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as palavras como coisas, produzindo com elas anagramas, ou fazendo-se valer de sua
polissemia.
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Freud busca articular a relação entre a instância psíquica do inconsciente e a da
Consciência, do conteúdo latente com o manifesto, apontando-nos claramente que, ao
procurar, por meio da interpretação dos sonhos, a passagem de uma instância para outra,
encontra-se com o fato de que o conteúdo onírico é comparável a uma escrita
hieroglífica.
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Aponta-nos que a figuração onírica coloca dificuldades semelhantes às que
a escritura hieroglífica oferece à sua tradução. Ainda que a primeira não tenha o propósito
de ser compreendida,
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a segunda, mesmo que algum dia o tivesse, é uma língua perdida.
Por meio de tal comparação, Freud apresenta claramente uma metáfora escritural dos
conteúdos psíquicos, pondo em relevo o caráter enigmático que os sonhos, assim como os
sintomas ou atos falhos comportam. Ele aposta firmemente na possibilidade de interpretá-
los seguindo a trilha de suas sucessivas condensações e deslocamentos. No entanto, afirma:
(...) mesmo nos sonhos melhor interpretados é preciso
frequentemente deixar um lugar nas sombras, porque na
interpretação observa-se que daí tem início uma madeixa de
pensamentos oníricos que não se deixa desemaranhar, mas que
tampouco faz outras contribuições ao conteúdo do sonho. Esse é,
então, o umbigo do sonho, o lugar no qual ele se assenta no
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No texto "O inconsciente" (1915), Freud retomará esta questão ao situar que cada instância do aparelho
psíquico tem um modo de operar com a representação, tratando de diferentes formas os traços nelas inscritos
e implicando um complexo mecanismo de transcrições de uma instância para outra do aparelho. O processo
primário, relativo ao que é inconsciente, opera com a representação-coisa [sachevorstellung] e o secundário,
implicando o verbal na "tomada de consciência", enlaça a representação-coisa com a representação-palavra
[wortvorstellung]. Ambos, no entanto, partem do vorstellungrepräsentanz, ou do representante que
representa a pulsão no aparelho psíquico. Deste modo, o psiquismo sempre estaria lidando com inscrições
que não guardam correspondência com a coisa, sempre com traços e nunca com a coisa em si. Isto permite
uma equiparação com o que Saussure propõe e Lacan retoma quanto à arbitrariedade do signo linguístico em
relação ao referente. É interessante notar também como, nesse texto, Freud aponta que na esquizofrenia,
assim como nas imagens oníricas, as palavras são tratadas como coisa, de acordo com as leis do processo
primário, por condensações e deslocamentos, p. 227. Isso faz com que as formações do inconsciente se
produzam de modo análogo a um rébus, ou como uma escrita cifrada. Tal questão daria lugar a uma outra
correlação possível – ainda que tais conceitos não se equivalham plenamente – entre: representação-coisa/
traço-letra e representação-palavra/ traço-significante. No entanto, tal equiparação exige considerar um ponto
decisivo para a psicanálise e indiferente para a linguística, ponto trabalhado por Freud e retomado por Lacan:
O fato de a pulsão se representar na vorstellung aponta para o corpo e para a sexualidade, aspectos
excluídos da linguística, como aponta precisamente Cláudia Rego. Traço, letra, escrita, p. 125; Sigmund
Freud (1915). O inconsciente, p. 191-252.
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Sigmund Freud (1900). A interpretação dos sonhos, p. 343.
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Idem, p. 363. Optamos pela livre tradução a partir das Obras Completas da Biblioteca Nueva.