Download PDF
ads:
I
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Julieta Jerusalinsky
A criação da criança:
letra e gozo nos primórdios do psiquismo
DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
SÃO PAULO
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
II
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Julieta Jerusalinsky
A criação da criança:
letra e gozo nos primórdios do psiquismo
DOUTORADO EM PSICOLOGIA CLÍNICA
Tese apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Doutor em Psicologia Clínica, sob a orientação do
Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck
SÃO PAULO
2009
ads:
III
FOLHA DE APROVAÇÃO DA BANCA EXAMINADORA:
Banca Examinadora
____________________________________________
____________________________________________
_____________________________________________
_____________________________________________
_____________________________________________
IV
A Zulema e Alfredo,
transmissores dos primeiros elementos de criação.
A Ignacio e Sofia,
tão esperados, tão surpreendentes.
V
RESUMO
Nome do autor: Julieta Jerusalinsky; Título da tese: A criação da criança: Letra e gozo
nos primórdios do psiquismo
A tese aborda a produção das inscrições constituintes do psiquismo no laço mãe-bebê
sob o marco acadêmico de pesquisa em Psicopatologia Fundamental e teórico-clínico da
psicanálise. Considera que a inscrição da letra conceito utilizado por Jacques Lacan para
situar as inscrições psíquicas depende da implicação materna na economia de gozo do
bebê. Sua transmissão não ocorre pela via direta de um código, mas por uma sucessão de
efeitos enigmáticos no laço com a mãe, enquanto Outro encarnado, diante dos quais o
sujeito precisará advir, no litoral entre gozo e saber, corpo e linguagem.
A partir do dado a ver no corpo do bebê, a mãe formula a suposição de um saber do
qual este seria tributário: saber sobre o desejo materno que, à própria mãe, resulta
enigmático, mas em relação ao qual o bebê fica implicado. Assim, o dado a ver no corpo
do bebê assume o caráter de formação do inconsciente. O psiquismo materno opera
como um aparelho psíquico inicialmente protético para o funcionamento corporal do bebê,
que passa a ter sua economia de gozo atrelada ao saber materno. Os primórdios da
constituição psíquica, portanto, deixam em relevo a não correspondência entre corpo e
sujeito.
A mãe realiza em seus cuidados o "bordado" da letra ao corpo do bebê, ao ocupar-se
de sua economia de gozo, ao afetar-se pelo que o afeta. Assim, parasita o funcionamento
corporal do bebê com uma estrutura "linguageira" pela qual este, inadvertidamente, se
engaja no laço com o Outro – a partir dimprescindível em seu circuito de satisfação. Por
isso o bebê também é afetado pela prosódia e alíngua pelas quais comparece o gozo
materno no ato da enunciação.
Quando o bebê se engaja "gozozamente" nos jogos constituintes do sujeito, a mãe
passa a atribuir-lhe a autoria, o saber, sobre esse brincar, transitando permanentemente
com ele pelas posições de objeto e sujeito. Ela o supõe sujeito que sabe do brincar; ao
mesmo tempo, quando o faz objeto de gozo, goza identificando-se transitivamente ao gozo
da passividade do bebê.
Portanto, o gozo implicado no laço mãe-bebê não está reduzido nem à angústia da
insuficiência nem à medida da potencia fálica. Tampouco ao gozo masoquista da mater
dolorosa. Por meio de um gozo situado para além do fálico, pode-se produzir uma criação:
a criação da criança aponta a dimensão transitivista dos primórdios do laço mãe-bebê.
Se a maternidade pode dar lugar a um ato criativo para uma mulher, por sua vez, a
criança tem uma brecha para vir a ser criadora no brincar. A relação mãe-bebê não se
limita nem ao gozo fálico nem à busca da complementaridade com o gozo do Outro, mas
pode dar acesso a um gozo Outro, a uma criação suplementar, que, mesmo se servindo da
função paterna, não se detém no complexo de Édipo.
Diante do pathos que o bebê em sofrimento dá a ver em seu corpo, o clínico
intervém, não por uma observação, mas por uma leitura que possibilita uma decifração.
Operando a partir da cifra, da letra que insiste na repetição sintomática, abre lugar para
criações suplementares.
PALAVRAS-CHAVE: letra, gozo, mãe-bebê, psicanálise.
VI
ABSTRACT
Author's name: Julieta Jerusalinsky; Title of thesis: Child raising: Letter and jouissance in
the earliest roots of the psychism
This thesis approaches the production of the inscriptions that constitute the psychism
in mother-baby ties. The text is present within the field of fundamental psychopathology and
theoretical-clinical psychoanalysis. The author posits that the inscription of the letter a
concept employed by Jacques Lacan to situate psychic inscriptions – depends on the mother's
involvement in the baby's economy of jouissance. The transmission of the inscription does not
take place through the direct presence of a code, but rather through a succession of enigmatic
effects on the baby's ties with his mother. She is an embodied mOther, in view of which the
subject must emerge on the border between jouissance and knowledge, body and language.
On the basis of the given-to-be-seen on the baby's body, the mother formulates the
supposition of the knowledge of which the baby is a tributary. It is knowledge of the mother's
desire and is enigmatic to the mother herself, but the baby becomes involved in it. The given-
to-be-seen on the baby's body takes on the character of a formation of the unconscious. The
mother's psychism operates there as an initially prosthetic psychic apparatus for the baby to
function physically. The baby’s economy of jouissance is thus bound to its mother's knowing.
The earliest roots of psychic constitution thus reveal the lack of correspondence between body
and subject.
Through her care, the mother "embroiders" the letter on the baby's body as she
occupies herself with his economy of jouissance, by being affected by what affects him. She
thus links the baby's physical functioning to a language structure by which he inadvertently
becomes involved in the tie with the mOther. From then on, the tie is indispensable in his
circuit of satisfaction. For this reason, the baby is also affected by the sounds and lalangue
through which the mother's jouissance emerges in the act of enunciation.
When the baby becomes emotionally involved in the games that constitute the subject,
the mother attributes their authorship to him, and the knowledge of this playing permanently
transits with him through the positions of object and subject. She presumes that he is the
subject that knows about playing. At the same time, when she makes the baby an object of
jouissance, she herself obtains jouissance by transitively identifying with the jouissance of the
baby's passivity.
Therefore, the jouissance involved in the tie between mother and baby is not reduced
to either the anxiety of insufficiency nor to the measure of phallic strength, nor even to the
masochistic jouissance of the mater dolorosa. Through jouissance located beyond the phallic,
a creation can be produced, a child can be raised. The raising of the child indicates the
transitivist dimension of the earliest roots of the tie between mother and baby.
If motherhood can make room for an act that, for a woman, is creative, the child, in
turn, has a way to be creative when playing. The relationship between mother and baby is
limited neither to phallic jouissance nor to the search for complementarity with the jouissance
of the mOther, but it can open the way to an Other jouissance, a supplementary creation,
which, even if it makes use of the paternal function, does not stop at the Oedipus complex.
In view of the mental suffering involved when a baby painfully gives-to-be-seen on
his body, the clinician intervenes, not by observing but by reading, which can decipher.
Operating on the basis of the key to the code, the letter, which insists on symptomatic
repetition, the clinician opens the way to supplementary creations.
Keywords: Letter, jouissance, mother and baby, psychoanalysis
VII
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck, orientador, por sustentar no Laboratório de
Psicopatologia Fundamental um espaço universitário em que a alteridade instiga a
produção e em que a práxis do comentário dos textos fomenta o rigor, a clareza e o respeito
coletivo na construção da pesquisa.
A todos os colegas do Laboratório, pelo labor conjunto, especialmente a Ana
Cecília Magtaz, Adriana Grosman, José Waldemar Thiensen Turna, Eliane M. Marraccini,
Regina Gromann, Marciela Henckel, Oscar Miguelez, Sônia Thorstensen, Ana Irene
Canongia, Tereza Endo e Fani Hisgail. Suas leituras e seus comentários fazem parte da
produção do texto desta pesquisa.
Aos integrantes da Clínica Interdisciplinar Mauro Spinelli - Adela Stoppel de
Gueller, Silvana Rabello, Marta Gimenez Baptista, Ana Clélia Rocha - com as quais
encontrei, aqui em São Paulo, uma equipe para compartilhar o cotidiano e o extraordinário
da clínica. A Mauro Spinelli, diretor dessa equipe, em memória, por sua sabedoria e
curiosidade incansável ao transmitir que a clínica sempre tem a nos ensinar.
À equipe do Centro Lydia Coriat, que está comigo seja onde for, por partilharmos
utopias. Aos colegas de tantas outras instituições interlocutoras, espalhadas pelo mapa, tais
como o Espaço Escuta, que também tecem conjuntamente seus fios nessa rede da criação,
da inclusão, do trabalho em equipe, da transdisciplina.
Aos colegas da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, pela transmissão.
Aos colegas do Núcleo de Pesquisa em Psicanálise, coordenado por Domingos
Infante, pelos seus debates vivazes e calorosos que incentivaram muitas das idéias aqui
apresentadas.
A Maria Lúcia Stein, Danielle John, Ilana Katz Fragelli, Sidnei Goldberg e Ricardo
Goldemberg, pelo coleguismo e interlocução.
Aos irmãos, amigos e parentes, principalmente ao Daniel, companheiro da vida, por
possibilitarem e saberem não perdoar a retirada e o silêncio que o ato de escrever exige,
mas também por muitas conversas cotidianas que perpassaram a elaboração deste escrito.
Aos integrantes da Banca de Qualificação e, agora, da Banca Examinadora - Ângela
Vorcaro, Leda Fischer Bernardino, Silvana Rabello, Caterina Koltai, Miriam Debieux
Rosa, Sérgio de Gouvêa Franco, Luis Cláudio Figueiredo - pelo generoso ato de colocarem
questões, tornando-se interlocutores desta produção.
À CAPES que financiou o trecho final desta pesquisa.
VIII
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – O laço mãe-bebê................................................................................. 001
I . LEITURA DE BEBÊS – A intervenção com o dado a ver.......................................... 016
I .1. O pedido de Freud: da escuta do infantil ao olhar que se volta à infância........... 018
I .2. Os bebês, a psicanálise e a observação................................................................. 021
I .3. Da observação ao tempo de ver............................................................................ 027
I .4. A leitura como modo de intervenção na clínica com bebês.................................. 031
I .5. De um manifesto que circula pela
não correspondência entre corpo e sujeito............................................................033
I .6. Cu-co! Cadê Santiago? – Recorte clínico I........................................................... 038
I .7. Tchau mãezinha! – Recorte clínico II................................................................... 041
I .8. Do dado a ver no corpo ao surgimento do sujeito. .............................................. 045
II . O BEBÊ E A LETRA – Inscrições nos primórdios do psiquismo.............................. 047
II .1. Do vivido às inscrições constituintes.................................................................. 048
II .2. Freud e as metáforas escriturais do aparelho psíquico........................................056
II .3. A letra como inscrição psíquica e como enigma dado a ver na superfície......... 066
II .4. Trasncrever, traduzir e transliterar – intervenções sobre
Diferentes registros da letra.................................................................................. 074
II .5. A intervenção clínica entre a legibilidade e a rasura da letra............................. 078
II .6. Sobre o conceito de letra e suas reformulações ................................................. 083
II .7. O bebê e a letra como inscrição de um litoral ................................................... 093
II. 8. De como a letra se engancha ao corpo: o transitivismo no laço mãe-bebê.........097
II .9. As quatro operações constituintes do sujeito e a transmissão da letra ...............101
III. PROSÓDIA E ENUNCIAÇÃO NA CLÍNICA COM BEBÊS
Sobre a voz e a letra nos primórdios do psiquismo ................................................... 105
III.1. Outro dia para Rafael – Recorte clínico III ....................................................... 115
III.2 Em quem coça a comichão de Sabrina? – Recorte clínico IV............................ 116
III.3. A prosódia e a incidência da linguagem no corpo ............................................. 118
IV. A MATERNIDADE E O GOZO FÁLICO
– Considerações sobre a angústia de castração e a inveja
do pênis pós-maternidade ............................................................................................122
IX
V. A MATERNIDADE ALÉM DO GOZO FÁLICO
– Sobre o gozo Outro e seus efeitos constituintes no laço mãe-bebê ...........................135
V. 1. Considerações sobre o conceito de gozo em psicanálise .................................... 138
V. 2. O gozo fálico e sua defesa contra o gozo do Outro .............................................143
V. 3. O gozo do Outro e a montagem fantasmática ......................................................144
V. 4. O menino e a menina a partir do gozo fálico .......................................................147
V. 5. Mulher, gozo e divisão
– o que não se articula na equação pênis=falo=bebê ......................................... 155
V. 6. "A mulher à toda" no discurso social .................................................................. 158
V. 7. Feminino, passivo, masoquista: a tríade em questão .......................................... 163
V. 8. O gozo do Outro e o gozo Outro: aquém e além do complexo de Édipo.............172
V. 9. Maternidade e gozo Outro ...................................................................................175
V.10. Do gozo Outro da mãe à identificação transitivista
com o gozo da passividade do bebê.....................................................................179
V.11. De como um gozo que não o fálico opera efeitos constituintes para o bebê. .... 185
V.12. Como a mascarada materna conduz a criança ao gozo fálico............................ 188
V.13. Os caminhos da menina e as saídas de mãe ....................................................... 191
VI. JOGOS CONSTITUINTES DO SUJEITO
– O brincar como inscrição de um litoral sustentado no laço mãe-bebê ......................195
VI.1. O brincar na cena clínica e a constituição do sujeito ..........................................196
VI.2. O marco do Fort-Da ............................................................................................206
VI.3. Jogos de litoral como precursores do Fort-Da ................................................... 209
VI.4. Jogos de temporalidade intersubjetiva:
na borda entre a expectativa e a precipitação .................................................. 217
VI.5. A mãe que borda a letra ao corpo
– loucura e sedução como necessárias à função materna ............................... 220
VI.6. A criação da criança e o laço mãe-bebê ............................................................. 222
VI.7. Diabo, diabão, dia bão! – Recorte clínico V....................................................... 224
VI.8. Ico, ico, ico, o cavalo de Frederico! – Recorte clínico VI.................................. 227
VI.9. De novo! Repetição e criação com a letra no brincar......................................... 232
CONSIDERAÇÕES FINAIS E METODOLOGIA
Sobre os troços deixados, o caminho traçado e o que se traça na escrita da clínica......... 235
REFERÊNCIAS ............................................................................................................... 249
ANEXO 1...........................................................................................................................262
ANEXO 2...........................................................................................................................263
INTRODUÇÃO
O Laço Mãe-bebê
A relação mãe-bebê não está garantida por condições naturais, depende do
estabelecimento de um laço simbólico.
Ele não é efeito nem do instinto previamente estabelecido como um saber da espécie,
nem do que pode ser racionalmente aprendido. Tampouco de um quantum de afeto
materno. Este laço, para seu estabelecimento, depende de que os cuidados que a mãe dirige
ao bebê estejam permeados por uma série de operações psíquicas em relação à economia
de gozo e em relação à transmissão da letra (enquanto inscrição psíquica), desde as quais a
mãe pode conceber a subjetividade do recém-nascido e alocá-lo como seu bebê.
Como situa Freud, tal laço pode vir a se produzir para uma mulher a partir da
equação pênis-falo-bebê.
1
No entanto, no presente trabalho consideramos que o gozo fálico
situado por tal equação está longe de esgotar o que é relativo ao gozo presente na
maternidade.
Apresentamos aqui a tese de que a maternidade implica, além de um gozo fálico, um
gozo Outro, e que esse gozo Outro da mãe é decisivo no tempo das primeiras inscrições
constituintes do psiquismo do bebê.
Fomos levados a tal hipótese a partir da práxis clínica exercida nos primórdios da
constituição psíquica tanto com bebês quanto com crianças exiladas da condição de
falantes ao estarem acometidas por graves patologias psíquicas e cuja intervenção
terapêutica exige, apesar de cronologicamente não serem mais bebês, sustentar as
operações primordiais da constituição do psiquismo.
1
Sigmund Freud (1924b). A dissolução do complexo de Édipo, p. 223.
2
Assim, o laço mãe-bebê nos leva a considerar, por um lado, os desdobramentos
psíquicos que, acerca do gozo, a maternidade produz em uma mulher e, por outro, as
consequências decisivas do gozo materno para a inscrição da letra (enquanto inscrição
psíquica) no bebê.
As inscrições constituintes do psiquismo que se operam nos primórdios da vida só
podem ser entendidas a partir do laço do bebê com um Outro encarnado. O Outro implica a
estrutura da linguagem anterior e exterior ao sujeito, mas, é preciso que um Outro
encarnado a porte e a materialize, endereçando um desejo não anônimo ao bebê, para que
este possa vir a se constituir como falasser (parl'être)
2
a partir dessa estrutura. A mãe, por
sua condição desejante em relação ao bebê, é quem primeiramente se vê arrastada a
encarnar, a ocupar realmente o lugar do Outro.
3
O exercício da função materna implica instaurar um funcionamento corporal
subjetivado nos cuidados que se realiza do bebê. A mãe se ocupa da economia de gozo do
bebê do olhar, da voz, da alimentação, da retenção e expulsão de fezes, do ritmo de sono
e vigília estabelecendo um circuito pulsional que não prescinde do Outro para obter
satisfação. Para tanto, a mãe, nos cuidados que dirige ao filho, articula a antecipação
simbólica (relativa ao desejo que estabelecia para o bebê um lugar suposto antes de seu
nascimento) à sustentação do tempo necessário para que a constituição do bebê possa se
produzir (fazendo, com seus cuidados, certa suplência diante da imaturidade real do
organismo do bebê). Somente a partir da circulação do circuito de desejo e demanda do
laço mãe-bebê por estes diferentes registros temporais o bebê poderá vir a apropriar-se
imaginariamente de seu corpo, fazendo-o seu e fazendo das experiências de vida
2
Neologismo cunhado por Jacques Lacan, fundamentalmente a partir do seminário 22, como certa derivação
do conceito de sujeito do inconsciente, mas que vem tirar todo e qualquer caráter de uma identidade a esse
sujeito, apontando que, em definitivo, o inconsciente, seu comparecimento, não seria nada mais do que
alguém que fala. O falasser é um animal habitado pelo gozo parasitário da linguagem, gozo fálico e que,
desde então, se experimenta de modo disjunto do seu corpo.
3
Jacques Lacan (1960b). Subversión del sujeto y dialética del deseo, p. 785.
3
acontecimentos que, algum dia, poderão vir a ser recapituladas por ele como sua própria
história.
4
Desse modo, o exercício dessa função implica uma transmissão pela qual o recém-
nascido, para além do gozo do vivo, entra em relação com a alteridade, de forma que a sua
satisfação pulsional não ocorre de modo isolado ou individual, mas visa atingir, se
endereça ao Outro.
Por sua vez, tal função não se exerce desde um saber instintivo previamente
configurado. O imprinting biológico da espécie resulta absolutamente insuficiente.
Portanto, situar que nos primórdios da constituição do sujeito não como prescindir da
função da e não equivale a supor essa relação como previamente dada. No mesmo
sentido que Lacan nos apontou que não relação sexual,
5
na medida em que não há um
encontro complementar entre homem e mulher, tampouco uma relação natural entre
mãe e bebê. Na falta de tal complementaridade, o que pode vir a se estabelecer é um laço.
O laço conjugal só se faz viável na medida em que cada um de seus participantes
pode jogar com o seu fantasma, com sua fantasia inconsciente, encontrando por parte do
outro jogador certa participação que permita manter em movimento o jogo fantasmático.
6
Este jogo não é nada fácil, revela as suas faltas e é por isso que o laço conjugal comporta a
produção de sintomas. Tais sintomas se estabelecem como respostas diante da
impossibilidade de complementaridade automática entre homem e mulher. Pois, ainda que
haja atos sexuais, não acasalamento simbólico, não encontro com o que
4
A articulação dos diferentes registros do tempo pelo circuito de desejo e demanda do Outro encarnado,
posta em ato nos cuidados dirigidos ao bebê, foi a questão central desenvolvida no trabalho de mestrado
Temporalidade e clínica com bebês orientada pelo Prof. Dr. Manoel Tosta Berlinck, PUC-SP, 2003.
5
Jacques Lacan. Los seminarios de Jacques Lacan. Seminario 16. De un otro al Otro, clase 14, 12 de março
de 1969b, edición electrónica establecida para circulación interna de la Escuela Freudiana de Buenos Aires.
6
Contardo Calligaris, a este respeito, propõe uma analogia entre o laço conjugal com o que pareceria, visto
de cima, um casal jogando de tênis. Pareceria que os parceiros jogam juntos, quando, de fato, haveria, entre
cada lado da quadra, um paredão, estando cada um dos participantes fazendo seu próprio treino, assim como,
cada um do casal, contando com a participação do parceiro implicado nesse semblante de um jogo a dois,
faria seu próprio jogo fantasmático. Contardo Calligaris (1991). O grande casamenteiro, p.13.
4
complementaria definitivamente a falta como se diz popularmente, com "a outra metade
da laranja".
No segundo caso, o da mãe com o bebê, tampouco estão dadas natural ou
simbolicamente as garantias de que venha a se constituir um laço mãe-filho a partir do
encontro de uma mulher com o corpo real do neonato recém-parido.
Diferentemente do primeiro, neste segundo caso, para o estabelecimento de um jogo,
não dois jogadores psiquicamente constituídos. Conta-se, por um lado, com o cenário
fantasmático dessa mulher que pode acolher ou descartar inconscientemente o recém-
nascido como seu bebê. E, por outro, conta-se com as aptidões do bebê ao nascer, que
podem favorecer ou fazer grave obstáculo a este jogo: o conjunto de características
constitucionais relativas ao seu aparato neuro-anatômico, entre as quais podemos destacar
o conjunto de reflexos arcaicos (que regem a atividade inicial do recém-nascido) e a
extrema plasticidade neuronal (que o fazem ser organicamente capaz do que já foi
denominado como uma extrema permeabilidade a inscrições significantes).
7
Se a mãe
supõe simbolicamente o bebê como jogador desse cenário, toma tais características
constitucionais para, a partir delas, produzir o engaste da função materna.
8
Ou seja, ela
acolhe os aspectos constitucionais do bebê, fazendo desse real orgânico a suposta produção
de um sujeito, articulando o gozo do vivo a uma estrutura linguageira.
Isto evidencia o quanto o estabelecimento do laço mãe-bebê parte de condições
absolutamente assimétricas de seus participantes, não relativas ao real do corpo que
colocam em relevo a dependência orgânica do bebê , mas fundamentalmente em termos
da radical dependência do bebê para saber o que lhe convém. O estabelecimento de tal
saber está sujeito ao modo pelo qual as experiências de vida são sustentadas no laço com a
7
Alfredo Jerusalinsky (1988). Psicanálise e desenvolvimento infantil, p. 47.
8
Engaste é a tradução do termo engarce originalmente ultilizado em espanhol. Seu significado é o mesmo:
parte da ia em que se fixa a pedra e que faz o seu suporte, podendo significar também por derivação,
inserção e intercalação. Lydia Coriat e Alfredo Jerusalinsky. Aspectos constitucionales del bebé y su
influencia en la relación madre-hijo, p. 11-21.
5
mãe, dando lugar às inscrições primordiais do aparelho psíquico do bebê. Nesse sentido, o
bebê, nos primórdios da constituição de seu psiquismo, é tomado em um cenário
fantasmático em que é suposto antecipadamente como jogador, sem ainda sê-lo de fato. E é
somente ao ser suposto antecipadamente em um determinado lugar pelo Outro encarnado
que ocorrerão as primeiras inscrições a partir das quais ele, depois, poderá vir a produzir
suas respostas ao Outro. Como apontava Freud, comparece uma passividade nos
primórdios da constituição do psiquismo.
Se, em primeiro lugar, apontamos que a relação mãe-bebê não é natural; em segundo,
que é profundamente assimétrica; em terceiro lugar fica evidente que tal relação está longe
de ser dual, de se situar como uma ade. Ela está permeada por um complexo trabalho
psíquico de estabelecer um laço em um contexto que está atravessado por todas as
consequências de não haver complementaridade com o objeto da satisfação, de não haver
relação sexual. Portanto, a maternidade não é nem da ordem do sabido naturalmente por
instinto, nem do que pode ser instruído por meio da erudição, tampouco do que é imanente
de um senso-comum espontâneo. É uma experiência que convoca o saber inconsciente e
que, assim sendo, depende de uma transmissão e também de uma criação singular. Ou seja,
ao mesmo tempo em que a maternidade implica uma repetição inconsciente entre gerações,
também diz singularmente da invenção que pode ter lugar para uma mulher a partir da
experiência de maternidade.
Se o bebê que nasce é fruto real de um ato sexual, ele chega em um cenário
imaginário e em um contexto simbólico que é efeito da tramitação da sexualidade por parte
da mãe, de sua história libidinal, de sua resolução edípica. Portanto, não
verdadeiramente agente da função materna sem referência ao nome-do-pai. assim o
6
filho é objeto de desejo e assim, então, a mãe inscreve (escreve?) no corpo dele as
marcas do simbólico.
9
É central para a constituição do bebê a forma pela qual a resolução edípica de uma
mulher-mãe se atualiza no laço conjugal e na experiência de maternidade, colocando em
cena seu saldo subjetivo diante da função paterna. Sabemos também que está longe de ser
indiferente, para o laço mãe-bebê, o lugar ocupado pelo pai do bebê. Tem efeitos
contundentes o modo pelo qual o pai sustenta o laço com sua mulher e o restabelece a
partir do nascimento do filho,
10
assim como sua implicação direta nos cuidados dirigidos
ao bebê. Afinal o exercício da função materna o prescinde da rede familiar e social para
dar lugar ao recém-nascido.
No entanto, a função paterna inscrita na mãe, sua fantasia inconsciente e sua resposta
sintomática diante da falta e da diferença sexual, tem um papel decisivo no modo como o
bebê é recebido, alocado simbólica e imaginariamente. Consequentemente, o primeiro pai
que conta decisivamente na vida de um bebê é aquele inscrito, pela função paterna, na mãe.
Isto evidencia que a função paterna não se apoia em tradicionalismos sociais, operando em
uma grande diversidade de configurações familiares, na medida em que a posição
desejante da mãe já, de início, situa a relação mãe-bebê fora de uma mítica relação a dois.
Neste sentido, cabe considerar como a modificação da inserção social das mulheres
vem produzindo uma diversificação em seus modos de acesso à realização fálica, fazendo
da maternidade uma escolha possível entre tantas outras. Mas, a promessa "um dia poderás
ter um bebê" ainda comparece para a menina diante da diferença anatômica entre os sexos
e, posteriormente, pode ser retomada como um dos caminhos a percorrer ainda que o
gozo fálico possa articular-se em relação a diferentes objetos apontados como causa do
9
Alfredo Jerusalinsky. Psicanálise do autismo, p. 32.
10
Por exemplo, identificando-se ao bebê ou rivalizando com este, considerando sua mulher, a partir de então,
apenas como mãe ou convocando-a novamente para o lugar de mulher.
7
desejo, encontrando na remuneração econômica ou realização profissional possíveis ideais
de realização.
Se em torno do bebê mantém-se a fantasia de que este venha a arrolhar a falta da
mãe,
11
de que seja resposta para uma falta, a clínica nos revela como a maternidade ao
deslizar entre os termos da equação simbólica pênis-falo-bebê , longe de ser um ponto de
chegada, de resolução para a questão do que é ser uma mulher, relança tal interrogação.
A partir de Freud são situados três caminhos possíveis para uma menina diante da
angústia de castração:
12
um caminho seria o do abandono da atividade fálica, não em
sua vida sexual, mas também em outros campos, levando a um extremo empobrecimento
psíquico e revulsão geral dos investimentos na sexualidade; o segundo seria o de aferrar-se
à masculinização como portadora do falo; o terceiro seria o da feminilidade.
Longe de responder tal questão, a maternidade, ainda que possa propiciar uma
articulação simbólica em torno de uma nova experiência, relança a interrogação do que é
ser uma mulher. E, sobretudo, o que é possível fazer, na maternidade, a partir da questão
incessante produzida por esse inominado?
Consideramos que maternidade e feminilidade não se situam necessariamente em
posições opostas, como se a primeira correspondesse apenas a um gozo fálico e como se
somente a segunda fosse tributária de um gozo Outro como tantas vezes se esquematiza
de modo reducionista após o ensino de Lacan.
Propomos que o gozo materno não estaria necessariamente resumido ao fálico.
Movidos por esta questão despertada pela clínica, fomos em busca de substratos teóricos
que permitissem avançar nesta proposição. Encontramos nada menos que a afirmação de
Lacan de que é preciso interrogar se a mediação fálica esgotaria tudo o que é relativo à
11
Ver, a este respeito, Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 49.
12
Sigmund Freud (1931). Sexualidade feminina, p. 264.
8
maternidade ou se isso seria um ponto de desconhecimento e preconceito.
13
A maternidade, ao mesmo tempo em que articula um ponto de chegada acerca do que
é ser mulher, relança um ponto de partida e coloca em questão quais serão suas saídas. Se
os caminhos possíveis para a menina eram três, quais serão as saídas da mãe?
Consideramos que os caminhos possíveis para uma mãe no laço com o bebê retomam os
três caminhos da menina, diante da castração, situados por Freud.
Cotidianamente testemunhamos na clínica desenlaces que oscilam da exaltação da
realização fálica na maternidade à angústia pela sua insuficiência. Nesta oscilação retorna a
equivalência pênis-falo-bebê. Seja pela via positiva (sim bebê fálico = sim pênis) ou
negativa (não bebê fálico = não pênis), coloca-se em cena a realização ou insuficiência do
falicismo materno.
14
Mas pode ser elaborado outro caminho possível da maternidade, indo além do
cenário fálico. Ele implica a incidência de um gozo Outro na maternidade e não de
modo oposto ou disjunto a ela. Este caminho não consiste mais em uma busca pela
complementaridade com o bebê, ele abre uma possibilidade de criação pela qual, diante da
falta, é possível criar de modo suplementar. Este é um desenlace possível, do lado materno,
ao situar a maternidade para além do gozo fálico.
Mas quais as consequências do gozo materno na constituição do bebê? De que modo
ele está implicado na produção das suas inscrições psíquicas?
Que esta estrutura o anteceda não equivale a dizer que a estrutura psíquica do bebê já
estaria decidida, pois será preciso uma diacronia, será preciso uma passagem de tempo,
para que esta estrutura sincrônica produza efeitos de inscrição no bebê e para que, a partir
de tais inscrições, ele possa começar a produzir as suas singulares respostas subjetivas.
Este é o tempo que chamamos de infância, tempo que se caracteriza não pela maturação
13
Jacques Lacan (1960a). Ideas directivas para un congreso sobre sexualidad femenina, p. 709.
14
Como será desenvolvido no capítulo "A maternidade além do gozo fálico", este é um desdobramento em
relação à maternidade elaborado a partir das proposições de Gerard Pommier (1985). A exceção feminina.
9
– enquanto completamento das estruturas anátomo-fisiológicas – e pelo desenvolvimento
como crescente complexização das aquisições de psicomotricidade, linguagem ou
construção do pensamento lógico-cognitivo –, mas, pelo fato de encontrarmos um sujeito
psíquico em plena constituição,
15
que seu modo de gozo não se encontra fixado pelo
exercício de um fantasma (fantasia inconsciente) já inscrito.
Isto implica considerar que, em termos psíquicos, uma criança não equivale a um
adulto. O adulto, longe de ser considerado como um ser completo ou pleno de aptidões
(como poderia situar-se desde uma concepção desenvolvimentista), é aqui entendido como
aquele que tem inscrito e fixado seu fantasma, padecendo dos efeitos do infantil ou
seja, das inscrições primordiais efetuadas que implicam, em termos freudianos, fixações
da história libidinal, atualizando-se, uma e outra vez, por meio do que é repetido mesmo
sem poder ser recordado. Temos o funcionamento temporal instaurado no psiquismo
que, por meio dos atos falhos, sintomas, sonhos, lapsos, faz comparecer as inscrições mais
primordiais no mais atual.
O bebê e a criança, por sua vez, padecem de encontrar-se na infância, estando ainda
em um tempo próprio do polimorfismo de suas vicissitudes pulsionais e, portanto, com
uma estrutura ainda não decidida, sendo a infância um momento que se caracteriza pela
extrema permeabilidade a inscrições significantes. Como aponta Freud, ainda que o
aparelho psíquico se encontre, ao longo da vida, aberto a sucessivas inscrições e
reinscrições, temos bons motivos para acreditar que não período em que a capacidade
de receber e reproduzir impressões seja maior do que precisamente durante os anos da
infância.
16
Conceber o tempo como uma importante variável a ser considerada no que diz
respeito às inscrições psíquicas, não é a mesma coisa que achatar a diferença entre adulto e
15
Partilhamos aqui as concepções clínico-teóricas do Centro Lydia Coriat.
16
Sigmund Freud (1905a). Três ensaios sobre a sexualidade, p. 179.
10
criança a uma concepção desenvolvimentista. A constituição do sujeito exige a inscrição
de diferentes momentos lógicos que não estão garantidos pela passagem do tempo, por
uma simples cronologia. No entanto, continua sendo necessária uma diacronia para que se
precipitem os efeitos de inscrição que constituirão o sujeito psíquico. É preciso o
transcurso de um tempo para que as inscrições que nele se precipitaram possam ser por ele
postas à prova por meio de uma experiência que o implique subjetivamente.
Isto coloca em pauta a questão de como se operam tais inscrições psíquicas
primordiais no cerne da relação mãe-bebê: uma vez que o bebê não tem instintivamente um
saber acerca do que lhe convém, torna-se decisivo para a constituição desse saber de que
forma aquilo que ele padece em seu corpo poderá vir a ser representado. Para que esta
passagem ocorra é absolutamente necessário que a mãe se veja afetada pelo que acomete o
corpo do bebê. Ao exercer sua função, ela realiza a travessia, franqueia para e com o bebê,
a passagem entre o gozo do vivo e a inserção na linguagem. Ela se ocupa, como nos diz
Freud, de realizar as ações específicas
17
que produzem satisfação do bebê, introduzindo
para ele a dimensão do Eros, do erotismo.
Por meio desse fino trabalho de bordado da mãe entre corpo e linguagem, ao exercer
seus cuidados, instaura-se sorrateiramente no bebê um gozo que, onde se pretende
autoerótico, leva a marca do Outro, se inscreve como Outro-erotismo.
18
O
funcionamento das funções corporais do bebê, seu prazer e seu desprazer pulsional, o gozo
desse corpo, passam a não ter mais como prescindir do Outro encarnado, o organismo
sofre os efeitos de sua desnaturalização desde que a ordem simbólica implantada pela mãe
passe a regular sua economia.
19
Quando o estabelecimento desse laço ocorre, diante daquilo que o bebê padece em
17
Sigmund Freud (1895). Projeto para uma psicologia científica, p. 421-22.
18
Charles Melman (1985a). Questions de clinique psychanalytique.
19
Ângela Vorcaro. Prefácio sobre o tempo, estímulo e estrutura, p. 15.
11
seu corpo, produz-se uma identificação transitivista, tal como situado por Bergès e Balbo,
20
pela qual a mãe implica sua economia de gozo naquilo que é padecido pelo bebê, afetando-
se em seu corpo pelo que afeta o corpo do bebê e evocando a sua representação desse
afeto. Na medida em que o bebê, a partir da identificação transitivista, fizer sua essa
representação "emprestada" pela mãe, aquilo que o afetou ganhará o valor de uma
experiência representada opera-se assim uma inscrição que estabelece a borda e, ao
mesmo tempo, a passagem entre o gozo e o saber.
Encontramos aqui a radicalidade com que a não correspondência entre corpo e
sujeito comparece na primeira infância. É preciso que o funcionamento corporal do bebê
afete a economia de gozo materno para que, a partir de tal percurso pulsional no laço com a
mãe, o bebê possa ter acesso a uma representação do que o acomete em seu organismo e,
ao deter tal saber, possa constituir esse corpo como o seu.
Ao mesmo tempo, por meio da identificação transitivista com o bebê a mãe tem
acesso a um gozo. Portanto, ela não exerce sua função de modo abnegado e tampouco
masoquista,
21
como apontam as formulações que apóiam a maternidade no princípio da
mater dolorosa.
22
Se feminino-passivo-masoquista é uma tríade que, como aponta Freud,
frequentemente comparece atrelada na clínica, não consideramos que, em si, o gozo
masoquista seja intrínseco à feminilidade e tampouco à maternidade.
Propomos que, ao propiciar ao seu bebê uma satisfação que busca poupar-lhe o
esforço, a mãe se identifica ao seu gozo da passividade. Assim, ela goza do gozo do seu
bebê, furtivamente tem acesso a um gozo Outro e, ao mesmo tempo, com isso, ela
20
Como apontam Jean Bergès e Gabriel Balbo (1998). Jogos de posições da mãe e da criança.
21
Como será desenvolvido ao longo do trabalho, apesar de considerarmos centrais as proposições de Bergès
e Balbo acerca do transitivismo, discordamos que o mesmo se opere através de um gozo masoquista. Acerca
do gozo masoquista implicado na identificação transitivista ver: Jean Bergès e Gabriel Balbo (1998). Jogos
de posições da mãe e da criança.
22
Helene Deutsch (1929). O masoquismo “feminino” e sua relação com a frigidez, p. 12.
12
sorrateiramente franqueia para o bebê a passagem do gozo do vivo à linguagem. Ao operar
como órgão extra-corpóreo da criança, ela reconhece as urgências vitais e simula a
equivalência destas à decisão que toma quanto à significação que teriam.
23
Consideramos que um gozo próprio do feminino, um gozo correlacionado com a
passividade, é fundamental para a identificação transitivista da mãe com o bebê e para o
modo como tal identificação incide nas primeiras inscrições constituintes do psiquismo do
bebê. Isto não ocorre diante da dor em que a mãe diz "ai!" diante do que acomete o
corpo do bebê, mas também com o prazer por exemplo, quando a mãe diz "hum!" com
"água na boca" diante da comidinha que oferece ao seu bebê. Ali ela, além da comida,
oferece, por meio da identificação transitivista, o acesso a um gozo. O bebê pode, então,
tornar esse apetite o seu. E do que goza a mãe? De identificar-se ao gozo da passsividade
que supõe no bebê.
Ao se identificar com o gozo da passividade ela tem acesso a um gozo duplicado, por
vezes tanto maior do que teria se efetivamente ela comesse. Nessa economia de gozo a mãe
tem acesso a um mais-de-gozar, ou seja, extrai um lucro de gozo. Como tantas vezes dizem
as mães: "sofrem duas vezes mais" ou "desfrutam duas vezes mais" quando é com o bebê,
o que já demonstra que não fazem tal exercício de modo abnegado, mas extraindo disso um
gozo. Vemos, portanto, como é necessário que o padecido no organismo do bebê se
constitua como gozo da mãe para que esta possa transmitir-lhe o saber por meio do qual o
bebê fará sua a representação daquilo que o acomete.
É aí que o conceito de letra, proposto por Lacan para denominar as inscrições
psíquicas, adquire relevo para a clínica do laço mãe-bebê. O conceito de letra apresenta-se
como uma moeda de duas caras, tendo uma voltada para a articulação de um saber e outra
para o gozo, uma para a linguagem e outra para os percursos pulsionais, apresentando, de
23
Ângela Vorcaro. Prefácio sobre o tempo, estímulo e estrutura, p. 13.
13
modo indissociável, duas substâncias de diferentes ordens. Assim, as inscrições psíquicas
consideradas aqui a partir do conceito de letra são produzidas no litoral entre gozo e
saber sustentado inicialmente pela mãe no laço com o bebê. Daí a questão que propomos
trabalhar acerca da letra e do gozo na primeira infância.
Neste percurso partimos do capítulo "Leitura de bebês", no qual apontamos como a
letra, enquanto inscrição psíquica, comparece em uma clínica na qual a produção do
paciente não se a escutar pela associação livre, mas pelo dado a ver no corpo do bebê.
O olhar do clínico está implicado, não em uma observação, mas em uma operação de
leitura. Cabe ao clínico, em sua intervenção, alçar esse real à condição de um enigma
cifrado da relação do bebê com o Outro, dando lugar a uma operação de leitura clínica. Tal
operação de leitura, ao decifrar, não busca um fechamento compreensivo, mas, ao
contrário, permitir operar com a cifra em transferência, possibilitando ao bebê uma
transformação em relação ao pathos que o atinge. Assim, ao ler, algo se reinscreve e o
sujeito pode trans-formar-se, retomando de outro modo, recriando, o que nele é
primordial. A intervenção clínica ocorre pela leitura. Ao ler, o clínico opera na borda entre
o gozo e a produção de um saber em relação ao qual o sujeito pode vir a se produzir.
No segundo capítulo, "O bebê e a letra", percorremos algumas das metáforas
escriturais do aparelho psíquico propostas por Freud, chegando ao conceito de letra como
litoral entre gozo e saber proposto por Lacan para situar as inscrições psíquicas.
Consideramos quais as consequências de tais elaborações para uma clínica que intervém
nos primórdios do psiquismo: dado que ao nascer não há um aparelho psíquico constituído,
é a mãe quem provisoriamente sustenta, a partir do crivo de seus próprios traços
inconscientes, a possibilidade de que o que acomete o organismo do bebê ganhe o estatuto
de uma representação. Seu próprio aparelho psíquico funciona aí de modo protético,
estabelecendo um funcionamento corporal subjetivado no organismo do bebê, instaurando
14
as inscrições fundadoras desse psiquismo. Tal transmissão da letra não ocorre pela via
positivada de um código, mas por uma série de efeitos enigmáticos no laço mãe-bebê que
implicam as duas caras da letra: uma que se volta ao gozo e outra à articulação
significante.
No terceiro capítulo, "Prosódia e enunciação na clínica com bebês", apontamos
como, na intervenção clínica, aquilo que se a ouvir não tem o seu sentido estabelecido
apenas pelo que é dito. A diferença entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação
estabelece a radical importância não do que a mãe diz, mas da forma pela qual se dirige
ao bebê, operando em sua economia de gozo e fazendo borda às suas funções corporais.
Voz e significante, objeto pulsional e linguagem, essas substâncias de diferente ordem
comparecem no ato da enunciação na medida em que a mãe, ao falar com o bebê, ao
endereçar-lhe palavras, olha-o, modula sua voz, produz uma alíngua
24
que subverte o
código da língua e a implica subjetivamente na relação com o bebê. O bebê, por sua vez, se
afetado pelo comparecimento do gozo materno no ato da enunciação o que é central
para a transmissão da letra, para o modo em que esta se engancha ao corpo parasitando-o
com a linguagem.
O quarto e quinto capítulo, "A maternidade e o gozo fálico" e "A maternidade além
do gozo fálico", abordam os diferentes modos de gozo e seus desdobramentos diante das
distintas funções psíquicas e sociais das mulheres, a fim de poder a articular como o gozo
materno está implicado na constituição psíquica do bebê. Trabalha-se com a tríade
passividade-masoquismo-feminilidade, estabelecida por Freud, em relação à maternidade,
considerando que a maternidade não necessariamente implica um gozo masoquista,
tampouco somente fálico. Ela implica um gozo com a passividade, pelo qual a mãe
identifica-se transitivamente ao gozo do bebê e pelo qual pode vir a dar lugar no laço com
24
Termo forjado por Lacan nos seminários 19 e 20 para apontar a diferença em relação ao lugar que a
linguagem tem no estruturalismo e na psicanálise, sendo que ao psicanalista importa o ponto em que a língua
se encontra com o gozo. Questão retomada no capítulo "Prosódia e enunciação na clínica com bebês".
15
este a atos de criação. Para tanto inicialmente aborda-se o conceito de gozo e a suas
diferentes modalidades.
Por fim, no capítulo "Jogos constituintes do sujeito", o brincar é situado como
fundamental para os primórdios da constituição psíquica. Se o Fort-Da é um marco em que
a criança produz, por sua conta, o germe inicial do brincar simbólico, os jogos constituintes
do sujeito são precursores do Fort-Da e podem ser produzidos se sustentados no laço
mãe-bebê. Eles implicam a criação da criança: frase que, por comportar o equívoco entre
criador e criatura, nos permite apresentar a dimensão transitivista em que se jogam tais
jogos constituintes, nos quais tanto a mãe quanto a criança transitam incessantemente pela
posição de objeto e sujeito, entre gozo e saber. Dado que é sobre tal princípio que se
alicerça esta tese, tal frase lhe dá o título.
Esses jogos são produzidos no laço mãe-bebê e é por meio deles que, desde os
primórdios, vai se inscrevendo o litoral entre gozo e saber para o bebê. Portanto, são
sintoma estruturante do sujeito na infância, propiciando a passagem pela qual o infante, de
ser criado (de ser objeto de um gozo), pode tornar-se autor de uma criação (sujeito de um
saber). Se na clínica com adultos comparecem as formações do inconsciente, na clínica
com bebês, por meio dos jogos constituintes do sujeito e na clínica com crianças, por
meio do brincar –, comparece o próprio inconsciente em formação. O brincar pode vir a
produzir respostas da criança que não se situem em uma via complementar do gozo do
Outro, mas que abram caminho a criações suplementares.
Convidamos o leitor a percorrer estas linhas como uma trilha ao longo da qual a
práxis clínica com bebês e crianças interroga a teoria psicanalítica quanto aos primórdios
das inscrições psíquicas. A articulação teórica resultante surge da busca de formalizar, de
transpor o vivido para o elaborado. Procuramos assim poder partilhar, tornar transmissível
esta práxis, prestando e dando conta das consequências clínicas de seus fundamentos.
16
I. LEITURA DE BEBÊS
A intervenção clínica com o dado a ver
Quando um bebê apresenta um sintoma que coloca em risco a sua constituição
psíquica, o sofrimento comparece em sua organização corporal e na realização de suas
produções. Trata-se, então, de um sintoma dado a ver.
O sintoma é dado a ver
25
não no sentido do que se quer mostrar, mas do que coloca
em cena a organização das funções corporais por meio do movimento, do tônus, da
postura, da gestualidade, do olhar, da atividade rítmica-temporal presente nas ações
realizadas ou fracassadas fazendo comparecer, manifestando, para além das intenções do
paciente, o percurso de seus circuitos pulsionais.
Na clínica com bebês não o sintoma comparece pela via do dado a ver, mas em
um momento da vida na qual o paciente, por sua condição de infans, não tem como, diante
disso, tomar a palavra. Tal especificidade, apresentada pela clínica com bebês e crianças
que não falam, exige ser levada em conta no modo de operarmos clinicamente com o
sujeito nos primórdios da constituição psíquica. Ela obriga a uma reflexão acerca da
extensão do método psicanalítico, na medida em que sua intervenção standard implica a
escuta da associação livre do paciente, convocada e posta em causa a partir do sintoma que
lhe produz sofrimento.
A inauguração da psicanálise consiste justamente em uma mudança de eixo na
intervenção terapêutica: passando da ordem do ver, do assistir o espetáculo das
apresentações de histéricas, consagrado por Charcot, à de escutar a fala dessas pacientes,
25
O termo dar a ver é inicialmente proposto pelo poeta Paul Eluard, contemporâneo dos pintores surrealistas.
É utilizado por Lacan em algumas passagens de seus seminários, em que considera o olhar e a pulsão
escópica, sendo também retomado por Jean Bergès para situar os sintomas psicomotores. Jacques Lacan
(1964). El seminario. Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, p. 83; Jean Bergès
(1988a). O corpo e o olhar do Outro, p. 51-65.
17
por considerar que tal fala está absolutamente atrelada ao padecimento que as acomete no
corpo. Freud nos mostra como, a partir da fala do paciente convocada por meio da
associação livre e das intervenções do analista em transferência, podem ser restabelecidos
os nexos simbólicos da produção do sintoma, produzindo deslizamentos de sua
significação que levam a mudanças ou remissões desses sintomas.
O sintoma é suposto pelo analista como um enigma em relação ao qual o paciente
deteria inconscientemente um saber, mas é preciso que ele tome a palavra diante desse
enigma para poder vir a situar-se como sujeito desse saber. Ao mesmo tempo, dado que tal
enigma toma a carne do paciente, faz-se decisivo que a fala dele seja endereçada ao
analista. Portanto, a intervenção não é relativa a uma lógica simbólica desencarnada cuja
chave caberia ao analista decifrar. Na cena clínica comparece a voz, o olhar, e esse
endereçamento na transferência é central para modificar as vicissitudes pulsionais
implicadas no sintoma. Corpo e linguagem estão atrelados na produção do sintoma, bem
como na intervenção psicanalítica ao convocar a fala do paciente.
Sabemos, no entanto, que a criança não circula na linguagem do mesmo modo que
um adulto. Freud apresenta tal evidência clínica afirmando que, para criança, o método da
associação livre resulta insuficiente
26
(...) não tem muita razão de ser.
27
Isto deu origem à
questão acerca dos princípios e métodos na psicanálise com crianças, entre as quais a
central proposição de Melanie Klein de que o brincar está para a psicanálise de crianças
assim como a associação livre está para a psicanálise de adultos.
28
Mas quando intervimos
na primeira infância tais questões apresentam-se de modo ainda mais radical: afinal, como
comparece o sujeito em um tempo no qual ainda não fala e ainda não sequer a
possibilidade do desdobramento do brincar como produção simbólica?
26
Sigmund Freud (1932). Obras Completas, traduzidas diretamente do alemão por Luis López Ballesteros,
Biblioteca Nueva, edição eletrônica.
27
Sigmund Freud (1932). Conferência 34: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, p. 181.
28
Melanie Klein (1926). Fundamentos psicológicos del análisis del niño, p. 27-28.
18
Justamente na primeira infância o sujeito comparece, se a ver, pela produção e
organização corporal. Seus circuitos pulsionais põem em cena, como uma incipiente
resposta, seu singular modo de engajamento ao Outro. Mas que o sintoma na primeira
infância compareça pela via do dado a ver nos reconduziria necessariamente ao campo da
observação na clínica com bebês?
I.1. O pedido de Freud: da escuta do infantil ao olhar que se volta para a infância
Uma breve incursão histórica mostra-nos que as primeiras aproximações da
psicanálise à primeira infância partem da proposição de produzir uma observação de bebês
e crianças. É Freud mesmo quem primeiramente encoraja e solicita a alunos e amigos que
façam e lhe enviem observações acerca da vida das crianças. É assim, inclusive, que o
pequeno Hans, caso fundador da psicanálise de crianças, chega até ele: inicialmente, por
meio dos relatos feitos por seu pai. Freud afirma:
Seguramente deve existir a possibilidade de observar em crianças,
em primeira mão e em todo o frescor da vida, os impulsos e
desejos sexuais que tão laboriosamente desenterramos nos adultos
dentre seus próprios escombros especialmente se também é
crença nossa que eles constituem a propriedade comum de todos os
homens, uma parte da constituição humana, apenas exagerada ou
distorcida no caso dos neuróticos. Tendo em vista essa finalidade,
venho por muitos anos encorajando meus alunos e meus amigos a
reunir observações da vida sexual das crianças cuja existência,
via de regra, tem sido argutamente desprezada ou deliberadamente
negada.
29
Surge, no meio psicanalítico, o intuito de procurar corroborar, com tais observações,
as elaborações teóricas sobre a constituição psíquica até então estabelecidas a partir das
recordações de pacientes adultos.
29
Sigmund Freud (1909b). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos, p. 16.
19
Naquele momento, a aproximação da psicanálise com infância era ainda muito mais
mítica do que factual, ou seja, ocorria muito mais pelo relato das lembranças infantis dos
adultos em análise do que pelo tratamento efetivo de crianças. Assim sendo, é
completamente lícita uma interrogação que vai se produzindo no cerne da psicanálise
acerca do comparecimento do infantil que se revela no adulto, por meio das formações do
inconsciente, e a similitude e diferença apresentadas por esse material com a criança que
ainda está na infância propriamente dita.
30
Freud atribuiu importância ao ato de observar as produções daqueles que ainda não
falam, apostando que assim seria possível corrigir uma série de pressupostos errôneos
sobre a infância, tal como o de desconsiderar a importância ou até mesmo de afirmar a
inexistência de sexualidade nos bebês e crianças. Mas, se por um lado faz tal aposta, por
outro ele se mostra bastante reticente no sentido de considerar que a observação de
crianças por si poderia levar a algum esclarecimento da vida psíquica na infância. Em
"Três ensaios sobre a teoria da sexualidade" diz isso com todas as letras ao afirmar que, se
os homens soubessem aprender com a observação direta de crianças, estes três ensaios
poderiam não ter sido escritos. Aponta então a necessidade de conjugarmos tais
observações ao método psicanalítico.
31
Mas, a partir do momento em que esse "voltar-se à infância" assume um viés
terapêutico, surgem as questões que o tratamento da criança, enquanto sujeito em
constituição, passa a despertar ao método psicanalítico. Pois, tomar a infância enquanto
material de observação e validação da teoria psicanalítica estabelecida a partir dos achados
do infantil no adulto não é equivalente a levar a cabo uma intervenção psicanalítica com a
criança propriamente dita. Tal é a encruzilhada clínico-teórica dos pioneiros da psicanálise
com crianças.
30
Trabalhamos esta questão da diferença entre a infância e o infantil no texto Enquanto o futuroo vem – a
psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês.
31
Sigmund Freud (1905a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p. 133.
20
Nessa direção, como aponta Anna Freud, as deduções provenientes da observação do
comportamento de crianças, se aplicadas diretamente à clínica, podem conduzir a
intervenções de psicanálise selvagem,
32
resultando inúteis desde o ponto de vista
terapêutico
33
para a intervenção na infância.
É preciso considerar o quanto, ao longo desses primeiros anos de prática clínica e
talvez até mesmo na atualidade , as questões levantadas pela clínica com crianças
parecem ter sido confinadas a uma espécie de debate à parte, como se elas não dissessem
respeito, de modo amplo, a encruzilhadas da psicanálise. Ainda hoje, o desconhecimento
de grande parte dos analistas acerca dos modos em que o sujeito comparece na infância ora
recai em um superficial princípio de similitude entre a clínica com crianças e com adultos
como se a estrutura psíquica estivesse desde sempre dada, inscrita –, ora achata qualquer
diferença apontada a esse respeito sobre um pressuposto desenvolvimentista. Tanto por
uma via quanto por outra incorre-se no engano de considerar que a estrutura psíquica
pairaria acima de uma diacronia, de uma passagem do tempo, necessária para que os
passos lógicos de sua constituição viessem a produzir seus efeitos de inscrição.
34
Que o
sujeito na infância, por estar em constituição, apresente especificidades, não implica que as
questões produzidas pelo reconhecimento, formalização e fundamentação dessas
diferenças não digam respeito à psicanálise de modo amplo.
As primeiras gerações de analistas precisaram dedicar importantes esforços para
produzir dispositivos pelos quais a criança pudesse vir a colocar questões à psicanálise.
Tanto no sentido de trazer à psicanálise importantes dados acerca do funcionamento
psíquico próprio da primeira infância,
35
quanto no sentido de produzir discussões sobre os
32
Anna Freud (1965). Normalidad y patologia en la niñez, p. 20.
33
Idem, p. 24.
34
Julieta Jerusalinsky. Enquanto o futuro o vem a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês, p.
258-296.
35
Tais como a relação com os ideais encarnados ainda nos pais ou a manifestação mais direta dos desejos em
sonhos ou falas, demonstrando um não funcionamento do recalque. Ver, a este respeito, Sigmund Freud
21
problemas de método da psicanálise standard e suas necessárias modificações ao tratar de
crianças em sofrimento.
No entanto, a proposta inicialmente feita por Freud fica longe de ser resolvida:
afinal, em que consistiria esta chamada conjugação da observação ao método
psicanalítico?
36
O modo como o dado a ver é situado na intervenção com bebês tem diferentes
consequências clínicas e epistemológicas. Supor que ele exigiria um procedimento de
observação guiado por princípios e métodos próprios (posteriormente conjugado com uma
teoria psicanalítica propriamente dita), não é o mesmo que considerar o dado a ver como
modo de comparecimento próprio do sujeito na primeira infância e que, portanto, exige
uma operação de leitura na clínica com bebês – tal como propomos considerar.
I.2. Os bebês, a psicanálise e a observação
Entre os dispositivos criados pela psicanálise que se volta à infância, encontramos o
método de observação de bebês criado por Esther Bick. Inicialmente ele é proposto, não
como uma intervenção clínica, mas como uma atividade integrante da formação dos
analistas, segundo a afirmação dessa autora: com o objetivo de procurar compreender o
comportamento não verbal da criança e suas brincadeiras, assim como o comportamento
da criança que não fala nem brinca.
37
Segundo seus praticantes argumentam, o mesmo
teria a finalidade de
(1932). Conferência 34: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, p. 181; Melanie Klein (1926).
Fundamentos psicológicos del análisis del niño, p. 35: procurei demonstrar (...) quais são aqueles
mecanismos psicológicos que operam na criança pequena, diferentes dos que analisamos nos adultos e, por
outra parte, o paralelo que existe entre os dois.
36
Tal como referido na nota 29 acima: Sigmund Freud (1905a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p.
133.
37
Idem, p. 97.
22
(...) permitir exercitar atitudes desejáveis para o trabalho
analítico, a saber: estar com o outro, escutá-lo, conter suas
próprias emoções sem atuá-las, observar e observar-se (...)
abstendo-se de críticas, julgamentos e conclusões apressadas (...),
com a vantagem de estar livre da função terapêutica.
38
Este método, que propõe "ver" de perto a experiência infantil,
39
consiste em
acompanhar as sequências de condutas interacionais observadas entre a mãe e a
criança.
40
O observador realiza visitas semanais à casa do bebê anotando com o maior
número de detalhes que for possível o que observar (...), procurando compreender os
aspectos inconscientes do comportamento e os padrões de comunicação, bem como os
sentimentos despertados durante a observação nele próprio. Esse registro escrito, feito
após a observação, é posteriormente levado à supervisão em grupo e correlacionado com
inferências teóricas.
41
A observação de bebês ganhou relevância e influenciou a formação de gerações de
analistas.
42
Até mesmo o "Estágio do espelho", de Jacques Lacan, em sua primeira versão,
parte desse tipo de observação, referindo os estudos de Charlotte Bühler e Elsa Kohler.
43
Mas, não por acaso, tal método surge em um contexto no qual está em jogo o debate
da psicanálise como ciência alinhada ou não alinhada aos princípios positivistas e,
portanto, colocam-se as questões acerca da neutralidade do cientista-analista e do
estabelecimento de binômios causa-efeito em relação aos fenômenos psíquicos. Diante de
tal debate, o método de Esther Bick, (...) ao dar ênfase à observação e à descrição
38
Marisa Pelella Mélega. A contribuição de Esther Bick à clínica psicanalítica, p. 70.
39
Idem, ibidem.
40
Idem, p.71.
41
Eneida Kompinsky. Observação de bebês: método e sentimentos do observador, p. 13.
42
Tal proposição, realizada em 1948 por Esther Bick (psicanalista discípula de Melanie Klein), inicialmente,
fez parte do curso de formação para psicoterapeutas da Clínica Tavistok e, em 1960, foi incorporada ao plano
de estudos da Sociedade Britânica de Psicanálise, assim como ao de várias outras sociedades vinculadas à
IPA. Posteriormente foram surgindo aplicações clínicas de tal método, baseadas no princípio de que o
observador produza um setting favorecedor da interação mãe-bebê. Esther Bick (1964). Notas sobre la
observación de lactantes en la enseñanza del psicoanálisis, Revista Psicoanálisis, p. 97-115.
43
Inclusive, isto deu a Lacan certo prestígio dentro da IPA, sendo posterior seu rompimento com essa
instituição, assim como a reformulação de tal texto de modo a situar nele o papel central da linguagem e do
grande Outro na constituição do eu. Jacques Lacan (1948). La agresividad en psicoanálisis; (1949). El estadio
del espejo como formador de la función del yo tal como se nos revela en la experiencia psicoanalítica.
23
cuidadosa dos fenômenos relacionais e ao incluir o observador no campo emocional em
estudo, teria, segundo os seus praticantes, produzido um deslocamento da psicanálise do
lugar de ciência explicativa (de causa-efeito) ao lugar de ciência descritiva, de
observação de fenômenos que vão emergindo.
44
Assim, o método da observação de bebês propõe estabelecer a "cientificidade da
psicanálise" por uma via descritiva dos fenômenos observados, indo ao encontro, a passos
largos, do princípio positivista que vigora na ciência moderna. Não é à toa que seus
praticantes apontam, como uma suposta vantagem da utilização desta linguagem descritiva
do funcionamento mental, que ela favoreça a comunicação com outras disciplinas das
ciências humanas por compartilhar de uma metodologia compatível.
45
Mas não seria sob o
custo de renunciar ao que há de mais revolucionário no método psicanalítico?
Os caminhos aqui se bifurcam e não é indiferente, nem clínica nem
epistemologicamente, percorrer um ou outro: em um dos caminhos, o método de
observação de bebês, apoiado em um modelo empírico-positivista de ciência, realiza uma
descrição tão detalhada e minuciosa do fenômeno quanto possível, apostando em que tal
descrição permita a mais estreita aproximação ao real do acontecimento. Por isso, é sobre
esse registro que posteriormente o observador aplica e desenvolve um saber, como
elucubração teórica; por outro, com fez Freud, – rompendo radicalmente com a tradicional
posição do investigador em relação ao saber temos o caminho inaugurado pelo método
psicanalítico ao considerar que o saber inconsciente não estaria determinado a priori, mas
constituído em transferência. Como aponta Costa, a particularidade da clínica psicanalítica
em relação ao saber é colocar em causa uma hiância esse saber inconsciente que não
estava antecipada no discurso.
46
44
Marisa Pelella Mélega. A contribuição de Esther Bick à clínica psicanalítica, p. 71.
45
Idem, ibidem.
46
Ana Maria Medeiros da Costa. Produções em psicanálise e seus impasses, p. 144.
24
Portanto, o saber que interessa para a clínica psicanalítica não é o construído, na
observação, "sobre" o paciente, mas aquele que pode se produzir em transferência,
permitindo ao paciente implicar-se, como sujeito, diante de uma formação do inconsciente
que, de início, lhe produzia estranhamento.
Grosso modo, a observação não teria por que ser antinômica de uma operação de
leitura na clínica. Poderia ser objetado que o registro dos acontecimentos sempre comporta
em si uma dada concepção na aproximação do fenômeno e, portanto, uma leitura. Mas essa
questão se francamente ameaçada quando tal prática se fundamenta em um positivismo
empirista um tanto ingênuo, ao atribuir à descrição do fenômeno uma suposta equivalência
à apreensão do real, como tantas vezes se supõe na observação.
De modo estrito, quando falamos de leitura, referimo-nos a uma operação clínica
pela qual seja possível, a partir da transferência, situar de que modo um bebê se implica
subjetivamente em relação à letra que nele precipitou seus efeitos de inscrição a partir do
laço com o Outro. Mas, principalmente, visamos, por meio de tal leitura, que a letra possa
ser posta a operar de modo constituinte para o bebê. Se ambos implicam o olhar, os
caminhos da observação e da leitura dividem-se irremediavelmente quando o saber que se
pretende construir pela observação não interessa enquanto produção clínica que
possibilite a um paciente a passagem do dado a ver para a produção do sujeito.
A metodologia da observação poderia levar a supor que, se nas origens do sujeito
encontramos o infans aquele que não fala , necessariamente sua pesquisa e clínica
implicariam produzir um deslocamento na direção oposta à proposta nas origens da
psicanálise: dessa vez, em lugar de convocar a fala do paciente, retornar-se-ia novamente
para o âmbito de sua observação.
A esse respeito cabe considerar como, atualmente, as sessões filmadas e suas
sucessivas revisões poderiam produzir uma prática que giraria em torno de uma espécie de
25
olhar a posteriori.
47
Nesse sentido, Bergés e Balbo levantam o risco de que o fator
escópico venha a saturar a pesquisa, conferindo ao imaginário um tal estatuto em que se
acaba por atribuir-lhe o lugar do real e, muitas vezes, por fazer economia do simbólico.
48
Filmar sessões não é bom ou ruim em si mesmo, pode inclusive ser valioso
complemento em termos de estudo e de registro de evolução clínica, uma vez que as
manifestações do bebê, em sua produção corporal, costumam ser bastante sutis e exigem
do clínico uma importante e difícil diferenciação clínica disto que é dado a ver no corpo do
bebê.
49
Mas, clinicamente, de nada nos servem pilhas de filmes se isso que é dado a ver e
capturado na película não opera no enlace entre o corpo do bebê e a rede significante
parental que sustenta sua existência.
50
Tal leitura só pode se produzir em transferência com
os pais e com o bebê, caso contrário, é clinicamente inoperante.
Consideramos que o dado a ver e o dado a ouvir, ou seja, o gesto ou a entoação da
voz, cobram alguma significação possível, podem ser lidos na cena clínica se
consideradas na rede de saber própria do humano: a linguagem; além dela, na articulação
que a língua produz ao tecer linguagem e cultura; além disso, no recorte produzido na
língua pela transmissão do discurso parental; e, ainda, nos particularismos que o agente da
função materna introduz no laço com o bebê ao produzir uma alíngua.
51
É a esta rede que a
produção do bebê se engaja e, portanto, somente a partir dela pode adquirir seu valor.
A mãe é quem inicialmente produz uma tradução de ação por linguagem e de
47
Jean Bergès e Gabriel Balbo (1996). A criança e a psicanálise, p. 25.
48
Idem ibidem.
49
A sutileza de tal diferenciação aponta para a necessidade de a clínica com bebês ser exercida em um marco
de equipe interdisciplinar. Somente deste modo o dado a ver no corpo pode ser considerado tanto no sentido
de signos relativos à legalidade neuroanatômica (seja ela maturacional ou manifestação de uma patologia
orgânica que impõe um limite real à produção do bebê), quanto no sentido de uma leitura da incidência
fantasmática parental sobre o funcionamento corporal do bebê. A este respeito ver: Julieta Jerusalinsky.
Clínica interdisciplinar com bebês: qual a importância clínica de considerar a especificidade desse campo, p.
30-50.
50
Poderíamos aqui inclusive recordar a grafia ex-sistir, utilizada por Lacan em seus seminários para apontar
como o sujeito está descentrado, desencontrado, pelo comparecimento do seu gozo, de seu pensamento
racional, colocando em discussão o cogito cartesiano.
51
Ver, a este respeito, o capítulo "Prosódia e enunciação na clínica com bebês".
26
linguagem por ação
52
da produção desse bebê. Tal tradução opera sobre o fundo de um
enigma intraduzível que diz respeito ao desejo que perpassa o laço dos pais com o bebê.
O clínico situa o dado a ver do sintoma como um enigma que cifra no corpo do bebê
os efeitos de inscrição do Outro. Ao apostar nos efeitos desse saber inconsciente,
possibilita que o bebê possa advir como sujeito na cena e produzir, com e a partir de tais
inscrições, sua singular resposta.
Os bebês estão para recordar aos psicanalistas que a dimensão significante não se
reduz apenas à palavra falada como certas vertentes da clínica psicanalítica parecem
sublinhar, diminuindo a importância do visto no gesto, na postura e no nus corporal ou
do ouvido na entoação, esquecendo que as mesmas são também produções pelas quais as
formações do inconsciente comparecem no ato da enunciação.
É por isso que a interpretação nada opera se reduzida a jogos de palavras que não
perpassam a organização pulsional do paciente. As intervenções clínicas efetivas, mesmo
ao partir da palavra, afetam o corpo como golpe, sensação de queda, palpitação, perda de
fôlego, entre tantas outras sensações descritas por pacientes adultos que nos demonstram o
quanto a economia de gozo se viu ali implicada. É também por isso que o dado a ver no
corpo não tem como estar em uma espécie de dimensão pré-linguística – afinal, de onde os
pais interpretam a produção do bebê, senão desde a rede simbólica, desde o saber que se
faz possível pela linguagem? E desde onde, senão a partir das inscrições produzidas nos
cuidados primordiais, é que se estabelece um estilo no funcionamento das funções
corporais do bebê?
A clínica com bebês opera justamente na articulação do corpo à linguagem, do gozo
ao saber. A letra, enquanto inscrição psíquica, que se precipita no sintoma implica, por um
lado, o sentido a que se tem acesso pelo jogo significante e, por outro, o sem-sentido do
52
Alfredo Jerusalinsky. Psicanálise do autismo, p. 39.
27
gozo, e é nessa borda entre gozo e saber que interessa para a intervenção do clínico. Daí a
importância de não dissociar o dado a ver no corpo do bebê do discurso parental. Ora por
não tomar a produção corporal em sua dimensão significante, reduzindo suas
manifestações a puros signos patológicos dos sistemas nosográficos; ora por produzir uma
equivocada superposição, em que a condição de enigmática do dado a ver no corpo do
bebê é varrida de cena, ao aplicar-se rapidamente sobre ela uma explicação que fixa e
achata compreensivamente seu sentido ao do discurso parental zona em que muitos
psicanalistas parecem mover-se com mais conforto, à revelia do que é próprio do
comparecimento do sujeito na primeira infância. Tanto por um caminho quanto por outro
se impossibilita que o dado a ver no corpo do bebê, ao ser tomado como a manifestação
enigmática de um sujeito em constituição, possa advir como a produção de um saber que o
constitua subjetivamente.
I.3. Da observação proposta por Freud ao tempo de ver
Poderíamos considerar que, com essa chamada "observação", Freud tenha procurado
localizar no campo da intervenção com bebês e crianças um correlato da "atenção
flutuante" própria da escuta de adultos, aqui colocada em relação ao dado a ver. Teríamos
assim, na clínica com bebês, a importância de uma observação não no sentido empírico-
positivista, mas como o estabelecimento de um tempo de ver
53
diante da manifestação
corporal do bebê. Ali o clínico, de modo semelhante ao da escuta analítica, ao não se fixar
53
Jacques Lacan (1945). El tiempo gico y el aserto de certidumbre antecipada, p. 187-203. Neste texto
Lacan propõe, a partir de um sofisma no qual está em jogo o que se e o que não se vê, o estabelecimento
de três tempos lógicos: tempo de ver, tempo de compreender e tempo de concluir. No tempo de ver está em
jogo a provisória suspensão da significação que também opera quando se escuta um paciente.
28
em nada em particular, ao manter uma atenção uniformemente flutuante
54
e não
intervencionista, produz uma abertura que dá lugar ao comparecimento do enigma
55
, tempo
no qual a significação em jogo, do tempo de compreender e do tempo de concluir, ainda
não está decidida, ainda não precipitou.
Sem irmos muito mais longe, consideramos que é algo desta ordem que Freud faz em
relação ao menino de um ano e meio, seu neto, que brinca com o carretel. É por tomar tal
produção como um enigma produzido em rede com o discurso parental e com o modo pelo
qual o mesmo se coloca em ato nos cuidados dirigidos ao bebê que Freud o jogo do
Fort-Da como uma produção constituinte para esse menino e para o sujeito na infância.
Foi preciso certo tempo, sublinha Freud, para que pudesse chegar a descobrir o significado
da enigmática atividade que ele constantemente repetia
56
tempo de ver, tempo de
atenção flutuante, em que o sentido do dado a ver ainda permanece em suspenso, pois não
é um puro comportamento observável, é o enigma de um sujeito.
Por sua vez, Winnicott, no texto "A observação de crianças diante de uma situação
fixa", fala-nos de como, por mais de vinte anos, ele observou os diferentes modos de bebês
(de cinco a treze meses de idade) se portarem diante de uma situação por ele proposta
durante a consulta pediátrica de rotina: a de deixar à mesa uma espátula ao alcance da mão
do bebê enquanto este permanece, junto à mesa, no colo, sobre os joelhos da mãe.
57
Dentro
desse marco, relata a sucessão de três momentos esperados quando as coisas vão bem com
54
Sigmund Freud (1912c). Consejos al médico sobre el tratamiento psicoanalítico, p. 107-119.
55
Neste sentido é interessante considerar que uma das primeiras referências à atenção flutuante é feita por
Freud em relação ao caso do pequeno Hans, utilizando-se dos seguintes termos: Não faremos nossas nem a
compreensível preocupação do pai nem suas primeiras tentativas de explicação, senão que examinaremos,
para começar, o material comunicado. Nossa tarefa não consiste em "compreender" em seguida um caso
clínico; o teremos conseguido após ter recebido bastantes impressões dele. Provisoriamente deixaremos
em suspenso [in Schwebe] nosso julgamento e prestaremos atenção parelha [gleich] a tudo o que há para
observar. Sigmund Freud (1909c). Análisis de la fobia de un niño de cinco años, tradução livre. Vale
destacar aqui a utilização do termo “observar” no caso do Pequeno Hans, justamente um caso de uma
criança, em comparação ao termo “escutar” utilizado nos escritos técnicos em que Freud faz referência
fundamentalmente à análise de adultos.
56
Sigmund Freud (1920). Além do princípio do prazer, p. 25.
57
Donald Winnicott (1941). La observación de niños en una situación fija, p. 79-102.
29
o bebê: um primeiro momento ou momento de hesitação em que o bebê dirige a
atenção e a mão à espátula, mas hesita em pegá-la, passando a olhar a mãe e/ou pediatra,
fazendo movimentos de desistência e até mesmo de se esconder, até retomar gradualmente
o interesse pela espátula; um segundo momento – caracterizado pela aceitação, por parte da
criança, pelo seu desejo em relação à espátula em que é possível perceber novamente o
interesse da criança em relação ao objeto (que comparece por uma mudança na boca do
bebê túrgida e salivante) até que o leva à boca mordendo-o e chupando-o; um terceiro
momento em que o bebê brinca com o objeto, sacudindo-o, encaixando-o ou batendo-o em
outro, dirigindo-o à mãe e/ou pediatra (convocando-os nessa brincadeira, podendo fazer
"como se" estivesse dando-lhes de comer) e, finalmente, brincando de deixá-lo cair.
Winnicott mostra como a produção dos bebês, diante de uma manobra de tal
simplicidade, pode propiciar uma série de chaves
58
a respeito da situação psíquica dos
mesmos, podendo também ser utilizada para produzir efeitos terapêuticos, mas adverte-nos
e a questão insiste aqui que, tanto para um quanto para outro objetivo, o procedimento
apropriado é o de valer-se tanto da observação quanto da análise e deixar que cada um
desses métodos ajude o outro.
59
No entanto, para avançar em tal questão, é fundamental
esclarecer que ele não se detém na manobra, pois toma o que o bebê dá a ver ali e o põe a
operar clinicamente em relação a uma complexa rede:
Do lado da mãe, aponta-nos a importância de considerar não só o que ela diz sobre
o bebê, mas a reação dela durante a manobra, no sentido de dar tempo e lugar à produção
do bebê ou no sentido de suprimir o tempo e o lugar em que essa produção poderia advir.
(fazendo o gesto pelo bebê ou inibindo o gesto dele). Ele considera que tal modo de
proceder da mãe diante de uma situação tão recortada guarda profunda similitude com o
modo de esta proceder com o bebê em seus cuidados cotidianos.
58
Idem, p. 95.
59
Idem, p. 92.
30
Do lado do bebê, Winnicott propõe um cruzamento entre o modo deste comparecer
em tal cena com o modo de ele comumente portar-se não em relação aos objetos, mas
no estabelecimento de laços com os outros – familiares e estranhos.
Levanta ainda a importância de considerar a produção do bebê diante de tal
manobra em relação aos sintomas por este apresentados sintomas de comparecimento
somático, tais como asma, diarréia ou dificuldades de deglutição, vômito ou refluxo.
Consideramos que tanto Freud quanto Winnicott trazem, em tais situações,
operações centrais da clínica com a primeira infância. Estabelecem a importância do olhar
do clínico diante do que o bebê a ver em sua produção, instaurando inicialmente este
dado a ver como enigma. Somente em outro momento, e como consequência de uma
construção clínica, procedem com o que consideramos uma operação de leitura – dentro da
qual é que o dado a ver pelo bebê opera como "chave" (tal como proposto por Winnicott),
ocupa um lugar central enquanto uma resposta que adquire sua razão de ser no contexto
simbólico parental. Ou seja, é a partir do que o bebê a ver e que o clínico recolhe
enquanto leitura do modo do bebê posicionar-se diante do seu Outro, que todos os
discursos que o acompanham ganharão seu relevo clínico.
Decanta-se a importância de que o clínico se detenha diante disso que o bebê dá a ver
em sua produção, tomando-a, mesmo que não seja em palavras, como uma resposta
enigmática do bebê ao modo como é sustentado no laço com o Outro. Ao sustentar esse
tempo de ver dá lugar, na cena clínica, a que o bebê possa comparecer como sujeito.
31
I.4. A leitura como modo de intervenção na clínica com bebês
Certamente o olhar e o dado a ver estão profundamente implicados na clínica com
bebês dando lugar, não necessariamente a uma observação, mas a uma operação clínica de
leitura. Para avançar em tal fundamentação, partiremos da analogia de tal intervenção
clínica com o ato de leitura propriamente dito.
Bergès, acerca do acesso à lecto-escritura,
60
situa que para ler é preciso sim ver a
letra, mas também é preciso deixá-la cair. É preciso deixar a letra cair do seu registro real
para que seja possível prosseguir a leitura, dando lugar ao enigma simbólico posto em
causa e que produz uma articulação letra a letra.
Por outro lado, se a letra fascina, se o espetáculo por ela apresentado captura o olhar
daquele que a observa, também torna-se impossível ler. Exemplo disso são as iluminuras
utilizadas no início dos textos medievais. Elas consistem em letras tão excessivamente
ornamentadas que se tornam ilegíveis. A figura do bicho, da planta ou personagem
fantástico, ao imaginarizar a letra, captura o olhar e silencia o leitor. Esse é o objetivo das
iluminuras: produzir um silêncio que precede a leitura do texto. Mas também é algo desta
fascinação com a letra imaginarizada que caracteriza a dificuldade de leitura, pois, quanto
mais uma letra está do lado do imaginário, menos legível ela é.
61
Ora, é porque a letra cai em seu registro real, é porque não captura em seu registro
imaginário na medida em que não contém, nela mesma, como a iluminura, a imagem do
que significa que ela remete a outra letra e assim permite que opere o enigma simbólico
que dá lugar à articulação de uma significação que não se encerra na letra por letra, mas se
produz como um après-coup decantado do contexto.
De modo análogo, podemos considerar que o sintoma manifesto no bebê, o dado a
60
Jean Bergès. A instância da letra na aprendizagem, p. 6-10.
61
Idem.
32
ver enquanto realização ou fracasso da produção que comparece em seu corpo, ao mesmo
tempo em que se apresenta, faz comparecer um sentido enigmático. Nesse sentido, é
interessante fazer notar que o termo "manifesto" também guarda uma dupla acepção, como
adjetivo ou como substantivo.
Tomar a condição de "manifesto" do sintoma implica considerar que ele se coloca
em posição privilegiada para ser visto. É impossível ocultar ou dissimular o sintoma
quando ele toma o corpo. O gozo se revela, comparece, para além das intenções do
paciente. Isto é próprio do "manifesto", enquanto adjetivo.
Mas também esse "manifesto" implica, o quanto o corpo do bebê, que encarna um
sintoma, apresenta-se ele mesmo como uma carta, como uma declaração. Temos aí a
acepção de ''manifesto'' enquanto substantivo, referido a uma declaração escrita, por
exemplo, uma declaração diplomática, dirigida de um Estado a outro. Mas o que declara o
bebê com o sintoma que se apresenta em seu corpo?
Temos um manifesto sim, mas declarado de modo cifrado. O sintoma comparece
sim, é dado a ver, mas de modo enigmático. Quem é o destinatário de tal mensagem? Qual
é o enigma a partir do qual o bebê se implica enquanto sujeito, encarnando-o em seu
corpo?
Este paciente que não fala, se não tolera bem os métodos da associação livre, é
porque ainda carece do alinhavo simbólico que permite tecer o trabalho do sonho e
reconstituir seu percurso no trabalho de análise, mas certamente o sintoma que comparece
em seu corpo é uma resposta que se tece em um contexto. O contexto é aqui dado pela rede
simbólica na qual está sustentado.
O bebê, com sua organização e produção corporal dada a ver, oferece o enigmático
manifesto do modo em que o desejo parental fez carne em seu corpo. O manifesto em seu
33
corpo se estabelece como um texto cifrado de sua relação com o Outro.
62
Pois afinal o
bebê é estrangeiro, na medida em que causa estranhamento aos pais com seus fracassos e
produções, mas é profundamente familiar, dado que é da rede significante parental que se
recortam inconscientemente os traços a partir dos quais o bebê estabelece sua filiação.
Uma criança suporta em seu brincar o dizer do que ainda não pode falar. Assim como o
bebê suporta na psicossomática e em sua implicação corporal o traço significante que o
captura no dizer do Outro para além de sua insuficiência verbal.
63
Por isso, é crucial na intervenção clínica deixar aberta a brecha entre o bebê do
discurso parental e o bebê que ali comparece com sua produção, pois nem sempre entre
um e outro uma relação de saturação. O bebê, ainda que seja com o seu corpo, produz uma
resposta na qual se engaja, na qual se compromete como sujeito nos primórdios de sua
subjetivação, caso contrário seria uma mera vítima passiva do gozo parental.
I .5. De um manifesto que circula pela não correspondência entre corpo e sujeito
A não correspondência entre corpo e sujeito não tem como ser esquivada na clínica
com a primeira infância, tendo consequências na direção do tratamento. Intervir com a
constituição do bebê exige levar em conta, pelo menos, quatro aspectos distintos que
perpassam a intervenção: a estrutura psíquica de uma mulher que se torna mãe; o lugar que
o bebê ocupa no discurso materno (e ainda, parental, dado que a fala dos pais não é
idêntica); como a mãe coloca em ato seu discurso nos cuidados que dirige ao bebê; e o que
dessa rede se precipita, se inscreve no bebê, dando lugar, por meio de sua produção
corporal, a incipientes respostas nos primórdios de sua subjetivação.
62
Ângela Vorcaro. .A criança na clínica psicanalítica, p. 13.
63
Alfredo Jerusalinsky (1988). Psicanálise e desenvolvimento infantil, p. 49.
34
Mesmo que todos esses aspectos estejam profundamente interligados, a sua
justaposição indiferenciada, tomar um pelo outro, pode causar sérios problemas na direção
da cura.
uma profunda diferença quando um sofrimento se produz para a mãe, para o pai
ou para ambos a partir do que para eles se configura como o bebê fantasmático, ou quando
se configura um efetivo obstáculo na constituição psíquica e nas aquisições instrumentais
que tomam o funcionamento corporal do bebê. Enquanto no primeiro caso a direção da
cura implica fundamentalmente uma escuta dos pais, no segundo é preciso que, além disso,
o bebê seja tomado em tratamento, uma vez que o sofrimento, o pathos, já lhe diz
respeito,
64
pois precipitou em seu corpo.
A escuta dos pais é imprescindível, mas tal clínica situa a especificidade de seu
marco para além dessa escuta dos pais, na leitura e intervenção com as marcas que se
precipitam organizando um estilo no funcionamento corporal do bebê.
Intervir clinicamente na primeira infância deixa em relevo a não correspondência
entre corpo e sujeito, dado que é da boca de outros que teremos de escutar os significantes
centrais para a constituição do bebê; é em rede com a sustentação de braços alheios que
precisaremos ler sua resposta tônico-postural; é em série com a entoação de voz de sua
mãe que precisaremos ler sua possibilidade de modulação emotiva; é em relação à
sustentação temporo-espacial feita pelo Outro encarnado (pela surpresa e antecipação
diante de sua produção por parte daqueles que dele cuidam) que precisaremos ler sua
possibilidade de produzir ou inibir a ação. É em relação ao discurso posto em ato nos
cuidados que lhe são dirigidos que se organizam as suas funções corporais, que se
estabelecem seus circuitos pulsionais.
64
Julieta Jerusalinsky. Enquanto o futuro o vem a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês, p.
174-193.
35
A clínica com bebês torna presente o quanto o Eu é uma instância que precisa ser
constituída e que, antes de mais nada, implica um investimento em que o corpo é tomado
como objeto
65
isso confere toda a importância à produção de um tempo de ver diante das
manifestações corporais do bebê, considerando tais produções como o comparecimento do
sujeito. Também torna presente o quanto este primeiro Eu-corporal não é imanente, mas se
constitui pelo Outro.
66
Assim, a produção da organização corporal do bebê configura-se como um manifesto
de sua constituição como sujeito manifesto que a ver de modo cifrado seu
engajamento singular diante do desejo inconsciente parental que toma carne em seu corpo.
É, portanto, um manifesto cifrado que se endereça ao Outro.
67
Mas é importante fazer notar que o inconsciente do bebê não está dado. Ele não é
simplesmente transmitido por herança filogenética. Ele se inscreve, se produz no laço com
o Outro, na medida em que o bebê é suposto tributário de um saber sobre o desejo materno
que a própria mãe ignora, mas que o bebê encarna com seu corpo (desejo de falo). É daí
que o dado a ver no corpo do bebê assume a dimensão de uma formação do inconsciente:
com e no laço com a mãe.
Percebe-se como, mesmo na primeira infância, mesmo com bebês em todo seu
frescor de vida tomando os termos de Freud , o clínico lida com hieróglifos, ou seja,
com os efeitos do recalcado, com uma língua perdida, com traços que se precipitam e
manifestam suas inscrições de modo enigmático no dado a ver no corpo. Qual é o lugar
do clínico?
65
Sigmund Freud (1914b). Introducción del narcisismo, p. 79.
66
Jacques Lacan (1949). El estadio del espejo como formador de la función del yo tal como se nos revela en
la experiencia psicoanalítica, p. 86-93.
67
Lacan aponta esta mesma questão do dar a ver quando afirma: o olhar opera uma espécie de
descendimento do desejo (...) no qual o sujeito não está todo, não está completamente, é dirigido por
controle remoto. Modificando a fórmula que dou do desejo enquanto
inconsciente o desejo do homem é o
desejo do Outro direi que se trata de uma espécie de desejo ao Outro, em cujo extremo está o dar-a-ver.
Jacques Lacan (1964). El seminario. Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, p. 121-
122, tradução livre.
36
O clínico é convocado no laço pais-bebê, na medida em que o dado a ver no corpo
produz uma impossibilidade de deslizamento de significações; ora quando o dado a ver no
corpo do bebê impede, do lado dos pais, o estabelecimento de novas representações na
antecipação simbólica e funcional que produzem nos cuidados dirigidos ao bebê, estando
o sintoma situado no exercício das funções parentais; ora quando tal impossibilidade de
deslizamento efetivamente recai no corpo do bebê, produzindo sintomas que fazem
obstáculo à sua constituição.
Em ambos os casos a manifestação corporal do bebê irrompe a cena, como a letra
real que salta do papel ou a iluminura que, em seu fascínio ao olhar, impede o
deslizamento significante no prosseguimento da leitura. O bebê, com seu sintoma, está à
espera de encontrar um leitor,
68
aponta Bernardino, produzindo uma analogia entre o dado
a ver pelo bebê e uma carta, retomando o seminário da carta roubada, de Lacan.
Em tal seminário, Lacan se vale da polissemia do termo lettre que, em francês, pode
significar tanto letra quanto carta, para apontar os efeitos de determinação significante.
69
Para tanto, toma o conto de Edgar Alan Poe sobre uma carta roubada que, para ser oculta,
permanece no lugar mais visível (tal como o dado a ver no corpo do bebê, podemos dizer
aqui acerca do que nos interessa). Apesar de ninguém saber seu conteúdo (do mesmo modo
em que o sintoma do bebê se manifesta de modo enigmático), essa carta determina o
movimento de todos os personagens. E, apesar de permanecer errante ao longo de todo o
conto, ela tem um destinatário (assim como a produção corporal do bebê não se estabelece
de modo autônomo, mas por um efeito do laço com o Outro encarnado).
Mas como considerar a operação clínica de leitura diante do dado a ver da produção
do bebê?
A operação de leitura clínica à qual o clínico lugar mais do que um fechamento
68
Leda Bernardino. O bebê e sua carta roubada, p. 201.
69
Jacques Lacan (1956). El seminario sobre la carta robada, p. 5-55.
37
de compreensão e saber sobre uma escritura cujo sentido estaria dado, fechando
antecipadamente em uma determinação significante um destino para o bebê implica uma
possibilidade para o bebê e para seus pais deslizarem de modo significante a partir dos
efeitos precipitados das inscrições constituintes, em vez de ficarem capturados no fascínio
do estranhamento que um certo sintoma dado a ver pelo bebê produz.
Ainda que as inscrições constituintes sejam efeito de uma estrutura que as antecede,
elas não têm seu sentido já dado e previamente fechado. Diante da condição enigmática do
dado a ver, a leitura, como operação clínica, possibilita que o sujeito possa advir,
produzindo, a partir de tais inscrições, sua singular resposta.
Portanto, se as coisas correrem relativamente bem, quando a pequena criança
começar a falar ela mesma irá se ocupar de dirigir aos pais algumas falas que produzirão
neles efeitos interpretativos. Os pais se perguntarão: como a criança sabe disso? E ela de
fato sabe. Não que tais produções ocorram, de início, de modo proposital. Porém, na
medida em que, ao longo da primeira infância, foi ao inconsciente parental que
responderam com sua produção corporal, então será ao inconsciente dos pais que elas
falarão. Falarão de fato apenas se tiverem sido boas leitoras das inscrições primordiais e se
as produções que deram a ver em seu corpo, em um tempo no qual ainda não falavam,
tiverem sido acolhidas como enigmas e respostas pelos pais e, quando for o caso, pelo
clínico.
Trazemos, a seguir, alguns recortes de casos clínicos que deram origem à reflexão
sobre o dado a ver no corpo e sobre a operação de leitura.
38
I .6. Cu-co! Cadê Santiago? – Recorte clínico I
Santiago chega para tratamento com oito meses e com o diagnóstico de síndrome de
West quadro caracterizado por convulsões de difícil controle.
70
Em uma sessão, pode
chegar a ter dez convulsões e, entre elas, ficar olhando fixamente para a lâmpada. De fato,
apresenta um grave problema orgânico com risco de sequelas lesionais que as repetidas
convulsões podem ir causando. Mas, além do quadro orgânico, esse olhar fixo dirigido à
lâmpada nos o testemunho de como Santiago tem se constituído psiquicamente a partir
das primeiras inscrições que nele se operaram, e que situam seu percurso pulsional em uma
esquiva do laço erógeno com o Outro.
A situação é tal que, a partir de uma interconsulta com o neurologista, apresenta-se a
seguinte questão: o gesto de Santiago de levar a mão esquerda sobre o olho direito, que
precede a convulsão, seria pela sensação física despertada no início da convulsão (no caso,
o foco irritativo estaria vinculado ao nervo ótico) ou Santiago, por sua evitação em relação
aos outros, ao pressionar o olho, poderia autoinduzir a convulsão?
Santiago convulsiona ou olha a lâmpada. Cada vez que convulsiona, sua mãe afirma
sobressaltada: "Aí está ela! está a convulsão!". Diante desse real que emerge corta-se
qualquer possibilidade de extensão de uma mínima série significante. Qualquer conversa
com a mãe ou qualquer tentativa de sustentação de uma cena com Santiago, é assim
interrompida. Mas o que irrompe ali?
Em certa sessão a mãe de Santiago consegue pôr em palavras algo da sua própria
história que a atinge no laço com o filho: sua irmã, ainda criança, recebeu o diagnóstico de
esquizofrenia, sofrendo ao longo da vida diversas crises e internações. "Sempre me
perguntei: por que foi com ela e não comigo? Por que eu havia tido a sorte? Agora, com
70
Tal caso, do qual agora trazemos um pequeno fragmento, foi publicado, de modo mais extenso, em Julieta
Jerusalinsky. Crônica de um bebê com morte anunciada, p. 169-178.
39
Santiago, chegou a minha vez."
Na convulsão, além da irrupção do real orgânico, o que se presentifica
fantasmaticamente para a mãe é ela: a irmã materna e sua esquizofrenia ("Olha ela aí!"),
fazendo-lhe, inconscientemente, pagar a dívida da geração anterior com a doença de
Santiago.
Em certa sessão, diante da produção repetitiva e estereotipada, me ocorre uma
brincadeira: cada vez que Santiago vai entrar na convulsão, e durante a mesma, lhe digo
"Cu-co! Cadê o Santiago?". E, quando sai da convulsão, o saúdo com um "Aqui está!".
71
Tais enunciações são acompanhadas por buscar seu olhar e pela entonação de voz própria
dessa brincadeira.
Santiago, a partir de tal proposta, passa, pouco a pouco, a buscar meu olhar e a sair
da convulsão nessa busca. Por momentos, o levar a mão até o olho deixa de ser seguido
da convulsão e passa a ser um gesto um gesto de ocultação acompanhado pelo meu
enunciado de "Cadê Santiago?" – que se suspende antes de produzir a ação de convulsão.
Ao longo da brincadeira, seus gritos, antes sem modulação emotiva, começam a se
diferenciar em gorjeios prazerosos e choros de queixa. Onde antes era o real orgânico que
irrompia, passa a operar para Santiago uma primeira série que marca a alternância
simbólica entre ausência e presença. Entre o "cu-co" e o "aqui está”, Santiago pode passar
a se sustentar, se atrelar subjetivamente ao simbólico que o Outro introduz e que começa a
fazer série de referência para ele. Por isso seu olhar já não retorna à lâmpada, ao vazio, mas
se enlaça ao circuito de desejo e demanda de um Outro que fisgou seu circuito pulsional.
72
71
Tal caso clínico foi atendido em espanhol, sendo essa a oposição significante correspondente à brincadeira
que, em português, costuma ser nomeada como "Cadê? achou!". Em espanhol o cu-co faz referência ao
passarinho que entra e sai do relógio marcando a hora.
72
Percebe-se como, para que uma pequena criança possa chegar a fazer o jogo do Fort-Da, é preciso que
primeiro o Outro tenha sustentado a alternância simbólica presença-ausência. Isto se faz evidente na
brincadeira do cuco, na qual, ainda que seja o bebê quem tape e destape o rosto, é o Outro encarnado quem
primeiro enuncia, quem primeiro sustenta a oposição significante na qual o bebê, com sua produção, vem se
engajar. Questão desenvolvida no capítulo "Jogos constituintes do sujeito".
40
A mãe registra o acontecido, o sanciona como uma realização, mas fala do temor que
tal realização lhe desperta ao apostar na convocatória de Santiago. "Às vezes prefiro deixá-
lo sozinho no quarto, deitado sobre a cama com as luzes apagadas, sem que nada o
perturbe", diz a mãe, angustiada. Desde a leitura materna, qualquer movimento ou
qualquer oferta que produza desequilíbrio para Santiago arma para ela signo com a
convulsão e, por conseguinte, com a morte. A isto opõe uma situação de extrema
tranquilidade, de quase homeostase, sem luz, sem som, sem movimento, em um mundo no
qual Santiago ficaria salvaguardado de quaisquer inscrições do Outro que viessem
introduzir diferenças, desequilíbrios, quebras de homeostase. Mas, desde esta escolha, o
mortificante também comparece. E ainda que a mãe perceba que esta situação, por ela
sancionada como de "tranquilidade", não diminui o número de convulsões, isto é o que
supõe poder oferecer de melhor a seu filho.
Intervenho, então, operando o reconhecimento dessa mãe em sua tentativa de "evitar
qualquer sofrimento ao filho”, mas lhe digo que também é preciso reconhecer que "o pior
que pode acontecer na vida de alguém é que nada lhe aconteça". Tal intervenção, a
posteriori, revela-se eficaz na quebra entre o signo movimento=convulsão=morte que se
impõe desde o discurso materno. Em lugar do signo, o gesto de levar a mão ao olho se
estabelece enquanto significante que arma uma série de oposição presença-ausência no
jogo.
Santiago adquire a postura sentada (trípode), passa a pegar meu rosto, o rosto
materno, brinquedos, entre os quais a mãe reconhece quais são os seus preferidos.
Justamente em uma sessão em que o pai comparece, Santiago leva, pela primeira vez, um
tombo, ao procurar se esticar para pegar um brinquedo. Ele olha para os pais
sobressaltados e chora. Logo que consolado por mim retoma a brincadeira e o brinquedo.
Ao consolá-lo lhe digo: "Pronto, pronto, isso acontece com todos os aventureiros!"
41
Os pais então também conseguem sair do susto e rir. E, ao vê-lo pegar novamente o
brinquedo, a mãe afirma: "No dia em que não precisar mais vir a tratamento terá que levar
esse elefante junto com ele. Nunca o vi gostar tanto de um brinquedo!"
Abre-se lugar para que Santiago, apesar das convulsões, possa produzir com seu
corpo, estabelecer circuitos pulsionais que se dirigem aos outros e que sua mãe possa
articular os mesmos a deslizamentos significantes que tornam singulares tais produções na
vida de seu filho como alguém capaz de realizações.
Se inicialmente o dado a ver por Santiago na convulsão é uma repetição, é "o
mesmo", o modo como ele é lido, a partir do brincar de cu-co, muda o registro em que a tal
manifesto é tomado. O jogo do cu-co possibilitou operar a passagem de um real orgânico e
de uma presentificação sinistra do fantasma materno, para um jogo constituinte presença-
ausência. Da repetição do "mesmo", passou-se a uma criação que parte desse traço
primordial, articulando-o em uma série simbólica. Assim, tal jogo opera com a letra no
litoral entre o excesso de gozo e a produção de um saber-fazer. Essa criação suplementar,
que teve lugar no tratamento, possibilitou, na medida em que Santiago se engajou no jogo,
uma passagem em sua constituição psíquica.
73
I.7. Tchau, mãezinha! – Recorte clínico II
Mariana
74
é uma pequena menina com pouco mais de três anos, extremamente
"bonita e simpática" segundo a descrição do pediatra que a encaminha a tratamento
73
Questão retomada no capítulo "Jogos constituintes do sujeito".
74
Certa passagem desse caso consta no livro Enquanto o futuro não vem a psicanálise na clínica
interdisciplinar com bebês, p. 163-164. Aborda como o controle esfincteriano dessa menina, para poder
operar, exigiu trabalhar com sua filiação e, portanto, com o estabelecimento, para ela, da função paterna.
Outra passagem aqui trazida foi também comentada no artigo: O esquerdo do academicismo sobre
bebês, psicanálise e estimulação precoce, p. 28-34; ambos os textos são de minha autoria.
42
afirmando não consegue entender "o que há de errado com ela", dado o atraso em algumas
de suas aquisições, por exemplo, no controle esfincteriano.
Quando a recebo na primeira sessão, Mariana chega sorridente e entra na sala de
mãos dadas com sua e. Olha para mim e, em seguida, para a estante de brinquedos,
dizendo "Uiii! Olha que lindo!”, numa entoação rica em picos prosódicos. Pega um
brinquedo, o coloca no meu colo e, quando começo a tentar desdobrar com ela alguma
cena a partir do brinquedo, ela exclama novamente "Uiii! Olha que lindo!” e pega outro
brinquedo da estante. Assim se sucede a sessão, até que tenho tantos brinquedos que eles
começam a cair do meu colo, e sem que nada do que tenha dito ou feito tenha produzido
qualquer desdobramento da cena com os brinquedos ou com a fala de Mariana indo além
do "Ui! Olha que lindo!”.
75
A fala de Mariana, apesar da aparente entoação simpática digna de seduzir qualquer
interlocutor, não se dirige efetivamente ao outro em uma condição de alteridade, não abre
espaço à matriz dialógica e tampouco permite que possa ser desdobrada e sustentada
simbolicamente a partir de um objeto qualquer, uma cena do brincar. Uma vez que a fala é
pronunciada, a cena é cortada e retorna-se ao ponto em que ela é novamente pronunciada,
sem que ocorra ali qualquer deslizamento significante a partir de sua fala ou a partir do
que é tomado da fala do outro. Trata-se de uma holófrase, de uma fala cristalizada,
unívoca, encerrada em si mesma, que não propicia nenhuma outra possível articulação.
76
Ela foi inscrita na linguagem pelo Outro, mas essa inscrição não se estabelece como
enigma que lhe permita produzir um saber e então articular uma fala e desdobrar um
brincar. Esta holófrase faz um signo que se coagula, que não a representa na série para
75
A cena é digna da ficção científica de Adolfo Bioy Casares (1940). La invención de Morel, na qual o autor
narra a história de um náufrago que, a princípio, se suponha sozinho em uma ilha, até descobrir a presença de
outros habitantes. O náufrago, que teme ser descoberto, logo passa a ter um efeito sinistro diante dos hábitos
e falas idênticas que esses moradores da ilha têm dia após dia, até que descobre tratarem-se de espectros.
76
...toda holófrase se liga a situações-limites, em que o sujeito está em suspenso em uma relação especular
ao outro. Jacques Lacan (1953-1954). O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud, p. 258.
43
outro significante. Isso que ela diz é o que ela é: ela é o objeto lindo a ser olhado e só.
Assim se seguem as sessões até que na saída de uma delas, quando estamos na porta
do consultório, a mãe diz à Mariana, demandando-lhe que se despeça de mim:
–– Diz tchau para ela, mãezinha! –– revelando assim o apelido íntimo pelo qual essa
mãe chamava a filha: "mãezinha".
77
Mariana para, olha para a mãe, me olha e, após certa vacilação, precipita seu gesto
em uma certeza: se vira e abana para a mãe.
–– Tchau para mim não, para ela! –– retruca a mãe, enquanto me aponta como a
correta destinatária do gesto da filha, na tentativa de corrigir o que toma como um erro de
compreensão da menina diante de sua demanda.
–– Mas quem é a mãe aqui? –– pergunto. Ao que a mãe se surpreende e diz:
–– É, sou eu.
Situar em ato, tomar o gesto de Mariana na cena clínica, não como um erro de
compreensão de alguém que nada sabe, mas como resposta de um sujeito que detém um
saber, permitiu produzir um ato interpretativo desde o qual essa mulher pôde vir a se
reconhecer, não sem certa surpresa, a partir da fala da filha, como mãe. A partir dessa cena
a mãe de Mariana pôde contar que, pouco antes do nascimento da filha, ela perdeu sua
própria mãe. A partir de tal morte, entrou em depressão. Diz que sua única lembrança
desse período é a de ficar vagando pela casa e falar com o porta-retrato da e,
desinteressada de tudo e todos – situação esta que perdurou após o nascimento de Mariana.
Na sequência clínica, outra psicanalista da equipe tomou a mãe de Mariana em
tratamento, espaço no qual ela pôde começar a falar de seu lugar de filha e de seu lugar de
mãe. Pôde dizer que a filha ficava bastante tempo com o seu cunhado, que gostava de
admirá-la enquanto ela realizava suas brincadeiras. Conta também que esse cunhado,
77
Expressão que, às vezes, se usa em países latinos de língua espanhola.
44
muitas vezes, briga com eles (os pais de Mariana), desautorizando-os na frente de menina.
A mãe, por sua vez, tem grande temor deste cunhado mais velho que abusou dela quando
ainda era pré-adolescente.
Como vemos, isto que marcou Mariana não é aleatório, está encadeado à serie
significante parental. Mas tal inscrição, tal letra, não operou inicialmente para ela como
um enigma do desejo no laço com o Outro, operou como holófrase, fazendo dela o próprio
objeto de gozo do Outro. Nesse primeiro momento, na fala de Mariana, podemos perceber
a incidência de uma entoação rica em picos prosódicos, mas a letra que comparece por trás
da musicalidade, o modo em que operaram as inscrições primordiais para ela, não lhe
permitiram tomar a palavra enquanto sujeito de um desejo.
O trabalho clínico implicou possibilitar que os pais, ao exercer suas funções,
tirassem Mariana da posição de objeto incestuoso oferecido ao olhar do tio, como um "ser
natural" em relação ao qual este interceptava qualquer endereçamento à lei. Por sua vez, as
sessões com Mariana apontavam a que ela pudesse vir a estender seu brincar, sua fala,
suas produções de modo enlaçado ao Outro para tanto, na intervenção clínica,
tomávamos como ponto de partida o que lhe interessava procurando sustentado o
estabelecimento de uma série com ela. Algo interessante passou a ocorrer quando ela quis
pegar alguns gatos que passeavam por ali. Como eles fugiam, falávamos deles, os
seguíamos, os olhávamos, parávamos na banca para comentar as revistas ou guloseimas,
voltávamos a sala e brincávamos "de nenê" com as bonecas mas, a essa altura, os
objetos passaram a ser o leitmotif para um laço com o outro cada vez mais permeado
pela alteridade.
Pouco tempo antes do término e de modo decisivo para o estabelecimento desse fim,
o pai passou a comparecer ao tratamento. Falou acerca de que havia percebido o problema
de Mariana, assim como sua melhora, afirmando: "Apesar de bonita e inteligente, ela antes
45
não falava, não conversava como as outras crianças. Por exemplo, não respondia se lhe
perguntassem: quem é você?"
"Menina!" disse Mariana, parando a brincadeira e olhando-nos surpresa, como se não
pudesse acreditar em que alguém perguntasse tamanha obviedade.
Diante de tal tirada, não restavam dúvidas. Ela certamente estava em outro
lugar, indo além daquele que lhe fora, por tanto tempo, apontado desde o fantasma
parental. Era uma menina. Nem um objeto lindo a ser olhado pelo tio, nem a "mãezinha",
objeto melancólico do luto materno não elaborado. Mas, para começo de conversa, uma
menina, enfim.
I.8. Do dado a ver no corpo ao surgimento do sujeito
Sustentar em ato, diante do olhar dos pais, o manifesto que a criança dá a ver
enquanto produção de um sujeito a quem se supõe um saber; sustentar o lugar do infante
enquanto autor de uma resposta enigmática que se inscreve em rede com o saber
inconsciente parental e que, portanto, por mais que se equivoque, não erra de
destinatário, pois se dirige ao Outro encarnado , tem efeitos contundentes no
estabelecimento do seu laço familiar e em sua constituição psíquica.
Ali não se trata apenas de escutar os pais e produzir intervenções em sua fala. Não se
trata de intervir apenas sobre a criança fantasmática que emerge do discurso parental. a
intervenção consiste fundamentalmente em operar uma leitura diante do dado a ver no
corpo da criança. Isto não coincide com considerar que o dado a ver teria um sentido
decidido, fechado. Sua leitura, ao operar como uma decifração, ao permitir operar a cifra
desse enigma, possibilita ao pequeno paciente desdobrar um saber-fazer em lugar de ficar
46
coagulado e interrompido em um sem-sentido. Ler, assim, não é compreender, mas operar
com as inscrições, articular as letras, assim como decifrar é operar com a cifra.
Muitas vezes é pela via da intervenção em ato diante do olhar parental, em que o
clínico sustenta a produção da criança enquanto manifesto de um sujeito, que os pais
podem surpreender-se ao escutar, ao ver, talvez pela primeira vez, o que supostamente a
criança teria a dizer e a mostrar. a intervenção não se nem com o bebê ou pequena
criança, nem com os pais, nem com a dupla mãe-criança, nem com a tríade criança-mãe-
pai. A intervenção consiste em dar lugar para que o sujeito que está se constituindo possa
advir em seu justo lugar.
Se o que a criança a ver desde sua produção corporal produz horror ou fascínio
enquanto espetáculo, o desdobramento significante é interrompido. O dado a ver, pode ser
lido, tanto quanto a fala pode ser escutada, recolocando-se a dimensão significante do
dado a ver.
A palavra autêntica tem outros modos, outros meios, do que
o discurso corrente. Um gesto não é um movimento bem
definido, é um significante, aquilo não alcançaria para o que o
gesto recobre. Poderíamos recorrer à expressão francesa que
combina perfeitamente: "une geste" (uma gesta), (...) quer dizer, a
soma de sua história!
78
Por isso, na clínica com bebês, não intervimos apenas com a escuta ou apenas com o
olhar. Intervimos por uma leitura, considerando que o manifesto no dado a ver do corpo do
bebê implica uma condição significante. Pois se o gesto pode ser tomado em uma
dimensão significante, como ato de comparecimento de um sujeito, em todo caso, não
temos como dar acerca disso o nosso testemunho de olhos fechados.
Propomos, a seguir, abordar o conceito de letra enquanto inscrição psíquica, tirando
disso as consequências para fundamentar a operação de leitura na clínica com bebês.
78
Jacques Lacan (1957-1958). O seminário. Livro 5. As formações do inconsciente. Optamos pela livre
tradução de texto estabelecido para circulação interna da Escuela Freudiana de Buenos Aires, livre tradução.
47
II. O BEBÊ E A LETRA
Inscrições nos primórdios do psiquismo
(...) não lembrava de cada folha de cada árvore de cada monte,
mas cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado.
79
Podia construir todos os sonhos, todos os entresonhos. Duas
ou três vezes havia reconstruído um dia inteiro; não havia
duvidado nunca, mas cada reconstrução havia requerido um dia
inteiro.
80
Paradoxal exemplo oferece-nos Borges com "Funes, o memorioso", esse ser ficcional
com memória absoluta, incapaz de esquecer, de generalizar, de abstrair,
81
pois uma
memória absoluta é, antes de mais nada, uma memória sem sujeito.
A memória e seus lapsos; a diferença entre o vivido e sua inscrição psíquica; entre tal
inscrição e seus modos de se dar a ver; entre isso que se mostra nas formações do
inconsciente
82
insistindo em uma enigmática repetição e a possibilidade de elaboração; são
questões que se colocam desde o início na psicanálise acerca das inscrições psíquicas e o
funcionamento mental.
Freud elabora diferentes metáforas escriturais do aparelho psíquico a fim de dar
conta dessas questões clínicas. Entre elas, concebe metaforicamente o sonho, o chiste, o
ato falho ou o sintoma enquanto rébus e hieróglifos, considerando a intervenção clínica,
por analogia, uma operação de decifração.
Posteriormente, Lacan, ao trazer o conceito de letra (enquanto inscrição psíquica)
para a psicanálise, radicaliza a relação entre escrita e inconsciente, inicialmente proposta
por Freud, estabelecendo entre eles, mais do que uma analogia, uma fundamentação que
79
Jorge Luis Borges (1942). Funes el memorioso. p. 170, tradução livre.
80
Idem, p. 168.
81
Idem, p. 172.
82
Sendo esta uma formulação situada por Lacan para denominar os chistes, os atos falhos, os sonhos, e os
sintomas, apontados por Freud, dedicando a ela um seminário inteiro. Jacques Lacan (1957-1958). O
seminário. Livro 5. As formações do inconsciente.
48
embasa o funcionamento psíquico de modo indissociavelmente atrelado à linguagem. A
letra vai adquirindo sucessivas formalizações ao longo de sua obra, nas quais inicialmente
é próxima, quase indiferenciada do significante e, mais ao final, vai se aproximando do
real e do gozo, dizendo respeito ao que não cessa de não se inscrever
83
na repetição
pulsional.
As sucessivas formulações de Freud acerca das metáforas escriturais do aparelho
psíquico, assim como as sucessivas formulações de Lacan a respeito do conceito de letra
não fazem as anteriores caducarem, as últimas não são necessariamente mais corretas ou
elaboradas do que as primeiras. Elas possibilitam diferentes abordagens da clínica, dado
que surgem como elaborações que põe o acento em distintas questões suscitadas pela
práxis psicanalítica. Neste capítulo, propomos percorrê-las brevemente para considerar os
primórdios de tais inscrições em relação à clínica com bebês.
A partir desse percurso, priorizaremos a concepção de letra como litoral entre gozo e
saber elaborada por Lacan no "Seminário 18", na aula "Lituraterra". Tal concepção, ainda
que não seja única nem definitiva em relação à letra, resulta particularmente valiosa para a
clínica com bebês, na medida em que permite considerar as inscrições constituintes nos
primórdios do psiquismo, operando na borda entre corpo e linguagem, entre gozo e saber.
II.1. Do vivido às inscrições constituintes
Acerca das inscrições psíquicas produzidas a partir do vivido há, pelo menos, três
pontos centrais assentados por Freud que devem ser considerados:
1. Em primeiro lugar, nem tudo aquilo a que estamos expostos produz marca. Não
83
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário, Livro 20. Mais ainda.
49
somos uma espécie de "fita virgem" ou de tábula rasa na qual todo estímulo externo se
inscreveria. Freud, pelo contrário, aponta a grande capacidade do aparelho psíquico de
evitar estímulos externos, centrando os primórdios da constituição de tal aparelho nos
estímulos endógenos relativos a necessidades somáticas (tal como a fome). O aparelho
psíquico, além de não ter como se esquivar dos estímulos endógenos, é incapaz produzir
sozinho a ação específica que levaria à satisfação.
Como situa Freud, a satisfação pode ser realizada por meio da assistência alheia
de uma pessoa experiente que atribui ao choro desencadeado no bebê, pela sua urgência
vital, uma intenção de comunicação.
84
Assim, os estímulos endógenos são situados como
os precursores das pulsões
85
e, portanto, o modo como essa pessoa experiente sustenta o
estabelecimento do circuito pulsional terá um papel decisivo nos primórdios da
constituição do aparelho psíquico do bebê não por propiciar a experiência de
satisfação, mas por estabelecer, a partir de seu próprio psiquismo, uma função de
interpretação das ações do bebê (do seu choro, postura, tônus, gestualidade), um saber
acerca do que poderia chegar a satisfazê-lo. Portanto, desde o princípio, o Outro está
decisivamente implicado no modo pelo qual irá se estabelecer a busca pela satisfação no
estabelecimento dos circuitos pulsionais.
Podemos extrair como consequência disso, para a clínica com a primeira infância, o
quanto é decisivo na constituição psíquica que os estímulos dirigidos ao bebê se produzam
atrelados ao contexto do laço mãe-bebê e não como um bombardeio sensorial (de luzes,
sons, texturas) que, descontextualizadamente, buscam atingir a parcialidade das funções
corporais.
2. Em segundo lugar, é importante notar que, mesmo daquelas experiências que nos
marcam nem tudo se inscreve. O que se inscreve, a partir delas, são traços e tais traços não
84
Sigmund Freud (1895). Projeto para uma psicologia científica, p. 422.
85
Idem, p. 397.
50
guardam correspondência representacional com o que representam, de modo que não
guardam correspondência fixa com os objetos do mundo, com o referente, nem têm uma
significação intrínseca.
O conceito de traços mnêmicos é situado por Freud desde "Projeto para uma
psicologia científica",
86
apontando como as experiências vividas não são registradas
integralmente, que, a partir delas, se recortam quantitativa e qualitativamente algumas
percepções que passam a ser inscritas como traços.
Nesse sistema, a inscrição produzida não é uma marca que se assemelha à realidade
– diferentemente da concepção empirista do engrama –,
87
o é uma cópia direta da
experiência que se decalcaria em nosso aparelho psíquico. Os estímulos recebidos a partir
da experiência não se inscrevem como uma série recortada de traços, mas também tais
traços passam por um complexo sistema de registro que exige transcrições e retranscrições
entre as diferentes instâncias psíquicas.
88
É importante também fazer notar que a noção de traço (erinneurungsrest ou
erinnnerungsspur) remete à de sulco. Em espanhol, traço mnêmico é traduzido por huella
mnêmica. Huella é pegada, e uma pegada implica o buraco deixado por um objeto assim
que este se retira, como o rastro que o testemunho da passagem de algo que não está
mais ali (as pegadas dos pés na areia, por exemplo). Esta noção de rastro e de sulco, remete
às vias de facilitação (bahnung),
89
ou seja, a um certo caminho deixado mais permeável
para a passagem do investimento ou catexia entre um "neurônio" e outro, do qual Freud
nos fala no texto do "Projeto" e que Lacan retomará posteriormente como trilhamento ou
86
Sigmund Freud (1895). Projeto para uma psicologia científica.
87
Diferença apontada por Laplanche e Pontalis (1982), referindo-se ao conceito desenvolvido por Karl
Lashley e ainda utilizado pelos cognitivistas no Vocabulário da psicanálise, p. 513.
88
Na "carta 52", um ano depois do "Projeto para uma psicologia científica", Freud situa em pelo menos três
transcrições e retranscrições de uma instância psíquica para outra: da percepção ao inconsciente, do
inconsciente à pré-consciência e da pré-consciência à consciência. Sigmund Freud (1896a). Carta 52 a Fliess.
89
Sigmund Freud (1895). Projeto para uma psicologia científica, p. 401.
51
sulcagem
90
para considerar como a letra faz comparecer a tendência à repetição no
aparelho psíquico. Ou seja, certa via que costuma se impor, se repetir, pois seu caminho
estaria facilitado.
O traço enquanto inscrição é então um sulco e não uma marca impressa. É o vestígio
deixado por uma passagem e não por uma ocupação positivada. A inscrição, para se
produzir, exige uma oposição presença-ausência. Tampouco se trata de um decalque ou
internalização global do objeto no psiquismo já que traçar também significa cortar em
pedaços. As inscrições psíquicas são, nesse sentido, recortes dos acontecimentos, mas
recortes que transformam a percepção recebida em um sistema de inscrições composto de
traços.
Lacan retoma esta questão apontando como a inscrição psíquica exigiria diferentes
momentos: a pegada, seu apagamento e o rastro deixado pelo seu apagamento. Somente
pela sucessão desses três momentos a letra, enquanto inscrição psíquica, poderia comportar
a dimensão do enigma e, posteriormente, ser articulada em um funcionamento
significante.
91
Para ilustrá-lo evoca a cena em que Robinson Crusoe
92
encontra a pegada do
personagem Sexta-feira, apaga-a e, em seguida, introduz em seu lugar um X.
93
Esses
diferentes tempos estão implicados na produção da letra como inscrição psíquica: no
primeiro tempo a pegada deixada pela passagem de uma experiência; no segundo, o
apagamento dessa pegada e, no terceiro, o rastro produzido pelo apagamento dessa pegada
que produz, nesse lugar, um registro de outra ordem.
O rastro deixado pelo apagamento da pegada impede o acesso à marca do que passou
por ali, mas já não é mais um terreno intocado. Ele institui um movimento de ausência-
90
Jacques Lacan (1971a). Lituraterra, p. 17-32.
91
Paul-Laurent Assoun (1997). Os três tempos da constituição do significante, p. 43-53.
92
Daniel Defoe (1719). As aventuras de Robinson Crusoé.
93
Jacques Lacan (1959b). Seminario 6. El deseo y su interpretación. In: Edición electrónica de texto
establecido para circulación interna de la Escuela Freudiana de Buenos Aires.
52
presença-ausência, que já não apresenta de modo positivado o registro do que passou por
ali, mas que deixa (pelo rastro do apagamento) o testemunho da passagem de um sujeito.
A inscrição psíquica, enquanto letra, correlaciona-se com o rastro do apagamento
sobre o qual depois poderá vir a se produzir uma inscrição substitutiva (um "X", ou um
círculo, tal como Crusoé fez), que introduz um enigma. O funcionamento significante só se
estabelece a partir de um traço, de uma pegada, mas de uma pegada apagada,
94
de uma
marca rasurada.
Se a pegada é apagada, se o sujeito rodeia seu lugar com um
círculo, é algo que desde então lhe concerne. A marca no lugar em
que encontrou a pegada, vocês têm aí o nascimento do significante.
Isto implica todo esse processo que comporta o retorno do último
tempo sobre o primeiro, não poderia haver articulação de um
significante sem estes três tempos.(...) Um significante é uma
marca, uma pegada, uma escritura, mas não como lê-lo
sozinho.
95
Então é o apagamento da pegada que possibilita o funcionamento significante, que
lugar a uma representação não representacional, ou seja, que não está colada nem ao
objeto referente em si, nem à imagem do objeto, e tampouco previamente ao conceito do
objeto. Seu significado advirá da rede com outros significantes.
Daí os efeitos desastrosos para a constituição psíquica de técnicas tão comumente
utilizadas para "ensinar" crianças a falar ou a fazer sinais que, sob o argumento de elas
terem patologias genéticas ou deficiências sensoriais por meio de grupos classificatórios
que colam um nome a uma coisa, nomeando e apontando em cartelas grupo de cores, de
transportes, de animais etc. Nessa sede de "ensinar" deixa-se de considerar como a língua é
transmitida, excluindo da cena o que a mãe ou o pai têm a dizer ao filho, o que estes
supõem que o filho entende ou não entende, os equívocos, os não ditos nessa transmissão.
Portanto, exclui-se da cena o ponto de entrecruzamento entre o código da língua e o
94
Idem.
95
Jacques Lacan (1961-1962). Seminario 9. La identificación. In: Edición electrónica de texto establecido
para circulación interna de la Escuela Freudiana de Buenos Aires.
53
enigma do desejo que compareceria em uma fala endereçada ao bebê. Como efeito disso,
encontramos muitas crianças que acabam por falar absolutamente desimplicadas do que
dizem.
Acerca das inscrições psíquicas, Lacan aponta que Freud, desde o início de suas
elaborações, supôs que havia coisas que se imprimiam no sistema nervoso e lhe conferiu
letras, o que é dizer muito, porque não há razão alguma para que uma impressão se
figure como algo tão distante da impressão quanto uma letra.
96
Fala isso situando
conceitualmente a letra enquanto inscrição psíquica. Na seqüenciam sublinha que, na
análise, Freud visava à rememoração como diferente da reminiscência: Enquanto na
reminiscência se é assaltado, tal como ocorre com Proust diante da madeleine,
97
a
rememoração implica um encadeamento das redes de tais letras na produção de um saber e
de um saber falado. Se, em um tempo inicial, Freud insistia em que seus pacientes
recordassem a cena supostamente traumática, essa compulsão a recordar se desfaz pelo
método da associação livre. Assim, para que se produza uma análise, não basta que haja
formações do inconsciente; é necessário que o sujeito se implique em tais formações e
produza a partir delas. O que nos leva à terceira questão.
3. É preciso considerar que nem tudo que se inscreve enquanto traço pode ser
evocado. Temos aí a função do esquecimento como sendo indissociável à de sujeito
psíquico. Ou seja, para Freud, nem tudo que está inscrito em um sistema do aparelho
psíquico passa para outro. Entre um e outro sistema operam transcrições e nem todas são
transcritíveis e, portanto, nem tudo que se apresenta a partir dessas inscrições será legível,
ou seja, as formações do inconsciente (sonhos, atos falhos, lapsos de memória)
apresentam-se como profundamente enigmáticas mesmo para aquele que as produz.
96
Faz tal afirmação referindo-se ao texto de Freud, Projeto para uma psicologia científica.
Jacques Lacan (1975-1976). O seminário. Livro 23. O sinthoma, p. 127.
97
Marcel Proust (1913). No caminho de Swann.
54
As metáforas escriturais de Freud, assim como a instância da letra no inconsciente
98
para Lacan, não implicariam uma espécie de escrita positivada da experiência, dotada de
sentido, de significação como um texto estabelecido. Justamente porque se tem algo que a
letra produz quando comparece na clínica ou na vida cotidiana, por meio das formações do
inconsciente, é a apresentação de um enigma.
O inconsciente não é uma escritura sagrada com uma significação decidida, mas
um conjunto de traços que insistem, que se repetem e, em relação aos quais, o sujeito
precisará advir.
A letra, quando comparece, quando se dá a ver nas formações do inconsciente,
arrasta consigo sua ilegibilidade. Ainda que seja possível vir a articulá-la de modo
significante, em parte, ela sempre permanece irredutível ao simbólico.
Assim também o é na clínica com a infância. Como trabalhamos no capítulo anterior,
o bebê a ver, de modo enigmático, no estabelecimento de seus circuitos pulsionais, em
sua produção corporal, seu peculiar modo de engajamento no laço com o Outro. A letra
comparece introduzindo a dimensão do enigma no dado a ver. Nesse dar a ver gratuito, de
modo semelhante ao que ocorre no sonho, isso mostra
99
o isso sendo considerado aqui
enquanto instância pulsional inconsciente.
O inconsciente se manifesta primeiro como algo que está à espera no círculo do não
nascido,
100
pois, em um primeiro momento, nisso que é dado a ver, o sujeito não se vê, não
se reconhece.
101
Por isso, não basta que isso mostre. A partir do dado a ver, o sujeito
precisará se produzir. Daí o trabalho de análise pelo qual se convoca o analisando a tomar
a palavra a partir das formações do inconsciente, a trabalhar no alinhavo do que, pela
irrupção de tais formações, comparece de modo desarticulado.
98
Jacques Lacan (1957b). La instancia de la letra en el inconsciente o la razón desde Freud, p. 473-509.
99
Jacques Lacan (1964). El seminário.Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, p. 83.
100
Idem, p. 30.
101
Idem, p. 83.
55
Na clínica com bebês, por sua vez, a letra se apresenta, precipitando seus efeitos de
inscrição do dado a ver no corpo do bebê, como inscrição necessariamente anterior ao
estabelecimento do bebê enquanto alguém capaz de tomar a palavra. No entanto, não é
indiferente que, desde a cena clínica, o bebê seja suposto como um sujeito em constituição,
cuja produção corporal a ver os primórdios de seu engajamento no laço com o Outro e
que, portanto, com isso, mostra uma produção relativa à inscrição de um litoral entre
gozo e saber.
Daí que, na clínica com os primórdios da constituição psíquica, consideremos
decisivo que isto que se a ver no corpo daquele que ainda não fala possa ser tomado
enquanto enigma por um Outro encarnado que tome o dado a ver pelo bebê em uma rede
associativa, fazendo disso uma formação do inconsciente sustentada em tal laço. Se, para o
adulto, o isso mostra do sonho, comparece como um retorno da letra, enquanto formação
do inconsciente, por sua vez, considerar clinicamente o dado a ver do bebê não consiste
em supô-lo como retorno de um inconsciente inscrito nele, constituído. Este dado a
ver no corpo do bebê se estabelece como um retorno da letra pelo modo em que é
capturado na repetição inconsciente materna e parental. Se ele é dado a ver, torna-se então
decisivo como esse manifesto é lido pelos pais.
A letra comparece tanto na clínica com adultos quanto com crianças, revelando sua
ilegibilidade. Na clínica com adultos a letra comparece arrastando seu gozo enquanto um
retorno do infantil nas formações do inconsciente. do lado do bebê, no dado a ver em
sua produção, encontramos os primeiros efeitos da precipitação da letra a partir do laço
com o Outro, na infância propriamente dita e, portanto, dizendo respeito a um inconsciente
em formação. Se, por um lado, temos a letra enquanto retorno nas formações do
inconsciente, por outro temos a emergência da letra do inconsciente em formação.
Todos esses pontos são centrais para situar o que entendemos por inscrição psíquica
56
no texto de Freud, assim como para situar o que entendemos por letra a partir do ensino de
Lacan e, principalmente, suas consequências para a práxis clínica com bebês e pequenas
crianças que ainda não falam. Traçamos, a seguir, um percurso por tais conceitos a fim de
pô-los a trabalhar em relação à especificidade de tal clínica.
II.2. Freud e as metáforas escriturais dos aparelhos psíquicos
Ao longo de suas produções metapsicológicas, Freud elabora aparelhos psíquicos
para dar conta das características do funcionamento mental que comparecem na clínica.
Ele considera, a este respeito, algumas diferenças centrais:
- entre o que se inscreve e o que não se inscreve do vivido;
- entre aquilo que, do inscrito, não pode ser evocado, apesar de surtir os efeitos de
sua inscrição, constituindo o núcleo do recalque primário;
- daquilo que, mesmo que alguma vez tenha sido passível de ser evocado, passa ao
esquecimento por meio do recalque secundário;
- daquilo que, mesmo sem poder ser recordado comparece, de modo insistente, na
repetição sintomática e formações do inconsciente, exigindo um trabalho clínico para ser
elaborado;
- entre, por um lado, o poder de recepção ilimitado para a inscrição de novas
experiências, e, por outro, a indefinida conservação das inscrições já efetuadas.
102
No texto "Projeto para uma psicologia científica", as inscrições psíquicas ocorrem
em um primeiro aparelho psíquico concebido como uma metáfora neurológica. Nele Freud
fala de neurônios ou células relacionadas por barreiras de contato e vias de facilitação
102
Sigmund Freud (1895). Projeto para uma psicologia científica, p. 400.
57
aproximando-se muito, metapsicologicamente, do modelo neuro-anátomo-fisiológico atual,
apesar de ser muito diferente do daquela época. Já nesse modelo o traço mnêmico não
guarda correspondência com a coisa percebida, mas com um complexo sistema de
inscrições no aparelho.
103
Trata-se de um aparelho psíquico guiado pelo princípio de inércia, ou homeostase, no
qual o objetivo é manter-se livre de estímulos, por meio de uma fuga ou, quando estes são
inevitáveis, tal como ocorre com os estímulos endógenos, por meio da descarga da energia
que eles acarretam.
Uma das principais características desse aparelho é a memória, ou seja, a capacidade
de ser permanentemente modificado por ocorrências únicas
104
e, ao mesmo tempo, manter
a receptividade a novas percepções. Para dar conta dessa questão Freud concebe, nesse
aparelho, neurônios diferenciados: os Fi como permanentemente permeáveis à excitação
que a percepção produz no aparelho, mas incapazes de reter o registro da memória; e os
Psi que fazem oposição ou barreiras de contato à excitação e que ficam permanentemente
alterados após sua passagem, permitindo assim uma possibilidade de representar a
memória.
105
Nesse aparelho psíquico alguns estímulos são passíveis de se tornarem inscrições de
memória que se alinhavam umas às outras formando vias de facilitação
106
que
correspondem ao percurso percorrido, ao rastro deixado pela passagem da energia psíquica
produzida nesse aparelho a partir de uma experiência anterior, levando a facilitar a
circulação da energia nesse aparelho por uma determinada via já traçada. A memória liga-
se, desse modo, à tendência à repetição, levando a percorrer um caminho psíquico
103
No aparelho psíquico, diferentemente do que no mundo externo, os estímulos, no que diz respeito à
quantidade, ficam reduzidos e, em segundo, limitados, em virtude de uma seleção, e no que diz respeito à
qualidade, ficam descontínuos, de modo que certos períodos nem sequer podem atuar como estímulos.
Sigmund Freud (1895). Projeto para uma psicologia científica, p. 417.
104
Idem, p. 399.
105
Idem, p. 400.
106
Idem, p. 401.
58
sulcado. Tem-se, assim, um aparelho psíquico que, por um lado permanece aberto a novas
inscrições e, por outro, funciona por uma tendência à repetição.
Tempos depois, esta tendência à repetição anunciada será retomada no texto
"Além do princípio do prazer"
107
no qual Freud considera o quanto a insistência na
repetição de um desprazer contradiz o princípio do prazer (pela redução de energia
acumulada), que até então embasava o funcionamento dos aparelhos psíquicos da
psicanálise. Mais tarde, Lacan retomará a tendência à repetição do funcionamento mental
apontada por Freud, dando origem ao conceito de gozo.
Na "Carta 52" dirigida a Fliess, Freud nos propõe um novo aparelho psíquico
formado pela estratificação das inscrições:
O material presente na forma de traços de memória estaria
sujeito, de tempos em tempos a um reordenamento de acordo com
novas relações- a uma retranscrição. Assim o que de
essencialmente novo a respeito de minha teoria é a tese de que a
memória não se encontra numa versão única, mas em vários
tempos, ou seja, se encontra transcrita em diferentes tipos de
signos (...) Não saberia dizer quantas destas transcrições existem,
mas pelo menos, são três, provavelmente mais.
108
Propõe diferentes registros dessas inscrições:
W – percepções – são neurônios que não conservam nenhum traço do que aconteceu;
WZ primeiro registro das percepções praticamente incapaz de assomar à
consciência e se dispõe conforme as associações por simultaneidade;
Ub inconsciência segundo registro que se ordena por outros critérios, como a
relação de causalidade, são lembranças conceituais sem acesso à consciência;
Vb – preconsciência – terceira transcrição, ligada às representações verbais.
Se no "Projeto para uma psicologia científica" aponta-se a importância da repetição
pelas vias de facilitação, na "Carta 52" atenta-se para o fato de que, mesmo que as
107
Sigmund Freud (1920). Além do princípio do prazer, p. 13-169.
108
Sigmund Freud (1896). Carta 52, p. 317. Optamos aqui pela livre tradução do espanhol das Obras
Completas da Biblioteca Nueva, p. 949-951.
59
inscrições psíquicas sejam indeléveis e, portanto, em certo aspecto, sempre as mesmas,
sofrem rearranjos e retranscrições ao longo de épocas sucessivas da vida.
109
Que algumas
dessas retranscrições não ocorram, persistindo o anacronismo de certo material, é o que
ocorreria na neurose pela defesa implicada no mecanismo do recalque.
110
Temos um
aparelho que funciona com diferentes registros de inscrições, pelo qual algumas inscrições
podem ser retranscritas, entre as diferentes instâncias do aparelho, e outras não. Ou seja,
nem tudo que está inscrito pode ser evocado, associado ou religado.
Em "A interpretação dos sonhos", Freud nos propõe um aparelho psíquico cujo
desenho é conhecido como esquema do pente.
111
Esse aparelho tem um polo perceptivo,
mas entre a percepção e a consciência, o estímulo passa pelo crivo dos traços mnêmicos
inconscientes (representados pelos dentes do pente). Desse modo, fica evidente o quanto a
percepção não tem um valor intrínseco, mas que dependente de sua passagem pelos traços
mnêmicos inconscientes para adquirir uma significação.
Esse aparelho também permite a Freud dar conta do modo de produção dos sonhos
ou das alucinações. Por meio da regressão topográfica
112
a energia psíquica, ao percorrer o
aparelho no sentido regressivo e, portanto, dos traços mnêmicos inconscientes ao pólo
perceptivo –, indo na direção oposta própria da vigília, seria capaz de produzir uma
imagem sensorial
113
a partir de inscrições psíquicas inconscientes, a partir dos traços
mnêmicos.
Se, durante o trabalho do sonho, as inscrições produzem imagens oníricas, no
trabalho de análise, ao falar desse sonho, volta a operar-se uma mudança de registro: as
imagens dos sonhos são postas em palavras. No entanto, como bem aponta Freud, as leis
do processo primário, que regem o inconsciente, e às quais o sonho está submetido, tomam
109
Sigmund Freud (1896). Carta 52 a Fliess, p. 319.
110
Idem, ibidem.
111
Sigmund Freud (1900). A interpretação dos sonhos, p. 577.
112
Idem, p. 584.
113
Idem, p. 579.
60
as palavras como coisas, produzindo com elas anagramas, ou fazendo-se valer de sua
polissemia.
114
Freud busca articular a relação entre a instância psíquica do inconsciente e a da
Consciência, do conteúdo latente com o manifesto, apontando-nos claramente que, ao
procurar, por meio da interpretação dos sonhos, a passagem de uma instância para outra,
encontra-se com o fato de que o conteúdo onírico é comparável a uma escrita
hieroglífica.
115
Aponta-nos que a figuração onírica coloca dificuldades semelhantes às que
a escritura hieroglífica oferece à sua tradução. Ainda que a primeira não tenha o propósito
de ser compreendida,
116
a segunda, mesmo que algum dia o tivesse, é uma língua perdida.
Por meio de tal comparação, Freud apresenta claramente uma metáfora escritural dos
conteúdos psíquicos, pondo em relevo o caráter enigmático que os sonhos, assim como os
sintomas ou atos falhos comportam. Ele aposta firmemente na possibilidade de interpretá-
los seguindo a trilha de suas sucessivas condensações e deslocamentos. No entanto, afirma:
(...) mesmo nos sonhos melhor interpretados é preciso
frequentemente deixar um lugar nas sombras, porque na
interpretação observa-se que daí tem início uma madeixa de
pensamentos oníricos que não se deixa desemaranhar, mas que
tampouco faz outras contribuições ao conteúdo do sonho. Esse é,
então, o umbigo do sonho, o lugar no qual ele se assenta no
114
No texto "O inconsciente" (1915), Freud retomará esta questão ao situar que cada instância do aparelho
psíquico tem um modo de operar com a representação, tratando de diferentes formas os traços nelas inscritos
e implicando um complexo mecanismo de transcrições de uma instância para outra do aparelho. O processo
primário, relativo ao que é inconsciente, opera com a representação-coisa [sachevorstellung] e o secundário,
implicando o verbal na "tomada de consciência", enlaça a representação-coisa com a representação-palavra
[wortvorstellung]. Ambos, no entanto, partem do vorstellungrepräsentanz, ou do representante que
representa a pulsão no aparelho psíquico. Deste modo, o psiquismo sempre estaria lidando com inscrições
que não guardam correspondência com a coisa, sempre com traços e nunca com a coisa em si. Isto permite
uma equiparação com o que Saussure propõe e Lacan retoma quanto à arbitrariedade do signo linguístico em
relação ao referente. É interessante notar também como, nesse texto, Freud aponta que na esquizofrenia,
assim como nas imagens oníricas, as palavras são tratadas como coisa, de acordo com as leis do processo
primário, por condensações e deslocamentos, p. 227. Isso faz com que as formações do inconsciente se
produzam de modo análogo a um rébus, ou como uma escrita cifrada. Tal questão daria lugar a uma outra
correlação possível ainda que tais conceitos não se equivalham plenamente entre: representação-coisa/
traço-letra e representação-palavra/ traço-significante. No entanto, tal equiparação exige considerar um ponto
decisivo para a psicanálise e indiferente para a linguística, ponto trabalhado por Freud e retomado por Lacan:
O fato de a pulsão se representar na vorstellung aponta para o corpo e para a sexualidade, aspectos
excluídos da linguística, como aponta precisamente Cláudia Rego. Traço, letra, escrita, p. 125; Sigmund
Freud (1915). O inconsciente, p. 191-252.
115
Sigmund Freud (1900). A interpretação dos sonhos, p. 343.
116
Idem, p. 363. Optamos pela livre tradução a partir das Obras Completas da Biblioteca Nueva.
61
desconhecido. Os pensamentos oníricos com os que topamos,
devido à interpretação, têm que permanecer sem nenhuma
clausura, ramificar em todas as direções dentro da emaranhada
rede de nosso mundo de pensamentos. E, desde um lugar mais
espesso desse tecido, eleva-se o desejo do sonho como o cogumelo
de seu micélio.
117
Aparece o resto indecifrável do sonho, o ponto onde se detém o movimento da
interpretação. Este aspecto se sublinhado por Lacan, apontando que, apesar da
ramificação das interpretações a que o simbólico dá lugar, um ponto de real
118
em que o
comparecimento da letra no sonho, se por um lado lugar à articulação significante do
trabalho em análise, por outro, apresenta sua ilegibilidade.
Freud, ainda nesse texto, situa outra metáfora escritural: a do sonho enquanto
rébus,
119
sublinhando a diferença entre conteúdo latente e manifesto do sonho.
Como alguma carta cifrada, a inscrição onírica, quando
examinada de perto, perde sua primeira aparência de disparate e
assume o aspecto de uma mensagem séria e inteligível. (...) como
um palimpsesto, o sonho revela, sob seus caracteres superficiais,
destituídos de valor, vestígios de uma comunicação antiga e
preciosa.
120
Tal noção é de um valor inestimável por opor-se à tentativa de interpretar o sonho
por meio de uma correspondência fixa e isolada entre seus elementos pictográficos e seu
sentido. Propõe-nos, em lugar disso, uma leitura que, diante dessa carta cifrada, opera uma
mudança de registro: a passagem de tais imagens ao seu valor fônico durante o trabalho de
análise revela que as imagens do sonho são efeito de uma composição, uma combinatória
de palavras, tratadas como coisas, de acordo com as leis do processo primário. As
inscrições oníricas configuram-se como rébus, durante o trabalho do sonho.
117
Idem, p. 560.
118
Umbigo do sonho, esta relação abissal ao mais desconhecido que é a marca de uma experiência
privilegiada, excepcional, onde o real é apreendido para além de toda mediação, quer seja imaginária, quer
simbólica. Jacques Lacan (1954-1955). O seminário. Livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise, p. 223.
119
Por exemplo: (desenho de) um sapo com uma fita na cabeça (sapa) "+" (o desenho de) um pato "–" o
(desenho de) uma pá. Teríamos aí um rébus cuja resposta seria "sapato".
120
Sigmund Freud (1900). A interpretação dos sonhos, p. 145; Tal citação também é trazida, a fim de situar a
diferença entre latente e manifesto, por Cláudia Rego. Traço, letra, escrita, p. 109,.negrito nosso.
62
Trazemos a este respeito um breve exemplo de trabalho em análise a partir de um
sonho: "Estava a passeio em uma trilha no campo. Era uma bela paisagem com mato verde
e, ao fundo, um morro quando me encontrei, no meio do caminho, com um
desbarrancamento. Tinha que escolher, ou pulava, correndo riscos, ou ficava ali. Foi então
que acordei".
Esse sonho fica correlacionado a certa escolha de vida que era preciso fazer. Mas
somente após falar do sonho, mudar o registro dessas imagens para palavras, que se revela
a homofonia entre os substantivos "mato", "morro" com a dos verbos. Passa-se, assim, por
meio do jogo de homofonia, da qual o trabalho do sonho se valeu, da imagem da paisagem
à relevância psíquica de um ato no qual estava em jogo a realização de um ato que
implicava simbolicamente matar ou morrer.
O trabalho do sonho se valeu desse jogo significante e a interpretação do sonho
permitiu sua leitura ao pé da letra. Falar do sonho, em transferência, produziu essa
mudança de registro pela qual se evidencia que decifrar o sonho não é lê-lo nas entrelinhas.
Tampouco procurar descobrir um sentido que nele estaria oculto, senão justamente tomar o
que se apresenta na superfície e que, para ser lido, exige uma mudança de registro da
imagem ao significante, a partir do qual o sentido pode advir de uma leitura ao pé da letra.
Em "Psicopatologia da vida cotidiana"
121
Freud expõe diversos exemplos de lapsos,
atos falhos e esquecimentos. A partir deles a psicanálise inaugura uma nova categoria em
relação às manifestações psíquicas, cuja valoração não se reduz à oposição entre falso e
verdadeiro, tal como no juízo de valor realizado diante dos sintomas histéricos que, por não
corresponderem à legalidade neuro-anatômica, eram tantas vezes considerados falsos, "um
fingimento". A condição de tais formações do inconsciente é justamente apresentarem a
lógica do em falho, do aparente sem sentido, que exige uma decifração.
121
Sigmund Freud (1901). Psicopatologia da vida cotidiana.
63
Isto porque, inconscientemente, para a produção de tais formações, foram realizadas
condensações e deslocamentos sem levar em conta o significado ou o limite acústico das
sílabas. Neste processo, os nomes foram manipulados como imagens de um texto que deve
ser transformado num jogo de enigma visual.
122
Freud denomina isso como uma
associação externa ou superficial, ou seja, que não se apenas pelo conteúdo ou pelo
significado da palavra. Fica claro como se joga inconscientemente com as palavras, não
com a sua significação, mas com a sonoridade de seus fonemas e com o traçado gráfico
de suas letras. É o que também comparece na conhecida construção em análise do Homem
dos lobos
123
na qual as letras V e W arrastam a insistência de uma repetição:
(...) no V do relógio que supostamente estaria marcando a hora da
cena primaria, na abertura das pernas das moças, no bater das
asas da borboleta ou nas asas arrancadas da vespa (Wespe) que
o Homem dos lobos pronuncia "espe", castrando-a de sua W para
encontrar ali as iniciais de seu nome, S. P., com o risco de vê-lo
ressurgir nos lobos (Wölfe), aos que deve sua alcunha.
124
Acerca do sonho como rébus Freud diz que:
(...) as palavras assim combinadas não carecem de sentido, e
podem dar por resultado a mais bela e significativa sentença
poética.
125
Os nossos antecessores no campo da interpretação dos
sonhos cometeram o erro de tratar o rébus como uma composição
pictórica e, como tal, elas lhe pareceram sem sentido e destituídas
de valor.
126
Se na "Carta 52" Freud apontava a impossibilidade de transcrição de um para
outro sistema do aparelho psíquico como a causa da neurose, ao longo de "A interpretação
dos sonhos", ele nomeia a passagem do latente para o manifesto de diferentes modos:
transferir, traduzir, transcrever, decifrar. Nesse texto, sublinha o caráter paradoxal do que
se manifesta no sonho: sua inscrição cifrada, suas imagens produzidas a partir dos traços,
122
Idem, p. 24.
123
Sigmund Freud (1918[1914]). História de uma neurose infantil, p.13-151.
124
Roland Chemama (1993). Verbete letra, Dicionário de psicanálise Larousse, p. 124.
125
Sigmund Freud (1900). A interpretação dos sonhos, p. 296. Optamos pela livre tradução do espanhol das
Obras Completas da Biblioteca Nueva.
126
Idem, ibidem.
64
dos sulcos inconscientes, por um lado permitem uma ramificação de associações
situando o que podemos correlacionar com a face da letra voltada para a articulação
simbólica –, e, por outro, detém-se em uma borda que toma o sonhador, que afeta seu
corpo, sua sexualidade, sua pulsão, ao mesmo tempo que tangenciam o indizível – situando
o que podemos correlacionar com ponto em que a letra revela a sua outra face da moeda: a
que se volta para o real.
Em 1925, Freud oferece uma nova analogia do funcionamento psíquico: o bloco
mágico.
127
Descreve que tal aparelho é composto por uma prancha de cera sobre a qual
uma folha fina e transparente de celulose presa a ela pela borda superior e, entre elas, um
papel encerado fino. Para escrever nele é preciso um instrumento pontiagudo que, ao ser
pressionado sobre sua superfície, faz as folhas se unirem, deixando ver o que foi escrito.
Ao descolá-las o escrito desaparece, deixando a superfície receptiva a novas inscrições
enquanto a camada de cera o registra de modo permanente. O que fica registrado na
prancha de cera pode ser visto sob luz especial, mas é ilegível. se torna legível durante
o tempo de contato das três camadas.
A partir do surgimento dessa novo aparelho psíquico, Freud retoma a velha questão
de procurar elaborar como nosso aparelho mental possui uma capacidade receptiva
ilimitada para novas percepções e, não obstante, registra delas traços mnêmicos
permanentes, embora não inalteráveis.
128
O interesse desse apetrecho seria, por um lado, o de considerar a atemporalidade do
inconsciente, no qual todas as inscrições de diferentes tempos conviveriam, e, por outro,
esse espaço intermitente, o da folha que se move e que temporalizaria tal registro:
129
entre
o momento de comparecimento através da repetição e o momento da inacessibilidade à
127
Sigmund Freud (1925b). Uma nota sobre o bloco mágico, p. 283-290
128
Idem, p. 286.
129
Simone Rickes. Riscos e tempo, p. 63-77.
65
evocação de certos traços, da legibilidade e da ilegibilidade.
130
De modo análogo ao que experimentamos diante das formações do inconsciente, que
nos dão a impressão de um movimento de abertura e fechamento, produz-se o movimento
das folhas do bloco: ora em contato, ora em interrupção, estabelecendo um todo
descontínuo de funcionamento na relação entre diferentes sistemas que estaria na origem
do conceito de tempo
131
(psíquico ou lógico, nos permitimos acrescentar aqui).
Se a relação temporal dos conteúdos psíquicos é assim apresentada nesse texto, ele
traz também uma interessante concepção em termos espaciais. Já não se trata de um
sistema estratificado ao longo do tempo, como foi apresentado na "Carta 52", no qual os
conteúdos mais antigos correspondem a estratos mais profundos. Há apenas uma superfície
que se cobre e se descobre, mas não profundidade.
132
Portanto, a intervenção clínica não
implicaria buscar em camadas profundas, mas considerar diferentes registros do que
comparece na superfície.
No decorrer do até aqui desenvolvido, foi possível situar a importância que Freud
atribui às metáforas escriturais para descrever o funcionamento psíquico. Cada metáfora
escritural e cada aparelho psíquico foi produzido para dar conta de questões apresentadas
pela clínica. Ainda que não tenha se dedicado a formalizar tal questão, por meio de tais
metáforas, Freud adverte sobre a implicação entre linguagem e funcionamento mental.
Se o bebê, ao nascer, não tem um aparelho psíquico constituído, coloca-se como
questão desde onde se precipitam as inscrições que se dão a ver em sua produção corporal.
Evidentemente, desde a transmissão inconsciente parental posta em ato no exercício de
seus cuidados. Nesse sentido podemos dizer que o aparelho psíquico da mãe opera
inicialmente como uma prótese diante das urgências vitais do bebê. É a mãe quem arma
uma leitura do que se passa com o bebê, que se interroga diante do enigma que ele
130
Jacques Derrida (1995). A escritura e a diferença, p. 221, apud Simone Rickes. Riscos e tempo, p. 75.
131
Sigmund Freud (1925b). Uma nota sobre o bloco mágico, p. 290.
132
Adela S. Gueller. Vestígios do tempo, p. 90.
66
comporta sancionando o sentido do que ele dá a ver. Coloca assim o corpo do bebê em
relação a um saber produzido por um complexo sistema de inscrições, propiciando-lhe
satisfação na medida em que se ocupa de sua economia de gozo.
Se, nos primórdios da constituição psíquica, o corpo do bebê tem seu funcionamento
sustentado no laço com a mãe, isto passa a lhe dizer respeito subjetivamente, pois o que se
passa nesse laço lhe concerne. Mais adiante, ele formulará respostas que, por meio do
brincar, irão produzindo uma extensão significante da letra precipitada no seu corpo.
133
II.3. A letra como inscrição psíquica e como enigma dado a ver na superfície
A clínica com bebês e crianças nos leva a interrogar a formação do psiquismo e a
produção de suas inscrições constituintes. Daí o interesse pelo conceito de letra trazido
neste texto.
Enquanto Freud situa metáforas escriturais, Lacan traz o conceito de letra ao campo
da psicanálise. Tal conceito é reformulado ao longo de sua obra prestando-se a diferentes
concepções e dando lugar a diferentes articulações teóricas dependendo do momento
conceitual que se tome por referência. Mais do que defini-lo exaustivamente, apontando
todas as suas modificações, gostaríamos de trazer algumas reflexões acerca de sua
pertinência para considerar as operações clínicas realizadas com bebês e com crianças
pequenas que, mesmo tento idade para serem falantes, não chegaram a posicionar-se
psiquicamente enquanto tal.
De início, é central ter cuidado para não tomar indiferenciadamente a letra do
alfabeto, que é articulada no texto escrito, como equivalente à letra enquanto inscrição
133
Questão apontada no capítulo anterior em que se articula a citação de Alfredo Jerusalinsky (1988).
Psicanálise e desenvolvimento infantil, p. 49.
67
psíquica. Temos um primeiro problema a considerar.
134
Tal superposição poderia nos
levar a crer erroneamente que, quando se operam inscrições psíquicas a partir dos cuidados
maternos com o bebê, isso implicaria em si a transmissão positivada de um código
articulado.
É preciso a travessia de um longo percurso, um percurso não contínuo, mas
determinado pela sucessão de diferentes passos lógicos, entre as inscrições que uma mãe
opera no cuidado com o bebê até que este venha a se tornar falante, apropriando-se do
código de uma língua e se fazendo valer dela em seus atos de enunciação. Nessa travessia
é preciso considerar não a produção de marcas, mas seus apagamentos, que introduzem
um enigma, que cifram, sem o qual pode até haver sujeição a um código, repetição de
enunciados, mas não um sujeito que fale em nome de um desejo.
Não uma relação direta e imediata entre as inscrições primordiais do psiquismo e
a função da letra no escrito. Entre o que fez inscrição psíquica e o que pode, a partir daí, vir
a ser escrito como texto. Mesmo que ambas digam respeito à instância da letra no
inconsciente e mesmo que escrever seja um retorno dessa instância, isso não equivale a
considerar que a letra esteja assim dada desde um primeiro tempo. Senão por que se
levaria tanto tempo até chegar a falar e, mais ainda, para chegar a ler e a escrever ao longo
da infância? Senão por que, até mesmo para o adulto, enquanto sujeito constituído,
escrever implicaria um árduo trabalho de elaboração?
uma distância entre a produção de inscrições constituintes do psiquismo e que
esse bebê devenha como falasser e, mais ainda, para que chegue a ler e escrever. Trata-se
de uma distância entre diferentes momentos lógicos da constituição do sujeito, que exigem
uma passagem de tempo para que possam se produzir, ainda que não sejam causados por
134
A polissemia do termo lettre em francês (letra/carta) talvez evite que ele se precipite tão prontamente
sobre a concepção de letra do alfabeto, como ocorre no português.
68
uma cronologia, mas pelos efeitos de inscrição precipitados a partir do laço do bebê com o
Outro.
Ao longo da constituição psíquica os estímulos recebidos não se inscrevem
simplesmente por sua força ou pela insistência da repetição. Isto pode até produzir uma
marca, mas não instaura a mesma como um traço atrelado a um funcionamento
significante. Em tal funcionamento, o significado assumido pelo que foi dito, pelo que foi
enunciado, dependerá da leitura de todo o contexto do enunciado e do ato de enunciação e,
portanto, dependenderá também dos shifters do olhar para diferenciar a quem o enunciado
se dirige, ou da entoação que, ao denotar, por exemplo, ironia, é capaz de subverter o
sentido do enunciado.
135
Diante dos estímulos endógenos do bebê é preciso um Outro encarnado que atribua
intenção de comunicação ao seu grito e, por meio de uma interpretação, produza uma ação
específica capaz de satisfazê-lo. Se interpretação é porque linguagem alí. Mas é
evidente que a linguagem não se inscreve por si. Não basta colocar um bebê na frente do
rádio ou da televisão. Para que o gozo do bebê se atrele ao Outro, como instância da
linguagem, é preciso um endereçamento, é preciso um Outro que, ao tomar o bebê desde
um desejo não anônimo
136
e a partir do saber simbólico que a linguagem lhe permitiu
constituir, opere corte e costura do funcionamento corporal do bebê, levando em conta o
que o afeta e fazendo borda a seu gozo.
Se isto atrela o bebê ao campo do Outro, para que ele possa chegar a situar-se na
condição de falante, e não como um mero repetidor ecolálico do que lhe é dito, será preciso
que esse desejo não anônimo opere no laço mãe-bebê enquanto um enigma diante do qual,
para a mãe, o bebê se situa como sujeito que supostamente deteria um saber.
137
Em primeiro lugar a e mesma irrompe o código ao dirigir-se ao bebê e falar-lhe
135
Tal como será abordado no capítulo "Prosódia e enunciação na clínica com bebês".
136
Jacques Lacan (1969a). Dos notas sobre el niño, p. 55-57.
137
Ver a este respeito recorte clínico do capítulo "Prosódia e enunciação na clínica com bebês".
69
em uma alíngua que causa formigamento, cócegas, furor, para dizê-lo tudo, que causa
animação do gozo do corpo.
138
A mãe, ao colocar em cena com o bebê certos
particularismos forjados na língua, convoca o bebê nesse ponto de cruzamento em que o
gozo e o desejo implicados no sujeito da enunciação incidem na língua, subvertendo-a.
Em segundo lugar, porque o bebê devém como sujeito capaz de uma fala plena na
medida em que a dimensão do enigma esteja comportada no laço com seus pais. É preciso
que o fato de o bebê ser objeto do desejo materno se conjugue com a suposição de que ele
deteria um saber sobre o desejo materno que a própria mãe ignora saber. Ou seja, o bebê
não fica simplesmente situado como um objeto restitutivo da castração materna, mas sim
como herdeiro do desejo inconsciente dos pais e, portanto, como um sujeito que
supostamente deteria um saber sobre o desejo encarnado em seu corpo. Daí que o dado a
ver em seu corpo assuma a dimensão de um retorno do recalcado parental.
Em terceiro lugar, é preciso ainda considerar que a questão que se coloca em relação
à inscrição do sujeito enquanto falasser certamente retorna e se retoma no ato de ler o texto
escrito. O ato da leitura reintroduzirá o enigma para a criança,
139
enigma em relação ao
qual lhe será preciso articular um saber-fazer. Por sua vez, o ato de escrever, a angústia
diante da página em branco, nos confronta com o velho exercício dialético da alienação-
separação.
140
Como retomar estes traços inscritos em nós para produzir algo a partir deles?
Ao fazer isso acaba comparecendo nossa repetição e nosso estilo de escrever
141
que
se revela por todas as nossas insistências devido ao que em nós se repete em torno de um
real que não cessa de não se inscrever.
Se o primeiro problema situado diz respeito à diferença entre a letra enquanto
138
Jacques Lacan (1973-1974). Seminario 21, clase 15, 11/06/1974.
139
Jean Bergès. A instância da letra na aprendizagem, p. 6-10.
140
Gérard Pommier (1993). Nacimiento y renacimiento de la escritura, p. 7.
141
Apesar dessa rápida consideração sobre o assunto não pretendemos neste texto adentrar na interessante
diferença entre fala e escrita, como ato de escrever considerado como uma retomada da letra enquanto
inscrição psíquica mas focar na relação que opera entre o que comparece no ato de enunciação de um
sujeito e as inscrições inconscientes que estariam operando na produção de tal fala para chegarmos a articular
a relação que opera entre fala materna e inscrição da letra para o bebê.
70
inscrição psíquica e a função da letra no escrito, um segundo problema é a relação que
opera entre a fala e as inscrições psíquicas, questão que não é indiferente considerar desde
o viés de um adulto constituído ou de uma criança em plena constituição.
Levando tal questão ao tempo primordial da constituição do sujeito e considerando
que tais inscrições não estão dadas, mas se produzem no laço com o Outro do bebê, o que
fica em jogo é qual a relação que opera entre a fala materna atrelada aos cuidados que esta
realiza e a inscrição da letra no corpo do bebê.
Como se percebe, este segundo problema se articula ao primeiro, pois, se a
transmissão da letra, a produção de inscrições constituintes, não equivale pura e
simplesmente a uma transmissão positivada do código, então somos levados a considerar
que tal transmissão opera pelos equívocos da fala materna,
142
pela alíngua materna
143
que
ela introduz, indo além da língua, no laço com o bebê e, portanto, como abordaremos mais
adiante, pelo viés em que a letra, por meio do transitivismo materno, faz borda ao gozo do
corpo.
Já na clínica com adultos neuróticos, temos notícias das inscrições inconscientes pela
fala de tais pacientes, pelo que se repete nas narrativas que fazem da sua vida, de seus
sonhos, das queixas acerca de seus sintomas ou pela irrupção que se introduz ao
produzirem um ato falho, lapso ou sonho.
Mas, apesar das metáforas arqueológicas de Freud, o psicanalista jamais encontra a
"cidade do inconsciente", a sua morada. Jamais pode reconstruí-la plenamente e passear
por ela como em Teotihuacan, nas Pirâmides ou na Acrópole. A clínica psicanalítica
permite o fugaz encontro com os "caquinhos" do inconsciente que introduzem um non-
sense pelo qual a letra comparece. É por meio destes "caquinhos", destes fragmentos,
destas letras caídas, que testemunhamos o inconsciente. Inicialmente o testemunhamos
142
Alfredo Jerusalinsky. Saber falar, p. 50.
143
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 188.
71
enquanto enigma e, ainda que seja possível realizar com tais letras caídas da série algumas
construções, nunca é possível juntar todo o quebra-cabeça. Tal é o limite das metáforas
arqueológicas enquanto aparelho psíquico.
O testemunho que temos do inconsciente comparece na fala, apresenta-se na
superfície e ainda que o faça de modo fragmentário, introduzindo um non-sense ao
pensamento racional, revela certa coerência em sua insistência à repetição. Isto leva os
psicanalistas a suporem, desde Freud, que essas produções irruptivas dos processos
conscientes seriam efeito de inscrições inconscientes. Fica assim situada a relação entre
fala e inscrições psíquicas. Mas falar delas não seria simplesmente revelá-las, trazendo à
tona uma velha edificação das profundezas, que a partir de cada comparecimento da
letra, de cada caquinho pego e trabalhado, esta suposta cidade do inconsciente sofreria
rearranjos, retranscrições.
Assim, poderíamos pensar nesta suposta instância da letra no inconsciente da qual
falará Lacan –, mais do que como uma cidade perdida e enterrada nas profundezas, como
algo mais parecido com as escadas da escola do Harry Potter,
144
que vão mudando de
lugar. Uma arquitetura que parte de certos elementos, de certos traços inscritos que
mantém algumas trilhas fixas que se repetem, mas que está sujeita, em função dos
acontecimentos, a rearranjos, a certa mobilidade entre eles. Se um ato falho irrompe a fala
e é causado por inscrições inconscientes, falar dele em análise pode permitir uma
reinscrição. Este é o trabalho de análise: partir do non-sense introduzido pela irrupção de
uma formação do inconsciente, considerando-o um enigma a partir do qual se pode
articular uma leitura, um alinhavo, apesar do ponto em que comparece a faceta de sua
irredutível ilegibilidade.
144
Personagem central da série de best sellers infanto-juvenis de mesmo nome, escritos por J.K. Rowling (1997)
e levados ao cinema, a partir de 2001, em filmes com a direção de Chris Columbus e produção dos estúdios
Warner Bros.
72
A letra, na medida em que caiu da fala na operação do
recalque, é aquilo de que o inconsciente é constituído. Mas talvez
seja preciso manter, ao mesmo tempo, que é na medida em que a
letra é recolocada em jogo em significantes e significantes que
podem ter efeitos de sentido, que a interpretação é possível.
145
Portanto o inconsciente não corresponde a uma escritura, tal como a de um suposto
livro sagrado. Nós nos havemos com suas fugazes irrupções, diante das quais a leitura que
o atrela a uma série sempre está por vir.
Por isso o sonho não é um texto dado cujo sentido um analista, como um
especialista de palavras-chave, viria a desvendar, fazendo dele um livro aberto. No sonho,
as imagens, as diferentes percepções sensoriais, são produzidas a partir das inscrições do
inconsciente, mas é a partir da leitura, da decifração articulada em transferência, que seu
texto se produz.
146
Tal é a diferença entre falar de inscrições inconscientes, e falar de uma
escritura inconsciente o que pode dar a impressão de um texto com uma significação já
decidida.
Isto é perfeitamente coerente com o que Freud propõe acerca das chamadas
formações do inconsciente como fenômenos que podem ser reportados a um material
psíquico incompletamente suprimido, o qual, apesar de repelido pela consciência, ainda
assim, não teve roubada toda sua capacidade de se exprimir.
147
Assim, o aparente sem-
sentido, o non-sense, coloca em cena a divisão do sujeito perante a irrupção do
inconsciente e, ao mesmo tempo, nos mostra como o inconsciente não está oculto em
camadas profundas, comparecendo no ato de enunciação.
Sempre lhes suplico que se livrem da confusíssima discussão entre o superficial e o
profundo. Não nada mais profundo do que o superficial, porque não há profundo
145
Roland Chemama. Questões sobre a interpretação, p. 117.
146
Adela S. Gueller. Vestígios do tempo, p. 174.
147
Sigmund Freud (1901). Psicopatologia da vida cotidiana, p. 332.
73
algum,
148
afirma Lacan permitindo-nos situar a questão do sujeito do inconsciente a partir
da figura topológica da Banda de Moébius. Com ela tenhamos a impressão que haveria
dois lados, um direito e um avesso, tal como a divisão que se experimenta diante de uma
formação do inconsciente, mas ao andarmos por ela, tal como ocorre com a dinâmica de
nosso funcionamento psíquico, verificamos que se trata de uma única superfície.
O verdadeiro mistério do mundo é o visível, não o que não se , afirma Oscar
Wilde,
149
o que nos leva a interrrogar acerca do caráter enigmático do comparecimento das
formações do inconsciente e, fundamentalmente, pelo caráter enigmático que o sintoma
dado a ver no corpo do bebê faz comparecer. Não é porque ele se manifesta no corpo que
deteria um sentido evidente e articulado. O sintoma dado a ver, exposto na superfície
das funções corporais, convoca o olhar, mas um olhar que pode operar enquanto leitura em
vez de operar enquanto observação.
150
O sintoma dado a ver no corpo do bebê, que comparece como formação do
inconsciente produzida no laço mãe-bebê, pode ser tomado na clínica em analogia com a
figurabilidade (darstellung) do sonho, da qual nos fala Freud. O sonho não é em si uma
representação (vorstellung), ele está mais próximo de uma apresentação que não é
puramente simbólica, nem puramente imaginária, que com a pulsão entra também no
sonho algo do real.
151
No entanto, o dado a ver no corpo do bebê não é, per se uma
formação do inconsciente, pois o inconsciente não está dado por herança de modo
constitucional. É a partir do laço com o Outro que o dado a ver no corpo do bebê será
articulado à rede do discurso e capturado em algum retorno do recalcado materno e/ou
familiar, passando à dimensão de manifesto de um inconsciente em formação e, portanto
revelando, a não correspondência entre corpo e sujeito nos primórdios do psiquismo.
148
Diz Lacan, referindo-se à suposta afirmação de André Gide. Os moedeiros falsos. Jacques Lacan (1954-
1955). O seminário. Livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise, p. 195.
149
Oscar Wilde (1890). O retrato de Dorian Gray, p.30.
150
A este respeito, ver o capítulo "Leitura de bebês".
151
Adela S. Gueller. Vestígios do tempo, p. 189.
74
II.4. Transcrever, traduzir, transliterar
intervenções com os diferentes registros da letra
O inconsciente não é profundo, apresenta-se na superfície, mas revelando um sem-
sentido. Por isso a interpretação não opera simplesmente por uma tradução ou transcrição
de um texto que já estaria dado ali. A leitura em análise implica, em certa medida, a
própria produção de um texto a partir da letra concebida como uma concatenação de
traços que, ainda que se mostrem, ainda que se deem a ver na superfície, arrastam consigo
uma irredutível ilegibilidade. Isto guarda relação com a película de cera da qual Freud nos
falava na "Carta 52", apontando que tanto o legível quanto o ilegível estão na superfície.
Avançando nesta questão, Allouch propõe a diferença entre transcrever, traduzir e
transliterar,
152
como três operações que não aparecem necessariamente isoladas umas das
outras na prática clínica, mas que dizem respeito a diferentes registros da letra:
A transcrição é uma operação pela qual se produz um escrito que é regulado pelo
som, a partir do estabelecimento de uma correspondência fonética e fonológica entre letra e
som. Implica uma operação que aproxima a letra do registro real por procurar transcrever a
notação fonética da fala, de forma independente do sentido ou dos jogos de linguagem que
a mesma comporta. Tenta, assim, registrar a coisa tal e qual ela é, mas esbarra na
impossível tarefa de fazê-lo.
A tradução (de uma língua para outra) é uma operação na qual o escrito é regulado
pelo sentido, tentando apagar a dimensão equívoca e procurando aproximar-se ao máximo
do suposto sentido original. Ao fazer isso, ao tentar mergulhar no seu "sentido profundo”,
o tradutor se afasta do que no texto é literal. Por isso é uma operação que sublinha o
registro imaginário da letra, do sentido único.
153
152
Jean Allouch. Letra a letra, p. 13-18.
153
Apesar, é claro, de que haja traduções nas quais se tenta recuperar a homofonia, a polissemia, a dimensão
75
A transliteração, terminologia que não é utilizada nem por Freud nem por Lacan,
mas introduzida por Allouch, é definida como uma operação simbólica, própria da
operação analítica, na qual o escrito é regido pela letra. Consiste em uma leitura literal que
merece ser designada como um deciframento,
154
pois tal como Champollion fez diante dos
hieróglifos, o que muda não é o que está ali escrito, mas uma forma de ler para outra, na
qual não se privilegia nem a correspondência fixa entre um som e uma notação e nem entre
uma imagem e um sentido.
O hieróglifo às vezes é ideográfico, às vezes alfabético, ou seja, sem que o signo
mude, ele muda de valor na leitura, sendo necessário recalcar uma dimensão para que
apareça outra.
155
Um modo semelhante de funcionamento se evidencia nos enigmas e piadas infantis,
como a de um menino de quatro anos que pergunta: "Sabe como é a piada do pinto?",
"Como?", "Piu". Como aponta Gueller, se, diante de tais charadas, o interlocutor se guiar
pelo sentido, desatende as consequências da letra.
156
O que causa o efeito chistoso é
justamente revelar a mudança de registro, do sentido ao literal.
Como situamos, é o próprio Freud quem produz a analogia entre o trabalho do
psicanalista e o de Champolion, entre o trabalho de análise e o de decifração dos
hieróglifos, ao afirmar:
Se pensarmos que os meios de figuração nos sonhos são
principalmente imagens visuais e não palavras, veremos que é
ainda mais apropriado comparar os sonhos a um sistema de
escritura do que a uma linguagem. Na realidade, a interpretação
dos sonhos é totalmente análoga ao deciframento de uma antiga
escrita pictográfica, como os hieróglifos egípcios.
157
equívoca que se perde ao privilegiar o sentido. Mas, nesse caso, essa tradução implica certa transliteração,
como tentativa de manter, para além do sentido, o jogo da língua.
154
Idem, p. 14.
155
Ver, por exemplo, a passagem clínica sobe "o mato e o morro" trazida no início do capítulo.
156
Adela S. Gueller. Vestígios do tempo, p. 177.
157
Sigmund Freud (1913). O interesse científico da psicanálise, p. 212. Optamos, no entanto, pela livre tradução
do termo espanhol figurativa em lugar de representativa. Obras Completas da Biblioteca Nueva.
76
Aponta, no entanto, que o conteúdo do sonho não pode ser lido por um valor
figurativo, sendo este o erro cometido pelos antecessores da psicanálise: tomar o sonho
como uma composição pictórica.
158
Semelhante foi o erro dos antecessores de Champolion. Ao ficar capturados na
imagem dos hieróglifos, considerando-os ideogramas, ou seja, como figuras
representativas de ideias, não conseguiram lê-los. Champolion foi o primeiro a supor um
uso misto de tais hieróglifos: considerando-os por seu valor fonético, sonoro, e não
puramente por seu valor figurativo.
159
Ao comparar, por meio da pedra de roseta (que tem três escritas: hieróglifos
egípcios, grego e demótico), que às 500 palavras gregas correspondiam 1419 sinais
hieroglíficos, Champolion deduziu que cada um destes não poderia corresponder a uma
palavra, conceito ou sentido. Daí que tenha concluído que se fazia um uso fonético de tais
hieróglifos.
160
Isso foi o que possibilitou a decriptação da escrita egípcia.
Tanto Freud quanto Lacan, ao retomar o trabalho de Champolion, equipararam a
interpretação dos sonhos à decifração de uma escrita hieroglífica, apontando o equívoco de
seus antecessores de ficarem imaginariamente capturados à correspondência entre uma
ideia e seus conteúdos figurativos. A passagem da imagem à significação não se produz
diretamente pela sua figurabilidade. É preciso um trabalho de mudança de registro dessas
imagens em direção ao significante. É preciso falar do sonho por meio da associação livre,
fazendo comparecer significantes mas tais significantes, em lugar de serem
rapidamente precipitados em relação a um significado, a um simbolismo, são tomadas ao
pé da letra (em uma transliteração).
Ainda que Freud não nomeie tal operação como transliteração, traz inúmeros
exemplos deste modo de proceder clinicamente em "A interpretação dos sonhos" e
158
Sigmund Freud (1900). A interpretação dos sonhos, p. 296.
159
Jean Allouch. Letra a letra, p. 114.
160
Alfredo Jerusalinsky. Saber falar, p. 43.
77
"Picopatologia da vida cotidiana".
Lacan, por sua vez, aponta que a letra é o que se apresenta no sonho e o sonho
precisa ser lido ao pé da letra, tomando a sua estrutura literante,
161
considerando a fonética
que se apresenta articulada à formação dessa imagem e não em um suposto sentido que
essa imagem ocultaria ou representaria. É por isso que ver na borra do café não é ler nos
hieróglifos.
162
A interpretação não é ver o sentido de uma imagem, mas possibilitar uma
operação de leitura.
Propõe que outra analogia possível para o trabalho do sonho seria a de um jogo de
salão na qual é preciso fazer com que os espectadores adivinhem um enunciado conhecido
por meio de uma encenação muda. O mesmo pode ocorrer por meio de um desenho, como
no jogo "Imagem e ação" no qual, como pude presenciar uma vez, era preciso comunicar o
nome da uma "personalidade": Ágata Christie. Isso foi feito do seguinte modo: desenhado
um livro, uma lupa, e, na sequência, um gato com fita na cabeça (gata) com grimas
caindo dos olhos (triste). Pelo valor fônico de "a gata triste”, somado ao sentido evocado
pelo desenho do livro e da lupa, os integrantes chegaram ao nome Ágata Christie.
A decifração em tal jogo, assim como a que ocorre diante da apresentação do sonho
são assunto de escritura e não de pantomima.
163
Ambas passam pelo olhar, mas enquanto
na pantomima tenta-se buscar sentido no que se assemelha em imagem, na operação de
leitura toma-se a apresentação que se mostra ao olhar como uma escrita enigmática.
No entanto, uma diferença fundamental a ser considerada: se no jogo relatado a
resposta do enigma está previamente escrita, previamente decidida, no trabalho de análise
ela não o esta. A interpretação consiste em considerar o traço da repetição que insiste em
se apresentar, mas não se detém aí, pois a questão é principalmente poder fazer algo com
isso. Nesse sentido, decifrar não é revelar a repetição, mas poder operar com a cifra
161
Jacques Lacan (1957b). La instancia de la letra en el inconsciente o la razón desde Freud, p. 490.
162
Idem, ibidem.
163
Idem, p. 492.
78
fazendo valer a migalha de criação do sujeito diante da sobredeterminação que o acomete.
É aí que a interpretação produz um efeito terapêutico. Só é possível criar em uma retomada
das inscrições constituintes, mas nem tudo está escrito. Por isso afirmar que a letra,
enquanto traço inconsciente, está inscrita, não equivale a dizer que seu sentido esteja
decidido em uma escritura.
II.5. A intervenção clínica entre legibilidade e rasura da letra
Como situamos no início do capítulo, pelo menos três tempos implicados na
constituição do significante. Para chegar a tal constituição é preciso que, além da pegada,
se introduza um segundo tempo, o do apagamento, que substitui o traço produzido a partir
da pegada, por uma rasura. Ao apagar o traço, retorna-se sobre o tempo de uma ausência,
mas o terreno já não fica igual a como era antes dessa passagem. A terra fica mexida, ainda
que esse borrão, essa rasura, essa litura, não guarde mais nenhuma relação com a marca da
pegada do objeto em si. É aí, nesse terceiro tempo, que temos o testemunho da passagem
de um sujeito.
animais que instintivamente deixam rastros de sua passagem, por exemplo, com
o odor secretado de certas glândulas, a fim de delimitar seu território. também animais
que instintivamente produzem um apagamento de seu rastro tal como o gato que enterra
as suas fezes. Mas os animais não produzem rastros falsos, isto é, rastros tais que sejam
tomados como falsos embora sejam os vestígios de sua verdadeira passagem.
164
Não
nada mais humano do que isso, na medida em que não nada mais próprio do
funcionamento significante.
164
Jacques Lacan (1962-1963). O seminário. Livro 10. A angústia, p. 75.
79
O mecanismo psíquico do recalque, como aponta Freud, opera de modo análogo
aos censores de edições que rasuram certas palavras de uma publicação.
165
Elas continuam
a comparecer na superfície impressa, mas de modo ilegível. Isto, além de introduzir uma
lacuna no texto, de produzir um sem-sentido, nos confirma que o que ali está é o que
efetivamente conta para o sujeito.
Se a operação de recalque visa o apagamento, o esquecimento, o que efetivamente
se encontra é o rastro nunca efetivamente apagado. O que se abole é a sua passagem para o
significante e ele é empurrado na direção do real
166
portanto, na direção de um retorno à
sua condição de letra ilegível. Nesta operação se abole também o sujeito, pois só há sujeito
através do significante, da passagem para o significante.
167
Podemos, a partir daí, situar o seguinte esquema que, mesmo não sendo exaustivo,
permite situar:
168
Pegada--- apagamento --- rasura ----------|
Marca traço |
LETRA
/ \
<-------- ---------
Real Enigma significante
Ilegibilidade operação cadeia associativa
de leitura
Umbigo do sonho deciframento
repetição
Onde isso nos leva em relação ao comparecimento da letra na clínica e em relação à
intervenção?
A formação do inconsciente é justamente a letra que comparece como fragmento
165
Sigmund Freud (1937). Análise terminável e interminável, p. 269.
166
Jacques Lacan (1962-1963). O seminário. Livro 10. A angústia, p. 167-168.
167
Idem, ibidem.
168
Tal esquema, mesmo não sendo plenamente equivalente, toma como ponto de partida um elaborado a
partir das discussões com Alfredo Jerusalinsky e demais colegas participantes do "seminário sobre
linguagem", DERDIC-PUC-SP, 2002.
80
caído da série. De início isso não faz sentido algum, é ilegível, mas, na medida em que isso
concerne ao sujeito, se lugar a um trabalho de análise que intervém por meio de uma
leitura, um deciframento em transferência, na qual o sujeito se implica. Este é um ponto
importante acerca da letra e sua leitura como ato de interpretação.
Por um lado, não se trata de intervir produzindo traduções, ou seja, fechamentos de
sentido. Dar sentido ao sintoma seria reforçá-lo. É por isso que nossas intervenções
deveriam jogar com o equívoco do significante.
169
Isto não implica dar livre vazão a
quaisquer jogos significantes que em nada afetam o sujeito.
A interpretação não está aberta a todos os sentidos. Não é
qualquer uma. É uma interpretação significativa e não deve ser
falha. No entanto, esta significação não é o essencial para que o
sujeito advenha. O essencial é que o sujeito veja, além desta
significação, a que significante sem sentido, irredutível,
traumático – está, como sujeito, submetido.
170
Se isto afeta o sujeito, se o implica em um ponto irredutível, traumático, é porque
atinge a sua economia de gozo, o atinge em suas inscrições mais primordiais, mais
ilegíveis, mais empurradas na direção do esquecimento e que, no entanto, insistem. Temos
notícias da letra na medida em que esta caiu da fala pela operação do recalque, mas
continua a comparecer nas formações do inconsciente, arrastando consigo um gozo que
insiste, ao mesmo tempo em que se mostra em sua ilegibilidade.
É que Chemama nos propõe um duplo movimento na interpretação que iria do
significante à letra, e da letra ao significante. É na medida em que a letra é recolocada em
jogo em significantes e significantes que podem ter efeitos de sentido, que a interpretação
é possível. Ao mesmo tempo é aí que o dito espirituoso tem a chance de vir balançar nosso
saber.
171
Situar o dito espirituoso aponta que uma análise não consiste em construir um
169
Roland Chemama. Dicionário de psicanálise Larousse, p. 113.
170
Jacques Lacan (1964). El seminário. Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, p. 258.
171
Roland Chemama. Questões sobre a interpretação, p. 117.
81
conhecimento sobre o sintoma, mas sim poder chegar a um saber fazer com seu sintoma,
saber fazer ali com isso que se mostra.
172
O jogo significante, a possibilidade metafórica a que ele lugar, se estabelece na
medida em que lidamos com representantes não representacionais dos objetos. Como no
exemplo de Crusoé, temos aí o traço do passo e o apagamento do traço, e é do trace de pas
ao pas de trace, aponta Lacan, que se estabelece o significante.
173
E é nesta mesma direção
que o chiste, o dito espirituoso, se produz, levando do pas de sense, como o sem-sentido
das formações do inconsciente (implicado no gozo do sintoma ou do ato falho), a uma
passagem de sentido
174
que faz rir produzindo, através da linguagem e através da
comunicação a outro, um ganho de gozo que afeta o corpo.
No sintoma, no ato falho e no chiste comparece o cruzamento entre corpo e linguagem.
São precipitados que põem em causa, como afirma Costa, uma heterogeneidade impossível
de transpor, mas, ao mesmo tempo, impossível de separar.
175
Como Freud advertiu em sua prática e como Lacan formalizou conceitualmente, as
formações do inconsciente apresentam uma estrutura literal. A esse respeito Pommier
assinala:
(...) O sintoma é, portanto, uma letra. Se a psicanálise tem um
efeito terapêutico é, além disso, porque existe esta equivalência
generalizada entre as formações do inconsciente e a instância da
letra: toda ação sobre a letra no nível da linguagem durante a
cura, terá, graças a essa equivalência, um eco sobre o corpo.
176
O recalcado abre caminho sob uma forma literal, seja que se
ouça no que se diz (como o lapso), que se mostre (como no sonho),
ou se escreva sobre o corpo (como o sintoma).
177
172
Condensamos aqui as duas formulações de Lacan: isso mostra (pelo qual aponta como o Isso, enquanto
instância psíquica comparece no sintoma dado a ver, como foi trabalhado no capítulo anterior) e saber
fazer ali com isso (pela qual aponta como efeito da análise um saber fazer com o sintoma). Lacan (1976-
1977). Seminario 24, L'insu que sait de l'une-bevue s'aile à mourre, p. 14.
173
Lacan (1961-1962). Seminario 9. La identificación, clase del 9 de enero de 1962.
174
Idem, retomando questão trabalhada por Jacques Lacan (1957-1958). O seminário. Livro 5. As formações
do Inconsciente, p. 103.
175
Ana Maria Medeiros da Costa. Algumas reflexões sobre a inscrição da letra, p. 116.
176
Gerard Pommier (1993). Nacimiento y renacimiento de la escritura, p. 192.
177
Idem, p. 197.
82
Por isso, o que interessa em uma análise é o ponto em que a letra tange o gozo, e não
uma pura máquina de trocadilhos e jogo de palavras incessantes.
Que o inconsciente jogue com as palavras enquanto coisa, que as tome no viés de
um real que produz um sem-sentido para dar passagem ao gozo, não equivale a dizer que
qualquer trocadilho permita um trabalho de deciframento, ou seja, que permita operar
sobre a cifra com a qual se joga o cálculo inconsciente do gozo de um paciente.
Lacan deixa isto em evidência quando aponta que o objeto da psicanálise não é a
linguística, mas a Linguisteria. Por meio desse neologismo, faz valer que o que interessa à
psicanálise é a subversão que o sujeito do inconsciente produz, introduz, na linguagem.
Assim, o dito se perturba, é aturdido, e comparece o aturdito (léturdit) que arrasta o
gozo.
178
É que a intervenção clínica opera: entre a legibilidade e ilegibilidade da letra,
entre linguagem e corpo, significante e pulsão, no litoral entre saber e gozo. Intervém com
a letra que, como uma moeda, apresenta duas caras: uma que se volta para o simbólico,
para a articulação significante, para a possibilidade de um saber em que se produz o
sujeito; e outra que se volta para a inscrição enquanto rasura, para o real, para o que não
cessa de não se inscrever, para o gozo.
Como retomamos ao longo do trabalho, a letra, assim concebida, comparece na
clínica com bebês por meio dos jogos constituintes do sujeito e na relação que se
estabelece entre a fala do Outro encarnado, implicado em uma identificação transitivista, e
a inscrição da letra no corpo do bebê. Para tanto, priorizaremos a concepção de letra como
litoral entre saber e gozo, sem desconsiderar que se trata de um conceito que teve
diferentes formulações.
178
Ambos neologismos de Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 25-26
83
II.6. Sobre o conceito de letra e suas reformulações
Ao longo da produção de Lacan, o conceito de letra vai sendo retomado e sofrendo
modificações. Mas, dado que estamos considerando a letra como uma moeda de duas
caras, de início é importante fazer notar que lettre implica um duplo sentido próprio da
língua francesa, que não se mantém em português. Não é indiferente que, diante de tal
termo, aquele que o ouve seja levado a se interrogar de que letra se trata: da lettre enquanto
carta, enquanto mensagem, ou da lettre como elemento isolado, caída da série.
No início das conceituações de Lacan, o conceito de letra aparece de modo bastante
superposto com o de significante. Ele afirma: vou mostrar-lhes que a letra é a essência do
significante; a letra é o suporte do significante.
179
dois textos centrais nessa direção: "A carta roubada" e "A instância da letra no
inconsciente" textos em que se postula o inconsciente estruturado como uma linguagem
e o lugar decisivo ocupado pelo significante nessa estrutura. Tais textos são concomitantes
aos primeiros cinco seminários.
No texto "A carta roubada" Lacan situa a letra pelo viés em que esta se articula à
função significante, produzindo todo um jogo entre letra enquanto inscrição psíquica,
elemento tipográfico e carta-mensagem, na qual se vale da polissemia do termo lettre em
francês.
Como situamos no capítulo anterior, nesse texto Lacan parte do conto policial de
Edgar Alan Poe em que uma carta dirigida ao rei e que compromete a rainha é roubada
diante dos olhos desta. Essa carta, que falta em seu lugar e não pode ser achada, no
entanto, permanece o tempo todo sobre a lareira, à vista dos policiais, tão preocupados em
seguir pistas que não veem o que é evidente.
179
Jacques Lacan (1961-1962). Seminario 9. La identificación.
84
Sublinha-se a vertente simbólica da letra ao equiparar essa letra-carta roubada ao
exemplo do livro que falta na biblioteca: basta que ele esteja fora de lugar para que falte.
Ele não está escondido, simplesmente falta em seu lugar. Aponta-se que nada define
melhor o simbólico do que algo que falta em seu lugar e que pode mudar de lugar.
Enquanto o real, seja qual for o transtorno que se lhe possa atribuir, está sempre e em
todo caso em seu lugar, leva-o colado à sola do sapato sem conhecer nada que possa
exilá-lo dele.
180
Ao real nada falta.
Esse aspecto revela seu interesse, pois nos afasta da idéia de que se trataria, na
clínica, de tomar as formações do inconsciente esses comparecimentos da letra caída da
série – como tendo um valoroso sentido oculto a desvendar, apontando que é preciso tomá-
las desde o exposto na superfície.
A letra, como a carta sobre a lareira, comparece como um resto, um lixo – e aí Lacan
se vale da homofonia dos termos letter e litter em inglês –,
181
mas para que o que ela
apresenta se torne visível, para que possa ser lida, precisa ser considerada ao pé da letra.
Tal texto origem a dois importantes embates: primeiro, o de poder dar a entender
essa letra como portadora de uma mensagem, uma letra-carta que, apesar de cifrada,
estaria escrita e com um sentido estabelecido – questão que refutamos, pois, como o
próprio Lacan faz notar, todas as peripécias por ela sofridas e que acometem aqueles que a
têm em seu poder ocorrem de forma independente de seu conteúdo; o segundo ponto
polêmico diz respeito à afirmação de que uma carta (letra) sempre chega a seu destino.
182
A partir dela, o efeito de uma análise é situado como o de possibilitar que a letra em
sofrimento (implicada no sintoma ou ato falho), carta em espera, em suspenso, atrasada
pelo correio (lettre en souffrance) possa ser destituída de sua significação de mensagem e
180
Jacques Lacan (1956). El seminario sobre la carta robada, p. 19.
181
Questão que ele retomará, mais adiante, na aula "Lituraterra" do seminário 18.
182
Jacques Lacan (1956). El seminario sobre la carta robada, p. 35.
85
entrar no jogo significante.
183
A esse respeito é interessante notar que todos os movimentos do significante, que
Lacan demonstra a partir de um jogo lógico-numérico, partem de um caput mortuum
184
substância que, na alquimia, ficava como sobra de uma transformação química. Assim,
nesse texto, ainda que não seja o que nele é priorizado, comparece esta faceta da irredutível
ilegibilidade da letra, sua faceta de resto inassimilável, impossível de transformar em outra
coisa, dando à letra uma dimensão Real.
185
E, portanto, a letra nunca seria plenamente
redutível aos desfiladeiros do jogo significante.
Sobre as contribuições desse texto para a clínica com bebês apontamos, no capítulo
anterior, como o que o dado a ver na produção do bebê pode ser tomado enquanto
manifesto, carta/letra, em que isso mostra, de modo cifrado, o particular modo de
engajamento do bebê no laço com o Outro. A este respeito, como aponta Costa, e como
retomaremos adiante, o fato de que a carta/letra sempre chegue a destino pode ser
considerado no sentido de que a letra sempre se inscreve desde um precipitado relacional,
186
já que os circuitos pulsionais, a economia de gozo, passam pelo Outro.
Em "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud"
187
Lacan aponta
o quanto o inconsciente é constituído por inscrições psíquicas e não como uma simples
sede de instintos: é toda a estrutura da linguagem o que a experiência psicanalítica
descobre no inconsciente.
188
A máxima de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem é o fundamento
desse texto, no qual a letra aparece como a materialidade do significante como estrutura
183
Idem, p. 30.
184
Idem, p. 54.
185
Claudia Rego. Traço, letra, escrita, p. 178.
186
Ana Maria Medeiros da Costa. Algumas reflexões sobre a inscrição da letra, p. 116.
187
Jacques Lacan (1957b). La instancia de la letra em el Inconsciente o la razón desde Freud, p. 473-509.
188
Idem, p. 474.
86
essencialmente localizada do significante,
189
como suporte material que o discurso
concreto toma da linguagem.
190
Quanto ao sujeito, ele é servo da linguagem, que o
antecede e, ainda mais, de um discurso no qual o seu lugar está inscrito no momento de
seu nascimento ainda que mais não seja pelo nome próprio.
191
Nesse texto ele também trabalha com a relevância do algoritmo do signo linguístico
de Saussure (S/ s). Significante, barra, significado, mas pontuando a barreira que une estas
diferentes ordens e arma resistência à significação. Com isso retoma a discussão sobre a
arbitrariedade do signo linguístico proposta por Saussure como uma não naturalidade entre
signo linguístico e referente, apontando que não relação biunívoca entre a palavra e a
coisa.
Isto já põe em relevo a rua sem saída dos métodos que consistem em assinalar com o
índice o objeto ao infans na aprendizagem de sua língua materna ou nos métodos
concretos no estudo de línguas estrangeiras.
192
Temos algo que nos interessa acerca da transmissão da língua e da construção de
um saber simbólico por parte das crianças. Longe da correspondência da palavra à coisa,
na apreensão da língua e na construção de um saber, a criança se vale do jogo de oposições
significantes. É frequente dizerem que não gostam de algo por oposição ao que gostam.
Por exemplo: "não gosto de feijão branco porque gosto do preto". É de uma imensa
falsidade dizer-lhes que não têm como saber sem provar, pois afinal não se prova de tudo
para produzir um saber.
reside uma diferença fundamental entre a concepção da psicanálise e a concepção
da epistemologia genética de Piaget,
193
na medida em que enquanto a primeira põe o
acento na transmissão simbólica da estrutura que antecede a criança por meio do laço com
189
Idem, p. 481.
190
Idem, p. 474.
191
Idem, p. 475.
192
Idem, p. 477.
193
Jean Piaget (1959). El nacimiento de la inteligencia en el niño.
87
o Outro, a segunda o põe em uma sucessão de etapas de pensamento desencadeadas pela
experiência da criança até que esta chegue a construir o simbólico.
Diante de tal debate cabe, no entanto, sublinhar que, diante da transmissão simbólica
que se estabelece no laço com o Outro, a experiência da criança tem um valor decisivo
dado que, com suas produções, com seu brincar, põe à prova as incongruências do que lhe
é simbolicamente transmitido para, a partir de suas travessuras, construir sua própria
versão. Ou seja, não se prova de tudo para constituir um saber, mas também é preciso por à
prova o que foi simbolicamente transmitido para poder se apropriar disso.
Nesse texto, Lacan radicaliza as concepções de Saussure ao romper a elipse em torno
de cada signo linguístico (no qual, para Saussure, apesar de depender do contexto para sua
significação, o significante está situado como imagem acústica ligado a um conceito
enquanto significado), apontando que é preciso desprender-se da idéia de que a função do
significante não é a de representar o significado. Para Lacan, qualquer significação remete
a outra. Não se sustenta sozinha. É da estrutura do significante ser articulado
194
e é na
cadeia significante onde o sentido insiste, mas que nenhum dos elementos da cadeia
consiste na significação de que é capaz no momento mesmo. A noção de um deslizamento
incessante do significado sob o significante se impõe.
195
Lacan também rompe, assim, com a concepção de um significado estabelecido
linearmente e no momento mesmo de sua produção, sublinhando a importância do a
posteriori freudiano, do après-coup, como fundamental na temporalidade de uma
significação que só advém depois, operando retroativamente na cadeia significante.
A cadeia significante vai se articulando, porém Lacan também aponta que a produção
de um sujeito revela pontos de capitoné, pontos de acolchoado, requeridos por esse
sistema para dar conta da dominância da letra e da transformação dramática que o
194
Idem, p. 481.
195
Idem, p. 482.
88
diálogo pode operar.
196
São pontos de amarração que permitem ao sujeito, na medida em
que lhe fazem referência, deslizar simbolicamente sem entrar em errância, sem se perder,
pontos produzidos pela função paterna, pelos nomes-do-pai.
Lacan também aponta nesse texto a correlação entre os mecanismos psíquicos de
condensação e deslocamento, situados por Freud como próprios do inconsciente, com as
figuras de linguagem de metáfora e metonímia. Ao fazer isso, mais uma vez situa como a
linguagem não interessa por si só, mas na medida em que ela diz respeito à economia de
gozo de um sujeito: se o sintoma é uma metáfora, não é metáfora dizê-lo, do mesmo modo
que dizer que o desejo do homem é uma metonímia.
197
Ao longo do seminário nove, "A identificação",
198
Lacan trabalha com a história da
escrita e com a letra, enquanto inscrição psíquica, correlacionando-a com o conceito de
traço unário (como primórdio da identificação simbólica) e com o nome próprio.
O traço é a forma mais simples de marca, que implica a perda do objeto e, por isso,
está na origem do funcionamento significante. Nesse seminário isso é ilustrado a partir da
observação, em um museu, de uma série de traços verticais produzidos em um osso por um
homem pré-histórico. Lacan aponta como ali estaria em jogo o traço unário: a produção de
um traço que não guarda relação com a coisa em si, mas que, a partir do um (do traço
unário), inaugura a contagem para um sujeito, inaugura uma série simbólica. não
sabemos mais o que foi contado, na medida em que não correspondência desse traço
com a imagem do objeto, mas sabemos que há um sujeito produzindo uma série a partir do
traço repetido que, para ele, comemora a irrupção de um gozo.
199
Assim o sujeito se divide pela inscrição desse traço, pois, por um lado, tal inscrição
permite ao sujeito se reconhecer nesse traço, nesse um que, para ele, é o que conta; e, por
196
Idem p. 483.
197
Idem, p. 518.
198
Jacques Lacan (1961-1962). Seminario 9. La identificación..
199
Jacques Lacan (1969-1970). O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise, p. 73.
89
outro lado, tal inscrição comporta a dimensão da perda do objeto, ao produzir um traço em
seu lugar.
A relação do traço unário com a letra tem seu interesse em relação à clínica com
bebês justamente por apontar aos primórdios da instauração da linguagem e do
funcionamento significante. Como Freud já advertira, a compulsão à repetição é própria do
funcionamento psíquico, insiste algo de idêntico no comparecimento pulsional. Então, uma
questão que se coloca nos primórdios é como essa repetição pode vir a se transformar em
um traço de identidade para o sujeito. Nesta passagem, algo do sem sentido da repetição,
do que comparece uma e outra vez, arrastando um gozo, pode tornar-se um traço que se
conta. A partir desse traço pode-se produzir para o sujeito o reconhecimento, do eu sou
marca de um.
200
Por isso o um do unário não é único, no sentido de ser sozinho, ele é
unário no sentido de instaurar a singularidade, desde a qual pode se produzir uma série
simbólica a partir desse um que conta.
No início da vida, o bebê, mais do que se contar é levado em conta por outro, e por
isso a instauração do traço unário, da referência simbólica, depende do laço com o agente
da função materna. É a mãe que sustenta as séries para o bebê, é ela que faz dos objetos
papinha, leite, cocô, xixi, sono, meleca, ainda que não se lembre de cada um deles traços
que contam em uma série. É por isso que um bebê lançado em uma multiplicação anônima
de cuidadores apresenta sintomas tais como os descritos por Spitz: de marasmo hospitalar
ou depressão anaclítica,
201
na medida em que se esfacela a referência simbólica, o traço
unário que lhe permitiria ser sustentado uma série, que lhe permitiria ser levado em conta
por um Outro que encarna para ele esse traço.
A mãe, ao mesmo tempo em que propicia e comemora o comparecimento do gozo do
bebê nesse traço que se repete, faz desse traço uma referência simbólica para o laço. a
200
Idem, p. 147.
201
René Spitz (1965). El primer año de vida del niño.
90
repetição implica um traço, uma rasura, uma letra, que, se por um lado comporta o real,
comporta um gozo que permanece irredutível à palavra, por outro, joga o papel de uma
referência em que o sujeito se reconhece e, inicialmente, pelo qual a mãe reconhece o bebê.
Percebe-se como há todo um trabalho psíquico de procurar ligar, recobrir com a
palavra, tornar série simbólica, o comparecimento de um traço que inicialmente não
comporta em si sentido algum e que consiste em arrastar o sem-sentido da repetição de um
gozo. Este trabalho de recobrimento é central na constituição do sujeito, seja quando
exercido pelo agente da função materna, seja quando se faz necessária a intervenção do
clínico para sustentá-lo. Por isso, nos primórdios da constituição do psiquismo é central
este trabalho de bordejamento do real, de engajamento do sujeito em uma ordem
simbólica.
Por outro lado, quando jáum recalcamento em jogo, o sujeito fica preso à posição
significante que exerce diante dessa compulsão à repetição que o fixa na produção de um
sintoma pelo qual busca defender-se desse real que o assalta. Ou seja: Se o real é
traumático e exige ser recoberto para que se produza um sujeito, por sua vez, a máquina do
simbólico que se põe a funcionar para recobri-lo também pode resultar aprisionadora.
Surge a questão da migalha de criação
202
que o sujeito pode produzir servindo-se
dessa letra, desses traços (em lugar de ser simplesmente presa da compulsão à repetição),
subvertendo também a sobredeterminação simbólica.
Evoco, a esse respeito, a obra "Doador", produzida pela artista plástica Elida Tessler.
Trata-se de uma instalação composta por um corredor em cujas paredes estão fixados
diversos objetos. Entrei nele desavisada e intrigada com o que ligava todos esses troços
203
pendurados nas paredes: coador, ralador, liquidificador, grampeador, secador...
202
Situamos como "migalha" justamente porque não se trata da intenção de algo grandioso, mas do pequeno
elemento que, ao comparecer e ser resgatado em seu justo valor, é capaz de subverter toda a ordem, a letra
entre o lixo e a criação.
203
A relação entre "troços" e traços e retomada nas "considerações finais".
91
Surpreende-me o sufixo dor, em comum entre eles, elevando esses objetos à dignidade da
coisa.
204
Letter e litter: a letra entre o resto e a criação. Da dor que afeta o corpo, causada
pela perda do objeto, à falta que abre a possibilidade de criar. Não se entra e se sai igual
desse corredor.
205
Na clínica, ao propiciar o brincar, intervimos a partir dessa compulsão à repetição,
não na direção de dar lugar a uma ligação, a uma associação, a uma extensão simbólica
da cena do brincar e da fala que tomem a letra em uma série significante –, mas também
possibilitando uma criação da criança ao valer-se dessa insistência de gozo para, a partir
dela, poder produzir algo de novo. este real pulsional que insiste, pode ser
transformado, pode dar lugar a uma transposição de registros pela qual, ainda que o brincar
não deixe de comportar um real, deixa de ser real, pode dar lugar a uma ficção, pode
comportar o imaginário e o simbólico.
206
A partir do exposto é possível perceber como ao longo da transmissão de Lacan, o
conceito de letra vai sendo diferenciado do de significante. Alguns autores
207
circunscrevem um segundo momento em sua produção – no qual Lacan busca, por meio da
letra, valer-se de axiomas que reduzam os efeitos imaginários que surgem da transmissão
dos conceitos, por exemplo, pela fórmula do fantasma, da sexuação ou dos quatro
discursos. Dentro da perspectiva de situar viradas paradigmáticas na obra de Lacan, situa-
se a existência de um terceiro momento nomeado como desconstrução, no qual a letra
aparece claramente diferenciada do significante.
208
Nesse momento, ainda que os primeiros
204
Jacques Lacan (1959-1960). clase X: breves comentários al margen. In: El seminario. Libro 7. La ética
del psicoanálisis, p. 165.
205
Elida Tessler (1999). Doador. Tal obra surge a partir de uma listagem de objetos que tem em comum o
sufixo dor. O corredor em que tais objetos são fixados (270 objetos dados por 270 doadores) tem as mesmas
dimensões e aspecto do que aquele que ligava o apartamento da artista ao dos avós. A realização de tal obra
corresponde ao tempo do luto da mãe. Entrevista com Elida Tessler, in: revista Oroboro: revista de Poesia e
Arte, n.2, dezembro-janeiro-fevereiro de 2004 2005; Robson de Freitas Pereira. Doador revisitado. In:
Textos críticos WWW.elidatessler.com.br, 2002. A imagem dessa obra consta nos anexos.
206
A questão do brincar é retomada no capítulo "Jogos constituintes do sujeito".
207
A este respeito ver Jean-Claude Milner (1995). A obra clara.
208
Idem.
92
postulados pelos quais a letra se presta à articulação significante não sejam
abandonados, aponta-se como a letra faz também comparecer o gozo, o viés do real, o que
não se articula à série significante, fazendo borda e furo no saber.
No seminário dezoito,
209
significante e letra passam a revelar uma diferença
correlativa àquela que opera entre fala e inscrições psíquicas, assim como entre escuta e
leitura na clínica. Nesse seminário Lacan situa que a intervenção psicanalítica
corresponderia a uma operação de leitura.
210
Propõe que a letra não é anterior ao
significante, mas um precipitado deste, elaborando o conceito de letra como litoral entre
gozo e saber. Afirma:
A letra que produz rasuras se distingue ali por ser
ruptura. (...) A letra é no real e o significante no simbólico.
Singularmente isso parece levar ao resultado de que não nada
para defender do recalque, que o recalcado mesmo encontra
como se alojar por esta referência à letra. Em outros termos, o
sujeito está dividido como em todas as partes pela linguagem, mas
em um desses registros pode se satisfazer pela referência à escrita,
e no outro pelo exercício da palavra.
211
(...) nada permite confundir, como se tem feito, a letra com o
significante. O que escrevi, com a ajuda de letras, das formações
do inconsciente, não autoriza a fazer da letra um significante e
afetá-la, o que é mais, com um caráter primário a respeito do
significante.
212
A concepção de letra enquanto litoral entre gozo e saber, portanto, não é a única nem
a definitiva, mas nos permite uma formalização interessante para a clínica dos primórdios
da constituição psíquica, como trataremos a seguir.
209
Jacques Lacan (1971b). Seminario 18. De un discurso que no seria del semblante.
210
A letra é algo que se e se literalmente. O escrito de Joyce se aproxima da leitura do analista. Temos
que ler: o lapso. É como lapso que significa algo, quer dizer, que pode ser lido de uma infinidade de
maneiras diferentes. E precisamente por isso se lê mal, a contramão, ou não se lê. No entanto, esta dimensão
do ler, acaso não basta para demonstrar que estamos no registro do discurso analítico? Jacques Lacan
(1972-1973a). O Seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 38-52.
211
Jacques Lacan (1971b). Seminario 18. De un discurso que no seria del semblante, clase del 12/5/71.
212
Idem.
93
II.7. O bebê e a letra como inscrição de um litoral
Na aula "Lituraterra" do "Seminário 18" e, posteriormente, no "Seminário 20", Lacan
propõe uma metáfora interessante para situar a relação entre linguagem, letra e significante
na produção de inscrições psíquicas. Em relação à infância podemos articular tal metáfora
do seguinte modo:
A linguagem seria como a nuvem (estrutura simbólica). Mas não basta a nuvem
nem a chuva, enquanto fala materna, para que se produzam efeitos de inscrição na terra
(enquanto corpo do bebê). É necessário que a torrente de significado (imaginário) que
corre como um rio deposite seus aluviões, esses restos que sulcam, que marcam a terra, tal
como a letra que se inscreve. Esses restos comparecem quando, na fala, o que se quer dizer
rateia, interrompe o fluxo de sentido, fazendo comparecer na alíngua, como um resto, seu
gozo efetivo.
213
É que o bebê se engaja, nisso que a mãe inconscientemente sublinha,
pela implicação do gozo que comparece em sua fala como algum ponto significativo desse
enigma que quer se inscrever.
214
Assim a letra, enquanto inscrição psíquica no bebê, não é anterior ao significante,
mas uma precipitação deste a partir do laço com a mãe. A letra comparece destacada dessa
"nuvem da linguagem", ela precipita, chove do semblante.
215
Por sua vez, será preciso que
opere um trabalho de leitura e, portanto, de ligação para que a partir de tais precipitados, a
partir da letra, se dê, por parte do bebê como sujeito, a produção de um saber, fazendo
operar essa letra de modo atrelado ao significante. Se a letra se inscreve como um aluvião
depositado a partir da fala materna, introduzindo um enigma, será preciso que, a partir
desse aluvião, desse rastro, o bebê, sustentado no laço com o Outro, produza uma nova
articulação significante.
213
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 163-164.
214
Alfredo Jerusalinsky. O nascimento do sujeito: da voz à letra, p. 23.
215
Jacques Lacan (1971a). Lituraterra, p. 17-32.
94
É também nesse seminário, em sua sétima aula, que Lacan, tergiversando o termo
"literatura", introduz o neologismo lituraterre, pondo em relevo a condição de litura, de
rasura da letra, e articulando a literalidade da letra como litoral entre gozo e saber. Como
no litoral entre a areia e as ondas na praia, a letra permanentemente reinscreve a borda em
que se tangenciam duas substâncias de distinta ordem.
216
Em geral, parte-se da idéia de uma oposição entre corpo e linguagem, quando
justamente a clínica, pelas formações do inconsciente, nos revela que eles se apresentam
sempre fazendo litoral, distintos, porém indissociáveis. Isto fica evidente quando a
produção de um lapso se apresenta produzindo rubor ou quando ele introduz a
possibilidade de ser tomado como um chiste. O rubor implica que a letra se precipitou e
colou no corpo por efeito do olhar censor do interlocutor, que surte um efeito superegóico.
Já no chiste, a letra produz um gozo autorizado do interlocutor, partilhado no riso.
217
Esses exemplos evidenciam como o corpo pulsional não se produz de modo
individual, mas como um precipitado relacional. Costa propõe que esta é uma maneira de
ler o que Lacan diz ao afirmar que toda carta/letra chega a seu destino, a seu endereço. A
letra tem endereço porque se produz num lugar relacional, faz borda nesse corpo relacional
na medida em que inscreve um enigma que representa o Outro.
218
Por meio das inscrições
primordiais, o bebê é portador dessa letra no corpo que está enraizada no estabelecimento
de seus circuitos pulsionais. E é essa letra que retoma na produção de um saber desde o
qual se situa como sujeito.
A letra revela sua dupla vertente: se enlaçada, se articulada, ela pode significar, ao
mesmo tempo em que, ao comparecer isolada, como resto caído da série, arrasta consigo
216
Idem, ibidem.
217
Ana Maria Medeiros da Costa. Algumas reflexões sobre a inscrição da letra, p. 116. Nesse texto a autora
retoma questões situadas por Alain Didier-Weill (1995) em Os três tempos da lei, p. 36-41, mas,
diferentemente dele, sublinha o caráter de precipitado relacional da letra, pela importância do olhar do outro
para o efeito superegoico desencadeado.
218
Idem, ibidem.
95
um gozo. A letra está no ponto de cruzamento entre dois gozos, o do som puro e o das
significações. (...) De sua dupla orientação sempre a ponto de divergir ela faz borda.
219
Que a letra se apresente no litoral entre gozo e saber é algo que se faz notar nos
primeiros cuidados que uma mãe realiza com seu bebê. A mãe fala, se dirige ao bebê
durante esses cuidados. A letra comparece nessa voz (como objeto a), objeto de gozo,
assim como, pelo no que dela se articula, pode dar lugar a articulações significantes. O
engajamento do bebê no gozo propiciado pela voz materna possibilita, a partir do sem
sentido convocante dessa voz, que essa letra venha a produzir uma virada para o lado da
articulação significante, possibilitando uma passagem do gozo do corpo à linguagem. Ao
mesmo tempo, diante da produção que o bebê a ver em seu corpo, a mãe articula
leituras, articula em seus cuidados o gozo desse corpo à produção de um saber.
Por isso a clínica dos primórdios da constituição do sujeito é, antes de mais nada,
uma clínica da letra. A mãe a inscreve em cada um dos buracos corporais do bebê,
atrelando o seu funcionamento pulsional à linguagem, fazendo operar o enigma do desejo
em cada uma dessas bordas entre a superfície e o buraco.
Mas que a partir do exercício dos cuidados maternos se precipite a inscrição da letra
no bebê não é garantia de que, a partir da inscrição dessa letra, o bebê devenha como um
sujeito da enunciação.
A letra é o que está nas formações do inconsciente ainda sem
sujeito. Ou seja e com isso a psicanálise lida desde seu início –,
não é suficiente a emergência das formações do inconsciente para
que ali o sujeito se reconheça. Essa é a condição em que a letra se
desloca incessantemente na produção das formações do
inconsciente. Isso, no sentido de que seja possível que onde isso
era (segundo a expressão freudiana) o trabalho de endereçamento
constitui, então este eu que fala.
220
Isto é central para pensarmos o trabalho de brincar na infância como a constituição
de um lugar que possibilite ao bebê ou à criança advir como sujeito ali. Então não se trata
219
Gerard Pommier (1993). Nacimento y renacimiento de la escritura, p. 318-319.
220
Ana Maria Medeiros da Costa. Antecipação e destino: atualidades do espelho, p. 21.
96
de uma transmissão positivada da letra enquanto código, mas de que ela opere como um
enigma no laço mãe-bebê. É isso que lugar a que a criança possa advir como sujeito e
criar, a partir dessa transmissão, sua própria versão. Aí a mãe se deixa surpreender,
ultrapassar pela criança, na medida em que esta produz algo inestimável em relação ao
esperado, comparecendo como sujeito que detém um saber.
Temos um ponto de virada do gozo do soma ao sema, do gozo do corpo ao gozo
da linguagem. A este respeito Pommier afirma:
A letra é um efeito do apagamento. De algo que se recalcou.
Em primeiro lugar o gozo do corpo, uma vez que nosso corpo foi
primeiro o objeto do desejo materno. É na medida em que este
gozo do corpo foi recalcado que nós não somos corpo, que nós o
temos. O gozo do corpo não foi primeiramente nosso, seu
reconhecimento dependeu de um Outro gozo que ficou suspenso
fora de nós.
221
A mãe acolhe o gozo do bebê e exerce em relação a ele um saber; o gozo do corpo
do bebê passa a estar referido a esse saber, saber em relação ao qual podevir a situar-se
como sujeito se, e somente se, for inicialmente suposto como sujeito que detém um saber
sobre o enigma do desejo.
Por isso, considerar que na clínica com bebês se intervém por meio de uma operação
de leitura não significa tomar esse bebê como uma espécie de pedra de roseta a decifrar.
Ele não é um objeto sobre o qual os outros (pais ou clínicos) deteriam, a priori, um saber.
A partir da letra que nele se precipita, ele passa a ser o portador de um enigma em relação
ao qual precisará vir a situar-se como sujeito. Mas para que isso possa chegar a ocorrer,
para que ele mesmo possa algum dia tomar a palavra, produzindo um alinhavo singular a
partir do enigma que a letra inscreveu nele, são necessárias algumas condições no modo
em que se opera a transmissão da letra. Neste sentido propomos os dois itens a seguir.
221
Gerard Pommier (1993). Nacimiento y renacimiento de la escritura, p. 198.
97
II.8. De como a letra se engancha ao corpo: o transitivismo no laço mãe-bebê
Dado que o bebê não detém ao nascer uma representação acerca do que acomete seu
organismo, a mesma pode advir do laço com a mãe. É preciso que a mãe atrele a
economia de gozo do bebê à linguagem, mas isso só ocorre se a mãe se afetada pelo que
afeta o bebê, por meio de uma identificação transitivista.
Isso nos exige considerar com maior precisão teórica o conceito de transitivismo,
para depois podermos situá-lo no laço mãe-bebê.
É Wernicke quem inicialmente utiliza o termo transitivismo para se referir a um
fenômeno frequente em alienados: o fato de uma ação própria ser atribuída a outro, em
uma passagem indiferenciada eu-outro. Wallon, por sua vez, observa que esse fenômeno
ocorre nos primeiros tempos da constituição da criança, como momento anterior à
individuação, retirando-lhe assim sua conotação patológica inicial.
222
Lacan, por sua vez, situa como os fenômenos transitivistas são observáveis em um
tempo em que o Eu da criança ainda não está constituído e, portanto, de um tempo em que
ela não apresenta uma separação em relação ao outro, por exemplo, um companheiro de
jogo. Assim a criança dá um tapa num companheiro de brincadeira, chora e diz que o outro
é que bateu. De quem é a dor, afinal? É tanto dele quanto do companheiro, na medida em
que o sujeito se identifica em seu sentimento de si com a imagem do outro, e a imagem do
outro vem cativar nele este sentimento.
223
Lacan utiliza o transitivismo para demonstrar como o Eu não é autônomo nem auto-
fundante, mas constituido na relação com o Outro, por meio do estádio do espelho.
224
O
transitivismo comparece do estádio do espelho como efeito de que o bebê, entre os 6 meses
222
Émile Jalley. Freud, Wallon, Lacan: l´enfant au miroir, p. 45-54.
223
Jacques Lacan (1946). Acerca de la causalidad psíquica, p. 171.
224
Jacques Lacan (1949). El estadio del espejo como formador de la función del yo tal como se nos revela en
la experiência psicoanalítica, p. 91.
98
e dois anos, esteja tramitando a apropriação de uma imagem unificada do seu corpo e o
estabelecimento de um Eu como instância psíquica equivalente à superfície corporal.
225
Essa imagem de si, da qual a criança se apropria, provém inicialmente do
reconhecimento do Outro encarnado que, diante da imagem da criança projetada no
espelho e quando esta se vira para buscar seu olhar, lhe diz: "esse é você!", possibilitando-
lhe um júbilo narcisista. Portanto, a assunção da imagem de si não se de modo
autônomo, mas como uma operação de alienação à imagem idealizada que o Outro oferece
à criança. Tampouco se estabelece no plano puramente especular, na medida em que, para
fazer sua a imagem do espelho, a criança depende de que a fala que lhe é endereçada pela
mãe a reconheça enquanto tal.
226
Que o eu advenha da alienação ao Outro se evidencia no fato de a criança, ao
começar a falar de si mesma, se referir como "nenê" ou pelo apelido com que a mãe
comumente a chama. A criança se denomina em terceira pessoa,
227
nomeando-se como a
mãe a nomeia.
É a partir daí que terá lugar toda uma série de produções transitivistas que se jogam
no limiar entre o eu e o outro, nas quais a criança virá a reproduzir, com o companheiro de
brincadeira, a situação inaugural com o Outro
228
pela qual se produz o despertar de seu
desejo pelo objeto de desejo do outro.
229
Portanto, o objeto que seu companheiro de
brincadeira detém vale menos pelo objeto em si do que pelo fato de ter se tornado um
objeto representante do desejo que se configurou na criança a partir do desejo do Outro e
que ela passou transitivamente a desejar, desencadeando o usual "é meu! é meu!”.
Em tal abordagem de Lacan, o transitivismo não opera a dois, ou seja, não é um
225
Jacques Lacan (1953-1954). O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud, p. 197, fazendo
referência a Sigmund Freud (1923b). O ego e o id.
226
Jacques Lacan (1959a). Observación sobre el informe de Daniel Lagache, p. 657-658.
227
Jacques Lacan (1946). Acerca de la causalidad psíquica, p. 170.
228
Jacques Lacan (1955-1956). O seminário. Livro 3. As psicoses, p. 168-170.
229
Jacques Lacan (1948). La agresividad en psicoanálisis, p. 106.
99
simples mimetismo e tampouco se centra na relação da criança com um objeto. O
transitivismo exige pelo menos três: o sujeito, o objeto e o outro, que, enquanto
semelhante, vem prestar-se a reproduzir, na cena transitivista, os efeitos da alienação da
criança em relação ao desejo do Outro encarnado na mãe. Vem reproduzir a situação na
qual o eu e outro se fundem, se confundem, na medida em que a imagem de si provém da
alienação especular à imagem que a mãe oferece. Mas a essa alienação segue-se também
uma separação, pela qual a mãe também possibilita à criança apropriar-se dessa imagem,
na medida em que a sua palavra autentica essa imagem e esse corpo como sendo o da
criança.
Isso é o que está em jogo quando uma criança que cai, em lugar de chorar
imediatamente, olha para a mãe e, somente a partir da sanção desta sobre a sua experiência,
reage e pode fazer dessa experiência a sua.
Assim, Lacan refere o transitivismo na relação do bebê e pequena criança com seu
semelhante como um fenômeno decorrente do fato de que o eu se constitui pelo Outro.
Mas foram Bergès e Balbo que posteriormente frisaram a importância do transitivismo na
relação da criança e da mãe.
230
A mãe, diante da criança que se machuca, diz: "Ai, assim dói!", como se estivesse a
falar pela criança. Ao fazê-lo, oferece a possibilidade de a criança vir a apropriar-se da sua
dor a partir dos significantes maternos. É importante frisar que, até então, tal experiência
corporal não havia sido registrada pela criança, ou havia sido experimentada como
puramente traumática, mas a partir da identificação transitivista da mãe, que diz "ai" ali
onde a criança nada disse, a criança pode fazer valer esse afeto como sendo seu.
Desse modo, a mãe permite à criança, por meio desse empréstimo de seu afeto,
aceder a uma representação do que acontece em seu próprio corpo. Se, em um primeiro
230
Jean Bergès e Gabriel Balbo (1998). Jogo de posições da mãe e da criança.
100
tempo, a criança precisa alienar-se, correspondendo ao afeto que a mãe lhe atribui, num
segundo tempo pode separar-se, na medida em que pode fazer dessa dor a sua.
O transitivismo opera como um golpe de força que diz respeito ao real, pois implica
uma passagem pela experiência do corpo, mas a partir da qual a mãe e a criança acabam
por fazer uma elaboração discursiva.
231
Assim, esse golpe de força produzido pelo
transitivismo vai na contramão de uma violência traumática, justamente porque possibilita
a passagem de um real (padecido no corpo do bebê) a uma representação simbólica (da
sansão materna) e, como consequência disso, permite que o bebê possa apropriar-se
imaginariamente do seu corpo.
Para que o transitivismo opere não basta simplesmente a sanção simbólica do
discurso materno e tampouco que a mãe tome a experiência corporal da criança para si,
fazendo do afeto seu e colando-se a essa dor. É preciso que a mãe transitive o afeto, opere
a sua passagem, ao evocar e recalcar sua própria dor, pondo em seu lugar um significante –
um "Ai!", que mais não seja ali onde a criança ainda não consegue se pronunciar. Assim
permite à criança, ao identificar-se, apropriar-se desse saber e experimentar esse afeto
como próprio.
232
Resulta central aí que ocorra entre a mãe e o bebê uma montagem por meio da qual a
paixão sofrida por uma pessoa tenha constituído o gozo de uma outra
233
e, assim, torna-se
possível que o bebê possa fazer seu o saber sobre esse afeto que a e "lhe empresta". Por
meio da identificação transitivista com a mãe,
234
opera-se uma inscrição (da letra) na
passagem do padecido no corpo a uma representação, do gozo ao saber. A linguagem
interessa na medida em que se engancha, se abotoa, diz do que afeta o corpo.
231
Jean Bergès e Gabriel Balbo (1998). Jogos de posições da mãe e da criança, p. 11.
232
Idem, p. 42.
233
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 154.
234
Bergés e Balbo propõem que a identificação transitivista ocorreria por meio de um gozo masoquista.
Como veremos no capítulo "a maternidade além do gozo fálico", discordamos, nesse aspecto, de tais autores
ao considerar que o gozo em jogo nessa identificação é o da passividade. Acerca do masoquismo como base
para o transitivismo ver: Jean Bergès e Gabriel Balbo (1998). Jogos de posições da mãe e da criança, p. 13
101
II.9. As quatro operações constituintes do sujeito e a transmissão da letra
A travessia que leva das inscrições constituintes à condição de falante não está
garantida, depende do modo pelo qual se opera a transmissão da letra no laço mãe-bebê.
Para que, a partir da inscrição da letra, seja possível ao bebê vir a retomá-la, produzindo
uma resposta que o implica subjetivamente e que, portanto, articula essa letra de modo
singular em uma série simbólica, será preciso que a transmissão dessa letra opere em
relação a quatro operações constituintes do sujeito: estabelecimento da demanda,
suposição do sujeito, alternância e alteridade.
235
A mãe é quem primeiramente se ocupa da economia de gozo do bebê. Isso implica
supor uma demanda do bebê onde inicialmente um grito, a partir do qual a mãe busca
poupá-lo do esforço requerido para a sua satisfação, procurando produzir uma
correspondência entre suas urgências vitais e o que ela pontua como uma significação
capaz de produzir a satisfação do bebê. Mas ela não produz qualquer satisfação, ela, ao
mesmo tempo em que busca poupar o esforço do bebê, articula tal satisfação à lei, exerce
tais cuidados desde uma referência simbólica e não navegando à deriva na polissemia da
linguagem.
236
Ela pontua, precipita uma significação diante da produção do bebê. Por esse
estabelecimento da demanda, a mãe exerce um saber que faz borda ao gozo do corpo do
bebê e o atrela à linguagem. Desse modo, precipita os efeitos de inscrição da letra, na
medida em que o bebê engaja seu funcionamento corporal ao saber materno, e é desde esse
saber materno que sua economia de gozo passa a ser inicialmente regulada.
A mãe tem uma posição de mestria ela frustra, atende ou prioriza as demandas
que o bebê passa efetivamente a lhe dirigir, a partir do lugar que inconscientemente o bebê
235
Estas quatro operações abordadas na dissertação de mestrado são postas a trabalhar, agora, em relação à
transmissão da letra. Julieta Jerusalinsky. Enquanto o futuro o vem a psicanálise na clínica
interdisciplinar com bebês, p. 248-252.
236
O que coloca em cena como a primeira função paterna que conta para o bebê é a inscrita na mãe.
102
ocupa para ela. Por isso, ela se torna alguém insubstituível na inscrição do bebê no
universo da linguagem, pois, enquanto Outro encarnado, o situa desde um desejo não
anônimo. É desde este desejo não anônimo e desde este saber que a mãe exerce os
cuidados do bebê, fazendo borda, corte e costura às funções corporais dele. não basta a
entoação da voz materna ou as palavras anônimas. É preciso que a e efetivamente se
enderece ao bebê. Este desejo comporta um enigma que está formulado na mãe de modo
inconsciente. A e é portadora de um enigma que a conduz a ter um filho na tentativa de
resolvê-lo, fazendo desse filho o portador da resolução desse enigma.
237
No entanto, é preciso deixar claro que esse filho permanece enigmático para ela. Ou
seja, na medida em que ela o faz portador de um enigma sobre o seu desejo que ele
encarnaria e cuja resposta ela mesma ignora –, ele passa a ser tributário de um saber. Um
enigma supõe alguma forma de saber. Formulá-lo implica que um mistério... implica
supor uma cifra capaz de decifrá-lo.
238
Daí que a mãe exerça uma mestria ao mesmo
tempo em que se interroga por um saber que supõe ao bebê: na medida em que ele é
suposto portador de um enigma sobre o desejo materno, pode ser suposto como sujeito
nesse laço.
A letra se a ver na produção do bebê por um enigmático efeito de retorno do
inconsciente materno ou parental. Isto possibilita aos pais situar um suposto saber do qual
o bebê seria detentor e que eles mesmos desconhecem, na medida em que o recalcam. É
por isso que o bebê, com sua produção corporal, tantas vezes parece ser um leitor do
inconsciente dos pais pois a letra que nele precipitou efeitos de inscrição faz retorno, por
meio de sua produção corporal, do enigma de desejo dos pais inicialmente endereçado ao
bebê.
Recordo, acerca disso, a passagem clínica de certos pais que resolveram colocar seu
237
Alfredo Jerusalinsky. O Nascimento do sujeito: da voz à letra, p. 18.
238
Idem, p. 19.
103
bebê de poucos meses em um berçário de turno integral, na aposta de que assim ele seria
"mais autônomo e independente" do que eles em relação aos próprios pais. O menino
chega para tratamento com pouco menos de três anos. Mostra-se bastante apático, não
estando "fisgado" pela realização de conquistas próprias do crescer, como falar bem, tirar
as fraldas ou largar a chupeta. Mostra-nos, assim, que o endereçamento ao Outro, tanto no
sentido do estabelecimento de um eu-ideal, quanto de um ideal-do-eu, para ele não faz
muita referência. Os pais se preocupam com que ele seja "frágil e dependente". Quando
pergunto à mãe se algo que ele fale ou faça a surpreende, ela primeiro vacila, mas depois
me diz: "Há algo que chama minha atenção, quando dirijo o carro ou quando quero sair de
casa apressada, ele, que fala muito pouco e não repara em muita coisa, me diz, em tom de
queixa, pedindo para diminuir o ritmo: 'muito rápido, muito rápido, mamãe!' (...) Agora,
pensando, me ocorre, será que não estou querendo ir rápido demais com ele?"
Se o efeito de retorno da letra, a partir da produção do bebê, causa puro
estranhamento, um puro sem-sentido, a suposição do bebê como sujeito e a atribuição de
um saber nele não operam. Introduz-se, assim, uma fratura no laço pais-bebê. Uma mãe
buscar articular com seus significantes a produção que o bebê a ver em seu corpo
produzindo uma leitura a partir de um saber que supõe ao bebê e acerca do qual ela mesma
se interroga é completamente diferente de exercer um saber absoluto ou ficar tomada em
um puro sem-sentido dessa produção.
É preciso que a mãe não se coloque nem como pura presença nem pura ausência nos
cuidados do bebê, mas que sustente, em relação aos objetos da pulsão, uma alternância
presença-ausência: olhar-não olhar, voz-silêncio, fome-saciedade, sono-vigília. Assim a
letra é atrelada a uma primeira série, a uma primeira forma de funcionamento simbólico
pela alternância presença e ausência. Tal série passa a ter um valor de referência no laço
mãe-bebê, e é por isso que seus descompassos afetam tanto o bebê quanto a mãe. A mãe se
104
interroga pelo que ocorreu quando o bebê não comparece, por exemplo, com sua fome,
com suas fezes, com seu despertar, no tempo em que a mãe o esperava. Do mesmo modo,
o bebê se afetado quando a mãe não comparece com os objetos de satisfação onde e
quando ele a esperava nessa série de referência, precisando então implicar-se na produção
de uma demanda. Isso nos mostra como os objetos pulsionais que circulam entre a criança
e a mãe seio, cocô, olhar, voz são endereçados. Eles se inscrevem em uma série
presença-ausência no laço com o Outro.
A mãe não toma o bebê como um puro objeto de sua satisfação e tampouco coloca a
satisfação do bebê acima da lei, ela busca modos de atrelar o gozo à lei simbólica. Ela
lugar ao gozo e opera seu interdito. Assim, o bebê sofre os efeitos de uma alteridade: por
não ficar referido simplesmente ao próprio corpo na busca pela satisfação, mas ao Outro
encarnado; e na medida em que, ao atrelar-se a esse Outro, seu gozo passa a ser
interditado. A mãe, pelos efeitos nela inscritos da função paterna, aponta para o bebê que
"assim pode e assim não pode", sanções que nem sempre são fixas e dependem do
contexto. Desse modo, a letra não tem um sentido fixo, é posta a operar na articulação do
significante para poder significar.
Por isso, na constituição psíquica, não basta com a inscrição da letra enquanto marca.
É preciso que a letra se enganche ao corpo por meio do transitivismo e que seja posta a
operar no laço mãe-bebê por meio dessas quatro operações constituintes a fim de
possibilitar as condições da travessia que vai da inscrição da letra ao falasser.
105
III. PROSÓDIA E ATO DE ENUNCIAÇÃO NA CLÍNICA COM BEBÊS
Sobre a voz e a letra nos primórdios do psiquismo
Em 1969, Jakobson, em seu livro Linguagem infantil e afasia, aponta um fenômeno
que denomina como ngua de babás, para designar o modo peculiar que os adultos têm de
falar com os bebês e crianças pequenas, utilizando uma fala que se adapta às
possibilidades linguisticas do infante (...), aproximando-se às suas particularidades
fonéticas, léxicas e gramaticais .
239
Atualmente no Brasil o termo manhês
240
tem sido amplamente utilizado para
denominar o modo como as mães costumam falar com seus bebês:
241
com uma entoação
que se caracteriza pela grande incidência dos picos prosódicos, pela sintaxe simplificada,
pelo uso de diminutivos, pela evitação de encontros consonantais frequentemente
suavizados por substituição de fonemas –, pela repetição silábica e pelo uso de um registro
de voz mais alto (agudo) que o habitual.
Então, se há algo que caracteriza a fala das mães quando elas se dirigem ao seu bebê,
é a prosódia, o amplo uso da musicalidade que acompanha aquilo que se tem a dizer.
Espontaneamente ou seja, a partir do seu saber inconsciente as mães fazem uso da
prosódia, da entoação, num momento em que aquilo que é dito ainda não pode ser
entendido pelo bebê, na medida em que nele estão apenas começando a inscrever-se as leis
fonéticas, sintáticas e gramaticais da língua.
Ao acompanhar o que é dito por picos prosódicos, por uma musicalidade, a mãe
produz uma erotização no ato da escuta e da fonação: o bebê, se é efetivamente convocado
por esta voz, dirige o seu olhar à mãe, respondendo com uma excitação psicomotora
239
Roman Jakobson. Lenguaje infantil y afasia, p. 24 e 25.
240
Os termos geralmente utilizados em inglês são motherese e baby-talk e, em francês, parler bé.
241
Acerca do manhês, ver a pesquisa de Silvia Ferreira. A interação mãe-bebê: primeiros-passos, p. 97-104.
106
ampla. A mãe não fala com esta sintaxe simples e com esta entoação peculiar, ela
também costuma acompanhar essa fala por uma rica expressão facial e movimentação dos
lábios, convocando o bebê não só a escutá-la, mas a olhá-la. Quando a mãe silencia, dando
espaço para que advenha a fonação do bebê sustentando para ele a matriz dialógica –, o
bebê produz ali suas vocalizações que se dirigem ao outro, que comparecem no intervalo,
nessa brecha que o outro sustenta para ele. Isto se manifesta já no segundo mês de vida do
bebê, configurando o que os linguistas chamam de "comportamento de revezamento”.
242
Esta produção, perfeitamente observável em bebês tão pequenos, vem demostrar que a voz
é um objeto oral primordial.
243
Mas é fundamental que tal prosódia convocante esteja articulada a uma alternância
sustentada pela mãe ao dirigir-se ao bebê para que se produza o enlaçamento do bebê no
ato da enunciação. A mãe fala e faz um intervalo na medida em que supõe o bebê como
sujeito que tem algo a dizer, sustenta ali a suposição de um desejo no bebê, sustenta ali a
alteridade. Temos a voz, a voz como objeto da pulsão oral que produz laço com o outro
e que também assume o sentido de chamado de um sujeito.
Vale a pena recordar que a palavra voz está etimologicamente relacionada com o
termo vox do latim, que significa tanto vocalizar na língua quanto produzir um chamado.
Daí os termos invocação, que implica chamar os deuses; evocação, que implica chamar à
lembrança; ou convocação, que implica chamar entre pares. Enquanto o termo phone, do
grego, do qual se derivam fonação, afonia, disfonia, cacofonia, refere-se especificamente
à produção do som, o termo voz pressupõe que a produção sonora seja tomada como
chamado.
Nessa direção, podemos dizer que é a mãe que "dá a voz" ao bebê ao tomar suas
fonações como um chamado. Se a mãe toma o grito do bebê apenas como um som, apenas
242
Bénédicte de Boysson-Bardies (1998). O papel da prosódia na emergência da linguagem como estrutura
intencional dentro e a partir de uma estrutura biológica, p. 22.
243
Marie-Chiristine Laznik. A voz como primeiro objeto da pulsão oral, p. 80-93.
107
discrimina em que nota da escala musical o som foi emitido, em lugar de perguntar "que
foi, nenê?”, ou seja, de produzir uma interrogação pelo enigma do desejo que supõe ao
bebê, teremos ali apenas a dimensão da phone, mas não a da vox. É preciso que a
vocalização como puro objeto acústico caia, seja recalcada, para ganhar um sentido
enigmático e ser tomada na dimensão de um chamado no laço com o outro. É justamente a
partir da instauração de um enigma do desejo que a criança se tornará falante na tentativa
de a ele responder.
Por isso, ainda que o bebê de poucos meses não tenha condições de entender o
sentido do que está sendo dito, dado que ele não nasce com a ngua previamente inscrita,
ele começa a ser tomado no funcionamento da linguagem. A musicalidade presente na
fala da mãe, seus picos prosódicos e seus silêncios vêm sublinhar inconscientemente
certos pontos significativos do que é dito. Algo ali convoca o bebê, produz marca nele,
inscrição, não pela força do estímulo perceptivo recebido de modo aleatório do meio, mas
justamente pelo que fica inconscientemente sublinhado pela tela significante do Outro.
Fica então claro que a voz não vale ali enquanto puro estímulo sonoro. Esse estímulo
não tem por que deixar marca ou ser privilegiado em relação ao ruído das buzinas que vêm
da rua ou até mesmo das vozes do rádio (preferência, aliás, que não comparece em
crianças com graves patologias de constituição psíquica), a não ser que esteja articulado ao
enigma do desejo, a não ser que introduza para o bebê a interrogação: isso fala, o que isso
quer de mim?
244
a voz deixa como rastro a produção de um enigma para o bebê. Neste
caso, ainda que o bebê não tenha o domínio da língua, ele já está confrontado com o
enigma do desejo e, portanto, com o que é próprio do funcionamento humano na ordem da
linguagem.
244
Como fica situado a partir do Che Vuoi? (o que queres?) apontado por Jacques Lacan (1960b), Subversión
del sujeto y dialéctica del deseo, p. 794; e como retoma Contardo Calligaris (1983). Hipótese sobre o
fantasma na cura psicanalítica, p. 26.
108
Mas como podemos ler os efeitos desta estrutura que se precipitam como inscrições
no bebê?
Uma questão que justamente tem ocupado os linguistas é a de interrogar se o
balbucio dos bebês guarda alguma relação com a língua materna e como essa relação vai
sendo estabelecida.
Mas, antes de prosseguir, é preciso fazer um pequeno esclarecimento acerca do que
entendemos por língua materna, uma vez que tal termo tem dado margem a certas
confusões teóricas na interlocução entre linguística e psicanálise. Tal termo é amplamente
usado na linguística para definir a língua compartilhada por uma cultura na qual o infante
é criado, em contraposição às demais línguas que, a partir daí, ficarão situadas como
estrangeiras. Se tomamos tal questão desde a ótica da constituição do sujeito, a língua
materna coloca a sujeição a uma lei no laço da mãe com o bebê a língua materna é
aquela na qual, para aquele que fala, a mãe foi interditada
245
pela lei paterna. Enquanto o
manhês implica um certo particularismo
246
de linguagem compartilhada entre a mãe e o
bebê com a utilização de termos que nem sempre fazem parte da legalidade da língua,
ainda que o uso de alguns deles acabe se generalizando como mamá, nenê, naná para
designar a mamadeira, o bebê, o dormir, no Brasil.
Há, ainda, o termo alíngua cunhado por Lacan para situar o modo singular com que
o sujeito se representa no ato da fala. Ele afirma:
O inconsciente é um saber, uma saber-fazer com alíngua. E
o que se sabe fazer com alíngua ultrapassa em muito aquilo do que
se pode dar conta em nome da linguagem. Alíngua nos afeta
primeiro por todos os efeitos que comporta e que são afetos. Se é
possível dizer que o inconsciente está estruturado como uma
linguagem é pelo fato mesmo de que os efeitos de alíngua,que
245
Charles Melman (1989). Imigrantes, p. 32.
246
Retomamos aqui a discussão levantada por Saussure ente duas forças que se enfrentam na aquisição da
linguagem pela criança: “o espírito particularista” e a “força unificadora”, retomadas por Jakobson para situar
a língua de babás. Ferdinand de Saussure (1922). Curso de linguística general, p. 327; Roman Jakobson.
Lenguaje infantil y afasia, p. 24.
109
estão aí como um saber, vão bem além de tudo o que o ser que fala
é capaz de enunciar.
247
Para ser falante não basta incorporar as regras gramaticais e repeti-las corretamente,
o ato de falar implica uma forçagem (sic) da linguagem, esse movimento de
desacomodação e incomodação que confunde os linguistas e que surge como alíngua
diante da falha na captura de sentido instaurado a partir da metáfora paterna.
248
Na
medida em que ela faz comparecer um gozo inconsciente é que Lacan afirma que a
alíngua serve para coisas inteiramente diferentes da comunicação. É o que a experiência
do inconsciente mostrou, no que ele é feito de alíngua (...) alíngua dita materna, e não por
nada dita assim.
249
Nesse sentido podemos pensar que o manhês ou mamanhês é produzido
inconscientemente pela mãe no intuito de recobrir parcialmente para o bebê a inevitável
castração que a língua comporta, mas que, ao mesmo tempo, fica situado como um efeito
de tal castração. Evoco, a partir disso, uma pixação que foi feita anonimamente na porta
uma clínica de crianças:
250
"o morno vazio das coisas”, seguida da assinatura "os
sujeitos”. É esta operação de certo recobrimento que fica em jogo no mamanhês: o de
tornar o vazio das coisas produzido pela interdição da língua um pouquinho mais morno.
Não por acaso, como observa Jakobson, esse modo de falar próprio da ngua de
babás muitas vezes também se faz presente no trato íntimo dos amantes. Isso deixa
evidente o quanto a marca do infantil no adulto, o seu fantasma e o que ele procura
recobrir da interdição, fica em jogo no laço amoroso, seja no exercício da maternidade ou
no laço conjugal.
251
A questão acerca da relação entre o balbucio dos bebês e a língua materna recebeu
247
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais Ainda, p. 190. Optamos pela livre tradução a
partir da versão eletrônica estabelecida para circulação interna da Escuela Freudiana de Buenos Aires.
248
Alfredo Jerusalinsky. Seminário proferido na DERDIC–PUC/SP em 18/03/2002 posteriormente publicado
como: A metáfora paterna e sua relação com a alíngua, p. 73-92.
249
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 188.
250
Trata-se do Centro Dra. Lydia Coriat em Buenos Aires.
251
Roman Jakobson. Lenguaje infantil y afasia, p. 24.
110
diversas respostas a partir das diferentes concepções teóricas de aquisição da
linguagem.
252
Exemplo disso é o procedimento experimental comparativo realizado pelo
grupo de pesquisa de Bénédicte de Boysson-Bardies, ao tomar o balbucio de bebês de
diferentes nacionalidades e submeter tais balbucios à análise comparativa de linguistas e
de adultos leigos com as mesmas línguas maternas que os bebês. Conclui-se a partir de tal
procedimento que, em mais de 70% dos casos, tais adultos reconheciam claramente o
balbucio de bebês com oito meses pertencentes à sua mesma língua materna.
253
Como aponta Jakobson, os verdadeiros inícios da linguagem infantil estão
precedidos por um período em que um bebê é capaz de articular uma soma de sons que
nunca se encontram reunidos simultaneamente em uma língua caracterizando o que
se convencionou chamar de balbucio proprioceptivo. Mas, logo que a criança entra na
etapa linguística, tais sons desaparecem de seu estoque fônico.
254
É em torno dos seis meses de vida que os bebês começam a produzir balbucios com
valor linguístico, ou seja, balbucios que implicam uma seleção dos fonemas da língua
Até essa idade os bebês árabes, chineses ou franceses
255
balbuciam de modo relativamente
semelhante. A partir daí os balbucios passam a se diferenciar, ao mesmo tempo em que vai
sendo progressivamente perdida a capacidade de produzir fonemas que não fazem parte da
língua materna.
Vale destacar que a idade em que se produz o advento do balbucio de valor
linguístico é a mesma em que ocorre o início do estádio do espelho,
256
momento em que
252
Noemi Giulianni (1996). Aulas sobre a aquisição da linguagem.
253
Bénédicte de Boysson-Bardies. Dicernible differences in the babbling of infants accordig to target
leguage, p. 1-15.
254
Roman Jakobson. Lenguaje infantil y afasia, p. 31 e 32.
255
A pesquisa escolheu bebês inseridos em línguas que apresentam diferenças consideráveis entre si: a
primeira apresentando forte faringolização; o chines ou cantonês sendo uma língua tonal sem sistema de
acentuação e sem articulação secundária; e o francês que difere do chinês nos últimos dois aspectos. São
línguas que também diferem desde o aspecto fonético: o árabe apresenta uma grande variedade de realizações
consonatais e uma relativa pobreza vocálica, distinguindo-se do chinês e francês.
256
Jacques Lacan (1949). El estadio del espejo como formador de la función del yo tal como se nos revela en
la experiencia psicoanalítica.
111
fica evidente como o bebê, para constituir-se, para constituir o seu Eu, refere-se ao Outro,
aliena-se à imagem que o Outro lhe oferece. Aliena-se também, podemos dizer, às
articulações sonoras que fazem parte da língua em que é tomado pelo Outro encarnado,
tendo que trilhar um longo caminho para poder vir a apropriar-se dela.
257
Não por acaso em crianças que apresentam graves patologias de constituição psíquica
que implicam um fracasso no estabelecimento do estádio do espelho – ou seja, deste
reconhecimento e constituição do Eu a partir da alienação ao Outro –, frequentemente
encontramos a produção de uma série de vocalizações que estão tão fora da legalidade da
língua que temos dificuldade em diferenciá-las auditivamente, de reproduzi-las e até
mesmo de inscrevê-las nos registros clínicos.
Mas, antes mesmo da produção do balbucio de valor linguístico, já podemos
encontrar em bebês com menos de seis meses, em franca constituição, o progressivo
enriquecimento da modulação das vocalizações. O choro ininterrupto do recém-nascido
diante de algum desconforto físico passa progressivamente a ser substituído por choros
com intervalos. Na medida em que o choro se instalou em um circuito de demanda com
a mãe, o bebê chora e espera ser respondido. Suas produções vocais também vão variando
quanto à intensidade, ao ritmo e à entoação na medida em que o ato da vocalização instala-
se efetivamente como um jogo erógeno no laço com o outro.
Enquanto o balbucio de bebês com dez meses caracteriza-se por ser mais
segmentado, com mais articulação fonética e com certa diminuição da entoação, em torno
dos oito meses esse balbucio apresenta-se no auge do uso de parâmetros de entoação e
organização temporal das vocalizações semelhantes às da língua utilizada pelos adultos
257
Pois, como aponta Roman Jakobson (1969). Lenguaje infantil y afasia, p. 32, ao entrar na etapa linguística
a criança perde a possibilidade de produzir não todos aqueles sons que não fazem parte da língua falada
em seu entorno, mas também muitos dos sons comuns ao seu balbucio e à língua falada pelos adultos,
apesar do modelo que esta representa para ele. Será então preciso que, a partir da alienação, a criança possa
realizar a separação traduzida em termos de aquisição fonológica por uma possibilidade de apropriar-se
daquilo que provém do Outro.
112
que os rodeiam.
258
O corpo do bebê é, em primeira instância, um receptáculo temporal, como aponta
Jean Bergès. Se inicialmente comparece uma ritmicidade nos ciclos biológicos do bebê,
tais ritmos tornam-se homotéticos à ritmicidade da presença e a ausência da mãe e à oferta
e recusa que ela produz dos objetos, estabelecendo deste modo um ritmo nos ciclos vitais
do bebê. Uma das primeiras marcas do Outro que podemos ler na produção do bebê é a
inscrição dessa estrutura que supõe uma temporalidade ritmada das funções e seu
funcionamento: seja em fome-saciedade, sono-vigília, repouso-atividade
259
e até mesmo na
ritmicidade que comparece nas vocalizações.
Ao cantar uma cantiga para um bebê do primeiro quadrimestre, ao falar-lhe em
mamanhês, já podemos perceber o efeito produzido pelo ritmo e entoação neste bebê
engajado no laço com o outro. A partir da melodia que outro lhe dirige, ele já experimenta
a tensão da antecipação que o andamento da cantiga lhe permite supor e surpreende-se
com a alteração neste andamento.
260
Ele experimenta ali um prazer no ritmo, ainda que
não entenda o sentido, pois as escanções temporais da voz e sua musicalidade produziram
marca no corpo capturando o bebê numa primeira matriz simbolizante.
261
Assim, os bebês, num momento em que sequer têm plenamente organizada uma
seleção dos fonemas da língua, contam com o ritmo e a entoação de suas vocalizações
como uma primeira diferenciação importante para a produção sonora em seu caráter de
laço com o outro. Enquanto do lado da mãe, com a produção do mamanhês, fica evidente
a importância da musicalidade que acompanha a fala nessa tentativa de convocar, de
engajar o bebê no prazer da vocalização, ao mesmo tempo em que, inconscientemente,
258
Benedicte de Boysson Bardies. Dicernible differences in the babbling of infants accordig to target
leguage, Journal of child language, p. 1-15.
259
Jean Bergès (1988b). Função estruturante do prazer, p. 54.
260
Ângela Vorcaro. O organismo e a linguagem maternante: hipótese de trabalho sobre as condições do
advento da fala e seus sintomas, p. 65-84.
261
Idem.
113
aproxima sua fala à possibilidade linguística do bebê. Neste jogo de identificações em
que a mãe aproxima sua fala à possibilidade linguística do bebê encontramos claramente
o que Jakobson aponta ao afirmar que o bebê é um imitador imitado.
262
É certo que, quando alguém está plenamente instalado como sujeito falante na
linguagem, quando já tem um domínio fonético, sintático e gramatical da ngua, a
prosódia vai exercendo um papel cada vez mais restrito na produção de sentido, ainda que
sempre tenha um papel decisivo na distinção da modalidade das frases de interrogação,
asserção ou exclamação.
Por outro lado, na ironia também é bastante frequente o uso do parâmetro de
entoação para intencionalmente subverter o sentido do enunciado. Por exemplo, ao
afirmar: "Bonito, hein!" ou "Que beleza!" sobre algo que foi considerado "moralmente
feio”, ou "Claro! É isso mesmo! Tens toda a razão!" quando não se concorda com nada do
que o interlocutor está a afirmar.
Contaram-me, neste sentido, uma brincadeira interessante feita por um grupo de
amigos que se reunia periodicamente para cantar e tocar sicas. Depois de algumas
reuniões em que já estavam cansados de se ouvir cantando o mesmo repertório, surgiu uma
brincadeira: cantar os tangos em ritmo de samba. Isto evidentemente produziu muitos
efeitos cômicos, pois a letra dramática do tango ficava um tanto alterada, subvertida pelo
ritmo do samba. É claro que nem todo samba é alegre e nem todo tango é dramático,
exceções. O interessante é pensar o que pode se produzir como efeito de significação a
partir desse entrecruzamento entre letra e música.
não como ato intencional, mas como formação do inconsciente, temos a voz que
vacila, que fraqueja, que desafina, como pequenos atos da psicopatologia cotidiana que
demonstram como a voz e sua entoação no ato da enunciação podem trair o locutor,
262
Roman Jakobson. Lenguaje infantil y afasia, p. 24.
114
revelando mais do que se queria dizer. Prova disso é o orador que, antes de falar, produz
um pequeno ruído para limpar a garganta, como quem tenta se precaver dessa possível
"traição" da voz em relação ao que ele tem intenção de comunicar.
263
Na direção de tomar a prosódia implicada no ato da enunciação como aquilo que
pode, por momentos, vir a subverter o sentido de um enunciado, evoquemos uma cena
frequentemente testemunhada na clínica: a da criança que transgride as normas a todo
momento enquanto a e diz "não faz, meu filho!" com um tom tão suave, tão suplicante
e risonho, que o "não" do enunciado, longe de fazer função de interdição, convoca à
permissividade, é um sim. Temos aí, pela prosódia, um não que diz sim e que vem revelar
o gozo da mãe implicado na transgressão do filho.
Se ficamos simplesmente atentos ao que foi enunciado, em lugar de escutar o que
comparece no ato da enunciação, perdemos a possibilidade de realizar tal leitura clínica.
Neste entrecruzamento entre o que é dito e a entoação que se apresenta no ato da
enunciação, comparecem algumas questões bastante próprias da clínica com bebês e
crianças pequenas. Isto porque não para os bebês, mas também para as crianças que
ainda não podem, por sua condição psíquica, deslizar pelos significantes com o mesmo
desembaraço que um adulto, a entoação outorga um peso fundamental ao que é dito. A
força da convocatória, por meio da voz, do olhar, do gesto, no ato da enunciação é
decisiva para que se sintam implicados no que lhes foi dito. Isso fica claro, por exemplo,
nas diversas vozes que é preciso fazer para representar os personagens das histórias
infantis: afinal, quem se assustaria com um lobo mau que falasse em voz aguda? Sem sua
entoação grave e forte, o lobo nem parece tão mau assim.
Tomaremos alguns recortes clínicos para, a partir deles, pontuar alguns
desdobramentos do entrecruzamento entre enunciado e entoação no ato da enunciação.
263
Como aponta Paul-Laurent Assoun. O olhar e a voz, p. 34.
115
III.1. Outro dia para Rafael – Recorte clínico III
Rafael, um menino com pouco mais de quatro anos, tem uma produção
extremamente estereotipada. Repete frases de propagandas fora de contexto, apresenta
falas ecolálicas e refere a si mesmo na terceira pessoa. Inicialmente desloca os objetos
reconhecendo seu valor de uso, mas não estabelece uma cena partilhada no brincar.
A partir de certo momento do tratamento, Rafael passou a não querer ir embora,
passando a registrar a hora da despedida e, ao mesmo tempo, manifestando uma imensa
dificuldade por esse corte que introduz uma ausência, uma pausa, uma descontinuidade
diante da qual teme não ser possível retomar a série. Isto faz da hora da despedida um
momento importante, ocupando uma parte considerável da sessão. Digo-lhe: "Está na hora
de ir embora... tchau... até outro dia!". Diante disso, em certa sessão, Rafael se agarra a um
dos brinquedos que não quer guardar, e diz "Outro dia, outro dia!", em um tom
extremamente exasperado.
"Outro dia! Parece que é muito difícil esperar até outro dia, né, Rafael?", lhe digo.
Então ele, no decorrer dessa cena me olha, larga a caixa e consegue ir embora.
Ainda que o seu enunciado repita o que eu disse, ainda que ele precise tomar
imediatamente as minhas palavras para poder falar, ele produz a enunciação com uma
entoação própria que deixa clara a oposição ao meu enunciado. Reconhecer isso,
reconhecer ali seu desejo, procurando produzir alguma alteridade, ainda que de modo
bastante rudimentar, é fundamental para o desfecho dessa cena e para a possibilidade de
saída de uma posição ecolálica, podendo se separar. Fica claro aí como um mesmo
enunciado, pela entoação utilizada no ato da enunciação, pode assumir dois sentidos
opostos, estabelecendo-se, assim, como uma tentativa utilizada pela criança de fazer
oposição, para descolar-se da fala do outro, tomando-a emprestada, mas fazendo-a sua.
116
III.2. Em quem coça a comichão de Sabrina? – Recorte clínico IV
Sabrina é uma pequena menina com pouco mais de dois anos. É capaz de ficar longo
tempo da sessão raspando objetos no chão ou parede da sala de modo a produzir um
barulho estridente que parece incomodar a todos, menos a ela. Não fala, não olha, não
reage quando chamada. Ela tem síndrome de Williams,
264
mas tal comprometimento
orgânico não justifica o apagamento subjetivo e a evitação que realiza do laço com os
outros na busca por uma satisfação.
A mãe, por sua vez, fala animadamente, o que produz grande desconforto nos
integrantes da equipe médica que as acompanham, por notarem uma absoluta discrepância
entre a entoação melodiosa e alegre com que a mãe fala da filha e o estado de Sabrina.
No início de uma das sessões, percebo que Sabrina está particularmente irritadiça.
Quando me detenho a olhá-la, percebo que tem tantos piolhos que eles caminham pela sua
testa e sobrancelhas. A mãe percebe o que estou observando e diz: "Ela está com
piolhinhos!”, no tom melodioso e alegre que costuma usar. "Não são piolhinhos, são
piolhos, e parece que eles estão incomodando muito a sua filha!”, respondo, num tom um
tanto grave. Nesse momento a mãe começa a chorar e, pela primeira vez, fala da
dificuldade que tem de lidar com a filha. Diz que sente que Sabrina ficou muito tempo
descuidada e que agora quer se ocupar dela, mas que não sabe por onde começar.
O corte que a intervenção produz na entoação da fala materna abre a possibilidade de
que a mãe possa começar a falar das efetivas dificuldades que encontra com sua filha e
com o exercício da maternidade.
264
Síndrome genética que, além de manifestações fenotípicas específicas, causa atrasos no desenvolvimento
estando correlacionada com a incidência de deficiência mental. Ver a este respeito Owen Foster et al. Dossier
sobre síndrome de Williams.
117
Afinal, a quem se dirige o manhês que esta mãe produz? Ele se apresenta fora do
tempo e lugar na relação com Sabrina, endereçando-se muito mais ao espectador da cena
do que na própria filha.
Diante de uma menina que não é reconhecida pelo pai e que, devido aos seus
problemas orgânicos e psíquicos, tampouco é reconhecida pelo social, essa jovem mulher
não consegue situar-se como mãe. A prosódia que se oferece ao espectador enquanto a
menina o testemunho em seu corpo e em sua produção de um extremo abandono ,
mais do que colocar em cena um gozo perverso dessa mãe com a filha (suspeita que
produz tanto incômodo nos diferentes profissionais que as atendem), denuncia uma
absoluta impossibilidade de a mãe situar-se em relação a Sabrina. A prosódia da mãe se
coloca como um apelo ao interlocutor, um pedido de que a reconheça como mãe,
certifique que ela é capaz de ocupar esse lugar.
Essa jovem, que até então não se ocupava de Sabrina, tenta começar a fazê-lo
produzindo uma colagem imaginária. Ela tenta reproduzir com a menina certos
estereótipos culturais acerca da maternidade, tais como falar com voz melodiosa, bater
palminhas festejando toda e qualquer situação (mesmo as que não merecem festejo
algum), decorar, de uma hora para outra, o quarto da filha etc.
Assim, o espetáculo que se dá a ver reproduz certa pantomima de maternagem.
Nesse movimento falha um ponto de articulação fundamental para o exercício da função
materna: a articulação desses enunciados simbólicos ao que afeta o filho.
O corpo de Sabrina passa muito longe da fala desta mãe, não é tomado, recortado,
articulado, ou seja, erotizado por esta fala. Essa tentativa, inicialmente imaginária, de
apropriação do lugar de mãe lança essa jovem mulher a ficar muito atenta ao que se passa
nas sessões. O primeiro movimento que faz é o de procurar comprar brinquedos que sejam
parecidos com os que Sabrina brinca durante as sessões. Ao constatar que não é isso o que
118
interessa à menina, que o foco não está no objeto em si, mas no modo em que ele circula
no laço com o Outro, passa a procurar repetir com ela as pequenas brincadeiras nas quais,
observa, Sabrina se engaja durante as sessões por exemplo, a de que eu empilhe cubos
para ela e que ela os derrube, olhando para mim quando digo "Caiu!", e passando a me dar
alguns cubos, articulando uma demanda de que volte a montar a torre. Mais adiante, ela se
interessa por uma brincadeira na qual faço, da minha mão, uma aranha (fazendo um
barulho com as unhas no chão) que vai se aproximando dela, dizendo a que lugar do corpo
vai chegar para fazer cócegas. Ela me olha e, por vezes recolhe ou retira a parte do corpo
em questão (pé, perna, mão).
Num terceiro momento, a mãe começa a formular perguntas, tais como: "Quais
brinquedos devo comprar?”, "Quais brincadeiras posso fazer?". É possível, então, começar
a desdobrar falas acerca do que ela mesma gostava de brincar quando menina, quais dessas
brincadeiras poderiam interessar a Sabrina, até que é ela quem começa a estabelecer uma
pequena brincadeira corporal que efetivamente a implica e convoca sua filha.
265
Sabrina começa, por momentos a olhar e também a oferecer seu corpo diante da
convocatória da cantiga materna.
III.3. A prosódia e a incidência da linguagem no corpo
O que é próprio no exercício da função materna é o trabalho permanente de recobrir
o real do organismo do bebê sua psicomotricidade desorganizada, seu olhar estrábico,
suas fezes, suas regurgitações, seus gritos com um simbólico que erogeniza este corpo e
que permite constituir uma imagem ideal à qual o bebê possa identificar-se. Por isso é
justamente diante do olhar estrábico que a mãe diz: "Cadê esses olhinhos lindos da
265
Escolhe uma brincadeira ao estilo "serra, serra, serrador" em que o movimento do corpo acompanha o
ritmo da parlenda.
119
mamãe?”. É por isso também que as fezes e melecas viram "caquinhas" e as regurgitações,
"queijinhos”.
A voz impõe silêncio ao real do corpo,
266
aponta Melman. Poderíamos dizer que é a
voz da mãe que impõe silêncio ao real do corpo do bebê, ordenando uma série de
manifestações orgânicas que, caso contrário, teriam um caráter de obscenidade.
O parâmetro entoativo implica não só o engajamento do bebê a um funcionamento
ritmado. A entoação utilizada pela mãe também é modulada pela interpretação que ela faz
dos afetos
267
que o bebê experimenta corporalmente. A mãe não modifica os
parâmetros de entoação quando ela está brava ou quando está fazendo um carinho, mas
também quando fala como se estivesse a falar pelo bebê num momento em que ele ainda,
de fato, não pode fazê-lo. Assim, a prosódia da mãe inconscientemente se modifica
quando ela está a oferecer alguma representação de afeto para o bebê supondo que o que
está a se passar com ele é da ordem da tristeza, ansiedade, braveza, alegria etc. Na
modulação da voz da mãe comparece a interpretação que ela enlaça ao que se passa no
corpo do bebê, permitindo ao bebê o acesso a alguma representação do afeto.
Assim entendemos a afirmação de Lacan acerca de que alíngua materna nos afeta
primeiro por tudo que ela comporta como efeitos que são afetos. Ela implica um saber
fazer com isso no laço mãe-bebê e, portanto, ultrapassa muito o que podemos dar conta a
título de linguagem.
268
Isso fica muito evidente na situação em que, diante da pequena criança que se
machuca, é a mãe que diz "ai, ai, ai!”, deixando comparecer em sua voz e em sua
gestualidade a sua própria experiência de dor que oferece à criança em uma identificação
266
Charles Melman (1985b). Novos estudos sobre o inconsciente, p. 76.
267
Tomamos aqui o termo afeto tanto no sentido mais intuitivo que descreve o estado atual de nossos
sentimentos, quanto pela sua articulação com a pulsão. "Se a pulsão não aparecesse sob a forma de afeto,
nada poderíamos saber sobre ela" – Freud (1915). O inconsciente; apud Roland Chemama (1993). Dicionário
de psicanálise Larousse, p. 10.
268
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 190.
120
transitivista.
269
A criança, identificada com esta experiência, pode produzir uma
articulação do afeto que ela experimenta em seu corpo e, então, chora ou é consolada.
Aqui é importante notar que é preciso que a mãe não fique apenas experimentando a dor
no próprio corpo, mas que ofereça a representação de tal experiência de dor para a criança
na medida em que a supõe como sujeito, que supõe que ela está a experimentar, mesmo
sem poder nomear isto que padece.
Para concluir, gostaria de apontar que a escuta e o uso clínico dos parâmetros de
entoação, dos picos prósodicos e do ritmo têm importante lugar na clínica e, mais ainda,
por se tratar de bebês e crianças pequenas, como modo de perceber seus primeiros
engajamentos a uma matriz simbolizante e como modo de tentar produzir esse
engajamento quando ele não está inscrito no infante.
Isto porque a clínica do significante, a clínica que leva um atravessamento da
psicanálise, não é simplesmente a clínica da palavra enunciada. O gesto, o toque, a
entoação também podem assumir uma dimensão significante, mas, para tanto, eles
precisam ser lidos na série e não terem outorgados um valor intrínseco, um valor
puramente fenomenológico por si só capaz de certificar, pela sua presença, uma espécie de
"bom exercício da maternidade”.
O uso dos picos prosódicos e o manhês produzem um efeito constituinte para o
bebê e pequena criança se introduzem cortes e articulações simbólicas que incidem no real
de suas funções orgânicas, e se produzem como efeito a construção imaginária de um
corpo do qual o bebê possa vir a apropriar-se, caso contrário caem do lado de uma
pantomima da maternagem.
O único modo que temos de nos certificar clinicamente de que lado se inscrevem os
efeitos da fala materna é, para além de escutar a mãe, ler, a partir da produção do bebê,
269
Jean Bergès e Gabriel Balbo (1998). Jogos de posições da mãe e da criança, p. 42.
121
como nele estão se inscrevendo certas operações constituintes do sujeito
270
. Trata-se de ler
como essa fala se coloca no ato na enunciação e de como este bebê se encontra ou não
convocado. Também de ler como o próprio bebê ou criança situam sua produção diante do
Outro.
271
Ou seja, trata-se de efetuar uma leitura dos modos pelos quais a transmissão da letra
opera no laço mãe-bebê, pelo modo em que a mãe põe em cena, no exercício de seus
cuidados, e pelo modo em que o bebê responde às operações constituintes do sujeito. Tais
operações comparecem, para além do que é dito, na modulação da voz, no olhar, no gesto,
no toque, na oferta postural, enfim, no modo em que todos estes pequenos objetos
circulam no laço mãe-bebê. sim teremos a possibilidade de articular uma leitura da
incidência da letra no litoral entre o gozo e o saber, entre o corpo e a linguagem, nos
primórdios da constituição psíquica.
270
Estabelecimento da demanda, suposição do sujeito, alterância e alteridade, tal como situado no capítulo
anterior.
271
Ver a este respeito "Tchau mãezinha! recorte clínico II", no qual, apesar da rica entoação utilizada em
uma frase repetida, não havia um desdobramento de sua fala.
122
IV. A MATERNIDADE E O GOZO FÁLICO
Considerações sobre a angústia de castração e a inveja do pênis pós-maternidade
"Parabéns, agora que você é mãe verá o que é nunca mais estar inteira em lugar
algum." Esse é o aviso que uma paciente recebe de uma amiga ao ganhar seu bebê. Mais
tarde, sua experiência de maternidade o confirma, mesmo tratando-se de uma experiência
rica, prazerosa e, portanto, no âmbito de uma verdadeira realização para esta mulher.
Tal afirmação é aqui tomada como ponto de partida para considerar a maternidade
como uma experiência que pode vir a realizar a equação fálica para uma mulher, tal como
Freud propõe, mas que, ao fazê-lo, reatualiza sua condição feminina perante a castração e,
portanto, sua condição de não-toda no gozo fálico.
Para abordar a atualização da castração e do gozo fálico na maternidade é preciso
considerar o quanto a modificação no modo de circulação social das mulheres veio
legitimar outras equivalências de realização fálica que não a de ter um bebê. Isto produz
seus efeitos na clínica fazendo comparecer, sob novos vieses sintomáticos, a repetição de
uma velha questão da condição feminina. Esta é a questão desdobrada neste capítulo.
Freud aponta a equação pênis-falo-bebê
272
como via de resolução, ou pelo menos a
via preponderante de realização, do gozo fálico para mulheres.
"Um dia poderás ter um bebê" é a promessa articulada para a menina após o
complexo de castração e que lhe permitiria, na entrada do complexo de Édipo, voltar-se
para o pai enquanto portador e doador do falo tomando o mesmo como o objeto que
viria a suceder o amor para com a mãe. A partir da matriz desse primeiro amor e ao saber-
272
Sigmund Freud (1924b). A dissolução do complexo de Édipo, p. 223.
123
se castrada, lhe seria possível articular um saber próprio do feminino: de quem não o tem,
mas sabe onde buscá-lo.
As meninas sairiam do complexo de castração e culminariam o complexo de Édipo
em um desejo, mantido por muito tempo, de receber do pai um bebê como presente.
273
Assim, se o menino sai do complexo de Édipo com os títulos de direito à virilidade
274
guardados no bolso, para vir a fazer uso dos mesmos no futuro, as meninas, por analogia,
sairiam com uma espécie de "falo hipotecado" na promessa da maternidade pelo menos
não nos ocorre nada mais representativo da fantasia constatada pela análise de formações
do inconsciente na psicanálise de adultos e por falas diretas de pequenas crianças ainda não
submetidas à barreira do recalque, confrontadas com a condição do feminino: de que as
meninas "um dia o tiveram, mas o perderam”.
A fantasia de tê-lo perdido não deixa de ser de extrema veracidade, pois, ainda que
não guarde correspondência com a ordem do real do corpo, que ninguém de fato cortou
o "valioso pedaço de carne" do corpo de tais meninas, elas também um dia foram,
enquanto bebês, o falo da mãe. Mais do que isso, durante certo período da infância, a fase
fálica, ocuparam, elas mesmas, uma posição extremamente ativa portando-se como
homenzinhos.
275
Isto antes de serem, após o segundo tempo do Édipo,
276
deslocadas de tal
lugar fálico, encontrando-se, no terceiro tempo, nem sendo o falo para alguém suposto tudo
ter a mãe enquanto Outro primordial nem tampouco tendo o falo.
277
Nem ser, nem ter,
e ainda obter um gozo a partir disso, eis a questão pela qual passa a feminilidade.
Mas por que considerar a posição de um falo hipotecado na maternidade?
Ora, se a equação fálica encontraria sua resolução possível na equivalência a um
273
Idem, ibidem.
274
Jacques Lacan (1957-1958). O seminário. Livro 5. As formações do inconsciente, p. 202.
275
Sigmund Freud (1933). Feminilidade, conferência 33: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise,
p. 146.
276
Jacques Lacan (1957-1958). O seminário. Livro 5. As formações do inconsciente.
277
Idem.
124
bebê, o mesmo viria após bastante tempo, após diversas prestações de jogos amorosos,
que podem ser mais ou menos prazerosos dependendo do caso, mas que não oferecem
garantias de reaver, após tais investimentos, o falo-bebê ao final do prazo estipulado.
Evidentemente, nem todo jogo sexual-amoroso de uma mulher necessariamente
implica o desejo de ter um bebê que uma mulher, desde a posição feminina, pode
experimentar o desejo de ser desejada, ou, desde uma posição masculina, exercer
ativamente uma posição desejante. No entanto, ter um bebê, bebê concebido enquanto
fruto de um amor implicaria que essa mulher se tornasse primeiramente amável e desejável
para alguém (o bebê ocupando o lugar de um falo que lhe foi doado por alguém que ela
supõe como portador do falo).
Mesmo que tal questão possa, em plena era da fertilização e inseminação artificiais,
resultar bastante discutível, encontramos o quanto o tema da perda do amor e da perda da
condição de objeto de desejo é recorrente na análise de mulheres. O próprio Freud aponta o
quanto o temor da perda do amor tem um papel constituinte da condição feminina.
278
Questão tão insistente na análise de mulheres e tão presente nas disputas amorosas que
tanto ocupam as meninas na infância: saber quem é amiga de quem, quem é ou não a
escolhida etc. Enquanto os meninos medem a sua potência fálica pela rapidez, velocidade,
valentia ou número de gols, as meninas encontram no ciúme um deslocamento para a
inveja do pênis,
279
afirma Freud, tão claramente evidenciada na interrogação de mulheres
enciumadas pela figura imaginária da outra: O que é que ela tem que eu não tenho?
supondo a outra em uma dimensão fálica da qual estaria privada.
Mas o que viria após a maternidade? O que podemos escutar de mulheres em análise
após o encontro com o tão prometido e esperado falo-bebê?
Em primeiro lugar é preciso interrogar se a via apontada por Freud na equação fálica
278
Sigmund Freud (1924b). A dissolução do complexo de Édipo, p. 223.
279
Sigmund Freud (1925a). Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, p.316.
125
não residiria em uma espécie de "naturalização" do desejo, apostando em que a natureza,
ao cumprir seu ciclo, fosse capaz de encontrar a resolução do complexo de masculinidade e
da inveja do pênis,
280
próprios da posição histérica.
281
O fato é que, nos últimos cem anos, houve uma diversificação na aposta de
realização fálica das mulheres. As meninas não brincam de mamães que cuidam bebês,
cozinham, decoram a casa ou abastecem o lar. Elas brincam também de trabalhar, de ser
aventureiras que ganham o mundo e de super-heroínas poderosas e destemidas claro,
ressalva seja feita, o fazem sem esquecer o detalhe do penteado e a combinação do
vestuário.
282
Isso ocorre sem que aos pais ou aos psicanalistas da atualidade tais jogos
resultem demonstrações de dificuldades na resolução de suas equações simbólicas. Afinal,
elas formulam respostas, por meio do brincar, aos Ideais-do-Eu próprios de seu tempo e
cultura. Nada mais pertinente.
pouco tempo, em uma festa à fantasia de crianças, como é usual, circulavam
meninos vestidos como os mais variados super-heróis e meninas vestidas como as mais
diversas princesas. Chegou então a hora da apresentação de capoeira, e a roda foi composta
por meninos e meninas, entre os quais uma linda Rapunzel de cinco anos vestida de branco
e cintilante cetim, com tranças de cabelos negros que lhe chegavam à altura dos joelhos.
Chamada ao jogo, arregaçou o longo vestido e pôs-se a arremessar chutes, virar estrelinhas
e plantar bananeiras, enquanto procurava esgrimir-se elegantemente de suas longas tranças.
Não era pequeno o esforço exigido nesse árduo desdobramento. Todos aplaudiam
regozijados: sem dúvida estávamos diante de uma legítima princesa de nossos tempos!
283
280
Idem, p. 313.
281
Tal interpretação da proposição freudiana é discutida no capítulo "A maternidade além do gozo fálico".
282
Ou seja, lançando-se em um viés de realização fálica pela via de ter coragem, ousadia, valentia, ou outros
poderes que se recortam, se destacam, falicamente do corpo, mas sem deixar de articular outra dimensão do
gozo que retorna sobre o próprio corpo, por meio do detalhe capaz de tornar esse corpo belo, mascarando-o
de ser o falo, capaz de despertar o desejo de alguém.
283
É preciso considerar o quanto as heroínas das histórias infantis atuais testemunham uma mudança dos
ideais identificatórios colocados, desde a cultura, para as meninas, se comparadas as heroínas das histórias
infantis clássicas. Enquanto a história de Rapunzel aponta uma condição de passividade diante de uma mãe-
126
Não pude deixar de me enternecer com o espetáculo, talvez de um modo menos
regozijado que a platéia, considerando não a particular posição de tal menina da qual
afinal pouco sei mas a de muitas outras meninas-mulheres que escutamos na clínica e
que continuam a desdobrar-se entre diferentes gozos implicados em ser mulher, ser mãe e
ser profissional.
As pequenas princesas da atualidade seguem assim brincando, ensaiando
possibilidades entre a posição de belas donzelas em perigo capazes de fisgar com seus
encantos o desejo de um cavaleiro que esteja a passar distraído e a de se lançarem na
posição de valentes amazonas. Na adolescência e juventude fazem seus jogos amorosos
com mais ou menos lugar para o exercício da feminilidade – e suas escolhas profissionais –
como uma aposta fálica, geralmente digna de ser considerada em posição de simetria com
a de qualquer outro colega ou irmão do sexo masculino. Nada mais comum, dado que o
ideal de realização profissional e sustento econômico próprio ocupam, em grande parte das
famílias da atualidade, uma posição de aparente simetria na dívida simbólica e realização
de ideais, tanto para os filhos homens quanto para as filhas mulheres.
Na análise de jovens pacientes podemos escutar o quanto, para muitas delas, ainda
que ter um bebê apareça como desejável, no entanto frequentemente comparece como uma
realização lançada a um horizonte bem distante, deixada para depois de tantas outras
284
bruxa e um príncipe salvador, as heroínas da atualidade tais como Lara Croft, Fiona (esposa de Sherek),
Princesa Lea (do filme Guerra nas estrelas), Mulher Elástica (do filme Os incríveis), entre outras – assumem
claramente uma posição de atividade fálica: com lutas, escolha do objeto de amor, participação política e
social. Certamente não se pode duvidar da força de uma Rapunzel clássica, capaz de suportar em seus
cabelos o peso de uma mãe ou de um príncipe a escalar a torre, mas certamente é uma atividade utilizada
para finalmente ocupar um fim passivo. Do mesmo modo, as Amazonas, essas valentes guerreiras,
permaneciam como um clã à margem da sociedade que, com seus encantos, eram capazes de retirar de suas
missões sociais os cavaleiros. As heroínas atuais parecem deixar às claras a divisão de uma mulher perante
diferentes modos de gozo – questão retomada no próximo capítulo.
284
Se, como Freud aponta, é longa a espera que a menina precisará fazer, após a entrada no complexo de
Édipo, até que chegue o tempo de ter um bebê, precisando inevitavelmente sofrer tal espera, é interessante
notar que, quando chega o tempo em que efetivamente poderiam ter um bebê, tantas mulheres continuem a
falar de tal realização de um modo desejoso enquanto escolhem continuar a postergá-la para um tempo
distante, quase mítico, que em nada perpassa a condução de suas escolhas de vida. Claramente, não estamos
nos referindo aqui a mulheres que escolhem legitimante não ter filhos, mas de algumas que parecem insistir
em manter, perpetuar, em uma esfera onírica tal realização (almejada e postergada).
127
pré-condições. Isso não impede que gravidezes não planejadas ocorram de modo irruptivo
e que este desejo negado assuma a significação de uma ameaça a uma série de outras
conquistas (tais como formação acadêmica, independência econômica, ou inserção
profissional).
Tampouco é infrequente mulheres que, após priorizaram a realização econômica e ou
profissional e postergarem durante anos o projeto de ter um bebê, cheguem a tratamento,
ao se encontrarem em idade limite da fertilidade, invadidas por uma irrupção de angústia.
Elas experimentam o destempo entre o que seria um tempo subjetivo necessário para
percorrer as equivalências fálicas antes de chegar ao bebê; o tempo cronológico implicado
em tais realizações; e o limite temporal imposto pelo real orgânico à fertilidade. Ou seja, se
virtualmente todas as equivalências fálicas podem ser percorridas, o tempo da vida faz
necessário precipitar-se em uma escolha.
Após o desenlace da maternidade e da realização de ter um bebê podemos constatar
em diversas mulheres, muitas das quais, inclusive, que exercem de modo extremamente
desejoso e amoroso a maternidade, mais do que uma resolução da angústia de castração,
um novo comparecimento da mesma; mais do que um apaziguamento da disputa fálica, seu
recrudescimento.
Nas palavras de um esposo: "Depois que ela virou mãe despertou uma agressividade
até então para mim desconhecida". Nas palavras de uma mulher digladiando entre o
impossível cálculo de investir de modo pleno em duas realizações fálicas ao mesmo tempo
(a maternidade e a profissão) e comparando-se ao marido em uma disputa fálica: "Quisera
eu ter um pau no meio das pernas para poder gozar do direito de pôr o meu trabalho em
primeiro lugar" direito que supõe um dia ter usufruído, mas que, ao tornar-se e, sente
que perdeu. Por outro lado, revela sua ilusão de que, ao tê-lo (o pau no meio das
pernas), poderia fazer a função fálica valer de "modo mais competente que esse homem".
128
A realização profissional e/ou "independência econômica" não entrou na equação
fálica de Freud. Mas, na atualidade, grande parte das mulheres as experimenta antes de ter
um bebê, o que situa tais mulheres em uma posição social e profissional de simetria com os
homens quanto a essa realização fálica reservando a diferença sexual para o campo da
vida privada com os jogos eróticos e amorosos.
Que uma mulher usufrua de um gozo fálico não impede que visite uma condição
feminina. Ou seja, o fim passivo (de ser amada e desejada) que se joga na posição erótica
feminina não se estende necessariamente à condição social de uma mulher, assim como seu
papel ativo na sociedade não tem por que impedir que, além de tais realizações fálicas,
usufrua de um gozo feminino. Freud mesmo aponta esta questão ao afirmar:
(...) talvez seja o caso de que numa mulher, com base na sua
participação sexual, a preferência pelo comportamento passivo e
por fins passivos se estenda à sua vida (...) devemos, contudo nos
acautelar nesse ponto, para não subestimar a influência dos
costumes sociais que, de forma semelhante, compelem as mulheres
a uma situação passiva.
285
Mas, para muitas mulheres que têm no trabalho a realização de uma posição ativa de
seu gozo fálico, a equação simbólica vem estender-se como pênis=falo=trabalho, e
somente depois viria ali o bebê. Desse modo, a maternidade frequentemente é
experimentada como uma passagem que desloca e diversifica para as mulheres o
investimento da realização fálica antes centrada no trabalho, sem retorno possível
(imediato ou permanente) após a maternidade para a mesma posição em relação ao campo
profissional. Assim, maternidade e trabalho são vividos imaginariamente como
concorrentes opostos na realização fálica, pelo qual o investimento crescente em um
implicaria necessariamente o desinvestimento proporcional do outro. É aí que a angústia de
castração vem bater novamente à porta, ou melhor, entra sem avisar.
Muitas mulheres, na pós-maternidade, queixam-se de estarem em posição
285
Sigmund Freud (1933). Feminilidade, conferência 33: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise,
p. 143.
129
assimétrica para com os homens em relação ao trabalho. Assim, a maternidade vêm
confrontá-las a uma diferença, após um tempo em que consideraram estar "em pé de
igualdade" ou "taco a taco com os homens", nas palavras de uma paciente. Falam de um
tempo em que supostamente "tiveram" a mesma possibilidade de realização fálica que os
meninos, mas que, mais uma vez, "perderam". Reedita-se assim com a maternidade a
angústia de castração diante de um reencontro com a diferença sexual.
Se o desenrolar de uma realização fálica via trabalho se produz para uma mulher a
partir de uma possibilidade de identificação com o pai
286
na medida em que, mesmo que
a geração atual tenha mães profissionais, as suas mães, ao tornarem-se trabalhadoras fora
das fronteiras do lar, o fizeram num rompimento com a tradição materna ao aventurar-se
num mundo até então permitido aos homens no entanto, inevitavelmente, a
experiência da maternidade as lança a revisitar seus traços identificatórios com a mãe,
muitas vezes eludidos, e a revisitar sua condição feminina perante a castração, assim como
a da castração da própria mãe.
Nesse sentido, a experiência da maternidade pode produzir um efeito semelhante ao
experimentado por Freud na Acrópoles ao se interrogar: Então tudo isso existe mesmo?,
287
como se alguma vez houvesse duvidado dessa existência e não dessa existência em si,
mas de se ver na condição de realizar essa experiência, sendo assaltado pelo seguinte
pensamento: realmente eu não poderia ter imaginado que me fosse dada alguma vez a
possibilidade de ver Atenas com meus próprios olhos como indubitavelmente está agora
ocorrendo.
288
De modo análogo, a experiência da maternidade costuma produzir em uma mulher
um intenso sentimento de realização, ao mesmo tempo em que a leva a um reencontro com
a sua própria condição feminina uma vez que a "paisagem" da castração materna é agora
286
Maria Rita Kehl. A mínima diferença: masculino e feminino na cultura, p. 71.
287
Sigmund Freud (1936). Um distúrbio de memória na Acrópole, p. 295.
288
Idem, p. 297.
130
revisitada não mais desde a condição de criança, mas desde um novo ponto de vista que
se adquire ao ultrapassar a condição de filha, após percorrer um caminho tão longo:
289
a
castração desde o ponto de vista, desde a posição de mãe.
Se para as primeiras gerações de mulheres trabalhadoras a questão de que o faziam
"por gosto e escolha" frequentemente as lançava a terem que suportar a sobrecarga de seus
diferentes afazeres, as mulheres-mães-trabalhadoras da atualidade parecem muito menos
dispostas a arcar sozinhas com tal modo de organização social. Surgem assim novos
termos, tal como o pãe, para nomear os homens-pais que também se ocupam dos cuidados
das crianças.
No entanto, para além das questões práticas do cotidiano, o lugar ocupado pelo bebê
na economia psíquica de alguém que está em posição feminina ou masculina não é o
mesmo. E muitas mulheres se apercebem disso com um tremendo mal-estar, na medida
em que se deflagra aí, mais uma vez, a diferença sexual.
O bebê, para uma mulher, ao mesmo tempo em que pode produzir uma articulação
da equação fálica (trazendo assim uma realização) também faz comparecer uma falta (a
descompleta). Diante da realização de ter um bebê surge a ameaça da perda da colocação
profissional e/ou do próprio corpo como objeto do desejo, como modos de realização do
gozo fálico anteriores à entrada na maternidade.
É fato que o cobertor fálico sempre é curto: ao espichá-lo daqui, ele descobre dali. A
angústia de castração é justamente esse esteio deixado pela retirada do falo que se
evanesce, pelo que aparece toda vez que o fluxo fálico recua e mostra a areia, nos diz
Lacan.
290
Escutamos mulheres evocarem os primeiros tempos dedicados aos cuidados de um
bebê de modo extremamente ambivalente: por um lado, desfrutando do idílio de estar "fora
289
Idem, p. 302.
290
Jacques Lacan (1962-1963). O seminário. Livro 10. A angústia, p. 293.
131
do mundo com esse bebê”; por outro, lamentando estar "fora da circulação social" do
trabalho, da produção cultural, do desejo sexual. Por um lado almejando "sair para
trabalhar" e, por outro, "não conseguindo tirar o bebê da cabeça”. Em qualquer um dos
polos a angústia comparece:
"Às vezes sinto que desapareci", diz a mãe de um bebê, revelando a afânise
291
que se
apresenta como um dos modos da angústia na maternidade pelo temor de apagamento do
sujeito diante de um objeto outrora tão desejado e agora supostamente presentificado.
"Depois que nasce é muito estranho. Ter um bebê não é aquilo tudo! E a vida não
é mais a mesma. Perdi minha liberdade, não posso mais ir e vir”, afirma outra mãe, dando
a ouvir como o sofrimento com "o fora de circulação social" costuma se apresentar sobre o
pano de fundo de que o bebê não cumpre plenamente com a promessa fálica e, apesar de
todas as exigências produzidas pelos cuidados que a mãe precisa dirigir-lhe, nunca é um
falo que se mantém em contínuo estado de potência, esvaece. Esta necessária desilusão
com o "pequeno" confronta sem piedade, mais uma vez, uma mulher com a angústia de
castração, na medida em que, mesmo depois de "ter um bebê", ela não é detentora de um
falo que as faria gozar de uma permanente potência.
Frequentemente tal percepção conjuga-se com o temor de tampouco poder voltar a
reconstituir uma mascarada
292
que lhe permitisse ser suposta no lugar de quem, mesmo
não tendo o falo, poderia sê-lo para alguém. Nesse sentido vão as insistentes queixas de
"ter perdido os atrativos físicos" ao ter se tornado mãe. Temos duas faces da angústia de
castração a de não ter e tampouco ser o falo, no sentido de temer não poder retornar à
posição de encarnar o falo a partir do desejo do Outro.
293
291
Jacques Lacan (1964). El Seminario. Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, p.
226-229.
292
Joan Rivière (1929a). La feminilidad como mascarada.
293
O fato de ela se exibir e se propor como objeto do desejo identifica-a, de maneira latente e secreta, com o
falo, e situa seu ser de sujeito como falo desejado, significante do desejo do Outro. Esse ser a situa para
além do que podemos chamar de mascarada feminina, já que, afinal, tudo o que ela mostra de sua
132
Após a licença maternidade, o retorno ao trabalho e à circulação social tampouco
devolvem compulsoriamente aos investimentos fálicos sua estabilidade, na medida em que
o temor de expor o bebê a uma falta excessiva que supostamente caberia mãe" ideal,
saber dosar – costuma assaltar angustiosamente as mulheres-mães-trabalhadoras.
"Meu filho me virou a cara quando voltei do trabalho", afirma uma mãe que, onde
esperava encontrar o olhar desejoso de seu bebê, como num quadro de Magritte,
294
encontra sua nuca. A angústia de estranhamento passa, nesse momento, para o lado da
mãe.
Em tal cálculo do gozo fálico diante da maternidade, ou perde-se o bebê, ou perde-se
o trabalho, ou perde-se o próprio corpo como fálico. Se a oposição imaginária entre
profissão e maternidade experimentada por mulheres na atualidade não foi calculada na
equação de Freud, ela, mais uma vez, vem atualizar a velha questão dos efeitos produzidos
pela angústia de castração para uma mulher. Nesse sentido a maternidade, mais do que
resolvê-la, vem relançá-la, ao deslocar metonimicamente a castração ao longo dos termos
da equação fálica que jamais efetuam entre eles uma plena substituição.
Por isso, escutar mulheres no puerpério, mães de pequenos bebês, nos demonstra
que a maternidade, longe de ser uma tranquila resolução da antiga questão que habita cada
mulher acerca de como lidar substitutivamente com o falo, relança a angústia de castração
e a divisão da mulher diante de diferentes modos de gozo atualiza, assim, para ela sua
condição de não-toda no gozo fálico. Dizemos que atualiza porque a boa nova "Agora que
você é e verá o que é nunca mais estar inteira em lugar algum", trazida no início do
texto, poderia levar à interrogação: Por acaso, antes de ser mãe, ela estaria inteira?
Certamente não.
Mas, em todo caso, a maternidade escancara não a angústia da castração e a
feminilidade está ligado, precisamente, a essa identificação profunda com o significante fálico. Jacques
Lacan (1957-1958). O seminário. Livro 5. As formações do inconsciente, p. 393.
294
René Magritte (1937). La Reproduction Interdit.
133
evanescência do falo, mas também a divisão da condição feminina, na medida em que ser
mãe não responde ao que é ser mulher. Nesse sentido, como se diz popularmente, "o furo é
muito mais embaixo" ele consiste nos efeitos psíquicos da falta de um significante que
indique o que é ser mulher, diante do qual a inveja do pênis comparece como engodo.
A oposição entre ter o falo e mascarar-se de encarná-lo para despertar o desejo do
Outro aponta-nos para a circulação de uma mulher por estes diferentes modos de gozo.
Assim, a condição feminina perante a castração ora pode produzir prazer no
desdobramento em diferentes modos de gozo, ora pode desembocar na queixa da
impossibilidade de conjugá-los.
Muito se diz: ser mãe é padecer no paraíso. Este parece ser um modo de fazer
desembocar a maternidade em um gozo masoquista, o que é bastante usual por sinal, mas
não necessariamente intrínseco à maternidade.
295
Encontramos muitas situações clínicas nas quais a realização da criança é tomada
diretamente como medida fálica da mãe. Casos em que a birra, a recusa alimentar, a
retenção de fezes, ou o fracasso escolar são sintomas que se instauram na criança como
uma tentativa inconsciente de produzir uma falta nesse curto-circuito fechado em relação à
demanda da mãe situação que costuma revelar-se pela queixa materna de: "Eu renunciei
a tudo para me dedicar a ela e ela faz eu me sentir incompetente".
Talvez isso nos mostre o absurdo de procurar encerrar aquilo que diz respeito ao
bebê a uma medida da equação fálica, o que torna a questão um círculo infernal em que,
diante da diferença sexual, se instaura uma disputa que reivindica impossíveis simetrias e
busca uma complementaridade diante da falta.
Se a maternidade faz uma mulher revisar os caminhos possíveis perante a castração,
podemos considerar que, além da equivalência fálica, haja a possibilidade de fazer na
295
Diferentemente dos postulados de Helen Deutsch (1929). O masoquismo "feminino" e sua relação com a
frigidez.
134
maternidade atos de criação, de exceção que, em lugar de buscar a complementaridade
com o bebê, possibilitem inventar suplementarmente pela via de um gozo Outro. Por que
então, em lugar de padecer no paraíso, não contemplar a possibilidade de fazer com a
maternidade um pouco de humor no inferno?
Propomos, a seguir, interrogar como a circulação das mulheres por esses diferentes
gozos articula-se na maternidade. Contudo, é importante lembrar que, como afirmou Helen
Deutsch:
(...) as mulheres nunca teriam suportado o fato de terem sido
afastadas (por ordenamentos sociais), por um lado, de
possibilidades de sublimação e, por outro, de gratificações
sexuais, se não houvessem encontrado na função de reprodução
extraordinária satisfação para ambas as instâncias.
296
Satisfação que, diferentemente dessa autora, não consideramos advindas de um gozo
masoquista – como trabalharemos a seguir.
296
Idem, p. 13.
135
V. A MATERNIDADE ALÉM DO GOZO FÁLICO
Sobre o gozo Outro e seus efeitos constituintes no laço mãe-bebê
A produção da subjetividade, a construção das
possibilidades desejantes, são, em grande parte, marcadas pela
atividade, digamos, silenciosa, das mulheres.
297
Não dúvida de que a maternidade articula um gozo fálico pela equação pênis-
falo-bebê –, mas não compareceria nela também um gozo Outro, um gozo não-todo fálico?
Esta é a questão com a qual propomos trabalhar neste capítulo. Fomos levados até
ela pelo trabalho clínico com bebês, crianças e seus pais, assim como pela escuta
psicanalítica de mulheres.
Os cuidados maternos implicam um atrelamento ao gozo fálico da mãe com o bebê,
no entanto, não é sempre desde a medida fálica que uma mãe se refere ao bebê ao dirigir-
lhe seus cuidados, assim como não está sempre a demandar que o bebê lhe mostras de
realizações fálicas.
Às voltas com estas questões clínicas e em busca de referências que permitissem
avançar em um tema, o do gozo Outro, que se anuncia como limite da enunciação do
sujeito e até mesmo da elaboração teórica, encontramos a seguinte colocação de Lacan no
texto "Propostas destinadas a um congresso sobre sexualidade feminina":
Convém interrogar-se acerca de se a mediação lica esgota
tudo do pulsional que possa manifestar-se na mulher e
especialmente tudo o relativo ao instinto maternal.
298
297
Maria Rita Kehl. A mínima diferença: masculino e feminino na cultura, p. 56.
298
Jacques Lacan (1960a). Ideas directivas para un congreso sobre sexualidad femenina, p. 704-715; livre
tradução. Fazemos notar o uso do termo instinto em tal passagem, diferenciando-se de pulsão. Apesar de o
autor não desenvolver seu apontamento, é possível que, venha a indicar, menos um comportamento, um
saber, que estaria pré-estabelecido na mulher, do que uma economia de gozo estabelecida na maternidade
que, como desenvolvemos a seguir, em parte, escaparia à palavra, ao gozo fálico, à linguagem, tal como
ocorre nos seres vivos dotados de instinto, correlacionando-se com um gozo do corpo.
136
Tal afirmação, longe de responder, nos convida a trabalhar com uma questão tão
pouco elaborada em relação à maternidade e que, no entanto, faz seus comparecimentos na
clínica.
Como situamos no capítulo anterior, ser mulher não equivale a ser mãe, sendo a
maternidade uma experiência que, ao abrir uma nova condição, mais do que responder ao
que é ser mulher, relança e atualiza para ela os efeitos da castração.
A sexuação, como operação simbólica que inscreve a economia de gozo do lado
masculino ou feminino, se estabelece em relação a um único significante: o falo. Não
um significante que estabeleça de modo positivado o que é ser mulher. Assim, a
feminilidade se coloca como exceção ao gozo fálico na medida em que circular pelo
feminino implica experimentar uma divisão perante diferentes modos de gozo: o gozo
fálico e, ainda, um gozo Outro. Desse modo, o significante fálico, mais do que um efeito
de castração, produz para uma mulher o efeito de uma divisão. Uma mulher é não-toda no
gozo fálico. Se uma mulher está dividida perante diferentes modos de gozo, se ser mãe não
responde ao que é ser mulher, propomos também considerar que a maternidade não é da
ordem do gozo fálico.
Para Freud, a maternidade implicaria uma possibilidade de realização fálica para as
mulheres e, por meio da articulação da equação pênis-falo-bebê diante da castração, uma
passagem para a condição feminina. Ele aponta a maternidade como um caminho de
resolução possível para a inveja do pênis
299
experimentada pela menina na fase fálica ao
afirmar que:
(...) a renúncia ao pênis não é tolerada pela menina sem
alguma tentativa de compensação. Ela desliza ao longo da linha
de uma equação simbólica, poder-se-ia dizer do pênis para um
bebê.
300
299
Sigmund Freud (1925a). Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, p. 313.
300
Sigmund Freud (1924b). A dissolução do complexo de Édipo, p. 223.
137
Tal deslizamento coincidiria com uma passagem à feminilidade na medida em que a
menina esperaria receber um bebê, enquanto falo, de um homem: o pai.
O desejo que leva a menina a voltar-se para seu pai é, sem
dúvida, originalmente o desejo de possuir o pênis que a mãe lhe
recusou e que agora espera obter de seu pai. No entanto, a
situação feminina se estabelece se o desejo do pênis for
substituído pelo desejo de um bebê, isto é, se um bebê assume o
lugar do pênis consoante com uma primitiva equivalência
simbólica.
301
Desde o viés da equação pênis-falo-bebê, a escolha pela maternidade sem dúvida
implica uma possível realização quanto ao gozo fálico para uma mulher, mas não
necessariamente uma resolução quanto à sua condição feminina.
Depois de Lacan, tem sido corrente partir do princípio de que, após a maternidade,
uma mulher ficaria dividida entre um gozo fálico atrelado à maternidade e um gozo Outro,
próprio do feminino, que poderia ter lugar no exercício sexual com um parteneire.
302
É certo que a circulação pelo feminino implica uma divisão de gozo, no entanto, não
consideramos que a divisão psíquica entre gozo fálico e gozo Outro corresponda, termo a
termo, à divisão mãe/mulher. Situamos aqui a tese de que a maternidade implica, além do
gozo fálico, um gozo Outro e que este gozo Outro tem efeitos decisivos na constituição do
bebê quanto à sua passagem do gozo do vivo à ordem simbólica e, portanto, quanto à
inscrição da letra.
O exercício da maternidade, pelo qual se articula o organismo vivo do bebê à ordem
simbólica, exige um artifício que opera tanto no sentido de uma mascarada quanto no de
oficiar uma arte, uma criação. Neste artifício está implicado o gozo Outro, próprio do
feminino, posto em cena na maternidade. Se cabe ao pai, enquanto função, a transmissão
301
Sigmund Freud (1933). Feminilidade, conferência 33: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise,
p. 157-158.
302
Tal, por exemplo, é a proposta de Jacques-Alain Miller no texto A criança entre a mulher e a mãe.
138
do falo, a maternidade, além de uma transmissão, implica uma criação, uma transmutação,
uma invenção.
Para trabalhar nesta direção, será preciso primeiro trilhar, ainda que brevemente, o
caminho que leva à circulação de uma mulher pelos diferentes modos de gozo, para depois
podermos articular como o gozo Outro se apresenta, mais além do fálico, no exercício da
maternidade.
V. 1. Considerações sobre o conceito de gozo em psicanálise
O conceito de gozo proposto por Lacan tem como ponto de partida as elaborações
sobre o conceito de pulsão, mais especificamente o que Freud situa como uma repetição
além do princípio do prazer.
303
O gozo diz respeito a uma repetição instaurada no
estabelecimento de um circuito pulsional que não é de nenhuma utilidade e que, no
entanto, insiste. Tal repetição não está simplesmente dada de modo natural por um
automatismo biológico; ela se estabelece pelo atrelamento ao campo da linguagem, pois
ainda que o gozo escape dela, ele pulsa na repetição da cadeia significante.
Ainda que o inconsciente esteja estruturado como uma linguagem, o conceito de
gozo está para apontar que nem tudo está articulado no significante. Trata-se de
considerar como a letra se inscreve no corpo, organizando o gozo, gozo que, tal como nos
demonstra o sintoma (enquanto produtor de gozo), permanece como o mais estranho e o
mais íntimo para o sujeito.
304
Só se goza [do corpo] por corporizá-lo de maneira
significante.
305
O significante é a causa do gozo.
306
Sem ele nem sequer há como abordar o
303
Sigmund Freud (1920). Além do princípio do prazer, p. 11-85.
304
Patrick Valas (1998). As dimensões do gozo, p. 28.
305
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 35.
306
Idem, p. 36.
139
corpo.
Desse modo, a linguagem cria e, ao mesmo tempo, interdita o corpo, o que se
evidencia no fato de que o ser humano, como falasser, seja da única espécie que diz ter um
corpo, ou seja, que não é o seu corpo, mas se apropria imaginariamente dele através da
linguagem, situando este corpo de modo disjunto ao seu ser.
307
A linguagem intervém decisivamente no funcionamento corporal, tal como Freud
advertiu desde os primórdios da psicanálise ao intervir com a palavra. Isso não equivale a
dizer que a intervenção clínica seja conduzida por toda espécie de trocadilhos e livres jogos
de palavras às quais a polissemia da língua daria lugar. Lacan advertiu tal questão ao
afirmar que dizer que o inconsciente é estruturado como uma linguagem, não é do campo
da linguística, mas da linguisteria.
308
Ao forjar tal neologismo ele coloca no centro da
psicanálise, não na estrutura da linguagem em si, mas na subversão que o sujeito do
inconsciente produz a partir da e na linguagem. Por isso, na clínica é preciso ler as
repetições que dão a pista, que fazem comparecer o modo como a letra parasita o corpo
inscrevendo suas modalidades de gozo.
O gozo se revela no tropeço da língua. Os atos falhos, lapsos e chistes mostram toda
a sua fineza ao suprimir ou trocar apenas uma letra, subvertendo o sentido e tergiversando
a ordem da linguagem a fim de produzir um ganho de gozo.
Por sua vez, a o prazer encontrado na parcialidade dos circuitos pulsionais,
comparece de modo homólogo a uma lalação primordial, a uma alíngua que parasita o
corpo a partir do modo como a mãe introduz as inscrições que o animarão enveredando seu
gozo de modo articulado ao significante.
309
Assim, linguagem não está desatrelada do
corpo, nem o gozo do significante, apesar de sua heterogeneidade.
310
307
Jacques Lacan (1976-1977). Seminario 24. L’insu que sait de l’une-bevue s’aile à mourre, p. 32.
308
Lacan, Jacques (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 25.
309
Jacques Lacan (1973-1974). Seminário 21. Le non-dupes errent, aula de 11 de junho de 1974, inédito.
310
Como trabalhamos no capítulo "O bebê e a letra".
140
Em "Os chistes e sua relação com o inconsciente" aparece o termo alemão genuss
(gozo) e uma primeira teorização psicanalítica a seu respeito.
311
Freud situa como, ao
comunicar a outra pessoa o chiste que se conhece, aquele que o comunicou recupera
algo da possibilidade de genuss (gozo) perdida devido à falta de novidade.
312
Surge a
característica da repetição, mas proporcionando novamente algo que havia se perdido (e
não simplesmente o mesmo). Surge também o riso, como efeito de satisfação
experimentada no corpo, como uma satisfação que excede a linguagem, ao mesmo tempo
em que se atrela a ela, pois se ri a partir da recuperação de gozo por ter feito outro rir, mas
tal gozo é recuperado por intermédio da linguagem que, deste modo, media e interdita o
gozo.
Este mesmo aparelhamento do gozo pelo campo da linguagem é o que comparece, tal
como aponta Lacan, no duplo sentido produzido pela palavra francesa jouissance (gozo),
que em francês é homofônica com je ouïs sens (eu ouvi sentido).
313
Assim o gozo se revela nas formações do inconsciente e é, inclusive, muitas vezes
referido como sendo uma "satisfação inconsciente" sujeita às leis do processo primário
que, com as condensações e os deslocamentos, metáforas e metonímias, deforma os
conteúdos dos sonhos, tergiversa o código da língua para acolher neles um gozo. Isto
permite falar do gozo como um afeto inconsciente, no duplo sentido de afeto, ou seja, de
uma sensação no corpo (encore) e de uma afetação ou apassivação do sujeito
314
dado que,
diferentemente do chiste, em que o gozo é autorizado e partilhado pelo interlocutor, no ato
falho, lapso ou sintoma, inicialmente o sujeito é assaltado por um estranhamento
desconcertante, muitas vezes seguido de constrangimento.
311
Pierre Kaufmann (1993). Dicionário enciclopédico de psicanálise, p. 221.
312
Fazemos notar que na edição em português, o termo genuss (gozo) é traduzida como prazer, levando a
uma imprecisão teórica. Sigmund Freud (1905b). Os chistes e sua relação com o inconsciente, p. 178; Pierre
Kaufmann (1993). Dicionário enciclopédico de psicanálise, p. 221.
313
Roland Chemama
(1993). Dicionário de psicanálise Larousse, p. 91.
314
Christian Dunker. O cálculo neurótico do gozo, p. 33.
141
Freud utilizou o termo genuss (gozo) em três passagens relevantes: ao falar do chiste;
quando descreve a expressão que o Homem dos ratos faz ao evocar o suplício chinês de
penetração de um rato no ânus como o horror de um gozo todo seu do qual ele mesmo não
estava ciente;
315
e também ao descrever o gozo com a repetição no brincar das crianças.
316
No entanto, ele não chegou a estabelecer o gozo como um conceito.
317
Freud tece algumas considerações sobre esse prazer desprazeroso, levando-nos até a
soleira desse conceito, mas é Lacan quem se dedica a estabelecê-lo enquanto tal,
almejando que a sua contribuição à psicanálise pudesse ser considerada como a
delimitação do campo do gozo.
318
Para estabelecer o gozo enquanto conceito, Lacan parte de seu uso no discurso
jurídico cuja essência mesma seria a de distribuir, repartir e retribuir o que diz respeito
ao gozo.
319
O gozo implica um usufruto termo que, por sua vez, combina
etimologicamente de forma complexa os termos uti (utilizar, usar) e frui (fruir, gozar).
320
O
gozo é assim situado como algo de que se pode usufruir, mas que não serve para nada.
321
O sujeito experimenta a emergência, em seu campo, de diferentes modalidades de
gozo que podem, em um esforço didático, ser assim esquematizadas:
322
o gozo fálico, como o gozo com a linguagem, inaugura-se a partir da significação
fálica do sujeito no Édipo. Trata-se do gozo do ser falante, que permite, pela intermediação
da função fálica, operar articulações e substituições significantes;
o gozo do Outro,
323
como um gozo originário, um gozo mítico, tal como um
paraíso perdido, pode ser considerado a partir do gozo fálico, estando correlacionado
315
Sigmund Freud (1909a). Notas sobre um caso de neurose obsessiva, p. 171. Cabe lembrar que o termo
genuss está, na edição em português, traduzido como "prazer".
316
Sigmund Freud (1920). Além do princípio do prazer.
317
Patrick Valas (1998). As dimensões do gozo, p. 18.
318
Jacques Lacan (1969-1970). O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise, p. 77.
319
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 11.
320
Patrick Valas (1998). As dimensões do gozo, p. 94.
321
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 11.
322
Patrick Valas (1998). As dimensões do gozo, p. 36.
323
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda.
142
com o gozo do corpo, gozo do vivo, ou gozo do ser,
324
como um gozo que retroativamente
seria suposto como anterior ao fálico e, portanto, fora da linguagem, na medida em que
aparece como limitado pelo gozo fálico;
325
o gozo feminino, como gozo Outro, também situado fora da linguagem, mas como
"além" do falo que, por escapar do processo de significação, situa-se de modo suplementar
e não complementar ao gozo, na medida em que não há complementaridade possível entre
os sexos.
326
o mais-de-gozar, relativo ao objeto a, situa-se como resto de gozo que escapa do
processo de significação mesmo se produzindo por efeito dele. Ele implica, mais do que
um modo de gozo, certa operação psíquica de mais-valia realizada para se obter um lucro,
um ganho de gozo.
327
Mesmo podendo decantá-la do ensino de Lacan, tal esquematização entre os distintos
modos de gozo não aparece assim situada em sua obra. As elaborações sobre o gozo
atravessam toda a sua produção, sofrendo modificações e sendo enfocadas a partir de
diferentes problemáticas clínicas ao longo da extensão de seu ensino, sem que ele tenha
pretendido ser exaustivo ou conclusivo a esse respeito.
No seminário "Mais ainda",
328
Lacan aponta a existência de outro modo de gozo, que
não o fálico, como específico do feminino. Fala de um gozo Outro e de um gozo do Outro
que aparecem correlacionados o que lugar a diferentes leituras acerca desses gozos,
que para muitos autores ficam indiferenciados.
329
Consideramos, no entanto, que procurar
avançar na diferenciação de tais gozos tem relevância para a clínica. Veremos por quê.
324
Jacques Lacan (1960b).
Subversión del sujeto y dialética del deseo, p. 773-807.
325
Jacques Lacan
(1969-1970). O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise, p. 72.
326
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 99.
327
Jacques Lacan (1969-1970). O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise, p. 75.
328
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda.
329
Ver, por exemplo, Roland Chemama (1993). Dicionário de psicanálise Larousse, p. 94; ou Nestor
Braunstein. O gozo, p. 152. Para ambos o gozo do Outro nomeia o feminino. Nestor Braunstein o diferencia
do gozo do ser (como anterior ao gozo fálico), mas faz permanecer uma indiferenciação entre gozo Outro e
gozo do Outro.
143
V. 2. O gozo fálico e sua defesa contra o gozo do Outro
O gozo fálico está ligado ao significante. É o gozo próprio do sujeito enquanto
falante, seja ele homem ou mulher. Ele implica a transposição do sujeito de significante em
significante na tentativa de elidir o sacrifício do corpo. Situa-se assim como um gozo que
se articula para fora do corpo.
A linguagem, por intermédio do gozo fálico, produz uma interposição entre o sujeito
e o corpo, constituindo ao mesmo tempo um acesso ao corpo enquanto simbólico e uma
barreira ao corpo enquanto real.
330
Assim, é por meio do significante que se aborda o
corpo;
331
ao mesmo tempo em que ele o cria, o interdita e o ordena.
O falo apresenta-se como um significante que vem se inscrever sobre o corpo,
isolando o investimento fálico sobre um órgão (do lado masculino) ou sobre a imagem
falicizada da forma corporal (do lado feminino), mas nunca referindo o corpo em seu
conjunto.
332
O menino que brinca com a espada de ser valente, esgrimindo astutos movimentos;
que com a sua capa encena o desafio máximo à velocidade; que com a prancha desafia nas
ondas a ferocidade de Netuno; ou que com a lupa desvenda os obscuros mistérios da
natureza está a usufruir de seu corpo a partir da posse de certos instrumentos dotados de
valor fálico (capa, lupa, espada, prancha), mas que aparecem recortados de seu corpo em
si. Seu gozo advém da possibilidade de identificar-se com uma insígnia lica que o torna
astuto, valente, veloz, sabido, ou seja o que for, no sentido de produzir a busca de uma
realização simbólica, mas que se inscreve nele como falta-a-ser, como ideal-do-eu.
Deste modo, o gozo fálico lança o sujeito a uma atividade desejante. O amor, por sua
vez, também está em relação com o gozo fálico, na medida em que implica uma
330
Serge André (1986). O que quer uma mulher?, p. 235.
331
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 36.
332
Serge André (1986). O que quer uma mulher?, p. 212, 216 e 236.
144
idealização do parceiro mediada pelo ideal-do-eu de cada um e, portanto, pelo
significante.
333
No gozo fálico um usufruto do corpo, mas sem gastá-lo. De significante em
significante uma busca de realização simbólica. É, ao mesmo tempo, um gozo e um
limite do gozo, do mesmo modo que o significante é causa material do gozo fálico e
também limite que nos protege contra o desejo do Outro.
334
Ele se estabelece pela metáfora paterna, como uma defesa contra o desejo do Outro
primordial. A metáfora paterna proíbe, interdita o gozo do Outro. Na medida em que o
sujeito tem acesso a uma significação fálica, o Outro se transforma para ele, passa a ser
possível determiná-lo, tirando-o de um lugar de onipotência, estabelecendo a relação com
este a partir de um objeto parcial. Assim, o gozo fálico funda uma dívida simbólica e um
movimento desejante guiado pela busca dirigida a um sentido fálico.
V. 3. O gozo do Outro e a montagem fantasmática
O gozo do Outro é um gozo tico, primordial, no qual o sujeito se oferece como
objeto a um Outro a quem supostamente faria gozar, completando-o.
335
Se o gozo fálico
implica na medida em que é atrelado ao significante um gozo fora do corpo, por sua
vez, o gozo do Outro é um gozo do corpo.
O gozo fálico faz limite ao gozo do Outro, mas também o retoma miticamente a
partir da montagem da cena fantasmática, na qual o sujeito se propõe como o objeto (olhar,
grito etc.) que supostamente faltaria a esse Outro primordial, enquanto combinação do
333
Idem, p. 2-3.
334
Contardo Calligaris. Questões sobre o seminário Encore, aulas de 29/12/1986 e de 07/01/1987, p. 4-11.
335
Idem, p. 2.
145
casal parental
336
da cena primitiva, a fim de fazer esse Outro gozar. Desse modo o sujeito,
oferecendo-se como objeto, produziria uma montagem imaginária de um Outro absoluto
que funcionaria como o horizonte de sua estrutura psíquica, pois ainda que o céu e o mar
jamais se juntem, imaginariamente para o sujeito ele mesmo funcionaria como o objeto que
preencheria a falta do Outro primordial, tornando esse Outro completo.
Pode-se afirmar que a montagem fantasmática implicaria a realização do projeto do
eu-ideal, como identificação imaginária ao objeto da demanda que supostamente
preencheria a falta do Outro materno,
337
enquanto o gozo fálico implicaria a identificação
simbólica como ideal-do-eu.
Tal montagem fantasmática, ao mesmo tempo, um lugar ao sujeito e é fonte de
seus sofrimentos pois os sintomas clínicos são uma resposta a quem ele é no fantasma.
Ou seja, os sintomas se estabelecem a partir do lugar que ele ocupar, do objeto que se
prestar a ser, na montagem fantasmática. Daí a queixa neurótica de "sentir-se usado",
maltratado, aviltado, em suas mais diversas variações, por um Outro a quem supostamente,
desde a sua fantasia, faria gozar com o seu sintoma.
Na clínica psicanalítica os sintomas evidenciam a insistência inconsciente na
repetição de um desprazer prazeroso no qual o sujeito se oferece como objeto de um gozo
alegado a um Outro a partir da montagem fantasmática, fazendo comparecer o infantil que
se atualiza nos sintomas. Daí a pertinência clínica de que uma análise possibilite não
apenas inteirar-se desse fantasma, mas atravessá-lo,
338
na medida em que supor um Outro
que, de fato, gozaria disso, tomando o sujeito como objeto, é uma montagem que prende o
sujeito em um repetição neurótica.
336
Contardo Calligaris.O fantasma masculino e o fantasma feminino. Nesse seminário Calligaris propõe este
Outro primordial enquanto combinação do casal parental como uma espécie de bicho de oito patas,
combinação no acasalamento dos pais, em referência à cena primária apontada por Freud como central no
estabelecimento da fantasia inconsciente.
337
Idem, p. 7-8.
338
Contardo Calligaris (1983). Hipótese sobre o fantasma na cura psicanalítica.
146
Por sua vez, na clínica psicanalítica com a infância propriamente dita, encontramos
efetivamente a criança em sofrimento capturada enquanto objeto de gozo de um Outro
encarnado pela mãe, pai ou casal. Mas o fantasma da criança ainda não está fixado. Seu
recalque psíquico, tampouco estabelecido. Ela, enquanto perversa polimorfa,
339
vai
assumindo as formas transitórias do gozo que lhe é viabilizado pelo Outro. O corpo da
criança efetivamente se presta a encarnar tal gozo. Quanto menor ela é, tornando isso
radical no tempo de ser bebê, mais exposta se encontra a tal passividade.
340
Isto porque o
primeiro objeto que qualquer um propõe como eventualmente adequado à demanda
materna (e ao desejo do Outro articulado como uma demanda) é sempre si mesmo, como
objeto possível dessa demanda
341
claro que sob o preço de, ao realizar tal miragem, cair
na afânise subjetiva, no apagamento, no eclipse do próprio desejo.
342
No entanto, esse tempo de passividade primordial do sujeito é central na constituição
psíquica. Freud o situava, por meio da fantasia de sedução, na raiz tanto da neurose
obsessiva quanto da histeria. Essa primeira condição de ser gozado, como um tempo
constituinte do sujeito, assume uma significação sexual a posteriori da intervenção do
significante fálico.
343
Nos primeiros tempos da constituição isso permite um
estabelecimento dos circuitos pulsionais do bebê marcado pelo Outro-erotismo.
344
O brincar, tal como nos propunha Freud,
345
aponta para a criança a saída de tal
condição de passividade. Efetivamente, isso se torna possível quando a mãe sustenta
339
Sob influência da sedução, as crianças podem tornar-se perversas polimorfas, e podem ser levadas a
todas as espécies de possíveis irregularidades sexuais, Isto mostra que uma aptidão para elas existe inata na
disposição das crianças. Há, consequentemente, pouca resistência no sentido de realizá-las, já que as
barreiras mentais contra os excessos sexuais vergonha, repugnância, moralidade ou não foram ainda
construídas ou estão apenas em processo de construção, segundo a idade da criança.Sigmund Freud
(1905a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, p. 196.
340
Julieta Jerusalinsky. Enquanto o futuro não vem a psicanálise na clínica com bebês, p. 185-193.
341
Contardo Calligaris. O fantasma masculino e o fantasma feminino, p. 8.
342
Jacques Lacan (1964). El seminario. Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, p.
224-237.
343
Serge André (1986). O que quer uma mulher?, p. 100.
344
Charles Melman (1985a). Questions de clinique psychanalytique.
345
Sigmund Freud (1920). Além do princípio do prazer.
147
para a criança a atribuição de sujeito e, portanto, a sua condição de acesso ao gozo fálico,
dando lugar a uma passagem da passividade à atividade.
346
Neste laço primordial a dialética entre atividade e passividade equivale a uma
oscilação entre ser o objeto da mãe e tomar a mãe por objeto.
347
Deste primeiro tempo de
passividade, passa-se a um segundo tempo de atividade em que a mãe é tomada como
objeto, tanto pelo menino quanto pela a menina. Chegamos, assim, ao primado do falo
348
que se caracteriza pela posição ativa da criança para com a mãe.
Teremos, a partir da fase fálica, os diferentes percursos da masculinidade e da
feminilidade estabelecidos como inscrições simbólicas na sexuação pela tramitação do
complexo de Édipo. O percurso da feminilidade implica, como foi situado, abandonar a
passividade para separar-se da mãe, assumindo uma condição ativa de sujeito, mas,
paradoxalmente, também implica conservar e retomar certa passividade para ligar-se ao
pai.
349
V. 4. O menino e a menina a partir do gozo fálico
Em um primeiro tempo o bebê encontra-se em posição de passividade perante a mãe.
As primeiras experiências sexuais e sexualmente coloridas
que uma criança tem em relação à mãe são, naturalmente, de
caráter passivo. Ela é amamentada, alimentada, limpada e vestida
por esta última, e ensinada a desempenhar todas as suas funções.
Uma parte de sua libido continua aferrando-se a essas
experiências e desfruta das satisfações a elas relacionadas; outra
parte, porém, esforça-se por transformá-las em atividade.
350
346
A passagem da passividade à atividade por meio do brincar é abordada, mais amplamente, no próximo
capítulo.
347
Serge André (1986). O que quer uma mulher?, p. 185.
348
Sigmund Freud (1923a). A organização genital infantil, p. 180.
349
Serge André (1986). O que quer uma mulher?, p. 187.
350
Sigmund Freud (1931). Sexualidade feminina, p. 271.
148
Portanto, em um primeiro tempo da constituição psíquica, somos todos passivos
diante do Outro encarnado pela mãe. É depois disso que chegamos ao primado do falo, em
cujo início tanto meninos quanto meninas passam a ter uma atitude ativa para com a mãe
enquanto objeto de amor.
Nesse momento da fase fálica, afirma Freud, somos obrigados a reconhecer que a
menina é um homenzinho,
351
tão ativa quanto o menino. E eis aqui que, em certo momento
da constituição, a menina, para tornar-se sujeito, deve se tornar masculina,
352
saindo da
condição passiva de objeto de gozo da e e assumindo uma posição ativa. Tal passo é
decisivo para a constituição do sujeito, produzido por uma revolta inequívoca contra a
passividade
353
tão claramente apresentada, por exemplo, no brincar de boneca realizado
pela menina – cena na qual ela realiza ativamente o que viveu passivamente com a mãe.
354
Inicialmente a diferença anatômica entre os sexos é ignorada e negada. No primado
do falo meninos e meninas se supõem, de início, em de igualdade, mas o complexo de
castração e a tramitação do complexo de Édipo se encarregarão de fazer valer a diferença
anatômica entre eles, decidindo, em termos simbólicos, sua inscrição do lado masculino ou
feminino da sexuação.
A ameaça de castração tem um efeito diferente para o menino e para a menina: para
o menino tal ameaça funciona, fazendo-o sair do complexo de Édipo.
355
Sai dele com um
pênis nada foi realmente cortado do seu corpo e encontra, na masculinidade, a
possibilidade de identificar-se àquele que supõe deter o falo, ou seja, o pai. A castração é aí
uma operação simbólica. Certamente isso tem o seu preço: o menino, para ter acesso à
351
Sigmund Freud (1933). Feminilidade, conferência 33: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise,
p. 146.
352
Serge André (1986). O que quer uma mulher?, p. 186.
353
Sigmund Freud (1931). Sexualidade feminina, p. 271.
354
Como aponta Freud, esse brincar de boneca da menina, por longo tempo, corresponde a uma passagem da
passividade à atividade em relação à mãe. Somente em um tempo posterior corresponderá à atitude feminina
de receber um bebê do pai. Idem, p. 272.
355
Sigmund Freud (1924b). A dissolução do complexo de Édipo, p. 220; (1925a). Algumas consequências
psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, p. 318.
149
masculinidade, precisa, por um lado, recalcar que seu corpo seja objeto do gozo materno
(como Outro encarnado), recalcar a posição de passividade diante do gozo e desejo da mãe,
assumindo uma posição ativa; por outro, precisa cultivar a dívida simbólica com o pai que
o separa de sua posição de objeto.
No acesso à masculinidade, o corpo (ainda que nada lhe seja realmente cortado) é
perdido para o gozo fálico, a partir do qual o sujeito perseguirá realizações que lhe valham
o reconhecimento paterno, ou seja, um sentido fálico. Enquanto que, na feminilidade,
nunca se produz plenamente uma separação do corpo primordial,
356
permanecendo sempre
o suplemento de um gozo Outro, para além do fálico, que faz comparecer um gozo do
corpo fora da palavra.
Para a menina, o encontro com o significante fálico confrontado à diferença
anatômica entre os sexos assume outras vicissitudes. Mais do que com uma ameaça de
castração, ela se encontra com o fato de não ter um pênis: ela o viu, sabe que não o tem e
quer tê-lo.
357
Algo que deveria estar aí, falta. Para um homem o significante paterno é algo
que o fez sujeito, que o faz falar. Para uma mulher, o significante paterno é também algo
que, de início, atingiu seu corpo. Quer dizer que sua sexuação lhe aparece
irremediavelmente como uma operação cirúrgica.
358
Em que registro se inscreve tal falta é
uma questão a discutir, pois pode ser experimentada como privação ou frustração.
359
O
objeto de sua falta é, por um lado, real – ela está frustrada diante da falta do pênis –, e, por
outro, simbólico – ela está privada de um significante que lhe aponte o que é ser mulher.
360
Ainda que a mãe esteja, pelo complexo Edípico, interditada tanto para o menino
quanto para a menina, eles não estão em de igualdade quanto à posição de falo
imaginário para a mãe. O menino encontra defesa dessa situação ao identificar-se
356
Alfredo Jerusalinsky. Angústia e gozo do Outro.
357
Sigmund Freud (1925a). Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, p. 314.
358
Contardo Calligaris. Questões sobre o seminário Encore, aula do 08/01/1987, p. 28.
359
Idem, p. 27.
360
Jacques Lacan (1969-1970). O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise, p. 146.
150
virilmente ao pai, mas essa não é a mesma a condição da menina.
Parece-nos interessante, nesse sentido, a passagem na qual Lacan retoma a questão
do espelho, não em referência ao júbilo do bebê, mas do menino e da menina confrontados
com a diferença sexual. O menino, diante do espelho,
(...) olha para a torneirinha problemática. Desconfia que uma
esquisitice ali. Depois, será preciso que apreenda, e o faça à sua
custa, que aquilo que ele tem ali não existe, comparado ao que tem
o papai, os irmãos mais velhos, etc. (...) Em síntese, ele terá de
aprender passo a passo, em sua experiência individual, a riscá-lo
do mapa de seu narcisismo, justamente para que isso possa
começar a servir para alguma coisa.
361
O que é outro modo de dizer que precisará perder a condição de objeto materno para
entrar em um gozo fálico e poder fazer exercício de alguma virilidade.
A menina, por sua vez, diante de espelho, faz o gesto de passar a mão rapidamente
sobre o gama formado pela junção do ventre com as duas coxas, como que num momento
de vertigem diante do que via.
362
Ela não não tem o pênis, que supõe que a mãe não lhe
deu; mas, como situa Lacan, tampouco encontra um significante que sustente a sua
identificação feminina com a mãe, simplesmente porque ele não existe.
Desse modo, a sexuação se articula para ambos os sexos somente em relação ao falo.
É aí que a menina encontra, além da frustração de um pênis, a falta radical de um
significante no Outro que nomeie o que é ser mulher. Por isso Lacan afirma que A mulher
não existe,
363
pois não se trata de que o significante representante do feminino estaria
recalcado, simplesmente uma ausência desse significante no inconsciente até mesmo
das mulheres.
Trazemos, a este respeito, a conversa transcorrida entre um menino de cinco anos e
uma menina de três com a mãe de ambos:
361
Jacques Lacan (1962-1963). O seminário. Livro 10. A angústia, p. 223.
362
Idem, ibidem.
363
Jacques Lacan (1971b). Seminario 18. De un discurso que no seria del semblante, aula de 17/2/1971;
(1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 98.
151
Menino: –– Mamãe, vamos brincar de super-heróis? Eu era o Super-Homem e você a
Mulher Maravilha, minha namorada.
Menina: –– E eu era a Mulher Elástica, sua namorada também.
Menino: –– Não! Você não pode ser a namorada de outra mulher.
Mãe: –– Ué, se é por isso, o que não pode é mãe namorar o filho, menino ou menina.
Menino: –– Mas eu não era seu filho, eu era o Super-Homem, lembra?
Menina: –– E eu a Super-Homa!
Menino: –– Ai, ai! [ri] Não vê que isso não existe?!
Menina, angustiada: –– Mãe, diz pra ele...
Mãe: –– Sinto muito, não tem mesmo. Mulher Elástica tem. Ela é super-heroína, mãe
do Flecha e da Violeta. Além disso, é casada com o Senhor Incrível.
Menina: –– Vou ser a Mulher Elástica, então...
Diante da diferença anatômica entre os sexos significada a partir do encontro com o
significante fálico, Freud aponta três caminhos possíveis para a menina: o da revulsão geral
da sexualidade, abandonando a atividade fálica, tanto em sua vida sexual como a
masculinidade em outros campos, levando à inibição ou neurose; o de aferrar-se à
masculinidade ameaçada, desenvolvendo um complexo de masculinidade que não
necessariamente resulta em uma escolha homossexual manifesta; e somente como um
terceiro caminho possível situar-se-ia a feminilidade.
364
Pommier, de forma extremamente esclarecedora, retoma os três caminhos situados
por Freud a partir da diferenciação entre falo e pênis. Aponta que os dois primeiros
caminhos tomados pela menina partem do estabelecimento de uma equivalência fechada
entre pênis e falo (pênis = falo).
O primeiro caminho, produzindo pelo viés de igualar a falta de pênis à falta de falo
364
Sigmund Freud (1931). Sexualidade feminina, p. 264; (1933). Feminilidade, conferência 33: Novas
conferências introdutórias sobre psicanálise, p. 155.
152
(não pênis = não falo), teria o efeito de um naufrágio da vida erótica, uma catástrofe
psíquica para a menina, levando-a a renunciar, pela falta de pênis, à sua atividade desejante
atrelada ao gozo fálico. No segundo caminho, o falo seria igualado ao pênis, levando a
menina a aferrar-se à masculinização (falo = pênis). Estes dois primeiros caminhos são
frequentemente intercambiáveis entre si, apresentando-se como oscilação um do outro,
fazendo com que uma mulher possa passar da posição de resignação à reivindicação mais
violenta, ou da extrema segurança a um completo desespero.
365
Tal questão nos permite pensar, em termos de uma condição simbólica da sexuação,
as conhecidas oscilações de humor das mulheres, hoje em dia atribuídas quase que
exclusivamente às mudanças hormonais da tensão pré-menstrual (TPM), mas nomeadas
pela arte, antes do avanço de um discurso científico organicista, e eternizadas nos versos de
ópera – la donna é mobile qual piuma al vento.
366
O terceiro caminho, o da feminilidade, implicaria uma diferenciação entre pênis e
falo (pênis =/= falo), possibilitando à menina, apesar de não ter pênis, circular pelo gozo
fálico, sem por isso, necessariamente, precisar aferrar-se plenamente a uma
masculinização.
367
Para que o encontro com esse furo simbólico do Outro, para que essa falta de um
significante que venha a nomear o que é ser mulher, não produza o efeito de uma
devastação psíquica, é preciso que a menina conserve a circulação pelo gozo fálico, ao
mesmo tempo em que, após ser atingida em seu corpo pelo significante paterno, possa abrir
lugar para uma busca ativa pela feminilidade, ou seja, buscar ativamente situar-se como o
par terno
368
de um parceiro com o qual, por supô-lo sustentador do falo, poderá gozar
365
Gerard Pommier (1985). A exceção feminina, p. 22.
366
Ária da ópera Rigoletto de Giuseppe Verdi (1851).
367
Gerard Pommier (1985). A exceção feminina, p. 21.
368
Aproveito aqui o ato falho por mim produzido ao transcrever a citação relativa à nota 358: onde era para
escrever "o efeito cirúrgico do significante paterno para a menina", escrevi par terno. Apesar de tê-lo
corrigido para atender aos aspectos formais, vale retomá-lo, pois, a questão que se coloca justamente é como,
153
fugazmente de ocupar o lugar de passividade.
Claro que tal leitura é possível a partir da transmissão de Lacan, na medida em
que, para Freud, a questão se coloca em termos de que a saída feminina residiria em tornar-
se toda mulher,
369
recalcando sua masculinidade prévia e, junto com ela, abandonando
prontamente as tendências ativas da libido.
370
Talvez seja justamente por considerar que a feminilidade se articularia em termos
de tornar-se toda mulher que Freud não deixe de se surpreender com a constatação da
atitude dividida
371
da mulher perante o complexo de castração. Ele aponta tal divisão,
apesar de não avançar no mistério que comporta, por exemplo ao afirmar que:
(...) no transcorrer da vida de algumas mulheres existe uma
repetida alternância entre períodos em que ora a masculinidade
ora a feminilidade predominam. Determinada parte disso que nós,
homens, chamamos de "o enigma da mulher”, pode talvez derivar-
se dessa expressão da bissexualidade na vida da mulher.
372
Tal bissexualidade apontada por Freud, mais do que como uma questão orgânica ou
como uma efetiva realização com parceiros sexuais, pode ser lida como a divisão
373
produzida na mulher perante o complexo de castração que a lança a dois diferentes modos
de gozo, tal como Lacan vem situar.
Lacan aponta que, enquanto do lado masculino se produz o gozo fálico, do lado
feminino constatamos que uma mulher fica situada como não-toda na castração e,
portanto, não-toda no gozo fálico. Ou seja, ao mesmo tempo em que ela não escapa à
castração (e isso diferencia o feminino da psicose), só fica parcialmente submetida a ela.
374
Enquanto falasser ela busca ativamente a realização de seu desejo, ficando situada
a partir desse impacto, em lugar de repeti-lo exaustivamente, como um puro golpe que conduza ao
masoquismo, pode-se abrir passagem para a vida amorosa e sexual.
369
Serge André (1986). O que quer uma mulher?, p. 203.
370
Sigmund Freud (1931). Sexualidade feminina, p. 271-275.
371
Idem, p. 264.
372
Sigmund Freud (1933). Feminilidade, conferência 33: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise,
p. 161.
373
Tal como propõe Gerard Pommier (1985). A exceção feminina, p. 42.
374
Serge André (1986). O que quer uma mulher?, p. 222.
154
na castração e no gozo fálico e, portanto, jamais se torna toda mulher, como pretendia
Freud. Mas, por outro lado, ela é não-toda na castração, pois a sua inscrição em relação à
falta não se articula ao todo como operação simbólica e seu gozo, portanto, é não-todo
fálico, dando lugar a outro modo de gozo.
Não é porque é não-toda na função fálica que ela deixe de estar nela de todo. Ela
está lá a toda. Mas algo a mais: um gozo,que nos atemos ao gozo, gozo do corpo
que é, se posso me exprimir assim, para além do falo.
375
Por isso a mulher não deixa de
situar-se no gozo fálico, ainda que possa visitar um gozo Outro suplementar a este.
Se do lado masculino o complexo de castração instaura uma dívida simbólica, do
lado feminino ele instaura também uma divisão. Ela mais se desdobra do que se unifica no
significante mulher.
376
Tal divisão, formalizada por Lacan como a circulação de uma mulher por diferentes
modos de gozo, correlaciona-se a achados clínicos freudianos: deriva-se dessa divisão a
mudança de objeto de amor, da mãe ao pai, ainda que este último tenha apenas um caráter
substitutivo que não impede o retorno psíquico do peso da primeira relação ao longo da
vida amorosa de uma mulher;
377
deriva-se também a controvertida suposta mudança de
zona erógena, do clitóris (como equivalente fálico) à vagina
378
como uma metáfora
impossível que procura localizar em uma área recortada do corpo um órgão correspondente
à feminilidade. Percebe-se o equívoco do qual tal concepção parte dado que, se o gozo
feminino não é o fálico, então, não se concentra em um órgão. Daí que resulte sem saída
toda a discussão da passagem de zona erógena do clitóris para a vagina, pois, do lado
feminino, a erogenização é do corpo e não do órgão.
379
Questão, aliás, advertida por
375
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 100.
376
Serge André (1986). O que quer uma mulher?, p. 222
377
Sigmund Freud (1931). Sexualidade feminina, p. 265.
378
Idem, p. 259.
379
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 101.
155
Freud ao situar o caráter narcísico da relação das mulheres com o seu corpo,
380
entrando
em contradição com o critério de mudança de zona erógena; ainda, deriva-se de tal divisão
a passagem da passividade inicial com a e para a atividade no primado do falo, para um
retorno à posição passiva como próprio da feminilidade ainda que a feminilidade não
implique uma permanência na passividade, mas passagens pela atividade e passividade,
assim como pela circulação por diferentes modos de gozo.
V .5. Mulher, gozo e divisão
o que não se articula na equação pênis-falo-bebê
Apesar de tantas vezes ser lembrada a frase: a anatomia é o destino,
381
Freud
também aponta o quanto aquilo que constitui a masculinidade ou a feminilidade foge do
alcance da anatomia
382
e o quanto as reações de indivíduos humanos de ambos os sexos se
constituem de traços masculinos e femininos.
383
Em um mundo no qual o papel social de homens e mulheres fica cada vez menos
delimitado em correspondências estereotipadas do masculino e do feminino, torna-se uma
questão interessante como comparece, como pode se apresentar e se reinventar
singularmente, para além do gozo fálico, a circulação pelo gozo Outro. Questão revisitada
em cada desenlace amoroso e também em cada análise.
Diferentemente da elaboração freudiana, que coloca o devir mulher como uma
380
Sigmund Freud (1914b). Introducción del narcisimo; (1933). Feminilidade, conferência 33: Novas
conferências introdutórias sobre psicanálise. Em tais textos Freud aponta o alto grau de narcisismo presente
na feminilidade. É pelo efeito do encontro com a diferença sexual e com a consequente inveja do pênis que
sobreviria a vaidade corporal na mulher.
381
Sigmund Freud (1924b). A dissolução do complexo de Édipo, p. 222.
382
Sigmund Freud (1933). Feminilidade, conferência 33: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise,
p. 141.
383
Sigmund Freud (1925a). Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos, p. 317
156
suposta eliminação completa da sexualidade fálica,
384
a partir de Lacan a condição
feminina é pensada como uma divisão em diferentes modos de gozo, fazendo com que uma
mulher fique, a partir da castração, atrelada à ordem fálica, ainda que não plenamente.
Assim a feminilidade revela uma divisão diante da castração, bem como a falta radical de
uma representação inconsciente d'A mulher.
No entanto, Freud situava como a diferença sexual, a oposição masculino-
feminino, é estabelecida em relação a um único termo: o falo, a partir do qual a diferença
anatômica entre os sexos passa a ser representado em termos de tem e não tem.
385
Diante
da diferença anatômica representada em termos de ter e não ter, a saída com a qual a
menina conta para ir em direção à feminilidade é a de deslizar pelos termos da equação
simbólica pênis-falo-bebê.
A menina precisa operar uma série de passagens para articular uma saída feminina,
mas a passagem de uma a outra dessas posições não opera nem por uma solução de
continuidade, nem por uma plena substituição entre os termos da equação simbólica. Essa
descontinuidade emerge dentro da própria equação fálica, pois, apesar de haver uma
equivalência entre pênis, falo e bebê, um termo não se metaforiza plenamente no termo
seguinte. Esta questão também é apontada por André ao considerar que, no trajeto a ser
percorrido pela menina, seja do ponto de vista da troca de objeto, da mudança de
identificação, de zona genital ou de modo de gozo, chega-se sempre à conclusão de que
essas mudanças atuam menos como substituições do que como desdobramentos.
386
Por
isso, no deslizamento de um termo a outro da equação fálica, sempre se produz, para uma
384
Serge André (1986). O que quer uma mulher?, p. 203.
385
Sigmund Freud (1923a). A organização genital infantil, p. 180. Nesse texto Freud aponta que na fase
fálica o que está em jogo para as crianças, o que entra (...) em consideração é apenas um órgão genital, ou
seja, o masculino. O que está presente, portanto, não é uma primazia dos órgãos genitais, mas uma primazia
do falo.
386
Serge André (1986). O que quer uma mulher?, p. 187.
157
mulher, o encontro com um gozo que, para ela, não foi plenamente articulado como fálico.
Mesmo esses termos sendo colocados em equivalência, a substituição metafórica
entre eles não se opera plenamente, o que faz com que na passagem de um a outro se
produza uma inevitável visita à condição de não-toda no gozo fálico experimentada por
cada mulher de modo singular. Ao procurar articulá-los, cada mulher se lançada à
passagem metonímica que opera entre eles, sem que, no entanto, nenhum deles represente
o que é ser mulher. Concordamos, a este respeito, com André quande ele afirma que: O
destino da menina aparece, assim, como o de uma metáfora impossível ou de uma luta
permanente para se elevar do registro de metonímia para o da metáfora.
387
Lembremos que a menina é atingida pelo significante fálico não em termos de
articular uma operação simbólica de castração, mas também pelo efeito de uma frustração
e de uma privação experimentada diante da diferença anatômica entre os sexos, na medida
em que ela não tem pênis. Diferentemente do menino cuja castração o situa em uma
dívida simbólica com o pai, ao sair do complexo de Édipo inscrito do lado masculino da
sexuação –, para a menina nem tudo é atrelado ao significante enquanto dívida simbólica,
nem tudo para ela é da ordem de um gozo fálico. Algo se passou no corpo, passou pelo
corpo, dividindo sua posição em relação ao gozo fálico. Assim, o fato de uma mulher não
ficar situada em posição de transmissora do falo pode produzir-lhe o efeito de uma
privação ou frustração, mas também pode abrir lugar para que, diante dessa falta, desse
inominado, ela possa ter acesso a um gozo Outro, possa criar de modo suplementar.
Se os termos da equação fálica não metaforizam plenamente o pênis, o encontro com
a falta que emerge entre eles torna necessário que cada mulher opere, na passagem entre
um e outro, uma transmutação a ser reinventada de modo singular e talvez, até mesmo,
profundamente solitário na medida em que não contemplada como plena herdeira do
387
Idem, p. 187
158
nome na filiação ao pai e tampouco sustentada em uma identificação com a mãe dada a
impossibilidade de identificação com um traço positivado que represente A mulher.
V. 6. "A mulher à toda" no discurso social
.
A busca por uma completude aparece no discurso corrente de mulheres como
tentativa de realizar "A Mulher”, mas ela se revela como um impossível, fazendo
comparecer não só a incompletude, a falta própria de qualquer ser desejante (seja ele
homem ou mulher desde o aspecto anatômico, seja ele sexuado do lado masculino ou
feminino, desde a inscrição simbólica) mas, além disso, revelando a divisão experimentada
pela mulher diante da condição de não-toda no gozo fálico. É por essa raiz de não toda,
que ela enterra outro gozo que o gozo fálico, o gozo chamado propriamente feminino e
que não depende de modo algum do gozo fálico.
388
Se a mulher é não toda, quanto a seu
gozo, ele é dual.
389
Se esta questão se apresenta como estrutural, os acontecimentos sociais não deixam
de produzir seus efeitos no modo pelo qual esta velha questão do feminino se reapresenta.
A circulação das mulheres por diferentes papéis sociais e a impossibilidade de solução de
continuidade na passagem de um a outro desses papéis deixa evidente a divisão da mulher
perante diferentes modos de gozo.
"Ser desejada como mulher, realizar-se como mãe e trabalhar tanto quanto um
homem" são diferentes ideais e, portanto, diferentes promessas de gozo com as quais uma
mulher se encontra na atualidade. É em relação a tais ideais que circulam as escolhas
conscientes e inconscientes que podemos recolher da fala de mulheres no social e também
388
Jacques Lacan (1972). Seminario 19. ...Ou Pire, clase 5, "El saber del psicoanalista".
389
Idem, ibidem.
159
em análise.
Basta virar as páginas das revistas femininas para perceber o quanto o pulular de um
tema a outro, mais do que produzir qualquer possibilidade de completude ou
complementaridade, evidencia o corte abrupto, sem solução de continuidade, entre as
diferentes versões de gozo a que poderia ter acesso uma mulher.
Lévi-Strauss, em As estruturas elementares do parentesco,
390
descreve como a troca
de laços de aliança se situa para os homens em ternos de: eu recebi uma mulher e devo
uma filha.
391
Em termos psíquicos isso implicaria para uma mulher uma renúncia ao falo
paterno e à possibilidade de vir a recebê-lo de outro homem
392
tal como o sobrenome
e isso ao preço de se fazer objeto oferecido no mercado das trocas.
393
Se, nas sociedades tradicionais, as mulheres ficavam historicamente situadas como
objetos de troca entre clãs, na medida em que começam a receber dinheiro em troca de seu
trabalho passam, na atualidade, também a ser autoras da realização de trocas fálicas.
Freud aponta o quanto o amor das mulheres teria estabelecido as bases da
civilização: na medida em que elas, além de ficarem com o macho, teriam exigido manter
os filhos junto de si, criando as bases da família nuclear.
394
Mas depois, tal amor das
mulheres, teria se voltado contra a civilização, na medida em que as realizações sociais e
culturais confinadas por tanto tempo ao âmbito dos homens se oporiam às reivindicações
das mulheres na esfera amorosa.
395
Porém, a partir do momento em que as mulheres deixam de estar reclusas ao lar, a
partir do momento em que passam a trabalhar e a gozar (falicamente) de direitos e deveres
de cidadãs, também passam a ser responsáveis e produtoras do pacto social – o que
390
Ver Lévi-Strauss (1949). As estruturas elementares do parentesco.
391
Jacques Lacan (1956-1957). O seminário. Livro 4. As relações de objeto, p. 146.
392
Idem, p. 146-7.
393
Charles Melman (1984). Novos estudos sobre a histeria, p. 130.
394
Na medida em que “o macho adquiriu motivo para conservar a fêmea junto de si (...) ao passo de que a
fêmea, não querendo separar-se de seus rebentos indefesos, viu-se obrigada, no interesse deles, a
permanecer como macho mais forte.Sigmund Freud (1929). O mal-estar na civilização, p. 119.
395
Idem, p. 124.
160
recoloca a posição das mesmas no pacto civilizatório.
396
Joan Rivière já aponta isso em 1929 ao afirmar:
Os tempos mudaram (...) no meio universitário ou científico,
assim como no mundo dos negócios, encontram-se constantemente
mulheres que parecem responder a todos os critérios de uma
feminilidade realizada (...) mas ao mesmo tempo são capazes de
assumir as responsabilidades de sua vida profissional, pelo menos
tão bem quanto qualquer homem.
397
Ou seja, o fato de uma mulher realizar suas aspirações profissionais não tem por que
impedir sua feminilidade. Trata-se da circulação não apenas por diferentes papéis, mas por
duas posições diferentes perante o falo: ora partilhando o campo fálico, ora situando-se
fora dele, na medida em que ele é atribuído a um parteneire. Por um lado, isto implica a
possibilidade de identificação da menina com algum traço fálico, desde o qual possa fazer
valer sua atividade no social;
398
por outro lado, implica – considerando-se uma saída
erótica feminina – poder gozar a partir da possibilidade de receber o falo de um homem.
O fato de que na atualidade haja mulheres com liberdade de amar e trabalhar
retraça os caminhos da circulação fálica em nossa cultura
399
No entanto, isto produz para
as mulheres um retorno psíquico não do lado dos ganhos, mas também do padecimento,
dado que, além de ter tal possibilidade, passam também a arcar com a responsabilidade de
tal escolha. Assim, as mudanças do lugar das mulheres no laço social não ocorrem de
modo desatrelado a uma exigência de elaboração psíquica das pacientes que recebemos em
análise: aparece a divisão de uma mulher que,"ao trabalhar tanto quanto um homem",
goza falicamente, mas que, eroticamente, visita o gozo feminino. Ou seja, não é preciso
que haja uma simetria entre o gozo erótico de uma mulher e sua circulação enquanto
cidadã e/ou profissional.
396
Maria Rita Kehl. A mínima diferença: masculino e feminino na cultura, p. 57.
397
Joan Rivière (1929a). La feminilidad como mascarada, p. 8, tradução livre.
398
Idem, ibidem.
399
Maria Rita Kehl. A mínima diferença: masculino e feminino na cultura, p. 65.
161
Além da dupla jornada de trabalho própria de mulheres que são mães e trabalham
fora –, na atualidade encontramos um questionamento cada vez maior entre as mulheres
que colocam o quanto o fato de ser mãe e empreender uma vida profissional as lança na
esfera do ou/ou, partindo do princípio de que a aposta em uma dessas realizações de ordem
fálica implicaria um investimento inversamente proporcional no outro âmbito.
400
Efetivamente, ao se tratar-se do gozo fálico, as mulheres hoje em dia encontram diferentes
vias de realização que não "ter um bebê" vias que não necessariamente precisam ser
exclusivas, em detrimento das outras. Mas comparece a divisão pela competição de dois
investimentos na ordem fálica: o trabalho e o bebê.
A clínica aponta outra questão interessante: a escolha pela maternidade para muitas
mulheres que trabalham, pode vir a ser significada como uma ameaça não para um
gozo fálico via trabalho, mas também para um gozo erótico do feminino: "Medo de deixar
de ser desejada, de deixar de ser vista como mulher... O corpo muda, sem falar que sempre
vai estar mais alguém ali, entre os dois, além do trabalho. Agora chego na minha casa
depois de horas de trabalho e somos nós dois, meu marido e eu. Podemos namorar. Mas e
com uma criança?"– fala uma paciente, interrogando-se sobre o desejo de ter um bebê,
considerando-o em oposição à sua vida erótica com o marido.
"Não suporto mais o modo como ele me trata. Às vezes parece que sou a mãe dele
em lugar de mulher. Tenho que resolver tudo e ele nem repara em mim"– fala outra
paciente, trazendo uma queixa tão frequentemente enunciada por mulheres-esposas acerca
de seus maridos, apontando que a realização do lugar de mãe não coincide com a
realização enquanto mulher. Fica situada a divisão: entre a posição de mulher e a de
mãe introduzida pelo nascimento de um bebê.
Curiosamente, Freud afirma a este respeito que um casamento não se torna seguro
400
Tal como foi abordado no capítulo anterior.
162
enquanto a esposa não conseguir tornar seu marido também seu filho e agir com relação a
ele como uma mãe, na medida em que, desde este papel materno, a mulher daria vazão a
tudo aquilo que nela restou de seu complexo de masculinidade.
401
É certo que grande parte
dos casais desemboca em uma relação assim estabelecida, mas resta interrogar qual seria aí
o destino da vida erótica. Pois, se há uma passagem psíquica importante entre a menina em
posição feminina no Édipo e a experiência de maternidade – produzindo uma possibilidade
de realização fálica a partir da promessa: "não tens pênis, mas um dia poderás ter um bebê"
–, outra passagem a se operar, decisiva tanto para o psiquismo de uma mulher quanto
para o do bebê que ali advém: trata-se de um segundo percurso a percorrer, que parte da
maternidade e reconduz à posição de mulher.
Para que a criança possa assumir essa castração (...) é
preciso que a mãe haja podido ela mesma assumir sua própria
castração, é preciso que desde esse momento, desde essa relação
dual, o terceiro termo, o pai, esteja presente enquanto referência
materna. Somente nesse caso o que ela buscará na criança não
será uma satisfação no nível de uma erogenidade corporal,
equivalente fálico, mas uma relação que, constituindo-a como mãe
a reconheça ao mesmo tempo como mulher de um pai.
402
Esta passagem torna-se decisiva para que a e possa ser percebida pela criança
como não-toda, como dividida entre a posição de mãe e de mulher de alguém, apontando
assim, com seu desejo, a um terceiro enquanto portador do falo. Deste modo, a retomada
de uma posição feminina em relação a um parteneire se situa como um movimento
decisivo no exercício da função materna.
Ser mãe, ser mulher de um parceiro e ser trabalhadora referem-se a três diferentes
papéis sociais que se tecem em torno de apenas duas inscrições em relação ao falo. Ou
seja, ainda que os papéis sejam três, ou pelo menos três,
403
o que eles vêm atualizar, na
401
Sigmund Freud (1933). Feminilidade, conferência 33: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise,
p. 164.
402
Jacques Lacan (1961-1962). Seminario 9. La identificación, aula 18, 2/5/1962.
403
Dado que, como adverte Freud, para o homem, a posição de mulher costuma ser subdividida enquanto
"casta" e de "má reputação"; enquanto "esposa amada" e "objeto sexual desejável'. Sigmund Freud (1910).
163
impossibilidade de passagem em solução de continuidade de um a outro, é a divisão de
uma mulher entre dois diferentes modos de gozo: o gozo fálico e o gozo Outro.
Na passagem de um a outro dos diferentes papéis sociais, assim como no virar das
páginas das "revistas femininas", mais do que se articular uma completude, comparece a
não continuidade e, portanto, a divisão experimentada por uma mulher perante diferentes
modos de gozo. No entanto, a divisão entre gozo fálico/gozo Outro, não corresponde
esquematicamente à divisão dos papéis sociais mulher/mãe/trabalhadora.
V. 7. Feminino, passivo e masoquista: a tríade em questão
A sexuação
404
se opera em relação a um único termo: o falo. Na falta de dois
significantes que viriam a representar o masculino e o feminino, a diferença sexual, como
aponta Freud, frequentemente fica recoberta por outras polaridades: passividade-atividade
e/ou sadismo-masoquismo. A condição feminina é, assim, correlacionada à passividade.
Por sua vez, a libido é situada como sendo essencialmente masculina e atrelada a
uma atividade desejante. Portanto, ao considerarmos uma mulher enquanto falante,
enquanto desejante, enquanto produtora de laços sociais, estamos falando de alguém em
uma posição de atividade, de gozo fálico, ainda que esteja não-toda situada aí.
Mas como considerar a passividade correlacionada com o feminino?
Evidentemente não se trata de uma passividade inerte, pois toda uma atividade
implicada em fazer-se desejável, que tanto ocupa as mulheres por exemplo, a famosa
"produção" feminina que antecede a festa, para chegarem e serem notadas, ocupando-se,
Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens, p. 150; enquanto que, do lado feminino, encontra-
se a incidência da fantasia de prostituição, tal como aponta Eliana Calligaris. Prostituição: o eterno feminino,
o que nos levaria a considerar aí quatro termos.
404
Entendida aqui não como diferença anatômica, mas como inscrição simbólica, como Lacan propõe em
(1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda.
164
assim, de oferecerem-se passivamente no lugar de objeto de desejo do Outro, alvo do
olhar, por exemplo.
A conquista do desejo do Outro, o fazer-se desejável, implica uma intensa atividade.
Freud afirma: Poder-se-ia considerar característica psicológica da feminilidade dar
preferência a fins passivos. Isso naturalmente não é o mesmo que passividade; para
chegar a um fim passivo pode ser necessária uma grande quantidade de atividade.
405
Então não se trata de uma ausência de libido na posição feminina, mas de um fim
passivo da pulsão como condição para a sua realização. Vir a ocupar esse lugar passivo
exige atividade.
406
Esse gozo obtido da voz passiva pode ser atingido por meio de uma
atividade pulsional intensa na qual se trata de despertar o desejo do Outro: fazer-se olhar,
fazer-se escutar, fazer-se comer, fazer-se desejar por um agente externo.
É nesse "fazer-se"
407
que reside o que de mais próprio na atividade pulsional,
nessa reversão pela qual as voltas da pulsão, em seus movimentos de idas e vindas da zona
erógena, parecem ir em busca, a cada vez, de fisgar algo que responde no Outro,
408
mais
especificamente de que o sujeito da pulsão reverte-se enquanto objeto de alguém elevado à
condição de sujeito a quem se faria gozar.
Não são poucos os mal-entendidos teóricos e a ideologização em que esta questão
costuma recair. A clínica psicanalítica traz o testemunho desta questão, mas
(...) ela é especialmente ameaçada por distorções ideológicas de
discursos que pretendem a mulher passiva para instrumentar sua
sujeição ou, ainda, que lhe proíbem a fantasia de passividade,
405
Sigmund Freud (1933). Feminilidade, conferência 33: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise,
p. 143.
406
Questão também retomada por Gilles Deleuze. Introdução ao texto Vênus das peles, de Sacher-Masoch.
407
Jacques Lacan (1964). El seminario. Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, p.
202.
408
Idem, p. 203.
165
ainda assim identificada – com o caráter teimoso dos fatos clínicos
– pela escuta analítica.
409
A partir do exposto fica claro o quanto a passividade está longe de se estabelecer
desde uma posição inerte. Implica um movimento pulsional que se realiza por uma voz
verbal passiva (ser olhado, escutado, devorado) pelo Outro. uma atividade libidinal
do sujeito da pulsão que busca situar-se como passivo em relação ao externo para poder
gozar disso.
Isso não implica que uma mulher se cole à posição de objeto. Se ela suporta tal
posição, não é ali que se detém, que isto não funciona mais do que como um artifício,
um véu, uma mascarada,
410
através da qual alguém em posição feminina pode gozar para
além do gozo do Outro. Consideramos que o próprio do gozo feminino consistiria em
suportar a face do gozo do Outro
411
sem se deter nele, mas indo além dele.
Comparece a radical diferença entre visitar a montagem fantasmática em que se
empresta o corpo como cabide para o objeto do gozo do Outro,
412
servindo-se de
tal montagem para um gozo Outro, e o tornar-se efetivamente um objeto dessubjetivado.
A passividade implica gozar a partir de ser supostamente tomado como objeto do
gozo do Outro, um funcionamento aparentemente análogo fica exposto no masoquismo. Se
o campo pulsional implica uma atividade para o sujeito, de fato salta à vista que mesmo em
sua suposta fase passiva o exercício de uma pulsão, masoquista, por exemplo, exige que o
masoquista, se me permitem dizê-lo assim, sue a gota gorda.
413
409
Paul-Laurent Assoun (1983). Freud e a mulher, p. XIII-XIV.
410
Joan Rivière (1929a). La feminilidad como mascarada.
411
Consideramos que a interrogação trazida por Lacan “por que não interpretar uma face do Outro, a face de
Deus como suportada pelo gozo feminino?”, permite considerar a diferença entre fazer-se objeto do gozo do
Outro e a de suportar esta face para ter acesso a um gozo feminino. Jacques Lacan (1972-1973a). O
seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 103.
412
Contardo Calligaris. O fantasma masculino e o fantasma feminino.
413
Jacques Lacan (1964). El seminário. Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, p.
208.
166
Mas a passividade da qual se serve a feminilidade implica fisgar o desejo fazendo-se
cabide do objeto de gozo do Outro para, a partir disso, ter acesso a um gozo Outro. Assim,
feminilidade e passividade aparecem articulados; masoquismo e passividade também; mas
e quanto ao masoquismo, ele seria igualmente intrínseco à feminilidade?
Esta questão está longe de ter uma resposta consensual na psicanálise.
Helene Deutsch considera o masoquismo o primeiro alicerce da feminilidade. Ele se
apresentaria na mudança de objeto de amor da menina da mãe para o pai –, coincidindo
com a passagem do reclamo narcísico-masculino dirigido à mãe: "eu não serei castrada”,
para o desejo: "quero ser castrada (violentada) pelo meu pai e ter um filho”, seguidos pelo
"parir com dor" como integrante dessa tríade masoquista. Assim, a atividade fálica ligada
ao clitóris, uma vez inibida desde o exterior, produziria um retorno, uma reversão para a
posição passiva, agora perante o pai, mas, em tal giro, a menina encontraria a necessária
postergação na realização do desejo de ter um filho. Isto imprimiria o selo de uma posição
masoquista nas mulheres, que ora dissociaria a gratificação sexual da maternidade por
exemplo, na relação da prostituta com o alcoviteiro ora se articularia na mater dolorosa
na relação mãe-filho, seguindo a elaboração de tal autora.
414
Essa autora, no entanto, também aponta que o masoquismo libidinal primário para
ela constituinte da feminilidade estaria, na neurose, tão entrosado com o masoquismo
moral a ponto de se perder o rastro de qual estaria na origem libidinal.
415
Isto deixa uma
brecha para considerar que, se a menina (a partir de experimentar-se como privada e
frustrada de pênis) passa pelo masoquismo no caminho à feminilidade, esse não teria
porque ser necessariamente o seu ponto de chegada.
416
414
Helene Deutsch (1929). O masoquismo “feminino” e sua relação com a frigidez, p. 12.
415
Idem, ibidem.
416
Nesse ponto talvez valha lembrar o quanto muitas mulheres em posição feminina, ao submeter-se a
procedimentos de beleza, se dispõem a suportar certa dor – o que é consagrado no dito popular: "mulher para
ser bonita tem que sofrer" no entanto tomam isso como um ponto de passagem a atravessar e não como um
fim em si mesmo.
167
Ainda que Freud tenha correlacionado feminilidade-passividade-masoquismo, sendo
frequente na clínica a incidência de tal correlação, não consideramos que o masoquismo
seja intrínseco ao gozo feminino. O masoquismo, mais do que possibilitar o acesso a um
gozo Outro propriamente feminino, insiste e se detém no traumatismo da castração,
repetindo, uma e outra vez, uma fantasia de aviltamento que certamente desempenha um
papel central na fantasia masoquista, mas não necessariamente na feminilidade.
É preciso ainda considerar o quanto o gozo advindo do masoquismo presente em
mulheres
417
presta-se a realizar a cena fantasiada da desforra paterna diante do desejo da
mulher de castrar o homem e assim apropriar-se de seu pênis elevado à condição de falo. A
inveja do pênis, como aponta Rivière, assim se reverte na cena masoquista pela qual trata-
se de apaziguar a vingança oferecendo-se sexualmente.
418
Tal como na fantasia descrita
por Freud, "bate-se em uma criança",
419
o corpo é oferecido em sacrifício para a encenação
da castração, ao mesmo tempo em que, ao fazer isso, se recuperaria a posição de objeto do
amor.
Como aponta Rivière, do masoquismo erógeno à abnegada posição da dona de casa
pode-se encontrar a incidência deste viés de "disfarce" que, com a máscara da aparente
inocência e ingenuidade feminina, recobre a virulência da inveja do pênis.
Evocamos, a este respeito, o fragmento de um caso clínico:
Certa paciente reiteradamente aponta todas as falhas de seu lugar de trabalho e as
atribui à incompetência de seu chefe: "sua falta de seriedade científica, sua incapacidade
administrativa, seu pensamento estreito, seu descuido com as condições de trabalho”,
fantasiando como tudo seria perfeito se ela comandasse o local. Ela abomina o seu chefe,
417
Ainda que não só em mulheres, já que Freud, ao introduz tal tema falando que seria dessa ordem a fantasia
de homens impotentes perante o pai. Sigmund Freud (1924a). O problema econômico do masoquismo, p.
201-202.
418
Joan Rivière (1929a). La feminilidad como mascarada, p. 11.
419
Sigmund Freud (1919). Uma criança é espancada.
168
no entanto ocupa-se de certificar que ele a tenha em sua mais alta estima como "a
funcionária modelo”. No entanto, cada vez que o chefe a chama para falar, ela é acometida
por um sentimento catastrófico: "Penso: pronto, é agora que algo terrível vai acontecer.
Descobriram uma falha irremediável no meu trabalho. A máscara vai cair e ele vai me
mandar embora. Aí, mesmo que não seja nada grave, acabo chorando”. Fica absolutamente
desconcertada com o que lhe acontece nessa cena, sentindo-se dividida entre o desprezo
que sente pelo chefe e o lugar de autoridade suprema que lhe outorga, como o portador de
um poder inquestionável.
Prossegue dizendo: "Parece um teatro, eu não me reconheço. Mas não consigo evitar
que meus olhos se encham de lágrimas e eu choro mesmo, de verdade. digo para ele
como gosto de trabalhar ali, como o respeito e como tudo aquilo é importante para mim.
Pareço outra pessoa, não entendo de onde isso vem. Eu o acho abominável. Detesto aquele
lugar, mas parece que não consigo me decidir a abandonar esse sacrifício."
Rivière situa o quanto a oscilação entre o desprezo a um pai suposto como castrado
e, ao mesmo tempo, a exigência desesperada de ser reconhecida como superior por ele
apontam à tentativa de uma mulher se estabelecer em suposta posição de detentora do falo.
Nesta dinâmica é preciso ganhar dele e apaziguá-lo com a máscara da feminilidade que
provava seu amor e sua inocência diante dele.
420
Tal montagem opera à custa de um
retorno masoquista, como um sacrifício, condição que, mesmo surgindo tantas vezes
associado à montagem do gozo do Outro, não consideramos inerente ao gozo feminino,
opondo-se ao gozo Outro.
É que Joan Rivière introduz uma questão muito interessante: O leitor pode
perguntar como diferencio a feminilidade verdadeira e o disfarce. De fato. não sustento
que tal diferença exista. A feminilidade, quer seja fundamental ou superficial, é sempre o
420
Joan Rivière (1929a). La feminilidad como mascarada, p. 18-19.
169
mesmo.
421
Assim, aponta que a feminilidade sempre implica a passagem pela mascarada.
No entanto, logo adiante, aponta uma significativa diferença ao afirmar que tal mascarada
feminina pode ser um meio para evitar a angústia ou para estabelecer um modo primário
de gozo sexual.
422
A paciente referida aponta também a realização que tem nesse trabalho (em termos
de recompensa monetária) como "um fardo”, "um sacrifício”, que precisa suportar e que a
impede de "dar-se ao luxo de desfrutar do lugar de mulher, de se cuidar, de ter filhos”. Ela
não renuncia à recompensa monetária, pois isso implicaria delegar ao marido (em cujos
dons "não confia" para esses fins) parte da questão financeira.
Na lógica que decanta dessa fala, o masoquismo aparece como o saldo da disputa
fálica, enquanto um gozo feminino aparece como um desfrute de outra ordem o que nos
permite considerar a diferença entre feminilidade e masoquismo.
Tal leitura implica considerar que o se fazer passiva de uma mulher para com um
parteneire não necessariamente implica uma posição masoquista de repetição do golpe da
castração. Tanto é que, como afirma Assoun, isso se sustenta, ela se faz passiva ao
fazer passar a esse parteneire seu próprio ideal fálico, livrando-se do fardo fálico para
poder gozar da condição feminina. Mais do que isso: intima-o a encarnar suas razões para
se fazer tão passiva, e é por isso que também pula fora, de um golpe, se ele fracassar
nessa tarefa.
423
Consideramos que, longe da posição masoquista em que alguém se oferece para
outro como um farrapo a ser gozado de modo aviltante, o gozo Outro, próprio da
feminilidade, goza a partir de suportar a face do gozo do Outro. Mas o gozo da
feminilidade não se detém em encarnar o objeto do desejo do Outro esse, aliás, é o ponto
421
Idem, p. 13.
422
Idem, ibidem.
423
Paul-Laurent Assoun (1983). Freud e a mulher, p. XV.
170
em que se obtura a queixa histérica ao viver tal posição como um suposto rebaixamento. O
gozo feminino implica uma volta a mais. Consiste em uma intensa atividade para despertar
o desejo do Outro, seguida de uma passividade de encarnar o lugar do objeto do gozo do
Outro, oferecendo-se a seu gozo para gozar com isso. A mascarada funciona como um
véu que orna com belos atributos fálicos, ao mesmo tempo em que deixa entrever a
condição da falta.
Esse se fazer passar do gozo feminino implica: a mascarada de se fazer passar pelo
objeto de desejo do parteneire; o se fazer passar, no sentido de produzir certo apagamento
de si nesse momento; ao mesmo tempo em que é possível fazer isso passando ao
parteneire seu fardo fálico, para assim ficar provisoriamente desimpedida para um gozo
Outro.
424
A mulher tenta a si mesma tentando o Outro. Ao oferecer-se como objeto, é o
peixinho que fisga o pescador através da linha, ao despertar seu desejo. É o desejo do
Outro que lhe interessa.
425
Nesse sentido, o masoquismo feminino aparece como uma fantasia masculina
426
mais do que como um gozo intrínseco à feminilidade. Ele fixa a passividade a um marco
masoquista de suportar a dor, sofrimento e aviltamento em prol de um suposto gozo do
Outro. O masoquista, ao pôr em relevo um gozo alegado ao Outro, a partir de sua aparente
submissão e rebaixamento à posição de objeto, encobriria a angústia do Outro. De modo
análogo, o masoquismo feminino aparece como uma fantasia masculina permitindo ao
homem gozar na medida em que a mulher encarnaria, por procuração, a posição de objeto
e assim recobriria aquilo de que o homem não quereria saber em tal montagem: o que
permanece aí velado é a angústia, a angústia do homem ao confrontar-se com o fato de que
424
Idem, ibidem.
425
Jacques Lacan (1962-1963). O seminário. Livro 10. A angústia, p. 209.
426
Idem, p. 210.
171
é possível gozar do gozo do Outro ao oferecer-se em posição de passividade. Pois se
algo recalcado para os que se encontram em posição masculina esse algo é que se gozou
passivamente um dia de ser objeto da mãe como Outro primordial.
A fantasia masculina recorta o objeto, delimita-o, ao mesmo tempo em que concentra
a excitação sexual, a libido, em um órgão investido falicamente. Do lado feminino, a libido
(uma vez que não encontra seu foco) diz respeito a todo o corpo, e a fantasia, por sua vez,
apresenta uma indeterminação.
Por isso, se algo que escutamos repetir-se nas fantasias sexuais femininas é a sua
indeterminação, a não ser por um ponto que parece insistir: o desejo de ser surpreendida.
Nesse sentido, Lacan traz o recorte clínico de uma paciente que experimenta excitação
sexual ao ver surgir repentinamente em seu campo um objeto totalmente estranho.
427
Calligaris também aponta "o ser surpreendida" como algo que poderia ser característico do
fantasma feminino. Se no fantasma masculino o objeto permanece fixado fazendo com
que um homem possa mudar de mulher sem, no entanto, mudar de fantasma – para alguém,
desde a posição feminina, o fantasma apresenta uma maior mobilidade, pois ao implicar o
desejo de desejo, se atrelaria ao fantasma do parteneire.
428
Ser pega de surpresa por um desejo arrebatador parece ser certa repetição do
feminino. Haveria algo mais feminino do que a fantasia de ver-se pega de surpresa como
objeto de um desejo arrebatador de um Outro que encarnaria seu ideal fálico?
Nada mais próximo da posição das belas princesas adormecidas, sobre as quais as
histórias infantis nos trazem testemunho. Elas mostram que o há melhor resposta para o
desejo de ser desejado do que o fato de ser escolhido quando não se tinha a intenção de
seduzir. Dessa forma, a passividade integra a erótica humana assumindo um lugar
427
Idem, p. 208.
428
Contardo Calligaris. Questões sobre o seminário Encore.
172
privilegiado na erótica feminina.
429
Aí, em lugar de uma fixação masoquista, o que desperta o desejo é ser sur-presa, ou
seja, fisgada pelo desejo. Enquanto nas montagens perversas a repetição da cena fixada é
levada à exaustão, a condição de indeterminação das fantasias femininas implica a dar
abertura à invasão desejante de um parteneire, desde que este encarne, em algum ponto,
seu ideal fálico, apresentando certa mobilidade da fantasia de acordo com o desejo do
parceiro.
As belas adormecidas assim se guardam do toque e do olhar com plantas espinhosas,
mas abrem o flanco para que o escolhido penetre virilmente no palácio. Ou seja, elas
escolhem ativamente de quem irão fazer-se passivas para poderem gozar de serem
surpreendidas por um desejo arrebatador.
430
Estão longe de serem previsíveis as
precondições para aceder aos profundos socavãos, torres de castelos e demais mundos
fantasiosos nos quais as princesas imaginárias ficam confinadas. É necessário que os
cavaleiros sustentem um ardente e inspirado desejo para abrir caminho em meio aos
caprichos com que a feminilidade produz desejo.
V.8. O gozo do Outro e o Outro gozo: aquém e além do complexo de Édipo
Freud situa a passagem para a feminilidade, o tornar-se mulher, como a mudança de
uma posição ativa da menina para com a mãe, própria do primado do falo, para uma atitude
passiva em relação ao pai, como efeitos da castração e entrada no complexo de Édipo na
condição feminina.
429
Diana e Mário Corso. As fadas no divã, p. 87.
430
Idem, ibidem.
173
Essa mudança da atividade para a passividade, em certa medida, implica a retomada
de um gozo decorrente da passividade inicial que tanto o menino quanto a menina tinham,
em um primeiro tempo, em relação à mãe, ao ficarem situados como objetos de desejo do
Outro materno. Portanto, mais do que um movimento em dois tempos, a passagem para a
feminilidade implica pelo menos três tempos: passivo-ativo-passivo. Nessa direção, tal
como aponta Pommier, conviria falar não de um "tornar-se mulher", mas de um "re-
tornar-se mulher", de um retorno à feminilização original.
431
Trata-se de como o gozo do Outro, esse gozo no qual o bebê oferece seu corpo a
ser gozado pelo Outro, na produção do Outro-erotismo constituinte, é retomado na posição
feminina. Tomamos aqui a liberdade de, mesmo partindo da proposta de Pommier,
considerar tal passagem como uma retomada da passividade e não um retorno. Pois ainda
que o gozo do Outro e o gozo Outro tenham relação com o gozo do corpo, como fora do
significante, no entanto, não se equivalem. Se um se situa aquém do Édipo, o outro implica
um além do complexo edípico. Enquanto o gozo do Outro está situado como anterior ao
gozo fálico, o gozo Outro (próprio da feminilidade) situa-se após o gozo fálico de modo
suplementar a este, mas não complementar.
O gozo do Outro implica uma posição sacrificial, de dar-se como alimento ao Outro,
oferecer-se como objeto que completaria o Outro. O gozo fálico, por sua vez, produz um
limite a esse gozo, ao mesmo tempo em que o mantém no horizonte pelo fantasma no qual
se joga com a fantasia da complementaridade como objeto do gozo do Outro.
432
O gozo
fálico se articula ali como a produção de um saber que dominaria essa demanda (saber o
que faz o Outro gozar) enquanto defesa. Trata-se de uma montagem, pois não Outro
que efetivamente goze da posição de objeto na qual o sujeito se oferece.
Por sua vez, o gozo feminino, ou gozo Outro, também se relaciona ao gozo do corpo,
431
Gerard Pommier (1985). A exceção feminina, p. 40.
432
Contardo Calligaris. Questões sobre o seminário Encore, aula do 9/02/1987, p. 34.
174
também escapa ao significante. Nesse sentido, Lacan joga com a homofonia de encore, em
francês significando "ainda", ou "mais ainda do gozo fálico" e, ao mesmo tempo, podendo
ser ouvida como en corps, ou seja, no corpo. Daí que o gozo feminino possa implicar certa
anomia, uma angústia de despersonalização, certa dessubjetivação, pois implica um fora do
significante, fora da dimensão fálica
433
questão tão frequentemente colocada pelas
mulheres acerca da feminilidade.
No entanto, é central apontar que o gozo Outro, mesmo retomando uma passividade,
não implica uma posição sacrificial do sujeito, pelo contrário, a libera dele, na medida em
que não Outro a se fazer gozar, como tampouco a posição psíquica de fiar-se em
supostas garantias de um reconhecimento paterno por intermédio do gozo fálico.
434
É que o gozo do feminino e o da perversão masoquista se afastam
435
e até mesmo
se opõem:
na montagem masoquista o perverso acredita efetivamente ser possível produzir o
gozo do Outro; ele acredita no Outro.
436
o gozo feminino suporta uma face do Outro,
437
mas não se detém aí, pois, a
partir disso, obtém um gozo Outro.
Por isso, ainda que esses dois gozos impliquem a passividade, não se equivalem. Se
um gozo que escapa ao fálico não é indiferente que, diante dele, o sujeito se situe de
modo complementar (ocupando o lugar de objeto que viria a produzir o gozo do Outro) ou
de modo suplementar (pelo gozo Outro, abrindo a possibilidade de criar diante do
inominado).
433
Gerard Pommier (1985). A exceção feminina, p. 44; Serge André (1986). O que quer uma mulher?, p.
243.
434
Daí que o gozo Outro seja correlacionado ao fim de análise: “Se o fantasma nos desperta angústia, é
porque a realidade não aparece. (...) Não irei desembaraçar o Outro nem do seu saber, nem de sua verdade.
No fim da análise, se é isso que tenho inscrito no S significante do A barrado, o Outro sabe que ele não é
nada disso”. Jacques Lacan (1965). Seminario 12, Problemas cruciales para el psicoanálisis.
435
Questão abordada no capítulo anterior.
436
Serge André (1986). O que quer uma mulher?, p. 243.
437
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 103.
175
Não na mesma fazer-se objeto do gozo do Outro, sob o horizonte de completá-lo
imaginariamente; do que, após ter se confrontado com o furo simbólico do Outro, com a
falta radical de um significante que aponte o que é ser mulher, escolher mascarar-se para
despertar o desejo e fazer-se passar por objeto de gozo do Outro para um parceiro a quem
delega o fardo fálico e, através disso, ter acesso a um gozo Outro.
Uma mulher no exercício da feminilidade se presta à mascarada, faz-se de Outro,
dando assim suporte à fantasia masculina. Daí que seja possível considerar que se o "fazer-
se de homem" especifica a posição histérica, "fazer-se de Outro" é o que definiria melhor a
posição feminina.
438
V. 9. Maternidade e gozo Outro
Uma mulher, no exercício da feminilidade, experimenta o gozo que passa pela
passividade, ao fazer de seu corpo receptáculo da montagem fantasmática do desejo do
Outro. Tal gozo não substitui plenamente seu falicismo, mas se apresenta de modo
suplementar a ele.
439
Justamente ela que visita esses gozos, que os experimenta disjuntos,
assumirá, enquanto mãe, nos cuidados com seu bebê, a montagem do Outro-erotismo o
engajamento desse organismo vivo a uma ordem simbólica.
semelhança entre o encanto feminino produzido pela bela adormecida essa que
seduz sem ter a intenção e que distraidamente produz um desejo arrebatador e o encanto
que produz ver uma criança, um filho dormindo. Repousando ele encarna o mais perfeito
objeto da fantasia parental, sem rompê-la com sua fala ou movimentos. A partir da
passividade, ambos são capazes de encarnar o objeto de desejo.
438
Serge André (1986). O que quer uma mulher?, p. 245.
439
Gerard Pommier (1985). A exceção feminina, p. 44.
176
Se uma mulher encarna o objeto de desejo da fantasia de um homem, o bebê o
encarna para a mãe. Isso faz com que Lacan aponte que a mulher entra em função na
relação sexual enquanto mãe.
440
Se, do lado do gozo feminino, tangencia uma ausência de
si mesma enquanto sujeito, enquanto mãe ela encontrará, como rolha, esse (objeto) a que
será seu filho.
441
Muito se fala acerca de como o desejo da mãe-mulher é central para a constituição do
bebê, na medida em que ele não satura sua realização fálica e na medida em que ela está
dividida enquanto mulher e mãe. Mas e quanto ao gozo Outro? Ele funcionaria apenas
como limite ao gozo da mãe com o filho, lembrando-lhe de que ela também é mulher? Até
que ponto a experiência de um gozo obtido através da passividade não é central para que
ela ponha em cena, nos cuidados com a criança, um gozo que não se limita apenas à ordem
fálica e que, no entanto, também pode ser central para a constituição do sujeito? Tal
questão revela seu interesse.
Justamente ela que experimenta o gozo advindo de fazer a mascarada de objeto do
desejo do Outro. Justamente ela que consente que seu corpo seja receptáculo do fantasma
do parceiro, agora, enquanto mãe, cria um bebê que não se apresenta enquanto
substituto fálico, mas que também emerge a partir de todos os pequenos objetos que coloca
em cena, podemos até mesmo dizer, de modo profundamente brutal: o olhar, a voz, as
fezes, a urina, as melecas, o leite, o cheiro, a lágrima, o regurgito, a pele, e tantas outras
parcialidades diariamente apresentadas no exercício da maternidade.
Ela que no estágio do espelho jubilou-se com a imagem antecipatória de seu corpo
unificado no espelho a partir do olhar e da palavra materna, mas que, tempos depois,
também se olhando no espelho, desconcertou-se, experimentando a vertigem diante do que
via e não encontrava na junção de seu ventre com as coxas. Ela que, ao enveredar-se pelo
440
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 49.
441
Idem, ibidem.
177
caminho da feminilidade, fez-se sábia nos artifícios de recobrir o real do corpo para, em
seu lugar, deixar entrever um mistério capaz de atiçar o desejo, mascarando ali onde não há
muito a se ver, afinal.
442
Ela agora finalmente tem o seu bebê, este bebê que emerge com o
real do seu corpo – real que também será preciso mascarar falicamente.
Lembro, neste sentido, a história narrada por uma mãe acerca do nascimento do seu
filho, na época em que este já era adulto. É claro que ela só assume um tom anedótico, pois
não houve nenhuma dificuldade relevante na história de um filho que, como se diz
prosaicamente, tornou-se belo e bem sucedido. O fato é que ele sofreu bastante ao nascer, o
que não fez dele nenhuma espécie de bebê Johnson nos primeiros dias de vida. Na ocasião,
a avó se aproxima para conhecer o esperado neto recém-nascido e encontra a mãe aos
prantos, afirmando que seu bebê era muito feio. Ela começa a proferir palavras
tranquilizadoras à filha, ao mesmo tempo em que, afastando a manta do rosto do bebê,
acaba por levar um susto e depois lançar: "Ah, minha filha, não se preocupe, daremos um
jeito nisso!" E, de fato, deram, recobrindo essa emergência do real, investindo na
construção de um corpo do bebê e tornando-o encantador. Mas a história é evocada menos
pelo desfecho do que pela emergência desse momento que costuma ser esquecido,
recalcado, acerca do estranho encontro com o recém-nascido, com a emergência do real de
seu corpo.
Podemos considerar o quanto comparece o artifício do feminino, o ofício artístico
que tem uma mulher de mascarar-se para tornar-se desejável, posto agora em cena no
exercício da maternidade. A mãe mesma mascara o corpo do bebê, o disfarça, o veste, para
poder investi-lo. Ao mascará-lo, a partir de seu saber fazer com os artifícios femininos, o
torna fálico para ela mesma e para os outros.
Se isso conduz ao valor fálico do bebê, também comparece ali algo de indizível nos
442
Jacques Lacan (1962-1963). O seminário. Livro 10. A angústia, p. 211.
178
cuidados que uma e lhe dedica, na silenciosa atenção que coloca ao detalhe e que situa
um gozo não-todo em equivalência fálica. Para poder lidar com toda a emergência de
pequenos objetos que o bebê produz, para poder fazer com que opere um Outro-erotismo
para o bebê, a mãe lança mão da mascarada. Lacan aponta nessa direção ao afirmar:
Falar da sexualização prematura tem certamente seu
interesse. É claro que o assim chamado primeiro impulso sexual
do homem é, evidentemente, aquilo que dele se diz, a saber,
prematuro. Mas ao lado do fato de que possa implicar, com efeito,
jogo de gozo, não é menos verdade que o que vai introduzir a
secção entre libido e natureza não é apenas o autoerotismo
orgânico. outros animais, além dos homens, que são capazes
de se coçar, e isto não os levou, os macacos, a uma grande
elaboração do desejo. Em compensação, aqui há uma vantagem
em função do discurso.
Não se trata apenas de falar das interdições, mas
simplesmente de uma dominância da mulher na condição de mãe, e
mãe que diz, mãe a quem se demanda, mãe que ordena e que
institui ao mesmo tempo a dependência do homenzinho.
443
Pois bem, temos até aí apresentada a questão do Outro-erotismo produzida pela
economia de gozo que a mãe institui no corpo do bebê. Mas o texto prossegue:
A mulher permite ao gozo ousar a máscara da repetição. Ela
aqui se apresenta como o que é, como instituição da mascarada.
Ela ensina seu pequeno a se exibir. Ela conduz ao mais-de-gozar
porque mergulha suas raízes, ela, a mulher, como a flor, no gozo
mesmo. Os meios do gozo são abertos pelo seguinte princípio
que ele tenha renunciado ao gozo fechado e alheio, à mãe.
444
É preciso considerar até que ponto experimentar, na feminilidade, um gozo obtido
através de passividade, não é o que lhe possibilita, enquanto mãe, agenciar o Gozo do
Outro para o bebê e assim organizar seu Outro-erotismo sem recair em uma posição
efetivamente perversa de apropriar-se do corpo do bebê. Em vez disso, atribui ao bebê um
gozo que ela busca preservar, evitando-lhe o esforço. Nessa atribuição, identifica-se com o
bebê em seu gozo com a passividade, ao mesmo tempo em que permite a ele gozar com a
443
Lacan, Jacques (1969-1970). O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise, p. 73.
444
Idem, p. 74. Referência, aliás, proposta por Ângela Vorcaro no momento em que estava reunindo
fundamentos acerca do comparecimento do Outro gozo na maternidade.
179
suposta onipotência que ele produziria ao Outro (para ele encarnado pela mãe) ao se
oferecer como objeto que supostamente o completaria.
Por um lado, com tal máscara, investe falicamente o bebê ensina-o a se exibir. Por
outro, ao ousar tal máscara (ousar vestir a máscara do Outro encarnado do bebê) ela
permite ao bebê vir a gozar de um Outro-erotismo. Ela o aliena, o refere ao Outro, o
conduz assim a um mais-de-gozar, sob a condição de que ele não fique alheio e fechado
nele mesmo como num autismo (ou seja, um autoerotismo não erótico).
445
Mas se ela o impele a entrar nesse gozo do Outro, se ela ousa fazer-se de Outro do
bebê, ela não toma o bebê rasamente como seu objeto. Ela supõe o bebê como sujeito,
atribuindo-lhe um gozo advindo da passividade que ela mesma, desde a feminilidade,
soube experimentar – mergulhando suas raízes, ela, a mulher, como a flor, no gozo
mesmo.
V.10. Do gozo Outro da mãe à identificação transitivista
com o gozo da passividade do bebê
Se a feminilidade implica uma mascarada, a maternidade, por sua vez, implica a
máscara da repetição. Ora, sabemos o quanto a repetição é uma tentativa de recuperar um
gozo que escapa ao sujeito e que tal como situamos acima em relação ao chiste ele
procura recuperá-lo no interdito da linguagem, na repetição que é sempre máscara do que
teria havido.
446
A mãe, ao ousar vestir a mascarada de Outro para o bebê, relança com
este, repete, na atribuição de um gozo do corpo ao bebê, um gozo que, para ela mesma,
resulta inapreensível, irrepresentável, inominável.
445
Pierre Fédida. Nome, figura e memória – a linguagem na situação psicanalítica, p. 104 e 158.
446
Ângela Vorcaro. Os dragões do tempo primordial: a repetição como primeira identificação, p. 215-231.
180
Claro que ela não pode fazer isto no corpo-a-corpo, pois seu próprio corpo, assim
como o da criança, lhe é interditado. Ela tem acesso ao corpo por meio da linguagem.
Por mais que desse gozo ela nada possa dizer, mesmo assim o atribui à criança e, por meio
da linguagem, intervém transitivamente supondo que o bebê estaria experimentando um
afeto corporal semelhante ao dela. A e interpreta, forja um sentido à produção do
bebê, oferecendo sua representação diante do que afeta o corpo do bebê.
Diz ela: "humm! que fome!" ou "ai! que cólica". Sanciona o prazer da degustação,
sanciona a dor. Ao fazê-lo, intervém suscitando a experiência de satisfação. Procurando
poupar o bebê do esforço para que ele possa supostamente usufruir do puro gozo obtido
através da passividade gozo que a mãe lhe atribui e com o qual se identifica
transitivamente. Tal é o sentido da função vicariante que a mãe exerce em relação ao
funcionamento corporal do bebê, prolongando-lhe o usufruto de um gozo.
Percebe-se não uma simples ocupação da mãe com as funções vitais do bebê, mas
toda uma economia de gozo que se estabelece entre eles desde os primórdios desse laço.
Consideremos, nesse sentido, a cena da mãe que, após efetuar os cuidados do filho,
exausta e faminta, está pronta para abocanhar o primeiro pedaço de comida quando o filho
o solicita. A mãe certamente pode negá-lo, e é crucial que em certos momentos também
saiba e queira fazê-lo, mas é fato comum que inúmeras vezes ceda diante da solicitação do
filho e que o faça com um enorme desfrute, até mesmo afirmando: "me mais prazer
ainda vê-lo desfrutar disso do que fazê-lo eu mesma!".
Este gozo genuíno que a mãe experimenta a partir do gozo do filho se contrapõe ao
da mater dolorosa da qual nos falava Helene Deutsch,
447
pois não advém do masoquismo,
mas de um lucro de gozo, de um mais-de-gozar que a mãe obtém através do gozo que
propicia ao filho. Ali a mãe busca produzir uma repetição pela qual goza ao poder
447
Helene Deutsch. O masoquismo "feminino" e sua relação com a frigidez.
181
propiciar esse gozo que atribui ao bebê nesse usufruto de um gozo com a passividade,
nesse deixar entregue o fardo fálico nas mãos de outro.
Bergès e Balbo também se apóiam em um gozo masoquista para fundamentar o
trasitivismo, ao afirmar:
Desse modo, transitivo não a dor experienciada mas o
masoquismo, meu masoquismo. Através desse masoquismo
transitivado para o outro, transitivo e isso é essencial- a
satisfação masoquista correspondente
448
(...). Do golpe que o outro
sofreu faço minha satisfação (...) e faço como se lhe permitisse
partilhá-la um pouco.
449
É certo que nesse jogo de afetação
450
transitivista, a mãe faz uma atribuição de afeto
à criança que lhe permite recuperar um pouco de seu próprio gozo. No entanto,
diferentemente de tais autores, e apesar de considerarmos decisivas suas articulações para
chegarmos a estas reflexões, não atribuímos a identificação transitivista da mãe com o bebê
a um gozo masoquista, e sim da passividade.
Ao desfrutar mais de testemunhar o usufruto de gozo que propicia ao seu filho,
identificando-se transitivamente com esse gozo da passividade que lhe supõe, a mãe
consegue estabelecer uma operação de mais-de-gozar, por meio do qual obtém o lucro de
um gozo mais além do fálico.
Isso se evidencia nas afirmações maternas usualmente produzidas diante do
padecimento ou prazer do bebê, tais como: "Me dói duas vezes mais do que se fosse
comigo!" e também, como no exemplo citado, fazendo "hummm!", com água na boca, ao
dar de comer ao seu bebê, "desfrutando duas vezes mais" do que se elas mesmas
estivessem comendo, ao constatar o gozo que propiciam ao bebê.
Esta economia de gozo tantas vezes se faz presente quando a mãe, faminta, desfruta
do gozo da criança sendo alimentada; suja, goza do aconchego de ver a criança banhada e
448
Idem, p. 8.
449
Idem, p. 13.
450
Idem, p. 23.
182
cheirosa; sonolenta, adia um pouco mais o seu sono para desfrutar alguns segundos da
imagem do bebê aconchegado que finalmente fez dormir.
Que a mãe, inúmeras vezes, priorize os cuidados da criança em relação aos seus
próprios está longe de poder ser efeito de uma ordem do natural, do instintivo. Tampouco
ocorre por abnegação, dado que a economia de gozo nunca é desinteressada. Trata-se de
uma economia de gozo que pode se estabelecer, ou não se estabelecer, no laço mãe-bebê.
Longe de estar submetida a um masoquismo materno, pode estar devidamente articulada à
repetição por meio da qual a mãe acede, ela mesma, a um gozo Outro ao viabilizar e
atribuir ao seu bebê um usufruto da vida sem que ele precise se ocupar da economia de
gozo. É daí que o gozo Outro faz seu comparecimento na maternidade e não simplesmente
contrapondo-se a tal exercício.
Isso pode nos levar a considerar o quanto a suspensão de desejo erótico das
mulheres, que tantas vezes caracteriza os primeiros tempos de cuidado de um bebê, se
coloca, para além das questões hormonais tão exaustivamente comprovadas na atualidade,
como uma economia psíquica de gozo. No caso, ela não operaria por uma simples vitória
do gozo fálico da maternidade sobre o gozo feminino com um parceiro situado de modo
contraposto. A maternidade possibilitaria a uma mulher, por meio do transitivismo, a
recuperação da experiência de um gozo feminino, na medida em que, enquanto mãe, ela se
esmera em propiciar, nos cuidados que dirige ao bebê, um gozo da passividade deste, gozo
do qual ela mesma, transitivamente, vem também a gozar.
Por isso, se a mãe ousa encarnar o Outro para a criança, é menos por uma deliberada
perversão de sua parte mesmo que em uma sedução
451
pretensamente autorizada em
nome do amor e da educação– do que por uma produção da mascarada do Outro que
sustenta para o bebê. Ela sustenta a mascarada do Outro, na medida em que ela, mesmo
451
Recordamos, que a origem etimológica de seduzir é do latim seductionare que denota "puxar para si" e
"corromper". De fato a mãe, ao fazer-se necessária à economia de gozo do Bebê, o convoca, corrompendo o
automatismo natural.
183
sabendo que não como completar o Outro essencialmente faltoso (e isso ela o sabe
enquanto mulher), sustenta o artifício da produção de tal gozo para o seu bebê, ao mesmo
tempo em que se identifica com ele no gozo obtido através da passividade.
A feminilidade, a experiência do gozo Outro, criaria, assim, uma disposição psíquica
para efetuar o transitivismo com o bebê. Não se trata de que seja necessário, para tanto, ser
anatomicamente fêmea. Mas o fato de que um gozo obtido através da passividade ao
fazer-se passar de objeto do gozo do Outro, como é próprio da feminilidade não tenha
sido completamente recalcado com o acesso ao gozo fálico tal como ocorre na
masculinidade para ter acesso à virilidade – pode, durante o exercício da maternidade, criar
uma disposição psíquica à identificação transitivista da mãe com o gozo da passividade
que atribui ao bebê.
É claro que um homem também pode exercer o transitivismo. Sem dúvida todos
mantém, ao longo da vida, um transitivismo que resta dessa relação primordial com a mãe.
Mas, justamente por isso, experimentá-lo implicaria uma retomada
452
da montagem de
fazer-se objeto do gozo do Outro, e recuperar através disso um gozo obtido por meio da
passividade e, portanto, um gozo da feminilidade por excelência. Nada impede que um
homem que faça uso da masculinidade possa eventualmente revisitá-lo.
O fato de que o transitivismo nunca seja completamente eliminado,
453
deixando seus
restos em nossa vida psíquica. Isso fica claro na reação que costuma ser produzida por um
acidente. Diante de um acidente em que o corpo se fere, aqueles que o testemunham
frequentemente entram em transitivismo fazem um pouco seu o gozo daquele que está
em condição passiva de sofrer. Daí, por exemplo, o gesto de levar as mãos à cabeça ou
abraçar o próprio corpo diante de um acidente – como uma tentativa de recuperar a
integridade do corpo a partir de ter partilhado transitivamente o gozo da passividade que se
452
Conforme visto no item “O gozo do Outro e o Outro gozo – aquém e além do complexo de Édipo”.
453
Jacques Lacan (1946). Acerca de la causalidad psíquica, p. 170.
184
supõe àquele que se feriu. Por vezes se é levado a rir diante da queda de outro. Assim,
mesmo pela reversão do afeto em seu oposto, se produz um transitivismo pelo qual o
sujeito se identifica ao gozo da passividade que atribui a quem sofreu o acidente.
Se isso fica como um resto, sem dúvida está, por assim dizer, à flor da pele nos
primórdios da maternidade e se coloca como condição necessária à atenção e à disposição
próprias da preocupação materna primária, da qual nos falava Winnicott. Nesse tempo em
que o bebê não fala, é a mãe quem se situa como tradutora e intérprete do que afeta o corpo
do bebê, emprestando-lhe uma representação dos mesmos a partir do mergulho de suas
raízes, como a flor, no modo como ela mesma se encontra afetada.
No entanto, esse transitivismo aflorado, próprio dos primeiros tempos do exercício
da maternidade, apesar de dirigido ao cuidado do bebê, não se mantém circunscrito à
relação com este. Seus efeitos repercutem também fora desta relação, fazendo com que as
mães nessa circunstância fiquem absolutamente sensíveis a todo tipo de afetação e
sofrimento "do vivo". Com muita frequência, as mulheres nessa condição buscam
resguardar-se das notícias de desgraças, de acontecimentos tristes, de situações de
desamparo, por se sentirem "muito mais expostas" – nas palavras de uma paciente –, como
se tais notícias, ainda que vindas de lugares distantes, as implicassem, as afetassem no
corpo sem conseguir produzir uma separação psíquica em relação a tais acontecimentos.
Não por acaso, é tradição popular preservar as mulheres grávidas ou em período puerperal
de noticias perturbadoras.
Certamente há casos nos quais tal condição do transitivismo não se estabelece no
laço da mãe com seu bebê, surtindo complicadas consequências para a constituição da
criança e tornando necessária uma retomada do mesmo na cena clínica.
Um analista certamente também se vale do que o afeta na cena com a criança para
possibilitar-lhe o acesso a representações. Diante de um psiquismo que ainda não trilhou
185
seu engajamento ao laço com o Outro, quando o que a criança padece no corpo ainda não
se articulou à linguagem, isso é decisivo. Isso implica, do lado do analista, por seu
inconsciente a trabalhar na direção da cura, para a constituição de uma subjetivação da
criança. Isso não coincide com fazer da criança objeto de seu gozo ou deixá-la gozar se
servindo do analista. Trata-se de possibilitar à criança ir inscrevendo a borda entre o gozo e
o acesso a um saber. Tal inscrição poderá ser retomada, reinscrita, articulada, por meio dos
jogos constituintes.
454
V.11. De como um gozo que não o fálico opera efeitos constituintes para o bebê
É preciso considerar o quanto, no exercício da maternidade, há certos momentos em
que se produz uma suspensão da colocação em ato do fantasma fálico.
455
Isto põe em cena
a relação entre gozo Outro, gozo do Outro e gozo do corpo no exercício da maternidade.
Como foi situado, na inscrição da sexuação ocorrida a partir do complexo de
Édipo, o menino, para aceder à masculinidade, tem que recalcar a identificação com o
objeto do gozo materno, recalcar seu corpo como objeto desse gozo. Por isso o corpo da
masculinidade é um corpo perdido para o gozo fálico, para o gozo da linguagem.
Enquanto, na feminilidade, nunca se produz plenamente uma separação do corpo
primordial, fica sempre o suplemento de um gozo Outro para além do gozo fálico que faz
comparecer um gozo do corpo fora da palavra. Mas um momento anterior ao drama
edípico e à castração que se coloca na relação com a mãe: primeiro é preciso que se
constitua um corpo para o bebê a partir desse gozo, já que seu corpo é inicialmente o único
instrumento com que conta diante do Outro.
454
Tal como será trabalhado no próximo capítulo.
455
Alfredo Jerusalinsky. Angústia e gozo do Outro.
186
Nos primórdios a posição de um bebê sempre é passiva diante desse Outro encarnado
e torna-se fundamental que esse bebê, em algum ponto, faça o Outro gozar, pois o bebê se
regozija nesse gozo que ele produz ao Outro. Aqui aparece o viés do Gozo do Outro como
constituinte. E é claro que depois vai se jogar a possibilidade de sair ou não do lugar de
objeto do gozo do Outro. Mas isso é um segundo tempo.
um tempo inicial da constituição psíquica que implica que o bebê saia de um
automatismo centrado em seu próprio corpo e se engaje num Outro-erotismo (em uma
alterização), ou seja, num circuito pulsional que passa pelo Outro, e cujo prazer só pode ser
recuperado no fazer-se olhar, fazer-se ouvir, fazer-se comer:
456
oferecendo-se como objeto
de gozo ao Outro. É a partir daí que se produz um retorno do erotismo ao corpo, ou um
autoerotismo enquanto um narcisismo fundante que inaugura a passagem da parcialidade
pulsional ao estabelecimento de uma imagem corporal tão festejado no júbilo do estágio
do espelho.
Esse prazer experimentado, esse regozijar-se em ser objeto do gozo do Outro,
implica um gozo que não é plenamente da ordem do gozo fálico. Por outro lado, possibilita
à mãe buscar, através de uma identificação transitivista com o filho, a recuperação de seu
próprio gozo com a passividade.
Nesse sentido, Winnicott recorda que, para exercer a função materna, uma mãe, além
de situar o bebê em uma equivalência fálica, precisa identificar-se com ele. Situa como
necessária à constituição do bebê a preocupação materna primária, e da devoção corrente
da mãe, que ao longo dos primeiros meses de cuidado do bebê estabelecem uma situação
na qual, em grande medida ela é o bebê e o beé ela. Não nada de místico nisso.
Depois de tudo ela foi bebê alguma vez (...), também tem lembranças de ter sido cuidada, e
456
Tal questão das vozes pulsionais do sujeito perante o Outro, colocada por Jacques (1964). El seminario.
Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, p. 185.
187
estas lembranças ajudam ou interferem em suas próprias experiências como mãe.
457
Tal
situação possibilita que se constitua no bebê a capacidade de experimentar sentimentos
que até certo ponto se correspondem com os de uma mãe identificada com o seu bebê, ou
melhor dito, uma mãe intensamente dedicada a seu bebê.
458
Sabemos do peso da equação fálica no estabelecimento da relação da mãe com o
bebê. O bebê entra nessa equação desde a possibilidade de corporizar o falo. Mas é preciso
que, por um momento, a mãe renuncie a essa equação para que possa gozar do corpo do
bebê que aí está passivo e para que assim o engate na onipotência desde a qual ele,
enquanto objeto, completaria o gozo do Outro. É preciso esse intervalo em que a e, por
um momento, se desconecta do fantasma fálico.
Sabemos também o quanto a mãe dialetiza os cuidados cotidianos, das fezes,
papinhas, banhos etc., situando-os em uma perspectiva de realização fálica. Mas, por
momentos, ela também experimenta um gozo com o corpo do bebê, gozando não da troca
fálica, não da sequência de substituição fálicas, mas do corpo do bebê. Aparece aí, não o
valor de troca fálica, mas o valor de uso.
Podemos encontrar isso nas brincadeiras erogenizantes que se produzem nos
cuidados cotidianos entre uma mãe e um bebê: nessas brincadeiras absolutamente sem
sentido desde o viés da utilidade e da moeda de troca. Esse momento em que a mãe e o
bebê colocam em cena um gozo que se produz em uma suspensão fálica. Momentos que,
por sua vez, são também decisivos quando, diante de graves patologias orgânicas do bebê,
uma mãe pode, por um momento, esquecer-se do que o corpo do bebê negativiza do ideal
fálico, e gozar do gozo do Outro com ele.
459
457
Donald Winnicott (1987). Los bebés y sus madres, p. 23.
458
Idem, p. 24.
459
Consideramos que poderia ser correlacionada a esta questão o terceiro tempo do circuito pulsional
apontado por Marie-Christine Laznik (1996). Poderíamos pensar numa prevenção da síndrome autística?, p.
35-51.
188
Em parte, talvez seja daí que se origine o mito da incondicionalidade do amor
materno, dado que, nas origens, trata-se de ser objeto que faz o Outro gozar, gozar de seu
corpo, por um momento, mais ainda do que amar nele as condições fálicas. Ainda que uma
criança venha a ter problemas se ficar detida, no entanto esse é um ponto de passagem
fundamental na constituição do psiquismo. A questão é como, diante do encontro com uma
falta, será possível não ficar simplesmente obturado na montagem de uma suposta
complementaridade com o gozo do Outro, mas ir dando lugar aí criações suplementares.
V.12. Como a mascarada materna conduz a criança ao gozo fálico
A mãe procura poupar o bebê do esforço, procura prolongar-lhe o gozo do vivo, o
gozo do corpo que lhe atribui, e não o faz desinteressadamente, mas porque disso também
obtém um gozo ao identificar-se transitivamente com o seu bebê.
Ao fazer isso possibilita à criança, por sua vez, engajar inadvertidamente seu ciclo
vital em um circuito de prazer que não está simplesmente entregue à necessidade real do
corpo, mas que segue o fluxo da ritmicidade estabelecida no laço com o Outro primordial.
Aos ritmos orgânicos se superpõem os da linguagem, a tensão e o apaziguagmento se
engajam em uma ritmicidade simbólica da presença e da ausência do Outro.
Ousando a máscara da repetição a mãe coloca em jogo a inevitável trapaça de
procurar produzir uma correspondência entre as urgências do real do corpo do bebê e a
ordem simbólica materna. Produz-se um emparelhamento
460
entre esse gozo do vivo e a
estrutura da linguagem sustentada pela mãe.
460
Jacques Lacan (1969-1970). O seminário. Livro17. O avesso da psicanálise, p. 48.
189
Nesse artifício em que, indo além do gozo fálico, ela repete, relança um gozo por ela
obtido através da passividade, atribuindo-o ao bebê, ao mesmo tempo, ela possibilita ao
bebê a passagem de um gozo do corpo para um gozo fálico. Estando ali dividida, ela
também divide o bebê.
Ela intervém transitivamente. Supondo que o bebê estaria a experimentar um afeto
corporal semelhante ao dela, a mãe põe em cena seus cuidados procurando prolongar o
gozo do bebê. Ela só pode fazer isso interpretando e, ao fazê-lo, forja um sentido à
produção do bebê, alienando-o. Ao fazer isso em um tempo a mãe insere o bebê na
linguagem e permite ao gozo ousar a máscara da repetição.
461
Por um lado, o corpo do bebê é lugar propício ao gozo do Outro, a mãe aí, desde sua
função vicariante,
462
permite que o filho mantenha uma relação parasitária
463
com ela. Seus
cuidados são interpretações em atos simbólicos, cujos sentidos são imperativos por
arbitrarem valor, constringindo a pureza do gozo da vida, ao acolhê-lo, emoldurando,
interrogando e decidindo sua significação.
464
Esta superposição, esta equivalência entre o gesto que marca e o corpo e o objeto de
gozo, este emparelhamento entre o cuidado materno e a resposta corporal do bebê, na qual
este se identifica como sendo objeto de gozo que porta a glória da marca, gozo do
Outro,
465
tal como aponta Vorcaro, acaba por ser rompida fazendo o bebê deparar com um
encontro faltoso, com uma privação, pela qual algo esperado (desde o estruturado na
cadeia simbólica tecida pela mãe) falta em seu lugar, fazendo surgir o inominado. O bebê
grita, dirigindo ao Outro seu apelo.
466
Momento no qual caberia o verso de Caetano
461
Ângela Vorcaro. Os dragões do tempo primordial: a repetição como primeira identificação, p. 215 -231.
462
Jean Bergès e Gabriel Balbo (1998). Jogos de posições da mãe e da criança.
463
Jacques Lacan (1962-1963). O seminário. Livro 10. A angústia, p. 259.
464
Ângela Vorcaro. Os dragões do tempo primordial: a repetição como primeira identificação, p. 215-231.
465
Jacques Lacan (1969-1970). O seminário. Livro17. O avesso da psicanálise, p. 48.
466
Ângela Vorcaro. Os dragões do tempo primordial: a repetição como primeira identificação, p. 215-231.
190
Veloso: o mundo é um fluxo sem nexo e é só no oco do seu peito que corre o rio.
467
Esse rio que corre se estabeleceu a partir do emparelhamento produzido pela
mascarada materna através da qual o gozo do bebê já foi fisgado pela estrutura da
linguagem que aparelha o ser humano. A partir do encontro com tal descompasso, com tal
falta, o pequeno filhote precisará se apalavrar com esse aparelho,
468
precisará ir em busca
de estabelecer um saber como meio de gozo,
469
procurando repetir, retomar a partir do
significante o gozo perdido. O transitivismo possibilita, assim, uma nova inscrição psíquica
pela qual será franqueada para o bebê a sua entrada, como sujeito, no gozo fálico.
Mas retomemos o tempo inicial em que a mãe ousa a máscara da repetição. Nesse
tempo inicial, como aponta Gilson, a mãe, ao mesmo tempo que ousa, dosa.
470
A mãe ousa
a máscara do Outro e também dosa os cuidados corporais do bebê, imprime neles uma
cuidadosa ritmicidade simbólica pela qual o fluxo vital do bebê, se contemplado, deixa-se
levar inadvertidamente. Este é um ponto central a ser considerado, pois se a implantação
do significante no corpo não prescinde do golpe de força da interpretação materna que,
investida da obscura autoridade do Outro, decreta, legisla, ‘aforiza’, é oráculo
471
da
significação simbólica que se marca no corpo do bebê; no entanto, para que o bebê porte
tal marca como uma glória é preciso que a mesma haja fisgado o seu gozo.
A prosódia materna, as canções de ninar, as parlendas, vêm produzir a articulação de
ritmos (especialmente biológicos) à repetição significante. Para conferir sentido àquilo
que dele seria desprovido, a repetição prosódica desses elementos se organiza e se ordena
em relação a algo experienciado pelo corpo.
472
O manhês, a lalação, esta alíngua criada, inventada, forjada pela mãe como um
467
Caetano Veloso. Ele me deu um beijo na boca.
468
Jacques Lacan (1969-1970). O seminário. Livro17. O avesso da psicanálise, p. 48.
469
Idem, ibidem.
470
Jean Paul Gilson. Autismo e língua materna.
471
Jacques Lacan (1960b). Subversión del sujeto y dialéctica del deseo en el inconsciente freudiano, p. 787.
472
Jean Bergès e Gabriel Balbo (1998). Jogos de posições da mãe e da criança, p. 129-130.
191
artifício produzido no âmago da linguagem e à margem dela não atingindo e, ao mesmo
tempo, ultrapassando sua legalidade para nela contemplar o gozo do seu bebê, a fim de
tornar mais morno o vazio das coisas,
473
traz-nos um vivo exemplo disso.
V.13. Os caminhos da menina e as saídas de mãe
As questões levantadas levam-nos a considerar que, se os caminhos que uma menina
pode percorrer diante do encontro com a diferença sexual se trifurcam, sendo somente um
deles o que deriva na feminilidade, as saídas de mãe também implicam a retomada desses
três percursos possíveis.
Se ser e não responde ao que é ser mulher, a maternidade é menos um ponto de
chegada do que um relançamento da divisão experimentada por mulheres perante
diferentes modos de gozo. A maternidade relança para uma mulher o saldo de seu encontro
com a castração, devolvendo-a ao ponto em que os caminhos se trifurcavam. Ao retrilhar
esses caminhos uma mãe pode colocar em cena o gozo fálico com o bebê, e certamente é
fundamental que o faça. Temos uma dimensão de equivalência entre pênis-falo-bebê.
Por essa via encontramos a frequente oscilação que caracteriza a maternidade: ora
situando esse bebê como equivalente insuficiente para o pênis de acordo à medida fálica,
ora levando-a a fazer desse bebê o triunfo de seu falicismo qualquer dúvida, vide a
conversa das mães na sala de espera do pediatra ao comparar o peso e a altura de seus
bebês tais como outrora o fizeram os meninos com seus pênis.
Por isso é central que o bebê não seja tomado como puro objeto de restituição fálica
para a mãe, mas como um filho, em uma transmissão que o situe, por meio do nome-do-
473
Ver a este respeito o capítulo “Prosódia e enunciação na clínica com bebês".
192
pai, em uma identificação simbólica, além da simples equivalência ao falo imaginário.
Mas a medida fálica não esgota a relação da mãe com o bebê. Por um lado, porque,
ao ficar dividida enquanto mulher e mãe, ela busca um gozo Outro com um parceiro que
para ela sustenta o falo. Isso implica que, além de ser mãe, ela se refaça mulher, retorne à
sua condição de mulher (e, nisso, a convocatória do parceiro não é nada indiferente). Por
outro lado, esse gozo Outro não necessariamente é visitado somente fora da maternidade e
de modo contraposto a esta. O gozo Outro pode ser retomado no exercício da maternidade,
na medida em que, a partir de seus cuidados, a mãe procura prolongar o gozo da
passividade que atribui a seu bebê, produzindo uma identificação transitivista pela qual
retoma seu próprio gozo com a passividade a partir do gozo dele.
Isto dá lugar a uma série de artifícios por meio dos quais a mãe produz, nos cuidados
do bebê, o estabelecimento de jogos que implicam um gozo. Esses jogos imprimem suas
marcas no funcionamento corporal do bebê e, por vezes, nos fazem testemunhar
comparecimentos, em meio à linguagem, de rastros quase poéticos do manhês quase
poéticos na medida em que, como a poesia, trazem o efeito de sentido e também de furo da
linguagem.
474
Não por acaso Freud aponta, ao final de sua conferência, que uns dos modos
de se aproximar da questão da feminilidade seria dirigindo-se aos poetas.
475
O gozo Outro mantém uma íntima relação com a criação;
A criação pode ser definida como a produção de um
significante novo no lugar de significante faltoso. (...) Mas o
significante criado pelo artista não procura preencher o furo
deixado aberto pelo significante da falta do Outro, mas, pelo
contrário, revelá-lo e fazê-lo atuar como tal. (...) O que o artista
cria é talvez menos a parede, que ele nos oferece como trompe-
l'oeil, do que o vazio que esculpe.
476
Não seria desta mesma ordem a mascarada que a mãe produz ao ousar, ao criar o seu
474
Serge André (1986). O que quer uma mulher?, p. 284-285.
475
Sigmund Freud (1933). Feminilidade, conferência 33: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise,
p. 165.
476
Serge André (1986). O que quer uma mulher?, p. 284-285.
193
bebê em meio ao encontro com o real do corpo do bebê e a falta de um significante no
Outro que lhe aponte o que é ser mulher?
As mulheres, como todos sabem, têm uma relação particular
com a criação, pelo fato de poderem dar á luz: como se somente
elas tivessem o poder de criar diretamente sem dever fazer o
esforço de uma sublimação. Porque, com efeito, não dar ao parto a
importância de uma autêntica criação (...) a tentativa de produzir
um significante que tome o lugar do significante da falta do Outro
antes de cair em sua significação fálica?
477
Se ser mãe não corresponde ao que é ser mulher, o filho, como um significante novo,
não tapa, não obtura, a falta do significante do Outro, pelo contrário, tal como a criação
artística, torna presente o vazio que esculpe. O que não deixa de ser uma invenção que, em
todo caso, relançará seus argumentos no dia-a-dia do cuidado do bebê que, nos parece, não
à toa é denominada criação.
Certamente isto não está dado de partida para uma mãe com seu bebê. Depende de
como ela se coloque em tal laço, permitindo, no melhor dos casos, algumas invenções,
algumas saídas de mãe, da ordem do saber fazer ali com isso indo além da mera repetição
da sobredeterminação inconsciente pois, ainda que esta seja inevitável, nem tudo na
maternidade precisa ser a repetição de um imperativo de fazer igual ou completamente o
oposto do que a sua própria mãe fez –. A maternidade pode também ser âmbito de criação.
A maternidade implica não só um gozo fálico, mas um gozo Outro próprio da
feminilidade, na medida em que se coloca para além do fálico. Ele é retomado pela
identificação transitivista com o gozo da passividade do bebê. Ali a mãe sustenta para o
bebê a montagem do gozo do Outro, pelo qual atrela a economia de gozo do bebê ao
Outro. Ela supõe o bebê como sujeito que goza da passividade que ela, desde o gozo
Outro, também soube experimentar. Então, apesar de sustentar esta montagem, ela não o
fixa nem se fixa para o bebê como objeto do gozo do Outro. Ela também exerce um saber e
477
Idem, ibidem.
194
supõe um saber no bebê. Por isso a mãe não é perversa, ainda que seja sedutora (pois não
faz do bebê seu objeto) e, por isso, ela não é louca, apesar de sua 'loucura necessária' para
supor sujeito no bebê (pois tanto ela quanto o bebê transitam incessantemente não como
objetos do gozo, mas do saber).
Portanto, a maternidade não se situa como uma simples conclusão da feminilidade,
ou como sua simples contracara, por uma espécie de divisão esquemática em que a
maternidade corresponderia ao gozo fálico e o ser mulher a um gozo especificamente
feminino. Por um caminho não calcado em um naturalismo, mas em uma série de
operações relativas ao gozo, chegamos a considerar a correlação freudiana estabelecida
entre maternidade e feminilidade como uma das saídas possíveis (ao ser uma mulher/mãe),
embora não a única para a condição feminina, e sem que as diferentes escolhas de
realização da feminilidade impliquem uma recíproca exclusão.
195
VI. JOGOS CONSTITUINTES DO SUJEITO
O brincar como inscrição de um litoral sustentado no laço mãe-bebê
Quando consideramos o brincar, frequentemente evocamos o faz-de-conta, ápice do
brincar simbólico, que tem seu marco inicial no jogo do Fort-Da. Mas como considerar o
brincar no tempo de ser bebê?
Pelo brincar a criança produz uma resposta, opera uma passagem da passividade à
atividade, aponta Freud. Mas se ser bebê implicaria um tempo essencialmente marcado
pela passividade, como considerar o brincar? Que produções precursoras de um brincar
simbólico, propriamente dito, precisam se operar para que venha a se instaurar o Fort-Da?
Este capítulo dedica-se a considerar que, se o brincar implica um gozo tal como
Freud nos permite pensar a partir do texto "Além do princípio do prazer" , o é no árduo
trabalho de estabelecimento do litoral entre gozo e saber. A tentativa de produzir tal
inscrição, tal traçado, já está em jogo no laço mãe-bebê, configurando, desde os primórdios
da constituição psíquica, os aqui chamados jogos constituintes do sujeito.
O Fort-Da, mesmo sendo uma produção inaugural do brincar simbólico, pode se
estabelecer a partir de jogos constituintes do sujeito, que são seus precursores e que já se
produzem como primeiras circunscrições de um litoral entre gozo e saber. Esses jogos têm
a peculiaridade de não ser nem só do bebê nem só da mãe, mas criações produzidas no laço
mãe-bebê. A mãe sustenta a possibilidade de tais produções e até mesmo suscita que sejam
postas em ato, e, quando o bebê entra no jogo, quando nele engaja gozosamente seu corpo,
a mãe passa a atribuir a ele a autoria, o saber sobre tais produções.
Desse modo, nos jogos constituintes do sujeito opera-se a passagem do gozo ao
saber, do objeto ao sujeito, na medida em que a mãe e o bebê, em tais jogos, transitam
196
incessantemente de uma a outra dessas posições.
É justamente por esses jogos de litoral serem constituintes do sujeito que eles
ocupam um lugar central na clínica, tanto com bebês quanto com crianças que, mesmo não
sendo mais bebês, não chegaram a produzi-los enquanto resposta psíquica diante do Outro.
Situaremos, a seguir, o brincar da criança para depois podermos retomar esse tempo
primordial dos jogos constituintes do sujeito como inscrição de um litoral entre gozo e
saber.
VI.1. O brincar na cena clínica e a constituição do sujeito
O brincar é sintoma constituinte do sujeito na infância. Com ele a criança produz
resposta ao paradoxo temporal ao qual está confrontada: entre a antecipação simbólica
que situa, desde o inconsciente parental, seu lugar na filiação, sexuação e identificação e
a imaturidade real de seu corpo.
478
Diante de tal paradoxo é por meio da dilatação imaginária, em que se desenrola o
faz-de-conta, que a criança ensaia respostas que a tiram de um lugar de passividade diante
do Outro. Tal recurso psíquico torna possível uma esfera protegida para o exercício de uma
atividade pela qual não é preciso se responsabilizar, afinal, do que é produzido dentro
dessa esfera não se cobra valor de ato, é uma brincadeira. Dentro dela é possível matar,
morrer, ser o mais ferrenho inimigo, enfrentar os maiores dilemas morais e depois sentar
junto com o amigo para tomar o lanche.
Isso não tira a seriedade do brincar, na medida em que, com ele, a criança liga,
elabora, faz série singular dos acontecimentos de sua vida. Brincar é sério porque
478
Julieta Jerusalinsky. Capítulo: "temporalidade e clínica com bebês" em Enquanto o futuro não vem a
psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês; Alfredo Jerusalinsky. Psicanálise e desenvolvimento
infantil, p.50.
197
possibilita articulações significantes diante de acometimentos do real, servindo-se para
tanto da uma dilatação imaginária do como se.
Ao falar do brincar geralmente é este tempo do faz-de-conta, do agora eu era, do
como se, que se evoca: o marco do brincar simbólico, tempo em que a criança goza dos
deslocamentos a que o significante lugar, das metáforas que ele possibilita e por meio
das quais uma coisa pode ser tomada por outra um pano pode virar capa; um pau de
vassoura, cavalo; uma panela, a coroa. Na dimensão metafórica do faz-de-conta a criança
goza dos jogos em que se projeta enquanto realizadora dos ideais-do-eu, buscando
apropriar-se de traços identificatórios que lhe garantiriam encarnar o desejo do Outro. Se o
desejo é o desejo do Outro,
479
por meio de tal brincar a criança se joga, se lança a ocupar a
posição de senhora do (seu) desejo.
O faz-de-conta é o tempo do brincar do vir-a-ser, o tempo de dar consistência à
projeção imaginária de um futuro. É central para a constituição que este momento do
brincar se produza e que se possa outorgar credibilidade a esta ficção, na medida em que
ela é a materialização imaginária que dá ao sujeito a garantia ficcional de que poderá vir
a ser.
480
Fica evidente que, na produção do faz-de-conta, articula-se o desejo de ser grande
481
desejo em torno do qual se produz uma equivalência entre crescer, virar adulto e realizar
o ideal-do-eu.
482
Entre a antecipação simbólica de seu lugar no discurso parental, a imaturidade real
de seu corpo e a dilatação imaginária dentro da qual lhe é possível tecer seus desenlaces
ficcionais, a criança produz um ganho de gozo, mas somente por meio do árduo trabalho
de operar uma torção temporal que, tal como os derretidos relógios de Salvador Dali,
479
Jacques Lacan (1953-1954). O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud, p. 172.
480
Alfredo Jerusalinsky. Algumas questões para elaborar a teoria do brincar.
481
Sigmund Freud (1908). Escritores criativos e devaneio, p. 151.
482
Julieta Jerusalinsky. Enquanto o futuro não vem A psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês, p.
80.
198
permite em tal dobra em que se aloja o sujeito uma articulação entre o "agora", o "eu
era"e o "vir a ser". Por isso, se brincar comporta um gozo da infância, também comporta
um árduo trabalho psíquico desse sujeito em constituição, trabalho no qual o próprio corpo
fica convocado, e muitas vezes até a exaustão. Por isso, quando as crianças brincam e são
interrompidas pelas "banalidades cotidianas" de higiene ou alimentação afirmam, com toda
a razão: "Mas não vêem que estamos ocupadas!"
Brincar de faz-de-conta é uma produção que pode ser posta em cena de modo
solitário ou ser compartilhada com outros parceiros, o que exige uma intensa negociação
no estabelecimento dos argumentos e na distribuição de papéis. Para tanto, a criança
precisará contar com certa abertura à alteridade, a fim de poder estabelecer de modo
coletivo as vicissitudes das personagens, e também com certa mobilidade psíquica para
poder mudar de posição no jogo com o parceiro alternando os lugares filho-pai, filha-
mãe, mau-bom, tima-algoz em prol de uma trama coletiva que se articula com e além
de sua posição na cena. Por isso, brincar com pares, com semelhantes, é constituinte para a
criança.
483
Mas, na medida em que tais personagens e seus desenlaces fantasiosos são
representantes dos próprios conflitos da criança e de sua tentativa de elaboração, ela
precisará também partilhar esses conflitos psíquicos com seus companheiros de jogo,
encontrar certo ponto de identificação e certa acolhida para eles na trama coletiva. Daí que
as crianças também tenham preferências por certos companheiros de jogo para
determinadas brincadeiras. A questão é que, seja com outros parceiros ou articulando
solitariamente a trama dos diferentes personagens, no faz-de-conta a criança tece uma
ficção de si mesma como possibilidade de vir a ser e enquanto resposta ao seu Outro.
Neste contexto, o objeto brinquedo, mesmo não sendo indiferente, conta menos pelas
suas características reais do que por prestar-se à trama que, com ele, a criança dá lugar.
483
Como o próprio Sigmund Freud (1909) afirma em Análise da fobia de um menino de cinco anos, p. 26.
199
Vale menos pelo que é em si do que por adaptar-se ao argumento que interessa encenar.
Esta diferença entre o brinquedo como objeto em si e o ato de brincar, mesmo podendo
parecer menor, não carece de importância em um contexto cultural em que costumam se
exaltar as características dos objetos em si. Não se trata de diminuir a importância do
brinquedo – tal é a importância dele no brincar que Freud situa a necessidade da criança de
apoiar seus objetos e situações imaginadas em coisas palpáveis e definíveis do mundo
real
484
como a principal diferença entre brincar e devanear. Mas, se brincar é operar em
torno da falta – do que falta para ser grande, para realizar ideais –, o valor dos brinquedos é
tanto maior pelas metáforas que possibilitam do que pelo achatamento sobre suas
características reais. Nesse sentido, se o apoio nesses objetos é necessário, o excesso deles
também pode ser obstáculo ao ato do brincar simbólico. O fato de esses brinquedos serem
excessivamente estruturados pode empurrar a criança na direção do exercício de rituais
lúdicos,
485
nos quais se mantém fixada ao uso sugerido pelos objetos, em lugar de poder
transformá-los e criar com eles.
Se, ao falar do brincar, frequentemente se evoca o faz-de-conta, é certo que tal
produção não se mantém com a mesma força ao longo de toda a infância. Após certa
elaboração, esse modo de brincar cede, pelo menos em parte, dando lugar ao interesse
pelos jogos de regras, nos quais se estabelece a oposição entre vencedor-perdedor, certo-
errado, justo-injusto, bem-mal.
Nos jogos de regras as normas preestabelecidas vêm lembrar que as realizações do
ideal-do-eu exigem que se cumpra um papel em relação à lei. Apesar de que o brincar da
criança continue não tendo o valor de um ato, os adultos, e até mesmo os colegas de
brincadeira, demandam que ela observe a existência do "modo certo de jogar". não é
qualquer coisa que vale simplesmente por estar articulada pelo bel-prazer de seus ensaios
484
Freud (1908). Escritores criativos e devaneio, p. 150.
485
Jean Piaget (1959). El nacimento de la inteligencia en el nino.
200
ficcionais de si.
Diante dessa faceta de apresentação da lei a criança
negocia, diferentemente do que ocorre no momento anterior. Tais
negociações vão endurecendo na passagem da lei ad hoc para a lei
de todos em que se ensaiam e encenam as crenças, as metafísicas
que perpassam o discurso dos adultos.
486
Percebe-se como o brincar é uma produção ampla que se estende ao longo de
toda a infância, mas que não permanece sempre igual, pois, ainda que apresente uma
insistência em torno de certos temas, vai articulando diferentes respostas da criança diante
do Outro.
Brincar, portanto, não é simplesmente chafurdar sem direção no gozo da infância.
Brincar é o próprio trabalho de constituição do sujeito na infância, da inscrição da letra na
borda entre gozo ao saber. Daí que se intervenha com e a partir do brincar na psicanálise
com crianças, inclusive de crianças que ainda não acederam à fala – por serem ainda muito
pequenas ou por, mesmo tendo idade para fazê-lo, estarem acometidas por psicopatologias
que as impedem de tomar a palavra.
O brincar, segundo esta perspectiva, assume não a dimensão de uma posta em
cena do inconsciente,
487
mas a própria possibilidade, o próprio estabelecimento de
inscrições constituintes do sujeito na infância. Isto porque, ainda que testemunhar o brincar
possibilite ao psicanalista produzir uma leitura acerca das respostas que a criança vem
elaborando diante de seu Outro, não é em si uma produção que tenha por alvo mostrar-se a
um espectador. Apesar de que o brincar implique uma posta em cena, uma encenação
lúdica que, tal como a encenação teatral, possibilita o acesso a um gozo,
488
é um jogo no
qual a criança joga com o deslocamento de posição entre ator e espectador de seu próprio
486
Alfredo Jerusalinsky. Algumas questões para elaborar a teoria do brincar.
487
Lembrando aqui a célebre correlação estabelecida por Melanie Klein entre o brincar para a criança e os
sonhos para os adultos. Melanie Klein (1926). Fundamentos psicológicos del análisis del niño, p. 27-28.
488
Tal como aponta Sigmund Freud, (1908). Escritores criativos e devaneio, p. 150: A linguagem acolheu
parentesco entre o brincar infantil e a criação poética, chamando ambos "Spiel" (que pode ser traduzido
tanto por jogo quanto por brincadeira), assim como as encenações teatrais são denominadas de «Lustspiel»
[«comedia»; literalmente, «jogo de prazer»], «Trauerspiel» [«tragédia»; «jogo de luto»], w designando
«Schauspieler» [«ator dramático»; «o que joga ao espetáculo»] a quem as encena.
201
drama deslocado a um marco ficcional.
Tanto o brincar da criança quanto o fantasiar do adulto comportam um desejo, aponta
Freud, mas, enquanto a criança não oculta seu desejo de ser grande, o adulto faz de tudo
para ocultar o desejo que se coloca em seu fantasiar, pois ele denuncia sua infantilidade.
489
Esta afirmação de Freud revela o quanto, ainda que ambas as produções comportem um
desejo, este parece operar em direções opostas; o brincar da criança tenta trilhar o percurso
que vai do objeto a (em torno do qual se busca articular o percurso de recuperação de
prazer na parcialidade pulsional, do chupar, do olhar, do pegar em suas vozes ativas e
passivas), ao eu-ideal (procurando se fazer valer das insígnias fálicas para ocupar o lugar
de objeto de desejo do Outro materno, como fica evidente nas primeiras gracinhas que um
bebê produz, como tchauzinho, piscadinhas e palminhas) e do eu-ideal ao ideal-do-eu
(procurando os pontos de identificação simbólica que implicam o longo caminho de
poder obter prazer por meio da busca de realização de certo ideal cultural);as formações
do inconsciente no adulto trilham o caminho regressivo desse percurso, evidenciando o que
tanto embaraça os adultos: que o prazer jamais se desvincula de suas formas mais infantis,
mais primordiais.
490
Isto nos permite afirmar com todas as letras que, enquanto no adulto o chiste, o
sonho, o ato falho, o devaneio, fazem comparecer o desejo nas formações do inconsciente,
o brincar da criança que procura operar com o desejo é o próprio movimento de um
inconsciente em formação.
Portanto, que o brincar nem sempre seja ocultado não equivale a dizer que seu
objetivo seja o de uma demonstração ou mostração. Prova disso é que, como um dos
efeitos do recalque, a criança passe a reclamar ativamente privacidade para tal exercício de
gozo, solicitando ao adulto que sorrateiramente se intromete curioso para assistir a cena
489
Idem, p. 151.
490
Alfredo Jerusalinsky. Algumas questões para elaborar a teoria do brincar.
202
produzida pelas crianças que saia, pois estão brincando. Até mesmo antes de poder
formular tal pedido de privacidade é frequente que a criança, entretida com sua produção
de faz-de-conta, suspenda o brincar e iniba tal produção quando se percebe observada por
um adulto.
Se o que a criança faz com o brincar é o árduo trabalho de buscar situar-se como
sujeito em relação ao desejo, em vez de ficar esmagada à condição de objeto de desejo do
adulto enquanto Outro encarnado, se no que ela insiste com o seu brincar é em poder
operar o jogo de alienação e separação, tornar-se craque nele, pode resultar-lhe
extremamente perturbador, a essa altura de sua constituição, perceber-se tomada enquanto
objeto de observação do adulto. Se o adulto produz tal invasão e a criança o flagra
quando este procura fazer-se realmente presente onde é fundamental sua ausência real, a
fim de que a própria criança possa por em jogo a presença-ausência a partir da transmissão
simbólica da qual se faz herdeira –, ela tem toda a razão de recriminá-lo e pedir que se
retire.
Por isso é decisiva a posição que o psicanalista assume no brincar da criança.
Quando o brincar se desenrola na cena clínica, o psicanalista não é ali um observador
externo cuja função seria a de traduzir uma espécie de inconsciente exposto. Ele, pela
transferência, faz parte da estrutura do paciente e, portanto, está tomado como parte
integrante da cena do brincar. Intervém permitindo que se relance o brincar pelo qual se
jogam as possibilidades de resposta desse sujeito em constituição.
Isto frequentemente implica poder brincar com certos conteúdos que resultam
insuportáveis para os pais e que, inclusive, tangem temas proibidos pela educação familiar
ou escolar, tais como melecas, transbordamentos, palavrões e que não são nada edificantes
mas que, no entanto, são centrais para que a criança possa ser detentora de um saber que
lhe permita separar-se da posição de objeto do fantasma parental.
203
É um grande problema que faz obstáculo, resistência à análise, quando a intervenção
visa estabelecer uma espécie de tradução em palavras da ação da criança, de explicitar sua
compreensão, desvendando por meio de uma coagulação imaginária o que o jogo
simbólico da metáfora por ela produzida procurou trabalhosamente recobrir (como seria
lhe dizer, diante do jogo do Fort-Da: eu entendo que o carretel é a mamãe). Isto leva a
fechar o sentido de uma cena em que se cristaliza o lugar do sujeito em relação ao objeto e
pode muito bem vir a suspender o jogo, considerando, claro, que a criança estava
produzindo ali uma simbolização ou seja, em lugar de ficar chorando quando a mãe ia
embora, fazia algo que operava uma passagem do gozo ao saber- fazer.
Por outro lado, podemos considerar que o que Melanie Klein faz com o pequeno
Dick, de quatro anos –, que estava a empurrar um trenzinho, ao lhe dizer "trem papai,
trenzinho Dick" (oferecendo-lhe um trem pequeno ao lado do maior) e, acrescentando,
quando este diz "estação", "estação mamãe" também implica operar uma passagem,
elevando a pura cena repetitiva de achatamento sobre o real dos objetos a uma
representação de outra coisa.
491
Ali, Klein empresta o significante, introduz a
simbolização.
492
Consideramos também nesta direção a intervenção produzida na vinheta clínica "cu-
co! Cadê Santiago?", apresentada no primeiro capítulo. Tal jogo permite operar uma
passagem de um real orgânico e da presentificação sinistra do fantasma materno, para um
jogo constituinte presença-ausência. O cu-co é ali a própria produção de uma inscrição, da
letra que opera de modo suplementar, como criação, possibilitando a Santiago, na medida
em que se engaja no jogo, uma passagem em sua constituição psíquica.
Evidentemente esta discussão é bastante longa, mas o que procuramos apontar é que
a intervenção, em lugar de mimetizar-se a uma referência teórica ou outra, precisa ser um
491
Melanie Klein (1930). A importância da formação dos símbolos no desenvolvimento do ego, p. 249-264.
492
Jacques Lacan (1953-1954). O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud, p. 83-86.
204
efeito da leitura do analista acerca do que está em causa para o paciente, possibilitando-lhe
operar as passagens entre real, simbólico e imaginário.
A leitura do psicanalista, ao tomar ao da letra a produção da criança, sustenta o
lugar da imprevisível criação.
493
Trata, ao sustentar a brecha, a descontinuidade, as idas e
vindas sobre a borda, no jogo de oposição dos significantes, nos quais a criança pode, a
partir da transferência com o psicanalista, jogar o jogo de relançar seu desejo. Trata ao
operar com os enigmas, com as cifras, a fim de possibilitar a migalha de liberdade, a
migalha de criação
494
do sujeito em meio à sobredeterminação que o fixa e o empurra para
a repetição. Pode passar assim do chafurdar no gozo a um saber fazer ali com isso.
Assim a criança pode, ao brincar de faz-de-conta, fazer e refazer as contas,
produzindo novas operações em torno das cifras que para ela insistem. Em lugar de ficar
capturada no enigma, pode passar a operar com suas cifras. Daí a pertinência do brincar na
clínica com crianças. Ele possibilita, pela transferência, a transposição de registros pelo
qual o brincar, ainda que nunca deixe de dizer respeito a um real (e a insistência pulsional
demonstra isso), deixa de ser só real, pode possibilitar uma articulação imaginária e
simbólica.
Vemos como interrogar a função do brincar na análise com crianças nos leva, em
última instância, a interrogar o que se considera estar em jogo em uma análise. Apontar
uma e outra vez a repetição, por meio de uma suposta compreensão sobre o assunto, não
leva o analisando muito mais longe do que ser exaustivamente reendereçado ao mesmo
ponto. Convenhamos que, para isso, ele não precisa do psicanalista, ele trilha o caminho
sozinho, como o burro do leiteiro. Depois de uma intervenção dessas, ele pode talvez
chegar a ser um burro com conhecimento de causa.
Intervir por meio de uma tradução que busca o fechamento em uma compreensão
493
Ver, a este respeito, capítulo "Leitura de bebês".
494
Ainda que possa parecer pequena e o é, já que é no detalhe do trocadilho, sabemos o quanto um pequeno
elemento é capaz de subverter toda uma estrutura.
205
imaginária vai em uma direção clínica. Contar com a letra que insiste para transliterá-la,
atravessá-la, transmutá-la, vai em outra.
495
Se a repetição é inevitável, a questão é como
minimamente dar lugar a algo de novo com o que insiste de novo. uma diferença
considerável entre construir um conhecimento e saber-fazer: saber fazer com seu
sintoma, esse é o valor de uma análise.
496
Que a criança não circule pela palavra com o mesmo desembaraço de um adulto, não
é álibi para justificar intervenções que buscam fechar em traduções compreensivas as
desconcertantes e enigmáticas ações da criança. Que um adulto fale e fale em análise,
nunca foi garantia de que ele esteja dizendo algo que efetivamente importa. Assim como o
fato de uma criança movimentar os bonequinhos em uma casinha seguindo adequadamente
o trilho dos melhores hábitos sociais, não coloca necessariamente em jogo o que
efetivamente conta. Tanto o discorrer da fala quanto a sucessão de cenas do brincar podem
ser perfeitamente resistenciais. A intervenção trata ao operar na borda que efetivamente
interessa para o sujeito: entre o gozo e o saber, entre pulsão e significante. É intervir ali
com isso que possibilitará à criança tecer um saber-fazer diante dessa borda que para ela
ainda está se inscrevendo.
Nesse trabalho do brincar o gozo da criança ainda não está fixado, diferentemente do
adulto, que tem inscrito o fantasma. Com o trabalho do brincar ela opera a
transformação em que estende a borda do objeto a ao significante, do sentido fálico ao
ideal-do-eu, do discurso parental ao discurso social.
Em um tempo em que o falasser não está estabelecido, trata-se de tecer a borda, a
inscrição, o traçado primordial, desde o qual um sujeito poderá vir a se situar. Daí que letra
e gozo estejam em jogo nos primórdios do brincar enquanto jogos constituintes do sujeito –
495
Ver recortes clínicos a seguir.
496
Jacques Lacan (1976-1977). Seminario 24, L’insu que sait de l’une-bevue s’aile à mourre, clase 1, Las
identificaciones, de 16/11/76; O que é o savoir-faire? É a arte, o artifício, o que à arte da qual se é capaz
um valor notável. Jacques Lacan (1975-1976). O seminário. Livro 23. O sinthoma, p. 59.
206
enquanto jogos de litoral sustentados no laço com Outro encarnado.
Isto nos leva a interrogar acerca dos primórdios do brincar, antes do estabelecimento
do faz-de-conta, antes do estabelecimento deste jogo do vir a ser. Certamente um bebê não
encontra a possibilidade de produzir a resposta que uma criança, durante e após a
tramitação do conflito edípico, consegue articular com o brincar; ele não conta com a
mesma extensão simbólica diante do Outro que lhe possibilite dar lugar a essa montagem
que se produz dentro da esfera imaginária do faz-de-conta. No entanto, ao longo da
primeira infância, podemos considerar a incidência de jogos constituintes do sujeito
sustentados no laço com o Outro encarnado. Tais jogos são produzidos em um tempo em
que está ainda sendo constituída a borda que permitirá à criança vir a enunciar um aqui e
um lá. Mas, mesmo sendo precursores do Fort-Da, operam em torno da inscrição de um
litoral entre gozo e saber.
VI.2. O marco do Fort-Da
O Fort-Da não tem toda a extensão simbólica que caracteriza o faz-de-conta, mas
apresenta todas as características que permitem situá-lo como marco inicial do brincar
simbólico. Ele representa um salto estrutural, um divisor de águas na posição da criança
perante o seu Outro.
O Fort-Da é situado no texto "Além do princípio do prazer",
497
a partir da célebre
cena em que Freud como um jogo a produção de seu neto Ernest, de 18 meses, a lançar
um carretel para trás da borda da varanda com acortinado de seu berço, de modo que ele ali
desaparecesse, e depois produzisse seu retorno, puxando o carretel pela cordinha nele
497
Sigmund Freud (1920).
Além do princípio do prazer, p. 25-29.
207
amarrada. Quando sua mãe se ausentava, o pequeno menininho se punha a brincar com
esse objeto, estabelecendo uma série articulada de ausência e presença, na medida em que,
ao lançar e recuperar o carretel nessa borda da cortina, produzia ativamente uma
descontinuidade do seu olhar sobre esse objeto. Além disso, ele acompanhava tal produção
não por uma intensa expressão de interesse e satisfação,
498
mas também por uma
produção sonora de "ooo", "aaa", que Freud não como uma simples interjeição, mas
como as palavras alemãs fort (foi, vai embora) e da (cá, aqui está), respectivamente. É
preciso dizer, e isto é importante para o nosso tema, que Freud tampouco chega a tal leitura
sozinho. Ele faz valer a atribuição de sentido que a e faz à produção sonora do
menininho durante o exercício de seus cuidados.
499
Freud conta que, com a articulação de tal jogo, a criança, em lugar de se pôr a chorar
diante da partida da mãe, se põe a brincar. Produz com isso uma realização cultural:
renuncia a uma satisfação pulsional, se ressarcindo ao encenar por si mesma, com os
objetos que tinha a seu alcance, esse desaparecer e regressar.
500
É importante considerar o
quanto a criança não chora na medida em que tal operação lhe permite trocar a
renúncia da satisfação pulsional imediata por um ressarcimento no plano simbólico.
Representar tal ausência, apoderar-se dela, representa uma perda em um plano e um ganho
em outro. A criança agora pode apoderar-se da situação: se na vivência era passivo, era
afetado por ela, agora se punha em um papel ativo, repetindo-a com o jogo, apesar de que
fosse desprazerosa.
501
Encontramos no Fort-Da os componentes que situam o brincar como simbólico: nele
ocorre a substituição de um sofrimento vivido de forma passiva pela produção de um jogo
em que a criança se situa como senhora de uma atividade; nesse jogo uma oposição
498
Idem.
499
Idem.
500
Idem.
501
Idem.
208
presença-ausência; e, além de tal oposição ser produzida, também é designada, nomeada
por ela, na oposição de significantes.
Daí que seja tão infrutífera a discussão acerca do que o carretel representaria. O
carretel pode ser a mãe que ele expulsa e recupera, mas também pode ser ele mesmo na
descontinuidade de ser visto ou não por este Outro primordial. Pouco importa. O que está
em jogo nesse primórdio do brincar simbólico é menos a atribuição de uma significação
que recairia sobre o objeto em si (carretel) e muito mais o jogo de oposição significante a
que a criança lugar, usando-o como simples pretexto: trata-se de brincar com a
articulação de uma série de presenças e ausências a partir da qual a criança começa a poder
sustentar-se brevemente na ausência do olhar do Outro primordial sobre si, ao poder
nomear por si mesma essa oposição que a acomete.
Frequentemente dizemos que a criança, ao brincar, está entretida. Justamente brincar
e entreter-se, sustentar-se brevemente diante da falta do Outro encarnado, ao entre ter-se,
ao ter-se entre dois significantes não cai junto com a ausência materna. Ernest se entretém
entre o "ooo"e "aaaa". não representa a ausência da mãe, como nela se representa o
próprio sujeito, na mesma medida em que Lacan nos diz que o significante representa o
sujeito para outro significante.
502
Mas quais são as condições precursoras para que este jogo possa chegar a se
estabelecer?
502
Jacques Lacan (1964). El seminário. Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, p.
244.
209
VI.3. Jogos de litoral como precursores do Fort-Da
Jogos de borda, jogos de superfície, de esburacamento, são denominações que
aparecem quando se situam os tempos correlativos aos primórdios do brincar.
503
Se tanto interessa ao bebê a superfície e o buraco é porque o que está em jogo aí,
quanto à constituição do sujeito, é o traçado de uma borda, que, com tais jogos, retoma a
inscrição das zonas erógenas sobre as descontinuidades reais do organismo, produzindo um
corpo que, posteriormente, se lança ao espaço e às suas delimitações simbólicas.
Lacan, no texto "Lituraterra", coloca que é a letra que faz borda entre o gozo e o
saber. Consideramos que o que está em jogo nesses precursores do Fort-Da é a própria
inscrição da letra, que traça o litoral entre um e outro sem jamais esgotar sua
descontinuidade. Jogar com a letra que faz litoral entre o gozo e o saber aí, mais do que
em uma cortante linha de fronteira, se produz um ir e vir que, tal como as ondas na areia,
avançam e recuam permanentemente redesenhando, rearticulando a relação de litoral entre
duas substâncias de diferentes ordens. O que está em jogo no brincar do bebê é um intenso
trabalho de construir litoral. O bebê não tem como armar tal litoral senão com e a partir do
laço com o Outro encarnado.
Para o humano as bordas não estão dadas. Sobre as descontinuidades do real é
preciso que se inscreva uma alternância simbólica, e é sobre tais descontinuidades que se
joga eroticamente o jogo de presença e ausência sobre as bordas do corpo.
504
No início da vida, a partir da instauração de um funcionamento pulsional que tome o
Outro em seu circuito, ou seja, a partir da produção de um Outro-erotismo é estabelecido
um jogo sobre as zonas erógenas em torno dos buracos corporais olhos, boca, narinas,
503
Ver a este respeito: Alfredo Jerusalinsky. La educación es terapéutica? (Parte I), p. 11-16; Ricardo
Rodulfo. O brincar e o significante.
504
Isto é algo que, quando não se inscreve, ou se inscreve de modo anômalo, produz sintomas no
funcionamento das funções corporais, muito frequentemente denominadas como quadros psicossomáticos e
com incidência relevante na clínica com bebês.
210
orelhas, ânus, uretra , zonas de trocas, onde o jogo simbólico de presença e ausência se
introduz sobre a descontinuidade real.
O bebê é erogenamente convocado pelas experiências que circundam essas bordas
em seu próprio corpo, assim como no corpo materno. Ele passa a buscar o olhar, excitar-se
corporalmente com a voz, endereçar as vocalizações à mãe, olhar o buraco por onde a voz
materna sai, sentir em sua pele a expulsão de ar que a acompanha, dirigir sua mão até esse
fascinante buraco em um gesto de quem, ao furungar na boca e nos demais buracos do
rosto materno, implica-se num jogo de tentar capturar com a própria mão o objeto de
satisfação que a pulsão circunda em seu circuito.
505
Trata-se, nesse momento primordial do
erotismo, de um jogo de invasões, expulsões e transbordamentos que tem lugar entre o
bebê e a mãe, inscrevendo as bordas primordiais do gozo do corpo, decidindo as
vicissitudes da parcialidade pulsional.
Vemos como esse jogo sustentado no laço com a mãe, que põe em movimento para o
bebê uma pulsão que circula entre o corpo materno e o seu próprio, torna imprescindível o
Outro no circuito de satisfação, a presença da inscrição materna que, como diz certa
música, mantém sempre teso o arco da promessa.
506
A mãe, durante os cuidados com o bebê, introduz brincadeiras prazerosas que
extrapolam a pura satisfação das necessidades, assim como supõe um brincar por parte do
bebê quando este realiza produções que levam a uma satisfação além da necessidade.
Temos um primeiro tempo do brincar: um brincar que é suposto no bebê por parte da
505
Jacques Lacan (1964). El seminario. Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, p.
185.
506
Momento primordial do erotismo tão claramente situado pela poesia de Caetano Veloso (1991). A tua
presença morena, in: Circulado vivo: A tua presença/ entra pelos sete buracos da minha cabeça/ a tua
presença/ pelos olhos, boca, narinas e orelhas/ a tua presença/ paralisa meu momento em que tudo
começa/a tua presença/ desintegra e atualiza a minha presença/ a tua presença/ envolve meu tronco, meus
braços e minhas pernas/ a tua presença/ é branca, verde, vermelha, azul e amarela/ a tua presença/ é negra,
negra, negra, negra, negra, negra, negra, negra, negra/ a tua presença/ transborda pelas portas e pelas
janelas/ a tua presença/ silencia os automóveis e as motocicletas/ a tua presença/ se espalha no campo
derrubando as cercas/ a tua presença/ é tudo o que se come, é tudo o que se reza/ a tua presença/ coagula o
jorro da noite sangrenta/ a tua presença/ é a coisa mais bonita em toda a natureza/ a tua presença/ mantém
sempre teso o arco da promessa.
211
mãe. Ele fica evidente quando, diante do bebê satisfeito que realiza uma sucção esparsa
ao seio, a mãe afirma "agora está de brincadeira!"
507
e permite brevemente tal produção
em lugar de interrompê-la bruscamente. Ela não achata a pulsão oral sobre a ingestão de
alimento nutritivo; ela a extrapola, brinca de morder as mãozinhas e pezinhos do bebê. Este
é o bebê que depois se oferece à mãe como objeto apetitoso ao desejo materno,
estabelecendo o terceiro tempo do circuito pulsional – de fazer-se comer, fazer-se olhar.
508
Em um segundo tempo este jogo se relança, além das fronteiras do corpo materno e
as do bebê, na relação com o espaço. Assim que o bebê começa a experimentar
deslocamentos espaciais, pelo engatinhar ou caminhar, passa a furungar em todos os
buracos, fendas, perfurações da casa, a deter-se sobre seus cantos, bordas, degraus. Passa a
ter interesse nas relações continente-conteúdo, explorando gavetas, tirando e pondo objetos
em caixas, interessando-se pelo transbordamento de líquidos, tais como o da água do
banho ou copos, na hora das refeições.
Se inicialmente o bebê, ao estar no colo ou ser amamentado, desloca a mão pela
superfície do corpo materno e pela do seu próprio corpo, experimentando a continuidade e
descontinuidade dessa sensação na pele, em um segundo tempo busca produzir este jogo
com a comida, espalhando-a sobre as mãos e sobre a mesa, assim como com água, barro,
tinta ou outras substâncias que eventualmente possam ter-lhe sido oferecidas.
Ainda que tal produção se estenda e diversifique, o fascínio pelas bordas perdura
pelo resto da vida. Basta ir até uma praça ou quintal de escolinha infantil para
encontrarmos as crianças reunidas, sentadas em algum cantinho ou pequeno degrau. Basta
perceber que para gozar as férias costumam se produzir árduos deslocamentos até alguma
507
Silvia Peaguda. Juegos precursores del Fort-Da, p. 35-41.
508
O terceiro tempo do circuito pulsional é descrito por Lacan e desenvolvido por Laznik como valioso
indicador clínico. Jacques Lacan (1964). El seminario. Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del
psicoanálisis, p. 186; Marie-Christine Laznik (1996). Poderíamos pensar numa prevenção da síndrome
autística?
212
borda, entre o céu e a terra, no cume das montanhas, entre a terra e o mar, no litoral.
A extensão do jogo do bebê para outros territórios, que não o corpo materno,
depende da oferta substitutiva que a mãe venha a realizar.
509
Ela oferece um chocalho em
um gesto substitutivo do corpo materno, enquanto objeto de satisfação,
510
para que o bebê
possa suportar sua breve ausência, para que fique entretido, ou seja, para que ele se tenha
entre, se sustente, em lugar de simplesmente experimentar uma queda psíquica na ausência
da mãe. Esse objeto, por ser substitutivo, introduz uma presença sobre o fundo de uma
ausência.
É dentre os objetos oferecidos pela e nessas circunstâncias que se estabelecerá
um objeto transicional – como substitutivo do objeto do desejo que circula entre o bebê e a
mãe e que permite uma metáfora de "este é o outro". Mas a transicionalidade, seja em
torno de um objeto, seja enquanto um fenômeno transicional,
511
se instaura para a
criança se, por sua vez, a mãe toma a criança como transicional para ela e não como a sua
realização fálica definitiva. Somente assim haverá, entre um e outro, espaço para a
circulação de objetos substitutivos. Temos um segundo tempo da instauração dos jogos
precursores do Fort-Da.
Como terceiro tempo, encontramos dois precursores diretos desse jogo. O primeiro
deles é o que podemos chamar de jogo de lançamento de objetos para que o outro
recupere. Freud nos fala dele logo antes do jogo do Fort-Da, e de um modo um tanto
indiferenciado a ele. Conta-nos que seu neto exibia o incômodo hábito de jogar longe de
si, para um canto ou para baixo da cama todos os pequenos objetos que encontrava a seu
509
Podemos considerar aí a importância justamente atribuída por Winnicott à mostração de objeto, ou
apresentação de objeto, como uma das importantes incumbências da função materna. Donald Winnicott
(1960). La relación inicial de una madre con su bebé, p. 34.
510
Silvia Peaguda. Juegos precursores del Fort-Da.
511
que além do objeto transicional a criança pode preferir entoar uma melodia ou roçar um tecido, como
fenômeno transicional, como aponta Donald Winnicott (1971). Realidad y juego, p. 20.
213
alcance, de modo que não costumava ser tarefa fácil juntar seus brinquedos.
512
Ora, ainda que tal jogo seja um precursor direto do Fort-Da, são os outros que
precisam ali recuperar os objetos para o bebê, detalhe que faz toda a diferença. Ou seja, é
imprescindível que inicialmente haja alguém que se encarregue do "trabalho" necessário
para que a criança possa gozar da infância. Quando isto está instaurado na relação com seu
Outro é usual que o bebê de seis meses vocalize ou olhe expectante para a mãe em uma
clara demanda de que ela recupere o objeto que ele deixou cair, do berço, da banheira ou
do cadeirão de comer. Assim como é usual que os pais falem do árduo trabalho de
sustentar a série de perdas e recuperações de objeto, de ausência e presença, considerando-
o, ao mesmo tempo, exaustivo e necessário para o estabelecimento da satisfação e
insatisfação do bebê. Sem esta dimensão inicial não como se estabelecer o laço da
criança com o Outro encarnado, estendendo o arco de seu circuito pulsional e situando-o
em um endereçamento.
Frequentemente chegam para atendimento pequenas crianças com severos problemas
de aquisição da fala, domínio psicomotor, aprendizagem ou hábitos. Muitas vezes, quase à
margem de tais relatos clínicos, fala-se de uma ausência de brincar, em lugar do qual
apareceria a produção de um lançar indiferenciadamente qualquer brinquedo em qualquer
direção sem que a criança busque recuperá-los ou espere que outros o recuperem para ela.
Isto jamais é uma simples coincidência. Encontramos os efeitos de uma não instauração
de um circuito com o Outro no qual tenha se operado o jogo da perda e recuperação do
objeto para a criança.
513
Por isso, torna-se central na clínica considerar como instaurá-lo,
partindo, para isso, da produção que a criança coloca em cena.
É preciso propiciar, no marco clínico, a sustentação da produção de uma série
presença-ausência, através do trabalho de recuperar e reendereçar à criança os fragmentos
512
Sigmund Freud (1920). Além do princípio do prazer, p. 26.
513
Ou seja, se isto não é produzido com os objetos, por parte de um bebê entre os 6 e 12 meses, é porque não
se instalou em relação aos objetos pulsionais.
214
que ela joga ou deixa cair ora colocando-se como destinatário do arremesso inicialmente
errante, ora recuperando o que desinteressada ou distraidamente a criança deixou cair,
permitindo-lhe retomar ou abandonar esse objeto que passamos a sustentar em uma série
para ela – com nosso gesto de recuperação, com a entoação de nossa voz, com nosso olhar.
Outro jogo imediatamente precursor do Fort-Da é o cadê-achou. Nele cobre-se o
rosto do bebê com um paninho e logo se interroga pela ausência, dizendo "cadê?", seguida
do reencontro que é acompanhado por um festivo "achou!".
514
Nele trata-se de introduzir
uma descontinuidade do olhar entre a mãe e o bebê. Brinca-se da produção de uma
ausência e do júbilo experimentado no reencontro, assim como a descontinuidade do
objeto voz entre a interrogação, o silêncio e o festejo pelo reencontro.
Ainda que não costume ser referido ou especificado como diferenciado do Fort-Da,
Freud fala do jogo do cadê-achou no texto "Inibição, sintoma e angústia", afirmando que,
com ele, a e possibilita ao bebê experimentar um anseio desacompanhado de
desespero.
515
Situa-o como central para que o bebê não fique para sempre exposto a uma
angústia primordial, experimentada como uma dor dilacerante na ausência da mãe. Nesse
jogo, o tempo de ausência não pode se prolongar muito, ou o bebê fica efetivamente
angustiado. A presença precisa suceder brevemente a ausência.
Ainda que consideremos o cu-co ou cadê?-achou! um precursor direto do Fort-Da,
ele apresenta três importantes diferenças: em primeiro lugar, precisa ocorrer pela
introdução de uma descontinuidade, uma ausência, introduzida na presença do outro,
diferentemente do Fort-Da, que se desenrola em sua ausência; o jogo de produzir ausência-
presença ocorre efetivamente com o outro e não pelo brincar do bebê com um objeto
substitutivo; e, por último, é o outro que coloca as palavras que marcam a descontinuidade,
514
Este jogo, em algumas regiões, é também denominado de cu-co, fazendo referência ao passarinho que
aparece e desaparece no relógio acompanhado do som que anuncia a passagem das horas. Ver, a este
respeito, recorte clínico I, apresentado na passagem I.6. "Cu-co! cadê Santiago?"
515
Sigmund Freud (1926). Inibições, sintomas e ansiedade, p. 195.
215
que nomeia a oposição significante entre o cadê e o achou.
Há um tempo em que o bebê precisa radicalmente desse Outro encarnado para
sustentar-se psiquicamente. A angústia dos oito meses
516
é uma angústia primordial própria
da constituição em que, ao não se encontrar com a mãe que sustenta seu reconhecimento, o
bebê experimenta um estranhamento de si mesmo que coloca em questão seu próprio ser.
Vê-se então assaltado por uma interrogação radical: "essa não é a mamãe. E eu?".
Mais adiante, em um tempo posterior ao Fort-Da, a criança brincará de se esconder,
ou seja, brincará de produzir falta no Outro. É frequente que ela se esconda quando a mãe
retorna de um breve período de ausência, por exemplo, do trabalho. A criança, que sentiu a
sua falta, agora goza de fazer falta ao Outro. Mal pode conter o riso em seu esconderijo
enquanto a mãe a procura. Esta cena resulta bastante insuportável para a criança pequena,
que não aguenta ficar escondida, na medida em que estar ausente para o Outro que a
sustenta psiquicamente equivale a estar ausente de si mesma.
O bebê que brinca de cadê-achou é um bebê cujo erotismo está enlaçado ao Outro.
O olhar do Outro encarnado para ele conta. Tanto é que tal produção convive com a de
fazer gracinhas para fazer-se olhar tais como bater palminhas, piscar, dar tchau. Tais
gracinhas têm o valor de recursos articulados a ideais sociais que permitem ao bebê fazer-
se interessante para esse Outro encarnado cujo olhar, cuja voz, cujo endereçamento
pulsional instauram o que conta.
Este e todos os jogos precursores do Fort-Da são sustentados no laço mãe-bebê.
Como continuar uma série após uma separação? Algo vem depois da ausência? É a
indagação que neles se articula. Se não ausência, se não separação, tampouco
como produzir inscrição, não há como armar série.
A criança poderá chegar a produzir este marco do Fort-Da se, em um tempo
516
René Spitz (1965). El primer año de vida del niño, p. 118-124.
216
anterior, se encontrar com um agente da função materna que acolha e se implique no
cálculo com o gozo da criança. É preciso um Outro que acolha a demanda do pequeno
sujeito. Es bem que tem que ser guiado pela lei simbólica, mas tem que encontrar o
modo de satisfazê-lo sem colidir com a lei.
517
Nos jogos de litoral, enquanto constituintes
do sujeito, encontramos justamente essa característica um jogo e um imenso trabalho de
produzir litoral ao gozo do bebê que é ofertado e sustentado pela mãe, mas, uma vez que o
bebê nele engaja o gozo de seu corpo, a e prontamente lhe atribui a autoria e o saber
sobre tal jogo.
Comparece a articulação, a borda entre gozo e saber que vai se inscrevendo na
medida em que a mãe e o bebê, nesses jogos de litoral, circulam incessantemente pela
posição de objeto e sujeito. Ora detendo um saber, ora engajando seu corpo no gozo
propiciado pelo outro. Isto é central para a constituição e para que posteriormente possa
devir o jogo do Fort-Da.
No momento seguinte, no tempo do Fort-Da, a criança irá efetivamente brincar de
revisitar seu laço com a mãe, enquanto Outro encarnado. Brincará de reversão de lugares
com ele, elaborando, por meio de cenas substitutivas com brinquedos, as passagens da
passividade à atividade irá fazê-lo aparecer e desaparecer, cuidar dele e maltratá-lo, em
uma revolta inequívoca contra a passividade.
518
O brincar de bonecas das meninas nesse
momento representa menos uma passagem à posição feminina por identificação à mãe, do
que uma posição ativa, revertendo os lugares, em relação à mãe.
519
517
Alfredo Jerusalinsky. Algumas questões para elaborar a teoria do brincar.
518
Sigmund Freud (1931). Sexualidade feminina, p. 271.
519
Idem, ibidem.
217
VI.4. Jogos de temporalidade intersubjetiva:
no litoral entre a expectativa e a precipitação
Nos jogos precursores do Fort-Da e no Fort-Da propriamente dito, em geral coloca-
se em relevo o estabelecimento de uma borda relativa à dimensão espacial (no território do
corpo, na geografia da casa). Este é um aspecto central no que diz respeito ao
estabelecimento de um litoral entre gozo e saber. No entanto, outro aspecto no qual este
litoral também opera: a dimensão temporal.
Todo o intenso trabalho materno do bordejamento do corpo do bebê que se instaura
em relação à superfície e aos seus buracos, erotizando e delimitando espacialmente zonas
nesse corpo, também inscreve um ritmo, uma temporalidade no funcionamento corporal.
520
Espaço e tempo, ambos estão implicados na inscrição do litoral produzido nos jogos que
permeiam os cuidados da mãe com o bebê.
Se o Fort-Da joga com a borda entre o "aqui e o lá", em termos espaciais, o "um,
dois, três eeee.. já!" joga com a fina lâmina que separa (entre o eeee arrastado e o ) a
espera da precipitação no ato, a expectativa da realização.
Os jogos de expectativa e surpresa, de espera e precipitação se colocam desde muito
cedo no laço mãe-bebê. Exemplo disso é a mãe que, movendo a mão em direção ao bebê,
anuncia: olha a aranha descendo, vem chegando, vem chegando, eeeee.... chegou!
fazendo cócegas no bebê.
A borda temporal que esse jogo tece não diz respeito a um tempo do relógio, mas a
um tempo de espera e precipitação, de expectativa e realização. O bebê engajado na
temporalidade intersubjetiva que permeia esse jogo ri mesmo antes que a aranha chegue a
fazer as cócegas em seu corpo. Ele já sabe, ele antecipa o gozo que está por vir.
520
Jean Bergès (1988a). O corpo e o olhar do Outro, p. 54; Julieta Jerusalinsky. Enquanto o futuro não vem –
a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês, p. 157.
218
Os jogos de expectativa e precipitação se colocam em cena, por exemplo, nas
cantigas e parlendas infantis. Se inicialmente a mãe joga com o ritmo da música, o que
produz efeito no bebê engajado em tal temporalidade,
521
em um segundo momento ela
oferece cantigas e parlendas nas quais produz uma espera para que a fala ou gesto da
pequena criança possa se engajar na cantiga. A mãe e a pequena criança mantêm a
expectativa até o momento certeiro em que a fala da criança precipita-se nessa esperada
realização.
522
Se o jogo de esconde-esconde se articula em torno da borda espacial que coloca em
jogo a presença-ausência da voz, do olhar, ou de outra parcialidade pulsional engajada em
um circuito com o Outro, o jogo de pega-pega, por sua vez, coloca em relevo a dimensão
temporal de pressa na precipitação do ato ou de espera.
jogos em que é preciso produzir um lançamento do objeto (da bola, por
exemplo), ou em que é preciso lançar o próprio corpo em uma corrida no momento em que
se é convocado a precipitar-se no ""; jogos nos quais é preciso virar estátua quando é
dada a ordem, ou sentar-se na cadeira quando a música para. Todas estas são versões que
vão tornando mais complexos, mediando com mais regras, estes jogos de expectativa e
precipitação no ato.
523
Esta dimensão temporal permeia, desde os primórdios, os cuidados dirigidos ao
bebê. Em tais cuidados, a mãe espera as realizações do bebê com uma certeza antecipada,
mas, quando ele se precipita na realização do ato esperado por exemplo, ao caminhar ou
ao falar as primeiras palavras –, isso toma a todos de surpresa. Ora, o que surpreenderia,
sendo que é um ato esperado? Na medida em que a criança engaja seu gozo em tal
521
Ângela Vorcaro. O organismo e a linguagem maternante: hipótese de trabalho sobre as condições do
advento da fala e seus sintomas. Ver também capítulo "Prosódia e enunciação na clínica com bebês", desta
tese.
522
Veja-se, por exemplo, a cantiga popular Atirei um pau no gato, em que toda uma história é contada até
que o gato berra, e a pequena criança pode dizer o esperado: miau! Ou em Escravos de , em que as
estrofes: tira-bota deixa ficar coincidem com um gesto que é demandado.
523
Julieta Jerusalinsky. Enquanto o futuro não vem a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês, p.
296.
219
produção, os pais passam a atribuir a ela o saber sobre isso, passam, então, da posição dos
que sustentavam uma certeza antecipada para a de surpreendidos diante da realização de
um suposto sujeito ao qual atribuem a autoria do ato.
524
Opera-se aí a inscrição e a
ultrapassagem da margem em que a criança, antes implicada no gozo do brincar, passa a
ser também detentora de um saber.
Esse jogo temporal também é retomado mais adiante pela criança quando brinca de,
propositalmente, tomar os pais de surpresa, de assustá-los dizendo "bu!"
Os jogos de mágica, que tanto fascinam crianças e adultos, colocam em cena os
deslocamentos temporais e espaciais nos quais o objeto nunca está no espaço e tempo onde
se espera, ou aparece no momento ou lugar menos esperado.
Que o bebê antecipe no jogo com a mãe o que está por vir e que a mãe se
surpreenda diante das realizações do filho, implicam um jogo de inscrição de litoral entre
gozo e saber sustentado nesse laço em torno da dimensão temporal. Se a mãe inicialmente
detinha um saber, por uma certeza antecipada, na medida em que o bebê engaja seu gozo
no jogo, a mãe se surpreende, passando para o bebê a autoria sobre tal produção, supondo
do lado dele o saber.
Esses jogos de temporalidade intersubjetiva frequentemente primam por sua
ausência em crianças em grave padecimento psíquico. Encontramos crianças que não
antecipam o gozo que está por vir diante de alguém que sustentaria o arco da promessa de
realização.
525
Por outro lado, frequentemente encontramos, e não por coincidência, pais
que padecem e temem por atrasos das produções do filho e clamam por sua adequação
cronológica às pautas de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que não costumam tomar
como realizações de um sujeito tais produções. Em lugar de experimentarem a surpresa
com a criança, ao atribuir-lhe autoria sobre o seu ato, permanecem no espanto de um
524
Idem, p. 160-166.
525
Ver acima nota 506 acerca da música A tua presença morena.
220
suposto sem-sentido. O gozo transborda, mas não se articula sua borda em relação à
produção de um saber.
VI.5. A mãe que borda a letra ao corpo:
loucura e sedução como necessárias à função materna
A mãe tem o intenso trabalho de produzir uma trama que não é fechada em torno do
corpo do bebê. Faz com ele um intenso trabalho de bordado, de bordejar os buracos
corporais. Sobre as descontinuidades reais do corpo ela borda um mapa erógeno, redesenha
suas bordas, fazendo inscrição em torno de cada uma de um litoral de gozo. Assim, as
zonas corporais são eroticamente delimitadas, instaurando uma dimensão espacial do
corpo. Mas ela também estabelece no laço com o bebê, nos cuidados e jogos que implicam
cada zona erógena, um funcionamento ritmado, inscrevendo-os em uma dimensão
temporal, tão relevante para o prazer quanto a dimensão espacial.
Mas, para que tal inscrição materna opere, para que ela se produza, é preciso que
acolha o gozo do bebê ao mesmo tempo em que lhe faz litoral a partir de um saber. Assim,
quando a mãe fala ao bebê, quando lhe endereça palavras que quer que o bebê receba, o faz
utilizando uma forma de falar com ele particularmente convocante (articulando o gozo da
voz, como objeto pulsional, ao chamamento do comparecimento do sujeito na
linguagem).
526
O bebê não se engaja se o que está em jogo não for, por assim dizer,
minimamente convidativo, minimamente sedutor. Para tanto, a mãe se ocupa
cuidadosamente de propiciar transitivamente gozo a seu bebê de modo que este gozo, em
lugar de ficar achatado sobre uma zona corporal, torne imprescindível o Outro em seu
526
Ver a este respeito o capítulo "Prosódia e enunciação na clínica com bebês".
221
circuito. A e, de fato, perverte, corrompe a natureza, superpondo ao gozo do corpo do
bebê, um gozo que mascaradamente, capciosamente, passa a ficar atrelado ao saber
materno.
527
Surge assim um pequeno perverso polimorfo.
Uma vez engajado, o gozo do corpo faz litoral com o saber. A dor sentida na carne
da pequena criança que cai requer o "ai!" que a mãe transitivamente coloca, emprestando
em cena seu próprio saber, do qual a criança se apropria para que a dor possa ser sua, para
que o corpo possa ser seu – alienado e separado do corpo materno.
528
Nos cuidados que uma mãe dirige ao bebê, nos jogos que coloca em cena com ele,
já está presente a estrutura da linguagem, a alternância presença-ausência,
529
a alteridade, o
estabelecimento da demanda e a suposição do bebê como sujeito. O bebê é suposto pela
mãe como alguém que sabe e é por isso que ela pode outorgar um estatuto de fala às
produções vocálicas e corporais do bebê, tomando-as na linguagem.
É preciso que ocorra uma ilusão antecipadora desde a função materna, que a mãe
atribua ao bebê um determinado lugar simbólico, o de um sujeito que, para ela,
supostamente sabe de seu desejo apesar de toda a insuficiência real de seu corpo –, para
que o bebê possa se constituir enquanto tal. Winnicott denominava isso de loucura
necessária das mães. É uma questão interessante pensarmos o quanto a nossa intervenção
não implica certa loucura necessária do clínico,
530
na medida em que intervimos supondo
um sujeito uma vez que, para que a criança venha constituir-se enquanto tal é condição que
seja inicialmente suposta como tributária de um saber.
Então, se a sedução é condição necessária para a função materna, ela não se detém
527
O sentido de seduzir, para além de perverter, corromper, aponta a capacidade ou processo de atrair alguém
capciosamente ou através do estímulo à sua esperança ou desejo. In: Dicionário eletrônico Houaiss.
528
Ver a este respeito o capítulo "A maternidade além do gozo fálico".
529
O que a criança demanda à sua mãe com sua demanda é algo destinado, para ele a estruturar a relação
presença-ausência que o jogo original do Fort-Da estrutura e que é um primeiro exercício de mestria.
Jacques Lacan (1962-1963). O seminário. Livro 10. A angústia, p. 76. Optamos pela livre tradução a partir de
edição eletrônica estabelecida para circulação interna da Escuela Freudiana de Buenos Aires.
530
Julieta Jerusalinsky. Enquanto o futuro não vem a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês, p.
132.
222
em tomar o bebê como um objeto para si, ela o faz por meio da loucura necessária,
tributária de um saber. Entre a loucura necessária que antecipa a suposição de um sujeito e
a sedução que convoca o bebê a engajar o seu gozo em uma matriz simbolizante; entre a
prevenção das possíveis dificuldades e a surpresa com a criação do bebê é que pivoteia a
função materna sustentando, para o bebê, a inscrição da letra enquanto litoral entre gozo e
saber.
VI.6. A criação da criança e o laço mãe-bebê
"A criação da criança" é uma frase que se presta a um equívoco entre genitivo
subjetivo e genitivo objetivo: o que estaria em jogo seria o modo como a criança é criada
ou o seu próprio ato criativo?
Este equívoco é justamente o que opera nos jogos constituintes do sujeito nos quais
tanto a mãe quanto a criança se intercalam no lugar de objeto de gozo e sujeito de um
saber. Desse modo, em um tempo primordial da constituição psíquica, as duas posições – a
de criador e a de criatura – estão em cena de modo absolutamente entrelaçado: é pelo modo
como a criança é nomeada, alimentada, cuidada, que se lugar, se atribui
antecipatoriamente a possibilidade de seu próprio ato criativo; ao mesmo tempo em que
seu corpo é receptáculo
531
de inscrições primordiais, é porque se considera que a criança
teria supostamente a capacidade de inventar, de realizar algo nunca antes realizado, que se
sustentam de um modo peculiar os cuidados a ela dirigidos.
Mais precisamente: o Outro convoca o gozo da criança, mas, uma vez que esta se
engaja, é preciso que o Outro suponha, atribua à criança um saber sobre sua produção, para
531
Jean Bergès (1988a). O corpo e o olhar do Outro, p. 51-65.
223
que a própria autoria da criança possa vir a se estabelecer. Por isso, consideramos central
sustentar a dimensão equívoca "da criação da criança" para circunscrever o que se opera
nos jogos constituintes do sujeito.
Quando se fala de clínica com crianças, frequentemente é evocado o termo infância,
como momento da vida relativa ao infans enquanto aquele que ainda não fala. Que a
criança não circula pela linguagem com a mesma desenvoltura de um adulto é certo. No
entanto, é na linguagem que ela tem um lugar demarcado, a partir do qual precisará
realizar a travessia do ser falado a devir enquanto falasser.
Mas o que fazer enquanto isso? Ou melhor, o que fazer para que tal passagem do
ser falado ao falasser possa vir a se produzir? O que fazemos na clínica com aqueles que
ainda não falam? Ora, brincamos. Não é que brincamos para simplesmente deixar passar o
tempo da infância, preenchendo-o com uma atividade recreativa qualquer. Propomos e
levamos a rio esse brincar da criança. Essa é a inventiva saída que, enquanto analistas de
crianças, produzimos. Em lugar de insistir sobre a insuficiência da fala do infante, fazemos
o que se faz de melhor em nossa cultura diante daquilo que a palavra não representou:
sustentamos a possibilidade de uma criação em transferência (que não é do paciente,
nem do analista). Criamos em análise.
Criança (do latim creantia) é ao mesmo tempo ser que se encontra na infância e ato
e efeito de cuidar, como sinônimo de criação.
532
Criar (do latim creare) diz de produzir
uma coisa que até então não existia. Engendrar, inventar, fundar, fazer nascer, fazer
crescer, nomear, alimentar e cuidar.
Brincar assume na clínica a dimensão de sustentar a produção de atos de criação da
criança diante de uma palavra que, por sua condição de infante, ainda se revela
insuficiente. Dar lugar ao brincar na clínica com a criança implica a possibilidade de
532
Fontes consultadas: Dicionário Houaiss da língua portuguesa; Dicionário Larousse ilustrado; Dicionário
escolar Latino Português.
224
sustentar a condição para que ela possa vir a ser autora de atos criativos, sustentado seu
lugar de sujeito ali onde a fala ainda se revela insuficiente, mas que podem ser exercidos
na esfera protegida do brincar. Por isso, levar a sério o brincar implica dar valor de ato de
um sujeito às produções da criança, reconhecendo-a enquanto tal para que então ela possa,
por meio desse brincar, vir a desdobrar um saber-fazer.
VI.7. Diabo, diabão, dia bão! recorte clínico V
"Agora estou com medo de uma palavra!", diz Estela, no começo de uma sessão.
Quando lhe pergunto de qual palavra, ela afirma que não pode dizê-la, pois a mãe lhe
disse que "poderia atrair coisas ruins". Quando lhe digo que se não me contar não poderei
ajudá-la e que ficar com medo certamente vai ser muito ruim, decide soletrá-la, na tentativa
de, ao romper a sonoridade no ato de sua pronúncia, evitar seus supostos efeitos maléficos.
"D-I-A-B-O" diz, letra por letra.
Pergunto como foi que isso começou. Ela me conta que estava brincando de cantar
em inglês (brincadeira que costuma fazer seguindo a melodia e reproduzindo sequências de
fonemas saxões que, no entanto, geralmente não formam palavra alguma) quando a mãe
lhe perguntou se ela sabia o que a música dizia. Ela não sabia. A mãe lhe conta que a
música falava do diabo e diz seu nome em inglês. Tratava-se da música Simpathy for the
devil.
533
A partir de então ela descobre que Cruela Devil, vilã do filme e conto infantil
Cento e um dálmatas, também faz referencia ao diabo.
Diz, então, que quer brincar com argila. Brincadeira que costuma solicitar nas
sessões, enquanto conversamos.
533
Rolling Stones (1968). Album Beggars Banquet, gravadora Decca. Sua Letra diz: Pleaset to meet you,
hope you guess my name. Ah, hats puzzling you is the nature of my game. Em português: Espero que você
adivinhe meu nome. O que incomoda você é a natureza de meu jogo.
225
Há algumas sessões havia feito em argila a escultura uma menina dormindo sozinha
na cama (composta de menina com ursinho, cama e mesa de cabeceira com abajur). A
escultura exigiu bastante trabalho e mais de uma sessão entre confecção, pintura e
secagem, após o que pediu para dá-la de presente para o dia das mães, fato a que assenti,
por ser um ato importante de endereçamento à mãe.
De fato, isso fez a mãe solicitar algumas sessões para falar do assunto: Estela
dormia na cama com a mãe, para contento das duas diante do consentimento contrariado
do pai. Questão importante na história dessa menina de sete anos padecendo de
importantes sintomas fóbicos que a impedem de realizar desde passeios escolares até
qualquer ato que implicasse o mais mínimo risco corporal (desde andar de patins até pular
do sofá).
A sessão em que me conta de seu "medo da palavra diabo" cai justamente no dia
dos namorados. Enquanto começamos a brincar com argila, conta-me que o pai não iria
comprar presente para a mãe porque, em lugar de trocar presentes, eles combinaram de sair
para jantar. Diz então que, como o pai não ia mesmo dar presente, ela poderia fazer um
presente para a mãe. Tal ato eu não consinto, situando que o presente que ela poderia dar
havia sido dado: o do dia das mães. Aponto ainda que, se a mãe e o pai haviam combinado
assim o dia dos namorados, isso não era problema dela.
Ela, que é uma menina bastante inteligente, logo responde, sorrindo: "Tá bom, eu
entendi!", e decide, dessa vez, fazer um boneco do Cebolinha.
534
Pede que eu também faça
um outro personagem, que, atribui, eu deveria escolher. Começamos a modelar e ela
percebe que eu estou fazendo um diabo e ri. Logo diz que é um boneco grande.
–– Então é um diabão!, lhe digo. E depois pergunto:
534
Personagem da história de quadrinhos para crianças Turma da Mônica, de Maurício de Souza, cuja
principal característica é falar errado o que não me parece uma escolha casual diante do temor que lhe
produziu que a mãe soubesse o que ela dizia sem saber.
226
–– E se fosse o Chico Bento que dissesse isso? Dia bão, sô!
535
Ela gargalha com a brincadeira e a repete algumas vezes. Depois me diz:
–– Lá vem você com a palavra esperta.
–– Palavra esperta?, interrogo, um tanto surpresa com a formulação.
–– É. Que parece que diz uma coisa, mas diz outra... Acho que agora eu perdi o
medo dessa palavra, afirma.
Tal recorte clínico nos permite pensar o quanto brincar é decifrar, não para positivar
um conhecimento sobre o sintoma, desvendando um sentido supostamente oculto, mas
para permitir ao sujeito operar com a cifra.
O extremo dessa questão se coloca quando a criança passa a brincar com a língua,
chegando aos jogos de palavras. Durante bastante tempo ela é presa da língua, não
consegue apropriar-se de um saber que lhe permita achar a graça, recuperar o gozo, da
piada que ela mesma conta fazendo outro rir. Ou, como aponta Freud, ela é capaz de
produzir ditos ingênuos guiando-se pela mesma lógica da produção de um chiste, por
exemplo, a homofonia, mas sem ter tal intenção.
536
É o outro que sabe e ela fica capturada
em um gozo que produz ao contar a piada, mas em relação ao qual o pode fazer-se
sujeito de um saber. Daí que seja um salto quando pode tomar a palavra como objeto de
jogo.
O jogo de palavras certamente é o jogo mais fino, sutil a que se pode chegar. Ao
brincar com a letra, tergiversando a língua por meio de um saber, se produz um mais-de-
gozar que leva a rir através da linguagem, com o corpo. Como uma criança de três anos
que ria ao dizer que "a locadora (de DVDs) era um lugar cheio de loucos", ou a de cinco
que, diante da insistência da mãe de que fizesse compressas para baixar a febre, retrucou:
"compressa sem pressa".
535
Forma como, supostamente, esse personagem, que é "caipira" (tendo um sotaque interiorano específico),
diria: "Que dia bom!"
536
Sigmund Freud (1905). Os chistes e sua relação com o inconsciente, p. 208.
227
Se a letra inscreve litoral entre gozo e saber, o chiste, o jogo com a língua, ao tomar
a palavra ao da letra e, portanto, servindo-se da linguagem por meio de um saber,
permite um ganho de gozo, obtido ao rir.
VI.8. Ico, ico, ico, o cavalo de Frederico! Recorte clínico VI
Gostaria de trazer uma última vinheta clínica que não diz respeito ao tratamento de
um bebê, mas do de um menino de quatro anos que apresenta sérias dificuldades. Seu
tratamento, portanto, implica trilhar os jogos constituintes do sujeito.
537
Trago-o justamente porque certos jogos precursores do Fort-Da que, quando corre
tudo bem com uma criança, podem dar a impressão de serem espontâneos, na medida em
que são prontamente encadeados no laço com a mãe, na clínica revelam todo o árduo
trabalho que se faz necessário para que cheguem a se instaurar.
Frederico chega com diagnóstico de autismo. Houve todo um trabalho com os pais
situando a diferença entre "ser" e "estar" autista, no sentido de apostar não na pura
repetição e perpetuação de seus sintomas, dando seu estado como definitivo, mas de uma
possível articulação e deslocamento a partir dos mesmos.
Seu tratamento psicanalítico anterior foi interrompido devido à mudança de cidade
da família. Ao fazer a passagem do caso, psicanalista que o atendia anteriormente relata o
jogo estabelecido em sessões: ele corria e ela o pegava dizendo "peguei!". Ele passou, em
alguns momentos, a deixar escapar um "ei!". Isto ocorreu ao longo de um ano do primeiro
tratamento o que não foi pouca coisa, considerando-se o quadro de absoluto mutismo
desse menino. Ele não só não emitia palavras, mas qualquer produção sonora modulada em
537
Contou com a parceria de um trabalho em equipe com fonoaudióloga, acompanhante terapêutico e equipe
escolar.
228
prosódia, a não ser alguns poucos gritos estridentes que não discriminavam entre a
excitação de prazer ou de desprazer o que, clinicamente, chegou a despertar uma
interrogação acerca de alguma patologia específica de processamento de linguagem, mas
que, desde o ponto de vista do real orgânico, não apresentou nenhum impeditivo que tenha
sido detectado em todos os exames possíveis realizados.
Tomo então o menino e seu jogo primordial. Ele corre e também dá alguns gritos que
começam a me soar próximos ao relinchar de um cavalo. Começo a produzir o mais
próximo que consigo de um relinchar e a acompanhar seus passos por um verso: "Ico, ico,
ico, ico, o cavalo de Frederico!", percebendo, ao fazer tal proposta, que a onomatopéia do
galope coincidia com a terminação de seu nome. No jogo, o ritmo do verso acompanha o
ritmo de seus passos que, muitas vezes, também passo a acompanhar com o barulho de
galope de meus próprios pés ou com um estalo da língua (como costuma se fazer para
imitar o trote dos cavalos). Começo um tempo depois que ele começa, deixando um tempo
para que ele estabeleça uma espécie de convite à brincadeira. Paro logo que ele para. São
sessões intensas, nas quais o ritmo e o tempo são decisivos. Ele entra no jogo e começa a
modular seu grito como um relinchado e a ritmar seus passos como um galope, lançando-
me fugazes olhadelas.
A mãe, presenciando o jogo, conta que Frederico gostava muito, desde pequeno, de
um filme chamado Spirit desenho animado sobre um cavalo selvagem que resistia a ser
domado pelo homem branco e que faz amizade com um índio. Conta-me que ele assistia ao
filme em uma época que ela esteve muito ausente, ocupando-se da outra filha. Assim a
cena ganha um sentido, articula-se para a mãe: o saber de um suposto sujeito e não mais o
estranhamento da doença.
"Vou te pegar!", dizia-lhe quando ele passava perto com um sorriso no rosto, como
que se oferecendo para ser pego. "Eu te peguei, cavalinho, eu te peguei, menininho!", eu
229
lhe dizia, fazendo-lhe cócegas. Ele ria, deixando ocasionalmente escapar um "ei!" e
também me lançava olhares ocasionais durante a brincadeira.
Pouco a pouco, na cena clínica, foi estabelecendo uma série de palavras: tais como
"coca", para referir-se a um caminhão que tinha escrito o nome do refrigerante que, quando
ele lançava, eu recuperava para ele. Começamos, assim, a realizar uma brincadeira de jogar
um para o outro que durava uns dois lances. Nessa cena eu falava nos momentos de
descontinuidade: "um, dois, três e... já!", eu lhe dizia, ao lançar o caminhão; "Pegouuuu!"
quando ele o pegava; "Peguei!", quando eu o fazia; e "Opa! Caiu!", quando ele,
desinteressando-se em meio ao percurso, deixava o caminhão cair. Então eu anunciava:
"Vou pegar... e... peguei!", o que, por vezes, fazia com que ele me olhasse e,
eventualmente, retomasse a breve serie produzida. Ofereci, assim, um jogo de recuperação
de objeto que, posteriormente, deu lugar, do lado dele, a um lançamento endereçado.
Que uma criança não olhe, não fale, geralmente leva quem está com ela a falar em
excesso como modo de procurar recobrir a angústia que a falta de encadeamento de sua
produção e a falta de endereçamento produz aos outros. Nos jogos aqui situados trata-se de
colocar a voz e sua modulação, articulada como palavra ou como onomatopéia, no
momento em que realmente pode vir a interessar à criança: no instante da descontinuidade
da ação que a criança está a fazer ou observar, como modo de convocá-la a se engajar, a
ligar o afeto que a atinge em seu corpo, ao jogo de uma série que procuramos sustentar
para ela e da qual a situamos ou nos situamos como destinatários.
Mais do que uma avalanche de palavras torna-se aí necessário o: Opa!, Caiu...
peguei!, cadê...achou, e.... já!, Epa lelê!, Oooô!, essas breves palavras, esses significantes,
essa alíngua que marca os pontos de descontinuidade que podem afetar a criança na
medida em que haja um Outro encarnado que os transitive para ela.
Certo dia ele trouxe um ônibus que a mãe lhe comprou na padaria. Quando abro a
230
porta do consultório, ele estava inconsolável e aos gritos na sala de espera porque a porta
do ônibus havia caído. Todos desesperados, passamos a tentar inutilmente recolocar a
porta. Nisso a mãe se dirigiu à porta do consultório decidida a comprar outro ônibus na
padaria, ao que eu disse claramente que não, afirmando: "Chega! A porta caiu, não tem
conserto, agora tem um buraco, vamos brincar com ele", então ele, além de chorar, passou
a dizer: "Queeeeé! Queeeeé!"
E eu lhe dizia: "É, caiu! Você quer, mas caiu", consolando-o, mas sem procurar
evitar o inevitável. Fomos até a sala e ele se interessou pela tinta. Eu então desenhei o
ônibus para ele contando a história da porta que caiu. Depois a mãe entrou e contei para
ela. Ele ouvia e ria.
Parece um livro de história que vocês inventaram. E eu que ia comprar outro,
disse a mãe.
É, mas ia ser OUTRO ônibus, com este que estragou para inventar uma
história que agora podem contar também para o papai, aponto.
Na sessão seguinte ele veio com um bonequinho do homem-aranha dentro do ônibus:
Foi o papai que colocou quando contamos a história. Ele brincou com o ônibus o
fim de semana inteiro, disse a mãe.
Passamos a brincar de fazer a borda de vários objetos, desenhando com lápis. Ele
demandava essa brincadeira pegando a minha mão e colocando o objeto a ser desenhado
sobre o papel. Depois retirávamos o objeto e, dando-me a tesoura, dizia, muitas vezes, "co"
de cortar. Depois nos olhamos através do buraco que o objeto recortado havia deixado no
papel. Pedia-me "co", para colorir, e "co", para colar na porta de entrada do consultório
justo ponto de corte entre dentro e fora, ponto de entrada e saída na soleira da qual
passou a se despedir de mim quando eu lhe dizia "tchau", colocando-me dentro da sala e
fechando a porta.
231
Passou a controlar esfíncteres pedindo para fazer "cocô!". Começou a dizer algo
parecido com sim e com não, acompanhando tais significantes com claros gestos e
prosódia de agrado ou desagrado. Nas sessões, em alguns momentos, passou a sair da sala
para buscar a mãe dizendo "ma, ma, ma".
Certo dia a mãe chegou contando que Frederico passou a chorar quando alguém saía,
principalmente quando o pai ia trabalhar, dizendo junto à porta: "(p)bai, qué!"
Isso nos mostra todo o delicado, detalhista e meticuloso trabalho de bordado, de
estabelecimento de bordas, em torno de quedas e recuperações de pequenos objetos que é
preciso sustentar, pôr em jogo, com o bebê. Primeiro, para que haja Outro encarnado que
conte para ele, cuja presença e ausência façam registro, na medida em que ele também seja
convocado, levado em conta por esse Outro, sustentado em uma série. Colocam-se assim
em cena os jogos constituintes do sujeito sem os quais não têm como advir o brincar de
Fort-Da.
A história continua, mas interrompo o relato aqui, justamente para apontar o intenso
trabalho requerido para chegar a possibilitar aquilo que, na cena do Fort-Da de Ernest
descrita por Freud, constitui ponto de partida.
Ico, coca, cai, cola, cocô, qué – mais adiante o quê que é? Tênues deslocamentos
significantes produzidos a partir dos jogos constituintes do sujeito que, ao operarem sobre
o detalhe, sobre os cortes, os pontos de descontinuidade que afetam o corpo e que o fino
bordado da linguagem, ao estender seu fio, vão tecendo em torno do gozo do corpo, vão
permitindo à criança um saber fazer, vão permitindo a inscrição de um litoral.
232
VI.9. De novo! Repetição e criação com a letra no brincar
Afirmar que não se deve cobrar o valor de um ato ao brincar da criança, justamente
para não romper a esfera de proteção no qual se desenrola, não equivale a dizer que ele seja
um ato inconsequente para a constituição psíquica. Como nos lembra Freud, a criança leva
muito a sério o brincar, emprega nele grande quantidade de afeto. O oposto do brincar
não é a seriedade, mas a realidade efetiva
538
Em sua constituição psíquica é sim um ato
decisivo, podendo situar um marco simbólico na vida de um paciente antes e depois do
qual nada será igual.
Isto aponta o quanto a seriedade do brincar difere claramente da realidade para a
criança, mas diz respeito a um real que a implica em sua economia de gozo. Brincar tem
um caráter necessário quanto à estrutura do sujeito na infância por lhe permitir uma
articulação entre real, simbólico e imaginário, sendo fundamental para a sua economia de
gozo e para a produção de um saber-fazer que surte efeitos constituintes para o sujeito na
infância.
"De novo!", "mais um!" e "outra vez!" nas voltas e reviravoltas do brincar insiste a
repetição, mas também se lugar à articulação de uma diferença (a algo de novo) em que
é produzido um retraçado desse litoral entre gozo e saber. Nesse retraçar não se eliminam
as inscrições anteriores, pelo contrário, são tecidos novos pontos de amarra nessa borda,
novos arremates, novos ancoradouros nesse litoral que coexistem com os anteriores.
Afinal, cada vez que se relança o um do "mais um!", que insiste na brincadeira, se procura
refazer e estender o caminho a partir de uma retomada das origens.
Seja nos jogos constituintes do sujeito sustentados no laço mãe-bebê, no Fort-Da, no
538
Sigmund Freud (1908). Escritores criativos e devaneio, p. 149. Optamos, no entanto pela livre tradução a
partir da edição em espanhol, dado que em português utiliza-se o termo real em lugar de realidade.
233
faz-de-conta, nos jogos de regras, nos jogos de palavras, relança-se para a criança a
inscrição da letra no litoral entre gozo e saber. Ali retoma-se a letra transmitida como
elemento de criação e não só de repetição "do mesmo" que produz padecimento.
Lembramos, a este respeito, a história de Chapeuzinho Amarelo,
539
essa menina
amarelada de medo, tinha medo de tudo aquela chapeuzinho (...) não brincava mais de
nada, nem de amarelinha.
540
Até que um dia, de tanto pensar no lobo, de tanto sonhar com
o lobo, encontrou o lobo. E, de tanto que ele disse "eu sou o lobo, lo-bo, lo-bo, lo-bo" para
Chapeuzinho, de repente ele virou bo-lo de lo-bo. Um bolo que Chapeuzinho Amarelo nem
quis comer, porque ela gostava mesmo era de bolo de chocolate. Assim, Chapeuzinho
deixa de ser amarela de medo porque passa a amar elos, a armar elos, a saber-fazer, a
criar.
Nesta passagem aberta pelo brincar, a criança, em lugar de ficar capturada no
incessante movimento erótico de ser devorada e devorar, tão bem retratados pela história
infantil de Chapeuzinho Vermelho, pode inventar. O Outro encarnado não sabe tudo,
541
pois a criança pode, diante da falta, do irremediavelmente insabido, pode produzir certo
ineditismo. Não à toa, Freud apontou o brincar das crianças como uma grande realização
cultural.
542
Mesmo a criança não sendo um artista, no sentido de que suas produções não têm o
estatuto de um sinthoma,
543
pois, diferentemente do adulto, seu gozo não se acha fixado, no
539
Francisco Buarque de Holanda (1979). Chapeuzinho Amarelo. Uma ilustração dessa obra, com autoria de
Ziraldo, consta nos anexos.
540
Idem.
541
Ao longo da primeira infância o bebê e a pequena criança sentem-se transparentes diante do Outro
encarnado, na medida em que o Outro detém um saber sobre seu gozo. Brincar com a falta, com a presença-
ausência que o Fort-Da articula, permite também estabelecer a dimensão do ocultamento, ou seja, de saber
algo que o outro não sabe. Daí a importância enquanto sintoma estruturante, das pequenas mentiras infantis e
dos gestos de ocultamento que implicam, por parte da criança, um árduo trabalho de separação de seu Outro
encarnado. Exemplo disso é uma pequena menininha de três anos que, diante da pergunta da mãe: "quem
bagunçou essa gaveta?", argumenta: "Não fui eu!", e, depois de uma pausa, acrescenta: "Vonão estava
lá!", entregando a cena que busca ocultar.
542
Sigmund Freud (1920). Além do princípio do prazer, p. 27.
543
Tomamos, para isso, a grafia proposta por Lacan (1975-1976), no seminário 23, ao diferenciar symptôme
de sinthoma. O primeiro fica situado não como sinal de uma doença, mas como expressão de um conflito
234
entanto, ela pode "fazer artes", pode produzir travessuras. Nelas a criança não faz o que
dela se espera, ela vai além da suposta complementaridade, operando certa travessia do
lugar de objeto de um suposto gozo do Outro. Abre-se assim a possibilidade subjetiva de
vir a produzir, diante da falta, uma criação suplementar Nesse sentido brincar é um
artifício, é oficiar uma arte que permite ao sujeito um saber-fazer.
544
Por isso, um tratamento não vai na direção de que a criança simplesmente faça o que
dela se espera, mas na de dar lugar para que ela possa criar, servindo-se do simbólico, da
linguagem, da lei, da função paterna. Essa é a importância clínica de possibilitar a
articulação dos jogos constituintes do sujeito operando com a letra no litoral entre gozo e
saber para dar lugar à criação da criança.
Brincar é possibilitar a própria inscrição e reinscrição desse litoral.
psíquico que, ao longo de uma análise, pode cair, tendo, portanto, um caráter contingente na resolução dos
conflitos psíquicos. O segundo faz suporte para o sujeito (p. 44), articulando por meio de um quarto
suplementar o registro real, o simbólico e o imaginário (p. 55), sendo central em sua economia de gozo e
desejo, não podendo cair e tendo, portanto, um caráter necessário, tal como escrever é para o escritor. (p. 71).
Alfredo Jerusalinsky, em Psicanálise e desenvolvimento infantil, aponta que na infância encontramos uma
duplicação do elo do real, na medida em que a criança se encontra com a dupla demanda do Outro: de que
seja criança e de que seja grande, entre a insuficiência real de seu organismo e a antecipação simbólica. Essa
duplicação resulta em uma série de formações psíquicas próprias da infância: o fato de o Outro ser
encarnado, o fato de a criança necessitar sustentar na relação de objeto uma transicionalidade entre ela e o
Outro, e na relação dialética entre o brincar e a realidade pelo qual a realidade está no que se brinca, mas o
que se brinca não está na realidade (p. 52-55). Por meio do brincar a criança produz um saber fazer.
544
Jacques Lacan (1975-1976). O seminário. Livro 23. O sinthoma, p. 71.
235
CONSIDERAÇÕES FINAIS E METODOLOGIA
Sobre os troços deixados, o caminho traçado e o que se traça na escrita da clínica
Ao longo deste escrito abordamos a relação entre letra e gozo no laço mãe-bebê,
considerando seus desenlaces em uma clínica que intervém com os primórdios da
constituição psíquica. Sendo esta uma tese sobre a letra e o gozo não teríamos como
concluí-la sem falar do efeito mesmo de escrever a clínica escrita produzida no contexto
clínico-teórico da psicanálise e no marco acadêmico de pesquisa em Psicopatologia
Fundamental.
Ao atendermos crianças, após o término do tratamento, costumam ficar no
consultório massinhas endurecidas, fragmentos de esculturas de argila, folhas rabiscadas,
recortes de papéis, colagens de tecidos, cordas emaranhadas, pedrinhas pintadas, entre
tantos outros objetos que foram necessários ao longo do trabalho de análise, mas que
deixaram de sê-lo a partir da elaboração a que a análise deu lugar.
O que fazer com isso? Em geral vacilamos entre guardá-los e jogá-los fora, porque
eles, ao mesmo tempo que permitem evocar fragmentos de um tratamento, não são senão
os seus restos. O paciente já os deixou cair e seguiu em frente. Mas, se esses objetos tanto
perturbam, se não sabemos ao certo qual é seu justo lugar, é porque eles, assim como o
analista, foram centrais para possibilitar uma passagem, uma articulação, uma
transformação em uma transferência que se dissolveu. E, no entanto, eles ainda estão lá. O
que fazer com esses troços?
Depois do término de uma análise talvez ainda seja preciso ao analista fazer com isso
outra coisa. Escrever então pode ter lugar, considerando que se as recordações do caso
ainda o habitam, são rememoradas, irrompem em meio às suas elucubrações teóricas,
236
assim como esses troços, é porque a experiência dessa neurose de transferência tocou seu
inconsciente.
545
Se a partir da posição ocupada pelo analista na transferência
546
se operou a
direção da cura, talvez, como aponta Allouch,
547
ainda seja preciso operar outra passagem.
Pela escrita do caso clínico o analista, a partir da experiência dessa transferência
opera uma nova transposição na qual, ao dirigir-se à comunidade, retoma o que desse caso
fez furo em seu saber e levou-o a interrogar a teoria implicando-se em uma práxis na qual
comparece inevitavelmente seu estilo, seus próprios traços. Como diz Freud em
"Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise", cada psicanalista pode ser
levado a adotar uma atitude diferente em relação ao paciente ainda seguindo as mesmas
regras fundamentais da psicanálise.
548
Isso depende, antes de mais nada, da posição
inconsciente do analista, para além de toda e qualquer recomendação. O caso, nesta
perspectiva, revela não o sujeito que fala de seu sofrimento, como também o analista
que escuta, as sinuosidades do campo conceitual em que transita.
549
Escrever a partir de um percurso clínico não consiste em produzir um relato
exaustivo do atendimento. Como aponta Freud, os relatórios exatos de histórias clínicas
analíticas são de menor valor do que se poderia esperar.
550
Tampouco implica expor o
paciente em minúcias biográficas. Proceder desse modo anularia a própria concepção de
recordação e elaboração que opera na psicanálise.
551
Trata-se, então, muito mais de trazer,
545
Aliás, isso explica a memória que um psicanalista tem acerca dos significantes fundamentais de um
paciente, para além de toda e qualquer nota clínica. Isso é possível na medida em que algo dessa história
se engancha em seu próprio fantasma. Isso, no entanto, não o autoriza a gozar do paciente, daí as
considerações acerca da regra de abstinência e do desejo do analista.
546
Na clínica com adultos neuróticos esse lugar costuma ser o de objeto a, a partir do qual o paciente revive,
na neurose de transferência, a impossibilidade da relação sexual. Na clínica com bebês e crianças, no entanto,
para operar os efeitos constituintes do sujeito é preciso, muitas vezes, que o analista componha o Outro
encarnado.
547
Jean Allouch. Letra a letra, p. 18.
548
Sigmund Freud (1912b). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, p. 149.
549
Edson André de Souza. A vida entre parênteses, p. 18.
550
Sigmund Freud (1912b). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, p. 152.
551
Sigmund Freud (1914a). Recordar repetir e elaborar, p. 191-203. Se, nesse texto, Freud expõe o trabalho
necessário à elaboração na psicanálise, no texto de 1912, citado, ele também situa o trabalho com o caso
clínico como uma elaboração que não deve ter sua estrutura fechada antes do término do atendimento a fim
de não comprometer a posição do analista.
237
por meio do recorte clínico, o testemunho de uma práxis que causou o trabalho de escrita,
permitindo ao leitor acompanhar a formulação dos impasses a que a clínica deu lugar e que
posteriormente, ao recapitulá-los, o trabalho de elaboração da escrita busca precisar.
Os recortes clínicos surgem como uma construção: por um lado, apresentam da
cena clínica o estritamente necessário para dar lugar à articulação das hipóteses formuladas
a partir deles. São recortes na medida em que é com os conceitos que cortamos, eles são
nossos instrumentos.
552
Como aponta Rabello, nos servimos da faca conceitual
553
a fim de
possibilitar uma elaboração do vivido na clínica e sua transmissão. Por outro lado, como
nos propõe Souza,
554
o recorte clínico também abre um parêntese no corpus teórico. Ao
trazer a vida entre parênteses ele comparece interpelando a teoria a partir de uma
experiência que implica o autor. Por isso o recorte clínico não é só recortado por conceitos,
ele é também recortado pela implicação do analista/pesquisador que se encontrou afetado
por uma experiência clínica que o excede e que o implica na transferência. O que
comparece aí é menos o paciente ou o analista, mas o sujeito do inconsciente.
555
Daí que ao
escrever a clínica também se produza um trânsito (transferência-transmissão) de uma
leitura das formações do inconsciente na transferência da clínica para uma transmissão da
psicanálise na escrita.
Ao escrever a clínica busca-se explicitar e precisar a gica conceitual do caminho
percorrido na direção do tratamento, trazendo o testemunho das encruzilhadas clínico-
teóricas apresentadas pela práxis. Temos a escrita como necessária à elaboração do
método clínico. O recorte clínico não é exemplo, mas causa, ponto de partida das
hipóteses produzidas. Ele interroga exigindo formular o que ainda está sem ser precisado.
552
Não é com a faca que dissecamos, mas com os conceitos (...) eles são instrumentos para delinear as
coisas. Jacques Lacan (1953-1954). O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud, p. 10.
553
Silvana Rabello. Dizeres de crianças: jogos de repetições e modulações tonais entoando jogos subjetivos,
p. 32.
554
Edson André de Souza. A vida entre parênteses, p. 13-36.
555
Alfredo Jerusalinsky. Transmissão e transferência na clínica psicanalítica, p. 52-59.
238
O que se formula, por sua vez, jamais esgota o acontecimento. Assim como
diversos recortes clínicos podem ser trazidos em torno de uma mesma questão, um caso
clínico não exige ineditismo, ele pode ser, rias vezes, retomado e revisitado. Afinal,
diante disso
556
outro deciframento pode advir, mas não um qualquer. Isso porque a
construção de caso não é uma narrativa virtualizada sobre a qual poderiam ser aplicados
diversos pontos de vista teóricos para se chegar a diferentes compreensões. A experiência
de análise não é virtual, ela tange o real, afeta o corpo. Não pode ser realizada in effigie e
in absentia, afirma Freud.
557
A regra da abstinência marca justamente que se está na beira
do ato e é não realizar o ato sexual que possibilita ao paciente reviver, por meio da neurose
de transferência, a impossibilidade de sua relação.
558
Por isso, é preciso considerar as consequências de que o escrito da clínica se
produza como testemunho da experiência de transferência, uma vez que testemunho diz de
testis (testículo), ou seja: de algo que passa pelo corpo, que implica, que afeta aquele que
escreveu.
Se a construção do caso implica uma ficção clínica, essa ficção faz borda a um real,
é efeito da experiência do comparecimento do "sujeito do inconsciente" em transferência e,
portanto, tange um real que passa pelo corpo.
559
Por isso, se ao longo de uma análise um
paciente pode reconstruir uma ficção de si,
560
trata-se de uma ficção que toca o âmago da
verdade do sujeito, trata-se de uma produção advinda do que faz furo no saber. Do mesmo
modo, considera-se a construção ou recorte de caso como uma ficção clínica na medida em
que ele arrasta consigo uma verdade radical produzida na experiência dessa transferência.
Neste contexto percebe-se como o analista é inerentemente um pesquisador. A
psicanálise não é uma teoria que busca seus exemplos na clínica. Seu corpo teórico se
556
Fazemos aí referência ao isso como instância psíquica.
557
Sigmund Freud (1912a). A dinâmica da transferência, p. 143.
558
Alfredo Jerusalinsky. Transmissão e transferência na clínica psicanalítica, p. 55.
559
Ana Maria Medeiros da Costa. Relações entre letra e escrita nas produções em psicanálise, p. 40-53.
560
Ana Maria Medeiros da Costa. A ficção de si mesmo: interpretação e ato em psicanálise.
239
constitui a partir de uma práxis. Freud, a partir da escrita de cada caso clínico, interroga e
reconstrói a posteriori a teoria, enquanto que, no desdobrar da transferência, ao longo do
tratamento, reintroduz uma condição ética fundamental da psicanálise quanto à posição em
que fica situado o saber: cada caso produz no analista a experiência de colocar o corpo
teórico em suspenso e se interrogar pelo enigma que o sintoma, o lapso, o chiste, o sonho
colocam em cena.
Assim, o saber articulado a partir da clínica é um saber que interessa menos pelo
seu efeito destacável e isolável do que pela sequência de seu desdobramento enquanto
efeitos clínicos. Se um saber tem lugar a partir da análise é um saber fazer ali com isso.
Este é um aspecto decisivo da psicanálise em relação à ciência. Nela a produção do
saber implica o sujeito do inconsciente. Sua pesquisa não responde a critérios descritivos
generalizáveis e possíveis de reproduzir no sentido de verificar ou refutar um saber
previamente estabelecido pelo "contexto da verificação". Como aponta Elia,
561
em
psicanálise o contexto de verificação coincide com o de descoberta, uma vez que o
psicanalista não é ele mesmo o detentor de um saber, mas, ao suportar a transferência,
possibilita que, a partir do inconsciente, um saber possa vir a se produzir (saber nem do
analista, nem só do paciente, mas do sujeito do inconsciente). Por isso Freud afirma, acerca
dos princípios e métodos da psicanálise, que esta pode reivindicar a seu favor que, em sua
execução, pesquisa e tratamento coincidem.
562
Justamente por isso, Lacan, ao abordar a
relação da psicanálise e da ciência quanto à pesquisa, afirma, parafraseando Picasso: eu
não procuro, acho.
563
Se os critérios empírico-positivistas que perpassam a ciência moderna procuram
uma correspondência entre verdade e descrição dos fatos, na ilusão de que assim
561
Luciano Elia. Psicanálise: clínica e pesquisa, p. 24.
562
Sigmund Freud (1912b). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, p. 152.
563
Jacques Lacan (1964). El seminario. Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis, p.
15. Citado também por Luciano Elia. Psicanálise: clínica e pesquisa, p. 24.
240
aprenderiam o real do acontecimento, pressupondo no dado observado a imanência de seu
próprio sentido; em psicanálise a verdade jamais é dissociada das suas condições de
enunciação. Isto é o que faz com que levemos a afirmar, partindo do corte epistemológico
situado por Freud e Lacan, que na clínica com bebês, diante do dado a ver, se proceda não
por observação, mas por uma leitura pela qual se decifra a posição que a letra ocupa na
produção do sujeito.
No contexto da Psicopatologia Fundamental, em que se produz este escrito,
sublinha-se a concepção proposta por Fédida de que cada caso é uma teoria em gérmen.
564
Explicitar os dispositivos que possibilitaram a direção da cura e suas consequências no
tratamento leva a uma produção na qual o recorte clínico é realinhavado a fundamentos
teóricos postos a trabalhar com e a partir do caso. Sublinha-se aí a singularidade da
construção do caso clínico, considerando que um tratamento ao conceber o pathos como
sofrimento, passividade e excesso que assujeitam o paciente possibilita traçar um
percurso singular ao longo do qual, por meio da transferência, possa se fazer do pathos
uma experiência,
565
uma passagem do assujeitamento à subjetividade. Por sua vez,
testemunhar tal passagem por meio da construção do caso clínico, é elaborar
metapsicologia.
É preciso contextualizar tal concepção da Psicopatologia Fundamental que ela
não coincide com as concepções de psicopatologia hegemônicas da atualidade, pelas quais
o pathos costuma ser reduzido a definições empírico-pragmáticas centradas em estabelecer
a correspondência entre uma constelação de sintomas descritos e uma categoria
diagnóstica.
566
A partir da publicação do tratado de Psicopatologia Geral, de Karl Jaspers, em
1913, a psicopatologia é situada como uma disciplina específica que toma a categoria
564
Pierre Fédida. Nome, figura e memória – a linguagem na situação psicanalítica, p. 230.
565
Manoel T. Berlinck. Psicopatologia Fundamental, p. 18-22.
566
Mario Eduardo Costa Pereira. Formulando uma Psicopatologia Fundamental, p. 62.
241
nosográfica como seu objeto. Fundamenta-se em um critério fenomenológico em que a
consciência é o eixo e procura descrever, do modo mais preciso, aquilo que se vivencia
conscientemente em um determinado estado mental. No entanto, a pluralidade de
disciplinas nesse campo fez com que uma mesma terminologia psicopatológica viesse a ser
utilizada em diferentes acepções. É nesse contexto que surgem os manuais de
diagnóstico,
567
tais como o DSM-4, elaborado pela Associação Psiquiátrica Americana,
amplamente utilizado na rede pública e privada de atendimento à Saúde Mental ou o CID -
10.
Tais manuais são, até certo ponto, herdeiros da vertente fenomenológica inaugurada
por Jaspers.
568
Neles também os sintomas são considerados desde um ponto de vista
descritivo, estabelecendo uma semiologia da doença mental (ou seja, uma correlação entre
determinadas doenças mentais e suas manifestações), pelo qual o sintoma assume o sentido
de sinal da doença.
Associada a essa corrente fenomenológica da psicopatologia encontramos
atualmente uma vertente neuropsiquiátrica que combina a perspectiva fenomenológica com
uma análise da etiologia da doença, situando sua causa no plano neurobiológico como falta
ou excesso de determinada substância e cujo tratamento passa a ser atrelado à reposição ou
controle medicamentoso dessa substância.
569
Eventualmente complementa-se tal
diagnóstico e tratamento com uma terapêutica psicofuncionalista.
Por sua vez, desde a intervenção psicofuncionalista é estabelecida uma medição das
competências, habilidades e rendimentos comportamentais, supondo que tais medidas
567
Idem, p. 64.
568
Dizemos que até certo ponto, pois, apesar de ambos se centrarem na descrição do fenômeno a partir de
sua percepção pela consciência, é incomparável a riqueza descritiva nos primórdios de tal concepção a fim de
configurar entidades psicopatológicas, versus uma rápida aplicabilidade diagnóstica dos manuais atuais.
569
É a partir da posição hegemônica dessa vertente que se configura, na atualidade, uma "epidemia
depressiva" relacionada a uma florescente industria farmacêutica que vende cada vez mais antidepressivos,
tal como aponta Manoel T. Berlinck em Psicopatologia Fundamental, p. 229. Podemos considerar nessa
mesma direção o grande aumento de diagnósticos de hiper-atividade na infância correlacionado à explosão de
fabricação e venda da Ritalina e Neo-ritalinas.
242
informam acerca da capacidade adaptativa do indivíduo. Encontramos toda a série de
testes psicológicos e da psicologia métrica que derivam em uma intervenção que
ortopedicamente se propõe a restaurar a falha em questão.
Ainda que tais critérios classificatórios da psicopatologia assim concebida
pretendam, a priori, não imiscuir-se à prática terapêutica (por trabalhar com categorias da
doença e não com a intervenção clínica), seus efeitos no tratamento do paciente em
sofrimento costumam levar a falas do tipo: "eu sou"em correspondência à categoria
diagnóstica. Diante do sujeito acometido pelo pathos, a doença torna-se sua identidade, em
lugar de poder abrir a interrogação acerca do que o implica na produção de uma dada
resposta psíquica, do que o implica em sua dor. Tratando-se de bebês e de pequenas
crianças esses efeitos costumam desencadear profecias autorrealizáveis
570
em que os pais
passam a esperar antecipadamente que as produções do filho correspondam aos sintomas
descritos na categoria diagnóstica. Passam, assim, a esperar a realização da doença em vez
de darem tempo e lugar ao devir do sujeito.
A clínica com crianças, e particularmente com bebês, apresenta-se como bastante
antinômica aos critérios nosográficos, pois o que caracteriza o sujeito na infância é
justamente o polimorfismo da estrutura não decidida.
571
Isto faz com que ao longo da
intervenção possa se produzir uma remissão da estruturação psíquica em curso. Por outro
lado, no início do tratamento, é frequente detectar um padecimento sem que seja sempre
possível afirmar que ele seria correlativo a tal ou qual quadro nosográfico. Isto porque,
mesmo antes de encontrarmos o conjunto de traços positivados relativos a uma
determinada doença, o que encontramos é a não instauração de inscrições operando desde
uma posição constituinte do sujeito. Assim, para a intervenção na primeira infância, muitas
570
Julieta Jerusalinsky. Enquanto o futuro não vem – a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês, p.
224.
571
Ver a este respeito Alfredo Jerusalinsky. Psicanálise e desenvolvimento infantil; Julieta Jerusalinsky.
Enquanto o futuro não vem a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês, p. 258-296; e Leda Maria
Fischer Bernardino. As psicoses não decidas da Infância: um estudo psicanalítico.
243
vezes nos guiamos por critérios negativos (o que não está operando) do que por critérios
positivados correspondentes a um determinado quadro nosográfico.
Considerando a estrutura não decidida na infância, intervimos no deciframento da
posição da letra para o bebê e para a criança a partir da resposta que a mesma formula
perante o Outro e que a ver em sua produção. Tal leitura permite operar inscrições e
reinscrições constituintes do sujeito em lugar de levar precocemente suas manifestações a
corresponderem a um quadro nosográfico constituído por critérios que se embasam em
estruturas clínicas já decididas.
Ao considerar a construção metapsicológica não desatrelada da nosografia,
572
mas
pondo acento na passagem terapêutica do pathos à experiência, em lugar de pô-lo no
discurso classificatório sobre a doença, a Psicopatologia Fundamental acolhe os princípios
e métodos da clínica com bebês exercida a partir do corte epistemológico da psicanálise
aqui considerada fundamentalmente a partir do ensino de Freud e Lacan.
A Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental produz um
terreno fértil para conjugar a pesquisa inerente à práxis clínica da psicanálise com a
pesquisa enquanto produção de conhecimento científico no cerne da universidade. Em tal
contexto, o pesquisador elabora a construção do caso clínico contando com a leitura e
comentários não do orientador, mas também dos colegas pesquisadores do
Laboratório
573
– fazendo deste um espaço de labor e elaboração com sucessivos momentos:
da leitura do clínico que opera na intervenção com o paciente, da escrita na construção do
caso clínico e da posterior leitura da comunidade científica.
Com isto não buscamos suprimir o debate acerca da complexa relação entre a
pesquisa inerente à prática psicanalítica e a pesquisa na universidade, já que psicanálise e
572
"e, visitando-a com frequência", como aponta Manoel T. Berlinck. Psicopatologia Fundamental, p. 24.
573
Fazemos referência aqui especificamente ao Laboratório de Psicopatologia Fundamental do Programa de
Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo que integra,
desde 1997, essa associação composta por universidades brasileiras e francesas.
244
universidade se apóiam sobre tripés diferentes. Se o da primeira diz respeito à análise,
supervisão e transmissão, o da segunda consiste no ensino, pesquisa e prestação de
serviços à comunidade.
574
Mas, como aponta Rosa, inserir-se no campo da pesquisa
universitária, não significa tomar a forma desse campo, mas, se necessário, dar-lhe uma
nova forma.
575
Do mesmo modo, aponta essa autora, não partilhar dos princípios e métodos
da ciência moderna não exclui a cientificidade da psicanálise, mas interroga, tal como o fez
Lacan: o que é uma ciência que poderia incluir a psicanálise?
576
De modo análogo
seríamos levados a trabalhar com a seguinte questão: o que é uma pesquisa acadêmica que
possa incluir os princípios e métodos da psicanálise?
Permitir que o caso clínico opere como furo no saber possibilita que ele, como
gérmen, torne-se frutífero para o campo da pesquisa da psicopatologia. Utilizá-lo como
simples exemplo, ilustração ornamental ou verificação demonstrativa é torná-lo estéril
577
renegando o contexto clínico que possibilitou sua produção.
No contexto acadêmico pode ocorrer que um paciente seja tomado como objeto de
uma pesquisa, mas isso vai na contramão dos operadores da Psicopatologia Fundamental e
da experiência psicanalítica, incluindo nela não o tempo do tratamento, mas também a
posterior escrita do caso clínico.
Se o recorte clínico é recortado pela faca conceitual, abrindo, por sua vez, um
parêntese no corpus teórico, fica em relevo qual alinhavo, qual articulação do
psicanalista/pesquisador decanta na construção do escrito.
A escrita da clínica se produz como um realinhavo a posteriori do caminho
percorrido em uma análise. Ao longo do tratamento a direção da cura foi sendo construída
574
Octavio Souza. Aspectos do encaminhamento da questão da cientificidade da psicanálise no movimento
psicanalítico, p. 205-233, apud Miriam Debieux Rosa. Psicanálise na universidade: considerações sobre o
ensino da psicanálise nos cursos de psicologia, p. 189-199.
575
Miriam Debieux Rosa. Psicanálise na universidade: considerações sobre o ensino da psicanálise nos
cursos de psicologia, p. 189-199.
576
Tal como Jacques Lacan (1964), problematiza na primeira aula de El seminario. Libro 11. Los cuatro
conceptos fundamentales del psicoanálisis.
577
Edson André de Souza. A vida entre parênteses, p. 17.
245
passo a passo a partir das sucessivas leituras clínicas do analista e dos efeitos produzidos
no tratamento, sem que no começo deste fosse possível traçar seu ponto de chegada. A
escrita, ao mesmo tempo em que recapitula esse percurso, também nos leva a caminhos
inesperados.
Se a direção da cura se produz ao longo do tratamento, a direção da escrita se traça
ao escrever. Em ambos o caminho se faz ao andar.
578
aí, uma vez mais, confluência
entre o método psicanalítico e a escrita da clínica, que método significa justamente o
caminho percorrido (metá, do grego, quer dizer "através" e hodós, "caminho"). Nesse
método algo que se elabora do percurso traçado e que leva dos troços deixados no
consultório a um escrito. No entanto, a escrita traça também o não elaborado, o que se
repete e insiste para além das intenções do escritor. O próprio Freud aponta esta questão ao
falar a Fliess sobre o processo da escrita de A interpretação dos sonhos:
Eu só consigo compor os detalhes no processo de escrever.
Esse processo segue completamente os ditames do inconsciente,
segundo o bem conhecido processo de Itzig, o cavaleiro de
domingo. "Itzig, aonde você vai?", "E eu sei? Pergunte ao cavalo”.
Eu nunca comecei um único parágrafo sabendo de antemão onde
terminaria.
579
Essas palavras de Freud ecoam nas de Lacan, quando este afirma que em seus
seminários, mesmo se dedicando à transmissão de conceitos, inevitavelmente falava como
analisando.
580
Escrever não nos poupa disso. reside a diferença entre um escrito
embasado em preceitos empírico-positivistas e um escrito psicanalítico com valor
científico: não se procura apagar o que resultou por ser dito, pois o autor, ao tomar a
palavra, a ler onde ele é tomado pela letra que insiste, repete no que ainda não se
escreveu.
578
"Caminhante, não caminho, faz-se o caminho ao andar. Ao andar se faz caminho e ao voltar a vista
para trás vê-se o caminho que nunca se voltará a pisar". Poesia de Juan Manuel Serrat citada por Elsa Coriat a
propósito da direção da cura em Psicanálise e clínica com bebês, p. 141.
579
Masson Jeffrey Moussaieff. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilheem Fliess, 1887-
2004, p. 320.
580
Jacques Lacan (1972). Seminário 19. ...Ou pire, inédito.
246
Nesse sentido, é interessante fazer notar que em português traça denota "esboça,
representa, escreve" e também "as pequenas mariposas que corroem artefatos, que
perfuram o papel". Ao traçar no escrito temos esta mesma dimensão do que por um lado se
representa e do que, por outro, traça, perfura, refaz o furo, arrastando consigo, entre os
traços, os troços que insistem.
Mas é que uma transmissão pode vir a se operar, marcando esse ponto de
passagem: da posição do analista como objeto na transferência, à posição de quem escreve
o caso clínico. Entre o escrever e o ser lido, entre o que se inscreve e o que nessas
transposições de registro não cessa de não se escrever.
581
Ao escrever o clínico toma a palavra e, nesse ato, ele produz um escrito que se a
ler. Nessa passagem já não se trata mais do paciente e tampouco da pessoa do analista, mas
de um novo objeto: a construção do caso pelo recorte clínico e alinhavo teórico. O caso
clínico, nessa perspectiva, ficaria inevitavelmente ser equiparado a outros "produtos
psíquicos" sobre os quais nos fala Freud
582
retraçando um percurso que leva das
formações do inconsciente às construções em análise.
583
Em tal escrito comparece a posição do analista: ao não se eximir de sua implicação,
ele se recoloca em relação ao lugar em que foi posto antes (ex-posto) na transferência,
produzindo uma passagem em que relança a transferência e a faz trabalhar agora em
relação ao escrito.
O analista não é ele mesmo o destinatário da transferência, mas pela e na
transferência, ao ser situado como suposto destinatário de uma mensagem cifrada,
possibilita articular uma possível leitura da mesma. Ao sustentar na transferência a
produção de um saber que liga a letra, sustenta a produção de uma série possibilitando que
581
Jacques Lacan (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda, p. 127. Utilizamos, no entanto, a livre
tradução a partir do seminário em espanhol.
582
Pierre Fédida. Nome, figura e memória – a linguagem na situação psicanalítica, p. 234.
583
Sigmund Freud (1937). Construções em análise, p. 281-304.
247
a mensagem chegue ao destino. Se é suposto como destinatário, opera mais como o
carteiro, ao fazer a passagem, ao dar lugar para que o analisando possa passar a outra coisa
que não a de ficar capturado na insistência da repetição sintomática. Em outro tempo, ao
dar o testemunho da leitura articulada, construída em transferência, relança uma carta.
A escrita decanta assim de uma luta e de um luto.
584
Uma luta por procurar dizer e
redizer aquilo que se impõe em nós num jogo entre o sobrescrevo-sobrescravo.
585
Um luto
na medida em que o escrito destaca a palavra de nossa presença, confrontando-nos
inevitavelmente com a morte, não por almejarmos que ao escrever nossa palavra
sobreviva à nossa morte, mas porque, mesmo quando vivos, a inapelável condição do que
já está escrito situa o autor no lugar de morto.
Talvez seja justamente por isso que, ao terminar um escrito, um livro, uma tese, o
autor se sinta profundamente sem palavras. Parece que ele não tem mais o que dizer,
espera apenas ser lido na inevitável posição do náufrago que lança uma garrafa ao mar.
Pois se escrever sempre implica ter um destinatário, não deixa de ser surpreendente o que
se relança no encontro com a leitura do leitor.
Pode ser que o próprio escritor, em outro momento, recolha esta mensagem e a leia
como vinda de outros tempos e que, a partir daí, faça uma releitura do caso, tomando por
outro viés, por outra costura, seus operadores clínicos, dando lugar a um novo percurso de
construção que não necessariamente invalida o anterior. Afinal, o recorte se produz no
limite da inapreensível complexidade da experiência clínica, procurando, por meio dessa
costura, arrimar-se a articular uma de suas bordas.
Isto nos leva a considerar, diante do trabalho de escrita, o inapreensível da clínica.
Que longe de preceitos sobre como falar dessa experiência por temor à exposição, no
584
Edson André de Souza. Escrita das utopias: litoral, literal, lutoral, p. 240.
585
Haroldo Campos (2004). Galáxias, apud Edson André de Souza. Idem, ibidem.
248
sentido do pudor e proibição, apontam por trás dela um impossível pelo inesgotável da
clínica – um impossível diante do qual se tece, como escrito, uma construção de caso.
Na clínica com crianças circulam muitos troços e dependendo do lugar que eles
assumam na transferência pode-se chegar à troça (como jogo, brincadeira, humor, graça),
no qual uma coisa não é exatamente ela mesma, pode vir a ser outra. Na transferência se
transforma, se transpõe, se reinstaura o lugar e tempo em que a criação da criança possa
advir a partir dos traços, das inscrições, fundamentais à sua constituição. a criança não
será vítima da letra nela inscrita, prisioneira ou aprisionadora do objeto de gozo do
Outro. Poderá, ao tomar tal letra em outra posição, criar. Assim, suas produções, suas artes,
seus artifícios, não responderão a uma tentativa de complementaridade com o gozo do
Outro, mas a uma produção suplementar, relativa ao gozo Outro.
Para tanto, será preciso que a criança encontre alguém com quem sustentar a
dimensão da criação da criança; que diante do manifesto no corpo lugar a uma leitura
que o suponha como sujeito, pondo em jogo nessa decifração, a operação com a cifra e
assim possibilitando que se efetuem operações constituintes do sujeito. O psicanalista, ao
sustentar na transferência esta dimensão, intervém com a letra no litoral literal entre gozo e
saber.
É o que procuramos traçar neste escrito.
249
REFERÊNCIAS
A
NDRÉ
, S. (1986). O que quer uma mulher?. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
A
LLOUCH
, J. Letra a letra. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1994.
A
SSOUN
, P.L. (1983). Freud e a mulher. Rio de Janeiro, 2. Ed.: Jorge Zahar, 1993.
______. (1997). Os três tempos da constituição do significante. Revista da Associação
Psicanalítica de Porto Alegre, Porto Alegre, ano 8, n. 14, p. 43-53, 1998.
______. O olhar e a voz. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 1999.
B
ERGÈS
, J. (1988a). O corpo e o olhar do Outro. In: Escritos da criança 2. 2. ed. Porto
Alegre: Centro Lydia Coriat, 1997. p. 51-65.
______. (1988b) Função estruturante do prazer. In: Escritos da criança 2. 2. ed. Porto
Alegre: Centro Lydia Coriat, 1997. p. 41-50.
______. A instância da letra na aprendizagem. Boletim da APPOA, Porto Alegre, n. 6, p. 6-
10, 1991.
______. (1996). A criança e a psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
B
ERGÈS
, J.; B
ALBO
, G. (1998). Jogos de posições da mãe e da criança. Porto Alegre:
CMC, 2002.
B
ERLINCK
, M. T. Psicopatologia fundamental. 2. ed. São Paulo: Escuta, 2008.
B
ERNARDINO
, L M. F. O bebê e sua carta roubada. In: C
AMAROTTI
, M. C. (Org.).
Atendimento ao bebê. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2001. p. 197-205.
______. As psicoses não decididas da infância: um estudo psicanalítico. São Paulo: Casa
do Psicólogo, 2004.
B
ICK
, E. Notes on infant observation in psycho-analitical training. International Journal of
Psycho-Analysis, London, v. XLV, n. 4, 1964a.
______. (1964b). Notas sobre la observación de lactantes en la enseñanza del psicoanálisis.
Revista de psicoanálisis, Buenos Aires, v. 24, n. 1, p. 97-115, 1967.
B
ORGES
, J. L (1942). Funes el memorioso. In: Ficciones. Buenos Aires: Emecé, 1996. p. 157-
173
B
OYSSON
-B
ARDIES
, B. Dicernible differences in the babbling of infants accordig to target
leguage. Journal of child language, n. 11, p. 1-15, 1984.
250
______. (1998). O papel da prosódia na emergência da linguagem como estrutura
intencional dentro e a partir de uma estrutura biológica. In: S
OULÉ
, M. (Org.). A
inteligência anterior à palavra. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999. p. 17-24.
B
RAUNSTEIN
, N. O gozo. São Paulo: Escuta, 2007.
B
UARQUE DE
H
OLANDA
, F. (1979). Chapeuzinho amarelo. Rio de Janeiro: José Olympio,
1998.
C
ALLIGARIS
, C. (1983). Hipótese sobre o fantasma na cura psicanalítica. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1986.
______. Questões sobre o seminário Encore. Transcrição do seminário apresentado em
Porto Alegre, Cooperativa Cultural Jacques Lacan, 1986-1987, inédito.
______. O fantasma masculino e o fantasma feminino. Transcrição do seminário
apresentado em Curitiba, Biblioteca Freudiana de Curitiba, 1990, inédito.
______. (1991). O grande casamenteiro. In: Associação Psicanalítica de Porto Alegre
(Org.). O laço conjugal. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1994. p. 11-23.
C
ALLIGARIS
, E. Prostituição: o eterno feminino. São Paulo: Escuta, 2006.
C
ASARES
, A. B. (1940). La invención de Morel. Buenos Aires: Planeta, 1991.
C
HEMAMA
, R. (1993). Dicionário de psicanálise Larousse. Porto Alegre: Artes Médicas,
1995.
______. Questões sobre a interpretação. In: O significante, a letra e o objeto. Rio de
Janeiro: Companhia de Freud, 2004. p. 113-118.
C
ORIAT
, E. (1996). Psicanálise e clínica com bebês. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 1997.
C
ORIAT
,
L.;
J
ERUSALINSKY
, A. Aspectos constitucionales del bebé y su influencia en la
relación madre-hijo. In: Cuadernos del desarrollo infantil. Buenos Aires: Centro Dra.
Lydia Coriat, 1983. p. 11-21.
C
ORSO
,
D.;
C
ORSO
, M. As fadas no divã. Porto Alegre: Artmed, 2006.
C
OSTA
, A. M. M. A ficção de si mesmo: interpretação e ato em psicanálise. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 1998.
______. Algumas reflexões sobre a inscrição da letra. In: L
EITE
, N. V. de A. (Org.).
Corpolinguagem: gestos e afetos. Campinas: Mercado de Letras, 2003. p. 115-140.
______. Produções em psicanálise e seus impasses. Revista da Associação Psicanalítica de
Porto Alegre, Porto Alegre, n. 29, p. 140-147, dez. 2005.
______. Antecipação e destino: atualidades do espelho. Revista da Associação Psicanalítica de
Porto Alegre, Porto Alegre, n. 30, p. 15-24, jun. 2006.
251
______. Relações entre letra e escrita nas produções em psicanálise. Estilos da Clínica,
São Paulo, ano XIII, n. 24, p. 40-53, primeiro semestre de 2008.
D
EFOE
,
D.
(1719).
As aventuras de Robinson Crusoé. Porto Alegre: L&PM, 1997.
D
ELEUZE
, G. Introdução. In: S
ACHER
-M
ASOCH
, L. Vênus das peles. Rio de Janeiro: Caos
Ed., 1983.
D
ERRIDA
, J. (1995). A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 2002.
D
EUTSCH
, H. (1929). O masoquismo “feminino” e sua relação com a frigidez. XI
Congresso Internacional Psicanalítico, Oxford. Boletim da APPOA, Porto Alegre, ano 1, n.
2, p. 10-13, 1990.
D
IDIER
-W
EILL
, A. (1995). Os três tempos da lei. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
D
UNKER
, C. O cálculo neurótico do gozo. São Paulo: Escuta, 2002.
E
LIA
, L. Psicanálise: clínica e pesquisa. In: A
LBERTI
, S.; E
LIA
, L. (Org.). Clínica e
pesquisa em psicanálise. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2000. p. 19-35.
______. A letra: de instância no inconsciente à escrita do gozo no corpo. In: C
OSTA
, A.;
R
INALDI
, D. (Org.). Escrita e psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2007. p.
129-137.
F
ARIA
, E. Dicionário Escolar Latino Português. Rio de Janeiro: FGAE/Ministério da
Educação, 1992.
F
ÉDIDA
, P. Nome, figura e memória a linguagem na situação psicanalítica. São Paulo:
Escuta, 1992.
F
ERREIRA
, S. A interação mãe-bebê: primeiros passos. In: W
ANDERLEY
, D. (Org.).
Palavras em torno do berço. Salvador: Ágalma, 1997. p. 77-88.
______. (2001). Por que falar ao bebê se ele não compreende?. In: C
AMAROTTI
, M. C.
(Org.). Atendimento ao bebê: uma abordagem interdisciplinar. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2001. p. 97-104.
F
OSTER
, O. et al. Dossier sobre síndrome de Williams. Escritos de la infância 5. Buenos
Aires: FEPI-Centro Lydia Coriat, 1995. p. 49-109.
F
REUD
, A. (1965). Normalidad y patologia en la niñez. Buenos Aires: Paidós, 1993.
F
REUD
, S. Obras completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1993.
F
REUD
, S. Obras completas. Madrid: Biblioteca nueva, 1968. 3 vol.
252
F
REUD
, S. (1895). Projeto para uma psicologia científica. In: Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 1,
p. 421-22.
______. (1896a). Carta 52 a Fliess. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 1.
______. (1896a). Carta 52 a Fliess. In: Obras Completas de Sigmund Freud. Madrid:
Biblioteca Nueva, 1968, p.949-951.
______. (1900). A interpretação dos sonhos. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 4 e 5.
______. (1901). Psicopatologia da vida cotidiana. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. 6.
______. (1905a). Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1977. v. 7, p. 123-152.
______. (1905b). Os chistes e sua relação com o inconsciente. In: Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1977. v. 8.
______. (1908). Escritores criativos e devaneio. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 9, p. 147-158.
______. (1909a). Notas sobre um caso de neurose. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 10, p.
157-317.
______. (1909b). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In: Edição Standard
Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago,
1977. v. 10, p.13-154.
______. (1909c). Análisis de la fobia de un niño de cinco años. In: Obras completas.
Buenos Aires: Amorrortu, 1993. v. 10.
______. (1910). Um tipo especial de escolha de objeto feita pelos homens In: Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1977. v. 11, p. 147-157.
______. (1912a). A dinâmica da transferência. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 12, p. 131-
143.
______. (1912b). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In: Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro:
Imago, 1977. v. 12, p.145-159.
253
______. (1912c). Consejos al médico sobre el tratamiento psicoanalítico. In: Obras
completas. Buenos Aires: Amorrortu, 1993. v. 12, p. 107-119.
______. (1912d). Sobre o início do tratamento. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 12, p. 161-
187.
______. (1913). O interesse científico da psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 13, p.
199-226.
______. (1914a). Recordar repetir e elaborar. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 12, p. 191-
203.
______. (1914b). Introducción del narcisismo. In: Obras completas. Buenos Aires:
Amorrortu, 1993. v. 14, p. 65-98.
______. (1915). O inconsciente. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 2, p. 191-252.
______. (1918 [1914]). História de uma neurose infantil. In: Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. 17,
p. 13-151.
______. (1919). Uma criança é espancada. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977, v. 17, p. 223-
253.
______. (1920). Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 18, p. 11-85.
______. (1923a). A organização genital infantil. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 19, p. 177-
184.
______. (1923b). O ego e o id. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 19, p.13-83.
______. (1924a). O problema econômico do masoquismo. In: Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 19,
p.197-212.
______. (1924b). A dissolução do complexo de Édipo. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 19, p.
215-224.
______. (1925a). Algumas consequências psíquicas da diferença anatômica entre os sexos.
In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio
de Janeiro: Imago, 1977. v. 19, p. 303-320.
254
______. (1925b). Uma nota sobre o bloco mágico. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 19, p.
283-290.
______. (1926). Inibições, sintomas e ansiedade. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 20, p.
95-200.
______. (1929). O mal-estar na civilização. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 21, p. 75-171.
______. (1931). Sexualidade feminina. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 21, p. 257-
279.
______. (1932). Conferência 34: Novas conferências introdutórias sobre psicanálise. In:
Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de
Janeiro: Imago, 1977. v. 22, p. 167-191.
______. (1932). Obras completas. Edición electrónica. Madrid: Biblioteca Nueva.
______. (1933). Feminilidade, conferência 33. Novas conferências introdutórias sobre
psicanálise. In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund
Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 22, p. 139-165.
______. (1936). Um distúrbio de memória na Acrópole. In: Edição Standard Brasileira
das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976. v. 22,
p. 291-303.
______. (1937). Análise terminável e interminável. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1975. v. 23, p.
239- 287.
______. (1937). Construções em análise. In: Edição Standard Brasileira das Obras
Psicológicas Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1977. v. 23, p. 281-
304.
G
ARCÍA
-P
ELAYO Y
G
ROSS
, R. Dicionário Larousse ilustrado. Buenos Aires: Larousse
1993.
G
ILSON
, J. P. Autismo e língua materna. Transcrição de palestra realizada em 19 de maio,
São Paulo: Derdic PUC-SP, 1999, inédita.
G
IULIANNI
, N.(1996). A terapêutica da linguagem: lugar de entrecruzamento de discursos.
In: O
LIVEIRA
,
S.
L.;
P
ARLATO
,
E.;
R
ABELLO
, S. (Org.). O falar da linguagem 1. São
Paulo: Lovise, 1996. p. 55-61.
______. (1996). Aulas sobre a aquisição da linguagem, proferidas na FEPI Centro Dra.
Lydia Coriat, Buenos Aires, inédito.
255
G
UELLER
, A. S. Vestígios do tempo. São Paulo: Arte e Ciência, 2005.
H
OUAISS
, A. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa, 2001.
J
ALLEY
, E. Freud, Wallon, Lacan: l’enfant au miroir. Paris: E.P.E.L., 1998.
J
AKOBSON
, R. Lenguaje infantil y afasia. Buenos Aires: Ayuso, 1969.
J
ERUSALINSKY
, A. Psicanálise do autismo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1984.
______. (1988). Psicanálise e desenvolvimento infantil. Porto Alegre: Artes Médicas,
1989.
______. La educación es terapéutica? (Parte I). In: Escritos de la infancia 4. Buenos
Aires: F.E.P.I - Centro Lydia Coriat, 1994. p.11-16.
______. Como a linguagem é transmitida? Revista da Associação Psicanalítica de
Curitiba, Curitiba, n. 4, p. 9-15, 2000.
______. Transmissão e transferência na clínica psicanalítica. Correio da APPOA, Porto
Alegre, ano IX, n. 80, p. 52-59, jun. 2000.
______. O nascimento do sujeito: da voz à letra. In: Seminários I. São Paulo: Instituto de
Psicologia da USP, 2001. p. 9-29.
______. Seminário sobre linguagem. DERDIC Faculdade de Fonoaudiologia PUC-SP,
2002, inédito.
______. A metáfora paterna e sua relação com a alíngua. In: V
ORCARO
, A. (Org.). Quem
fala na língua? Sobre as psicopatologias da fala. Salvador: Ágalma, 2004, p. 73-92.
______. Angústia e gozo do Outro. Notas do seminário proferido em São Paulo em 16 de
junho de 2007a, APPOA, inédito.
______. Algumas questões para elaborar a teoria do brincar. Seminário proferido em
novembro de 2007b, São Paulo: APPOA, inédito
______. Saber falar. Petrópolis: Vozes, 2008.
J
ERUSALINSKY
, J. O esquerdo do academicismo. Correio da APPOA, Porto Alegre, n.
83, p. 28-34, 2000.
______. Enquanto o futuro não vem a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês.
Salvador: Ágalma, 2002a.
______. Crônica de um bebê com morte anunciada. In: B
ERNARDINO
,
L.
M.
F.;
R
OHENKOHL
, C. M. (Org.). O bebê e a modernidade: abordagens teórico-clínicas. São
Paulo: Casa do Psicólogo, 2002b. p. 169-178.
256
______. Temporalidade e clínica com bebês. 2003. 313 p., Dissertação (mestrado em
Psicologia Clínica), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
______. Prosódia e enunciação na clínica com bebês: quando a entoação diz mais do que
se queria dizer. In: V
ORCARO
, A. (Org.). Quem fala na língua? Sobre as psicopatologias da
fala. Salvador: Ágalma, 2004. p. 206-228.
______. Clínica interdisciplinar com bebês: qual a importância clínica de considerar a
especificidade desse campo. In: W
AJNTAL
, M. (Org.). Clínica com crianças, enlaces e
desenlaces. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2008. p. 30-50.
K
AUFMANN
, P. (1993). Dicionário enciclopédico de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1996.
K
LEIN
, M. (1926). Fundamentos psicológicos del análisis del niño. In: El psicoanálisis de
niños. Obras completas de Melanie Klein. Buenos Aires: Paidós, 1990. v. 2, p. 23-34.
______. (1930). A importância da formação dos símbolos no desenvolvimento do ego. In:
Amor, culpa, reparação e outros trabalhos (1921-1945). Obras completas de Melanie
Klein. Rio de Janeiro: Imago. v. 1, p. 249-264.
______. (1952). Sobre a observação do comportamento dos bebês. In: Os progressos da
psicanálise. Rio de Janeiro: LTC, 1982. p. 256-289.
K
EHL
, M. R. A mínima diferença: masculino e feminino na cultura. Rio de Janeiro: Imago,
1996.
K
OMPINSKY
, E. Observação de bebês: método e sentimentos do observador. In: C
ARON
, A.
N. (Org.). A relação pais-bebê da observação à clínica. São Paulo: Casa do Psicólogo,
2000. p. 9-43.
L
ACAN
, J. (1945). El tiempo lógico y el aserto de certidumbre antecipada. In: Escritos 1.
Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 1988. p. 187-203.
______. (1946). Acerca de la causalidad psíquica. In: Escritos 1. Buenos Aires: Siglo
Veintiuno, 1988. p.142-183.
______. (1948). La agresividad en psicoanálisis. In: Escritos 1. Buenos Aires: Siglo
Veintiuno, 1988. p. 94-116.
______. (1949). El estadio del espejo como formador de la función del yo tal como se nos
revela en la experiencia psicoanalítica. In: Escritos 1. Buenos Aires: Siglo Veintiuno,
1988. p. 86-93.
______. (1953-1954). O seminário. Livro 1. Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar: 1986.
______. (1954-1955). O seminário. Livro 2. O eu na teoria de Freud e na técnica da
psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
257
______. (1955-1956). O seminário. Livro 3. As psicoses. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1988.
______. (1956). El seminario sobre la carta robada. In: Escritos 1. Buenos Aires: Siglo
Veintiuno, 1988. p. 5-55.
______. (1956-1957). O seminário. Livro 4. As relações de objeto. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1995.
______. (1957a). El psicoanálisis y su enseñanza. In: Escritos 1. Buenos Aires: Siglo
Veintiuno, 1988. p. 419-440.
______. (1957b). La instancia de la letra en el inconsciente o la razón desde Freud. In:
Escritos 1. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 1985. p. 473-509.
______. (1957-1958). O seminário. Livro 5. As formações do inconsciente. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1999.
______. (1957-1958). El seminário 5. Las formaciones del inconsciente. Edición
electrónica de texto establecido para circulación interna de la Escuela Freudiana de Buenos
Aires.
______. (1958). La significación del falo. In: Escritos 2. Buenos Aires: Siglo Veintiuno,
1988. p. 665-675.
______. (1959a). Observación sobre el informe de Daniel Lagache: psicoanálisis y
estructura de la personalidad. In: Escritos 2. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 1988. p. 627-
664.
______. (1959b). El seminario 6. El deseo y su iterpretación. Edición electrónica de texto
establecido para circulación interna de la Escuela Freudiana de Buenos Aires.
______. (1959-1960). El seminario. Libro 7. La ética del psicoanálisis. Buenos Aires:
Paidós, 1988.
______. (1960a). Ideas directivas para un congreso sobre sexualidad femenina. In: Escritos
2. Buenos Aires: Siglo Veintiuno, 1987. p. 704-715.
______. (1960b). Subversión del sujeto y dialética del deseo. In: Escritos 2. Buenos Aires:
Siglo Veintiuno, 1987. p. 773-807.
______. (1961-1962). El seminario 9. La identificación. Edición electrónica de texto
establecido para circulación interna de la Escuela Freudiana de Buenos Aires.
______. (1962-1963). O seminário. Livro 10. A angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2005.
______. (1964). El seminario. Libro 11. Los cuatro conceptos fundamentales del
psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós, 1995.
258
______. (1965). El seminário 12. Problemas cruciales para el psicoanálisis. Edición
electrónica de texto establecido para circulación interna de la Escuela Freudiana de Buenos
Aires.
______. (1969a). Dos notas sobre el niño. In: Intervenciones y textos 2. Buenos Aires:
Gedisa, 1993. p. 55-57.
______. (1969b). El seminário 16. De un otro al Otro, clase 14, 12 de março de 1969,
Edición electrónica de texto establecido para circulación interna de la Escuela Freudiana de
Buenos Aires.
______. (1969-1970). O seminário. Livro 17. O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1992.
______. (1971a). Lituraterra, aula 7 do seminário 18. Che vuoi?, Porto Alegre, ano 1, n. 1,
1986, p. 17-32.
______. (1971b). Seminario 18. De un discurso que no seria del semblante. Edición
electrónica de texto establecido para circulación interna de la Escuela Freudiana de Buenos
Aires.
______. (1972). Seminário 19. ...Ou Pire, clase 5 “El saber del psicoanalista”, Edición
electrónica de texto establecido para circulación interna de la Escuela Freudiana de Buenos
Aires.
______. (1972-1973a). O seminário. Livro 20. Mais ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1985.
______. (1972-1973b). El seminário 20. Mas aun. Edición electrónica para circulación
interna da Escuela Freudiana de Buenos Aires.
______. (1973-1974). Seminário 21. Le non-dupes errent, Edición electrónica de texto
establecido para circulación interna de la Escuela Freudiana de Buenos Aires.
______. (1975-1976). O seminário. Livro 23. O sinthoma. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2007.
______. (1976-1977). Seminário 24. L’insu que sait de l’une-bevue s’aile à mourre.
Edición para circulación interna de la Escuela Freudiana de Buenos Aires.
L
APLANCHE
,
J.;
P
ONTALIS
, J.-B. (1982). Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins
Fontes, 1997.
L
AZNIK
, M. C. (1996). Poderíamos pensar numa prevenção da síndrome autística? In:
W
ANDERLEY
, D. (Org.). Palavras em torno do berço. Salvador: Ágalma, 1997. p. 35-51.
______. A voz como primeiro objeto da pulsão oral. Estilos da clínica, São Paulo, v. 5, n.
8, p. 80-93, 2000.
259
L
EVI
-S
TRAUSS
, C. (1949). As estruturas elementares do parentesco. Petrópolis: Vozes,
1982.
M
AGRITTE
, R. La Reproduction Interdit, 1937.
M
OUSSAIEFF
, Masson J. A correspondência completa de Sigmund Freud para Wilhelm
Fliess – 1887-2004. Rio de Janeiro: Imago, 1986.
M
ÉLEGA
, M. P. A contribuição de Esther Bick à clínica psicanalítica. Revista Psychê, São
Paulo, ano V, n. 7, p. 71-83, 2001.
M
ELMAN
, C. (1984). Novos estudos sobre a histeria. Porto Alegre: Artes Médicas, 1985.
______. (1985a). Questions de clinique psychanalytique. Seminaire de L’annèe 1985-6, 10
de outubro de 1985. Paris: AFI.
______. (1985b). Novos estudos sobre o inconsciente. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.
______. (1989). Imigrantes. São Paulo: Escuta, 1992.
M
ILLER
, J.-A. (1996). A criança entre a mulher e a mãe. Colóquio de mesmo nome,
Lausanne.
M
ILNER
, J. C. (1995). A obra clara. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996.
O
ROBORO
: revista de Poesia e Arte, n.2, dezembro-janeiro-fevereiro de 2004 - 2005.
P
EAGUDA
, S. Juegos precursores del Fort-da. In: Escritos de la infancia 8. Buenos Aires:
FEPI Centro Lydia Coriat, 1999. p. 35-41.
P
EREIRA
, M. E. C. Formulando uma Psicopatologia Fundamental. Revista
Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 60-76, mar.
1998.
P
EREIRA
, R. F. Doador revisitado. WWW.elidatessler.com.br, 2002.
P
IAGET
, J. (1959). El nacimiento de la inteligencia en el niño. Madrid: Aguiar, 1972.
P
OMMIER
, G. (1985). A exceção feminina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987.
______. (1993). Nacimiento y renacimiento de la escritura. Buenos Aires: Nueva Visión,
1996.
P
ROUST
, M. (1913). No caminho de Swann. In: Em busca do tempo perdido. 21. ed., São
Paulo: Globo, 2001.
R
ABELLO
, S. Dizeres de crianças: jogos de repetições e modulações tonais entoando jogos
subjetivos. 2004. 211 p., Tese (doutorado em Psicologia Clínica), Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo.
260
R
EGO
, C. Traço, letra, escrita. Rio de Janeiro: Sete Letras, 2006.
R
ICKES
, S. Riscos e tempo. In: C
OSTA
, A.; R
INALDI
, D. (Org.). Escrita e psicanálise. Rio
de Janeiro: Companhia de Freud, 2007. p. 63-77.
R
IVIÉRE
, J. (1929a). La feminilidad como mascarada. In: La sexualidad femenina. Buenos
Aires: Escritos Polêmicos, ____, p. 7-23.
_______. (1929b). La féminité en tant que mascarade. La Psychanalyse, Paris, n. 7, 1964.
R
ODULFO
, R. O brincar e o significante. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
R
OLLING
S
TONES
. Album Beggars Banquet, gravadora Decca, 1968.
R
OSA
, M. D. Psicanálise na universidade: considerações sobre o ensino da psicanálise nos
cursos de psicologia. Revista Psicologia USP, São Paulo, v. 12, n. 2, p. 189-199, 2001.
R
OWLING
,
J
.
K
.
Harry Potter e a pedra filosofal. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
S
AUSSURE
, F. (1922). Curso de linguística general. Buenos Aires: Losada, 1945.
S
OUZA
, E. A. A vida entre parênteses. Correio da APPOA, Porto Alegre, ano IX, n. 80, p.
13-23, jun. 2000.
______. Escrita das utopias: litoral, literal, lutoral. In: C
OSTA
, A.; R
INALDI
, D. (Org.).
Escrita e psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2007. p. 239-253.
S
OUZA
, O. Aspectos do encaminhamento da questão da cientificidade da psicanálise no
movimento psicanalítico. In: P
ACHECO
,
R.
A.;
C
OELHO
J
R
.,
N.;
R
OSA
, M. D. (Org.).
Ciência, pesquisa, representação e realidade em psicanálise. São Paulo: Educ/Casa do
Psicólogo, 2000. p. 205-233.
S
PINELLI
, M. Pensando a linguagem. In: O
LIVEIRA
,
S.
L.;
P
ARLATO
,
E.;
R
ABELLO
, S.
(Org.). O falar da linguagem – 1. São Paulo: Lovise, 1996. p. 17-22.
S
PITZ
, R. (1965). El primer año de vida del niño. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Econômica, 1992.
T
ESSLER
, E. (1999). Doador. Porto Alegre: II Bienal do Mercosul.
V
ALAS
, P. (1998). As dimensões do gozo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
V
ELOSO
, C. Ele me deu um beijo na boca. Intérprete: Caetano Veloso. In: Caetano Veloso.
Cores e nomes. Rio de Janeiro: Universal Music Brasil, 1982. 1 CD.
______. A tua presença morena. Intérprete: Caetano Veloso. In: Caetano Veloso.
Circulado ao vivo. Rio de Janeiro: Universal Music Brasil, 1991. 1 CD.
V
ORCARO
, A. A criança na clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Companhia de Freud,
1997.
261
______. O organismo e a linguagem maternante: hipótese de trabalho sobre as condições
do advento da fala e seus sintomas. In: C
ONGRESSO
I
NTERNACIONAL DE
P
SICANÁLISE E
C
LÍNICA DE
B
EBÊS
. 2001, Curitiba.
______. O organismo e a linguagem maternante: hipótese de trabalho sobre as condições
do advento da fala e seus sintomas. In:
B
ERNARDINO
,
L.
M.
F.;
R
OHENKOHL
, C. M. F.
(Org.). O bebê e a modernidade: abordagens teórico-clínicas. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2002a. p. 65-84.
______. Prefácio sobre o tempo, estímulo e estrutura. In: J
ERUSALINSKY
, J. Enquanto o
futuro não vem a psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês. Salvador: Ágalma,
2002b. p. 11-20.
______. Os dragões do tempo primordial: a repetição como primeira identificação. In:
Leite, N. V. de Araújo (Org.). Corpolinguagem: gestos e afetos. Campinas: Mercado das
Letras, 2003. p. 215-231.
W
ILDE
, O. (1890). O retrato de Dorian Gray. São Paulo: Ediouro, 1998.
W
INNICOTT
, D. (1941). La observación de niños en una situación fija. In: Escritos de
pediatria y psicoanálisis. Barcelona: Edictorial Laia, 1958. p. 79-1
______. (1956). Preocupación maternal primária. In: Escritos de pediatria y psicoanálisis.
Barcelona: Edictorial Laia, 1958. p. 405-412.
______. (1960). La relación inicial de una madre con su bebé. In: La família y el
desarrollo del individuo. Buenos Aires: Hormé, 1984.
______. (1966). La madre de devoción corrient. In: Los bebés y sus madres. Buenos Aires:
Paidós, 1993.
______.
(1971). Realidad y juego. Barcelona: Gedisa, 1994.
______.
(1987). Los bebés y sus madres. Buenos Aires: Paidós, 1993.
262
ANEXO 1
Elida Tessler (1999). Doador.
263
ANEXO 2
Ziraldo (1989). Lo-bo-lo-bo. In: Chapeuzinho Amarelo.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo