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abraçar suas essências, que não são boas e nem más,
apenas indetermináveis (contra um sentido que denote
a condição “em-si”). Seus atos são “seguidos” porque
representam, como todos acabam percebendo, a
condição natural do homem.
O escritor restitui acontecimentos singulares como
“encarnações do todo [...] na medida em que a
maneira que ele tem para exprimi-las testemunhe que
é, ele mesmo, uma encarnação diferente do mesmo
todo” (SARTRE, 1994, p. 63-64)
Pedro começa por se destacar, por parecer ser um ser à
parte, daquela sociedade que o discrimina. Do
“estranhamento” que ele inicialmente causa, suas
ações acabarão por visar o “agrupamento”, devido à
consciência coincidente da liberdade, de pessoas que
pareciam munidas de ideais discrepantes. Sua “obra”
final concretiza a visão de um todo, partindo da
premissa de que seu avatar “era”, como ocorre em
muitas crenças religiosas, o anuncio de algo estranho.
O escritor “apresenta sob a forma de um objeto (obra)
a condição humana tomada em seu nível radical (o
ser-no-mundo)”. Mas esse “ser-no-mundo” não é
apresentado “por aproximações verbais que visam
ainda o universal [...] ao ler o livro, o leitor deve ser
levado indiretamente a sua própria realidade de
singular universal; ele deve se realizar [...] como uma
outra parte do mesmo todo...” (SARTRE, 1994, p. 64)
Tal como se passa com Sartre ao escrever A Náusea,
pretendendo uma concretização cotidiana de suas
ideias sobre o “ser-no-mundo”, o trajeto de Pedro é
uma evidenciação do processo criativo de Pedro,
concomitante às suas percepções, cada vez mais
apuradas, de que conceber-se como “ser-no-mundo” é
uma constatação que só se revela em essência pela
prática cotidiana que leva a um entendimento prático e
dialético da necessidade e dos processos de interação
com o outro. “Mostrando” tal teoria aos outros,
através de ações que parecem agredi-los, ele
descortina a realidade e desobstrui as trevas do
subsolo, fazendo com que compreendam sua própria
realidade, algo comum a todos eles, uma vez que
denota o referido “singular universal”.
“[...] o objeto literário deve testemunhar o paradoxo
que é o homem no mundo, não lhe dando
conhecimentos sobre os homens [...] mas objetivando
e subjetivando simultaneamente o ser-no-mundo,
neste-mundo, como relação constitutiva e indizível de
todos com tudo e com todos” (SARTRE, 1994, p. 64-
65 – grifo d autor)
Essencialmente, a “lógica” geral do processo descrito
implica, como vimos detalhadamente no segundo
capítulo de nossa reflexão, justamente os processos de
objetivação e subjetivação do outro, como “ser-no-
mundo”, integrando-os por fim, de forma “real”, e não
pré-concebida, na “relação constitutiva com tudo e
com todos”.
“[...] a beleza, hoje em dia, nada mais é que a
condição humana, apresentada não como uma
facticidade, mas como produto de uma liberdade
criadora (a do autor). E, na medida em que essa
liberdade criadora visa a comunicação, ela se dirige à
liberdade criadora do leitor e incita-o a recompor a
obra pela leitura (que é, ela também, a criação) – em
suma, a tomar livremente seu próprio ser-no-mundo
como se fosse o produto de sua liberdade; em outras
palavras, como se fosse responsável por seu ser-no-
mundo ao suportá-lo, ou , se quiserem, como se fosse
o mundo livremente encarnado [...] dirigindo-se à
liberdade, ela [a obra] convida o leitor a assumir sua
própria vida...” (SARTRE, 1994, p. 65)
Pedro cria, por sua influência, seres que são a concreta
forma da liberdade e, portanto, da beleza. Suas ações,
bem como as ações que “inspira” nos demais, fogem
mesmo dessa facticidade apontada, mesmo em
atitudes “extremas” como o suicídio, já que este ato
busca o apaziguamento das forças essenciais e
componentes do ser, transformando algo que denotaria
negatividade em potencia criadora. Os “leitores” de
Pedro também são criadores, porque demonstram a
capacidade de influenciarem o destino através de atos
cada vez mais independentes, uma vez que já
“aprenderam” como seguir e o fazem, como na morte
emblemática de Pedro, segundo as novas leis que
assumem, em negação à “passividade” e, portanto, de
forma original e indicativa de vontades capazes de
tecerem a realidade mais de acordo com a
indeterminação que marca o homem verdadeiramente
livre. A maior obra dos leitores Madalena, Bernardo e
Emanuela será justamente sua própria vida.
Tabela 4: O escritor e a escrita