Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA E LITERATURA
ITALIANA
ALINE GREFF BUAES
Protegido pelas contradições -
Coletânea de crônicas jornalísticas de Pier Paolo Pasolini
(1960 a 1965)
São Paulo
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA E LITERATURA
ITALIANA
Protegido pelas contradições –
Coletânea de crônicas jornalísticas de Pier Paolo Pasolini
(1960 a 1965)
Aline Greff Buaes
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Língua e Literatura
Italiana do Departamento de Letras
Modernas da Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, para a
obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientador: Prof. Maurício Santana Dias
São Paulo
2009
41
ads:
RESUMO
BUAES, Aline Greff. Protegido pelas contradições - Coletânea de crônicas jornalísticas
de Pier Paolo Pasolini (1960 a 1965). 2009. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
Este trabalho apresenta a tradução comentada da língua italiana para o português de uma
seleção das crônicas publicadas pelo escritor e cineasta italiano Pier Paolo Pasolini em sua
coluna semanal na revista Vie Nuove, órgão oficial do Partido Comunista Italiano, entre os
anos de 1960 e 1965. As crônicas foram divididas em três blocos temáticos: Literatura,
Cultura e Política e Sociedade. Uma introdução ensaística acompanha a tradução comentada.
Palavras-chave: Pier Paolo Pasolini (1922-1975); Literatura Italiana - século XX; Crônicas
jornalísticas; Crítica e Interpretação; Tradução
42
ABSTRACT
BUAES, Aline Greff. Protected by contradictions - A selection of journalistic chronicles
of Pier Paolo Pasolini (1960 to 1965). 2009. Dissertation (Master) – Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
This thesis presents a commented translation from Italian to Portuguese language of a
selection of chronicles published by the Italian writer and filmmaker Pier Paolo Pasolini on
the weekly magazine Vie Nuove, official media of the Italian Communist Party (PCI),
between 1960 and 1965. The chronicles are divided into three thematic groups: Literature,
Culture and Politic and Society. An essayist introduction opens the commented translation.
Keywords: Pier Paolo Pasolini; Italian Literature - twentieth century; Journalistic Chronicles;
Criticism and Interpretation; Translation
43
ABSTRACT
BUAES, Aline Greff. Protetto da contraddizioni - Una selezione di cronache
giornalistiche di Pier Paolo Pasolini (1960 a 1965). 2009. Tesi (Master) - Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
Questa tesi presenta una traduzione commentata dal’italiano verso il portoghese di una
selezione di cronache pubblicate dallo scrittore e regista italiano Pier Paolo Pasolini sulla
rivista settimanale Vie Nuove, veicolo ufficiali del Partito Comunista Italiano (PCI), tra il
1960 e il 1965. Le cronache sono suddivise in tre gruppi tematici: Letteratura, Cultura e
Politica e Società. Un saggio d’introduzione accompagna la traduzione commentata.
Parole chiave: Pier Paolo Pasolini (1922-1975); Letteratura italiana - secolo XX; Cronache
Giornalistiche; Critica e Interpretazione; Traduzione
44
LISTA DE IMAGENS
(Entre as páginas 91 e 98)
Figura 1: Dialoghi con Pasolini. Vie Nuove, Roma, 04 jun. 1960.
Figura 2: Dialoghi con Pasolini. Vie Nuove, Roma, 30 jul. 1960.
Figura 3: Dialoghi con Pasolini. Vie Nuove, Roma, 27 dez. 1962.
Figura 4: Dialoghi con Pasolini. Vie Nuove, Roma, 10 dez. 1964.
Figura 5: Denunciato per tentata rapina Pier Paolo Pasolini ai danni dell’addetto a un distributore di benzina.
Il Tempo, Roma, 30 nov. 1961.
Figura 6: Per lapidare Pasolini soffocano la logica. Paese Sera, Roma, 02 dez. 1961.
Figura 7: LUSINI, Arturo. Il ragazzo di vita l’ha fatta troppo grossa. Gente, Roma, 15 jul. 1960.
Figura 8: I guai di P.P. Pasolini ricominceranno domani – Lo ha dichiarato lui stesso al momento di partire per
Parigi dove assisterà alla gala del film “Accattone”. Tempo, Roma, 08 dez. 1961.
Figura 9: Ancora il sottoproletariato in “Mamma Roma” di Pasolini. (periódico não identificado), ago. 1962.
Figura 10: È uscito ora il primo romanzo che Pasolini scrisse 12 anni fa. La Stampa, Torino, 30 mai. 1962.
Figura 11: ADELFI, Nicola. Le penne milionarie. Epoca, Milano, 10 jun. 1962.
Figura 12: Pasolini condannato per minaccia a mano armata. Corriere della Sera, Milano, 04 jul. 1962.
Figura 13: DELFINI, Mirella. Ecco Pasolini, il ricco “maledetto”. Tempo, Roma, set. 1962.
Figuras 14 e 15: Schiaffoni per Pasolini. Lo Specchio, Milano, 30 set. 1962.
Figura 16: Il Vangelo e la Rosa. Tempo Illustrato, Napoli, 14 dez. 1964.
Figura 17: Pasolini: “Ho dedicato il mio film al caro ricordo di Papa Giovanni”. Gazzeta del Popolo, Torino,
05 set. 1964.
Figura 18: Una rosa di fuoco, d’odio e di violenza. Paese Sera, Roma, 26 jun. 1964.
Figura 19: FORTI, Marco. Poesia in forma di rosa. Corriere della Sera, Milano, 14 jun. 1964.
Figura 20: MACCIOCCHI, M. A. Cristo e il marxismo – Dialogo Pasolini-Sartre sul Vangelo. L’Unità, Roma,
22 dez. 1964.
Figura 21: MARAINI, Dacia. Moravia il viaggiatore. Corriere della Sera, Milano, 02 set. 1993. Supplemento
Sette.
45
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Maurício Santana Dias pelo apoio e encorajamento desde o início deste projeto;
À Prof. Dra. Lucia Wataghin pela co-orientação e disponibilidade;
À todos os colegas e professores do Programa de Língua e Literatura Italiana que, em algum
momento e de alguma maneira, me auxiliaram e orientaram neste projeto;
À todos os amigos e familiares que também me ajudaram e orientaram em momentos
diversos;
À Roberto Chiesi e demais membros da equipe do Centro Studi – Archivio Pier Paolo
Pasolini pelo apoio e orientação no breve período de pesquisas lá realizado;
À equipe do Centro Studi Pier Paolo Pasolini di Casarsa della Delizia pela atenção dispensada
e pelo encorajamento na realização deste projeto;
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) pelo apoio financeiro
entre 2008 e 2009.
46
SUMÁRIO
Introdução......................................................................................................... 10
1 - A gramática combativa de Pasolini................................................................11
O “fenômeno” Pasolini
Vida e obra
As décadas do Pós-guerra na Itália
Os diálogos com Pasolini
A gramática combativa
2 - Nota sobre a tradução....................................................................................37
Protegido pelas contradições -
Coletânea de crônicas jornalísticas de Pier Paolo Pasolini
(1960 a 1965)....................................................................................................40
Apresentação
1 – Literatura.......................................................................................................43
O dialeto na literatura italiana
Pasternak e a irracionalidade
Um sistema para estudar
Realismo e Neopurismo
Um monumento para D’Annunzio
O lançamento de Ulisses na Itália
Paixão e Ideologia
Indiferentismo Católico
Accattone e Tommasino
Dannunzianos de pantufas
Dostoiévski e Victor Hugo
A aventura de cada um
Descoberta de Tommasino
O intelectual engajado
A língua tecnológica
As razões de um não amor
Anexo Imagens...................................................................................................91
2 – Cultura........................................................................................................98
Vida mundana
O fascismo e o massacre em Ferrara em dezembro de 1943
47
Brigitte Bardot e os excessos da imprensa sensacionalista
Luz de julho
Moravia e Antonioni
Onde está a “obscenidade”?
As cartas pessoais
A era da alienação
Como um pesadelo de infância
Fascistas: pais e filhos
Os anos da raiva
O filme e a crítica
“... uma força do Passado...”
Antes de partir
“As belas bandeiras”
Poesia em forma de polêmica
Viagem ao Marrocos
3 - Política e Sociedade.................................................................................152
Roma e os seus "não-residentes"
Desempregados em Nápoles
Convite para a Calábria
A vida dos mineiros
A vigente injustiça
Bandung, capital de meia Itália
A barbárie do racismo
A navegação para Cuba
Depois de um ano
O “Evangelho” e o diálogo
Expressividade contra instrumentalidade
Pessimismo de esquerda
Cultura “pós-engajamento”
Mais uma despedida
Índice referencial...............................................................................................202
Referências Bibliográficas.................................................................................204
48
INTRODUÇÃO
49
1 – A GRAMÁTICA COMBATIVA DE PASOLINI
“Definitivamente, estou protegido pelas minhas contradições. E é por elas que está garantida
a minha democraticidade! E vocês não poderão nunca debater as questões que me interessam
como se eu fosse uma autoridade, exatamente pela presença das minhas contradições
escandalosas, e pelas quais, primeiro, eu fico em uma situação embaraçosa.”
Vie Nuove, 15 de outubro de 1964
Esta frase de Pier Paolo Pasolini, publicada em uma das suas crônicas reunidas neste
trabalho, nos mostra a faceta intensamente contraditória do autor. “Protegido pelas minhas
contradições” foi a maneira que Pasolini encontrou para demonstrar aos seus leitores como ele
não era, e nem pretendia ser, uma autoridade. Foi uma maneira contraditória de se colocar
lado a lado com seus leitores, visando evitar mitificações, pois naqueles anos ele começava a
se tornar um cineasta de sucesso mundial, um escritor consagrado na Itália, enfim, uma
personalidade pública. Este era o Pasolini das contradições dos anos 60 que transparece nas
crônicas reunidas neste trabalho: um personagem público do meio literário e cinematográfico,
um intelectual engajado que “dialogava” com os jovens militantes comunistas através de uma
coluna em uma revista semanal.
Contradições que ele enxergava em si mesmo, mas também à sua volta, na sociedade,
na política, na literatura e na cultura. Contradições que ele enxergaria cada vez mais com o
passar dos anos e o levariam a se tornar uma das principais vozes críticas da situação política
da Itália nos anos 70. Contradições que o tornaram uma referência até hoje na Itália quando se
fala em denúncia política e retrato da sociedade, seja através da literatura, do cinema ou da
imprensa. Pasolini é constantemente relembrado em manifestações artísticas e culturais,
citado por cineastas, escritores, políticos, jornalistas, suas obras são constantemente
revisitadas e objeto de reelaborações. Um dos exemplos mais recentes e mais representativos
está no best-seller italiano Gomorra, do jornalista Roberto Saviano
1
. O livro, fenômeno de
vendas no mundo inteiro, é um romance-reportagem de denúncia contra as atividades da
máfia napolitana, conhecida como Camorra, e suas ramificações na economia globalizada.
Saviano, em um trecho do livro, ao denunciar as atrocidades cometidas pela máfia no setor da
construção civil italiana, se inspira explicitamente em Pasolini, parafraseando o polêmico
artigo publicado em novembro de 1974 no jornal Corriere della Sera conhecido como Io so,
1
SAVIANO. R. Gomorra. Tradução Elaine Niccolai. São Paulo: Bertrand Brasil, 2008.
50
no qual o escritor denunciava por sua vez os crimes do governo italiano, e culpava a classe
política e os jornalistas por encobrirem estes crimes. Saviano vai além em sua lembrança e
afirma também que o túmulo de Pasolini, no cemitério de Casarsa delle Delizie, no norte da
Itália, é o único lugar onde ainda é possível “refletir sem vergonha” sobreos mecanismos do
poder”. A lembrança de Saviano demonstra de que maneira Pasolini permanece na memória
coletiva italiana: como um crítico “corsário” da sociedade.
O “FENÔMENO” PASOLINI
Pier Paolo Pasolini (1922-1975) teve uma extensa e complexa trajetória como poeta,
escritor, crítico de arte e de literatura, cineasta e teatrólogo entre o final da década de 40 e
1975, ano do seu brutal assassinato em uma praia de Roma aos 53 anos de idade.
No Brasil, é reconhecido principalmente pela sua obra cinematográfica, que reúne
títulos como Teorema (1968), Evangelho segundo São Mateus (1964) e a famosa Trilogia da
Vida, com os filmes Decameron (1971), Os Contos de Canterbury (1972) e As mil e uma
noites (1973), apesar de ser considerado um dos maiores poetas e romancistas italianos do
século XX, com uma vasta obra acima de tudo polêmica e politicamente engajada.
A maioria do público brasileiro pouco conhece acerca da produção de Pasolini
enquanto crítico e jornalista engajado, mesmo com as principais coletâneas que reúnem esta
produção terem sido lançadas no Brasil, como por exemplo os volumes Os Jovens
Infelizes: Antologia de Ensaios Corsários
2
e O Caos – Crônicas Políticas
3
.
Suas polêmicas crônicas jornalísticas são responsáveis, como reitera Michel Lahud,
um dos principais estudiosos de Pasolini no Brasil, na introdução à antologia Os Jovens
Infelizes, pela “celebridade do personagem na Itália”. Celebridade que impressiona pela força
com que permanece até hoje, mais de três décadas após sua trágica morte, não apenas no seu
país natal, mas no mundo inteiro.
Para Alfonso Berardinelli, “Pasolini se tornou uma passagem obrigatória da
imaginação cultural italiana”, e não devido a um ou outro livro, “mas pelo conjunto da sua
atividade em contínua transformação”. “As metáforas com as quais Pasolini sustentava suas
acusações contra a classe política e contra o desenvolvimento se tornaram proverbiais”
4
,
2
PASOLINI, P. P. Os Jovens Infelizes: Antologia de Ensaios Corsários. Org. Michel Lahud. Trad. Michel
Lahud e Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Brasiliense, 1990.
3
PASOLINI. O Caos – Crônicas Políticas. Trad. Carlos Nelson Coutinho. São Paulo, Brasiliense, 1982.
4
BERARDINELLI, A. Tra il libro e la vita: situazioni della letteratura contemporanea. Torino: Bollati
Boringhieri, 1990, p. 153.
51
afirma o crítico, em referência aos seus textos jornalísticos da década de 70, período em ficou
conhecido como “crítico corsário”.
Pasolini foi acima de tudo um crítico, um crítico radical da sociedade em que viveu,
uma Itália que reagiu e se reergueu heroicamente após os sofrimentos da II Guerra Mundial e
dos tempos do fascismo do ditador Benito Mussolini, mas que assistiu passivamente as
gerações posteriores cederem aos imperativos do capitalismo e à corrupção associada a este
sistema então nascente, como bem definiu o cineasta Mario Monicelli em uma entrevista
publicada recentemente
5
.
Nos últimos anos de vida, utilizou seus espaços na grande imprensa italiana para
problematizar e polemizar a situação política, social e cultural do seu país, mas o fez de modo
tão forte que acabou se isolando em relação a seus contemporâneos, pela acidez das suas
críticas, como no exemplo citado por Saviano, de modo que a sua morte até hoje ainda não foi
completamente esclarecida pela justiça, sendo constantemente associada a crime político.
Toda a obra de Pasolini, desde as primeiras poesias em dialeto passando por seus
romances romanos, suas críticas literárias, suas crônicas jornalísticas, culminando com sua
obra cinematográfica, sempre foi marcada pelo engajamento social e pela vontade de agir
sobre a realidade em que vivia. Pasolini foi um intelectual que lutou contra as formas de poder
das quais ele mesmo foi objeto e instrumento, como a imprensa e a indústria de massa. Um
artista que se utilizou das mais diversas artes para pensar criticamente o mundo e intervir
criticamente na realidade. E não poderia ter sido diferente com sua primeira colaboração fixa
para um veículo de imprensa. Colaboração apresentada nesta coletânea na forma de uma
tradução comentada das crônicas jornalísticas publicadas por Pasolini na revista Vie Nuove
entre 1960 e 1965, reunidas postumamente no volume Le belle bandiere
6
.
VIDA E OBRA
7
Pasolini nasceu na cidade italiana de Bolonha em 1922, filho de um militar
nacionalista e de uma professora primária, ambos provenientes de famílias tradicionais.
Durante sua infância viveu em diversas cidades do norte da Itália devido à profissão do pai.
No entanto, desde muito cedo a cidade de Casarsa, no Friuli, terra natal da sua mãe e onde a
família passava as férias de verão, era uma referência para Pier Paolo. A paixão pela
5
AJELLO. Nello. Mondo Monicelli. L’Espresso, Roma, n. 19, ano LV, 14 de maio de 2009, p. 112.
6
PASOLINI, P.P. Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Org. G.C. Ferretti. Roma: Riuniti, 1977.
7
NALDINI, N. (Org.) Cronologia. In: PASOLINI, P.P. Saggi sulla politica e sulla società. Org. W. Siti e S. De
Laude. 4 ed. Milano: Mondadori, 2006, p. XLVIII-CVIII.
52
literatura se acentua com o início da adolescência e aos 17 anos começa a faculdade de Letras
na Universidade de Bolonha, cidade onde viveu por sete anos no total e onde nasceram muitas
das suas paixões culturais, como o cinema e o futebol.
Aos 20 anos publica seu primeiro volume de poesias, Poesie a Casarsa (1942), fruto
de experiências poéticas junto a um grupo de colegas da faculdade. O livro chamou a atenção
de alguns críticos renomados, como Gianfranco Contini, especialmente pelos trechos onde
Pasolini inseriu fragmentos de diálogo em friulano, o dialeto falado entre os camponeses de
Casarsa. Neste mesmo ano participa como chefe de redação das primeiras edições de uma
revista cultural em Bolonha, Il Setaccio, experiência que o levou a rejeitar a ideologia fascista,
que a publicação era ligada a órgãos oficiais do então vigente regime de Mussolini. Em
1943, devido aos bombardeios que assolavam Bolonha, Pasolini e sua família se mudam
definitivamente para Casarsa, onde permanecerão até 1949. Neste período desenvolve
algumas experiências didáticas em escolas locais fundamentais para sua formação intelectual,
principalmente durante os anos da guerra, quando ensinava para as crianças e adolescentes
que não podiam se deslocar para as escolas nas cidades vizinhas. Também nestes anos começa
a escrever poesias, prosas e ensaios inspirados na vida e na língua camponesa do Friuli, textos
que formarão o conteúdo de obras publicadas posteriormente como as coletâneas poéticas
L’usignolo della Chiesa cattolica (1958) e La meglio gioventù (1954), e as narrativas I Turcs
tal Friul (1976), que recorda a última invasão turca na região em 1499, Amado Mio e Atti
impuri (1982) e Il sogno di una cosa (1962). Também participa como fundador junto a outros
jovens intelectuais da Academiuta di lenga furlana, agremiação cultural sediada na sua
própria casa destinada a promover a língua friulana. Nestes anos também começa a militar
pelo Partido Comunista Italiano e participa de movimentos em defesa da autonomia regional
do Friuli. Em outubro de 1949, famoso na região como intelectual, poeta e secretário da
seção do PCI em Casarsa, é acusado de corrupção de menores, expulso do partido e demitido
da escola. Em janeiro de 1950 decide se mudar para Roma acompanhado da sua mãe.
O trauma da mudança leva Pasolini em busca de novos caminhos. Será em Roma que
começará a construir sua carreira propriamente dita de escritor e cineasta, onde fará amizades
nos círculos literários e culturais que lhe permitirão realizar os primeiros trabalhos
profissionais. em 1951, a partir dos primeiros contatos com as periferias da capital italiana,
onde mora e trabalha como professor, publica o conto Il Ferrobedò, que constituirá o primeiro
capítulo do seu primeiro romance, Ragazzi di vita (1955)
8
. Também nestes anos começa a
8
Edição brasileira: Meninos da Vida. Trad. de Rosa Artini Petraitis e Luiz Nazário. São Paulo, Brasiliense,
1985.
53
escrever outros contos romanos, que serão depois reunidos em Ali dagli occhi azzurri (1965)
9
,
e poesias que formarão o corpo de Roma 1950 – Diário (1960). Trabalha em diversos projetos
editoriais, como Antologia della poesia dialettale del Novecento (1952) e Canzoniere italiano
(1955). Em 1955, enquanto a publicação de Ragazzi di vita lhe trazia reconhecimento público
como escritor, Pasolini participa do surgimento da revista Officina (1955-1959), publicação
que se tornou local privilegiado de debates críticos sobre cultura e literatura na Itália. Em
1956 começa a se consolidar como roteirista de cinema e colabora, entre outros, com Federico
Fellini no filme As noites de Cabiria (1957). A grande crise política e ideológica deste ano,
marcada pelos problemas do Partido Comunista soviético, inspiraram os livros Le ceneri di
Gramsci (1957) e Una vita violenta (1959), dois grandes sucessos editoriais.
A década de 1960 começa agitada profissionalmente para Pasolini, que além de
finalizar a edição do livro de ensaios Passione e ideologia (1960) e a coletânea de versos La
religione del mio tempo (1961), trabalha em diversos roteiros cinematográficos, inclusive no
seu primeiro filme, Accattone (1961), também assume a coluna semanal de “diálogo” com os
leitores na revista Vie Nuove. Aos poucos Pasolini vai se tornando um “personagem público”
na Itália, principalmente após o lançamento do seu primeiro filme no Festival de Veneza e
com o início das filmagens do seu segundo filme, Mamma Roma (1962), para o qual convida
para protagonista a atriz mais célebre do neo-realismo italiano, Anna Magnani. O trabalho
com cinema começa aos poucos a dominar a produção de Pasolini, que em 1962 filma o curta-
metragem La ricotta (1963), um episódio do filme Rogopag Relações humanas, que reúne
também Roberto Rossellini, Jean-Luc Godard e Ugo Gregoretti, em 1963 prepara o
documentário de montagem La rabbia e começa a produzir O Evangelho segundo São
Mateus (1964), filme que lançará Pasolini ao sucesso mundial. Paralelamente, também
escreve seu quarto livro de poesias, Poesia in forma di rosa (1964), e em outubro de 1964 seu
ensaio Nuove questioni linguistiche será publicado na revista Rinascita e provocará um debate
polêmico que se prolongará por diversos meses.
De 1965 em diante, Pasolini segue um rumo mais radical no âmbito da sua carreira,
devido às frequentes e polêmicas intervenções críticas, divulgadas através de ensaios ou
artigos publicados nos mais diversos veículos editoriais. Também passou a se dedicar quase
exclusivamente ao cinema, eleito por ele como forma linguística perfeita. Remontam a estes
anos os primeiros ensaios de teoria e técnica cinematográfica que serão posteriormente
reunidos no volume Empirismo eretico (1972).
9
Edição brasileira: Alì dos olhos azuis. Trad. de Andréia Guerini, Bruno Berlendis de Carvalho, Maria Cristina
Pompa e Renata Lúcia Bottini. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2006.
54
Em 1966, com o filme Gaviões e passarinhos, com o comediante Totó atuando pela
primeira vez em um filme politicamente engajado, Pasolini inicia uma nova fase do seu
cinema, com filmes nos quais pretendia declaradamente evitar o “consumo cil das massas
manipuladas da nova sociedade neocapitalista” que se instalava na Itália naqueles anos. Entre
estes filmes se incluem Édipo rei (1967), Teorema (1968), Pocilga (1968) e Medeia (1969).
Em 1968, em meio às grandes manifestações estudantis daqueles anos, uma poesia de
Pasolini, intitulada Il P.C.I. ai giovani!, destinada originalmente à revista de crítica Nuovi
Argomenti, acaba sendo publicada na revista semanal L’Espresso, provocando uma polêmica
nacional entre Pasolini e os estudantes que duraria anos. Em agosto deste mesmo ano, inicia
sua colaboração à revista semanal Tempo, em uma coluna intitulada Il caos, que durará até
janeiro de 1970, e onde aprofundaria estas polêmicas com os estudantes. Os artigos
publicados neste período foram reunidos posteriormente no volume Caos (1979)
10
.
Uma nova fase do cinema de Pasolini se abre com Decameron (1971), primeiro filme
da chamada Trilogia da Vida, onde o autor retoma seu estilo narrativo acrescido de um
aspecto cômico. O filme obtém sucesso clamoroso a nível mundial, que se repetiu com as
outras duas obras da trilogia: Os contos de Canterbury (1972) e As mil e uma noites (1973).
Seu último livro de poesias, Trasumanar e organizzar (1971), é recebido com
indiferença pela crítica, enquanto Pasolini inicia uma nova colaboração de resenhas literárias
para a revista semanal Tempo illustrato, que serão reunidas postumamente no volume
Descrizioni di descrizioni (1979).
Em janeiro de 1973 aceita colaborar com o jornal Corriere della Sera, dando início a
uma série de artigos sobre política, costumes e comportamentos públicos e privados, que
serão posteriormente reunidos pelo próprio Pasolini no volume Scritti corsari (1975)
11
. Entre
eles o artigo Gli italiani non sono più quelli, escrito logo após o referendo público que
aprovou a lei do divórcio na Itália, onde reiterava a perda de raízes provocada pelo
consumismo, a qual chamava de “revolução antropológica”. Ou também o artigo Sono contro
l’aborto, publicado em meio ao referendo que aprovou a legalização do aborto no país e que
provocou novas e inevitáveis polêmicas. Em junho de 1975, Pasolini também passa a publicar
artigos na revista semanal Il Mondo, os quais serão reunidos no volume Lettere luterane
(1976)
12
. Seu último filme, Salò, os 120 dias de Sodoma (1975), no qual trabalhou
intensamente durante todo o ano de 1975 e que foi lançado postumamente, é livremente
10
Cf. nota 3.
11
Cf. nota 2.
12
Idem.
55
inspirado no romance do marquês de Sade.
Em novembro de 1975, em um local nos arredores de Roma onde haviam sido
filmadas cenas alegres e sensuais do filme As mil e uma noites, Pasolini foi assassinado por
um garoto de periferia de 17 anos em um crime misterioso e até hoje não completamente
esclarecido pela Justiça italiana.
AS DÉCADAS DO PÓS-GUERRA NA ITÁLIA
Como nos alerta um dos maiores interlocutores de Pasolini, o escritor e crítico literário
Franco Fortini, a vida e a obra de Pasolini tornam-se incompreensíveis se as fases da sua
produção não forem relacionadas com os eventos públicos e políticos” da sua época
13
. Deste
modo, ao realizar esta releitura de Pasolini, é preciso manter a consciência sobre o momento
histórico que ele estava atravessando e enxergar suas ideias com este distanciamento de mais
de 40 anos.
Fortini, grande amigo de Pasolini durante muitos anos, também soube definir como
poucos os sentimentos que dominavam os escritores italianos neste período de grande
engajamento social na cultura italiana em uma frase publicada em 1993 na introdução ao seu
livro Attraverso Pasolini:
Não éramos nem loucos nem fanáticos. Éramos, a pouco mais de dez anos do final
da II Guerra Mundial, no coração do século, ainda ricos de algo que escreveu
Pasolini nos fazia chorar assistindo ‘Roma Città Aperta’
14
. As lágrimas não são
realmente um bom critério para julgar. Mas gostaria de saber o que possa hoje
fazer chorar um homem de trinta anos, que era então a idade de Pasolini.
15
Com o final da II Guerra Mundial, a Itália viveu intensamente um debate ideológico
dominado pelo sentimento antifascista, que levou a um movimento de renovação cultural que
exaltava a função social e o conteúdo popular das obras artísticas
16
. Nos anos seguintes a
1945, os intelectuais europeus, principalmente na França e na Itália, se envolveram nesse
processo de reconstrução moral do continente, empenhados em produzir obras culturais de
cunho social, em um processo artístico socialmente engajado.
O historiador inglês Eric Hobsbawm, em seu estudo sobre o século XX, identifica que
13
FORTINI, F. Attraverso Pasolini. Torino, Einaudi, 1993, p.192.
14
“ROMA, CIDADE ABERTA” (1945). Direção: Roberto Rossellini. Roteiro: Federico Fellini e Sergio
Amidei. Itália, 105 minutos. Este filme é considerado um símbolo do neorealismo no cinema italiano por ter
utilizado como cenário as ruas destruídas de Roma logo após o final da II Guerra Mundial e com atores
amadores, em um estilo semidocumental que marcaria o gênero.
15
Fortini, op. cit., p. X.
16
ASOR ROSA, A. Scrittori e popolo. Roma: Savelli, 1976, p. 154.
56
“a vida pública italiana foi transformada, após vinte anos de um fascismo que desfrutara de
considerável apoio até mesmo entre intelectuais, pela mobilização impressionante e
generalizada da Resistência em 1943-45”
17
, incluindo uma resistência armada que mobilizou
milhares de partigiani entre os cidadãos italianos.
Especialmente na Itália, Hobsbawm afirma que, como produto do movimento da
Resistência, ocorreu um domínio da cultura nos anos pós-guerra pelos intelectuais ligados ao
Partido Comunista, o qual apresentou um crescimento surpreendente, transformando-se em
menos de dois anos de um pequeno agrupamento político em um partido com mais de dois
milhões de filiados.
Pasolini, que em uma das crônicas publicadas neste trabalho se define “um escritor que
nasceu da Resistência e da grande, e de algum modo revolucionária, revisão operada pela
cultura italiana sobre si mesma nos anos seguintes à Resistência
18
, foi na sua juventude um
intelectual de esquerda, filiado ao Partido Comunista e militante marxista convicto, que
denunciava nas suas intervenções jornalísticas no Friuli as mesmas convicções que elaborava
de forma poética em seus trabalhos literários. Ou seja, naqueles anos, as reminiscências do
fascismo na sociedade pequeno-burguesa, a luta dos trabalhadores rurais friulanos, a
importância do dialeto, entre outros temas. Com o passar do tempo, Pasolini foi ampliando de
forma cada vez mais radical e pessimista estas suas críticas, que passaram a englobar outros
temas, como a existência de uma massa subproletária nas periferias das grandes cidades
italianas totalmente marginalizada do chamado “milagre econômico”, o avanço brutal do
neocapitalismo na sociedade tradicional italiana, o nascimento do neofascismo, e até mesmo
muitas críticas ao próprio Partido Comunista Italiano.
O crítico literário Gian Carlo Ferretti, organizador da coletânea Le belle bandiere,
salientava que o maior destaque do “Pasolini jornalista” era o fato de que suas ideias
mostravam posições “fortemente críticas e premonitórias, antecipatórias de discussões que
mais tarde dominariam os debates públicos, não apenas na Itália, mas em nível mundial”
19
.
Talvez seja justamente esta característica da sua produção intelectual um dos fatores
responsáveis pelo fato de a figura de Pasolini ser até hoje centro de muitos debates e
homenagens na Itália, constantemente recordado pela importância do conjunto da sua obra.
Por exemplo, a questão da pobreza nas periferias das grandes cidades italianas, tão
discutida e representada por Pasolini, nunca foi realmente resolvida, mesmo durante os anos
17
HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos. Trad. de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1994,
pp. 165-168.
18
Cf. As razões de um não amor.
19
FERRETTI, G. C. Introduzione. In: Pasolini, op. cit., 1977, p. 30.
57
do chamado “milagre econômico”, e hoje se intensificou e se relaciona diretamente com a
situação dos imigrantes que vivem na Itália, especialmente os provenientes de países
africanos.
O chamado “milagre econômico”, que ocorreu na Europa entre as décadas de 50 e 70,
transformou a Itália, em um período de pouco mais de 20 anos, de um país que era
substancialmente de emigrantes que partiam em busca de uma vida melhor para as Américas
em um país que se tornou destino, assim como outros países europeus, de muitos imigrantes
provenientes do mundo inteiro. As periferias de Roma, ou “borgate”, tão insistentemente
descritas por Pasolini, estão hoje tomadas por muitos imigrantes provenientes de países
pobres, principalmente do norte da África e do Leste Europeu, devido à proximidade
geográfica.
Se Pasolini estivesse vivo hoje, certamente estaria questionando a situação política e
social, talvez não apenas da Itália, mas também de outros países da Europa. O renascimento
dos partidos de extrema direita e sua ascensão ao poder em locais como a França e a própria
Itália, por exemplo, e o forte drama da imigração africana, que registra todos os anos milhares
de imigrantes clandestinos mortos em tentativas frustradas de travessia do Mar Mediterrâneo,
muito provavelmente estariam na pauta do dia do “Pasolini corsário”, como ficou conhecido
nos últimos anos de vida.
OS DIÁLOGOS COM PASOLINI
Entre os anos de 1960 e 1965, em meio a um dos períodos mais ricos da sua produção
artística, Pasolini manteve uma coluna semanal na revista Vie Nuove, órgão oficial do então
poderoso Partido Comunista Italiano, intitulada Dialoghi con Pasolini e dirigida basicamente
aos jovens leitores ligados ao partido. Além de ter sido sua primeira experiência como
colaborador fixo de um grande veículo de imprensa, a coluna tinha como objetivo ser um
canal mais amplo de diálogo com o público, funcionando como uma espécie de “tribuna
aberta que recebia perguntas dos leitores dirigidas ao poeta semanalmente”
20
.
Nestas crônicas jornalísticas, reunidas pela primeira vez em 1977 no volume póstumo
intitulado Le Belle Bandiere, Pasolini publicava suas respostas às cartas recebidas, onde, além
de discutir com os leitores os temas essenciais das suas principais obras literárias e
20
RINALDI, R. Pier Paolo Pasolini. Milano: Mursia, 1982, p.367.
58
cinematográficas daqueles anos, como o subproletariado italiano, as periferias de Roma e o
uso de dialetos, também apresenta suas visões sobre problemas propostos pelos leitores, como
o poder da mídia, a crise dos partidos comunistas e do marxismo em geral, as relações entre
Igreja Católica e marxistas, o desemprego e a pobreza do sul da Itália, entre outros. Aos
poucos, no decorrer dos cinco anos da coluna, também começará a constituir e demonstrar sua
visão crítica sobre a sociedade burguesa, sobre o que ele define como “neofascismo” e sua
influência sobre os jovens italianos, sobre a vitória do capitalismo na Itália contra uma
oposição comunista enfraquecida e submissa, uma visão polêmica que o acompanhará até o
final da vida. Conforme bem define o organizador desta coletânea, Gian Carlo Ferretti, nesta
época Pasolini já está definindo seu papel de “ativo polemista, testemunha e pedagogo dos
anos 70, das intervenções e artigos”
21
da fase conhecida como “corsária”.
Como os temas discutidos nestas crônicas seguem as cartas propostas pelos leitores
da revista, questões muito polêmicas e centrais para o debate político, social e cultural
daqueles anos na Itália e na Europa estão inseridas nos textos, como a crise dos mísseis de
Cuba e a ruptura entre União Soviética e China, a relação entre Europa e o Terceiro Mundo, o
desemprego, os filmes de Michelangelo Antonioni, a vida de Brigitte Bardot, entre outros.
Para o crítico literário Franco Brevini, os temas discutidos por Pasolini nestes diálogos “são
os grandes temas daqueles anos: a relação entre socialismo e cristianismo, as questões
linguísticas, a afirmação de um capitalismo mais agressivo e a crise do marxismo”
22
.
Ao realizar uma seleção destas crônicas, este trabalho também pode ser visto como
uma espécie de “radiografia” da Itália naqueles anos, explicitada através das cartas com
opiniões de leitores de diferentes faixas etárias, graus de formação e classes sociais e
provenientes das mais diversas regiões do país, assim como através das polêmicas respostas
de Pasolini, com suas opiniões, sempre fundamentadas em um forte posicionamento crítico,
sobre os mais diversos assuntos. Como reiterou Ferretti na sua introdução ao livro, estas
crônicas publicadas na revista Vie Nuove
além de fornecerem preciosas contribuições documentais, literárias e críticas sobre
esta época, oferecem uma descrição extremamente viva e interessante dos
acontecimentos e debates políticos e culturais contemporâneos, do modo como
foram vividos pelo próprio Pasolini e pelos seus interlocutores.
23
Ferreti também destaca que a variedade dos problemas discutidos nestes textos
21
Pasolini, 1979, p.16.
22
PASOLINI, P. P. Per conoscere Pasolini. Org. Franco Brevini. Milano: Mondadori, 1981, p.528.
23
Ferretti, op. cit., p. 7.
59
antecipa e ajuda a compreender a “enorme variedade de reações e interesses que se
desencadearão após a morte de Pasolini nos mais diversos extratos sociais, intelectuais e
políticos”
24
da Itália.
A importância dos textos aqui reunidos dentro da trajetória de Pasolini como
colaborador de jornais e revistas reside principalmente no fato de ser uma coletânea de artigos
escritos em uma fase considerada crucial e precursora da experiência do autor como
“jornalista-militante”. Experiência que Pasolini continuará a realizar cada vez mais
intensamente com o passar dos anos, tendo produzido crônicas jornalísticas extremamente
polêmicas e críticas que conquistaram seus leitores na Itália na década de 70, e que,
impressionantemente, até hoje, mais de 30 anos depois de sua morte, ainda reverberam no
discurso público e na memória coletiva italiana. É como se Pasolini permanecesse na
memória coletiva do público apenas como esta figura de destemido interventor, de jornalista
combativo”
25
, conforme definiu o crítico italiano Rinaldo Rinaldi, um grande estudioso de sua
obra.
A coluna fixa na revista Vie Nuove foi a primeira experiência profissional de Pasolini
em um meio jornalístico com grande número de leitores, “o primeiro exemplo de colaboração
contínua com um jornal, com a autoridade oficial de responsável por uma coluna”
26
.
A escolha pela tradução comentada se deve essencialmente para contextualizar estas
discussões levantadas por Pasolini e por seus jovens leitores. Certamente são mais
significativos os comentários referentes às questões internas da Itália, de difícil compreensão
até mesmo para um jovem leitor italiano de hoje, mas de grande interesse para um leitor
brasileiro contemporâneo. Pois, como afirmou Maria Betânia Amoroso na conclusão de seu
estudo sobre o autor, “ninguém melhor do que Pasolini para apresentar, a um leitor
estrangeiro, a cultura e a sociedade italiana na sua riqueza e complexidade”
27
.
Deste modo, os textos jornalísticos de Pasolini traduzidos e comentados neste trabalho
mostram um amplo leque de conhecimentos literários, culturais, sociais, históricos e políticos
sobre o conturbado período vivido e amplamente discutido por Pasolini entre a II Guerra
Mundial e a metade dos anos 60, não apenas na Itália mas também no mundo. Atravessar este
período acompanhando a ótica de Pasolini é também uma experiência extremamente
particular, que nos leva a concluir como muitas das suas críticas, por exemplo, à cultura de
massa e ao fenômeno do consumo, são perfeitamente pertinentes a fatos que assistimos
24
Idem, p. 22.
25
Rinaldi, 1982, p. 366
26
Rinaldi, 1982, p.366.
27
AMOROSO, Maria Betânia. A paixão pelo real: Pasolini e a crítica literária. São Paulo: Edusp, 1997, p. 140.
60
acontecer na sociedade, tanto no Brasil quanto no mundo, nesta primeira década do século 21.
Ao relembrar que Pasolini sempre escreveu em jornais, desde sua adolescência,
quando escrevia para revistas fascistas em Bologna, ou mesmo no início de sua carreira como
escritor, quando colaborava com diversos jornais da região do Friuli, Maria Betânia Amoroso
reitera que desde a década de 40 “sua atitude em relação ao meio de comunicação usado para
divulgação de suas ideias e de uma certa ideia de cultura e política caracterizou-se pela
polêmica e pela tentativa de instaurar um diálogo com o público de massa”
28
.
Na opinião de Rinaldi, a colaboração assídua de Pasolini em jornais diários e
periódicos é um fenômeno que assumiu uma importância enorme na sua atividade pública. O
autor afirma que “sem dúvida, a colaboração de Pasolini com jornais e revistas vai muito além
da tradicional colaboração de um literato com os meios especializados”
29
, sua atuação “entra
no projeto de ‘publicação de si’ que descrevemos: não existe nenhuma motivação literária por
trás das suas páginas, no sentido que a única coisa importante parece ser a ocupação dos
meios de comunicação”
30
.
Ao citar a multiplicidade e a variedade das intervenções públicas de Pasolini, que
variam desde poesias em dialeto friulano e em italiano, pequenas narrativas até a considerável
quantidade de ensaios publicados que vão da “linguística à crônica social, da literatura à
crítica de arte, até a tomada de posição política”, Rinaldi afirma que tudo isto é consequência
da “vontade de ação sobre as coisas, sobre o mundo, que marca desde o princípio o jornalismo
de Pasolini”
31
.
Gian Carlo Ferretti também salienta que, ao assumir a responsabilidade por esta
coluna semanal em Vie Nuove, Pasolini inicia “pela primeira vez uma relação problemática e
crítica com um destinatário de massa”
32
, e que logo se tornaria para o público da revista,
“além do escritor e crítico, o filósofo e pedagogo, o político e teólogo, o psicólogo e
moralista, o confidente privado e o provocador público, o amigo e conselheiro”
33
.
Já Franco Fortini acredita que “nestes diálogos jornalísticos se realiza uma das últimas
ilusões pós-Resistência: aquela do diálogo real entre um ‘povo’ e um ‘intelectual’ sob a marca
de um grande partido democrático-popular”
34
.
28
Idem, p. 58.
29
Rinaldi, 1982, p.45.
30
Idem.
31
Ibidem, p. 45-46.
32
Ferretti, op. cit., p.39.
33
Idem, p.21.
34
FORTINI, Franco. Pasolini e le ultime illusioni. Disponível em
<http://www.pasolini.net/saggistica_bellebandiere_fortini.htm>. Acesso em junho de 2009.
61
A GRAMÁTICA COMBATIVA
Como não tinha vontade de entediar a mim mesmo e nem ao público com uma
conversa fiada que diverte se for bem declamada, ou seja, demagógica, propus, então,
uma ‘entrevista coletiva pública’”. Deste modo começam estes diálogos de Pasolini com seus
leitores em uma revista semanal italiana. Diálogos que se desenvolveram por cinco anos, entre
1960 e 1965, sempre de um modo aberto, direto, coloquial, corajoso, polêmico. Exatamente
como se fosse uma longa entrevista coletiva, como propôs Pasolini em seu primeiro texto
publicado na coluna. Pasolini será questionado, elogiado, criticado, aconselhado por leitores
de diferentes gamas sociais, todos, de alguma forma, ligados ao Partido Comunista, mas nem
sempre militantes e nem sempre admiradores de Pasolini. Leitores provenientes de norte a sul
do país, a maioria jovens, que acabam por promover uma bela radiografia da Itália no começo
dos anos 60 com suas dúvidas, questionamentos, críticas e opiniões encaminhadas
semanalmente ao poeta.
As diversas maneiras que Pasolini encontrou para instaurar uma comunicação com
seus leitores estão distribuídas ao longo dos três blocos de textos que formam este trabalho.
Pasolini às vezes responde diretamente aos autores das cartas, às vezes publica poesias,
trechos de roteiros de filmes, crônicas de viagens, instaura polêmicas que se prolongam por
vários meses, comenta fatos da sua vida pessoal e fatos políticos atuais, critica a imprensa
burguesa”, enfim, exercita aquela que podemos chamar de sua “gramática combativa” através
de textos coloquiais, com uma linguagem simples, direcionada para um público de massa.
“Pier Paolo tem palavras para todos”, escreve Enzo Siciliano, autor de importante
biografia do escritor, sobre o período de Vie Nuove, reiterando que Pasolini “fez os leitores
entrarem em seu laboratório, sem intimidá-los”, ao referir-se principalmente aos versos
publicados pelo escritor, como por exemplo as poesias As belas bandeiras e Poesia em forma
de polêmica. As suas respostas “tão ricas de uma verdade que abandona-se a dúvidas e
contradições, que não teme devorar a si própria, matéria intelectual em estado incandescente,
são o sinal que no seu coração, esgotado pela angústia, a esperança, a cor resplandecente das
bandeiras vermelhas, ainda brilhava”
35
, continua Siciliano.
Gian Carlo Ferretti afirma que Pasolini, mesmo diante de perguntas e solicitações
mais diferentes, consegue sempre conduzir um discurso próprio” em seus textos, discurso
35
SICILIANO, E. Vita di Pasolini. Milano: Rizzoli,1978, p. 298.
62
próprio que revela “o seu lado contraditório ativamente provocativo, a rica densidade ideal e
cultural de uma diversidade hostilizada pelas forças mais retrógradas do país”
36
.
Ferretti também defende que nos textos de Vie Nuove se visualizam aspectos do
Pasolini dos escritos corsários dos anos 70, como “a escrita polêmico-problemática” e “a
prática de provocação, discussão e análise”, aspectos que, nas crônicas jornalísticas
publicadas no Corriere della Sera, “colocaram à prova e obrigaram à reflexão as forças
sociais e intelectuais mais avançadas do país, envolvendo massas de leitores jovens”
37
.
O crítico Alfonso Berardinelli acredita que toda a obra de Pasolini é marcada por um
“caráter espúrio, oscilante, misto entre jornalismo e literatura, entre exercício impiedoso da
autoconsciência e necessidade de conceder aquelas entrevistas pelas quais se declara
atormentado”, o que a torna “um repertório fervente de imagens e documentos”
38
. Berardinelli
também define o estilo de Pasolini como “um dedo apontado para alguma coisa”, uma “luta
comunicativa para restabelecer na pólis, na dimensão pública, o sentido da justiça”. Por isso,
argumenta Berardinelli, Pasolini “precisava do engajamento, do diálogo, da discussão
pública”
39
.
Diálogo e discussão pública que, no caso de Vie Nuove, também mostra outra
característica fundamental da crônica jornalística de Pasolini: o discurso pedagógico. Rinaldo
Rinaldi chama este aspecto estilístico de Pasolini de “forma divulgativa” com que os grandes
temas e interesses intelectuais que o acompanham naquele período são reelaborados e
adaptados nas suas respostas, quando realiza uma espécie de “desvendamento dos enigmas e
das dificuldades em vantagem do leitor ‘médio’”
40
. Esta forma divulgativa” seria, para
Rinaldi, o aspecto diferencial de Pasolini nesta coluna em relação aos outros “locais oficiais
do seu discurso teórico”. “E então, a verdadeira novidade se torna o estilo, a fórmula pré-
definida da esquematização seca, da tabulação simplificante, para dissecar ao máximo mesmo
os problemas mais complicados”
41
, escreve Rinaldi, destacando também o que ele define de
“raiva analítica” de Pasolini: “Tudo pode ser dissecado, e aquela ‘complicação’ do mundo
proclamada tantas vezes, é feita para ser compreendida, utilizando uma ‘raiva analítica’ que
Pasolini adora apresentar como o seu procedimento mais inato”
42
.
No primeiro bloco de textos deste trabalho, que reúne as respostas de Pasolini que
36
Ferretti, op. cit., p. 22.
37
Idem, p. 38-39.
38
Berardinelli, 1990, p. 155
39
Idem, p. 162.
40
Rinaldi, 1982, p. 367.
41
Idem, p. 367.
42
Rinaldi, 1982, p. 368.
63
envolvem questões de Literatura, encontram-se muitos exemplos deste caráter didático das
respostas de Pasolini, verdadeiras “aulas de literatura italiana” ao modo pasoliniano, ou seja,
permeadas de polêmicas e provocações.
Por exemplo, quando um leitor o critica por usar em seus romances um dialeto tão
fechado quanto o dialeto das periferias de Roma, Pasolini responde que
um escritor realista não pode ignorar a presença de outra classe social, aquela que
não fala a língua instrumental e nem a língua literária, mas fala o dialeto. Não
digo, no entanto, que ele deve necessariamente usar o dialeto! Apenas que não o
ignore.
E, de tabela, explica resumidamente a questão dos dialetos na Itália: “A Itália é,
linguisticamente, uma torre de Babel e não se deve resolver o problema ignorando-o”
43
.
Criticado por outro leitor sobre a questão do uso dos dialetos em seus romances,
Pasolini volta a defender sua posição, defendendo a liberdade estilística de um escritor: “não
considero o realismo um fato formal, mas um fato ideológico. Quando isto é estabelecido
realisticamente, qualquer solução formal é teoricamente boa”. E, como de costume, Pasolini
polemiza o fato:
A eliminação de todos os elementos realistas da língua, ainda que em síntese, ainda
que perifericamente, é reduzir a língua a sua pura e simples função literária, ou
seja, à função do servil academicismo típico dos nossos literatos médios
44
.
Nestas crônicas Pasolini também demonstra sua capacidade de síntese sobre temas
complexos, sua capacidade de traduzir estes temas para uma linguagem que seus leitores
compreendam, como quando coloca a literatura russa ao lado de textos clássicos gregos para
criticar a intelectualidade italiana:
Na Itália, os tempos são, provavelmente, prematuros, pois ainda não ocorreu a
intervenção de Atena. Na Rússia, ao contrário, a intervenção de Atena ocorreu.
Mas ainda falta o apêndice da intervenção, ou seja, a transformação das Maldições
em Bênçãos (o irracionalismo burguês desesperado e anárquico no
irracionalismo...novo)
45
.
Ou como quando explica resumidamente a necessidade do engajamento na literatura:
“Algumas superações ou debates internos (...) que um político realiza em silêncio, um poeta
43
Cf. O dialeto na literatura italiana.
44
Cf. Realismo e Neopurismo
45
Cf. Pasternak e a irracionalidade
64
tem o dever de expressá-los publicamente”
46
.
Na tentativa de simplificar os temas literários para seus leitores, Pasolini também
realiza comparações inusitadas, como quando compara os escritores Dostoiévski e Victor
Hugo a dois jogadores de futebol em evidência naqueles anos na Itália. Em uma carta, um
leitor pede uma opinião sobre qual destes dois escritores seria o melhor, e Pasolini começa
sua resposta deste modo:
Em resumo, vocês me querem como juiz de uma aposta! E, que não se trata de
uma aposta de alienados (por exemplo, se o melhor é Lojacono ou Greaves...), não
me recuso a intervir. E será fácil, porque se trata de dizer pura e simplesmente a
minha opinião.
47
Lojano e Greaves eram dois jogadores de futebol que tiveram atuações de destaque em
equipes de futebol italianas durante o ano de 1961, data desta crônica. O primeiro, um
argentino naturalizado italiano, jogava pelo Milan, enquanto o segundo, inglês, atuava na
Roma.
Outro crítico que salienta o lado pedagógico de Pasolini é Piergiorgio Bellocchio, na
introdução ao volume Saggi sulla politica e sulla socie. “A vocação de Pasolini é desde
sempre aquela de um poeta que é também um pedagogo e um líder. Um intelectual que deve
ensinar e guiar”
48
, afirma Bellocchio. Esta preocupação de Pasolini de ensinar e guiar aparece,
por exemplo, neste trecho, onde, depois de apontar alguns problemas do raciocínio do leitor, o
escritor elogia o valor da iniciativa, mesmo que equivocada:
Não se preocupe, não se preocupe mesmo, lhe digo, se você se arrisca a trazer um
pouco de complicação. Por que tanto medo da complicação? A complicação é feita
para ser compreendida, e um mundo onde não existe complicação é um mundo
conveniente, tedioso e desumano
49
.
A “raiva analítica” identificada por Rinaldi aparece nos textos de Pasolini também
através dos adjetivos pejorativos que o autor utiliza repetidamente. Por exemplo, como
quando classifica comohorrendo” um monumento erguido em homenagem ao poeta italiano
Gabriele D’Annunzio, quem classifica como um péssimo poeta, além de um péssimo
cidadão”:
A sua importância literária é apenas negativa, e assim sua importância na tradição
e na história. Ele representa e expressa a Itália no seu momento retrógrado, ou
46
Cf. O intelectual engajado.
47
Cf. Dostoiévski e Victor Hugo.
48
BELLOCCHIO, P. Disperatamente italiano. In: Pasolini, op. cit., 2006, p. XV.
49
Cf. Paixão e Ideologia.
65
seja, no momento em que o Risorgimento mostrou os seus limites, a sua verdadeira
essência de revolta aristocrática, o seu falso liberalismo, e a nova classe burguesa
começou a tornar-se aquela que é: uma monstruosa reserva de egoísmo,
conformismo, medo, mistificação, limitação mental e provincianismo
50
.
“(...) Tentem explicar a eles que um monumento a D’Annunzio legionário é algo
monstruoso!”, escreve Pasolini nesta mesma crônica, salientando ainda que a iniciativa de
Fiume foi uma palhaçada narcisista. Os pobres, honestos nacionalistas friulanos, foram as
vítimas ingênuas”, em referência à iniciativa patriótica de D’Annunzio no final da I Guerra
Mundial, ocorrida no norte da Itália.
Em outro texto, ainda comentando a literatura de D’Annunzio, estende suas críticas
pejorativas para outros escritores clássicos da poesia italiana do século XIX:
(...) detesto Carducci e D’Annunzio pelo mundo ideológico que eles exprimem,
mundo ideológico cuja mesquinhez, hipocrisia e presunção ainda hoje nos
oprimem. É o mundo ideológico da nossa burguesia. Carducci tentou cantar as
origens antigas, consideradas romanticamente, e aquelas mais próximas, como a
Revolução Francesa, mas sempre em um modo aproximativo e comemorativo,
fundamentalmente falso. D’Annunzio então, nem se fala. A sua ideia mítica da
história e a sua estetizante noção do homem são dois componentes essenciais da
ridícula e maléfica ideologia fascista
51
.
As críticas agressivas de Pasolini em algumas crônicas também se dirigem aos
próprios leitores da coluna, pois, como afirma Carla Benedetti, Pasolini é um autor “que se
nega a desaparecer por trás do texto, por trás das máscaras narrativas e dos reflexos de
identidade, por trás do uso irônico da própria voz” e se dirige aos leitores “diretamente e não
convencionalmente”
52
. Como neste trecho, ao responder a uma carta anônima onde foi
fortemente criticado pelas polêmicas contra D’Annunzio:
O anonimato no qual você cordialmente se esconde, gentil senhor, não é tão denso
para esconder o fato de que você é fascista. Em 1944 parou de publicar, e pour
cause; depois permaneceu à margem, e pour cause, e agora está aqui de novo, com
um tom indiferente, incisivo e um pouco boêmio, bancando o idealista. Se entende,
portanto, como você adora D’Annunzio, se entende por que você chama este poeta
“o Homem do Timavo e do Carnaro”, se entende como o irrita Carlo Bo, que
durante o período fascista era exatamente o contrário do que você desejava de um
literato, e se entende, por fim, por que você tem tanta antipatia por mim, furioso
inimigo da institucional estupidez dos fascistas.
53
50
Cf. Um monumento para D’Annunzio.
51
Cf. Indiferentismo Católico.
52
BENEDETTI, Carla. Pasolini contro Calvino: per una letteratura impura. Torino: Bollati Boringhieri, 1998,
p. 11-12.
53
Cf. Dannunzianos de Pantufas.
66
Em outra crônica, diante de um leitor que critica sua “francofobia acentuada”, Pasolini
mostra em sua resposta, além do seu lado polemista e provocador, também seu caráter
didático, ao simplificar temas complexos utilizando metáforas. Após explicar ao leitor que
suas críticas são dirigidas apenas a um determinado tipo de “intelectual laico parisiense”,
também compara as revoluções culturais ocorridas no pós-guerra em diversos países europeus
e conclui deste modo suas críticas à elite intelectual francesa:
O panteão está saturado, mas o catálogo ainda está disponível para novas
classificações. E nenhum jovem francês decide pela expulsão dos antigos deuses do
panteão lotado para colocar ali os novos. Ele não saberia, na realidade, qual
critério seguir senão aquele das escolas literárias. Por outro lado, se um fanático,
em nome de uma condenação ideológica derivada das pesquisas italianas dos anos
50, quisesse recomeçar do zero, esvaziaria o panteão, que se tornaria tout court
uma basílica dedicada a São Sartre e às suas constelações. O marxismo francês não
expressou uma força cultural média que exercitasse uma crítica revolucionaria em
relação à cultura anterior ao marxismo. Talvez porque na França não havia
possibilidade de escândalo, e nada se coloca em relação escandalosamente
dialética com o liberalismo francês.
54
No bloco que reúne os textos que discorrem sobre assuntos culturais, a gramática
combativa de Pasolini passa para outros aspectos, como discussões sobre seus filmes, sobre
filmes de outros cineastas, sobre sua vida pessoal, mas também questões polêmicas e centrais
da sociedade italiana naqueles anos, como o crescente poder da imprensa e da Igreja Católica.
Em uma das crônicas, questionado sobre uma suposta tentativa de suicídio da atriz
Brigitte Bardot noticiada pelos jornais e revistas do mundo inteiro, Pasolini explica, em uma
linguagem simples e cheia de metáforas, sua teoria esquemática sobre o poder da imprensa:
Sei o quanto o trabalho jornalístico é falso. Pega pedaços isolados da realidade,
chamativos, cujo significado seja imediatamente assimilável, logo transformados
em uma espécie de fórmula, para depois remendá-los indevidamente através de um
‘tom’ moralista (...) em torno da pessoa ‘que obteve o sucesso’, se cria uma
atmosfera totalmente arbitrária. Os seus atos, os seus gestos, as suas palavras se
cicatrizam em uma espécie de fixação mortal, na qual se condensa, como em um
composto químico, o mito da celebridade. (...) um processo exploratório dos donos
dos jornais ou dos produtores, que com uma crueldade digna dos animais mais
ferozes, usam uma pessoa como instrumento, quase com desprezo, com cinismo
sádico. É uma espécie de jogo, cujas regras são aceitas pelas duas partes. (...)
Regras desumanas, nas quais as palavras respeito, gratidão, seriedade e piedade
não possuem sentido. Certamente, este é um dos lados mais clamorosamente
imorais da sociedade capitalista.
55
Pasolini, que naqueles anos começava a sofrer com a imprensa sensacionalista, se
54
Cf. As razões de um não amor.
55
Cf. Brigitte Bardot e os excessos da imprensa sensacionalista.
67
coloca no lugar da atriz francesa: “Sei o que significa sermos olhados como animais em
extinção, sermos expostos sem distinção ao ódio (e muito menos à simpatia), sermos
continuamente e sistematicamente falsificados, utilizados brutalmente para ‘produzir
notícia’.”
Como bem definiu Bellocchio, os sentimentos e as emoções de Pasolini eram sempre
o “nervo da sua argumentação”, e continuaram sendo até suas últimas intervenções
jornalísticas. “Os seus sentimentos, as relações privadas, as suas emoções continuarão a ser
não apenas e não tanto o motivo das suas reflexões, das suas escolhas, das suas intervenções
públicas, mas o próprio nervo da argumentação, a força estilística que substitui a
argumentação, a prova da verdade da tese”
56
.
Como na crônica Fascistas: pais e filhos, na qual se define “um fantoche das revistas
ilustradas” e reitera: O sucesso, para uma vida moral e sentimental, é algo de horrendo e
basta.”
Ou ainda, neste outro trecho, quando é questionado por um leitor sobre a censura de
obras artísticas na Itália:
(...) eu sofro, no mundo que você evidentemente considera livre, aquilo que de pior
um escritor pode sofrer. A mistificação da minha obra: uma mistificação total,
completa, irremediável. Uma verdadeira operação industrial. Tudo o que digo e
escrevo sofre, através da interpretação calculada da imprensa ‘livre’, uma
metamorfose implacável: descrédito, calúnia e difamação.
57
Mas, dentre estas crônicas nas quais Pasolini expressa suas fortes críticas à imprensa,
um dos trechos mais significativos aparece ao final do texto Fascistas: pais e filhos, no qual
narra para seus leitores a história de uma entrevista que concedeu a uma jornalista, qualificada
por ele de a minha amiga de um dia, que, quando publicada, o ofendeu profundamente, por
ser “o que de mais ofensivo se podia escrever sobre mim. Aquelapessoa educada, culta, de
um bom nível jornalístico repetiu todos os lugares comuns que pessoas indignas de
qualquer respeito acumularam sobre mim”, demonstrou sua renúncia moral e cumplicidade
com a manipulação artificial das ideias com a qual o neocapitalismo está formando o seu
novo poder”.
Escreve Pasolini, ao resumir de modo simplificado, forte e agressivo, sua opinião
sobre o que tinha acontecido:
Esta é uma operação fascista, mas fascista no fundo, nos esconderijos mais secretos
56
Bellocchio, op. cit., p. XXIII.
57
Cf. A era da alienação.
68
da alma. A Itália está se degenerando em um bem-estar que é egoísmo, estupidez,
ignorância, intriga, moralismo, coerção, conformismo. Contribuir de alguma
maneira para esta degeneração é, portanto, o fascismo.
Em um dos textos mais importantes destas crônicas, Os anos da raiva, Pasolini
publica o argumento de um documentário que estava começando a planejar naquele ano,
1962, e que foi lançado em 1963 com pouca repercussão, mas que agora, em 2008, foi objeto
de uma “hipótese de reconstrução” do cineasta Giuseppe Bertolucci
58
. Neste texto publicado
em Vie Nuove, Pasolini resume todas suas “agressivas e polemizantes” opiniões sobre os fatos
políticos e sociais que estava assistindo naqueles anos, principalmente depois de 1956. O
próprio título do filme, e do argumento, A raiva, define do que se trata. Em alguns trechos
deste texto, que é praticamente um poema, Pasolini se expressa em poucas e agressivas
palavras:
(...) Os poetas, estes eternos indignados, estes modelos da raiva intelectual e da
fúria filosófica.(...) Ele observa, com indiferença a indiferença do desgosto e da
raiva os episódios extremos do pós-guerra: o retorno dos últimos prisioneiros,
recordem, em trens miseráveis, o retorno das cinzas dos mortos...(...) O que é que
deixa o poeta insatisfeito? Uma infinidade de problemas que existem e ninguém é
capaz de resolver. (...) O racismo como câncer moral do homem moderno e que,
assim como o câncer, tem infinitas formas. (...) O mundo distorcido por estes meios
de difusão, de cultura, de propaganda, se torna cada vez mais irreal: a produção
em série, incluindo das ideias, o torna monstruoso. O mundo das revistas, do
lançamento mundial de produtos humanos, é um mundo que mata.
E, voltando ao argumento sobre o poder da imprensa, Pasolini escreve trechos, que
depois derivaram também em uma poesia, considerada por ele os versos mais significativas
deste projeto, sobre a morte de Marilyn Monroe:
Pobre e doce Marilyn, irmãzinha obediente, carrega a tua beleza como uma
fatalidade que alegra e mata. Talvez você tenha tomado o caminho certo, nos
ensinou. O teu branco, o teu ouro, o teu sorriso sensual por gentileza, passivo por
timidez, por respeito aos grandes que te queriam assim, você, que permaneceu
menina, são coisas que nos levam a aplacar a raiva no choro, a virar de costas
para esta realidade condenada, à fatalidade do mal.
E, após um texto consideravelmente pessimista, Pasolini encerra com um aceno de
otimismo, em direção ao espaço e em referência às primeiras missões humanas à lua: “Talvez
o sorriso dos astronautas. Aquele, talvez, seja o sorriso da esperança e da paz verdadeira.
Com os caminhos da terra interrompidos, fechados ou ensanguentados, eis que se abre,
timidamente, o caminho do cosmo.”
58
La Rabbia di Pasolini (Itália, 2008).
69
Alguns dos textos reunidos nesta coletânea também mostram o lado de “semiólogo da
realidade” de Pasolini. Este conceito foi cunhado por Michel Lahud, que apresenta a obra de
Pasolini como “um conjunto diversificado porém extremamente coeso de autênticos
diagnósticos da atualidade e de diagnósticos sempre ao mesmo tempo reveladores de uma
certa atitude ou de uma vida, por assim dizer, filosófica”
59
. Uma crônica que se encaixaria
perfeitamente nesta definição de “diagnosticar” a realidade da época seria Viagem ao
Marrocos. Neste seu relato, última crônica do bloco de Cultura, Pasolini se expressa em uma
linguagem simples, com adjetivos fortes e afirmações polêmicas, na tentativa de mostrar aos
leitores suas complexas conclusões após uma viagem de férias a este país africano. Escreve
Pasolini:
Casablanca é uma babilônia neocapitalista embasada no velho estilo colonial
francês (respeitável e sempre de bom gosto, mas, no resto do país, às vezes um
pouco irônico) e na antiga casbá árabe, decadente e destruída. Um neocapitalismo
western, provavelmente liderado por bandidos (a orgia é a do fosfato) aliados a
financiadores estrangeiros, principalmente americanos, que confere às cidades
marroquinas um ar decididamente internacional e violentamente moderno (muito
mais do que qualquer cidade italiana)...
O “diagnóstico” de Pasolini inclui também a situação política do país e a relação dos
marroquinos com seu governo monárquico. Por exemplo, quando se refere a um discurso
televisivo pronunciado pelo Rei nos dias em que se encontrava no Marrocos, discurso
considerado por Pasolini de um horrível reacionarismo, baseado em uma forma de
hipocrisia, como toda dissimulação corrompida”: “(...) o ‘povo querido’ escuta as palavras
do Rei por aquilo que são, um canto sonolento, uma composição repetitiva sem sentido,
apenas psicoterapêutica e, muito satisfatoriamente, sem sentido.”
Nos textos do bloco de Política e Sociedade, Pasolini se expressa do mesmo modo
como nas outras crônicas, agressivo, polêmico, forte, mas debruçado sobre questões sociais e
políticas, e assim deixa transparecer sua visão pessimista sobre o futuro da sociedade que
estava começando a se construir naqueles anos.
Visão pessimista que será mais palpável nos textos posteriores a 1962, quando o
organizador da coletânea Le belle bandiere identifica uma mudança no “tom” das respostas de
Pasolini aos leitores. Segundo Ferretti, é nesta época que Pasolini começa a desenvolver
aquela “sua visão de uma sociedade burguesa tão imutável quanto empenhada em renovar a si
mesma, de uma ‘normalização’ conformista e abusiva em relação a cada diversidade privada e
coletiva, de um ‘universo neocapitalístico’ vitorioso contra uma oposição vazia ou submissa,
59
LAHUD, Michel. A vida clara: Linguagens e realidades segundo Pasolini. São Paulo/Campinas: Cia das
Letras/Editora Unicamp, 1993, p.38.
70
de um futuro ‘inferno’ do poder e do consumo, aquela visão que o acompanhará até sua
morte”
60
. Ferretti refere-se à visão pessimista que Pasolini divulgou, principalmente, através
das suas crônicas “corsárias” publicadas no jornal Corriere della Sera.
Como neste trecho, questionado sobre o problema dos cidadãos não-residentes em
Roma, timas de uma lei remanescente dos anos do governo fascista, Pasolini responde
categoricamente, comparando as periferias com os campos de concentração:
Que um cidadão italiano possa ser não-residente é monstruoso. Ele tem o direito de
viver como quiser e onde quiser. O fato de não conceder a residência significa fazer
um prejulgamento, o que é típico dos governos paternalistas e fascistas. Mas, à
parte esta monstruosidade específica do fenômeno, ele se insere em um problema
mais geral e urgente: o do desemprego.(...) E então? Certo, um campo de
concentração é sempre a melhor solução... E, realmente, as periferias, desejadas
pelos fascistas e consagradas pelos democrata-cristãos, são verdadeiros campos de
concentração.
61
Quando um leitor o questiona sobre uma possível solução temporária para o
desemprego na Itália, uma medida para obrigar os empresários a contratarem pais de família
desempregados no período do Natal, Pasolini discorda veementemente e coloca sua opinião
em termos claros, recorrendo novamente à linguagem coloquial e agressiva:
Ah não, caro Riccio! Não concordo com você. Isto se chama esmola oficial, e deixe
a esmola oficial para os fascistas e os padres! (..) quando a esmola não é mais um
fato privado, mas um fato estatal, oficial, então, se torna uma monstruosidade. Uma
monstruosidade que humilha o operário que recebe aquela esmola, humilha o
empregador obrigado a dá-la, humilha o país onde isto ocorre.
62
Rinaldo Rinaldi também salienta um aspecto latente nas respostas de Pasolini que é a
maneira como Pasolini vive este diálogo com os leitores. “É neste projeto de esclarecimento
da problematicidade que Pasolini vive o seu diálogo com o público, com uma ânsia de
contato, de respostas diretas, muitas vezes envolventes”
63
. Respostas diretas e envolventes,
como neste trecho, quando responde a um operário da Calábria, que lhe pede para escrever
mais sobre sua região e recorda como todos os intelectuais corruptos competiam para
insultar você”. O relacionamento de Pasolini com os políticos desta região do sul da Itália
ficou profundamente abalado após a publicação de uma polêmica reportagem escrita por ele
em 1959 na qual apontava alguns problemas na região. Pasolini conta ao leitor sua versão da
60
Ferretti, op. cit., p.29.
61
Cf. Roma e os seus "não-residentes".
62
Cf. Desempregados em Nápoles.
63
Rinaldo, 1982, p. 368
71
história, utilizando os termos característicos do seu discurso:
Você sabe como começou esta história: um político deplorável pegou algumas
frases de uma reportagem minha sobre as praias italianas, principalmente do
trecho que se referia à Calábria, e deturpou o sentido destas frases, isolando-as
(isolar fragmentos de uma obra e examiná-los sozinhos é um processo típico da
censura, como você sabe, ou seja, da hipocrisia e da má-fé) e me apresentou aos
calabreses como um difamador da Calábria. A imprensa reacionária, com uma
avidez absurda de bajulação e ignorância, apoiou a calúnia e criou um dos mais
irritantes equívocos que podem ocorrer com um escritor.
64
A sensibilidade poética de Pasolini transparece também em algumas das suas respostas
aos leitores, em textos direcionados para eles, através dos quais Pasolini instaura uma relação
direta, quase de amizade. Como define Rinaldi, Pasolini instaura uma “troca apaixonada de
palavras (...) se curva sobre todas as cartas como se fosse uma poesia”
65
. Como na crônica A
Vida dos mineiros, quando um operário de uma mina pede a Pasolini que escreva sobre a vida
dos mineiros. E Pasolini, recordando uma experiência anterior em uma mina de carvão,
escreve palavras belíssimas, dignas de um poema, mas que, no entanto, seguem seu estilo
agressivo e polêmico, como na primeira frase do seu relato: “Nunca vou esquecer aquela
espécie de descida ao inferno”.
Depois, continua, procurando sempre manter o respeito pelos operários que realizam
aquela “descida” diariamente, mas sem esconder os seus sentimentos:
Não foi fácil chegar até eles! Primeiro o elevador, como que sugado por uma
misteriosa e assustadora força obscura, me transportou ao fundo de um poço
interminável, a milhares de metros de profundidade. (...) Nesse meio tempo, a
memória do mundo, do sol, dos cheiros terrestres ia se apagando também na
memória, pareciam coisas de um outro planeta. (...) Tive que superar um terror
físico que, em um primeiro momento, me parecia insuperável. E não teria
conseguido se não tivesse pensado que todos os dias centenas de operários, mais
jovens e mais velhos do que eu, com os mesmos direitos a viver uma vida humana e
decente, eram obrigados a superar o mesmo terror. Por respeito a eles, consegui
dominar a minha rebelião física. Assim, me enfiei naquela fenda e, semimorto pela
sensação de sufocamento, entrei naquela rachadura. Um tubo pelo qual era preciso
caminhar curvado, entre as estacas que sustentavam o ameaçador e aterrorizante
teto de terra, aquela montanha inteira que estava acima de nós. (...)
E finaliza seu relato mostrando toda sua indignação com aquele trabalho:
Nunca poderei esquecer o sentimento de raiva impotente contra a injustiça do nosso
mundo que senti quando recebi um humilde e agradecido sorriso de um operário
siciliano, feliz de nos ver ali ao seu lado.
64
Cf. Convite para a Calábria.
65
Rinaldo, 1982, p. 368
72
A crise do marxismo e suas relações com o cristianismo foi um dos grandes temas
discutidos por Pasolini com seus leitores, principalmente no ano de 1965. Nestas discussões,
que se prolongaram por vários meses, Pasolini insistia sobre a necessidade de rever posições e
reformulava suas ideias através de uma linguagem simples e cheia de metáforas, na clara
tentativa de ser bem compreendido pelo público. Apenas os textos mais significativos que
incluem estas discussões foram inseridos neste trabalho. Em um deles, por exemplo, quando
questionado sobre sua aproximação com expoentes da Igreja Católica para a produção do
filme O Evangelho segundo São Mateus, Pasolini coloca e aprofunda algumas questões
complexas do relacionamento da Igreja Católica com os comunistas em modo muito claro.
Como quando afirma que os padres não são de forma alguma o diabo” e critica a relação de
discriminação existente entre comunistas e católicos, principalmente na Itália:
Um padre diante de um comunista, e um comunista diante de um padre, quase
sempre representa a aparição do outro: uma “raça” degenerada pelo tabu,
inconfiável, humanamente deteriorada e repugnante. Enquanto comunista, eu
também não estou imune a esta doença inconsciente e o anticlericalismo se alastra
dentro de mim como um verme, sugando o sangue do outro, até transformá-lo em
sombra, símbolo, esboço de um conjunto de coisas que me parecem injustas, de um
mundo que rejeito.
E depois simplifica, usando como exemplo o papa João XXIII (1958-1963), chamado de
“papa bom”: “Vocês imaginam papa João XXIII escandalizado ou indignado contra os oito
milhões de eleitores comunistas na Itália? Eu não. E, historicamente e humanamente, não
era.”
E explica para seus leitores os motivos da sua aproximação com a Igreja:
Durante estes últimos anos, a minha intolerância total contra a burguesia assumiu
características extremas, enquanto minha simpatia é atraída por locais e pessoas
onde vejo a contradição do espírito burguês. As relações que tive com os padres
neste período foram deste tipo: todas excluíam a burguesia de algum modo.
onde se fala de Deus, mesmo na própria descrença, a burguesia não está. Ela está
na missa, ausente no seu fingimento hipócrita, na sua visão retrógrada do humano,
na sua patológica crise de angústias sociais, no terror de tudo que possa colocar
em perigo as suas normas e os seus privilégios.
66
Mesmo com as ferrenhas discussões instauradas com os leitores no último ano da
coluna, principalmente sobre a questão da crise do marxismo e dos partidos comunistas,
alguns críticos apontam problemas nos diálogos de Pasolini neste último período e chegam a
defini-lo um grande “monólogo”. Gian Carlo Ferretti identifica que nos dois últimos anos da
66
Cf. O Evangelho e o diálogo.
73
coluna o número de cartas direcionadas para Pasolini começou a diminuir consideravelmente
e o escritor, naturalmente, começou a publicar mais textos autônomos, não relacionados com
a coluna, como poesias, relatos de viagens e roteiros de filmes
67
.
Rinaldo Rinaldi, ao citar uma carta de um leitor que acusa Pasolini, justamente, de
fazer um “monólogo” na sua coluna, afirma que este è exatamente o comportamento de
Pasolini durante todo o trabalho para Vie Nuove: fingir (e talvez acreditar) uma comunicação
dialógica”
68
. “Pasolini vive, na realidade, a sua grande tentativa de comunicação como
tentativa, e se percebe toda a dureza do esforço (jamais completamente eficiente)”
69
, conclui
Rinaldi, que no estudo sobre o jornalismo de Pasolini, intitulado, “Doppio Gioco”, afirma que
o texto jornalístico pasoliniano tem duas faces e que a segunda, menos conhecida e
perceptível, seria o que ele chama de “forma de retórica jornalística especial”. Rinaldi define
esta maneira de simplificar a linguagem como uma “tendência paternalista”, “uma
superioridade didática meiga demais e dissimuladamente confidencial”
70
.
Realmente, algumas mudanças no relacionamento de Pasolini com os leitores e com a
revista em si se percebem nos textos de 1965. Ferretti identifica essas mudanças como
decorrentes da descrença de Pasolini na figura do “intelectual engajado”, de pedagogo
ideológico, somadas à visão cada vez mais negra de um “futuro dominado pelo capitalismo e
pelo imperialismo”. Ferretti aponta que o afastamento de Pasolini da coluna, em setembro de
1965, marcará também um longo período de afastamento do escritor em relação ao próprio
Partido Comunista Italiano.
No entanto, Pasolini não deixa transparecer estas mudanças na sua última crônica escrita
para Vie Nuove, quando volta a falar abertamente da sua relação com os leitores. Primeiro,
retomando um tema que nos manteve ocupados nesta coluna nos últimos meses, a crise do
marxismo, através do chamado aos leitores para assistirem ao filme que iria começar a
produzir naqueles dias, Gaviões e passarinhos, cujas primeiras versões dos episódios que
compõe o filme foram publicadas na coluna:
As observações que discuti aqui, em Vie Nuove, de modo polêmico, dramático e
provavelmente um pouco brusco sobre a ‘crise do marxismo’, foram desenvolvidas
comicamente neste episódio. Desejo muito que os meus correspondentes de Vie
Nuove que forem assistir ao filme se divirtam e deem muitas risadas. Pode ocorrer
que este filme os deixe em um estado de espírito mais preparado para aceitar as
constatações e os dados reais que, ao romperem com tradições e ilusões, resultam
67
Ferretti, op. cit., p. 31.
68
Rinaldo, 1982, p. 368.
69
Idem, p. 368.
70
Ibidem, p. 368.
74
dolorosos. E ‘percebam’ que a minha crítica não é apenas negativa e pessimista,
mas que é pensada de modo reconstrutor.
E depois, mantendo o diálogo aberto, direto e polêmico que sempre manteve com seus
leitores, aponta alguns dos fatores dessas mudanças nos dois últimos anos da coluna:
Se depois, para concluir esta minha nova carta de despedida, que é um ‘até logo’,
eu tivesse que acrescentar alguma consideração sobre o trabalho realizado, diria
que, objetivamente, foi infinitamente mais difícil do que alguns anos. E isto um
pouco pelas condições efetivamente mudadas, pelo papel diferente exercido pelo
PCI na vida italiana e pelo andamento diferente do marxismo na vida do mundo,
pelo qual a figura do escritor ‘companheiro de estrada’, ou apenas companheiro, se
modificou profundamente. (...) Pode-se dizer que eu, através da coluna de Vie
Nuove, vivi esta passagem in corpore vili. Naturalmente, isto provocou insatisfação,
tantas vezes, tanto em mim quanto nos leitores de Vie Nuove.
71
Quando Pasolini se refere ao fato de ter vivido estas mudanças “in corpore vili”
demonstra o engajamento e a paixão com os quais viveu e enfrentou sua participação como
colunista em uma revista de massa. Como aponta Bellocchio, quando se refere à obra de
Pasolini de um modo geral, os resultados podem ser diferentes, mas a profundidade de
Pasolini é sempre intensa: As tramas, as trocas e sobreposições, não apenas de matéria, mas
de estilo, entre poesia, narrativa, ensaística, jornalismo cooperam para formar um conjunto,
irregular e desordenado quanto se queira, mas na essência compacto e coerente, onde não
existe hierarquia entre gêneros altos e baixos, entre obras principais e secundárias. Os
resultados podem ser diferentes, mas a paixão e o engajamento que Pasolini confere aos
diversos gêneros são igualmente intensos”
72
.
2 – NOTA SOBRE A TRADUÇÃO
Durante os cincos anos que Pasolini colaborou com a revista Vie Nuove, foram
publicadas mais de 130 edições da sua coluna, mesmo com as diversas pausas e interrupções,
como, por exemplo, durante todo o ano de 1963 e boa parte de 1964. Duas coletâneas destas
crônicas publicadas na Itália, Le belle bandiere (1977)
73
e Saggi sulla politica e sulla società
(2006)
74
, serviram como base para a seleção dos 48 textos apresentados neste trabalho, cujo
principal critério utilizado foi a relevância dos assuntos tratados em cada crônica para um
71
Cf. Mais uma despedida.
72
Belloccio, op. cit., p. XIV.
73
PASOLINI, P.P. Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Org. G.C. Ferretti. Roma: Riuniti, c1977.
74
PASOLINI, P.P. Saggi sulla politica e sulla società. Org. W. Siti e S. De Laude. 4 ed. Milano: Mondadori,
2006.
75
leitor brasileiro de hoje. Assim, alguns textos, mesmo que muito relevantes dentro do
contexto italiano ou dentro do contexto da obra de Pasolini, foram excluídos por tratarem de
temas muito específicos da Itália ou de difícil compreensão para o leitor brasileiro. No
entanto, além do critério de relevância para um público brasileiro, também foram
selecionados alguns textos importantes por documentarem momentos oportunos do
relacionamento desenvolvido por Pasolini com seus leitores.
Na edição do livro Le belle bandiere, as crônicas foram organizadas cronologicamente
e publicadas do mesmo modo como apareceram na revista, com as cartas dos leitores seguidas
pelas respostas de Pasolini. A cada semana uma ou mais cartas eram escolhidas para serem
respondidas, a critério do próprio Pasolini ou da direção da revista.
O volume organizado por Ferretti incluiu a maior parte dos textos publicados por
Pasolini na coluna. No entanto, a consulta ao volume Saggi sulla politica e sulla società foi
absolutamente necessária, pois este volume, que compila uma ampla gama de textos
jornalísticos publicados por Pasolini em toda sua carreira, faz parte da coleção I Meridiani, da
editora Mondadori, em sua edição dedicada a Pasolini que reúne, em diversos volumes, sua
obra completa e totalmente revisada. Estes volumes constituem-se hoje na mais recente e
completa edição da obra de Pasolini publicada na Itália. Além dos dois volumes citados,
existe também uma compilação completa dos textos publicados na coluna Dialoghi con
Pasolini no volume I dialoghi
75
, organizado por Giovanni Falaschi em 1992, a qual, no
entanto, não foi utilizada como referência neste trabalho.
No final deste trabalho foi inserido um Índice de Referência que indica as referências
aos originais de cada crônica traduzida. Pois, mesmo que o volume Le belle bandiere tenha
sido usado como base para a seleção das crônicas incluídas neste trabalho, por incluir um
maior número de textos, sempre que possível foi utilizado o volume de 2006 como texto-base
para a tradução. O volume de 2006 também apresenta algumas crônicas não incluídas na
seleção de Ferretti de 1977.
Os textos selecionados foram, por sua vez, agrupados em três grandes blocos
temáticos: Literatura, Cultura e Política e Sociedade. O primeiro bloco reúne as crônicas nas
quais Pasolini discute questões de “Literatura”, principalmente sobre a produção literária na
Itália no período após a II Guerra Mundial, o uso dos dialetos, a importância da ideologia do
escritor e outras literaturas europeias em destaque naqueles anos, como a russa. No segundo
bloco foram reunidos os textos que versam sobre temas de “Cultura”, como cinema,
principalmente sobre as próprias obras de Pasolini, mas também sobre filmes de outros
75
PASOLINI, Pier Paolo. I Dialoghi. Roma, Riuniti, 1992.
76
cineastas lançados na época, além de temas como religião, sexo, censura, a imprensa na Itália
e o crescimento dos meios de comunicação de massa, impressões de viagens e poesias
publicadas pelo autor na sua coluna ao longo dos cinco anos de colaboração. O último bloco
será dedicado aos temas gerais de “Política e Sociedade”, onde Pasolini discute com seus
leitores sobre o renascimento do fascismo, o advento do neocapitalismo, o futuro do
marxismo e a crise mundial dos Partidos Comunistas.
A ordem cronológica de publicação dos textos foi mantida dentro de cada bloco
temático, assim como a estrutura de publicar a carta do leitor, seguida pela resposta de
Pasolini e pela data de publicação. Os títulos dos textos originais (quase todos redigidos pela
redação da revista Vie Nuove, conforme se explica na introdução de Le belle bandiere
76
)
foram mantidos, com exceção dos textos que não tinham título, os quais foram intitulados da
maneira mais neutra possível.
Os comentários do tradutor não pretendem se limitar a elucidar dificuldades
lingüísticas ou pontuais acerca de nomes e lugares citados, mas explicitar contextos sociais,
culturais e políticos específicos relacionados com os temas discutidos, buscando referências
históricas e contextualizadas.
A tradução comentada ocorre através de pequenos textos explicativos inseridos no
início de cada crônica, em forma de notas de rodapé. Nestes comentários iniciais estão as mais
importantes referências históricas e factuais relacionadas ao texto e aos assuntos que nele o
discutidos, servindo como base para o início da leitura e facilitando sua legibilidade ao evitar
a inserção de inúmeros comentários ao longo do texto. Mesmo assim, na maior parte das
vezes foram necessárias inserções de notas de rodapé adicionais.
Mesmo com a ideia estabelecida desde o início de realizar uma tradução comentada
deste trabalho, a necessidade intrínseca da presença dos comentários, junto ou dentro do texto
traduzido, foi se consolidando com o andamento dos trabalhos da tradução propriamente dita,
quando a maior parte das dificuldades, cada vez mais complexas, estava quase sempre
relacionada com a compreensão do contexto e do pensamento do autor, e não com questões
linguísticas.
Para a redação destes comentários foram utilizados materiais diversos, desde livros de
história da literatura italiana, história geral italiana e história mundial, a livros específicos
sobre a vida e a obra de Pasolini. Também foram utilizadas como base as notas contidas nas
coletâneas de 1977 e 2006.
Neste âmbito convém destacar a importância fundamental dos materiais consultados
76
Pasolini, 1977, p. 40.
77
no acervo do Centro Studi Archivio Pier Paolo Pasolini, localizado na cidade de Bolonha,
na Itália, no âmbito da Biblioteca da Cineteca del Comune di Bolonha. O material deste
acervo foi doado em 2003 pela atriz Laura Betti, grande amiga de Pasolini, que desde a morte
do escritor dirigia a Fundação Pier Paolo Pasolini, com o objetivo de difundir a sua obra
através de encontros, seminários, publicações e mostras cinematográficas. Além de livros,
filmes, monografias, vídeos e fotografias sobre e de Pasolini, este acervo também possui uma
rica documentação de matérias de jornais, revistas e outros periódicos com textos de Pasolini
ou sobre Pasolini. Estes materiais, divididos cronologicamente, foram especialmente úteis
para este trabalho, principalmente as matérias publicadas entre os anos de 1960 e 1965.
Algumas destas matérias de revistas e jornais foram citadas nos comentários desta tradução,
pois foram consideradas úteis para a compreensão do contexto da época.
Entre os livros consultados neste acervo, convém destacar o volume Una strategia del
linciaggio e delle mistificazioni: l'immagine di Pasolini nelle deformazioni mediatiche
(Bologna: Tip. Moderna, 2005), organizado por Roberto Chiesi, diretor do Archivio Pasolini
em Bolonha, e concebido primeiramente como catálogo de uma exposição organizada por este
instituto. A exposição em questão mostrava, através de matérias e reportagens publicadas em
jornais, como a imagem de Pasolini era manipulada pela imprensa, com especial destaque
para o período entre 1960 e 1964 (período em que Pasolini escreve a maior parte das crônicas
para Vie Nuove).
Protegido pelas contradições
78
Coletânea de crônicas jornalísticas de Pier Paolo Pasolini
(1960 a 1965)
79
Apresentação
Como sempre, a Senhora Macciocchi
77
venceu. Estou trabalhando em três roteiros,
estou preparando um filme do qual serei diretor, estou revisando os rascunhos de um volume
de ensaios de seiscentas páginas, estou organizando um romance sobre o qual,
definitivamente, já aposto tudo, estou escrevendo versos e artigos, seguindo as irregularidades
e as obsessões da vocação e da profissão
78
. Não tenho tempo nem de respirar, como se diz.
Estou quase esgotado, porque, a tudo isto, é preciso somar a luta contínua, quotidiana, contra
a ofensiva dos fascistas e dos eclesiásticos, e, enfim, final ideal nesta lista, mas em primeiro
lugar na realidade, a vida que ainda devo viver, em toda a sua contraditória extensão e
complicação. De outro modo, além de tudo, sobre o quê trabalharia?
Mas a Sra. Macciocchi superou todas as dificuldades, veio diretamente à minha casa e
tocou diretamente meu coração. Me impôs, quase como um doce dever, uma
“correspondência” com os leitores de Vie Nuove. Afinal, uma hora por semana eu poderia
encontrar! Aceitei. Mas ainda não sei bem o quê aceitei. Considerando prós e contras, é
melhor que a coisa se ajeite sozinha, seguindo os impulsos livres dos leitores e sob a tutela da
diretora...
Recentemente, tive experiências de “diálogos” com o público não especializado e
foram maravilhosas. Comecei alguns meses em Ancona, onde me pediram para realizar
uma conferência. Comoo estava com vontade de bancar o conferencista,o tinha vontade
de entediar a mim mesmo e nem ao público com uma conversa fiada que só diverte se for bem
declamada, ou seja, demagógica, propus, então, uma “entrevista coletiva pública”. Os
ouvintes me fariam as perguntas, livres, e eu responderia. A conversa andou muito bem,
ninguém se entediou, apesar do diálogo ter se prolongado por mais de duas horas. Desde
então, tenho feito sempre assim, em muitas outras cidades, onde me pedem para discursar. E
tenho, de todos estes bate-papos, uma lembrança maravilhosa, um sentimento de profunda
simpatia pelos meus interlocutores. Gostaria de fazer aqui, em um canto de Vie Nuove,
77
Maria Antonietta Macciocchi, escritora, jornalista, militante comunista e feminista, foi diretora da revista Vie
Nuove até novembro de 1961. Neste período, imprimiu uma forte mudança no estilo editorial da publicação ao
chamar como colaboradores autores cuja posição nem sempre estava alinhada com a posição oficial do PCI,
como o próprio Pasolini. (Pasolini, 2006, p. 1813). No Brasil, tem publicado o volume A favor de Gramsci (Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1977).
78
O filme em que Pasolini está trabalhando é Accattone Desajuste Social (1961), o volume de ensaios é
Passione e Ideologia (1960), o romance sobre o qual afirma estar trabalhando se chama O Rio da grana, que não
será finalizado, mas terá um trecho publicado no volume Ali dos olhos azuis (São Paulo: Berlendis & Vertecchia,
2006), os três roteiros são Una giornata balorda , para o diretor Mauro Bolognini, Il carro armato dell’8
settembre (A Derradeira Missão), para Gianni Puccini, e La lunga notte del’43 (A Noite do Massacre), para
Florestano Vancini. (Pasolini, 2006, p. 1813)
80
alguma coisa de parecido e, esperamos, semelhantemente útil e vital.
Vie Nuove, 28 de maio de 1960
81
LITERATURA
O dialeto na literatura italiana
79
79
A obra literária de Pasolini se caracterizou, desde o início, pelas inovações linguísticas, em especial pelo uso
de línguas dialetais. No início da carreira, por exemplo, escrevia apenas em dialeto friulano. Seus dois primeiros
82
Acredito que não vou ler mais nada que leve a sua assinatura até entender os
motivos, a necessidade e o sentido da renúncia à ngua que as suas obras em prosa
mostram, especialmente a última. Me pergunto, porquê, se você quer representar a vida
“real” de alguns (grandes e fundamentais) setores da sociedade italiana, deve
necessariamente empregar a pior linguagem deles? Apenas porque é a mais real?
Certamente que em Una Vita Violenta aparecem referências muito interessantes de uma nova
“língua escrita”, mas ficam encobertas pelo uso prevalente desta linguagem “particular”.
Acredito que Pavese tenha resolvido, de um modo historicamente mais justo, o abismo que
83
existe hoje entre a tradicional “língua escrita” e a “língua falada”
80
. Na minha opinião,
valorizar o dialeto mais comum na obra literária é denunciar este abismo, mas não
preenchê-lo.
Roberto M. Di Marco – Palermo
84
Você é palermitano
81
, portanto, começarei lhe contando uma anedota literária muito
85
próxima a você. O poeta dialetal siciliano Di Giovanni escreveu um dia uma carta a Verga
82
reprovando-o por o ser rigoroso, por o levar sua poética do monólogo interior (ou seja,
do falar em nome do personagem) até à última consequência, ao dialeto. Verga hesitou,
enrolou, respondendo – exatamente como você quer – que não chegou até o dialeto para poder
ser compreendido por todos os leitores italianos. Apesar deste aspecto de compromisso,
pouquíssimo rigoroso, Verga, instintivamente, tinha razão. Mas, veja bem, ele não ignorou o
dialeto, ao contrário, o dialeto é o reagente essencial da sua prosa, que se torna, assim, uma
contaminação entre língua e dialeto.
Eu também (perdoe-me a presunção!), antes dos romances romanos, escrevi um
romance ambientado no Friuli, entre os trabalhadores rurais da parte sul desta região. Neste
86
romance (que é inédito)
83
instintivamente excluí o dialeto friulano, justamente porque
incompreensível para a maioria dos leitores do meu país. Nasceu, então, uma contaminação,
mesmo que muito leve, entre língua e dialeto. Mas, no caso do romanesco, eu não tinha
nenhuma razão para não chegar ao dialeto. O romanesco é um dialeto muito próximo ao
87
florentino
84
, compreensível em toda a Itália no seu conjunto (com exceção para o vocabulário
do submundo, que exige apenas um leve esforço da parte do leitor). Porque, portanto, eu não
deveria usar o romanesco nos diálogos diretos? E usar a contaminação no texto narrativo que
é, praticamente, um longo discurso livre indireto?
Um escritor realista não pode ignorar a presença de outra classe social, aquela que não
fala a língua instrumental e nem a língua literária, mas fala o dialeto. Não digo, no entanto,
que ele deve necessariamente usar o dialeto! Apenas que não o ignore. Quanto ao resto, odeio
qualquer padronização de cima para baixo, qualquer finalidade restritiva e obrigatória. A
Itália é, linguisticamente, uma torre de Babel e não se deve resolver o problema ignorando-o.
Assim fazem os homens da censura, quando acreditam resolver o problema da miséria, da
prostituição, entre outros, obrigando a ignorá-lo, a não representá-lo.
Vie Nuove, 18 de junho de 1960
88
Pasternak e a irracionalidade
85
A morte recente de Pasternak me oferece a ocasião para lhe fazer algumas perguntas.
Na época, me senti muito atingido pela dureza das críticas dirigidas ao escritor por Doutor
Jivago. Mas, para mim, o artista é feito de muitas misturas, muitas paixões, muitas
contradições (benditas!), que não são sempre e totalmente referentes a um único
denominador comum ideológico, ético e político através do qual rigorosamente sentir,
produzir, trabalhar.
O íntimo sentimento poético de um artista pode se realizar plenamente em uma
sociedade baseada sobre uma concepção de vida que prevê uma hegemonia total da
sociedade sobre o indivíduo?
Portanto, uma personalidade deste tipo não poderia se manifestar em uma sociedade
socialista senão se tornando “rebelde” (marcado a dedo) ou, pior ainda, “estrangeiro”
(solitário e abandonado) no próprio país?
Augusto Quieto - Ventimiglia
Ao responder uma carta que me pedia um parecer sobre um excessivo moralismo da
imprensa de esquerda, especialmente em relação aos assuntos sexuais, expressei rapidamente,
e sem especificar, a minha opinião de que uma das lacunas do pensamento marxista, no atual
momento da sua evolução, é não enfrentar, com seus instrumentos ideológicos e racionais, o
problema da irracionalidade
86
.
romances, Ragazzi di Vita (1955) e Una Vita Violenta (1959), são ambientados nas periferias de Roma e os
personagens se comunicam apenas em dialeto romanesco, em alguns momentos incompreensível até mesmo
para um leitor italiano, o que obrigou Pasolini a inserir no final dos dois livros pequenos glossários.
A chamada “questão da língua”, desde a Unificação da Itália (1870), se tornou um tema central de discussão
entre os intelectuais, principalmente os escritores, devido ao amplo uso dos dialetos ao longo do território
italiano, em contraposição com a língua oficial. Apenas cem anos mais tarde, em torno de 1970, com a difusão
da televisão e com as grandes migrações internas, a Itália conseguiu realmente atingir a unificação linguística,
apesar de, no final dos anos 90, cerca de 12% dos italianos ainda declararem se comunicar apenas em dialeto
(MALATO, Enrico. Storia della letteratura italiana. Vol. IX. Roma: Salerno, 2000, p. 247).
80
Cesare Pavese (1908-1950), célebre poeta e escritor italiano, promoveu com sua obra, especialmente o
romance Paesi Tuoi (1941), uma aproximação da literatura com a ngua falada e com expressões dialetais,
influenciado principalmente pela literatura norte-americana da época.
81
Pessoa natural de Palermo, capital da Sicília.
82
Giovanni Verga (1840-1922), representante máximo do Verismo, movimento literário italiano do final do
século XIX que propunha uma representação impessoal e objetiva da realidade, especialmente das classes
populares e da sua linguagem, inovou, principalmente com o romance I Malavoglia (1881), ao realizar uma
fusão do dialeto siciliano com a língua italiana.
83
Il Sogno di Una Cosa. Milano: Garzanti, 1962. (ed. brasileira: A Hora depois do Sonho. Trad. de Edilson
Alckmim Cunha. Rio de Janeiro: Bloch, 1968) (Pasolini, 2006, p. 1814)
84
Variação da língua italiana usado originalmente na região de Florença, capital da Toscana, foi adotado como
língua oficial da Itália durante o processo de Unificação (1860-1870).
85
O romance do escritor russo Boris Pasternak (1890-1960), Doutor Jivago, lançado pela primeira vez por uma
editora italiana em 1957 e adaptado para o cinema em 1965, em um filme que se tornou um clássico da história
do cinema, reconstitui parte da história moderna da Rússia ao narrar o drama de um médico desiludido com o
socialismo após a Revolução Russa de 1917. Em 1958, Pasternak foi obrigado a renunciar ao Prêmio Nobel de
Literatura pressionado pelo governo soviético, que nunca permitiu a publicação do livro. O romance se tornou
um best-seller no mundo inteiro, inclusive na Rússia, onde foi publicado em 1989, após a queda da União
Soviética.
86
Pasolini refere-se a uma carta, publicada nesta mesma coluna, em 25 de junho de 1960 e não reproduzida neste
trabalho.
Os marxistas geralmente identificam, de modo simplista, a irracionalidade com a
irracionalidade “histórica” do Decadentismo e não percebem que existe uma irracionalidade
incondicional no homem (aquelas que você chama paixões e contradições benditas), que se
desenvolve historicamente, assume comportamentos diversos, aspectos diversos, conforme a
sociedade na qual opera o indivíduo, seu depositário.
Será preciso que o pensamento marxista se decida a suprir esta lacuna, que gera
confusões e problemas
87
. Na realidade, nunca será possível julgar historicamente a literatura,
ainda que grande, do Decadentismo europeu, se não existirem ideias precisas e definidas
sobre a noção de “irracionalidade” e não apenas sobre irracionalismo. Quero lhe dar um
exemplo, talvez um pouco pedante. Você leu a Oresteia de Ésquilo? Trabalhei recentemente
na sua tradução
88
. O conteúdo da Oresteia é essencialmente político: a substituição de um
estado democrático, mesmo que vagamente democrático, por um estado tirânico e arcaico. O
ápice da trilogia é o momento no qual a deusa Atena (a Razão: nascida da mente do pai,
portanto, privada da experiência uterina, materna, irracional) institui uma assembleia com os
cidadãos como juízes. Mas a tragédia não termina aqui. Depois da intervenção racional de
Atena, as Erínias - forças incontroláveis, arcaicas, instintivas, da natureza sobrevivem e se
tornam deusas imortais. Não podem ser eliminadas, não podem ser assassinadas. Devem se
transformar, mas mantendo intacta sua irracionalidade essencial, ou seja, de “Maldições” se
transformarão em “Bênçãos”. Os marxistas italianos não se colocaram, repito, este problema.
E, até onde sei, nem mesmo os russos.
Na Itália, os tempos são, provavelmente, prematuros, pois ainda não ocorreu a
intervenção de Atena. Na Rússia, ao contrário, a intervenção de Atena ocorreu. Mas ainda
falta o apêndice da intervenção, ou seja, a transformação das Maldições em Bênçãos (o
irracionalismo burguês desesperado e anárquico no irracionalismo...novo).
Pasternak cometeu o engano de também não ter se colocado este problema e de ter
resolvido a sua irracionalidade e a irracionalidade categórica do homem utilizando os
termos e os instrumentos da cultura burguesa, que, devido a sua formação, sobreviveram nele.
É por isso que sua obra não poderia despertar simpatia na Rússia, porque se via nela um
retorno, um regresso, uma reação. E o sem motivos. Mas agora, os russos devem trabalhar
87
A publicação do livro na Itália gerou inúmeras críticas anticomunistas e levou o PCI a criticar a expulsão de
Pasternak da União dos Escritores Soviéticos, apesar de concordar que em seu romance, o escritor deturpou a
verdade histórica do comunismo. (MERINO, Antonio Gimenez. Una fuerza del pasado: el pensamiento social
de Pasolini. Madrid: Trotta, 2003, p. 69-70).
88
A trilogia Oresteia, do autor grego Ésquilo, considerado o pai da tragédia grega, é formada pelas peças
Agamenon, Coeforas e Euménides. A obra foi traduzida do grego para o italiano por Pasolini e publicada em:
Quaderni del Teatro popolare italiano. Turim: Einaudi, 1960.
para não contrapor à ideologia de Pasternak o esquecimento, mas uma ideologia integrada e
plena.
Vie Nuove, 9 de julho de 1960
Um sistema para estudar
Sou um jovem de vinte anos, como muitos outros. Mas meu destino é muito diferente
do dos outros, porque estou internado em uma clínica e, além do mais, com restritas
possibilidades financeiras. Meus pais são, na realidade, operários. Tenho me dedicado ao
estudo da literatura italiana, mas agora gostaria de me aprofundar um pouco mais e estudar
os poetas. Pedi ajuda a muitos editores para que me fornecessem livros usados, mas não
consegui nada. Agora me dirijo a você para obter ajuda: quais são os livros que devo
estudar? Quais são os poetas sobre os quais devo aprofundar o estudo? Qual o melhor
sistema para estes estudos?
Angelo Maffini – Istituto sanitário G. Aselli, Cremona
Se o seu desejo de aprender é autêntico e duradouro, talvez você se encontre no
momento mais bonito da vida. Lembro quando aconteceu comigo. Que dias! Passava horas e
mais horas no Portico della Morte, em Bolonha, onde se vendiam livros usados, a escolher, a
ler os títulos, a espiar páginas e índices. Eu tinha quinze anos e, até então, tinha lido apenas
livros de aventura (em Cremona, onde vivi por três anos); mas depois, de repente, caiu nas
minhas mãos O idiota de Dostoiévski e foi uma revelação. Li toda a obra de Dostoiévski, e
depois de Tolstoi, e depois as tragédias de Shakespeare. Apenas um ou dois anos depois
descobri a poesia contemporânea, por rito de um jovem professor da minha escola, ele
mesmo poeta, Mario Rinaldi. E então li Le Occasioni de Montale e Il Sentimento del tempo de
Ungaretti
89
, que foram a revelação número dois.
Comecei a ler como um desesperado os poetas contemporâneos, que eram então os
poetas herméticos, e deles parti para os simbolistas, especialmente Rimbaud
90
. E,
naturalmente, continuava a ler com voracidade os narradores do século XIX, os russos, os
ingleses e os franceses.
Como pode ver, não houve um “plano” de leituras, as coisas aconteceram sozinhas.
Imagino que você tenha muito tempo na clínica onde está. Portanto, pacientemente, comece
deixando-se levar ao acaso. Pode, talvez, usar como guia a história da literatura italiana de De
Sanctis
91
, que é muito sugestiva, e, junto, aquela mais moderna de Sapegno
92
. Aconselharia a
você, de todo modo, começar pelos escritores contemporâneos, pois são muito mais fáceis de
89
Eugenio Montale (1896-1981) e Giuseppe Ungaretti (1888-1970), entre os mais representativos poetas
italianos do século XX, são considerados expoentes da chamada poesia hermética, corrente literária das
primeiras décadas do século XX marcada por uma linguagem obscura e simbólica, de difícil compreensão.
90
A obra poética do francês Arthur Rimbaud (1854-1891), que parou de escrever aos 21 anos, influenciou os
maiores escritores do século XX.
91
Francesco De Sanctis (1817-1883), ensaísta e político, considerado o maior crítico literário italiano do século
XIX.
92
Natalino Sapegno, crítico literário, autor, entre outros, de Disegno storico della letteratura italiana (Firenze:
La Nuova Italia, 1958).
entender pelo seu verdadeiro valor, dentro do seu verdadeiro quadro histórico. Para os
clássicos, muitas vezes é necessário um difícil aprendizado filológico e historicístico e, lendo-
os assim, instintivamente, ocorre frequentemente de cair em equívocos deformantes. Depois
de ter aprendido a “ler” com os seus contemporâneos, você pode enfrentar os clássicos com
mais experiência e sensibilidade.
Vie Nuove, 16 de julho de 1960
Realismo e neopurismo
93
Me permita lhe colocar duas questões (ligadas entre elas) que referem-se diretamente
à sua atividade de escritor e de teórico de algumas teses que encontram nos seus romances a
realização prática mais convincente.
Me refiro à questão da linguagem na obra de arte em relação ao “realismo” e à
“obrigatória” utilização do dialeto - aliás, dos dialetos - ao escrever de pessoas ou grupos
sociais que se expressam, na vida real, em dialeto ou jargão.
1) relação realismo-linguagem: não lhe parece que considerar o realismo morto
devido a alguns poucos neopuristas
94
(me refiro ao seu discurso “Alla maniera di Antonio”)
seja insistir em aspectos formais, polivalentes, e ignorar a essência, em relação a
possibilidade de definir um escritor como realista, que está em outras questões? Não é mais
justo examinar se ele como escritor é mais ou menos radicado no real, qual é o seu
comportamento crítico sobre isto, a sua concepção de mundo, e qual é a sua posição
“ideológica”, a capacidade de levar em conta as linhas gerais de desenvolvimento da
sociedade a qual representa, os “sentimentos de massa”?
Avaliados assim que não significa se interessar por qual partido eles preferem -
alguns dos escritores que você cita positivamente na sua Oração contra Cassola poderiam se
revelar não suficientemente nobres” para serem convocados para o exército realista. Pode
ser, ao invés, que outros que poderiam ser ... soldados (talvez no refeitório) - terminem,
pelo seu critério, como civis.
2) relação língua-dialeto: esta questão deriva imediatamente da primeira ao se
verificar mais a fundo as suas teorias. Lembro especificamente uma conferência sua ocorrida
em Nápoles e o conceito “marxista”, na minha opinião exageradamente “mecanicista”,
utilizado por você a respeito da linguagem (que se transformaria radicalmente como
subestrutura? na transformação da estrutura da sociedade). Ainda segundo você, se me
lembro bem, o escritor “marxista” (que seria aquele que narra sobre o proletariado ou o
subproletariado tentando superar posições iluminísticas ou populistas) deveria antes ainda
da transformação da base da sociedade compreender a linguagem dos grupos sociais que
estão na ribalta da história, reivindicando posições hegemônicas e iniciando, portanto, um
novo capítulo da história da linguagem. Na revista Le ragioni narrative (segundo número), o
escritor Mario Pomilio comparou durante um longo ensaio sobre o bilinguismo a sua
posição àquela de N.J. Marr, já criticada por Stalin em um famoso ensaio de 1950
95
.
93
Nos primeiros meses de 1960, durante a cerimônia de apresentação dos candidatos ao principal
reconhecimento literário da Itália, o Prêmio Strega, Pasolini deu início a uma longa polêmica literária ao
declamar uma epístola em versos de sua autoria, intitulada In morte del realismo, na qual acusava a narrativa do
escritor Carlo Cassola, vencedor do prêmio naquele ano com o livro La Ragazza di Bube (Turim: Einaudi, 1960),
de “revisionismo”, “socialismo branco” e “neopurismo” (Pasolini, 2006, p. 1814). Pasolini e Cassola são
considerados os últimos expoentes da chamada literatura realista italiana, descendente direta do movimento
neorealista vinculado à cultura antifascista, que entrava em crise naqueles anos e que, em pouco tempo, se
tornaria alvo das críticas das novas vanguardas italianas.
Neste discurso, Pasolini referia-se à herança que estava sendo deixada pelo realismo da década que recém
terminava e elogiava a obra de nomes como Carlo Emilio Gadda, Alberto Moravia, Giorgio Bassani, Elsa
Morante, Italo Calvino, entre outros escritores considerados como representantes máximos da literatura engajada
e populista dos anos seguintes ao final da II Guerra Mundial.
Os versos lidos por Pasolini foram publicados no jornal Paese Sera em 28 de junho de 1960 sob o título Per la
morte del realismo. Orazione alla maniera di Antonio e inseridos na coletânea de poesias La religione del mio
tempo (Milano: Garzanti, 1961).(Pasolini, 1977, p. 58)
94
Neopurismo, corrente literária italiana, de tendência purista, que aceitava o uso de neologismos na língua
italiana, desde que respondendo a uma exigência efetiva e de acordo com a estrutura tradicional da língua.
(Malato, 2000)
95
O famoso ensaio do ex-ditador da URSS Joseph Stalin, no qual criticava as posições do linguista soviético
Nicolau J. Marr, foi publicado na Itália em 1954 sob o título Il marxismo e la linguistica. (Pasolini, 2006, p.
Confesso que a comparação me parece interessante e totalmente sustentável. O que
você acha? Ou melhor, o que opõe esta referência a um esquematismo precedente, tão
extremista e contraproducente a ponto de ser combatido por Stalin?
Me perdoe se o envolvo diretamente, mas as questões que indiquei rapidamente aqui
me parecem de grande interesse para todos (escritores e leitores).
Andrea Resta – Nápoles
Respondo apenas à primeira das suas perguntas. A segunda, realmente, me envolve
muito pessoalmente, e gostaria de evitar falar muito de mim. E depois, envolve uma releitura
da crítica de Stalin, além da leitura que nunca fiz de N.J. Marr. Mas espero que
respondendo à primeira pergunta, esteja implícita também a resposta à segunda.
Em primeiro lugar, eu nunca coloquei como “obrigatória” a utilização do dialeto em
uma obra literária realística. Como afirmei nesta mesma coluna, acredito apenas que um
escritor realista italiano não possa ignorar a divisão da sociedade italiana em duas classes: a
classe burguesa que usa um italiano superficial, instrumental e televisivo (a chamada koiné) e
a classe popular que usa os diversos dialetos. Que um escritor, após ter feito esta necessária
consideração, decida por assumir os dialetos ao mais nobre plano linguístico, eliminando-os
completamente e transformando-os em uma prosa ensaística ou rica, ou que os traduza
escondendo-os moderadamente, ou que invente um modo italiano equivalente em vivacidade
ao dialeto ou, enfim, que use desde que compreensível diretamente o dialeto, pelo menos
nos diálogos, tudo isto é igualmente cito. E sabe porque considero lícita tanta liberdade no
escritor? Exatamente porque não considero o realismo um fato formal, mas um fato
ideológico. Quando isto é estabelecido realisticamente, qualquer solução formal é
teoricamente boa.
Naturalmente, ao analisar um livro, é preciso realizar a operação contrária, ou seja,
partir da forma, do estilo, que é a única operação lícita. Portanto, quando digo neopurismo
não me refiro a um fato formal, mas a um fato essencial. A eliminação de todos os elementos
realistas da língua, ainda que em síntese, ainda que perifericamente, é reduzir a língua a sua
pura e simples função literária, ou seja, à função do servil academicismo típico dos nossos
literatos médios.
Neste ponto é necessário um esclarecimento, que me permita esclarecer também
minhas ideias sobre um artigo de Salinari que, neste mesmo jornal, polemizava com os meus
decassílabos brincalhões em In morte del realismo
96
. É claro que, naquela minha brincadeira,
1814)
96
O escritor e crítico literário Carlo Salinari, na edição de 16 de julho de 1960 de Vie Nuove, negou as
afirmações de Pasolini sobre o pertencimento dos escritores Calvino, Gadda, Moravia e Morante ao “realismo” e
de Cassola ao “neopurismo”.
tive que decepar algumas partes. A poesia, ainda que de brincadeira, deve ser sempre muito
clara... Portanto o pretexto, ou seja, o último livro de Calvino, foi exatamente um pretexto.
Mas me referia à toda a sua trilogia de fábulas, que Calvino reuniu nestes dias em um único
volume, I nostri antenati, justificando-se com uma esplêndida introdução, a qual recomendo,
pois contém uma explicação que não deixa dúvidas sobre porquê sua fábula também é
considerada um produto realista
97
.
Quanto a Cassola, eu o leio desde seu primeiro livro e sempre o admirei muito,
muitíssimo. E continuo a admirá-lo. Mas esclareço aqui que eu polemizava com o seu estilo
a admiração não impede a polêmica e também com as suas ideias manifestadas em diversas
intervenções e artigos críticos, realmente estranhos. Esta estranheza é demonstrada pelo fato
que os jornais Osservatore Romano e Tempo (fascista), a revista Reporter (fascista) e até
mesmo o Specchio assumiram sua defesa.
Em relação aos outros nomes citados no meu artigo: neste momento, eu considero
realista um escritor cuja perspectiva seja marxista, mas o realismo teve infinitas formas
históricas, daquela de Dante à de Verga... No século XX, antirealista por excelência, existem
formas novecentistas de realismo que o contradizem. Em primeiro lugar, o realismo imitativo
e babélico (diria fisiológico) do macarrônico Gadda - que escreve todo Pasticciaccio
98
sobre o
antifascismo, em um período no qual todos seus colegas eram acadêmicos da Itália; depois o
realismo “crítico”, segundo a definição de Lukács, de Moravia
99
, com as suas análises “boas e
impiedosas” da sociedade burguesa italiana contemporânea, e de Bassani
100
, com as suas
evocações líricas mas ao mesmo tempo historicamente impecáveis da cidade de Ferrara antes
e depois da II Guerra, e enfim la Morante
101
, que um esplêndido exemplo do que pode ser
uma obra de arte de evasão sem ser evasiva, enquanto a autora é potentemente heterônoma. O
seu objetivo não é a literatura, mas um ideal ético-fantástico, ao qual a literatura é submetida e
do qual é absorvido, mas não eliminado, o ideal do engajamento social imediato.
Naturalmente poderia citar outros nomes, Vittorini, Pratolini, Pavese... Mas transformaria a
poesia em um guia telefônico.
97
No volume Os nossos antepassados (1960), Calvino reuniu os romances O visconde partido ao meio, O barão
nas árvores e O cavaleiro inexistente.
98
O romance Quer pasticciaccio brutto de via Merulana, escrito em 1945 mas publicado apenas em 1957, é o
grande romance de Carlo Emilio Gadda (1893-1973), que apresenta como novidade estilística a contaminação da
língua italiana com os dialetos e que possui muitos traços em comum com a obra de Pasolini.
99
Alberto Moravia (1907-1990), amigo e confidente intelectual de Pasolini, autor entre outros de Os
Indiferentes (1929), La romana (1947) e La ciociara (1957).
100
Entre as principais obras de Bassani está o volume de contos Cinque Storie ferraresi (1956), que conquistou o
Prêmio Strega daquele ano e de onde foi baseado o roteiro do filme La lunga notte del’43 (1960).
101
Elsa Morante (1912-1985), esposa de Moravia até 1962 e também amiga e confidente intelectual de Pasolini,
grande escritora italiana, cujo romance A ilha de Arturo (1957) é considerado sua obra-prima.
Quanto à gravidade da minha denúncia, apesar de amargamente brincalhona, não se
pode subestimar. Infelizmente, é documentável uma forte ofensiva contra qualquer forma
literária de oposição, seja anárquica ou radical. Toda a baixa corte literária está em agitação e
o seu objetivo é “Língua pura”, naturalmente, a serviço da Democracia Cristã e talvez contra
Fanfani
102
.
Vie Nuove, 23 de julho de 1960
102
Amintore Fanfani foi uma das mais importantes lideranças do Partido Democrata-Cristão, principal força
política italiana na segunda metade do século XX e adversária direta do PCI. Naqueles meses de 1960, a DC, no
governo, estava atravessando uma grave crise política interna. (GALLI, G. I partici politici italiani [1943-2004].
Milano: Rizzoli, 2004)
Um monumento para D’Annunzio
103
No último dia 30 de outubro, em Ronchi
104
, a Legione del Vittoriale inaugurou um
monumento em homenagem a D’Annunzio apesar de um decreto municipal ter rejeitado o
pedido de concessão do terreno. De fato, o prefeito da província de Gorizia, Dr. Giacinto
Nitri, tinha anulado a decisão municipal por vício de forma
105
.
Em relação à iniciativa, um grupo de professores e artistas locais pediu o apoio e a
solidariedade de um influente grupo de colegas de Trieste para expressarem uma
condenação pública sobre o fato, que constituísse também uma devida retificação histórica,
especialmente para jovens e estudantes.
Estamos agora lhe pedindo hospitalidade, conscientes da coerência da sua batalha
por uma renovação política, intelectual e de costumes. Pensamos que apenas com a sua
ajuda podemos tornar público e divulgar mais amplamente a deploração sobre a inoportuna
e imoral celebração, que merece por isso ser conhecida em toda a Itália exatamente para ser
ainda mais condenada. Se considerar oportuno, você poderia acrescentar a advertência de
que ainda são possíveis adesões de testemunhos da existência de um protesto moral.
Dr. Nereo Battello
E abaixo a declaração dos intelectuais:
“Os abaixo-assinados, diante da iniciativa, favorecida por conhecidas forças políticas, de
construir nos arredores de Ronchi um monumento a Gabriele D’Annunzio com intenções de
valorização política claramente visíveis na epígrafe que se pretende colocar no local,
salientam a inconveniência histórica e ocasional desta iniciativa. Esses não pretendem
expressar aqui um juízo sobre a obra artística do poeta e sobre aquela do combatente da
guerra de libertação, mas afirmam que o fato que se pretende exaltar no monumento levou a
consequências fatídicas, tanto no nível da vida interna do povo italiano, quanto nas relações
com outros povos.
De fato, independentemente dos propósitos de sincero patriotismo de alguns dos
participantes, hoje é claro – inclusive segundo o parecer da mais recente historiografia – que
a iniciativa de D’Annunzio representou o primeiro passo no caminho da subversão violenta
da tradição moral e civil de liberdade transmitida por gerações desde o Risorgimento
106
, e
103
Gabriele D’Annunzio (1863-1935), tema central desta crônica, além de um poeta fundamental na história da
cultura italiana, expressão máxima do decadentismo e da cultura estetizante, movimentos artísticos do final do
século XIX que rompiam com as formas e conteúdos tradicionais, foi também um homem público, intelectual
engajado e combatente de guerra, que pregava o nacionalismo e foi considerado “herói nacional” durante a I
Guerra Mundial na Itália. Com o fim da guerra, se tornou protagonista político dos meios reacionários,
aproximou-se do fascismo e foi considerado precursor intelectual deste movimento, pois seus discursos e sua
retórica foram usados como bases da propaganda fascista. (Malato, v. VIII e IX, 2000)
O episódio ao qual se referem os intelectuais é a chamada “Ocupação do Fiume”, pequeno porto no Mar
Adriático que com os tratados do final da I Guerra ficou sob controle da Liga das Nações. D’Annunzio liderou
em 1919 um grupo de legionários armados e ocupou esta cidade, onde permaneceu até o final de 1920 após ter
fundado uma espécie de república independente. O fato, considerado pelos historiadores atuais como uma grande
“representação teatral”, cercada de manipulação das informações e um grande teste para as ações fascistas que
ocorreriam na década seguinte no país, teve grande repercussão na época e garantiu a D’Annunzio ser “exaltado
como artista supremo” durante todo o regime fascista.
104
Ronchi dei Legionari é uma pequena cidade na região italiana do Friuli-Venezia-Giulia, norte do país, que
deve seu nome atual aos legionários de Gabriele D’Annunzio, que de partiram em 1919 para a chamada
“Ocupação do Fiume”.
105
Inobservância das formalidades exigidas por lei para formação e validade de um ato jurídico.
106
Período histórico italiano entre 1815 e 1870, quando a Itália readquiriu sua independência e conquistou sua
unificação.
também a premissa ideológica e tática do fascismo, e ainda um sintoma evidente da
desordem espiritual que interrompeu o desenvolvimento natural da democracia italiana. Por
outro lado, a mesma iniciativa, exaltando odes locais e conflitos nacionalistas, dificultou o
início de uma solução justa para os problemas políticos da região do Alto Adriático.
Celebrar hoje este episódio significa difamar o ordenamento democrático do país e cometer
um trabalho de deseducação política e civil, especialmente em relação aos mais jovens, aos
quais se indica como exemplar um gesto irracional de subversão e violência.”
Vivi muito tempo no Friuli, minha mãe é friulana, me interessei pela história e pela
literatura friulana no início da minha juventude, muitos dos assinantes deste manifesto são
meus amigos. Alguns, como Giuseppe Zigaina e Biagio Marin, amicíssimos. Tenho muita
competência, portanto, para saber como estão e como se desenvolvem as coisas naqueles
lados, o “tom” das coisas. O nacionalismo, lá no norte da Itália com o potencial fascismo
nasce, infelizmente, através de um normal indiferentismo
107
, de uma normal subexistência
cultural, mas também de uma forma de moralismo, típico do Norte, típico daquele catolicismo
marcado pelo protestantismo. E, por isso mesmo, muito mais perigoso, porque fortemente
ligado a profundas convicções morais equívocas. Enfim, enquanto se pode dizer, quase com
absoluta certeza, que um fascista do centro-sul da Itália é um desonesto, um aproveitador ou,
no melhor dos casos, alguém que se vira trabalhando, este julgamento não vale sempre para
um fascista setentrional, especialmente do Friuli. Muitas vezes, no comportamento, no
trabalho, na vida privada, os nacionalistas ou fascistas do norte são pessoas honestas e
inatacáveis. Mas tentem explicar a eles que um monumento a D’Annunzio legionário é algo
monstruoso! Não admitirão jamais, porque, para isto, deverão renunciar a toda sua concepção
da existência.
Antes de qualquer coisa, é preciso explicar a eles que D’Annunzio foi um péssimo
poeta, além de um ssimo cidadão. Eu, por exemplo, não concordo com os intelectuais
friulanos e triestinos quando separam o D’Annunzio poeta e combatente do D’Annunzio
legionário e pré-fascista. D’Annunzio é um só. A sua importância literária é apenas negativa,
e assim sua importância na tradição e na história. Ele representa e expressa a Itália no seu
momento retrógrado, ou seja, no momento em que o Risorgimento mostrou os seus limites, a
sua verdadeira essência de revolta aristocrática, o seu falso liberalismo (cf. Gramsci), e a nova
classe burguesa começou a tornar-se aquela que é: uma monstruosa reserva de egoísmo,
107
A escolha pela palavra “indiferentismo” para traduzir a expressão “qualunquismo” é baseada em uma
definição de Michel Lahud, que, além do sentido “pejorativo” do termo, recorda que originalmente designa um
movimento surgido em Roma após a II Guerra Mundial que, “apresentando-se como expressão dos sentimentos
e das aspirações do cidadão médio, concebia o Estado ideal como um órgão puramente administrativo, regido
por simples critérios do bom senso, sem a intervenção de qualquer partido político”. (Lahud, 1993, p. 133)
conformismo, medo, mistificação, limitação mental e provincianismo.
Atente-se que não sou contrário a D’Annunzio pelas mesmas razões dos intelectuais
italianos do início do século XX, ou do século XX tout court, os quais o perseguiam nas
superestruturas literárias, por assim dizer. Na realidade, eles próprios eram dannunzianos,
eram os D’Annunzios de pantufas ao invés de coturnos, o que é alguma coisa, o nego,
mas é quase nada. Eram, em resumo, antidannunzianos assim como eram antifascistas, por
razões de bom gosto, porque tanto Mussolini quanto D’Annunzio eram “cafonas”. Mas é
notório como um antifascismo similar não serviu para quase nada, e muitos antifascistas deste
tipo se tornaram acadêmicos da Itália.
D’Annunzio é o típico representante do eterno classicismo servil e evasivo italiano,
que assumia nele formas de decadentismo provinciano. E, devido ao seu permanente e
superficial irracionalismo, típico também esse, terminava quase sempre na ação, uma ação
que poderia ser retórica e essencialmente conformista, apesar dos aspectos de clamoroso
anticonformismo. A iniciativa de Fiume foi uma palhaçada narcisista. Os pobres, honestos
nacionalistas friulanos, foram as vítimas ingênuas.
que aquilo que foi feito não pode ser mudado, digamos com toda a amargura do
caso, e o monumento a D’Annunzio Legionário está lá, inabalável (horrendo, naturalmente),
eu sugeriria erguer próximo dali um pequeno e modesto monumento a I.G.Ascoli
108
. Vivi
durante anos no Friuli, inclusive no meio profissional e filológico, e nunca me ocorreu de
sentir o entusiasmo sincero por este judeu de Gorizia que é certamente a figura de intelectual
mais importante, e a única europeia, que expressou a região do Friuli no nosso século. É um
homem que desenvolveu um trabalho, este sim, monumental e modesto, e talvez discutível em
muitos pontos, e certamente não revolucionário. Mas o silêncio no qual foi mantido durante o
fascismo, naturalmente porque era judeu, e o silêncio cúmplice que continua a pesar sobre ele,
agora, lhe fazem merecer certamente um reconhecimento que o contraponha, ele, vítima do
fascismo, ao Legionário fascista.
Vie Nuove, 19 de novembro de 1960
O lançamento de Ulisses na Itália
109
108
Graziadio Isaia Ascoli (1829-1907), grande linguista italiano do século XIX, durante as intensas discussões
sobre a política linguística do nascente Estado italiano, em meio ao processo de unificação da Itália (1860-1870),
defendia que a unificação linguística do país deveria ocorrer através da difusão da cultura e da ampliação das
atividades intelectuais e civis, em aberta polêmica contra o escritor Alessandro Manzoni, encarregado pelo
governo de coordenar as investigações, que defendia uma solução normativa, como realmente veio a ocorrer, que
foi a adoção do dialeto florentino culto como língua oficial. (Malato, v. VIII, 2000)
109
O irlandês James Joyce (1882-1941) é considerado, ao lado de escritores como o francês Marcel Proust (autor
Caro Pasolini, acredito que um dos mais notáveis acontecimentos literários das
últimas semanas seja a publicação finalmente da tradução italiana de Ulisses de James
Joyce. Após uma primeira e apressada leitura desta obra, acredito que, mesmo de uma forma
muito indireta, Joyce se serviu do esquema narrativo da Odisseia. Visto que fiquei sabendo
através das crônicas literárias recentes que você está preparando A morta-viva, um romance
no qual retomaria a estrutura narrativa do Inferno de Dante
110
embora não considere-se
obrigado, obviamente, para expressar o seu mundo privado gostaria de saber se existem
pontos de contato entre o método de Joyce e o seu. A minha pergunta é permeada pela
dúvida de ter compreendido corretamente o significado de Ulisses e as informações sobre A
morta-viva que apareceram na imprensa nacional. Mas, no caso de eu estar certo, gostaria
de saber de você qual valor atribui às reminiscências homéricas em Joyce e àquelas
dantescas na sua obra. Agradeço desde já pela cortesia.
Fernando Etnasi, Bibliotecário do Istituto Gramsci – Roma
P.S. - Gostaria, no entanto, que você expressasse, mesmo que rapidamente, uma opinião
sobre a obra de Joyce.
O livro de Joyce, antes de sair em italiano e se tornar um acontecimento literário atual
como esperamos que se torne nestes dias teve uma longuíssima incubação dentro da
literatura mais aristocrática. Desde que eu era criança, Joyce era uma espécie de modelo e de
mito, talvez o maior depois de Proust, que supera, certamente de longe, não apenas Mann,
mas os grandes autores norte-americanos, descobertos, pelo menos na Itália, no período entre
as duas guerras.
Na Itália, Joyce teve, e tem, o seu grande equivalente em Carlo Emilio Gadda, que não
se pode dizer que o seja inferior. O “monólogo interior” o pensamento incessante do
personagem, ou dos personagens, pelo qual é percebido o ambiente e, definitivamente, o
mundo em Proust era objeto direto do conto, e, portanto, do seu modo era objetivo,
enquanto em Joyce e em Gadda tornando-se imitativo, produz uma esplêndida
movimentação linguística. Aparentemente é, portanto, mais subjetivo no sentido atual desta
palavra mas na realidade, ao conter personagens que não sejam o “eu que narra”, como em
Proust, é mais objetivo, pois exige que o autor não “monologue” sozinho, mas se encarregue
de relatar imitando psicologicamente, linguisticamente e, portanto, também socialmente o
monólogo de um ser humano que vive a sua vida individualmente e historicamente autônoma.
Ainda alguns passos e talvez muitos passos e se chega idealmente ao monólogo
interior rústico, rudimentar e dialetal dos pescadores de Verga
111
.
Acredito portanto na enorme importância de Joyce. Ele, realmente, indica o caminho
de um tipo de objetividade que não pode ser aquela típica do século XIX, positivista,
científica e que requer uma espécie de incontestável confiança, admitida por todos, sobre a
realidade objetiva da vida humana. No século XIX se dizia “Ele fez, ele foi”, declarando-se,
enquanto autores, cronistas autorizados de fatos inquestionáveis. Mas depois ocorreu a crise
da burguesia e a sua ideologia literária que dava tantas garantias de objetividade positivista
entrou em plena decadência. Idealismo, relativismo, bergsonismo, decadentismo colocaram
em crise a sua bela segurança oitocentista e não se pôde mais dizer “ele fez, ele foi”. Então,
passou-se a buscar a objetividade dentro do “eu” (Proust e todos os poetas do grande
Decadentismo europeu), como única garantia de uma existência real e comprovada. Joyce
tentou algo de diferente, ao invés de entrar no seu eu”, entrou no “eu” de um outro homem,
diferente dele psicologicamente e socialmente. Não disse “ele fez, ele foi”, nem “eu fiz, eu
fui”, mas algo no meio do caminho, a imitação ou reconstrução em laboratório da corrente de
pensamentos de um outro ser humano estudado na sua realidade pessoal.
Tenho vergonha de falar sobre mim, neste ponto, mas é evidente que não se trata de
juízos de valor, mas de modos literários. Com Ragazzi di Vita e Una Vita Violenta
112
- que
muitos estúpidos acreditam ser fruto de um documentarismo superficial me coloquei na
linha de Verga, Joyce e Gadda. E isto me custou um tremendo esforço linguístico, além de
espontaneidade documental! Reproduzir, imitar a “linguagem interior” de uma pessoa é de
uma dificuldade atroz, aumentada pelo fato que, no meu caso como frequentemente no caso
de Gadda a minha pessoa falava e pensava em dialeto. Era preciso descer ao seu nível
linguístico, usando diretamente o dialeto nos discursos diretos e usando uma difícil
contaminação linguística no discurso indireto, ou seja, em toda a parte narrativa, pois o
mundo é sempre “como visto pelo personagem”. O risco de desafinar nesta operação está
sempre a um fio da escritura. Basta exceder apenas um mínimo, em direção à língua ou ao
dialeto, que o delicado amálgama se rompe, e adeus estilo.
No A morta-viva, o meu novo livro, usarei o mesmo procedimento linguístico, mas
com as óbvias ampliações. A prostituta Teresa desce ao Inferno, segundo a visão e o modelo
dantesco, e o Inferno será sempre “como visto por ela”. Ocorrerá portanto a fusão entre a sua
língua – o romanesco
113
do submundo – e a minha de narrador, o italiano literário. Mas, como
no Inferno, personagens de todos os gêneros se encontrarão dos ministros democrata-
cristãos a Stalin, dos ladrões e dos cafetões a Moravia
114
, dos napolitanos aos milaneses
certamente nas histórias particulares destes personagens deverei adotar contaminações
linguísticas diferentes.
A minha obra será cômica e satírica. O modelo do Inferno dantesco é um elemento
cômico e, portanto, explícito e declarado, assim como ocorreria em um comédia burlesca.
A Odisseia, ao contrário, no Ulisses de Joyce é uma referência mística-psicológica-
mítica, absolutamente literária, um elemento de pastiche, de reelaboração refinada e ambígua.
Certamente este estilo de pastiche e de “reelaboração literária” permanecerá também no A
morta-viva, mas será um elemento secundário, um valor estilístico a mais, como modo de
dizer, um estimulante, uma droga.
Me interessa principalmente utilizar o Inferno dantesco para fazer um julgamento,
historicamente objetivo, e uma análise, marxisticamente exata, da nossa sociedade.
Vie Nuove, 3 de dezembro de 19
Paixão e ideologia
115
Caro Pasolini, apesar de tudo, hoje acredito que a Itália ocupe uma posição de
destaque no desenvolvimento do pensamento político e cultural na Europa, graças não
apenas à sua tradicional cultura de poetas, pensadores e artistas, mas, principalmente, por
ser um país onde concepções opostas do mundo moderno se refletem mais intensamente,
confrontando-se a fundo. Notável neste caso é a sua obra de pesquisa no gênero literário,
além do seu trabalho autoral poesia, roteiro, narrativa que também inclui uma séria e
apaixonada elaboração crítica por uma nova ética da arte.
Deixando de lado algumas questões do romance realista moderno sua estruturação
ideológica, processo irracional-racional, o personagem, sua psicologia, relação subjetivo-
objetivo, etc., dissonâncias que você tenta harmonizar gostaria de destacar a fórmula de
Antonio Gramsci para uma “literatura nacional popular”, objetivo ainda não atingido pela
narrativa neorealista italiana que, especialmente no plano linguístico, deveria combinar o
seu ponto de encontro, por exemplo, em Alberto Moravia, que acredito seja o mais
de Em busca do tempo perdido) e o alemão Thomas Mann (autor, entre outros, de A montanha mágica e Morte
em Veneza), um dos grandes romancistas do século XX, responsável por influenciar gerações de escritores no
mundo inteiro.
O romance em questão, Ulisses, lançado originalmente em 1922, é livremente inspirado no poema épico
Odisseia, do grande poeta grego Homero, do século IX a.C., o qual narra o longo retorno do guerreiro Ulisses
para sua terra natal e para sua família após a conquista de Troia. O Ulisses de Joyce, que narra um dia na vida do
personagem Leopold Bloom em Dublin, é considerado até hoje um clássico da literatura mundial, mais
comentado do que propriamente lido, devido à leitura difícil, com frases sem pontuação, muitas referências
clássicas e uso de complexos recursos narrativos.
A primeira tradução para o português desta obra foi realizada pelo filólogo brasileiro Antônio Houaiss e lançada
em 1966. No ano de 2005, uma nova tradução, considerada mais coloquial e fluída, foi realizada pela tradutora
Bernardina da Silveira Pinheiro.
110
Os “fragmentos” desta obra incompleta de Pasolini serão publicados em Ali dos Olhos Azuis (2006). O poema
Inferno, do poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321), é o primeiro dos três poemas que compõem A Divina
Comédia, obra fundamental da poesia italiana, caracterizado por uma descrição angustiante e terrível dos
suplícios infernais.
111
Cf. nota 4 da crônica O dialeto na literatura italiana.
112
Cf. nota 1 da crônica O dialeto na literatura italiana.
113
Dialeto da língua italiana falado em Roma.
114
Cf. nota 7 da crônica Realismo e Neopurismo.
115
Mais importante pensador político do século XX na Itália, Antonio Gramsci (1891-1937), preso em 1926
devido a suas atividades políticas sob o regime fascista (em 1921 tinha sido um dos fundadores do Partido
Comunista Italiano), escreveu seus textos mais importantes durante os 20 anos em que esteve preso. Estes textos,
publicados apenas após o final da II Guerra Mundial, entre 1947 e 1953, compilados sob o título “Cadernos do
Cárcere”, que discutem desde questões de história política e cultural até o papel da Igreja Católica na sociedade
italiana, se tornaram a base de uma nova proposta de marxismo, alternativa ao então dominante stalinismo, o
chamado marxismo historicista. As ideias de Gramsci influenciaram múltiplos setores da sociedade italiana,
principalmente a área cultural, e não se limitaram aos círculos comunistas, mas chegaram também aos meios
laicos e católicos.
Os escritores italianos de esquerda se confrontaram especialmente com o volume Literatura e vida nacional, que
reúne a maior partes das reflexões literárias de Gramsci e que sensibilizou os intelectuais para o abismo existente
entre a cultura nacional e o povo.
A cultura italiana deste período, do final da II Guerra até cerca de 1960, motivada pelo desejo de renovação dos
intelectuais, foi profundamente marcada pelo populismo (desejo de identificação com o povo) e pelo
neorealismo, que produziu no cinema e na literatura obras originais que repercutiram mundialmente, através de
narrativas que resgatavam os fatos trágicos ocorridos na Itália antes e durante a II Guerra Mundial.
O romance Os Indiferentes, de Alberto Moravia, mesmo tendo sido escrito em 1929, foi considerado um dos
primeiros exemplares do que se poderia chamar uma obra neorealista. (Malato, 2000 e ASOR ROSA, A.
Novecento primo, secondo e terzo. Milano: Sansoni, 2004)
estilisticamente completo. No plano do conteúdo, também acredito que o neorrealismo ainda
não representou, com exceção do sul da Itália, os personagens mais típicos das categorias de
massa, condição indispensável para tornar conhecidos os sentimentos e aspirações comuns
da vida do país, relacionados com a realidade e os dramas quotidianos, que podem até
aparentar histórias cinzentas, inexpressivas, se não forem enriquecidas pelo gênio criativo
do artista, mas sempre as mais reais. Enfim, ainda falta um Tchekhov
116
moderno.
No entanto, como muitos, acredito que as dificuldades que impedem este objetivo
gramsciano ainda estejam:
1) na falta de poder de compra (e algumas vezes também de endereço) do livro por
uma grande parte do público, que condiciona o escritor a atingir e permanecer sobre a
“excepcionalidade” da vida real, para oferecer um prato sempre estimulante ao paladar
refinado de um limitado círculo de leitores, comprometendo-se com o sucesso comercial-
editorial;
2) na chegada do cinema e da televisão, que queimou muitas etapas da narrativa;
3) na integração econômica europeia, que escancara cada vez mais as portas para
uma contaminação linguística extra-nacional (o jornalismo como porta-voz) à qual se
juntam, no caminho aberto por Proust e Joyce da narrativa introspectiva, novas cnicas
estilísticas caso da sua próxima obra anunciada
117
que não consigo perceber se trazem
para este processo uma contribuição de mediação ou de confusão.
Ou, estaria eu fazendo a confusão?
Dino Guelfi – Arezzo
Me preocupo muito que você corra o risco de uma certa frieza e esquematização ao
colocar-se os problemas. Este é um defeito que, frequentemente, os homens da minha idade
repreendem nos jovens. Já eu, ao contrário, normalmente defendo, porque admiro a inclinação
deles, ainda natural, para o raciocínio. Nós tivemos tantas dificuldades para nos liberarmos
dos irracionalismos, dos requintes estetizantes, das tentações mistificadoras entre as quais nos
formamos, que a capacidade de raciocinar sem tantas histórias e dilemas sempre me fascina.
Mas entre o raciocinar e o raciocinar friamente existe uma frágil diferença, sobretudo
quando o problema em questão é quente, ou seja, quando o objeto do raciocínio é a literatura.
Ora, assim como existem as pessoas amorais, existem as pessoas aestéticas. Você arrisca um
pouco pertencer a esta categoria. Ou seja, despreza a emoção estética, que é quente, pela
pesquisa normativa, fria. Gramsci nunca é normativo, deixa aberto ao artista todos os
caminhos, não impõe modelos. Por exemplo, quando você cita Moravia como possível
modelo, em primeiro lugar, realiza um erro, digamos, de estrutura. Porque os módulos não
existem e dezenas de Moravias na Itália não fariam uma literatura nacional-popular, mas
constituiriam uma “série”. E depois um erro particular, porque você não se perguntou o
motivo pelo qual a língua de Moravia é um italiano tão simples e instrumental. Eu lhe digo.
116
Anton Tchekhov (1860-1904), famoso novelista e dramaturgo russo.
117
O leitor se refere ao romance A morta-viva, que nunca foi finalizado e cujos “fragmentos” foram publicados
em Alì dos Olhos Azuis (1965).
Porque Moravia, de formação e proveniência burguesa, conta histórias burguesas, de
ambientes linguisticamente parecidos com o seu. Ainda que ele, portanto, regrida e entre no
seu personagem, desce apenas alguns degraus na escala da hierarquia linguística, e permanece
sempre no grande âmbito da koiné burguesa nacional. Não sei o que aconteceria se Moravia
decidisse contar de dentro, objetivamente, e não do alto do seu nível cultural, ou seja,
subjetivamente, liricamente ou ensaísticamente uma história de subproletários napolitanos.
A movimentação linguística que se nota nos Contos Romanos
118
- onde o protagonista é
quase sempre um Moravia na versão popular enérgica seria evidentemente muito mais
profunda, e não poderia não assumir uma influência de Verga
119
... E então, adeus
simplicidade!
Gramsci, eu dizia, nunca foi normativo. tinha observado isto em um longo ensaio
sobre a recente narrativa italiana, publicado alguns anos atrás na revista Ulisse e hoje reunido
no volume Passione e Ideologia
120
.
Reproduzo aqui um pequeno trecho: “Ao indicar os problemas linguísticos, Gramsci
não explica qual deveria ser a pesquisa de um escritor que quisesse identificar em uma obra
sua o ideal nacional-popular. Ele se mantém em uma posição objetiva, problemática,
possibilística, com comportamentos de verdadeira grandeza filológica. Por exemplo: ‘É
interessante observar esta dupla corrente no século XVI: uma realmente nacional-popular (nos
dialetos, mas também no latim) ligada à novelística precedente, expressão da burguesia, e a
outra nobre, cortesã, antinacional, que no entanto é exaltada pelos oradores’. E ainda:
Manzonianos e classicistas possuíam um tipo de língua que queriam que prevalecesse.o é
justo dizer que estas discussões tenham sido inúteis e não tenham deixado marcas na cultura
moderna...’
121
. Igualmente utilizáveis, portanto, para a criação de uma literatura nacional-
popular, os instrumentos linguísticos naturais mais antagônicos: instrumentos vivíssimos,
vivos até demais (os dialetos), instrumentos mortos e ressuscitados (o latim), instrumentos
utópicos em função heterônoma (o manzonianismo), instrumentos utópicos em função
estritamente literária (o classicismo). Todos igualmente lidos, mas todos marcados pela
sentença: ‘Cada vez que surge, de um modo ou de outro, a questão da língua, significa que
118
A partir do volume Contos Romanos (1954), Moravia começa a introduzir aos poucos novos elementos na
sua narrativa, entre eles os dialetos.
119
Cf. nota 4 da crônica O dialeto na literatura italiana.
120
Primeiro volume de críticas literárias de Pasolini, publicado em 1960.
121
Gramsci se refere às propostas de Alessandro Manzoni, grande escritor do século XIX italiano, encarregado
pelo governo de encontrar uma solução para a fragmentação linguística do nascente Estado italiano, em meio ao
processo de unificação da Itália (1860-1870), que defendia, como veio a ocorrer, a adoção do dialeto florentino
culto como língua oficial em contraposição às centenas de dialetos.
uma série de outros problemas estão se impondo’”.
Por isto, meu caro Dino, o problema da língua é enfrentado, e não circundado
apelando-se a uma normativa inaplicável. Seria muito simples dizer que existe uma koiné
burguesa mais ou menos nacional, e portanto utilizar aquela. Ocorreria assim, uma ordenação
de cima, enquanto a unidade nacional-popular deve vir de baixo. E embaixo, existe, hoje, uma
babel linguística que, repito, não é ignorada, mas enfrentada em todas as suas complicações.
Quanto aos outros pontos da sua carta:
1) Concordo, o problema dos “destinatários” se coloca fortemente. E não é apenas
uma questão comercial, no sentido que a editoria começa a se tornar uma verdadeira indústria
(neocapitalista) e começa a ter objetivos diferentes daqueles dos autores (progressistas),
mas também que a sua sincronia, no maravilhoso desenvolvimento destes anos, é apenas
aparente. Mas tudo isto é uma questão ideológica. Quero dizer que o escritor de hoje leva em
conta, de modo essencial, o destinatário da sua obra, que ele concebe a literatura como um
diálogo histórico, e não como um monólogo meta-histórico.
2) O cinema e a TV são simplesmente concorrentes, que venham! A luta terá
resultados alternados, mas não duvido da vitória final do livro (entendido como não
industrializado, não reduzido a operação-livro para o “tempo livre”).
3) Uma integração cultural europeia sempre existiu. O que foi o hermetismo se não
um apêndice italiano e provincial do simbolismo parisiense (que estava então no centro da
preferência europeia)?
122
Proust e Joyce tiveram importância naquela época, o hoje. Agora
os olhamos (com um pouco de nostalgia) historicamente. E, em relação à minha nova obra,
A morta-viva, será um pastiche linguístico, mas externamente. Por dentro, será
ideologicamente uma. E não se preocupe, não se preocupe mesmo, lhe digo, se você se arrisca
a trazer um pouco de complicação. Porque tanto medo da complicação? A complicação é feita
para ser compreendida, e um mundo onde não existe complicação é um mundo conveniente,
tedioso e desumano.
Vie Nuove, 28 de janeiro de 1961
122
Poesia hermética, corrente literária italiana das primeiras décadas do século XX marcada por uma linguagem
obscura e simbólica, de difícil compreensão.
Indiferentismo católico
123
Caro Pasolini, porquê você fala tão mal de Carducci?
124
Talvez porque você seja o
novo D’Annunzio? Não sei se responderá a esta pergunta, mas se o fizesse em Vie Nuove
demonstraria uma admirável coragem.
Com as melhores saudações,
Stefano Grillini – via Montecuccoli, 7, Budrio (Bolonha)
Se a minha coragem, caro senhor, consistisse em levar em consideração a sua carta e
em respondê-la, não poderia certamente ser muito orgulhoso, nem me preocuparia em dar
demonstrações. Respondo para você, no entanto, para esclarecer uma circunstância: nesta
mesma coluna “falei mal” também de D’Annunzio, e com muito mais violência do que fiz
com Carducci. A sua ingênua insinuação não tem razão de existir. A realidade é que toda
formação é extremamente complexa e, entre os rios e contraditórios elementos que se
fundem no magma da minha produção literária, coexistem um pouco da lírica vica de
Carducci e um pouco da ênfase estilística de D’Annunzio. Eu sei disso. Mas sei também que
estas sobrevivências carduccianas e dannunzianas são puramente estilísticas e psicológicas,
e, exceto pelo fato que a contribuição deles é tão pouco significativa, são apenas um incidente
cutâneo. Ou seja, pertencem ao fundo indefinido e irracional de todo sistema linguístico.
Infelizmente, tenho uma formação cultural muito italiana. Mas detesto Carducci e
D’Annunzio pelo mundo ideológico que eles exprimem, mundo ideológico cuja mesquinhez,
hipocrisia e presunção ainda hoje nos oprimem. É o mundo ideológico da nossa burguesia.
Carducci tentou cantar as origens antigas, consideradas romanticamente, e aquelas mais
próximas, como a Revolução Francesa, mas sempre em um modo aproximativo e
comemorativo, fundamentalmente falso. D’Annunzio então, nem se fala. A sua ideia mítica
da história e a sua estetizante noção do homem são dois componentes essenciais da ridícula e
123
Giosuè Carducci (1835-1907), considerado símbolo do classicismo na Itália e um dos grandes poetas do
século XIX, ao lado de Gabriele D’Annunzio e Giovanni Pascoli, exerceu forte influência sobre a poética
italiana do século XX, especialmente pela sua obra-prima, Odi Barbare, na qual inova os esquemas de estrofes e
rimas e indica um caminho para os versos livres”. Durante o reinado de Umberto I (1878-1900), ao apoiar o
governo e elaborar um classicismo que se tornou modelo da retórica conservadora, ficou conhecido como “poeta
oficial da monarquia”. (Malato, v. VIII, 2000)
O questionamento do leitor exemplifica as comparações que começavam a ser feitas na Itália entre Pasolini, que
em 1961 estava começando a se tornar uma figura pública, com dois romances de grande sucesso, vários roteiros
para filmes de outros diretores, um filme próprio em fase de finalização (Accattone), além das polêmicas que
travava nos jornais e revistas literárias, e o grande poeta do decadentismo italiano, Gabriele D’Annunzio.
(Siciliano, 1978)
As comparações surgiram, e persistem até hoje, pois D’Annunzio é considerado o exemplo máximo da
conjunção entre jornalismo, literatura e política. Além de ter sido uma grande figura pública na sua época,
D’Annunzio também soube aproveitar os espaços na imprensa para expor suas obras, suas ideias e se tornar um
protagonista político. (Cf. nota 1 da crônica Um monumento para D’Annunzio)
124
O leitor se refere, provavelmente, a uma crônica publicada algumas semanas antes nesta mesma coluna, em
29 de abril de 1961, intitulada Discussione sul Carducci e não reproduzida neste trabalho.
maléfica ideologia fascista.
Mas lhe respondo também por uma outra razão: porque a sua carta me deu um dos
desprazeres típicos, e muito frequentes, que atormentam o meu dia. Esta foi a enésima
confirmação de um estado de fato irremediável, o cínico indiferentismo produzido pelo
catolicismo corrupto. Talvez estas sejam palavras pesadas em relação a você. Mas releia seu
bilhete e o analise. Este consiste, digamos, nos três seguintes pequenos parágrafos: 1)
“Porquê você fala tão mal de Carducci?” 2)”Talvez porque você seja o novo
D’Annunzio?”3) “Não sei se responderás a esta pergunta, ...”.
Então, o primeiro parágrafo traduz em um ato de praticidade instintiva um ato que, ao
contrário, era de intervenção crítica totalmente imparcial. Ou seja, você reduz para uma
discussão superficial maligna e alusiva aquela que deveria ser uma, ainda que simples, séria
constatação ideológica. Você, portanto, primeiramente, baixou totalmente o nível. Se isto não
é cinismo não saberia outro modo de chamá-lo.
O segundo parágrafo acentua a suposição de má-fé que o primeiro exprimia. Ou
seja, eu polemizaria com Carducci pois estaria interessado em fazê-lo enquanto neo-
D’Annunzio. Além de ser ridícula, tal suposição insensível de e mesquinharia indica
uma concepção pessimista do mundo de assustar. Típica do catolicismo contra-reformista. A
degeneração católica influencia também a imprecisão, o desprezo pela informação e pela
exatidão. Você escutou falar que eu seria dannunziano pelas vagas e ferozes insinuações da
imprensa burguesa que não conhece obstáculos para me difamar. Você realmente não se
informou sobre os meus textos, além de se privar de toda liberdade crítica e ter aceito a
interpretação mais indecentemente conformista sobre mim.
O terceiro parágrafo demonstra que você pensa que o comportamento comum e
definitivo na nossa sociedade é o medo do escândalo, a hipocrisia e o silêncio cauteloso. De
outro modo, não lhe passaria pela cabeça que é preciso coragem para responder a perguntas
como a sua.
Por fim, você me manda as suas melhores saudações, e eu as recebo e as mando de
volta. Não sou tão horrendamente pessimista quanto você. E quero lhe conceder todos os
benefícios da boa e, principalmente, da boa vontade para o futuro, visto que, como
suponho, você seja um jovem.
Vie Nuove, 20 de maio de 1961
Accattone e Tommasino
125
Sr. Pasolini, ... acredito que existe uma diferença fundamental entre as posturas dos
dois personagens, visto que em Tommasino o ponto de chegada” significa luta, vitalidade,
capacidade real ou provável de enfrentar as contradições da sociedade, enquanto em
Accattone, a temática dinâmica, considerada como possibilidade de se contrapor
dialeticamente à própria sociedade, termina devido a sua morte desejada, a um elemento
dialético que teria sido necessário em uma luta que é a própria realidade. Acredito
identificar neste final uma renúncia à reação e um prevalecimento de forças sociais e
econômicas que oprimem o indivíduo, visto que a morte de Accattone representa o “máximo
ponto de chegada”. De que modo a vitalidade de Tommasino, compreendida como
possibilidade de empreender uma luta social, pode estar relacionada com a “forçada”
renúncia à mesma da parte de Accattone? Faço estas perguntas porque ainda não vi o seu
filme. As citações foram tiradas da revista Cinema Nuovo n. 150
126
.
Marcello Romano – Terni
Ontem mesmo fui escolher o local onde serão filmadas as últimas cenas de Accattone.
Nas proximidades de Roma, em direção às montanhas e aos vales do sul do Lazio e,
precisamente, entre Subiaco e Olevano. Mas era sobretudo em Olevano que estava pensando,
como local pintado por Corot
127
. Lembrava das suas montanhas sutis e esfumaçadas,
compostas em perspectiva, como tantos enquadramentos de sublime, com uma etérea garça
contra um céu da mesma cor das montanhas. Devia escolher um vale que, em um sonho de
Accattone perto do final do filme, pouco antes da sua morte, representasse um bruto e denso
paraíso. Em resumo, Accattone não apenas morre mas vai para o paraíso. Você dirá: mas isto
é o cúmulo! Não apenas depois da “conversão” de Tommasino, P.P.P. nos apresenta um filme
no qual não existem conversões (do estado subproletário ao estado proletário e à luta de
classes), mas um filme no qual se confirma “a integração simbólica” do estado tradicional e
católico por excelência. E você teria razão em se escandalizar se as coisas fossem mesmo
assim.
Na realidade, a “crise” de Accattone é uma crise totalmente individual. Ocorre não
125
Accattone e Tommasino são os nomes dos protagonistas de duas importantes obras de Pasolini daquele
período, ambas ambientadas nas periferias de Roma, mas com perspectivas diferentes.
Accattone é o personagem principal do primeiro filme de Pasolini, Accattone (lançado no Brasil com o nome
Accattone Desajuste Social), de 1961. A história se passa nos bairros da periferia de Roma e apresenta uma
visão alegre do subproletariado, quase mítica, que mostra os personagens sobrevivendo através de pequenos
furtos, em um meio completamente marginalizado. Os atores do filme não são profissionais, mas moradores
reais das periferias romanas.
Tommasino, ou Tommaso Puzzilli, é o protagonista do segundo romance romano de Pasolini, Una Vita Violenta
(1959), que narra a trajetória deste garoto, proveniente de uma família miserável habitante da periferia de Roma,
que aos poucos vai deixando para trás o universo violento e imoral onde vivia, que lhe custou dois anos na
prisão, e adquire consciência social e política, após um período internado em uma clínica para tuberculosos, onde
entrou em contato com jovens politicamente engajados.
126
O leitor se refere, provavelmente, a um artigo publicado na revista Cinema Nuovo, edição de março-abril de
1961, intitulado L’Accattone de Pasolini.
127
Jean-Baptiste Camille Corot, pintor francês do século XVIII
apenas no âmbito da sua inconsequente e inconsciente personalidade, mas no âmbito da sua
inconsequente e inconsciente condição social. Se, por acaso, eu não tivesse tido a ideia de
falar sobre esta crise, a mesma teria passado anônima a si mesmo e aos outros, como um
fenômeno meteorológico em alguma zona desértica ou um desmoronamento dentro de algum
vulcão.
Mas, visto que este caso ocorreu (ou seja, minha presença dentro daquela alma
anônima), o fato terá algum sentido, escapa de algum modo da sua casualidade. Em
primeiro lugar, a análise de um problema deve necessariamente terminar com uma terapia
“prática”? Eu não sou um político ou sociólogo, mas um escritor. A terapia de um escritor
difere daquela de um político ou de um sociólogo, que está intimamente inserida nesta
análise, é inseparável desta, é um elemento integrante. Em outra palavras, o tratamento e a
esperança implícitos na análise social de um escritor são a sua “expressão”. Quanto mais esta
for pertinente e poética, menos haverá necessidade de integrações didáticas, educativas,
construtivas, etc.
Veja que, com isto, não quero negar que também se possa indicar na prática o
caminho da luta e da esperança. Foi isto que fiz em Una vita violenta. Mas a história de
Tommasino ocorria logo após os fatos da Hungria, ou seja, no momento em que um terrível
estado de crise anunciava nascentes e luminosas soluções. O fim da era de Stalin, uma
renovação interna e produtiva dos partidos comunistas. Era uma época da minha vida na qual,
como escritor, eu não podia não considerar sempre e constantemente aquela perspectiva de
qual falava e, portanto, esta não podia senão estar intrínseca e continuamente ligada à minha
inspiração
128
.
A história de Accattone, ao contrário, é mais breve. Tem a duração de um verão, que é
aquele do governo Tambroni
129
. Tudo, no meu país, naqueles meses, parecia recair nas suas
eternas constantes de mediocridade, superstição, submissão e inútil vitalidade.
128
Em fevereiro de 1956 ocorre o XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética, que abriu um
capítulo histórico de revisão do governo do ditador Joseph Stalin (1927-1953), seguido pela divulgação do
relatório secreto do então secretário-geral do partido, Nikita Kruschev, que revelava os crimes e desvios do
período stalinista. Entre outubro e novembro deste mesmo ano, a invasão da Hungria pelas tropas soviéticas e a
dura repressão contra a rebelião húngara aumentaram ainda mais o sentimento de decepção e destruição do mito
comunista da União Soviética em todo o mundo. (HOBSBAWM, E. Era dos extremos: o breve século XX 1914-
1991. Trad. de Marcos Santarrita. São Paulo, Companhia das Letras, 1994)
129
O tumultuado período do governo de extrema-direita de Fernando Tambroni, entre março e julho de 1960, foi
marcado por inúmeras crises internas nos partidos da coalizão governista, entre eles a Democracia Cristã e o
polêmico MSI (herdeiro político do antigo partido fascista e aliado fundamental deste governo), que culminaram
em violentos protestos de massa contra o governo, aos quais se juntaram também os movimentos antifascistas e
comunistas. Os fatos deste período marcaram o fim do renascimento da extrema-direita italiana, iniciado após
1956, e o início das alianças de centro-esquerda, que dominaram o poder na Itália até o início dos anos 90.
(Galli, 2004)
Foi neste momento que comecei a olhar para o que ocorria dentro da alma de um
subproletário da periferia romana (insisto em dizer que não se trata de uma exceção, mas de
um caso típico de pelo menos metade da Itália), onde reconheci todos os antigos males (e todo
o antigo, inocente, bem da vida pura). Era evidente a miséria material e moral, a feroz e inútil
ironia, a ânsia dispersa e obsessiva, a preguiça desdenhosa, a sensualidade sem ideais e,
somado a tudo isto, o seu ancestral, supersticioso catolicismo pagão. Por isso ele sonha em
morrer e ir para o paraíso. Por isso apenas a morte pode “determinar” o seu vago e confuso
ato de redenção. Não outra solução em volta dele, assim como em volta de um enorme
número de pessoas similares a ele. É muito, mas muito mais raro, um caso como o de
Tommasino do que um caso como o de Accattone. Com Tommasino criei um drama, com
Accattone uma tragédia, uma tragédia sem esperança, porque espero que sejam poucos os
espectadores que identificarão um significado de esperança no sinal da cruz com que o filme
termina.
Vie Nuove, 1º de julho de 1961
Dannunzianos de pantufas
130
Em primeiro lugar, lhe confesso que, até poucos meses atrás, ignorava a sua
existência, o seu nome e a sua atividade.
Mas agora, primeiro por algum artigozinho do noticiário policial, depois por algum
“deboche” na rádio, e ainda pela leitura de algum texto seu, soube da sua existência e que
você seria um escritor, um crítico, um poeta,... E tudo bem.
Um a mais, um a menos, não faz mal e, ainda que os seus comportamentos em
questões estético-literárias, a sua muito modesta intimidade com o ato de escrever em um
italiano diverso do dos leitores de Vie Nuove, os seus julgamentos categóricos e definitivos
sobre coisas, homens e problemas que você não pode conhecer, avaliar e compreender, me
deixavam um pouco em dúvida sobre o homem e sobre o escritor (chamemos assim), por
outro lado, alguns dos seus “aprofundamentos”, algumas das suas ousadíssimas e
fundamentalmente ingênuas afirmações, divertiam o velho polemista que cochila e caçoa
dentro de mim.
Mas nestas últimas semanas, entre você diretamente (com aquela iconoclástica e até
mesmo paradoxal resposta àquele bom homem de Teano que, bondade sua, pede piedade
para D’Annunzio ao Sr. P.P. Pasolini....
131
) e a resenha de Bo a um livro seu publicada
recentemente em um número de Europeo
132
, você e o seu crítico, poderia dizer o seu
hagiógrafo, passaram dos limites. Além de “crocianismo
133
genérico e insensato”, aversão
estilística de literato para literato” e outras tolices do gênero. Menos mal, Sr. Pasolini, que o
Vate
134
está morto, pois senão com um adjetivo humilharia você.
Mesmo com a sua retórica (que era a sua), mesmo com algumas formas que podem
ser perdoadas, mesmo com alguns comportamentos conscientes de narcisismo, D’Annunzio é
D’Annunzio e assim permanecerá durante os séculos e será preciso mais do que uma centena
de Pasolini e Bo (e Ungaretti e Montale e Quasimodo e, enfim, qualquer um que tenha
escrito nestes últimos sessenta anos) para que se possa fazer um confronto, pelo menos em
relação à literatura italiana.
E não quero ceder às citações, não quero abarrotar minha prosa com adjetivos, não
quero esboçar julgamentos de literatos de primeiro plano, não quero recordar o enorme
patrimônio linguístico, a cadenciada inspiração das suas prosas e poesias, o dramaturgo e o
Homem do Timavo e do Carnaro
135
. Deixo a você e ao seu contraditório crítico Bo o
130
Com a ascensão ao poder do ditador Benito Mussolini na Itália (1922-1945), os intelectuais italianos e,
principalmente, a imprensa passaram a sofrer um controle excessivo da parte do governo, que tinha como
preocupação central alcançar o consenso da população. Diante desta pressão, a postura mais comum entre os
jornalistas e escritores foi o conformismo e a aceitação da ideologia fascista. Nas duas décadas anteriores,
durante a chamada era Giolittiana (1900-1915), sob governo de Giovanni Giolitti, o mercado editorial italiano
tinha atingido uma maturidade e vivacidade inéditos, em um período considerado insuperado até hoje por muitos
críticos, devido ao forte debate cultural e político animado por uma ampla gama de jornais diários. A partir do
início dos anos 30, uma reação ao fascismo, mesmo que disfarçada, começou a se delinear, principalmente
através das revistas semanais, que sofriam menos com o controle fascista. (Asor Rosa, 2004)
Sobre Gabriele D’Annunzio, considerado o pai da retórica fascista, conferir nota 1 da crônica Um monumento
para D’Annunzio e a nota 1 da crônica Indiferentismo católico.
131
O leitor refere-se à coluna do dia 24 de junho de 1961, não reproduzida neste trabalho, a qual se referem
também as breves citações seguintes.
132
Na revista Europeo de 25 de junho de 1961 foi publicada uma resenha de Carlo Bo sobre a coletânea de
poesias de Pasolini La Religione del mio tempo, lançada em maio daquele ano e reunindo textos escritos entre
1955 e 1960. (Pasolini, 2006, p. 1815)
133
Em referência ao grande filósofo italiano Benedetto Croce (1866-1952).
134
Em referência ao poeta D’Annunzio.
135
Timavo e Carnaro são nomes de localidades na região onde D’Annunzio liderou a “Ocupação do Fiume”. Cf.
nota 1 do texto Um monumento a D’Annunzio.
incensário para adularem outros Deuses.
Este tem um altar muito alto para que o meu pobre incenso possa atingi-lo, mas, lhe
peço, ao menos você tenha o senso das proporções. Você vê, Senhor Pasolini, que eu, não
assinando, não saio dos limites de uma serena e educada polêmica, vamos chamá-la de
retificação, e portanto lhe digo apenas aquilo que diria se assinasse.
Se não assino é porque o meu nome não lhe diria nada e porque não quero aproximá-
lo do seu. E, também, porque desde 1944 que não escrevo em um jornal ou em uma
publicação e não quero fazer agora uma “rentrée” em uma revista como esta. Mas você
percebe pelo modo como lhe escrevo que não sou o habitual “anônimo covarde e, se
publicar a presente carta tempo e vontade permitindo lhe escreverei mais uma vez, visto
que tanto você quanto seu amigo Bo (você mais do que ele, para ser sincero) me interessam,
talvez apenas do ponto de vista zoológico.
E que chegamos ao ponto, tente evitar assumir o papel de pequeno populista com
atraso de duas gerações, reveja e corrija o seu problemático italiano de universidade
popular noturna, diga a Bo (ao crítico hermético que adora escrever difícil a qualquer custo,
me lembrando algumas páginas de Céline escritas em “argot”
136
e alguns discursos de jovens
atualizados em congressos partidários...) para não exagerar, porque exagerando se cai no
ridículo e o ridículo enterra.
E talvez, não seria ruim, acredite, leiam ambos um pouco de Guicciardini e de
Guerrazzi
137
, de Manzoni e de Verga, talvez de Baldini e de Panzini, talvez Brocchi e Gotta
(...não se horrorizem...), talvez de Monelli e Ansaldo. Com as melhores saudações.
M.P.
O anonimato no qual você cordialmente se esconde, gentil senhor, não é tão denso
para esconder o fato que você é fascista. Em 1944 parou de publicar, e pour cause
138
; depois
permaneceu à margem, e pour cause, e agora está aqui de novo, com um tom indiferente,
incisivo e um pouco boêmio, bancando o idealista. Se entende, portanto, como você adora
D’Annunzio, se entende porque você chama este poeta “o Homem do Timavo e do Carnaro”,
se entende como o irrita Carlo Bo, que durante o período fascista era exatamente o contrário
do que você desejava de um literato, e se entende, por fim, porque você tem tanta antipatia
por mim, furioso inimigo da institucional estupidez dos fascistas. Quanto a Baldini, Panzini,
Brocchi, Gotta, Monelli e Ansaldo
139
, são nomes que lhe aconselho a escrever sobre sua
lápide.
136
Louis-Ferdinand Céline (1894-1961), escritor francês acusado de racista e pró-nazista, é conhecido por
revolucionar a língua francesa ao escrever em formas diversas, incluindo o chamado “argot”, linguajar típico das
periferias francesas.
137
Francesco Guicciardini (1493-1540), historiador e diplomata italiano, famoso pela obra “Storia d’Italia 1494-
1536”, mais importante relato da história italiana daquele período. Francesco Domenico Guerrazzi (1804-1873),
escritor e político italiano, engajado no movimento pela Unificação do país, e contemporâneo de Alessandro
Manzoni.
138
Expressão francesa, significa “justamente”.
139
Nomes de intelectuais de destaque italianos que declaradamente aderiram à ideologia fascista durante o
governo de Mussolini.
Caro leitor, observe um pouco a carta a qual respondi aqui em poucas palavras. É um
documento muito interessante. Ele testemunha um tipo de fascismo não muito difuso, mas
essencial. Tenho dúvidas se o regime de Mussolini teria conseguido governar por tantos anos
se a imprensa e a rádio não tivessem contado com um grande número de pessoas parecidas
com o autor desta carta. Estas pessoas representavam o tecido cultural do fascismo. Ou seja, a
loucura transformada em regra.
Esta carta contém um profundo e misterioso masoquismo. Uma pessoa de uma certa
cultura (o anônimo é pelo menos formado ou graduado), que conhece a literatura clássica e,
bem ou mal, a história nacional, nega em bloco toda a experiência que de tal conhecimento
pode derivar para humilhá-la e aniquilá-la em uma espécie de exaltada “redução” à miséria
cultural pequeno-burguesa, sobre a qual o fascismo se baseava e da qual vivia. Hoje é bem
conhecida a ignorância do italiano dio que frequentou escolas estatais e não é de se
espantar que esta tão fraca consciência cultural estivesse pronta para aceitar a aberração
ideológica dos reacionários. Se compreende como um pequeno-burguês ignorante e
conformista pudesse aceitar, diria quase com deleite, os narcisísticos “pseudo-conceitos”
fascistas. Mas a coisa é menos fácil de compreender quando, ao invés de um profissional ou
um empregado, trata-se de um homem de cultura, um escritor, um jornalista, um literato, o
qual deveria, pelo menos, possuir os instrumentos elementares para identificar e analisar as
aberrações ideológicas e históricas como aquela fascista.
É verdade, a cultura italiana da primeira metade do século XX é algo muito mísero: é
um subproduto provincial da cultura europeia pós-romântica e decadente. Sobre isto,
Gramsci
140
escreveu páginas de valor incontestável. O próprio fascismo é um produto de alto
nível desta cultura. O super-homem, Wagner, a regressão narcisista a um tipo de vida remota,
helênica ou romana, a exaltação do eu, o desprezo pela massa, a vida inimitável (e chegamos
em D’Annunzio), são todos elementos culturais de alto nível destinados a formar o “gosto”
fascista.
Então, o que era um literato, um professor universitário, um jornalista com o uniforme
fascista? Um fato humorístico, antes de tudo, se quisermos rir. Mas, na realidade, a evolução
psicológica desta depravação não é tão complicada. Esta ocorria mais ou menos assim: o
nosso homem (por exemplo, o anônimo desta carta) era originalmente um dannunziano (ou
seja, um decadente provinciano, com a cabeça cheia de prosa de arte, de narcisismo vulgar, de
literatura clássica vista como glória nacional ao invés de produto histórico em evolução, em
resumo, de humanismo corrupto e acadêmico). A segunda etapa ideal era a transformação
140
Cf. nota 1 da crônica Paixão e Ideologia.
deste titanismo
141
sedentário e escolar em obsessão por ação (as iniciativas patrióticas, os
uniformes, os cassetetes, as marchas, o ressuscitar ativo de um passado morto e sepultado,
concretamente, o legionário romano, o navegador veneziano, entre outros), e a terceira etapa...
Neste ponto é preciso recordar que o pequeno-burguês italiano conformista tem como
característica principal, junto à sede de submissão, o medo do ridículo (a carta do anônimo em
questão fala claramente: “...não exagerar, porque exagerando se cai no ridículo e o ridículo
enterra”). A terceira etapa é, portanto, uma “correção”, para a normalidade conservadora,
pequeno-burguesa, “esperta”, do monstro dannunziano, do guerreiro com o uniforme fascista.
Assim tudo vai para o seu devido lugar. O nosso anônimo vestiu o chapéu de velho
polemista que cochila e caçoa dentro dele”, e sente, com profunda consolação, que um pouco
de vivacidade estilística, um pouco de humorismo, um pouco de scapigliatura
142
, um pouco
de boemia, um pouco de cultura clássica colocam tudo no lugar, retificam com uma série de
correções eufemísticas e redutoras, a excessiva seriedade do arcaico e combativo homem ideal
fascista. Enfim, o nosso anônimo parece querer dizer, secando alegremente o suor sob o
chapéu, com os olhos tomados por uma irônica felicidade: “Então, enxergam? Não é verdade
que os fascistas são fanáticos desesperados. Eu aceito todo o fascismo, incluindo Eichmann
143
,
certo! Mas, eu estou aqui, de chapéu de palha, tenho uma família e leio os clássicos... O meu
ódio contra os comunistas é até cordial! Eu saio para jantar e bebo com eles no restaurante! A
minha consciência deste ódio é tão profunda e sem limites que dou risada!”.
E assim, os homens de cultura, cujos nomes até hoje na Itália permanecem cobertos de
honra e respeito, vestiam o uniforme fascista, com a desculpa que eram depois, em casa, os
dannunzianos de pantufas.
Vie Nuove, 22 de julho de 1961
141
Comportamento típico do romantismo, marcado pelo sofrimento e revolta contra tudo o que limita as
possibilidades e as mudanças vitais do homem.
142
Scapigliatura” em italiano é sinônimo de “boemia, vida desregulada, etc”, mas também é o nome de um
movimento literário e artístico que ocorreu, principalmente em Milão, na segunda metade do século XIX,
marcado pelo inconformismo e pela rejeição da tradição clássica e romântica.
143
O criminoso nazista Adolf Eichmann, considerado principal responsável pelo Holocausto judeu, foi capturado
em agosto de 1960 na Argentina pelos serviços secretos israelenses e enviado para Israel, onde foi processado.
(Pasolini, 2006, p. 1814)
Dostoiévski e Victor Hugo
144
Caro Pasolini, sou um operário e me dirijo a você para pedir uma opinião. Tive uma
discussão com um amigo. Ele defendia que Dostoiévski é melhor e mais lido do que Victor
Hugo. Eu, ao contrário, dizia que não se podia fazer a comparação sem estudar a fundo. Nós
dois somos operários. Agora, lhe peço o favor de nos dizer a sua opinião, você que é um
escritor moderno muito preparado.
Mario De Santis – Roma
Em resumo, vocês me querem como juiz de uma aposta! E, que não se trata de uma
aposta de alienados (por exemplo, se o melhor é Lojacono ou Greaves...
145
), não me recuso a
intervir. E será fácil, porque se trata de dizer pura e simplesmente a minha opinião. O
“absurdo”, um pouco infantil, da aposta de vocês me impede de cair, neste caso, no excesso
de seriedade que, infelizmente, é habitual para mim (e que foi criticado inclusive pelos
leitores desta coluna).
Eu não gosto de Victor Hugo, e, pelo contrário, idolatro Dostoiévski. Do primeiro não
gosto da arte retórica (um crítico disse uma vez que Victor Hugo era estúpido como o
Himalaia), uma retórica que acreditava ser, com seus instrumentos, indiscutivelmente dona de
toda a realidade. Certamente, às vezes, a retórica, na sua suprema falsidade, pode ser sublime.
E Victor Hugo escreveu algumas poesias maravilhosas para esta sua absurda sublimidade,
para esta sua perfeição totalmente falsa. Mas nem por isso eu consigo gostar dele.
Dostoiévski era exatamente o contrário, não estava nunca “acima” da realidade, a
ordená-la com inabaláveis leis retóricas, mas estava sempre dentro” dela, inventando
incessantemente o modo de comunicá-la, de ser equivalente a ela, de não deixá-la escapar.
Não página de Dostoiévski que não corra o risco de ser feia, desproporcional, gratuita,
errada, excessiva, e, exatamente por isso, é sempre sincera e poética. O seu caos termina
sempre em ser puríssima ordem, a sua contradição, rigor. Eu li O Idiota com quinze anos, era
o primeiro livro sério que lia, depois dos livros de Salgari
146
(junto a Macbeth de
144
O escritor russo Fiodor Dostoievski (1821-1881) é considerado um dos maiores romancistas da história da
literatura mundial, autor entre outros livros de Crime e Castigo (1865), Notas do subsolo (1864) e O Idiota
(1869), no qual narra o destino do príncipe Michkin, um personagem destituído de qualquer maldade, que se
atraído pela bela e contraditória Natascha Filipovna.
O francês Victor Hugo (1802-1885), considerado o “pai da poesia moderna”, é autor, entre outras obras, dos
romances O Corcunda de Notre-Dame (1831) e Os Miseráveis (1862). Também representou um importante
papel político no seu país, tendo sido defensor de uma democracia liberal e humanitária.
145
O argentino naturalizado italiano Francisco Lojacono e o inglês Jimmy Greaves tiveram atuações de destaque
em equipes de futebol italianas durante o ano de 1961. O atacante Greaves atuava pelo Milan, enquanto o meio-
campista Lojacono jogava na Roma.
146
Emilio Salgari (1862-1911) escritor italiano que encantou gerações de jovens leitores com suas histórias de
aventuras e viagens.
Shapeskeare), e a emoção que senti ainda não se apagou.
Vie Nuove, 7 de outubro de 1961
A aventura de cada um
Caro Pasolini, na edição anterior de Vie Nuove, em uma das suas respostas
147
, li
algumas linhas que aludiam a um livro intitulado Autobiografias da Miséria. Estas linhas me
deixaram curioso, e gostaria de saber um pouco mais. Cordiais saudações,
S.P. - Agrigento
Sim, Autobiografias da Miséria
148
é um livro extremamente interessante (talvez mais
pelo ponto de vista estético que sociológico), organizado por um sociólogo, Danilo Montaldi,
pela editora Einaudi. São cinco autobiografias subproletárias reunidas com objetivo
documental, para documentar um segmento da vida da região sul da Lombardia
149
em uma
fase de passagem de um período histórico a outro. Sobre este assunto, a longa introdução do
organizador é exaustiva. Para mim, este livro importa, repito, como “caso literário”.
Estas autobiografias são, portanto, um caso de cultura “rebaixada”? Em um certo
sentido, pelo menos mecanicamente, sim. É claro que não teriam surgido se não tivesse
ocorrido uma solicitação sociológica direta, a exigência de um documento. Mas, também no
caso que a inspiração para produzir o documento tivesse sido autônoma, o nculo com a
cultura “superior” continua sendo considerado direto (por exemplo, as leituras feitas na
prisão) e, neste caso, se trataria de uma obra de paraliteratura que Bertolucci, Siciliano e eu
poderíamos levar em consideração para o segundo volume, sobre o século XX, dos nossos
Escritores da Realidade
150
.
De todo modo, mesmo que estas autobiografias sejam atribuíveis a uma cultura
popular pura ou a uma cultura semi-culta, certamente são um fenômeno muito novo, uma
verdadeira revolução estilística.
Vocês sabem que a principal característica da literatura popular é a “fixação”, a qual já
descrevi, sem reservas, na minha introdução à poesia popular italiana
151
. Não acho que devo
147
O leitor se refere à crônica Sincerità e altro, publicada nesta coluna em 15 de março de 1962 e não
reproduzida neste trabalho.
148
Autobiografie della leggera. Turim: Einaudi, 1961.
149
Também conhecida como Bassa Lombarda, localiza-se no noroeste da Itália.
150
Scrittori della Realtà Dal VIII al XIX, grande antologia que reúne textos escritos no mundo inteiro entre os
séculos VII e XIX, organizada por Pier Paolo Pasolini, Attilio Bertolucci, Enzo Siciliano e outros. Milão:
Garzanti, 1961.
151
Pasolini refere-se à introdução do seu livro Canzoniere Italiano – Antologia della poesia popolare, publicado
repeti-la, nem mesmo os pontos principais. Vou expor resumidamente que o poeta popular
não tem capacidade de inovação estilística e que as suas invenções, mesmo poéticas e
esplêndidas, nunca revolucionam a sua tradição métrica, linguística, melódica, codificada uma
vez para sempre.
Mas, o poeta popular tinha uma tradição em prosa? Certamente não, com exceção das
fábulas. E, então, surge este fenômeno popular absolutamente moderno que são as
autobiografias da miséria e afins. Aqui, o poeta popular é obrigado a inventar fora dos
padrões estilísticos, porque o narrar, mesmo desordenadamente, possui uma regulamentação
interna, como vocês bem sabem. É uma forma fechada, mesmo que possa parecer aberta... O
detento, o bandido e a prostituta que se preparam para o relato de memórias se encontram
diante de problemas formais, mesmo que inconscientemente. E devem resolvê-los sem ter
diante dos olhos a forma codificada, até às suas mais internas estruturas, de uma tradição
específica, como ocorria com os inventores de cantos fúnebres, stornelli, biojghe, villotte
152
,
etc.
Em suma, trata-se de criar um gênero, desconhecido para a cultura popular e
vagamente representado pela cultura burguesa.
Portanto, são “autobiografias faladas”? Não diria isso. O gravador, aqui, me parece
que não tem importância. O falante-escrevente me parece que tem plena consciência daquele
algo de especial, que é a “recordação da própria vida”, e a coloca inteira neste mito no qual
exalta, de modo malicioso, ou comovente, com moralismo prático, a aventura da sua
passagem pela terra. E, daqui, nasce também a consciência daquele algo de especial que é a
operação estilística, a ponto de colocá-la a serviço da recordação da própria vida como fato,
mesmo que humildemente inconveniente e, talvez também, indescritível.
A poesia não precisa de consciências complexas demais para dar errado, lhe basta esta
“consciência de algo de especial” que propus resumidamente aqui. Assim, a língua
normatizada, normativa, normalizante incha, e adeus normas. Surgem então os picos
expressivos, os picos vitais, a alusão, a metáfora. Existem passagens nestas autobiografias de
poesia memoriável, algumas navegações sobre o Rio Po, alguns interiores suburbanos...
Passagens estupendas.
Existem pessoas, não apenas da aristocracia intelectual burguesa, mas também
comunista, que insistem em considerar pessoas como estas que ditaram suas autobiografias
como não existentes, não falantes, não presentes, pouco mais que animais, enfim, privas de
espírito. o nada que me indigne mais do que uma condenação deste tipo, inapelável. O
sorriso de aborrecimento e compaixão que retorce os lábios burgueses destes intelectuais,
burgueses ou comunistas, ao falarem dos irremediáveis subproletários é o sintoma de um erro
profundo, uma verdadeira aberração: a ideia de que a história passe por apenas um estrato.
Mas a história é densa, passa por vários estratos! E o espírito não é mais do que a coincidência
semântica do indivíduo com a história. Um homem culto burguês ou comunista, com toda a
sua consciência e a sua problemática, pode ser totalmente irreal, ou seja, pode ser um caso de
patologia do espírito. Enquanto um destes memorialistas subproletários, sem consciência e
problemática cultas, pode compreender plenamente a coincidência que eu dizia e, com os
argumentos sólidos de uma poesia muito lúcida e concreta, representar perfeitamente um
“caso” humano nas classes baixas mas não menos significativas do nosso tempo.
Vie Nuove, 22 de março de 1962
Descoberta de Tommasino
153
Caro Pasolini, passei tanto tempo em um sanatório de tuberculosos e, infelizmente,
conheço quais são os problemas até hoje não resolvidos no campo antitubercular. Mas nunca
tinha visto uma denúncia tão aberta desta grave praga que ainda existe na Itália como no seu
filme Una Vita Violenta. Até hoje sempre se falou em sanatórios apenas para emocionar os
leitores, até mesmo dizendo que este mal (também chamado “mal de secar”) era uma doença
nobre reservada aos cavalheiros (como em A dama das camélias e outros romances do
gênero
154
). Você, ao contrário, fizeste muitas pessoas conhecerem coisas que a grande
maioria dos cidadãos não sabe. Coisas que ocorrem atualmente, como jovens que recebem
alta e tentam retornar para os sanatórios porque ali eles m o que comer. Uma época se ia
para o sanatório para morrer. Hoje, ao contrário, muitos são obrigados a se internarem
novamente para poder sobreviver. E, a sua denúncia é justamente esta. A polícia espanca e
prende os doentes quando estes pedem um tratamento melhor, enquanto do outro lado estão
famílias que não possuem nem mesmo uma casa e vivem em barracos, como ocorre em todas
as cidades (Livorno, infelizmente, necessitaria ainda de, pelo menos, 4 mil casas para
resolver este problema). Para tanto, junto ao agradecimento por ter enfrentado este
problema, gostaria de transmitir o pedido para que você continue a falar sobre isso em Vie
Nuove.
Nedo Panattoni – Rua Adriana, 29 - Livorno
Permita-me, em primeiro lugar, uma correção. O filme Una vita violenta não é meu. É
obra de dois jovens diretores, Brunello Rondi e Paolo Heusch. O mérito pela alta qualidade do
filme é todo deles. A trama de Una Vita violenta me apareceu repentinamente em uma noite
de 1953 ou 54, quando estava terminando de escrever Ragazzi di Vita. Existe um ponto da
Tiburtina
155
, na altura de Pietralata, e pouco antes de Tiburtino III e Ponte Mammolo (onde eu
morava na época), que se chama “Forte”. Ali se enxergam uma base militar, um bar, uma
em 1955.
152
Cantos populares italianos típicos de algumas regiões da Itália, os quais Pasolini cita, provavelmente,
embasado em seus estudos sobre este assunto reunidos em um volume publicado originalmente em 1955 (Cf.
nota 5).
153
Para escrever seus “romances romanos”, como são chamados os dois romances de Pasolini ambientados nas
periferias de Roma, Ragazzi di Vita (1955) e Una vita violenta (1959), o escritor se embasou principalmente na
sua experiência pessoal, visto que nos seus primeiros anos em Roma, entre 1950 e 1954, morou e trabalhou
como professor primário nos bairros periféricos de Roma. A Roma retratada por Pasolini nestas histórias era
uma Roma desconhecida dos próprios romanos, que falava uma outra língua, a Roma das periferias, onde se
misturavam camponeses, prostitutas e delinquentes.
Atualmente, estes locais descritos por Pasolini estão povoados por personagens diferentes daqueles
“subproletários” dos anos 50, em sua maioria italianos provenientes do sul do país e do campo em busca de
melhores condições na capital. Os protagonistas de hoje não seriam mais chamados de “borgatari” ( em
referência ao termo “borgate”, bairros de periferia) mas “extra-comunitari”, termo preconceituoso e depreciativo,
amplamente difuso em toda a Itália, para definir os imigrantes provenientes de países externos à União Europeia,
principalmente africanos, asiáticos e do Leste Europeu. ( Cf. nota 1 da crônica Accattone e Tommasino e nota 1
da crônica O dialeto na literatura italiana)
154
No romance A Dama das Camélias (1848), de Alexandre Dumas, a protagonista, uma cortesã francesa, sofre
de tuberculose.
155
Grande avenida de Roma, liga o centro da cidade à periferia sul.
fábrica, uma garagem de ônibus, os barracos e, por trás, uma colina, um monte sem vegetação
e infernal, o “Monte do Pecoraro” (que tantas vezes descrevi nos meus livros e que voltarei a
descrevê-lo no primeiro Canto do meu novo romance, um Inferno, precisamente, que se
chama La Mortaccia
156
).
Chovia, ou recém tinha parado de chover. Tinha um ar molhado e angustiante, com
aquele azul escuro, fúnebre e brilhante, que se revela no fundo do horizonte quando o tempo
se atenua para a noite, e já é muito tarde.
Eu caminhava pela lama. E ali, na parada do ônibus que desvia para Pietralata, conheci
Tommaso. Não se chamava Tommaso, mas era idêntico, de rosto, a como o descrevi depois
repetidamente nas ginas de Una vita violenta e vestia, do mesmo jeito, uma roupa
esfarrapada, mas “séria”, com a camisa branca, talvez suja, e uma gravatinha, violeta e lisa.
Como costumam fazer os jovens romanos, logo pegou confiança em mim e, em poucos
minutos, me contou toda sua história. O episódio que depois narrei no primeiro capítulo e a
sua doença no Sanatório Forlanini.
Depois desapareceu. Não o vi mais. Nem em Pietralata, nem em Tiburtino, em
nenhuma daquelas míseras ruas que circundam a Città di Dite
157
.
Quando cheguei ao capítulo sobre o Forlanini, tive que me preparar, porque em toda a
minha vida nunca tinha visto um hospital, senão devido a algumas visitas.
Conversei com dois antigos pacientes que se tornariam depois dois personagens do
romance, conversei com um dos médicos (irmão de um político comunista amigo meu) e
conversei, por fim, com alguns doentes anônimos. Cinco ou seis dias de trabalho. E foi tudo.
Como você pode perceber, não sou um especialista em matéria de hospitais ou
sanatórios, muito pelo contrário. Não tenho autorização para poder fazer licitamente o que
você me pede.
Por outro lado, se você soubesse quantos outros pedidos parecidos com o seu eu
recebo de todas as partes da Itália! Há alguns dias, um professor me pedia para escrever sobre
a terrível condição na qual se encontram as escolas elementares no sul do país; um jovem
mineiro toscano de Gerfalco me convidava a ir até a mina onde ele trabalha para relatar a
situação desumana...
158
Mas como eu faço? Vocês todos deveriam entender que descrevendo um “caso”
156
Cf. nota 2 da crônica O lançamento de Ulisses na Itália.
157
Città di Dite é uma das zonas do Inferno, primeiro dos três poemas de A Divina Comédia, de Dante Alighieri
(1265-1321), obra fundamental da poesia italiana caracterizada por uma descrição angustiante e terrível dos
suplícios infernais.
158
Pasolini se refere a textos publicados nesta mesma coluna e não reproduzidos neste trabalho.
italiano de miséria, de injustiça, pretendo simbolizar, sintetizar, todos os outros casos
parecidos, que, eu sei, são infinitos, na nova Itália do Bem-Estar Social que está nascendo,
com penosa imprudência, sobre o caminho da social-democracia (se tudo correr bem!)
159
.
A minha vida não mudou. Eu continuo a experimentar uma Itália que, por sua vez, não
mudou. A miséria, a indigência, o estado de injustiça, a angústia, a corrupção, não diminuíram
por nada, ao contrário, aumentaram. Falar de bem-estar social (daquele relativo bem-estar
social que consiste em não morrer de fome, em possuir um mínimo de dignidade econômica!)
é um insulto. Não sei como explicar o ímpeto de ira que sofri quando um crítico francês,
depois de ter assistido o meu filme Accattone, encolhendo os ombros, com o típico sorriso do
liberal laico e cético, disse: “Nada é verdade. Na Itália agora o bem-estar social”. Tive que
ranger os dentes para não chamá-lo de imbecil.
Vivemos em meio à farsa e à hipocrisia. Se eu fosse um profeta, faria profecias muito
tristes.
160
Vie Nuove, 12 de abril de 1962
O intelectual engajado
161
Caro Pasolini, em uma discussão entre amigos falávamos sobre o significado da
definição “intelectual engajado”. Alguns traziam o seu exemplo, outros aquele de Sartre
162
.
159
Em referência ao governo social-democrata vigente naqueles anos, fruto da coalizão de centro-esquerda entre
o partido Democrata-Cristão e o Partido Socialista Italiano, e às políticas de Bem-estar Social, em fase de
implantação na Itália e que geraram uma espécie de otimismo geral da parte da população.
160
Este texto foi citado pelo historiador Giulio Sapelli na obra Modernizzazione senza sviluppo Il capitalismo
secondo Pasolini (Milão: Mondadori, 2005, p. 16-17) como exemplo do lado “antropólogo” de Pasolini,
afirmando que seus “romances são trechos de diários etnográficos” e que o escritor consegue, através das suas
análises das periferias romanas, “criticar a modernização do país a partir de dentro da própria modernização”,
salientando “as sombras” do milagre econômico do final dos anos 50 e início dos anos 60.
161
O final da II Guerra Mundial e a queda do regime fascista na Itália marcaram o início de uma fase de
renovação da cultura italiana, inspirada pelo clima de libertação após a ampla participação popular nos
movimentos de resistência à ocupação nazista. A chamada fase do “engajamento” levou escritores e cineastas a
retratarem a realidade do país, destruído pela guerra e deixando para trás duas décadas de domínio fascista. Os
frutos mais conhecidos deste período são as obras-primas do cinema neorealista, filmes produzidos com baixos
orçamentos, filmados diretamente nas ruas das cidades ainda em ruínas e com atores não profissionais, como
Ladrões de Bicicleta de Vittorio De Sica e Roma Cidade Aberta de Roberto Rossellini.
Com o início dos anos 50, os intelectuais italianos passam a buscar novas formas de expressão e a cultura do
engajamento começa a se exaurir, passando para uma fase de um realismo mais maduro e, por vezes,
experimental.
Com o início dos anos 60 e o avanço do processo de industrialização da Itália, surgem novos movimentos de
vanguarda, especialmente o Gruppo 63, liderado, entre outros, pelo escritor Umberto Eco, que defendiam uma
nova linguagem literária capaz de afrontar a sociedade neocapitalista, ideologicamente autônoma e, portanto, em
confronto direto com a literatura engajada e o neorealismo. (Malato, 2000)
Pasolini foi um dos principais escritores “engajados” a entrar em polêmica aberta contra as novas vanguardas.
(Cf. comentários iniciais dos textos Realismo e Neopurismo e Paixão e Ideologia)
162
O filósofo francês Jean Paul Sartre foi um dos expoentes desta tendência na França, chamada por ele de
“l’engagement”.
Gostaria de saber a sua opinião sobre o assunto. E também como você julga deste ponto de
vista a cultura italiana, se possível, com alguns exemplos concretos. Eu não acredito que
“engajados” queira dizer apenas “ser antifascistas ou socialistas”, mas, ao contrário,
trabalhar com engajamento no seu próprio campo cultural, nas suas próprias obras. Mas
também me parece que uma exigência como esta, mesmo vindo de fora ou nascendo no
próprio artista, possa se tornar artificial e perigosa, porque poderia eliminar definitivamente
a liberdade do artista. O que você pensa? Em nome de todos os amigos, aceite nossas
afetuosas saudações.
Augusto Trulli – Reggio Emilia
A palavra engajamento possui hoje uma história muito longa. Mas antes de recapitulá-
la, gostaria de dizer que existe também um momento elementar e inalterável neste significado,
que consiste na participação do escritor na luta operária. Os modos desta luta são muitos, da
guerra armada ao debate pacífico e quotidiano. Não um modo mais certo do que outro e
muitas vezes eles podem coexistir. Basta que não se perca de vista a finalidade. Neste sentido,
o engajamento nunca podecolocar em dúvida a liberdade do artista, como você diz, porque
a participação na luta é uma escolha livre e faz parte da cultura do artista, é ele próprio. Não
existem compartimentos hermeticamente fechados em um homem. É o ideólogo ortodoxo de
partido de tipo stalinista
163
que pode ter pouca humanidade e, portanto, separar a humanidade
dos outros. Na sua loucura moralista, o político dogmático poderá colocar algumas regras que
gostará de ver aplicadas sempre com o álibi do finalismo. Na realidade, as confusões sobre a
palavra engajamento foram típicas do período stalinista e são devidas a uma espécie de
gigantesco moralismo de partido, do qual ainda hoje muitos comunistas sofrem as
consequências, como a tendência para um conformismo superficial e excessivamente pronto
para o escândalo diante dos “desvios” dos artistas. Na realidade, um artista tem o direito de
errar devido a uma contradição ou hipótese precoce ou atrasada. Ele não deve se calar sobre
nada, porque o maior pecado em um artista é a omissão. Se a sua função é a expressão,
portanto, o expressar é tudo. Algumas superações ou debates internos com a própria
natureza, com a própria educação, com as possíveis alternativas de compromisso, etc - que um
político realiza em silêncio, um poeta tem o dever de expressá-los publicamente. Se a sua
liberdade fosse limitada, seria um caso diferente, pois então teria uma função de orador, não
de artista. A sua função é a mais antidemagógica possível, correndo o risco de não ser
popular.
163
Em referência aos métodos e práticas políticas defendidas pelo ex-ditador soviético Joseph Stalin (1879-
1953).
Quis antepor este aspecto antes de um breve quadro do engajamento, porque, na sua
excentricidade, me parece absolutamente essencial.
O engajamento do pós-guerra era uma continuação ideal da Resistência e do
antifascismo. A participação do escritor na luta da classe operária consistia na busca da
realidade, em uma “poética realística”. Mas, logo foi possível refletir sobre a insuficiência
deste tipo de engajamento. Realmente: a) nesta poética interferiam poéticas anteriores, que
atrasavam a segurança e a precisão da denúncia; b) a realidade era vista como tal, e não como
uma série de problemas reais da sociedade; c) a Esperança, categoria ideológica menos
definida que conduzia ao neorealismo engajado, era na realidade uma sobrevivência pré-
marxista e irracional, que implicava um futuro inerte e quase metahistórico
164
, uma
improvável regeneração do homem.
A segunda fase do engajamento foi uma reformulação ideológica do neorealismo, que
aspirava limpar a busca do real de todos os elementos impuros que indiquei. Uma polêmica ao
mesmo tempo antineorealista e antinovecentista. Mas isto não impedia que todos estes
elementos, mesmo identificados e afastados, permanecessem.
Por exemplo, a análise realista pressupunha a conjunção de alguns problemas, como
aquele do proletariado ou aquele das fábricas, vistos do mesmo modo que um político. A
operação expressiva não podia absorver a linguagem real dos subproletários ou dos operários.
Nascia assim uma forma particular do discurso livre indireto, cuja principal função era a
objetividade. No entanto, os hábitos linguístico-estilísticos precedentes deslocavam sempre, e
insistentemente, esta função para um excesso de expressividade.
Diante dos primeiros sintomas reacionários (o ressurgimento do romance burguês, do
italiano como língua purista pseudo-nacional), o engajamento típico do pós-guerra se
encontrava em estado de vitalidade decadente. Nascia assim a fase do desengajamento, como
aceitação de uma realidade que regrediu para fases históricas que pareciam superadas para
sempre com a Resistência.
O revival decadentista chegou nestes últimos dois ou três anos a fases extremas. A
crise literária está em um estado quase caótico. As vanguardas enchem de insultos os
escritores tradicionais (engajados) e quem os responde está quase sempre fatalmente errado.
Novas violentíssimas terminologias descritivas, como a “tecnologia” ou a “massa”, tomaram
o lugar dos conhecimentos profundos dos problemas sociais, conforme uma típica estrutura
marxista. Não existe mais uma revista literária influente que expresse o pensamento dos
164
Metahistórico no sentido que transcende a história, que pode se referir a diversos períodos ou conceitos
históricos.
artistas de esquerda, muitos dos quais buscam novas fórmulas de engajamento destinadas à
impopularidade absoluta, enquanto outros declaram terminado o maiakóviskiano
165
“mandato
do escritor” (Fortini).
Esta crise tem origens apenas literárias ou culturais? Ou, se na base existe uma crise
econômico-social, como sempre, de que tipo de crise se trata? É uma clássica crise de
restabelecimento? Ou de modificações (na centro-esquerda) de certas situações que pareciam
irremediáveis?
Para mim, esta é uma crise sem precedentes no nosso passado, próximo ou longínquo.
Estamos em um momento de “zero” histórico (momento ideal, se entenda) e as vanguardas
estão, é verdade, na posição certa. Mas enquanto elas acreditam que esta foi uma livre
escolha, esta foi na realidade uma imposição. O momento zero foi tolerado. Ou seja, acabou
uma época histórica, e outra está começando. Acaba a Itália pseudo-nacional da indústria
monopolista, e começa uma Itália nova, que funda a própria realidade nacional sobre o poder
real da indústria neocapitalista e tecnocrática. Cada artista se adapta conforme uma
complicada e densa trama de projeções que partem do momento histórico que o determina e
que ele conhece e expressa. Quando este momento histórico é zero, o artista enlouquece. Fica
em um estado de confusão, ou de falsa segurança baseada em valores já superados.
Depois de viver esta situação impossível, e depois de entender do que realmente se
trata, partindo não do zero, mas da sumidade das experiências culturais e históricas vividas
também ao contrário, como desilusões, é que poderá começar um terceira fase do
engajamento.
Vie Nuove, 3 de dezembro de 1964
165
Em referência ao famoso poeta russo Vladimir Maiakósvski (1893-1930).
A língua tecnológica
166
Caro Pasolini, no dia 3 de fevereiro passado escutei você no debate sobre “língua e
literatura” na Casa de Cultura de Roma. Gostaria de saber se você não acha que, em todos
estes anos, o Partido Comunista Italiano, os sindicatos e as organizações políticas de
esquerda tenham contribuído de modo considerável, através dos comícios, das reuniões e dos
debates, para a criação de uma certa linguagem? Você não acha que, dada a amplitude da
influência destas organizações, e dada também a força de penetração dos argumentos, esta
linguagem, que era jargão, tenha se tornado também patrimônio da língua nacional, no seu
processo dialético? Para mim, parece um caso em que uma classe oprimida, através das
suas organizações, impôs uma modificação da linguagem.
Tonino Desiderio – Roma
166
A originalidade das percepções de Pasolini sobre as mudanças ocorridas na Itália durante os anos do chamado
Milagre Econômico (1958-1973) são exemplificadas neste texto, que refere-se a uma de suas intervenções mais
discutidas e relembradas até hoje. No final de 1964, Pasolini participou de uma conferência, depois publicada em
forma de artigo no jornal Rinascita com otulo Nuove Questione Linguistiche, quando analisou o nascimento,
pela primeira vez na Itália, de uma língua nacional, resultado da padronização linguística imposta pela burguesia
do norte industrializado do país e de caráter tecnocrática. Como afirma o historiador Giulio Sapelli, a resposta de
Pasolini na revista Vie Nuove é fundamental para a compreensão da maioria dos seus romances e também das
fases posteriores da sua carreira como cronista (Sapelli, 2005, p. 71). O artigo publicado no Rinascita originou
uma polêmica nacional, foi comentado e criticado nos principais jornais do país e, hoje, é considerado “um
diagnóstico da nova situação linguística, literária, cultural e política na qual entrava a sociedade italiana naqueles
anos” (Amoroso, 1997, p. 99-100). O artigo foi posteriormente incluído na coletânea Empirismo Eretico
(Milano: Garzanti, 1972).
Duas palavras para explicar o assunto aos leitores. Em uma conferência, publicada
depois no jornal Rinascita, eu argumentei que “o italiano nasceu como língua nacional”.
Expliquei que o italiano sempre foi uma língua literária (Dante o é o “pai do italiano”, mas
o “pai do italiano literário”). Com a unificação nacional, esta língua literária (usada
anteriormente fora da Toscana, apenas em casos irrelevantes e esporádicos, como língua de
uso ou instrumental) se tornou a língua das relações nacionais, a língua média da nação. Mas
nunca foi uma verdadeira língua nacional (como o francês ou o inglês, ou seja, uma ngua
conhecida, aceita e elaborada por todas as classes sociais), foi simplesmente a língua da
burguesia. Ou seja, uma língua utilizada por uma classe para defender os seus interesses
econômicos e políticos, os seus pretextos culturais e, enfim, a sua literatura, imposta de cima
às outras classes sociais, como uma língua estrangeira. O grande princípio unificador de cima
desta língua média, autoritário ou repreensivo, foi a burocracia, o aparato estatal. E os meios
de difusão, além da escola humanística e pequeno-burguesa, foram as infra-estruturas de base,
o exército, a ferrovia, os jornais, entre outros. O latim sempre tinha sido o grande modelo da
língua, e, agora, este modelo foi “aburguesado” através do “espírito burocrático-estatal”.
O italiano como língua nacional começa a existir nestes anos (mais como princípio e
possibilidade do que como realidade). O que aconteceu? A burguesia dominante tende a se
tornar hegemônica através da industrialização total do Norte do país, através de um novo tipo
de relações (neocolonialistas) com o Sul da Itália, através de uma ampliação dos meios de
produção e difusão da “cultura do poder”, principalmente a televisão, e através de um novo
tipo de urbanismo que é a emigração interna (no qual Milão e Turim substituem a América).
E, já que este “salto de qualidade” coincide – a nível mundial – com a evolução neocapitalista
rumo à tecnocracia e, linguisticamente, rumo à língua tecnológica, ocorre na Itália uma
verdadeira revolução social. A nova burguesia tecnocrática detém, em potência, o poder
econômico, a cultura e a língua. E, uma vez que essa necessariamente se identifica com toda a
nação, pela primeira vez se pode dizer que o italiano, pelo menos potencialmente, começa a
ser uma língua nacional. O seu princípio unificador não é mais o espírito burocrático, mas
aquele novo espírito, sem precedentes ou equivalentes no passado, que é o espírito
tecnológico, ou seja, a “cultura da ciência aplicada”. Turim e Milão são os centros geográficos
desta italianização, enquanto as empresas são as sedes ideais (no lugar das cortes, dos
conventos ou das universidades). Todos os vários tipos de linguagem do italiano foram
modificados ou uniformizados. Por exemplo, a linguagem dos políticos oficiais perdeu a
referência predominante ao latim e ao classicismo enfático, substituindo-a com uma
referência à eficiência comunicativa da língua da técnica.
Percebe-se que eu não desejo tudo isso, simplesmente constato. E, visto que a minha
constatação não ocorre fora do marxismo, mas de dentro do marxismo, esta constatação é
objetiva apenas como diagnóstico. Realmente não sou imparcial diante destes fenômenos,
quero saber com exatidão o que são e porque existem, para que minha crítica não se debata
contra os fantasmas, mas se modifique, adaptando-se às mudanças que o capitalismo impõe ao
mundo e à Itália com um pragmatismo cruel.
Por isso que intervenções como esta de Tonino Desiderio, e outras que ouvi no debate
ao qual Desiderio se refere, ocorrido na Casa de Cultura de Roma, me parecem sugeridas por
algo de autêntico, mas velho. Para mimo interessa celebrar as glórias e recordar os méritos
do PCI e do marxismo, aquilo que passou, passou. Além do mais, eu mesmo participei
daquilo que passou. Todo o meu “engajamento” de escritor, mesmo pelo lado linguístico, está
conectado com a luta operária e popular dos anos 40 e 50. Mas não quero perder tempo com
belas e heroicas recordações. Seguir em frente significa colocar em crise aquilo que ficou para
trás, sempre. Agora, o marxismo deve se colocar em crise para realmente agir no presente, na
última forma da realidade.
CONTESTAÇÃO LINGUÍSTICA
Quanto à intervenção de Desiderio, posso fazer a seguinte observação. Nem mesmo
uma revolução que leve o marxismo ao poder tem efeitos linguísticos imediatos, esta se
limita, inicialmente, a contestar e a excluir alguns elementos linguísticos típicos da classe
dominante anterior. A linguagem da luta política italiana teve, sem dúvidas, um grande peso
na evolução da língua italiana. Mas sobre isto se dedicarão os historiadores futuros. Nós não
podemos nos contentar nem devemos pensar que basta prosseguir pelo caminho que
percorremos até agora. Assim como a Italietta giolittiana
167
, burocrático-estatal, contestou e
derrotou o “classicismo agrário” (a nobreza acadêmica até D’Annunzio), substituindo-o
através de um estímulo de baixo, mas não popular, das classes médias, por um “classicismo
pequeno-burguês” (ou seja, a retórica fascista), após o movimento da Resistência, um
estímulo popular de baixo, liderado pelo PCI, conseguiu, por sua vez, contestar e derrotar o
classicismo fascista, encaminhando-se por uma estrada que a todos nós parecia boa de
renovação do italiano a partir de baixo, de italianização da Itália através da presença
167
Em referência ao período do início do século XX até a década de 50. (Sapelli, 2005, p. 74)
revolucionária do povo, através da ideia de Gramsci de uma literatura nacional-popular. Este
foi essencialmente o caminho italiano do engajamento (o neorealismo e a descoberta da Itália
popular e dialetal)
168
. Mas, agora, este caminho foi repentinamente interrompido por um
fenômeno novo, que desviou o processo histórico de italianização linguística. O fenômeno é o
mesmo que descrevi antes, o brutal estabelecimento da burguesia italiana como classe
hegemônica, que interrompe o grande sonho hegemônico comunista.
Portanto, da parte de um marxista, julgar e contestar linguisticamente o “possível
italiano nacional-tecnológico” significa julgar e contestar politicamente a nova fase histórica
da nossa burguesia. Ou seja, identificar a nova posição e a real consistência do inimigo, para
enfrentá-lo em um novo terreno e com os novos meios que a crítica do marxismo poderá
oferecer para si mesma.
Vie Nuove, 18 de fevereiro de 1965
168
Cf. nota 1 da crônica O intelectual engajado.
As razões de um não amor
169
Li o seu argumento intitulado A Águia e constatei uma francofobia acentuada, a qual
já percebo há tempos nas suas posições críticas e literárias. Na realidade, não compreendo o
que quer dizer a alegoria do domador francês, cujos esforços para domesticar a águia não
apenas resultam em vão, como ao final transformam ele próprio em uma águia. A sua
francofobia chega ao ponto de definir “flatulência” aquele pequeno sopro característico que
os franceses usam para salientar algumas frases. Mas o mais grave, que faz uma injustiça
com a França, com a sua cultura universal e sua tradicional generosidade, é que você coloca
todos os franceses no mesmo saco, como se nada do que é francês merecesse, não digo
admiração, mas pelo menos estima e compreensão. De fato, você coloca no panteão do Seu
soberano desprezo alguns representantes ilustres de correntes políticas contrastantes, de
Sarte a Mauriac, de Camus a Claudel.
Giordano Siviero – Terville (Moselle) – França
Começam as suposições, as acusações fáceis que partem de um particular isolado, ao
invés do conjunto. Eu não tenho nada contra a França, que considero o centro da minha
cultura. No meu episódio, tenho contra um certo tipo de intelectual laico parisiense, enquanto
representante supremo de uma certa burguesia do mundo ocidental. Além disso, tenho muitas
observações, até polêmicas, a fazer sobre a cultura francesa destes anos (mas Barthes, Fanon e
Lévi-Strauss são franceses!)
Aproveito para dar um giro de horizonte cultural, do qual é essencial o ponto de
partida “dentro de mim”, ou seja, a minha interpretação enquanto escritor nascido pela
Resistência e pela grande, e de algum modo, revolucionária revisão operada pela cultura
italiana sobre si mesma nos anos seguintes à Resistência
170
.
Não acredito que algo parecido com esta revisão tenha ocorrido, por exemplo, nos
países do Leste Europeu antes que o comunismo subisse ao poder. Ou, pelo menos, nada de
parecido ocorreu em proporções parecidas. Na Tchecoslováquia, na Romênia, na Hungria, na
Polônia, a tradição cultural era parecida com a italiana antes da Resistência, área marginal dos
grandes centros europeus, sobretudo Paris. Aliás, cidades como Praga (com o cubismo
praguense e Kafka) ou Varsóvia estavam, de algum modo, mais próximas a estes centros do
169
L’Aigle (ou L’Aquila) foi o primeiro dos três enredos cinematográficos publicados por Pasolini na sua coluna
em Vie Nuove entre abril e maio de 1965, que representavam o primeiro projeto de Gaviões e Passarinhos, filme
previsto originalmente em três episódios. A publicação destes textos suscitou imediata reação de outros críticos
literários, especialmente pelo conteúdo metafórico dos enredos, que, no fundo, discutiam a crise do marxismo
nos anos 50 (GRATTAROLA, F. Pasolini una vita violentata. Roma: Coniglio, 2005, p. 207). Na trama de
L’Aigle, um célebre domador francês enfrenta dificuldades em domesticar uma águia durante uma temporada em
Roma e acaba se tornando, ele próprio, um pássaro. O filme Gaviões e Passarinhos (Uccellacci e uccellini) foi
concluído no final de 1965 com o célebre comediante napolitano Antonio de Curtis, mais conhecido como Totó,
no papel principal. O ator, que atravessava uma fase de declínio físico e artístico, recebeu menção especial pela
interpretação no Festival de Cannes de 1966, além do prêmio Nastro d’argento para Melhor Ator Protagonista.
Pasolini, por sua vez, recebeu o prêmio Nastro d’argento de Melhor Roteiro Original.
170
Cf. nota 1 da crônica O intelectual engajado.
que a Itália (da qual é bem conhecido o extremo provincianismo do hermetismo católico e do
domínio de Croce). A compreensão da diversidade da literatura ocorreu nos países do Leste
Europeu em coincidência com a conquista do poder pelo comunismo. Mesmo a grande
operação de Lukács ocorreu sob o signo desta coincidência. O poder e a cultura criticavam
juntos a cultura anterior, mas as duas operações são, em essência, incompatíveis, pois a crítica
que o poder opera sobre uma cultura falha em consistência e dramaticidade. A sua dialética é
abstrata, elimina alguma coisa assim que percebe que ela não está bem. Não tem e nunca terá
a coragem de viver o mal contraditoriamente. Quando decide esquecer o passado, faz isso
abstratamente, apresentando a sua negação como uma “média” das negações particulares
vivas de todos os cidadãos de boa vontade, incluindo os literatos. Não aceitará nunca que o
passado, esquecido e anulado, continue, na realidade, a fornecer modelos e formas de
pensamento. Se o aceita depois, então planeja fórmulas que tornam tudo isto externo. Por
exemplo, as “vias nacionais ao socialismo”, que se revelaram flatus vocis (se a nacionalidade
for considerada como história, ou seja, como mal-bem, como realidade bruta mas concreta,
como tradição inesquecível absolutamente alheia a qualquer revolução, etc). A coincidência,
portanto, de uma “crítica do poder” e de uma “crítica da cultura” à cultura anterior é apenas
aparente e, nas primeiras fases, condizente. Logo depois, ela revela sua incompatibilidade. O
conflito entre cultura e poder nos Estados socialistas do Leste é certamente apenas um dos
problemas da “continuação” da revolução. Mas, aos nossos olhos, é talvez o principal
problema. Pois a consistência dos problemas culturais vistos pelas “pessoas culturais”, pelos
poetas, pode se apresentar também como símbolo da consistência dos problemas de todo o
povo. Além disso, eles têm, hoje, como objetivo direto uma mudança constitucional (a
abolição dos controles, das pré-censuras e das censuras), ou seja, requerem uma ação. Uma
ação que deve ser coroada pelo sucesso, mas que também revela uma profunda e inquieta
incapacidade dos homens de cultura dos países do Leste Europeu de saberem hoje o que eles
mesmos querem, qual seria o seu programa de liberdade. O fato, por exemplo, que eles sejam
tão inclinados aos revivals formalísticos (na Tchecoslováquia e na Hungria existe uma paixão
clandestina indiscriminada pelas vanguardas, tanto pelas vanguardas operantes hoje no mundo
quanto pelos movimentos vanguardistas das respectivas tradições novecentistas pré-
revolucionárias). Tudo isto depende, repito, do fato que a inteligência destes países não
operou antes da revolução uma crítica revolucionária total às formas da cultura anterior
(como, ao contrário, ocorreu com a Resistência na Itália).
Na Espanha, na clandestinidade e na indiferença de um povo reduzido simplesmente a
viver, se tenta algo parecido com a Itália (vejam o “realismo crítico” espanhol e a
99
considerável quantidade de poesia revolucionária, ainda que apenas algumas vezes, e de modo
pateticamente sublime, antifranquista).
Quanto à França, nesta nação, assim como em todas as nações “opulentas” do Norte
da Europa, não existe interrupção desde Rimbaud ou Flaubert
171
, nunca ocorreu uma
revolução crítica, em nenhuma geração. A encadeação entre os modos literários nunca foi
interrompida. A hierarquia dos valores sempre foi a mesma e nunca uma divisão, fictícia ou
real, destingiu o panteão francês. Não existiu uma verdadeira literatura do engajamento (a
Resistência trouxe obras, muitas vezes magníficas, mas ligadas estilisticamente à tradição
anterior). À contínua e genial presença ensaística de Sartre, não se somou uma produção tão
relevante a ponto de constituir um novo período literário, o engagement foi quase
exclusivamente ensaístico, ao invés de criativo. Na cabeça de um jovem homem de cultura
marxista francês não existe um cânone moral de escolha literária, no seu panteão está Sartre
ao lado de Mauriac, Tel Quel ao lado de Clarté
172
, as hostilidades e as aversões ocorrem todas
antes da operação literária, do ponto de vista ensaístico ou ideológico. A obra literária pronta
é julgada pelo estilo, e o estilo não teve interrupção desde Rimbaud ou Flaubert a 1965. A
dramaticidade desta contradição não foi exposta, permaneceu adormentada dentro das novas
gerações francesas, que não sabem encontrar a força ideológica para superar ideologicamente
de modo radical os seus antepassados, fazê-los decair e morrer, mesmo que talvez
injustamente do ponto de vista estritamente estético. O panteão está saturado, mas o catálogo
ainda está disponível para novas classificações. E nenhum jovem francês decide pela expulsão
dos antigos deuses do panteão lotado para colocar ali os novos. Ele não saberia, na realidade,
qual critério seguir senão aquele das escolas literárias. Por outro lado, se um fanático, em
nome de uma condenação ideológica derivada das pesquisas italianas dos anos 50, quisesse
recomeçar do zero, esvaziaria o panteão, que se tornaria tout court uma basílica dedicada a
São Sartre e às suas constelações. O marxismo francês não expressou uma força cultural
média que exercitasse uma crítica revolucionaria em relação à cultura anterior ao marxismo.
Talvez porque na França não havia possibilidade de escândalo, e nada se coloca em relação
escandalosamente dialética com o liberalismo francês.
Vie Nuove, 27 de maio de 1965
171
Sobre Rimbaud, cf. nota 7 da crônica Um sistema para estudar. Gustave Flaubert (1821-1880), lebre
escritor francês autor do famoso romance Madame Bovary.
172
Tel Quel é o nome de uma influente revista literária francesa, referência entre os estruturalistas, publicada
entre 1962 e 1982. Já Clarté é o título de uma revista de cunho comunista editada nos anos 20.
100
ANEXO IMAGENS
101
Exemplos da diagramação da coluna de Pasolini em Vie Nuove (figuras 1 a 4).
102
Matérias de jornais diversos noticiando o processo movido contra Pasolini por assalto a mão
armada em 1961 (figuras 5, 6 e 8) e a acusação de envolvimento em um assalto em 1960
(figura 7).
103
Pasolini retratado na imprensa italiana durante o ano de 1962. Na figura 13, a matéria a qual
Pasolini se refere na crônica Fascistas: pais e filhos.
104
A conturbada estréia do filme Mamma Roma em Roma retratada pela revista Lo Specchio. Cf.
crônica O filme e a crítica.
105
O ano de 1964, marcado pelo lançamento do livro Poesia in forma di rosa e pela estréia do
filme O Evangelho segundo São Mateus.
106
A matéria de Maria A. Macciocchi sobre o encontro de Pasolini com Sartre em Paris para o
jornal L 'Unità (figura 20) e uma foto de Pasolini e Moravia em Fez, no Marrocos, durante a
viagem realizada no início de 1965 (figura 21). Cf. crônicas Poesia em forma de polêmica e
Viagem ao Marrocos.
107
CULTURA
Vida mundana
173
173
Entre o final dos anos 50 e o início dos anos 60, Pasolini começa a tornar-se uma figura pública central no
108
Como você, que adora se definir marxista, pensa conseguir conciliar a repugnância
pela sociedade em que vive, nos seus livros e em todos os seus textos ou conferências, com a
constante participação, enquanto homem-Pasolini, na vida mundana da capital?
Não seria a sua sagrada fúria marxista incoerente com o seu desejo de envolver-se
intensamente com os amigos burgueses para poder escrever por toda a parte, para estar
sempre nas manchetes, em resumo, para levar uma vida completamente “burguesa”?
Roberto Salvadori – Florença
Cassola
174
, durante uma nossa polêmica literária, amigável, no entanto, também me
fez esta mesma acusação. Desculpe-me, mas você, aos domingos ou nas noites com tempo
bom, não sai para se divertir com os amigos no centro da cidade, onde, como em todas as
cidades italianas, ocorre o típico “passeggio”? E Cassola, não irá passear no Corso di
Grosseto, onde ocorre um vai-e-vem de belas mulheres e da nata da juventude? Quem mora
em Roma vai passear na Via Veneto. Eu quase nunca vou lá, uma vez por mês, ou até menos.
Mas, quando vou, encontro os fotógrafos, que... fixam para a eternidade aquela minha
presença casual. Quanto às manchetes, maravilhosas! Se você soubesse quanto às considero!
Mas não se pode fugir das revistas e dos jornais, porque não se pode desaparecer.
Afinal, detesto toda forma moralista e mística de vida. Seria estúpido se eu bancasse o
eremita em nome do marxismo. Mas acredite em mim, minha vida mundana não existe, é pura
cenário cultural italiano e, principalmente devido ao seu estilo de vida, torna-se também alvo das mais variadas
acusações de uma parte da imprensa nacional. O dramático relacionamento do escritor com a imprensa e o
grande público começa em torno de 1959 e se estende pelo resto da sua vida. Diversos volumes documentam
esse aspecto da vida de Pasolini, como os livros Una strategia del linciaggio e delle mistificazioni – L’immagine
di Pasolini nelle deformazione mediatiche (CHIESI, R.[org.]Bologna: Tip. Moderna, 2005), Pasolini una vita
violentata (Grattarola, op. cit., 2005), e, principalmente, Pasolini: cronaca giudiziaria, persecuzione, morte
(Milano: Garzanti, 1977), volume organizado pela atriz Laura Betti para documentar os 33 procedimentos
judiciários que envolveram o escritor entre os anos de 1949 e 1977, acusado principalmente de “corrupção e
obscenidade”. Betti indica o período entre os anos de 1960 e 1963 como a primeira fase destes processos,
quando Pasolini é identificado pela imprensa “como um transgressor”, eleito pela “opinião reacionária como
símbolo de uma cultura subversiva e negadora dos valores morais tradicionais” e, por fim, usado “como uma das
tantas peças ao centro da estratégia de tensão que acompanhava as mudanças políticas” em curso no país
naqueles anos. Diversas reportagens publicadas na época nos principais jornais e revistas italianos confirmam
esta péssima imagem do escritor construída pela imprensa.
174
Carlo Cassola, escritor italiano contemporâneo de Pasolini. Cf. nota 1 crônica Realismo e Neopurismo.
109
colagem de notícias jornalísticas. Nestes últimos quatro ou cinco meses, desenvolvi o seguinte
trabalho: cinco roteiros (La vita urlata, La lunga notte del’43, La giornata balorda, Il carro
armato, Il Gobbo del Quarticciolo)
3
, comecei um sexto (aquele do meu filme, Accattone),
traduzi a tragédia grega Oresteia de Ésquilo, comecei o meu novo livro (La Mortaccia
4
),
escrevi algumas poesias e muitos artigos, respondi a inquéritos e etc. Você acha que quando
alguém trabalha deste jeito tenha tempo para se entregar à vida mundana?
Vie Nuove, 9 de julho de 1960
O fascismo e o massacre em Ferrara em dezembro de 1943
175
Assisti recentemente em Ferrara o filme La lunga notte del’ 43
176
e devo confessar que
gostei muito. Como pertenço à geração que nunca conheceu o fascismo (nasci em 1941) e
poucos foram aqueles que nos fizeram conhecê-lo, mesmo o cinema pouco produziu neste
campo, me dirijo a você, que colaborou com o filme, para saber se os fatos narrados no filme
Lunga notte del’ 43 foram baseados em um episódio que realmente aconteceu. Agradeço se
quiser me responder e queira aceitar meus respeitosos cumprimentos.
Marta Roncarati – S. Venanzio di Galliera (Bolonha)
Mas prezada Marta, se você perguntar para qualquer pessoa que seja ao menos dez
anos mais velha do que você, se é verdade, ou não, o que foi narrado no filme Notte del 43,
só poderá receber uma resposta afirmativa. Pergunte, faça as pessoas mais velhas falarem, seu
pai, sua mãe, seus tios. Fale também com algum judeu, que talvez se lembre melhor... Verá
que ao falarem destes fatos, que para você parecem tão remotos (como a I Guerra Mundial
quando eu era criança), será muito fácil perceber lágrimas brilhando nos olhos de quem fala,
3
Quatro destes roteiros viraram efetivamente filmes: La giornata balorda (1960), dirigido por Mauro Bolognini,
La lunga notte del’ 43 (1960), dirigido por Florestano Vancini, Il carro armato dell’8 settembre (1960), comédia
dirigida por Gianni Puccini, e Il gobbo del Quarticciolo (1960), dirigido por Carlo Lizzani. Estes filmes, assim
como a maior parte das obras assinadas por Pasolini, sofreram procedimentos de censura da parte do governo
italiano.
4
Os “fragmentos” desta obra incompleta de Pasolini estão publicados, no Brasil, com o título A morta-viva no
volume Ali dos Olhos Azuis (São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2006).
175
A questão da sobrevivência da ideologia fascista na Itália é até hoje um assunto delicado. O historiador
brasileiro João Fábio Bertonha, em seu estudo sobre a Itália e os italianos, indica alguns aspectos referentes às
heranças do fascismo no país. Com fim da II Guerra Mundial e a intensa guerra civil que assolou o país entre
1943 e 1945, os italianos se afastaram rapidamente do fascismo, “que tornou-se uma página virada na história do
país, ou pelo menos algo que a maioria do povo procuraria esquecer”. Durante as décadas de 20 e 30 o governo
de Mussolini dominou a Itália com pleno apoio dos setores conservadores da sociedade. Para Bertonha, o
esforço para não remexer o passado fascista teve como “efeito colateral a sobrevivência de setores políticos e
culturais simpáticos ao antigo regime”, além de uma “herança autoritária na estrutura política” que influencia a
história da república italiana até hoje. (BERTONHA, J.F. Os italianos. São Paulo: Contexto, 2005, p. 197-207)
176
O filme La lunga notte del’ 43 (1960), do diretor estreante Florestano Vancini, com roteiro assinado por
Pasolini, narra o massacre de onze militantes antifascistas ocorrido em dezembro de 1943 na cidade de Ferrara.
A obra recebeu o prêmio de melhor revelação no Festival de Veneza de 1961.
110
porque, na realidade, estes fatos são recentes. Para mim, parece que foi ontem o momento em
que fiquei sabendo que meu irmão, partigiano
177
, tinha morrido e tive que dar a notícia para
minha mãe. O tempo não apagou nada e ainda preciso cerrar os dentes para segurar as
lágrimas.
Também estive recentemente em Ferrara, justo para falar publicamente sobre o filme
La notte del’ 43. Percebi que entre os ferrareses ainda se fala daquele massacre assombroso
com uma memória muito lúcida e participativa.
Sim: primeiro Giorgio Bassani, autor do conto no qual foi baseado o filme (você pode
lê-lo no volume Storie ferraresi, publicado pela Einaudi, e cujo título deixe-me vangloriar
um pouco? fui eu quem sugeri ao meu amigo Bassani
178
), depois o diretor Florestano
Vancini, que fez a adaptação cinematográfica do texto, e por fim, Ennio De Concini e eu,
roteiristas, todos fomos pesquisar diretamente na história, através de depoimentos orais, da
imprensa e de publicações da época.
Lembro com grande emoção, espalhadas aqui, sobre a minha mesa, as folhas
amareladas dos jornais e as edições pobres, mas tão admiravelmente cheias de esperança e
ideais, publicadas no imediato pós-guerra.
Eu queria ter usado estes depoimentos ao da letra, ser fiel sem nenhum
177
O irmão mais novo de Pasolini, Guido, morreu com apenas 19 anos no início de 1945 em um controverso
episódio da guerrilha antifascista no Friuli, quando 22 guerrilheiros partigiani foram fuzilados por outros
guerrilheiros partigiani.
178
No Brasil foram publicados apenas os dois principais romances de Giorgio Bassani: O jardim dos Finzi-
Contini (Record, 2008) e Óculos de ouro (Berlendis&Vertecchia, 2002), ambos ambientados na cidade de
Ferrara.
111
compromisso. Evidentemente, isto não era possível. No entanto, eu tentei. No roteiro se pode
ler uma cena que, para minha grande dor, acabou não sendo filmada, na qual Pino Barilari, da
janela, ao amanhecer, olhando os mortos sobre a calçada, diz à esposa, muda, os nomes de
alguns dos fuzilados, reconhecendo-os. Esta simples enumeração podia ser um momento
quase épico, dolorosamente humano. E havia também uma variação do roteiro, em que
escrevi um rápido diálogo entre algumas mulheres, diante das quais passava Anna, que
contava outros fatos “reais” daquela madrugada.
Eu tinha lido as notícias em uma daquelas edições pobres que lhe dizia, intitulada 15
Novembre, um pequeno folheto editado pelo “Comitê de Honra dos Mortos pela Liberdade” e
que talvez você ainda possa encontrar e ler na biblioteca de Ferrara.
Mas, não é suficiente para você caminhar ao longo do muro do Castello e ler as
lápides?
5
Não é preciso muita criatividade para imaginar aqueles nomes em forma de pessoas,
pessoas vivas, cidadãos honestos, gente que trabalha. E imaginar também as suas esposas, os
seus filhos...
Tudo isto, no entanto, são apenas dados reais, puros e simples, ainda que permeados
de comoção. Eles não podem bastar. Quero dizer, não podem bastar a você, jovem, e a todos
da sua geração, que este problema, que você me coloca, não é um problema que se refere
apenas a você, mas a todos da sua idade, a todos aqueles que nasceram e cresceram depois
daqueles fatos. O problema, deste ponto de vista, se torna enorme, se presta a uma série de
considerações, as quais lhe mostro algumas, ao acaso.
5
Castello Estense, em Ferrara, símbolo do poder durante o governo fascista, possui ainda hoje algumas lápides
em memória dos mortos durante a II Guerra Mundial.
112
1) Em geral, o problema do fascismo é questionado apenas pelos jovens de famílias
burguesas, ou seja, os estudantes. Os jovens do povo, operários ou subproletários, ao
contrário, possuem uma noção exata dos fatos, a qual não colocam em discussão, ainda que
seja grosseira e elementar. O fascismo foi um episódio de opressão dos ricos sobre os pobres,
dos patrões sobre os trabalhadores, um episódio encerrado e que não deve mais se repetir.
Ocorreu em Gênova e em Reggio Emilia.
Para os estudantes, ou jovens da burguesia, é diferente. Para eles o fascismo, ou aquele
fantasma ou ideia de fascismo que possuem em mente, pode ser realmente uma tentação ou
uma alternativa.
Impedidos, na família e na escola (naturalmente falo de um modo geral), sequer de
pensarem em outro partido, que não seja oficial, governativo, normal, com todos os estigmas
da consagração clerical, e, por outro lado, descontentes com o seu mundo, com a sua vida,
inquietos, reprimidos, buscam uma via de saída: assim o os teddy boys
6
do tipo daqueles
que mataram recentemente um frentista em Roma. Os teddy boys se encaixam na tipologia da
delinquência neofascista.
2) Na escola nunca se fez nada para impedir as tentações e nostalgias fascistas nos
estudantes. Em todos os jornais democráticos, assim como nos livros escolares, foi repetido
milhares de vezes que a história termina na I Guerra Mundial, ou se continua, continua com
um tom “objetivo” ambíguo.
Primeira providência a tomar e finalmente parece que decidiram é atualizar os
6
Denominação de uma subcultura juvenil pica dos anos 50 e 60 na Europa, originalmente britânica, que se
identificava com grupos neonazistas e xenófobos.
113
livros escolares, pelo menos na informação. Mas, e será suficiente?
Imagine um livro de história totalmente marcado por uma visão mítica, absurda e
reacionária da história, no pior dos casos, ou que se mantenha em uma espécie de banho-
maria de objetividade, no melhor dos casos. Seria concebível em um texto do gênero um
apêndice realmente antifascista?
Toda a interpretação da história, desde os Assírio-babilônicos até hoje, deve ser
marcada por uma visão moderna e antifascista. Veja, por exemplo, como a história do
pontificado é vista nos textos escolares... Estamos mal!
Enfim, não basta obter um complemento sobre os fatos, sobre os fatos simples e puros,
ocorridos nas últimas décadas. É preciso proporcionar aos estudantes uma interpretação, uma
explicação, através da qual a ação atroz, estúpida e vergonhosa do fascismo resulte como uma
consequência, um “como se devia demonstrar”.
3) Mas a classe dirigente quer realmente que os seus filhos sejam antifascistas? Ou,
pelo contrário, será que nesta classe não existem fortes reservas mentais pelas quais deseja, no
fundo, que esta possibilidade de alternativa ou conivência permaneça para os seus filhos?
Houve um momento, neste último verão, realmente de assustar. A aliança de Tramboni com
os fascistas, protegida pela polícia e abençoada pelo Vaticano
7
. Se você quer ter uma ideia do
que foi o fascismo, pense naqueles dias, os quais você também viveu, mesmo que
indiretamente e imaturamente. Pense no ar repreensivo e autoritário daquele governo, nos
7
Pasolini refere-se ao governo de extrema-direita de Fernando Tambroni entre abril e julho de 1960, originário
de uma conturbada aliança entre a Democracia Cristã e o Movimento Sociale Italiano (MSI), herdeiro político do
antigo partido fascista. Cf. nota 5 da crônica Accattone e Tommasino.
114
ataques da polícia, na chantagem clerical.
Esta é uma ameaça permanente na sociedade italiana. E toda a esperança de um futuro
mais civil e livre está em vocês, na nova geração.
Vie Nuove, 8 de outubro de 1960
Brigitte Bardot e os excessos da imprensa sensacionalista
179
Prezado Pasolini, não me interesso muito por fofocas cinematográficas e coisas do
gênero, mas confesso que a notícia sobre a tentativa de suicídio de Brigitte Bardot
180
realmente me comoveu, ainda mais porque os jornais continuam a afirmar que ela queria
mesmo morrer. É possível que uma garota como ela, que teve tudo da vida, quisesse mesmo
morrer? O que você pensa? Cordialmente,
(assinatura ilegível) - Vicenza
Você acha que Brigitte Bardot “teve tudo da vida”? Eu não. É verdade que não
conheço a atriz, nem seu marido ou Roger Vadim, nem nenhuma das outras pessoas que estão
a seu redor e, sobre este seu último episódio, li apenas os títulos das matérias nos jornais.
Apenas a ideia de ler estas matérias me deprimia profundamente, jamais teria conseguido
afrontá-las. Sei o quanto o trabalho jornalístico é falso. Pega pedaços isolados da realidade,
chamativos, cujo significado seja imediatamente assimilável, logo transformados em uma
espécie de fórmula, para depois remendá-los indevidamente através de um “tom” moralista
que está pura e simplesmente a serviço do leitor. O jornalista burguês não pensa, nem por um
179
O cineasta Giuseppe Bertolucci definiu comohorríveis feridas midiáticas” o conturbado relacionamento da
imprensa italiana com Pasolini ao longo da sua carreira (Chiesi, 2005, p.3). Entre os meses de junho e julho de
1960, dois fatos de crônica policial envolvendo o escritor rechearam páginas e páginas de jornais e revistas
italianos, principalmente aqueles identificados com os partidos de direita.
Na manhã do dia 30 de junho de 1960, Pasolini é acusado pela polícia de Roma de ter facilitado a fuga de um
criminoso ao lhe dar uma carona. O escritor declara o ter conhecimento do furto e que interveio no caso
apenas para apartar uma briga. A história, ocorrida em uma rua de um bairro popular no centro de Roma
conhecida como rua dos ladrões”, foi devorada pela imprensa, que passou a utilizar o adjetivo “pasoliniano”
como jargão jornalístico para personagens e áreas criminais. A antiga “rua dos ladrões” passou a ser chamada de
“turbulenta área de Pasolini”. (Betti, 1977, p. 115)
No dia 11 de julho de 1960 Pasolini é denunciado por corrupção de menores pelos pais de dois adolescentes. No
dia anterior, dois jornalistas romanos informaram a polícia da cidade de Anzio que assistiram um breve encontro
de Pasolini com alguns meninos no porto da localidade. Em dezembro do mesmo ano, Pasolini será absolvido do
processo pois os “fatos não constituíram crime”. Duas semanas depois da denúncia, a famosa revista Lo
Specchio publicou uma reconstrução do caso em forma de conto, com diversos detalhes totalmente inventados.
A reportagem, ilustrada com fotos de meninos em trajes de banho, foi intitulada “As presas”. (Chiesi, 2005, p. 3-
14) Cf. também nota 1 da crônica Uma vida mundana.
180
A atriz francesa Brigitte Bardot estreou no cinema com apenas 17 anos em 1952. Ao final da década de 50
era considerada o maior símbolo sexual do cinema europeu e um fenômeno mundial de popularidade. Entre 1953
e 1957 foi casada com o diretor de cinema Roger Vadim, com quem trabalhou em diversos filmes. Em 1959 se
casou novamente com o ator Jacques Charrier, em um relacionamento que se tornou alvo constante dos
paparazzi e provocou mudanças na sua carreira.
115
instante, em servir à verdade, em ser de algum modo honesto, ou seja, pessoal. Ele se
despersonaliza totalmente para deixar falar no seu lugar um público hipotético, que ele
naturalmente considera conservador mas idiota, normal mas cruel, incensurável mas
mesquinho.
Dadas estas ótimas bases, pense no que podemos ter descoberto de verdadeiro lendo
os jornais.
Não me detive sobre este fato para acrescentar um tranquilizador diploma de incerteza
à minha opinião sobre a tentativa de suicídio de Bardot, mas por uma outra razão: para lhe
mostrar como é uma vida totalmente mediada por esta relação jornalística, uma vida
totalmente manipulada para o público.
Isto é o sucesso: uma vida mistificada pelos outros, que se torna mistificada para você
mesmo, e acaba por lhe transformar realmente. Frequentemente se fala sobre alguém que não
soube suportar o sucesso, querendo dizer que a pessoa se tornou egoísta e arrogante ou que
não conseguiu continuar merecendo-o, trabalhando com a mesma paixão, a mesma
autenticidade, etc.
Na verdade, não suportar o sucesso é outra coisa. Quer dizer entregar-se à mistificação
que ele implica. Que é uma mistificação terrível. O mais assustador indiferentismo,
puramente mundano, ou o mais cruel sectarismo, praticado pelo poder através dos
instrumentos que tem em mãos. De tempos em tempos, em torno da pessoa “que obteve o
sucesso”, se cria uma atmosfera totalmente arbitrária. Os seus atos, os seus gestos, as suas
palavras se cicatrizam em uma espécie de fixação mortal, na qual se condensa, como em um
composto químico, o mito da celebridade. O qual deveria ser aquele que dá significado a tudo,
que preenche cada hora da vida da estrela ou da personagem, mas que na realidade não existe,
é pura suposição jornalística, um processo exploratório dos donos dos jornais ou dos
produtores, que com uma crueldade digna dos animais mais ferozes, usam uma pessoa como
instrumento, quase com desprezo, com cinismo sádico.
É uma espécie de jogo, cujas regras são aceitas pelas duas partes. De um lado os
aproveitadores, produtores, editores, diretores de revistas burguesas que sejam, do outro, o
explorado, ou seja, a pessoa que teve a desgraça de ter sucesso. Regras desumanas, nas quais
as palavras respeito, gratidão, seriedade e piedade não possuem sentido. Certamente, este é
um dos lados mais clamorosamente imorais da sociedade capitalista. Eu, que de um modo
certamente limitado em relação a B.B., obtive nestes anos um pouco de sucesso, sei o que isto
quer dizer. E compreendo muito bem as intenções suicidas daquela garota. Sei o que significa
sermos olhados como animais em extinção, sermos expostos sem distinção ao ódio (e muito
116
menos à simpatia), sermos continuamente e sistematicamente falsificados, utilizados
brutalmente para “produzir notícia”.
Não acredito que Brigitte Bardot tenha tentado se suicidar apenas por alguma
decepção amorosa, ou, se isto realmente ocorreu, foi um pretexto. Eu conheço muitas destas
garotas, alçadas à cena das celebridades (ainda que não exatamente como B.B.) e vejo nelas
os sintomas de uma espécie de neurose, dissociativa, que poderia se chamar “neurose do
sucesso”, a qual os médicos ainda não identificaram, a não ser, imagino, classificando-a
moderadamente como “esgotamento”. A sua ação dissociativa é clara, quando se pensa que
objetivamente a personalidade é dividida em duas: uma humildemente quotidiana, verdadeira,
e a outra, falsificada, muitas vezes de forma cruel, que constitui o mito dos booms
jornalísticos.
Vie Nuove, 15 de outubro de 1960
117
Luz de Julho
181
Gostaria de dedicar estes versos, os quais escrevi nos dias de Natal e que precederam a
poesia Julho (Luglio), publicada depois no jornal Unità de 29 de dezembro de 1960, ao jovem
operário S. M. Casssola e ao jovem estudante Giuliano Brambilla
2
. S.M. e Brambilla estão
idealmente entre os protagonistas daquela “luz” que se fala nestes versos. Nunca uma
dedicatória foi tão interna ao tema.
São os últimos dias do ano. O bem-estar
instiga, no final da tarde, em todos os homens
uma espécie de loucura: o desejo escondido
de serem mais felizes do que são...
É uma esperança que sempre dá pena, mesmo
o pequeno burguês mais cego tem razão
de tê-la, de tremer: existe um momento
no qual também ele, enfim, vive de paixão.
E toda a capital deste pobre país
é uma ânsia única de carros, uma corrida
angustiada para as velhas compras
de Natal, como em uma necessidade ressurgida.
181
O conteúdo desta poesia se refere às grandes manifestações de massa ocorridas em diversas cidades da Itália
durante o mês de julho de 1960, em protesto ao governo formado pela Democracia Cristã em aliança com o MSI,
partido herdeiro político do movimento fascista de Mussolini. Nestas manifestações, às quais a polícia reagiu
com violência, alguns manifestantes morreram e muitos outros ficaram feridos. Os protestos populares
influenciaram a queda do governo de extrema direita e o início das negociações para a duradoura aliança da DC
com o Partido Socialista, a chamada centro-esquerda. (Galli, 2004, p. 125-126) A poesia Luglio a que Pasolini se
refere foi posteriormente incluída no volume Bestemmia Tutte le poesie Vol. IV, org. Graziella Chiarcossi e
Walter Siti. Milano: Garzanti, 1996, p. 528.
2
Em duas cartas anteriores, aqui não reproduzidas, o primeiro leitor falava sobre suas intenções de se inscrever
no PCI e sobre a censura, enquanto o segundo falava sobre suas intensas discussões políticas com os colegas de
escola não comunistas.
118
Poderosa luz de Julho, volta, ofusca
este fraco crepúsculo de paz,
que não é paz, este conforto que assusta,
devolve palavras à dor que silencia.
Envia os cadáveres ainda ensanguentados
dos garotos que você iluminou poderosamente;
que venham aqui, entre estes revigorados
conservadores, entre esta esquecida gente.
Venham, junto com o seu resplendor de praças
que campos de batalha ou cemitérios viraram,
entre estas cínicas igrejas onde a raça
dos servos à sua covardia de ontem retorna.
Venham entre nós, a quem não restou mais
do que a esperança de uma luta que desespera:
a luz de Natal, ou de Páscoa, não existe mais.
Você é a luz, agora, da Itália verdadeira.
Vie Nuove, 21 de janeiro de 1961
119
Moravia e Antonioni
182
Caro Pasolini, acompanho com atenção a sua coluna e concordo com o seu
posicionamento. Gostaria de lhe perguntar, visto que tantas obras literárias e artísticas em
geral são inspiradas pela chamada “solidão” do homem moderno ou, mais precisamente,
pela desumana condição do homem na sociedade atual, qual a justificativa destas obras, a
sua validade, a sua importância e função. E as razões culturais deste comportamento. Com
os meus cumprimentos.
Giovanni Stefani – Via S. Egidio, 3 – Florença
O seu bilhete, caro Stefani, é um convite a escrever um livro. Você fala de “obras
literárias e artísticas” produzidas neste último período. Se eu fosse responder à risca, e com a
minha típica raiva analítica, acabaria escrevendo um capítulo inteiro de história da cultura.
Mas quero tomar a sua pergunta como uma solicitação e discutir sobre assuntos atuais: as
últimas “obras literárias e artísticas” as quais você se refere são, provavelmente, os filmes de
Michelangelo Antonioni e o romance La noia de Alberto Moravia.
Tanto A noite quanto La noia expressam, como você diz, a “solidão” do homem
moderno, ou “mais precisamente, a desumana condição do homem na sociedade atual”. No
entanto, existe uma diferença fundamental entre as duas obras.
A Noite foi escrita diretamente pelo autor, Antonioni
183
. La Moreau é “ela” e
Mastroianni é “ele”. Mesmo com essa objetividade narrativa, a obra é extremamente subjetiva
182
O cineasta Michelangelo Antonioni (1912-2007) foi um dos maiores nomes do cinema mundial e produziu
obras primas como Passageiro: Profissão – Repórter (1975) e Blow-up - Depois daquele beijo (1966).
O escritor e jornalista Alberto Moravia (1907-1990) é considerado um dos grandes escritores do século XX.
Entre os seus mais conhecidos romances estão Os Indiferentes (1929), adaptado para o cinema por Francesco
Maselli em 1964, e A Romana (1947). Outras obras suas também foram adaptadas para o cinema, com destaque
para O desprezo (1963), de Jean-luc Godard, e O Conformista (1970), de Bernardo Bertolucci.
183
O filme A noite (1961) foi estrelado pelos atores Marcello Mastroianni e Jeanne Moureau e forma com os
filmes A Aventura (1960) e O Eclipse (1962) a chamada “Trilogia da Incomunicabilidade” do diretor italiano, na
qual ele reflete sobre a solidão e o tédio da vida moderna das grandes cidades. A obra, que venceu o prêmio Urso
de Ouro de melhor filme do Festival de Cinema de Berlim daquele ano, se passa na cidade de Milão e narra uma
noite repleta de momentos de angústia na vida de um casal que passa por uma crise no relacionamento.
120
e lírica. Os dois personagens, “ela” e “ele”, não passam de flatus vocis, incumbidos de
expressar aquele vago, irracional e quase indescritível estado de angústia que é típico do
autor, e que nos personagens se torna quase um sentimento refletido ou relacionado.
No romance La noia ocorre o contrário
184
. A história foi escrita indiretamente pelo
autor. Dino, o protagonista, é o próprio “eu” que narra e, mesmo com esta subjetividade
narrativa, a obra é extremamente objetiva e consciente. O personagem “eu” é apenas um
recurso usado para expressar um estado de angústia bem claro, contextualizado, racional no
autor e restituído à sua imprecisão, que se torna consistência poética no personagem. As duas
obras expressam a angústia do homem burguês moderno, mas através de duas metodologias
poéticas bem diferentes, as quais revelam uma fundamental diferença de base ideológica.
Para Antonioni, o mundo no qual ocorrem fatos e sentimentos como aqueles do seu
filme é um mundo fixo, um sistema imutável, absoluto, com algo até mesmo de sagrado. A
angústia age sem que se tenha conhecimento, como em todos os mundos naturais, a abelha
não sabe que é uma abelha, a rosa não sabe que é uma rosa, o selvagem não sabe que é um
selvagem.
Aqueles da abelha, da rosa e do selvagem são mundos fora da história, eternos em si
mesmos, sem perspectivas senão na profundidade sensível.
Assim, os personagens de Antonioni não sabem que são personagens angustiados, não
se questionaram sobre a angústia, a não ser através da sensibilidade pura, sofrem de um mal
que não sabem do que se trata. Sofrem e basta. Ela sai descascando paredes neuroticamente,
ele circula com sua face atormentada pelas ruas e festas, sem começo nem fim. Além disso,
Antonioni não nos deixa entender, supor ou intuir de alguma maneira que é diferente dos seus
personagens. Assim como seus personagens que se limitam a sofrer a angústia sem saber do
que se trata, Antonioni se limita a descrever a angústia sem saber do que se trata.
Moravia, ao contrário, sabe muito bem. Assim como seu personagem, Dino, que vive
184
O romance La noia (edição brasileira: Vidas Vazias. Trad. Marina Colassanti. São Paulo: Edibolso, 1977),
lançado em 1960, venceu o Prêmio Viareggio daquele ano, um dos mais importantes reconhecimentos literários
da Itália. Na história, o protagonista Dino, um artista plástico na faixa dos 35 anos de idade e proveniente de uma
família rica de Roma, está dominado pelo tédio e passa por uma crise de criação artística. Neste período, se
entrega a um relacionamento destrutivo com uma modelo.
121
e atua em um nível cultural apenas um degrau inferior ao de Moravia. Portanto, por todo o
romance ocorrem discussões, análises, definições sobre a angústia (no livro chamada “tédio”).
Esta é consequência de um complexo do jovem burguês rico, que implica em uma deprimente
impossibilidade de relações normais com o mundo: a neurose, a angústia. O único modo de
escapar dela é entregando-se à libido, mas a libido também se revela apenas mecanismo e
obsessão. Isto é o que o personagem sabe. Moravia, naturalmente, sabe um pouco mais. Ele
sabe que a psicologia não é apenas psicologia, mas também sociologia. Sabe que aquele
“complexo” que se falava, se é um fato estritamente pessoal, é também um fato social,
decorrente de uma relação equivocada de classes sociais, ou seja, de uma relação equivocada
entre pobres e ricos, entre intelectual e operário, entre refinado e ignorante, entre moralista e
ingênuo. Em outras palavras, Moravia conhece Marx, o seu protagonista não. Por isso o
protagonista debate tanto sobre o seu mal, acaba caindo no vazio e tem um valor puramente
imitativo e lírico. Para chegar à solução, falta aquela palavra que Moravia conhece e seu
protagonista não. La noia é uma romance esplêndido, cuja última página deveria ser uma
tragédia, ao invés de uma interrupção. Morava deveria ter a força de não dar nenhuma
esperança ao seu protagonista, porque o seu mal é um mal incurável. Não existem forças
externas nem ideais de sincretismo humanístico capazes de libertá-lo.
Infelizmente, o público burguês médio, e também muitos intelectuais (mesmo rindo de
algumas piadas de mau gosto sobre o filme), se reconhece mais no A noite do que no romance
La noia. Deixando de lado a hipocrisia, pela qual eles não gostariam jamais de admitirem-se
tomados pela loucura erótica do protagonista moraviano, eles percebem que os personagens
“pura-angústia” do filme A noite refletem melhor o seu desejo fundamental de não
enfrentarem problemas racionais, a sua rejeição a qualquer forma de crítica e a satisfação
íntima de viverem em um mundo angustiado, mas, aos seus olhos, salvos pelo requinte da
angústia.
Vie Nuove, 16 de março de 1961
122
Onde está a “obscenidade”?
185
Excelentíssimo Senhor Pasolini, sou uma estudante do segundo ano do Ensino Médio
clássico. Meu professor de religião defende que a Igreja não é obscurantista, que religião e
ciência concordam perfeitamente. Ele também defende o Índice dos Livros Proibidos com o
argumento de que alguns livros podem produzir efeitos nocivos sobre a maioria das pessoas.
Gostaria da sua opinião a propósito. Também gostaria de lhe perguntar, já que a literatura e
o cinema modernos são acusados de imoralidade e de exibir “obscenidades”, se o seu livro
Una vita violenta precisava dos episódios de Tommasino e Irene no campo e nas tardes de
domingo para resultar eficaz. A mesma pergunta cabe, em minha opinião, para a cena de
estupro em Rocco e os seus irmãos
2
.
Maria Pizzardi - Bolonha
1) O seu professor de religião mente. A religião e a ciência não concordam de modo
algum. O seu professor de religião seguiu um velho processo, típico da hipocrisia contra-
reformista. Ou seja, deu à palavra “religião” o significado e a importância que ela tem (natural
para um católico), mas retirou da palavra “ciência” o seu real significado e a sua real
importância. Nestes últimos meses ocorreu um ridículo e desprezível posicionamento do clero
185
Em 1966 o Vaticano aboliu definitivamente o seu Index librorum prohibitorum, ou seja, a sua lista de livros
proibidos aos católicos. Instituído em 1542 com o objetivo de combater a Reforma Protestante, o Índice incluiu
muitos entre os autores mais conhecidos da literatura mundial, como os grandes romancistas franceses do século
XIX, como Flaubert, Zola, Balzac e Dumas. Na segunda metade do século XX, nomes como Sartre, Simone de
Beauvoir e Moravia também foram incluídos no índice. Em 1962, a revista italiana Settimana Incom publicou
uma reportagem na qual afirmava que o conjunto da obra de Pasolini estava sendo avaliado pelo Santo Ofício,
tribunal eclesiástico responsável pela inclusão de obras e autores no Índice. A reportagem também criticava a
existência desta prática e considerava provável a sua abolição no próximo Concílio Vaticano, o que realmente
veio a acontecer em 1966, sob o pontificado de Paulo VI. (Settimana Incom, Il processo segreto contro Pasolini,
Roma: Incom, 19/08/1962.)
2
Sobre o romance Una vita violenta cf. nota 1 da crônica Accattone e Tommasino. O filme Rocco e seus irmãos
(Itália, 1960, 175 min), do diretor Lucchino Visconti, tornou-se um dos maiores clássicos do cinema neorealista
italiano.
123
contra a psicanálise
3
. O que é a psicanálise se não uma pesquisa científica? E das mais
importantes do nosso tempo? É claro que o seu padre alegará que a psicanálise não é ciência.
Muito bem, então o seu padre teve ter a bondade de concluir que a religião concorda com a
ciência que ele bem entende.
2) A desculpa de proteger os fracos intelectualmente é um dos clássicos atos de
desprezo da Igreja em relação ao homem. Ela o tem nenhum direito de chamar de
irresponsáveis os cidadãos de um Estado livre e independente, com as suas instituições
democráticas (pelo menos no papel). A sua intervenção paternalista é uma desculpa
revoltante. Uma leitura nunca é perigosa. As únicas leituras perigosas são aquelas que a Igreja
permite: uma pornografia genérica e uma evasão banal, além das obras construtivas
produzidas pela própria Igreja, que se prestam a ser completamente irreais. Na realidade, a
Igreja teme as leituras livres, tanto que até um século atrás Dante estava no Índice dos Livros
Proibidos, e o seu verdadeiro e grande ideal seria reinar sobre um povo de analfabetos.
3) Em uma obra de arte – ou pelo menos em uma obra de alto nível literário – tudo faz
parte de um desenho, de uma estrutura. O tudo vive de particulares concretos. O sexo tem a
sua importância na vida de cada um de nós, rico ou pobre, simples ou culto. Ao descrever
uma figura humana – um personagem – não se pode ignorar a sua vida sexual, principalmente
quando se trata de uma figura humana inocente, vital, apenas confusamente consciente de si,
porque nela tudo se torna concreto, tudo é porque baseado nos atos particulares, nos fatos.
Um personagem simples, popular, se não faz não é. Além disso, ele não tem a concepção
moralista dos burgueses sobre a sua própria vida sexual. Calar-se seria falar dele, daquilo que
ele faz, visto de fora, de um ponto de vista que tende a ignorar não apenas aquilo que ele faz
no campo sexual, mas em qualquer campo da vida. Enfim, minha cara amiga, não é preciso
ser hipócrita em nenhum momento. As relações sexuais são vulgares em apenas um caso: no
caso das pessoas hipócritas. De outro modo, elas não têm nada de vulgar. E você faz muito
mal em escrever entre vírgulas “obscenidade”. A única real obscenidade é reprimi-las,
escondê-las, censurá-las, de modo oportuno e desonesto.
Vie Nuove, 14 de dezembro de 1961
3
Em julho de 1961, o Tribunal do Santo Ofício do Vaticano publicou, através do jornal Osservatore Romano,
um texto no qual condenava, de maneira imprecisa, a prática da profissão de psicanalista aos membros do clero
ou de ordens religiosas. O texto provocou uma polêmica na imprensa italiana naqueles meses. (Dizionario
Interdisciplinare di Scienza e Fede. Acessível em: http://www.disf.org/Voci/141.asp. Acesso em junho de 2009)
124
As cartas pessoais
Voltei da viagem ao Sudão
186
e, recém chegado em casa, uma das primeiras coisas que
fiz foi abrir a correspondência de Vie Nuove. A correspondência de Vie Nuove consiste em um
envelope bastante volumoso entregue em mãos pelo jornal, onde está escrito, sempre com a
mesma caligrafia fina e alongada, o meu nome com o complemento “da parte de Vie Nuove”.
Encontrei aqui, sobre a mesa terrivelmente bagunçada, este envelope familiar, realmente
um elemento da vida quotidiana, depois de quase dois anos de rotina. E sou bastante rotineiro
para ter sentido certo prazer.
Normalmente, dentro do envelope amarelo existem dois tipos diferentes de cartas.
Reconheço estes dois tipos diversos imediatamente, à primeira vista. E os reconheceria
mesmo que um deles não viesse marcado com a palavra “pessoal” escrita com um apressado e
chamativo lápis vermelho.
Estas cartas pessoais são, por sua vez, de três tipos, que, normalmente, também são
fáceis de reconhecer. o envelope onde o endereço está escrito com a caligrafia
assombrosamente inconstante, angular, grosseira, pesada, congestionada, cheia de maiúsculas
que parecem baratas, de palavras que começam com letras grandes e que vão aos poucos se
encolhendo para não exceder o pequeno espaço do envelope, de rabiscos com uma ingênua
solenidade, quase fórmulas mágicas destinadas a agradar o distante destinatário. É possível
escutar a professora de segunda série primária por trás, a escolinha rústica, o cansaço manual,
a mão vermelha e calejada... Estas cartas, cheias de miséria e sofrimento, normalmente me
186
Essa foi mais uma das tantas viagens que Pasolini realizou neste período para países do chamado Terceiro
Mundo, principalmente África e Ásia. Entre o final de dezembro de 1960 e janeiro de 1961, junto com seu
amigo e companheiro de viagens Alberto Moravia, partiu para uma viagem para o continente africano, que
incluiu países como Egito, Quênia, Sudão e Tunísia.
125
pedem uma ajuda, digamos, existencial: ou são garotos que me pedem os meus livros porque
não m dinheiro para comprá-los, ou doentes que pedem auxílios econômicos ou
desempregados que pedem ajuda para encontrar um emprego. O segundo tipo, muitas vezes, é
aparentemente parecido com o primeiro, mas na maioria dos casos a caligrafia é mais ágil e
elegante. São as amigas da escola secundária, os empregados dos correios e dos bancos,
habituados a escrever com anônima desenvoltura. Nestas cartas geralmente se encontram
pequenas fotografias, fotografias dos remetentes. Porque estes remetentes m um grande
sonho no coração: se tornarem atores. E têm uma ideia milagrosa deste sonho, ingenuamente
provinciana, fazendo uma mistura confusa de A doce vida, Grande Hotel e Accattone
187
.
Surgem pobres rostos pálidos e anônimos, levemente diferenciados entre si por uma
expressão sombria, por um sorriso malignamente mundano ou por uma intensa expressão
honesta. E, até aqui, paciência. Aborrecimentos, angústias, inquietações, se podem
experimentar sem grandes estragos. Estamos sempre no mais puro plano existencial. Mas as
dores surgem com o terceiro tipo de cartas pessoais (que são a maior parte). São cartas que
chegam com um manuscrito anexado ou que anunciam um manuscrito correspondente:
versos, contos, romances, roteiros cinematográficos, monografias universitárias. Recebo pelo
menos três destas cartas por semana através de Vie Nuove e muitas outras diretamente. E,
diante delas, hoje sinto apenas angústia pura.
Sejamos claros, uma passada de olhos nestes manuscritos eu sempre dou, ao menos
pela curiosidade (o que não daria para descobrir um autor novo, de verdadeiro valor!), uma
poesia, uma página narrativa... Mais do que isso, não posso, e daí a minha angústia. Sei muito
bem quais esperanças, quais aflições, quais ansiedades estão no coração de quem me manda
estas suas experiências e espera por uma opinião. Eu também senti isso, quando era jovem, e,
em experiências parecidas, apostava toda a minha vida. Por isso não consigo explicar o
desgosto, o mal-estar, o remorso que sinto em não poder escrever aquela opinião, que muitas
vezes me pedem com tanta simpatia, e, principalmente, não poder ler por inteiro os
manuscritos que recebo. É um fato brutal de falta de tempo material”: seis manuscritos por
semana, mais os livros de estreia de jovens escritores, eles também aguardando por uma
opinião minha. É possível poder lê-los? E escrever sobre eles? Deveria gastar pelo menos
uma manhã inteira. No entanto, eu trabalho apenas pelas manhãs, quero dizer, trabalho
naquilo que me interessa mais, a literatura. O resto do meu dia é todo dedicado a um outro
trabalho: o cinema, a crítica, etc. No entanto, é verdade que, de vez em quando, poderia ler
187
A doce vida (Itália-França, 1960), de Federico Fellini. Grande Hotel (EUA, 1932), de Edmund Goulding.
Accattone – Desajuste Social (Itália, 1961) de Pier Paolo Pasolini.
126
algum manuscrito ou alguma obra de estreia e escrever a minha opinião, e era exatamente isso
que eu fazia até dois ou três anos atrás. Posso garantir, de qualquer modo, que até hoje, se a
passada de olhos que dou no manuscrito é realmente positiva (e isso ocorreu não mais do que
duas ou três vezes em dois anos) prossigo com a leitura e respondo ao interessado. Mas mais
do que isso não posso fazer, a o ser que eu fosse dedicar toda minha vida à leitura e
avaliação de manuscritos. E, repito, não seria nada seu eu desistisse de cumprir este que,
definitivamente, é um dever, ou se o fizesse com indiferença. Mas não, fico angustiado, toda
semana a razão da minha angústia pelas cartas não enviadas...
Vie Nuove, 8 de março de 1962
A era da alienação
1
Estimado Pasolini, gostaria que você, sensibilíssimo poeta e defensor da liberdade,
me explicasse o misterioso motivo pelo qual a Editora Riuniti cortou pelo menos umas
cinquenta linhas do poema “Non sono nato tardi” de Yevtushenko
2
.
Publicado integralmente na Rússia, Yevtushenko foi censurado na Itália pelos comunistas,
evidentemente mais soviéticos do que o Soviete
3
. Ou me engano? Me responda pelas colunas
livres de Vie Nuove.
Este fato deve interessá-lo, que, pelo que sei, até hoje nenhum censor democrata-
cristão se permitiu cortar as suas poesias, no entanto, estamos sob o braço de ferro da
ditadura burguesa.
Ou, você acredita que a editora Riuniti tenha agido bem? E que amanhã, se os
comunistas chegarem ao poder, também farão bem em censurar os poemas incômodos de
Pier Paolo Pasolini? Por favor, me responda. Obrigado.
Aldo Beneforti – Gênova
Encontro no rodapé da sua carta uma nota da redação de Vie Nuove. Para mim é
suficiente e a transcrevo: “Os Editori Riuniti não cortaram absolutamente nada. Beneforti
1
O problema do controle governamental sobre obras artísticas na Itália, principalmente filmes, livros e
espetáculos, remonta ao início dos anos 50. No início dos anos 60 este assunto era alvo de constantes polêmicas
na imprensa italiana, devido à censura de diversos filmes que obtinham grande sucesso no exterior, incluindo
nomes como Federico Fellini, que enfrentou grandes problemas com A doce vida, e Lucchino Visconti. Pasolini
também foi um alvo constante dos atos de censura das chamadas Comissões de Censura do Ministério do
Espetáculo italiano. O crítico literário Alfonso Berardinelli chegou a afirmar que a história de Pasolini era “uma
história de processos” e que ele estava habituado a “lançar acusações e defender-se das acusações, discutir os
fundamentos da lei, os juízes e a sua moral” (Berardinelli, 1990, p. 153). Sobre os ataques da imprensa contra
Pasolini, cf. notas 1 e 3 da crônica Vida Mundana.
2
O poeta russo Yevgeny Yevtushenko (1933-), um dos primeiros artistas a se pronunciarem contra o regime
socialista na União Soviética nos anos 50, é muito apreciado na Itália, onde diversos dos seus livros foram
publicados. No Brasil, algumas das suas principais poesias podem ser encontradas na antologia publicada
recentemente Poesia Soviética (Org. e trad. Lauro Machado Coelho. São Paulo: Algol, 2007). A Editora Riuniti,
a qual o leitor se refere, é tradicionalmente ligada ao Partido Comunista Italiano.
3
O leitor provavelmente se refere ao Soviete Supremo, órgão deliberativo supremo no governo comunista da ex-
União Soviética.
127
certamente se refere ao texto traduzido anteriormente por Ripellino e publicado na revista
4
.
Este efetivamente continha cerca de cinquenta linhas a mais do que o texto publicado pela
Editora Riuniti. No entanto, é preciso observar que a primeira publicação se referia a uma
primeira versão que Yevtushenko revisou pessoalmente depois. Visto que a Editora Riuniti
publicou o texto definitivo e o único reconhecido pelo autor, é infundada qualquer acusação
de censura”.
Quanto a mim, eu sofro, no mundo que você evidentemente considera livre, aquilo que
de pior um escritor pode sofrer. A mistificação da minha obra: uma mistificação total,
completa, irremediável. Uma verdadeira operação industrial. Tudo o que digo e escrevo sofre,
através da interpretação calculada da imprensa “livre”, uma metamorfose implacável:
descrédito, calúnia e difamação. E que, aos poucos, acabam virando pura e simplesmente
instrumentos de delinquência e se tornam uma realidade, a qual transforma sociologicamente
o meu estilo. Você sabe que o texto não vive na solidão de uma alma, mas vive em um grupo
social. Existe enquanto existem possibilidades de uma relação com a comunidade. Mas, se
esta comunidade através de uma operação oportuna de quem possui o poder e os meios de
difusão ideológica – “compreende” o texto de um escritor de um modo diferente do que ele é,
ocorre lentamente algo inevitável: o texto, pelo menos na duração da geração que constitui o
grupo social dele, se torna realmente algo diferente do que ele é.
Percebi, justo nestes últimos meses, o quão grande é a minha tragédia de escritor no
mundo que você afirma ser livre e democrático. Os meus romances e as minhas poesias
perdem de vista o seu significado” devido a acréscimos e falsificações contínuas,
ininterruptas, disseminadas, devido a uma interpretação difamante levada a um grau de
intensidade e crueldade jamais vistas. Os meus textos efetivamente se deterioram, os
significados das minhas palavras sofrem uma real depressão expressiva até se tornarem
aqueles que as pessoas (consideradas como uma massa guiada pelo poder industrial e pelo
consequente conformismo estatal) querem que sejam.
Esta mistificação adquire, aos poucos e também em níveis mais altos, peso e quase
uma razão de ser. Até os críticos mais confiáveis e altamente qualificados não podem mais
ignorar o acréscimo de significado dado aos meus textos pela difamação burguesa, ou seja,
pelo meu grupo sociológico, pelo meu país. E a opinião deles começa a ser menos livre e
segura.
Nós nos encontramos nas origens daquela que será provavelmente a era mais cruel da
4
Angelo Maria Ripellino (1923-1978), grande tradutor e poeta italiano, especialista em literatura russa e tcheca.
128
história do homem: a era da alienação industrial
5
. Você é uma vítima, visto que a sua
opinião não é livre justamente no momento que você acredita melhor estar colocando em ato
sua liberdade. Eu sou outra vítima, visto que a minha livre expressão é transformada em
“outra daquela que ela é”. O mundo se encaminha para uma direção horrível: o
neocapitalismo iluminado e social-democrata, na realidade, mais severo e cruel do que nunca.
Vejo que você, pelo habitual velho, enfadonho e aflitivo conformismo dos pequeno-
burgueses, é anticomunista. Tudo bem, exatamente para você direi que, jamais como neste
momento, acredito que o único caminho de libertação do homem é o comunismo.
Vie Nuove, 10 de maio de 1962
5
Neste texto, Pasolini começa a esboçar o que o pesquisador espanhol Antonio Gimenez Merino classifica como
o início do seu “programa corsário”, o qual irá desenvolver com mais afinco em suas famosas crônicas
jornalísticas dos anos 70. Gimenez afirma que a originalidade do pensamento de Pasolini está justamente em sua
visão pessimista do processo de modernização do país, quando percebe “os sintomas da transformação cultural
global” desde o seu início, ou seja, durante o milagre econômico italiano (1958-1963), e quando afirma sua
convicção sobre a necessidade de uma nova resistência diante da ameaça de uma cultura de massas conformista
na Itália. (MERINO, A.G. Una fuerza del passado. Madrid: Trotta, 2003, p. 75).
o historiador Giulio Sapelli identifica no pensamento de Pasolini a busca por uma solução para a “grave crise
civil e moral” na qual a Itália entrava neste período, um período marcado pelo advento do neocapitalismo e
também pelas grandes mudanças políticas no país, que deixava para trás um governo de extrema-direita e assistia
pela primeira vez um aliança entre socialistas e democrata-cristãos. Porém, também admite que a reflexão
“esperançosa” de Pasolini, concentrada nos segmentos da sociedade que ele considerava úteis para consolidarem
uma resistência à modernização, se transforma, no final da década de 60, em uma reflexão “desesperada e
pessimista”. (Sapelli, 2005, p. 19 e 175)
129
Como um pesadelo de infância
188
Caros amigos de Vie Nuove, por duas ou três semanas tive que suspender a minha
coluna porque o filme Mamma Roma tinha entrado em uma fase de tanto trabalho que mal
conseguia respirar. Agora começou a dublagem, o cansaço é menos cruel e alguns minutos
por dia me sobram para escrever.
Alguns minutos físicos, como se diz, porque o minuto psicológico é mais raro. O
trabalho de Mamma Roma se tornou quase um pesadelo. Não posso me permitir errar uma
obra, estou reduzido a isto. Não errar é um dever que tenho diante de inimigos e amigos: os
primeiros me massacrariam, os segundos falhariam imediatamente em encontrar uma arma de
defesa para mim. Sinto que o fim de Mamma Roma será um pouco como o meu fim. Porque
188
No dia 30 de novembro de 1961 o jornal italiano Il Tempo publicou uma foto de Pasolini com uma
metralhadora nas mãos. A imagem, uma foto de cena do filme O corcunda de Roma, de Carlo Lizzani (1960), no
qual Pasolini interpreta o bandido Leandro, serviu para ilustrar as tendências criminosas do escritor, que
naqueles dias estava sendo acusado de uma tentativa de assalto a mão armada contra um posto de gasolina na
localidade de San Felice Circeo, pequena cidade na província de Latina, ao sul de Roma. O frentista, Bernardino
De Sanctis, o acusava de ter sido ameaçado por Pasolini, que estaria vestido todo de preto, com chapéu e luvas
pretas e uma pistola preta. No dia 3 de julho de 1962, em Latina, iniciava o processo que, no fundo, acusava a
homossexualidade de Pasolini, que foi até mesmo submetido a perícia psiquiátrica a distância (ou seja, sem
nunca encontrar pessoalmente o psiquiatra). O processo se encerrou com uma condenação de quinze dias de
reclusão, com direito a condicional. No dia 13 de julho de 1963 a condenação foi anulada e em março de 1965 o
escritor foi absolvido por falta de provas. (Chiesi, 2005, p. 22)
A versão dos fatos publicada pelo jornal Il Tempo era repleta de detalhes inventados e visava claramente
“reforçar a improvável validade da acusação” (Betti, 1977, p. 119). A imprensa moderada italiana registrou sem
piedade “o absurdo” da acusação e o fato dela ser tido aceita pela magistratura, enquanto a imprensa de direita
repreendeu fortemente Pasolini, “alimentando mitos e paranoias coletivas com uma especulação jornalística que
durou sete meses”. Neste volume de Laura Betti sobre a perseguição judiciária e da imprensa contra Pasolini, os
autores também recordam que Pasolini, desgastado, chegou a declarar que renunciaria à cidadania italiana,
enquanto os jornais de direita pediam sua prisão. Em um trecho do livro, os autores recordam como “o veredicto
de culpa foi pronunciado pelo menos seis meses antes do final do processo”, ao referir-se a uma foto publicada
no mesmo jornal Il Tempo mostrando Pasolini em Paris ao lado de um frentista acompanhada pela seguinte
legenda: “O frentista sorri alegre ao fotógrafo, talvez porque não sabe nada sobre seu cliente”. (Betti, 1977, p.
119-124)
130
poucas são as pessoas cujo julgamento crítico é autônomo, baseado em razões culturais reais,
e, portanto, capazes de resistir aos experimentos de um autor. As massas são impiedosas. São
como os reis. E eu, diante destes reis, sou quase como um bobo da corte, que será condenado
à morte se errar.
Vocês, leitores de Vie Nuove, estão entre os meus mais caros amigos, aliás, os mais
caros. Me dei conta disso ontem, voltando de carro de Latina. Recém tinha sido pronunciada a
minha condenação de quinze dias por ameaça à mão armada. Não sei se vocês conhecem os
sentimentos de um inocente que é acusado, ou melhor, condenado. É algo horrível, que não
desejo a ninguém, nem mesmo a Bernardino De Santis e a seu advogado de defesa. Lembro
que quando era criança eu tinha dois pesadelos (decorrentes da ótima literatura infantil da
qual nos nutrimos desde pequenos): ser enterrado vivo e ser condenado inocente. Eu pensava
nisto, com o excesso de fantasia de quem, desde o nascimento, é internamente ferido, e não
podia resistir ao pensamento. Um sentimento de revolta, de repugnância, de indignação sem
equivalentes. Algo que se pode expressar no grito brutal e na fúria epiléptica. Portanto, eu,
voltando naquela noite de Latina, tinha dentro de mim este grito e esta fúria. Dominados, sim,
certamente dominados e reordenados imediatamente, como é um hábito antigo meu, em
pensamentos, em esforços para entender, enfim, em amor.
O que mais me machucava naquele momento era o pensamento de vocês. Como? eu
me perguntava, com lágrimas nos olhos e cerrando os lábiossão meses, anos, que repito em
Vie Nuove que odeio as armas e as pessoas armadas, que considero estúpida qualquer forma
de violência, que ainda considero lido o método de luta de Cristo, que é hoje aquele de
Gandhi. A não-violência, a moderação, a convicção, são anos que repito isto e agora alguém
ou Algo de tremendo me condena por ameaça à mão armada? É um fato que o se pode
tolerar. Mais cedo ou mais tarde, esta injustiça enorme e tão estúpida, cega e desumana deverá
recair sobre este alguém ou este Algo.
Nada é mais contrário à minha natureza que a violência. Podem até rir, mas tantas
vezes fiz como Tobias: peguei uma mosca e depois a deixei ir embora porque não tinha
coragem de matá-la. Não apenas nunca tive uma pistola, como posso jurar que nunca toquei
em nenhuma e que apenas uma vez em toda minha vida vi uma. Estive na Índia, na África, em
regiões muito perigosas, onde andar armado era aconselhável. Eu não levava nos bolsos nem
uma pistola, muito menos uma faca ou canivete.
Não digo isto para me defender de uma acusação específica, faço isto como uma
questão de princípio. A acusação específica é por si tão absurda que não vale a pena falar
sobre ela.
131
A única consideração séria a ser feita, entre amigos, é que o italiano médio burguês
não tem nenhum senso psicológico. A sua psicologia é utópica. Talvez seja a milenar renúncia
à razão, à autodeterminação, à autoeducação, à corresponsabilidade. A psicologia utópica é
uma psicologia de servos. Não é de assustar se esta psicologia for aquela vigente nos
tribunais. Deviam ouvir as barbaridades pronunciadas pelos advogados de Bernardino De
Sanctis em relação à minha psicologia! Falso, ridículo, produto de uma cultura malcheirosa
como um jornal velho. Eu descrevo a violência, portanto sou violento... É de envergonhar
apenas a pronúncia de uma bobagem do gênero (que, além do mais, implica apenas na leitura
do título de um dos meus livros), no entanto, esta chantagista e insensata proposição difundiu-
se na sala do tribunal, encontrando, quando não credibilidade, possibilidade de credibilidade e
direito de cidadania. Porque um italiano médio burguês não possui os instrumentos para
entender sozinho uma alma: tudo lhe foi dito, imposto, sugerido, consagrado. Ele renuncia
intuitivamente à sua autonomia de opinião. Qualquer notícia externa, talvez ainda não
comprovada, apenas suspeita, destrói qualquer consideração ou opinião sua anterior, porque o
que ocorre na alma do outro é um segredo inatingível, dominado por uma irracionalidade
132
casual e apocalíptica.
Um nada é suficiente: no meu caso, um louco que afirmou que eu agi como um louco.
E então, quem não tem segurança interna da razão, hesita, acredita na luz obscura e
impensada do milagre, da monstruosidade. Quem sabe, quem me garante... sobre este “quem
sabe, quem me garante” se apoia a psicologia da minha nação burguesa: séculos
desacostumada a “se garantir” sozinha e a ter a mais simples confiança na iniciativa da
própria razão.
Vie Nuove, 12 de julho de 1962
Fascistas: pais e filhos
189
Senhor Pasolini, porque tantas mentes jovens são atraídas pelo perigo da ideia
189
A sobrevivência da ideologia fascista na sociedade italiana pode ser observada até hoje em alguns partidos
políticos como o Aliança Nacional (antigo MSI), herdeiro do movimento fascista de Mussolini, que nasce em
1995 abandonando os vínculos formais com os grupos neonazistas mas mantendo vínculos informais e
simbólicos (Bertonha, 2005, p. 215). Um dos principais nomes desta formação política durante a década de 90
foi a deputada Alessandra Mussolini, neta do ex-ditador fascista. Gianfranco Fini, líder do partido, foi um dos
principais aliados de Silvio Berlusconi durante seu governo entre 2001 e 2006 (Galli, 2004, p. 366-455). Cf. nota
1 da crônica O fascismo e o massacre em Ferrara em dezembro de 1943.
133
fascista? Vivendo em uma sociedade de jovens, nos colocamos esta pergunta e não sabemos
respondê-la...
Michele Brucculeri, Daniele Squinzani – Turim
Vou lhe contar um caso pessoal como exemplo.
Talvez você saiba ou imagine como a minha vida é perturbada por uma série de
deveres inúteis. Um responder inutilmente a perguntas feitas inutilmente. O viver em parte no
mundo da pseudo-cultura ou, como diz mais explicitamente a minha amiga Elsa Morante
190
,
da irrealidade.
Devo isto à parte pública da minha vida, àquela parte de mim que não me pertence e
que se tornou como uma máscara do Nuovo Teatro dell’Arte, um monstro que deve ser como
o público quer que seja. Eu tento lutar, ingenuamente, contra esta fatalidade que me priva de
mim mesmo, me torna um fantoche das revistas ilustradas e acaba depois se refletindo sobre
mim mesmo, como uma doença. Mas, aparentemente, não nada que se possa fazer. O
sucesso, para uma vida moral e sentimental, é algo de horrendo e basta.
Muitos jornalistas, demasiados, acabaram representando, aos poucos, este mundo
inimigo que deseja que os seus personagens sejam como ele acredita que são. E, aos poucos,
acabei experimentando uma espécie de rancor, de ressentimento obscuro, de irritação
patológica contra eles. Só de avistar uma banca de revistas, em certos momentos do dia, posso
ficar mal.
Bom, isto foi uma introdução. Poderia -la guardado para mim, mas espero que me
compreenda.
Munido desta prevenção, desta aversão silenciosa e dolorosa, não teria concedido uma
entrevista, algumas semanas, para uma revista muito famosa
191
. Resisti por muito tempo.
Depois acabei cedendo, um pouco pela fraqueza (não sou capaz de negar obstinadamente um
favor) e um pouco pela ingenuidade (sempre me iludo que as coisas podem ser melhores do
quanto se pode prever pela experiência). Assim concedi uma entrevista a uma jornalista. Uma
senhora ainda jovem, um pouco pálida, mas com feições fortes. Uma típica mulher do interior
que vive sozinha do seu trabalho.
190
Sobre Elsa Morante cf. nota 9 crônica Realismo e Neopurismo.
191
A entrevista em questão foi publicada no dia de setembro de 1962 na revista Tempo com o título “Ecco
Pasolini, il ricco ‘maledetto’” (“Eis Pasolini, o rico ‘maldito’”, ndr), assinada por Mirella Delfini. (DELFINI,
Mirella. Ecco Pasolini, il ricco ‘maledetto’. Tempo, Milano, 1 set. 1962). Cf. também nota 1 da crônica A vida
mundana.
134
Tive uma boa impressão dela e não podia trair o respeito que sentia por ela,
concedendo-lhe uma entrevista formal, calculada e fria. Joguei conversa fora com ela come se
fosse uma amiga. Era também o meu primeiro dia de férias, após um longo trabalho de
dublagem de Mamma Roma, e eu estava com muito bom humor. Fui pegá-la em casa e, em
uma branca e ardente marginal, corremos alegremente pela Via del Mare em direção à praia
de Ostia, onde tomamos banho, naquela paz que é quase uma balbúrdia dos mais típicos dias
de verão. E conversamos um pouco sobre tudo, de literatura, de cinema, de nós. Dentro do
que me permitia a minha eterna timidez, tentava ser o mais sincero possível com ela, o que, na
realidade, não foi difícil. Talvez porque ela conhecia o seu trabalho, como um bom médico ou
um bom advogado, que sabem escutar e fazer você falar, quase com silêncio, aquilo que é
necessário que se fale. Eu me dava conta, e respeitava isso, esse seu trabalho. Era um mérito
para ela diante de mim.
Além disso, ela também me falava sobre ela, sobre seus problemas, sobre a história do
seu casamento, do seu trabalho e do seu filho.
Sim, um filho, um adolescente de quatorze ou quinze anos, nascido de um casamento
feliz-infeliz e agora sozinho com ela: um filho fascista.
Porque era fascista? Talvez por protesto contra ela, a eterna polêmica dos filhos contra
os pais, quando os pais são alvo de uma elementar e inconsciente condenação moral. Ou
talvez porque abandonado a si próprio por muitos meses, com uma empregada indiferente, em
135
um bom bairro da cidade, com colegas de escola ricos e estúpidos e, praticamente todos,
fascistas. Uma série de coincidências que criaram este fato absurdo, doloroso, que nos faz
cerrar os punhos de raiva, que provoca um nó na garganta de indignação.
Ela, a mãe, estava preocupada, como um pequeno drama familiar e social. Dizia-me
que estava lutando com o filho, tentando não abusar, não chantageá-lo em nome da autoridade
de mãe ou da experiência. Enfim, era difícil. Ela o tinha levado para assistir All’armi siam
fascisti
192
e tinha esperanças de algum bom resultado. Mussolini, pelo menos, pareceu ao
garoto uma figura um pouco louca e ridícula.
Depois, o discurso sobre o filho acabou, com a delicadeza social de conversas do tipo,
e passamos para outro assunto.
Assim, aquela mulher de expressão franca e forte desapareceu, junto com o primeiro
dia de férias de verão, da minha complicada existência.
Algumas semanas depois, a “sua matéria” foi publicada na revista. Era o que de mais
ofensivo se podia escrever sobre mim. Ofensivo porque escrito por uma pessoa educada,
culta, de um bom nível jornalístico, ao invés do habitual imbecil que me detesta em nome dos
seus chefes reais ou imaginários. Ofendia-me o fato de ver aquela pessoa que eu considerei
respeitável repetindo todos os lugares comuns que pessoas indignas de qualquer respeito
acumularam sobre mim, para criar aquela máscara do Novo Teatro da Arte que eu dizia: as
192
All’armi siam fascisti (Itália, 1962), filme documentário de Lino Del Fra, Cecilia Mangini e Lino Micciché
sobre o período fascista na Itália.
136
“experiências violentas”, a “poesia maudite”, o talento fraudulento, a gratuidade do uso do
dialeto e das gírias. Opiniões provincianas e ignorantes, que a minha amiga de um dia repetiu,
quase por inércia, com a embriaguez decorrente de piscar para os cúmplices canalhas através
dos lugares comuns.
Esta é uma operação fascista, mas fascista no fundo, nos esconderijos mais secretos da
alma. A Itália está se degenerando em um bem-estar que é egoísmo, estupidez, ignorância,
intriga, moralismo, coerção, conformismo. Contribuir de alguma maneira para esta
degeneração é, portanto, o fascismo. O fato de serem laicos e liberais não significa nada
quando falta aquela força moral capaz de vencer a tentação de participar de um mundo que
aparentemente funciona, com suas leis atraentes e cruéis. Não é preciso ser forte para
enfrentar o fascismo nas suas formas loucas e ridículas. Mas, é preciso ser muito forte para
enfrentar o fascismo como normalidade, como codificação, diria alegre, mundana,
socialmente eleita, do fundo brutalmente egoísta de uma sociedade.
No fundo, o filho é menos fascista do que a mãe. Ou, pelo menos no seu fascismo
algo de nobre, do qual certamente ele não pode ser consciente: um protesto, uma raiva. Na sua
honestidade de adolescente, ele compreende que o mundo em que vive é, no fundo, cruel e ele
luta contra isso, com a força do escândalo que a um jovem a sua ideia de fascismo. O
fascismo da mãe, ao contrário, é uma renúncia moral, cumplicidade com a manipulação
artificial das ideias com a qual o neocapitalismo está formando o seu novo poder.
Confesso que senti um momento de raiva quase poética contra aquela mãe. Ocorreu-
me pensar que ela merecia aquele filho fascista, que era justo, que era uma fatalidade que
possuía um equilíbrio perfeito entre o dar e o receber. E a me ocorreu um impulso de
escrever uma sátira, imediatamente reprimido porque, enfim, perverso. Uma sátira no qual
desejaria aos meus inimigos burgueses os filhos fascistas. Que lhes venham filhos fascistas
esta a nova maldição – filhos fascistas que lhes destruam com ideias derivadas das suas ideias,
com ódio nascido do seu ódio.
Vie Nuove, 6 de setembro de 1962
137
Os anos da raiva
193
193
Esquecido durante décadas do grande público, devido a escassa distribuição na época, o filme La rabbia
(1963), documentário dividido em duas partes e dirigido por Pasolini e Giovannino Guareschi, foi recentemente
restaurado pela Cineteca de Bolonha e uma nova versão, dirigida pelo cineasta Giuseppe Bertolucci, “uma
hipótese de reconstrução” do filme original, incluindo as partes cortadas em 1963, foi apresentada na edição
2008 do Festival de Cinema de Veneza, com o titulo La Rabbia di Pasolini (Itália, 2008).
O projeto do filme La rabbia começou em 1962 quando um pequeno produtor cinematográfico confiou a
Pasolini o material de arquivo pertencente a um cinejornal, “Mondo Libero”. Além das imagens deste cinejornal,
Pasolini também utilizou imagens dos Arquivos Itália-URSS e reproduções de livros de arte e revistas semanais.
Como trilha sonora, inseriu um texto em versos, narrado pelo escritor Giorgio Bassani, e um comentário em
prosa, narrado por Renato Guttuso.
“Com o filme La rabbia (1963), Pasolini idealizou ‘um novo gênero cinematográfico’, um poema fílmico
baseado em um comentário em prosa e em versos onde a denúncia se alterna com o lamento e a análise política e
social, tecendo uma complexa dialética com imagens tiradas de cinejornais, filmagens de arquivo, reproduções
de quadros e fotografias”, afirma Roberto Chiesi na contracapa do livro La rabbia (PASOLINI, P.P. Org.
Roberto Chiesi. Bologna: Cineteca di Bologna, 2008), edição lançada recentemente pela Cineteca de Bolonha
com o texto original de Pasolini ao lado de algumas das imagens mais significativas utilizadas na montagem
original.
O texto original escrito por Pasolini era subdividido em 76 partes e tinha uma duração superior aos 53 minutos
do filmes definitivo. A primeira versão do filme foi rejeitada pelo produtor, que sugeriu que o filme tivesse uma
segunda parte feita por outro diretor. O nome sugerido foi o do cineasta Giovannino Guareschi, inicialmente
rejeitado por Pasolini, que ao final acabou convencido pelos produtores. Em abril de 1963 o filme foi lançado na
Itália acompanhado por uma publicidade grosseira que apresentava os dois diretores como “adversários
políticos”. Apesar de ter sido distribuído pela Warner Bros, o filme passou despercebido e ficou poucas semanas
em cartaz. Pasolini não retirou sua assinatura, como tinha prometido fazer devido ao descontentamento com a
versão final do filme, mas ignorou os pedidos do produtor e de Guareschi de realizar uma nova versão. Mesmo
com críticas e estudos importantes publicados na Itália, o filme continuou desvalorizado até poucos anos atrás.
138
Caro Pasolini, fiquei sabendo que você deve realizar um filme chamado A raiva.
Estou curioso para saber do que se trata.
Elio Filippo Carrozza – Isole Tremiti
É um filme baseado em material de arquivo (noventa mil metros de filme, o material
de cerca de seis anos de vida de uma revista cinematográfica semanal, hoje extinta). Uma
obra jornalística, portanto, mais do que criativa. Um ensaio mais do que em um conto.
Para lhe dar uma ideia mais exata, lhe apresento o “argumento” do trabalho, as
habituais cinco páginas que o produtor pede para o contrato. Leve em conta a destinação deste
texto: uma destinação que implica, por um lado, certa prudência ideológica hipócrita (o filme
certamente se muito mais marxista no posicionamento do que possa parecer por este
Em 2001, a editora Mondadori republicou o texto original de Pasolini no volume dedicado ao cinema
pasoliniano e em 2007 a Cineteca de Bolonha promoveu a restauração do filme.
Na apresentação do livro La Rabbia, Chiesi também afirma que este texto de Pasolini mostra “o momento de
uma passagem crucial, porque a Itália está queimando rapidamente as etapas de transformação de país agrícola
para um país industrializado, com uma violenta e irreversível transformação social e cultural da qual Pasolini
será a testemunha mais perspicaz e sofrida” (Pasolini, op. cit., p. 7).
“Quando escreve La rabbia, Pasolini acredita ainda na utopia da revolução dos humildes, acredita ainda na
União Soviética de Krusciov. As palavras de Pasolini exaltam as lutas da Argélia e de Cuba, (...), relembram a
tragédia das repressões soviéticas na Hungria (...), celebram as missões espaciais dos cosmonautas soviéticos
(...), descrevem a tragédia de uma vítima da sociedade do espetáculo, Marilyn Monroe, e evocam, com um tom
visionário, a angústia de viver sobre a sombra do pesadelo nuclear”, continua Chiesi. (Pasolini, op. cit., p. 8)
Sobre o argumento do filme publicado em Vie Nuove, Chiesi afirma que “são páginas importantes para
compreender com quais intenções Pasolini começou um projeto tão particular como esse” (Pasolini, op. cit., p.
9), já que, quando publica esta crônica, o filme ainda está em processo de montagem da primeira versão.
139
resumo) e, por outro lado, um desleixo estético (o filme será muito mais refinado na
montagem e na escolha das imagens do quanto se possa deduzir por estas linhas apressadas).
A raiva
O que aconteceu no mundo depois da guerra e do pós-guerra?
A normalidade.
Já, a normalidade. No estado de normalidade não se olha ao redor, tudo ao redor se
apresenta como “normal”, sem a excitação e emoção dos anos de emergência. O homem tende
a se adormecer na própria normalidade, se esquece de refletir, perde o hábito de se julgar, não
sabe mais se perguntar quem é.
É então que se cria artificialmente o estado de emergência. E quem o faz são os
poetas. Os poetas, estes eternos indignados, estes modelos da raiva intelectual e da fúria
filosófica.
Houve acontecimentos que marcaram o fim do pós-guerra, suponhamos, na Itália, a
morte de De Gasperi
194
.
A raiva começa ali, naquele grande e melancólico funeral.
O estadista antifascista e reconstrutor está “morto”: a Itália se conforma no luto da
morte e se prepara, justamente, para reencontrar a normalidade dos tempos de paz, da paz
verdadeira e esquecida.
Alguém, o poeta, ao contrário, se recusa a esta acomodação.
Ele observa, com indiferença a indiferença do desgosto e da raiva os episódios
extremos do pós-guerra: o retorno dos últimos prisioneiros, recordem, em trens miseráveis, o
retorno das cinzas dos mortos
195
... E...
...o ministro Pella
196
que, arrogantemente, ratifica o desejo da Itália em participar da
Europa Unida.
É assim que recomeça, na paz, o mecanismo das relações internacionais. Os
194
Alcide De Gasperi (1881-1954), fundador e grande líder da Democracia Cristã, foi primeiro-ministro italiano
por oito mandatos consecutivos (1945-1953). Em maio de 1954 foi eleito presidente da Comunidade Europeia
do Carvão e do Aço (Ceca). Seus funerais foram celebrados solenemente no dia 21 de agosto de 1954. (Pasolini,
op. cit., p. 212)
195
As urnas com as cinzas dos cerca de oito mil soldados italianos mortos no ataque do exército alemão contra a
ilha grega de Cefalonia, logo após armistício de 1943, retornaram à Itália apenas em 1953. (Pasolini, op. cit., p.
212)
196
Giuseppe Pella (1902-1981), deputado democrata-cristão desde 1946, diversas vezes ministro da Economia,
no biênio 1953-1954 foi primeiro-ministro e ministro das Relações Exteriores da Itália. (Idem, p. 212)
140
ministérios se sucedem aos ministérios, os aeroportos são um contínuo ir e vir de ministros,
embaixadores, diplomatas, que descem pela escada do avião, sorriem, dizem palavras vazias,
estúpidas, superficiais, falsas.
O nosso mundo, em paz, fervilha com um ódio ameaçador, o anticomunismo. E, sobre
o fundo cinzento e deprimente da Guerra Fria e da Alemanha dividida, aparecem as novas
figuras dos protagonistas da nova história.
Krusciov, Kennedy, Nehru, Tito, Nasser, De Gaulle, Fidel Castro, Ben Bella.
Até que se chega a Genebra, ao encontro dos quatro Grandes
197
. E a paz, ainda
abalada, ruma para uma ordenação definitiva. E a raiva do poeta contra esta normalização,
que é consagração da potência e do conformismo, não pode se não crescer ainda mais.
O que é que deixa o poeta insatisfeito?
Uma infinidade de problemas que existem e ninguém é capaz de resolver. E, sem a sua
resolução, a paz, a verdadeira paz, a paz do poeta, é irrealizável.
Por exemplo, o colonialismo. Esta violência retrógrada de uma nação sobre outra, com
seu rastro de mártires e mortos.
Ou a fome, para milhões e milhões de subproletários.
Ou o racismo. O racismo como câncer moral do homem moderno e que, assim como o
197
O encontro dos “quatro grandes” (Estados Unidos, Grã-Bretanha, França e União Soviética) ocorreu em
Genebra em julho de 1955, quando foram discutidos os temas do desarmamento e das relações Ocidente-Oriente.
(Ibidem, p. 212)
141
câncer, tem infinitas formas. É o ódio que nasce do conformismo, do culto da instituição, da
prepotência da maioria. É o ódio por tudo o que é diferente, por tudo o que não se encaixa na
norma e que, portanto, abala a ordem burguesa. Infeliz quem é diferente! Este é o grito, a
fórmula, o slogan do mundo moderno. Portanto, ódio contra os negros, os pardos, os homens
de cor. Ódio contra os judeus, ódio contra os filhos rebeldes, ódio contra os poetas.
Linchamentos em Little Rock, linchamentos em Londres, linchamentos no Norte da
África, insultos fascistas aos judeus.
É assim que explode novamente a crise, a eterna crise latente.
Os fatos da Hungria
198
, de Suez
199
.
A Argélia que começa aos poucos a se encher de mortos
200
.
198
Em outubro de 1956 os estudantes húngaros organizaram uma manifestação de solidariedade com a Polônia
que se transformou em uma insurreição contra o governo e o exército soviético estabelecido na Hungria. Imre
Nagy, comunista reformador, eleito chefe do governo húngaro após a morte de Stalin (1953), anunciou a
formação de um novo governo no final de outubro e conseguiu a retirada das tropas soviéticas do país. Mas,
quando Nagy anunciou, no início de novembro, a saída da Hungria do Pacto de Varsóvia, o secretário do Partido
Comunista húngaro, Janos Kadar, pediu a intervenção da União Soviética, que alguns dias depois ocupou
militarmente Budapeste, reprimindo violentamente os apoiadores de Nagy, que foi processado e condenado à
morte em 1958. Kadar foi então nomeado primeiro-ministro. (Pasolini, op. cit., p. 213)
199
Em julho de 1956, Nasser, presidente do Egito, decretou a nacionalização do Canal de Suez. Em outubro,
Israel iniciou uma ão militar contra o Egito, com o apoio sucessivo de França e Inglaterra. O exército de
Nasser foi derrotado, mas os Estados Unidos e a União Soviética pressionaram os países europeus para que se
retirassem do conflito. Em novembro, a ONU conseguiu suspender as ações militares e instituiu uma força
internacional para garantir a paz na região. (Idem, p. 213)
200
A guerra da independência da Argélia começou em 1954, quando foi constituído o Comitê Revolucionário
Clandestino (posteriormente denominado FLN Frente de Libertação Nacional). A guerra provocou várias
crises de governo na França até que, em dezembro de 1958, Charles De Gaulle foi eleito presidente e encarregou
o comandante Jacques Massu como chefe das forças de repressão. E 1958, o FLN formou um governo provisório
da república argelina. A Argélia conquistou a independência apenas em julho de 1962. Em oito anos, cerca de
um milhão de pessoas morreram. (Ibidem, p. 214)
142
O mundo parece, por algumas semanas, aquele de alguns anos atrás. Canhões que
disparam, escombros, cadáveres pelas ruas, filas de refugiados esfarrapados, as paisagens
cobertas de neve.
Mortos estripados sob o sol forte do deserto.
A crise, mais uma vez, se resolve no mundo. Os novos mortos são lamentados e
homenageados. E recomeça, cada vez mais integral e profunda, a ilusão da paz e da
normalidade.
Mas, junto à velha Europa, que se reorganiza nos seus princípios solenes, nasce a
Europa moderna:
o Neocapitalismo;
o MCE, os Estados unidos da Europa
201
, os industriais esclarecidos e “fraternos”, os
problemas das relações humanas, do tempo livre, da alienação.
A cultura ocupa novos espaços, um novo fôlego de energia criativa nas letras, no
cinema, na pintura. Um enorme serviço aos grandes detentores do capital.
O poeta servil se anula, anulando os problemas e reduzindo tudo a forma.
O mundo potente do capital tem, como audaciosa bandeira, um quadro abstrato.
Assim, enquanto por um lado a cultura de alto nível fica cada vez mais refinada e para
poucos, estes “poucos” se tornam, ficticiamente, muitos: se tornam a “massa”. É a vitória do
201
O acordo para o Mercado Comum Europeu (MCE) entrou em vigor em janeiro de 1958 e foi o precursor da
atual União Europeia.
143
“digest” e das “revistas ilustradas”, mas principalmente da televisão. O mundo distorcido por
estes meios de difusão, de cultura, de propaganda, se torna cada vez mais irreal: a produção
em série, incluindo das ideias, o torna monstruoso.
O mundo das revistas, do lançamento mundial de produtos humanos, é um mundo que
mata.
Pobre e doce Marilyn, irmãzinha obediente, carrega a tua beleza como uma fatalidade
que alegra e mata
202
.
Talvez você tenha tomado o caminho certo, nos ensinou. O teu branco, o teu ouro, o
teu sorriso sensual por gentileza, passivo por timidez, por respeito aos grandes que te queriam
assim, você, que permaneceu menina, são coisas que nos levam a aplacar a raiva no choro, a
virar de costas para esta realidade condenada, à fatalidade do mal.
Porque, enquanto o homem explorar o homem, enquanto a humanidade for dividida
em patrões e servos, não existirá nem normalidade nem paz. A razão de todo o mal do nosso
tempo está aqui.
E ainda hoje, nos anos 60, as coisas não mudaram, a situação dos homens e da sua
sociedade é a mesma que produziu as tragédias de ontem.
Veem estes? Homens severos, de terno, elegantes, que sobem e descem dos aviões,
que correm em automóveis potentes, que se sentam em escrivaninhas grandiosas como tronos,
que se reúnem em anfiteatros solenes, em sedes esplêndidas e severas. Estes homens, com
202
Marilyn Monroe morreu em Hollywood no dia 4 de agosto de 1962.
144
cara de cães ou de santos, de hienas ou de águias, estes são os patrões.
E veem estes? Homens humildes, vestidos em trapos ou em roupas feitas em série,
míseras, que vão e vêm por ruas abarrotadas e imundas, que passam horas e mais horas em
um trabalho sem esperança, que se reúnem humildemente em estádios ou tabernas, em
casebres miseráveis ou em trágicos arranha-céus. Estes homens, com caras iguais às dos
mortos, sem feições e sem luz se não aquela da vida, estes são os servos.
É desta divisão que nasce a tragédia e a morte.
A bomba atômica com a sua tampa fúnebre que se estende por céus apocalípticos é o
fruto desta divisão.
Parece não existir solução para este impasse, no qual o mundo da paz e do bem-estar
se agita. Talvez apenas uma reviravolta imprevista, inimaginável... uma solução que nenhum
profeta pode intuir... uma daquelas surpresas que a vida tem quando quer continuar... talvez...
Talvez o sorriso dos astronautas
203
. Aquele, talvez, seja o sorriso da esperança e da paz
verdadeira. Com os caminhos da terra interrompidos, fechados ou ensanguentados, eis que se
abre, timidamente, o caminho do cosmo.
Vie Nuove, 20 de setembro de 1962
O filme e a crítica
1
203
O primeiro homem a atingir o espaço foi o russo Iuri Gagarin, lançado em 12 de abril de 1961, a bordo da
espaçonave Vostok I.
1
A recepção do público e da imprensa italiana ao lançamento do filme Mamma Roma, em 1962, foi um tanto
controversa e polêmica, principalmente pelos fatos que acompanharam as estreias do filme em Veneza e em
Roma.
Em Veneza, no dia seguinte à estreia, no final de agosto de 1962, durante o Festival de Cinema daquele ano, um
comandante policial, Giulio Fabi, que assistiu por acaso a projeção do filme no Palácio do Cinema, realizou uma
denúncia ao procurador da República da cidade, alegando ter identificado em Mamma Roma um conteúdo
“ofensivo à moral e aos bons costumes”. Esta teria sido a primeira vez na história dos festivais de cinema
internacionais que um filme, apresentado em Veneza, sofreu uma denúncia por conteúdo imoral. Nos dias
seguintes, cineastas e a imprensa de esquerda saíram em defesa de Pasolini, argumentando que a denúncia do
comandante teria sido motivada pelo fato que, no final do filme, o protagonista Ettore, um garoto de 17 anos,
morre em uma prisão, amarrado e abandonado em uma cama. O episódio foi inspirado em um fato real, que teria
ocorrido em Roma com um jovem presidiário. Como já estava se tornando um costume para Pasolini, ao final da
projeção se ouviram alguns aplausos e muitas vaias e protestos, provenientes do público neofascista presente no
local. A presença da equipe do filme em Veneza, formada em sua maior parte por jovens das periferias de Roma,
também perturbou o público e a imprensa habitué do Festival. No dia 5 de setembro de 1962 o juiz responsável
pela denúncia contra Pasolini e seu filme decreta o caso encerrado “sem necessidade de promover ação penal”.
(Betti, 1977, p. 139-142)
Na estreia em Roma, ocorrida no cinema Quattro Fontane no dia 23 de setembro de 1962, os fatos foram ainda
mais polêmicos. Ao final da projeção, Pasolini se envolveu em uma briga com dois estudantes universitários,
membros de uma associação de extrema direita. A versão oficial dos fatos, divulgada pela polícia e publicada
pelos jornais, afirmava que Pasolini teria sido vítima da agressão dos jovens. No entanto, o escritor mesmo
afirmou, diversas vezes, como nesta crônica, que, na realidade, foi ele quem agrediu os jovens. A revista Lo
Specchio, por exemplo, comentou o episódio com satisfação: “Bofetadas para Pasolini. Aplaudiram Mamma
Roma na cara do diretor”. (Betti, 1977, p. 143-144; Chiesi, 2006, p. 34)
145
Caro Pasolini, sou um comunista da Garbatella
2
. Acompanhei os acontecimentos de
Mamma Roma e estou curioso para saber as suas reações à recepção do público e da crítica
ao filme. Apertando-lhe a mão,
Enzo Pennacchia - Roma
Caro Enzo, o “texto” com que respondo à sua pergunta não foi escrito para Vie Nuove,
mas era simplesmente um “desabafo” que tinha destinado para outra publicação e que acabei
guardando para mim.
Se tivesse escrito estas reações diretamente para você, em Vie Nuove, provavelmente
teria usado outro tom. E depois, não foi exatamente em Vie Nuove que foi publicado o
esplêndido texto de Trombadori
3
sobre o meu filme?
Mas você, além da crítica, me pergunta também sobre o público. Posso dizer que, em
relação ao público, recebi por Mamma Roma manifestações de simpatia muito mais fortes e
calorosas do que por Accattone.
Desabafo por “Mamma Roma”
Não, claramente ocorre alguma coisa de injusto. Aliás, tinha previsto. Muito antes
de Mamma Roma ficar pronto, tinha escrito em Vie Nuove que “o seu final poderia ser o
meu final”
4
, já que eu, nestas circunstâncias particulares, na minha sociedade, sou proibido de
errar. Como sempre, fui exagerado nas minhas paixões, mas, infelizmente, também lúcido.
Não digo que eu seja proibido de errar, mas de expor-me a críticas. E, se houvesse neste caso
um pouco de mania de perseguição, acho que seria mais do que legítima.
Na realidade, o se trata do “final” do meu filme e nem de mim. Aliás, o filme está
muito bem e eu também, já trabalhando em uma nova história africana
5
.
Mas é claro que alguma coisa de injusto está ocorrendo, incompreensível, como em
todas as situações kafkianas que se respeitam.
2
Bairro na zona sul de Roma historicamente comunista e operário.
3
Antonello Trombadori, jornalista, crítico de arte e político italiano ligado ao PCI.
4
Cf. crônica Como um pesadelo de infância.
5
Refere-se provavelmente a Il padre selvaggio, que não será nunca filmado. (Pasolini, 1977, p. 228) Edição
brasileira: O pai selvagem. Trad. Silvana Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
146
Deixemos de lado a absurda denúncia do coronel Giulio Fabi, que foi, na melhor das
hipóteses, um ato de psicose coletiva e de ingenuidade pessoal que, no fundo, me mais
pena do que indignação. E, além do mais, a injustiça da iniciativa foi amplamente
compensada pelo discurso do juiz que colocou as coisas no seu devido lugar, com clareza de
ideias, coragem e cultura, com um tom pouco itálico, para ser sincero, ou pelo menos insólito
no nosso país.
E deixemos de lado também o moleque fanático que, do alto das escadas da plateia do
cinema Quattro Fontane, no silêncio que se seguia à morte de Ettore que tinha recém ocorrido
na tela, me atacou com o grito ressonante que vocês conhecem (“Pasolini, em nome da
juventude nacional, lhe digo que você nos nojo”). Aqui também se tem mais pena (talvez
irônica) do que raiva. Além do mais, a injustiça da iniciativa patriótica também foi
amplamente compensada pelas bárbaras bofetadas que desferi no herói logo que ele, certo da
impunidade, fechou aquela pobre boca de minus habens estridente de nada. (Deveria me
envergonhar daquela minha reação repentina, digna da selva. “Parti pra cima”, como dizem os
tão críticos pivetes da periferia, e dei “um monte de porradas” nele. Deveria me envergonhar,
mas, ao contrário, devo constatar que, dadas as circunstâncias que me reduzem a isto a
raciocinar com os punhos -, sinto uma verdadeira satisfação. Finalmente o inimigo mostrou a
sua face e a enchi de porradas, como era meu sacrossanto direito).
O que eu acho injusto é o modo como o meu filme foi recebido (primeiro em Veneza e
depois, até agora, em Roma) pela crítica.
Digo logo que o primeiro a não estar completamente satisfeito do meu trabalho sou eu.
E digo logo que talvez goste mais de Accattone. Mas o que quer dizer com isso?
Porque também digo logo (visto que as minhas opiniões sobre mim parecem ter um
valor objetivo!) que não acho que Mamma Roma seja algo que se todos os dias para ser
tratado com um castigo de uma opinião “mundana”, ao invés de cultural. Como se uma obra
se enquadrasse em uma história de Festivais ou de sucessos sociais, ao invés de se enquadrar
em uma história do estilo. Acredito que sou bem lúcido em relação a mim para dizer que
sequências como o banquete inicial, as duas longas panorâmicas com Anna Magnani, as
sequências da história de amor entre Ettore e Bruna nas ruínas e no valão e a cena final, são
fragmentos de cinema que não podem ser esquecidos em nome de discursos gerais mais ou
menos legítimos ideologicamente e esteticamente, ou mais ou menos condicionados pelo
desempenho mundano ou público do filme.
Enfim, o que deveria importar em uma obra é o que ela vale, não o que ela o vale.
Mas Mamma Roma, ao contrário, foi julgado exclusivamente pelos pontos onde seu valor
147
pode ser colocado em dúvida, como se o crítico delirasse consigo mesmo, cercado pelo seu
círculo particular de interesses ideológicos (ou pior): “Sim, tem muitas coisas bonitas, mas é
natural que seja assim. É tão natural que nem me dou conta. Percebo apenas, com estímulos
de exceção, os pontos fracassados, tanto em relação ao próprio Mamma Roma como com
Accattone”.
Assim nasceu o equívoco da crítica e a situação de injustiça na qual me vejo
envolvido.
Mas, naturalmente, as coisas se explicam.
Em primeiro lugar, a condição de grande parte da crítica cinematográfica italiana, cuja
preparação cultural é desastrosa. Não ninguém que não se sinta autorizado a escrever de
cinema, e eu não sei quais critérios alguns diretores de jornais seguem para confiar a alguém a
crítica cinematográfica... Então, no meu caso, esta precariedade da competência, tanto
específica quanto geral, se torna mais clara. Pelo fato que a opinião sobre mim cineasta
envolve uma opinião, mais ou menos direta, sobre mim escritor ou envolve pelo menos uma
referencia a uma história estilística que compreende uma série de obras literárias. E então,
ocorreram diversas vezes nas quais tive que ler como se diz? assombrado a cor estranha
que a crítica literária assume dentro de uma resenha cinematográfica: crítica literária
exclusivamente mediada pela vulgarização jornalística (muito vulgar).
O caso Mantegna, por exemplo. Eu disse em algumas entrevistas e depois escrevi
exaustivamente em um longo artigo-conto (publicado no jornal Giorno e depois no livro de
Mamma Roma)
6
como a minha visão figurativa da realidade fosse muito mais de origem
pictórica do que cinematográfica. Com isso, eu explicava alguns fenômenos típicos do meu
estilo de filmar. Enfim, as referencias pictóricas eram vistas como fatos estilísticos internos,
não, caramba!, como reconstruções de quadros!
Mas alguns críticos cinematográficos, lendo evidentemente aqueles meus textos com
uma pressa que não tem relação nenhuma com a cultura, tiraram conclusões que são quase
comoventes na sua total e indefesa ingenuidade. Como no final do filme a figura de Ettore é
vista de viés, então todos, em coro, relacionaram com o nome de Mantegna
7
!
Enquanto Mantegna não tem nada a ver, nada a ver! Ah Longhi
8
, intervenha, por
6
O artigo em questão, intitulado Diario al registratore, originalmente publicado no volume Mamma Roma
(Milano: Rizzoli, 1962), também pode ser encontrado no volume Romanzi e Racconti (Org. Walter Siti e Silvia
De Laude, 2 vol., Milano: Mondadori, 1998, pp. 1833-51).
7
A cena final do filme, quando o personagem Ettore morre amarrado em uma cama, foi comparada ao clássico
quadro do pintor renascentista Andrea Mantegna, Cristo morto (1485).
8
Roberto Longhi (1890-1970), famoso crítico de arte italiano, foi professor de Pasolini na Universidade de
Bolonha na década de 40.
148
favor, explique a eles como não basta colocar uma figura de viés e enquadrá-la com a planta
dos pés em primeiro plano para poder falar em influência de Mantegna! Mas estes críticos não
têm olhos? Não percebem que o preto e branco, tão essencialmente e fortemente contrastados,
do quarto cinza onde Ettore (camiseta branca e rosto escuro) está deitado sobre a cama de
contensão refere-se a pintores que viveram e atuaram muitas décadas antes de Mantegna? Ou
que se poderia falar de uma absurda e delicada mistura entre Masaccio e Caravaggio?... Mas
deixemos de lado. Imaginar se “misturas” deste tipo sensibilizam pessoas que todos os dias
devem se livrar do seu texto, preocupadas apenas em não errar muito e, principalmente, em
seguir aquilo que os outros dizem...
Esta incompetência, que não poderia sobreviver se não fosse sustentada pelo
conformismo e pelo cinismo, é a base de grande parte da crítica cinematográfica italiana.
Para uma produção comercial média é uma base que pode funcionar. É uma
engrenagem manipulada por vários interesses na relação entre produtor e consumidor. Um
aspecto fatal do nosso mundo, uma forma da indiferença neocapitalista.
Mas, bem no meio desta fatalidade do ciclo produção-consumo, bem no coração desta
indiferença cultural, está nascendo na Itália, contraditoriamente, um cinema de autor. Ou seja,
um cinema caracterizado, como em todos os casos de poesia, por uma forte necessidade
cultural.
Por isso, a crítica cinematográfica de tantos jornais é hoje inferior à sua função. E este
me parece ser um dos principais problemas da nossa cultura.
Não se pode pretender rigor, austeridade, amor à verdade e honestidade destes
trabalhadores que, no fundo dos seus corações pequeno-burgueses, possuem um profundo e
ideológico desprezo pela cultura. O fato que trabalhem nos jornais alguns poucos críticos
bons honestos e geniais não significa nada: a situação permanece aquela que descrevi
tristemente.
No meu caso, então... Na direita, nos jornais fascistas ou clericais, existe pura má-fé.
Aqui estamos em pleno Kafka. Esses são capazes de qualquer coisa, de negar as verdades
mais evidentes, de distorcer as coisas mais simples. Imaginem o que é preciso para destruir
um filme com a desculpa da ambiguidade de qualquer opinião do Rasho-mon
9
da verdade...
No entanto, com Accattone, mesmo engolindo a seco, mesmo insultando, mesmo fingindo
uma ostentação indignada, tiveram de aceitar de algum modo a sua existência e o seu
fenômeno. Com Mamma Roma podem, ao contrário, minimizar. E porque isso? Porque a
crítica de esquerda, ou a crítica amiga, em geral, expressou algumas dúvidas sobre o filme.
9
Provável referência ao filme “Rashomon” (1950), do diretor japonês Akira Kurosawa.
149
Enfim, isto foi o que aconteceu: do lado onde se deveria falar mal, existe -fé
suficiente para falar mal também do que se deveria falar bem, para se aproveitar de um êxito
parcial do filme para negar qualquer êxito. Enquanto do lado amigo existe sinceridade demais
para falar totalmente bem de uma obra na qual existem defeitos e para defendê-la, portanto,
incondicionalmente.
Deste modo, os cúmplices da direita, os rios “vices” dotados de uma cultura de
repetentes do último ano escolar, se aproveitaram de algumas dúvidas ideológicas honestas
dos críticos de esquerda para arrasar estupidamente o filme, para negar também o seu peso
poético, como não conseguiram fazer com Accattone.
É uma situação triste e indigna do nível no qual está operando toda a cinematografia
italiana. Também porque as dúvidas dos honestos críticos de esquerda não me parecem
sempre claras: não poderei jamais aceitar as repetições de Miccichè no jornal Avanti!
10
.
Criam tantas histórias, se indignam tanto em relação aos Festivais, que no fim são
aquilo que são, Feiras das Vaidades manipuladas por produtores que, com o cinismo do velho
capitalismo, conhecem muito bem as fraquezas humanas. De todo modo, isto tudo não possui
um grande peso na vida cultural real do país. A crítica cinematográfica sim. E é um problema
que deve ser urgentemente, não digo discutido e enfrentado, para não dizer coisas inúteis,
mas, pelo menos, conhecido na sua triste e humilhante realidade.
Vie Nuove, 4 de outubro de 1962
1
0
Lino Micciché (1934-2004), crítico de cinema italiano, responsável por mais de 30 anos pela crítica
cinematográfica do jornal Avanti!, publicação ligada ao Partido Socialista Italiano (PSI).
150
“... uma força do Passado...”
1
Caro Pasolini, me permita fazer algumas perguntas a propósito de uma questão que
percebi nos seus trabalhos cinematográficos e que despertou certa surpresa. A questão do
recurso a autores do passado em relação à trilha sonora e, por Mamma Roma, às
1
Em um artigo publicado recentemente, o musicólogo italiano Roberto Calabretto salientou a importância da
música no conjunto da obra poética de Pasolini, mesmo sendo esta a única linguagem artística com a qual o
escritor não se confrontou diretamente durante sua vida. Segundo Calabretto, o uso de Johan Sebastian Bach
como trilha sonora nos primeiros filmes de Pasolini, em especial Accattone (1960), remonta ao início dos anos
40, quando o cineasta ainda morava no Friuli e foi apresentado ao músico alemão por uma violinista eslovena
refugiada de guerra. O musicólogo destaca que a escolha de Bach para Accattone foi uma escolha “muito mais
ética do que estética”, hostilizada pela musicologia italiana da época mas elogiada por especialistas alemães.
Calabretto também recorda que nos anos seguintes, Pasolini seguirá utilizando música clássica nas trilhas
sonoras dos seus filmes, com repertórios como Vivaldi e Mozart, e contando, algumas vezes, com a colaboração
do grande músico do cinema italiano, Ennio Morricone, como nos filmes Gaviões e passarinhos (1965),
Teorema (1968), Os contos de Canterbury (1971) e As mil e uma noites (1973). (CALABRETTO. R. Pasolini e
la musica. In: Pasolini: quale eredità? Atti del convegno tenutosi a Padova il 18 novembre 2005. Org. Alfonso
Malaguti. Avellino: Laceno, 2006, p. 85-88)
151
referências pictóricas (no primeiro caso Bach, no segundo Mantegna). Porque um escritor e
um cineasta tão engajado no presente, como você, sente necessidade de inserir nas suas
obras estas referências que parecem tão intelectualistas? A sua opinião sobre a música
contemporânea é tão negativa que o leva a rejeitar a sua experiência e colaboração? No
entanto, acho que no seu caso uma colaboração com as outras formas expressivas
contemporâneas resultaria especialmente eficaz. Obrigado e cordiais saudações.
Mario Liverani - Livorno
Existem muitas razões pelas quais prefiro a música clássica ao invés da
contemporânea como trilha sonora para os meus filmes. A primeira é estilística. Ou seja, a
criação de um pastiche linguístico, muito marcado, “em contraste” (o coro em alemão da
Paixão segundo São Mateus de Bach sobre o miserável revolver-se no de Accattone), que,
para intensificação expressiva, quase expressionista, serve para representar com mais
dramaticidade aquilo que quero dizer (um grande e trágico destino de morte que se sobrepõe a
uma pequena, mísera, imunda vida subproletária).
E depois, eu sou ... “uma força do Passado”, como escrevi em alguns versos que
publiquei no livro de Mamma Roma
2
:
Eu sou uma força do Passado.
Apenas na Tradição está o meu amor.
Venho das ruínas, das Igrejas,
dos retábulos, das aldeias
esquecidos sobre os montes Apeninos ou os Pré Alpes,
onde viveram os irmãos.
Vagueio pela Via Tuscolana como um louco,
pela Via Appia como um cão sem dono...
3
2
A poesia Io sono una forza del passato... (publicada posteriormente com variações em Poesia in forma di rosa,
Milano, Garzanti, 1964) se tornou célebre na obra de Pasolini quando o autor a inseriu no roteiro do filme curta-
metragem A ricota (1963), no qual um cineasta, interpretado por Orson Welles, recita estes versos. A ricota é um
dos quatro episódios do filme Rogopag – Relações Humanas (França e Itália, 1963).
3
O crítico Alfonso Berardinelli afirmou que esta poesia demonstra como Pasolini, “um escritor que no início dos
anos 60 não escondia sua visão sentimental e nostálgica da sociedade italiana e do Partido Comunista”, que
desde então não demonstrava “nenhuma vontade de se adequar, de ser moderno”, escreveu “em versos que se
tornavam cada vez mais frases ‘cortadas’, cortantes ou declarações enfáticas, sobre a sua própria condição
‘monstruosa’ de indivíduo que não pode mais chegar a um acordo com o ser social da sua própria
contemporaneidade”. (Berardinelli, 1990, p. 153)
152
É uma ideia falsa, como sempre, devido à mistificação jornalística, a de que eu seja
um... “modernista”. Até mesmo os meus mais audaciosos experimentalismos não dispensam
um amor determinante pela grande tradição italiana e europeia. É preciso arrancar dos
tradicionalistas o Monopólio da tradição, você não acha? Apenas a revolução pode salvar a
tradição, apenas os marxistas amam o passado; os burgueses não amam nada, as suas
afirmações retóricas de amor pelo passado são simplesmente cínicas e sacrílegas. No melhor
dos casos, este amor é decorativo ou “monumental”, como dizia Schopenhauer, certamente
não historicístico, ou seja, real e capaz de uma nova história. Deixe-me amar Masaccio e Bach
e detestar a música experimental e a pintura abstrata.
Vie Nuove, 18 de outubro de 1962
Antes de partir
204
Tenho sido muito inadimplente nestas últimas semanas, amigos de Vie Nuove. Posso
me justificar pelo acúmulo de trabalho, a simultânea organização de dois textos
cinematográficos (La rabbia e La ricotta)
205
e a versão definitiva de uma coletânea de versos,
que devo deixar para o editor antes de partir. Nunca se sabe! Devo voar por milhares e
milhares de quilômetros, até Gana, Nigéria, Guiné, Quênia
3
... e, sempre com este tom de
204
O título da coletânea publicada em 1977 com os textos da coluna de Pasolini em Vie Nuove, Le belle
bandiere, foi escolhido devido à publicação de uma primeira versão do poema homônimo na revista. Segundo
explica o organizador da coletânea, Gian Carlo Ferretti, pelo menos dois grandes motivos o levaram a intitular o
volume com o nome deste poema. Primeiro, a data da publicação do poema, 27 de dezembro de 1962, que marca
uma ruptura importante na experiência de Pasolini na revista, “tanto que a escolha deste poema provavelmente
não foi casual”, escreve Ferretti (Pasolini, 1977, p. 35). Além disso, os temas fundamentais apontados por
Pasolini nestes versos também marcam a chamada “segunda fase dos diálogos” e o contemporâneo percurso
profissional e pessoal do escritor, como a crise dos anos 40 e 50, a intensa lembrança das bandeiras vermelhas de
uma “heroica estação”, a chegada da “bruta brancura” neocapitalista e a impotente tensão contra a realidade
atual (Pasolini, 1977,p. 35).
O poema Le belle bandiere foi posteriormente publicado, com algumas variações, na coletânea Poesia in forma
di rosa (Milano: Garzanti, 1964), volume que Ferretti considera como “fundamental ponto de referência” desta
experiência de Pasolini na revista, que os poemas foram produzidos quase contemporaneamente ao período
dos “diálogos” (1961-1964). Atualmente, pode ser encontrado no volume Tutte le poesie (Org. Walter Siti. Vol.
I. Milano: Mondadori: 2003, p. 1175).
205
Refere-se ao filme-documentário La rabbia (1963) e ao curta-metragem A ricota, um dos quatro episódios do
filme Rogopag – Relações Humanas (França e Itália, 1963).
3
Viagem realizada em companhia dos escritores Dacia Maraini e Alberto Moravia entre dezembro e janeiro de
1962. Segundo publicou o jornal L’Unità na época, Pasolini teria partido nesta viagem com o objetivo de
finalizar seu projeto de filme africano, O pai selvagem, que acabou não sendo aprovado pelo produtor Alfredo
Bini. Na história, um garoto africano se dividido entre a cultura ocidental e a religiosidade primitiva do seu
povo. (Merino, 2003, p. 51)
153
“nunca se sabe”, prestes a viajar, quero dizer a vocês que esta coluna foi para mim um dos
pontos firmes destes últimos anos. Diria que, em alguns momentos negros, foi um porto
seguro. Mas, agora, deverei interrompê-la por alguns meses.
Para este número, o último da minha primeira série e, ainda mais, natalino, ao invés de
responder às novas cartas que estão aqui na minha mesa e nem teria tempo de fazer isso
prefiro reproduzir a parte final da última poesia que escrevi, justo nestes dias, entre uma
moviola e outra, entre um laboratório fotográfico e outro.
É uma recordação do período mais lindo, e determinante, de uma vida. Acabou, é
preciso saber recomeçar.
De “As belas bandeiras”
206
Assim me acordo,
mais uma vez:
e me visto, vou para a mesa de trabalho.
A luz do sol já está mais madura,
os vendedores ambulantes mais distantes,
mais azedo, nos mercados do mundo, o frescor da verdura,
longas avenidas do inexprimível perfume,
sobre os litorais dos mares, nos pés dos vulcões,
todo o mundo ao trabalho, na sua época futura.
Mas aquela alguma coisa de “branco”
que em letras gregas
me apresentou, definitivo, o sonho especialista,
permaneceu comigo – vestido,
na mesa de trabalho.
Membrana, massa, ou cal
206
O crítico Rinaldo Rinaldi cita o poema Le belle bandiere como um “desagradável caso de mecânica repetição
visionária”, onde o poeta sonha “o seu mundo destruído, como uma ‘ilha’ no mar da atualidade neocapitalista,
mas se deixa levar desta vez a um discurso patético sobre tesouros perdidos (...), justo no momento da sua
definitiva ‘desintegração’” (L’irriconoscibile Pasolini. Roma: Marra, 1990, p. 169). Rinaldi também comenta
que a versão do poema publicada em Vie Nuove continha “variações ainda mais violentamente nostálgicas”.
Antonio Tricomi, em seu estudo sobre o volume Poesia in forma di rosa, cita o poema Le belle bandiere
como um exemplo de “fragmentos líricos descontínuos e irregulares, que algumas vezes dão a ideia de um certo
improviso e desleixo” (Sull’opera mancata di Pasolini – Un autore irrisolto e il suo laboratorio. Roma: Carocci,
2005, p. 216)
154
Nas sobrancelhas, no canto dos olhos,
a brancura barrocamente frágil,
de material esponjoso de Como, do sol no sono.
Daquela brancura era o verdadeiro sol,
eram os muros das fábricas,
era o próprio pó (nas tardes secas, quando
no dia anterior tinha chovido um pouco)
eram os trapos de lã,
as jaquetas cinzentas e as calças desfiadas
dos operários:
era daquela substância
o bafo oprimido pela lembrança de primaveras
sepultadas há séculos
naqueles mesmos subúrbios ou povoados,
- e prontas, Deus!
prontas para renascer,
naquelas muretas, naquelas ruas,
naquelas muretas, naquelas ruas,
impregnadas por um estranho perfume,
asiático – prímulas, feno, passagens
de velhas ovelhas escuras – floresciam no frescor
as macieiras, as cerejeiras. – E a cor vermelha
tinha um brilho, como
se estivesse imersa em um ar de quente tempestade,
um vermelho quase marrom, cerejas como ameixas,
macieiras como ameixeiras: e despontava aquele vermelho
entre as sombras, intensas
tramas da folhagem, calmo, como se a primavera
não tivesse pressa,
quisesse aproveitar aquele frescor no qual o mundo respirava,
aqueles gritos dos operários, que eram quase silêncio,
solenes e suaves,
155
na brancura
do caos das muretas, calçadas de terra lamacenta,
moldes de fábricas.
E, acima de tudo, o tremular,
modesto, preguiçoso tremular
das bandeiras vermelhas. Deus! Belas bandeiras
dos anos Quarenta!
Tremulando uma sobre a outra, em uma confusão de tela
pobre, vermelhante, um vermelho que transparecia
violento, com a miséria das toalhas de mesa,
das colchas de seda, das trouxas das famílias operárias,
- mas com o fogo das cerejas, das maçãs, roxo
pela umidade, sanguíneo pelo pouco de sol que o atingia,
ardente vermelho aglomerado e tremulante,
na ternura heroica de uma estação imortal.
Em nome da redação de Vie Nuove e de todos vocês, fieis leitores dele, desejamos boa
viagem e bom trabalho a Pasolini. E nos reencontraremos em breve nestas páginas.
Vie Nuove, 27 de dezembro de 1962
156
Publicamos, ao invés da habitual “resposta” de Pier Paolo Pasolini, uma poesia sua inédita,
incluída na coletânea intitulada Ali dos olhos azuis.
Poesia em forma de polêmica
1
Você, Sartre, não considera ruim
que Notre Dame tenha sido iluminada pelos seus padres
para este ambíguo interlocutor?
Não!
1
Este poema, conforme explica Gian Carlo Ferreti em uma nota no volume original de Le belle bandiere (1977),
contém referências explícitas a experiências vividas por Pasolini pouco antes de publicar o texto. Em dezembro
de 1964, Pasolini passou alguns dias em Paris participando de eventos para promover o lançamento na França do
seu filme O Evangelho segundo São Mateus. O mais polêmico destes eventos foi um debate ocorrido na catedral
de Notre Dame, que pela primeira vez na sua história recebia um evento do gênero, promovido por uma
organização católica e do qual participaram, além de cerca de cinco mil estudantes universitários, também altos
expoentes da Igreja local. O evento se encerrou com uma missa cantada. Alguns dias mais tarde, Pasolini se
encontrou com o filósofo e escritor francês Jean-Paul Sartre em um café de Paris, o café de Pont-Royal. O
encontro foi acompanhado por alguns jornalistas. De Paris, Pasolini seguiu em viagem por outras capitais
europeias para apresentar seu filme, incluindo Budapeste, onde o filme teve uma ótima recepção.
Poesia em forma de polêmica, no entanto, que não será incluída no volume Alì dos olhos azuis (São Paulo:
Berlendis & Vertecchia, 2006), o qual terá um outro poema dedicado a Sarte, Profecia, será incluída
posteriormente na coletânea Bestemmia – Tutte le poesie Vol. IV (org. Graziella Chiarcossi e Walter Siti, Milano:
Garzanti: 1996, p. 622).
157
O Peperizzo de Pressis Passe vai embora.
No Café de Port Royal, cai a escuridão das duas.
Não!
É necessário que os escândalos aconteçam, mas eu não me escandalizo
E coitado do homem para quem os escândalos acontecem. Mas eu não me escandalizo
por nada! E então? Cristo some no Café de Port Royal (Existe
alguém neste mundo que, não se escandalizando,
apaga alguns parágrafos do Evangelho).
Mas lá (no Leste) eles se escandalizam.
E, além do mais (acrescenta o doce homem que não se escandaliza
sentado na poltrona como uma esplêndida cigarra mensageira do amor)
não existe a “crítica ao marxismo”
Tudo, portanto, se explica.
Mas enquanto isso uma outra cigarra
sozinha em dois quartinhos em Budapeste, sobre o Danúbio,
onde se chega
por uma estrada de metal preto como um corredor
entre baixos nevoeiros,
através de uma entrada sem porteiro,
com seis grandes monumentos que contêm a morte da pequena-burguesia
que lá viveu e agora deixa a dor de uma morte não lastimada
- seis monumentos, deteriorantes sobre seis degraus, cheios
158
da forma da dor agora tomada pela grandeza do povo,
lixos gélidos pela pressão de nevoeiros externos implacáveis
- seis monumentos destapados, com parte do seu conteúdo
cascas ardentes de um fruto mediterrâneo pateticamente expatriado...
Basta.
No quinto andar vem a cigarra para abrir a porta,
não se escandaliza, mas não se apaixona,
as máquinas para pensar não funcionam.
Não há ânsia por aquilo que contesto.
A cigarra tem ainda “muito por cantar”, não tem
tempo para responder. Le vieux! (O abraçarei indo embora, terei
coragem de lhe dizer “Por toda a década de Cinquenta tu foi nossa
Esfinge, deixa eu te abraçar”?)
Era
esta cigarra prisioneira de um Quinto andar e da Filosofia.
A sua luz era carismática.
Podem existir duas partes de um pensamento, mas não duas partes de luz.
Rejuvenescido pela idade das cigarras, pareço
uma formiga aprendiz, e a minha alma realmente,
assim como a de um garoto
precisa voltar para a pátria com algum presente.
Apalpo no bolso do paletó italiano
as duas batidas parisienses, confiante da vitória.
Não posso abraçar a pobre cigarra húngara
que os seus compatriotas desprezam (amusez-vous, avec le vieux):
homens escuros, funcionários, jovens literatos
159
que de Budapeste são a nova alma, como um novo Natal,
não sabem nem mesmo dizer onde mora,
eu sou talvez um dos poucos que têm notícia,
como um jovem jornalista,
e quando às sete da noite
é noite alta (aquela silenciosa que antecede as alvoradas)
na capital das esfinges e da dor exposta como uma bandeira,
vou embora sem presente
com os cumprimentos para Cesare Cases e Elsa Morante.
Vou embora, cumprido o meu dever de jornalista desconhecido
com sua face ameaçadora e as suas cruéis pretensões de jovem,
vou embora
como quando se deixa para sempre uma cidade que não se viu.
Adeus, Lukács, pombinha entre as esfinges,
quanto ainda a pomba deve cantar com seu cérebro de homem,
entre as esfinges depositárias do silêncio!
Vie Nuove, 14 de janeiro de 1965
Viagem ao Marrocos
1
Naturalmente, quando vamos visitar um país novo, partimos com algumas ideias
preconcebidas de interpretação. E cada descoberta é uma luta contra estas ideias, que pouco a
pouco vão caindo e sendo substituídas por outras, aquelas reais. Por isso, descobrir é sempre
1
A viagem que Pasolini se refere foi realizada no início de 1965 em companhia do escritor Alberto Moravia e da
jornalista Dacia Maraini.
O historiador Giulio Sapelli, em seu estudo sobre o capitalismo na obra de Pasolini, define este texto sobre o
Marrocos como uma pequena obra-prima de análise sócio-econômica e linguística”, onde o escritor enxerga
“um mundo a ponto de sair do utópico sistema não contaminado” (Sapelli, 2005, p. 69), em referência “à
nostalgia do passado”, através da qual o Terceiro Mundo, em especial a África, representava para Pasolini “o
mundo ainda não contaminado” pela modernização (Sapelli, 2005, p. 35).
160
muito cansativo e, de algum modo, desagradável. Em relação ao Marrocos, eu tive que
renunciar lentamente a toda uma série de ideias que eu tinha criado sobre a sua presença no
“Terceiro Mundo”. Eu sabia que o Marrocos não era o típico país da “escandalosa relação
dialética estabelecida pelo Terceiro Mundo com o mundo industrializado, neocapitalista ou
marxista”, no entanto, estava convencido de encontrar e averiguar durante esta viagem alguns
dos dados que eu acreditava invariáveis desta relação. Não fiquei decepcionado, mas confuso.
Nenhum daqueles dados está na consciência dos marroquinos. Eles existem, com certeza, mas
estão submersos na bruta realidade, pragmáticos e inconscientes. Naturalmente que eu falo
daquilo que aparece aos olhos de um visitante que está fazendo uma viagem de férias. Não
realizei nenhuma sondagem, não fiz nenhuma investigação, não preparei nenhuma pesquisa,
não tentei nenhum interrogatório. Deixei-me levar pelos fatos e pelas coisas, principalmente
pelo que aparecia diante dos meus olhos. E então, neste complexo (e maravilhoso) quadro de
realidade visual não reconheci, repito, nada daquilo que eu tinha ido para reconhecer. O
Marrocos é uma grande extensão de paisagens mediterrâneo-africanas, habitado, ao longo de
uma faixa habitável, por doze milhões de pessoas
2
, das quais uma parte (a grande maioria) é
formada por camponeses. Camponeses que trabalham de forma estupenda os seus campos,
especialmente na região de Fez, onde os campos são cultivados com beleza e paciência de
ourives. Em um outro nível, mas de modo muito similar, àquele de algumas civilizações
camponesas que são familiares para nós italianos, como a toscana e a vêneta. O trabalho
camponês é tão perfeito que se tem a impressão de se estar em um mundo acabado, que não
precisa avançar e nem regredir, mas pode ficar parado como está. Aliás, tamanha é a sua
beleza visual, que o desejamos. Obviamente que houve uma tentativa de industrialização do
trabalho no campo, mas os equipamentos agrícolas (tratores e etc.) foram cobrados dos
próprios camponeses. No ano desta tentativa, a colheita foi péssima e os camponeses ficaram
apenas com as dívidas. Isto os deixou descontentes com o Rei (todas estas iniciativas tiveram
a sua marca), mas especialmente os fez regredir aos velhos métodos. Por outro lado, a
possibilidade de cooperativas é fácil, porque desde sempre existem no Marrocos as alianças
de camponeses, uma espécie de embrião arcaico das cooperativas. No campo, o percentual de
analfabetismo existente é o mesmo registrado na Itália meio século. No entanto, este
problema da escola é muito comentado e hoje não criança que não para a escola e o
analfabetismo está destinado a desaparecer muito rapidamente do campo. E isto marcará,
provavelmente, a data real do início de uma verdadeira industrialização do trabalho
camponês. Sobre este caminho, tudo é normal e sem surpresas. É um problema que, mais do
2
O Marrocos possui atualmente cerca de 31 milhões de habitantes.
161
que referir-se ao Terceiro Mundo, refere-se ao problema camponês de todo o mundo. E o
Marrocos se alinha quase pragmaticamente e automaticamente com todos os outros países.
3
Não tenho muito clara, diante dos olhos, a situação dos que estão fora do mundo árabe
camponês arcaico. Tenho sim, diante dos olhos, um grande turbilhão, que não me detenho a
descrever para não me exceder. A burocracia, com certeza, principalmente na linda Rabat,
sede do governo e residência do Rei. O exército e a polícia. E a grande obsessão
mediterrâneo-bárbara do pequeno comércio.
Existe também uma minoria de ricos, velhos (agrários) e novos (suponho), que
colocam o Marrocos decididamente no caminho do neocapitalismo, copiando a mesmo as
formas externas. Casablanca é uma babilônia neocapitalista embasada no velho estilo colonial
francês (respeitável e sempre de bom gosto, mas, no resto do país, às vezes um pouco irônico)
e na antiga casbá árabe
4
, decadente e destruída. Um neocapitalismo western, provavelmente
liderado por bandidos (a orgia é a do fosfato
5
) aliados a financiadores estrangeiros,
principalmente americanos, que confere às cidades marroquinas um ar decididamente
internacional e violentamente moderno (muito mais do que qualquer cidade italiana), sobre
uma base camponesa bárbara do interior. Assim, nos burgueses marroquinos se mesclam dois
modos de vida muito diferentes (pelo menos dentro da minha análise apenas visual): um
provinciano-tradicionalista, com o Alcorão ao centro, e um internacional-modernista, com os
fosfatos e afins ao centro. É uma dialética interna que interessa ao Marrocos e pode interessar,
muito marginalmente, um estrangeiro. É um problema específico de desenvolvimento.
Mas, o que existe de definitivamente arcaico é o sentimento de insegurança social e
civil que se sente em todo o país, e que coloca o Marrocos, devo dizer, ao lado da grande
maioria dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento afro-asiáticos. Moravia e eu não
esqueceremos jamais um roubo de malas em Gana (talvez o mais avançado destes países) que
acabou no melhor hotel de Accra com a recuperação das nossas bagagens por policiais, que
estavam com as mãos violentamente, obstinadamente e infantilmente estendidas esperando
por uma gorjeta. Durante a minha viagem ao Marrocos ocorreram aqueles gravíssimos fatos
sangrentos, que imagino que tenham sido noticiados pelos jornais na Itália. Naqueles dias, eu
estava na cidade de Mogador, tranquila sobre o mar, e não fiquei sabendo de nada. Em
3
O historiador Eric Hobsbawm define como “morte do campesinato” este fenômeno mundial, derivado
diretamente da industrialização do campo, ocorrido entre das décadas de 50 e 60. “Para 80% da humanidade, a
Idade Média acabou de repente em meados da década de 1950; ou talvez melhor, sentiu-se que ela acabou na
década de 1960” (Hobsbawm, 1994, p. 283).
4
Denominação dos bairros árabes das antigas capitais europeias no Norte da África, geralmente localizadas nas
partes altas da cidade.
5
A economia do Reino do Marrocos tem até hoje como uma das suas principais bases a mineração do fosfato,
além da agricultura e do turismo.
162
Casablanca, local das mais inconcebíveis atrocidades policiais daqueles dias, cheguei quando
tudo tinha acabado, restava apenas o toque de recolher
6
. Resolvi circular mesmo durante as
horas do toque de recolher para observar. E ali tive a sensação que nada garante a integridade
física e a mais elementar segurança do cidadão. No entanto, devo acrescentar que não
necessidade desta garantia, porque, como todos os povos arcaicos, o povo marroquino, com
exceção dos criminosos, é muito pacífico. E, as repentinas explosões de fúria e violência, são
fatos que vão além de uma garantia de tranquilidade civil. A praga do Marrocos me parece,
neste sentido, devida à presença de duas forças armadas, talvez rivais entre eles: o exército
(voluntário) e a polícia. Os soldados baseiam a sua segurança, muitas vezes ousada, em
relação à polícia, justamente sobre as armas. Durante o toque de recolher, eles podiam andar
pelas ruas bêbados e, quando encontravam a polícia, nascia uma espécie de “jogo limpo”,
baseado em tapinhas nas costas e radiantes sorrisos infantis, que confirmavam a anarquia
fundamental naquelas forças que deveriam garantir a ordem pública.
A média da inteligência entre os marroquinos é baixa, devo dizer, e isto os coloca no
mesmo nível de muitos outros povos em desenvolvimento. Certamente não falo em
inevitáveis razões raciais, mas em uma secular falta de exercício de qualquer função crítica.
Existe uma profunda simplicidade (que se obscura apenas em zonas bem definidas da
criminalidade), que torna os marroquinos encantadores, mas desprovidos de interesses. A falta
de qualquer estímulo revolucionário estável, por um lado, e as repentinas, patéticas e atrozes
violências nas ruas, por outro lado, devem ser procuradas nesta falta de inteligência ou
racionalidade. A pergunta que atormenta um visitante, mesmo que imparcial, do Marrocos, é
a seguinte: “Qual é a esperança dos marroquinos?”. Se poderia dizer que a única esperança
imediata nutrida por aqueles singelos corações seja o de um ideal pequeno-burguês
combinado com a antiga fidelidade ao Alcorão. Em relação à França, ou à Europa de um
modo geral, os marroquinos são quase como um italiano do sul em relação à Milão: não
criticam, não julgam, simplesmente gostariam de se mudar para lá, como um local que
garante presumidamente um tipo de vida burguês superior, exaltado no contexto de uma
espécie de esnobismo plebeu.
A esta pacificidade, a esta razoabilidade e bom senso (camponeses), a este idealismo
6
O Marrocos obteve a independência da França em 1956. Em 1961, com a morte do Rei Mohammed V, seu
filho, Hassan II, passou a governar o país. A partir de 1963, com a aprovação de uma nova constituição que
ampliava os poderes da monarquia, Hassan II começou a ter problemas com os partidos de oposição, que
passaram a ser duramente reprimidos. Em 1999, o príncipe herdeiro Sidi Mohammed assume o trono sob o nome
de Mohammed VI, reitera sua adesão ao pluralismo político, ao liberalismo econômico e aos direitos humanos, e
assim inicia um longo processo de modernização e abertura política do país que continua até hoje.
163
pequeno-burguês, muito ingênuo e ainda sem o detestável sentimento de “dignidade pessoal”
que o idealismo pequeno-burguês confere aos seus seguidores, a esta lealdade arcaica e
medieval sobrevivente em relação às instituições, se dirigiu o Rei do Marrocos, em um
discurso televisivo nos dias seguintes aos atos de violência de Casablanca e Rabat.
Certamente ele conhece bem “os seus súditos”. Todo o discurso foi uma espécie de sensata, e
no fundo laica e pragmática, homilia, dominada por repetições: Povo querido... povo
querido... povo querido...”. Uma reprovação entristecida pelos atos de violência, uma
referência aos seus próprios méritos como rei, algumas provocações, patéticas como um canto
popular árabe, contra as instituições parlamentares e, no geral, um ar simpático, de homem
pacífico e sábio do seu modo. No fundo, naturalmente, era um horrível reacionarismo,
baseado em uma forma de hipocrisia, como toda dissimulação corrompida. Ou seja, o Rei se
dirigia aos marroquinos reais, com alguma sabedoria psicológica, não os mistificava (como
fazem os ditadores, Mussolini por exemplo, que falava aos italianos completamente
inexistentes), não os mistificava mas os enxergava em apenas um momento e em uma
dimensão. Talvez, sendo ele próprio marroquino, de uma antiga família que governa os
marroquinos há dois séculos, não pode objetivamente ter o distanciamento necessário para ver
a psicologia do seu “povo querido” em um contexto específico. Na realidade, existe um
“outro momento” do marroquino, que é uma espécie de transe: aquele em que o marroquino
consegue queimar os policiais vivos, por exemplo, ou quando se droga de haxixe, ou aquele
do domínio da sensualidade, constante no seu dia. É praticamente o momento da evaporação
da personalidade em uma espécie de êxtase produzido por uma estagnação intelectual secular
a degeneração do islamismo, o corromper-se da civilização camponesa, o isolamento, a
exploração cruel, e etc. Como sempre nestes casos, o homem se defende não querendo mais
ser homem, esvaindo-se em pacificidade ou em violências infantis e um pouco animais. A
esta etapa da sua psicologia, o “povo querido” escuta as palavras do Rei por aquilo que são,
um canto sonolento, uma composição repetitiva sem sentido, apenas psicoterapêutica e, muito
satisfatoriamente, sem sentido.
Vie Nuove, 22 de abril de 1965
164
POLÍTICA E SOCIEDADE
165
166
Roma e os seus "não-residentes"
1
Caro Pasolini, poucos dias descobri que os cidadãos romanos são "oficialmente"
divididos em duas categorias: cidadãos com plenos direitos e cidadãos com parte dos
direitos. Refiro-me aos chamados "não residentes", ou seja, àqueles que não podem obter a
residência junto à prefeitura de Roma porque não possuem um trabalho estável e que não
podem ter um trabalho estável porque não possuem a residência. As consequências deste
estado de coisas são assustadoras: esta gente não pode obter nenhum auxílio, nenhuma
assistência, não pode nem mesmo votar se não tem como voltar para a cidade na qual
"oficialmente" reside para expressar seu voto. Enfim, para a administração municipal de
Roma esta gente realmente não existe. Diante dos habitantes das periferias e das suas
condições miseráveis de vida, a administração municipal da capital italiana fecha os olhos e
não move um dedo. Belo modo de resolver os problemas, o Sr. não acha? Gostaria de saber
o que você pensa sobre este problema (consequência das nefastas leis fascistas, nunca
anuladas, sobre urbanismo), especialmente porque se refere a personagens os quais você
transformou em protagonistas dos seus romances. Talvez, quando escrevia estes romances,
você não percebia, mas estava escrevendo de um mundo que para Cioccetti
2
nem mesmo
"existe". Cordialmente.
Guido Cristini
Então, eu percebia perfeitamente. Não tanto que não existissem para a pessoa de
Cioccetti - o mesmo que nada - mas para o governo italiano, para a nossa classe dirigente,
para a nossa burguesia, e também para parte dos homens de esquerda. Estes últimos
conhecem bem a existência do mundo subproletário da periferia de Roma, formado em sua
maioria, exatamente, por não-residentes; mas a conhecem um pouco de fora, como problema
a ser enfrentado em um quadro geral de problemas, algumas vezes burocraticamente, outras
um pouco demagogicamente. Na realidade, nós, marxistas, temos dificuldades em acreditar na
existência real de um subproletariado, que não é mais o subproletariado clássico, pura massa
inerte, mas que está em fase de transformação e de evolução.
O problema dos não-residentes é um elemento que coloca em evidência esta nova fase
1
“Em 1961, os burgueses italianos viam no subproletariado o mal, exatamente como os racistas norte-americanos
o viam no universo negro” (Pasolini, P.P. Le regole di un’illusione, 1991, p. 26, in: Merino, 2003, p. 48).
Consciente da exclusão dos subproletários do milagre econômico na Itália dos anos 60, Pasolini fez deste um dos
temas centrais da sua obra neste período, como nos filmes Accattone e Mamma Roma. Para o historiador Giulio
Sapelli, a originalidade do pensamento de Pasolini reside justamente no fato do autor não acreditar no “progresso
social”, e, assim, através do seu trabalho “testemunhar a decadência da sociedade (Sapelli, 2005, p. 15).
Segundo dados do historiador João Fábio Bertonha, durante os anos do chamado “milagre econômico” (1955-
1963), quando a Itália apresentou índices inéditos de crescimento da economia, milhões de agricultores do sul do
país migraram para os grandes centros urbanos do norte, alimentando a atividade industrial. Mesmo com baixos
salários no início, os camponeses e operários foram muito beneficiados pelo “milagre”, que diminuiu de maneira
significativa os índices de desemprego durante a década de 60. No entanto, Bertonha salienta que, mesmo com
os efeitos positivos da instauração de um sistema de bem-estar social no país, a prosperidade não foi uniforme e
“bolsões de pobreza continuaram a existir, em especial no Sul” (Bertonha, 2005, p. 136-140).
2
Urbano Ciocetti, membro do partido Democracia Cristã, foi prefeito de Roma entre 1958 e 1961. Conhecido
por ter recebido o apoio dos partidos neofascistas, promulgou em 1959 um plano urbanístico que excluía as
periferias e se mantinha fiel aos interesses vaticanos. A lei em questão remonta a 1939, quando foi criada para
impedir o êxodo do campo, e foi abolida em 1961. (Pasolini, 2006, p. 1814)
167
do subproletariado da capital (quase todo emigrado do Sul). Na realidade, em contato com
uma nova realidade social, de novas e imediatas dificuldades, os subproletários mais passivos,
inertes, resignados se vigoram. O espírito desesperado de aventura, que das tristes e
esfomeadas cidades do Sul lhes trouxe até Roma, encontra aqui novo motivo para exercitar a
sua vivacidade, a sua esperança.
É verdade, no entanto, que muitas vezes os emigrados do Sul, principalmente os jovens,
se deixam persuadir e envolver pelas tentações mais imediatas dos meios, onde,
necessariamente, devem viver: os bairros miseráveis, as periferias e, até mesmo, os abrigos.
Mas, tudo isto, ao final também lhes transforma. No pior dos casos o seu ingênuo
fatalismo se transforma em um tipo anárquico de revolta. Pelo menos, não mais consideram
sagrado aquilo que efetivamente não é. É um mísero primeiro passo.
No melhor dos casos, quando conservam intacta a sua fundamental honestidade de
cidadãos de pequenas cidades do Sul do país, diante das evidentes injustiças que os oprimem
aqui no norte, adquirem um, mesmo confuso, sentimento dos próprios direitos. E, realmente,
nestes últimos meses, se assistiu a um movimento organizado e coletivo dos não-residentes,
que tornaram pública a sua situação, fazendo com que quem possui um mínimo de
consciência humana e política a percebesse e até obtiveram algum resultado, ou estão no
caminho de obtê-lo.
Que um cidadão italiano possa ser não-residente é monstruoso. Ele tem o direito de
viver como quiser e onde quiser. O fato de não conceder a residência significa fazer um pré-
julgamento, o que é típico dos governos paternalistas e fascistas. Mas, à parte esta
monstruosidade específica do fenômeno, ele se insere em um problema mais geral e urgente:
o do desemprego. Se o desemprego não existisse, não existiria o problema de conceder ou não
a residência a um cidadão em uma nova cidade que ele, com todo direito, escolheu
livremente.
Não concedendo a residência, as "autoridades" romanas admitem simples e
descaradamente que em Roma não empregos. Assim como também não emprego nas
miseráveis cidades do Sul de onde provém a maior parte dos não-residentes. E então? Certo,
um campo de concentração é sempre a melhor solução... E, realmente, as periferias, desejadas
168
pelos fascistas e consagradas pelos democrata-cristãos, são verdadeiros campos de
concentração
3
.
Assisti ontem à noite, em uma projeção privada, o filme de Lucchino Visconti Rocco e
seus irmãos
4
. A direção, como sempre, esplêndida, a história, especialmente na segunda parte,
comove profundamente. No entanto, por ser totalmente e, talvez, brutalmente sincera, esta
última obra de Visconti me deixa em dúvida.
O filme discute o problema dos emigrantes meridionais em Milão. Não conheço a fundo
a relação entre os meridionais e Milão, sobre este ponto deixo em suspenso minha opinião.
Mas, por conhecimento direto, posso dizer que Rocco e seus irmãos são meridionais em um
modo que o único realmente verossímil é Ciro, com exceção daquele lado doce demais que
existe na sua relação com a garota que deverá se casar. Os outros correspondem a
estereótipos: o conformista facilmente influenciável pela ideologia burguesa (Vincenzo), o
sensual desequilibrado (Simone) e o místico (Rocco). Não saem destes estereótipos, que
pressionam tanto o personagem que torna a história um pouco melodramática e, muitas vezes,
confusa. Eu teria pedido a Visconti mais coragem no aprofundamento psicológico, que torna
as coisas complicadas, os fatos contraditórios, os acontecimentos difíceis e que nunca é
espetáculo. O mesmo aprofundamento psicológico que Visconti usou em A Terra Treme
5
,
que, naturalmente, torna tudo concreto, simples, ótico, plástico, através dos instrumentos
diretos da expressão artística.
Fiz esta divagação viscontiana para dizer que sobre o problema dos não-residentes
3
A expressão “borgata” em italiano refere-se especificamente aos bairros periféricos de Roma construídos
durante o governo fascista para abrigar os moradores que eram removidos das casas antigas do centro histórico
da cidade. Hoje, estes bairros estão tomados, além dos antigos moradores, também por imigrantes provenientes
de países subdesenvolvidos, principalmente do norte da África e do Leste Europeu.
4
Rocco e seus irmãos (Itália, 1960, 175 min), do diretor Lucchino Visconti, filme considerado um dos grandes
clássicos do cinema neorealista italiano.
5
A Terra Treme (Itália, 1948, 160 min)
169
romanos, ou seja, sobre os Roccos e seus irmãos que vivem em dezenas, em centenas de
milhares nas periferias, não adianta ser otimista no plano político, no sentido fácil e
sentimental da palavra. É necessário, infelizmente, enfrentar muitas contradições e
complicações penosas, frequentemente insolúveis e cruéis. Não basta colocar o problema e
torná-lo alvo de indignação. É um modo redundante de salvar a própria consciência. É preciso
lutar sem pausa, sem respiro, com a máxima dedicação, como fazem muitos sindicalistas, que
são verdadeiros santos, ou analisar o problema com a mais corajosa e impiedosa intenção de
aprofundá-lo e expressá-lo. Todos os outros modos deixam absolutamente indiferentes
homens como Cioccetti e colegas.
Vie Nuove, 1º de outubro de 1960
Desempregados em Nápoles
Caro Pasolini, quando estive na agência de empregos, me deparei com um grupo de
desempregados como eu. Discutimos sobre os partidos em vista das eleições. Eu defendia o
meu partido, o PCI, mas tinha quem dizia que votaria em branco porque não acreditava em
mais ninguém, porque todos pensam apenas no seu próprio bolso. E tinha também alguns
fascistas, que afirmavam que na época de Mussolini era obrigatório dar trabalho para os
desempregados no mês de Natal, com as empresas sendo obrigadas a contratá-los, talvez até
por 40 horas semanais. Hoje, quando quem trabalha, trabalha 200 horas, não se poderia
obrigar a dar trabalho para os desempregados, talvez por duas semanas? Ajudando um
pouco talvez apenas os chefes de família; não para esbanjar como fazem os ricos, mas
apenas para que possam comprar alguma coisa. Acredito que uma medida deste tipo poderia
aliviar um pouco as dificuldades dos desempregados, evitando que depois nos deem de
esmola alguns quilos de massa. Peço-lhe, caro Pasolini, uma opinião e uma resposta o
quanto antes em Vie Nuove para poder mostrar àquele grupo de desempregados que existe
quem se preocupa com eles. E, a propósito, em quem você vai votar?
6
Domenico Riccio – Nápoles
6
Sobre eleições e partidos políticos italianos, cf. nota 1 da crônica O fascismo e o massacre em Ferrara em
dezembro de 1943 e nota 1 da crônica Fascistas: pais e filhos.
170
Fico muito feliz, caro Riccio, em saber que você discute política com paixão com seus
amigos ou conhecidos. Infelizmente na Itália, em cidades como Roma e Nápoles, existe
aquele famoso “fatalismo”, pelo qual os homens tendem não apenas a não agir, mas também a
não discutir. E, ao contrário, é preciso recordar sempre que a discussão política dignidade
ao homem. Diga isso aos seus amigos e conhecidos, repita isso de muitas outras maneiras,
especialmente quando falam de esporte. Diga a eles que quando falam, se excitam, gritam por
eventos esportivos, Lauro
7
fica todo feliz: conseguiu enganá-los. Mas vamos à sua questão, ou
seja, à eventualidade de impor uma obrigação aos empregadores para que contratem operários
desempregados por algum período, talvez durante o Natal... Ah não, caro Riccio! Não
concordo com você. Isto se chama esmola oficial, e deixe a esmola oficial para os fascistas e
os padres! Com certeza que cada um, privadamente, pode praticar o bem com outro indivíduo,
pode lhe dar algum dinheiro, lhe oferecer um emprego, tem o dever de fazer isso, um dever
íntimo, diria até religioso. Mas quando a esmola não é mais um fato privado, mas um fato
estatal, oficial, então, se torna uma monstruosidade. Uma monstruosidade que humilha o
operário que recebe aquela esmola, humilha o empregador obrigado a dá-la, humilha o país
onde isto ocorre.
Diga aos seus amigos e colegas que, infelizmente, continuam sendo fascistas: “Nós não
queremos esmola, nós combatemos e lutamos para que não exista mais desemprego na Itália,
para que os salários sejam dignos e não para que os ricos nos concedam algum benefício
humilhante. Que Lauro guarde o seu dinheiro, nós não devemos nos curvar para agradecê-lo!
A Constituição afirma que temos direito ao trabalho, e não por duas semanas ao ano, mas pelo
ano inteiro. Porque este direito não nos é concedido? Porque tentam nos manter obedientes
nos dando de esmola um pedaço de pão, temperado com um pouco de esporte?”.
Diga isto aos seus colegas. E diga a eles que os partidos políticos não são coisas que
caem um belo dia do céu, ou que nascem naturalmente como rosas. Os partidos políticos são
expressões das diversas classes sociais: o fascismo, a monarquia, o clericalismo defendem
sempre os interesses daqueles que você chama os ricos”, enquanto o socialismo e o
comunismo defendem os interesses da classe trabalhadora, lutam para que a Constituição seja
colocada em prática, ou seja, o direito ao trabalho. Você me pergunta em quem eu voto. No
PCI e não tenho a mínima dúvida. Esse é o único partido político que, junto aos socialistas,
quer e realmente pode fazer da sociedade italiana uma sociedade humana e civilizada. Não
gostaria de acrescentar mais nada para você. Mas para os seus amigos que votam em branco,
7
Se refere a Achille Lauro, grande empreendedor de Nápoles, prefeito da cidade na década de 50 por um partido
de direita e personagem muito popular e controverso, também ficou conhecido como “último rei de Nápoles”.
171
gostaria de acrescentar, através de você, que estou tão profundamente convencido daquilo que
lhe disse, que estou disposto a ir contra os meus próprios interesses pessoais e aceitar o mais
ameaçador ressentimento dos “ricos”.
Vie Nuove, 05 de novembro de 1960
Convite para a Calábria
8
Caro Pasolini, quando uma pessoa diz a verdade, gosta apenas da verdade, começa a
falar sobre moral, ainda que fique apenas nas palavras. Se alguém pega uma caneta e
escreve aquilo que vê e realmente sente, muitas vezes é chamada de imoral. Você deve saber
melhor sobre estas coisas do que eu, um operário. Justamente porque sou um operário,
aprendi que com ferro e cimento se constrói uma casa e com fatos se cria um romance. Mas
vamos ao que interessa: você se lembra quando recebeu o prêmio em Crotone? Todos os
intelectuais corruptos competiam para insultar você. “Quem é este P.P.P?”, diziam. Nós,
com calma, respondíamos que um bom médico define o diagnóstico baseado naquilo que
8
Nos meses de julho, agosto e setembro de 1959 a revista mensal italiana Sucesso publicou uma longa
reportagem de Pasolini sobre as praias italianas, intitulada La lunga strada di sabbia. Em novembro do mesmo
ano o prefeito de uma cidade calabresa citada no texto, Cutro, prestou queixa contra Pasolini por difamação
através da imprensa. O político acusava Pasolini de ter usado palavras ofensivas para descrever a região. A
polêmica aumentou mais ainda quando, ainda em novembro de 1959, um júri formado pelos escritores Giorgio
Bassani, Giacomo De Benedetti, Carlo Emilio Gadda, Alberto Moravia e Giuseppe Ungaretti concedeu ao
romance de Pasolini Una vita violenta o prêmio literário Cidade de Crotone. (Chiesi, 2005, p.10).
Crotone e Cutro são duas pequenas cidades a poucos quilômetros de distância, mas com grandes diferenças
políticas. No final de 1959, Crotone possuía um governo municipal comunista, enquanto Cutro era dominada
pela Democracia-Cristã. Neste contexto, a polêmica com Pasolini foi utilizada como instrumento político pelos
democrata-cristãos de Cutro, que perdiam terreno com o avanço dos comunistas. Diversos jornais de direita
destacaram negativamente o prêmio concedido a Pasolini, como o jornal Il Popolo, que publicou uma matéria
intitulada “Os comunistas de Crotone traíram a Calábria”. No entanto, “a farsa montada pela DC com objetivos
eleitorais teve um efeito contrário, levando intelectuais e estudantes a aderirem em massa ao PCI de Cutro, até
então formado basicamente por camponeses. Poucos meses depois, Cutro elegeu um governo comunista”. (Betti,
1977, p. 104-106)
172
percebe no paciente e estuda para encontrar o melhor remédio.
Mas o tempo voa. As eleições municipais e provinciais chegaram e começaram a
campanha eleitoral falando mal de você. Mas esta ladainha foi ficando cada vez mais
repugnante e, assim, chegamos à votação.
As primeiras cédulas apuradas eram deles. Abre-te Sésamo, todos corriam até eles
para serem os primeiros a levarem a boa notícia, aplaudiam e diziam “finalmente
vencemos”. Mas, quando começaram a pronunciar “número um”, o número da nossa chapa,
então não se brincava mais no território deles. Como você leu nos jornais, vencemos
sozinhos a maioria absoluta. Crotone era democrata-cristã e agora não é mais. Você também
contribuiu para esta vitória. Peço para que fale, escreva e volte a estar entre nós calabreses.
Desculpa se o meu texto não é fácil, sou um operário.
Ulisse - Crotone
Respondo à sua carta recém chegado de Crotone. Direi, inclusive, que estou com
saudades, mesmo tendo chegado em casa apenas nesta madrugada, após uma longa viagem de
carro por todo o sul da Itália.
Na verdade, eu não devia ter ido a Crotone, mas a Vibo Valentia e Reggio Calabria. Em
Vibo Valentia fiz uma conferência ou melhor, um diálogo com o público normalmente.
Mas em Reggio, ao contrário, fui informado de última hora que a associação que tinha me
convidado tinha decidido adiar a reunião, devido a divergências entre os sócios. Em poucas
palavras: em Reggio (e parece que também entre os socialistas) existem pessoas que
consideraram oportunoo discutir comigo. Você entende que isto é algo muito grave. Devo
ficar quieto? Devo fingir que isto não aconteceu? Devo dizer para mim mesmo e para os
outros que os intelectuais da Calábria parecem ser pessoas honestas, corajosas,
anticonformistas? Certamente que não. Você sabe como começou esta história: um político
deplorável pegou algumas frases de uma reportagem minha sobre as praias italianas,
principalmente do trecho que se referia à Calábria, e deturpou o sentido destas frases,
isolando-as (isolar fragmentos de uma obra e examiná-los sozinhos é um processo típico da
censura, como você sabe, ou seja, da hipocrisia e da má-fé) e me apresentou aos calabreses
173
como um difamador da Calábria. A imprensa reacionária, com uma avidez absurda de
bajulação e ignorância, apoiou a calúnia e criou um dos mais irritantes equívocos que podem
ocorrer com um escritor. Não quero mais falar sobre este caso, porque é humilhante para os
calabreses e injusto para mim.
No final não fui a Reggio, mas passei por Cutro, para parabenizá-los pela maravilhosa
vitória dos comunistas, e por Crotone, também para parabenizá-los e ver alguns amigos.
Assim que cheguei em Crotone imagine, cheguei com um grupo de simpáticos jovens
“burgueses”, muito reacionários, que encontrei em Catanzaro fui convidado para realizar
um “diálogo com o público”. O espaço tinha, e era muito luxuoso: a Associação de Pesca
Submarina. Eu não tinha como recusar e, da manhã até a noite, com muita competência, o
evento foi organizado. E foi um dos colóquios mais construtivos que já participei.
O público presente me perguntou, de um modo mais específico, sobre os mesmos temas
que você me colocou de um modo mais geral. E, naturalmente, não faltou a pergunta sobre as
minhas relações com a Calábria após o famoso equívoco do meu artigo. E eu respondi
sinceramente mais ou menos assim. Entre todas as regiões italianas, a Calábria é talvez a mais
pobre, pobre em todos os sentidos, inclusive de belezas naturais. Durante dois mil anos ela foi
mal governada, de modo ainda pior que a Sicília, o Reino de Nápoles ou a Puglia, que, em
muitos períodos históricos foram verdadeiras pequenas nações, centros de cultura, onde os
dominadores, pelo menos, residiam e mantinham relações diretas com a população: os Árabes
na Sicília, os Normandos na Puglia, entre outros. A Calábria sempre foi periférica e, além de
cruelmente explorada, também abandonada. Deste histórico caso milenar poderia resultar
uma população muito complexa ou, melhor, em uma linguagem técnica, “complexada”. Um
milenar complexo de inferioridade, um milenar sofrimento pesa na alma dos calabreses,
atormentados pela necessidade, pelo abandono, pela miséria.
Nas populações, estes “complexos” psicológicos de caráter histórico podem provocar,
em casos extremos, resultados totalmente opostos: uma bondade enorme – quase angelical e
uma fúria desesperada e sanguinária (os noticiários, infelizmente, nos mostram isso todos os
174
dias). Uma população externamente humilde e pobre, mas internamente dramática.
Talvez você saiba que os “complexos” psicológicos impedem um desenvolvimento
normal da personalidade. Deste modo, os calabreses são muito infantis e ingênuos. E, por
outro lado, este é o grande fascínio deles e a sua melhor virtude. E toda aquela complicação
que existe neles é, no fundo, infantilmente simples.
Tudo isto no que se refere ao povo, às pessoas humildes.
Para a burguesia o discurso é outro. A burguesia calabresa, como você sabe, se formou
muito recentemente. Corrado Alvaro
9
chegou a dizer, em uma piada que possui uma boa
parcela de verdade, que a burguesia calabresa nasceu nesta última guerra junto com o
“mercado negro”. É uma burguesia muito recente e quantitativamente pequena. As formas
mais modernas desta burguesia, acredito, estão em Crotone. Nas outras grandes cidades
calabresas a burguesia é, talvez, a pior da Itália. Justamente porque existe nela um fundo de
desespero que a deixa inerte, a mantém, como autodefesa, apoiada em posições penosamente
antidemocráticas, convencionais e submissas. Não é conciliatória, cética, flexível como em
outras regiões do sul da Itália, onde aquilo que a salva é justamente a sua corrupção, ou seja, a
sua experiência anterior. Na Calábria, repito, a burguesia é rígida, moralista e, por isso,
intolerante.
Pode ser um acaso, mas todos os jovens que encontrei casualmente, ou que me foram
apresentados, na Calábria são fascistas. Digo, obviamente, os adolescentes burgueses. E isto
me deixou consternado. É um problema que passo para os dirigentes políticos, pois me parece
realmente grave e deve ser enfrentado com firmeza. De tudo o que disse aqui, pode resultar
historicamente claro que a burguesia calabresa tem tendências para o extremismo de direita.
Naturalmente que o povo de Crotone é uma exceção. E é por isto, por esta possibilidade,
por esta esperança que o povo de Crotone me permite ter, que eu continuo a me interessar por
este problema como se fosse meu, e certamente não perderei a ocasião de falar sobre ele e
dizer, seja agradável ou não, aquilo que me parece verdade
10
.
9
Corrado Alvaro (1895-1956), célebre escritor italiano natural da Calábria.
10
Este texto de Pasolini foi recordado em 1993 em um artigo publicado em um jornal calabrês como ponto
inicial para uma reflexão sobre a identidade da Calábria no final do século XX. Salientando o “valor profético”
das opiniões do escritor, o artigo destaca como o problema discutido por Pasolini continua atual e como suas
idéias podem “ajudar a compreender esta realidade, mesmo com um distanciamento de 30 anos”. “Acredito que
estas sejam as páginas mais lúcidas e profundas do escritor sobre a temática calabresa”, escreve o jornalista
Marcello Furiolo, que também afirma que a interpretação de Pasolini sobre o problema é certamente “moderna”,
“não ligada a nenhum estereótipo e certamente distante dos lugares-comuns da imprensa”. (FURIOLO,
Marcello. L’identità del popolo calabrese secondo Pier Paolo Pasolini. Messina: La Gazzetta del Sud,
05/01/1993)
O problema da pobreza no sul da Itália é uma questão até hoje não resolvida e muito discutida pelas autoridades
italianas. “Fortunas foram gastas na região pelo Estado na tentativa de promover o desenvolvimento desde os
anos 40, mas boa parte desses recursos se perdeu em uma infinidade de escoadouros ilegais e/ou em negócios
175
Vie Nuove, 10 de dezembro de 1960
A vida dos mineiros
11
Exímio senhor Pasolini, venho até você com esta minha carta, dado que o considero um
dos maiores escritores realistas. Vi que você escreveu diversos livros, todos com grande
sucesso, como Una vita violenta, Ragazzi di vita e outras composições de grande interesse.
Senhor Pasolini, tenho 27 anos e dez anos trabalho em uma mina onde antes trabalhava
meu pai. Meus tios morreram por causa da poeira. Não sei se você tem alguma
experiência de trabalho em mina. Gostaria de saber se seria possível para você contar esta
história. Aliás, a revista que você colabora nos prometeu cerca de um ano fazer uma
pesquisa sobre os mineiros, especialmente sobre aqueles da região de Maremma
12
. A revista
Vie Nuove, a nossa revista, na mina em que trabalho é lida por 60 operários em cada cem.
Ficaram frustrados, queriam tempos ter visto esta pesquisa sobre os mineiros. Senhor
Pasolini, lhe peço em nome de todos os mineiros para fazer algo por nós, escrever algo sobre
a vida que levamos. Se quiser um esboço ou um argumento, para depois embasar uma
história, eu teria muito prazer. Gosto de escrever, tenho imaginação e, de vez em quando,
escrevo algumas histórias, 100-200 páginas. Assuntos eu tenho, e eles até que estão bem
feitos. Você compreenderá pela minha escrita que fiz apenas a primeira série e por isso não
posso apresentar os meus trabalhos: erros de ortografia, vírgulas e outros problemas.
Senhor Pasolini, me desculpa se peço muito, mas, se fosse possível, poderia me enviar um
gravador? Como lhe disse, as minhas possibilidades financeiras não me permitem, enquanto
acho que se você quiser, poderia. Gostaria de registrar uma história emocionante de 150
páginas que intitulei A morte de um companheiro. Nesta história de humana está a vida
desesperada dos mineiros que lutam entre a vida e a morte de um companheiro e um
não rentáveis e por causa da falta de uma cultura empresarial local desenvolvida”, escreve o historiador João
Fábio Bertonha (Bertonha, 2005, p. 142).
11
Assim como em muitas outras crônicas deste trabalho, também nesta o relacionamento intenso estabelecido
entre Pasolini e os seus leitores de Vie Nuove é evidente. “Os leitores envolvem o intelectual no seu problema
social e, ao mesmo tempo, lhe confiam uma missão moral”, afirma o historiador Giulio Sapelli (2005, p. 17).
12
A região de Maremma, como é conhecida, é uma grande área costeira localizada entre o norte do Lazio e o sul
da Toscana. Tradicional área de exploração de minérios, durante boa parte do século XX teve papel fundamental
no desenvolvimento da grande indústria italiana. Boa parte das minas começaram a ser desativadas a partir dos
anos 80 e, atualmente, organizações ambientalistas lutam pelo correto tratamento dos resíduos químicos
deixados pelas antigas instalações.
176
trabalho humano. Saudações cordiais.
Giuliano Sorresina – Via della Porta, 8, Gerfalco
(Grosseto)
A sua carta me comove muito, caro Giuliano. Eu conheço muitos jovens como você,
posso dizer que conheço novos todos os dias. Eles falam em dialeto, ou em um italiano muito
simples e grosseiro, no entanto, aquilo que possuem dentro, a sua força vital e moral, sempre
consegue se expressar. Existe o fervor pela presença deles, pela palavra deles, pela atenção
deles. Sinto em você esta mesma força vital e moral, de muitos operários, camponeses ou
desempregados da sua mesma idade, mas, visto que você me escreve, e não me fala e a sua
carta (considerando que você, como diz, fez apenas a primeira série) não pode ter a mesma
eficácia natural do discurso aquela sua força íntima acaba sendo sufocada e enfraquecida. A
incerteza da sua caligrafia, os seus erros de gramática, a dificuldade de expressão, são como
uma gaiola que aprisiona a sua alma, que é justamente possibilidade de expressão e
comunicação. Mas que prisioneira forte, inquieta, rebelde e esperançosa esta alma! Entendo
perfeitamente a sua necessidade de um gravador! Certamente que você quer escapar dos
empecilhos da sua escrita básica, que tem tantas coisas para dizer, tem um protesto tão
legítimo para expressar que a viva voz é absolutamente necessária. Tentarei, portanto,
satisfazer o seu desejo. Mas, ao mesmo tempo, sinto o dever de lhe aconselhar a o se
desestimular diante das dificuldades de escrever: se esforce todos os dias para escrever um
pouco, copie trechos de bons livros, de artigos de jornais ou leia em voz alta, pausadamente,
as passagens que mais lhe interessam, por exemplo, em Vie Nuove, ou procure um professor
ou professora da sua cidade para que, nos domingos ou nas noites após o trabalho, lhe ajude a
177
terminar aqueles estudos que, para eterna vergonha do país em que nasceu, não conseguiu
completar, nem mesmo os limites mínimos da educação básica.
Se você sente dentro de você além dos sentimentos, também a necessidade de expressá-
los, não procure o modo mais cil, mas o mais difícil. Você tem o dever, para consigo
mesmo e com os seus companheiros, de estudar sozinho, de progredir. Sabe quantos
socialistas e comunistas, que hoje ocupam posições importantes e de responsabilidade na luta
política, começaram assim? Este é o primeiro passo que um operário deve cumprir na sua luta
ideológica contra a classe social que o quer ignorante e intelectualmente incapaz. Sei que é
um primeiro passo pessoal, individual, particular. Mas, no entanto, a sua motivação é a sua
política, e, é sobretudo por ser útil a esta fé política – que significa a libertação total e popular
de uma nação – que você tem o dever, repito, de melhorar.
Portanto, lhe desejo que chegue logo o dia em que você podeescrever sozinho e com
eficiência o testemunho do mundo de trabalho no qual vive, os sofrimentos e as injustiças que
experimenta.
Sei que o seu trabalho é terrível. Um dia, devido ao meu trabalho, desci até o fundo de
uma mina de carvão, nos arredores de Lille, na França. Nunca vou esquecer aquela espécie de
descida ao inferno. Os operários,embaixo, eram quase todos italianos, jovens como você, a
maioria proveniente das minas de enxofre da Sicília.
Não foi fácil chegar até eles! Primeiro o elevador, como que sugado por uma misteriosa
e assustadora força obscura, me transportou ao fundo de um poço interminável, a milhares de
metros de profundidade. Depois, tive que viajar lentamente por um túnel central em cima de
um pequeno comboio de carrinhos e ainda caminhar a por um túnel mais baixo e mais
estreito. Nesse meio tempo, a memória do mundo, do sol, dos cheiros terrestres ia se
apagando também na memória, pareciam coisas de um outro planeta. Ali tinha apenas uma
fria, fúnebre e brutal escuridão e uma sensação de umidade que congelava os sentidos. Depois
de uma caminhada interminável neste pequeno canal fedorento e árido, me vi diante de uma
espécie de buraco, de cerca de oitenta centímetros de altura, semi-tapado por estacas e pedras.
178
Era preciso se enfiar ali dentro. Tive que superar um terror físico que, em um primeiro
momento, me parecia insuperável. E não teria conseguido se não tivesse pensado que todos os
dias centenas de operários, mais jovens e mais velhos do que eu, com os mesmos direitos a
viver uma vida humana e decente, eram obrigados a superar o mesmo terror. Por respeito a
eles, consegui dominar a minha rebelião sica. Assim, me enfiei naquela fenda e, semimorto
pela sensação de sufocamento, entrei naquela rachadura. Um tubo pelo qual era preciso
caminhar curvado, entre as estacas que sustentavam o ameaçador e aterrorizante teto de terra,
aquela montanha inteira que estava acima de nós. Cada um em uma espécie de concha, os
operários estavam ali trabalhando muitas horas: com o martelo pneumático, um horrendo
instrumento de tortura, quebravam a rocha negra diante deles. Naquela concha, um pouco
maior que uma cova, eles mal conseguiam se mexer e o tremor infernal do martelo os sacudia
como bonecos. Estavam sem camisa, completamente cobertos de carvão, apenas alguns ossos
do corpo magro e o olho alucinado, que alvejava em meio àquela crosta preta que os cobria.
Nunca poderei esquecer o sentimento de raiva impotente contra a injustiça do nosso
mundo que senti quando recebi um humilde e agradecido sorriso de um operário siciliano,
feliz de nos ver ali ao seu lado. Se Vie Nuove prometeu a vocês fazer uma pesquisa ou artigo
sobre o trabalho de vocês, faço minha aquela promessa. E, assim que tiver um pouco de
tempo livre ou seja, depois de fevereiro irei até Gerfalco para encontrar e escutar vocês.
Assim poderemos discutir melhor aquilo que lhe dizia no início desta carta, quando tive que,
necessariamente, ser muito breve e superficial. Envie a todos os seus companheiros meu
perdão e minha mais afetuosa simpatia.
Vie Nuove, 24 de dezembro de 1960
A vigente injustiça
13
13
O período vivido por Pasolini no Friuli (1943-1949), especificamente na cidade de Casarsa delle Delizie, é
considerado por muitos críticos um dos períodos fundamentais da sua formação intelectual. Como o próprio
escritor afirmou, “1943 continua sendo um dos anos mais lindos da minha vida”, em referência ao seu primeiro
ano em contato direto com a cultura camponesa desta pequena cidade no extremo norte da Itália, cidade natal da
sua mãe e para onde se transferiu devido aos bombardeamentos em Bolonha. “A beleza da descoberta do Friuli,
179
Caro Pasolini, lhe escrevo em nome de um numeroso grupo de jovens das mais
diversas categorias sociais para encorajar você a escrever, escrever em mais jornais a fim de
facilitar o seu encontro com aqueles que, apenas de ouvir dizer, consideram você um
demônio. Nos responda, por favor: a) porque você, filho de ricos, se tornou comunista; b)
sabemos, pelos jornais, das suas ocupações, mas porque não viaja pela Itália abrindo um
debate pelo progresso da juventude?; c) queremos saber (são as meninas que perguntam) o
que você está preparando (textos ou filmes). Obrigado e boa sorte.
Gianni Sottovia – Turim
1) Meu pai, é verdade, foi muito rico quando era jovem. Mas, quando eu nasci, ele era
um simples tenente de infantaria e vivia do seu (mísero) salário. Portanto, eu vivi uma típica
uma descoberta não mais conduzida com o dicionário em mãos”, escreve Enzo Siciliano, que seu primeiro
livro de poesias, Poesie a Casarsa (1942), foi escrito em dialeto friulano, um dialeto que Pasolini tinha estudado
através dos livros.
No Friuli, Pasolini viveu um prolongamento da sua adolescência, compôs muitas poesias em italiano e friulano e
romances, que seriam publicados décadas mais tarde, abriu uma pequena escola onde ensinava o dialeto local
para os estudantes que não podiam se deslocar para outras cidades devido à guerra, fundou com um grupo de
jovens intelectuais locais a “Academiuta di lenga furlana”, agremiação que promovia o uso da língua friulana em
pequenas publicações, entre outras atividades. (Siciliano, 2005, p. 81)
“Esta forma de felicidade popular foi a invenção ‘resistencial’ e antifascista de Pasolini”, afirma Siciliano, que
destaca que Pasolini chegou ao antifascismo através dos caminhos da cultura e quando a Resistência já estava no
seu ápice, já que seu pai, militar em serviço no norte da África, apoiava o regime fascista (op. cit., p. 34 e 94).
A morte do irmão, durante uma batalha partigiana, ocorreu pouco antes dos fatos da Libertação da Itália em
abril de 1945. Pasolini progressivamente começou se aproximar da vida política local, seguindo uma tendência
geral, mas que foi vivida por ele de modo problemático e em meio a polêmicas. em 1946 começa a escrever
em jornais regionais defendendo a autonomia da região do Friuli. Em 1947 se associou oficialmente ao Partido
Comunista e em 1949 assumiu o posto de secretário-geral da sessão do partido em Casarsa, escrevendo
polêmicos cartazes em friulano e italiano sobre as questões internacionais do momento, como a assinatura do
Pacto Atlântico, o Congresso da Paz em Paris e as excomungações de comunistas promovidas pelo papa Pio XII.
(op. cit., p. 119-121). Paralelamente, entre 1947 e 1949 atuou como professor na escola municipal de Casarsa e
escreveu “o seu romance do Friuli”, Sogno di una cosa (Tradução brasileira: A Hora depois do Sonho, Rio de
Janeiro, Bloch, 1968), publicado apenas em 1962 e que se passa em torno do episódio conhecido como “Lodo de
Gasperi”, sobre uma reivindicação camponesa ocorrida em janeiro de 1948.
Em outubro de 1949, Pasolini é acusado de corrupção de menores e levado a julgamento. Em tempos de guerra
fria, o Partido Comunista Italiano não podia aceitar um expoente homossexual, que Pasolini não negou os
fatos. A expulsão do partido foi um golpe traumático para Pasolini, que logo afirmou: “Apesar de vocês, sou e
continuarei comunista, no sentido mais autêntico da palavra”. Para Siciliano, “este foi um modo de salvar dentro
de si o engajamento civil, que ele sabia que era uma responsabilidade intelectual”. “Começou duríssima a
experiência pública da diversidade para Pasolini, repentinamente o Friuli se tornou estranho para ele”. Poucos
meses depois, Pasolini partiu para Roma com sua mãe e tornaria à região no ano da sua morte. Em 1950, ele
foi absolvido das acusações por falta de provas. (Siciliano, op. cit., p. 161-163)
180
infância pequeno-burguesa italiana. Dignidade e miséria
14
. Lembro dos infinitos verões da
infância: os expedientes da minha generosíssima e resignada mãe para preparar, junto a uma
tia minha que sabia costurar, as roupas para o inverno, as pequenas heroicas economias, que
uniam minha mãe, meu irmão e eu, em uma espécie de corajosa aliança familiar, as privações
e os sonhos. A primeira vez que fomos de férias para Riccione
15
foi um acontecimento
maravilhoso, e eu certamente não percebia a miséria que o sacrifício financeiro provocava em
todos os atos e os aspectos da nossa vida balneária... Enfim, poderia escrever um volume de
lembranças da pobreza digna. E depois, minha mãe, professora e de família camponesa, via o
mundo de um modo claramente, e até fatalisticamente, classista: de um lado estavam os
“ricos” e do outro nós, os meio-pobres e os pobres. Minha mãe, naturalmente, era antifascista.
Minha avó chamava Mussolini com um nome digno de Carlo Emilio Gadda: O Culatra.
Mesmo do ponto de vista mais grosseiro e simples, não me foi difícil ver a vida sob o
viés da vigente injustiça.
Mas o problema não é este. Porque, na realidade, eu “era rico, possuía”, como escrevi
em alguns versos recentemente publicados. Eu era rico sentimentalmente e a minha posse
incluía amplos campos de cultura, até mesmo refinada em algumas zonas e sessões. Esta é
uma riqueza de cuja presença é mais difícil se libertar, porque é transformada radicalmente e
estruturalmente. Nenhum ato de renúncia importa. Existem muitos filhos de milionários que,
por escrúpulo moral, pela inquietação angustiante dos complexos, renunciam aos seus bens.
Mas isto não pode ser feito por quem não possui a riqueza em dinheiro, mas em
conhecimento. Não esquecerei nunca de como tive Rimbaud e Proust
16
...
O movimento da Resistência provocou o primeiro grande abalo no meu castelo de
privilégios internos
17
. Mas a experiência que me levou ao marxismo foi o imediato pós-
guerra: a luta dos trabalhadores rurais do Friuli. Eu vivia na época no Friuli, que era quase o
lugar ideal, quase fora do tempo e do espaço, uma espécie de Provença sentimental e poética,
para mim, que escrevia poesias rimbaudianas, verlainianas ou lorchianas em dialeto friulano.
Aqueles meses de batalhas camponesas, das quais participei fisicamente, olhos e ouvidos bem
abertos, transformaram o Friuli em um lugar real e os seus habitantes, de antigos provençais,
viraram seres vivos e históricos. Poderia parecer algo muito simples, mas, ao contrário, foi
muito longo e complicado. Tive que concluir com a razão toda uma viagem de volta do
14
“Dignidade e miséria são o centro do mito pasoliniano”, afirma Giorgio Sapelli, pois Pasolini foi educado
dentro de um universo de valores pré-capitalistas e isso fez dele não um comunista clássico ou um socialista
utópico, mas um “moderno evangélico”. (Sapelli, 2005, p. 9-16)
15
Balneário da província de Rimini, no nordeste da Itália.
16
Arthur Rimbaud (1854-1891) e Marcel Proust (1871-1922), célebres escritores franceses.
17
Sobre o movimento da Resistência, cf. nota 1 da crônica O intelectual engajado.
181
território no qual penetrei com a mais insensata, perturbada e explícita das fantasias. E, sabe-
se, as fantasias possuem asas...
Estes são tempos muito distantes, mas posso dizer, de modo elementar, que foi a
experiência direta dos problemas dos outros que transformou radicalmente os meus
problemas. E, por isso, eu sinto sempre nas origens do comunismo de um burguês uma
exigência ética, de algum modo, evangélica.
2) Porque nunca consegui distinguir um “problema da juventude”. No caso, o problema
particular foi envolvido e absolvido pelos problemas gerais, e este é exatamente o problema
da juventude. Escola, instituições familiares, moral corrente, catolicismo, comunismo, estes e
infinitos outros, são os problemas nos quais se insere o problema dos jovens. Apenas
resolvendo os primeiros, se resolve o segundo. Sozinho, ele se torna um pseudo-problema,
sentimental e demagógico. Na realidade, o esquema das crises juvenis é sempre o mesmo, se
repete em todas as gerações. As crianças e os jovens são, em geral, seres adoráveis, cheios
daquela essência virgem do homem que é a esperança, a boa vontade. Enquanto os adultos
são, geralmente, imbecis que se tornaram covardes e hipócritas (alienados) pelas instituições
sociais, nas quais, crescendo, foram aos poucos se encaixando. Me expresso de um modo
levemente florido, eu sei. Mas, infelizmente, esta é a opinião, mais ou menos florida, que se
pode ter sobre uma sociedade como a nossa. Vocês, jovens, têm um único dever: racionalizar
o sentido de imbecilidade que os adultos passam para vocês, com as suas hipocrisias solenes,
as suas arruinadas e intolerantes instituições. Infelizmente, no entanto, a grande maioria de
vocês acaba se rendendo logo que a engrenagem das necessidades econômicas lhes envolve,
lhes domina, lhes deixa alienados. O único modo de escapar disso tudo é através de um
exercício teimoso e implacável da inteligência e do espírito crítico. Não saberia aconselhar
182
outra coisa aos jovens. E, certamente, seria uma ladainha muito chata.
3) Estou escrevendo um livro, que não sei se posso considerá-lo um romance, que narra
a descida ao Inferno pelo modelo de Dante (um Dante em história em quadrinhos) de uma
prostituta. No Inferno, se encontrarão todos os protagonistas da nossa história, dos noticiários,
da nossa típica vida quotidiana
18
.
Também estou pensando em um novo filme
19
. Mas, neste momento, com Accattone
ainda na fase de dublagem, é absolutamente prematuro falar sobre isso...
Vie Nuove, 8 de julho de 1961
Bandung, capital de meia Itália
20
Exímio Pasolini, a leitura de Vie Nuove me deu a possibilidade de conhecer realmente
o Senhor e o seu modo de pensar - tão cheio de humanidade e compreensão. Mudei a opinião
que eu tinha sobre você depois de ler Una Vita Violenta, livro que mostrava a vida nas
seções do Partido Comunista, aquela mísera dos pobres e a dos homossexuais. Eu me
perguntava, porquê este jovem escritor dirige sua investigação ao nosso ambiente, coloca
como protagonista gente pobre quando poderia escrever com mais eficácia sobre a doce vida
da alta burguesia das cidades? Agora, lhe pergunto as razões pelas quais escreveu coisas
pouco agradáveis sobre as pessoas pobres. Você conhece a vida que levamos, o cansaço do
trabalho, a miséria que nos impede qualquer possibilidade. Você sabe que os grandes
burgueses gastam milhões com uma "amante", mas não concedem 10 liras de aumento a um
operário. Os locais frequentados pelos “vagabundos não estão ao alcance dos pobres, o
18
Pasolini se refere ao conto A morta-viva, cujos fragmentos serão publicados em Ali dos Olhos Azuis (2006).
19
Provavelmente se refere a Mamma Roma (1962).
20
Durante o início dos anos 60, Pasolini realizou diversas viagens a países africanos e asiáticos, como Quênia,
Egito, Sudão, Jordânia, Índia, Uganda, Tanzânia e Iêmen. A partir destas experiências, e baseado em sua
experiência italiana, passa a identificar em sua obra dois terceiros mundos”: um interno italiano, ou seja, o
subproletariado de Roma e os pobres do sul da Itália, e outro externo, os habitantes das zonas rurais da África e
Ásia. “Aos olhos de Pasolini, os dois grupos compartilham idêntica ameaça de dissolução de suas próprias
referências culturais pelo contato com o mundo industrializado” (Merino, 2003, p. 51).
Quando Pasolini se refere a Bandung, faz uma explícita referência à famosa conferência ocorrida nesta cidade da
ilha de Java, na Indonésia, em 1955, a qual deu origem ao Movimento dos Países Não-Alinhados, formado por
países do Terceiro Mundo com o objetivo de criar um caminho independente no campo das relações
internacionais, longe do temor de uma terceira guerra mundial e do confronto entre as grandes potências, que
naqueles anos viviam o conflito da Guerra Fria. (Hobsbawm, 1994, p. 350)
183
homossexualismo é muito difuso nas classes altas. dez anos, nós combatemos duramente
contra as demissões em Breda
21
: deveria ter visto como éramos orgulhosos da solidariedade
dos intelectuais, dos quais precisamos para encontrar o caminho certo.
Respeitosas saudações.
Giuseppe Cosmo
Porque fazer generalizações? Aquelas que você chama "as coisas pouco agradáveis" são
encontradas em todos os níveis e em todas as classes sociais, sempre que o olho do
observador se mantém limpo, crítico e corajoso. Por exemplo, você é um operário honesto,
claro, coerente, sobre isso não há dúvidas. Mas existe uma sombra na sua personalidade e, me
perdoe por ser cruelmente sincero, existe uma severidade e certo conformismo. Enfim, quero
que você perceba que o mundo seria simples demais se fosse como você o enxerga: de um
lado as classes operárias, boas, e do outro lado os ricos, malvados. Não apenas, você também
enxerga todos os operários em um mesmo nível, enquanto se sabe que entre o Norte e o Sul
do país existem prepotentes diferenças de caráter histórico. Algumas características de um
operário de Breda não podem ser transferidas em bloco para um desempregado romano ou um
trabalhador rural meridional.
Portanto, tente se libertar do esquema pelo qual você julga, mesmo que seja
essencialmente justo. Este esquema é, por um lado, produto de uma excessiva simplificação
da ideologia marxista, e, por outro lado, de uma sobrevivência da educação católico-burguesa
que todos nós recebemos nas origens ideais da própria existência, e da qual dificilmente nos
libertamos totalmente. Veja que a grande rigidez com a qual você condena "a doce vida" e a
luxúria da "numerosa multidão de abastados" tem algo do conformismo burguês, no seu caso
tipicamente da Lombardia, do qual a nação italiana está impregnada e do qual nós mesmos,
que estamos na oposição, carregamos marcas permanentes. Conformista, por exemplo, é
também a sua ideia sobre os homossexuais. O Vaticano proibiu recentemente, com grande
solenidade, os padres de conhecerem Freud e a psicanálise
22
. Você não é um padre e, se o
seguir esta proibição vaticana, digna dos autos de fé, horrendamente reacionária, deveria ler
21
O leitor provavelmente se refere à famosa fábrica italiana Ernesto Breda, atuante nos setores de metal-
mecânica, siderurgia e armamento e que na década de 1950 atravessou uma grave crise financeira causada
principalmente pela baixa demanda no setor armamentista.
22
Cf. nota 3 da crônica Onde está a “obscenidade”?.
184
as obras de Freud, pelas quais verá que o homossexualismo é um complexo psicológico, que
não tem relação com as classes sociais, mas talvez com a repressão de uma moral social, que
pode operar sobre a infância de todos os indivíduos de uma sociedade, pobres ou ricos.
Enfim, gostaria que você pudesse olhar com olhos mais compreensivos e humanos as
"coisas pouco agradáveis" que descrevi nos meus romances, de modo totalmente objetivo,
repare bem. Trata-se de um modo de se arranjar para viver, miserável até onde você quiser,
mas sempre no fundo justificado, de um lado, por uma vitalidade a seu modo nobre e, por
outro lado, por um espírito de protesto, anárquico até onde você quiser, mas sempre
intolerante e significativo.
Você, proletário lombardo, tente entender a "condição humana" dos subproletários da
capital e do Sul do país: eles existem aos milhões. Para mim, esta compreensão é o ato
político mais importante deste momento histórico. A divisão neocapitalista entre Sul e Norte é
agravada pela ignorância recíproca dos trabalhadores setentrionais e meridionais. E, observe
que este não é um caso apenas italiano: o contraste, em certo modo abissal, entre nações
avançadas e nações subdesenvolvidas, entre aristocracias operárias e plebes subproletárias,
caracteriza hoje, toda a situação mundial. O que são a África, a Índia, os países sul-
americanos, o Oriente Médio, se não o produto deste contraste, deste desequilíbrio? Bandung
é a capital de três quartos do mundo e é a capital também de metade da Itália. E, nesta nação
ideal de Bandung, um pequeno furto, uma violência, um palavrão, não significam nada. Estes
fazem parte de um modo de vida, que não é julgado com o critério de uma pequena moral de
ricos, mas com a piedade cristã (não digo católica) e com o historicismo marxista que tira
desta piedade qualquer obstáculo sentimental, populista e humanitário, dando-lhe aquele rigor
intelectual no qual consiste a verdadeira moralidade.
Vie Nuove, 29 de julho de 1961
185
A barbárie do racismo
23
Caro Pasolini, não eram apenas os “dannunzianos de pantufas”
24
as mais esplêndidas
preciosidades da coleção italiana. A eles também se juntavam, fardados e de coturnos, os
judeus-fascistas que proliferavam em todos os círculos municipais de Veneza. Em 1931
(antes que o Todo Poderoso promulgasse as leis raciais), um israelita arrogante que ditava
leis no círculo de Cannaregio me prendeu, com dezenas de assassinos do regime, no Quartel
23
O historiador inglês Erik Hobsbawm afirma que o racismo foi um elemento ausente nos primórdios do
movimento fascista italiano, diferentemente do nazismo alemão, que desde o início pregava a superioridade
racial. No entanto, Hobsbawm também identifica o triunfo destes dois movimentos ultranacionalistas como
conseqüência direta dos “horrores da I Guerra Mundial”. Entre os primeiros fascistas italianos, 57% eram ex-
soldados da Primeira Guerra Mundial, “ex-oficiais militares da classe média, para quem a grande guerra, com
todos os seus horrores, assinalara o pico da realização pessoal, comparado ao qual suas futuras vidas civis se
mostraram decepcionantes vales”. (Hobsbawm, 1994, p. 121-8)
Hobsbawm também identifica no final do culo XX uma crescente onda de xenofobia entre as populações dos
países do Primeiro Mundo (Hobsbawm, op. cit., p. 356). Entre os anos 90 e o início dos anos 2000, a Europa
assistiu um renascimento dos partidos de extrema-direita e sua ascensão ao poder em países como França e
Itália, conseqüência direta do crescimento da xenofobia contra os imigrantes de países pobres, principalmente
africanos, asiáticos e do Leste Europeu.
Sobre a sobrevivência do fascismo no pós-guerra italiano, cf. nota 1 da crônica O fascismo e o massacre em
Ferrara em dezembro de 1943 e nota 1 da crônica Fascistas: pais e filhos.
24
Cf. crônica Dannunzianos de Pantufas.
186
Manin, sede do fascismo em Veneza. O motivo? Ofendi gravemente o soberano de
Predappio
25
, chamando-o de “ditador” na frente de testemunhas. O interrogatório se
prolongou por mais de duas horas. Foram inúteis as minhas lembranças da ditadura de
Manin em Veneza, de Garibaldi na Sicília, de Farini na Emilia-Romagna. Como eu não era
fascista (e nunca fui), fui trancado em uma cela até a manhã do dia seguinte, não sem
receber, durante a madrugada, quatro ou cinco vigorosas chibatadas. Na manhã seguinte fui
libertado “porque o fato não constitui um delito”. Reclamações por sequestro de pessoas
com atos de violência? A “cultura” do período fascista não as permitia, portanto, me
convinha escapar com os ossos moídos para evitar o pior. Então, caro Pasolini, assim se
educavam os meninos. Mas, depois da promulgação das leis raciais, os judeus fascistas se
converteram ao Cristianismo e se filiaram aos S.S. Sacramentos? É isto que gostaria de
saber. Desculpe pelo longo discurso e aceite meus respeitosos cumprimentos.
Giuseppe Dosi - Veneza
Você leu Óculos de Ouro de Giorgio Bassani
26
? É uma história maravilhosa, uma das
mais bonitas da recente narrativa italiana. Nela, o autor estabelece de modo sutil, sem
grosserias didáticas, uma equivalência entre o destino ideal de um idoso homossexual e um
jovem judeu na época do fascismo. As condições objetivas desta equivalência são evidentes:
uma marginalidade forçada em relação às regras da sociedade, uma “diversidade” não
reivindicada, não desejada, talvez odiada até provocar angústia, e o consequente “complexo”
psicológico. Bassani não força o assunto, toca nele com extrema delicadeza e com poética
força subjetiva. Na realidade, este assunto é extremamente significativo e rico de argumentos,
sobre o qual se poderia escrever um ensaio ou um livro.
No entanto, este “complexo psicológico” é determinado, mas não determinante. A partir
daí, nascem muitas soluções possíveis. Pode nascer, por exemplo, o conformismo, por mais
paradoxal que possa parecer. O anormal complexado, o querendo aceitar a anormalidade
que o isola em uma minoria de “diferentes” em relação à sociedade na qual vive, e ainda
sofrendo terrivelmente por isto, tenta se inserir com prepotência na maioria, aceitando e
acatando todos os padrões, todas as regras, todas as instituições. E, como sempre acontece,
acaba, como se diz, sendo “mais monarquista do que o rei”. Não ninguém que seja mais
25
Expressão em referência à cidade natal de Mussolini.
26
No Brasil foram publicados apenas os dois principais romances de Giorgio Bassani: O jardim dos Finzi-
Contini (Record, 2008) e Óculos de ouro (Berlendis&Vertecchia, 2002), ambos ambientados na cidade de
Ferrara.
187
fanático, mais duro, mais intransigente do que um anormal que defende a norma.
Na maioria das vezes, este tipo de anormal é reprimido, ou seja, não quer aceitar e nem
mesmo saber da própria anormalidade. Evita falar sobre ela, a elimina, a coloca debaixo de
uma máscara impenetrável.
O fascismo e o nazismo estavam cheios destes “anormais reprimidos”: doentes,
deformados, anões, impotentes, homossexuais que não queriam aceitar a própria
inferioridade, nem mesmo a mencionavam, e, como compensação, se entregavam
violentamente a defender uma ideologia – machista e prepotente que era o conformismo por
definição.
Não existia nenhuma razão para que alguns judeus, fracos, escapassem deste
mecanismo, que, infelizmente, ainda regula boa parte das relações humanas: assombrosa
sobrevivência pré-histórica e tribal no homem moderno, que está muito longe de ser
realmente livre... Um judeu, na época do fascismo, não tinha como evitar a infame tentação de
aceitar o fascismo, enquanto álibi da sua própria diversidade, exatamente como um doente,
um deformado, um anão, um impotente, um homossexual. Alguns judeus cederam também
porque, além de tudo, pertenciam justamente àquela burguesia da qual o fascismo era produto.
Mas isto não significa nada. Generalizar, além de mesquinho, é estúpido. Seria como culpar
todos os anões, porque alguns homens de baixa estatura se sentiram gigantes sendo fascistas;
seria como culpar todos os homossexuais, porque alguns homossexuais substituíram a sua
virilidade ausente com a crueldade das SS
27
.
Moravia tem toda razão. Neste momento, o principal problema da humanidade é o
problema racial. Tudo tende a ser colocado em termos racistas. Até mesmo o anticomunismo
tem alguma coisa de racista. Tenho certeza que alguns fascistas desesperados, alguns
católicos angustiados (os “reprimidos” que falava antes...), enxergam os comunistas como
pertencentes a uma outra “raça” e tiram disso todas as reações típicas: horror, sentimento de
impureza, escândalo.
Olhe ao seu redor no mundo. A relação entre os brancos e os homens de cor, entre os
arianos e os judeus, entre os membros de uma casta e os membros de outra casta: tudo se
coloca em termos racistas. Lembra? dois ou três anos atrás a ofensiva contra os teddy
boys
28
era tipicamente racista... Isto é barbárie pura. E quem não tem nem mesmo uma sombra
desta barbárie, que atire a primeira pedra.
27
Polícia política nazista.
28
Denominação de uma subcultura juvenil típica dos anos 50 e 60 na Europa, originalmente britânica, que se
identificava com grupos neonazistas e xenófobos.
188
Vie Nuove, 12 de agosto de 1961
Caros amigos, envio à redação de Vie Nuove uma poesia, ao invés das habituais cartas. É uma
poesia factual e, como tal, o se diferencia muito de uma eventual resposta minha à alguém
que me pedisse uma opinião sobre os acontecimentos de Cuba... Considerem-na um pouco
como traduzida, em sonho, do cubano...
29
A navegação para Cuba
Em uma manhã deste ano,
azulada na profundidade dos séculos,
o comboio segue para Cuba.
Em uma manhã deste ano,
escuridão nas estranhas dos séculos,
29
Em outubro de 1962, a chamada “Crise dos Mísseis” abalou o mundo devido ao temor de uma guerra nuclear
iminente. A revelação do governo dos Estados Unidos de que a União Soviética estava instalando mísseis
nucleares de longo alcance em Cuba, apontados para o território americano, derivou em treze dias de extrema
tensão política internacional, até que, em 28 de outubro o primeiro-ministro soviético, Nikita Kruschev, chegou a
um acordo com o então presidente norte-americano, John F. Kennedy, e aceitou retirar os mísseis de Cuba desde
que os Estados Unidos retirassem seus mísseis da Turquia.
Poesia incluída posteriormente no volume Bestemmia Tutte le poesie Vol. IV (org. Graziella Chiarcossi e
Walter Siti. Milano: Garzanti: 1996, p. 570).
189
um poeta dorme na sua cama.
O comboio segue para Cuba,
pelos caminhos do sol e das águas,
em um azul misterioso.
O poeta é despertado da escuridão;
“Onde estão o sol e as águas,
onde eu vou pelo Oceano?”
O comboio segue para Cuba
sozinho no meio do oceano
na melancolia do azul.
O poeta se queixa no seu mísero sono:
“O que devo dizer ao Comitê Central,
o que devo fazer para salvar o mundo?”
No azul dos séculos e na escuridão da manhã
misteriosamente ileso no oceano
190
o comboio segue para Cuba.
O poeta luta no seu mísero pesadelo
contra a raiva que o domina:
“Querem mesmo morrer? – grita – Morram!”
“E você comboio que segue para Cuba,
chega ao seu destino, levando consigo a morte,
para aqueles idiotas enfurecidos que a querem!”
E o comboio segue para Cuba
sem parar, sem relação com o mundo,
como um bando de misteriosos golfinhos.
Sozinho na sua cama de humilde dormente,
o poeta volta para as suas decisões:
“Então, devo me humilhar, ser derrotado!”
“E você, comboio que segue para Cuba,
para, e, diante do mundo que olha para você,
191
suporta a vergonha do fracasso.
Não apenas você não ir para Cuba,
mas, tudo que em Cuba é orgulho
e direito de guerra, que seja renegado”.
Em uma manhã deste ano,
azulada na profundidade dos séculos,
um comboio está parado nas águas de Cuba.
Em uma manhã deste ano,
escuridão nas estranhas dos séculos,
sorri, no sono profundo de um poeta, Kruschev.
Sozinho, o homem para quem o oceano é um pequeno lago,
pode se comportar como um velho padre,
porque só a Revolução salva o Passado.
Aproveita, aproveita velho homem, o seu único capital,
na paz que lhe permite infinitas guerras
192
dentro da matéria e do espírito!
Milhares de comboios seguem agora para Cuba,
enquanto, em um mísero sono profundo,
sorri a visão do Oceano em paz.
Vie Nuove, 8 de novembro de 1962
193
Depois de um ano
30
Retomo esta página de correspondência depois de pouco mais de um ano, concluído o
árduo trabalho do filme O Evangelho segundo São Mateus, para me dedicar a outras coisas.
Por sorte, um ano nunca passa inutilmente e, portanto, nem eu e nem os meus interlocutores
somos mais os mesmos de um ano atrás. Não poderia absolutamente começar com um heri
dicebam. O que exatamente mudou aparecerá, aos poucos, pelo diálogo, pelas confissões,
pelas divergências. Eu, por enquanto, posso apenas fazer uma observação, que sem dúvida
poderá servir como discurso preliminar à retomada da coluna, sobre o ponto de vista, a atitude
e o tom com o qual discutirei minhas opiniões. E, talvez seja neste ponto que alguma coisa
mudou. Na verdade, o risco que não quero nem mesmo pensar, tamanho o mal-estar, quase
vergonha que sinto, o risco deste meu conversar com os leitores anônimos de Vie Nuove, em
sua maioria homens simples, que não fazem da cultura sua especialização, mas seu alimento,
é o risco de certo caráter oficial”. Envergonho-me em apresentar este fato, mesmo apenas
como uma eventualidade. Não me refiro ao “caráter oficial com todas as suas formalidades,
não isto (“per la contraddizion che no’l consente” e esta “contradição” estava dentro de mim,
no meu modo de ser), mas “caráter oficial” enquanto autoridade de algum modo reconhecida.
Saibam que não quero ter autoridade. Se tiver, terei às vezes, pela eventual força dos meus
argumentos de algum dado momento, de alguma dada circunstância e, principalmente, pela
30
Durante os quase dois anos que a coluna esteve paralisada (dezembro de 1962 a outubro de 1964), Pasolini se
dedicou, principalmente, à produção do filme O Evangelho segundo São Mateus. Produção que desde o início
esteve envolta em muitas polêmicas, não apenas pela contradição em si (um filme baseado em um texto sacro
católico feito por um cineasta marxista), mas pelo fato de Pasolini ter sido auxiliado por autoridades eclesiásticas
ligadas ao Vaticano para escrever o roteiro, que seguiu fielmente o texto evangélico. Lançado em setembro de
1964 no Festival de Cinema de Veneza, onde conquistou o Prêmio Especial do Júri, o filme também recebeu o
grande prêmio da OCIC (Organização Católica Internacional para o Cinema). Na opinião de muitos críticos, este
filme marcou o início da projeção internacional de Pasolini como cineasta, que suscitou debates e polêmicas
em quase todos os países onde foi lançado. (Siciliano, 2005, p. 309-11)
Paralelamente, Pasolini também lançou em junho de 1964 o livro Poesia in forma di rosa, “espécie de poema
autobiográfico no qual o autor retrata todas as histórias das quais foi protagonista nos últimos anos: os dois
clamorosos processos que sofreu por imoralidade, as filmagens de Mamma Roma e O Evangelho segundo São
Mateus, a crônica das suas viagens pela África, Oriente Médio e Israel, entre outros” (GIOVANNINI, R.
Confessioni in versi del nuovo Pasolini. Milano: Il Giorno, 22 jul. 1964).
Muitos críticos concordam em afirmar que Poesia in forma di rosa inaugura uma nova fase na produção poética
de Pasolini, na qual “não encontrará nenhum consenso de crítica” e que muitos não consideram mais poesia.
“Totalmente privo de coesão estrutural interna”, “a renúncia à forma e a redução dos versos cada vez mais
irregulares e aparentemente improvisados”, um discurso mais parecido com “um desabafo do que com um
raciocínio completo”, em algumas sessões aparecem “textos, ou mais propriamente fragmentos, e verdadeiras
páginas de diários”, em outras, ao contrário, Pasolini alterna textos sem forma com textos onde retoma as
estruturas métricas e rítmicas elaboradas no passado”, conforme algumas definições de Antônio Tricomi
(Tricomi, 2005, p. 213). Ou, como resume Rinaldo Rinaldi, em alusão à sucessiva fase quase exclusivamente
cinematográfica da produção pasoliniana, “a poesia em forma de rosa se torna literalmente um ‘poema em forma
de roteiro’ ou um ‘roteiro em forma de poema’”(Rinaldi, 1990, p. 171).
194
sinceridade. É horrível o homem influente que usufrui de uma sinceridade, de um
compromisso e de uma entrega total de si mesmo, através dos quais conseguiu conquistar a
autoridade, e que, uma vez conquistada, se reproduziram mecanicamente e aleatoriamente.
Não quero fazer parte da mitologia de vocês, nem mesmo por aquele pouco que aquele pouco
de sucesso ou difusão difamatória ou comemorativa do meu nome poderiam me permitir.
Peço a vocês o máximo de democraticidade, não tanto da parte de vocês, mas na pretensão
que exista da minha parte. Não é fácil conservar a própria democraticidade de um modo não
negligente, especialmente quando se está, de alguma maneira, na tribuna. Eu aqui, titular de
uma coluna, proposto, exposto, interrogado sobre as minhas opiniões, entre outras coisas,
arrisco, justamente, a tribuna. Em outros momentos, talvez eu possa ter tido a fraqueza
inconsciente de me deixar levar pelo jogo, talvez por compromissos mais importantes que me
mantinham psicologicamente e moralmente ocupado, talvez por imaturidade, talvez porque
fosse fatal que isto ocorresse, era um preço que se deveria pagar. De qualquer modo, agora
me envergonharia cruelmente se percebesse o meu estado de influência, o meu falar com a
proteção dos méritos adquiridos no campo da minha especialização.
Quem pode se escandalizar
É verdade que nós precisamos de “mitos”, de “autoridades”, e aquele que se torna um
“mito” ou “uma autoridade”, através da indústria cultural, do apoio de uma corrente de
opinião, da organização de um partido ou pelo acaso, adquire novos deveres consigo mesmo e
com os outros. A sua relação com os outros é aquela que é, não é mais aquela de um igual
entre os iguais. Guttuso que fala de pintura com os operários é um mito
31
. Levi que fala de
questões morais com os camponeses é um mito
32
. Talvez eu também já o seja, mas me deem
ainda alguns anos de trabalho e de estudo para aprender a fazer isso melhor, a encontrar o
ponto certo de encontro entre autoridade e sinceridade. Não foi por acaso que citei Guttuso e
Levi, que souberam aceitar a função pública deles de artista-guia com tamanha sinceridade,
compromisso e ânsia de compreender e saber. Mas imaginem se existisse um modelo de
artista-guia! Cada um deve ser como sabe e como pode, como realmente se é. Eu, talvez
porque no fundo da minha psicologia sou mitológico e um pouco ingênuo, devo
particularmente me defender de uma posição como esta no meu inconsciente. Talvez seja este
31
Renato Guttuso (1911-1987), célebre pintor italiano, expoente da cultura comunista.
32
Carlo Levi (1902-1975), escritor italiano, é o autor de Cristo si è fermato a Eboli (1945), famoso romance
escrito durante seu exílio político em um remoto vilarejo de camponeses no sul da Itália durante o governo
fascista.
195
o motivo secreto das minhas resistências, e deste tipo de discurso preliminar, no recomeço da
minha coluna em uma grande revista popular.
Por sorte, este ano ocorreram fatos que me afastam com a força da objetividade de
qualquer possível posição de certeza ou oficialidade. Por exemplo, um filme como O
Evangelho segundo São Mateus, ou, mais ainda, um livro de versos como Poesia in forma di
rosa (são coisas que acontecem com um autor!). Definitivamente, estou protegido pelas
minhas contradições. E, é por elas que está garantida a minha democraticidade! E vocês não
poderão nunca debater as questões que me interessam como se eu fosse uma autoridade,
exatamente pela presença das minhas contradições escandalosas, e pelas quais, primeiro, eu
fico em uma situação embaraçosa. Porque sempre existe uma diacronia (complicada até onde
se quiser) entre o fazer e o pensar de um autor. Eu vivo e aceito as minhas contradições em
dois momentos idealmente diferentes, ainda que muitas vezes fisicamente simultâneos.
Gostaria de dizer imediatamente, desde logo, que estas contradições são muitas vezes mais
ruidosas do que profundas e mais dramáticas do que fundamentais. Quer dizer, podem
escandalizar mais o conformismo do que a razão. Certamente o fato que eu tenha feito de um
determinado modo o Evangelo pode ter incomodado algum comunista, mas este comunista é,
portanto, conformista e perturbado.
Os problemas sobre a mesa
Enfim, neste ano ocorreram muitas coisas novas no mundo, capazes de obrigar
qualquer catedrático a descer da sua tribuna e a rever suas posições, a reencontrar a
sinceridade das suas opiniões. A passagem cada vez mais ruidosa do capitalismo de
capitalismo monopolista para capitalismo tecnocrata (não sei se utilizo uma terminologia
correta...) com tudo aquilo que resulta e que não se conhece. Efeito imediato e previsível
(Lênin) do capitalismo monopolista foi o imperialismo (de cuja dialética estivemos
envolvidos até ontem, pouco tempo atrás
33
). Qual será o efeito do capitalismo tecnocrata?
Poderia ser a maior força de corrupção sobre as élites operárias, ou pelo menos este é o dado
mais aparente do momento (o milagre, a crise de crescimento na direção da industrialização e,
pelo menos na Itália, a centro-esquerda contrabalançada pelo aumento progressivo, e cada vez
maior, dos votos aos comunistas
34
). Um outro ponto aparente e identificável é a mudança do
33
Até 1943, a Itália mantinha diversos territórios ocupados na África, como a costa da Líbia, a Eritreia, a Etiópia
e parte da Somália.
34
Nas eleições de 1963, o Partido Comunista Italiano, diante da nova aliança de centro-esquerda que governava
o país (Democracia Cristã e Partido Socialista), obtém uma inesperada expansão eleitoral, “superior às previsões
196
relacionamento entre as grandes nações capitalistas e o mundo subdesenvolvido (a passagem
do colonialismo imperialista para o neocolonialismo). O meu pessimismo me leva a ver um
futuro negro, intolerável a um olhar humanista, dominado por um neoimperialismo de formas
imprevisíveis. O segundo fato importante deste ano é a questão chinesa, a qual também obriga
a rever muitas posições
35
. Antes de tudo, o superficialismo geral com o qual se aceitou e
depois se estruturou a fase histórica do stalinismo. Já repeti milhares de vezes no primeiro ano
desta minha coluna, devemos entender melhor o fenômeno do stalinismo. Não nos colocando
as perguntas das quais já se sabem ou se querem saber as respostas, mas colocando-nos as
reais perguntas, e, como tais, profundamente perigosas
36
. O terceiro fato de grande interesse é
o novo rumo que se abre no mundo dos católicos, primeiro com o Papa João XXIII (que não
foi apenas um papa bom, porque aquilo que ele disse e fez é irreversível) e agora, com mais
dificuldades, com Paulo VI
37
. Acredito, por exemplo, que na novíssima geração dos futuros
dirigentes católicos o mito anticomunista esteja em grande parte desmistificado. E isto é de
uma importância incalculável. Por outro lado, se abre um novo rumo também na relação dos
comunistas com a Igreja se entendi direito uma passagem importante do testamento de
Togliatti...
38
Mas, sobre todos estes assuntos, teremos muito tempo para falar, ao longo deste
ano de debates epistolares que temos pela frente. Coragem!
Vie Nuove, 15 de outubro de 1964
O “Evangelho” e o diálogo
39
e esperanças” dos próprios dirigentes comunistas e conseqüência direta da subcultura do corpo de militantes
ativos do partido, que somavam cerca de 80 mil pessoas naqueles anos. (Galli, 2004, p. 131-2)
35
No início dos anos 60, as divergências ideológicas entre a República Popular da China e a União Soviética
levaram o governo de Mao Tse-tung a se afastar progressivamente dos soviéticos, a fim de se consolidar como
uma potência comunista independente. Uma das principais críticas dos chineses contra os soviéticos era a
chamada “convivência pacífica” com o Ocidente capitalista, defendida pelo então primeiro-ministro soviético
Nikita Kruschev, acusado pela China de abandonar a ortodoxia marxista da era stalinista.
36
Novas e dramáticas denúncias sobre os crimes praticados pelo governo comunista de Stalin na União
Soviética são reveladas no final de 1961, provocando abalos nos principais partidos comunistas em todo o
mundo, inclusive o italiano (Galli, 2004, p. 130). Sobre as primeiras denúncias contra Stalin em 1956, ver nota 4
da crônica Accattone e Tommasino.
37
O pontificado de João XXIII (1958-1963) foi breve, mas de extrema importância para as relações da Igreja
Católica com o resto do mundo, especialmente pela convocação do Concílio Vaticano II, em 1962, que
promoveu um amplo debate de reflexão global da Igreja sobre si mesma e sobre suas relações com o mundo.
Conhecido como “Papa Bom”, foi declarado beato por João Paulo II no ano de 2000.
Com a morte de João XXIII, Paulo VI assumiu o comando da Igreja e, durante seu longo pontificado (1963-
1978), foi decisivo na colocação em prática das decisões do Concílio Vaticano II.
Pasolini admirava ambos os Papas, tendo dedicado à João XXIII seu filme sobre o Evangelho.
38
Palmiro Togliatti, secretário-geral do Partido Comunista Italiano desde 1927, morreu em agosto de 1964.
Cerca de um milhão de pessoas compareceram aos seus funerais em Roma.
39
Muito antes de ser lançado, boatos sobre o filme de Pasolini baseado no Evangelho de São Mateus e a
colaboração de sacerdotes católicos com o roteiro circulavam na imprensa italiana. Por exemplo, em fevereiro
197
Caro Pasolini, li diversas vezes nos jornais que, durante a preparação para o seu
filme O Evangelho segundo São Mateus, você manteve contatos com altas hierarquias
católicas e, em especial, com a organização conhecida pelo nome de Pro Civitate Christiana.
Ao contrário do que você possa pensar, não lhe critico por isto. Gostaria de saber, no
entanto, se esta experiência levou você a fazer alguma reflexão sobre a possibilidade de um
diálogo entre católicos e não-católicos sobre os grandes temas do mundo moderno, como a
paz e a renovação social. E, principalmente, se você acredita que as convergências que você
possa ter encontrado entre as suas posições e as de alguns grupos católicos possam se tornar
concretamente elementos de um diálogo de massa em todos os níveis possíveis no nosso país.
Giancarlo Bassetti - Ravenna
Caros leitores, esta é a primeira carta que chegou desde a retomada da coluna. E não
me agradou recebê-la. Não pelo seu conteúdo, que, ao contrário, tem perguntas muito
inteligentes e “centradas”, mas porque ela me obriga a responder sobre um assunto que, nestas
últimas semanas, falei até a saciedade e também porque me obriga a fazer de mim, e da minha
obra, objeto de discussão, o que eu gostaria de evitar o máximo possível. Mas, evidentemente,
essas discussões sobre o Evangelho se tornaram um dever imposto pelos acontecimentos e
exige que eu vença qualquer incerteza ou pudor. Digo pudor pela intimidade inseparável que
conduz o trabalho poético e pudor pelo tanto de ofensivo que deturpa esta intimidade quando
ela se torna patrimônio público, alvo de interesse a um nível não específico.
de 1963, o jornal Vita confirmava o apoio da organização católica Pro Civitate Christiana na realização do filme.
As polêmicas em torno da produção foram muitas, tanto que em 1994, quase 40 anos depois, o jornal Avvenire
publicou uma entrevista exclusiva com um dos membros da Pro Civitate, na qual revelava que até mesmo o papa
João XXIII encorajou a realização do projeto com apoio da Igreja (FAGIOLI, A. Un del Papa a Pasolini.
Roma: Avvenire, 26 nov. 1994. Inserto Agora).
Desde 1958, com o início do pontificado de João XXIII, a Igreja católica estava construindo uma nova fase de
relações com o mundo. A instituição Pro Civitate Christiana operava na cidade italiana de Assis e, segundo os
objetivos do seu fundador, Dom Giovanni Rossi, pretendia ser um ponto de encontro entre cristãos e laicos “que
desejassem estreitar laços baseados na colaboração recíproca e no diálogo”. Em outubro de 1962, Pasolini
passou alguns dias em Assis, convidado pela instituição, para participar de um seminário sobre cinema, do qual
participavam também outras personalidades italianas. O evento coincidiu com a peregrinação surpresa de João
XXIII à cidade, em vista da iminente abertura do Concílio Ecumênico Vaticano II (FANTUZZI, Padre Virgilio.
Pasolini e la religione del suo’ tempo. In: Malaguti, 2006, p. 77). Durante estes dias, Pasolini decidiu fazer o
filme sobre o Evangelho de São Mateus e, pouco tempo depois, procurou os sacerdotes da Pro Civitate
Christiana para serem seus consultores teológicos, pois sua idéia desde o início era ser o mais fiel possível ao
texto original. Em maio de 1963, o roteiro foi finalizado e Pasolini partiu para a Palestina e Jordânia,
acompanhado de dois sacerdotes e alguns produtores, para verificar a possibilidade de filmar nos mesmos locais
descritos pelo Evangelho. Por motivos puramente estéticos e logísticos, que Pasolini retornou desiludido do
Oriente Médio, foi decidido que a Palestina de Cristo seria reconstruída em locações no sul da Itália, em
diferentes cidades das regiões da Calábria, Puglia e Basilicata. O processo de produção, pós-produção e
dublagem ocupará Pasolini até o final de agosto de 1964. Em setembro deste ano, o filme foi apresentado no
Festival de Cinema de Veneza e foi recebido sob protesto de diversas organizações de extrema direita.
Preocupado com a reação hostil de uma considerável parte da cúpula da Igreja Católica, o produtor do filme
organizou projeções fechadas para cardeais dentro do próprio Vaticano. Além das críticas dos jornais de direita e
católicos, Pasolini foi criticado também pelos comunistas, que o acusaram de “entrar no jogo dos seus
conselheiros que pretendiam fazer do filme um instrumento de persuasão religiosa”. O filme, distribuído entre
1964 e 1965, foi o primeiro grande sucesso de bilheteria de Pasolini, tanto na Itália quanto em outros países da
Europa e nos Estados Unidos. (Grattarola, 2005, 183-206)
198
Caro Bassetti, porque deveria pensar que me criticaria por ter tido contatos com a Pro
Civitate Christiana? Os padres não são de forma alguma o diabo. Senão, deveríamos adotar,
invertida, a posição maniqueísta de quase todos os católicos em relação a nós. Você sabe que
toda discriminação é antihistórica e desumana. Não existe nada mais absurdamente aberrante
do que o racismo. No entanto, do lado dos comunistas em relação aos padres, e dos padres em
relação aos comunistas, existe uma espécie de comportamento “racista”. Esses, querendo ou
não, cedem a uma espécie de tentação discriminatória, que desvaloriza a totalidade humana e
histórica do outro, priva-o de realidade, deixa-o separado. Um padre diante de um comunista,
e um comunista diante de um padre, quase sempre representa a aparição do outro: uma “raça”
degenerada pelo tabu, inconfiável, humanamente deteriorada e repugnante. Enquanto
comunista, eu também não estou imune a esta doença inconsciente e o anticlericalismo se
alastra dentro de mim como um verme, sugando o sangue do outro, até transformá-lo em
sombra, símbolo, esboço de um conjunto de coisas que me parecem injustas, de um mundo
que rejeito. E existe ainda nos padres muito clericalismo, um cruel e preconceituoso
anticomunismo patológico, portanto desumano e antievangélico! Diria que o papa João XXIII
era psicologicamente incapaz de discriminar, de ver no homem o outro, o inimigo por
definição, por preconceito, por tabu, por conveniência. Ele sabia ver no homem o homem
por completo. O seu sorriso, tão humano e, principalmente, humanístico significava isto. Ele
unia a cultura com o caráter angelical. Fiquei sabendo recentemente que quando ele estava em
Istambul, assistia as aulas de filologia e de crítica estilística de Auerbach
40
. E isto me explica
muitas coisas, não apenas do seu modo particular de fazer “o espírito” (que é típico da pessoa
aprimoradamente especializada), mas do “distanciamento” brilhante que ele tinha das coisas
da vida, da visão global que ele lançava sobre o mundo, muito além das suas discriminações
insensatas. Vocês imaginam papa João XXIII escandalizado ou indignado contra os oito
40
O filólogo e crítico literário alemão Erich Auerbach escreveu sua obra-prima, Mimesis (1946), durante seu
exílio na Turquia, durante os anos da II Guerra Mundial.
199
milhões de eleitores comunistas na Itália? Eu não. E, historicamente e humanamente, não era.
Certamente ele não podia aprovar a “filosofia ateia” deles, pois esta lhe fazia sacudir a cabeça
com bondade e dor, com aquela segurança absoluta que possui quem ce que, portanto, não
pode odiar.
Portanto, uma questão que é filosófica é apresentada pela burguesia clerical como uma
questão prática. Para os comunistas, trata-se de dar maior ou menor peso à própria filosofia de
origem iluminista e positivista, ou até mesmo de aceitá-la ou não. Ou pelo menos de discuti-la
e atualizá-la, visto que a própria ciência superou algumas posições científicas do século XIX e
do início do século XX. Mesmo que tudo isto avance, duas coisas permanecem certas: 1) Uma
filosofia ateia não impede o respeito pela religião; 2) Uma filosofia ateia não é a única
filosofia possível do marxismo tanto que a base marxista e operária sempre foi, na sua
maioria, religiosa e nas altas hierarquias também existiram muitos marxistas católicos. De
todo modo, é um fato atual e típico do marxismo contemporâneo aquele de conter muitos
elementos da cultura burguesa e irracional, elaborando-os de forma complexa e original.
Nos anos memoráveis do pontificado de João XXIII estas coisas correram o risco de
tornarem-se patrimônio comum, e quase óbvio, como são na realidade. Hoje se percebe uma
indecisão e um espírito retrógrado na cúpula da Igreja Católica. Era previsível que isto
ocorresse, mas eu não sou pessimista e espero que a ala moderna e esclarecida do Concílio
Ecumênico prevaleça. Seria preciso que apenas uma ideia avançasse entre as altas hierarquias
da Igreja, além do que entre o humilde clero: a ideia de que o grande inimigo de Cristo não é
o materialismo comunista, mas o materialismo burguês. O primeiro é teórico, filosófico,
especulativo, e, portanto, compreende os momentos mais absolutos da religião; o segundo é
totalmente prático, empírico, instrumental e rejeita como contrário qualquer momento
sinceramente religioso e de conhecimento do real, aceita a realidade apenas se disfarçada
pelos velhos cânones da hipocrisia. O ateísmo de um militante comunista é uma flor de
religião perto do cinismo de um capitalista. No primeiro se pode sempre reconhecer aqueles
momentos de idealismo, desespero, violência psicológica, desejo de conhecimento e que
são elementos de religião, mesmo que fragmentados enquanto no segundo se encontra
apenas avidez por riqueza.
Bastaria apenas que esta ideia tão simples e verdadeira avançasse entre os católicos,
bastaria apenas que estes fossem mais cristãos. Isto as pessoas laicas de cultura média
repetem há anos, já é um lugar comum. Mas, apenas por um conjunto de conjunturas que pela
primeira vez envolvem a história comum de toda a terra, este lugar comum adquire hoje
características de realidade e necessidade.
200
Talvez você diga que eu exagero, que levo muito a sério, de um modo um pouco
ingênuo. Pode ser. Em indivíduos extremamente “dilacerados”, como eu nestes anos, é que
algumas posições e perspectivas se tornam concretas e, por isso, assumem os seus exageros e
as suas ingenuidades. Não os temo. O exagero e a ingenuidade com o temor do ridículo
são coisas que assustam os pequeno-burgueses. Durante estes últimos anos, a minha
intolerância total contra a burguesia assumiu características extremas, enquanto minha
simpatia é atraída por locais e pessoas onde vejo a contradição do espírito burguês. As
relações que tive com os padres neste período foram deste tipo: todas excluíam a burguesia de
algum modo. onde se fala de Deus, mesmo na própria descrença, a burguesia não está. Ela
está na missa, ausente no seu fingimento hipócrita, na sua visão retrógrada do humano, na sua
patológica crise de angústias sociais, no terror de tudo que possa colocar em perigo as suas
normas e os seus privilégios. Entre um marxista e um religioso se estabelece imediatamente
uma aliança que repele o materialismo burguês para a sua triste realidade. E estas alianças
isoladas podem ocorrer em todos os níveis possíveis, como você diz. E, como você diz,
argumentos essenciais e não mais adiáveis do discurso deveriam, justamente, ser aqueles
“francos” da paz e da renovação social...
Vie Nuove, 29 de outubro de 1964
201
Expressividade contra instrumentalidade
41
Caro Pasolini, tenho 27 anos, trabalhei nove anos em uma fábrica e agora, depois de
esforços imensos (não exagero!), concursos mal sucedidos, etc..., consegui encontrar uma
vaga para mim (como motorista auxiliar em uma grande empresa de produtos químicos).
Não que com o novo trabalho eu ganhe mais, mas pelo menos não falta trabalho. No período
que trabalhei na fábrica, as greves ocorriam sucessivamente; agora que não estou mais lá, é
a mesma música. Agora gostaria de dizer uma coisa: existem pessoas, com as quais tive
contato no meu novo trabalho, que ignoram ou nem mesmo sabem o que é o trabalho dentro
de uma grande indústria. Mesmo os próprios familiares dos operários não sabem nada.
Porque? Uma das respostas é porque durante o horário de trabalho nenhum estranho (com
raras exceções) pode circular dentro da fábrica, portanto, não pode perceber o que ocorre lá
dentro. Mas, mesmo no caso de pessoas estranhas ao trabalho que tenham assistido um
pouco o serviço e visitado a fábrica, isto não tem valor. Porque é preciso passar pelo menos
oito horas (um dia de trabalho) em contato com o operário, as máquinas, os horários de
serviço, os chefes, etc... Agora me pergunto: “É possível que depois de tanta luta, tantas
greves, não tenham conseguido obter aquele mínimo indispensável, que possa dar a um
operário um nível de vida mais tranquilo?”. Caríssimo P.P.P., me dirijo a você porque é o
único que conheço bem e por quem nutro uma forte simpatia e confiança. Sabe-se que as
pessoas não leem muito, especialmente sobre o que se refere aos problemas e aos
acontecimentos históricos dos operários, mas vão ao cinema com prazer. Portanto me
pergunto: porque você não faz um filme sobre o mundo operário italiano? É assim tão difícil
e impossível mostrar para aqueles que estão bem os sofrimentos e as angústias daqueles que
lutam continuamente para viver?
(sem assinatura)
41
O crítico Walter Siti identifica o período entre os anos de 1964 e 1965 como “uma data que representa um
caminho sem volta, um divisor de águas depois do qual nada é mais como antes” no pensamento de Pasolini,
referindo-se ao fato que nestes anos o escritor confirmou algumas convicções que estavam na sua cabeça,
como o avanço do neocapitalismo, as mudanças na língua italiana, o fim da relação patrão-indivíduo, entre
outras. (SITI, W. L’opera rimasta sola. In: Pasolini, op. cit., 2003, p. 1931-3)
Nesta crônica, Pasolini declara sua admiração pela representação “poético-profética” do trabalho em fábricas no
clássico filme de Charles Chaplin, Tempos Modernos (Estados Unidos, 1936). Na opinião do pesquisador
espanhol Antonio Gimenez Merino, Pasolini, “fascinado com a expressividade e comicidade do personagem
representado por Chaplin diante da inércia mecânica da cadeia de produção”, considerava impossível, em 1964,
repetir essa operação de contraste entre “humanidade e instrumentalidade”, pois acreditava que o progresso
industrial tinha efetivamente transformado a humanidade. Merino destaca que este ponto de vista de Pasolini
sobre o progresso capitalista também é uma “crítica onírica”, assim como a crítica de Chaplin, pois naquele
momento, metade dos anos 60, ainda não se falava em destruição ecológica e o capitalismo produzia emprego
dentro de determinados sistemas de distribuição social da riqueza, de modo que existiam razões para se acreditar
no desenvolvimento industrial como uma possibilidade de progresso social. (Merino, 2003, p. 125-6)
Sobre a crítica de Pasolini ao progresso neocapitalista, cf. nota 5 da crônica A era da alienação.
202
Tempos Modernos de Chaplin é um filme absoluto, que disse sobre o trabalho na fábrica
algo que se coloca como insuperável na imaginação. aconteceu de você ter um sonho, que
depois reconhece continuamente na realidade, como uma realidade explicada fora de si
mesma, que se repete, misteriosamente, impregnando com o seu significado as pessoas e os
objetos? O filme de Charlot é como um sonho sobre a realidade da fábrica, e toda vez que
uma fábrica aparece diante dos meus olhos (os olhos de um estranho como eu), é como se ela
fosse sintetizada e simbolizada por este sonho não ultrapassa os limites deste sonho, não
possui elementos importantes fora deste sonho. A obsessão dos gestos repetidos, o olho do
chefe (tecnicizado) que observa, a indiferença cretina e suprema da máquina, são todas
realidades particulares que se referem a um misterioso sonho profético já sonhado. Não existe
diretor que não tenha sonhado Tempos Modernos, e é talvez por isso que nenhum diretor
possui autonomia suficiente a ponto de refazer um filme sobre a fábrica. O fato que o filme de
Charlot seja de algumas cadas atrás o tem nenhuma importância, pois por não ser um
filme realista, não é “datado”. Charlot captou a obsessão da fábrica nos seus momentos
absolutos e a sua crítica onírica, transformada em metafísica pela força humana da comédia, é
válida muito além de qualquer situação histórica específica.
Acredito que este seja um fato único na história da cultura. Nenhum quadro que
representa Cristo jamais impediu outro pintor de fazer outro quadro que representa Cristo, e
nenhum romance de ambiente burguês, mesmo que muito específico, impediu que outro
romancista escrevesse sobre aquele ambiente, e etc. Qualquer fato, pessoa ou circunstância da
vida se apresenta como virtualmente inesgotável e polivalente. Você não apresenta
praticamente nenhuma resistência à ideia de ver representada ou narrada centenas de vezes ou
por centenas de autores diferentes a história de Chapeuzinho Vermelho ou uma história
qualquer de adultério, enquanto obstina-se diante da ideia de ver representado centenas de
vezes ou por centenas de autores diferentes o mundo da fábrica.
Isto quer dizer que no mundo da fábrica existe uma monovalência fundamental, uma
obsessão que não permite variações. Quer praticamente dizer que a vida neste mundo assumiu
características diferentes, que não possuem representações em nenhum momento do passado.
Não foi por nada que Charlot colocou o titulo de Tempos Modernos no seu filme. A
característica da fábrica é exatamente esta: ser moderna, mas moderna como nada jamais foi
na história.
A importância do poeta contemporâneo é exatamente esta, a impotência em representar
de milhares de maneiras diferentes e subjetivas, continuamente novas e reinventadas, aquele
momento específico e exemplar da vida que é a fábrica. Quer dizer que existe algo na vida
203
moderna que não é mais poetizável? Ou que é poetizável apenas de uma vez por todas?
Este fato é de extrema importância. Porque hoje, com a revolução tecnológica e
tecnocrática, a vida na fábrica se coloca como um modelo fundamental, e diria único, de toda
a vida. Isto ainda não acontecia na época de Charlot. No monstruoso ambiente de
instrumentalidade pura ou comunicação, um homem como Charlot, totalmente expressivo,
podia funcionar como antagônico. Este homem “expressivo” que se contrapõe ao mundo
“comunicativo”, ou funcional”, da técnica, deveria definitivamente ser o poeta. Enfim, se
deveria pensar em poetas-operários (criei esta definição baseado naquela já conhecida dos
padres-operários). Somente vivendo totalmente a vida de um operário em uma fábrica é
possível penetrá-la completamente, mas não para vivê-la passivamente ou desesperadamente
(como ocorre com você), mas para vivê-la antagonicamente. Ou seja, para contrapor a
liberdade do homem enquanto “expressivo” e não “instrumental”.
Não é por nada que recebo tantas cartas como a sua. Dezenas e dezenas de operários
me pediram (como provavelmente o fizeram com outros escritores e cineastas) para que “seja
expresso” o seu mundo. Instintivamente você e os seus colegas percebem que não é suficiente
a poesia que existe em vocês, como direito de liberdade e de expressividade, que é preciso um
ato de poesia consciente. No momento em que a fábrica é expressa, não é mais a fábrica,
volta para a existência, se junta novamente às outras grandes experiências do passado,
antecipa o futuro.
Um problema para todos
Quanto a mim, certamente que gostaria de ser um poeta-operário. Mas tenho como
pretexto infinitas resistências morais e estéticas que me impedem. Tenho como desculpa o
fato que o mundo das minhas experiências é outro (aquele conhecido como “Terceiro
Mundo”, com o qual o mundo industrializado se coloca em uma nova relação, o neo-
colonialismo, que é tão útil para entender os dois termos que o compõe...). Tornar-se poeta-
operário exigiria de mim uma vocação que me levaria a jogar fora toda a minha vida passada
e presente. Um verdadeiro ato de sacrifício. Não excluo esta possibilidade, porque não quero
excluir nada. Mas, certamente que ir até uma fábrica como visitante, como sociólogo, como
cineasta fazendo observações e pesquisas, não tenho coragem. Não é apenas imoral, como
esteticamente inútil.
Gostaria simplesmente de acrescentar que aquela base de “historicamente novo” que
está na funcionalidade absoluta da vida na fábrica, começa também na Itália a caracterizar
204
todos os aspectos da vida. E, portanto, a contradição instrumentalidade-expressividade
começa a se tornar um problema de todos. Ou seja, não é mais um problema apenas da
fábrica. De modo que, enquanto que até agora um gesto de conhecimento ou um gesto de
denúncia de um escritor que ocorresse fora da fábrica, referia-se apenas indiretamente à
fábrica, a partir de agora começa a se referir mais diretamente à fábrica. Estamos no início de
um novo período da história que talvez será muito longo e sobre o qual osonho” de Charlot
se projeta como um pesadelo. Jamais como neste momento o marxismo enquanto luta do
operário contra a fábrica-monstro e, portanto, linguisticamente e esteticamente, enquanto luta
da expressividade contra a instrumentalidade, se coloca como fundamento da liberdade
humana.
Vie Nuove, 10 de dezembro de 1964
205
Pessimismo de esquerda
42
Caro Pasolini, aceito com prazer o seu pedido. Acho que você tende a materializar um
estado de espírito particular seu, que faz com que você ache que o marxismo está em crise,
enquanto na realidade a crise está dentro de você.
Se quiser, o marxismo está permanentemente em crise, no sentido que está sempre
pronto para uma contínua transformação, para se adequar à realidade histórica, que ele
mesmo determina parcialmente quando da teoria se torna prática.
Como você diz, é verdade que “não se pode mais confiar naquela base forte, fraterna e
estimulante que existe em uma mesma crença política”
43
. Mas isto não quer dizer, como me
parece que você deixa subentendido, que tenha diminuído o estímulo ideal que inspirou as
lutas e a ação dos comunistas. Eventualmente se pode constatar com satisfação que esta
ação se desmistificou, se tornou mais consciente, menos emotiva e, portanto, mais
espontânea.
Na minha opinião, você peca pela presunção ao achar que os leitores de Vie Nuove
“provavelmente vivem esta crise (como você a chama) sem consciência”. Particularmente na
Itália, acho que, ao contrário, o esforço de busca e as tentativas de esclarecimento não são
privilégio apenas de um grupo de elite, mas são um fenômeno de massa. Na ação conduzida
por milhões de homens, não encontrará dois marxistas que tenham uma opinião idêntica,
talvez pré-fabricada, sobre os grandes problemas do nosso tempo ou mesmo sobre pequenos
episódios sem importância. Ninguém espera que as opiniões coincidam. Mas isto não exclui
42
Esta crônica é uma continuação de uma crônica anterior, publicada na revista em 3 de junho de 1965 e não
reproduzida neste trabalho, quando o mesmo leitor escreveu uma carta para Pasolini na qual observava que o
escritor vinha realizando um “monólogo” ao invés de umdiálogo” com os leitores desde a retomada da coluna
em outubro de 1964. Pasolini, comovido com a sinceridade da carta, respondeu em uma crônica intitulada
Riadattiamo il mirino na qual, além de pedir ao leitor que o escrevesse novamente para ajudá-lo a compreender
os problemas desta nova fase na sua coluna, também admitia que o problema poderia estar na crise mundial do
marxismo e em seus reflexos sobre as relações entre os intelectuais de esquerda e a base comunista. Pasolini
escreveu, entre outras coisas, que percebia que os leitores de Vie Nuove “provavelmente viviam esta crise do
marxismo sem uma clara consciência”. (In: Pasolini, op. cit. 2006, p. 1066)
43
O leitor se refere à crônica Difficile essere facili (publicada em Vie Nuove em 3 de junho de 1965) e não
reproduzida neste trabalho.
206
que nesta diversidade se encontrem motivos de união que possam fazer o movimento
operário avançar na realidade atual. Em outras palavras, “readaptemos as miras”, mas não
como manobra tática. A realidade que nos cerca não nos é estranha. Não tínhamos previsto
ela nos seus detalhes, muitas vezes a consideramos como um fenômeno eventual, previsto,
subestimando as suas consequências. Mas nunca perdemos o caminho, não avançamos às
cegas rumo a objetivos obscuros... Um abraço com carinho.
Lamberto Guidotti - Parma
Caro Guidotti, obrigado pela sua resposta, sobre a qual faço as seguintes observações:
1) Pode ser que eu projete fora de mim uma crise interna minha e a materialize em uma
crise do marxismo inexistente. Estes processos são muito humanos e pode ser que eu também
seja influenciado por eles. Em todo caso, gostaria que ficasse bem claro que a minha crise não
é política e não prejudica as minhas relações com o marxismo. É uma crise humana muito
mais ampla (a qual expressei em muitas poesias e filmes). No entanto, as críticas que dirijo
a alguns amigos marxistas, e às vezes ao PCI de um modo geral, são, pelo menos na minha
intenção, construtivas. Partem sempre de dentro, na total boa-fé e talvez cheias de (ingênuas)
boas intenções. É isso, gostaria que este ponto ficasse bem claro para os meus
correspondentes de Vie Nuove.
2) Dito isto, insisto em dizer que existe hoje, efetivamente e objetivamente, uma crise
do marxismo, ou talvez fosse melhor dizer dos “partidos marxistas”. Me limitarei a listar uma
série de dados reais:
a) A violenta, e às vezes extremamente preocupante, polêmica entre a China e a União
Soviética, que rachou em duas a tradicional “Internacional Comunista”
44
.
b) A consequente ruptura entre partidos comunistas de países pobres ou
subdesenvolvidos e partidos comunistas de países industrializados.
c) A ainda em parte misteriosa destituição de Kruschev, ou seja, a queda de um valor ou
44
O historiador inglês Erik Hobsbawm afirma que o movimento internacional comunista centrado em Moscou
desintegrou-se entre os anos de 1956 e 1968, devido a fatos como o chamado “Relatório Kruschev” (cf. nota 4)
ou o rompimento da China com a URSS (entre 1958 e 1964), enquanto partidos comunistas do mundo inteiro,
liderados pelos italianos, começavam a distanciar-se abertamente de Moscou. (Hobsbawm, 1994, p. 435)
207
uma tendência política, ainda não substituídos por outro valor ou outra tendência política
45
.
d) A deplorável superação do stalinismo em todos os partidos marxistas, ocorrido nos
fatos, de modo pragmático e sentimental, ou nas palavras, de modo retórico e falso, mas não
através da razão crítica. (Repito isto anos: falta ainda um exaustivo exame das razões
históricas profundas que tornaram possível o stalinismo).
e) A preocupante posição política de muitos países socialistas, onde o comunismo no
poder, diante de problemas imediatos muito graves, esqueceu de “continuar” a revolução e
assumiu posições severas, rigorosamente centralizadas, que deixaram, por exemplo, os
escritores e intelectuais em geral em posições muito difíceis, para não dizer penosas. Além
disso, também renasceram alguns comportamentos pequeno-burgueses nunca extintos
completamente, como, por exemplo, os pequenos nacionalismos da Eslováquia ou da
Transilvânia, que para nós parecem fenômenos tristemente absurdos.
f) A dramática situação do Partido Comunista Francês, partido estagnado em uma
mentalidade política arcaica, dominado por um tipo de racionalismo derivado da cultura
liberal, rígido e moralista. Indício desta crise é o fim da inteligente revista dos jovens
comunistas franceses (italianísticos), Clarté, fim desejado pelos dirigentes comunistas.
g) A posição marginal ocupada pelo PCI na Itália nestes últimos anos, visto que o
centro da cena foi ocupado por uma luta entre um possível trabalhismo (a centro-esquerda) e
um conservadorismo nascente (o liberalismo do neocapitalismo de Milão). Indícios desta
posição forçadamente marginal são os esforços do PCI para retornar ao centro da luta política,
ou seja, o diálogo com o catolicismo (que pode superar a provisória aliança católico-
socialista) e a perspectiva do “partido único”.
46
45
Em 1964, o secretário-geral do Partido Comunista soviético, Nikita Kruschev, chamado por Hobsbawm de
“último dos grandes chefões soviéticos”, foi destituído do poder. Terminava a era de Kruschev, que governou o
país entre 1956 e 1964, e foi o responsável pelo polêmico relatório divulgado em 1956 que revelava os horrores
do período stalinista. Para Hobsbawm, a morte de Stalin em 1953 e os ataques oficiais à era stalinista em 1956
marcaram o início do desmoronamento político do bloco soviético, com conseqüências em todo o mundo
(Hobsbawm, 1994, p. 374-87). Sobre as polêmicas revelações contra Stalin de 1956 cf. nota 4 da crônica
Accattone e Tommasino.
46
O historiador Erik Hobsbawm destaca em seu estudo sobre o século XX que, nos anos seguintes ao fim da II
Guerra Mundial, uma das principais preocupações do governo dos Estados Unidos era o assédio dos partidos
comunistas nos países ocidentais, principalmente a Itália. Nas eleições italianas de 1948, por exemplo, os
Estados Unidos estavam preparados para intervir militarmente em caso de vitória comunista. A criação de um
sistema unipartidário permanente na Itália foi, em parte, apoiada e promovida pelo governo norte-americano. A
partir do início da década de 60, os socialistas italianos, que formavam o único partido de oposição substancial,
entraram na coalizão de governo democrata-cristã, após desembaraçar-se de uma longa aliança com os
comunistas depois de 1956. A conseqüência desta aliança foi a estabilização dos comunistas como o maior
partido de oposição. (Hobsbawm, op. cit., p. 228-36)
Em meados de 1964, o Partido Comunista Italiano passava por dificuldades para desenvolver o seu papel de
principal partido opositor devido aos problemas de caráter externo, decorrentes da cada vez mais acentuada
tensão no movimento comunista internacional. Entre estes problemas, o historiador italiano Giorgio Galli cita o
fracasso das negociações e a polêmica aberta entre os partidos comunistas da União Soviética e China, a
208
Listei, como você pode ver, os dados brutos. Não faço comentários. Deixo-os falarem
sozinhos. Se você pensa que se trata da mesma contínua crise enquanto infinita evolução,
enquanto infinita necessidade de adequação a sempre nova realidade histórica, enfim, você
comete consigo mesmo um ato desonesto. Porque, fazendo assim, você menospreza a situação
real, deslocando o seu ponto de vista para cima, como quem as coisas “sob a forma, quase,
de eternidade”. Se sofre uma crise pelo que acontece naquele específico momento, não se
evita ela com a consciência de que tudo, sempre, está em crise! Esta consciência é óbvia e não
serve para nada.
3) A sua própria carta, também, devo dizer, me confirmou uma opinião de que a base
tem uma consciência vaga da crise real, que neste momento, e não genericamente em todos os
momentos, atormenta os partidos comunistas. No âmbito da élite comunista e entre os
intelectuais só se fala sobre isso, já se tornou quase uma palavra de ordem, um flatus vocis, de
tanto que se fala. E a base” o sabe de nada. Continua fechada no velho otimismo do pré-
marxismo. Como, me permita, você faz. E então, preciso acrescentar que a sombra de
acusação de derrotismo contra mim que emana das suas palavras, mesmo tão amigáveis, é, ao
invés, egoísta e injusta. Deixe pelo menos um lugar para mim no seu sistema profundamente
otimista e cheio de certezas, no papel ingrato de desmancha-prazeres!
Vie Nuove, 17 de junho de 1965
Cultura “pós-engajamento”
47
Exímio Sr. Pasolini, algum tempo atrás lhe escrevi a propósito do seu Evangelho
segundo São Mateus, não para discutir o filme, do qual você sempre disse ter discutido
demais, mas para ouvir a sua opinião ética sobre os Evangelhos em geral. Você,
corajosamente, não respondeu a esta carta e tinha todo o direito, ainda que por dever quem
dirige uma coluna deve responder ao mais obscuro desconhecido. Agora lhe escrevo
novamente sobre a suposta crise do marxismo tão exaltada por você. Concordando com o
participação direta nesta polêmica do então presidente do PCI, Palmiro Togliatti, e, por fim, a destituição do
secretário-geral do partido comunista soviético, Nikita Kruschev, em outubro de 1964. (Galli, 2004, p. 137-8)
47
O jornalista Guy Scarpetta, em um artigo publicado no jornal Le Monde, relembra que Pasolini foi um dos
primeiros intelectuais italianos a compreender que “a cultura progressista do pós-guerra, nascida do combate
antifacista”, a chamada “cultura do engajamento”, tinha no final dos anos 50 “esgotado suas funções”. Mas,
também negava-se a “ceder ao purismo e formalismo das vanguardas literárias” dos anos 60, como o famoso
Gruppo 63, liderado entre outros por Umberto Eco, e que Pasolini acusava de “levarem uma luta abstrata,
inofensiva, puramente lingüística, de serem prisioneiras de um modo de vida pequeno-burguês, e de esconder
por trás de suas proclamações antinaturalistas um puro e simples terror a respeito da realidade”. Scarpetta
conclui que, para Pasolini, o engajamento cultural e artístico era produto da “experiência direta, do modo de
viver, da implicação subjetiva e física da realidade”, produto que ele apresentava em suas poesias, “ambíguas e
escandalosas”, em seus romances e em seus filmes. (SCARPETTA, G. Pasolini, iconoclasta e indispensável.
São Paulo: Le Monde Diplomatique, fev. 2006. Disponível em http://diplo.uol.com.br/2006-02,a1269. Acesso
em junho de 2009.)
209
que bem lhe disse o Sr. Luigi Natale
48
(que não conheço e não sei quem seja), você acredita
poder ensinar e opinar sobre tudo e sobre todos, mas se engana, exímio Sr. Pasolini, com
relação ao italiano de hoje, que pensa com sua própria cabeça e não com aquela de quem é
pago para dirigir uma coluna.
Se o marxismo está em crise, como se explica que o marxismo se propaga por dois
terços da humanidade? Como se explica a luta do proletariado e a independência dos povos?
Não foi, por acaso, o marxismo que condenou para sempre o colonialismo? Não é mérito da
ideologia marxista o fato de países como China, Egito, Cuba, Argélia, entre outras, terem
nacionalizado as suas economias? A própria Inglaterra, pátria de Adam Smith, a nação mais
conservadora do mundo, recorreu a algumas nacionalizações, enquanto espera para realizar
outras. Me explique, Sr. Pasolini, o que você pensa destas minhas observações? Por isso, se
existe uma crise, não é no marxismo, mas nos partidos políticos que não sabem ou não
querem aplicar a verdadeira dialética marxista (veja o revisionismo de péssima memória
kruscheviana
49
e as suas consequências). E, que estou aqui, quero lhe dizer mais uma
coisa. Deixe a política e continue a se dedicar a romances, poesias e roteiros
cinematográficos, que poucas pessoas estão dispostas a acompanhá-lo nesta direção.
Quer uma prova? Proponha um referendo em Vie Nuove e ficará convencido. Se quiser,
pode jogar esta carta no lixo também, mas quem dirige uma coluna deve ter a coragem civil
de discutir qualquer assunto que lhe seja colocado.
Attilio Micale - Pescara
Deixo que o leitor julgue sozinho o quanto de ruim nesta carta. É um caso limite que
tomo como pretexto para uma resposta que, mesmo sem ocupar a revista Vie Nuove por
inteiro, como Micale parecia pretender, torne-se útil para aprofundar o nosso tema destas
últimas semanas.
Desde o imediato Pós-Guerra até o início dos anos 60, o motivo literário na Itália foi
único, e tão profundamente caracterizado, que instituiu quase uma forma de cultura: foi o
48
Referência à crônica Peculato ideologico? (che cos’è il marxismo), publicada na revista em 22 de julho de
1965 em resposta a uma carta de Luigi Natale e não reproduzida neste trabalho.
49
Referência a Nikita Kruschev. Cf. nota 4 da crônica Pessimismo de esquerda.
210
chamado “engajamento”. A referência ideal desse movimento foi a Resistência e o seu
objetivo era “revelar” uma realidade até aquele momento mitificada, a sociedade italiana. Isto
pressupunha uma espécie de dogmatismo flexível, projetado para o futuro: a perspectiva, ou,
mais sentimentalmente, a esperança. E assim, sobre estes dados, que são aparentes e
“exemplares”, se estabeleceu todo um capítulo da nossa história e da nossa literatura
50
.
A situação era caótica, porque se por um lado permitia o respiro da liberdade e da
descoberta (nasceram naqueles anos o cinema e o romance italiano), por outro lado servia a
um endurecimento moralista e a um radicalismo chantagista. Toda a crítica marxista média
daquele período aceitava como bons os dados que esquematizei acima. Eles constituíam a
“linha” cultural do partido. Mas, justamente por isso, por estar dentro de uma linha, existia
sempre nesta crítica o perigo do endurecimento moralista e do radicalismo chantagista.
Na cabeça do crítico marxista, se formou uma espécie de escala de valores
essencialmente maniqueísta, de modo que ele aplicava a um texto um esquema crítico
monótono até se tornar obsessivo. Faziam-se perguntas (superficiais) às quais se davam
respostas (superficiais) e o juízo de valor era, portanto, sempre moralista. Ele se perguntava se
uma obra era populista, humanitária, cristã, etc. Se era assim, era condenada. Se, ao contrário,
correspondia a um espírito operário, se a perspectiva otimista era explícita, etc., era exaltada.
Naturalmente falo da crítica marxista inferior, da grande massa, o daquela mais
apurada e problemática. No entanto, é preciso observar que este moralismo se conserva até
hoje na parte mais rígida e, em certo sentido, pura da coalizão marxista, como, por exemplo,
na política cultural do Psiup
51
ou na de alguns marxistas insatisfeitos, “grupos pequenos”
50
Cf. nota 1 da crônica O intelectual engajado.
51
O Psiup (Partido Socialista Italiano da União Proletária) nasceu em 1964 de uma corrente do Partido
Socialista contrária à aliança de centro-esquerda com a DC e favorável a uma aliança com o Partido Comunista,
desequilibrando o sistema político de então, dominado pela centro-esquerda. (Galli, 2004, p. 134-7)
211
arrogantes e desconhecidos, que na sua intransigência moralista, condenam tudo e todos
(talvez com razão, mas o erro deles é a referência obsessiva ao fato de terem razão). Me
refiro, por exemplo, ao grupo “Quaderni Piacentini”
52
, onde se refugiou o grupo dos melhores
críticos marxistas piores: o stalinismo beatnik (que é típico também de muitos grupos de
vanguarda, que encobrem um velho anarquismo burguês).
O PCI, ao contrário, terminada e superada a década do Engajamento, da Realidade e da
Esperança e com a Resistência mais comemorada que recordada, abandonou oficialmente
qualquer comportamento protetor, dogmático, persuasivo e moralista.
O parágrafo cultural do X Congresso do PCI
53
carta branca a todos os experimentos
literários possíveis: “Façam aquilo que quiserem, depois veremos” se nas entrelinhas
daquele parágrafo. Uma espécie de liberalismo cultural, uma declaração oficial da falta total
de programas e ideias, uma disponibilidade total.
Aparentemente esta liberalização se apresenta como uma consequência do período
kruscheviano e anti-stalinista
54
. Mas, olhando melhor, naquele parágrafo ocorre uma
ontologização da liberdade (o artista é livre para fazer as tentativas que acredita; mas uma
liberdade sem comparações é uma liberdade tica, é a liberdade do liberalismo burguês,
enfim, é uma liberdade fictícia). Em segundo lugar, a falta de uma declaração de novos
programas culturais ou, se quisermos, de uma nova “linha” cultural, não garante plenamente
uma verdadeira liberdade de opinião. Ao contrário, o crítico marxista militante, que deve
escrever o seu texto todos os dias, está, segundo este parágrafo do X Congresso do PCI,
52
Quaderni Piacentini, revista trimestral de assuntos políticos e culturais fundada em 1962. De ideologia
comunista, mas não ligada a nenhum partido político, desde o início entrou em confronto com a esquerda
tradicional italiana.
53
O X Congresso do PCI ocorreu em Roma em dezembro de 1962.
54
Cf. nota 4 da crônica Pessimismo de esquerda.
212
autorizado a continuar o seu antigo método dogmático-calculista (apenas mascarado por uma
maior audácia liberalista), porque na realidade não sabe o que quer nem o que pedir de um
escritor.
Estamos diante, portanto, de um sinal de crise. Aliás, de uma verdadeira crise da política
cultural marxista. O realismo “engajado” acabou e o marxismo italiano, e não italiano, não
soube elaborar nada de novo para o seu lugar. Transferiu a elaboração de alguma coisa nova
às tentativas “do zero” dos escritores, adotando a “tática” da liberalização.
Por isso o interesse e o apoio tático às “vanguardas”
55
. O que é simplesmente
monstruoso. Seria como se os homens políticos do PCI esperassem pelas ideias sociais e
políticas úteis da nova sociologia, que está em relação à velha sociologia de Durkheim ou
Weber exatamente como as novas vanguardas estão em relação às vanguardas do início do
século XX.
Vie Nuove, 26 de agosto de 1965
Mais uma despedida
56
Mais uma vez devo me despedir dos leitores de Vie Nuove. E, também desta vez, se
trata de uma despedida provisória. Começo a filmar dentro de alguns dias meu novo filme (e
minha irregularidade na redação da coluna nestas últimas semanas foi devida à preparação
deste filme) e, durante este período no qual “se filma”, o tempo para um diretor adquire uma
dimensão monstruosa, preenchida por um raio imprevisível de trabalhos. No entanto,
enquanto da outra vez quase dois anos interrompi a coluna de Vie Nuove para assumir
um trabalho completamente novo e imprevisto, ou seja, a execução de O Evangelho segundo
São Mateus, desta vez, com Gaviões e Passarinhos, em certo sentido, continuo em outro
55
Pasolini refere-se às polêmicas literárias com os novos movimentos de vanguarda italianos, principalmente o
chamado Gruppo 63, que tendiam a marginalizar não apenas Pasolini, como outros escritores expoentes da
chamada “literatura engajada” dos anos 40 e 50, como Alberto Moravia, Carlo Cassola e Giorgio Bassani
(Siciliano, 2005, p. 322). Cf. também nota 1 da crônica O intelectual engajado.
56
Esta será a última colaboração de Pasolini como colunista para a revista Vie Nuove. Na opinião de Enzo
Siciliano, Pier Paolo “sustentava que tinha se tornado egoísta, que levava muito mais em consideração do que
antes aquilo que podia produzir individualmente, o cinema o absorvia”. Nos anos seguintes, o escritor se
dedicará realmente cada vez mais ao cinema, como afirma Siciliano “Godard na França e Pasolini na Itália”. No
entanto, Siciliano também reitera que “o sentir-se vivo em Pier Paolo não andava mais separado da relação de
provocação com o público” (Siciliano, 2005, p. 333), tanto que em 1968 é convidado, e aceita, para conduzir
uma outra coluna semanal de diálogo com o público em uma grande revista italiana. A coluna, intitulada Il Caos,
publicada na revista Tempo Illustrato, durará de agosto de 1968 a janeiro de 1970 e será um espaço de diálogo
com os leitores, apontamentos de crítica literária e cinematográfica, crônicas de costumes e política. Il Caos “é
um fronte de pequenas batalhas quotidianas”, escreve Siciliano (Siciliano, op. cit., p. 376-77). A partir de 1971,
Pasolini começa a colaborar com o jornal Corriere della Sera, com escritos políticos publicados em uma coluna
localizada na primeira página da publicação e intitulada Tribuna. Como escreve Siciliano, Pasolini foi convidado
a participar por ser uma das vozes menos conformistas e menos tradicionais entre os intelectuais italianos, nas
palavras do novo diretor do jornal, Piero Ottone. (Siciliano, op. cit., p. 418)
213
lugar, em outra sede e com outros meios, o meu diálogo com os leitores de Vie Nuove. No
entanto, os três episódios, ou fábulas esópicas
57
, que compõem Gaviões e Passarinhos, foram
publicados, na sua primeira versão, recém criados, aqui em Vie Nuove
58
. Talvez tenha deixado
os leitores bastante confusos, mas, no entanto, não saiu dos temas do diálogo. No primeiro
episódio o tema é a relação entre racionalismo, talvez até mesmo avançado e marxista, e
“pensamento selvagem”, ou seja, entre Ocidente e Terceiro Mundo. Esta relação se apresenta
como a mais difícil e “escandalosa” do nosso tempo e a falta de uma solução para ela foi a
causa, ao menos parcial, por exemplo, do stalinismo. Neste caso, ocorreu uma avaliação
errada, dentro de um mesmo país revolucionário, do problema dos camponeses (pertencentes
ao “Terceiro Mundo”, servos feudais ou filhos de servos feudais, como Stalin, e dotados de
uma mentalidade cuja principal característica não é a influência pequeno-burguesa, mas uma
religiosidade “selvagem” sobrevivente, arcaica, a qual tornou historicamente possível uma
aberração como o “culto da personalidade”). No meu episódio tudo isto é muito simplificado,
pois, naturalmente, trata-se de uma fábula cômica. Mas esta é a sua base ideológica.
A outra “ideocômica” (vamos chamá-la assim?) tem como pano de fundo uma
problemática religiosa (aquela diante da qual alguns laicos fanáticos se irritam, se
impacientam e se desesperam chegando a uma reação raivosa e irracional: sinal de
religiosidade reprimida!), formulada de modo muito acessível e elementar. A Igreja é
criticada por um universalismo genérico, que ignora que os homens são divididos em classes
sociais e que, portanto, existem pecados que transcendem o indivíduo, o qual, assim, se torna
vítima de um “mal” do qual não tem consciência.
Mas é, sobretudo, o terceiro episódio que deve interessar aos leitores de Vie Nuove.
Neste o tema é justamente a “crise do marxismo”, que nos manteve ocupados nesta coluna
nos últimos meses. um pai e um filho que caminham pela periferia de uma grande cidade,
em um mundo todo em construção onde as velhas estruturas urbanas (ruínas, casebres de
pobres, palacetes antiquados) são substituídas por novas estruturas (das quais se veem apenas
as obras). Em um certo momento, se aproxima deles um corvo tagarela, que se juntando a
eles, interpreta a realidade que eles vivem inocentemente ou inconscientemente. A sua
interpretação, muito sábia, é pela perspectiva marxista. No entanto, apesar de muito avançado,
aquele marxismo é o marxismo típico dos anos 50, que ainda ignora a nova corrente empírica
que abalou o mundo. Os dois misteriosos homens “eternos”, pai e filho, que seguem, seguem,
57
Relativo a Esopo, nome tradicionalmente atribuído ao autor de uma coleção de fábulas gregas cujos
personagens são, em geral, animais.
58
Sobre o filme Gaviões e Passarinhos e os três episódios publicados em Vie Nuove, cf. nota 1 da crônica As
razões de um não amor.
214
o escutam e, como ocorre sempre com as ideologias, absorvem apenas aquele mínimo de
elementar que as grandes massas escolhem dos complexos debates intelectuais. Ao final,
cansados, cortam o pescoço do corvo, o comem, e prosseguem pelo seu caminho. Para onde?
As observações que discuti aqui, em Vie Nuove, de modo polêmico, dramático e
provavelmente um pouco brusco sobre a “crise do marxismo”, foram desenvolvidas
comicamente neste episódio. Desejo muito que os meus correspondentes de Vie Nuove que
forem assistir ao filme, se divirtam e deem muitas risadas. Pode ocorrer que este filme os
deixe em um estado de espírito mais preparado para aceitar as constatações e os dados reais
que, ao romperem com tradições e ilusões, resultam dolorosos. E “percebam” que a minha
crítica não é apenas negativa e pessimista, mas que é pensada de modo reconstrutor. Falo de
crise do marxismo sem meios termos, sem falso respeito humano e sem diplomacia, porque
gostaria sinceramente de vê-la resolvida. E, neste ponto, devo acrescentar que a suspensão da
minha coluna é devida também, além do trabalho com Gaviões e Passarinhos, a um outro
trabalho: a preparação, junto com Moravia, de uma nova série da revista Nuovi Argomenti
59
,
conforme indiquei aqui na minha última carta. Esta nova série será, antes de tudo e
principalmente, uma contribuição para o esclarecimento, a correta avaliação e a busca de uma
solução para a crise do marxismo.
A figura do escritor
Se depois, para concluir esta minha nova carta de despedida, que é um “até logo”, eu
tivesse que acrescentar alguma consideração sobre o trabalho realizado, diria que,
objetivamente, foi infinitamente mais difícil do que alguns anos. E isto um pouco pelas
condições efetivamente mudadas, pelo papel diferente exercido pelo PCI na vida italiana e
pelo andamento diferente do marxismo na vida do mundo, pelo qual a figura do escritor
“companheiro de estrada”, ou apenas companheiro, se modificou profundamente. Enquanto
nos anos 50 ele era uma espécie de guardião do fogo sagrado e a referência comum, entre ele
e a massa de leitores operários, era a esperança dos homens, hoje esta referência parece ter
acabado, mesmo que muitos companheiros da base ainda não queiram se dar conta e
continuem, portanto, na consciência, a esperarem de um escritor o mesmo tipo de conversa e
solidariedade que esperavam alguns anos. Por outro lado, a nova “figura” do escritor ainda
não se delineou, as necessidades ainda são variantes. Pode-se dizer que eu, através da coluna
59
Em 1965, Pasolini participou, ao lado do escritor Alberto Moravia, da tentativa de renascimento e renovação
da revista Nuovi Argomenti, publicação de crítica literária e de crítica à política cultural do PCI. (Siciliano, 2005,
p. 341)
215
de Vie Nuove, vivi esta passagem in corpore vili. Naturalmente, isto provocou insatisfação,
tantas vezes, tanto em mim quanto nos leitores de Vie Nuove.
Ao final, se tivesse que escolher entre as duas fases da minha colaboração, nas quais
vivi dois tipos diferentes de figura do escritor nas relações com a base de um partido,
escolheria esta segunda fase, porque mais produtiva e sincera.
Vie Nuove, 30 de setembro de 1965
216
ÍNDICE REFERENCIAL
LITERATURA
“Apresentação”. Publicado sem título no número 22, ano 1960, da revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e
sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 877.
“O dialeto na literatura italiana”. Publicado sem título no número 25, ano 1960, da revista Vie Nuove. In: Saggi
sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 878.
“Pasternak e a irracionalidade”. Publicado com o título “Pasternak e la irrazionalità” no número 28, ano 1960, da
revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 883.
“Um sistema para estudar”. Publicado com o título “Un sistema per studiare” no número 29, ano 1960, da revista
Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 888.
“Realismo e neopurismo”. Publicado com o título “Realismo e Neopurismo” no número 30, ano 1960, da revista
Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 890
“Um monumento para D’Annunzio”. Publicado com o título “Un monumento a D’Annunzio” no número 46, ano
1960, da revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 914
“Sobre o lançamento de Ulisses na Itália”. Publicado sem título no número 48, ano 1960, da revista Vie Nuove.
In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 917.
“Paixão e ideologia”. Publicado com o título “Passione e Ideologia” no número 4, do ano de 1961, da revista Vie
Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 111.
“Indiferentismo católico”. Publicado com o título “Qualunquismo cattolico” no número 20, do ano de 1961, da
revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 937.
“Accattone e Tommasino”. Publicado com o título “Accattone e Tommasino” no número 26, do ano de 1961, da
revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 941.
“Dannunzianos de pantufas”. Publicado com o título “Dannunziani in pantofole” no número 29, do ano de 1961,
da revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 950.
“Dostoievski e Victor Hugo”. Publicado com o título “Dostoewskij e Victor Hugo” no número 39, do ano de
1961, da revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 963.
“A aventura de cada um”. Publicado com o título “L’avventura di ognuno” no número 12, do ano de 1962, da
revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 997.
“A descoberta de Tommasino”. Publicado com o título “Scoperta di Tommasino” no número 15, do ano de 1962,
da revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 1003.
“O intelectual engajado”. Publicado com o título “L’intellettuale impegnato” no número 49, do ano de 1964, da
revista Vie Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 269.
“A língua tecnológica”. Publicado com o título “La lingua tecnologica” no número 7, do ano de 1965, da revista
Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 1053.
“As razões de um não amor”. Publicado com o título “Le ragioni di un non amore” no número 21, do ano de
1965, da revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 1062.
CULTURA
“Vida mundana”. Publicado com o título “La vita mondana” no número 28, do ano de 1960, da revista Vie
Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 885.
“O fascismo e o massacre em Ferrara em dezembro de 1943”. Publicado sem título no número 40, do ano de
1960, da revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 905.
“Brigitte Bardot e os excessos da imprensa sensacionalista”. Publicado sem título no número 41, do ano de 1960,
da revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 909.
“Luz de Julho”. Publicado sem título no número 3, do ano de 1961, da revista Vie Nuove. In: Le belle bandiere:
Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 110.
“Moravia e Antonioni”. Publicado com o título “Moravia e Antonioni” no número 11, do ano de 1961, da revista
Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 927.
“Onde está a ‘obscenidade’?” Publicado com o título “Dov’è la ‘porcheria’” no número 49, do ano de 1961, da
revista Vie Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 175.
“As cartas pessoais”. Publicado com o título “Le lettere personali” no número 10, do ano de 1962, da revista Vie
Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 185.
“A era da alienação”. Publicado com o título “L’epoca dell’alienazione” no número 19, do ano de 1962, da
revista Vie Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 202.
“Como um pesadelo de infância”. Publicado com o título “Come un incubo dell’infanzia” no número 28, do ano
de 1962, da revista Vie Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 207.
“Fascistas: pais e filhos”. Publicado com o título “Fascisti: padri e figli” no número 36, do ano de 1962, da
revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 1014.
“Os anos da raiva”. Publicado com o título “Gli anni della rabbia” no número 38, do ano de 1962, da revista Vie
Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 222.
“O filme e a crítica”. Publicado com o título “Il film e la critica” no número 40, do ano de 1962, da revista Vie
Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 227.
“... uma força do Passado...”. Publicado com o título “…una forza del Passato…” no número 42, do ano de 1962,
da revista Vie Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 233.
“Antes de partir” e “As belas bandeiras”. Publicados com os títulos “Prima della partenza” e “Da ‘Le belle
bandiere’” no número 52, do ano de 1962, da revista Vie Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965.
Roma, Riuniti, 1977, p. 243.
“Poesia em forma de polêmica”. Publicado com o título “Poesia in forma di polemica” no número 2, do ano de
1964, da revista Vie Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 287.
“Viagem ao Marrocos”. Publicado com o título “Viaggio in Marocco” no número 16, do ano de 1965, da revista
Vie Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 315.
POLÍTICA E SOCIEDADE
“Roma e os seus ‘não-residentes’". Publicado sem título no número 39, do ano de 1960, da revista Vie Nuove. In:
Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 901.
“Desempregados em Nápoles”. Publicado sem título no número 44, do ano de 1960, da revista Vie Nuove. In:
Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 911.
“Convite para a Calábria”. Publicado com o título “Invito in Calabria” no número 49, do ano de 1960, da revista
Vie Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 89.
“A vida dos mineiros”. Publicado com o título “La vita dei minatori” no número 51, do ano de 1960, da revista
Vie Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 96.
“A vigente injustiça”. Publicado com o título “La vigente ingiustizia” no número 27, do ano de 1961, da revista
Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 944.
“Bandung, capital de meia Itália”. Publicado com o título “Bandung capitale di mezza Italia” no número 30, do
ano de 1961, da revista Vie Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 145.
“A barbárie do racismo”. Publicado com o título “La barbarie del razzismo” no número 32, do ano de 1961, da
revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 956.
“A navegação para Cuba”. Publicado com o título “La navigazione verso Cuba” no número 45, do ano de 1962,
da revista Vie Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 234.
“Depois de um ano”. Publicado com o título “Dopo un anno” no número 42, do ano de 1964, da revista Vie
Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 1024.
“O ‘Evangelho’ e o diálogo. Publicado com o título “Il ‘Vangelo’ e il colloquio” no número 44, do ano de 1964,
da revista Vie Nuove. In: Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Roma, Riuniti, 1977, p. 256.
“Expressividade contra instrumentalidade”. Publicado com o título “Espressività contro strumentalità” no
número 50, do ano de 1964, da revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori,
2006, p. 1033.
“Pessimismo de esquerda”. Publicado com o título “Pessimismo di sinistra” no número 24, do ano de 1965, da
revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 1070.
“Cultura ‘pós-engajamento’”. Publicado com o título “Cultura dopo l’‘impegno’” no número 34, do ano de 1965,
da revista Vie Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 1082.
“Mais uma despedida”. Publicado com o título “Un altro congedo” no número 39, do ano de 1965, da revista Vie
Nuove. In: Saggi sulla politica e sulla società. Milano: Mondadori, 2006, p. 1085.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Obras de Pier Paolo Pasolini
60
:
Poesia
Poesia a Casarsa. Bologna: Libreria Antiquaria Mario Landi, 1942.
La meglio gioventù. Firenze: Sansoni, 1954.
Il canto popolare. Milano: Meridiana, 1954.
Le ceneri di Gramsci. Milano: Garzanti, 1957.
L’usignolo della Chiesa Cattolica. Milano: Longanesi, 1958.
Roma 1950, Diario. Milano, Scheiwiller, 1960.
La religione del mio tempo. Milano: Garzanti,1961.
Poesia in forma di rosa. Milano: Garzanti, 1964.
Trasumanar e organizzar. Milano: Garzanti, 1971.
La nuova gioventù. Poesie friulane 1941-1974. Torino: Einaudi, 1975.
Bestemmia. Tutte le poesie. Org. G. Chiarcossi e W. Siti. 4 vol. Milano: Garzanti, 1996.
Tutte le poesie. Org. W. Siti, 2 vol.. Milano: Mondadori, 2003.
Romances
Ragazzi di vita. Milano: Garzanti, 1955 (Ed. brasileira: Meninos da Vida. Tradução de Rosa
Artini Petraitis e Luiz Nazário. São Paulo, Brasiliense, 1985)
Una vita violenta. Milano: Garzanti, 1959.
L’odore dell’India. Milano: Longanesi, 1962 (nova edição Parma: Guanda, 1990).
Il sogno di una cosa. Milano: Garzanti, 1962. (Ed. brasileira: A hora depois do sonho.
Tradução de Edilson Alckmim Cunha. Rio de Janeiro, Bloch, 1968)
Agli dagli occhi azzurri (1950-1965). Milano: Garzanti, 1965. (Ed. brasileira: Alì dos olhos
azuis. Tradução de Andréia Guerini, Bruno Berlendis de Carvalho, Maria Cristina Pompa e
Renata Lúcia Bottini. São Paulo: Berlendis & Vertecchia, 2006)
Teorema. Milano: Garzanti 1968. (Ed. brasileira: Teorema. Tradução de Fernando Travassos.
São Paulo: Brasiliense, 1984)
60
Para uma bibliografia completa da extensa obra de Pasolini sugere-se a consulta da seção Bibliografia do
volume Saggi sulla política e sulla società. Org. W. Siti e S. De Laude, 2 vol. Milano: Mondadori, 2006.
La divina mimesis. Torino: Einaudi, 1975.
Il padre selvaggio. Torino: Einaudi, 1975. (Ed. brasileira: O pai selvagem. Tradução Silvana
Rodrigues. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977)
Amadio mio preceduto da Atti impuri. Org. C. D’Angeli. Milano: Garzanti, 1982. (Ed.
brasileira: Amado Meu; precedido de atos impuros. Tradução de Elizabeth Braz e Luiz
Nazario. São Paulo: Brasiliense, 1984)
Petrolio. Torino: Einaudi, 1992.
Un paese di temporali e di primule. Org. Nico Naldini. Parma: Guanda, 1993.
Romàns; Un articolo per il "Progresso” e Operetta marina. Org. N. Naldini. Parma: Guanda,
1994.
Storie della città di Dio. Racconti e cronache romane (1950-1966). Org. W. Siti. Torino:
Einaudi, 1995.
Romanzi e racconti. Org. W. Siti e S. De Laude, 2 vol. Milano: Mondadori, 1998.
Ensaios, textos críticos e crônicas
Poesia dialettale del Novecento. Org. M. Dell’Arco e P.P.Pasolini. Parma: Guanda, 1952.
(nova edição Torino: Einaudi, 1995)
Canzoniere italiano. Antologia della poesia popolare. Org. P.P. Pasolini. Parma: Guanda,
1955.(nova edição Milano: Garzanti, 1992)
La poesia popolare italiana. Milano: Garzanti, 1960.
Passione e ideologia. Milano, Garzanti, 1960.
Empirismo eretico. Milano, Garzanti, 1972.
Scritti corsari. Milano, Garzanti, 1975.
Lettere luterane. Torino, Einaudi, 1976.
Le belle bandiere: Dialoghi 1960-1965. Org. G.C. Ferretti. Roma: Riuniti, c1977. (nova
edição Roma: Riuniti/ L’Unità, 1991)
Pasolini e “Il Setaccio” (1942-43). Org. M. Ricci. Bologna: Cappelli, 1977.
Il Caos (1968-1970). Org. G.C. Ferretti. Roma, Riuniti, 1979. (Ed. brasileira: O Caos -
Crônicas Políticas. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo, Brasiliense, 1982)
Descrizioni di descrizioni. Org. G. Chiarcossi. Torino, Einaudi, 1979.
Escritos póstumos. Tradução de Helena Ramos. Lisboa: Moraes, 1979.
Diálogos com Pasolini: Escritos (1957-1984). Tradução de Nordana Benetazzo. São Paulo,
Nova Stella, 1986.
Os jovens infelizes: Antologia de ensaios corsários. Tradução de Michel Lahud e Maria
Betânia Amoroso. São Paulo, Brasiliense, 1990.
I dialoghi. Org. G. Falaschi. Roma, Riuniti, 1992.
Últimos escritos. Tradução de Manuel Braga da Cruz. Coimbra: Fora do Texto, 1995.
Saggi sulla letteratura e sull’arte. Org. W. Siti e S. De Laude. Milano: Mondadori, 1999.
Saggi sulla politica e sulla società. Org. W. Siti e S. De Laude, 2 vol. 4 ed. Milano:
Mondadori, 2006.
Filmografia
Accattone – Desajuste Social (1960) [Accattone]
Mamma Roma (1962)
Comizi d’amore (1963-64)
La rabbia (1963)
A ricota / Rogopag – Relações Humanas (1963) [La ricotta/Rogopag]
O Evangelho segundo São Mateus (1964) [Il Vangelo secondo Matteo]
Sopraluoghi in Palestina (1964)
Gaviões e passarinhos (1965) [Uccellacci e uccellini]
Appunti per un film sull’India (1967)
Édipo rei (1967) [Edipo re]
Teorema (1968)
Medeia (1969) [Medea]
Decameron (1970) [Il Decameron]
Os contos de Canterbury (1971) [I racconti di Canterbury]
As mil e uma noites de Pasolini (1973) [Il fiore delle mille e una notte]
Salò, os 120 dias de Sodoma (1975) [Salò o le 120 giornate di Sodoma]
Outros
Últimas palavras do herege - Entrevistas com Jean Duflot. Tradução de Luiz Nazário. São
Paulo: Brasiliense, 1983.
Pier Paolo Pasolini. Vita attraverso le lettere. Org. Nico Naldini.Torino: Einaudi, 1994.
Teatro. Org. W. Siti e S. De Laude. Milano: Mondadori, 2001.
Per il Cinema. Org. W. Siti e F. Zabagli. Milano: Mondadori, 2001.
Album Pasolini. Milano: Oscar Mondadori, 2005.
La rabbia. Org. Roberto Chiesi. Bologna: Cineteca di Bologna, 2008.
Obras sobre Pier Paolo Pasolini:
AMOROSO, Maria Betânia. A Paixão pelo Real: Pasolini e a Crítica Literária. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 1997.
______. Pier Paolo Pasolini. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
______. Pasolini e a Vanguarda. In: Vanguardas Brasil Itália. Org. Lucia Wataghin. Cotia:
Ateliê Editorial, 2001, p. 191-203.
ANGELINI, Franca. Pasolini e lo spettacolo. Roma: Bulzoni, 2000.
ANZOINO, Tommaso. Pasolini. Firenze: La Nuova Italia, 1971.
BENEDETTI, Carla. Pasolini contro Calvino: per una letteratura impura. Torino: Bollati
Boringhieri, 1998.
BETTI. Laura (Org.) Pasolini: cronaca giudiziaria, persecuzione, morte. Milano: Garzanti,
1977.
BOSI, Alfredo. Paixão e ideologia. In: Céu, Inferno: Ensaios de crítica literária e ideológica.
São Paulo: Ática, 1988.
BREVINI, Franco (Org.) Per Conoscere Pasolini. Milano: Mondadori, 1981.
CHIESI. Roberto. (Org.). Una strategia del linciaggio e delle mistificazioni – L’immagine di
Pasolini nelle deformazione mediatiche. Bologna: Tip. Moderna, 2005
FABRIS, M. Pier Paolo Pasolini: quase uma vida. In: Insieme. Revista da Apiesp. São Paulo:
n.3 , pp.130-5, 1992.
FERRETI, G.C. Letteratura e ideologia: Bassani, Cassola e Pasolini. Roma: Riuniti, 1964.
FORTINI, Franco. Attraverso Pasolini. Torino, Einaudi, 1993.
______. Pasolini e le ultime illusioni. Disponível em:
<http://www.pasolini.net/saggistica_bellebandiere_fortini.htm> Acesso em junho de 2009.
GRATTAROLA, Franco. Pasolini una vita violentata – Pestaggi fisici e linciaggi morali:
cronaca di una Via Crucis laica attraverso la stampa dell’epoca. Roma: Coniglio, 2005.
GOLINO, Enzo. Tra lucciole e palazzo: il mito di Pasolini dentro la real. Palermo: Sellerio
editore, 1995.
______. Pasolini: Il sogno di una cosa. Bologna: Il Mulino, 1985.
LAHUD, Michel. A vida clara: Linguagens e realidades segundo Pasolini. São
Paulo/Campinas: Cia das Letras/Editora Unicamp, 1993.
LOMBARDI, A G. Retroscena della polemica sulla lingua: gli esempi di Calvino e Pasolini.
In: Revista de Italianistica São Paulo, v.1 , n.1 , p.23-37, jul. 1993
MANNINO, Vincenzo. Invito alla lettura di Pier Paolo Pasolini. Milano: Mursia, 1982.
MALAGUTI, Alfonso (Org.). Pasolini: quale eredità? Atti del convegno tenutosi a Padova il
18 novembre 2005. Avellino: Laceno, 2006.
MERINO, Antonio Gimenez. Una fuerza del pasado: el pensamiento social de Pasolini.
Madrid: Trotta, 2003.
NALDINI, Nico. Pasolini, una vita. Torino: Einaudi, 1989.
NAZÁRIO, Luiz. Pier Paolo Pasolini. São Paulo, Brasiliense, 1983.
NEGRI, Teodoro. Nuove questioni linguistiche : Pier Paolo Pasolini scandalizza linguisti,
filologi, scrittori, critici e intellettuali. In: Revista de Italianística. São Paulo, v.1 , n.1 , p.13-
21, jul. 1993.
PELOSI, Maria Letizia. Religione, critica della società e crisi del marxismo nell'opera di
Pier Paolo Pasolini dagli anni '40 agli anni '60. Napoli: Francesco Giannini, 2005, p. 121-
144. (Estr. da: Atti dell'Accademia di Scienze Morali e Politiche, v.125., 2004).
PORTA, Filippo La. Pasolini - Uno gnostico innamorato della realtà. Firenze: Le Lettere,
2002.
RINALDI, Rinaldo. Pier Paolo Pasolini. Milano: Mursia, 1982.
______. L’irriconoscibile Pasolini. Roma: Marra, 1990.
SAPELLI, Giulio. Modernizzazione senza sviluppo – Il capitalismo secondo Pasolini.
Milano: Mondadori, 2005.
SCALIA, Gianni. La mania della verità - Dialogo con Pier Paolo Pasolini. Bologna:
Cappelli, 1978.
SCARPETTA, G. Pasolini, iconoclasta e indispensável. São Paulo: Le Monde Diplomatique,
fev. 2006. Disponível em http://diplo.uol.com.br/2006-02,a1269. Acesso em junho de 2009.
SICHERA, Antonio. La consegna del figlio: "Poesia in forma di rosa" di Pasolini. Lecce:
Milella, 1997.
SICILIANO, Enzo. Vita di Pasolini. Milano: Rizzoli,1978.
TRICOMI. Antonio. Sull’opera mancata di Pasolini – Un autore irrisolto e il suo
laboratorio. Roma: Carocci, 2005.
Outras Leituras:
ANSELMI, Gian Mario. Profilo storico della letteratura italiana. Milano: Sansoni, 2005.
ARCANGELO, Leone De Castris. Intellettuali nel Novecento - Tra scienza e coscienza.
Marsilio, 2001.
AJELLO, Nello. O Escritor e o poder. Tradução de Múcio Bezerra. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1992.
______. Intellettuali e PCI. 1944-1958. Roma-Bari: Laterza, 1979.
______. Il lungo addio. Intellettuali e PCI. 1958-1991. Roma-Bari: Laterza, 1997.
AJELLO. Nello. Mondo Monicelli. L’Espresso, Roma, n. 19, ano LV, 14 de maio de 2009, p.
112.
ASOR ROSA, Alberto. Scrittori e popolo: il populismo nella letteratura italiana
contemporanea. Roma: Savelli, 1976.
______. Storia della letteratura italiana. Scandicci, Firenze : La Nuova Italia, 1985.
______. Letteratura italiana. Torino: G. Einaudi, 1982.
______. Novecento primo, secondo e terzo. Milano: Sansoni, 2004.
AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental.
Tradução de George Bernard Sperber. São Paulo: Editora Perspectiva/ Editora da
Universidade de São Paulo, 1971.
BERARDINELLI, Alfonso. Não incentivem o romance e outros ensaios. São Paulo:
Tradução de Francisco Degani, Patrícia De Cia e Doris N. Cavallari. Humanitas e Nova
Alexandria, 2006.
______. Da poesia à prosa. Tradução de Maurício Santana Dias. São Paulo: Cosac Naify,
2007.
______. La forma del saggio. Marsílio, 2002.
BERARDINELLI, A. Tra il libro e la vita: situazioni della letteratura contemporanea.
Torino: Bollati Boringhieri, 1990
BERTONHA, J.F. Os italianos. São Paulo: Contexto, 2005.
BOBBIO, Norberto. Saggi su Gramsci. Milano: Feltrinelli, 1990.
______. Profilo ideologico del Novecento. Torino: Einaudi, 1976.
BRIOSCHI, Franco e DI GIROLAMO, Costanzo. (Org.). Manuale de letteratura italiana :
storia per generi e problemi. Volume 4: "Dall'Unità d'Italia alla fine del Novecento". Torino:
Bollati Boringhieri, 2002.
CALVINO, Italo. Lettere 1940-1985. Milano: A. Mondadori, 2000.
CONTINI, Gianfranco. Letteratura dell'italia unita 1861-1968. Firenze: Sansoni, 1994.
______. Varianti e altra linguistica: una raccolta di saggi (1938-1968).
______. Esercizî di lettura sopra autori contemporanei : con un'appendice su testi non
contemporanei. Firenze: F. Le Monnier, 1947.
______. Altri esercizî. (1942-1971). Torino: G. Einaudi, 1972.
______. Esercizi di lettura. Torino : Einaudi, 1974.
EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma introdução. Tradução de Waltensir Dutra.
São Paulo : Martins Fontes, 2003.
FERRETTI, G.C. Il mercato delle lettere: industria culturale e lavoro critico in Italia dagli
anni Cinquanta a oggi. Torino, Einaudi, 1979.
______. Officcina. Cultura, letteratura e política negli anni Cinquanta. Torino, Einaudi,
1975.
FERRONI, Giulio. Storia della Letteratura Italiana – Vol. 3 - Dall’Ottocento al Novecento.
Milano: Einaudi scuola, 1998-1999.
______. Storia della Letteratura Italiana – Vol. 4 - Il Novecento. Milano: Einaudi scuola,
1998-1999.
______. Storia e testi della letteratura italiana. V.9. La nuova Italia (1861-1910) e V.10.
Guerre e fascismo (1910-1945). Milano: Mondadori Università, 2002.
______. Dizionarietto di Robic: centouno parole per l'altro millennio. Lecce : P. Manni,
2000.
______. Letteratura italiana contemporanea. (1900-2007 em 2 volumes) Milano: Mondadori
Università, 2007.
FORTINI, Franco. Saggi ed epigrammi. Milano: A. Mondadori, 2003.
GAETA, Giuliano. Manuale di storia del giornalismo. Trieste: Ist. Nazionale Per La Storia
Del Giorn, 1970.
GAETA, Giuliano. Discorso introduttivo al II Congresso Nazionale di Storia del
Giornalismo. Trieste: Stabilimento Tipografico Nazionale, 1983.
GALLI, G. I partiti politici italiani [1943-2004]. Milano: Rizzoli, 2004.
GINSBORG, Paul. Storia d’Italia dal dopoguerra ad oggi: societa e politica 1943-1988.
Torino: Einaudi, 1989.
GRAMSCI, Antonio. Literatura e vida nacional. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio
de Janeiro: Civilização brasileira, 1968.
______. Intelectuais e a organização da cultura. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. Tradução de Marcos
Santarrita. São Paulo, Companhia das Letras, 1994.
LEONELLI, G. La critica letteraria in Itália (1945-1994). La letteratura tra politica e
scienza dagli anni dell’impegno alla fine delle ideologie. Milano: Garzanti, 1994.
LOMBARDI, Andrea Giuseppe. Etica, impegno e ambiguità in Fortini. São Paulo, 1996. p.
87-98. In: Revista de Italianística. São Paulo, n. 4, p. 87-98, 1996.
LUTI, Giorgio e VERBANO, Caterina. Dal neorealismo alla neoavanguardia. Il dibattito
letterario in Italia negli anni della modernizzazione: 1945-1969. Firenze: Le Lettere, 1995.
MALATO, Enrico. Storia della letteratura italiana. Volumes VIII e IX. Roma: Salerno
Editrice, 2000.
MELLO, Alex Fiuza de. Mundialização e política em Gramsci. São Paulo: Cortez, 1996.
MELO, José Marques de. Imprensa italiana: perspectivas brasileiras. São Paulo: Ipcje, 1987.
MENGALDO, Pier Vincenzo. Poeti italiani del Novecento. Milano: A. Mondadori, 1990,
c1978.
______. La tradizione del Novecento. Torino: Bollati Boringhieri, 1996.
MORETTI, Franco. Il romanzo. Torino: G. Einaudi, 2001-2003.
MURIALDI, Paolo. Storia del giornalismo italiano. Torino: Gutemberg 2000, 1986.
NAPOLITANO, Giorgio. O partido comunista italiano, o socialismo e a democracia.
Entrevista por Eric J. Hobsbawm. Tradução de Dante Constantini. São Paulo: Ciências
Humanas, 1979.
SICILIANO, Enzo. Racconti italiani del Novecento. Milano: Mondadori, 2001.
SCALIA, Gianni (Org.). Cultura italiana del '900 attraverso le riviste. Torino: Giulio
Einaudi, 1961.
SANGUINETI, Edoardo. Poesia italiana del Novecento. Torino: Einaudi, 1969.
SECCO, Lincoln. Gramsci e o Brasil - recepção e difusão de suas ideias. São Paulo : Cortez,
2002.
SPAGNOLETTI, Giacinto. Storia della letteratura italiana del 900. Roma: Newton, 1994.
SPINAZZOLA, Vittorio. Dopo l'avanguardia. Ancona: Transeuropa, 1989.
SQUAROTTI, G. Barberi. Literatura italiana: linhas, problemas, autores. Tradução de
Nilson Moulin e Maria Betânia Amoroso. São Paulo: Nova Stella/Istituto Italiano di
Cultura/instituto Cultural, 1989.
TOROP, Peeter. La traduzione totale. Traduzione di Bruno Osimo. Modena: Guaraldi Logos,
2000. Disponível em:<
http://www.logoslibrary.eu/pls/wordtc/new_wordtheque.w6_start.doc?code=52173&lang=it>.
Acesso em abril de 2008
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo