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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Letras
“OS EVADIDOS”:
Lúcio Cardoso e um trajeto do “ser” em A luz no
subsolo
Leonardo Grossi Alvarenga
Belo Horizonte
2009
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1
Leonardo Grossi Alvarenga
“OS EVADIDOS”:
Lúcio Cardoso e um trajeto do “ser” em A luz no
subsolo
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Literaturas
de Língua Portuguesa.
Orientador: Audemaro Taranto Goulart
Belo Horizonte
2009
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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Alvarenga, Leonardo Grossi
A473e “Os Evadidos”: Lúcio Cardoso e um trajeto do “ser” em A Luz no Subsolo /
Leonardo Grossi Alvarenga. Belo Horizonte, 2009.
164f. : Il.
Orientador: Audemaro Taranto Goulart
Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras.
1. Romance brasileiro. 2. Cardoso, Lucio, 1912-1968. A Luz no Subsolo. 3.
Existencialismo. 4. Sartre, Jean Paul, 1905-1980. 5. Filosofia. I. Goulart,
Audemaro Taranto. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.
Programa de Pós-Graduação em Letras. III. Título.
CDU: 869.0(81).09
3
Leonardo Grossi Alvarenga
“Os evadidos”:
Lúcio Cardoso e um trajeto do “ser” em A luz no subsolo
Dissertação apresentada ao programa de Pós-
Graduação em Letras da Pontifícia Universidade
Católica de Minas Gerais, como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre em Literaturas
de Língua Portuguesa.
________________________________________________________
Profª. Drª. Elzira Divina Perpétua – UFOP
________________________________________________________
Profª. Drª. Suely Maria de Paula e Silva Lobo – PUC Minas
________________________________________________________
Prof. Dr. Audemaro Taranto Goulart (Orientador) – PUC Minas
Belo Horizonte, 24 de abril de 2009
4
Para os meus pais,
Maria Lúcia Grossi Alvarenga
e Washington Bergamini Alvarenga Júnior,
pelo respeito às minhas escolhas e pelo apoio.
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AGRADECIMENTOS
Ao professor Doutor Audemaro Taranto Goulart, pela amizade, pela confiança (desde
quando tudo era só uma idéia) e pela orientação segura.
Ao CNPq, pela bolsa concedida, possibilitando dedicação exclusiva aos estudos.
À Leila Schoenenkorb, pela habilidade de ler nas entrelinhas, por me abrir os olhos e
por acreditar em mim numa época de incertezas.
À Eliane Vale, pela companhia, pela constância, pela infinita paciência e compreensão
perante minhas inúmeras e nem sempre agradáveis crises existenciais (e existencialistas); e
também por tornar possível minha pesquisa na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de
Janeiro, sem a qual meu trabalho não teria a profundidade pretendida.
Aos professores do curso de Mestrado em Literaturas de Língua Portuguesa da PUC-
MG, especialmente as professoras Doutoras Márcia Marques de Morais e Terezinha Taborda
Moreira, pelo constante incentivo e pelos conselhos.
Ao Professor Doutor Vinícius Lopes Passos, pela influência positiva e pelas longas
conversas que muito me ensinaram.
Aos meus amigos do curso: Cláudia, Francesco (em memória), Gislene, Jason,
Leocádia, Luiz, Marcelo, Maria Carolina, Sérgio, Silvia, Valéria e Zara, pela companhia e
pelas influências literárias; e à Virgínia, pela amizade e pela contribuição intelectual.
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“Qual é o caminho para o lugar em que a luz reside?
E a obscuridade, de onde nasce?”
O livro de Job (em Tradução de Lúcio Cardoso)
“À custa de palavras marteladas durante o dia inteiro, aprenderia que
miserável comédia representa a existência neste mundo, que sonho de
escuridão e obscenidade é o caminho do homem sobre a terra. Não,
nossa única obrigação é sermos fortes, intratáveis, selvagens na
satisfação dos nossos desejos e fantasias.”
Lúcio Cardoso, O enfeitiçado
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RESUMO
O objetivo deste estudo é realizar uma análise da obra A luz no subsolo, terceiro
romance do escritor Lúcio Cardoso, buscando identificar no protagonista do livro, Pedro, um
possível “trajeto do ser”. Buscamos um viés investigativo que nos permitisse assinalar ao
menos três significativos estados de consciência que o personagem esboça ao longo da
narrativa passando pela busca por autoconhecimento, por uma tentativa de se colocar como
sujeito do conhecimento e pela vontade de lidar, de forma diferenciada, com o destino trágico
e limitado do homem e com a criação literária. Como sustentação teórica, encontramos uma
feliz confinidade das ideias aqui coligidas com a filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre
(predominantemente com sua principal obra filosófica, O ser e o nada, e com seu primeiro
romance, A Náusea), além de uma tentativa de convergência com teorias significativas de
pensadores como Michel Foucault e Maurice Blanchot. Nossa intenção máxima, no entanto,
foi evidenciar as muitas características relevantes que se encontram no livro abordado,
tentando inseri-lo em lugar de destaque tanto na admirável bibliografia de Lúcio Cardoso,
quanto na literatura brasileira do século XX.
Palavras-chave: Lúcio Cardoso; A luz no subsolo; trajeto do ser; Jean-Paul Sartre; filosofia.
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ABSTRACT
The aim of this study is to analyze the book A luz no subsolo, third novel of the writer
Lúcio Cardoso, trying to identificate, especially in Pedro, the main character of the book, a
possible “path of being”. We searched for an investigative focus that could point us out at
least three significative conscience states that the character sketches during the narrative
passing for the search of self-knowledge, for an attempt to put himself as a knowledge subject
and for the desire to lead, in a different manner, with the man’s tragic and limited destiny and
with the literary creation. As theoretical basis we found a happy meeting between the ideas
gathered here and the existentialist philosophy of Jean-Paul Sartre (mostly with his main
philosophical work, L'Être et le néant, and with his first novel, La Nausée), and an attempt
of connection with significant theories of scholars like Michel Foucault and Maurice
Blanchot. Our main intention, however, was to show up the many important features that are
in this examined book, trying to insert it in a prominent place in both the admirable
bibliography of Lúcio Cardoso, and the brazilian literature of the twentieth century.
Key words: Lúcio Cardoso; A luz no subsolo; “path of being”; Jean-Paul Sartre; philosophy.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Ilustração 1: Esquema “objetivação x assimilação” 94
Ilustração 2: “Chácara do Meneses”, por Lúcio Cardoso 112
10
LISTA DE TABELAS
Tabela 1: Características físicas dos personagens de A luz no subsolo 29
Tabela 2: O conhecimento para Spinoza e Nietzsche 93
Tabela 3: O trajeto do intelectual 146
Tabela 4: O escritor e a escrita 146-147
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
1 O DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA 18
1.1 O subsolo 18
1.2 A Náusea 21
1.3 O desespero 35
1.4 Uma naturalização do mal 41
1.4.1 Infância e santidade solitária: o espaço do “duplo” 41
1.4.2 O duplo 51
1.4.3 Abstração e esterilidade: um ser contra a natureza 55
2 O SUJEITO DO CONHECIMENTO 61
2.1 Senhores e escravos 61
2.2 “Os laços invisíveis”: embates 65
2.2.1 Sadismo e desejo 67
2.2.2 Odiar 68
2.2.3 Desprezar (ou a indiferença) 74
2.2.4 Riso e loucura 80
2.2.5 Outras conversões 88
2.3 O sujeito do conhecimento 91
3 O SABER “CONCRETO”: A FORMAÇÃO DO ESCRITOR 96
3.1 Ainda a Náusea: possibilidades de evasão 96
3.2 Espaço literário: “heterotopia” 107
3.3 Sísifo: a angústia suicida da escrita 128
3.4 O trajeto intelectual 139
CONCLUSÃO 150
REFERÊNCIAS 154
12
INTRODUÇÃO
“Perdoai, meu Deus, transformar os flácidos rostos de barro em máscaras de ferro.
Perdoai-me acreditar que o impossível é possível, que a mistura humana escalda e se
torna dúctil aos nossos dedos sem piedade. Perdoai a minha loucura, e a minha
sacrílega na transfiguração das coisas. Bem sei, dia virá em que tudo será apenas
como um punhado de cinzas, que eu remexo já sem nenhuma ambição. Perdoai-me
por essa hora, quando o tempo se desfizer e eu apenas contemplar, ferido, a refração
do meu delírio.”
1
Lúcio Cardoso, Diário Completo
Quando o escritor mineiro Lúcio Cardoso publicou seu primeiro livro, em 1934,
chamou a atenção fato de um autor tão jovem – Lúcio tinha então 22 anos – conseguir, em sua
estreia pela editora Schmidt, angariar tão prontamente o respeito e a admiração de críticos
severos como o temido Agrippino Grieco, que além de reconhecer em Lúcio um “talento
admirável, como raras vezes se tem verificado em nossas letras, tratando-se de autor tão
jovem” (GRIECO apud SANTOS, 2001, p.23), já apontava para sua verve de poeta trágico. O
fato é que esta obra, Maleita, colocou-o de pronto no grupo dos escritores regionalistas,
talvez de forma um tanto equivocada, fato que se repetiria com a publicação de Salgueiro, no
ano seguinte também recebendo os aplausos calorosos dos intelectuais da época. Embora
não se sentisse tão confortável com o rótulo de regionalista, talvez porque nunca o tenha sido
de fato, ou talvez instigado pelas ideias do amigo, “espiritualista”, Octavio de Faria, discutir
se ele era, ou não, um escritor preocupado com as questões que emanavam das obras de
autores, estes sim, inegavelmente regionalistas, como José Lins do Rego e Jorge Amado, não
é o mais importante. O que interessa, no momento, é dizer que logo após a publicação de sua
segunda obra Lúcio manifestava a intenção de publicar um livro com características bem
diferentes das contidas nos textos que o consagraram tão precocemente, como se nota em
carta escrita durante a elaboração do próximo livro: “Meu romance não tem desta vez, ó
Deus! Nem negros nem morros nem sertão...” (CARDOSO apud CARELLI, 1988, p. 32).
Para um leitor mais atento, diversos trechos de Maleita e, principalmente, Salgueiro,
já denotavam uma intenção reflexiva que fugia da classificação que lhes fora atribuída.
Alguns estudiosos apontam para o fato de que a expressão “escritor espiritualista”, que
vemos associada a artistas como Cornélio Penna, era empregada, geralmente, para se tentar
1
Em todas as citações, optamos por manter a grafia original.
13
definir obras que denotavam uma rigorosa introspecção, além de não se enquadrarem nas
características vigentes na década de 1930. Assim, com a publicação de A luz no subsolo, em
1936, não havia outro “título” mais adequado para nomear a surpreendente guinada estilística
que Lúcio Cardoso empreendia – para deleite de uns poucos amigos, simpatizantes da estética
espiritualista, e para descontento da maioria, o seguidores, mas também críticos, que
consideraram a manobra, no mínimo, absurda; como se nota neste veemente comentário de
Mário de Andrade, já bastante citado pelos estudiosos da obra cardosiana:
Que romance estranho e assombrado você escreveu! [...] Os personagens não me
interessavam, às vezes as análises me fatigavam muito, às vezes me iluminavam,
não sabia em que mundo estava, inteiramente despaisado. [...] Achei seu livro
absurdo porque os personagens me pareceram absurdos. Tanto no Brasil como em
qualquer parte do mundo. E não pareceram, não cheguei a senti-los como
personagens do outro mundo. Loucos? Aberrados de qualquer realidade já
percebida por mim? Ou antes criaturas exclusivamente criadas pelo autor para
demonstrar a sua percepção sutil e pra mim um bocado confusa (não compreendi
exatamente) da luz no subsolo? [...] Artisticamente me pareceu ruim. Socialmente
me pareceu detestável [...] Livro ruim, livro bom: sou incapaz de decidir.
(ANDRADE apud CARELLI, 1988, p. 33-34)
É curioso pensar que, justamente, o que Mário evidencia de maneira depreciativa (o
tom “absurdo” que marca os personagens), es entre algumas das características que,
desenvolvidas com afinco ao longo dos anos seguintes, mais seriam admiradas em sua obra
máxima: Crônica da casa assassinada.
Mas não nos interessa prolongar a discussão sobre o caráter regionalista/espiritualista-
introspectivo de tal obra, e tampouco devemos nos deter nas muitas características que podem
ser apontadas, em A luz no subsolo, como colaboradoras da tentativa de se evidenciar um
“percurso” rumo ao romance de cunho intimista. Se há algum tipo de trajetória que merece ser
analisada no livro, e muito mais do que em todos os outros publicados por Lúcio, trata-se de
um trajeto do ser (ou da consciência), englobando o possível momento de seu “despertar”,
passando, em seguida, pela formação do sujeito do conhecimento, até a constatação da
possibilidade de uma “perpetuação” do conhecimento pela criação literária, uma forma de
liberdade (ou verdade) mais “segura” que o mal-estar que, como veremos, é o “marco” inicial
do nosso processo de subjetivação.
O enredo de A luz no subsolo é facilmente definível e qualquer paráfrase ocuparia
menos de uma página. O que vemos, de forma mais objetiva, são as manifestações reflexivas
de Pedro, o protagonista. Artista frustrado, alimentando veleidades de escritor, e homem
taciturno de caráter pouco sociável, o personagem surge perdido em divagações sobre a
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impossibilidade e a inutilidade dos esforços humanos (em suas inúmeras manifestações), a
liberdade e a dúvida quanto à existência de Deus. Até aqui, esta poderia ser uma descrição
comum a diversos personagens contidos nos livros de Lúcio Cardoso. O que distingue a
personagem de Pedro é o grau de ciência de seu angustiante estado de fragmentação, ou
dissociação. Pedro isola-se em aguçada noção existencialista da presença do “nada” que
determina o homem como negatividade. Vivendo à parte de uma sociedade que não pode
compreendê-lo principalmente após um incidente com um de seus alunos, acontecimento
este que o obriga a redefinir sua concepção de “ser” –, recluso em uma casa sombria no
interior de Minas Gerais (a “heterotopia” predileta de Lúcio Cardoso), especificamente em
Curvelo, mesma cidade de origem do autor, Pedro mantém um contato “frequente” (sempre
de forma tortuosa e turbulenta) apenas com sua esposa Madalena. A situação delicada do
casal torna-se cada vez mais dramática com a chegada da sombria Adélia, mãe de Pedro, e da
silente Emanuela, a nova empregada da casa. também as estranhas visitas esporádicas de
Bernardo, cunhado de Madalena e por ela apaixonado, bem como a ligação infrutífera de
Madalena com sua mãe, Camila, e sua irmã, Cira. As relações sufocantes entre esses
personagens, que em verdade servem de metáfora para variadas reflexões, tornam-se
gradativamente drásticas e desoladoras, até que atinjam o crime...
Pouco mais poderíamos utilizar em resumo de uma provável “trama” em A luz no
subsolo, senão dizer que Pedro vive atormentado por teorias que versam sobre um certo
“subsolo”, no qual os homens estariam fatidicamente inseridos. O esforço para se tornar
“evadido” desse subsolo resultaria em uma posição falsamente privilegiada sobre os demais,
lançando o autor de tal feito em uma situação de perda e agravando, se possível, a sensação de
angústia e desespero. Incompreendido e cada vez mais atormentado pela visão de um
misterioso ser o “mendigo resignado”, que, tudo nos leva a crer, não passa de um “duplo”
do personagem central, e personificação de impulsos contrastantes –, Pedro passa a tentar
“imprimir” naqueles que o cercam, de forma lancinante, um tipo possível de concretude e
“projeção” (quase wittgensteiniana) de suas teorias, levando ao extremo a configuração de
“embate” que cada encontro ou diálogo do livro explicita desde a primeira página.
Desprezando, odiando e ironizando como se impulsionado por forças inerentes às suas
idiossincrasias – outros personagens relevantes do livro, Pedro acaba por arquitetar a morte de
Madalena, a “oponente mais difícil de se abater, enredando-se irremediavelmente em
subtramas e lances do “acaso” que acabarão por trazer a sua própria morte.
Aliás, o momento da morte de Pedro, por si só, é uma imagem riquíssima, que em
um romance soturno e nebuloso, a morte de seu elemento mais significativo acaba por
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mostrar-se, em múltiplos sentidos, a única pausa das trevas, em diversas camadas
enunciativas, trazendo para o leitor uma paz que reside tanto no esclarecimento, ainda que
sutil, dos truncados significados do texto, quanto no desnudamento de uma estrutura que
perpassa, de forma notável, o trajeto metafórico da busca do homem por sua essência.
Nas quase quatrocentas páginas que compõem A luz no subsolo, indícios mais que
suficientes para que percebamos esta obra tão singular como uma longa e densa representação
da moderna busca do homem pelo conhecimento, de um tipo de conscientização do sujeito
como “ser” ativo e central no processo de “posse” da configuração de saber que o define, bem
como as consequências acarretadas por esse tipo de conscientização.
Lúcio Cardoso sempre dialogou, e muito bem, com diversos discursos filosóficos (e
aqui nos opomos aos críticos que o acusavam de não ter filosofia) e, quase sempre, os
estudiosos que sobre sua obra se debruçam dão preferência às pesquisas que investigam as
muitas facetas da morte e da loucura que emanam de suas páginas. Quando se trata da obra de
autor tão heteróclito, é mesmo impossível fugir a tais questões – elas também serão abordadas
nas páginas seguintes, mas o que é preciso ficar claro é que a proposta que apresentamos
nesse instante pretende entender de forma mais ampla a maneira como o texto de Lúcio
Cardoso reflete, em seu terceiro romance, o itinerário do sujeito de saber, do intelectual no
mundo moderno.
A principal base filosófica por nós selecionada, por razões que serão melhor
explicadas ao logo do trabalho, é a filosofia existencialista de Jean-Paul Sartre. O
existencialismo sartriano, como referência básica, acabou se impondo paulatinamente durante
o processo de escrita da dissertação, sanando satisfatoriamente, assim esperamos, a
necessidade de estabelecer de forma mais segura o nosso conceito de “ser”. Não foi difícil
perceber as muitas semelhanças de A luz no subsolo com o primeiro romance de Sartre, A
Náusea, publicado apenas dois anos depois do romance de Lúcio. Em Que é a literatura?,
Sartre (1999, p.56) diz acreditar no fato de que, por vezes, indivíduos de uma mesma época
sentem “um mesmo gosto na boca”. E, no caso dos dois escritores em questão, esse gosto
poderia mesmo ser a Náusea”. Chamou-nos também a atenção a ideia defendida pelo
filósofo francês de que o projeto de escrever seria “como a livre superação de uma dada
situação humana e total(SARTRE, 1999, p.61 grifo do autor). Ora, é justamente em busca
de uma tal superação que, a nosso ver, Pedro estaria “engajado”. Além do mais, encontramos
em Sartre (predominantemente em O ser e o nada e em Saint Genet) ideias que podem
ajudar a contestar algumas críticas recorrentes (e algo infundadas) que “assolam” as obras de
Lúcio Cardoso já muitas décadas. Como exemplo bastante para nossa introdução, podemos
16
dizer que discordamos quando “estudiosos” afirmam que os personagens cardosianos são
“gratuitamente” contraditórios e, muitas vezes, movidos por razões não muito claras (como
quis Mário Cabral (1943)). Ora, preferimos acreditar que as tais contradições sejam, em
verdade, uma exaltação da condição que Sartre chamaria de “ser-em-situação”, além de
configurar uma angustiante noção da impossibilidade de um caráter “em-si” do homem. Aliás,
utilizaremos amiúde esta expressão (“em-si”) como representação metafórica de uma
impossível situação que muitos buscam, quase sempre de “má-fé”, para fugir às vicissitudes
inerentes à “revelação” das reais e aflitivas condições da consciência de fato (“para-si”),
relevando uma tentativa de “estabilidade”, de fuga da contingência fatal, que não condiz com
a verdade do homem; um desejo impossível, que não deixou de figurar entre as reflexões de
Lúcio Cardoso: “Nenhuma proposição para a estabilidade não estabilidade. O ser não é
uma estrutura fixa num eixo, mas qualquer coisa indeterminada, fluídica que oscila de um
pólo para outro, como a noite para o dia./ Tudo é por vir – e esta é a fatalidade” (CARDOSO,
1996, p. 743). E Lúcio também se juntaria a Sartre quando percebemos a negatividade
predominante nas páginas de nosso escritor, sendo mesmo difícil não aproximar esta
característica de conceitos como “o nada”.
Em nossa análise, usaremos também alguns importantes estudos de Michel Foucault
sobre o “sujeito do conhecimento” e sobre os locais de crise em nossa sociedade; além de
ideias complementares de importantes pensadores, como Maurice Blanchot e Sören
Kierkegaard.
Com efeito, a escolha de A luz no subsolo deu-se por algumas outras razões
evidentes. É justo lembrar que, quando se completam quarenta anos de sua morte, Lúcio
Cardoso ainda permanece, surpreendentemente, um escritor muito pouco estudado. O
levantamento por nós realizado, até o presente momento, revela a existência de pouco mais de
quarenta trabalhos acadêmicos (dissertações e teses) dedicados, exclusivamente, à obra
cardosiana
2
. Se por ventura, a quem quer que seja, este parecer um número considerável, cabe
lembrar que os temas pesquisados pouco variam, e que é predominante a decisão de se eleger
como objeto de estudo a Crônica da casa assassinada. É realmente improvável que se
encontre um trabalho de fôlego que aborde, especialmente, A luz no subsolo
3
. Tamanho
2
Para se ter uma ideia dessa “escassez”, a Universidade Federal de Minas Gerais tem registro de apenas seis
estudos (dissertações e teses) dedicadas inteiramente ao autor e sua obra, sendo que na PUC Minas este será o
primeiro trabalho de pós-graduação, stricto sensu, sobre Lúcio Cardoso.
3
Em nossas pesquisas, encontramos apenas um trabalho que “parecia” pretender tal abordagem. Trata-se de uma
dissertação defendida em 2000, no programa de Pós-Graduação em Letras da UNICAMP, por Flávia Trocoli
Xavier da Silva. O trabalho intitula-se Fios da introspecção: para uma leitura do terceiro romance de Lúcio
Cardoso. Contudo, a pesquisadora empreendeu, por quase metade da pesquisa, uma extensa introdução ao
17
“silêncio” por parte dos estudiosos incomoda quando pensamos no quão vasta e complexa é a
obra desse artista que, além de seis romances, produziu diversas novelas, livros de poemas,
peças de teatro, contos e roteiros cinematográficos. Isto posto, a primeira justificativa para o
presente trabalho seria contribuir, ainda que minimamente, para evidenciar o valor e a
complexidade de obra tão excepcional em nossa literatura moderna.
Há que se dizer, por fim, que Lúcio Cardoso não dialoga apenas com vertentes
relevantes da filosofia ocidental. Lúcio foi exímio leitor de textos literários fundamentais que
constituem “o cânone ocidental” (para usar a expressão que intitula importante obra de Harold
Bloom), e as relações que pretendemos evidenciar adiante, mais do que demonstrarem o
conhecimento e a validade intelectual de Lúcio, deixam bastante claro que sua sintonia com o
panteão dos mestres da escrita não se insere apenas em um nível de mestre-discípulo. O
próprio Bloom nos lembra que o que caracteriza, de forma marcante, uma obra “canônica” é
um tipo de originalidade que chega, em uma primeira instância, a nos causar certa estranheza,
marcada mais por “um tipo de originalidade que ou não pode ser assimilada ou nos assimila
de tal modo que deixamos de vê-la como estranha” (BLOOM, 1995, p.12). Essa “estranha
originalidade”, que muitos identificam em Lúcio Cardoso, pode advir do “fardo” da influência
que os “novos” escritores têm que carregar. Em O Cânone Ocidental, uma interessante
análise acerca da obra de Shakespeare, onde o crítico aponta a “dificuldade” que o escritor
inglês teria tido para “eliminar” de sua obra as visíveis influências dos personagens de
Marlowe, tão presentes em Ricardo III, porém sanadas (e superadas) em Otelo de tal
maneira, que Bloom não hesita em colocar o Iago shakespeariano a “anos-luz” de distância de
seu suposto antecessor, o Barabas de Marlowe.
É difícil encontrar quem diga que antes da publicação de Crônica da casa
assassinada Lúcio Cardoso poderia se colocar à frente, ou ao menos ao lado dos autores que
o influenciaram de forma mais marcante, suprimindo definitivamente as influências mais
evidentes. De fato, o Pedro que vemos em A luz no subsolo é também Kirílov (Os demônios)
clamando sua liberdade contra Deus, é Ulisses/Odisseu (Odisséia) tentando resistir ao canto
das Sereias, Dante (A Comédia) atravessando “praias de morte” (tão presentes nos diários de
Lúcio) ao lado de Virgílio. Mas A luz no subsolo poderia também ser o “lugar” escolhido por
Quentin (O som e a ria) para externar suas angústias sobre o tempo; Querelle (Querelle de
caráter “psicológico” do terceiro romance de Lúcio Cardoso, analisando com vagar certos pormenores dos dois
romances precedentes. Além disso, o trabalho de Flávia Xavier, em sua segunda metade, estabelece uma
profunda ligação de A luz no subsolo com a obra A maça no escuro, de Clarice Lispector. Tais observações,
contudo, não diminuem o minucioso e interessante trabalho da pesquisadora, apenas dificultam a intenção de
dizer que se trata de um trabalho dedicado, de forma profunda, ao livro em questão.
18
Brest) encontraria, nos antros frequentados por Bernardo, as mesmas razões que, em Brest, o
impeliram ao crime; da mesma forma que Roquentin (A Náusea) ou Mathieu (Os caminhos
da liberdade) poderiam muito bem ter sua origem em Pedro. Em seu terceiro romance, Lúcio
Cardoso não faz questão de esconder (ou não pode) suas influências, mas mescla-as de tal
maneira às suas novas formas, que logo nos familiarizamos com suas releituras tão mais
pungentes do que aquelas esboçadas por autores brasileiros da mesma época. E assim, mesmo
incômoda, sua estranha originalidade” salta aos olhos e nos conquista pela vertente do
pesadelo. Lúcio pode não superar Dostoiévski, Homero ou Dante, mas dialoga de forma
consonante com consagrados autores contemporâneos, como Faulkner, Genet e Sartre. A
marca mais cruciante de sua originalidade aflora justamente na opção pelo romance intimista.
Lúcio nos mostra, em A luz no subsolo, o poder de sua “interioridade profunda”. E seria
justamente esta característica, segundo Bloom,
[...] a força que repele o peso maciço da realização passada, para que toda
originalidade não seja esmagada antes de manifestar-se. A grande literatura é sempre
reescrever ou revisar, e baseia-se numa leitura que abre espaço para o eu, ou que
atua de tal modo que reabre velhas obras a novos sofrimentos. Os originais não são
originais, mas essa ironia emersoniana dá lugar ao pragmatismo emersoniano de que
o inventor sabe como tomar emprestado. (BLOOM, 1995, p. 19-20 – grifo do autor)
Sendo assim, a relação de Lúcio com o cânone, ao menos para quem estudou sua
obra, não pode ser mesmo a de mais um “seguidor”, ou leitor privilegiado, mas sim a de um
elemento integrante, fundamental, desse grupo de “eleitos”, o que contesta o lamentável erro
que vem condenando-o ao esquecimento – mais um fato que o “destino” ainda não se
encarregou de corrigir.
19
1 O DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA
“Então eu fui feito para descobrir novas verdades? Já existem tantas velhas.”
Nietzsche, A gaia ciência
1.1 O subsolo
“Mas existem criaturas que não pensam, criaturas destituídas de toda vida interior.
Elas se entregam aos acontecimentos de olhos fechados.”
Lúcio Cardoso, A luz no subsolo
Um dos mais importantes e significativos trabalhos sobre o homem e o conhecimento,
ou melhor, sobre o decisivo instante em que o homem se conscientiza de seu papel como
“sujeito de conhecimento”, ou talvez, ainda, o instante em que o homem capta o despertar da
consciência, é sem sombra de dúvida o emblemático texto da “Alegoria da caverna”, que nos
é apresentado por Platão, no capítulo VII da sua República. Muitos se ocuparam das
possíveis interpretações da incrível visão de homens acorrentados a um subterrâneo soturno,
em meio às sombras de uma ignorância cerceadora; bem como o “dever” e a noção de bem
que deveria ser insuflada nos homens, desde a infância talvez, para que aqueles que, uma vez
evadidos das sombras e familiarizados à luz de uma realidade mais concreta, pudessem
retornar às camadas inferiores para que guiassem os menos afortunados rumo à instrução, até
que estes se tornassem capazes de aprender e “suportar a vista do Ser e do que de mais
luminoso no Ser. A isso denominamos o bem, não é verdade?” (PLATÃO, 2004, p. 229
grifo do autor).
É evidente que são múltiplos os desdobramentos significativos do texto de Platão,
abordando tanto as “ciências” e as “artes” que seriam relevantes para o desenvolvimento do
intelecto, como a eficácia do método dialético na ação de afastar “o olhar da alma da lama
grosseira em que está mergulhado” (PLATÃO, 2004, p. 247), evidenciando, assim, a
importância daquilo que o filósofo chama de “conhecimento discursivo”. O fato é que, sejam
quais forem as etapas a serem cumpridas nesse movimento de efúgio, poucos são os que não
veem como afortunados aqueles que saem das espessas sombras e conseguem, mesmo a duras
penas, captar um tipo mais plausível de verdade, se é que existe mesmo “algo” que possa
caber em tal conceito. Mesmo que a missão de transmitir aos “homens subterrâneos” o
20
anúncio de uma visão que pode ser prontamente rejeitada, ou tomada por ridícula, esteja
imbuída em alto grau de responsabilidade e evidente dificuldade – na medida em que o que se
busca é um método eficaz de educação e formação do homem –, é ainda difícil enxergar na
alegoria de Platão um tipo mais pungente de demérito, muito menos de “castigo”, na posição
angariada por quem acaba de se livrar das amarras.
O fato é que a sabedoria, supostamente expressa em práxis de natureza semelhante,
trazem sempre consigo, dentre outras significações, a consciência indelével de uma solidão
atroz. Uma vez fora da caverna, a sensação avassaladora da liberdade surpreende e
adquirimos para sempre a condição de “estrangeiro”, a noção de um retorno impraticável e
uma forçosa convivência com uma nova sensação, de influência até mesmo física, cujo nome
mais acertado para sua classificação talvez possamos mesmo “pegar emprestado” de Jean-
Paul Sartre: “a Náusea”.
Após uma primeira leitura de A luz no subsolo, fica evidente a franca referência que
Lúcio Cardoso faz ao mito platônico. Em diversas passagens, somo levados a pensar na
imagem do homem que luta para sair de uma sufocante situação de trevas, para uma posição
em que, contudo, não se livrará totalmente de certa angústia, mas de onde, ao menos, possa
captar de forma mais clara, vislumbrar de maneira mais segura, o absurdo em que todos os
homens estão inseridos. Segundo as palavras de um dos personagens do livro, o tal “subsolo”
em que se encontram seria:
[...] uma realidade que não vive para nós senão de uma maneira incompleta [...]
assim como existem outras que não vivem absolutamente: permanecem dentro de
uma existência de sombra, acusadas apenas como uma presença que recebe da nossa
parte um conhecimento insignificante e pueril... Assim estão sempre envolvidas em
qualquer coisa longínqua, que sentimos sempre mas que não tocamos nunca...
Estamos envolvidos pelas trevas mais densas a realidade não é a realidade
premidos num subsolo, nós não a podemos ver senão de um modo arbitrário e
confuso... (CARDOSO, 2003, p. 311)
4
Esse modo “arbitrário e confuso” de captar a realidade é o que acentua a densidade do
romance, determinando sua “atmosfera”, que isso caracteriza o comportamento (confuso)
dos personagens que, por vezes, parecem cair em flagrante contradição, externando dúvidas e
certezas, relativas a um mesmo fato, em curto espaço de tempo, denotando o profundo estado
de desorientação em que se encontram, com se estivessem mesmo “premidos” em uma
escuridão sufocante, que o próprio personagem citado acima (Bernardo) caracteriza como
4
Todas as citações de A luz no subsolo seguem a presente indicação bibliografia e, doravante, serão indicadas
apenas pelo número da página.
21
“existência de sombra”. Como breve exemplo, vejamos como Madalena, esposa de Pedro,
personagem central da trama, oscila, num mesmo parágrafo, entre o desejo de abandonar o
marido e a intenção de permanecer em casa:
[...] Pela primeira vez pensava em abandonar Pedro definitivamente. Pela primeira
vez realizava aquela necessidade, encontrando em obscuras regiões do seu ser um
apoio que não conhecia antes [...] Era preciso fugir, esquecer, encontrar as antigas
fontes de vida que os acontecimentos lhe tinham roubado [...] mas, agora, de nada
mais lhe valia repetir indefinidamente: “é preciso! É preciso!”, – pois ainda uma vez
o coração a traía e ela percebia que um impulso maior do que sua vontade a
chamava para Pedro. (p. 260)
É verdade que, no instante da trama em que tal fato tem lugar, muito da “influência”
de Pedro sobre Madalena influência que veremos em detalhes mais à frente e que, de certa
forma, buscava uma mudança no comportamento da esposa –, estava em marcha, o que
agrava a falta de uma “autonomia” por parte dela. Contudo, tal inconstância não deve parecer
estranha ao leitor que, desde as páginas iniciais, constata o quanto seria improvável o
estabelecimento de qualquer certeza na obra. A dúvida predomina de tal maneira, que uma
forma sinistra de “ordem” parece querer brotar dessa espécie de “liquidez” das vontades,
como se o “estável” fosse a exceção. As ações – em especial a dos personagens “secundários”
parecem se arrastar em maciça inutilidade e mesmo com relação a Pedro, que parece ter
um pouco mais de “segurança” quanto aos atos que pratica o que impera é a sensação de
que sair das sombras é algo que não parece provável, sendo mais duvidosa ainda a
possibilidade de que o suposto “evadido” possa encontrar qualquer alívio. No texto
cardosiano, parece mesmo evidente a “perda” por que passa aquele que se dispõe a fugir do
subsolo: “[...] a pessoa que se evade desse subsolo, o que consegue romper esse mundo de
trevas, é de qualquer modo uma criatura perdida...” (p. 312).
Ao dizer que quem encontra “a luz no subsolo” é alguém que se “perdeu”, Lúcio
Cardoso não coloca tais personagens naquele tipo de limbo, purgatório, em que convalescem
os homens recém-saídos de um estágio qualquer de ignorância. Se no mito de Platão é até
mesmo desejável que o “novo homem” se adapte progressivamente à sua nova condição
superior, para Lúcio Cardoso, a constatação desse sentimento de liberdade (talvez seja este o
melhor termo) traz consigo diversos castigos e antecipa uma queda ainda maior, como a
imagem falsamente bela de um Ícaro iludido pelo calor e pela luz. Em sua competente análise
dos romances cardosianos, Maria Teresinha Martins já notara que
22
Em A luz no subsolo, é muito difícil distinguir se o homem está ou não,
platonicamente, de costas para a realidade; se o que ele não é apenas a sombra do
que se passa ou se, pelo contrário, não está ele indo ao encontro daquela luz maior
que emana de seu interior. (MARTINS, 1997, p.118)
O trecho acima é relevante para nossa pesquisa por concordamos que o homem, tal
como é retratado na obra em questão, e também em outras obras de Lúcio, segue de fato a
“luz maior que emana de seu interior”. No presente caso, não poderíamos dizer que o homem
se lança em direção a uma verdade, uma realidade absoluta e comum a todos os homens
5
;
enredado num irreversível processo de individualização, que não exclui, contudo, a
consciência do outro (já que ele acabará por se mostrar fundamental para que eu me defina),
cada um parece procurar, por conta própria, sua realidade e sua possível adaptação às suas
concepções de mundo. Mas ao dizermos que a realidade buscada, a força que impulsiona cada
um a procurar uma (pois são muitas possíveis) saída de seu subsolo, estamos concordando
também com a ideia de que para se tornar “sujeito do conhecimento”, como dito nas
primeiras linhas deste estudo, deve haver a consciência de que o conhecimento não é algo
dado totalmente pelo exterior, ou que pode ser captado a partir de verdades exteriores; é o
homem mesmo um dos objetos geradores do conhecimento, o que vale dizer que
concordamos com a possibilidade de “invenção” do conhecimento, defendida por Nietzsche,
em A gaia ciência, e retomada por Foucault, em A verdade e as formas jurídicas
6
, sem que
contudo o pensamento possa se bastar, dispensando uma essência que se nota “no mundo”
e na integração com o outro. O homem gera o conhecimento em processos internos, que
também se “aproveitam” de dados advindos da experiência do vivente, sem esquecer que, no
fim das contas, é o responsável pelo rumo que a suas constatações. Não estamos livres da
contingência, mas podemos nos “posicionar” frente a ela. São, contudo, constatações que não
se dão de forma indolor. Há algumas etapas, não muito agradáveis, para que haja o “despertar
da consciência”; despertar que é bastante evidente no personagem Pedro.
1.2 A Náusea
5
É ato quase consequente a constatação de que a realidade individual é a realidade do homem, mas, ainda que
num primeiro e breve momento, é preciso que haja um processo autorreflexivo que não se detenha, porém, na
autossuficiência do pensamento, mas que ao menos prepare, ou “inaugure”, o “ser-para-o-mundo”.
6
A teoria da “invenção” do conhecimento será oportunamente abordada no capítulo seguinte.
23
Antes de adensarmos mais objetivamente a discussão de como se daria o surgimento
do conhecimento para o protagonista de A luz no subsolo, cabe dizer que o personagem
central segue, antes, certo itinerário (ou o primeiro estágio de uma “travessia” muito mais
abrangente) rumo à tomada de consciência de sua natureza. Tudo começa ao se instalar um
tipo de náusea existencialista que muito se assemelha às teorias filosóficas propostas por Jean-
Paul Sartre. Desde o início da obra, vemos que Pedro parece não estar à vontade consigo
mesmo. É como se algo se abatesse sobre uma rotina aparentemente familiar, mesmo que nem
sempre comum, acarretando ao sujeito a necessidade de redefinição de seus processos
elementares. Percebemos a dissociação particular de Pedro e temos, guiados pelo narrador, de
juntar as peças que nos revelem as verdadeiras causas de seu desajustamento. Por que ele
parece querer se afastar cada vez mais daqueles que o cercam? De que se constitui o mal-estar
que o invade? Por que insiste em atos que são considerados errados? E, principalmente, que
situações o levaram a tal estado? Um processo de (re) construção semelhante ao que se dá ao
leitor que se depara com a obra literária inaugural de Sartre.
É mesmo interessante determo-nos por instantes na notada semelhança entre a
trajetória de Pedro e Antoine Roquentin, protagonista de A Náusea. Ambos mostram-se como
pessoas que evitam o convívio social e que parecem “flanar” pela existência, indiferentes a
tudo. Em dado momento, como se aprofundando a indiferença que parece movê-los, são
assaltados por um incômodo singular que, primeiramente, aparece como algo imposto, ou
melhor, intuído; um fenômeno que se ao “ser” como um desdobramento, evolução da
sensibilidade que se esmera por aperfeiçoar o cogito particular para, em seguida, após
reiteradas manifestações, revelar-se a verdadeira essência daqueles seres, aguçando-lhes, ao
mesmo tempo, a sensibilidade e o desconforto:
Faço saltar imediatamente minha mão de meu bolso; deixo-a caída junto ao espaldar
da cadeira [...] onde quer que a ponha, ela continuará a existir e eu continuarei a
sentir que ela existe; não posso suprimi-la, nem suprimir o resto do meu corpo [...]
(SARTRE, 2005, p. 145)
Então é isso a Náusea: essa evidência ofuscante? Como quebrei a cabeça![...] Agora
sei: Existo o mundo existe e sei que o mundo existe. Isso é tudo. Mas tanto faz
para mim. É estranho que tudo me seja tão indiferente: isso me assusta. Foi a partir
do famigerado dia em que quis fazer ricocheteios. Ia atirar o seixo, olhei para ele, foi
então que tudo começou: senti que ele existia. E a seguir, depois disso, houve outras
Náuseas [...]. (SARTRE, 2005, p.176 – grifo do autor)
Ou então:
24
Pedro sabia-se doente. Irremediavelmente doente. Muitas vezes, quando a luz se
apagava sobre a sua insônia, perguntava com a alma angustiada: de onde me vem
esta desconfiança, este mal-estar que não me permite estar tranqüilo em lugar algum
[...] Essa consciência, essa coisa absurda e diabólica, atacava-o de repente num salão
ou no momento de se deitar [...] Olhava no escuro as suas mãos trêmulas. Olhava
demoradamente os dedos longos que se arqueavam e se estendiam sem vontade.
Dizia “Estas são as minhas mãos” [...] segurava o trinco com as mãos trêmulas.
“Outrora, quantas vezes segurei aqui também” pensava. Tudo, móveis e coisas,
paredes e rastros pelo chão, adquiria um sentido simbólico e vivia pela força de sua
própria expressão. Não eram mais objetos inanimados [...] (p.140-142)
Os trechos extraídos de A Náusea e de A luz no subsolo encontram uma admirável
consonância também com certos trechos dos diários de Lúcio Cardoso, como a seguinte
passagem, de 23 de maio de 1958:
Inútil, desesperada angústia, não mais como um elemento espiritual ou de origem
religiosa angústia como uma náusea, pura e simples, percorrendo-me o corpo,
atirando-me inquieto, contra as coisas e as pessoas [...] Uma impossibilidade de estar
quieto, uma ânsia de matéria que me agita e me inunda, como um óleo preto que em
vez de sangue corresse em minhas veias. (CARDOSO, 1970, p.250)
O incômodo gerado em todas essas passagens é bem definido por Lúcio como “uma
ânsia de matéria”, a angústia de perceber nas coisas, e em si, a manifestação negativa da
existência. Adentrando um pouco mais os conceitos sartrianos, podemos dizer que a “Náusea”
funciona como um despertar, ou aprofundamento, do ser “para-si”, em oposição a uma
eventual ignorância da real condição de “existência” do homem, que deve se opor às
impossibilidades de uma manifestação meramente “em-si”. A Náusea deve mesmo funcionar
com uma reversão instintiva (“ânsia de vômito”) que no corpo visa expulsar a causa de algo
estranho que nos faz mal – no fim de A Náusea, Roquentin fala que sua função seria
justamente a de “expulsar a existência para fora de mim” (SARTRE, 2005, p. 248). A
consequente reação de fugir à Náusea, ao menos num momento primitivo, é, no fim das
contas, tão somente “a ânsia de matéria” à qual se refere Lúcio Cardoso, ânsia de segurança e
de comodidade, nostalgia autônoma e evasiva do ser frente ao medo despertado pela nova
realidade, que será determinada pela liberdade e pela noção de contingência. Claro que
aqui o estabelecimento de uma base filosófica calcada na evidenciação da subjetividade do
indivíduo, como verdade absoluta, em choque com o pensamento materialista; choque este
que, tanto em Sartre, quanto em Lúcio, é uma intenção não muito difícil de ser percebida.
Vejamos, nos parágrafos seguintes, a evidenciação de alguns “processos” que
fundamentam a base filosófica da qual nos valeremos por todo nosso trabalho, que tais
processos evidenciam, no fim das contas, as implicações do “despertar da consciência”, foco
25
de nosso primeiro capítulo. É um parêntese necessário para discutir temas como a relação com
o “outro” e a real dimensão da Náusea, que tem suas raízes na relação com Deus, no pecado,
no desespero, na liberdade e na solidão. Vamos apresentar algumas bases teóricas para ir
abordando, aos poucos, o livro propriamente dito.
Basicamente, o que ocasiona o incômodo do personagem central de A luz no subsolo
é o fato de ter sido excluído pela sociedade. Daí surge uma tentativa de tentar se redefinir,
mas que acaba se revelando, em verdade, como um processo de autoconhecimento,
possibilitado por sua convivência com seus semelhantes. Ele passa a tentar “se entender”.
Aprofunda-se em si mesmo. Descobre que a negatividade e o mal-estar estão dentro de si.
Nasce a consciência! Ao se evidenciar “a consciência”, o sujeito se distancia do “reino da
matéria”, perscrutando o reino humano. Passa, contudo, a se ver como a própria configuração
daquele incômodo que no princípio parecia, aos poucos, recobrir ou constituir a aparência de
todas as coisas, mesmo as não palpáveis ou principalmente estas, o que o prepara para
outra constatação óbvia: a dicotomia “sujeito-objeto” (mesmo quando nos vemos “ser-para-
outro”, sendo desejável a admissão de “sujeito-sujeito”, é difícil escapar a tal dicotomia) –,
mas que acaba por se revelar o próprio ser. E o que agrava o incômodo é o absurdo e a
gratuidade dessa existência: “O efêmero era o grande sentido de tudo” (p. 277).
Antes de mais nada, é preciso lembrar que a filosofia existencialista, tal como a propõe
Sartre, em O ser e o nada, “acusa” o cogito cartesiano de se dar de forma restrita um ciclo
fechado em que impera apenas o pensamento, manifestando-se de forma bastante
autossuficiente. Já o cogito existencialista não se restringe ao plano do pensamento,
englobando também o sentido da existência humana; a existência precedendo a essência. O
papel que Descartes reserva à dúvida intelectual, Sartre reserva à experiência, como método
revelador da essência humana. Assim, tomemos as palavras de Gerd Bornheim, ao analisar
certas passagens de A Náusea:
A náusea termina por se revelar, pois, como sendo “eu mesmo”, qualquer coisa de
constitutivo daquilo que o homem é. Mas a revelação supõe um itinerário [...] cujo
sentido insurge, gradativamente, a partir da primeira vivência da náusea [...] Há,
portanto, um método, um caminho que vai do desconhecido ao conhecimento.
(BORNHEIM, 2005, p. 17)
A constatação da Náusea representa parte de um processo mais amplo. Para Bornheim,
Sartre realiza em seu primeiro romance o mesmo que Descartes realizara em seu Discurso do
Método. Porém, os pensadores devem mesmo diferir ao ficar claro que Sartre usa o romance
26
buscando testar a existência “concreta” do ser, em seus mínimos desdobramentos cotidianos,
“destituída de qualquer realce especial, desprovida até mesmo de significado coletivo”
(BORNHEIM, 2005, p.16), o que se evidencia já na epígrafe do livro, uma citação de outro
escritor francês, Louis Ferdinand Céline futuro desafeto de Sartre e que, seis anos antes da
publicação de A Náusea, causara grande sensação ao se lançar também na literatura com seu
angustiante Viagem ao fim da noite: “É um rapaz sem importância coletiva; é apenas um
indivíduo”. Mas Bornheim também nos chama a atenção para certa passagem da obra de
Heidegger, bem mais anticartesiano que Sartre, em que fica evidente a necessidade de
pensarmos o homem “no mundo” (relativo ao conceito de Dasein), pois “a explicação do ser-
no-mundo mostrou que um puro sujeito sem mundo não é, e que nunca pode ser dado em
primeiro lugar. E assim também nunca é dado em primeiro lugar um eu isolado, sem os
outros” (HEIDEGGER apud BORNHEIM, 2005, p.18).
Por mais autorreflexiva que se pretenda, a obra de Lúcio Cardoso pode ser erigida
na integração “homem-mundo”. Pedro “parece” independente e autossuficiente, “tentando”,
primeiro, “se entender” e, depois, transparecendo uma posição de superioridade frente aos
outros, sem lhe escapar, no entanto, a dolorosa consciência da existência alheia e dos “riscos”
“minha queda original é a existência do outro” (SARTRE, 2007, p.92) que esses seres
podem trazer. E não será justamente a censura proposta pelo olhar “definidor” do outro o que
primeiro nos confunde, levando-nos ao mal-estar? Pedro se conhece quando experimenta
essa censura (representada por fatos que veremos objetivamente mais à frente), uma
primordial experiência que leva ao “ser”; é como se, pela primeira vez, ele se assumisse como
ser-no-mundo. No “penso logo existo” cartesiano, temos a consciência voltada para si mesma,
mas a consciência não deve apenas “conhecer-se”, ela deve também “conhecer” então, fica
claro que para a consciência efetivar estes dois “movimentos” (conhecer-se e conhecer) é
preciso que ela entre em contato com seres transfenomenais. Portanto, a consciência deve ser
“consciência posicional no mundo”. Posicionando-se, relacionando-se, tecendo experiências,
o homem pode, enfim, compreender sua essência, inaugurando um cogito existencialista que
melhor nos serve: “penso, logo sou” (SARTRE, 2005, p. 147).
Após tal constatação, entrando em contato com a realidade do mundo (ou finalmente
tentando captá-la em sua essência), Pedro deve tentar se definir frente aos outros seres. Mas
afinal, seria medo ou poder o que instiga os relacionamentos e ata os “laços invisíveis”?
Tenho medo dos outros. Tenho medo dessas forças que agem sobre nós, que nos dão
liberdade suficiente para destruir um passado... para acorrentar um futuro... [...]
Tenho medo de mim e tenho medo dos outros. Não sei como encarar os homens. Às
27
vezes penso que tenho direito a tudo, que sou o mais forte. Mas compreende você?
essa liberdade é demasiado para mim. o sei o que fazer da minha solidão.
(p.113-114)
Mesmo que o contato com o outro cause certa angústia, e a impressão de que a
solidão acima referida é algo, no fim das contas, concretamente possível, será através da
interação dialética com o mundo que surgirá a possibilidade de resistir ao mal-estar, e tentar
provar a “autenticidade” irremediável de suas qualidades intrínsecas. No trecho citado, Pedro
também fala de maneira decisiva sobre sua liberdade. Cada um de nós pode reagir à Náusea
de maneiras diferentes. Uma das ações reagentes de Pedro se dará pela radicalização da
consciência, ou “redescoberta”, como mostraremos, de sua absoluta liberdade. Mas é óbvio
que ser livre ao extremo não deve ser encarado como defesa de qualquer tipo de discurso
niilista que muitas vezes o niilismo está ligado à ideia de uma falta de metas e,
consequentemente, a uma paixão exacerbada apenas pela ação, a uma deliberada falta de ser.
Mas quais seriam as metas de Pedro? Primeiramente, afirmar sua liberdade diante daqueles
que tiraram seu emprego e o classificaram de “mau”. Mas por que afirmar sua liberdade seria
tão importante? Simplesmente porque esta é sua sentença mais irrevogável!
O homem está mesmo “condenado” à liberdade desde que começa a “se pensar”. A
consciência é o grito contra a impossibilidade de uma condição “em-si” do homem e por isso
sempre a exigência terrífica de uma eterna reinvenção. Radicalizar esse “processo” estaria
ligado a uma tentativa de se assumir definitivamente como livre diante do olhar de censura do
outro, mostrando, em seguida, o quanto esse outro também pode ser livre, suavizando, ou
“naturalizando”, talvez, o fardo (o mal) que meu olhar também pode representar para ele.
Aos poucos vamos percebendo que Pedro foi condenado por praticar atos tidos como
“desviados”. E à medida que o livro se desenvolve, vemos que os outros personagens acabam
se tornando justamente o que mais condenavam em Pedro. Interessante é a forma como essas
“metamorfoses” ocorrem, e o quanto Pedro acaba sendo “responsável”, ainda que não
absolutamente, por essas mudanças; algo que analisaremos com vagar no segundo capítulo
desta dissertação.
No momento, lembremos que tantas evidências da necessidade de perceber as
implicações do “outro” não devem ser confundidas, também, com um discurso que defenda
superficialmente as “integrações sociais”, ou com uma “preocupação moralista” com o outro
7
,
7
Justamente a partir de A luz no subsolo, uma predominante intenção do autor em afastar sua obra das
reflexões acerca de questões sociais para se ocupar de uma busca pelos recônditos do sentimento. Além disso,
mesmo que seja inevitável pensar em termos como “engajamento” uma vez que é uma palavra cara a Sartre, a
28
mas sim como índice revelador da “obrigatoriedade” recíproca de “olhar” o outro e “ser
descoberto” por seu olhar. É possível que, se dependesse apenas do escritor Lúcio Cardoso, a
direção do olhar seria unicamente endereçada aos outros “eus” que o habitavam:
Ora, considero-me, para infelicidade minha e de algumas pessoas, tão romancista
quanto um sapateiro é fabricante de sapatos. Não nenhum desdouro nisto, pelo
contrário. Por mais que procure, não me conheço nenhuma outra utilidade além
desta. Não sou homem de sociedade, não sei jogar quer; os problemas sociais não
me preocupam senão de maneira indireta. Sinto-me habitado exclusivamente por um
mundo [a] que desejo dar formas, uma multidão de seres que às vezes costumam me
atrapalhar na vida prática, mas que vou conhecendo aos poucos e a quem pretendo
emprestar algumas das minhas modestas opiniões sobre este insigne mistério que é a
vida. (CARDOSO, 1996, p. 762)
Mas a realidade não é assim tão simples, não como ignorar as verdadeiras
implicações de estarmos “no mundo”. Estar rodeado por “outros”, pelos olhares circundantes,
trata-se mesmo de condição essencial de quem se encontra irremediavelmente inserido numa
realidade humana, mesmo que essas relações assustem, ou que acabem constituindo o
verdadeiro “inferno”, como conclui Sartre (2006, p. 125) em sua peça Entre quatro paredes,
onde fica evidente a terrível condenação que o olhar alheio representa
8
.
Pensando no último trecho citado de A luz no subsolo e fundamentando a relação do
“outro” com a “liberdade”, digamos que a consciência da liberdade condena o homem a
refazer sua vida a cada instante, diante das situações que lhe surgem, muitas vezes, ou quase
sempre, por condições geradas, ou “impostas”, por outrem. O existencialismo acredita no
princípio de que o homem foi “lançado no mundo”, abandonado a uma “situação”. E
situações envolvem, geralmente, pessoas. Uma vez que tem de conviver com essas pessoas,
sua liberdade de agir (ou não) sobre elas assusta, porque todas as ações que praticamos (ou
deixamos de praticar) desse ponto em diante representam, em verdade, o que escolhemos
como destino de toda humanidade. É tamanha a angústia gerada por tal constatação, mas não
outra maneira de compreender as implicações da liberdade: “na angústia, a liberdade se
angustia diante de si [...](SARTRE, 2007, p. 79), ou, como quis Bornheim (2005, p.47), na
angústia, a liberdade “se problematiza para ela mesma”.
Como ocorre em qualquer sociedade, o “outro”, em A luz no subsolo, será, ao menos
numa concepção inicial (antes de uma compreensão da naturalidade de seus atos), um
análise de seu sentido, como veremos nos capítulos seguintes, não se liga a uma literal preocupação com o
“outro social”, tendo de ser entendida apenas como uma das motivações do intelectual, do escritor.
8
A famosa frase de Sartre “o inferno são os outros” encontra certa correspondência com a filosofia de vida
da opressora protagonista do livro A professora Hilda, que, acreditando-se vítima de conspirações e incapaz de
interagir com seus semelhantes, acaba por afirmar, de forma veemente, que “o inferno é nesta vida mesmo”
(CARDOSO, 1969a, p. 287).
29
adversário, um “teste” ou manifestação de instintos e forças que influenciam a constituição de
quem os analisa”. uma aparente contradição nos últimos propósitos colocados. Se tudo
que faço pode representar um engajamento responsável, por que o outro representa uma
ameaça, um teste? Simplesmente porque para o protagonista de nosso objeto de estudo, ser
livre é o que ele deseja para seus semelhantes, enfim, para toda a humanidade, uma vez que é
o que escolheu para si próprio. que tal escolha se origina em dolorosos acontecimentos,
como sua execração da interiorana realidade social que o cercava. quando cerceada sua
liberdade (quando o outro o ameaça), compreende a singularidade do ser humano e apreende
radicalmente uma particularidade que não quer ver ameaçada. O que desejamos para o outro,
dificilmente será o que o outro deseja para nós. Começa a “dança” (onde se incluem “jogos” e
“testes”) envolvendo os “sujeitos” e os “objetos”. Um dos fatores que dão força à Náusea é a
constatação de que podemos nos querer soberanos em nosso mundo, mas não passamos de um
reles peão no jogo social do qual fazemos parte.
E ao falarmos tanto sobre uma “ameaça” representada pelo outro, talvez nem seja
preciso dizer que praticamente não pensamos em um duelo físico. A sensação de Náusea
cresce justamente pelo teor da tensão psicológica que se estabelece em A luz no subsolo. As
noções de insegurança e instabilidade, para Lúcio Cardoso, não podem apenas pairar no
campo das hipóteses, é preciso que o ser traga a “marca” do evanescente gravada no corpo (ou
no que tenta se corporificar). Já concordamos que uma recorrente característica dos
personagens de A luz no subsoslo é o caráter aparentemente contraditório que eles externam.
Mas acontece que o caráter (ou alguns de seus traços) seria justamente uma das poucas coisas
“externas” que podemos notar no livro, que pouco da mixórdia que define os seres
cardosianos acaba por “vir à tona”. Os personagens, como nas palavras de Mário de Andrade
nas notas introdutórias, mal chegam a “aparecer”. É importante frisar que, se concordamos
com Sartre, no intuito de aceitar o romance como uma forma de “exemplificação cotidiana”
do sentido de existência de um ser que deve ser mesmo comum (“concreto”), para que não se
limite à uma lógica de pensamento (“essência”) autossuficiente, também deve ficar claro que
nos romances de Lúcio, principalmente a partir do livro em questão, ainda que os personagens
“existam”, sejam de fato “seres concretos”, suas manifestações pouco os diferem de espectros,
como se a intenção fosse realmente a de evidenciá-los quase como “falhas” da existência,
seres inacabados mais ligados ao nada do que a uma concretude autossuficiente –, cujas
características físicas nos são dadas de forma tão esparsa e incompleta que quase podemos
concluir que representam mesmo uma “desculpa” para não tratá-los logo como essências
puras, inadaptadas ao mundo exterior, “como se o corpo fosse o empecilho à comunicação
30
plena das consciências” (BORNHEIM, 2005, p. 97), o que mais uma vez nos leva ao
problema da “ânsia de matéria”.
No terceiro romance de Lúcio, após as parcas definições que nos são dadas quando do
surgimento de certos personagens, o autor parece ocupar-se, dali em diante, unicamente de
pequenos detalhes que servem apenas para aprofundar a “rudeza” que marca seus semblantes,
como “rugas imensas” e outros aspectos como uma acentuação da palidez. também o caso
de Bernardo, cujas características físicas são exibidas com claro intuito de corroborar a
sensação de asco que ele desperta em todos os seus convivas: “Bernardo era repudiado em
quase todos os lugares” (p.86), com a única exceção de uma solitária observação de Madalena
que notou alguma beleza em seu olhar: “Ele é feio, o rosto é sórdido, as mãos horríveis, mas
os olhos são belos” (p. 312).
Vejamos, então, a forma “econômica” como Lúcio Cardoso descreve os “personagens-
essências” do livro, em relação ao “efêmero” aspecto físico:
Personagem Características Físicas
Maria “cabeça levemente grisalha”, “pescoço fino” (p.17); “face marcada de sofrimento”
(p.40); “costas magras, cujas espáduas o vestido pobre mal chegava a disfarçar” (p.
53).
Madalena “cabelos escuros e ondeados” (p. 14); “uma ruga amarga deformando a linha suave do
seu rosto” (p.20); “corpo branco e cheio”, “ombros retos” (p.41); “orelhas bem
formadas”, “cabelos macios” (p. 170); “pele clara” (p. 228); “rosto pálido”, “pupilas
que boiavam num líquido azul” (p.245).
Cira “cabelos magníficos que se desmanchavam em ondas fartas” (p.31).
Camila “olhos... brilhantes como os de uma criatura em febre” (p.34); “rosto enrugado”
(p.36); “linhas profundas do pescoço mole” (p.37); “cabelos que iam
embranquecendo” (p.42); “carne branca” (p.297); “faces maceradas” (p.298).
Isabel “cabelos esparsos pelos ombros” (p.51).
Pedro “rosto pálido” (p.62); “corpo magro(p.68); “testa ampla, os cabelos encaracolados,
o nariz aquilino, sobre a boca grande de dentes fortes e regulares” (p.69); “face
pálida” (p.141); “rugas imensas” (p. 253).
Emanuela “a pele, de um moreno esverdeado, os lábios finos, grandes olhos escuros abertos
sobre o rosto pálido” (p.79); “grandes olhos dilatados”, “grandes pupilas negras”
(p.80); “tranças negras” (p.81).
Bernardo “sobre o rosto redondo, se abriam dois olhinhos pequenos”, “nariz adunco e os lábios
grossos”, “rugas fundas” (p.86); “mãos gordas e vermelhas” (p.87); “corpo enorme”
(p.91); “rosto gordo”, “rugas flácidas” (p.165); “feio rosto” (p.286); “mãos horríveis”,
“olhos belos” (p.312).
Adélia “costas magras” (p. 151); “extremamente magra, os olhos maus circundados por um
risco escuro, o nariz levemente aquilino” (p.152); “punho branco”, “dedos agudos”,
“nariz agudo” (p.246); “rosto macerado” (p.247); “rosto amarelo” (p. 248); “pés
pequenos” (p.251).
Angélica “gorda” (p.214); “braços curtos”, “carne flácida” (p.282); “olhos rodeados de círculos
escuros” (p.301); “pele branca” (p.319); “marcas fundas e queimaduras” (p.324).
Mendigo “rosto flácido sulcado de rugas” (p.146); “de uma palidez macerosa e triste” (p.279).
Raquel “rosto pálido e de linhas suaves”, “olhos grandes e sonolentos” (p.268).
Tabela 1: Características físicas dos personagens de A luz no subsolo
31
No quadro acima, encontram-se todas as caracterizações “materiais” fornecidas por
Lúcio Cardoso aos personagens de A luz no subsolo. Atentemos para uma predominante
decadência a unir de forma marcante essas figuras. Pelas divagações de Bernardo, por
exemplo, concluímos que Madalena deva ser uma bela mulher. No entanto, muito pouco
em sua descrição física que nos ajude a concluir tal hipótese. Já com relação a Cira, irmã de
Madalena e esposa de Bernardo, só os seus cabelos são descritos.
As raras tentativas de “interação física” contidas no livro, especialmente com a
finalidade de demonstrar afeto (praticamente inexistentes), são quase sempre baldadas,
reafirmando uma implícita teoria que perpassa o livro sobre a “impossibilidade da carne”
(p.216). Às vezes, em flagrante paradoxo, a crença de que, em sonho, seja possível algum
tipo de interação mais “concreta”: “[Madalena] sentira se apossar de seu corpo uma estranha
vontade de dormir, de entregar-se a um aniquilamento gradual, para, enfim, emprestar a esse
amor uma forma tranqüila e duradoura” (p.62) mas a confirmação de tal esperança mostra-
se impraticável mesmo nas lembranças oníricas de Madalena, sustentando o caráter espectral
dos seres:
Agora tinha a impressão de que [Pedro] se destacava de si mesmo, que a sua vida se
aniquilava aos seus olhos como um tremendo mistério e que ela [Madalena] se
diluía, como uma nova forma fria e impalpável. Pedro começava a se debater e
procurava tocá-la, mas todos os seus gestos se pediam no ar, as mãos se tornavam
em fumo, ela continuava distante e imaterial. (p. 62-63)
Alguns personagens quase não reconhecem a si próprios, como no momento em que
Bernardo toca o próprio rosto, por “acidente”, e corre em busca de um espelho que ateste a
monstruosidade, e “impressão de lama(p.283), que ele apenas adivinha, que é sempre
definido por outrem:
Foi até a janela e abriu-a [...] Uma rajada se ergueu e golpeou-o em pleno rosto.
Assustado, cobriu-se com as mãos e de repente seus dedos sentiram o contato da
própria pele e afloraram às asas do nariz numa carícia tênue. Sentia a emoção de
uma descoberta vagarosamente passou de novo a mão pelo rosto. “Misericórdia,
seria uma criatura... por assim dizer, repelente?” [...] Existem criaturas que se
adoram ele mal conhecia a sua face. Havia tempos não olhava para um espelho.
Como seria o seu rosto, que impressão faria o riso nos seus lábios? Era preciso se
ver, era preciso se ver! Um espelho! (p.285)
O espelho se afigura quase que como gico e único instrumento capaz de atestar a
plausibilidade, a concretude mais básica da existência. Do mesmo modo, Pedro também se
surpreende diante do espelho:
32
[...] [Pedro] subira as escadas tremulamente e fora se olhar no espelho. Nunca, nunca
em toda sua vida, sentia o pouco que lhe valia aquele rosto desconhecido.
Lentamente, com um vagar mórbido de sonâmbulo, passara os dedos pelas rugas dos
lábios, pela testa fria, pela face pálida. Uma, duas vezes, a mesma carícia sem
sentido, a mesma impressão de ódio a envenenar-lhe o peito. (p. 141)
9
A preferência de Lúcio Cardoso por descrever mais o “interior” de seus personagens é
uma característica marcante em sua obra, principalmente a partir de A luz no subsolo. Até
Salgueiro, ainda se notava um caráter mais descritivo, sendo que o método que agora
analisamos iria se confirmar nas obras de maturidade do escritor. Sobre isso, José Lins do
Rego, antigo desafeto de Lúcio na querelas com os escritores regionalistas, chegou a observar,
quando da publicação de O enfeitiçado, que “[...] o mundo exterior existe para ele [Lúcio
Cardoso] como cenário. O que realmente existe para ele é uma angústia que se propaga nos
personagens como as suas marcas indeléveis” (REGO, 1996, p. 767).
Portanto, contrapondo-se às parcas características físicas, diversas passagens em
que Lúcio tenta descrever intensamente o “interior” (subsolo), os sentimentos e agruras por
que passam os personagens, sensações que, muitas vezes, como vimos na observação de
Madalena sobre Bernardo, são vislumbradas apenas pelo olhar. Frente a Emanuela, Madalena
percebe que: “Seu olhar [de Emanuela] tornou-se errante, iluminado de ternura. Naquelas
grandes pupilas negras, havia qualquer coisa diferente, de tímido e de ingênuo. Em pessoa
alguma, Madalena se lembrava de ter encontrado aquele modo de fitar tão repleto de
confiança e de repouso” (p.80). Há, ainda, a confusão dos anseios que não se externam,
escondendo-se nos recônditos mais indecifráveis:
Havia um espelho pendurado, meio amarelecido pelo tempo. [Madalena] Correu
para se ver contemplou longamente o rosto pálido, aqueles traços que não
pareciam ocultar tudo que ardia dentro dela. Não existia nenhuma alteração naquelas
pupilas que boiavam num líquido azul, naqueles lábios úmidos, intumescidos de
sangue. Um grito sombrio cortou-lhe o pensamento; então toda aquela tragédia que
se passavam com ela não tinha nenhuma repercussão exterior? Tudo aquilo se
passava soterrado no fundo do coração, sem nenhuma esperança de luz? E tornava a
fitar o rosto calmo nada, nada que se parecesse nem de leve com a sua exaltação
havia mesmo, naquela fisionomia, uma serenidade admirável, um ar de força de
vontade que decerto partia do traço resoluto dos bios e do brilho dos olhos
extraordinariamente vivos. (p.245)
Reparemos em mais uma situação envolvendo o espelho, e a simbologia acerca da
dicotomia verdade-ilusão que ele carrega. Os olhos não podem revelar toda a verdade, a
9
Ainda consideraremos outras implicações envolvendo o espelho, de forma mais detida no terceiro capítulo,
principalmente quando pensarmos a questão dos “espaços de crise”.
33
“vida” não é o que se externa; deve ser, ao contrário, “o que o homem sofre, a história das
suas reações, os sentimentos que o habitam, as paixões que o conduzem. A vida não é o que
os olhos vêem, mas o que a alma guarda” (CARDOSO apud SANTOS, 2001, p. 59). É como
se o corpo servisse apenas para tentar reslumbrar, sem sucesso, o desconforto e a iniquidade
que marcará quase todas essas “consciências”.
Se entendemos, então, a consciência (de forma resumida) como o “para-si” sartriano,
concordamos que essas manifestações espectrais representam um esforço, insuficiente, ou
ainda em andamento, para transformar o nada em ser – “o horror do nada motivaria a busca de
um ser substancial” (BORNHEIM, 2005, p.60) –, pela inconformidade e desconforto da
obrigação de ter que “repousar em nada”, o homem se autofundamenta nessa impossibilidade
que é o corpo (“a forma contingente que toma a necessidade de minha contingência”)
(BORNHEIM, 2005, p.98). Para Kierkegaard, essa concretude seria uma possível síntese
entre o finito e o infinito, sendo que o homem que não conseguisse se realizar de tal forma
permaneceria, mesmo que inconsciente, desesperado. Os “corpos” de A luz no subsolo são
como esboços que repetem o insistente ato de se contorcerem, como a forma física da náusea
e/ou do desespero. Mas, uma vez que não podemos conceber uma realidade concreta
incorpórea, já que o corpo está ligado à questão de “ser-no-mundo”, o corpo acaba nos
devolvendo à questão do outro, visto que além de existir “para-si”, o corpo nos faz existir
“para-outro”. O corpo inaugura a profunda questão do olhar do outro, que vai me “definir”
para além do próprio corpo.
Um outro problema “sofrido” em A luz no subsolo tem sua origem nessas questões de
“outro” e de “mundo”: o problema do tempo. Se não existisse o mundo ao meu redor, se não
existissem os outros, com seus olhares inibidores, eu poderia ser “tudo”: passado, presente,
etc... Por causa do outro é urgente recomeçar a existência, a cada segundo.
As aflições relativas ao tempo reavivam as exigências de nossa liberdade. O que fazer
no momento seguinte? O próximo passo pode definir a vida. É preciso tecer o furo. E isso
também é angustia, pois se sustenta na dúvida já citada entre “destruir um passado” e
“acorrentar um futuro”. A passagem do tempo é incômoda porque torna inviável o adiamento
das decisões. Uma relação problemática com tempo, como constantemente ocorre nas obras
de Lúcio Cardoso, distorce ainda mais a percepção da realidade, gerando um clima de
pesadelo ao redor das inseguras constatações esboçadas. Os personagens cardosianos
perdem-se num eterno presente de melancólica nostalgia imediata e de expectativas
temerosas. Seguem por caminhos cada vez mais insólitos... Por vezes, vemos Pedro confessar
o quão difícil é decidir qual caminho tomar, especialmente diante do sofrimento:
34
Uma pergunta apenas, uma pergunta passara a sangrar no seu peito: aquele que é
destinado ao sofrimento que precisa fazer? Aceitar o sofrimento? Sim – sem dúvida.
Mas quando esse sofrimento é originado por determinadas causas, impossíveis de se
conciliarem com a “aceitação” dessa dor, que é preciso fazer? Esfacelar-se [....]
arrastar-se como um embriagado de ópio entre as paredes estreitas das suas
impossibilidades. Isto, até que o momento” chegasse. Então, exausto de forças,
segurar um revolver e rebentar a cabeça. (p. 141-142)
Aceitar? Reagir? Esfacelar-se? Ou rebentar a cabeça? A dura e lenta passagem do
tempo instiga os pensamentos tenebrosos. Em meio à exigência de continuidade que marca a
consciência, o ser transita em face de seu passado e de seu futuro como “a consciência de ser
o seu próprio devir à maneira de não sê-lo” (SARTRE, 2007, p.76). O presente imprime-se
como um “não-lugar” movediço que esteriliza o movimento, tornando o homem cercado pelo
negativo, inconfortável em margens sensitivas, visto que o que “preenche” essas vagas que o
“condenam ao presente” é justamente o nada.
Podemos dizer que o tempo em A luz no subsolo é, de fato, à semelhança das palavras
de Blanchot, como um tipo de “propagação do presente”, tal como ocorre na obra de Marcel
Proust, quando a memória serviria também como um recurso que nos imporia, de forma
cíclica, “o mesmo passo”, inserindo-nos no “tempo puro”. Para Blanchot, o espaço que
mescla passado e presente é, além de tudo, um espaço capaz de recuperar, ou perpetuar, a
morte porque representaria “não um passado e um presente, mas uma mesma presença que faz
coincidir, numa simultaneidade sensível, momentos incompatíveis, separados por todo o
curso da duração”. (BLANCHOT, 2005, p. 16-17). Não obstante, a indeterminação própria do
Dasein heiddegeriano não se revela tanto em termos espaciais, mas sim temporais. Alguns
estudiosos, como Gary Cox (2007), ainda nos lembram que a própria palavra “Dasein” nos
remeteria aos problemas do tempo. Uma vez que “Sein” é o ser, o “Da” poderia ser “aí-do”,
como é geralmente traduzido, mas também pode ser entendido como “nem aqui e nem lá”.
Ora, não estar “nem aqui e nem lá” é exatamente o posicionamento proposto por Sartre para
seu “para-si”, é o lugar em que se arrastam os dias nas casas interioranas retratadas por Lúcio
e se por acaso quem argumente que a consciência não é temporalidade, lembremo-nos
que é “pela consciência” que o mundo acaba sendo temporalizado. A consciência não pode se
expressar em (co)presença com o ser, deve abandoná-lo em direção ao futuro, sem conseguir
sê-lo de fato.
A visão que muitos dos personagens de A luz no subsolo expressam sobre o tempo
corrobora esta angústia de serem levados ao futuro num fluxo pesado e impossível que não se
desprende do passado: “A vida não seria apenas a ameaça do tempo e o desejo de voltar?” (p.
35
233); “Oh! Essa cadeia de fogos sombrios, de anéis dilacerados passado, presente, futuro
que não se unem senão pelo mesmo gosto doloroso de sofrer!” (p.235); “A consciência do
tempo é uma alegria envenenada” (p. 240).
E a memória, muitas vezes involuntária, serviria apenas para agravar o horror do
tempo aprisionado (“as recordações não dormem” - p.331), como constantemente vemos nas
reflexões de Madalena:
Havia uma certa perversidade no tempo em conservar depositadas essas sombras
incolores que se agitavam de repente no fundo da memória; a um olhar ou a um
gesto desprevenido elas se erguiam de novo da poeira dos dias esquecidos, para
fazerem sofrer aquele que se distanciava levado na corrente de novas amarguras. E
como quem cede ao encanto de um vício perigoso, Madalena retornou ao mundo das
suas recordações. (p. 54)
As suas recordações não lhe adiantavam de nada pelo contrário, sentia um certo
peso ao medir esse avanço sobre a sua memória. E agora fato estranho nada
conseguia fazer senão se evadir desse modo; insensivelmente o pensamento se lhe
voltava para trás e a vida aparecia como uma corrente ininterrupta a que é preciso
conhecer inteira, medir em todos os seus recessos obscuros [...] Compreendia que
esse ligamento ao passado era uma espécie de amor ao que ela não fora [...] não era
exatamente esta a visão que tinha do seu destino, sempre preso à nostalgia e à
memória? (p.239-240)
Também na melancolia de Pedro, o mais ciente do “espalhamento do presente”
reparemos na expressão: “havia meia hora que os cinco minutos demoravam”, que compõe a
sensação, bastante onírica, de quem tenta se mover, sem, no entanto, conseguir sequer sair do
lugar:
Da poltrona onde estava sentado, Pedro fixou o relógio. Uma hora e cinco da
madrugada. O seu rosto contraído pela impaciência tornou-se sombrio [...] Irritar-se-
ia com o silêncio, porque todas as outras criaturas podiam dormir todas exceto
aquela que estivesse como ele encadeada ao peso morto das suas lembranças.
Estaria, como ele, olhando o relógio implacável havia meia hora que os cinco
minutos demoravam cheia de um imenso horror por ela própria e por essa
continuada permanência dos mesmos sofrimentos [...] Então pobre criatura! se
estenderá e deixará que tudo siga ao amargo embalo da memória [...] Em certo
momento, na treva, ele sentia o peso dessas horas inúteis, dessas horas em que
ninguém vive, se introduzindo lentamente no coração das coisas adormecidas. Essa
estranha fragilidade do tempo, esse amálgama de sensações amargas acumuladas em
certo espaço, sob um olhar que se fecha ou um rosto que se entrega ao sono esse
mundo incolor que desertará a um movimento mais brusco e que desaparecerá com
os seus silenciosos fantasmas... (p. 139-140 – grifo nosso)
E até mesmo nas divagações dos personagens mais “insignificantes”, como a assustada
Maria, que pouco se expressa no livro:
36
[...] oh! Mas é uma hora da “minha” vida que se foi, é mais uma que eu atirei
impunemente ao vento...”, grito que lhe escapava às vezes dos bios, ao medir o
avanço de mais uma parcela do tempo, de mais um passo fora da vida, diante de cuja
impossibilidade todos os desejos de retorno e todos os arrependimentos se anulavam
como débil fumo lançado à ventania. Somente uma dolorosa quietude, uma fria
constatação de que a vida não foi constantemente feita para ser aproveitada. (p. 11)
O lamento dos personagens dá-se muito pelo desperdício das horas. Sabem (ou
deveriam saber) que são culpados por essas “horas mortas” que desfilam diante de seus olhos.
São responsáveis pelo que fazem ou deixam de fazer a cada segundo. a morte (como
incondicional destino humano) e o nascimento seriam experiências que fogem à nossa
liberdade, e, o que é importante, estão isentas de “responsabilidade”. Reafirmamos que
qualquer outra ação vivida, como nos leva a crer Sartre, de forma mais clara, em O
existencialismo é um humanismo, representa nossa interpretação do mundo e o que
escolhemos para nosso semelhante. É uma certeza dolorosa, que acaba comprometendo a
própria noção de absoluto que nos é dada. Carregar a responsabilidade do destino dos outros é
assumir que o mundo não é governado por uma soberana potência estrangeira, que
comumente denominamos Deus; o que nos liga às reflexões sobre o desespero e o pecado,
problemas dos quais nos ocuparemos a seguir.
1.3 O desespero
“Da mesma forma como provavelmente não haja, segundo os médios, ninguém
completamente são, também se poderia dizer, conhecendo bem o homem, que não
há um só que esteja isento de desespero...”
Sören Kierkegaard, O desespero humano
Até agora, usamos amiúde o termo “náusea”, não sem a permissão do texto
cardosiano, é verdade, tentando definir o estado de caos interior de alguns personagens de A
luz no subsolo (especialmente Pedro). Se não podemos organizar de todo esse caos interior,
tentemos continuar traçando as características, ou condições, que levam os personagens aos
atos mais “concretos” do livro; atos estes que muito analisaremos nas páginas e capítulos
seguintes.
Por ora, pensemos que, além de “náusea”, outro termo que também poderia ser
utilizado para pensar a estrutura fundamental dos personagens é “desespero”. Evidentemente,
37
a primeira obra que pode nos vir à mente é O desespero humano, de Kierkegaard
10
; seja
porque encontramos nos escritos deste filósofo e pastor luterano as raízes do existencialismo
moderno, ou porque o “desepero-náusea” (os termos são, no fim das contas, equivalentes)
proposto em sua obra está ligado ao tema do pecado, uma característica marcante do texto de
Lúcio Cardoso. De fato, o próprio ato de pecar é também uma das consequências angustiantes
da liberdade que se faz notar com o desespero. Haveria aqui uma questão moral, que o
exercício de minha liberdade pode instigar “castigos” como o remorso ou o medo do absoluto
divino.
A ligação entre desespero e pecado passa pelo “plano” do absoluto, envolvendo a
questão de crença. É quando não se pode crer que se assume o desespero. Para André Comte-
Sponvile, desesperar-se equivaleria a assumir uma nova “virtude teologal”, que, invertendo
uma máxima kierkegaardiana, “o contrário de crer é desesperar” (COMTE-SPONVILE, 1997,
p.18)
11
.
Porém, o “não crer” aqui proposto não deve restringir-se à ideia de Deus, é um “não
crer em nada”, uma profunda desilusão das intenções humanas, assumindo todo o vazio
existencial, que é a consciência que traz o nada para o mundo, impondo a nadificação, que
também pode ser vista como ato inaugural do “interior” do homem. Se tentássemos um
epítome da reflexão de Kierkegaard, seria duvidoso afirmar que o filósofo acredita que, frente
à evolução da consciência, buscando o conhecimento, a fé possa de fato vencer.
Mais elucidativas são as palavras de Mário Carelli, que em sua análise de A luz no
subsolo concorda que “em Lúcio, leitor do Tratado do desespero, de Kierkegaard, o
desespero constitui o ponto de partida do conhecimento interior” (CARELLI, 1988, p.166). A
expressão “ponto de partida” em muito nos auxilia, porque o que estamos analisando agora é,
de fato, a “instalação”, a consciência desse ponto de partida que propiciará a busca pelo
10
A ligação entre Lúcio Cardoso e Kierkegaard é evidente, principalmente devido às referências que o autor
mineiro faz ao filósofo em seu Diário Completo (de forma explicita) e em seus livros. Alguns estudiosos, como
Mario Carelli e Enaura Quixabeira Rosa e Silva, notaram a ligação entre A luz no subsolo e O desespero
humano. O que tentamos foi acrescentar a tais estudos uma visão que, se não representa uma inovação, ao
menos busca propor aprofundamentos e/ou novas leituras da influência kierkegaardiana sobre os textos de Lúcio.
Não seria errado dizer, ainda, que a ligação entre as ideias de Kierkeggard e o terceiro romance do escritor
mineiro foram feitas de forma um tanto breve, havendo na obra de Enaura Rosa e Silva, por exemplo, uma
ligação muito mais estreita do filósofo em questão com o livro Crônica da casa assassinada.
11
outra importante contribuição de André Comte-Sponvile da qual podemos nos valer aqui, que ocorre
quando ele pensa a questão do desespero kierkegaardiano, ligando-o ao tempo, uma reflexão que se emparelha às
nossas considerações temporais, já que o pensador diz que o desespero seria o “próprio presente”, ou o que o
reveste, representando ainda o “grau zero da esperança”, ou, de forma mais clara, “uma cilada do tempo”
(COMTE-SPONVILE, 1997, p.15).
38
conhecimento. Ademais, o desespero não se limita ao negativo, sendo, ao contrário, condição
para propiciar ao ser o acesso ao “ético”.
E aqui cabe um adendo. Para Kierkegaard, a fase do desespero possibilita o alcance do
ético, porque o desespero é sintoma da “necessidade” de passagem de um estado que ele
chama de “estético” para o citado patamar “ético”. Em sua esfera estética, o homem tende a
tentar se descobrir, “desperdiçando” energia, buscando o prazer, carente de estabilidade. Na
tentativa de se libertar, em efeito contrário, o ser acaba se perdendo em atitudes que diluem
sua força e acabam por torná-lo passivo diante do real que tenta compreender. Ao sintoma
dessa constatação de “perda”, Kierkeggard achou por bem denominar desespero. Esse
desespero é semelhante ao pavor diante da constatação da contingência. o nível ético deve
ser o “lugar” em que se suspende a contingência, quando o homem procura se conhecer e
mudar a si mesmo por escolha própria.
O Pedro concebido por Lúcio Cardoso busca conhecer a si mesmo, mas percebe uma
impossibilidade crescente em ignorar a contingência, que se encrava cada vez mais na
percepção da realidade. Quer dar atenção ao mundo interior, mas não pode ignorar o exterior.
É como se quisesse os dois estágios. Grande parte dos conflitos do casal central de A luz no
subsolo (Pedro e Madalena) encontraria, portanto, raiz nessa dificuldade de Pedro em se
adaptar à sua fase “ética”, que na sociedade pode muito bem se manifestar pela criação de
“laços” como o matrimônio, uma atitude ética, mas que causa estranhamento para quem se
acostuma ao prazer do estágio estético. Mas ocorre que, subtraído do estado estético, o
homem acaba também não encontrando alívio na esfera ética, uma vez que os apelos da
situação anterior não podem ser satisfatoriamente ignorados.
Faltaria considerar o estado religioso, uma divina comunhão com Deus. É (ou pelo
menos deveria ser) o momento de comungar com o Absoluto, optando por obedecer à única
lei cabível a de Deus abandonando os resquícios das atitudes transgressivas: é a única
forma de fugir ao desespero, trocando-o pela fé. Segundo Kierkegaard, o “religioso” seria o
momento da síntese dialética entre os dois estados precedentes. Mesmo na fase em que não se
aferrara de forma mais radical ao pensamento cristão, o filósofo exemplificava essa
dialética com o exemplo bíblico de Abraão e Isaac. Deve-se ter para transcender. É claro
que a ideia vai muito além de crer em Deus, pois cobra uma suprema em si mesmo, na
crença de que é possível mudar. Mas, pelas anotações de Lúcio em seus diários, vemos que a
ascensão ao religioso era mesmo focada no Deus cristão. E é aqui que Pedro se perde. Dando
mais voz “do que talvez devesse” à razão, em uma “estrutura” precedida por seu processo de
dissociação inaugurado pela Náusea, ele tende a questionar também o absoluto (o estado
39
religioso), dando espaço para o retorno potencializado do desespero que, na falha da
comunhão com Deus, “veste-se” de pecado. Se as bases da relação dialética já estavam
problemáticas, a ntese não pode ser naturalmente alcançada. No lugar do Absoluto não o
Deus ideal, “o nada”. Por não ser tão fácil assim reconhecer esta última realidade, os atos
que poderiam apenas ser tachados de “irresponsáveis” na permissiva fase estética acabam por
aderir à pecha de desrespeito a Deus: pecado! As dúvidas afloram e pioram a condição
desesperadora. Um dos “novos” problemas é a certeza da finitude.
Vejamos um breve diálogo entre Pedro e Bernardo:
– É aí, Bernardo, que ressoa a pergunta misteriosamente: Deus existe?
[...]
E o “eu” que volta ao seu lugar continuou Pedro responde tranqüilamente:
“Não, não existe”. A noite é escura, se te estenderes na linha férrea e a locomotiva
despedaçar o teu corpo, Deus não te impedirá de morrer. (p. 115-116)
Ciente de seu fim, constatação que acompanha a difícil, porém crescente, desconfiança
de que Deus nada pode (ou simplesmente não existe) o homem passa a buscar sua
“divinização”, seu particular “estado religioso”. Se não mais respostas no divino
sacralizado, e se a finitude não oferece o abrigo ideal, é preciso procurar “conforto” em uma
nova instância (fora de Deus e fora do eu comum a que nos habituamos, em submissão
perante a sociedade); em um “novo eu” fruto final de nova síntese, e não o eu apenas
estético ou ético que habita todas as pessoas, o nosso “outro particular”, que pode muito
bem ser nosso lado mais obscuro, ocultado pela sombra do que convém denominar como
“bom”, ou “correto”.
Pecando o homem se afasta de Deus e, desesperando-se, afasta-se de uma condição
dada, já que, para Kierkegaard, o homem que desespera por algum motivo, desespera também
“de si” e, a seguir, sente o desejo de livrar-se de seu eu. O mais impressionante é que o
filósofo cita dois exemplos a título de ilustração de tal tese: um caso masculino, de ambição, e
um feminino, de desilusão amorosa. Tais exemplos encaixam-se perfeitamente na
personalidade de Pedro e Madalena.
O primeiro caso seria o do homem “ambicioso que diz ‘ser César ou nada’ não
consegue ser César, se desespera” (KIERKEGAARD, 2007, p. 24). Não é possível negar que
um dos adjetivos mais cabíveis aos anseios intelectuais de Pedro seja justamente “ambicioso”,
como percebemos em passagens singulares, tais como:
40
O homem é talvez uma obra-prima da natureza neste caso, ele tem o direito de
atravessar os seus limites, de conhecer além de suas possibilidades. Mas se então,
está ouvindo? o homem é a estrela luminosa do Universo, se ele é o astro solitário,
aquele que ultrapassar o medíocre destinado, encontrará o seu Criador, o próprio
Deus no fim do seu caminho [...] É verdade, estou delirando. Mas é que sinto em
mim, constantemente, a força dessas lutas. Às vezes, penso que tudo pode se
resolver por um golpe de força. Morrer ou matar, talvez enlouquecer. Quem nos
impede de ser loucos? Conheço espíritos assim que sabem mais do que nós mesmos.
Há uma experiência maior dentro daquilo que a razão não aceita. (p. 134-135)
O desespero, no caso, não seria o de, eventualmente, não ter se tornado o ser superior
que como modelo, mas a impossibilidade de, então, aceitar o eu que lhe resta como opção
uma péssima opção, diga-se de passagem, marcada pela inadaptação debatida para quem
vislumbrou, ou pressente, possibilidades mais “altas”, e quando o que sobra são
discrepâncias impostas pelo maniqueísmo despropositado que nos circunda:
[...] não é o fato de não se ter tornado César que é insuportável, mas o eu que não se
tornou César, ou, antes, o que ele não suporta é não poder libertar-se do seu eu.
Poderia tê-lo, tornando-se César, mas tal não aconteceu, e o nosso desesperado tem
de se sujeitar. Em essência, seu desespero não varia, que não possui o seu eu, não
é ele próprio. Ele não teria tornado ele mesmo, tornando-se César, é verdade, mas
ter-se-ia libertado do seu eu. Portanto, é superficial o dizer dum desesperado, como
se fosse o seu castigo, que ele destrói o seu eu. Porque é justamente aquilo de que,
para seu desespero, para seu suplício, ele é incapaz, porque o desesperado lançou
fogo àquilo que nele é refratário, indestrutível: o eu. (KIERKEGAARD, 2007, p.24-
25)
Pedro não suportará o “eu” que querem fazer dele (crucificando-o por seus
“reprováveis” atos sociais), estagnado numa impossível tendência “em-si”. Esse desespero
será a mola propulsora de suas futuras atitudes, de suas “influências” sobre o comportamento
de seus iguais.
no segundo exemplo, o caso de uma jovem qualquer que, perdida pela falência
de um caso amoroso, por abandono ou morte do ser amado, desenvolve o desespero não pela
situação, ou pela relação em si mesma; o tormento é voltado, como no outro exemplo, para si
própria, é para o “eu desprezado”, com as qualidades que barram a possível empatia, que o
desespero se volta:
Essa perda não é desespero declarado, mas é dela própria que ela desespera. Aquele,
eu, do qual ela se teria despojado, que teria perdido deliciada se ele se tivesse
tornado o bem do “outro”, esse eu provoca agora a sua tristeza, porque tem de ser
um eu sem o outro”. Esse eu que tem sido aliás também desesperado em outro
sentido – o seu tesouro, é-lhe agora um abominável vazio, morto o “outro”, ou como
que uma repugnância, pois provoca o abandono. Tentai dizer-lhe: “estás a matar-te,
minha filha”, e logo vereis como ela responde: “Ai de mim! o, a minha pena,
precisamente, é não o conseguir”. (KIERKEGAARD, 2007, p.25)
41
É bem o que ocorre com Madalena nas diversas ocasiões em que, ao lamentar o
malogro de seu casamento, parece culpar mais a si mesma do que ao marido mesmo tendo
consciência da natureza “fria e dissimulada” (p.69 e p.118) de Pedro, denota constantemente a
angústia de ter de conviver consigo mesma:
As noites eram povoadas de sonhos dolorosos. Dormia, mas o seu sono era
diferente, um sono lúcido, uma vida de sombra. Sentia-se presa sobre o seu destino,
agonizando naquele letargo, com uma sufocante consciência de tudo. Dormindo,
sofria ainda pelo seu amor. Qualquer coisa desesperada, uma trágica percepção,
obrigava-a a repetir no sono: “jamais, tudo está perdido para sempre”... Aprendera
assim que certos sonos são como uma outra vida – o sofrimento e a negação
continuam se desperta para se esconder um ódio que a realidade estrangula no
medo. No fundo, tudo é o medo de si mesmo, é o medo de permanecer sozinho,
nesse mundo onde a dor de cada um se realiza solitária e morre solitária se acaso
morrer um dia. (p. 67 – grifo nosso)
Era uma espécie de consciência da sua fraqueza, da sua entrega total à personalidade
de Pedro, de tal modo, que ela sentia arder em si a mais incrível vergonha. (p.73)
ela, unicamente ela, se achava lamentavelmente , mergulhada naquele
desespero; urgia ressuscitar a sua pobre existência sufocada por aquele homem.
(p. 74)
No fundo, parece que Madalena acabou se acomodando como encarnação da
passividade amorosa. Como não tem o mesmo poder de libertação de Pedro, será levada por
ele, ao longo da narrativa, a se rebelar contra sua condição, alternando, como também se
passará com Emanuela e Bernardo, os movimentos de assimilação e objetivação, bem como o
extremo de seus sentimentos (“movimentos” que veremos em detalhes no segundo capítulo de
nosso trabalho).
Mas pensando nos anseios que movem os protagonistas de A luz no subsolo, em
semelhança com as passagens selecionadas da obra de Kierkegaard, concluímos que o
“desespero” que fundamenta a consciência de mundo de Pedro e Madalena origina-se na
incapacidade que eles têm de fugir de identidades “sugestionadas” desde sempre, mas que
“eclodiram” agora, só apareceram em sua total complexidade no presente momento em que se
a enunciação de A luz no subsolo. A Náusea retirou do subsolo a certeza da
impossibilidade de integração à realidade essencial do ser (sem Deus e inconformados com a
trágica finitude) com o eu de que esses personagens dispõem. O incômodo será agravado,
principalmente no caso de Madalena e de alguns outros personagens “secundários”, por não
estarem ainda adaptados à liberdade que permite o vislumbre de uma saída dentro deles
mesmos. E para Pedro, um passo à frente no processo de “evasão” total do subsolo, o
tormento advém do fato de ainda não ter atingido sua “divinização” que, se nos fim das contas
42
não poderá, também, livrá-lo do “fardo” de ser Pedro, ao menos o colocará num patamar mais
elevado, de onde poderá “mostrar” aos outros que o aparente mal que dele emana é algo que,
tal como o desespero, também pode ter um lado positivo.
Essa tentativa de refutar o “eu” que até então o constituía é como um efeito imediato
do despertar da consciência. que refutar o eu imposto atinge efeito (re)assumindo o eu
“adormecido”, que é nosso verdadeiro ser por não se ater a determinações exteriores, é o que
sobra de nossas profundas investigações. Daí em diante, tais seres começam a captar e
desenvolver as possibilidades de adaptação à realidade que tal como os homens da caverna
platônica intuíam, mas de que não tinham ainda a constatação definitiva. Chegará uma hora
em que mesmo esse valioso “trabalho” não surtirá maiores efeitos, sendo preciso buscar por
outras maneiras de evasão, algo que detalharemos no terceiro capítulo. Estamos ainda no
primeiro passo, na descoberta “primária”, compondo um retrato dos sentimentos que se
mostram no romance, ainda não abordamos de forma consistente a ação. E é exatamente isso
que projetamos ao dizer que este primeiro capítulo é um estudo da “descoberta da
consciência”. Esses personagens como que acordaram tardiamente para seus verdadeiros
“eus”, descobrindo-se então como condenados ao desespero e encobertos pela Náusea,
condenados, portanto, ao negativo e à liberdade que os designa, já que o homem só não é livre
para deixar de ser livre.
Em suma, Madalena precisou do fracasso em sua relação com Pedro para se perceber
como Madalena, do mesmo modo que, após ter sua liberdade questionada, como veremos
mais detalhadamente, Pedro se deu conta de seu terrível lugar de abandono no mundo.
Não há mais a quem culpar pela “má-sorte”. Seus atos destinam-se, então, a afirmar a
natureza humana e é exatamente nesse momento que se alteram as configurações tradicionais
de “mal”, radicalizando, ainda mais, o que já sabemos sobre o pecado.
1.4 Uma naturalização do mal
“O Bem é anterior ao Mal, como o Ser ao Nada”.
Sartre, Saint Genet
1.4.1 Infância e santidade solitária: o espaço do “duplo”
43
Em alguns pontos do tópico anterior, discorremos de forma introdutória sobre o
pecado, que representa uma grande obsessão, tanto na obra quanto na vida de Lúcio. Às
vezes, em seu Diário Completo, em momentos de particular lucidez, o escritor não esconde o
desconforto de saber que o homem tende inevitavelmente a pecar, esforçando-se por admitir o
pecado como parte integrante da existência humana, algo que, mesmo doloroso de se admitir,
seria a única maneira eficiente de nos aproximar de Deus, que seria uma forma de “louvar”
a criação divina, em todas as suas manifestações. mais beleza no pecado do que em certas
profecias. Estar no mundo é pecar:
O mais difícil não direi o impossível é aquilo que o cristianismo, em última
instância, comanda: esteja neste mundo, mas com a condição de não participar dele
[...] Às vezes, nos meus momentos de grandeza e de fastígio, acredito que sou a
última das testemunhas do terrível, um homem que traz sobre a testa a mão escura
do pecado. [...] Quieto, estendido no meu quarto, peço a Deus que faça com que esta
rebeldia, que eu vejo se aproximar de mim com tanta força, seja um hino de louvor a
essa criação, cuja espantosa beleza me revolve muito mais do que todas as palavras
dos santos e dos moralistas. (CARDOSO, 1970, p.85-86)
Em momentos mais “febris”, de angústia menos refreada, percebe que o pecado é algo
tão terrivelmente intrínseco ao homem que, além de servir para medir “o quanto estamos
vivos”, só pode ser mesmo comparado a um “câncer existencial”:
O sentimento do pecado é que nos faz avaliar o quanto estamos vivos; é pela
angústia, pelo sentimento aterrorizante que me habita (acordo durante a noite, dentro
de um silêncio sobrenatural, com a impressão de que cometi onde e não sei quando,
um ato irreparável) que avalio o quanto estou longe de possuir esse espírito tranqüilo
e isento de outras preocupações que não seja o meu tormento de todo dia. Eis um
momento em que sofro, e tudo me parece incerto, pesado e sem claridade o mundo
perfeito da consciência culpada, do espírito marcado pelo remorso, pela noção do
pecado estranho na carne, orientando a existência como um câncer ramificado no
ser, e que chamasse a si toda manifestação de vida (CARDOSO, 1970, p.114).
Esta descrição do pecado muito nos remete às angústias de Pedro que relacionamos ao
termo “náusea”. Assim sendo, é perfeitamente possível acrescentar o “pecado” ao grupo de
palavras já correlacionadas, “náusea-desespero”. Pecado, desespero e náusea estão igualmente
“entranhados” no ser se a Náusea causa um tipo diferenciado e revelador de incômodo, o
sentimento é o mesmo causado pelo desespero de querer ser outro; e quem se “incomoda” por
ser pecador não estaria também buscando um “outro”, isento de pecado?
No trecho acima nosso autor diz que o sentimento do pecado é “algo estranho na
carne”, tal como “o espinho cravado na carne”, a que já se referiu Kierkegaard (2007, p. 74); e
44
é interessante reparar em como Lúcio Cardoso vai se “apropriar” dessa expressão, só que para
refletir sobre o mal:
O mal é mais profundo, é uma sombra ancorada no fundo extremo do meu ser, uma
palpitação de doente; talvez nada consiga traduzir este mal-estar profundo (penso no
“espinho cravado na carne” de Kierkegaard), esse desconforto sem remédio, essa
severa inaptidão para o jogo diário tão sem perspectiva! que se chama a
obrigação de viver. (CARDOSO, 1970, p. 162)
12
É como se tudo levasse a uma constatação de que o homem é essencialmente mau. Em
A luz no subsolo, haverá, por parte de Pedro, uma dolorosa tentativa de destituir o mal de
entendimentos maniqueístas, uma vez que assimilamos a liberdade que nos cabe sendo
maus, sem, paradoxalmente, querermos -lo. É um processo bastante complexo. Ninguém
parece se entregar ao mal por uma premeditação, mas através de atitudes naturais que, em
geral, causam o remorso e a culpa do pecado, rompendo leis que nos impuseram antes mesmo
que “fôssemos” de fato. O mal passa a ser uma atitude que parece consciente, mas acaba por
se mostrar inerente.
Assim, não ficamos impedidos de refutar o mal que em nós, como as ações
reveladoras desse mal não serão mais a manifestação de uma torpeza pura, mas parte do
processo que nos edifica e que nos levará a uma redenção. O ideal seria eliminar qualquer tipo
de crença, admitindo que qualquer forma de “crer” constitui uma tentativa de ocultar nossa
negatividade, alimentando a ilusão de que podemos fugir de algo que nos é indissociável.
Vimos que quando não crê, o homem peca. Mas o homem (também) é pecado! Seja porque “o
contrário do pecado não é a virtude, mas, sim, a fé” (KIERKEGAARD, 2007, p.78) ou porque
o traço decisivo do pecado é, também, “ser desespero” (KIERKEGAARD, 2007, p.77). Ora,
deve então estar claro que pecado é desespero e se opõe à fé, porque está do lado da razão que
nega o absoluto divino e admite o eu natural.
Não dúvida de que a “âncora” máxima da fé, da crença, é Deus. Ora, então deixar
de “crer” implicará também uma questão de “parâmetros” e “medidascomo prevemos
ao falar de “finitude” e “divinização”. Uma vez que Deus deixa de ser a “medida” do homem,
que sua (suposta) existência não tem mais o poder de sanar a evidência nauseante da
finitude, os atos do indivíduo não se submetem a um “estar diante de uma força punitiva”, as
12
Na página 16, de A luz no subsolo, a expressão kierkegaardiana reaparece para ilustrar a imensa angústia de
Maria, quando de sua partida: “Media o esforço que lhe custara arrancar aquilo do fundo; e depois que se
decidira bruscamente, como quem arranca um espinho cravado muito fundo na carne, estacara admirada com o
som hesitante da sua voz [...]”.
45
ações passam a ser “reguladas” pelo novo parâmetro definido. E se um certo sujeito passa a se
ver como soberano, seus atos não serão mais pecado. Se a crença visa, predominantemente,
“encobrir a negatividade”, o ato de pecar pode assumir, por outro lado, configurações de
“afirmação da potencialidade”. Mais do que uma força reguladora que se encontra, de súbito,
suprimida, a liberdade para pecar reside principalmente na conscientização de que o pecado é
um ato até “inocente”, uma vez que pode muito bem ser, como veremos em relação a Pedro,
uma faceta redescoberta da infância, recusada pela sociedade (e talvez o Estado passe a se
impor como nova “medida”), mas admitida no âmago de quem não pode se dobrar às
exigências das leis dos homens, simplesmente por já praticar tais atos, de forma quase
“automática”, antes mesmo de ter consciência de incidir em falta, em crime.
Muitos pensadores já produziram reflexões satisfatórias sobre a questão do mal e
nosso intuito, ao menos no presente trabalho, não é realizar um aprofundamento sistemático
sobre o tema, e nem propor uma solução para as muito discutidas implicações do mal na
obra cardosiana. Por isso, para prosseguir, faremos um recorte bastante específico, tomando
por base uma outra passagem do Diário Completo de Lúcio:
Otávio de Faria me envia, a pedido meu, mais um livro de Jean Genet. Curiosa, a
idéia de preservação de valores fundamentais do homem através do mal. Com que
acentos novos, com que resplandecente inspiração o poeta nos fala do crime e dos
criminosos: através dessa aparente decomposição, velhas noções de heroísmo,
lealdade e integridade última da natureza humana reerguem seus dilacerados
espectros. E Jean Genet, como outros desta época, é um sintoma vivo, um grito de
repulsa, de violência e de audácia, contra esse sistema uniformizador e constante que
vem reduzindo, cortando e planificando os alicerces fundamentais da existência
humana, como a fé, a moral, a política, etc. [...] Seus heróis no compulsivo caos de
seu reduto prenhe de valores primitivos especiais, são testemunhas da sombra, da
existência do pecado, do mal entranhado na natureza do homem e compondo-o
apesar de tudo. (CARDOSO, 1970, p.195 – grifo nosso)
Lúcio aproxima-se de Jean Genet como se procurasse um “aliado” na sua tentativa de
“naturalizar” o mal. Lembremo-nos de dois trabalhos bastante significativos sobre o mal na
obra desse polêmico escritor francês e que, o que é ainda melhor, não nos afastam das linhas
reflexivas já erigidas: A literatura e o mal, de Bataile, e Saint Genet, de Sartre.
Reza a lenda que Jean Genet criado por uma família de camponeses após ter sido
abandonado pela mãe, Gabrielle levava uma vida relativamente tranquila e sem maiores
atribulações, quando, por volta dos dez anos de idade, foi surpreendido enquanto roubava algo
na cozinha de sua casa. O fato de, naquela peculiar ocasião, ter sido chamado de “ladrão” pelo
homem que o criara, funcionou como fronteira, divisor de águas em sua vida, lançando-o
irremediavelmente no caminho do mal. Embora não seja “incomum que a memória condense
46
em um único momento mítico as contingências e os eternos recomeços de uma vida
individual” (SARTRE, 2002, p. 15), o flagrante e a “etiqueta” pregada pelo homem que
representava, para Genet, o símbolo maior de autoridade (sua “medida”) acabaram
funcionando como marco inaugural de sua condição de criminoso, determinando de uma
vez a sua natureza.
Talvez Genet estivesse apenas “brincando de roubar” quando foi flagrado. Mas
atribuíram-lhe uma indelével identidade de criminoso, solidificaram suas intenções infantis e
lhe impuseram, de chofre, sua imutável essência marginal.
Pedro, personagem fulcral de nosso estudo, também praticara um “crime” quando
criança, ao empurrar, de propósito, a pequena Isabel, uma amiga de infância, dentro de uma
cisterna, ocasionando a doença que a mataria. Embora essa pendência infantil para o crime
possa, numa primeira leitura, ser algo impactante, não seria nocente tentar entender até que
ponto Pedro realmente tinha consciência de seu crime. Por não ter, tal qual o pequeno Jean
Genet, alguém que, sorrateiramente, se aproximasse dele pelas costas e lhe marcasse na alma
o estigma de “assassino”, Pedro deu vazão à sua liberdade extrema, guiada por seus impulsos
mais primários, até que tardiamente, quando adulto apenas, tomou verdadeiro conhecimento
de sua essência socialmente desvirtuada. Mas quando, especificamente, isto ocorre? Qual o
momento exato de sua “queda”?
Sem dúvida, será o momento em que perde o cargo de professor, sob a acusação de
exercer sobre um de seus alunos a influência nefasta que teria levado o jovem a agredir o
próprio pai com uma facada.
Esse é o “episódio definitivo” do despertar de Pedro. Como não foi “flagrado” em
momento decisivo de sua infância, seu “marco” do despertar da consciência, a simbólica
superação tardia do menino que foi, pode muito bem ser determinado pelo momento em que
leva seu aluno, Epifânio, a agir de forma semelhante à que ele agira desde um passado
remoto. Com efeito, desde o início da obra, nos é dado um Pedro soturno, em retiro constante
dentro de si mesmo. O incidente que acabou por apartá-lo de vez do convívio social ocorre
antes da enunciação, um fato que, quando apresentado isoladamente pelo narrador (na voz de
Madalena, à página 36), começa a agravar a sensação nóxia que vamos acumulando de Pedro,
até quando ele finalmente começa a ter voz (somente por volta da gina 139). Desde a
página 17, quando seu nome é citado pela primeira vez, por Maria (que já na gina seguinte
deixa transparecer o medo que nutria pelo patrão), até o momento em que Pedro revela-se
como causador da morte de Isabel (página 144), o que vemos é realmente um acúmulo de
iniquidades passando desde a intimidação de Emanuela (página 83), até o início da ideia de
47
agir sobre Bernardo (página 90). O fato é que, dessa maneira, a confissão do assassinato de
Isabel não funcionará apenas como “mais um” crime, ou apenas como recapitulação de uma
“primeira falha”, mas sim como possibilidade de “reler” os crimes do Pedro adulto,
preparando nossa percepção para o sentido “universalizante” que suas ações passarão a
carregar, mostrando que as raízes de um comportamento (supostamente) maléfico estavam
lançadas desde os tempos mais remotos, desde a época da inocência.
Mas se é o episódio com Epifânio o que nos remete à infância, antes que esta nos
devolva ao Pedro adulto, tal caso funciona mesmo, dentro da trama urdida em A luz no
subsolo, como verdadeira “epifania” (o trocadilho é inevitável). E que somos levados a
pensar, quase de forma automática, em “epifania”, cabe pensar no amplo significado contido
em tal palavra. Segundo o dicionário de Antônio Houaiss, além de “manifestação ou
percepção da natureza ou do significado essencial de alguma coisa”, pelo menos outros
dois significados para o termo que muito se inserem na lógica que agora apresentamos.
Epifania também pode ser a “encarnação de Deus ou de uma deidade sob uma forma terrena”,
o que caberia perfeitamente na ideia de que é o momento em que tomamos conhecimento de
grande parte do “poder” de Pedro, além de que, como dissemos, em dado momento ele
passa a ter intenções “divinas”. Na mesma linha de raciocínio, lembremo-nos de que também
se denomina epifania à festa cristã que comemora o batismo de Jesus Cristo.
Resta apenas dizer que Epifânio volta-se contra seu próprio pai, símbolo universal de
autoridade.
Vejamos mais de perto a questão da infância e dos relacionamentos familiares, no que
interessa ao tema do tópico.
Sartre afirma que no momento fatal” em que despertamos para nossa verdadeira
essência, diversos movimentos singulares nos ocorrem; de certa forma, o “eu” que nos
habitava antes dessa conscientização dá lugar a um outro “eu”, que por sua vez pode mesclar-
se ao “eu” predecessor, o que revela, ao mesmo tempo, um “eu” novo e um “eu” ressuscitado.
Em termos diretos, Jean Genet, criança, morre para que nasça o ladrão, que por sua vez traz a
inocência daquele primeiro olhar, para dar aos abusos e desvios do adulto um tom poético e
natural, quase inocente, ou até mesmo repleto de “santidade” uma vez que “nós jamais
devemos nos esquecer que o sentido da palavra santo’ é ‘sagrado’, e que sagrado designa o
interdito, o que é violento, o que é perigoso, e de que o contato revela o aniquilamento: é o
Mal” (BATAILLE, 1989, p. 160). Não seria errado, pois, dizer que cada novo roubo, cada
nova “afronta” perante as normas instituídas para o bem dos “estritos”, seria uma forma de
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fazer reviver / morrer aquela criança nunca perdida / sempre morta, fazendo com que seu
“tempo sagrado”, seja sempre “cíclico”, ou “o tempo do eterno retorno” (SARTRE, 2002,
p.18).
no caso de Pedro, é como se o adulto, professor e homem casado, tivesse, de
repente, no seu “despertar” (representado pela censura social), sido visitado por sua infância,
representada por aquele menino que “parecia” odiar gratuitamente, ou “inocentemente", sua
amiga de infância, Isabel, provocando a morte desta como quem brinca: “Eu a odiava! E eu a
odiava mortalmente, um ódio mudo e imensurável! Não porque você fosse uma furiazinha
feia e magra, mas somente porque era boa e tinha pena da minha solidão.” (p. 143) como se
algo o deixasse “à mercê de tudo o que revela uma força divina acima das leis.” (BATAILLE,
1989, p.160).
Será esse crime hediondo (para nós, pessoas de “bem”) a sua lembrança mais cara,
quase uma fuga nos momentos em que se angustia por ver coarctada sua liberdade, ou quando
lhe recriminam por atos que apenas visam “pregar” tal liberdade. Adulto, Pedro confessará:
Escuta, Isabel: nós temos liberdade para escolher em tudo. Eu escolhi na sua história
o meu destino. Não necessito mais mentir, pois tudo está bastante longe como as
verdades parecem mais fáceis através da distância! e eu não sinto mais nenhum
temor de contar tudo, talvez para senti-la mais perto, talvez para me libertar... (p.
143)
Mas ao relembrar tais fatos, ou a dar às suas lembranças o revestimento determinado
por sua nova condição e percepção
13
, é o adulto quem repara que aquela liberdade irrestrita,
ocasionando atos sem punição ou reprimenda, aquela vontade inconsciente de dominar, ou de
se destacar, o habitava desde os tempos mais ábditos a que sua memória pode retroceder,
revelando então a nova possibilidade de concretizar seus impulsos, que não se tecem senão
pela inocência, ou pela autenticidade.
Sempre que se voltar contra sua esposa, sua mãe, etc., será para reviver aquela criança
sem culpa, no mesmo movimento de “eterno retorno” apontado acima. Claro que tal ideia
encontra base na teoria nietzschiana das ações cíclicas. Pedro tenta rever a autenticidade sem
esforço da criança, reafirmando, a cada instante, sua resposta original para as situações que se
apresentam, protegendo-se do “não escolher”.
Se pensarmos na maneira com é narrada a infância de outros personagens do livro,
principalmente Madalena, percebemos que a descrição se encaixa mais adequadamente na
13
Embora a lembrança capital de Pedro possa ter sido potencializada pela memória, tal fato não chega a
constituir o fenômeno que Freud denominou de “lembrança encobridora”.
49
visão do “mito da inocência infantil”, o que seria, de algum modo, uma “forma degradada,
positiva e cômoda do mito do Paraíso Perdido [...] as crianças são encarregadas, entre o
primeiro ano e o décimo, de representar para os adultos o estado de graça original” (SARTRE,
2002, p.19). Mesmo em meio ao peso de suas propagações reflexivas, em vel semelhante ao
de Pedro, o que vemos nas lembranças infantis de Madalena são imagens de um passado em
que imperava uma “comum” interação com outras crianças e com a natureza que a rodeava:
Não havia a distância nem o isolamento. Era o campo, com o seu u azul e as suas
tardes limpas, onde os risos das outras crianças soavam sempre [...] Tudo tinha uma
misteriosa correspondência com a sua vida, não eram simples andorinhas que
passavam, mas seres conhecidos a quem ela amava e a quem era preciso dizer adeus
a cada estio morto ou esperar, na curva do barranco, a cada inverno que findava...
[...] Ela recebia as suas mensagens de terras longínquas [...]. (p. 232)
Tais “excursões” afloram uma sensibilidade capaz de nos lembrar as
“Correspondências” de Baudelaire, onde percebemos, implícito, o desejo de uma troca, ou
comunhão, entre a sensibilidade natural e a razão:
A Natureza é um templo onde vivos pilares
Deixam filtrar não raro insólitos enredos;
O homem o cruza em meio a um bosque de segredos
Que ali o espreitam com olhos familiares [...] (BAUDELAIRE, 1985, p. 115)
No entanto, mesmo estranha, por fugir à regra “comum”, a infância de Pedro será
sempre “infância”, não podendo jamais ser vista como compêndio de decisões conscientes.
Detinha ele um livre-arbítrio inato, ainda não racionalizado. Se nos parece o contrário, é
porque estamos insistindo no erro de tentar determinar a visão e a consciência que deveria ter
a criança, através dos julgamentos que temos nós, adultos. Caberia aqui mais uma das muitas
questões levantadas por Sartre em Saint Genet: “alguém poderia pensar que esse menino de
dez anos reagiria como um quadragenário?” (SARTRE, 2002, p.62). E a resposta do filósofo é
ainda mais instigante, que une definitivamente a ideia de inocência e liberdade que
determinam o ser, visto que
[...] quando uma obstinação sistematizada, endurecida, se mantém por dez, trinta
anos [...] quando se transforma em sistema de mundo, em religião oculta, é preciso
que ela ultrapasse singularmente o nível de uma simples reação infantil, é preciso
que uma liberdade de homem se tenha engajado inteiramente nela [...] não é uma
criança velha, é um homem que expressa idéias de homem na linguagem do menino.
(SARTRE, 2002 p.62-63)
50
Pedro continuará afirmando a decisão da criança que segue sua natureza, definindo seu
comportamento não como mau, mas como reafirmação da verdade isenta de “pré-conceitos”.
Foi incentivado a dar livre curso à crença de que era um ser imaculado, isolado do mundo
adulto onde imperam leis que ele deve deixar a cargo e regulação daqueles em quem foi
ensinado a confiar (se eles não o barraram então, ao contrário do que ocorreu com Genet,
como querem impedi-lo de ser livre agora?). Controversa, ou não, a infância parecerá sempre
o único paraíso possível:
[Madalena] lembrava-se de ter ouvido Pedro dizer que uma criatura jamais se liberta
da sua infância. Tudo o que se passa após não é senão um longo esfacelamento de
criatura subtraída a um mundo em que não pode mais penetrar é o castigo do
pecado, o banimento de um paraíso onde a consciência penetra como o primeiro
silvo da serpente diabólica. (p.123)
“Ele” [Pedro] me dizia [para Emanuela] sempre que tudo estaria bem se nos
resignássemos a ser crianças mas depois que o tempo passa é que se
compreende o que se perdeu... (p. 281)
Muito do que define a criança que foi Pedro, advém de suas relações “frouxas” com
Adélia, sua mãe : “[Pedro] Pesara a figura hostil de Adélia, misturando a tudo a lembrança
dos dias afastados, consumidos no abandono e no desprezo” (p. 173); “[Adélia] compreendera
admiravelmente que a sua submissão ao filho não bastava para obrigá-la a amá-lo. Odiava-o.”
(p.237); “A pergunta veio inesperadamente à consciência de Adélia: ‘por que este homem é
meu filho?’ e, contemplando ainda uma vez a sua carne transparente, sentiu-o de tal modo
distanciado, que repetiu febrilmente para si mesma: ‘eu não o conheço, eu não o conheço...’”
(p.238); “[...] transparecia a força indomável que a separava do filho, a força criada em largos
anos de sofrimento e de separação [...]” (p. 242).
E talvez haja mesmo, no relacionamento em questão, certos indícios que ajudem,
ainda mais, a compreender algumas das características marcantes do futuro Pedro, como a
própria radicalização do isolamento (que dissemos ser impossível, em última instância).
Mas seria absurdo creditar à sua mãe a inteira responsabilidade pela formação de uma
personalidade que, dentro de nossos conceitos impregnados de vícios cristãos, nos parece tão
antinatural. Sua mãe talvez tenha falhado no momento em que deveria demonstrar rigidez na
criação do filho. É um ponto um tanto complexo e deveras obscuro nesse romance de Lúcio
Cardoso. Não sabemos, por exemplo, se ao dizer que Pedro “pesara toda sua infância afastada
da mãe e dos parentes” (p. 173), o narrador pretende indicar que Pedro foi literalmente criado
longe da mãe, ou se seu afastamento é apenas um modo de simbolizar o desprezo de seus
parentes por ele, ou, até mesmo, um distanciamento ocasionado somente por suas tendências à
51
solidão. Mais flagrante que isso é a quase total ausência de uma figura paterna no livro. A
única referência ao pai de Pedro é uma “fugaz lembrança” (p.173), que não ajuda a pensar o
tipo de contato efetivado entre pai e filho o próprio Pedro não tem filhos com Madalena e
seu (?) filho com Emanuela seria, provavelmente, fruto de uma violação. Mas isso não ocorre
apenas no caso do protagonista, e sim com relação a todos os outros personagens do livro,
algo bastante curioso. A incompletude familiar parece ter vitimado também Madalena (que
também sofre com uma mãe relapsa, que jamais faz menção ao sogro de Pedro), como
também Bernardo (este, por sua vez, um pai bastante displicente, como demonstram suas
palavras ao tomar ciência da provável doença do filho: “[...] que me importa que ele passe
mal? [...] Sim, que lhe importava o menino? De noite, ele gritava como os cães”, p. 289).
Apenas Emanuela tem contato com o pai viúvo, figura distante e responsável pela
infelicidade de sua esposa –, cuja morte dramática, contudo, acaba por deixá-la, no máximo,
indiferente: “Para ela [Emanuela], aquela morte não tinha nenhuma significação” (p. 201).
Essa inexistência absoluta de um pai ajuda a agravar tanto a sensação de uma
liberdade sem limites, quanto o frequente sentimento de abandono e insegurança que parece
assolar a todos esses seres que habitam o subsolo cardosiano, como posteriormente ficaria
expresso na figura de Jacques, pai ausente na obra mais autobiográfica de Lúcio, Dias
perdidos, ou no misterioso Inácio, na novela homônima.
Os personagens de A luz no subsolo não são, “oficialmente”, órfãos, mas exercem
uma reflexão contínua e radicalmente introspectiva que é acentuada, ou apenas incentivada,
por essa condição de “semi-abandonados”. Ao se verem em uma solidão comum à orfandade,
adquirem “pelo menos uma vantagem: sua vida interior não é socializada. Nenhum olhar vem
perturbar a sua intimidade original. As mães pretendem saber tudo, persuadem o filho de que
lêem em sua alma; este acha que nunca está sozinho” (SARTRE, 2002, p.24). Pedro, que não
tem irmãos, mergulha, desde cedo, em um mundo singular, onde apenas ele reina; sua solidão,
que o coloca à parte dos outros, é mais do que cúmplice:
Quando tudo dormia em torno dele, os seus olhos se abriam e a aflição rompia no
seu peito: que estou eu fazendo nesse mundo? Quem sou eu? Por que nasci de carne
para sofrer sem culpa alguma? Dentro da vida ele se sentia um desconhecido. Não
tinha uma alma como os outros – era uma alma desconhecida para ele, dissociada de
seu corpo, cega e carregada de remorsos que não eram seus. (p. 140-141)
52
A solidão de Pedro nos lembra o isolamento dos santos, muitas vezes “excluídos” pela
incompreensão alheia e dolorosamente cientes de uma natureza ímpar
14
. Mas nessa solidão,
em que o ser se perde em devaneios irrefreáveis, o movimento reflexivo atinge uma tal
potência, que possibilita a materialização do fruto dessas divagações. É quando surge o duplo.
1.4.2 O duplo
O próprio ato de refletir denota uma duplicidade, uma vez que a reflexão evidencia
duas consciências simultâneas, de objetos distintos que a primeira se refere ao mundo e a
segunda se refere à primeira: “percebo e conheço que percebo; ajo e contemplo-me agir; falo
e escuto-me falar” (SARTRE, 2002, p. 156). Mas em A luz no subsolo, o duplo manifesta-se
quase fisicamente, encarnado na figura do misterioso “mendigo resignado”. São muitas as
passagens do livro que deixam clara tal hipótese:
Pedro sorriu:
o conheço bem. Você o é mais do que uma parte. O todo não existe na sua
personalidade.
– O que é o todo?
Somos nós: eu reajo, você aceita. O que significa dizer que não somos senão uma
e a mesma pessoa. (p. 184)
[...]
Eu o conheço bem, criatura vil, eu o arranquei de mim, eu o estrangulei em meu
próprio sangue, em combates tremendos. (p. 187)
O duplo de Pedro encarna bem o conceito de “estranho-familiar”, tal como vemos no
clássico texto “O Estranho” (Das Unheimliche) de Freud, onde a manifestação de algo
estranho estaria ligada àquela “categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de
velho, e muito familiar” (FREUD, [19--], p.277). Familiaridade confirmada por passagens
como:
Entretanto, o que era deveras sensacional é que “conhecia” aquele homem. De onde?
Não sabia. Mas o certo é que aquela voz não lhe era estranha. Se fizesse um
esforço... Bernardo? Não. Tinha muita coisa dele o mesmo ar rapace, a mesma
14
Sempre atentos à proximidade entre o “sagrado” e o “profano”, podemos dizer que a solidão de Pedro também
se assemelha à solidão dos “danados”, uma reflexão belamente apresentada pelo narrador de A professora
Hilda, em suasginas finais: “É verdade que a solidão é a grande lei deste mundo – e, melhor do que ninguém,
disto sabem os santos e os danados, que vivem mais estreitamente abraçados a essa terrível lei que comanda a
nossa existência degradada. Mas a diferença é que a solidão do danado é feita com o que ele destruiu em torno, e
a do santo, com o que ele destruiu em si próprio. Mas Deus e o Demônio são limites, e quanto mais nos
aproximamos dos limites, mais sozinhos somos”. (CARDOSO, 1969a, p. 352)
53
doçura pegajosa. Talvez o tivesse encontrado em algum passeio – era isso, em
algum passeio de que não se lembrava mais. (p. 147)
Embora seja significativo associar o estranho surgimento do mendigo a Bernardo
(antecedendo os graves embates de Pedro com ou contra – os demais personagens, o que se
evidencia no tom de oposição com que se marca o trecho acima), isto pode, aparentemente,
não remeter a algo “há muito familiar”; mas ao admitir que a estranheza o fez pensar em
“algum passeio de que não se lembrava mais”, pode o narrador estar-se referindo à infância de
Pedro, que Freud atinge a ideia de que pode-se tomar um fator infantil (no caso o incidente
com Isabel, que chega a ser assunto entre Pedro e o mendigo) como responsável por
sentimentos de estranheza; estranheza que retorna ao adulto como uma nova “forma” de um
mesmo sentimento de liberdade que nunca se deixou apagar, enfim, que permanece familiar,
que “o elemento que amedronta pode mostrar-se ser algo reprimido que retorna(FREUD,
[19--], p. 300 – grifo do autor).
O duplo também brota da própria dubiedade essencial da angústia que compõe o
processo literário, é como que consequência irrefutável da representação sintética do duelo
entre ação e resignação. A misteriosa “anunciação” vem cobrar do protagonista o movimento
que, dentre outras coisas, fará dele um escritor. Pedro realizará “estratégias” e manobras de
conversão em quase todos os demais personagens do livro, mas é preciso que busquemos,
assim, a conversão inicial, a concretização do caráter “missionário” de Pedro.
Embora a projeção de um duplo traga geralmente em seu escopo a questão do desejo
de morte e/ou de imortalidade em um eu que nos extrapola, a relação de Pedro com seu duplo
é marcadamente sofrível porque não se limita a uma relação de continuidade. Aliás, em
estudo realizado acerca do duplo em Na Colônia Penal, de Franz Kafka, Audemaro Taranto
Goulart (1985), após expor amplo panorama sobre respeitáveis estudos sobre o tema
passando não por Freud, mas também por J.-P. Vernant, Turner, Luiz Costa Lima e outros
–, lembra-nos justamente que
[...] o desejo de imortalidade, todavia, não está simplesmente ligado à idéia de um
“outro” que continuasse o “eu”. Essa seria uma explicação simplista, que encontra
respaldo na mitologia religiosa, através da criação da imagem da alma. Na verdade,
toda a problemática da morte está relacionada com o desaparecimento do duplo, a
fim de que possa sobreviver o narcíseo [...] A ambivalência do ego, caracterizada na
idéia de o narcíseo amar e odiar sua imagem, traduz-se em medo e repulsa pelo
duplo. E é justo isso que produz a angústia, uma vez que o duplo traduz a
desagregação da personalidade, impedindo o sujeito de ter uma personalidade
estável, obrigando-o a depender inteiramente de um outro. (GOULART, 1985, p.
35-36)
54
No mesmo texto, também nos é lembrado que, segundo as leituras de Paul-Ulrich
acerca do pensamento Freudiano, o duplo advém, inicialmente, do “egoísmo ilimitado do
narcisismo primário que domina a alma da criança” (GOULART, 1985, p. 115) o que,
pensando no livro de Lúcio, leva-nos a entender que o mendigo pode muito bem ser um
substituto do narcisismo da infância perdida, época em que Pedro era seu próprio ideal, ou,
como definiria Freud, “o ideal do ego”
15
.
Geroge Steiner (2006), que liga o desdobramento do ser à questão do “homem
subterrâneo”, assinala que o duplo adquire determinante relevância a partir da literatura gótica
(vejamos, por exemplo, o conto “William Wilson”, de Poe), representando uma nova
psicologia articulada e concreta. Pode-se então dizer que “uma metade do ‘duplo’ encarna os
aspectos habituais, racionalistas, sociais do homem. A outra metade encarna aquilo que é nele
demoníaco, subconsciente, antagonista da razão e potencialmente criminoso”. (STEINER,
2006, p.162). O pensamento de Steiner faz referência à obra Memórias do subterrâneo, de
Dostoiévski, autor caro a Lúcio Cardoso. Contudo, essa reflexão sobre o duplo como um
“homem subterrâneo” aparece também no pensamento de Antonio Candido, em Tese e
Antítese, quando, nas ideias propostas no capítulo “Os bichos do subterrâneo”, o crítico
analisa a obra de Graciliano Ramos. Em dado momento, pensando especificamente no
romance Angústia, Candido divide os dois personagens centrais do romance em seres do
“subterrâneo” (Luís da Silva, o protagonista
16
) e seres de “superfície” (Julião Tavares, “o
duplo”). “Ódio”, “inveja” e “morte” são exatamente os termos empregados na análise do
duplo na obra do autor de Vidas secas – o que fortalece o que dissemos nesta seção.
Pedro seria como o “narcíseo” e o “subterrâneo tentando anular, ou lidar, com a
profunda verdade da consciência, ou até mesmo com o subconsciente. Podemos, por fim,
dizer que o duplo em A luz no subsolo promove a “distensão” do caráter, que passa a
“depender” (num sentido de dolorosa cumplicidade), então, de seu avesso. É como se, na
emblemática ação de chocar-se sem reservas contra o espelho, operando um violento corte
metafísico, a consciência se apartasse do ser e se assumisse como a própria “ação”: “[...] sinto
que existe alguém responsável pelos meus atos. Não propriamente ‘responsável’, mas dentro
de tudo, como a sombra no fundo de um poço” (p. 115).
15
Verifiquemos a importância de remeter à angústia narcísea, pois ela nos faz pensar na questão debatida do
espelho, uma questão que vale ter em mente, já que a ela retornaremos ao fim da pesquisa.
16
E não seria Luís da Silva vítima da mesma “Náusea” que aflige Pedro?
55
Daí em diante, sua “missão” será buscar, nos outros, o duplo particular que cada um
traz “adormecido”, despertando neles exatamente o que têm dentro de si, mas não têm
“coragem” de externar.
Ora, o que alguns personagens de A luz no subsolo temem, justamente, é externar a
própria conscientização de liberdade, o que denota a “luta” entre “aceitar” e “reagir”, conflito
supremamente metaforizado pelas aparições do mendigo.
Assinalemos, ainda, que nas anotações de Lúcio Cardoso para o romance inédito
Apocalipse, que deveria dar sequência à trilogia iniciada com A luz no subsolo, há um tópico
intitulado “o homem de duas caras”. Tudo leva a crer que a ideia do duplo poderia ser
aprofundada, melhor desenvolvida em obras futuras – não por acaso, muitos estudiosos
detiveram-se na questão da “duplicidade” envolvendo as personagens Ana e Nina, de Crônica
da casa assassinada. Mas Ana e Nina são seres distintos e o duplo que nos propusemos a
estudar agora trata de uma verdadeira fissura dentro do ser, uma divisão de forças dentro de
uma mesma pessoa. Algo que muito interessava a Lúcio e que, fora de seu terceiro romance,
talvez tenha sido tão bem realizado em seu teatro, especificamente na peça A corda de
prata. O drama trata do tormento de Gina, alguém que, como Pedro, tem uma visão apurada
da crua natureza à qual se liga a liberdade humana. Cerceada pelo marido e incompreendida
pelas pessoas com as quais trava contato, ela acaba sendo levada ao crime por uma “sombra”
que se manifesta através de uma mulher misteriosa que lhe cobra fidelidade à sua liberdade,
uma mulher que surge trajando as mesmas roupas que ela a diferença é percebida apenas
pela cor das vestimentas, sendo que Gina veste-se de branco, ao passo que a outra sempre se
mostra em indumentária negra –, e que a visita “desde a infância”, como Gina mesma diz. Os
conflitos entre as duas reforçam a ideia do duplo como uma simbólica luta entre o “aceitar” e
o “reagir”. E se repararmos em trechos das falas dessas personagens,
Mulher de preto: “Faça como quiser. Você é teimosa e eu não quero perder o meu
tempo. Mas preste atenção, dia virá em que seremos uma e a mesma pessoa, em que
você habitará neste centro onde agora estou, e seu coração baterá com os mesmos
desejos e a mesma indiferença com que bate o meu.” (CARDOSO, 2006, p. 171)
Gina: “Certamente eu o sei, às vezes, quando escuto, como agora, essa outra ‘voz’
que existe dentro de mim. Pois ela sou eu mesma, tenho certeza disto. Somos uma
e a mesma criatura, dissociadas, é verdade, porque houve uma ruptura em minha
vida. Mas aquando poderei subsistir assim, sem que um desastre sobrevenha? Até
quando poderei representar esta horrível comédia diante dos outros? Tenho medo,
tenho medo de mim mesma e não sei o que fazer...” (CARDOSO, 2006, p. 177),
Vamos perceber que o duplo, para Lúcio Cardoso, nasce predominantemente nas
elucubrações daqueles que se dividem entre as regras impostas de fora e suas próprias regras;
56
sendo necessário, talvez apenas em impulsos violentos, optar, em dado momento, por um dos
lados: um processo tão doloroso quanto a complexidade dessas almas.
1.4.3 Abstração e esterilidade: um ser contra a natureza
Outro elemento que acaba por determinar o isolamento do ser e que pode
perfeitamente, segundo Bataille, juntar-se tanto ao termo “solidão” quanto à “santidade”, é o
“erotismo”
17
. O erotismo, que talvez seja nossa “emoção mais intensa”, é por nós percebido
sob a condição de que “nós saiamos do mundo em que vivemos para nos entricheirarmos na
solidão” (BATAILLE, 2004, p. 397), uma vez que o erotismo traz a marca do segredo.
Quando falamos em segredo, falamos em interdição, já que “o erotismo difere da sexualidade
dos animais no que a sexualidade humana é limitada por interdições e no que o campo do
erotismo é o da transgressão dessas interdições. O desejo do erotismo é o desejo que triunfa
sobre a interdição” (BATAILLE, 2004, p. 403). Se todos os homens “normais” manifestam
uma sexualidade erotizada, seria correto dizer que, em dados momentos, todos nós praticamos
certas transgressões? Talvez sim, mas em A luz no subsolo o que vai diferenciar Pedro dos
demais personagens, e colocá-lo “contra a natureza”, é um comportamento que talvez o
aproxime daquilo que Bataille chama de “vício”. Mas esse comportamento “vicioso” não o
afasta do caráter “sagradoao qual o ligamos até agora. Mas que fique bem claro que o que
pretendemos denominar com “ser contra a natureza” é alguém que manifesta um
comportamento, principalmente sexual, diferente do que a sociedade cristã determinou como
“natural”.
Se, segundo os estudos etnográficos, o tempo humano é dividido em “tempo profano”
e “tempo sagrado”, Pedro deve ocupar o tempo sagrado. Mas associá-lo aqui ao tempo
sagrado não constitui qualquer esforço, haja vista que o tempo profano seria justamente,
segundo nos mostra Bataille, o tempo do trabalho e do respeito às interdições, ao passo que o
tempo sagrado seria o tempo da festa, de transgressão às interdições. Ora, “transgredir”, e não
apenas no campo erótico, é o que Pedro mais faz ao longo do livro. Há, então, um isolamento
no campo sagrado. Para Bataille, o que caracteriza a santidade é justamente um tipo de
existência que “determina a presença em nós de uma realidade sagrada” (BATAILLE, 2004,
17
Embora Bataille admita que o erotismo seja mais “solitárioque a santidade, uma “intensidade extrema”
uniria definitivamente santidade e erotismo.
57
p. 398). Uma manifestação erótica desvirtuada e ligada ao mal seria, em verdade, dotada de
uma aura sagrada.
Sartre afirma que Jean Genet serviria para exemplificar um ser “contra a natureza”,
devido, em parte, à sua homossexualidade. Sem a “obrigação” de continuar a espécie, aquele
jovem não demora a desenvolver um tipo de desejo que pouco se altera nos anos seguintes:
“sua sexualidade será feita de tensão abstrata e esterilidade(SARTRE, 2002, p.21 grifo
nosso). Além disso, mais à frente em suas análises, o filósofo identificará no escritor francês
uma tendência a ser “invertido”, justamente por ser mau. Já que a sociedade o marcou como
ladrão, Genet torna-se homossexual. Sartre não pode admitir que a inversão sexual represente
uma escolha “pré-natal” (SARTRE, 2002, p.87). Assim, certos “distúrbios” relativos à
sexualidade fariam parte das escolhas que os indivíduos vislumbram nos momentos mais
“difíceis”.
Não obstante alguns “absurdos” que as afirmações acima podem carregar, sem nunca
querer tocar no homoerotismo que obsedava Lúcio Cardoso, e sem nos valermos de análises
psicanalíticas, pensemos nos elementos que nos são dados pelo narrador para definir mais
objetivamente a sexualidade de Pedro. Parece errado querer dizer que nele há traços, em
qualquer nível de evidência, de uma homossexualidade, mesmo latente (talvez pudéssemos
identificar tais características na obsessão de Bernardo por Pedro e nas “trocas” de influências
entre ambos, caminhos que não seguiremos aqui). O que podemos dizer é que dificilmente
alguém discordaria que os termos “tensão abstrata” e “esterilidade” são quase perfeitos para
definir seus impulsos sexuais, alimentando ainda mais a sua singularidade. Nas
reminiscências de Madalena, além da evidente falta de filhos, fica clara a absoluta ausência de
um envolvimento sexual entre o casal (exceto, talvez, em um distante início de
relacionamento): “desde a primeira noite, o amor parecia ter se extinguido” (p. 69); ou ainda:
“Ela [Madalena] amava em Pedro a sua face pálida e irônica, os seus lábios que nunca a
tinham beijado com amor [...]” (p. 120).
Se o casamento de Pedro é prova mais que suficiente de uma sexualidade estéril,
inúmeras outras passagens em que ficam bastante evidentes as características de um desejo de
“tensão abstrata” (ou nem tão abstrata como talvez vejamos em passagens do mencionado
Dias Perdidos, de Lúcio). Bons exemplos são os momentos em que Pedro e Madalena
“aproveitam” para externar o ódio que nutrem de forma recíproca:
Madalena ergueu-se e aproximou-se dele. A idéia lhe voltava mais fortemente não
podia fugir a mais uma tentativa, ela que vivia de tentativas tanto tempo,
mascarando a sua vida de ilusões frágeis.
58
– Ouve, Pedro, encontrei, hoje, um bilhete no jardim.
Ele voltou-se bruscamente. Seria impossível dizer exatamente qual sentimento que o
dominava. Os olhos eram frios e dissimulados, a atitude de inteira expectativa.
– Por que não me disse antes? – arquejou Madalena.
Pedro segurou-a pelo pulso de súbito, parecia tomado de uma cólera violenta, que
estalava nas suas palavras ardentes:
–Você apanhou o bilhete, hein? Andava escondida? não se pode viver em paz
dentro desta casa!
– Oh! Pedro!
Ele torcia mais o pulso delicado. Magoada, Madalena deixou escapar um grito.
(p.118)
Ou, principalmente, a tortuosa relação que se estabelece entre o protagonista e a
vulnerável Emanuela, sua empregada. A tensão no caso fica por conta de alguns encontros em
que há contato físico entre os dois e onde não é difícil perceber a sugestão de um estupro:
[Pedro] Segurou-a [Emanuela] pela cintura, enquanto a moça se esforçava para fugir
ao seu abraço. Toda a sua carne se rebelava ao contato daquelas mãos incendiadas.
Emanuela não ignorava que seria vencida, que rolaria nos braços daquele homem a
quem não amava, mas que a dominava inteiramente, corpo e alma, pela sugestão de
um sortilégio qualquer. Mas era repugnância que sentia, uma loucura que fazia o
sangue turbilhonar na sua cabeça, enquanto dominava os nervos, cerrando os olhos
como uma condenada [...] Pedro, com um gesto brusco, segurou-a pelo braço. Ela
soluçava alto, soluços secos e desesperados, sem lágrimas, apenas com o rosto
crispado pelo sofrimento [...] Emanuela não sentia nada naquele instante. Dir-se-ia
que se encontrava hipnotizada, sem vontade própria, com os olhos cerrados, não
vendo coisa alguma. Pedro afastou-se um pouco e colocou-a sobre a cama. E,
novamente, o silêncio desceu. Pela janela aberta, chegavam os uivos dos cães, os
misteriosos sussurros da noite. (p.178-179)
No capítulo seguinte, abordaremos as atitudes de Pedro para com Emanuela, como
indicativo de sua visão objetiva frente a garota. São impulsos que envolvem conceitos como
sadismo e desejo, levando-a por fim à loucura, uma síntese desses impulsos que se
caracterizarão principalmente pelo riso.
No momento, vemos que o ataque à volátil Emanuela muito se assemelha a mais um
dos acessos que Pedro revive quando pensa em Isabel especificamente, o momento da
investida final associando as agressões a um amor infantil, o que pode certamente nos fazer
pensar que seu primeiro impulso relativo ao sexo oposto (ele chega a confessar que achava
Isabel “bela”) indicava uma manifestação primeira de uma sexualidade “contaminada” pelo
seu “amadurecimento sem limites”:
Todos nós somos assim, Isabel. Você me procurava, porque sentia o meu ódio.
Talvez que um dia nos amássemos [...] Isabel chegou correndo e rindo, tão feliz, que
até parecia mais bela. Era um vestido novo aquele, todo branco com lacinhos
vermelhos, o comprido que a cada instante parecia precipitá-la numa queda. Os
seus longos cabelos estavam presos por uma fita da mesma cor. Tudo que eu tinha
de rancor e despeito acordou naquele instante. Embriaguei-me no meu próprio ódio,
59
fitando-a com o olhar carregado de gelado desprezo. Depois não sei mais o que
falamos. Sei apenas que eu a puxei pelas tranças e esbofeteei-a. Isabel deu um grito,
rodou sobre si mesma, ficou no canto me olhando com os olhos cheios de lágrimas.
(p. 143-144)
18
Nota-se que Pedro admira e repele, em curtíssimo espaço de tempo, o seu alvo de
desejo (sadismo?). Pensando em Sade, Bataille observa que a “base da excitação sexual”
residiria justamente na “irregularidade”, criando assim o campo ideal para que se instale a
reflexão sobre bem e mal:
A lei (a regra) é boa, ela é o próprio Bem (o Bem, o meio pelo qual o ser assegura a
sua duração), mas um valor, o Mal decorre da possibilidade de infringir a regra. A
infração amedronta como a morte; ela atrai, no entanto, como se o ser não se
juntasse à duração a não ser por fraqueza, como se a exuberância exigisse, ao
contrário, um desprezo da morte exigida desde que a regra é rompida. Estes
princípios estão ligados à vida humana, eles estão na base do Mal, na base do
heroísmo ou da santidade. (BATAILLE, 1989, p. 164)
Toda essa tensão e irregularidade vão, gradativamente, acentuando a impressão de
“maldade” que todos têm de Pedro. Aos olhos dos demais personagens, ele é o mal
encarnado.
Fazendo um apanhado de ideias propostas, vamos admitir que se somos de fato um
“ser-no-mundo”, se nossa existência admite que também sejamos “para-outro”, é natural que
nossa consciência tenda a ser “moldada” pela forma como as “consciências alheias” captam
nossa exterioridade. Então, que o mal dite os passos de Pedro (tal como os homens de bem
seguem a moral predominante), mas nunca de “má-fé”, muito pelo contrário. Estarão agindo
de “má-fé” os que o julgaram, fugindo da angústia da liberdade e do sentimento de culpa. Se
nos lembrarmos que o termo “má-fé” aparece em O ser e o nada para designar justamente
aquelas pessoas que se objetivam pelo adiamento da ação que faria deles o que realmente
“são”, ou seja, uma indeterminação (e Sartre cita, dentre muitos outros, o famoso caso do
homem que “acredita” ser garçom SARTRE, 2007, p. 105), os títeres que parecem renegar
(ainda que “distraidamente”) a liberdade a que jamais escaparão, será justamente Pedro a
figura que jamais se deixará toldar por tal caracterização, pois ele não tenta (nem pode)
“parecer” mau, ele é mau!
19
18
Uma curiosidade: no acervo Lúcio Cardoso, da Fundação Casa de Rui Barbosa, o extenso manuscrito de
uma novela inacabada intitulada Introdução à música do sangue. Trata-se de um texto de teor bastante
violento, em que uma longa cena de tortura, abuso sexual e assassinato envolvendo o protagonista, Uriel, e
uma menina, uma criança que, “coincidentemente”, também recebeu o nome de Isabel.
19
Pode parecer que estamos, aqui, criando um paradoxo. Mas a naturalização do mal visa justamente converter o
mal em condição inerente. Tendo em vista que o foco central de nosso estudo é a obra de Lúcio Cardoso, não
caberia uma explanação satisfatória e aprofundada de todas as concepções filosóficas abordadas. Porém, é
60
Se para o “outro” o mal em Pedro, é preciso estar ciente de que se sempre dois
caminhos a seguir, o mal é um “outro” em todos nós, o “duplo” que vimos. Como Deus, ou
por ser, de fato, um tipo de Deus!, Pedro vai “trabalhar” (não caberia dizer “obrigar”) aqueles
que o cercam, “convertendo-os” à sua “religião”. E aqui é urgente atentar para o fato de que
Pedro começa a nascer como escritor em potencial. Em consonância com algumas ideias de
Wittgenstein para quem uma “falha” na linguagem impede que os temas fundamentais do
homem sejam “ditos”, sendo necessário operar uma transcendência que nos leve a visualizar o
“conflito” –, Pedro não pode “dizer” aos seus pares que estes são livres e que o mal faz parte
de suas essências. Ele optará então por “mostrar-lhes”, escrevendo em seus corpos a
naturalidade do mal e lançando-os no caminho de radicais metamorfoses que ocorrerão de
forma evidente. Vai mostrar-lhes o absurdo, o muro existencial que habita o “fim” de seus
propósitos, redirecionando-os a caminho de uma verdade que, se não pode ser menos
espinhosa, certamente não mais os acorrentará. Mais do que subtraí-los da posição de “má-fé”
que ocupam, é Pedro quem faz deles “evadidos” das trevas. Mesmo que de forma trágica, é a
liberdade irrestrita que Pedro os entrega, ao mesmo tempo em que busca ir além, no
desenvolvimento de sua própria consciência. Enquanto “arrasta” os outros para um temporada
no inferno, lançando-lhes na face o horror de existir em consonância com suas singularidades,
Pedro segue seu itinerário, tornando-se, nos embates com os outros (que também representam
manifestações de instintos díspares que precisa vencer para “crescer”), o sujeito do
conhecimento. Para os olhos incautos dos seres de A luz no subsolo, Pedro se aproxima deles
para destruí-los, usá-los, em sentido literal, e não em uma lógica mais “humana”. Mas o que
ele busca é “ver-se” nessas pessoas perdidas e é possível que eles não nutram por sua
imponência outro sentimento senão admiração, uma vez que ceder completamente a uma
função servil, também implica refletir e admitir os méritos do outro. Eis a forma como
Madalena observa Pedro, quando de seu primeiro encontro:
[...] fixando-o melhor, percebia em torno dele um brilho qualquer, um halo diferente,
flutuando sobre a sua pessoa e apartando-o da multidão como uma criatura eleita
[...] Continuando a reparar, chegara entretanto à convicção de que estava realmente
diante de um indivíduo estranho, inexplicavelmente fora de seu ambiente natural.
Mais tarde, somente mais tarde, pudera compreender aquele sortilégio que o
distanciava das demais criaturas, ser destinado a permanecer à parte, dentro de uma
grandeza ou de uma miséria que não era a grandeza nem a miséria habitual dos
homens. (p. 47 – grifo nosso)
preciso lembrar que ao dizer que alguém “é” alguma coisa, não estamos esquecendo que a natureza da
concepção sartriana de consciência é justamente “ser aquilo que não é, e não ser aquilo que é” (SARTRE, 2007,
p. 38). Assim, dizendo que Pedro “é mau”, queremos dizer tão somente que a maldade é o significado
transcendente de sua conduta, um estado do “ser-em-situação”.
61
A “criatura eleita” que surge não poderá recusar o “título” que lhe impuseram, visto
que “sua eleição vem da sociedade das pessoas honestas” (SARTRE, 2002, p.145) e sua
aproximação nem visa, por fim, um aniquilamento gratuito; Pedro “simpatiza” com seus
“alvos”. Se pode manipulá-los de tal modo, a ponto de quase “virá-los do avesso” (“o Outro
que ele era em potência torna-se Outro em ato”) (SARTRE, 2002, p.102), é porque denota
verdadeira identificação e união com eles, já que
[...] o coração se conhece pelo coração; alguém que me fosse indiferente não poderia
me ferir. Não basta saber o que nossa vítima deseja acima de tudo, é preciso desejar
com ela, simpatizar com seus desejos, adotá-los. Ou melhor: é preciso amá-la, é
preciso amar para fazer sofrer. (SARTRE, 2002, p. 154)
Se a serenidade de Emanuela transmuta-se em loucura, se o desprezado Bernardo
aprende a desprezar de forma criminosa, ou se a apaixonada Madalena adquire a força
necessária para anular seu objeto de adoração, é porque o “pecado” residia neles tão
profundamente quanto em Pedro. Dominá-los é ter domínio sobre instintos fundamentais,
pulsões que, em luta, levam à sabedoria.
O que vimos até agora foi como se denominam e caracterizam processos que
propiciariam o despertar da consciência, o despertar de Pedro, acionado pelo outro que
acredita, de “má-fé”, possuir as verdades absolutas da moral vigente, uma vez que está do
lado do bem (cristão e social). Após sofrer, talvez por apego às mesmas verdades, Pedro
busca em sua infância a ferramenta que faltava para se admitir originalidade onde todos viam
desvio. Seus atos, antes da Náusea, tendiam para a lei do rebanho e da humildade, da
passividade que explicita ignorância e “má-fé”. Agora que se “divinizou” (naturalizando
suas ações), mesmo que de forma não duradoura, atinge uma esfera diferenciada, onde os
mínimos gestos serão revestidos de uma significação autêntica e transformadora. Seus
movimentos agora devem ser analisados sob uma nova lei dialética: a dialética do senhor e do
escravo.
62
2 O SUJEITO DO CONHECIMENTO
2.1 Senhores e escravos
Uma vez que antevimos a relação de domínio que, de certa forma, Pedro acabará
mesmo exercendo sobre os outros personagens determinantes de A luz no subsolo, é preciso,
agora, ver as implicações contidas nas origens desse movimento, bem como os
desdobramentos reflexivos que a estrutura da “ação” de Pedro pode suscitar.
É sabido que Pedro é classificado como “mau”. Contudo, seu valor não pode se
assentar em conceitos claramente definíveis, mas na consciência de que o homem não pode
ser definido, não há repouso, pois a liberdade é ilimitada. Assim, assumir-se como seu
passado, na ociosidade prolongada do presente, sem ignorar a possibilidade de mudar
“amanhã” é, com efeito, o que lhe confere valor e o coloca acima dos demais.
Se as ações de Pedro acabarão por “mudar” Emanuela, Bernardo ou Madalena, isso
não ocorrerá porque ele simplesmente os considera fracos, mas porque sabe que sua realidade
é a realidade deles, a realidade humana. E ao contrário do que pode parecer, tanto Bernardo,
quanto Madalena e Emanuela, consideram-se “bons” não porque decidiram ser bons, mas
porque foram levados a tal comportamento pela inércia e pela incapacidade de seguir qualquer
caminho contrário
20
. São “bons” porque temem escolher e se adaptam a essa “má-fé” como se
subjugados por essências divinas e misteriosas (pelo menos para eles) forças naturais. É por
isso que Pedro poderá impor-se a eles; vai mostrar que estavam errados, uma vez que um de
seus “motes” é a certeza de que “toda pessoa refugiada nas suas convicções é, após certa
permanência nessa solidão, uma pessoa traída” (p. 161). E eles, talvez pela primeira vez,
experimentam, não sem angústia, como não poderia deixar de ser, seu poder e seu livre
arbítrio. Se sentissem, de fato, suas posições com algo “em-si”, nada poderia demovê-los de
suas convicções. Ao observarmos suas mudanças, não podemos concluir que serão para
sempre “maus”, mas sabemos que, certamente, eles se mostraram como realmente são:
livres!!! Antes, porém, passaram pelo conflito e pela condição de “dominados”.
20
Pode parecer duvidoso que Bernardo se enquadre em uma concepção tradicional de “bem”. No entanto, muito
da abjeção que inspira nos outros pode advir de sua total passividade, tanto que é constantemente comparado a
um verme, um ser reles, incapaz de pensar tal como poderíamos considerar as pessoas que, em “má-fé”, se
estagnaram no bem.
63
Evidentemente, não foi à toa que, na conclusão do capítulo anterior, mencionamos um
provável movimento dialético envolvendo “senhores” e “escravos”. Em primeiro lugar, há
que se dizer que tais palavras poderiam remeter a uma relação de submissão cujo vigor se
aproximaria de atividades ditas “primitivas”. Concernente a este aspecto, não estamos
desautorizados, pela temática de A luz no subsolo, de usar a palavra escravo”, uma vez que,
quando da impressão de estarem sobre domínio alheio, é exatamente com tal termo que se
expressam os personagens, ou a voz narrativa que se encarrega de nos revelar seus anseios
mais ocultos, como percebemos em uma atormentada constatação de Bernardo: “Cada
criatura nasce para ser escrava de alguém” (p. 109).
Em segundo lugar, usamos os termos agora problematizados numa óbvia referência ao
capítulo IV da Fenomenologia do espírito, de Hegel mais especificamente
à seção “A”: “Independência e dependência da consciência-de-si: dominação e escravidão”.
Antes de prosseguir, tentemos interpretar brevemente, se possível, o que diz o filósofo
quando se refere a “dominação” e “escravidão”.
No cerne da questão abordada por Hegel, está a ação de pôr a vida em risco para
edificar a verdade de se assumir um ser-para-si puro, em negativa à manifestação do “ser” que
não pode ser. Seguindo a análise que Paulo Meneses faz da proposição hegeliana, quando
ocorre o encontro de duas consciências, poderá ser concebida uma espécie de
reconhecimento mútuo de duas consciências-de-si, desde que
[...] cada um opere em si, para o outro, esta pura abstração do ser-para-si: uma vez,
por sua operação, e de novo, pela operação do outro. a abstração “absoluta”;
movimento que consiste em extirpar de si mesmo todo ser imediato e ficar sendo
apenas o puro negativo da consciência igual a si mesma.) (MENESES, 1985, p.60).
Trata-se da passagem da consciência à consciência de si. Um passo além da “irrupção”
da consciência que tentamos abordar no capítulo precedente.
Segundo Hegel, tal processo indicaria o “desapego da vida”. Como “vida”, devemos
entender a determinação objetiva do ser:
Surgindo assim imediatamente, os indivíduos são um para o outro, à maneira de
objetos comuns, figuras independentes,consciências imersas no ser da vida pois o
objeto essente aqui se determinou como vida.
[...]
Porém a apresentação de si como pura abstração da consciência-de-si consiste em
mostrar-se como pura negação de sua maneira de ser objetiva, ou em mostrar que
não está vinculado a nenhum ser-aí determinado, nem à singularidade universal do
ser-aí em geral, nem à vida. (HEGEL, 2003, p. 145 – grifo do autor)
64
Segue-se, portanto, a constatação de que arriscar a vida corresponde a visar à morte do
outro (da outra consciência). O que se explicita, assim, é uma espécie de combate, uma luta
que deve ser travada, porque
[...] mediante o pôr a vida em risco, a liberdade [se comprova]; e se prova que a
essência da consciência-de-si não é ser, nem o modo imediato como ela surge, nem
o seu submergir-se na expansão da vida; mas que nada na consciência-de-si que
não seja para ela momento evanescente; que ela é somente ser-para-si. (HEGEL,
1985, p. 145-146 – grifo do autor).
Pensando na “luta” que envolve as consciências, concluímos que o “senhor” seria
justamente a consciência que assume o risco de abraçar a morte; ao passo que aquele que
recuar diante desta ameaça deve tornar-se o “escravo”. O curioso é que no desdobramento de
tal teoria dialética, o escravo deva acabar percebendo, através de sua experiência, que é
possível suprimir o senhor.
Agora tentemos uma aproximação desta dialética com os personagens centrais da obra
de Lúcio Cardoso que elegemos para nosso estudo.
Tenhamos em mente o modelo “clássico” dialético hegeliano:
Tese Ser
Antítese Nada
Síntese Devir
Pois bem, vimos que Pedro tem seu despertar da consciência ao se perceber “toldado”
pelas imposições sociais que lhe constrangem a manifestação da liberdade. Isto lhe causa
tamanho mal-estar e ele passa por longo processo (náusea-desespero) de aprendizagem onde,
desde o início, vê-se impossibilitado de recusar seu passado e desprezar o ser que acredita ser.
Passa, então, a admitir suas idiossincrasias através de uma naturalização de seu estado original
(o mal), compreendendo que não “é” de fato um ser para o mal, mas um ser-em-situação,
almejando à autenticidade, que “está” mau. Ora, qual seria então o próximo passo? Dominar e
explicitar, nos outros, os mesmos impulsos (sentimentos, instintos, etc.) que foram
identificados em seu ser como totalmente maus, provando que seus “oponentes” não são bons,
mas estão sujeitos a ser bons da mesma forma que, se quiserem, podem ser (ou estar) maus.
Podemos dizer que Pedro é o senhor, porque arrisca a “vida” de má-fé onde tenderia
a se desejar quase que um “em-si” –, para se arriscar nesta morte que traz a consciência de ser
um “para-si”. Bernardo, Madalena e Emanuela, em princípio, não “desejavam” mudar,
65
acabaram se assumindo como uma estagnação impossível para a consciência humana, e,
usando algumas palavras muito caras a Sartre, podemos concluir que são escravos porque
acreditam que são tão bons, ou “definíveis”, como “uma cadeira é uma cadeira”. E ainda
temos que repetir que, na dialética sugerida por Hegel, o escravo acaba descobrindo que deve
suprimir o senhor que outrora temia. Isto também ocorrerá em A luz no subsolo, com a morte
de Pedro, e, quando for apropriado, abordaremos este desaparecimento com a devida calma.
Mas adiantemos que sua morte, seu desaparecimento, inaugura o “outro” ser dos personagens
secundários, como se finalmente realizassem sua síntese, assim, temos os seguintes
“movimentos”:
Tese A estagnação impossível de Madalena, Bernardo e Emanuela (“os
escravos”);
Antítese A “fissura” no ser que é Pedro, inserindo na estabilidade dos outros a
noção de nada e a certeza da contingência (“o senhor”);
Síntese A mudança que se opera nos personagens secundários e que os leva a
suprimir o senhor (“o escavo sem senhor”).
Prosseguindo, note-se que o capítulo que agora desenvolvemos anuncia, em seu título,
o surgimento do sujeito do conhecimento, que seria um passo além no processo de
autoconhecimento. Então, urge dizer que não limitamos a questão ao ponto de acreditar que
esse “arriscar a própria vida” do senhor, ou a síntese que se evidencia nos demais
personagens, constitui, na consciência de “ser-para-si”, uma fundamentação satisfatória
desse sujeito. A síntese dialética acima suprime Pedro, mas antes, para desencadear nos outros
o processo que os levará à síntese, Pedro passa por várias outras etapas. Para que nasça o
conhecimento, outras lutas devem ser travadas. O embate “senhor-escravo” é apenas a base de
nossa reflexão. Os outros embates, mais complexos, são de superação mais difícil. E quem
neles se sobressai torna-se, de fato, um “herói”. Talvez por ser um herói cuja glória possa
mesmo ser reconhecida na morte final, sua trajetória não pode ser dissociada da tragédia. Mas,
mesmo assim, ou talvez por isso, será sempre admirável a concretização de seus atos.
66
2.2 “Os laços invisíveis”: embates
A primeira ação narrada em A luz no subsolo, logo na primeira página, no primeiro
parágrafo do livro, mostra a hesitação de Maria ante a “possibilidade” de se digladiar com sua
prima (e “patroa”) Madalena:
Muito tempo o braço apoiado à parede, hesitou, sentindo crescer rapidamente a sua
inquietação. Quase aturdida, percebia que um absurdo desfalecimento se apossava
de seus nervos, ameaçando os seus movimentos e dando ao seu sangue um calor
pesado, que o fazia correr mais devagar, com mais força, latejando por vezes como
se fosse arrebentar as próprias veias. Do fundo, subia uma força que parecia atraí-la
instantaneamente em direção à prima [...] (p.09)
A sequência que descreve o desenrolar dessa situação primeira acaba por “aplacar”
uma sugestão de que se tratava mesmo de uma intenção de agressão (até mesmo física) por
parte de Maria. É tão intensa a angústia que antecede esse primeiro “movimento”, que poucas
páginas à frente, em meio à conversa com Madalena, Maria admitirá que “não tinha diante
dela senão a fisionomia inquieta de uma adversária” (p. 20). Como dissemos, praticamente
todos os demais contatos, todos os diálogos que seguirão nas centenas de páginas seguintes,
trarão essa marca de embate, luta, guerra:
Emanuela, logo que a porta se fechou, pôs-se a caminhar. Depois, com um gesto
brusco afastou Madalena e voltou a se refugiar na penumbra. Antes que qualquer
palavra fosse pronunciada, o clima de luta se tinha estabelecido. Tudo seria inútil,
pois restariam somente como duas rivais que medissem o terreno das suas
concessões. (p. 271)
Alguns discursos, aliás, de personagens de menor destaque como o velho Epifânio,
dão conta mesmo de uma “selvageria instintiva” escondida em cada pessoa: “[...] precisamos
olhar os outros homens como inimigos... Bem sabe que precisamos nos defender deles e de
nós mesmos, porque a morte se esconde em cada canto... Nós não somos senão lobos furiosos
dispostos a devorar uns aos outros...” (p. 317).
Mesmo o que deveria ser apenas uma conversa entre mãe e filha pode obrigar seus
participantes a se “entricheirarem”:
O seu olhar [de Camila] tornara-se desconfiado e, de vez em quando, furtivamente,
fixava a figura imóvel de Madalena, sem saber ao certo como começar uma
conversa que adivinhava tão penosa. Afinal a visitante compreendeu de súbito por
67
que aquele silêncio pesava e por que ela se entricheirava como diante de um
inimigo. (p. 35)
O que ocorre é que intenções de embate estão longe de se afigurarem como algo
ocasional, fortuito, entre os sujeitos que compõem qualquer espécie de coletividade, porque
desde o primeiro contato que travo com qualquer um de meus semelhantes, prenuncio a
dificuldade de conciliação de duas vontades que, de saída, sempre se quererão soberanas. É
obscura a natureza das forças que atam os laços invisíveis:
É interessante, [Pedro] disse consigo mesmo nós não sabemos nunca onde
começa o amor nem as outras relações entre os homens. Por trás de tudo, sempre
alguma origem obscura, um frêmito que passou desconhecido e que foi tocar, como
um vento de outono, as cordas mais sensíveis do nosso ser [...] Assim é que não
podemos nunca saber o valor exato da reação que produzimos sobre outras pessoas.
Geralmente todo um sistema de falsas deduções está colocado sobre este modo de
ver; a visão que temos é deformada segundo as nossas exigências, e a maioria dos
choques nasce da inutilidade dos nossos esforços para franquear as muralhas de uma
realidade puramente ideal. (p. 84-85)
As relações entre os seres talvez não fossem tão conflituosas se houvesse uma
possibilidade de se estabelecer a dicotomia “sujeito-sujeito”, onde cada um dos elementos
envolvidos numa relação pudesse dar vazão à sua liberdade ao mesmo tempo em que se
projeta no outro, controlando a liberdade alheia em consonância com suas vontades. Como é
evidente que tal relação só se daria numa realidade utópica, visto que não somos o outro e que
a liberdade desse outro nos assusta, em algum momento é necessário que se estabeleça o par
“sujeito-objeto”. A tentativa de entender o “ser-no-mundo”, que pode desdobrar na discussão
de “ser-para-outro”, evidencia, resumidamente, a relação de “ser-objeto”.
Pensando em A luz no subsolo, podemos dizer que Pedro, no momento em que é
“flagrado”, acaba por perder sua visão solipsista do mundo, para se enquadrar na visão do
Outro que tenta fazer dele mais um objeto entre outros.
Submeter-se a esta visão seria admitir-se como o objeto do Outro, conferindo a ele o
status de sujeito. Ainda que se considere inocente dos atos praticados, ainda que evidencie
aquela naturalização do mal que vimos, a posição de dominado se impõe. Pedro tem que
voltar a objetivar o outro, inoculando nele, de preferência de forma duradoura, a sua visão de
mundo. Assim, Pedro teria, resumidamente, duas atitudes possíveis: ou faz-se objeto diante do
outro (assimilando-o) ou tenta objetivá-lo. Quem assimila o próximo, faz com que venham à
tona “elementos” que, de uma forma ou de outra, denotariam um comportamento, ainda que
discreto, de submissão, na busca por um ser ideal, absoluto, um Deus o que Pedro, de certa
68
forma, intenta ser. Tais “elementos (ou sentimentos) primordiais” seriam: o amor, a
linguagem e o masoquismo. São justamente as “ações” mais praticadas pelos “dominados” de
A luz no subsolo: Madalena, Bernardo e Emanuela.
Por outro lado, há as atitudes que se expressam nas ações do dominador, Pedro
(quando opta por objetivar o Outro), pois é ele quem assume a posição de sujeito, senhor, nas
relações fundamentadas do livro, posição esta que o leva a comportamentos marcados pelos
seguintes sentimentos: sadismo, desejo, indiferença e ódio
21
. Um pouco à frente, tentaremos
abordar uma outra manifestação (“sintética”) de domínio: o riso. São estes, então, os
“elementos” de quem se afirma em sua liberdade e, portanto, “somente pelo fato de que me
afirmo em minha liberdade frente ao outro, faço do outro uma transcendência-transcendida,
ou seja, um objeto.” (SARTRE, 2007, p. 473)
2.2.1 Sadismo e desejo
Não é nossa intenção realizar uma análise inovadora sobre essas duas “manifestações
da vontade humana”, justamente por acreditar que são “conceitos” básicos para uma
referência aos demais (e mais relevantes) objetos de estudo, que nos levarão a pensar mais
diretamente a questão do conhecimento.
Com relação ao sadismo, acreditamos ter ficado claro que é exatamente a “atitude”
que Pedro demonstra perante seus três “alvos” principais, como vimos ao fim do capítulo
anterior de nossa pesquisa. Nas relações de domínio (sexual ou não) que exerce sobre
Madalena e Emanuela
22
ou na nefasta influência que fará de Bernardo um criminoso,
percebemos claramente o caráter “sádico” de Pedro que, na concepção adotada, o
sadismo seria pouco mais que uma apropriação instrumental do “outro-encarnado”. Seria o
primeiro impulso de objetivação do outro, um impulso ainda inserido numa etapa anterior do
desenvolvimento de Pedro.
Com relação ao desejo, podemos dizer que este pode dirigir-se tanto a necessidades
físicas e fisiológicas, comuns a uma vasta gama de seres, como também àqueles “impulsos”
21
Tais “impulsos” de assimilação (amor, linguagem e masoquismo) e objetivação (sadismo, desejo, indiferença e
ódio) são de fato apresentados por Sartre em O ser e o nada, no 3º capítulo, da terceira parte do livro.
22
Lembremo-nos que ao avaliar brevemente a relação de Pedro e Emanuela na página 58, evocamos uma
passagem em que Bataille refere-se, justamente, a Sade.
69
que tanto marcaram os estudos de natureza psicanalítica, uma vertente exaustivamente
seguida para se pensar os textos de Lúcio Cardoso. Por não ser o viés privilegiado no
momento, digamos apenas que estudiosos apontam para certa abordagem que Lacan faz da
dialética de Hegel, valendo-se da “imagem” dos embates entre os seres, para pensar até que
ponto posso “dominar” (ou vencer) o outro para obter o seu olhar. Em suma, para Lacan “o
desejo do homem é o desejo do outro” (LACAN apud PALMIER, 1977, p. 103), uma
tentativa de ver nosso desejo reconhecido pelo outro. Ora, ver-se reconhecido pelo outro é
justamente o que Pedro tentará ao combater, ao alterar radicalmente a visão que os outros
fazem dele.
para Sartre, o desejo é possível quando se opera uma espécie de corporificação da
consciência. O desejo (como o sadismo), não apenas na visão filosófica, está muito ligado às
implicações do corpo. Desejo e sadismo seriam, portanto, “atitudes” mais concernentes a
Emanuela, devido ao radical “uso” que Pedro acabará fazendo de seu corpo pela violação.
Como os atos de Pedro acabam levando Emanuela, pela via do desejo e do sadismo, à loucura,
tentaremos ligar a objetivação de Emanuela ao riso, como substituição, ou melhor,
consequência, das atitudes relacionadas ao sadismo e ao desejo.
Vejamos então o que esimplícito nos outros “sentimentos” que se imprimem nas
páginas de A luz no subsolo.
2.2.2 Odiar
Desde o primeiro contato entre Pedro e Madalena, há uma clara delimitação da
posição de dominador e dominado, sendo que as primeiras palavras ditas por Pedro
à sua futura companheira, logo ao se conhecerem, é uma “ordem” para que se encontrem
novamente, no dia seguinte:
Pedro dissera numa voz tão incisiva que mais parecia uma ordem:
– Espero-a amanhã à tarde, neste mesmo lugar, está bem?
[...]
Nada resistia àquele rosto severo quase até o mau humor, àquela decisão diabólica
marcada nos olhos, nos lábios, na sua pessoa inteira. Madalena não pudera dizer
nada, inteiramente dobrada àquele jugo [...] E compreendendo que viria ao seu
encontro, que não poderia fugir à misteriosa força que ele respirava, caminhara na
frente, desorientada, sentindo um grande terror de tudo. (p. 52)
70
E quando o encontro se concretiza, com a fracassada tentativa de resistência de
Madalena “[...] que se entregasse àquele tormento pelo poder de um desconhecido que se
impusera com um único olhar, era contra o que se rebelava” (p. 55) fica clara a relação de
poder que se estabelece:
Deixou-o aproximar-se entre receosa e aliviada.
– Tarde? – perguntou Pedro.
Madalena moveu a cabeça.
Tinha certeza de que você viria disse, um pouco seguro demais, um pouco
nada fátuo.
Madalena sobressaltou-se; compreendia bem que aquela certeza era real assim,
como no dia anterior tinha pressentido a ameaça se acumular por trás de um simples
gesto ou de um olhar que Pedro lhe tinha dirigido [...] assim recebia em pleno rosto
qualquer coisa como a visão de um destino que lhe estava reservado. (p.56)
No entanto, mesmo nos momentos de maior amargura, é amor o que se esconde por
traz do sofrimento de Madalena “[...] será possível que seja amor, que eu comece a amar
este homem?” (p. 55); “É verdade que o amo, é mais forte do que eu” (p.62); “Mas ela o
amava mais por isto, pela sua crueldade e pela sua cegueira” (p. 71); “Por muito que
desejasse, não conseguia arrancar a si nenhum ódio, mas amor, ainda amor, ferido e
amargurado, mas assim mesmo triunfante sobre todas as necessidades superficiais da razão”
(p. 119).
O amor representa a tentativa máxima de união com o outro e muito da tristeza de
Madalena, senão toda ela, advém do fracasso dessa união, da inexistência de qualquer noção
de reciprocidade: “Ela não tinha, como Cira, como outras tantas mulheres, a consciência da
sua força sobre os sentimentos de Pedro” (p.61).
Não seria errado constatarmos que Madalena assimila Pedro pelo sentimento amoroso,
para depois odiá-lo, objetivando-o, como ele fizera com ela: “Não era ódio aquilo que se
passava no seu coração, ao menor dos seus gestos?” (p.175).
Cabe assinalar que usaremos amiúde, de agora em diante, termos já evidenciados
como “assimilação” e “objetivação”. Não é difícil concluir que uma total objetivação, bem
como uma absoluta assimilação do outro são movimentos que não podem ser levados
totalmente a cabo. O fracasso das relações humanas, perpetuador do “combate” eterno que
marca cada contato entre as pessoas, faz com que assimilar e objetivar o próximo sejam
sempre “tentativas”. Tento assimilar alguém que amo, ou objetivo meu alvo de ódio... São
ações que se revelam, por fim, contingentes e onde cabe uma alternância própria do ser sujeito
ao imprevisto...
71
Retomando, só podemos dizer que Pedro será mesmo odiado por sua esposa, no
momento em que esta abandonar definitivamente sua condição de vítima. Pode-se argumentar
que Madalena não se resume a uma pessoa tão submissa como outros personagens. Em
verdade, ela até nutre em seu íntimo a semente de um caráter ambíguo, tentando recalcar
instintos que a confundem, por representarem uma faceta temida da liberdade, ainda pouco
experimentada:
[...] a maioria da vezes era uma desconhecida para si mesma [...] Esse modo de se
procurar sem se encontrar nunca reservava-lhe por vezes a surpresa de ver nascer,
sob um movimento de cuja pureza não duvidava, algum motivo secreto, uma razão
desconhecida, cheia de instintos cruéis e inesperados, que arrebatava violentamente
a sua origem primitiva. (p. 45)
Tal insegurança com relação à sua personalidade confirma-se em cena emblemática,
pouco à frente do trecho acima, quando Madalena vê-se diante de um espelho de imagem
“distorcida”, um tipo de situação que nos lembra certo episódio citado, envolvendo
Bernardo:
[...] Madalena tinha acabado de se vestir e, sorrindo, passava a mão pelos cabelos – a
imagem que o espelho lhe apresentava ao jogo trêmulo das velas lhe parecia com a
de uma desconhecida, agora que o seu ser, tanto tempo ameaçado de aniquilamento
pela vida reclusa naquele casarão, se renovava ao sopro dessas emoções novas.
(p. 45)
que sua força inicialmente suprimida por Pedro –, ao menos na primeira metade
do livro, não vai muito além da “possibilidade” de reação. Mesmo que se sinta capaz de
vingar-se das ações do marido, logo percebe o “ridículo” de tal intenção, revelando a ausência
de uma racionalidade em seu planejamento: “[...] remoendo a sua dor, planejava vinganças.
Sim, chegava a isto, chegava a mais até. Quem poderia deixar de ser ridículo quando luta
contra a razão, cego pelo amor?” (p.72 grifo do autor). Ela se tornará dona de suas
vontades quando perceber que o ódio constitui o fim de todo e qualquer laço com o outro,
deixando-a, inclusive, livre para destruí-lo: “[...] por que não se desligar de todos os laços,
romper na própria carne todas as fibras que a ligavam a Pedro, readquirir a liberdade que
perdera?” (p. 225). Com efeito, mesmo antes, quando se anunciam os primeiros “sintomas” de
sua metamorfose, Madalena já dizia, nas últimas linhas do prólogo:
Oh! por que viver eternamente criando laços que não podiam existir? Por que
fermentar em torno de si um ambiente que não podia durar, um clima que não
resistiria aos embates da vida? Por que se apegar tão encarniçadamente a pessoas
que só lhe poderiam fazer sofrer mais? (p.74).
72
Pedro objetivará Madalena através do ódio (como se anunciasse sua própria
objetivação pela mesma via), destruindo não sua essência, mas sua convicção de que o ama e
de que não passa de uma vítima. Ambas as certezas são contingentes, como o ódio, que pode
brotar a qualquer momento, se bem manipulado e destituído de uma fixa conceituação. Pedro
será superior ao ódio porque é capaz de “domá-lo”. Seu desejo por Madalena é o desejo de
mudança. Pensando assim, e admitindo que a questão do desejo nos leva, ao mesmo tempo, a
pensar em reconhecimento por parte do outro, é evidente que Pedro quer que Madalena
perceba o “prazer” que ele sente em lhe ser superior. Madalena tem que perceber a influência
de Pedro, para que possa escapar dela. Quanto mais incisiva é a ação, mais fustigada fica a
possibilidade de reação. O prazer de Pedro vem da paradoxal imagem de eliminar a liberdade
do outro (escravidão e objetivação) com o intuito de torná-lo livre. E fica claro que Madalena
não ignora esse prazer:
[...] a esses pequenos inconvenientes que o marido encontrava para opor ao menor
dos seus desejos emprestava ele um certo prazer, uma alegria furtiva, quase
dissimulada. Parecia se divertir com essas pequenas intrigas, alimentando as
dificuldades que encontrava. Assim, para ele, era um prazer que a lama impedisse
depois de uma noite de chuva a corrida da charrete, ou então que os bambus
rinchassem na ventania, prosseguindo horas seguidas naquele choro lento, que
acordava no fundo das pessoas uma espécie de enervamento que ia subindo ao mais
vivo desespero. (p. 26-27)
Por vezes, ela chega a desconfiar de uma verdade maior, por detrás das ações de seu
“amado”:
[...] ela descobriu uma certeza além de qualquer amor, uma verdade que se cumpria
porque era mais forte do que qualquer sentimento, e a que ele estava submetido,
ainda que não a amasse verdadeiramente. (p. 61)
[...] ele não a amava, não a poderia amar se bem que um elemento desconhecido o
encadeasse indissociavelmente a ela. Havia uma trágica certeza nisto; de onde vinha
esta obscura evidência, de que recessos partiria esse pressentimento, até onde se
estendia? E chegara à conclusão que essa força interior se levantava contra um u
de mentira que mascarava todos os gestos e palavras daquele homem. Essa
descoberta obrigou-a a julgar Pedro sob um novo aspecto; e pela primeira vez o seu
medo foi consciente e terrível. (p.63)
A estratégia de Pedro, ao menos no “jogo” estabelecido com Madalena, é evidenciar, a
cada instante, e da maneira mais severa possível, o grau de miséria de sua companheira,
lançando-lhe a dura verdade de sua condição de quase títere, para que, no fundo de sua
desesperança, ela possa reagir, visto que sua tendência era fugir da realidade Madalena
73
reconhecia que “mentiria, mentiria sempre, encobrindo, enquanto lhe restassem forças, a
miséria da sua vida”. Ela chega a concordar (ainda que um pouco incerta), numa breve
acomodação à posição de escrava, que “mentir é o destino de todos os que aceitam a vida” (p.
28).
Improvável, contudo, é a possibilidade de continuar mentindo indefinidamente “Não
poderia continuar para sempre naquele marasmo e naquele sofrimento” (p.260) –, agindo de
“má-fé”, diante da superioridade afiada de Pedro, que lhe dita os passos seguintes. Em dado
momento, Madalena passará a empregar todas as forças que desperdiça em seu anulamento,
em outra direção.
Sem dificuldade, podemos acompanhar seus passos.
Primeiro, ela parece “desistir”, cansada de suas divagações, e assume-se como o
máximo da estagnação:
Mas a sua existência era uma curiosa história; não se sentia com direito de coisa
alguma, nem sequer o de cortar o bambual, nem sequer o de viver bem na sua
própria casa [...] Nenhuma reação diante daquilo que ultimamente tinha se tornado
uma espécie de estado habitual, uma constância que uniformizava a sua amargura e
dava ao seu ser uma espécie de alimento cruel, soprando sobre as suas forças
adormecidas novas possibilidades de atravessar as horas vazias. (p. 25)
Depois, sem saída, já no limite da rotina na qual se vê enredada, ela começa a
descobrir uma força “desconhecida e nova” (na verdade, uma redescoberta da ambiguidade
possível) que a faz pensar na possibilidade de deixar as sombras, rumo à “claridade”. Tal
descoberta, evidencia-se também de forma gradativa e intermitente, como se assemelhasse ao
processo de “despertar da consciência” por que já passara Pedro:
Sabia-se com firmeza bastante para realizar alguma coisa do fundo do seu espírito
se elevava aquela certeza, como essa própria força, desconhecida e nova, lutando
para ocupar um lugar livre e se realizar integralmente. Um dia essa força se
levantaria, mas ela não sabia o seu destino nem podia refreá-la no seu impulso para a
claridade... (p. 54)
Repentinamente, sentiu uma tal consciência de si mesma que uma espantosa
tranqüilidade se derramou sobre seu corpo. Que lhe importava o tempo, que lhe
importavam os outros? Agora possuía forças para renunciar a tudo. Tinha poder
bastante para romper todos os laços. Por um momento se embriagou na ilusão das
próprias forças [...] Compreendia bem que era preciso renunciar ainda mesmo que
isto lhe custasse a vida. (p. 225)
Adaptando-se, lentamente, à sua “nova” capacidade de reação, Madalena percebe a
chance de se livrar do domínio de Pedro, almejando voos mais seguros. Basta reparar no
contraste entre as duas citações acima. A força que se anuncia incerta, como indeterminado
74
impulso para a claridade, mostra-se, após longas e dolorosas reflexões, bem mais clara, com
as implicações de se romper os laços (marca maior do amor que sentia), mas, principalmente,
como necessidade de r a vida em risco, o marco da possibilidade do escravo se enxergar
como senhor. Não é por acaso então que, alguns parágrafos à frente de nossa última citação,
Madalena sofra ao admitir que essa súbita concretização de uma “vontade de ir mais longe...
na própria essência da morte...” seja seguida, justamente, por uma exclamação de pavor que
lhe crispa os lábios: “oh! Não era seu aquele pensamento, ela não pensava assim, ela não
desejava pensar assim... (p.226). Isto prova a força da influência de Pedro. Descobrir-se
livre a ponto de arriscar a vida para, logo em seguida, perceber que não é sua esta importante
conclusão, é um dos motivos que farão Madalena passar a odiar Pedro de forma contundente:
Para ela só existia agora aquela voz que murmurava um raciocínio que não era seu
e essa voz era a de Pedro, ela bem a reconhecia, dizendo entre outras coisas “como
eu odeio a morna resignação desses seres que tremem com a mão pousada no trinco
da porta e se afastam, sem coragem de abri-la... como eu odeio esses seres que não
esperam mais nada, que se limitam a gastar o que recebem, sem coragem para furtar
um pouco daquilo que foi distribuído...” (p.226)
E o mais interessante é que no exato momento em que conclui tal pensamento,
Madalena é assaltada pela Náusea que, adiante, revelar-se-á como sintoma do envenenamento
manipulado pela sogra que, a pedido de Pedro, vinha colocando um misterioso “pó negro” em
sua bebida: “Subitamente, sentiu um tremendo calor subir-lhe dos pés à cabeça, a febre
latejar-lhe no rosto. Um gosto amargo espalhava-se na sua boca” (p.226). Nenhuma outra
metáfora escolhida por Lúcio Cardoso poderia ser tão eficiente para simbolizar a influência de
Pedro sobre sua esposa. Sentir na boca o amargor de se proclamar livre representa
brilhantemente a angústia de se descobrir sem amarras, prenúncio do início de uma difícil
jornada “Estaria doente ou seriam apenas os sintomas de um mal que ainda não chegara?”
(p.227). Jornada esta, que Pedro já empreende de forma notável.
As “etapas” rumo à liberdade, seguidas por Madalena, ocorrem também com Bernardo
e Emanuela. Todos eles são levados por Pedro a encarar de frente sua condição miserável, até
o insuportável ponto que lhes traz a ciência de forças desconhecidas para, em seguida, agirem
como senhores de si.
O que difere nos três casos é o tipo de “instinto” que Pedro deve aprender a dominar
para que seu “plano” certo. Nesse primeiro caso, Pedro deve demonstrar que é conhecedor
do “ódio”, pois é o que predomina, no fim das contas, quase como uma “palavra-resumo”, em
sua relação com a esposa. Deixar claro que sente prazer no que faz, como vimos, é também
75
uma parte da intenção de ser odiado por Madalena. Seu triunfo se dará quando fizer com que
ela, que vivia sufocada pelo ódio de seu companheiro “Não podia mais estar naquela casa,
separada de tudo, com o ódio de Pedro a segui-la impiedosamente, vigilante durante dia e
noite, como um raivoso cão de guarda” (p. 263-264) passe a agir exatamente da forma que
ela mais desprezava, ou seja, transformando o objeto máximo de seu amor em seu “alvo”
máximo de ódio:
Continuava contemplando o homem adormecido e compreendia, como se um u
viesse se rompendo sobre o mistério dos seus atos passados [...] odiava-o, odiava-o,
tinha-o sempre odiado, desde o primeiro dia em que o conhecera! (p.334)
Ouve, Pedro, é preciso que eu diga: estou farta destas misérias. Não quero que
você pense ter-me escapado nenhum dos seus movimentos... saiba que muito
tempo eu o odeio. (p.337)
Deixando a passividade, ela passa a arriscar a vida, renegando à condição de “ser-em-
si”
23
.
2.2.3 Desprezar (ou a indiferença)
“[...] obviamente não havia nenhuma razão para que aquela larva corrediça existisse.
Mas não era possível que não existisse.
Sartre, A Náusea
Pode ser bastante tênue a linha que separa ódio e desprezo. Mas se pensarmos de qual
dessas atitudes a personagem de Bernardo é “mais” (ou totalmente) vítima, certamente
23
É bom que se diga que não queremos afirmar categoricamente que o conceito de “ser-em-si” é diretamente
equivalente à ideia comum de passividade. Para Sartre (2007, p. 37), a passividade, tanto quanto a “atividade”,
não figurariam entre as “qualidades” do “em-si”, enquanto ser do fenômeno. Como tais palavras aparecem
próximas ao longo de nossa pesquisa, que fique claro que nossa intenção foi dizer que, por vezes, a crença em
conceitos que se pretendem imutáveis (ou certos comportamentos estagnados) pode adquirir certos níveis que
acabam transparecendo um “comodismo” tão exacerbado que até parece (num sentido metafórico) almejar a uma
condição de imutabilidade o “maciça”, quanto àquela que caracterizaria o “em-si”. Além disso, Sartre prefere
não caracterizar o “em-si” como passivo para não dotá-lo de características que seriam inerentes apenas a noções
humanas. Ora, quando damos a entender que certos personagens cardosianos apresentam uma “passividade-em-
si”, indicamos justamente os seres que desconhecem e até “temem” a verdadeira condição humana que, por não
ser estável, pode “pairar” entre alternativas “naturais” como “passividade” x “atividade”. Porém, a passividade
de certos seres parece desconhecer a condição oposta, o que nos leva a caracterizá-los utilizando as mesmas
palavras com que Sartre, no fim das contas, também caracteriza o “ser-em-si”: “[o “em-si”] Desconhece, pois, a
alteridade; não se coloca jamais como outro a não ser si mesmo [...]” (SARTRE, 2007, p. 39 – grifo do autor).
76
teríamos que optar pela segunda alternativa. E podemos certamente dizer que quando se pensa
em desprezar alguém, revela-se um tanto de indiferença (alguns dicionários indicam as
palavras desprezo e indiferença como sinônimas). Madalena, por exemplo, odeia Pedro em
contrapartida do amor que sentia; não podemos dizer, por isso, que havia qualquer indiferença
em sua relação com o marido. Bernardo, por seu turno, é desprezado por praticamente
todos os demais personagens do livro
24
, que não sentem por ele senão repugnância, sendo seu
destino totalmente indiferente aos que o cercam: “Comentava-se que, no fundo, não passava
de um vulgar intrigante” (p.86). E mesmo sua esposa, Cira, que em dado momento parece
querer chamar a atenção do marido, demonstrando um possível interesse, mais tarde não
hesitará em abandonar sua família, como aliás planejara mesmo antes de se casar, revelando
em seu suposto interesse, tão somente, um capricho.
Tal como se percebe em O ser e o nada, a indiferença perante o outro passa por um
processo de “construir minha subjetividade sobre o desmoronar da subjetividade do outro”
(SARTRE, 2007, p. 474). Tal sentimento envolve uma “cegueira” que nos faz agir como se
fôssemos únicos e soberanos no mundo. Os seres pelos quais manifesto indiferença acabam
sendo “funcionalizadas” por mim: “o bilheteiro nada mais é que a função de coletar ingressos;
o garçom nada mais é que a função de servir os fregueses” (SARTRE, 2007, p. 474). Ora,
desde suas primeiras aparições em A luz no subsolo, Bernardo é associado a um verme ou,
nas suas próprias palavras, uma “larva”: “Já me disseram que eu não passo de uma pobre
larva...” (p. 116); “[...] Pedro, desprezava aquela larva que não se acomodava ao sol.
Lembrava-se de que fora essa mesma palavra ‘larva’, a empregada por ele certa tarde. Que
sentiria de tão vil que o levasse a se considerar assim?” (p. 162).
Seguindo o raciocínio “funcionalizante” acima exposto, podemos dizer que a “função”
de um verme seria se “expressar”, em uma nociva inutilidade, através da repugnância que
gera nos outros. Para Sartre, no entanto, essa cegueira diante do próximo só pode ser
sustentada enquanto durar a vontade de minha “má-fé”. Pedro demonstra indiferença e
desprezo por Bernardo (objetivando-o), mas sabe que, neste, a função de verme é apenas um
estado transitório (“‘aquele homem também podia se quisesse’”, p. 159). No entanto, deve
mesmo mostrar-se cego perante o “valor” de Bernardo, explorando e explicitando nele apenas
o lado torpe e, assim, tal como fez com Madalena, vai descortinar o ridículo de sua condição.
Antes mesmo de racionalizar a objetivação de Bernardo, quando dos primeiros
diálogos entre os dois, Pedro demonstra “mal-estar” diante daquele, numa reação de
24
Ao que parece a única exceção seria a prostituta Angélica.
77
repelência compatível, com efeito, ao que todos, inclusive o próprio Bernardo (“Pelo amor de
Deus, não me faça sofrer... Eu sou um miserável: ninguém duvida de que eu seja um
miserável. Conheço em todas as faces o desprezo e a repulsa conheço na sua indiferença o
desejo de me ludibriar...” (p. 219)), esperam dele: “De repente, Pedro sentiu o lado torpe do
outro. Aquilo veio numa compreensão imediata e ele se encolheu, vencido por uma
inexplicável sensação de mal-estar” (p.87).
Logo depois dessa sensação, já no parágrafo seguinte, Pedro diz que “imediatamente o
seu pensamento pôs-se a trabalhar”. Começa então a estratégia de objetivação de Bernardo,
com o estabelecimento dos “laços” entre os dois. Ciente daquela capacidade de Bernardo,
Pedro aceita o desafio com certa excitação:
Alguma coisa viva, é certo, estava se estabelecendo entre eles. A emoção de Pedro
crescia. O seu espírito repelia ou aceitava o “toque”? Era difícil dizer. Somente
quando o outro partisse, poderia saber. Fitava-o nos olhos e sentia envolvendo-o um
estranho encadeamento de sensações informes. Rapidamente, como o calor do fogo
para outro fogo, os laços apareciam e se uniam, dava-se o choque, ambos
espreitavam, a dúvida cobria tudo escuramente. (p.87)
Vemos que uma dúvida “escura” paira sobre os “oponentes”, um verdadeiro exercício
de estudo entre os dois “lutadores” se inicia. Ainda não estavam evidentes as posições de
dominador e dominado. A única certeza imediata é a impossibilidade de recuo:
Se Pedro quisesse recuar, seria muito tarde. As bases estavam estabelecidas [...] o
ambiente agora era de expectativa. Ambos hesitavam em avançar num terreno que
não conheciam. Tinham lançado os seus arcos de lado a lado, mas, entre uma
bandeira e outra, flutuava todo um mundo de incertezas [...] Pedro compreendeu,
pelo seu lado, que os laços estavam estabelecidos, que eram laços iguais [...] (p. 89)
Mas acontece que logo Pedro descobre como prosseguir, ciente de como exercerá
seu domínio: “[...] a necessidade de amedrontar Bernardo fez nascer na sua cabeça uma ideia
extraordinária. Era uma mentira [...]” (p. 89). A tal mentira à qual Pedro se refere revelar-se-á
um estratagema composto por suas histórias sobre o imaginário “João da Silva”
25
, um discurso
feito para “moldar” o oponente de acordo com suas vontades.
25
Um detalhe interessante é o fato de que foi justamente “João da Silva” o pseudônimo utilizado por Lúcio
Cardoso ao escrever a peça O homem pálido, em 1961, após longa distância dos palcos. Um tipo de estratégia
para evitar as críticas constantes que marcaram suas incursões teatrais, conforme relata Mário Carelli (1988,
p.98).
78
Para Sartre, posso “moldar” o outro (na indiferença) segundo meus interesses se
descobrir a “chave” que se oculta nele, desencadear sua “função” através de certas “palavras-
chave”. Ora, as tais histórias contadas por Pedro constituem-se, tão somente, dessas palavras-
chave. Nos acalorados diálogos que se seguirão, tudo que Pedro faz é alardear os feitos de
(supostos) personagens heroicos que se destacariam por um desprendimento ilimitado e por
uma total falta de limites:
Falo do coração devorado pelas paixões... daquele que não possui coragem para
recuar e que avança até a morte, envenenado por desejos criminosos até o fundo do
seu próprio desespero, por dinheiro... ou por amor...
[...]
... ou ainda por forças desconhecidas, por forças que perseguem noite e dia e
enlaçam os corações desprevenidos...
[...]
Sim, João da Silva amava o dinheiro. Porém, mais do que ao dinheiro, ele amava
destruir. Compreende você Bernardo?
[...] É um homem inteligente... mas tem o coração devorado pelas víboras. O seu
sono é perturbado pelos pesadelos e ele não consegue se libertar dessa lama, desse
desejo de carne... dessa loucura... (p. 90-91)
Pedro fala justamente da dificuldade do protagonista de suas histórias para se libertar
da lama. Ora, vimos que Bernardo se de fato como um ser da lama. Escapar dessa
“lama” seria a ação que até então lhe parecera impossível. Pouco adiante das linhas citadas,
Bernardo decide visitar Emanuela, após uma serenata ocorrida no quintal da casa de Pedro, na
esperança de que ela possa ajudá-lo a conquistar Madalena – um ato antes impensado para sua
figura inútil. E quando tem a ideia de ir ter com a criada, é justamente das palavras de Pedro
que ele se lembra:
“Falo do coração envenenado pelas paixões... daquele que não tem coragem para
recuar”... As palavras de Pedro soavam odiosamente na sua cabeça. E não era isto?
[...] era o primeiro passo dentro do território inimigo. Não era mais o avanço cego,
mas o plano estabelecido, a premeditação inteligente [...] era bem possível que a
vitória ainda fosse sua. (p. 109-110)
Acreditamos estar claro, portanto, que se Pedro objetiva Bernardo pela via do desprezo
e da indiferença, Bernardo, por sua vez, assimila Pedro através da linguagem. Quando
falamos em linguagem, temos em mente a ideia de ser a língua “o fato de uma subjetividade
experimentar-se como objeto para um outro” (SARTRE, 2007, p. 464), e que se a linguagem é
uma forma possível de submissão, isto ocorre porque ela também “se define como um modo
de querer dominar o outro pelo fascínio, atua magicamente sobre o outro, tentando fazer dele
um ser fascinado por um objeto fascinante [...]” (BORNHEIM, 2005, p. 104-105).
79
As palavras de Pedro representam o veneno de Bernardo, como ele mesmo admite
em certos encontros entre os dois: “Eu não posso mais! Quando eu o encontro, sinto que o
diabo se apossa de mim... Tenho horror das suas palavras!” (p.214); “Tenho pensado agora
em todas as suas palavras, inútil esconder mais que elas têm vivido comigo noite e dia,
devorando este é bem o termo devorando o meu espírito” (p.345). São essas palavras que
irão, gradativamente, aguçando-lhe a percepção de sua liberdade. Bernardo passará, de forma
surpreendente, da condição de desprezado, vítima máxima (em vergonhosa passividade) da
indiferença alheia, para a posição de desprezador (movimento de objetivação dos outros). E
quanto júbilo ele sente ao começar a se ver livre das incômodas amarras:
Desceria ao fundo, se preciso fosse, porque já não era a sua alma que o habitava – no
seu peito existia um outro coração e a sua alma era a de um desconhecido [...] Ele se
erguia sobre a lama e os odores pútridos, porque adquirira subitamente uma
consciência do seu destino essa consciência o fazia crescer na treva [...] Bernardo
ergueu-se no coração da noite e se sentiu um Deus. (p. 283-284)
Pedro tinha me dito que o pior são as criaturas amedrontadas consigo mesmas e
hoje eu resolvi não ter mais medo e me evadir do subsolo em que estava encerrado
[...] Mas já não era mais a larva prosseguiu com uma sinistra serenidade o diabo
tinha se apiedado de mim. Era um velho, um velho debochado e cínico, mas não era
o mesmo! Compreendi isto de um golpe e quando me vieram dizer que Sérgio
estava doente, eu os enxotei como uns cães... (p. 312)
A intensidade vai se agravando de tal maneira, até que Bernardo, sempre instigado por
Pedro, cometa a ação que permitirá a consciência de “estar” totalmente do lado oposto ao qual
praticava sua existência de larva. Tal ápice será representado pela tentativa de ferir fatalmente
a prostituta Angélica, sua companheira máxima em abjeção e exclusão. Só quando está
prestes a estrangulá-la é que Bernardo nota a real “fealdade” de sua amante: “A fealdade da
mulher lhe aparecia naquele instante em toda a sua nitidez a pele flácida do rosto tremia,
amarelecida pelo medo. Os braços nus deixavam à mostra marcas fundas e queimaduras. A
luta travou-se rápida e feroz [...]” (p.324).
E seu ato visa quase a reprodução fiel da última história libertária narrada por Pedro:
Discurso de Pedro: Ato de Bernardo:
Vou lhe contar uma história
disse Pedro sorrindo.
Bernardo fitou-o com ironia.
Você me conta sempre
histórias – disse com amargor.
[...] Escute: era um homem
Como se sentisse um arrepio
subir-lhe o corpo, [Angélica]
curvou-se e apanhou o xale
que tinha deixado cair na
escada, cobrindo com ele os
ombros nus.
80
como qualquer outro, amava
uma mulher mas o seu desejo
era impossível a mulher não
o amava [...] no fundo ele
conservava um certo horror por
si mesmo e pela sua escravidão
[...] aquilo tinha se apoderado
dele para sempre e...
E? fez Bernardo
angustiado.
[...] numa noite escura,
quando a mulher descia
sozinha a estrada, ele esperou-
a [...] Quando a mulher passou,
saltou sobre ela e a estrangulou
com o próprio xale [...]
(p. 217 -218)
Que é isso? Gritou
Bernardo.
Angélica estremeceu, sem
compreender direito.
Um xale respondeu
hesitando.
[...]
Angélica parecia ter
enlouquecido, praguejando e
rindo ao meso tempo.
Bruscamente ela se viu
estrangulada: as mãos de
Bernardo tinham encontrado
o xale e puxavam-no forte-
mente a mulher perdia as
forças, queria lutar ainda,
batendo no ar os braços.
(p.324-325)
A história a respeito do homem que enforca a amante com um xale tomara conta do
pensamento de Bernardo de tal maneira que ele passa a ter alucinações sobre o fato:
Sentiu o roupão roçado pelo corpo que fugia, mas só pôde distinguir a forma branca
que desaparecia no escuro, um xale que ondulava. O sangue subia-lhe à cabeça.
Lembrou-se da voz de Pedro e um terror infantil paralisou-o [...] teria sido uma
alucinação? [...] Xales brancos, vermelhos, ele os odiava a todos... (p.286-287)
Via uma estranha figura de mulher, correndo levemente na sombra. Em torno do seu
pescoço, um xale branco ondulava, encolhia-se, tornava a se abrir como uma leve
asa de seda. Bernardo punha-se a persegui-la, mas não conseguia ver-lhe o rosto; a
desconhecida corria com grande rapidez e a noite era escura [...] e como a mulher do
xale tivesse parado, voltando-se vagarosa, arrastou-se como um felino e,
apoderando-se da écharpe de seda, estrangulou-a com um grande suspiro de alívio.
(p. 291-292).
Qualquer mulher que se apresentasse utilizando essa peça poderia se tornar mais uma
de suas vítimas, como se conclui por seu comentário ao encontrar Madalena em uma “noite
escura”, como no “conto” de Pedro:
[...] Ele [Pedro] me atormentou pavorosamente com a história do xale, sabe?
Curvou-se sobre o estribo e soprou com o rosto junto à lanterna:
Mas é uma felicidade, meu Deus, que eu não tenha coragem e que você não tenha
xale! Eu tremia nesta estrada e esperava: o demônio de me dar forças e ela de
passar aqui... (p. 311)
Ou, ainda, como nos leva a pensar a voz onisciente do livro, ao descrever a tão ansiada
fuga de Cira “[...] sem olhar para coisa alguma, os olhos secos, saiu precipitadamente do
quarto. No caminho, tomou um xale, enrolou-o no pescoço e, sem hesitar mais, ganhou a
81
estrada” (p. 300) instigando no leitor o falso anúncio de um possível encontro mortal entre
ela e o marido. Segundo as próprias palavras de Bernardo, a obsessão se impunha como
“vontade de senhor implacável” (p. 291).
O certo é que Bernardo literalmente mata sua condição de parasita, para voltar contra
os outros as sensações que parecia não se cansar de receber. Perante seus olhos, agora cegos
para o outro, qualquer manifestação de indiferença alheia perderá a importância, soará
destoante. Ao adentrar a imunda taberna que antes se afigurava como algo semelhante a um
lar, na situação de “evadido”, Bernardo se surpreende com o cenário do qual, antes, era
parte integrante e vislumbra, com ar superior, os fracassados que por ali se acotovelavam:
“Colou o rosto ao vidro do café e olhou. Homens bêbedos se espojavam sobre as mesas.
Criaturas estranhas transitavam numa espécie de fumo. Então, como uma chaga que
borbulhasse no seu coração, perguntou ainda: saberão eles que alguma coisa terrível está para
acontecer?” (p.314)
Ao promover uma mudança na concepção da palavra “desprezo”, ou “indiferença”,
Pedro mais uma vez se mostra conhecedor de primitivos, e fundamentais, instintos... Quase o
detentor ideal do conhecimento.
2.2.4 Riso e loucura
“O riso, dizem, vem da superioridade.”
Charles Baudelaire, Da essência do riso...
vimos as transformações por que passaram Madalena e Bernardo. E vimos também
que tais mudanças estariam ligadas a uma radical conversão na forma como tais personagens
operam, respectivamente, seus impulsos de odiar e desprezar. Resta ainda analisar a última
das três grandes mudanças que ocorrem em A luz no subsolo. Esta derradeira metamorfose,
talvez a mais dramática, opera-se com Emanuela, a opaca empregada de Pedro e Madalena.
Até agora, todos os adjetivos usados para definir Emanuela compactuam com a certeza
de ser ela um ser bastante frágil. Muito dessa convicção pode ser confirmada quando
analisamos a primeira impressão que os outros, mais especificamente Madalena, têm de sua
imagem:
82
[Madalena] Achou-se diante de uma estranha criatura. Era quase uma menina [...]
Notava-se que ainda estava em pleno desenvolvimento [...] A sua voz era rouca,
imprópria para uma criatura daquela idade. Madalena sentia uma curiosa reação
diante da pequena figura. Era um misto de piedade e de ternura, uma percepção da
sua fragilidade, como se tudo que a rapariga tivesse de infantil e de inexperiente
transpirasse como um doce brilho sobre seu rosto [...] Era como se tivesse diante de
si uma criança ainda em pleno mundo de sonho, um ente maravilhado a quem a vida
não marcara ainda com seu rude contato. (p. 79-80)
E se a reação de Emanuela diante da nova patroa chega a ser de uma serena
tranquilidade “[...] coisa alguma denunciava o temor em Emanuela” (p.81) ao se ver
diante de Pedro, ela é prontamente dominada pelo terror, numa clara entrega ao “senhor”:
Pedro a contemplava, mudo, com o olhar frio, quase cruel. Madalena voltou-se e
fitou a criada. Estava imensamente pálida e, apesar de conservar o mesmo ar
infantil, transpirava violentamente da sua pessoa um medo extraordinário, um medo
tão visível, que chegava a lhe marcar no rosto uma expressão angustiada de terror.
(p. 83)
Mesmo olhando-a de forma “cruel”, desde o início, Pedro sente-se atraído por ela,
talvez por perceber, ainda implicitamente, o seu potencial ainda não trabalhado seja como
for, a citação abaixo torna evidente a manifestação do “desejo”:
Ao deparar com o pequeno vulto da criada, sentira no corpo um leve arrepio, que se
transformara depois numa vontade invencível de tocá-la com as mãos. A sua figura
despertara nele um mundo de sensações absurdas, como se toda ela fosse um apelo a
secretas regiões do seu ser [...] que força havia, pois, naquela criança que pudesse
despertar tão viva reação num homem como ele? (p. 84)
[...]
Pedro sentia que Emanuela era “alguém” para ele. Talvez fosse cedo para avaliar a
sua importância. Mas ele a sentia vivamente, como um aviso gritado no escuro, um
sinal aberto de repente à sua indiferença. (p. 85)
Pedro quase chega a pensar que a ama, acabando por admitir que “aquela atração não
comportava ainda um título tão grande” (p. 167). Mas nós discutimos alguns
desdobramentos pouco convencionais dessa atração, como sua relação com o sadismo. O que
tem de ser dito, contudo, é que Emanuela também parece estar amando Pedro. Ora, amar
alguém que lhe inspira medo e terror é uma demonstração da maneira como Emanuela
assimila Pedro: o masoquismo.
Porém, a maior mudança por que passará Emanuela evidencia-se em uma
decomposição de suas convicções espirituais, que ela percorrerá um sombrio trajeto de
características demoníacas. No caso, o impulso a ser trabalhado por Pedro será o “riso” – uma
83
forma de objetivação que nos permitiremos “acrescentar”, devido a motivos discutidos, por
acreditarmos em sua “função” dominadora, tal como percebemos em toda a obra cardosiana.
Antes de mais nada, deve-se dizer que Lúcio Cardoso lera o clássico ensaio de Henry
Bergson sobre o tema, como fica evidente em seu Diário completo: “Escutando as risadas
descomunais de alguns companheiros de trabalho, que se divertem enchendo a noite de urros,
pergunto a mim mesmo o que é o riso. Bergson definiu-o num pequeno livro magistral”
(CARDOSO, 1970, p. 22). Temos mesmo que reconhecer que uma comunhão de algumas
ideias de Bergson com partes de A luz no subsolo. Sempre enfatizando que “não
comicidade fora do que é propriamente humano(BERGSON, 1983, p.15 grifo do autor), o
estudioso ressalta a importância de um certo “distanciamento” do observador de determinada
situação, para que, por exemplo, um drama se converta em comédia. Para quem observa
alguém que cai na rua, ou para quem se embaraça com situações análogas, o risível se
manifesta na observação de uma “rigidez mecânica” (BERGSON, 1983, p.15) E Bergson
ainda afirmará que, acima de tudo, o que há de cômico no homem é “nos solidificarmos em
tipo” (BERGSON, 1983, p.78).
Poderíamos muito bem enxergar a situação de Emanuela, e também de Madalena e
Bernardo, que acreditam “ser” o que “estão sendo”, rígidos e mecanicamente adaptados a suas
rotinas, como um forte motivo de riso para o observador sensível e superior que é Pedro,
personagem que detém a “maleabilidade atenta” que o coloca, mais frequentemente, na
posição daquele que ri, do que na do provocador do riso. Por outro lado, não obstante a
referência do próprio autor de A luz no subsolo, não valeria nos aprofundarmos na teoria de
Bergson, uma vez que também não era essa a intenção de Lúcio Cardoso:
[...] sem pretender entrar na sua metafísica [de Bergson], acho apenas que [o riso] é
explosão de um ser recôndito e monstruoso, uma pura vitória do “outro” que
irracionalmente nos habita. Não somos nós, não é a natureza que dita aquele ruído
ao contrário, esquecemos tudo, entregamo-nos a uma noite inesperada e violenta,
transmitindo através desse cascatear absurdo, a voz de alguém que ordinariamente o
espírito domina. (CARDOSO, 1970, p. 22).
É impressionante como o teor desta citação sobre a manifestação do riso colabora com
nossos propósitos reflexivos. Ao dizer que o riso seria a irrupção de um outro que nos habita,
cuja manifestação segue uma tendência “monstruosa”, Lúcio Cardoso parece mesmo referir-
se, principalmente, à função que o riso adquire em A luz no subsolo. O riso manifestar-se-á
sempre nos momentos de tensão, quando a racionalidade parece mesmo fraquejar. Sua
84
primeira “manifestação” ocorre em meio ao embate discursivo entre Maria e Madalena,
quando esta, ainda entre lágrimas, “ri” diante da confissão dos medos de Maria:
Repentinamente, Madalena deixou escapar um riso agudo inclinara a cabeça para
traz e o sol batia em cheio sobre o seu rosto. Muito tempo ainda, a gargalhada
permaneceu intata no ar, dotada de uma vida diferente e autônoma, rica de
expressões metálicas, o que lhe dava um certo tom acanalhado e cruel. Maria
erguera a cabeça confusa [...] enquanto o coração ferido lhe revivia com insistência a
sensação desolada que a risada lhe trouxera. (p. 22-23)
O riso exerce seu “domínio” pelo caráter “autômato” no qual se precipita. Mas,
mesmo surpresa pela “agressão” praticada por Madalena, é através do riso que Maria revida:
“Maria fitou-a nos olhos as lágrimas pareciam prestes a descer. Permaneceu imóvel, um
sorriso nos lábios [...]” (p. 23).
Em diversas outras ocasiões, o riso ressurge sempre seguindo a terrífica linha
elucubrante agora exposta. Podemos citar o momento em que Madalena recorda a dolorosa
convivência com sua mãe, Camila, relacionando suas “risadas” ao repugnante vício do álcool:
“Procurava se interessar pelas coisas da casa. Ajudava Cira na costura e conversava com
Camila, esforçando-se para suportar as suas risadas e as suas palavras impregnadas de álcool”
(p.67). Ou então, quando Pedro zomba de um pequeno acidente envolvendo Adélia
reparemos que ao descobrir o riso do filho, a velha reage com um “olhar de ameaças”,
tamanha a mágoa que o riso é capaz de causar:
Atordoada na semi-escuridão, Adélia tropeçou numa cadeira, deixou escapar um
gemido. Machucara o pé, logo ao entrar.
– Diabo! – exclamou.
Pedro pôs-se a rir silenciosamente. Ela descobriu esse riso e, por sua vez, lançou-lhe
um olhar pesado de ameaças. (p. 152)
Uma boa referência teórica que pode nos ajudar a pensar o riso, melhor que Bergson, é
o texto “Da essência do riso e, de um modo geral, do cômico nas artes plásticas”, de Charles
Baudelaire. Segundo o escritor francês, o riso deve ligar-se ao demoníaco, lembrando-nos que
“no paraíso terrestre, quer dizer, no meio onde parecia ao homem que todas as coisas criadas
eram boas, a alegria não se encontrava no riso” (BAUDELAIRE, 1991, p. 29). Rir será mais
um dos recursos de Pedro em sua empreitada rumo ao conhecimento e à evidenciação da
angústia humana que reside na liberdade. Pedro é o “ridente”, aquele que, segundo
Baudelaire, deve conhecer e dominar a “potência do riso”, visto que o cômico se “encontra no
ridente e de forma alguma no objeto do riso” (BAUDELAIRE, 1991, p.35). O “objeto do
riso”, para Pedro, deve ser, de forma predominante, Emanuella, o ser mais “rígido” e
85
aparentemente imutável de A luz no subsolo. Não por acaso, uma acentuação da figura
ridícula, e bastante risível, de Emanuela, na irônica observação que Madalena faz ao se
encontrar pela primeira vez com a moça:
Estava vestida de chita e calçava alpercatas. Com rápido olhar Madalena reparou
que o vestido era grande demais para sua pessoa. Trazia ainda um velho xale
colorido sobre os ombros. Pelo todo, parecia uma cigana. [...] Encostara-se no portal
e conservava a cabeça erguida, os grandes olhos dilatados. Madalena não pôde
deixar de sorri, quase alarmada. (p.79-80)
Quando acaba por levar Emanuela à loucura, Pedro a coloca na posição do ridente,
superior às demais peças que antes “riam” dela. Em sua nova “ocupação”, Emanuela passará a
ser temida, assumindo configurações satânicas , tornando-se, ironicamente, mais humana, e
mesmo superior: “[...] o cômico é um dos mais claros signos satânicos do homem [...] O riso é
satânico, é, portanto, profundamente humano. Ele é no homem a conseqüência da ideia de sua
própria superioridade [...]” (BAUDELAIRE, 1991, p. 32-34).
Em alguns momentos, parece que o riso é utilizado como espécie de “arma”
26
por
quase todos os personagens do livro, sendo possível acreditar que Pedro não poderia se
destacar como “soberano” uma vez que tal expediente chega a ser utilizado também contra
ele:
[...] de súbito, Madalena rompeu numa gargalhada nervosa, que encheu a sala de
vibrações metálicas. Ela própria sentia a amargura daquele riso doentio e conservava
a cabeça entre as mãos, incapaz de se deter. Por algum tempo durou isto, o busto
sacudido, o rosto congestionado. Pedro não se movera. Apenas, se Madalena
reparasse, veria as suas mãos inquietas premindo fortemente o peitoril de madeira
[...] a voz de Pedro soou bruscamente:
– Detesto esse riso. (p. 98)
Bernardo pôs-se a sorrir [...] Pedro se deteve. O seu olhar levemente irônico cortou a
risada que se alongava. Mas por um momento ainda perdurou no ar, como a
lembrança seca de um rastilho, a impressão daquele riso sem motivo. (p.162)
Contra tal argumento, evidenciemos a “manipulação” que Pedro exercerá sobre tão
funesto impulso. Ora, os demais personagens fazem “uso” do riso, e tal utilidade jaz sobre
forças quase irracionais que simplesmente “fogem” ao controle – tanto é que, em certa
26
Ao dizer que o riso é uma “arma” podemos concordar com André Comte-Sponville, quando ele diz que o riso
pode ser uma virtude se ligado ao humor, e uma arma se ligado à ironia. Sem discutir tais conceitos, vale
assinalar que para Comte-Sponville o riso irônico é uma agressão voltada contra outrem, “é o riso mau,
sarcástico, destruidor, o riso da zombaria, o riso que fere, que pode matar [...] é o riso do combate” (COMTE-
SPONVILLE, 2004, p. 231).
86
ocasião, ao se sentir “violentada” pelas palavras de Pedro, Madalena tem que se esforçar para
reprimir um riso de “medo” que tenta escapar como um grito:
[Madalena] Não conseguira disfarçar ainda a sua irritação [...] Mas teve,
instantaneamente, a sensação de que fora violentada nos seus melhores meios de
defesa, de que aquele homem penetrava de ímpeto no terreno onde ela procurava
ocultar a sua emoção. Sufocara um riso áspero na garganta – medo! (p. 50)
Porém, algumas vezes, Pedro parece utilizá-lo conscientemente, como complemento
aos seus recursos de “tortura”, tal como em singularíssima cena protagonizada ao lado de
Emanuela, quando utiliza do riso para “esbofeteá-la”, usando a gargalhada para completar os
ataques literalmente físicos:
Pedro ergueu-se de repente e segurou-a pelos pulsos. Estava tão próximo da criada,
que ela via as têmporas do homem latejando. Uma cólera surda começava a lhe
aflorar o coração.
– Deixe-me! O senhor é um louco.
A risada de Pedro arrebentou como uma bofetada.
– Talvez que eu te ame. Isto é possível também...
Emanuela se estorcia, lutando para se libertar:
– Deixe-me! Deixe-me! (p. 135)
Ou então, na já citada cena em que se insinua uma situação de violência sexual,
quando os “ataques” físicos de Pedro são acentuados por um riso doentio: “Ele deixou escapar
uma risada. Segurou-a pela cintura, enquanto a moça se esforçava para fugir ao seu abraço
[...] Pedro pôs-se a rir, um riso nervoso, contínuo, quase desesperado. Quando terminou, ela
estava diante dele, tão perto que as respirações se confundiam [...]” (p.178-179).
O fato é que Emanuela, de forma gradativa, deixa de ser alguém temente a Deus
“Sei que Deus está comigo” (p.112); “Só Deus sabe de tudo(p. 134) para tornar-se a
própria personificação do mal, detentora permanente, mesmo que não eternamente, mas ainda
por isso privilegiada, do riso. Um prenúncio de sua nova condição pode ser captado no
momento de sua volta para casa, quando vai ao encontro do pai agonizante, após longa estada
na casa de Pedro. Em meio a divagações e lembranças que contradizem de forma flagrante
sua antiga concepção da infância e da família, Emanuela começa a se conscientizar do
amargor de sua condição. Não obstante uma evidente emoção ao se deparar com a irmã
Raquel, a vista do pai moribundo desperta de pronto, em meio ao tormento inerente a tal
situação, uma vontade incontrolável de rir:
Oh! O pai devia estar morrendo... Imóveis, as três crianças permaneceram algum
tempo na sala estreita, sem nada para dizerem. E Emanuela sentiu repentinamente
87
uma absurda vontade de rir, de segurar o rosto afilado da irmãzinha, sacudi-lo entre
as mãos, chorar perdidamente sobre aquela miséria. (p.198)
Marcadamente, a simbologia (ou uma delas) que representa a loucura de Emanuela é
também a figura do mendigo resignado, o duplo de Pedro. Em um discurso delirante, num
diálogo desconexo com Madalena, Emanuela emite sintomas evidentes da perda da razão, ao
revelar que acreditava conversar com Deus “Deus tinha me dito que não dissesse nada, mas
agora é mais forte do que eu mesma” (p.273)mesclando sua fala com a linguagem de Pedro
acerca de suas “visões”: “Dizia coisas esquisitas... alguém que o visitava, que lhe falava no
mar, em navios perdidos, nem sei o que mais... [...] Era uma sombra que o perseguia. Falou-
me tanto que eu seria capaz de reconhecê-lo, encolhido em seu capote esfiapado... E as suas
histórias, a janela aberta, as criaturas gritando...” (p. 273). Com efeito, logo após a partida de
Madalena, em meio à escuridão absorvente, uma Emanuela “pálida de terror” vislumbra
finalmente a encarnação resignada da loucura, curiosamente trajando “um xale escuro
enrolado em torno do pescoço” (p.278), uma das mais bem sucedidas representações da morte
na obra cardosiana: “Decerto era pálido, de uma palidez macerosa e triste como que o
sangue não corria nas suas veias e nele tudo era lento, de uma lentidão extrema e indefinível”
(p.279). Comovida, Emanuela se renderá a esta aparição sem esconder a sensação de que toda
a sua vida poderia muito bem se resumir à espera de tão importante momento. Abraçando,
ainda que com resistência, o duplo de seu amante”, é como se Emanuela abrisse mão de sua
subjetividade para assumir-se totalmente como objeto do outro, querendo a si mesma como
“objetividade-para-outro”, o que, segundo Sartre, seria mesmo a maior evidência do
masoquismo: “ser absorvido pelo outro e perder-me em sua subjetividade para desembaraçar-
me da minha” (SARTRE, 2007, p. 470).
A “instalação” da loucura é comparada a uma vitória, vitória de Pedro, e vitória do
riso, já que a fronteira é mesmo delimitada por uma “risada animal”:
– Pelo amor de Deus, deixe-me! – gritou quase vencida.
Uma rajada de vento escancarou a janela. A luz escarlate da lamparina tremeu e
apagou-se de súbito no silêncio, ouviu-se o rangido do gancho de ferro. Uma
risada animal vibrou dentro da sala. Emanuela sentiu o mundo se abrir aos seus pés e
as coisas oscilarem sobre a sua cabeça. Sacudida pelo vento, a janela estalava e,
sentindo no rosto o hálito frio do abismo, correu e debruçou-se sobre a escuridão
com um grito amargo de vitória. (p.282)
Após esta terrível descrição do verdadeiro processo de “possessão” da loucura, sem
dúvida a mais assombrosa passagem de todo o livro, Raquel, a irmã de Emanuela, ouve as
palavras da “madrasta” Emília, decretando a sentença fatal: “Emanuela jamais retornará de
88
sua loucura...” (p.282). Em verdade, é mesmo a partir dessa verdadeira epifania macabra
que os outros passam a referir-se a ela como “louca”. Tal descrição encontra interessante
ressonância e paridade nas linhas finais de Inácio, de 1944, primeira obra de caráter
realmente urbano na bibliografia cardosiana, à qual já nos referimos. No desenlace da trama, o
protagonista Rogério Palma, que empreendera torva jornada pelas noites cariocas à procura de
seu misterioso pai, que nome ao livro, revela-nos, no último parágrafo, que narrava toda
sua história de dentro de um sanatório sendo que nas linhas precedentes evidenciara seu
processo de deflagração da insanidade através de uma “eclosão” do riso, algo muito
semelhante ao que ocorre com Emanuela:
[...] Não me contive mais e, relaxando os nervos o longamente tensos, comecei a
rir, a rir nervosa e descontroladamente, um riso que me libertava. Um senhor idoso,
no banco defronte, voltou-se para trás:
– Mas este rapaz está completamente louco! – disse.
E tinha razão. Levaram-me do carro e, se bem que me ache agora em
convalescença, desde três anos que estou num sanatório. (CARDOSO, 2002b, p.
146-147)
Mas se, como vimos, todos os personagens fazem uso do riso, por que, afinal de
contas, veríamos justamente em Emanuela uma maior significação do riso? Ora, vimos que
ela é quem mais se encaixa, quando sã, na incômoda posição de alvo do(s) ridente(s), mas
também porque nela, ao se ver do outro lado, a simples presença do riso, a mais reles
manifestação de qualquer traço de algo irônico, seria por si significativo. A loucura
demoníaca de Emanuela insere-se mais no campo dramático do que no cômico. Geralmente,
não se ri de alguém que nos causa grande medo: “[...] ela grita e faz medo às pessoas” (p.339).
Louca, ela não mais precisa temer o riso alheio e por se expressar, carente de uma razão que
leva ao mecanicismo, de forma sempre imprevisível, passa a ser dotada de uma “elasticidade”
(ou “flexibilidade”) e de uma “tensão” que a afastam, ainda mais, do alvo dos possíveis
ridentes. Aliás, é Bergson quem também admite que “elasticidade” e “tensão” são justamente
o oposto do “automatismo” e da rigidez” que caracterizariam um ser pendendo para o
cômico, afinal “[...] rigidez é o cômico, e a correção dela é o riso” (BERGSON, 1983, p. 19).
Acrescentemos o fato de que personagens como Adélia e Pedro trazem consigo, desde
o início do livro, uma pungente manifestação do “mal”. Bernardo e Madalena podem ser
compreendidos como vítimas, em determinadas situações, mas não são, definitivamente,
pessoas inocentes! O que distingue Emanuela de forma mais marcada, agravando seu
sofrimento por ser motivo de riso, é, com efeito, sua inocência. Mesmo quando se confirma de
forma absoluta a loucura, é ainda por ser comparada a uma criança que tal fatalidade soa
89
ainda mais lamentável, acentuando uma perda muito maior do que se notaria nos demais
personagens, juntando-se ao fato de macular a sacralidade da infância que já reparamos: “... e
o pior é que não passa de uma criança” (p.340).
Resta, portanto, dizer que, para um louco, todos aqueles que “insistem” na trágica
“normalidade” são o motivo de seu riso doentio. E desde sempre, tanto na literatura, quanto
em diversas outras manifestações, ou representações, artísticas da natureza humana, o riso, tal
como compreendido por Lúcio Cardoso, num contexto francamente oposto à manifestação da
felicidade
27
, está diretamente ligado à manifestação da loucura “[...] o riso é geralmente o
apanágio dos loucos” (BAUDELAIRE, 1991, p. 28). Não seria diferente em A luz no
subsolo, que mesmo antes da manifestação da demência de Emanuela, como foi dito, o
riso aparece, mesmo que de forma sutil, ligado à perda da razão, como também se nota após
um “duelo” entre Adélia e Madalena:
Madalena sentiu de repente uma estranha alegria, ao pensar que não se deteria, ainda
mesmo... Lembrou-se de que as pernas poderiam traí-la... que poderia rolar e cair
nas mãos de Adélia... Então fez um supremo esforço e ganhou o corredor escuro.
Mas ao ouvir os passos apressados estalando nos degraus da escada, foi sacudida por
um acesso de riso, “Tenho a impressão de que estou numa casa de doidos” – pensou.
(p. 230-231)
Enfim, numa trama de espectros, a manifestação física mais recorrente é o riso. E
quanto maior for a simplicidade do caráter exposto ao riso, maiores os riscos de se contaminar
por uma forma quase irreversível de alienação.
2.2.5 Outras conversões
Caberia ainda considerar a influência que Pedro poderia, ou não, ter exercido sobre
dois outros personagens de A luz no subsolo, com os quais teve considerável contato: Maria e
Adélia.
Com relação à assustadiça Maria, a “prima pobre” de Madalena, só podemos dizer que
certamente também foi influenciada por Pedro. Quando do início da narrativa, a ação de
Pedro sobre ela acabara de se cumprir, tanto que as primeiras páginas do livro descrevem sua
angústia ante o prenúncio de sua decisão de ir embora. Ela revela que está indo embora por
27
Tal contraposição também encontra respaldo no texto de Baudelaire que analisamos agora, que este nos
lembra que “deve-se inicialmente distinguir a alegria do riso” (BAUDELAIRE, 1991, p. 37).
90
causa da “sombra de Pedro” (p.21), não sem antes confessar que jamais se sentira tão livre em
toda sua insignificante existência: “Muitas vezes a assaltara sensação idêntica, mas nunca
como agora, a percepção absolutamente pura de que sua existência era um mecanismo
autônomo no meio da criação parar ou prosseguir era coisa que não importava a ninguém”
(p. 21).
Mesmo através de sua pequena participação na trama, Maria deixa claro que vai
embora no intuito de praticar, pela primeira vez em sua vida, uma ação “autônoma”,
renegando uma pré-determinação, “prima pobre”, que a incomodava e que acaba por se
mostrar não inerente às suas vontades recém-descobertas. E ao confessar que é Pedro o
causador de sua partida “por causa ‘dele’, sabe?(p. 18) –, ainda que a despedida se pinte
em tons de angústia, ou por isso mesmo, é de sua submissa estagnação que ela se despede,
abraçando o incerto de seu destino que, embora também faça sofrer, é uma verdade mais justa
do que aquela com a qual se acostumara.
com relação a Adélia, não acreditamos que possa se evidenciar algum tipo de
influência tão significativa quanto ocorre com os três principais casos que analisamos acima.
tecemos, no presente estudo, algumas considerações sobre a possibilidade de ser Adélia,
inclusive, responsável por parte das futuras atitudes de Pedro, fornecendo a ele, mesmo que de
forma algo negligente, a “força” que sustentará, em sua fase adulta, a crença em uma
liberdade que não deve ser corrompida.
É instigante observar que, quando do episódio do envenenamento de Madalena,
Adélia, que se ocupara do “trabalho” por determinação de se filho, chega até a se considerar
escrava de Pedro. Uma espécie de constatação que apenas confirma suas desconfianças, como
fica evidente na pergunta feita a Emanuela, logo que chega à casa do filho: “Diga você: ele
[Pedro] costuma aconselhar as pessoas fracas..., dominá-las?” (p. 156 – grifo do autor).
O que a difere dos demais personagens do livro é a relativa autonomia com que se
livra desse “domínio” e vai embora mesmo que seja angustiante e temerosa a sua partida,
realizada numa espécie de fuga noturna, Adélia parte sem evidenciar qualquer mudança
radical em sua personalidade. À parte um reconhecimento da superioridade momentânea de
Pedro, pelo próprio fato de acatar sua determinação de ir conversar com Madalena antes de
deixar a casa, ela não demonstra ter se tornado uma pessoa diferente do que sempre fora, bem
como não podemos deixar de notar um certo prazer que ela sente em participar do plano de
assassinato da nora, uma funcionalização até bem vinda do ódio extremo que sente por todas
as pessoas, incluindo seu filho: “Apesar de tudo, havia qualquer coisa de resoluto na sua
atitude, um tom decidido e sombrio na sua posição” (p.229).
91
Também podemos dizer que mesmo se confessando alheio ao seu relacionamento com
a mãe (p.243), Pedro sente por ela, ao analisarmos a trama do livro como um conjunto, certo
respeito. Logo no início do livro, quando Madalena pensa em mandar podar a folhagem que
“escurece” a casa (“[...] mandar cortar tudo aquilo, transformar o jardim, a casa, arrancar-lhe
aquele aspecto hostil e envelhecido.”, p. 24), Pedro se opõe, “temendo” contrariar Adélia:
“‘Não, não’ dissera ‘poderia um dia mandar buscar sua mãe e sabia que ela havia de amar os
passeios naquela penumbra’” (p.25).
É claro que quando pensamos na possibilidade de haver algum tipo de “respeito” entre
um par tão singular quanto Pedro e Adélia, temos que pensar muito nas condições de
desenvolvimento de afeto na obra cardosiana, o que nos leva a pensar mais em cumplicidade
criminosa “o tanto que aquela mulher conseguia penetrar no seu pensamento era deveras
extraordinário” (p.205); “[...] Adélia sorria cruelmente ao pensar que Pedro lutaria do seu
lado” (p.209) do que numa reciprocidade esperada entre mãe e filho: “O ambiente formado
entre a e e o filho era de visível embaraço.” (p. 153). Até porque, “respeitar” Adélia acaba
por se configurar como mais uma das ações estratégicas de Pedro, pois, mesmo numa
primeira leitura, vemos que o protagonista de A luz no subsolo usa sua mãe como uma
valiosa peça em seu jogo, peça que pode ser descartada, como um soldado reles (ao invés de
um escravo):
Diante daquela mulher, [Pedro] procurava com afã tudo que o separava dela.
Antigos desprezos, mal entendidos e rancores indefinidos. Mas, sobretudo o que ele
procurava era presença do “mistério”, era o “toque” que observara em Bernardo, e
que faria dela uma aliada ou uma inimiga. Seduzido por idéias bizarras, sobre o seu
conceito de liberdade ia arquitetando planos que pretendia pôr em prática [...] Não
hesitara em mandar buscá-la [...] Antes de estabelecer os laços, antes de lançar numa
conversa qualquer o elemento das suas relações, Pedro desejava ter uma noção dessa
natureza bravia. (p. 154)
Peça no tabuleiro, “instrumento” (“[...] agia ela simplesmente por si ou como um
instrumento alheio?” (p.209)) do jogo de domínio que passa a ser exercido por seu filho, não
apenas “contra” Madalena, mas também no conflito relativo a Bernardo:
[Ao avistar Adélia] Bernardo sentiu-se surpreso. Não podia imaginar que houvesse
naquela casa outras mulheres além de Madalena e Emanuela. A presença de uma
terceira criatura transtornava de um golpe todos os planos que tinha cuidadosamente
elaborado. O seu raciocínio era difícil o golpe violento demais [...] A consciência
da aliança estabelecida entre eles era muito forte [...] Pedro observava-o
atentamente. Não perdera sequer uma contração daquele rosto gordo, que
transformava bruscamente as suas rugas flácidas num movimento de inquietação,
quase de medo. (p. 165)
92
Portanto, se alguma mudança operada em Adélia, trata-se apenas de um
enfraquecimento de suas vontades, uma crença, por parte dela, de estar agindo apenas sob sua
vontade, para que se evidencie, então, uma força maior por trás de suas ações sem querer
dizer, contudo, que os atos praticados se choquem com suas vontades originais, seus desejos
mais escondidos. Pedro apenas levará Adélia a praticar os atos que, talvez por falta de tempo,
ela ainda não tinha praticado.
2.3 O sujeito do conhecimento
Ocupamo-nos, por muito tempo, em falar que a ação de Pedro sobre Madalena,
Bernardo e Emanuela representa uma evidenciação do livre-arbítrio, do poder e da liberdade
alheia, além de ser uma ação singular que reflete toda a realidade humana. Mas chega o
momento de considerarmos a hipótese de que, por trás de todas as suas ações, haja, de forma
intensa, uma vitória particular. Lembrando, em parte, um famoso dito de Nietzsche “Não se
ataca apenas para fazer o mal a alguém, para derrotá-lo, mas talvez simplesmente para tomar
consciência da própria força” (NIETZSCHE, 2001, p.201) –, na estratégia desenvolvida por
Pedro há também a implicação de que ao parecer “testar” seu oponentes, está também
testando seu poder sobre instintos que devem mesmo se digladiar para levar à sabedoria ou,
como não nos cansamos de dizer até agora, ao conhecimento.
Para que tentemos fazer uma ligação coerente entre a ideia da origem do sujeito do
conhecimento e as ideias propostas em A luz no subsolo, é preciso que façamos um parêntese
e evoquemos um célebre texto de Michel Foucault, que, como pretendemos mostrar, pode
dialogar de forma incrível com o livro de Lúcio Cardoso.
Em cinco conferências reunidas sob o título de A verdade e as formas jurídicas,
Michel Foucault propõe, mais notadamente na Conferência 1”, dentre outras coisas, uma
nova visão da teoria do sujeito. Segundo ele, tal teoria teria sido constantemente renovada nos
últimos anos por outras práticas e teorias uma das “tentativas” mais notáveis seria
representada pela psicanálise, a fim de reavaliar “a prioridade um tanto sagrada conferida ao
sujeito, que se estabelecera no pensamento ocidental desde Descartes” (FOUCAULT, 2005,
p.10). O que Foucault questiona é a convicção ancestral que coloca “o sujeito como
fundamento, como núcleo central de todo conhecimento, como aquilo em que e a partir de que
93
a liberdade se revelava e a verdade podia explodir” (FOUCAULT, 2005, p.10). Contrariando
a filosofia clássica ocidental, o saber não deveria ser algo que se impõe ao sujeito, mas que
pode surgir do próprio sujeito, por exemplo, em suas práticas sociais, uma vez que nossa
sociedade, ao longo dos últimos séculos, “definiu tipos de subjetividade, formas de saber e,
por conseguinte, relações entre o homem e a verdade que merecem ser estudadas”
(FOUCAULT, 2005, p.11). Assim, como ponto de partida para suas reflexões, Foucault elege
Nietzsche como o filósofo ideal para tentar embasar sua teoria contra a crença de um
conhecimento a priori, que o pensador alemão seria quem melhor admite a formação do
sujeito, sem concordar com a preexistência de um sujeito de conhecimento. Nietzsche é
mesmo constantemente lembrado pelo caráter polêmico e contestatório de seus textos e
Foucault aproveita para destacar, nessa primeira conferência, duas notáveis transgressões que
servem de base para o cerne da questão proposta. A primeira seria sugerir, em pleno
kantismo, ou neokantismo, por volta de 1873, a ideia de que o conhecimento é fruto de uma
invenção (Erfindung), não possuindo, portanto, uma origem metafísica (Ursprung). Outra
“insolência” cometida por Nietzsche seria questionar, na mesma linha de pensamento, a teoria
dada por Schopenhauer para a origem da religião. Nietzsche não pode admitir que a religião
seja, também, algo previamente dado, sendo que, como também ocorreu com a poesia, mais
uma vez estaríamos falando de um caso de Erfindung
28
.
Continuando, percebemos que a palavra “invenção”, quando aplicada às “doutrinas
(ou conceitos) expostas, trará inevitavelmente uma aura de disputa, pois, ainda seguindo
Foucault, por puras e obscuras relações de poder é que se inventou a religião, assim como
também será por cruéis embates que o homem verá surgir o conhecimento. Se para Kant as
condições de experiência e do objeto de experiência são idênticas, para Nietzsche um
espaço bem delimitado entre natureza humana e mundo a conhecer, e é neste espaço que deve
surgir o conhecimento, que não seria algo instintivo, mas um desdobramento dos instintos, ou
melhor, de uma verdadeira “guerra” entre os instintos, ou ainda:
[...] entre instinto e conhecimento encontramos não uma continuidade, mas uma
relação de luta, de dominação, de subserviência, de compensação, etc., da mesma
forma, entre conhecimento e as coisas que o conhecimento tem a conhecer não pode
haver nenhuma relação de continuidade natural. Só pode haver uma relação de
violência, de dominação, de poder e de força, de violação. O conhecimento pode
ser uma violação das coisas a conhecer e não percepção, reconhecimento,
identificação delas ou com elas. (FOUCAULT, 2005, p.18)
28
No primeiro capítulo, referimo-nos, de certa forma, à “invenção de uma religião” por parte de Pedro.
94
Dando sequência à teoria nietzschiana de uma guerra dos instintos, Foucault nos
lembra que esta seria uma ruptura com as ideias de Spinoza, para quem intelligere
(compreender), seria fruto de uma harmonia entre ridere, lugere e detestari (rir, desprezar e
odiar), ou seja, haveria um apaziguamento de nossas paixões essenciais, para que sobreviesse
o entendimento. A contraposição de Nietzsche faz-se efetiva justamente ao propor não uma
harmonia entre essas paixões, mas sim uma luta, o que talvez fique mais claro se elaborarmos
a seguinte tabela:
Spinoza Nietzsche
Caracterização do conhecimento pelo
logocentrismo, pela semelhança, pela adequação,
pela beatitude, pela unidade.
Oposição de intelligere a ridere, lugere,
detestari (“não rir, não deplorar, nem detestar,
mas compreender”).
Somente quando essas paixões se apaziguam
podemos, enfim, compreender.
Ódio, luta e relação de poder colocados no
cerne, na raiz do conhecimento.
Intelligere não é nada mais que o resultado
de um jogo (uma luta) entre 3 instintos: ridere,
lugere, detestari.
Se esses 3 impulsos chegam a produzir o
conhecimento não é porque chegaram a uma
unidade, mas porque lutam entre si.
Tabela 2: O conhecimento para Spinoza e Nietzsche
Agora suspendamos, momentaneamente, esta necessária digressão e pensemos em sua
relação com o livro de Lúcio Cardoso. Se são as práticas do convívio social que acabam por
determinar o sujeito de conhecimento e que é preciso conhecer e dominar os objetos que se
manifestam no mundo a conhecer, e proteger-se deles através do riso, do desprezo e do ódio,
vemos que Pedro é alguém que se encaixa em tal perfil; não apenas por expressar, ao longo
do livro, tais sentimentos, ou instintos (quando os usa em seus embates com outros
personagens), mas por travar verdadeira luta com eles e, por que não?, vencê-los, dominando-
os (nos momentos em que os vê personificados em seus “oponentes” / “escravos”).
Dados tais fatos, poderíamos fazer uma ligação entre os instintos expostos acima como
fundamentais na formação do conhecimento e os personagens Madalena, Bernardo e
Emanuela, associação que poderia ser representada da seguinte forma:
95
É, portanto, da luta dos três instintos relacionados acima que nasce o conhecimento.
Quem se mostrar soberano nos embates que envolvem tais sentimentos, tornar-se-á o sujeito
do conhecimento, um ser capaz de objetivar o outro pelo ódio, pela indiferença / desprezo e
pelo riso (advindo do sadismo e do desejo), sendo, ao mesmo tempo, subjetivado por esse
outro, através do amor, da linguagem e do masoquismo, o que nos faz “evoluir” para um outro
esquema demonstrativo que poderia ser composto assim:
OBJETIVAÇÃO
ASSIMILAÇÃO
Ilustração 1: Esquema “objetivação x assimilação”
Assim, podemos concluir, primeiro, com as palavras de Foucault, refletindo sobre até
que ponto a ação de se buscar como sujeito do conhecimento aproximaria o homem do mal,
sem jamais perder de vista a nossa referida tentativa de naturalizar esse mal, como algo
simplesmente inevitável na evolução de quem abraça o conhecimento, de quem ainda almeja
um patamar humanizador na evolução da consciência:
Inicialmente, devemos considerar que essas três paixões, ou esses três impulsos
rir, detestar e deplorar m em comum o fato de serem uma maneira não de se
aproximar do objeto, de se identificar com ele, mas, ao contrário, de conservar o
objeto à distância de se diferenciar dele ou de se colocar em ruptura com ele, de se
proteger dele pelo riso, desvalorizá-lo pela deploração, afastá-lo e eventualmente
BERNARDO
(desprezar)
MADALENA
(odiar)
EMANUELA
(rir)
BERNARDO
(linguagem)
MADALENA
(amor)
EMANUELA
(masoquismo)
PEDRO
MADALENA
(odiar)
EMANUELA
(rir)
BERNARDO
(desprezar)
96
destruí-lo pelo ódio. Portanto, todos esses impulsos que estão na raiz do
conhecimento e o produzem m em comum o distanciamento do objeto, uma
vontade de se afastar dele e afastá-lo ao mesmo tempo, enfim destruí-lo. Atrás do
conhecimento uma vontade, sem dúvida obscura, não de trazer o objeto para si,
de se assemelhar a ele, mas ao contrário, uma vontade obscura de se afastar dele e de
destruí-lo, maldade radical do conhecimento [...] esses impulsos – rir, deplorar,
detestar são todos da ordem das más relações. Atrás do conhecimento, na raiz do
conhecimento, Nietzsche não coloca uma espécie de afeição, de impulso ou de
paixão que nos faria gostar do objeto a conhecer, mas, ao contrário, impulsos que
nos colocam em posição de ódio, desprezo, ou temor diante das coisas que são
ameaçadoras e presunçosas. (FOUCAULT, 2005, p. 21 – grifo nosso)
que se fazer aqui uma ressalva. Se dissemos, anteriormente, que Pedro na verdade
se identifica com aqueles com quem se relaciona, com aqueles a quem acaba influenciando,
como podemos concordar com as afirmações acima, e ver, nas atitudes de Pedro, tão somente
puras intenções de ruptura e destruição?
A resposta é até bem simples: deve de fato haver ruptura e destruição, distanciamento,
etc., mas com relação ao “objeto” que eles “antes” representavam, ou seja o ser imerso em
“má-fé”, que deseja uma condição “em-si”, que renega totalmente a verdade do homem e que
os leva a querer que todos abdiquem também da liberdade para se tornarem passivos.
Destruindo e rompendo totalmente com essa crença, fonte dos dissabores de Pedro, uma vez
que o queriam em tal posição, ele destrói a inércia anterior de seus “companheiros” e os torna
livres, seus iguais, não mais merecedores do ódio. um radicalismo, defendido por
Nietzsche, no grau de paixão que tais embates envolvem. E não deve ser diferente, não pode
ser diferente quando abordamos conceitos como amor e ódio. O que sobrevém, no entanto, é
algo nobre: o conhecimento. É um processo semelhante ao ato criador (da escrita), do qual
logo passaremos a nos ocupar. Os atos de Pedro são quase selvagens, para quem os analisa de
forma inocente. No entanto, no fim, de fato algo bem maior a sobressair com o
conhecimento: a união dos espíritos livres.
São, enfim, ideias que encontram consonância com trechos do caderno intitulado por
Lúcio Cardoso como “Diário de terror”, que pode ser encontrado no acervo pessoal do
escritor, na Fundação Casa de Rui Barbosa, mas que também foi reproduzido na Edição
Crítica da Crônica da casa assassinada, organizada por Mário Carelli:
Por que não ver no instinto criador outra coisa senão o lado oposto de forças
inquietantes e monstruosas que nos compõem? Dificilmente o trabalho artístico é
uma face da santidade. Esses instintos bravios talvez até sejam a força propulsora do
movimento criador, e devem, ao lado dela, marcharem como cavalos negros que
junto aos brancos arrastam a mesma parelha. as pessoas realmente fortes podem
viver na realidade definitiva das coisas; quase todo mundo vaga numa atmosfera
morna de fantasia. (CARDOSO, 1996, p. 748)
97
3 O SABER “CONCRETO”: A FORMAÇÃO DO ESCRITOR
“[...] a obra de arte, vista de qualquer ângulo, é um ato de confiança na liberdade dos
homens”.
Sartre, Que é a literatura?
3.1 Ainda a Náusea: possibilidades de evasão
Nesta que será a última parte de nossa investigação, o fio condutor pode ser
evidenciado através de uma pergunta: o que resta ao ser que se descobriu (“descobriu” sua
subjetividade) através da Náusea existencial que deflagra a conscientização da absurda
gratuidade da vida, e da condenação sumária à liberdade; e que, depois, soube fazer de seu ser
controverso o ponto de partida para o conhecimento aprofundado de si, do outro e das coisas;
mas que secada vez mais ciente da morte e da inutilidade de todos os esforços? –“[...] Que
me importa a liberdade, os limites, o homem? Não sou mais que uma criatura destinada a
morrer” (p.150). É sabido que o homem (em sua concretude de Dasein heideggeriano) é um
“ser-para-a-morte”, sendo o fim sua única possibilidade de plenitude. De forma angustiante, o
homem tenta escapar dessa característica inerente ao seu “ser”. Como é parte inexorável do
existir, faz parte do “pacote” de constatações que advém ao ser que se torna consciente, a
morte “está” incluída na Náusea, porque também é o ser. De forma angustiante, todos
tentamos negar, ou suspender tal realidade. Fugir dela, seria como fugir da Náusea.
E, aqui, o que queremos denominar por “morte” não deve ser entendido apenas como
o fim da vida, o apagamento da existência, e nem o “pôr a vida em risco”, tal como o
entendemos em Hegel, mas as várias configurações que a morte pode adquirir, definindo o
panorama da realidade, advindo justamente da trágica concepção de liberdade.
Voltamos, então, a uma afirmação que foi bastante repisada até o momento: o
homem é composto por uma “instância” que é “em-si”, abrigando também uma condição
“para-si”, mas não pode, a priori, ser admitida uma “síntese” perfeita entre esse dois
conceitos é exatamente este “ideal” que o homem busca em Deus. Em outras palavras,
mesmo que se visse como uma divindade, tal como Jesus Cristo, Pedro não poderia se fixar
em tal condição. Quando, por exemplo, buscava o avesso de Emanuela, Madalena e Bernardo,
98
não almejava uma fixação do conceito de “ser”, mas simplesmente a revelação de uma
natureza cambiante (“o para-si é o que não é e não é o que é”, SARTRE, 2007, p. 38).
Ademais, sempre estava aberta a possibilidade de que Pedro não conseguisse influenciar
decisivamente seus pares, o que, talvez, não o fizesse pensar, no fim de sua “jornada”, em um
fracasso. Seria um erro admitir que as ações do protagonista de A luz no subsolo visavam, de
forma absoluta, a uma mudança do ser o objetivo residia, predominantemente, na
evidenciação da liberdade como base da existência. Trata-se mais da “impossibilidade de
esgotamento das possibilidades”, do que da força dos eventuais obstáculos e fracassos.
Contudo, é difícil afirmar que os esforços humanos se resumem a um “tentar por
tentar”; com o tempo, passa a ser desejável um ajustamento entre a transcendência e suas
metas, para que nossa existência, ao invés de uma “contingência com um gosto desolado”,
seja revestida de positividade (ainda que nem sempre) como bem observou Simone de
Beauvoir (BEAUVOIR, 2005, p. 31). Além do mais, o homem é um “projeto”, inventando o
que “já é”, a partir do que “ainda não é” as ações que praticamos funcionam como meios
investigativos dos fins, “até que o fim se transforme na unidade integrante dos meios
utilizados” (SARTRE, 1994, p. 17) o que leva a admitir que é sempre bom investigar se
cada esforço valerá, ou não, a pena.
Se Pedro fosse constantemente chamado a realizar repetidas e infindáveis vezes o
“trabalho” que efetivou com aqueles que o cercavam, todas as vezes em que fosse acusado de
ser mau, de ser contra a natureza, sua realização, mesmo que coincidisse com suas vontades,
iria se cobrir cada vez mais da sensação de fracasso, da condenação perpétua, absurda,
podendo levar à resignação que, como vimos, foi o ponto de partida de suas ações
resignação problematizada na relação de Pedro com seu duplo, o mendigo resignado, a
aceitação que devia ser vencida. A resignação “transforma em fantasmas, em devaneios
contingentes, projetos que primeiramente se haviam constituído como vontade e como
liberdade” (BEAUVOIR, 2005, p. 29).
Porém, todos os relacionamentos, gestos, palavras, ações, estão mesmo condenados à
morte, e lutar contra a morte pode parecer inútil, uma vez que remete à “grande recusa” à qual
se referia Blanchot onde até a filosofia corrobora a intenção de nada dizer, nada fazer,
porque a intenção é mesmo a de afirmar o reino dos homens seguros. Mas já não há, ao menos
para Pedro, o dito “reino seguro”, a não ser que as verdades conquistadas se insiram, e tentem
se fixar, em uma “realidade paralela”, como a que a literatura promove.
Extenuado após a realização de seu feito, evidenciando um conhecimento profundo da
natureza “para-si” do homem, Pedro renega a condição de Sísifo que o esperava, preferindo
99
evadir-se de vez do subsolo através de sua entrega à morte, ao “fora”, o que, como alertamos
logo no início do capítulo, não deve ser encarado literalmente como o anulamento absoluto, já
que o seu fim inaugura uma outra verdade, uma realidade onde não seria em vão o esforço de
“falar” do que não pode ser: a morte, a falta de referentes, o “nada”. Pedro deixa a realidade
da Náusea para se inserir em “outro espaço”, o espaço “heterotópico”, o “espaço literário”,
onde usará da linguagem transcendente da literatura para dizer o que a linguagem cotidiana
não pode dizer sem eliminar o que designa, já que não se pode deter o que “é” em conceitos:
[...] O conceito (toda linguagem pois) é o instrumento neste empreendimento para
instaurar o reino seguro. Incansavelmente, edificamos o mundo, a fim de que a
secreta dissolução, a universal corrupção que rege o que “é”, seja esquecida em
favor desta coerência de noções e de objetos, de relações e de formas, clara,
definida, obra do homem tranqüilo, onde o nada não poderia infiltrar-se e onde
belos nomes todos os nomes são belos bastem para nos tornar felizes.
(BLANCHOT, 2001, p.73 – grifo nosso)
A ação (ou ações) que levaria ao conhecimento pode apenas promover uma espécie
breve de “suspensão” da sensação de Náusea, pela própria configuração “organizada” que
uma “estratégia” reclama para se efetivar. Mas repetir infinitamente o mesmo gesto, como
dito, acaba por torná-lo cada vez mais vazio e inexpressivo. Haveria, pois, alguma forma de se
ver definitivamente livre de todo esse absurdo?
que o próprio termo eleito para classificar o mal-estar de Pedro, “Náusea”, foi
retirado da obra de Sartre, voltemo-nos pela última vez ao protagonista de seu primeiro livro,
Antoine Roquentin, lembrando que ele evidencia, como bem notara Gerd Borheim, em seu
valioso estudo sobre o escritor/filósofo, quatro possibilidades de se “fugir” da Náusea três
acabam em fracasso e uma desponta apenas como possibilidade ao fim do romance. O curioso
é que os quatro caminhos apontados por Roquentin são também seguidos pelos personagens
de A luz no subsolo. Vejamos quais são essas tentativas de restabelecer uma “normalidade”.
O fio condutor de A Náusea é a viagem de Antoine Roquentin para a imaginária
província de Bouville, onde pretende permanecer até concluir a biografia do marquês de
Rollebon, uma intrigante personalidade que teria vivido no século XVIII. Tomando
conhecimento das muitas aventuras do marquês que envolvem paixões desenfreadas, casos
de assassinato, conspirações, espionagem e uma trágica morte na masmorra através de uma
pequena nota em determinado livro, quase que por acaso, Roquentin fica imediatamente
fascinado: “[...] Foi através dessas poucas linhas que vim a conhecer o sr. de Rollebon. Como
100
me pareceu sedutor, e como gostei dele logo, por essas poucas palavras! É por causa dele,
desse homenzinho, que estou aqui.” (SARTRE, 2005, p. 27).
Haveria, portanto, uma tentativa de transcender a Náusea através da preocupação com
a vida de um outro ente, representada pela pesquisa histórica que, no caso, propicia a
intersubjetividade. Mas desde cedo, Roquentin dá sinais de que fraquejava sua intenção de
narrar a saga de Rollebon (“ressuscitando-o”), e, cada vez mais, ele se mostra obsedado pelos
quase insolúveis problemas acerca do tempo e pela estranha sensação crescente que o invadia
progressivamente. Ele escreve em seu diário:
Não sinto mais vontade de trabalhar; não posso fazer mais nada a não ser esperar a
noite.
As coisas não vão bem! Não vão bem de modo algum: estou com ela, com a sujeira,
com a Náusea (SARTRE, 2005, p. 34-35)
Já não estou escrevendo meu livro sobre Rollebon; isso terminou, já não posso
escrevê-lo [...] Como então, eu que não tive forças para reter meu próprio passado,
posso esperar salvar o de outra pessoa? (SARTRE, 2005, p. 138-139 grifo do
autor)
Agora não restava mais nada dele. Assim como não restava nos traços de tinta fresca
a lembrança de seu brilho recente. A culpa era minha: havia pronunciado as únicas
palavras que não deviam ser ditas: dissera que o passado não existia. E, de repente,
sem ruído, o sr. de Rollebon retornara ao seu nada. (SARTRE, 2005, p. 141)
Meu passado está morto. O sr. de Rollebon está morto [...] (SARTRE, 2005, p. 223)
Meu erro foi querer ressuscitar o sr. de Rollebon. (SARTRE, 2005, p. 252)
Em A luz no subsolo, desde quando a narrativa permite que Pedro realmente tenha
alguma voz, ficamos sabendo de suas intenções de escrever um livro. É instigante reparar em
sua indecisão quanto ao teor do livro:
Agitado pela noite que passara em claro, Pedro recebeu com certa impaciência o
aviso de que Bernardo o esperava fora. Para ele nada poderia acontecer de pior.
Depois de sua conversa com Adélia, tivera a idéia inesperada de que o seu livro,
planejado tantos anos, estava na época de ser realizado. Não sabia ainda que
espécie de livro era: se um romance ou um estudo, se simplesmente uma resenha de
suas impressões. Do que ele sabia e que aparecia agora como uma exigência mais
forte era da colocação de uma idéia que vinha, através da sua vida, ganhando corpo
vagarosamente. (p.159)
Investiguemos alguns detalhes do excerto. Pedro diz que a ideia de escrever
fermentava em seu espírito bastante tempo. Acontece que sua decisão de realmente
começar a obra acontece justamente após sua exclusão da vida social, representada pelo
escandaloso incidente na escola em que trabalhava, episódio que já vimos como grande
101
responsável pela deflagração da Náusea. Ao dizer que talvez seu livro fosse “um estudo”,
Pedro não demonstra a explícita intenção de escrever um livro histórico, tal como se passa
com Roquentin, mas uma enorme possibilidade de que seu “estudo” também represente
uma intenção transcendental localizada na intersubjetividade. Reparemos que ele externa a
decisão de dar forma às suas ideias logo quando é avisado da chegada de Bernardo. O
momento narrativo em que tal fato ocorre dá-se no início do segundo capítulo, da segunda
parte do livro, quando, para os leitores, começa de fato a fazer sentido a ação de Pedro sobre
Bernardo, como se fosse tal atitude uma parte importante desse “estudo”. No trecho que
citamos logo acima, há, ainda, referência a uma conversa com Adélia, diálogo este que
também teria apressado a sua decisão. Ora, o capítulo precedente é encerrado justamente com
tal interlocução e, nela, Adélia fala sobre seu encontro com João Epifânio, o soldado que fora
agredido pelo aluno de Pedro:
[...] ele [João Epifânio] me disse que você...
[...]
– Então? – perguntou Pedro rispidamente.
[Adélia] baixou os olhos e prosseguiu:
... que você tinha-lhe transformado o filho num criminoso. Não compreendi as
coisas que ele falava, mas jurou e ameaçou. Depois, como estivéssemos chegando,
disse: “Patroa, o diabo mora naquela casa. Um cristão não ficaria um mês no meio
daquela gente”. (p.158)
Fica mesmo difícil não admitir que a razão do “projeto” pretendido por Pedro enseja,
muito provavelmente, uma intenção de se relacionar com o outro, transcender a imanência e,
consequentemente, tentar livrar-se da Náusea. Se sua Náusea foi despertada pelo episódio
com Epifânio, e se o passo que se segue, como vimos, será sua relação mais direta com os
outros personagens, a citação acima se encontra em momento crucial das ações de Pedro. Ao
ouvir de sua mãe, que acabara de chegar, as repercussões de sua influência sobre Epifânio,
aguçando-lhe o mal-estar de ser determinado pelo olhar do outro como mau (“um cristão não
ficaria um mês no meio daquela gente”), e sendo visitado, na sequência, pelo cunhado, Pedro
percebe que era o momento de tentar “organizar” seu caos interior e, mesmo que não perceba,
seu estudo já começara a tomar forma, já que se aguça ali o seu embate com Bernardo.
O que ocorre, porém, é que a “obra” engendrada por Pedro acaba tomando corpo,
englobando também Madalena
29
e Emanuela. Se o outro é quem desperta o incômodo, deve
ser também através dele, ou para ele, que Pedro mostrará a naturalidade de seus atos.
29
É provável que o “trabalho” (ligado à escrita) de Pedro estivesse em curso com suas atitudes para com
Madalena. Porém, ligamos o “início” de sua concretização à figura de Bernardo, pois foi assim que a “ideia” nos
foi de fato apresentada pelo narrador.
102
Portanto, não mais um simples estudo, mas algo mais profundo, que o caráter pragmático
de suas ações indica mesmo uma maior abrangência, denotando uma intenção estética uma
vez que, no trecho citado, fica clara a intenção de “criar” algo que dê forma, que “racionalize”
um impulso que seria a “colocação de uma ideia que vinha, através de sua vida, ganhando
corpo vagarosamente”. Essa “colocação”, é claro, denota organização. Basta lembrar que a
primeira opção defendida por Pedro para a realização de seu livro é mesmo um romance. E
logo voltaremos à ideia de ser Pedro um escritor.
Por ora, notemos que mesmo quando não se aplica especificamente à “sua obra”, a
uma realização pessoal, a estética (a arte) representa, também, uma valiosa arma (a segunda
que analisamos) para tentar vencer o “desespero” existencial. Em A Náusea, Antoine
Roquentin vislumbra a possibilidade excelsa da estética através da música. Em alguns
momentos da narrativa de Sartre, seu narrador ouve a canção Some of these days e sente-se
preenchido, completamente dominado pelas notas musicais, que inauguram um “tempo novo”
e dissipam, momentaneamente, a Náusea:
No momento é o jazz que toca; não melodia, apenas notas, uma miríade de curtas
sacudidelas [...] Elas correm, se apressam, de passagem me dão um golpe seco e se
obliteram [...] Começo a me reanimar, a me sentir feliz [...] uma outra felicidade:
fora essa faixa de aço, a curta duração da música que atravessa nosso tempo de
um lado ao outro, e o recusa e o dilacera com suas pontas secas e aguçadas; um
outro tempo [...] tão forte é a necessidade dessa música: nada pode interrompê-la,
nada que venha desse tempo no qual o mundo despencou [...] O que acaba de
ocorrer é que a Náusea desapareceu. Quando a voz se elevou no silêncio, senti meu
corpo se enrijecer e a Náusea se dissipou. (SARTRE, 2005, p. 39-40)
Também em A luz no subsolo, a música é percebida como algo capaz de conferir,
àqueles que a fruem, um apaziguamento, uma “constância” tão singular que chega a soar
destoante em meio a uma narrativa em que quase não se nota qualquer mediação, que a
angústia e a instabilidade dominam as páginas do terceiro romance de Lúcio Cardoso. Há uma
passagem significativa em que Madalena deixa-se tocar pelo prumo da música. Trata-se do
encontro primordial entre ela e o futuro marido, quando se entrevê a lembrança de momentos
de rara acuidade, uma suspensão da moléstia espiritual que, no presente, oprime os
personagens:
[...] Haviam também conseguido música, a “Euterpe Curvelana”, convenientemente
disposta num estrado especial os músicos, excessivamente tesos nas suas roupas
domingueiras, aguardavam, com o metal dos instrumentos flamejando ao sol, que o
padre desse o sinal para a música começar [...] Tudo aquilo era de um encanto tão
simples, de uma beleza tão pura, que Madalena se sentira comovida. Aliás, depois
de tanto tempo decorrido, experimentava um certo sabor amargo em reviver
103
momentos como esse, onde a doçura gozada aparecia através da distância, sem
nenhum véu que a escondesse; era essa doçura, na sua essência verdadeira, e ela
podia avaliar desse modo, depois de adquirir a convicção de que a tinha perdido para
sempre. Realmente, nunca mais ela experimentaria sentimento idêntico [...]
Tornava-se, pois, quase de sofrimento a sensação da alegria desconhecida que lhe
inundava o peito em grandes ondas intermitentes. (p. 44)
O cenário descrito acima abriga, em verdade, a descrição de uma festa. Trata-se de
uma quermesse divertimento bastante corriqueiro nas cidades interioranas –, que traz
geralmente, ou quase sempre, uma conotação religiosa, como acentua de forma veemente
Maria Helena Cardoso (1974, p. 24) em suas memórias, mostrando que celebrações religiosas,
em Curvelo, representavam quase que a única possibilidade de encontro entre as pessoas:
As festas da igreja constituíam, no Curvelo daquela época, quase que a única
distração. A igreja, pode-se dizer, era, não a casa de Deus, mas ainda o ponto de
reunião de todo o povo, a sua vida girando em torno dela. Cada mês do ano era
dedicado a um santo e as solenidades se sucediam, comemorando-se condignamente
todas as festas da Cristandade. Ninguém, que se prezasse, podia deixar de freqüentar
o mês de Maria, o do Rosário, o do Coração de Jesus, as festas da Semana Santa, o
Natal, as festas de São José, Santo Antônio, São Sebastião, a festa do Divino, as
procissões nas épocas apropriadas; enfim, a família curvelana tinha a sua vida
principal na igreja.
Encerrada a festa (como também deve encerrar-se a música), a Náusea retorna. Não
há, também aqui, um caminho transcendental seguro a ser seguido.
Mas vejamos outro detalhe. Já que se trata de uma celebração interiorana, tão marcada
pela religião, o narrador não deixaria de descrever o padre da paróquia local, figura
obrigatória em encontros dessa espécie:
Diante de seus olhos [de Madalena] estava mais uma vez o padre magro e
desajeitado, com gestos largos, proféticos, senhores de toda significação de suas
palavras; nesses braços de longas mangas negras que se abriam e pareciam subir de
repente e permanecer como duas grandes asas imóveis no céu azul, havia toda uma
linguagem, toda uma intenção de proteger e aliviar que as palavras não conseguiam
resumir. (p. 46)
É fácil perceber o tom de ridículo empregado para descrever a figura dúctil do
religioso. Em primeiro lugar, agrava-se, aqui, a falha da terceira tentativa de aplacar a
Náusea: o absoluto
30
. A ideia do Deus cristão não pode servir de alento para almas inquietas
30
Em A usea, a refutação do absoluto religioso por parte de Antoine Roquentin dá-se de forma mais sutil,
embora não deixe de se fazer notar em situações singulares como quando o autor nos revela o tom “cômico” com
que Rollebon tratava os assuntos divinos (p. 31) e, principalmente, em um interessante diálogo de Roquentin
com o jovem Autodidata, quando este, após confessar que ia às missas não para rezar, mas para conferir o
mistério da “comunhão entre os homens”, lembra-se de uma celebração que muito se aproxima daquela descrita
por Lúcio Cardoso cabe atentar para o apaziguamento trazido pela música também nesta situação: “Um
104
como as que nos mostra Lúcio Cardoso em seu romance, e já vimos que, também por isso, um
personagem como Pedro buscará uma tentativa de “divinização pessoal”.
Sem pretender perpetuar assuntos discutidos, cabe aqui evidenciar que essa falta de
“apoio” nos ideais pregados pelo cristianismo, mais especificamente a Igreja Católica, insere-
se na concepção que Lúcio Cardoso tinha da Igreja de seu tempo, e que encontra interessantes
reflexões no livro em pauta. O que a figura do padre em questão mais denota é um tipo de
passividade que em nada toca os fiéis que ouvem suas palavras. A tal “intenção de proteger e
aliviar” que o pároco expressa serve bem para ilustrar a falta de “sentido dramático” da Igreja,
algo que segundo o autor mineiro serviria apenas para arraigar uma imagem “equivocada” de
Jesus Cristo, além de atrair “fiéis” que em nada combinavam com os verdadeiros preceitos
divinos. Como Lúcio assume, em A luz no subsolo, em contrapartida aos dois romances
anteriores, uma postura definitivamente católica, seu modo de ver a Igreja não pode ser
ignorado. E a crítica religiosa também se externa no Diário:
O que falta essencialmente à Igreja dos nossos dias é o sentido dramático no seu
sentido amplo possível. Nossos templos atuais são confortáveis e sem lembranças
como uma sala de teatro. E ouço mesmo dizer que esse nivelamento é necessário ao
católico, para atraí-lo à casa do Senhor. Então o erro é de base, pois que católico é
este que para freqüentar uma igreja tem necessidade de fazê-lo como se fosse a casa
onde se exibe uma vedete? Urge modificar o conceito católico (ou cristão) de Jesus
Cristo [...] Todo pensamento moderno é uma forma de ocultar o Cristo. Nessas
igrejas modernas, dulcificadas e tranqüilizadoras, não é o espírito de Deus que
encontramos, mas o seu túmulo. (CARDOSO, 1970, p. 247)
Considerando a força da palavra “túmulo” que Lúcio utiliza, uma passagem de seu
terceiro romance que muito bem ilustra, de forma igualmente contundente, a decadência da
Igreja e da representação do Deus encarnado, uma vez que o que o narrador apresenta é
justamente o definhamento da cruz, símbolo máximo da paixão de Cristo:
Rezava-se uma missa ao ar livre, junto de um cruzeiro antigo, cuja existência era
motivo constante de lendas o tempo ia comendo o seu corpo de madeira que
outrora fora verde e resistira ao vento e agora não era mais que uma pobre cruz de
estrada, abrindo aos céus os grandes braços carunchosos. (p. 42)
Uma cruz de “braços carunchosos” pode até remeter a um tipo de discurso sacrílego,
mas é justamente no impacto que reside a reação defendida por Lúcio Cardoso. Se a imagem
em questão serve para simbolizar uma analose do ideal de religião, pode-se compreendê-la
capelão francês, que tinha um braço, celebrava. Tínhamos um órgão. Ouvíamos de pé, a cabeça descoberta, e,
enquanto os sons do órgão me transportavam, sentia que formava um todo com os homens que me rodeavam”.
(SARTRE, 2005, p. 166). Ademais, o emprego da palavra absoluto é utilizado pelo narrador sartriano para se
referir ao “caráter absoluto do absurdo” (p.185) ou ao “absoluto da gratuidade” (p. 188).
105
também como a necessidade de representar de forma mais “crua” personagens e situações
bíblicos que, “lamentavelmente”, foram “domadas” pela modernidade. O escritor, lembrando-
se de episódios passados, chega a reclamar, indiretamente, uma imagem tão “massacrada” do
salvador, que esta seja capaz de causar verdadeiros distúrbios entre os fiéis:
Lembro-me de ter visto no Convento do Carmo, na Bahia, e cuja entrada é
interditada às senhoras, um enorme Cristo em tamanho natural deitado sob um dos
altares. É uma imagem aterrorizante, quase negra de tão massacrada, com os joelhos
esfacelados e em sangue, o rosto violáceo. Informaram-me que essa imagem, com os
braços deslocados e seu aspecto realmente assustador, era a que saía antigamente
durante as procissões. Tal coisa, no entanto, havia sido proibida, devido ao
escândalo popular que levantava: grande número de mulheres desmaiavam, homens
eram tomados de crises de choro, toda uma celeuma era provocada à passagem do
crucificado. Hoje, descansa essa imagem entre lençóis brancos e rendados, numa
inviolável urna de vidro. O Cristo que acompanha as procissões, é outro bem mais
ameno, e não provoca mais tais distúrbios na multidão. (CARDOSO, 1970, p. 161)
Afinal de contas, Cristo se sacrificaria pelos passivos que temem sua verdade?
Acredito em Deus, acredito em Jesus Cristo mas não como uma lição servida a
meninos obedientes, Deus, Jesus Cristo, como sopros terríveis e imanentes a este
mundo de inconseqüências – e não como um véu sobre a verdade, arrebatando à sua
sombra conciliadora os restos flutuantes de um mundo sem causa e sem governo.
(CARDOSO, 1970, p. 250)
São concepções de um Deus que usa de “sopros terríveis” para trazer a verdade, o que
nos lembra a “paixão” evidenciada por Nietzsche no surgimento do conhecimento, o que faz
com que pensemos em um messias humanizado e, ao mesmo tempo, “verdadeiro”. Essa falta
de um Deus severo é combustível para o agravamento do desespero causado pela sensação de
finitude que analisamos no primeiro capítulo, afastando da Igreja aqueles que não acreditam
na passividade. Por tudo o que estudamos com relação a Pedro, podemos ligá-lo (de forma
breve) a essa ideia dramática de um salvador. Quem quiser se “equiparar” ao Cristo não deve
se negar aos embates da existência, evitando “desencadear elementos de luta”: “Se cada
homem não refizer dentro de si o percurso da Paixão, e não desencadear os seus elementos de
luta, não poderá dizer que realmente conhece o Cristo. Apenas simula, acompanhando o
rebanho comum” (CARDOSO, 1970, p. 146).
Sabemos que Pedro é alguém que foge do “rebanho comum” (num sentido
nietzschiano), mas não estamos buscando uma interpretação que tente “eternizar” Pedro como
uma particular representação do salvador embora, tal como este, Pedro (também) tenha sido
rejeitado de forma virulenta por aqueles a quem tentava transmitir seus “ensinamentos” sobre
a vida (sobre a verdade da vida), e, o que é “pior”, tenha sido, por isso, sacrificado.
106
Mesmo que a personagem de Pedro tente se divinizar, e mesmo que enxerguemos
nesse esforço uma representação qualquer do salvador humanizado, essa busca de divinização
pessoal pode, no máximo, e em nível imediato, ensejar, via gnose pessoal”, uma bem-vinda
ruptura com o conceito de bem e mal (“naturalização do mal”). Ou seja, buscar-se como um
ser superior pode até conferir um tipo de força interior que propicie a busca pelo
conhecimento, mas não possibilidade dessa intenção (ou situação) divina vir a se tornar
algo “em-si”. É que a religião também representa uma forma de se render à resignação da
grande recusa; um vez que a “instância Deus”, que sintetizaria “em-si” + “para-si”,
propiciaria a ilusão de que as coisas (o homem!) podem se perpetuar, que nossas ações têm
algum sentido: “Os deuses e Deus nos ajudaram antigamente a não pertencer à terra onde tudo
desaparece, e, o olhar fixado sobre o imperecível que é o supraterrestre, a organizar,
entretanto, esta terra como residência” (BLANCHOT, 2001, p. 73).
Em suma, o absoluto também não serve para suavizar a Náusea porque, no mínimo,
não ajuda a recuperar uma realidade humana. Pedro acreditava-se bom, mas descobriu-se mau
pelo olhar alheio; e querer “ser” o novo Cristo, mesmo que indiretamente, o aprisionaria a
uma eterna posição de recomeço, toda vez que percebesse que suas intenções não
correspondem ao ideal de sagrado que todos admitem – tal como Lúcio não teve tempo de ver
sua noção de Cristo ser representada, no século XXI, por manifestações artísticas que não
lhe eram indiferentes, como o cinema. Ainda que fazer de Pedro um “messias humanizado”
tenha constado das intenções de Lúcio ao escrever seu terceiro romance, embora não haja
como afirmá-lo com toda certeza, o próprio livro conta de seu fracasso, o que nos leva a
concordar com Gerd Bornheim, quando este diz que o absoluto não pode vencer a Náusea
porque, em última instância, “[...] mesmo na hipótese de que Deus exista, sua existência
resultaria inútil porque não seria uma garantia contra os assédios da náusea.” (BORNHEIM,
2005, p.23).
Talvez tenhamos nos alongado em demasia na questão do absoluto. Mas isso se deu de
forma proposital, que nos serve de motivo para pensar a quarta, e última, tentativa de
combater a Náusea: a realização literária.
Mas o que a literatura tem em comum com o absoluto?
Não acreditamos que em A Náusea, a intenção de criar uma obra literária esteja ligada
a uma nova versão da religiosa. Nas linhas finais do romance, a ideia de escrever um livro
surge apenas como possibilidade:
107
Será que poderia tentar... Naturalmente não se trataria de uma música... mas será que
não poderia, num outro gênero? Teria que ser um livro: não sei fazer outra coisa.
Mas não um livro de história [...] Outro tipo de livro [...] Seria preciso que fosse bela
e dura como aço e que fizesse com que as pessoas se envergonhassem de sua
existência [...] Um livro. Um romance. (SARTRE, 2005, p. 252)
31
Mas, para pensar no papel do escritor, do artista, em A luz no subsolo, temos que
refletir mais profundamente sobre qual pensamento estético se adequaria de forma justa às
ideias contidas no livro. Retomemos a ideia de “religião”, porque será como uma espécie de
“doutrina” que Pedro abordará sua criação artística. Ele não poderá “ser” o homem que
descortina a realidade do mundo, mas uma obra de arte pode muito bem “ser”, enquanto
realização estética, contendo por isso a condição “em-si” que se reapresenta à sensibilidade do
“para-si” e que por ele pode ser interpretada. Esta será a causa por que morrerá Pedro. Mas
aqui um perigo. Querer que alguma coisa “seja” através da realização de uma obra daria a
Pedro a posição daquele que sobreviveu à morte e, portanto, uma imortalidade que poderia
“endeusá-lo” de forma perpétua, o que também seria um tipo de prisão. O que Pedro fará, em
verdade, ainda que parta da intenção acima (a de concretizar-se “na” obra), será encontrar
potência na morte, concretizando a condição de “humano enquanto obra”, buscando
humanidade através da mortalidade... A realização estética de Pedro será sua maior crença na
religião em que o homem é a referência sagrada. Tal linha de pensamento não estaria distante
da concepção estética defendida por Friedrich Schiller. Com uma filosofia posterior à de
Kant, o que Schiller pretendia era justamente defender um tipo de regra objetiva do gosto,
crendo que o homem poderia, sim!, carregar uma pré-disposição à humanização que seria
propiciada pelo contato com a obra de arte. Schiller defendia o “momento estético” como
comunhão entre forças opostas (razão x sensibilidade) ligando os ânimos que devem compor
o verdadeiro homem. Pedro fundamentará suas doutrinas” numa obra (a “forma viva” que é
sua vida em movimento rumo à aprendizagem) que congregará impulso sensível (vida) e
impulso formal (forma), para se chegar à beleza. E não se trata de mais um movimento
dialético?
Se Deus não existe (ou “está morto”) e que Pedro foi “longe demais” para deixar
sua força se solidificar em resignação e rotina, cabe àquele que se sabe capaz de produzir o
conhecimento a nobre (e bela) missão de captar e eternizar (“colocar”, como expressa o
31
Embora o “projeto” literário se fundamente apenas ao fim do livro, o narrador sartriano admite antes, ao longo
da obra, que um personagem de romance parecia atraí-lo mais do que personagens históricos: “Durante muito
tempo o homem de Rollebon me interessou mais que o livro por escrever. Mas agora o homem... o homem
começa a me entediar [...] Além do mais, estou convencido de que personagens de romance pareceriam mais
verdadeiros. Seriam pelo menos mais agradáveis”. (SARTRE, 2005, p. 28-29)
108
próprio protagonista) seu ato mais corajoso, sua primeira (e que deveria aspirar a ser a única)
ação em uma “forma” que possa ser “deslindada” por todos em sua (perpétua?) realidade
paralela. Quantas forem as vezes que lermos a trajetória de Pedro, tantas serão as ocasiões em
que seus atos nos parecerão originais, pois o que nos é dado, mais do que um inegável
bildungsroman, é a coroação da vida e da liberdade através da morte.
Podemos admitir que “querer ser” um escritor, de certa forma, corrobora a visão de
estar o homem sujeito a uma impossibilidade de estagnação. O escritor é aquele que paira
entre dois silêncios, tal como quis Santiago Kovadloff, que aquele que se dispõe a escrever
abandona a comodidade do “não-dizer” e encontra-se além do silêncio primordial, mesmo que
ainda não tenha dito qualquer verdade mais segura. E, com efeito, é provável que tal verdade
nem venha a ser encontrada, já que no extremo oposto do silêncio de quem se pôs a dizer algo
está o outro silêncio que denota a impotência da linguagem em captar, em domar a realidade
em conceitos. Aliás, para Kovadloff, qualquer intenção de explicar a literatura, seria uma
inútil tentativa de reduzir a arte da escrita a algo meramente “explicável”, o que, inclusive,
constituiria a própria natureza da crítica literária: manipular a arte através de conceitos
(KOVADLOFF, 2003, p. 34).
Quando Pedro está pronto para tornar-se um escritor, ultrapassou grande parte dos
processos (embates) que o levam, cada vez mais, a caminho do conhecimento, e talvez por
isso mesmo ocupe um lugar diferenciado, à frente da esfera em que pairam aqueles que são
influenciados por ele.
O “lugar” de Pedro é o da “segunda noite”, é o “espaço da travessia”, é o lugar do
“não-lugar”, é a “terceira margem”, é a “heterotopia”. E sem que pareçamos demasiadamente
pretensiosos, tentemos embarcar nesse “não-lugar” movediço.
3.2 Espaço literário: “heterotopia”
Michel Foucault, em um texto interessante e original, intitulado “Outros espaços”
infelizmente um trabalho não muito citado, publicado pouco antes de sua morte –, propôs-
se a estudar a questão dos “lugares”, do “espaço” no mundo em que vivemos, pois, para ele, a
época atual seria bastante propícia a tal reflexão.
Partindo de um contraponto entre a era medieval (onde o espaço representava um
conjunto hierarquizado de lugares, ou um “espaço de localização”) e a moderna (onde se
109
pensa mais em “posicionamento” do que em “localização”), sem contundo ignorar uma certa
resistência à tentativa de dessacralização de alguns desses espaços (como, por exemplo, o
espaço familiar) Foucault acaba por fundamentar sua reflexão partindo de dois “grandes
tipos” de lugar. O primeiro seria constituído pelas “utopias”, que são os posicionamentos sem
lugar real: “São posicionamentos que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação
geral de analogia direta ou inversa. É a própria sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da
sociedade mas, de qualquer forma, essas utopias são espaços que fundamentalmente são
essencialmente irreais” (FOUCAULT, 2006, p. 414-415). Talvez não haja quem não esteja
familiarizado a esta definição de utopia. Contudo, além das utopias, haveria também uma
outra “espécie” de lugar que é assim definida por Foucault:
Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização,
lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da
sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias
efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros
posicionamentos reais que se pode encontrar no interior da cultura estão ao mesmo
tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de
todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares, por
serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos
quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de heterotopias [...]
(FOUCAULT, 2006, p.415)
Embora a palavra “heterotopia” não represente um neologismo, pouco comum é o seu
uso nos dias atuais; e o uso que o filósofo emprega a tal termo é, no mínimo, instigante.
Após propor a criação de uma “heterotopologia”, Foucault passa a tentar classificar as
heterotopias, desde as sociedades “primitivas”, concluindo que as pessoas inseridas em uma
heterotopia encontram-se, predominantemente, em situações de “crise” e/ou de “desvio”.
Antigamente, estavam em “situação heterotópica” os velhos, as mulheres de resguardo, as
mulheres em época de menstruação e os adolescentes, etc., pelo fato de que tais
“posicionamentos” denotavam certas implicações comportamentais no grupo em que
habitavam. Do mesmo modo que, nos dias de hoje, encontrar-se-iam em heterotopias aqueles
indivíduos que se localizassem no interior das casas de repouso, das clínicas psiquiátricas, das
prisões, etc. O aprofundamento dessa classificação traz à tona outras denominações como as
“heterocronias”, reservadas aos homens “em ruptura absoluta com seu tempo tradicional”
(FOUCAULT, 2006, p. 418).
Tendo proposto uma divisão sistemática das heterotopias, o estudo segue para uma
exemplificação mais elaborada das constituições heterotópicas desde o século XIX. E é
justamente que reside nosso ponto de interseção com A luz no subsolo, pois muitos são os
110
“lugares” no livro de Lúcio Cardoso que nos levam a refletir sobre o “deslocamento” próprio
ao conceito analisado por Foucault.
Citamos acima um trecho que define o que Foucault chama de heterocronia. Não é
forçoso definir quase todos os personagens de A luz no subsolo como seres em ruptura com o
tempo tradicional; analisamos tal ruptura, no primeiro capítulo, ao pensar a hipótese de um
“espalhamento do presente”. Esse “presente eterno” é mesmo um lugar “sem-lugar”, marca do
“devir” que é o homem. E ainda mais significativas são as outras relações que pretendemos
estabelecer.
Um dos primeiros exemplos dados pelo pensador francês são as festas: “maravilhosos
locais vazios na periferia das cidades, que se povoam, uma ou duas vezes por ano, de
barracas, mostruários, objetos heteróclitos, lutadores, mulheres-serpentes, videntes”
(FOUCAULT, 2006, p. 419). Impossível não pensar na quermesse em que se conhecem Pedro
e Madalena, embora a descrição dada por Lúcio seja um pouco menos “circense” que a
proposição de Foucault. O que importa é que já notamos a “suspensão” da angústia que
parece se operar no momento em que o casal frequenta a celebração interiorana, que nos
remete, inegavelmente, a esse tipo de “não-lugar” que é a festa em sua essência não no
interior, como nos é descrito por Lúcio no romance analisado, mas também em situações
urbanas (retomando o termo “circense” que utilizamos há pouco), como é o caso do parque de
diversões em que Rogério Palma procura seu pai, na novela Inácio:
Assim, chegamos à Feira de Amostras. As mesmas luzes e as mesmas fisionomias
que eu vira pouco, perambulando em todos os cantos da cidade, faces ávidas de
esquecimento e diversão, a qualquer preço [... ] o Parque de Diversões regurgitava:
crianças, mulheres e homens amontoavam-se às portas dos jogos e passatempos [...]
aquela música antiquada, as luzes coloridas e as gôndolas que subiam e desciam,
tudo isso pertencia nitidamente à sua [de Inácio] atmosfera. (CARDOSO, 2002b, p.
83-84)
Mas a festa também estaria ligada à questão de tempo e, portanto, às heterocronias,
uma vez que as heterotopias, de fato, marcar-se-iam mais por um caráter de exclusão, do que
por uma agregação de diferenças, como pode ocorrer nas festividades. Desta feita, um bom
exemplo heterotópico pode ser o bordel em que Bernardo se refugia nos momentos de
angústia (o bordel é considerado por Foucault como uma “heterotopia extrema”). Bordéis são
bastante comuns para compor os cenários urbanos de Lúcio, tanto no citado Inácio, onde
vemos Rogério, o narrador, transitando por tais antros; lugares semelhantes aos que surgem
em O enfeitiçado, onde os fatos decisivos da trama, como os tensos encontros de Inácio com
111
Lina de Val-Flor, passam-se na casa desta, que funciona como um reduto sinistro da zona
boêmia.
no romance Salgueiro, obra anterior a A luz no subsolo, embora o escritor retrate
um morro carioca, não podemos dizer que se trata de um cenário integrante à cidade.
Claramente apartado de uma realidade comum, o morro do Salgueiro isola de tal forma os
seus moradores, que estes não se cansam de comparar a favela a um verdadeiro inferno
perdido na Terra, o que, aliás, já foi notado por outros estudiosos:
Se quisessem fugir do inferno, sabiam que deveriam partir, mas ainda assim
qualquer coisa os ligava ao morro (CARDOSO, 1984, p. 163)
[...] Deus, sozinho, passeia de novo pelo mundo. Ele não nos quer, não nos ama,
porque somos anjos e fazemos porcarias. O mundo dele é branco e limpo... O nosso
é o Salgueiro. (CARDOSO, 1984, p. 198)
Não, definitivamente aquele não era o mundo de Deus. (CARDOSO, 1984, p. 213)
Também em O anfiteatro nota-se a reflexão quanto aos lugares em que a existência é
“praticada”, sendo que o título do livro procura destacar a importância de um espaço em
particular, onde a morte assume uma configuração não usual e onde ocorrem significativas
revelações.
Não obstante, acreditamos que o interior de Minas Gerais – seja em Curvelo (A luz no
subsolo), Vila-Velha (Dias Perdidos, Crônica da casa assassinada e O viajante), São João
das Almas (Mãos Vazias), ou nas ermas cidadelas de A professora Hilda e O desconhecido
e no fim de mundo que reproduzia Pirapora (Maleita) representa o cenário ideal para que
Lúcio construa seus heterotópicos espaços de exclusão. As casas do interior são retratadas
como localidades quase místicas, capazes de isolar, de absorver de maneira extrema àqueles
que nelas penetram
32
. Foucault não desconsidera o caráter de exceção desses lugares e, em
surpreendente sintonia com nossos estudos, observa que há heterotopias
[...] que parecem puras e simples aberturas mas que, em geral, escondem curiosas
exclusões; todo mundo pode entrar nesses locais heterotópicos, mas, na verdade, não
é mais do que uma ilusão: acredita-se penetrar e se é, pelo próprio fato de entrar,
excluído. Penso, por exemplo, nesses famosos quartos que existiam nas grandes
fazendas do Brasil e, em geral, da América do Sul. (FOUCAULT, 2006, p. 420
grifo nosso)
32
Tanto é que Lúcio Cardoso, em seu livro mais famoso, utiliza-se do substantivo “casa” para refletir sobre a
decadência dos costumes da tradicional família mineira interiorana, tamanha a força metafórica investida nesses
lugares.
112
Seguindo este mesmo raciocínio, pensemos no interior (ou “interiores”) da casa de
Pedro e Madalena, cenário mais recorrente de A luz no subsolo. É fácil perceber que a casa
localiza-se como em uma realidade paralela, simbolizando a situação de trevas dos
personagens, evidenciando-se, como nas palavras do narrador, como “um mundo diferente”:
A sala, com as janelas cerradas, estava completamente em sombra. Nenhum objeto
aparecia distintamente. Na morna atmosfera da manhã, os veis altos se afogavam
no escuro, as cortinas guardavam uma absoluta imobilidade. Dentro daquele
ambiente, todas as coisas se marcavam por uma expressão desalentadora de morte
e parecia que nenhum ser humano habitava entre aquelas quatro paredes, limitando
um mundo diferente, onde as sensações se anulavam no morno torpor do
esquecimento. (p. 82)
Há, ainda na casa, pelo menos dois outros bons exemplos de lugares de crise: o quarto
de Madalena e a biblioteca / escritório de Pedro.
Madalena passa longos períodos do livro trancada em seu quarto, às voltas com suas
divagações, não evitando confessar a intenção de esconder-se: “[...] permaneceria trancada
naquele quarto até que as coisas se resolvessem. Era singular, apesar de tudo, o encanto que
havia naquele refúgio... Lembrava-se de que estava encerrada num quarto, separada de todos e
que ninguém poderia penetrar nesse quarto” (p. 239). Algo que acontece também a Bernardo,
haja vista que não só os bordéis lhe conferem a sensação de estar excluído do mundo, fazendo
de sua mísera alcova também um lugar à parte da existência: “Tinha a impressão de que o seu
quarto se destacara do mundo e que o seu sofrimento era maior do que todos os outros
sofrimentos” (p. 289).
O quarto funciona como “janela” de evasão para o delírio, para tormentosas memórias
e para malogrados planos de futuro. Um lugar em que o ser pode constatar sua instabilidade e
seu caráter fluido. Lúcio Cardoso detinha-se tanto na construção dessas vagas” que, em sua
obra mais importante, o escritor preocupou-se determinantemente em definir as reais
dimensões dessas heterotopias, de modo que todas as edições da Crônica da casa
assassinada trazem, logo nas primeiras páginas do volume, o desenho da fazenda da família
Meneses ilustração elaborada pelo próprio Lúcio Cardoso que, como é sabido, sempre
demonstrou grande interesse pelo desenho e pela pintura, passando, inclusive, a dedicar-se a
estas atividades após sofrer, em 1962, um derrame que o deixou privado de grande parte dos
movimentos e para sempre impedido de voltar a escrever. Vale a pena reproduzir aqui o
113
desenho (que na verdade representa pouco mais que um esboço) que abre seu último romance
publicado em vida
33
:
Ilustração 2: “Chácara do Meneses”, por Lúcio Cardoso
Como breves exemplos, referentes à Crônica da casa assassinada, podemos citar o
personagem Timóteo, que criou para si todo um mundo particular dentro de seu quarto, além,
é claro, de Nina, talvez a personagem mais marcante, dentre todas as concebidas por Lúcio
Cardoso. Se, para Foucault, os quartos das grandes casas do interior do Brasil parecem
“admitir”, quando em verdade “excluem”, cabe lembrar que Nina, como Madalena é, de fato,
“sugada”, “tragada” pelo interior da casa, numa imagem que nos remete à concepção funesta
que o pintor holandês Hieronymus Bosch tinha do inferno, como parte integrante do sistema
33
Em O riso escuro ou Pavão de luto, Ésio Ribeiro (2006, p. 141) assinala, em nota, como “[...] a preocupação
com a imagem era patente na tessitura da obra de Lúcio Cardoso. Tudo era meticulosamente planejado por ele,
como se fora um roteiro para um filme. Como exemplo disso, vale lembrar o mapa da Chácara dos Meneses [...]
A partir do mapa, é possível visualizar os movimentos das personagens [...]”.
114
digestivo de uma realidade infernal maior, digerindo lentamente suas vítimas e não seria a
mesma impressão adquirida ao fim da leitura de Salgueiro?
E o mergulho nessa abstração espacial que o interior de uma casa pode assumir,
revela-nos, ainda, um caráter de mise-en-abîme, uma vez que a casa, por si só, representa
uma heterotopia, que abriga o(s) quarto(s), que por sua vez abriga, geralmente, outro espaço
ainda mais fundamental, que Foucault chama de a “heterotopia por excelência”: o espelho.
O espelho possui a particularidade de ser, ao mesmo tempo, uma utopia:
O espelho, afinal, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar. No espelho, eu me vejo
onde não estou, em um espaço irreal que se abre virtualmente atrás da superfície,
eu estou longe, onde não estou, uma espécie de sombra que me a mim
mesmo minha própria visibilidade, que me permite me olhar onde estou ausente:
utopia do espelho. (FOUCAULT, 2006, p. 415)
Do mesmo modo que é, também, uma heterotopia, visto que
[...] é a partir do espelho que me descubro ausente no lugar em que estou porque eu
me vejo longe. A partir desse olhar que de qualquer forma se dirige para mim, do
fundo desse espaço virtual que está do outro lado do espelho, eu retorno a mim e
começo a dirigir meus olhos para mim mesmo e a me constituir ali onde estou; o
espelho funciona como uma heterotopia no sentido em que ele torna esse lugar que
ocupo, no momento em que me olho no espelho, ao mesmo tempo absolutamente
real, em relação com todo o espaço que envolve, e absolutamente irreal, que ela é
obrigada, para ser percebida, a passar por aquele ponto virtual que está longe.
(FOUCAULT, 2006, p. 415)
O espelho mescla o ideal utópico à impossibilidade de se captar a realidade. Muitos
personagens de A luz no subsolo como diversas vezes citamos vivenciam esse paradoxo,
captados pela magia refratária. Em outras palavras, a verdade do espelho é a mesma proferida
através do esboço que fizemos em nosso primeiro capítulo: o espelho é o aceno de uma
possibilidade “em-si”, de uma estabilidade para a sensação de espectro na qual se perdem os
personagens cardosianos. É a ilusão do assentamento das intenções, das manifestações da
existência. E é assim que o espelho promete a verdade identitária, desejando uma potência
não cambiante, transmitindo, mesmo que por breves segundos, um apaziguamento da Náusea.
Também no livro de Sartre vemos que o ato de se olhar no espelho não pode mesmo ser uma
“atitude” desprovida de significação:
Na parede um buraco branco, o espelho. É uma armadilha. Sei que vou cair nela
[...] é o reflexo de meu rosto. Muitas vezes, nesses dias perdidos, fico a contemplá-
lo. Não entendo nada desse rosto. Os dos outros tem um sentido. O meu não. Sequer
consigo decidir se é bonito ou feio [...] Evidentemente há um nariz, olhos, uma boca,
mas nada disso tem sentido, nem mesmo expressão humana [...] aproximo meu rosto
115
do espelho aencostar nele. Os olhos, o nariz e a boca desaparecem: não resta mais
nada de humano. (SARTRE, 2005, 32-33)
E quem pensa em espelho, pensa nas implicações da duplicidade, pois o espelho é
também a heterotopia em que se anuncia o outro que carregamos. Por isso Bernardo, ao se
tocar, sem se reconhecer, brada por um espelho que ateste suas desconfianças, conforme a
passagem que citamos, no primeiro capítulo. Na ocasião, anotamos também uma cena em que
Pedro parece não se reconhecer diante de um espelho. O fato de não se reconhecer é uma
metáfora da instalação do duplo transfigurado, quando a imagem que “brota” do rio salta para
capturar Narciso. Já no primeiro capítulo, ao citarmos estudo de Audemaro Goulart,
demarcamos a questão narcísea, pois se falamos tanto de embates e conflitos, não
poderíamos excluir o mito do reflexo que instiga, paralelamente, amor e ódio, dúvida e
certeza, etc.
E o encontro de Pedro com o mendigo resignado, seu lado narcíseo evadido do
espelho, também nos insere numa sequência de mise-en-abîme. Pedro o mendigo, seu
duplo, através da heterotópica refração de seu espelho psicológico, isolado no interior de sua
funesta e apartada casa, dentro de sua biblioteca, ou sala de estudos, que é também uma forma
heterotópica de se evadir dos “locais comuns”. Tal como os museus, as bibliotecas são
heterotopias “nas quais o tempo não cessa de se acumular e de se encarapitar no cume de si
mesmo”, representando “a idéia de constituir uma espécie de arquivo geral, a vontade de
encerrar em um único lugar todos os tempos, todas as épocas, todas as formas, todos os
gostos, a idéia de constituir um lugar de todos os tempos que esteja ele próprio fora do tempo
[...]” (FOUCAULT, 2006, p. 419). Aquele que se encerra numa biblioteca busca a sabedoria
ancestral que se condensa nesses espaços sagrados. E sagrados são também os objetos que ela
abriga; sagrados ou profanos, que em A luz no subsolo os livros parecem ter vida própria,
despertando em Madalena um ciúme como se representassem uma rival amorosa, os
verdadeiros causadores do distanciamento do marido, levando-o para “lugares” ainda mais
remotos:
Ah! Tinha vontade de gritar oh! Vós todas, mulheres, que um dia vivereis uma
história semelhante, temei mais estes objetos inofensivos que se juntam numas
poucas páginas, tanto como uma mulher bela ou um marido dado às aventuras
noturnas!... Volumes venenosos que arrebatam a alma, com o mesmo capricho, com
o mesmo afinco, com a mesma tranqüila perversidade de uma prostituta consciente.
Temei estas linhas esguias, que submergem um coração ardente numa nuvem sutil e
misteriosa, arrebatando-o para lugares cerrados, onde nenhuma outra curiosidade
humana pode penetrar [...] Eram eles que a afastavam de Pedro, dias seguidos, sem
uma hora de tréguas. Eram eles que a distanciavam, e ela os odiava mais, porque a
morte que causavam nenhuma lei condenava. Quem acusaria um pobre volume
116
amarelo do desmantelo da sua vida? Da cama ela os via, alinhados na estante, os
mais altos primeiro, os mais baixos depois. Durante o período em que conhecera
Pedro, ela não adivinhava ainda tal sortilégio. Mas agora, aprendera a contá-los, a
saber quais eram os que estavam sendo consultados e quais os que lhe arrebatariam
mais naquela noite de tranqüilidade. No fundo do gabinete, protegida pela sombra,
ela os pegava um a um, apertando-os numa fúria alucinada, ao mesmo tempo que do
fundo do seu peito crescia o ódio contra aqueles inimigos inertes [...] Amanhã
pensava ela – ele se levantará, dirá “bom-dia” e se afastará como de costume,
desaparecendo dentro dos livros (p.70-71)
Esse trecho também serve para nos dar uma ideia do tamanho da introspecção de
Pedro, despendendo vários dias em seus estudos, “desaparecendo nos livros”, indicando que
sua missão intelectual ocupara quase a totalidade de sua vida, dando mesmo a impressão de
que nada mais importava: “Nada importa ao homem que precisa saber, ao homem que esmaga
as suas forças na tranqüilidade de um livro” (p. 71 grifo do autor). Sua maior ocupação,
passara a ser sua busca por “experiência”:
Que aprenderia ele nos livros que lia, se não compreendia os corações que estavam
mais próximos? Experiência? Sim agora se lembrava que o ouvira uma vez falar
em experiência. Fora numa noite única, quando cerrara um pouco o livro, talvez
premido pelo cansaço, talvez subjugado por uma emoção mais forte. Madalena se
enganara, pensando que fosse por sua causa. Bem podia ser que isso acontecesse
uma vez na vida. Estava havia muitas horas sem ouvir-lhe a voz, quieta para não
importuná-lo, o livro tombado no colo, inutilmente aberto. “Que foi?”, indagara.
Pedro olhara-a fixamente, sem vê-la entretanto. “Nada!”. Sentira o rosto queimar-lhe
e abaixara a cabeça. Ouvia o tique-taque do relógio e se esforçava para acalmar a
emoção. “Admirável experiência”. (p.73)
Esta longa digressão (seria a digressão um reflexivo espaço heterotópico?) serve para
nos ajudar a pensar no extremo caráter crítico dos espaços criados por Lúcio Cardoso. E se
nos aprofundamos na concepção de espaço como heterotopia, foi para introduzir a ideia
fundamental de ser também uma heterotopia o lugar do escritor Pedro.
O fato é que ao pretender tornar-se um escritor, Pedro tende a se aproximar mais e
mais dos livros, iniciando sua jornada em busca da obra. De fato, se Pedro é inegavelmente o
mais isolado de todos os personagens do livro, é porque empreende uma viagem solitária.
Nossa proposta geral é justamente investigar uma possível trajetória do ser no terceiro
romance de Lúcio Cardoso. Quando dizemos “trajetória”, estamos realmente indicando a
situação de trânsito, de locomoção, à qual a palavra remete. E se radicalizarmos tal ideia,
podemos dizer que muito do que impulsiona Pedro é sua vontade de “dizer”, de comunicar as
verdades que acredita ter descortinado. Sempre pensando em sua confessada vontade de ser
um “criador”, seu trajeto se abre como um trajeto do artista. E a metáfora que melhor ilustra,
ao menos inicialmente, sua “viagem”, certamente, é a do navegante.
117
Vejamos por quê.
No Diário Completo, vemos explicitadas muitas das angústias de Lúcio Cardoso. Não
é difícil admitir que, muito provavelmente, a mais terrífica condição na qual pode se encontrar
um “criador”, um artista, é de não mais poder dar forma às suas ideias, ou simplesmente o
medo de não ser ouvido. E quando reflete sobre tais agruras, é justamente a um viajante,
notadamente a um “navegante” temendo a chegada, que Lúcio se compara:
Acaso algum dia o que aqui está escrito terá eco? Um programa de vida, o anúncio
de uma verdade gostaria de escrevê-los como? Tudo em mim é instável, e eu
navego sem destino certo. Constituirá isto um legado? Chegar, imagino, será como
morrer e que eco imaginar senão este, passar e acontecer, sem remédio e sem
brilho? (CARDOSO, 1970, p. 222)
Quem se propõe a escrever iniciou uma viagem cujo fim é o mais obscuro possível,
abrigando muito mais possibilidades de fracasso do que esperanças de vitória; tal como ocorre
ao viajante – ou pelo menos ocorria ao viajante antigo. A imagem do náufrago, ou do
navegante de uma forma geral, relaciona-se à noção de fluidez da própria ideia que tentamos
captar o navegante lança-se ao incerto que vai ao sabor do vento sem fixação, tal como não
se fixam as “verdades” em simples conceitos, em palavras... O fracasso do navegante é o
naufrágio e o fracasso do escritor é ficar apenas na intenção (um Bartleby doente), sem dar
vazão ou “colocação” àquilo que o angustia, ao eterno querer dizer, enfim, ao livro por vir...
Já foi cantado que “navegar” seria mais urgente do que viver e isso revela uma ligação
estreita entre a viagem e a capacidade humana de sonhar. Nas palavras derradeiras de “Outros
espaços”, Foucault reconhece: “O navio é a heterotopia por excelência. Nas civilizações sem
barcos os sonhos se esgotam, a espionagem ali substitui a aventura e a polícia, os corsários”
(FOUCAULT, 2006, p. 422). O estudioso ainda confessa que seria difícil conceber uma maior
“reserva de imaginação”. Não deve ser por acaso, portanto, que ao cobrar de Pedro a “ação”,
o mendigo resignado refira-se justamente ao mar. Mas mesmo sendo uma imagem “bela” (ou
talvez por isso mesmo), muito de terrível na ideia de viagem, e nas outras instigantes
elucubrações que podem ser deflagradas pela ideia da aventura marítima. Aliás, muito do
fascínio de Lúcio Cardoso por essa ideia, pode advir de um medo empírico primitivo: “Na
lancha sacudida com violência pelas ondas, pensei qual seria a minha espécie de morte.
Durante muitos anos, sonhei que um dia morreria afogado” (CARDOSO, 1970, p. 15).
Em seu primeiro romance, Maleita, é o rio (o São Francisco) que acaba por se tornar o
personagem principal, como observou Maria Terezinha Martins, que liga a ideia de fluidez à
concepção do ser:
118
Às vezes o homem é o próprio rio que, com sua fúria indômita em Maleita, rola
intempestivo, poderoso e desenfreado em seu leito, seguindo uma trajetória
desconhecida, mas levando consigo os obstáculos menores e complexos ou
contornando aqueles traumas que não consegue arrastar [...] o rio configura a força
do desespero que atravessa o corpo do homem impotente para equilibrar suas forças
antagônicas, lança-se ensandecido ao encontro de seus adversários existenciais e de
si mesmo [...] em Maleita o rio é o protagonista que impiedoso mata e vivifica [...] a
correnteza do rio é o fluir da possibilidade universal e o da fluidez das formas, o da
fertilidade, da morte e da renovação. (MARTINS, 1997, 127-128)
Com efeito, a imagem do náufrago será perfeita para se referir ao medo do fracasso.
Nas linhas finais de Dias Perdidos, o protagonista Silvio busca por memórias que possam
ajudá-lo a tentar continuar vivendo. Relembrando alguns severos fracassos que marcaram sua
existência, ele pensa em sua vida como um “grande naufrágio”, em meio ao qual é preciso
encontrar algo que não tenha se perdido: “Silvio sabia que não podia viver sem criar dentro de
si a imagem de alguns deuses terrenos e insuflar-lhes alguns sentimentos que julgava
imprescindíveis à existência sobre a terra. Ele sabia disso e tinha a impressão de que alguma
coisa se salvara do imenso naufrágio” (CARDOSO, 1980, p. 405). Já no drama Os
desaparecidos, peça que narra as desventuras de seis personagens à beira do suicídio, em um
dos momentos mais desesperados, o personagem Manuel compara suas vidas terminais
justamente à situação dos náufragos: “[...] estamos aqui reunidos, como uma espécie de... de
náufragos, não é? Acho que para nós tudo acabou”. (CARDOSO, 2006, p. 325) comparação
que também ocorrera ao escritor em uma peça anterior, O escravo, quando Marcos “[...]
estamos falando como se fôssemos dois náufragos.” (CARDOSO, 2006, p. 40) – e Lisa – “[...]
podemos nos amparar para não naufragarmos [...]” (CARDOSO, 2006, p. 60), dois dos
personagens centrais da trama, exprimem-se em termos muito semelhantes. O mais curioso,
porém, é que na Fundação Casa de Rui Barbosa, no espólio de Lúcio Cardoso, há um pequeno
texto manuscrito, com pouco mais de quatro folhas, intitulado Livro de Bordo. São pequenas
notas que, aparentemente, teriam sido redigidas durante uma (ou várias) viagens, como se
observa na primeira linha anotada em uma das páginas: “Aqui estou a bordo, e viajo de novo
(CARDOSO, s.d., S.I.). Embora o documento esteja praticamente ilegível, percebe-se por
outras linhas esparsas, menos afetadas pela ação do tempo, que seria este documento mais
uma espécie de diário cotidiano (não necessariamente de viagem), em que Lúcio registrava
suas impressões. São ideias surpreendentes como: “Amo acima de tudo a violência. Amo o
injusto, o atroz o irremediável. Alimento-me de solidões [...] (CARDOSO, s.d., S.I.). É
interessante pensar que para um registro de tão terríveis pensamentos, elegeu-se tão somente o
título “livro de bordo”, como alguém a naufragar na própria vida.
119
Seria, então, comum que nos textos cardosianos o mar estivesse diretamente ligado à
tragédia. Por isso, não é à toa que, em A luz no subsolo, o mendigo resignado faz referência
ao Britania, navio que representava um grande símbolo de potência, e que naufragou
drasticamente em uma viagem da Inglaterra para o Oriente, em 1805:
– Sabe se o Britania chegou a Liverpool? – perguntou de repente.
Pedro sentiu-se ferido como por uma chicotada. Curvou-se penosamente e
respondeu:
– Que Britania? Não conheço nenhum navio com este nome.
He! He! sorriu o homenzinho é exatamente um navio. Tenho muito medo que
abalroe com este tempo... [...] (p. 146)
Tal imagem se encaixa perfeitamente nas angústias de Pedro, que teme
significativamente não conseguir dar a seus ideais criativos um rumo seguro. E sua “viagem”
também se marca pela solidão:
Ninguém pode compreender o que é a noção total do isolamento compreende-se a
reclusão quando se pode ainda ouvir a voz de alguém ou quando se tem a esperança
de ouvir de novo algum riso mas a compreensão de que a morte vem no abandono
absoluto é alguma coisa que só conhecem os náufragos. (p. 353)
Agora vejamos como o escritor Lúcio Cardoso reflete sobre a vista do mar, em dado
momento de seu Diário:
Não sei por que tantos julgam que o mar é o mbolo da liberdade: vendo-o agora da
minha janela, percebo-o como uma grande coisa aflita e aprisionada, lançando-se
sem descanso contra esses carcereiros imóveis que são os rochedos. Nada é mais
plangente em sua eterna queixa, em sua prisão perpetuamente agitada pelos ventos
da distância. (CARDOSO, 1970, p. 11)
Na mesma data, 28 de agosto de 1949, Lúcio registra uma impressão mais terrível do
mar, durante um retiro em Itaipu, para as filmagens do filme A mulher de longe (filme que
jamais seria concluído). Pensando numa possível locação para um dos próximos takes do
projeto, o escritor a areia da praia misturando-se ao sangue que vazava de um dos
matadouros das redondezas:
[...] O filme se acha localizado take por take, mas ainda assim visitamos hoje
algumas praias lamacentas por onde devo começá-lo. São extensões cobertas de um
barro feito de areia e sangue que escorre dos matadouros próximos e que exalam um
miasma fétido, assim que o sol se torna mais forte; essa lama atrai os urubus, às
centenas, sinistros reis desses pântanos amaldiçoados. A imagem desses ambientes
surge na tela dotada de máscula poesia há, nessas praias de morte, qualquer coisa
condenada, assim como uma faixa de terra do Apocalipse. (CARDOSO, 1970, p. 10)
120
A cena descrita “pântanos amaldiçoados”; “praias de morte” muito nos lembra
uma paisagem dantesca, se pensarmos, principalmente, na primeira vista das margens do
Estige (canto VII do “Inferno”): “Negra era água que dali corria; / nós lhe seguimos o ondular
viscoso [...]” (DANTE, 1971, p. 71)
Pouco à frente (canto IX), Dante repara também no odor mefítico da região, o que
aproxima ainda mais suas desoladas paisagens das observações de Lúcio: “[...] Este paul que a
podridão expira / toda a cidade cinge aqui dolente; / entraremos nela à força de ira”
(DANTE, 1971, p. 83)
34
.
E se evocamos o nome de Dante é porque consideramos cabível uma aproximação de
Pedro, ou até mesmo de Lúcio Cardoso, com o poeta florentino.
Comecemos dizendo que quem tenha acusado Lúcio de não apresentar uma
filosofia consistente em seus escritos. Vamos discordar de tal informação pelo fato de vermos,
sim, não uma “simples” filosofia, mas uma verdadeira “doutrina” nos textos do escritor de
Curvelo. Pensando exclusivamente em A luz no subsolo, não é difícil admitir que se
tivéssemos que especificar a filosofia de Pedro, seria esta a “filosofia do escritor”
35
uma
filosofia marcada pela transgressão, ou por uma insistência em se definir na posição de
transgressor. Transgressão, porque o que origina e impulsiona suas ações está relacionado
com essa vontade de se lançar à vida, de tudo experimentar, sem limites:
É preciso se arriscar ao máximo, a fim de que o sono não nos ganhe o que em
última análise parece um conselho estandardizado de Nietzsche ou de Gide [...] o
que me habita é um medo secreto de perecer pela estagnação [...] para quem não
desdenha os grandes saltos na inquietação e no obscuro, tudo é bom pára ser visto de
perto. (Digo TUDO: as casas cheias de sombra e promessas aliciantes, os grandes
becos da nevrose, o tóxico, os olhos insones do ciúme, as renúncias nas sacristias
afastadas, os livros da magia, os claros escritórios do jogo e da ambição, o inimigo
subterrâneo que nos saúda, a prostituta que nos recebe sem suspeita, a conversa que
pode decidir o futuro, TUDO.) (CARDOSO, 1970, p.28-29)
34
Apenas para citar alguns outros exemplos, no início sétimo círculo do “Inferno” (no canto XII) referência
aos “rios de sangue” em que os homicidas são castigados (DANTE, 1971, p. 109), e no fim do referido ciclo,
em sua terceira e derradeira etapa (canto XIV), o poeta vislumbra um rio, desta vez menor, também de águas
tingidas de sangue, lembrando-lhe as casas de banho em que pecavam as meretrizes (DANTE, 1971, p. 130).
35
Dando a palavra a Lúcio Cardoso, vale citar trecho de uma carta escrita ao crítico Paulo Hecker Filho, em
resposta à acusação de não haver uma “filosofia” que sustentasse sua obra (embora a crítica de Paulo Hecker
fosse endereçada a O enfeitiçado, é interessante observar a resposta de Lúcio): “Falta de filosofia sim, é certo,
pelo menos de uma filosofia construída e intencional [...] Neste caso posso lhe afirmar tranqüilamente que não
tenho e nem quero ter filosofia [...] Nem acredito que ao romancista seja necessário um compêndio explicativo,
com doutrinas, capítulos e teorias elaborando uma imagem morta da vida. Filosofia própria do artista, sim, e
neste caso, tão modestamente quanto julgo ser um escritor, creio que nada mais tenho feito ao longo de uma
carreira literária sem justificativa senão aquela que é inerente a toda carreira que se diz honesta e digna, senão
exprimir minha filosofia a única e sem a qual não poderia ser nem mesmo um escritor de quinta, de última
classe” (CARDOSO apud SANTOS, 2001, p. 183).
121
Ao analisarmos o terceiro livro de Lúcio como um conjunto, podemos pensar que
Pedro não se lançara a tantas desventuras apenas para rebater o capricho de ter sido
censurado, muito de orgulho aqui, orgulho de quem sabe que, não obstante as críticas
negativas do outro, está a caminho de criar algo belo. Sabemos que Lúcio Cardoso foi um
intelectual (e um homem) muito polêmico. Certa vez, ao ver a sua peça O escravo ser
duramente criticada, “cansado” da veemência com que a “crítica geral” lhe cobrava uma
desnecessária mudança estilística, Lúcio respondeu da seguinte maneira: “Continuarei
escrevendo e do modo que achar melhor. Estou acostumado a andar sozinho e depois de dez
anos de trabalho, tenho a rara glória de ser inimigo de todos os suplementos e revistas
literárias do Brasil. Quem não quiser não leia os meus livros...” (CARDOSO apud SANTOS,
2001, p.112).
Ora, se pensarmos na interpretação que Harold Bloom faz do poeta Dante, bem como
de sua obra máxima, a Comédia
36
, percebemos que o sentido que buscamos atribuir à palavra
“orgulho” vai muito além de uma vaidade desenfreada. Se havia muito de afronta na atitude
de Lúcio, ou de Pedro (ou de Dante), devemos essa postura ao caráter visionário de suas
obras, na intenção de fundar uma espécie de “gnose privada”. Bloom chega a dizer que a
Comédia “prefere ser a blia” (BLOOM, 1995, p. 88). A intenção de Pedro não pode ser
vista de maneira diferente. Se o próprio título do livro fala de uma certa “luz no subsolo” e se
a pessoa que primeiro se evadiu dessas trevas é também o homem que pratica uma tentativa
de divinização particular, portando as verdades que podem libertar e (por que não?) curar
aqueles que não “enxergam” o caminho da luz, é muito possível ver Pedro como cicerone
daquela viagem (não necessariamente marítima) guiada por Virgílio e que leva o peregrino
Dante por seu célebre trajeto.
E se acentuamos que tal epopeia (a de Dante) não se mostra “necessariamente
marítima”, que se dizer, contudo, que são muitas as referências que impingem tal
comparação, já que muitas das “travessias” que compõem o imenso percurso de Dante
implicam “incursões” dessa natureza. Algumas são apenas referidas em breves vislumbres
como a visão de Caronte no canto III do “Inferno”, outras surgem em expressão mais efetiva,
como no canto seguinte, em que o poeta chega a um castelo e deve atravessar a barreira de
água que o isola – “[...] protegido / em derredor pela água cristalina” (DANTE, 1971, p. 46) –;
36
Optamos por denominar a obra máxima de Dante apenas como Comédia, e não Divina Comédia, como é
comumente utilizado, uma vez que o adjetivo “divina”, como é sabido, foi acrescentado posteriormente por
Boccaccio, ainda no século XIV.
122
ou na travessia do Estige, na barca de Flágias, em direção a Dite, cidadela maldita do Quinto
Círculo da danação. Acordemos, também, para a “fuga” rumo ao “Purgatório”, que se
através da água: “A singrar melhor água eis que o batel / do meu engenho segue, a vela
inflada, / deixando atrás o pélago cruel” (DANTE, 1979, p. 11). Não obstante, mesmo nas
peregrinações terrestres é comum o uso de expressões que remetem à navegação, como no
início do canto XII do “Purgatório”, quando Virgílio adverte Dante da necessidade de
apressar a caminhada “[...] Convém usarmos remo e vela agora, / nosso barco impelindo
mais depressa!” (DANTE, 1979, p. 108) discurso semelhante àquele que o poeta entoaria
logo a seguir, para comparar o descanso de seus corpos a “naus abrigadas na baía” (DANTE,
1979, p. 157), ou quando inaugura o canto XXIV narrando a pressa que finalmente
recobraram: “[...] avançávamos como naus ao vento” (DANTE, 1979, p. 212). Já em direção
ao “Paraíso”, o peregrino teve que se banhar, quase que em batismo, nas águas do Letes e do
Eunóe; e frente ao préstito que anuncia Beatriz, somos remetidos à Ursa Maior, constelação
que, tradicionalmente, muito auxiliava os navegantes. Na derradeira e gloriosa parte do
poema, no início (Canto II), diante da dificuldade de transmitir ao leitor a complexidade de
tudo o que via, a imagem que ocorre ao poeta é tão somente a de dificílima travessia
marítima, que talvez nem possa mais ser acompanhada pelos leitores, os ilustres tripulantes de
sua aventura:
Ó vós que frágeis barcas tripulando,
pela ânsia de escutar-me compelidos,
seguistes minha nau, que vai cantando,
volvei aos vossos portos protegidos:
Não vos lanceis ao largo, pois no mar,
se me perderdes, estareis perdidos!
Esta água não se viu antes sulcar:
Minerva me impulsiona, Apolo guia,
fazem-me as Musas a Ursa divisar.
Mas vós poucos, que alçastes, dia a dia,
por longo tempo a mente o pão ideal,
que nos nutra na terra e não sacia,
podeis as vossas naus pelo estendal
das ondas aproar, ao sulco rente
da minha que se entreabre e fecha igual. (DANTE, 1979, p. 307)
37
37
Muitas outras referências poderiam ainda ser citadas, como a visão, no Canto XXX do “Paraíso”, de um “rio
de luz” simbolizando a salvação, ou a referência, no último canto, aos Argonautas. Porém, acreditamos que os
exemplos já apresentados bastem para o intuito comparativo que apresentamos.
123
Em certa parte do terceiro capítulo de seu livro Altas Literaturas, Leyla Perrone-
Moisés faz um breve e interessante inventário dos mais significativos ensaios produzidos,
segundo sua respeitável opinião, sobre a obra xima de Dante Alighieri. Leyla chama nossa
atenção para o fato de que durante uma conferência pronunciada no Italian Institute de
Londres, em 1950, T.S. Eliot, autor de inúmeras obras dedicadas ao poeta, teria afirmado que
uma das maiores lições de suas inúmeras leituras da Comédia, à parte as diversas
características ligadas à estrutura, léxico, musicalidade, etc., seria a “lição de amplitude do
campo emocional”, ao que Leyla Perrone-Moisés acrescenta que “o grande poeta é um
explorador que vai além das fronteiras da consciência ordinária e volta para fazer o relato a
seus concidadãos” (PERRONE-MOISÉS, 2003, p. 87). Pedro se ajusta a essa imagem do
“explorador” que retorna solitário de uma estada em camadas extremas (“fronteiras da
consciência ordinária”) para trazer a verdade àqueles com quem convive. Então o que parecia
orgulho pode se transmutar em “humildade”, que nós, os ignorantes habitantes das trevas,
carentes daquela “amplitude do campo emocional”, temos a tendência de identificar soberba
em quem se proclama detentor de verdades profundas – principalmente se tais verdades
chocam-se violentamente com convicções pétreas que alimentávamos desde sempre –, do
mesmo modo que reconheceríamos como abnegada a posição daquele que antes crucificamos
(literalmente), desde que, no fim das contas, seus ensinamentos acabem revelando certa valia.
E Pedro acaba por se tornar “supérfluo” quando o “escravo”, que é também o crítico olhar do
outro, pode se tornar o “senhor”, o independente, tal como Virgílio desaparece no canto
XXX do “Purgatório” de Dante, dando lugar à redenção simbolizada por Beatriz. Cada um de
nós deve procurar sua Beatriz, que para Dante equivalia mais a uma verdade universal (gnose)
do que a uma verdade cristã. Tanto é que o encontro com Beatriz corresponde a um momento
de autoconhecimento, quando o poeta finalmente “ganha” um nome, uma vez que é só quando
vislumbra sua musa que o nome “Dante” é citado, pela primeira e única vez, na Comédia:
E presa novamente da inquietude
de que me trespassara a aguda lança
na quadra da primeira juventude,
voltei-me para a esquerda, na esperança
com que o menino sua mãe reclama,
quando a algo perigoso se abalança,
por dizer a Virgílio: “Um só grama
não me ficou do sangue sem fremir:
sinto de novo arder a velha flama.”
Mas Virgílio acaba de partir,
Virgílio, o caro, pai, que pela estrada
124
me conduzira ali por me remir.
Nem o esplendor de que Eva foi privada
pôde impedir que a lágrima dorida
a vista me toldasse, conturbada.
“Não chores, Dante, à simples despedida
de Virgílio, não chores mais à toa,
guarda o teu pranto para outra ferida.” (DANTE, 1979, p. 267-268)
Ora, Virgílio desaparece quando Dante ganha um nome, o que nos faz pensar na
afirmação de que “[...] uma coisa nomeada não é mais inteiramente a mesma, perdeu sua
inocência” (SARTRE, 1999, p. 20). Podemos relacionar esses dados ao livro de Lúcio
Cardoso. Agindo sobre Madalena, Bernardo e Emanuela, Pedro retira-lhes a inocência, torna-
os independentes e os nomeia senhores de si, autônomos e livres, como “leitores” de suas
vidas, refletidos pela vida dele, Pedro, o “autor”. Talvez por isso, em dado momento do
romance ele se pergunte: “quem é o autor?” (p. 51).
Pedro é o herói, como o viajante-navegante bem-sucedido (em termos relativos). E se
às vezes atacamos de forma tão rude nossos “heróis” é porque ignoramos quanto sofrimento,
angústia, incerteza e incompreensão eles tiveram que vencer para que alcançassem essa
verdade que agora aceitamos receber. É algo mesmo parecido ao que viviam os antigos
navegadores que, taxados de loucos, partiam em busca do desconhecido que poderia nos
consagrar, ser nosso maior motivo de orgulho, em um futuro que eles podiam vislumbrar.
Por isso a coerência da metáfora do navegante, do náufrago. Pedro também atravessa o mar
do inferno em busca da “luz”.
Outro personagem que se ajusta muito bem à presente reflexão é Ulisses / Odisseu,
figura central das obras de Homero, especialmente a Odisséia. Ulisses é também o navegante
aventureiro que enfrenta inumeráveis perigos para retornar ao lar, em Ítaca, confirmando a
fama de ser um grande herói. Sua empreitada já foi utilizada por Blanchot para pensar a “luta”
daquele que se propõe a criar uma obra literária.
É evidente que não evocamos gratuitamente, em comparação a Pedro, justamente as
figuras de Dante e Homero. Fizemos isso porque o texto de A luz no subsolo nos permite.
Claro que uma relação entre a “obsessão” de Pedro pelo mar e pela travessia, e a
simbologia riquíssima que podemos extrair da Comédia e da Odisséia. Mas o ensejo para
essa reflexão reside no fato de que os dois únicos escritores citados no livro de Lúcio
Cardosos são justamente Dante e Homero, as máximas influências de Pedro, autores
admirados até mesmo por Madalena que, como vimos, parecia nutrir verdadeira ojeriza
pelas encadernações do marido: “[...] distinguia desta vez, com absoluta nitidez, os livros de
125
Pedro, as folhas abertas, as linhas violentamente riscadas a lápis azul. Revia os títulos,
guardava os nomes: Dante, Homero, nem sabia mais. Ela também os amava Dante
sobretudo” (p. 130).
38
Além do mais, na curiosa interpretação que Harold Bloom faz da obra de Dante, em
“A estranheza de Dante: Ulisses e Beatriz”, terceiro capítulo de seu O cânone ocidental,
uma tentativa de aproximação entre o escritor italiano e Homero. Em verdade, Bloom refere-
se ao canto XXVI do “Inferno”, quando o poeta nos mostra “a mais original versão de Ulisses
que temos, um Ulisses que não busca o lar e a esposa em Ítaca, mas deixa Circe para romper
todos os laços e arrostar o desconhecido” (BLOOM, 1995, p. 89). Trata-se de uma visão do
heróico Ulisses como um “viajante transgressor”. É o momento em que o peregrino e seu
cicerone vislumbram a chama bipartida em que ardem Diomedes e Ulisses, onde este confessa
a irresistível atração das aventuras no mar:
Disse-me o mestre, ao ver minha atenção:
“As chamas são aqui castigo ingente,
em cada qual se esconde um réu, então!”
“Ouço-te, mestre”, eu disse, “e é suficiente;
mas na verdade o tinha percebido,
e nisto ia falar-te, exatamente:
Quem é que vai no lume, dividido
ao topo, que indicar parece a pira
onde, co’o irmão, Eteocles foi metido?”
“Ulisses e Diomedes, por mentira,
vão nela”, respondeu, “juntos marchando
à vingança de Deus, tal como à ira. [...]”
[...]
“Se no casulo podem falar”,
tornei, “mestre, eu te peço instantemente,
e mil vezes voltaria a suplicar,
que detenhas um pouco à nossa frente,
quando passar, o lume bipartido;
escutá-los desejo ardentemente!”
[...]
E de um outro lado se agitando,
um som soprava, como que saído
de seu calor, e que dizia: “Quando
Circe deixei, após ficar retido
38
Esta revelação do gosto de Madalena pelas “altas literaturas” denota uma sensibilidade que certamente se
vislumbrava em suas longas introspecções, o que a afasta um pouco do grupo “secundário” no qual estava
inserida e de que fazem parte Bernardo e Emanuela. Queremos apenas dizer que é justamente por essa
sensibilidade exacerbada que muitas vezes nos valemos de tal personagem para exemplificar situações reflexivas
privilegiadas em nossa investigação, algo que, se a aproxima inegavelmente do protagonista de A luz no
subsolo, não indica, por outro lado, que o casal se insira num mesmo patamar – acreditamos estar bem claro que
Pedro exerce certa soberania sobre outros personagens, bem como nas investigações propostas.
126
mais de um ano em Gaeta enfeitiçada,
antes que a houvesse Enéas conhecido,
nem de meu filho o olhar, nem a extremada
velhice de meu pai, nem mesmo o amor
de Penélope ansiosa e apaixonada,
nada pôde abater o meu pendor
de ir pelo mundo, em longo aprendizado,
dos homens perquirindo o erro e o valor.
Lancei-me ao mar, em lenho delicado,
junto à pequena e fraternal campanha
pela qual nunca fui abandonado. (DANTE, 1971, p. 244-248)
Para o teórico inglês, haveria na visão de Dante uma tentativa de externar um dilema
pessoal, um tipo de medo, que Bloom admite não ser de todo consciente, que o italiano
sentiria ao pairar entre os “impulsos” da vocação poética e a tendência ao orgulho
transgressor, já que Dante “retrata Ulisses como se levado pelo orgulho, e jamais existiu poeta
mais orgulhoso que Dante [...](BLOOM, 1995, p. 89). Algo mais revelador desse “orgulho
dantesco”, que aliás não foi lembrado por Bloom
39
, pode ser notado de forma interessante no
Canto IV do Inferno”, quando o poeta encontra-se com distinto grupo do qual Virgílio
também fazia parte composto por Homero, Horácio, Ovídio e Lucano. Após ir ter com eles,
o poeta nos revela que fora convidado a fazer parte da plêiade, o que demonstra a estima que
Dante tinha por si mesmo
40
:
O meu mestre, então, me foi falando:
“Olha o que à mão aquela espada traz,
e à frente vem dos três como em comando:
É Homero, cantor alto e capaz;
com Horácio, o satírico, ali vem;
Ovídio logo após, Lucano atrás.
E porque cada um comigo tem
este nome em comum que a voz entoa,
disto me honro, e a nada aspiro além.”
39
Algumas das referências da Comédia citadas no presente capítulo foram referenciadas por Harold Bloom,
como a questão da “nomeação” de Dante por Beatriz ou a visão de Homero no inferno. Como nos valemos de
muitas outras passagens do livro de Dante que não foram assinaladas por Bloom, é bom dizer que na tradução de
o none Ocidental, feita por Marcos Santarrita, a tradução para a língua portuguesa da Comédia utilizada foi
a de José Pedro Xavier Pinheiro, ao passo que nós optamos pela tradução de Cristiano Martins, devidamente
indicada na bibliografia.
40
Além disso, pensemos que a figura do “artista” que sobressai no poema é de alguém que transita por todas as
camadas do além-vida sem ser importunado, um privilégio que poderia receber quem estava bem acima do
bem e do mal. Vejamos que Dante “condena” ao inferno seus desafetos, ao mesmo tempo em que glorifica
aqueles a quem queria bem; uma atitude que não deixa de revelar o quanto estava convicto da impossibilidade de
estar errado, principalmente no que se refere aos problemas de natureza política com os quais se envolveu em
vida e que lhe valeram um degredo perpétuo.
127
Assim reunida a bela escola e boa
eu vi do mestre altíssimo do canto,
que sobre os outros a águia revoa.
Depois de juntos conversar a um canto,
para mim se voltaram, me acenando:
e meu mestre sorriu de favor tanto.
E honra maior me foram demonstrando,
tal, que acolhido em sua companhia,
eu era o sexto aos mais ali somando. (DANTE, 1971, p.45-46)
Sua sensação de pertença àquele panteão é tão segura, que logo em seguida ele diz que
debateram assuntos de tal relevância que era melhor calar-se sobre isso, talvez por não
estarem os leitores “preparados” para conhecimento de tal profundidade:
Andando fomos rumo à luz que eu via,
de matéria tratando tão divina,
que co’o silêncio mais lhe dou valia. (DANTE, 1971, p.45)
A citação acima serve como uma última referência ao já debatido (e hipotético)
“orgulho” das figuras evocadas, dentre elas o Pedro cardosiano. Pedro não estaria, enfim,
querendo equiparar-se aos grandes autores que admira? Orgulho é mais um sentimento que
surge do choque entre a vontade humana de se satisfazer e da missão divina de se aventurar
não pelo prazer, mas por uma missão de ordem elevada. Esse é o motivo do temor de Dante,
esse é um dos combustíveis da Náusea de Pedro. aqui, talvez evidente, o medo de falhar,
possivelmente o temor a que se refere Bloom. Medo que, seguramente, relacionamos a Pedro,
que os versos que encerram o canto XXVI tratam justamente do naufrágio fatal de Ulisses,
soberbamente composto nas palavras de Dante, onde percebemos que o tal “orgulho” é o que
leva Ulisses à ruína:
– Oh irmãos (eu falei), que desta feita
aos confins avançastes do Ocidente,
entre perigos onde o sol se deita,
à pouca vida em vós inda existente
não recuseis a esplêndida experiência
do mundo ermo e ignorado à nossa frente.
Relembrai vossa origem, vossa essência:
criados não fostes como animais,
mas donos de vontade e consciência. –
Aos companheiros, com palavras tais,
instilei tanto o gosto da jornada
que nem eu mesmo os reteria mais.
128
A popa à parte matinal voltada,
demos com força aos remos, e cingindo
à esquerda a rota, fomos de longada.
A noite os astros todos descobrindo
ia do pólo austral e, pois, se via
na linha dágua o nosso decaindo.
Cinco vezes brilhante ao céu subia
a lua, e tantas outras se apagava,
enquanto o firme rumo a nau seguia.
Súbito, um monte vimos que se alteava,
escuro na distância, e erguido tanto,
que de outro igual nenhum de nós lembrava.
Logo o prazer de vê-lo fez-se em pranto:
eis que da terra emana um furacão,
e ao frágil lenho arremessou seu manto.
Por vezes três levou-o de roldão;
Na quarta, a popa ergueu, e mergulhou
Ao fundo a proa, à suma decisão
até que o mar enfim nos sepultou. (DANTE, 1971, p. 249-250)
A figura de Ulisses é válida para o pensamento presente porque, tal como surge aqui,
permite vislumbrar as duas facetas daquele que se lança à aventura literária, representando a
angústia que Bloom apontara em Dante. O Ulisses que Dante nos revela é o Ulisses
“imprudente”, que se deixou levar pela ânsia de aventura e que foi vencido pela travessia,
condenado ao eterno tormento. Já Blanchot, dá-nos uma visão bem diferenciada do herói
homérico; o Ulisses que, augusto, pôde vencer a sedução do canto misterioso, maravilhoso
das Sereias, a voz do abismo: “É verdade, Ulisses as venceu, mas de que maneira? Ulisses, a
teimosia e a prudência de Ulisses, a perfídia que lhe permitiu gozar do espetáculo das Sereias
sem correr risco e sem aceitar as conseqüências, aquele gozo covarde, medíocre, tranqüilo e
comedido, como convém a um grego da decadência [...]” (BLANCHOT, 2005, p. 05 grifo
nosso). É claro que Blanchot refere-se ao canto XII da Odisséia, em que Ulisses rememora os
percalços de sua tentativa de regressar a Ítaca. O curioso é que muito da “vitória” de Ulisses,
no caso, deve-se, em verdade, ao divino alerta de Circe:
[...] Agora escuta.
Uma outra voz divina te gravará na mente o que vais
ouvir. Sereias serão tua primeira prova. Elas
encantam todos os que porventura passam por elas.
Quem inadvertidamente se entregar ao canto
delas nunca mais retornará ao lar [...]
Elas enfeitiçam os que passam,
acomodadas num prado. Em torno, montes de
129
cadáveres em decomposição, peles presas aos ossos.
Evita as rochas. Tampa com cera os ouvidos
dos teus companheiros para não caírem na
armadilha sonora. Se, entretanto, quiseres
o mel do concerto delas, ordena que te amarrem
de pés e mãos ereto no mastro. Que o nó seja
duplo. Entrega-te, então, ao prazer de ouvi-las.
Se, por acaso, pedires que afrouxem as cordas,
ordena-lhes que as apertem ainda mais. (HOMERO, 2007, p. 217, v.2)
41
Contudo, passado esse perigo, ainda que ciente de que, ao fim, o que deve imperar é a
soberana vontade de Zeus, o herói não deixa de lembrar aos companheiros que “sua” astúcia é
o que deve guiá-los dali em diante, como, aliás, vinha fazendo até então:
[...] Abordo um
por um com palavras serenas: “Caríssimos,
experimentados somos em toda sorte de males.
Este não é maior que o da caverna. Prisioneiros
éramos, então, de ciclópica, desumana força.
Meu valor, meu conselho, minha inteligência
garantiram a fuga. Estão lembrados? Atenção
ao que digo! Quero a obediência de todos. A
postos![...]”
Todos aderiram ao vigor da minha palavra.
(HOMERO, 2007, p. 226-227, v.2 – grifo nosso)
O que se evidencia, pois, em cada caso, é a prevalência de um impulso diferenciado: O
Ulisses mostrado por Dante cede à emoção (emoção que acaba levando à ruína), e o Ulisses
de Blanchot prefere ater-se à razão (razão que, por vezes, leva à crueldade, já que logo após o
embate com as Sereias, ao pedir que confiem nele cegamente, Ulisses oculta da tripulação o
fato de que, fatalmente, segundo Circe, seis de seus companheiros deveriam ser devorados
pela monstruosa Cila, o que de fato ocorre). Qual dos dois estaria mais correto? A nosso ver,
aquele que conseguisse um equilíbrio entre tais vontades urgentes e fosse capaz de criar um
“terceiro caráter” (expressão cara ao clássico pensamento estético de Schiller, autor que
evocamos). E o Pedro de A luz no subsolo? Consegue atingir tal objetivo? É o que veremos a
seguir.
3.3 Sísifo: a angústia suicida da escrita
41
É válido lembrar que também na Comédia de Dante referência ao episódio das Sereias, quando, no Canto
XIX do “Purgatório”, o poeta sonha com uma terrífica mulher representando a perdição pecaminosa, sendo que
esta se anuncia, arguta, como a sereia que quis desvirtuar Ulisses: “‘Eu sou’ cantava ‘a plácida sereia / que os
marinheiros paraliso e encanto, / ao som da melodia, que os enleia. // A Ulisses desviei, pelo meu canto, / de seu
ansiado curso; e a mim chegando, / quase ninguém escapa ao meu quebranto’” (DANTE, 1979, p.171).
130
“Criar-se, matar-se, tudo é a mesma coisa”
Sartre, Saint Genet
Passaremos agora a utilizar um outro exemplo metafórico, que talvez se ajuste mais à
condição de “ser-no-mundo”, tendo em mente a real dramaticidade que uma luta entre
racionalidade e vontade acaba por abarcar. O exemplo que selecionamos também não nos
afasta da noção de espaço heterotópico do escritor. Estamos falando do suicídio, do suicida. O
náufrago muito nos ajudou a pensar o “local” do escritor, mas para refletir sobre a real
dimensão, ou “espaço de sua angústia”, talvez devamos mesmo nos servir de uma metáfora
ainda mais “severa”.
O suicida, como nas palavras inicias do célebre estudo de Albert Camus sobre o
assunto, O Mito de Sísifo, está inserido naquele que seria “um problema filosófico realmente
sério: o suicídio” (CAMUS, 2005, p. 17). Ora, o suicida está mesmo entre aqueles dois
impulsos que mencionamos agora pouco: o racional e o natural. Racional porque quem
acaba compreendendo a real natureza humana, marcada (como vimos amiúde) por uma
gratuidade gritante, pela angústia da liberdade e pela negatividade, pode muito bem ser levado
a perceber no suicídio uma forma de alívio. E natural porque mesmo que tentemos negar, há
dentro de cada um de nós poderosos instintos que se digladiam com a razão para promover
uma resistência ao fim voluntário sem falar nos apelos religiosos contra tal solução, quase
unanimidade em todas as crenças. De um lado, a fuga que levaria ao descanso e a uma
irreversível condição “em-si” “o cadáver tem a plenitude do ser” (BORNHEIM, 2005, p.
56). De outro, um apelo à preservação de nossa natureza mais primitiva, cuja força, através
dos séculos, nos trouxe até aqui e nos manteve como soberanos e como “privilegiados” (?)
seres em meio a uma infinidade de espécies. Nietzsche, em um de seus brilhantes aforismos,
resumiu bem esse jogo, um tanto cruel, de impulsos que pode assolar o homem em certas
circunstâncias da vida, especificamente em momentos de crise. Tal pensamento encontra-se
no segundo capítulo do livro Humano, demasiado humano e, embora seja um pouco
extenso, vale a pena ser citado:
O ancião e a morte. Deixando à parte as exigências da religião, é lícito perguntar:
por que seria mais louvável para um homem envelhecido, e que sente a diminuição
de suas forças, esperar seu lento esgotamento e dissolução, em vez de, em clara
consciência, fixar um termo para si? Neste caso o suicídio é uma ação perfeitamente
natural e próxima, que, sendo uma vitória da razão, deveria suscitar respeito: e
131
realmente o suscitava, naquele tempo em que os grandes da filosofia grega e os mais
valentes patriotas romanos costumavam recorrer ao suicídio. o anseio de
prolongar dia a dia a existência, com angustiante assistência médica e as mais
penosas condições de vida, sem força para se aproximar do verdadeiro fim, é algo
muito menos respeitável. As religiões são ricas em expedientes contra a
necessidade do suicídio: com isto elas se insinuam junto aos que são enamorados da
vida. (NIETZSCHE, 2001, p. 66)
Não é difícil aproximar o escritor do suicida em A luz no subsolo. De princípio,
bastaria dizer que Pedro explicita sua vontade de tornar-se escritor e que, ainda que de forma
não muito direta, comete suicídio ao fim da narrativa. Mesmo concordando que Madalena o
tenha envenenado, não é possível discordar de que claros indícios de que Pedro tinha
consciência do que praticava, ao ingerir o cálice de vinho fornecido pela esposa:
[...] [Pedro] Passou a mão pelos cabelos agitados, como quem desejasse afastar um
pensamento mau ou esquecer alguma coisa dolorosa que o perseguisse. De um
golpe, preferindo talvez a melhor solução, segurou a garrafa onde momentos antes
Madalena tinha derramado o veneno. O cálice de Raquel estava vazio.
Encheu-o e ia levá-lo aos lábios, quando Madalena, cedendo à pressão da angústia
que a invadia, deixou escapar um grito.
– Que foi? perguntou, conservando entre os dedos o copo. E como ela não
respondesse nada, os dentes desesperadamente cerrados, levou-o à altura dos lábios.
Nesse momento sucedeu um fato extraordinário: qualquer coisa que nunca Madalena
pôde saber se era um simples pressentimento ou a certeza absoluta, fê-lo estacar por
um instante, como se estivesse tentando distinguir o odor da bebida ao mesmo
tempo que o seu olhar gelado e enigmático pousava em Madalena com uma
inesperada fixidez [...] Madalena esperava. Sem hesitar mais, de um gole, ingeriu
a bebida. Destampou de novo a garrafa e encheu o copo, erguendo o líquido até os
olhos, antes de sorvê-la. (p.350 – grifo nosso)
Vejamos a reação de Pedro diante da morte. Por que, justamente quando acaba de
adquirir aquele conhecimento que poderia levá-lo a partir para sua aventura tão desejada, a de
escrever o livro que há tempos o “habitava”, ele decide desaparecer?
dissemos, no presente capítulo, que a jornada de Pedro liga-se mais a uma
perpetuação da “mortalidade” do que da “imortalidade”. Ora, é justamente sobre tal dilema
que Blanchot se debruça nas páginas de “A morte possível”, em seu Espaço literário.
Valendo-se de excertos das “confissões” de Gide e Kafka, o filósofo e escritor francês põe-se
a pensar no que seria melhor: apoderar-se da morte (pela “morte contenteque o autor de A
metamorfose pregava em seus diários) ou mantê-la à distância (como aparece nas páginas
autobiográficas de André Gide).
Temos a tendência de querer atribuir à obra de arte ao menos a “utilidade” de
preservar a memória e o poder daquele que a produziu. O poder sobre a morte, a capacidade
de se eternizar e passar a fazer parte da história. Mas para nós que ultrapassamos o século XX,
132
não há mais qualquer possibilidade de enxergar a obra de arte como dotada de alguma
utilidade prática (em último caso, movimentos como o Dadaísmo o provaram de forma
incontestável). Talvez estejamos na era em que reconheçamos o quão privilegiada é a posição
de quem pode concordar com Blanchot e dizer que “é ocioso querer permanecer além do
desaparecimento” (BLANCHOT, 1987, p. 91). Ao fim de A luz no subsolo, Pedro
desaparece, mas isso não significa que não tenha perpetuado algumas verdades. Ora, o que ele
mais buscava através de sua relação com o outro era a evidenciação suprema da liberdade e
justamente no momento em que aqueles que eram os escravos veem-se diante da possibilidade
de tornarem-se soberanos, igualando o “mestre” (mas entrando na mesma “prisão” cíclica em
que ela parecia ter se encerrado), eis que mais uma vez Pedro surpreende e honra a posição de
senhor, radicalizando ainda mais a liberdade, através do ato que é a liberdade suprema: o
suicídio. No fim da peça O escravo, de Lúcio Cardoso, o personagem Marcos, escravizado
por Augusta, vinga-se desta justamente pelo suicídio, única ação que o colocaria fora do
domínio que o enlouquecia. E se ligarmos tal ideia a Kirílov, célebre personagem de Os
demônios, de Dostoiévski, concordaremos com Blanchot na afirmação de que aquele que se
mata
[...] terá atingido a liberdade absoluta, tê-la-á atingido enquanto homem e -la-á
dado aos homens. Ou, por outras palavras, terá sido consciência de desaparecer e
não consciência desaparecente, terá anexado inteiramente à sua consciência o
desaparecimento desta, será portanto, totalidade realizada, a realização do todo, o
absoluto. Privilégio muito superior, por certo, ao ser imortal. (BLANCHOT, 1987,
p. 96)
42
A morte de Pedro, bem como todas as suas ações precedentes, é esse “dar a verdade
aos outros homens”, como o autor dá sua obra aos outros assim que a sente terminada.
Diante da possibilidade de finalmente começar a escrever, após ter adquirido a experiência
necessária acerca da natureza humana “experiência significa, neste ponto: contato com o
ser, renovação do eu nesse contato [...](BLANCHOT, 1987, p. 83) Pedro descobre que o
absoluto não se encontra na tentativa de se fazer um deus ambulante e memorável como
aquele que jamais oferecera alívio para a Náusea (ponto que talvez mais o diferencie do
célebre personagem de Dostoiévski), mas na liberdade que cada um tem de transformar a
morte voluntária no lado positivo da existência, é a “morte contente”, a sua última lição para
42
Albert Camus, que chega a dedicar um capítulo inteiro de O Mito de Sísifo à figura de Kirílov, faz uma
interpretação da “missão” de tal personagem bastante semelhante à de Blanchot. De fato, podemos dizer que
Pedro e Kirílov acabam se matando por motivos semelhantes: a “glória humana”, e a possibilidade de indicar um
caminho àqueles que nos sucederem. É bom dizer apenas que em Kirílov o sentido de uma “divinização” pessoal
mostra-se ainda mais pungente do que em Pedro.
133
aqueles a quem restará a independência, o novo caminho, uma verdade indelével. Não se
trata apenas da sobrevivência da obra, mas do que é puramente humano, a intenção de vencer
a morte entregando-se a ela, optando por encerrar o lado negativo e clico da liberdade já
experimentada, buscando a verdade absoluta nos segundos que antecedem o fim, e não logo
após esse fim, como querem os religiosos. O suicídio deve ser visto como a supremacia do
humano (“demasiado humano”) sobre o desejo pueril de ser imortal. Quem quer ser imortal
ainda anda sonhando com a impossível condição que sintetiza “em-si” e “para-si”. Quem se
mata parte para o absoluto “em-si”, propiciado pela experiência máxima do “para-si” que,
talvez pelos únicos instantes possíveis, deixou de ser negativo, deixou de ser nada, para
tornar-se potência; deixou de ser “por vir”, para tornar-se “aí”.
Mas onde entra a questão da escrita?
Pedro se fez suicida, pois, antes de tudo, tinha se feito escritor, e o escritor é “aquele
que escreve para morrer e é aquele que recebe o seu poder de escrever de uma relação
antecipada com a morte (BLANCHOT, 1987, p. 90). Já elegemos a heterotopia como o
espaço de crise por excelência, nosso lugar para pensar a situação daqueles que não têm lugar.
Em A luz no subsolo, o lugar do escritor é, no fim, o lugar do suicida (tanto quanto o do
náufrago)
43
. Ambos compartilham a mesma heterotopia. Quando Pedro decide criar o seu
livro, decide abandonar definitivamente a posição de silêncio em que vivia, decide fazer-se
ouvir. O suicida é aquele que deixou de fazer parte da rotina da vida, é aquele que, insatisfeito
com a condição compartilhada por todos aqueles que o cercam, decide positivamente dar fim
ao seu tormento. Podemos dizer que ambos decidiram fugir à contingência. Quem decide
escrever foge da passiva posição de observador, bem como o suicida foge dos acasos da vida
para dominar totalmente seu futuro. No entanto, o escritor que ainda não concluiu sua obra
está na situação heterotópica porque decidiu escrever, mas ainda não disse nada – já o suicida,
decidiu-se pela evasão, mas ainda não morreu, assolado pelo medo de que uma das facetas da
morte possa trazer a máxima de que “a morte é a impossibilidade de morrer”. Porém,
Blanchot acredita que aquele que decide se matar acaba por entrar definitivamente nos
domínios da morte. Ao decidir escrever, Pedro torna-se para sempre um escritor. Já citamos
que em dado momento do romance ele pergunta: “quem é o autor?(p.51) e diante do
silêncio assume definitivamente a função perquirida. Ele agrega os dois exemplos de que nos
valemos, sendo ao mesmo tempo o escritor e o suicida. Sua obra está sendo escrita enquanto
ele caminha para a morte. Não que ele tivesse total consciência disso (como qualquer artista
43
E não haveria, no navegador que se lança ao mar desconhecido, na clássica concepção do navegador, uma
tendência suicida? Ainda que indireta?
134
não pode ter, de antemão, a verdadeira visão da obra), mas o que o fez afirmar que queria ser
um escritor, certamente, é sua predisposição para a morte, sua ilusão romântica de intentar
“dizer” a morte. Sua experiência de vida é a sua obra, e é a obra por excelência uma vez que a
experiência adquirida em seu trajeto abrange a totalidade da real vida humana. Seu percurso é
o caminho que deveria ser mais natural aos nossos olhos: partir da ignorância para o
reconhecimento radical e profundo da condição terrível que o constitui, e escolhendo, por
tudo o que passou, fazer de si o avesso do que o acaso o obrigou a ser... Isto é a arte, porque
“a arte é experiência, porque é uma pesquisa, não indeterminada mas determinada por sua
indeterminação, e que passa pela totalidade da vida, mesmo que pareça ignorar a vida”
(BLANCHOT, 1987, p.85). Tais palavras de Blanchot, talvez tendendo ao paradoxo,
resumem bem tudo o que tentamos dizer aqui, pois só no paradoxo, e no incompleto, reside a
concretude e a possibilidade de afirmar que é por se descobrir irremediavelmente como
impossibilidade e negação que o homem pode afirmar-se em potência duradoura. Talvez
porque a morte “é” (ou sendo, no mínimo, a realidade que desintegra o que tenta ser),
talvez porque a morte não possa morrer, é que aquele que se entrega a ela, dominando-a, seja
o artista absoluto, pois vem daí o fascínio do homem pelas grandes tragédias: “a sobriedade
das grandes agonias é um traço que suscita prazer” (BLANCHOT, 1987, p.97). Deve haver,
no fim das contas, um intuito moral no suicídio, como o concebia o pensamento trágico
clássico, exemplificado aqui pelas palavras de Friedrich Schiller:
Todo sacrifício da vida é contrário às finalidades do bom senso, porque a vida é a
condição de todos os bens. Mas o sacrifício da vida a serviço de um objetivo moral
ganha um alto sentido final, porque a vida nunca é importante por si mesma, como
fim, mas tão-só como meio para os fins morais. Dando-se o caso, pois, em que o
abandono da vida se torna um meio para o fim moral, aquela terá de subordinar-se a
este. (SCHILLER, 2002b, p. 23-24)
Por mais terrível que possa parecer tal afirmação, a única forma de livrar-se da
liberdade, e da Náusea, é engajá-la positivamente, dar a ela um plano determinado. A morte
consciente de Pedro é, portanto, um ato estético, coloca-o em concordância com a natureza
trágica que deveria reger a humanidade:
TODAS as felicidades constituem uma ameaça a qualquer coisa acima de nós, a uma
ordem secreta que subsiste além de nossas incertezas, e que mal divisamos nos seus
contornos de sombra e de relâmpagos. Por isto, unicamente por isto, é que a tragédia
é o estado natural do homem. (CARDOSO, 1970, p. 05)
135
também que se considerar o tormento do criador que começa a perceber que
mesmo criando a mais bela das obras de arte não poderá haver a imposição final do objeto
“a criação passa para o inessencial em relação à atividade criadora” (SARTRE, 1999, p. 34).
o leitor objetiva a obra e isso acentua o tormento do escritor que compreende a
impossibilidade de vislumbrar o trabalho excruciante às voltas de sua subjetividade
“trabalhada” para outrem. O que se instaura e prevalece, no fim das contas, é o tédio
primordial, de natureza semelhante àquele que acomete o suicida, o tédio que promove a
morte a uma possibilidade atraente para suportar a agonia sem fim do trajeto, impulso
semelhante ao que anima o seguinte diálogo entre Pedro e o mendigo resignado:
– Que faz o amigo para passar o tempo? – perguntou a estúpida voz.
– Passar o tempo?
– Sim... o tédio da travessia...(p. 147)
A travessia (a própria vida) acaba por tragar aquele que a ela se lança. Mas pode
ocorrer um tipo de naufrágio diferente, que não representa uma tragédia final, quando o
desaparecimento se ao fim da jornada, propiciando um silêncio novo que deve coincidir
com a nova versão da antiga voz, a eclosão da obra.
Pedro percorre o caminho até o fim, quando sua morte é o preço justo por suas
palavras; e a morte final de nosso protagonista coloca-o, por isso, na emblemática “morte do
autor”, sobre a qual Barthes e Foucault se debruçaram. Pedro desaparece para dar
autonomia e forma ao seu trajeto, rompendo a cadeia viciosa do tempo abstrato, pintando com
resistência seu passado e apaziguando a impossibilidade de futuro, para fazer nascer o leitor
como sujeito literário. E não é difícil conceber Madalena, Emanuela e Bernardo como seus
leitores. A marca de independência desses personagens como receptores da obra de Pedro fica
bastante evidente no fato de que Pedro sucumbe à morte real, depois de ter plena
consciência de que seus “escravos” aderiram à metamorfose sugerida pela liberdade sem
limites. Deve haver uma relação de entrega, pois “aquilo que o escritor pede ao leitor não é a
aplicação de uma liberdade abstrata, mas a doação de toda a sua pessoa, com suas paixões,
suas prevenções, suas simpatias, seu temperamento sexual, sua escala de valores” (SARTRE,
1999, p. 42). Ainda que não concretize o “objeto” livro, de uma maneira palpável, Pedro pode
ser considerado escritor porque sua relação com Madalena, Bernardo e Emanuela denota um
tipo de entrega que realmente se assemelha ao par escritor/leitor. É o olhar do leitor que
confirma a eficácia da obra. O artista produz o belo, mas não pode desvendá-lo. A gradativa
consciência da atividade artística diminui a consciência da natureza do que foi produzido.
136
Deve ser, portanto, o ato de leitura a ação que vai desencadear a “máquina literária”. O leitor
confere a desejada objetividade àquilo que no escritor foi subjetividade. O leitor não deve se
limitar à absorção passiva (a menos que, paradoxalmente, a passividade do leitor se
fundamente em ato) de ideias “projetadas”. Pedro depende de seus leitores / receptores, pois
apela para a liberdade deles, cobrando-lhes uma imaginação constitutiva e não apenas
reguladora. O livro (a obra) não serve à liberdade do leitor, ele a “requisita”; não é, com uma
ferramenta,
[...] um meio que vise a algum fim: ele se propõe como fim para a liberdade do
leitor. E a expressão kantiana “finalidade sem fim” me parece inteiramente
imprópria para designar a obra de arte. Tal expressão implica, de fato, que o objeto
estético apresente apenas a aparência de uma finalidade e se limite a solicitar o jogo
livre, mas regulado, da imaginação. É esquecer que a imaginação do espectador tem
não apenas uma função reguladora mas constitutiva. (SARTRE, 1999, p. 40)
A citação de Sartre em Que é a literatura? é fundamental pois expõe uma
interessante concepção estética que rompe alguns preceitos da clássica visão estética de Kant.
Sartre concorda com este na afirmação de que a obra de arte não deve ser imbuída de uma
finalidade, mas apenas porque a obra é uma finalidade em si mesma”. Para Kant a obra
existe, “de fato”, para só depois ser vista, ao que a crítica de Sartre se fundamenta na
afirmação de que “háuma obra de arte “quando” a vemos antes de ser “vista”, a obra
não é mais do que “apelo” e “exigência” de existir. Ainda mais interessantes são as palavras
conclusivas de Sartre ao dizer que a obra “é uma tarefa a cumprir” (SARTRE, 1999, p. 41).
Todos os personagens estão metaforicamente inseridos na obra de Pedro. Madalena
diz que odeia os livros do marido, o que é paradoxal, pois seu ódio extremo não combina com
a afirmação de que também ama Homero e Dante (conforme já citamos). Do mesmo modo,
vimos que Bernardo aparece quando Pedro está imerso em suas leituras e diz que precisa
escrever um livro; e, também já vimos, muito do que faz Emanuela se “definir” como louca, é
ouvir Pedro falar das “travessias” que lhe instigava o mendigo resignado.
A obra de arte literária esimensamente atrelada a uma ideia de liberdade por parte
do leitor. Ninguém é obrigado a abrir um livro, mas se assim escolheu, deve arcar com as
consequências. Do mesmo modo, Bernardo sempre sentiu a força de Pedro, mas decidiu
desafiá-lo; Madalena sabia da natureza misteriosa do marido, mas nunca o abandonou;
Emanuela preferiu confiar em Deus e em sua natureza que lhe parecia destemida, ao invés de
ir embora. São todos leitores que aceitaram ir em frente e ler as páginas sombrias compostas
por Pedro, o autor. Quando seus “leitores” apreendem o âmago da questão (a essência da
137
liberdade), não há mais qualquer razão para que ele subsista. Isso pode ser confirmado
perfeitamente nas páginas finais de A luz no subsolo, já que as últimas ações de Pedro
representam, exatamente, a constatação de que seus leitores em potencial tinham captado a
obra, reconstruindo-a, cada um a seu modo, cada um de acordo com seu espírito, como
realmente pode acontecer, caso nos dispusermos a ouvir as impressões que três leitores
diferentes obtiveram após o contato com um mesmo livro.
Momentos antes de se matar, Pedro encontrava-se no interior da casa, com Madalena
a casa escurecida pela simbólica atitude de Pedro de esconder todas as velas e lamparinas, o
que forçaria Madalena a enxergar em meio às trevas: “De quarto em quarto reuniu todas as
velas e lamparinas: depois, com os mesmos movimentos vagarosos atirou tudo no forno de
barro da cozinha. Dentro da casa, a treva era absoluta” (p. 267).
Pois eis que recebem a visita de Raquel dando notícia da loucura de Emaneula:
Um pressentimento dilacerou bruscamente o pensamento de Madalena. Reviu o
olhar febril sob a luz vermelha do candeeiro.
– Aconteceu alguma coisa? – perguntou em voz baixa.
Raquel olhou alternadamente para Madalena e Pedro:
– Aconteceu. Emanuela está doente.
[...]
– Como? – [Madalena] indagou outra vez
– Não sei, ela grita e faz medo às pessoas. A velha Emília disse...
Madalena tinha se precipitado e lhe segurava as mãos:
– Disse o quê?
– ... que ela jamais ficará boa...
[...]
– É por isso que veio? – tornou Madalena.
Raquel sorriu quase imperceptivelmente:
– Foi por isso que eu vim.
[...]
Madalena sorriu com amargura:
Eu sei que ela está louca. Nós todos sabemos. Delira e conversa com as
sombras [...] (p. 339-340)
O detalhe interessante na passagem citada é que se toda a família de Emanuela já
estava ciente de sua demência, bem como Madalena que desde a visita que fizera à menina
tinha reparado em seu comportamento enlouquecido e alucinado (p. 273) –, a visita de
Raquel só faz mesmo sentido se sua razão tiver sido a de deixar ciente aquele que foi o
“autor” de tal “trabalho”.
Logo depois, Pedro sai para caminhar no jardim e encontra-se com Bernardo. Em
meio a um discurso delirante, um tanto paradoxal, eufórico por ter cometido o crime que o
libertou da inércia, ele se declara, após confessar que muito refletira sobre as palavras de
Pedro, como mensageiro de novos tempos, onde o homem finalmente conseguiria se livrar do
138
absoluto duvidoso, oferecido pela imagem de Deus, voltando-se para dentro de si mesmo,
reconhecendo sua imensa força
44
. É também um momento em que Pedro parece questionar a
constatação apresentada, incerteza que logo seria rebatida pelas afirmações de Bernardo:
Sabe? Tenho pensado agora em todas as suas palavras, inútil esconder mais que
elas têm vivido comigo noite e dia, devorando este é bem o termo devorando o
meu espírito. Muitas vezes eu me atirava no chão e rugia de raiva, mas era em vão e
eu continuava a sofrer. Nem sei mais que idéias tenho tido... mas ouve: julgo que
Deus é o senhor dos nosso olhos e... acaso não foi ele que nos encerrou nestas
trevas?
– Vejo que você já não é o mesmo – exclamou Pedro com um riso sardônico. – Deus
já vive como uma realidade nas suas palavras.
Não, eu não acredito em Deus, mas acredito no demônio. Ele me ensinou que
existiam trevas e que eu podia me libertar dessas trevas eu tentei caminhar e
alguém terá me tirado talvez a luz dos olhos...
– É verdade Bernardo que haverá o tempo que eu lhe disse. Mas não será agora: será
quando o homem não amar senão a si mesmo, desdenhar os seus sofrimentos e não
temer senão as suas próprias forças. Eu disse isto e os vi crescer no meu caminho
como cogumelos. Eu os plantei com meu ódio e cresceram todos. Mas são fracos e
voltarão à poeira de onde vieram.
Bernardo agitou-se e disse:
Engana-se, Pedro. Eu sou o enviado para avisar que esse tempo é chegado [...]
Ouve, eu podia me suicidar amanhã, existem homens que se suicidam de repente...
mas eu não farei isto porque não tenho nenhum medo de viver. (p. 345-346 grifo
do autor)
Findo o diálogo, Pedro volta a casa, e há a passagem de seu envenenamento, passagem
que indicamos e que atesta, para ele, a certeza do ódio que passara a dominar sua esposa
não obstante a hesitação de Madalena no momento decisivo em que Pedro ingere o veneno, o
que não representa um arrependimento, uma vez que ela poderia ter impedido que o marido
bebesse o conteúdo mortífero. Além do mais, diante da indagação de Pedro (“que foi?”),
Madalena “não responde nada”.
Com a iluminação da certeza de que o seu trabalho estava concluído, Pedro abraça a
morte e vislumbra a luz no subsolo, retornando para morrer no jardim e bradando: Luzes!
Luzes! Onde estão as luzes?” (p.353).
E logo em seguida o livro termina. Os dois últimos parágrafos são bastante
significativos, pois trazem, respectivamente, as palavras finais de Bernardo, que assume a
posição do homem livre e solitário, vislumbrando um futuro em que a verdade se inculcará
nos corações dos homens, preferivelmente sem ser pelo caminho de Deus, e a imagem que
44
É difícil dizer com segurança que o personagem conclui pela não existência de Deus. O próprio tom de delírio
perceptível em Bernardo aguça a dúvida, o que permite diversas interpretações, todas elas relativamente
cabíveis.
139
encerra o romance, com o sol, a luz ofuscante, prevalecendo finalmente sobre as trevas em
que se passaram praticamente todas as ações do romance:
Talvez seja isto mesmo... concluiu num sussurro. Nós quem sabe se
existem muitos pela terra somos parcelas de um outro todo e esperamos um outro
dia que não será aquele em que Deus aparecer no coração dos homens.
O dia tinha invadido completamente o jardim. Bernardo olhou os muros altos e
deixando-se cair de novo, com um gemido, estendeu-se mansamente ao lado do
cadáver. (p. 358)
É realmente o momento da autonomia do leitor, o momento em que a obra cria vida
própria e suprime o autor. Pedro esperava a confirmação de seu trabalho, para nos deixar
de forma brutal, como se a nós coubesse, dali em diante, decidir o que fazer da obra. Além
disso, depois de pairar por todo o livro entre lados extremos da moralidade predominante,
aprendemos a ver em Pedro apenas um ser humano dotado de coragem e consciência das
possibilidades da liberdade. Ele não é mais o bem e nem o mal, mas a encarnação do sublime,
nem bom caráter, nem mau caráter, nem vontade e nem razão, apenas a ntese tão almejada,
que seguiu por controversos caminhos (ora desejo de divindade, ora pedido de condenação),
mas que acabou por atingir a noção essencial do terceiro caráter: “em-si” corpo instinto
irracionalidade + “para-si” espírito saber razão... Usar a razão contra ela mesma, agir
livremente através da ão que dará fim à liberdade, desorganizar a regra do tormento através
de uma intenção agressiva não-factual... Eis a beleza da arte, eis o paradoxo que pode ser
explicitado pelo artista, a obra entregue a quem detém um impulso diverso, mas tão
verdadeiro e necessário quanto o que a fez surgir; um movimento dialético que, ao menos
para quem dele participa, é quase a perfeição.
Dificilmente pode-se imaginar algo mais belo.
Enfim, essas são as considerações mais “simbólicas” que podemos associar à figura do
escritor em A luz no subsolo. Tentemos, de agora em diante, tecer algumas reflexões acerca
de sua função (de artista) no meio em que vivia. Não pretendemos iniciar uma reflexão
política, por razões que explicitamos brevemente no inicio de nosso trabalho e por sabermos
que Lúcio Cardoso não foi um escritor muito “engajado” haja vista seu notório desinteresse
pelos assuntos relativos à Segunda Guerra Mundial
45
. Sem maiores delongas, cabe deixar
45
Sobre as considerações de cio com relação à Guerra e suas repercussões, recomendamos o estudo de Cássia
dos Santos sobre a recepção crítica dos textos de Lúcio, onde são citadas entrevistas e depoimentos do escritor
sobre o assunto em questão. O livro encontra-se referido na bibliografia final, mas as páginas de maior
140
claro que, cientes das armadilhas que a apalavra “engajamento” pode trazer, ainda mais
quando associada ao pensamento de Sartre, não pretendemos situar Pedro numa reflexão que
enverede por conceitos como “comunismo’, “proletariado”, etc. Contudo, refutar
incondicionalmente a ideia de estar Pedro minimamente engajado numa “causa” é o mesmo
que defender o triunfo de um particularismo ideológico, o que, com toda certeza, o
pretendemos. O engajamento final de Pedro será o literário, como instrumento para retratar a
verdade do homem. Escrever é o que aparece como caminho possível para suportar sua
subjetividade, objetivando-a em projeto literário, e para que não se transforme num reles
niilista. Acontece que, mesmo de origem individual, sua ação pode alcançar uma
representativa universalidade. Vejamos então qual a possível “função intelectual” de Pedro na
realidade de A luz no subsolo.
3.4 O trajeto intelectual
[...] nenhuma sociedade pode se queixar de seus intelectuais sem acusar a si
mesma...
Sartre, Em defesa dos intelectuais
Se nos baseássemos apenas na opinião de Sartre no ano de 1948, quando o filósofo
púbica o livro Que é literatura?, talvez não valesse a pena nos aprofundarmos em suas
considerações sobre o intelectual, tentando associá-las ao nosso presente estudo. A única
referência mais direta que Sartre faz à “natureza intelectual” ao longo de todo o referido livro
é a curta afirmação: “Os ‘intelectuais’ são necessariamente parasitas das classes ou raças
opressoras” (SARTRE, 1999, p. 63).
Não acreditamos que seja possível vislumbrar a figura do protagonista de A luz no
subsolo inserida nessa categoria. No entanto, quase 20 anos depois, Sartre iria compor um
relevância vão de 129 até 140. Na Fundação Casa de Rui Barbosa, recomendamos os artigos “Confissões de um
homem fora do tempo”, de Lúcio Cardoso, e “Dr. Lúcio Cardoso e a paz”, de Paulo Cabral (o primeiro também
encontra-se reproduzido na edição crítica da Crônica da casa assassinada, também citada ao fim do trabalho).
Na época, o assunto gerou certa polêmica. Mas temos que admitir que se havia, ao menos de forma aparente,
uma maior preocupação de Lúcio com o introspectivo e com a criação artística do que com o conflito mundial,
há, em contrapartida, e segundo a análise de Ésio Macedo Ribeiro (2006, p. 77-78), ao menos um poema
publicado por cio na década de 30 (diga-se de passagem o primeiro poema publicado pelo autor) que seria
explicitamente um “poema de guerra” (fazendo referência tanto à Primeira Guerra Mundial quanto à eminência
do segundo combate), intitulado “Poema do Ferro e do Sangue” (que Ésio reproduz na íntegra); enfim, uma
exceção que merece ser citada.
141
retrato bem mais abrangente e justo do intelectual não por acaso, tal trabalho receberia o
singular título de Em defesa dos intelectuais. Esse livro revela-nos uma reflexão bem mais
elaborada, cujas significativas implicações talvez nos ajudem, agora sim, a entender este outro
percurso da percepção de sua intelectualidade à função de escritor, um percurso “menor”,
mas também importante, dentro da trajetória do ser em que se apoia nossa pesquisa que
também é percorrido pelo personagem central de nosso objeto de estudo.
O escritor também é aquele que evidencia a consciência infeliz de uma sociedade,
colocando-se em antagonismo com as forças conservadoras vigentes.
E muito do que alimenta a antipatia de Pedro com relação à ideologia cristã, pode
basear-se em sua tendência a identificar o homem como centro da razão e como sujeito do
conhecimento. Desse modo, o padre que caridosamente fala aos curvelanos não pode mais ser
o detentor de verdades absolutas, pois há, agora, alguém para com ele rivalizar. Pedro passa
da posição de (semi) Deus para se assumir como um “intelectual” e, depois, como um
escritor.
Antes de tomar a decisão de “escrever”, de fazer de suas ações a obra em progresso,
Pedro exercia a atividade de professor, um cargo instituído pela casta dominante da sociedade
para designar um guardião de preciosas verdades. Não é à toa que toda a atividade
determinante de Pedro, em A luz no subsolo, tenha se posto em marcha justamente quando a
mesma “ordem” que lhe deu o “poder” de ensinar, tenha julgado que ele não era mais capaz
de cumprir esta tarefa. E aqui Pedro se insere na crítica comumente feita “aos intelectuais” na
época de publicação do livro de Lúcio Cardoso (bem como nas décadas que seguiriam). A
partir do momento em que Pedro deixa de atuar apenas no campo do saber que lhe era restrito
onde segundo Sartre a denominação mais coerente às suas atividades talvez fosse a de um
“cientista” ou “pesquisador” ele passa a ser alguém que quer aplicar aquela “chave do
saber”, que empunhava em sala de aula, para dar suas “liçõesem âmbitos em que seu poder
não é mais reconhecido, ou é, no mínimo, perigoso (se pendendo a uma “autonomia”). Dentro
da sala ele era o detentor do conhecimento; fora dela é apenas um tipo de “intruso” que,
embora pregue um saber mais “universal”, não merece ser ouvido: “[...] o intelectual é
alguém que se mete no que não é da sua conta e que pretende contestar o conjunto das
verdades recebidas [...](SARTRE, 1994, p. 14 grifo do autor). De qualquer forma, mesmo
em sala de aula, seria muito difícil que enxergássemos nele alguém a quem deveria ser
atribuída a missão de criticar os “fins sociais”. Embora manipulasse conceitos, o âmbito
desses “saberes” não deveria ultrapassar o que já estava pré-determinado, pois, afinal de
142
contas, o que causa incômodo diante de um intelectual é sua “insistência” em utilizar seus
“métodos” para outros fins que não sejam a solidificação da ideologia burguesa.
Isso reforça a transição da terceira tentativa fracassada de se vencer a Náusea (o apoio
na esperança do absoluto), para a quarta e última possibilidade apontada no livro de Sartre: a
literatura.
A Igreja foi, por séculos, a suprema guardiã da ideologia social reinante (detendo
inclusive os poderes econômico e político). Pelo menos até o século XVI, o “clérigo” detinha
um conhecimento que o colocava em posição superior à dos barões e camponeses (visto que
estes nem sabiam ler). Mas não havia como os religiosos se tornarem agentes de um saber
prático uma vez que tinham que se limitar a reproduzir os conhecimentos cristãos
adquiridos em seus estudos. com o advento da burguesia é que esta casta pôde (ou teve
que) “produzir” uma “peça” capaz de rivalizar com os religiosos no espaço de mediação entre
os nobres e os religiosos, gerando conflitos entre as classes e a Igreja, propiciando o
desenvolvimento do capitalismo comercial. A burguesia passa a necessitar de “técnicos” que a
defendam da exploração da classe religiosa. São, no entanto, especialistas que nascem em
meio a uma burguesia que não se preocupa em definir uma ideologia própria, conservando a
ideologia dos clérigos. O único interesse ideológico que poderíamos perceber nas intenções
burguesas seria tão somente o de dessacralizar os setores práticos. Somente a partir do século
XVII a burguesia vai tentar se afirmar a partir de uma concepção mais abrangente de mundo.
Aí sim, entram em cenas os detentores do saber prático para que se forme a ideologia
burguesa: “homens da lei (Montesquieu), homens de letras (Voltaire, Diderot, Rousseau),
matemáticos (D’Alembert) [...] etc.” (SARTRE, 1994, p. 19)
46
.
Ao invés de clérigos, a sociedade “pensante” conta agora com “filósofos” que estão
oficialmente encarregados de determinar “uma concepção racional do Universo que englobe e
justifique as ações e reivindicações da burguesia” (SARTRE, 1994, p. 19 – grifo do autor).
Acontece que quando surgiu o intelectual, a natureza de suas atividades científicas,
práticas, encontrava apoio na própria formação da identidade burguesa que também era
norteada por princípios de contestação, rejeição à autoridade (e, na época, aos entraves que
impediam o livre comércio). Mas quando a burguesia toma o poder, ainda que insista em se
denominar humanista, não tem o direito de se intitular universal.
46
Os fatos históricos aqui reunidos representam um resumo de dados apresentados por Sartre no primeiro
capítulo do livro Em defesa dos intelectuais.
143
Pelas dificuldades financeiras de Pedro, vemos que sua origem não remete às altas
esferas sociais, mas em tudo o que o cerca está a marca da ordem burguesa
47
inclusive seu
cargo, instituído e tolerado para que outras gerações aprendam as regras que devem ser
seguidas:
O emprego, como posto a prover e como papel a desempenhar, define a priori o
porvir de um homem abstrato mas esperado: tantos lugares de médicos, de
professores etc. para 1975 significa, ao mesmo tempo, para toda uma categoria de
adolescentes, uma estruturação do campo dos possíveis, os estudos a realizar e, de
outro lado, um destino. De fato, acontece muitas vezes que o emprego os espera
antes mesmo de nascerem, como seu ser social [...] a unidade das funções que terão
de desempenhar no dia-a-dia. Assim, a classe dominante decide o número dos
técnicos do saber prático em função do lucro, que é seu fim supremo [...] A classe
dominante regulamenta o ensino de maneira a lhes dar: a) a ideologia que ela julga
conveniente (primário e secundário) [...]” (SARTRE, 1994, p. 22-23 grifo do
autor).
Sabemos que Lúcio Cardoso também não foi um assíduo frequentador da educação
formal, “pelas matérias e currículos feitos para conferir diploma”
48
, e nossa intenção não é
seguir Sartre para que a discussão aborde o problema das classes sociais (embora a
evidenciação das contradições do poder regulador da sociedade raramente passe ao largo
dessa reflexão). Mas é claro que, como homem de saber, Pedro não ignorava os limites, nada
tênues, do poder que o admitia no cargo de professor, até o momento em que começa a
incomodar. Mas temos que concordar com Sartre e pensar que a crise que acomete o
intelectual advém muito do fato de ser ele um “humanista”. Ora, pode-se argumentar que
Pedro não tem o direito de se sentir injustiçado e, portanto, apartado da ideologia que prega a
igualdade entre os homens que decoramos desde o nascimento –, porque seu ato fere
princípios básicos de humanidade. Mas não podemos perder de vista o fato de que a regra
moral de Pedro não pode ser estreitamente equiparada à das pessoas que vivem na letargia da
“má-fé”. Portanto não cabe pensar “por que” Pedro foi “injustiçado” (nos limites da moral
dominante), mas que ele tem o direito de reagir àquilo que fere sua liberdade e que representa,
dentro de sua lógica, uma injustiça àquilo que ele percebe (antes dos demais) ser a ordem
natural das coisas. Não podemos acreditar que Pedro ignorava o “poder” que lhe foi conferido
no cargo de professor, tanto que decide valer-se desse poder para instaurar o caos no seio de
uma das instituições mais organizadas em nossa sociedade: a escola. Esse ato primordial
47
Pedro pode até não ser oriundo de uma classe tradicionalmente burguesa, mas Lúcio Cardoso, na maturidade,
foi frequentador dos círculos intelectuais de tal grupo.
48
A frase citada encontra-se na breve “Notícia biobibliográfica”, ao fim da edição de Salgueiro que utilizamos
para nossa pesquisa indicada nas notas bibliográficas. Infelizmente, no referido volume, não consta a autoria
do texto.
144
insinua a posição que quer para sua vida e para toda a humanidade tanto que ao perder o
espaço inicialmente escolhido para sua ação, volta-se em direção àqueles que o cercavam, ou
seja, que se encontravam em sua nova realidade particular. Atitude similar pode ser percebida
na seguinte declaração de Lúcio Cardoso:
Meu movimento de luta, aquilo que viso destruir e incendiar pela visão de uma
paisagem apocalíptica e sem remissão é Minas Gerais. Meu inimigo é Minas Gerais.
O punhal que levanto, com a aprovação ou não de quem quer que seja é contra
Minas Gerais. Que me entendam bem: contra a família mineira. Contra a literatura
mineira. Contra o jesuitismo mineiro. Contra a religião mineira. Contra a concepção
de vida mineira. Contra a fábula mineira. [...] Enfim, contra Minas, na sua carne e no
seu espírito. (CARDOSO, 1996, p. 764)
Como intelectual, o escritor curvelano tem o direito de lutar por um mundo em que
julgue nocivo para todos os homens a existência de um conservadorismo como o que, ainda
hoje, é defendido pela tradicional família mineira. Forçoso seria querer exigir daquele que se
libertou que continuasse, por razões que se mostram desprovidas de sentido, que voltasse
humildemente para a “cadeia”, ou para as trevas do subsolo. É justamente por ter noção de
sua missão humanista que Pedro sente-se quase que no dever de levar àqueles que o cercam a
mesma visão da liberdade irrestrita que lhe parece a única condição possível da existência
agir diferente seria monopolizar nocivamente o saber, considerando-se sempre superior. É
claro que, de início, ele se sente mesmo superior, tanto que acredita merecer uma gnose única.
Mas ao perceber, quando se torna sujeito do conhecimento, que a ignorância não pode ser
mais amena que a Náusea de ver a verdade, não pode se esquivar da urgência de libertar das
trevas – mesmo que, de início, não queiram – aqueles que são seus iguais.
Se a palavra “humanismo” parecer excessiva, contraditória perante o que já discutimos
aqui, temos que dizer que a empregamos querendo dizer que o “fim” primordial do ato da
escrita, como nas palavras de Lúcio Cardoso, é o “homem”: “Se me perguntassem hoje qual é
o fim extremo da minha obra, diria que é o Homem, ou melhor, reintegração na sua forma
decisiva e total, sem amputações, com seus lados de sombra [...]” (CARDOSO, 1970, p. 244).
Ao fim de tudo, Pedro é o mais coerente dos personagens de A luz no subsolo, sendo
que o erro está no molde social que quer fazer com que sejam iguais seres que, por natureza,
só podem ser diferentes uns dos outros, afinal de contas
O que define todo humanismo é que o mundo moral não é um mundo dado, estranho
ao homem e ao qual este deveria se esforçar para ter acesso de fora: é o mundo
desejado pelo homem na medida em que sua vontade expressa sua realidade
autêntica [...] Originalmente separados, como os homens poderiam se reunir?
(BEAUVOIR, 2005, p. 21)
145
Pedro tende a ser um intelectual e, por conseguinte, alguém que deve incomodar
porque lida diariamente com a “pesquisa” e o saber prático, apto, portanto, a perceber mais
facilmente a contradição que move o mundo ideológico dominante (forma-se um pesquisador
pela contestação sistemática do trabalho científico, “esperando” que ele não conteste a
arbitrariedade da ordem social) ao passo que (para nos atermos aos três personagens
secundários mais importantes da trama) Emanuela e Madalena nem tem voz social (inseridas
na realidade machista que as permitiria trabalhar para fugir à miséria total, como ocorre
com Emanuela), bem como Bernardo, que parece exercer apenas a reles atividade de agiota. A
posição passiva desses três personagens pode mesmo fazer com que se “assustem” e se
encolham diante da liberdade e de qualquer vislumbre da chance de mudança: tolhidos pelas
circunstâncias, a realidade é percebida como um quadro irretocável. Por isso, não basta
estar relacionado à prática de um serviço técnico para tornar-se um intelectual, depende
também “de sua história pessoal ter ou não conseguido desfazer nele a tensão (entre agir e não
agir) que o caracteriza; em última análise, o conjunto dos fatores que realizam a
transformação é de ordem social” (SARTRE, 1994, p. 29)
49
.
Reafirmamos, assim, que a partir do momento em que Pedro é afastado da escola, é
como se, subitamente, perdesse, ou pelo menos devesse perder, todo o seu poder e tudo o que
sabia, não obstante o fato de que tudo o que passar a dizer, desde então, acabe sendo
apropriado por aqueles que o ouvem, ou leem, sem receber qualquer mérito por isso, que,
segundo a proposta de Sartre, é comum que a massa se aproprie do que diz um intelectual
como se o que se apreende não fosse mais que um saber “em-si”.
Formado pela estrutura burguesa, o escritor agora se volta contra ela, apontando-lhe os
erros. É claro que a visão de Sartre sobre o intelectual muito determinada pelos fatos
históricos citados, e estes, por sua vez, dizendo respeito mais ao velho continente está
voltada para a estrutura da sociedade francesa. Nossa intenção não é admitir, principalmente
quando falamos em “burguesia”, que havia na sociedade brasileira da metade dos anos 1930
uma estrutura idêntica àquela percebida pelo escritor francês. Acontece que Lúcio se
assemelha ao intelectual sartriano justamente por divulgar ideias bastante contrárias ao senso
comum, além da “estranheza” de sua própria condição de escritor, no que concerne ao
“estilo”, publicando uma obra que ia não contra o “gosto” vigente, mas contra sua própria
49
Nunca é demais repetir que não queremos dizer que Pedro falar pelos desvalidos socialmente, apenas ele é
o mais apto para tornar-se um intelectual, preocupado, ou não, com questões sociais.
146
carreira, que representava a própria concepção artística daqueles que lhe dariam as costas a
partir de então.
Mas deve ficar claro que o intelectual não é um simples “revoltado”. Apenas não pode
estar sob influência de nenhum ideal (“externo”) específico. Se tal ocorre, deve durar pouco.
E não é justamente a partir da década de 1930 que existe no Brasil um tipo de “confirmação”
da figura do intelectual como opositor da ideologia dominante? Ao pensar nas revoluções
culturais ocorridas na referida década, Antonio Candido observa que “o seu lugar [do
intelectual e do artista] é no lado oposto da ordem estabelecida; e que faz parte da sua
natureza adotar uma posição crítica em face dos regimes autoritários e da mentalidade
conservadora” (CANDIDO, 1989, p. 195). No mesmo texto, Candido pondera sobre a
oscilação dos intelectuais da época entre ideais de direita e esquerda; mas não podemos
afirmar que Lúcio se apegue de forma definitiva a qualquer dessas vertentes políticas, sendo
que se não foi um virtuoso militante de oposição, por outro lado não representava um
colaborador do pensamento em voga, sendo sua posição, pelo trecho de sua autoria citado
pouco acima, o de opositor ao moralismo dominante.
Porém, não se deve pensar que o trabalho do intelectual deva ser voltado para uma
atividade antropológica, apenas observando resultados. É preciso que a base de todas as ações
seja a transformação do eu, partindo de sua particularidade profunda, resolvendo internamente
as contradições que se apresentam, para partir para um tipo de trabalho objetivo que vise
compreender e operar no outro algo que foi profundamente compreendido em si próprio.
Pedro só pode querer fazer do outro um ser tão livre quanto ele, depois que “viver” a
realidade do ser totalmente livre, rompendo todos os laços com a ideologia dominante: “a
verdadeira pesquisa intelectual, se pretende livrar a verdade dos mitos que a obscurecem,
implica uma passagem pela singularidade do pesquisador. Este precisa se situar no universo
social para capturar e destruir nele e fora dele os limites que a ideologia impõe ao saber”
(SARTRE, 1994, p. 34-35 grifo do autor). Trata-se mais da velha consciência de ser um
“ser-no-mundo”, cuja existência não pode anular o outro, do que pensar, ao menos nesse
estado, em um engajamento em causas sociais. E se ainda parecem radicais as atitudes de
Pedro, concordamos com Sartre também na afirmação de que radicalismo e empreendimento
intelectual são a mesma coisa; ou, como talvez diria Lúcio Cardoso, “[...] através de
situações extremas o homem encontra a si próprio, na tensão completa do seu ser, no
despojamento de sua essência cotidiana, no esmagamento de seus postulados comuns [...]”
(CARDOSO, 1996, p. 745).
147
É valioso notar que Sartre também acredita em um tipo de “trajeto” a ser seguido pelo
intelectual, que se assemelha ao trajeto que traçamos para Pedro, e que pode ser
sistematizado da seguinte maneira:
Trajeto do intelectual sartriano Trajeto de Pedro
“Para começar, [o intelectual] pesquisa a si
mesmo, para transformar em totalidade
harmoniosa o ser contraditório que lhe foi
designado” (SARTRE, 1994, p. 33 – grifo do
autor).
Pedro “pesquisa a si mesmo” através da
descoberta de seu ser “contraditório”, dado pelo
olhar do outro e investigado a fundo pela Náusea
e pelo desespero. A tentativa inicial de
divinização e a busca por uma naturalização do
mal, nada mais são do que tentativas de buscar a
tal “totalidade harmoniosa”.
“Mas este [pesquisar a si mesmo] não pode ser
seu único objeto, pois só pensa encontrar seu
segredo e resolver sua contradição orgânica
aplicando à sociedade de que é produto – sua
ideologia, suas estruturas, suas opções, sua práxis
os métodos rigorosos que lhe servem em sua
especialidade de técnico do saber prático:
liberdade de pesquisa (e de contestação), rigor da
pesquisa e das provas, busca da verdade
(desvelamento do ser e de seus conflitos),
universalidade dos resultados adquiridos
(SARTRE, 1994, p. 33)
Pedro não se considera como único objeto de
estudo. Já vimos que, quando a entender que
quer escrever um livro, mesmo sem se decidir
explicitamente pela produção literária, suas
intenções envolviam o outro. A intenção de
aplicar à sociedade os seus “métodos rigorosos”
evidencia-se na relação estabelecida com
Madalena, Bernardo e Emanuela, visando
justamente a “liberdade de pesquisa”, a “busca da
verdade” e uma “universalidade dos resultados
adquiridos”, já que todos os personagens têm sua
metamorfose efetivada, o que comprova o caráter
universal da liberdade que Pedro defende como
condição fundamental da existência.
“O escritor é um intelectual?” (SARTRE, 1994,
p. 54)
Seria mesmo coerente concluir que o trajeto
(intelectual) de Pedro até o presente momento faz
dele, realmente, um escritor?
Tabela 3: O trajeto do intelectual
Propositadamente, encerramos o quadro acima com uma questão colocada por Sartre,
diretamente ligada a outra que, por sua vez, se encaixa ao fim de nossa análise relativa ao
trajeto de Pedro. Vimos que é possível que Pedro tenha de fato se tornado um escritor a partir
do momento em que anuncia sua intenção de sê-lo. Vimos que as figurações simbólicas
engendradas por suas atitudes mais imediatas e por sua localização transitória no espaço
metafísico reforçam a ideia de uma obra em andamento. Mas para que não restem dúvidas
quanto à sua condição de artista da linguagem, vejamos de forma mais objetiva no que a
“função” e os “objetivos” de um escritor, anotados por Sartre, se igualam a Pedro:
O escritor e a escrita segundo Sartre O escritor e a escrita segundo Pedro
“O escritor utiliza a linguagem para produzir um
objeto de dupla chave que testemunha em seu ser e em
seu fim a universalidade singular e a singularidade
universalizante” (SARTRE, 1994, p. 62)
vimos que todas as ações de Pedro podem ser
enquadradas no conceito de “linguagem”. O que ele
faz é exatamente explicitar sua situação de homem
livre, levando os que o cercam a praticar quase as
mesmas ações, livrando-se de seu eu determinado para
148
abraçar suas essências, que não são boas e nem más,
apenas indetermináveis (contra um sentido que denote
a condição “em-si”). Seus atos são “seguidos” porque
representam, como todos acabam percebendo, a
condição natural do homem.
O escritor restitui acontecimentos singulares como
“encarnações do todo [...] na medida em que a
maneira que ele tem para exprimi-las testemunhe que
é, ele mesmo, uma encarnação diferente do mesmo
todo” (SARTRE, 1994, p. 63-64)
Pedro começa por se destacar, por parecer ser um ser à
parte, daquela sociedade que o discrimina. Do
“estranhamento” que ele inicialmente causa, suas
ações acabarão por visar o “agrupamento”, devido à
consciência coincidente da liberdade, de pessoas que
pareciam munidas de ideais discrepantes. Sua “obra”
final concretiza a visão de um todo, partindo da
premissa de que seu avatar “era”, como ocorre em
muitas crenças religiosas, o anuncio de algo estranho.
O escritor “apresenta sob a forma de um objeto (obra)
a condição humana tomada em seu nível radical (o
ser-no-mundo)”. Mas esse “ser-no-mundo não é
apresentado “por aproximações verbais que visam
ainda o universal [...] ao ler o livro, o leitor deve ser
levado indiretamente a sua própria realidade de
singular universal; ele deve se realizar [...] como uma
outra parte do mesmo todo...” (SARTRE, 1994, p. 64)
Tal como se passa com Sartre ao escrever A Náusea,
pretendendo uma concretização cotidiana de suas
ideias sobre o “ser-no-mundo”, o trajeto de Pedro é
uma evidenciação do processo criativo de Pedro,
concomitante às suas percepções, cada vez mais
apuradas, de que conceber-se como “ser-no-mundoé
uma constatação que só se revela em essência pela
prática cotidiana que leva a um entendimento prático e
dialético da necessidade e dos processos de interação
com o outro. “Mostrando tal teoria aos outros,
através de ações que parecem agredi-los, ele
descortina a realidade e desobstrui as trevas do
subsolo, fazendo com que compreendam sua própria
realidade, algo comum a todos eles, uma vez que
denota o referido “singular universal”.
“[...] o objeto literário deve testemunhar o paradoxo
que é o homem no mundo, não lhe dando
conhecimentos sobre os homens [...] mas objetivando
e subjetivando simultaneamente o ser-no-mundo,
neste-mundo, como relação constitutiva e indizível de
todos com tudo e com todos” (SARTRE, 1994, p. 64-
65 – grifo d autor)
Essencialmente, a “lógica” geral do processo descrito
implica, como vimos detalhadamente no segundo
capítulo de nossa reflexão, justamente os processos de
objetivação e subjetivação do outro, como “ser-no-
mundo”, integrando-os por fim, de forma “real”, e não
pré-concebida, na “relação constitutiva com tudo e
com todos”.
“[...] a beleza, hoje em dia, nada mais é que a
condição humana, apresentada não como uma
facticidade, mas como produto de uma liberdade
criadora (a do autor). E, na medida em que essa
liberdade criadora visa a comunicação, ela se dirige à
liberdade criadora do leitor e incita-o a recompor a
obra pela leitura (que é, ela também, a criação) em
suma, a tomar livremente seu próprio ser-no-mundo
como se fosse o produto de sua liberdade; em outras
palavras, como se fosse responsável por seu ser-no-
mundo ao suportá-lo, ou , se quiserem, como se fosse
o mundo livremente encarnado [...] dirigindo-se à
liberdade, ela [a obra] convida o leitor a assumir sua
própria vida...” (SARTRE, 1994, p. 65)
Pedro cria, por sua influência, seres que são a concreta
forma da liberdade e, portanto, da beleza. Suas ações,
bem como as ações que “inspira” nos demais, fogem
mesmo dessa facticidade apontada, mesmo em
atitudes “extremas” como o suicídio, já que este ato
busca o apaziguamento das forças essenciais e
componentes do ser, transformando algo que denotaria
negatividade em potencia criadora. Os “leitores” de
Pedro também são criadores, porque demonstram a
capacidade de influenciarem o destino através de atos
cada vez mais independentes, uma vez que
“aprenderam” como seguir e o fazem, como na morte
emblemática de Pedro, segundo as novas leis que
assumem, em negação à “passividade” e, portanto, de
forma original e indicativa de vontades capazes de
tecerem a realidade mais de acordo com a
indeterminação que marca o homem verdadeiramente
livre. A maior obra dos leitores Madalena, Bernardo e
Emanuela será justamente sua própria vida.
Tabela 4: O escritor e a escrita
149
Achamos que as considerações de Sartre apresentadas acima são bastante coerentes
para nossos propósitos, mas não custa lembrar que defendemos uma autonomia estética da
obra de arte. Portanto, como referido, não entraremos no mérito de ser ou não necessário
um engajamento do escritor com certas causas. Nem caberia ficar repisando a informação,
também já exposta, acerca da “indiferença” de Lúcio por assuntos como a guerra. Em
primeiro lugar, porque quando Lúcio Cardoso publica A luz no subsolo ainda não eclodira a
Segunda Guerra Mundial
50
e, mesmo que isso acontecesse, seria absurdo criticar um autor que
acabara de sair de um romance (Salgueiro) que retratava a condição de miséria das favelas
cariocas de forma mais que soberba, ainda que por um viés mais “expressionista” do que
“realista”.
O engajamento de Lúcio como escritor, portanto, se quisermos usar tal palavra, ao
menos em 1936, era, no fim das contas, em prol da liberdade particular do homem,
particularidade que, como vimos, interessa a todos. Todo tipo de escrita pressupõe um
engajamento, de qualquer tipo, ou um engajamento metalinguístico: “[...] é em nome da
própria opção de escrever que se deve exigir o engajamento dos escritores” (SARTRE, 1999,
p. 33). É um engajamento da linguagem. E falamos mais especificamente de linguagem
quando analisamos a relação entre Pedro e Bernardo, mas, em um sentido mais amplo, a
relação de Pedro com todos os outros personagens implica efetivamente a utilização da
linguagem.
A fala, ou a simples intenção de dizer algo, denotam uma ação, indicando os reais
movimentos que virão. Quando disseram que Pedro seria alguém maléfico, impuseram a ele a
condição de não mais poder se acomodar, era preciso agir de alguma forma, tal como agiam
sobre ele “[...] ou irá perseverar na sua conduta por obstinação, e com conhecimento de
causa, ou irá abandoná-la” (SARTRE, 1999. p. 20). Se o escritor aceitar ser o criador de
injustiças, “é num movimento que as supera rumo à sua abolição” (SARTRE, 1999, p. 50). A
arte do autor consiste em fazer o leitor criar o que o escritor desvendou, num movimento que
também compromete o leitor. O escritor tenta, então, via receptor / leitor, num jogo de forças
conjuntas, entregar o universo ao humano. Falar será, portanto, o próprio projeto de mudança
posto em marcha, revelando simultaneamente seu maior engajamento, o engajamento no
mundo, como ser-em-situação nesse mundo, e cujo objetivo maior é desvendar as implicações
da condição humana.
50
Não queremos dizer que o momento brasileiro naquela metade da década de 1930 fosse dos mais tranquilos,
como observa Antonio Candido no texto citado. Mas que se convir que a situação nacional não poderia se
equiparar ao gigantesco conflito que seria deflagrado nos dois ou três anos seguintes, na Europa.
150
Pedro é o que nomeia e confere significado à loucura de Emanuela, ao desprezo e à
indiferença de Bernardo e ao ódio de Madalena, pois é quem faz reviver essas palavras.
Pedro decidiu-se pela literatura, ao invés de escolher a música ou a pintura, pelo tipo
de relação com o leitor, a capacidade do lento convencimento, por uma estratégia ardilosa,
insistente e sistemática de persuasão, o encanto e a gradativa sedução que o escritor opera,
levando mesmo os leitores mais resistentes a regiões muitas vezes sombrias que eles
simplesmente não podem mais se recusar a conferir, ou conhecer. É o verdadeiro canto das
Sereias... O escritor vende a ilusão de um repouso, uma pausa para a situação de negatividade
que nos domina. E não se pode desprezar o “retorno” dado pelos leitores, uma vez que essa
leitura ajuda o criador a se conhecer melhor. Vem a propósito lembrar que
[...] o autor adquire plena consciência da obra quando ela lhe é mostrada através
da reação de terceiros. Isto quer dizer que o público é condição do autor conhecer a
si próprio, pois esta revelação da obra é a sua revelação [...] escrever é propiciar a
manifestação alheia, em que a nossa imagem se revela a nos mesmos (CANDIDO,
2002, p. 76 – grifo do autor).
As palavras do mestre Antonio Candido servem-nos duplamente. Primeiro por
coadunarem com os ideais propostos em nossa linha de pensamento, segundo porque
reafirmam a relação de tal pensamento com a teoria sartriana, uma vez que logo após a frase
citada, no texto “O escritor e o público” (de Literatura e sociedade), Candido acrescenta
uma nota de rodapé que vale muito reproduzir aqui: “A discussão mais importante sobre o
papel do outro na autoconsciência se encontra em J. P. Sartre, L’être et Le néant, pp. 275-503,
Gallimard, Paris, 1943” (CANDIDO, 2002, p. 76 – grifo do autor).
Resta-nos apenas concluir dizendo que, assim como em A Náusea, a atividade
literária se mostrava apenas como “possibilidade” de evasão do mal-estar, e Pedro não
conseguiu se livrar, em essência, do que o afligia. Mas, ao mesmo tempo, seu trabalho não
pode ser considerado em vão, pois ao libertar os outros dessa sensação, ele parece dar-lhes um
momento de alívio, quando afinal compreendem a liberdade não como algo em si mesmo,
mas como uma possibilidade criadora. É a “alegria estética”, em que o leitor se faz o criador
que tem prazer com algo que cria, como sujeito capaz de objetivar a subjetividade do outro, o
sujeito literário, afirmando-se na certeza de que, mesmo que a vida não possa se esquivar da
morte, da negatividade, ao menos a certeza de que haverá “segurança” no momento final.
É a certeza pura e profunda de nossa humanidade: nem boa, nem má, apenas clara... É a luz
151
no subsolo, nascendo da morte heroica do escritor que se mata deliberadamente para libertar
seus iguais.
E, agora sim, caberia a pergunta crucial já esboçada: o que poderia ser mais belo do
que isso?
CONCLUSÃO
“Não somos definitivamente isto ou aquilo, mas isto e aquilo ao mesmo tempo, em
correntes alternadas.”
Lúcio Cardoso, Diário Completo
Não é difícil sentir-se tomado, após a leitura de A luz no subsolo, por uma flagrante
sensação de irrealidade. Se o que um crítico como Mário de Andrade tinha dificuldade em
aceitar no livro era esse deslocamento evidente dos personagens (“aberrados de qualquer
realidade já percebida por mim”) é porque a construção desses seres visava realmente um tipo
de abstração que os diferenciava daquilo que poderíamos chamar de uma manifestação
existencial evidente. São figuras que se prestam a instigar reflexões sobre as manifestações
dos fenômenos mais essenciais do ser, incluindo não só uma tentativa de captar a real situação
humana, com suas “condições” ontológicas primordiais; mas também os desdobramentos
significativos dos impulsos mais violentos amor, ódio, desprezo, etc. e sua influência
sobre o outro, que, por sua vez, é essencial para que possamos nos definir. Nas palavras de
Ruth Silviano Brandão, os personagens que povoam as ginas cardosianas seriam antes
concretização de paixões ou questões existenciais do que personagens no estilo realista”
(BRANDÃO, 1998, p. 31).
A intenção de pensar essas “questões existenciais”, o desejo de adentrar-lhes o âmago,
sem, contudo, pretender uma fixação de respostas definitivas, foi a base em que se estruturou
o presente trabalho.
Não por acaso, o subtítulo de nossa dissertação faz questão de alertar para o fato de
que buscamos retratar apenas “um” possível trajeto do ser em A luz no subsolo. Sabemos que
Lúcio Cardoso, quando da publicação desse romance, tinha em mente iniciar uma trilogia que
se intitularia “A luta contra a morte”. Não obstante o fato de que os outros dois romances
idealizados (Apocalipse e Adolescência) jamais tenham sido concluídos, percebe-se muito
dessa “luta” nas páginas do único volume conhecido dessa “saga”. E não seria forçoso admitir
152
que, no fim das contas, a longa reflexão existencial que acabamos de tecer visasse de forma
primordial essa recusa em aceitar a morte em suas mais diversas manifestações. Como já disse
Blanchot, a literatura é o “espaço” ideal para falar da morte, identificando-a por detrás das
incontáveis máscaras de que ela pode se valer em nossa existência cotidiana. Afinal de contas,
muito de morte na vegetação passiva daqueles que se definem unicamente pelo olhar do
outro, aceitando o “título” que nos impõem aqueles que nos cercam, ensaiando a “caridosa”
ação de nos tolerar como devíamos ser. Aceitar essa condição é um tipo de morte, assim como
também poderia escolher morrer o homem que a recusa no momento em que vislumbra a nova
estrada à sua frente após a irrupção da Náusea que nos choca por mostrar que nada somos
(ou que somos “nada”) –, mas que opta pela ação que “talvez” possa “ajudar”, fazendo-nos
viver outra vez – ainda que cada nova vida só prepare outra iminente queda. A própria relação
entre o “senhor” e o “escravo” traz de forma intrínseca a intenção de “pôr a vida em risco”. Se
a relação com o outro pode se dar através de embates, se na base do conhecimento está a
exigência de conflitos entre forças sempre perigosamente passionais, não quem ignore os
riscos (de morte) que tais conflitos possam acarretar, incluindo a morte social que impulsiona
Pedro a deflagrar sua busca pelo conhecimento de si e dos outros.
Falamos também em “espaços de crise”. E qual palavra poderia ser mais
representativa para pensar o “lugar da morte”? Dentre as muitas heterotopias proposta por
Foucault que deixamos de citar, incluía-se, também, o cemitério. Se tentar escapar da Náusea
pode assumir a significação de fugir à força (letal) da resignação força quase instintiva de
uma existência que parece tentar expulsar tão somente essa mesma existência –, pode também
nos levar a outro tipo de morte metafórica, como a que experimenta o escritor ao fim de sua
obra. Talvez devêssemos aceitar a lei máxima proposta pelo escritor Louis Ferdnand Céline
de que a única realidade possível, a única verdade do mundo, é a morte!
Com uma sentença dessas, fica difícil ainda pensar em conceitos como liberdade. Mas
sentença ainda mais irrevogável encontra-se nas páginas de O ser e o nada, quando Sartre
reitera que o homem só não é livre para deixar de ser livre. Ora, se a vida se mostra como uma
longa agonia (como uma “morte a crédito”, como também quis Céline) cabe a nós “escolher”
dando, assim, novo sentido à liberdade o que faremos no espaço pouco “definível” de
tempo que nos é dado até que alcancemos a derradeira manifestação inerte de um “em-si”, de
certa forma almejado, mas nunca aproveitável, quando de seu advento mortal.
No início do último capítulo de nosso estudo, citamos a seguinte frase de A luz no
subsolo: “[...] Que me importa a liberdade, os limites, o homem? Não sou mais que uma
criatura destinada a morrer”. Queríamos com isso refletir sobre a inutilidade dos esforços
153
humanos ante a facticidade trágica de nossa condição. Porém, na ocasião, propositadamente,
omitimos a sequência de tal pensamento: “Mas não se pode morrer antes de saber ‘tudo’. O
mundo está cheio de incoerências, de sinais misteriosos” (p. 150). Ora, são esses sinais
misteriosos os acenos do indizível que nos instigam a procurarmo-nos dentro de nós mesmos,
rumo ao abismo no qual Lúcio parecia querer se lançar
51
.
Acreditamos, assim, que a morte, por mais cerceadora que seja, não pode nos tirar a
liberdade suprema de nos percebermos como “homens”, nem sempre com alegria, abrindo um
angustiante porém, em último caso, fascinante –, caminho revelador rumo à compreensão
do que realmente significa a condição de “integralmente humanos”. E mesmo que por vias
espinhosas, isso nos autoriza a aceitar nossa sacralidade particular, ainda que denotando uma
outra morte, uma morte “suprema”, das mais difíceis de auferir: a morte de Deus.
Acreditamos que o existencialismo sartriano tenha sido bastante adequado para pensar
Lúcio Cardoso, porque aborda, dentre diversas outras associações (que acreditamos ter
visto, como as implicações das condições “em-si”, “para-si”, “ser-para-outro”, “ser-em-
situação”; além das questões do conhecimento e da intelectualidade, etc.), duas importantes
vertentes de pensamento que se tornaram evidentemente possíveis para a filosofia a partir
mesmo das ideias contidas em O ser e o nada: uma tendência a certo tipo de ateísmo que, por
sua vez, “admite” uma negação materialista “[...] ser homem é contestar Deus e repudiar a
hegemonia da matéria” (BORNHEIM, 2005, p. 303).
O surgimento do pensamento materialista sempre trouxe, em seu escopo, a ideologia
ateísta. E pensar numa recusa a Deus, sem cair no materialismo, é algo que percebemos
amiúde no autor mineiro. Pode parecer absurdo que um autor reconhecidamente católico
recuse a ideia de Deus. Mas não crer em Deus é crer na responsabilidade individual do
homem. Fica evidente que, no mínimo, Deus representa uma ideia muito angustiante para o
escritor de Curvelo; e se ele não chega a afirmar categoricamente que não crê em Deus, seus
livros são uma forma de tentar dizê-lo, sem culpa – ainda que eximir-se dessa culpa (e
consequentemente fracassar em tal tentativa) seja algo que não se resolve satisfatoriamente, e
que estaria perfeitamente ilustrado nas ginas finais de O viajante, em uma lancinante
confissão da intensa Donana de Lara:
51
Fazemos aqui uma breve referência à frase de Maria Alice Barroso, para quem Lúcio Cardoso seria como um
“insubstituível andarilho do beira-abismo” (BARROSO, 1969, p. 10 ). Com efeito, no Diário Completo, o
escritor chega a dizer que seria tempo de “nos transformarmos em abismo, antes de temê-lo tanto” (CARDOSO,
1970, p.72), o que ecoa, ainda, em certa fala de um padre de O viajante: “Cada um de nós caminha beirando o
abismo que traz dentro de si próprio”. (CARDOSO, 1973, p. 238).
154
Foi ali, naquele instante preciso, ali naquele canto escuro da igreja onde desde
menina se habituara a ajoelhar, ali [...] que Donana de Lara ousou formular a
pergunta: “Deus existe? Acredito em Deus?” – e também foi ali, precisamente
naquele cenário familiar e modesto, que ela, tão habituada às coisas de Deus, ao
trato com seus dogmas e leis, foi ali que teve coragem para responder que não, que
Deus não existia, que ela não acreditava em Deus. Era inútil o esforço de vir à missa
habitualmente, de se ajoelhar diante dos altares, e manter com Padre Justino um
trato amistoso – Deus não existia, ela não acreditava em Deus [...] Deus nunca
existira realmente para ela, seus esforços não passavam de uma pura representação
exterior, porque a única coisa em que acreditava era no vazio, no silêncio para
sempre, na responsabilidade isolada e total de cada um perante si mesmo. Deus não
participava deste jogo cego que se chama a existência humana. (CARDOSO, 1973,
p.189)
Também citamos algumas passagens de A luz no subsolo em que tal pensamento
aparece de forma evidente, e podemos lembrar, apenas como mais um exemplo, o fato de que
a trilogia “urbana de Lúcio, composta pelos livros Inácio, O enfeitiçado e o inacabado
Baltazar, trazia tão somente o emblemático título de “O mundo sem Deus” título este que,
após uma leitura dos livros, adquire um sentido de mostrar como criaturas atormentadas e
abandonadas no mundo têm que se conformar com a flagrante inexistência da referida
divindade suprema. A “facilidade” de aproximar esse tipo de constatação, que muito assola o
Pedro de A luz no subsolo, não apenas com as ideias contidas na obra máxima de Sartre, mas
também com o protagonista de seu primeiro romance, Antoine Roquentin, mostra o quão
cabível poderia ser tal comparação.
É claro que quando optamos, abertamente, pela filosofia sartriana, não podemos abrir
grande borda para as contraposições de filósofos respeitados, no que se refere à “extensão” de
certos conceitos problematizados por Sartre. Não teríamos tempo, e nem “espaço”, para
discutir, por exemplo, as muitas vezes coerentes críticas que Merleau-Ponty faz da concepção
sartriana de liberdade.
De certa forma, ou apesar de tudo, escolhemos Sartre por concordamos com a incisiva
afirmativa de Gerd Bornheim de que “somos todos sartrianos” (BORNHEIM, 2005, p. 301).
Para pensar as contradições e agruras que assolaram de forma agressiva o homem do século
XX, não poderíamos escolher senão o homem que, não poucas vezes, foi considerado o “dono
do século”.
Falando dessas contradições inerentes ao ser humano, é lamentável que ainda hoje se
critique Lúcio Cardoso por uma falta de coerência nas ações e motivos que movem suas
“criaturas”. É repetir um erro que hoje se mostra bem mais grave se considerarmos as
possibilidades analíticas de que dispomos agora. Na década de 1930, o existencialismo
sartriano ainda não tinha vindo a lume e outras discussões de que nos valemos, como as que
155
envolvem a morte do autor, soariam absurdas. O que, por outro lado, nos uma maior
dimensão do caráter visionário de Lúcio Cardoso...
Sorte de quem ainda se dispõe a lê-lo.
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