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UniversidadeFederaldoRioGrande-FURG
ProgramadePós-GraduaçãoemLetras
MestradoemHistóriadaLiteratura
ELIEGEMARIZELMOREIRAMARQUES
ÁGUA,SANGUEEVINHO:ATRINDADEAQUOSANAPOESIADE
JORGEDELIMA
Dissertaçãoapresentadacomorequisitoparcialefinal
paraaobtençãodograudeMestreemHistóriada
Literatura.
Orientador:
Profª.Drª.RaquelRolandoSouza.
Datadadefesa:05/01/2009
Instituiçãodepositária:
NúcleodeInformaçãoeDocumentação
FundaçãoUniversidadeFederaldoRioGrande
RIOGRANDE
2009
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2

DosMilagres
O milagre não é dar vida ao corpo extinto,
Ou luz ao cego, ou eloqüência ao mudo...
Nem mudar água pura em vinho tinto...
Milagreéacreditaremnissotudo!
MárioQuintana
Embriague-se
(...)Embriague-seconstantementecomvinho,poesiaou
virtude,àsuaescolha.

CharlesBaudelaire
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3
AGRADECIMENTOS
ADeus;
AprofessoraRaquelRolandoSouza,responsávelporminhasdescobertassobre
poesia, por ter acreditado na minha idéia, pela criteriosa orientação, pelos
inesquecíveiselogiose,acimadetudo,pelascríticasquesófizeramcomqueeu
buscassesempreomelhor;
AoCesar,companheirodevidaedaexaustivaexcursãoporbibliotecas,sebose
livrariasembuscadabibliografiadestetrabalho;
AminhafilhaTatiele,companheiradevida,deféedesonhos,pelacompreensão
permanente e pelo incentivo carinhoso do qual me abasteci emocionalmente
inúmerasvezes;
Aosmeuspaispeloincentivo,carinhoeprincipalmente,asconstantesorações;
Ao meu irmão Marcelino (meu anjo da guarda) e sua família aos quais serei
eternamentegrata;
Ao meu irmão Elton, por abdicar de horas preciosas para me enviar livros e
cópiasdelivrosdePortoAlegre;
4
A minha irmã Mariel, companheira de vida, de fé e de ideais que,
incansavelmente,esteveaomeulado,vibrandocomasminhasvitórias;
A minha amiga-irmã Simone Lacerda que me proporcionou muitasalegrias, foi
portoseguronosmomentosmaisdifíceisemeencorajouanãodesistir;
Aminhaamiga-irmãVeridianaPachecoesuafamíliapelaspalavrascarregadas
deamoredeadmiraçãoqueserviramdecombustívelnestatrajetória;
Aminhaqueridaamiga LetíciaStanderpelagentilezademepresentearcom o
Abstractdessetrabalho,alémdeseuincentivo,carinhoecompanheirismo;
AminhaqueridaamigaJaquelineKoschierpelagentilezaderevisarmeutextoe
dedicaramimumtempoquenãodispunha,mas, acimadetudo,pelocarinho,
amizadeeoamordesempre;
AosqueridoscolegasdetrabalhodoCefet,especialmenteaoGilneiCorrêaea
Catarina Barboza pelo carinho, amizade e por me permitirem usufruir de suas
bibliotecasparticulares;
5
Dedicoessetrabalhoàminhafilha,aquemamoprofunda
e incondicionalmente, e por quem luto a fim de tornarsua
“viagem”pelavidailuminada,felizeprodutiva.
6
SUMÁRIO
Resumo.................................................................................................................8
Abstract..................................................................................................................9
1Introdução
1.1Antecedentes..................................................................................................10
1.2PequenafortunacríticadeJorgedeLima......................................................11
1.3SobreoMitodeOrfeu.....................................................................................18
1.4Itinerário..........................................................................................................20
2Àgua
2.1Opercursodoúmido até aágua: a cosmogonia napoesia deInvençãode
Orfeu.....................................................................................................................23
2.2
As mutações da água, suas características e a dialética aquosa no Canto
I.............................................................................................................................30
2.3Osconceitosderedondoedefertilidaderelacionadosaoisolamentodailha
................................................................................................................................37
3Sangue
3.1Osprincípiosdadialéticaconceitualdesagradoeprofano.............................49
3.2 O elemento aquoso sangue e o sofrimento como veículo para a
transcendênciaeapurificação..............................................................................64
3.3Aascensãotranscendentaldapoesia............................................................67
7
4Vinho
4.1Oaspectoarquetípicodoelementoaquosovinho...........................................74
4.2Ocaráterevolutivo-culturaldocultivoedaproduçãovinícola.........................78
4.3Asacralização dovinho naliturgiaesua profanaçãonaembriaguezenas
artes.......................................................................................................................82
4.4Aprofanatranscendênciadalíricasimbolizadapelovinho............................91
5Consideraçõesfinais......................................................................................96
6Referênciasbibliográficas.............................................................................99
8
RESUMO
Esta dissertação de Mestrado em História da Literatura, intitulada “Água,
sangue e vinho: a Trindade aquosa na poesia de Jorge de Lima”, trata da
ocorrência dos referidos elementos aquosos em Invenção de Orfeu, sob a
perspectivadasfilosofiasdoimaginárioedodevaneiopoético.Apesquisabusca
analisar tais recorrências atreladas aos conceitos de sagrado e profano
correlacionando-as ao mito de Orfeu e às práticas litúrgicas em geral. O foco,
portanto desta análise se dá a partir da obra Invenção de Orfeu e, mais
especificamentedoCantoI,trechodoqualforamretiradosospoemasconstantes
nestaanálise.
9
ABSTRACT
This thesis of Master in History of Literature, entitled "Water, blood and
wine: the aqueous Trinity in the poetry of Jorge de Lima", deals with the
occurrenceofsuchaqueouselementsinInvençãodeOrfeufromtheperspective
of the philosophies of imaginary and poetic fantasy. The research seeks to
examine such occurrences linked to the concepts of sacred and profane
correlatingthemtothemythofOrpheusandtoliturgicalpracticesingeneral.The
focus of this analysis is given from the work Invenção de Orfeu, and, more
specificallyfromCantoI, excerptfrom which werewithdrawn fromthepoems in
thisanalysis.
10
1Introdução
1.1Antecedentes
Desde o meu ingresso, em 2002, no curso de Letras–português, na
Fundação Universidade Federal do Rio Grande, já surgiu em mim considerável
interesse por todas as disciplinas do curso, mas especialmente pelas que
envolviamleituraeteorialiterária.Dessemodo,inicieiminhaatuaçãoacadêmica
extracurricular como bolsista voluntária do NELP (núcleo de estudos em língua
portuguesa),sobaorientaçãodaprofªDrªSolangeMitmanne,maistarde,como
bolsistaremuneradadomesmoprojeto,permanecendoatéofimdoanoletivo.Em
2004,apósalgunsconhecimentosnadisciplinadeLiteraturaBrasileiraII,inicieio
projetodepesquisavoluntáriasobreaobradapoetacariocaGilkaMachado,no
qualpermaneciatéaconclusãodagraduaçãoem2005,sobaorientaçãodaProfª
DrªRaquelRolandoSouza.
Foiaindanoúltimoanodagraduaçãoquesurgiuemmimointeressepela
obra de Jorge de Lima, em função da elaboração do trabalho de conclusão do
curso, o qual, por ser eletivo, uma das opções era produzir um ensaio sobre
Invenção de Orfeu, de autoria de Jorge de Lima. A dificuldade inicial de
compreensão da obra, visto que esta se apresentava com peculiaridades que
tornavam meus estudos teóricos prévios insuficientes, foi o combustível e o
11
impulsoquemeguiaramaestudarepesquisarmaissobreoautoresuaprodução
literária.
Pude perceber, portanto, características e inovações em sua poesia até
entãodesconhecidasparamim,mas,aomesmotempo,instigantes.Assimsendo,
aoconcluiragraduaçãoedecidirentrarparaoprogramadepós–graduaçãoem
Letrasdessainstituição,opteipordarcontinuidadeaosestudosjáiniciadossobre
opoetaJorgedeLimaesuaobra,queresultaramnestadissertaçãodeMestrado.
Enquanto cursava as disciplinas no Mestrado, participei da Mostra de
produçãouniversitária(MPU)comotrabalhointituladoRessacralizandoapoesia
sobreaobradeJorgedeLimaemaisespecificamente,sobreInvençãodeOrfeu.
Minha pesquisa na pós–graduação teve como foco, inicialmente, algumas
questões referentes aos conceitos de sagrado e profano numa perspectiva
dialógica, vistoque taisidéias aparecem em Invenção deOrfeu de forma muito
tensaerepletadeocorrênciasinusitadas,sempreemcorrelaçãoaoselementos
aquosos.Essesaspectos,portanto,serviramcomobasedepesquisaedeanálise
paraestadissertação.
1.2PequenafortunacríticadeJorgedeLima
Jorgedelimanasceuem1893,nacidadedeUnião,noestadodeAlagoas.
Filhodeumsenhordeengenhopernambucanoedeumadonadecasapublicou
seusprimeirosversosaos13anososonetoPlantas(1906).Aos15entrouparaa
faculdadedeMedicinaemSalvadorerecebeuograudeDoutorem1914,aos21
anos.NestemesmoanopublicouXIVAlexandrinos,noRiodeJaneiro.Em1923
publicou A comédia dos erros; em 1928, Essa negra Fulô; em 1932, Poemas
escolhidos;em1934,OanjoeAnchieta;em1938,Atúnicainconsútil;em1939,A
mulherobscura;em1942,AventurasdeMalasarte;em1943,Mira-Celi;em1947,
Poemas Negros; em 1949, o Livro de Sonetos; em 1950, foi lançada sua obra
12
poética completa, com organização de Otto Maria Carpeaux, e, finalmente, em
1952,publicouAsilhaseInvençãodeOrfeu.
Alémdeexercerosofíciosdeescritor,romancista,poetaemédico,Jorge
de Lima se dedicou ainda à pintura e à escultura. O autor percebia nas artes
plásticas e nas letras o profundo anseio humano da busca pela beleza e pela
sublimação.JorgedeLimaseauto-intitulavaautônomoedesapegadodecertos
costumes ditos esperados ou desejados dentro contexto literário e canônico da
época,poisopróprioautorassimsedefine:
Escrevisempreoquedesejeiescrever,esehojemededicoaoutrastentativasdearte,
nãoéporqueachebonitoserromancistaou pintor,masporqueestasnecessidadesde
vidênciaseimpuseramdentrodemim,chegandoaconstituirumacondiçãoessencialde
vidatotal,verdadeira, absoluta,(...)Muitosmechamam dediletante:achoqueo artista
temasuarealidadeprópria,enãoestásujeitoanenhumaexigênciasuperior.Nãofaçoo
quepoderiaagradaraosoutros,masoquenasceemmimelutaparaselibertardeminha
sensibilidade, sem ligar a qualquer espécie de chatos. Aliás, parece que o que há no
Brasil com os escritores, é um inexplicável medo de ser “eles mesmos”, sem
premeditaçõesnem compromissos.Muitossãoosespécimesdehomensdeletrasque
traemasimesmos,nãotendocoragemdeenfrentaracrítica,preferindorealizarcoisas
impessoais e informes. Há poetas que fazem da poesia um acontecimento lógico, um
exercícioescolar,umaatividadedialética.Paramim,aPoesiaserásempreumarevelação
deDeus,dom,gratuidade,transcendência,vocação.Longedemimo egoísmo dedizer
quesoupoetaporquenascipoeta(...)
1
Em vista dessa forte personalidade artística e de muitas outras
peculiaridades que envolvem o autor da Invenção de Orfeu, este se tornou um
poeta pouco e superficialmente estudado. Partindo dos conceitos,
aparentemente antagônicos de sagrado e profano, segundo Mircea Eliade, dei
início ao trabalho de garimpar, em Invenção de Orfeu, essas ocorrências,
buscando relacioná-las ao universo poético e ao imaginário do poeta.  Para
Eliade
2
, ambos os conceitos são, além de semelhantes, muito próximos e
ambivalentes,ouseja,podemsignificaramesmacoisaemdiferentescontextos
ou,ainda,sefundirem,oferecendoaoleitorumaespéciede“terceiravia”naqual
 
1
LIMA, Jorge de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. Alexei Bueno (org.)
Fortunacrítica.
2

ELIADE,Mircea.Omitodoeternoretorno.Lisboa:Edições70,1969.
13
é possível trafegar. Além disso, ao relacionara poética deJorge de Lima aos
elementosaquososcomosangue,águaevinhoperceboumaocorrênciadestes
noquetangeaosconceitosdesacralidadeedeprofanação.Taisocorrênciasse
dão em Invenção de Orfeu de maneira que fica clara a intenção do autor em
exaltá-las, tanto sacra quanto profanamente, invertendo, desmistificando e
ressacralizandoconceitoseidéiasconformesuailhaimaginárialhepedir.
A água como princípio vital cosmogônico vai aparecer em todos os 10
cantosdaInvençãoe,emconformidadecomasidéiasdeGastonBachelard,em
seusestudossobreasfilosofiasdoimaginário,háumafertilidadenaáguaenos
líquidos em geral,residentes na quietude dos elementos aquosos que, aqui na
Invenção e, mais especificamente no Canto I, se dá demaneira especialmente
favorávelaodevaneiopoéticocomosendoesteumresultadoaomesmotempo,
inusitadoerevelador,profundamentedesejadoeesperado.Istoporque,éatravés
dapalavracomorevelaçãoque“acontece”apoesia.
Entretanto, pesquisar e compilar material crítico sobre o poeta, pintor e
médico Jorge de Lima é tarefa das mais árduas, para não dizer quase
impraticável.Aescassaproduçãoteóricasobresuaobraécomposta,namaioria
dasvezes,deartigospequenosedepoucaconsistênciacrítica.Amaioriadeles
vêoautorcomoumescritorque,alémdedifícil,équaseimpenetráveldevidoao
seuestilohermético epoucoconvencional. Poressemotivo,partedospoucos
ensaiossobreJorgedeLimaoapresentamcomoumautorumtantoindecisoe
que não segue os padrões estéticos da literatura de maneira satisfatória. Esse
“perfil” do autor foi traçado por críticos e ensaístas da literatura como uma
conseqüência quase natural da escassez e da superficialidade das pesquisas
referentesaopoeta.
Obviamente, Jorge de Lima não aparece na Literatura Brasileira como o
quesepodechamarderepresentantemaiscanônico,quersejasobopontode
vista técnico, quer seja sob o acadêmico, já que seu estilo e sua marca o
diferenciamdosdemaispoetas,mesmodosmaismodernos,oquenãoimpediu
alguns estudiosos da lírica de o considerarem, segundo Mário Faustino, como
14
“um pequeno poeta maior”. Invenção de Orfeu se constitui de um ambicioso
intentodaliteraturabrasileira.
NãohánaInvençãoasegurançaeoconfortodanarração,característica
do épico, que tudo observa e julga. Ao contrário, a obra é permeada de uma
insegurançaconstanteeJoãoGasparSimõesoanalisasobainteressanteótica
daobscuridadehermética:
Semenãoeradadoexplicaropoemacujosentidoseme pedia,paraqueentrepor-me
entreopoetaeoleitor,criando,possivelmente,noespíritodo segundoumaprevenção
contraoprimeiro?Eisarazãoquemelevouapersistir:justaouinjusta,certaouerrada,a
minha interpretaçãonão podiadeixardeconstituirumelementodeaproximaçãodeum
poemaque,obscuroesecretopornatureza,nasuaobscuridadeesigiloteriadeviver,
precisaria viver. Ainda hoje há dúvida sobre a interpretação do Paraíso Perdido e da
Divinacomédia.Umavidainteira,dizT.S.Eliot,nãoésuficienteparapenetrartodosos
meandrosdopoemadeDante,cujosentido,aliás,vaisemodificandoaosnossospróprios
olhosà medidaquetranspomos oscírculos infernaisda nossaprópria vida.Nadamais
natural, portanto, que o poema de Jorge de Lima, subsistindo secreto, permanecendo
obscuro,apósaminhaintrodução,atravésdelavenhaaadquirirumadimensãomais–a
dimensão que lhe , na consciência do leitor, a certeza de que a Invenção de Orfeu,
sendoumgrandepoema,éumgrandepoemaobscuroesecreto.
3
Todas essas particularidades, portanto, tornam a análise da poesia da
Invençãoumexercícioinstigantequemeconduziuaexploraressalíricapartindo
da idéia de que não há um ponto de partida, mas uma viagem inusitada pela
linguagemcomoumatrajetóriapelodesconhecido,poisemcadaparada(poema)
háalgoinesperadoenovo.
Taisinovaçõestambémsereferemaocarátercosmogônicodaobra,jáque
opoetarecria,reinventaerefazummundoatravésdapoesia,conferindo,desse
modo,umaressignificaçãoàspalavras,aosversoseàsconstruçõespoéticas.
 
3
LIMA,Jorge de. Poesia completa.RiodeJaneiro: Nova Aguilar,1997.Alexei Bueno (org.) In:
Fortunacrítica.
15
Para Fábio de Souza Andrade
4
a Invenção de Jorge de Lima se dá de
maneirafragmentadaesemelhantea umprocesso debricolagem,cujosversos
se pode notar a presença de muitos autores o só brasileiros como também
estrangeiros,eoensaístanomeiaareferidaobradeMusaquebradiça,tendopor
base esse processo de construção idealizado e posto em prática por Jorge de
Lima.
Para Carlos Drummond de Andrade
5
, que pouco conviveu com o poeta,
estelhepareciabemmaisdescomplicado,conformepodemosobservarnosoneto
noqualDrummondohomenageiapoucoantesdesuamorte:
AJorgedeLima
EraanegraFulôquenoschamava
doseunegrovergel.Eeramtrombetas,
salmos,carrosdefogo,essesmurmúrios
deDeusaseuseleitos,erampuras
cançõesdelavadeirasaopédafonte,
eraafonteemsimesma,eramnostálgicas
emanaçõesdeinfânciaedefuturo,
eraumaiportuguêsdesfeitoemcana.
Eraumfruirdeessênciaseeramformas
alémdacorterrestreeemvoltaaohomem,
eraainvençãodoamornotempoatômico,
oconsultóriomíticoelunar
(apoesiaantesdaluzedepoisdela),
EraJorgedeLimaeeramseusanjos.
 
4
ANDRADE,FábiodeSouza.AMusaQuebradiça.In:Bosi,Alfredo.LeituradePoesia,SãoPaulo:
Ática,1996.
5
LIMA, Jorge de. Poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1997. Alexei Bueno (org).
Fortunacrítica.
16
OquepercebonestepoemaéadespreocupaçãoporpartedeDrummond
emtentarexplicarou“mapear”JorgedeLimaesuapoesiapois,oqueocorre
neste soneto é, antes de tudo, o deleite pela poesia em si mesma, ou seja, o
prazerdeleropoetaapenasparaadentraremseuimagináriomundoeemseu
devaneio poético, sem questioná-lo ou tentar decifrá-lo, saboreando-o
simplesmente.Amisturadeidéias,temaseimagensqueJorgedeLimaproduz
aparecenessepoemadrummondianodemaneirasimples,naturale,atémesmo,
tranqüila, transmitindo ao leitor a naturalidade plástica e caleidoscópica que o
surrealJorgedeLimapercebiaeproduziasualírica.
Em 1976, a conhecida escola de samba carioca Unidos de Vila Isabel,
tevecomosamba-enredoumacomposiçãodeRodolphodeSouzaeSilvaOlho
VerdeintituladaInvençãodeOrfeu,querendeuaclassificaçãodaescolaparao
lugardoGrupoIeacançãotevecomointérpreteocantorMartinhodaVila.A
referida canção faz parte de um álbum de Martinho, curiosamente chamado A
rosadopovotítulohomônimodeumaimportanteobradeCarlosDrummondde
Andradeeoreferidosamba-enredoéopoematranscritoaseguir:
InvençãodeOrfeu
Ilhadonaimaginação
Quemardefantasia!
Opoetavaicantando
Estóriastãosemhistória
Datristezaedaalegria
Noseuveleirosemvela
Peixequevoa
Avequeéproa
TemoBarão
TristeBarão
Umhomemsemreinado
Temgirassóisreluzentes
Temleãoreicoroado
Navegando,navegando
Navegandosemparar
Dedilhandosualira
Fazendooventocantar
17
Emseudevaneio
Imagensdiferentes
Cavalotododefogo
Mulheresmetadeserpente
Nessailhainventada
Procurandosuaamada
Seucandelabro,astro-rei
Eamulherimaginada
Despertaentãoopoeta
ClamandoOrfeu,clamandoOrfeu
Umaluznastrevasseacendeu
Mentirapraquemnãocrê
Milagrepraquemsofreu
O poema-música que serviu de tema carnavalesco sintetiza de maneira
abrangenteeclaraapoesiajorgianadaInvenção.Otemacarnavalescoaborda
as principais idéias presentes na obra de Jorge de Lima de maneira pontual e
icônica,transformandoos10cantosemapenasumpoemademaneiraconcisa,
massemdeixardeladoaconsistênciaeaessênciapresentesnosmesmos.Há
tantonosamba-enredo,quantoemInvençãodeOrfeu,construçõesimaginárias,
metamorfoses,fantasiasehistóriassurreaisquesefundemeseconfundem.Na
buscadosujeitolíricoporsuaamada(apoesia),opoetadaInvençãotransforma
aaventuradoscantosemumaviagemmusicalatéoseutãodesejadodestino:a
transcendência poética ou o milagre. Essa transcendência objetivada por Jorge
de Lima pode ser entendida como a representação da “viagem” do Orfeu
mitológicoatéoHadesembuscadesuaninfaEurídice.
ÉinteressantesalientarquenãofoiopróprioJorgedeLimaquemintitulou
suaobradeInvençãodeOrfeu,poisestenomeeraapenasumadastrêsopções
queeleapresentouaoamigoepoetaMuriloMendescomquemproduziuTempo
eEternidade(1935).UmpoucoantesdesuamorteopoetaentregouaInvenção
ao amigo Murilo para que este a lesse e a batizasse e, dentre as opções, se
encontravam:“Cosmogonia”,“CantoGeral”e“InvençãodeOrfeu”,permanecendo
este último pelo fato de Murilo Mendes julgar o primeiro muito ambicioso e o
segundo,impossíveldeserutilizadojáqueopoetachilenoPabloNerudahavia
lançadorecentementeumaobrahomônima.
18
Cabe salientar, ainda, que o próprio amigo de Jorge de Lima, Murilo
Mendes,apóslerseutextofalasobreaobrademaneiraexaltada:
Ograndetexto–duplamentegrande-deixou-mesurpreso.Nãoerafácilmanejarumlivro
tão extenso, um verdadeiro labirinto de temas, faturas, imagens e tendências, uma
espéciedepoemacíclico,poema-riocarregandotantasformassparesemsuadensa
correnteza. Eu queria surpreender o cleo do livro, sua unidade, ligá-lo ao resto da
inumerávelobra-emprosaeverso-deJorge,descobriroencadeamentodeumcapítulo
aoutro,ouentãoosmotivosqueinformamaspáginasautônomas(...)
6
E prossegue o poeta e amigo de Jorge, em outro trecho, por muitos
discorrendosobreasingularidadedeInvençãodeOrfeu,eofragmentoaseguirjá
apresentaumpanoramaarespeito:
Na Invenção de Orfeu há cantos – dez como em Os Lusíadas. Todavia, em nenhum
deles, não obstante o pragmatismo  de seus títulos, “Fundação da ilha”, Subsolo e
supersolo”, “Poemas relativos”, “As aparições”, “Poemas de vicissitude”, “Canto da
desaparição”, Audição de Orfeu”, “Biografia”, “Permanência de Inês” e “Missão e
promissão”,existesombrade contenidonovelesco (...)Dir-se-áqueostemasnascem
dosversosequeosversosnascemdostemas,numapermanenteebulição,inventando-
se Orfeu a si próprio, como se Orfeu, o único herói latente do poema, fosse
simultaneamente,oseuprópriocriador–odemiurgo.
1.3SobreoMitodeOrfeu
Orfeu erafilhodeEagro, rei daTrácia, e da musa Calíope, ou, segundo
outrasversões,filhodeApoloedeClio,paideMuseu,ediscípulodeLino,assim
comoHércules.Músicodeenormehabilidade,cultivousobretudo,aliraeacítara,
que recebera como presente de Apolo e a esse instrumento juntou mais duas
cordas(àssetequejápossuía),numahomenagemàsnovemusasqueHesíodo
louvanaTeogonia.
Asuareputaçãodesábioepoetainspiradopelosdeusesseespalharaem
todoomundoantigoeseuprópriopaioiniciounosmistériosdeBaco,cujahistória
 
6
LIMA,Jorgede.Poesiacompleta.RiodeJaneiro:NovaAguilar,1997.In:fortunacrítica.
19
eorigensforamamplamenteestudadasporOrfeuquandoestevenoEgito.Orfeu
possuía tamanha intimidade com a música que, quando dedilhava sua lira, a
melodia que dela se desprendia encantava os animais mais ferozes  e estes
ficavammansos,ospássarospousavamaosseuspés,osriossuspendiamseus
cursos e os soldados mais enraivecidos se acalmavam. Orfeu se abstinha de
comer carne e tinha horror ao consumo de ovos em sua alimentação, pois os
considerava,símbolodoprincípiodavidadetodososseres.
 Orfeu amava apaixonadamente a ninfa Eurídice e no dia de seu
matrimônio, ela morreu perseguida por Aristeu e picada por uma serpente.
Inconsolável, Orfeu desce até o mundo dos mortos para resgatar sua amada
dispondoapenasdesuacoragemedesualirae,aochegaraoreinodeHades,
obtémpermissãoparaternovamentesuaamada,maselenãopoderiavê-laantes
quetranspusessemosumbraisdoinferno.
Entretanto,oimpacienteOrfeuquiscontemplarlogoEurídiceevoltou-se
para vê-la, e neste instante, perdeu-a para sempre. Novamente inconsolável e
agorasemoutrapermissãodosdeuses,OrfeuretornouàTráciaesepôsachorar
incessantemente ao som de melodias tristes dedilhadas em sua lira. As demais
mulheres tentaram consolá-lo, mas ele, fiel ao seu amor, manteve-se solitário
desdenhando todas.Elas, enfurecidaspelo desprezodopoeta,decidiram então,
despedaçá-loemumacelebraçãodeorgiasagradaejogaramsuacabeçanorio
Hebro. Ainda assim, com a cabeça separada do corpo e os lábios arroxeados,
OrfeuclamavaporEurídiceaoserarrastadopelasrumorosaságuas.
7
 
7
De modo análogo,Orfeu assimcomo Cristo, desce aos infernose retorna à superfície terrena.
Alémdisso,ambostinhamdonsdeencantamento”pois,assimcomoOrfeucomsualira,oCristo
comsuaspalavraseracapazdeapaziguaratémesmoastempestadese,dessemodo,épossível
relacionarasduasnarrativas(aórficaeacristã),comovariaçõesdomesmomito,ouseja,como
um mitema que se desdobra.
É importante salientar, entretanto, que a narrativa órfica é
cronologicamenteanteriorànarrativacristã.Oqueevidenciaapossibilidadedequeboaparteda
históriadocristianismotenhasebaseadonomitodeOrfeu.Issoporqueambassãosemelhantes
desdeoprincípionoqueconcerneaospoderesencantadoresesuperiores,àdescidadeambos
aoinferno,aodespedaçamentoeàmortetrágicacomderramamentodesanguee,finalmenteà
ascensãojáque,tantoCristoquantoOrfeuficaramsendocultuadoseadoradoscomodeusesapós
suastrajetórias.Orfeuéapresentadohojecomoaquelequerepresentaaperfeiçãodamúsicaem
geral,oudamúsicapura.Daíseupodersobrenaturalsobreasplantaseosanimais.Alémdisso,
naIdadeMédiaeleeraconhecidoemdiversasnarrativascomooBomPastor.
20
1.4Itinerário
 Os10Cantos quecompõemaobradeJorgede Limasãoconstruídosa
partir de um esquema semelhante à epopéia tradicional Ilíada, de Homero, do
qualderivamoutroscomoOsLusíadaseaDivinaComédia,porexemplo.Devido
àgrandedensidadepoéticadaobra,opteiportrabalharcomoprimeirocanto,já
que, por ser o primeiro, encerra um longo sistema de nascimentos que irão se
desenvolvernoscantossubseqüentes.
No segundo capítulo, intitulado Água, tem início a análise poética
propriamenteditadeInvençãodeOrfeu,combaseemtextosextraídosdoCantoI
que aponta para o caráter cosmogônico da obra através do exame das
ocorrências líricas determinantes e correlacionadas ao elemento aquoso, sendo
este apresentado com um necessário e indispensável à vida, quer seja ela
humana ou não. Nesse capítulo examinam-se ocorrências tanto das
característicasfísicas daágua quantodo seucaráter mutávelesimbólico.Tais
peculiaridades são analisadas a partir dos conceitos propostos por Gaston
Bachelard, que apresenta o elemento água com propriedades e características
relacionadasaosconceitosdesacralidadeefertilidadeinerentesaesta,apartirde
TalesdeMileto,daescolaJônica,naGréciaantiga.
OcapítuloseguinteSangue,assimcomooposteriorVinho,éapresentado,
segundo Gaston Bachelard, como uma espéciede variaçãodaágua, por trazer
consigocaracterísticascomosolubilidadeeviscosidadenoqueconcerneàssuas
propriedadesfísicas.
No capítulo intitulado Sangue percebo uma representação simbólica
sacrificialdapoesiacomosendoesta“morta”emholocaustopelopoetaafimde
purificá-lametaforicamente,paraque,somenteassim,estaatinjaograudepureza
necessárioàtranscendência.Estamortesimbólicarepresentanestetrabalhoena
obradaInvençãoumparalelismoentreossacrifíciosfeitosnoAntigoTestamento
comointuitodeatingirasublimaçãoeapurificação,poisaqui,semelhantemente,
opoeta“sacrifica”apoesiadopontodevistaestéticoesintático,afimderestaurá-
21
la,transcendentalemística.Taisconceitosestãoembasadosprincipalmentenas
idéiasdeRenéGirardcom suaobra intituladaAviolência eosagradona qual
discorre sobre a necessidade ontológica e cultural dos ritos holocáusticos
exaltandoamortesacrificialcomoveículodeascendênciaespiritualeexpiaçãode
“pecados.”
Em outras palavras, é o derramamento do sangue que proporciona,
segundoGirard,apurificaçãoeaexaltaçãodesejadas.Assimsendo,estelíquido
queé,aomesmotempo,representantedavidaedamorte,temaquiopapeldúbio
de pôr fim às mazelas humanas e dar início a uma nova vida, metaforizando,
portanto,apurificaçãoalmejadacujarepresentaçãosedádemaneiramaisampla
noúltimocapítulointituladoVinho.
OcapítuloquedenominoVinho,e quetambémseembasanasidéiasde
Bachelard acerca do elemento aquoso alcoólico e da aguardente de maneira
geral,refere-seaumsupostofimdatrajetóriadalíricaemInvençãodeOrfeu.Isso
porque, através das particularidades deste líquido, analiso questões como sua
importânciacultural,míticaenutritivaparaohomem,tendoemvistaseucaráter
multifacetado. Esse capítulo trata de aspectos relacionados ao cultivo, à
sacralizaçãoeàprofanaçãodovinho,atravésdafiguramitológicadeBaco,bem
como dos ritos litúrgicos que a esse Deus são ofertados. Assim sendo, este
capítulotratadaascendêncialíricadaInvençãoatravésdovinhoemetaforizaa
purezaeo“fim”dabuscadoeu-líricopelasuailha,ouseja,oencontrodeOrfeu
(oeu-lírico)comsuaamada(apoesiasagrada),estandoestajánumplanoque
superaosanteriores,dacriaçãoedosacrifício.
Aescolhadospoemasfoifeitaapartirdosassuntosaquiabordadosenão
leva em consideração a ordem cronológica nem a sequência do Canto I. Isto
porque,ointeresseaquinãoémapearoudesvendaraobra,masapresentaruma
perspectiva dialógica e imagética partindo das filosofias do imaginário e do
devaneiopoéticocorrelacionadasàpoesiadeInvençãodeOrfeue,acimadetudo,
levantaridéiasehipótesessobreaobra,diantedaimpossibilidadedeapreendê-la
emsuatotalidade.
22
Todos os poemas e/oufragmentos aqui apresentadosforam retiradosda
obra Poesias Completas , editada em 1974, no Rio de Janeiro, pela Biblioteca
ManancialemconvêniocomoInstitutoNacionaldoLivro.Areferênciadostextos
extraídosdaobrasedarápelonúmerodaspáginasdestaedição.
8

 
8
LIMA,Jorgede.Poesias completas.RiodeJaneiro: Biblioteca Manancialemconvêniocomo
InstitutoNacionaldoLivro,1974.v.III.
23
2Água
Oqueéafontedavida?Ninguémsabe.osabemossequeroqueéumátomo,seé
umaondaouumapartícula–éambos.Nãofazemosidéiadoquesejamessascoisas.
9
2.1AcosmogoniaeopercursodoúmidoatéaáguanapoesiadeInvenção
deOrfeu
Otermo cosmogonia,do gregoKósmos,representaomundoe,antesde
tudo,pordefinição,umatofundacionaleinventivo.Otermoinvenção,nosentido
de ato criador servirá como ponto de partida, neste capítulo, para a análise de
alguns dos poemas retirados do Canto I da obra de Jorge de Lima intitulada
InvençãodeOrfeu.
Jánaantiguidadegrega,algunsfilósofosbuscavamumaexplicaçãopara
acriaçãodomundonoquetangeaostiposdeexistênciasvitais.ParaGaston
Bachelardascosmogoniasdaantiguidadesãodevaneiosaudaciososapenase,
portanto, não organizam pensamentos, havendo por isso a necessidade
 
9
CAMPBELL,Joseph.Opoderdomito.SãoPaulo:PalasAthena,2000.18ed.P.140.
24
constante de reaprender a sonhar.
10
Por este motivo, ao ler Jorge de Lima,
perceboasuabuscaporummundooníricoemcujaconstruçãoeleseempenha
por concretizar. Bachelard vê o mundo e o considera a partir dos quatro
elementos(terra,água,fogoear)porque,segundoele,essaéaformamaterial
pelaqualocorreafusãoentreosdeuseseanatureza,sendo,paraofilósofoessa
fusão,arepresentaçãodetodososprincípiosgeradoresdevidaedeenergiana
terra. Dessa forma, o pensamento de Jorge de Lima se funde e se dissolve
juntamente ao elemento água, trazendo à análise uma simultaneidade de
significaçõesedeimagens.
 Jáosprimeirosfilósofosgregos,oschamadospré-socráticos,defendiam
em suas idéias que o elemento primordial da vida estava contido na origem
material das coisas. Para Anaxímenes era o ar; Para Heráclito o fogo; para
Anaximandroaterra,eparaTalesaágua.ParaAristóteles,omaiorfeitodeTales
foisuatentativadeexplicaçãodocosmos.TalesdeMileto
11
defendeaidéiade
queaágua,eseuprincípiogerador,queéaumidade,temporbaseoprincípio
geradordetodasascoisasvivas.
Pertencente à escola jônica, ele foi considerado por Aristóteles como o
fundador da filosofia cosmológica por ter sido o primeiro a tratar de modo
sistemático e racional questões referentes à origem, transformação e
conservaçãodomundo.ParaTalesaphysiséaáguaousuaqualidade:oúmido.
E, tanto a água propriamente dita como sua umidade o componentes
essenciais de todas as espécies de vida na terra. Assim sendo, o elemento
água,cujas propriedadesmaismarcantessãoamutaçãoeaversatilidade,tem
aqui o papel de essência cosmogônica não apenas da vida em geral, mas
também,eprincipalmente,dapoesiadestaobra.
No livro inaugural da Bíblia Sagrada, o Gênesis, capítulo 1, há uma
cosmogoniadefundaçãojánosprimeirosversosquediz:NoprincípiocriouDeus
oscéuseaterra.Aterra,porém,estavasemformaevazia;haviatrevassobrea
 
10
BACHELARD,Gaston.Apoéticadodevaneio.SãoPaulo:MartinsFontes,2001.
11
CHAUÍ,Marilena.Dospré-socráticosaAristóteles.SãoPaulo:Brasiliense,1994.
25
facedoabismo,eoEspíritodeDeuspairavasobreaságuas.DisseDeus:Haja
luz;ehouveluz.
 Simbolicamente
12
, aáguaéconsideradaelementoprimordialepontode
partidaparaosurgimentodavida-todaavidavemdaágua-,daísuasimbologia
estarligada àmatrix-mãe.Éum símbolodoGênese, donascimento, epara os
Vedaséchamadademâtrimâh,oquequerdizer"amaismaterna”.Nosmitosdos
heróis ela está sempre associada ao seu nascimento ou renascimento: Mitra
nasceuàsmargensdeumrio,enquantoCristo"renasceu"noRioJordão,ouseja,
a água sempre nos reporta à origem. Prahmanda, o Ovo do Mundo teria sido
chocadonaáguaedeleteriaadvindotodaacriação.Associadaaindaaobanhoe
aobatismo,nostextosdaalquimia,elaestárelacionadaàoperaçãodaSolutio.É
umdossímbolosdaincosciência,sendoqueoatodeentrarnaáguaedelasair
possuiumaanalogiacomoatodemergulharnoinconsciente.
 Semelhantemente a toda e qualquer fecundação ou princípio de vida,
tambémDeus,aocriarouniverso,necessitoudaspropriedadesfísicasdaáguaa
fimdequepudesseconceberseuintento.Evidentemente,emdiferentesculturas
existem outras versões para o mesmo mito de criação como, por exemplo, a
lendaindígenadosíndiosPima,noArizonacujanarrativadiz:
Haviaapenasescuridãoportodaparte–escuridãoeágua.Eaescuridãosereuniuese
tornouespessaemalgunslugares,acumulando-seeentãoseparando-se,acumulandoe
separando....
13
 Através deste fragmento podemos notar um paralelismo em relação ao
mitodefundaçãodoJudaísmoe,segundoomitogregodacriaçãotemosainda:
Noinício haviaoCaoseaescuridão.OCaoseraumvastomarondetodosos
elementosestavammisturadosesemforma.(...)
14
 
12
 CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio,1995.9ed.
13
BIERLEIN,J.F.MitosParalelos.RiodeJaneiro:Ediouro,2003.
14
Idem11.
26
 J. F. Bierlein apresenta uma série de versões tanto para os mitos
fundacionais, quanto para os apocalípticos, entre outros, e não é necessário
enumerar mais do que alguns, para que se possa perceber que o paralelismo
existente entre as mais diferentes culturas e credosse dá de maneira quenos
mitos de fundação, é sempre a água um elemento de extrema importância e
subjetividade. Semelhantemente a Tales de Mileto, Homero e Hesíodo
compartilharamdomesmopensamentoacercadaáguaedesuaspropriedades,
pois,naTeogonia,Hesíodoapresentaumapossívelorigemdosdeuses,eesses
conceitostambémsãoapresentadosapartirdeprincípiosaquososfundacionaise
míticos,assimcomonaInvençãodeOrfeu,nomitodoCristianismoenosmitos
demaneirageral.Otrechoaseguirapresentaumaexplanaçãoacercadosmitos,
eilustraaidéiasupracitada:
Omitoéaprimeiratentativatateantedeexplicarcomoascoisasacontecem,oancestral
daciência.Tambéméatentativadeexplicarpor queascoisasacontecem,aesferada
religiãoedafilosofia. Éumahistóriada pré-história,nosdizendooqueteriaacontecido
antesdahistóriaescrita.Éamaisantigaformadeliteratura,freqüentementeumaliteratura
oral.Omitodiziaaospovosantigosquemeleseramequaleraamaneiracorretadeviver.
Omitoera,eéainda,abasedamoralidade,dosgovernosedaidentidadenacional.
15
 Dessaforma,emInvençãodeOrfeuoautorbusca,atravésdeumaesfera
mítica e cosmogônica, “explicar” o nascimento de um novo mundo poético que
abrange tanto a ciênciaquanto a religião e a filosofia. Tanto a primitividadeda
águaquantoadoselementosaquososcomoanuvem,aneblinaeosvapores,
sãovistosaquisoba óticamíticadosprincípiosvitaisecujasreatualizaçõese
permanências ao longo da história da humanidade, se encontram em contato
constantecomoindivíduosocialtantodaantiguidadequantodehoje.
 SegundoGastonBachelardemAáguaeossonhos,nonossoimaginário,
todoequalquerlíquidofuncionacomoumaespéciedeágua.Istoocorreporque
os elementos aquosos, em geral,  possuem  características umectantes, o
dotadas de propriedades como escoar e, além disso, participam da natureza
líquidadaágua,poucoimportandosuacor,poisasdiferentescoresdoslíquidos,
 
15
BIERLEIN,J.F.MitosParalelos.RiodeJaneiro:Ediouro,2003,p.19.
27
nãoseriammaisdoquesimplesvariaçõesouadjetivosdeumaúnicasubstância.
Para Bachelard, as águas naturais dos rios e mares, por exemplo, funcionam
como uma espécie de leite nutritivo, que alimenta de forma maternal a vida
humana da Terra, assim como uma mãe faria por seu filho. Essa maternidade
aquosa,porsuavez, encontra-seintimamenteligada aofatodesera águaum
elementodecaráternaturalmentenutritivo,jáqueoalimentoprimeirodeumser
humano, ainda dentro do útero, é o líquido amniótico e, logo após seu
nascimento,oleitematerno,ouseja,somentebemmaistardeéqueohomeme
osmamíferosemgeral,introduzememsuasdietas,osalimentossólidos.
Semelhantemente ao que ocorre com os seres humanos, a atuação da
natureza estácorrelacionadaao atodeamamentação.Em outras palavras, éa
águadosrios,mareselagosquenutreaterra,fazosfrutoseanimaiscrescerem
e,consequentemente,ohomem,numaespéciedetrocaconstanteerenovadora
entre este e a natureza. Cabe ressaltar que, tanto um bebê ainda no ventre
materno quanto um peixe (ambos cercados por água) o têm consciência do
alimento que ingerem e, no entanto, o fazem quando necessitam e na medida
ideal. Existe um paralelismo interessante entre o homem e o peixe pois este
representaoprópriohomem,sendoquenumestadodeinconsciênciaoudepré-
consciência.Alémdisso,épossívelanalisaranaturezadaáguasoboaspecto
de uma espécie de sangue vital que percorre o planeta e o enche de vida,
circulandoporsuasveiasimagináriasdasquaissenutremtodososseresvivos.
Aáguaeoslíquidosderivadosdela,porsuafluidezeviscosidade,trazem
consigoumacargasemânticanaqualobservomudançasquevãomuitoalémde
suasvariaçõesdeestadosico,passandoporsuamassainforme,jáquetomaa
forma do recipiente onde estiver, além dos movimentos e dos sons que os
líquidosrealizam,nocasodosriosecachoeiras,poisestesfazemcomqueum
observadorestudiosodafilosofiadoimagináriopercebaavariedadedesignose
deidéiasquecadaumdestesarquétipos
16
podeprovocar.Nofragmentopoético
a seguir é possível observar essa relação entre fecundidade, umidade e os
 
16
Do latim: archetˇypum e do grego: archétypon, sm. “modelo de seres criados”, “padrão” ou
“protótipo”.In:CUNHA,AntônioGeraldoda.DicionárioetimológicodanguaPortuguesa.Riode
Janeiro:novaFronteira,1982.
28
líquidosemgeral,sobapercepçãodeJorgedeLimaemInvençãodeOrfeu,de
maneira que, tanto o surgimento cósmico da ilha, quanto o da poesia é
apresentadopeloautorcomumsentidosacro:
XVI
Desseleiteprofundoemergidodosonho
coagulou-seessailhaeessanuvemeesserio
eessasombrabulindoeessereinoeessepranto
eessadançacontínuaamortalhadaepia.
Hojebrotaumaflor,amanhãfonteoculta,
edepoisdeamanhã,amemóriasepulta
aventurasefins,relicárioseestios;
nasceanovapalavraemcalendáriosfrios.
(...)(p.38)
Os dois quartetos aqui transcritos são parte de um soneto em versos
dodecassílabos clássicos. A alusão aos elementos aquosos evidencia as
propriedades desses elementos relacionadas aos conceitos de alimento,
nutrição, energia e força vital, que, em última análise é a representação das
forçascriadoras,emgeral.
As aliterações em /s/, representam aqui a movimentação, já que essa
consoante,devidoàsuagrafia,podeconotarimagensnecessáriasàcriaçãoda
vida,bemcomoàsuamanutenção,poiséatravésdosmovimentosemgeralque
todoequalquertipodevidasefaz.Alémdisso,osomdo/s/,porsersibilante,
tempronúnciacontinuadaeportantorepresentaacontinuidade,aocontráriodas
consoantes plosivas, por exemplo, que explodem na pronúncia, mas “acabam”
rapidamente.  A conjunção aditiva /e/, também aparece por 9 vezes nos 2
quartetosemetaforizaasomaouaquantidadedeelementosnecessáriosquese
correlacionamàvidaeàpoesialírica.Tambémquantoaotempoverbalháessa
soma, pois o fragmento constrói-se sob os tempos pretérito /coagulou-se/ e
presente /brota/, além de apresentar construções no gerúndio /bulindo/ e no
29
particípio /emergido/ evidenciando, tanto a transitoriedade da vida, quanto a
movimentaçãodestaporentreostemposeespaços.
Os elementos simbólicos como /leite/, /ilha/, /nuvem/, /rio/ e /pranto/
representam aqui o elemento basilar da Trindade aquosa que é a água.
Entretanto, esse elemento aparece mascarado ou nebuloso através de
simbologiascomo oalimentolácteo,oisolamentoinsular, aevasãosuperior,o
percurso fluvial e a dor ou o sofrimento representado pelo choro. É possível
perceber que todas essas imagens se atrelam à idéia de nascimento ou de
geração,poisrepresentam,metaforicamente,umaespéciedepercurso,peloqual
passanecessariamentequalquernascimento.
Ofragmentoseguinteserveparaexplanaressas idéiasdemaneiraque,
aolê-lo, percebo a imagemde uma movimentaçãosincrônicae organizada de
todaanaturezanoquetangeàvidaesuasmanifestações:
VIII
(...)
1-Éprecisoqueapróprianatureza
2-sejanossacomsortesdeaçucenas;
3-eelaaquiestá,seuspulsoslatejando,
4-comoemtudo,provandopoesia.
(...)(p.32)
Ocorreaquiumaexaltaçãodavidaemrelaçãoaosideaisdanatureza,das
energiasvitaisedapoesia.Éinteressantechamaratençãoparaosegundoverso
deste fragmento /seja nossa com sortes de açucenas/ onde ocorre, através da
sonoridade deste, uma espécie de “junção” entre os termos /com/ e /sorte/
trazendo, musicalmenteao trecho, um sentido de união fecunda eprodutiva, já
que a palavra que se produz através da pronúncia é /consorte/ que, do latim
/cõnsortˇium/, é o vocábulo utilizado para designar companheiro(a) da mesma
sorte,estadoouencargo,extensivoacônjuge.
30
Hátambémqueseranalisadooaspectodasliturgiasdemodogeral,jáque
o elemento aquoso é presença constante em tais cerimônias. Isso pode ser
observado,porexemplo,nassimbologiasdaáguadobatismo,queémetáforade
purificação e simboliza o novo nascimento, só que neste caso, um
(re)nascimento,quandooindivíduojáéadultoeparticipavoluntariamentedoato
purificadoreregeneradordoseuespírito.Ovinho,porsuavez,éumelemento
aquosoquesimbolizaoutroarquétipo(osangue)deCristoquefoicrucificadoe,
nascerimôniassacraséservidoafimdequetodosaquelesquebebemdovinho
simbólicoestejam,teoricamente, em comunhãoespiritual comDeus. Estesdois
outros elementos aquosos, o sangue e o vinho, serão mais detalhadamente
analisadosainda,emcapítulospróprios.
 Metaforicamenteaáguarepresentaopercursoeatrajetória,portanto,de
um estado de inconsciência da criatura humana visto que esta, ao ser gerada,
não participa desse processo, nem interfere por não estar espiritual ou
conscientementepresentenoato.Diantedisso,caberessaltarqueoslíquidosem
geral,alémdesofreremmutaçõesemseuestadosico,tambémsãoutilizados
pelasociedadeconformesuacultura,dasmaisdiferentesformasecomosmais
variados sentidos, mas todos eles, indubitavelmente, se atrelam às idéias aqui
mencionadasdemaneiraquecriamumaatmosferafenomenológicadecrenças,
pureza,vida,forçae,acimadetudo,desacralidadeouprofanação,conformeseu
contextoousuautilização.
17

2.2

Asmutaçõesdaágua,suaspropriedadesesuadialéticaaquosa
Paraaimaginação,tudooqueescoaéágua:tudooquefluiparticipadinamicamenteda
naturezadaágua,diriaumfilósofo.Oepítetodaáguacorrenteétãofortequecriasempre
eportodaparteoseusubstantivo.Acorpoucoimporta:eladáapenasumadjetivo;não
designamaisqueumavariedade.Aimaginaçãomaterialvaiimediatamenteàqualidade
substancial.
18
 
17
BIERLEIN,J.F.Mitosparalelos.RiodeJaneiro:Ediouro,2003.
18
BACHELARD,Gaston.Aáguaeossonhos.SãoPaulo:Martinsfontes,1998,p.121.
31
Conforme a citação acima, as propriedades aquosas não se referem
somente aos conceitos cosmogônicos e fundacionais, muito embora esses
estejammarcadosepresentesempraticamentetodaamitologiafundacional.As
peculiaridades inerentes à água e suas características mais particulares são
apresentadaspelasciênciasquímicasdemaneiraque,alémdacomposiçãoeda
diversidadedoreferidoelemento,háumaplurissignificaçãodoelementoaquoso,
jáqueesteé,aomesmotempo,puro,únicoemultifacetado.
O caráter multifacetado da água pode ser analisado sob o aspecto do
devaneiodeBachelardconformejáfoidito,etambémsobaóticadassimbologias
míticas.Istoporquetemosaonossoalcanceaáguaquesaciaasede,fazcrescer
e brotar os alimentos, além de ser também o elemento natural que representa
todosostiposdelimpeza,clareza,saúdeebeleza.Apartirdaconhecidafórmula
químicaH
2
O,compostaporduasmoléculasdehidrogênioparaumadeoxigênio,
temos um mineral bastante abundante em nosso planeta. A água é condição
essencialparaaexistênciadavida,alémdeindispensávelcomponentenosmais
variadosprocessosprodutivosereprodutivos.Aáguarepresentasempremaisda
metadedacomposiçãodosseresviventes,pois,aocontráriodeoutrosminerais,
semágua,nãopodehavervida.
Entretanto, e paradoxalmente, a água é o solvente universal, ou seja, o
mesmoelementoqueénecessárioecondicionalàexistênciadetodoequalquer
tipodevida,étambémoelementoquedissolveedestróipraticamentetodosos
seres vivos. O arquétipo bifronte da água pode ser encarado sob a ótica do
imagináriocomoumaespéciedeciclooupercurso,ouseja,assimcomotodosos
seres na natureza, ela participa de um processo evolutivo, mas que se repete
sempre de tempos em tempos. O elemento aquoso universal cria, nutre e
alimenta durante um tempo, mas, ao fim e ao cabo, dissolve, desmancha,
desintegra, num processo natural e dinâmico, sempre em movimento, sempre
avançando,emboraserepitamasfasescitadas.
Apartirdaanálisedealgunspoemas,aspropriedadesaquosasseatrelam
aos conceitos de sagrado e profano, compondo, juntamente com os demais
elementos a serem analisados nesta dissertação – o sangue e o vinho – a
32
Trindade Aquosa que representa a pureza ea transcendência apontadas pelo
poetaemInvençãodeOrfeu.
CANTOI
FUNDAÇÃODAILHA
I
Umbarãoassinalado
sembrasão,semgumeefama
cumpreapenasoseufado:
amar,louvarsuadama,
diaenoitenavegar,
queédeaquémedealém-mar
ailhaquebuscaeamorqueama.
Nobreapenasdememórias,
vailembradodeseusdias,
diasquesãohistórias,
históriasquesãoporfias
depassadosefuturos,
naufrágioseoutrosapuros,
descobertasealegrias.
Alegriasdescobertas
oumesmoachadas,lávão
atodasasnausalertas
deváriamastreação,
mastrosqueapontamcaminhos
apaísesdeoutrosvinhos.
Estaéaébriaembarcação.
Barãoébrio,masbarão,
demanchascondecorado;
entreomar,océueochão
falasemserescutado
apeixes,homenseaves,
bocasebicos,comchaves,
eelesemchavesnamão.
(p.27)

33
Os poucos críticos de Jorge de Lima já apontaram a relação de
intertextualidade entre esta obra e o épico Os Lusíadas de Luís de Camões.
Curiosamente,estaintertextualidadeocorretambémnoqueserefereaoprincípio
deambasasobras,ouseja,tantoJorgedeLimaquantoCamõesinauguramsuas
obrascomtextosmuitosemelhantes,conformeofragmentoqueseguedoépico
Camonianoqueseencontra,comalgumasvariações,transcritoquasetotalmente
emInvençãodeOrfeu:
Cantoprimeiro
Asarmaseosbarõesassinalados,
Quedaocidentalpraialusitana,
Pormaresnuncadantesnavegados,
PassaramaindaalémdaTaprobana,
Eemperigoseguerrasesforçados
Maisdoqueprometiaaforçahumana,
Eentregenteremotaedificaram
NovoReino,quetantosublimaram;
19
 
AinauguraçãocosmogônicadailhadeJorgedeLimaprossegueaolongo
dos10cantose,comoopróprionomediz,omesmosechamaFundaçãodailha,
isto é, este é o primeiro de 39 outros poemas que estão sob a mesma idéia
fundacional de criação, e a água ainda encontra-se nesta etapa de sua poesia
disfarçadaouencobertaporalgumasdesuasrepresentações,jáqueaindanão
aparecemuitocomoáguapropriamentedita.
 Opoema,queéconstruídocomesquemade4estrofesde7versoscada,
lembraasondasdomare,porconseguinte,obalançodaságuas.Issopodeser
percebidoatravés dosrecursos sonorosdasaliteraçõesem/s/e daalternância
entre as sílabas tônicas e átonas dos versos, como por exemplo: /Um/ ba/rão/
as/si/na/la/do/,comrepresentaçãográfica:/__/__/__/__/,metaforizandoasondas
domare seubalanço. Essebalanço representametaforicamenteo espíritoda
 
19
CAMÕES,Luísde.OsLusíadas.SãoPaulo:PlanetadeAgostini,2003.
34
concepçãocriadora(ouabrisafértil),conformealgumasmitologiasfundacionais
que aparecem nos textos da obra de J. F. Bierlein, por exemplo, no qual é
percebidaumaespéciede“espírito”pairandosobreaságuasduranteacriação
de um novo mundo. Há no poema um caráter narrativo-descritivo que é
evidenciado através dos verbos, em sua maioria, no presente do indicativo e,
principalmente, pela ocorrência de vários deles no particípio, pois esta é uma
formaderivadadeverboque,mesmosendonopresente,trazconsigoumaidéia
de tempo transcorrido, o que poderíamos chamar de uma espécie de passado
recente,daíocunhonarrativodopoema.
 Opoemaoucantoexaltaumabuscapelailhaepeloamoraofalardeum
barãoutilizandooartigoindefinido/um/comoantecedentedosujeitonoprimeiro
verso da primeira estrofe, pois se trata de qualquer barão ou de apenas um
barão, em detrimento do artigo definido /o/, o que tornaria o sujeito um
personagemdefatoou,pelomenosodefiniria.Talconstruçãomaisabrangente
evidenciaqueofoconãoéosujeitocitado,masabuscaeoanseiodoeu-lírico
pelailha,aoinvésdenarraraspossíveisglóriasdonavegador.Areferidabusca
revela,portanto,queésomenteatravésdaáguaedesuaspropriedadeslíquidas,
variáveis, balançantes e mutáveis, que será possível transpor na viagem a
distânciaqueseparaopoetadeseuobjetivo:ametafóricaeinsularpoesia.
 Evidentemente,aintertextualidadecomOsLusíadasnãoocorreporacaso,
poisJorgedeLimausaumléxicoquepropiciaessediálogoentreasduasobras,
já que o português que aqui chegou era nobre, destemido e cheio de fama e
brasões. Apesar disso, o barão apresentado no poema não tem glórias nem
brasõesporqueseuanseioépeloisolamentoinsular,aoinvésdebuscarriquezas
eterrascomoosantigosnavegadores,poisseufadoé:/amar,louvarsuadama,
diaenoiteanavegar/,istoé,seucantodesaudosismoemelancoliaépelamusa
oudamaque,metaforicamente,érepresentadaporEurídice.
 Nasegundaestrofeháumacontinuidadenanarraçãoeumencadeamento
tantodasidéias,quantodasintaxedopoemaqueconfereumaespéciedeavanço
ao texto poético como se fossem as águas empurrando a embarcação-poema
parafrente.Opoemaprosseguenesseritmoquelembraumaviagemmarítima
35
atéoversoda3ªestrofeondehá umúnicopontofinalentreversosdeuma
mesmaestrofe,logo apósoverso/paísesdeoutrosvinhos/,seguidopelo
/Esta é a ébria embarcação/. Esta ocorrência aponta para a idéia de que, ao
descobrirnovospaíses,cujascivilizaçõespossuemculturasadiantadas,poisjá
cultivam o vinho
20
, talvez a embarcação-poema esteja em seu rumo certo, ou
seja,podeserqueabuscapelailha,aquirepresentadacomooisolamentoinsular
dopoetaedaprópriapoesia,estejaprestesaseralcançada,porisso,ousodo
ponto final que representa uma espécie de chegada ou fim da viagem. Dessa
forma,asocorrênciasdialógicasentreaáguaesuasvariaçõesrepresentamaqui
tantoomovimentodabusca,quantoafertilidadedoencontroedacontinuidade
destaconstantemente.
 Oversofaladeumaébriaembarcaçãoeissoevidenciaofatodeque,
tanto o navegador quanto a embarcação não possuem firmezas nem certezas
poiscambaleiamaosabordaságuascomoseembriagadosdevinhoestivessem.
Outros aspectos serão retomados acerca do vinho em capítulo específico, mas
voltandoaoversoda3ªestrofe,opoetamencionaocaráterincertodaprópria
poesia não apenas do poema em si, mas  da obra como um todo e, mais
especificamente, dos 10 cantos, já que, embora ele demonstre conhecer muito
bemasmaisdiferentestécnicasdaestéticapoética(eseutilizardelas),também,
em vários momentos deixa seus versos totalmente à deriva e sem qualquer
amparoestéticonosmaresdalírica.
21
 Na4ªestrofedopoemaobarãotambémaparececomoumembriagadoe,
logoapósaconjunçãoadversativa/mas/,oeu-líricoenfatizaque,aindaassimé
barão, mesmo que esteja condecorado com manchas. Essas manchas bem
podemseranalisadassobaóticademanchasdesangue,poisseriamresultados
das muitas batalhas, lutas e reveses pelas quais foi sabidamente marcada a
história da nossa civilização brasileira em face do colonialismo e suas
repercussões.
 
20
Ocultivodovinho,naantiguidade,eraconsideradoumapráticadascivilizaçõesadiantadasou
modernas, tendo em vista o fato de que ao cultivarem-no, passavam de povos bárbaros a
civilizadosesuasculturassetornavammaisadiantadas.In:CHEVALIER,JeaneGHEERBRANT,
Alain.Dicionáriodesímbolos.RiodeJaneiro:JoséOlympio,1995.9ed.
21
JorgedeLima jáfoicondenadoporcríticoscomoFábiodeSouzaAndrade,pornãoadequar
sualíricaaosparâmetrosestéticossemdemonstrarumarazãoaparenteparaestasocorrências.
36
Ostrêselementosqueaparecemlogoemseguida,estãometaforizandoas
necessidades e características do homem, que são o céu, cuja representação,
aqui,podeserassociadaaodesejodetranscendência,omarquerepresentaas
incertezas do ser humano e a instabilidade das emoções (devido ao balanço
contínuo das águas) e, por último, o chão que metaforiza as raízes, por sua
firmeza,durezaecapacidadede“prender”pessoaseplantas
22
.
Estes três elementos aparecem novamente no verso sob a
denominaçãodeaves,peixesehomensrespectivamente,o queentendocomo
uma nova representação do que já foi dito anteriormente, já que o peixe/mar
significariatantooestadoprimeiroouinicialdohomemquantoasuainconstância
por viver na água; o homem/chão representaria um estado intermediário do
própriohomempoisdominaosdemaisanimais,viveemterrafirmeepossuium
supostoequilíbriodo pontodevistaintelectual emoral;Jáaave/céu,podeser
entendida como uma alusão a um estágio superior e transcendental em que o
sujeitodapoesiaestarianocéudaintelectualidadee,portanto,transcendendoos
limites da sabedoria e da busca por sua ilha, atingindo assim, seu universo
poético.
Essaespéciedealtitude,aoseralcançada,podeservistanopoemacomo
oentendimentoouaschavesdosenigmasdapoesiaedoprópriosentidodavida
eseusanseios.Emoutraspalavras,opoemacomoumtodorepresentaabusca
atravésdaáguapelametafóricailhae,sendoesteanseiosaciado,tem-seentãoa
transcendênciaascensionaldalírica.
Paraquetaisanseiossejamatingidos,entretanto,énecessárioquehaja,
naredondezadailha,afecundidadedoverbo,ouseja,quealíricasetransforme
emalgofértile,portanto,produtivoaoshomenseaqualqueruniversopoéticoe
mítico.Issoficaevidenciadoatravésdaleituradofragmentoquesegue:
 
22
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio,1995.9ed.
37
I
(...)
Barãoébrio,masbarão,
demanchascondecorado;
entreomar,océueochão
falasemserescutado
apeixes,homenseaves,
bocasebicos,comchaves,
eelesemchavesnamão.
(p.27)
2.3Osconceitosderedondoedefertilidaderelacionadosaoisolamentoda
ilha
Aquemseabreàcosmicidadedasimagensoserredondoarredondaocéuemcúpula.
E na paisagem arredondada tudo parece repousar. O ser redondo propaga sua
redondeza, propaga a calma de toda sua redondeza (...) e para um sonhador de
palavras,quecalmanapalavraredondo!Comoelaarredondacalmamenteaboca,os
lábios,oser,ofôlego!
23

 Aoaproximarmosaspalavrascomunsdasfilosofiasdoimaginário,estasse
tornam diferentes e dotadas de uma plurissignificação maior, mais espessa e
maisimpactante.Seobservarmos,porexemplo,apalavra“redondo”
24
comoum
adjetivoapenas,elanadamaisserádoqueumaatribuiçãoespacialeformalaum
objeto ou ser qualquer sem grandes especulações. Entretanto, ao considerar o
adjetivo num plano metafísico e dotado de imaginação, tudo muda e fica mais
belo e mais interessante. A palavra redondo, vista sob esse aspecto, conota
idéias maternais, férteis, vitais e procriadoras. Muito do   que produz vida é
redondo. As células, a gestação humana e animal, o ovo, entre outros, sendo
 
23
BACHELARD,Gaston.Apoéticadoespaço.SãoPaulo:VictorCivita,1984,p.353.
24
Originaldolatim vulgar:rětŭndusedoclássico:rŏtundus,significaarredondado,arredondar,
redondeza, ou ainda, redondilha. In: CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da
LínguaPortuguesa.RiodeJaneiro:novaFronteira,1982.
38
portanto, a palavra redondo uma representaçãodavida e da geração desta. O
poemaaseguirservetambémpararepresentaressaespéciedematernidadeque
háemtudooquetemaformaarredondada:
VIII
(...)
Ovosnasrelvascomseusolhosmansos,
pequenasnuvensbaixas,eumaondina
sonâmbula,inocente,comdoispássaros
nasmãoscomabundâncias,leites,âmbares.
Éprecisoqueapróprianatureza
sejanossacomsortesdeaçucenas;
eelaaquiestá,seuspulsoslatejando,
comoemtudo,provandopoesia.
(...)(p.32)
Neste fragmento novamente aparece o elemento aquoso com uma
significação de fecundação e nascimento. A construção poética tem  cesura
deslocadacomritmoquebrado,istoé,nãoháconstânciarítmicanemmarcação
nas mesmas sílabas poéticas com fixidez. Essa “quebra” rítmica pode ser
observadaatravésdaescansãoedasonoridade,poisosversostêmaseguinte
disposição na estrofe: /O/vos/ nas/REL/vas/ com/ seus/ O/lhos/ MAN/sos/ e as
sílabastônicasseencontramnasposições1,4,8e10,noseguinte/pe/QUE/nas/
NU/vens/BAI/xas,/EU/maon/DI/na/,assílabasnicastêmasposições:2,4,6,
8e10e,oterceiro,/so/NÂM/bu/la,i/no/CEN/te,/com/DOIS/PÁ/ssa/ros/,temas
sílabascommaiorentonaçãofônicanasposições:2,6,9e10.Assim,emtodos
os demais versos deste poema, há uma discordância em relação à posição da
sílaba forte no verso. A ausência de fixidez na demarcação da cesura métrica
representa,juntamentecomoritmodopoema,ainconstânciaeaimprecisãoda
cosmogoniaemInvençãodeOrfeuqueestáintimamenteligadaaoprocessode
desconstruçãosoboqualéarquitetadaaobracomoumtodo.
39
As aliterações em /s/ e /m/ marcam a sensualidade e o movimento dos
trechosdestacadosevidenciandoumasinuosidadetmicaemcujafertilidadese
fazapoesia,comoumaespéciedeCaoscriadoreprodutivo.
Assim como anteriormente visto, a umidade, os vapores e o leite gua
nutritiva)sefazemmarcadosnofragmentocomopulsanteseveiculantesdevida
ouenergiavital.Otermoovoqueiniciaaestrofe,porserumacélulagigante,
traz consigo uma conotação germinativa, reprodutora e, portanto, simboliza a
fertilidadeeafecundação,alémdepossuiroformatoredondoque,porsisó,jáé
umasimbologia dematernidadefértil.Antigaslendas míticasapresentam oovo
como:oOvodo Mundo,poisele seriarepresentantede toda acriaçãoeteria
sidochocadonaágua
25
.
Asrecorrênciasimagéticasaquipresentescomo/sonâmbula/,/mãos/,/leite/,
/âmbares/, /pulsos/, /latejando/, entre outras, enfatizam a idéia copulativa e
fecunda,poisestesvocábulossãoportadoresdestasimagens.Ofragmentoque
seguecontinuaapresentandoasimagensférteisdapoesia-água.
VIII
(...)
Unscertosdescantaressolicitam
abandonossemculpa,poisnoscactos
adensanévoafura-seemsegredo.
Foiprecisoquetuónatureza,
ciosprovisionadostransmitisses
enoscontaminassescomessesviços
desetasmergulhadasnasilhargas,
nopeito,comosantosreeditados
(...)(p.33)
 
25
 CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio,1995.9Ed.
40
Nestes dois quartetos que fazem parte do poema anterior é notadamente
clara a alusão ao erotismo da fecundação, principalmente nos versos /a densa
névoa fura-se em segredo/, /cios provisionados transmitisses/ e /e nos
contaminassescomessesviços/.Asaliteraçõesem/s/eem/m/serepeteme,
novamente a água aparece, só que, neste caso, em formato de névoa
representandoaquiumaáguavaporosaetambémainterdiçãoaservencidaou
furadaafimdequehajaafecundaçãoouonascimentolírico.
Esta interdição também pode ser entendida como metáfora da fôrma na
qual alguns poetas ficam presos, pois não conseguem ultrapassar e atingir o
objetivorealdapoesiaqueéodevaneiodabeleza.Énaságuasvaporosas
26
,das
fonteseriachosqueencontra-seafertilidadedasidéias,dabelezae,portanto,da
poesia. Cabe salientar que nesses lugares úmidos também vivem as ninfas
mitológicascomoEurídice,porquemOrfeuseapaixona,segundoomito.Quanto
àriquezadasimagensedodevaneiolírico,destacoalgumascomo,porexemplo,
overso/adensanévoafura-seemsegredo/,emcujosvocábulosapalavranévoa
representa a água num estado vaporoso, fugidio e informe. Do latim: /nēbŭla/,
significacerraçãopoucoespessa,nevoeiro,bruma,ouainda,nuvem.Névoa,pode
servista,ainda,comoafusãoouo“casamento”doar+aágua,cujoresultadoéo
vapor.Essematrimôniosimbólicorepresentaaquinopoematambémafertilidade
e a gestação” da poesia ou, ainda, seu nascimento. Isto pode ser constatado
atravésdoverso/ciosprovisionadostransmitisses/,bemcomodofragmentoque
segue:
IX
Háumascoisasparindo,ninguémsabe
emqueleito,emquechuvas,emquemês.
Coisasaparecidas.Céusmorados.
Aspresençasdestilam.Chamamdeonde?
Emqueúterofundoesteovocabe,
noregaçoalcançadoemquetevês?
 
26
BACHELARD,Gaston.AáguaeosSonhos.SãoPaulo:MartinsFontes,1998.
41
Aportaaberta,osvalessaturados,
eumgemidobivalequeseesconde
(...)(p.34)
 Estes dois quartetos pertencem ao soneto IX do primeiro canto de
Invenção de Orfeue, notadamente ocorre aqui uma nova alusão à água, que
destavez,apareceemformadechuvae,novamenteumareferênciaaotermo
ovo.Ointeressantenestefragmentoéaclarezacomqueoeu-líricofalasobre
aspectos como concepção/erotismoe deleite,emborasejapossível abrangera
significação desse gozo para um sentido metapoético, ou seja, há uma
construçãoquesepermiteseranalisadacomoumtextopoético,quefaladesi
mesmoedopróprioatodefazerpoesia,aludindo,assim,aoatocriativodalírica,
comparandoesteàfertilidadedaságuaseàabundânciadevidaconstantenelas.
Alémdisso,emtermosdeestética,temosumaconstruçãopoéticadeforma
fixa, o soneto que, segundo Salvatore D’Onófrio
27
, traz nas suas 2 quadras o
temacentralaserdesenvolvidonopoema.Apredominânciaverbalaquisedáno
presente,mas é interessante analisar o fato de ocorrer umaconsiderável parte
desses verbos no gerúndio. Tais constatações indicam, semanticamente, uma
continuidadeouuma“movimentação”nopoema,jáqueogerúndioindicaqueos
fatosestãosedesenrolandonotempo.
Asescolhaslexicaiscomo/útero/,dolatim/utěros/,oórgãoquesegregao
fetodosmamíferos;/ovo/célulagigantequerepresentatodasasformasdevida;
/parindo/,dolatim/parěre/éonomedadoaoatodedaràluzouexpelirdoúteroo
fetonomomentodeseunascimento;/leito/,dolatim/lectos/,armaçãodemadeira
quesustentaacamaeocolchão;/gemido/,dolatim/geměre/,oatodeprantear
oulastimare/mês/,dolatim/mensis/queéotermoutilizadopararepresentarum
duodécimo do ano por um período compreendido de 30 dias, representam, em
conjunto, o nascimento, a fertilidade e a cópula. Todos esses sentidos e
expressõesaquiseencontramfundidosaoatopoéticoouaoatodefazerpoesia,
 
27
D’ONÓFRIO,Salvatore.Teoriadotexto:teoriadalíricaedodrama.(vol2),SãoPaulo:Ática,
1995.
42
propriamente dito. Isto porque, para Jorge de Lima é necessário que haja a
fertilidade e o movimento das idéias (simbolizadas pelos elementos aquosos),
paraquealíricasefaçaesetornefecundanocoraçãodoshomens.
Assim sendo, observo que a predominância desses elementos com
propriedadesúmidase,portantoférteis,édeimportânciabasilarparaqueJorge
deLimaadentrenasuailhapoética.Nopoemaseguinte,háumarepresentação
dodinamismoedamovimentaçãoadvindadealgovivoepulsantecomoéalírica
paraopoeta:
X
Osriosquepassam,
osriosquedescem,
jáforamcantados
pormuitos.
Osriosparados
nafacedotempo,
porémmaisvelozes,
sãorios.
Osseusafogados
jamaisconseguiram
descerapressados
praomar.
Asluasqueneles
seespelhamconstantes
nãotêmsuasfases,
nãomudam.
Poisqueessesrios
sãoriosdoespaço
comaságuasdotempo
velozes.
Masseelesparassem
abaixodasfaces...
Queparem!Quemimporta!
Eunão.
Masseelescorressem
43
comasfacespassadas,
presentes,futuras,
seriam.
Osriosnãosão
paradosourápidos,
alegresoutristes,
sãorios.
(p.34)
 Essepoemacompostopor8estrofesde4versoscadaéconstruídoem
redondilhamenor,sendoqueoversodecadaestrofeaparecesemprecom2
sílabaspoéticas.Talconstrução,aomesclarduasmétricasnummesmopoema,
metaforiza, tanto os rios que são sabidamente irregulares em suas bordas,
quantoaprópriapoesiada Invençãoque nãosegue umaregularidadeestética
fixa. Sua sonoridade lembra a batida marcial de um instrumento musical de
percussãocomoosinstrumentostocadosnasfanfarras,porexemplo,eatravés
doenjambeamentdopoema,épossívelidentificarestamusicalidadeemtomde
marcha.
A passagem do tempo aqui também é marcada de maneira a
proporcionar ao leitor uma reflexão acerca do seu caráter cíclico, embora
mutante. Em outras palavras, esse tempo aqui analisado é um tempo
representativodeumoutroqueéodapoesia.Otempopoéticoécomoumrio
queflui,noqualpodemos“remar”ounosdeixarsubmergiremsuasfecundas
águas. A idéia de tempo transcorrido é ainda marcada pelo ritmo se
observarmos, por exemplo, as batidas de um relógio juntamente com o
enjambementdopoemarelacionandoestasbatidasaosmovimentosdeentrada
e saída de um remo dentro da água numa embarcação qualquer, destas que
comumente vemos nos rios e há neste poema uma intertextualidade com um
conhecidopoemadeCecíliaMeireles
28
.
 
28
Naúltimaestrofeopoetadialogacomotrechode“Motivo”:Eucantoporqueoinstanteexistee
aminhavidaestácompleta,Nãosoualegrenemsoutriste:Soupoeta(...)eenalteceosentimento
dealtruísmoetranscendênciavividoporCecíliacomasuaeuforiaaofalardetempo,movimento
e,principalmente,denascimentoecriaçãopoética.In:MEIRELES,Cecília.Antologiapoética.São
Paulo:Novafronteira,2001.
44
 Opoemaaseguirapresentaumaidéiacondensadado quejáfoidito
em relação às propriedades da água e enfatiza o caráter gerador desta,
apresentando o fruto ou o resultado desta procura do eu-lírico por uma nova
palavra,porumanovavida:
XVI
Desseleiteprofundoemergidodosonho
coagulou-seessailhaeessanuvemeesserio
eessasombrabulindoeessereinoeessepranto
eessadançacontínuaamortalhadaepia.
Hojebrotaumaflor,amanhãfonteoculta,
edepoisdeamanhã,amemóriasepulta
aventurasefins,relicárioseestios;
nasceanovapalavraemcalendáriosfrios.
(...)(p.38)
 Dessesonetoalexandrino,observonas2quadrasaocorrênciadeuma
espécie de síntese ou condensação do que já foi dito acerca da cosmogonia
poética aquosa. Na primeira estrofe, o eu-lírico afirma ter sido do leite (água
nutritiva)profundoeimaginárioquesecoagulou,ouseja,sesolidificouailhaque
aparecenovamenteaoladodaáguanosestadosgasoso(nuvem)elíquido(rio).
Omorfemaágua[agwa],podeserconsideradoumapalavra“redonda”devidoao
seucarátermutanteecíclico,jáquesetransformaepassadeumestadopara
outro,massempreretornaaosanteriores.Alémdisso,asvogais/a/,abertae/w/,
fechada,aoserempronunciadasjuntamentecomaúnicaconsoantedapalavra,
produzemumamovimentaçãoeumarredondamentodabocaedoslábios,oque
caracterizaatribuiçõesderedondezaàmesma.
 O termo ilha, além disso, está paralelamente ligado ao termo rio em
sentido paradoxal. Isto porque o primeiro, pertencente às águas salgadas, tem
comoformaumaporçãodeterracercadadeágua,jáosegundo,éumaporção
longitudinal de água doce cercada de terra. Apesar dessa diferença intrigante,
ambospossuemumacaracterísticaemcomumqueéairregularidadequantoaos
45
seuscontornos,alémdadiferençageográficadeambos.Ailhaéredonda,ao
passoque umrio éextensoecomprido, pois“corta” as terras por ondepassa,
formandoassim,estesdoiselementos,umaespéciedejunçãoentreumsímbolo
redondoeumfálico,oqueresultanumaespéciedecópulaentreáguasdentro
dopoema.
Retornandoaopoema,percebemosquenoprimeiroquartetoprosseguem
asaliteraçõesem/s/,juntamentecomasaliteraçõesnasalizadasem/m/e/n/eo
própriotermoprantorepresentaador,osgemidoseochorodeumnascimento,
além de ser salgado assim como o mar. O ritmo do poema aponta para um
movimento de vida, de dança e de um deslocamento do qual, somente quem
possui energia vital pode participar. Além disso, a abundância  da conjunção
aditiva/e/representaanecessidadedesesomardiferentesitensousubstâncias
a fim de que venha a ser possível uma fecundação e, consequentemente, um
elementoouservenhaaexistir.
 Osegundoquartetodosonetoprosseguenarrandoadançadavidaeda
fertilidade, sem deixar de evidenciar o fim e a morte, mas enfatizando o
nascimento da nova palavra. Esta nova palavra e seu nascimento ou
(re)nascimentoéumadasbasesdesustentaçãodaobraInvençãodeOrfeuque
busca, acima de tudo, recriar uma modalidade poética, fazendo com que a
poesiavenhaarenascer(daságuasférteis)e,porisso,serenove(comsangue)
e se purifique (como o vinho) dos exageros estéticos ou de quaisquer outros
conceitos ou pré-conceitos por Jorge de Lima considerados desnecessários à
poesia
29
:
A água é a senhora da linguagem fluida, sem brusquidão, da linguagem contínua,
continuada,dalinguagemqueabrandaoritmo,queproporcionaumamatériauniformea
ritmosdiferentes.Portanto,nãohesitaremosemdarseuplenosentidoàexpressãoque
fala da qualidade de uma poesia fluida e animada, de uma poesia que se escoa da
fonte.
30
 
29
Umexemplodestaconstataçãodaestéticadoexageronabuscapelaformaéoconhecidotexto
ProfissãodedoparnasianoOlavoBilac,quedefendesuacrençadeque,atravésdasformas,é
possível criarumalíricavalorosa edequalidade.In:BILAC,Olavo.Poesias. SãoPaulo:L&pm
,
2000.
30
BACHELARD,Gaston.Aáguaeossonhos.SãoPaulo:Martinsfontes,1998,p.193.
46
Otermoilha,tambémpresentenotítulodocantoanalisado,origina-sedo
latim insŭla e do francês insuline, significa terra menor do que um continente
cercadadeáguaportodososlados,ouseja,umailharepresentaaminiaturade
umcontinenteemfacedeseutamanhoesuaforma.Opoetaretrata,atravésda
imagem da ilha, a metáfora do isolamento ao qual se submete um artista da
palavraafimdequepossatercondiçõesdecriarseuuniversoàparte,queéa
poesia.IstoporqueadifícilcompreensãodaobradeJorgedeLimaacarretaem
umhermetismoque,acreditosermotivadoeproposital,quandopensoemlírica
moderna conforme o pensamento de Hugo Friedrich, que diz: ninguém
escreveria versos se o problema consistisse em fazer-se compreensível.
31
 E
assimfuncionaalíricadeJorgedeLimaque,aomesmotempo,atraieperturba,
incomodandoeforçandooleitoradesvendaroseuhermetismo.
 Quanto ao termo ilha
32
, e suas representações, destaco, por exemplo,
algumas peculiaridades como o fato de,somente ser possívelchegar até uma
ilhaapósumanavegaçãoouumvôo.Elaéainda,osímboloporexcelênciade
umcentroespirituale,maisprecisamente,deumcentroespiritualprimordial.A
ilha é, portanto, um mundo em miniatura, uma imagem do cosmo completa e
perfeita, pois apresenta um valor sacro completo e, em última instância, é o
símbolodeumlugardesilêncioedepaz,emmeioàignorânciaeagitaçãodo
mundo(mar)profano.
Além disso, é indiscutível que suas simbologias se encontram no
imagináriodohomemsobosaspectosdaperfeiçãoedabelezaintrigantes,até
mesmo por sua formação e posição geográfica em meio ao mar; pelo fato de
estarisoladadasoutras porções deterra através daságuase por seu caráter
originário de lavas vulcânicas (ou fogo). Entre outras características, uma ilha
representaumaespéciedefecundaçãodaságuas,devidoaofatodeemergirdas
profundezas oceânicas e, desta forma, emprenhar o mar com as diferentes
espéciesdevida,tantodosanimaisquantodosvegetaisqueamaioriadasilhas
guardaemsuasuperfícieterrestre.
 
31
FRIEDRICH,Hugo.Estruturadalíricamoderna.SãoPaulo:DuasCidades,1978.
32
 CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio,1995.9Ed.
47
 Taissignosderedondeza,aquirepresentados,tantosegundoBachelard,
quanto em relação ao pensamento mítico-cosmogônico, de Bierlein, são
analisados sob a ótica de uma cosmogonia fundacional poética. Nesta
cosmogonia, existenteem Invenção deOrfeu, em cujaobra oautorenfatizao
caráter multifacetado e inaugural da sua lírica põe a mesma numa posição
litúrgica e transcendental a fim de que seja reverenciada e valorizada por sua
capacidadetransformadora e renovadora nohomem. Talcapacidadedapoesia
estáintimamenteligadaaossentidosquedespertaetransportanomomentoem
que se faz. Esse novo mundo permeado de novos sentidos ao qual o poeta
convida a entrar é o mundo dos sentidos e das significações abstratas e
imagináriasnoqualapenasquempossuialgumacompreensãoimagéticapoderá
adentrar,pois:
O mundo do homem é o mundo do sentido. Tolera a ambigüidade, a contradição, a
loucuraouaconfusão,oacarênciadesentido.Oprópriosilêncioestápovoadode
sentidos.
33

 A ilha representa, em suma, um centro cosmogônico e sagrado. Isto
porquetodocentrocarregaconsigoumacargasemânticadesacralidade,assim
comotodasas cidadesantigaseram construídasapartirdeseus centros; um
átriodeigrejaéoseucentro,bemcomooúterofértildeumaerepresentao
seu centro também. Todo centro representa, por si só, uma acumulação de
energiavitale,porconseguinte,umaenergiacapazdecriarourecriaroquequer
que seja. Uma criação, por sua vez, repete sempre o ato cosmogônico de
fundação do mundo. Dessa forma, um ritual sempre será uma projeção mítica
primeva,conformeMirceaEliadefalaacercadamitologiadoretorno:
Baco, comseus ritosorgíacos,imitaodramapatético de Dioniso;umórficonosseus
cerimoniaisdeiniciação,repeteosgestosoriginaisdeOrfeu,etc.
34
 
33
PAZ,Otávio.Oarcoealira.RiodeJaneiro:NovaFronteira,1982,p.23.
34
ELIADE,Mircea.Omitodoeternoretorno.RiodeJaneiro:Edições70,1969,p.37.
48
Dessa forma, os conceitos de sagrado e profano, atrelados às idéias
tríadesdaágua,dosangueedovinhorepresentamasocorrênciasimagináriase
filosóficas desta pesquisa no que tange ao devaneio poético e suas
multifacetadassignificações.
49
3Sangue
3.1Osprincípiosdadialéticaconceitualdesagradoeprofanoemrelação
aosangue
 É inerenteao ser humanoconsiderar umobjeto ousercomosagrado ou
profano, pois necessita, ontologicamente, assegurar-se em uma crença ou
divindade.Independentementedareligião oudopensamentofilosóficopeloqual
este indivíduo se guie ou ampare, os conceitos de sacro e impuro, por muitas
vezes,seconfundemesefundem,poisestãointimamenteligadosàsreferências
culturaisesociaisdaquelesqueoseguem.Comumente,umadeterminadacultura
oulugarpodesacralizarumobjeto ouanimal, porexemplo, enquantoque, para
outra localidade ou herança cultural tais conceitos se tornem antagônicos.
SegundoMirceaEliade
35
,dependendodosujeitoenfocadoouestudado,qualquer
pedaçodetábua,pedraoumesmoumvegetalpoderáserconsideradosagrado,
pois,conformeotrechoquesegue,essaéumabuscaconstantedohomem:
 
35
ELIADE,Mircea.Osagradoeoprofano.SãoPaulo:MartinsFontes,2001.
50
Ohomem,mesmonoperíodohistóricoemquese encontra,homoreligiosus, acredita
semprequeexisteumarealidadeabsoluta,osagrado,quetranscendeestemundo,que
aquisemanifesta,santificando-oetornando-oreal.
36
 Essanecessidadedeacreditaremalgosagradoousuperior(quepodeser
umadivindadeounão)é,paraEliade,umdosprincípiosessenciaisdasreligiões
por estar intimamente ligado aos anseios mais antigos da humanidade, como o
desejo de transcender, por exemplo. Esta busca humana por algo superior,
elevado e sublime, faz com que o sujeito experimente uma espécie de alento
espiritualaoimaginar-seprotegido,amparadoousoboolhardeumdeusoualgo
parecido.
Percebo um bom exemplo disso,atravésdoshábitos dosagricultoresna
culturahebraica,porexemplo,poiseracostumedessepovo,nãocolherparasi
nosprimeirosanos,osfrutosdeseutrabalho.Issoporque,elesacreditavamque
essesfrutoseramimpuros(profanos)atéoterceiroanodeplantio.Acolheitado
quarto ano era oferecida a Deus e, somente a partir da quinta colheita, eles
desfrutavamdeseutrabalhoporacreditaremque,apartirdeentão,suascolheitas
seriamabençoadas(sagradas).Nostextosbíblicosexistemdiversasocorrências
semelhantes,masanarrativanaqualAbraãoémandadoporDeusoferecerem
sacrifícioseufilhoIsac,afimdequesuaféfosseprovadaepurificada,chamaa
atenção pela singularidade da situação em que o pai do menino se encontra,
conformeofragmentotranscrito:
EpôsDeusAbraãoàprovadizendo:Abraão!Estelherespondeu:Eis-meaqui!
AcrescentouDeus:Tomateufilho,teuúnicofilho,Isaque,aquemamas,evai-teàterrade
Moriá;oferece-oaliemholocausto,sobreumdosmontes,queeutemostrarei.
37
 
36
ELIADE,Mircea.Osagradoeoprofano.SãoPaulo:MartinsFontes,2001.p.164.
37
SAGRADA,blia.Antigoenovotestamento.SãoPaulo:SociedadebíblicadoBrasil,1988.2
ed.Gênesis,cap.22.vers.1-2.
51
 É importante observar neste ponto que, nem mesmo o homem escapa
desse sacrifício divino, já que Abraão deveria oferecer o próprio filho em
holocaustoaoseuDeus.
Por outro lado, ao aproximar minha visão desse conceito de sacralidade,
observo a predominância da violência contida no sagrado. Em alguns ritos de
passagemcomodaadolescênciaparaafaseadultaemdiversastribosindígenas,
por exemplo, é através da violência de ferimentos no corpo, acompanhados de
tamborescomsonsestridentes,praticadospeloshomensjáadultosquesãofeitas
ascerimôniasemqueomenino“sai”daadolescênciae“entra”naidadeadulta.
Ador,aqui,temcaráterimportantee,aomesmotempo,ambivalente,poisé
através dela que omenino sairia de uma fase infantilpara uma fase adulta, ou
seja, com mais direitos e benefícios dentro da sua tribo, merecendo ainda, ser
respeitadoeadmiradoporseusfeitos,diferentementedequandoeraapenasuma
criança.Épossívelatribuirdorouprazeraosmaisvariadosseres,elementosou
sentimentos,dependendosempre,doindivíduoqueestiversendofocalizado.Em
outraspalavras,éosujeitosensitivoouosujeito-alvoquemirádecidirsealgoou
alguémlhe proporcionadorou prazer.Isto porque,obviamente,dependendodo
ambienteculturalemqueoindivíduoestiverinserido,podeserqueesteconsidere
prazer o que para outras culturas é considerado um martírio. O fragmento que
segue apresenta algumas idéias relativas ao sofrimento sanguinário como
portadordebem-aventurançasfuturas:
Diz-se que, em comparação com a antiga moral mediterrânea, o grande mérito do
cristianismo foi ter valorizado o sofrimento, transformando o aspecto negativo da dor
numaexperiênciadeconteúdoespiritualpositivo.Estaasserçãoéválidanamedidaem
quesetratadeumavalorizaçãodosofrimentoeatédeumaprocuradadorpelassuas
qualidadessalvadoras.
38
 
38
ELIADE,Mircea.Omitodoeternoretorno.Lisboa:Edições70,1969,p.110.
52
Osanguesímbolizaaparteemocionaldaalmahumanaeopactoentreo
indivíduoeospoderesdivinosoudemoníacos
39
.Nosritosdosessênios,osangue
menstrualeraequiparadoaosanguedeCristo,enquantoqueosêmemeraoseu
corpo. O sangue de Cristo representa o poder primitivo da vida com profundo
potencial no plano psíquico, para o bem ou para o mal, e contém em si, a
reconciliação dos opostos. Na alquimia, o sangue simboliza duas diferentes
operações, que são a solutio e a calcinatio, pois a  porção fluida, se liga à
experiência da solutio; enquanto o fogo vincula-se à calcinatio. O sangue
simboliza, ainda, os valores solidários com o fogo e o sol. É universalmente
consideradooveículodavidae,noantigoCamboja,oderramamentodesangue
ou de sacrifícios proporcionava a fertilidade, a abundância e a felicidade. O
sanguedeCristomisturadoàáguanoGraaléabebidadaimortalidade.
EmInvençãodeOrfeu,opoetabuscarepresentarsuapoesiae“sacrificá-
la”,imageticamentefalando,afimdetorná-lapurificadaesanta,ouseja,sacrae
tambémbusca“profaná-la”dopontodevistadaformadestruindo-a.Osacrifício
lírico proposto por Jorge de Lima pode ser entendido como a busca metafórica
pelapurezatranscendental,aqui representadapela liberaçãodossentimentose
do eu-lírico, de maneira que a forma e a fôrma do academicismo fiquem em
segundo plano. Em outras palavras, o poeta prioriza as idéias e os sentidos,
representadospelasimagenssimbólicascontidasnospoemas,concedendouma
importânciamenoràmaneiracomotaisidéiasseapresentam.Assimsendo,em
primeirolugarestariaamensageme,maisdoqueisso,oefeitodeumpoemano
leitor, passando para um segundo plano o artifício lírico sob o qual  este foi
construído.
Jorge de Lima “sacrifica”, então, sua poesia (profanando-a) do ponto de
vistaestéticoporquedestróiváriostiposdetécnicasacadêmicasdalíricamatando
e ferindo tais conceitos e a própria poesia, como pode ser observado, por
exemplo,notextointituladoAmusaquebradiçadeFábiodeSouzaAndrade,
40
que
 
39
ELIADE,Mircea.Omitodoeternoretorno.Lisboa:Edições70,1969,p.110.
40
ANDRADE,FábiodeSouza.Amusaquebradiça.In:Bosi,A.(org).LeituradePoesia,S.Paulo:
Ática,1996.
53
percebe na obra do poeta uma atmosfera mítica de um autor, cujo caráter
visionário e órfico, possui uma tendência ao isolamento orgulhoso do eu-lírico,
criador de um microcosmo particular. Este anseio por buscar artifícios para
dignificar, endeusar e enaltecer a poesia não é novidade nem tem início com
JorgedeLima,poisoparnasianoOlavoBilaceosimbolistaCruzeSouza,dentre
outros, também já o fizeram em suas respectivas épocas, como pode ser
observado nos dois fragmentos abaixo em que cada um destes autores, à sua
maneira,tambémanseiaporessasublimaçãodapoesia.
Antífona
ÓFormasalvas,brancas,Formasclaras
Deluares,deneves,deneblinas!
ÓFormasvagas,fluidas,cristalinas...
Incensosdosturíbulosdasaras
FormasdoAmor,constelarmantepuras,
DeVirgensedeSantasvaporosas...
Brilhoserrantes,mádidasfrescuras
Edolênciasdelíriosederosas...
Indefiníveismúsicassupremas,
HarmoniasdaCoredoPerfume...
HorasdoOcaso,trêmulas,extremas,
RéquiemdoSolqueaDordaLuzresume
(...)
CruzeSouza
ProfissãodeFé
(...)
Invejooourivesquandoescrevo:
Imitooamor
Comqueele,emouro,oaltorelevo
Fazdeumaflor.
   
54
Imito-o.E,pois,nemdeCarrara
Apedrafiro:
Oalvocristal,apedrarara,
Oônixprefiro.
Porisso,corre,porservir-me,
Sobreopapel
Apena,comoempratafirme
Correocinzel.
(...)
OlavoBilac
Aintençãodopoetadesacrificarapoesianãodeve,ainda,servistacomo
mais uma tentativa de desmistificação de normas e padrões estéticos. Isto
porque, é preciso ter em vista o fato de Invenção de Orfeu ser uma obra
cosmogônicapois:fundaumanovaterrapoética;holocaústica,porquesacrificae
mataapoesiadopontodevistaestético;eprincipalmenteressussitadoraporque
recriaerefazumanovapoesia,ummundopurificadoemquealíricapassaaser
reverenciadae,portantoressacralizada,assemelhando-seaosmitosdeCristoe
Orfeuqueressuscitamapósamorte.
Emoutraspalavras,pode-sedizerquetodaatrajetóriadeJorgedeLima
em Invenção de Orfeu representa essa “viagem” pela palavra e pela mitologia,
resultando na ânsia pelo reencontro da sua musa, a lírica, pois esta estaria
perdidanosmaresdaretóricaedamétrica,necessitandoserresgatadaesalva.
Notadamente, é importante ressaltar que o momento estético-literário em que
JorgedeLimaescrevesuaInvençãodeOrfeuestábastanteimpregnadodeuma
retomada canhestra de preceitos parnaso-simbolistas, período este conhecido
como “Geração de 45” no qual a poesia da época, com exceção de poucos
poetas,édeumalinearidadebastantemarcante.
Simbolicamente falando, a saga poética da Invenção se assemelha ao
percursodeOrfeunabuscaporsuaninfaEurídiceparalivrá-ladamorteeternae
dosofrimentonoHades.Alémdisso,háasemelhançacomomitodeCristoe
55
sua conhecida trajetória. A simbologia litúrgica da qual trata este trabalho
embasa-senesteaspectodapoesiadeLima,emcujaspeculiaridadesocorreuma
santificação,tantodofazerquantodoprazerpoético.
Diante disso, pude perceber em alguns poemas a ocorrência desse
despedaçamentodalíricademaneiramotivadaporpartedoautor,numabusca
desteporretrataranecessidadedessaviolênciapurificadora,poiselapareceser,
para o poeta, capaz de renovar e, portanto, de trazer ao homem uma nova
poesia,comcapacidadetantoderegenerarquantodesalvaressehomem.
Opoemaaseguirrepresentaoiníciodetudo,detodosospercalçospelos
quais a humanidade passa e passou e metaforiza, ainda, a queda do homem
segundo a narrativa bíblica. Isto porque, foi a partir da queda e,
consequentemente,dopecadooriginal,quesurgiuanecessidadedeexpiaçãoda
culpadohomemjuntoaDeus.Assimsendo,adescidahumanaàsprofundezas
resultounabuscapelasubidae,portanto,nanecessidadedecrençanosdeuses
demaneirageral.
XII
Padeço,Révegetal,
porti.
Estavasnomeiodoéden.
Umavolutacingia-te,
volutaquetinhavoz,
vozquetinhasedução.
Cedi.
Nummomentoreieré,
euetu,sombrasali.
Frondeefronteentrelaçadas,
reino,rei,rérenegados
desi.
(p.36)
56
 Estepoemaconstruídocomversosde7sílabaspoéticas,contémnostrês
versosdenúmeros2,7e122sílabasapenas:/porti/;/cedi/e/desi/.Esses
três versos representam uma Trindade de profanação do cristianismo, se os
observarmosseparadamente.Háumsujeitopoéticoquediz:/porticediedesi/,
ou seja, o eu- lírico parece responsabilizar Deus por tê-lo deixado cair no
infortúniodasuaQueda,causandoaimpressãodequefoiopróprioDeusquem
desejouqueohomempecasseparaarrepender-se,humilhar-seeadorá-lO,mais
tarde.
Osujeitodopoemaseoculta,esofre,poralguémoualgoe,nestecaso
há uma alusão à arvore (vegetal) e ao próprio fruto proibido do Éden, cuja
experimentaçãoresultounosofrimentodahumanidade.Ovegetalemquestãoé
réu, pois sofre a acusação de ter sido o veículo da serpente sedutora. A
atribuiçãodaculpadaquedaaopróprioDeuspodeserfacilmenteentendidase
este se apresenta como um pai todo-poderoso, tendo portanto, poderes para
livrarseufilho(criaturasua)dopecadoedocastigo.Emoutraspalavras,mesmo
diantedetodaamagnitudeepoderioaEleatribuídos,esteDeusnãolivrasua
criatura do pecado e da Queda, deixando-o desamparado e em uma situação
indesejável.
Alémdisso,háaquestãodofrutoproibido,poisseestenãoeraagradável
aosolhosdeDeus,nemportadordebonsresultados,porquemotivoEleoteria
postonojardimechamadoatençãoaindadohomemparaoreferidofruto?
Masdofrutodaárvorequeestánomeiodojardim,disseDeus:Deleocomereisnem
tocareisnele,paraquenãomorrais.
Então,aserpentedisseàmulher:Écertoquenãomorrereis.
41

Voltando ao poema XII, notamos que sua colocação verbal se dá de
maneiraqueeleinicianopresentedoindicativo/padeço/enfatizandoaidéiado
sofrimento para a atualidade, mas o próximo verbo já aparece no pretérito
 
41
SAGRADA,Bíblia.Gênesis,cap3vers.3-4.
57
imperfeito/estavas/,juntamentecomosdemais,conferindoumcaráternarrativo,
mas também dando a idéia de continuidade dos atos ilícitos em suas
imperfeições.Éimportanteobservarqueéavozdavoluta
42
,dolatim/volūta/,que
significaenfeiteemespiral,emtornodaárvore(nestecasoaserpente),quem
seduz, e não a árvore. Em outras palavras, foi o som, a melodia sedutora (o
verbo) que fez o homem ceder e transgredir a ordem divina e, a partir de um
instantededesobediênciaapenas,osujeitopassaderei(poisdominavatodosos
demaisanimais)aapenasumrenegadonassombrasdaproteçãodivina.Além
disso,osupostotransgressormaiordasordensdivinas,cujarepresentaçãoéo
anjoLúcifer,eraoresponsávelpelasmaisharmoniosasmelodiascelestes,sendo,
portanto,amúsica,osomeasmelodiasemgeral,veículosdestaprofanação.
No verso 10 Fronde e fronte entrelaçados, ocorre uma aproximação
interessantedoserhumanocomovegetal,poisárvorestêmfrondeehomenstêm
fronte,comoseohomempassasseaumestadovegetativoouapáticonojardim.
Isso porque, a partir de então, o Adão bíblicoperde sua autonomiaperante os
demais animais e é condenado a trabalhar para sobreviver, mas antes do
“pecado” vivia e se deliciava no jardim sem nenhuma preocupação com sua
subsistência.Nosversos11e12tantooreino(jardim),orei(homem)quantoaré
(vegetal) são renegados e destituídos da proteção divina e do seu aconchego
paternal.
O verso12,entretanto,/desi/,porsuasonoridade,apresentaduasidéias
possíveisemrelaçãoàsuasignificação.Aprimeiraéqueodeus-pairenegouo
homem,oparaísoeaárvore,juntamentecomaserpente.Asegundasomenteé
percebida pela melodia do poema quando selê a construção comose fosseo
verbodescernopretéritoperfeito/desci/,numaalusãodopoemasobreaqueda
bíblicaetodasassuasrepercussões.
Foi,portanto,apartirdaquedae,consequentementedopecadooriginal,que
surgiramosritosexpiatóriosdesacrifícios,sendoestesosmeiosaceitosporDeus
 
42
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro:
NovaFronteira,1982.
58
paraohomemseredimirdesuasfaltaseculpas.Assimsendo,osrituaisviolentos
e sanguinários passaram a ter caráter sagrado e a significar purificação e
remissão daquilo que não era considerado santo ou puro, tornando a própria
violência,umveículodecombateaopecado.
Quanto ao ritmo do poema, este lembra uma espécie de oração ou
ladainhareligiosaqueapareceàmedidaqueéfeitaumaleituraemvozalta,eo
própriotextopoéticovaievidenciandoumamelodiaem tomdesúplicalitúrgica.
Isso pode ser percebido, por exemplo, comparando o poema a uma oração
qualquer.Seosversosmaislongosfossempronunciadosporumaúnicavoz,e
os três versos menores, fossem pronunciados por muitas vozes, como ocorre
freqüentemente nas orações de cerimônias cristãs até os dias de hoje.
Entretanto,cronologicamente
43
,anarrativamíticaÓrficapré-existeànarrativade
Cristo, o que faz com que se perceba um paralelismo dessacralizador do mito
cristão,ouseja,omitodeCristolembramuitoomitodeOrfeueémuitoprovável
queoprimeirotenhasidoconstruídoapartirdeumareleituradosegundo.Dessa
maneira,omitodocristianismoaparececomoummitemasemânticodanarrativa
mítica do orfismo, tornando-se, assim, um aumento ou a engorda do mito de
Orfeu,conformeasidéiasdaBaciasemânticadeGilbertDurand.
Esses aumentos semânticos são analisados por Durand seguindo um
princípiodeevoluçãomíticaemqueasnarrativassofreriammutaçõesao longo
dos tempos e engordariam, ou seja, à medida que estas vão se tornando
conhecidas pelos homens, vão sendo naturalmente acrescidas por estes de
outras significações e particularidades.
44
O poema que segue representa as
propriedadesdenobrezaemrelaçãoaosangueeaossonsemgeral:
XX
Frenteafrente,oleãouiva,eosolacreuiva.
(Enormesgirassóiscujasardenteslavas
sãoaignificaçãomaispungenteemaisruiva).
 
43
BRUÑEL,Pierre.DicionáriodeMitosLiterários.RiodeJaneiro:JoséOlympio,1997.
44
DURAND, Gilbert. Perenidade, derivação e desgaste dos mitos. In: Campos do Imaginário.
Lisboa:InstitutoPiaget,1996.
59
Certosdiasesseuivoétãoforteetãoduro
queparecemosdoisduasrimas-oitavas
candentespelocéudestepoemaimpuro
(p.41)
 Nestepoemaocorrenovamenteumaalusãoaosom,embora,destavez,
esse som apareça sob o aspecto do uivo que é uma espécie de lamento dos
animais. Entretanto,aqui não é apenas o animalque uiva, mastambémo sol.
Cabe salientar que, apesar de serem elementos díspares já que o leão
representaoreinoanimaleosol,asestrelas,ambossãodenominadosreis.O
leão,quadrúpededafamíliadosfelídeos,éconhecidocomooreidaflorestae,
porsua altivez, força e bravura representa também todo tipo de realeza e de
nobreza,jáque,noscasteloseconstruçõesmaisantigasécomumencontrarmos
estátuasdeleõesguardandoaspropriedades.Osol,porsuavez,dolatimsŏl
ousŏlis,representaocentrodeumsistemaplanetárioemtornodoqualgirama
terraeosdemaisplanetas.
Alémdisso,éoastro-reique,comforçaeluz,ilumina,aqueceeauxiliaa
todaaterranosprocessosvitais, energéticose defecundaçãodanatureza de
modo geral. Sua cor, amarelo-avermelhada, faz alusão a toda esta força e
capacidade criadora que tais tonalidades dotadas de energia e calor
representam, assim como as representações do sangue. Joseph Campbell
apresenta uma analogia que relaciona o sol e o leão, ainda, aos conceitos de
nobreza,virilidadeevalentiasanguinária,conformeofragmento:
Porque o sol é em todas as mitologias da caça um grande caçador. Ele é o leão cujo
rugidoespantaosrebanhos,cujoataquenopescoçodoantílopeomata;agrandeáguia,
cujas garras capturam a ovelha; ele é a esfera luminosa cujos raios ao alvorecer
dispersam os “rebanhos” do céu noturno, as estrelas. Tem-se a evidência desse mito
primitivodacaçanomotivo,tãocomumnaartepaleolítica,doleãoatacandoopescoço
doantílopequeacaboudeviraracabeçaparavê-lo,bemcomonaqueleoutromotivo,um
60
dosprimeirosasurgirnaantigaartesuméria,daáguiasolar,prendendoumantílopeem
cadagarra.
45
 Retornando ao soneto XX, vemos que, no segundo terceto, o eu-lírico
enfatiza a intensidade do som e atribui a ele características de força e dureza,
sendo que estas aparecem neste trecho com uma conotação mais violenta e
endurecida.Aassociaçãodedurezaàsrimas-oitavaséumaalusãoàausência
dessa rima no poema, o que o tornaria, portanto, impuro, pois a rima é uma
homofoniaexterna,constantedarepetiçãodaúltimavogalnicadoversoedos
fonemasqueeventualmenteaseguem,
46
aopassoquerimas-oitavas,
47
éotipo
derima utilizada por Camões emOs Lusíadas do início ao fim da obra  e
representa aqui, a metáfora da dureza formal a qual se submete o poema
camoniano e também a profanação dessas regras por Jorge de Lima em seu
“épico”.
Nestesoneto,os2primeirosquartetostêmrimacomesquemaABABeos
tercetos aqui transcritos possuem esquema CDC e EDE. Esse é um esquema
clássico de soneto com rimas que se intercalam desde as quadras até os
tercetos.Quantoaoritmo,convémenfatizarqueomesmolembraumdiscurso
de soldados cuja entonação de vozes se faz no compasso de uma marcha
militar, e traz imponência e força viril (violência) ao texto poético, conferindo a
este, impureza. O trecho que segue trata de analisar as peculiaridades das
característicasdepurezaedeimpureza:
Ascategorias dopuroedoimpuronãodefinemoriginariamenteumantagonismoético,
mas uma polaridade religiosa. Elas desempenham, no mundo do sagrado, o mesmo
papelqueasnoçõesdebemedemalnodomíniodoprofano.
48


 
45
CAMPBELL,Joseph.AsmáscarasdeDeus,Mitologiaprimitiva.SãoPaulo:PalasAthena,1997,
p.244.
46
D’ONÓFRIO,Salvatore.Teoriadotexto:teoriadalíricaedodrama.(vol2),SãoPaulo:Ática,
1995.
47
CAMPOS,Geir.Pequenodicionáriodeartepoética.SãoPaulo:cultrix,1978.
48
CAILLOIS,Roger.Ohomemeosagrado.Lisboa:Edições70,1949.p.34.
61
Em outras palavras, profano ou sagrado,  bem ou mal, são conceitos
fluidos,mutáveiseimprecisosqueestãosubmetidosaosvaloresligadosàcultura
eàcrençadecadalocal.Apalavragregamáculasignificatambémosacrifícioque
apagaamácula,dolatim/nódoa/,significamanchaouinfâmia,eotermo/santo/
significa também maculado. A separação conceitual e semântica destas
significações só foi estabelecida bem tarde com a simetria das palavras puro e
maldito.Diantedisso, opecadotambémpodeserentendidocomoumelemento
veiculadordasantificação,jáqueéatravésdelequeohomemsesantificaese
purifica,comosefosseumatodesujar-separapoderlimpar-se.
No Canto I da Invenção de Orfeu, uma das buscas do poeta é por esta
purificação,comaintençãodetornarseusversosprofanos,poisosconstróisem
dar crédito a princípios estéticos tais como: progressão, continuidade e
musicalidade rítmica,  para que estes se renovem e ressurjam santificados e
puros,atravésdasuadestruiçãoemsacrifício,vertendoumsanguesimbólicoem
relaçãoàscerimônias litúrgicaseholocáusticas.Ocarátersacrodestesacrifício
podeserobservadoatravésdepoemasconformeotrechoaseguir:
XXII
(...)
Óseresprimordiaisquesoistestaeviseira,
Restituo-meemvós,sangueemáscaravividos,
desejodeesquecertempoeespaçoexistidos;
emvósemvossapazmeussolilóquiosparo-os,
(...)(p.42)
Estepoemaconstruídoemdísticosdodecassílabosretrataocaráterlitúrgico
existente ao longo de todos os versos. Já no início do dístico a interjeição /ó/,
assimgrafadacomacentoagudoéumaformautilizadaemoraçõesesúplicase
temsentidodepedidoaalgooualguémsuperior.Emborasejamversosdedoze
sílabas,seuformatolembraoscânticosdeDavinolivrobíblicodosSalmos,que
62
emseusversosmelodiosos,cultuaelouvaseuDeus,exaltando-o,mastambém
fazendo preces e pedidosdeproteção,comopodemosver no fragmento dos
Salmos:
TuóDeus,bemconhecesaminhaestultice,
easminhasculpasnãotesãoocultas.
49
Praza-teóDeusemlivrar-me;
dá-tepressaósenhoremsocorrer-me
50
Tantoofragmentopoéticoquantooblicoapresentamemsuasessências
umsentidodebuscaededesejodeproteçãoatravésdasúplicaedadevoção.
No segundo verso do primeiro dístico aqui transcrito, XXII, encontramos a
expressão/restituo-meemvós,sangueemáscaravividos/,cujapercepçãodoeu-
lírico mostrar que, somente através da purificação pelo sangue, que funciona
como um disfarce, porissomáscara, é que será possível asua restituição ou
regeneração.Opróximoversofaladeumdesejodeesquecimentoqueaquiestá
representandooesquecimentodasfaltasedoserros,oumaisexatamente,dos
pecados,jáqueosangueteriaacapacidaderegeneradoradepurificá-los.Além
disso,esteesquecimentotambémrepresentaopassadopoéticoendurecidopela
rigidezdospadrõesestéticosqueosujeitolíricodesejadeixarparatrás.
Este caráter rebuscado do poema pode ser observado ainda, pela
linguagemutilizadacomabundânciadepronomesoblíquosnosdísticos,oqueé
uma característica dos níveis lingüísticos mais depurados. A escolha verbal do
textopoéticotambémsefazpelamaioriadosverbosnopresentedoIndicativo,
conferindo atualidade e atemporalidade ao poema. Um pouco mais adiante, há
novas referências à liturgia da Invenção e aqui, notadamente, está clara a
intenção do poeta em aproximar a “morte” de sua poesia à morte da figura de
JesusCristonacruz,conformeofragmento:
 
49
SAGRADA,Bíblia.Antigoenovotestamento.SãoPaulo:SociedadebíblicadoBrasil,1988.2
ed.Salmos,cap69,v.5.
50
SAGRADA,Bíblia.Antigoenovotestamento.SãoPaulo:SociedadebíblicadoBrasil,1988.2
ed.Salmos,cap70,v.1.
63
XXIV
(...)
Ódesatinosacro,ólemadessacruz
agitadosnafronte,ensangüentadosnoar!
Asâncorasdospéspedalamnosabismos,
asombraécomoopeixeaprofundadoecego.
(p.47)
Nestes dois dísticos encontramos referências sobre idéias como crença,
sofrimento,dor,angústiaesabedoriaouconhecimento.Oprimeirodísticoretoma,
decertaforma,umpoucodoquejáfoianalisadoatéaquiereforçaosconceitos
desacrifícioedorcomotrajetórianecessáriaderegeneraçãodohomem.
Além disso, o ponto de exclamação do verso /agitados na fronte,
ensangüentados no ar (!)/, enfatiza a intensa violência pela qual se dá esta
“passagem”dapoesia,alémdeobviamente,chamaraatençãoparaaimponência
e a euforia da crucificação. Entretanto, no segundo dístico, encontramos uma
nova referência aos conceitos holocáusticos, no verso /As âncoras dos pés
pedalam nos abismos/, onde notadamente, o eu-lírico realiza uma crítica aos
versejadores que se fixam em determinadas regras como pedais que levam
somenteaosabismosondemorreaarte.Oautorcompara,ainda,asprisõesda
métrica e da estética a âncoras que não salvam, mas que levam à morte. No
versoseguinte/asombraécomoopeixeaprofundadoecego/osujeitodapoesia
aproximaasombradaignorânciaedafaltadesabedoriaaoestilodevidadeum
peixecomorepresentativaohomememseuestadodeinconsciênciaoudepré-
consciênciaantesdoconhecimento.
51
OpoemadenúmeroXXIV,doqualforamretiradosessesfragmentoséum
dosmaioresemextensão,existentesnocantoIdaInvençãodeOrfeuetemum
totalde146versos.Opoemanãosegueumestilofixonemdemétricanemde
rimas e mescla vários tipos de estrofes como dísticos, quartetos e tercetos,
 
51
Conforme simbologia explicada em: BRUÑEL, Pierre. Dicionário de mitos literários. Rio de
Janeiro:JoséOlympio,1997.
64
representando metaforicamente o ”despedaçamento” da poesia em relação à
estética. Embora não se possa definir exatamente o estilo desse poema em
funçãodesuavariadaapresentação,épossívelobservar,atravésdoritmodele,
algumas ocorrências marcantes, como por exemplo, ao lê-lo em voz alta, uma
novaalusãoàsladainhasreligiosascomsuasrezaseprecesmeiodeclamadase
meio cantadas, semelhantemente ao poema de número XII, anteriormente
analisado.
Tais observações podem ser comprovadas em face da musicalidade do
poema por se apresentar como uma espécie de Cântico entoado por muitas
vozes.Essasmuitasvozessãopercebidasnopoemaemvirtudedaabundância
dousodopronomepossessivo/nosso/edopronomepessoal/nós/queindicam
pluralidade de vozes e de sujeitos. A morte propriamente dita da lírica se
apresentaapartirdeagoracomoalgoinevitávelenecessárioparaqueoobjetivo
maior,queé a transcendência, seja atingido. Areferênciaimagéticacontida no
verso/ensangüentadosnoar!/representaoelementoaquososanguecomoum
veículo ou trajetória para o ar, metaforizando em imagens a ascensão
transcendentalemíticadalírica,epondoestanumpatamarsacro.
3.2 O elemento aquoso sangue e o sofrimento como veículo para a
transcendênciaeapurificação
XXV
Sonâmbulasasflores
conservampelodia
asnoites.
Osouvidosdaspétalas,
eseuslábiosdeolor
recordam-se
transidoseorvalhados,
indiferentes,frios,
tãofrios.
Jamaisosdiasquentes
65
poderãoaquecer-lhes
osseussanguesnoturnos
tãofrios.
Agoranosjardins
espalham
nossilênciosintactos
suaspresençasfrias,
tãofrias.
Sãobeijadas,porém
volvidas
àlembrançadasnoites
permanecemveladas
efrias.
(p.48)
 Nestepoemaapareceumaconstruçãodeseissílabaspoéticasmesclada
comversosdeduassílabaspoéticas.Oparadoxoaquisedápelaexistênciadas
aliteraçõesem/s/queindicamapresençadevidaemovimento,juntamentecom
oadjetivo/frios/frias/.Háumaalternânciaentreafriezaeomovimentoenfocando
aidéiadequeessadinâmicajánãoexistemaise,portanto,estámorta.Oritmo
do poema lembra uma música em tom fúnebre e melancólico que é reforçada
pelo advérbio de intensidade /tão/, cuja ocorrência, juntamente com o adjetivo
/frios/,constróiumarimadotipocoroadanaqualéoecodapalavraoprodutorda
rima em função de sua repetição. O adjetivo frio/fria aparece seis vezes no
poema, sendo que três delas ao lado do advérbio de intensidade /tão/ e três
vezescomoecoderima,enfatizandoassim,aintensidadedestasimbólicamorte.
 Amelancoliapelaqualépermeadotodoopoemaésaudosadevidae,por
isso, fúnebre. As belezas o revividas através da memória e das lembranças
tanto visuais quanto olfativas e auditivas do eu-poético, e a sinestesia lírica,
embora fria, retorna sempre à memória como uma espécie de velório destas.
Desdeoprimeiroatéoúltimoversopode-seobservarumaatmosferamortuária
naqualoprópriosangueéfrio,jáquenãomaispulsa,porestardesprovidode
vida.
 JorgedeLimatematiza,atravésdestepoema,amortedapoesiaeafrieza
pétreaqueadvémdosilênciodesuaausência.Essadecomposiçãomortalpela
qualpassanessemomentoapoesiadoautortemumcaráterambivalente,pois,
66
ao mesmo tempo, o eu-lírico faz sua poesia sofrer até a morte, mas é através
desta morte e desta expiação que ela retornará assim como uma divindade
semelhanteaoutraqualquer.Dessemodo,aviolênciaaparececomoportadorada
renovaçãonecessáriaaoshomens,conformeasidéiasdeRenéGirard:
Para que a ordem possa renascer, é preciso inicialmente que a desordem chegue ao
extremo;paraqueosmitospossamserecompor,éprecisoinicialmentequeelessejam
inteiramentedecompostos.
52
 ParaRenéGirard,éatravésdadesordemsomentequeaordemtemcomo
serestabeleceremdeterminadoambienteousociedade.Evidentemente,estenão
é um pensamento exclusivamente de Girard, tendo em vista a existência de
diversasteorias(comoadoCaoseomitododilúvio,porexemplo)quedefendem
estaidéiadanecessidadedeumadestruiçãoafimdequehajaumaregeneração,
sejadeordemhumana,cosmogônicaouintelectual,comoéocasodapoesiade
InvençãodeOrfeu.Issoporqueossacrifícios,amúsica,oscastigoseasleistêm
porfinalidadeestabelecerumdeterminadotipodeordemqueestejarelacionada
aointeressedequemaproduzoupratica.
Atransgressãoàsregrasfoi,desdesempre,umacaracterísticainerenteao
homem e, portanto natural, embora nem sempre aceita em determinadas
situações sociais e políticas. No mundo grego, por exemplo, a corrente de
pensamento que culminou no século VI a.C. com o puritanismo Budista era o
movimento órfico-dionisíaco, que consistia em deturpar e transgredir as leis
impostaspelasociedadeepelasautoridadesnumamovimentaçãoruidosae,na
maioriadasvezes,trágica.,comoapontaCampbell:
No sistema órficoencontramos uma atitudenegativa em relação ao mundo. De acordo
comograndemitoórfico,ohomemerarepresentadocomoumcompostodascinzasde
Dioniso e dos Titãs. A alma (fator dionisíaco) era divina, mas o corpo (fator titânico)
mantinha-seaprisionado.Olemaera,portanto,soma,sema,ocorpo,umtúmulo”.Eum
 
52
GIRARD,René.Aviolênciaeosagrado.SãoPaulo:Pazeterra,1998,p.105.
67
sistema tanto de pensamento quanto de prática, exatamente paralelo ao do ascetismo
indiano,foitransmitidopormestresiniciadosapequenoscírculosdedevotos.
53
 Com base nas idéias de Campbell, pode-se perceber que o pensamento
dionisíacotemporcaracterísticabásicaatransgressãoeadesordem.Emborao
orfismonãopossuaoriginalmenteumafilosofiadedesordem,Orfeu,ao“ludibriar”
Hadeseconseguirconvencê-loadarmaisumachanceàsuaamadaEurídicee
tambémalteraronúmerodecordasdacítaradeseteparanove,acabaportornar-
se,semelhantementeaDioniso,umtransgressor.Alémdatransgressãoháoutro
elementodesumaimportâncianatrajetóriadeOrfeuligadoaoelementoaquoso
do sangue sacrificial, que é o seu despedaçamento, pois é a partir de um
sentimentodeintensadoresofrimento,porterperdidosuaninfaparasempre,que
Orfeu é despedaçado pelas mulheres Trácias enciumadas e impotentes em
consolarseucoração.
 Por outro lado, é após esse sacrifício ao qual Orfeu é submetido que o
mesmopassaasercultuadonascerimôniasórficas.Evidentemente,estenãoé
um mito isolado de vida e morte (despedaçamento/sofrimento) seguido por
adoração e cultos. O mito de Cristo, conforme já foi dito anteriormente, nos
forneceumanarrativabemsemelhante,poisomesmoéumhomemcomum,até
certopontoporqueviveentreosdemais,maspossuihabilidadessuperiores,como
o poder de curar doentes, acalmar tempestades, etc.Assim como Cristo, Orfeu
possuíapoderesatravésdesuamúsicaparaacalmarferaseapaziguarsoldados
valentes.Cristo,semelhantementeaOrfeué“despedaçado”nacruz,derramando
seusangueatéaúltimagota,paranofimdetrêsdias,ressuscitareascenderaos
Céus.LogoapósaascensãodeJesus,estepassaasercultuadoereverenciado,
fundandoassim,oCristianismo.Assimsendo,ambasasfigurasmíticas–Cristoe
Orfeu – representam
54
a criação, o despedaçamento e a ascensão
transcendental.
 
53
CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus – Mitologia ocidental. o Paulo: Palas Athena,
2004,p.155.
54
BRUÑEL,Pierre.DicionáriodeMitosLiterários.RiodeJaneiro:JoséOlympio,1997.
68
3.3Aascensãotranscendentaleorenascimentodapoesia,segundoJorge
deLima
Ofragmentopoéticoaseguirrepresentaasubidaalmejadapelopoeta,
juntamentecomosbenefíciosadvindosdessaascensão:
XXXVI
Novamenteeisqueafábulaprossegue
comaabsorvênciadasforçastresbordadas
einadvertidafontederramando-se;
aparecidafontesobesobre,
ouvindo,refletindo,lamentando-se,
massempreumcantocegonagarganta
easmuralhasdasmargensescondidas.
Evãocomelaosmovimentostodos
easalucinaçõesdesesperadas,
eaexistênciadosmortosatirados,
eacorrentezadasaçõesfalhadas.
Enfimcomédialívidaecortejo,
Enfimtardia,enfimperplexidade,
Calcomaniafundaemsanguealado.
(...)(p.65)
 Estassãoasduasprimeirasestrofesdeumtotaldevinteeumadopoema
XXXVI.AquinovamenteháapredominânciadeverbosnopresentedoIndicativoe
nogerúndio,caracterizandoopoemacomumanarraçãodeacontecimentosque
se desenrolam no momento da fala
55
. O poema tem início com o verso
/novamenteeisqueafábulaprossegue/,oqueatribuiumcaráterderepetiçãoe
circularidade à idéia de vida morte vida apresentada. Os versos 2, 3 e 4
seguintes,apresentamumaespéciedeexplicaçãoouenumeraçãodoselementos
dos quais esta suposta fábula (poesia) seria composta. No quinto verso os
 
55
CEREJA,WiliamRobertoeMAGALHÃES,TherezaCochar.Portuguêselinguagens–literatura,
produçãodetextoegramática.SãoPaulo:Saraiva,2008.5Ed.
69
verbos /ouvindo, refletindo, lamentando-se/, demonstram que o eu-lírico está
novamente vivendo após uma simbólica morte. Isto porque, apenas um ser
humano tem condições de ouvir, refletir e, inclusive, lamentar-se, já que estas
açõessomentepodemserdesempenhadasporquempossuivida,apenas.Além
disso,estasescolhaslexicaisnogerúndiopodemserentendidascomoalusivasàs
melodias(ouvir),aopensamento(refletir/transgredir)eaolamento(sofrer/remir),
sendo que tais construções verbais denotam a repetição num espaço temporal
comconstânciaefreqüência,tematizandoum(re)nascimentoemfunçãodoatode
raciocinarepensar.
 Asegundaestrofequeiniciapelaconjunçãoaditiva/e/,dácontinuidadeà
renovação poética e musical além de acrescentar à estrofe o movimento e as
alucinações representados pela correnteza, ou seja, através destas escolhas
lexicais,oeu-líricoenfatizaarenovaçãodavidaetodaamovimentaçãoinerentea
ela.  O quinto verso desta estrofe, que diz /Enfim comédia lívida e cortejo/,
aproximaotextoInvençãodeOrfeudaAdivinacomédia,deDanteAlighieri,em
cujas peregrinações pelo inferno, purgatório e paraíso apareceu o caminho da
transcendênciaparaodivino.
 Oúltimoversodestaestrofe/calcomaniafundacomsanguealado/éomais
significativonosentidodetranscendênciaespiritualemíticaporqueéatravésdo
sanguealado,umsupostosanguedotadodeasase,portanto,capazdeseelevar
atéasalturas,queapossibilidadedarenovaçãosefaz.Emoutraspalavras,éo
sangueoportadordosofrimentosim,maséatravésdestesangueedosofrimento
advindo dele que é possível alcançar a transcendência, neste caso, tanto do
sujeitohumanoquantodaprópriapoesia.
Todasestasidéiastrazemconsigooutra,noquetangeaocumeouobjetivo
a ser atingido, além de representarem uma convocação a todos (no caso dos
leitores), para que se unam e compartilhem com o poeta das venturas desta
busca. Além disso, o termo calcomania, não é encontrado desta forma em
dicionários,vistoqueaconstruçãoéumaderivaçãolingüística,maséimportante
salientarque/calco/representacalcaroudesenharcomgravurasemrelevoou,
70
ainda, lapidar por pressãoem um papel umedecido
56
. Assim sendo,o verso 14
evidenciatodaaviolênciadamorte,suaspressõesesuaforçamarcadacomum
sangue simbólico para que deixe impressa a idéia de superioridade mítica da
poesialírica,representadapelaascensãonasasasdessesangueimaginário.O
texto que segue representa um tipo de convocação e um chamamento para o
novopensamentosacro,representadopelapoesia:
XXXVII
Vindevósdascidadesparaocampo
ondeexisteaaventuradamalária.
Foiemagosto,olagorespirando
queouvinosangueamaisformosaária.
Evimaisumginetegalopando
numocasodesangueiluminado;
eraotempomaisourodasqueimadas,
easgeórgicasseenchiamdepiratas.
(...)(p.69)
 Ofragmentoacimafazpartedeumsonetodecassílaboeaprimeiraquadra
iniciacom um vocativo dechamamento, mas não é um chamamento comum e,
sim,umchamamentocomaspectosacroesubmissopelofatodeserconstruído
semelhanteaoschamamentosdeDeus:
Tenhoouvidomuitascoisascomoestas;
Todosvóssoisconsoladoresmolestos.
57
Digo-vosporémavósoutrosquemeouvis:
amaivossosinimigos,fazeiobemaosquevosodeiam;
58

 
56
DicionárioFlipon-linedeLínguaPortuguesaem:www.Priberam.com.br.
57
SAGRADA,blia.Antigoenovotestamento.SãoPaulo:SociedadebíblicadoBrasil,1988.2
ed.LivrodeJó.Cap16,vers.2.
58
SAGRADA,blia.Antigoenovotestamento.SãoPaulo:SociedadebíblicadoBrasil,1988.2
ed.SãoLucas.Cap6,vers27.
71
 Ousodopronomepessoalnasegundapessoadopluraléumaocorrência
muito comum nos textos bíblicos e representa a subserviência e o respeito ao
divino. A partir do segundo verso desta quadra o tempo verbal muda para o
pretéritoperfeito/foi/,indicandoumacontecimentoquejánãosedesenrolamais
no presente, embora ainda tenha reflexos neste. O reflexo  do sofrimento é
representadopelaimagemdolago(espelho)que“respira”e,portanto,viveeouve
atravésdo sanguea mais formosadas árias.Essetermoque derivado italiano
/aria/éutilizadoparadesignarumacomposiçãomusicalparaumasóvozque,por
vezes, pode ser acompanhada de coros. Na poética, entretanto, o mesmo é a
representaçãodapartefinaldaCantataeemsânscrito/arya/,querdizernobre.
Esta nobrezavitalque parte dosangueé, portanto, arepresentação do
sacrifícioaoqualfoisubmetidaapoesiaeoseudespedaçamentoqueatornaram
novamentevivaeformosacomoumaária,cujaspeçasmusicaissãogeralmente
dotadas de grande energia e alternância de notas, suaves e graves e têm, na
maioriadasvezes,umfinaltrágico.
 A segunda quadra tem início pela conjunção aditiva /e/ que confere à
estrofe uma significação de soma e de continuidade, enfatizada pelo segundo
verso/numocasodesangueiluminado/,noqualperceboumarepresentaçãode
mortemomentânea,jáquenoocasoosolmorre,masressurgenodiaseguinte,
com omesmobrilhoe amesmaforçaanterior, renovando-se constantemente e
renascendosempreapóssuasimbólicamorte.Alémdisso,osangueéoelemento
aquosoquerepresentaailuminaçãodesserenascimento,vistoseratravésdeseu
derramamento quea palavrapoéticapode renascer e aqueceros corações dos
homens,tornando-osprodutivos,férteise,acimadetudo,dotadosdebelezaede
lirismo.
Essetingimentorubro
59
peloqualpassaapoesianestemomentopodeser
observadonotextoaseguircomoumametáforanãosódessaforçarenovadora,
 
59
Estaéumadastonalidadesdovermelhoerepresenta,porserumatonalidademaisescura,a
noite, o mistério, eminentemente sagrado e secreto é o mistério vital escondido no fundo das
trevas edos oceanosprimordiais. In:CHEVALIER, JeaneGHEERBRANT, Alain. Dicionário de
símbolos.RiodeJaneiro:JoséOlympio,1995.9ed.
72
mastambémsoboaspectodavivacidadeedoimpactomisteriosoqueessacor
representa.
XXXVIII
(...)
Ospoemassetingemdevermelho;
Éumafacesangrentacadaespelho.
(...)(p.72)
 Esse fragmento do penúltimo poema do Canto I de Invenção de Orfeu
representa, imageticamente, como a poesia deve ser vivida, escrita e ouvida,
segundo Jorge de Lima: com sangue, ou seja, com vitalidade e energia
transformadora,pois esta,tingidadevermelhosangrentometaforizaasimagens
queserefletemesemultiplicam,enfatizandoanecessidadedeumaconsciência
depuradaesuperior.Essadepuraçãotambémremeteaosconceitosdalíricae
critica as construções poéticas que se deixam contaminar por academicismos
vaziosedesprovidosdesanguevitaldapoesia.Issoporque,segundoasidéias
deOctávioPaz
60
,podeexistirumpoemasemquenelehajapoesia,damesma
formaquepodehaverpoesiaemumapaisagemoupintura,semquehajaversos
escritos,poisésomenteatravésdestelíquidoportadordevidaquepoderáadvir
umanovalitaniapoéticacapazderealizarumasalvaçãosemelhanteàssalvações
realizadaspelosheróismíticosepelasdivindades.
 Com o propósito de reorganizar e refazer a poesia lírica, Jorge de Lima
constróiemInvençãodeOrfeuumadesconstruçãopoética,visando,atravésdeste
“remexer”nascoisas,umaascendênciamítico-poéticanocampodoimaginárioe
dasfilosofiasdaimagem. Suaaudáciaemsequestionareemdesorganizaras
 
60
PAZ,Octavio.Oarcoealira.RiodeJaneiro:NovaFronteira,1982.
73
experiênciasqueseencontraminertes,éamaneiradopoetarenovarapoesia.O
movimento aqui tratado nada mais é do que o movimento ascensional e
transcendentaldalírica,queéalmejadoeperseguidopelopoetaaolongodesua
trajetóriadenominadaInvençãodeOrfeu.
74
4Vinho
Arquétipossãoidéiaselementares,quepoderiamserchamadasidéias“debase”.Arquétipo
doinconscientesignificaquevemdebaixoembasebiológica.Emtodoomundoesob
diferentes roupagens os arquétipos ou idéias elementares aparecem e decorrem do
ambienteedascondiçõeshistóricasàsquaisestãoligados.
61
4.1Oaspectoarquetípicodovinho
ConformeopensamentodeJosephCampbellaschamadasidéiasbasilares
míticasseinseremnocotidianodosujeitotornando-opartedestaidéiaouconceito
primordial.Aoanalisaraspropriedadesaquosastantodosanguequantodaágua
pude observar que ambas são portadoras de características arquetípicas ou de
base. Tais bases representam alguns tipos de princípio ou origem de
determinados conceitos e, neste caso, os mitos servem para explicar as mais
variadasorigens.Osaspectosdestesdoiselementosserãoagoraanalisadosem
conjunto com um terceiro, que é o vinho, cujas peculiaridades e simbologias
trataráestecapítulo,completandoassim,aTrindadeAquosa.
 
61
CAMPBELL,Joseph.Opoderdomito.SãoPaulo:PalasAthena,2000.18ed.BillMoyers(org).
75
 São muitas as simbologias ligadas a este arquétipo líquido denominado
vinho
62
,nestapesquisacorrelacionadoaosoutroselementos,aáguaeosangue,
sendo que o vinho, por ser usado em cerimônias de adoraçãoa divindades, é
sacralizadoemalgunscultoseprofanadoemoutros.Issosedeveaofatodesero
vinho uma bebida tão fascinante quanto misteriosa, já que possui ao mesmo
tempo,propriedadessalutaresemaléficas.Serãoabordadasaquiapenasduasou
três destas narrativas míticas a fim de esclarecer algumas questões relativas à
bebidaoriginadadavideira.
O vinho
63
é geralmente associado ao sangue, tanto pela sua cor quanto
pelo seu caráter de essência de planta, sendo,  assim, poção de vida e de
imortalidade. Nas tradições semíticas, em particular, o vinho simboliza o
conhecimentoeainiciação,devidoàembriaguezqueprovoca.NaGréciaantigae
no taoísmo o vinho substituía osangue de Dioniso e representava a bebida da
imortalidade. A sacralidade do vinho está ligada aos usos deste como uma
representação do sangue de Cristo nas cerimônias litúrgicas, mas é importante
salientar que, também nos cultos afro-brasileiros, nos quais o sangue é
amplamente utilizado para sacrifícios de animais, o vinho é um elemento
consideradosuperioresagrado
64
.Natradiçãobíblica,portanto,assimcomonas
religiões vizinhas ao berço do judaísmo, o vinho é bebida dos Deuses
65
 e o
simbolismo quico do vinho é utilizado no Islã, ora relacionado às alegrias
profanas,oraparadesignaraembriaguezmística.
 A cultura romana
66
atribui ao vinho um importante e misterioso deus
chamadoBaco,filhodeJúpitereSêmele,quefoiincendiadaemseupaláciopor
causadosciúmesdeJunoqueatodosdesejavamatar.VulcanoretiraBacodo
incêndioeolevaatéJúpiter,oqualoescondeemsuaprópriacoxaatéqueeste
pudesse nascer. Este deus possui, portanto, um duplo nascimento, e tal
característicadeduplicidadeoacompanhaaolongodetodaatrajetóriamíticade
 
62
 CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio,1995.9ed.
63
Idemao61.
64
Idemao62.
65
SAGRADA,Bíblia.Antigoenovotestamento.SãoPaulo:SociedadebíblicadoBrasil,1988.2ed
Deuteronômio.Cap.32vers.37-38.
66
BRUÑEL,Pierre.Dicionáriodemitosliterários.RiodeJaneiro:JoséOlympio,1997.
76
suadivindade.Apóssetornaradulto,Bacosaicomalegrescomitivasapercorrer
as Índias e o Egito transmitindo a estes, ensinamentos sobre a agricultura, a
apiculturae avinicultura, tornando-seassim, conhecido e,mais tarde, adorado
como o deus do vinho. Além disso, foi Baco quem primeiro estabeleceu uma
escolademúsicae,emsuahonra,deram-seasprimeirasrepresentaçõesteatrais.
Seu cortejo foi sempre numeroso, sendo composto pelas ninfas, pelas
bacantes, porpastores e atémesmo pelodeus Pã. Todos carregavamumtirso
(espéciedehastesecadevideira),coroasdehera,taçascomvinhoecachosde
uva, liderados sempre por Baco soltando gritos e fazendo ressoar ruidosos
instrumentosmusicais.Suarepresentaçãohojeéumavestimentapúrpura,acor
dainiciaçãoedovinho.
EmalgunsmonumentosmaisantigosaparecemrepresentaçõesdeBaco
comumacabeçadetouro,oquerepresentaasforçasdoinconsciente,segundoa
psicanálise. Em sua homenagem eram sacrificados o bode e a lebre porque
alimentam-sedosbrotosdasvides.AFênix,apantera,avinha,ahera,ocarvalho
eopinheiroeram-lheconsagrados.Alémdisso,asfestasdeBaco,conhecidaspor
bacanais,emAtenas,aconteciamapartirdeumcortejoemquetodossimulavam
asloucurasdaembriagueznumaespéciedecarnavalizaçãoarcaica
67
e,tantonas
pequenasquantonasgrandesfestas,haviaconcursosdepoesia,representações
teatrais,corridaselutas.
 Diante disso entendo que a música, assim como o teatro, o vinho e a
poesia, são oriundos dos mistérios e da divindade de Baco, cujo cognome era
Líberlivreouliberaise,portantorepresentativodaliberdade.Pelofatode,durante
tais festividades ocorrer liberdade de atitudes e inversões de valores
comportamentais, como por exemplo, o das damas romanas que aceitavam
propostasindecenteseparticipavamderepresentaçõescomtodasortedeorgias,
houveumatentativa,noanode558a.C.,porpartedoSenado,deproibir tais
 
67
Segundo René Girard tais festividades marginalizadas e difusoras de atitudes consideradas
impuras ouorgiásticas, sãotãonecessáriasde tempos em temposquanto aprópriaordem ea
razãoestabelecidasporlei.Taldesordem,segundooautor,funcionacomoumelementocatártico
queserveparareorganizarepurificarasociedadedemaneirageral,istoporqueemquasetodas
as sociedades, há festas que conservam por muito tempo um caráter ritualístico e profano. In:
GIRARD,René.Aviolênciaeosagrado.SãoPaulo:Pazeterra,1998.
77
abusos, mas os costumes foram mais fortes do que a lei e tudo continuou
acontecendonormalmenteeàmargemdaproibição.
Conformeanteriormenteabordado,nãoéapenasnamitologiaromanaque
existemmuitasalusõesaovinhocomoumelementodifuso,heteróclitoeportador
tantodeboasquantodemásventuras.Nocristianismo,porexemplo,háalgumas
referênciasemrelaçãoaovinhocontraditóriase,porisso,interessantes,comoa
passagembíblicadoNovoTestamentoemqueédescritaumaorientaçãoaopovo
deÉfesodizendo:Enãovosembriagueiscomvinhoemquehácontendaecausa
dissoluções.
68
Areferidapassagemchamaaatençãoparaosefeitosmaléficosda
bebida, já que sua ingestão excessiva faz com que o indivíduo tenha suas
percepções e faculdades alteradas, causando, muitas vezes, discórdias e
resultadosdesagradáveis.
Por outro lado, no livro de Provérbios há algumas alusões ao vinho como
sendobenéficoe,maisainda,comosendoumabênçãooudádivaemformade
riquezaeprosperidadeàqueleservoqueobedeceaoseuDeus,comopodeser
observadonotextoquesegue:
Nãosejassábioaosteusprópriosolhos;
temeaosenhoreaparta-tedomal;
seráistosaúdeparaoteucorpo
erefrigério,paraosteusossos.
HonraaoSenhorcomosteusbens
ecomasprimíciasdetodaatuarenda;
eseencherãofartamenteosteusceleiros,
etransbordarãodevinhoosteuslagares.
69
O trecho acima apresenta a abundância do vinho como uma espécie de
“prêmio”àquelesque,porseremhonestos,dignos,fiéisetrabalhadoresteriampor
merecimentotalriquezaemformadelíquido.
 
68
SAGRADA,blia.Antigoenovotestamento.SãoPaulo:SociedadebíblicadoBrasil,1988.2
ed.Efésios,cap5vers.18.
69
SAGRADA,blia.Antigoenovotestamento.SãoPaulo:SociedadebíblicadoBrasil,1988.2
ed.Provérbios,cap3vers.7-10.
78
 Em vistadisso, torna-se evidente que, até mesmo nas chamadas Santas
Escrituras,existemcontradiçõesfortementemarcadas emrelaçãoaovinho,que
definemoelementocomoumarquétipoaquosocapazdetrazer,tantoasaúde,se
ingeridoemproporçõesmoderadas,quantoafaltadesta,poiscausaembriagueze
perda das noções da realidade quando bebido em demasia, além de doenças
hepáticas,entreoutras.
Aembriaguez,entretanto,podeserencaradasobpelomenosdoispontos
devista,queo:odaembriaguezquímica,ouseja,comoefeitodeumabebida
alcoólica,eodaembriaguezdealma,queéoestágioemqueumdeterminado
indivíduopermaneceporvontadeprópriaeissoindependedaingestãodeálcool.
Asegundaembriaguezétambémconhecidapordevaneioouimaginaçãoepode
acontecertantocomumindivíduoprodutivoeativo,comonumindivíduoapático
quenadaproduz,mas queapenaspermanecenumaletargiadespropositadaou
simplesmenteprazerosa,semelhanteaoêxtasereligioso.
4.2Ocaráterevolutivo-culturaldocultivoedaproduçãovinícola

 Foiatravésdacaçaedapescaqueascivilizaçõesantigasencontraramos
seusmeiosdesubsistência,eestaéintimamenteligadaaoprocessooudegrau
evolutivo em que se encontra cada povo, bem como suas respectivas lendas e
crenças, determinando assim, um modus vivendi. Diante disso, é possível
observar a importância e também o crescimento abrangente que a agricultura
representou para a civilização, quando passou a ser utilizada como modo de
subsistir.Oplantio,ocultivoeotrabalhocomumavideirarepresentammaisdo
queumasimplestarefaagráriaeestáintimamenteligadoaoprocessoevolutivo
imaginário pelo qual um sujeito “da caça” passa, se o compararmos com os
79
processospercorridos,paraumsujeito“daterra”,porexemplo.Otermo/cultivo/
70
tem origem na palavra /culto/, que, do latim, /cultus-ūs/, significa adorar ou
homenagearumadivindadequalquer.Jáotermocultivo,propriamentedito,vem
dolatim/cultĩvãre/edoclássico/colěre/equerdizercivilizado,instruído,alémde
serextensivoàcivilização.
Ohomemdascavernassealimentavacomaquiloqueconseguiamatare,
portanto,comosoutrosanimaissemelhantesaele,osquaisconseguiadominar
através da força e de armas rudimentares. Já o homem que se alimenta do
pastoreioedoplantio,precisacuidarealimentarliteralmenteasuafuturarefeição,
criandodessaforma,umaespéciedevínculoentreoagricultoreoprodutodeseu
trabalho na terra. Este  avanço
71
do homem em relação à sua sobrevivência
representa,emtermosdecivilização,umgrandedistanciamentoentreohomem
carnívoroeoherbívoro.Emoutraspalavras,foiatravésdessadiferençanomodo
deviveredeserelacionarcomosalimentosqueessesujeitotransitórioemutante
passouapercebernaspráticasagrícolas,umprazereumabeleza,vistoque
nãohaviatantanecessidadedematarparaquepudessesaciaraprópriafomee
adesuaprole.
 Ocultivodasvideiraseasproduçõesvinícolas,portanto,representamum
importante avanço no que tange ao amadurecimento do indivíduo como parte
integrante deum universo originalmentepredador. A partirdacultura da terrao
homem avança de uma prática de subsistência para uma etapa metafísica na
qual desenvolverá suas potencialidades como pensador e questionador do
universo e do cosmos, pois o ato de cultivar, cuidar e fazer com que a terra
produzissefrutospassouaserentendidopelohomemcomoumariquezaadvinda
da natureza e, portanto, tal prática passou a ser reverenciada e sistematizada.
Bachelardafirmasobreovinhoque:
O ouro,  o mercúrio, o mel, o pão e o vinho são belas matérias porque acumulam
devaneiosquesecoordenamtãonaturalmentequeépossíveldescobrir-senelesleisde
 
70
CUNHA,AntônioGeraldoda.Dicionárioetimológicodalínguaportuguesa.RiodeJaneiro:Nova
Fronteira,1982.
71
Idemao70.
80
sonho, princípios de vida onírica. Uma bela matéria, um belo fruto, nos ensinam
frequentementeaunidadedesonho,amaissólidadasunidadespoéticas.
72
 DiantedopensamentodeBachelard,apoesiadeJorgedeLimaapresenta-
se como uma representação desse material onírico fornecido pelos elementos
líquidos e,especialmente,pelo vinho,com suas características depureza e de
diferenciação inclusive no seu cultivo. A singularidade das produções vinícolas
estápresente,porexemplo,naformasubstancialcomoavideiraretiradalua,do
sol,edasestrelasumpoucodeenxofrepuro,oúnicoquepode“elementar”bem
todasaschamasdosseresvivos.
Por isso, um bom vinho representa todas as significações e todos os
homens, no sentido de depuração e de singularidade. Além disso, qualquer
acontecimentodeordemnatural,sejanocéuounaterra,influencianasafraeno
sabor de um vinho. O próximo fragmento representa a alegria ou o êxtase das
conquistasedasdescobertaserelacionataissentimentosdeeuforiaaosefeitos
causadospelabebidaaquianalisada:
I
(...)
Alegriasdescobertas
oumesmoachadas,lávão
atodasasnausalertas
deváriamastreação,
mastrosqueapontamcaminhos
apaísesdeoutrosvinhos.
Estaéaébriaembarcação.
(...)(p.27)
 O fragmento já foi anteriormente analisado no capítulo Água deste texto,
mas é interessante observar algumas singularidades que ocorrem se o
 
72
BACHELARD,Gaston.Aterraeosdevaneiosdorepouso.SãoPaulo:Martinsfontes,1990.p.
249.
81
analisarmos isoladamente e apenas observando aqui o elemento aquoso vinho,
como um pormenor da análise anterior que versa sobre o elemento água. No
fragmento, os verbos utilizados no presente do indicativo representam a
atemporalidadedotextopoético,cujaconstruçãosedácomumritmoquelembra
balanço, embriaguez e movimentação, além de todos  os elementos estarem
ligados ao sentimento da euforia da descoberta do novo, do inusitado e do
territórioalheio.
 Os versos 5 e 6, respectivamente, /mastros que apontam caminhos e a
países de outros vinhos/, funcionam aqui como uma espécie de finalidade ou
busca de um sujeito que anseia por conquistas de outras culturas e de outras
terrasquecultivemovinho.Issoporque,seasterrasaserconquistadastempor
hábitoocultivodovinho,certamenteesseseráumbomlugarparaviver,jáquetal
cultivorepresentaumadiantamentoculturalesocial,conformejáfoidito.
 Asrimas,porsuavez,apresentam-se,namaioria,cruzadasoualternadas
com esquema AB, com exceção dos versos 6 e 7 que apresentam rima
emparelhadacomesquemaCC,alémdeumaoutrapeculiaridadequeéousode
umpontofinalnoverso6,poisestepontonãoapareceemnenhumoutroversono
poemainteiroanãosernossétimosversosquesãoosúltimosdecadaestrofe.
Cabesalientarquetaissingularidadesemrelaçãoàrimaeaosinaldepontuação
têmumaconotaçãodeespecialidadeparaoeu-líricoquebuscaenfatizarovalor,
a qualidade e a pureza de um bom vinho, pois tais idéias em muito se
assemelham à sua própria poesia e aos seus ideais fundacionais, míticos e
transcendentais.
 Assimcomoosujeitopoéticoanseiapelaconquistadeumnovomundoe
deumanovaculturalíricaatravésdaságuas,JorgedeLimametaforiza,através
desuabuscapelailha,omesmodesejodeconquistaededesbravamentodeum
novoterritório,mesmoqueoterritóriosejaimaginárioassimcomoaprópriailha.
Entretanto,ofatodeserimaginárionãotornaailha(ouapoesia)menosrealou
importante. Com base no pensamento de Gaston Bachelard, por exemplo, é a
partirdeumaimagemoudasuapossibilidadequesurgemasmaterializaçõese
estas independem de ser concretas ou não. Assim sendo, o filósofo aproxima
82
constantementeodevaneiopoéticododevaneioalcoóliconumaanalogiaparalela
entreosdoistiposde“embriaguez”eosefeitosdesta:
Quantospoetas,acreditandoviveremapenasnummundodemetáforas,cantaramovinho
como um sangue vegetal! A alquimia fala num outro tom. É aqui que a metáfora
verdadeiramostratodasassuasvirtudesdetransação.Dir-se-áigualmentequeovinhoé
osanguedavideira,ouosangueéovinhodoanimal.Eentreosreinosextremos,entre
oslíquidosextremosdealtanobreza,éovinhoqueéonaturalintermediário.
73
 Há nestas idéias, portanto, uma importante aproximação entre o vinho, o
sangue e a nobreza. Embora já tenha sido elucidado o caráter do sangue
anteriormente,cabelembrarsobreapeculiarcaracterísticaidentitáriaqueadvém
de sua singularidade. Assim sendo, o elemento aquoso vinho carrega consigo
uma espécie de movimento ou trânsito de suas características e propriedades
básicas pelo fato de ser utilizado para diferentes fins, como a embriaguez sem
propósito e a sacralidade das cerimônias cristãs, além de representar,
imageticamentefalando,diferenteselementosoníricos,quesão:osangueesua
depuraçãonosambientesritualísticoseaalegriadoêxtasedescomprometidoda
embriaguez.
4.3Asacralizaçãodovinhonaliturgiaesuaprofanaçãonaembriagueze
nasartes
Otrecho quesegue fazumarelaçãode atrelamentoentre o sanguee a
transcendênciaalmejadapelopoeta:
 
73
BACHELARD,Gaston.Aterraeosdevaneiosdorepouso.SãoPaulo:Martinsfontes,1990.p.
253.
83
EtomouJesusumcálicee,tendodadograças,odeuaosdiscípulos,dizendo:Bebeidele
todos;Porqueistoéomeusangue,osangueda(nova)aliança,derramadoemfavorde
muitos,pararemissãodepecados.
Edigo-vosque,destahoraemdiante,nãobebereidestefrutodavideira,atéqueaquele
diaemqueoheidebeber,novo,convosconoreinodemeuPai.
74
 Nesta passagem do livro de São Mateus, a figura mítica de  Cristo se
apresenta aos seus discípulos na clássica parábola da Santa Ceia repartindo
simbolicamenteopão(seucorpo)eovinho(seusangue).Osangueaoqualele
serefereequeaindanãofoiderramadonacrucificaçãoéantevistopelafigurade
Cristoemfacedoseusacrifícioqueestáprestesaacontecer.Ficaevidenteneste
trechosersomenteporintermédiodoatosacrificialdosanguederramadonacruz
em holocausto ao Deus-pai, que o vinho passará a representar a pureza deste
sangue,poisopróprioCristoenfatizaque:Edigo-vosque,destahoraemdiante,
não beberei deste fruto da videira, até que aquele dia em que o hei de beber,
novo, convosco no reino de meu Pai, ou seja, é somente atravésda dor e do
sofrimentoqueexisteapossibilidadederemissão,perdãoepurificaçãoelevada.
75

Estapurezasimbólicarepresentaovínculoentreascaracterísticasessenciaisdo
vinhoeasdosangue,sendoqueeste,segundoRenéGirardpolariza,atravésdo
sacrifíciosobreavítimaosgermensdadesavençaespalhadosportodaaparte,
dissipando-osaopropor-lhesumasaciaçãoparcial.
76
Areferênciaaumtipodesaciaçãocoletivaepúblicarepresentaareação
de uma massa ensandecida e com instintos assassinos em virtude de um fato
qualquer, tornando necessário um derramamento de sangue expiatório, e
portanto,celebrado,afimdequeamonstruosidadedamorteedaviolênciaseja
aplacada.Assim,nosmitosdeJesusCristo,deBacooudeOrfeu,éatravésdo
sanguesacrificialedosofrimentoqueestespassamasersímbolosdedivindadee
depureza,assimcomoovinho,nasculturasantigas,queparasertransformado
 
74
SAGRADA,blia.Antigoenovotestamento.SãoPaulo:SociedadebíblicadoBrasil,1988.2
ed.SãoMateus.Cap26.vers.26-29.
75
A partir do derramamento do sangue de Cristo, o elemento passa a ser sagrado e puro.
Conforme o pensamento de Roger Caillois, o conceito de sagrado representa, por si só, uma
energiaperigosa,atraenteeincompreensível,somentepodendosermanejadademaneiraárdua,
emboraeficaz.Atéhojenumamissa,porexemplo,apresençadeCristoéreverenciadaeaceita
comoreal.In:CAILLOIS,Roger.Ohomemeosagrado.Lisboa:Edições70,1950.
76
GIRARD,René.Aviolênciaeosagrado.SãoPaulo:Pazeterra,1998.p.19.
84
embebida,eranecessárioqueasuvasfossempisoteadas,derramandoseusumo
atravésdoesmagamentoedodespedaçamentoatéqueatingissemosabor,odor
e tonalidades desejados. Evidentemente, hoje com as tecnologias e a
modernidade, os vinhos já não são produzidos desta maneira, mas o que
permanececomorepresentativonoimaginário,tantoindividualquantocoletivo,éo
da produção vinícola através deste pisoteamento das uvas pelos produtores da
bebida.
O fragmento que segue representa uma espécie de embriaguez literária,
motivadaeproposital,metaforizandoassim,aprópriaartedefazerversos:
VIII
(...)
Entrepus-meadiversossentimentos;
háumaloucuraamadaerepetida
semdescriçãopossívelnemnotícia:
écomoleveapuro,levelado
comdestinosnãotidos,tãotumultuária
placidez,queasondagemdouniverso
écomoessemetro,mãoinexistente
dedilhando-ocançãodesconhecida.
(...)(p.33)
Este fragmento do poema VIII do  Canto I, é um decassílabo e possui
cesuranão-deslocadacomocorrênciatônicasemprenomesmolugardenotando
arigidezdamétricaedoritmo.Entretanto,semanticamente,oháessafixidez,
pois o poema fala de loucuras indescritíveis,  repetidas, e de tumultos.  A
confusão e o conflito que se sobressaemneste poema fazem referência a uma
espécie de caos que, embora seja sentido, não é visto pelo eu-lírico, como
podemosobservarnoverso/écomoessemetro,mãoinexistente/,ondeháuma
construçãoparadoxal,jáque,seháumpoemaháummetroe,portanto,nãopode
serinexistente.Alémdisso,oritmodotrecholembraadança,aalegria,oêxtasee
85
a novidade atribuídos ao vinho, de maneira que seus versos se correlacionam
numatensãoentreformaeconteúdo,bastantecaracterísticadeJorgedeLima.
Embora oelemento vinhonão apareçano poemade forma explícita,este
podeser percebidoatravésdos elementos simbólicos esemânticos contidos no
poema como /loucura/, /tumultuária/, /canção/, /desconhecida/, /placidez/, etc.
Diante de sentimentos e sensações tão díspares e contraditórias, o eu-lírico se
encontra num redemoinho de conflitos paradoxais e ambíguos, retratando-os
nesta construção também ambígua, do poema, pois o vinho é acompanhado
frequentementedainsanidade,dapoesiaedamúsica,nasfestividadesemgeral.
Além disso, há neste fragmento, um êxtase litúrgico de embriaguez visto que,
tanto a confusão quanto as imagens são nebulosas, fugidias e fluidas. Para
Bachelard, qualquer bebida à base de álcool é uma combustão em potencial,
pois,segundoele:
Aaguardenteéaáguadefogo.Éumaáguaquequeimaalínguaeseinflamaàmenor
faísca.Nãoselimitaadissolvereadestruircomoaágua-forte.Desaparececomoque
elaqueima.Éacomunhãodavidacomofogo.
77
 Assim como o deus Baco possui propriedades denominadas instáveis e
manipuladorasdarazãoqueseassemelhamàsdaaguardente,tambémovinho,
elementoporelerepresentado,édotadodecaracterísticasfluidasefugidiasque
se volatilizam numa constante destruição através da embriaguez e do tumulto
resultante  da sua ingestão que desordena as leis e os homens. Bachelard
defende, ainda, que a inconsciência alcoólica é uma espécie de realidade das
profundezasequeoálcoolnãoapenasexcitaaspossibilidadesespirituais,mas
tambémcriataispossibilidadesefuncionacomoumaespéciedeforçaatuantena
vontadedeexpressãodoindivíduo,alémdeenriquecerseuvocabulárioeliberar
suasintaxe.Nessesentido,ovinhopassadoextremoprofanoparaosacro.
 
77
BACHELARD,Gaston.Apsicanálisedofogo.SãoPaulo:Martinsfontes,1999.p.123.
86
 Aprofanaçãorelativaaoelementoaquosovinho,jáfoibastantedifundida
nasartesatravésdoteatroedaprópriapoesia.NatragédiagregaeuripidianaAs
Bacantes, é possível observar muitas ocorrências consideradas profanas do
pontodevistadocristianismo,comoasorgiaspraticadasnomonteCiterãopelas
mulheres que tomavam a frente do cortejo e o conduziam numa atitude
tipicamente masculina e, portanto, marginalizada pela sociedade da época.
Partindodopontode vistadequeonão-sacrosedápelaausênciadosacro,
entendoqueumatopodeserconsideradoprofanomesmoquenãooseja,jáque
afaltadeumadivindadequalquerpararepresentaralgooualguémpoderesultar
naatribuiçãodoconceitodeimpuropelosensocomum.Nareferidatragédia,por
exemplo, o que é profanação e desrespeito do ponto de vista de Penteu,
representantepolíticodalocalidade,nãooésobaóticadasbacantesquedeixam
seusafazeresdomésticosparasubirematéomonteeadoraremBaco.
Desse modo, a profanação, assim como a sacralização, pode estar
atrelada aos conceitos de sobriedade ou embriaguez, dependendo sempre do
objetivoaoqualcadaumadestasmanifestaçõesdesejasereferir,comopodeser
observadonotextoquesegue,emcujosversosencontromanifestaçõesalusivas
àeuforiadasconquistasedoprazerembriagadorquedestasadvém.
VII
(...)
Asestradaspertencemaosvizinhos,
asminasaosfeudais,dominaocentro
ofamosovulcão,etudojá
pertenceuaalgumcéuehágeloeháouro
ehápresídiosehátropas:nãohápaz.
Ehádesertosdepedraseumassavanas.
População:unsdezbiliõesdeescravos,
eseudescobridorentreosantípodas,
entreasfebres,daíjorraamontanha
comseusmaresemtorno,evinhoevinho.
(p.31)
87
 Opoemacujofragmentofoitranscritoacima,possuiapenas2estrofesde
10versoscada,sendoqueestessecompõemde10sílabaspoéticas.Tantoas
estrofes quanto o número de pés, ambos em número de 10, representam a
totalidadeeaexistênciadetodososdemaisalgarismosdentrodadezena,numa
alusão à perfeição a que aspiram as crenças em geral. Simbolicamente
78
, o
número 10 representa a Tetraktys pitagórica e tem sentido de totalidade, de
conclusão,deremate.Onúmero10éafórmulabináriaquecorrespondeao2nas
calculadoraseletrônicaseéconhecidocomomúltiploouduploemalgunslugares.
Totalizador,onúmero10aparecenoDecálogo,quesimbolizaoconjuntodalei
em10mandamentos,queseresumeem1,eaprópriaobraInvençãodeOrfeu,é
compostade10cantos.
A predominância dos verbos no presente do indicativo aponta para um
sentidodeopassagemdetempo,metaforizandoaidéiadapermanênciaeda
estabilidade.Entretanto,háumverbono4ºversonopretéritoperfeito/pertenceu/,
queindicaqueestepassadofoidepertença,istoé,depropriedadequejánãoé,
já não existe no tempo atual. A posse a qual o eu-lírico faz uma espécie de
reivindicação no poema se refere tanto às terras e ao progresso /estradas/
quanto às riquezas /minas/, ao vinho (ou seu cultivo) e aos mares, mas
principalmenteaodireitodecrençaedecultoaquemquerqueseja.Háainda,a
presençadaconjunçãoaditiva/e/,queapareceemnúmerode10,enfatizandoa
perfeição de uma ideologia e, ao mesmo tempo, a soma das reivindicações a
seremteoricamenteressarcidas,jáqueoutroraessasriquezaserampropriedades
dosujeitopoéticoerepresentamparaeleaperfeiçãoeatotalidade.
O poema retrata, ainda, uma agitação em função de desregramentos
comportamentais e de uma tentativa por parte de autoridades de deter a
população, a fim de que possa ser restaurada a paz. Evidentemente, o sujeito
poético,nestetexto,realizaumaalusãoaEurípidescomtodasasmovimentações
econseqüênciasatreladasaocultodadivindadedovinho,principalmentenoque
tangeàviolênciasangrentaqueatragédiaexpressa.Anovareligiãoapresentada
 
78
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio,1995.9ed.
88
pelojovem Deusrepresenta,na cidade, uma rupturacoma tradição porque se
utiliza de gritos e de desordem para adorar Baco, além de causar transtornos
dentro das habitações familiares, já que as mulheres deixavam suas casas e
maridosparasubiremàmontanhaematitudesdeorgiaedesregramentos.
Semelhantemente à tragédia euripidiana, há neste poema uma alusão à
montanha febril de onde jorra vinho. Quanto à simbologia da montanha, esta
possui algumas significações interessantes no que tange ao aspecto
transcendentalemítico-religiosodessecapítulodenominadovinho.Aelevaçãode
terra,geograficamentechamadademontanha
79
,prende-se,aomesmotempo,à
alturaeaocentro,eparticipa,porserelevadaepróximadocéu,dosimbolismo
datranscendênciarepresentando,portanto,oencontrodocéuedaterra,daísua
importâncianasmaisdiversasculturasereligiões.
 Alémdisso,oritmodopoemacomassuasdiversasaliteraçõesem/t/e
/d/,quesãoasconsoantesplosivase,portanto,causamumaespéciedeexplosão
ou “batida” da língua contra os dentes ao serem pronunciadas representam,
metaforicamente, as batidas dos tambores, os gritos e os alaridos narrados na
tragédia.Asescolhaslexicaiscomo/presídios/,/tropas/,/escravos/,/febre/,/jorro/,
/montanha/ e /vinho/, também aproximam o poema da tragédia de Eurípides,
colocandooelementoaquosovinhoemumaposiçãodecausadorouveículode
atitudes ditas condenáveis e indesejáveis pelos indivíduos mais conservadores,
independentementedotempoemquevivam.
 TantoatragédiaeuripidianaquantoopoemadeJorgedeLimaenfatizame
defendemasalegrias,amúsica,asarteseapoesia,poucoimportandoaforma
sobaqualelasseapresenteme,sim,amensagemouoonirismoquepossam
proporcionaràhumanidade.Cabesalientarque,evidentemente,talonirismoestá
intimamenteligadoaoconsumodovinhocomoumelementoportadordealegrias
e prazeres superiores, e a embriaguez dele advinda, assim como aquela
proveniente da poesia, aqui funcionam como uma espécie de culto ou de
 
79
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio,1995.9ed.
89
adoração a ambos. Um exemplo disto é o soneto que segue no qual
encontramosaexaltaçãodasfestividadesesuasalegresmanifestações,sempre
ligadasàmúsicaeàpoesia:
XXVI
Qualquerquesejaachuvadestescampos
devemosesperarpelosestios;
eaochegarosserõeseosfiéisenganos
amarossonhosquerestaremfrios.
Porémsenãosurgiroquesonhamos
eosninhosimortaisforemvazios,
hádehaverpelomenosporali
ospássarosquenósidealizamos.
Felizdequemcomcânticosseesconde
ejulgatê-losemseusprópriosbicos,
eaobicoalheioemcânticosresponde.
Evendoemtornoasmaisterríveiscenas,
possamirar-seasasasdepenadas
econtentar-secomassecretaspenas.
(p.49)
 É inegável a aproximação deste soneto a vários dos cantos no livro dos
SalmosdeDavi
80
,numaalusãodoeu-líricoàsalegriaseaosprazerestantoda
música e da poesia quanto da crença em algo superior ou maior e, por isso,
ocorreaquiumaexaltaçãodestasconcepções.
 Osonetoéumdecassílabocomformafixa,eousodepronomespessoais
na primeira pessoa do plural produz uma inclusão do leitor pelo eu-lírico,
resultandonumafusãoentreambos,poisopoetainsereosujeitodarecepçãono
contexto semântico do poema.  As escolhas verbais das duas quadras são,
basicamente no infinitivo, o que aponta para um processo verbal em potencial,
 
80
SAGRADA,blia.Antigoenovotestamento.SãoPaulo:SociedadebíblicadoBrasil,1988.2
ed.OlivrodosSalmos.
90
exprimindoumaaçãopropriamenteditaemqueossujeitosoapresentadosà
crença e à ideologia em questão e, portanto, devem seguir infinitamenteaquilo
quenopoemaimperaemumaproporçãoquebeiraasacralidadeeadepuração
transcendental. Háumforte apeloàordem nestasduasestrofes,marcadopela
locução verbal /devemos esperar/, no segundo verso do primeiro quarteto,
enfatizandoocarátersacrodosoneto,comoumaespéciedefórmulaoumodelo
de vida desejável e feliz diante das adversidades, devendo ser este modelo
seguidocomoumareligião.
 Essas adversidades são marcadas através da conjunção adversativa
/porém/comaqualteminícioasegundaestrofedosoneto,poisestaapresenta
umalentoaosujeitoeumamaneiradeenfrentaratristezaeasperdasnaturais
da vida. A partir do primeiro terceto tem-se uma construção que lembra
novamenteostrechosbíblicosdasbem-aventurançasdoscristãos,poisFelizde
quemeBem-aventuradossãotermossinônimoserepresentam aharmonia e a
plenitudeontológicas.Alémdisso,nosdoistercetoshá,fortementemarcada,a
exaltaçãodamúsicaedoscânticos,colocando-osnumpatamarsagradoecom
capacidade inclusive de proteger, além de alegrar os indivíduos que têm por
costumetrazerparasuasvidastaispráticasharmônicas.
 Éinteressanteobservartambémqueocorrenosoneto umaexaltaçãoda
profanação, tornando-a sagrada e invertendo os valores tradicionais quando o
eu-lírico se refere às terríveis cenas no primeiro verso do segundo terceto, por
exemplo/Evendoemtornoasmaisterríveiscenas/.Issoporque,háaqui,uma
aproximação entre os horrores das tragédias sanguinárias e violentas com a
alegria da música e da dança, sendo ambas capazes de proporcionar
contentamento, apesar de suas características “ditas” indesejáveis ou
contraditórias.Eé nestemesmotercetoqueocorre,ainda,umamodificaçãono
que tange ao esquema de rimas adotado pelo poeta, pois desde o início do
soneto até a estrofe anterior há um esquema de rimas tradicional e fixo. A
primeiraquadratemrimascruzadasA,B,A,B,asegundatemrimasinterpoladas
A,B,B,Anoprimeirotercetoasrimascontinuamseguindoumesquemaadotado
pelos sonetos tradicionais e têm rima C,D,C. O último terceto, entretanto, tem
suasrimasdiferenciadasdorestantedosonetoeaparececomoesquemaE,E,E.
91
Taldiferenciaçãoemrelaçãoàsrimasrepresentaumarupturaemrelaçãoaosom
eàmusicademaneirageral.

 A busca pela transcendência e pela ascensão espiritual pode ser
observadaemInvençãodeOrfeuatravésdeuma“subida”atéailhadescritapelo
poeta como um lugar de pureza indiscutível. Evidentemente, a ilha representa,
aqui, o isolamento geográfico, mas também o isolamento intelectual e físico de
um poeta arquiteto da palavra. O afastamento do sujeito metaforiza a
necessidadedoartistadeseisolarnumageografiaquepossuiterrafirme,mas
que é necessário atravessar pelas águas balançantes da inquietude e da
incerteza até chegar ao destino insular. Dessa forma, a viagem do poeta pela
música, pela palavra e peloverbo, através do devaneio poético e das imagens
oníricas é o fim ou o objetivo de sua busca em relação à poesia lírica, com a
intençãodeavançaredetransporsempreoslimiteseasleis,sejamelesquais
forem.
4.4Aprofanatranscendênciadalíricaatravésdovinho
EmAsBacantes,DionisoePenteu nãodisputamnadadeconcreto. Arivalidadevisaà
própriadivindade,massobadivindadesóháaviolência.Rivalizarpeladivindadesignifica
rivalizar por nada: uma vez que a violência tenha sido extirpada, que tenha escapado
definitivamente a todos os homens, a divindade possui apenas uma realidade
transcendente.
81

 O desejo de realidade transcendente através de atividades ditas ilícitas
como ocorre na tragédia, além de romper com costumes sociais pré-
determinados, rompe com o poder político e autoritário de Tebas, ocasionando
umconflitoquevaiaoencontrodacalmariarompidaporBaco,somando-seaela.
Adivindadebáquica,cujarepresentaçãoéadadivindadedovinho,ocasionauma
 
81
GIRARD,René.Aviolênciaeosagrado.RiodeJaneiro:Pazeterra,1998.p.181.
92
rivalidade entre pessoas que, anteriormente à sua chegada, conviviam
pacificamenteefazcomqueatensãoeadiscórdiaseinstauremruidosamente.
NapoesiadeInvençãodeOrfeu,JorgedeLimadesestabilizatambém,doponto
de vista estético, um estilo poético que já havia se consagrado, o épico. Essa
desestruturação na lírica da Invenção é recebida de maneira desprezível por
algunscríticos,comoFábiodeSouzaAndrade
82
,queafirmamserosversosdo
poeta desprovidos de valor estético e de uma significação maior. Entretanto,
partindo dos conceitos de cosmogonia, sacralização e profanação, fica
evidenciadaaconstruçãomotivadaporpartedopoetaemsemostrarcomoum
eu-líricoimperfeito,destroçadoequemorrepara,maistarde,ressurgircomglória.
 Essa morte simbólica representa, na poesia de Invenção de Orfeu, tanto
uma morte sacrificial quanto uma morte doentia, pois pode ser advinda de
estados febris nos quais a consciência plena é destituída de suas faculdades
normais.Tal constatação pode ser melhor analisada a partir da leitura dotexto
quesegue,porsereste,alémdeemblemático,representativodaformacomque
oautorconcebesuaInvençãodeOrfeu:
XXIII
Praunidadedestepoema,
elevaiduranteafebre,
elesemesclaeseamealha,
eporvezessedevassa.
(...)
trombetadecarneesangue,
arcoecordas,arco-íris,
respiraçãoventaniada,
gongodosbraçosemcruz,
centopéiadoSenhor,
amoraplurasangrada,
cachodefacesnascendo,
unidadedaTrindade,
coraldavozedomar,
 
82
ANDRADE,FábiodeSouza.Amusaquebradiça.In:Bosi,A.(org)LeituradePoesia,SãoPaulo:
Ática,1996.
93
repetidaanunciação,
febredeilha,masbenigna,
ressurreiçãoentreaságuias,
masenfimumcéusemdias,
unidadedaTrindade,
esboço-meemtimeupoema,
maleitadiantedomar,
febredeilha,calor,frio,
dentesrangidosemseco,
mãotremendonopapel,
geofagia,geofagia,
masnosbraçosenasvelas,
unidadedaTrindade.
(p.43/44)
 EsteéumpoemaicônicodoCantoIporquerepresentaumaespéciede
síntese das idéias até então apresentadas acerca de Invenção de Orfeu. A
condensação, entretanto, não aparece aqui de maneira organizada ou
emblemática,assimcomotodaapoesiacontidanaInvenção,poisohermetismo
motivadoepropositaldopoetanãopermiteconstruçõesmaissimplesoudefácil
assimilação.
 Opoemaseconstituide90versosemumaúnicaestrofe,construídoem
redondilha maior e com uma semântica extremamente rica, mas, ao mesmo
tempo,nebulosaefugidia.Otextoiniciadiscorrendosobreumaunidadequeé
construída a partir de um estado febril do eu-lírico numa alusão meta-poética
cujosversosseentrelaçampurezaseimpurezasdeumapoesiasantificadaem
sua Trindade. Sobre o conceito de febre, temos a definição de Bachelard, que
afirma:
(...)afebreéamarcadeumaimpurezanofogodosangue;éamarcadeumenxofre
impuro. Deste modo, o devemos nos surpreender com que a febre recubra os
condutosdarespiração,principalmentealínguaeoslábios,deumafuliginosidadeescura
equeimada”.
83
 
83
BACHELARD,Gaston.Apsicanálisedofogo.SãoPaulo:Martinsfontes,1999.p.154.
94
 Assimsendo,aimpurezaqueprovémdoenxofreequeencobreostextos
do poeta assim como uma fuligem é a marca de sua poesia, bem como da
ascensãoqueeledeseja.Oritmolembraumadançanutridapelasensualidadee
pelo movimento, resultando em uma sedução lírica. O paradoxo entre a
sensualidadesintáticaquetransparecepeloritmoepelamétricadopoemaeas
escolhas lexicais do mesmo metaforizam a sacralização do profano através da
poesia.
A metáfora representa uma tensão lírica entre o que está escrito nos
versos,poisestesapresentamumléxicosacro,como/trombeta/,/trindade/,/cruz/,
/ressurreição/, que denotam coisas ou idéias santas, e o que aparece na
construçãoestéticadopoema,quesãoamusicalidadeeapresençaabundante
de aliterações em /m/ e /n/, por exemplo, que apontam para a idéia de um
movimento ritualístico dançante de litanias e crenças. Cabe salientar que as
danças, de maneira geral, são atribuídas ao consumo do vinho e ao culto
dionisíaco, sendo, portanto, o poema, uma alusão à mistura entre sacro e
profano
84
.
 Diante disso, é importante ressaltar a idéia de Bachelard quando afirma
queostrêsreinos,mineral,animalevegetal,possuemcadaqualoseurei.Assim
sendo,odoreinomineraléomercúrio,princípiodetodaliquidezqueconfereà
água, sempre pesada, um pouco de sutileza. No reino dos animais, o líquido
nobre é representado pelo sangue, elemento vital e princípio da força de uma
raça, e, em relação aos vegetais, que se tornaram tão desprezados pelos
princípiosaquosos,estestêmavideiracomofiguramajestosaereveladoradeum
líquidonobre,queéovinho.
 O vinho, para a poesia e para os poetas, possui uma significação e um
valor que emmuito supera os atribuídos a qualquer outra bebida alcoólica. Ele
representa, tanto na poesia quanto no teatro e nas artes uma bebida superior,
divinaedigna,semsombradedúvidas,deadoração,comoaparecenofragmento
quesegue:
 
84
 CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José
Olympio,1995.9ed.
95
Quantospoetas,acreditandoviveremapenasnummundodemetáforas,cantaramovinho
comoumsanguevegetal!Aalquimiafalanumoutrotom.Éaquiqueametáforaverdadeira
mostratodasassuasvirtudesdetransação.Dir-se-áigualmente:ovinhoéosangueda
videira, ou osangue éovinhodoanimal. Eentre osreinos extremos,entreos líquidos
extremos de alta nobreza, entre o ouro potável e o sangue, é o vinho que é o natural
intermediário.
85

 O vinho representa, portanto, o princípio da purificação transcendental,
pois é dentro das cisternas de armazenamento, antes de ser embalado, que o
líquido irá se transmutar de venoso para arterial, passando a correr com vida,
renovando(esalvando)ocoraçãodohomemcomosefosseumDeus,pois,para
Bachelard,olíquidotrata-serealmentedeumasubstânciahierarquizada,segura
deseusbenefícios.
86
 Emsuma,asalvaçãoatravésdovinhoécomparadaàsalvaçãopelalírica
queJorgedeLimabuscarepresentarnaInvençãodeOrfeu,relacionando-aao
homem,comoumprodutodestapoesia,mastambémcomoprodutordela,além
dagrandiosidadee,maisdoqueisso,danecessidadevitalesalutardapoesia.
 
85
BACHELARD,Gaston.Aterraeosdevaneiosdorepouso.SãoPaulo:Martinsfontes,1999.p.
253
86
BACHELARD,Gaston.Aterraeosdevaneiosdorepouso.SãoPaulo:Martinsfontes,1999.p.
255.
96
5Consideraçõesfinais
Diantedasleituraseanálises,épossívelobservarqueacosmogônicaobra
Invenção de Orfeu alça vôos e despenca de bruscas quedas, quase
simultaneamente. Magnus opus do autor ou fenomenologia do ser: como
conhecerascoisas,senãosendo-as,relataatrajetóriadeum“barãoassinalado,
sem brasão, sem gume e fama”, e relembra seus dias de aventura desde a
fundação da metafórica ilha que representa o arquipélago infernal onde
permaneciam osheróisgregos até oapocalipsefinal. O livrolembra um épico
subjetivo, no qual o poeta não se utiliza de linearidade nos 10 cantos
impregnandosuaescritadevozesalheias,comparações,citaçõeseumatensão
queconfundeostempos(tantoverbalquantocronológico)demaneiradramática.
Agrandediversidadeeprofusãodecores,sons,aromaseimagenscontida
em Invenção de Orfeu está arquitetada sob um esquema caleidoscópico e,
portanto,emconstantemutação.Talvezporissoo autortenhaimpregnadosua
criaçãodenovidade,frescorecoresquesevãomaterializandonomomentoem
quesãolidaseapreendidaspeloleitor,poisJorgedeLimaapresenta,atravésda
poesia,asuacrençaeasuareligiãoemformadelíricaqueensurdeceeatordoa
emfacedagrandiosidadeedohermetismoexistentesemInvençãodeOrfeu.
97
Os poemas representam um anseio, através de uma viagem pelos
elementosaquosos,comointuitodeangariarnovasconquistas.Entretanto,sabe-
se que a busca por parte dos portugueses era por terras concretas e sicas,
emboratambémfosseumabuscainsular,aopassoque, a busca deJorgede
Lima, trata-sede uma buscasubjetiva,imagética emetafórica,na qualo poeta
anseiapor encontrar umanova“terra”,cujasimbologiade ilhaporele adotada,
representaaprópriapoesialírica.
Emoutraspalavras,pode-sedizerquetodaatrajetóriadeJorgedeLima,
emInvençãodeOrfeu,representaesta“viagem”pelapalavra,resultandonaânsia
peloreencontrodasuamusaeocaráterdebusca,tantonaépicaquantonalírica,
têmestruturaenaturezasemelhantes.
A transcendência almejada representa, na lírica da Invenção, uma saga
quecompreendeaspectosdecosmogonia(cap.sobreaÁgua),desacrifícioe
purificação(cap.sobreoSangue)edeascensãonobreeespiritual(cap.sobreo
Vinho),convertendoassim,suapoesiaemumaliturgiasacrasemelhanteauma
religiãoe, portanto, devendoser estaadoradaecultuadacomoumadivindade.
SegundoasidéiasdeRenéGirard,aproximoopensamentodeJorgedeLimaà
descriçãodepensadormoderno,pois,paraoteórico,opensadorrepresentauma
característicaumtantocomumnopensamentodointelectualmodernopoiseste
considera-seomaisirresistíveldemolidordeídolosdahistória.
87

Ao construir a Invenção de Orfeu, o poeta realiza, portanto, uma
demoliçãodareligião,daprópriapoesiaesuasleis,dessacralizando-as,alémde
destruir também a sintaxe de seus poemas tornando-os, muitas vezes,
desconexosaparentemente.Taisdestruiçõesnãosão,entretanto,desprovidasde
signosedeanseios,poistêmporfinalidadeapurificaçãoeaascensãodalírica
através de seu holocáustico despedaçamento, perturbando uma paz que ele
próprioirárestaurarposteriormente.
EmconformidadecomopensamentodeJoãoGaspar,quefalaemrelação
àobradeJorgedeLima:
 
87
GIRARD,René.Aviolênciaeosagrado.RiodeJaneiro:Pazeterra,1998.p.166.
98
Eis a razão que me levou a persistir: justa ou injusta, certa ou errada, a minha
interpretaçãonãopodiadeixardeconstituirumelementodeaproximaçãodeumpoema
que,obscuroesecretopornatureza,nasuaobscuridadeesigiloteriadeviver,precisaria
viver. (...) Nada mais natural, portanto, que o poema de Jorge de Lima, subsistindo
secreto,permanecendoobscuro,apósaminhaintrodução,atravésdelavenhaaadquirir
umadimensãomais–adimensãoquelhedá,naconsciênciadoleitor,acertezadequea
InvençãodeOrfeu,sendoumgrandepoema,éumgrandepoemaobscuroesecreto.
88
Também eu persisti, acertando ou errando nas interpretações, mas,
sobretudo,enfatizandoaobscuridadeherméticaexistenteemInvençãodeOrfeu
e, mais especificamente do Canto I, intitulado Fundação da ilha. É importante
salientar, ainda, que o grande texto, por seu aspecto secreto e difuso, oferece
subsídios ematerial oníricosuficientes, para ser aproximadodeuma liturgia, já
queumareligiãoseapresentasobestesaspectos,entreoutros,demistériose
obscuridades.
Em suma, longe de finalizar ou de concluir o assunto, até por não ser
possível diante de sua vastidão, busco provocar outras discussões, outros
paradigmase,sepossível,releiturasacercadotextoedopoeta.
 
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