas ‘problemáticas’ que podem se enquadrar dentro da área de
interesse das administradoras do foro Prevencional de Menores, como mau-trato
infantil, abuso sexual infantil, a partir do ano 2005.
33
Neles era majoritária a assistência
de outros profissionais (licenciados em serviço social, psicólogos, psicopedagogos),
geralmente integrantes de equipes técnicas, de diferentes dependências do Poder
Executivo e de institutos de internação de ‘menores’, que trabalhavam com a
‘problemática da infância’; e quando se tratava de advogados, era frequentemente um
mesmo grupo (entre advogados e estudantes de Direito, uma dezena de pessoas) de
ativistas pró-direitos da criança que participavam desses espaços.
Um espaço de especialização acadêmica constituiu a pós-graduação lato sensu
“Os direitos da criança e do adolescente. Estudo multidisciplinar”, ministrada no ano
letivo de 2005, e organizada pela Secretaria de Pós-graduação da Faculdade de Direito
(UNC), onde também pude constatar a rara participação de empregadas e funcionárias
“do foro”. Apenas assistiam como alunas uma Pró-secretária e uma empregada do
Juizado no qual eu realizara minhas observações.
A respeito da ‘capacitação’ que o próprio Poder Judiciário oferece através de seu
Centro “Ricardo Núñez”
34
, cabe ressaltar que inclui desde dissertações de integrantes do
Poder Judicial cordobês, como membros da equipe técnica de Menores, Assessores,
Juízes e Camaristas de Família, até figuras com reconhecimento nacional no âmbito do
direito. Então, muitas dessas instâncias de cursos ou oficinas remetiam à transmissão de
33
Para uma relação detalhada dessas instâncias, que inclui ainda encontros fora da cidade de Córdoba, ver
Anexo D.
34
A partir das estatísticas publicadas na página web do Poder Judiciário, com informação desde 2001
dos cursos e eventos do Centro Núñez, fiz um recorte daqueles que continham temática pertinente às
atuações do foro de Menores; ver Anexo E.
173
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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experiências de trabalho no Poder Judiciário (de Córdoba, ou de outras províncias, e
federal).
Além disso, quando eram incluídos cursos interdisciplinares (especialmente da
psicologia) por se considerar que auxiliariam no desempenho das funções, os
capacitadores pertenciam a equipes técnicas do próprio Poder Judiciário, hospitais e
outras instâncias da administração pública provincial. Eram raras as ocasiões nas quais
participavam legisladores, como foi a que se deu a partir da aprovação, em outubro de
2005, da lei de Proteção Integral 26061, quando se discutiuembora elipticamente
sobre as implicações que teria para o próprio exercício da administração judiciária do
foro Prevencional de Menores uma lei que tem como uma de suas leituras plausíveis a
instauração de um novo “órgão de aplicação” fora do Poder Judiciário.
Durante o período de realização das observações em Tribunais eram anunciados,
através de cartazes colados nas paredes externas dos corredores, perto dos balcões, os
cursos e os eventos pertinentes ao foro. No entanto, se encontravam poucas
administradoras dos Juizados de Menores, e o público era, na sua maioria, externo ao
Poder Judiciário.
Em resumo, não eram oferecidos estudos sistemáticos, em termos técnico-
jurídicos, dedicados aos direitos da criança, mas espaços onde geralmente se enfatizava
a interdisciplina, e dos quais participavam com idêntico protagonismo médicos,
psicólogos, assistentes sociais e advogados. Destaco ainda duas questões: a primeira,
sobre os espaços de capacitação oferecidos pelo Poder Judiciário, que funcionavam
principalmente como lugares de transmissão de conhecimento, não-sistemático e
produto das próprias ‘experiências de trabalho’ na administração, seja a estritamente
pertencente aos Juizados ou às Assessorias de Menores, seja a pertencente a equipes
técnicas subordinadas aos tribunais ou aos institutos e às áreas que dependem do Poder
Executivo. A segunda, a respeito das outras instâncias (cursos de especialização,
seminários dos direitos da criança da Faculdade de Direito) que constituíam espaços de
veiculação da vulgata dos direitos da criança e da crítica mais ou menos velada à
administração judicial estudada.
No decorrer das pesquisas para este trabalho, pude corroborar quão autorreferida
era a formação das administradoras judiciárias de Menores.
35
E foi significativa a
35
As seguintes afirmações feitas sobre o passado próximo continuavam sendo válidas para a situação
estudada nesta tese, em que magistrados são, por sua vez, produtores dos textos de referência para as
administradoras. Cito: “Em primeiro lugar, e contrariamente ao que ocorre em outras áreas do direito,
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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indicação dessas administradoras repetidamente ouvida durante minhas observações
em tribunais de que “fulana se formou na escola tal” (referindo-se a uma Secretária,
Pró-secretária, ou S.S.), mencionando também que esta tinha sido Secretária de tal S.S.,
ou havia trabalhado anos como empregada na Secretaria de beltrana. Contudo, como foi
mostrado a respeito das administradoras deste Juizado, uma marca distintiva de suas
trajetórias era a circulação intraforo, em função do que considero ser precisamente a
experiência no foro e a ênfase que se colocava nela a dimensão central a ser
considerada. Não se tratava estritamente de uma ‘escola’ identificada com
determinado(a) S.S., mas — e seguindo a metáfora — de uma ‘escola’ com mais de uma
professora, como em toda a escola.
Daí a relevância dos saberes práticos e das técnicas de gestão administrativo-
judicial de menoridades que iam transmitindo quem vinham trabalhando no foro às
empregadas recém-incorporadas. Tenhamos presente que a grande maioria as
funcionárias advindas dos concursos realizados desde a existência do Conselho da
Magistratura era a que no jargão, se chama ‘do foro’, isto é, como nos casos de S.S. e da
Assessora, que tinham quase toda a sua carreira profissional dentro do Poder Judiciário
e no próprio foro de Menores.
Para objetivar como são transmitidos esses saberes e essas técnicas de gestão,
devem ser consideradas duas didáticas: uma, ‘presencial’, e outra, ‘escritural’. O
método desta última era o do ‘modelito’, isto é, os modelos de documentos (atas,
ofícios, ‘comparendos’, protocolos de notificação, decretos, autos interlocutórios, abrir
vista) que cada empregado tinha em seu computador de trabalho, e que utilizava como
onde o grosso da produção teórica é realizada por indivíduos que não pertencem ao sistema (judiciário)
responsável por sua aplicação, um viés da literatura existente no contexto latino-americano demonstra que
os textos “clássicos” do direito de menores são produzidos, na sua maioria, por aqueles que têm ou
tiveram responsabilidades institucionais diretas na sua aplicação” (García Méndez & Carranza, 2002:14).
Nessa mesma direção, Larrandart & Otano afirmam que “Em nosso país, os principais produtores do
discurso em relação ao menor foram os próprios operadores do sistema, que foram produzindo um saber
que justificasse, mantivesse ou ampliasse seu poder” (2002:102). Assim, José González del Solar, Juiz
Correcional de Menores da cidade de Córdoba, é autor de um livro doutrinário intitulado Direito da
Menoridade. Proteção jurídica da infância, em que comenta a Lei Nacional de Proteção Integral de
Direitos de Meninos, Meninas e Adolescentes (26.061 de 2005) sendo enquadrada em categorias que os
autores da vulgata e da própria norma considerariam que ficaram extintas com a Lei do Patronato, a qual
a lei 26.061 revogou. Mais uma vez, constatamos o que tinha sido indicado em relação à particular
coexistência das categorias do ‘novo’ e do ‘velho’ paradigmas (vg. “assistência e tutela estatal na Lei
26.061”). Especialmente, para a administração em estudo, o ex-Assessor de Menores e atual Juiz de
Menores no Prevencional e Civil da cidade de Córdoba, Jorge Luis Carranza, é o autor dos textos (Um,
relativo aos princípios e às pautas a serem levados em conta na atuação judicial (de 2000); e outro,
especialmente comentando o ‘Procedimento Prevencional’ da lei cordobesa 9053, de 2002)considerados
básicos pelas administradoras, cujas atuações acompanhara, na hora de prestarem os concursos para
ascenderem aos cargos de Secretária e Pró-secretária, cujas bancas, por sua vez, o Conselho da
Magistratura integrava com o titular de algum dos Juizados.
175
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padrão, a eles adicionando os dados novos, que se referiam ao processo judicial para o
qual estavam sendo usados.
Esses ‘modelitos’ não eram exatamente iguais de Juizado para Juizado, e nem
sequer de Secretaria para Secretaria dentro de um mesmo Juizado; eram herdados, junto
com o computador que os continha, e circulavam por ocasião dos recessos judiciários,
momento nos quais, como foi explicitado, as administradoras sorteadas para formar o
Juizado de Recesso deviam ser transferidas para o âmbito físico do Juizado cujo titular
ficasse como Juiz de Recesso. E ali deviam utilizar os computadores de outras
administradoras, das que tomavam seus ‘modelitos’, e nos quais deixavam os seus
próprios.
A didática do ‘modelito’ estava institucionalizada, como se pode ver pelos
modelos de documentos disponibilizados — inclusive, ao público em geral, entre outros
materiais e textos por um Instrutivo citado (“Orientação para o estagiário e
meritório que ingressa no Foro de Menores”), redigido e compilado por funcionárias
judiciárias do foro. Duas administradoras, que ingressaram durante os anos de 2007 e
2008, disseram que sabiam, conforme me manifestaram, do tal “material de estudo”
que o Centro de Capacitação do Poder Judiciário da província de Córdoba, havia
publicado na página web oficial mas reconheciam não tê-lo lido. Então, continuava
funcionando o método de transmissão de ‘modelitos’ já descrito.
É necessário ressaltar aqui que tal método não implicava automatismo nem mera
repetição, tal como foi analisado a respeito das alterações introduzidas pelas
empregadas que ‘levam a causa’ em dois ‘modelitos’ de ofícios. Por sua vez, a
integração da fragmentação centrada na empregada que ‘leva a causa’ demonstra as
potencialidades de uma abordagem dessa administração que tenha em conta a
flexibilidade das atuações que são reelaboradas no “corpo dos autos”.
Até aqui, esta didática do ‘modelito’ nos aproximou das maneiras de transmissão
por escrito dos saberes de gestão de menoridades. Agora, nos aproximemos da outra
didática: a presencial, para apreender como a formação dessas administradoras era
produzida através do exercício cotidiano das atuações.
36
Para saber como ir ‘levando a
causa’, os aprendizados eram adquiridos por meio da copresença no atendimento do
balcão, em audiências, ao se escutar o que indagava outra administradora em uma
intimação judicial para saber como estava uma criança.
36
Villalta, para o caso dos juízes de menores portenhos, afirma que a “especialização viria através da
experiência acumulada no trabalho (2004:297).
176
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Ao mesmo tempo, tratava-se de adquirir e transmitir conhecimento e
reconhecimento com e de as outras administradoras, que permitiam saber em
relação às experiências anteriores como atuar. Assim, saber que uma Assessora de
Menores costumava realizar nas esporádicas audiências ‘do 33’, isto é, as de ‘resolução
definitiva’, alegações orais (“e depois ela te dita para a ata...”), e ter visto que a
Secretária dava a conhecer à Assessora as suas impressões a respeito de como lhe
parecia que tinha que ser resolvido no decorrer desse fragmentado trâmite que era a
audiência, dava abertura para a empregada aprender que assim poderia dizer para a
Assessora o que ela considerava necessário que soubesse, antes da Assesora emitir sua
opinião como representante da criança.
No entanto, saber que outra Assessora costumava trazer preparado por escrito seus
memoriais para anexá-los à ata de audiência ‘do 33’, e ter escutado que no dia anterior à
audiência sua companheira que ‘levava a causa’ fora até a Assessora, para lhe falar da
audiência do dia seguinte, para lhe contar um dado, permitia aprender que, para
transmitir informação que considerasse relevante e que pudesse ter influência na opinião
da Assessora, era preciso fazê-la saber disto com suficiente antecedência, isto é, antes
de ela ter preparado o documento escrito que levaria para audiência. E ali estaria o
“segredo” das administradoras, enquanto segredos profissionais, no sentido de
“compêndios não escritos de maneiras de fazer as coisas, que ajudam na realização do
trabalho cotidiano, e não um sistema de ideias e conceitos logicamente consistentes”
(Becker, 2008:19). Tratar-se-ia de regras derivadas da experiência.
Esta didática presencial ia formando um sentido de corresponsabilidade a respeito
das atuações e dos critérios comuns de ‘aplicação’ das referências normativo-
institucionais em que esses parâmetros legais estavam presentes, ao mesmo tempo em
que se conjugavam com o currículo oculto da ‘escola’ do foro de Menores. Assim,
vimos como se materializava o preceito legal a respeito do qual “as atuações serão
reservadas”, em uma particular reserva que protegia a própria administração judiciária.
A didática presencial permitia, assim mesmo, que as administradoras aprendessem
como adotar os procedimentos “corretos”.
37
Seguindo os fundamentos de Mary Douglas
(1998), interpreto que era a operatividade de uma plataforma comum de saberes e de
padrões morais que contribuía para a tomada de decisões, para encontrar “soluções” que
37
Utilizo aqui a ideia de correção que Mary Douglas, de acordo com Nelson Goodman, oferece, no
sentido de uma dupla adequação: à ão e a outras categorias que, por sua vez, se adequam a um
determinado universo (1998:30).
177
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são impossíveis, estritamente a partir de um raciocínio individual. O correto seria aquilo
que ia no sentido do e se apoiava no pensamento institucional, que mostrou-se
em ato nesta tese, e que operava como presupostos na própria identificação dos
‘problemas’ e, portanto, no encontro de uma resolução para eles.
38
Deste modo, a
experiência ia sendo incorporada e instrumentalizada como um guia para atuações
futuras.
Nessa administração pública, assim como em tantas outras, tendia-se a associar a
experiência com a antiguidade no foro de Menores, o que inclusive era avaliado nos
concursos para fazer a seleção de magistrados e funcionários em termos apenas
cronológicos, pois se pressupunha que a antiguidade pudesse conferir experiência.
Vejamos a chamada para o concurso para Secretários e Pró-secretários Letrados
dos Juizados de Menores “da área de Prevenção do Centro Judicial da Capital”, de
2007.
39
Em primeiro lugar, é uma chamada para um concurso interno, que tem como
requisito sine qua non para se apresentar estar exercendo (ou ter exercido), por pelo
menos dois anos, o cargo que se pretende (seja Secretário ou Pró-secretário).
Em segundo lugar, a respeito da avaliação dos antecedentes, esta é estabelecida
taxativamente por um Acordo Regulamentar do Tribunal Superior de Justiça e, de
acordo com ela, a antiguidade no Poder Judiciário pode outorgar até um máximo de 8
pontos, assim como a antiguidade no foro, um máximo de 4 pontos. Mais três pontos
podem ser adicionados sob o item “Presença”, que é composto a partir de uma
38
A partir do que foi proposto por Douglas, podemos pensar os procedimentos corretos que, neste sentido,
não estão baseados tanto em uma tentativa de aplicação ao caso dos procedimentos legais, mas sim do
acionamento que este grupo de administradoras faria de um estilo de pensamento enquanto conjunto de
ideias que adquirem sua força por seu próprio e contínuo uso, e que desta maneira ainda geram padrões
de interação (Douglas, 1998:37, 44).
39
Quanto aos temas que são avaliados no exame “teórico-práticopara o concurso de antecedentes e as
provas, que devem aprovar os aspirantes aos cargos de Secretário e Pró-secretário do foro de Menores
do Centro Judicial de Capital, correspondentes à convocatória para concurso (Acordo R série A N¨523
de 29 de outubro de 2007), dentro do ponto 1 (Garantias constitucionais) é incluída a remissão, não
apenas às Constituições nacional e provincial, mas também aos tratados internacionais com hierarquia
constitucional, entre os quais está incluída a CDN. O ponto 2 refere-se a “Garantias específicas do
menor de idade no processo”, sem listá-las, como no caso anterior, nem se referir a nenhuma
regulamentação. no ponto 3, intitulado “Proteção Integral de Direitos de Meninos, Meninas e
Adolescentes”, o seu terceiro item (Órgãos Administrativos de Proteção de Direitos) remete, entre
parênteses, à Lei 26061 e ao seu decreto regulamentar. Depois, no ponto 5, sob o título “Institutos de
Proteção da Criança ou Adolescente”, estão presentes como itens os seguintes: Incapacidade e
Representação; Pátrio Poder; Guarda Judicial; Guarda Judicial Pré-Adotiva (Lei Nac. 24779). No item
específico, intitulado “Prevenção”, estão incluídos os itens: Procedimento Prevencional na lei 9053;
Análise das distintas situações que estimulam a competência do Juiz de Menores no Prevencional e
Civil; Questões de competência entre a Justiça de Menores e a Justiça de Família; o Juiz Prevencional
de Menores e a lei 9283; Proteção Judicial do Juiz de Menores e o pátrio poder; Princípios que
informam a Justiça Prevencional de Menores; Medidas Tutelares Provisórias Medidas
Complementares; Recursos Processuais; Declarão Judicial de Estado de Abandono.
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consideração sobre os não-comparecimentos “por razões particulares” e as faltas quanto
à pontualidade (da mesma forma que em outros âmbitos da administração pública são
“cobrados” desta maneira os direitos trabalhistas adquiridos, que estas “faltas por
razões particulares” são não-comparecimentos do empregado ou do funcionário que não
precisariam de justificativa). Paralelamente, ter sido admitido no doutorado, contando
com projeto de tese aprovado, representa 0,75 pontos; o exercício da docência
universitária na carreira de Direito como professor titular, por concurso (o cargo
máximo), confere 3 pontos, assim como o título universitário de Doutor em Direito
confere 3,5 pontos.
Sendo assim, é possível somar, de um total previsto para antecedentes, que tem
como teto os 35 pontos, 15 pontos nos itens relativos à antiguidade judicial, à
antiguidade no foro e à presença; e apenas 6,5 pontos caso se tenha o cargo docente
universitário mais alto (professor titular por concurso), mais o título universitário de
doutorado. A ex-juíza Prevencional de Menores que eu entrevistei, cuja trajetória
abrange praticamente os 50 anos do foro (completados em 2007), no seu último
concurso para acesso ao cargo de Juiz de Menores no Prevencional e Civil, não obteve o
primeiro lugar na ordem de mérito (antecediam-na outros candidatos), mas no Conselho
da Magistratura prevaleceu o critério da “antiguidade no foro” (item no qual ela
superava os outros, melhor localizados naquela ordem de mérito conforme os exames)
e, assim, foi nomeada titular de um dos Juizados. Em outras palavras, foi o diferencial
de sua “experiência no foro” o que lhe permitiu chegar ao cargo máximo
40
da carreira
judicial em Menores.
No plano do cotidiano neste Juizado se estabeleciam também hierarquias
informais além das institucionais, apoiadas na ‘experiência no foro’; assim, a
designação de ‘letras’ que estruturava a designação de processos que estavam sob a
responsabilidade de cada empregada nem era igualitária, nem correspondia ao cargo que
tal empregada tivesse no escalão oficial, pois as empregadas com maior antiguidade
eram as que ‘levavam’ uma maior quantidade de causas, em uma lógica implícita de
“em quem mais confiamos, mais lhe confiamos”.
40
Dentro da área jurisdicional da primeira circunscrição do Poder Judiciário da província de Córdoba, não
existe uma Câmara de Menores como tribunal de alçada, apesar de sua criação legislativa, pela lei 4873
de 1968. E desde 1990, ano de criação do foro de Família, são as Câmaras de Família os tribunais que
oficiam como tribunais de alçada para apelações e recursos do foro de Menores no Prevencional e Civil,
sendo o cargo de juiz o de mais alto posto no foro de Menores de Córdoba.
179
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Era a experiência no foro que ia constituindo os ‘critérios’ que possibilitavam
efetuar complexas considerações, nas quais se articulavam de modo variável
apreciações pragmáticas, legais e morais para subsidiar as atuações desta gestão
administrativo-judiciária de menoridades. Na linguagem dos tribunais, os ‘critérios’
eram uma noção instrumental nunca explicitamente definida pelas administradoras, e
que remetia menos à maneira de interpretar um corpo legal, e mais a uma forma de
interpretar as situações que se apresentavam diante do tribunal, e aquelas que eram
‘tomadas’ para sua gestão.
Os ‘critérios’ obedeciam a dispositivos situacionais, ou seja, precisavam ser
considerados pela administração de Menores como estáveis, fixos e inquestionáveis,
ainda que em suas atuações fossem operados com uma grande flexibilidade na avaliação
das situações que se apresentam diante dos tribunais. Depois de diversas reformas
legais, eram as pequenas juízas aquelas que contribuíam com uma maleabilidade
imprescindível para os fins da administração judicial, e aquelas que garantiam a
transmissão dos saberes gerados em suas práticas atravessando as descontinuidades
legais. Para compreender como tais ‘critérios’ se tornavam procedimentais, é preciso
considerar seus aspectos incorporados nessas administradoras. Tais saberes práticos
merecem ser pensados, por um lado, como inerentes às estratégias pedagógicas que se
baseiam nos tons de voz, nas posturas corporais, nos enunciados chaves de marcação de
posições; e inscrevem-se, por outro lado, em modalidades tutelares de gestão, na medida
em que os ‘critérios do tribunal’ se corporificam nos especialistas e conduzem seus
exercícios. Estratégias tutelares exercidas pelas administradoras e que, por sua vez,
as formam — consideradas nesta investigação como cruciais para a Proteção Judicial da
Criança, tornam-se evidentes nas formas de aconselhamento e nas fórmulas de
compromisso que serão discutidas na próxima Parte V.
180
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Parte V
Técnicas de menorização
V.1 Formas de aconselhamento
Nesta parte, a descrição etnográfica das práticas de gestão administrativo-judicial
dos tribunais Prevencionais de Menores de Córdoba focará determinados procedimentos
recorrentes levados a cabo pelas administradoras, que pude observar tanto no contexto
do Juizado, quanto nas atuações da Assessoria de Menores: os aconselhamentos.
Às 10 da man de um dia de dezembro de 2006, uma jovem disse à
empregada que estava no balcão: “Estou procurando a doutora. Sou
Casas. É por causa de uns menores...”. A empregada chamou a
colega que levava a causa. Esta cumprimentou-a com um sorriso
amigável e, abrindo a porta da sala, disse: Entra, entra, pode sentar.
Você é Susana,?”. A administradora, depois de ler para ela em voz
alta algumas partes dos autos, com seriedade (“para você ver do que
estamos falando”), disse-lhe: “Se vonão mudar, mainha, vamos ter
que dá-los [está se referindo a seus filhos] a tua mãe”. Ao que
Susana respondeu: “Agora eu estou cuidando bem deles”. A
administradora, olhando-a fixamente nos olhos, lançou: “Mas não é
isso que a e diz... e a vistoria também não fala muito bem de
você...”. A jovem, menor de idade, com o encargo de seus dois
filhos, pediu entre grimas: “Antes disso, prefiro me internar com
meus meninos”, referindo-se ao fato de o querer viver na casa de
sua mãe. A administradora, depois de uma pausa, e falando
lentamente, disse: “O que a gente o vê nos autos é uma decisão
firme tua de ficar com os meninos de qualquer jeito”. E continuou:
“Para isso você vai ter que assumir as regras da tua casa... aguentar o
choro, fazer comida para eles, não sair tanto… isso é ter crianças a
seu encargo, vo está me entendendo, mainha?...
1
O desafio é que
1
Talvez o habitual uso do “mainha” (mamita) como vocativo possa representar um viés particular da
gestão estudada: a preferência das administradoras na interlocução e na consideração de outras mães.
Tomemos como evidência documental a ata de uma resolução de S.S. que leva em consideração o
“conhecimento direto e pessoal dos menores”, o parecer do forense e o fato de que parte da família
181
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você consiga demonstrar isso ao Juizado... Além do mais, eu não
quero te separar dos teus filhos, foi você quem fugiu com um
namorado”. Retomando o tom sério que tivera enquanto lia nos autos
o relatório de uma vistoria, a administradora disse: “Eu te
expliquei na primeira vez. Ou você se arrisca pelos teus filhos ou
pelo teu parceiro”. Susana, que não parava de chorar, assentia com a
cabeça diante das palavras da administradora. A administradora,
então, perguntou a Susana: Bom, ficou claro, então? Agora me
espera lá fora, eu te chamo já”. A jovem, levantando-se da cadeira,
disse “sim, sim”. A administradora tinha escrito em um post-it que
colou na capa dos autos: “A menor mãe aceita voltar com sua mãe”.
Formas de aconselhamento: práticas recorrentes das administradoras judiciais, a
quem quais denominei desta forma e que as aproxima do “conselho”, diferenciando-as
do “assessoramento técnico”, que seria o ideal e normativamente previsto. O termo
aconselhamento convoca os riscos da naturalização, que remete a uma experiência
que faz parte de relações sociais das mais diversas índoles. Contudo, está
instrumentalizado aqui para designar estas práticas nos tribunais Prevencionais de
Menores, numa tentativa de reciclar a força que tem o conselho, pensando-o —me
permito a liberdade enquanto um gênero, isto é, como parte de uma gramática, um
conjunto de restrições entre as quais poderíamos mencionar o “bom modo” geral da
enunciação, o tom persuasivo e convincente — ainda que enfático, usando o imperativo
a incitação a que se faça ou a que se deixe de fazer alguma coisa “pelo bem” do
aconselhado; sua oralidade, o emprego do exemplo moralizante e, ao mesmo tempo,
porque pressupõe o reconhecimento de alguma assimetria (de idade, de saber, de status).
Portanto, a noção proposta não é aplicável aos ‘conselhos’ que a Assessora dá ao Juiz no
desempenho de suas funções, os quais não se ajustariam à gramática assinalada.
A ambiguidade de aconselhamento (entre conselho e assessoramento) é, creio,
condizente com a ductilidade das próprias práticas que pretendo que designe. A
qualificação fundamental que os distingue dos conselhos em geral é que se deram no
marco de atuações, como as que foram abordadas, com uma gestão específica do tempo
e do espaço, que geraram esperas ‘amansadoras’ e desorientação; onde se atualizava
uma maneira diferencial de operar, segundo se tratasse de ‘leigos’ ou ‘letrados’; pelas
extensa vive no mesmo edificio, mas só convocam a avó “para colaborar com o tribunal”, isto é, a família
extensa estaria como garantia, mas no momento de convocar um familiar ao ‘tribunal’, não se chamou o
tio que vive no segundo andar da mesma casa, mas sim a avó materna, que não convivia com as crianças
(Juiz. Menores X Nom., Secr. X, PREV, Ano 2004, Leg. X, Auto X [24/10/03-20/09/04]).
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posições subjetivas entre quem realizava o aconselhamento, que não devia estar afetado
empaticamente (para poder levar a causa), e quem o recebia, que estava sofrendo
aflições e angústias. E por uma advertência velada, sempre latente, “Eu não quero te
separar dos teus filhos...”, enunciada por alguém que pode também aconselhar, dizendo
que “se você não mudar, filha, vamos ter que dar a criança para sua mãe”.
Uma advogada do foro local, que nos últimos 10 anos litigou no foro de Menores,
resumia: “Eu acho que em Menores, o conselho é uma espécie de ordem... Quando
acham que o melhor para essa família é uma determinada coisa, se não se faz isso...
sempre fica o fantasma de que vão lhes tirar as crianças”. Também, os aconselhamentos
conformavam uma constelação de indicações sobre como administrar diversos aspectos
da vida, e indicações em torno de como se conduzir para obter para si um melhor
resultado do processo.
Uma administradora recebeu secamente uma jovem grávida, dizendo-
lhe: “Eu a convoquei porque a senhora não vem...”. E mais tarde: “...
te disseram que uma das tuas meninas foi declarada em estado de
abandono?”. A jovem assentiu, baixando a cabeça. A administradora,
depois de dar-lhe uma série de informações sobre seus outros dois
filhos que estavam em um instituto, lhe disse: “Eu não vejo tua
decisão de ficar com os meninos... Tenho que estar correndo atrás de
você... Sobretudo em um caso como o teu, em que a Lila e a médica
do ambulatório trabalharam tanto...” [Lila era uma assistente social
pertencente ao programa ‘Ofícios Judiciais’ da SPINA, considerada
“uma excelente profissional”, “com muita experiência”]. A grávida
escutava em silêncio. “Você tem que acordar, tem que se mexer...
Querer ser mãe todas nós queremos daqui para fora (e faz um gesto
com a mão, da boca para fora)”, disse a administradora. Então, a
jovem lhe disse, em tom desafiante: “Parece que vocês estão
esperando ele nascer para tirar ele de mim”. A administradora,
mudando o tom de voz, e sendo categórica, lhe respondeu: “Não se
engane, minha filha. Depende de você. Se mexa”. A grávida, agora em
voz muito baixa, respondeu: “Já sei, sei”. Logo que a ‘menor mãe’
se retirou da sala, a administradora comentou comigo: “Esta moça é
mãe de uma menina de 3 anos, declarada em estado de abandono
porque tinha sido queimada e estuprada”.
Reparemos, no fragmento anterior, como a administradora, no seu
aconselhamento se valeu além dos tons de voz do uso alternado de pronomes e
183
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formas verbais que usualmente expressam proximidade (o vos), com outras geralmente
associadas à distância (o usted),
2
para modular sua atuação. E ao mesmo tempo em que
repreendia a jovem (“tenho que estar correndo atrás de você”, isto é, procurando-a e
convocando-a porque não se apresentava aos Tribunais quando deveria fazê-lo),
exortava-a a que mudasse seu comportamento, porque disto dependia o
desenvolvimento do processo.
As funcionárias que levavam as causas diziam “assessorar”, ou “fazer
assessoramento”, para se referirem às práticas que concebo aqui enquanto formas de
aconselhamento. Ao mesmo tempo em que reconheciam que era “proibido fazer
assessoramento”, admitiam que o faziam assim mesmo, porque consideravam
insuficiente ou demorada a intervenção dos profissionais técnicos (assistentes sociais e
psicólogos) que lhes forneciam os relatórios: “a gente tem que fazer o
acompanhamento”.
Apesar da insistência de S.S. e de uma das Secretárias em dizerem que deveriam
se dedicar “ao jurídico”, as empregadas concebiam seu trabalho como um “fazer de
psicólogo, assessorar, gestionar subsídios”. Ao mesmo tempo, reclamavam disto (e por
isto), nas palavras de uma administradora: “Eu não sou uma assistente social”, e se
justificavam: “Às vezes você percebe que a assistente social que vai às casas não fala
nada, então, é você quem tem que falar. Não tem outro jeito”.
Ana, uma empregada recente do Juizado, descrevia sua tarefa dizendo-me: “A
maior parte do tempo estou ocupada tentando explicar e acalmar as pessoas para
conseguir uma boa relação... é o único jeito...”. De sua parte, Gracia, empregada com
vários anos de serviço, resumia seu trabalho dizendo: “Trata-se de ajudar a família…
você tem que ser de tudo, advogada, ouvir as pessoas… e tentar não se envolver
afetivamente com elas… Somos todos sensíveis, mas cada um faz o que pode”. Diana,
outra empregada do Juizado, dizia: “Eu gosto deste foro porque acho os outros muito
frios, muito isolados da sociedade. Obviamente, a parte técnica é importante. Mas é
muito importante ter paciência e dedicação”.
2
N. de T.: As formas vos e usted não encontram correspondência exata com as formas de tratamento do
sistema pronominal da língua portuguesa. Opto, então, pela equivalência vos = você e usted = o/a senhor/
a.
.
184
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Menciono estas representações das administradoras em relação às suas próprias
atuações na medida em que elas permitem que nos aproximemos destas práticas de
aconselhamento, procedimentos sobre os quais as administradoras manifestavam a
necessidade reiterada de uso para o exercício de sua gestão.
Durante o acompanhamento do trabalho cotidiano do Juizado e da Assessoria de
Menores, escutei frequentemente como familiares de crianças envolvidas em um
processo apelavam para os aconselhamentos da empregada que levava a causa, ou se
remetiam às indicações que esta lhes dera. Ainda que o foco desta tese esteja nas
técnicas de menorização, e não nas estratégias dos administrados, cabe ressaltar que na
medida em que se ampliavam e se estendiam os aconselhamentos das administradoras,
também as demandas de aconselhamento dos administrados se expandiam.
3
Em
determinada ocasião, um homem jovem entrou em uma das salas do Juizado onde eu
estava, e disse à administradora que o recebeu: “Eu vim porque preciso de um
conselho”.
4
Nesse sentido, coloca-se o seguinte relato, feito por uma administradora em
uma conversa que mantivemos:
3
Judith Butler, em um texto em que retoma a noção de assujetissement de Althusser e Foucault, com o
duplo significado de “sujeição” e “subjetivação” (enquanto processo de vir a ser sujeito), argumenta que o
sujeito se forma e é formado na sujeição. A autora concebe a submissão [subjection] como uma forma de
poder paradoxal e, seguindo Foucault, entende o poder como algo que ao mesmo tempo forma o sujeito.
O que resultaria instrumental aqui é sua oposição à maneira comum de descrever esse processo, a saber, a
de um poder que nos é imposto e nos debilita, o qual terminamos internalizando ou aceitando, por
considerar que este entendimento omite que o sujeito começa mediante uma submissão primária ao poder,
e daí a utilidade de explorar o poder em sua ambivalência de subordinação e produção (Butler, 2001:12,
13). Neste sentido, adoto da autora “A ideia de que o sujeito está apaixonadamente apegado à sua própria
subordinação foi invocada cinicamente por aqueles que tentam desacreditar as reivindicações dos
subordinados. O raciocínio é o seguinte: se pudermos demonstrar que o sujeito persegue ou sustenta seu
estatuto subordinado, então a responsabilidade última de sua subordinação residirá talvez nele mesmo.
Acima e contra esta visão, eu argumentaria que o apego à submissão é produto dos manejos do
poder, e que o funcionamento do poder se evidencia parcialmente neste efeito psíquico, o qual constitui
uma de suas produções mais insidiosas” (Butler, 2001:17).
4
A partir do acompanhamento do trabalho cotidiano de um Juizado e de uma Assessoría de Menores da
cidade de Córdoba, constatei que não eram poucos os administrados que contavam com uma experiência
judicial anterior no foro, ou por terem sido processados, ou por processos que envolvessem algum
familiar ou vizinho. Essa experiência judicial prévia lhes permitia fazer usos estratégicos destes tribunais.
A saber, obter através de ‘atuações judiciais sumárias’ simples em sua produção administrativa e com
celeridade prestações sociais e assistenciais para crianças não sujeitas à Proteção Judicial. A este
respeito, adoto a proposta de Lygia Sigaud (2001) construída a partir do “ir à justiça” dos
trabalhadores rurais da mata pernambucana em que afirma que as motivações para reclamar
judicialmente são muito mais complexas do que supõe o senso comum, não dependendo somente de uma
consciência em relação aos direitos, nem do “acesso à justiça”. Além disso, constituía uma preocupação,
continuamente renovada e comentada entre empregadas e funcionárias, boa parte das quais se orgulhava
de poder detectar ‘dentre as pessoas’ quem estava, do outro lado do balcão, realizando essas operações
estratégicas.
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Sempre telefonam para você, porque a gente sabe que eles moram onde o
diabo perdeu as botas, então, a gente o número de telefone para que eles
liguem se precisarem. Então te ligam, te enchem de telefonemas, e assim
vão adiantando as coisas, por exemplo, quando precisam de um subsídio,
um ofício para matricular um filho na escola, um horário adiantado em um
ambulatório, eles vão pedindo. Então, na próxima vez que você os
convocar, os ofícios já estarão prontos. Cria-se uma dependência.
As formas de aconselhamento, entendidas como técnicas de menorização,
(re)instauram uma relação tutelar, são atuações sobre as ações dos administrados nas
quais a força se instala como horizonte, ainda que não se faça uso dela. Por outro lado,
sugiro que sua eficácia advém também da forma do conselho, difícil de ser resistida,
pois o conselho traz em si o pressuposto da boa intenção, de que se faz pelo interesse do
aconselhado e, ao mesmo tempo, qualifica o vínculo, porque somente pode aconselhar
aquele que tem (ou que se atribui e lhe é reconhecida) autoridade para fazê-lo, que neste
caso está, de certo modo, consagrada legalmente, mas precisa ser (re)construída. Em
relação a isto, tenhamos em conta a exigência da ‘qualidade humana’ que era feita no
Manual de Orientação aos que ingressam, mencionado. Porque para poder induzir
outros a adotarem determinados comportamentos, através das formas de
aconselhamento, seria preciso, primeiro, possuir determinados atributos morais
(vocação de serviço) e condições pessoais para não ‘se quebrar’.
5
Uma faceta crucial dessas formas de aconselhamento que pude observar é a
pedagógica, sobre a qual exponho a seguir três fragmentos.
Por ocasião do comparecimento ao Juizado de uma jovem de 17 anos,
mãe de um bebê, uma administradora lhe pergunta: “O que você faz
durante o dia?”. Diante da resposta de que tinha abandonado a escola e
que “cuido do bebê”, a administradora continuou, perguntando-lhe se
gostaria de terminar a ensino médio, dizendo: “Olha, não sei se você
sabe que existem os supletivos [refere-se aos cursos para completar a
formação secundária, em modalidades geralmente não-presenciais].
Por que você não vai se informar? Diz para tua mãe cuidar do bebê...
Porque se você estudar, você poderá conseguir um trabalho melhor,
5
Nessa direção, me aproprio da afirmação de Howard Becker para os casos de desvio, “[...] a relação
hierárquica é uma relação moral. Os grupos superiores na relação são aqueles que representam a força
da moralidade oficial e aprovada; os grupos subordinados são aqueles que, conforme se alega, violaram
aquela moralidade” (1977:102), afirmação esta que matizo aqui com a especificidade que o
reconhecimento legal da autoridade das administradoras desses tribunais imprime, segundo a qual o
legal e o moral se fundem.
186
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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alguma coisa bacana, que te mais dinheiro que o trabalho
doméstico...”.
Uma adolescente, mãe de dois filhos, dizia à funcionária que não
queria continuar estudando. “Mas o que você gostaria de fazer? A
resposta foi: “cabeleireira”. A funcionária disse: “Você sabia que nos
Centros de Participação Comunitária da Prefeitura oficinas, que
você pode ir lá? São oficinas baratas. Você pode aprender a ser
cabeleireira. Porque o ‘Chefas e Chefes’ [subsídio mensal que o Poder
Executivo Nacional outorga a chefes masculinos e femininos do lar] é
uma ajuda de emergência, é uma ajuda econômica, isto não é
suficiente. Você é jovem, vai se sentir bem conseguindo seu dinheiro,
podendo comprar suas coisas, mantendo bem seus filhos”.
Uma administradora dirigiu-se a uma adolescente com uma gravidez
avançada: “Mas vocês quiseram isso?”. A jovem respondeu
negativamente. A administradora, então, disse: “Depois que você tiver
seu bebê, mainha, ao médico do ambulatório ou do hospital,
pergunta como você pode se cuidar, porque pílulas, injeção, DIU,
assim você pode escolher se quer ter mais filhos e quando, no
momento em que você estiver segura, bem com teu parceiro e tomar a
decisão”.
Nestas formas de aconselhamento, que considero atuações tutelares, subjaz como
pressuposto um código de condutas, em alguma medida compartilhado e conhecido
entre administradora e administrada, e isto era particularmente evidente quando se
tratava dos sentidos do dever e das obrigações associados à maternidade, que se
estendiam às crianças que eram entregues a cargo de ‘terceiros’. Nas palavras de uma
administradora, “uma criança sob guarda é um filho”, e como tal deveria ser cuidado.
Os distanciamentos em relação a este código comum idealizado eram percebidos, assim
como nos fragmentos anteriores, quanto aos valores atribuídos ao trabalho, na
continuidade dos estudos como modo de ascensão social, e no planejamento familiar.
Essas diferenças em relação ao código frustravam e indignavam por vezes as
administradoras, por verem fraudadas as suas expectativas. Sirva como contraexemplo a
‘exemplaridade’ que uma das administradoras outorgava ao caso de uma senhora com
nove filhos que, além de receber subsídios do Estado nacional e municipal por sua
família numerosa, ia trabalhar como empregada doméstica nas horas em que seus filhos
187
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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menores estavam na escola. Nas palavras desta administradora, “essa inserção em um
âmbito de trabalho faz toda a diferença, mesmo que seja informal, porque até a patroa
ajuda quando a filha mais velha tem um surto, vai com ela ao Juizado, lhe dinheiro
para pagar o táxi até a Casa do Jovem” [um centro público de atenção psiquiátrica]. Esta
mulher estava sendo colocada em uma posição duplamente menorizada: a senhora
considerada “exemplar” ocupava um lugar subordinado (para exercer devidamente o
papel de mãe) em relação não só ao Juizado de Menores, mas também à sua patroa.
Ora, este exemplo era comentado entre as administradoras do Juizado, mas não
era usado para os aconselhamentos. O exemplo frequentemente empregado se apresenta
a seguir em um fragmento que expõe, por um lado, como o aconselhamento consistia —
como já foi dito — em indicações relativas à regulação da vida dos administrados e, por
outro, colocava a centralidade da condição de mãe como possível identificação positiva
entre tutoras e tuteladas.
Uma administradora, com um tom de voz que evidenciava seu
aborrecimento, dizia a uma mulher jovem que estava diante de sua
mesa: “Mainha, faz alguma coisa, faz pão caseiro, biscoitinhos de
maizena e vende no bairro, para os vizinhos, na creche das crianças”.
A mulher, desculpando-se, respondeu: “É que eu não tenho tempo”. A
administradora mudou o tom de voz, falou desta vez da mesma forma
com que eu a tinha ouvido falar outras vezes, quando se dirigia a
crianças, com paciência e determinação: “Mas você não está me
dizendo que as crianças vão à creche? Aproveita o tempo em que elas
estão lá para lavar roupa, limpar uma casa, como fazem todas as mães.
Minhas colegas vêm trabalhar aqui enquanto seus filhos estão na
escola”.
Diante da minha pergunta sobre por que dizia isso, esta administradora me
respondeu: “Eu faço esta comparação para que elas vejam que são como todas as
mulheres que têm filhos e têm que trabalhar”. No entanto, esta forma de
aconselhamento, que compara as administradas às administradoras no que tinham em
comum (filhos e a necessidade de trabalhar), de alguma maneira pressupõe uma
comunidade moral em relação às obrigações que advêm da condição materna, embora
não desconhecesse as distâncias sociais que constrangiam as administradas a trabalhar
como empregadas domésticas. Adotando a proposta de João Pacheco (1988:222-225),
podemos entender estas formas de aconselhamento que trazem intrínseca uma
188
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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dimensão pedagógica em termos tutelares, pois tal dimensão educativa constituiria a
faceta mais notória do fenômeno da tutela.
À diferença de outras formas mais explícitas e utilitárias de dominação, a
relação da tutela se funda no reconhecimento de uma superioridade
inquestionável de um dos elementos e na obrigação correlata, que esse
contrai (para com o tutelado e com a própria sociedade envolvida) de
assistir, (acompanhando, auxiliando e corrigindo) a conduta do tutelado, de
modo que o comportamento deste seja julgado adequado isto é,
resguarde ou seus próprios interesses e não ofenda as normas sociais
vigentes (1988:224. Grifos do autor).
Formas de aconselhamento em termos de lições, que se valiam do exemplo da
ação alheia (no caso, das próprias administradoras) para ensinar o modo de se conduzir.
O interesse aqui é sublinhar a efetividade desses aconselhamentos, reatualizando
relações assimétricas e menorizantes, possibilitadas também pelo caráter personalizado
que as atuações das administradoras adquiriam, nas quais eram replicadas para os
progenitores ou ‘maiores responsáveis’ as modalidades admonitórias empregadas
quando se tratava de crianças ou adolescentes.
Na sala das empregadas, Diana, diante de sua mesa, conversava com
dois meninos, o mais velho, muito inquieto na cadeira, e o menor,
escutando atentamente o que a funcionária lhes dizia: “Vocês não se
dão conta de que pode acontecer alguma coisa com vocês, andando
sozinhos de noite pelo centro? Ainda bem que o policial viu vocês na
praça San Martín...”. O menor, de uns 7 anos, era o que falava, por ele
e pelo irmão, um ou dois anos mais velho: “Mas a gente sempre vai
nos jogos, de noite, quando minha mãe vai trabalhar...”. Esta criança,
extremamente loquaz, contava que eles guardavam o dinheiro que a
mãe lhes dava para comprar lanche na escola, que ambos
frequentavam no turno da tarde, e de noite, quando a mãe ia trabalhar
em um call center, de meia-noite às 6 da manhã, eles iam a uma casa
de jogos eletrônicos que ficava aberta 24 horas no centro da cidade, a
poucas quadras de onde viviam com a mãe. “Mas a mãe de vocês não
diz para vocês ficarem em casa? A essa hora vocês devem estar
dormindo...”, continuou a empregada. Lucas, o menor, retrucava: “A
gente não tem sono de noite... a gente dorme com minha mãe até a
hora de ir para escola...”. Então a empregada, com uma expressão
séria no rosto, lhes disse: “Me escutem bem: não importa se vocês não
têm sono... é muito perigoso andar a qualquer hora os dois sozinhos. A
gente falou com a mãe pra que ela peça a mudança de turno no
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trabalho, para poder ficar com vocês de noite. Mas até essa mudança
sair, ela não pode deixar de ir ao trabalho para controlar vocês,
entenderam? O que vocês vão comer se não deixam ela trabalhar
tranquila, pensando que pode acontecer alguma coisa com vocês?”.
Lucas baixou a cabeça e parou de discutir.
Neste fragmento, a empregada, em sua atuação de aconselhamento, ao mesmo
tempo em que os repreendia por suas saídas noturnas e tentava prevenir uma ‘situação
de risco’ para os meninos, ensinava-lhes a reconhecer os limites da autoridade materna
que eles deveriam respeitar, e também lhes explicava que sua mãe tinha sido
‘aconselhada’ em relação ao que tinha que fazer: a mãe, mudar seu horário de trabalho;
os filhos, obedecerem a ordem de ficar em casa, dormindo, mesmo sem sono.
Estas formas de aconselhamento, atuações eficazes desta administração judicial,
não se encontravam registradas nos autos. Em todo caso, o que constava nos autos era o
resultado da aplicação destas técnicas. As atuações de aconselhamento para procurar um
centro de saúde em busca de algum método anticonceptivo para evitar gravidez não
desejada, ou evitar o contágio de doenças transmitidas sexualmente, eram omitidas nos
escritos. Uma administradora a quem consultei sobre o porquê destes aconselhamentos
não constarem no ‘corpo dos autos’, começou dizendo: “É que não tem lugar para isso
nos autos” e, em seguida, esclareceu: “Mas você tem que fazer isso, tem que dizer,
minha filha, se cuida, você tem 20 anos, e tem quatro... [filhos]”, justificando-se. Ao
mesmo tempo, esta mesma administradora ampliava sua resposta:
se desejamos constância na atuação… que o Assessor aconselhou tal coisa
aos guardiães... alguns mais fielmente que outros, que colocam a metade das
coisas, ou simplesmente nada… Mas fazemos isso colocando as coisas em
sua boca… Por exemplo, se você diz a uma criança que ela deve se
comportar bem porque a avó veio com queixas de seu comportamento,
colocaremos no ‘comparendo’ que “fulaninho manifesta que vai se
comportar melhor com sua avó”.
Nesse sentido, a respeito das formas de aconselhamento desta administração
judicial, S.S., ao mesmo tempo em que me autorizava a ver os autos que queria, me
dizia: “Mas você não o que se faz aqui. Os autos são muito frios”. Interpreto que
S.S. resumia que, embora as ‘recomendações e s orientações’ estejam ‘previstas pela lei
de procedimento’ e, portanto, devessem ser consignadas nos autos, ela se reportava a
que o registro não representava o que efetivamente se fazia.
190
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Consideremos então o texto da Lei provincial 9053 de Proteção Judicial da
Criança e do Adolescente, na qual estas atuações estariam sendo contempladas apenas
tangencialmente, a saber: no que diz respeito ao Assessor de Menores, a lei prevê, para
a “atuação pré-jurisdicional” isto é, aquelas situações em que a demora da
intervenção do Juizado “não implicar em um grave risco à integridade psicofísica das
crianças e adolescentes” que depois de “ouvir os interessados… emitirá as
considerações e as recomendações que estimar adequadas…”. Em relação ao Juiz de
Menores no Prevencional e Civil, a lei reza, dentre as medidas complementares:
Orientação aos pais, tutores e guardiães; e Orientação, apoio e acompanhamento
temporário para a criança ou o adolescente e/ou sua família”.
Tais prescrições legais de orientação, apoio e acompanhamento que ‘o Juiz’ pode
efetuar como medidas complementares, como as recomendações que o Assessor deve
fazer na etapa ‘pré-jurisdicional’, posso afirmar que, mais do que prescrições, são
cristalizações das práticas de aconselhamento na ‘letra da lei’ de 2002, que vinham
fazendo parte primordial dessas gestões administrativo-judiciais de Menores. Baseio
esta afirmação não somente no estudo dos autos sustanciados ao longo dos 50 anos de
existência do foro de Menores da cidade de Córdoba. Esta afirmação provém também
dos relatos das administradoras com vasta experiência em Menores sobre sua própria
prática, que mostravam estas formas de aconselhamento como amplamente
consolidadas nos usos e nos costumes do foro.
Em torno das textualizações dessas formas de atuação e presença administrativa
judicial, portanto estatal, observemos uma amostra. Em um auto arquivado antes da
vigência da lei provincial de 2002 acima citada, pode se ler que uma guardiã pede que
“a menor seja convocada pelo tribunal para ser aconselhada” (14/10/99-23/04/01 Auto.
arquivado Juiz. Menores X Nom., Secr. X, PREV., Leg. X, Auto 12). Tendo presente o
que mostrou o comentário de uma administradora a respeito de como anotavam seus
aconselhamentos, o pedido dessa guardiã poderia ter sido precisamente o conteúdo do
aconselhamento (que se levasse a ‘menor’ ao tribunal, para assim aconselhá-la).
Como adiantei, é preciso distinguir, a partir das atuações observadas, o que aqui se
conceitualizou como formas de aconselhamento, de outros ‘conselhos’ nesse mundo de
conselhos dos tribunais Prevencionais de Menores, onde os profissionais técnicos
também ‘aconselham’ medidas a serem tomadas, inclusive, por vezes, fazendo-as
191
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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constar em seus relatórios; onde o Assessor de Menores, em seus ditames escritos,
‘aconselha’ o Juiz, ‘à luz do exposto’, sobre o que considera que deva ser resolvido.
Não se aconselha do mesmo modo nem tem os mesmos efeitos, nem cumprem
os mesmos fins quando não estão envolvidos uma administradora (S.S., Assessora,
Secretária, empregada que leva a causa) e um administrado (criança, adolescente, mãe,
guardião). O que se produz entre dois ‘letrados’ (advogados), ambos pertencentes ao
e formados no mesmo foro, sob a fórmula escritural que emprega o verbo
‘aconselhar’, são intercâmbios de opiniões, pareceres entre especialistas em Menores,
correspondendo às hierarquias funcionais oficiais, que localizam em uma posição
superior o Juiz em relação ao Assessor de Menores, e os funcionários judicias em
relação aos técnicos.
Com estas formas de aconselhamento estamos tratando de atuações que
reproduziam assimetrias, recriavam dependências e possibilitavam a obtenção de
obediência. Poderíamos, para estas atuações, instrumentalizar a proposta de Bourdieu
(1985:77) a respeito das operações de magia social que constituiriam os atos de
autoridade, ou atos autorizados.
6
E destacar que, para apreender a eficácia destas
técnicas administrativo-judiciais observadas, devem conjugar-se as propriedades
estabelecidas anteriormente do conselho como gênero (pelo pressuposto de que se
realiza em prol do bem-estar do aconselhado, pelo modo persuasivo com que é
pronunciado, pelo valor presumido de advertência em face de um risco atual ou
potencial, pelo uso do exemplo moralizador) com as propriedades das administradoras e
da administração judicial de Menores que autoriza que sejam pronunciados. Por isto se
procurou, sem desconsiderar as condições institucionais que produziriam uma
disposição para o reconhecimento, ponderar devidamente sobre as condições formais do
aconselhamento,
7
propostas nesta parte como a captura da força do “conselho” para
reforçar estas formas de aconselhamento administrativo-judiciais.
V.2 Fórmulas de compromisso
6
“A eficácia específica destas manifestações é derivada de uma aparência: o princípio de um poder que na
realidade reside nas condições institucionais de sua produção e de sua recepção parece estar contido nelas
mesmas” (Bourdieu, 1985:71).
7
Nesse sentido, tentou-se levar em conta a crítica de Bauman & Briggs: “Not only institutional structures
and mechanisms confer legitimate authority to control text, but the reverse potentian also exists: Contra
Bourdieu, the appropiation and use of particular forms of discourse may be the basis of institutional
power” (1990:77). Os autores referem-se a Pierre Bourdieu, 1977 (52:649), The Economic of Linguistics
Exchanges.
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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A partir do acompanhamento das atuações desta administração judicial relativa a
‘menores sem conflito com a lei penal’, pude identificar outra das ferramentas
efetivamente empregadas para processar situações como as de crianças ou adolescentes
com “pais que manifestaram vontade de despreendimento definitivo”, “deixados por
seus pais e/ou guardiães em instituições públicas ou privadas”, “fugidos do lar dos pais
ou maiores responsáveis”, “vítimas de exploração, abuso sexual, maus-tratos”, em um
momento no qual as referências normativas eram contraditórias entre si. Tenhamos
presente que no início do trabalho de campo em Tribunais tinham vigência tanto a
Convenção dos Direitos da Criança incorporada à parte dogmática da Constituição
Nacional — quanto a Lei Nacional de Patronato de Menores, de 1919, assim como a lei
provincial de Proteção Judicial da Criança e do Adolescente, de Córdoba.
Apresento a seguir um fragmento que busca expor uma instância que presenciei,
na qual se empregava a técnica de gestão aludida, as fórmulas de compromisso.
Entraram primeiro no gabinete de S.S., acompanhadas por Josefina e
por uma Pró-secretária, duas mulheres jovens, maiores de 18 anos e
menores de 21 anos, com seus filhos; uma, com um bebê nos braços, a
outra, com outro bebê e um filhinho de três anos. Notava-se que
estavam em alerta, inquietas nas poltronas onde tinham se sentado
diante da mesa de S.S., que amavelmente as cumprimentou e
apresentou ao Assessor de Menores, que estava sentado desde que
haviam entrado. “Bom, estamos aqui por uma denúncia da polícia”,
disse S.S. Uma das jovens, que era portadora de alguma deficiência
que lhe dificultava a fala, começou a contar que no domingo passado
um homem muito mais velho que ela, amigo de seu pai, que seria o
futuro padrinho do bebê de sua irmã, estava de visita na casa onde
moram as duas com seus filhos e pais, e tinha aproveitado que o pai
dormia bêbado, na hora da sesta, e tentara violentar sua futura
comadre. A mãe das jovens bateu nele até feri-lo gravemente na
cabeça e, por isso, a denúncia policial que deu início a este processo
judicial pela suposta “situação de risco” das crianças. À medida que
prosseguia nesse relato, falando sem pausas, a jovem chorava sem
soluçar, assim como sua irmã, que apertava o filhinho no seu colo.
Antes de o mencionado relato terminar, e de S.S., o Assessor, a Pró-
secretaria ou a funcionária que levava a causa lhes dizerem qualquer
coisa, as jovens mães choravam copiosamente; uma delas repetia,
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Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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como uma ladainha, “não tire eles de mim, não tire eles de mim”,
enquanto a outra mostrava os documentos que traziam em uma bolsa
de plástico, documentos nacionais de identidade das crianças e suas
“cartteiras de vacinação em dia”. Diante disto, S.S. deixou a sua
cadeira, enquanto o Assessor pedia a uma delas, que estava ao seu
lado, “se acalme, por favor”. S.S. aproximou-se, rodeando sua mesa,
em direção à jovem que repetia a “ladainha”, e disse-lhe
reiteradamente: “aqui ninguém vai tirar seus filhos”, enquanto o
Assessor continuava tentando acalmar a outra irmã. mais serenas,
as mulheres começaram a relatar que ambas tinham sido vítimas de
violações. Quando as jovens terminaram seus relatos, S.S. indicou a
Josefina que fizesse entrar o pai e a mãe das jovens, que estavam
esperando no corredor, e que entraram muito nervosos, e os fizeram
sentar em cadeiras entre o Assessor e suas filhas. O homem apenas
respondeu aos cumprimentos, e a mãe, sem perguntar nada, voltou a
contar o ocorrido nesse domingo, afirmando que ela defendia suas
filhas “como uma cadela”.
S.S. determinou que a empregada lesse uma parte dos autos: a
denúncia realizada pelo “pessoal policial” e escrita em jargão da
polícia. S.S. solicitou à administradora: “Traduza, por favor”, depois
do que ela resumiu o que ia lendo: sobre a precariedade da casa em
que moravam, “o alcoolismo” do pai, o quão descuidadas “em sua
higiene” se encontravam as crianças, e as “condições de aglomeração”
em que viviam.
Após alguns minutos de silêncio depois da leitura, o Assessor dirigiu-
se ao pai, dizendo-lhe, “de homem a homem”, marcando as palavras,
“... você deve se comprometer a parar de beber”, e o intimou a “pedir
ao patrão uma outra casa no mesmo terreno da olaria” para ele, e
assim separá-lo da casa na qual coabitavam suas filhas, sua mulher e
seus netos. Depois, dirigindo um breve comentário a S.S., o Assessor
disse: “É preciso telefonar para o patrão para que ele se comprometa a
tornar isto factível”. O Assessor continuou, em tom intimidador,
dirigindo-se exclusivamente ao homem que o escutava com atenção,
assentindo com a cabeça, e manifestando repetidas vezes que prometia
“parar de beber” e “cuidar melhor das minhas filhas”. S.S. dirigiu-se
novamente às jovens mães, e instou-as para que, apesar de
trabalharem na olaria, tentassem cuidar do seu asseio pessoal e da
higiene das crianças, assim como a não abandonar as consultas
periódicas com o pediatra do ambulatório municipal. E elas diziam
“sim, vamos fazer isso”.
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Enquanto o pai falava com o Assessor de Menores, e depois S.S. com
as jovens, a mãe se dirigia a mim, que estava sentada muito próxima a
ela e que não tinha sido apresentada, dizendo-me quanto as suas filhas
eram “boas mães”, insistindo como se eu fosse mais um dos que iriam
resolver o processo. Antes que a Pró-secretária lhes pedisse para que
se retirassem do gabinete, S.S., que continuava de pé, encostada em
sua mesa, próxima às duas jovens, começou a perguntar-lhes, agora
em tom mais familiar, pelos nomes dos bebês, enquanto acariciava a
cabeça do menininho de três anos, que não tinha parado de andar pela
sala, mas que nesse momento estava entre sua mãe e sua tia, de e
quieto. Saíram do gabinete com Josefina, agradecendo a cada um dos
que estávamos presentes, e cumprimentando-nos muito gentilmente,
com reverência.
Reconstruo no fragmento anterior parte de uma ‘audiência do 22’ (de “contato
direto e pessoal”) que presenciei no Juizado. O processo envolvia uma família que vivia
e trabalhava em uma olaria, na periferia da cidade de Córdoba. Neste fragmento
podemos objetivar uma questão nevrálgica desta administração judicial, que tem
poderes para declarar ‘o estado de abandono’, cassando o pátrio poder, e o medo
correlato de mães e pais de que lhes “tirem” os filhos. No cotidiano do Juizado, esta não
era uma questão que se verbalizasse, e uma das jovens mães expressava-o
inequivocamente, enquanto a outra oferecia como prova material dos cuidados que elas
prodigalizavam aos seus filhos a documentação pessoal deles e as carteiras de
vacinação, indicando, além disso, que não era fácil para elas terem isso “em dia” pelas
dificuldades em que viviam, trabalhando o dia inteiro, e insistia em que não havia sido
fácil realizar o trâmite da matrícula das crianças, nem de ir ao ambulatório, que
funcionava também como centro de vacinação infantil. Insistia, portanto, em que esses
documentos fossem vistos por S.S., pelo Assessor, pela Pró-secretária, estendendo-os
para que os olhassem. Com tudo isso, estavam também dando provas de que poderiam
dar conta devidamente dos cuidados em relação aos seus filhos.
Nesses tribunais (re)atualizava-se — como já vimos a partir da senhora exemplar,
sua patroa e o tribunal — o que seria, podemos pensar, a justaposição de menorizações.
Assim, o Assessor, representante das jovens mães (que eram ainda ‘menores de idade’)
e de seus filhos, depois de escutar a avó que tinha chegado a ferir gravemente o agressor
de sua filha, dedicou-se a compelir o pai a deixar de beber e, para garantir que o homem
195
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ficasse excluído da sua casa, aconselhava S.S. a convocar o patrão, dono da olaria, a fim
de que fosse garantido este compromisso que o pai estava assumindo.
Nesse sentido, creio ser produtivo visualizar nesses processos judiciais a
menorização relativa dos maiores de idade, e como a construção de compromissos era
um instrumento privilegiado para se obter obediência nesta gestão de menoridades. Na
efetividade das atuações, não é de menor impacto a possibilidade limite de perda dos
filhos, e o medo correspondente. Aqui vale lembrar tanto a pergunta quanto a resposta
de Weber em relação às justificações íntimas da obediência:
Para que o Estado exista, os dominados devem obedecer à autoridade
alegada pelos detentores do poder. Quando e por que os homens obedecem?
Sobre que justificação íntima e sobre que meios exteriores repousa esse
domínio? [...] Compreende-se que na realidade a obediência é determinada
pelos motivos bastante fortes do medo e da esperança... (1974:99).
No fragmento tratado se apelava ao patrão da família da olaria para garantir o
compromisso do pai (já que paradoxalmente a denúncia que tinha iniciado o processo
servia de prova para as palavras da mãe, de que ela defendia suas filhas “como uma
cadela”), e ao mesmo tempo comprometiam-se as ‘menores mães’ a se esforçarem no
cuidado de seus filhos pequenos, junto ao compromisso da mãe de protegê-las .
Em um auto referente a outro processo, quem oficiava como fiador do
compromisso dos avós (que cuidavam dos filhos de sua filha mais velha) era o
advogado particular desta, que se comprometia segundo as palavras registradas na
ata de uma audiência a aconselhar a mãe em relação ao uso do dinheiro da
indenização recebida pela morte de seu filho por atropelamento, suficiente para
construir uma casa no terreno que a Municipalidade (Prefeitura) lhe cedera, e ajudar os
avós para melhorar a qualidade de vida da família.
Estas fórmulas de gestão são chamadas na linguagem destes tribunais de
com promissos, e não apenas nas atuações, mas também nos autos quando aquelas
atuações são textualizadas. O compromisso era explicitado em numerosos escritos,
referentes a audiências, certificados assinados pela Secretária do Juizado,
‘comparendos (que textualizavam uma apresentação de pais, guardiães ou das
crianças perante o tribunal), nos quais se fazia menção a que algum dos envolvidos “se
comprometeu a”.
8
8
Nos autos de meados do séc. XX, substanciados por este mesmo foro de Menores de Córdoba, depois do
escrito no qual era outorgada uma guarda, existia outro no qual o guardião aceitava o cargo e assumia “os
compromissos” que isto implicava.
196
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
As fórmulas de compromisso referem-se a um conjunto de práticas observadas
que se procurou representar a partir do fragmento anterior. Eram atuações judiciais
que se produziam no contexto de um horizonte normativo em mudança, diante de
situações em que os mínimos sociaiso foram garantidos, e naquelas em que aqueles
‘maiores que estavam sendo menorizados eram, ao mesmo tempo, situados como
incapazes relativos (para esta administração judicial, ainda que legalmente o o
fossem) de se fazerem responsáveis, enquanto eram responsabilizados no sentido de
empenharem sua palavra, ainda que isto não implicasse necessariamente um empenho
futuro no cumprimento da obrigação supostamente contraída. Não se tratava nem de
acordos nem de convênios, mas dermulas a partir das quais se estendia virtualmente
a presença estatal; por vezes, também pela via da busca de fiadores na figura de
patrões, empregados, advogados, vizinhos, que deveriam comprometer-se perante o
tribunal.
Pude observar como eram elaboradas essas fórmulas de compromisso, exigidas
verbalmente pelas administradoras, em atuações nas quais o administrado (fosse maior
ou menor de idade) era colocado em uma situação tal que não parecia ter outra saída
senão comprometer-se pela palavra, ou consentindo no que diziam as administradoras,
como em fazer determinada coisa além, muitas vezes, da possibilidade concreta de
materializar esse compromisso. É por isso que as entendo como fórmulas de
compromisso, para dar conta de atuações administrativo-judiciais, exercícios de
dominação que estão fora da lógica do contrato em sua forma canônica, que vincularia
pessoas iguais que assumem obrigações geralmente recíprocas, sendo outro dos seus
pressupostos a livre expressão da vontade das partes que contratam.
Procurar-se-á mostrar, de maneira condensada, a produção das rmulas de
compromisso por parte das administradoras no fragmento seguinte:
Uma ‘menor mãe’ apresentou-se diante da Assesoria com seus filhos e
com sua própria mãe. Tinham sido convocadas para o outro dia, mas
em vista de estarem ali, a administradora as recebeu. Depois de
elogiar as crianças (pequenas), lhes disse: “Vão um pouquinho com a
vovó, assim falamos coisas de gente grande”. Dirigindo-se à
adolescente, a administradora perguntou-lhe como ia seu tratamento
psicológico, e contou-lhe um pouco do que tinha conversado antes
com sua mãe: “Tua mãe acha que os meninos podem ir com você”.
Depois de fazer-lhe algumas perguntas a respeito do dia-a-dia “com os
197
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
meninos”, terminou dizendo-lhe, mais como uma advertência do que
como uma pergunta: “Está claro que tudo depende de você, não?”.
Logo se despediu dela, dizendo, “Agora me deixa falar um pouquinho
com tua mãe”, referindo-se à avó das crianças, que tinha ficado
esperando no corredor, cuidando dos netos. A adolescente saiu, e
entrou sua mãe, que perguntou à administradora “pelo estudo
psicológico daqui”, referindo-se à perícia psicológica cujo relatório
estava nos autos. A administradora leu para ela partes da mesma e
terminou dizendo-lhe: “Mas é você quem tem que fazer um controle
de como vão as crianças. Se não, daqui a gente pede um controle, e
aos seis meses vão lá, então, é fictício...”
Àquele pedido da administradora de controle pela avó, esta respondeu
que se as crianças se mudassem com a família do atual companheiro
de sua filha, mãe dos meninos, estariam morando muito longe da sua
casa, dando a entender que isto dificultaria o controle que lhe estava
sendo demandado. A administradora nada manifestou em relação ao
obstáculo colocado pela avó, e pediu então para falar com Karen, a
filha maia velha, de 5 anos, que entrou com seu irmão Alexis, de 3
anos, enquanto sua avó ia esperar no corredor. A menina estava
nervosa, parecia estressada, e seu irmão menor, distraído, olhava para
o computador, dando às vezes as costas à administradora, subindo e
descendo de sua cadeira. A administradora ia perguntando à menina se
estava indo à creche, com quem eles dormiam, de que brincavam, o
que faziam quando estavam com a mãe, se “o Ezequiel bebe”
(pergunta sobre se o companheiro de sua mãe bebia álcool). Depois de
escutar as respostas de Karen, a administradora chamou a avó de
novo, mas de pé, para abrir-lhes a porta para que saíssem, e lhe
disse já no vão da porta: “Bem, se a senhora se compromete a ajudá-la
[a filha], vamos aconselhar ao Juizado que os meninos fiquem a cargo
dela”.
O compromisso exigido da avó, a própria atitude (de pé, na porta de seu
gabinete), dando desse modo por concluída a entrevista, era uma fórmula que
cristalizava a decisão tomada pela administradora, dando por resolvido que a avó
deveria se comprometer. Daí a administradora não ter esperado uma resposta, não
fazendo caso dos obstáculos de tempo e pecuniários da avó para vivenciar o dia-a-dia da
casa onde iriam viver os netos. A última formulação do compromisso exigido foi na
porta, de saída, encerrando a atuação.
9
9
A construção das fórmulas de compromisso não pode prescindir de uma dimensão performativa,
profundamente conectada ao que Schechner chama de “experiências viscerais”. O autor sustenta que estas
198
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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Em seu gabinete, a Assessora de Menores, antes de emitir sua opinião
sobre a outorga da guarda de um adolescente internado ‘por disposição
judicial’, perguntava insistentemente à prima do jovem, que solicitava
ser a guardiã: “Você tem consciência dos riscos?”, referindo-se à
responsabilidade que implicaria ‘encarregar-se’ do primo. E esforçava-
se para ser clara e contundente: “um menor sob guarda é um filho...
você tem que assumir este encargo”. A prima do jovem, que escutava
com displicência, interrompendo a Assessora, dizia: “Sim, sim, eu
sei...”. A Assessora, na última das interrupções da prima do
adolescente, disse: “Precisamos do teu compromisso”.
No fragmento anterior é possível objetivar — no reconhecimento da Assessora: de
que precisamos do teu compromisso que estas fórmulas implicam, além de uma
imposição de determinadas condições, ‘em sede judicial’, o reconhecimento da
administradora de que, para poder decidir, no sentido do que considera o interesse
superior da criança (desinstitucionalizar o jovem), é necessária a anuência da pretensa
guardiã, o seu compromisso.
A partir desta perspectiva, adoto a argumentação de Adriana Vianna referindo-
se a processos de guarda e adoção tramitados em um Juizado de Menores do Rio de
Janeiro, no período de transição para o ECA [Estatuto da Criança e do Adolescente]
mostrando que a relação entre a administração e as unidades domésticas, ainda que com
imensa assimetria, não pode ser apreendida se a concebermos somente em termos de
antagonismo ou polarização.
10
Esta ideia da complementaridade, da coextensão entre o
Juizado e “as casas”, permite perceber que estas fórmulas de compromisso da
administração judicial só podem se efetivar se reforçadas pela anuência do administrado
em relação ao próprio mecanismo de compromisso, para além do fato de que este se
concretize ou não.
Detenhamo-nos em como essas fórmulas de compromisso se transmutavam nos
escritos. No ponto anterior, foi mostrado como as administradoras invisibilizavam sua
ação nos autos, textualizando como manifestação própria de uma criança o que teria
performances, “Frequentemente são como os rituais religiosos, que dependem da crença mais do que da
suspensão da incredulidade e incorporam os participantes na experiência” (2000:268).
10
Em termos da autora, “[...] a busca por soluções administrativas que garantam a autoridade da própria
administração através não do controle, fiscalização ou repressão das relações que compõem as unidades
domésticas, mas de variadas formas de negociação, conciliação, e reforço dessas mesmas relações
(Vianna, 2002:29).
199
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sido a resposta desta a um exercício de aconselhamento delas. A partir dos seguintes
extratos, revisitam-se autos para ver o retrato que a administração judicial esboça destes
exercícios de gestão.
Em um auto arquivado no ano de 2004 pode se ler, na declaração do pai do
‘menor’ perante S.S.: “Que seu filho se retirou de seu domicílio no dia de sábado
passado, não voltando até a data [...] que a criança não quer estudar [...] solicita ao
Tribunal localizar seu filho”, a primeira denúncia com que se inicia este processo sendo
a fuga da criança do lar. Mas depois (f. 8), se seguirmos os autos, o progenitor teria
manifestado: “Assim mesmo se compromete a conversar com sua esposa para melhorar
a relação mãe e filho”. E, por último, esse pai expressou “o compromisso de fazer
terapia psicanalítica” (fs. 8v e 9 - Juiz. Menores X Nom., Secr. X, PREV, Leg. X, Auto
X [09/04/01-26/04/04]).
Em outros autos, a irmã de uma “menor mãe” “comparece e diz que se
compromete a acompanhar a documentação para o prosseguimento do trâmite de guarda
de sua irmã e sobrinho...”. Acompanhando esses autos, documentou-se a citação à
audiência da ‘menor mãe’, sua irmã e “uma senhora vizinha disposta a ficar encarregada
[...] que se compromete a prestar ajuda” (Juiz. Menores X Nom., Secr. X, PREV, Leg.
X, Auto X [11/01/94-02/02/04]).
Nos autos subtanciados em um terceiro processo, a partir das denúncias de
“reiteradas fugas do lar de uma menor mãe”, efetuadas pela mãe, pode se ler que “na
primeira vez estava na casa de uma amiga e depois na casa de um tio”. No escrito que
contém o decreto, (f. 92) foi resolvido: “Sujeite-se ao compromisso assumido pela
menor de não fugir mais do lar” (Juiz. Menores X Nom., Secr. X, PREV, ano 2003, Leg.
X, Auto X [09/11/98-26/05/03]).
O que se quer aqui pontuar é o quanto, também por escrito, o compromisso se
convertia em uma fórmula padronizada nos autos, que se repetia mesmo em face de
atuações inteiramente dissímeis. A saber: exigir dos administrados que tragam um
documento que legitime sua identidade, o que estaria dentro de suas atribuições, mas
que o reconvertiam por escrito em um compromisso. Da mesma forma, as obrigações de
realizar tratamentos médicos ou psicológicos eram também transformadas em
compromisso escrito.
Estas cristalizações permitem situar tais fórmulas de compromisso em um plano
de interseção entre as obrigações legais e a anuência (“ou compromisso”) dos
200
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
administrados, que se produzia a pedido das administradoras que efetuavam as
interpelações no marco de uma situação de assimetria (e menos-valia, porque o
administrado estava sendo avaliado). Não era o acordo do obrigado o que ia se tornando
suficiente para a existência da obrigação, mas sim se produzia uma prática judicial que
pretendia apoiar, ao menos diante de certa manifestação de acordo por parte do
implicado, a obrigação de fazer algo. E, desta forma, legitimar-se, inscrevendo sujeitos
na área de exercício de seu poder de gestão de menoridades, sem que os princípios
legais se vissem afetados, ao menos formalmente.
De outro lado, estas fórmulas de compromisso impõem pensar na improdutividade
de um entendimento da vinculação entre a administração judicial e os administrados
como compartimentos estanques; além disso, esta gestão do compromisso leva a
identificar como compatíveis dois âmbitos aparentemente antitéticos: o da e o do
cálculo.
11
Haveria um cálculo presumidamente racional em relação às medidas que se
tomavam, ou do que se considerava admissível ou inadmissível, ao mesmo tempo em
que o compromisso introduzia a fé, a crença na palavra empenhada conformando uma
incumbência mista, sem por isso distanciar-se do “direito” que, desde suas origens
romanas, teria como “constitutivo não o fazer, mas sim o pronunciar(Benveniste apud
Supiot, 2007:83).
Por último, para uma compreensão destas técnicas de menorização, resultaria
infrutífero considerá-las uma “desfuncionalidade” ou inaplicação da nova legislação
vinculada ao paradigma da Proteção Integral, ou contemplar estas práticas como
remanescentes do Patronato, mas sim como parte da eficácia desses exercícios de poder
dos tribunais Prevencionais de Menores de Córdoba.
Estas formas de aconselhamento e fórmulas de compromisso não reduziam a
autoridade, mas a estendiam, com uma aparência frágil mas com capacidade de atuar
sobre as ações dos administrados. Em um marco no qual não é possível se declarar
11
Supiot, em seu texto a respeito da função antropológica do direito, sustenta: “O Ocidente moderno [...]
fez do Estado o último fiador da identidade das pessoas e da palavra dada. Mas manteve-se a distinção
entre o que, em termos gerais, poderíamos chamar o âmbito da e o âmbito do cálculo. O âmbito da
corresponde ao qualitativo e ao indemonstrável; essencialmente, foi incumbência da lei e do debate
público. O âmbito do cálculo, do quantitativo, foi incumbência do contrato e da negociação” (Supiot,
2007:18). Não obstante, o mesmo autor afirma que no núcleo da racionalidade do cálculo que marcaria a
contemporaneidade, continua havendo crenças instituídas e garantidas pelo direito; e a economia
continuaria sendo, em princípio, uma questão de crédito (no sentido etimológico de crédito, “crer”)
(Supiot, 2007:19). Para meus propósitos, é útil esta colocação, dado que se trata também nestas fórmulas
de compromisso de um “dar crédito” da administração aos administrados. Assim, inclusive, a lei de
Proteção Judicial cordobesa reza: “As manifestações dos pais e tutores que os desacreditem perante o
Tribunal poderão ser valoradas quando tiverem sido realizadas com assistência letrada” (art. 26, Lei
9053, último parágrafo).
201
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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impotente para “proteger as crianças”, tratando-se de um Estado que se comprometeu
em convênios internacionais, criou certos instrumentos legais em que se estaria diante
do que Vianna propôs como “o paradoxo de um Estado que não pode fugir daquilo que
também não consegue realizar: a sua responsabilidade sobre esses menores”.
12
Era
através destas técnicas que se viabilizavam atuações administrativo-judiciais em face de
sujeitos para os quais outros poderes estatizados não ofereciam os recursos
imprescindíveis para garantir padrões sociais mínimos, que de fato estavam prescritos
legalmente. Repassemos sucintamente as atuações viabilizadas por meio dos exercícios
de poder que se buscou textualizar nos três fragmentos anteriores.
No primeiro, ao mesmo tempo em que se reencaminhava o “perigo do
alcoolismo” do pai (e avô), traçando a manobra de colocar seu patrão como provedor de
um cômodo e fiança pessoal, (re)ajustavam-se as obrigações das mães dos meninos a
respeito dos cuidados sanitários, reconhecendo-as enquanto tais, mas também a cargo de
sua própria mãe, que já havia dado prova de que podia defendê-las.
No segundo, para viabilizar a possibilidade de que os dois irmãos pudessem
continuar vivendo com sua mãe, a administradora responsabilizava-a por isso e, ao
mesmo tempo, encarregava à avó das crianças a factibilidade dessa (re)solução; era ela
quem devia comprometer-se a controlar a situação, apesar de ter expressado as
dificuldades para fazer o que lhe fora apresentado.
No terceiro, para possibilitar a ‘desinstitucionalização’ do adolescente, a
administradora posicionou a pretensa guardiã no lugar da mãe, sujeita portanto às
obrigações correspondentes a tal condição. Se um ‘sob guarda’ é um filho, ela deveria
comprometer-se como uma mãe e, desta forma, a administradora poderia aconselhar que
o adolescente ficasse a seu encargo, para o qual necessitava do seu compromisso.
12
Sigo aqui a problematização da autora, porque se ajusta ao observado em relação a essas formas
administrativo-judiciais de gestão: a de “[...] uma imagem recorrente em parte da literatura sobre as
formas de controle da infância nos últimos dois culos, qual seja, a de que a ão dos Estados
nacionais modernos se construiu como uma ação de controle dos indivíduos através de suas crianças.
Tal posição, consagrada sobretudo por Donzelot, em sua análise sobre o surgimento dos tribunais de
menores na França, pode dar lugar a representações excessivamente polarizadas da relação entre
Estado e famílias, segundo as quais o primeiro encontra nos menores a porta de entrada para o controle
capilar das últimas. Quando me proponho a pensar critérios e práticas tutelares na escolha de
responsáveis para os menores, não avalio que as ações d resultantes se expliquem ou se caracterizem
por essa febre fiscalizadora mas, ao contrário, que es em jogo a produção da viabilidade da
delegação. Ou seja, que não se trata de usar crianças para regrar famílias e, desta forma, adultos
mas sim de buscar famílias para controlar crianças. A naturalização da condição de tutelados dos
últimos se faria menos como um estratagema de controle sobre famílias e mais como expediente
administrativo para minimizar o paradoxo de um Estado que não pode fugir daquilo que também não
consegue realizar: a sua responsabilidade sobre esses menores(Vianna, 2002:237).
202
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Ao conceber as formas de aconselhamento e as fórmulas de compromisso como
técnicas de menorização, procuro contemplar, por um lado, a força intrínseca da forma
(o conselho) e a eficácia própria da formalização dos compromissos exercida por
especialistas a partir de sua experiência na gestão de Menores; e, por outro, a
operacionalidade de exercícios de poder que reencaminham situações “desgovernadas”
através de atuações pedagógicas que (re)colocam as administradoras enquanto tutoras
sui generis.
203
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V.3 Ministério Pupilar
À guisa de recapitulação, voltemos às atuações administrativo-judiciais da
Assessoria de Menores para problematizar, a partir de outro ângulo, as questões que
foram tratadas nesta tese, pois o Ministério Pupilar pode nos servir como metáfora desta
Proteção Judicial dos tribunais Prevencionais de Menores de Córdoba.
Os Assessores de Menores têm, normativamente, uma múltipla atribuição de
funções.
13
No que se refere ao objeto desta tese, duas de suas atribuições funcionais são
pertinentes: a de representantes do Ministério Público Pupilar
14
que, enquanto tais,
davam suas opiniões a S.S. sobre as medidas a tomar, tendo em vista o ‘interesse
superior da criança’; e, ao mesmo tempo, a de representantes promíscuos do menor em
todas as instâncias do processo judicial. Mesmo naquelas situações nas quais não exista
nenhuma interdição sobre o pátrio poder dos pais ou tutores sobre os filhos menores de
idade, a representação da criança por parte do Assessor de Menores está consagrada
legalmente e se apresentava operante nos tribunais observados. Esta intervenção
específica na representação dos menores de idade é denominada representação
promíscua.
Uma das titulares deste Ministério Público na cidade de Córdoba respondeu à
minha pergunta sobre como ela entendia a representação promíscua:
[...] é uma regulamentação jurídica... a forma com a qual o Estado entra em
qualquer relação na qual haja no meio um menor de idade ou um incapaz,
porque senão tudo fica franqueado à autonomia das partes, não
necessariamente vai ser para cortar... ou para estar a favor... Com o
[representante] promíscuo se busca em geral uma função neutra que leve em
13
As Assessorias de Menores na cidade de Córdoba são oito e, segundo a lei, devem cumprir as seguintes
funções: a) Representação promíscua dos menores de idade no processo, completando a que exercem os
pais ou tutores; b) Assessoramento jurídico a pais, tutores ou guardiães quanto a seus direitos como tais
no processo; c) Defesa técnica das crianças às quais se atribuem delitos, quando não contam com
defensor particular. Não obstante, segundo relatara uma empregada a partir de sua experiência anterior
no Juizado, trabalhando em uma Assessoria, “... cada Assessoria deveria contar com seu titular, um
secretário e os empregados ou estagiários. Mas até as nomeações feitas em fins de 2004, houve três
Assessorias sem Assessor, em função do que trabalhavam apenas os empregados, e assinavam o
“despacho” ao Assessores de outras Assessorias...”. Em uma palavra, assim como falamos de
“pequenas juízas”, a partir do mote usado por S.S., poderíamos pensar também em termos de
“pequenas assessoras”.
14
Os Assessores de Menores formam, em conjunto, o Ministério Pupilar, que não depende, como os
outros defensores, em nível nacional, de uma chefatura única exercida pelo titular do Ministério Público
da Defesa. Como sintetizava uma Assessora, “não dependemos corporativa nem organicamente de
ninguém que não seja o TSJ [Tribunal Superior de Justiça da província de Córdoba], o que sempre causou
incômodo”.
204
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
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conta as questões de ordem pública e as questões peculiares do caso... está
previsto no artigo 59 do Código Civil...
15
porque é a forma que tem o Estado
de velar para que se garantam os direitos, esta é a ferramenta... Por isso,
agora, com a [Lei nacional de Proteção Integral nº] 26061... eu entendo que
o promíscuo tem que continuar ... colocarão outro nome... mas é uma visão
do Estado, não é defesa a qualquer preço,
16
entende?... Tem uma função, a de
que não haja afastamento do Estado... o promíscuo que representa o menino
não é o advogado... leva em conta outros interesses... te diria que é como
isso, como a forma de o Estado entrar para ver esses setores mais
vulneráveis, de ter uma presença [Grifos meus].
É para esta última interpretação da Assessora que me interessa chamar a atenção,
no âmbito do que se tratou a respeito das formas de aconselhamento e das fórmulas
de compromisso como técnicas que possibilitam estender a presença estatal, e em
virtude do que se mostrou sobre a operacionalidade e a importância da instância do ver
nesses tribunais Prevencionais de Menores, nos quais, para prevenir, se afirma ainda
como requisito uma pré-visão.
A Assessoria de Menores, então, através dessa representação promíscua, não
estaria representando ‘menores’ ainda que seja discutível, de fato, isto é impugnado
legal e doutrinariamente, promovendo-se a intervenção de um ‘advogado da criança’
17
mas também o Ministério Público estatal. Isto quer dizer que idealmente representa
os menores ‘promiscuamente’, além da representação ‘natural’ e legalmente consagrada
aos pais pela instituição do pátrio poder, e segundo a Lei provincial de Proteção
15
O artigo 59 do Código Civil da Nação Argentina prevê: “Além dos representantes necessários [que pelo
artigo 57 do CC são os pais ou tutores, no caso de menores não emancipados], os incapazes são
promiscuamente representados pelo ‘Ministério de Menores’ [ou Ministério Pupilar], que será parte
legítima e essencial em todo assunto judicial ou extrajudicial, de jurisdição voluntária ou contenciosa, em
que os incapazes demandem ou sejam demandados, quando se trate da pessoa ou dos seus bens,, sob pena
de nulidade de todo ato e de todo juízo que tenha lugar sem sua participação”.
16
Está se referindo à defesa dos interesses da criança ou do adolescente que, segundo a prescrição da
Lei Nacional 26061 de Proteção Integral, de 2005, deveria ser realizada pelo ‘advogado da criança’, o
que até o presente não se operacionalizou nos tribunais de Córdoba.
17
Uma boa parte da doutrina considera que o Assessor de Menores não cumpre as prescrições da
Convenção dos Direitos da Criança (CDN) neste ponto: [...] é importante ter em conta que a figura do
Assessor de Menores que vela ao mesmo tempo pelos interesses do menor e pela defesa da sociedade
não satisfaz de modo adequado a garantia dos artígos 40.2.b e 37.d da CDN” (Beloff, 2004:54). Na
mesma direção, comentaristas da lei 26061, na qual se estabelece a atuação do “advogado da criança”,
opinam que não seria o Assessor de Menores aquele que poderia cumprir este papel de advogado da
criança, quer dizer, ser representante exclusivo de seus interesses, nos limites do que se considere ‘o
interesse superior da criança’. Esses autores (Minyerski & Herrera, 2006:63-67; Mizrahi, 2006:78-90)
concordam a respeito da necessidade de que um advogado especializado que não pertença ao Ministério
Público, isto é, que não assuma a função de representante estatal, participe de todo o processo judicial no
qual esteja envolvida uma criança. Em torno deste assunto, uma funcionária do foro me indicava o duplo
imperativo a que deviam se ajustar os Assessores: em suas palavras, “considerar o que é melhor para o
menino” e “representar o Estado”, porque, segundo ela, não podia “representar o que o menino queria”.
205
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Judicial, deve “promover e exercer perante os Tribunais de Menores as ações que
procederem em defesa das pessoas e dos seus interesses”, e representar o Estado, a
moralidade pública e os seus deveres em relação à proteção da infância e da
adolescência.
18
As atuações das Assessorias de Menores possibilitam retomar a ideia de que as
práticas executadas no foro Prevencional de Menores atuam como técnicas de
menorização, que menorizam ainda que parcialmente também maiores de idade
na sua condição de responsáveis civis por um menor. Foi isto o que procurei cristalizar
com o emprego do termo menoridades no plural, o que se buscou mostrar a partir dos
fragmentos apresentados. O acompanhamento etnográfico das rotinas desses tribunais,
efetivado para esta tese, pode trazer elementos para uma reflexão acerca de um modo
específico de menorizar pais e guardiães. E fazê-lo não somente exercendo as
ferramentas que a lei proporciona às administradoras que, in extremis, podem cassar o
pátrio poder e pontualmente, ordenar a entrada em uma casa para constatar a
existência ou não de uma ‘situação de risco’ denunciada acerca de uma criança,
inclusive, com o auxílio da ‘força pública’ mas menorizar rotineiramente realizando
atuações administrativo-judiciais de desautorização e de colocação em xeque da
condição de ‘maior responsável’. Esta menorização era de uma incumbência relativa,
pois nessas atuações não se discutia a condição de maior no momento de lhes
imputarem faltas em relação a seus deveres enquanto mães, pais ou guardiães, ou de
instá-los a se comprometerem com o seu cumprimento.
Um Acordo Regulamentar do Superior Tribunal de Justiça da província de
Córdoba normatizou essa faceta menorizadora do foro de Menores a respeito de mães,
pais e guardiães. Esta resolução funda-se expressamente na “preocupação em relação à
assistência jurídica gratuita que se dispensa aos maiores de idade que se apresentam,
comparecem ou intervêm em causas que são tramitadas perante os Juizados de Menores
(área de Prevenção). A mencionada resolução expõe:
[...] A situação exposta, examinada sob a luz do direito à tutela judicial
efetiva (que compreende o acesso à justiça por pessoas carentes) pode
derivar para os assessores civis em impedimento para atender com eficiência
ao patrocínio das pessoas maiores de idade, em processos que são tramitados
18
Em sua denúncia inicial, um auto expõe em termos de justificação para demandar a intervenção de um
Juizado Prevencional de Menores, na denúncia inicial, quando referente à norma, sob o subtítulo
“DEVER DO ESTADO. PODER DO ESTADO”, e remetendo-se à lei Nacional de 1919, vigente no
momento da denúncia (ano 2004), sustentam: “Irrompe assim o Patronato estatal, que é a função social
que o Estado assume e exercita no cumprimento de seu dever de proteção aos setores mais frágeis,
tutelando os menores de idade...” (Grifos do autor).
206
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perante os juizados de menores. Em tal contexto, tendo em vista os efeitos de
evitar que se produzam casos de falta de defesa [...] com a finalidade de
somar mais assessores ao patrocínio, de modo a garantir a efetividade da
assistência jurídica gratuita. Prescindir-se dos Assessores de Família, em
atenção à sobrecarga de tarefas do foro; e se recorrerá aos Assessores de
Menores, que embora também tenham uma enorme atividade,
19
por razões de
especialização e de proximidade com os Juízes de Menores, são aqueles que
melhor podem colaborar com o objetivo assinalado (AR 641 A TSJ, 16
de abril de 2002).
Este Acordo Regulamentar pode ser tomado como uma evidência do que foi
exposto em relação à “menorização relativa” de mães, pais e guardiães. Primeiro, o
Tribunal Superior de Justiça não vê impedimento algum para que a representação desses
maiores de idade seja exercida pelos Assessores de Menores. Segundo, sustentam
também que os Assessores de Menores “são os que melhor podem colaborar com o
objetivo assinalado”: a tutela judicial efetiva.
O argumento proposto sobre a utilidade de pensar o Ministério Público como
metáfora dessas atuações de Proteção Judicial da Criança e do Adolescente, levadas a
cabo nos tribunais Prevencionais de Menores de rdoba, apoia-se em outra noção da
tutela concebida em termos socioantropológicos como mediação da condição de
responsável civil e como um modo específico de dominação. E é neste sentido que
entendo as atuações administrativo-judiciais descritas enquanto exercícios de poder
tutelar (Souza Lima, 1995).
20
Aproprio-me especificamente da proposta acerca do
pressuposto de uma relativa (in)capacidade civil de determinados segmentos sociais e
sua consequente necessidade de tutela, neste caso, administrativo-judicial. Outro
elemento instrumentalizado nesta tese refere a que os exercícios de poder tutelar
circunscrevem aos destinatários de sua intervenção pedagógica, e uma atuação típica
19
A partir das minhas observações, estimo que essa “sobrecarga de tarefas” operava de modo análogo ao
proposto sobre a empregada que ‘leva a causa’, isto é, por um lado, dificultava a organização diária do
trabalho e, ao mesmo tempo, dava justificativas morais e funcionais às administradoras das Assessorias
de Menores que contribuíam para (sobre)levar as causas .
20
Esta noção de poder tutelar foi produzida em uma análise da política indigenista do Estado brasileiro no
primeiro terço do século XX (Souza Lima, 1995). Em outro lugar, o autor retoma esta ideia nos seguintes
termos: “Com esta expressão procurei descrever um modo específico de estatização de certos poderes
incidentes sobre o espaço, através do controle e da alocação diferencial e hierarquizada de populações,
para as quais se criam estatutos diferenciados e discricionários nos planos jurídico e/ou administrativo. O
poder tutelar é um exercício de poder desenvolvido frente às populações indígenas, por um aparelho de
governo instituído sob a justificativa de pacificar zonas de conflito entre nativos e não-nativos
(imigrantes ou brasileiros), logo, de promover uma dada ‘paz social’. Supõe e implica a atribuição da
capacidade civil relativa a estas populações e a necessária tutela jurídica por parte do Estado”
(2002:14) [Grifos meus].
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desta “proteção judicial” era precisamente essa delimitação do que ‘se toma’ e do que
‘não se toma’ para acionar um sentido educativo e de recondução moral.
21
Retomemos o Acordo do TSJ que impõe aos Assessores, como parte de suas
funções, o exercício do patrocínio gratuito e da assistência letrada de maiores de idade
que intervenham em processos substanciados nos tribunais Prevencionais de Menores, e
as razões que oferece esta resolução: “razões de especialização e proximidade com os
Juízes de Menores”. A especialização a que se está aludindo é aquela que nos Tribunais
é conhecida como “ser especialista em Menores”, isto é, ter experiência no foro; e a
“proximidade com os juízes” nos faz retroagir à particular maneira com a qual se
efetiva, nestes tribunais, a cautela das atuações. Ambas as administradoras (S.S. e a
Assessora de Menores), tal como se examinou, foram ‘formadas no foro’ e, portanto,
mantêm relações de interconhecimento, intensificadas pela particular atribuição de
turnos das Assessorias de Menores, segundo a qual cada S.S. trabalhava apenas com
dois/duas Assessores/as de Menores, sempre os/as mesmos/as.
22
O único estranhamento que observei a respeito desta atribuição de funções que
se deu ao longo dos anos de 2002 até fins de 2005 era o de empregadas do Juizado, que
reclamavam não saber a quem a Assessora de Menores vinha representar em
determinada audiência, se as crianças ou os pais, o que as obrigava a recorrerem aos
autos para esclarecer. Mas não escutei nenhuma manifestação a respeito do que aparece
como contraintuitivo: que o Assessor de Menores represente maiores.
Para os propósitos do argumento da particular menorização relativa de mães, pais
e guardiães efetuada pelas atuações administrativo-judiciais, aproprio-me da afirmação
de Bourdieu em relação às condições sociais da eficácia da linguagem autorizada,
segundo a qual “...o mistério da magia performativa se resolve no mistério do ministério
21
Em uma formulação sintética, o autor afirma que o poder tutelar consistiria em uma[...] forma de ação
para governo sobre espaços (geográficos, sociais, simbólicos), que atua através da delimitação de
populações destinatárias de um tipo de intervenção ‘pedagógica’ rumo à capacidade de autocondução
moral e política plena como integrantes de uma comunidade política” (Souza Lima, 2002:2).
22
Embora em cada um dos processos entrassem em jogo, além da maior ou menor afinidade entre a
Assessora, S.S., a Secretaria interveniente e a empregada que leva a causa, as mútuas valorações sobre as
respectivas idoneidades e pessoas. Pois neste mundo de interconhecidos não somente operavam questões
geracionais e de estratificação dentro da hierarquia judicial formal, como também valorações informais
em relação à idoneidade — e sobretudo do ‘compromisso’ para com o trabalhoque teria cada uma das
administradoras. Compromisso que explicitamente o Acordo citado impunha aos Assessores para que
semanalmente se encarregassem da tarefa de assessoramento, representação e patrocínio dos maiores que
compareciam e atuavam em processos de Menores.
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(segundo esse jogo de palavras tão caro aos canonistas), isto é, na alquimia da
representação (nos diferentes sentidos do termo) através da qual o representante
constitui o grupo que o constitui [...]” (1985:66). Tal conceitualização pode ser
empregada para compreender o Ministério Pupilar como uma alquimia particular, pela
qual o Assessor de Menores ‘menoriza’ os maiores que representa, no sentido de que
interfere num determinado campo da responsabilidade civil a condição de civilmente
responsável por um menor resultando deste modo a tutela em uma mediação da
(in)capacidade civil relativa.
Além disso, considerar as atuações do Ministério Pupilar como metáfora desta
gestão remete a um dos pressupostos que estariam na base do imperativo de
assistência e conselho que tem, na relação tutelar, aquele que es na posição
supraordinada.
23
É um pressuposto análogo àquele que se codificara na instituição da
representação promíscua no Código Civil argentino de Vélez Sársfield (1880), vigente
até o presente, que impõe a participação do Ministério de Menores [ou Ministério
Pupilar] em todos os assuntos que tratem da pessoa ou dos bens dos menores de idade,
para além da representação legal dos pais. O que se afirmou nesta tese é que nesta
administração judicial Prevencional de Menores da cidade de Córdoba este
pressuposto operava também com maiores de idade (pais ou guardiães de crianças ou
adolescentes processados), através das formas de aconselhamento e das fórmulas de
compromisso descritas.
23
A partir de um estudo da ação protecionista do Estado brasileiro a respeito do grupo indígena Ticuna, e
enfocando esse processo de dominação e assistência, Pacheco de Oliveira realiza una proposta teórica
acerca das condições e do caráter da tutela. Para os fins desta tese, retomo suas formulações a respeito
desta forma de dominação que está assentada sobre a suposição de que O tutelado não é plenamente
capaz de defender, expressar ou mesmo conhecer os seus reais interesses, havendo necessidade de
alguém que atue ou decida em seu lugar para evitar que ele sofra ou seja lesado” (1988:225).
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V. 4 Reflexões Finais
É difícil registrar com precisão o modo com que as questões textualizadas nesta
tese se definiram ao longo de diferentes roteiros de buscas, leituras, observações e
interlocuções. Em uma primeira tentativa, ensaiada na Parte I, reconheci que a direção
narrativa e analítica foi da atenção aos planos mais codificados do contexto em que se
inscrevem as atuações judiciais do foro Prevencional de Menores cordovês a uma
descrição etnográfica dessa gestão administrativa. Da apresentação das referências
normativas e dos ideários da Proteção da Criança passando por um exame dos autos
que substanciam uma Proteção particular: a judicial a tese focalizou os exercícios
rotineiros de poder exercidos por pequenas juízas sobre meninos, meninas e
adolescentes (‘sem conflito com a lei penal’) e seus maiores (ir)responsáveis.
Resumindo, posso dizer que foi um percurso que partiu da construção de um
corpus documental de autos judiciais referentes a Menores e à sua administração
judicial na Córdoba de meados do século XX, e sua posterior análise que está na
base deste trabalho a uma preocupação pelos corpos legais e doutrinários. Logo,
através da convivência cotidiana em Tribunais e da observação das esperas, dos
corredores, dos balcões, das salas dos tribunais, comecei a vislumbrar outros corpos que
atravessavam “experiências viscerais” (Schechner, 2000:268), diferentes do ‘corpo dos
autos’ e dos corpus legais representados pela norma e pela doutrina.
Focalizando em quem leva adiante esta gestão de minoridades, dediquei-me neste
trabalho a descrever as atuações das administradoras judiciais e suas complexas
operações de conversão das situações frequentemente dramáticas, que comparecem
aos Tribunais — em causas, que depois administravam entre os imperativos
legais/institucionais e os dilemas dos processos em concreto. E nessa tensão,
ressaltavam suas táticas de recordação e consequente esquecimento e a
contradição entre o fragmentário de seus procedimentos e a integração que se operava
nelas, em cada empregada que leva a causa.
Na procura para compreender esse contraponto, foi o acompanhamento das
atuações dessa administração judicial de Menores que me levou a pensar que era
precisamente essa operação fragmentária uma condição de possibilidade-chave — e não
apenas uma série de condições externas. Por meio de atuações fragmentárias, pontuais,
episódicas, tornava-se possível (sobre)levar as causas e lidar com a interpelação
emocional e o apelo moral que era e é inseparável da gestão de crianças. Foi a
observação da cotidianidade desses tribunais que me ofertou um caminho: o dos
fragmentos como via conceitual e textual. Assim, enquanto tentava representar nos
fragmentos os exercícios de poder que presenciara, procurava também contornar meus
próprios impasses morais e emocionais.
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Em outro registro, acredito que esta tese não pode situar-se inteiramente em
termos de um estudo de interações, pois está em seu núcleo a preocupação em indagar
modalidades e modulações que efetivam um tipo de exercícios de poder que Souza
Lima (1995) — a partir de um universo empírico distante do aqui tratado — denominou
tutelar. Nesse sentido, tão definidores como “o trabalho de campo” efetuado
principalmente no Palácio de Justiça são as perguntas e as noções que informaram meu
olhar: as ferramentas conceituais que, a partir do trabalho de Souza Lima, oferecem os
textos de Adriana Vianna, analisando uma gestão tutelar de minoridades em outra
“justiça de menores” (1997, 2002).
De tal perspectiva analítica para o tratamento da tutela extraí elementos para a
compreensão das atuações administrativo-judiciais, e instrumentalizei-os para analisar
as formas de aconselhamento e as fórmulas de compromisso. Além disso, queria
destacar especialmente o quanto as reverberações de “gerar e gerir” me permitiram
perceber matizes nos exercícios de poder observados; como o “gerar” assinalava a ação
formativa e pedagógica, de maternagem, dessas administradoras judiciais, e o “gerir”
advertia a respeito das possibilidades efetivas de controle da administração estatal em
foco, o que me possibilitou uma abordagem complexificada para estudar formas de
dominação (Souza Lima, 2002:15-16, 20).
Seguindo a pista da correlação entre gestar/gerir e a maternagem, gostaria de
explorar muito brevemente a possível conexão entre as dinâmicas tutelares
expostas nesta tese e a força das imagens maternais, especificamente, da própria
maternagem na gestão judicial de menoridades.
Para tal propósito, um dos elementos que indicavam essa conexão pode ser visto
no uso da categoria Prevenção. Em processos substanciados na parte do foro
especializada em “Prevencional e Civil”, que nome a todos os autos, caracterizando-
os com um único denominador comum (Prevenção), chamo a atenção para o fato de que
prevenir é também pre-ver. E a partir do acompanhamento das atuações nesses tribunais
posso afirmar que nesse universo administrativo uma das condições que possibilitariam
prever seria a intuição, o 'olfato', a previsão, atribuídos, pela socialização em geral, às
mulheres e, em particular, às mães. Inclusive, foi explicitamente mencionado pela Juíza
do caso Ludmila que, ao mesmo tempo em que se isentava de responsabilidade legal
pela morte de uma menina sob Proteção Judicial, enquanto funcionária reconhecia
publicamente que ela, apesar de não ter contado com relatórios probatórios da situação
de risco da criança, “mesmo que fosse por olfato, teria que ter previsto que poderia
acontecer uma coisa assim”.
Sugiro uma figura-constructo — o matronazgo para revisitar esta administração
judicial, colocando-a em relação com noções socio-historicamente produzidas a respeito
dos atributos endossados aos direitos-deveres maternos. E que vamos compartilhar
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não se circunscrevem a horizontes legais, mas remetem a uma plataforma de crenças
divididas que, embora em contínuo deslocamento, mantém traços fortes em relação ao
que nos acostumamos a reconhecer como uma gestão maternal.
Se na Argentina tem predominado uma metáfora de autoridade que conota como
“bons pais de família” Juízes, Defensores, Assessores e, por outro lado, tem sido
operado um substrato de noções construídas em referência a um modelo único de
família e de criação sustentando práticas judiciais relativas a Menores (Villalta,
2007:29), torna-se imprescindível não deixar escapar que se trataria de um modelo de
família hegemônico desde meados do século XX, no qual o pai ostentaria a chefia e
proveria materialmente, enquanto a mãe deteria a autoridade moral e teria a seu cuidado
os filhos (Nari, 2005:62-63).
O argumento que se propõe aqui, a partir do que foi exposto na tese, é que os
tribunais Prevencionais de Menores podem ser melhor compreendidos aproximando-os
da imagem de uma gestão maternal. Estes exercícios específicos de presença e atuação
estatal, que levam a autoridade legalmente conferida à administração judicial, carecem
de recursos materiais, e o que então podem prover esta é a voz da linguagem
tribunalícia que designa nos autos a ação de resolver — é um direcionamento moral que
cuide não apenas das crianças, mas também dos que estão sendo vistos como
parcialmente incapazes de cuidar delas.
Neste esquema de matronazgo, podemos reconhecer as inumeráveis operações
tanto das funcionárias, quanto das empregadas, crentes, professadoras e praticantes
desta identificação entre juiz/bonus pater/lei que tenho discutido na tese que
atuavam sustentando tal identificação. E mesmo quando não submetiam à consulta suas
atuações, faziam “como se” estivessem apenas cumprindo o que a lei/bonus pater/juiz
manda(m).
A par da escassez de recursos estatais para dar conta da prescrita Proteção Judicial
da Criança, das medidas de cumprimento obrigatório e do poder de recorrer ao “auxílio
da força pública”, exercia-se a Proteção Judicial através de técnicas “maternais”. E não
porque se esteja associando esta qualificação ao fato de que a maioria das
administradoras fosse mulher (e mãe), mas sim pela condição de “bem-intencionadas” e
“pedagógicas” destas atuações, embora nem por isto menos providas de vontade de
domínio. Seria uma matriz simbólica, a do matronazgo, cuja realização nas atuações das
ocupantes de diversas posições (ordenadas hierarquicamente no formal, embora móveis
na prática cotidiana) pode proporcionar maior inteligibilidade ao verificado
empiricamente como atos descontínuos: formas de aconselhamento e fórmulas de
compromisso, entendidas como técnicas de menorização.
212
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É imprescindível expor que a ideia do matronazgo está sendo concebida
assumindo uma postura construtivista, e em oposição ao essencialismo que pode estar
embutido na noção de papéis sexuais. O que está em jogo é mostrar como através de
atuações administrativas se (re)instauram determinadas hierarquias classificatórias do
mundo social. O matronazgo se exercia em relações de assimetria e as reforçava, pois
suas técnicas resultavam difíceis de resistir, ao mesmo tempo em que eram fortemente
inferiorizadoras, menorizadoras. São frutíferas aqui as afirmações de Pacheco de
Oliveira (1998:224) e Vianna (2004:62), que retomam as formulações de Paine
(1977:80-86) e, valendo-se da figura da governanta como tutora, propõem que a tutela
implica necessariamente certa infantilização daqueles que são o seu objeto, ao que o
matronazgo recordaria que a esta infantilização corresponde uma ‘maternalização’ da
gestão.
Por fim, a partir do matronazgo quis refletir sobre o que nesta tese foi proposto
como processos de menorização, não dos legalmente classificados como “menores”,
mas também em atuações administrativo-judiciais que menorizam ainda que
relativamente os seus “maiores responsáveis”. Como figuras interligadas, o
matronazgo e a menoridade se (re)produziriam e ao mesmo tempo conformariam
modalidades tutelares de gestão que obrando en autos, obran en vidas.-
213
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Anexo A
Organigramas del Poder Judicial de la ciudad de Córdoba y de la
Subsecretaría de Protección Integral del Niño y Adolescente (SPINA)
227
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
228
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
Anexo B
Extracto de Estadísticas oficiales del Poder Judicial de Córdoba
Los datos estadísticos que se presentan en estos cuadro fueron construidos a partir
de información que ofrece el Poder Judicial de Córdoba en su página web
(www.justiciacordoba.gov.ar)
Cuadro 1
Juzgados de Menores Prevencional y
Civil Centro Judicial Capital (ciudad de
Córdoba) y totales provinciales
2000
*
Cap.
2000
*
Prov.
2002
Cap.
2002
Prov.
2003
Cap.
2003
Prov.
2004
Cap.
Medidas tutelares ingresadas 4447 2449*
*
4836 2390 7718 2666
Total de resoluciones s/d 1746*
*
3775 1138 3666 1059
Sentencias 272 95** 308 39 514 77
Autos 3307 1651*
*
3467 1099 3152 982
Medidas tutelares en trámite 5724 7839*
*
1727
5
5620 1538
6
5459
Cuadro 2
Asesorías de Menores Centro
Judicial Capital (ciudad de
Córdoba) y totales provinciales
2000*
Cap.
2000*
Prov.
2002
Cap.
2002
Prov.
2003
Cap.
2003
Prov.
2004
Cap.
Total causas ingresadas 42097 44328** 59733 40079 56637 41125
Intervención prevencional s/d 39385** 49790 35489 45976 37861
En la página web no se consignan datos correspondientes al año 2001.
*En las estadísticas que ofrece en su página Web el Poder Judicial de la provincia de Córdoba, no se encuentran
discriminados los datos que corresponden a la ciudad de Córdoba (Centro Judicial Capital) y los que corresponden al
resto de la Primera y Circunscripción Judicial.
** Incluye a los tribunales de ciudades vecinas a la ciudad de Córdoba capital, y que conforman, junto con ella, la
Primera Circunscripción.
Cuadro 3
Datos provincia de Córdoba Según censo 2000
Cantidad habitantes Provincia de Córdoba 3.066.801
Cantidad habitantes Córdoba Capital 1.179.372
Superficie territorial de la Provincia 165.321
Superficie territorial de la ciudad de Córdoba 562
Cant. de habitantes por km2 (provincia) 18,55
Cantidad de habitantes por km2 (ciudad Córdoba) 2.099
229
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
Cuadro 4
Carga de trabajo en el Poder Judicial Córdoba 2000 2001 2002 2003
Causas ingresadas (provincia) 199.564 217.632 258.040 351.465
Causas ingresadas provincia (c/100.000 habitantes) 6.507 7.096 8.414 11.460
Promedio de causas por Juez en la provincia 589 870 942 1168
Cuadro 5
Relación de Magistrados y Abogados con
respecto a los habitantes
2000 2001 2002 2003
Cantidad de abogados en la provincia 8.695 8.882 9.282 9.614
Cantidad de abogados en Córdoba capital 6.774 6.930 7.238 7.565
Cant. abogados c/100.000 hab (en la provincia) 284 289 302 313
Cant. abogados c/100.000 hab (en la capital) 574 588 614 641
Cantidad de Magistrados en la provincia 339 250 274 301
Cantidad Magistrados c/100.000 hab. (prov.) 11 8 9 10
Fuente: www.justiciacordoba.gov.ar/site/Asp/Estadisticas/EstIndicadores.asp
(última consulta: 21/06/09)
230
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
Anexo C
Panorámica de la casuística tramitada en el fuero
de Menores Prevencional de Córdoba
231
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
Anexo D
Relación de asistencia y participación a cursos, conferencias,
jornadas de Debate relativos a Derechos de la Infancia
Fecha Ciudad Evento
5 al 8 de mayo
2005
Ciudad de
Buenos Aires
Primera ronda entrevistas con investigadores y especialistas en la
temática de la infancia y la minoridad (Universidad Nacional de Buenos
Aires)
23 al 25 de
junio 2005
Ciudad de
Buenos Aires
Primer Encuentro Regional de Derecho de Familia en el Mercosur
(comisión 6: La responsabilidad del Estado y la tutela judicial)
Organizador: Facultad de Derecho de la UBA
11 al 15 de
Julio 2005
Ciudad de
Rosario (prov. de
Santa Fe)
ALA – Universidad Nacional de Rosario
Simposio Antropología y Niñez en América Latina
Fines de
Septiembre
2005
Ciudad de
Cordoba
Discusiones relativas a la problemática de la protección de niños y
adolescentes
Organizador: Sala del Niño, Colegio de Abogados de la Provincia de
Córdoba
Abril a
noviembre de
2005
Ciudad de
Córdoba (prov.
de Córdoba)
Diplomatura de Derechos del Niño y del Adolescente.
Curso de postgrado lato sensu, Facultad de Derecho y Ciencias Sociales de la
Universidad Nacional de Córdob, que otorga diploma de Especialista en
Derechos del Niño y del Adolescente
Agosto a
noviembre de
2005
Ciudad de
Córdoba (prov.
de Córdoba)
Seminario Referido a la Protección Jurisdiccional de los Derechos del
Niño y del Adolescente
Organizador: INECIP Córdoba
Ciudad de
Córdoba (prov.
de Córdoba)
II Jornadas de Minoridad y Derecho de Familia
Organizador: Facultad de Derecho y Cs. Sociales, Universidad Nacional de
Córdoba
2005/2006 Ciudad de
Córdoba (prov.
de Córdoba)
Seminario Interdisciplinario de Investigación sobre los Derechos del
Niño
Organizador: Centro de Investigaciones Jurídicas y Sociales, Fac. de
Derecho, Univ. Nac. de Córdoba
20 al 22 de
octubre de
2005
Ciudad de
Rosario
(Provincia de
Santa Fe)
IV Jornadas Nacionales de Investigación Social de Infancia y
Adolescencia. La Convención sobre los Derechos del Niño y las prácticas
sociales
Org: Centro de Investigaciones en Derecho de Infancia y Adolescencia /
Cátedra de Residencia de Minoridad y Familia (Facultad de Derecho,
Universidad Nacional de Rosario)
26 al 29 de
octubre de
2005
Morón
(provincia de
Buenos Aires)
IX Jornadas Interdisciplinarias y I Conferencia Internacional de
Familia, Menores y Mediación, Morón,
Organizador: Institutos de Derecho de Familia, de Derecho del Menor y de
Mediación – Colegio de Abogados de Morón
Segundo
semestre 2005
Ciudad de
Cordoba (prov.
de Córdoba)
Ciclo de Capacitación en Violencia Familiar
Curso de postgrado lato sensu
Organizador: Facultad de Derecho, Universidad Católica de Córdoba
12 de
Noviembre
2005
Buenos Aires Segunda ronda de entrevistas con especialistas de ámbitos académicos y
judiciales
Marzo 2006 Ciudad de
Córdoba (Cba.)
Jornadas de Debate de la nueva Ley Nacional de Protección Integral
Organizador: Centro de Capacitación del Poder Judicial, “Dr. Ricardo Núñez”
232
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
Marzo 2006 Ciudad de
Córdoba (Cba.)
Jornadas sobre el Derecho del Niño a ser Escuchado
Organizador: Comisión de Niñez y Adolescencia del Consejo Provincial de
la Mujer de Córdoba, a instancias del Comité de los Derechos del Niño de
Naciones Unidas
22 al 25 de
junio de 2006
Ciudad de
Buenos Aires
Tercera ronda de entrevistas con especialistas de ámbitos académicos y
judciales
23 al 26 de
Setiembre
2006
Ciudad de
Santiago del
Estero (Sgo. del
E.)
Realización de entrevistas con legisladores provinciales pertenecientes a
la Comisión de Minoridad y Familia, y con funcionarios del Poder
Ejecutivo provincial (Directora de Promoción Social, Dirección General
de Niñez, Adolescencia y Familia)
Visitas a Hogares e Institutos de Menores
19 al 22 de
sep. de 2006
Ciudad de Salta VIII CAAS – Simposio Niñez y Juventud: perspectivas en disputa y abordaje
etnográfico
28 y 29 de
septiembre de
2006
Ciudad de La
Plata (provincia
de Buenos Aires)
V Jornadas Nacionales de Investigación Social de Infancia y
Adolescencia. La Convención sobre los Derechos del Niño y las prácticas
sociales
Organizador: Instituto de Derecho del Niño de la Universidad Nacional de
La Plata (UNLP) y UNICEF Argentina
20 al 25 de
noviembre de
2006
Ciudad de
Santiago del
Estero
Entrevistas con funcionarios del Poder Ejecutivo Provincial y
Legisladores, respecto reforma legal de adecuación a la Ley Nac.
26061/2005
29 y 30 de
junio de 2007
Ciudad de
Rosario
(provincia de
Santa Fe)
Segundo Encuentro del “Espacio de Infancia”
Participantes: Colectivo de Derechos de Niñez y Adolescencia (Bs. As.);
Fundación Matras (Córdoba); Foro en Defensa de la Ley 2302 (Neuquén);
Aire Libre (Rosario); Manos Abiertas (Tucumán); Andhes (Jujuy); Fundación
AVINA (Córdoba).
25 y 26 de
agosto de 2007
Río Ceballos
(provincia de
Córdoba)
Tercer Encuentro del “Espacio de Infancia”
Participantes: Manos Abiertas (Tucumán); Andhes (Tucumán); Colectivo de
Derechos de Niñez y Adolescencia (Bs. As.); Cedilij (Córdoba) ); Foro en
Defensa de la Ley 2302 (Neuquén); Prade (Santiago del Estero); Fundación
AVINA (Córdoba)
25 al 27de
septiembre de
2007
Ciudad
Autónoma de
Buenos Aires
(CABA)
Precongreso del III Congreso Mundial sobre Derechos de la Niñez y la
adolescencia: “Tendencias y desafíos para la protección de derechos
humanos de niños, niñas y adolescentes en la Argentina”
Organizador: UNICEF Argentina / Facultad de Derecho, Universidad
Nacional de Buenos Aires (UBA)
05 y 06 de
octubre de
2007
Ciudad de
Santiago del
Estero (provincia
de Sgo. del E.)
Cuarto Encuentro del “Espacio de Infancia”
Participantes: Manos Abiertas (Tucumán); Andhes (Tucumán); Colectivo de
Derechos de Niñez y Adolescencia (Bs. As.); Cedilij (Córdoba) ); Foro en
Defensa de la Ley 2302 (Neuquén); Prade (Santiago del Estero); Fundación
AVINA (Córdoba)
30 de
noviembre de
2007
Ciudad de
Córdoba
(provincia de
Cba.)
Taller de reflexión: “Sentidos y alcances de la Ley 26062 en el Derecho,en
las Prácticas y en las Políticas Públicas
Organizador: Fundación Arcor
22 de agosto
de 2008
Ciudad de
Córdoba
(provincia de
Cba.)
Políticas Públicas para la infancia desde una perspectiva de derechos
Participantes: Manos Abiertas (Tucumán); Andhes (Tucumán); Colectivo de
Derechos de Niñez y Adolescencia (Bs. As.); Cedilij (Córdoba) ); Foro en
Defensa de la Ley 2302 (Neuquén); Prade (Santiago del Estero); Fundación
AVINA (Córdoba)
Organizador: Espacio por la Niñez
233
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
Anexo E
Listado de cursos del Centro de Capacitación Judicial
Ricardo Núñez (Poder Judicial de Córdoba)
Programas Título del curso Capacitadores Fecha hs. cát.
ASESORIA
LETRADA
Internaciones: criterios judiciales
Sacco, Carroll de López
Amaya y Vargas
20/abr 3
menores
2007
MENORES A
Taller de estudio sobre temas del
fuero
Coordinadora: Cecilia
Ortiz
22-mar y
27-abr
3
menores
2007
ASESORIA
LETRADA C
Internaciones: criterios judiciales
Eloisa Saco, María Belén
Carroll de López Amaya y
Liliana Vargas
16/mai 3
menores
2007
MENORES A
Taller de estudio sobre temas del
fuero
Coordinadora: Cecilia
Ortiz
30/mai 3
menores
2007
MENORES C
Ciclo de Procedimiento en el
Fuero de Menores.Corrección y
Prevención. Módulo I: Delitos
contra la integridad sexual.
Dolores Romero 5/jun 6
menores
2007
ASESORIA
LETRADA
Resolución Alternativa de
Conflictos
Yamile Irma Busamia
Ferreira
8/jun 3
menores
2007
MENORES C
Ciclo de Procedimiento en el
Fuero de Menores.Corrección y
Prevención. Módulo IINiños
Víctimas de abuso Sexual.
Investigación
Dolores Romero 12/jun 3
menores
2007
MENORES C
Ciclo de Procedimiento en el
Fuero de Menores.Corrección y
Prevención. Módulo
IIISexualidad Infantil: abuso
sexual entre niños.
Responsabilidad Familiar
Silvia Boccardo 19/jun 3
menores
2007
MENORES C
Ciclo de Procedimiento en el
Fuero de Menores.Corrección y
Prevención. Módulo IV
Jurisprudencia del TSJ
Mónica Traballini 26/jun 3
menores
2007
MENORES
D
Capacitación para pasantes y
meritorios
Laura Valles
23 y 26-Jul
y 12 sept
6
menores
2007
MENORES A
Taller de estudio sobre temas del
fuero
Coordinadora: Cecilia
Ortiz
13/ago
menores
2007
FAMILIA C
Derechos Procesales de los
Niños. Ley 26,061
Adriana Waigmaster 6/nov 3
menores
2007
MENORES C
Programa Nacional de
Prevención de la sustracción y
tráfico de niños y de los delitos
contra su integridad. Acceso a
base de datos
Dirección de Informática
del Poder Judicial de la
Provincia de Córdoba
12/jun 2
menores
2006
MENORES
D
Capacitación para Pasantes y
Meritorios del Fuero de Menores
Liliana Merlo y Laura
Valles
28 y 29 de
Junio
6
menores
2006
SERVICIOS
JUDICIALE
S C
Adopción: La función paterna y el
lugar del hijo
Silvia Luchessi 28/jul 3
menores
2006
234
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
SERVICIOS
JUDICIALE
S C
III Curso anual de actualización,
perfeccionamiento y formación
continua en Medicina Forense.
Módulo de Maltrato Infantil y
Abuso Sexual
Fontaine y Pascual Rouse
10 y 11-
Ago
8
menores
2006
SERVICIOS
JUDICIALE
S C
Adopción: Análisis de casuística Equipo de Adopción 22/ago 3
menores
2006
MENORES C
Ciclo de Procedimientos en el
Fuero de Menores: Exclusiones
probatorias y Sana crítica
racional
Marcelo Jaime, Eugenio
Pérez Moreno
5 y 26 Sep 6
menores
2006
Programas
Título del curso Capacitadores Fecha hs. cát.
FAMILIA C
Ciclo de actualización en
prodedimientos en el Fuero
Familia: Protección de Menores
Amalia Uriondo de
Martinoli- Graciela Tagle
de Ferreyra
5/out 6
menores
2006
MENORES
D
Capacitación para Pasantes y
Meritorios del Fuero Menores
Prevención. Nivel Inicial
Rodriguez Corral,
Carranza, Pereyra, Valles
30-31 de
Marzo y 1
de abril
9
menores
2005
MENORES
D
Ciclo de Actualización e n el
Fuero de Menores Prevención .
Nivel inicial
Beltramino, Junyent Bas,
Palacios, Catela
6- 11- 18-
25 de abril
12
menores
2005
SERV.
JUDICIALE
S D
Adopción y Maltrato Silvia Bleichmar 10/jun 3
menores
2005
FAMILIA C
El niño y los Derechos Humanos
dentro de la familia
Aída Kemelmajer 4/ago 3
menores
2005
Servicios
Judiciales C
Abuso sexual en niños. Aspectos
clínicos. Diagnóstico. Objetivo.
Proceso y Dificultades
Lic. Mirtha Yocco 21/out 3
menores
2005
Abuso sexual infantil
María Estela Maldonado y
Pedro Palombo
3/dez 3
menores
2005
AreaDirecD
Taller Guardas y Adopción. Miembros del CATEMU 20/fev 3
menores
2004
Menores-C
Corte Interamericana de
Derechos Humanos.
María de los Angeles
Bonzano
24/mar 3
menores
2004
AreaDirecD
Diagnóstico social familiar Nucci- González 26/mar 3
menores
2004
Menores-D
Capacitación para Pasantes y
Meritorios (Prevención)
Pereyra- Carezzano
29 y 30-
Mar
6
menores
2004
Menores-C
Investigación del hecho de
competencia prevensional
Jorge Carranza 21/abr 3
menores
2004
AreaDirecD
Evaluación de Menores Miembros del CATEMU 16/abr 3
menores
2004
Menores-D
Capacitación para Pasantes y
Meritorios Corrección
Monteavaro, Mariel y Frías
22, 23 y 24-
Jun
9
menores
2004
Menores-C
Nulidades Sergio Ferrer 29/jun 3
menores
2004
Menores-C
Recursos Ordinarios Roberto Cornejo 11/ago 3
menores
2004
Menores B
Condición Jurídica del Menor Federico Ossola 21/out 3
menores
2004
Familia
Capacidad de los Menores de
Edad
Federico Ossola 3/nov 5
menores
2004
Global-C
Análisis e Investigación Jurídica Pablo Navarro 22/mai 3
menores
2003
235
Obrando en autos, obrando en vidas María G. Lugones
___________________________________________________________________________________________________________
Menores- C
Medidas Cautelares. Coerción y
Tutela en el proceso de Menores
José González del Solar 17/jun 3
menores
2003
Menores-D
Capacitación para Pasantes y
Meritorios (Nivel Inicial)
Cecilia Ortiz- Raquel
Pereira
23-24-25
Jun
9
menores
2003
Global C
Análisis e Investigación Jurídica Pablo Navarro 19/jun 3
menores
2003
Menores D
Reglas Prácticas Protección
Judicial del Menor
Beatriz Bruno de Barletta 2/set 3
menores
2003
Menores-C
Patria Potestad s/d 12/mar 3
menores
2002
Menores-C
Menores Víctimas de Delitos s/d 2/mai 3
menores
2002
Programas
Título del curso Capacitadores Fecha hs. cát.
Menores-C
Mediación y su implementación
en el Fuero de Menores
s/d 27/jun 3
menores
2002
Menores-D
Capacitación para pasanes y
meritorios del Fuero de Menores
s/d
5, 6 y 7 de
Ago
6
menores
2002
Menores-C
Principios Procesales en el Fuero
de Menores
s/d 8/out 3
menores
2002
Serv. Jud. C
Pediatría Médico Legal s/d 14/nov 5
menores
2002
Menores-C
Garantías Constitucionales en el
Proced. Prevenc.
Manfredi de Fernandez
López
10/abr 3
menores
2001
Menores-C
Alcances del Patronato Estatal Jorge Carranza 24/abr 3
menores
2001
Menores-C
Procedimientos Especiales del
Fuero de Menores
Alejandro Weiss 15/mai 3
menores
2001
Menores-C
Drogadependencia
Lic. Mansilla ( Prog.
Cambio)
10 y 31
-Ago
6
menores
2001
Serv. Jud.-D
Malos tratos en la infancia Caccciaguerra/Mercado
27 y 28 -
Sep
10
menores
2001
Global-C
El Expediente Judicial-Aspecto
Antropológico
Laura Gingold 26/set 3
menores
2001
Cuadro construido a partir de la información que en la página web del Poder Judicial proporciona el Centro de Capacitación
Judicial Ricardo Núñez
236
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