Download PDF
ads:
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Maria Inês Tassinari
Mal-estar na linguagem:
questões sobre Édipo e transferência na clínica da gagueira
DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
SÃO PAULO
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Maria Inês Tassinari
Mal-estar na linguagem:
questões sobre Édipo e transferência na clínica da gagueira
Tese apresentada à Banca Examinadora como
exigência parcial para obtenção do título de
Doutora em Psicologia Clínica Núcleo de
Psicanálise da Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, sob a orientação do Professor
Doutor Renato Mezan.
SÃO PAULO
2009
ads:
Autorizo, para fins acadêmicos ou científicos, a reprodução total ou parcial desta tese, por
processos fotocopiadores ou eletrônicos, desde que citada a fonte.
Banca Examinadora
Para Piu e Lucas,
pelo amor que sustenta a vida e dá vida às palavras.
Para Ulysses, por seu amor pela clínica.
Para Marly, por me ensinar a amar os livros.
AGRADECIMENTOS
À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pela bolsa de qualificação docente que
favoreceu a finalização deste trabalho e por tantas portas que me possibilitou abrir.
Ao professor Renato Mezan, por suas aulas, que mais pareciam a regência precisa de uma
orquestra composta por teorias de diferentes campos harmonizadas por rara competência
intelectual. Agradeço também por estimular meu pensamento, valorizar minhas intuições e
confiar na concretização deste trabalho.
A Maria Claudia Cunha e Rogério Lerner, que me privilegiaram com leitura atenta e
valiosas sugestões no exame de qualificação.
A Michele Faria, pela interlocução instigante e pelos caminhos que me assinalou.
A Viviane Veras que tem intimidade ímpar com as palavras e me presenteou com sua
leitura estética, poética e técnica.
Aos professores do Curso de Formação em Psicanálise do Departamento de Psicanálise
do Instituto Sedes Sapientiae, por conseguirem manter um contexto de formação marcado por
pertinência ética e técnica.
A Maria Ângela Santa Cruz, supervisora com quem aprendi muito sobre transferência,
processos psíquicos/sócio-históricos e amor pela função política da clínica.
A Maria Silvia Bolguese, por ter escutado minhas primeiras questões, por trazer luz ao
meu percurso clínico e também por incentivar o ingresso no doutorado.
A Maria Consuelo Passos, com quem descobri o prazer da pesquisa.
Aos amigos da turma de 2000 da Formação em Psicanálise do Departamento de
Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, pela companhia viva e amorosa que me permitiu
desfrutar de descobertas fundamentais para realizar este trabalho e avançar em direção a
outros desejos.
A Cecília Bonini Trenche, parceira na docência da Faculdade de Fonoaudiologia da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, presença alentadora nos últimos anos.
Aos meus alunos e supervisionandos, com quem tive a oportunidade de desfrutar do
prazer de construir e compartilhar conhecimento.
A Denise Teixeira e Cristiane Mori, por nossa pequena rede de sustentação e cuidado em
vários momentos difíceis.
A Leda Corazza, por sua confiança e estímulo.
A amiga Célia Maria Castex Aly, pela intensidade das experiências que ao longo de
tantos anos estreitou nossos laços e transformou amizade em cumplicidade.
A Maria Lúcia Vaz Masson, parceira de muitas empreitadas, minha querida amiga para
diversão, arte e compreensão dos caminhos para os quais a Fonoaudiologia nos conduziu.
A Elo Lacerda, amiga afetuosa, por sua coragem em sustentar projetos terapêuticos,
acadêmicos e pessoais, com o olhar visionário que não se fia nas aparências. Agradeço muito
pelas conversas implicadas e pelo compromisso com a amizade.
A Miriam Rodrigues, por seu afeto e serenidade que tantas vezes me acolheu.
Ao Reinaldo, amigo presente e testemunha dos meus caminhos.
Ao Sérgio de Gouveia Franco, pela escuta generosa na qual encontro o sentido da
Psicanálise.
Às cunhadas Cileide, Thaís, Clélia, Dirceia, meio irmãs, e aos meus cunhados, meio
irmãos, Luiz e Carlos, pela presença amiga e carinhosa.
Aos sogros Irma e Waldemar pela solidariedade e apoio.
Aos sobrinhos Letícia, Thiago, Adriele e Gabriel, por toda torcida e alegria de vocês.
Aos tios e tias que de modos diferentes contribuíram com estímulo e força, em especial à
tia Kátia e ao tio César, presenças que abençoam.
A Lourdes, Zenita e Neusa, pessoas que nunca mediram esforços para facilitar minha
vida.
Aos meus pais, mais uma vez pela generosidade e amor, meu lastro desde os primórdios.
Aos meus irmãos, Ulysses, Leonardo e Rodrigo, pelo respeito às diferenças, o que nos
permite continuar sendo próximos e felizes.
Ao Waldemar Gehring Jr., o Piu, meu amor companheiro e amigo, que soube sustentar
nossos projetos com compromisso íntimo e verdadeiro. Agradeço pela força e a graça de uma
vida compartilhada.
Ao meu filho Lucas, por ter me dado a oportunidade de descobrir intimamente um amor
inefável. Agradeço ainda por me esperar sem perder o prazer de reencontrar.
RESUMO
A revisão da literatura sobre a clínica da gagueira aponta para a unanimidade dos
pesquisadores em considerar que, embora essa disfluência seja um problema de linguagem
sem etiologia esclarecida, os aspectos subjetivos determinam os progressos no tratamento. A
esses aspectos chamamos tramas transferenciais, à luz da psicanálise freudiana e lacaniana,
bases referenciais para a problematização inerente à temática deste trabalho. Observamos em
nossa clínica íntimas ligações entre a história dos pacientes e seu sintoma, que foi aqui
diferenciado de patologia e aproximado do conceito de pathos. A vivência de pathos como
interdição à fala apareceu-nos atrelada a um elemento recorrente dessas histórias: a conflitiva
edípica acentuada por um modo particular de presença do pai, seja denegrido, negado ou
exacerbado em sua autoridade. Diante disso, nossa hipótese para elaborar esta tese foi a de
que, na relação desses pacientes com a linguagem, traços comuns organizadores de seus
sintomas estão atrelados à particularidade da vivência do complexo de Édipo, cujas
consequências se manifestam na transferência com o terapeuta da linguagem, sendo assim
fundamentais para o manejo terapêutico. Nessa perspectiva, desenvolvemos um estudo
pormenorizado dos tempos do Édipo em Lacan e de suas relações com a posição do sujeito,
com o objetivo de verificar a procedência da hipótese levantada. Esse passo nos permitiu
compreender que a frágil sustentação da função simbólica do pai pelo discurso materno é um
fator presente na genealogia desse sintoma. Essa hipótese metapsicológica nos fez tematizar a
função paterna, a formação dos ideais e suas relações com a formação da gagueira como
sintoma a partir do estudo de casos de neuróticos. Mediante articulação entre teoria e clínica,
a transferência como condição inerente à possibilidade de tratamento pode ser particularizada
na clínica da gagueira, uma vez que esta inicialmente convoca o terapeuta a partir de um lugar
de suposto-saber sobre a linguagem; todavia, dependendo do manejo terapêutico, esse
suposto-saber trará desdobramentos importantes na direção do sujeito. Concluímos, assim,
que no trabalho técnico específico com a gagueira, processos identificatórios estão
intensificados e os progressos no tratamento estão atrelados à compreensão por parte do
clínico dos efeitos transferenciais de seus procedimentos que, mesmo focados na patologia,
estão inevitavelmente atingindo o sujeito. Os efeitos da transferência na clínica da linguagem
revelam ao mesmo tempo o ódio à fala e a idealização extrema posta nela, funcionando de um
modo ou de outro como signo da castração.
Palavras chave: gagueira; psicanálise; fonoaudiologia; clínica da linguagem; complexo de
Édipo; transferência.
ABSTRACT
Literature review on stuttering clinic shows unanimity among researchers in considering
this speech disfluency as a language problem of unclear etiology, although subjective aspects
may determine treatment headway. Such aspects are called transference meshes following
Freud's and Lacan's psychoanalysis, which serve as references for the issue in this work. In
our clinic we noticed close relations between the patients' histories and their symptom, which
we differ from the pathology to make it closer to the concept of pathos. Experiencing pathos
as a speech hindrance appeared to us as a recurrent element in these histories: the Oedipal
conflict enhanced by the particular way in which the father's presence appears, be it vilified,
denied or exacerbated in his authority. Hence, our hypothesis to elaborate this thesis was that
common traces in these patients' relation with language, the organizer of their symptom, are
linked to the particularities of experiencing the Oedipus complex, whose consequences appear
in the transference with the language therapist, becoming essential for therapeutic
management. In this perspective, we developed a detailed study of Oedipus time in Lacan and
its relations with the subject's position aiming at checking the proposed hypothesis. This step
allowed us to understand the fragile support of the father's symbolic function by the maternal
discourse is a constant factor in the genealogy of this symptom. This meta-psychological
hypothesis led us to thematize the paternal role, the development of ideals and their relation
with the development of stuttering as a symptom based on neurotics case studies. With the
articulation between theory and practice in the stuttering clinic, the transference as an inherent
condition for possible treatment may be particularized in the stuttering clinic, since the latter
initially addresses the therapist from a so-called knowledgeable position; however, depending
on the therapeutic management, such knowledgeable position will bring important
developments towards the subject. Our conclusion is that in the specific technical work with
stuttering, identification processes are intensified and headway in the treatment is linked to
the professionals' understanding that the transference effects of their procedures will
inevitably affect the subject, even though the focus is on the pathology. The effects of
transference in the clinic of language show simultaneously the hate for speech and the
extreme idealization placed on it, working one way or the other as a castration sign.
Key words: stuttering; psychoanalysis; speech therapy; language clinic; Oedipus complex;
transference.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 11
Arquitetura do trabalho...........................................................................................28
CAPÍTULO I
Tramas etiológicas e tramas transferenciais na terapêutica da gagueira ..........33
CAPÍTULO II
Gagueira e Édipo: a linguagem do afeto na fala....................................................67
2.1 O sintoma como manifestação neurótica e a gagueira.................................... 69
2.2 Complexo de Édipo e gagueira .......................................................................85
2.3 Bernardo, o desbravador de novidades ........................................................101
CAPÍTULO III
Sintoma de linguagem e função paterna: a via dos ideais ..............................125
3.1 Pedro e a tirania do amor ......................................................................... 136
CATULO IV
Significação, transferência e a vida das palavras na clínica da linguagem. ... 148
4.1 Nicolau: em tempo de ter ..............................................................................172
4.2 Marcos: o poderoso chefão............................................................................179
4.3 O segredo de Alberto ....................................................................................183
4.4 Rildo: o prisioneiro do tempo ........................................................................185
4.5 Um concentrado de angústia sem concluo na palavra ..............................189
CONSIDERÕES FINAIS .......................................................................................199
BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................... 211
11
INTRODUÇÃO
“Não desejo suscitar convicções;
desejo estimular o pensamento e
derrubar preconceitos
1
(FREUD, 1917)
Os sintomas de linguagem que o fonoaudiólogo encontra carregam uma
problemática complexa, difícil de destrinchar. Podemos ver as consequências desse fato
na história da produção do conhecimento e dos discursos nessa área marcada pela
gênese inexorável da filiação ao modelo médico
2
, mas em seguida – e em alguns lugares
de modo simultâneo –, compondo relações com outros campos como a educação
3
, a
linguística
4
, a psicologia
5
e a psicanálise
6
.
Graña (2008), ao apresentar o livro que organizou - Quando a fala falta:
fonoaudiologia linguística e psicanálise -, afirma que as mudanças inerentes aos
estudos de aquisição de linguagem realizados por De Lemos
7
, foram decisivas para que
1
FREUD, S (1916/1917). Psicanálise e psiquiatria, p. 289.
2
Desde Millan (1990), Souza (1991; 2000; 2001), Cunha (1997; 2001), Palladino (1996; 2002), Passos (1996),
Felice (2000)
3
Berberian (1995).
4
Arantes (2001); Rubino (1994); Fonseca (2002), entre outros.
5
Friedman (1986) e Meira (1983).
6
Cunha (1997); Palladino (2002); Tassinari (1996; 2000; 2001), dentre muitos outros autores cujas produções em
dissertações de mestrado e artigos produzidos a partir do início da década de noventa, em particular na Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), estão fundamentadas nessa relação interdisciplinar. Podemos
contar com produções mais recentes de pesquisadores de outras instituições, como o livro organizado por Graña
(2008).
7
Refiro-me a Claudia Thereza Guimarães De Lemos, pesquisadora do Instituto de Estudos da Linguagem da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), consagrada nos estudos de aquisição de linguagem por ser
protagonista da pesquisa sobre aquisição de linguagem “Interacionismo Brasileiro”, que revolucionou os princípios
norteadores dos estudos nessa área até então. Atualmente é professora voluntária da Universidade Estadual de
Campinas. Tem experiência na área de linguística, com ênfase em aquisição de linguagem, tratada de um ponto de
vista que inclui a psicanálise. A relação entre fonoaudiologia e linguística é histórica, mas a teoria proposta por
Claudia De Lemos, por incluir o sujeito pela via do erro como dado de análise nos processos de aquisição da
12
a fonoaudiologia pudesse “tomar a linguagem como produto da interação e de
intersubjetividade” (GRAÑA, 2008: Apresentação). Embora no início dos anos noventa
essa teoria tenha se transformado num aporte para o campo fonoaudiológico pensar a
relação terapêutica e as técnicas de trabalho com a linguagem, esse período foi
caracterizado pela relevância atribuída à interação, pois era locus privilegiado para
emergência dos processos de aquisição de linguagem.
Após os anos noventa, a aproximação de De Lemos com a psicanálise lacaniana
ressignificou esse percurso. O “intersubjetivo” pressupõe relação entre dois sujeitos, ou
duas subjetividades constituídas, o que passa a ser insustentável partindo da premissa de
que a subjetividade se produz na relação com o grande Outro
8
, encarnado pelo adulto
que intimamente se ocupa da criança; mas, para além do que esse adulto possa
determinar ou supor conscientemente produzir, seus dizeres geram efeitos concernentes
à “alteridade radical da língua
9
.
Apesar do mérito inquestionável do livro de Graña, a inovação produzida pela
teoria da aquisição de linguagem de De Lemos não está na ideia de interação que
inicialmente a caracterizou, mas nos desdobramentos posteriores engendrados por ela.
Entre eles, podemos conceber a linguagem como produtora de subjetivação
10
, e não
mais como produto de interação:
O que chamei de terceira posição também foi afetado pelo
reconhecimento de que o que acontece na fala da criança revela
muito mais sobre a subjetivação do que sobre a língua. A escuta de
sua própria fala, assim como a escuta da fala do outro em sua
linguagem, pode instrumentalizar o fonoaudiólogo na reflexão de muitas questões associadas aos problemas de
linguagem.
8
Segundo Chemama (2002), “Outro é o lugar onde a psicanálise situa, além do parceiro imaginário, aquilo que,
anterior e exterior ao sujeito, o obstante, o determina” (p. 156). Esse é um conceito central da teoria lacaniana ao
qual voltaremos posteriormente.
9
De Lemos usa essa expressão referindo-se ao conceito de captura, que demanda “conceber a criança como
capturada por um funcionamento linguístico-discursivo que não a significa como lhe permite significar outra coisa,
para além do que a significou” (2002: 55).
10
DE LEMOS, C (2002)
13
diferença, adviriam, então, não de um movimento da língua sobre si
mesma de sua reflexividade, mas do grande Outro, definido por
Lacan (1998 [1966])
11
como tesouro de significantes, do qual o
emissor recebe sua própria mensagem invertida. Ou, em outras
palavras, onde a mensagem repercute e de onde retorna uma
mensagem divergente, uma resposta outra. (p.64).
Levar em conta os estudos em aquisição de linguagem, portanto, permitiu à
fonoaudiologia rever a concepção de linguagem que regula seus procedimentos
terapêuticos. Essa afirmação comporta uma oportunidade de redimensionar os efeitos da
relação interdisciplinar, pois, como afirma Scarpa (2001), a aquisição de linguagem é
uma “área híbrida, heterogênea e multidisciplinar” (p.205), ou seja, uma área contígua à
psicologia do desenvolvimento, comportamental e cognitiva, entre outras; por isso os
dados construídos pelos estudos aquisicionistas, não raro, têm levado esses campos,
inclusive a própria lingüística, a se repensarem e se renovarem.
Não menos heterogênea e híbrida é a fonoaudiologia, daí também a revisão de suas
marcas constitutivas na relação com os estudos de aquisição de linguagem de De Lemos
que, por um lado, trouxeram luz para observarmos melhor os movimentos do sujeito na
língua por articulá-los mais recentemente com os processos de subjetivação, mas, por
outro, esse olhar clarificado foi convergente com o caminho delineado em pesquisas
produzidas no Programa de Pós-Graduação em Fonoaudiologia da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que se ocupavam da relação entre
fonoaudiologia e teoria psicanalítica, no que se refere a questões como a relação
terapeuta/paciente, o conceito de sintoma, a função do brincar na clínica
fonoaudiológica, a estrutura familiar e os problemas de linguagem, entre outras.
Tal movimento interdisciplinar também ocorreu em outros locais em que clínica e
pesquisa redundaram em reflexões bastante proveitosas sobre a relação entre
11
Apud LACAN, J. Escritos2. , 1998[1966].
14
fonoaudiologia e psicanálise. Como exemplo, podemos citar o texto de Groisman e
Jerusalinsky (1989[1999]), Terapêutica da linguagem: entre a voz e o significante,
produzido a partir da experiência no “Centro de Diagnóstico y Terapêutica de Los
Problemas Del Desarrollo Infantil Dra. Lygia Coriat”, em Buenos Aires.
A concomitância com a teoria de aquisição de De Lemos, por si só, não produziria
nenhuma articulação entre os campos, não fossem as questões dantes formuladas pela
fonoaudiologia, movida por inquietações geradas na prática cotidiana com os problemas
de linguagem, expressas nos trabalhos do Programa de Pós-graduação em
Fonoaudiologia da PUC-SP e no texto mencionado.
Portanto, a influência dessa teoria de aquisição de linguagem na fonoaudiologia é
fato, mas a força de seus argumentos penetra esse campo em consonância com outros
trabalhos que ampliaram o significado dos processos terapêuticos e que eram, assim,
um passaporte inicial para a articulação entre fonoaudiologia e teoria psicanalítica,
principalmente por incluírem os efeitos do inconsciente nos processos terapêuticos.
Desse modo, não se justifica a dependência do passe atribuído à teoria de aquisição de
linguagem de De Lemos exclusivamente para que a clínica da linguagem pudesse
utilizar a psicanálise como ferramenta em sua prática.
Considero fundamental localizar aspectos da clínica da linguagem que justificam a
aproximação da fonoaudiologia com a psicanálise. De modo geral, as questões do
sujeito entranhadas em seus problemas na linguagem foram o impulso para a relação
interdisciplinar. Dessa particular afetação deriva a constatação de que o saber sobre a
subjetividade erigido pela teoria psicanalítica é contíguo e indissociável de um saber
sobre a linguagem. Lembra-nos Garcia-Roza (1991[2001]), ao introduzir seus estudos
sobre o texto de Freud (1891), Para uma concepção das afasias: um estudo crítico, que
15
nos primórdios dos estudos desse autor, o primeiro modelo de aparelho anímico é
formulado pelo transbordamento do aparelho de linguagem.
Embora Freud não tivesse uma proposta explícita de construção de nenhum modelo
teórico de aparelho psíquico, e sim de algo mais restrito concernente apenas à
linguagem, “foi pelo fato desse aparelho dizer respeito a linguagem que ele vai poder
funcionar como modelo para se pensar o inconsciente” (GARCIA-ROZA, 2001:28). O
funcionamento da linguagem e do inconsciente são enunciados desde então com íntimas
relações que poderão ser mais bem compreendidas pela “teoria sobre o ato falho, os
chistes e os lapsos como exemplos vivos de condensação e deslocamento operados pela
linguagem” (GARCIA-ROZA, 2001:28). As marcas do sujeito do inconsciente
presentes nos sintomas na linguagem são inegáveis, o que atesta a necessidade de
considerá-las no manejo terapêutico na clínica da linguagem
12
.
Um ato de nominação é um ato de linguagem, nos diz Fédida (1988a: 51): “antes
da linguagem não um afeto (há descarga). O afeto se constitui pela nominação do
outro”. A psicanálise, considerada alteridade que nos inspira para criarmos nossas
produções teóricas sobre a clínica da linguagem, também é uma teoria que discorre
sobre a formação dos afetos, em particular a angústia inerente à castração. As palavras
funcionam como recurso para contornar a angústia, dar-lhe um sentido, mesmo que
provisório; nessa medida, são fonte de vida e possibilidade de superação do sintoma.
A relação da fonoaudiologia com a psicanálise derivou inicialmente da
compreensão, bastante debatida e pesquisada no campo fonoaudiológico, de que o
sucesso ou fracasso dos processos terapêuticos na clínica da linguagem está
12
É mais preciso utilizar a expressão clínica da linguagem e terapeuta da linguagem, pois estou me referindo
especificamente à prática terapêutica com problemas de linguagem e não às outras funções clínicas inerentes à
clínica fonoaudiológica, como os procedimentos audiológicos. Essa denominação esem sintonia com a utilizada
por Groisman e Jerusalinsky, desde 1989.
16
determinado pela subjetividade, ou pelo que é possível fazer do afeto nessa relação
terapêutica. Na consideração do sujeito e de seu sofrimento, os processos de formação
dos sintomas na linguagem objeto dessa clínica e norte para estabelecer tanto
diagnóstico quanto procedimentos terapêuticos não são mais remetidos
exclusivamente à patologia descrita nos compêndios nosográficos.
Tendo por foco a patologia e não o sujeito, essa prática era marcada por um caráter
técnico de aplicação de procedimentos, por exemplo, exercícios específicos para cada
patologia, sem abordar as marcas do sujeito, ou seja, sua singularidade também expressa
nos sintoma e atualizada pela transferência. Mostra contundente da problematização e
crítica da clínica fonoaudiológica nessa redução asfixiante à doença é a dissertação de
mestrado de Millan (1990).
O texto de Groisman e Jerusalinsky (1989[1999]) é também anterior às relações
estabelecidas pela teoria de aquisição de linguagem de De Lemos com a psicanálise.
Nele observamos uma maneira bastante precisa de entretecer a relação entre teorias e
clínica, sem excluir a subjetividade ou a lógica significante na produção dos sintomas e
da linguagem e, ao mesmo tempo, sustentando que a transferência é a via mais acertada
para compreendermos a função subjetiva do terapeuta da linguagem.
Se essas discussões relevantes em torno da função do clínico da linguagem por um
lado fortalecem o campo ao problematizar seus limites e possibilidades, por outro,
podem funcionar como resistência diante da árdua tarefa de sistematização do campo
teórico em torno dos problemas da linguagem, cujas manifestações têm complexidade
irredutível. Pensada dessa forma, nem ao organismo, ao comportamento, ao
inconsciente ou ao funcionamento da língua podem ser exclusivamente atribuídas suas
intervenções. Apesar disso, que se assumir um modo de funcionamento dessa clínica
17
que se particularize por suas filiações teóricas. Sem essa base estabelecida, mesmo que
para ser revista e atualizada sempre, fica impossível compreender qualquer
procedimento clínico.
O enfrentamento teórico e técnico dos problemas de linguagem traz muitos
desdobramentos. Um deles, como vimos, coloca-se como decorrência de avanços nos
estudos da aquisição de linguagem propostos pela linguística discursiva e pela aquisição
de linguagem, principalmente mediante formulações teóricas da Análise do Discurso,
propostas por Orlandi (1983; 1992) e pelo Interacionismo Brasileiro protagonizado por
De Lemos e colaboradores desde a década de oitenta até os dias atuais. Discussões
propostas por essas teorias têm influenciado parte dos clínicos da linguagem,
considerando os fenômenos inerentes à produção do sentido tanto no âmbito das
formações discursivas quanto no modo como a criança, imersa no simbólico, passa a ter
a linguagem como algo próprio
Para os autores mais referendados pelo interacionismo, a concepção de linguagem
adotada pelo clínico será balizadora de todos os procedimentos terapêuticos. Passa-se a
pensar a clínica como um universo redutível à experimentação de interpretações
linguísticas que, embora na teoria preconizem o sujeito e a subjetividade, como a
concebe a psicanálise, no trabalho com a linguagem não problematizam os efeitos
inconscientes que provocam e ao mesmo tempo sustentam a relação de interpretação da
linguagem.
Cabe aqui citar as considerações de Palladino (2002) a respeito da relação entre
fonoaudiologia, linguística e os estudos de aquisição de linguagem:
[...] pensar sobre os sintomas de problemas de linguagem desde um
apelo à pureza da língua, de que a linguística ou a aquisição de
linguagem falam, é impertinente, posto que são sintomas; da mesma
forma fazê-lo desde a pureza da língua de que a psicologia e a
18
medicina falam, tamm não procede, já que são sintomas da
linguagem. Entretanto, pensá-los aqui, no espaço da psicologia e da
medicina, abre espaço para reflexões de caráter clínico, o que ali na
linguística e na aquisição de linguagem, resta impossível. Pensá-los,
portanto, supõe definitiva a miscigenação supõe uma (in)disciplina,
um espaço tal que a Psicopatologia Fundamental desenhou, um
longo passeio por diferentes discursos que acabará numa disciplina,
efeito de um horizonte posto pela questão que se pretende
responder. É a questão ela mesma, em sua especificidade, condição
e possibilidade, que o rumo e (in)disciplina o traçado, o discurso.
Nem uma língua radicalmente pura que abra tão somente para a
reposição da palavra do outro, nem uma língua radicalmente
miscigenada que abra tão somente para uma frágil inteligibilidade [...]
Ao contrário, uma língua como espaço de tensão e ambiência que a
clínica gera e suporta, uma tensão que insemina a reflexão. (p. 48).
Os trabalhos a respeito da clínica da linguagem produzidos nessa perspectiva
permitem avançar na problematização das relações possíveis entre os sintomas na
linguagem e a constituição do sujeito e suas consequências para o método clínico.
Diante da situação descrita, o presente trabalho se organiza pelo movimento do qual
participei com meus pares fonoaudiólogos, médicos, psicólogos e psicanalistas, gerando
minha dissertação de mestrado e vários textos apresentados em congressos e
publicações. A marca central era averiguar como a clínica da linguagem pode produzir
elaborações teóricas engendradas no campo clínico complexo na relação com outro
campo teórico-clínico tão próximo como a psicanálise, pois nele a linguagem como
funcionamento simbólico está no centro das investigações do inconsciente; no nosso
campo, a linguagem e o inconsciente não se apartam também, mas a materialidade do
sintoma remetido ao clínico da linguagem implica uma resposta direta ao que se a
ver como queixa. Circunscrever a queixa, acolhê-la como presença possível do sujeito
na língua, foi um primeiro passo; o desafio maior parecia ser delimitar as possíveis
relações entre fonoaudiologia e psicanálise, deixando claras diferenças e especificidades
para que não houvesse sobreposição entre os campos.
19
Após quase vinte anos desse debate tão acirrado entre os teóricos, autorizamo-nos a
afirmar que a alteridade é uma condição de existência de qualquer produção humana
não dogmática e que a clínica sobrevive na produção de alteridade, que se desdobra
em três vetores: o do paciente, o do terapeuta e o da teoria. A singular mobilidade
dessas relações exige-nos certa intimidade com o não saber, com o vigor instituinte da
espectação e sua lógica desconcertante, próprios do inconsciente e de suas
manifestações inexoravelmente imprevisíveis.
Então recolocamos a questão a respeito da relação entre fonoaudiologia e
psicanálise como um meio de produção de saberes, tanto para um campo quanto para o
outro, e como uma trilha para revisão e ampliação da percepção da prática clínica com
os problemas na linguagem
O recorte temático escolhido para este trabalho destacado do pano de fundo
delineado procede da clínica com pacientes que gaguejam ou se sentem gagos, e cujas
histórias traziam a conflitiva edípica acentuada por um modo particular de presença do
pai, seja denegrido, negado ou exacerbado em sua autoridade. Partindo dessa evidência,
nossa hipótese é a de que traços comuns na relação desses pacientes com a linguagem,
organizadores de seus sintomas, estão atrelados à particularidade da vivência do
complexo de Édipo, cujas consequências se manifestam na transferência, sendo,
portanto, fundamentais para o manejo terapêutico na clínica da linguagem.
O caminho escolhido para desenvolver esta tese foi feito pela clínica que gerou a
pesquisa e as relações teóricas aqui expostas. Inicialmente procuramos mostrar dentro
da literatura fonoaudiológica questões enunciadas em torno da problemática da
gagueira, entre elas o papel preponderante do elemento subjetivo no processo
terapêutico. Vemos que o problema já exposto tem raízes antigas na clínica e nas
20
pesquisas, no entanto, é tratado no âmbito da intersubjetividade. Neste trabalho,
investigamos particularidades desse sintoma que se manifestam na transferência e cuja
compreensão extrapola a dimensão intersubjetiva, por apresentar-se como atualização
do intrapsíquico.
Mediante o conceito de transferência, é possível remontar ao início das
investigações freudianas desde os Estudos sobre a histeria (1892), obra na qual o
método psicanalítico viceja na transformação dos princípios da clínica médica clássica.
Constituída por potência reveladora e resistência, a transferência não se encolhe em
outros métodos clínicos; pelo contrário, como parte inevitável de todas as relações
humanas e com intenso poder nas práticas terapêuticas, também gera recursos de leitura
para as consequências dessas práticas. A espessura do vínculo suporta a clínica mesmo
quando os objetivos técnicos aparentemente não dependem da relação entre paciente e o
profissional, como ocorre na clínica médica e fisioterápica, por exemplo.
Na clínica da linguagem, indiferença ao vínculo não é possível, pois processos
dialógicos são matéria-prima do trabalho, efetivando condições de manejo na forma da
linguagem e também na dimensão simbólica, ou seja, na possibilidade de o sujeito se
situar diante do Outro e não apenas do outro imaginário. Isso pressupõe não o
contato direto com a materialidade do sintoma, mas também uma implicação do
terapeuta com a realidade psíquica do paciente, cuja determinação atravessa
possibilidades ou impossibilidades de redimensionar ou prescindir de seus sintomas na
fala. Em outros termos, aponta-nos Palladino (2002):
[...] a fala é o lugar onde não permanece insuspeito o funcionamento
da linguagem e, exatamente por isso, o se pode ter a ilusão de que
é possível acessá-la e lhe doar uma aparência de perenidade de
modo completamente neutro por que a fala do paciente ou o lugar de
irrupção da subjetividade, existe enquanto efeito e é assim que ela
constitui material: enquanto efeito, a palavra é enlaçada inclusive ou
21
exatamente na sua virtualidade de silêncio, que é o que lhe confere
existência, ou seja na sua relação com a palavra não dita (p. 37).
A realidade psíquica, ou interna, evidencia-se pelo modo de funcionamento do
sujeito, idiossincrático e inconsciente. Não por acaso, a transferência está no centro da
descoberta do inconsciente e da lógica de funcionamento do corpo representado, o
corpo erógeno, que pode produzir sintomas para muito além das determinações
orgânicas. Nessa via, a marca indelével dos efeitos da transferência aplica-se à
problemática do sujeito que enfrenta limitações na produção da fala e, por isso, procura
a clínica da linguagem
Nessa perspectiva, a intervenção terapêutica na linguagem não se restringe ao
manejo da forma de estruturas linguísticas, pois o contexto clínico implica
discursividade e produção de sentido para que outra forma de dizer possa advir. Há uma
delicada operação que deve ser feita para marcar a diferença nas interpretações na forma
da linguagem, sem abstrair o sentido do dizer do sujeito, sem excluir no método os
princípios que o justificam.
Certo encontro com a linguística também se deu na inventiva leitura que Lacan fez
de Saussure, embora a firmeza dos laços teóricos resultante dessa relação não se isente
de problemas. Segundo Nasio (1994), psicanalistas lacanianos são erroneamente
assemelhados aos linguistas. Na tentativa de debelar a indiscriminação, o autor escreve:
Os psicanalistas certamente se interessam pela linguagem, mas se
interessam unicamente no limite em que a linguagem tropeça.
Ficamos atentos aos momentos em que a linguagem se equivoca e a
fala derrapa. [...] é a esse ponto que chamamos a face perceptível da
experiência: um balbucio, uma dúvida, a palavra que nos escapa [...]
é o momento do balbucio, ali onde o paciente gagueja, o instante em
que ele hesita e sua fala se subtrai. (p. 12).
22
O que da linguagem interessa à clínica da linguagem? Seu não-funcionamento, suas
irregularidades, falhas em particular as que não são apenas pontuais ou inerentes às
manifestações do inconsciente na fala, como os atos falhos, mas a linguagem embotada,
em resistência ou angústia, cuja força parece ser não se deixar submeter ou não se
apropriar da norma, como se nela se esvaísse o singular do sujeito expresso no sintoma.
O que interessa à clínica da linguagem, portanto, é a linguagem que pelos sintomas se
realça e não a que se recalca.
Apesar dessa tentativa de discriminação do foco posto sobre a linguagem nos
diferentes campos teóricos e clínicos, vale lembrar, com Mezan (1995), que Freud, em
Sobre a psicoterapia, delimita três diferentes modalidades da ação da palavra no
contexto terapêutico, com suas consequências técnicas e curativas: a sugestão, a catarse
e a interpretação. Sinteticamente, pode-se considerar que no uso da sugestão o
terapeuta é quase o protagonista do discurso: tem a palavra e manipula-a para que o
paciente modifique seu comportamento no sentido desejado, o que é analisado como um
procedimento cosmético, uma vez que “reforça as repressões”. Na catarse, o terapeuta
também guia o processo visando a rememoração da situação traumática e a ab-reação de
seu corolário afetivo. Para isso, faz perguntas e fixa a direção do discurso. A
interpretação, por sua vez, tem objetivo distinto, que nada introduz para conduzir o
discurso, a não ser a garantia de um setting no qual ele pode transcorrer livremente, sem
sobreposição dos dizeres do analista, que se abstém de influenciar. Parece ser em
referência ao efeito de influenciar que Fédida (1988b) critica o tipo de condução da
entrevista numa determinada psicanálise; ao fazê-lo, adverte que “a descrição dos
fenômenos da comunicação encontra sua base em uma teoria da subjetividade e da
intersubjetividade, que convive muito bem com a da ego-psychology” (p. 54).
23
Isso nos leva a pensar que particularizar o uso que é feito da palavra no método
terapêutico da linguagem demanda a constituição ou reconstituição do manejo
específico da relação transferencial nessa clínica. Mediante as diferenças estabelecidas
entre psicoterapia e psicanálise no texto de Mezan (1995), poderíamos estabelecer
relação análoga ao que ocorre na ego-psychology e na clínica da linguagem? Qual é a
teoria de subjetividade que assenta as bases para elaborar a técnica de produzir efeitos
de desnodular a forma e o sentido na linguagem dos pacientes?
A psicanálise permite-nos pensar o trabalho com a linguagem pelos sentidos
provenientes da relação do sujeito com os significantes inconscientemente talhados e
que movem tanto a formação dos sintomas como as possibilidades de ressignificá-los.
Nas questões que nos interessam aqui, o funcionamento da linguagem e os sofrimentos
pelos sintomas sempre são remetidos a um Outro, que é encarnado pelo profissional
capacitado por teorias e técnicas. Entretanto, não é possível deduzir diretamente a forma
como esse terapeuta ocupa o imaginário do paciente ou de sua família. Cabe ao
terapeuta perguntar-se: “a que vem a demanda implícita na queixa?”. Esse aspecto,
muitas vezes chamado de expectativa do paciente ou ansiedade da família, é
determinante na condução de qualquer procedimento clínico. O lugar subjetivo ocupado
pelo paciente ancora suas manifestações sintomáticas, por isso é impossível abordar os
problemas de linguagem passando ao largo da transferência, vivência objetiva no setting
das possibilidades subjetivas da relação com o paciente.
De certa forma, o processo transferencial, assim como o sintoma na linguagem,
atualiza sentidos que ficaram rigidamente imobilizados em sintomas, respondendo à
lógica da reação de defesa inconsciente; assim o sintoma expõe em parte um mal-estar
decorrente da subversão das formas culturalmente esperadas, mas ao mesmo tempo
voz ao conflito intimamente travado entre desejo e defesa, próprio do funcionamento
24
neurótico. Nos dizeres de Freud (1912b)
13
, as palavras são condição para o pensamento
consciente:
[...] é provável que o pensar fosse originalmente inconsciente, na
medida em que ultrapassava simples apresentações ideativas e era
dirigido para as relações entre impressões de objetos, e que não
adquiriu outras qualidades perceptíveis à consciência até haver-se
ligado a resíduos verbais. (p. 281).
As palavras, como resultado da soma de resquícios de traços mnemônicos, estão
encharcadas de sensações de vivências oriundas do contexto sensorial e afetivo no qual
foram pronunciadas. Desse modo, na perspectiva de Freud, as palavras, ao mesmo
tempo em que são condição para consciência, ancoram-se em marcas inconscientes.
Se as palavras podem ser pensadas, também em Freud, como “películas superficiais
em águas profundas
14
”, como manejá-las sem revolver essas águas? Sem tocar no
funcionamento psíquico do sujeito? Com efeito, explicar a lógica de relação com as
palavras na clínica da linguagem nessa perspectiva demanda construir uma interpelação
profícua com a psicanálise, com a teoria a respeito do funcionamento simbólico e com a
constituição subjetiva proposta por ela. O complexo de Édipo, por ser o centro da
formação do sujeito, está em total sintonia com as manifestações deste na transferência,
locus também privilegiado para compreender os sintomas e provocar neles alguma
modificação.
O trabalho terapêutico está sempre às voltas com o efeito sujeito
15
, no modo como
seu sofrimento está atrelado à linguagem. Mesmo as abordagens de orientação
13
FREUD, S. (1912b)
14
WITTGENSTEIN, L. (1953)
15
Essa expressão está destacada, pois é quase um paradoxo afirmar que o sujeito fora excluído da clínica; no
entanto, cabe a proposição, pois a assepsia técnica e as descrições e classificações dos sintomas tendem a ocupar
mais diretamente os procedimentos fonoaudiológicos tradicionais, dos quais nos diferenciamos.
25
organicista ou comportamentalista trazem como essencial os elementos subjetivos
16
na
caracterização do quadro clínico. Um exemplo marcante da relevância da subjetividade
para estabelecer as estratégias de tratamento são as questões trazidas pelos pacientes que
não gaguejam, mas se sentem gagos. Esses pacientes, motivados pela certeza de
fracasso, vivem angústias e temores intensos na preparação da fala. Assim, mesmo
ausente da cena clínica a materialidade do sintoma, eles escutam o sintoma em si.
Não sintoma da linguagem, mas do sujeito que dele se queixa; o terapeuta da
linguagem é convocado transferencialmente a acolher o sofrimento apresentado. De
certa forma, o paciente queixa-se por não ser o ideal, já que seu mal não está no
impedimento da linguagem, mas num impedimento a si mesmo, uma forte interdição. A
gagueira se mostra como a verdadeira autoridade que lhe abre ou fecha portas, que
decide sobre o que pode ou não fazer e dizer. O sintoma na linguagem
17
passa a
funcionar como uma bússola sem a qual o gago não se orienta. Daí decorre a
ambivalente solicitação “tire-me a gagueira, mas não me deixe sem direção” é uma
armadilha transferencial, pronta para fazer abortar o terapeuta da linguagem e sua
possibilidade de trabalho que tradicionalmente seria retirar o sintoma. Por
características próprias da gagueira, pensada aqui como sintoma e não como doença, a
inviável tarefa de curar, por si só, garante ao processo terapêutico certa duplicidade:
estar em terapia para melhorar, mas não a ponto de sarar, pois, se esse nível de
indiscriminação e fusionamento, cabe perguntar: “como é possível sarar de si mesmo?”.
Se essas ideias fossem sempre verdadeiras, a clínica da linguagem com pacientes
que gaguejam seria um somatório de fracassos; porém, não é isso o que ocorre. A
16
Esse termo está presente em muitos trabalhos, quase sempre fazendo menção ao que é próprio do
funcionamento psíquico do paciente e que se relaciona com a gagueira.
17
É importante frisar que o sintoma está na linguagem, mas é uma formação inconsciente do sujeito, por isso
usamos o termo sintoma na linguagem e não da linguagem.
26
competência dessa clínica para tratar a gagueira é marcante, prova incontestável do
saber que a norteia; portanto, devemos perguntar como o terapeuta se orienta num
campo tão minado por processos psíquicos que não só produziram o sintoma para
equilibrar seu funcionamento como também envida esforços para mantê-los? Tal fato
nos leva a concluir que o manejo de aspectos psíquicos no trabalho com a linguagem é
inevitável; mesmo não sistematizados ou fragilmente abordados na produção científica a
respeito da clínica da gagueira, eles são parte do trabalho num bastidor aparentemente
intuitivo e de difícil compreensão, embora sejam exaustivamente enfatizados pelos
especialistas no acompanhamento de casos com a marca desse fenômeno
18
.
Nessa medida, reafirmando a importância de atentarmos para a unidade corpo-
mente na clínica da linguagem, Cunha (2001) afirma que a gagueira não é o único lugar
para refletir sobre essa questão, mas é didaticamente privilegiado:
Porque pelo seu caráter instável, quase anárquico, ela insiste em
desafiar e angustiar clientes e terapeutas, revelando um corpo que
sofre tamm pelas vicissitudes de seu inconsciente. (p.103).
Concebo, portanto, que trabalhar com o que ocorre no recôndito da clínica da
gagueira possa ser bastante esclarecedor tanto para o terapeuta da linguagem carente
de palavras e conceitos para circunscrever o que acontece na sua labuta com os defeitos
da palavra, quanto para os psicanalistas para os quais, muitas vezes, a dissonância
18
Muitos fonoaudiólogos especialistas em gagueira, como Rocha (2007), Meira (2002b) e Ribeiro (2003), e Bohnen
(2007) afirmam que o sucesso terapêutico está diretamente associado à consideração de aspectos subjetivos: “cada
paciente constrói junto, com o terapeuta, sua abordagem. Cabe ao terapeuta ter o embasamento que lhe propicie
alternativas para obter a melhor interação terapêutica [...] os aspectos a serem trabalhados apresentarão maior
possibilidade de ganho se abordados pelas duas vertentes da dificuldade: sua manifestação corporal e suas
repercussões internas” (ROCHA, 2007: 285-6), ou “além do cabedal teórico específico o terapeuta deve ser sensível
às necessidades de seus pacientes. Aos seus sentimentos e comportamentos [...] todo o universo peculiar a cada
pessoa deve ser captado e trabalhado pelo fonoaudiólogo especialista em gagueira” (RIBEIRO, 2003: 310-11) ou,
ainda, “minha abordagem de tratamento é definida pelas necessidades de cada paciente” (BOHNEN, 2007: 247).
27
melódica causada por falhas na produção da fala pode perturbar a escuta do sujeito
dessas produções.
Afirma Fédida (1988b) que o amor está presente nas relações de análise também
terapêuticas, acredito – como amor pela produção do trabalho em direção a outros
investimentos e possibilidades, aberturas bem distintas da síntese feita pelo sintoma.
Ainda com Fédida, podemos dizer que no amor pulsões parciais, portanto, não se
esperam aqui totalizações; nem no trabalho de produção desta tese e nem no trabalho
terapêutico. Espera-se apenas continuar movendo a pulsão em direções menos
sintomáticas na produção do conhecimento/desconhecimento.
Optei por trabalhar a relação transferencial no processo terapêutico com pacientes
que apresentam gagueira, pois desde o início de minha atividade profissional
transformaram-se em casos muito marcantes com os quais, a despeito da aridez causada
pelos mistérios que envolvem esse sintoma, pude descobrir o viço pela clínica, e um dos
desdobramentos dessa relação foi meu percurso intelectual e clínico em direção à
psicanálise.
Portanto, essa escolha tem motivações acadêmicas e pessoais. Duas podemos
destacar: primeiro, pelo enigma que ronda, desde a antiguidade, esse distúrbio universal
que, segundo definições baseadas em pesquisas modernas, é encontrado em todas as
raças. Geralmente, surge na infância e pode simplesmente desaparecer, ou persistir até a
puberdade e ser suprimido por volta dos 16 anos, ou manter-se estável até a fase adulta,
ou, ainda, pode se agravar, quando a cura é sempre parcial
19
. O distúrbio pode ser
19
Em texto publicado em 2003, Lucia Barbosa faz um levantamento amplo das últimas pesquisas a respeito da
sintomatologia, incidência e etiologia da gagueira. Salienta que “há evidência na transmissão genética que gera
predisposição em gaguejar e caracteriza-se por dificuldades nos aspectos motores dos mecanismos de produção da
fala, mas também há evidências de que a gagueira possui componentes linguísticos, pois pesquisas mostram que
90% dos episódios de gagueira ocorrem em sílabas iniciais [...] quanto mais complexa a execução motora, maior a
28
caracterizado como “episódico e inconsistente e sua sintomatologia é diversa, podendo
confundir até os especialistas, pois devido a sua heterogeneidade, não achados que
possam servir para todos os casos” (BARBOSA, 2003: 20).
O enigmático fenômeno clínico que pode ser quase suprimido na infância (como
afirmam outros autores
20
, 98% a 100% dos casos tratados na infância podem ser
totalmente curados), suscita a questão referente ao motivo que faz essa suposta
fragilidade ser superada pelos pacientes quando são atendidos em perspectivas tão
contrastantes em princípios e métodos, ou até mesmo quando não são atendidos.
A segunda motivação para a escolha da gagueira é compreender melhor esse
elemento desconhecido, mas comum, que conduz o sujeito a um processo terapêutico
capaz de oferecer-lhe nova referência sobre sua fala.
A gagueira como signo, diagnóstico que os pesquisadores em neurociências
atualmente visam delimitar no real do corpo, não será nosso interesse direto, mas o
modo como o signo é retomado pelo imaginário do paciente, como se transforma num
signo “patognomônico” e num traço identificatório, sim.
Arquitetura do trabalho
A pesquisa em psicanálise desdobra-se, segundo Mezan (1993: 97), em duas
vertentes: a que investiga a história das ideias e a que investiga os processos psíquicos
propriamente ditos. Este trabalho inclui-se na segunda categoria, pois a partir da
observação de certos traços semelhantes no funcionamento psíquico de pacientes gagos
do sexo masculino como um modo muito perturbado de relação com a função paterna
dificuldade em falar, por isso acredita-se que a gagueira deva envolver também problemas no planejamento da
produção fonológica”. (BARBOSA, 2003: 19).
20
CONTURE apud BOHNEN, 2007.
29
–, passamos a investigar processos psíquicos que podem estar relacionados ao sintoma
que apresentam.
A partir desse ponto, formulamos uma hipótese clínica ao observar a ocorrência de
determinado fenômeno que não é em estado puro a repetição de um fato, mas a
construção de ideias a respeito de características que particularizam os casos. Em
sintonia com a teoria lacaniana, na qual a constituição do sujeito e o funcionamento
simbólico são indissociáveis, podemos supor que a função paterna, como representante
da lei, move o funcionamento simbólico; portanto, para estar na posição de falante, faz-
se necessário um conjunto de operações psíquicas que ocorrem ao longo da conflitiva
edípica, entre elas o complexo de castração.
Marco da saída do Édipo pelo menino e entrada nele pela menina, o complexo de
castração é gerado por intenso conflito entre abandonar o primeiro objeto de amor,
deixar de ser o falo, o representante do desejo, ou perder o falo, e garantir possibilidade
de continuar sujeito e desejante. Por autopreservação, própria do narcisismo primário,
haverá a passagem ao passo seguinte, que é a identificação com o pai, aquele que
imaginariamente tem o falo. No entanto, esse segundo tempo do Édipo é estabelecido,
nos casos que acompanhei, a partir do sintoma, o que se estende para o terceiro tempo,
caracterizado pela identificação simbólica.
Segundo Nasio (2007), a lei é paterna por ser incontestável:
Com efeito, a lei do interdito do incesto e todas as leis em geral
permanecem marcadas pelo sinete da autoridade paterna porque o
são negociáveis. Portanto, é indiferente que a voz que evoca ao
interdito seja masculina ou feminina; o essencial é a firmeza do tom
para fazê-lo (p.83).
30
Seria então pelo fato de o fonoaudiólogo colocar-se como porta voz dessa lei e
reeditar o pai, seja pela autoridade técnica ou pela competência discursiva, na qual o
gago falha, que mesmo em diferentes abordagens teórico-clínicas a relação terapêutica
gera um olhar narcisante para a fala do sujeito? Esse olhar transferencialmente
legitimado atribui às técnicas efeitos de reconstrução da linguagem, fragilizando as
amarras inconscientes do sintoma? Mas como isso ocorre?
Escrevemos casos
21
, do que decorre que podem nos acusar de não científicos.
Nisso, porém, estamos em ilustre companhia. Freud (1892), na discussão do caso da
Srta. Elizabeth Von R., mostra sua estranheza em escrever casos que parecem novelas;
todavia, ele se consola atribuindo a especificidade dessa escrita a uma imposição do
próprio caso, embora possa ser acusado de escritor imaginativo; defende a escrita da
história desses pacientes como recurso para demonstrar “a íntima ligação entre a história
do sofrimento do paciente e os sintomas de sua doença” (p.184). Os casos são
apresentados não como modelos a serem seguidos, mas como resultado da trama sutil,
da mecânica fina vivida na clínica que, apesar de tanta delicadeza, orienta-nos em
relação à teoria e às possibilidades de significação.
Dito isso, tomaremos as cenas clínicas em sua dinâmica efemeridade, o que não
reduz a força de seus efeitos, entre eles tentativas de teorização, de saber falar sobre a
clínica. As cenas não precisam ser fechadas em quadro clínico “que faz visível o
enunciado da doença, mas deixa fora o fato de que esse enunciado seja produzido por
um sujeito” (TROIS, 2008:104), mas se deixam contornar por interpretações, dizeres
21
Cabe salientar que o material clínico exposto segue os preceitos éticos da pesquisa com seres humanos e foi
devidamente aprovado pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo mediante Protocolo
de Pesquisa número 267/2008.
31
que formulamos a respeito dos sintomas dos que se dizem ou são ditos gagos, mediante
aportes conceituais da psicanálise e a da clínica da linguagem.
No Capítulo I, realizamos uma revisão da literatura fonoaudiológica sobre gagueira,
com foco no que chamei de tramas etiológicas e seus desdobramentos no método
clínico, as tramas transferenciais. A escolha desse caminho teve como fator
determinante o fato de os textos que discutem a clínica da gagueira apontarem em
uníssono que considerar os aspectos subjetivos é essencial ao tratamento. Apesar de
enfatizado no tratamento, o conceito de subjetividade não se esclarece na teoria e nem
seu manejo no método clínico. Essa forma de articular os aportes da literatura específica
sobre gagueira e a clínica da gagueira permitiu-nos sustentar argumento em direção à
compreensão do sintoma como inerente à constituição subjetiva. Restou-nos assim
abordar a diferença entre sintoma e patologia mediante o conceito de pathos, e nessa
trilha trouxemos o conceito de sintoma ressignificado pela psicanálise. O saber gerado
pela clínica como condição de qualquer discurso está limitado pela impossibilidade de
tudo dizer, mas carrega o viço de produzir ferramentas de trabalho para refletir sobre a
prática. A psicanálise, pela lógica peculiar de seus princípios, disponibiliza um método
de leitura da prática atravessada pelos efeitos do inconsciente. Sendo assim, o método
de análise do material clínico, de acordo com Mezan (1993), “releva a atenção ao
detalhe dissonante, a reconstrução do contexto e a temporalidade própria instaurada pela
psicanálise com seus conceitos de repetição, retorno do reprimido, entre outros” (p. 89).
Pela análise de casos publicados por duas fonoaudiólogas autoras de teorias consagradas
na clínica da gagueira, Isis Meira e Silvia Friedman, situo o manejo da transferência
como fator associado ao desfecho bem-sucedido dos casos.
No Capítulo II, abordamos mais diretamente a literatura psicanalítica a respeito da
gagueira, a partir da qual sustentamos a hipótese de que a gagueira será pensada como
32
sintoma constituído no seio da conflitiva edípica, como acontece em casos de neurose.
A configuração da hipótese metapsicológica a respeito da relação entre a gagueira e
dificuldades de inserção do significante Nome-doPai foi desenvolvida a partir do estudo
dos três tempos do Édipo propostos por Lacan. Nesse capítulo, discutimos o caso de
Bernardo, cujas questões nos orientam na articulação da posição da criança na trama
parental e a produção do sintoma; em particular, debruçamo-nos sobre aspectos do caso
que nos permitiram compreender os motivos pelos quais o sintoma do sujeito ganha
visibilidade como um problema de linguagem.
Como consequência dessa hipótese, conduzimo-nos para o Capítulo III. Nele,
articulamos função paterna e “ideal de eu”, produto dos processos de identificação, cuja
abordagem permitiu-nos inferir que a função do terapeuta da linguagem transita entre a
identificação imaginária, associada ao traço unário, e a identificação simbólica
caracterizada pelo significante Nome-do-Pai. Também discutimos um caso no qual as
operações identificatórias podem ser abordadas como parte dos efeitos do trabalho com
a linguagem.
Por fim, no Capítulo IV, retomamos o conceito de transferência que é abordado
inicialmente pelos aportes teóricos provenientes das obras de Freud e de Lacan; não o
fizemos de modo exaustivo e nem panorâmico, mas seguindo a trilha da relação entre a
transferência e a significação no contexto da clínica psicanalítica e na clínica da
gagueira. Os casos orientam a reflexão e as articulações entre teoria e clínica, sem o
compromisso de generalizações, haja vista que a teoria escolhida é instrumento para
pensar singularidades e, por isso, avessa à totalização. Todavia, o conceito de
transferência permite a configuração de hipóteses sobre o “subjetivo” na clínica da
gagueira, favorecendo, assim, a reflexão sobre seus efeitos no trabalho com a linguagem
marcada por esse sintoma, o objetivo central deste trabalho.
33
CAPÍTULO I
Tramas etiológicas e tramas transferenciais na terapêutica da gagueira
“Nenhuma fórmula substitui o
processo terapêutico direcionado
ao indivíduo, suas características
pessoais e suas específicas
questões. A comunicação que é
efetuada entre terapeuta e
paciente é ímpar. Esse dado tem
ainda maior realce, uma vez que
na gagueira constata-se uma
dificuldade que se aguça
particularmente no contato com o
outro.
22
(ROCHA, 2007)
Pathos é sempre objeto da
transferência, ou seja, de um
discurso que narra o sofrimento, as
paixões, a passividade que vem de
longe e de fora e que possui um
corpo onde brota, para um
interlocutor que por suposição,
seja capaz de transformar, com o
sujeito, essa narrativa numa
experiência
23
(BERLINK, 2000)
Em meados dos anos noventa, num evento da faculdade de Fonoaudiologia da
PUC-SP, houve uma mesa-redonda a respeito de gagueira na qual se pretendeu dar
visibilidade às diferentes abordagens de tratamento. Embora óbvia, a constatação de que
todos os pacientes apresentados pelos palestrantes melhoraram mesmo tendo passado
por procedimentos clínicos bem diferentes já que os métodos tinham princípios
teóricos distintos corroborou a hipótese de que deveria haver, no cerne desses
processos, algo comum que os equiparava. Se os efeitos foram os mesmos, poderia
22
ROCHA, E. (2007) Apresentação do livro: Gagueira: distúrbio da fluência.
23
BERLINK, M. T(2000; 23)
34
haver um fator central comum na melhora da posição do sujeito em relação à produção
da fala.
Havia começado a estudar psicanálise em decorrência do foco trabalhado no
mestrado – a relação terapêutica na clínica fonoaudiológica
24
– e foi com essa orientação
que a transferência como fenômeno pareceu-me um acontecimento a ser pensado e
investigado no interior da clínica da linguagem. Embora muito recente, se comparada
com outras clínicas, a clínica da linguagem traz em sua história perspectivas teóricas e
clínicas bem divergentes. Os diferentes princípios e métodos utilizados para convalidar
a clínica e tratar a gagueira explicitam mais diretamente essas marcas distintivas; no
entanto, essa constatação também se aplica à abordagem dos casos de atraso no
processo de aquisição de linguagem e nos casos de distúrbio articulatório, por exemplo.
A situação acadêmica exposta permite-nos trilhar um caminho particular na
espinhosa temática da etiologia. Não se trata aqui de estruturar um estudo aprofundado
dessa temática tão debatida e pesquisada, além de altamente controversa, mas ao
menos de colocá-la como um pano de fundo que orienta a direção do tratamento, um
elemento enfrentado por todo clínico, seja ao longo do processo analítico ou ao seu final
(como é na psicanálise), ou logo de início nos procedimentos diagnósticos, segundo a
tradição médica.
Mesmo que sem definição assegurada em muitas manifestações patológicas, as
hipóteses etiológicas fazem parte do instrumental para a cura, embora haja cura sem que
a etiologia se esclareça completamente, como ocorre na grande maioria dos casos de
gagueira. Abordar o conceito de patologia faz-se necessário, pois a questão sobre a
etiologia pode ser revista quando formulada segundo outro modo de observação do
24
TASSINARI, M.I. (1995)
35
fenômeno patológico ou, mais precisamente, de acordo com a forma como queremos
situar o acontecimento de pathos.
Pertencente ao rol das patologias de linguagem, a gagueira é definida por Van
Riper
25
e Emerick (1997) como um efeito da quebra da fluência “presente na
interrupção do fluxo da fala de forma anormal
26
por repetições ou prolongamentos de
um som, sílaba ou postura articulatória, ou por comportamentos de evitação e esforço”
(p. 260). Essa definição mostra que subjaz a esse conceito um padrão de normalidade,
um parâmetro quantitativo para sua caracterização, ou seja, para se determinar o que é
gagueira seria necessário contar com parâmetros objetivos para definir o modelo de
fluência.
Após extensa revisão da literatura a respeito do conceito de fluência, Merlo (2008)
afirma que sete componentes fazem parte da fluência: baixa frequência de hesitações,
baixa frequência de reformulações, baixa frequência ou curta duração e uso nativo de
pausas silenciosas fluentes, taxa de elocução
27
confortável, facilidade de emissão,
habilidade gramatical, diminuição da complexidade semântica. Como a fluência
depende da convergência de todos esses fatores, é muito difícil precisar sua ocorrência
de modo objetivo, uma vez que esses componentes se relacionam entre si, “formando
uma complexa rede de interação” (p.70). Estamos diante de uma dificuldade conceitual,
pois, para ter claro como o desvio do normal se processa, faz-se necessário encontrar o
padrão de normalidade; no entanto, os efeitos subjetivos provocados no outro que
escuta, ou naquele que enuncia, não são fonte objetiva para definir o padrão.
25
Fonoaudiólogo americano e um dos mais importantes pesquisadores da gagueira na abordagem comportamental,
esse pesquisador também é gago.
26
Grifo nosso.
27
A autora opta pelo uso de “taxa de elocução” em vez da tradicional “velocidade de fala”, porque as durações
fônicas não dependem tanto da velocidade com que os articuladores se movem, mas sobretudo da distância
percorrida por eles no espaço. Desse modo, continua a autora, “usar a expressão ‘velocidade de falaimplicaria,
então, sugerir que as durações são determinadas principalmente pela velocidade com a qual os articuladores se
movem no espaço, o que não é verdadeiro” (p. 65).
36
De modo semelhante, a definição atualmente utilizada pela Associação Brasileira
de Gagueira
28
também circunscreve a manifestação como distúrbio na fluência e na
temporalização da fala
29
. Salientamos que a força das marcas subjetivas está ainda mais
presente nessa delimitação, visto que fluência está associada a suavidade, facilidade,
falta de esforço com que sons, sílabas, palavras e frases são ligados durante a fala; para
uma pessoa que gagueja, a produção da fala é uma atividade trabalhosa, não sendo
automática a ligação entre sons, sílabas, palavras e frases como é para uma pessoa
considerada normal.
Novamente a temporalização transforma-se no principal fator diferencial dessa
produção que atrasa e perde no ritmo, realizando equivocada interpretação da música da
linguagem. A temporalização refere-se, portanto, ao tempo de execução dos sons,
sílabas, palavras e frases. Cada som da fala possui um tempo usual para ser dito. O que
acontece na fala gaguejada é que alguns sons são pronunciados em um tempo maior que
o habitual. Embora haja uma suposta cientificidade e precisão nas definições,
observamos que o padrão de normalidade não é objetivo, assim como a gagueira não se
à visibilidade regular, pois é um sintoma que prima pela heterogeneidade em suas
manifestações tanto em quantidade quanto em qualidade.
Nessa perspectiva, cabe utilizar a crítica de Canguilhem (1996) ao conceito de
normalidade segundo parâmetros anatomofisiológicos, como se exclusivamente
pudessem configurar a experiência de adoecimento para mais ou para menos em relação
a um padrão pré-definido. A esse conceito de normalidade, Canguilhem contrapõe o de
normatividade. Ser normativo é contar com recursos para estabelecer novas normas de
28
Consulta realizada em 02 fev. 2009 no site http://www.abragagueira.org.br/gagueira.asp.
29
Conforme definição presente em dicionário especializado de NICOLOSI, L.; HARRYMAN, E.; KRESHECK, J.
Vocabulário dos Distúrbios da Comunicação; fala, linguagem e audição. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996).
37
vida em condições adversas, não estar restrito a uma única forma ou norma de vida, mas
poder desfrutar da exuberância biológica própria do humano, que lhe permite adoecer e
se restabelecer, incidindo formas superiores de vida após a experiência de privação
imposta pela doença. Ser normal é ser normativo, comportar diferentes formas de vida.
A patologia é imobilidade, fechamento numa única norma, vida contrariada, um
rompimento de certo estado de reconhecimento e valor, estranhamento do sujeito para
consigo, tendo por referência um estado anterior mais confortável, ou a experiência de
privação que para os gregos estava associada à reformulação e não a perda e
empobrecimento.
Com relação à experiência de ser gago, é difícil aplicar tal definição de normalidade
como normatividade, uma vez que nessa experiência está implícita a anterioridade de
um estado não patológico mediante o qual o sujeito se diferencia do advento da doença
que o acometeu. Pode diferenciar-se de si mesmo, vivendo, pela doença, a alteridade.
Ser gago está determinado por uma constante, um estado inerente à condição do sujeito,
que pode ou não melhorar, como uma privação no ser, ser isso: gago, o que é muito
diferente de sentir-se gago ou de ter a gagueira esporadicamente. É possível entender
por aí por que algumas abordagens de gagueira tentam inicialmente quebrar o estigma
30
,
ou o modo como paradoxalmente, contra a sua vontade, o sujeito com gagueira se
reconhece e é reconhecido pelo efeito do sintoma.
Tais propostas estão pautadas na ideia de que “a gagueira frequentemente constitui
uma dificuldade relacional, que pode se manifestar de forma generalizada ou limitada a
certas situações e contextos” (SOUZA, 2001: 105). Esse autor propõe como recurso
30
Gomes (2003), com apoio na obra de Goffman (1963), caracteriza a condição do gago como a do sujeito
estigmatizado, pois este “porta um atributo indesejável e que o torna desvantajosamente diferente daqueles que se
consideram normais. Tal atributo coloca o sujeito estigmatizado na condição depreciada de uma pessoa estragada,
diminuída, defeituosa, fraca ou, quando o estigma é moral, perigosa e má”. (p. 8).
38
terapêutico que o paciente faça diferença entre ser doente e estar doente, usando a
referência teórica de Canguilhem. A perspectiva de Souza é desmontar a fixação do ser
gago como estado, em contraposição à flexibilidade de estar gago, como experiência
possível, por isso não excludente de outras na linguagem, não anulando a fluência, por
exemplo. Tal trabalho traria como efeito novas normas de vida, novas possibilidades de
estar na linguagem. A questão que nos parece central está em torno da falta de
referência a si que seja anterior à presença da gagueira, o que faz com que a máscara do
sintoma fique “apegada à cara”
31
e o gago entre nessa proposta como numa espécie de
convencimento racional e plausível, mas não como reconhecimento de si em outra
condição.
Em consonância com a ideia exposta de Canguilhen, Berlinck (2000) discorre a
respeito do conceito de pathos, como um estado que não deve apenas ser considerado
transitório, mas do qual se pode tirar proveito como “algo que enriquece e alarga o
conhecimento” (p. 20). Salienta o autor que pathos se relaciona com o que é pático, com
o que é vivido. Pathos não nasce do corpo, posto que é externo a ele, mas nele se abriga,
vem de fora e faz o corpo sofrer. Desse modo, a relação de pathos com os efeitos da fala
do outro é fundamental, pois esta também vem de fora e pode, em determinada
condição, atravessar o corpo e nele fazer brotar nova experiência experiência essa que
se desenvolve na relação entre a fala e seu efeito nos afetos, como nos mostra o autor:
Saber jogar com impulsos emotivos pertencentes à técnica retórica
e é provável que os retores tenham sido os primeiros a atribuir ao
pathos este sentido a que hoje chamamos psíquico. O estudo dos
efeitos que o discurso produz sobre os homens é que faz com que o
pathos perca o seu sentido mais amplo de fenômeno passivo (sentido
que igualmente convém às percepções sensíveis como dirá
Descartes) para vir a designar as percepções da alma. O objetivo do
orador, e, mais ainda, o do poeta, não consiste em apenas convencer
por meio de argumentos. É necessário, também, que ele toque a
31
Refiro-me ao verso de Fernando Pessoa “Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-
me./Quando quis tirar a máscara/ Estava pegada à cara” do poema Tabacaria.
39
mola dos afetos, e utilize os movimentos da alma que prolongam
certas emoções. (p. 22).
Tal discussão coloca em cena uma particularidade desse sintoma que não pode ser
confundido com doença ou limitação, mas condição do sujeito, como sombra estendida
sobre ele. Isso nos mostra que a descrição do fenômeno patológico sem a incidência
subjetiva não chega em pathos, embora possa ser útil para compreender a apreensão
desse fenômeno pelo conhecimento externo a ele, como se produz conhecimento numa
referência positivista de ciência, isolando a gagueira do gago. No tratamento, pathos
atualiza-se, na perspectiva originariamente cunhada por Platão, como paixão e
passividade. Atenuar o sofrimento do sujeito é a vocação constitutiva de toda clínica na
qual pathos pode produzir pela experiência com o terapeuta, que inclui o movimento
dos afetos, em cujo ritmo a condição de estar na linguagem pode ser discriminada da
condição restrita ao sintoma como linguagem.
Embora haja melhora em casos nos quais a etiologia é obscura e os procedimentos
terapêuticos seguiram a trilha dos sinais e sintomas para desmontá-los, desde Freud,
desistir das causas é negligenciar a vocação da clínica. No entanto, esse autor
redimensiona a questão etiológica ao estudar as causas da histeria e das neuroses de
angústia, atribuindo à sexualidade suas raízes.
Com relação à gagueira não é diferente. A causa passa a ser pano de fundo obscuro,
esfinge indecifrável encarada por tantos fonoaudiólogos e psicólogos, cada qual, a seu
modo, invocando a serenidade devida à ciência para encontrar possibilidade de acolher
um sofrimento tão intenso.
Muitos trabalhos seguem explicitando as hipóteses causais. Dentre eles, podemos
citar o levantamento abrangente feito por Barbosa & Chiari (1998) a respeito da
40
etiologia da gagueira. As autoras organizam o texto respondendo, mediante revisão da
literatura, às perguntas mais comuns em torno da gagueira provenientes do imaginário
leigo. São elencados nove tópicos em forma de questões, bastante elucidativos das
linhas de investigação da etiologia desse transtorno: A gagueira surge ou é só um
rótulo? Quando a gagueira surge? A causa está dentro do indivíduo? É um distúrbio de
conduta associado a conflitos emocionais? Trata-se de imitação, comportamento
aprendido ou hábito? É falta de atenção? Inadequação dos pais? Alteração na linguagem
ou na inteligência? Hereditariedade?
Tal divisão deu base para subsequente sistematização de três explicações sobre a
etiologia da gagueira que se sobrepõem: causas psicológicas; comportamento adquirido;
causa orgânica
32
. Tem-se nesse trabalho uma referência inicial que vai aos poucos
permitindo entender os caminhos teóricos e técnicos que norteiam distintas clínicas da
gagueira. Pela pluralidade de perspectivas e posicionamentos encontrados, pode-se
inferir a proporcionalidade direta entre os clínicos e os métodos. Isso não significa que
não haja traços comuns no trabalho da gagueira, como, por exemplo, a utilização de
técnicas de respiração, relaxamento, articulação etc. No entanto, modos peculiares de
abordar a clínica e dissertar sobre ela vão revelando a intimidade do manejo com o
sujeito que gagueja e efeitos terapêuticos que podem ser discriminados do rótulo teórico
adotado e recolocados a partir do lugar subjetivo que a condição do terapeuta oferece ao
paciente.
32
Spinelli (2001) delimita referências teóricas de vários campos que são utilizadas para desvendar o mistério da
gagueira na psicanálise, no behaviorismo, no campo biológico, salientando hipóteses referidas à hereditariedade, a
patologias cerebrais na gagueira de desenvolvimento relacionadas à síndrome de Tourette, à dominância
hemisférica, a neurotransmissores, ao processamento auditivo (que inclui o processamento auditivo retardado);
nenhuma hipótese restrita ao organismo é conclusiva a ponto de os achados serem extensivos e aplicáveis para a
maioria dos casos. Com relação aos dados de pesquisas genéticas, Merlo (2007), com base na literatura científica,
afirma que a gagueira hereditária é a mais frequente (55%); hereditária, pois antecedentes familiares
comprovados. Os estudos mais recentes indicam mas também não provam que há possibilidade de a gagueira
ser transmitida por herança oligogênica ao invés de gene único ou herança poligênica. A herança genética
ocasionaria um alto nível de receptores D2 de dopamina nos núcleos da base (principalmente no putâmen), o que
dificultaria o disparo dos comandos neurológicos para finalização de segmentos de fala” (p.73).
41
Barbosa (2003: 20), ao caracterizar a gagueira com apoio em pesquisas atuais,
afirma que:
[...] a gagueira costuma ser episódica e inconsistente e sua
sintomatologia é diversa. O seu curso varia de pessoa para pessoa,
confundindo até mesmo os especialistas da área. Em função de sua
heterogeneidade, não achado que possa ser generalizado
indiscriminadamente para todos os casos.
De certa forma, o enigma não se refere apenas ao que a gagueira tomada como
fenômeno traz para as classificações nosográficas, pois mesmo a irregularidade, a
inconsistência e heterogeneidade são passíveis de generalização na configuração do
quadro clínico
33
. A peculiaridade dessa marca no funcionamento da linguagem impele-
nos, pelo prisma da heterogeneidade, a abordagens menos generalizantes, seja do ponto
de vista etiológico, seja do caracteriológico, isso é, há nessa manifestação tantas leituras
quantos forem os sujeitos que a expressam, quase como nas longas e detalhadas
descrições dos casos de histeria feitas por Freud. Nesse sentido, pode-se considerar que
uma formatação comum oferecendo-se como terreno de significação, uma condição
de semelhança que pode fazer caber a diferença no jeito de sofrer do sujeito, ou seja,
uma patologia que de fato comporta, pelo modo disruptivo de seu funcionamento, o
singular que todo quadro nosográfico apaga e dilui. Graças a essa potência patológica,
chegou-se
34
ao extremo de dizer que quem inventou a psicanálise foram as histéricas
e não Freud. Será que a gagueira está para a terapêutica da linguagem assim como a
histeria esteve para a medicina?
33
DSM IV-TR (2003: 65) “A perturbação na fluência e no ritmo da fala (que não é própria da idade do indivíduo),
caracterizada por ocorrências frequentes de um ou mais dos seguintes aspectos: 1) repetições de sons e sílabas, 2)
prolongamento de sons, 3) interjeições, 4) palavras truncadas (p. ex. pausas dentro de uma palavra), 5) bloqueio
audível ou silencioso (por. ex., pausas preenchidas ou o preenchidas na fala), 6) circunlocuções (substituições de
palavras para evitar as que são problemáticas), 7) palavras produzidas com um excesso de tensão física, 8)
repetições de palavras monossilábicas completas (p. ex., Eu-eu-eu vou’). B- A perturbação na fluência interfere no
rendimento escolar e profissional ou na comunicação social.”
34
BERLINK, M. Anotações de aula.
42
A questão procede, tendo em vista que na revisão da literatura fonoaudiológica
sobre a clínica da gagueira o tratamento segue na linha da diferença.
Embora as respostas ao que a gagueira causa no terapeuta venham sempre
articuladas ao que este faz com ela, ao modo como trata dela, nesse tratar ou cuidar
uma particularidade que me parece negligenciada pelo modo como são explicitados os
tratamentos. É comum aparecer a referência à técnica mais marcante em cada
abordagem, associada a determinadas inspirações teóricas de interpretação do discurso
nas abordagens discursivas provenientes da análise do discurso de linha francesa ou na
perspectiva psicossocial. Os investimentos clínicos são mais focados no modo de
desconstruir determinantes ideológicos que sustentam a fixação do sujeito numa
imagem de mau falante. Na abordagem fenomenológica, cuja suposição é a de que ser
gago é inerente ao sujeito, caberá ao clínico ampliar as habilidades sensoriais para
mapear as tensões envolvidas na produção motora da fala e desarmá-las pelo trabalho
corporal. As escolhas teóricas dos clínicos não são aleatórias, por isso a falta de
esclarecimento a respeito do que as move e, consequentemente, sobre os projetos
terapêuticos delas decorrentes é o que nos interessa. Daí nossa questão: o que está posto
no discurso e no sofrimento desses pacientes faz a diferença para a condução do
tratamento? Nossa pesquisa mostra que sim. Contudo, apesar de essa leitura ser sempre
realizada sob o efeito da transferência mesmo que o terapeuta da linguagem não o
saiba conscientemente –,essa diferença não está explicitada na teoria e nem na condução
terapêutica.
No método de trabalho com a gagueira, de modo geral, as manifestações corporais
do sintoma são alvo de investigação e intervenção, ou seja, o que o paciente faz com seu
corpo para gaguejar deve ser compreendido pelo terapeuta tanto numa leitura
psicossocial do problema quanto numa leitura fenomenológica –, pois um dos objetivos
43
é reconfigurar a percepção de si e do processo de produção da fala, explicitando como o
sintoma subverte a fisiologia normal. Chama-se esse trabalho de conscientização do
paciente e reorganização dos padrões posturais, motores e de respiração durante a fala,
tendo como premissa que o gago não tem consciência de seus movimentos e do que faz
com o corpo para dificultar a fala. Associado a esse trabalho, o terapeuta da linguagem
destaca com particular importância a necessidade de levar em consideração os aspectos
subjetivos do paciente, programar o trabalho terapêutico segundo a subjetividade, e não
fiado na objetividade direta da técnica de remissão sintomática. Alguns terapeutas
chegam a chamar essa postura de enfoque subjetivo. Rocha (2005), por exemplo,
afirma:
[...] se a análise das situações de fala reduz-se ao acerto e erro, o
mesmo tende a ocorrer em relação ao autoconceito do indivíduo [...]
portanto cabe ao fonoaudiólogo dosar a virulência de sentimentos,
atenuar ambos o sucesso e o fracasso e plantar com
determinação a ideia de que os altos e baixos extremados são
sensações passageiras, ilusórias e que podem e devem ser
comemoradas ou lamentadas, mas não representam um plano qual
possamos viver indefinidamente. (p. 105).
Comentários dessa natureza são muito comuns nos textos dos terapeutas que visam
instruir seus pares a respeito do manejo com aspectos do funcionamento psíquico dos
pacientes. Entretanto, não está claro o que se faz no sentido de articular esse particular
traço de melancolia presente nos gagos, como pode ser deduzido do conselho da autora,
com o sintoma na linguagem e o manejo da transferência. Em particular nesse caso, a
expressão: “plantar com determinação” remete-nos ao uso da sugestão como estratégia
para provocar mudanças no paciente.
À parte isso, pode ser confirmada a hipótese de que a ênfase recai sobre o sujeito, e
cada terapeuta, a seu modo, vai em busca de teorias que o auxiliem a ver o sujeito da
gagueira e não a patologia como objeto. No geral, esses são os clínicos.
44
Tal particularidade indica-nos que o sujeito se impõe ao fenômeno patológico que
porta. Mesmo não o desejando diretamente, nós, terapeutas da linguagem que tratamos
de pessoas que se denominam gagas, estamos muito intrigados e implicados com as
amarras subjetivas dos sintomas de nossos pacientes. Esse é um dos efeitos que a
gagueira causa nos terapeutas, tão voltados para processos terapêuticos íntimos e de
intenso manejo com a linguagem
35
.
São frequentes os trabalhos visando descartar a relevância da patologia e grande
parte de seu corolário; exemplos deles são as pesquisas direcionadas a desvendar as
causas, o aparato técnico utilizado para supressão das marcas corporais estereotipadas
associadas à produção da fala e muitas práticas de profilaxia que circulam na mídia, nas
escolas e em equipamentos de saúde que contam com fonoaudiólogo. Nenhuma
construção erigida na perspectiva de aliviar o sofrimento dos que gaguejam ou de
contribuir para acolher essa marca na fala das crianças com posturas saudáveis está
sendo colocada diretamente em confronto com a defesa da hipótese segundo a qual
sobreposição de sintomas e a gagueira pode ser o único evidente, visto que há gagos que
quase não gaguejam e outros que pioram e melhoram da gagueira de modo cíclico,
quase como se ela fosse o termômetro das variações de humor, segurança e afeto.
Ao discorrer sobre o tópico “Sobre as causas da gagueira”, Bohnen (2007: 246-
247) afirma que:
a gagueira é um distúrbio sem causa completamente conhecida e que
provoca reações complexas no portador; por isso, por não termos
acesso às causas, existem muitas formas de entender e tratar a
35
No entanto, na representação externa de suas práticas, os especialistas em gagueira vão reduzir esse trabalho
com a linguagem aos fatores motores da fala e se enquadram no Comitê de Motricidade Oral da Sociedade
Brasileira de Fonoaudiologia até 2007, tendo sido revista essa posição pelos especialistas em linguagem que
passaram a defender a posição segundo a qual a gagueira é um problema de linguagem expresso, e não um
problema motor na produção da fala. A partir de 2008, os distúrbios da fluência passam a fazer parte do comitê de
Linguagem da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, e não mais de Motricidade Oral.
45
gagueira. Não me filio a nenhuma em particular. Minha abordagem de
tratamento é definida pelas necessidades de cada paciente.
Oliveira (2007), fonoaudióloga estudiosa das questões genéticas na etiologia da
gagueira, afirma que “a gagueira é um distúrbio multidimensional e que pode apresentar
etiologia diversa” (p. 115). Com relação à prática clínica, a autora explicita os nortes de
seu trabalho considerando que “o planejamento terapêutico foi elaborado a partir da
teoria, aliada ao olhar clínico, buscando ouvir além das palavras e incentivando a
participação ativa do paciente em terapia” (p.116). Ambos os exemplos nos deixam
claro que, a causa sendo desconhecida, o processo terapêutico irá comportar
procedimentos também muito “desconhecidos”; ficamos sem saber como a primeira
terapeuta descobre qual a necessidade do paciente e a quais delas a terapia pode
corresponder satisfazendo; e, no segundo caso, “ouvir além das palavras” também não
esclarece a que se presta a escuta do terapeuta da linguagem e a partir daí o que faria
com o “além das palavras” no manejo terapêutico.
Esses exemplos permitem vislumbrar que o terapeuta da linguagem faz mais do que
é possível dizer ou literalizar com as ferramentas conceituais de que dispõe. Como
observamos na literatura, esse terapeuta percebe a complexidade das questões do sujeito
envolvidas na manifestação sintomática; no entanto, o instrumental conceitual para
manejá-la não condiz com a teoria de referência. Conduzimos este trabalho objetivando
pensar essa clínica mediante uma teoria da estruturação subjetiva que inclui o sintoma
como decorrente das operações de subjetivação e que, por ter essa natureza subjetiva e
plástica, é passível de mobilidade na relação transferencial.
Como consequência das peculiaridades dessa clínica, o terapeuta da linguagem é
impelido a um ecletismo muitas vezes inoperante do ponto de vista da produção teórica
46
ou de sua filiação a modelos conceituais restritos a um elemento do fenômeno. Muitos
se aventuram na fusão de conceitos provenientes de diferentes campos teóricos, na
tentativa de explicar o que fazem não pelo que ocorre na clínica em si, mas pela
necessidade de espelhar essa prática em alguma teoria já consagrada.
Um exemplo disso é a consideração de Fried apud Kelly (2001), feita no Journal of
Speech and Hearing Disorders
36
, sobre sua proposta terapêutica, na qual este clínico
[...] estabelece relações entre movimentos compulsivos da fala e a
neurose obsessiva. Curiosamente, faz considerações acerca das
vantagens que tal união, psicanálise e behaviorismo, permitiria,
desconsiderando os aspectos fundamentais de uma e outra teoria. (p.
65).
Misturas teóricas aparentemente incompatíveis parecem ser fruto da crença em
poções mágicas, certa bruxaria clínica, para espantar o poder misterioso da gagueira
sobre o clínico e o paciente.
Nessa medida, compreender o que a gagueira causa no terapeuta faz parte das
condições de trabalho. A suportabilidade ao descontínuo gesta continuidade e fluência,
e esse se mostra um elemento fundamental no método do terapeuta da linguagem.
Tal ideia será desenvolvida no final deste capítulo, mas, para que possamos
sustentar argumentos na direção da causa, vamos traçar um perfil das teorias mais
marcantes no estudo da gagueira que influenciam de modo particular a fonoaudiologia
brasileira, pois trazem métodos para abordar esse sintoma.
Pisaneschi (2001), em sua dissertação de mestrado, realiza extensa revisão crítica
da literatura fonoaudiológica americana e brasileira sobre a gagueira, passando pelas
36
FRIED, C. Behavior therapy and psychoanalysis in the treatment of a severe chronic stutterer. Journal of Speech
and Hearing Disorders, n. 37 (3), 1972.
47
ideias centrais dos autores consagrados na área, cujas influências são marcantes na
clínica da linguagem no Brasil. As discussões presentes em seu trabalho “giram em
torno de três pontos principais: 1) de definição, 2) de mensuração, 3) da etiologia-
origem da gagueira” (p. 6). Centraremos nesse último ponto a atenção para as
conclusões dessa autora a respeito da etiologia.
Ao analisar as concepções etiológicas e desdobramentos clínicos dos autores por
ela estudados
37
, conclui que Van Riper (1990 apud ) correlaciona o sintoma que aparece
na fala a agentes etiológicos de natureza cognitiva/mental, emocional ou orgânica.
Apesar dessa direção etiológica apontada pelo autor, Pisaneschi salienta que ela opera
de modo restrito, pois não facilita a distinção entre gagueira branda e disfluência
normal. Sem dúvida, Van Riper foca seu trabalho em desenvolver estratégias para
minimizar os efeitos dos comportamentos associados à gagueira, eles são a manutenção
dos seus efeitos e não a causa desta, “as causas originais não são tão importantes quanto
as causas que a mantêm” (p.65), pois, para esse autor, quando os gagos percebem
melhor a si mesmos, mudam a autoimagem e melhoram da gagueira.
Bloodstein (1995 apud PISANESCHI, 2001) distingue em três modalidades as
hipóteses etiológicas correspondentes às múltiplas concepções da natureza da gagueira.
Pisaneschi associa a essas modalidades as teorias de fonoaudiólogas brasileiras cujas
ideias correspondem às hipóteses descritas por Bloodstein. São elas: 1. teorias do
colapso (aportes organicistas) associadas a pré-disposição hereditária e fatores
ambientais que atualmente vêm ganhando muita força no campo das neurociências,
principalmente defendidas por Andrade (1999 [2006]), fonoaudióloga que se dedica ao
estudo da relação entre a gagueira e as descobertas em neurociências. O foco de suas
37
As referências mais marcantes no seu trabalho são as ideias dos americanos Oliver Bloodstein e Charles Van
Riper, e das fonoaudiólogas brasileiras Isis Meira, Silvia Friedman e Claudia Andrade.
48
pesquisas são a investigação das causas orgânicas desse problema de linguagem e os
programas de detecção precoce da gagueira, mediante cálculos de médias relativas às
frequências de sílabas e de gagueira por minuto de fala e subsequente prevenção de
agravos supostos a essas manifestações; 2. teorias da luta antecipatória (aportes
interacionistas-cognitivistas) são associadas à teoria de Friedman, principalmente
quando as ideias antecipatórias são pensadas como consequência de pressões ou
reprovações impostas por falantes; e 3. teorias das necessidades reprimidas (aportes
emocionais), associadas às teorias psicológicas, em particular à psicanálise.
Embora numa perspectiva teórica diferente, de certa forma, da referência ao
comportamentalismo de Van Riper, Friedman (1986; 1996; 1997; 1999; 2001; 2007),
Andrade (2007) sustenta a hipótese de que o paciente pode melhorar se
intersubjetivamente (na relação com outras pessoas) desconstruir a imagem
estigmatizada de mau falante. Essa fonoaudióloga brasileira que, mais de trinta anos,
se dedica ao estudo da gagueira, desde seu mestrado em 1986, trata esse problema de
linguagem como uma desordem de natureza psicossocial, firmada nessa hipótese
etiológica. Assegura também que:
[...] a gagueira é uma manifestação que não decorre, diretamente, de
uma falha no funcionamento do organismo, mas sim do modo como
organismo e psiquismo funcionam a partir de valores, crenças e
ideologias da sociedade. Os valores crenças e ideologias o
passadas de uma pessoa para outra pelo convívio no cotidiano e
atuam como moldes da subjetividade, isso é, moldam nosso mundo
interior; nosso funcionamento psíquico. A esse tipo de visão entre o
homem e a sociedade dá-se o nome de visão dialético-histórica. (p.
191).
Seguindo ainda as maiores influências teóricas a respeito da gagueira na
fonoaudiologia brasileira, é fundamental articular às perspectivas comportamentalista e
psicossocial a abordagem fenomenológica de Meira (1983; 2002a; 2002b 2007),
atualmente denominada pela autora Método Integrativo Existencial. Esse método está
49
pautado na ideia da existência da “gagueira original”, como um traço genético que
determina a propensão do sujeito a gaguejar; por isso, para se desvencilhar dessa
tendência, o gago passa a tensionar alguns músculos ou subutilizar outros visando evitar
a gagueira, tentativa que intensifica o sintoma pela inclusão de adereços como tiques e
movimentos associados desnecessários à produção da fala e, por isso, causadores de
estereotipias que agravam a gagueira. Apesar de a etiologia estar fortemente voltada
para certa tendência constitucional, a autora confere a influência marcante das ciências
humanas em sua abordagem atual. Salienta, no texto de 2007, que a base de suas
ponderações está na mudança de paradigma que marca sua atuação anteriormente
influenciada pelo behaviorismo, a psicologia científica, segundo o paradigma das
ciências naturais.
No atual trabalho clínico de Meira (1983), o aspecto psicológico é secundário, pois
se manifesta como consequência das mazelas sobrepostas à tendência genética à
gagueira. O processo terapêutico terá por função desmontar os “invólucros de tensão”
produzidos pelo sujeito para evitar a gagueira. Meira (2002b) afirma que o processo
terapêutico é um processo de aprendizagem de uma nova forma de falar sem tensão,
mas a gagueira estará sempre no sujeito que deve manter-se “em estado de zelo [...]
que no processo de terapia o paciente aprendeu a monitorar e a lidar com as dificuldades
motoras de sua fala transformando gagueira em fluência” (p.144).
Outras abordagens, como a de Pisaneschi (2001), Freire e Azevedo (2001), Ferriolli
(2002) e Oliveira (2007), por exemplo, vão se firmar em pressupostos linguísticos para
nortear o trabalho com as pessoas que gaguejam, embora divirjam quanto a referências
adotadas dentro da linguística
38
. A teorização a respeito da clínica tem por foco
38
Pisaneschi filia seu trabalho aos estudos de aquisição de linguagem como propostos por Claudia De Lemos e
seus desdobramentos nos estudos sobre Patologias de Linguagem, realizados no Laboratório de Estudos
50
discernir a concepção de linguagem inerente aos procedimentos clínicos. Não nos
deteremos diretamente nesses trabalhos, pois, embora explicitem reflexões teóricas
interessantes, ainda não têm desdobramentos tão significativos para o método clínico e
nem são comparáveis em influência às abordagens de Friedman e Meira.
Passaremos a mostrar como cada uma das fonoaudiólogas conduzem um caso e o
que poderemos inferir a respeito do manejo da transferência em cada um dos vínculos
terapêuticos. É importante ressaltar que nenhuma das duas terapeutas da linguagem se
pauta pela concepção de sujeito como definida pela psicanálise, portanto, o inconsciente
não faz parte nem da compreensão da gagueira e nem do manejo terapêutico. Apesar
disso, podemos salientar particularidades do trabalho clínico dessas terapeutas
indiciando o manejo da transferência, mesmo que de modo não declarado ou definido.
Começaremos pelo relato do caso de G.A. feito por Meira (2002b). Trata-se de um
adulto, formado em administração de empresas e cuja questão principal era o medo e a
vergonha de se mostrar gago, principalmente no trabalho, local em que expressava
maior ansiedade e preocupação em se comunicar.
A escolha de Meira por publicar o caso G. A. é notoriamente motivada pelo
desfecho de sucesso alcançado por ambos, paciente e terapeuta, no processo terapêutico.
Ressalto que logo no início tal condição está associada à indicação: “G. A. chegou
esperançoso com as referências obtidas por seu médico sobre a terapia que iria iniciar”.
aqui forte indício associado à transferência positiva gerada pela confiança em seu
médico diretamente atribuída à terapeuta antes mesmo de conhecê-la. Apesar disso, G.
Linguísticos da PUC-SP. Freire e Azevedo também compartilham da mesma inspiração teórica de Pisaneschi, mas
incluem contribuições da Análise do Discurso de Linha Francesa, protagonizada por Eni Orlandi. Ferriolli pauta a
discussão dos dados clínicos e o trabalho terapêutico com a gagueira em reflexões travadas na relação com a
Análise do discurso e a Teoria da Enunciação de Bakhtin. Oliveira também se remete à teoria da Enunciação como
definida por Benveniste, pensando a gagueira como derivada da situação de enunciação.
51
A. o livro de Meira, provavelmente buscando outras garantias e asseguramento da
competência terapêutica desta antes de apresentá-la sua gagueira. Como nota Meira, G.
A. chega “cauteloso”, mas disponível, o que desperta na terapeuta o sentimento de
gratificação, motivo pelo qual também se coloca disponível. “Estar disponível” é o
significante que marca inicialmente a identificação com o paciente, ambos se
disponibilizaram.
Notamos no termo disponível o radical “dispor”, significando “armar um lugar
apropriado, arrumar, acomodar, harmonizar”, o qual também se aplica a dispositivo
“que contém regra, prescrição”. O contorno para que o processo terapêutico ocorresse
estava delineado no que podemos chamar de setting interno ao terapeuta, condição de
possibilidade conferida ao trabalho, um contorno, uma disposição. A cena inaugural da
descrição clínica remete-nos a um contexto de prazer compartilhado, cena de um
encontro tanto esperado por ambos. Trois (2008) articula a cena clínica aos
enunciados sob efeito de transferência produzidos nela, diz o autor:
A cena clínica se constrói no que a psicanálise chama de relação de
transferência, na qual cada ‘paciente’ constitui seu terapeuta
enquanto uma figura de alteridade, à qual é endereçado seu discurso.
Assim, uma fala, ao ser enunciada, cria aquele que a escuta ou
aquele que seria suposto saber escutá-la. A dinâmica dessa relação é
tecida na linguagem em que se encerra a clínica na qual é possível
fazer surgir um sujeito. É nessa linguagem que a clínica dita
‘interdisciplinardeve estar entrelaçada para tornar-se uma clínica-de-
linguagem. (p.109).
Supomos ter se construído o terapeuta ideal na perspectiva do paciente. E um
terapeuta ideal que necessariamente está em condições de anterioridade do encontro
com Meira, estava posto em alguém com o domínio objetivo de um saber sobre o
quadro clínico gagueira. A fantasia do paciente talvez fosse não estar tanto em
52
destaque, mas dar destaque à patologia: assim, vem para cena como gago e não como
sujeito esperando o foco, não em si, mas nos desacertos em sua linguagem.
A expectativa de “cura mágica” inclui-se, então, na série de suposições que armam
a transferência, atribuição de autoridade e saber ao terapeuta. Meira responde a essa
transferência devolvendo a G. A. os efeitos de sua fantasia, ou seja, a onipotência a ela
atribuída. Meira não se refere diretamente à suposição de G. A., nem transforma essa
manifestação na transferência num saber sobre o sujeito e seu sintoma, mas se detém na
objetividade do pedido implícito, ou seja, responde que não iria assumir sozinha a
responsabilidade pelo processo terapêutico.
Não podemos saber qual fantasia estaria por trás desse pedido inconsciente, ou
desejo de magia, no entanto, o pensamento mágico caracteriza o modo de pensar das
crianças, sem discriminação entre fantasia e realidade; orientam-se pelo que criam da
realidade que passa a ser revista pelos olhos dos adultos com os quais convive. Num
exercício de análise dessa cena, poderíamos supor que G. A. nutria inconscientemente o
desejo de estar nos braços seguros da mãe toda poderosa da qual sua fala dependeu um
dia. A intensa catexia libidinal que mantém o investimento na terapia provém desses
primórdios, quando os significantes estavam em estado de gene dos sentidos, quando
ainda era o verbo da mãe e não o sintoma do sujeito a marca de singularidade. Na
posição passiva do bebê, a fala de G. A. estaria resguardada de exigências ou da fixação
no lugar de falante falho.
Embora não haja interpretação direta da transferência – o que, lembra-nos Mezan
39
,
também não é prática sempre obrigatória no dispositivo psicanalítico –, Meira enquadra
39
Durante o exame de qualificação, Mezan observa que nem sempre informação a respeito da transferência ao
paciente, mas o fato de ser notada já produz uma resposta indireta a esse lugar onde o analista es sendo
colocado.
53
a cena, fecha-a numa moldura, pois delimita seu papel como terapeuta e em seguida
passa a discernir as responsabilidades de G. A. das suas. Poderíamos pensar que segue
no sentido de desarticular as suposições que G. A. criou para se tratar, quando poderia
articulá-las ao modo como se relaciona consigo mesmo e com o outro, e que tem
relações com seu sintoma. Meira não ocupa o lugar por ele desejado inconscientemente
de toda poderosa, libertadora ou figura messiânica, estereótipos de figuras fálicas, o que
marca certa diferença na posição subjetiva de G. A., que passa a se ocupar com o
processo terapêutico, disponibilizar-se para se tratar e não se entregar para ser cuidado
como um ser precário de parcos recursos. Esse manejo sutil traz consequências muito
importantes para G. A.
Responder à demanda
40
inconsciente seria mantê-lo no lugar de dependente por um
discurso onipotente ou por submetê-lo a técnicas, cujos efeitos se fizessem sem sua
participação ativa; no entanto, o fenômeno da transferência, desde Freud, é nutrido por
uma demanda outra, que não o objeto em si, que parecia ser a “cura mágica”, mas o
amor e o reconhecimento da terapeuta. Nessa perspectiva, o sentido da resposta pouco
importa na condição de transferência; o que de fato está em jogo é “a resposta do outro
como tal, independente da apropriação efetiva do objeto que ele reivindica”
(CHEMAMA, 2002: 40). Cabe ressaltar que o conceito de demanda na psicanálise está
em contraposição ao de necessidade; o que o sujeito demanda é o indicador de seu
desejo e não de sua necessidade. Temos na demanda o sujeito do inconsciente que se
manifesta pela transferência: a demanda derradeira é de amor e reconhecimento.
40
Sobre esse conceito psicanalítico, de uso muito corrente na clínica, cabe marcar aqui os esclarecimentos feitos
por Chemama (2001). Refere o autor que Lacan introduziu a noção de demanda, opondo-a à de necessidade. Por
sua condição diferencial do animal, “o mundo humano impõe ao sujeito demandar, encontrar as palavras que serão
audíveis pelo outro. É no mesmo endereço que se constitui esse Outro, escrito com O maiúsculo, por que essa
demanda que o sujeito lhe dirige constitui seu poder, sua influência sobre o sujeito”. (p.40).
54
O movimento do terapeuta regula, portanto, as formas inconscientes de o paciente
pedir esse amor, pois, se for diretamente oferecido no caso de ser lido o pedido não
como demanda, mas como necessidade o paciente tenderá a se manter na repetição do
sintoma, visto que a posição subjetiva está em sintonia com o sintoma na medida em
que este responde ao desejo inconsciente do paciente e não é, como compreendemos,
efeito de emoções e sentimentos.
Vemos que a interdição à onipotência a ela atribuída coloca G. A. em seguida no
lugar de bom filho, rapaz obediente à mãe; essa parece se revelar uma posição
transferencial muito confortável. Meira descreve que G. A. “aceitava bem suas tarefas,
mostrando-se disposto e interessado, empenhava-se por realizar os exercícios de forma
consciente. Percebia os benefícios e colocou o trabalho corporal na rotina de sua vida.”
(p.166).
O trabalho corporal descrito pela autora consistia em inibir a ação muscular espúria
de alguns músculos que estavam influindo negativamente na produção da fala, e
influenciar a ação de músculos necessários à produção da fala. Embora a autora não
descreva diretamente a técnica corporal utilizada, o olhar para o corpo do paciente, o
toque e a aproximação sensorial são características marcantes do trabalho
fonoaudiológico em diferentes problemas de linguagem, mas de modo muito frequente
na gagueira.
No trabalho de Meira, essa particularidade da técnica é justificada pelo princípio do
desequilíbrio fisiopsíquico. Esse desequilíbrio, que interfere no “tônus da musculatura
que constitui a gagueira, é a base da fala fluente.” (p. 165). certa fusão entre causa e
consequência da gagueira em todo o trabalho da autora, uma vez que, se está no
desequilíbrio do tônus a causa, que pode até ser suprimida pelo trabalho corporal, por
55
que o gago sempre será gago? Ser gago é ser ele mesmo? A gagueira é essência do
sujeito ou sintoma? Para Meira, a gagueira é inerente ao sujeito, por isso vemos certa
contradição em seu texto quando afirma que a gagueira se constitui pela tensão alterada
e pela ação muscular. Nosso questionamento pode ser respaldado também pela
referência conceitual da “causalidade circular”
41
de Morin (1997 apud Meira 2002b),
usada pela autora para discutir a causa da gagueira.
Outro aspecto do trabalho de Meira é a importância atribuída à consciência,
evidenciada em toda a descrição do caso, tanto nas palavras da terapeuta, como nas do
paciente. Tomar consciência, no contexto terapêutico, é conceber outra perspectiva dos
fatos, ver por outro ângulo, absorver o que o terapeuta mostra no corpo do paciente ou
diz sobre seus comportamentos. O objetivo terapêutico é o equilíbrio psicofísico. O
prefixo “psico” refere-se ao sujeito psicológico, sujeito cognoscente, com níveis de
consciência que podem mudar segundo um processo de aprendizagem. No entanto,
apesar de frisar que os pacientes “adotam o novo paradigma trabalhado, o que lhes
permite ter um outro olhar sobre si mesmos e sobre os outros, adquirindo compreensão
e clareza sobre seus problemas” (p.155), o que gerará continuidade do trabalho em seu
cotidiano mesmo após o término do processo terapêutico, a fonoaudióloga afirma que a
função do terapeuta não é a de ensinar o paciente .
Os termos “sentimento”, “psiquismo” e “emoção” são usados como sinônimos, o
que também indica certo esforço para apagar a especificidade do conceito de “psíquico”
que, segundo a psicanálise, inclui todas as questões inerentes ao inconsciente, não
apenas como “adjetivo usado para exprimir o conjunto de conteúdos não presentes no
41
Esse conceito pressupõe que o efeito pode voltar a ser causa, pois o produto pode ser transformado em produtor
e o efeito pode ser ao mesmo tempo a causa. Para Meira, essa ideia reflete uma mudança de paradigma em
relação às ciências naturais, uma vez que ,marca a distinção entre pensamento linear objetivo e pensamento
complexo (p. 164). Não nos deteremos na teoria de Morin, mas gostaríamos de salientar que a possibilidade de
pensar a relação entre causas e efeitos numa rede complexa de determinações é bastante desenvolvida na
psicanálise e nos voltaremos para ela no próximo capítulo.
56
campo efetivo da consciência” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1995), mas no sentido
tópico, como sistema constituído por conteúdos recalcados. O trabalho reduzido às
emoções, enquanto manifestação de um comportamento, fica abrigado da avalanche de
efeitos e questões que este poderia impor ao método, como problematizar a
transferência, por exemplo.
Outro fator que merece destaque é aquele atribuído às emoções e fantasias do
paciente que são recorrentemente trabalhadas não apenas no que se refere diretamente à
produção da fala, mas também com referência aos efeitos que a terapeuta e o paciente
qualificam como extensivos a muitas outras situações da vida.
Diante de todas as mudanças na vida de G. A. e da superação do sintoma, assim
como descrito por Meira, supomos que a análise do processo terapêutico foi
simplificada para caber nos pressupostos previamente adotados. Situações como a
análise de concepções do paciente foram previamente significadas por ambos como
fantasias; por exemplo, quando este associava o efeito da gagueira no outro a alguma
punição, provavelmente expressava conflitos psíquicos inerentes à formação do
sintoma. Mesmo sem essa compreensão, pelo exposto em seu texto, Meira teve recursos
para auxiliar o paciente a diminuir o medo da punição. Mas qual é a gênese desse
medo? Como ela fez esse trabalho?
Uma revolução tão significativa na mente de alguém não pode ser gerada e mantida
apenas por sugestão. Seguindo a lógica de funcionamento do inconsciente, podemos
inferir que o processo terapêutico atualizou conteúdos punitivos vividos numa relação
de autoridade. Essa relação pode ser com o pai, com a mãe ou com alguma figura
constitutiva desse rapaz na infância, e que fora transferida para Meira. A terapeuta usa a
autoridade de modo exemplar na transferência; a autorização a ela conferida é devolvida
57
ao paciente em forma de sustentação da autoridade nele, assim foi autorizado a falar.
Ela não usa a autoridade para punir, mesmo quando ele relata ter o desejo de desistir da
terapia (“por estado de angústia interior”), talvez reproduzindo o lugar subjetivo de
incompetente e, por isso, merecedor de dependência e punição. Ela não desiste e espera
pacientemente que volte a ter palavra, volte ao compromisso assumido, não o
desqualifica e também não se antecipa a ele, o que permite o tempo necessário à
produção de um dizer no seu ritmo. Deduzimos que esse também é um método de viver
em sessão a menor influência do medo.
Num dos relatos de G. A. selecionados por Meira, é mencionada a força da
resistência que operava em consonância com a transferência; a autora não infere os
motivos desse efeito tão contraditório à vontade consciente de G. A.. O paciente chama
de “efeito tartaruga” suas fugas do tratamento. Supomos que o conflito, que
transformou o sintoma numa satisfação substitutiva da libido, é acionado durante a
terapia, pois lhe foi oferecida condição de fragilizar as amarras do sintoma. Assim, a
resistência se levanta como a força que pode manter o recalque.
Afinados pela precisão da pena de Freud
42
(1917), podemos dizer que o amor de
transferência construiu condições para que G. A. aceitasse o método proposto por
Meira. Diz o autor do conceito:
Na ausência de tal transferência ou se a transferência fosse negativa,
o paciente jamais daria sequer ouvidos ao médico e aos seus
argumentos. Aqui sua crença está repetindo a história de seu próprio
desenvolvimento; é um derivado do amor, por princípio, não precisa
de argumentos. Apenas mais tarde ele lhes permite espaço para
submetê-los a exame, desde que os argumentos sejam apresentados
por quem ele ama. Sem esses apoios, os argumentos perdem sua
validade; e na vida da maioria das pessoas esses argumentos jamais
funcionam. Portanto, em geral um homem é acessível, também a
partir do aspecto intelectual, desde que seja capaz de uma catexia
libidinal de objeto; e temos boas razões para reconhecer e temer no
42
Freud, S. (1916/1917)
58
montante de seu narcisismo uma barreira contra a possibilidade de
ser influenciado até mesmo pela melhor técnica analítica. (p. 519).
