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1
UNIVERSIDADEFEDERALDORIOGRANDE–FURG
INSTITUTODELETRASEARTES
PROGRAMADEPÓS-GRADUAÇÃOEMLETRAS
MESTRADOEMHISTÓRIADALITERATURA
VINÍCIUSMARQUESESTIMA
AHISTÓRIADALITERATURADORIOGRANDEDOSUL,DEGUILHERMINO
CESAR:OINVENTÁRIODOPERÍODODEFORMAÇÃODALITERATURA
SUL-RIO-GRANDENSE
Dissertação apresenta como requisito parcial e
último paraaobtençãodotítulodeMestreem
Letras
Áreadeconcentração:HistóriadaLiteratura
Orientador:
Prof.Dr.CarlosAlexandreBaumgarten
Datadadefesa:23dejaneirode2009
Instituiçãodepositária:
NúcleodeInformaçãoeDocumentação
UniversidadeFederaldoRioGrande–FURG
RioGrande,janeirode2009
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Livros Grátis
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2
Paratodasascoisasgrandiosas
éprecisoiraopassado
WilliamShakespeare
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3
AGRADECIMENTOS
Àspessoasque,dealgumaforma,estiverampresentesaolongodessacaminhada,
dedicoessesagradecimentos:
ADeiseCosta,pelocarinho,amoretotalapoio;
AAnita,AlexandreeRogério.
AosmeusverdadeirosamigosCleberSchmitt,Danaecere,JoãoBatistaSchmitt,
Sara Ezedim, Guilherme Bittencourt, Kelen Bittencourt, Thiago Schmidt, Jéssica
Selayaran, Jian Zimmermann, Letícia Dutra, Leonardo Alves, Jader Mattos, Neli Costa,
DiegoCosta,DiogoSchmitt,GeorgetaSchmitt,ÉricoFarias,FernandoSchmitt, Ademir
Garcia, Cecília Oliveira,Amanda Schmitt, Luis Felipe Espinelly,PauloOlmedo, Rafael
Costa;semosquaisnãoteriaforçasparacontinuar;
A Fernando Lúcio daCosta, Pedro Iarley LimaDantas, Clemer Melo daSilva e
FernandoCarvalho,pelasalegriasdequepudedesfrutarnosanosde2006a2008;
AosmeuscolegasnocursodeMestradoemHistóriadaLiteratura;
A todos os professores e funcionários do Instituto de Letras e Artes da FURG,
especialmenteaCíceroVassãoeaRosauraRamis,pelapaciênciaecompetênciahabituais;
E,emespecial,aoProfessorDoutorCarlosAlexandreBaumgarten,quemeorienta
noscaminhos dapesquisa acadêmicadesde osegundoanoda minhagraduação, sempre
solícito, paciente e comprometido com aquilo que faz, representando para mim um
exemplodetudoaquiloqueumprofessordeveser.
4
RESUMO
EssadissertaçãoanalisaaHistóriadaliteraturadoRioGrandedoSul(1956),de
Guilhermino Cesar, com o objetivo de contribuir para a compreensão do processo de
escritadahistóriadaliteraturasulina,talcomoaformulouohistoriadormineiro.Aanálise
crítica daobra é desenvolvida àluzdosmais recentes estudosda Teoriada História da
Literatura,campodoconhecimentoquetemseampliadoapartirdasúltimasdécadasdo
século XX. Nesse sentido, investigamos os pressupostos teóricos e procedimentos
metodológicosquenorteiamaescritahistoriográficadoautor,identificando,porexemplo,
quais os principais posicionamentos críticos por ele assumidos, qual o conceito de
literatura que embasa a construção de sua pesquisa, quais os critérios empregados na
constituiçãodocânoneliteráriorio-grandense,bemcomoquestõesrelativasàapresentação
edesenvolvimentoformaldessaobra,fonteimprescindívelparaaquelesquesededicamao
estudodaliteraturadoRioGrandedoSul.
Palavras-chave:Historiografialiterária;RioGrandedoSul;GuilherminoCesar.
5
ABSTRACT
ThisdissertationexaminesHistóriadaliteraturadoRioGrandedoSul(1956),by
GuilherminoCesar,withtheclaimtotheunderstandingofthewritingprocessofsouthern
literaturehistory,whichisjustifiedinviewoftheimportanceofthesestudiessincetheend
ofthe1960’s.Thecriticalanalysiswillbedevelopedinthelightofthemostrecentstudies
in literaturehistorytheory,this fieldof knowledgethat has expandedfrom thelastfew
decades of the 20th century. Accordingly, the investigation assumptions theoretical and
methodological procedures that guide the historiographical writing of the author,
identifying, for example, what are the main critical positions made, which concept of
literature embodies the construction of his research, which criteria is applied in the
constitution of Rio Grande do Sul’s literary canon, as well as issues regarding the
presentation and formal development of this significant masterpiece in southern literary
historiography.
Keywords:Literaryhistoriography;RioGrandedoSul;GuilherminoCesar.
6
SUMÁRIO
1–CONSIDERAÇÕESINICIAIS:..................................................................................-7
2 – APONTAMENTOS TEÓRICOS SOBRE A ESCRITA DE HISTÓRIAS DA
LITERATURA:................................................................................................................-15
3–AHISTORIOGRAFIALITERÁRIASULINA
3.1Contribuiçõesparaaconstituiçãododiscursohistoriográficosulino:...................-28
3.2–AHistórialiteráriadoRioGrandedoSul,deJoãoPintodaSilva:.......................-40
4–GUILHERMINOCESAREAHISTÓRIADALITERATURADORIOGRANDEDO
SUL
4.1–Da“Introdução”:umadeclaraçãodeprincípios:....................................................-53
4.2–Das“manifestaçõesliterárias”
4.2.1–AformaçãodoRioGrandedoSuleosurgimentodaliteratura:.........................-67
4.2.2–Revolucionáriosenacionalistas:umaliteraturaindiferenteaoPampa?...............-80
5–ACONSTITUIÇÃODOSISTEMALITERÁRIOSUL-RIO-GRANDENSE
5.1–AgeraçãodoPartenonLiterárioeaformaçãodo“sistemaliterário”:.................-105
5.2–OideáriocientificistaeaproduçãoliteráriadofinaldoséculoXIX:..................-135
6–CONSIDERAÇÕESFINAIS:..................................................................................-155
7–REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS:...................................................................-177
7
1–CONSIDERAÇÕESINICIAIS
Estadissertaçãonãoanalisaumbeloromance.Tãopoucoumlivrodepoesias.Esse
trabalho analisa umahistóriadaliteratura!Por quê? Emparte,aescolhada Históriada
literaturadoRioGrandedoSul,deGuilherminoCesar,comoobjetodeinvestigaçãose
justifica por certa afinidade com relação ao trabalho que desenvolvi durante os dois
últimosanosdeminhagraduaçãonocursodeLetras-PortuguêsdaFURG.
Após participar como pesquisador voluntário do projeto A crônica brasileira:
percurso e tipologia, que analisou a produção de Rubem Braga, aceitei o convite do
orientador,ProfessorDoutor CarlosAlexandre Baumgarten,para ingressarem seunovo
projeto. Como bolsista Pibic/CNPq, integrei a equipe de pesquisadores do projeto
MachadodeAssiseoensaiocríticosulino,quetinhaporpretensãoinvestigararecepção
da obra machadiana no âmbito da crítica literária sul-rio-grandense, cabendo a mim a
análise de um conjunto de ensaios críticos produzidos por Augusto Meyer na primeira
metadedoséculoXX,nosquaisoensaístagaúchoexaminaaobradoescritorcarioca,em
especialasegundafasedesuaprodução.
As leituras que envolviam esse projeto apresentavam um caráter eminentemente
teórico e, por esse motivo, fizeram com que desenvolvesse um maior interesse pela
pesquisabibliográfica,emespecíficonoqueserefereàteoria,àcríticaeàliteraturasul-
rio-grandense.Assim,ingresseinocursodeMestradoemHistóriadaLiteraturadaFURG
com a intenção de elaborar uma dissertação que, de alguma forma, pudesse dar
prosseguimentoaessalinhadeinvestigação.Talpreferênciaseviureforçadaapartirdas
discussõesrealizadasnadisciplinadeTeoriadaHistóriadaLiteraturaque,apartirdeum
enfoque essencialmenteteórico, permitiu fossem estudadas as questões que envolvem o
processodeescritadeumahistóriadaliteratura.
Nosdebatesrealizados,percebiqueosestudosrelativosaocampodahistoriografia
literária vinham ganhando maior importância no meio acadêmico a partir das últimas
décadasdo séculoXX,quandoadifusão denovasproposiçõesteóricasemetodológicas
que,advindas,sobretudo,daAlemanha,enfatizavamanecessidadedeserepensarolugar
ocupadopelahistóriadaliteratura.Nessesentido,foipossívelacompanharatrajetóriados
estudos de historiografia literária, desde sua hegemonia no século XIX, motivada pela
8
afirmação da própria História enquanto ciência paradigmática, passando pelo seu
descrédito no curso dos anos novecentos, em que proposições teóricas que garantiam a
autonomia da obra literária, comoas dosformalistas russos,cadavez mais afastavam a
investigaçãoliteráriadoperfilhistórico,atéasdiscussõesmaisrecentes,queressaltamum
grandepotencialaserexploradonessaáreadoconhecimento.
Ao estudar mais detidamente os motivos do descrédito que atingiu a história da
literatura,foipossívelperceberque,viaderegra,oshistoriadoresnãosemostramclaros
quanto aostodosque embasamaelaboraçãode seustrabalhos, não explicitando, por
exemplo, os critérios utilizados na seleção e formação do cânone, na delimitação dos
períodosliterários,oumesmoqualoconceitodeliteraturaqueembasasuapesquisa,uma
vez que é comum encontrarmos histórias literárias que englobam uma diversidade de
textosdocampodasciênciashumanas.Domesmomodo,notou-sequegrandepartedesses
trabalhossecaracterizapelaadoçãodeumaperspectivalineareevolutivaque,registrando
oaparecimentodeinúmerasobraseautores,procuraanalisarosdiferentesmomentosde
dadaliteratura,umafórmulaque,segundoW.Beutin,nãoseriaatrativaparaoleitor,uma
vezqueselimitaaumaapresentaçãodaliteratura“sempresenteesemleitores”.
Ainda que, em um primeiro momento, a análise desse e de outros “problemas”
pudessesugerirqueométodohistóricodeabordagemliteráriaestivesseultrapassado,visto
que detectar a crise da historiografia literária se tornou um lugar-comum entre os
pesquisadores,os debatesocorridosnaquela disciplina revelaram-me queas histórias da
literaturapodemserdeextremaimportâncianoâmbitodaculturadeumPaís,exercendo,
porexemplo,umafunçãodiretamentevinculadaàafirmaçãodeumconceitodeidentidade
nacional, uma vez que é próprio das narrativas históricas buscarem comprovar que os
autores,asobraseasinstituiçõesapresentadasseriamcapazesderepresentaropatrimônio
literárioqueidentificaaculturadedeterminadaNação.
Entreasváriasperspectivasestudadas,ressaltam-seosapontamentosdeSiegfriedJ.
Schmidt,quechamaatençãoparaofatodequeumahistóriadaliteraturaé,antesdetudo,
uma construção de um historiador que, baseado em conceitos teóricos previamente
determinados,buscaorganizar discursivamenteumacadeiadeacontecimentosdeacordo
com suas motivaçõeseintenções,e que,portanto, nãodeveríamosjulgar ovalordessas
obras pela exata correspondência, ou não, com relação aos dados ou eventos históricos
focalizados.Sendoassim,umavezqueasconstruçõeshistoriográficasapresentam-secomo
9
um trabalho intelectual, o teórico alemão afirma que o primeiro passo para um melhor
entendimento acerca dos processos de escrita de histórias literárias seria perceber esses
textos como material historizável, proposição partilhada por outros estudiosos da área,
comoMarisaLajolo,aoafirmarque“ahistóriadaliteraturanãoésóumadisciplinaque
‘historiza’processoseprodutos;comodisciplina,tambémelaé‘historizável’”(LAJOLO,
1994,p.26)
1
.
Emvistadasprincipaisquestõesdiscutidasnaquelesemestre,eaescassaprodução
detrabalhoscientíficosdedicadosaoexamedetextosdehistoriografialiteráriabrasileirae
regional
2
, dispus-me a analisar a História da literatura do Rio Grande do Sul, de
Guilhermino Cesar, procurando compreender quais os processos envolvidos na escrita
dessaobraqueéfontedeconsultaindispensávelnoâmbitodosestudosliteráriossul-rio-
grandenses
3
. Nesse sentido, acredito que meu trabalho venha suprir uma carência no
âmbitodosestudosdessanatureza,umavezquenãotenhoconhecimentodepublicaçãode
materialsignificativosobreapesquisaconstruídaporGuilherminoCesar,em1956.
Nessa medida, a partir do estudo do texto em questão, analisarei o percurso
construído, que investiga a literatura gaúcha desde suas origens (1737) até o início do
século XX (1902), procurando definir pontos que o campo da Teoria da História da
Literatura considera de fundamental relevância, como aqueles contidos nas seguintes
questõesnorteadoras:
-QualoconceitodeliteraturaquenorteiaaconstruçãodapesquisadeGuilhermino
Cesar?
- Quais são, segundo o historiador, os elementos imprescindíveis na formação e
consolidaçãodosistemaliteráriorio-grandense?
-Dequeformaoautorpensaosistemaliterárioregionalnarelaçãocomosistema
literáriobrasileiro?
-OhistoriadorobservaospadrõeshistoriográficosherdadosdoséculoXIX,ouse
valedeprocedimentosdiferenciados,tendoemvistaumaconcepçãodialógica,queatenta
 
1
Ver aesserespeito: LAJOLO, Marisa. Literatura e história da literatura: senhoras muito intrigantes. In:
MALARD,Letíciaetal.Históriadaliteratura:ensaios.Campinas:EditoradaUnicamp,1994.p.19–36.
2
NoâmbitodoProgramadePós-GraduaçãoemLetras,daUniversidadeFederaldoRioGrande,somenteo
trabalhodeSandroFabresViana,“JoséVeríssimo:tendênciasetensõesnaescritadaHistóriadaliteratura
brasileira”,apresentadoem2005,ocupa-sedoexamedeumahistóriadaliteratura.
3
Noanode2006,oInstitutoEstadualdoLivropublicaumaterceiraediçãodaHistóriadaliteraturadoRio
Grande do Sul, com organização e introdução de Márcia Ivana de Lima e Silva, fato que demonstra a
vitalidadedapesquisarealizadaporGuilherminoCesar.
10
às inter-relações entre os sistemas literário, social, cultural e histórico, bem como a
presençaeparticipaçãodoleitornessepanorama?
-EmquemedidaotextodeGuilherminoCesarpropõeaarticulaçãoentreahistória
daliteratura,acríticaliteráriaeateoriadaliteratura?
- Quais os critérios empregados pelo historiador na seleção e constituição do
cânoneliteráriosul-rio-grandense?
Natentativaderesponderaessaseaoutrasindagações,percebiquenão poderia
analisarotextodeGuilherminoCesarsemestabeleceralgumascorrelações,nãosónoque
tange àsdiscussões concernentesao campo daTeoria daHistóriada Literatura, comoa
outrasque dizemrespeitoaocontexto maiordahistoriografia literáriasul-rio-grandense,
analogiaquepretendeverificaremquemedidasuapesquisapartilhadasprincipaisdúvidas
ecertezasconcebidasporestudosprecedentes,queigualmentetiveramapreocupaçãode
investigar os diferentes momentos das letras gaúchas. Nesse sentido, esta dissertação
apresentaaseguintedisposição.
No capítulo “Apontamentos teóricos sobre a escrita de histórias da literatura”,
procuro apresentar uma visão, ainda que panorâmica, acerca dos principais métodos e
tendências analíticas referentes ao campo da historiografia e da crítica literária, um
percurso que remete a meados do século XIX, período em que a história da literatura
exerce certa hegemonia no campo dos estudos literários, passa pela fase em que o
surgimento de técnicas investigativas de teor eminentemente formalista dão início aum
processoderelativodescréditodahistóriadaliteratura,evaiatéosmomentosemquese
esboçaumpanoramaderecuperaçãodacredibilidadeperdida,iniciadacomosestudosde
Hans Robert Jauss e que se estende pelas décadas finais do século XX. Por fim, esse
percurso culmina na rápida apresentação de algumas das ponderações metateóricas e
propostasmetodológicasquesustentamaTeoriadaHistóriadaLiteraturacomocampodo
conhecimento,panoramaemquesedestacamasproposiçõesepistemológicasadvindasda
Alemanha,divulgadasnoBrasilatravésdosestudosdepesquisadorescomoaprofessora
DoutoraHeidrunKriegerOlinto,daPontifíciaUniversidadeCatólicadoRiodeJaneiro.
No capítulo “A historiografia literária sulina”, procuro investigar os principais
momentosdahistoriografiasul-rio-grandenseanterioresàescritadotextodeGuilhermino
Cesar, o que exigiu a configuração de dois tópicos: o primeiro, “Contribuições para a
constituiçãododiscursohistoriográficosulino”,propõealeituradeescritosque,contidos
11
entreosprimeirosnúmerosdaArcádia(1867-1870)eaquelesconstantesnaProvínciade
São Pedro (1945-1957) apresentam um perfil historiográfico.
Em seqüência, o segundo
itemsedetémnoexamedaHistórialiteráriadoRioGrandedoSul,escritaporJoãoPinto
da Silva em 1924, texto que até 1956 constituía a única grande sistematização
historiográfica sobre a produção literária sulina. Analisando esses escritos à luz dos
pressupostos difundidos pelos estudos do campo da Teoria da História da Literatura,
procureidelinearasbasesteóricas,osprocedimentosmetodológicoseosprincipaispontos
discutidos, com a intenção de melhor compreender em que medida o trabalho de
GuilherminoCesardialogacomosdebatespropostospelatradiçãohistoriográfico-literária
doEstado.
Uma vez que esses itens cumprem a função de contextualizar o trabalho de
GuilherminoCesarnoâmbitodosestudosdocampodaTeoriadaHistóriadaLiteraturae
da historiografia literária sul-rio-grandense, essa dissertação dedica seu quarto e quinto
capítulos à análise da História da literatura do Rio Grande do Sul, subdivisão que se
justifica a partir de umaparticularidade reconhecida naleitura da obra, em que oautor
procuradeixarevidentequeosurgimentodaSociedadedoPartenonLiterário,em1869,
estabeleceummarcodivisórionasletrasdaProvíncia.Apartirdadeclaração“Atéaqui,
antesdoaparecimentodo‘Partenon’,foradesordenadaaatividadeliterária,dequedemos
notícia nos capítulos anteriores” (CESAR, 1971, p. 173), percebe-se que a pesquisa de
Guilhermino apresenta uma visão semelhante àquela encontrada na Formação da
literaturabrasileira(1959),emqueAntonioCandidoinvestigadequemaneira,eemque
momento,constitui-seosistemaliterárionacional,ressaltandocomopontofundamentala
distinçãoentreas“manifestaçõesliterárias”euma“literatura”maisconsistente,quepossa
sercompreendidaenquantosistemaliterário.
Assim sendo, o capítulo “Guilhermino Cesar e a História da literatura do Rio
GrandedoSul”principiacomoitem“4.1”,emque,antesmesmodeiniciaroestudodo
percurso construído pelo historiador, proponho a análise do capítulo de introdução da
História da literatura do Rio Grande do Sul, com o intuito de identificar os principais
conceitosquenorteiamtrabalhodohistoriador.Dessaforma,acreditoquetalinvestigação
possibilitará que, ao final dessa dissertação, possamos perceber em que medida o
pesquisador mantéma coerência entre a proposta inicialmente apresentada e opercurso
efetivamenteestabelecidonodecorrerdeseutexto,hajavistaque,comoindicaSiegfried
12
Schmidt, ovalordeumahistóriada literaturaodeve serbuscado nacorrespondência
objetiva com relação ao passado, mas na coerência e plausividade de seu discurso
teoricamenteorientado
4
.
Em seguida, otópico4.2(“Dasmanifestaçõesliterárias”)sedetémnaanálisede
partedopercursohistóricoconstruído,desdeosprimeirosmomentosdasletrasgaúchasaté
afundação daSociedadedo Partenon Literário,intervaloem que,devido àcarênciade
umamelhororganizaçãoemtermosdeprodução,distribuiçãoerecepçãodaliteratura,eà
ausênciadeumpadrãoestético-temáticohomogêneo,asletrasgaúchasseassemelhamao
que Antonio Candido define por manifestações literárias”. Por sua vez, esse item
apresentaaseguintesubdivisão.
Em “4.2.1”, procuroverificarde queformaGuilherminocompreende asrelações
existentesentreasparticularidadesreferentesàformaçãodoRioGrandeeosurgimentodo
cancioneiropopular,tidocomoaprimeiraamostraliteráriadoEstado,investigaçãoquese
justificaapartirdeumadaspremissasquebalizamaconstruçãodapesquisa,ouseja,de
que o caráter regional atua como pilar central na constituição da literatura sul-rio-
grandense,sendoseumaiorméritoaexpressãodessaintrínsecarelaçãoentreasproduções
literárias e os valores mais caracterizadores da cultura gaúcha, forjada a partir das
exigênciasdeumconturbadoprocessodecomposiçãosocial.
O item 4.2.2” enfoca um segundo momento das letras sulinas, em que o
surgimento da imprensa e a maturação intelectual da Província proporcionam aos
escritoreslocaisultrapassaroníveldaoralidadeealmejarumaproduçãomaisconsistente,
aindaquenãopossaserreconhecidacomoumaliteraturaorganizadaehomogênea.Ainda,
procurei observar de que maneira o historiador relaciona os acontecimentos da esfera
extraliterária,comoainsurgênciadaRevoluçãoFarroupilha,enquantofatorqueinfluencia
diretamenteodesenvolvimentodaproduçãoliterárialocal.
Na seqüência, os dois itens que compõem o capítulo cinco (“A constituição do
sistemaliteráriosul-rio-grandense”)dedicam-seaanálisedasfasesmaisconsistentesdas
letrasgaúchas.Nosubcapítulo“5.1”,vemosopapeldaSociedadePartenonLiteráriona
“evolução”social,culturaleliteráriadoRioGrande,atuaçãoquefazcomqueGuilhermino
Cesar compreenda essa agremiação como imprescindível para a formação do sistema
 
4
Veraesserespeito: SCHMIDT,Siegfried. Sobre a escritadehistóriasdaliteratura.Observaçõesdeum
pontodevistaconstrutivista.In:OLINTO,HeidrunKrieger.HistóriasdeLiteratura:asnovasteoriasalemãs:
Ática,1996.p.100-132.
13
literário sulino. Da mesma forma, esse tópico analisa de que modo ocorre a inserção
definitiva do ideário romântico em solo gaúcho, procurando perceber quais seriam, na
visão do historiador, as feições estéticas e temáticas mais caracterizadoras da produção
românticadoSul,quaisosautoreseasobrasprincipais,bemcomoquetipodecorrelação
seestabeleceentreosistemaliteráriolocalenacional.
Otópico5.2”dácontadaproduçãoliteráriagaúchadasduasúltimasdécadasdo
séculoXIX,emqueapartirdasinfluênciasdoideáriocientificista,quetemcomomaior
divulgadornoSuloalemãoCarlosvonKoseritz,ocorreatransiçãodaliteraturaromântica
aomodelodanarrativanaturalistaedapoesiaparnasiana,mudançaemquesedestacaa
atuação da crítica literária que, ao repudiar obras e autores do Romantismo, busca
comprovarainatualidadedetaispadrõesestético-temáticose,emcontrapartida,apresenta
aprosa real-naturalistaeapoesiaparnasianacomomodelosartísticosaserem seguidos,
preparandooespíritodosautoresgaúchosparaastendênciasmaisatuaisdaliteratura.
Porfim,nas“Consideraçõesfinais”procuro,alémderecuperarasconclusõesaque
chegueinocursodessadissertação,contraporasprincipaisidéiasapresentadaspeloautor
no capítulo introdutório às informações que seu percurso historiográfico efetivamente
revela,examequealmejaavaliaremquemedidatalconstruçãoconsegueconcretizarsuas
intençõesmotivadoras.
Cabe ressaltar, também, que esta dissertação não dedica maior atenção aos
capítulosquetratamdasproduçõesintelectuaisque,atualmente,nãointegram,emsentido
estrito, a categoria literatura”, como, por exemplo, os estudos de filologia e ciências
naturais (capítulo V: A caminho do humanismo e da ciência”), os textos de oratória
religiosa e política (capítulo XIX: “A oratória, o jornalismo a sátira política”) as obras
referentesàformação,àgeografiaeaosacontecimentoshistóricosdaProvíncia(capítulo
VI: “Os primeiros cronistas e historiadores” e capítulo XVIII: “A historiografia, após a
guerra do Paraguai”). Embora compreenda que esses estudos se referem a uma parcela
importante da obra de Guilhermino Cesar, uma vez que sua apreciação possibilita um
melhorentendimentodequestõesrelativasaalgunsmomentosintelectuaisque,dealguma
forma, compõem o panorama de cultura singular apresentado pelo historiador, decidi
limitar o foco desse estudo ao campo da literatura, não transitando por áreas do
conhecimentoqueminhaformaçãoacadêmicanãomepermitepercorrer.
14
Dessa forma, é a partir das questões aqui apresentadas que se organiza essa
dissertação, esperando contribuir, de alguma forma, para o melhor entendimento dos
processosdeescritadahistoriografialiteráriasul-rio-grandense.
15
2 – APONTAMENTOS TEÓRICOS SOBRE A ESCRITA DE HISTÓRIAS DA
LITERATURA
Adiscussãoacercadosestudosrelativosaocampodahistoriografialiteráriavem
ganhandonotoriedade nomeioacadêmicodesdeofinal dosanos60 doséculo passado,
atravésdedebatesquevisamarecuperarumaimportânciaquefoiprópriaaessemétodode
investigação no decorrer dos anos oitocentos, período em que, condicionada pela
afirmação da própria história enquanto ciência paradigmática, tal perspectiva de
investigaçãoliteráriadominouocenáriointelectual.
De forma geral, essa supremacia histórica oitocentista pode ser compreendida a
partir da consideração de diferentes fatores que condicionaram aquele século, como a
expansão do capitalismo liberal burguês que, ao intensificar as contradições entre as
classes,eporconseqüênciasuscitarumareflexãomaiscríticasobreasociedade,motivaa
burguesia dominante a elaborar uma produção historiográfica adequada as suas
necessidades ideológicas. Nesse contexto, avultam como fatores de suma relevância a
marcante influência do ideário romântico, enquanto filosofia, trazendo consigo uma
supervalorização acerca da noção de passado, bem como a autoridade exercida por
modeloscientíficosemplenaexpansão,comooPositivismoeasciênciasnaturaisque,a
partir do conceito de evolução, sugerem a possibilidade de secompreender a ordem de
determinadasorganizações,como,porexemplo,asociedade,mediantearecuperaçãodos
diferentesestadosetransformaçõesdesseorganismoatravésdotempo
5
.
Firmando-secomorespeitávelcampoanalítico,osestudoshistoriográfico-literários
apresentavam, ao longo daquele período, posturas investigativas de caráter
biográfico/psicológico,sociológicoefilológicocomosuasdiretrizesprincipais.Osestudos
biográficos se caracterizavam por focalizações centradas na personalidade do escritor,
apoiadasnoconceitoromânticodegêniocriador”.Alémdisso,taisestudosencontraram
um forte aliado na Psicologia, outra vertente científica também em voga à época, que
passariaainfluenciaraanálisedaliteraturanamedidaemqueseprocuravadesvendaros
 
5
Ver,apropósito:SOUZA, RobertoAcízelode.Históriadaliteratura.In:_____.Formação dateoriada
literatura:inventáriodependênciaseprotocolodeintenções.Riodejaneiro:AolivroTécnico;Niterói:UFF,
1973.p.62-85.
16
estadosmentaisdoautornodecorrerdoprocessodecriação,partindo,paratal,doexame
desupostosresquíciosdeconteúdopsíquicopresentenasobras.
Enquantoperspectivadeanálise,aSociologiaéincorporadaaosestudosliteráriosa
partirdepreocupaçõesdecunhoextraliterário,procurandoavaliaropapeldaliteraturacom
relaçãoàsociedade.A maioriados estudosse ocupavadaanálisedaposição socialdos
autores e/ou da significação atingida pelos escritos, ou seja, apresentavam-se como
trabalhosquefaziamdaobraumpretextoparainvestigaçõesacercadaprópriavidasocial,
sendo raras as ocasiões em que se percebem estudos que combinam interesses pelos
aspectos sociológicos e as especificidades do discurso literário. Nesse panorama, a
Filologiapodeserpercebidacomoaposturaquemaisespecificamenteagiaemfunçãoda
literatura, uma vez que procurava deter-se ao exame do texto para a formação de suas
teorias,sempreembasadasemumdiscursoquedefendiaaneutralidadeideológicadeseu
processoinvestigativo.
Essahegemoniahistoricistadoperíodoémotivada,emgrandeparte,pelanoçãode
que opassado seriaalgopassível deser objetivamenterecuperado nasua integralidade.
Partindo da concepção de que o processo histórico seria construído de forma aditiva e
unidimensional,obedecendoaumaúnicaperspectivatemporal,ohistoriador,nocursode
sua pesquisa, recorreria a uma investigação que visaria reconstruir verdadeira e
integralmente os diferentes momentos do elemento a ser historiado, tornando possível,
assim,melhorcompreendersuastransformaçõesevolutivas.
Em conformidade com essa linha de raciocínio, o formato de construção dos
trabalhos historiográfico-literários no século XIX igualmente se fundamenta a partir de
umavisãoevolutivaacercadaliteratura.Percebe-sequeoteórico-historiador,noprocesso
de eleição de uma trajetória, procura fixar no tempo uma determinada origem para o
fenômeno literário e, a partir dessa, traçar seu percurso de transformação evolutiva até
dadomomentoemqueumápiceseriaconfigurado.Oexamedessesprocessosdeescrita
permiteidentificar,viaderegra,umaconcepçãolineardetempo,emqueocaráteraditivo
das informações e acontecimentos acompanha o percurso de gênese, transformação e
apogeu de uma determinada literatura, modelo esse sugerido pelos estudos de Darwin.
Outro traço comum às histórias literárias “tradicionais” fica a cargo da carência de
objetividade quanto à fixação de um critério ou conceito de literatura, visto que sob o
17
rótulodeHistóriadaLiteraturaenglobava-seumadiversidadedeoutros textosadvindos
dasdiversasáreasdoconhecimento,emespecialdasciênciashumanas.
SenocursodoséculoXIXessaperspectivahistóricafiguracomooprincipalponto
devistaepistemológico,dominandoocenáriocientíficoocidental,acentúriasubseqüenteé
marcada pelo gradativo descrédito da história enquanto método analítico, o que
conseqüentemente afeta os estudos de historiografia literária. A partir dos trabalhos
concentradosemtornodorculoLingüísticodeMoscou(1914)edaAssociaçãoparao
EstudodaLinguagemPoética(OPOIAZ,1917),talsuperioridadecomeçaaserpostaem
xequepelaascensãodepropostasmetodológicaseminentementeteóricas,quecentramsua
atenção única e exclusivamente nos elementos formais constitutivos das obras de arte,
alçando-asàcondiçãodeobjetosautônomos,portadoresdeumsentidoúnicoeintrínseco,
que despreza, portanto, a necessidade de quaisquer correlações históricas, sociais e
culturais: “O nosso século nasce sobre a hostilidade à história, e logo no começo se
processa a grande cesura, o grande cisma entre literatura e história, entre ‘crítica (ou
ciência)literária’e‘histórialiterária’”.(BARRENTO,1986,p.13)
A partir do movimento denominado Formalismo Russo, entende-se que a
investigaçãodaliteraturadevecentrar-senaanálisedosaspectosinternosàprópriaobra,
recusando qualquer tipo de correlação com elementos extratextuais. Através de
metodologiasanalítico-descritivas,osformalistasprocuramdistinguirnoprópriotextoas
característicasqueotornamliterário,asualiterariedade,traçoque,apartirdascorrelações
entreelementosinternos,resultaemumprocessodesingularizaçãodalinguagem,umavez
que se parte do princípio que há na linguagem literária uma espécie de deformação
criadora,queconduzaumestranhamentoporpartedoleitor
6
.
Ao privilegiar um enfoque sincrônico no estudo da literatura, as diversas
proposiçõesteóricasdebaseformalistatinhamcomopadrãoanalíticoadecomposiçãoda
obraemunidadesmínimas,oquepossibilitadescreverecompreenderofuncionamentoe
asrelaçõesentreaspartes.Diantedessapostura,defendendoodiscursodaneutralidade,
distanciamento e objetividade analítica, delineando, além de um objeto de investigação
específico,pressupostosteóricosemétodospragmáticosdeabordagem,aatividadecrítico-
literária almeja para siorótulo deciênciada literatura, status gradativamenteadquirido
 
6
Veraesserespeito:SOARES,AngélicaM.Santos.Acrítica.In:SAMUEL,Rogel(org),etal.Manualde
teoriadaliteratura.Petrópolis:Vozes,1984.p.90-128.
18
devido às diversas correntes e grupos de pesquisadores que se dedicaram à pesquisa
literária.
NessepanoramaganhaforçaotrabalhodoNewCriticismamericano,movimento
que,dentreoutrosméritos,marcaainserçãodacríticaliterárianoâmbitouniversitário.A
NovaCríticasepreocupaemultrapassarposturashermenêuticaseontológicas,bemcomo
asleiturasqueinvestigamas“intençõesdoautor”,propondoumametodologiadetalhadae
imanentedoprópriotexto(closereading).Guiadosporestratégiaseteoriasconsistentes,
superando devezacríticadebaseintuitivae impressionista doséculoanterior,ogrupo
tem ainda por valor inaugurar e estimular as publicações sistemáticas de revistas
universitárias
7
emateriaistécnicosespecíficos,umavezqueprofessoresealunosassumem
opapeldepesquisadoreseformuladoresdeidéiasoriginais:
Enquanto alguns dos primeiros românticos tendiam a um silêncio
reverente ante o mistério imensurável do texto, os Novos Críticos
cultivavam deliberadamente as técnicas mais duras, mais decididas, de
dissecaçãocrítica.Omesmoimpulsoqueoslevavaainsistirnacondição
“objetiva” da obra, também os levava a desenvolver uma forma
rigorosamente“objetiva”deanalisá-la.Aexplicaçãodeumpoemapela
Nova Crítica constitui uma investigação rigorosa de suas várias
“tensões”,“paradoxos”eambivalências”,emostraomodocomoestas
sãoresolvidaseintegradaspelasuaestruturasólida.(...)Acrescequea
NovaCríticaevoluiunaépocaemqueacríticaliterárianaAméricado
Norte lutava para se “profissionalizar”, para se tornar uma disciplina
acadêmica respeitável. Sua bateria de instrumentos críticos era uma
formadecompetircomasciênciasexatasemseusprópriostermos,numa
sociedade em que essas ciências eram o critério dominante do
conhecimento.(EAGLETON,2003,p.67)
Nocursodomesmoséculo,aindasobolegadoformalista,oEstruturalismoéoutra
corrente teórica que baliza a análise da literatura, reconhecendo a obra como estrutura
lingüística coesa e complexa, formada por um sistema solidário de elementos
funcionalmenteinterdependentes.Enquantometodologiasdeinvestigação,destacam-seos
modelosanalíticoscomoosdeRolandBarthes,TzvetanTodoroveRomanJackobson,que,
partindodoprincípiodequeobrasliteráriasdemesmogênerooconstruídasapartirde
estruturasanálogas,propunhamadecomposiçãodasparteseasistematizaçãodasfunções,
articulaçõesecorrelaçõesentreessasparaaformulaçãoderegrasgeraisdefuncionamento.
Concernentemente, cabe ressaltar naquele século o destaque atingido pela crítica
 
7
SegundoAngélicaSoares,dessemovimentosurgemrevistascomoSouthernReview(1925),KenyonReview
(1938)eSewaneeReview(1944).
19
Estilística,praticadaporteóricoscomoCharlesBally,KarlVosslereLeoSpitzer,que,via
deregra,procuraram,apartirdaanálisedescritivadoselementoslingüísticospresentesnas
obras, configurardefinições ousistematizações que poderiamserapontadas comoestilo
individualdeumescritor.
Se emum universo de idéias comunsas perspectivas eminentemente sincrônicas
atuavam como parâmetro norteador, deve-se reconhecer no trabalho de J. Tynianov
8
o
méritodesinalizarparaumarenovaçãodopensamentonoâmbitodosestudosliterários,
uma vez que sua proposta visa ultrapassar o nível da imanência textual e atenta para a
investigação das transformações da série literária e suas correlações com contextos
extraliterários variados. Ao partir da noção de que a obra em si configura um sistema,
produtodainterrelaçãodeseuselementosinternos(oquechamaporfunçãosinônima),o
teórico admite, além da correlação com os demais elementos de outras obras/sistemas
(função autônoma), a possibilidade dediálogos entre a esferaliteráriaeoutros sistemas
distintos,comoosocial,cadaqualcomseusritmosindependentes.Aoinseriranoçãode
sistemasarticulados,oteóricorussoacabacontrariandoavisãocorrentenacríticadosanos
novecentosquelimitavaaliteraturaaoníveldasobrasliteráriasportadorasdeumsentido
intrínseco, e a crítica literária ao campo das investigações sincrônicas que deveriam
descrever de que forma o funcionamento dos elementos internos culminaria na
literariedade dos textos, inovação devidamente apontada por Heidrun Krieger Olinto ao
registrarque:
Um dos méritos de Tynianov, em seu ensaio exemplar de 1927, “Da
evoluçãoliterária”,residenaampliaçãodessemodelopelaintegraçãodas
séries sociais. A inclusão da realidade extraliterária como sistema
correlacionado com a série literária apresenta, assim, a literatura como
sistema parcial em sua interação com séries vizinhas em permanente
evoluçãosistêmica.(...)Umacompreensãocorretadomodeloserialque
Tynianov oferece em seu ensaio antecipa uma visão fragmentada dos
processos envolvidos nos modos de transformação. A articulação
progressivaentreobraparticular,sérieliteráriaesériesocialsupõe,em
nível evolutivo, a existência de ritmos diacrônicos diferenciados.
(OLINTO,1996,p.24-25)
Apesar de Tynianov sinalizar, na cada de 20, para a necessidade de se
ultrapassar a análise puramente imanentista, uma notável mudança paradigmática no
examedaliteraturasóvemaocorrernofinaldacadade60doséculoXX,apartirdos
 
8
Verarespeito:TYNIANOV,J.Daevoluçãoliterária.In:EIKHENBAUM,B.etal.Teoriadaliteratura.
Formalistasrussos.PortoAlegre:Globo,1971.p.105-118.
20
estudos de Hans Robert Jauss na universidade de Constança, no sul da Alemanha.
Apresentando ummodelo de análise que se denominou Estética daRecepção, o teórico
propõeumametodologiaquefocalizariaarecepçãodaliteraturaeseusefeitosnoleitor,
superandodevezaslimitaçõesprópriasàstécnicasdebaseformalistaeestruturalista,na
medida em que visa ultrapassar o plano da imanência do texto, deslocando o eixo
referencialdesseparaoprocessoderecepçãoporpartedosujeito.
AgrandeinovaçãopropostaporJausssedáapartirdareconduçãodefocoanalítico
acerca da literatura, em que a relevância a ser observada não se encontra no plano
autor/texto (estética da produção), ou nas representações estilísticas e/ou psicanalíticas
presentes nas obras (estética da apresentação), mas sim na capacidade do leitor em
“construirsentidos”frenteaosvaziosencontradosnotexto,tarefaemquefatorescomoo
contextosócio-históricoespecíficodessesindivíduosatuacomoelementoconsiderável.A
partir dos pressupostos da Estética da Recepção, a leitura da literatura deixa de ser
percebida como uma tarefa linear e progressiva de simples decodificação lingüístico-
textual,emqueseadmiteaexistênciade“leiturascorretas”,epassaasercompreendida
como trabalho de construção em que o leitor, já familiarizado a certas técnicas e
convençõesliterárias,abordaaobraapartirdecertos“pré-entendimentos”condicionados
porvariáveishistóricas,sociaiseculturaispróprias:
Na terminologia da teoria da recepção, o leitor “concretiza” a obra
literária, queem si mesma nãopassa de uma cadeia de marcas negras
organizadasnumapágina.Semessaconstanteparticipaçãoativadoleitor,
nãohaveriaobraliterária.Paraateoriadarecepção,qualquerobra,por
maissólidaquepareça,compõe-senarealidadede“hiatos”,(...),queo
leitor devepreenchercom uma conexão inexistente. A obraécheia de
“indeterminações”, elementos que, para terem efeito, dependem da
interpretaçãodoleitor,equepodemserinterpretadosdeváriasmaneiras,
provavelmenteconflitantesentresi.(EAGLETON,2003,p.105)
Noâmbitodosestudoshistoriográfico-literários,apropostadesenvolvidaporHans
RobertJauss,eposteriormentetrabalhadaporteóricoscomoWolfgangIsereHansUlrich
Gumbrecht,acabarevitalizandotalperspectivadeinvestigaçãonamedidaemqueatentaà
necessidadedemelhorseponderarolugarhistóricoeosentidosocialdodiscursopoético,
esse não mais concretizável por obras semanticamente autônomas, mas fundamentado a
partirdecorrelaçõeshistórico-culturaiscomplexas.Nessamedida,Ahistóriadaliteratura
como provocação à teoria literária (1967) é visto como um escrito que demarca uma
renovaçãonoqueconcerneàanálisehistóricadaliteratura,umavezquesugereummodelo
21
investigativoqueultrapassaaperspectivahistoricistatradicionaleatentaparaosprocessos
de transformação do fenômeno literário, inovação devidamente registrada por Heidrun
Olinto,aoafirmarque:
Foimérito desseensaio programáticoterdesconstruídoaconfiançaem
propostasexplicativasclássicasdeumahistóriauniversalista,totalizante
como encadeamento cumulativo unilinear de generais e batalhas na
história política, e tê-la transferido para a história literária, como
repertório de obras e autores enfileirados cronologicamente em uma
utopiaprogressistapelaarticulaçãodeestiloseépocashomogêneas.Ao
mesmo tempo, o comprometimento com modelos fundados sobre o
singular coletivo “literatura” e sobre o singular coletivo “história” é
substituídoporperspectivasqueassinalamahistoricidadedo fenômeno
literárioesituam-noemumaesferacomunicativadeinteraçãocomplexa,
inicialmente a partir da relação texto/leitor como unidade “fundante”.
Alémdecriticarapercepçãosubstancialistadaliteraturareduzidaàobra,
essanovapropostadesorganizamargensatéentãonãopercebidascomo
problemáticas.Adimensãoampliadanãosóenvolveodiálogoentretexto
ereceptoremumcontextohistóricodatado,eosmomentosdeprodução
e recepção sob forma de horizonte de expectativa, como tematiza
explicitamente a figura do observador/historiador enquanto instância
inseridaemumaestruturainstitucionaldesaberepoder.(OLINTO,1996,
p.06)
Nesse panorama de recuperação da credibilidade histórica, ressaltam-se como
fundamentaisascontribuiçõesadvindasdosestudosdeWalterBenjaminque,recuperando
forçanocenáriointelectualnadécadade70,incitamaumarenovaçãoepistemológicano
campodaprópriahistóriaenquantomodelodeciência.Dentreosprincipaisapontamentos
doteóricodaescoladeFrankfurt,anoçãodequetodaainvestigaçãoacercadopassado,
aquijávisto comofragmentadoemultifacetado,parte deuma visãocríticae consciente
queobjetivaummelhorentendimentodopresenteparecerenovaremmuitoosentidoda
históriaeseuaproveitamentocomrelaçãoàatualidade.Alémdisso,talproposiçãoteórica
parte da noção de que qualquer reconstituição histórica passa antes pela subjetividade
seletiva do historiador, ou seja, é um processo construtivo mediado por um sujeito de
consciência histórica, postura que contrapõe o discurso dogmático-normativo típico do
historicismo do século XIX, que primava pela objetividade e o impessoalismo na
“reconstrução”historiográfica:
É precisamente aqui quereside a grande diferença entre o “sentido da
história” do historicismo do século XIX, monumental, soi-disant
objetivo, pretendendo tudo abarcar sem distinções, e o conceito de
história de um autor como Walter Benjamin: um sentido histórico
22
subjetivamenteseletivo,objetivamenterelacionado,nãocomatotalidade,
abstrataeinapreensível, deumtempo/momento históricopassado,mas
antes como o caráter específico do presente do sujeito de consciência
histórica,evendoaHistóriacomoumprocessonãomeramenteaditivo,
mas construtivo, não linearmente contínuo nem circularmente cíclico,
mas descontínuo, “quebrado” e complexa e contraditoriamente
estratificado. O sentido da história do historicismo era titânico e
desumano, na sua normatividade e nas suas pretensões totalizantes;
visões como as do materialismo (“messiânico”, embora) de Walter
Benjamincontêm, pelo contrário, umsentido emancipatório ehumano,
porquenelasaHistóriafuncionacomoorganondeumautoconhecimento
e abre, a partir do passado, os caminhos do presente – sem a
transfiguração do monumentalismo objetivista do historicismo.
(BARRENTO,1986,p.11-12)
Diantedessecenárioderenovaçõesnaáreadoconhecimentohistórico,destacam-se
tambémascontribuiçõesdacorrenteamericanaqueficouconhecidacomoNovaHistória,
eque,nocursodosanos80,foiresponsávelporfixardevezanoçãodequeopassadonão
poderia ser compreendido como um dado a ser reconstituído ou descoberto, mas
teoricamente compreendido pela investigação de vestígios, posteriormente reunidos via
narração,sendoocritériodevaloraçãoobservávelantesodaplausividadeecoerênciado
discurso histórico do que a utópica idéia de correspondência com relação aos eventos
focalizados.Outrapremissaquecaiporterraéadasupostaobjetividadeeneutralidadedo
historiador, que passa a ser visto como um pesquisador ideologicamente comprometido
queorganizaseudiscursoemfunçãodeinteressesenecessidades.
O campo da historiografia literária igualmente acompanha essa reformulação de
pensamentoiniciadapelosteóricosdahistória,umavezqueaescritadehistóriasliterárias
começa a ser revista sob parâmetros atualizados, que se valem dessas inovações
metodológicas e metateóricas para confrontar modelos clássicos que perderam
aceitabilidadee,porconseguinte,suaeficácia.Nessamedida,umprocedimentoinicialfica
acargodarevisãoereconsideraçãoacercadasprincipaisconsensualizaçõesenvolvidasno
processo de escrita historiográfico-literária, como, por exemplo, a relativização dos
critériosperiodológicosedeconstituiçãodecânones.
No contexto dessas reflexões, a formulação de períodos homogêneos é um dos
critérios a serem relativizados, visto que conceitos de época que sugerem identidades
estáveis dentro de determinados limites temporais demarcáveis não são mais plausíveis
perante os novos pressupostos teóricos. Ainda que conceitualizações de épocas sejam
tarefasinerentesaoprocessodeescritahistoriográfica,aelaboraçãodessasunidadesdeixa
23
desercompreendidacomoprocedimentoquevisareunirsobummesmorótuloestruturas
textuaistemáticaouesteticamenteanálogasparaassumirumacomplexidadeintrínsecaà
própria noção de literatura, enquanto processo de significação que considera as
interrelações entre textos e contextos de produção/recepção cultural e historicamente
situados.Nessamedida,aquestãodaperiodizaçãopassaaserconsideradaenquantorede
de múltiplos processos que se realizam em durações e ritmos diferenciados, percebidos
como rupturas, passagens, interpretações complexas e flutuantes, em função de
determinadosinteresses.”(OLINTO,1996,p.13).
Outro pontoinerenteao processo de escrita historiográfico-literária éaeleição e
organizaçãodeautoreseobrasque,deacordocomdeterminadoscontextosestéticose/ou
histórico-sociais,podemserpercebidoscomopatrimônioliteráriorepresentativodecertas
identidades culturais. Tendoem vista oprocesso deformação deum cânone literário, o
historiador inevitavelmente procederá de maneira seletiva, nomeando alguns textos e
escritores como legítimos representantes de certas tendências temáticas e/ou estilísticas.
Noentanto, ograndepontoaserrevistopelasnovaspropostasdeescritahistoriográfica
gira em torno de se ponderar em que medida essa tradição literária, sustentada pela
reiteraçãoconstantedecânones,norteiaopensamentodoescritornaconstruçãode uma
históriadaliteratura?Dequeformasedeve(re)consideraressatradiçãoemmeioàeleição
denovosnones? Emquemedidasepode(re)avaliara importânciadeobrase autores
relegadospelahistoriografialiterária?
Emseuensaiosobreaquestão,WendellHarrissalientaqueosnones,demodo
geral,acabamexercendofunçõesimportantesnoâmbitodaliteraturaedaprópriaescrita
historiográfica, como, por exemplo, proporcionarem a percepção de modelos a serem
seguidos ou contrapostos, transmitirem heranças culturais através dos tempos, tornando
possívelodiálogoentreépocasdiferentes,legitimaremmodelostemáticoseestéticos,bem
como criarem pontos de historização, na medida em que, para alguns críticos, as obras
passam a configurar objetos historizáveis que proporcionam um melhor entendimento
sobre o momento “vivido” por dada literatura, em um contexto sociocultural particular:
“Tradicionalmentesehácreídotantoquelostextosliteráriosproporcionabanluzsobrelá
24
épocaenqueseescribieroncomoqueloshechoshistóricosycontemporáneosinfluyenen
interpretacióncorrectadelostextos”(HARRIS,1998,p.45)
9
.
Ainda que muitas das dúvidas acerca da influência e importância do cânone
pareçam difíceis de serem solucionadas, esse acaba sendo um dos principais pontos de
investigaçãoparaaquelesquesedispõemarefletirsobrenovoscaminhosparaaescritade
histórias da literatura. A análise dos critérios de formação canônica deve partir, em
primeiro lugar, do pré-entendimento de que tais elaborações são, antes de tudo,
organizações narrativas de um historiador que, guiado por pressupostos teóricos e
comprometimentosideológicosparticulares,elegeumconjuntodetextoseautoresque,na
suaótica,sãocapazesderepresentarsuaidéiadeliteratura.Assimsendo,aotrilharmoso
caminho inverso poder-se-ia,através daanálise dessas construções discursivas, perceber
qualconceitodeliteraturaembasadadaescritahistoriográfico-literária,qual(is)corrente(s)
teórica(s) norteiam esse processo, bem como todo um sistema de valores do qual esse
teórico-historiadorérepresentante,conscientementeounão.
Noquesereferearenovadoshorizontesparaosestudoshistoriográfico-literários,
partem da Alemanha, no final da década de 60, as primeiras discussões em torno da
questão da conveniência e utilidade de novas histórias da literatura, tendo em vista a
homogeneidadedefórmulasantiquadasquejánãoatendiamanecessidadedesepensaro
passado na sua relação com o presente – “Porquê e para quê mais uma história da
literatura?Nãochegamasjáexistentes?Paraquemfoiescrita,seéqueépossívelconceber
umahistórialiteráriadirigidaaleitoresespecíficos?Oqueéqueadistinguedeoutrase
quais são as suas pretensões?” (BEUTIN, 1986, p. 111). No fluxo dessas indagações,
diversas proposições teóricas e metodológicas começam a ser apresentadas como
instrumentos capazes de justificar a relevância da historiografia literária enquanto
perspectivaanalítica.
Umdoscaminhossinalizaparaatendênciadesetransformarahistórialiteráriaem
uma história social da literatura, postura que caracteriza grande parte dos trabalhos
realizados na Alemanha a partir da década de 70. Essa linha de pensamento focaliza a
descrição co-evolutiva da história social e da história literária mediante um modelo de
 
9
Ver a esse respeito: HARRIS, Wendell V. La canonicidad. In:SULLÀ,Enric (org). El canonliterário.
Madrid:Arco,1998.p.37-60.
25
“sistema social da literatura”, relativamente autônomo, em que as mudanças literárias
podemserexplicadaspelasarticulaçõescomrelaçãoàsmudançassociais.
10

Outra perspectiva inovadora é a defendida por Friederick Meyer e Hans Ulrich
Gumbrecht,que sugeremaarticulação daprática historiográfico-literária tendo emvista
pressupostosdahistóriadasmentalidades.Segundoessaótica,partir-se-iadanoçãodeque
ofocodainterpretaçãohistóricaseriadesvelarereconstituirasaçõeseocomportamento
socioculturaldedeterminadostempos,e, nessesentido,os textos literáriosseriamvistos
comoomaterialquemelhorpossibilitariaareconstituiçãodecertospadrõesdeconduta.
11

Dentre esses novos rumos, destaca-se o projeto de uma Ciência da Literatura
Empírica”, desenvolvido inicialmente nas universidades de Bielefeld e Siegen, na
Alemanha,desdemeadosdosanos70,econtinuadonosanossubseqüentespelogrupode
pesquisaNIKOL,noqualganharelevoaatuaçãodeSiegfriedJ.Schmidt.Fundamentada
em concepções funcionalistas e construtivistas, no que se refere às formulações
metateóricas e metodológicas, essa perspectiva científica tem como pretensão uma
renovação epistemológica no campo da investigação literária, propondo, para tal,
mudanças paradigmáticasquevisamatranscenderoslimitesdasciênciashermenêuticas
tradicionais, voltadas ao texto literário particular, centrando seu foco na análise do
“sistemaliteratura”comoespaçodeinteraçãosocial
12
:
Uma ciência da literatura exclusivamente explicativa permanece
imperfeitaemsuaprópriaqualidadecientíficaenquantonãodesenvolver
categoriasparaaaplicaçãodosaberadquirido.Teoricidade(aexigência
deexplicitarasteoriasusadas),aplicabilidade(aexigênciaderelevância
individual e político-social) e empiricidade (a exigência de poder
verificar seu conteúdo empírico) são os requisitos básicos para uma
atividade científica bem sucedida. A categoria “empírico” traduz, no
caso,apossibilidadedeumaexplicitaçãointersubjetivaemdeterminado
grupo de pesquisadores, de acordo com teorias e regras metodológicas
consensuais.(OLINTO,1989,p.10-11)
Noquedizrespeitoàsimplicaçõesnoprocessodaescritadehistóriasliterárias,as
novaspressuposiçõescobramdoshistoriadoresposicionamentosteóricosemetodológicos
 
10
 Ver a esse respeito: SCHÖNERT, Jörg. Fraquezas atuais da história social da literatura alemã. In:
OLINTO,HeidrunKrieger(org).Históriasdeliteratura.asnovasteoriasalemãs:Ática,1996.p.169-185.
11
Ver a esse respeito: GUMBRECHT, Hans Ulrich. História da literatura: fragmento de uma totalidade
desaparecida?In:OLINTO, HeidrunKrieger(org).Histórias deliteratura.asnovasteoriasalemãs:Ática,
1996.p.223-239.
12
Veraesserespeito:OLINTO,HeidrunKrieger.(sel.,trad.eapres.).Ciênciadaliteraturaempírica:uma
alternativa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. (Biblioteca Tempo Brasileiro, 86, série estudos
alemães).
26
condizentes com as perspectivas que embasam essa concepção científica, como o
reconhecimento do princípio de “construtividade”, a explicitação dos valores
epistemológicoseosprincípiosfuncionaisdodiscursohistórico,umavezque“aescritade
histórias literárias significa uma construção de relações teoricamente orientadas entre
dados para produzir modelos plausíveis e aceitáveis intersubjetivamente dos
‘acontecimentospassados’”(SCHMIDT,1996,p.107).Segundoessaótica,aconstrução
historiográficadeveassumiraparcialidade,asubjetividadeearelatividadecomrelaçãoa
critérioseconceitosenquantotraçosinerentesàtarefadohistoriador.
AescritadeumahistóriadaliteraturadentrodaperspectivadefendidaporSchmidt
tem por objetivo principal definir explicações, teoricamente orientadas, sobre as ações
literárias e suas correlações com as ações históricas e sociais, ou seja, uma focalização
centradanainvestigaçãodasmudançaspráticasocorridasno“sistemaliteratura”,umavez
que “A estrutura do sistema literatura pode ser descrita a partir da relação temporal e
causalentreostiposdeaçãoqueindivíduosrealizamcomtextosqueconsideramliterários,
asaber,produção,mediação,recepçãoeprocessamentode‘textosliterários’”(SCHMIDT,
1989,p.44).Nessesentido,aCiênciadaLiteraturaEmpíricanãotempormetaaaplicação
de procedimentos hermenêuticos na análise de textos isolados, mas sua consideração
enquantounidadesresponsáveispelaformaçãodeprocessosliteráriosdentrodossistemas
literários
13
:
Umadecisão fundamental diz respeito aoconceito deliteratura quena
teoriaempíricadaliteraturanãoéconstruídoapartirdetextoscomoem
outrasteoriasdaliteratura,masapartirdesíndromesdetexto-ação.As
unidadesmenoresoaçõesque,juntocomsuascondições,resultadose
conseqüências,focalizamfenômenos,namaioriadasvezestextos,queos
agentesconsideramliterários.Taisaçõeschamaremos,daquipordiante,
açõesliterárias.(...) Combinaçõesde ações literáriasformamprocessos
literários. A totalidade de processos literários numa sociedade será
chamada sistema literário. Um sistema literário apresenta uma
organizaçãohierárquicaeholística,ouseja,todososseuselementossão
simultaneamente autônomos e auto-reguladores e funcionalmente
integradosnosistemaglobal.Nenhumelementosedefineouseentende
foradarelaçãocomosistemaglobal.
O sistema da literatura é, por sua vez, um elemento no sistema da
sociedadequepossui,também,umaorganizaçãoholísticaehierárquica.
(SCHMIDT,1989,p.61-62)
 
13
Veraesserespeitoostextos“Aciênciadaliteraturaempírica:umnovoparadigma”e“Dotextoaosistema
literário.Esboçodeumaciênciadaliteraturaempíricaconstrutivista”,In.OLINTO,HeidrunKrieger(sel.,
trad. e apres.). Ciência da literatura empírica: uma alternativa, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
(BibliotecaTempoBrasileiro,86,sérieestudosalemães),páginas35a52,e53a71,respectivamente.
27
Demaneirageral,agrandemaioriadasponderaçõesmetateóricasemetacientíficas
quesustentaaTeoriadaHistóriadaLiteraturacomonovaáreadoconhecimentoenfatiza
emseudiscursoasinúmerasdeficiênciasdemodelostradicionais,tidosporantiquados,de
relevância e utilidade questionáveis. Entretanto, fica sob a responsabilidade dos novos
pesquisadores repensarem tais perspectivas, compreendendo essas propostas como
tentativasdereflexãosobrenovasestratégiasparasedesenvolvermétodoseteoriasmais
consistentes,quenospossibilitem“instrumentalizar”ahistórialiterária,tendoemvistao
espaçointerdisciplinarabrangentenoqualsesituaessadiscussão.
28
3–AHISTORIOGRAFIALITERÁRIASULINA
3.1–Contribuiçõesparaaconstituiçãododiscursohistoriográficosulino
Até a data da publicação da pesquisa de Guilhermino Cesar, em 1956, pode-se
afirmarqueahistoriografialiteráriadoRioGrande,nosmoldestradicionais,resume-seà
contribuiçãodeJoãoPintodaSilva,queem1924compõeoprimeirograndelevantamento
acerca da produção sulina. No entanto, ao percorremos as ginas dos ensaios críticos
produzidosnoEstadodesdeametadedoséculoXIX,percebemosque,emalgunscasos,o
assunto principalgiraemtornodareflexãosobreaexistência,ounão,deuma literatura
capazdesimbolizaroespíritodaquelasociedade,distinta,emmuitosaspectos,domodelo
nacional.Assimsendo,tomandocomoprincípioqueaescritahistoriográfico-literáriatem
por motivação organizar, pela via da narrativa histórica, autores, obras e instituições
capazesdecomprovaraexistênciadeumpatrimônioliterárioquerepresenteaidentidade
cultural de um país, ou região, torna-se possível localizar nos periódicos dedicados às
questões culturais e literárias alguns textos dispersos que, de alguma forma, procuram
ponderarapresença,aextensão,oslimiteseosméritosdoqueseriaaliteraturasul-rio-
grandense.
Asprimeiraspreocupaçõesemsepensarosdomíniosdaliteraturagaúchapodem
serencontradasnaspáginasdaArcádia,periódicoquecirculounascidadesdeRioGrande
ePelotas,entreosanosde1867e1870,sendodefundamentalimportâncianafixaçãodo
ideário romântico na Província, uma vez que reuniu em torno de si os primeiros
intelectuais dedicados ao exercício da crítica literária.
14
Pelas páginas dessa publicação,
GlodomiroParedesescreve“PoetasePoesia.Critica?”(1869),umdosprimeirosartigos
dispostos a avaliar a situação literária do Rio Grande. Compreendendo que a produção
sulina seencontrava aindaem umestágio “embrionário”, ocrítico avaliaa dependência
comrelaçãoaosmodelosartísticosemvoganocentrodoPaíscomoumfatorquelimitava
aliteraturalocal,constataçãoqueolevaaavaliarqueessequadrosóseriaultrapassadona
medidaemqueosautoresdesvinculassemsuaartedosparâmetrosnacionaisevoltassem
suaatençãoparaoquehaviademaisoriginaleparticularnoscenáriosdesuaterra:
 
14
Veraesse respeito, BAUMGARTEN, CarlosAlexandre.Acrítica literária no Rio Grande do Sul. Do
RomantismoaoModernismo.PortoAlegre:InstitutoEstadualdoLivro/EDIPUCRS,1997.
29
Apoesiario-grandenseaindaestáemestadodefeto,mashá-denascer;
há-de. Isto será quando houver em nossa mocidade escritora, bastante
amoraoqueéseu,paradesprezarosrofegosdosintrincadosversosde
hoje,quepecam,pelamaiorparte,porsuaanchasensaboria
.
E, quando aparecer essa escola, quelindasproduções, que quadros tão
belosnoshão
-
deoferecerasgraçasdenossosoloemtudoferacíssimo.
(PAREDESapudBAUMGARTEN,1997,p.215)
Nocasoemquestão,percebe-sequeasreivindicaçõesdeGlodomiroParedesvêm
embasadas na tese queaponta asdiferenças culturais entre aregião Sule o restante do
Brasil, raciocínio que o faz compreender a literatura praticada no centro do País como
incapazderepresentarohomemeaculturagaúcha,pois“ORioGrandeque,moralmente,
formaumanaçãoàparte,tambémteráumaliteraturapropriamentesua”(PAREDES
apud
BAUMGARTEN,
1997,p.215).Noinfluxodoespíritoromânticodaqueletempo,ocrítico
acabaapontandoocaminhopeloqualosjovensescritoresdeentãopoderiamergueruma
literatura própria, que se mostrasse representativa com relação aos sentimentos mais
íntimosdopovogaúcho:
JámequerparecerquevejoumBernardimRibeiroadescreveravidado
gaúcho, o ser nacional por excelência, tão cheia de lancespoetizáveis.
Antevejo um Antônio Ferreira, revelando, com amável bucolismo, os
nossos costumes tão patriarcais e rudes, quão lhanos e francos. Há-de
haver tudo isso; há-de haver muito mais. (PAREDES apud
BAUMGARTEN,1997,p.215)
No mesmo ano de 1869, ainda pelas ginas da Arcádia, Antônio M. Pinto,
partindodoconceitodequeoprogressoliteráriodeveacompanharodesenvolvimentoda
sociedade–“Associedadesmodernastêmdadograndespassosnacarreiradoprogresso.
(...).Esealiteratura,comodisseAncillon,éaexpressãodasociedade,comopois,(...),
ficarmos imóveis ante o desenvolvimento apresentado nesses últimos tempos” (PINTO
apudBAUMGARTEN,1997,p.217)–,acabaavaliando,em“AliteraturanoRioGrande”,
que o amadurecimento literário e cultural do Estado se daria através da versatilidade
artísticadosjovensescritores–“Navariedade,está,pois,agrandezadopoeta”(PINTO
apud BAUMGARTEN, 1997, p. 218) –, postura que somente alguns poucos autores
daqueletempotinhamconseguidoalcançar:
Carece,pois,anossaliteraturademuitosmelhoramentos.Elaestáinçada
degrandesdefeitos.
Todostemos,oqueéincontestável,bebidoinspiraçõesnamesmafonte.
Jamaisnosabalançamosadeixaravelharotina.
30
Contamos alguns poetas; mas dentre eles só Carlos Ferreira, Taveira
Júnior e Porto Alegre forma exceção, os demais abraçam-se
exclusivamente ao lirismo, quando deveriam entregar-se aos diversos
ramosdapoesia.(PINTOapudBAUMGARTEN,1997,p.218)
 Segundoocrítico,atarefadeaprimoraredesenvolveraliteraturasulinajáhavia
sido iniciada porum intelectualque se destacara justamente pela versatilidade com que
atuaranasesferaspolíticaeliterária,bastandoàsgeraçõesseguintes,portanto,abandonara
inérciaquecaracterizavaaquelemomentoparadarcontinuidadeaoscaminhosindicados:
Échegadaahoradedarcontinuidadeàobraempreendidaporumgrande
artífice.(...)FélixdaCunha,essainteligênciapersonificada,esseatletada
imprensaedatribuna,essehomem–progressoqueemsuafrontesentia
o remoinhar de lavas tão ardentes como as que brotam do crânio de
VictorHugo.FélixdaCunha,repetimos,lançouasemente:anós,pois,a
mocidadedehoje,incumbeoimperiosodeverdetratardaárvorequedela
vingou. O maisdifícil está feito; a base é segura; continuemosa obra.
(PINTOapudBAUMGARTEN,1997,p.217-218)
Partidário desse mesmo entusiasmo com relação ao futuro das letras gaúchas,
BernardoTaveiraJúniorescreve,aindapeloperiódicorio-grandino,doisartigosemquese
pode notar uma visão muito consistente com relação aos pontos fundamentais para a
composição do sistemaliterário sul-rio-grandense. Em “Reflexões sobrea literatura rio-
grandense”(1869),ocríticoressaltaasconstantesenumerosaspublicaçõesdedicadasaos
debates em torno de questões literárias, panorama em que se destacaria a atuação da
Arcádia,nãosópelaqualidadedeseusartigoscomopelaincomum,àépoca,longevidade
de quatro anos atingida. Percebe-se que Taveira Júnior compreende a circulação desses
jornaiscomofatorindispensávelnodesenvolvimentodaliteraturagaúcha,uma vezque,
alémdeinfluenciaremnaformaçãodeumpúblicoleitorfieleparticipativo,essesespaços
de veiculação das idéias acabariam conclamando a juventude de então ao trabalho
intelectualeartístico:
Detodososperiódicosliteráriosoquemaistemperduradoemexistência
éporsemdúvidaaArcádia.Éincontestavelmenteapublicaçãoqueaté
hoje mais serviços tem prestado às nossas letras. A mocidade dos
principaispontosda província,acorrendoaosconvíviosdainteligência,
temvindosemearem suaspáginasosdonsdaprimeiraflorescência.A
Arcádiapoisdeveserhojeconsideradacomoummodestomonumento,
erguido e conservado pelo amor das letras, que começa por inspirar a
nossajuventude. Oseunome ocuparáum lugarhonroso nahistória da
literatura rio-grandense. (TAVEIRA JÚNIOR apud BAUMGARTEN,
1997,p.220)
31
Ao avaliar a relevância dos periódicos dedicados às questões literárias, o crítico
acabarealizandooprimeiroapontamentonoâmbitodahistoriografialiteráriaacercadas
origensdaliteraturagaúcha.SegundoBernardoTaveiraJúnior,caberiaàrevistaOGuaíba,
eàgeraçãodeintelectuaisreunidosemtornodessejornal,oméritode,em1856,daremo
passoinicialdaproduçãoliteráriasul-rio-grandense:
Antesdeprosseguirmos,édejustiçanãoomitirmosquedacurtaporém
gloriosa publicação do Guaíba, na capital, é que devemos contar a
benéfica alvorada da literatura de nossa província. Colaborado por
diversas penas mais ou menos hábeis, aquele periódico foi a pedra
fundamental assentada para o levantamento do edifício de nossas
letras.(TAVEIRAJÚNIORapudBAUMGARTEN,1997,p.220-Grifo
meu.)
Outro ponto tido por indispensável para o desenvolvimento de qualquer sistema
literárioétemadoartigo“MulhereMãe.(DramapeloSr.EudorodeSouza)”,de1870,
texto em que Bernardo Taveira avalia a atividade crítico-literária do Rio Grande como
inexistente–“Acríticaliteráriaaindanãoexisteemnossaprovíncia”(TAVEIRAJÚNIOR
apudBAUMGARTEN,1997,p.223).Noartigoemquestãoépossívelnotaraconsciência
do autor a respeito das bases necessárias para o surgimento de um sistema literário
consistente,quetornariapossívelàprovínciadoSulultrapassaroníveldasmanifestações
dispersasealmejarumaprodução organizadaemtornodecritériostemáticoseestéticos
quelheconferissemunidadeematuridade:
A crítica, pois, é de absoluta necessidade no mundo literário. Ela é a
estrelamaisfielquepossaguiaranaudoprogressoedobomgostono
vastíssimooceanodasletras.Éporelaquesecorrigemastendênciaspara
as falsas teorias em que se descarreia um grande número de belos
talentos; é por ela que a chama da emulação se expande com todo o
brilhantismo,equeasproduçõesdoengenhoaperfeiçoam-seaosmoldes
dobelo,útilehonesto.(...)Letras,semcrítica,jamaispoderãoconstituir
uma literatura. (TAVEIRA JÚNIOR apud BAUMGARTEN, 1997,
p.223)
Emboraoquadrocircunstancialdaépocafossemarcadopelaproduçãoecirculação
deumgrandenúmerode periódicos,BernardoTaveiraconcluipelanecessidadedeuma
atividadecríticamaisespecializadanaanálisedotextoliterário,vistoqueamaiorpartedos
comentários acerca das obras resumir-se-ia em noticiar as publicações e elogiar, sem o
menorembasamentotécnico,ospossíveisméritosequalidadesartísticasdosautores:
32
Ojornalismoque,pelamaiorparte,emseusinfaustosprospectospromete
tratardeassuntosliterários–essejornalismoquenadafazembenefício
dasletras.Quandoentrenóssurgealgumaproduçãoliterária,cifra-seele
emnoticiá-laapenas,ouelogia-la,semcontudodemonstrararazãopor
queelogia.(...)Comoháumjornalistaavaliaroméritodeumdrama,de
uma poesia, de um romance, de uma história ou mesmo de qualquer
produção artística, se ele não conhece a estética de nenhuma dessas
coisas?(TAVEIRAJÚNIORapudBAUMGARTEN,1997,p.224)
Aindaquemaisdirecionadosàcríticaliterária,essestextospublicadosnaspáginas
daArcádiademonstramumapreocupaçãohistoriográficamuitopontual,namedidaemque
evidenciam,nessemomentodasletrasgaúchas,umaatençãosemelhanteàquelaencontrada
nosescritosdosprimeiroshistoriadoresda literaturanacional,quenoinfluxodoideário
românticopropunhama exploraçãodostraçosmaiscaracterísticosdanaturezabrasileira
como argumento para a afirmação de uma autonomia cultural em relação ao conjunto
europeu.Nocasolocal,umavezconstatadaessaincompatibilidadeentrearegiãoSuleo
restantedoPaís, essageraçãoassumecomoposturaa defesadaexploraçãoartísticadas
particularidades da natureza,doscostumes e dofolclorerio-grandense comoo caminho
maisseguroparatornarconsistentealiteraturagaúcha,fazendocomqueessatendênciaao
regionalismo, no âmbito do ensaio crítico tributário das tendências do Romantismo em
voga, fosse compreendida como uma espécie de versão gaúcha para o nacionalismo
brasileiro,comosugereopensamentodeBernardoTaveiraJúnior:
Emnossaslendas,emnossastradições,emnossoscostumes,novalorde
nossosbravos,encontrareisumafonteinexaurívelparaoromance,parao
drama,paraahistória,paraaepopéia.Tudonosfavoreceeanima.Tudo
nosfazentreverlargoshorizontesnoscaminhosdasletras.Avante,pois,
ó mocidade! Caminhar é progredir. (TAVEIRA JÚNIOR apud
BAUMGARTEN,1997,p.221)
No entanto, uma vez que essa preocupação com oregionalismo literário assume
tamanharelevância,sendopercebidacomonecessidadeprimordialparaaconfiguraçãode
uma literatura originale auto-suficiente,o ensaiocríticosulino acabaapresentando uma
duplaperspectivaquantoàquestão.Nocursodosdebates,correntesopostasconcebiama
vinculaçãoàsparticularidadeslocaiscomodiscursodecunhoseparatista,enquantooutros
compreendiam atematização das característicasregionais comosendo acontribuição da
33
ProvínciaparaoprojetodeindependêncialiteráriaeculturaldoPaís,comoindicaCarlos
AlexandreBaumgartenaoinvestigaraorigemdessacomplexadivergência
15
:
Contudo, mais importante do que a originalidade que possa ter, é o
caráterambivalentequemarcaodiscursocríticoqueestánaorigemdo
regionalismo, pois, ao mesmo tempo em que o gaúcho é elevado à
condição de símbolo da nacionalidade brasileira, o estado é concebido
comoumanaçãoàpartee,portanto,merecedordeumaliteraturaqueo
representeeodistinganocontextogeraldopaís.Noprimeirocaso,abre-
se a possibilidade para a concretização de uma literatura regionalista
como mera variante do nacionalismo romântico, uma vez que a
perspectivadominanteéadaintegraçãodoRioGrandedoSulaorestante
doterritóriobrasileiro;nosegundo,peloisolamentodaregião,estimula-
se o desenvolvimento de um regionalismo de cunho separatista.
(BAUMGARTEN,2005,p.140)
ApósaextinçãodaArcádia,oensaiocríticosulinosóviriaaregistraralgumtipode
preocupação com relação à situação literária do Estado, como, por exemplo, discutir o
regionalismo como necessidade para a afirmação da literatura gaúcha, através do
pensamentodeAlcidesMaya,maisespecificamentenostextos“RioGrandeindependente”
e “ORio Grande mental”, ambosreunidosemseu livroAtravés daImprensa, de 1900.
Embora o foco principal seja o debate em torno das questões que envolvem os
pressupostoscientificistas emvogaapartirda segundametade doséculoXIX, ocrítico
acaba recolocando a discussão acerca do regionalismo literário sulino como ponto de
relevância, uma vez que utiliza esse tema como argumento para reivindicar um maior
reconhecimento da intelectualidade gaúcha por parte da crítica e historiografia literária
nacional
16
:
ORioGrande,noBrasil,paraosbrasileiros,éumaespéciedeMacedônia
de atraso ede barbarismo. (...) Eé com um sorriso de finaironia que
ouvem qualquer referência intelectual ao nosso Estado. (...) Nas
classificaçõesliteráriasdepoetaseescritoresnacionaisosrio-grandenses
sãoexcluídosporsistemaouporignorância.Quandoumdelesaparece,
tratam-no sempre com insultuosa superioridade. (...) Ao federalismo
político, definitivamente triunfante,correspondao federalismo literário.
OBrasilnãopodeser,emestética,umadependênciadaCapitalFederal.
(MAYAapudCHAVES,1979,p.20-21)
 
15
 Ver a esse respeito: BAUMGARTEN, Carlos Alexandre. A Província de São Pedro e a história da
literatura. In: _____; VAZ, Artur Emílio Alarcon; CURY, Maria Zilda Ferreira. Literatura em revista (e
jornal):periódicosdoRioGrandedoSuleMinasGerais.BeloHorizonte,2005.p.137-162.
16
Verarespeito:MAYA,Alcides.ORioGrandemental.In:CHAVES,FlavioLoureiro.Oensaioliterário
no Rio Grande do Sul (1868-1960). Teoria, crítica e história literária. Rio de Janeiro: Livros cnicos e
Científicos,1979.
34
 No curso desse raciocínio que intenta comprovar os ritos da produção local,
AlcidesMayaacabaconcebendooqueseriaumadasprimeirastentativasdeorganização
deumcânoneliteráriorio-grandense, seleçãoquetemporprincipalmotivação rebatera
tesedeAdolfoCaminha,queconcluiqueosfatoresclimáticosdaregiãoSulnãoseriam
estimulantesàfloraçãodasidéias:
Certo,nãomereceaimputaçãodeestúpidoedeincapaz,intelectualmente
falando, o Estado que ouviu os versos de Lobo da Costa e Múcio
Teixeira,dePortoAlegreeBernardoTaveiraJúnior,deMenezesParedes
e Felix da Cunha, de Carlos Ferreira e Macedo Júnior, de Fontoura
XaviereAssisBrasil;oEstadoquesehonracomosnomesdeEurydice
Barandas e Delfina, a cega, de Rita Barém e Amália Figueiroa, de
RevocataHeloisaeJulietadeMelloMonteiro,deLucianadeAbreuede
Ana Aurora, de Ibrantina Cardona e Cândida Fortes; que possui a
tradição de oradores e jornalistas como Felipe Nery, Gaspar Martins,
Felix da Cunha, Rocha Gallo, Koseritz, Vasconselos e Castilhos;
publicistaseescritoresdovalordeAssisBrasil,AlcidesLima,Apolinário
Porto Alegre, Hilário Ribeiro, Arthur Rocha, Argymiro Galvão, Victor
Valpiro e muitos outros, para citar ao acaso da memória e ao rápido
deslizar de pena no papel. Entre os Novos destacam-se talentos de
primeira estofa, artistas de um temperamento delicado, dignos de
figuraremaoladodosmelhoresdamodernageraçãoliterárianoscentros
maisadiantadosdopaís.(MAYAapudCHAVES,1979,p.22)
Poucotempoapóscomporaprimeirahistórialiteráriasul-rio-grandense,JoãoPinto
daSilvarevisitaodebateemtornodoregionalismogaúchoapartirdolivroAprovínciade
São Pedro (1930). No texto em questão, mais especificamente no capítulo intitulado
“Separatismopolíticoeregionalismoliterário”,concluiqueAsituação,hoje,éidênticaà
deontem.Oregionalismoliterário,noRioGrande,nãoéórgão,nemnuncaofoi,donosso
tãofalado–maisfaladodoquereal–separatismopolítico”(SILVAapudCHAVES,1979,
p. 80),assertivaquetem porargumento osdiversos momentoshistóricosem queoRio
Grande atuou na defesa da soberania nacional brasileira – Ora, nem a revolução
farroupilha foi rigorosamente separatista, nem a história do Rio Grande, posterior ao
evento,autorizaqualquerreceiodeinfidelidadeaoBrasil”(SILVAapudCHAVES,1979,
p.79).
 Concebendoqueessetraçolocalistaconfiguraria,antesdetudo,umacaracterística
estético-temática particular da produção sulina, e o alguma espécie de tentativa
excludentecomrelaçãoaoquadroliterárionacional,ocríticojustificaquetaltendênciaà
exploraçãoartísticadassingularidadesdaProvínciasedeveàfortepresençadoscostumes
rústicosecampestresnoviverdaspopulações,mesmosassituadasnacapitalenosgrandes
35
centrosdoEstado.Naseqüênciadeseuraciocínio,essecritériodevinculaçãoregionalista
é empregado na identificação de um momento em que a produção sulina se definiria
justamentepelasujeiçãoaessavertenteenquantomotivoliterário,ouseja,noâmbitodo
pensamentohistoriográfico,teríamosumaespéciedeperiodizaçãoemqueaunidadeseria
garantidapelaexploraçãodotraçoregional:
Nãoobstante,atravessouonossoseparatismoliterário–chamemos-lhe
assim–umperíodorelativamentelongodedeclínio,oudesfalecimento.
FoicomRuínasvivaseTapera,doSr.AlcidesMaya,queselheabriu,
enfim, era nova, em 1911. Desde a data do aparecimento desses belos
livros gauchescos, contam-se numerosas obras de sabor e perfume
regionais.De1925paracá,entretanto,équemaisabundantementesetem
mostradoessaliteraturarefletoradostraçosespecíficosdafisionomiario-
grandense.(SILVAapudCHAVES,1979,p.80)
AindaqueasituaçãoliteráriadoRioGrande,diretamentevinculadaàsdiscussões
em torno do regionalismo, configurasse um ponto importante no âmbito da crítica e
historiografialiterária,percebe-sequeosdebatesemtornodessaparticularidadesederam
a partir de manifestações esparsas, como as de Alcides Maya e João Pinto da Silva,
exceção feita aos textos reunidos em torno da Arcádia, que foi a primeira publicação
regularacentralizaraidéiadequeapoetizaçãoacercadaspeculiaridadeslocaisseriade
extremarelevânciaparaasustentaçãodeumsistemaliterárioconsistente.Noentanto,em
meados do século seguinte, essa tarefa de realizar a interpretação histórica da literatura
sulinaficariaacargodarevistaporto-alegrenseProvínciadeSãoPedro
que,sobadireção
deMoisésVellinho,circulouentreosanosde1945e1957,contandocomacolaboraçãode
nomessignificativosdocenáriointelectualbrasileiro
17
.
Aindaquesecaracterizasseporumafocalizaçãomaisampla,abrangendonãosóas
questõesdaliteraturalocalcomotambémseapresentandocomoumespaçodedivulgação
de estudos voltados para questões de história e critica literária nacional eestrangeira, o
periódico é responsável por reconduzir o debate em torno da relevância e das
características do regionalismo gaúcho enquanto fator presente nas letras do Sul. Nesse
sentido, tal questão volta a ser objeto de investigação nos seguintes textos: “Os
fundamentoseconômicos doregionalismo” (1945),de DyonélioMachado; “Apreciações
sobrealiteraturaregionalrio-grandense”(1947),deJoséSalgadoMartins;e“Condições
 
17
Ver a esse respeito: BAUMGARTEN, Carlos Alexandre. A Província de o Pedro e a história da
literatura. In: ____; VAZ, Artur Emílio Alarcon; CURY, Maria Zilda Ferreira. Literatura em revista (e
jornal):periódicosdoRioGrandedoSuleMinasGerais.BeloHorizonte,2005.p.137-162.
36
histórico-sociais da literatura rio-grandense”, escrito por Carlos Dante de Moraes, em
1954.
OartigodeDyonélioMachadoiniciapelaafirmaçãodequeoregionalismogaúcho,
apesardosestudosjárealizados,nãoteriasidoaindacorretamenteinvestigado,oque,em
sua opinião, exigiria que se levassem em consideração as diferentes situações sócio-
econômicasdaProvínciaaolongodostempos–“Paramim,amaiorincompreensãoreside
exatamente no fato de nunca terem sido abordados (...) os seus fatores econômicos, de
nunca haver sido traçada a história econômico-social que se dissimula por de trás da
simples expressão da arte.” (MACHADO, 1945, p. 128) –, o que possibilitaria a
identificaçãodediferentesperspectivasderepresentaçãoliterária.
Deacordocomocrítico,oregionalismoliteráriosulinoapresentariaduasetapas,
sendo uma primeira fase que se poderia denominar “regionalismo clássico”, em que a
literatura poetizaria os quadros naturais e rústicos do viver campesino das populações,
apresentando o tipo humano munido de laço e boleadeiras, sempre pronto a campear e
guerrear; oposta ao que chama de “localismo”, que apresentaria o gaúcho na figura do
trabalhadordocampo,destituídodosaparatosqueocaracterizavam,principalmentedesua
montaria, transformação que é atribuída à modernização das zonas rurais iniciada pela
industrializaçãodapecuária.Emresumo,adivisãopropostaporDionélioMachadoacaba
concebendoesseestágiodaficçãosulina,odadécadadetrinta,comorepresentantedeuma
novatendênciananarrativaliterárianoRioGrande:
Naverdadecava-seumenormesulcoentreasduasatitudesliterárias.Os
clássicos,trazem-nosocamponêsrio-grandenseàmodagaúcha,heróico
efanfarrãomesmonasuamiséria.O“Localismo”(...)apresentaosemi-
proletário rural despido dos seus atributos que se diria próprios e
notáveis:elepercorreoslivrosdosautoresrio-grandensesmodernosapé
edesencantado.Gaúchoapé–éoquecaracterizaessassombrasdesses
farraposdegentedonossoromanceregionalatual.(MACHADO,1954,
p.128)
O artigo de José Salgado Martins, demonstrando a preocupação de investigar a
trajetória e os diferentes momentos do regionalismo na literatura gaúcha, identifica três
estágios particulares na ficção sulina. Segundo seu raciocínio, uma primeira etapa seria
correspondenteàgeraçãodeApolinário PortoAlegre,emqueprevaleceumaconcepção
românticanasdescriçõesecaracterizações,sendoaspersonagensdestituídasdequalquer
conteúdo psicológico – “Nessa fase, a ficção literária era puramente sensorial. Era o
37
romanceoucontodesuperfície,semintençõespsicológicas.”(MARTINS,1947,p.108)–;
seguida por um segundo momento emque, sob oinfluxo do Naturalismo, os escritores
buscariam incorporarà literaturaa geografia dospampas,buscandoum aprofundamento
maisintensonacaracterizaçãodostiposhumanos–“Compreende-se,nessasegundafase,a
necessidade de imprimir um relevo maior ao conteúdo humano, às vivências espirituais
que o perspectiva subjetiva à vida regional” (MARTINS, 1947, p. 108). Nessa
seqüência, uma última fase seria observada a partir da década de trinta, em que as
reivindicações de cunho social se somam aos traços de intensidade psicológica – “Nos
nossosdias,aoladodessapreocupaçãodefixarapsicologiadostipos,começaaouvir-se
umrumordereivindicaçãosocial”(MARTINS,1947,p.108).
Ainda nesse texto, o crítico estabelece uma perspectiva comparatista entre as
produções deAlcidesMayae João SimõesLopes Netoa fimdeperceberqualdosdois
escritores estaria “mais próximo das fontes puras do nosso regionalismo” (MARTINS,
1947,p.106).Assimsendo,mostrandoumposicionamentodiferentedaqueleencontrado
napesquisadeJoãoPintodaSilvaedeoutrosensaístasdaépoca,JoséSalgadoMartins
avaliaquecaberiaaMayaoméritodessaquestão:
Se tomarmos a expressão – literatura regional - como significando o
resumo, através da arte, da paisagem humana e social de uma
determinada região, nas suas peculiaridades mais expressivas, (...),
diríamosque o autorde‘Lendas do Sul’ nãoestámaispróximoque o
escritorde‘Tapera’dasverdadeirasfontesaqueseabeberaainspiração
literária, em busca dos quadros locais. (...) Simões Lopes Neto fez a
transposiçãoparaoplanoliteráriodascenasedoshomensdocampo
comasingelezacomquesedesenhamereacionamnavidareal.Não
tentou interpretá-los. Alcides Maya não era um simples copista de
quadrosetiposhumanos.Noanseiodedecifraçãofilosóficadavida,
pelaintuiçãosutilíssimade seu engenhoartístico, Alcides Mayafoi
muitoalém.(MARTINS,1947,p.106.Grifomeu)

O regionalismo e as diferentes etapas da literatura gaúcha também são a
preocupaçãodeCarlosDantedeMoraes,queprincipiaseuartigoafirmandoqueconsidera
autoresgaúchosoosnascidosnoEstado, masoutros quevindosdefora influíram
com suas idéias paraamaturação das letras do Sul –“Como excluir, porexemplo, um
Carlos von Koseritz, alemão naturalizado brasileiro? Ele se assenhoreou da língua
nacional, fundou jornais, adestrou-se em mais de um nero romântico e foi uma das
figurasdo‘ParthenonLiterário’”(MORAES,1954,p.7).Nessesentido,oteóricoainda
entende que uma história literária sulina deveria compreender ainda aqueles que
38
escreveram obras de ‘expressão’ rio-grandense, pouco importando a sua proveniência
natal” (MORAES, 1954, p. 7), o que sugere que, na sua concepção, a literatura local
apresentaria características própriasque tornariam possível suadistinção comrelaçãoàs
demaisobrasescritasemoutroscentrosdoPaís.
Ao tomar o critério do regionalismo como ponto norteador de sua investigação
acerca daliteratura gaúcha,Carlos Dantede Moraesafirma queQuemabre ociclodo
regionalismoéoseumaisacabado,maisperfeitorepresentante:JoãoSimõesLopesNeto”
(MORAES,1954,p.10),umavezque,emsuaavaliação,ageraçãoliteráriaemtornodo
grupo do Partenon não teria feito mais do que subjugar sua arte aos parâmetros do
Romantismonacional,utilizandoogaúchoeostemaslocaiscomopretextonacriaçãode
uma literatura “sem nenhuma raiz local e que nada diz, no seu verbalismo frouxo, dos
verdadeirossentimentoshumanos”(MORAES,1954,p.9).
AssimcomoprocedeuJoséSalgadoMartins,CarlosDantedeMoraestambémse
detémnaanálisecomparativaentreaproduçãoliteráriadeAlcidesMayaeSimõesLopes
Neto. No entanto, demonstrando um posicionamento contrário ao conterrâneo, mas
condizenteàmaiorpartedacríticaehistoriografialiteráriasulinaque,àépoca,mostrava-
seempenhadaemresgataraobradoescritorpelotenseatravésdareediçãodetextoseda
publicação de inéditos pelas páginas da própria Província de São Pedro, o crítico
reconhecemaiornaturalidadenaarteliteráriadoautordeContosgauchescos:
O regionalismo de Simões Lopes não é governado por nenhuma
tendênciasaudosistaouregressiva,comoodeAlcidesMaya.Aosolhos
deste, que tudo vêem em translação no tempo, o passado se abate, se
desmorona,sobainjunçãodefatoresimplacáveis.Asuanostalgia,como
adeoutrosregionalistasquelheseguiram,égenuinamenteromântica:ele
desejaria,nofundo,queopassado,tãoformoso,retornasse...Simõesnos
faladeumRio Grandeantigo,emcujoscamposnão haviacercasnem
tapumes, (...). Mas a superioridade é que, guiado unicamente pela
intuição artística, o narrador faz presentes, atuais, vivos, os rincões
distantes, sem que possamos perceber qualquer segunda intenção de
sociólogoouensaísta.(MORAES,1954,p.11)
Aoconsideraraliteraturaproduzidaapartirdadécadadetrinta,ocríticoavaliaque
um outro tipo de regionalismo caracteriza o modernismo literário do Sul, diferente dos
moldestradicionaisnamedidaemqueosescritoresseaproximamdosdiversossetoresda
sociedadegaúcha,buscandotraduzi-losapartirdesuavisãoparticular–“Apaisagemque
nelespredominanãoéaruraloucampesinadosregionalistas,masaurbana,comseus
39
tipos e cenários” (MORAES, 1954, p. 16). Levando em consideração essa mudança de
perspectiva,aliadaàcomplexidadeatingidapelosprocessosdecriaçãonoâmbitodaarte
literária, Carlos Dante de Moraes percebe como finalizado o ciclo mais particular da
literaturagaúcha:
Estáencerradoocicloregionalista?Setivermosemmenteogêneronos
seusmoldesestritosoutípicos,somosobrigadosaconcluirquesim.(...)
A ficção oriunda do regionalismo, esta assumiu um ritmo francamente
progressivo. Aí não o quadro social se ampliou bastante, como as
intenções e os processos literários adquiriram uma complexidade
incompatívelcomogêneroprimitivo.(MORAES,1954,p.16-17)
De modo geral, ainda que a historiografia literária sul-rio-grandense apresente
como único exemplar, até a publicação da pesquisa de Guilhermino Cesar, o estudo
realizado por João Pinto da Silva, pode-se perceber que a preocupação com relação à
abrangência, aos ritos, e à delineação dos traços mais caracterizadores da literatura
gaúchasãomotivosdereflexãonoâmbitodoensaiocríticosulino.
Aoacompanharmosopercursodessesdebatesacercadasituação literáriadoRio
Grande,diretamentevinculadoàsdiscussõesemtornodoregionalismo,percebe-secomo
defundamentalimportânciaaatuaçãodoperiódicoArcádia,responsávelporcentralizaras
primeiras avaliações com relação ao momento literário sulino, que, sob inspiração dos
ideaisromânticos,reivindicavaanecessidadedapoetizaçãoacercadassingularidadesda
cultura regional como fator de extrema importância para a constituição de um sistema
literárioquerevelasse aidentidadeda região.Damesmaforma, destaca-seaatuaçãoda
revista porto-alegrense Província de São Pedro que, dando seqüência ao intento da
precursorario-grandina,bemcomoàsidéiasencontradasnasmanifestaçõesesparsasaqui
evidenciadas, possibilitou novas avaliações históricas da literatura sulina, ainda que a
uniformidadedepensamento,principalmenteemtornodoconceitoderegionalismo, não
configurasseamarcadessapublicação.
Nãoobstanteasdivergênciaseconfluênciasdospensamentoseavaliaçõesacerca
dosdiferentesmomentosdasletrasdoSul,essestextos,bemcomoaHistórialiteráriado
Rio Grande do Sul, constituem as bases sob as quais Guilhermino Cesar irá, em 1956,
fundamentarsuapesquisa.Assim,umavezdelineadooaporteoferecidopelosperiódicos,
vejamosacontribuiçãodeJoãoPintodaSilva.
40
3.2–AHistórialiteráriadoRioGrandedoSul,deJoãoPintodaSilva
Noscapítulosiniciaisdesuahistórialiterária,JoãoPintodaSilvapropõedefiniras
particularidades culturais que alicerçaram a produção intelectual sul-rio-grandense. Para
tal, realiza uma espécie de mapeamento histórico acerca das peculiaridades relativas ao
processo de formaçãodo RioGrande, focalizandoquestões referentes àcolonização, ao
isolamentogeográficocomrelaçãoaorestantedoPaís,alémdadefiniçãodotipohumanoe
seus costumes. Na verdade, mais do que simplesmente registrar essas questões, o
historiadorprocuradelinearosprincipaisaspectosquedefinemaregiãoeohomemdosul.
Umapreocupaçãomuitoevidentedoescritoréadiferenciaçãoentreaculturasul-
rio-grandenseeaplatina,oquedemonstrasuapretensãodecircunscreveroRioGrande,no
queserefereàproduçãoculturaleliterária,noâmbitomaiordosistemabrasileiro.Nesse
aspecto, ainda que se constitua a partir de uma abrangência regional, a escrita
historiográficadeJoãoPintodaSilvapartilhaumtraçocomumàsdemaistentativasdesse
cunho, tendo em vista o caráter nacional que tradicionalmente governa a construção de
estudoshistoriográfico-literários.
Nodecorrerdeseuraciocínio,baseando-seemestudosdeviajantesfrancesescomo
Saint-HilaireeArsèneIsabelle,queemsuasandançasproduziramrelatos,muitasvezesa
partir de pressupostos naturalistas, a respeito das particularidades das regiões sul-
continentinas, João Pinto da Silva estabelece contrapontos entre os dois povos. Nessa
medida, um ponto diferenciador seria revelado a partir da consideração das misturas
étnicas que se encontram na base da colonização das regiões, responsáveis diretas pela
delineaçãodocaráterdoshabitantes,oque,segundooescritor,configuranosbrasileiros
traçosdeheroísmo,bravuraelealdade,efazdosvizinhosuruguaioseargentinosbárbaros
guerrilheirosmotivadospelosimplessabordasbatalhas:
Mas, apesar da quase identidade do meio físico e do meio moral, mal
grado os pontos flagrantes de contactos psicológicos, que quase os
irmanam,entreogaúchorio-grandenseeoplatinoencontram-se,quanto
ao caráter, dessemelhanças indisfarçáveis. O do Rio da Prata foi,
fundamentalmente,peleador,quixotesco.
41
Oqueocaracterizoufoi“eldesprecioteatralyheroicodelavida”.Lutou,
muitasvez,pelosimplesprazerdelutar.(...)
Entrenós,nãofoibemissooqueseverificou.Onossogaúchoera,não
háduvida,destemidoecavalheiresco(...)Esseequilíbriorelativo,éclaro,
nósoadquirimos,porherança,doportuguês.(SILVA,1924,p.19-20)
No mapeamento das bases culturais do Rio Grande, o historiador analisa as
condiçõessócio-históricasdaépocadepovoamento,raciocínioquetemcomomotivação
responder à indagação: “Pode acaso região isolada e dilacerada pelas guerras, como a
nossa era, sem escolas e sem trabalho organizado, com diminuta população, apresentar
literatura apreciável?” (SILVA, 1924, p. 27). Nesse sentido, ele avalia o culo XVIII
como nulo no que se refere a qualquer incentivo intelectual, visto que o isolamento
geográfico com relação aos grandes centros, as constantes disputas territoriais, o baixo
nível intelectual dos primeiros colonizadores e dos povos que habitavam a região, bem
comoodescasodoImpérioparacomessasterras,configuravamumquadrocircunstancial
queemnadafavoreciaamaturaçãodasidéias,situaçãoquesósemodificariaapartirdo
centenárioseguinte.
Contudo,essamesmaatmosferadeguerraseconflitosarmados,tidaporimprópria
àfloraçãointelectual,étomadacomopontoinicialparaumanovadúvidadohistoriador,
que, avaliando as temáticas do folclore gaúcho, estranha que o lirismo seja um traço
dominantesobreaépica–Surpreende,issosim,emnossoresumidopatrimônioliterário,
aausênciadeespíritoépico,oqualpoderiasetraduzir,fragmentariamente,aomenos,em
trovasavulsas.”(SILVA,1924,p.36).Segundooautor,talexplicaçãoremetenovamente
àsinfluênciasdacolonização,vistoqueessatendênciaaoextravasamentolíricoseriauma
herançaportuguesa–“Nesseparticular,nãopoderíamosnegarnuncaquedescendemosde
portugueses, dos quais afirma Cervantes, com ironia, serem susceptíveis de morrer de
amor”(SILVA,1924,p.38),argumentocomprovadoapartirdeumnovocontrapontocom
osvizinhosdecolonizaçãoespanhola,que,apesardetambémpartilharemsocialmentedo
mesmoclimabelicoso,registrampoemasemqueatendênciaaodramaeaoépicoseriaa
marcaconstante,comoporexemplo,noMartínFierro,deJoséHernández.
Comosepercebe,critérioscomoosdeinfluênciadaraçaedomeiootomados
comofatorespreponderantesnadefiniçãoculturaldospovos,denunciandoumafiliaçãode
raciocínioquesebaseiaempressupostosdeterministasdifundidosporHipólitoTaineno
cursodoséculoXIX,equesedifundiramcomoinstrumentosdeinvestigaçãoliteráriano
BrasilapartirdeestudoscomoosdeSílvioRomero.
42
Amesmafundamentaçãoteóricaquedáaohistoriadorsuporteparaainvestigação
dasbasesculturaisacabanorteandoaanálisedaproduçãoliteráriasulina,tendoemvistao
conceito de literatura com que trabalha o autor. Acompanhando os mesmos moldes
empregadosporSílvioRomeronaescritadeHistóriadaliteraturabrasileira,JoãoPinto
daSilvadelimitacomosendoliteraturatodaproduçãoculturalescritanoRioGrandedo
Sul, fator quedá margemparaque textos de história geral,crítica literáriae jornalismo
sejamincluídosemseutrabalho.
Segundo o historiador, o ponto inicial da literatura gaúcha ficaria sob
responsabilidadedeDelfinaBenignada Cunha, comapublicação doprimeiro livrorio-
grandense, Poesias oferecidas às senhoras rio-grandenses, em 1834, no qual apresenta
umalíricamarcadapelaexploraçãodetemáticasligadasaosofrimentoeàamarguracom
relaçãoàvida,estiloqueofazestabelecerumaóticacomparativaentreapoetisadeSão
JosédoNorteeafrancesaDesbordesValmore.Aindacomrelaçãoaesseperíodoinicial
dasletrassulinas,JoãoPintodaSilvaressaltaaimportânciadeAraújoPortoAlegreque,
alémdeterreconhecidaaplasticidadedesuapoesia,–“Naartedoverso,oseufortesãoas
descrições, cheias de movimento, pródigas de prismas, em prestigiosas e largas
perspectivas”(SILVA,1927,p.47)–,éenaltecidopelainfluênciaqueexerceusobreseus
contemporâneosesucessores,sendo,porisso,apontadocomoumanunciadordaestética
romântica:
Elefoi,sobretudo,oprecursordoRomantismonoBrasil,como,noutras
palavras, o reconheceram e proclamaram Ferdinand Wolf e Sílvio
Romero.Foimaisainda:foioiniciadordograndemovimentoliteráriode
que Gonçalves Dias ficou sendo o mais alto e luminoso expoente.
(SILVA,1924,p.44)
Ao observar a relevância de Araújo Porto Alegre na crítica especializada, e sua
participação no âmbito da estética dominante, o historiador, ao mesmo tempo em que
sinaliza paraaimportânciado escritorno desenvolvimento daliteratura sulina,sugerea
inserçãodoEstadonocontextomaiordasletrasnacionais,inclusãoquevemcompletarsua
preocupaçãoinicialdediferenciarasmanifestaçõesculturaisrio-grandensesdasplatinas.
Outropontoenfatizadocomodeextremaimportânciaparaaafirmaçãodasletras
sul-rio-grandensesfica acargodasatividadesreunidasem tornodaSociedade Partenon
Literário. No que se refere ao incentivo intelectual, essa instituição é reconhecida por
possibilitaracomunhãodeumgrupodepensadoresempenhadosemtornodeummesmo
43
ideal,queeradifundireconsolidar,sobabandeiraestéticadoRomantismo,aliteraturano
Estado.AlémdaimportânciadaRevistaMensal,veículodedivulgaçãoliteráriaconstantee
regular que não só estimulou as publicações como também a formação de um público
leitor,ogrupodoPartenonéapontadopelohistoriadorcomoummarconaconsolidação
do sistema literário gaúcho, fator responsável porcolocar a região no mesmo nível dos
demais centrosintelectuaisdo País:“OPartenonsimboliza,ao mesmotempo,a fasede
maisintensolaborespiritualdoRioGrandedoSuleamaisbelaenumerosaconjugaçãode
esforçosliteráriosdequememória,entrenós,senãoemtodoosuldoBrasil,doRiode
Janeiroparabaixo.”(SILVA,1924,p.57).
Pornãoseapresentarcomoumaorganizaçãoexclusivamenteliterária,JoãoPinto
atenta para a importância social da agremiação, que também se empenhava em debater
causaspolíticas,comoascampanhasabolicionistaerepublicana,emincentivarafundação
debibliotecaspúblicas,empromoverosentãoconhecidossarauspoéticos,emestimulara
encenaçãodepeçasteatrais,dentreoutrasatitudesqueserviramparadesenvolveracultura
epopularizaraliteraturajuntoàsociedadegaúcha.
No curso de sua investigação, o historiador se detém no exame da produção
daqueles quereconhececomonomesde maiorrelevâncialigados à Sociedade Partenon
Literário, analisando-os separadamenteem subcapítulos. Dessemodo,a obra poética de
Lobo da Costa tem ressaltada sua capacidade de penetração junto às camadas mais
popularesdasociedade,façanhaatribuídaàincorporaçãodetraçosdofolcloregaúchoem
seus versos, bem comopelo seu estilo casimiriano: “Lobo da Costa é, integralmente, o
interprete inspirado do pensamento e dos sentimentos do povo, em face do Amor e do
Infortúnio” (SILVA, 1924, p. 58). Outro nome importante do período seria Múcio
Teixeira,reconhecidoporumaescritapoéticamaisvinculadaaosacontecimentosdeseu
tempoeaosvaloresregionais,exibindotraçosestilísticosqueremetemàpoéticadeCastro
Alves,estiloqueo teriapopularizadonãosó emnívelregionalcomonacionalmente,na
medida em que foi objeto de estudos críticos desenvolvidos por teóricos como Sílvio
RomeroeJoséVeríssimo.
Seguindoumaperspectivacronológica,oestudiosofocalizaoperíododetransição
entre oregimemonárquicoea implantaçãodo republicano, identificandoessemomento
comoconflituosono quese refereaosdebatesideológicos,registrandoasdisputasentre
liberais republicanos e conservadores monarquistas, que utilizavam o meio jornalístico
44
como veículo de difusão de seus ideais. Entretanto, dentro desse mesmo capítulo, o
historiador realiza um salto temporal que remete ao início do século XX, apontando o
momentocomoiníciodeumafasepromissoraparaaliteratura,registrandooaparecimento
deautorescomoMarceloGamaeZeferinoBrasil,nocampodalírica,AlcidesMayano
conto e romance, Pinto da Rocha no teatro, Sebastião Leão e Coruja Neto no que diz
respeitoaosestudoshistóricos,bemcomoPaulinoAzurenhaenquantocronista.
Quanto a esse fato, percebe-se que o critério adotado na divisão é muito mais
histórico do que literário, visto que João Pinto da Silva acaba se valendo de recortes
temporaisnaorganizaçãodeseucapítulo,umavezqueregistraaagitaçãointelectualdo
período da Independência e, em seguida, agrupa autores dedicados à escrita de gêneros
diversificados sob a justificativa de pertencerem a um mesmo tempo. Em seqüência, o
autor organiza esse mesmo quinto capítulo a partir de uma subdivisão em que propõe
analisarseparadamenteaproduçãodeRenatodaCunha,ZeferinoBrasil,MarceloGama,
Pedro Velho e Fontoura Xavier, aproveitando ensaios de crítica literária produzidos
anteriormentecomoenxertoparasuahistórialiterária.
O regionalismo na literatura sul-rio-grandense também constitui parâmetro de
investigaçãoparaohistoriadorque,aoavaliararelevânciadessetraçotemático,percebe-o
como uma releitura do espírito nacionalista que se encontra no cerne do Romantismo
brasileiro – “O regionalismo literário, (...) nasceu da difusão e fragmentação do
nacionalismodeAraújoPortoAlegreeGonçalvesDias.Aoíndio,comosímbologeraldo
Brasil,sucederam,naturalmente,figuraslocais,representativasdediferenteszonas,como
osertanejo,opraiano,ogaúcho...”(SILVA,1924,p.143).
O historiador identifica o verso como instrumento inicial de expressão do
regionalismogaúcho,quesefirmariacomofortetemáticaliteráriaapartirdostrabalhos
reunidosemtornodogrupoPartenonLiterário,atravésdas páginasescritas porautores
comoApolinárioPortoAlegre,MúcioTeixeiraeBernardoTaveiraJúnior,aindaquelhes
faltassenaturalidade,concordânciaentreoassuntoeamaneiradesenti-loeinterpretá-lo”
(SILVA,1924,p.144).Noentanto,JoãoPintoafirmaquefoipelaviadanarrativaqueo
regionalismoalcançousuamaturidade,sendoApolinário,AlcidesMayaeJoãoSimõesde
LopesNetoseusmaiorescultores.
OautordePaisagens,alémdeserapontadocomooprecursordavertenteregional
naliteraturasulina,ereconhecidopelainfluênciaqueexerceusobreseuscontemporâneos,
45
temressaltadassuasdiversificadaspesquisasarespeitodaculturalocal,estudosnosquais
investiga desde aspectos da história do Estado até questões referentes aos dialetos
tipicamentegaúchos.NoqueserefereàobracompletadolídermentaldoPartenon,João
PintodaSilvalamentanãoserpossívelumaanálisemaisprofunda,vistoquemuitodoque
Apolinário produziu nãoteria sidoorganizado atéentão,encontrando-se muitos escritos
dispersosnosperiódicos.
Quanto aAlcides Maya,ohistoriador confrontaasobras Ruínasvivase Tapera,
caracterizandoaprimeiracomomonótonaeartificial,namedidaemquesuatemáticase
mostraarraigadaaosvalorespassadistasdostemposdepeleia–“Osefeitosdoconjuntodo
volume nem sempre satisfazem. Sente-se, a espaços, nos capítulos, qualquer coisa de
artificial; certos conceitos soam falso.” (SILVA, 1924, p. 157) –, enquanto a segunda
apresentaria maior fidelidade àscores e hábitos do homem do Pampa. Outro mérito do
autor seria introduzir com Tapera a temática do deslocamento e desenraizamento do
gaúchocomrelaçãoàsuaterra,estratégiaempregadacomoumaformadeescapismo,ou
um recolhimento a um tempo passado ideal que o advento da modernidade não
propiciaria.
Noqueserefereàtemáticaregional,aobradeJoãoSimõesLopesNetoévistaem
pédeigualdadecomrelaçãoàproduçãoalcidiana,eatécomvantagensnoqueconcerneà
receptividade de seus escritos, fato que é atribuído à fidelidade e naturalidade da
linguagem,doshábitosecostumespopularesretratados:“ogauchismodeSimõesLopes
levasobreodoSr.AlcidesMayaavantageminapreciáveldesermaiscil,maissingelo,
maisespontâneo.Está,pelomenos,bemmaispróximodopovo,maisemharmoniacom
suas origens.” (SILVA, 1924, p. 165). Ao estabelecer paralelo entre as produções de
AlcidesMaya,tidoatéentãocomoograndenomedoregionalismosul-rio-grandense,eo
“ignorado” autor de Casos do Romualdo, que sópassaria a ganhar maior relevância no
âmbito da crítica literária após o Modernismo, João Pinto da Silva se mostra inovador.
Nessesentido,escritorpelotenseaindaéexaltadopeloméritodeterconseguidorecolhere
imortalizar em Lendas do Sul os mitos e as narrativas do folclore gaúcho que, por
pertencerem à tradição oral, teriam como destino certo seu enfraquecimento, e o
conseqüenteesquecimento:
46
GraçasaSimõesLopes,saíramassim,daexistênciaprecáriaeamorfade
confusas tradições orais, para se incorporar, definitivamente, ao nosso
acervo espiritual, em relevo perene, algumas maravilhosas historietas,
criações nossa, ou por nós adaptadas ao nosso meio físico e às
preferênciasmentaisquenoscaracterizam.(SILVA,1924,p.167)
Note-seque, no casodos motivosregionais,o historiador acaba abrindoodo
critério histórico-temporal que norteia sua escrita historiográfica, visto que reúne no
mesmo capítulo autores de épocas e escolas diferentes, sob a mesma bandeira do
regionalismo, seleção que obedece a uma perspectiva de ordem temática. Ainda nesse
sentido,amesmaincoerênciapodesernotadanoquedizrespeitoaocapítulodedicadoao
teatrogaúcho,tópicoqueseconstituiapartirdaperspectivadegênero.Nesse,emespecial,
oautorreconheceasencenaçõesdodramaedacomédiacomodeinsignificanterelevância
nocenárioculturallocal,tantoquantitativacomoqualitativamente,vistoqueopoucoque
seescreveueencenouficoulimitadoàsinfluênciasemotivaçõesdogrupodoPartenon,
extinguindo-se,portanto,juntamentecomainstituição.
No espaço dedicado ao estudo acerca da relevância da estética parnasiana no
contextoliteráriosulino,ohistoriadorprocuradiscutirasinfluênciasdomovimentoatravés
daanálisedasproduçõesdeVictorSilva,BarbosaNetoeLealdeSouza,reaproveitando
paraaconstruçãodessecapítuloensaioscríticosanteriormentepublicados
18
.Aoestudara
produção deVictor Silva, ohistoriador define opoetacomoo grande nomeno quediz
respeitoàrenovaçãoestética,classificando-ocomodivulgadorximodoParnasianismo
nasletrasdoSuleexaltando-opelainfluênciaexercida.
No entanto, apesar dessa relevância, João Pinto da Silva avalia com certa
resistênciaadifusãodessesideaisnoplanodapoesiagaúchaebrasileira.Tomandocomo
parâmetroostraçosestilísticosdoParnasianismofrancês,oautorchegaàconclusãodeque
aestética queimortalizouOlavo Bilacnãose apresentou deforma purae exclusiva em
nossa lírica, pois “O Parnasianismo, tal como ele foi e é compreendido e aplicado em
França,nãoconseguiununcaestabelecernaliteraturabrasileiraoquesepoderiachamarde
sucursal, (...), dos poetas nacionais que se dizem parnasianos, nenhum o é de todo.”
(SILVA, 1924, p. 186-187). Quanto ao caso regional, a emergência de tal estilo ainda
encontraria a dificuldade de tentar penetrar por aqui em época imprópria, quando os
 
18
OsensaiossobreVictorSilvaeLealdeSouzaforampublicadosemVultosdomeucaminho(1918),eode
BarbosaNetonosperiódicosdaépoca.
47
escritos dos grandes nomes do movimento simbolista já disputavam a preferência dos
leitores:
VictorSilva,comosseussonetos,geralmentemagníficos,lançou,então,
as sementes do Parnasianismo puro, ou quase puro, sem grande êxito,
aliás,porisso,alémdomais,asemeadurasefezemépocaimprópria,isto
é,quandojáosartistashieráticosdosPoémesantiquesedeLesTrophées
começavam, por toda a parte, a ser substituídos, nas preferências da
mocidade,porMallarmé,Verlaine,Moréas,Rimbaud.(SILVA,1924,p.
184)
OutropoetaresponsávelpeladifusãodoParnasianismonoSulteriasidoBarbosa
Neto,lembradopelohistoriadorpelapublicaçãodosescritosColunaseMolduraseVisões,
este uma edição póstuma que contém um prefácio e um estudo crítico do próprio João
Pinto daSilva. Enquantoo primeiro é visto comoobra demenor valor –“não éraroo
contraste entre um começo esplêndido e um desfecho quase sem brilho, (...), perdia-se
dentrodostemas,comerrosinexplicáveisdevisãoesintaxe”(SILVA,1924,p.200)–,a
segundapublicaçãotemressaltadaatécnicadoentrecruzamentodefigurasmitológicase
bíblicas,nomelhorestiloparnasiano,comaspaisagenselendasheróicasdoRioGrande.
Em seguida,comrelação aLeal de Souza, seulivro Bosque sagrado teriapor mérito a
complexidadedesuacomposição,na medidaemqueocrítico-historiadorconseguenele
reconhecer três momentos distintos, sendo um início de puro objetivismo parnasiano,
seguido de uma etapa de lírica mais confessional, e um fechamento mais voltado aos
aspectosregionais.
De maneira geral, o modo como o historiador organiza suas análises literárias
obedece a uma sistematização, visto que para cadaunidade identificada, seja governada
pelo critério histórico e/ou estético, um reduzido número de escritores é tomado como
representante máximo da literatura rio-grandense. Em seguida, tais produções são
examinadas isoladamente, tendo considerados aspectos relevantes quanto à exploração
temática e estilística. Tal posicionamento, em parte, pode ser justificado pelo
reaproveitamentodemuitosestudoscríticos,concebidosanteriormente,nacomposiçãode
suahistórialiterária.Nessesentido,atravésdaanálisedessestextos,podemosdelineara
perspectivaanalíticaempregadaporJoãoPintodaSilvaacercadasinvestigaçõesliterárias.
Naabordagemcríticaquerealizaacercadaobradosescritoresgaúchos,ocrítico-
historiador habitualmente procura estabelecer uma perspectiva comparatista entre as
produçõessulinaseosmaioresexpoentesdocânonenacionaleocidental,comopudemos
48
perceber anteriormente noque tange às obras de Loboda Costa e Múcio Teixeira, que
tiveram seus escritos alçados ao mesmo nível de Casimiro de Abreu e Castro Alves,
respectivamente,tendoemvistaaspectosestilísticosdessascomposições.
Apartirdessaóticacomparativa,maisdoqueressaltaroméritodospoetassulinos,
ohistoriadorestáafirmandoqueasletrasgaúchassempresemostraramparticipativascom
relaçãoàsmaisdiversascorrentestemáticaseestéticasquenorteiamaliteraturanacional,o
que,portanto,induzàconclusãodequealiteraturagaúchaé,antesdetudo,brasileira.Do
mesmo modo, através das aproximações estilísticas entre os rio-grandenses e os poetas
estrangeiros, o historiador eleva a produção sulina ao nível dos expoentes máximos da
lírica ocidental, como podemos perceber na apreciação que faz da obra de Fontoura
Xavier:
Verifica-senosseuspoemas,facilmente,passandoportodasasdiversas
nuanças em que eles se decompunham então, a coexistência de dois
critérios artísticos antagônicos:- a universalidadetitânica, o socialismo
sentimental e dramático de Victor Hugo, aflorando de grandes temas
cíclicos, e o luminoso subjetivismo emocional que com Charles
Baudelaire reintegrou a poesia, definitivamente, nos seus legítimos
domínios.(SILVA,1924,p.86)
Outro aspecto freqüente nas investigações literárias fica a cargo da perspectiva
biográfico-psicológica que acompanha o exame das produções dos escritores. No
desenvolvimento de suas análises, as notas biográficas ocupam constantemente a
apreciação crítica, fazendo com que, em muitos casos, elementos da vida diária sejam
percebidoscomofatoresqueinfluemegovernamacriaçãoliterária,como,porexemplo,
naapreciaçãoquefazdapoesiadeMarceloGama:
MarceloGamapertenciaaumaespéciedeirregulares,dedesorbitados:a
dospoetasboêmios.(...)Osímpetosderebeldia,nesseanômalo,nãose
limitavam,apenas,àvidamental,àsuavidadeartista(..).Osseusversos,
ondeseesboçam,nãoraro, comovidospedaçosdeautobiografia,numa
franquezarudedeconfissão,osseusversos,namaioria,constituemum
verdadeiro j’accuse, contra a organização atual da sociedade. (SILVA,
1924,p.113-114)
Em alguns casos, a obra poética é tomada como instrumento capaz de revelar a
almamaisprofundadosescritores,sendocompreendidacomodocumentoconfessionalde
seusdesassossegos,posturaquecaracterizaumametodologiaanalíticaqueseaproximade
uma crítica de feitio psicológico. Podemos perceber abordagens dessa natureza, por
49
exemplo,nasanálisesdapoesiadeMúcioTeixeira,queseriareveladoradonarcisismodo
escritor–“oSr.Múcioencontrasempreoportunidadeparaentraremcena,exaltandosua
condutae seutalentopolimórfico(...).EsseéotraçodistintivodocaráterdoSr.Múcio
Teixeira:ocultoininterruptodoseupróprioeu(...)”(SILVA,1924,p.73)–,bemcomono
queserefereàlíricadeZeferinoBrasil,emqueseriapossívelperceber,nastrêspartesque
compõemVovómusa,algunspoemasreveladoresdeseucaráter–“Entretanto,malgradoa
suasubordinaçãoconscienteàinfluênciadaViaLáctea,deBilac,éasegundaaquemais
fielmenteparecerefletiraalmadopoeta.(...)Vedecomoeleprópriosedefinenosoneto
‘Falandoaumartista’”(SILVA,1924,p.103-104).
Noqueserefereaoexercíciodacríticaliterária,cabedestacarocapítulodedicadoa
historiaressaatividadenoâmbitodasletrasgaúchas.Nesseaspecto,JoãoPintodaSilva
apontaApolinárioPortoAlegreeAlcidesMayacomoosgrandescríticosliteráriosdoRio
Grande. Ainda que inicialmente se limite a registrar a rara predileção dos intelectuais
gaúchospelaanáliseliterária,ecomentaroreconhecimentoalcançadoporApolináriocom
seuJosédeAlencar-EstudoBiográfico,ohistoriadoracabadirigindosuaatençãoparaa
críticapraticadapeloautordeAtravésdaImprensa.
Ao enfocar Machado de Assis - Algumas notas sobre o humor, principal ensaio
críticodeMaya,JoãoPintodaSilvaestabeleceumdebatemetacrítico,namedidaemque
busca confrontar alguns dos principais posicionamentos teóricos que dão sustentação à
críticasobreoautordeDomcasmurro.Maisespecificamente,ohistoriadorprocurarebater
as críticas queo analista daobra machadiana dirigea Taineno decorrer deseuestudo,
tendoemvistaquecontrariarosposicionamentosteóricosdeterministasfoiumaconstante
naatividadeintelectualdohistoriador.
Nocasoemquestão,JoãoPintodaSilvaafirmaqueMayahaveriadistorcidoalguns
posicionamentosacercadacaracterísticadohumouremfavordesuaspretensõesanalíticas
– “Violentando a lógica, o escritorconterrâneo é quem quer dar a certas expressões de
Taine,àsquesereferemaohumour, umsentidoarbitrário, umaelasticidadedesmedida,
que elas não podem ter.” (SILVA, 1924, p.226). Segundo ohistoriador, Alcides Maya
equivocadamente interpreta que o teórico francês configura o humour como um traço
intrínsecoaospovosbritânicos,equenãoseriapassíveldemanifestaçãoemoutrasregiões
eculturas,quando,segundoJoãoPintodaSilva,ainterpretaçãocorretaéadequeTaine,
50
emseuspostulados,apesardeidentificartalcaracterísticacomoprópriaaosingleses,em
momentoalgumafirmaserimpossívelsuamanifestaçãoemoutrosmeios:
A toda, ou quase toda a cerrada argumentação do Sr. Alcides Maya,
quandolongamenterefuta,nesteponto,adefiniçãodohumor,dadapor
Taine, escasseia fundamento, base sólida, enfim. Porque o ilustre
prosador patrício a escreveu sob o efeito de involuntária confusão,
deplorávelequivoco,exclusivamentedasuaparte.(SILVA,1924,p.231)
Aforaostópicosdedicadosaosestudosdetextosdehistoriografiaejornalismo,que
hoje poucointeressamao estudoda literatura, João Pinto daSilva pressupõe,no último
capítulodeHistórialiteráriadoRioGrandedoSul,umfuturopromissorparaaliteratura
sulina,raciocínioqueconsideraasrelaçõesentreoprogressoeconômicodeumaregiãoe
sua evolução cultural. Tomando como exemplo grandes centros econômicos, como os
Estados Unidos e a cidade de São Paulo, afirma que há um nexo inquebrável entre o
progresso material e a produção literária, em particular, e artística, em geral” (SILVA,
1924,p.249),umavezquepercebeobem-estareconômicocomoumfatorpreponderante
nacriaçãodeumambientepropícioàsmanifestaçõesartísticas.
Mesmotomandoocuidadodeconferirrelativaimportânciaàquestão–“Nãobasta
intenso movimentocomercial eindustrial paraque aliteratura, amúsica, ea estatuária,
adquiramvigorebrilho.Oqueahistóriaevidenciaéqueoprogressomaterialprecedeo
fenômeno da produção artística abundante e valiosa” (SILVA, 1924, p. 250.) –, o
raciocínio de João Pinto se mostra semelhante ao de Sílvio Romero em sua escrita
historiográfica, na medida em que o historiador da literatura nacional relaciona os
primeirosmovimentosliteráriosdoBrasilaoscicloseconômicosdoaçúcar,ouroecafé,o
quevemareforçarafiliaçãodaescritahistoriográficadogaúcho,pelomenosemalguns
aspectos, às idéias do teórico sergipano. Seguindo esse raciocínio, avaliando que o
fortalecimentoeconômicodeSãoPaulonoséculoXIXéofatorquealicerçaahegemonia
cultural que esse centro exerce em seu tempo,o historiador prevê futuro semelhante às
letras gaúchas, na medida em que, após a virada para o século XX, o Estado vinha
fortalecendosuasbaseseconômicas:
Aqui,comoemtodaaparte,ogradualaperfeiçoamentodasindústriaseo
incessantedesdobramentodocomércioestãoprecedendoepreparandoa
intensificação e o refinamento do labor literário. (...) O que ninguém
poderánegar,équejáagoraoníveldaliteraturaentrenóstendeaelevar-
se.(SILVA,1924,p.256)
51
Dentreosdiversosaspectosqueaquievidenciamosnessapidaleituradotrabalho
historiográficode JoãoPintoda Silva,podemosestabelecer algunsapontamentos acerca
dasbasesteóricaseconceituaisquenorteiamaescritadaprimeirahistórialiteráriadoRio
Grande.Primeiramente,percebe-sequepressupostosteóricosdebasecientificista,comoos
queconsideramainfluênciadaraçaedomeio,sãocritériosempregadosnadiferenciação
entre os aspectos culturais do Rio Grande com relação a outros centros vizinhos como
Uruguai eArgentina,tentativaque, maisdo queestabelecerdiferençasentreos povose
regiões, busca definir a cultura gaúcha como portadora de identidade própria, para
posteriormente circunscrevê-la no âmbito maior da cultura brasileira. Nesse particular,
comoafirmamosnoiníciodessaanálise,aescritahistoriográficadeJoãoPintodaSilva,
apesar de abranger um recorte regional, acompanha o caráter nacional que norteia as
demaisescritasdashistóriasliteráriasbrasileiras,bemcomodeoutrasnações.
Nessamedida,trabalhandoapartirdeumconceitoquepercebealiteraturadoSul
nocontextomaiordaculturagaúcha,ohistoriadorenglobatextosdehistóriageral,críticae
jornalismonaelaboraçãodesuapesquisa.SegundoTynianov,aexplicaçãoparaqueesses
gêneros textuais, tidos por literários em outros tempos, não sejamhoje admitidos como
literatura, encontra-se na mudança de função dos elementos internos responsáveis pela
configuração de um fato como sendo literário, o que justifica sua premissa de que a
investigaçãoliterária isolada,semconsideraras interrelaçõescom osistemacomo qual
dialoga,seriainviável:
Entretanto, mesmo a literatura contemporânea não pode ser estuda
isoladamente.Aexistênciadeumfatocomofatoliteráriodependedesua
qualidadediferencial(istoé,desuacorrelaçãosejacomasérieliterária,
seja com uma série extraliterária), em outros termos, depende de sua
função. O que é “fato literário” para uma época, será um fenômeno
lingüístico relevante da vida social parauma outrae, inversamente, de
acordo com o sistema literário em relação ao qual este fato se situa.
(TYNIANOV,1971,p.109)
Ao tomar por regra que o processo de seleção é tarefa inerente à escrita
historiográfico-literária,devemosavaliarquaisoscritériosempregadosporJoãoPintona
definição doqueadmitecomo patrimônioliteráriorio-grandense.Nessesentido,nota-se
queohistoriadoradmitecomoescritoresgaúchososóosnascidosnoEstado,comoos
queparacámigraramecontribuíramparaodesenvolvimentodosistemaliteráriosulino,
comoéocasodeVictorSilva–“Erafigurasingular,opoetadaVictórias.Emboratenha
52
nascido longe do Rio Grande, o me parece fora de propósito evocá-lo nesse livro”
(SILVA, 1924, p. 184) –, bem como os que, apesar de nascerem no Sul, desde cedo
deixaramaterra ese fizeramliteratoslongedos pagos,comoéocasode AraújoPorto
Alegre. Contudo, uma vez que se mostra disposto a aceitar autores não nativos como
integrantesdaliteraturario-grandense,estranha-seaausênciadeCarlosvonKoseritz,que
nãoconstanaHistórialiteráriadoRioGrandedoSulpelofatodeternascidoforadoPaís,
apesardeserreconhecidocomograndeintelectualdesuaépoca–“CarlosvonKoseritz,
pensador e publicista de inconfundíveis recursos e aquilino vôo, que nos traçou rumos
novos,sobopontodevistafilosófico,porémeraalemãodenascimento”(SILVA,1924,p.
53).
No que se refere às análises literárias, além da inegável preferência pelo gênero
lírico, percebemos que o autor se vale de uma ótica comparativa como forma de
reconhecer nos escritores sulinos aspectos temáticos e estilísticos semelhantes aos
empregados nos principais centros intelectuais do País, técnica que acaba colocando a
produçãosulinaempédeigualdadecomrelaçãoàliteraturabrasileira,bemcomoatentaàs
tendências estéticas difundidas pelos grandes nomes do cânone ocidental. Igualmente,
pudemosperceberqueohistoriadorsevale,emalgunscasos,deumaperspectivacrítica
queincorporatraçosbiográfico-psicológicoscomocritérionasanálises.
Se no prefácio de sua História literária do Rio Grande do Sul o historiador já
afirma que seu intento não era o de simplesmente organizar e comentar a relação de
autoreseobras,massim“fixarasituaçãoeovalordoslíderes,istoé,dosquesãoouforam
forças propulsoras do desenvolvimento espiritual,e instrumentos de renovação estética”
(SILVA, 1927, p. 04), posicionamento que revela a noção de que aelaboração de uma
história literária não deva ter mera função arqueológica, mas apresentar-se como
instrumento capaz de revelar a influência que textos e escritores exerceram para o
desenvolvimento de um sistema literário e cultural, podemos concluir que o historiador
alcança êxito em seu propósito de comprovar a relevância de escritores e obras para a
constituiçãodosistemaliterárioregional.
53
4–GUILHERMINOCESAREAHISTÓRIADALITERATURADORIOGRANDE
DOSUL
4.1–Da“Introdução”:umadeclaraçãodeprincípios
Em geral, histórias literárias podem ser tão multifacetadas quanto os
historiadores que as escrevem. A diferença entre histórias literárias é
constituída por diferenças em intenção, interesse, legitimações e nos
procedimentos ou métodos aplicados. Um historiador literário
autoconscientedeve,portanto,serexplícitoemrelaçãoaquestõessobre
propósitos,interessesenecessidadesdegrupossociais,comunidadesde
pesquisadores ou outras circunstâncias em função de que ele pretenda
construirumahistórialiterária.(SCHMIDT,1996,p.116-117)
No curso das mais recentes discussões no campo da historiografia literária,
encontram-se posicionamentos que apontam para a necessidade de compreendermos
histórias literárias como matéria historizável, argumento que tem por base discussões
teóricasquecontrariamaconceituaçãotradicionaldequetaisconstruçõesseriamcapazes
de recuperar integralmente o passado que se dispõem a enfocar, ou de que o critério
valorativoencontrar-se-ianacorrespondênciaobjetivaaosfatos/eventoshistóricos.
Com o avanço das discussões em torno das concepções de história, e por
conseqüência da história da literatura, novos conceitos apontam para o caráter
construtivista que norteia a elaboração de uma história da literatura, compreendida,
atualmente, como construção de um sujeito de consciência histórica que, baseado em
conceitosteóricospreviamentedeterminados,buscaorganizardiscursivamenteumacadeia
de acontecimentos de acordo com suas motivações/intenções, sendo a coerência e
plausividade de sua proposta com relação à rede de eventos elaborada o critério de
valoração.Quantoàsbasesqueprecedemàelaboraçãodeumahistórialiterária,Siegfried
Schmidtressaltaque,aindaseenfatizeasubjetividadedoescritor,tentativasdessecunho
sãoconstruídasapartirdeumabaseconceitualbemdefinida,quebalizaopercursoeos
resultadosalcançadospelohistoriador:
Tentativas recentes, na pesquisa histórico-literária, mais uma vez,
evidenciaramquequalquerpassonessainvestigaçãoestágovernadopor
conceitos dominantes ou cruciais, tais como “literatura”, história”,
“históriadaliteratura”,“estudodaliteratura”,teoria”,“método”,etc.As
intenções, objetivos e legitimações das histórias literárias, a seleção e
54
apresentaçãodoschamadosdadoseaescolhadecritériosderelevânciae
objetividade estão diretamente dependentes da implementação ou
interpretaçãodessesconceitosbásicos.(SCHMIDT,1996,p.103)
Em vista dessa perspectiva construtivista, entendemos que a Introdução” da
História da literatura do Rio Grande do Sul, de Guilhermino Cesar, merece atenção
especial,vistoqueseesperadessa,alémdeumaapresentação,umasíntese(ouindícios)
dos principais conceitos que irão nortear seu trabalho enquanto historiador-construtor
consciente. Assim, a partir dessa declaração de princípios, procuraremos delinear, por
exemplo,quaisosprincipaismétodosefundamentosteóricosqueembasamsuapesquisa,
qual sua visão acerca do objeto historizável, quais os critérios de legitimação e/ou
desconstrução de dados anteriormente concebidos pela tradição historiográfico-literária,
bemcomoasintençõesemotivaçõesqueprevalecemnacomposiçãodetãovastotrabalho.
Jánoiníciodeseucapítulointrodutório,Guilherminotrazàluzumadiscussãoque
envolve aescolha dométodo empregado na elaboração de sua pesquisa,realizando um
balanço em torno das limitações e vantagens que a opção por uma abordagem
historiográfica poderia lhe conferir. Através de um comentário aparentemente
despretensioso – “esbarrei na primeira dificuldade, a do título.”
19
(p.15) –, o autor
demonstra preocupação de que o rótulo “história da literatura” viesse a ser, de alguma
forma,limitadorouincapazdeexpressarsuasverdadeiraspretensõesanalíticas–“Porque
‘história’, se o valor estético independe, (...), dos fatos exteriores, da cronologia, do
critério fechado das escolas? E o termo – história –, no caso, poderia não exprimir
exatamenteaminhaintençãodefazertambémcríticaliterária”(p.15).
Naverdade,apreocupaçãodohistoriadorsemostrapertinentesetomarmoscomo
parâmetro o estereótipo de estruturação tradicional das histórias literárias, que sendo
elaboradas a partir de concepções pouco claras quanto às suas intenções, métodos,
critérios,bemcomoaopróprioconceitodeliteratura,corroboraramparaodescréditodo
método historiográfico enquanto procedimento de abordagem da literatura. Sobre esse
assunto,JoãoBarrentoafirmaquehouve,noiníciodosanosnovecentos,umacisãoentre
literatura e história, mais especificamente entre crítica literária (enquanto ciência” da
literatura) e história da literatura, ficando essa desacreditada quanto à sua eficácia
 
19
Todas as citações referentes à História da literatura do Rio Grande do Sul, objeto de análise dessa
dissertação, virão acompanhadas somente pelo mero da página, pois dizem respeito à segunda edição,
publicada emPorto Alegre, noanode1971, pelaEditora Globo, na qualoautor afirma em notaqueseu
maioracréscimofoiaatençãodirigidaàobrateatraldeJoséJoaquimdeCamposLeãoQorpoSanto.
55
analítica. Segundo o teórico, essa hostilidade teria por base mudanças conceituais no
campo da própria História “História o é aqui progressão linear ingenuamente
desproblematizada, mas visão crítica e consciente do nosso lugar no tempo”.
(BARRENTO, 1986, p. 12) -, além da força com que metodologias analíticas de base
formalistaeestruturalistaganharamespaçoestatusdeciênciaúnicaelegítima:
Érealmentenosprimeirosanosdoséculoquesedá,numaperspectiva
epistemológica,apassagem decisivae generalizada dahistória para a
estrutura, das preocupações genéticas para as fenomenológicas: na
lingüística (sincrônica/estrutural), na filosofia (descritiva, analítica,
fenomenológica, intuicionista), nos estudos literários (a “filosofia da
ciência literária”, os formalistas, a eternização da obra como
manifestação intemporal nas orientações neo-idealistas), na própria
literatura,aoqueparece:os“modernistas”teriamassumido,jánarecusa
da “tradição”, (...), uma pose essencialmente anti-histórica.
(BARRENTO,1986,p.13)
Contudo,diantedaslimitaçõesestéticasque,nasuaótica,caracterizamocenário
literárioregionalenacional–“dadaarelativapobrezaestéticadaliteraturabrasileira,(...),
pareceu-mequeométodohistóricoliterárioseriainicialmenteopreferível,paraodizer:
omaisadequadoàsnossaslimitações,eaté,sequiserem,omaisconstrutivo.”(p.15)–,
Guilhermino Cesar acaba avaliando que uma abordagem historiográfica viria a lhe ser
maisprodutiva,tendoemvistaotipodefocalizaçãoaquepretendesubmeterseuobjetode
análise,queassumidamentenãoserestringeàinvestigaçãoingênuadosvaloresestilísticos
da produção literária sulina – “não me seduzia ficar exclusivamente na apreciação de
valoresestéticosfrios”(p.16).Nessesentido,oautoracabadefinindoqualserádefatoseu
objetodeinvestigação,afirmandoquefocalizaráoquechamapor“complexoculturalrio-
grandense”,umaconceituaçãoamplaequerequerreflexãodenossaparte.
De modo geral, o conceito criado nos remete a pensar que o autor demonstra
intençãodeproduzirumainvestigaçãoqueváalémdosimpleslevantamentoourevisãoda
produçãoliteráriasulina,umavezquesepropõeaorganizarumaconstruçãoqueenfoque
os diversos matizes ligados à vida literária do Estado, proporcionando uma apreciação
maiscompletadocenáriointelectualsul-rio-grandense,posicionamentoquecondizcoma
sugestão de W. Beutin para a criação de histórias literárias mais eficientes no que diz
respeitoamelhorseponderaropapeleolugarocupadospelaliteraturanoâmbitocultural
deumasociedade:
56
A integração de referências à vida literária no texto desta história da
literatura(...)constituioutrodosprincípiosbásicosdasuaconcepção,e
serve simultaneamente para distinguir da prática habitual da
historiografia literária. Enquanto conceito com uma especificidade
própria,“vidaliterária”significaaquiduascoisasdistintas:porumlado,
ahistóriadasinstituiçõesligadasàproduçãoerecepçãoliterária(papele
situaçãosocialdoescritor,sistemaeditorialededistribuição,imprensa,
academias e sociedades literárias, agrupamentos literários, hábitos do
públicoleitordaépoca,históriadosleitores,etc.);poroutrolado,avida
da literatura (formação de cânones e tradições, a série literária como
momentodumaevoluçãointraliterária,etc.).(BEUTIN,1986,p.115)
No entanto, ainda que nocurso deseu trabalho ohistoriador se mostreatento a
exploraresseduploviésindicadoporBeutin,oconceitode“complexocultural”criadose
alarga,indicandoaindaque,nasuavisão,aproduçãoliteráriadoRioGrandeseriaguiada
porumamentalidadecomum,umamotivaçãosustentadapelosvaloresdatradiçãogaúcha,
intrínsecos à intelectualidade sulina, responsáveis pela dita “originalidade cultural”, um
dosfatoresestimulantesparasuapesquisa–“Àproporçãoquecaminhavamaspesquisas,
percebiquedaenormeefervescênciaintelectualrio-grandense,noséculoXIX,ressaltava
sobretudoavigorosaoriginalidadedoseuestilocultural.”(p.15).Comoargumentopara
sustentar a força desse caráter regional que motivaria a produção literária sulina,
GuilherminoCesarrecorreàopiniãoderiodeAndrade,quereconheceemumartigo
intituladoOsGaúchos
20
essemesmoelementodiferenciadorcomocaracterísticainerente
às letras do Sul, algo mais profundo do que a simples exploração temática das
peculiaridadesdaregiãooudoestilodevida:
De todas as literaturas regionais do Brasil, tenho a impressão que a
gaúcha é a que mais apresenta uma identidade de princípios, uma
normalidade geral dentro do bom, uma consciência de cultura, uma
igualdade intelectual e psicológica, que a tornam fortemente unida e
louvável. (...) Em todo o caso, há um caráter geral na inteligência
gaúcha que, mesmo sem boleadeiras, cultivo exterior de valentia,
pampices e minuanos de fácil cor local, tonalizam intimamente o
gaúchoelhepermitempermanecerdentrodeumregionalismomais
profundo e enriquecedor da nossa entidade nacional. (ANDRADE
apudCESAR,p.17.Grifomeu)
Apartirdaconfiguraçãodoobjetodeanálise,ohistoriadorreconhecequesetorna
imprescindívelnaconstruçãodesuahistórialiteráriaouso deinformaçõesadvindasdo
campo da história e sociologia sul-rio-grandenses – “Verá, portanto, o leitor que não
 
20
OartigoOsGaúchos,segundoconstareferêncianotextodeGuilherminoCesar,teriasidopublicadono
DiáriodeNotícias,RiodeJaneiro,1939.
57
desprezeiasachegasdahistóriaedasociologia,semprequesetornouprecisoenquadrar
autoresouobrasnoseumeiosentimentalpróprio”(p.15).Talinformação,alémdemelhor
explicitarasbasesmetodológicasquesefazem presentes nocursodesuapesquisa, nos
levaa crerqueo pesquisadortrabalhaa partirdaconcepçãodequealiteraturadeuma
sociedademanteriaumarelaçãodialógicaconstantecomaspectosdaculturalocal,ouseja,
queosistemaliterárioestariaemcorrelaçãocomsériesvizinhas,comoosistemasocial,
assim como nos indica pioneiramente Tynianov, preconizando a tese da articulação
constanteentreobra,enquantosistemaparticular,sérieliteráriaesériesocial, cadaqual
comseusritmosdiferenciados,evoluçõesprópriasenãohomogêneas.
21
Entretanto,nessaposturadeconduzirseuprocessoanalíticoconsiderandoa vida
literáriaeaculturagaúchaemconstanteinteração,deve-seressaltaroconselhodeJoão
Barrento, que alerta para a necessidade de se ter bem clara uma definição de foco no
processodeconstruçãodeumahistórialiterária–“umahistóriadaculturadebaseliterária
ouumahistóriadaliteraturadebasecultural?”–(BARRENTO,1986,p.20).Segundoo
teórico,reconheceraautonomiadeumahistóriadaliteraturacomrelaçãoaomeiocultural
com o qual dialoga evitaria que o historiador incidisse em um descuido comum em
tentativasdessecunho,ouseja,acabarconcebendoliteraturacomoumdegraudahistória
da cultura”. No âmbito da questão, um dos pontos a serem avaliados consiste em se
ponderaremquemedidaohistoriador,umavezqueseproponhaaconstruirumahistória
literária,destacacomoprincipalobjetodeinvestigaçãoaliteraturadeumpaís,ouregião–
“o historizável será não o substrato cultural, mas os seus momentos propriamente
literários”(BARRENTO,1986,p.20).Nessesentido,umpontoaserconsideradogiraem
tornodatarefadeidentificareanalisarasprincipaisrelaçõesqueseestabelecementrea
teoria,acríticaeahistoriografianoâmbitodotextodeGuilherminoCesar.
Aoreconhecerqueoexamecríticodostextosconfiguraumexercíciointrínsecoao
processo de escrita historiográfico-literária, Siegfried Schmidt considera que a
investigaçãoacercadosmétodosefundamentosteóricosqueorientamoatointerpretativo
de um historiador deva ser um ponto de análise quando se pretende avaliar as bases
conceituais que sustentam a elaboração desse tipo de trabalho. Assim sendo, o teórico
alemãoressaltaque,aforaineficazesleituras“imanentistas”fixadasnaapreciaçãoestética
descontextualizada, os processos interpretativos de um historiador podem, quando
 
21
Ver a esse respeito: TYNIANOV, J. Da evolução literária. In: EIKHENBAUM, B. et al. Teoria da
literatura.Formalistasrussos.PortoAlegre:Globo,1971.p.105–118.
58
analisados, mostrarem-se esclarecedores no que se referem a questões tidas por
problemáticasnoâmbitodaconstruçãodeumahistórialiterária:
Creio que os historiadores de literatura, em sua maior parte, estão
implicitamente convencidos de que devem interpretar textos literários,
especialmente quando pretendem provar que os itens literários como
“estilo”,“forma”,“conteúdo”,“materialliterário”,etc.sãoderivativosde
situaçõessociais,respostasaquestõessociaisoucoisaparecida.Qualquer
tomada de partido a favor ou contra de uma das posições depende,
nitidamente,dedefiniçõesprévias(ouconceitosimplícitos)de“texto”e
“interpretação”edemodelosrelativosainter-relaçõesentre“literatura”e
“sociedade”. Uma simples adiçãode interpretação “imanenteda obra”,
focalizando exclusivamente os aspectos estéticos do texto e de
informações históricas e sociais, evidentemente não satisfará as
necessidadesdoshistoriadoresliterários.(SCHMIDT,1996,p.112)
Nessa medida, além da explícita afirmação de que uma das pretensões do
historiador seria “fazer também crítica literária” (p.15), o capítulo introdutório de
Guilhermino Cesar acaba sugerindo certa vinculação, ou no mínimo relativa simpatia,
entreosconhecimentosteóricosquebalizamaposturadohistoriadoreopensamentode
um dos grandes intelectuais do cenário ocidental – Jamais olvidei a boa lição de
BenedettoCroce:‘nãosepodefazerhistórialiteráriaapenascomodecorrênciadaerudição
edobom gosto, porqueacompreensãoerepresentação lhesãoindispensáveis’”(p.16).
Diante desse fato, deve-se considerar em que medida os pressupostos difundidos pelo
pensador italiano,bemcomo deoutros métodose linhasteóricas efilosóficas,viriama
configurar um dos pontos norteadores em meio à leitura crítica da produção literária
gaúcha,bemcomoaopróprioprocessodeconstruçãohistoriográfico-literário.
Aelaboraçãode umahistóriada literaturadeabrangênciaregional,aindaquese
ressaltemos aspectosculturaisquegarantiriamaoriginalidadedaproduçãosulina,éno
mínimorara,tendoemvistaocaráternacionalquetradicionalmentegovernaaconstrução
dessesestudos.SegundoReginaZilberman
22
,aconstruçãodehistóriasliteráriasnoBrasil
acompanhouoprocessodeindependênciapolíticaquefezcomqueopaísrompessecom
oslaços queouniamaocolonizador–“A históriadaliteraturabrasileiranasceucomo
paísa quesereferia”(ZILBERMAN, 1999,p.25) –,ouseja,configurou-se apartirda
afirmaçãodeumaidentidadeculturalprópria,oque,decertaforma,lheconfereumcunho
separatista. Ainda nessa linha, Siegfried Schmidt afirma que “A escrita de histórias
 
22
Veraesserespeito:ZILBERMAN,Regina:Historiadaliteraturaeidentidadenacional.In:Literaturae
Identidades.(org.JoséLuísJobim).RiodeJaneiro:J.L.J.S.,1999.p.23–25.
59
literáriastemsempreservidoainteressespolíticos,quetêmsidonormalmentedisfarçados
como intenções educacionais, culturaisou estéticas.” (SCHMIDT, 1996,p. 110). Nessa
medida,tendoemvistaessesaspectosintrínsecosàescritahistoriográfico-literária,espera-
se que, a partir da análise do capítulo introdutório ao trabalho de Guilhermino Cesar,
possamosperceber seuposicionamentoa respeitodas principaisintençõesemotivações
quegovernaramaproduçãodesuaHistóriadaliteraturadoRioGrandedoSul.
Ohistoriadorprocuradeixarclaroqueaelaboraçãodesuapesquisanãopartede
uma motivação separatista, em que através da supervalorização dos aspectos culturais
gaúchos e sua profunda identidade de pensamento” se defenderia algo como
independência ou supremacia do sistema literário sulino com relação ao panorama
nacional.Pelocontrário,apósavaliarqueahistoriografialiterárianoBrasil,desdeSílvio
Romero,mantém-seexcludentenoquedizrespeitoàinserçãodaintelectualidadeliterária
gaúcha no cenário das letras nacionais, Guilhermino afirma que sua meta é comprovar
que, apesar daanunciadaoriginalidade cultural, aliteratura sulinajamaisdeixou deser
brasileira, participando sempre das diversas correntes estéticas e temáticas vigentes no
centrodoPaís.Maisdoqueisso,queoregionalismoquecaracterizaaliteraturadoSulé,
antes de tudo, brasileiro, posicionamento quepode ser comprovado se tomarmos como
exemploaóticacomparatistaqueoautorafirmapretenderempregarnaanálisecríticadas
obras:
Perceberátambémoleitoroseguinte:nãodeslembreique,estudandoos
gaúchos, estudava autores da literatura brasileira e, pois, privei-me de
compará-los mais estiradamente com estrangeiros. Procurei sempre
rastrear,nosdecá,ainfluênciadeseuspatríciosdoCentroedoNorte,a
verseseaproximavamouseafastavamdoconjuntonacional.Oexame
mais miudamente crítico veio convencer-me de que a literatura rio-
grandense,aocontráriodoquesepensa,jamaisdeixoudeparticiparde
todas as correntes válidas da literatura nacional. O seu regionalismo
inspirou-seremotamenteno exemplode poetas e escritores românticos
deoutrasregiões,comosquais(...)osnossostiveramíntimaafinidade.
(p.21)
No curso dessa tentativa includente, o pesquisador procura rebater alguns
posicionamentos correntes no campo da crítica e historiografia literária nacional, que
acusam a literatura gaúcha de partilhar mais das influências platinas, tanto temáticas
quanto estéticas, do que dos padrões seguidos pela produção literária brasileira,
afirmativas que se embasam tendo em vista os aspectos de semelhança cultural e o
posicionamento geográfico do Estado. Nesse sentido, o autor refuta esse conceito
60
afirmandoqueomaisimportanteoédefinirdeondepartemasinfluências,masavaliar
dequeformaelassãoassimiladas:
Onde, pois, a influência platina descaracterizadora – alegada
impensadamente, por comodidade, preguiça ou ignorância – sobre o
conjunto do regionalismo gaúcho? Se algumas notas vieram do Prata,
muitas outras vieram de Portugal e de França, afora as influências já
nitidamente brasileiras.E o que importa,em suma, não éter recebido
influência,massimamaneiracomofoiestaassimilada,passivamenteou
segundoumprocessoativoderecriação.
Chegueiàconclusãodequealiteraturagaúchaéumdoselosmaisfortes
denossaunidadeliterária.Eisoquenesselivromaismesatisfaz.(p.21)
Umdospontosmaisimportantesnessadeclaraçãodeprincípiosapresentadapelo
autor diz respeito aos critérios empregados nas divisões literárias. Nessa medida,
entendemos que uma análise detalhada dessas subdivisões pode revelar muito dos
posicionamentos do historiador-construtor acerca de sua compreensão do fenômeno
literáriosul-rio-grandense.
Semperderdevistaqueessasetorizaçãodaliteraturaéparteinerenteaoprocesso
deelaboraçãodequalquerhistórialiterária–“Emprincípio,todaaformadehistoriografia,
como estudo de processos de mudança, preocupa-se com problemas de periodização.”
(OLINTO, 1996, p. 37) –, devemos avaliar em que medida os critérios utilizados se
mostramplausíveistendoemvistaotipodepropostaapresentadapeloescritor,ouseja,de
que modo suas decisões quanto à delimitação de estruturas temporais, sistematizações,
participação em correntes estético-literárias, dão conta da tarefa de analisar as relações
entreosistemaculturaleliteráriodoRioGrandeenquantounidadesdialógicas,bemcomo
suaspossíveiscorrelaçõescomosistemaliteráriobrasileiro.Sobreesseaspecto,Heidrun
KriegerOlintoalertaque,tradicionalmente,asubdivisãodaliteraturatemobedecidoaos
mais diferentes critérios, nem sempre oportunos com relação ao tipo de focalização
assumidanainvestigaçãoliterária:
Períodostêmfisionomiaprópria,cesurasvisíveis,duraçãomensurável?
Umolharrápidosobreformastradicionaisdeperiodizaçãoemhistórias
da literatura causa espanto –talvezconstrangimento – pela displicente
rotulação de épocas literárias, onde se mesclam etiquetas de história
geral,históriadaarte,históriadacultura,históriapolíticaeaté,porque
não,históriadaliteratura.(OLINTO,1996,p.37)
Aindanessesentido,SiegfriedSchmidtafirmaqueOaspectomaisproblemático
daescritadehistóriasliteráriasdizrespeitoàproduçãoderelações,conexõesetransições,
61
isto é, à concatenação de dados em unidades coerentes, tais como períodos, épocas,
gêneroseassimpordiante”(SCHMIDT,1996,p.104),conclusãoqueofazdeterminar
alguns dos pontos que, imprescindivelmente, devem ser esclarecidos no processo de
elaboração de uma escrita historiográfico-literária, cobrando, assim, do historiador
coerênciacomrelaçãoaosposicionamentosassumidosnaproduçãoderelaçõesentreessas
partes:
Comoostextosliterários(oueventosliterários)podemserrelacionados
(encadeados,segmentados,inter-relacionados,etc.)paraaconstruçãode
estruturastaiscomoperíodosouépocasouassimchamadastotalidades
compatíveis?(...)Quaisosmotivosparamudançaemliteratura:Somos
capazesdeencontrarprincípiosteleológicosouteleonômicos,oumesmo
leis de evolução? Ou essa mudança é causada por influência e
continuidade?Écausadacontigüidadeeinovaçãoou,bemdiversamente,
pordescontinuidadeeruptura?(SCHMIDT,1996,p.105)
Em vista de tais considerações, podemos perceber que Guilhermino Cesar
identifica na literatura do Rio Grande do Sul sete momentos distintos, ainda que sua
pesquisaabranjaumperíodohistóricoquevaidemeadosdoséculoXVIIIaoiníciodoXX
(1737-1902).No cursodeseuraciocínio,oautordeixaexplícitoqueessadivisãonãoé
maisdoqueumaadequaçãoàsnecessidadesdeumhistoriador-construtor–“Afigurou-se
necessário dividir a literatura local em períodos, que não obedecem, é claro, a normas
rígidas,massatisfazemaocritériohistoriográfico-literárioqueadoteinaobra.”(p.18.).
O primeiro período indicado (Desde as origens até 1834) tem início a partir da
influênciadosideaisárcadesepré-românticosdeexpressãoeafirmaçãodeumaidentidade
nacional independente junto à intelectualidade sulina, findando na data exata da
publicaçãodaprimeiraobraliteráriadeautorgaúcho(Poesiasoferecidasàssenhorasrio-
grandenses,deDelfinaBenignadaCunha).NavisãodeGuilhermino,essa“preocupação
vividainconscientementepelaliteraturanacionalemgerme”,atuantenaesferapolíticae
fator preponderante na eclosão da Revolução Farroupilha, serviu como fundamento
ideológico às letras do Sul. Ao assumir esse posicionamento, o historiador acaba
colocando como correlatas, ou aproximadas, as origens literárias do Brasil e do Rio
Grande, pelo menos para a vertente da historiografia nacional que admite o arcadismo
como sendo a gênese literária do País. Nesse intervalo, o autor destaca ainda o
aparecimento da imprensa, fator que teria estimulado escritores gaúchos à produção e
publicaçãodeseustrabalhos.
62
A segunda etapa (1834 a 1856) inicia com uma maior participação sulina na
corrente ideológica nacionalista – “assimilação constante dos valores integrantes da
cultura nacional maturada nas antigas capitanias do Centro” (p. 18-19) , fator que
desencadeia o que chama uma mida produção romântica”, abarcando a época da
publicação do primeiro romance gaúcho (A divina Pastora, de Caldre e Fião, 1847).
Assim, destacando nesse plano a Revolução Farroupilha, “acontecimento de férteis
conseqüências”, o período vai até a criação de O Guaíba, primeiro periódico de
focalizaçãoliteráriaacircularnoEstado.Analisandoesseintervalo,percebe-sequeoautor
assumeaconcepçãodequeaunidadedepensamentodoshomensdeletraséparâmetro
capazdesustentarumaperiodização,vistoqueafundaçãodeumaorganizaçãointelectual
eliteráriaépontoaserevidenciado.
Se o aparecimento da primeira organização literária marca o encerramento da
segunda fase, o terceiro período (1956 a 1869) se a partir da efetiva participação e
colaboração desse grupo para o aumento da produção literária, ou seja, enfatiza a
importânciadeumperiódicoidealizadoporumgrupodeescritoresunidosemproldeum
idealcomum,quecomsuaspublicaçõesalicerçaramumaliteraturadevertentelíricacom
perfilmaisuniversalista,umlirismoportuguêsafeiçoadoànossamaneira”,fazendocom
queoEstadoalcançassealgumaexpressãonocenárioliterárionacional.
A quarta subdivisão estabelecida (1869 a 1884) diz respeito a uma produção
romântica de forte cunho regional, concentrada a partir dos trabalhos em torno da
Sociedade PartenonLiterário esua RevistaMensal.Segundo GuilherminoCesar,nesse
momento ocorre o amadurecimento do ideário regionalista na literatura do Sul,
característica que marcaria a produção literária por longa data – “Mas a tendência
regionalistaocorrenteestavadestinadaa servirdeleitocomumà literaturagaúcha.Não
maisdesaparecerá.Vaimarcar,defato,daípordiante,todasasobrasdevalor”(p.19).
Naquintaetapa(1884a1902),oautorreconheceumdesviodefocodosescritores
sul-rio-grandenses,quepaulatinamenteacompanhariamapassagemdoideárioromântico
para o cultivo da vertente real-naturalista, no campo da prosa, e parnasiana no que
concerneàpoesia.Nessesentido,percebe-seque,maisumavez,GuilherminoCesarparte
da idéia de que as manifestações literárias gaúchas acompanhariam o fluxo estético,
temáticoeideológicoquenorteiaosistemaliteráriobrasileiro.
63
Asextaetapa(1902a1925)igualmentenãosedesviariadoparadigmanacional,
sendo caracterizadapelasinfluências davertenteSimbolistanocampodapoesiae neo-
realistanoâmbitodoromance.Noentanto,oautorafirmaque,nareleiturario-grandense,
essascorrentesestéticasseriammarcadasporumfortetomregionalista,emqueorecuoà
temáticadaterraeàexploraçãodoscostumesetradiçõesseriaotraçocaracterizador.
Da mesma forma, a sétima fase (1925 até sua contemporaneidade, ou mais
especificamenteatéoanodosurgimentodarevistaQuixote,em1947)acompanhariaos
padrõesnacionaisdeumaliteraturamoderna,nemporissoabandonandodevezoolhar
sobre os aspectos regionais. Na verdade, o historiador identifica nessa geração uma
espéciedecrisequantoàexploraçãodessetraçotãocaracterizador,emqueatendênciaa
umatemáticauniversaldisputariainteressecomapoetizaçãodastradiçõesgaúchas:
Surgeodilema:implantaçãodenovoprocessoliterárioouregressoao
regional.Surgemnoperíodo,apósafasemodernista,doisromancesde
valor: Um lugar ao Sol, de Erico Veríssimo, e Os Ratos, de Dionélio
Machado (ambos de 1935). A obra de Erico documenta a posição
dilemáticaemquesevêcolocadaaúltimageração:ouniversalismodo
grande romancista,ou o neo-regionalismo gauchesco deO Tempo e o
Vento.(p.20)
Tendo emvista essessetemomentos identificados porGuilhermino Cesar, em
que aponta um conjunto de variantes internas que julga capaz de sustentar sua
periodização,devemosatentarparaalgunsposicionamentosqueopistassobreotipode
percepção que o historiador tem a respeito da literatura no Rio Grande. Inicialmente,
notamos que ao definir uma origem para a literatura sul-rio-grandense, o historiador
identifica na intelectualidade gaúcha uma afinidade de pensamento com relação aos
princípiosideológicosquebalizaramonascimentodaliteraturanacional,oquealémde
equiparartemporalmenteagênesedessesfenômenos,semostraumargumentoplausível
tendoemvistasuapropostadecomprovarabrasilidadedasletrasdoSul.
Ainda, percebe-se que acontecimentos como o surgimento de periódicos e
agremiaçõesliteráriassãopontosaseremevidenciados,demonstrandoquesuaperspectiva
de escrita historiográfico-literária segue o parâmetro indicado por Beutin, referido
anteriormente nessa pesquisa, sugerindo que no curso do processo de análise se deve
atentar,porumlado,paraarelevânciadasinstituiçõesligadasàproduçãoerecepçãoda
literatura,aarticulaçãodeescritoresreunidosemtornodeumidealcomum;e,poroutro,
reconheceraimportânciadeacontecimentosdasérieintraliterária,comoapublicaçãoda
64
primeiraobradeumaautoragaúcha,oaparecimentodoprimeiroromance,dentreoutros
aspectos. Do mesmo modo, pudemos constatar que o historiador aceita a questão da
ruptura com relação a parâmetros estéticos e temáticos como motivo balizador de sua
periodização – “O quinto período (1884-1902) é o do abandono paulatino do ideário
romântico, com a adoção de formas mais vizinhas do Realismo.” (p. 19) –, um dado
admissível pela tradiçãohistoriográfica nacional queé aqui reconhecido eadaptadoem
perspectivaregional.
No entanto, mesmo que em muitos aspectos essa subdivisão literária esteja
norteada pelo paradigma historiográfico nacional, o autor não tangencia seu foco de
examinaraarticulaçãoentreossistemasliterárioeculturaldoRioGrande,deixandoclaro
que,mesmotendoemvistasuasdiferentesetapas,aproduçãoliteráriasulinatemcomo
traçocaracterizadorumaunidadedepensamento,oumentalidadecoletiva,vinculadaaos
valoresdaterra,valorquetemsemostradoregulareatemporal,umregionalismoquevai
alémdarasaexploraçãodasparticularidadestemáticaseestéticasinerentesàtradiçãodo
Sul,equeacabaconfigurandoumaidentidadegaúcha,mantenedoradadita“originalidade
culturalsul-rio-grandense”.
Falamosnoiníciodessapesquisaque,tendoemvistaaperspectivaconstrutivista
quenorteiaaelaboraçãodeumahistoriadaliteratura,nãodeveríamosjulgarseuvalorpela
correspondência, ounão, aos dadosou eventos históricos focalizados –“o critério para
aceitaçãoourejeiçãodashistóriasliteráriasnãodeveriaser‘objetividade’ou ‘verdade’,
mas antes ‘plausividade’, ‘aceitabilidade intersubjetiva’” – (SCHMIDT, 1996, p. 116).
Dessaforma,torna-seimprescindível,nocursodenossaanálisedaHistóriadaliteratura
do Rio Grande do Sul, investigar em que medida o historiador efetivamente se mostra
coerentecomrelaçãoàspropostas,metodologiaseconceitosteóricosmotivadoresdesua
escrita.Entretanto,aoprocurarmosanalisarcomparativamenteessaperiodizaçãonocorpo
do texto, verificaremos que a pesquisa de Guilhermino Cesar o ultrapassa o que
identificacomosendoumaquintaetapadaliteraturagaúcha,oquenoslevaacrerqueas
fases subseqüentes, Simbolista e Modernista, ficariam sob a responsabilidade de uma
segunda parte de sua pesquisa, que nunca veio a público, ainda que talintenção esteja
apontada
nanotadeaberturaàsegundaedição,de1971,emqueoautorregistraodesejo
65
depublicarumsegundovolumedesuapesquisa,abrangendoaproduçãoliteráriasulina
referenteaoséculoXX
23
:
Infelizmente, não pude rever senão parte desta obra, quer para
acrescentar, quer para eliminar ou retificar. (...). Mas, se apenas uma
pequena porção dos mesmos subsídios pôde ser aproveitada nesta,
esperamosdar-lhesacolhida,atodos,numafuturaedição,quetalvezse
imprimaconjuntamentecomasegundaparteabarcandooperíodoque
vemde1902aosnossosdias.(p.13.)
No final de sua Introdução”, o autor faz questão de esclarecer alguns
procedimentostécnicosquebalizaramoprocessodecomposiçãodeseuestudo,como,por
exemplo,oscritériosdeseleçãodosescritores,ondeafirmaqueprocuraincluir,alémde
autoresqueefetivamenteproduziramliteraturanoRioGrande,aquelesquenasceramno
Suleporventuramigraramparaoutroscentros,comoseriaocasodeAraújoPortoAlegre;
bemcomooutrosvindosdeforadoEstadoeque,dealgumamaneira,contribuíramcom
seustrabalhosparaodesenvolvimentodosistemaliteráriogaúcho,comonosexemplosde
Carlos von Koseritz e Carlos Jansen. Nesse sentido, o autor ainda afirma que,
contrariamente ao padrão tradicional, a ordem cronológica respeitada não foi a do
nascimento dos autores, mas sim a data de publicação de obras representativas, o que
demonstramaisumavezque,nasuaconcepção,ofocohistorizáveléosistemaliterário
sul-rio-grandense:
É habito da historiografia literária registrar os autores adotando como
critériodeseriaçãoasdatasdenascimento.Procedidiferente.Adataque
tomeiporbasedeprecedênciafoisempreadaobramaiscaracterística;a
da estréia, no caso de autores menos significativos. Pareceu-me
preferíveltalsistema,pormotivosóbvios.(p.22)
Damesmamaneira,oautorsepreocupaemexplicaraestruturaçãodesuaobra,
hajavistoquenaleituradotextopercebemosquearepartiçãodoscapítulosnãoobedecea
uma perspectiva temporal evolutiva que, via de regra, caracteriza a produção
historiográfico-literária,emqueapóssefixarumadeterminadaorigemparaofenômeno
literário,acompanha-seumatrajetóriadetransformaçõesevolutivasatédadomomentode
ápice, apresentando uma concepção linear de tempo, em que o caráter aditivo das
 
23
SobrealiteraturaproduzidanoRioGrandedoSulnocursodoséculoXX,caberegistrararieintitulada
“Paraoestudodocontogauchesco”,conjuntodeartigoscríticosescritosporGuilherminoCesarepublicados
noCaderno deSábado” doCorreiodoPovo.Em1994,TâniaFrancoCarvalhal, reunindoesseseoutros
textos publicados noperiódico da capital, lançou o compêndio Notícias do Rio Grande, uma parceria do
InstitutoEstadualdoLivroeaeditoradaUFRGS.
66
informações e acontecimentos acompanharia o percurso de gênese, transformação e
apogeudeumadeterminadaliteratura
24
.Nessesentido,ohistoriadorfazaressalvadeque
“a distribuição da matéria em capítulos não seguiu passivamente a periodização a que
aludo. Permiti-me certa liberdade no estudo dos grupos e das figuras isoladas, mas a
divisãoacimafoiomeuroteiro.”(p.20).
Como podemos perceber no curso de nossa avaliação acerca dos princípios e
parâmetrosquebalizaramaescritadessecapítulointrodutórioàHistóriadaliteraturado
Rio Grande do Sul, Guilhermino Cesar parece conscientemente assumir a perspectiva
construtivista que norteia, segundoas discussões mais recentes no campo da Teoria da
HistóriadaLiteratura,aelaboraçãodeescritashistoriográfico-literárias.Procurandodeixar
evidenteoinevitáveltraçoexcludenteinerenteaqualquerprocessoseletivo–Numlivro
comoeste,asrepetiçõessãoinevitáveis,atémesmonecessárias.Asomissões,deliberadas
umas,involuntáriasoutras,nãodesfiguram,porém,oessencial.”(p.22)–,emostrando-se
explícitocomrelaçãoaospropósitos,necessidadeseinteressesmotivadoresdoprocesso
de elaboraçãode seuestudo, opesquisador nãoficaaquém dasexigênciasdeSiegfried
Schmidtparaaconfiguraçãodoperfildeumhistoriador-construtorautoconsciente.
Sendo assim, evidenciamos que Guilhermino Cesar justifica a escolha da
metodologiahistoriográfico-literáriacomoaquelheproporcionariamelhoresvantagensna
elaboraçãodeumestudoqueobjetivainvestigararelaçãoentreossistemasliteráriosdo
BrasiledoRioGrande,bemcomoaperspectivadialógicaentreesseeaculturagaúcha,
deixando clara a intenção de se valer dos estudos históricos e sociológicos sul-rio-
grandensescomobasescolaboradorasdesuapesquisa.
Da mesma maneira, percebemos que, mesmo elegendo um recorte regional, o
historiadornãoelaborasuaobravisandoumaperspectivaseparatista,ouempenhadaem
confirmarumasuperioridadecomrelaçãoaoparadigmaliterárionacional,masapresenta-
se disposto a configurar sua pesquisa como estudo capaz de sustentar teoricamente as
afirmaçõesdeque,seporumladoaliteraturasulina,emseusdiferentesmomentos,teria
como traço caracterizador uma mentalidade comum, regular e atemporal, fortemente
vinculada aos aspectos culturais do Sul, mantenedores de uma identidade própria; por
outro,jamaisdeixoudeparticipardenenhumadascorrentesválidasdaproduçãonacional,
apresentando-se,dessaforma,comomanifestaçãoliteráriatipicamentebrasileira.
 
24
 Ver a esse respeito BEUTIN, W. et al. História da Literatura: Porquê e para quê? In: História da
Literatura.Problemaseperspectivas,(org.JoãoBarrento)Lisboa:Apaginastantas,1986.
67
4.2–Das“manifestaçõesliterárias”
4.2.1–AformaçãodoRioGrandedoSuleosurgimentodaliteratura
UmdospontosqueevidenciamosnoestudodocapítulointrodutórioàHistóriada
literaturadoRioGrandedoSulsinalizaparaarelevânciaqueoapontamentodeMariode
Andrade
25
alcança no exame que Guilhermino Cesar realiza da literatura gaúcha.
Ressaltando a unidade e originalidade da produção sulina – há um caráter geral na
inteligênciagaúchaque,(...), lhepermitem permanecer dentrodeum regionalismomais
profundo e enriquecedor (ANDRADE apud CESAR, p. 17) –, o autor de Macunaíma
acaba reconhecendo o regionalismo como marca de singularidade que, ultrapassando as
diferentesépocas,configuraumaespéciedeidentidadeliteráriaeculturalnoEstado.
Aoconsiderarmosqueohistoriadorbalizaaconstruçãodeseutextonapremissade
que esse caráter regional atua como pilar central na constituição da literatura sul-rio-
grandense,torna-sedesumaimportânciaperceberdequeformaelecompreendeejustifica
a nese de tal fenômeno. Concernente a essa preocupação, procurar-se-á melhor
compreenderoutrosquestionamentosqueseencontramnabasedoprocessodeelaboração
deseutrabalhohistoriográfico,como,porexemplo,emquemedidaessaformaçãocultural
originaesustentaadelineaçãodeumaidentidadeprópria,comooautorestabelecerelações
entre os dados da cultura geral e o surgimento da literatura, e de que maneira essa
produçãoserelacionanocontextomaiordosistemaliterárionacional,noqualseinclui.
Segundo Guilhermino Cesar, a compreensão do processo de constituição desse
elemento que garante traços particulares à literatura do Rio Grande remete,
necessariamente,àanálisedascondiçõesquemarcaramaformaçãoeorganizaçãosocialda
ProvínciadeSãoPedro,nocursodosséculosXVIIIeXIX.Paratal,comojáantecipavana
apresentaçãodesuapesquisa,oautorrecorreavariadosestudosdocampodasociologiae
históriasul-rio-grandense–“Estudaraliteraturario-grandenseé,decertomodo,abrirum
livrode sociologia. (...)os acontecimentos históricosassumemimportânciaconsiderável
 
25
Otrechoemquestão,alémdeservircomoepígrafeemotivaçãoinicialparaaHistóriadaliteraturadoRio
Grande do Sul, ainda aparece como argumento de autoridade em outros escritos de Guilhermino Cesar,
como,porexemplo,emParaoestudodocontogauchescoIV–Ocontogauchesco,deSimõesLopesNeto
aos dias de hoje; artigo originariamente publicado no “Caderno de bado” do Correio do Povo, e
posteriormentereunidoporTâniaFrancoCarvalhalnocompêndioNotíciasdoRioGrande,de1994.
68
paraacompreensãoevalorizaçãodosaspectosliteráriosquevamosestudar.(p.30-31)”–,
postura analítica que norteia sua tentativa de identificar os aspectos responsáveis pelo
surgimentodasbasesdatradiçãogaúcha.
Nessesentido,considerandoodescasodogovernoimperialparacomaProvíncia
doSul,ohistoriadorafirmaqueoprocessodeformaçãoculturaldessepovosedeuapartir
deumpanoramadotadodepeculiaridades,secomparadoàsdemaislocalidadesdopaís.
Tendoem vista odesamparo daregião,o autorressalta“ainstabilidadecom queo Rio
Grande do Sul, no primeiro século de vida, ou pelo menos durante o período colonial,
gravitou dentro da órbita de influência portuguesa” (p. 29), declaração que se justifica
tendoemvistaainconstânciaquantoàdemarcaçãodasfronteirasgeográficasdoEstado.
Campodedisputaentrelusosecastelhanos,aregiãoiniciasuaformaçãoidentitáriaimersa
emumaagitadaatmosferasocial,oqueacabariaformatandonohomemdaqueletempoum
padrãodecomportamentodiferenciadocomrelaçãoaotiponacional,dandoorigemaum
modeloamplamenteexploradopelaliteraturasulina:
acolonizaçãodasterrasdeSãoPedro,(...),seprocessounumambiente
carregado de apreensões, entremeado de lutas cruentas, – o que
contribuiu sem dúvida para supervalorizar os homens de ação, os
soldados,oscomandantes,–todosaquelesqueporsuaenergiaebravura
representassem uma garantia de resistência eficaz às pretensões
espanholas.Asociedaderesultantedesseamálgamadebravoshabituou-
se,porisso,aadmirarequererovalorpessoal,aaudácia,apugnacidade.
Ealiteraturadaregião,comoiremosvernasginasseguintes,tem
aí,nessesentimentocoletivoparticular,suamotivaçãoessencial,seu
primeirofundamentopsicológico.(p.29-30.Grifomeu)
Enquanto o restante do País se desenvolvia espelhado nos moldes culturais do
colonizador europeu, contando já no curso dos anos setecentos com grandes centros de
desenvolvimentoeconômico,alémdealgumasorganizaçõespropriamenteliteráriascomo
aAcademiaBrasílicadosRenascidos,naBahiaem1759,eaAcademiadosSeletos,noRio
deJaneiroem1752
26
,oRioGrandenoperíodocolonialéretratadopeloautorapartirde
um panorama socioeconômico que se caracteriza pela carência de organização,
aproximandoocenárioàsdescriçõestípicasdassociedadesmaisprimitivas:
 
26
Conforme indica Antonio Candido em Formação da literatura Brasileira. Momentos decisivos. Belo
Horizonte:Itatiaia;SãoPaulo:EDUSP,1975.
69
No território continentino, os centros mais populosos eram aldeias
inexpressivas,cujaspopulaçõesviviamdopastoreioedaagricultura.O
gado proliferava nos campos abertos, (...), enquanto a agricultura
praticamenteserestringiaàsexigênciasdo consumo interno. Asúnicas
mercadoriasexportáveiseramotrigo,ocharqueesubprodutosdoboi–
couroegraxa.Opastoreioeaagricultura,exercidosempiricamente,não
seriam, por certo, favoráveis à elaboração de uma sociedade polida,
exigente,quesefizessenotarpeloseupadrãointelectual.(p.35)
Ao focalizar essa conjuntura, investigando o terreno social de onde emerge o
gaúcho, o autor aponta ainda como fator relevante um processo colonizatório
singularmente complexo. Assim, esboça um quadro circunstancial caracterizado pelo
entrecruzamentodediferentespovose,porconseguinte,padrõesculturaisdiversificados,
levadosàinteraçãoemmeioaointrincadoclimabelicosoquecaracterizavaaregião,onde
asdisputasarmadaspelademarcaçãodasfronteiraseramumaconstante–“Osconflitosde
culturaverificadosnoSulvêmdelonge;(...)oferecendoaoobservadormaterialbastante
paraanalisarasociedadedetipoaluvionaldaíresultante”(p.30).
OutropontodiferenciadoficariaacargodaexíguainfluênciaexercidapelaIgreja
na Província. Diferentemente do que ocorria nas diversas regiões do Brasil, em que os
preceitosreligiososbalizavamaformaçãoideológicadaspopulações,ainstituiçãoCatólica
não teria encontrado fácil penetração em uma sociedade marcada pela agitação dos
conflitos,fatorque,dentreoutrasconseqüências,fariacomqueoacesoàeducaçãoficasse
extremamenteprejudicado.
Combasenessemapeamentoqueapontaassingularidadesreferentesàformaçãodo
RioGrande,ohistoriadoracabaressaltandoadisparidadecomquearegiãoSulfoisendo
tratada em seus primeiros momentos, apresentando-nos, assim, uma província isolada e
renegadapelosgrandescentrosdoPaís,marcadaporguerrilhasdedemarcaçõesterritoriais
que colocavam aspopulações sobdomínio oraportuguês, oraespanhol.Em decorrência
dessacondição,oretardodaeconomia,resumidaaumaproduçãovoltadaàsubsistênciada
população,a carênciaquantoà assistênciareligiosa e, porconseguinte,educacional,são
tidoscomofatoresqueigualmentecolaboraramparaqueaformaçãoculturaldogaúchose
dessedemododiferenciadodopadrãogeralbrasileiro.
Contudo,semperderdevistaquenossofocoéoprocessodeescritahistoriográfico-
literáriadeGuilherminoCesar,deve-seponderarqualaimportânciadetallevantamento
histórico-socialpararealizaroestudodaliteraturasulina.Caberessaltarque,investigando
a relevância desses dados, pretende-se, antes de tudo, avaliar em que medida o quadro
70
circunstancialconstruídoseapresentacomomoldurateóricaeinstrumentodearticulação
na comprovação da tese defendida, o que exclui qualquer tipo de pretensão analítica
disposta a verificar a correspondência entre os eventos descritos e a sua possível
“veracidade”, tarefa que as discussões mais recentes no campo da Teoria da História
apontamcomoimpraticável,vistoque:
A história não é (...) nem um quadro repetitivo, nem uma reprodução
redobrada dos acontecimentos passados, mas, sim, uma organização
construtiva específica de elementos, processos, acontecimentos, ações
localizáveisnoespaçoenotemporesponsávelpelaproduçãodesentido.
(...) A história, vista como um todo, não pode ser pensada como algo
objetivo, como um processo real, ou reconhecível, mas apenas e
exclusivamente como uma idéia reguladora para expandir e completar
nosso conhecimento historicamente reconstruído. (BAUMGARTNER
apudRUSCH,1996,p.142)
Em face desse posicionamento, podemos avaliar que as considerações do
historiador exercem uma função muito mais importante do que meramente ressaltar a
singularcomposiçãodasociedadesul-rio-grandense.Dessaforma,oautoracabautilizando
essa pesquisa sócio-histórica como uma espécie de argumento de autoridade capaz de
caracterizarsuatesedeoriginalidadeculturalcomoumdadoplausívelecoerente,umavez
queaatribuladaformaçãodessasociedadelegitimariaadelineaçãodessemodelocultural
diferenciadoatribuídoaohomemdoSul:
Masseosbrasileirosdaraiameridionalviveramaconjurarperigos–os
da guerra não menores que os do pastoreio rudimentar – nada mais
naturaldoqueaaçãopronta,aenergiamuscular,osmovimentosrápidos
que, desde então, passaram a caracterizar o tipo clássico do rio-
grandense.(p.37)

Umpontocomplementarnacaracterizaçãodessaculturaseencontrariadiretamente
vinculadoàsinfluênciasexercidaspelouniversodeondeprovémessetipohumano–No
complexoculturalrio-grandense,emquearegiãodacampanhaentracomapartemaisrica
deoriginalidade”(p.16) –,vistoque,encontrando-seinsuladoaoslimitesgeográficose
culturaisimpostospelasituaçãodescrita,nãopoderiaapopulaçãoencontraridentificação
comoutromodeloqueaqueleaoseuredor:
71
Gaúchoésinônimodehomemdocampo.Afeitoaduraslidas,sobra-lhe
tempoparaconheceranaturezaqueorodeia;(...).Azonadacampanha
crioueimpôsàsociedadenascenteoscaracteresmaisdistintivos,quese
infiltraram em outras regiões, mesmo as colonizadas pelo imigrante
alemãoeitaliano.(p.37)
Ao provar que tais particularidades exercem fundamental relevância na
conformação de um modo de vida diferenciado na população do Rio Grande, mais
identificadacomaagitaçãoerusticidadetípicadaszonasdecampanhadoquecomoviver
dos grandes centros, Guilhermino Cesar consegue delinear o que seria a gênese desse
elementoregionalista,tãocaracterizadordaculturagaúcha.Nessesentido,figuracomoum
ponto indispensável de nossa pesquisa a necessidade de melhor compreender em que
medidaoautorpropõeaarticulaçãoentreessesdadosculturaiseosurgimentodaliteratura
sul-rio-grandense,questãoteóricaqueSiegfriedSchmidtapontacomoumdosproblemas
clássicosdasescritashistoriográfico-literárias.Defendendoatesedequeoshistoriadores
deveriamassumiranaturezaconstrutivistaqueseencontranocernedoprocessodeescrita
historiográfica (literária), sendo, portanto, cada vez mais específicos quanto a seus
objetivosepressuposições/aplicaçõesteóricas,opensadoralemãoalertaparaanecessidade
deseterbemclaraaarticulaçãoentreessasduasesferas,ouseja,entreoprogressodeuma
sociedadeeodesenvolvimentodesualiteratura:
Esse problema, que tem sido considerado peloshistoriadores literários,
desde o início do nosso século, tornou-se tema atual no contexto das
chamadashistóriasdaliteraturasociaisoufuncionaiscentradasnaidéia
de mediação (entre “literatura” e “sociedade”). Embora modelos
diferentes demediação tenham sido desenvolvidosnos últimos anos, o
problema permanece o mesmo: como pode a evolução (ou
desenvolvimento)dasociedadeestarrelacionadaàevoluçãodaliteratura?
(SCHMIDT,1996,p.108)
Entretanto,parapensarmosessamediação,torna-seindispensávelperceberemque
momentoohistoriadoridentificaagênesedessaliteraturaquesedispõeahistoriar.Para
tal,caberecuperaroapontamentodeDavidPerkinsque,aoproporaanálisedehistórias
literárias a partir de considerações próprias à narrativa tradicional, focalizando questões
como o desenvolvimento e a coerência do “enredo”, sinaliza para a importância em se
definirumaorigemparadeterminadaliteratura:
72
Oinícioescolhidotemumextraordinárioimpactosobreomodocomose
apresentaopassadoliterário.Porexemplo,éconvencionalemhistórias
daliteratura descrever-se, emresumo,o estadodos acontecimentosum
pouco antesdo começo da história a ser contada. Já que isso deveser
feitonumbreveespaço,nãosepodelevantarumadiversidadedeestilose
tendências.Os eventos subseqüentes ao momento inaugural, entretanto,
sãonarradosemtodaasuaextensãoe,daí,suavariedadeserregistrada.
Defato,asnecessidadesnarrativas(devehavermudança,devehaverum
conflito) orequerem. Dessa maneira, com freqüência acontece dizer-se
queumafasede relativasínteseouhomogeneidadeprecedeuoperíodo
queéoassuntodolivro.(PERKINS,1999,p.10)
Como indica o teórico americano, Guilhermino Cesar acaba situando a gênese
literária do Rio Grande junto às primeiras manifestações do cancioneiro popular, o que
remeteria aos tempos da colonização. Ao Reconhecer a contribuição das muitas levas
culturaisinclusasnoprocessodecomposiçãosocialdaregião,ohistoriadorressaltanessas
manifestaçõesomodopoéticocomqueversaramsobreseusanseios,amaneiracomque
(re)tratavam o universo ao seu redor, modelo que explicitaria a profunda identificação
entreterra,homemeseuscostumes:
Fora, porém, da temática universal, longe do que pertence ao homem
enquantoser,equeesteexprime,bemoumal,emtodasaslatitudes,há
certotratamento”poéticoque,nocancioneiroparticularemreferência,
traz a marca iniludível dos pagos. São formas originais de exprimir,
acentosfonéticosparticulares,imagenstiradasdapaisagem,daflora,
datoponímia,dosacontecimentoslocais,eeisaíorelevoparticular
que nos interessa, como índice de uma preferência que irá
condicionar,decerta maneira,aproduçãoliteráriaeatémesmoas
tendênciasdamaioriadosleitores.(p.45-Grifomeu)
Comosepercebenotrechoemquestão,ocancioneiropopularnãoéconfigurado
como ponto inicial da literatura sul-rio-grandense unicamente pela tematização dos
aspectosrelativosaocotidianodacampanha.Maisdoqueisso,aoriginalidadedocódigo
de expressão é apontada como um dos elos mais fortes dessa articulação entre cultura
gaúchaesualiteratura,vistoqueafidelidadeàlinguagemtípicadaspopulaçõescampeiras,
preservandosuarusticidadeprópria,configurariaummodeloestéticoderepresentaçãoque
semostrariaconstanteemtodaaproduçãoliteráriasulina,desdeseusprimeiroscultores
anônimosatéosmaisatuaiserepresentativos:
73
Oquevaleacentuar(...)éoseivoso,ooriginaldalinguagemcoloquial
gaúchatãoartisticamentetransladadaàficçãoporumescritoradmirável
comoJ.SimõesLopesNeto.Éavitória,nalutapelaexpressão,deuma
linguagemquependeàterra, buscaraízesno âmago dacampanha.Tal
instrumentodecomunicaçãoforjou-senos“fogões”gaúchos,naslidesdo
campo;deláinvadiuascidades,criandoparaastristescoisasurbanaso
disfarce de nomesingênuos ourudes. Consequentemente, as letras rio-
grandenses não deixaram nunca, nos seus autores fundamentais, de
apresentar um espírito profundamente campagnard. À falta de termo
próprio,usemosoimpróprio:“regionalistas”sãoquasetodoseles.(p.38)
Para delinear as origens e influências mais significativas dessas primeiras
manifestações da literatura oral, Guilhermino procura demonstrar em que medida tais
produções populares podem ser apontadas como representativas na afirmação da
identidade gaúcha. Assim, ainda que reconheça no processo de enriquecimento dessas
manifestaçõesoentrecruzamentodemúltiplasculturasadvindasdoCentroedoNortedo
Brasil, bem como as platinas, o historiador aponta a poesia popular portuguesa como
matriz principal do cancioneiro local – “De qualquer modo, no estado atual das
investigações,élícitoafirmarqueapoesiapopularrio-grandensedenunciaintimamentea
suafiliaçãoportuguesa”(p.44).
No entanto, embora ambas se aproximem tendo em vista semelhanças formais,
geralmentequartetosdeinspiraçãolíricaemredondilhamaior,oautorreivindicaàpoesia
sulina certa originalidade no tratamento dos temas, que em suas releituras assumem os
feitios do vivergaúcho, expressando artisticamente asmarcas dessa cultura local –O
tratamentodadoaomotivocentral,aroupagemqueoveste,oscostumesquerelembra
anda no afeiçoamento da copla citada o estilo de vida do guasca, sua voluptuosidade
amorosa, seu orgulho de homem.” (p. 45). Contudo, um dos fatores apontados como
principalsingularidadedessasmanifestações,equeosódiferenciariaapoesiapopular
sul-rio-grandense do modelo português como também das demais manifestações do
folclore brasileiro, seria a supressão de sentimentos de subserviência religiosa,
característicaquesejustificariatendoemvistaaexíguainfluênciadainstituiçãoCatólica
na formação desse povo, dado devidamente apontado no levantamento histórico
apresentadopeloautor:
Sem embargo da sua provada vinculação a Portugal, o cancioneiro
gaúcho se apresenta quase estreme da ingênua devoção religiosa que
encharca o seu irmão português. Difere também, nesse particular, da
maioriadassilvaspopularesdorestodoBrasil.(p.45)
74
Ainda que reconheça tal originalidade na exploração dos temas, reforçando a
identificação intrínseca entre a cultura local e suas primeiras amostras literárias,
GuilherminoCesaracabarealizandoimportanteavaliaçãoacercadacontextualizaçãodessa
literatura.Assim,aovincularasprimeirasmanifestaçõesliteráriasdoEstadoaummodelo
deinfluênciaportuguesa,maisdoquedefinindoumacaracterizaçãoestética,ohistoriador
acabaapontandoumaraizcomumentreasproduçõesdoRioGrandedoSuledorestante
doBrasil,assertivaqueganhamaiorimportânciaserecuperarmosalgunspontospropostos
nolevantamentosócio-históricoanteriormenterealizado.
Ao observar o ambiente conflituoso causado pelas guerrilhas de demarcação
territorial, o autor ressaltava a instabilidade desse modelo europeu como ponto de
referência para a formação cultural do povo gaúcho, que principalmente nas zonas
fronteiriçastinhaatradiçãoplatinacomopadrãodereconhecimentomaispróximo,dado
quelevariaosprimeiroscronistasehistoriadoresainvestigar,eatéacontestar,aconexão
entreaculturasulinaebrasileira
27
.Dessaforma,aoproporessavinculaçãolusaàpoesia
popular gaúcha, podemos considerar que o historiador demonstra a pretensão de
circunscreveroEstado,noqueserefereàproduçãoculturaleliterária,noâmbitomaiordo
sistema brasileiro, postura semelhante à encontrada na escrita de seu predecessor João
PintodaSilva.
No curso de seu raciocínio, eximindo-se de qualquer discussão que pretenda
discutiraautenticidadecomrelaçãoaosprincipaistemasdocancioneirolocal,tendoem
vistaanoçãodeque“todasasliteraturaspopularesdoOcidenteseinterpenetram;fundem-
seosmotivos,naessênciaosmesmos–oamor,aalegria,oluto,osofrimento,amorte.”
(p.44),ohistoriadorprocuradefinirdequemaneiraessastemáticas,aindaqueuniversais,
foramtraduzidasapartirdaóticadosgaúchos.Nessesentido,dialogandocomosestudos
de João Pinto da Silva e Augusto Meyer, o autor ressalta a precisão com que esses
estudiosos definiram a releitura de alguns temas pela poesia oral do Sul, como, por
exemplo,atemáticadoamor.Segundoessesautores,aoriginalidadedessasinterpretações
ficaria acargo da exaltação da belezafísica feminina, aafirmação da masculinidade do
 
27
No sexto capítulo de sua obra, Guilhermino Cesar ressalta que alguns dos primeiros cronistas e
historiadores,aoproporemestudosculturaisacercadaProvínciadeSãoPedro,percebiam-naapartirdeum
contextoqueenglobavatodaaregiãosuldocontinente,comosugereotrecho:“Até1870,preocupam-seos
cultoresdahistórialocalemesclarecernotadamenteasorigensdoRioGrande,reunindodomesmopasso
materialparaestudosmaiscompletosacercadasMissões,duranteadominaçãoespanhola.”(CESAR,1971,
p.136).
75
gaúcho,edoseulatentedesejosexual–“Aconfissãodoamortroveiroserve-lheauma
afirmaçãodemasculinidade,defomesexual.(...)Abelezafísicavalemaisquetodasas
outrasprendasfemininas. (...)Oguascaésemprepositivoeviril” (p.47-48)–,ou seja,
umaespéciedetraduçãodessemotivoque,apesardeuniversal,diferedasreleiturasdeum
amoridealizadoencontradasemoutraspartesdoPaís,umavezqueéadaptadaaoestilode
vidadoPampa.
Ainda que grande parte das peças desse cancioneiro tematizem o modo de vida
campeiro,Guilherminoregistraaimportânciadosdebatesentreosideaismonarquistase
liberais, sobretudo durante a gesta de 35, como um dos motivos responsáveis pela
maturaçãointelectualdoEstado.Alémdaagitaçãosocialtípicadeumarevoltaarmada,a
Revolução Farroupilha conclamaria a população a refletir sobre as causas do levante,
estimulandoacriaçãodegruposque,emsuagrandemaioria,semostravamidentificados
comacausarevolucionária,cantandoosfeitoseacoragemdosrebeldes:
Quempercorraocancioneirogaúchoperceberábemvivasaspegadasdo
heroísmo farrapo. A redondilha maior, medida familiar ao descante da
gentesimples,foiapreferidanalouvaçãodosnomesefeitosquemais
impressionaramaimaginaçãopopular(...).Apoesiapopular,encarando
temas e situações pelo prismados sentimentoselementares, não podia,
comsobradasrazões,terafinidadescomosdefensoresdamonarquia.Foi
todaparaBentoGonçalves,Canabarro,Garibaldi,Neto,paraosgloriosos
imprudentesdePiratini,aadmiraçãoenternecidadoscantores.(p.50)
Ao reconhecer os quartetos heptassílabos como forma predileta do cancioneiro
local,ohistoriadorrecuperaumadiscussãoquefoicomumemtrabalhoshistoriográficos
predecessores
28
,queigualmenteestranharamofatodeolirismoconfigurarnapoesialocal
umapreferênciaemdetrimentodaépica,mesmotendoemvistaoespíritoguerreiroque
caracterizaraociclofarroupilha.Quantoaessaquestão,GuilherminoCesarprocurairalém
da explicação proposta por João Pinto da Silva, que atribui tal fato às influências da
colonização, visto que essa tendência ao extravasamento lírico seria uma herança
portuguesa; ou mesmo com relação ao apontamento de Moisés Vellinho, que acaba
concluindoquetalomissãoseriaa“contraprovamaisexpressivadequeentrenósaguerra
correspondeuapenasaumacontingênciahistórica,nuncaaumprogramaouidealdevida”
 
28
O historiador afirma que essa preocupação foi um fator comum aos trabalhos de Jo Pinto da Silva
(História literária doRioGrande do Sul, 1924), Moisés Vellinho (Letras daProvíncia, 1944) e Augusto
Meyer(Cancioneirogaúcho,1952).
76
(VELLINHOapudCESAR,p.51),fatorqueteriaenfraquecidooacontecimentoenquanto
motivaçãoartística.
Ohistoriadorprocuraexplicarofenômenoemquestãoatravésdadefiniçãodeum
conjuntodecaracterísticastidascomoindispensáveisparaoaparecimentodaépica
29
–Os
romancespopularessãosímbolosdedevoção.Épreciso,porassimdizer,quecertoespírito
religioso – aceitação do mistério, do sobrenatural – intervenha para lhes dar corpo e
conteúdo, forçae perenidade.Onde falta oelementodevocional,mistode amore pena,
admiração e medo – não se criam romances.” (p. 51). A partir dessa consideração, a
omissãodesseespíritoépiconasprimeirasmanifestaçõesliteráriaséjustificadanãosópela
ausênciadessadevoçãoàreligiosidade,masprincipalmentepelaincompatibilidadeentre
essasexigênciaseosideaisintrínsecosàideologiadosrevolucionários:
Ora,oschefesfarroupilhasmaisgloriosos,aquelesqueporsuabravura
seriam capazes de inspirar a chanson cíclica, eram no fundo, sem
embargodetudo,heróisàmoderna.Utilizavamarmaserecursosdegente
da cidade.E o se haviamsublevado por motivosobscurosde crença
cega ou unção mística. Terçavam armas num entrevero político.
Chefiavam homens livres, ciosos de suas opiniões. E em todos os
instantespensaramemdaraopovoumaestruturadeestadomoderno,um
regimesegundoamelhortradiçãodopensamentodemocrático,comose
viu através da Constituição de Piratini, precursora do nosso direito
constitucionalrepublicano.
Onde encontrar, portanto, a feição rude, instintiva, os sentimentos
contraditóriosdoschefesdebandoqueatuamnapenumbra,tãopropícia
àelaboraçãodafantasia?(p.51-52)
Guilherminoprocuraanalisaremquemedidaessasmanifestaçõesdocancioneiro
local acabaramexercendo influência sobreachamada “poesiaculta”.Nesse sentido,ele
ressaltaarelevânciadotrabalhodepoetasetrovadorespopularesnamaturaçãoartísticade
muitosdostemaseimagensquecaracterizamoquehádemaisoriginalerepresentativona
literaturagaúchaatéaatualidade,aindaqueemalgunsmomentosesseespíritoregionalse
tenhaenfraquecido:
Apeonadadaestância,revivescênciadomonarcadascoxilhas,estáhoje
emdecadência;(...).Masnosvelhostemposdavidacrioula,quandoos
trabalhosdocampo,asguerraserevoluçõesacendiamosangue,pedindo
audáciaevalentia,“ogaúcho”foiumarealidade.Apoesiacultarondou-
lheopala,aschinelasagudas,osombrero,aadaga.Imitou-lheogesto,a
fala,ogostodasimagenssimples.(p.62)
 
29
Ohistoriadorusaotermo“romanceiro”,ou“romancespopulares”,parasereferiraospoemasépicos,oque
nãopodeserconfundidocomogêneroromanescodasnarrativasemprosa.
77
No entanto, ainda que a tradução poética dos sentimentos e da cultura gaúcha
configureopontoenaltecedordaliteraturaoralsul-rio-grandense,ohistoriadorsugereque
a principal contribuição dessas manifestações o estaria somente vinculada a
colaboraçõesdeordemtemática,masprincipalmenteàmanutençãodaoriginalidadedeseu
códigodeexpressão–“Qualquerquesejaaorigem,ovalordocumental,aforçalírica,a
motivaçãogenuinamentegaúcha,osmeigostraçosportuguesesdonossocancioneiro,uma
coisaéevidente:oqueneleexistedemaisrudeecaracterísticodolinguajardacampanha
exerceu poderosa influência na poesia culta
.”
(p. 62) –, particularidade das mais
representativasdessaformaçãoidentitária,queéexplicadaapartirdosmesmoscritérios
responsáveispelaformaçãoculturalsingular:
A vida ativa, carência de escolas, pouca influência do clero e dos
clássicose,afinal,asegregaçãodorestodopaís,atuaramprofundamente
paradiversificaralínguaportuguesafaladaeescritaaosuldalinhamédia
nacional,noquetangeaovocabulárioeàprosódia.(p.38)
Ao acompanhar as considerações de Guilhermino Cesar acerca do conceito de
regionalismo, que suscitou a atenção de um dos principais nomes do Modernismo
brasileiro,percebe-sequeaprincipalteseaserdefendidaéadequeaforçadaliteratura
rio-grandense se encontra na expressão dessa intrínseca relação entre as produções
literárias e os valores mais caracterizadores da cultura gaúcha, forjada a partir das
exigênciasdeumconturbadoprocessodecomposiçãosocial.
Nesse sentido, percebe-se que o autor lança mão de consistente estudo sócio-
histórico acerca das particularidades referentes à composição social do Estado como
argumento capaz de validar sua teoria de que questões como o isolamento geográfico,
econômicoecultural,oclimabelicosodaregião,oconturbadoprocessocolonizatório,a
exígua influência da Igreja e o difícil acesso à educação, atuariam como fatores
responsáveispelaconfiguraçãodeumpadrãoculturaldiferenciadonopovogaúcho,mais
identificadocomaagitaçãoearusticidadetípicasdaszonasdecampanhadoquecomo
modeloculturaldosgrandescentrosdoBrasil.
Umavezdefinidaagênesedessasingularidade,ohistoriadorpropõeumaespécie
de relação dialógica entre cultura e literatura, visto que ao mesmo tempo em que essa
tradiçãoalicerçaasprimeirasmanifestaçõesartísticasdoRioGrande,essas,aopoetizarem
ovivertípicodohomemdoSul,reiterandoseusanseios,valoresefeitosheróicos,acabam
conferindo maiorforçaaos valores dessatradição,o que,como passardos tempos, faz
78
dessavinculaçãoàsraízesregionaisumaespéciedeidentidadeculturaleliteráriadoRio
Grande do Sul. Nessa medida, ao situar a origem da literatura gaúcha nas primeiras
manifestaçõesdocancioneirolocal,maisdoquecomprovarqueessaliteraturajánascesob
o signo do regionalismo, o autor acaba delineando as principais feições temáticas e
estilísticas dessas primeiras amostras, o que o leva a concluir que, se, por um lado, o
lirismoportuguêsatuacomoprincipalreferênciaestéticadapoesiapopularsulina,ponto
queaproximaas produçõessulinasdasnacionais,por outro,é inegávelomodo original
comqueospoetasetrovadoresgaúchosversaramcertostemasque,apesardeuniversais,
eram traduzidos pela ótica dos pampas, impedindo qualquer assimilação passiva de
tendênciasestrangeiras:
Omododeviverdogaúchoestampa-senaarteliteráriacominsistência
quechegaasermonótona.Nãosecopiaramporaqui,deliberadamente,
modelos portugueses ou espanhóis; quanto aos franceses, foram
assimilados por via indireta, através de outros brasileiros, depois,
portanto, de já batizados de verde-e-amarelo. (...) E se a literatura rio-
grandensesurgiudisforme,instintiva,comoimperativodanecessidadede
comunicaçãoartística,nuncalhefaltouoquehojetantoseprocura–cor
local.(p.39)
Aocomprovarqueo elementoregionalistaatuacomo umaespéciedeidentidade
cultural eliterárianoEstado,ohistoriadoracabademarcandoejustificando seupróprio
trabalhoenquantopesquisador,vistoque,indiretamente,revelaqueaconstruçãodeuma
história literária do Rio Grande do Sul não estaria fundamentada somente em aspectos
geográficos, mas embasada no fato de que a região, e, por conseguinte, sua produção
literária,guardariamparticularidadesqueasdiferenciamdosaspectosmaiscaracterísticos
dorestante doPaís. Nessesentido,o autorpreenche umalacunaapontada porSiegfried
Schmidtquandoanalisaalgumasdeficiênciasdashistóriasliterárias–“Oquedeveriaouo
quepodeseradimensãodahistórialiterária:literaturaregional,nacional,internacional?”
(SCHMIDT, 1996, p. 105) –, pois, uma vez que entende o processo de escrita
historiográfico-literária comoconstrutodiscursivogovernadopor conceitos, estruturas,e
processoscognitivosauto-reflexivos,emqueaplausividadeeacoerênciadasrelaçõesatua
como critério valorativo, tem-se que essa institucionalização do regionalismo como
elementocentraldaliteraturario-grandenseconfiguraumdospontosnorteadoresaserem
respeitadosnessaescritahistoriográfica.
79
Ainda,caberessaltarqueaodefinirocancioneiropopularcomogêneseliteráriado
RioGrande,ohistoriadornãoestáapontandooqueseriaaorigemdosistemaliteráriosul-
rio-grandense, mas reconhecendo nessas manifestações o ponto inicial de um modelo
estético-temático de representação artística que se mostrará constante nos diversos
momentos da produção literária da região. Tal diferenciação torna-se evidente quando
afirma que “Durante o período colonial, não houve atividade literária, em língua
portuguesa, no Rio Grande do Sul” (p. 32), situando cronologicamente essa atividade,
compreendida como produção de material artístico/literário produzido conscientemente
visando a um público específico, em data posterior à implementação da imprensa no
Estado:
Desdequandoseregistraramatividadesartísticasporaqui?Édifícildize-
lo.Antesdaimplantaçãodaimprensanaprovíncia,em1827,nacidade
dePortoAlegre,nãohánotíciadeatividadeliteráriapropriamenteditano
vasto território continentino. (...) O mais certo seria dizer que desde a
fundação do presídio, depois cidade,do Rio Grande, atépelo menos a
Independência,nãohouvelazeres,nemcultura,nemambientepropícioà
criaçãoliteráriaquesecomunicasseaopúblico.(p.33-34)
Ao considerar essa distinção, podemos reconhecer na escrita historiográfica de
Guilhermino Cesar postura semelhante àquela evidenciada na Formação da literatura
brasileira, de Antonio Candido, haja vista que ambos os trabalhos se propõem a
diferenciar as manifestações literárias de uma produção mais consistente, ou seja,
preocupam-seemdemonstraracomplexidadedoconceitodesistemaliterário,noçãoque
exige sejam considerados, além de algumas dominantes internas (de ordem estética,
temáticaelingüística),outrosfatoresdearticulaçãoexternaresponsáveispelodinamismo
dessesistema,comoasinstânciasdaprodução,distribuição,recepçãoeinter-relaçãocom
aspectosdaesferasocial
30
.
SeGuilherminoCesarafirmaquedesdeasorigensoregionalismoatuacomomarca
da originalidade e princípio norteador da produção literária do Sul, vejamos em que
medidaesseconceitoserelacionacomosurgimentodeumaliteraturamaisconsistentee
articuladacomrelaçãoàsprincipaistendênciasestéticasdaliteraturanacional.
 
30
CaberegistrarqueGuilherminoCesarnãoutiliza,especificamente,otermo“sistemaliterário”quandotrata
daatividadeliterárianoRioGrandedoSul.Entretanto,nocursodenossainvestigação,foipossívelconstatar
que o conceito de “complexo cultural sul-rio-grandense” criado pelo historiador da literatura gaúcha em
muitoseassemelha à idéia de sistemaliterárioproposta por AntonioCandidona escrita da Formaçãoda
literaturabrasileira,de1959.
80
4.2.2–Revolucionáriosenacionalistas:umaliteraturaindiferenteaoPampa?
Uma vez que configura a intrínseca relação com a cultura local como ponto de
singularidadedaliteraturasul-rio-grandense,GuilherminoCesaracabademonstrandoque
essa produção, desde suas amostras iniciais, fez do regionalismo seu aspecto mais
caracterizador, traço que atuaria como uma espécie de marca identitária. Entretanto, o
historiadornãodeixadereconhecerqueseporumladootratamentodadoaostemaseà
linguagem são aspectos que garantiriam originalidade às primeiras manifestações, por
outro, é inegável o fato de que o cancioneiro gaúcho teria como influência estética o
lirismoportuguês.
Diante dessas constatações acerca dos primeiros momentos literários do Rio
Grande, devemos avaliar em que medida o panorama até então configurado atua como
ponto relevante na formação de um segundo momento das letras sulinas, em que a
maturaçãointelectualdaProvínciaproporcionaàliteraturaultrapassaroníveldaoralidade
ealmejarumaproduçãomaisconsistente.Nãoobstante,deve-seigualmenteponderarde
queformaohistoriadorjustificaadinâmicaentreasmudançassócio-culturaisdessaregião
dispostaasuperaroespíritocolonialeastransformaçõesocorridasnoâmbitodaliteratura,
questãoqueexigesejamconsideradaspressuposiçõesteóricasdiversas.
SegundoAntonioCandido
31
,nocontextodasdiscussõesacercadamediaçãoentrea
evolução/transformaçãosocialeliterária,críticaehistoriografiade basesociológicatêm
demonstrado,tradicionalmente,certainconsistência,ounão-especificidade,quantoàexata
formulaçãodesuasteorias,métodoseobjetivosanalíticos,sendocomumque,emalguns
casos,asociologiasejaelevadadoplanodedisciplinaauxiliar(nãopretendendoexplicaro
fenômenoliterárioemsi,masapenasesclarecendoalgunsdeseusaspectos)àcondiçãode
instrumento pretensamentecapazde esclareceratotalidade dofenômenoartístico, ainda
queumestudiosomaisatentodevaperceber“omovimentodialéticoqueenglobaaarteea
sociologia num vasto sistema solidário de influências recíprocas” (CANDIDO, 2000, p.
24). No âmbito das mais recentes discussões metateóricas acerca da investigação das
relações de contribuições mútuas entre sistema social e literário, encontram-se
 
31
Veraesserespeito:Literaturaevidasocial.In:CANDIDO,Antonio.Literaturaesociedade.Estudosde
teoriaehistórialiterária.SãoPaulo:LisGráficaeEditora;2000.p.17–40.
81
posicionamentoscomoosdoteóricoalemãoJörgSchönertque,atentandoapreocupações
semelhantesàsreferidaspelocríticobrasileiro,enfatizaarelevânciadeseesclarecer,no
cursodoprocessodeanálise,componentesteóricostidosporfundamentais:
Dentrodelimitesmaisestreitosdeumahistóriasocialdaliteratura,torna-
se necessário esclarecer também: 1) a área do objeto; 2) a correlação
entreoobjetoliteratura”eoutrosobjetosdapesquisasocio-histórica(a
“teoria dos contextos”); e 3) a correlação entre a “história interna” da
literatura e os processos históricos das “condições externas”.
(SCHÖNERT,1996,p.173)
Apartirdessasconsiderações,devemosindagardequeformaGuilherminoCesar
correlacionaaspossíveistransformaçõesinternasdesseobjetoliteratura”tendoemvista
dadosdaesferahistórico-social,bemcomoemquemedidasemostraconscientedeque,
enquantoconstrução historiográfica quecoloca o fenômenoliterário emprimeiro plano,
suapesquisadeveterexplicitamentecomometafazerdosdadosdahistóriaesociologia
sul-rio-grandensesinstrumentosacessóriosdeinvestigação.
Tendo em vista a situação social diagnosticada nos primeiros momentos do Rio
Grande–“paraumapopulaçãoavaliadaempoucomaisde106.000almasnoanode1823,
asescolaserampraticamentenenhuma,(...)nãopossuíaem1823senãotrêsdeseusfilhos
formadosequatroemestudosforadoBrasil,emCoimbra.”(p.68-69)–,percebe-sequea
dinâmicadoprocessodetransformaçãointelectualdoEstadoconfiguraumdospontosque
instigamohistoriador–Comoseprocessou,emtãopoucotempo,aevoluçãodequenos
dá notícia a história literária? Como poderiam os rio-grandenses oferecer ao país, mal
transcorridos vinte anos da instalação do primeiro prelo, uma poetiza como Delfina
BenignadaCunha,portadoradenobreinspiraçãolírica?”(p.69).
Aoinvestigaraquestão,oautoravaliaqueessamudançadeperspectivapodeem
muitoseratribuídaàmovimentaçãoemtornodeumacontecimentodaesferaextraliterária.
Assim sendo, considerando a agitação mental causada pela Revolução Farroupilha, que
conclamaria os mais instruídos aos debates em torno dos ideais revolucionários, o
historiador define o acontecimento como divisor de águas no âmbito da maturação
intelectualdasociedaderio-grandense:
82
FoiprecisoqueeclodisseaRevoluçãoFarroupilha,conclamandotodasas
energias válidas, dando azo a que se improvisassem os mentores
intelectuais de ambas as facções, foi preciso que as necessidades da
propaganda multiplicassem os jornais, foi preciso uma catástrofe para
evidenciarcomoseenrijaracomrelativabrevidadeamentedaprovíncia
(p.69)
AindaqueabatalhacontraoImpériobrasileirosejaobjetodeinvestigaçãosituado
muito mais no campo da história e da sociologia que propriamente da literatura,
GuilherminoCesarjustificaaligaçãoentreastransformaçõesdaordemsocialeliterária
medianteaatuaçãodeumórgãoessencialparaodesenvolvimentodeambosossistemas.
Dessaforma,destacaarelevânciadaimprensaenquantoinstrumentoativonaveiculação
deideaispolíticos,defendendoargumentosprósoucontráriosaolevantefarrapo.Maisdo
que proporcionar a circulação dessas opiniões em domínio estadual, as publicações
regulares favoreceriam ainda o intercâmbio de idéias com outras regiões do país e do
exterior,vistoqueaspáginasdosperiódicosconfiguravamcampodediscussãoacercade
ideologiasqueeramatéentãodesconhecidasnaProvíncia
32
:
Pelo menos, a imprensa do RioGrande doSul, no período que vai da
instalação do primeiro prelo (1827) à Constituição de Piratini (1843),
registra uma vibração política seguida de perto por preocupações de
ordemliteráriaempelomenosseiscentrosprincipais–PortoAlegre,Rio
Grande, Pelotas, Caçapava, Rio Pardo e Alegrete. A prolongada luta
interna, sob esse aspecto, foi um bem. Favoreceu acentuadamente o
intercâmbiodeidéiascom outrasregiõesdopaís, e mesmodo exterior
recebeuestímulos,carregadospelolivroeporhomenscomoGaribaldi,
Rossetti,ZambeccarieAnzini.(p.69-70)
Ao considerar esse conturbado período, Guilhermino Cesar aponta o grande
númerode periódicos
33
quecirculavapelasmaisdiferentesregiõescomoamaisnotável
relevância para o amadurecimento da literatura, que no influxo dos acirrados debates
políticosencontrariaatravésdosjornaisumespaçodeveiculaçãoregularedinâmico.Além
disso,outropontotidocomodeextremaimportâncianoâmbitodaquestãoficaacargoda
formaçãodegruposrivaisque,travandobatalhasintelectuaispelaspáginasdaimprensa,
manejavam o verso na defesa de suas ideologias políticas “De um lado e de outro,
homensaguerridos,separadosemduasfacçõesdistintas–revolucionárioselegalistas,ou,
 
32
Oautorafirmaemnotaque,aforaasidéiasliberaisdifundidasporestrangeirosdenotadaparticipaçãona
revolução, muitos escritos difundindo ideologias liberais do século XVIII circulavam pela Província,
traduzidosemespanhol.Veraesserespeito,nota55,p.70.
33
Nosubcapítulointitulado“Aimprensa”,ginas89a91,oautorlistaosmaisrelevantesperiódicosque
circulavamnoRioGrandedoSulnoreferidoperíodo.
83
para adotarmos a terminologia da época, ‘republicanos’ e ‘imperiais’, ‘farroupilhas’ e
‘caramurus’”(p.72).
No que diz respeito a essas coligações, que, por exemplo, contavam no lado
imperial coma contribuição denomescomoDelfina Benignada CunhaeAnaEurídice
Eufrosina de Barandas, bem como Sebastião Sarmento Mena e Francisco Pinto da
Fontouradolado farrapo,Guilherminoafirmaque suaintençãoéa derealizar oexame
dessematerialtendoemvistaapossibilidadededelinearaatmosferaliteráriaesocialdo
ciclofarroupilha.Assim,aoproportalinvestigaçãoacercadaobradoschamadospoetas
darevolução”,oautordemonstraumposicionamentoquealémdeexplicitarasdiretrizes
de sua pesquisa se mostra coerente tendo em vista a proposta inicial contida em sua
“Introdução”,quesinalizaparaatentativadeconstruirumahistórialiteráriaqueultrapasse
o simples levantamento arqueológico da produção gaúcha, ou que fique restrita a uma
apreciaçãocentradanoestudoestético-temáticodescontextualizado,ouseja,comoindica
inicialmente,seutrabalhodemonstrapreocupaçãoemfocalizarainterrelaçãodaliteratura
localeochamado“complexoculturalrio-grandense”:
Oestudodetaispoetasseriaperfeitamenteescusadonumahistóriaque
procurasse, de preferência, fazer ressaltar os valores estéticos mais
genuínos.Nãoéissooquepretendemos.
Desejamos consignar, sem demasiado sacrifício para a arte literária
considerada em sua integridade, ao lado dos grandes artistas, os
pequenos,humildesecanhestroscultoresdapoesiaedaprosa,averse
conseguimos, assim, discernir melhor as coordenadas gerais da
culturario-grandense.(...)Eassimprocedendo–notocanteàquela
fase–queremosaindacontribuirparaqueagranderevoluçãotenha
estudados, numa história literária, os reflexos sentimentais, as
motivações psicológicas, o colorido particular que a prolongada
carnificina não podia deixar de impor ao comportamento artístico do
povogaúcho,naquelestemposenosimediatos.(p.71-Grifomeu)
Debruçando-se sobre essa produção, Guilhermino Cesar identifica o verso como
formademanifestaçãopreferencialdosescritoresdoperíodo
34
,pontoque,segundoseus
critérios, seria revelador de uma imaturidade literária – Mas a própria ocorrência
exageradadeversejadores,emdetrimentodaprosa,denunciaoatrasodaprovíncia”(p.71)
 
34
GuilherminoCesarafirmaquedentreaspoucasmanifestaçõesnarrativasdesseperíodooseencontram
textosficcionais,oquesejustificariapelascondiçõessociaisdeentão:“Aprosaliteráriapoucoprogrediu,
duranteesse período.Estudando-o,oencontramosnenhumficcionalista,comoécompreensível,dadaas
condiçõespeculiaresdaculturario-grandense”(CESAR,1971:86).Nessesentido,algunstextosdecaráter
narrativo como “diários” ou “memórias” são referidos como publicações que registraram, por meio da
narração,osacontecimentosdaépocadaRevoluçãoFarroupilha.
84
–, anacronismo que poderia ser facilmente percebido através da análise estética dessas
peças – Nem querem dizer outra coisa os inúmeros poetas daquele ciclo, os quais
raramente ousaram ultrapassar odecassílabocamoniano oua redondilhamaior de gosto
popular.”(p.71).Noentanto,seporumladoessematerialdenunciaoatrasoliteráriodo
Rio Grande, afirmativa que reitera a tese anteriormente mencionada que analisou a
formação cultural do Estado em descompasso com relação ao parâmetro nacional, por
outro,ohistoriadorcompreendeainvestigaçãodessesescritoscomotarefaenriquecedora
na medida em que proporcionaria um melhor entendimento da mentalidade daquela
sociedadeduranteainsurgênciadarevoltaarmada–A
safrapoéticadoperíodo,senãoé
abundante,(...),écontudosuficienteparanosdarumaidéiadaobstinadapaixãocomqueo
povorio-grandenseviveuoinstantemaisbeloedolorosodasuahistória.”(p.72).
Seoestabelecimentodeunidades,períodosecategoriasdiferenciadasésempreum
ponto conflituoso no que concerne à escrita de histórias literárias, Guilhermino vem a
justificararotulaçãodepoetasdarevolução”atribuídaaessegrupodeescritoresnãosó
tendo emvista umcritério temporalcoincidentecom aguerra de1835, mas,sobretudo,
baseando-senaidentificaçãodeumconjuntodedominantesdeordemestéticaetemática
que lhes garante certa homogeneidade. Nesse sentido, o primeiro elemento de
uniformidadepodeserpercebidopelaexploraçãoartísticaemtornodo principalassunto
daquele momento,fazendo com quea poetizaçãoacercadas particularidades universais,
bemcomoasdaculturaregional,fossemdeixadasdelado:
Poucos dos autores citados, (...), compuseram obra lírica,
desinteressadamenteliterária.Dãoaimpressãodeteremsidoatraídosao
manejodoversotãosópelacausaemnomedaqualempunharamarmase
saíramapelejar.Oamor,amelancolia,omedo,odesamparo,omistério
da vida e suas infinitas variações, isso lhes foi indiferente. Havia um
perigoàvista:tornaram-sepoetasporinstintodeconservação.Oscarmes
amorosos ficariam para depois, quando fosse ganho o último combate.
(p.72-73)
Quanto aesseaspecto,a exploraçãodo motivodaRevoluçãodeve serpercebida
comorelevantenaconfiguraçãodessaunidadenãosótendoemvistaopapeldeelemento
integradordessegrupodeescritores,mastambémnamedidaemqueatuacomotraçoque
estabelece uma rupturano contexto deuma histórialiterária queparte da tesede que o
regionalismo seria o principal elemento coesivo de sua produção. Sendo assim, a
identificação dessemomentocomodiferenciado,resultandonessa cisãohistoriográfico-
85
literária”, pode ser reforçada se tomarmos como referência o conceito de literatura que
caracteriza esse momento, visto que no referido período a arte literária do Rio Grande
abandonaria seu traço principal, a poetização dos aspectos mais particulares da cultura
gaúcha, para apresentar-se como instrumento em prol de um engajamento ideológico-
políticoquetraduziriaosanseioseconflitosdaqueletempo,merecendo,portanto,destaque
nocontextodatradiçãoliteráriasulina.
Aodedicar-seaoexamecríticodosescritosdessespoetas,GuilherminoCesartem
como pontode partidaosestudos deAlcides Lopes Millere ApolinárioPorto Alegre
35
,
trabalhos que propuseram reunir em livro tais manifestações. Dessa forma, um dos
primeirospontosaseremressaltadosemsuaanálisegiraemtornodaquestãodalinguagem
que,dependendodoposicionamentoideológicodecadapoeta,manifestava-senosentido
deexaltaçãodasvirtudesoudeumataquepolíticoepessoalemquesesalientaotomde
agressividade,comopodeserpercebido,porexemplo,nosdiversospoemas“dedicados”a
BentoManuelRibeiro,queporserpartícipedosdoisosladosdaRevoluçãoacabariasendo
rechaçadoporambos:
BentoManuelRibeiro,umadasfigurasmaisdiscutidasdarevolução,por
terparticipado,oradeum,oradeoutrodosgruposcontrários,alémda
execraçãopopular,foialvomaiscruelmentevisadopelapoesiaanônima.
“Homem sem caráter, sem moral”; estúpido animal”; “escravo de um
déspotaexecrado”, eiso que de suave eternodiz deleum poetapelas
páginasdoAmericano.
Cito tais expressões, bem poucoliterárias,paramostraraque excessos
verbais chegaram esses homens simples, compelidos de um dia para o
outroadefenderumacausaapaixonadamente.(p.74-75)
Aindaqueumpontodegrandedestaquedessecenáriofosseaamplaliberdadede
expressão com que esses grupos veiculavam suas opiniões, chegando muitas vezes a
polêmicoseagressivosexageros,ohistoriadorconsegueidentificaremalgumasproduções
traçosquelhepermitemestabelecerumaperspectivacomparatistacomrelaçãoapadrões
estéticos do conjunto nacional, bem como do panorama ocidental. Tal posicionamento
podeserpercebido,porexemplo,quandooestilodeumpoetarevolucionáriocomoPedro
CangaéaproximadoàtécnicadecomposiçãoempregadaporManuelMariadoBocageem
algunsdeseusversos:
 
35
Na análise realizada acerca desse momento, o historiador recorre, basicamente, aos textos Poetas
farroupilhas,in“AnaisdoIVCongressodeHistóriaegeografiasul-rio-grandense”,deAlcidesLopesMiller,
edoCancioneirodaRevoluçãode1835,publicaçãopóstumadeautoriadeApolinárioPortoAlegre.
86
O improviso poético, na literatura portuguesa, grassou em caráter
endêmico depois da fama criada por Bocage com as suas facécias
rimadas. No Rio Grande das primeiras cadas do século XIX, foi
tambémassim:aglosapassouaser,paraosletrados,ocúmulodaartee
dobomgosto.Inclusivepoetasincultos,comopareceserocasodePedro
Canga,seafeiçoaramatalgênerodepoesia.(p.76)
Dentreosmuitosnomeselencados,GuilherminoCesarapontaSebastiãoXavierdo
Amaral Sarmento Mena como o grande expoente artístico do período, não só pela
influência exercida sobre seus contemporâneos, e pela cultura atestada na tradução de
obras de pensadores franceses como La Fontaine e Antoine Houdar de La Motte, mas
principalmenteporconseguiramalgamaremseusversosoengajamentopolíticotípicoà
épocacomtraçosestilísticoscomparáveisaumdospoetasmaisrepresentativosdapoesia
portuguesa:
Masésobretudocomopoetadarevoluçãoqueelehádeserconsiderado.
Cultivouaodesáfica,àmaneiradeFilintoElísio(inclusivenadurezada
forma e nas inversões oracionais), tendo com o seu modelo mais uma
afinidade – era um gênio intratável. Negando à poesia o seu primeiro
fundamento – a sugestão – quis fazer dela uma arma muito acerada e
muitoobjetiva.(...)
Como o seu mestre português, passeia pela mitologia; político, cita
abundantementeosfranceseseamericanosliberais,combateaescravidão
esonhaarepública.(p.77-78)
Ao investigarmos as técnicas de construção historiográfica utilizadas por
Guilhermino Cesar, podemos deduzir que ao empregar uma ótica comparativa que
estabeleceparaleloentreasmanifestaçõesliteráriassulinaseosestilosdecomposiçãoque
caracterizampoetascomoBocageeFilintoElísio,ohistoriadoraomesmotempoemque
reivindica um traço qualitativo a essa produção que, ainda incipiente, se manifesta em
nível equiparável aos clássicos portugueses, acaba reiterando sua tese que atribui certa
vinculaçãoestéticaentreasliteraturaslusaegaúcha.
Novamente reforçando uma idéia contida no capítulo introdutório, o autor lança
mãodessamesmaperspectivacomparatistaparasituaressemomentovividopelapoesiado
Rio Grandeem paralelo, oupelo menosatenta,à produção literárianacional,raciocínio
que pode ser percebido na ocasião em que analisa o poema “Ausente da Pátria”, de
FredericoAugustodoAmaralSarmentoMena,comomanifestaçãoartísticaque,guardadas
asproporções,expressariaumsentimentocorrespondenteàquelecontidoemumadasmais
contempladaspoesiasdoRomantismobrasileiro–Coplassimples,mesmoincorretas,o
87
entretantoACançãodoExíliodosfarrapos–semabelezadadeGonçalvesDias,queviria
depois,masdenunciandoomesmosentimentodesinceroamargor,compensado,porém,de
forma viril, pela certeza de que voltaria à terra natal para lhe ser útil em outras
circunstâncias”(p.81).
Apesar de atestar a importância desses poetas do período revolucionário na
maturaçãoliteráriadoEstado,umavezquesimbolizamafloraçãodeumaintelectualidade
responsávelpelasuperaçãodoespíritocolonialnoRioGrande,apesquisadeGuilhermino
Cesar acaba dedicando a alguns artistas desse momento uma atenção especial. Assim
sendo, o autor abre o quarto capítulo de seu texto ressaltando a relevância de Delfina
BenignadaCunha,eapublicaçãodoprimeirolivrorio-grandense,comopontosdegrande
importâncianoâmbitodahistoriografialiteráriasul-rio-grandense.
Aforaograndevalorqueumaprimeirapublicaçãoemlivrodevaternaconstrução
deumapesquisahistóricacujofocoéaliteraturadeumpaísouregião,Guilherminoreitera
a relevância de seu apontamento através da leitura crítica da obra de Delfina,
especialmente ainauguralPoesiasoferecidas àssenhorasrio-grandenses(1834), exame
quelhefazdestacarapoetisacomoprimeirafiguraliteráriadealgumaimportânciaque
surgenestasparagens”(p.95).Nocursodesuaanálise,ocríticoconsegueidentificarnessa
produçãotraçosqueasituamnolimiarentreumaestéticaárcade,noplanodaapresentação
formal,eumatemáticaquejáseriareveladoradetraçosprópriosaoinauguralRomantismo
brasileiro:
Asuapoesiaapresenta-seimpregnadademelancoliaetristeza.Amusa
dadesgraçaéaqueainspira.Aquiealinãodeixa,porém,defazerpoesia
de ocasião; canta batizados, bodas e mortes, tudo isso com um largo
dispêndiodeencômiosaamigoseprotetores(...).Foradaí,atemáticaé
já a dos românticos, preparadaporém comos ingredientespróprios do
arcadismo
.
Faltando-lhe a
visão do mundo exterior, volta-se sobretudo
paradentrodesimesma,paraoseudesamparodemulherbelaeinválida.
(p.96)
Apesar dos traçosde pessimismoe extravasamento sentimental quecaracterizam
suaobracomoparticipantedacorrenteromântica,Delfinanãodeixariademanifestarem
seusversososanseiosideológicosseutempo.Atuantenoquedizrespeitoàsdiscussõesem
torno da campanha revolucionária dos farrapos, a poetisa foi uma das mais veementes
opositorasaolevanterebeldequeporumadécadadesafiouasoberaniadeDomPedroI,a
quemdedicoumuitosdeseuspoemas,ressaltandoagrandezadoImperadoredaFamília
88
Real. Não bastasse o enaltecimento à Coroa, o partidarismo da artista pode ser ainda
reconhecido através da agressividade de alguns versos em que o eu lírico repudia os
rebeldes,principalmentenoquedizrespeitoaolíderBentoGonçalves–Maldiçãoteseja
dada/Bentoinfeliz,desvairado /NoBrasil,eemtodaaparte/ Seráteunomeodiado”
(CUNHAapudCESAR,p.99).
Mesmo considerando os diversos modos pelos quais expressou sua arte – “Os
gênerosquecultivouforamvários:epístolas,glosa,quadras,liras,sonetos,eametrificação
empregadaébemmaisperfeita,maisdentrodoscânonesatuaisdoquemuitosadeseus
predecessores”(p.101)–,aobradeDelfinaBenignadaCunhacaracteriza-sepelaausência
dereferênciasquepoetizamosaspectosdatradiçãoregional,ouseja,nesseaspectotemem
comum com os demais de seu tempo, afora a temática da revolução, desconsiderar o
regionalismocomomatériapoética:
Contudo,nãosenotamoutrosassuntosrio-grandensesemsuaobra,queé
parcadecorlocal,não apenaspelaprópriacondiçãopessoaldaautora,
cega,senãotambémporqueapoesiavigentenãosedavaataisdesfrutes.
Em alguns versos, os mais expressivos, (...), atinge a nota de um
subjetivismo perfeitamente aceitável; quando deixa falar o coração,
quandorefereadesditaquelheselouosolhos,recobraolirismodefeição
gonzagueana, tão presente na produção dos poetas pós-românticos. (p.
101)
AtribuindoritossemelhantesaosidentificadosnaobradaescritoradeSãoJosé
do Norte, o historiador analisa como equivalentes as produções da poetisa e de sua
contemporânea Ana Eurídice EufrosinadeBarandas, tantono queconcerne àqualidade
estéticacomonoqueserefereàimportâncianoâmbitodahistoriografiasulina.Trilhando
preferencialmenteocampodanarrativacurta,acontistateriacomopontodedestaqueter
vislumbradoemsuaobraosinstantesdemaiorangústiavividospelapopulaçãogaúchaem
meioaoambienterevolucionário,focalizaçãoque,diferentementedosregistrosartísticos
deseuscontemporâneos,colocariaumaperspectivamaisintimistacomoplanoprincipal,
emdetrimentodoengajamentopolítico-ideológico:
tomando por assunto a repercussão moral que tiveram aqueles
acontecimentos, ela nos conta a transformação sofrida pelos hábitos
domésticos,durantearevolução.Dentrodolar,asparcialidadespolíticas
geravam lutas e dissensões, enquanto as próprias mulheres, outrora
indiferentesa tais coisas, passarama participarde tudo aquilo, embora
perdendoasdelicadezasdotratofeminino,substituídasporpreocupações
e debates até então reservados aos maridos e filhos. E assim, fazendo
89
crônica de costumes, a autora perpetuou em boa prosa aquele instante
conturbadodavidagaúcha.(p.104)
Seofocomaiscentradonasangústiaspessoaisemtemposdeguerradiferenciaas
escritoras, a leitura de A Filósofa por Amor (1845) acabaria revelando a obra de Ana
Eurídiceemparaleloquantoaostraçosquelevaramohistoriadoracaracterizararicade
Delfina da Cunha como arte que, apesar da filiação árcade no plano da apresentação,
incorpora traços da escola romântica. Nesse sentido, no que se refere às influências
estéticas,oestilodacontistaamplia-senamedidaemqueocríticovislumbraelementosdo
classicismodosanossetecentoscomoreferênciasaindapresentesnanarrativadagaúcha:
Noconto,(...)prefereostonssuaves,alinguagempolida,asfantasiasde
cunho moral ao gosto do século XVIII. Suas pequenas histórias, (...),
denunciamoamaneiradofilosóficocomumnaliteraturafrancesadaquela
faseemquecomeçavaatomarcorpooromanceocidental.Hátambém,
paratornarmaisperfeitaasemelhança,certodidatismonoseumodode
apresentartaisalegorias,aquenãofaltasequerovocabuláriopreferencial
dos últimos árcades. Por outro lado, frequentemente aparecem ali,
simbolizando paixões e desejos, as entidades mitológicas que no
princípiodoséculoanterioraindaserviamaosescritoresparatraduzira
fatalidadedassituaçõesedosatoshumanos.(p.103)
Afora os méritos estético-temáticos evidenciados, que reivindicam qualidade à
produção das escritoras e situam-nas como partícipes das correntes literárias mais
representativasdocenário ocidental,oautorjustificaaeleiçãodessasobrascomoponto
historizável na medida em que “anunciam o desabrochar literário da província de o
Pedro”(p.105),bemcomo,nocasodacontista,mostra-seumadasprecursorasdanarrativa
nacional–“Ecomoficcionalista precededevinteanos,comooseulivro,a Iracemade
Alencar e a grande parte da obra de Macedo, vale dizer – surgiu antes de haver sido
verdadeiramentecriado,entrenós,ogêneroromance.Sóporessemotivomerecedestaque,
além do que trabalhou uma prosa de boa categoria” (p.105). Se considerarmos que, de
modo geral, a eleição de mulheres escritoras como ponto representativo nas seleções
literárias é um fato incomum, fator que se deve à repressão que ao longo dos tempos
renegouaparticipaçãofemininanaesferaculturaleintelectualdassociedades
36
,apesquisa
deGuilherminoCesaracabasemostrandoinovadoraquantoàtarefadesereconsideraras
construçõescanônicasnoâmbitodaescritahistoriográfico-literáriatradicional.
 
36
Ver a esse respeito: DUARTE, Constância Lima. O cânone e a autoria feminina. In: SCHMIDT, Rita
Teresinha(org).Mulhereseliteratura:Transformandoidentidades.PortoAlegre:Palloti,1997.p79-89.
90
Apesar de as escritoras desempenharem uma notada importância no âmbito da
literatura local, somente Delfina conseguiria algum reconhecimento fora dos limites
estaduais, o que pode ser explicado pelo fato de ter realizado algumas apresentações à
cortecarioca,assimcomoterdedicadoversosaautoridadeseartistasderenome.Quantoa
esse quesito, Guilhermino Cesar afirma que o primeiro gaúcho a ter alguma atuação
relevantenocenárionacional,pelosméritosdesuaarte,teriasidoManueldeAraújoPorto
Alegre – Raros homens exerceram no Brasil tão ampla e salutar influência, a um só
tempo, nos mais diversos ramos da arte – a poesia, a pintura, a arquitetura, o teatro, a
cenografia.” (p.105-106) –, que com seus escritos mereceu reconhecimento da crítica
especializada.
Tendo e vista a repercussão atingida pela produção de Araújo Porto Alegre,
Guilhermino afirma que foicomBrasilianas (1844)que o escritorestréiano âmbito da
literatura nacional, sendo reconhecido por nomes como Ferdinand Denis e Antônio
Henriques Leal, que avalia a produção do escritor gaúcho como obra que antecipa a
exploraçãotemáticada“corlocal”naliteraturadopaís,sendoseupontodemaiordestaque
aplasticidadenas descriçõesacercadasexuberânciasnaturais doBrasil– “Precursorde
GonçalvesDiasnonaturalismoenapoesiasubjetiva,(...)asqualidadesdopintorsuperam
neleasdopoeta;emtudoachamotivoparaumadescrição,paraumpainel,eamaiorparte
dasvezescomextremafelicidade”(LEALapudCESAR,p.108.).
Assim como indica a crítica em questão, e como outrora pudemos perceber na
avaliaçãorealizadaporJoãoPintodaSilva
37
,ohistoriadorcentraseufoconoexamedesse
traçodescritivoquecaracterizaalíricadopoeta.Nessesentido,Guilherminoavaliaquetal
propriedade, ao contrário do que ponderara a crítica até então, seria reveladora da
artificialidadedapoesiadeAraújoPortoAlegre,debilidadequepoderiaserpercebidana
maneira pela qual o escritor retrata algumas paisagens nacionais que lhe deveriam ser
familiares–“QuandochegaavezdaprovínciadeSãoPedro,eisoqueeleescrevedesua
terranatal:(...).ComovisãopoéticadoRioGrandedoSul,dosseusrios,dasuanatureza,
dafarturadesuassearas,ohánadamaisarrebicadoemaisfalso.”(p.109-110)–,ou
aindaquantoaocenáriocarioca:
 
37
Ver,aesserespeito,oitem3.2.
91
Aterceirabrasiliana,OCorcovado,afinapelomesmotom.Adescrição
das ilhas, das praias,dos subúrbios, das montanhas; a comparação dos
pródigosnaturaisdoRioaospanoramasqueosolhosdopoetaviramna
Europa; (...) todaaquela versalhada não apresentauma só imagemque
valhaapenatranscrever,ouquenostenhaficadonamemória
.
(p.110)
Ao investigar a composição estética de Colombo (1866), Guilhermino acaba
coroando a artificialidade das descrições como principal demérito da poesia de Araújo
PortoAlegre.Nesseescrito,ogaúchotemcomofocoapoetizaçãodamitológicaviagem
deCristóvãoColombonadescobertadasbelezasnaturaisdoNovoContinente,processo
que não seria bemconduzido pelofato de oponto de vista eurocêntrico do poetaatuar
comobarreiraqueoimpediriadealcançaranaturalidadenecessária–“Seucoração,seu
espírito, sua inspiração, estavam na Europa. É à natureza ordenada, às obras de arte
acabadas,aos monumentos ehomens ilustres de láqueManuel de AraújoPorto Alegre
dedica seus melhores versos, em íntima ligação com os cenários vistos na mocidade.”
(p.113-114).
Mesmoqueohistoriador,emalgunstrechos,lancemãodeumtomirônico,eaté
desrespeitoso, naavaliação da líricado escritorgaúcho – “Fiquemos poraí. Éperigoso
prosseguir: o demônio do mau gosto, o saci-pererê dos maus poetas anda por perto”
(p.112)–,sualeituranãodeixadereconhecerarelevânciadaproduçãodeAraújoPorto
Alegrenoâmbitodaliteraturanacional–“DiremossomentequenasBrasilianaspalpita,
com efeito, um sentimento nacional exuberante (...) é um ensaio que se deve respeitar,
menos pelo que significa por si mesmo que pela inovação que traduz, (...), pelo
nacionalismoardenteque,apesardetudo,conseguiuinstalaremsuasestrofes”(p.113)–
avaliação que pode ser relacionada aos posicionamentos de Siegfried Schmidt quando
ponderasobreolugardaanálisecríticanoâmbitodaescritadeumahistórialiterária.
Segundo o teórico alemão, uma vez que a caracterização de um material como
sendoliterárioencontra-senainterdependênciadenormas,conceitoseconvençõesdeum
determinado tempo – “os textos literários estão constituídos como fenômenos estéticos
somentenocontextodenormaseexpectativasdaliteraturavigente”(SCHMIDT,1996,p.
110),aleituracríticadessestextosdeveconsiderarperspectivascomplementares,ouseja,
o exercício interpretativo deveria ponderar, por um lado, uma avaliação à luz dos
parâmetrosteóricosdacontemporaneidadedocrítico,semnoentantodeixardeavaliara
relevânciadessematerialnocontextohistórico-literáriodesuaprodução,tarefaqueexige
sejamavaliadososcomponentesinternosaosistemaliterárioemquestão:
92
Textosliteráriossãotratadosemhistóriasliteráriasconstrutivistascomo
itens relacionados, por exemplo, vistos relativamente a tais relações
como ações de textos governadas por papéis (produção, distribuição,
recepção,pós-processamento);sistemasnormativosdetextos;gênerosde
textos, discursos de textos, por meio dos quais todos esses
relacionamentos têm de ser relacionados ao observador atual que
constataestasrelações.(SCHMIDT,1996,p.123)
Noquese refereaoposicionamentodeGuilherminoenquantocrítico,percebe-se
quemesmoqueoscritériosquebalizamasnormaseconvençõesdeseutempoembasem
umalinhaderaciocínioquelhefazapontartraços“menosnobres”acercadaproduçãodo
poeta sulino, o historiador, ao avaliar os parâmetros internos ao sistema literário
focalizado,conseguedelinearolugardaproduçãodopoetagaúchonoâmbitodaliteratura
nacionalcomaqualserelaciona.Nessamedida,talposicionamentofazcomqueAraújo
Porto Alegre seja alçado à condição de um dos pioneiros do movimento romântico
nacional,hajavistanãosóarepercussãoregistradaporsuaobracomoainfluênciaqueessa
passariaaexercer:
Masaverdadeéquetudoissosótemimportância,oumelhor,nãotem
importância nenhuma para quem se habituou à sonoridade fácil dos
românticos.Àépocaemqueapareceu,PortoAlegrenãofoiapenasum
grande poeta, senão também o arauto de uma intensa visualização da
natureza, como em nenhum outro poeta brasileiro tão exuberante e
enfática. Esse o seu mérito, que não é pequeno. Com os seus painéis
imensos, onde se sucederam planos e figuras, ele corrigiu, pelo
desperdício, a avareza dos árcades e forneceu material para que os
românticos se servissem à larga. Gonçalves Dias sentou-se à mesa e
escolheuasiguariasmaisfinas.Malcomparando,éPlautoquesucedea
Ênio.(p.115)
Afora a importância da produção de Manuel de Araújo Porto Alegre,
acrescentando-se o fato de ser apontado como um dos pioneiros no que se refere à
produçãoteatralnoBrasil
38
–“Asuaatividadeliterárianãoficoucircunscritaàpoesia.Foi
tambémumdosprecursoresdonossoteatro,nostemposdeJoãoCaetano”(p.115),o
historiadorreconhece,aindanocapítulodeintroduçãodesuapesquisa,queainclusãodo
nome de desse intelectual no âmbito da história literária sul-rio-grandense deve-se
 
38
No capítulo “A literatura dramática”, Guilhermino Cesar reconhece o destaque da produção teatral do
gaúcho–CoubeaManuel AraújoPorto Alegre, barão deSantoÂngelolugardestacadoentreosautores
dramáticos do período a que Silvio Romero, em sua História da Literatura Brasileira chama ‘primeiro
momentodacriaçãoromântica’”(p.261).OhistoriadoratribuiaoescritorsulinoaautoriadaspeçasAngélica
eFirmino(1845),SapateiroPoliticão(s.d),OEspiãoBonaparte(s.d),AsBarrasdeOuro(s.d),eAEstátua
Amazônica(s.d)
93
unicamente ao critério de seu nascimento em solo gaúcho, uma vez que sua produção
literáriaemnenhummomentotevecomomatériapoéticaosassuntosdaculturalocal,ou
mesmoasituaçãodoRioGrandenosseusmaisconturbadosmomentossócio-históricos–
“Se houve um gaúcho ausente dos quadros locais, indiferente mesmo à sorte de sua
província,aosofrimentodeseusconterrâneos,esseparecetersidoManueldeAraújoPorto
Alegre.Emnadadoqueescreveutraduziuadoçura,odescuidado,oaflitoouotrágicodo
seu viver.” (p. 107). No entanto, considerando os aspectos mencionados, que situam o
poetaentreospioneirosdoRomantismonacional,entende-sequeohistoriadordediqueum
lugarespecialaoprimeirodescendentedospampasainfluircomseutrabalhonosistema
literáriobrasileiro.
Nocursodesuapesquisa,omesmocritérioquelevouGuilherminoCesaraapontar
DelfinaBenignadaCunhacomofiguraimportantenocontextohistoriográfico-literáriodo
RioGrandeéempregadonaelaboraçãodooitavocapítulodeseutexto.EmOcriadordo
romance”,ohistoriadorsituaJoséAntoniodoValeCaldreeFiãocomoresponsávelpela
composiçãodoprimeiroromancerio-grandense,Adivinapastora(1847),obraque,além
do rito de inaugurar o gênero romanesco em solo gaúcho, mostrar-se-ia precursora
mesmoconsiderandoopanoramadaliteraturabrasileira,oque,portanto,lhereivindicaria
certoreconhecimento:
Antesd’OGuarani,d’AsMinasdePrataedaIracema,masprecedidade
trêsanospelaAMoreninhaededoispeloOMoçoLouro,surgeADivina
Pastora, da autoria de Caldre e Fião, indubitavelmente o primeiro
romancerio-grandensedequesetemnotícia.Seoprecedem,noBrasil,
NorbertodeSouzaeSilva,TeixeiraeSouzaeMacedo,ocertoéque
Caldre e Fião aparece quase à mesma época, não se justificando,
destarte,aomissãodeseunomeentreosdosintrodutoresdogênero
naliteraturanacional.(p.141-Grifomeu)
Afimdecorrigiresseequívocodahistoriografianacional,Guilherminoselançaà
análise da obra do escritor gaúcho. Entretanto, na execução dessa tarefa, o historiador
esbarranoempecilhodenãoconseguirlocalizarnenhumvolumedestaqueseriaaprimeira
narrativaromanescadoRioGrande–“ABibliotecaPúblicadePortoAlegre,aBiblioteca
Rio-grandenseeaBibliotecaPelotensetambémnãopossuemumsóexemplard’Adivina
94
pastora.”(p.143).
39
Dessaforma,dadaaausênciadessematerial,opesquisadorexaminaa
composição de O corsário (1851), o segundo romance de Caldre e Fião, escrito e
publicadonoRiodeJaneiro.
Aleiturarealizadapelohistoriadordestacanoromanceoritodeincorporarao
seu enredo temas e situações que tem como referência a região Sul, mesmo que o fio
condutor da fábula centre-se no envolvimento amoroso dos protagonistas. Mais do que
simplesmente descrever cenários típicos do Rio Grande, o romancista teria conseguido
reuniremsuatramaoqueosdemaisescritoresgaúchosdaqueletempodesprezaram,ou
seja, aspectos da formação regional e do modo de vida das populações, bem como a
atmosferasocialdoEstadonoperíodorevolucionário:
AlinhasentimentaldoromanceéoamordeMariaeVanzini:(...).Mas
os incidentes que levam o corsário à morte e a virtude à recompensa
giramtodosemtornodeepisódiosligadosàformaçãodoRioGrandeeà
sua legenda histórica. Assim é que, a par da descrição da vida das
populaçõeslitorâneas,comseuscontrabandistaseaventureiros,perpassa
peloromanceosoproépicodalutafarroupilha.(p.144)
Aocontraporatécnicaempregadanacomposiçãodesseescritocomautilizadapor
renomados romancistas da época, Guilhermino ressalta o processo de caracterização e
apresentação das personagens e dos cenários como um dos pontos de excelência de O
corsário:“Masondechega aser excelenteasua técnica,aponto dedominara deseus
contemporâneos, exceção talvez única de Manuel Antônio de Almeida, é no corte das
figuras imaginárias. Estas se apresentam por si mesmas, através de uma dialogação
realmenteviva,queocupaamaiorpartedolivro.Aaçãosobrepujaadescrição”(p.146-
147). Como se pode perceber, o critério da naturalidade nas descrições, pecado maior
identificado na obra de Manuel Araújo Porto Alegre, configura um dos pontos altos da
escritadeJoséAntôniodoValeCaldreeFião:
Num livro assim, a paisagem, ainda que tratada romanticamente, não
chega a cansar. Caldre e Fião é discreto, sobretudo quando as cenas
transcorremnacostaarenosadoRioGrande,tãopobredeárvoresede
colorido. As pinceladas, rápidas, são talvez frias demais; contudo, era
precisoqueassimfosse,paraguardarfidelidadeaomodelo.(p.148)
 
39
Em 1992, a L&PM Editores, em parceria com a RBS (Rede Brasil Sul de Comunicações) relançam A
divinapastora,reediçãoque,alémdeumprefácioescritoporFlavioLoureiroChaves,trásumrápidoestudo
biográficosobreCaldreeFião,escritoporCarlosReverbel.
95
Aotomarporparadigmaostraçosestéticosdoperíodoromânticonacional,noqual
surgeotexto,ohistoriadordestacatambémalinguagememqueseconstróianarrativa,
quecomparadaaoutrasobrasdaqueletempoévistacomoprosademaiornaturalidadena
medidaemqueabremãodeumaexacerbadaadjetivação,bemcomodoempregoexcessivo
determostípicosdaregiãoondeseambientaadiegese:
Comessasqualidadesedefeitos,CaldreeFiãoconstituiumdosautores
maisinteressantesdanossaprimeirageraçãodeprosadores.Romântico
peloenredo,pelosrecursosanedóticos,chegaàsvezesaumaingenuidade
exemplar,masdenunciajáumavisãorealistadanaturezaedaspaixões.
Escrevendocomapuro,ocriadordoromancerio-grandenseadotapoucos
gauchismos,masquandoosempregarecorresempreaoitálico.Nogeral
asuaprosaseapresentadespidadeelementosacessóriosendereçadosa
obterasonoridadefácilquefoiumadasfraquezasdeMacedoedeseus
companheirosdegeração.Aadjetivaçãoparcaeosensodeobjetividade
constituem ainda uma de suas marcas. Num lance, com economia de
palavras,desenhaocaráterdasfiguras.(p.149)
Tendo em vista as propriedades desveladas pela leitura crítica de O corsário,
Guilhermino Cesar procura ponderar o lugar da escrita de Caldre e Fião no âmbito da
historiografia literária nacional e estadual. Reivindicando um reconhecimento que a
histórialiteráriarenegou–Esqueceroseunome,nãoincluí-loentreosprecursores,istoé
quenãonosparecejusto”(p.150)–,ohistoriadoracabaconcebendooautorgaúchocomo
umdosiniciadoresmaisqualificadosdo romancenacional.No queserefereao sistema
literário sul-rio-grandense, considera que, embora os elementos regionais atuem como
referênciapresentenaobradoescritor,algunsaspectosdesuaescritafazemcomqueseu
texto não possa ser ainda considerado como legítimo representante do regionalismo
literáriosulino.
Quanto a esse aspecto, tal alegação vem embasada por uma argumentação que
aproxima a obra de Caldre e Fião de uma vertente temática nacionalista, o que seria
comprovado pela linguagem predominantena construção da narrativa,em que ostemas
locaisfuncionariamcomotermosacessóriosnaefabulaçãodoromance.Nessesentido,tal
raciocínioéreforçadoquandoessaobraécontrapostaaoestiloqueviriaacaracterizaras
produções surgidas na Sociedade Partenon Literário, que nos anos subseqüentes iria
efetivamente contribuir para a cristalização da temática regionalista como identidade
literáriadoEstado:
96
A prosa descarnada, reveladora de boasqualidades literárias, o foi a
que prevaleceu, a seguir, entre os seus discípulos do “Partenon”, tão
exuberantesalgumasvezes.Poroutrolado,emboratomandoportemaa
paisagem,oscostumeseahistóriadaterranatal,mostrou-seinfensoao
documentário. Por exemplo: trasladou ao papel a linguagem coloquial
comumdoBrasil,emboranãodeixassedeusarunspoucosgauchismos
essenciais. Escreveu segundo um nacionalismo literário mais arejado.
Dondeconcluímosporafirmarqueoromanced’OCorsárionãoautoriza
seincluaonomedeCaldreeFiãonacorrenteregionalista.
Eleiniciaeencerraumafasedaprosa.RitaBarémdeMelo,Félixda
CunhaeJoãoVespúciodeAbreueSilva,predominantementepoetas,
pertencemao mesmo grupo – quese caracterizou pela inserçãoda
literaturagaúchanumplanomenoslocalemaisnacional.
Masageraçãoseguinte,lideradosporApolinárioPortoAlegre,sequiosa
deassuntosgauchescos, tomououtradireção;fez-senotar peloexcesso
com que incorporou à linguagem escrita as peculiaridades
impropriamentechamadasdialetais.(p.150-Grifomeu)
Aoconsiderarafasemencionada,GuilherminoCesarestá,naverdade,referindo-se
aoperíodoemquesurgemasprimeirasmanifestações românticasnoRioGrande–“Do
início da segunda metade do século XIX ao aparecimento da ‘Sociedade Partenon
Literário’, as letras rio-grandenses atravessaram o período de adaptação da poesia ao
romantismonacionalemsuamaisvivaexpressãoindividualista”(p.153)–,épocaemque,
porexemplo,surgeaproduçãodaescritorario-grandinaClarindadaCostaSiqueiraque,
mesmo revelando uma estética de menor apuro formal, apresenta uma lírica capaz de
simbolizar esse momento de transição pelo qual passou a literatura sulina – “Menos
significativa,doânguloestético,queadeseuscontemporâneosestudadosnestecapítulo,é
a obra de Clarinda da Costa Siqueira; historicamente, porém, representou o ponto de
ligaçãoentreamaneiradeumAraújoPortoAlegreeageraçãodarevistaOGuaíba.”(p.
165). Misturando em seus versos elementos da escola árcade ao estilo dos românticos
franceses, a poesia de Clarinda se mostra inovadora na medida em que demonstra
tendênciaasedesprenderdosmoldesclássicos,comoaquelesquecaracterizavamaescrita
de suas contemporâneas Delfina da Cunha e Ana Eurídice Barandas, revelando traços
comosubjetivismoemusicalidade,atéentãoincomunsnaliteraturagaúcha:
Mas,seaquelasduasficaramadstritasaessetipodepoesia,omesmonão
sedeunotocanteaClarinda,cujainstruçãoera,contudo,menorqueade
suasrivais.Comgrandefinuraeintuição,elaseachegouaosromânticos
franceses,cujalínguaseesforçouporaprenderparamelhorapreciar-lhes
a obra, de que recebeu estímulo mais ou menos visível. Para resumir
tudo, anunciou sem grande brilho, sem grande ruído, a geração d’O
Guaíba,esta,sim,jáfundamentalmenteromântica.(p.166)
97
Se a fundamentação definitiva do ideário romântico em solo rio-grandense
ocorre a partir dos trabalhos concentrados em torno da Sociedade Partenon Literário,
Guilhermino destaca nesse período de adaptação, em que os autores rio-grandenses
experimentariam a poesia romântica de cunho individualista, a atuação dos diversos
periódicosacircularempeloEstadonosmeadosdoséculoXIX,dentreosquaisarevistaO
Guaíba, publicada na cidade de Porto Alegre entre os anos de 1856 e 1858, e ojornal
Arcádia (1867 a 1870), criado na cidade de Rio Grande, são apontados como os mais
relevantesparaaoamadurecimentodaliteraturasulina.
MaisdoqueconcentrarasprimeirasmanifestaçõesromânticasdoSul,operiódico
de Porto Alegre tem sua importância reconhecida por configurar o primeiro veículo
essencialmentededicadoàs questões literáriasa circular pela Província, possibilitando a
reunião de escritores em torno de um padrão estético e temático, o do chamado
Romantismo individualista, que lhes conferiria certa homogeneidade. Nesse sentido, ao
destacar a relevância dessa instituição para o desenvolvimento literário do Estado, o
pensamento de Guilhermino Cesar mostra afinidade com relação ao apontamento de
BernardoTaveiraJúnior,queatravésdoartigo“Reflexõessobrealiteraturario-grandense”
(1869) afirma que essa publicação seria “a pedra fundamental assentada para o
levantamentodoedifíciodenossasletras.”
40
:
Foi, alias, com o grupo d’O Guaíba que a literatura rio-grandense
começou a tomar forma definida. A contar daí os nossos poetas e
escritoresapareceramemgrupo,unidosporideaiseaspiraçõescomuns,e
seuesforço conjugado, além demarcarfundamentalmente a sua época,
revelou,ademais,laçosdeestreitaafinidadecomosoutrosromânticosdo
CentroedoNorte.(p.153-154)
Dentre os muitos escritores reunidos em torno dessa agremiação
41
, Guilhermino
destaca Félix da Cunha e Rita Barém de Melo como os autores que alcançaram maior
representatividadeliterária,sejapelaexcelênciae/oupelainfluênciadeseusversos.Assim,
analisandoaobradoescritorporto-alegrense,maisespecificamenteolivroPoesias(1874),
publicado por seu irmão Franciscoda Cunha apóso falecimento doautor, ohistoriador
identifica o extravasamento sentimental de tons mórbidos como temática mais
 
40
Veraesserespeitooitem3.1.
41
GuilherminoCesarmencionanomescomoJoãoVespúciodeAbreueSilva,FélixdaCunha,RitaBarém
de Melo, Pedro Antônio de Miranda, e João Capistrano Filho como escritores integrados ao grupo d’O
Guaíba.
98
caracterizadoradesualírica–“eracontudoumamorosodemelhorquilate,nãoisentoda
morbidez quetrasladoua poesiascomoesta”(p.156) –,aspecto queoaproximaria do
estilodeumdosgrandesexpoentesdoRomantismobrasileiro–“Quantoàsubstância,éa
mesmadageraçãoquesesentounosbancosacadêmicoscomÁlvaresdeAzevedo,(...),
pisaerepisaotemadamorte(...)atémesmoquandosedeclaraenamorado.”(p.157).
Semelhantesquantoaostemas,porémmaisapuradosquantoàmusicalidade,seriam
osversosdeRitaBarémdeMelo,quemesmoseutilizandodasimplicidadecomrelaçãoà
métrica–usousempreosmetroscurtos.Jamaispretendeuimpressionarpelaerudiçãoou
torturadafrase”(p.159)–,bemcomonoqueserefereàexploraçãotemática–Ostemas
de Rita Barém de Melo foram os mais simples – o amor, bem infeliz, já se vê; a
maternidade,amorte.”(p.161)–,écompreendidacomoumadasmaisinjustiçadasartistas
da literatura brasileira. Comparando a lírica da escritora ao estilo que notabilizara a
produçãodeCasimirodeAbreu,ohistoriadorreclamaoreconhecimentodapoetisacomo
“uma das intérpretes mais luminosas da poesia brasileira” (p. 160), avaliando que o
esquecimento do nome da porto-alegrense do cânone literário regional e nacional se
deveriaaosmesmosfatores quefizeramcom queo poetacariocaficassedurantealgum
tempoforadogrupodosgrandesescritoresdoRomantismonacional:
Oinjustificadoesquecimentocontinua.Sópodemosatribuí-loaidênticos
motivos que durante tantos anos sombrearam a figura de Casimiro de
Abreu.OtomlíricodeRitaBarémnãocasavacomamúsicaperseguida
pelos parnasianos, e foi dessa geração que saíram os críticos e
historiadoresmaisválidosdenossaliteratura.(p.160)
 No âmbito da crítica e historiografia literária do Rio Grande, se por um lado
GuilherminoressaltaaatençãoquetiveramCaldreeFiãoeManuelAraújoPortoAlegre,
quemesmoatravésdecorrespondênciasreconheceramosméritosdapoesiadeRitaBarém,
poroutro,criticaJoãoPintodaSilvaque,aoescreveraatéentãoúnicahistórialiteráriado
Estado,semostrouindiferenteàproduçãodagaúcha:
No caso da poetisa, chega a serincompreensível odescaso com que a
tratouJoãoPintodaSilva,nogeraltãoarguto:nemsequerlhemenciona
onomenocorpodaHistóriaLiteráriadoRioGrandedoSul.Apenasao
pédapágina28,eaindaassimatravésdoBarãodeSantoÂngelo.(p.160)
Tão relevante quanto a revista OGuaíba seria a publicação do periódico rio-
grandino Arcádia que, contando com a colaboração de grande parte dos escritores que
99
atuaram na agremiação de Porto Alegre, dá seqüência aos trabalhos literários até o
surgimento daquele que seria o mais importante grupo intelectual da história gaúcha –
“Bem cuidada, bem impressa, publicando o que se escrevia de melhor na província, a
Arcádia por mais de três anos divulgou exclusivamente matéria literária e pesquisas
históricas.Equandojácomeçavaaentrarnoocaso,apareceuemPortoAlegreaRevista
MensaldoPartenonLiterário”(p.167).Nãobastasseodestaquepordarcontinuidadeao
intentodarevistadacapital,essejornalevidencia-seaindaporserograndeiniciadorda
crítica literária no Rio Grande
42
, veiculando ensaios de grande relevância no âmbito da
analiseliteráriasulina:
O periódico mais importante para a história da crítica literária do Rio
GrandedoSuléaArcádia,(...),congregandoemtornodesiosprimeiros
críticosdoEstado.(...).Comtiragemàssegundas-feiras,esseperiódico
contavacomacolaboraçãodeApolinárioPortoAlegre,BernardoTaveira
Júnior,AquileseApelesPortoAlegre,GlodomiroParedes,entreoutros,
quemaistardeseconstituiriamemnomesdeexpressãonavidaliterária
daProvíncia.(BAUMGARTEN,1997,p.66)
Ao avaliarmos esse percurso historiográfico pensado por Guilhermino Cesar,
percebe-sequeoprincipalfatorqueaproximaasobrasemquestãoéoafastamentodaquele
queseriaotraçomaiscaracterizadordaproduçãoliteráriasul-rio-grandense,apoetização
dasparticularidadesculturaisdaregiãoSul,aspectoqueéentendidocomoumamudança
literária resultante das transformaçõesocorridas noâmbito social, tese comprovada pela
leitura crítica da produção dos chamados poetas da revolução”. Nesse sentido, tal
raciocíniosemostracondizentecomoqueéapontadoporAntonioCandidocomopostura
ideal quando se pretende investigar as correlações existentes entre as esferas sociais e
literárias–“Paraasociologiamoderna,porém,interessaprincipalmenteanalisarostipos
de relaçãoeos fatosestruturais ligados à vidaartística, (...). Assim, aprimeira tarefa é
investigar as influências concretas exercidas pelos fatores socioculturais.” (CANDIDO,
2000,p.21).
Recuperando seu pensamento, percebe-se que através da leitura desse corpus o
crítico-historiadorlançamãodeumainvestigaçãodeordemtemáticacomoinstrumentode
legitimaçãodesuatese,quecolocaaagitaçãomentalcausadapelaRevoluçãoFarroupilha
como motivo responsável por uma mudança de perspectiva na intelectualidade rio-
 
42
Veraesse respeito, BAUMGARTEN, CarlosAlexandre.Acrítica literária no Rio Grande do Sul. Do
RomantismoaoModernismo.PortoAlegre:InstitutoEstadualdoLivro/EDIPUCRS,1997.
100
grandense, transformação social que, tendo a imprensa como principal instrumento de
mediação,repercutediretamentenoâmbitodaliteraturanamedidaemqueasimplicações
político-ideológicasquecaracterizavamaquelemomentoconfigurariamotemadominante
dasmanifestaçõesartísticas.Peranteesseraciocínio,pode-seintuirumadasfunçõesqueo
exercíciocríticodesempenhanoâmbitodaelaboraçãodeumahistórialiterária,umavez
que possibilita ao historiador comprovar a plausibilidade de suas idéias acerca de
determinadaestruturaliterária,legitimando,assim,suaseleção:
A história da literatura assume, como parte da sua justificação, que o
saber fornecido sobre os textos conduz a um melhor entendimento e
apreciaçãodosmesmos.Seriaparadoxal,(...),sedepoisderelacionarem
os textos a seu tempo e lugar, esses textos os deixassem indiferentes.
Maisainda,comosepensaqueamaiorpartedostextosmencionados
em uma história da literatura é de considerável mérito literário, o
historiadortemaobrigaçãodesentireexpressarisso.Deveapreciar
cadaumdostextosquesãodescritos,umapósooutro.(PERKINS,
1999,p.13-Grifomeu)
Quantoaesseaspecto,aanálisedaleituracríticarealizadaporGuilherminoCesar
podesemostrarreveladoratambémquantoaospressupostosteóricosemetodológicosque
norteiamaconstruçãodesuapesquisa.Assim,percebe-sequeocríticotemcomopadrão
analíticooempregodeumaperspectivacomparatistaquevisaaproximarasmanifestações
literárias do Rio Grandeaobras representativasdo cânone nacional –“Procurei sempre
rastrear, nos de cá, a influência de seus patrícios do Centro e do Norte, a ver se se
aproximavam ou afastavam do conjunto nacional” (p.21) –, bem como do panorama
ocidental,entendimentoquebuscacomprovarbasicamentedoispontosdevista.
Emprimeirolugar,aoequipararalíricadepoetasincipientescomoPedroCangae
Sebastião Xavier do Amaral Sarmento Mena aos estilos de Manuel Maria do Bocage e
Filinto Elísio, respectivamente, o historiador procura validar sua tese de que desde as
manifestaçõesiniciaisaliteraturagaúchasempresemostrouatentaàstendênciasestéticas
daliteraturaocidental,participaçãoqueficoufacilitadaapósaimplantaçãodaimprensaea
circulação ativa de periódicos e publicações dos diversos campos do conhecimento. Do
mesmo modo, a leitura crítica da produção sulina igualmente comprovaria essa
participação no que se refere ao cenário brasileiro, uma vez que teríamos, além de
escritoresnacionalmenteinfluentescomoManuelAraújoPortoAlegre,obrasconstruídasa
partirdeumpadrãotemáticoeestéticopróprioàsproduçõesdocentrodopaís,comono
casodeCaldreeFião,FélixdaCunhaeRitaBarémdeMelo.
101
Fora essa ótica comparatista, basicamente tomando o critério do tema e da
apresentação estética como pontos de aproximação, percebe-se que Guilhermino Cesar
dedicaumaatençãoespecialàquestãodalinguagememquesãoconstruídasasobras.Por
exemplo,essedetalhefoiumdospontosnorteadoresdaanáliseacercadalíricadeAraújo
PortoAlegre,examequeapontouaartificialidade,oufaltadenaturalidade,dasdescrições
comosendoseuprincipaldeméritoartístico–Umvotoformuladoemtaistermosparece
atébrincadeirademaugosto.Nuncafoiassim,nessalinguagem,queosverdadeirospoetas
se dirigiram a Deus.” (p. 111) –, ou ainda quanto ao romance de Caldre e Fião, que é
deslocado da prateleira das obras regionalistas sob a alegação de que a linguagem que
predominanofluxodanarrativaéaqueseutilizavanocentrodopaís–“trasladouaopapel
alinguagemcoloquialcomumdoBrasil.(...)Escreveusegundoumnacionalismoliterário
maisarejado.”(p.150).
No que se refere à questão, seguindo uma pista deixada pelo historiador na
introduçãodesuapesquisa–JamaisolvideiaboaliçãodeBenedettoCroce”(p.16)–,
podemos aproximar essa metodologia empregada na análise da produção sulina às
proposiçõesdifundidaspelafilosofiaestéticade Benedetto Croce, daqual ohistoriador,
explicitamente, se mostrou simpatizante. Nesse sentido, uma das comprovações dessa
filiaçãoteóricapodeserencontradanapublicaçãoquetemcomotítuloonomedoteórico
italiano,textoquefoifrutodeumciclodeconferênciassobreaobradeCrocepromovido
pela Faculdade de Filosofia da UFRGS em 1966
43
, em que Guilhermino foi um dos
palestrantes.Notrabalhoemquestão,elecolaboracomaescritadocapítulo“Pensamentoe
AçãodeBenedettoCroce”,ensaioemquealémdeacompanharatrajetóriaintelectualdo
filósofo, ressaltando seu combate às limitações intelectuais do Positivismo e do
MaterialismoHistóricodavirada doséculoXX, bemcomoos pontosem quesuperaas
idéiasdeHegel,oautoracabasituandoopensamentodeCrocecomorenovadornoquese
refereaoconceitodeartenocenárioocidental:
AFilosofiadelloSpirito,lançandomaislongeodardo,atingiuemcheio
o drama do homem. A arte já não era uma abstração do idealismo
ortodoxo, empalhada, benta e enterrada. Com a revitalização crociana,
veio a competir com a vida, confundir-se com o ato existencial, ser
conhecimentodomundoehistóriadopensamento.(CESAR,1966,p.52)
 
43
CESAR,Guilhermino;RICCI,Ângelo;RODHEN,Valério.BenedettoCroce.PortoAlegre:Publicaçõesda
FaculdadedeFilosofiadaUFRGS,1966.
102
Aopartirdopressupostodequeaobradearteseriaamanifestaçãodoespíritode
todoecadahomem(arteseriaexpressão,sobformadeimagem,daintuiçãodoartista),a
estética de Benedetto Croce acabaria concebendo uma metodologia crítica de base
estilísticadispostaadelinearoestiloindividualdoartista,processonoqualalinguagemse
reveste de essencial importância, uma vez que, segundo a lógica crociana “A prova da
posse de umpensamentoéo seu experimento na linguagem, (...). Alinguagem acha-se
carregadadeelementoslógicos,pelofatodeestesrealizarem-sesemprenela”(ROHDEN,
1966,p.77);raciocínioquecolocariacritérioscomoosdegênero,estilo,ouornamentação
da linguagem no papel de coadjuvantes no processo de investigação artística (literária),
exercendofunçãosimplesmentedidática
44
.AvaliandoadimensãodasidéiasdeCroceno
âmbito dateorialingüísticaedacríticaliterária,GuilherminoCesar consideracomoum
dosprincipaispontosderenovaçãoaperspectivapropostapelopensadoritalianonoquese
refereàavaliaçãodalinguagemnacomposiçãodaarteliterária:
As conseqüências desta posição, especialmente no que concerne à
literatura,sãohojeobserváveisnocampodafilosofiaedalingüística.Os
domínios da intuição-expressão, franqueados á vida, perderam o ar de
necrópole.(...)Ora,o séculoXXtemdadoao estudoda expressãoum
desenvolvimentoinesperado.Porexemplo:asdiversasdoutrinas,escolas
etendências,deBoppàglossemáticadeHjelmslev,nãofazemmaisdo
queatualizaraunidadedafala,comosignodojuízointuitivo-lógico.A
literatura,igualmente,ganhounovaspossibilidades,alargouperspectivas.
Omecanismodeexpresoliteráriavaideixandodeserconsideradonos
seusvaloresmelódicosparadarpreeminênciaaoconceito.Comoestamos
longe,porexemplo,dasonoridadebemmanipuladadeumD’Annunzio;
e como estamos cada vez maisperto docoloquialismo crispado, queé
vida,deLuigiPirandello.(CESAR,1966,p.52-53)
Porfim,percebe-se quealeituradessapartedaproduçãosulinaacabarevelando
ummomentodistintodafaseanalisadanocapítuloanterior,emqueatravésdeumarelação
dialógica entre cultura e literatura as manifestações artísticas teriam como principal
proposta a ficcionalização das características regionais, fator responsável pela
originalidadequecomopassardostemposfezdessavinculaçãoàsraízesumaespéciede
identidadeliteráriadoRioGrandedoSul.
Entretanto,mesmoqueemumsegundomomentoosvaloresregionaisdeixassemde
atuarcomotemaprincipal,ressalta-seadisposiçãodosescritoreslocaisemconduzirseu
 
44
Ver a esse respeito: RODHEN, Valério, “O conceito de linguagem em Benedetto Croce”, In: ______
CESAR, Guilhermino; RICCI, Ângelo. Benedetto Croce. Porto Alegre: Publicações da Faculdade de
FilosofiadaUFRGS,1966.
103
processodecriaçãotendoemvistaasprincipaisquestõesqueagitamaordemsociocultural
do Estado, seja lançando-se à ação partidária dos debates político-ideológicos que
agitavamaatmosferadoperíodofarroupilha,oumesmotranspondoaoplanodaficçãoos
instantes de maior angústia vividos pela população gaúcha em meio ao ambiente
revolucionário, ou seja, ainda que essa produção não possa ser compreendida como
estritamenteregionalista,podemosdeduzirqueagrandemaioriadasobraseautoresnãose
mostraramindiferentesaosacontecimentosdesuaterra,exceçãofeitaaalgunsqueteriam
excluído o Rio Grande de seus quadros literários, como é o caso do Barão de Santo
Ângelo.
Nesse momento dasletras gaúchas, inicialmente marcado poruma produção que
busca traduzirosanseiosde uma sociedade que éintelectualmente convocadaa debater
sobreasquestõesquemotivaramsuamaiorrevoluçãoarmada,GuilherminoCesardestaca
o papel da imprensa como instrumento de fundamental atuação no processo de
amadurecimentointelectualdaProvíncia,tantonoqueserefereaoâmbitosocialquantoao
planoliterário.Assim,observamosquenaseqüênciadessepercursoopesquisadorressalta,
emespecial,aatuaçãodosperiódicosOGuaíbaeArcádia,representantesdeumperíodo
deadaptaçãodasletrassulinasàsprimeirasinfluênciastemáticaseestéticasdomovimento
românticonacional.DefinidocomoumRomantismodecunhoindividualista,osescritores
desseperíodocontinuaramcolocandoosassuntosregionaisemsegundoplano,poismesmo
quando se utilizaram dos temas e paisagens do Rio Grande como matéria poética
demonstravamumamaiorafinidadecomospadrõesliteráriosdocentrodoPaís.
Seemdecorrênciadetaisfatoresaproduçãosulinadistanciou-sedaquelaqueseria
sua motivação diferenciadora, no plano da apresentação esses escritos se mostrariam
atentos às principais tendências temáticas e estéticas da literatura nacional, bem como
ocidental,comocomprovaaleituracríticadostextosdosprimeirosescritoreseescritorasa
conseguirem elaborar uma obra mais consistente. Assim, nesse cenário composto por
autoresquedividiramsuasatençõesentreasituaçãopolítica doEstadoeoque demais
inovadoracontecianoâmbitodaarteliteráriabrasileira,surgeoprimeirolivrodepoesias
do Rio Grande, o primeiro romance rio-grandense, o primeiro intelectual gaúcho de
expressão nacional, bem como os primeiros periódicos essencialmente dedicados às
questõesliterárias;fatoresdeprimordialimportâncianoqueserefereàconstruçãodeum
104
sistemaliteráriosul-rio-grandense,queporsisójájustificariamaconfiguraçãodessaetapa
comounidadediferenciadanahistórialiteráriadoRioGrande.
Seessemomentodematuraçãodasociedadesulinafoimuitomaisnacionaldoque
regional,vejamoscomoGuilherminoCesaridentificaaseqüênciadessahistória,emquea
literaturadaProvínciarecuperasuasraízesedáinícioaumprocessodetransformaçãoque
autorizaapensarmosaproduçãogaúchacomoumsistemaliteráriooriginaleaomesmo
temponacionalmentearticulado.
105
5–ACONSTITUIÇÃODOSISTEMALITERÁRIOSUL-RIO-GRANDENSE
5.1–AgeraçãodoPartenonLiterárioeaformaçãodo“sistemaliterário”
Comoseacompanhouatéaqui,GuilherminoCesarelaborasuapesquisaapartirde
umametodologiaquecompreendeoprocessodeformaçãodaliteraturagaúchaapartirde
relaçõesentreestaeosdiferentesmomentosdahistóriasocialeculturaldoRioGrande,
raciocínio que objetiva a construção de um trabalho historiográfico-literário capaz de
ultrapassar a simples apreciação estética descontextualizada da produção local, para
considerá-lacomo fenômeno dialogicamente integrado à cultura gaúcha – “a prevalecer
um todo mais rigoroso, ficaria eu privado de dar uma visão, embora rápida, do
complexoculturalrio-grandense,segundoaimagemfixadanavidaliterária.”(p.15).Uma
vez mantida essa perspectiva, cabe analisar de que forma o historiador compreende a
efetiva inserção do movimento romântico em sologaúcho como um fatorque pode ser
explicado a partir das transformações ocorridas na sociedade rio-grandense da segunda
metadedoséculoXIX.Nessesentido,ressalta-setambémcomopontoimportantedefinir
quetipoderelaçãoseestabeleceentretaismudançasea culturasul-rio-grandense, bem
como dimensionar de que forma essa tradição serve como instrumento motivador do
Romantismosulino.
Aoanalisaressaadesãoàcorrenteromântica,GuilherminoCesarressaltaqueessa
relaçãoodevesercompreendidacomoumsimplesenquadramentoestético-temáticoa
umpadrãoartísticojáconsolidado,massimumaatitudequedecorredeumconjuntode
fatoresdeordemsócio-histórica.Emumprimeiromomento,suaavaliaçãoconsideraquea
relaçãodedescasoeexclusãodaregiãocomrelaçãoaorestantedoPaísconfigurariaum
ponto preponderante para que o povo do Sul passasse a o se compreender como
pertencenteànaçãobrasileira.Talausênciadeumsentimentodebrasilidade,maislatente
apósosdezanosdebatalhacontraoImpério,somadaàconturbadaatmosferadebatalhas
que,historicamente,marcouasociedaderio-grandenseteriafeitocomqueessapopulação
tivessecomoúnicoreferenteidentitárioosvaloresdesuatradiçãocampesinaerudimentar,
formando um panorama incompatível com o sentimento nacional que alicerçava o
movimentoromânticonocentrodoPaís.
106
Noentanto,apartirdasegundametadedoséculoXIX,aatuaçãodoRioGrandeem
alguns conflitos armados que ameaçavam a soberania brasileira teria feito com que o
Estadopassassedacondiçãoderebeldeàdedefensordoterritóriocomum–“Masjáem
1851tevedepegaremarmascontraRosas,otiranodeBuenosAires,etrezeanosdepois
partiaconstrangidoparaaGuerradoParaguai(1864-1870)”(p.171)–,situaçãotidacomo
fundamentalparaconstruirnasociedadegaúchaumsentimentodeintegraçãocomrelação
ao cenário nacional – “Na ordem cultural, mercê de tantos estímulos e experiências –
dolorosos,massemprefecundos–apurou-seosentimentodaspeculiaridadesbrasileiras,o
amor das tradições pátrias”. (p. 171). Dessa forma, à medida que esse sentimento de
exclusãocedeespaçoaoentendimentodequearegiãoconfiguraumaparteimportanteda
unidadenacional,começaaocorrerumamaioridentificaçãoentreaintelectualidaderio-
grandenseeosvaloresartísticosdocentrodoPaís,situaçãotidacomofundamentalpara
queaproduçãolocalpudesseseengajar,aindaquetardiamente,napropostadomovimento
romântico brasileiro de comprovar a auto-suficiência cultural da Nação através da
valorizaçãodeaspectosmaiscaracterísticos.
Aindaqueressalteaimportânciadessasrelações,GuilherminoCesarreconheceque
afixação doideário romântico no RioGrande nãoseria possível sem acontribuição da
Sociedade Partenon Literário, fundada em 18 de junho de 1868. Reconhecida pela
“surpreendenteatuaçãonoâmbitoprovincial,querpeloquerealizoucomoentidadedefins
culturais, quer pelo que fizeram individualmente os seus agremiados” (p. 172), a
instituiçãoinauguraumanovaetapadavidamentalgaúcha,umavezqueestimulaepassa
acentralizardebatesemtornodasituaçãosocial,políticaeculturaldoRioGrande:Seus
generososmentoresquiseram-naespraiadaatodososdomíniosdainteligência,orientando
letras e artes,mitigando injustiças sociais,apontando rumos à organização política.” (p.
172).
Dentreosdiversoscamposdeatuação,osintegrantesdessaagremiação,emgeral
jovenspensadoresmotivadospelasidéiasliberaisemvoganasuaépoca,empenhavam-se
ativamenteemproldecausashumanitáriascomoacampanhaabolicionistaeadivulgação
da propaganda republicana, assunto amplamente discutido através de publicações e
reuniõesregulares.No entanto, mesmo quereconheça essas diferentescontribuições em
âmbito social, o historiador evidencia que seu foco limita-se à análise das efetivas
contribuições da instituição para o desenvolvimento da vida literária sulina – “Embora
107
assinalem momentode extraordináriarepercussãona vidario-grandense,escapaa nosso
objetivoexaminardetidamentetodasasatividadeseiniciativasdainstituição,porquenão
vamos fazer ahistória dacultura rio-grandense, mas somente um transunto de suavida
literária”(p.172)–,esclarecimentoque,aopassoqueespecificaseuobjetodeinvestigação
ereforçaaidéiadequesuapesquisatemcomoelementohistorizávelavidaliteráriadoRio
Grande, condiz com as sugestões de Siegfried Schmidt
45
 quanto à necessidade de se
explicitarasaplicaçõesteóricaseprocedimentosmetodológicosempregadosnapesquisa
historiográfico-literária.
Tendo em vista o cenário intelectual anterior à fundação da agremiação porto-
alegrense,GuilherminoCesarafirmaquesurgimentodaentidadeassinalaoiníciodeuma
novafasedaliteraturagaúcha,queexceçãofeitaaalgunsautoresfixadosouemcontato
comtendênciasdocentrodoPaísseresumiaàsmanifestaçõesesparsasdeescritoresque,
descompromissadamente,compunham versosapartirde umpadrãoformalheterogêneo,
ou que dificilmente se diferenciavam dos sonetos clássicos ou das quadras populares.
Nesse sentido, o historiador não só ressalta a relevância do grupo em promover uma
diversificação estética até então pouco praticada, como também por conferir uma
organizaçãoquehámuitosefazianecessáriaparaodesenvolvimentodasletrasdoSul:
Atéaqui,antesdoaparecimentodo“Partenon”,foradesordenadaa
atividadeliterária,dequedemosnotícianoscapítulosanteriores;a
mesma geração do decênio farrapo deixou marcas de vocação lírica
confundidas com cicatrizes, morte e luto. Mas tudo quanto se fizera
carregavaovícioinsanáveldasimprovisações,opoucosumodosfrutos
imaturos.Eaprosadeficção,muitomaisexigente,contavaapenasdois
outrêsautores.Pálidastentativas,aquieali,dememorialistascanhestros,
algumasnotassobreassuntoseconômicos,vagasincursõespelaciência,e
nadamais.Oromanceeraavisrara.E,comele,adisciplinadoescritor,a
autocrítica, todas asqualidades erequisitos impostos por literaturas
quesepretendememancipadas.(p.173.Grifomeu.)
AoavaliaraproduçãoqueantecedeosurgimentodaSociedadePartenonLiterário
como “atividade literária desordenada”, o pensamento de Guilhermino Cesar acaba
propondo umadivisãomuito precisaquantoàvidaliteráriasul-rio-grandense,raciocínio
quepodeseraproximadoàmetodologiautilizadaporAntonioCandidonaconstruçãoda
Formação daliteraturaBrasileira (1959),pesquisaque investiga de que maneira, eem
 
45
Veraesserespeito,SCHMIDT,Siegfried.Sobreaescritadehistóriasdaliteratura.Observaçõesdeum
pontodevistaconstrutivista.In:OLINTO,Heidrunkrieger.HistóriasdeLiteratura:asnovasteoriasalemãs:
Ática,1996.p.100–132.
108
quemomento,constitui-seosistemaliterárionacional
46
.Observandoumaorientaçãoque
procura compreender o fenômeno literário a partir de uma perspectiva que contempla,
concomitantemente, os planos estético e histórico da literatura nacional, o historiador
carioca ressaltacomoponto fundamentala distinção entre“manifestaçõesliterárias”e a
“literatura” propriamente dita, compreendida como produção contínua e organizada de
obrasqueseinterligamporelementoscomuns,capazesdesefazerreconhecerenquanto
faseregidaportraçoscaracterísticos.Nessesentido,Candidoidentificacomopressupostos
indispensáveis para a configuração de um sistema literário consistente, além de um
conjunto de dominantesde ordem interna (língua,temas, imagens),certoselementos de
naturezasocial:
umconjuntodeprodutoresliterários,maisoumenosconscientesdoseu
papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de
público,semosquaisumaobranãovive;ummecanismotransmissor(de
modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns aos
outros”(CANDIDO,1975,p.25)
Uma vez que a Sociedade Partenon Literário é apontada como marco na
constituição do sistema literário rio-grandense, cabe analisar de que modo esse grupo
contribuiparadarformaàproduçãolocalapartirdeumpadrãoestéticoetemático,odo
Romantismo, capaz de lhe conferir unidade e identificação própria. Ainda, deve-se
observar em que medida o trabalho dessa geração confere às letras gaúchas uma
organização interna que autorize pensá-la como sistema consolidado, em que se pode
observaradinâmicaentreasinstâncias deprodução,circulaçãoe recepçãodaliteratura,
panoramatidoporessencialnãosónavisãodeAntonioCandidocomonaóticadefendida
porSchimdtemsuapropostadeCiênciadaLiteraturaEmpírica,emqueaocompreendero
fenômeno literário como “sistema social de ações que, por sujeitos atuantes, são
consideradosliteráriosdeacordocomnormaseexpectativas”(SCHMIDT,1996,p.113),
propõe como objeto historizável, em lugar do texto enquanto entidade autônoma, as
estruturasprincipaiseasdiversasdimensõesdavidaliterária:
 
46
Ao estabelecermos uma aproximação entre os textos em questão, o estamos afirmando que haveria
algum tido de influência diretadenenhuma das partes na composição dos trabalhos historiográficos, mas
apenas observando uma mesma orientação teórica e metodológica entre os historiadores. Nesse sentido,
AntonioCandidojáalertavanaapresentaçãodesuapesquisaqueaosevalerdessa“atitudemetodológica”
não almejaria originalidade, haja vista sua afirmação de que tal atitude “É uma posição crítica bastante
corriqueira, que eu próprio adotei e desenvolvi teoricamente há muitos anos numa tese universitária”.
(CANDIDO,1975,p.16)
109
Os papéis fundamentais, nos sistemas literários modernos, são os de
produção,distribuição,recepçãoepós-processamentodetextosliterários.
As concatenações de ações literárias são denominadas processos
literários.Oconjuntodosprocessosliteráriosemumasociedadeformao
sistemaliterário.(SCHMIDT,1996,p.113)

Nem só a inquietação política e a defesa de causas sociais uniam os jovens do
Partenon. Conscientes da disparidade do Rio Grande com relação ao conhecimento já
comumnocentrodoPaís,essageraçãoregistraoprimeiroesforçoconjuntodeintelectuais
unidosemproldeummesmoideal,queerafazerevoluir”avidamentalgaúcha,o
nacapitalcomonasdiversasregiõesdoEstado.Parapromoveressaebuliçãointelectual,o
grupopassaacoordenarumasériedeaçõespráticascomoainstituiçãodeaulasnoturnas
gratuitas, a criação de uma biblioteca própria e o incentivo à organização de outras,
objetivandotornarolivromaisacessívelàpopulação,arealizaçãodesarauspoéticosem
quesediscutiamassuntosliterários,alémdapromoçãoeencenaçãodepeçasteatrais,que
serviamcomoinstrumentoparasediscutirasquestõessociaisàluzdosideais liberaise
republicanos:
Devemos,porém,aosautoresreunidosemtornodo“PartenonLiterário”,
emPortoAlegre,aaçãocoletivamaisbrilhante.Emtodasaspeças,pelo
menosnasquechegaramaténós,aaçãosocialimediata,enquadradano
fraseado característico do romantismo liberal, senhoreia a própria
inventiva. Dos temas explorados, salientam-se estes: a escravidão do
negro, o heroísmo brasileiro no Paraguai, o idealismo republicano, a
opressão do dinheiro, os preconceitos de família, o jesuitismo, a
maçonaria. Pregava-se no palco a liberdade do homem sob diversas
formas.Oburguêsendinheiradofoiamaiorvítimadonossoteatro,masa
nobreza imperial, na pena dessa geração de republicanos, equiparou-se
emperfídiaehipocrisiaaosodiadosdetentoresdodinheiro.(p.263)
Entretanto,oprincipalinstrumentodaagremiaçãoparaodesenvolvimentodesuas
idéiasfoiaRevistaMensaldoPartenonLiterário,mantidademarçode1869asetembro
de 1879, apesar de algumas interrupções
47
. Dando continuidade à tarefa iniciada pelos
predecessoresOGuaíba(1856)eArcádia(1867),operiódiconãosóampliaocampode
atuação da imprensa literária sulina, como passa a promover a descentralização e
unificação da literatura gaúcha, na medida em que sua circulação atinge as diversas
localidades da Província. Mais do que promover a divulgação de autores e obras,
publicandocontos,romances,poesiasedemaisproduçõesdaquelesque,aolongodosanos,
 
47
Vera esse respeitoocapítulo“Ogrupo doPartenonLiterário”,maisespecificamente anotaderodapé
número187,napágina178daHistóriaLiteraturadoRioGrandedoSul.
110
firmar-se-iam como os grandes mentores intelectuais do Estado, a ampla divulgação da
revista estimula a constituição de um público leitor fiel e atuante, formado tanto pelos
colaboradoresemembrosdaprópriainstituição,comopelosidealizadoresdeoutrosgrupos
e veículos de imprensa que se formaram a partir de sua influência, como é o caso do
periódicoMurmúriosdoGuaíba(1870)que,surgidoapartirdedissidênciasentrealguns
membrosdoPartenon,foidefundamentalimportâncianatarefadedifundiresedimentaro
ideárioromânticonoRioGrandedoSul.
Fora os méritos de constituir um espaço regular e consistente para a escrita
continuadadeumaliteraturaqueseorganizatemáticaeesteticamenteapartirdomodelo
romântico,incentivarautoresdasdiversascidadesàcomposiçãodeobrasqueseguemum
mesmo padrão, bemcomo formarum público leitorcapaz deassimilare consumir esse
material,GuilherminoCesarreconheceoperiódicoadministradopelogrupodoPartenon
como veículo de primordial relevância para o resgate da tradição local. A par de
reconhecer todo trabalho em torno dos valores regionalistas promovido nas páginas da
RevistaMensal,ohistoriadorse preocupaaindaemapontara origemdesseprocessode
resgate ao recuperar o episódio em que o jovem Apolinário Porto Alegre publica uma
espécie de “carta manifesto”, exigindo daquela geração a composição de uma literatura
originalque,aoinvésderepetirtemaseimagenscomunsaocentrodoPaís,semostrasse
maisidentificadacomosaspectosdesuacultura:
José Bernardino dos Santos, assíduo colaborador da revista, reduzia a
peçade teatro o poemaI-Juca-Pirama, de GonçalvesDias. O fatonão
passou sem reparo, segundo nos consta o mesmo autor. Um missivista
embuçado dirigiu-lhe longa carta, em que chamava à realidade os
escritoresepoetasdaprovíncia.Porquepreferiambuscarláforamotivos
comosquaisnãoseachavamidentificados,quandohaviatantoassunto
localàesperadeinterpretes?(...)AcensurafeitaaJoséBernardinoserviu
a todos, sobretudo a Apolinário. (...) Pode-se acompanhar, mês a mês,
através da revista,amudança deorientaçãodosmais moços do grupo,
visandonacionalizar,regionalizarostemas.(p.183)
Defato,talproposiçãonãopoderiaserfeitaemmomentomaisoportuno,tendoem
vista que em pleno momento de efervescência intelectual, as principais estratégias que
embasavamomovimentoromânticosemostramcompatíveiscomrelaçãoaosvaloresda
cultura gaúcha –“É essageração, ada metadedo século XIX, quevai descobriro Rio
Grandeparaavidaliterária,exploraroricofilãodeseuscostumes,hábitosetradições.O
estadodeespíritoromântico,(...),servir-lhe-iadeestímuloeforneceriaosmodelos.”(p.
111
171). Assim, através da recuperação dos elementos anteriormente trabalhados pelo
cancioneiro popular, esse panorama acaba favorecendo a composição de uma literatura
que,aopassoquesegueosparâmetrosestéticosdaproduçãonacional,apresenta-secomoa
expressãomaisíntimadatradiçãodopovodoSul:
Abre-se com o “Partenon” o ciclo da literatura regionalista, dita
gauchesca, como conseqüência de uma atitude mental necessariamente
combativa.Atravésdeseusprimeiroscultores,anovacorrentesedeixou
atrair,acimadetudo,pelopassadogaúcho,procurandoreviveroguasca
largado,ohomemlivredosprimeirostemposdaconquista,osrebeldesde
1835. (...). Para a região da fronteira, para o seu território banhado de
sangueeaçõesheróicas,foiquesedirigiuaimaginaçãodeApolinário,de
TaveiraJúnior, de MúcioTeixeira(nasFloresdoPampa), deCaldree
Fião,dodesventuradoLobodaCosta,detodos,enfim,quetinhamalgo
quedizersobreagentepampiana,seuspesaresealegrias.(p.173)
Aoanalisarasfeiçõesdessaprodução,GuilherminoCesarsepreocupaemdefinir
dequeformaoselementosdofolclorelocalsãoresgatadoseadaptadospeloRomantismo
rio-grandense,avaliaçãoqueolevaaconcluirqueareleituraregional(re)elegecomotipo
humanoprincipalafiguradopeãogaúcho,símbolodeumpassadogloriosomarcadopor
histórias de altivez, brio e coragem – “O peão de estância, herdeiro do monarca das
coxilhas, (...), por efeito de uma transposição perdoável (...) ocupou, aqui, o lugar que
couberaaoíndioeaonegronaliteraturaliberalquedesdeMacedoenfartaraasletrasdo
centroedonortedopaís.”(p.173-174).Nessesentido,alémdaexploraçãoartísticados
ambientes e paisagens campeiras, cenário apropriado para uma literatura que propõe a
valorização da cor local”, o historiador ressalta enquanto ponto de excelência a
manutenção da linguagem típica das populações interioranas em meio ao processo de
criação, característica presente não só na produção romântica como em diferentes
momentosdaliteraturasulinaAdotandoalínguadopeão,nosdiálogoscomonocorpo
da obra, deramumpassoa diantenavalorizaçãoda linguagemcoloquial.(...) Adicção
deformada, paisana, do genuíno modo de contar das populações da campanha, é bito
literáriorenitenteentrenós.”(p.174).
No curso dessa avaliação, o historiador acaba revisitando uma discussão
percebida em outros momentos da critica e da historiografia local, em que correntes
opostasdivergiamquantoàcaracterizaçãodoregionalismoliteráriosulinocomodiscurso
decunhoseparatista.Noqueserefereàquestão,oautorratificaopensamentoapresentado
na introdução de sua pesquisa, afirmando que essa forte identificação com relação aos
112
aspectosmais particulares da tradição local decorre antes de umconjunto defatores de
ordemsócio-históricadoquedequalquertentativadediferenciaçãoquantoaorestantedo
País–“asdificuldadesenfrentadaspelopovogaúcho,pararealizar-seliterariamente,não
foram pequenas.Lutou com operigo dentroefora decasa,sozinho naraia extremado
país, (...). Adquiriu conseqüentemente da vida comunal uma noção muito particular,
fortaleceu laços efetivos muito íntimos com o pequeno mundo da província.” (p. 174).
Nesse sentido, partilhando da mesma orientação empregada por João Pinto da Silva na
construçãodesuahistórialiterária,emquemaisdoquediferenciaraproduçãosulinada
platina, procura circunscrevê-la no âmbito maior da cultura brasileira, Guilhermino
compreende o regionalismo literário gaúcho como uma espécie de contribuição do Rio
Grande para o projeto de independência cultural proposto pelo movimento romântico
brasileiro,colaboraçãoresponsávelporsuainserçãodefinitivanopanoramanacional:
Acimadetudo–razãodasrazões–oartistadoRioGrandenãoelegeuos
temas da campanha com o intuito de apenas se definir a si mesmo.
Procurou,explicando-se,explicar-seaoBrasil.Seufimúltimo:mediante
aguardadevaloresgenuínos,afinarcomaaspiraçãodeoriginalidadeque
desdeaIndependênciaforapreocupaçãodaselitesnacionais,sóatendida
pelo romantismo. Logo, o regionalismo gaúcho dever ser ainda
considerado,no seuimpulso e motivação instintivos, comoumesforço
bemsucedidopeladefinitivaintegraçãodaraiasulinanaculturadanação
brasileira.(p.174-175)
Observado esse novo momento das letras sul-rio-grandenses, marcado por uma
melhororganizaçãoemtermosdeprodução,circulaçãoerecepçãodeumaliteraturaque,
ao mesmo tempo em que segue os parâmetros estéticos propostos pelo movimento
romântico,semostraatentaaosvaloresmaiscaracterísticosdesuacultura,cabeanalisar
com maior minúcia de que maneira o historiador realiza a leitura crítica da literatura
produzida por essa geração. Assim procedendo, poderemos perceber aspectos de suma
relevâncianoâmbitodoprocessodesuaescritahistoriográficacomo,porexemplo,quais
sãoasobraseescritores privilegiados, quaisas feiçõestemáticaseestéticas quemelhor
definemoRomantismonoRioGrande,bemcomoemquemedidaosistemaregionalse
relacionaeenquadranocontextomaiordaliteraturabrasileira.
Semdúvida,umdosgrandesnomesdessageraçãofoiApolinárioPortoAlegre.Ao
apontaroescritorcomoumaespéciededermentaldogrupodoPartenon,Guilhermino
ressalta a ampla participação desse intelectual nos diversos campos do conhecimento –
“Masfoiaindapoeta,romancistaefilólogo,teatrólogo,educadorejornalistapolítico.”(p.
113
201)–,desempenhoqueteriaexercidosalutarinfluênciasobreosdemaisdeseutempo.
Alémdessadiversidade,ohistoriadorreconhecesuacontribuiçãonoresgateenafixação
doregionalismoenquantomatériapoéticadomovimentoromânticorio-grandense.
Sua estréia literária ocorre nas páginas da Revista Mensal, em 1869, com a
publicaçãodosprimeiroscapítulosdoromancehistóricoOsPalmares,narrativaquetoma
portemaaresistênciadeumquilombodoNortedopaísàsinvestidasarmadasdosbrancos,
sendo considerada como “uma obra de pura imaginação (...), cujos cenários lhe eram
completamente estranhos” (p.205). Após esse início que se caracteriza justamente pelo
distanciamento quanto aos assuntos do Rio Grande, Apolinário publicaria nesse mesmo
periódicoocontoMandinga–umahistóriadeencantamento,passadanosarredoresdo
Morrode Sant’Ana, recanto porto-alegrense quelhe erafamiliar” (p.204)–,escrito que
marcariaumanovaedefinitivaorientaçãodesuaprodução–bemcedoomoçogaúcho
buscoutraduzirumaexperiênciapessoalmaisdireta.(...)Nãomaisiriabuscarassuntofora
desuaprovíncia.”(p.204).
A partir de julho de 1872 surgiria no periódico do Partenon a narrativa O
Vaqueano, que resgata através da figura do protagonista José de Avençal a imagem do
campeirogaúchodosprimeirostempos,equeteriapormaiorméritoafidelidadedeseu
autornoretratarafisionomiamoraldohomemrio-grandense”(p.205).Destacandocomo
valor a ficcionalização dos hábitos e costumes das populações campeiras, o historiador
afirma queessa obraacabaria revelando umescritormuitoatentoàpesquisa acerca dos
aspectos mais característicos da cultura gaúcha, principalmente no que se refere à
recuperaçãodeformasdialetaiseelementostípicosdaoralidaderegional:
EsurgiuocasoApolinárioPortoAlegre.Assim,ovocabulárioregional
foiaponteporondeocriadordehistóriasalcançouarealidadedavida
rio-grandense, obrigando-se a observações mais detidas. Desceu com
ardente curiosidade ao estudo das peculiaridades dialetais e,
consequentemente,doscostumesgaúchos,visandoacoloriraficção(p.
205-206)
Noâmbitodanarrativa,GuilherminoreforçaaimportânciadeOVaqueanoosó
pordarcontinuidadeaogêneroromanescoiniciadoporCaldreeFiãoem1847,maspor
consideraroescritocomoprecursordoromanceessencialmenteregionalistanoEstado
48
–
 
48
Foradoplanodaficção,ohistoriadorreconheceoPopulariumsul-rio-grandense(1980)comoimportante
contribuição para a fixação do regionalismo sulino, na medida em que, ao propor um estudo detido das
114
“Descrevendo umepisódiodarevoluçãode35,põeemcenaumapersonagematéentão
quasedesconhecidadosprosadores-ovaqueanorio-grandense,tipoagrestederastreador,
leal eforte,corajoso edesinteressado” (204). Aocontrapor osurgimento da narrativa à
datadelançamentoderelevantesobrasdaliteraturanacional,oraciocíniodohistoriador
acabademonstrandoque,apesardoanacronismodoRomantismogaúcho,oregionalismo
sul-rio-grandenseantecederiaasdemaismanifestaçõesdessecunhoencontradasemoutras
partesdoPaís:
A pequena história de José de Avençal abriu caminho à prosa rio-
grandense,emcontinuaçãoaogenerosoesforçodeCaldreeFião.Oano
deseuaparecimento(1872)coincidecomodaInocênciadeTaunayea
Ressurreição de Machado de Assis. Mas as letras nacionais viviam já
uma fase prenunciadora de algo mais consistente: não demoraria a
aparecer, no Maranhão, O Mulato de Aluísio Azevedo. Nesse período
pré-agônicodaprosaromântica,oexemplodeApolinárioacenouaseus
conterrâneoscomabandeiradoregionalismo,eamaiorialheseguiude
pertoatendência,quesómaistardeganhariacorpoemoutraszonasdo
Brasil.(p.205)

A lírica de Apolinário Porto Alegre também seria reveladora das qualidades do
escritor.Detendo-senoexamedeBromélias(1874),Guilherminoreconheceumpoetaque,
apesardesuajuventude,transitapelasprincipaislinhastemáticasdaliteraturaromântica,
vistoquealémdatendênciaregional,releituradosentimentonacionalistabrasileiro,olivro
apresentaria ainda toques do lirismo sentimental percebido em poetas de intensa
subjetividade,bemcomooengajamentopolíticoeaacidezdacríticasocialencontradano
grupocondoreirolideradoporCastroAlves:
Com as Bromélias, coletânea poética, estreiou-se em livro. A primeira
parte desse pequeno volume – Harpa do Deserto – é de inspiração
nitidamenteregionalista,comosevêdasproduçõesde1872e74queali
figuram,e que a esse respeito constituem a pedra de toqueda obra. A
segunda parte, Lira da Mocidade, não nos oferece se não suspiros e
lágrimas, à laiados românticos lamartinianos. Na terceira –Alaúde do
Século – canta o poeta muitos dos temas sociais em voga, a saber: o
celibato do clero, o liberalismo político, a imprensa, a escravidão. Os
poemas finais, Dies Irae e A África, este datado de 1872, apresentam
matériaquejulgodeimportânciaparaaferirdesuasligações,quandomal
seiniciava,comapoesiacondoreira.(p.202)
   
peculiaridadesdialetaisdaoralidadegaúcha,ointelectualacabaaprofundandoedespertandomaiorinteresse
pelasparticularidadesdaculturagaúcha.
115
Mais do que estar atento a respeito das principais tendências do movimento
romântico,edereiterarosmotivosregionaiscomoelementoconstantedesuaprodução,a
obradeApolinárioPortoAlegremostrar-se-iatambématualizadacomrelaçãoaomomento
literáriobrasileiro,umavezque,apesardoacontecimentotardiodoRomantismolocal,o
crítico-historiadoridentificanessecompêndiopoéticotraçosestilísticosprópriosàescola
Naturalista em voga no centro do País – “Nas Bromélias aparece já também o veio
naturalistaemqueseembebeu,comonãopodiadeixardeser,oprosadorquealimentouo
propósito de documentar a vida de sua província. Referimo-nos às notas finas, onde
recalca,comminúciasdeespantaremlivrodeversos,averacidade,ofatorealinspirador
desteedaquelepoema.”(p.203).Noentanto,aomelhoravaliaresseaspecto,Guilhermino
Cesar conclui pela originalidade doescritor gaúcho, afirmando que tal proximidadenão
deveria ser entendida como uma tentativa de simples enquadramento à tendência mais
atualdesuaépoca,masumaorientaçãoquedecorredotratamentominuciosoqueaplicaao
examedeseusmotivosliterários:
Romântico pelo tratamento exterior, Apolinário se aproxima dos
naturalistas pela substância documental, quando nada pelo interesse
demonstrado em focar o ser humano, não como um joguete de forças
obscuras, mas como um produto do meio, da situação social que lhe
condicionasse e explicasse o comportamento. (...) Mas, no caso de
Apolinário–façamo-lhejustiça–nãohouvepropriamenteapreocupação
deseguiramoda.Neleocaráternaturalista– forjadopeloacúmulode
elementosdocumentais–nasceudeumatendência,deumgostotodo
especialpelosestudossociológicos.(p.208-209–Grifomeu.)
Essa disposição para discutir questões sociais é apontada como uma marca da
produçãodramáticadeApolinárioPortoAlegre,espaçodecriaçãoemqueoautoracaba
“derramandoasualargaideologiaderepublicanoeantiescravista”(p.265).Analisandoo
conjunto das peças escritas e encenadas ao longo da década de setenta do século XIX,
Guilhermino Cesar avalia essa produção como um “teatro antes para ser lido que
representado” (p. 265), uma vez que identifica a disposição ao estudo minucioso e
documental como um traço inadequado ao gênero – A preocupação da tese sacrificou
bastanteaespontaneidadedoautor.Quandofazteatrodeaçãopuraesimples,comoem
Benedito,atingeatmosferaconveniente,consegueprendereinteressar”(p.265).Elegendo
como destaques do teatro apolinariano “o traço psicológico bem marcado, a linguagem
viva, pitoresca,oardeestúrdio” nacomposiçãoda comédiaMulheres!(1873), eo tom
críticodeOsfilhosdadesgraça(1874),ohistoriadorchamaaatençãoparaaausênciade
116
peças de cunho regionalista, lacuna não só da produção do líder do Partenon como de
todos os escritores rio-grandenses, característica que teria como causa primordial a
influênciasocioculturaldomeio
49
:
O elemento tradicional, que poderia ter dado ao teatro nascente a sua
melhor feição, era aquele mesmo de que se aproveitaram a poesia e a
prosa: o gaúcho da campanha. Seria quase fatal que a curiosidade do
artistaseencaminhasseparaoheróisemreinemroquedavidacampeira,
embusca de novostemas. A existênciamovimentadadoguasca, o seu
fascínio lendário, o vigor e a coragem reclamados por seu gênero de
atividade,os conflitoscom o governoque delongelhe impunhaleise
reclamava impostos – não estaria, por acaso, nesse cenário vivo a
personagemtalhadaparainfundirrealidadeaoteatroromântico?Mastal
nãosedeu.Abaseculturaleminentementelusadomeiopediacoisamais
sentimental, os dramalhões do teatro popular, do teatro de cordel tão
difundidonapenínsula.Eosnossosautores,produtodessamesmacultura
portuguesa–nãochegaramaperceberondeseescondiaofilãodramático
maisoriginal.(p.261)
Fora do plano da ficção, Apolinário Porto Alegre teria destaque como crítico
literário,especialmentenosensaiosParecer(1870),emqueanalisaoinéditoromanceA
Douda,deJoséBernardinodosSantos,eJosédeAlencar(EstudoBiográfico),publicado
em vários números da Revista Mensal. Quanto ao primeiro, Guilhermino reconhece a
períciaeimparcialidadedoexaminador,quesemostraindiferenteàsrelaçõesdeamizade
com o ficcionalista estudado e compõe uma análise objetiva que aponta os principais
pontos de excelência e deméritos da narrativa – “Apesar dos laços de estima que os
irmanavam, ocrítico,para serhonesto, nãopoupouo criticado,descendo aminúciasde
técnica, a reparos de ordem formal que representam, se outro valor não tivessem, um
verdadeiroitinerário,umpreciosomaterialdeconsultaparabemconhecermosaorientação
estética daquela fase” (p. 349). Esse texto adquire maior relevância na medida em que
Guilherminocompreendeapublicaçãocomoprecursoradoensaiocrítico-literárionoRio
Grande,bemcomoApolináriooiniciadordessaatividade:
Não erraríamos afirmando ter sido esse o primeiro tentame de crítica
literária–ouqueassimpossaserconsiderado–postoemletradeforma
na província. Com ele, Apolinário conquistou o lugar de precursor do
 
49
AindaqueoconstenapesquisadeGuilherminoCesar,caberegistrarosurgimentodeumapeçateatral
quetematizaosvaloresdatradiçãogaúcha.FalamosdeOmonarcadascoxilhas,textoescritoporCesarde
Lacerdaepublicado,primeiramente,emRecife,pelaTipografiadoJornaldoComércio,em1867.Sobreesse
escrito,constaaindaareediçãolançadapelodoInstitutoEstadualdoLivrodePortoAlegre,em1991.
117
gênero,título queemverdadelhepertence, tanto maisquantovoltou a
escrever, agora com maior desenvoltura, sobre obras de mais
significação.(p.349)
OartigosobreoautordeIracemaéotextocríticodemaiorenvergaduraproduzido
pelageraçãoromânticario-grandense,nãosópelaamplitudedesuaabordagem,comopelo
reconhecimentoobtido.Nesseescrito,alémderebatergrandepartedosataquesdirigidosà
obradoromancistacearense,Apolináriodiscuteosprincipaispontosdebatidospelacrítica
romântica, como a importância da originalidade literária para a afirmação da
nacionalidade, a existência de uma língua propriamente brasileira e a necessidade do
exercíciocríticoparaodesenvolvimentodaliteratura.
AoavaliarouniversodaproduçãodeApolinárioPortoAlegre,GuilherminoCesar
conclui que apesar de seguir um padrão estético proposto pelos moldes da literatura
romântica,suaprosacareceriadeumamaiorexploraçãodasubjetividade,perspectivaque
teriasido relegadaemfavorde umafocalizaçãomaiscentradanoselementosdacultura
regional,principalmentenoestereótipodogaúcho:
Em Apolinário Porto Alegre são visíveis as marcas deixadas pela
educação romântica. Contudo, sua obra em prosa não se enquadra
perfeitamentenoscânonesdaescola,poisnãochegouacumprirumade
suas exigências fundamentais. Queremos nos referir à pobreza de sua
visãodoindivíduo,dohomemisoladoemlutaconsigomesmo.Oescritor
não viu criaturas humanas, viu o gaúcho, tipo bem diferenciado,
característico de uma região. Essa imagem unilateral prejudicou-lhe
seriamenteascriaçõesromanescas.(p.207)

Ainda nesse sentido, o historiador ressalta que o espírito inquieto do intelectual,
sempreatentoe dispostoaatingirasdiversasáreasdo conhecimento,teriadificultadoa
composição de uma obra uníssona – “Interessado portodos os aspectos da cultura, não
chegou,écerto,aproduzirobraharmoniosa.”(p.210)–,aspectoqueoécompreendido
comoprejudicial,masumacaracterísticaqueofazconsideraropensadorgaúchocomoum
dosgrandesestudiososdaliteraturaedacultura:Nele,oqueimpressionaedominaéo
conjunto.Epeloconjuntodeseustrabalhos–queapontaramrumosàliteraturaregional
talvezmaisorgânicadoBrasil–ApolinárioPortoAlegrehádeserlembradocomoumdos
grandesvultosnacionais.”(p.210).
A obra de Bernardo Taveira Júnior também é considerada parte importante do
Romantismorio-grandense.EmboraregistreaescritadaspeçasOanjodasolidão(1869)e
Paulo(1874),bemcomo olançamentodePoesias americanas(1869)ePoesiasalemãs
118
(1873),aprimeiraseguidorafieldoestiloindianistadeGonçalvesDias–“Ainfluênciado
maranhense é ali perturbadora, tanto no metro como na maneira de apreciar a bondade
naturaleoheroísmodoíndio”(p.192)–,easegundacapazdeatestarasqualidadesde
tradutordo poeta,GuilherminoCesarafirmaqueapermanênciadoescritorrio-grandino
noscânonesliteráriosgaúchossedeveàpublicaçãodeProvincianas,em1886.Tomando
por tema os costumes e tradições das populações do Sul, as dezoito poesias do livro
enfocamocotidianocampeiro,revivendoomitodoMonarcadasCoxilhasnamedidaem
quereapresenta“oguascalargado(...)identificadocomoseutrabalho,oseudestinoeseus
folguedos”(p.194).
Aomanteraposturadeexaminarseuobjetodeestudoapartirdeumaperspectiva
que contemplaoexercíciointerpretativo fundamentado nosparâmetrosdacríticade seu
temposemdeixardeconsiderararelevânciadaobranoplanodeseucontextohistóricode
produção – “Vejamos, agora, as Provincianas. Se as analisarmos segundo nosso gosto,
segundoospadrõesemvoga,pouco,muito poucoficarádepé.Mas,senoscolocarmos
diantedelascompreocupaçõesmenosestéticasdoqueculturais,jáentãoolivroassumirá
importânciaerelevoparticulares”(p.194)–,ohistoriadorressaltaqueamanutençãodo
linguajar campeiro e a fidelidade na descrição dos bitos e cenários campeiros seriam
pontos deexcelência daobra –“Napaisagística, tantoquantona descriçãode costumes
característicos, lê-lo é ver uma chapa fotográfica” (p. 194). Entretanto, ao avaliar a
composição estrutural dos poemas, o crítico reconhece no poeta gaúcho uma filiação
estética muito próxima à estilística gonçalvina, preferência anteriormente atestada na
apreciaçãodasPoesiasamericanas–Maugradotantafidelidadecansativa,otrechotem
seu o vigor e mostra a alternância do metro, dentro da linha melódica traçada a seus
sucessorespeloexemplodeGonçalvesDias.”(p.195).Aindanessesentido,Guilhermino
afirmaqueseencontramnocampodamétricaasmaioresdeficiênciasdoescritor:
TaveiraJúniorvarioubastantedemetro,empregandooraum,oraoutro,
namesmacomposição,nãoraroparaobterefeitosonomatopaicos.Oseu
decassílabo é duro e áspero, mas no eneassílabo ganha bastante
flexibilidade, mercê do martelar constante do anapesto. Faltou-lhe,
porém, no metro mais popular, – o setissílabo, – a flexuosidade, a
maleabilidade tão encontradiça até mesmo nos poetas incultos. Tais
defeitosoaindaacrescidosdeoutro:aintromissão, emversosque se
pretendiam naturais e espontâneos, de certas expressões, boleios e
cadênciasdesformescomooassuntoeoambienteretratado.(p.194
)
119
No curso de sua investigação, Guilhermino Cesar parte da análise de uma nota
introdutóriadaobrade1886pararecuperaropolêmicodebatenoâmbitodacríticaliterária
sulina, em que Álvaro Teixeira atribui a seu pai, Múcio Teixeira, o mérito de ter
inaugurado,aoladodeApolinário,aperspectivaregionalistanaliteraturalocal:Apoesia
daprovíncia,decorlocal,jáenriqueciaocancioneirorio-grandense,quandoApolinárioe
Múcio(estecommaisfogo)começaramacultivá-la,ampliando-a,dando-lheumafeição
inteiramente nova e artística” (TEIXEIRA apud CESAR, p. 193). Partindo de uma
declaraçãoemqueafirmaque“asProvincianasestavamconcluídasdesde1873,àespera
deeditor”(p.192),emborasuacomposiçãotenhasidoiniciadaem1865,BernardoTaveira
reivindicaparasioreconhecimentodeintrodutordosassuntosregionaisenquantomotivo
literárionoEstado:“Nãotenhonotícia,atéaopresente,dequehajaalgumpatríciomeu,
literato,poetizadosobreassuntospuramentecomrespeitoaonossocampeiro,eaosseus
hábitos,costumesetradições”(TAVEIRAJÚNIORapudCESAR,p.191).Naavaliação
daquestão,ohistoriadorconcluique,apesardasdificuldadesemseapontarcomexatidãoa
quemcabeaprimaziadessainiciativa,serialícitoafirmarque“TaveiraJúniorfoidetodos
os seus contemporâneos o que publicou em primeiro lugar livro homogêneo, uno, todo
inspirado no temário crioulo” (p. 193-194), afirmativa que coloca a obra como
inauguradoradalíricaregionalistanoâmbitodapoesiaculta
.
Ainda que não seja o iniciador da vertente regional nas letras do Sul, Múcio
Teixeira desponta na pesquisa de Guilhermino como um dos grandes escritores rio-
grandenses, tendo se dedicado à escrita dos diferentes gêneros e estilos literários -De
tudoexperimentouumpouco.Fezpoesia,história,folclore,romance,memórias,dramas,
sátiras, poesia gauchesca, poesia culta; traduziu autores alemães, franceses e espanhóis;
versejouemespanholeemportuguêsarcaico;foiromântico,parnasiano,simbolista...”(p.
227).EmborareconheçaodestaquedeOsgaúchos(1920)nocampodaprosa–Deixou
um estudo que é obra indispensável, (...) Os Gaúchos, tantas vezes consultada por nós
durante a composição deste trabalho. Mergulhou na história do seu Estado, retratando
heróis, políticos ehomens de letras” (p. 228)–, bem como de algumaspeças teatrais–
“MúcioTeixeira,sobretudopoeta,produziuteatrodeboaqualidadeliterária,comoemO
Filho do Banqueiro, Tempestades Morais, Montalvo, Álvaro, O Farrapo, A Virtude no
Crime”(p.266)–,ohistoriadorapontaalíricadoporto-alegrensecomoaparcelademaior
excelênciadesuaprodução.
120
Sua estréia literária se dá pelas páginas da Revista Mensal, onde divulga os
primeirospoemasdeVozestrêmulas,lançadosemlivroem1873.Contudo,Guilhermino
afirmaqueaprimeiragrandepublicaçãodeMúciosóviriaaserlançadaem1879–“Tudo
quanto escreveu antes das Flores do Pampa (1879) equivale a mero adestramento para
iniciativas mais ousadas” (p. 229) –, obra em que o autor se dispõe a poetar sobre os
assuntosecenáriosregionais.Entretanto,aanálisedopesquisadoracabarevelandocomo
traço principal a artificialidade com que o poeta teria focalizado os quadros locais –
“MúcioTeixeiramalseacercoudopampa,dovivergaúcho,contemplando-ocomolhosde
queovêpelaprimeiravez-turistacuriosoebeminformado.Noscenáriosquedescreve,o
ambienteeatémesmoascoisasinanimadaspertencemaoutraspaisagens,àsdomundodo
livro.”(p.229)–,razãopelaqualoapoesiadeBernardoTaveiraJúnioracabasendoeleita
como representante mais indicada das primeiras manifestações líricas de cunho
regionalista.
Alémdesseaspecto,Guilherminoressaltaqueasparáfrasestemáticaseestilísticas
configuramumacaracterísticaevidentenoconjuntodaobradeMúcioTeixeira.Atribuindo
tal aspecto à precocidade com que iniciou sua carreira, e às “impressões de leitura”
adquiridasatravésdoamploconhecimentoliteráriodoescritor,ohistoriadorempregauma
perspectivacomparativaentrealgunspoemasdogaúchoesuasrespectivasinfluências:
Múcio Teixeira parafraseou com prazer e com freqüência:o Fausto de
Goethelhedeuumpoemetodramático,FaustoeMargarida;parafraseou
OCânticodosCânticos,seguindoatradiçãodeRenan;aParisiana,de
Byron,emuitosoutrospoetas.Alémdeparáfrasesnãoconfessadas.(...)
Durante sua estada na Bahia, adotou o selo inconfundível de Castro
Alves. E dos tempos vividos na Venezuela, como representante
diplomático, trouxe na pena a deformação provocada por Campoamor,
queporláeraoídolododia.DeGuerraJunquerio,cujamaneiraimitou
semrebuços,herdaporviadiretaOSultão,queonossoMúcioapresenta
sobodisfarcede“lendagaúcha”(p.231)
Aforaessespontosdeaproximação,ocríticoreconheceaexploraçãodetraçosde
erotismo – sensualidade dirigida, às vezes crua, como se fosse o amor, assim
compreendido,umdeverdohomemmásculo”(p.231)–easnotasdehumor,perceptíveis
desdeVozestrêmulas,comotemasuniversaisemqueoescritorteriaconseguidoempregar
umolhardiferenciado.Noentanto,GuilherminoCesarafirmaquetamanhaversatilidade
dificultariaadelineaçãodaobradeMúcioenquantoconjuntohomogêneo,umavezqueo
poetatrilhaospassospropostospelomovimentoromântico,dastendênciasmaisregionais
121
àsuniversais,comamesmanaturalidadecomquepassaasededicaraocultoda poesia
parnasiana,demonstrandoextremahabilidadenacomposiçãodossonetos–“compôs,aliás,
alguns magníficos, principalmente os que se avizinham dos modelos parnasianos, cujos
corifeusnoBrasil,Bilaceoutros,lhepareciam,contudo,umaspobrescriaturasinferiores”
(p.228).Nessesentido,oexameprofundodouniversopoéticodoescritorfazcomqueo
historiador reconheça, a despeito de seu trânsito por diferentes escolas literárias e pela
focalização de temáticas diversas, uma essência romântica que dominaria toda sua
produção,característicaqueotornariadiferenciadoquandocomparadoaosdemaisdeseu
tempo:
AnteumautordacomplexidadementaldeMúcioTeixeira,asdistinções
queseestabeleçam,comofimdeenquadrar-lheaobraemdeterminada
escola, fatalmente serão prejudicadas por aparências formais, em
detrimento da medula, do recheio, da alma que a vivificou. E esta, no
homemdeletras,semostravincadapelapredestinaçãoromântica.Entreo
choro de Casimiro e o esbravejar de Castro Alves, a melancolia de
ÁlvaresdeAzevedoeocepticismodeJunqueiraFreire,moveu-seMúcio
Teixeiracomumanaturalidadequeodistancioudoscompanheiroslocais.
HajavistaumApolinárioPortoAlegre,românticoporcontaminação,pois
otemperamentoodestinavasobretudoapesquisaseindagaçõesdeordem
positiva; um Taveira Júnior, romântico de situação”, afogado na sua
tristesangademestre-escola.Estesetantosoutrosnãoforamromânticos;
sentarampraçaconstrangidosnobatalhãodeMusset.Masonossopoeta
ofoidemaneiracompletaeintegral;nãoconheceriaoutraposiçãomais
compatívelcomasexigênciasprofundasdoseuespírito.(p.232)
Se Guilhermino Cesar entende que Múcio Teixeira apresenta uma visão rasa do
regionalismogaúcho,omesmonãoseaplicaàobradeJoséBernardinodosSantos,que
constrói duas narrativas onde se pode verificar, além das notas dominantes da escola
romântica, uma focalização centrada nas particularidades locais. Tanto no romance A
douda(1870)comoemSerõesdeumtropeiro(1878),ohistoriadordestacacomoprincipal
qualidade o mérito do autor em transladar para plano da ficção a região Nordeste do
Estado,apresentandooscenárioslocais,oshábitosetradiçõesdaquelapopulação:
Oquemaisinteressa,porém,emJoséBernardino,éterabertocaminho
comoficcionista,nãosónADouda,masprincipalmentenosSerõesde
umTropeiro,aoestudodanatureza,dohomemedoscostumesdaregião
deCimadaSerra.Apesardemuitonova,quandoeleapareceu,aficção
rio-grandensehaviadesprezadoaregiãodoNordesteporoutramaischeia
de vida, mais facilmente captável em seu pitoresco, em seu estilo de
trabalho,emsuafisionomiaheróica–acampanha.(p.316)
122
Mesmo apresentando uma exuberância natural adequada aos padrões em voga,
aquelas terrasconfiguravamumterritório desconhecido àgrande partedos escritores da
época.Nessesentido,oquepoderiaserestranhoaosdemaiserafamiliaraoescritorporto-
alegrense,quehaviapassadoboapartedesuainfâncianaquelaregiãoe,dessaexperiência,
pôdetirarmatériasubstanciosaparaaconstruçãodesuashistórias:
Oscamposquebordejamecruzamoplanaltodaserraapresentavam(...)
uma face misteriosa, sendo quase desconhecido o homem sombrio e
distantequeresidianoseuchão.Porqueladotomá-lo?Comoromancear-
lhe os costumes, desconhecidos dos literatos da época, quase todos
homensdacampanha?Bernardinopôde,contudo,sair-semaisoumenos
bemdesuaempresa:conheciaaregião,tendonelavividoamaiorparte
desuameninice.(p.316-317)
Desse universo que lhe era comum, o autor apresentou à literatura sulina os
cenáriosrústicos,osvalesemontanhasporondecampeavamosíndios,bemcomoasfestas
e celebrações folclóricas típicas desse espaço inédito e misterioso. No entanto,
Guilhermino ressalta que, embora Bernardino estivesse “longe de ser um grande
romancista,mesmoseencaradocomaindulgênciaàquenosobrigamosnaapreciaçãodos
prosadores deste período” (p. 318), sua prosa teria como destaque a fidelidade na
manutenção da linguagem interiorana, principalmente nos diálogos das personagens –
“Avulta particularmente, nesse ficcionalista, o sabor da linguagem coloquial, traduzida
aliássempedantismosouexcessos”(p.317).
Transpor ao plano da ficção casos e situações de seus universos particulares foi
umaconstantedosescritoresdessageração,tendoemvistaofatodequeagrandemaioria
viveu, estudou e produziu dentro dos limites estaduais. Nesse sentido, Guilhermino
reconhece ainfluênciada observação diretacomo aprincipalmotivação dos contosPai
Felipe(1874)eAfilhadocapataz(1875),publicadosporVítorValpírionaRevistaMensal
–“VivendoemPelotas,VitorValpírioconheciabemotrabalhodascharqueadas,aoquese
deduzdobomusoquefezdovocabuláriodoscarneadores”(p.320).Emboradestaqueno
primeirooenfoquesobreasituaçãodesofrimentodosescravosnegrosdaquelestempos–
“contoatécertopontobrutal,foiconduzidocomhabilidade;emnadafalseiaosentimento
primáriodaspersonagenseoambientedesangueeviolênciaquelheservedemoldura”(p.
320),focalizaçãoquecontrastariacomotratamentolevedaaventuraamorosadasegunda
historieta, o pesquisador aponta como peça mais relevante da produção do escritor
123
pelotenseanovelaMãedoOuro,lançadanoperiódicodoPartenonnoanode1874,eque
temporpanodefundoumalendatípicadofolcloregaúcho,quedánomeaoconto.
A leitura de Guilhermino Cesar demonstra que, apesar do excessivo traço
descritivo,dificultandoodesenrolarnaturaldatrama,edafaltadematuridadedoescritor
nodesfechodoconflitoamorosodaspersonagensAnitaeLeonel–“sendoofiocentralo
amordamoçapelodesconhecidoqueelasocorreraeabrigaraemcasa,eraprecisodarmais
forçaaossentimentos(...)AíéquefaltouaVitorValpíriobastantefibra paraencararo
temadefrente.”(p.320),ahistóriadecaráterregionalistaambientadaàsmargensdoarroio
Piratini apresentaria boascenas, capazes derevelar Valpírio comoexcelente observador
doscostumesedaspaisagenslocais.
AMãedoOuroofoiaúnicaobraadirecionaroolharparaofolcloreeaslendas
gaúchas. Com anovelaO Patuá(1879), CarlosJansen tambémfocalizaa atmosfera de
mistérios e crendices tão comuns às populações interioranas – “o pano de fundo é a
superstição em que vivem mergulhadas as classes baixas da campanha” (p. 325). Além
dessavisãosobreascrençaspopulares,tãocaracterizadorasdaculturasulina,Guilhermino
afirmaqueoescritoralemão,naturalizadobrasileiro,teriacompostoumahistóriamaisleve
eagradáveldoqueamaiorpartedasproduçõesdeseuscontemporâneos,principalmente
naconstruçãoeapresentaçãodesuaspersonagens,quefogemaoestereótipotradicionaldo
guerreiro dos Pampas, solidificado no Romantismo a partir de O Vaqueano – “As suas
tintassãomaisleves.NãoapareceaíogaúchomásculoeenérgicoretratadoporApolinário
(...).OshomensdeCarlosJansenoexibemostraçosincisivoscomqueaficção,sobo
pretexto de originalidade, costuma desfigurar avida” (p. 326). Segundo Guilhermino, a
narrativateriacomopontosdeexcelênciaosóasuavidadedasdescriçõesdaspaisagens
edoshábitoscampeiros,masanaturalidadenaconstruçãodosdiálogosenaevoluçãodo
enredo:
Eis,emresumo,anoveladeCarlosJansen,queselêcomagrado,antea
naturalidadedoenredo,alevezaegraçacomquedescreveapaisagem,a
naturalidadedascenas,otomfinamentenostálgicopostonareprodução
doambiente.Opaisagistaéfinoediscreto.Amesmadiscriçãoimperana
apresentaçãodaestância–afarinhada,omate,acaçaàsperdizes,aluta
com o “tigre”, adomade um redomão, a cura de uma rês mediante a
aplicaçãodo“rosáriodegarras”.Osdiálogosnãochegamaserpostiços
comoosdealgunsromânticosdaépoca.(p.325)
124
Houve ainda aqueles que dirigiram sua atenção para os fatos e acontecimentos
marcantes do passado rio-grandense. É o caso de Oliveira Belo que, ao escrever Os
farrapos (1877), consegue, mais do que retratar as paisagens e os costumes locais,
apresentaroladosombrioedevastadordaRevoluçãode1835.Emboranãotenhadeixado
deressaltaroheroísmodosrebeldesedoslíderesfarroupilhas,oautorporto-alegrensetem
porfocoosdramaseastragédiassofridaspelasfamíliasgaúchasduranteosdezanosdo
conflito,abrindomãodademasiadaecomumpreocupaçãoemdescreverasexuberâncias
naturais,aaltivezeabravuradotipohumanocampeiro–“opanodefundoéodasásperas
realidadescotidianas-aschacinasinúteis,osdegolamentoseoutrosexcessospraticados
(...) no fundo, parece ter querido Oliveira Belodemonstrar a tese de que a guerra civil
devastara a província, mergulhando pessoas e lares no luto e na pobreza.” (p. 321).
Considerandoaspectosrelativosàelaboraçãodanarrativa,ocríticoavaliaqueoromance
sedestacariaporumamaiornaturalidadenodesenrolardasações,umavezqueonarrador
relegariaodemasiadotraçodescritivoemfavordadinâmicadoenredo.Aobraaindateria
comoqualidadesafluênciadosdiálogoseacaracterizaçãodaspersonagens,apresentadas
comoseresdepersonalidademaisnaturaleespontânea:
Deslocadooenredoparaacampanha,apenasindicaostraçosprincipais
dapaisagem,semsedemorar,oumelhor,deixando-aquasedeladopara
seentregarporinteiroànarrativa(...)oqueéaçãodesenrola-sesempre
emtraços incisivos. Osdiálogos, algumas vezes longos,não revelama
preocupaçãodedocumentaralinguagemcoloquialdogaúcho;contudo,
registramosuficienteparaadquirircorlocal.Nogeralanarrativaéplana
e bem urdida. Os tipos, por sua vez, são bem caracterizados, pessoas
vivasenãosombras(...)EstamosemdizerqueémuitosuperioraoJosé
Avençal, de Apolinário Porto Alegre, porque muito mais humano e
verídico,semateatralidadedooutro.(p.322-323)
O indígena rio-grandense, tão importante na história da formação da Província,
configura uma parte do passado gaúcho que ficou esquecida pela grande maioria dos
autoreslocais–Osminuanosetapes,ospatoseosguanaans-aindiadadosprimeiros
tempos passou de raspão pela pena dos nossos escritores, na fase aguda do movimento
romântico”(p.326).Entretanto,alémdeOUraguai,domineiroJoséBasíliodaGama,o
único escritor que se propôs apresentar o índiodos pampas pela via da ficção foi João
Mendes da Silva que, ao publicar o romance A índia rio-grandense (1897), almejou
delinear osbitos e osaspectos caracterizadores da cultura das populações aborígines.
Sobo pseudônimo deHeráclito, oescritorde Taquariteriacomposto umahistória bem
125
movimentada, que explora as paisagens naturais do Estado e apresenta os costumes e
tradiçõesdosprimeirosnativosdasterrasdoSul–“Ascorreriasdastribos,seushábitose
superstições,avidanasmalocas,tendemsempre,(...),àpoetizaçãocomumaorelatodas
lendas primitivas” (p. 328). Para Guilhermino, além dos méritos de enfocar essa parte
esquecidadopassadosulino,anarrativaapresentariaumaconstruçãoestéticamaisrefinada
doqueOcampeirorio-grandense(1889)eO sertanejorio-grandense(1896),romances
anteriormentepublicadospeloescritor:
O seu entrecho é bem armado, de efabulação natural, e a narrativa
consegueprender oleitor. A naturezada grande mesopotâmiaformada
pelos afluentes do Guaíba anima o quadro, sem perturbar, no entanto,
comdescriçõesescusadas,afluênciadoenredo.OPadreHermozila,de
ascendência mameluca, a índia Obirici e seu pai, o velho cacique
Juparetã, bem como as outras personagens, têm naturalidade, falam e
agemcomoseresvivos.(p.328)
AinfluênciadeJosédeAlencarnaescolhadotemaéumfatoassumidoporJoão
MendesdaSilvanaapresentaçãodesseromance:Assimquecomeçardesa-lo,vereis
que modelei-opor Iracema –esse poemeto doinimitável Alencar”(HERÁCLITOapud
CESAR,p.327),sugestividadequeohistoriadorreconhececomoumamarcapresentena
maioria dos prosadores gaúchos – “Diga-se entre parênteses, que domínio teve o
romancistacearensesobreseuscontemporâneos!Poucosescaparamàsuainfluência,detal
sorte que abrir uma dessas novelinhas escritas no Sul é topar fatalmente com a marca
alencariana” (p. 320). Mais do que isso, a trilogia composta por Heráclito teria como
pretensãoomapeamentoeoestudosdoselementosformadoresdasprimeirassociedades
sul-rio-grandenses,projetosemelhanteàquelequeoescritorcearenserealizouemâmbito
nacional:
Maisambiciosoquepareceàprimeiravista,Heráclitoquistotalizarem
suaobraageneralidadedovivergaúcho,limitada,porém,aoestudodos
elementos formadores mais representativos da sociedade primitiva, a
saber:ocampeiro,osertanejoeoíndio.Comessestrêstipospoder-se-ia,
realmente, sintetizar a vida gaúcha no século XVIII, sem esquecer, é
lógico,opadrejesuíta.(...)
Atarefaquesepropôsobedeceu,semdúvida,aumplanoorgânico,vasto
edifícil,acujarealizaçãonãofoiestranhooexemplodeAlencarnaparte
queconcerneaoentrelaçamentodasociedadebrasileiranumacadeiade
romances.(p.327)
126
Afora esses escritores, cujos olhares voltaram especial atenção às paisagens
naturais do Pampa, aos costumes, às tradições, ao folclore e ao passado heróico dos
gaúchos, houve aqueles que conduziram sua literatura a partir de uma perspectiva mais
subjetivae/ouuniversal.Assim,GuilherminoCesarafirmaqueaproduçãodoschamados
“românticosindividualistas”caracterizariaumatendênciaquesemanifestariaemparalelo
ao regionalismo dentro do movimento romântico sul-rio-grandense. Nesse sentido,
vejamosquemforamosprincipaisseguidoresdessatendência,bemcomoquaisasfeições
maiscaracterizadorasdessaliteratura.
Oporto-alegrenseCarlosAugustoFerreira,emboratenharesididoamaiorpartede
sua vida longe dos pagos, foi um dos colaboradores do grupo do Partenon. Ainda que
tenha estreado como escritor em 1867, com os Cânticos juvenis, e tenha lançado em
seguida Rosas loucas (1868) – “O fundo macabro e a linguagem hugoana desse livro
afastaram-nodolirismodulçurosoelamecha”(p.215-216)–,Históriascambiantes(1874)
ePlumas aoVento(1908), além dealgumas peçasteatrais
50
;Guilherminoafirmaquea
obra de maior reconhecimento do poeta gaúcho, não só internamente como também no
centrodoPaís,teriasidoObailedasmúmias(1867),compostaàmaneiradeÁlvaresde
Azevedo:
OBailedasMúmiasapaixonoutambémajuventudepaulista,queviuna
poesia do gaúcho os tiques e maneiras –que lhe eramfamiliares –de
ÁlvaresdeAzevedo.Aquelasestrofesatrevidaseapaixonadas,cheirando
a cadáver e a flor, era um produto de certa morgue sentimental que
lembraria Edgar Poe, não houvesse parente mais próximo a sugerir
ligaçõeseafinidades.(p.216)
Entretanto, não teriasido o estilo que notabilizou opoeta paulista o quemelhor
caracterizaria a lírica de Carlos Ferreira, mas as mesmas características e influências
estético-temáticas que teriam motivado a obra de seu contemporâneo e amigo Castro
Alves,relaçãoessaqueohistoriadorfazquestãodeanalisarimpõe-severificaratéque
pontoCarlosFerreiraeCastroAlves,quesetornaramamigosíntimos,trocaramentresi
influênciasliterárias,confundindo-se nomesmotompoético” (p.216).Nesse sentido,o
crítico-historiador contrasta alguns poemas de O baile das múmias e Súplica (1870) a
poesias que integram Vozes d’África (1880) e Laço de fita (1868), respectivamente,
 
50
Nocapítulo“ALiteraturaDramática”,GuilherminoCesaratribuiaCarlosFerreiraaautoriadaspeçasO
maridodadouda(1874),Aesposa(1880),bemcomoDemôniodolar(1868)eMadalena(1868),asúltimas
duasescritasemparceriacomJoséFelizardoJúnior.
127
concluindoquealémdaaproximaçãoestilísticacomrelaçãoàlíricadeVictorHugoeLord
Byron, o gaúcho e o baiano apresentariam semelhanças na cadência dos versos e no
tratamentodasfiguraseimagens.
Ao fim de sua investigação, Guilhermino conclui que nenhum dos poetas teria
exercidoinfluênciadiretanaproduçãodooutro,masapenascompartilhariamasmesmas
influênciasliterárias,domeioedeseumomento.Sendoassim,perantetodosessespontos
deaproximação,nãosejustificariaofatodeaobradeCarlosAugustoFerreiramerecer
menosconsideraçãoporpartedahistoriografiaecríticaespecializada,umavezquecada
qualteriacontribuído,asuamaneira,paraoenriquecimentodapoesiabrasileira:
Nãoseriaexato,tendoemvistaapartepropriamenteépicadequedemos
exemplos,julgá-loseguidorpassivodeCastroAlves.Vimosquenãofoi
assim. Quando nada, agrandiloqüência espontânea deambos coincidiu
no tempo cronológico; um e outro, cada qual a seu modo, muito
contribuíram para impor à poesia brasileira o arredondadoda forma,o
timbre quentee heróico. Seria ridículoigualá-los; nem cogitamos de o
fazer. Mas, tendo sido um dos poetas mais lidos dos fins do século
passado,nãoélícitoesquecerousubestimaraimportânciadogaúchona
difusão da poesia condoreira. Muitas penas de seus versos ajudaram o
condorasubir.(p.221)
JuvêncioAugustoMenezesParedes,alémdosdramasCoroademartírios(1874)e
Jovita,esseescritoemparceriacomApolinário,teriacomoúnicaobrarepresentativade
suaproduçãoocompêndioParietárias(1873),obraquerevelaria“Umapoesiaretorcida,
com esgares dolorosos, vesânica, cheia de sentimentos mórbidos; (...) apresentando
sobretudo uma nota ácida, nitidamente intelectual” (p. 224), e que foi objeto crítico de
CamiloCasteloBrancoemCancioneiroalegre(1877).Diferentementedoqueapontouo
português,GuilherminoconsiderasignificativaalíricadeParedes,nãosópelaressonância
queteveàépoca,namedidaemqueopunhadiretamenteosentimentalismoexacerbadoem
voga – “posição contrafeita dentro do ultra-romantismo (...) o deixou de usar a
linguagemmordente,aciculada.Ridicularizaaspaixõesinsinceras,opostiço,ofalso,para
ficar com sentimentos legitimados pela dor” (p. 224) –, como também pelas bem
empregadasnotasdehumor,quejáhaviamsidoesboçadas,commenosperícia,poroutros
poetasdoRomantismosulino:
128
Pois a nota de humour era nova por estas paragens. Lobo da Costa,
excessivamente sentimental, não soube ousá-la: resvalou para o
humorismodetipocaboclo,omesmosucedendoaMúcioTeixeira.
MenezesParedesatingiuoalvoemcheio.Oseuhumorismoperturbae
confunde, pelo inusitado da forma, o bizarro da imagem, e foi isso
mesmo, num instante de ferocidade portuguesa, que o solitário de S.
MigueldeSeidequisverenãoviunasParietárias.(p.225)
Representantedessesentimentalismodoschamados“ultra-românticos”teriasidoa
poesiadeAmáliaFigueiroa,quecomseulivroCrepúsculos(1872)“pertenceàcategoria
dasobrasvisceralmenteromânticas”(p.240).Equiparando-aaoestilodeRitaBarémde
Melo, Guilhermino Cesar reconhece que prevaleceriam na lírica da porto-alegrense os
traçosdenostalgia,desesperançaetristeza,revelandoumeulíricoquesenotabilizapela
visão sombria do mundo: “Na tessitura de seus versos tudo são devaneios, sonhos
malogrados, alucinações de enferma. Em torno de si não via senão motivos de
acabrunhamento,e o espinho da solidãoabriu-lhe no peitoum vazio sem remédio.” (p.
240).
FranciscoLobodaCostarealizasuaestréianocampodasletrascomLucubrações
(1874), obra que já seria reveladora das principais feições empregadas pelo escritor no
curso de sua produção – “O livro subdivide-se em três partes - na primeira, figura o
SolitáriodosTapes;asegundatemotítulodePoesiasLíricaseaterceiradeHumorísticas.
Valeaenumeraçãoporquedemonstrajustamenteosaspectosessenciaisdasuapoética(...)
o gosto do poema longo, o lirismo amoroso e a sátira rimada” (p. 235). Além dessa
publicação, e de algumas peças teatrais
51
, o boêmio poeta espalhou seus versos pela
maioriadosperiódicosquecirculavampelaProvíncianasegundametadedoséculoXIX,
textos que foram reunidos após seu falecimento no compêndioAuras do Sul (1888),
lançadopeloescritoreamigoFranciscodePaulaPires.
GuilherminoconsideraquedentreosprincipaisméritosdalíricadeLobodaCosta
estaria o apurado senso de musicalidade – “O seu poder de comunicação e de
encantamento, através deritmosenleantes, tocoutodas as almas”(p. 239)–, razãopela
qualteriamseusversossetornadoextremamenteconhecidos.Nessesentido,umavezque
oreconhecimentopopularhaviasuperadooobtidonoâmbitodapoesiacultaedacríticade
seu tempo, o historiador afirma que os versos do pelotense são um dos raros exemplos
 
51
GuilherminoatribuiàautoriadeLobodaCostaosdramasOfilhodasondas,Abolsavermelha,Assunção
ouAmortedoTiranoLópez,Osamoresdeumcadete,OmaçomeOjesuíta.Nenhumadasobrascitadastraz
referênciaquantoàdataoulocaldepublicação.
129
literáriosdaquelageraçãoqueaindasemostravamatuais,namedidaemquesobrevivem
atravésdaculturagaúcha:
Contudo,édospoucosautoresrealmentevivoscomquecontaaliteratura
rio-grandense.AsAurasdoSulandamnasmãosdopovo,nascidadesdo
interior e nas estâncias. Versos seus, como O Ranchinho de Palha,
gemeramegememporaíaosomdasviolasedasgaitas.Seosletrados
ouviram sempre com certo desdém os gemidos dolorosos de Lobo da
Costa, razão por que influi muito pouco a poesia culta, na admiração
popular reservaram-lhe um posto de honra, junto do Negrinho-do-
Pastoreio,deSepéTiarajuedeoutrosinfelizes.Virousímbolo.(p.239)
Nocampodaprosa,CarlosvonKoseritzfoiumautorquesemostrouindiferente
aosquadrosregionais.Detendo-senaanálisedeAdonzeladeVeneza(1858),primeirodos
quatro romances compostos pelo autor
52
, Guilhermino Cesar salienta que, por ter se
deixadolevarpelosprincípiosliberaisporeledefendidos,ointelectualalemãoteriaescrito
umahistóriaemqueanotamaiscaracterizadoraseriaaartificialidade–“Emboratragao
subtítuloambiciosode‘romancecontemporâneo’,ADonzeladeVenezaéumanovelinha
curta escrita ao correr da pena, com a fluência e o desembaraço próprios do grande
jornalistaalemão.Masédeumainconseqüênciaatodaaprova.Frutodafantasia,tudoali
éartificial,desdeocenário,(...),atéaosincidentesromanescos.”(p.310).
Aindanessesentido,talinconsistênciapoderiaserpercebidaemmuitosromances
daquela geração, como em O homem maldito (1858), de Carlos Eugênio Fontana –
“recursos como esse, de evidente mau gosto, desfiguram as boas intenções de Carlos
Fontana,sacrificandoaverossimilhançaemmuitostrechosdoromance”(p.311)–,Afilha
doestancieiro(1876),deArgemiroGalvão“nãorevelasenãoasuainteligênciaprontae
ágil”(p.314)–,Umahistória deamor(1876),deDamascenoVieira–“Masocenário,
aliás magnífico, daquelas paragens deixou de ser indicado (...). A presença do mar, os
costumesdospescadores,(...)denenhumdessescondimentosseaproveitouonovelista”
(p.312)–,talcomoumasériedeoutrosautorese obrasque,naleituradeGuilhermino
Cesar,sãoapontadoscomonomesmenosexpressivosdentrodomovimentoromânticosul-
rio-grandense.
Apesardenãomereceremmaiorrelevâncianoâmbitodaprosaelíricaromântica,
Colimério Leite de Faria Pinto e Manuel José de Souza Bastos ocupam posição de
 
52
Os outros seriam A véspera da batalha (1858), Um drama no mar (1863) e Laura, também Perfil de
mulher(1873),obrasqueopesquisadorafirmanãoterconseguidolocalizar.
130
destaque na História da Literatura do Rio Grande do Sul pela profusão com que se
dedicaramàescritaeencenaçãodepeçasteatraisnaquelasegundametadedoséculoXIX.
ComoprimeiroradicadoemPelotaseosegundonacidadedeRioGrande,aregiãoSuldo
Estadoseconfiguroucomoograndereferencialemtermosdeproduçãoemencenaçãode
dramas e comédias – “Souza Bastos criou na sua pequena cidade, e por emulação em
outroscentros,umaverdadeiraescoladeteatro(...).Colimériofezdele[doteatro],abem
dizer, uma profissão. Seus dramas, à base do gosto popular, portanto menos
intencionalmenteliterários,abriramàcidadedePelotas,nodecêniode70,asuafasemais
brilhante de literatura dramática.” (p. 263). Dedicando o décimo quarto capítulo de sua
pesquisaaoexamemaisapuradodessegênero,ohistoriadorconcluique,devidoaogrande
volumedepeçasescritaseencenadasduranteoperíodo,oteatrogaúchosemanifestousob
osmaisdiversosestilosetemas,sejaemsuafaseromânticaoureal-naturalista,diversidade
essaqueimpossibilitariadefinirsuaslinhasprincipais:
Repitamos,paraterminar,que,aforaocasodocitadoautorrio-grandino,
notável criador de literatura dramática, os românticos e naturalistas, a
despeitodeproduziremsemdescanso,nãocriaram,efetivamente,um
teatroválidocomoexpressãoinconfundíveldomeio.Emgeraçõestão
marcadasporfortesafinidadescomopovo,comopago,comastradições
dagrei,–valoresafetivoseculturaisdiscerníveisnoromanceenapoesia,
- a sua literatura dramática não oferece traços comuns que a
identifiquem,impondo-a ao nosso apreço comoalgo de próprio, de
particulareinconfundível.(p.268,Grifomeu.)
NoqueserefereàproduçãoteatralnoRioGrandedoSul,aHistóriadaliteratura
doRioGrandedoSultraz,emsuasegundaedição,umacréscimoimportante.Aofocalizar
aproduçãodeJoséJoaquimdeCamposLeãoQorpoSanto,GuilherminoCesarreconhece
naobradodramaturgogaúchotraçoscapazesdequalificá-locomoumdosgrandesnomes
doteatrodelínguaportuguesa:
Houve, porém, um gaúcho que ultrapassou por completo as acanhadas
medidas provincianas. (...). Reformador da ortografia, editor de si
mesmo, Qorpo Santo fez alguns versos medíocres, mas escreveu duas
dezenas de comédias revolucionárias - na temática, na linguagem, na
crítica social implacável (...). Não conhecemos, em língua portuguesa,
ninguém que se lhe compare. (...) Qorpo Santo nos deixou algo que
representa uma das contribuições mais originais que o Brasil pode
ofereceraoteatrodoOcidente.(p.268)
131
Ao avaliarmos esse percurso, percebe-se que Guilhermino Cesar compreende a
inserçãodoRomantismonoRioGrandedoSulcomoumfenômenointrinsecamenteligado
às transformações ocorridas na esfera extraliterária. Mais especificamente, o historiador
avaliaqueasedimentaçãodoideárioromânticoemsologaúchosófoipossívelgraçasa
uma maior identificação da intelectualidade sulina com relação aos valores culturais do
centrodoPaís,bemcomoapartirdeumamelhororganizaçãodaproduçãoliteráriario-
grandense, que até a fundação da Sociedade Partenon Literário não demonstrava
uniformidadequantoàsuacomposiçãoestéticae/outemática,tãopoucoapresentavauma
produçãocontínua,umpúblicoleitorfiel,oumecanismosdedivulgaçãoecirculaçãode
seus escritos, panorama que faz com que essa produção se aproxime do que Antonio
Candidoclassificademanifestaçõesliterárias:
Emfasesiniciais,éfreqüentenãoencontrarmosessetipodeorganização,
dada a imaturidade do meio, que dificulta a formação dos grupos, a
elaboraçãodeumalinguagemprópriaeointeressepelasobras.Issonão
impede que surjam obras de valor, - seja por força da inspiração
individual, seja pela influência de outras literaturas. Mas elas não são
representativasdeumsistema,significandoquandomuitooseuesboço.
São manifestações literárias, como as que encontramos, no Brasil, em
grausvariáveisdeisolamentoearticulação,noperíodoformativoinicial
quevaidasorigens,noséculoXVI,comosautosecantosdeAnchieta,às
AcademiasdoséculoXVIII.(CANDIDO,1975,p.16)
Seapartirdostrabalhosdaagremiaçãoporto-alegrenseasletrasgaúchascomeçam
aapresentarum padrão homogêneo, esseméritoemmuitose deveàRevista Mensaldo
PartenonLiterário,quepromoveadescentralizaçãoeunificaçãodaliteraturagaúcha,na
medida em que sua ampla circulação divulga ao público leitor os moldes temático-
estilísticospropostospelomovimentoromânticoeincentivaautoresdediversascidadesà
composiçãodeobrasqueseguemessamesmafeição.Alémdisso,constituielaumespaço
regulareconsistenteparaaescritacontinuadadessaliteratura,seqüênciaqueohistoriador
carioca aponta como fundamental para a formação de um sistema literário – “Se
desejarmos focalizar os momentos em que se discerne a formação de um sistema, é
preferívelnoslimitarmosaosseusartíficesimediatos(...).Trata-se,então,(paradarrealce
àslinhas),deaveriguarquandoecomosedefiniuumacontinuidadeininterruptadeobrase
autores, cientes quase sempre de integrarem um processo de formação literária.”
(CANDIDO,1975,p.16).
132
Dada essa nova organização em termos de produção, circulação e recepção,
Guilhermino Cesar propõe a leitura crítica das obras compostas pelos autores dessa
geração,afimdedelinearquaissãoasfeiçõesprincipaisdaliteraturagaúchaproduzidaa
partirdadécadadesetentadoséculoXIX.Nessesentido,umadasprimeirasconclusões
aponta para a afinidade entre essa literatura e os moldes propostos pelo movimento
romântico brasileiro, orientação semelhante à empregada na construção da História
literária do Rio Grande do Sul, em que, mais do que diferenciar a produção sulina da
platina,JoãoPintodaSilvaprocuracircunscrevê-lanoâmbitomaiordaculturanacional.
Assimsendo,Guilherminoconcluique:
se percorrermos a história literária do Uruguai e da Argentina, povos
oriundos de sociedadescriadasigualmenteà baseda atividade pastoril,
veremos que também à mesma época surgiram ali vigorosas
manifestaçõesdegauchismoliterário.(...)Nodesabrochardagauchesca
rio-grandense,acimadetudovigorouoestímulodascorrentesinternasdo
pensamento brasileiro. Foram sobretudo os autores do Norte, um
Gonçalves Dias, com seu americanismo tão sonoro e sugestivo; foi o
exemplo de Araújo Porto Alegre, com as Brasilianas e mesmo o
Colombo;foramosportugueses,comapaixãoardentedeHerculanopela
históriaepelaslendasantigasdeseupaís,–foramestesenãoosplatinos
os fautoresdo nosso despertar para o gênero.A musa negra deCastro
Alvesentroucomo molhopicante:otomépico,asclarinadasmarciais
que se casavam, no campo aberto, à vocação teatral do monarca das
coxilhas.(p.190)
Nocursodeseuraciocínio,rebatendoaposiçãoqueavaliaoregionalismoliterário
sulinocomodiscursodecunhoseparatista,ohistoriadorcompreendequeessatendênciaà
poetizaçãodosaspectosmaisidentificadoresdatradiçãocampeiraseriaequivalenteaoque
a vertente nacionalista cultuadora da natureza e da cor local representou em âmbito
nacional – “A derivante do movimento passaria a ser, no pampa, o regionalismo
propriamente dito” (p. 172). Tal analogia permite que se compreenda o regionalismo
gaúcho,antecessordasdemaismanifestaçõesdessecunhoencontradasnorestantedoPaís,
comoumaespéciedecontribuiçãodoRioGrandedoSulcomoprojetodeindependência
culturalpropostopelomovimentoromânticobrasileiro.
Uma vez que se essa relação de contribuição mútua entre o sistema literário
gaúcho e brasileiro, visto que são os moldes do Romantismo nacional que motivam os
autoreslocaisàproduçãodeumaficçãoqueenalteceaoriginalidadedaregiãoSuldoPaís,
Guilhermino empregaumaperspectivadeanálisecomparativaqueaproximaaprodução
133
dosescritoressulinosdosgrandesexpoentesromânticosdoBrasil,investigaçãoqueacaba
revelando, por exemplo, a estilística de Castro Alves como influência presente na
composição de Apolinário Porto Alegre, Múcio Teixeira e Carlos Augusto Ferreira, a
filiaçãoentrealíricadeBernardoTaveiraJúnioreadeGonçalvesDias,apresençadetons
lúgubresenotasdelamúriaquenotabilizaramapoesiadeÁlvaresdeAzevedonosversos
de Juvêncio Augusto Menezes Paredes, bem como a dominação exercida pelo estilo
alencariano na grande maioria dos textos em prosa escritos durante o Romantismo rio-
grandense.Entretanto,ohistoriadorfazquestãoderessaltarquenãosóesseespelhamento
caracterizou a literatura romântica sulina, principalmente no que se refere à poesia e à
prosadecunhoregionalista,queatravésdafocalizaçãodaspaisagensnaturaisdoPampae,
acima de tudo, da fidelidade com queenfocou oscostumes, ofolclore e o linguajar do
campeirogaúcho,deumostrasdaoriginalidadeculturaldoRioGrande.
NoprocessodeanálisedessaliteraturacentradanasparticularidadesdoSul,cabe
ressaltar queGuilherminoacabadelineandodoistiposdefocalizaçãoregionalista,sendo
umaprimeiracalcadanoestereótipodogaúchobravo,corajosoeleal,sempredispostoà
pelejaeàsduraslidasdocampo,quereviveomitodomonarcaascoxilhas,edequesão
exemplo O vaqueano e as Provincianas; diferente daquele enfoque que apresenta um
tratamento definido como mais refinado, seja na caracterização da linguagem ou nas
descrições dos cenários e hábitos das populações interioranas, retratadas antes como
pessoas do que como mito
53
. Tal oposiçãofica evidente no trechoem quea técnica de
composição das personagens de Os farrapos é contraposta ao estilo empregado por
ApolinárionaconstruçãodeseuJosédeAvençal–“Escritorcorretoeimaginoso,compôs
umanovelaqueselêcomagradodeprincípioaofimeque,sendoregional,nãochegaa
serregionalista,no sentidoem queempregamoso termonotocantea OVaqueano,de
Apolinário”(p.323,grifomeu.)–,raciocínioqueajudaacompreender,porexemplo,por
que motivo a obra de Caldre e Fião, apesar de focalizar aspectos regionais, não é
compreendida pelo historiador como pertencente à corrente do regionalismo literário
sulino.
54
 
53
 Essa diferenciação insinuada por Guilhermino Cesar o pode ser confundida àquela anteriormente
percebidanoartigo“Osfundamentoseconômicosdoregionalismo”(1945),emqueDyonélioMachadoopõe
o que chama de “localismo” à categoria denominada regionalismoclássico”, o poucoaos três estágios
pelosquaisteriapassadoaliteraturaregionalistapropostosporJoséSalgadoMartins,em“Apreciaçõessobre
aliteraturaregionalrio-grandenses”(1947).Veraesserespeito,capítulo3.1.
54
Verotrechoemquestãoitem4.2.2.
134
Ainda que o Romantismo literário do Rio Grande apresente obras compostas a
partir de uma perspectiva mais subjetiva e/ou universal, a leitura de Guilhermino Cesar
acabademonstrandoqueamaiorpartedosescritoresdessageraçãotrilhouoscaminhosda
ficçãoregionalista,sejaemumavertentemais“estereotipada”ou“natural”,focalizandoas
lendaseofolclorequealicerçamaculturalocal,voltandoseuolharparaopassadoheróico
dogaúchoouparaoscenáriospoucoexploradospelaficçãosulina.Dessaforma,vejamos
quaisosrumoseasprincipaisfeiçõesdaliteraturasul-rio-grandenseapósoaparecimento
dasprimeirasinfluênciascientificistasque,nocursodotempo,motivariamosurgimento
daficçãonaturalistaedapoesiaparnasiananoEstado.
135
5.2–OideáriocientificistaeaproduçãoliteráriadofinaldoséculoXIX
No desenvolvimento dos debates acerca da revisão dos métodos de escrita
historiográfico-literária, parece de comum acordo que as periodizações configuram uma
tarefainalienávelaoprocessodeconstruçãodeumahistóriadaliteratura–“Emprincípio,
todaaformadehistoriografia,comoestudodeprocessosdemudança,preocupa-se com
problemasdeperiodização,ouseja,comdecisõesquantoànomeaçãoeasistematizaçãode
períodos e a sua delimitação em uma estrutura temporal” (OLINTO, 1996, p. 37) –,
procedimento que Siegfried Schmidt percebe como uma atitude intrinsecamente
relacionada às bases conceituais de que se vale o historiador para a elaboração de sua
pesquisa:
Oaspectomaisproblemáticodaescritadehistóriasliteráriasdizrespeito
àproduçãoderelações,conexõesetransições,istoé,àconcatenaçãodos
dados em unidades coerentes, tais como períodos, épocas, gêneros e
assim por diante. Discussões recentes sobre a escrita de histórias da
literatura provam que historiadores (literários) perceberam que a
construçãodetaisunidadesdenívelmaiselevadodependembasicamente
dos conceitos pressupostos dominantes de “literatura”, “história” e de
conceitosescolhidosparamediarentre“literatura”e“sociedade”,como
por exemplo, os conceitos de causalidade, teleologia, teleonomia,
inovação, mudança, continuidade e descontinuidade, influência,
contigüidade,efeito,estruturaçãoeevolução.(SCHMIDT,1996,p.104)
Tendoemvistaaperspectivalineareevolutivaquecaracterizaagrandemaioria
dos trabalhos de historiografia literária, compostos a partirde uma concepção temporal
unidimensional,emqueocaráteraditivodasinformaçõeseacontecimentosacompanhao
percurso de gênese, transformação e apogeu de determinada literatura, David Perkins
afirmaque,demodogeral,oshistoriadoresacabamconcebendoastransposiçõesdefases
apartirdeumalógicaemqueosperíodossubseqüentesseidentificampelanegaçãoaos
conceitos bases das etapas que os precedem, metodologia que apresenta deficiências
quantoàexplicaçãomaisdetalhadasobreadinâmicadessastransições:
Quando histórias da literatura cobrem mais de um período, podem
integrarcadaperíodosucessivosobconceitosdiferentes.(...)Porém,via
de regra, os conceitos que organizam períodos sucessivos têm uma
interligação lógica, como na seqüência típica: Iluminismo (razão),
Romantismo (Imaginação e sentimento), Realismo. A estrutura gica
136
dos conceitos organizativos apresenta a sucessão de períodos não só
comohistórica,mastambémcomointeligívelcomoalgoquepodeser
entendido e explicado. Em outras palavras, na base das relações
conceituais, o historiador elabora um esquema de mudança histórica
comoumasimplesreação,umprocessodialético,cíclico,umaalternação
entrepólos,ousejaoquefor.(PERKINS,1999,p.26-27)
UmavezqueaHistóriadaliteraturadoRioGrandedoSuléconstruídaapartirde
umaperspectivaquecompreendeofenômenoliteráriosulinocomoartequemantémuma
relaçãodialógicacomaspectossócio-culturaisdaregião,devemosavaliardequeformao
historiador compreende a mudança de orientação ocorrida nas letras gaúchas nas duas
últimas décadas dos anos oitocentos, em que os moldes do Romantismo dão vez ao
advento das primeiras manifestações da narrativa ficcional real-naturalista e da poesia
parnasiananoEstado.Aindanessesentido,cabeanalisaremquemedidaaleituracrítica
propostapelohistoriadorrevelaasprincipaisfeiçõesestéticasetemáticasdessaprodução
defimde século,bemcomoquetipo derelaçãoseestabelece entreessaliteraturaeos
parâmetrosemvoganocentrodoPaís.
GuilherminoCesar procuraexplicar atransiçãoda faseromântica aomodelo da
narrativareal-naturalistaedapoesiaparnasiananaliteraturasul-rio-grandenseapartirda
mesma mudança de orientação diagnosticada no cenário nacional, em que o ideário
cientificista, amplamente difundido no Brasil por Tobias Barreto e seu discípulo Sílvio
Romero,dachamada“EscoladoRecife”,acabaexercendograndeinfluência,emtermos
de consciência cultural, nos intelectuais das últimas décadas do século XIX. No Rio
Grande do Sul, a disseminação dessa nova perspectiva teria como principal iniciador
CarlosvonKoseritzque,advindodaAlemanhanadécadadecinqüenta,vemimbuídodas
principaislinhasdopensamentocientíficoeculturaleuropeue,pelasginasdaimprensa
local
55
, antecipa alguns dos princípios difundidos pelos teóricos do Nordeste do País:
“bemantesde1870,dataemqueseiniciaapropagandadasidéiasalemãsempreendida
por Tobias no Recife, Carlos von Koseritz publicara em Porto Alegre inúmeros
trabalhosdenunciadoresdeumafortementalidadedenaturalistacientífico.”(p.253).
Ainda que tal orientação tenha por origem a cultura européia do intelectual,
GuilherminoressaltaqueKoseritzteriaaprofundadoseusestudosarespeitodasprincipais
correntescientíficasjáemsologaúcho–“Aslinhasgeraisdorealismo,Koseritzemigrado
 
55
AlémdecolaborarcomseusescritosemperiódicoscomooJornaldoComércio,ORio-GrandenseeA
Reforma, fundou a Koseritz Deutsche,aGazeta dePorto Alegre e ojornalmaçomAAcácia.Ver,aesse
respeito,HistóriadaliteraturadoRioGrandedoSul,página250.
137
aspossuíaemtímidostraços.NoBrasiléqueasaprofundou”(p.251)–,principalmente
depoisdoscontatosestabelecidoscomTobiasBarretoapartirde1874,relaçãoqueacaba
marcando uma novadireção desua produção. Ohistoriador ressalta que, a partirdessa
troca deinfluênciascom osintelectuaisdeRecife,o jornalista políticodeperfilliberal,
que trazia em germe as idéias cientificistas, encontraria o estímulo necessário para o
estudomaisdetalhadodasprincipaislinhasdopensamentogermanista:
não possuía, como jornalista militante, senão idéias gerais acerca do
movimentoculturaldesuaterra.(...)
Mas depois de 1874, estimulado por Tobias e Romero, Carlos von
Koseritz modificou um pouco aquela atitude; de naturalmente alemão
que era, passou a ser voluntariamente alemão, ainda mais estimulado
pelo êxito das armas prussianas na Guerra de 70. Recebeu da Europa,
mercê da vitória de Bismark, e do Nordeste, através da pregação de
Tobias, um alento que o levou a novos empreendimentos de ordem
cultural, já agora paralelamente ao ideário cientificista da Escola do
Recife.
É depois daquela data que o jornalistase improvisaem etnólogo e se
declara “darwinista convencido” e “franco adepto da escola de Jena,
materialistacientífico”(p.254)
AodimensionaroimpactoqueasidéiasdeCarlosvonKoseritzteriamcausadono
sistemaliteráriosulino,ohistoriadorafirmaquetalinfluênciapoderiaserpercebidanãosó
naCapitalcomonaslocalidadesdecolonizaçãoalemãnointeriordoEstado,queteriam
se mostrado alheias aos quadros literários do Romantismo devido a incompatibilidades
comrelaçãoàideologianacionalistaquealicerçavaomovimento–“Naordemliterária,as
zonas de colonização estrangeira, emboracompreendam a maior parte do território rio-
grandense, foram praticamente excluídas da área sentimental geradora de motivos.” (p.
189-190).Aindanessesentido,Guilherminoconsideraquesedeveaesseamploalcance
boa parte do interesse atingido pela produção de Koseritz, na medida em que sua voz
configuraria o primeiro ponto de contato entre os conceitos científicos do Velho
Continente, asidéiasadvindasdeRecife,o pensamento daintelectualidadegaúcha eos
valoresculturaisdaregiãocolonial:
Daíaseduçãoqueexerceu,porlargosanos,noRioGrandedoSul.Para
osintelectuaisnativos,opublicistapareciaomensageiromaisautorizado
de todo o saber europeu; para os habitantes da região colonial alemã,
católicos ou protestantes, era o patrício que lhes falava, na língua de
origem,decoisasinatingíveisousimplesmentepitorescas(p.254-255)

138
Maisespecificamentenocampodaliteratura,ohistoriadorreconheceasidéiasdo
alemãocomo nota presente na produção de algunsdos grandes nomes do Romantismo
sulino, como no autor de Popularium sul-rio-grandense O interesse de Apolinário
PortoAlegrepelafilologiaepelofolclore–paradarumexemplo–casanotempoelugar
comodeCarlosvonKoseritzpelocancioneirorio-grandense”(p.251)–,oumesmoem
partedaobradeBernardoTaveiraJúnior–“Poisopoetamunicipal,semembargodoseu
ardorregionalista,tornou-setambémumdosdivulgadoresdoalemanismopoético.Falam
por si as traduções que fez de grandes poetas tudescos, num volume prefaciado por
Koseritz,cujaaçãodepresença,nessecomoemoutroscasos,foienorme”(p.255).Por
todoessealcance,aatuaçãodeCarlosvonKoseritzemâmbitoestadualécontrapostaao
desempenho que tiveram os intelectuais do Nordeste na renovação do pensamento
intelectualbrasileiro,analogiaquelevaGuilherminoàconclusãodeque,naProvínciado
Sul,esse“modernismo”teriaobtidoaceitaçãodosliteratosedemaisintelectuaisdaépoca
semdespertarconflitosculturaisentreaselitesgaúchaseaszonasdecolonizaçãoalemã:
A Escola de Recife representou uma reação de base exclusivamente
cultural; a Escola de Porto Alegre, chefiada por Koseritz, foi uma
decorrência inelutável da ascensão do imigrante alemão nos quadros
políticosesociaisdaprovíncia.Nocasosulino,comonãopodiadeixar
deser,intelectuaisnativosdecertoporte,umApolinárioPortoAlegre,
umDamascenoVieira,umTaveiraJúnior,tambémaproveitaramalição
da cultura germânica, mas sem os choques e exageros registrados em
outraspartesdoBrasil.(p.255)
Se o Evolucionismo tem como principal divulgador no Rio Grande Carlos von
Koseritz, os princípios filosóficos de Augusto Comte começam a ser difundidos na
Província por Augusto Luiz que, através das páginas da Revista Mensal do Partenon
Literário, lança “Duas palavras sobre literatura” (1874), artigo que, como se tornaria
hábito
do novo pensamento, combate a metafísica e o misticismo próprios à escola
romântica. Contudo, o periódico que mais centrou atenção sobre os pressupostos do
Positivismo foi A Federação, fundado em 1884 por Júlio de Castilhos, que na esfera
políticasetornariaomaiordefensordosideaisrepublicanosdentrodalinhapositivista.
Guilhermino compreende que a ampla aceitação da doutrina positivista no Rio
Grande poderia ser explicada por fatores de ordem sociocultural, como “a grande
influênciadaEscolacentral,atravésdaEscolaMilitardePortoAlegre”(p.343),afraca
resistênciadaIgrejaque,diferentementedoocorridonaBahiaeemMinasGerais,pouco
139
pôde fazer “por lhe faltarem duas condições essenciais: unanimidade do sentimento
religioso da população, sabido que o Protestantismo, a partir da entrada dos colonos
alemães,conquistaraboaporçãodoEstado,eumcleroàalturadosdebates,comilustração
e ímpeto” (p. 343), bem como o sentimento republicano que desde a Revolução
Farroupilha permaneceria no substrato cultural do povo do Sul – “os sentimentos
republicanos do gaúcho vêm de longe; tiveram aplicação prática em plena vigência do
Império,comarepúblicadePiratini”(p.343).
Embora o historiador afirme que “Não tivemos, (...), positivistas ortodoxos que
houvessemdeixadoobraescritamerecedoradereferênciaespecial”(p.346),umavezque
a maior parte das efêmeras publicações periódicas se voltou aos debates em torno dos
rumos políticos do Estado, os pressupostos intrínsecos à doutrina de Comte exerceram
fundamental influência sobre o pensamento da intelectualidade gaúcha, especialmente
após a estabilização do regime republicano. Através de discussões que adentraram o
séculoXX,positivistas,deterministaseevolucionistasdefenderamecontrapuseramsuas
idéiase,aolongodosanos,fixaramasprincipaislinhasdocientificismonoRioGrande:
AofindaroséculoXIXenoiníciodoatual,adisputaideológica,uma
vezestabilizadooregime,continuouaaliciarcombatentes,masjáagora
num plano intelectualmaisdesinteressado. Os contendores eram estes:
deumlado,oscomtistasdavelhaguarda;dooutro,osspencerianos,ou
littréístas.Apendênciaenvolveugrandesnomesepermaneceuacesaaté
pelo menos o fim da primeira Grande Guerra. Esclarece um
contemporâneo:“ApropagandadasidéiasdeComteatravésdascolunas
deAFederação,sobinspiraçãodeCastilhos,granjeouproselitismonos
meiosacadêmicosdomeutempo.Outracorrente,porém,seformouem
contraposição às doutrinas de Comte, seguindo o evolucionismo de
Spencer.Eraumdosevangelizadoresdospencerismo o jovemAlcides
Maya, que proferia conferências nas ‘repúblicas’ de estudantes, onde
houvessesalaadequada.”.
Porsuavez,oentãocoroneldeengenhariaRodolfoBrasil,discípuloe
genrodevonKoseritz,faziatambémconferênciasnosmesmoslocais,e
propagandadotransformismodeDarwindeBuchner.(p.347-348)
Contudo, a grande revolução causada por esse ideário na vida literária sul-rio-
grandenseoseencontraespecificamentenocampodaficção,masnoâmbitodacrítica
literária.Aoassumiraspremissasdeobjetividadeanalíticaedelimitaçãoespecíficadeum
corpus como objetodeestudo, essaatividade seafasta de posturasimpressionistase/ou
biobibliográficas,queatéentãoacaracterizavam,paraassumirumcarátermaisobjetivo,
direcionandosuainvestigaçãoàliteraturapropriamentedita,defendendocomopressuposto
140
ideal o exame dos textos a fim de expor suas qualidades estéticas. A característica de
influênciamaisdiretasobreoplanodoexercíciocrítico,oriundadosmétodoscientíficos,
foiseucarátergenuinamentedescritivo,perspectivaquepermitiriaumamelhorapreciação
detraçosconstitutivosdaobra.Esse“descritivismo”,própriodasciênciasnaturais,tornou-
seumprocedimentocomumànovaatitudeanalítica,eacabariaexigindodeseuscultores
umconhecimentomaisespecíficodosfenômenosartísticos,principalcarênciadoperíodo,
navisãodeBernardoTaveiraJúnior:
Onossojornalista,comraríssimasexceções,aindaépoucoilustradopara
tratar de assuntos literários, cuja crítica demanda grande variedade de
conhecimentos, requer muita agudeza de espírito e bom gosto. São
quesitosestesindispensáveisaosquedesejaremterashonrasdecrítico
imparcial.(TAVEIRAJÚNIORapudBAUMGARTEN,1997,p.96)
Um dos representantes dessa nova orientação seria Damasceno Vieira, que com
Esboços Literários – Poesia e crítica (1883) dá inicio a uma segunda etapa da crítica
literáriasulina–éesteo nossoprimeirolivroqueassinalouà crítica,segundopadrões
estéticos definidos,umaação normativa. Desceu,porisso mesmo,aminúcias queantes
passaram despercebidas aos críticos” (p. 353). O primeiro livro de crítica literária
publicadonaProvíncia,alémderetiraressaatividadedodomínioexclusivodosperiódicos,
destaca-seporapresentarorespaldodeumabaseteóricaconsistente,sintetizandobemas
propostascientíficasdaépoca–“Demorando-senoexameanalíticodapoesia,segundoo
métodonaturalistadeumHannequinedeumTaine,procedesempre-conformeexpressão
sua-deacordocomos‘princípiosmaismodernoseconsentâneoscomarazão’”(p.351)-,
revelandoumcríticoque,àmedidaquesemostraqualificadonoexamedostextos,coloca
aProvínciaapardasprincipaisdiscussõeseposicionamentosteóricosdomeiocientífico:
opequenovolumedeDamascenoVieiravisavanãosóàcríticaliterária,
masà dasidéias,razão por quedeixou para trásostímidos ensaios de
seusconterrâneos,(...).Epõeadesfilardiantedenósosassuntosmais
diversos,desde as últimasinvestigaçõesda antropologiaaomovimento
culturaldoevolucionismo,passandopelodissídioencabeçadoporLittré,
dentrodaescolacomtiana.(p.350-352)
Oparadoxalpensador,umavezquerenegaoRomantismodoqualfoicontribuinte
naRevistaMensal,confessa-sediscípulodeTobiasBarretoeSílvioRomeroesecolocaao
ladodosmestresnocombateàpoesiaromântica“cadavezmaisadstritoàsfórmulas,a
pontoderecusarvalidadeàfeiçãosentimental,aoquebrantopoético,coisa,aseuver,já
141
superadas, meras ‘frivolidades detestáveis’” (p. 352) –, bem como na defesa do rigor e
beleza dasformas, razãopela qualGuilherminoCesarelevao intelectualàcondição de
grandeincentivadordomodeloparnasianonoSul:DamascenoVieirafoinoRioGrande
do Sul quem abriu caminho às novas gerações parnasianas, como doutrinador do
modernismocientificistadoséculo”(p.353).
EnsaioigualmentenotávelfoiAlfredod’EscragnolleTaunay(1885),deautoriade
CarlosvonKoseritz,estudoemqueocríticoexaminaaproduçãodoautordeInocênciae,
seguindoalinhadosintelectuaisdoRecife,censuraaposturadoViscondenaescritade
seuEstudoscríticos–“Francamente,nãopossocompreendercomopessoatãoperspicaz,
cabeça tão esclarecida possa desconhecer o objetivo do grande Zola, talvez contra
convicção íntima, para prestar homenagem à corrente que domina em certos rculos”
(KOSERITZapudCESAR,p.355).SegundoGuilhermino,talposicionamentoexpressaria
a atmosfera de transição sofrida pelo pensamento dos intelectuais da época, em que os
preceitos da escola romântica perdem gradativamente sua validade frente à força das
teoriascientíficas:
Em pleno apogeu do Naturalismo, o depoimento de Koseritz não
exprimiu um ponto de vista isolado. O Rio Grande, dividido entre
românticose“zolaístas”,começavaapendermaisparaestelado.(...).O
evolucionista de Porto Alegre já adquirira bastante autoridade para
reprocharumgranderomânticonacional;queremtornodele,nacapital
rio-grandense,quernasdemaiscidadesdoNorte,acampanha ia acesa.
(p.355)
Tão relevante quanto os trabalhos de Damasceno Vieira e Carlos von Koseritz,
fundamentais para o estudo e divulgação dos ideais cientificistas na Província, foi a
produçãoensaísticadeAlcidesMaya,
nãosomentepelaexpansãomasprincipalmentepela
influência exercida sobre seus contemporâneos, diferindo-se desses pelo equilíbrio no
tratamentodostemasqueconsolidavamosdebatesintelectuaisdaquelemomento–“Ainda
no século XIX teve início a atividade crítica de Alcides Maya, (...) revela inteligência
crítica especialmentebemdotada,gosto naturalecuriosidadepelosfenômenos literários
universais” (p. 355). Tanto Pelo futuro (1897), livro que marca sua estréia aos dezoito
anos, como Através da imprensa (1900), composto a partir da coletânea de artigos
publicados na imprensa local, comportam escritos de natureza diversa, abordando
temáticashistóricas,filosóficaseliterárias,revelandooautorcomoprofundoconhecedor
dasdoutrinasdeComte,Taine,Bucklee,especialmente,Spencer.Acríticapraticadapor
142
Maya, além da defesa do Naturalismo, tido por ele como uma retomada do equilíbrio
científico e, portanto, garantia de progresso, girava também em torno do repúdio ao
Simbolismo,movimentoqueporsedistanciardospadrõesdefendidoseraconsideradopela
intelectualidade da época como uma manifestação completamente desvinculada da
realidadenacional.
Em Pelo futuro, Alcides Maya concebe um conceito de literatura baseado nos
fundamentos spencerianos, inaugurando no Estado a orientação crítica de ordem
sociológica, entendendo sociologia como uma ciência descritiva que teria por meta o
estudo daordemprogressivadasociedade, metodologia emque seriamfundamentaisas
noçõesdeprogressoeevoluçãofortementedifundidaspelocientificismo.Noentanto,foi
comMachadodeAssis–Algumasnotassobreohumour,de1912,queoensaístagaúcho
atingeopontomaisaltodesuaproduçãoe,porconseguinte,temseunomereconhecido
entre os grandes críticos literários da época, tornando-se responsável pela inserção
definitivadoRioGrandedoSulnocontextomaiordodebateculturalentãorealizadono
país
56
.
Sejaatravésdoensaiocríticooudapropagandapolítica,emlivrosoupelaspáginas
dosperiódicoslocais,essesescritoresgarantiramadiscussãoedivulgaçãodasprincipais
teses científicas e doutrinas filosóficas que dominavam o cenário intelectual europeu e
brasileiro na segunda metade do século XIX, fazendo com que a Província do Sul não
ficasse alheia às correntes mais atuais do pensamento ocidental. Ao repudiar obras e
autores do Romantismo, a crítica literária sulina o só decreta a inatualidade desses
padrões estético-temáticos como apresenta a prosa real-naturalista e apoesia parnasiana
comomodelosartísticosaseremseguidos,preparandooespíritodosautoresgaúchospara
as novas tendências da literatura, sem o atraso anteriormente verificado. Nesse sentido,
vejamosemquemedidaaleituracríticadohistoriadorrevelaasprincipaisfeiçõesdessa
fase da produção literária sul-rio-grandense, quais as obras e autores que, na sua ótica,
melhorrepresentamessemomentodasletrasgaúchas.
Paraadentrarnocampodaprosadeficçãoproduzidanasduasúltimasdécadasdos
anos oitocentos,Guilhermino Cesarrealizauma rápida recuperação dopercurso quevai
dasprimeirasmanifestaçõesdanarrativacurtaatéosúltimosescritosdoséculoXIX–“Em
 
56
Veraesserespeito:“Amaioridadedoensaiocríticosulino:AlcidesMaya”,In:BAUMGARTEN,Carlos
Alexandre. A crítica literária no Rio Grande do Sul. Do Romantismo ao Modernismo. Porto Alegre:
IEL/EDIPUCRS,1997.p.118–134.
143
cinqüentae dois anos, desde Ana Eufrosina Eurídice de Barrandas, com a Filósofa por
Amor(1845),aSousaLobo,MárioTottaePaulinodeAzurenha,queescreveramdemão
comum oEstricnina(1897),passouaficção rio-grandensepor váriosestágios, explorou
temas do campo e da cidade, conheceu diversas modalidades de estilo” (p. 307) –,
contextualização que, ao mesmo tempo que demonstra sua preocupação em delinear a
dinâmicadessamudançadeorientaçãosofridapelaliteraturagaúcha,vaiaoencontrodas
exigências de Siegfried Schmidt para a construção de relações, conexões e transições
plausíveisentrefasesouperíodosliterários:
Comoostextosliterários(oueventosliterários)podemserrelacionados
(encadeados,segmentados,inter-relacionados,etc.)paraaconstruçãode
estruturastaiscomoperíodosouépocasouassimchamadastotalidades
compatíveis?(...)Quaisosmotivosparamudançaemliteratura:Somos
capazesdeencontrarprincípiosteleológicosouteleonômicos,oumesmo
leis de evolução? Ou essa mudança é causada por influência e
continuidade?Écausadacontigüidadeeinovaçãoou,bemdiversamente,
pordescontinuidadeeruptura?(SCHMIDT,1996,p.105)
Nocursodeseuraciocínio,aoesboçarumquadroquepropõeacategorizaçãodos
principaismomentosdaprosadeficçãosul-rio-grandense
57
,ohistoriadoratentaparaofato
de nãohaver naliteratura gaúcha obrasexpressivas inteiramente compostasa partir dos
padrõesestético-temáticosdaescolarealista–“Note-seaausência,naclassificaçãoacima,
doRealismo.Comefeito,nãotivemosnaquelemeioséculonenhumautorqueabraçassea
ficçãoobedecendoàtendênciaanalíticadefinidoradessaescola”(p.308)–,característica
queeleatribuiaumatendênciaculturaldosautoreslocaisque,historicamente,tendiama
conduzir seu processo de criação tendo em vista as principais questões que agitavam a
ordemsocioculturaldoEstado,sejadefendendoosinteressesdeChimangosouMaragatos,
ou engajados nas campanhas abolicionista, monarquista e republicana. Segundo sua
análise,graçasaessadisposiçãoàaçãopartidáriaeaosdebatesrepletosdeentusiasmo,os
escritoressulinosteriamrelegadootemáriodavidaurbanacontemporânea,oscontrastes
sociais e o jogo de essência e aparência que caracteriza a psicologia das personagens,
traçosprópriosàficçãorealista,parasefixarememdiscussõespolíticas,ideológicas,de
ordemfilosóficae/oucientificista:
 
57
Verasubdivisãoreferidanocapítulo“Aprosadeficção,doromantismoaonaturalismo”,página308.
144
Em certa fase, o abolicionismo e o ideal republicano reuniram e
aproximaram elementos esparsos; mas, liberto o escravo, feita a
república, decaiu a flama literária,que se alimentara em boa parte das
aspiraçõesinstiladasdesdecedonoRioGrandepeloespíritoliberal.De
89emdianteaficçãoarredou-separadarlugaraojornalismopolítico,à
propagandadasidéias,àreestruturaçãorepublicana,e quand mêne,aos
princípios filosóficos, o comtismo à frente. E a ficção não teve maior
guarida nesse ambiente carregadode problemas da vida civil,os quais
exigiam opção militante, por vezes sangue como no embate de 93.
(p.309)
Se tal panorama o favoreceu a composição de obras de valor dentro da linha
seguida por Machado de Assis, a força do ideário cientificista no Rio Grande acabou
estimulando a produção de algumas narrativas dentro do melhor estilo naturalista,
apresentando personagens cujo destino seria submetido às leis da raça e do meio. Ao
contráriodoquesedeucomaliteraturaromântica,oiníciodoNaturalismonaProvíncia
coincidecomosurgimentodessavertentenocenárionacional:“abrindonovoscaminhos,
nodecêniode80aparecemporaquiosprimeirosnaturalistas.PauloMarques,nomesmo
ano da publicação d’O Mulato e das Memórias póstumas de Brás Cubas, quebrou na
cidadedePelotas,comasuaficçãoatrevida,aunanimidade,oconformismo,arotina”(p.
307).
ComVênusouodinheiro(1881),lançadonoperiódicoOnzedeJulho,oescritor
queseassumiaadmiradordeAugustoComteeÉmileZolateriaescandalizadoasociedade
pelotense,oquenãooimpediudepublicaraindaAcanalhaeAnoradobanqueiro,este
lançado nojornal Arautodas Letras
58
. Apesardopioneirismo,a leiturade Guilhermino
Cesar revela que a prosa naturalista de Paulo Marques não se encontraria totalmente
desvinculadadoespíritoromântico:“Notamossomenteisto:oseunaturalismobraviotinha
muito da febre romântica. Faltou-lhe pachorra, experiência, objetividade para entrar a
fundonossegredosdaescola.”(p.331).
Ao lado de Paulo Marques, Francisco de Paula Pires fez da cidade dePelotas o
principal centro de irradiação do Naturalismo no Rio Grande do Sul. Através dos
periódicosA Tribuna Literária e Arauto das Letras, esses escritores “transmitiram o
desafio dos ‘positivistas’, como se chamavam então os discípulos de Zola naquelas
paragens”(p.332),travandoembatesintelectuaiscomosremanescentesdoRomantismo.
 
58
GuilherminoCesarnãoapresentaadatadelançamentodessesescritos.
145
NaapresentaçãodeQuadroshorripilantes(1883),narrativaemquedescreve“com
luxodedetalhesahistóriadeduasmulheresperseguidaspelosexo”(p.333),Franciscode
PaulaPiresdámostrasdequeafidelidadeaoestilodeZolaseriaumadasestratégiasde
quesevaleriamosautoresdoSulparafixarentreosgaúchosasprincipaislinhasestético-
temáticasdaescolanaturalista–“Seguindoanormatraçadapelograndemestre(Zola),só
tratei nesta obra de narrar fatos da vida real. Podia tê-los desenvolvido, contando
peripéciasemilfantasiasqueaminhaimaginaçãopudessecriar;nãoofizporquejulguei
queiadesvirtuarumaescolaqueprimapelasimplicidade”(PIRESapudCESAR,p.333).
Além dasreverênciasao autordeTeresaRaquin,o críticoidentificaasidéiasde outros
intelectuaisdaépocacomoreferênciapresentenopensamentodoescritorpelotense:
Instruído na doutrina de Comte, admirava ao mesmo tempo, de
cambulhada,LittréeSpencer,porlheserviremaosideaisnaturalistas,em
oposição ao sensualismo de Locke, ao espiritualismo de Leibniz, ao
idealismodeArnauld.CitaZola,gabaoparaleloqueestefizeradeHugo
eLittré,paraconcluirqueesteúltimo,enãoopoeta,eraomaiorhomem
doséculo(p.333)
Na cidade de Bagé, Pedro Luiz Osório Filho lança O poder da carne (1890),
romanceemquesevaledesuaexperiênciadeprofissionaldamedicinaparaconstruiruma
história que assume “proporções de um relatório clínico, servindo-lhe para isso as
personagens para discorrer sobre casos patológicos realmente complicados. (...) As
malezas do corpo foram tratadas por ele com certa volúpia, comprazia-se em exibir
bestialidades” (p. 336). Apesar do inevitável escândalo causado entre osmembros mais
conservadores da sociedade local, a narrativa teve boa acolhida entre os intelectuais do
núcleonaturalistadePelotas,queviramnafiguradePedroOsórionãosóumaliado,masa
confirmação de queo estilo ganhara adeptosem outroscantos do Estado:Em Pelotas,
onde pontificavana mesmatribunanaturalista obom PaulaPires,quetinhaao péde si
alguns outros discípulos de Zola, o livrocausou sucesso. A pequenaelite local teve no
romance de Pedro Osório um aliado no combate aos últimos partidários renitentes da
ficçãoromântica.”(p.336).
Dentre os naturalistas sul-rio-grandenses, o historiador cita ainda os nomes de
MariaBeneditaBormanneJoãoCarlosdeMedeirosPardalMallet.Contudo,tantoaautora
porto-alegrense, que publica sob o pseudônimo de Délia o romance Lésbia (1890) –
“derramando-se torrencialmente na composição defiguras insatisfeitas, perseguidaspela
146
obsessãodacasuísticaoudapráticaamorosa”(p.334)–quantooescritordeBagé,que
tem como texto de maior reconhecimento o romance O lar (1894), referido por Lúcia
Miguel Pereira na História da Literatura Brasileira (1950), figuram na pesquisa de
GuilherminoCesarpelomesmocritérioquefazconstaronomedeManueldeAraújoPorto
Alegre,ouseja,pertencemàcategoriadeautoresgaúchosunicamentepelofatodeterem
nascidonasterrasdoSul,umavezquetodasuaproduçãoliteráriafoipublicadalongedos
quadroslocais,eparaessesteriasemostradoindiferente.
O pesquisador concebe como último ponto historizável desse trajeto analítico
acerca da ficção Naturalista sulina a narrativa Estricnina (1897) – “Sousa Lobo, Mário
MottaePaulinodeAzurenha,amigosecompanheirosdeimprensa,encerraramoperíodo
demaiorinfluênciadaescolanaturalistacomumromance,escritodeparceria,cujocenário
éacidadedePortoAlegrelogoapósaRevoluçãode93.”(p.337).Guilherminoavaliaque
ofatodeaobratersidocompostapormaisdeumautornãoreduzseuprincipalmérito,ter
sidocapazderegistrarosemblantemoraleintelectualdaCapitaldoEstado nofinaldo
séculoXIX–“enredadasegundooprocessoromântico,essahistóriarefleteaatmosfera,o
caráter naturalista, quer nas cenas de alcova, quer na intenção de satirizar os costumes
locais,suasconvençõesebitosrotineiros”(p.337).Narealizaçãodesuaanálise,além
da presença das notas românticas que, inelutavelmente, marcam as obras do período, o
historiadorcontestaaclassificaçãodanarrativaenquantogênerohomogêneo:
Dizer-se,porém,queEstricninaéumromancenãonosparececerto.Os
autores deram-lhe um subtítulo – “página romântica”, que aumenta a
ambigüidade,porfugiraoscompromissosdaclassificação.Averdadeé
quesetratadeumanovela,naqualamatériaromanescaassumeumas
vezes a feição de crônica, - o espetáculo no “Teatro S. Pedro”, por
exemplo,-outrasvezesadonoticiáriopolicialàantiga.(p.337)
Se a leitura de Guilhermino Cesar aponta que as obras naturalistas do período,
apesardaintensidadecomquesedebateramedivulgaramosprincípioscientificistas,ainda
denunciamresquíciosecaracterísticasdaficçãoromântica,principalmentenaconstrução
dosenredos,ainvestigaçãoacercadapoesiaproduzidanoRioGrandedoSulnaquelefinal
de séculorevela que, emalgunscasos, atransiçãoentreo modeloda líricaromânticaà
parnasiananãofogeaessaparticularidade.
Ao afirmar que O Parnasianismo foi introduzido no Rio Grande do Sul por
Fontoura Xavier, Damasceno Vieira e Aquiles Porto Alegre.” (p. 271), Guilhermino
147
esboçaaatmosferadetransiçãopelaqualpassouapoesiagaúchanascadasfinaisdos
anosoitocentos,umavezquepelomenososdoisúltimoscitadosforam,hácertotempo,
colaboradores da Revista Mensal, periódico voltado à sedimentação e divulgação da
literatura romântica no Estado. Entretanto, ainda que o autor de Esboços literários e o
irmão de Apolinário constem na pesquisa do historiador em subcapítulo destinado ao
examedaprodução doschamados“românticosindividualistas”,oprimeirotendoescrito
Uma história de amor, devidamente mencionada em capítulo anterior, e o segundo
produzido algumas narrativas – “Teríamos de citar ainda as novelas que na mocidade
publicou o curioso, vivo, incansávelAquiles PortoAlegre, que, romanceando a vidada
cidade, narrandocasosou fazendo biografia,fez, contudo, umromance maispalpitante,
históriacolorida,movimentada”(p.313)–,ofatoéqueamaioremaisconsistenteparcela
desuasproduçõessevoltaaocultodapoesiamoderna”,vertentecujaslinhasprincipais
ajudaramafixar.
Nesse limiar estético-temático se situaria a lírica de Aquiles Porto Alegre, que
mesmoradicandosuaformaçãointelectualjuntoaosquadrosliteráriosdoPartenon“foi
dosprimeirosaassimilara‘poesiamoderna’,menosporumaquestãodetemperamento,
(...),masporinfluênciadamoda”(p.280).NaanálisedeIluminuras(1884),Guilhermino
entendequeanotadeintroduçãoaoprimeirolivrodeversosdopoeta–“Nãoseiseolivro
quehojesubmetoaocritériodapublicidadeestádeinteiraharmoniacomaorientaçãoque
ospríncipesdasletrasbuscamdaràpoesiamoderna”(PORTOALEGREapudCESAR,p.
281) – exemplificaria bem a atmosfera de incertezas que recaía sobre alguns escritores
daquelemomento–“Compreende-seaindecisão,otemorveladodesuaspalavras.(...)tem
contudooseulugarnahistóriadapoesiagaúcha,justamenteporterassimiladooenleioe
as perplexidades daquela fase de transição” (p. 281-282). Investigando a composição
estéticaetemáticadaobra,ohistoriadorpercebequeAquilesPortoAlegremanifestauma
líricamenosarraigadaaosideaiscientificistasdeseutempo,mais próxima,portanto,do
modelodepoesiaparnasianaencontradanocentrodoPaís:
Não só Iluminuras, mas também nas Esculturas e no último de seus
livros de poesia, Flores do Gelo, revela acentuada preferência pelos
quadrosdavidaburguesa,(...)Aquilesperseguiaaindaarondaequívoca
dasprincesas,duquesase“gentissenhoras”,cujabelezafísica,apreciada
de modo pouco convincente, foi uma das excentricidades do
parnasianismotropical.(p.282)
148
ComolivroMusamoderna(1885),DamascenoVieirainauguranoRioGrandea
dita“poesiacientífica”,quecalcadanoideáriocientificistaemvogaàqueletempocultuaria
asprincipaisideologiaselinhasteóricas“modernas”,como,porexemplo,aautoridadedo
conhecimentoadvindodadoutrinadeComte:“Impelidopelafatalidadedomeio,opoeta
modernoopode deixardeser positivista,porqueinquestionavelmenteesseéoestado
queahumanidadeatravessa”(VIEIRAapudCESAR,p.283-284).Naanálisedesselivro,
Guilherminoreconheceporfeiçõesprincipais,alémdaexploraçãodocientificismocomo
matériapoética,apreocupaçãodoautorcomorigorformaleaobjetividade,estiloquena
intençãodecontraporosmoldesromânticosteriasoadoartificial:
Prefere os temas gerais: o labor das oficinas, o progresso científico, a
belezadaforma,avisãodoCristo despojadodepoderessobrenaturais;
numapalavra,ocultodaHumanidade.
Ora, como não possuísse o autor grandes recursos de expressão, os
poemasd’AMusaModernaseperderamnoindistinto,noincaracterístico
dapoesiadirigida,emboraopoetaseesforçasseporatingiraumabeleza
deformatantoquantopossível–eraorebatedaimpassividadeacercear
osardoresdapoesiaromântica.(p.284)

Na seqüência de sua investigação, o historiador avalia que, após uma fase de
entusiasmo comrelaçãoàs idéiascientíficas, DamascenoVieirateria compostoversos a
partirdeummodelodeParnasianismomaiscontidoetradicional,explorandoaroupagem
neoclássicaeobrilhoexteriordapalavra,estiloquesepoderianotarnaobraAlbatrozes
(1908)–“Asuapoesiadeúltimafaseénogeralsimples,semdistorções,direta,aparde
calorosamente humana efraterna. Refugou, ali,na maturidade,todae qualquer ousadia,
colocando-se bem nocentro da alaconservadorada revolução parnasiana” (p.284). Ao
ponderar o valor do conjunto da produção de Damasceno Vieira no âmbito do sistema
literário sulino,o pesquisadorreconhece ointelectualcomogrande influência nãosóna
renovação de pensamento ocorrida nas letras gaúchas daquele fim de século, como nas
geraçõesqueosucederam:
Sua influência atingiu a novos e velhos, não só nos círculos literários
como nos salões porto-alegrenses, dos dias heróicos do “Partenon” até
princípiosdoculo,(...).Mudou-separaSantosedeláparaSalvador,
mas a ausência não cortou liames; continuou a colaborar em jornais e
revistasdaterra,atépoucoantesdemorrer(1910).Deixaraatradiçãoda
boêmiadouradaemquesemergulhariamMarceloGama,ZeferinoBrasil
ePedroVelho,quetantolhedevem.(p.285)
149
Dos três ditos iniciadores do Parnasianismo sul-rio-grandense, o historiador
consideraquecaberiaaAntôniodaFontouraXavieracomposiçãodolivromaiscompleto
eadequadoaospadrõesestético-temáticosdaescolafrancesa,adespeitodetersurgidoem
ummomentoconturbado–“SurgiuFontouranumperíodoingrato,detransiçãodapoesia
‘científica’àparnasiana,masasuaformabrilhante,coloridaevivaz,ajudou-oavencer,a
impor-secomobomartíficedoverso”(p.277).NaleituradeOpalas(1884)–,umadas
maisdesconcertantesafirmaçõesdapoesiario-grandense”(p.277)–,GuilherminoCesar
ressalta como um dos pontos de excelência da obra a variação dos temas, embora o
ambientereproduzidotenhaporreferenteosaresdoVelhoContinente,eoestilodeseu
ParnasianismotransiteentreasinfluênciasdeThéodoredeBanvilleeCharlesBaudelaire:
Em primeiro lugar, a temática: extremamente variada e imprevista,
representa por si mesma a instabilidade emocional do poeta – linha
ondulantequepartetantodasOdesFunambulescas,comodasFloresdo
Mal. Mas, em essência, deve mesmo proceder de Bainville, de seu
rigorosocinzel,desuaimaginaçãoprodigiosamentefértil,desuaironiae
desencanto, a família a que pertenceu o nosso autor. É um europeu;
denunciam-lheoberçooscenáriosnaturaisquedescreve,ospró-homens
americanosqueadmira,otratamentoquedispensaaamigosbrasileiros.”
(p.278)
Ainda que se caracterize pela diversidade quanto aos motivos poéticos, o crítico
ressaltaapreferênciadeFontouraXavierpelosassuntosurbanoseocombateàMonarquia,
traçoqueassinalaumaconstantedospoetasdaqueleperíodo–poisvimosatéagoraque
noRioGrandedoSuldessaquadraconstituiexceçãoopoetaque nãosetenhadeixado
marcarpelatendênciarepublicanizante”(p.277).Noentanto,ohistoriadoravaliaqueessa
defesa dos ideais republicanos seria o único ponto em que o escritor poderia ser
aproximadoaosartistasdesuaterra,umavezquesuacondiçãodecidadãocosmopolita,
radicadonocentrodoPaís,homemcultoeviajado,seriaanotamaiscaracterizadoradesua
poesia:
Se em algumas estrofes celebra o Tiradentes, nosso modesto grande
mártir, parece fazê-lo para atender a exigência da propaganda
republicana;serecordaoBarãodoRioBranco,quemfalaéofuncionário
do Itamarati; quando descreve o cenário amazônico ou o Gigante-que-
dorme, nota-se o turista; ao exaltar a Águia Americana, não se pode
esquecerodiplomataentãodestacadoemWashington.(...)Descobrimos
o correr mundos, o poliglota, o curioso de ambientes, mas, nunca se
insinuanumadestascabriolasrimadasocaráterouosentimentodoseu
povo
.
(p.278)
150
NaanálisedacomposiçãoestéticadeOpalas,GuilherminoCesarressaltaatécnica
eahabilidadedeFontouraXaviernoarranjodamétricaque,alémdeseguirosprincípios
universaisdaescola,atribuíumainteressanteeraramusicalidadeàsualírica:
Ao tema imprevisto correspondem, nas Opalas, a rima rara e o metro
torturado,numaorgiadeenjambementsedistorçõesviolentas.Aquieali,
termosperegrinosmarchetandoasestrofes–somdetodasaslínguas;lê-
lo em voz alta é ouvir farrapos de conversa dos grandes centros
cosmopolitas.(...)possuicomopoucosodomdamúsica,daflexuosidade
verbal,dasantítesesestranhas.Quernoalexandrinoouno metro curto,
quer no soneto ou no triolé, é sempre fosforescente, dissolve-se em
prismasondulantes.(p.278-279)
Assim como se procedeu no centro do País, a tríade parnasiana dos pampas
motivououtrosescritoresàproduçãodeversossegundoospadrõesestético-temáticosmais
modernos de seu tempo. Nesse sentido, o estudo dos poetas parnasianos gaúchos
contemplaaindanomescomoAlaricoRibeiro,autordeOásis(1896)–“noúltimodecênio
doséculo,representouaquiamelhortendênciadapoesiaparnasianabrasileira,unindoà
belezadaformaaintuspecçãoeadúvidametafísica”–(p.294-295),opelotenseAlberto
FerreiraRamos–“Bempoucosdosnossosultrapassaramoautorrio-grandensenafinura
doepigrama.”(p.291)–,eaautoradePrelúdios(1882)eOscilantes(1892)–“Julietade
MeloMonteirorefogeaoprocessoromânticoparaadotaralinhaparnasiananoqueelatem
de mais descritivo e impessoal” (p. 294) –, poetas que são reconhecidos como
representantesde um Parnasianismo que primapela incessante procurado equilíbrio no
manejodasformaspoéticas.
O mapeamento realizado pelo historiador também registra que havia no
Parnasianismo sul-rio-grandense autores quese propuseramàcomposição de uma lírica
quese caracterizapelotomderevoltaeataqueàselites sociais,comoéexemploEl-rei
Milhão(1889),deRenatoCunha–“Osalvosvisadossãotipossociaisqueemsuaconduta
semostrammaispermeáveisàinfluênciadopodereconômico”(p.286);bemcomooautor
docompêndioChispas(1877),JoaquimFranciscodeAssisBrasil
59
,misturandoaacidez
dacríticaàdefesadosideaisrepublicanos,tidopormuitosescritoresdaépocacomoomais
 
59
 Assis Brasil ressurge com destaque no capítulo A historiografia, após a guerra do Paraguai”, onde
Guilhermino Cesar aponta História da República Rio-grandense (1882) como estudo que, ao lado da
História popular do Rio Grande do Sul (1882), de Alcides Lima, inaugura uma nova orientação da
historiografia gaúcha, uma vez que incorporam as teorias cientificistas do final do século XIX como
metodologiadepesquisa.
151
nobre dos motivos poéticos: “O pensamento da pátria o absorve e domina, a par da
expressãodocementealtivacomquevalorizacertostemasdaterranatal,comon’OCanto
doGaúcho.Masacimadesses,espraia-sepelolivro,torrentedominadora,umsentimento
quesobrepujaodoterrunho–ocombateatodasasformasdesubmissãodohomem”(p.
276).
Na intenção de produzir um levantamento completo dos parnasianos sulinos,
GuilherminoCesarapontaalgunsescritoresque,nasuaótica,obtiverammenorexpressão
noâmbito dosistema literário rio-grandense, comoé ocaso donaturalistaFrancisco de
Paula Pires que, apesar de ter lançado Rimas (1888), Sonoras (1891), e Pindo rio-
grandense
60
,teriacomomaiorcontribuiçãonocampodalíricaareuniãoepublicaçãodos
poemasdeLobodaCostanovolumeDispersas(1890):“Otenazhomenzinhodasmargens
do São Gonçalo quis ser reformador em arte, mas para isso lhe faleceram qualidades
naturais.Asuapoesianãotemmaiorinteresseartístico;(...)sósesalvouporterligadoseu
nome, na modesta condição de compilador, ao mais que romântico Lobo da Costa” (p.
293).
Caso semelhante ocorre nas referências ao poeta Enéias Galvão, de SãoJosé do
Norte, autor de Miragens (1885) “o parnasianismo pedia quadros exteriores mais
brilhantes,planejamentosluxuosos,queorio-grandensenãoquisounãopôdelhedar”(p.
288)–,ErnestodeSouzaeSilva, quepublicaLampejos efêmeros, em1886 –“Anteas
exigênciasdanovaescola,retraiu-se,abandonoudetodoaesperançadeatingirocampo
adverso, motivo por que seria temerário chamar-lhe parnasiano” (p. 289), e Artur de
Oliveira que, mesmo sendo apontando como um dos primeiros a cultivar o estilo
parnasianonoPaís,nãoteriaalcançadoaperfeiçãoaquesepropunha:“Hápoucosanosa
AcademiaBrasileiradeLetraspublicouosseusDispersos,(...).Poisfoiamaiscompleta
desilusão.Emletradeformanãosevislumbrademodoalgumagenialidadeaquealudem
oscontemporâneosdeArtur”(p.274).
Emsuma,adinâmicaapresentadaporGuilherminoCesar,referenteàmudançade
perspectiva ocorrida nas letras gaúchas durante as duas últimas décadas dos anos
oitocentos, parte do princípio de que a transição da literatura romântica ao modelo da
 
60
Ohistoriadorafirmanãotercertezadapublicaçãodetalescrito,umavezqueaúnicaalusãoencontradaem
suaspesquisasfoiumareferênciafeitaporPauloMarquesemartigo,no17ºnúmerodoperiódicoArautodas
Letras, em 3 de dezembro de 1882 – “Já o Pindo Rio-grandense, antologia consagrada igualmente aos
gaúchos, nãoseisefoipublicada;sobreeleapenasencontreiuma referênciaaomanuscritonumartigode
PauloMarques”(p.293).
152
narrativa naturalista e da poesia parnasiana no Rio Grande obedece à orientação
semelhante àquela diagnosticada no cenário nacional, em que a ampla divulgação das
idéiascientificistas,advindasdosestudosdeteóricosefilósofoseuropeus,estimulauma
revoluçãonaconsciênciaculturaldosintelectuaisdaépoca,fazendocomqueosideaisque
embasavamaliteraturadevertenteromânticaperdessemseuvalor.
Na análise dessa transição no âmbito do sistema literário sulino, o pesquisador
apontacomofundamentalacontribuiçãodeCarlosvonKoseritz,queapartirdecontatos
com Tobias Barreto e Sílvio Romero inicia o estudo aprofundado das principais teorias
científicas,sobretudodoEvolucionismo.Nessesentido,percebe-sequeaoafirmarqueo
intelectual alemão desenvolve a maior parte de suas idéias já radicado no Estado, o
historiadorintentaconfiguraronomedeKoseritzcomopeçafundamentalnamaturaçãodo
pensamento gaúcho, circunscrevendo-o, portanto, no âmbito maior do sistema literário
local, apesar de sua origem européia. Além da atuação desse intelectual, Guilhermino
compreende quea adesãoàsidéiasmodernas no Rio Grandese justificaa partir de um
complexodefatoresdeordemsocial:
Masomodernismo”dofimdoséculoteriaaquiboaacolhida,graçasa
fatores de ordem geral, uns, de ordem pessoal, outros. Dentre os
primeiros, a relativa imaturidade da província, a pouca cultura de seus
homens de letras, o que permitiu fosse a corrente científica recebida
comoalgodenovoedefinitivo,capazdemudarafacedaterra...Enão
devemosesquecer,ainda,acontribuiçãopessoaldeCarlosvonKoseritz,
militantedoevolucionismo,paraafixaçãodalinhadeataque,pelomenos
nocampodasidéias,aoidealismoromântico.(p.272)
Nesse processo de transição, o historiador ressalta a imprensa local como
instrumento fundamental para a renovação do pensamento sulino, uma vez que pelas
páginasdoensaiocrítico-literário,oumesmodapropagandapolíticaemdefesadosideais
republicanos, os escritores garantiram a discussão e divulgação das principais teses
científicasedoutrinasfilosóficasquedominavamocenáriointelectualeuropeuebrasileiro
nasegundametadedoséculoXIX,fazendocomqueaprovínciadoSulnãoficassealheia
às correntes mais atuais do pensamento ocidental. Mais especificamente no campo
literário, a atuação da crítica especializada busca, ao repudiar obras e autores do
Romantismo, comprovar a inatualidade de tais padrões estético-temáticos e, em
contrapartida, apresenta a prosa real-naturalista e a poesia parnasiana como modelos
153
artísticosaseremseguidos,preparandooespíritodosautoresgaúchosparaastendências
maisatuaisdaliteratura.
Entretanto,naleituracríticadessaproduçãodefimdeséculo,opesquisadorrevela,
alémdofatodeconstatarainexistênciadeobrasdevalorinteiramentecompostasapartir
daestéticadoRealismo,quetantoanarrativaquantoalírica“moderna”trazem,emmuitos
casos,resquíciosdaliteraturaromântica,característicaquepoderiasercompreendidacomo
atitudenatural,umavezquealgunsdoscultoresdasnovastendênciasliteráriasteriamsido,
hácertotempo,colaboradoresdosprincipaisperiódicosdedicadosàproduçãoromântica,
ou mesmoosque nãoo foram teriam, dealguma forma,iniciadosua formaçãoa partir
dessasinfluências.
Ao reconhecer o caráter não homogêneo da produção daquele momento, o
pensamento de Guilhermino Cesar assemelha-se às considerações de Heidrun Krieger
Olinto, quandoafirmaque aformulaçãodeconceitosdeépocaquesugeremidentidades
estáveisdentrodedeterminadoslimitestemporaisdemarcáveisnãoseriammaisplausíveis.
Segundoseuposicionamento,aindaqueaconceituaçãodeépocassejatarefainerenteao
processodeescritahistoriográfico-literária,aelaboraçãodessasunidadesnãopoderiaser
compreendidacomoprocedimentoquevisareunirsobummesmorótuloestruturastextuais
temáticaouesteticamenteequivalentes,masdeveriaassumiracomplexidadeintrínsecaao
próprio conceito de literatura enquanto processo de significação que considera as
interrelações entre textos e contextos de produção/recepção cultural e historicamente
situados.
61

Na definição das principais feições da literatura sul-rio-grandense no final do
séculoXIX,ocrítico-historiadoridentificaqueanarrativaficcionalexploraaoextremoas
perspectivascientificistas,apresentandopersonagenscujodestinoestavasubmetidoàsleis
daraçaedomeio,seguindodepertoaestilísticanaturalistadeÉmileZola.Nocampoda
lírica, após uma primeira etapa em que se sobressai a chamada “poesia científica”,
praticada por Damasceno Vieira e compreendida por Guilhermino como um estágio
precedenteaoParnasianismo,agrandemaioriadospoetasgaúchostendeàcomposiçãode
versosseguindoaestéticaparnasiana,sejaemumalinhamaispróximaaosgrandesnomes
franceses,comoéocasodeFontouraXavier,sejaapresentandoumaposturamaispróxima
àquelapraticadanocentrodoPaís,comoAquilesPortoAlegreeopróprioDamascenoem
 
61
Ver a esse respeito OLINTO, Heidrun Krieger. “Interesses e paixões: histórias de literatura”. In: ____
Históriasdeliteratura.SãoPaulo:Ática,1996.p.15–45.
154
umasegundafasedesuapoesia,ou seguindodepertoumatendênciapatriótica baseada
nosideaisrepublicanos,comoAssisBrasil.
Secompararmosovolumeearepercussãoatingidapelaprosadeficçãonaturalista
eapoesiaparnasianaàrelevânciaalcançadapelaliteraturaromânticagaúcha,veremoso
quãoacanhadafoiaproduçãodasduasúltimasdécadasdosanosoitocentos.Entretanto,
percebemosque,inobstante talmodéstia,aHistóriada literaturadoRioGrandedo Sul
apresenta-secomoumestudoquesepreocupaemexplicitaradinâmicadatransiçãoentre
operíodoromânticoeanarrativanaturalistaeapoesiaparnasiana,diferindo-se,porisso,
da regra geral diagnosticada por David Perkins, quando registra a carência de um
raciocíniomaisdetalhadosobreadinâmicaentreastransiçõesliterárias.
155
6-CONSIDERAÇÕESFINAIS
O valor científico deuma história literária não pode serencontrado na
objetividadedosresultadosquecria(istoé,opassado).Deveserbuscado
nosprocedimentosde adquirirexperiênciaedefazerdessaexperiência
acessívelaoutros,istoé,nosmétodosutilizadosnapesquisahistórica;na
forma explícita das teorias usadas; na intersubjetividade da linguagem
queoshistoriadoresfalam;nomodoempírico”deinvestigaritensque
possamservirdedados.(SCHMIDT,1996,p.108)
UmadasidéiascentraisdopensamentodeSiegfriedJ.Schmidtafirmaqueovalor
de um trabalho de historiografia literária não pode ser reconhecido através da
correspondência,ouo,entreosdadosapresentadosearededeeventosquesedispõea
investigar, mas pela coerência e plausividade desse discurso histórico teoricamente
orientado.TendoemvistaqueaHistóriadaliteraturadoRioGrandedoSulapresentaum
capítulodeintrodução,queoutrorafoicompreendidocomoumadeclaraçãodeprincípios,
emqueGuilherminoCesar apresentaumasíntesedasbasesconceituaisemetodológicas
quenorteiamaconstruçãodesuapesquisa,entende-sequeumdosmelhorescaminhospara
o fechamento dessa dissertação é, além de recuperar as conclusões a que chegamos,
contrapor as principais idéias apresentadas pelo autor no capítulo introdutório às
informações que seu percurso historiográfico efetivamente revela, exame que almeja
avaliaremquemedidatalconstruçãoconsegueconcretizarsuasintençõesmotivadoras.
Na definição do objeto de análise, Guilhermino afirmou que sua intenção era
compor uma investigação capaz de ultrapassar o simples levantamento e/ou revisão da
produçãoliteráriasul-rio-grandense,raciocínioqueofezconcebercomodadohistorizável
o que chamou por “complexo cultural rio-grandense”, conceito que abrange as diversas
perspectivas da vida literária do Estado e suas correlações com os valores da tradição
sulina.Nessesentido,percebe-sequesuapesquisaefetivamentefocalizaessaarticulação
namedidaemque,emumprimeiromomento,atentaàinvestigaçãodaformaçãodasbases
daculturagaúcha.
Para tal, assim como indicou na “Introdução”, o historiador faz uso de estudos
históricos e sociológicos acerca das peculiaridades referentes à formação da Província
156
como argumento capaz de validar sua teoria de que questões de ordem social, como o
isolamento geográfico, econômico e cultural, a atmosfera de constantes guerrilhas, o
atribuladoprocessocolonizatório,bemcomoaexíguainfluênciadaIgrejaeodifícilacesso
àeducação,atuariamcomofatoresresponsáveispelaconfiguraçãodeumpadrãodecultura
diferenciado no povo do Sul, mais identificado com a agitação e rusticidade típica da
campanhadoquecomomododevidadosgrandescentrosdoBrasil.
Após construir essa imagem de singularidade, Guilhermino comprova que esse
modelo cultural tão individual é a base sob a qual surge a poesia oral do cancioneiro
popular, tida como a primeira amostra artístico-literária do Estado, raciocínio que
demonstra que essa literatura já nasce sob o signo regional. Ainda que reconheça a
influênciaestéticadolirismoportuguêscomoraizcomumentreasprimeirasmanifestações
literáriassulinasenacionais,ohistoriadorafirmaquealiteraturadoSuléguiadaporum
elementooriginal,diretamentevinculadoaosvaloresdatradiçãogaúcha,umamentalidade
comumquesemanifestademaneiraregulareatemporal,teseque,alémderesponderao
questionamento de Schmidt quanto ao que deveria ser a abrangência de um estudo de
historiografia literária (regional, nacional ou internacional?), acaba justificando a
fundamentaçãodesuapesquisa,umavezquepartedoprincípiodequetalconstruçãonão
está calcada em aspectos de ordem extraliterária, como o critério geográfico, mas
embasada no fato de que a literatura da região apresenta traços particulares, que a
diferenciamdosaspectosquecaracterizamasmanifestaçõesdosdemaiscentrosdoPaís.
Uma vez que segue sua proposta inicial de investigar o “complexo cultural rio-
grandense”, procuramos identificar em que medida Guilhermino Cesar compreende o
aproveitamentodosvaloresdaculturalocalcomobaseparaamanifestaçãodosaspectos
maiscaracterísticos daliteratura gaúcha, relaçãoem quesedevem ressaltarasidéias de
JoãoBarrentoque,aoalertarparaanecessidadedeseterbemclaraumadefiniçãodefoco
analíticonaelaboraçãodeumahistóriadaliteratura,propõecomoelementohistorizável
nãoosubstratocultural,masosmomentospropriamenteliterários,perspectivadeextrema
importânciaparaqueoshistoriadoresnãoincorramnoequívocodeconceberofenômeno
literáriocomoum“degraudahistóriadacultura”.
Nessesentido,opesquisadorafirmaqueaoriginalidadeliteráriasulina,traçoque
chamouaatençãodeMáriodeAndrade,constrói-seatravésdeumarelaçãodialógicaentre
a literatura e os valores regionais, uma vez que ao mesmo tempo em que essa tradição
157
embasa as manifestações artísticas, essas, ao poetizarem o viver típico do homem da
campanha,reiterandoseusanseios,costumesefeitosheróicos,acabamconferindomaior
força aos valores da cultura sulina, dinâmica que, com o passar dos tempos, faz dessa
vinculaçãoàsraízesumaespéciedeidentidadeculturaleliteráriadoRioGrandedoSul.
Com base nessa perspectiva, percebe-se no pensamento de Guilhermino uma afinidade
com relaçãoàs idéiasque admitem apossibilidade de diálogos entreaesferaliterária e
outros sistemas distintos, como o social, cada qual com seus ritmos relativamente
independentes,tesepreconizadaporTynianovnacadade20doséculopassado,eque,
aoampliarasmetodologiasanalíticaseminentementesincrônicaseimanentistasdogrupo
dos formalistas russos, propõe uma renovação de pensamento no âmbito dos estudos
literários,namedidaemqueindicacomoposturaidealainvestigaçãodastransformações
dasérieliteráriaesuascorrelaçõescomcontextosextraliteráriosvariados.
62

Entretanto,aindaqueadmitaessaperspectivadialógica,ohistoriadorprocura,em
muitosmomentos,deixarclaraaidéiadequeseufocoprincipaléaanálisedaliteraturae
da vida literária do Rio Grande, como, por exemplo, na ocasião em que investiga as
contribuições da Sociedade Partenon Literário para o desenvolvimento cultural da
sociedade sulinanasegundametadedo séculoXIX, ouquando seutiliza deum esboço
biográficosobreManueldeAraújoPortoAlegrecomoapresentaçãoqueintroduzaanálise
desuaprodução.
Uma preocupação que concerne a essa questão, e que é tida por Schmidt como
pontoquedeveseresclarecidonoprocessodeconstruçãodeumtrabalhodehistoriografia
literária, sinaliza para a necessidade de se tornarem explícitas as relações entre as
transformações de dada literatura e o meio social com o qual dialoga. Nesse sentido,
percebemos que Guilhermino Cesar, ao identificar um segundo momento das letras
gaúchas,revelaessecuidado,hajavistaqueohistoriadorprocuraobservardequemaneira
acontecimentos da esfera extraliterária, como a insurgência da Revolução Farroupilha,
acabaminfluindonodesenvolvimentodaliteratura,quenessasegundaetapasecaracteriza
por uma produção mais consistente, na medida em que o surgimento da imprensa
proporcionaaosprimeirosescritoresultrapassaroníveldaoralidadeeexpressarsuaarte,
bemcomosuasposiçõespolítico-ideológicas,atravésdaspáginasdosincipientes,porém
fecundos,periódicoslocais.
 
62
Verarespeito:TYNIANOV,J.Daevoluçãoliterária.In:EIKHENBAUM,B.etal.Teoriadaliteratura.
Formalistasrussos.PortoAlegre:Globo,1971.p.105-118.
158
AssimcomosugereAntonioCandido,quandoafirmaqueaanálisedasrelaçõesde
mediaçãoentreliteraturaesociedadedeveterbemclaraanoçãodequeasociologianão
deve ser deslocada do plano de disciplina auxiliar para a condição de instrumento
principal,compretensãodeesclareceratotalidadedofenômenoartístico
63
,Guilhermino
comprova que aquele cenário de mudanças sociais foi de grande relevância para a
maturação intelectual daProvíncia, panorama quefez com que,através da formação de
gruposideologicamenterivais(republicanoseimperiais),apopulaçãofosse“convocada”a
discutir as questões que motivaram a maior guerra civil do País. Nesse ambiente de
constantes debates, destacam-se os chamados “poetas da revolução”, que fazem da
literaturauminstrumentopartidário,emproldeumengajamentopolítico-ideológicoque
traduzosanseioseconflitossociaisdeseutempo.
Ainda que tenha em vista esse contexto, o historiador compreende que a
identificaçãodessasegundaetapadasletrassulinassesustentaapartirdeumconjuntode
dominantes de ordem intraliterária. Assim, ele configura esse período literário” como
sendo marcado pelo distanciamento daquele que seria o traço mais caracterizador da
literaturagaúcha,–apoetizaçãodosaspectosrelativosàculturaregional–,bemcomoa
aproximaçãoaomodeloestético-temáticodaliteraturanacional,panoramanoqualsurgem
os primeiros escritores sul-rio-grandenses a alcançar expressão no cenário literário
brasileiro, a publicação do primeiro do livro de poesias e do primeiro romance sul-rio-
grandense, e o surgimento dos primeiros periódicos diretamente vinculados às questões
literárias.
Guilhermino Cesarelege a imprensa, surgida no Sulem 1827, como oprincipal
instrumentodemediaçãoentreodesenvolvimentosocialeliteráriodoperíodo,umavez
que pelas páginas dos periódicos locais, não só sediados na capital como presentes em
muitascidadesdointerior,osgaúchosselançamaosdebatesacercadasituaçãopolíticae
socialdaProvíncia,discussõesqueconduzemaquelasociedadeàmaturaçãodasidéiase
fazem surgiros primeiros vultos intelectuaisdo Estado. No plano da literatura, alémde
configurar um espaço regular e dinâmico para a veiculação de material literário, esses
periódicosacabamdescentralizandoavidaliteráriadoRioGrande,namedidaemquesua
amplacirculaçãoatingeasdiversaslocalidades.
 
63
Veraesserespeito:Literaturaevidasocial.In:CANDIDO,Antonio.Literaturaesociedade.Estudosde
teoriaehistórialiterária.SãoPaulo:LisGráficaeEditora;2000.p.17-40.
159
Ao ressaltar o surgimento de periódicos dedicados às questões literárias como
ponto de fundamental importância na sua pesquisa, como é o caso, por exemplo, de O
Guaíba(1856),daArcádia(1867),daRevistaMensaldoPartenonLiterário(1869),edo
MurmúriosdoGuaíba(1870),atentandoparaacompetênciadessesveículosempromover
adescentralizaçãoeunificaçãodaliteraturagaúcha,namedidaemquedivulgamportodo
oEstadoautoreseobrasquepartilhamummesmopadrãoestético-temático,bemcomoa
capacidadedessesemformarumpúblicoleitorfieleparticipativo,semoqualaliteratura
nãosubsiste,percebe-sequeohistoriadortrabalhaapartirdeumconceitodeliteraturaque
vaialémdosimpleslevantamentoourevisãodosprincipaisescritoresetextosdaliteratura
gaúcha.
Nesse aspecto, Guilhermino Cesar acompanha o raciocínio de Siegfried Schmidt
que,aoformularasbasesdesuapropostade“CiênciaEmpíricadaLiteratura”,assumeum
conceitodeliteratura queultrapassa onível dotextoemparticularecentra seufoco na
análisedo“sistemaliteratura”comoespaçodeinteraçãosocial–oconceitodeliteratura
nateoriaempíricadaliteraturanãoéconstruídoapartirdetextoscomoemoutrasteorias
daliteratura,masapartirdesíndromesdetexto-ação.(...)Ateoriadaliteraturaempírica
parte basicamente de quatro tipos deação elementares: produção,mediação, recepçãoe
processamento de textos literário.” (SCHMIDT, 1989, p. 61-62). Assim como também
sugereW.Beutinenquantoposturaidealnainvestigaçãodaliteratura,Guilherminoconduz
seu processo de historização atentando para as especificidades da vida literária gaúcha,
perspectivaque,segundooteórico,deveteremvistaumaduplaorientação,queconsidera,
porumlado,ahistóriadasinstituiçõesligadasàprodução,àrecepçãoeàdistribuiçãoda
literaturae,poroutro,analisaastransformaçõesnaesferaintraliterária.
Ao observarmos que a escrita historiográfica de Guilhermino Cesar se aproxima
dessa postura sugerida por Siegfried Schmidt e W. Beutin, assumindo como objeto
historizável a vida literária do Rio Grande, conceito que engloba não só a análise das
transformaçõesocorridasnasérieliteráriacomodetodoosistemadeprodução,circulação
erecepçãodessematerial,percebemosqueaHistóriadaliteraturadoRioGrandedoSul
partedeumconceitoemquealiteraturagaúchaécompreendidaenquantosistemaliterário,
raciocínioquesinalizaparaanecessidadedequeoprocessodehistorizaçãodeveatentar
nãosóparaaanálisedeumconjuntodedominantesinternas,deordemestética,temáticae
160
lingüística, mas também para as transformações diacrônicas desse sistema, enquanto
espaçodinâmicoesocialmenterelacionado.
A partir dessa perspectiva, um contraponto entre o cenário intelectual sul-rio-
grandense anterior à fundação da Sociedade Partenon Literário e as transformações
ocorridasnasletrasgaúchasapósosurgimentodessaagremiação,nofinaldadécadade
sessentadoséculoXIX,fazcomqueGuilherminoCesarregistreoaparecimentodeuma
novaetapadaliteraturario-grandense,agoramarcadapelainfluênciadoideárioromântico.
Alémdisso,ohistoriadorapontacomoprincipalritodainstituiçãoporto-alegrensesua
capacidade deorganizara vidamentaleliterária doEstado, umavez queessegrupose
torna responsável pela ordenação da produção literária, reunindo em torno de si um
conjuntodeintelectuaisunidosemproldeummesmoideal,queerafazer“evoluir”avida
mentalgaúcha,nãosónacapitalcomonasdiversasregiõesdaProvíncia,valendo-sedeum
conjuntodeinstrumentosemquesedestacam:acriaçãodeummecanismodedistribuição
dessaliteratura,critérioemqueganharelevânciaaatuaçãodaRevistaMensaldoPartenon
Literário, periódico que ao longo de uma década constituiu um espaço regular e
consistente para a escrita continuada de uma literatura que se organizava estética e
tematicamenteemtornodomodeloromântico;oincentivoaautoresdediversascidades
paraqueobservassemessemesmopadrão;aconsolidaçãodeumpúblicoleitorconstantee
aptoa“consumir”aproduçãoliteráriadeentão.
Umavezestabelecidoessecontraponto,quecontrastaaorganizaçãoatingidapelas
letras sulinas a partir de1869 ao panorama anteriormente apresentado, composto, salvo
raras exceções, por manifestações esparsas de autores temática e esteticamente
descompromissados,quenãoobservavamumpadrãoformalhomogêneonaescritadeseus
versos,percebemosqueoraciocíniodeGuilherminoCesarseassemelhaàvisãoproposta
porAntonioCandidonaconstruçãodaFormaçãodaliteraturaBrasileira(1959),pesquisa
emqueo historiadorcarioca diferenciaas“manifestaçõesliterárias” deuma “literatura”
mais consistente, ou seja, de uma produção contínua e organizada de obras que se
interligamporelementoscomuns,capazesdesefazerreconhecerenquantofaseregidapor
traçoscaracterísticos,tesequeofazsituaragênesedosistemaliteráriobrasileiroapartir
do surgimento das primeiras organizações literárias doséculo XVIII, como a Academia
BrasílicadosRenascidos,naBahiaem1759,eaAcademiadosSeletos,noRiodeJaneiro
em1752.
161
Tendoemvistaessaaproximaçãodepensamentoentreoshistoriadores,podemos
compreenderqueanovaorganizaçãodaprodução,dacirculaçãoedarecepçãodaliteratura
gaúcha, autoriza Guilhermino Cesar a compreender a atuação da Sociedade Partenon
Literário como ponto fundamental para o desenvolvimento da vida literária do Estado,
umavezque,apartirdesuaatuação,consolida-seosistemaliteráriosul-rio-grandense.
Ao mesmo tempo em que analisa o papel da Sociedade Partenon Literário na
“evolução”social,culturaleliteráriadoRioGrande,GuilherminoCesarsepreocupaem
explicar de que forma se dá a efetiva inserção do Romantismo em solo gaúcho. Dessa
forma, ele observa que essa relação não deve ser compreendida como um simples
enquadramento estético-temático a um padrão artístico já consolidado, mas uma atitude
que decorre de um conjunto de fatores de ordem sócio-histórica, como a atuação da
ProvínciaemconflitosqueameaçavamasoberaniadoBrasil,participaçãoqueatenuaum
sentimento de exclusão da região com relação ao restante do País e, por conseqüência,
possibilitaumamaioridentificaçãodaintelectualidadesulinacomrelaçãoaosvaloresda
culturanacional.Assimsendo,ohistoriadorconcluiquea“desconstrução”dessasbarreiras
culturais foi essencial para que os escritores gaúchos pudessem, ainda que tardiamente,
engajar-se na proposta do movimento romântico brasileiro de comprovar, através da
valorizaçãodeaspectosmaiscaracterísticos,aauto-suficiênciaculturaldaNação.
Se no capítulo de introdução o historiador afirma que um dos princípios
motivadoresdesuahistórialiteráriaéoderetificaroposicionamentodegrandeparteda
críticaehistoriografialiteráriabrasileira,queemmuitoscasossemanteveexcludenteno
que diz respeito à inserção da intelectualidade gaúcha no cenário das letras nacionais,
percebe-se que no decorrer de seu texto o historiador busca concretizar essa meta. Tal
atitude pode ser comprovada quando Guilhermino analisa o regionalismo literário da
geraçãoromânticaque,segundosualeitura,écompreendidocomoacontribuiçãoliterária
doRioGrandedoSulparaoprojetodeindependênciaculturalpropostopelomovimento
romântico nacional, sendo, portanto, injusta a exclusão dos gaúchos das histórias da
literatura brasileira.  Nesse aspecto, sua tentativa de afirmar a literatura sulina como
exemplarnãomenosqualificadodasletrasnacionaispodeseraproximadaaopensamento
de Schmidt que afirma que a escrita de histórias literárias tem, via de regra, servido a
interesses políticos que, em geral, aparecem disfarçados como intenções educacionais,
culturaisouestéticas.
162
Noquedizrespeitoàexclusãodosgaúchosdosquadrosnacionais,constatamosque
GuilherminoCesaracabarevisitandoumadiscussãojápercebidaemoutrosmomentosda
criticaehistoriografialocal,emquecorrentesopostasdivergiamquantoàcaracterização
do regionalismo literário sulino como discurso de cunho separatista. Ratificando o
pensamento inicialmente apresentado, o autor conclui que a forte identificação com os
aspectosmais particulares da tradição local decorre antes de umconjunto defatores de
ordemsócio-históricaeculturaldoquedequalquertentativadediferenciaçãoquantoao
restante do País, posicionamento semelhanteaomanifestado por JoãoPinto da Silva na
construçãodaHistórialiteráriadoRioGrandedoSul,emque,maisdoquediferenciara
produção sulina da platina, procura circunscrever as letras gaúchas no âmbito maior da
culturabrasileira.
Apresentadaagênesedosistemaliteráriorio-grandense,opesquisadorselançaà
análise da literatura produzida pela geração do Partenon que, a partir das influências
estéticas do Romantismo, vai fundamentar o regionalismo como principal, e mais
caracterizador,temaliteráriodaProvíncia.Nessesentido,investigamosemquemedidaa
leituracríticadaproduçãoliteráriasulinaservecomoinstrumentoquebuscalegitimaras
principaistesesqueembasamaconstruçãodaHistóriadaliteraturadoRioGrandedoSul.
Ao recuperarmos as leituras críticas apresentadas pelo historiador, percebemos
que,emumprimeiromomento,oexamedaspeçasdocancioneiropopularrio-grandense
acaba revelando que, apesar de apresentar raízes comuns com a produção nacional (a
influênciaestéticadolirismoportuguês),aliteraturasulinanascesobosignoregional,na
medidaemqueexpressaosvaloresdaculturalocal,análisequeacabacomprovandoatese
inicialmente apresentada que reivindica originalidade à literatura gaúcha, sem deixar de
considerá-laenquantopartequeintegraocontextomaiordasletrasnacionais.
Do mesmo modo, a análise da produção dos “poetas da revolução” e dos pré-
românticos sul-rio-grandenses revela que, ainda que os motivos regionais tenham sido
pouco explorados pelos primeiros escritores a produzir uma literatura mais consistente,
esses sempre se mostraram participativos quantos às discussões que agitavam seu meio
social,bemcomoatentosàsmaisatuaistendênciasestéticasdeseutempo,comoevidencia,
por exemplo, a perspectiva analítica que estabelece paralelos entre o estilo de autores
incipientes,comoPedroCangaeSebastiãoXavierdoAmaralSarmentoMena,eaestética
que caracteriza poetasderelevâncianononeda literaturade línguaportuguesa, como
163
Manuel Maria do Bocage e Filinto Elísio, respectivamente. Assim, além de reivindicar
traços qualitativos às primeiras manifestações literárias, essa ótica comparativa faz com
queocrítico-historiadorassegureaparticipaçãodosgaúchosnoqueserefereaocenário
literário brasileiro, uma vez que o Rio Grande teria, além de escritores nacionalmente
influentescomoManueldeAraújoPortoAlegre,obrasconstruídasapartirdeumpadrão
estético e temático próximo ao apresentado pelas produções do centro do País. Nesse
sentido, são exemplos o romance de Caldre e Fião, a poesia de Félix da Cunha,
caracterizadaporumlirismodetonslúgubres,similaràdeÁlvaresdeAzevedo,oumesmo
a lírica de Rita Barém de Melo, comparada ao estilo que notabilizara a produção de
CasimirodeAbreu.
Nessa perspectiva, umavez quemantém constanteessa tendência de comprovar,
pormeiodaleituracríticadasobras,quealiteraturagaúchaaomesmotempoemqueé
original, namedidaemque mantémuma relaçãodialógicacomos valoresintrínsecosà
culturaregional,tambémseenquadranocontextomaiordasletrasbrasileiras,vistoqueem
nenhum momento deixou de participar das diferentes correntes estéticas da literatura
nacional,percebe-seque,maisumavez,opensamentodeGuilherminoCesarseaproxima
dospressupostosindicadosporSiegfriedSchmidt,quandoafirmaque,demodogeral,os
historiadores da literatura lançam mão da análise interpretativa
64
como instrumento que
buscavalidaraspressuposiçõesteóricasqueembasamaescritadesuashistóriasliterárias.
Aomanteressaperspectivaanalítica,oexamedaliteraturaromânticagaúchaacaba
assegurandoavalidadedatesequesugereumagrandeafinidadeentreaproduçãolocalea
brasileira.Assim,umavezdesconstruídaaidéiadequeoregionalismosulinoserevestiria
de um caráter separatista, o historiador conclui que essa tendência à poetização dos
aspectosmaisidentificadoresdatradiçãocampeiraequivaleria,noSul,aoqueavertente
nacionalista cultuadora da natureza e da “cor local” representou em âmbito nacional,
analogiaqueratificaaidéiadequeoregionalismogaúcho,alémdeantecederasdemais
manifestaçõesdessecunhoencontradasnorestantedoPaís,éacontribuiçãodoRioGrande
para oprojeto deindependência cultural doBrasil. Assim, seuraciocíniosugere não só
umarelaçãodecontribuiçãomútua entreos sistemasliterários gaúchoebrasileiro,visto
 
64
CaberessaltarqueSiegfriedSchmidtdesconsideraosprocessoshermenêuticosdescontextualizosenquanto
itens relevantes para a construção de uma história da literatura – “Uma simples adição de interpretação
‘imanentedaobra’,focalizandoexclusivamenteosaspectosestéticosdotextoedeinformaçõeshistóricase
sociais,evidentementenãosatisfaráasnecessidadesdoshistoriadoresliterários.”(SCHMIDT,1996,p.112).
164
que são osmoldes doRomantismo nacional quemotivam osautoreslocaisà escrita de
umaficçãoqueenalteceaoriginalidadedaregiãoSuldoPaís,comoservedeinstrumento
de comprovação da teoria de que a literatura gaúcha é, apesar de sua originalidade,
essencialmentebrasileira.
A aproximação entre a literatura sulina e a produção dos grandes expoentes
românticos do Brasil acaba revelando que a qualidade das letras sul-rio-grandenses não
fica aquém dos parâmetros nacionais, haja vista, por exemplo, a técnica revelada por
autores como Carlos Augusto Ferreira, cuja obra, em sua concepção, apresenta
características próximas às que notabilizaram a lírica de Castro Alves, a despeito de o
primeirohaversidoignoradopelahistoriografianacional.
Damesmamaneira,aleituracríticapropostapelohistoriadorrevelaque,guardadas
as devidas proporções,há muitas semelhançasestéticas entre osautores doSul e os do
centrodoPaís,comonocasodoestilodeBernardoTaveiraJúniorque,quantoaoarranjo
da métrica,écomparadoaGonçalves Dias. Domesmo modo,a influênciaestilísticade
CastroAlveséapontadacomonotapresentenacomposiçãodeApolinárioPortoAlegree
MúcioTeixeira,bemcomoosentimentalismorepletodetonslúgubresenotasdelamúria,
à maneira de Álvares de Azevedo, é reconhecido como nota presente nos versos de
Juvêncio Augusto Menezes Paredes. Ainda nesse sentido, o historiador ressalta a
influênciaexercidapeloestilodeJosédeAlencarnagrandemaioriadostextosemprosa
escritos durante o Romantismo sulino. Em suma, as semelhanças estilísticas entre os
autoresgaúchosenacionaisconfirmamatesedeque,apesardaproximidadegeográficae
dassemelhançasculturaisentrearegiãoSuleaplatina,aliteraturadoEstadotemcomo
principalreferenteaproduçãonacional.
O historiador faz questão de ressaltar que não só esse espelhamento no modelo
nacionalcaracterizoualiteraturaromânticasulina,principalmentenoqueserefereàpoesia
e à prosa de cunho regionalista, que através da focalização das paisagens naturais do
Pampa e, acima de tudo, da fidelidade com que enfocou os costumes, o folclore e o
linguajar do campeiro gaúcho, deu mostras da originalidade cultural do Rio Grande.
Assim,aanáliseaprofundadadessavertentefazcomqueohistoriadorreconheçadoistipos
defocalizaçãoregionalistanasletrasdoSul,sendoumaprimeiracalcadanoestereótipodo
gaúcho bravo, corajoso e leal, sempre dispostoà peleja e àsduras lidasdo campo, que
revive o mito do monarca das coxilhas, e de que são exemplo O vaqueano e as
165
Provincianas; diferente daquele enfoque definido como mais “natural”, tanto na
caracterizaçãodalinguagem comonasdescrições doscenáriosehábitos daspopulações
interioranas, retratadas antes como pessoas do que como mito. Cabe ressaltar que essa
diferenciaçãoregistradaporGuilherminoabrangesomenteoperíodoromânticoe,porisso,
nãodeveserconfundidacomaanálisedeDyonélioMachado,queopõeoquechamade
“localismo” ao que conceitua por “regionalismo clássico” (contrastando o período do
Romantismocomaficçãodadécadade30doséculoXX),oumesmoaoposiçãosugerida
por José Salgado Martins, que divide o regionalismo em três estágios, basicamente o
romântico,oreal-naturalista,eoneo-realista.
AdistinçãoidentificadaporGuilherminoficaevidentenotrechoemqueatécnica
de composição das personagens de Os farrapos é contraposta ao estilo empregado por
ApolinárionaconstruçãodoprotagonistaJosédeAvençal–“Escritorcorretoeimaginoso,
compôsumanovelaquesecomagradodoprincípioaofimeque,sendoregional,não
chegaaserregionalista,nosentidoemqueempregamosotermonotocanteaoVaqueano,
deApolinário”(p.323,grifomeu.)–,raciocínioqueajudaacompreender,porexemplo,
porquemotivoOCorsário,deCaldreeFião,nãoécompreendidocomoromanceque,em
essência,seenquadranacorrentedoregionalismoliteráriosulino.
Assim como a leitura crítica da produção rio-grandense foi compreendida como
instrumentodelegitimaçãodasprincipaistesesqueembasamaescritadeumahistóriada
literatura, acreditamos que a análise das estratégias e todos que fundamentam o
exercício interpretativo pode revelar muito dos posicionamentos teóricos que,
conscientemente,ounão,alicerçamaconstruçãodapesquisadeGuilherminoCesar,exame
que se justifica na medida em que, segundo Schmidt, todo o trabalho de historiografia
literáriaestá“governadoporconceitosdominantesoucruciais,como‘literatura’,‘história’,
‘históriadaliteratura’,‘estudodaliteratura’,‘teoria’,‘método’,etc.”(SCHMIDT,1996,p.
103).
Nesse sentido, constatamos que a estratégia de leitura proposta contempla,
concomitantemente, análises que procuramavaliar aconstituição estéticae temáticadas
obras. Assim, seja investigando, com certa minúcia, detalhes referentes à construção
métrica de alguns poemas, ou detendo-se na análise do processo de composição dos
elementosdasnarrativas,comoacaracterizaçãodaspersonagens,odesenvolvimentodas
tramas, as descrições dos ambientes,
o crítico-historiador constrói um esboço do nível
166
estético das obras e dos autores do Sul, raciocínio que, no que se refere às fases mais
consistentes,comprovaqueasletrasgaúchasnãoficamaquémdonívelapresentadopela
literaturabrasileira.
Observa-seaindaqueGuilherminoCesarconduzaleituracríticadostextostendo
emvistaduas perspectivascomplementares,ouseja,examinandoseuobjetodeestudoa
partirdeumaóticaquecontemplaoexercíciointerpretativofundamentadonosparâmetros
dacríticadeseutempo,semdeixardeconsiderararelevânciadasobrasnoplanodeseu
contexto histórico de produção, como podemosconstatar, por exemplo,na avaliação da
obradeManuelAraújoPortoAlegreque,apesarde “nãoresistir”aumaanálisetécnica
maisaprofundada, sustentadapelosparâmetrosdacríticaliteráriadacontemporaneidade
do historiador, não deixa de ser reconhecida como produção de grande relevância no
contexto maior das letras sulinas e brasileiras. Esse posicionamento também é mantido
quandoocríticopretendeestudarovalordeProvincianas,deBernardoTaveiraJúnior,no
âmbitodosistemaliteráriosul-rio-grandense.
Aindaquantoàsbasesteóricasquesustentamaanálisedostextosliterários,nota-se
que o historiador dedica uma atenção especial à questão da linguagem em que são
construídasasobras,detalheque,porexemplo,éumdospontosnorteadoresdaanáliseda
líricadeAraújoPortoAlegre,examequeapontouaartificialidade,oufaltadenaturalidade,
dasdescriçõescomosendoseuprincipaldeméritoartístico.Domesmomodo,essecritério
se faz presente na leitura crítica de O Corsário, de Caldre e Fião, que é deslocado da
“prateleira” dasobrasregionalistassobaalegação dequea linguagempredominanteno
fluxo da narrativa se aproxima mais da que se utilizava no centro do País e pouco da
expressãoregional.
Noquetangeàquestão,alémdareconhecidaimportânciaquealinguagempossa
terparaumaliteraturaquetemcomoprincipalforçaaexpressãodosvaloresculturaisde
sua região, percebemos que uma possível explicação para tal preferência poderia ser
encontrada a partir de uma provável aproximação teórica entre o historiador e as
proposições difundidas pela filosofia estética de Benedetto Croce, da qual o autor,
explicitamente,semostrousimpatizante–“JamaisolvideiaboaliçãodeBenedettoCroce”
(p. 16). A tese de umafiliação teórica se torna admissível tendo em vista as principais
167
consideraçõesapresentadas notexto“PensamentoeAção deBenedettoCroce”
65
, ensaio
emqueopróprioGuilherminoafirmaqueapropostaestéticadopensadoritalianorenovao
conceito ocidental de arte, especialmente no que se refere ao uso da linguagem na
composição literária, umavezque, segundoalógica crociana“Aprovadapossedeum
pensamento é oseuexperimento nalinguagem, (...). Alinguagem acha-se carregada de
elementoslógicos,pelofatodeestesrealizarem-sesemprenela”(ROHDEN,1966,p.77).
Aindaquantoaotextoemquestão,compostoapartirdasdiscussõesrealizadasem
umciclodeconferênciassobreaobradeBenedettoCrocepromovidopelaFaculdadede
Filosofia da UFRGS em 1966, em que foi um dos palestrantes, o então professor do
DepartamentodeLetrasdaquelauniversidadeconsideraqueasidéiasdoteóricoeuropeu
seriam fundamentais na renovação da crítica literária, assertiva que nos permite a
conclusãodequealgunsdospressupostosdadoutrinacrocianaestãopresentesnoprocesso
deescritahistoriográfico-literáriadeGuilherminoCesar,hajavistasuaafirmaçãodeque
“devemos considerar ainda a sua contribuição, a contribuição de Croce, para o
desenvolvimento da crítica na primeira metade deste século. Neste domínio, a sua
influência tem sido considerável. Direta ou indiretamente, está ele presente na crítica
moderna,nãosónaEuropacomonaAmérica.”(CESAR,1966,p.53).
Outraperspectivaqueintegraasdiscussõessobreosmétodosdeescritadehistórias
daliteratura,equeprocuramosincorporaraonossoprocessodeinvestigação,refere-seàs
questões relativas à delimitação de períodos literários enquanto épocas que sugerem
identidadesestáveisdentrodedeterminadoslimitestemporais.Sobreessaquestão,Heidrun
KriegerOlintoafirmaque,emboraasperiodizaçõesconfiguremumatarefainalienávelao
processo de construção de uma história da literatura, a formulação de unidades
hermeticamente homogêneas, que buscam reunir sob um mesmo “rótulo” estruturas
textuaistemáticae/ouesteticamenteequivalentes,deveriaserrelativizada,tendoemvistaa
complexidade intrínseca àprópria noçãode literatura enquanto processode significação
que considera as interrelações entre textos e contextos de produção/recepção cultural
historicamentesituados.

Aoobservaressecritério,percebemosqueaescritahistoriográficadeGuilhermino
Cesarassemelha-seataisconsideraçõesteóricas,umavezqueorevelaapretensãode
fixarumpadrãoidentitáriohomogêneoacadaperíodoliteráriodelimitado.Talorientação
 
65
CESAR,Guilhermino;RICCI,Ângelo;RODHEN,Valério.BenedettoCroce.PortoAlegre:Publicaçõesda
FaculdadedeFilosofiadaUFRGS,1966.
168
podesercomprovada,porexemplo,naanálisedaliteraturaromântica,compostatantopor
produçõesdecaráteressencialmenteregionalistaquantoporobrasdeumaperspectivamais
universal, bempróximaaomodelo nacional(oschamados“românticosindividualistas”),
oumesmonafasesubseqüenteque,naleituradeGuilhermino,revela,alémdainexistência
de obras de valor inteiramente compostas a partir da estética do Realismo, que tanto a
narrativa quanto a lírica “moderna” trazem, em muitos casos, resquícios da literatura
romântica, característica compreendida como atitude natural, uma vez que os principais
cultoresdasnovastendênciasliteráriasforam,hácertotempo,colaboradoresdosprincipais
periódicos dedicados à produção romântica ou iniciaram sua formação a partir dessas
influências.
TendoemvistaoapontamentodeSiegfriedSchmidtarespeitodatransiçãoentre
fasesliterárias–“Oaspectomaisproblemáticodaescritadehistóriasliteráriasdizrespeito
à produção de relações, conexões e transições, isto é, à concatenação dos dados em
unidadescoerentes,taiscomoperíodos,épocas,gêneroseassimpordiante”(SCHMIDT,
1996,p.104)–,vimoscomonecessáriaaanálisedosprocessosdemudançanoâmbitoda
escritadehistoriográficadeGuilherminoCesar.Nessesentido,igualmenteobservamoso
pensamento de David Perkins, que identifica como uma das principais deficiências da
questão a carência deum raciocínio mais detalhadosobre adinâmicadessas transições,
umavezqueoshistoriadores,demodogeral,acabamconcebendoastransposiçõesdefases
apartirdeumalógicaemqueosperíodossubseqüentesseidentificampelanegaçãoaos
conceitos bases das etapas que os precedem, metodologia que não apresenta maiores
explicações – “na base das relações conceituais, o historiador elabora um esquema de
mudança histórica como uma simples reação, um processo dialético, cíclico, uma
alternaçãoentrepólos,ousejaoquefor.”(PERKINS,1999,p.27).
A partir desses apontamentos, observamos que Guilhermino demonstra
preocupaçãoemexplicardequeformasedáatransiçãodaliteraturaromânticaaomodelo
danarrativanaturalistaedapoesiaparnasiananoRioGrande.Oraciocíniodohistoriador
não compreende essa mudança como aleatória, mas identifica nas letras do Sul uma
orientaçãosemelhanteàquelapercebidanocenárionacional,emqueaampladivulgação
das idéiascientificistas, advindasdos estudos deteóricosefilósofoseuropeus,estimula
uma revolução intelectual dos escritores da época, fazendo com que os ideais que
embasavam a literatura de vertente romântica perdessem credibilidade. No âmbito do
169
sistemaliteráriosulino,opesquisadorressaltaacontribuiçãodeCarlosvonKoseritzque,a
partirdecontatoscomTobiasBarretoeSílvioRomero,iniciaoestudoaprofundadodas
principaisteoriascientíficas.Dessaforma,aadesãoàsidéiasmodernas”noEstadopode
serexplicadaapartirdefatoresdeordemsociocultural,comoaimaturidadeintelectualda
Provínciaeapoucaculturadeseushomensdeletras,aspectosquefavoreceramfossemas
novasidéiasrecebidascomoalgodefinitivonocampodacultura.
Aodetalharessatransição,ohistoriadorreiteraaimportânciadaimprensasulina
nosdiferentesmomentosdaliteraturalocal,vistoqueidentificaosperiódicosdoSulcomo
instrumentofundamentalparaarenovaçãointelectualocorridanaquelemomento,umavez
quepelaspáginasdosensaioscríticos,oumesmodapropagandapolíticaemdefesados
ideaisrepublicanos,osescritoresgarantiramadiscussãoedivulgaçãodasprincipaisteses
científicas e doutrinas filosóficas que dominavam o cenário europeu e brasileiro na
segunda metade do século XIX, fazendo com que a Província não ficasse alheia às
correntes mais atuais dopensamento ocidental. Especificamente nocampo literário, ele
aponta como imprescindível aatuação dacrítica especializada que,ao repudiar obras e
autoresdoRomantismo,buscacomprovarainatualidadedetaispadrõesestético-temáticos
e,emcontrapartida,apresentaaprosareal-naturalistaeapoesiaparnasianacomomodelos
artísticosaseremseguidos,preparandooespíritodosautoresgaúchosparaastendências
maisatuaisdaliteratura.
Outropontodedeveserconsideradoemnossaanálisedizrespeitoàestruturada
História da literatura do Rio Grande do Sul. Se observarmos a organização da obra,
perceberemosquearepartiçãodoscapítulosnão obedecea umaperspectiva linearque,
tradicionalmente, caracteriza as histórias literárias, em que o caráter aditivo das
informaçõeseacontecimentosacompanhaopercursodegênese,transformaçãoeapogeu
daliteratura.Alémdenãoseguiremumavisãoevolutiva,osvintecapítulosqueintegrama
obraobedecemaosmaisvariadoscritérios,como,porexemplo,odegênero,(“Aliteratura
dramática” e A prosa de ficção, do Romantismo ao naturalismo”), o de época (“As
Origens”,“AhistoriografiaapósaguerradoParaguai”),odeperíodosliterários(“Poetas
daprimeirageraçãoromântica”,Apogeuedecadênciadapoesiaromântica”),bemcomo
estão balizados a partir de enfoques sobre determinados autores (“Apolinário Porto
Alegre”),ouorganizaçõesliterárias(“OgrupodoPartenonLiterário”).
170
Quantoaesseaspecto,opróprioautorafirmaquebuscouumamaiorliberdadeno
exameaprofundadodomaterialliterário,eque,portanto,essaapresentaçãodisformeseria
decorrente da postura analítica adotada – “a distribuição da matéria em capítulos não
seguiupassivamenteaperiodizaçãoaquealudo.Permiti-mecertaliberdadenoestudodos
gruposedasfigurasisoladas(...).Entrefazerumlivroagradável,exameimprovisadode
fenômenos mais profundos, preferi estudá-los detidamente” (p. 20). Assim, podemos
compreenderqueessaposturasejustificaapartirdeuma dasintençõesquemotivamo
historiador, uma vez que admite a pretensão de construir uma pesquisa capaz de
ultrapassarainvestigaçãodescontextualizadadosvaloresestilísticosdaproduçãosulina–
“nãomeseduziaficarexclusivamentenaapreciaçãodevaloresestéticosfrios”(p.16)–,
compreendendo o fenômeno literário a partir de uma perspectiva que contempla,
concomitantemente,oplanoestéticoeohistórico.
Entretanto,aindaqueaorganizaçãodoscapítulososedeformalinear,pode-
seperceberqueohistoriadoracabaanalisandoosdiferentesmomentosdasletrasgaúchas
emumespaçodetempoquevaidasprimeirasmanifestaçõesdocancioneiropopularatéo
final do século XIX (1737-1902), trajetória que acompanha a própria periodização
apresentada na “Introdução”. Dessa forma, apesar de não ultrapassar o que configura
como um quinto momento da literatura sul-rio-grandense – “O quinto período (1884-
1902)éoabandonopaulatinodoideárioromântico,comadoçãodeformaismaisvizinhas
do Realismo.” (p. 19) –, podemos perceber que, em essência, a história literária de
Guilhermino Cesar conserva, quanto a esse aspecto, uma visão tida por tradicional no
âmbitodosestudosrelativosaocampodaTeoriadaHistóriadaLiteratura.
Em “História da literatura e narração”, David Perkins chama atenção para a
capacidadedescritivadashistóriasliteráriasque,apesardenãoseremapreciadasenquanto
construções narrativas, apresentam particularidades próximas às da narrativa tradicional
como,porexemplo,aconfiguraçãodeumavoznarrativaquedescreveatrajetóriadedada
literaturaatravésdostempos,focalizandosuagênese,suasdiferentestransformações,bem
comoopontoemquealcançasuamaiorexcelência.Segundooteórico,assimcomona
criação de romances, o autor de uma história literária elege um protagonista para sua
narrativa,quenocasodasconstruçõeshistoriográficasnãoseriaafiguradeumindivíduo,
171
masumaidéiaintrinsecamenterelacionadaao conceitode literaturaemquese baseiao
historiador
66
.
SeprocurarmosaplicaressapremissaaotextodeGuilherminoCesar,poderemos
concluir que o herói de sua narrativa seria o próprio caráter regionalista que marca as
diferentes fases da literatura sul-rio-grandense. Dessa forma, além de apresentar o
nascimento desse protagonista, situado junto àsprimeiras manifestaçõesdo cancioneiro
popular,onarradoracompanhaasdiferentesetapasdesuaevolução,desdeasocasiõesem
quesemostrouenfraquecido,perdendoespaçoparaasdiscussõespolítico-ideológicasda
época daRevolução Farroupilha,ou mesmoparaosdebates sobreasteses científicase
doutrinas filosóficas que dominavam o cenário intelectual nas duas últimas décadas do
século XIX, até os momentos em que atinge sua maioridade, concretizada a partir dos
trabalhos da Sociedade do Partenon Literário, agremiação que vai, efetivamente,
concretizaroregionalismocomoomaiscaracterísticoveioliteráriodoRioGrande.
Perkins afirma ainda que, assim como a configuração de um início para
determinadofenômenoliterárioésempreconvencional,ofechamentodeumahistóriada
literatura também será uma convenção narrativa que, no entanto, deverá manter uma
relaçãode coerência como enredo construído,que nas histórias narrativas daliteratura
giramemtornodaascensãoe/oudeclíniodoherói.Nessesentido,podemosdeduzirquea
elaboração deum finalestariana dependênciadosdesejosquemotivamaescritadessa
história,ouseja,dependeriadaintençãodohistoriadoremcomprovarquealgumaspecto
queidentificadeterminadaliteratura“evolui”,“regride”,ou“oscila”atravésdostempos.
No texto de Guilhermino Cesar, pode-se perceber que a construção do enredo
demonstracertaoscilaçãodoregionalismonaliteraturagaúchaque,apósatingirseuápice
noRomantismo doPartenon,mostrou-seenfraquecido nosquadrosliteráriosdo fimdo
séculoXIX.Contudo,tendoemvistaqueoúltimocapítulodessahistóriaapenasesboçaos
traços principais da literatura dos anos novecentos, não podemos entender o fim dessa
narrativa como anúncio do declínio desse caráter regional nas letras gaúchas, mas
compreenderessefinalemabertocomoumindíciodequenossoheróiaindaestariapor
encontrarosseusmelhoresmomentosnaproduçãoliteráriaposterior,comodenunciaseu
comentário final sobre a obra de Alcides Maya e Simões Lopes Neto, no capítulo
“Simbolismoàvista”.
 
66
Ver,aesserespeito:PERKINS,David.Históriadaliteraturaenarração.Trad.deMariaÂngelaAguiar.
CadernosdocentrodepesquisaliteráriasdaPUCRS,PortoAlegre,v.3,n.1,mar.1999.SérieTraduções
172
Ainda que nunca tenha publicado a continuação dessa história, o que exigiria a
produção de um segundo volume da História da literatura do Rio Grande do Sul,
compreendendoaliteraturaproduzidanoEstadonocursodoculoXX,pode-seteruma
idéiadodestinodenossoheróiseatentarmosàleituradasérieParaoestudodoconto
gauchesco”,compostaporseisensaioscríticosqueinvestigam,dentreoutrasquestões,a
composição do regionalismo na literatura sul-rio-grandense, desde as primeiras
manifestaçõesescritasatémeadosdoséculoXX.Apesardeoconstituirumahistóriada
literatura, nos moldes tradicionais, o conjunto desses artigos seqüenciais apresenta uma
perspectiva historiográfica na medida em que busca analisar, pela via da narrativa
histórica,algunsdosprincipaisautoreseobrasquesevaleramdaexploraçãoartísticadas
particularidadesculturaisdaregiãocomotemáticaliterária
67
.
Por fim,cabe investigar quais critériosembasam a formação docânone literário
apresentado pela pesquisa de Guilhermino Cesar, análise que deve partir do pré-
entendimento de que tal elaboração é uma organização discursiva do historiador que,
guiadoporpressupostosteóricosecomprometimentosideológicosparticulares,elegeum
conjunto de textos e autores que, na sua ótica, são capazes de representar sua idéia de
literatura. No que se refere à questão, o próprio pesquisador faza ressalva de que tem
consciência do inevitável traço excludente intrínseco a qualquer processo seletivo,
posicionamentocondizentecomopensamentodeSchmidtqueressaltaseraformaçãode
umcânone,emessência,umprocessodeescolhateoricamenteorientado,aexigirqueos
historiadoressemostremexplícitosquantoaoscritériosdetriagemporelesutilizados.
Jána“Introdução”,GuilherminoCesarindicapartedoscritériosdequesevale
paraaeleiçãodosrepresentantesdopatrimônioliteráriosul-rio-grandense,afirmandoque
procurará incluir, além de autores que efetivamente produziram literatura na Província,
aqueles quenasceramnoSule porventuramigraramparaoutroscentros,comoseriao
casodeAraújoPortoAlegre.Ainda,Guilherminoprocuraincluirautoresque,apesarde
nascidos fora dos limites do Estado, contribuíram com seus trabalhos para o
desenvolvimentodosistemaliteráriogaúcho,comonosexemplosdeCarlosvonKoseritz
eCarlosJansen.Nessesentido,oautorafirmaque,contrariamenteaopadrãotradicional,a
 
67
Dessasérie,doistextostratamespecificamentedaproduçãoliteráriasulinanoséculoXX.Falamosde“A
gauchesca nos dois primeirosdecênios do século XX” e O conto gauchesco, deSimões LopesNetoaos
autores de hoje”, artigos em que Guilhermino Cesar elege autores como Darcy Azambuja, Vieira Pires,
VargasNeto,PedroVergara,AugustoMeyer,AlcidesMayae,emespecial,JoãoSimõesLopesNetocomo
legítimosrepresentantesdaliteraturaregionalistadaqueleperíodo.
173
ordem cronológica respeitada não foi a do nascimento dos autores, mas a da data de
publicação de obras representativas, o que demonstra mais uma vez que seu foco
historizáveléosistemaliteráriosul-rio-grandense.
Constata-sequeaficcionalizaçãodosvaloresdaculturaregionalatuacomocritério
considerável para a eleição canônica, visto que as principais obras elencadas, as que
recebemmaioratençãoanalítica,sãodefatoasconstruídasapartirdaexploraçãodaveia
regionalista. Nesse sentido, ainda que mereça destaque pela ampla atuação no
desenvolvimentoculturaldasociedadegaúcha,oméritodefazerdoregionalismoumtraço
constantenoconjuntodesuaproduçãogaranteonomedeApolinárioPortoAlegredentre
os grandes expoentes das letras sulinas. O mesmo critério é igualmente aplicado na
consideração de Provincianas, deTaveira Júnior, que,a pardas proximidades estéticas
comalíricadeGonçalvesDias,alcançamaiorreconhecimentopelafidelidadecomque
retratouoPampa.
Ocritériodopioneirismotambéméempregadopeloautorcomoelementocapazde
sustentar o nome de um autor no cânone literário sul-rio-grandense, como se pode
perceber,porexemplo,najustificativadainclusãodoromanceSerõesdeumtropeiro,de
JoséBernardinodosSantos,vistoqueomaioméritoneleapontadoconsistinofatodeser
a primeira narrativa a focalizar a região Nordeste do Estado, que até 1874 era
desconhecidaemseusaspectosmaiscaracterísticos.Omesmomotivoembasaaescolha
donomedeJoãoMendesSilvaque,sobopseudônimodeHeráclito,escreveuÍndiario-
grandense,aprimeiraobraquedirigeumolharàstribosindígenasdoSul.Aindaquenão
seja esse oúnico critério,e a escolhadeumautore/ou obra comodignodeintegraro
cânoneliteráriosulinonemsempreobedeçaaumaúnicajustificativa,oromanceAdivina
pastoratemreconhecidoseupioneirismo,uma vezqueantecedea produçãoromanesca
maisexpressivadeJosédeAlencar,sendo,portanto,injustaasuanãoinclusãocomoum
dosprecursoresdogêneronoBrasil,nashistóriasdaliteraturabrasileira.

Percebe-sequeoutrosnomessãocanonizadosaliandoocritériodopioneirismoàs
consideraçõeshistóricas,comonocasodapoetizaDelfinaBenignadaCunhaedacontista
AnaEurídiceEufrosinadeBarandasque,vinculadasaumcontextosocialconturbado,o
apontadascomoasprimeirasescritorasgaúchasaalcançaralgumdestaquepelosméritos
de sua expressão literária. Quanto às autoras, cabe ressaltar que Guilhermino Cesar as
elegenãopelasuacondiçãofeminina,maspelovalore/oupelarepercussãoatingidapor
174
sua produção, ressalva que se justifica tendo em vista o contexto maior da escrita de
históriasdaliteratura,emqueéraraapresençademulherescomointegrantesdecânones
literários.
Wendell Harris afirma que uma das funções dos cânones seria criar pontos de
historização,proporcionandoummelhorentendimentosobreomomento“vivido”pordada
literatura em um contexto sociocultural particular, o que tornaria possível observar a
seleçãodeescritoresquesimbolizamaliteraturadedeterminadaépocacomointuitode
delinearasprincipaisfeiçõesestéticase/outemáticasquecaracterizaramasletrasdaquele
tempo
68
.
Combasenesseraciocínio,podemosavaliar,porexemplo,queasconsideraçõesde
GuilherminoCesarsobreaobradosrepresentantesdaprosanaturalistasul-rio-grandense
(umcânonereduzidoformadoporFranciscodePaulaPires,PauloMarques,PedroOsório,
alémdeSousaLobo,MárioMottaePaulinodeAzurenha,ostrêsescritoresdeEstricnina)
apresentamanarrativadasduasúltimasdécadasdoséculoXIXcomocaracterizadapela
exploraçãodasperspectivascientificistasemvoga,estiloqueseguedepertooNaturalismo
de Émile Zola. Ao aplicar a mesma perspectiva à lírica daquele período, podemos
diagnosticar que, após uma primeira etapa em que se sobressai a chamada poesia
científica”,praticadaporDamascenoVieiraecompreendidacomoumestágioprecedente
aoParnasianismo,ospoetasgaúchostenderamàcomposiçãodeversosseguindoumalinha
maispróximaaosgrandesnomesfranceses,comoéocasodeFontouraXavier,oumesmo
umaposturamaispróximaàquelapraticadanocentrodoPaís,comoéocasodaprodução
deAquilesPortoAlegreedopróprioDamascenoVieira,emumafasemaismadura.
Harrisindica,ainda,queumadasprincipaisdiscussõesenvolvendooprocessode
constituiçãodeumcânonegiraemtornodeseponderaremquemedidaatradiçãoliterária,
sustentada pela reiteração constante de autores a obras, norteia o pensamento de um
escritor na construção de uma história da literatura. Se investigarmos essa questão no
âmbitoregional,contrapondoaseleçãodeGuilherminoàquelareveladaporJoãoPintoda
Silva, perceberemos que a pesquisa de 1956 não se limita a reproduzir o none
anteriormenteconcebido,masacabaconcebendoumaseleçãomuitomaisampladetextos
 
68
Vera esserespeito:HARRIS,WendellV. Lacanonicidad. In:SULLÀ,Enric(org).Elcanonliterário.
Madrid:Arco,1998.p.37-60.
175
eescritoresque,nasuaótica,seriamdignosderepresentaropatrimônioliterárioecultural
doRioGrande
69
.
Tal alargamento pode ser explicado como um fenômeno que decorre da postura
“arqueológica” adotada pelo historiador, disposto a pesquisar detidamente as principais
bibliotecas do Estado, incluindo as particulares, em busca de material literário,
metodologia que resultou também na presença de inúmeras notas biobibliográficas que,
segundo o autor, o foram escritas sem que antes se verificasse a veracidade das
informações.
Em suma, verificamos que o exame detalhado da História da literatura do Rio
Grande do Sul revela que Guilhermino Cesar conduz a elaboração de sua pesquisa em
conformidade com grande parte dos posicionamentos técnicos analisados por essa
dissertação,discussõesessasque,atualmente,embasamaTeoriadaHistóriadaLiteratura.
Nesse sentido,podemosressaltar, porexemplo, osritos dopesquisador em admitira
condição de que seu trabalho historiográfico-literário é, antes de tudo, uma construção
teoricamente orientada, que busca organizar discursivamente uma cadeia de
acontecimentos ligados à vida literária do Rio Grande do Sul, analisada tanto pela
perspectiva das transformações no plano intraliterário, quanto pelas correlações com a
culturagaúcha.
Do mesmo modo, ressalta-se o mérito do autor em apresentar de forma clara e
coerente a definição das bases teóricas e metodológicas que sustentam sua escrita
historiográfica–dadaarelativapobrezaestéticadaliteraturabrasileira,(...),pareceu-me
que o método histórico literário seria inicialmente o preferível, para não dizer: o mais
adequadoàsnossaslimitações,eaté,sequiserem,omaisconstrutivo.”(p.15)–,aforma
eficaz como atinge seu objetivo inicial de examinar as interrelações entre o sistema
literáriolocaleo“complexoculturalsul-rio-grandense”,bemcomoadestrezacomquese
utilizadaleituracríticacomoauxílioparaacomprovaçãodasprincipaistesesdefendidas.
Cabereconhecerque,emboranãotenhamosdedicadomaioratençãoaoscapítulos
quetratamdasproduçõesintelectuaisque,atualmente,nãointegram,emsentidoestrito,a
categoria de “literatura”, como estudos de filologia e ciências naturais (capítulo V: A
caminhodohumanismoedaciência”),textosdeoratóriareligiosaepolítica(capítuloXIX:
 
69
Caberessaltarqueestamosconsiderandocomocânoneliteráriorio-grandensesomentetextoseautoresque
mereceramalgumaatençãoanalíticadohistoriador, oque, portanto,desconsideraasinúmeraslistagensde
escritoreseobrasqueintegramaHistóriadaliteraturadoRioGrandedoSul.
176
“A oratória, o jornalismo a sátira política”), obras sobre a formação, a geografia, e
acontecimentos históricos da Província (capítulo VI: Os primeiros cronistas e
historiadores” e capítulo XVIII: “A historiografia, após a guerra do Paraguai”) –,
compreendemosqueessesestudosintegramumaparteimportantedaobradeGuilhermino
Cesar, uma vez que sua apreciação possibilita o entendimento de questões relativas a
momentos intelectuaisque, de alguma forma,compõem o panorama de cultura singular
apresentadopelohistoriador.
UmavezqueSiegfriedSchmidtregistraquecompreendermoshistóriasdaliteratura
como material historizável – Devemos historizar o trabalho e os resultados dos
historiadores literários tal como aprendemos a historizar o trabalho e os resultados dos
cientistas nos últimos dez ou vinte anos” (SCHMIDT, 1996, p. 108)– seria o primeiro
passoparaseresponderquestõescomoaslevantadasporW.Beutin–“Porqueeparaquê
maisumahistóriadaliteratura?Nãochegamasjáexistentes?Paraquemfoiescrita,seé
queépossívelconceberumahistórialiteráriadirigidaaleitoresespecíficos?Oqueéquea
distinguedeoutrasequaissãoassuaspretensões?”(BEUTIN,1986,p.111)–,esperamos
que as muitas questões levantadas e analisadas por essa dissertação possam, de alguma
forma, contribuir para um melhor entendimento do processo de escrita da História da
literatura do Rio Grande do Sul, de Guilhermino Cesar, que é, sem dúvida, fonte
incontornávelparaaquelesquesededicamaoestudodaliteraturasul-rio-grandense.
177
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