Dizemos que processo similar é verificável até mesmo quando se aplica a melhor
técnica na terapêutica da linguagem. Não estamos na condição de isolar o sintoma como
um cisto que pode ser retirado cirurgicamente, pois o campo asséptico não faz parte do
nosso setting. Segundo a citação de Morin (1997: 12, apud cit. Meira, 2002b: 164)
usada pela autora, “as soluções simplificadas dadas aos problemas constituem, em si
mesmas, os problemas mais urgentes e mais graves a resolver”, por isso também
afirmamos que a transferência se desdobra num campo de consequências imprevisíveis;
não se trata de conhecer apenas sua repercussão na clínica da linguagem, mas de
suportar que, em decorrência de sua opacidade, é um fenômeno problemático em
qualquer clínica.
Complexas operações psíquicas simultaneamente geradas pelos efeitos do
tratamento ficam fora da teorização, por isso nos ocorre em parte que houve ali muito
mais do que foi possível refletir. O paciente explicita que antes do tratamento tinha
ideias erradas sobre si e sobre a gagueira:
[...] com o conhecimento da realidade mais acentuado, a fantasia e a
ansiedade foram diminuindo progressivamente; assim também o
medo [...], nesse meio tempo de conquistas internas ocorreram
muitas operações tartarugas, isto é, uma parada, talvez acomodação,
para depois haver uma conscientização maior de todas as
descobertas que eu fizera. (p. 171).
Respaldada pela transferência, a terapeuta foi capaz de produzir nova percepção no
paciente. Seu olhar reposicionou o corpo e a linguagem, nova experiência sensorial e
motora uniram o que a terapeuta chamou “o gago e a gagueira”, pelo recurso técnico de
sensibilização para os movimentos musculares alterados, produtores de tônus baixo ou
alto em determinados músculos associados à produção da fala e, consequentemente, à
59
gagueira. As técnicas corporais nesse caso pareceram mostrar-lhe um corpo mais
potente e viril, uma armadura flexibilizada pela técnica, e um de seus aportes para
desmontar e enfrentar o medo foi esse corpo resignificado por palavras e experiências
motoras e sensoriais novas. O processo terapêutico tão devidamente focado no sintoma,
como reivindica Meira, vai contrariar a pertinência salientada pela terapeuta, que
desperta as palavras no paciente; para além do sintoma, ele insiste em falar de si:
“sentia-se a vontade e abria seu coração”, como salienta a terapeuta (p.170), mostrando
seus medos e angústias. Mas a que dramas estavam associados esses medos? Era medo
do sintoma ou angústia produtora do sintoma?
43
A primeira alternativa é sempre
escolhida por G. A., que tinha medo de ser visto como gago, medo do que supunha no
outro, em algumas situações – a gagueira era para ele o medo de gaguejar, e o medo, seu
foco de interesse. Embora sua gagueira passasse pelo corpo, não havia nascido nele,
pathos estava no medo das palavras que encontraram experiência de reformulação:
[...] percebi que a gagueira mais acentuada aparecia quando eu
me encontrava no estado de medo, frustração, fuga, ansiedade e
vergonha; isto é, quando internamente eu estava abalado e
desequilibrado ela se intensificava e ficava mais difícil mudar meus
hábitos musculares que formavam a gagueira. Eu soube, então, que
a gagueira era um hábito que sempre ocorria para mim em
determinadas situações. (p.169).
Essa concepção de G. A. está muito mais próxima dos princípios seguidos por
Friedman (2001). Nesse quadro final a respeito de seu estado, o paciente de Meira
transformou a gagueira num hábito e não numa doença ou compulsão biologicamente
determinada. Parece que finalmente se percebe pronto para gaguejar sem medo de ser
gago. Aqui localizamos a cura. Apesar de diametralmente opostas no que se refere à
etiologia, as abordagens de Friedman e Meira privilegiam o trabalho com a consciência
43
Discutiremos mais detidamente essa diferença ao abordarmos a formação do sintoma como efeito do complexo
de castração no próximo capítulo.
60
dos pacientes, ou dos pais, a respeito da gagueira, e seguem métodos bastante
semelhantes, como a abordagem corporal a ampliação da percepção do paciente para o
corpo e para atipias durante a produção motora da fala. No entanto, o que Meira chama
de “gagueira original”, gerada por um fator constitucional, provavelmente genético a
gagueira que permanece no sujeito, mesmo depois que deixa de gaguejar Friedman
(2001) denomina “gagueira sofrimento”, em oposição a “gagueira natural”, que é a que
todos temos em algumas situações de fala, “na medida em que a fluência não é absoluta
em ninguém” (p. 135). A gagueira-sofrimento é o que ocorre numa situação muito
peculiar de fala, movida por “articulação singular, subjetiva, no complexo jogo
bioantropossociocultural” (p.135) vivenciado por quem fala.
No mesmo texto, após fazer crítica veemente à simplificação da gagueira presente
nos trabalhos de vocação biologizante, Friedman sintetiza as concepções inerentes ao
trabalho com gagueira que realiza. Inicialmente, salienta que falar sem gagueira é um
mito, no entanto, no processo de socialização primária, muitas crianças ficam
estigmatizadas no lugar de gagos quando as hesitações e repetições, comuns ao processo
de produção da fala, são vistas de modo pejorativo, o que leva a interpretações
indesejáveis do adulto. A recorrência da interpretação que desqualifica a forma da fala
também denigre seu conteúdo, que deixa de ser devidamente escutado. Submetida a essa
condição de escuta, a criança passaria pelo doloroso processo de estigmatização, que
traz como consequência a construção da imagem de mau falante.
A fixação dessa imagem aciona tensões musculares e alterações no modo de
produção da fala como consequência dos mecanismos de antecipação, pois o gago passa
a acreditar que pode preparar o ato motor espontâneo e, assim, passa a pensar para falar.
No processo terapêutico, o gago deve ser auxiliado a se livrar da armadilha paradoxal
que é a crença de que pode preparar o espontâneo, superando, assim, esse engodo que o
61
aprisiona na “gagueira sofrimento”. Uma vez mudada sua imagem de falante, ser-lhe-á
restituído o direito que todos temos: o de simplesmente gaguejar de vez em quando,
tendo a “gagueira natural”.
No caso de Friedman (2001), um processo terapêutico firmado nesses princípios,
temos Amadeu, um menino de sete anos, gago desde os três. Associado ao quadro de
gagueira havia também o diagnóstico neurológico de hiperatividade. Esteve em terapia
por cinco anos; terapia cuja regularidade variou consideravelmente dependendo do
interesse da criança e da disponibilidade da família, uma vez que não residiam em São
Paulo. A descrição do trabalho é encerrada por Friedman com uma carta da mãe do
paciente, cuja conclusão é a de que seu filho havia superado completamente o sintoma,
“graças à retaguarda familiar que deu-lhe seguranças em todos os sentidos” (p. 142).
No relato da conversa inicial com os pais, a autora conta que a mãe do menino
inicia o discurso sobre a gagueira e sobre Amadeu e posiciona-se como a portadora da
palavra e do saber sobre ele. O pai, na descrição de Friedman, apenas acenava com a
cabeça ou complementava com exemplos o que a mãe explicava com pertinência. Nesse
encontro, o pai comenta que era gago desde criança e também gostaria de submeter-se
ao tratamento. Ao longo do relato, fica clara a distinção entre a perspectiva paterna e
materna a respeito da gagueira de Amadeu. O pai que se esforça, literalmente com
tensão corporal, para sustentar os progressos que, em sua visão, o filho havia feito na
terapia anterior, e assim mostrar que ele não era tão gago como a mãe dizia, enquanto a
mãe, muito incomodada com a fala do filho, trazia fortes argumentos que justificavam a
piora de Amadeu após a alta, que havia acarretado novo sintoma, pois ele estava até
“batendo a cabeça para falar” (p. 138).
62
Seguindo o trabalho terapêutico, Friedman propõe inicialmente que a família releve
as diferentes possibilidades de falar de Amadeu, pois, se teve alta, foi porque, com a
fonoaudióloga, não gaguejava mais. Explica aos pais que a produção da fala está
diretamente associada à ampla complexidade biopsicocultural “em função da relação
entre a subjetividade de Amadeu e a objetividade que o estava cercando num dado
momento, ele ora gaguejava, ora não” (p.139). Após mostrar os pontos principais da
teoria aplicados ao caso, diz que “o modo como os pais escutavam e olhavam para
Amadeu tinha grande influência na forma como ele passaria a se olhar e escutar”
(p.140). Nessa perspectiva, os pais são orientados a terem olhos menos exigentes para o
filho e uma escuta que priorize o que ele tem para dizer e não o modo como a fala sai. O
trabalho seguiu em sessões quinzenais com Amadeu e seus pais. Vivências corporais
que focassem respiração e articulação eram intercaladas com conversas sobre a forma
de escutar a fala e a gagueira.
Trouxemos esse relato para discussão porque a marca central do caso eram
novamente as questões emocionais envolvidas na gagueira. A relevância desse aspecto
ficava patente nas situações em que a gagueira aparecia, geralmente nos períodos de
volta às aulas. Friedman, além de se ocupar da materialidade do sintoma, no sentido de
desmitificar as determinantes deste focadas no corpo, realizou sessões colocando o
corpo dos pais em cena quando observavam os modos de produção da fala, articulação e
respiração de cada um. Também informa no texto que toma o pai de Amadeu em terapia
e passa assim a tratar das questões desse pai com a fala, o que certamente gerou
consequências importantes na conflitiva da mãe, antes focada na dificuldade do filho.
Supomos que o pai toma para si parte do sintoma que lhe cabe e o resto de conflitos
seus em torno da impotência com as palavras. Esse seu resto também se expressa no
olhar da mãe para as hesitações de Amadeu, permeado por fantasias inconscientes a
63
respeito da herança paterna de seu filho. Desse modo, supomos que poderia expressar o
pavor de perder no filho a potência desejada no marido. Tais análises, mesmo que
externas aos efeitos da transferência, o crivo fundamental para compreensão do caso,
fazem-se pela descrição da autora, cujos detalhes no manejo dos pais permitem-nos
considerar que o sintoma pode ganhar flexibilidade, uma vez que sua âncora fora
retirada de Amadeu e passara a circular como efeito de um modo equivocado de os pais
olharem para o filho.
A transferência dos pais com Friedman permite que por ela o não saber sobre o
filho fosse enunciado e acatado: a mãe, em particular, suporta sair da onipotência
discursiva; o pai passa a ser escutado por uma mulher especialista em gagueira que o
autoriza a confiar nas suas fluências. Talvez por isso não seja tão fundamental defender
seu filho da gagueira que a mãe escuta nele, mas simplesmente confiar nos recursos de
Amadeu.
Embora seja complicada a trama transferencial montada quando a mesma terapeuta
recebe o pai como pai e paciente, o casal e também a criança, com o desfecho do caso a
terapeuta prova ter mantido condutas na direção da cura de Amadeu; não sabemos os
desdobramentos do atendimento do pai. Ficamos assim com muitas questões sobre a
dinâmica relacional desse casal e suas influências na conflitiva edípica de Amadeu, cujo
corpo, em excesso de excitação, não podia parar.
Sobre o diagnóstico neurológico de síndrome hipercinética ou hiperatividade, faz-se
necessário trazer as contribuições de Bergès (2008), pois o autor pode demonstrar,
mediante estudo da construção desse diagnóstico, que é fruto de equívocos no modo de
classificar e produzir quadros clínicos, uma vez que não dado neurológico objetivo
de lesão. Esse “dado” impertinente não impede os especialistas de julgarem tal lesão
64
existente e de sustentarem tal suposição com o nome de “lesões ou disfunções cerebrais
mínimas”. Embora esse seja o resultado lógico de um pensamento determinado, ele
escancara a dificuldade de os adultos (pais, médicos e professores) suportarem a falta de
sentido dessas ações excessivas da criança. Ao darem um sentido, continuam reiterando
o sintoma, pois destroem o que para Bergès está na causa da hipercinesia, ou seja, a
impossibilidade de essas crianças falarem, já que não são escutadas, e “se não são
escutadas é a motricidade que vem tomar o lugar das palavras, que vem substituir as
palavras que nunca foram escutadas: é isto que se chama passagem ao ato” (p. 115).
Fiz questão de expor o texto de Bergès porque elucida os efeitos curativos da
escuta no corpo; no corpo que monta linguagem em ato quando a palavra não escutada
se mostra em cena; e cenas das quais somos íntimos na clínica da gagueira, em que os
bloqueios, hesitações e prolongamentos eliminam da palavra seu sentido para inflá-la
com atos de apelo.
Friedman escuta sem os pudores inerentes às regras do setting psicanalítico
tradicional – escuta quem estava implicado no sintoma de Amadeu. Atribuímos à
sabedoria clínica seu posicionamento terapêutico. Mas será que terapeutas menos
experientes poderiam, sem aporte teórico adequado, transitar com relativo conforto
nesses casos? Não é sem razão que a gagueira é a patologia mais temida pelos
terapeutas da linguagem.
44
Cabe ressaltar que nos trabalhos inspirados nos estudos da linguagem encontramos
a suposição de que a gagueira é um sintoma que afeta a linguagem, manifestando,
assim, uma posição singular do sujeito em relação à língua, que expressa a
44
Embora não haja pesquisa que demonstre minha afirmação, é discurso corrente nos bastidores das clínicas-
escola que os casos mais temidos pelos alunos e também por terapeutas da linguagem são os de gagueira. Uso
aqui minha experiência de quinze anos como supervisora em três clínicas-escola e no consultório particular, como
argumento.
65
descontinuidade entre organismo e sujeito, que pode ser superada mediante
interpretação. Desse modo, técnicas de manuseio corporal não teriam efeito sobre um
problema de natureza simbólica
45
. Apesar de concordar que se trata de um sintoma de
natureza simbólica, não me parece nada simples afirmar que no trabalho corporal o
simbólico esteja elidido. Podemos considerar que o corpo em cena também não é o
organismo. Mesmo que o corpo seja assepticamente manuseado pelo terapeuta, os
efeitos simbólicos dessa técnica merecem ser problematizados, pois não estamos
reduzindo aqui linguagem aos efeitos exclusivos das palavras, mas a formas de
produção de sentidos; por isso, o corpo falado e tocado tem efeitos sobre o
funcionamento do sujeito na língua. Cabe pensar se essas técnicas são de fato úteis ou
não, se elas produzem efeitos previamente desejados ou outros como dependência,
excesso sensorial e excitação, submetimento e fixação no outro como fonte do saber
sobre si, e prazer, num registro de relação muito primário.
Novamente a objetividade da indicação do manuseio corporal, justificada pelo
excesso de tensões e estereotipias associadas à gagueira, pode ser usada como
resistência à percepção dos efeitos subjetivos desses procedimentos.
46
Da mesma forma,
uma postura dogmática diante desse recurso técnico, entendido como avesso ao
simbólico, pode ser igualmente limitante para clínica da gagueira.
45
Refiro-me à crítica feita por Pisaneschi (2001: 86).
46
Cabe a comparação do trabalho corporal na clínica da gagueira com os trabalhos corporais de relaxamento
indicados para as crianças com diagnóstico de síndrome hipercinética como nos aponta Bergès (2008). Ele faz uma
diferenciação entre o que se busca com esse trabalho e o que de fato eles podem trazer de benefícios para o
sujeito. No caso do relaxamento para os ditos hipercinéticos, diz o autor que o relaxamento não vai permitir que a
criança retome seu controle, pois não é da falta de controle que seu corpo sofre, mas da falta de sentir seu corpo de
outra forma do que na ação, “permite dar à prova os limites do corpo de outra forma do que se machucando nos
objetos, nas proibições dos adultos. [...] os limites de seu corpo não m nada a ver com seu corpo, pois m dos
adultos, por isso na relaxação faz a experiência que seu corpo tem limite. Cada parte do seu corpo é limitada por
outra parte de seu corpo. Seu corpo é limitado pelo toque do terapeuta, pela mobilização do terapeuta e pelas
palavras que o terapeuta põe sobre o corpo, por que “não, não, não”, isto não são palavras” (p. 119). De modo
semelhante em muitos casos de gagueira o trabalho corporal é indicado, mas essa indicação deve seguir a leitura
do que está em jogo quando manipulamos o corpo e não pode ser regra para todo caso, embora seja necessário e
útil em alguns.
66
Vimos nos casos de Amadeu e G. A. que as tramas etiológicas subjacentes à
gagueira são tão complexas quanto as tramas transferenciais. Ambas as terapeutas se
movem no trabalho clínico mediante um pensamento que sofre os efeitos do que os
pacientes produziram nelas, mas não se esgotam na resposta direta a eles. É nessa
particular afetação
47
que a gagueira se enfraquece, desaparece em sua causa ou deixa de
provocar o que causava antes do tratamento ou mesmo antes de ser devidamente
encarada pelo gago, como é possível verificar no trabalho de Gomes (2007).
48
Portanto, neste capítulo, localizamos a gagueira como pathos na linguagem, se em
pathos estamos no registro da paixão e da passividade e não da patologia, como
concebida pela medicina, estamos no campo da dor do sujeito que está explicitada e
delimitada por um sintoma posto na linguagem. Vimos também que a causa, mesmo
“desconhecida”, é passível de desconstrução quando os tratamentos se dão em
transferência. Cabe então continuarmos refletindo sobre as hipóteses psicanalíticas a
respeito da genealogia desse sintoma, para em seguida abordarmos mais diretamente
suas manifestações na transferência, o que será discutido nos capítulos subsequentes.
47
Estão implícitos aqui os fatores contratransferenciais vividos pelos terapeutas. O termo contratransferência é
usado por Freud (1910) pela primeira vez ao debater as perspectivas futuras da psicanálise. Considera-se que a
contratransferência surge como resultado da influência do paciente sobre os sentimentos inconscientes do
psicanalista. Segue mostrando que os limites do tratamento são também determinados pelos limites do analista -
“nenhum psicanalista vai além do que lhe permitem os seus próprios complexos e as suas resistências internas”.
Em parte, a pergunta a respeito do que a gagueira causa no outro que repele o gago e não causa no terapeuta que
pode escutá-lo pode começar a ser problematizada pelo estudo da contratransferência. Deixamos essa tarefa a
futuros pesquisadores.
48
Essa autora fez sua pesquisa com gagos considerados muito leves e que nunca fizeram tratamento de nenhuma
natureza, no entanto, ficam menos à mercê da patologia ao longo da vida, contrariando assim todas as estimativas
de que a gagueira piora se não houver tratamento.
67
CAPÍTULO II
Gagueira e Édipo: a linguagem do afeto na fala
“Mostraremos que não fala sem
resposta, mesmo que depare
apenas com o silêncio, desde que
ela tenha um ouvinte, e que é este
o cerne de sua função na
transferência.”
49
(LACAN, 1953)
“A surpresa marca a experiência
do inconsciente: a de ser afetado,
revirado por uma palavra que nos
ultrapassa”
50
(NASIO,1987)
Minha aproximação com os modos de expressão da gagueira começou num
Hospital Público, no estágio extracurricular feito durante o terceiro ano da graduação,
em 1988. Decorridos vinte anos, lembro nitidamente uma cena desse tempo, cujo
personagem era um menininho robusto, bermuda de tergal com pregas, cinto de homem
e camisa fechada até o colarinho, com um jeito sem graça, sem certa graça de criança.
Do rosto, preso a um corpinho arredondado, tão aprumado, saía um olhar disfarçando
curiosidade mesmo sem poder se mexer, seus olhos cercavam a sala toda. Não foi
necessário examinar muito para perceber a tensão que armava aquele soldadinho de
chumbo que, com cinco anos, mal conseguia terminar uma palavra, tamanha a força dos
bloqueios. Numa expressão insuportavelmente inerte, tentava se encolher, esconder-se
de si mesmo, mas os olhos saltavam enquanto a fala saia sôfrega. Somada à cena, uma
senhora idosa, a mãe adotiva, enxugava o suor que o esforço para falar causava ao
49
LACAN, J. (1998[1953].
50
NASIO, J.D (1987), p. 21.
68
menino, enquanto repetia a cada falência articulatória do filho: “Se acalme e fale
bonitinho”. Qualquer espectador seria remetido facilmente à indignação diante do
paradoxo implícito em seu pedido: “ser de um jeito impossível para continuar mantendo
o contorno de reconhecimento possível”. Lembro muito pouco do destino desse caso. É
provável que não tenha seguido no tratamento, mas a dor da criança, sua insuportável
clausura e exílio da infância no sufocamento estéril da fala, são claros agora. Mesmo
num tempo longe de poder ajudá-lo, seu pedido de socorro ainda ressoa em mim,
trazendo à memória dados que discutiremos adiante, mas que na época, embora
comentados, não nos autorizávamos a dar a eles o tratamento devido.
Por esse e tantos outros casos nos quais um problema de linguagem, as marcas e
questões do sujeito estão atreladas aos efeitos dessa sua expressividade no outro, antes
da patologia e para além dela. No caso da gagueira, a expressão de embotamento move
o outro mais pelo olhar em direção ao gago do que pela escuta às suas palavras.
Aquele que gagueja vê-se refletido no espanto, na ansiedade e na iminente
desistência do outro, indicada no olhar que não segura a espera do enunciado
recalcitrante. Assim, de modo recorrente, há falência mútua do literal na vigência
subliminar do mal-estar gerado pelo ritmo anacrônico.
A pluralidade dos efeitos carrega certamente distintas projeções e afetos que esse
sintoma pode aliciar. Sem dúvida, os episódios de gagueira passam a ser o foco da
referência identitária ou o espelho mais disponível aos que gaguejam pelo simples fato
de lhes dar uma visão mais direta do seu potencial para causar desconcerto e aversão.
As palavras dirigidas pelo outro em direção ao dizer gago tendem a fixar o sujeito no
sintoma. Mesmo quando a vontade de auxiliar é legítima, os atravessamentos
expressivos anunciam silenciosamente que esse dizer incomoda ou diz mais do que
69
deveria. Na cena descrita, a interpretação da mãe adotiva pode ser vista como a
produção do efeito da gagueira nela: “Sinto que você é feio e nervoso” ou a
sobreposição da gagueira às suas frustrações em relação ao filho idealizado; “você não é
meu espelho narcísico”, ou ainda “pare de insistir em ter lugar”. Gagueira e sujeito que
gagueja estão, portanto, fadados à fusão. Eis o emaranhado no qual deve fluir a
terapêutica.
2.1 O sintoma como manifestação neurótica e a gagueira
A relação entre sintoma e transferência foi devidamente mostrada por Freud desde
Estudos sobre a histeria (1895), quando Anna O. rapidamente transfere para ele o
sintoma desenvolvido na relação com Breuer. O sintoma permite compreender a
transferência; portanto, a transferência também é feita de sintoma. Seria possível tomar
essa operação para pensar a gagueira?
51
Na Conferência XVII, O sentido dos sintomas
52
, Freud (1916/1917: 305), seguindo
o tom da conferência anterior, na qual diferenciava a psiquiatria da psicanálise como
campos marcados pelo modo distinto de apreender o sintoma, escreve:
A psiquiatria atenta pouco para a forma extrema do conteúdo dos
sintomas individualmente considerados; a psicanálise, entretanto,
valoriza precisamente este ponto e estabeleceu, em primeiro lugar,
que os sintomas têm um sentido e se relacionam com as experiências
do paciente.
51
A resposta para essa questão mobiliza os desdobramentos do Capítulo IV deste trabalho. O passo para
respondê-la teque aguardar outros anteriores para que possa ser dado. Apesar disso, é necessário delimitar de
início que a transferência é uma solicitação de reconhecimento remetida a alguém com quem imaginariamente o
sujeito se identifica e a quem atribui um saber, como vimos nos casos das colegas terapeutas da linguagem
discutidos anteriormente, foram escolhidas pelo saber a respeito do sintoma e, nessa medida, uma circulação de
saber na transferência neurótica que inclui o sintoma necessariamente. No entanto, a transferência é mais
importante que o sintoma para que o sujeito permaneça em tratamento, porque, sem dúvida, são as respostas
dadas ao sujeito que permitirão avançar no tratamento do sintoma. Daí decorre também a proposta inerente a este
trabalho que preconiza que o terapeuta da linguagem pode usar o fenômeno da transferência como ferramenta
conceitual adequada, pois bem poucos contam com a intuição autorizada por tantos anos de clínica e pesquisa
como as terapeutas de G. A. e Amadeu.
52
FREUD, S. (1916-1917).
70
Nos dois casos de neurose obsessiva com os quais exemplifica a interpretação do
sentido dos sintomas deixa nítida a conexão destes com a vida do paciente. Os sentidos
nutrem o comportamento que nele se apoia articulado às duas faces do desejo, como
realização e defesa simultaneamente: “as regras estabelecidas pelo ritual reproduziam os
desejos sexuais da paciente, num ponto positivamente, e noutro, negativamente em
parte representavam esses desejos e em parte serviam de defesa contra os mesmos” (op.
cit., p.318). Por isso, na Conferência XXIII, afirma que o principal dano causado pelos
sintomas reside no dispêndio mental que acarretam e no dispêndio adicional que se
torna necessário para se lutar contra eles, o que pode gerar extraordinário
empobrecimento da vida do sujeito e até paralisação de tarefas muito importantes.
O sintoma neurótico é atribuído por Freud (1916-1917) à regressão da libido
contrariada pela insatisfação; insatisfação que a leva a retroagir para experiências de
prazer a que havia renunciado, geralmente localizadas na infância. Parte-se do
princípio de que pontos de fixação que exercem atração sobre essa ideia que
retroage. Assim, o sintoma é fruto da retirada da libido do ego e da rejeição à influência
de suas leis de funcionamento, transferindo suas catexias para ideias regidas pelas leis
do inconsciente – condensação e deslocamento. Assim como os sonhos, o sintoma
representa algo como já tendo sido feito: uma satisfação à maneira infantil. Isso é
possível, pois experiências traumáticas puramente causais na infância são capazes de
deixar atrás de si fixações da libido. O resultado, considera Freud (1916-1917), é que “o
sintoma emerge como um derivado múltiplas vezes distorcido da realização de desejo
libidinal inconsciente, uma peça de ambiguidade, engenhosamente escolhida, com dois
significados em completa contradição mútua”
53
.
53
FREUD, S. (1916-1917).
71
O conceito de sobredeterminação, como definido por Laplanche e Pontalis (1995),
pode ser pensado em dupla acepção: a primeira indicando uma formação do
inconsciente atribuída a múltiplas causas e a segunda, e mais utilizada, remetendo para
elementos inconscientes múltiplos e que podem organizar-se em sequências
significativas diferentes, cada uma das quais com uma coerência própria. Seguindo na
segunda acepção, o sintoma é resultante de uma pré-disposição constitucional, assim
como Freud supunha na histeria, mas também de uma pluralidade de acontecimentos
traumáticos. Nessa primeira definição, o método catártico nada podia fazer em relação à
constituição histérica, mas poderia, graças à rememoração e à ab-reação, fazer
desaparecer o sintoma. No entanto, a acepção mais abrangente e presente em sua obra é
a de que o sintoma é resultante de cadeias de associações ligadas a um núcleo
patogênico e que constituem “um sistema de linhas ramificadas e, sobretudo,
convergentes”. [...] A sobredeterminação é, portanto, uma característica positiva, e não a
simples ausência de uma significação única e exaustiva. Os mesmos autores lembram
que Lacan insistiu no fato de que a sobredeterminação é uma característica geral das
formações do inconsciente [...], pois o sintoma, num sentido amplo, “é estruturado
como linguagem”. Essa comparação do sintoma com o conceito de inconsciente na
psicanálise lacaniana explicita a íntima relação entre o mecanismo psíquico de formação
do sintoma e o funcionamento inconsciente, constituído, por natureza, de deslizes e de
sobredeterminações de sentidos.
O estabelecimento de uma condição de cura mediante a palavra, produzido por
Freud originariamente, aparece em Lacan como elemento central na configuração de
suas teses a respeito do inconsciente, armadas com fios da linguística saussuriana. A
noção de significante “considera desde o início a dimensão de ato existente na
linguagem”. O significante provoca efeitos não apenas de sentido, mas de ato, pois pode
72
comandar, pacificar, adormecer e assim por diante. Como o significante é autônomo em
relação à significação, ele tem a função de representar o sujeito e também de determiná-
lo “de maneira indireta e inaudível, como um significante de um significado inacessível
para o sujeito” (p.198). Por isso a questão do significante é tão fundamental para
compreendermos o sintoma. O significante remete à repetição, ao que retorna de modo
regular em sequências fonéticas, muito constrangedoras para o sujeito. Afirma Dor
(2003) que o sintoma
[...] construiu-se uma autêntica metáfora, ou seja, como uma
substituição significante de um significante antigo recalcado por um
significante novo. O significante novo (o sintoma) mantém uma
relação de similaridade com o significante recalcado que ele suplanta.
(p. 64).
O autor chama a atenção para o fato de a definição de sintoma também funcionar na
obra de Lacan como uma justificativa suplementar à tese do inconsciente estruturado
como linguagem, cuja prova decisiva será o mecanismo da metáfora do Nome-do-Pai.
O sintoma tem por função, tanto em Freud como em Lacan, tornar irreconhecível o
inconsciente, por isso é “linguagem cuja fala precisa ser liberada”
54
. A estreita relação
entre a linguagem e o sintoma está sustentada pela concepção de linguagem norteada
pela supremacia do significante. Dor (2003) explica o conceito de significante ao expor
a interpretação lacaniana do conto de E. Poe A Carta Roubada; em síntese, ele mostra
como um elemento (as palavras, a carta e etc.) pode substituir outros pela suposição de
um sentido nele e não pelo seu significado em si. Os elementos de troca são
inconscientes, assim como o sentido que os articula em cadeia significante, portanto, os
significados, são governados pela cadeia significante, condição de expressão e
ocultamento do sintoma.
54
LACAN, J. (1998) Função e campo da palavra em psicanálise. p. 84.
73
Laplanche e Pontalis (1995), em sintonia com a perspectiva lacaniana que aproxima
o inconsciente do funcionamento da linguagem, concluem que “o sintoma nunca é sinal
uníssono de um conteúdo inconsciente único, assim como a palavra não se pode reduzir
a um sinal”. (p. 489).
O conceito de sobredeterminação permite-nos pensar que fatores distintos se
relacionam para a formação do sintoma; no entanto, esses fatores estão interligados
mediante uma lógica singular de vinculação, mas que têm sentidos associados e por isso
podem ser interpretados. Não esqueçamos, portanto, que a natureza simbólica do
sintoma está na raiz da descoberta psicanalítica do inconsciente e da cura pela palavra.
O curso dos acontecimentos psíquicos que geram o sintoma são: a angústia despertada
por um excesso amoroso inconcebível à consciência, que o rechaçará pela atuação do
recalque. Desse modo, a angústia é contemporânea ao acontecimento causal gerador do
sintoma num “só-depois” da vivência traumática
55
. Por estar tão dissociado da angústia
que o sintoma recobre e de certa forma substitui, o paciente gago remete seu sintoma a
uma clínica que aparentemente poderá tratá-lo como fruto de um acidente somático. Tal
vivência imaginária do paciente encontra respaldo no real de algumas abordagens
terapêuticas; no entanto, não curam a gagueira por meio de prescrições voltadas para o
organismo exclusivamente, o que responderiam ser perfeitamente justificável pelos
limites da ciência médica para descobrir os mecanismos dessa patologia e não por se
tratar de um fenômeno que não se restringe a essa ciência.
Por outro lado, pensar a gagueira como sintoma e não como patologia mesmo
após ter redimensionado o conceito de pathos implica sustentar a hipótese de que a
gagueira pode ser vista na estrutura neurótica como resultante de conflito psíquico
organizado a partir da vivência do complexo de Édipo (seu núcleo patogênico).
55
Trauma pode ser sinteticamente pensado tendo por causa um excesso de excitações não gerenciáveis pelo ego.
74
Essa afirmação pode ser supostamente refutada pelo estudo de Gomes (2003).
Amparada pelas hipóteses de Freud (1913/1914) em Totem e tabu e pela teoria de
Aulagnier (1975) sobre o sistema de significações primárias, abordado no terceiro
capítulo do livro A violência da interpretação, Gomes (2003) sustenta a hipótese de que
“a ambivalência que leva a criança a desejar provocar danos a seus objetos amados,
como forma de retaliação por situações de frustração de desejos sexuais, pode instituir
na psique uma proibição da palavra dita e pensada podendo ter como efeito a gagueira”
(p.56). Desse modo, segue pelos textos de Freud, encontrando uma forma original e
bastante bem sustentada de construir suas conclusões, baseada na hipótese de que a
gagueira procede de conflito pré-edípico.
Afirma a autora que a gagueira não deve ser pensada como sintoma, mas como
inibição, visto que se percebe em sua prática que pode haver gagueira em diferentes
organizações psicopatológicas e não apenas nas neuroses. Outro elemento fundamental
nesse trabalho é a aplicação à gagueira da diferença proposta por Freud entre inibição e
sintoma. A gagueira começa como inibição, causada por fragilidades na função do ego,
assim como qualquer outro sintoma na infância que pode ser superado conforme for se
dando o desenvolvimento das funções do ego, com ou sem tratamento. No entanto, essa
manifestação pode se tornar um sintoma neurótico após resolução do complexo de
Édipo, “se sua finalidade e resultado consistam em prevenir irrupções de ansiedade
neurótica” (GOMES, 2003: 58).
Continuando a acompanhar os argumentos da autora, podemos afirmar então que os
pacientes gagos que nos procuram foram os que passaram da inibição ao sintoma e,
portanto, desenvolveram o sintoma como parte da resolução do complexo de Édipo. No
entanto, em crianças muito pequenas, com menos de três anos, esse sintoma deve
demandar atenção especial e cuidado, pois não se trata do que é chamado de gagueira
75
fisiológica, como afirmam alguns autores, mas do resultado de fantasias destrutivas
incidindo na proibição da fala. O mérito de ter situado a emergência da gagueira na
relação com fantasias destrutivas também nos abre caminho para pensá-la como
contingente ao complexo de castração, o que será discutido ao longo deste capítulo.
Com dados estatísticos provenientes de diferentes regiões do país, a autora reitera o
fato de existirem não apenas mais homens do que mulheres gagas, mas também de
serem do sexo masculino mais de 70% da demanda para clínica fonoaudiológica.
Baseada nesse dado de realidade, em sua experiência clínica e na afirmação de Freud
(1931)
56
, assevera que existência de maior hostilidade nos meninos durante a
vivência do complexo de Édipo:
Em todo processo edípico do menino, está envolvida uma maior
hostilidade do que na menina, talvez tenhamos um fator que possa
dar suporte à continuidade, no menino, da fantasia de que a palavra
pode destruir os entes amados e do corolário de ideias obsessivas
que a acompanham, mesmo que o modo do menino vivenciar o
complexo de Édipo resulte em outras organizações. Se essa hipótese
estiver correta, a maior hostilidade demanda maior força de
repressão que, por sua vez indicará maior atividade dos processos
patológicos defensivos. (GOMES, 2003: 74).
Embora Gomes (2003) afirme que a gagueira não é um sintoma exclusivamente
presente na neurose obsessiva, permanece a similaridade entre as condições do
pensamento infantil, que sustentam a presença de fantasia de que a palavra pode
conduzir à perda do objeto aqui postulada, e o pensamento do neurótico obsessivo.
Corrobora as hipóteses formuladas a partir de Freud com conceitos provenientes da obra
de Aulagnier (1975) a respeito do modo de funcionamento infantil, caracterizado pelos
registros originário, primário e secundário, que explicam a função da linguagem e a
56
FREUD, S. (1931).
76
produção do sintoma na linguagem. A articulação dessas referências para compreender
a gagueira pode ser vista numa reflexão clínica bastante fina, na qual a autora conclui:
É possível pensar que a gagueira dá corpo à palavra mágica
destrutiva, ao mesmo tempo que permite que a criança fale,
constituindo-se claramente como uma inibição desta função. Nesse
sentido, a gagueira não está no lugar do que não pode ser dito, ela é
o ato que contém esse dito. (p. 105).
A psicanálise, como bem expressa a autora, refere-se ao silêncio literal do sintoma;
no entanto, constrói um mecanismo interpretativo que desobstrui os ouvidos dos
clínicos para essa aparência muda. Assim, todo barulho significante ressoa. Nessa
perspectiva, o sintoma na linguagem é o dizer do sujeito; mas para quem se remete esse
dito aturdido que arrefece e flui em muitos encontros?
Na sua revisão da literatura psicanalítica sobre gagueira, Gomes (2003) salientou a
existência de duas abordagens sobre os processos psíquicos que poderiam estar
subjacentes à gagueira na perspectiva freudiana. A hipótese estrutural, que supõe a
gagueira como sintoma neurótico, como uma histeria de conversão, e a hipótese que
propõe uma fixação da libido na fase oral ou sádico-anal. Nenhuma delas lhe parece
satisfatória para responder a suas questões clínicas, indo, portanto, sustentar sua
hipótese apoiada na teoria de Aulagnier e também em Freud de que o sentido das
palavras pelo estatuto próprio do processo primário faria com que a criança atribuísse a
elas um poder mágico. Assim, como nos explica a autora, “a gagueira daria corpo à
retenção da palavra mágica destrutiva, ao mesmo tempo em que permite que a criança
fale, constituindo-se claramente como uma inibição dessa função” (p. 105).
Essa autora descarta também hipóteses levantadas por Coriat (1943) e Glauber
(1982) de que a gagueira seria um tipo de neurose de órgão, segundo Freud havia
77
proposto para casos de gagueira, asma e tiques em apontamentos direcionados a
comentar um estudo sobre um caso de asma apresentado para a Sociedade Psicanalítica
de Viena em 1913 por Paul Federn.
A neurose de órgão pode ser evidenciada em desordens ou distúrbios que se fixam
em certos estágios de desenvolvimento do órgão ou do seu funcionamento. Freud teria
concluído afirmando que “se parecem com a histeria, mas precisam ser separadas dela”,
pois parecem ser consequência de fixações em fases pré-genitais, dando margem aqui à
compreensão dessa manifestação na fala como, por exemplo, fixação na fase oral ou
anal-sádica.
Apesar das indicações de Freud, Glauber (1982) se reporta à gagueira como sintoma
diretamente ligado a disfunções na formação do ego, refletida no conflito entre o medo
de falar e o desejo de ficar mudo, ou seja, uma neurose que envolve a fala, pois tem seu
início associado ao controle das funções de respiração, sucção e deglutição, cujos
órgãos são posteriormente adaptados à função da fala. A respiração, em particular, está
fisiologicamente associada à amamentação, daí o paralelo estabelecido entre erotismo
respiratório e oral, o que explica a relação entre asma e gagueira para esse autor.
Tendo por base que as conexões sensoriais entre respiração e amamentação são
estreitas, Glauber lembra que o sufocamento está expresso no processo de nascimento e
também na sucção. Sendo assim, o sujeito permanece conectado inconscientemente com
todas as experiências de perigos e os sentimentos de ansiedade que daí decorrem. É
realmente comum muitos gagos se queixarem de sufocamento e impossibilidade de
respirar durante a produção da fala.
Nessa direção, Glauber (1982) destaca a relação entre a formação do ego e o uso da
fala pela criança; do balbucio, da lalação e da ecolalia até a fala comunicativa,
78
anunciando simultaneamente os passos na formação do ego, do narcisismo autoerótico
até a relação de objeto, mudança que marca a existência de uma estrutura mental
separada da mãe. Ainda com Freud, aborda a fala como uma função do ego como a
percepção, o pensamento e o teste de realidade. São os aspectos arcaicos do pensamento
e da fala como reflexos dos estados primitivos e pré-egoicos que constituem elementos
essenciais na psicopatologia da personalidade e da fala do gago, pois a habilidade de
falar é sobrecarregada pela necessidade de expressar impulsos primitivos e mágicos do
id e emoções associadas, bem como estados primitivos de execução do ego.
Desse modo, o ponto de partida da compreensão da psicopatologia da gagueira se
pauta na ideia de que todas as instâncias da mente (id, ego e superego) podem estar
representadas no desejo de falar. A fala pode representar um ego primitivo a serviço do
id; pode representar o ataque ou o desejo de ser atacado, desejar machucar ou ter prazer
masoquista, de ser amado ou repreendido; ou pode representar o superego primitivo.
Outro aspecto bastante importante salientado por Glauber (1982), e também presente no
trabalho de Gomes (2003), é o poder mágico atribuído às palavras pelas crianças.
Esse poder também faz parte do imaginário adulto, por isso as palavras devem ser
retidas ou cuidadosamente manipuladas. A esse contexto pertencem as palavras
obscenas e palavrões. Embora Glauber afirme que “o trauma que predispõe à gagueira
seja pré-edípico” (p. 7), a regressão libidinal vai aparecer nas diferentes fases. No
estágio fálico, a gagueira está diretamente envolvida no conflito edípico. Aqui, falar
bem significa potência e falar mal, castração. A castração pode ser representada por
diferentes fantasias como cortar a língua, por exemplo
57
. A fala também se presta ao
57
Pode-se observar os efeitos da ameaça feita pelos adultos de cortar a língua da criança se esta revelar um
segredo ou expuser fantasias em público, na obra autobiográfica de Elias Canetti, A língua absolvida (1984). O
escritor, que sofreu a ameaça de perder a língua quando criança, revolve sua memória afetiva pela relação com as
palavras, incluindo o efeito traumático do dizer perigoso, o aguçamento da curiosidade para as Línguas, derivando,
79
impulso exibicionista. Por isso, a inibição da fala pode ser resultado de uma formação
reativa ao impulso exibicionista, como observado na expectativa do paciente que
discutiremos no próximo tópico, Bernardo, que desejava falar “coisas legais e para
muita gente”.
Glauber (1982), cuja obra se pauta na hipótese de que a gagueira é um sintoma
neurótico, no capítulo dedicado à revisão da literatura psicanalítica, cita Coriat (1943,
apud GLAUBER: 17), o qual observa que a gagueira decorre de conflitos associados
com a separação da mãe em vínculo parentais muito primitivos e que tornam mais
intensa a rivalidade edípica. Em seguida, ao concluir o capítulo seguinte a respeito dos
insights atuais e as contribuições de Freud sobre a gagueira, destaca:
O fato de maior predominância nas formulações de Freud no relato
do caso Emmy, é que os gagos projetam sobre o aparato oral os
conflitos instintuais da zona anal. Entretanto, é minha conclusão que
existem fatores dinâmicos mais profundos e significativos na gagueira
[...[ esses fatores consistem primeiro na determinação de fixação
dentro de níveis de desenvolvimento narcísicos-orais. Em segundo
lugar como resultado da ênfase sobre a gênese pré-genital da
conversão, o mais significativo é o papel do conflito edípico não
resolvido como um fator dinâmico constante na manutenção da
regressão. (p.34)
Seguindo suas hipóteses, Glauber (1982) passa a considerar fatores predisponentes
à gagueira associados à relação mãe-bebê, salientando a predominância da boca como
órgão sensorial depositário da memória desses efeitos patogênicos. O autor supõe que as
mães dos gagos foram inábeis na configuração do ritmo com o bebê, durante a
amamentação, o que traz consequências importantes também sobre outra função
da língua órgão, a língua como funcionamento simbólico e sustentáculo da cultura na qual sua obra é talhada com
exímio talento. A criança da autobiografia Canetti com seus quatro anos já havia sido suficientemente
sustentada na segurança em relação ao ambiente, pois, pelo transcorrer da história, muitos acontecimentos
poderiam ter sido fonte de sintomas, como a morte precoce do pai e a depressão materna subsequente; no entanto,
a escrita ganha o investimento dos excessos libidinais provenientes das marcas traumáticas. Onde poderia estar a
fixação sintomática ou patológica é construída uma obra. O processo sublimatório, com suas antíteses e limites,
permite um prazer menos atrelado aos avatares inconscientes e imponderáveis do traumático. Fica uma questão a
ser pensada na direção do tratamento da gagueira: como o trabalho terapêutico pode colocar num caminho
sublimatório a relação com a linguagem?
80
inerente à produção da fala, a respiração. O ritmo descompassado entre ambos não
permite que a simbiose se estabeleça com todo seu corolário de experiências de
satisfação e segurança, assim, ela não cessa de deixar marcas de sua incompletude
gerando na criança a mesma ambiguidade proveniente da mãe.
É possível observar a mesma ambivalência psíquica como expressão somática, ou
seja, como conversão; assim, a fala e a respiração simulam a dependência oral e a
agressão oral. Glauber (1982) afirma que, uma vez que ambas ameaçam o ego
(dependência e agressão), “o conflito de ser ou não ser dependente, ser ou não ser
agressivo é equivalente ao conflito de falar ou não falar. Consequentemente a fala se
torna estropiada. A sua leveza fica interrompida pelos espasmos tônicos e clônicos” (p.
39).
O aspecto mais interessante das elaborações do autor, e que muito nos interessa,
refere-se ao lugar que a criança ocupa no imaginário da mãe. Ele supõe que essas mães
vivem conflitos inconscientes ativos associados à dificuldade de se separarem de uma
imagem muito poderosa das suas próprias mães, o que dificulta a sustentação imaginária
da potência de seus maridos. Disso decorre uma relação viscosa com seu filho, que
passa a ser objeto de sua potência/impotência. A potência se expressa ao relacionar-se
com o filho de modo a mantê-lo sob controle; no entanto, quando inconscientemente se
antecipa ao filho almejando seu progresso, sente qualquer sinal de autonomia por parte
dele como agressão e impotência. Ao deparar-se com o resultado de seu investimento, é
tomada de impotência que a coloca no embate com a castração. Nessa dinâmica, diz o
autor, “o gago é o mestre de cerimônias da mãe. Porque a criança é parte dela, ela teme
que em sua fala possa divulgar muitas de suas ambivalências, incluindo a raiva e as
atitudes desafiadoras” (p.46).
81
Com relação ao papel do pai, Glauber (1982) salienta que este contribui tanto para
o desenvolvimento do problema como para sua manutenção; seu afastamento da criança
é um reflexo do quanto está apagado no papel de marido ou foi afastado do exercício
desse papel de modo consistente. Mediante essas conclusões, Glauber propõe um
trabalho terapêutico para os pais, em especial para a mãe, pois em geral as mães dos
meninos gagos apresentam ansiedades contidas conectadas às profundas decepções
vividas com suas mães, sendo de suma importância discutir questões como sua
separação da mãe e, por extensão, sua separação do filho.
O autor descreve de modo genérico que o trabalho terapêutico com essas mães deve
seguir visando auxiliá-las a discernir entre dependência infantil e dependência feminina,
para que possam ver o marido não como uma figura materna frustrante, mas como uma
pessoa real com quem poderiam contar para partilhar os problemas comuns da criação
dos filhos. Assim, a rejeição do papel feminino e a inveja do papel masculino
diminuiriam e, por conseguinte, o envolvimento do filho com sua ansiedade de
castração.
Embora Glauber (1982) não faça menção à função paterna como a de corte da
simbiose, é possível observar em suas ideias certa prevalência da mãe sobre o pai, ou
seja, da prevalência de uma relação que não inclui um terceiro, uma relação que não
remete a criança à falta, na medida em que esta ainda está no embate com o complexo
de castração, tendo um Édipo mal recalcado e por isso dificuldades evidentes em
sustentar-se como sujeito faltante e desejante para além da relação com o filho, daí o
apagamento do pai.
Cunha e Gomes (1996), no artigo Fonoaudiologia e psicanálise: uma reflexão
sobre a gagueira e o inconsciente, situam a gagueira como sintoma decorrente de
82
conflito neurótico, relatando que em suas práticas clínicas a gagueira aparece muito
frequentemente na neurose obsessiva e na histeria. O texto escrito por uma psicanalista
e uma fonoaudióloga referenda que, para o trabalho com a gagueira, faz se necessário
“repensar qual o desejo que se esconde sob esse sintoma e, daí, delimitar o que pode ser
feito. O que mais importa é que o sujeito possa entrar em contato com os ‘bastidores’ do
seu sintoma” (p. 74).
Temos também na experiência dessas autoras a prevalência de pessoas com sintoma
de gagueira com funcionamento psíquico neurótico, realidade compartilhada também
em minha prática clínica. Não podemos esquecer que Freud
58
atribui o sintoma
neurótico a falhas do recalque, que em sua teoria é pensado como um dos destinos
possíveis do complexo de Édipo, que persiste no inconsciente manifestando seu efeito
patogênico.
Embora o sintoma neurótico esteja associado à conflitiva edípica, antes da
culpabilidade edipiana que resultará na formação do superego ocorrem muitas
experiências sensoriais marcantes da relação que a criança estabelecerá entre prazer e
desprazer pelo funcionamento das outras funções sensoriais funcionamento mediado
por palavras que em grande parte soam pela voz do adulto que exerce função materna.
Seguindo assim, podemos considerar a vivência do complexo de Édipo num repertório
sensorial bastante rico e sobredeterminado, com material suficiente para produzir
fantasias. As fantasias ganham visibilidade mediante a fala e os comportamentos da
criança, por isso estarão presentes no modo como se configurará imaginariamente o
conflito edipiano.
58
FREUD, S. (1924).
83
No texto “O corpo fantasmático do gago”, Anzieu (1997: 293) faz referência a
essas vivências anteriores ao Édipo, mostrando como são importantes na aquisição da
linguagem. Em seguida, localiza na fase anal a formação do sintoma de linguagem, a
gagueira, após a aquisição de linguagem estar transcorrendo de modo eficiente, por
volta dos três anos. Tal sintoma decorre da dificuldade em satisfazer o prazer anal, por
medo excessivo de perder partes de si ao expelir as fezes. Esse medo está em estreita
relação com a exigência dos pais nesse período muito delicado, pois o controle
esfincteriano aval para a criança participar do mundo dos adultos, adequar-se às
regras de convívio, o que, de modo análogo, vinha ocorrendo ao tentar dominar as
normas de funcionamento da linguagem.
Anzieu (1997) afirma que o prazer anal não consegue efetivar-se na criança gaga,
por isso as palavras passam a significar o que a criança gaga interiorizou dos pais, “uma
imagem superegoica especialmente exigente [...] quando a exigência ultrapassa os
limites do tolerável para aquele a quem é dirigida, atinge um ponto de perseguição. A
gagueira instala-se nesse registro” (p. 291). Desse modo, movida pelo acúmulo de
ansiedade vivida anteriormente à genitalidade, a criança reage regredindo ao
funcionamento oral.
Podemos perceber que os sintomas são resultantes de operações psíquicas que
ocorrem ao longo do desenvolvimento psicossexual
59
. Como mostra a psicanálise
freudiana, as marcas das experiências de satisfação angariadas nas diferentes fases da
evolução libidinal trarão fundos acumulados para enfrentar a conflitiva edípica, sendo
também nela revistas e complexizadas culminando na organização genital adulta.
59
Segundo Laplanche e Pontalis (1995), o desenvolvimento psicossexual é caracterizado pelas fases de
organização das pulsões parciais sob o primado das zonas genitais; compreende dois momentos, separados pelo
período de latência: a fase lica (ou organização genital infantil) é marcada pela perversidade polimorfa” e pelo
autoerotismo, e a organização genital propriamente dita, que se institui na puberdade.
84
Por várias razões clínicas e teóricas, escolhemos abordar neste trabalho os casos em
que a gagueira aparece como sintoma da neurose, embora possa haver casos em que a
gagueira esteja associada à psicose ou à perversão. Não encontramos nenhuma
referência à gagueira nessa última estrutura na literatura pesquisada, embora haja
menção à presença desse sintoma em casos com características psicóticas
60
.
Laplanche e Pontalis (1995) definem “neurose” como “uma afecção psicogênica em
que os sintomas são a expressão simbólica de um conflito psíquico que tem suas raízes
na história infantil do sujeito e constitui compromissos entre o desejo e a defesa” (p.
296). Esses autores também salientam que o termo tem sido reservado para as formas
clínicas que podem ser ligadas à neurose obsessiva, à histeria, e à neurose fóbica.
Situado na rede discursiva da psicanálise, numa orientação lacaniana, Chemama
(2002) atribui ao termo definição mais diretamente remetida à conflitiva edípica: “modo
de defesa contra a castração, pela fixação em um argumento edípico”. Como essa
fixação terá estatuto de sintoma? A noção de fixação na psicanálise está sempre ligada à
de regressão, dado que, pela concepção genética e dinâmica da evolução da libido, a
fixação na satisfação ligada a objetos da fase oral ou anal, dependendo do tipo de
neurose. Essa concepção de fixação pode ser pensada não como persistência do adulto
em modos de satisfação infantil, senão pela repetição estéril de determinadas
representações, ou significantes “ligados ao dinamismo pulsional para designar seu
modo de inscrição no inconsciente” (p.76).
60
Em todos os trabalhos que lemos, encontramos a descrição de casos de gagos com estrutura neurótica, no
entanto, não estamos com isso afirmando ser um sintoma exclusivo dessa estruturação. Gomes (2003), por
exemplo, relata um caso de gagueira grave num menino de três anos com características psicóticas, embora ainda
não se possa falar em termos de estrutura. Anzieu (1998) também se refere a um caso de gagueira bastante grave
num menino de 10 anos que começou a gaguejar aos três anos após retornar a sua vida a mãe que o abandonara
quando tinha poucos meses. Nesse caso, localiza o sintoma não na psicose como estrutura, mas numa orientação
bioniana, refere-se a este como um momento psicótico. Segundo o autor: “em nossa experiência clínica foi muito
raro encontrarmos gagos psicóticos ou psicóticos gagos. Como se, nesse caso, a gagueira fosse um meio de
superar ou controlar a parte psicótica da personalidade” (p.162)
85
Inscritos no inconsciente, os significantes são autônomos em relação à
significação. É “a partir de seus efeitos de sentido e, sobretudo, do papel que eles
representam em uma economia subjetiva que os elementos dos discursos podem assumir
o valor de significantes” (p. 199), por isso não podem ser confundidos com palavras.
O sintoma é algo muito valioso para o clínico na relação com o paciente que espera
por ele como uma chance de elucidação para chegar a desvendar as origens da
patologia. Para a psicanálise, a decifração do sintoma não traz como consequência a
compreensão de um quadro nosográfico ou a descrição pormenorizada de um distúrbio
– sintoma é um concentrado de saberes sobre o sujeito que a ele mesmo escapa,
portanto, cabe ao psicanalista desvelar os sentidos e por eles aproximar o sujeito de seu
funcionamento inconsciente. O clínico da linguagem está restrito à tarefa de propiciar
condições para que a fala flua, condições de escuta para o sujeito falar melhor, e não lhe
cabe a tarefa de interpretar o sintoma, mas a de atravessá-lo com o sujeito, pois na
relação terapêutica em que opera a transferência outra margem de possibilidade é
forjada. Mas em quais condições isso é possível?
2.2 Complexo de Édipo e gagueira
Na obra de Freud, a formação de sintoma também está diretamente associada à
resolução da conflitiva edípica. Por isso, o complexo de Édipo é considerado o principal
eixo da psicopatologia freudiana, uma vez que “determina os caminhos da organização
da sexualidade, desde o aparecimento das primeiras manifestações sexuais infantis”
(FARIA, 2003: 18). Ao mesmo tempo em que estrutura a personalidade, já que constitui
formas particulares de escolha de objeto de amor, o complexo de Édipo também traz
como produto a formação do superego, modificando assim a configuração do aparelho
psíquico, pois é a partir dessa experiência subjetiva que o superego passa a influir no
funcionamento psíquico como uma instância específica devotada à censura e afeita à
86
defesa da lei. A influência dessa experiência é marcante em toda a obra freudiana, desde
a correspondência com Fliess em 1897 até os anos de 1920, quando, segundo Faria
(2003), o Édipo adquire lugar central nessa teoria.
61
.
Podemos ver, em Sintoma, inibição e angústia (1926), Freud demonstrando que os
sintomas se formam mediante dois mecanismos básicos: a regressão (da libido) e a
repressão (dos impulsos), que necessitam de uma força motriz para serem estabelecidos.
Nos casos utilizados como exemplo, o “Pequeno Hans” e o “Homem dos Lobos”, essa
força vinha do temor da castração iminente. Tais mecanismos de defesa podem ser
evidenciados no medo de Hans de ser mordido por cavalos e no terror do “Homem dos
Lobos” de ser devorado. Aqui temos a regressão da libido à fase oral, após o primeiro
impulso instintual ter sido reprimido em ambos os casos, a hostilidade em relação ao
pai. Transformada em seu oposto, a agressividade em relação ao pai se torna
agressividade do pai em relação a eles, como forma de vingança. A fobia, no caso do
“Pequeno Hans”, foi um sintoma efetivo “para livrar o menino dos dois principais
impulsos do complexo edipiano sua agressividade para com o pai e seu excesso de
afeição pela mãe” (FREUD, 1926: 129). Em particular, no caso de Hans, vemos que o
sintoma se impõe como elemento da castração, já que o pai não se mostrava em
condições de fazê-lo, como nos indica Faria (2003) em seu estudo.
A primeira análise de criança de que se tem registro na história da psicanálise é o
caso do “Pequeno Hans”
62
, filho de um analista iniciante supervisionando de Freud.
Esse supervisionando faz ele próprio a maior parte da análise do filho por meio de
Freud, embora Hans tenha se encontrado com o psicanalista austríaco algumas vezes.
61
Como mostra Faria (2003), o desenvolvimento do conceito dentro da obra freudiana pode ser compreendido por
textos como: A organização genital infantil (1923), A dissolução do complexo de Édipo (1924), Algumas
consequências da distinção anatômica entre os sexos (1925) e Fetichismo (1927).
62
FREUD, S. (1909).
87
Ao longo das descrições pormenorizadas a respeito das fantasias e comportamentos de
Hans no apogeu do complexo de Édipo, mergulhamos numa narrativa que constrói os
bastidores de tantas questões e hipóteses que fervilham no imaginário do menino, cuja
fertilidade é acentuada pela escuta atenta e devotada do pai/analista. Num momento
determinado, seu analista começa a observar a emergência de um sintoma associado ao
medo de cavalos. O sintoma vai gradativamente se transformando numa fobia que
impõe a Hans várias restrições. O desfecho da análise é bem-sucedido: de modo
simplificado, podemos dizer que, mediante a interpretação da conflitiva edípica e do
deslocamento da figura do pai e, por extensão, de Freud para os cavalos, o sintoma é
superado.
Destacaremos a análise do caso do “Pequeno Hans” realizada por Faria (2003),
tendo em vista a explicitação da conflitiva edípica e a formação do sintoma, salientando
a função do pai nessa dinâmica, pois suas elaborações, somadas às de Nasio (2007), dão
sustentação à nossa hipótese sobre as questões com o pai no desenvolvimento da
gagueira. No entanto, antes de passarmos para esse foco central, vamos nos deter mais
na compreensão do Complexo de Édipo, pela perspectiva de Freud e Lacan, como nos
permitem as obras de Faria (2003) e Nasio (2007).
Na perspectiva freudiana, a relação inicial do bebê com a mãe vai prover o que, em
essência, diferencia o humano dos animais: a pulsão. Pensada como substituto do
instinto, por ser este deficitário no humano, cuja condição de sobrevivência é marcada
pela longa dependência do outro, a pulsão é o conceito que melhor explica a noção
freudiana de sexualidade. Situada numa zona intermediária entre o somático e o
psíquico, a pulsão se desenvolve por anáclise, apoio nas funções fundamentais à
sobrevivência física. Freud usa a amamentação como protótipo para explicar a
emergência da pulsão. A mãe, por sua dedicação ao bebê, movida pelo prazer que esse
88
cuidado lhe confere, transforma as primeiras experiências de amamentação em
vivências amorosas de satisfação. Essas experiências produzem matrizes sensoriais e
traços mnêmicos sobre os quais incidirão todas as outras vivências, sempre em
referência a essas primeiras inscrições, crivos para delimitar quais vivências futuras
serão qualificadas como experiências de satisfação ou insatisfação.
A pulsão tem quatro características bem definidas
63
. A primeira delas é a fonte
64
sempre somática, pois resulta de um processo de excitação que ocorre num órgão, o que
traz como consequência a pressão exercida no interior do organismo em decorrência da
excitação somática; a finalidade não é o objeto em si, mas a descarga da excitação
somática. O objeto da pulsão é aquilo que arrefece a tensão no organismo.
Freud (1905), nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, explica que, num
primeiro momento, o campo pulsional se organiza em torno da boca, como já explicado,
em função da amamentação. Em seguida, quando o controle esfincteriano passa a ser
importante, o ânus será o órgão de excitação e satisfação e, por último, os genitais,
quando aparecem as primeiras evidências de masturbação infantil. Conforme a teoria do
desenvolvimento psicossexual, a organização da libido em torno desses órgãos recebeu
respectivamente os nomes de fase oral, fase anal e fase fálica ou genital. De acordo com
Faria (2003), a descrição do complexo de Édipo em Freud está pautada em três
premissas universais. A primeira delas é a existência da sexualidade infantil, a
sexualidade pulsional – que, como vimos, mediante o conceito de pulsão, “não se
confunde e nem se reduz à genitalidade” e é descrita nos Três ensaios sobre a
sexualidade “como perverso-polimorfa (Faria 2003; 32). A segunda é a formulação,
pelas crianças, de teorias que visam dar sentido a essa sexualidade. Essas “teorias”, de
63
Freud, S. (1905)
64
O destaque em itálico visa salientar cada uma das características da pulsão.
89
modo geral, expressam que as crianças desconhecem as diferenças entre os sexos e
conferem a todos, inclusive às mulheres, a posse de um pênis. Essa premissa origem
ao que Freud denominou primazia do falo ou premissa fálica. A terceira e última
premissa observada por Freud, e que ganha estatuto de princípio geral, é que o primeiro
objeto de amor da criança, independente do sexo, é a mãe.
Firmado nesses princípios, Freud (1924) estabelece que o complexo de Édipo no
menino está bastante relacionado com a repressão, por parte dos adultos, das atividades
masturbatórias envolvendo o pênis, que têm início por volta dos quatro anos. Ao ser
ameaçado com o risco de perder seu estimado e prazeroso pênis, o menino registra tal
possibilidade, mas não realiza a viabilidade do fato até que os genitais femininos.
a posteriori ocorre o trauma, pensado por Nasio (1987: 25) como um “evento que é da
ordem do ato de um dizer, que repete algo que não era”; assim, ao recuperar um dizer,
ao ato um valor de verdade. Nasio (1987: 26) explica que “o trauma não é um fato
passado que determina o sintoma atual, mas antes um fato deduzido do sintoma atual”.
Assim, a ameaça da castração, o primeiro elemento do complexo, transforma-se em uma
experiência de medo real quando é constatada a existência de seres sem pênis, o
segundo elemento sob a qual o menino desenvolve o complexo de castração. Desse
modo, podemos dizer que o complexo de castração equivale à inscrição de uma falta, ou
“a ordenação da problemática da falta que marca a passagem da premissa fálica ao
complexo de castração” (Faria, 2003: 35).
A relação do menino com seu pênis é apaixonada, passional e terrorífica, e por isso
margem aos sentimentos mais paradoxais. Nasio (2007) discorre sobre os efeitos
simbólicos da relação imaginária com o pênis e nesse contexto conceitua “falo”:
90
A pregnância imaginária do pênis é tamanha que o menino faz dele
seu objeto narcísico mais precioso, a coisa pela qual tem mais apego
e orgulho de possuir. Assim tal culto do pênis eleva o pequeno órgão
ao nível de símbolo do poder absoluto e da força viril. Mas atenção! É
também, e pelas mesmas razões, vivido como órgão frágil,
excessivamente exposto ao perigo e, por conseguinte, símbolo não
apenas do poder absoluto e da força viril, mas também da
vulnerabilidade e da fraqueza. Pois bem, quando esse apêndice,
eminentemente excitável, nitidamente visível, eréctil, manipulável e
tão altamente valorizado torna-se aos olhos de todos meninos e
meninas - o representante do desejo, s o chamamos de “Falo”. O
falo não é o pênis enquanto órgão. O falo é um pênis fantasiado,
idealizado, símbolo da onipotência e de seu avesso, a
vulnerabilidade. (p.22).
O complexo de castração, portanto, permite à criança confrontar-se com a dialética
do par presença-ausência ou poder-impotência, pois, após essa experiência, instala-se a
probabilidade de o pênis poder não estar. Para Freud (1924)
65
, nesse momento, o ego da
criança se depara com um conflito bastante difícil, que é travado entre seu interesse
narcísico por essa parte tão satisfatória de seu corpo, o pênis, e a catexia libidinal de
seus objetos parentais. uma escolha a ser feita. Ou perde essa forma de satisfação ou
uma parte de si. Freud (1924) considera que, “nesse conflito, triunfa normalmente a
primeira dessas forças: o ego da criança volta as costas ao complexo de Édipo” (p.221) .
Desse modo, a resolução do conflito está dada e o complexo de castração cumpre
sua função de retirar o menino do Édipo; a catexia libidinal antes voltada para mãe é
dessexualizada e sublimada e ganha novo destino: identificar-se com o pai, visto que
este tem o falo. Assim tem início a latência, um período marcado pelo interesse da
criança pela cultura e por atividades socializantes.
Na teoria lacaniana, o complexo de Édipo está dividido em três tempos. No
Seminário 5 em particular, Lacan desenvolve toda a apresentação teórica do complexo
de Édipo. Como afirma Faria (2003), tanto na obra de Freud como na de Lacan, “o
Édipo consiste na relação inicial que a criança estabelece com a mãe, e na interdição
65
FREUD, S. (1924)
91
que recai sobre essa relação – o complexo de castração” (p.45). No entanto, o complexo
de castração tem diferente significado em cada teoria, uma vez que em Freud está
relacionado a uma questão anatômica, enquanto em Lacan está balizado pela função
simbólica do pai, que seu empenho foi no sentido de enfatizar a interdição do desejo
incestuoso da criança pela mãe.
Nasio (2007) aborda o desejo incestuoso como uma figura mítica do absoluto
associada ao retorno ao estado original de beatitude intrauterina. Registra o autor:
Para psicanálise, cada um de nossos desejos cotidianos o prazer
sensual de contemplar um quadro ou acariciar o corpo amado, por
exemplo -, cada um desses desejos tenderia, de um ponto de vista
teórico, insisto, para felicidade perfeita de que gozariam dois seres
conjugados em Um. (p.26)
Em seguida, Nasio ressalta que os desejos incestuosos são um condensado de
tendências eróticas e agressivas. O autor distingue três movimentos fundadores do
desejo masculino: o desejo de possuir sexualmente o corpo do Outro, em particular o da
mãe, tê-la para si. Essa fantasia é facilmente observável nas brincadeiras de
dominação. O segundo desejo é o de ser possuído pelo corpo do Outro, em particular o
do pai. Nessa posição desejante a criança seduz o adulto para se tornar seu objeto. Tal
posição se mantém se os adultos (pai ou mãe) são demasiadamente sedutores ou
perversos. As consequências dessa tendência no menino são nefastas, pois geram uma
crise conhecida como “pedra de castração” ou, como a chamava Adler, “protesto viril”
(p.31). O terceiro desejo é o de suprimir o corpo do Outro, em particular o do pai. Isso
coloca o menino numa posição ativa de ocupar o lugar do pai, levando-o a partilhar o
leito conjugal com a mãe.
92
Podemos considerar, a partir dessa breve e esquemática exposição, que as posições
desejantes descritas por Nasio (2007) permitem aproximar a clínica da teoria, pois dão
operacionalidade à percepção, por parte do terapeuta, de certo modo de relação
permeado pelo desejo inconsciente. Cabe salientar, novamente, que esses desejos são
derivados de fantasias
66
produtoras de prazer ou de angústia e que “a angústia de
castração não é sentida pelo menino, é inconsciente” (NASIO, 2007: 33). Édipo,
portanto, para esse autor, é a primeira neurose de crescimento do ser humano, pois a
angústia é o avesso do prazer, e angústia e prazer, mesmo sendo sentimentos opostos,
estão agindo simultaneamente “gerando o doloroso conflito entre saborear o prazer de
fantasiar e ter medo de ser punido caso persevere” (NASIO, 2007: 34).
Na perspectiva lacaniana, seguindo as formulações de Faria (2003), o primeiro
tempo do complexo de Édipo está interligado ao “estádio do espelho”, período no qual a
criança alienada ao Outro materno, de quem depende, está assujeitada à onipotência da
mãe. Se é desta que virá sua possibilidade de existir e não apenas de sobreviver,
dependerá do dom
67
materno para ser. Por isso, é a ilusão de Onipotência do Outro
materno que marca o primeiro tempo do Édipo: “De um outro onipotente, a criança não
pode esperar senão a potência da satisfação” (FARIA, 2003: 51). O dom é a satisfação
que o Outro ou recusa; assim, se houve frustração, não foi porque o objeto faltou,
mas por recusa do dom pelo Outro. Nesse primeiro tempo do Édipo, o registro da falta
está excluído. Portanto, diz-nos a autora: “no primeiro tempo a mãe é a potência de
66
Nasio (2007) define fantasia como “[...] uma cena imaginária que propicia consolo à criança, tome esse consolo a
forma de um prazer ou de uma angústia. Assim a fantasia tem por função substituir uma ação ideal que teria
proporcionado um gozo não-humano por uma ação fantasiada que baixa a tensão do desejo e suscita prazer,
angústia ou ainda outros sentimentos, às vezes penosos [...]. A cena fantasiada não é obrigatoriamente consciente
e ela se traduz na vida cotidiana da criança por um sentimento, um comportamento ou uma fala [...]. Em suma, as
sensações despertam o desejo, o desejo suscita a fantasia e a fantasia se atualiza através de um sentimento, um
comportamento ou uma fala”. (p.29).
67
Como a criança o esainda na posição de sujeito, também não é possível supor a relação desta com o que
lhe é oferecido pela mãe como relação de objeto; portanto, Faria usa o termo dom, retirado do contexto em que
aparece no Seminário 4 de Lacan para designar essa relação que não pode ser chamada de relação de objeto.
93
satisfação da criança, tanto mais quanto maior for o assujeitamento da criança à mãe. É
esse assujeitamento que faz da mãe um Outro onipotente, que tem e ou recusa, mas
que inevitavelmente, tem para dar.” (FARIA, 2003, p. 53).
Tanto a mãe como a criança estão em posição fálica, pois simbolicamente a criança
ocupa para a mãe o lugar de falo, ou seja, o que lhe obtura a falta, mesmo que
provisoriamente, e a mãe, pela suposta onipotência, também ocupa esse lugar para a
criança. Assim estão identificados e é com base na alienação, nesse desconhecimento,
que “a criança ocupa no primeiro tempo a posição de falo materno. E a base desse
desconhecimento é a identificação imaginária ao falo, uma identificação que
desconhece o estatuto do falo como elemento terceiro, como elemento simbólico”
(FARIA, 2003, p. 57). No entanto, para a mãe, o falo é um objeto simbólico. Ela
desejava essa criança antes de tê-la, por isso a criança tinha um lugar simbólico em
seu desejo. Assim, também é possível compreender que o falo se remete a muitos
aspectos inconscientes desse desejo. A mãe transmite muito mais do que pode controlar
ou conscientemente querer para seu filho. O simbólico é logicamente anterior à criança,
já está dado.
Como, entretanto, adverte-nos a autora ao citar Lacan, diferenças importantes
entre a pré-existência do simbólico – “a linguagem, com sua estrutura, preexiste à
entrada do sujeito num momento de seu desenvolvimento mental [...] O sujeito, se pode
parecer servo da linguagem, o é ainda mais de um discurso em cujo movimento
universal seu lugar está inscrito em seu nascimento nem que seja sob a forma de seu
nome próprio”
68
-, e a inscrição do sujeito nesse campo, que “admite mais de uma
particularidade” (FARIA, 2003:59). Como a lei do simbólico está vigente, o pai também
68
LACAN, J. (1957) A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In: Escritos, p. 498, apud FARIA,
M.(2003)
94
terá seu lugar não para a criança, diretamente, mas em potência para o Outro materno.
Cabe salientar a expressão em potência, pois é mediante tal característica atribuída ou
não ao pai que a mãe a ele se referirá, apresentando-o para o filho. Ao tratar do tema da
psicose, Dor (2003: 99)
69
cita um trecho de Lacan, precisamente direcionado a
demonstrar como a circulação do falo na genealogia materna determinará o acesso da
criança ao pai simbólico, do que dependerá a possibilidade desta de simbolizar a lei do
pai, instituindo a lei simbólica:
O que queremos acentuar é que não é unicamente com a maneira
pela qual a mãe aceita a pessoa do pai que devemos nos ocupar,
mas do caso que ela dá á sua palavra, digamos claramente, à sua
autoridade, ou seja , do lugar que ela reserva ao Nome-do-Pai na
promão da lei.
O segundo tempo do Édipo está marcado por certa suposição de que a criança pode
não ser o falo da mãe. Para Faria (2003), esse é o ponto decisivo que, segundo Lacan,
irá determinar a instauração desse segundo tempo do Édipo, ou seja, “a incidência da
castração na criança depende de sua incidência enquanto falta no Outro. É uma dupla
incidência da castração, sendo que a ênfase de Lacan recai sobre a importância da
castração materna.” (FARIA, 2003: 62). Tal incidência está associada à possibilidade de
a mãe pôr a criança em falta, suportar não ser o falo para a criança e, assim, instaurar
entre elas uma hiância, que seu desejo se remete a algo que não é o bebê. Por isso,
uma vez diferenciado do desejo da mãe, o bebê passa a se perguntar a respeito desse
desejo, pois a mãe sente falta de algo para além do bebê.
Nesse novo contexto, a mãe pode ou não estar presente; na ausência dela irá
germinar a potência simbólica da criança; com a presença na ausência, abre-se o campo
de experimentação desejante. Na ausência, a falta moverá a criança em direção ao
69
LACAN, J. (1957) apud Dor (2003).
95
símbolo que presentifica, mas não fusiona. Com isso, quero dizer que a mãe ainda é
fundamental como presença de uma ausência. A força dessa ausência é simbólica e não
real, ou seja, ela está na mãe como privação, pois é necessário que a mãe esteja sob a lei
simbólica que se move pela falta para que não se totalize imaginariamente com a
criança. Daí ser possível compreender que “é nessa articulação da privação como uma
falta capaz de situar um enigma em relação ao desejo do Outro, que Lacan situa a
entrada do pai” (FARIA, 2003: 70).
Interessa-nos, portanto, em particular, essa entrada do pai que marca o segundo
tempo do Édipo para Lacan, uma vez que o pai, como representante da lei que interdita
a mãe, precisa também ser mediado pelo discurso dela. Desse modo, “para que ele tenha
seu lugar enquanto lei ele está na dependência daquilo que se articula como mensagem,
na mãe” (FARIA, 2003: 75). No segundo tempo, o pai passa a ser o operador da
privação materna e a falta evidente na relação entre mãe e criança será delatada pelo pai
que, assim, moverá a criança em direção à interdição do incesto, representada pela
privação atribuída à mãe pelo pai. O pai até aqui é objeto imaginário onipotente e
privador, mas ganhará outros atributos no decorrer do desempenho de sua função.
No terceiro tempo do Édipo, o pai é o que tem o falo e, por isso, poderá dá-lo.
grande diferença entre o pai onipotente do segundo tempo e o pai potente do terceiro
tempo, que não retira e priva, mas tem para dar: dar para a mãe o que ela deseja e, para
o filho, potência. Por isso, trata-se de dar um objeto simbólico, “na medida em que é
somente como tal que o objeto pode circular” (FARIA, 2003: 77). O pai, no novo
registro, está acompanhado pela mudança no estatuto do objeto, que ele não é o falo,
mas tem o falo e, por isso, pode doá-lo. Ao circular, o falo não pode mais ser pensado
como propriedade plena, mas como objeto passível de ter e perder. Isso possibilita o
trânsito entre todos os sujeitos, pois ninguém o é totalmente e nem o tem sempre. Disso
96
decorre a operação libertária e que significa a saída do Édipo: abandonar a onipotência
para ter alguma potência.
Tal operação só é possível se, no desejo materno, foi aberta a falta presentificada na
relação com o filho, que passa a se perguntar a respeito do remetente do desejo da mãe,
que ele encarnava na posição fálica, marcada pela frustração quando o dom era
recusado. Suposta a privação da mãe, o pai é o agente dessa privação e remetente do
desejo desta, ou é quem tem a posse do significado do desejo da mãe. Ou seja, o pai
sabe o que ela quer. No entanto, “o pai como metáfora, não pode ter o significado, mas
a função paterna articula-se como função essencialmente simbólica, uma vez que ele
toma o seu lugar como o significante do desejo materno” (FARIA, 2003: 83). Essa
autora esclarece ainda que “para Lacan a posição do pai como detentor do falo é o que
oferece o ponto de identificação do menino. Identificação que significa internalização
do pai no sujeito como ideal de eu.” (FARIA, 2003:85)
Conforme anunciamos no início deste tópico, mediante a análise que Faria faz do
caso do “Pequeno Hans”, trabalharemos em seguida com a ideia do sintoma como
suplência do pai, localizado pela autora em três diferentes estruturas
70
psíquicas.
A exposição feita permite-nos pensar a diferença da função paterna nas três
estruturas psíquicas. Na psicose, não função paterna, pois a criança é fixada na
identificação com o Outro onipotente, a mãe, e por isso a entrada de um terceiro é
efetivamente barrada. A psicose também pode ser pensada como uma primeira etapa da
neurose, uma vez que começa no primeiro tempo do Édipo, mas não se move daí a
posição da criança, forcluída”, termo utilizado para indicar o que faltou ao sujeito
psicótico: “a castração enquanto ordenadora do campo simbólico e, consequentemente,
70
A distinção entre três grandes estruturas - neurose, psicose e perversão - no campo da psicopatologia se deve à
teoria lacaniana.
97
de suas relações com a realidade” (FARIA, 2003: 114) fadada à clausura no desejo do
Outro.
Quando a palavra do pai não vale, será muito difícil remeter a ele o envio do que
terá função de castração. Teríamos aqui a estrutura perversa, que é caracterizada pela
presença de uma mãe que dita a lei ao pai. A frágil posição do pai de Hans em sua
função, mais de analista do que de pai, produz uma semelhança entre a posição de Hans
e a perversão. Faria (2003:192), citando Lacan
71
, salienta que a chave da relação do
Édipo, “o que constitui seu caráter decisivo, deve ser isolado como relação não com o
pai, mas com a palavra do pai”. Portanto, ao responder à questão “qual a relação entre o
complexo de castração e o ambiente familiar?”, a autora ratifica as posições de Freud e
de Lacan, afirmando que “o lugar esperado do pai é aquele no qual está identificado
com o agente da castração, senão é inoperante” (FARIA, 2003: 193).
Na estrutura perversa, o pai é inoperante. No entanto, Hans fica fora da estrutura
perversa ao manter a masturbação, opondo-se ao ideal materno, pois continua mexendo
na “porcaria”
72
, sai do lugar de falo para a mãe e mantém seu fluxo pulsional, o prazer
sentido em seu pênis, movido pelas fantasias cujo objeto era a mãe. Não encontrando
interdição imaginária possível, desenvolve um estado de angústia crescente até chegar à
fobia, como sintoma que faz a função de castração. Onde deveria estar o pai, ele coloca
o cavalo. O deslocamento é necessário, porque Hans carecia de algo externo a ele e que
tivesse a marca do que é prezado por ele para se desvencilhar da soberania materna;
certamente não podia ser a mãe, simplesmente porque não tem pênis. Assim, o cavalo
fica no lugar do pai imaginário, privador e onipotente. A esse respeito, esclarece Faria
(2003: 30):
71
LACAN, J. (1957/1958).
72
Expressão usada pela mãe quando Hans pede que toque seu pênis e ela se nega.
98
O que Lacan afirma no Seminário 4 é que no caso da fobia, o há
elemento que sustente um lugar terceiro de intermediação nessa
relação de duas faltas. Para Lacan, o objeto fóbico aparece para
suprir a carência desse elemento terceiro, situando-se no lugar onde
falta o pai. Uma vez que o sujeito fóbico se depara com a falta, ele
apela à fobia como organizador dessa falta para a qual não há outra
forma de organização possível (devido à carência do pai).
A partir da clínica com os pacientes que gaguejam, vemos a formação do sintoma
fóbico em estreita semelhança com a formação da gagueira como sintoma, como
podemos observar no caso de Bernardo, um paciente de cinco anos, em cuja conflitiva a
função simbólica do pai está literalmente “afetada” pelo que se monta como imagem do
pai no discurso materno. Tal hipótese metapsicológica não deve ser vista como regra da
estruturação psíquica dos pacientes que gaguejam, embora possa instrumentalizar
algumas discussões a respeito desse sintoma em associação com a dinâmica familiar na
qual a função materna e paterna são exercidas em sua função estruturante. Com os
pacientes adultos, articularemos essa reflexão mais voltada para os traços
psicopatológicos dos pacientes com esse sintoma e que são atuados na transferência.
Desse modo, discutiremos, no próximo capítulo, casos nos quais fragilidade no
pai real, da qual decorrem desdobramentos de inoperância em sua função simbólica, não
sustentada pelo discurso da mãe. Decorre também daí a necessidade do sintoma como
um apoio inconsciente para o menino sair do primeiro tempo do Édipo. Como assegura
Faria (2003: 104), “a fobia não corresponde à ausência da função paterna, mas a uma
ocorrência relativa à passagem do estatuto imaginário ao estatuto simbólico do pai”
73
.
Apesar de seguir na estruturação subjetiva em direção à neurose, chamam a atenção a
precocidade do sintoma e as marcas peculiares deixadas por esse empecilho na
linguagem na formação do ego, pois esses pacientes, de modo geral, avançam para o
73
Vale ressaltar, como orienta Faria (2003: 194), “duas formas de inoperância do pai, uma é a sua carência
estrutural ligada à Verwerfung e outra é a ‘ineficácia’ do pai termo que se sustenta sob um fundo de ideal de eficácia
paterna”.
99
terceiro tempo do Édipo muito fragilizados pela impotência atribuída à gagueira.
Mediante as operações necessárias ao estabelecimento do terceiro tempo do Édipo,
nossa hipótese é a de que, mesmo em seus primórdios, a gagueira funcionava como
um símbolo da dificuldade na identificação simbólica com o pai.
No caso de Hans, o sintoma é organizado como resposta ao espaço deixado vago
pelo pai: o menino desloca a função deste, como elemento da castração, para o cavalo; o
acerto realizado pelo sintoma visa assegurar sua integridade física e psíquica, pois evita
um mal mais perigoso que é o de permanecer “num imenso despropósito” como
assegura Nasio (2007: 10) “o de manter o desejo sexual de um adulto na cabecinha de
um menino de quatro anos”. Cumprida sua função de castração, que traz como produto
o superego, “herdeiro do complexo de Édipo”, o sintoma perde sua função e a catexia
nele investida retorna para o ego, o que pode ser uma parte da explicação para o fato de
a gagueira esvanecer nas crianças que são tratadas terapeuticamente (como
mencionamos, de 80 a 100% melhoram na infância).
Com os adultos, a inscrição renitente do sintoma permaneceu. Haveria, portanto,
falhado a formação da instância superegoica no aparelho psíquico? Não parece ser esse
o desfecho psicopatológico, próprio da perversão; no entanto, a gagueira não teve, como
a fobia, um prazo de validade associado a determinada função na economia psíquica. A
marca desse tempo de pavores e horrores inerentes ao complexo de castração e as
fantasias ainda mais aniquilantes, se a ele não fosse submetido, continuam explícitas na
linguagem.
Os gagos adultos parecem necessitar da presença do sintoma e do medo dele
derivado para aplacar a angústia. Angústia derivada do segundo tempo do Édipo,
associada à percepção da falta sem endereçamento devido; angústia em enfrentar a
100
“presença de uma ausência”
74
, de uma ausência aberta nesse lugar que não é ocupado
pelo pai no discurso materno
75
. Essa assertiva, produzida pelas articulações entre a
conflitiva edípica, a formação dos sintomas e peculiaridades dos pacientes com sintoma
de gagueira, permitem-nos ampliar a percepção desse fenômeno. Faríamos um estrago
desastroso na liberdade de reflexão e pensamento clínico permeado pelo referencial
psicanalítico, se os casos com suas marcas instituintes, sempre inéditos, ficassem
reduzidos em sua complexidade a uma fórmula passível de aplicação e verificação
experimental.
Embora tenhamos refletido por um novo prisma a respeito da relação entre o
complexo de Édipo e a gagueira, caminho que nos permitiu organizar a hipótese de que
esse sintoma funciona como um símbolo da dificuldade em viver a identificação
simbólica com o pai, ficamos com outras questões. Uma delas é a seguinte: por quais
motivos o sintoma com função de castração permaneceu situado na linguagem? Essa
pergunta é trabalhada ao longo da apresentação do caso de Bernardo, pelas relações
estabelecidas entre o sintoma na linguagem e os ideais parentais.
2.3 Bernardo: o desbravador de novidades
No geral, as crianças melhoram da gagueira quando os pais se dão conta do
atravessamento dos seus ideais e projeções no modo como escutam o filho ou, ainda,
quando percebem o peso desmensurado atribuído à fala da criança. A condição da
74
Suportar a presença de uma ausência seria a condição, segundo São Tomás de Aquino, apud Garcia Roza (1992:
172), para alçar o conhecimento. “O desconhecimento é a presença de uma ausência. Diferente do
desconhecimento, a ignorância é o vazio”. A “ignorância corresponderia à posição psicótica, gerada pela carência
do significante Nome-do Pai.
75
Cabe salientar, mediante as palavras de Dor (1995: 46) que a carência do Pai simbólico, isto é, a inconsistência
de sua função no decorrer da dialética edipiana, o é absolutamente coextensiva à carência do Pai real em sua
dimensão realista”, com isso voltamos a asseverar que o pai simbólico é uma função que mediatiza os desejos
respectivos da mãe e do filho e que vai ser o representante do significante lico, enquanto simbolizando o objeto
da falta desejado pela mãe (p.42).
101
criança é definida pelo vir a ser, por estar em constituição e, por isso, submetida a uma
especularidade, um ideal, mas ao mesmo tempo, “à condição temporal de um inédito
incomensurável” (VORCARO, 2004: 25). Esse estado pressupõe dependência dos
adultos responsáveis pelo exercício das funções materna e paterna, e ao mesmo tempo
funções responsáveis pelo “‘irredutível de uma transmissão’
76
, ligada de um lado aos
cuidados maternos e de outro ao Nome-do-pai” (FARIA, 2003: 140).
Os efeitos da transmissão não se reduzem à produção inequívoca de um simulacro
dos desejos inconscientes dos pais, haja vista que a criança se posiciona frente a
determinados imperativos especulares. Consideramos, com as autoras mencionadas,
que, embora a criança esteja sendo significada numa trama discursiva que a determina,
pela anterioridade lógica da linguagem na supremacia do significante, ela se move de
forma singular nessa rede, em nuances performáticas sem precedentes. Por isso, embora
a mãe tenha responsabilidade, a ela não se atribui nada que se assemelhe à conotação de
culpa, que pressupõe intenção e ações premeditadas, o que não se aplica às razões
inconscientes que gerenciam a função materna.
Nessa perspectiva, trabalhar o caso é também colocar para trabalhar os significantes
que marcam a relação da mãe com o filho, os quais ganham uma forma no sintoma.
Aparentemente visível, o sintoma, em particular a gagueira, audível, mas nem tanto,
nem sempre audível para pai e mãe, mas num lugar de realidade, tratada pelos pais
como problema instaurador de uma queixa. Por isso a gagueira orienta a escuta da
terapeuta da linguagem para o que supomos existir num mais além da gagueira, onde
podemos encontrar o sujeito que, apesar de parecer dominado pelo submetimento ao
Outro, abre pelo sintoma a entrada para um outro terapeuta que pode recriar o
sentido do sintoma e, consequentemente, a posição do sujeito que por ele se expressa.
76
LACAN, J. (1960).
102
Mesmo que o trabalho com os pais siga mais lentamente, é surpreendente como a
criança passa para outra posição discursiva logo após o início do processo terapêutico,
principalmente quando está entre três e seis anos, como se uma nova escuta
magicamente imprimisse fluência no encadeamento entre sons e palavras. É comum o
sintoma perder seu vulto quando a fala da criança recebe um acolhimento desprovido de
idealizações. Esse é um fator importante para serem levantadas hipóteses a respeito do
que está em jogo na transferência e, portanto, na permanência desse sintoma.
Por quais aspectos transferenciais é que o terapeuta da linguagem pode sustentar
com o paciente um jeito novo de dizer? Talvez a posição ocupada por aquele que está
como suposto saber sobre a fala autorize a criança a falar, o que diminui ou divide o
poder dado aos pais, ou, mais particularmente, à mãe, que vai ou não permitir que a
entrada de um terceiro seja de fato significativa e lance o discurso da criança para outras
demandas que não para as dela em relação ao filho idealizado. implícita aqui a
suposição de que o complexo de castração esteja impedido de ocorrer, que a falta se
instaura claudicante, portanto, a posição fálica da criança, fundamental no primeiro
tempo do Édipo, estende-se anacronicamente.
As hipóteses acima mencionadas foram construídas também pelo caso de Bernardo,
cuja problemática encontra similaridade em muitos casos de gagueira na infância. Por
telefone, sua mãe, Alice, bastante assustada, disse que o filho estava gaguejando desde
que tinha se aproximado a data do aniversário de seis anos, que seria comemorado pela
primeira vez num buffet. No dia seguinte à festa, seu filho iria fazer uma viagem
sozinho com o pai, assunto que tinha ocupado bastante seu interesse e aparecia
associado à gagueira também. Movida por certa urgência em amparar o filho desse
sintoma, pedia que eu lhe dissesse como se portar, para que ele não ficasse pior e
estragasse a festa, que estava prestes a ocorrer.
103
Tentei mudar um pouco seu foco para a intensidade dos sentimentos associados aos
eventos iminentes, sugerindo que buscasse com Bernardo o imaginário em torno deles.
Também poderia ajudá-lo, se ela se lembrasse de situações de grande expectativa e
compartilhasse com ele os bastidores de suas esperas. Movia-me a ideia de que seria
mais útil para ele falar dos seus sentimentos a respeito da gagueira, o que também
poderia auxiliar a mãe a tirar da forma da fala em si, o foco do sintoma. Em uma
semana, ela ligou novamente dizendo que a gagueira praticamente havia desaparecido,
mas que iriam se organizar para que eu pudesse avaliar seu filho, o que aconteceu seis
meses depois.
Essa situação é típica das muitas questões enquistadas nesse enigmático sintoma – a
fala que não flui, reflui ou paralisa. Assim como vem, também pode se ocultar ou
desaparecer, mas permanece a ameaça do estigma, do desalento de se ver alijado da
possibilidade de domínio da música da língua
77
. Não se trata de falhas em entrar no
funcionamento simbólico, nem de perverter as regras do que nos submete e contorna,
dando-nos estatuto de sujeitos devotados a produzir enunciados possíveis na língua,
pois, na gagueira, regras de produção de sentido para o literal estão intactas e
compreendidas, ademais sofrem uma torção pela melodia e não na estrutura.
À parte isso, a referência aos meios necessários para produção do significado, os
traços supra-segmentais
78
subvertidos em bloqueios, pausas excessivas, repetições,
podem desaparecer na infância ou não, por diferentes razões. Em alguns casos, a
gagueira fixa-se como uma marca distintiva dessa fala até parecer ao adulto gago que
77
Viviane Veras em comunicação pessoal fez uma associação bastante pertinente com nosso trabalho ao relacionar
a piora da gagueira na adolescência dos meninos com a possibilidade de reviverem na muda, a muda que ocorre
nos tempos do Édipo. Afinal tudo começa pela melodia da voz materna, depois entram as escanções da lei paterna,
e é nesses lugares de corte (que se associam com a angústia), que a gagueira se mete, empacando essa lei, sem
ignorá-la daí que não há problema de produção de sentido. Lembremos que o corte pode se dar, como diz
Saussure, em qualquer ponto da cadeia.
78
Característicos da prosódia, ritmo e entonação que sustentam a melodia da fala, indissociáveis das características
da produção vocal, ou qualidade vocal.
104
algo se impôs a ele como determinação biológica, gerando um fenômeno do qual é
apenas mais um representante do estranho que lhe sobreveio como um mal externo e
imponderável.
Por outro lado, Anzieu (1998: 167) salienta que “a gagueira expõe um
comportamento duplo em forma e conteúdo, exprimindo com isso duplicidade do
inconsciente, um vez queo falar’ se duplica com o dizer, e que o sujeito se projeta ao
mesmo tempo em sua forma corpórea e em sua forma psíquica na fala, pela voz e pelo
discurso [...] falar é arriscar-se a dizer. Dizer é dizer seu desejo. O gago não tem defesas
solidamente organizadas que lhe permitam distanciar-se da invasão libidinal [...] está
dividido entre a intenção de manifestar para a mãe o desejo de corresponder ao que
espera dele, e a necessidade persecutória de se defender de uma possível deterioração de
seu interior”.
Após seis meses praticamente sem gagueira, Alice ligou para agendar a primeira
entrevista. Ouvi os pais: ele menos preocupado com o sintoma, pois não o escutava com
tanta frequência quanto ela, que era quem ouvia a disfluência na fala de Bernardo desde
que tinha dois anos. André concordou que existia algum problema na fala; no entanto,
assegurou que seu filho não se importava tanto com isso, pois não sofria e nem deixava
de falar. Apesar de pensar assim, consentiu com a avaliação, concordando em não
contrariar Alice.
Ambos retomaram sua história de casal. Namoraram por um ano, período após o
qual chegaram a um momento bastante decisivo da relação: ele queria casar e ter filho.
Ela, sem certeza de que poderia ser mãe, sentia–se pressionada pelo desejo dele e, ao
mesmo tempo, por “seu estilo de vida acelerado”, tinha medo dos destinos da relação,
pois eram muito diferentes. Acabaram por separar-se. Entretanto, encontraram-se por
105
acaso em uma festa, quando Alice engravidou e decidiram casar. O tempo da gestação
foi bem difícil emocionalmente, que permaneciam os medos; no entanto, ela foi se
encantando pelo bebê à medida que percebia sua presença cada vez mais viva e
contundente. Desde que nasceu, “ele era um bebê colérico, seus gritos fortes chamavam
muito a atenção”. Apesar disso, Alice disse que não conseguia acordar na madrugada
para cuidar do filho, pois seu sono pesado se impunha e o pai, ausente durante o dia, era
o guardião do bebê na madrugada.
André é o primogênito de “pais muito corretos e preocupados com o futuro dos
filhos”; no entanto, a relação com seu pai se definia pela não-identificação: “meu pai era
violento e distante, sempre tive medo de me parecer com ele... mas eu queria muito ter
um filho e Bernardo é exatamente como esperei”. O nascimento de seu filho veio
associado a situações de conforto e satisfação, pois havia recentemente concluído um
curso trabalhoso e extenso e, em seguida, passara num concurso que lhe assegurava um
emprego bastante desejado. Alice não trabalhava e decidiu não fazê-lo, para ficar
cuidando exclusivamente do bebê até retomar seus estudos, o que ocorreu um ano antes
do atendimento.
Segunda filha de pais que se separaram quando ela tinha quatro anos, Alice
salientou que eles não eram os mais indicados para cuidar dos filhos. Sentia-se
completamente à mercê dos desejos da mãe e pouco considerada nos seus. Quando a
avó não podia ficar com ela à noite, era levada pela mãe, junto com o irmão mais velho,
a participar sem muitas restrições da vida noturna. Suas lembranças de afeto são
precárias e a sensação de abandono era contornada pela presença cuidadosa da babá. Na
adolescência, Alice também enfrentou situações muito violentas na relação com sua
mãe, caracterizada pela filha como alguém excessivamente egocêntrica e frágil. Alice,
ao exemplificar as impossibilidades de sua mãe em ser sensível para percebê-la, referiu
106
o desejo de trabalhar como atriz; desejo que teve sua raiz estirpada por imperativos
verbais destrutivos de sua mãe. O pai, embora tentasse se aproximar, estava muito
distante, mudou-se para o exterior onde constituiu outra família.
Com a palavra, a mãe fez um resumo das referências que encontrou na internet
sobre o assunto, “a gagueira”, teorias diversas que apoiavam opiniões divergentes.
Espantada, perguntou: “Mas ninguém sabe a causa?” Podia refutar a hipótese genética,
que ninguém na família apresentava problema de fala, mas continuou tentando
discorrer sobre a etiologia da gagueira. Foram abordadas algumas teorias com premissas
biológicas, desordens neuromotoras que poderiam gerar a disfluência, e até o
automatismo aprendido se manifestando como comportamento inadequado que pode ser
suprimido com treino específico, “como uma ginástica para falar melhor”, concluiu, na
expectativa de que eu lhe confirmasse essa possibilidade.
Sem a resposta esperada em meu olhar, confessou que seu maior medo era não
tomar as providências devidas na infância e isso acarretar a cronificação desse terrível
sintoma. Seu alarde suscitou um comentário inicialmente quase inaudível de André:
“Posso dizer que ouço 30% disso que ela chama de gagueira, ele repete algumas
palavras no início das frases, quer falar muito, mas é menos grave que isso, não acho
que seja gago”.
Os pais se expressaram com facilidade. A palavra circulou num contexto de maior
permissividade à expressão dos pensamentos e reflexões da mãe, enquanto o pai tentava
encontrar brechas nos enunciado de Alice, mas retomava seu silêncio, de certa forma
justificado pela falta de conhecimento a respeito do assunto privilegiado por ela. No
entanto, foi quem de fato conseguiu começar a falar mais diretamente a respeito de
Bernardo.
107
Ideias aparentemente esparsas e inconclusas iam conduzindo os dizeres do pai.
Mesmo tendo se debruçado pouco em pensar sobre a fala de Bernardo, abordou sua
relação com o filho como um descompasso no ritmo:Ele é acelerado para falar, mas
lento com as coisas. Demora para fazer tudo, e isso é o que me incomoda. Demora para
tomar banho, almoçar, levantar e etc.”. “Nisso vocês são muito diferentes”, disse a mãe.
“Como assim?”, perguntei. Alice contou que André estava sempre correndo, até sofreu
uma síncope, teve uns desmaios, por excesso de compromissos e responsabilidades.
“Sou mesmo muito ansioso”, respondeu um pouco pesaroso, e voltou a silenciar.
Perguntei como se sentiam com relação à própria fala. André gostava de falar,
sempre se colocava em situações de liderança, seu trabalho demandava que se
expressasse bem em público. Gostava de fazê-lo, sentia que se colocava bem.
Realmente tinha um discurso bem articulado: com ritmo acelerado, mas rico em
entonação, marcado por curva melódica bastante móvel, enganchando o ouvinte numa
expectação, prendia a atenção. Alice, ao contrário, fugia de situações de exposição:
“Não ocupo muito esses espaços, sou mais fechada, mas o jeito de falar dele me
incomoda bastante, é um pouco exagerado, afetado”. Visivelmente surpreso pela
revelação da esposa, André tentou disfarçar o desconcerto e se calou.
Alice achava que recorrentemente davam mensagens paradoxais ao filho, pois ao
mesmo tempo em que pediam para Bernardo falar, pois queriam saber como tinha sido
na escola, a relação com os amigos, suas opiniões sobre filmes, esportes, livros e etc.,
nem sempre podiam ouvi-lo em tudo que tinha para dizer, “até porque ele fala muito e o
tempo todo”. Havia ainda um agravante: quando Bernardo falava, não conseguia fazer
mais nada; parava de comer, de se vestir, e os pais tinham que parar também, e nem
sempre isso era possível. Quando estavam de folga ou no jantar, a situação era diferente,
pois podiam escutá-lo como Bernardo gostava, com atenção exclusiva. “Acho que ele
108
fica chateado com isso, tento não decepcioná-lo, me parece bem sensível e às vezes não
sei se estou certa, mas me pego muito influenciada pelas opiniões dele, até mudei de
ideia a respeito de um colar que eu usava quando ele disse não gostar”.
A mãe se esforçava para não frustrá-lo, considerando seus interesses e opiniões; no
entanto, fazia-o sem muita discriminação entre as diferenças inerentes ao seu mundo de
adulta e o de seu filho, pois Bernardo parecia ter que corresponder a altos ideais quando
seus dizeres eram ouvidos como fruto de inteligência especial. Aparentemente não havia
castração, e a consequência desse aval exacerbado dado ao filho pela mãe e também
pelo pai, quando dizia que Bernardo “é exatamente como imaginou” – era a necessidade
de fazer juz a ele, correspondendo com comportamentos e conteúdos verbais muito
elevados também.
Para cumprir o acordo tácito imaginário entre ele e o ideal dos pais, ficaram
elididos da relação com eles e com as pessoas em geral a agressividade e outros
impulsos mais primitivos que o haviam levado em direção ao risco de perder o lugar de
amor que lhe era conferido. Outro aspecto importante nesse caso era a anulação da
agressividade pelo pai, como um traço do avô paterno de Bernardo que devia ser
excluído e não herdado. Nessa perspectiva, a interdição recaía sobre a herança paterna e
não sobre os excessos maternos.
Na sequência da entrevista, André se pronunciou salientando que Bernardo era um
filho bem “amigo”, pouco agressivo na escola, relacionava-se bem, nunca teve
problemas de adaptação. Pelo contrário, gostava dos amigos e era muito querido
também, engajava-se nas atividades, adorava correr e fazer brincadeiras de aventura,
sempre foi interessado nas rodas de história e em livros. A afinidade aparente com o pai
não significava identificação com ele, mas certa parceria na função de provedores da
109
mãe; ambos pareciam ter claro o imperativo de não frustrá-la, e empenhavam-se nesse
sentido.
Apesar de toda a disponibilidade de Alice, o choro de Bernardo não a convocava
em apelo. Soava-lhe colérico, excessivamente bravo. Imaginariamente essa suposição
parecia associar-se a uma ideia a seu respeito, como se não tivesse correspondido a
alguma demanda do filho e, por isso, ele estava a ponto de devorá-la. A fantasia de
Alice colocava-a longe do apelo, como se Bernardo fosse ela mesma implorando por
uma mãe que não podia escutá-la, num misto indiscriminado de súplica e decepção.
Nesse contexto, o pai assumiu o remetente do apelo e acolheu o filho. Para André, o
grito tinha efeito de sentido completamente diferente: não era sinal de cólera, mas de
dependência e fragilidade.
As fantasias de impotência e limitação da mãe diante do choro de Bernardo
certamente marcaram suas respostas a ele, talvez com atitudes descompassadas, voz
ansiosa, medo de ser engalfinhada pela demanda de onipotência que qualquer bebê
requer do adulto na função materna. Podemos imaginar que a mãe não estava recusando
o dom ao filho, mas simplesmente não havia sido suficientemente marcada por ele, por
isso duvidava dele. Muito precocemente o pai real foi inserido, não como privador, mas
como colaborador da mãe, um apêndice da função materna.
Podemos, assim, inferir, com vistas na dinâmica do casal desde o período do
namoro, que André seguiu tentando manter Alice preservada de viver sofrimentos que
pudessem acionar dores acumuladas pelas marcas de sua infância. Alice, por sua vez,
nunca parecia feliz. Certamente a falta deixada pela função da mãe em sua história não
poderia ser obturada pela dedicação do pai e do filho, mas apenas trabalhada por ela em
análise. No entanto, André se mantinha tentando supri-la.
110
Anzieu (1997), em seus pronunciamentos sobre neurose e gagueira, considera a
insatisfação da mãe uma experiência presente tanto no imaginário quanto na realidade
das crianças gagas. Essa insatisfação transforma-se para os gagos em “fonte perpétua de
decepção e castração” (p. 116), pois não têm defesas suficientemente estruturadas para
se defenderem da invasão libidinal associada à demanda materna. De certa forma,
podemos observar esse aspecto presente também em Bernardo, pois, embora se lançasse
em narrativas e exposições orais, isso deveria tomar-lhe toda atenção e cuidado; falar
significava mexer em algo delicado, já que havia o risco de ser posto à prova pelo “ideal
de eu” bastante elevado tomado da mãe e que ainda não havia sido revisto e
ressignificado pelas marcas de identificação com o pai. Em nossa opinião, o pai também
era sintônico aos altos ideais da mãe, no entanto, vivia os imperativos das exigências
como formas de enfrentar desafios postos em sua própria vida, e não na do filho. Alice,
após ter retomado seu trabalho, atenuou a fixação de seu olhar em Bernardo e foi se
dando conta do tamanho de seus ideais em relação à própria escrita, linguagem de que
passou a cuidar com maestria no contexto profissional em que experiências de
satisfação eram viabilizadas. Digamos, a título de suposição, que se instaurou nela o
remetente mais momentoso para enviar a falta.
No entanto, supomos que sua demanda inconsciente, desde antes do nascimento de
Bernardo, era a de ser cuidada e não a de cuidar, por isso, talvez, mesmo sendo uma
mãe dedicada e muito envolvida com o filho, esperava dele esse amor incondicional e
impossível. Para dar conta da função materna, Alice também paralisou todos os outros
investimentos de sua vida, inclusive no casamento. Postergou seus projetos pessoais até
que Bernardo completasse quatro anos, período em que retomou o trabalho. Não é sem
sentido a simultaneidade desses acontecimentos com a busca pelo trabalho terapêutico;
é possível equiparar a demanda da mãe a uma espécie de constatação inconsciente de
111
sua castração, posto que mesmo seu discurso consciente seguisse na direção de dissipar
as imperfeições do filho, buscar ajuda já lhe fazia abrir espaço para a falta nela e nele.
A palavra do pai era escutada pela mãe num duplo registro: admirava sua
habilidade discursiva, o domínio da estrutura de funcionamento da linguagem e sua
capacidade para falar em público, mas fazia menção a certa peculiaridade na prosódia
que destoava dessa potência discursiva, havia, na melodia da fala de André captada
pelos ouvidos de Alice, exagero de entonação, uma fragilidade, uma afetação. Supomos
que o medo de André em parecer com seu pai foi o afeto que atravessou sua
“persona”
79
, sua voz pouco grave e a prosódia peculiar. Essa característica que Alice
estranhava e rejeitava conscientemente, pode tê-la fisgado inconscientemente, pois
nesse traço certa aproximação com a “língua materna”
80
, com a língua que as mães
usam na relação com seus bebês, caracterizada por picos de agudos e cheias de marcas
afetivas. Essa língua, de certa forma entoada pelo marido, fez o amor brotar em Alice;
no entanto, por razões inconscientes, o “estranho familiar” é esse referente de seu
incômodo.
Numa direção menos tendenciosa do que a de pensar essa mãe com características
fálicas e tanto o filho como o pai a ela sujeitados, seria perceber nela a dependência da
potência desse marido que deve sempre ser disfarçada por ele e negada por ela. Apesar
de André aparecer no discurso de Alice como líder estimado, um homem adulto e bem
sucedido, isso não o mantém em posição de autoridade ou em condição de
simbolicamente usufruir dos efeitos positivos de suas conquistas, principalmente para
discordar ou se contrapor à esposa. Pelo contrário, mostra-se atormentado pela dúvida a
79
Persona, em grego, refere-se àsscaras usadas no teatro; significa “por onde soa”.
80
Jerusalinsky (2008) considera que no nível da prosódia materna não atingimos o patamar da palavra. Essa é a
principal razão pela qual assinala que “se trata de uma música sem texto, precisamente porque os fonemas e
morfemas valem ali somente (o que não é pouco), como notas, a meio caminho do estatuto da letra” (p.83).
112
respeito de sua potência e por isso, talvez, muito ansioso e sempre abarrotado de
compromissos.
A angústia de Bernardo, promotora de seu sintoma na fala, pode ter se exacerbado
pelo tempo real de ausência do pai. Como vimos, porém, a presença da função paterna
está na dependência do lugar que o pai ocupa no discurso da mãe. Daí o “medo da
ausência”, pois na ausência sua presença não era suficientemente sustentada pela mãe,
desse modo a ausência poderia significar não ausência, mas inexistência, um conluio
inconsciente para neutralizar os efeitos dessa função.
Cabe perguntar por que Alice não podia conscientemente ter um marido potente e
por que André precisava ser inquirido sempre a partir dessa posição de impotência. E
ainda: quais eram as possíveis relações desses acordos tácitos com o sintoma de
linguagem de Bernardo?
O sintoma fóbico do “Pequeno Hans” é analisado por Faria (2003) como uma
resposta ao “medo da ausência do pai”. Lembremos que o sintoma se organiza
justamente quando a vacância é simbolizada por ele. a presença de uma falta sem
objeto, tanto para ele quanto para mãe. Assim, a angústia
81
gerada pela constatação
simbólica afeta-o diretamente no real. Trata-se de angústia de castração: o sintoma é
instaurado mediante o efeito da castração. Bernardo vai organizar seu sintoma na
linguagem, pelo que nos parece, por motivos muito peculiares ou por uma cadeia
significante que nos cabe penetrar. É pelo que a mãe localiza como defeito no pai “ele
tem um problema na fala” e também pelo que ela localiza como limitação em si
“não sei falar em público” –, que dificuldades associadas à fala se transformam num
81
Segundo Lacan
81
(apud FARIA, 2003: 196), “angústia é se imaginar como fundamentalmente diferente daquilo
que é desejado e, como tal, rejeitado do campo imaginário, onde pelo lugar que ali ocupava, a mãe podia conseguir
se satisfazer.”
113
traço denegrido herdado e a gagueira funciona ao mesmo tempo como marca
identificatória com o pai e, de certa forma, uma falta também presente na mãe, pois ela,
provavelmente, pela extrema exigência colocada sobre si, pensa muito para falar e
prefere não fazê-lo em público.
Outro aspecto da linguagem foi salientado pelo pai, mesmo sem valor de queixa:
Indagava-o a relação pouco investida de seu filho com a escrita, que destoava de sua
sagacidade e esperteza. Relatou que Bernardo estava com certo atraso na elaboração de
hipóteses a respeito da escrita, e que era um dos que ainda não sabiam formar as
palavras, “embora reconheça as letras e possa reproduzi-las, está no grupo dos mais
fracos”. Imaginava que o filho devia se sentir um pouco mal por isso, “não sei se
percebe que está atrás dos outros”. Depois, retificou, dizendo que ele estava num ritmo
próprio e adequado, que não havia nenhuma observação proveniente da escola que
levantasse alguma dúvida sobre suas habilidades cognitivas.
A referência feita por André ao ritmo próprio de Bernardo se fez ouvir por Alice
como uma novidade dentro de seus acordos em relação ao filho, visto que o ritmo
próprio sempre fora um problema em relação ao “acelerado ritmo” dos ideais, tanto
maternos quanto paternos, a respeito do desempenho escolar do filho. Respeitar o
próprio ritmo significava para o pai “ficar atrás dos outros”, buscando o que é do outro.
Poderíamos pensar, principalmente, no que podemos perceber da criança, cuja posição
desejante estava pouco discriminada do desejo do Outro.
A mãe entregou-me todos os relatórios semestrais de Bernardo, dizendo que
houve uma observação da escola em relação à fala: quando parecia ansioso por falar e
perdia parte das palavras; mas foram situações esporádicas que não geraram prejuízo
direto por serem raras e não visíveis para todos.
114
Um dos relatórios, de quando Bernardo tinha quatro anos e meio, trazia a descrição
de uma cena bem interessante: nos últimos ensaios de preparação de um recital de
poesia, no qual recitaria um poema, apesar de ter se dedicado bastante, disse que não
iria se apresentar. Foi tranquilizado pela professora, que lhe assegurou que o faria se
quisesse. Ele afirmou que não iria; no entanto, no grande momento, levantou-se, pegou
o microfone e recitou.
Mesmo com os pais presentes na escola, Bernardo se autorizou a mostrar sua fala
em público, o que nos indicava uma posição conflitante entre a espectação receosa
em relação à fala e o desejo de exibi-la em público. Até esse tempo da vida de
Bernardo, a pulsão exibicionista não estava bloqueada pela culpa associada ao medo da
castração, pois havia mais desejo de mostrar a fala do que medo de gaguejar, embora
houvesse alguma questão associada à performance perfeita.
Finalmente encontrei Bernardo. De fácil contato, simpático e bastante interessado
em jogar, pareceu-me um desbravador de novidades. Ao ver os brinquedos do
consultório, passou a listar os seus, citando muitos, mas teve pouca paciência para
narrar quando perguntei como brincava e com quem. O mesmo aconteceu quando pedi
sua opinião sobre um filme avisou que não iria conseguir contar tudo, ia perder
partes e daria uma versão muito sintética da experiência, parecendo, de saída,
derrotado pela complexidade do pedido, que significava para ele “contar tudo”. Isso
certamente seria impossível, mas aventurar-se numa versão própria soava para ele
menos ou inferior, como se eu fosse apontar seus lapsos de memória ou deslizes;
desistiu.
Apenas no contexto dialógico com narrativa houve um episódio contingente de
disfluência, embora não tivesse sido acompanhado de movimentos associados à fala,
115
como elevação do pescoço, e nem de inversão da respiração, que incluíam a descrição
do sintoma relatado pela mãe. Havia certa evitação da fala. O importante era provar sua
sorte e astúcia nos jogos. Nenhuma menção às dificuldades de fala era nem de longe
proferida e, mesmo sabendo que fora esse o motivo pelo qual os pais o levaram para
terapia, certamente não era o mesmo que fazia Bernardo estar comigo. Qual era a
demanda de Bernardo?
Durante o primeiro mês de trabalho, a gagueira havia desaparecido da escuta da
mãe. Na escola, a orientadora pedagógica apenas observava que era muito difícil
Bernardo continuar falando após ter sofrido alguma decepção, por exemplo, ao ser
preterido numa escolha para o time de futebol ou quando perdia o controle de alguma
situação. O silenciamento emburrado era o que mais chamava a atenção e não um
problema na forma da fala.
O “silenciamento emburrado” era a estratégia utilizada por Bernardo para
manifestar seu descontentamneto, ou seja, objetivava, com o silêncio, fazer o outro
ouvir sua raiva. O ódio que poderia despertar a agressividade em direção ao outro o
colega que não o escolhe para o jogo e o colega que aperta seu dedo transformava-se
em silêncio e expressão facial de fechamento ao exterior. Provavelmente a perspectiva
em cena era a de mover a piedade alheia, ao se colocar como ofendido, fazer o outro
agir em função de sua suposta fragilidade, o que nos remeteu ao funcionamento da mãe,
somada à concepção vigente na família de que ser agressivo é ser ignorante, como o avô
paterno. outro problema na fala, na medida em que a linguagem não pode ser útil
para resolver os problemas de relacionamento para debater pontos de vista, mostrar
descontentamento, enfim, expor-se ao outro, por exemplo.
116
No processo terapêutico, jogar e falar não admitiam simultaneidade. Portanto,
mantinha-me em parceria para o jogo, driblava as normas e submetia-me a certa
desqualificação, como se pudesse ser dominada por sua perspicácia. Chamei sua
atenção para isso, ele se esquivou e mudou de jogo. Comemorava de forma efusiva suas
vitórias e desconsiderava as partidas perdidas, como se não valessem. Em transferência,
eu parecia estar funcionando como uma prova de sua competência e superioridade.
Continuava falando pouco, mas trazia algumas experiências vividas na escola, nas
festas dos amigos, embora contasse com particular entusiasmo e interesse sobre os
brinquedos novos que ganhava, referia-se em detalhes ao objeto e a seus planos na
utilização dele. Passou, com o tempo, a se ocupar mais detidamente em falar no
contexto terapêutico.
O trabalho terapêutico não comportava nenhuma intervenção direta no modo de
produção da fala, pois Bernardo usava a linguagem com pertinência e mesmo quando
ocorreu um episódio isolado de disfluência, isso não impediu que o discurso seguisse. O
aspecto mais relevante do modo de estar comigo estava na tentativa de submeter-me aos
seus desejos. Na escola, é provável que agisse nessa direção em relação aos colegas e às
vezes em relação à professora, mas seu domínio era aplacado pela oposição do outro. Os
colegas não adivinhavam suas vontades e, mesmo quando sabiam, podiam optar por não
satisfazê-las. Da professora Bernardo também esperava, provavelmente, uma dedicação
especial ao seu material, pois não agia como se fosse problema seu zelar por ele, mas
problema da professora.
Essa postura um tanto soberba e ao mesmo tempo humilhada trazia evidências de
sua incompreensão a respeito do efeito de suas atitudes nos outros. A perspectiva alheia
não era muito possível para ele. Esse aspecto pareceu-me fundamental na condução do
tratamento; relevar com atenção que Bernardo não sabia o que causava no outro e
117
também não podia perguntar, como se as pessoas devessem saber a seu respeito antes,
sem que se explicasse, pelo “emburramento”. Entendemos que esse posicionamento
de Bernardo o incluía, por um lado, na identificação com a mãe, visto que era sempre
poupada pelo pai, que tendia a advinhar-lhe os desejos; por outro lado, como já vimos, a
agressividade estava interditada e restava-lhe agredir indiretamente, em silêncio, e
deixando de organizar seus pertences. Assim ficava contrariado sem contrariar o outro
diretamente, não explicitando uma posição contrária, em comportamentos ou em
palavras. Todo esse jogo imaginário de ser ouvido sem falar e de agir de modo a não
desagradar o outro foi aos poucos aparecendo, e Bernardo passou a brigar em terapia.
Pela linguagem, aos poucos passou a falar dos afetos.
Após quatro meses do processo terapêutico, os pais precisaram interromper o
trabalho, pois sofreram algumas perdas financeiras. Passados aproximadamente cinco
meses, retornaram. Embora tenha aumentado muito a tensão familiar, pois estavam
voltados para o gerenciamento das finanças. Referiram-se com espanto ao fato de que
Bernardo nunca mais havia gaguejado, até começar a programação da festa para
comemorar seus sete anos. A expectativa em torno da comemoração acionou novamente
a gagueira, arrefecendo até cessar dias antes do acontecimento.
Nesse retorno, Bernardo fez um belo desenho: estavam voando no céu da Itália
aviões ingleses e italianos combatendo na Segunda Guerra. Bombas lançadas pelos
italianos destruíam os aviões ingleses, que mesmo maiores ficaram totalmente cercados
pelo fogo. Sobre o desenho, ele disse: “Meu avô, pai da minha mãe, foi o primeiro
brasileiro a pilotar um tipo de avião desses. Não sei bem se foi meu avô ou bisavô, mas
foi o primeiro”. “Como seu avô foi corajoso, Bernardo!”, comentei. “É, eu também sou
corajoso”, ele completou.
118
Em outra sessão, ao comentar sobre o último filme de Harry Potter, narrou com
detalhes cenas nas quais percebeu que o pequeno bruxo teve medo. Perguntei se ele
também tinha medo de alguma coisa, ao que respondeu: “de falar em público”, levando-
me a imaginar que, finalmente, falaria do medo de gaguejar; no entanto, escutei o
seguinte: “Tenho medo que achem chato o que vou falar, medo de não me acharem
legal”.
O relato da professora nesse período indicou que Bernardo havia apresentado
repetições para iniciar a narrativa a respeito do seu fim de semana, logo após ter
reiniciado o processo terapêutico. No entanto, em outras situações de exposição, falou
sem impedimentos. O jeito como falou não era tão importante, pois fora pontualmente
delimitado num contexto de alta expectativa em relação à sua fala. Outros aspectos do
comportamento de Bernardo foram bem mais significativos para a professora: teve seu
dedo apertado entre duas carteiras por duas vezes, em decorrência da distração do
colega vizinho; no entanto, segurou o choro e não reclamou por cuidado. Embora fosse
perfeccionista com seus trabalhos e tenha evoluído muito no manejo da escrita e na
leitura, estava cada vez mais desorganizado com seu material, perdia tudo e esquecia
muito o que era seu, esperando que a professora viesse socorrê-lo, embora quase não a
solicitasse.
Quando retomaram o processo terapêutico, fora explicitado para os pais que não se
tratava de mantê-lo em terapia de linguagem, mas de compreender melhor que havia
questões mais endereçadas para o início de uma análise, pois não se fazia necessário
reposicioná-lo em relação ao próprio corpo ou para trabalhar diretamente o modo de
produção da fala. Expliquei que poderíamos pensar num encaminhamento, que me
procuraram por outro motivo. Rapidamente a mãe disse que ele estava muito vinculado
a mim e que se sentia segura em que fosse analisado por uma psicanalista que entende
119
de linguagem. O pai concordou, relevando a confiança no vínculo, nas mudanças do
filho e no trabalho que foi realizado com eles. Salientaram ainda que, durante a crise
financeira, esperaram que Bernardo perguntasse, manifestasse ansiedade ou mesmo
curiosidade, no entanto, apenas se restringiu a se re-assegurar de que esse tipo de
problema os adultos resolveriam, parecendo conseguir preservar-se dos fatos e
discriminar-se dos pais.
Ao longo do trabalho, Bernardo demonstrou seu desejo de ser ator, trabalhar com
um texto pronto para falar. Imaginei que fosse para não correr o risco de ser
desinteressante. Entretanto, ele comentou que gostaria de falar para bastante gente que
ficaria olhando para ele, tinha desejo de falar para um público grande.
Adquirir reasseguramento num ambiente sentido como hostil é um esforço
complicado, repleto de dúvidas e perigos, mas o ingrediente desafio provocava
excitação em Bernardo. Falar em público assegurava-lhe a experiência de desbravador.
Às vezes respondia ao desafio recuando e se depreciando; às vezes conseguia extrair, da
excitação, força para realizações. Mostrei para ele que assim foi com seu avô ou bisavô,
que enfrentou corajosamente um perigo, mesmo com medo, e também com Harry
Potter, que, embora contando com poderes mágicos, podia sentir-se suscetível e frágil.
A aproximação de Bernardo dessa figura de homem forte e corajoso pela linhagem
materna e do personagem Harry Potter ambientou um campo de significantes novos e
que puderam instaurar outros traços identificatórios com o mundo masculino. Acredito
que essas marcas se estenderam para uma operação de revisão do pai, pois experiências
com ele passaram a ocupar seus dizeres com freqüência. Era como se o pai real tivesse
de fato ocupado a função simbólica do pai, ao se dar conta de que seu pai era um orador
competente, sempre estava falando para grupos. Falar em público ancorava-se nessa
120
rede de excitação e medo armada pelos ideais parentais, autenticados agora pelo seu
desejo.
Desse modo, podemos perceber que o comportamento repetitivo e inócuo passou a
ter eficácia no tratamento, na medida da implicação do paciente no trabalho de
interpretação. A operação tática arquitetada por Freud para derrotar o sintoma, ou
devolver ao ego sua catexia, depende pelo menos de duas forças aliadas: a da
transferência e a da suportabilidade do paciente à vida sem o sintoma.
Aplicar à fala gaga o conceito de sintoma como derivado da conflitiva edípica
inconsciente traz muitas dificuldades para o campo da terapêutica da linguagem, que
a direção do tratamento não segue o método de desvelamento do inconsciente. À parte
isso, é possível assegurar, pelo menos até o momento, por meio da descrição que nós,
terapeutas, fazemos de nossos casos clínicos, que a força do trabalho terapêutico com as
pessoas que gaguejam está em desvelar recursos no sujeito que lhe permitam alçar uma
fala menos submetida ao sintoma. Portanto, cabe perguntar: como esses recursos
afloram e são sustentados no processo terapêutico com a linguagem? Com o caso de
Bernardo, tentamos demonstrar uma possibilidade. No entanto, ela requer assumir o
legado de uma postura terapêutica que inclui o espanto, o não saber ou, como orienta
Nasio (1987:23), o “paradoxal inconsciente” como parte dos processos patológicos e
dos mecanismos de cura.
Aliás, não acreditar nos efeitos do inconsciente é o modo mais potente de
submissão a eles, já que o inconsciente, continua Nasio (1987: 24),
[...] é mais um saber em ato que uma memória. O inconsciente é um
saber. Saber o quê? Saber a que momento e em relação a que outras
palavras se situar para provocar um efeito surpresa, de riso ou
sideração.[...] Onde está esse saber? [...] no “sujeito-suposto-saber”.
Expressão a ser compreendida não como sujeito a quem se supõe
121
um saber encarnado na figura absoluta do Ser. Em uma palavra o
inconsciente-suposto-sujeito.
A assimetria entre terapeuta inconsciente/suposto sujeito e paciente é condição
que requer cuidado e discriminação. Tomo cuidado em sua acepção mais direta, como
cautela e diligência, que podem alimentar a realização da fala e da percepção do
impossível de ser dito, mas que se marca num sintoma. Por isso, saber como funciona o
inconsciente, sua relação com o sintoma e modos de manifestação na transferência,
aponta para uma direção menos obscura e preconceituosa para incluí-lo como um
benefício ao trabalho com a linguagem.
O manejo aparentemente simples, de se calar para que a fala do outro tenha lugar,
segundo a teoria psicanalítica, significa de fato sustentar o lugar do sujeito, quase como
faz a mãe que passa, depois do período inicial de indiferenciação e fusão, a desconfiar
de que não sabe o desejo de seu bebê e precisa dirigir-lhe uma questão, colocando-o
assim na posição de enunciador e sustentáculo do seu dizer e não mais submetido à
tradução sincronizada de si pelas projeções imaginárias dela. É possível, nesse exemplo
simples, verificar que toda a diferença suposta no lugar que o sujeito pode ocupar a
partir da escuta a ele conferida no tempo e no espaço da clínica, tende a ser
potencializadora de alteridade e de marcas distintivas de si para si mesmo nos processos
de identificação. De modo análogo à dedicação desconfiada da mãe, que vai aos poucos
transformando um bebê dependente num sujeito diferenciado dela, a função do
terapeuta que suporta o valor de uma fala escandida e comprometida em sua forma
por ouvir nela mais do que erro ou imperfeições, mas trabalho de elaboração e sentido –
também dá sustentação para que mudanças se processem.
Vê-se, no caso de Bernardo, a relação altamente investida da mãe com a fala de seu
filho; seus ouvidos precisos para apreender toda alteração na fluência também se
122
aplicavam a estranhar a curva melódica da voz de seu marido, uma das marcas
sensoriais mais penetrantes na experiência amorosa.
O modo como André ficou submetido ao frágil reconhecimento da esposa indicia
dificuldades importantes para sustentar seu próprio valor, que certamente contava com
outras raízes em sua história. No que concerne aos fatos descritos, era muito competente
profissionalmente, atento e presente como pai e bastante arrojado em tomar atitudes que
pudessem deixar Alice mais feliz. À parte isso, em quase todos os contatos com os pais,
permanecem saberes separados, discursos impermeáveis um ao outro: embora
conversassem, não se escutavam. Não havia a construção conjunta de uma percepção de
ambos a respeito do filho, pois às vezes o pai demonstrava certa desconfiança a respeito
do que pensava sobre Bernardo, mas sua abertura para a diferença sucumbia diante das
afirmações quase inquestionáveis de Alice. Ambos foram se disponibilizando a falar e
rever seus posicionamentos, o que contribuiu decisivamente para Bernardo falar mais
livremente.
Suponho que um excesso narcísico, ou fálico, atribuído ao filho, levava-o a forçar-
se para caber na correspondência imagética, pagando o preço de ter que satisfazer o
público, ou insígnias imperativas propostas pelo olhar da mãe, protótipo dos olhares que
enfrentará no mundo.
Na dúvida a seu respeito, Bernardo tendia a ocultar seus sentimentos, por isso não
podia acreditar nem na dor dos dedos esmagados entre as carteiras. O que sentia ficava
encoberto pela idealização em torno do que deveria sentir ou de como deveria ser ou
fazer sentido. Nessa perspectiva, na transferência, posicionava-se refratariamente às
minhas palavras, desqualificando muitas observações, dizendo “isso não tem nada a ver
com o que estou falando”, como se na circulação desejante-desejado fosse condição de
123
sobrevivência excluir ou fragilizar a fala de alguém. Como nos aponta Mafra (2004:
22), “abordar a transferência é, precisamente, estabelecer uma rede na qual a fala
vetoriza-se, posicionando o sujeito em seu endereçamento”. Nesse ponto do trabalho
terapêutico, Bernardo tinha o lastro da fala em sua mão, talvez condição para manter-se
fluente, e assim passou a ser visto pelo outro e percebido por si.
Como vimos até aqui, os sintomas, conforme a psicanálise, são inerentes à
constituição subjetiva. Os sintomas na linguagem, em particular a gagueira, também
estão imbricados na lógica das operações de subjetivação, marcadamente vividas no
contexto da conflitiva edípica. Faz-se necessário, portanto, determo-nos agora nessas
operações, pois observamos na análise desse caso que os traços sintomáticos na fala
podem estar associados ao modo particular como os traços identificatórios são
produzidos pela referência simbólica ao pai.
De acordo com Pommier (1998), uma angústia de castração pode acarretar notáveis
variações identificatórias, uma mesma série pode comportar identificações diferentes na
medida em que circunstâncias gerem experiências passíveis de potencializar a
plasticidade e a permeabilidade dos traços identificatórios.
Nessa perspectiva, podemos afirmar, com relação ao caso de Bernardo, que a
posição do terapeuta da linguagem está interligada às circunstâncias necessárias à
emergência das palavras: em síntese, a uma relação com quem se tenha o desejo de
conversar. Nessa condição de identificação, a escuta agiu favorecendo que elementos
novos repusessem a série da identificação simbólica que passou do pai para o avô
materno e para o personagem Harry Potter, para depois reencontrar no pai o
representante mais legitimado desse lugar viril e corajoso. A reedição revisada da
função materna na vida dos pacientes com problemas de linguagem pode recolocar a
124
função simbólica do pai? Será essa uma das facetas operativas da função terapêutica na
clínica da linguagem? Sigamos para o próximo capítulo pela trilha aberta por essa
questão.
CAPÍTULO III
Sintoma de linguagem e função paterna: a via dos ideais
“Como se explica que meu maior
medo seja exatamente o de ir
vivendo o que for sendo? Como é
que se explica que euo tolere
ver,por que a vida não é o que
eu pensava e sim outra coisa
como se antes eu tivesse sabido o
que era! Por que é que ver é uma
tal desorganização? E uma
desilusão. Mas desilusão de quê?
Se, sem ao menos sentir, eu mal
deveria estar tolerando a minha
desorganização apenas
construída? Talvez desilusão seja
o medo de não mais pertencer a
um sistema. No entanto se deveria
dizer assim: ele está muito feliz
porque enfim foi desiludido. O que
125
eu era antes não me era bom. Mas
era desse não bom que eu havia
organizado o melhor: a esperança.
De meu próprio mal eu havia
criado um bem futuro. O medo
agora é que meu novo modo não
faça sentido? Mas por que não me
deixo guiar pelo que for
acontecendo? Terei que correr o
sagrado risco do acaso. E
substituirei o destino pela
probabilidade”.
(CLARICE LISPECTOR, 1969)
82
O terceiro tempo do Édipo é o seu declínio, em virtude da operacionalidade da
função simbólica do pai no psiquismo. O pai, supostamente detentor do falo, atesta a
passagem do “ser” para o “ter”, o que “convoca o jogo das identificações”, afirma Dor
(2003: 88). Logo, o menino identifica-se com o pai que é suposto ter o falo. O exemplar
marcante desse jogo nas primeiras experiências de realização da metáfora paterna é o
“fort-da” descrito e analisado por Freud
83
. A cena é da criança com pouco mais de um
ano brincando de lançar e retomar o carretel preso ao cordão. Ao lado de seu bercinho
realiza a passagem do reino do princípio do prazer, da satisfação direta da pulsão pela
presença inequívoca do objeto, para o princípio da realidade necessariamente imposto
pelas circunstâncias que acarretam ausências frequentes da mãe. A criança, no lugar de
sujeito, vive aqui uma “autêntica renúncia psíquica” (DOR, 1995: 51), pois não mais
está na identificação primordial com o objeto de desejo do outro, tendo por encargo
encontrar outra forma de satisfação e identificação. O prazer gerado pelo jogo está
situado de modo especial na segunda parte, quando a voz do menino em melodia
jubilosa repetia “da”
84
para o retorno do objeto. Cada chegada remetia-o novamente à
partida prevista e controlada que anunciava com “o-o-o-o-o”, sempre mais longo em sua
82
LISPECTOR, C. (1969)
83
FREUD, S. (1920)
84
Em alemão da pode ser significado como aqui e o-o-o para foi.
126
monótona extensão melódica, assim como as ausências que não tinham a mesma marca
entoacional da curta e precisa escolha do significante “da”, marca efusiva da presença
desejada na ausência. À parte isso, as marcas da mãe fazem-se sentir nele, que, por
identificação com ela, por se colocar no lugar dela, pode controlar simbolicamente os
movimentos que redundam em presença e ausência do carretel.
Queremos salientar que chegar até a posição de sujeito não exclui traços
significativos da posição anterior, os quais também estarão presentes na mola
propulsora dos investimentos futuros, ou seja, o falo, que continuará sendo o epicentro
da conflitiva edípica. Conforme assevera Dor (1991: 17), “só este quarto elemento
constitui o parâmetro fundador suscetível de inferir na investidura do Pai simbólico a
partir do Pai real pela via do Pai imaginário”. Podemos exemplificar a força do
significante fálico com um aspecto do caso de Bernardo: ele explicita o desejo de ser
ator, que se remete a um desejo não realizado pela mãe. Parece-nos ainda identificado
com a falta na mãe. Apesar de estar como sujeito no funcionamento simbólico, carrega
certa indiscriminação da herança significante propulsora de seu desejo.
O aspecto mais marcante no jogo do carretel, salientado por Freud, é a potência da
criança vivida graças ao jogo simbólico sustentado pelas palavras: o carretel é a mãe
que pode ser controlada por ele e não mais o submete ao dispor de seu desejo. na
posição de sujeito do seu desejo é que a criança pode gerenciar o fato de não ser o
objeto de desejo da mãe por excelência. Em seus recursos para brincar, dá provas de que
é possível construir outros objetos de interesse, como o jogo do carretel. Antes de mais
nada, salienta Dor (2003: 90), a criança “pode mobilizar seu desejo como desejo de
sujeito para objetos substitutivos ao objeto perdido, se o advento da linguagem tornar-
127
se símbolo incontestável do controle simbólico do objeto perdido
85
. A linguagem é a
marca da transformação operada no funcionamento psíquico mediante a realização da
metáfora Nome-do-Pai, que também instaura o recalque originário
86
, que consiste em
uma metaforização, que nada mais é do que a substituição do significante fálico pelo
significante Nome-do-Pai.
O objeto perdido jamais se comporta como perdido definitivamente em seus efeitos,
tendo em vista que a herança recebida para alavancar a vida futura está representada
como falta na criança, por isso pode pertencer ao mundo dos adultos o mundo da
cultura no qual realiza sua natureza de sujeito
87
.
Para ter acesso ao simbólico, é imperativo perder definitivamente a ilusão de ser o
falo, mas essa tal desilusão inscreve-se inúmeras vezes em formas discretas ou
exacerbadas em atos e palavras. A desilusão que Clarisse Lispector nos aponta como
“medo de não mais pertencer a um sistema” recoloca o drama da perda da falácia fálica
como retirada de um conjunto de operações interligadas, previsíveis e fechadas entre si
que caracterizam o sistema fechado e o fusionamento com o Outro materno em primeiro
plano. No entanto, em planos sobrepostos, é possível observar em pacientes neuróticos
adultos que todas as experiências de mudança sempre trazem uma sensação de perda.
Perda do quê exatamente? Ouçamos Clarisse: “Mas era desse não bom que eu havia
organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro.
85
Grifo nosso.
86
Recalque originário, desde a primeira tópica freudiana, é o referente da operação que divide o aparelho psíquico
em duas instâncias: a consciência e o inconsciente; tal operação ocorre, pois o representante da pulsão que é o que
permite a representação será barrado à consciência, portanto, mais que um mecanismo de defesa, o recalque
institui o inconsciente. Esse é o sentido particular que o recalque originário tem na obra de Lacan o recalque
originário leva consigo o representante imaginário de todas as outras pulsões, enquanto as sexualiza. Pode-se
admitir, assim, segundo Chemama (2002: 186) que o representante recalcado originariamente, do qual Freud fala,
seja precisamente o falo [...] na medida em que as pulsões não genitais são relacionadas ao gozo representado pelo
falo. Ele as sexualiza e leva-as consigo em sua colocação de lado. Apela para sacrifício do gozo, seja qual for seu
objeto.”
87
A respeito da relação entre natureza e cultura, e a função paterna, sugerimos a leitura do capítulo “Natureza-
cultura: a proibição do incesto e o pai da “horda primitiva”, de J. Dor (1991).
128
O medo agora é que meu novo modo não faça sentido?”. Remetemos assim o medo à
perda do sintoma, “do meu próprio mal eu havia tirado um bem futuro”, que trazia a
esperança de melhorar. Uma vez superado o sintoma, onde ficará a esperança? Como
gerenciar o pavor da falta sem objeto? Nessa direção, podemos pensar que o sintoma
comporta a face do controle simbólico, exemplificado pelo jogo do “fort-da”. Mas seria
muito paradoxal pensar no sintoma como um ato voluntário de controle, o que
realmente não procede, pois faz sofrer e é execrável à consciência. No entanto, na
medida em que apoia a estrutura subjetiva, conferindo certa identidade imaginária ao
sujeito, traz a ilusão de segurança pela previsibilidade de seus efeitos. Daí a tão debatida
repetição esterilizante que o caracteriza e mantém. Na mesma direção é possível
compreender a estreita relação entre o sintoma e o funcionamento simbólico, sendo
apenas a partir da operacionalidade do recalque que os sintomas podem se formar, como
expressão do representante da pulsão.
O registro da falta possibilita o funcionamento simbólico, a linguagem e também
os sintomas. Conclui-se daí que novos sofrimentos e presságios serão vividos, mas
nunca mais a ponto de obturar o funcionamento simbólico, posto que a inserção na
cultura ocorreu e o laço social foi estabelecido. No item “Além do complexo de Édipo”,
um dos temas presentes em seu livro sobre o complexo de Édipo, Miguelez (2007:
135)
88
, após retomar as críticas ao modelo de subjetividade submetido ao Édipo, adverte
que:
[...] a castração edipiana o pode ser atribuída ao pai, nem ao seu
significante, mas à linguagem que determina um limite ao gozo, para
todo ser humano que pertence a uma cultura. O Édipo pode ser
88
O livro de Nora Miguelez traz relevante contribuição para a reflexão sobre o Édipo e as mudanças na cultura e
nos modos de subjetivação atuais. Embora o centro de seu trabalho não se articule diretamente com o objetivo
desta tese, suas conclusões respaldam a vigência das operações simbólicas associadas à conflitiva edípica na
atualidade. A autora argumenta que o complexo de castração, mesmo tendo se deslocado de seu contexto original,
ou seja, o patriarcado, por meio de agentes atuais dos novos poderes (a propaganda, a mídia e também a família
atual), continua a sustentar a interdição edipiana. Assim, também seus sucessos e falhas seguiriam alimentando as
opções tradicionais de “escolha” de patologia.
129
considerado e valorizado como um mito que constrói a narrativa
desse limite. Assim é possível utilizá-lo como instrumento na cura,
mas não aceitá-lo na teoria da psicanálise, definida como ciência do
real.
Segundo a autora, “a linguagem determina um limite ao gozo”, e não a castração
atribuída ao pai. Isso significa que nosso desejo está constituído pela relação que
estabelecemos com as palavras, e essa relação é sempre faltante. Corroborando a
compreensão de Miguelez, Chemama (2002) advoga em favor da ideia por meio da qual
a verdadeira castração é o sentido veiculado pela cadeia significante, enquanto a função
paterna pode ter como efeito justamente impedir que o recalque tão implacável leve à
inibição definitiva de seu desejo. Nisso vemos não um limite ao gozo, mas também
uma autorização para que as experiências de prazer tenham lugar na vida do sujeito.
Cabe, portanto, dar destaque à citação seguinte:
A função paterna autoriza o sujeito a ser menos timorato em seu
desejo, em suma menos afetado por sua castração que, sem isso, o
anularia como sujeito desejante (...) na clínica não é raro que alguns
se dêem conta de que já se tinham sacrificado muito aos
imperativos da castração, isto é, que realizavam seus deveres sociais
sem tirar deles a menor satisfação. (CHEMAMA, 2002: 186).
O desejo de sujeito, ou o sujeito desejante, firma-se pela transformação radical no
psiquismo que é gerada pelo funcionamento simbólico autenticado pela linguagem. A
despeito disso, esse advento é de fato validado se for capaz de trazer à criança o
controle simbólico do objeto perdido. Aqui situamos uma questão a respeito da
estruturação subjetiva do gago que nos orienta a respeito do modo pelo qual está na
linguagem. Admitimos a hipótese de que nesses pacientes permanece a seguinte dúvida
inconsciente: “o objeto perdido era um representante da falta da mãe que foi remetida ao
pai imaginariamente detentor do falo, ou foi perdido exatamente porque, ao se firmar
como sujeito, a criança provocou esse efeito de perda na mãe?”. Nossa suposição
130
procede da posição que as mães ocupam no discurso desses pacientes. Elas são vistas
pelos adultos gagos como vítimas de seus maridos, qualificados como violentos,
ignorantes afetivamente, afeminados ou impermeáveis ao outro
89
. Para formular essa
questão, é necessário supor que esses pacientes mantenham o objeto imaginariamente
como algo que pode obturar a falta, por isso permanece assemelhado à condição anterior
ao segundo tempo do Édipo, identificada ao falo e não ao pai, suposto tê-lo.
Nessa direção de pensamento, o sintoma estaria colocado, como afirmamos no
capítulo anterior, no lugar da castração, uma interdição violenta ao desejo de sujeito,
pois a ele é vetado o acesso libertário ao simbólico, uma vez que o sintoma está na
linguagem, pela qual poderia autenticar-se em sua singularidade para além de um único
traço que aprisiona o sujeito: a gagueira. ainda certa subserviência ao objeto fálico
materno, ilusão de completude que é agravada pela falta de um terceiro elemento com
potência simbólica para autorizá-lo a ter satisfação sem com isso correr o risco de
perder na mãe seu contorno identitário.
Uma vez percebido pela criança o desejo da mãe em direção ao pai, esse pai passa a
funcionar como o objeto de desejo desta, o terceiro elemento que representa o quarto, o
falo, ao qual todos estão referidos, uma vez que, no imaginário da criança, o pai tem o
falo, “no entanto o pai enquanto homem, jamais pode dar outra prova senão a de dar
aquilo de que é desprovido” (DOR, 1991: 41). Assim, de acordo com Dor (1991: 41), a
função paterna faz o gerenciamento do estatuto do objeto pelos diferentes sentidos
atribuídos à falta nos três tempos do Édipo respectivamente. No primeiro, quando o
objeto é visto como real, a frustração representa a falta imaginária deste. No segundo, o
objeto é simbólico, visto que remetido ao pai para o qual se dirige o desejo da mãe. Por
89
Supomos antever a esse discurso premissas que fragilizam a incidência do significante Nome-do-Pai, pois a
entrada do pai real fora dificultada pela carência deste transmitida para criança.
131
isso, a falta se coloca como privação do objeto, já que a criança não pode sê-lo e nem tê-
lo, posto que esteja no pai. No terceiro tempo, a falta de objeto se manifesta pelo
reconhecimento, por parte da criança, de um pai castrador, “não apenas pela atribuição
fálica que lhe é conferida, mas ainda pelo próprio fato de que a mãe é suposta encontrar
junto a ele o objeto que ela não tem” (DOR, 1991: 54). Teremos, portanto, a falta
simbólica do objeto imaginário. Pela égide da castração, mesmo tendo o objeto, o
sujeito está renitentemente submetido à possibilidade de perdê-lo.
Por conseguinte, como ordinariamente nos mostra a teoria, o objeto da falta é um
representante do falo. No entanto, supomos que, no funcionamento psíquico dos gagos,
o falo não foi devidamente vetorizado em sua função de representante da falta, o que
seria favorecido pela encarnação de um pai a quem se remete a falta da mãe, o que daria
a esse pai condições subjetivas de ser visto imaginariamente como detentor do falo. Na
medida em que o pai, apresentado por seus denegridos atributos, não podia merecer a
atribuição fálica, abriu-se um espaço entre “ser” o objeto de desejo da mãe e “ter” o
falo, pois o menino guarda uma débil representação do que significa ter o falo, que
não observa a força instituinte deste pelo remetente do desejo da mãe. Assim, acentua-
se nele a ideia de que pode tê-lo ou continuar a sê-lo. Entretanto, abrigar a fantasia de
ser o detentor do falo o faz inevitavelmente prisioneiro do lugar do pai. Isso compõe a
causa de muitas culpas e distorções em seus avanços em direção a autonomia como
sujeito desejante e falante. Como afirma Lacan (1981/2005)
90
,
[...] a culpa é preferível à angústia, e está associada à entrada de um
terceiro, [...] que abre a possibilidade de mediação real por intermédio
essencialmente do personagem que, em relação ao sujeito,
representa um personagem transcendente, em outras palavras uma
imagem de domínio por meio da qual seu desejo e realização podem
se dar simbolicamente. Nesse momento, intervém outro registro, que
90
Lacan, J.( 2005)
132
é ou o da lei, ou o da culpa, segundo o registro em que ele é vivido
(p.34).
Por essa falha de atribuição da mãe que, nos casos que mostraremos a seguir
(neste capítulo e no próximo), não é sem razão, tendo em vista a encarnação desastrosa
do pai real –, o gago não qualifica a passagem da condição de objeto para a condição de
sujeito como emancipação do submetimento ao desejo materno. Por isso carrega certa
dose de ressentimento e culpa por ter se desvencilhado de uma identificação segura
imaginariamente. Percebe-se agora sem lastro para sustentar a identificação com o pai
para o qual se lança titubeante, que na maior parte dos casos a função simbólica do
pai é fragilmente sustentada pela mãe. Por isso, é possível verificar o recalque originário
fissurado exatamente no que lhe daria condição de firmar-se, pelo funcionamento da
linguagem, mediante a metáfora do Nome-do-Pai que, repito aqui, “nada mais é que a
substituição do significante fálico” que a criança esquecerá (embora seja a origem da
significação da qual a linguagem é resultante mediante a metáfora Nome-do-Pai,
designação inconsciente ao desejo da mãe).
A gagueira parece funcionar como um marco histórico dessa falha do recalque, do
empenho extremo que foi para o psiquismo abandonar o lugar de objeto, uma vez que a
ambiguidade do discurso materno por pouco não exclui o pai, ou por pouco não coloca
a criança na posição de seu objeto. A gagueira fica, assim, como resto desse trabalho de
discriminação: a palavra deturpada pela disfluência ainda testemunho desse resto de
desejo que figura no sintoma e impede a fruição pela palavra. A linguagem do sintoma
marca a palavra com seu modo peculiar de funcionar; pela via da defesa, segue sob o
efeito do significante Nome-do-Pai e, pela via do desejo, mantém o sintoma como
relíquia da ilusão de completude experimentada no primeiro tempo do Édipo. Embora o
Nome-do-Pai como metáfora do falo tenha se instaurado para que os casos aqui
133
discutidos pudessem estar do lado da neurose, a identificação simbólica se fez mediante
traços que não estavam no pai real embora este existisse em todos os casos que
estudamos nesta tese. Isso pode deixar o sujeito com certa culpa por ter sido imposta a
ele uma via “ilegítima” de identificação simbólica, agindo como se fosse órfão no que
se refere à identificação imaginária com o pai. Nesse aspecto, localizamos a culpa por
gaguejar como um aspecto do registro da lei cujo representante deveria ser o pai.
Com o objetivo de esclarecer relações entre o sintoma de linguagem, a gagueira,
com as identificações e, por consequência, com os ideais de eu, servir-nos-emos
inicialmente dos verbetes do dicionário de Laplanche e Pontalis (1995) e Chemama
(2002), respectivamente, que definem esse conceito.
Os primeiros autores trazem uma síntese do conceito de identificação com respeito
à obra de Freud, e dela podemos destacar a exposição feita no capítulo VII de
Psicologia de grupo e análise do ego
91
, na qual Freud distingue três modalidades de
identificação: como forma originária de laço afetivo com o objeto; como identificação
primária pré-edípica; e finalmente como substituto regressivo de uma escolha de objeto
abandonada, indicando que em certos casos a identificação incide não no conjunto do
objeto, mas num “traço único” dele. No entanto, Freud mostra também que uma
identificação pode se transformar no processo inverso, ao invés de enriquecer a
personalidade pela inclusão de certa característica nela por identificação, pode
transformar-se numa instância da personalidade como ‘ideal de eu’, por exemplo, no
caso do líder que substitui o ‘ideal de eu’ do grupo. Chemama (2002), após descrever a
evolução do conceito na obra de Freud, salienta que este repete com insistência que a
identificação é aquilo que se desejaria ser e objeto é o que se desejaria ter, portanto o
sujeito se identifica com “um traço” (Zug) do objeto perdido.
91
FREUD, S. (1921)
134
Em Lacan, como esclarece Chemama (2002:216), o termo einzigerzug (traço
unário)
92
é ampliado em seu uso como significante, unidade que realiza um traço, uma
marca. A palavra unário se divide em duas funções, pelo sufixo “-ário” pode indicar
contagem, o que pressupõe uma série. Por outro lado, também marca uma diferença:
“como falam os linguistas a respeito dos ‘traços distintivos, binários, terciários’”.
Segundo Chemama, esse traço introduz um registro que está para além da aparência
sensível – o registro simbólico. Portanto, identificado com o traço unário, o sujeito é um
com os outros todos que passaram pela castração; todavia, é ao mesmo tempo por esse
traço que pode ser único, “contrariando toda imagem de equivalência que o código
permite supor” (VORCARO, 2003: 125).
O traço unário constitui a matriz simbólica das identificações desde a experiência
do espelho, pela via da confirmação de sua imagem pelo Outro materno, conferindo-lhe
os primórdios da alienação imaginária. O “narcisismo primário” em termos freudianos
está associado a essa primeira imagem corporal, imaginariamente formada no estádio do
espelho, em cujas operações o primeiro esboço de eu é legitimado pelo olhar do outro e
sustentado pelo traço unário
93
que moverá essa imagem do corpo em diferentes
possibilidades pelo funcionamento simbólico. Esse traço é anterior à metáfora Nome-
do-Pai, por se situar entre a alienação imaginária e a castração simbólica.
Ainda segundo Vorcaro (2003: 125), a função da fala é equiparada a “um trabalho –
ato de produção de desejo que enlaça o sujeito à língua e ao inconsciente”.
Ponderamos anteriormente que é o sujeito de desejo que se encolhe pela gagueira, pois
92
Conforme CHEMAMA (2002: 216), “Lacan elaborou o conceito de traço unário a partir da noção freudiana de
identificação com um traço único e apoiando-se na linguística de F. Saussure, em particular na ideia segundo a qual
a ngua é constituída de elementos discretos, de unidades que só valem por sua diferença. Por isso, Lacan fala de
“esse um ao qual se reduz em última análise, a secessão dos elementos significantes, o fato de serem distintos e se
sucederem.” O traço unário é o significante enquanto uma unidade e sua inscrição realiza um traço, uma marca.
93
Em Nasio (1994), o traço unário é abordado como o conjunto das identificações ao longo da vida que constituem
o sujeito. Escreve o autor: “o sujeito é o traço comum dos objetos amados e perdidos ao longo da vida” e acrescenta
que foi exatamente isso que Lacan denominou de traço unário. (p.94).
135
esse traço o reduz a uma identificação imaginária incompatível com outros traços
subjetivos que pudesse construir para se diferenciar dessa marca majoritária. Por essa
ótica, a identificação fixada no sintoma é alienante, que impede a abertura para novos
processos identificatórios. O traço unário, segundo Pommier (1998: 167), “[...] é a
forma sintomática segundo a qual um sujeito se situa relativamente a uma identificação
imaginária [...] a identificação é imaginária à medida que responde inconscientemente
ao desejo de um Outro”.
Por estar associado a um lugar de amor, o traço identitário a que se restringe traz a
marca que preza em demasia; por isso incorporou-a à sua imagem. O signo
inconsciente dessa identificação é a gagueira; ouvimos com frequência as expressões “a
minha gagueira” ou “sou gago”; para muitos pacientes, esse traço é a sua singular
diferença, a pertinência possível que o identifica e autentica separadamente de modo
simultâneo; podemos referi-la à metáfora Nome-do-pai, à herança simbólica.
Estar restrito a um sintoma é o mesmo que não existir sem ele, ou seja, é
impensável perdê-lo, pois seria lançar o paciente num abismo identitário. Podemos dizer
que o gago não tem a gagueira, pois ela está nele, portanto, não é possível ter algo que é
inerente ao ser. A dialética do “ser” e do “ter”, própria do segundo tempo do Édipo, pela
qual se libertam os investimentos em diferentes objetos de desejo e as relações fluidas
com a linguagem, fica a meio caminho, pois falta ao gago autorizar-se a ter sem
comprometer o ser em suas escolhas. Entretanto, não pode escolher, quando tentava, ou
a dúvida intransponível ou a culpa impediam-no, resultado do imperativo comando
interno que o levava a obedecer ao ideal de eu devorador de desejos que não podiam ser
legitimados, apesar da sua emancipação simbólica
136
Por esse prisma, a identificação, também segundo Freud, pode se dar como
“substituto regressivo a uma escolha de objeto abandonada”. Isso nos leva a pensar
que o sintoma caracterizado por um traço na linguagem mantém garantido o
funcionamento simbólico enquanto, ao mesmo tempo, imprime-lhe certa marca do que
escapou ao recalque.
A identificação com o pai é a saída do complexo de Édipo para o menino, como
vimos em Freud. O mesmo pode ser pensado pela incidência da metáfora Nome-do-Pai,
operação que permite também a identificação simbólica e a formação do ideal de eu
94
.
O modelo perfilado pelo ideal de eu dará o prumo dos investimentos do sujeito na
direção de fazer-se amar, que, desde que ele fala, “a palavra o desapossa de seu Ser e
ele credita ao amor o poder de devolvê-lo” (POMMIER, 1998: 187).
3.1 Pedro e a tirania do amor
Os efeitos singulares da operacionalidade da função paterna remetem-nos ao caso
de Pedro, o rapaz que falava mediante o bloqueio de algumas palavras, o que
caracterizava sua gagueira em paralisação e silêncio impostos a elas, escandidas e quase
sem finalização audível, pois todo o ar era consumido na suspensão do movimento
articulatório, comprometendo a coordenação pneumofonoarticulatória que seguia quase
sem ar após o bloqueio. Dizia ele que as palavras que começavam nos lábios eram as
piores de serem ditas (palavras com os fonemas /p/ e /b/ em posição inicial). Dessas
fazia mais registro de impossibilidade; entretanto, outras se somavam, não pela
particularidade fonêmica, mas pelo que fomos percebendo ser o assunto em cena, pelo
significante que estava implícito nessas palavras.
94
Ideal do eu é uma expressão usada por Freud a partir da segunda tópica para designar a resultante do narcisismo
somado às identificações com os pais. Transforma-se, portanto, numa instância, “um modelo a que o sujeito procura
conformar-se” (LAPLANCHE & PONTALIS, 1995: 222).
137
Sua gagueira já havia sido tratada em vários processos terapêuticos anteriores.
Recomendaram malabarismos com a língua, exercícios para aprimorar a motricidade
oral, treino articulatório, relaxamento corporal e controle respiratório. Este último havia
se tornado o apoio recorrente para interromper o disparo do sintoma que, uma vez
ativado, vinha-lhe em progressão geométrica. Sua saída, quando achava que a gagueira
viria, era ficar respirando profundamente antes de falar. Assim, alguns inícios
assemelhavam-se a um abastecimento respiratório prévio a um mergulho em águas
profundas.
Nesse caso em particular, consideramos que os traços identificatórios revelam com
maior visibilidade a íntima relação entre a gagueira e a formação dos ideais do eu
95
,
expressos entre a identificação imaginária e a identificação simbólica.
Lembramos que a formação dos ideais, na teoria freudiana, é uma consequência da
identificação com o pai e representa a saída do complexo de Édipo. Isso corresponde, na
teoria lacaniana, à metáfora Nome-do-Pai, como o aval para o sujeito estar autorizado
no funcionamento simbólico que possibilita processos de significação mediante o
trânsito do sujeito na linguagem, vivendo nela a condição de sujeito assujeitado ao
funcionamento do inconsciente, privilegiadamente manifesto pela linguagem, visto que
estruturado nela.
Gago desde os quatro anos na ocasião do tratamento estava com quase trinta
Pedro revelou que, ao entrar na faculdade, com vinte anos, foi levado por uma escolha
profissional que seguia o rumo das imposições paternas em sua vida. Em estado de
decepção recorrente com esse destino que lhe parecia condição única para ser
95
O ideal de eu, numa perspectiva lacaniana, sinteticamente exposto por Chemama (2003: 99), “é a parte da
personalidade, cuja função, no plano simbólico, é a de regular a estrutura imaginária do eu, as identificações e os
conflitos que regem suas relações com seus semelhantes”.
138
reconhecido e autorizado diante do pai, encontrou um escape regressivo ao objeto de
satisfação pulsional oral pelo alcoolismo, do qual se livrou às custas de fumar em
demasia. Mais tarde parou de fumar e engordou exageradamente. Quando buscou o
tratamento, estava sob regime alimentar.
O sintoma desse moço fora ambientado numa infância na qual era proibido falar. A
austeridade paterna mantinha a economia da linguagem familiar sob sua tutela. De
modo semelhante, guardava todos os recursos financeiros da família para um futuro
mórbido, quando a doença e a velhice os transformassem em pessoas pobres. Esse
vaticínio vivido como experiência impossibilitava qualquer lazer; nunca viajavam ou
passeavam. O avô paterno mal falava o português e, embora tivesse vivido por muitos
anos no Brasil, sofreu pouca influência da cultura, foi engenheiro de uma indústria até
se aposentar e falecer, deixando a viúva em condição muito confortável, embora esta
seguisse a prescrição de tudo reter para não faltar.
À ascendência nórdica atribuía a miserabilidade do pai em contraste com origem
humilde e generosa da mãe, proveniente do nordeste. A mãe era bem diferente do pai,
em todos os aspectos, salientava Pedro, principalmente na fala, pois falava para além do
suportável às vezes, contrariando os limites estabelecidos pelo pai. Isso era motivo de
muitos problemas entre o casal e de certa indisposição dos filhos, ouvintes cotidianos
das muitas queixas da mãe a respeito do marido e deles próprios. Pedro, segundo filho,
único menino de uma prole de quatro, dizia que sua mãe nunca se importou muito com
a gagueira, pois recebera orientação de um líder religioso, que prezava em demasia, para
não se preocupar com esse problema que deveria passar com o tempo.
O guia espiritual exercia influência em todas as decisões da mãe, sendo a ele
remetida grande parte de sua demanda de atenção e palavras. Acontecia algo inusitado:
139
“ela parava de falar e escutava”. Pedro, no início da adolescência, colocou-se como
catecúmeno nessa religião; no entanto, após alguns anos de estudo e dedicação foi
informado de que seus dotes espirituais não lhe permitiram chegar à posição de líder.
Apesar disso, tornou-se administrador do templo frequentado pela família e, após a
morte desse líder, assumiu o ensino dos iniciantes.
A mãe associava o problema de linguagem de Pedro com o avô paterno. Não podia
lembrar ao certo se as diferenças na fala do avô eram gagueira ou sotaque. Seu pai
silenciava a esse respeito, pois a fala deficitária de Pedro acionava tal aversão no pai
que, ao ser confrontado com o sintoma, sem nenhuma condescendência, interrompia a
fala do filho deduzindo seus dizeres ou se remetia à mãe para que explicasse o conteúdo
inacabado.
As agruras desse olhar desqualificante do pai transformaram Pedro num misto de
protegido da mamãe que, apesar de não se opor à sua fala, não o escutava e vassalo
do pai, a quem obedecia sem poder de fala para refutar ou argumentar qualquer opinião.
Algumas lembranças da infância contavam de um menino que, embora
reconhecesse seu desejo, deveria negá-lo. Uma cena em especial lhe era
demasiadamente penosa. Num Natal, recebeu da avó paterna, senhora bem abastada,
mas rígida e distante, um caminhãozinho “comprado na feira”, qualificado assim pelo
aspecto simples e frágil do brinquedo. Como brinquedos eram artigos supérfluos em sua
casa, construiu uma fantasia muito diferente daquela a respeito do presente da avó rica
que vivia enclausurada e aparecia e dava presentes no Natal. Visivelmente triste e
contrariado, foi obrigado a agradecer e a elogiar o caminhãozinho. Lembrava-se de ter
gaguejado muito nessa ocasião, causando extremo desconforto aos parentes reunidos.
Estava com sete anos.
140
Decidiu trabalhar desde então, passando a pegar papelão na rua com um carrinho de
mão para conseguir dinheiro. Pedro associava esse período a uma satisfação sem
precedentes: era potente para ser valorizado fora de casa, ficou popular entre os
moradores do bairro, sentia-se cuidado, e o melhor: abastado! Essa experiência foi
relatada com euforia e quase sem nenhum bloqueio na fala, diferente da situação com a
avó, desfilada em narrativa bloqueada e sofrida. As palavras não eram isentadas do ódio
acumulado, o mesmo ódio que o fazia arrasar na escola, detido pela direção inúmeras
vezes por indisciplina.
Seguido a esse período, lembra-se de que, aos dez anos, sentiu-se muito superior às
irmãs pela deferência do pai ao designá-lo para trabalhar com ele na loja seria auxiliar
de escritório. Inicialmente Pedro experimentou a novidade como uma forma de
aproximação e intimidade com o mundo silencioso do pai, mas, com o passar do tempo,
foi ficando aprisionado no excesso de trabalho a ele atribuído aos doze anos, quando
não havia computador. Passavam a noite preenchendo documentos e notas que eram
minuciosamente corrigidos pelo pai e refeitos a cada falha detectada, pois não podiam
apresentar rasuras. Nesse período de convívio mais próximo com o pai por causa do
trabalho, seu comportamento piorou muito na escola, o que sequer foi considerado pela
família. O importante era sua contribuição na loja, o que significava menos gastos com
funcionários. A irmã mais velha era tida por ele como rebelde e problemática, mas era
profundamente invejada, pois sequer se dignava a ouvir o pai, muito menos a obedecê-
lo.
Em momentos extremos de cansaço, pedia à mãe que interferisse em seu favor
junto ao pai para liberá-lo do trabalho ao menos aos sábados, quando poderia jogar
futebol. Embora se compadecesse dele, ela não falava com o pai, apenas o criticava em
sua ausência, aumentando suas lamúrias, como se as queixas de Pedro fossem apenas
141
munições para acirrar as desavenças de ambos, e não um pedido de ajuda a ser
considerado. O refúgio de Pedro era a casa da avó materna, onde aos domingos podia
descansar e sentir-se acolhido.
Essa avó representava o alento para suas agruras. Era ela que ia buscá-lo na escola
quando pequeno e consolava-o dos ataques sofridos em virtude da gagueira com
deliciosas surpresas preparadas por sua habilidade culinária.
No caso desse menino, a identificação com o pai como parte dos traços formadores
desses ideais demandava sacrifício extremo, pois não havia nessa relação concessão
alguma ao seu desejo. Por um lado, pela exigência de vassalagem feita pelo pai como
condição para Pedro entrar em seu mundo (restrito ao trabalho); por outro, porque o
passaporte para essa aventura identificatória era muito fragilmente sustentado pela mãe,
que colocava o pai como impostor, e não como embaixador de um país a ser conhecido,
o que, podemos supor, remontava aos primórdios da existência desse menino. Apesar
disso, mantinha-se submetida ao invasor, golpeando seu autoritarismo com discursos
inflamados proferidos nos bastidores da cozinha durante a ausência do marido, sem
efetivamente separar-se dele ou ter estratégias competentes para negociar as linhas
mestras desse governo despótico. A dinâmica familiar era caracterizada justamente pelo
que vou chamar de falência das palavras, totalmente dispensáveis no silêncio reinante e
ordenador do pai, e absolutamente ineficientes nos discursos mirabolantes e
efervescentes da mãe.
O sintoma de Pedro dava visibilidade à dinâmica familiar caracterizada por
distúrbios de linguagem. O modo como a palavra circula na relação parental tem
desdobramentos muito relevantes na relação dos filhos com a linguagem. Por
conseguinte, os sintomas de linguagem se fortalecem pelos efeitos intersubjetivos,
142
embora nossa hipótese seja a de que se formam por operações intrapsíquicas, como
vimos no capítulo anterior.
A avidez oral, representada pelo alcoolismo, pelo tabagismo e pela obesidade,
denotavam traços regressivos à identificação com a mãe, num tempo da existência em
que as marcas de satisfação eram predominantemente fixadas nessa região que pode
investir libidinalmente em um copo de cerveja, um cigarro e uma comida; portanto, a
pulsão se caracterizava por um imperativo exterior ao sujeito, vindo da alteridade ou da
mãe que, pelo dom, oferece algo para comer, mas busca, em troca, identificação.
Pommier (1998: 308), ao discutir o tema pulsão e identificação, afirma que “é contra
essas forças exteriores ao sujeito que luta este que tem que fazer um regime, por
exemplo; ocorre que o dom do alimento primeiro não foi gratuito, mas
instrumentalizado a alimentar falicamente aquele que foi nutrido”. Salientamos que esse
modo de relação com a mãe é peculiar ao primeiro tempo do Édipo. Ao destacar o valor
psíquico da pulsão oral, Pommier (1998) põe acento no poder atribuído ao sujeito
ainda informe em sua acepção mais legítima de dar à mãe uma identificação
imaginária com o objeto fálico. Pedro transitava desde muito cedo entre os excessos
maternos, que pouco lhe davam espaço para ser fora de sua referência dominante, e a
complacência saborosa dos acolhimentos da avó cuja relação narcisante associada à
comida apaziguava os imperativos do princípio do prazer, mas, simultaneamente,
fixava-o num funcionamento primário e regredido do qual, ao se dar conta, produzia
como rebote a autocrítica e a exacerbação da gagueira.
Nesse tempo, o primeiro do Édipo concomitante ao estádio do espelho, esse
menino parecia de fato ter constituído uma imagem corporal pela circulação no discurso
do Outro materno. Localizamos nesse período o narcisismo primário, também como
base referencial simbolizada pelo traço unário. Pedro estava imantado num visco doce
143
que emaranhava sua vida, “as duas mulheres que nele mandavam”, pois a mãe e a avó
demandavam dele uma dependência de bebê da qual embora quisesse sair não parecia
ter forças. A ambivalência na relação com o pai, de quem esperava autorização para se
discriminar das excessivas demandas, poderia ser vivida como um ingrediente comum,
que caracterizava o investimento objetal; no entanto, essa relação, por natureza
ambivalente, pautava-se ainda no paradoxo do amor total.
Contou Pedro que, numa tarde de sábado, quando implorava ao pai para ir jogar
futebol e, na iminência de criticá-lo pela recusa ao pedido, este lhe respondera: “se você
não fizer o que estou mandando é porque não me ama”. O significado de amar estava
condicionado à renúncia ao amor próprio, o que talvez a mãe realizasse aparentemente
em sua relação com o pai, embora todo o ódio desse submetimento ao desejo do outro
vociferasse em palavras no recôndito do lar. Pedro, pelo contrário, agredia as palavras,
na medida em que elas poderiam denunciar o pavor sentido na relação com o pai e
mostrar-lhe sua própria destrutividade.
Falando, falando, Pedro foi melhorando do sintoma, mas, apesar de menos gago,
sentia-se confuso e perdido, estranhando o desejo de estudar formalmente informática,
campo de conhecimento no qual era autodidata, atuando como assessor de muitos outros
comerciantes que mal sabiam lidar com o computador. Percebeu que gradualmente
deixava de prestar contas ao pai de tudo o que fazia em sua loja (embora separada da
dele, as decisões permaneciam pautadas pelo crivo dos conselhos paternos firmados
no argumento da autoridade, os conselhos paternos eram imprescindíveis até pouco
tempo).
Nessa terapia de linguagem, como em muitas outras não formalizadas na
perspectiva pensada por nós, as palavras recebiam autorização para expressar o afeto
144
que as represava em bloqueios e repetições estéreis, submetidas ao sintoma. O efeito
dessa autoridade legitimada pela transferência e pela especificidade do saber técnico
sobre a linguagem pode redimensionar o ideal do eu. O sintoma, ao mesmo tempo em
que colocava Pedro numa linha de identificação inconsciente com o pai, pelo
silenciamento e evitação da fala contrários ao excesso barulhento que caracterizava o
uso da linguagem feito pela mãe inviabilizava sua “autonomia”
96
desejante
definitivamente impossível em seu imaginário para alguém como ele, que “mal se
expressava”. Os efeitos da sujeição ao pai, formadores de traços do ideal de eu, foram
em parte reconfigurados no novo processo identificatório, no qual o traço “saber falar”
caracterizava sua função em geral, mas a particularidade do desempenho dessa função
dependeria da transferência pela identificação simbólica; “saber falar” poderia ser uma
experiência conquistada e, ao mesmo tempo, transmitida como traço identificatório
numa relação terapêutica, principalmente porque a fala do paciente vai de fato sendo
refeita pela escuta, na justa medida em que a escuta pode sustentar a fala.
Na posição de professor, durante o tratamento terapêutico, Pedro realizava um
sonho antigo de contribuir para perpetuar os preceitos culturais e espirituais de sua
crença. A gagueira não o constrangia, sentia-se mais seguro em sua fala, principalmente
quando percebia o interesse da plateia. Nas ocasiões de frequência baixa e dispersão dos
alunos, seu sintoma o ameaçava, como se a “incompetência para falar” demovesse o
interesse alheio. Entretanto, esse risco era menor que o prazer de ser ouvido no lugar de
professor. Identificado no papel correspondente ao ideal de eu, Pedro gaguejava menos
e quase se esqueceu de que, por ser gago, não poderia assumir tal função. Era muito
capciosa a troca do sintoma pela identificação, por isso não se podia fiar nela a cura,
mas é possível perscrutar por ela as vias de formação e fragilização do sintoma.
96
Estamos usando esse termo como “autonomia em relação ao desejo do pai, uma vez que não supomos ser
possível o desejo sem determinação inconsciente, uma vez que é nele engendrado.
145
Salientamos que o processo aqui relatado em nada se compara com o objetivo
terapêutico de Friedman
97
, o qual nos remete ao uso da sugestão amparada na ideia de
ampliação da consciência do sujeito para os determinantes ideológicos de formadores de
sua imagem como malfalante. Entendemos que Pedro se autorizava a falar, que a
incidência da castração gerada pelo lugar fálico do líder religioso no discurso da mãe o
remetia a uma identificação que sustentava fluentemente as palavras. Sem a
singularidade dos processos identificatórios inerentes à posição de enunciação, retirar
do paciente a imagem de malfalante é tarefa impossível. Certamente, as prescrições em
abordagens comportamentalistas que visam forjar situações discursivas para colocar o
gago em condições de enfrentar a gagueira também nos soam técnicas com efeitos
dessubjetivantes, alienando ainda mais o gago no desejo do terapeuta, pois prescrever
ao gago que assuma compulsoriamente a função de orador não lhe trará a identificação
necessária para que suporte esse papel. Essas investidas podem redundar num efeito
protético, como a identificação imaginária, no entanto, manterão seus resultados se a
identificação simbólica lhes conferir esteio.
A identificação imaginária com o líder ao qual a mãe era devotada refletia a
identificação simbólica que teve por resultado um sintoma na linguagem. Algo se
moveu em sua personalidade para que simultaneamente ao processo terapêutico Pedro
suportasse ocupar um lugar de professor assemelhado ao de líder. Um derivado
concernente à função de líder espiritual seria a de líder intelectual, não o guia, mas o
professor de religião. A função de professor esteve vaga outras vezes, mas a
oportunidade de ocupá-la só foi possível para Pedro depois de perceber a gagueira como
um detalhe de seu jeito de falar e não como seu ser exclusivamente.
97
Conforme explicitado no Capítulo I. Apesar de literalmente esta ser a teoria que rege a prática clínica de
Friedman, pudemos perceber pela análise de seu caso que sua prática vai além do que pode literalizar pelos
conceitos que utiliza.
146
Nesse período estávamos trabalhando em direção ao enfrentamento mais direto da
gagueira, pois ele parecia não fazer registro de seus períodos de fluência, que foram
objetivamente computados mediante gravações que ouvíamos juntos. Assim, a fala era
retirada do “aqui” e “agora” para ser vista num depois bem próximo, mas já separado da
enunciação, como um enunciado sem implicação subjetiva direta, mas indireta, na
medida em que era colocado como ouvinte de si mesmo. Gravar e ouvir na mesma
sessão gerou efeitos bem interessantes com Pedro, que parecia estar sendo apresentado a
outra pessoa quando se ouvia no gravador. Parava não apenas diante da gagueira, mas
do modo como se relacionava com as palavras e refletia a respeito do que poderia ter
atravessado seu pensamento no momento da disfluência. Apesar do estranhamento
inicial, meio constrangido, parecia querer disfarçar a satisfação de se ouvir falando.
Minha escuta somada à dele diante do gravador pode ser pensada por analogia ao
“estádio do espelho”, não para configurar a imagem visual, primeiro esboço de ego, mas
para a imagem acústica que tinha de seus dizeres, imagem deturpada numa prosódia
imaginária muito pior que a prosódia percebida pelos seus ouvidos no contexto
terapêutico; certamente o descompasso rítmico e os bloqueios estavam no lugar de
outros equivalentes atropelamentos e interdições impostas a si. Esse resto de si não
simbolizado por uma imagem acústica discernível dos fantasmas associados ao sintoma
pareceu funcionar como um rébus, o fonograma da fluência fazendo contraponto à
imagem de si como gago.
Pedro sentia enorme desejo de ser professor desde muito tempo, por isso estava
sempre atento às aulas que não precisava freqüentar, que era versado no assunto
ministrado. Entretanto, estava ele, mais na intenção de criticar a falta de consistência
do discurso alheio do que para aprender. Nesse ritual vivia seu desejo pelo avesso. Esse
“tudo” destrutivo, que tomava a prosódia e prendia as palavras em seu imaginário,
147
também foi um significante associado à relação com os pais. Passou a não se obrigar “a
ser tudo” para eles e também a não colocá-los em tudo de sua vida, limitando sua
disponibilidade para eles de acordo com o ritmo de seu desejo e tempo.
O prazer de cumprir a função de professor liberou em Pedro as palavras presas na
linguagem do sintoma. Estava apto para ter potência real em determinadas situações.
nessa medida suportava não ser o filho onipotente do desejo inconsciente dos pais. A
potência desejante poderia ser provisória e tênue em seus efeitos, portanto, não
deveríamos perpetuar o sentido dessa experiência e tomá-la como única condição de
enunciação de Pedro. Isso não a invalida como marca identitária inédita experimentada
em transferência. Intimamente guardamos o valor instituinte desse fato na personalidade
daquele pequeno menino que deveria dar provas de amor sem tê-lo recebido.
148
CAPÍTULO IV
Significação, transferência e a vida das palavras na clínica da linguagem
“Quanto ao limite inefável da
palavra, resulta de que a palavra
cria a ressoncia de todos os
seus sentidos. Afinal de contas, é
ao ato mesmo da palavra
enquanto tal que somos
reenviados. È o valor desse ato
atual que faz a palavra vazia ou
plena. O de que se trata na análise
da transferência é saber em que
ponto da sua presença a palavra é
plena
98
.
(LACAN, 1953/1954)
“A significação é secundária à
demanda de amor que ela
comporta.”
99
(POMMIER, 1998)
Vimos até aqui que a gagueira está fragilmente sustentada como patologia nos
cânones da medicina clássica, uma vez que lhe falta um dos pilares desse sistema de
significação e tratamento que é a etiologia orgânica
100
. Configurou-se, portanto, em
torno desse sintoma, um campo de dúvidas e certezas com desdobramentos diversos e
divergentes no modo de tratá-lo. Apesar disso, observamos uma marca comum nas
abordagens, que é a importância atribuída à subjetividade no tratamento. Por isso,
valemo-nos do conceito de pathos como sofrimento do sujeito associado às relações
amorosas para repensar o conceito de sintoma como próprio do funcionamento
subjetivo. Pudemos assim deslocar a gagueira do campo médico e reconfigurá-la
98
LACAN, J. (1986 [1954])
99
POMMIER, G. (1997)
100
Não estamos dizendo que, em quadros patológicos nos quais a etiologia seja conhecidamente orgânica, a
subjetividade do paciente esteja excluída do processo de cura, pois qualquer doença será singularmente vivida pelo
paciente.
149
inicialmente, a partir de aportes psicanalíticos procedentes de trabalhos que trataram
desse fenômeno, como um sintoma neurótico. Em seguida, posicionamo-nos numa
perspectiva mais verticalizada na compreensão da gagueira como um sintoma
organizado no contexto da conflitiva edípica, especificamente associado à função
simbólica do pai. Todo esse percurso teórico foi gerado pela relação de semelhança
encontrada entre casos de gagos, cujas histórias traziam a fragilidade na função paterna
como um elemento comum. Localizamos o lastro de nossas primeiras questões e
nosso desejo com este trabalho: o de oferecer reflexões que possam aprimorar o manejo
da transferência na clínica com os pacientes que gaguejam.
Nessa direção, este capítulo ocupa o lugar central do trabalho, pois seu propósito é
examinar o conceito de transferência à luz de suas origens e de sua evolução dentro da
psicanálise, bem como comentar possibilidades de sua extensão para os processos
terapêuticos na clínica da gagueira. Nele abordamos a transferência inicialmente pelos
aportes teóricos provenientes da obra de Freud e de Lacan; não o faremos de modo
exaustivo e nem panorâmico, mas seguindo a trilha da relação entre a transferência e a
significação no contexto da clínica psicanalítica e na clínica da gagueira. Os casos
construídos por nossa memória sensorial, afetiva e por registros de sessões, orientam a
reflexão e as articulações entre teoria e clínica. Não temos o compromisso de fazer
generalizações, haja vista que a teoria escolhida é instrumento para pensar
singularidades e, por isso, avessa à totalização. Todavia, o conceito de transferência
permite a configuração de hipóteses sobre o “subjetivo” na clínica da gagueira,
favorecendo assim a reflexão sobre seus efeitos no trabalho com a linguagem marcada
por esse sintoma.
150
Seguindo os caminhos abertos por Freud em seus desdobramentos, da hipnose à
associação livre –, o método psicanalítico esteve marcadamente desenhado pelos
contornos que sustentam a emergência das palavras.
Em Tratamento psíquico (1905), discorrendo a respeito das condições de limites e
possibilidades da hipnose, Freud se refere ao valor da palavra como o meio privilegiado
para a atuação com os problemas psíquicos, e de fato constitui o mais antigo dos
recursos terapêuticos, remontando à magia e aos exorcismos das civilizações primitivas.
Nessa época, tendia ainda a defender a hipnose como recurso mais ou menos viável no
tratamento psíquico; por meio da hipnose, pretendia demonstrar, sobretudo, o
insuspeitável poder do anímico sobre o físico.
Algumas condições essenciais eram necessárias para que esses efeitos ocorressem.
Um estado de credulidade e submissão, por parte do hipnotizado, comparado com
algumas relações amorosas, plenas de dedicação. Um estado passível de ser mais bem
compreendido após a proximidade da segunda tópica, quando em 1921, em Estar
amando e a hipnose, Freud
101
baliza a posição do hipnotizador com a função psíquica
do ideal do eu.
Postas as condições propícias, as palavras carregariam as representações da ação
solicitada ao hipnotizado, gerando o aumento da influência física de uma ideia. Nesse
caso, salienta Freud: “a palavra volta realmente a tornar-se magia”. No entanto, o único
efeito permanente da aplicação repetida da hipnose era a instalação, no doente, da
dependência adicta do médico.
Outro aspecto instigante dos limites da sugestão hipnótica é que sua força é posta à
prova quando se solicita ao paciente algo que pode aviltar seus princípios morais ele
101
FREUD, S. (1921)
151
recusa-se a obedecer. É interessante notar a restrição imposta ao hipnotizador pelo
paciente. Com sagacidade, Freud percebe, na força que se opõe à sugestão, o poder da
força que criou e mantém os processos patológicos. Esse poder é de uma ordem de
grandeza muito diferente da que caracteriza a influência hipnótica.
Não se trata, portanto, de obediência, mas de deleite; não se está no domínio do
outro passivamente, mas em ação sobre o outro, a imprimir-lhe a pecha de tudo poder.
fala naquele que abdica do seu dizer para o dizer do outro. Uma fala disfarçada em
silêncio, com audível sentido de dar poder ao outro. Daí as semelhanças entre a relação
hipnotizador e hipnotizado, a relação da mãe com o lactente, e a dos casais apaixonados.
A fala fora percebida por Freud como resultado do instinto gregário
102
. Dependendo
dela, estão em grande parte a identificação mútua, o laço social e as chances de ser para
alguém, de cumprir uma função no desejo do Outro.
Nessa perspectiva, no Posfácio do caso Dora, a primeira definição de
transferência
103
é enunciada como uma “produtividade da neurose” que não se extingue
durante o tratamento; pelo contrário, é acionada na criação de um gênero especial de
pensamentos inconscientes dirigidos à figura do analista, como atualização de uma série
de experiências psíquicas que devem ser explicitadas por ele ao paciente, evitando
produzir neste a crença de ser o produto da neurose um fato da experiência
compartilhada pelo analista. Caso contrário, quando o analista perde a possibilidade de
explicitar como a transferência ocorre, fragiliza o contexto potencializador da
interpretação. Incontornável e imprescindível, a transferência anima e disponibiliza a
102
FREUD, S. (1912-1913)
103
Pommier (1998) nos oferece valiosas indicações dos primórdios do conceito de transferência na obra de Freud.
Segundo o autor, “Freud utiliza pela primeira vez o termo transferência em francês, em 1888, no dicionário médico
Villaret: nessa época, ele designa, transferência a mudança de lado do corpo do sintoma histérico. É nos Études sur
L’hystérie [Estudos sobre a Histeria] (1895) que a transferência (Ubertrangung), comparada a uma falsa nodulação,
toma a acepção que ainda tem hoje”. (p.14).
152
associação, o encadeamento de palavras que simultaneamente a engendrou e nela
permanece tramada.
Freud se diz acometido de “surdez”, por não ter interpretado a transferência, o afeto
de Dora por ele. Ao deixá-lo em falta, Dora permite-lhe que se depare com o que não
pôde significar com a escuta obliterada pela teoria. Paradoxalmente, é essa teoria
externa e alheia ao inédito da transferência que produz resistência à produtividade da
neurose. Para a paciente, a análise ficou sem sentido, sem rumo e direção, arremessando
para fora dos seus limites os conflitos e angústias que a justificavam. Nesse caso, nada
mais coerente que abandonar o barco à deriva do método.
Após a retirada de Dora, bem desconfiado da vinculação entre as palavras e a
transferência, Freud diferencia dois discursos presentes na análise. O primeiro é o que
se refere ao material patogênico exposto generosamente por Dora, seu discurso sobre si,
o dizer, relato de fatos sintônicos às suas hipóteses a respeito da histeria, quase
ilustração de seus avanços teóricos. O segundo é o discurso em si, o dito na fenda do
dizer, o pulso de sujeito escandindo a cadeia significante de forma a permitir a escuta
essa que não está presa ao significado das palavras de outras associações. O exercício
retrospectivo de interpretação em psicanálise deve estar voltado para essa segunda
mostra discursiva a produção discursiva in loco, deslizando no efeito da presença.
Essa afetação que faltou escutar. Desde então, Freud passa a se debruçar sobre a teoria
da técnica, sugerindo aos seus seguidores um trabalho cujo método seria bem mais
delicado e complicado do que desvendar um processo traumático entrevado no passado;
esse método teria de sustentar um processo terapêutico que liberasse a força de
ancoragem dos conflitos inerentes aos sintomas, uma presença viva que suportasse a
emergência da libido em forma de resistência.
153
Causada pelo aumento extraordinário da capacidade de dirigir catexias libidinais às
pessoas
104
, a transferência nos neuróticos provém da libido fixada nos sintomas, sua
forma de satisfação substitutiva, para a libido investida na relação com o analista.
Houve mudança em relação à hipnose? Não, mas a presença investida libidinalmente
indica movimento, cujo sentido dependerá do manejo da transferência. Será pelo
manejo das demandas inerentes à catexização da relação com o analista que as palavras
imantadas no lançamento desses afetos não recalcados poderão ser articuladas em outras
associações. A força que mantinha os sintomas está impulsionando a fala, produzindo
recurso disponível para o trabalho da análise, cujo viço está em abrir das palavras seus
nortes de significação pela bússola da transferência.
Difícil confiar no fenômeno da transferência como um instrumento de trabalho,
dada a parca precisão dos seus indicadores e a alta suscetibilidade de seu destino
inelutável: a obstinada necessidade de amor expressa e atuada na relação com o analista.
Metaforicamente, Freud aproxima a ligação do analista com a libido do paciente da
relação do religioso exorcista com os demônios. Durante o exorcismo, chama-se o
demônio para que este diga seu nome. Ao nomeá-lo, discerni-lo e desmistificar seus
intuitos, é possível expulsá-lo. De modo semelhante, pelas condições próprias da
análise, é possível atrair as catexias libidinais para examiná-las, desvelar as fantasias
que as animam, depreender seu sentido inócuo e, enfim, liberá-las para um destino mais
útil.
Ao percorrer a obra freudiana, Alonso (1991) mostra a evolução do conceito de
sugestão para o de transferência, delimitando as diferentes implicações de cada campo.
A sugestão passa de um lugar central no método clínico freudiano para se transformar
104
FREUD, S.(1916-1917) Conferência XXVII.
154
num fenômeno secundário, enquanto a transferência, assim como afirmou Freud em
1915, passa a ser o objeto do tratamento analítico. De modo análogo, Birman & Nicéas
(1982) estruturaram extenso estudo a respeito dessa temática, salientando como, em
Freud, já havia a preocupação em distinguir o efeito da transferência na psicanálise e em
outros métodos de tratamento. Nos demais tratamentos, os enfermos se curam sob o
efeito das transferências amorosas; sem estas, os procedimentos técnicos seriam
ineficientes:
[...] aqui se articula o efeito curativo da transferência, no plano
sintotico, pois ela canaliza a produtividade da neurose, que
substitui assim o sintoma. Porém diferentemente dos demais métodos
a psicanálise pretende ir além da transferência, quer exatamente
superá-la, para descobrir exatamente o que se realiza através dela,
que ela tamm é uma resistência. (BIRMAN & NICÉAS, 1982: 54 ).
Embora seja incontestável a argumentação que articula em sintonia teoria e técnica,
o método é posto à prova em cada análise. Freud
105
avisa que “o psicanalista está
trabalhando com forças altamente explosivas e que precisa avançar com tanta cautela e
escrúpulo quanto um químico” (p. 221). Encontros quase laboratoriais, num setting
devidamente preparado, poderiam diminuir o risco de explosão afetiva, encontros de
trabalho de análise, cujo procedente labor é verificar, em quase tudo o que se diz e faz,
como as palavras discursam o sujeito, como lhe pregam suas pausas densas ou emergem
frouxas e vagas no discurso corrente. No debate ou embate com a desmesura das
palavras está a vida da análise, sem os quais é surda, cega e pobre a vida dos sintomas,
carentes de significação.
“Como se a significação?” pergunta-se Lacan em seu texto intitulado A palavra
na transferência. Nele, alerta inicialmente que “a significação não reenvia nunca senão
a ela mesma, isto é, a uma outra significação”; por isso a significação de uma palavra é
105
FREUD, S. (1912) Observações sobre o amor transferencial.
155
dada pela soma de seus empregos, e é a isso que deve estar atento o analista. Embora
Freud estivesse buscando desvendar o trauma e não a trama de significação, mostrou
exemplarmente na revisão técnica do trabalho com Dora a falta que faz um dizer que
possa significar a transferência:
[...] eu mesmo deveria ter me precavido que assim como transferia
seu pai para mim transferia agora o Sr. K. e deveria ter-lhe
comunicado isso [...] assim fui surpreendido pela transferência e, por
causa desse “xque me fazia lembrar-lhe o Sr. K., ela se vingou de
mim como queria vingar-se dele, e me abandonou como se
acreditava enganada e abandonada por ele. Assim atuou uma parte
essencial de suas lembranças e fantasias, em vez de reproduzi-las no
tratamento. (p.112-3).
O “x” não significado fez o processo de produção de sentido ser interrompido.
Freud negligenciou a variável incógnita que provavelmente movia o desejo de Dora,
causava a emoção presa na ordem simbólica, da qual as outras ordens, imaginária e real,
tomam lugar e se ordenam, como expressa Lacan.
Em 1954-5, no Seminário sobre os escritos técnicos de Freud, Lacan estabelece
que a transferência é uma relação entre o eu do analisante e o Outro analista. No
entanto, nesse tempo, apesar de ficarem estabelecidos os termos da operação
transferencial, Mafra (2004: 59) esclarece que “o Outro lacaniano ainda tinha estatuto
de sujeito”. após o Seminário dedicado à transferência (1960-1) é que o autor vai
“asseverar um dispositivo que põe em jogo a questão de um lugar Outro”. Todavia, é no
Seminário da Identificação (1961-62) que o funcionamento do jogo do engano
possibilitará constituir o “sujeito suposto saber”, o que significa atribuir ao analista a
posse do saber absoluto. Desde então, pela perspectiva de Lacan
106
, a força que move a
transferência está no que de fato produz a possibilidade da análise, a experiência do
inconsciente no sujeito que não sabe o que tem”, ou seja, “trata-se daquilo que o
106
LACAN, J. (1960-1961) A metáfora do amor. In: O seminário 8. A Transferência..
156
sujeito tem realmente em si, do que ele demanda ser e não ter” (p. 45). Mais adiante, no
capítulo V do Seminário 8, afirma que a transferência é o que se engendra de subjetivo
na análise por ser a disposição daquele que se adianta como o que demanda. Nessa
posição ou disposição, “é com aquilo que lhe falta que se articula o que ele vai
encontrar na análise, a saber, seu desejo” (p.71). Desse modo, Mafra (2004) assevera
que, com Lacan, a transferência sofre um avatar, deixa de ser uma atualização dos
afetos da infância sobre a figura do analista para ser uma recombinatória desses
elementos afetada pela presença deste.
Mediante a cisão entre “o que diz” e “o que quer dizer”, proposta por Lacan em
Variantes do tratamento padrão
107
, caberá ao ouvinte interpretar não o que o falante
quer dizer, por meio do discurso que lhe dirige, mas o que esse discurso ensina sobre a
própria condição de falante. Assim, o que está claro é a condição de a significação
depender não do sujeito que fala, mas daquele que o escuta. Se o sentido da fala é
decidido pelo receptor, “pode estabelecer que, num nível fundamental, é o receptor
quem está na origem da mesma mensagem”
108
. Nessa escuta que não traduz, mas
significa, aparece claramente a subversão, pela psicanálise, da concepção de linguagem
como conjunto de códigos fixos associados aos seus referentes. Dessa subversão, como
vimos no capítulo II, nasce o conceito de significante
109
, definido por Chemama (2002)
como elemento do discurso, referível tanto ao nível consciente quanto inconsciente, que
representa e determina o sujeito. Pela via do significante, sintoma e inconsciente estão
em dependência extrema do que se decide do sujeito, no lugar do outro. Cabe citar
Gorostiza (1998: 97):
107
LACAN, J. (1955) In: Escritos.
108
Apud GOROSTIZA, L. (1998) In: O sintoma charlatão: textos reunidos pela fundação do campo lacaniano.
109
Toda questão entre a psicanálise lacaniana e a linguística merece destaque tendo em vista que a fonoaudiologia
se constituiu tendo por base a teoria da comunicação e a linguística tradicional como referência para pensar a
linguagem, numa colagem da correlação fixa de signos com o referente que significavam, de certa forma coerente
com a acepção de sintoma proveniente da medicina.
157
[...] sintoma e inconsciente, ambos estruturados como linguagem,
parecem se confundir. Toda essa construção se sustenta em uma
suposição: existe um Outro primordial e anterior, encarnado pela
existência mesma da linguagem, e sedesde e nesse lugar onde o
sujeito receberá o sentido, a significação de seus sintomas, ou seja ,
a sua própria mensagem de forma invertida.
Mediante outro jogo metafórico, o autor situa a análise não mais como um campo
de forças intrapsíquicas, mas como contexto de produção de sentido movido pela
suposição de um saber, gerado pelo não saber que, afinal, move o desejo. Sendo assim,
o sujeito procura a análise para saber sobre seu desejo e chega a formulá-lo como
experiência de falta.
Nesse contexto, as palavras são suporte, transmissoras do desejo. Definitivamente
analista e analisando estão respectivamente na posição de amado e amante; posição
confirmada por Laplanche
110
Sublimação ou inspiração, texto no qual considera que a
posição do analisando é movida por uma sensação enigmática gerada pelo efeito da
presença de um outro absolutamente incógnito. Nesse estado, muito associado à posição
do bebê diante da mãe sexualizada que o envolve com seus contornos de Eros, resta
tentar responder ao enigma, dando a ele algum sentido e explicação. O enfrentamento
inevitável da invasão por intensas sensações funda o funcionamento simbólico e
constitui a subjetividade, essa mudança de registro pode ser comparado com o que
acontece na relação analítica. Num nível bem diferenciado, as questões enigmáticas
são reeditadas no encontro com o analista que está ali para o que nele se supõe e se
coloca como suposto e suporte de novas possibilidades de significação do sujeito para si
mesmo. Tal processo pode criativamente ampliar modos de ser, viver e sustentar-se, ou
pode acirrar a força esterilizante de algumas marcas identitárias e dogmas sobre si.
110
Laplanche, J. (1980)
158
A força do investimento libidinal na transferência não se mostra como
resistência ao desvelamento do conflito inconsciente que gerou o sintoma, mas inclui
certo abalo nas marcas identitárias deixadas pela constituição subjetiva, tendo em vista
que no processo analítico essas marcas serão revisitadas em suas bases referenciais.
Identificação é um termo falacioso, como assegura Pommier (1998: 165), pois recobre o
que seria mesmo a identidade do sujeito, mas a aparente imprecisão revela que a
relatividade das identificações é demonstrada por sua plasticidade, pois o “eu” funciona
como um camaleão, sempre pronto a mudar suas cores “em nome do amor que ele
exige”. Mesmo caracterizadas pela plasticidade, as identificações imaginárias
funcionam como produtos derivados da identificação simbólica cuja determinação é
gerada pela angústia de castração.
A transferência está mais afeita a possibilitar representação do que revelação de
algo que se esconde no inconsciente; não o que descobrir, mas o que discernir do
discurso do sujeito que produz sentidos por ele ignorados, uma vez que o sistema da
linguagem assim o permite, antes dele e nele, e por isso constitui o inconsciente.
Na citação a seguir, Lacan
111
situa a experiência analítica em consonância com o
funcionamento simbólico, visto que nele se configura e por ele transcorre, não podendo,
portanto, abster-se de compreender suas peculiaridades:
O sistema simbólico é formidavelmente intrincado, é marcado por
essa Verschlungenheit, propriedade de entrecruzamento [...]
Verschlungenheit designa o entrecruzamento linguístico todo
símbolo linguístico facilmente isolado não é solidário somente do
conjunto, mas se recorta e se constitui por toda uma rie de
afluências, de sobredeterminações oposicionais que o situam ao
mesmo tempo em rios registros. Esse sistema da linguagem no
qual se desloca o nosso discurso, o será algo que ultrapassa
infinitamente toda intenção que ali podemos colocar, e que é somente
momentânea?
111
LACAN, J. (1953-54) O seminário.
159
É precisamente com essas ambiguidades, com essas riquezas
implicadas desde agora no sistema simbólico tal como foi constituído
pela tradição na qual nos inserimos como indivíduos, bem mais do
que o soletramos e o aprendemos, é com essas funções que joga a
experiência analítica. A todo instante essa experiência consiste em
mostrar para o sujeito que ele diz mais do que pensa dizer.” (p.68).
Segundo Nasio (1987), embora a transferência seja “o cerne da prática
psicanalítica, está presente em toda relação humana e sua especificidade no campo
terapêutico também se coloca como uma questão relevante e necessária de ser
enfrentada em outros processos clínicos, que não o psicanalítico” (p.16). Como pela
transferência manifestações intensas das peripécias do inconsciente se colocam em atos
e palavras, os clínicos podem enredar-se em condutas ineptas por desconhecerem seu
funcionamento e suas íntimas relações com os sintomas.
Parece bastante óbvio e claro para os analistas o reconhecimento das produções da
transferência em outros processos clínicos, o que também é possível dizer de clínicos
não psicanalistas; no entanto, o reconhecimento implica uma posição ética diante do que
se vive na relação com o paciente, que redimensiona a ética do desempenho técnico
profissional. A questão poderia ser resolvida mediante o argumento da assepsia técnica,
ou seja, a configuração dos campos de intervenção, ou o objeto de cada clínica. Desse
modo, a produção da terapêutica da linguagem dissecaria a subjetividade para focar o
método na visibilidade dos sinais e na veracidade lógica dos sintomas mediante uma
leitura nosológica.
Dada a coesão necessária ao método, pressupõe-se que seja norteado por conceitos
teóricos a concepção de linguagem no método clínico acima descrito remonta à mais
antiga e criticada concepção no campo fonoaudiológico em geral e em particular entre
os terapeutas da linguagem. Em síntese seria restringir a linguagem a língua, código,
sistema fechado, tendo as palavras correspondência unívoca ao significado pré-definido
160
na lógica de funcionamento do sistema linguístico. Dessa lógica exclusiva da língua
abstraída em objeto de estudo, Saussure
112
retira a fala, na qual localiza o aspecto
criador da linguagem.
De acordo com Rudge (1998), desde o texto “Sobre as afasias”
113
Freud já estava se
ocupando da linguagem em sua dimensão criativa, como fala, ao propor um “aparelho
de linguagem”, traduzido por essa autora como “aparelho de fala”, que nos
desdobramentos subsequentes da teoria freudiana originou o “aparelho psíquico”.
Salienta Rudge que “a palavra “fala”, como substantivação de um verbo, evoca uma
dimensão de atividade fundamental na perspectiva sustentada por Freud em ‘Sobre as
afasias’”. A importância concedida à relação com o outro a quem a fala é endereçada
para que se produza a significação está sustentada por Freud, segundo a tese de que a
compreensão das palavras faladas não depende da simples transmissão dos elementos
acústicos às associações de objeto, mas da transmissão da fala ouvida para os traços que
servem à execução motora da língua. A estimulação das associações verbais a partir do
elemento acústico implica uma espécie de repetição do que é ouvido. A representação é
o resultado dessa repetição de associações entre representação de palavra e
representação de objeto, e é essa relação que Freud denomina “simbólica”
114
.
A procedência do método clínico, centrado na nosologia, é inquestionável no
tratamento da parte das doenças subsidiárias desse conhecimento e submetidas ao
tratamento correspondente a ele. A coesa sustentação desse método está legitimada por
um saber que possibilita a interpretação dos sinais e sintomas, com pequena margem de
risco e erro, pois estes são remetidos a um quadro descritivo das doenças suficiente para
112
Saussure, F.(1972).
113
FREUD, S. (1891) La afasia.
161
isolá-las dos sujeitos e tratá-las para ele. Todavia, nessa clínica, a fala do paciente não
cria nem significa, apenas comunica o que é necessário ao saber do médico.
É exatamente a esse referencial norteador do método clínico da medicina clássica,
que a psicanálise se contrapõe, pelo fato mesmo de que ela nasce daquilo que o
referencial anátomo fisiológico não explica, a começar pela abordagem das afasias e
seguindo pela revolução que causa na compreensão da histeria.
Seria, portanto, inócuo reconhecer as manifestações do inconsciente na
transferência em contextos clínicos não psicanalíticos se a esse reconhecimento não
estiverem engendradas novas possibilidades de compreensão do funcionamento da
linguagem na fala, condição sem a qual a significação estará restrita ao código
linguístico. Portanto, retomamos aqui nossa questão central na clínica com os pacientes
que gaguejam.
Numa explicação inicial feita por Gomes (2003) ao delimitar o contexto de
atendimento terapêutico de Frederico, um menino de três anos com gagueira severa, a
autora comenta que os pais do paciente “não estavam em condições de discriminar um
setting psicanalítico de um setting fonoaudiológico”. Essa falta de discernimento ela
atribui à emergência de um discurso dos pais com tantas questões que estavam menos
associadas ao problema de linguagem e mais ao funcionamento psíquico da criança,
cuja constituição perturbada estava expressa em traços psicóticos.
Trago a explicação da autora, fonoaudióloga e psicanalista, como um elemento que
corrobora nossas hipóteses, pois não encontramos nas histórias clínicas de casos com o
sintoma de gagueira – descritos pelos terapeutas da linguagem e presentes na literatura –
nenhum terapeuta que não citasse como fator essencial em sua clínica os aspectos
subjetivos do paciente. A abordagem desses aspectos varia consideravelmente na
162
condução do tratamento, embora este não se dê na compreensão etiológica. Tal assertiva
é extensiva a quase todos os casos de problemas de linguagem, desde o início da década
de oitenta, quando a relação entre subjetividade e clínica da linguagem passou a ser
tematizada pelos pesquisadores da PUC-SP inicialmente. O fato que nos interessa em
particular é que o manejo da transferência seja pela via de recursos intuitivos, seja
com base em aportes trazidos da análise pessoal dos terapeutas, ou ainda de supervisões
voltadas para o manejo da relação, mas esses subtextos ou bastidores da clínica não
fazem o texto sobre a clínica. Aqui situamos um sintoma da clínica de linguagem do
qual tentamos nos diferenciar ao expor a clínica incluindo o manejo da transferência.
Retomando a situação exposta por Gomes, podemos afirmar que não se trata de
rebatizar o setting mudando de nome (de fonoaudiológico para psicanalítico ou vice–
versa), mas de compreender que o nome carrega a significação e o que move a
significação é a pulsão e não um saber intelectual. A escolha pela clínica de linguagem
foi determinada pelo desejo dos pais, que pode ser até mesmo expresso como resistência
em se implicarem com os graves sintomas de Frederico: o eterno bebê. Como a autora
justamente percebeu, não havia possibilidade de os pais em questão chegarem a uma
análise, o que vai ocorrer depois de 18 meses, mas à clínica da linguagem chegaram
e, pelo que vimos, foram recebidos de modo muito competente por Gomes.
Nessa perspectiva, entendemos que a transferência instalada na suposição de
saber atribuída ao terapeuta da linguagem está delineando um caminho para o sujeito
procurar a clínica pelo sofrimento associado ao seu sintoma, apreendido simplesmente
como uma patologia. A angústia que gerou o sintoma está nele consumida e não cabe
imaginar que o paciente poderia percebê-la como prévia ao sintoma. O fato de o
paciente não ter a mais vaga noção dessas relações por serem inconscientes não
exclui do setting o afeto como resíduos traumáticos destacáveis do sintoma. Demover-
163
se de articular os traços visíveis do sintoma aos traços inconscientes do sujeito nele
camuflados, como uma posição ética em direção à abstinência técnica, não
corresponderia a uma ética relativa ao sujeito. Provavelmente é essa ética, não prescrita
nos manuais de ética profissional, que leva os terapeutas da linguagem a procurarem
tanto apoio psíquico para melhor cumprirem sua função, posição bastante salutar.
Eis o impasse do qual não estamos eticamente autorizados a nos safarmos: a
transferência foi possível conosco, cabe a nós demovê-la como uma realidade objetiva
excluindo dela a verdade subjetiva, nutrição imprescindível para o tratamento? Todo
gago deve, então, ser indiscriminadamente encaminhado para a clínica psicológica
(psicanalítica de preferência)? Certamente não! O contrário também seria um
posicionamento dogmático incompatível com postura ética esperada em qualquer
clínica.
Todas as discussões que realizamos até aqui visaram asseverar a direção de uma
clínica da gagueira que possa escutar a trama subjetiva em torno desse sintoma.
Contamos que a legitimidade ética que é atribuída ao terapeuta da linguagem pela
transferência permite que, uma vez significada, a trama seja um pulso novo para a fala e
não apenas o sintoma que a obstrui. Tendo ciência de que toda significação é provisória,
a demanda talvez possa se reconfigurar e, por conseguinte, a transferência irá
impulsionar desfechos dos mais variados.
Localizamos a seriedade dessa proposta, pois estamos, como terapeutas da
linguagem, em transferência na posição de suposto saber o que o paciente não sabe
sobre sua gagueira, essa mesma que nos chega subjetivada pelo pronome possessivo na
expressão “minha gagueira”. Essa gagueira comporta o pedido singular que nos inclui
no sintoma. Subliminarmente podemos escutar: “para saber o que você acha da minha
gagueira” ou “como me acha na gagueira”. Muitos pacientes estudaram a gagueira e
164
têm técnicas bem competentes para controlá-la, mais uma razão para compreendermos
que o pedido implícito na queixa não se remete a uma terapia pedagógica, portanto. No
geral vemos que os pacientes desejam “falar sobre sua fala” como se carecessem de
espelhos subjetivos para formarem uma percepção acústica de si mesmos, menos
ruidosa e sobredeterminada. Seria a construção de outra identificação imaginária? Será
que oferecer-se como espelho lugar à transferência que ponho em cena neste
trabalho?
Como os pacientes em terapia descrevem frequentemente as situações em que
gaguejaram afinal, estão ali para falar do sintoma –, escorrega dessa descrição algo
aparentemente sem importância e que para nós se reveste de valor por significar, na
concepção aqui exposta, um efeito terapêutico: a inclusão do terapeuta na relação do
paciente com o sintoma. Dizem, por exemplo: “lembrei de você quando gaguejei”,
“falei tão bem que gostaria que você tivesse visto” e assim por diante. Estar como
alteridade na relação tão fusionada do gago com o sintoma também pode ser
considerado um fator que atenua a virulência desse submetimento. O terapeuta da
linguagem pode ser um contraponto à fixidez identitária alienante.
Grande parte da vida do paciente e do seu saber de si está alienada no sintoma do
qual é impossível discriminar-se e descriminar-se. Promover alguma mudança no
sentido da alienação imaginária ao sintoma faz entender que o paciente poderia passar
sem identificações ilusórias, mas onde estaria a verdade do sujeito? Encontramos os
traços autênticos dessa “verdade”, por exemplo, na gagueira como signo do medo, no
caso de G. A.; da debilidade paterna, no caso de Amadeu; na carência de identificação
com o pai, no caso de Bernardo; na sujeição ao lugar de objeto, no caso de Pedro; na
dominação que pretende exercer sobre o outro, no caso de Marcos, como veremos
adiante, e assim sucessivamente, em aberturas de sentido concernentes a cada história.
165
Saber sobre o funcionamento do inconsciente e do sintoma como resultado desse
funcionamento é uma saída possível ao impasse, pois também nessa saída a aposta
segundo a qual, quando a trama sintomática em parte se esclarece, a demanda para uma
análise pode ser configurada – ou não, se a transferência se dissolve. Quando isso
acontece, esgotou-se o saber suposto no terapeuta. Não é assim com muitos pacientes
que não seguem no tratamento? O que dizer dos pacientes gagos que fazem análise e
buscam na terapia da linguagem uma ajuda para melhor se situarem na relação com a
linguagem?
A suposição de um saber não está determinada pela condição intelectual do
paciente em fazer a escolha para o setting acertado ao seu sintoma. Cabe ao terapeuta
implicá-lo com seu pedido e não reduzir a clínica da gagueira à literalidade da
manifestação sintomática. A não redução da clínica à patologia, a consideração do
sujeito no processo terapêutico são máximas de um posicionamento majoritário nas
diferentes clínicas da gagueira. Por isso, a concepção de subjetividade construída pelas
teorias psicanalíticas aqui abordadas também não pretende ser a última palavra; seus
sentidos estão sujeitos a interpretações.
Não é a inoperância do pai como fato, mas a inoperância da palavra, do lugar
simbólico como terceiro, que aparece na gagueira desses pacientes, o que para nós se
traduziu na elaboração de uma hipótese sobre a formação desse sintoma. No Seminário
5
115
(LACAN apud FARIA, 2003: 192), “a posição do pai é posta em dúvida pelo fato
de não ser sua palavra que serve de lei para a mãe” o que é decisivo no Édipo “deve
ser isolado como relação não com o pai, mas com a palavra do pai”. Muito óbvia e
direta é a constatação de que “pais sem palavra” farão os filhos se perderem com as
palavras por herdarem o que nelas de falacioso a partir da enunciação parental ou,
115
LACAN, J. apud FARIA, M. (2003)
166
como vimos nos casos expostos até aqui, transformarem a palavra que falta num
sintoma como a gagueira. Transpor essa máxima para todos os casos seria reduzir ao
universal da teoria experiências com a linguagem que são condição para singularidade.
Considero nesta pesquisa que é fundamental relevar os elementos articulados a partir da
teoria psicanalítica como um recurso ao pensamento clínico, complementar ao trabalho
na clínica da gagueira.
Enfrentar um sintoma como a gagueira apenas com uma teoria sobre a patologia da
fala seria restringir os problemas de linguagem à queixa focada na forma dissonante da
fala. Tal posição, como vimos, não é bem-vinda à prática clínica fonoaudiológica com a
linguagem, pois significa limitar o sujeito à patologia. Se, porém, não é esse o objetivo,
como é possível verificar na maioria das produções teóricas a respeito da clínica com
pessoas que gaguejam, que se contar com uma teoria sobre o sujeito que comporte
subjetividade, linguagem e produção de sintoma.
Até este ponto, nada demais, pois a passagem de uma clínica focada no sintoma
para uma clínica voltada para o sujeito é um avanço datado em nosso campo clínico
terapêutico quando “questões são feitas ao sintoma”, como sugere Cunha (1997).
Fazendo questões ao sintoma, retomamos sua concepção pela psicanálise, o que nos
levou a abrir uma perspectiva possível para compreendê-lo em um determinado
contorno metapsicológico.
Esse delineamento traz a gagueira originariamente configurada nas operações
necessárias à passagem do primeiro para o segundo tempo do Édipo e que terá reflexo
no terceiro tempo, mantendo-se como um recurso necessário para seu trânsito no
simbólico. O sintoma também remonta a determinada posição desejante ocupada pelo
sujeito que atravessou sofregamente o caminho para a identificação simbólica ao falo,
167
do que decorre posição subjetiva com manifestações não unívocas, por isso mostramos
como os casos particularizados por um elemento pensado metapsicologicamente são
simultaneamente singularizados pelo sintoma de linguagem.
O empenho em construir esse delineamento metapsicológico para a gagueira tinha o
objetivo de explicar por que nessa clínica os aspectos subjetivos são enfaticamente
salientados pelos terapeutas, chegando a ser a eles atribuído o bom desempenho do
trabalho com as pessoas que gaguejam. Se a técnica está na base dos procedimentos
clínico-terapêuticos, qual seria a técnica de manejo da relação na clínica com as pessoas
que gaguejam? Percebemos que esse manejo se de forma intuitiva, bastante sensível
e competente em muitos casos. No entanto, esse aspecto da clínica, apesar de
enfatizado, não é teorizado. Buscamos começar a fazê-lo com os recursos teóricos para
nós mais significativos, a relação entre produção de subjetividade e da gagueira, como
sintoma configurado na conflitiva edípica e particularmente pensado aqui em casos de
neurose. A transferência no trabalho com neuróticos tem particularidades que devem ser
consideradas para que o terapeuta, “diante do material explosivo”, tenha as ferramentas
necessárias para manejá-la.
O elemento que talvez sintetize o manejo aqui sugerido é que a transferência revela
um paciente que não vem narrar seu sofrimento, mas vem entregar o sintoma, como
uma bomba para o terapeuta desarmar seus efeitos destrutivos. Apesar disso, não nos
cabe explicitar o significado inconsciente de seu pedido muitas vezes expresso em
atitudes; todavia, devemos nos orientar em direção às demandas escutadas neles, então
podemos ter hipóteses a respeito dos efeitos de nossas atitudes no funcionamento
inconsciente dos pacientes. Assim, essa ferramenta de pensamento clínico exerce a
regulação de nossas posturas, pois estamos tomados em transferência, e nesse lugar
168
nada que se faz ou diz pode ser aleatório, na medida em que não será interpretado como
banal e sem significado.
A consideração da transferência não é uma via acessória ao tratamento, mas a
chancela para sua efetivação. Funciona mesmo como recurso reflexivo de bastidor que
não deve tomar a cena, mas sem ele a diferença entre o bastidor como reflexão clínica e
cena como a relação terapêutica se perde.
Cabe salientar que, mesmo na cena, o bastidor como um setting interno do
terapeuta deverá continuar atuante. Felizmente não paramos de pensar enquanto
atendemos; no entanto, o pensamento clínico, muitas vezes, quando a transferência gera
efeitos inconscientes no terapeuta, produz o impensável manifesto pelo mal-estar fora
da significação. Sem nominação possível, o apoio de um terceiro é imprescindível para
a significação depois da cena, numa supervisão ou durante a sistematização da
experiência pela escrita.
Outro elemento essencial no manejo da transferência é a vulnerabilidade desses
pacientes à imagem. Atribuímos a esse fato o conflito inerente à passagem do segundo
para o terceiro tempo do Édipo, quando se pode perceber que ninguém tem o falo
definitivamente e, por isso, ele pode circular entre ele, a mãe e o pai, mas tal avanço,
que redundaria em potência simbólica pela identificação simbólica ao pai, estabelece-se
mediante traços identificatórios que não vêm do pai real; por isso a culpa sempre
presente, culpa inconsciente por ter sido impelido a excluir o pai real, assim como fez a
mãe, buscando fora dessa referência a identificação simbólica. Em certa medida, essa
culpa também está associada ao fato de o pai real estar mais referido pelo discurso
materno ao pai privador do que ao pai simbólico remetente do desejo da mãe.
169
Apesar de terem se desvencilhado da posição de objeto fálico do Outro,
característica do primeiro tempo do Édipo, não podemos esquecer que esses pacientes
estão fundidos numa perspectiva gaguejante de si mesmos, como se tivessem sido
privados de algo que imaginariamente o pai deveria ter-lhes dado. Em certa medida não
deu, pois a função paterna segue a marca do humano: é sempre incompleta e falha, e é
nessa medida também que pode continuar movendo o desejo. Poderíamos supor um
dizer da mãe na direção da privação: “nossa penúria é culpa do seu pai que não nos
nada”. Como vimos, o pai o que não tem; isso é objeto simbólico, que é
legitimado como tal se a ele é remetido não só o objeto da falta da mãe, mas o desejo da
mãe prioritariamente.
A colocação do desejo faz dele simbolicamente potente e viril para ser suposto ter o
falo. Como os pais reais desses pacientes se apresentam com falhas muito
desqualificantes, permanece a ideia equivocada de que todos receberam algo e eles não,
como se tivesse sido amputado de um membro antes que se formasse totalmente. A
suposição do ter no outro e da perpétua privação desautoriza a posição de desejante e
falante. Deriva também dessa ideia o pensamento de que se os pais fossem diferentes
não haveria conflito e nem sofrimento e estariam fluentes na fala e no desejo. Nisso
estão emparelhados com qualquer neurótico não gago. Certamente os conflitos e
sintomas seriam outros, mas talvez não se marcassem tão diretamente na linguagem,
constituída como funcionamento simbólico a partir da consecução do segundo tempo do
Édipo.
E o que tem a imagem com isso? De forma mais ou menos evidente, os pacientes
com esse sintoma são fascinados pela imagem do outro e pela deles num lugar de
potência e poder. Quase todos almejam posições de trabalho, onde serão líderes,
formadores, atores etc. Vemos que quando tal desejo se realiza, passa a funcionar como
170
um substituto do sintoma, a libido parece de tal modo satisfeita que as amarras
inconscientes na imagem de “deficiente”, “burro” ou “tosco” se soltam, permanecendo
uma gagueira episódica, quase uma disfluência não patológica, pois os pensamentos não
estão tomados pelo eminente fracasso da fala. Essa é uma parte considerável do
desfecho da transferência: ser dissolvida pela transformação do sintoma em recurso
discursivo.
Seria muito simples se as mudanças não tivessem sua força atrelada á estruturação
subjetiva, da qual o sintoma testemunho. A posição do sujeito resiste às técnicas
racionais de convencimento, de certa forma ela sabe que tem condições
neurofisiológicas para falar melhor, o que seria conscientemente constatado por ele,
haja vista que tem bem mais fluência que disfluência em seus dizeres. O que está em
jogo, de fato, é passar da imagem totalizante idealizada de si e que se ancora no falo
imaginário para uma experiência de conciliação com a condição de falta, não como
privação, mas castração, que lhe confere a possibilidade de ter o falo, mas também de
perdê-lo sem perder a fala por isso.
Trata-se de retomar, inclusive nas situações de manejo técnico da fala, com
exercícios articulatórios, respiratórios e posturais, que seu corpo sofre os efeitos de um
ideal impossível de ser seguido, por isso a direção da técnica não é acertar a articulação,
a respiração ou a postura, mas livrar o paciente do desconserto que se impôs na
suposição de criar um jeito sobre-humano de ser sem defeito. Não estamos trabalhando
para que venha a ser mais informado sobre a produção motora da fala, mas para
desenformar a produção corretora do defeito que supõe em si. Nessa medida é
necessário cuidar para que o paciente não se torne prisioneiro da imagem que deve
corresponder ao desejo da terapeuta, a qual funcionará como um substituto daquele
objeto que se imaginava privado pelo pai, uma prótese ao seu jeito de falar.
171
Nasio (1995) afirma que, à medida que o paciente passa a se interrogar sobre seus
sintomas, o analista passa a ser o destinatário deles. Quanto mais explicamos a causa de
nosso sofrimento, mais aquele que nos escuta torna-se o Outro de nosso sintoma. Por
isso, o autor inclui como característica do sintoma o fato de este conclamar e incluir a
presença do analista. Esse traço do sintoma abre as portas para a transferência, que nos
interessa em particular. Em seguida, esse autor define o sintoma como um mal-estar que
surge de maneira diferente de um distúrbio que causa sofrimento; na verdade, ele se
impõe ao sujeito, além dele, e o interpela.
Se o Outro do sintoma é um terapeuta da linguagem, é porque a escolha do
paciente sustenta-o numa possibilidade transferencial imaginária, fundamental para que
se deixe afetar pela função do Outro. Por isso o sintoma pode ser revolvido em suas
amarras significantes. O Outro com maiúscula nos remete ao conceito de Outro como
tesouro dos significantes, como o representante das possibilidades de significação. O
paciente atribui a esse terapeuta o saber de que necessita, “saber falar”, mas esse “saber”
que também está nele apagado se atualiza na relação terapêutica como deficiência
imaginária, como símbolo real da castração simbólica.
Voltando a Freud (1917), é possível considerar que “as fantasias possuem
realidade psíquica, em contraste com a realidade material, e gradualmente aprendemos a
entender que, no mundo das neuroses, a realidade psíquica é a realidade decisiva”
116
.
Essa realidade interpela o sujeito, que a ela responde pelo modo como o sintoma e o
terapeuta da linguagem estão colocados na transferência. O lugar que o sintoma ocupa
na transferência faz toda a diferença no tratamento, porque, embora seja do sujeito, o
gago inconscientemente cifra suas manifestações ao longo de uma mesma sessão: pode
116
FREUD, S. ( 1916-1917) Os caminhos para formação dos sintomas.
172
começar gaguejando, parar de gaguejar e voltar a fazê-lo quando vai tratar de algum
ajuste relacionado ao pagamento, por exemplo.
Passaremos à análise mais direta de alguns efeitos da transferência na clínica da
gagueira.
4.1 Nicolau: em tempo de ter
Nicolau apresentou-se a mim numa noite chuvosa, de capa e guarda-chuva pretos,
ombros curvados, cabeça baixa, taciturno e recolhido. Parecia reservado com as
palavras, mas os enunciados cuidadosamente construídos explicitavam escolhas
certeiras, combinações interessantes e inteligentes oferecidas em pequenos bloqueios e
repetições desconcertantes que traíam as palavras. Depois soube que achava sua
obrigação caprichar no conteúdo, que pela forma da fala certamente pensariam que
era tosco e sem recursos.
Falou de si como aquele que nunca pode conquistar: devia “matar um leão por dia”,
e depois de tamanho esforço precisava render-se à nulidade do trabalho vão, que nunca
lhe concedia uma trégua de realização. Irritava-se terrivelmente com as pessoas
burocráticas, mesquinhas e sem crítica, que o faziam sentir-se um nada a partir de
critérios pífios. Via-se violentamente ultrajado por comportamentos desse tipo, os quais
lhe provocavam o desejo de avançar no outro, atacar e destruir. No entanto, quando
tomado pela fúria, a gagueira se sobrepunha a qualquer manifestação de agressividade e
muitas vezes também aos ímpetos de potência criativa, que muito lentamente foram se
alargando durante os quatro anos de trabalho terapêutico.
173
Tendo o nome do pai, sentia-se aprisionado nessa pecha. Herdou o nome, mas
ironicamente era um dos únicos netos que não receberia herança material, pois o avô
havia deserdado seu pai quando este decidiu mudar os rumos de seus negócios. Essa
havia sido a segunda falha irreparável, após ter se casado com uma mulher alheia à
cultura e à religião da família. Desvalido, percebia que a vida passava, sem ver saída
para se diferenciar desse drama ou da herança-maldição.
Muito cedo na infância, lembrava-se de ser desprezado pela família paterna em
atitudes sutis ou explícitas, como a exclusão das festas e comemorações. Nunca eram
bem-vindos. Acreditava que sua presença para o avô era apenas a visão de mais um
fruto dos maus passos de seu pai. Tais lembranças se associavam às memórias das
situações de fala que foram marcantes, ao pavor de responder para a professora na hora
da chamada na escola, à extrema dificuldade em enunciar o nome próprio e ao medo de
não conseguir falar direito o que pretendia, principalmente quando se via mal-
sustentado em si, frágil e perdido. Mesmo morando longe da família desde o início do
curso superior, qualquer aproximação do pai, por telefone que fosse, fazia sua fala
piorar muito. Definia seu pai como um fracassado arrogante: apesar de muito culpado,
não se intimidava em espalhar pela família suas frustrações e falências, depreciando as
escolhas dos filhos.
Embora encolhido, disfarçado e muito criticamente punido, o prazer de falar, ou
melhor, discursar, ganhou lugar nas sessões. Trabalhávamos com textos muito bem
escritos de autores de seu interesse, destrinchávamos o discurso, saboreávamos a forma,
os modos de preparação dos argumentos e as escolhas das palavras. Líamos em voz
audível, repetíamos as frases e, após sorvido o cerne dos sentidos, parafraseávamos. Seu
discurso parafrásico trazia as palavras levemente, num ritmo fluente. Vez por outra um
174
poema ou citação transformava o texto de referência em pretexto associativo: quando
sua vida aparecia, a gagueira voltava.
Era desnecessário salientar para ele esse fato, pois podia percebê-lo sem demora; a
isso chamamos mobilidade do sintoma, que dava trégua no domínio de um assunto ou
quando um conteúdo era previsto, mas uma simples apresentação de si em grupo
não contava com essa generosidade estava a obstrução, como se tivesse algo a
esconder pelo nome, o que inconscientemente tinha pela via da herança.
A gagueira, cada vez menos severa, ficou restrita a nichos de indignação, passou a
ser vista por ele como um estilo e não como sintoma. Nicolau pensava nas palavras
como objetos caros, poderosos e muito violentos também. Associava ao poder da língua
a força que esperava ter para vencer uma condição infeliz de trabalho, pois se via
submetido a uma organização empresarial arbitrária e pouco racional. Seu intento se
confirmou após trilhar um caminho de determinação e ódio manifesto aos empecilhos;
chegou então à função profissional que lhe era o impossível do seu desejo: ganhar
seu sustento pelo pleno deleite do exercício discursivo, dando treinamento e formação
profissional na empresa em que trabalhava.
O processo terapêutico com Nicolau apontou para uma situação bem-sucedida.
Apesar disso, minha experiência com adultos gagos não segue essa regra é grande o
número de pacientes que abandonam o processo terapêutico, num desfecho geralmente
anunciado pela hesitação no contato, restrições impostas ao vínculo e muita decepção
quando não encontram um treino mágico que coloque a prosódia no eixo da fluência.
Podemos pensar a gagueira como uso inconsciente do potencial sintomático do
sujeito, tendo como objetivo satisfazer um desejo, ou retomar uma cena imaginária na
qual o gozo estancou e virou dor. Refiro-me, por exemplo, a uma situação recorrente
175
relatada por esse paciente adulto. Ele comentava sobre a insistência da gagueira toda
vez que estava diante de homens objetivos, pragmáticos, sem muitos escrúpulos para os
negócios, que lhe passavam a sensação de serem bem sucedidos, competentes para
ganhar dinheiro e, por isso, poderosos.
Diante dessa figura imaginária, esse homem jovem não conseguia falar, tamanha
sua sensação de exclusão, por sentir-se o oposto desse estereótipo. Tentava se afirmar,
mas muito precariamente, pois diante desse monstro viril e devorador não conseguia
continuar sendo ele mesmo. A vivência interna de inadequação e não-pertinência
impossibilitava a emergência das palavras e, mesmo que o advogado, médico, professor,
o marido rico de uma amiga ou o pai da namorada se mostrasse receptivo, ele travava e
fazia, diante desses ícones imaginários da autoridade paterna, o papel de criança
indefesa, impotente, insegura, e que precisa de proteção. Uma lei apenas interditora e
não reguladora da relação desejante cerceia Nicolau de referência simbólica que
permitiria estar de acordo com seu desejo. Crítica e abandônica era como classificava a
presença do pai em sua vida um pai que aparecia depauperado no discurso materno,
sem recursos, sem força legalizadora.
Vê-se que Nicolau atribuía um poder desmedido a quem, em seu imaginário,
estivesse de acordo com a lei. Diante deles, posicionava-se como culpado de um defeito
que não era a gagueira em si, mas a incompetência para se firmar numa posição viril.
Tal fantasia redundava em mal entendidos frequentes, pois o mínimo sinal de crítica
levava-o quase sem controle a desfilar o arsenal de críticas que armazenava em silêncio
contra o outro. Homens admiráveis ficavam fora desse bombardeio, no geral eram os
mentores de sua formação intelectual e que lhe permitiram ter acesso à posição de
comando da formação dos funcionários em sua empresa.
176
A identificação imaginária gerou duas categorias de homens na vida de Nicolau: a
primeira, “homens-ameaçadores”, que no geral impediam-no de falar pela atribuição
imaginária ao falo, mas apenas como forma de denúncia à falta do falo nele e não como
identificação com uma posse limitada e ao mesmo tempo viabilizada pela interdição; a
outra categoria, a de “homens-parceiros”, reestabelecia um lugar identificatório possível
com o mundo masculino e acionava menos o sintoma. É importante dizer que as
categorias imaginárias também eram ocupadas eventualmente por algumas mulheres.
Em muitas situações, a teia tecida pela identificação imaginária fez Nicolau expor em
público pensamentos tão críticos que comprometeram suas relações. Esse tipo de atitude
aproximava-o do modus operandi do pai. Imperativos associados à salvaguarda da
posição masculina insistem em presentificar a intimidade da dor de sentir-se destituído
de seus direitos e o conflito herdado retorna num lugar outro, sem gerar um outro lugar
para si, a defesa excessiva ao falo imaginário expõe a precaridade simbólica deste.
Execrando e repelindo a crítica e o abandono supostos no outro, ficava criticado e
isolado.
A metáfora do teatro é usada por Pontalis (1991: 93) para aludir à transferência
como a verdadeira repetição que escapa à representação, uma fidelidade que sempre
teve como conteúdo a vida sexual infantil
117
. Nicolau estava inconscientemente
repetindo cenas vividas na infância durante as brigas de seus pais, cenas marcadas pelo
total bloqueio de sua fala, mas também associadas ao prazer de ficar sozinho com a mãe
em seu quarto, pois, após as brigas, ela se refugiava nele. A relação terapêutica parecia
inicialmente um encontro com a mãe, que prestava atenção a seu corpo, pois
trabalhávamos articulação, postura e respiração, o que o assegurava de seus recursos e
lhe conferia aval para a fala fluente. No entanto, as fantasias em torno desse lugar
117
FREUD, S. (1920) Além do princípio do prazer.
177
incestuoso provavelmente faziam com que Nicolau faltasse com frequência. O próprio
setting que, de antemão, fazia o limite para a relação, dificultava que ele suportasse essa
lei e simultaneamente atacava a interdição, solicitando com frequência reposições e um
regime de exceção para si. Visivelmente contrariado em seu desejo, Nicolau estava num
contexto em que as regras possibilitavam que falasse: seu direito era garantido
justamente pela clareza da lei.
A contenção excessiva da agressividade nesse caso era proveniente de experiências
bastante traumáticas com o pai real. Todavia, essa contenção no corpo explodia em
palavras- mísseis, explosivas e despedaçadas em direção aos algozes imaginários. Como
observa Dor (1995:19),
o papel simlico do pai é sustentado, antes de mais nada, pela
atribuição imaginária do objeto fálico. Nessas condições, basta que
um terceiro, mediador do desejo da mãe e do filho, argumentos a
essa função para que seja significada sua incidência legalizadora e
estruturante.
O aval legalizador que norteia escolhas e pavimenta um caminho de existência
revela-se frágil, caricato às vezes e excessivamente destrutivo em outras situações, essas
consequências simbólicas possibilitam-nos estabelecer relação entre os sintoma na
fala
118
e os processos de identificação.
Para este paciente, o que faz a interdição, a quebra imaginária do asseguramento
conferido pelo amor incondicional da mãe também passa pela linguagem. Nicolau
118
É importante delimitar novamente a diferença entre causa, do ponto de vista da etiologia, e do que estou
chamando de elemento que compõe um caso (ou acontecimento clínico). O caso traz seus aspectos distintivos e
semelhantes ao fenômeno patológico (no caso, a gagueira); no entanto, apreender elementos dos casos que
causam no clínico certa possibilidade de generalização, mesmo que o se transforme num traço da patologia, ou
numa explicação etiológica, pode ser pensado como elucidativo para compreensão de outros casos.
178
afirma que sua mãe é da opinião que suas palavras machucam, pois usa sua perspicaz
inteligência para lançar observações duras e pontiagudas em direção às pessoas. Nesse
caso, diferente do de Marcos (que discutiremos em seguida), vemos elementos de
quebra da identidade fálica, pois a hiância aberta na relação com a mãe, e que não era
remetida ao pai real, estava representada em várias atitudes de Nicolau, sempre
procurando um tutor, alguém com quem pudesse contar, ou mediante quem pudesse
transformar sua herança, recomeçar em si mesmo.
Numa sessão, durante a leitura de um poema de Drummond
119
, lembra-se do tio
solteirão e solitário que lhe ofereceu abrigo quando mudou para a capital, por ocasião
do início do curso superior. O homem enigmático, já aposentado, absorto em seu
escritório, passava o dia lendo e olhando para o mar. Aquela imagem apareceu-lhe
como num sonho, ficou emocionado, de repente sentiu que amava aquele tio sem nunca
ter percebido. Ele era o estranho da família, irmão mais novo do avô materno, diziam
que também fora gago. Esse homem o acolheu por todos os anos da faculdade sem
jamais ter lhe cobrado nada, “ofereceu-me lugar e livros”, disse Nicolau ao referir-se à
extensa biblioteca do tio. O retorno ao começo da faculdade e à forte presença do tio
parecia uma chance inédita de se apropriar de certa parcela da herança que pouco lhe
ocupara, fixado que estava no que não recebeu pela linhagem paterna.
O trabalho terapêutico com a linguagem suscitou sentidos imersos no esquecimento
da pertinência experimentada na relação com seu tio, mas até então não significava
nada. Nicolau, encarcerado no ressentimento, reconhecia-se na condição de migrante,
mesmo sendo parte integrante da casa do tio e da cidade cheia de estudantes como
ele. Percebeu que transformara a condição ressentida numa interdição à experiência de
ter: lugar, palavras e a liberdade para discursar, como fazia em terapia.
119
DRUMMOND DE ANDRADE, C (1996). A ilusão do migrante.
179
4.2 Marcos: o poderoso chefão
Ocorre-me o exemplo de certo manejo da transferência no trabalho terapêutico com
um jovem paciente que continuava se queixando de gagueira, mesmo na ausência do
sintoma na produção da fala.
Em seis meses de terapia, havíamos trabalhado toda a organização da fala, pontos e
modos articulatórios, adequação da postura global e da musculatura oral, fisiologia da
respiração e seu uso durante a fonação. Tudo aparentemente muito bem compreendido e
controladamente executado; no entanto, embora ausente na prosódia da fala, a gagueira
persistia em seu discurso sobre si, encrustrada no medo de se expressar, na mágoa, no
ressentimento e na ira acumulada.
Outros elementos manifestos no seu modo de falar e de estar comigo passaram a ser
expostos a ele: o silêncio durante o processo terapêutico que me induzia à condução de
temáticas a serem abordadas, para além do trabalho de reestruturação da produção
motora da fala – ele só falava se eu o impelisse. Ao ser confrontado com esse fato, disse
nunca encontrar lugar para sua fala. O lugar desejado no outro é o sinal direto da
transferência, “aquilo que o sujeito supõe no outro”, anelando autorização para ser.
Aqui “encarno” pela identificação imaginária esse elemento constitutivo da
subjetividade que, por mal vivido ou mal sustentado, não inscreveu no sujeito uma
segurança expressiva. O olhar em particular é percebido como a senha que abre certa
chancela para a palavra.
Nessa condição, de tamanha invisibilidade para si mesmo, falar ao telefone era
quase impossível; a insegurança aumentava e evitava fazê-lo, assim como seu pai, que
havia contratado um funcionário em sua loja especialmente para falar ao telefone. Do
180
outro lado da linha poderia estar não alguém qualquer, mas a ameaça de realização de
uma fantasia sofrida, na qual seria ridicularizado e excluído, por ser menos ou pouco,
por não saber se comportar ou compreender de fato o que estava por trás da liberdade
dos outros, que conseguiam simplesmente falar. A suposição de certa superioridade no
Outro deixava Marcos à mercê de identificações imaginárias lancinantes.
A mim foi delegada a função de escutar por que ele não podia falar e, ao mesmo
tempo, deveria acolher seu secreto desejo de permanecer na sombra da minha fala, num
lugar escuro e indiscriminado, mas seguro. Nesse esconderijo, protegia-se de levar “um
fora” das meninas por quem tivesse interesse; construiu uma imagem de inteligente,
sério e compenetrado, mantendo assim certa imagem de si. Esses ideais foram
depositados na transferência, falava das provas terríveis da faculdade e do quanto para
ele foi simples tirar a melhor nota da sala. Na infância, suas habilidades cognitivas
sempre lhe renderam destaque entre os primos e diante da irmã, que tinha especial
interesse em salientar seus episódios de disfluência. O estereótipo de menino gênio fez
dele o braço direito do pai, desde pequeno era levado para a fábrica, aprendeu cedo a
manejar as burocracias administrativas e rapidamente passou a dar ordens aos
funcionários. Aos quinze anos ia com o pai negociar com fornecedores, aos dezoito
cumpria essa tarefa sozinho, além de grande parte das vendas.
A enorme admiração da mãe pelo filho era constatada no modo como o elogiava
para as tias – o que ele ouvia em segredo. Também era tratado com direitos semelhantes
aos do pai, pois afinal também trabalhava para garantir o sustento da família. Assim,
sempre era servido antes da irmã, tinha suas roupas e objetos intocados e gabava-se de
controlar tudo o que era seu mediante a meticulosa organização da mãe.
181
Não fosse a inveja a fustigá-lo, seu pedestal parecia-lhe muito digno. Mas como
olhar as rodas de piadas dos colegas da faculdade, os bate-papos sem pretensão, as
conversas jogadas fora sem o pesar de nunca se deixar ser, punindo-se com base na
desconfiança?
O ódio dessa condição se transformava em exigência para que eu fosse ainda mais
potente e assertiva no método de fazer desaparecer a gagueira, essa que degenerava a
fala antes do ato articulatório, que depauperava a vida antes de poder experimentá-la.
Sentia-se também sob grande ansiedade quando algo saía de seu controle, por exemplo,
se não fosse convidado para jogar vôlei pelos colegas de classe ou se combinassem
qualquer evento sem consultá-lo.
Era vultosa sua exigência, fazia sentir-me engessada ao seu método de tudo
controlar e saber. Provavelmente fui fisgada pelo modo como ele se posicionava em
identificação imaginária em relação à mãe, deveria ser o máximo para fechar a
frustração desta por ter escolhido um marido tão pouco arrojado, restrito a manter a
duras penas o negócio herdado de seu pai, avô de Marcos. À revelia de sua vontade,
numa peça do desejo, sustentava esse ideal de eu, tendo na gagueira o signo da
humildade paterna que tinha verdadeiro pavor de herdar.
Ocorria-me que poderia haver falhas no método ou em meu modo de aplicá-lo.
Cumprindo seus mandatos, retomei a reeducação do ritmo da fala, o que logo percebi
ser usado por ele como mais uma estratégia alienante de controle de seu próprio desejo
nas tentativas renitentes de controlar o outro. Quase perdi a chance de ajudá-lo, pois,
embora situado seu sofrimento, na gagueira, continuava sofrendo, mesmo quando
esta praticamente lhe dava trégua, e essa prova cabal da inserção simbólica desse
sintoma fez-me rever meu lugar na transferência. Coloquei-me a escutar o fantasma de
182
uma suposta impotência projetada em mim. Ao se dar conta desse mecanismo reativo às
suas fantasias de debilidade, pelo qual precisava destituir a potência alheia, Marcos
passou a tematizar sua fama de chato, associando-a aos excessos que cometia na relação
com os amigos. Não perdia uma oportunidade de confrontá-los com seus defeitos e
limitações, espalhando assim a virulenta impotência que o estado humano de não
perfeição lhe causava.
Nesse período, foi a uma festa com os amigos. Logo na entrada deparou-se com
uma dupla de meninas muito interessantes. Por certa alegria, cuja origem não soube
precisar, sorriu para elas, aproximou-se e ficou com “a mais bonita”. O affair lhe deu
coragem para participar do desafio lançado pelo Dj: entregar um brinde a quem se
aventurasse a subir no palco e contar uma piada. Lá estava Marcos, em conjunto com os
amigos, pronto para brincar com as palavras, livre para desfrutar da boca no beijo ou na
fala, em condição de questionar a necessidade do esconderijo defensivo associado ao
estigma de gago.
O que teria acontecido com os ideais? Simplesmente desapareceram?
Nunca um sintoma é sem sobredeterminação. Nunca a transferência é aleatória ou
sem apelo de vida e de amor. Indicar-lhe análise naquele momento do processo
terapêutico com a linguagem era quase eximir-me de ocupar o lugar que, mesmo me
oferecendo o álibi da especificidade técnica da minha formação profissional, não me
desautorizava a escutar o que o sintoma abriu como prerrogativa, ou seja, as aderências
fantasmáticas que transformavam sua condição desejante em pura falta e deficiência.
Minha escuta também representava nada para ele, pois não lhe entregava o tudo que
desejava e supunha em mim; no entanto, a aposta no vigor da sua capacidade de
destituir o outro do lugar de saber gerou novo significado ao seu modo de existir e
183
exigir de si mesmo. Em suma “não se pode ter tudo”, diz o dito popular, e para Marcos
cairia bem concluir que, em seus devaneios onipotentes, ser tudo dependeria de manter
um controle total do outro, e o gasto de energia psíquica e física nessa empreitada
fadada ao fracasso mostrava-lhe o tempo todo seu reverso: a impotência para gozar a
vida.
4.3 O segredo de Alberto
Alberto acabara de se tornar pai quando procurou tratamento para sua gagueira.
Nesse período, relatou também estar muito incomodado com o ódio que sentia das
pessoas que dominavam a palavra, as que “têm o dom da oratória”, pois percebia que
mesmo sendo medíocres, ganhavam notoriedade na empresa por estarem
frequentemente falando. Mais adiante no processo terapêutico, esse moço disse que seu
pai era um tagarela, um homem quase mulher, que gostava de moda e se preocupava
com detalhes banais e estéticos: se ia a um casamento, ficava atento ao vestido das
madrinhas e da noiva, gostava de comentar e de fofocar.
A pessoa do pai estava associada a vergonha e aversão. Tenso, contido, com voz
trêmula em baixa intensidade, colocava-se como inquiridor imaginário da fala alheia.
Sua aparência séria e reservada abrigava um crítico mordaz à própria expressividade.
Supostamente apavorado com a hipótese de se parecer com o pai, expelia qualquer traço
de semelhança e inconscientemente a prosódia da fala atestava essa assepsia;
monocórdio e austero, mesmo pagando o preço de sentir-se pouco querido e desejado,
preservava sua identidade masculina no estereótipo de mal-humorado, bravo e calado. E
a gagueira?
184
Pouco aparecia, ou menos importava, pois servia mais como suporte para justificar
suas dificuldades de relacionamento com grupos, em especial, do que uma dificuldade
motora na produção da fala. Pausas e repetições de sílabas iniciais ocorriam, mas eram
em número insignificante e podiam ser metabolizadas pelas sequências enunciativas
fluentes; não fosse seu eixo perder-se nesse traço, ou melhor, organizar-se por ele,
certamente não haveria gagueira.
Tão logo Alberto se viu falando demais do pai e de si, falando mais do que podia ou
gostaria, interrompeu o processo terapêutico. Suponho que o trabalho terapêutico
chocou suas expectativas, fê-lo sentir-se submetido a uma fala que não dominava,
emergente de uma perspectiva que não podia ver de si. Todo controle pré-definido do
setting parece ter-lhe sido tirado, mesmo pagando a cada sessão e determinando a priori
quando viria ou faltaria. Provavelmente sentiu-se vulnerável demais, embora
transferencialmente seu pedido seguisse a direção oposta – ou seja, ser mais potente –, o
que imaginava alcançar pelo domínio da prosódia da fala. Também deve ser escutado o
ódio manifesto dos que dominam a palavra. Transferência negativa e consequente
ruptura do vínculo? Provavelmente o ataque à minha posição discursiva, talvez
idealizada por ele, tenha gerado o abandono da terapia, como um modo de me deixar
sem palavras, sozinha no silêncio e cheia de interrogações.
O teor amargo dessas interrogações pode se tornar palatável depois do trabalho da
escrita deste caso, sem o qual ficaria anódina a estranheza e pouco serviria para
sustentar a clínica em que foi gerada. É necessário lembrar que, para Freud (1917), a
transferência sempre foi surpreendente, previsível, mas invisível, exigindo fina
percepção de fatos e atos ingênuos e aparentemente imponderáveis que atravessam o
processo terapêutico. “A transferência, nossa cruz” (p. 54), como escreve Freud ao
185
pastor Pfister
120
, pesa sobre os ombros de qualquer clínico que se ponha a conversar
com o paciente sobre ele e consinta essa teia inevitável de palavras, memórias, afetos e
sensações. Acordar o que estava adormecido em palavras, mas desperto em atitudes,
para novamente remeter-lhe ao ato? Seria esse um desfecho terapêutico concebível? O
que havia nesse caso era um pavor da aproximação, talvez um vínculo gaguejante que
encontrou uma escuta recalcitrante. Não foi escutado a tempo e saiu das palavras para o
ato, manteve-se no ato da fala-sintoma afastado da fluência da fala sobre o sintoma
121
,
posições subjetivas que movem o funcionamento simbólico em diferentes direções. O
que é feito ou não com a transferência é determinante do vínculo e da cura nos
processos terapêuticos com a patologia da linguagem.
4.4 Rildo: o prisioneiro do tempo
Rildo era um homem jovem, polido ao extremo, correto, obsequiador e muito
pressuroso, que apresentava um quadro de taquifemia
122
, cuja composição melódica era
metáfora de seu estilo e funcionamento, ou ainda certo resto de vida contrariada
123
aderida à fala. Rildo articulava seus dizeres como numa arrebatada sequência de
conflitos e sofrimentos dos quais sua prontidão e solicitude se esquivavam com
presteza. Essa combinação autorreguladora provinha da infância cheia de privações
120
FREUD, S. (1909-1939) Cartas entre Freud e Pfister: um diálogo entre a psicanálise e a fé cristã.
121
O destaque visa ressaltar uma possibilidade de sistematização da análise dos enunciados produzidos no
contexto terapêutico com a linguagem. Destaca duas categorias distintas que podem indicar movimento subjetivo e
movimento discursivo.
122
“Taquifemia foi definida como uma alteração na fala caracterizada por um paciente com pouca percepção do seu
problema, alteração da percepção, articulação e formulação dos processos preparatórios para fala, baseado em p-
disposição hereditária. Taquifemia é uma manifestação verbal de alteração central de linguagem que afeta todos os
canais de comunicação (ex. leitura, escrita e musicalidade) e do comportamento de uma forma geral”. Apud
Degiovani (2003). Diagnóstico diferencial das disfluências. In: Conhecimentos essenciais para atender bem a
pessoa com gagueira. RIBEIRO, I. (Org.) São Paulo: Pulso, 2003.
123
CANGUILHEM (1989) à patologia o estatuto de vida contrariada, sofrimento que representa certa revolta
diante do vivido.
186
materiais e afetivas e de uma adolescência passada num seminário católico,
demasiadamente cerceada pela disciplina e pelo medo do inferno. Inicialmente era
difícil compreendê-lo, trazia um emaranhado de ideias e sons, do qual uma ou outra
palavra às vezes se destacava e por ela eu podia perseguir um sentido. No entanto, na
proporção da demora no meu caminho para interpretá-lo mostrava-se sua pressa em se
fazer entender, antecipando-se e invadindo minha fala, quase negando a percepção de
que algum espaço vazio devia ser suportado. Havia negação das pausas, das marcações
de ênfase, do tempo do compasso pelo qual o sentido deslizava. Os problemas mais
evidentes eram aceleração no ritmo da fala comprometendo a integridade da articulação,
a sobreposição dos fonemas que consequentemente se modificavam em alguns
segmentos –– o que acarretava também a perda de sentido. A marca mais distintiva,
porém, do seu modo de produzir a fala, eram as repetições. Usava sem perceber a
repetição de palavras como se precisasse voltar e refazer duas, três, quatro vezes uma
palavra, e até pequenas frases, num tempo recorde.
Ao retomar seu turno, fazia-o mediante repetição de minha última frase ou em até
três repetições de alguma palavra que eu havia dito, geralmente ponto a partir do qual
sua resposta iria se organizar. Era muito complicado falar com ele, pois eu tinha segura
sensação de que o incomodava com minhas demoras e pausas, sentia que seus olhos me
diziam: “acabe logo com isso”.
Filho mais velho de uma prole de três meninos, criado na zona rural, numa colônia
de italianos, no início da adolescência presenciou o pai alcoolizado espancar a mãe
grávida. Dessa agressão, resultou o aborto da única menina e a esterilização da mãe.
Refere-se ao episódio com ódio e imenso pesar, por não ter conseguido fazer nada em
tempo de salvar a irmã, nem gritar nem pular e dominar o pai. Atualmente o pai
continua sendo visto como um ignorante sem nenhuma possibilidade de autocrítica,
187
turrão e fechado em si, que nunca fez elogio algum aos filhos, nem deu presentes,
sequer podia olhar e perceber os meninos. Sua vida era um mistério: ganhava com a
colheita, mas quase nada era revertido em melhores condições para a família; comiam
do que a mãe produzia na lavoura e se fechavam no medo de despertar a fúria paterna.
Rildo pouco se expressava quando criança. Apesar de ter saído de casa aos 11 anos,
continuou tentando proteger a mãe, suprindo as faltas materiais desde então.
Casou-se aos vinte e foi traído por toda a família de sua esposa. Deram-lhe um
golpe financeiro num negócio compartilhado com o sogro e os cunhados.
Imediatamente após descobrir o fato, saiu do interior de Santa Catarina e veio procurar
emprego em São Paulo, onde se fixou 13 anos, trabalhando no cargo de coordenador
geral de entregas numa transportadora. Casou-se novamente e é pai de duas meninas.
Gaba-se da organização da esposa e da vida regrada que levam para ampliar a
poupança. Rildo se incomoda extremamente quando não é entendido, pois não percebe
muito bem o que não está adequado em sua fala. Não sofre por não se achar competente
para falar, mas porque algo em sua fala o impede de causar no outro o efeito esperado –
o de ser entendido. Apesar de receber reclamações, nunca se intimidou ou retraiu-se em
função da dificuldade em se fazer entender. Rápido, controlador e eficiente, orgulha-se
muito do que pode ser apesar do pai que teve.
O mesmo mecanismo acelerador foi aplicado no processo terapêutico. Na terceira
sessão já trouxe efeitos do trabalho, dizendo sentir-se melhor e muito mais calmo.
“Calmo?”, pergunto. “É”, responde, “tudo que falei aqui eu não tinha falado para
ninguém nesses quarenta anos do meu passado desse jeito inteiro com começo meio e
fim. Acho que despejei lavei tudo comecei a ver meu problema como ansiedade, por
muito tempo tive medo de não conseguir cuidar de tudo. Acho que mudei a ‘fobação’
‘fobado’ ‘afobação’ e ansiedade, aquela preocupação de deixar tudo em dia, tudo certo,
188
pego tudo pra mim, até a fala da outra pessoa, não escuto vou falando junto com a
pessoa. Tenho a impressão de que vou esquecer o que a pessoa falou e o que eu queria
responder, se não concordo interrompo na hora, não consigo deixar chegar no final.
Sinto que não vou ter tempo e nem espaço para falar. Acho que estou ouvindo mais,
que é muito difícil pra mim. Até desligar pra dormir é difícil, deito, durmo pouco e
acordo às três da manhã preocupado com o que não deu tempo de terminar. Agora,
depois de perceber isso, tento acompanhar, delegar e não fazer tudo. Pensando mais em
mim”. Em seguida começou a contar de seu chefe, um senhor mais velho, que está nessa
função por ser amigo do dono da empresa; não tem competência para ocupar o cargo de
gerente geral, o que o leva a cometer gafes graves, que Rildo está sempre contornando,
pois, a pedido do diretor, deve suportar esse senhor quase como uma figura decorativa.
Apesar de não corresponder às atribuições do seu cargo, ganha o triplo do salário de
Rildo, situação armada para gerar sentimentos de injustiça muito semelhantes aos que
nutre pelo pai, a quem associa diretamente seu gerente: “Ele tem jeito bruto, como do
meu pai para quem também nada estava bom nunca, que hoje está pagando o preço
de ser teimoso, meu chefe, do mesmo modo é um velho turrão e burro, mas me obedece,
pois já livrei muito a barra dele na empresa”.
Provavelmente a melhora relatada por Rildo foi gerada pela oportunidade dada a si
mesmo de se perceber sendo ouvido. É curioso como esse homem vem procurar ajuda
para falar melhor justamente quando está numa condição de estabilidade financeira,
potência técnica e conforto afetivo. Parece-me que todos os outros aspectos de sua vida
precisavam estar controlados para se aventurar numa desestabilização do seu modo de
estar na relação com o outro. O problema da linguagem nunca lhe trouxe nenhum
prejuízo direto, aparecendo também para ele como sintoma de outra coisa.
Transferencialmente me percebia falando com Rildo num ritmo compassado, deixando
189
o tempo correr, até que ele me alertava: “Já são 15 horas e 58 minutos”. E a sessão
deveria acabar às 16 horas, mas poderia seguir um pouco mais. Certa cadência de
desaceleração vinha nos fazendo caminhar rápido, o que marcava nítida diferença entre
a invasão sentida pela fala do outro e a suportabilidade nova aos seus recursos
discursivos e confiança na sua fala.
4.5 Um concentrado de angústia sem conclusão na palavra
Gomes (2007), em texto a respeito de sua pesquisa de doutorado, mostra mediante
depoimento de ex-gagos, ou gagos que consideram sua fala de 80 a 90% melhor sem
terem sido terapeutizados, quais foram as estratégias de enfrentamento da gagueira por
eles utilizadas. Algumas são semelhantes às técnicas de trabalho terapêutico, como o
controle da respiração, por exemplo. Seguindo a coerência entre a teoria utilizada para
pensar as estratégias como foco da mudança de comportamento verbal do gago, numa
abordagem comportamentalista, a autora apaga o valor de um dado exposto no seu
trabalho, que me parece de extrema relevância para compreender a melhora da fala
dessas pessoas, inclusive da própria autora, que se apresenta como gaga relativamente
curada.
Trata-se de um traço muito particular e que está presente nos quatro casos
analisados pela autora e nela mesma: o fato de todos terem feito opções profissionais
nas quais dependem diretamente da exposição da fala, o que indicia uma condição
psíquica de enfrentamento, contrária ao uso do sintoma como estratégia de não
enfrentamento de si mesmos. O fato curioso de nunca terem formulado demanda ou
sofrimento que implicasse a busca de ajuda especializada pode ter decorrido da
resolução de conflitos que deixam de se fixarem no sintoma, liberando-os para
190
ganharem a vida falando. Se é que existe outra forma de ganhar a vida senão pelo modo
como nos inserimos na linguagem!
Como só se conhece mais profundamente a história dos gagos que se fizeram
pacientes e procuraram tratamento, o fato de haver gagueira sem sofrimento indicia que
uma mobilidade entre o que sente o sujeito sobre si e o efeito do sintoma nessa visão
de si que deve ser relevada quando se pensa na direção do tratamento. Suponho que nos
casos mais graves, como observamos no início do tratamento de Nicolau,
sobredeterminação de fatores que tornam a gagueira um real impossível de ser
contornado, como se sua espetacular manifestação pudesse neutralizar todos os outros
conflitos da existência.
Temos agora certa condição de refletir com a ajuda da metáfora Nome-do-Pai, a
qual engendra o registro simbólico, que falar demanda suportar ter e perder na perda
abre-se a falta, condição lógica para a linguagem. A gagueira como sintoma, em nossa
hipótese, é um resto de “ser” que não passou pela dialética do “ser” e do “ter”, do
segundo tempo do Édipo e ficou ancorado, como um cisto nevrálgico, tanto mais
dolorido e impossibilitante quanto maior for o ideal de eu que o mantém.
Nicolau também ficava impressionado com a habilidade dos intelectuais de sua área
na escolha das palavras para a estruturação do discurso em frases integradas e coerentes,
em consonância com o tema e as marcas prosódicas a elas aplicadas. Invejava a
intimidade desses homens com as palavras. Tratava da relação com a fala como um
amor frustrado, interditado por fatores que passam não apenas por sua relação com a
mãe, mas com o pai. O pai sem herança e sem lastro não está para a mãe na posição de
objeto desejado. Nicolau muito precocemente se separa da mãe com o objetivo de
191
estudar; no entanto, pode-se ver a necessidade de provocar a separação externa como
reação à ameaça interna causada pela frágil interdição.
É curioso como esse elemento está presente em todos os casos descritos até aqui:
estar como objeto muito investido e altamente idealizado na relação com a mãe faz
desses meninos pequenos deuses/fantoches, exercendo seu reinado mediante a
instituição da lei materna, que seria em última instância um esforço impossível para
obturar-lhe a falta e fazer cessar a hiância do que esta supôs ter perdido na vida.
Glauber (1982), sempre balizado em Freud, lembra que a zona oral representa um
período libidinal precoce da fixação da libido; por causa da amamentação e do
desmame, essa zona está bastante próxima e tem íntimas relações com as atividades
mais precoces do ego, quando era concebido em termos mágicos, e retém sua influência
no período de aquisição da linguagem. As experiências de prazer em sugar e mastigar se
relacionam com cuspir ou ingerir objetos bons ou ruins. Portanto, o aparato articulatório
pode manejar as palavras como objetos introjetados e considerar que matar as palavras e
os objetos é a mesma coisa; o resultado pode ser a inibição da fala como reação ao
erotismo oral exacerbado. Por provocar o efeito de inibição, inferimos que a elevada
ambição no campo da fala pode ser correlata do erotismo oral. Mediante essa
compreensão teórica e os elementos presentes nos casos, é possível pensar que os gagos
estão em terapia buscando, além da fluência, exercer influência pela fala.
A característica básica da gagueira, segundo Anzieu (1997), está em encobrir com
uma hesitação formal, e talvez essencial também, enfim, tudo o que pode ser sentido no
tocante ao desejo. O gago tem consciência de ser muito ávido e esconder-se atrás da
gagueira. Tais assertivas estão pautadas na hipótese por ela defendida de que foi numa
época bem precoce que aquele que se tornaria gago foi obrigado a recalcar suas pulsões,
192
uma vez que os componentes sádicos-anais e orais de seu caráter permanecem muito
acentuados. Por isso, a autora sustenta a ideia de que, ao enfrentar a problemática
edípica, o gago o fará com certa reticência, pois carrega uma intensidade de angústia
dirigida ao que a libido materna provoca nele. Desse modo, a integração ao eu das
proibições edipianas exige reforço dos controles, pois o que penetra no corpo e dele sai
adquire novo sentido erótico. Nessa via, a fala pode tornar-se símbolo de objeto fálico
incestuoso.
Partindo da definição lacaniana de transferência como um lugar de suposto saber,
nós nos perguntamos: qual o suposto saber atribuído ao terapeuta da linguagem? Se o
sintoma é marca de sujeito e a linguagem sua condição de ser, com que técnica é
possível manejar a linguagem abstraindo o sujeito? E se isso é impossível, pois o
terapeuta da linguagem trabalha por ela e nela, como fazê-lo num terreno seguro,
mapeado pelo crivo não só do objeto dessa clínica, mas também do método?
Não especificidade na transferência, por isso não ocorre de modo diferenciado
na clínica da linguagem; o que muda é a compreensão que o paciente e o terapeuta têm
do sintoma de linguagem. Ambos podem estar de acordo com explicações etiológicas
orgânicas, como, por exemplo, atribuir o problema de linguagem a desordem
neuromotora, causas genéticas ou a aspectos constitucionais. O acordo tácito em torno
da causa justifica procedimentos e orienta o tratamento; tudo o mais que não pode ser
lido por esse referencial, como elementos subjetivos que permitem ou não que o
trabalho terapêutico possa prosseguir, ficam marginalizados.
Naturalmente, como vemos na obra de Freud, esse é mesmo o modus operandi do
sintoma: mostrar-se totalmente coisificado, desafetado. Por uma mirada atrás desde a
catarse, a fala é uma via de descarga desses eventos percebidos como externos ao
193
psiquismo taquicardia, sudorese, diarreias, vômitos –, no corpo sensorial em que está
situado o ego que dos afetos recebe impactantes traços, mas não pode pelos traços
discernir a obra em seu conjunto.
O gago nos traz os efeitos da impressão desses traços, mostra a gagueira
sedimentada num concentrado de angústia sem conclusão na palavra. Pela palavra quase
“não palavra” afeta desatinadamente a quem a palavra é remetida assim como seu
portador. A inclusão do terapeuta como Outro a quem é remetida a gagueira produz um
campo de significação, a gagueira-descarga pode ser escutada como gagueira-palavra;
antes, o que era descarrega de afetos anódinos passa a gerar significado quando
alguém escuta. Assim como o grito do bebê ganha estatuto de linguagem quando
alguém que a ele responde e que, pelo “simples” fato de responder, força o bebê a
ocupar um lugar de interlocutor. O sintoma entra no funcionamento simbólico como
metáfora, quando é oferecido ao terapeuta que pela transferência pode transformá-lo em
signo, “um signo que é aquilo que representa algo para alguém”
124
, introduzindo-o
assim na esfera da significação. O acesso consciente ao pensamento se porque o
pensamento, por ser fala mitigada, torna-se ação desse corpo e envolve um interlocutor,
por isso a intervenção na fala deixa de ser via de descarga para transformar-se em
produção de significação.
A concepção de linguagem que rege a clínica clássica “privilegia a relação entre os
signos e o referente”
125
, e seu método disseca o discurso assim como um corpus
126
. Os
124
“Um signo, ou um representamen, é algo que, para alguém, faz as vezes de alguma coisa, em alguma relação ou
a título de algo. Ele é dirigido a alguém, ou seja, cria na mente dessa pessoa um signo equivalente, ou talvez, um
signo mais desenvolvido”. (apud C. Pierce, Écrits sur le signe, Seuil, 1978, p. 121.).
125
DUNKER, C.( 2000).
126
LEMOS (2003), em seu texto Corpo & corpus, seguindo a etimologia do termo corpus, afirma: a palavra corpus
sobrevive nas línguas ronicas como ‘corpo’ e corp no sentido de uma matéria viva que se sustenta como unidade
autônoma; essa autonomia é, ao mesmo tempo, subvertida pela sua relação opositiva com ‘alma’ e ‘espírito’.
Relação essa que permite entender por que a palavra ‘corpo’ e corpus, no latim, isto é, enquanto corpus, no
194
dizeres do paciente são ouvidos na expectativa de encontrar neles a gagueira descrita,
portanto, a substância viva do sentido é marginalizada em prol do significado, com
ênfase na relação entre esses signos e o quadro nosográfico referencial. Sintoma
referenda uma trilha de significação fixa e estável, não produz sentido. Na clínica de
linguagem, quando da linguagem o que se privilegia é o corpus, o discurso da doença,
pode-se dizer que adoecimento dos processos de produção de sentido intrínseco ao
método. Se a pertinência dessa clínica é justamente restabelecer os processos de
produção de sentido, posicioná-los de tal forma que não se perca nem do sujeito e nem
de seus interlocutores, ao retirar da linguagem seu campo significante o que sobra é o
significado, externo ao sujeito e à relação.
Se, de outro modo, sintoma e sujeito se relacionam, se corpo na linguagem, a
concepção de linguagem incluirá o que o corpo gera, a produção dos efeitos de sentido
grafados num ato, num modo tênue ou drástico de interromper as palavras, pois o
efeito-sentido na gagueira, sem contar com o literal explicitado pelas palavras, aparece
pelo desejo nelas ancorado. Desejo que impede o gesto e aparece como puro ato.
A diferença entre ato e gesto é tematizada por Dunker (2003) quando aborda a
teoria psicanalítica da ação. Segundo o autor, “o ato é sempre ruptura, intervalo não
antecipável, o mesmo não se pode dizer do gesto. O gesto é contínuo: o ato,
descontínuo” (p. 35). A proposição de Dunker remete à experiência do gago, submetido
à escansão da fala pelo sintoma. Mediante a ideia de “gasto empático”, proposta por
Freud “como a diferença entre o gasto calculado no eu e o gasto suposto no esforço do
outro que é convertida em riso [...], o autor mostra como essa teoria permite pensar
fenômenos que vão desde a sincinesia infantil até a gagueira. Formas de linguagem em
singular, e corpora, no plural, é significada como cadáver, cadáveres, isto é, corpo(s) desprovido(s) de alma, uma
matéria que continua e que só desaparecerá quando reabsorvida pelo inanimado”. (p. 22-3).
195
que o ‘gasto a mais de esforço no gesto é capturado no campo do Outro’ (p. 36). O riso
diante da gagueira é um fato muito comum e naturalmente compartilhado; no entanto,
vem imerso em constrangimentos e ambivalência por parte do interlocutor que também
não quer rir em respeito ao gago, mas seu corpo lhe impõe tamanho desconcerto que é
descarregado em forma de riso contrariado pelo eu. A gagueira parece, assim, gerar o
descontrole no corpo de quem a vê. Produz no outro o efeito pelo qual é gerada. Resta a
questão: por que a perda do controle e da continuidade, comum a todos, deixa o gago
tão à deriva, tão tomado pela descontinuidade como se não houvesse alternância, mas
apenas ruptura?
A passagem ao ato de gaguejar, em dissonância ou interrupção com o gesto motor
de produção da fala, aponta para um desafio importante: problematizar a linguagem
como palco do ato
127
e não como lugar da produção de sentido, o que implica dizer
que na gagueira o que não cessa de não significar, visto que se repete, esterilizando
as palavras, que parecem regressar para seus traços mais primitivos, as marcas
sensoriais: experimento onomatopéico, balbucio, pura sensação corporal antes do
sentido.
Cabe salientar esses fatores, pois nos pacientes que gaguejam muitos elementos
estão, por anos, enodulados e amalgamados no corpo que responde ao conflito
inconsciente segurando e distorcendo a prosódia. Essa con-fusão tem consequências nas
conexões neuromotoras responsáveis pela produção da fala, porque seguem o circuito
repetitivo da disfluência, marcando o órgão como uma consequência psicossomática,
como ato e não gesto. Ou seja, a causa não está lá, mas a consequência se instaura com
força causal pela repetição cronificante.
127
Cabe esclarecer,que, dentro da perspectiva de que todo ato é simbólico, Rudge (1997) defende a ideia de que “o
discurso freudiano não preconiza uma dicotomia entre ato e linguagem; pelo contrário, permite supe-la.” (p.118).
196
Diante disso, podemos retomar a questão do enfrentamento, pelo terapeuta da
linguagem, do que permanece no corpo, mas que é sentido pelo sujeito como não
produzido por ele, um corpo externo a ele, uma entidade gaguejante que move seus
músculos sem que possa detê-la.
Pensando nessa direção, podemos inferir que as técnicas para o trabalho corporal
afetam o sujeito como gestos que, feitos em transferência, podem tocar nos atos
cronificados. Nessa perspectiva, o trabalho corporal teria a função de produzir registros
conscientes de experiências articulatórias com fluidez e fruição. Retomamos a ideia de
que, para Freud
128
, o ego é “antes de tudo corporal”; essa experiência sensorial
diferenciada passa a compor a possibilidade de derivar do ato, gestos de linguagem no
contexto da transferência. Todavia, é necessário manter a direção dada pela
transferência, a qual permite que o terapeuta reavalie a cada sessão o efeito de suas
estratégias de trabalho e aguarde o próprio paciente destrinchar seus nortes de
significação, seus nós atados no corpo fechado para a palavra.
Pacientemente ligado no corpo da palavra, o terapeuta da linguagem pode
encontrar com o paciente marcas de satisfação na produção da fala. As técnicas podem
ser as mais variadas, voltadas para a coordenação da respiração, equilíbrio do tônus,
autopercepção, articulação lenta ou exagerada, usando meios da cultura
129
que façam da
produção da fala uma experiência de reconciliação com o trabalho de produzir um dizer.
Do sofrimento que fez a palavra estancar em ato sintomático, em determinadas
condições transferenciais, pode derivar investimento para redescobrir a linguagem. As
marcas de uma relação de exterioridade com a linguagem podem ser sentidas nessas
128
FREUD, S. (1923-25) O ego e o id.
129
Como a literatura, filmes, gravações de discursos produzidos em diferentes contextos, entre outros que permitam
ao sujeito colocar-se como espectador da fala alheia e da sua, um analista atento dos modos distintos da prosódia
de cada um, da estruturação de diferentes discursos e da percepção de que a linguagem é a possibilidade de
experimentar-se existindo na cultura.
197
experiências, como se fosse uma imitação, mas são recursos de criação. Pelas
indicações de Rudge (1998: 120), “a posição de habitar a linguagem ao invés de ser
possuído por ela é o que permite ao sujeito tomar a palavra, o verdadeiro ato de fala”. O
ato aqui tem valor de gesto, de feitura apropriada pelo prazer de encontrar as palavras,
experiência que produz contraponto ao assujeitamento a elas. Passar para o gesto, para a
produção orquestrada pelo desejo não sintomático, depende de dar corpo à palavra.
Os efeitos da gagueira nos terapeutas iniciantes são reconhecíveis e evidentes. No
geral, comportam-se como o leigo diante do mal-estar causado por esse sintoma. Por
que é possível ao terapeuta da linguagem portar-se de modo diferenciado diante dessa
fala? Como ele constrói recursos de suportabilidade e se sustenta num lugar de saber em
relação a algo que está tão pouco claro para a ciência? Será mesmo que é das teorias
sobre gagueira a procedência desse saber?
O saber que sustenta a relação terapêutica na clínica da linguagem é um saber sobre
a linguagem que ganha suas primeiras marcas no corpo subjetivado pela prosódia
materna. No início a linguagem era o som vocálico da mãe. De acordo com Jerusalinsky
(2008), essa melodia sem letra, música sem texto “adquire o estatuto da letra para o
pequeno sujeito a partir do aprés coup da separação” (p. 83). Como indica Alan
Didier Weill (1997), citado por Jerusalinsky: “música e a palavra opõem-se, assim na
medida em que a primeira acesso à entrada no trauma e a segunda acesso a sua
saída: a música, que introduz a Bejahung, opõe-se à palavra que introduz o
recalcamento originário” (p. 260). A separação entre a música e a palavra é
característica da gagueira; trata-se de uma música que impede a palavra, uma melodia
alheia à palavra e que a ela se impõe rompendo o encadeamento entre os sons da língua.
198
Como sintoma do sujeito posto na linguagem, a gagueira remonta em sua repetição
estéril ao trauma pelo o acesso do sujeito à palavra. A palavra tem, segundo esses
autores, a exata função de lançar o sujeito para fora da situação traumática, para fora do
fusionamento alienante com o Outro materno, pois Nome-do-Pai, vem substituir o
desejo da mãe. A gagueira é signo da posição do sujeito em relação aos ganhos dessa
operação de acesso à palavra. Essa medida teórica foi elaborada tendo em vista os
efeitos da transferência na clínica da linguagem, revelando ao mesmo tempo o ódio à
fala e a idealização extrema posta nela.
199
Considerações finais
Ascensão
“Depois que iniciei minha ascensão para a infância,
Foi que vi como o adulto é sensato!
Pois como não tomar banho nu no rio entre pássaros?
Como não furar lona de circo para ver os palhaços?
Como não ascender ainda mais até na ausência da voz?
(Ausência da voz é infantia, com t, em latim.)
Pois como não ascender até a ausência da voz
Lá onde a gente pode ver o próprio feto do verbo
ainda sem movimento.
Aonde a gente pode enxergar o feto dos nomes
ainda sem penugens.
Por queo voltar a apalpar as primeiras formas da
pedra. A escutar
Os primeiros pios dos pássaros. A ver
As primeiras cores do amanhecer.
Como não voltar para onde a invenção está virgem?
Por queo ascender de volta
para o
tartamudo?
130
(Manoel de Barros, 2007)
O processo de elaboração deste trabalho transcorreu mediante articulação de
algumas observações provenientes do trabalho com gagos ao referencial teórico
concernente à tarefa de sistematizá-las. Observamos a recorrência de questões relativas
à conflitiva edipica acentuadas por um modo particular de presença do pai, seja
denegrido, negado ou exacerbado em sua autoridade. Partindo dessa evidência, nossa
hipótese é a de que traços comuns na relação desses pacientes com a linguagem,
organizadores de seus sintomas, estão atrelados à particularidade da vivência do
130
BARROS, M. (2007) p. 41. Surpreendentemente, após ter retirado esse poema do livro Tratado geral das
grandezas do ínfimo, editado pela Record em 2007, encontrei na dissertação de mestrado de André Luís Portela
Martins Filho, uma análise deste a partir do livro O fazedor de amanhecer de Manoel de Barros. Nessa versão de
2001, tartamudo não aparece, mas sim tartamundo, significando o mundo das profundezas, do rtaro, inferno na
mitologia que fica em contraponto com o título do poema Ascenção. De certa forma, como vimos, os sons
escandidos se transformam em palavras, esse corte que o tartamudo resiste sem ignorar também remonta o feto
dos nomes na infância, trazida pelo poeta como ausência de voz, tempo que a invenção de si pelas palavras era
virgem.
200
complexo de Édipo, cujas consequências se manifestam na transferência, sendo,
portanto, fundamentais para o manejo terapêutico na clínica da linguagem.
Na revisão da literatura sobre a gagueira como patologia, concluímos que se trata
de um problema de linguagem sem definição etiológica, sendo atribuída a múltiplas
causas, ou ainda a determinação orgânica de ordem genética ou constitucional –,
psíquica ou comportamental. Restou-nos ler essa marca na linguagem pelo conceito de
pathos, como um sofrimento que conclama e autoriza o Outro a fazer parte da história
do paciente produzindo condições novas para atravessar seu drama posto na linguagem.
O modo como o signo “doença” é retomado pelo imaginário do paciente e se transforma
num signo “patognomônico” e num traço identificatório interessou-nos em particular.
O não-esclarecimento pela via da etiologia parece gerar nos terapeutas maior
liberdade de experimentação na condução dos casos, o que por um lado favorece a
criatividade e a escuta para o sujeito, por outro dificulta a sistematização dessas práticas
justificadas por princípios teóricos não aplicáveis à prática clínica diretamente. Disso
decorre a impossibilidade de compreender como os chamados “aspectos subjetivos”
ressaltados como fator preponderante na condução do tratamento são compreendidos
na relação com o sintoma e manejados na relação terapêutica. No capítulo I
demonstramos que o terapeuta da linguagem está envolvido em duas tramas de
desconhecimento; as etiológicas e as transferenciais. Ao analisar os casos G. A. e
Amadeu, pudemos mostrar essas tramas e os recursos usados por duas terapeutas
bastante experientes no manejo da transferência, mesmo sem remeterem suas práticas a
esse conceito.
Nossa hipótese levou-nos em direção à literatura psicanalítica a respeito da
gagueira, na qual esse sintoma é apontado geralmente como característico da estrutura
201
neurótica, embora não restrito a ela. Diante da predominância em neuróticos e da
hipótese já levantada a respeito da função paterna, realizamos um estudo sobre o
complexo de Édipo em Freud e Lacan, que nos permitiu dar um contorno explicativo
para a hipótese levantada: de modo análogo aos casos de fobia, a gagueira está
associada com o frágil endereçamento do pai como portador do objeto de desejo da
mãe, o que trará como consequência um caminho mais dispendioso psiquicamente para
o menino passar ao segundo tempo do Édipo e, consequentemente, para o terceiro,
caracterizado pela identificação simbólica com o pai, suposto ter o falo. A gagueira se
organiza como signo da castração, ocupando o lugar de interdição vago pelo não
endereçamento ao pai, por isso estamos diante de casos de neuróticos. Diferentes
versões dessa problemática são encontradas nos casos discutidos nos capítulos III e IV.
Nosso objetivo central com esta tese foi sistematizar aportes teóricos que permitissem
compreender como se constitui a subjetividade na psicanálise, seu estreito vínculo com
a formação dos sintomas e o modo peculiar de manifestação desses aspectos
inconscientes na transferência, compreendida por nós como conceito operatório na
clínica da gagueira. A transferência foi tematizada em sua relação com os processos de
significação em ambas as clínicas a partir de aportes das obras de Freud, Lacan e outros
autores.
Apontamos que processos identificatórios estão em curso nos processos
terapêuticos com a gagueira. O terapeuta é convocado inconscientemente pelo paciente
como um regulador das palavras, que o paciente preza e odeia simultaneamente. O
excesso de idealização em torno dos poderes da palavra aparece como um elemento
herdado das relações parentais não apenas como valor explicitado pelos pais, mas pelo
modo como a palavra circula na dinâmica familiar. Tal idealização justifica em parte a
localização do sintoma como signo da castração exatamente na linguagem. A
202
idealização comporta uma potência sublimatória que pode ser favorecida pelo processo
terapêutico, pois estão também circunscritas na linguagem as maiores ambições dos
pacientes por nós atendidos.
Como podemos ver em todos os pacientes atendidos, a escuta moveu-os de certa
estagnação em relação à linguagem, a castração delicadamente mostra seu efeito
regulador do gozo e por isso viabiliza a possibilidade de satisfação: Nas aulas de
religião, Pedro realiza a identificação masculina sob o signo do homem valorizado pela
mãe. Marcos desiste de controlar a fala do outro e se desarma na lúdica aventura de
piadista no palco da balada, liberdade quase impossível ao “menino prodígio”,
contraponto narcísico das supostas debilidades paternas. Nicolau faz altos investimentos
libidinais num esteio intelectual que lhe garante liderança e o domínio da palavra signo
do poder e do saber impossível ao pai, mas simbolicamente outorgado pelo tio. Rildo,
submetendo o pai-chefe às suas ordens, repara o tempo do trauma. Bernardo, desejando
falar coisas interessantes e para muita gente, revela o desejo de parecer com o pai. E
finalmente Alberto, que ainda estava tomado pelo receio de falar e ser confundido com
o pai, o anti-modelo da virilidade, inviabiliza a construção de alguma potência na fala.
Chegamos aqui com várias questões produzidas no caminho da pesquisa
131
. A
relação entre a produção da imagem de si e a gagueira é uma delas, a qual foi resvalada
em alguns parágrafos, mas não desenvolvida, embora nos detivéssemos na formação
dos ideais no capítulo III.
131
Cabe salientar que nosso silêncio em torno das questões que envolvem a gagueira em meninas e também a
respeito da prevalência dos traços obsessivos nos gagos adultos, deve-se à necessidade de manter o foco deste
trabalho, no entanto são questões que podem gerar pesquisas muito importantes para o campo da terapêutica da
linguagem e para Psicanálise.
203
Na introdução
132
localizamos a clínica da linguagem como um campo de trabalho
voltado para “a linguagem embotada, em resistência ou angústia, cuja força parece ser
não se deixar submeter ou não apropriar-se da norma, como se nela se esvaísse o
singular do sujeito expresso no sintoma.” Um dos elementos dessa afirmação é o
sintoma como marca de singularidade, em estreita relação com os primórdios da
constituição subjetiva e, por isso, conectado ao “traço unário”, signo do primeiro
contorno do eu, do reconhecimento de si pelo olhar da mãe que ao sujeito um lugar
no grande Outro. O sintoma é derivado da angústia de castração e, como vimos, nos
casos apresentados, a angústia está atrelada ao risco de ficar capturado pela imagem no
espelho identificatório do outro materno, satisfazendo o desejo materno ou o “eu ideal”
do narcisismo primário que é suposto poder tudo que os pais não puderam, como se
fosse possível ser sujeito sem ver surgir em si o desejo e a falta.
Em seu texto sobre o conceito de narcisismo, Le Poulichet (1997) observa que, ao
voltar à dialética do estádio do espelho, Lacan assinalou que a visão da imagem do
outro não basta para constituir a imagem do corpo próprio, caso contrário o cego não
disporia de um eu. A operação identificatória à imagem no espelho tem uma dupla
inserção na formação do sujeito, pois pode ver sua imagem no espelho, mas não pode
ver seu próprio olhar, por isso a imagem que o outro envia não é completa, por ser
também pulsional. A pulsão está no prenúncio da encruzilhada estrutural que é a fase do
espelho. Operação desdobrada em três aspectos, como assinala Chemama (2002:59): a
identificação da criança com uma imagem que a forma e também a aliena fazendo dela
um “outro” que ela não é; a agressividade do ser humano que ganha lugar sobre o outro
para que não seja aniquilado; “a instalação dos objetos de prazer cuja escolha sempre se
refere ao objeto de desejo do outro”.
132
p. 21
204
As operações acima descritas estão na base da constituição subjetiva e a elas
também corresponde a falta, como furo duplicado no real, uma vez que a imagem
provém do outro pulsional, faltante, e do Outro da linguagem que, apesar de ser o
tesouro dos significantes, revela-se igualmente furado, pois não pode oferecer à criança
o significante que a signifique por inteiro. Por isso a falta no campo da linguagem causa
a retomada da fala e do desejo. Ao discorrer sobre os efeitos do estádio do espelho,
Veras (2003:109) salienta que “o olhar do Outro se interioriza na criança por um traço
único (unário) signo de assentimento desse Outro e esse traço vai distinguir
radicalmente o eu ideal no espelho – fonte de uma projeção imaginária – do ideal de eu,
uma incorporação simbólica”.
A passagem da identificação imaginária para identificação simbólica é engendrada
no estádio do espelho, pelo jogo estabelecido entre o olhar do reconhecimento da mãe
(Eu ideal) e o desconhecimento produzido pela tentativa de olhar na imagem o que vem
da mãe, mas não corresponde ao sujeito inteiramente (ideal de eu). Ainda com Veras
(2003: 100) o estádio do espelho é visto como “produtor da incorporação simbólica da
alteridade”; nessa medida, pode continuar arquitetando a lógica da significação pela
cadeia significante, pois ao mesmo tempo que o traço deixado pela identificação
imaginária produz o significante primeiro, este, por sua insuficiência, abre a experiência
do sujeito para outros significantes, outras marcas e traços que podem pela identificação
simbólica promover a alteridade, cujo significante é o Nome-do-Pai.
Localizamos na obra de Friedman a origem da “gagueira sofrimento”, remetida a
uma imagem equivocada de si pela qual o sujeito fica submetido a imagem fixada nesse
sintoma, segundo a autora,
205
a gagueira é uma manifestação que não decorre, diretamente, de
uma falha no funcionamento do organismo, mas sim do modo como
organismo e psiquismo funcionam a partir de valores, crenças e
ideologias da sociedade. Os valores crenças e ideologias o
passadas de uma pessoa para outra pelo convívio no cotidiano e
atuam como moldes da subjetividade, isso é, moldam nosso mundo
interior; nosso funcionamento psíquico. A esse tipo de visão entre o
homem e a sociedade -se o nome de visão dialético-histórica
(2007: 191)
Embora a abordagem de Friedman nos seja cara e valiosa pelo seu significado
inovador para a compreensão da gagueira anteriormente pensada na clínica da
linguagem pelo referencial comportamentalista ou biologizante a autora delimita a
relação entre organismo e psiquismo como resultantes de determinações ideológicas em
cujo molde se contorna a subjetividade e a gagueira. Segundo a concepção de sintoma
que norteia este trabalho, essa é justamente uma marca do sujeito que resiste aos moldes
como vimos, o sintoma é uma manifestação do inconsciente derivada de falhas no
recalque. Nessa medida o sintoma não é a assunção de uma resposta direta da criança a
um dizer denegrido a respeito de seu modo de falar, mas é uma afirmação subjetiva que,
como linguagem, convoca a significação. Por isso também afirmamos que os conselhos
dados aos pais em forma de orientações têm pouco efeito sobre eles e sobre a criança,
porque o essencial não é o que se diz para a criança, mas o lugar subjetivo que esta
ocupa na família. Os sentidos desse lugar são o lastro da relação da criança com a
linguagem. Embora apareça como fixação alienante, o sintoma é um recurso expressivo
se escutado em transferência, caso contrário, se não encontrar um outro com quem
possa ressignificar essa interdição à fala, pode cronificar-se em marca identitária
prevalente.
O aprisionamento do sujeito na gagueira, como aponta a teoria de Friedman,
provém da “lógica paradoxal” instituída pelo discurso do adulto que, por suas
exigências, subverte a espontaneidade do ato motor da fala da criança, ao sobrepor a ele
206
imagens idealizadas sobre o que é ser um falante, tendo como consequência a
mimetização da imagem de mal falante em sua personalidade. A tese defendida neste
trabalho mostra que a criança entra nesse jogo de fixação no discurso do Outro se
está com dificuldades de remeter sua demanda para fora da identificação imaginária
com a mãe, o que é até mesmo passível de ser hipotetizado a partir do caso de Amadeu,
descrito por Friedman, exposto no capítulo I. Nessa perspectiva, salientamos que a
clínica da gagueira pode apresentar resultados satisfatórios, menos pela desalienação do
sujeito em relação à ideologia social vigente que fundamenta a idealização da fala (ou
de quem fala bem), e mais pela inserção do terapeuta como o Outro do sintoma e que
pode mover a cadeia significante a ele atrelada. O investimento narcísico do paciente
numa imagem que supõe refletida no terapeuta autoriza-o pela transferência a viver
nessa relação um amor pela linguagem. O amor é a condição para que traços
identificatórios novos possam ser incluídos na identificação, como símbolo de novas
possibilidades de ser; supomos, assim, mediante os casos analisados, que esses traços
podem autenticar o sujeito como falante fluente.
O conceito de identidade, tomado de empréstimo da psicologia social, tem sua
matriz significante transformada pela psicanálise. Em sua origem, o termo se aplica à
identificação como uma forma de relação estabelecida entre pessoas bem constituídas
e individualizadas, caso em que A pode, ao identificar-se com B, tomar para si
determinados aspectos de B. Na psicanálise, a função central dos processos
identificatórios é a própria constituição da subjetividade. Assim, ao perceber que havia
um processo inconsciente realizado pelo eu quando este se transformava num aspecto
do objeto, Freud retira a identificação do espaço intersubjetivo para situá-la em relações
intrapsíquicas. Como parte dos processos inconscientes, a identificação é
indiretamente perceptível, que se entre dois pólos do inconsciente, o eu e o objeto.
207
Dessa forma as articulações entre o eu e os objetos por ele amados e perdidos é que
terão como resultante a identificação.
Como aponta Nasio (1997), enquanto Freud conceitua identificação para responder
à questão sobre as mudanças do sujeito na relação com o objeto
133
estando o eu como
agente do processo –, Lacan o faz mediante a tentativa de responder a uma questão mais
delicada referida ao problema psicanalítico fundamental: dar nome ao processo
psíquico de constituição do eu, ou numa formulação mais correta, dar nome ao processo
de causação do sujeito do inconsciente (NASIO 1997; 102). A resolução desse
problema está nas elaborações teóricas em torno do traço unário como uma marca
invariavelmente presente ao longo de toda vida do sujeito, no entanto é possível
acessá-la pelo movimento entre significantes por ela gerado. O nascimento do sujeito do
inconsciente é expresso na identificação simbólica, “como a produção de um traço
singular que se distingue ao tomarmos um a um os significantes de sua história” (p.
114). Assim, a identificação simbólica é o que permite que os objetos sejam trocados,
catexizados e, após certo tempo, abandonados.
A identificação imaginária determina a estrutura do eu que se identifica com as
imagens que reconhece, portanto, com aquelas que lhe dizem respeito de certa forma, a
lógica que rege a relação entre essas imagens é inconsciente. Mesmo caracterizada pela
plasticidade, as identificações imaginárias funcionam como produtos derivados da
identificação simbólica que é determinada pela angústia de castração “que renuncia a
uma parte de seu gozo em proveito do pai” (POMMIER, 1998:14). O sintoma como
133
É importante discriminar “objeto” da pessoa do outro, pois objeto não designa o que é possível perceber
conscientemente do outro, mas a representação psíquica inconsciente desse outro e que são prévias a ele. Mais
precisamente nas palavras de Nasio (1997: 103), “o objeto designa outra coisa que não a representação psíquica do
outro, entendida como sendo vestígio de sua presença viva inscrita em meu inconsciente. O termo objeto designa,
verdadeiramente, uma representação inconsciente prévia à existência de outrem, uma representação que já se acha
ali e na qual virá escorar-se a realidade externa da pessoa do outro ou de qualquer de seus atributos vivos. Com
todo rigor, não existem no inconsciente representações do outro, mas apenas representações inconscientes,
impessoais, por isso dizer, à espera de um outro externo que venha ajustar-se a elas.” p. 103
208
retorno do recalcado está envolto em angústia, que por sua natureza inconsciente vem
referido a muitos traços resultantes de uma combinatória singular dessas imagens que
permitem ao sujeito reconhecer-se, ao preço de ser estigmatizado muitas vezes. O
sintoma referido ao traço unário mantém a repetição de experiências semelhantes,
mesmo em situações muito diferentes. Se fosse possível isolar esse signo distintivo
presente em todas as experiências teríamos o traço primeiro que as ordena, no entanto,
seus vestígios estão nos processos inconscientes, identificações e sintomas, por
exemplo, mas ele, o traço, foi perdido para sempre como causa primeira.
Diante do exposto, podemos afirmar que o traço unário e o significante Nome-do-
Pai refletem operações de subjetivação que estão na base do que vai permitir ao sujeito
ter um “si mesmo” exposto ao devir, contanto que dentro de determinada condição de
reconhecimento. Como terapeutas da linguagem somos identificados pelos gagos com o
poder de manter certo contorno de reconhecimento. Pelas hipóteses que sustentamos,
esse sintoma se organizou para exercer o corte simbólico na relação imaginária do
menino com a mãe, no entanto, como elemento externo incluído na conflitiva edípica
para fazer a suplência do pai, o sintoma extrapola sua função constitutiva espalhando
seus efeitos para as relações de objeto de modo geral, uma vez que essas se estabelecem
mediante representações inconscientes, previamente definidas e atuantes para imprimir
no outro suas marcas. As representações inconscientes, que também podemos chamar
de cadeia significante instituída pelo traço unário, nutrem a transferência para retomar
pontos nodais dessa cadeia que fazem sofrer. No entanto, ao promover a repetição das
experiências, sua matriz expressiva, pode ratificar o sintoma ou abrir a significação, foi
esse o ponto que nos permitiu articular à terapêutica da gagueira a potencialidade
curativa da transferência. A escuta do terapeuta da linguagem, escolhido em
transferência, pode provocar novas rotas de significação na cadeia significante,
209
retomando memórias e desejos atualizados, “porque ninguém pensa sem palavras que
sejam já partilhadas e transferidas” (POMMIER 1998:12).
Como nos mostraram os casos dos adultos, a interdição à fala foi um recurso
simbólico para aplacar a angústia associada ao aprisionamento no desejo de estar no
lugar de objeto fálico da mãe –, no entanto, transformou-se em muitos impedimentos ao
devir. A identificação simbólica com o pai não é favorecida, justamente pela
inoperância
134
da palavra deste para a mãe, e instiga-nos a ideia, compatível com os
casos analisados neste trabalho, de que a gagueira seja a marca da identificação pelo
avesso do pai, pois o gago também está em seu sintoma aprisionado pela inoperância da
palavra. É provável que seja por isso, para superar essa marca identificatória, que suas
ambições estão associadas ao domínio da palavra.
O significante Nome-do-Pai, que a condição do prazer pelo limite ao gozo, tem
função importante para a compreensão dos efeitos da prática clínica com a gagueira.
Isso porque investimento muito particular na produção do recurso novo de
linguagem em consonância com possibilidades do sujeito, o que permite dar um
contorno viável para experiências de satisfação com a fala. Salientamos, mais uma vez,
o risco de esse trabalho acontecer mediante prescrições alienantes e dessubjetivadas,
risco de se manter transferencialmente aprisionado numa identificação imaginária com o
terapeuta da linguagem como portador do falo.
Concluímos, portanto, que a gagueira funciona como signo da castração em casos
de neurose. Essa assertiva proposta a partir da análise de determinados aspectos da
conflitiva edípica não nos autoriza a delimitar uma forma hegemônica de decifração do
enigma, mas abre possibilidades para compreendermos melhor a transferência na clínica
134
“O que constitui seu caráter decisivo deve ser isolado como relação não com o pai, mas com a palavra do pai”
(FARIA, apud LACAN, 1957-58, p.199).
210
da gagueira e afinar os métodos terapêuticos para que a experiência do tartamudo, como
nos diz o poeta, seja de genuína descoberta do prazer da palavra sagrada em liberdade.
211
BIBLIOGRAFIA
ALONSO, S. Sugestão-Transferência: os relatos clínicos de Freud. In: Revista
Percurso, n. 6, 1991.
AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION referência rápida aos critérios
diagnósticos do DSM IV- TR. Consultoria e coordenação da 4. ed. revisada de Jorge,
M. R.. Porto Alegre: Artmed, 2003.
ANDRADE, C. Gagueiras Infantis: atualização sobre a determinação da gagueira,
fatores de risco e condutas. In: Pediatria, vol. 19, 2, pp.150-58, São Paulo: FMUSP,
1997.
_________. Diagnóstico e intervenção precoce no tratamento das gagueiras infantis.
São Paulo: Pró-Fono, 1999-2006.
ANZIEU, A. Da carne ao verbo: mutismo e gagueira. In: ANZIEU, A. (Org.)
Psicanálise e linguagem: do corpo à fala. Monique Aron Chiarella, Luiza Maria F.
Rodrigues. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
ARANTES, L. O fonoaudiólogo, esse aprendiz de feiticeiro. In: LIER-DE VITTO, F.
(Org.) Fonoaudiologia no sentido da linguagem. São Paulo: Cortez, 1994.
AULAGNIER (1975) A violência da Interpretação: do pictograma ao enunciado.
Tradução de Maria Clara Pellegrino. Rio de Janeiro: Imago, 1979
AUTHIER- REVUZ, J. Falta do dizer, dizer da falta: as palavras do silêncio. In:
ORLANDI, E. P.(Org.). Gestos de leitura. Campinas: Editora da Unicamp, 1994.
AZEVEDO, N.; FREIRE, R. Trajetórias de silenciamento e aprisionamento na língua: o
sujeito, a gagueira e o outro. In: CUNHA, C.; FRIEDMAN, S. (Orgs.) Gagueira e
subjetividade: possibilidades de tratamento. Porto Alegre: Artmed, 2001.
212
BARBOSA, L. Noções básicas sobre a gagueira: suas características, sua etiologia a as
teorias sobre sua natureza. In: RIBEIRO, I. M. (Org.) Conhecimentos essenciais para
atender bem a pessoa com gagueira. São José dos Campos: Pulso, 2003.
BARBOSA, L.; CHIARI, B. Gagueira: etiologia, prevenção e tratamento. São Paulo:
Prófono, 1998.
BARROS, M. Tratado geral das grandezas do ínfimo. São Paulo; Record, 2007.
BERBERIAN, A. P. Fonoaudiologia e educação: um encontro histórico. São Paulo:
Plexus, 1995.
BERGÈS, J. O corpo na neurologia e na psicanálise: lições clínicas de um psicanalista
de crianças. Tradução de Maria Folberg. Porto Alegre: CMC, 2008.
BERLINCK, M. T. Psicopatologia fundamental. São Paulo: Escuta, 2000.
BIRMAN, J.; NICÉAS, A. C. Constituição do campo transferencial e o lugar da
interpretação psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1991.
BOHNEN, A. A Complexidade das escolhas terapêuticas. In: ROCHA, E. (Org.)
Gagueira: um distúrbio da fluência. São Paulo: Santos, 2007.
_________ Avaliando crianças com gagueira. In: RIBEIRO, I. M. (Org.)
Conhecimentos essenciais para atender bem a pessoa com gagueira. São José dos
Campos: Pulso, 2003.
CANGUILHEM, G. O normal e o patológico. Tradução de Maria Thereza Redig de
Carvalho São Paulo: Forense Universitária, 1996.
CHEMAMA, R. (Org.) Dicionário de psicanálise. Tradução de Francisco F. Settineri.
São Paulo/Porto Alegre: Larousse/Artmed, 2002.
CLAVREUL, J. A ordem médica Poder e impotência do discurso médico. Tradução
de Jorge Gabriel Noujaim, Marco Antônio Coutinho Jorge, Potiguara Mendes da
Silveira. São Paulo: Brasiliense, 1978.
CORIAT, I. (1943) The psychoanalytic conception of stammering. Nerv.Child, 2.
213
CUNHA, C. Fonoaudiologia e Psicanálise: a fronteira como território. São Paulo:
Plexus, 1997.
_________ Gagueira: qual o alvo desses estilhaços de palavras? In: CUNHA, M. C. e
FRIEDMAM, S. (Orgs.) Gagueira e Subjetividade: possibilidades de tratamento. Porto
Alegre: Artmed, 2001.
_________Concepções clínicas em Fonoaudiologia relação com a psicanálise ou será
que é possível filosofar em alemão? In: Revista Distúrbios da Comunicação. São
Paulo: EDUSP, n. 1, vol. 3, 1989.
CUNHA, C.; FRIEDMAN, S. (Orgs.) Gagueira e subjetividade: possibilidades de
tratamento. Porto Alegre: Artmed, 2001.
CUNHA, C.; GOMES, R. Fonoaudiologia e psicanálise: uma reflexão sobre a gagueira
e o inconsciente. In: Fonoaudiologia: recriando seus sentidos. São Paulo: Plexus, 1996.
DE LEMOS, C. Sobre a aquisição de linguagem e seu dilema (pecado) original. In:
MEISEL, J. M. (Ed.) Adquisición de lenguaje Aquisição de linguagem. Frankfurt:
Vervuert, 1982/86.
_________ Das vicissitudes da fala da criança e de sua investigação. Cadernos de
estudos linguísticos, Campinas: UNICAMP/IEL – Setor de Publicações, vol. 42, 2002.
_________ Corpo & Corpus. In LEITE, N. A. (Org.) Corpolinguagem: gestos e afetos.
Campinas: Mercado de Letras, 2003.
DIDIER-WEILL, A. Os três tempos da lei: o mandamento siderante, a injunção do
supereu e a invocação musical. Tradução de Ana Maria de Alencar. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1997.
DOR, J. O pai e sua função em psicanálise. Tradução de Dulce Duque Estrada. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
_________Introdução à leitura de Lacan: o inconsciente estruturado como linguagem.
Tradução de Carlos Eduardo Reis. vol. I, Porto Alegre: Artmed, 2003.
214
DUNKER, C. As escansões do gesto: esboço para uma teoria psicanalítica da ação. In
LEITE, N. A. (org.) Corpolinguagem: gestos e afetos. Campinas: Mercado de Letras,
2003.
FARIA, M. Constituição do sujeito e estrutura familiar: o Édipo de Freud a Lacan.
Taubaté: Cabral, 2003.
_________ O que é um pai para uma criança? Considerações sobre o caso Hans.
Revista Estilos da Clinica. 2005, vol. 10, no. 19.
FÉDIDA, P. Clínica psicanalítica. Tradução de Cláudia Berliner, Martha P. e Silva,
Regina Steffe. São Paulo: Escuta, 1988a.
_________ Nome, figura e memória: a linguagem na situação analítica. Direção de
tradução
de Jayme Salomão. São Paulo: Escuta, 1988b.
FELICE, A. Através dos discursos: a construção do saber na fonoaudiologia.
Dissertação de mestrado defendida no Programa de estudos Pós-Graduandos em
Fonoaudilogia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2000.
FERRIOLLI, B. A análise do discurso como proposta clínica fonoaudiológica nos casos
de disfluência na fala. Relato de um caso. In: MEIRA, I. (Org.) Tratando a gagueira:
diferentes abordagens. São Paulo: Cortez, 2002.
FONSECA, S. Afasia, algumas questões. In: LIER-DE VITTO, F. (Org.)
Fonoaudiologia no sentido da linguagem. São Paulo: Cortez, 1994.
FONTES, I. Memória corporal e transferência. São Paulo: Via Lettera: São Paulo,
2002.
FRIEDMAN, S. Gagueira: origem e tratamento. São Paulo: Summus, 1986.
_________ Reflexões sobre a natureza e o tratamento da Gagueira. In: PASSOS, M. C.
(Org.) Fonoaudiologia: recriando seus sentidos. São Paulo: Plexos, 1996.
_________ Gagueira. In: OTACÍLIO, L. F. Tratado de Fonoaudiologia. São Paulo:
Roca, 1997.
215
_________ Fluência: normalidade e patologia. Distúrbio da Comunicação, vol. 11, 1,
PP. 131-136. São Paulo: EDUC, 1999.
_________ O caso Amadeu. In: CUNHA, M. C. e FRIEDMAM, S. (Orgs.) Gagueira e
Subjetividade: possibilidades de tratamento. Porto Alegre: Artmed, 2001.
_________ Gagueira: uma visão dialético-histórica. In: ROCHA, E. N. (Org.)
Gagueira: um distúrbio da fluência. Santos: Livraria Santos, 2007.
FREUD, S. Obras psicológicas completas. Standard Brasileira. Rio de Janeiro: Imago,
1974.
_________Estudos sobre histeria, Vol. III, 1892.
_________ Tratamento Psíquico, Vol. VII, 1905.
_________ Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Vol.VII, 1905.
_________ Análise de uma fobia de um menino de cinco anos, Vol. X, 1909.
_________As perspectivas futuras da terapêutica psicanalítica, Vol. XI, 1910.
_________ A dinâmica da transferência, Vol. XII, 1912a.
_________ Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, Vol XII,
1912b.
_________ Observações sobre o amor de transferência, Vol. XII, 1912.
_________Totem e Tabu, Vol. XIII, 1912-1913.
_________Conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência XVII-O sentido
dos sintomas, Vol. XVI, 1916-1917.
_________Conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência XXIII- Os
caminhos da formação dos sintomas, Vol. XVI, 1916-1917.
_________ Conferências introdutórias sobre psicanálise. Conferência XXVII- A
216
transferência, Vol. XVI, 1916-1917.
_________Além do princípio do prazer, Vol. XVIII, 1920.
_________Psicologia de grupo e análise do ego, Vol. XVIII, 1921.
_________O ego e o id, Vol. XIX, 1923.
_________A dissolução do complexo de Édipo, Vol. XIX, 1924.
_________Inibições, sintomas e ansiedades, Vol. XX, 1925-1926.
_________Sexualidade feminina. Vol. XXI, 1931.
_________. (1891) La afasia. Nueva Visión, Buenos Aires, 1997.
GARCIA-ROZA, L. Freud e o Inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1984/1992.
_________Introdução à metapsicologia freudiana 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1991/2001.
GLAUBER, I. P. Stuttering: a psychoanalytic understanding, New York: Editado por
Helen M. Glauber, 1982.
GOFFMAN, I. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Tradução
de Marcia Bandeira de Mello Leite Nunes. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988.
GOMES, I. D. Quando, entre o pensamento e a fala existe uma gagueira. Tese de
Doutorado defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2003.
GOMES, M.J. Descobrindo alternativas e superando barreiras: estratégias de
enfrentamento na gagueira. In: ROCHA, E. (Org.) Gagueira: um distúrbio da fluência.
Santos: Livraria Santos, 2007.
GOROSTIZA, L. O sintoma como mensagem. In: O sintoma-charlatão. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1998.
GRAÑA, C. (Org.) Quando a fala falta. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008.
217
GROISMAN, M.; JERUSALINSKY, A. Terapêutica da linguagem: entre a voz e o
significante. In: JERUSALINSKY, A. (Org.) Psicanálise e desenvolvimento infantil:
um enfoque transdisciplinar. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1989/1999.
JERUSALINSKY, A (Org.) Psicanálise e desenvolvimento infantil: um enfoque
transdisciplinar. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1989/1999.
KELLY, R.G. O buraco na língua... ou especificidade no sintoma da gagueira? In:
CUNHA, M. C. e FRIEDMAM, S. (Orgs.) Gagueira e Subjetividade: possibilidades de
tratamento. Porto Alegre: Artmed, 2001
LACAN, J. O estádio do espelho como formador da função do eu tal como nos é
revelada na experiência psicanalítica (1949). In: Escritos. Tradução de Vera Ribeiro.
Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1998.
_________Escritos 2. México, Siglo Veintiuno, 1966.
_________O Seminário. Livro 1: Os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Tradução
de Betty Milan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1975.
_________ Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise (1953). In: Escritos.
Tradução de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
_________ O Seminário. Livro 4: A relação de objeto (1956-57). Tradução de Dulce
Duque Estrada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
_________ O Seminário. Livro 5: As formações do inconsciente (1957-58). Tradução
de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
_________ O Seminário. Livro 8: A transferência (1960-1961). Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1991.
_________ O Seminário. Livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise
(1964). Tradução de M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
_________ Duas notas sobre a criança (1960). In: Opção Lacaniana, n. 21, abril/1998.
218
_________A família. Tradução de Brigitte Cardoso e Cunha et al. Lisboa: Assírio e
Alvim, 1987.
_________ Nomes–do-Pai (1953 e 1963). Tradução de André Telles. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2005.
LAPLANCHE, J.; PONTALIS, J.B. Vocabulário de psicanálise. Tradução de Pedro
Tamen. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
LAPLANCHE, J. Problématiques III La sublimation. Paris: Presses Universitaires de
France, 1980.
LE POULICHET, S. O conceito de narcisismo. In: NASIO, D. Lições sobre os sete
conceitos cruciais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,1997
LISPECTOR, C. O livro dos prazeres ou uma aprendizagem. São Paulo: Rocco, 1998.
MAFRA, T. M. A transferência. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2004.
MARTINS FILHO, A. P. A memória cósmica gênese da poética manoelina. Dissertação
de mestrado apresentada no Programa de estudos Pós-Graduados em Letras Vernáculas
da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2008.
MEIRA, I. Gagueira: do fato ao fenômeno. São Paulo: Cortez, 1983.
_________ (Org.) Tratando gagueira: diferentes abordagens. São Paulo: Cortez,
2002a.
_________ Método Integrativo Existencial. O caso de G. A.. In: MEIRA, I. (Org.)
Tratando gagueira: diferentes abordagens. São Paulo: Cortez, 2002b.
_________ Método Integrativo Existencial: seus prossupostos e Aplicação. In:
ROCHA, E. (Org.) Gagueira um distúrbio da fluência. Santos: Livraria Santos, 2007.
________ (org.) Tratando gagueira: diferentes abordagens. São Paulo: Cortez, 2002.
MERLO, S. Algumas reflexões sobre o conceito de fluência. In: Gagueira: um distúrbio
da fluência. Santos: Livraria Santos, 2007.
MEZAN, R. A sombra de Dom Juan e outros ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1993.
219
_________ A vingança da esfinge: ensaios de psicanálise. São Paulo: Brasiliense, 1995.
_________ Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 2006.
MIGUELEZ, N. S. Complexo de Édipo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2007.
MILLAN, B. A clínica fonoaudiológica: reflexões sobre as questões das crianças com
fissura lábio-palatinas. Dissertação de mestrado defendida no Programa de Estudos Pós-
Graduados em Fonoaudiologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1990.
MILLER, G. (org.) Lacan. Tradução Luiz Forbes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1987/1993.
MORIN, E. Amor, poesia e sabedoria. Tradução de Fátima Leal Gaspar e Carlos
Gaspar. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.
NASIO, J-D. Nos limites da transferência. Campinas: Papirus, 1987.
_________ Cinco lições sobre a teoria de Jaques Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
,1994.
_________ Lições sobre os sete conceitos cruciais da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1997.
_________Édipo: o complexo do qual nenhuma criança escapa. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2007.
OLIVEIRA, C. Gagueira familial: repercussões clínicas. In: ROCHA, E. (org.)
Gagueira: um distúrbio da fluência. Santos: Livraria Santos, 2007.
ORLANDI, E. A Linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. São Paulo:
Brasiliense, 1983.
_________ As formas do silêncio. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992.
PALLADINO, R O Discurso em Fonoaudilogia: a construção de uma subjetividade. In:
Revista Distúrbios da Comunicação. São Paulo: EDUSP, n. 2, vol. 4, 1991.
_________ Encontros e desencontros da fonoaudiologia. In: PASSOS, M. C. (org.)
Fonoaudiologia recriando seus sentidos.São Paulo; Plexus, 1996.
220
_________ Repetições: falas que ecoam na alma. Tese de doutorado defendida no
Programa de Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2002.
PASSOS M. C. (org.) Fonoaudiologia recriando seus sentidos. São Paulo: Plexus,
1996.
PEREIRA, M. A gagueira infantil como resultado da interação dos fatores sociais e
emocionais. In: MEIRA, I. (Org.) Tratando gagueira: diferentes abordagens. São
Paulo: Cortez, 2002.
PETRAGLIA, I. Edgar Morin A educação e a complexidade do ser e do saber.
Petrópolis: Vozes, 1995.
PFISTER, O. Cartas entre Freud e Pfister: um diálogo entre a psicanálise e a cristã
(1909-1939). Tradução de Ditmar Junge e Karin H. K. Wondracek. Curitiba: Ultimato,
1998.
PISANESCHI, E. Gagueira: disfluência sintomática. Dissertação de mestrado no
Programa de Estudos Pós-Graduados em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2001.
POMMIER, G. O amor ao avesso: ensaio sobre a transferência em psicanálise.
Tradução Sandra Regina Felgueiras. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1998.
PONTALIS, J. B. A força de atração. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1991.
QUINET, A. As 4+1 Condições da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
RIBEIRO, I. M. (Org.) Conhecimentos essenciais para atender bem a pessoa com
gagueira. São José dos Campos: Pulso, 2003.
ROCHA, E. (Org.) Gagueira: um distúrbio da fluência. Santos: Livraria Santos, 2007.
_________ Reflexões sobre a clínica da gagueira. In: RIBEIRO, I. M. (Org.)
Conhecimentos essenciais para atender bem a pessoa com gagueira. São José dos
Campos: Pulso, 2003.
221
RUBINO, R. Entre ver e ler: o olhar fonoaudiológico em questão. In: LIER-DE VITTO,
F. Fonoaudiologia no sentido da linguagem. São Paulo: Cortez, 1994.
RUDGE, A. Pulsão e Linguagem: esboço de uma concepção psicanalítica do ato. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
SANDLER, J.; DARE, C.; HOLDER, A. O paciente e o analista: fundamentos do
processo psicanalítico. Tradução de José Luís Meurer. Rio de Janeiro: Imago, 1986.
SAUSSURE, F. Curso de lingüística geral. Tradução de Antônio Chelini, José Paulo
Paes e Izidoro Blikstein. São Paulo: Cultriz, 1972.
SCARPA, E. Aquisição de linguagem. In: BENTES, C.; MUSSALIN, F. Introdução à
linguística: domínios e fronteiras. São Paulo: Cortez, 2001.
SOUZA, L. A. Clínica e linguagem: presságios de um entre os possíveis encontros.
Dissertação de mestrado defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em
Fonoaudiologia da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1991.
_________ Da gagueira; entre o medo e o desejo. In: CUNHA, C.; FRIEDMAN, S.
(Orgs.) Gagueira e subjetividade: possibilidades de tratamento. Porto Alegre: Artmed,
2001.
SPINELLI, M. Gagueira: análise de pesquisas e casos clínicos. In: CUNHA, C.;
FRIEDMAN, S. (Orgs.) Gagueira e subjetividade: possibilidades de tratamento. Porto
Alegre: Artmed, 2001.
TASSINARI, M. I. Relação terapêutica na clínica da linguagem: o país de Alice nas
vizinhanças da teoria psicanalítica. Dissertação de mestrado defendida no Programa de
Estudos Pós-Graduados em Fonoaudiologia da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, 1995.
_________ Objetividade e subjetividade nos processos terapêuticos
fonoaudiológicos. In: Distúrbios da Comunicação, São Paulo, 12 (1): dez., 2000.
_________ Do sintoma ao sujeito: contribuições da psicanálise para o atendimento de
um paciente gago. In: CUNHA, C.; FRIEDMAN, S. (Orgs.) Gagueira e subjetividade:
possibilidades de tratamento. Porto Alegre: Artmed, 2001.
222
_________ A transferência na clínica dos problemas de linguagem um pequeno mapa
nesse vasto território. In: PASTORELLO, L. e ROCHA, A. C. (Orgs.) Fonoaudiologia
e linguagem oral: os práticos do diálogo. Rio de Janeiro: Revinter, 2006.
TROIS, J. F. M. Algumas considerações sobre a clínica-de-linguagem e o sintoma na
linguagem. In: GRAÑA, C. (Org.) Quando a fala falta. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2008.
VAN RIPER, C.; EMERICK, L. Correção da Linguagem. Porto Alegre: Artmed, 1997.
VERAS, V. O Chiste como repasto totêmico. In: LEITE, N. A. (Org.) Corpolinguagem:
gestos e afetos. Campinas: Mercado de Letras, 2003.
VORCARO, A. Os dragões do tempo primordial: a repetição como primeira
identificação. In: LEITE, N. A. (org.) Corpolinguagem: gestos e afetos. Campinas:
Mercado de Letras, 2003.
_________ A criança na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,
2004.
WITTGENSTEIN, L. (1953) As investigações filosóficas. 5.ed. Rio de Janeiro:
Petrópolis, 2005.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo