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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Letras
RELAÇÕES DO SUJEITO COM A SIGNIFICAÇÃO:
DOS POSICIONAMENTOS PARAFRÁSTICOS AOS
MOVIMENTOS POLISSÊMICOS
Glória Dias Soares Vitorino
Belo Horizonte
2009
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Glória Dias Soares Vitorino
RELAÇÕES DO SUJEITO COM A SIGNIFICAÇÃO:
DOS POSICIONAMENTOS PARAFRÁSTICOS AOS
MOVIMENTOS POLISSÊMICOS
Texto apresentado ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais como
parte dos requisitos necessários para obtenção
do grau de Doutor em Lingüística e Língua
Portuguesa.
Orientadora: Profª Drª Maria de Lourdes
Meirelles Matencio.
Belo Horizonte
2009
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Glória Dias Soares Vitorino
RELAÇÕES DO SUJEITO COM A SIGNIFICAÇÃO:
DOS POSICIONAMENTOS PARAFRÁSTICOS AOS
MOVIMENTOS POLISSÊMICOS
Texto apresentado ao Programa de Pós-
Graduação em Letras da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais como
parte dos requisitos necessários para obtenção
do grau de Doutor em Lingüística e Língua
Portuguesa.
______________________________________________________________________
Profª. Drª Ida Lúcia Machado (UFMG)
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Manoel Luiz Gonçalves Corrêa (USP)
______________________________________________________________________
Profª Drª Angela Del Carmem Bustos Romero de Kleiman (UNICAMP)
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Hugo Mari (PUC/MINAS)
______________________________________________________________________
Profª Drª Maria de Lourdes Meirelles Matencio (PUC/MINAS)
Orientadora
______________________________________________________________________
Prof. Dr. Hugo Mari
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras da PUC/MINAS
Belo Horizonte, 10 de agosto de 2009
DEDICATÓRIA
ESPECIAL
Minha maior vitória é poder dedicar este trabalho a meu marido, José Carlos Vitorino, e a
meus filhos, Ana Carla Dias Vitorino e Breno Augusto Dias Vitorino.
Agradeço-lhes, sensibilizada, a participação afetiva, o apoio incondicional e a absoluta
compreensão em todos os momentos em que precisei me recolher para me dedicar a este
estudo. Sem vocês, sequer teria tido a necessária motivação para começá-lo.
A
GRADECIMENTOS
A Deus, porque me concedeu vida e saúde para finalizar este trabalho.
A meus pais, Jair Dias Loures e Maria Soares Dias, pela vida e por tudo o que me
ensinaram.
A todos os meus irmãos, porque souberam compreender minha opção e seguidas ausências.
A todos os que possibilitaram as condições de produção deste estudo, e, de modo especial, aos
alunos do curso de Letras, do UnilesteMG, que, cooperativamente, realizaram as atividades de
leitura propostas.
Ao corpo docente da Pós-Graduação em Letras, da PUC/MINAS, que me ofereceu o estímulo e o
apoio necessários à viabilização deste projeto.
A meu Grupo de Pesquisa, LePTeCco, pela valiosa interlocução durante toda a realização
deste estudo.
Ao UnilesteMG, pelo apoio financeiro e pela compreensão nas ausências.
Ao colegas do curso de Letras e de Pedagogia, do UnilesteMG, pelo constante diálogo e pela
cooperação, sempre que se fez necessário.
AGRADECIMENTO ESPECIAL
Profª. Drª Maria de Lourdes Meirelles Matencio
Toda minha gratidão à professora doutora Maria de Lourdes Meirelles
Matencio. Obrigada, Malu, por suas valiosas sugestões, pelos incisivos
comentários, pelas pacientes instruções, e, principalmente, por
compartilhar comigo, nos últimos sete anos, sua rica e intensa
experiência de pesquisadora.
Tecendo a manhã
Um galo sozinho não tece a manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro: de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzam
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma tela tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
João Cabral de Melo Neto
R
ESUMO
Este texto é resultado de um estudo investigativo sobre relações do sujeito com a significação,
incidindo sobre a percepção de efeitos de sentido, do ponto de vista da recepção, em situação
de ensino-aprendizagem, num espaço institucional de educação formal. Para a realização do
estudo, consideraram-se, especialmente, pressupostos teóricos da Análise do Discurso (AD),
quadro teórico cuja relevância decorre do fato de nos permitir compreender uma relação de
interdependência entre língua / sujeito / circunstâncias sócio-históricas / sentido. Na
abordagem do corpus, analisaram-se tanto situações em que se atribuem sentidos com base
no pré-construído no âmbito das práticas sociais, quanto outras que se situam no universo da
subversão, do confronto, do conflito, o que nos permitiu observar a emergência de novas
redes significativas. De tal modo, pôde-se pensar a produção do sentido, considerando-se as
relações sujeito/interdiscurso (processos parafrásticos) e sujeito/atualidade do sentido
(processos polissêmicos), e, por extensão, a leitura. Para a coleta de dados, foram
consideradas três diferentes propostas de leitura, da qual participaram sujeitos-leitores-
professores em processo de formação inicial. O objetivo final deste estudo foi
descrever/explicar/investigar alguns princípios teóricos norteadores da produção do sentido, a
partir de uma situação de ensino-aprendizagem, na esfera acadêmica, que, a exemplo, de
outras instâncias sociais, delimitam sócio-historicamente os discursos e seus processos
constitutivos.
TERMOS-CHAVE: Processos de significação. Paráfrase. Polissemia. Efeitos de sentido.
Sentido. Sujeito-leitor. Leitura. Ensino-aprendizagem.
A
BSTRACT
This text is the result of an investigative study about signification processes, focusing over the
perception of meaning effects at the reception's point of view, in a teaching-learning situation,
at a formal educational institute. To accomplish this study, we considered the theoretical
assumptions of the Discourse Analysis, theoretical framework whose relevance derives from
the fact that it enables the understanding of a relationship of interdependence between
language / subject / socio-historical circumstances / meaning. In addressing the corpus, we
looked to the situations that meaning are given on the basis of pre-built social practices
(stability), and also the situations which are at the subversion or confrontation domain
(instability), which led us to the observation of new significance networks. So, we could think
about the production of meaning, considering the subject/interdiscourse (paraphrastic
processes) and subject/actuality relations (polysemic processes), and, by extension, the
reading. For the data collection, three different reading proposals were considered. Subject-
readers-teachers in the process of initial training participated. The goal of this study was to
describe / explain / investigate some theoretical principles guiding the production of meaning
from a situation of teaching-learning in the academic sphere, which, following the example of
other social bodies, bound socio-historically the speeches and their constituent processes.
KEYWORDS: Signification processes. Paraphrase. Polysemy. Meaning effects. Meaning.
Subject-reader. Reading. Teaching-learning.
L
ISTA
DE
F
IGURAS
F
IGURA
1:
T
EXTO
I ................................................................................................................ 109
F
IGURA
2:
T
EXTO
II ............................................................................................................... 110
F
IGURA
3:
T
EXTO
III ............................................................................................................. 111
F
IGURA
4:
T
EXTO
IV ............................................................................................................. 112
F
IGURA
5:
T
EXTO
V ............................................................................................................... 113
F
IGURA
6:
C
HARGE
................................................................................................................ 214
L
ISTA
DE
G
RÁFICOS
G
RÁFICO
1:
P
RINCIPAIS CATEGORIAS EVIDENCIADAS NO CORPUS
...................................... 127
G
RÁFICO
2:
C
ATEGORIAS MAIS EVIDENCIADAS QUANTITATIVAMENTE NO CORPUS
(G
RUPO
A) .................................................................................................................................... 128
G
RÁFICO
3:
C
ATEGORIAS MAIS EVIDENCIADAS QUANTITATIVAMENTE NO CORPUS
(G
RUPO
B) .................................................................................................................................... 129
G
RÁFICO
4:
C
ATEGORIAS MAIS EVIDENCIADAS QUANTITATIVAMENTE NO CORPUS
(G
RUPO
C) .................................................................................................................................... 130
G
RÁFICO
5:
R
EFERÊNCIA À CENA GENÉRICA NO CORPUS
T
EXTOS DE
1
A
5 ...................... 152
G
RÁFICO
6:
C
ORRELAÇÃO TÍTULO
/
GÊNERO
G
RUPO
B ..................................................... 153
G
RÁFICO
7:
C
ORRELAÇÃO TÍTULO
/
GÊNERO
G
RUPO
C ..................................................... 154
G
RÁFICO
8:
D
ADOS DO CORPUS SOBRE ESTRATÉGIA TEXTUAL DOMINANTE
...................... 184
G
RÁFICO
9:
D
ADOS DO CORPUS SOBRE ESTRATÉGIA TEXTUAL
G
RUPO
B ......................... 186
G
RÁFICO
10:
D
ADOS DO CORPUS SOBRE ESTRATÉGIA TEXTUAL
G
RUPO
C ....................... 189
G
RÁFICO
11:
D
ADOS EVIDENCIADOS PERCENTUALMENTE NO CORPUS A PROPÓSITO DA
CATEGORIA GÊNERO DO DISCURSO
............................................................................... 192
G
RÁFICO
12:
D
ADOS DO CORPUS A PROPÓSITO DA CATEGORIA
LUGAR INSTITUCIONAL
G
RUPOS
A,
B
E
C ............................................................................................................ 203
L
ISTA
DE
Q
UADROS
Q
UADRO
1:
P
ROPOSTAS DE
L
EITURA
...................................................................................... 31
Q
UADRO
2:
E
NUNCIADO E CATEGORIAS APRESENTADAS AOS SUJEITOS DA PESQUISA
,
NA
PROPOSTA DE LEITURA
I ................................................................................................ 108
Q
UADRO
3:
P
RINCÍPIO TEÓRICO NORTEADOR DA PRODUÇÃO DO SENTIDO
-
1 .................... 136
Q
UADRO
4:
P
RINCÍPIO TEÓRICO NORTEADOR DA PRODUÇÃO DO SENTIDO
-
2 .................... 138
Q
UADRO
5:
P
RINCÍPIO TEÓRICO NORTEADOR DA PRODUÇÃO DO SENTIDO
-
3 .................... 144
Q
UADRO
6:
P
RINCÍPIO TEÓRICO NORTEADOR DA PRODUÇÃO DO SENTIDO
4 ................... 160
Q
UADRO
7:
P
RINCÍPIO TEÓRICO NORTEADOR DA PRODUÇÃO DO SENTIDO
5 ................... 168
Q
UADRO
8:
P
RINCÍPIO TEÓRICO NORTEADOR DA PRODUÇÃO DO SENTIDO
6 ................... 172
Q
UADRO
9:
P
RINCÍPIO TEÓRICO NORTEADOR DA PRODUÇÃO DO SENTIDO
7................... 178
Q
UADRO
10:
E
NUNCIADOS E CATEGORIAS APRESENTADAS AOS SUJEITOS DA PESQUISA
,
NA
PROPOSTA DE LEITURA
II ............................................................................................... 182
Q
UADRO
11:
P
RINCÍPIO TEÓRICO NORTEADOR DA PRODUÇÃO DO SENTIDO
8 ................. 197
Q
UADRO
12:
E
NUNCIADO APRESENTADO AOS SUJEITOS DA PESQUISA
,
NA PROPOSTA DE
LEITURA
III .................................................................................................................... 200
Q
UADRO
13:
E
NUNCIADO E CATEGORIAS APRESENTADAS AOS SUJEITOS DA PESQUISA
,
NA
PROPOSTA DE LEITURA
III ............................................................................................. 201
Q
UADRO
14:
P
RINCÍPIO TEÓRICO NORTEADOR DA PRODUÇÃO DO SENTIDO
9 ................. 206
Q
UADRO
15:
P
ROCEDIMENTOS EXTERNOS DE CONTROLE DO DISCURSO
............................. 209
Q
UADRO
16:
P
ROCEDIMENTOS EXTERNOS DE CONTROLE DO DISCURSO
............................. 210
Q
UADRO
17:
P
RINCÍPIO TEÓRICO NORTEADOR DA PRODUÇÃO DO SENTIDO
-
10 ................ 212
Q
UADRO
18:
P
ROCEDIMENTOS EXTERNOS DE CONTROLE DO DISCURSO
............................. 213
Q
UADRO
19:
P
ROCEDIMENTOS EXTERNOS DE CONTROLE DO DISCURSO
............................. 215
Q
UADRO
20:
P
RINCÍPIO TEÓRICO NORTEADOR DA PRODUÇÃO DE SENTIDO
11 ................ 217
Q
UADRO
21:
P
RINCÍPIO TEÓRICO NORTEADOR DA PRODUÇÃO DO SENTIDO
-
12 ................ 219
L
ISTA
DE
T
ABELAS
T
ABELA
1:
P
RINCIPAIS CATEGORIAS EVIDENCIADAS NO CORPUS
ATIVIDADE DIAGNÓSTICA
........................................................................................................................................ 126
T
ABELA
2:
C
ORRELAÇÃO TÍTULO
/
GÊNERO DO DISCURSO
G
RUPO
A ................................ 150
T
ABELA
3:
C
ORRELAÇÃO TÍTULO
/
GÊNERO DO DISCURSO
G
RUPO
B ................................ 151
T
ABELA
4:
C
ORRELAÇÃO TÍTULO
/
GÊNERO DO DISCURSO
G
RUPO
C ................................ 151
T
ABELA
5:
D
ADOS DO CORPUS SOBRE A CATEGORIA
ESTRATÉGIA TEXTUAL
G
RUPO
A 184
T
ABELA
6:
D
ADOS DO CORPUS A PROPÓSITO DE ESTRATÉGIA TEXTUAL
ATIVIDADE
DIAGNÓSTICA VERSUS ATIVIDADE DIRECIONADA
G
RUPO
A ...................................... 185
T
ABELA
7:
D
ADOS DO CORPUS SOBRE ESTRATÉGIA TEXTUAL
G
RUPO
B ........................... 186
T
ABELA
8:
D
ADOS DO CORPUS A PROPÓSITO DE ESTRATÉGIA TEXTUAL
ATIVIDADE
DIAGNÓSTICA VERSUS ATIVIDADE DIRECIONADA
-
G
RUPO
B ....................................... 187
T
ABELA
9:
D
ADOS DO CORPUS SOBRE ESTRATÉGIA TEXTUAL
G
RUPO
C ........................... 188
T
ABELA
10:
D
ADOS DO CORPUS A PROPÓSITO DE ESTRATÉGIA TEXTUAL
ATIVIDADE
DIAGNÓSTICA VERSUS ATIVIDADE DIRECIONADA
G
RUPO
C ...................................... 190
T
ABELA
11:
D
ADOS DO CORPUS A PROPÓSITO DA CATEGORIA GÊNERO DO DISCURSO
G
RUPOS
A,B
E
C ............................................................................................................ 191
T
ABELA
12:
D
ADOS DO CORPUS A PROPÓSITO DA CATEGORIA
LUGAR INSTITUCIONAL
G
RUPOS
A,
B
E
C ............................................................................................................ 202
S
UMÁRIO
MOTIVAÇÃO, DELIMITAÇÃO, FUNDAMENTOS TEÓRICOS ................................. 17
1 A PESQUISA .................................................................................................................. 25
1.1 A
NÁLISE DO
D
ISCURSO
:
QUADRO EPISTEMOLÓGICO
............................................. 25
1.2 O
BJETIVOS DA PESQUISA
,
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
............................................. 26
1.3 C
ARACTERIZAÇÃO DOS SUJEITOS DA PESQUISA E ESCOLHA DO CURSO DE
L
ETRAS
..
...............................................................................................................................................28
1.4 METODOLOGIA:P
ROCEDIMENTOS DA COLETA DE DADOS E CONSTITUIÇÃO DO
CORPUS
................................................................................................................................. 29
1.4.1 Proposta de leitura I ............................................................................................ 31
1.4.2 Proposta de leitura II ........................................................................................... 32
1.4.3 Proposta de leitura III ......................................................................................... 32
1.5 O
RGANIZAÇÃO DO TRABALHO
................................................................................. 33
2 ANÁLISE DO DISCURSO DA VERTENTE FRANCESA: UMA CONJUNÇÃO
LÍNGUA/SUJEITO/SENTIDO/CIRCUNSTÂNCIAS ....................................................... 36
2.1 AD:
D
IFERENTES DIMENSÕES ENVOLVIDAS NA PROBLEMÁTICA DO SUJEITO E DO
SENTIDO
................................................................................................................................ 37
2.1.1 Língua, sujeito, conjuntura em AD .................................................................... 44
2.1.2 Os sujeitos: seres afetados pelo inconsciente e pela ideologia ........................... 47
2.1.3 Conjuntura: processos histórico-sociais de produção da língua/linguagem .... 52
2.2 P
ÊCHEUX E
F
OUCAULT
:
UM DIÁLOGO PROFÍCUO
................................................... 55
2.3 L
ÍNGUA
,
SUJEITO
,
HISTÓRIA
:
ESPAÇO DE ARTICULAÇÃO E DE
ENTREMEIO
PARA
A
AD................ ..................................................................................................................... 59
2.3.1 Ideologia e discurso: compreendendo os processos de significação ................. 61
2.3.2 Análise do discurso e enunciação ....................................................................... 63
3 SUJEITO-LEITOR, SENTIDO, CIRCUNSTÂNCIAS SÓCIO-HISTÓRICAS ...... 66
3.1 D
O SUJEITO AO AUTOR
,
DO AUTOR AO SUJEITO
? .................................................... 66
3.2 S
UJEITO
,
SENTIDO E CIRCUNSTÂNCIAS SÓCIO
-
HISTÓRICAS
:
UMA ABORDAGEM NO
ÂMBITO DA
A
NÁLISE DO
D
ISCURSO
..................................................................................... 76
3.3 G
ÊNEROS DO DISCURSO NO UNIVERSO BAKHTINIANO
:
SUJEITO
-
LEITOR E
PRODUÇÃO DO SENTIDO
....................................................................................................... 87
3.3.1 A natureza dialógica dos gêneros do discurso: responsividade,
intercambialidade e polifonia .......................................................................................... 87
3.3.2 Locutor/Alocutário: intercambialidade e protagonismo nos processos
enunciativos ..................................................................................................................... 91
3.3.3 Gêneros do discurso e dialogismo: diversidade, flexibilidade e
irreprodutibilidade ........................................................................................................... 95
3.3.4 Gêneros do discurso, dialogismo e heterogeneidade discursiva ........................ 97
3.3.5 Gêneros do discurso, interdiscursividade e intertextualidade ........................... 99
4 A PERCEPÇÃO DE EFEITOS DE SENTIDO NO ÂMBITO ACADÊMICO EM
SITUAÇÃO DE ENSINO-APRENDIZAGEM ................................................................. 102
4.1 R
ECONHECIMENTO DO GÊNERO DO DISCURSO
:
UM FATOR DE
ECONOMIA
COGNITIVA
”........................................................................................................................ 102
4.1.1 O gênero “Comunicado”: o texto sob o foco do quadro social de sua produção
e circulação .................................................................................................................... 114
4.2 A
PERCEPÇÃO DO
“C
OMUNICADO
NO ÂMBITO ACADÊMICO EM SITUAÇÃO DE
ENSINO
-
APRENDIZAGEM
.................................................................................................... 125
4.2.1 Conteúdo/assunto: sentidos predeterminados pelo sistema e pelo texto ......... 133
4.2.2 Locutor/alocutário: intercambialidade e responsividade nos processos
interlocutivos .................................................................................................................. 138
4.2.3 Gêneros do discurso: enunciados inscritos numa esfera da atividade humana
145
4.2.4 Linguagem: materialidade do texto e percepção do sentido ............................ 161
4.2.5 Suporte: um meio de acessibilidade ao texto nas práticas sociais ................... 169
4.2.6 Dialogismo constitutivo: o texto como parte de uma cadeia de processos
interlocutivos .................................................................................................................. 173
5 RELAÇÕES DO SUJEITO COM A SIGNIFICAÇÃO: A INTELIGIBILIDADE, A
INTERPRETAÇÃO E A COMPREENSÃO ..................................................................... 180
5.1 A
DETERMINAÇÃO SÓCIO
-
HISTÓRICA DOS PROCESSOS DE SIGNIFICAÇÃO
........... 180
5.2 S
ENTIDO
:
POSIÇÕES IDEOLÓGICAS POSTAS EM JOGO NUM PROCESSO SÓCIO
-
HISTÓRICO
.......................................................................................................................... 198
6 DAS RELAÇÕES DO SUJEITO NOS PROCESSOS SIGNIFICATIVOS ........... 220
6.1 S
ÍNTESE DOS PRIMEIROS RESULTADOS
:
P
ROPOSTA DE LEITURA
I
ATIVIDADE
DIAGNÓSTICA
..................................................................................................................... 220
6.2 S
ÍNTESE DOS RESULTADOS
:
P
ROPOSTAS DE LEITURA
II
E
III
ATIVIDADES
DIRECIONADAS
................................................................................................................... 221
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................... 225
REFERÊNCIAS ................................................................................................................... 229
I
NTRODUÇÃO
MOTIVAÇÃO, DELIMITAÇÃO, FUNDAMENTOS TEÓRICOS
Meu interesse por estudos que podem favorecer a compreensão de fatores determinantes no
processo de constituição do sentido, considerando-se a conjunção sujeito / língua / história /
ideologia, foi um dos principais motivos que me conduziram à realização deste trabalho. Ao
partir desse foco, meu intuito foi investigar diferentes dimensões da linguagem envolvidas na
percepção do sentido por sujeitos-leitores, em situação de ensino-aprendizagem, na esfera
acadêmica, com base em princípios teóricos que se situam no domínio dos estudos
discursivos, mais precisamente, naqueles que se inscrevem na denominada Análise do
Discurso (AD).
A relevância desse quadro teórico deve-se não somente ao fato de conceber a linguagem
como “mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social” (ORLANDI, 2002,
p. 15), mas também por apresentar um sujeito “linguístico-histórico, constituído pelo
esquecimento e pela ideologia” (op. cit., p.91). Vista pela AD como um “mecanismo
estruturante do processo de significação” (op. cit., p. 96), essa concepção de ideologia nos
permite “compreender como os objetos simbólicos produzem sentidos por / para sujeitos
afetados pela história e pela ideologia” (op. cit.: p. 26).
Ao discutir esse quadro epistemológico da AD, busco compreender relações do sujeito com a
significação com base em reflexões que, fundamentalmente, têm o discurso como objeto de
estudo (FOUCAULT, 1981/1966, 1986/1969, 2004/1971). Estudos cuja dimensão nos
interessa justamente porque provocaram debates acirrados por parte de outros pesquisadores
(sobretudo, PÊCHEUX, 2001/1969, 2001/1983), dentro de um campo de pesquisa que
resultou no que, atualmente, vem sendo denominado Análise do Discurso – AD.
Trata-se de reflexões que podem contribuir para a compreensão dos processos de constituição
do sentido, tais como as que abrangem a articulação sujeito/objeto do saber/poder/identidade.
Quanto às reflexões de Pêcheux, recorro, principalmente, as que rumam em direção a uma
problematização do conceito de formação discursiva, proposto por Foucault (op. cit.). Tal
concepção sustenta a recusa de toda suposição de um sujeito intencional como origem
18
enunciadora de seu discurso, implicando o processo de produção discursiva, a partir de uma
maquinaria autodeterminada e fechada sobre si mesma.
Além desses estudos, apresento reflexões que defendem o primado do interdiscurso sobre o
discurso (AUTHIER-REVUZ, 1982, 1990; MAINGUENEAU, 1997), inaugurando uma
vertente que se pode dizer bastante atual em AD. Desse ponto de vista, o sujeito descentrado,
fragmentado, clivado entre o consciente e o inconsciente. O grande mérito dessas concepções
teóricas decorre do fato de contribuir para a compreensão da gênese da AD. Entre outras
questões fundamentais, leva em conta o imperativo de se considerar o discurso como “efeitos
de sentido” (PÊCHEUX, 2001[1969], p. 82). Então, não se concebe um discurso já posto com
o qual poderíamos ter um contato inicial, que, para se ter acesso ao discurso, é preciso
recorrer ao texto – uma materialidade linguístico-histórica.
Uma das principais decorrências dessas formulações conceituais para o estudo que desejo
realizar é o fato de se sustentarem num princípio de constitutividade do discurso, do sujeito,
do sentido, das condições de produção no processo enunciativo (MUSSALIN, 2001, p. 101-
144). Por isso não se ocupam do discurso sob um foco estritamente linguístico, contribuindo,
assim, para a formação de atitudes bastante produtivas em face do ensino-aprendizagem da
leitura nos espaços institucionais de educação formal.
Há, ainda, uma outra motivação que me conduziu a este objeto de estudo. Durante um período
de vinte e sete anos (1973/2000), dediquei-me exclusivamente ao trabalho docente nos níveis
fundamental (5ª a séries) e médio (1ª a séries) em escolas públicas e particulares. Nesse
período, foi possível perceber lacunas em relação ao ensino de língua/linguagem, ao constatar
inúmeras vezes a emergência de se operar com propostas de ensino tidas como mais
significativas. Fato é que havia um desejo explícito de mudanças de minha parte e da parte de
muitos colegas professores, mas não sabíamos exatamente o que fazer, como fazer, por onde
começar. Somente nos últimos dez anos (1998/2008), quando decidi investir mais em minha
própria formação (especialização lato sensu e stricto senso), pude constatar que novas
propostas requerem novas concepções de linguagem, que concebam uma língua viva, em
funcionamento. Isso em substituição a uma tradição de aula em que o ensino de língua se
resume ao estudo de gramática normativa, privilegiando apenas o estudo de um sistema de
regras, começando pelas unidades mínimas até a dimensão da frase, atendo-se, portanto, ao
estudo da forma em detrimento do estudo de outras dimensões da linguagem.
19
Soma-se à experiência no nível fundamental e médio, minha nova prática docente, a partir de
2001, no Ensino Superior, nos cursos de Letras e Pedagogia. Considerando-se apenas práticas
de leitura, no âmbito desse domínio acadêmico-científico, também, foi possível perceber que
dificuldades em relação à leitura não são muito diferentes das que haviam sido observadas
nos níveis anteriores. Diante dessa constatação, no período de especialização stricto sensu, em
especial, evidenciou-se para mim a necessidade de se realizar um estudo investigativo sobre a
leitura e a escrita a partir de uma nova concepção de linguagem. Na ocasião (2001/2003),
devido ao imperativo de delimitação de meu objeto de estudo, optei por realizar um trabalho,
abordando o texto e a leitura sob o foco de concepções sociointeracionistas desenvolvidas por
Bakhtin (2006/1929) e alguns de seus seguidores, envolvendo, sobretudo, o fenômeno
dialógico como princípio constitutivo da linguagem e condição do sentido do discurso
(VITORINO, 2003).
Considerando-se esses breves registros sobre minha experiência de trabalho, vejo que é
possível somar esforços aos existentes, sobretudo os que consideram o texto, a leitura e o
sujeito-leitor à luz de concepções dialógicas de linguagem, desenvolvidas por Bakhtin
(2006/1929, 2000/1979) e alguns de seus estudiosos, tais como Authier-Revuz (op. cit.). Uma
das possibilidades de abordagem em relação ao ensino de língua/linguagem é, a meu ver, a
realização de um trabalho mais sistemático, regular e mesmo rotineiro que contemple
dimensões enunciativo-discursivas da linguagem no processo de formação do sujeito-leitor,
desde os anos iniciais de sua escolaridade. Trata-se, por exemplo, de realizar, em situação de
ensino-aprendizagem, práticas de leitura que abranjam a heterogeneidade e a complexidade
do rico repertório de gêneros relativamente estabilizados e/ou emergentes, em especial, os
que circulam na área de atuação e formação dos aprendizes, levando-se em conta que o
gênero materializa o discurso, que é visto pela AD como “um processo que coloca o
linguístico em relação com o histórico” (GREGOLIN, 2001, p. 2-3).
Outra possibilidade que se abre é a discussão sobre uma aproximação entre as categorias
texto/discurso, sujeito/sentido/assujeitamento, situadas num quadro teórico da AD como uma
das formas para se compreenderem fatores envolvidos no processo de significar. Categorias
que podem ser discutidas sob a perspectiva de diferentes teóricos (sobretudo, FOUCAULT,
PÊCHEUX, MAINGUENEAU, AUTHIER-REVUZ, POSSENTI, op. cit.), considerando-se
suas relações de convergência, divergência, complementaridade, em busca de uma ampliação
do campo de visão dessas relações, de modo a pensar os processos de significação.
20
Tendo até aqui exposto, ainda que sucintamente, sobre o que se propõe realizar, neste estudo,
uma questão fundamental que se coloca e se deseja evidenciar é a especificidade da Análise
do Discurso da vertente francesa (AD) no tratamento da relação sujeito/sentido/circunstâncias
sócio-históricas para que se possa compreender fatores determinantes do sentido. Trata-se do
fato de a AD se ocupar da linguagem enquanto produzida numa determinada circunstância
histórica e social, fazendo sentido para “sujeitos inscritos em estratégias de interlocução, em
posições sociais ou em conjunturas históricas” (MAINGUENEAU, 1997, p.11-12), sem
desconsiderar seu caráter formal. Enfim, para a AD, a linguagem “não se dá como evidência”,
ao contrário “oferece-se como lugar de descoberta” (ORLANDI, 2002, p.16).
Uma perspectiva que nos permite problematizar, entre outras dimensões da linguagem, a
relação sujeito/sentido como sendo comandada por uma exterioridade constitutiva (o
interdiscurso, a memória do dizer. Por esse viés, o que importa a este estudo é a possibilidade
de contribuir para que se estabeleça uma relação entre os discursos e suas condições de
produção como constitutivas do sentido, ou melhor, dos “efeitos de sentido”; além de se
considerar a primazia do interdiscurso (rede de memórias) sobre o discurso, um fenômeno
denominado heterogeneidade constitutiva (AUTHIER-REVUZ, op. cit.). Dessa perspectiva,
o texto é visto como tendo a propriedade intrínseca de se constituir a partir de outros textos,
sendo, por isso, atravessado pelo discurso do outro. Se “efeitos de sentido”, não sentido
dado a priori. Se assim é, permite-nos investigar dispositivos que governam as relações
sujeito/efeitos de sentido, estabelecendo-se possíveis vínculos entre sentido e memória
discursiva na qual as formulações relacionam-se historicamente.
Se, por um lado, esse plano enunciativo-discursivo nos permite compreender fatores
relacionados aos processos de significação, contribuindo para a compreensão do processo de
constituição do sentido, por outro, põe em questão, desde seus primórdios, a noção de sentido
como “mensagem” veiculada pelo significante ou como “conteúdo” a ser identificado pelo
leitor.
21
No caso da AD, trata-se de uma especificidade, pois trabalhar com uma noção de que
a relação com a linguagem não é de evidências, é propor que “o sentido é história” e o sujeito
do discurso “se faz (se significa) na/pela história” (ORLANDI, 2002, p.95). O que interessa,
21
Além da AD, vertentes como a sociolingüística interacional (Goffman, 2002, Gumperz, 2002) e outras
concepções sociointeracionistas de linguagem, tais como as desenvolvidas por Bakthin (1929/1999), além de
outros pesquisadores (Bronckart, 1999; Koch, 1997, 2002, 2005; Geraldi, 2000) já abordam dimensões da
linguagem que podem facilitar o estabelecimento de uma rede de relações entre textos, desconsiderando,
portanto, a imanência do sentido.
21
sobretudo, é focalizar a “palavra em movimento” que resulta no discurso (ORLANDI, 2002,
p. 15), o que pode nos ajudar a compreender noções, tais como a de assujeitamento,
cristalização de sentidos, rupturas em face de pré-contruídos. Discutem-se essas concepções
devido a sua relevância para a compreensão da noção de sujeito que sustenta este estudo, ou
seja, um ser psicossocial.
Quanto ao assujeitamento, no interior da AD, nas chamadas fase 1 (AD-1) e fase 2 (AD-2),
diz respeito ao fato de um indivíduo ser levado a ocupar um determinado lugar numa esfera
social, e, sem que tenha consciência disso, venha a identificar-se ideologicamente com tal
grupo ou classe. Desse lugar, acredita que tem plena consciência do que diz e sobre o controle
dos sentidos de seu discurso (FOUCAULT, op. cit.). Ponto de vista em que não se concebe
um sujeito individual.
a subjetividade é concebida, neste estudo, no âmbito do que se denomina terceira fase da
AD (AD-3), momento em que o sujeito é tido como constitutivamente heterogêneo, clivado
entre o consciente e o inconsciente (AUTHIER-REVUZ, op. cit.). Adoto, também, outros
estudos do discurso, como os de Possenti (2002) e Orlandi (2002), segundo os quais é
possível atribuir um papel ativo ao sujeito, que, por sua vez, pode produzir alterações “sobre e
a partir do discurso do outro” (POSSENTI, 2002, p. 69), sem, no entanto, considerar que o
sujeito seja uma instância completamente livre e independente de quaisquer coerções.
É principalmente dentro desse quadro teórico que se situa o objeto de pesquisa proposto, em
que se busca compreender os processos de significação, tendo como objetivos centrais: i)
realizar uma investigação, abrangendo as relações do sujeito com a significação, incidindo
sobre a percepção de efeitos de sentido, do ponto de vista da recepção, em situação de ensino-
aprendizagem, num espaço institucional de educação formal, envolvendo a possível relação
sujeito/circunstâncias cio-históricas, de tal modo que se possa descrever/explicar/investigar
alguns princípios norteadores do sentido; ii) contribuir para uma investigação mais efetiva e
criteriosa sobre os movimentos pelos quais os processos de significação se constituem em
esferas ditas escolares e/ou acadêmicas.
Essa linha de investigação nos permite compreender o sujeito-leitor, realizando (ou não)
deslocamentos, rupturas, enfrentamentos em face de pré-construídos e já-ditos, constituindo-
se (ou não) como um sujeito livre, ativo, reflexivo, “criativo” (ORLANDI, 2002, p. 38).
Assim, pode-se evitar uma leitura que parta de uma mentalidade normativa e reguladora, tal
22
como se os sujeitos estivessem impossibilitados de exercer o pleno direito da “criatividade”,
vista, neste estudo, como a possibilidade de o sujeito promover rupturas em relação a
processos cristalizados de produção do sentido. É, pois, fundamental que o sujeito vivencie
conflitos, confrontos, novos gestos de compreensão, dispositivos que podem favorecer a
produção de novos sentidos.
Pensando dessa forma, neste estudo, nos ocupamos, de modo especial, de formulações
teóricas propostas por Authier-Revuz (op. cit.). Com base em estudos dessa autora, o sujeito
é visto como constitutivamente heterogêneo, resultado da relação “eu” e o “outro”
(inconsciente), problematizado pela história, pela ideologia, pela psicanálise (lacaniana), o
qual revela sua constituição clivada, descentrada entre o consciente e o inconsciente. Essa
relação identidade/alteridade é o que nos interessa, sobretudo. Essa concepção de sujeito é
fecunda (AUTHIER-REVUZ, op. cit.) para o que se propõe investigar porque contribui,
efetivamente, para que se possa compreender o processo de significação. Significar, por um
lado, pode ser atribuir sentidos, estabelecendo-se uma rede de relações entre textos por meio
de processos parafrásticos, por outro, pode ser atribuir sentidos por meio de processos
polissêmicos (ORLANDI, 2002, p.36).
Processos parafrásticos são aqueles pelos quais “em todo dizer há sempre algo que se
mantém” (op. cit.). Significar, parafraseando, é sedimentar saberes, retornar aos mesmos
espaços do dizer, estabilizar sentidos. Já os processos polissêmicos dizem respeito a um jogo
polissêmico que, ao contrário do jogo parafrástico, leva ao “deslocamento, à ruptura de
processos de significação” (op. cit.), e pode conduzir o sujeito ao conflito, ao confronto,
portanto, à construção de novos significados. Vejamos.
É nesse jogo entre paráfrase e polissemia, entre o mesmo e o diferente, entre o já-
dito e o a se dizer que os sujeitos e os sentidos se movimentam, fazem seus
percursos, se significam. Se o real da língua não fosse sujeito a falha e o real da
história não fosse passível de ruptura não haveria transformação, não haveria
movimento possível, nem dos sujeitos, nem dos sentidos. É porque a língua é
sujeita ao equívoco e a ideologia é um ritual com falhas que o sujeito ao significar,
se significa (ORLANDI, 2002, p. 36-37).
Esse processo de significação – paráfrase/polissemia, mesmo/diferente, já-dito/a ser dito – nos
permite retomar/recorrer a três conceitos centrais neste estudo: i) memória discursiva; ii)
gênero discursivo; iii) formação discursiva. Memória discursiva diz respeito à possibilidade
de “a cada momento, o discurso poder enviar a um enunciado precedente. É, aliás, uma
propriedade constitutiva de certos tipos de discurso” (MAINGUENEAU, 2000, p. 96). Com
23
base nesse conceito, pode-se pensar o sujeito-leitor, intuitivamente, estabelecendo relações de
sentido entre textos, sem, necessariamente, confrontá-los materialmente com outros textos.
Essa possível relação ocorre não de meros efeitos de significantes, mas de relações
interdiscursivas complexas.
Além de ser um dos conceitos que contribuem para a compreensão de alguns fatores
determinantes da produção de sentidos, o conceito de memória discursiva pode explicar as
possíveis relações entre as práticas discursivas e o processo de recepção de textos. Textos que
se configuram em gêneros do discurso, isto é, atividades humanas de linguagem, fenômenos
históricos que se relacionam a aspectos culturais e sociais (BAKHTIN, 2000, p. 277-326).
Vistos dessa forma, os gêneros contrapõem-se à concepção que, usualmente, vem sendo dada
ao texto, quando se adota uma concepção de língua como sendo um sistema abstrato e
estruturado, com normas fixas e mesmo imutáveis. Mas não se pode falar de gêneros sem
considerar a esfera de atividades em que se constituem e atuam, implicadas as
características sócio-comunicativas, o apelo ao social, pensando-se, por exemplo, que “cada
esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciado” (p. 279).
Por isso não é de se surpreender que os gêneros sejam tão variados como as próprias esferas
da atividade humana. Quanto à concepção de formação discursiva (FD), neste estudo,
recorremos à proposta por Pêcheux (1997, p. 160), para quem FD diz respeito a
aquilo que, numa formação ideológica dada, isto é, a partir de uma posição dada
numa conjuntura dada, isto é, determinada pelo estado da luta de classes, determina
o que pode e deve ser dito (articulado sob a forma de uma arenga, de um sermão, de
um panfleto, de uma exposição, de um programa, etc).
Ponto de vista em que falar de um certo “lugar” significa inserir-se em uma “formação
discursiva”. Ao recorrermos às concepções de memória discursiva, gênero discursivo e
formação discursiva, mais uma vez, reafirmamos nosso propósito de compreender a
linguagem “à medida que esta faz sentido para sujeitos inscritos em estratégias de
interlocução, em posições sociais ou em conjunturas históricas” (MAINGUENEAU, 1997,
p.11). Esse quadro teórico está em conformidade com os objetivos previamente traçados e a
natureza das questões que nos propusemos investigar. A partir desses conceitos, é possível
compreender que os diversos discursos que atravessam uma FD não se constituem
independentemente uns dos outros.
24
Na construção do quadro teórico inicial da AD, ao invés de se estudarem os discursos mais
estabilizados, produzidos nas instituições que lhes garantem a relação saber/poder, conforme
propunha, inicialmente, a AD, Authier-Révuz (op. cit.) articulou o dialogismo baktiniano
(1999) à concepção de heterogeneidade constitutiva, de modo a considerar que o Outro está
sempre presente numa formação discursiva, mesmo não sendo revelado. A concepção de
heterogeneidade discursiva favorece a compreensão da relação de estabilidade (memória, já-
ditos, pré-construídos) e instabilidade (atualidade) em que se envolve o sujeito no processo de
construção dos sentidos nas práticas discursivas. Ao me ancorar em tais fundamentos, busco
compreender processos de construção do sentido, tendo, então, como mais um dos pilares, os
conceitos de interdiscurso e de heterogeneidade discursiva, que propõem um papel de
primazia à presença de discursos outros na constituição de um discurso (AUTHIER-REVUZ,
op. cit.).
Esses estudos colocam em evidência um sujeito essencialmente heterogêneo, dividido entre o
consciente e o inconsciente, marcado pela ideologia, uma concepção que nos permite
compreender o processo de constituição do sentido, à luz de um sujeito linguístico-histórico-
ideológico-cultural. Esses princípios teóricos também podem contribuir para que possamos
compreender como os objetos simbólicos produzem sentidos por/para sujeitos afetados pela
história e pela ideologia (ORLANDI, 2002), indo em direção a um dos imperativos, neste
estudo, que é discutir possíveis correlações, envolvendo as categorias sujeito/discurso/sentido.
Somam-se a esses estudos outros que se apóiam nas teorias do discurso (BRAIT, 1994, 2001;
BRANDÃO, 1997, 1998; GREGOLIN, 2001, 2004; ORLANDI, 2001, 2002, 2003, 2004a,
2004b; POSSENTI, 2001, 2002; SEGUIN, 1994; por exemplo), os quais também contribuem
para a realização de discussões que nos ajudam a compreender a variedade e a complexidade
de textos que emergem de diferentes esferas sociais.
Tal base nos possibilita investigar possíveis vestígios de dimensões sócio-históricas-
discursivas consideradas relevantes por sujeitos-leitores, ao atribuir sentidos a textos. Com
isso, não se descarta a importância de uma base linguística (regida por normas fonológicas,
sintáticas, morfológicas) na constituição do sentido. Assim, o foco central deste trabalho é
realizar uma investigação sobre processos de significação, sob o foco do sujeito-leitor, em
situação de ensino-aprendizagem, na esfera acadêmica.
25
C
APÍTULO 1
1 A PESQUISA
Neste capítulo, o propósito é situar o leitor em relação à pesquisa desenvolvida, evidenciando
os conceitos teóricos centrais, os objetivos propostos, a abordagem metodológica seguida, em
relação aos instrumentos de pesquisa, à coleta de dados, aos sujeitos da pesquisa e à
organização do corpus.
1.1 Análise do Discurso: quadro epistemológico
A Análise do Discurso (AD) ao delimitar, como seu objeto de estudo, a correlação
língua/sujeito/circunstâncias sócio-históricas/sentido (MUSSALIM, 2001; ORLANDI, 2002;
POSSENTI, 2004) põe “em suspenso a noção de leitura” (ORLANDI, 2002, p. 25), ou
melhor, “formula uma teoria da leitura” (POSSENTI, op. cit., p. 358), tratando basicamente
de uma concepção de discurso, “tendo como fundamental a questão do sentido” (ORLANDI,
2002, p. 25).
Concebido como “efeito de sentidosentre locutores (PÊCHEUX, 2001[1969], p. 82, aspas
do autor), bem como um “objeto sócio-histórico em que o linguístico intervém como
pressuposto” (ORLANDI, 2002, p. 16), o discurso é um conceito que emergiu nos anos
sessenta, decorrente do reconhecimento de que não há como compreender o funcionamento da
linguagem humana, sustentando-se apenas na dicotomia língua (instância objetiva) e fala
(instância subjetiva) proposta por Saussure (1996 [1916]). À AD interessa, pois, focalizar “a
palavra em movimento” (ORLANDI, 2002, p. 15) que resulta no discurso, concebendo um
sujeito problematizado pela história, pela ideologia, pela psicanálise, o qual revela sua
constituição clivada, descentrada e contraditória (MUSSALIN, 2001; ORLANDI, 2002;
POSSENTI, 2004).
Quanto à dimensão que a AD atribui ao sentido centra-se numa concepção de linguagem que
a configura como uma “mediação necessária entre o homem e a realidade natural, social
(ORLANDI, 2002, p. 15), portanto, não dotada de transparência. Sentido, desse ponto de
26
vista, não é função de um significante/palavra, mas de significantes/palavras em relação de
mútua substituibilidade, “mas apenas em cada discurso historicamente dado” (POSSENTI,
2004, p. 372-373, grifo do autor).
Esse quadro teórico é de meu particular interesse, neste estudo, justamente, porque pretendo
abordar processos de constituição do sentido, à luz de um sujeito social-histórico-ideológico.
Essa relevância resulta também do deslocamento que se faz da concepção de homem para a de
sujeito, por nos permitir conceber a leitura de uma perspectiva sócio-histórica-ideológica,
segundo a qual a relação com a linguagem não é de imanência, ao contrário, a linguagem
faz sentido porque se inscreve num determinado tempo/espaço/circunstância. Ler, dessa
perspectiva, é, principalmente, compreender como os objetos simbólicos produzem sentidos
por/para sujeitos afetados pela história e pela ideologia (ORLANDI, 2002). Adota-se esse
referencial teórico, sobretudo, porque, a partir dele, são geradas condições propícias para se
investigar o processo de constituição do sentido, um dos imperativos, neste estudo.
1.2 Objetivos da pesquisa, pressupostos teóricos
Este trabalho tem como um dos objetivos centrais realizar uma investigação a propósito de
elementos norteadores do sentido, em situação de ensino-aprendizagem, na esfera acadêmica,
envolvendo sujeitos-professores-leitores, em processo de formação inicial. Centro também
meu interesse em descrever/explicar/investigar alguns princípios teóricos que sejam
relevantes para a compreensão dos processos de significação, nesse mesmo âmbito. Nessa
abordagem, considero o quadro teórico proposto, complementarmente aos resultados obtidos
por meio da análise de corpus, com o principal intuito de investigar, tanto a atribuição de
sentidos que confirmam a estabilidade, o (pré)estabelecido no âmbito das práticas sociais
(memória discursiva, já-ditos, pré-construídos) como a que se situa no universo da subversão,
do confronto, da instabilidade (atualidade), possibilitando a emergência de novas redes de
sentido.
Para a realização do estudo, foram considerados pressupostos teóricos da Análise do Discurso
(AD). Esse referencial foi o escolhido devido ao tratamento que confere à correlação língua /
sujeito / circunstâncias sócio-históricas na constituição do sentido. Em decorrência, uma
abordagem de sujeito que o concebe descentrado, constitutivamente heterogêneo, parte de um
27
corpo histórico-social (MUSSALIN, 2001; ORLANDI, 2002; POSSENTI, 2004). Adoto essa
concepção de sujeito porque, entendendo o sujeito desse modo, a linguagem é relacionada a
sua exterioridade, de forma que a tríade língua/história/sociedade é vista como
interdependente, o que nos permite pensar o processo de produção do sentido, envolvendo a
possível relação sujeito/atualidade do sentido/memória discursiva.
Ainda em consonância com essa abordagem, segundo a qual os gêneros do discurso são
pensados como manifestação do discurso numa determinada “cena enunciação”
(MAINGUENEAU, 2001, p. 85-93; 2006, p. 111-131), objetivou-se discutir fatores
determinantes de certos sentidos evidenciados pelos sujeitos da pesquisa em registros de
leitura, realizados em instância institucional de Ensino Superior, em situação de ensino-
aprendizagem.
Complementarmente, não se ignora o quadro social onde são produzidos os textos, cuja
produção e circulação têm uma relação de constutividade com as “cenas de sua enunciação”
(MAINGUENEAU, 2001, p. 85-93; 2006, p. 111-131). Esse quadro teórico contribui para
uma investigação mais criteriosa sobre o modo pelo qual efeitos de sentido são percebidos a
partir da leitura de diferentes textos.
Ao me ancorar em fundamentos da AD tidos como mais recentes (MAINGUENEAU, 2001,
2005, 2006, sobretudo), sem desconsiderar completamente os primórdios da AD (PÊCHEUX,
1975a, 1975b, 1997, 2001 [1969], 2002), além de outros estudos complementares (BARROS,
1999; BRANDÃO, 1997; BRAIT, 1994, 2001; BRONCKART, 1999; ORLANDI, 1998,
2001, 2002; MARI, 2002; MARI e SILVEIRA, 2004; MATENCIO, 2002, 2004, 2006a,
2006b, 2007; entre outros), busco compreender o processo de construção do sentido, tendo,
como um dos pilares, o papel de primazia do intertextual sobre o textual (AUTHIER-REVUZ,
1982).
Enfim, ao adotar esse ponto de vista, meu intuito foi utilizar os fundamentos básicos da AD
para: i) discutir a especificidade e a funcionalidade do quadro epistemológico da AD para a
compreensão de fatores que fundamentam o processo de produção do sentido; ii) analisar
situações que resultam em posicionamentos de conformidade e/ou de ruptura de sentido em
face de pré-construídos, tendo, como base, categorias, tais como conteúdo, locutor/alocutário,
gênero do discurso/domínio discursivo, linguagem/estratégia textual dominante (natureza
linguística do texto), suporte, dialogismo constitutivo. Essas categorias foram selecionadas,
28
principalmente, porque evidenciam um conjunto de dimensões relacionadas à atribuição de
sentido ao texto; ressaltam seu caráter dialógico; além de colocarem em evidência aspectos
configuracionais (de natureza formal), de natureza sócio-histórica, constitutivos do sentido.
Por essa razão, favorecem uma leitura que dê conta de um fenômeno próprio a todo discurso –
o dialogismo e suas diferentes manifestações, além de diferentes cenografias implicadas,
quando for o caso.
O que se colocou em jogo, na verdade, é o fato de que um texto pode se definir não apenas a
partir de um “espaço estável no interior do qual o enunciado ganha sentido”
(MAINGUENEAU, 2006, p. 112), mas fazendo intervir uma outra cena a cenografia. A
cenografia, por sua vez, “não é imposta pelo tipo ou pelo gênero de discurso”, mas sim
“instituída pelo próprio discurso” (op. cit.). É com base na cenografia construída pelo texto
cujo efeito é “inevitavelmente fazer passar a cena englobante e a cena genérica ao segundo
plano” (p. 113) que se aponta para sentidos não propriamente estabilizados, levando o sujeito-
leitor a perceber deslocamentos, rupturas, enfrentamentos, de modo que se constitua como um
sujeito que dê conta da possibilidade da emergência de sentidos.
1.3 Caracterização dos sujeitos da pesquisa e escolha do curso de Letras
Os sujeitos da pesquisa são alunos de um curso de Letras, do turno noturno, em um Centro
Universitário, situado no Vale do Aço, interior de Minas Gerais. Esses alunos residem em
cidades que compõem a microrregião denominada Vale do Aço (Antônio Dias, Coronel
Fabriciano, Timóteo, Belo Oriente, Braúnas, Ipatinga, Santana do Paraíso, entre outras).
Pode-se dizer que são ainda jovens, pois a faixa etária varia entre 21 e 30 anos, com algumas
poucas exceções. A maioria é do sexo feminino (mais de 80%) e trabalha no horário diurno
em diferentes áreas, principalmente no comércio, em indústrias e siderúrgicas locais, bem
como em instituições escolares (creches, serviços administrativos ou ciclos iniciais do ensino
fundamental). Trata-se, então, de trabalhadores-alunos e não de alunos-trabalhadores.
A escolha de graduandos do curso de Letras se deveu, sobretudo, ao fato de envolver futuros
profissionais da língua/linguagem, em pleno processo de formação inicial, “(re) construindo
suas concepções de língua e de linguagem e de ensino/aprendizagem a partir das práticas
29
educativas vivenciadas em sua formação” (MATENCIO, 2002). Em razão disso, pode-se
depreender que, num futuro próximo, tornar-se-ão responsáveis pela formação de novos
leitores, ao exerceram a função de professor. A escolha desse curso deveu-se, ainda, ao fato
de a professora-pesquisadora ministrar, nas turmas em que foram coletados os dados,
algumas disciplinas que compreendiam, entre outras abordagens, concepções de
língua/linguagem e seu processo de ensino-aprendizagem.
Assim considerando, o professor-pesquisador tinha conhecimento de que esses alunos vinham
desenvolvendo estudos mais sistemáticos, de natureza teórica e prática, a propósito do ensino-
aprendizagem da leitura, com base em estudos linguísticos que compreendiam abordagens
discursivas e enunciativas da linguagem (BAKHTIN, 2000 [1979]; MAINGUENEAU, 1997,
2000, 2001; MARCUSCHI, 2002, 2008, entre outros). Esses estudos eram direcionados para
a própria formação desses sujeitos-leitores, bem como contribuíam para uma discussão sobre
aspectos teóricos e práticos referentes à formação de novos leitores, para atuarem nos veis
fundamental e médio, para os quais estariam habilitados a atuar, ao final do curso.
Isso nos indicava que algumas categorias a serem consideradas, neste trabalho, vinham sendo,
progressivamente, trabalhadas (gêneros do discurso, locutor/alocutário, suporte, tipo textual,
entre outras), logo haviam sido objeto de estudos teóricos e práticos por parte dos graduandos.
O curso de Letras nos oferecia, ainda, oportunidade de coleta de dados, enquanto ministrava
as referidas aulas, em três etapas sucessivas do processo de formação desses leitores – 6º, e
períodos, respectivamente. Esse é um fator que poderia indicar indícios da submissão (ou
não) dos sujeitos-leitores a determinações históricas e culturais em diferentes fases de sua
formação, embora essa não fosse a questão central a ser investigada. Já a escolha dessa região
se deveu ao fato de que já vinha exercendo a função de professora de língua/linguagem nesse
local 32 (trinta e dois) anos, considerando-se a atuação em três diferentes níveis: Ensino
Fundamental, Ensino Médio e, nos últimos sete anos, apenas em nível de Ensino Superior.
1.4 Metodologia, processo da coleta de dados e construção do corpus
A coleta de dados, envolvendo um total de 62 (sessenta e dois) alunos, foi realizada em
turmas de três diferentes períodos, do curso de Letras 6º, e períodos –, em três
semestres sucessivos. Entre outras razões apontadas, essa escolha se deveu ao fato de o
professor-pesquisador acreditar que, embora não se trate propriamente de um estudo de
30
natureza longitudinal, o fato de esses sujeitos terem a oportunidade de novas reflexões
teóricas no próprio curso (concepções de língua/linguagem, princípios teóricos centrais da
Análise do Discurso, gêneros e tipos textuais, entre outros) a propósito de questões relativas
ao processo de atribuição de sentido a um dado texto, poderia interferir, de algum modo, nos
dados obtidos, que eram de caráter diagnóstico, inicialmente. Nas demais fases da coleta de
dados, as atividades foram sendo realizadas na medida em que as discussões teóricas e
práticas eram realizadas em classe, independentemente do período do curso.
Para a construção do corpus, os sujeitos da pesquisa foram convidados a realizar registros
escritos, a partir de diferentes atividades de leitura. Quanto aos textos que compuseram as
propostas, a seleção foi realizada a partir dos domínios jornalístico, publicitário, literário.
Esses domínios foram os escolhidos porque favorecem a emergência de neros que, além de
possibilitarem diferentes realizações discursivas, frequentemente, circulam na área de atuação
e formação desses sujeitos-leitores. as disciplinas envolvidas foram: Prática de Ensino II,
Didática II (6º período); Língua Portuguesa VII Análise do Discurso e Leitura (7º período);
e, por fim, Língua Portuguesa VIIIGêneros e tipos textuais (8º período). Essas disciplinas
se sustentavam em ementas que abrangiam, sobretudo, questões teóricas e práticas relativas à
própria formação do sujeito-professor-leitor, bem como ao ensino-aprendizagem da leitura e
da produção de textos nos ensinos Fundamental e Médio. Esse fator foi importante para a
coleta de dados, pelo fato de este estudo se ocupar exatamente de um dos focos abordados nas
referidas aulas leitura e formação do sujeito-leitor nos espaços institucionais de educação
formal.
As análises, por sua vez, foram realizadas com base em registros escritos, a partir dos quais
buscamos respostas para questões, tais como: i) Por que os textos oferecidos teriam produzido
para os sujeitos-leitores determinados efeitos de sentido? ii) Por que os sujeitos teriam dito
algo daquele modo e não de outro (associações/rejeições semânticas)? Para a coleta de dados,
foram apresentadas aos sujeitos-leitores propostas de leitura, a partir das quais se fizeram os
registros escritos (texto-interação).
1.4.1 Propostas de leitura: objetivos e descrição das atividades
As atividades de leitura foram pensadas para se realizarem em diferentes etapas, conforme se
apresenta no Quadro 1, a seguir.
31
Etapa 1
I
Proposta de leitura, a partir de 5 (cinco)
diferentes textos que
tinham o termo ‘Comunicado’ como título ou como palavra-
chave no título (atividade diagnóstica).
Etapa 2
II
Proposta realizada a partir de
categorias apontadas pelos sujeitos
da pesquisa nos registros escritos, além de outras
estrategicamente selecionadas pelo professor-pesquisador
(atividade direcionada).
Etapa 3
III
Atividade de leitura situada
evidenciadas no corpus
pelos próprios sujeitos da pesquisa, ora
previamente selecionadas pelo professor-
pesquisador (atividade
direcionada).
Quadro 1: Propostas de Leitura
Fonte: Elaboração própria a partir do quadro teórico proposto.
Feita uma breve apresentação das atividades propostas, passo a descrever cada uma delas,
justificando sua importância para a constituição do corpus, bem como situando o quadro
teórico em que se fundamentam.
1.4.1 Proposta de leitura I
Na primeira etapa da coleta de dados, apresentou-se aos alunos, conforme previsto, a proposta
I, de caráter diagnóstico. Nessa atividade, foram abordados 5 (cinco) diferentes textos que
apresentavam o termo comunicado” como título ou como palavra-chave no título. Esses
textos foram publicados nos jornais Estado de Minas e Hoje em Dia. Apesar de terem
características comuns em relação ao título, se configuravam em diferentes gêneros,
considerando-se, entre outras perspectivas teóricas, a bakhtiniana, segundo a qual o gênero se
caracteriza por uma estabilidade temática, composicional e estilística, e apresenta uma
natureza constitutivamente dialógica. Identidade, nesse caso, diz respeito a um dos
“paradoxos do gênero”, isto é, os gêneros são “mais ou menos imediatamente referenciáveis e
referenciados nas práticas de linguagem”, o que nos indica seu reconhecimento pelos sujeitos-
leitores. Desse modo, pode-se freqüentemente nomeá-los sem muita hesitação”, o que
sempre se faz na comunicação cotidiana (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004, p. 57)). Isso ocorre
a despeito de os gêneros nunca se prestarem a uma “definição sistemática e geral”, devido a
32
seu “caráter multiforme, maleável, ‘espontâneo’” (op. cit., aspas do autor). Com tal proposta,
desejou-se realizar um levantamento das principais categorias mencionadas nos registros, de
modo a organizar, a partir desse referencial, as mais evidenciadas e, a partir daí, elaborar a
proposta de leitura II.
1.4.2 Proposta de leitura II
O principal intuito da atividade II foi investigar se propostas mais precisas de abordagem do
texto atuariam (ou não) como elementos reguladores e/ou condicionantes de efeitos de sentido
evidenciados pelos sujeitos-leitores nos registros escritos. A precisão, nesse caso, está
relacionada ao modo de organização da proposta elaborada a partir de categorias evidenciadas
pelos sujeitos da pesquisa nos registros escritos (gênero do discurso, locutor/alocutário,
conteúdo, estratégia textual dominante) decorrentes da atividade I, de caráter diagnóstico,
além das que foram acrescentadas pelo professor-pesquisador (domínio discursivo,
linguagem, dialogismo constitutivo) pelo fato de se acreditar que contribuem para a percepção
de diferentes efeitos de sentido, além de evidenciarem um conjunto de dimensões
relacionadas à atribuição de sentidos ao texto, apontando, pois, para alguns elementos
reguladores do sentido.
1.4.3 Proposta de leitura III
A terceira proposta foi elaborada com base na seleção prévia de pequenos enunciados,
constitutivos de diferentes gêneros do discurso (charge, tirinha, propaganda, poema, notícia,
entre outros), emergentes dos domínios jornalístico, publicitário, literário. Como parte dos
critérios norteadores da seleção dos enunciados que compuseram a referida proposta foram
consideradas as categorias: i) tipologia textual; ii) grau de formalidade/informalidade da
linguagem. Esses critérios se justificam porque, do ponto de vista que adotamos, ocorre uma
clara demarcação entre tipos textuais (narração, descrição, dissertação, injunção, exposição) e
gêneros discursivos (notícia, editorial, crônica, por exemplo). Nesse caso, a escolha das
categorias selecionadas para o registro escrito (locutor/alocutário, domínio discursivo, gênero
do discurso) teve por objetivo verificar se os excertos selecionados remeteriam os sujeitos a
33
determinadas cenas de enunciação, considerando-se, sobretudo, a tipologia textual e o grau de
formalidade/informalidade da linguagem, um critério norteador da seleção dos fragmentos
que compuseram a referida proposta.
1.5 Organização do trabalho
Este estudo está organizado em 6 (seis) capítulos. Após a introdução e este primeiro capítulo,
realiza-se, no segundo capítulo, uma discussão a propósito da constituição do quadro
epistemológico em que se sustenta a Análise do Discurso (AD), ao colocar em
questionamento as concepções de língua, sujeito, conjuntura. Ao discutir a proposta inicial de
Pêcheux (2001/1969) e a de Pêcheux e Fuchs (2001/1975b), em que se apresenta o quadro
epistemológico inicial da AD, articulando três regiões do conhecimento: i) Linguística; ii)
Materialismo Histórico; iii) Psicanálise, meu objetivo foi, principalmente, discutir a
funcionalidade e a especificidade desse referencial teórico no tratamento da relação
língua/sujeito/sentido/circunstâncias sócio-históricas. Ainda neste capítulo, realizo um
diálogo com outros estudiosos da AD (BRANDÃO, 1997; MALDIDIER, 2003; MUSSALIM,
2001; ORLANDI, 2002; POSSENTI, 1993, 2004, entre outros), de modo a constituir um
campo teórico propício para que se possa compreender, entre outras questões, “a maneira pela
qual a posição dos protagonistas do discurso intervém a título de condições de produção do
discurso” (PECHEUX, 2001[1969], p. 83). O que se propõe, nesse caso, são opções teóricas
que nos possibilitam compreender a relação discurso/condições de produção do discurso, de
tal forma que não se concebe a enunciação como “a situação empírica em que ocorre o
discurso”, mas sim como “a representação, a imagem que o sujeito do discurso, inserido em
determinadas condições sociais, faz das condições de produção de seu discurso”
(MUSSALIM, 2001, p. 116).
Tendo sido definida a linha teórica básica, no terceiro capítulo, retomo a discussão inicial que
diz respeito às concepções de sujeito, de sentido e de circunstância com os seguintes
propósitos: i) ampliar a reflexão realizada no segundo capítulo; ii) estabelecer possíveis
relações de proximidade entre o quadro teórico inicial da Análise do Discurso (AD) em face
de pressupostos teóricos que sustentam a Análise do Discurso (AD) a partir dos anos de 1980;
iii) dialogar com outros estudos que não se situam propriamente em AD, mas se encontram
em relação de complementaridade com essa vertente teórica. Buscando atender a esses
34
propósitos, primeiramente, coloco em pauta uma discussão relativa às concepções de sujeito e
de autor. A seguir, discuto a concepção de sujeito-leitor num quadro enunciativo-discursivo,
considerando-se, de modo especial, a relação sujeito/circunstância, que constitui o quadro de
referência em que se situam os sujeitos, além de outras restrições a que estão submetidos no
processo enunciativo. Por fim, realizo uma reflexão sobre questões conceituais relativas ao
dialogismo bakhtiniano, em que não se concebe o enunciado como uma “unidade da ngua,
mas como uma unidade da comunicação verbal cujas fronteiras são determinadas pela
“alternância dos sujeitos falantes” ((BAKHTIN, 2000, p. 295). Característica constitutiva do
gênero – a intercambialidade dos sujeitos falantes – é evidenciada pelo autor em vários
momentos de seus estudos. Segundo o autor, ao compreender a significação (lingüística) de
um discurso, o ouvinte “adota simultaneamente, para com este discurso, uma atitude
responsiva ativa: ele concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-
se para executar” (BAKHTIN,
2000, p. 290, parênteses do autor). Conforme essa abordagem,
essa atitude do ouvinte “está em elaboração constante durante todo o processo de audição e de
compreensão desde o início do discurso” (BAKHTIN, op. cit.). A partir desses estudos, além
de estudos de Maingueneau (2001, 2004, 2006), Mari e Mendes (2007, p. 20, 21) e Matencio
(2006a), ressaltam-se três dimensões da linguagem que nos possibilitam a compreensão da
noção de competência genérica : i) dimensão situacional da enunciação (identidade, papel
dos interlocutores, por exemplo); ii) organização formal do enunciado (estilo, construção
composicional, nos termos bakhtinianos); iii) condições materiais (suporte de veiculação dos
textos, restrições espaço-temporais). No entanto esse raciocínio é viável para se chegar ao
gênero do discurso se pensarmos na conjunção dessas três dimensões constitutivas do gênero
do discurso, as quais devem ser ativadas conjuntamente pelos sujeitos-leitores (MARI e
MENDES, op. cit.).
No quarto capítulo, analiso dados iniciais obtidos a partir de registros escritos realizados com
base na proposta de leitura I (atividade diagnóstica). O principal intuito é investigar a
percepção de efeitos de sentido por sujeitos-leitores, a partir da leitura de diferentes gêneros
do discurso, em situação de ensino-aprendizagem, no âmbito acadêmico. Outro propósito é
investigar sujeitos-leitores movidos pela especificidade dos títulos dos textos apresentados
para as atividades de leitura, estabelecendo (ou não) uma correspondência imediata
título/gênero. Verifico, ainda, se os sujeitos da pesquisa estiveram mais atentos a alguns
pressupostos teóricos discutidos em classe pelo professor-pesquisador, a ponto de os
considerarem, explicitamente, na folha destinada aos registros de leitura.
35
A proposta do quinto capítulo é analisar dados levantados com base nas propostas de leitura
II e III (atividades direcionadas). A proposta II foi realizada a partir de categorias apontadas
pelos sujeitos da pesquisa nos registros escritos, decorrentes da atividade I, além de outras
estrategicamente selecionadas pelo professor-pesquisador. Já a proposta III foi elaborada com
base na seleção prévia de pequenos enunciados, constitutivos de diferentes gêneros do
discurso (charge, tirinha, propaganda, poema, notícia, entre outros), emergentes dos domínios
jornalístico, publicitário, literário. Consideraram-se como parte dos critérios norteadores da
seleção dos enunciados que compuseram a referida proposta as categorias: i) tipologia
textual; ii) grau de formalidade/informalidade da linguagem. Esses critérios se justificam
porque, do ponto de vista que adotamos, ocorre uma clara demarcação entre tipos textuais
(narração, descrição, dissertação, injunção, exposição) e gêneros discursivos (notícia,
editorial, crônica, por exemplo). A esse respeito, convém esclarecer que não se pensou, de
forma alguma, numa relação imediata tipo/gênero, mas atentou-se para esse critério como um
dos fatores determinantes para se chegar à “compreensão”, pois tal atividade supõe
necessariamente uma relação do sujeito com a língua/linguagem.
Por fim, no sexto capítulo, de caráter conclusivo, retomo resultados dos dados analisados nos
capítulos 4 e 5, de forma a evidenciar as conclusões decorrentes da reflexão/investigação
realizada. O intuito final dessa discussão foi descrever/explicar/investigar alguns princípios
teóricos norteadores do sentido, a partir do âmbito acadêmico, em situação de ensino-
aprendizagem, de tal forma a delimitar fatores que sejam relevantes para a compreensão de
processos de significação nessa esfera. Em decorrência, não se deixará de apontar dimensões
da linguagem consideradas pelos sujeitos-leitores ao fazerem emergir redes de sentido, quer
nos movimentos de subversão, quer nos posicionamentos de estabilidade.
36
C
APÍTULO 2
2 ANÁLISE DO DISCURSO DA VERTENTE FRANCESA: UMA CONJUNÇÃO
LÍNGUA/SUJEITO/SENTIDO/CIRCUNSTÂNCIAS
Neste capítulo, o propósito é discutir a constituição do quadro epistemológico em que se
sustentou a Análise do Discurso (AD), ao colocar em questionamento as concepções de
língua, sujeito, conjuntura
2
. Ao discutir a proposta inicial de Pêcheux (2001/1969) e a de
Pêcheux e Fuchs (2001/1975b), em que se apresenta o quadro teórico da AD, articulando três
regiões do conhecimento: i) Linguística; ii) Materialismo Histórico; iii) Psicanálise, meu
objetivo é, principalmente, discutir a funcionalidade, a especificidade e a contribuição desse
referencial teórico para estudos investigativos que, a partir de então, vêm tratando da relação
língua/sujeito/sentido/circunstâncias sócio-históricas. Neste estudo, isso abrange, além de
uma reflexão sobre a proposta de Pêcheux e a de Pêcheux e Fuchs, um diálogo com outros
estudiosos do discurso (AUTHIER-REVUZ, 1982, 1990, 1998; BRANDÃO, 1997;
GREGOLIN, 2004; MAINGUENEAU, 1997/1987; MALDIDIER, 2003; MUSSALIM, 2001;
ORLANDI, 2002; POSSENTI, 1993, 2004, entre outros), de modo a constituir um campo
teórico propício para que se possa compreender o processo de produção do sentido.
2
Conjuntura é um conceito utilizado por Possenti (2004, p. 359) ao retomar Maingueneau (1997/1987), que, por
sua vez, fala em “lugar e cena”, abordando-os como circunstâncias que compõem o conjunto da situação de
enunciação, mas numa perspectiva diferenciada à que propõem muitos trabalhos de inspiração pragmática, para
a qual haveria uma “subjetividade enunciativa”, isto é, os sujeitos seriam movidos por “‘intenções’ cuja
consciência seria transparente e a identidade estável” (p. 32). Já para a AD, as instâncias de enunciação
(conjuntura, circunstâncias) o pensadas em termos de “lugares” numa determinada topografia social em que os
sujeitos se inscrevem, e, a partir daí, ganham sua identidade. Esse sistema de “lugares”, que ultrapassa o sujeito,
define qual é a posição que pode e deve ocupar cada indívíduo para dela ser o sujeito (Foucault, 1986/1969, p.
126). Para a AD, essa instância, na verdade, comporta duas faces. “De um lado, constitui o sujeito em sujeito de
seu discurso. Por outro lado, assujeita-o” (MAINGUENEAU, op. cit., p.32). Dada a importância desse conceito
na constituição do quadro teórico da AD, ele será discutido neste capítulo em 1.1.3.
37
2.1 AD: Diferentes dimensões envolvidas na problemática do sujeito e do sentido
Nesta seção, pretendo discutir a Análise do Discurso (AD) no momento inicial da constituição
de seu quadro epistemológico proposto por Pêcheux (2001/1969) e por Pêcheux e Fuchs
(2001/1975b), acrescentando observações e desdobramentos decorrentes do diálogo com
estudos de outros pesquisadores dessa vertente teórica. Meu objetivo principal ao escolher
esse percurso é compreender os movimentos por meio dos quais foram promovidos
determinados questionamentos sobre a natureza e o funcionamento da linguagem, bem como
o papel que desempenharam ou possam vir a desempenhar na constituição do atual quadro
teórico da disciplina AD.
Pêcheux (2001/1969), principal articulador da AD (denominada, inicialmente, Análise do
Discurso francesa), em Análise Automática do Discurso
3
, texto tido como fundador dessa
disciplina, discute algumas noções conceituais, tais como condições de produção, discurso,
lugares sociais, discurso, formações imaginárias, papéis discursivos (2001/1969, p. 77-82), as
quais constituirão o quadro teórico inicial da AD, cujo objeto de estudo é o discurso. Segundo
Maldidier (2003, p. 21), “Análise Automática do Discurso é o primeiro modelo de uma
máquina de ler que arrancaria a leitura da subjetividade”. Os princípios teóricos apresentados
nesse texto, posteriormente, são redimensionados pelo próprio Pêcheux na proposta
epistemológica que realiza com Fuchs (2001/1975b), não apenas sob o viés das Ciências
Sociais, mas também de uma perspectiva linguística.
3
Análise Automática do Discurso é um dos sete textos (capítulos) publicados no Brasil, na obra quase
homônima Por uma Análise Automática do Discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux (F. Gadet e T.
Hak, , orgs.), Campinas: Editora da Unicamp (2001/1969, p. 61-161). Em 1969, foi publicado em formato de
livro, na França. Nesse texto, Pêcheux, entre outros, questiona a concepção saussuriana de instituição, propondo
o conceito de “condições de produção” para explicar o processo de produção do discurso (p. 75-84). Mais tarde,
o próprio Pêcheux (2001/1975b, p. 163-252), em parceria com a linguista Cattherine Fuchs, retoma esse texto de
69, com o intuito de repensá-lo, preenchendo falhas apontadas pela crítica, e, muitas vezes, detectadas pelo
próprio autor, enfim, propõe reformulá-lo à luz de uma “reflexão sobre a relação entre a lingüística e a teoria do
discurso”(p. 163). Em 1975, Pêcheux publica Les rités de la Palice. Essa obra é considerada pela critica a
mais importante desse teórico. No Brasil, foi traduzida por Eni Orlandi (Unicamp) pelo nome de Semântica e
Discurso: Uma crítica à afirmação do óbvio. Nessa obra, a partir de uma discussão com as teses de Althusser
(1973), retoma, redefine, reformula conceitos abordados em textos anteriores que se tornaram clássicos em
Análise do Discurso, tais como as concepções de ideologia e de assujeitamento ideológico.
38
Como pretendo investigar algumas dimensões do processo de produção do sentido, do ponto
de vista da recepção, de forma a compreender sua relação com algo que lhe é exterior
(conjuntura cio-histórica), esse quadro teórico será considerado, neste estudo, um
referencial básico para a compreensão do processo de produção do sentido por levar em conta
a relação língua/história/discurso.
Ao propor o quadro teórico inicial da AD, cujo objeto de estudo é o discurso, Pêcheux
estabelece um diálogo com Althusser (2003/1974) e Foucault (1986/1969)
4
. Trata-se de um
diálogo, por vezes, conflituoso, por vezes, de complementaridade. Na verdade, Foucault e
Pêcheux arquitetaram distintos projetos epistemológicos com base numa chamada “tríplice
aliança” (GREGOLIN, 2004, p. 53).
Pêcheux, por sua vez, estabelece uma relação, pode-se dizer, de embate com Saussure, Marx e
Freud, propondo uma relação necessária dos estudos do discurso com a Lingüística, a partir
de uma conjunção língua/sujeito/história. Foucault, também, relaciona-se com Marx e Freud
conflituosamente. No entanto compõe sua “tríplice aliança”, dialogando com Nietzsche
(filósofo alemão 1844-1900) e encaminhando seus estudos rumo às problemáticas da
Filosofia e da História. “Pêcheux é um filósofo que se tornou linguista, sem deixar de ser
filósofo” (GREGOLIN, 2004, p. 53), tendo, também, trabalhado num Laboratório de
Psicologia Social, a partir de 1966. Já Foucault inscreve seus estudos numa tradição
filosófica.
Um dos principais diálogos entre esses dois teóricos é o que diz respeito à concepção de
ideologia (condição para a constituição dos sujeitos e dos sentidos), noção conceitual a ser
retomada e discutida ao longo deste capítulo, dada sua especificidade para a AD. Um dos
posicionamentos que mais interessam a este estudo é o fato de Foucault, assim como Pêcheux,
não conceberem o sujeito como fonte dos sentidos. No caso de Foucault, ele desconstrói a
idéia de um sujeito origem e fonte de seu dizer, sem considerar categorias clássicas do
Marxismo, tais como ideologia e luta de classes, das quais Pêcheux (1997/1975a) não abre
mão, e, em razão disso, Foucault é criticado abertamente por Pêcheux (1986/1969):
4
No percurso deste capítulo, a partir de então, a ordem de entrada dos estudos de Althusser (2003/1974) e os de
Foucault (1986/1969, entre outros) na constituição do quadro teórico da AD proposto por Pêcheux (2001/1969,
2001/1975a, 2001/1975b) não se submeterá a um caráter cronológico, mas sim a um critério de possibilidade de
sua discussão nas respectivas seções e itens.
39
Em sua Arqueologia do Saber que, por muitos aspectos, apresenta um extraordinário
interesse para a teoria do discurso, M. Foucault ‘retrocede’ sobre o que ele mesmo
avança, volta à sociologia das instituições e dos papéis, por não reconhecer a
existência da luta (ideológica) de classes (p. 254, grifo e aspas do autor).
Foucault, conforme salienta Pêcheux no fragmento anterior, não concebe a investigação de
enunciados e de sua relação de “pertencimento” a uma determinada formação discursiva
5
com
base numa noção de ideologia, conforme propõe Pêcheux (1997/1975b), para quem “várias
formações discursivas (grifo do autor) interligadas determinam o que pode e deve ser dito, a
partir de uma posição dada numa conjuntura” (p. 166). Trata-se, certamente, de uma
perspectiva que também destitui o sujeito do lugar de fonte do sentido, porque considera o
efeito de pré-construído como a modalidade discursiva da discrepância pela qual o indivíduo
é interpelado em sujeito(grifos do autor, p. 156). Uma noção, pode-se dizer, necessária
para a AD, ao considerar um sujeito de natureza linguístico-discursiva, que produz certos
sentidos e não outros sob determinadas condições.
Essa forma de pensar de Pêcheux (2001/1975b), em que a relação entre uma formação
discursiva e um determinado enunciado somente é compreensível por meio de um critério em
que a ideologia é vista como condição para a constituição dos sujeitos e dos sentidos, é uma
concepção teórica crucial para a AD, porque contribui para que se estabeleça uma relação
constitutiva entre discurso/sentido/circunstâncias sócio-históricas. Para Foucault, o sentido do
enunciado subordina-se a suas relações com outros enunciados, submetendo-se a limites que
lhe são impostos pelo lugar que ocupa entre outros enunciados. Já, para Pêcheux, o sentido
muda conforme a posição na luta de classes daqueles que o empregam.
No que diz respeito ao modo como concebem o discurso, muitos pontos em conformidade
entre os estudos de Foucault (1986/1969, 2004/1971) e os de Pêcheux (1997/1975a,
2001/1969, 2001/1975b, 2002/1983), embora se posicionem diferentemente frente às teses
marxistas althusserianas, conforme ressaltado. Para Foucault (2004/1971), o discurso está
submetido a procedimentos de coerção pelos quais se realizam o controle dos discursos, mas
não se trata de dominar os poderes que eles têm, trata-se de impor aos indivíduos que os
pronunciam certo número de regras, e, assim, não permitir que todo mundo tenha acesso a
5
Formação discursiva, uma concepção teórica introduzida por Foucault (1986/1969), e, posteriormente,
redimensionada por Pêcheux (1997/1975a, 2001/1983), é um constructo teórico que encontra bastante acolhida
na Análise do Discurso (AD), apesar da amplitude de seu emprego. Neste estudo, será objeto de reflexão no
próximo capítulo, considerando-se sua importância para a AD.
40
todo e a qualquer discurso. Ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfizer a certas
exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo (p.36).
Ainda a esse respeito, Foucault prossegue afirmando que, assim como regiões do discurso
“abertas e penetráveis”, há, também, aquelas “altamente proibidas” (p.36). Observa-se, então,
que, ao propor uma teoria do discurso nas discussões que se inserem na fase em que trata da
arqueologia nas Ciências humanas (1981/1966, 1986/1969, sobretudo), Foucault apresenta
alguns princípios para sua análise, tais como “busca de elementos que possam ser articulados
entre si e que fornecem um panorama coerente das condições de produção de um saber em
certa época” (GREGOLIN, 2004, p.71)). Estudando a produção dos saberes pelo método
denominado arqueológico, Foucault (2004/1971) adentra a sociedade para investigar como o
acontecimento discursivo emerge num determinado momento histórico, constituindo o
sujeito. Ressalta, ainda, que a produção dos saberes pode ser estudada com base no arquivo
dos enunciados que circulam numa determinada época e são controlados por uma “ordem do
discurso”:
Suponho que em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo
controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de
procedimentos que m por função conjurar seus poderes e perigos, dominar seu
acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade.[...] Sabe-se
bem que não se tem o direito de dizer tudo, não se pode falar de tudo em qualquer
circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa (2004/1971,
p. 8-9).
Pêcheux (1997/1975a), por sua vez, discorda de tal formulação, ao se posicionar criticamente
sobre a ilusão da evidência do sentido. Esse teórico, apoiando-se em Althusser (2003/1974),
afirma que
é a ideologia que fornece as evidências pelas quais ‘todo mundo sabe’ o que é um
soldado, um operário, um patrão, uma fábrica, uma greve, etc., evidências que fazem
com que uma palavra ou um enunciado ‘queiram dizer o que realmente dizem’ e que
mascaram, assim, sob a ‘transparência da linguagem’, aquilo que chamaremos o
caráter material do sentido das palavras e dos enunciados (p. 160, grifos e aspas do
autor).
Compreendendo, assim, que os sentidos não são transparentes, fundamenta seus estudos na
exploração metodológica da noção de maquinaria discursivo-estrutural, segundo a qual o
processo de produção discursiva se vincula a uma maquinaria autodeterminada e fechada
sobre si mesma, de tal forma que “um sujeito-estrutura determina os sujeitos como produtores
de seus discursos” (2001/1983, p. 311). Isso implica uma recusa de toda suposição de um
41
sujeito intencional como origem enunciadora de seu discurso. Essa reflexão nos permite
compreender como muitos conceitos que hoje sustentam o quadro teórico-metodológico da
AD foram sendo delineados, formulados, discutidos, reformulados.
Quanto a discurso, objeto de estudo da AD, Pêcheux (2001/1969), numa relação de
conformidade com Foucault, o como “efeito de sentidos” (p.82). Efeito de sentidos diz
respeito aos “múltiplos e variados valores decorrentes das relações de linguagem, envolvendo
sujeitos afetados pela língua e pela história(ORLANDI, 2002, p. 21). em 1975, Pêcheux
(1997/1975b) faz uma autocrítica ao texto Análise Automática do Discurso (2001/1969), não
propriamente como uma completa discordância à teoria já proposta, mas sim com o intuito de
“reformulação do conjunto, visando a eliminar certas ambiguidades, retificar certos erros,
constatar certas dificuldades não-resolvidas” (p. 163), segundo o próprio Pêcheux. Na
verdade, nesse texto, Pêcheux (p. 163-164) propõe discutir diferentes aspectos criticados em
relação ao texto de 1969. De um lado, com o intuito de reformar algum “aspecto
ultrapassado” (p. 164). Por outro lado, com o objetivo de “indicar as bases para uma nova
formulação da questão, à luz dos desenvolvimentos mais recentes” (p. 163), bem como sobre
a relação entre a linguística e a teoria do discurso.
Para isso, estabelece uma parceria com a linguista Catherine Fuchs, articulando conceitos de
três diferentes áreas do conhecimento: Linguística, Materialismo Histórico, Psicanálise. A
Linguística é focalizada pela AD como a teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de
enunciação ao mesmo tempo. O Materialismo Histórico é uma “teoria das formações sociais e
de suas transformações, compreendida aí a teoria das ideologias” (PÊCHEUX, 1975b, p. 163).
a Psicanálise compreende a teoria do discurso como “determinante histórica dos processos
semânticos” (ECKERT-HOFF, 2005, p. 125), entendendo o sujeito como “efeito de
linguagem” (BRANDÃO, 1997, p. 43).
Ao propor a conjunção dessas três áreas, Pêcheux e Fuchs (2001/1975b) inscrevem a Análise
do Discurso na fronteira entre essas três regiões, num movimento em direção contrária ao que
propunha Saussure, no Curso de Linguística Geral (1996/1916). Na Europa, desde a
publicação de o Curso, o estruturalismo linguístico vinha defendendo com veemência a
“separação entre as dimensões individual e social do funcionamento da linguagem” (ILARI,
2004, p. 59). no Brasil, a partir dos anos 60, o estruturalismo era considerado a “orientação
mais importante nos estudos da linguagem” (ILARI, op. cit., p. 53), tendo alcançado seu ápice
42
nos anos 70. Na verdade, Pêcheux, ao constituir o quadro epistemológico da AD, dedica
grande parte de seus estudos (1997/1975a, 2001/1969, 2001/1975b, por exemplo) para
realizar uma releitura de Saussure, do qual discorda em parte. Isso num momento (anos 60 e
70) em que as idéias saussurianas se encontravam numa trajetória de alto reconhecimento por
parte de importantes estudiosos das ciências humanas (LÉVI-STRAUSS, na Antropologia;
LACAN, na Psicanálise; BARTHES, na Literatura; JAKOBSON, na Linguística; por
exemplo). Vejamos como Pêcheux se posiciona criticamente, no texto de 69, a propósito da
oposição língua/fala, sustentada por Saussure (1996/1916):
Mesmo que explicitamente ele não o tenha desejado, é um fato que esta oposição
autoriza a reaparição triunfal do sujeito falante como subjetividade em ato, unidade
ativa de intenções que se realizam por meios colocados a sua disposição
(PÊCHEUX, 2001/1969, p. 71).
Com base nesse posicionamento sobre a dualidade língua/fala, que aborda a “reaparição
triunfal do sujeito falante como subjetividade em ato”, Pêcheux (op. cit.) questiona o lugar
que a semântica ocupa nesse contexto, e, então, propõe construir novas bases em direção a
uma mudança de perspectiva, em que estabelece seu objeto de estudo o discurso, com base
numa “semântica do discurso”. Essa é uma particularidade que interessa a este estudo, porque,
ao desautomatizar a relação com a linguagem, combatendo o excessivo formalismo
linguístico então vigente, a AD propõe uma conjunção língua/sujeito/historicidade, o que lhe
confere um modo muito especial de ver a língua.
Para a AD, embora a língua tenha uma ordem própria, não uma relação imediata língua-
mundo como se a palavra pudesse referir-se diretamente aos objetos, distinguindo-se, então,
de uma linguística imanente, transparente. Tal teorização é importante neste estudo porque
nos permite conceber o sentido como sendo da ordem do discurso e não da língua. Em razão
disso, a AD nos leva a ver o discurso como “efeito de sentidos” (PÊCHEUX, 2001/1969, p.
82) e o texto como relevante enquanto parte de uma rede (arquivo), uma perspectiva bastante
diferenciada, pode-se dizer, uma teoria da leitura que aponta para uma abordagem
diferenciada em relação a procedimentos de interpretação defendidos por estudos linguísticos
então vigentes: a Análise de Conteúdo, a Filologia, por exemplo.
A Análise de Conteúdo teoria do campo da sociologia, anterior aos estudos saussurianos ,
ocupava-se da chamada compreensão do texto: “O que quer dizer este texto? Que significação
43
contém este texto? Em que o sentido deste texto difere daquele de tal outro texto?”
(PÊCHEUX, 2001/1969, p. 61-64). Para essa teoria, o sentido de um texto são as informações
que ele contém.
A Filologia, por sua vez, é vista como a mais difícil arte de ler” (MAINGUENEAU,
1997/1987, p. 9). O que o filólogo quer é “conhecer a significação ou a intenção daquele cuja
fala é conservada através da escrita” (MAINGUENEAU, op. cit.). Segundo essa teoria, é
possível ter acesso ao sentido do texto, porque a intenção do autor fica claramente expressa no
texto. Poder-se-ia chegar à intenção por meio da biografia do autor (POSSENTI, 2004, p.359).
Já conforme Ilari (2004), numa perspectiva mais simplista, pode-se dizer que
o filólogo vale-se de quaisquer conhecimentos pertinentes (inclusive os linguísticos)
para colocar à nossa disposição a melhor explicação possível sobre a forma original
de um texto antigo e sobre a interpretação que o autor esperava para ele no momento
em que foi escrito (p. 58).
Dialogando com esses estudos e com estudos saussurianos (língua/fala, língua/linguagem,
linguagem/sistema de signos, significante/significado, por exemplo), na constituição do quadro
teórico inicial da AD, Pêcheux
6
(2001/1969, 2001/1975a, 2001/1975b) propõe: i) uma
concepção de ngua que a concebe polissêmica, não unívoca, opaca; ii) um sujeito não
controlado pelo racional; iii) uma concepção de conjuntura cio-histórica com ingredientes
contraditórios, não homogêneos, conflituosos. A propósito desse quadro teórico, em que se
pensa principalmente o campo do sentido, não se pode dizer que haja uma linha de
continuidade em relação à Filologia, à Análise de Conteúdo, aos estudos saussurianos, mas
também não se pode considerar que haja um completo vazio em relação a esses estudos
precedentes. Percebem-se “pontos de contato, sim”, pois “há compatibilidade em certos
lugares”, mas há, sobretudo, “diferenças” (FERREIRA, 2005, p. 17). O que a AD reivindica
são procedimentos científicos mais específicos em relação a algumas categorias (língua,
sujeito, conjuntura, por exemplo). O próximo item será dedicado a uma discussão inicial a
propósito de algumas especificidades, envolvendo as concepções de língua, sujeito, conjuntura.
6
Embora problematize os estudos saussurianos, Pêcheux não advoga, de forma alguma, a superação da
dicotomia língua/fala. “A seus olhos, o deslocamento operado por Saussure, da função para o funcionamento da
língua, é um adquirido científico irreversível” (MALDIDIER, 2003, p. 22).
44
2.1.1 Língua, sujeito, conjuntura em AD
Embora a AD não se ocupe propriamente da língua como objeto de estudo, e sim do discurso,
acredita que só é possível chegar ao discurso por meio da língua, que, por sua vez, é
concebida como sendo da “ordem material, da opacidade, da possibilidade do equívoco como
fato estruturante, da marca da historicidade” (FERREIRA, 2005, p. 17). Vista, assim, a
linguagem não se reduz à condição de instrumento em que o papel dos participantes da
comunicação seria restrito apenas a codificar e a decodificar informações no próprio texto,
onde tudo teria sido dito e informado. Concebida desse último modo, é como se a ngua
fosse apenas um código para transmissão de informações explicitamente codificadas ou um
sistema de sinais com função informativa, semanticamente autônomo, o que, segundo a AD,
configura uma visão de linguagem extremamente reducionista, pois a compreende apenas em
termos estruturais, não se ocupando dos processos que a constituem. É a língua “da falta, da
falha, do equívoco(FERREIRA, 2005, p. 217). Conceber a língua como um terreno rtil
para a manifestação do equívoco, conforme propõe a AD, nos permite pensar a relação do real
da língua (descontinuidade, dispersão, incompletude, não-transparência) e do real da história
(sentido/historicidade) sob o olhar do equívoco, conforme propõem Gadet e Pêcheux (1984),
pressuposto retomado por Orlandi (2002), ao discutir a distinção entre o real e o imaginário:
O que temos, em termos de real do discurso, é a descontinuidade, a dispersão, a
incompletude, a falta, o equívoco, a contradição, constitutivas tanto do sujeito como
do sentido. De outro lado, em nível das representações, temos a unidade, a
completude, a coerência, o claro e distinto, a não-contradição, na instância do
imaginário. É por essa articulação necessária e sempre presente entre o real e o
imaginário que o discurso funciona (p.84).
Partindo-se dessa hipótese, pode-se afirmar que a AD não concebe que palavras, estruturas
sintáticas, expressões, por exemplo, possam ter garantia de um sentido a priori, a ser
recuperado, a que se pudesse ter acesso, ou mesmo de uma intenção do autor que pudesse ser
expressa via texto, de uma maneira clara, explícita, conforme propõem os filólogos, por
exemplo. Na verdade, o que interessa à AD é compreender como um texto funciona, produz
sentidos.
Para a AD, a língua é muito mais do que um sistema de estruturas fonológicas, sintáticas e
lexicais com funções instrumentais, conforme propõem os formalistas, pois é, sobretudo, um
fenômeno cultural e histórico, sujeito a falhas, não-transparente. Então, não se pode pensá-la
45
como um objeto exterior aos sujeitos, ou apenas como uma estrutura cujos aspectos formais
seriam mais importantes que sua própria possibilidade de significação.
Esse modo de ver a ngua é importante neste estudo porque nos permite considerar além do
caráter formalista da ngua, para se chegar a uma outra instância, a do discurso, um
fenômeno linguístico a partir do qual se pode observar a linguagem funcionando, o sujeito
construindo sentidos, significando e significando-se, de forma que a relação entre significado
de um texto e condições sócio-históricas de sua produção/recepção/circulação não seja vista
como um fator secundário, mas sim como um elemento “constitutivo das próprias
significações” (HAROCHE, Cl. et al. 1971, p. 98, apud BRANDÃO, 1997, p.12).
Ao assumir essa perspectiva, procuro mostrar a linguagem como um fenômeno que comporta
uma dualidade constitutiva: i) um sistema (caráter formal); ii) um lugar de conflito e de
confronto ideológico (caráter histórico-social). Portanto, a linguagem não se esgota no código
linguístico, pois é uma “mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social”
(ORLANDI, 2002, p. 15). Assim, a linguagem é abordada, neste trabalho, de um ângulo mais
amplo, porque ao considerar outras dimensões, como a da historicidade da linguagem,
contemplam-se questões que não se restringem a uma relação imediata entre
linguagem/mundo, porque se focaliza o processo de produção do sentido, submetendo-o a
determinações sociais, históricas, ideológicas e culturais.
Partindo-se desse pressuposto, é possível explicar alguns fenômenos linguísticos, tais como
os ditos, os silenciamentos, as escolhas de modos de dizer, o lugar social que ocupa o
enunciador, em que se incluem os mecanismos de que se valem os falantes ao dizerem o que
dizem do modo como dizem, uma vez que a AD propõe uma análise sobre as condições
históricas e sociais de produção do discurso (condições de produção), de modo que a
ideologia seja vista como elemento constitutivo desse processo. Dessa perspectiva, defende-se
que “a linguagem faz sentido porque se inscreve na história” (ORLANDI, 2002, p. 25).
Então, é possível compreender o discurso, remetendo-o às instâncias nas quais ele é
produzido, ou seja, o discurso em suas relações com o mundo exterior.
Esse modo de compreender a linguagem distancia a AD de estudos, como os que se ocupam
da análise de conteúdo ou os que buscam a intenção do autor explicitada no texto (Filologia),
conforme ressaltado. Em vez de responder a questões, tais como: i) O que este texto quer
dizer? ii) Que conteúdo aborda? iii) Que idéias estão contidas neste texto?, a AD pergunta:
46
i) Como este texto significa? (ORLANDI, 2002, p. 17), preocupando-se, então, em encontrar
marcas, pistas, evidências das “circunstâncias de um discurso” (PÊCHEUX, 2001/1969, p.
75). Enfim, a AD
não aceita que haja obras cuja interpretação possa/deva/mereça ser levada a cabo
com procedimentos baseados em uma concepção de língua que se refira diretamente
ao mundo, em concepções de autor definido em termos de projeto e intenção e em
concepções de conjunturas reduzidas à uniformidade cultural (POSSENTI, 2004, p.
360).
Esse ponto de vista exclui, certamente, a possibilidade de se pensar a leitura como
decodificação, apreensão de informações e/ou busca de um sentido previamente colocado no
texto, por isso nos permite ver a leitura, tal como nos propõem Piovezani Filho e Milanez
(2005), isto é, como “prática de interpretação (e não como tratamento da informação) que visa
a perscrutar as redes de memória que incidem sobre as seqüências discursivas” (p. 237), ou
conforme Orlandi (2002), para quem a AD teoriza a interpretação, ao propor a “compreensão
de como os objetos simbólicos produzem sentidos, analisando, assim, os próprios gestos de
interpretação” (p.26).
Pensando dessa forma, Orlandi (2002, p. 26) propõe uma distinção entre inteligibilidade,
interpretação e compreensão. Para a autora, a inteligibilidade refere o sentido à língua. A
interpretação refere o sentido ao co-texto e ao contexto imediato. a compreensão implica
saber como um objeto simbólico produz sentido. Na verdade, é saber “como as interpretações
funcionam”, já que, dessa perspectiva, “quando se interpreta já se está preso em um sentido”.
Nessa linha de pensamento, a AD, então, coloca em questionamento três hipóteses. A
primeira delas diz respeito à língua vista como representação do pensamento, instrumento de
comunicação, sistema de normas e regras, transparente, unívoco. Esse mesmo ponto também
foi colocado em discussão pelas teorias sociointeracionistas (Koch, 2002, pp. 13-20). A
segunda refere-se à concepção de sujeito visto como psicológico, dono absoluto de seu dizer,
de suas ações e vontade, responsável pelo sentido, individual, isolado em seu mundo. Por fim,
questiona a concepção de uma conjuntura uniforme, estanque, homogênea.
Ao discordar dessas três premissas, a AD propõe: i) uma concepção de língua que a como
“lugar material em que se realizam os efeitos de sentido” (BRANDÃO, 1997, p. 35); ii) um
sujeito marcado pela perda da centralidade que pode ocupar várias posições enunciativas”
(BRANDÃO, op. cit., p. 66); iii) uma concepção de conjuntura que considera como questão
47
fundamental a “hipótese da divisão da sociedade, e, portanto, das diversas ‘ideologias’”
(POSSENTI, 2004, p. 359), portanto, não uniforme.
Essas hipóteses, certamente, geram consequências para os estudos da linguagem, de modo que
a concepção de sentido seja um dos aspectos mais relevantes para a AD, justamente por não
focalizá-lo como sendo “algo em si mesmo, mas como ‘relação a’” (CANGUILHEN, 1980,
apud ORLANDI, 2002, p. 25). Para a AD, o sentido não é da ordem da língua, mas sim da
ordem da história. Não se concebe o sentido, portanto, como sendo algo previamente definido
por convenção, por uma relação de literalidade, por existência etimológica, impresso no
texto, a ser descoberto pelo leitor, mas sim como “efeito (de sentido)”, ou seja, “nunca como
uma entidade prévia, ou anterior, dada a conhecer pela ngua” (POSSENTI, 2004, p. 362).
Isso equivale a conceber a linguagem como sendo o lugar privilegiado de manifestação da
ideologia, de modo que estudar o discurso, dessa perspectiva, é reconhecer a dualidade
constitutiva da linguagem, para que se possa, a partir daí, pensar o discurso como “ponto de
articulação dos processos ideológicos e dos fenômenos lingüísticos” (BRANDÃO, 1997, p.
12). Essa visão de discurso evidencia uma nova concepção de sujeito, visto como assujeitado,
não livre, nem origem do seu discurso.
Considerado o sujeito dessa forma, pode-se afirmar que o sentido do que se diz não está
objetivamente pré-construído no texto, ao contrário, o texto não é um objeto fixo, fechado em
si mesmo e, em virtude disso, abre-se uma nova possibilidade teórica de se repensar o sujeito
no campo dos estudos linguísticos, a qual será abordada no item seguinte.
2.1.2 Os sujeitos: seres afetados pelo inconsciente e pela ideologia
Neste item, pretendo refletir sobre o fato de que a concepção de sujeito proposta pela AD é,
certamente, um dos aspectos mais importantes na constituição de seu quadro epistemológico e
está em conformidade com uma concepção de linguagem cuja relação com a ideologia é
indissociável. Portanto, não se concebe uma relação imediata língua/sujeito, porque não se
atribui à linguagem um simples caráter formal, homogêneo, transparente, conforme já
ressaltado.
48
Estabelecendo-se uma comunhão com tal pressuposto, inicio, discutindo a subjetividade no
campo específico da AD, a começar pela concepção de assujeitamento proposta por Pêcheux
(2001/1975b), para quem
as palavras, expressões, proposições, etc., mudam de sentido segundo posições
sustentadas por aqueles que as empregam, o que significa que elas adquirem seu
sentido em referência a essas posições (p. 160).
Ressalta-se, neste ponto, um sujeito sendo concebido como “puro efeito de assujeitamento à
maquinaria da FD com a qual ele se identifica” (PÊCHEUX, 2001/1983, p. 315), concepção
mais tarde retomada por Orlandi, ao afirmar que o sujeito é visto como “linguístico-histórico,
constituído pelo esquecimento e pela ideologia” (2002, p. 91), isto é, “a ideologia interpela o
indivíduo em sujeito e este submete-se à língua significando e significando-se pelo simbólico
na história” (ORLANDI, 2001, p. 100).
Isso significa que a AD, na sua dita primeira fase (AD-1), concebe uma subjetividade
assujeitada às coerções da formação discursiva que sustenta seu dizer, um aspecto já
ressaltado anteriormente, isto é, os sujeitos acreditam que ‘utilizam seus discursos quando na
verdade são seus servos assujeitados, seus suportes” (PÊCHEUX, 2001/1983, p. 311). Essa
fase caracteriza-se pela exploração metodológica da noção de maquinaria discursivo-
estrutural, segundo a qual o processo de produção discursiva realiza-se por meio de uma
maquinaria autodeterminada e fechada sobre si mesma. Nessa direção, uma língua natural
constitui a base invariante sobre a qual se desdobra uma multiplicidade heterogênea de
processos discursivos justapostos. Um outro ponto central é a recusa de toda suposição de um
sujeito intencional como origem enunciadora de seu discurso (MUSSALIM, 2001, p 133).
Uma das decorrências dos procedimentos adotados nessa fase é em relação ao corpus que é
composto por sequências discursivas selecionadas num espaço discursivo, supostamente,
dominado por condições de produção estáveis e homogêneas (discursos políticos sob a forma
de discursos teórico-doutrinários, por exemplo). Já a análise discursiva de corpus consiste em
detectar e em construir sítios de identidades parafrásticas intersequenciais (sequências
provenientes de discursos empíricos diferentes). Geralmente, na interpretação, faz-se uma
comparação de estrutura entre processos discursivos heterogêneos justapostos (MUSSALIM,
2001, 117-120).
Na segunda fase, concebida pelo próprio Pêcheux (2001, p. 313) como AD-2, propõe-se um
deslocamento teórico que vai “da justaposição dos processos discursivos à tematização de seu
49
entrelaçamento desigual” (op. cit.). Nesse sentido, concebe-se a relação entre máquinas
discursivas estruturais como sendo relações de força desiguais entre processos discursivos.
Um ponto também fundamental nessa fase é o deslocamento da noção de máquina discursiva
para a noção de formação discursiva FD (FOUCAULT, 1986 [1969]). O modo de
concepção do sujeito do discurso também sofre uma alteração. Assim como a FD, é visto
como uma dispersão, ao contrário da idéia de unidade proposta anteriormente (AD-1). O que
está em pauta, neste momento, é a possibilidade de o sujeito poder desempenhar vários
papéis, a depender das “várias posições que pode ocupar no espaço interdiscursivo”
(MUSSALIM, 2001, p. 133). A despeito dessa mobilidade, não se considera o sujeito como
sendo totalmente livre, pois é cerceado pela própria FD no interior da qual enuncia. Em
relação aos procedimentos de análise, não são muitas as inovações, que “o deslocamento é,
sobretudo, sensível ao nível da construção dos corpora discursivos” (PÊCHEUX, 2001
[1983], p. 315, grifo do autor). A partir daí, é possível trabalhar de modo mais sistemático
“suas influências internas desiguais, ultrapassando o nível da justaposição contrastada”(op.
cit.).
a concepção de sujeito arquitetada por Authier-Revuz (1982, 1990) se inscreve na
denominada terceira fase de análise de discurso – AD-3 (PÊCHEUX, 2001 [1983], p. 315) em
função dos avanços na reflexão sobre a questão do sujeito. Essa concepção é condizente com
uma vertente bastante atual da AD, na qual se sustenta este estudo. Authier-Revuz, situando-
se numa perspectiva exterior à Lingüística, com base na concepção de dialogismo proposta
por Bakhtin (1999/1929), bem como recorrendo à psicanálise lacaniana, para a qual o sujeito
é efeito de linguagem, considera a heterogeneidade constitutiva de todo discurso. Por isso o
sujeito não deve ser buscado no interior de uma fala homogênea, mas na diversidade de uma
fala heterogênea, cujos índices podem ser mostrados heterogeneidade marcada e não
marcada. Trata-se, assim, de um sujeito que se constitui na relação identidade/alteridade, por
isso é descentrado e movido pela ilusão discursiva de unidade.
A partir de tal pressuposto, a AD concebe um sujeito do inconsciente (interioridade) e da
ideologia (exterioridade). Para isso, Authier-Revuz (op. cit.) concebe um sujeito cuja
identidade se constitui na alteridade (na relação com o outro tu / o Outro interdiscurso) e
não submetido a uma maquinaria discursiva fechada em si mesma, como propunha Pêcheux,
na sua proposta inicial (AD-69). Mais tarde (2001/1983), esse quadro teórico foi revisto pelo
próprio Pêcheux (2001/1983), no momento em que Pêcheux reconhece a desconstrução das
maquinarias discursivas e concebe “o primado teórico do outro sobre o mesmo (p. 315, grifos
50
do autor). Em decorrência disso, nem o sentido, nem o sujeito são previamente dados, mas
sim constituídos na interação. Portanto, não se concebe o ser humano fora dessas relações que
o ligam ao outro/Outro.
Tem-se, assim, “um sujeito essencialmente dividido, clivado, heterogêneo” (MUSSALIM,
2001, p. 134). Authier-Revuz (op. cit.), ao dialogar com Bakhtin (1999/1929), articulando
o dialogismo baktiniano (1999/1929) à concepção de heterogeneidade discursiva
mostrada – marcada e não-marcada – , de modo a considerar que o Outro está sempre
presente numa FD, mesmo não sendo revelado, vale-se também de um
outro conceito bakhtiniano fundamental, o de enunciação. A enunciação é vista por Bakhtin
como um produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados, ainda que não
haja um interlocutor real, que ele poderá ser substituído pelo representante médio do grupo
social ao qual pertence (1999/1929). A palavra, então, dirige-se a um interlocutor e poderá
sofrer variações até mesmo no próprio grupo social.
Para o pensador russo, toda palavra comporta duas faces. Isso significa que não se concebe
um falante individualizado, mas sim um locutor que pressupõe o outro (tu). Dessa
perspectiva, a interação verbal é que constitui a realidade fundamental da língua. O teórico
russo ressalta, pois, a participação do outro na constituição do sujeito e das identidades. Na
realidade, trata-se de uma heterogeneidade que aponta para duas instâncias: o Outro enquanto
discurso e o outro enquanto interlocutor. Isso nos remete à dimensão dialógica como
constitutiva da linguagem: “Eu sou na medida em que interajo com o outro. É o outro que dá a
medida do que sou. A identidade se constrói nessa relação dinâmica com a alteridade
(BAKHTIN, 1999/1929).
Convém salientar que, para Bakhtin (op. cit.), a consciência individual se constrói na
interação, mas o mundo da cultura, que é um grande e infinito diálogo, tem primazia sobre o
individual. Desse modo, o psiquismo não tem primazia sobre o mundo da cultura. Ao
contrário, para Bakhtin (op.cit.), o homem toma consciência de si mesmo através do outro,
pois dos outros é que recebe a palavra e mesmo a forma e o tom que serão tomados como
ponto de partida para a construção da própria representação. O mundo da cultura, então, tem
primazia sobre a consciência individual, que é, de fato, uma realidade semiótica, que se
constitui nas relações dialógicas, que o signo é, primordialmente, social e se manifesta
semioticamente.
51
Nesse sentido, a produção de textos se num contexto sócio-histórico, em que um sujeito
toma a palavra, considerando um já-dito, confirmando-se o mundo da cultura como um
imenso diálogo. É desse referencial de que se vale Authier-Revuz (op. cit.), ao propor sua
concepção de heterogeneidade constitutiva (marcada, não-marcada). Também, para Authier-
Revuz (op. cit.), a presença do outro não diz respeito apenas à figura do interlocutor, porque o
outro pode se manifestar em casos, como novos registros discursivos (materno, jovial,
familiar); outros discursos (feminista, técnico, marxista); outro modo de considerar o sentido
de uma palavra (diferentes perspectivas), evidenciando-se para a AD, um sujeito
essencialmente heterogêneo, dividido entre o consciente e o inconsciente, marcado pela
ideologia.
Temos, então, um sujeito que não é dono de sua vontade. Ora porque se submete à própria
inconsciência (constitutiva da linguagem e do sujeito), ora porque se submete às coerções de
uma FD. Os sujeitos são vistos como heterogêneos porque perdem sua centralidade, ao se
definirem somente na relação eu/outro-Outro. Em decorrência disso, o caráter dialógico do
discurso é constitutivo de seu sentido e o discurso, constitutivamente heterogêneo. Não se
trata, assim, de um sujeito da completude, da unidade, mas sim da “incompletude e da
dispersão” (ORLANDI, 2002, p. 74). Não se pensa num sujeito controlado pela razão, nem na
leitura como busca de informações ou idéias contidas num texto, conforme dito. A questão
agora é desvencilhar-se de uma concepção de leitura em que se procura “atravessar o efeito de
transparência de linguagem, da literalidade do sentido e da onipotência do sujeito”
(ORLANDI, 2002, p. 61), indo em direção a uma leitura para a qual o que interessa, de fato,
são os efeitos de sentido evidenciados no processo enunciativo.
Assim, pode-se dizer que, do ponto de vista da recepção,
realizar a compreensão é considerar as condições enunciativas (pressupostos, instâncias
enunciativas, polifonia, entre outras) e as condições históricas (formações discursivas,
heterogeneidade discursiva, entre outras) de que estão investidos o discurso, tratando-se, na
verdade, de se considerar o discurso como sendo um objeto de natureza lingüístico-cultural.
Para compreender textos, é preciso perscrutar os diversos discursos que neles se manifestam,
considerando-se suas condições sócio-históricas de produção/recepção/circulação como parte
constitutiva do sentido. Perspectiva segundo a qual, em um evento de interação, não se pode
pensar um sujeito sem circunstâncias, nem mesmo um sujeito que tenha pleno controle de si e
dos efeitos de sentido de seu dizer.
52
Sob o mesmo ponto de vista, o texto, único objeto tangível da AD, lhe é importante na medida
em que o considera como “parte de uma cadeia (de um arquivo); uma superfície discursiva,
uma manifestação aqui e agora de um processo discursivo específico” (POSSENTI, 2004, p.
364). Nesse sentido,
o texto não é uma unidade de análise, ao menos segundo as concepções da
lingüística textual, [...] o texto como objeto lingüístico é recusado por razões muito
semelhantes às invocadas para rejeitar a língua como instrumento ou meio. A AD
não associa texto e contexto como em algumas teorias da coerência [...].
Evidentemente um texto não pode ser irrelevante para a AD, mas sua relevância
decorre de que cada texto é parte de uma cadeia (de um arquivo), decorre não de
poder ser tomado como um texto, como uma unidade coerente de sentido, mas sim
como uma manifestação discursiva aqui e agora de um processo discursivo
(POSSENTI, op. cit.).
À AD, então, não interessa investigar o texto nos moldes da lingüística textual, porque o texto
é distinto como unidade de análise. Importante é, sim, compreender a língua fazendo sentido,
considerando-se sujeitos afetados pela língua e pela história, num determinado processo
enunciativo-discursivo (ORLANDI, 2002), no qual concebem-se as circunstâncias sócio-
históricas (conjuntura) como constitutivas do sentido.
2.1.3 Conjuntura: processos histórico-sociais de produção da língua/linguagem
O modo como a AD concebe as “condições de produção” (PÊCHEUX, op. cit) desempenha
um papel bastante diferenciado no seu referencial teórico. Trata-se de um conceito utilizado,
pode-se dizer, em substituição a uma noção de “circunstância” (situação empírica de produção
do discurso) utilizado pela Lingüística Pragmática (POSSENTI, 2004, p. 363), provocando,
então, um direcionamento diferenciado de circunstância, em relação a essa corrente dos
estudos lingüísticos. Isso se deve ao fato de que Pêcheux (2001/1969), ao propor a concepção
de condições de produção, considera duas ordens de pesquisas. Dentre elas,
o estudo da ligação entre as “circunstâncias de um discurso que chamaremos daqui
em diante suas condições de produção e seu processo de produção. Essa
perspectiva está representada na lingüística atual pelo papel dado ao contexto ou à
situação, como pano de fundo específico dos discursos, que torna possível sua
formulação e sua compreensão: é este aspecto da questão que vamos tentar
esclarecer agora, através do exame crítico saussuriano de instituição (p. 75, grifos do
autor).
53
Ao criticar a concepção saussuriana de instituição (não relacionada ao sociológico), conforme
propõe nesse excerto, Pêcheux (op. cit.) condiciona a existência da língua à historicidade, uma
vez que os lugares ocupados pelos sujeitos no interior de uma formação social dada, para esse
teórico, é constitutivo de seu dizer. Isso se deve ao fato de que Pêcheux (op. cit) concebe o
sujeito um “porta-voz de tal ou tal grupo” (p.77), seja porque “representa tal ou tal interesse”
(p. 77), seja porque “não está isolado” (p. 77), por carregar consigo as influências das relações
de força a que está submetido no interior de um grupo a que se filia ou que representa.
Possenti (2004), a esse respeito, em nota de rodapé, chega a afirmar que “talvez se possa dizer
que as diferenças entre a AD e a pragmática se concentram em torno das questões do
sujeito e do contexto que cada teoria concebe de forma completamente diversa” (p.367). No
dizer de Possenti (op. cit.), ao substituir o conceito de “circunstância” pelo de “condições de
produção”, a AD retira “o funcionamento do discurso da cena pragmática para inseri-lo nas
instâncias enunciativas institucionais” (p. 367). Interessa, sobretudo, à AD os lugares sociais
(professor/aluno, mãe/filho, patrão/empregado) que ocupam os enunciadores e as diferentes
formações imaginárias “lugar que A e B se atribuem cada um a si e ao outro, a imagem que
eles fazem de seu próprio lugar e do lugar do outro” (p. 82) colocadas em jogo num
processo enunciativo. Pêcheux (2001/1969, p. 83), a propósito dessa questão, afirma
categoricamente que “todo processo discursivo supõe a existência dessas formações
imaginárias” (op. cit.). E diz mais: “a posição dos protagonistas do discurso intervém a título
de condições de produção do discurso” (op. cit.). Tudo isso tem uma importante implicação
nos estudos do sentido, considerando-se que o referente também está condicionado às
condições de produção, “uma vez que se trata de um objeto imaginário (a saber, o ponto de
vista do sujeito) e não da realidade física” (op. cit.). Ferrari (2005), a seguir, sintetiza essa
proposta de Pêcheux (op. cit.):
Todas essas imagens que A e B se fazem de si mesmo, do outro e do referente do
discurso são diferentes instâncias do Processo Discursivo. As diferentes Formações
Imaginárias são produto de Processos Discursivos anteriores que, por sua vez,
decorrem de outras Condições de Produção e que dão as possibilidades do Processo
Discursivo em si” (p. 115). (grifos meus)
Cada discurso, então, sofre um processo de regulação, de tal modo que a mesma palavra,
expressão, texto, gesto, entre outros objetos simbólicos, pode produzir sentidos diferentes,
segundo a posição assumida pelo enunciador. Esse é um pressuposto que pode contribuir
para o entendimento do conceito de enunciação. Ao levar em conta o funcionamento da
54
linguagem num espaço de tempo único, singular, a AD considera uma relação entre
enunciador/enunciado na qual a condição sócio-histórica em que o enunciado é proferido é
irrepetível em sua totalidade, porque não pode mais ser dito de modo idêntico, que sua
completude se perdeu no tempo, embora recente. A enunciação conhece o presente porque
ocupa um lugar determinado no tempo e no espaço em que condições enunciativas e
condições sócio-históricas são constitutivas do sentido.
Uma primeira decorrência desse questionamento proposto pela AD que desejo evidenciar é a
relação de criticidade com a Lingüística (na verdade, com o excessivo formalismo
lingüístico), que era vista na década de 60 como “ciência piloto” (MUSSALIM, 2001, p. 103).
Para a AD, embora a Lingüística possa oferecer bons instrumentos para se investigar a ngua
como uma estrutura formal, trata-se de uma perspectiva reducionista, porque apesar de a
língua ter uma ordem própria, suas regras “são postas a funcionar de uma forma ou de outra
segundo o processo discursivo de que se trata numa certa conjuntura” (POSSENTI, 2004, p.
360). Conforme dissemos, para a AD, a língua se sustenta numa dualidade constitutiva
um sistema que tem sua ordem própria sim, mas ao mesmo tempo, um objeto submetido a
determinações e a circunstâncias históricas e culturais, portanto, um lugar de investimentos
sociais, históricos, ideológicos, sujeito a falhas. Tais determinações e circunstâncias Pêcheux
denomina “condições de produção” (2001/1969, p. 75). Ao propor tal concepção, Pêcheux
(op. cit.) inscreve o discurso numa instância, cujas marcas históricas são constitutivas de seu
sentido, rompendo, então, com a concepção de contexto/circunstância/situação como sendo a
situação imediata de funcionamento do discurso, proposta por correntes ditas pragmáticas
(Análise da Conversação, Sociolingüística, por exemplo).
Uma segunda decorrência que ressalto é a propósito do deslocamento das concepções de
sujeito e sentido. Para a AD, o sujeito não é a fonte do sentido, pois o sentido se constitui na
historicidade por meio do trabalho da memória incessante retomada do já-dito (PÊCHEUX,
2001/1969). Tal postura, conforme ressaltado, implica uma concepção de linguagem como
não transparente, não desvinculada de seu caráter social e histórico. A AD, então, incorpora à
linguagem uma exterioridade constitutiva o interdiscurso, a memória do dizer, o contexto
enunciativo historicamente determinado.
Assim, nos favorece a compreensão de fundamentos que regem a relação
linguagem/sujeito/conjuntura/sentido, segundo a qual o sentido é tido como resultante de
55
diferentes processos enunciativos, considerando-se um conjunto de saberes compartilhados
pelos sujeitos nesses processos.
A importância desse referencial teórico, neste estudo, também decorre do fato de nos permitir
compreender dizeres mais característicos da posição/circunstância em que os sujeitos-leitores
interpretam/compreendem/produzem sentidos, bem como os objetos de que se apropriam para
fazer deles objetos de seu discurso. Na próxima seção, considero mais algumas reflexões de
Pêcheux (2001/1969) e de Pêcheux e Fuchs (2001/1975a), em diálogo com Foucault
(1986/1969), que contribuíram para a constituição do quadro teórico da AD.
2.2 Pêcheux e Foucault: um diálogo profícuo
Abordo, neste item, estudos de Pêcheux e de Pêcheux e Fuchs (op. cit.) que consideram a
concepção de heterogeneidade, relacionando-a à figura do Outro, questionando o conceito de
formação discursiva (FD), proposto por Foucault (op. cit.). Esse teórico também sustenta a
recusa de toda suposição de um sujeito intencional como origem enunciadora de seu discurso.
Como vimos anteriormente, isso implicou o quadro teórico inicial da AD (AD-1), isto é, a
compreensão do processo de produção discursiva, a partir de uma maquinaria discursiva
autodeterminada e fechada sobre si mesma. Ao tratar de maquinaria, Pêcheux (op. cit.) refere-
se a uma “estrutura (condições de produção estáveis) responsável pela geração de um
processo discursivo” (MUSSALIM, 2001, p. 118). Pode-se dizer que se trata de um
movimento que, posteriormente, segue em direção à dita AD-2 (segunda época da análise de
discurso (PÊCHEUX, 2001/1983, p. 313-314). A AD-2 é um momento em que o objeto de
estudo passa a ser as relações entre as máquinas discursivas e a descrição da dispersão dessa
noção de máquinas fechadas sobre si mesmas, concepção que o próprio Pêcheux, reformulou,
posteriormente (AD-3).
Mais tarde, ainda em interlocução com Foucault (1986/1969, 2004/1971), Pêcheux
(2002/1983) considera a necessidade de se colocar em primeiro plano a idéia de
“acontecimento”, o que lhe possibilita o estudo da construção dos objetos discursivos e dos
acontecimentos, como também dos “pontos de vista” e “lugares enunciativos no fio
intradiscursivo”. Pêcheux (op. cit.), ao tomar o discurso como estrutura e acontecimento,
considera que o enunciado não é somente fruto de uma estrutura lingüística, pois embora
56
possa remeter a uma mesma exterioridade, não constrói o mesmo acontecimento relação
entre memória (pré-construídos) e atualidade (enunciações).
Consideradas essas reflexões a propósito do diálogo entre Foucault e Pêcheux, é possível
antever sua importância na construção de meu objeto de estudo, que proponho alguns
questionamentos sobre a compreensão do processo de constituição do sentido, entre eles, os
que tratam da articulação saber/poder e sujeito/objeto do saber/poder/identidade.
Foucault (1986/1969, 2004/1971), ao tratar dessa questão, rejeita o pensamento metafísico ao
conceber a relação entre saber e poder, questionando o estatuto da verdade, além de discorrer
sobre como o poder é produzido por relações particulares com saberes. Para esse filósofo,
esses saberes não são universais, mas se instituem enquanto verdades num processo que
produz poder, cuja relatividade não pode ser validada em nenhuma instância metafísica ou
exterior à realidade social. Ou seja, os saberes que se instituem enquanto verdadeiros (num
sentido não absoluto, mas relativo) estão vinculados a relações de poder particulares, a
práticas cotidianas, a instituições, que representam a instrumentalização do poder associado
aos saberes que legitimam aquelas práticas. Então, ao escrever sobre a relação
sujeito/saber/poder/ instituições, Foucault (op. cit.) constrói um importante referencial teórico
para que se possa discutir o que se pode e o que não se pode dizer, consideradas as
determinações sócio-históricas na constituição dos sujeitos. Para ele,
a análise do discurso, assim entendida, não desvenda a universalidade de um
sentido; ela mostra à luz do dia o jogo de rarefação imposta, com um poder
fundamental de afirmação. Rarefação e afirmação, rarefação, enfim, da afirmação e
não generosidade contínua do sentido, e não monarquia do significante (2004/1971,
p. 70).
Foucault propõe, ainda, uma arqueologia dos sistemas de procedimentos que têm por fim
produzir, distribuir, fazer circular e regular enunciados, bem como se preocupa em isolar o
nível das práticas discursivas e formular regras de produção e de mudança dessas práticas.
Dessa maneira, podemos destacar
que o
interesse de Foucault é conceber o poder como capaz
de explicar como os saberes são produzidos e como nos constituímos na articulação
saber/poder.
Mais uma vez Foucault, relido por Pêcheux, contribui para o estudo de questões que priorizo
neste trabalho, tais como normas e regras nas quais os sujeitos-leitores se circunscrevem ao
dizerem o que dizem. Mostram-se, assim, múltiplas as possibilidades de aplicação das
57
contribuições desse teórico no que diz respeito a uma teoria da leitura, porque suas reflexões
contemplam as condições nas quais o discurso é produzido, contribuindo, assim, para a
compreensão do sentido em face da relação sujeito / circunstâncias. Um sujeito psicanalítico,
social e histórico, que sofre um processo de assujeitamento, conforme propõe a AD, não se
considerando, no entanto, a tese do assujeitamento pleno, em concordância com Possenti
(1993). Segundo esse teórico,
para que o sujeito possa ser concebido como algo mais que um lugar por onde o
discurso passa, vindo das estruturas, é necessário fazer a hipótese mínima de que ele
age. Que, por exemplo, para compreender textos, não basta que ele ocupe um lugar,
é necessário que ele produza uma atividade (grifo do autor). [...] Penso que a A. D.
ganharia se propusesse uma teoria psicológica, na qual o sujeito fosse ‘clivado pelo
inconsciente’, mas não fosse reduzido a uma peça que apenas sofre efeitos.
Certamente, há domínios em que os sujeitos só sofrem efeitos, mas há outros em que
sua atuação é demandada e verificável (POSSENTI, 1993, p. 15-16).
Desse ponto de vista, vejo que é possível investigar os domínios em que os sujeitos-leitores
mais se encontram sob efeitos do ideológico. Os sujeitos, ao dizerem algo, estão submetidos a
procedimentos de controle pelo simples fato de que o que dizem subordina-se a um lugar, a
uma instituição, a uma ordem, um dos sistemas de delimitação do discurso, segundo Foucault:
“Sabe-se bem que não se tem o direito de dizer tudo, que não se pode falar de tudo em
qualquer circunstância, que qualquer um, enfim, não pode falar de qualquer coisa”
(FOUCAULT, 2004 [1971], p. 9).
Então, se “o discurso está na ordem das leis”, (FOUCAULT, op.cit., p. 7), a que “ordem”
poderiam estar subordinados certos enunciados? Ao nos propormos esse questionamento,
estamos assumindo a noção conceitual de enunciado como sendo equivalente a discurso: “O
discurso é o enunciado considerado do ponto de vista do mecanismo discursivo que o
condiciona” (CHARAUDEAU, P. e MAINGUENEAU, D., 2004, p. 196). O que implica
também conceber uma teoria da leitura cujo dispositivo de análise busca atravessar o efeito
de transparência da linguagem, da literalidade do sentido e da onipotência do sujeito”
(ORLANDI, 2002, p. 61).
Trago, neste estudo, reflexões sobre saber, poder, subjetividade, linguagem, discurso,
questões tão caras a Foucaut, porque nos permitem compreender os efeitos de evidência
produzidos pela linguagem em seu funcionamento, para que se possa investigar
,
por exemplo
,
como o sujeito-leitor percebe/considera/evidencia sequências discursivas sob determinadas
58
condições de produção ou mesmo se estabelece laços de sentido que indiciam sua participação
numa uma rede interdiscursiva.
De um lado, essas reflexões nos oferecem contribuições que me parecem bastante adequadas
para que se possa tratar da significação, levando-se em conta fatores sócio-histórico-
ideológicos. Por outro lado, implica situar meu objeto de estudo – diferentes dimensões
envolvidas na problemática do sujeito e do sentido no domínio dos estudos discursivos – num
terreno tido pelos próprios estudiosos do discurso como revolucionário”, “perigoso”,
“corrosivo”, objeto-fronteira” (FERREIRA, 2005, p. 14 e 15); de “incompletude”, de “falta”
(FERREIRA, 2005, p. 18); “de entremeio” (ORLANDI, 2005, p. 76), “de caráter
conflituoso”, “de difícil articulação”, (BRANDÃO, 1997, p. 16 e p. 32); em que a disciplina
é vista como “problemática” (POSSENTI, 1990, p. 45); “de ruptura” (POSSENTI, 2004, p.
357; “de fronteira instável”, “de extrema fugacidade” (MUSSALIN, 2001, p. 113 e p. 138),
“de uma relação tensa” (GREGOLIN, 2004, p. 53), enfim, uma disciplina que se movimenta
num “terreno mais ou menos fluido” (BRANDÃO, 1997, p.17).
Faço essa opção ciente desses deslocamentos teóricos e de suas possíveis decorrências,
porque creio na relevância desse quadro teórico para que se possa realizar uma análise em que
o dizer do sujeito-leitor e as condições sócio-históricas e institucionais desse dizer têm uma
relação necessária. Partindo, então, de uma outra perspectiva, a AD concentra seus estudos
no discurso, objeto que estuda no quadro das instituições históricas e sociais em que é
produzido. Permite-nos, assim, estudar questões de natureza semântica de uma perspectiva
diferenciada, ao discutir por que o sujeito diz o que diz numa certa circunstância sócio-
histórica. Esse estudo não seria possível se consideradas outras vertentes teóricas cuja
especificidade seja apenas o tratamento da informação ou a procura de um sentido a que se
teria acesso por meio de textos.
No quadro teórico da AD, o texto deixa de ser visto como um objeto que permite
“transmissão de informação entre A e B” (PÊCHEUX, op. cit., p. 82), o discurso, por sua
vez, passa a ser visto como “efeito de sentidos” (op. cit.) Por esse viés, a AD concentra
estudos na observação/análise de como os objetos simbólicos (textos, imagens, por exemplo)
produzem sentidos por/para sujeitos afetados pela história e pela ideologia (ORLANDI,
2002), perspectiva em que se propõe, pode-se dizer, uma nova “teoria da leitura”
(POSSENTI, 2004, p. 358), a partir da qual se pode observar, não o texto propriamente, mas o
funcionamento discursivo. Neste trabalho, tal posicionamento significa ter um bom
59
instrumental teórico para investigar o que diz o sujeito-leitor em relação ao que foi dito da
mesma posição ou ainda como o sujeito-leitor estabelece relação entre um certo
“acontecimento” movimentos sócio-históricos contemporâneos ou não e a configuração
de um texto. Na seção seguinte, busco ampliar esta discussão sobre a constituição do quadro
epistemológico da AD, disciplina que inscreve o discurso na sua relação com a língua e com a
história, e busca, na materialidade linguística, as marcas da ideologia, de forma a
compreender o processo de constituição do sentido.
2.3 Língua, sujeito, história : espaço de articulação e de “entremeio” para a AD
As dimensões apontadas anteriormente na constituição do quadro teórico inicial da AD nos
revelam, pode-se dizer, um recorte teórico ímpar realizado por Pêcheux (2001/1969,
2001/1975b), ao qual acrescentarei, neste item, novas reflexões e até mesmo alguns novos
pressupostos teóricos. Ainda não pretendo, neste item, avançar minhas reflexões a propósito
de estudos da AD que a constituem na atualidade (final do séc. XX e início do séc. XXI),
porque isso será feito em capítulo à parte, excetuando-se breves e rápidas entradas decorrentes
da imbricação de estudos mais contemporâneos com esses estudos tidos como fundadores da
disciplina.
Vimos que, ao conceber o discurso como o objeto de estudo da AD, Pêcheux articula três
regiões do conhecimento, estabelecendo uma aproximação entre Saussure (relido por
PÊCHEUX, 1969, 1975), Freud (relido por LACAN) e Marx (relido por AUTHUSSER,
1974), propondo não uma teoria de uma gramática da língua
7
, mas sim uma teoria do sentido.
Ao propor o discurso como “efeito de sentidos entre locutores” (PÊCHEUX, 2001/1969, p.
82), acredito que esse teórico atribui uma dimensão de bastante relevância para que se possam
investigar diferentes aspectos envolvidos no processo de produção do sentido, privilegiando
estratégias de leitura que ressaltam certas dimensões do texto, bem como suas condições de
produção/recepção/circulação.
7
A AD não prescinde dos estudos lingüísticos, ao contrário, considera sua especificidade, sua “ordem”. o
lingüístico como pressuposto para a materialização do discurso que se manifesta em textos. No entanto discorda
da forma como a Lingüística (Semântica) aborda questões relativas ao sentido, sobretudo, quando o coloca numa
instância universal, generalizante (POSSENTI, 2004, p. 361).
60
Certamente, a aproximação entre essas três regiões do conhecimento ainda provoca
questionamentos e discussões, sobretudo, em relação à noção de assujeitamento (POSSENTI,
2001, 2002, por exemplo), mas também produz condições intelectuais propícias para um bom
questionamento sobre o sentido, quando visto como algo a ser recuperado por meio da leitura,
ou mesmo como uma interpretação “verdadeira” (POSSENTI, op. cit.). Ao propor, não a
interpretação nesses moldes até então usuais, mas sim uma análise dos “gestos de
interpretação” (ORLANDI, 2002, p. 26), de forma a compreender como um objeto simbólico
produz sentidos, a AD proporciona, entre outros ganhos, a possibilidade de novas práticas de
leitura, porque concebe como meta prioritária “os processos discursivos inscritos em relações
ideológicas” (CARDOSO, 2005, p. 23), considerando-se dimensões mais amplas, tais como a
da historicidade da linguagem. Ocupa-se, pois, da dualidade sujeito/discurso, concebendo o
enunciado com uma estrutura interna própria cujo funcionamento está em relação a uma
conjuntura histórica, nos moldes de Pêcheux (1997/1975b).
No que diz respeito ao trabalho com o texto, a AD considera que os textos são produzidos no
quadro de instituições que lhes restringe a enunciação, e que, nos textos, cristalizam-se
conflitos e confrontos histórico-sociais. Distinguem e marcam, pois, a especificidade da AD:
i) o modo como pensa a significação e as condições sócio-históricas de produção dos
processos discursivos, que, desse ponto de vista, constituem a fonte de produção dos efeitos
de sentido no discurso; ii) a forma como concebe o discurso, que se manifesta via textos,
lugar material em que se realizam os efeitos de sentido. Constata-se, então, a estreita relação
da AD com a linguística, ao contrário de outras teorias do discurso, como a proposta por
Foucault (op. cit.), por exemplo. Para a AD, não se concebe o discurso a não ser por
intermédio da língua que o materializa por meio de textos.
Esse ponto de vista nos conduz a uma nova direção em relação a um trabalho de ensino de
língua, porque nos permite um deslocamento de um ensino dito prescritivo (baseado na
gramática normativa e na metalinguagem) para um ensino que nos remete a uma direção mais
ampla que a do espaço da sala de aula (baseado no funcionamento da linguagem humana nas
diversas instâncias de produção de discursos). Com base em tais pressupostos, é possível
pensar o discurso (que se materializa na língua), a partir de dois deslocamentos paralelos,
conforme propõe Orlandi (2001, p. 99): “o de sentido e o da própria língua, posta em relação
com a história”, ambos considerados como opacos, não transparentes. Nesse quadro teórico,
em que se alia o linguístico ao sócio-histórico, dois conceitos são muito caros para AD: o de
ideologia e o de discurso.
61
2.3.1 Ideologia e discurso: compreendendo os processos de significação
Pêcheux (2001/1975a), em diálogo com Althusser (2003 [1974]), concebe a ideologia como
sendo uma “representação” da relação imaginária dos indivíduos com suas condições reais de
existência” (p. 85), ponto de vista segundo o qual aquilo que o sujeito diz não tem um sentido
em si mesmo porque as crenças e valores do sujeito-enunciador estão condicionadas à posição
de onde enuncia. Por esse viés, a ideologia passa a ocupar um dos mais importantes pilares no
quadro epistemológico da AD, sendo concebida como “estrutura-funcionamento” (p. 152),
assim como o inconsciente, isto é,
o caráter comum das estruturas-funcionamentos designadas, respectivamente, como
ideologia e inconsciente é o de dissimular sua própria existência no interior mesmo
do seu funcionamento, produzindo um tecido de evidências ‘subjetivas’, devendo
entender-se este último adjetivo não como ‘que afetam o sujeito’, mas ‘nas quais se
constitui o sujeito’ (PÊCHEUX, 2001, 1975a, p. 152-153, grifos e aspas do autor).
Pêcheux defende, assim, que o discurso, cuja materialidade é histórica e ideológica, não se
dissocia da ideologia, porque está condicionado ao lugar social de inscrição do sujeito da
enunciação cuja natureza é fundamentalmente ideológica, o que nos permite investigar a
possível relação sujeito/produção do sentido/circunstâncias históricas e sociais, considerando-
se também a historicidade da língua.
Ao tratar da relação historicidade/sentido, Orlandi (2002), por sua vez, afirma que “as
palavras ‘tiram’ (aspas da autora) seu sentido dessas posições” (p.43) posições ideológicas,
ou seja, posições de onde o sujeito-leitor enuncia, sua função no processo enunciativo, as
próprias condições de produção/recepção/circulação de um determinado discurso.
Uma proposta teórica como a que a AD sustenta pode, então, contribuir para que se possa
compreender o discurso, “constituindo-se no lugar teórico em que se pode observar a relação
da língua com a ideologia” (ORLANDI, 2001, p. 100). Ao propor que a ideologia interpela
os indivíduos em sujeitos”, Pêcheux (2001/1975b, p. 167) vale-se da noção de Materialismo
Histórico um conceito althusseriano , que diz respeito à superestrutura ideológica e à sua
relação com os modos de produção, discutindo o importante papel que a ideologia representa
no processo de interdição dos sentidos. Assim, ao realizar um diálogo crítico em relação à
noção de ideologia proposta por Althusser (2003/1974), além de pensá-la do ponto de vista do
funcionamento da linguagem, no campo do discurso, Pêcheux (2001/1969, 2001/1975b)
62
consegue estabelecer um quadro teórico a partir do qual se pode observar a correlação
discurso/instância ideológica, o que nos permite investigar, por exemplo, como o sentido
serve a um jogo de poder.
Também, ao valer-se da concepção de “condições de produção” (op. cit.), cheux
(2001/1969, p. 77) mostra que o indivíduo não é livre para escolher deliberadamente, numa
determinada situação, o que falar, pois o seu dizer estará sendo afetado por outros dizeres.
Trata-se de sentidos que foram se construindo sócio-historicamente a partir das relações de
poder, e que podem ser assumidos ou não pelo sujeito, dependendo das posições discursivas
que poderá ou não ocupar em função do funcionamento da ideologia. Dessa perspectiva, a
ideologia possibilita um processo de “naturalização” dos sentidos. É como se os sentidos
estivessem sempre lá. Assim, vão se situando nos grupos sociais e são apropriados pelos
sujeitos via interdiscurso – rede de discursos outros.
É exatamente nesse aspecto que essa concepção de ideologia pode contribuir para a
construção do objeto de estudo deste trabalho. Pensando-se um sujeito-leitor que pode deixar
transparecer sua identificação com certos posicionamentos ideológicos e não outros, é
possível investigar fatores que norteiam a percepção do sentido com base em textos.
Significar, conforme Orlandi (2002, p. 36), tanto pode ser atribuir sentidos, estabelecendo
uma rede de relações entre textos por meio de processos parafrásticos (em todo dizer tem
sempre algo que se mantém), como também pode ser atribuir sentidos por meio de processos
polissêmicos (deslocamentos, rupturas nos processos de significação). Com base nesse quadro
teórico, proponho realizar uma investigação sobre relações do sujeito nos processos de
significação, cuja ênfase recaia sobre os posicionamentos parafrásticos / movimentos
polissêmicos, em face da leitura de diferentes textos, em situação de ensino-aprendizagem.
Sobre processos parafrásticos, é importante ressaltar que, em AD, a paráfrase é um fenômeno
discursivo de natureza semântica de que se vale o sujeito ao enunciar de diferentes posições e
circunstâncias sócio-históricas, isto é, determinados discursos são substituíveis um pelo outro,
são intercambiáveis, sem que se comprometa seus “efeitos de sentido”, porque o que confere
ou garante o sentido ao enunciado é sua filiação a um interdiscurso (PÊCHEUX, 2001/1969,
p. 92-93).
63
Psicionamento segundo o qual os “efeitos de sentido” não podem ser vistos como sentido
(efeito) de uma ou outra palavra isoladamente, mas como resultado de sua inserção numa
“rede” com a qual se estabelece alguma relação metafórica:
Chamaremos efeito metafórico o fenômeno semântico produzido por uma
substituição contextual, para lembrar que esse “deslizamento de sentido” entre x e y
é constitutivo do “sentido” designado por x e y; esse efeito é característico dos
sistemas linguísticos “naturais”, por oposição aos códigos e às “línguas artificiais”,
em que o sentido é fixado em relação a uma metalíngua “natural (PÊCHEUX, 2001
[1969], p.96). (grifos e aspas do autor)
Pensar esse fenômeno sob esse olhar é um ponto central neste estudo porque se pretende
pensar o sujeito-leitor significando textos, de tal forma a conceber os fenômenos de
linguagem como elementos vivos na sociedade. A AD faz isso ao migrar de uma linguística
do enunciado (terreno de certezas) para uma linguística da enunciação (terreno de incertezas),
conforme salienta Mari (2000, p. 13). Assim, a língua, também, é tomada numa dimensão que
considera a linguagem em funcionamento, tornando o percurso desse estudo, especialmente,
dinâmico. Ressalta-se, então, a especificidade do conceito de enunciação para a AD.
2.3.2 Análise do discurso e enunciação
Para a AD, o processo de enunciação, por ser um fator determinante na constituição do
sentido, não pode ser visto como se houvesse uma relação de perfeita correspondência entre
língua/mundo/objetos, mas sim deve ser fundamentalmente considerado no interdiscurso:
A enunciação equivale pois a colocar fronteiras entre o que é ‘selecionado’ e tornado
preciso aos poucos (através do que se constitui o ‘universo do discurso’), e o que é
rejeitado. Desse modo se acha, pois, desenhado num espaço vazio o campo de ‘tudo
o que teria sido possível ao sujeito dizer (mas não diz)’ ou o campo de ‘tudo a que se
opõe o que o sujeito disse’ (PÊCHEUX, 2001/1975b, p. 176, aspas e comentários
do autor).
Sob esse olhar, a exterioridade o interdiscurso, o pré-construído, a memória do dizer, o
contexto enunciativo historicamente determinado é constitutiva do que se diz e os objetos
do discurso são marcados por uma instabilidade constitutiva. Aceitar o primado do
interdiscurso sobre o discurso é dispor de um referencial teórico que nos permite verificar a
possível relação memória discursiva/produção do sentido. Estamos propondo, assim, uma
investigação em que a figura do Outro (Interdiscurso) e do outro (tu) tem uma participação
64
efetiva na constituição do sujeito e da identidade, estando ciente de que esse Outro nem
sempre é localizável explicitamente no texto, pois “o Outro encontra-se na raiz de um Mesmo
sempre já descentrado em relação a si próprio” (POSSENTI, 2004, p. 384).
Defendemos, pois, que o dialogismo proposto, inicialmente, por Bakhtin (1999/1929) e,
posteriormente, retomado por Authier-Revuz (op. cit.) no quadro teórico da AD, é um
elemento constitutivo de todo e qualquer enunciado do discurso. Em vista disso, verificar os
movimentos dos sujeitos no processo de produção de sentidos, nesse caso, não se trata de
investigar se os sujeitos simplesmente levam em conta a ocorrência do fenômeno dialógico
(intertextualidade, interdiscursividade, por exemplo)
8
, nos seus registros de leitura, mas, sim,
sua interferência na produção de diferentes efeitos de sentido. Além disso, pode-se observar a
parte do discurso que foi necessário silenciar para que o discurso se constituísse como um
todo – o discurso se constrói em redes de sentido interdependentes.
Oferecer a sujeitos-leitores textos cujos recursos linguísticos e textuais salientem a não
unicidade do sujeito falante é uma das formas de levar esses sujeitos a se valerem desses
recursos para perscrutar as redes de memória de que se constituem os textos. A escolha de
determinadas instâncias interdiscursivas no processo de produção, por sua vez, levam o
sujeito-leitor a estabelecer certas relações de sentido e não outras, favorecendo a investigação
de questões que dizem respeito à possível relação sujeito/atualidade do sentido/memória
discursiva.
Pode-se pensar, ainda, sobre o modo como as condições de produção de leitura/condições de
produção do texto (conjuntura sócio-histórica, lugar, relações sociais, papéis sociais
representados pelos interlocutores, o jogo de imagens das representações que os próprios
interlocutores atribuem a si mesmos e ao outro) resultam em novos efeitos de sentido. Essa
noção conceitual nos permite verificar, também, dados que indicam o quanto e/ou em que
condições um leitor é mais atento à materialidade do texto e sua relação com os discursos
precedentes, historicamente e ideologicamente situados memória discursiva a, quadro
epistemológico em que a leitura é concebida como “prática de interpretação”, e não como
tratamento da informação.
8
Intertextualidade e interdiscursividade são dois conceitos vistos, neste estudo, como fenômenos lingüísticos que
não se recobrem mutuamente. Tais conceitos serão abordados posteriormente.
65
Conforme propõe a AD, os discursos são produzidos em certas circunstâncias históricas e
sociais, no interior de determinadas posições ideológicas e de certos lugares sociais, que, por
sua vez, são constitutivos de seus efeitos de sentido. Sobre essa concepção, comungo com
Possenti (2001, p. 32) a crença de que, em certos textos, não marcas tão evidentes de
posições ideológicas, o que poderia levar o analista à seleção de um corpus preferencial,
dificultando o uso de seus princípios teóricos para a análise de todo e qualquer texto.
Ciente dessa limitação, neste trabalho, são priorizadas certas condições de produção de leitura
e não outras, de modo a se estabelecerem algumas fronteiras entre o que é selecionado/não
selecionado, dito/não-dito pelos sujeitos da pesquisa. A questão central é investigar efeitos de
sentido priorizados/evidenciados pelos sujeitos da pesquisa porque acreditamos que esse seria
um dos caminhos possíveis para se compreenderem fatores determinantes da percepção do
sentido, sob a ótica do sujeito-professor-leitor em processo de formação inicial. De tal modo,
poder-se-ia contribuir para uma investigação mais efetiva e criteriosa em relação aos
processos de significação, sobretudo, os que se constituem em esferas ditas escolares e/ou
acadêmicas. No próximo capítulo, proponho novas reflexões e noções conceituais, de modo a
abranger estudos mais contemporâneos da AD, além de outros em caráter de
complementaridade.
66
C
APÍTULO 3
3 SUJEITO-LEITOR, SENTIDO, CIRCUNSTÂNCIAS SÓCIO-HISTÓRICAS
Neste capítulo, pretendo retomar a discussão inicial que diz respeito às concepções de sujeito,
de sentido e de circunstância com os seguintes propósitos: i) ampliar a reflexão realizada no
primeiro capítulo; ii) estabelecer possíveis relações de proximidade entre o quadro teórico
inicial da Análise do Discurso (AD) em face de pressupostos teóricos nos quais a AD vem se
sustentando a partir do final do culo XX, até o atual momento; iii) dialogar com outros
estudos que não se situam propriamente em AD, mas se encontram em relação de
conformidade com essa vertente teórica. Buscando atender a esses propósitos, primeiramente,
coloco em pauta uma discussão relativa à concepção de sujeito e de autor. Na seção seguinte,
discuto a concepção de sujeito-leitor num quadro enunciativo-discursivo, considerando, de
modo especial, a relação sujeito/circunstância, que constitui o quadro de referência em que se
situam os sujeitos, além de outras restrições a que estão submetidos no processo enunciativo.
3.1 Do sujeito ao autor, do autor ao sujeito?
Em prosseguimento a estudos realizados no capítulo inicial, focalizo, primeiramente, duas
concepções de sujeito propostas em dois diferentes momentos na constituição do quadro
teórico da AD. O intuito é refletir sobre o papel dessas concepções como ponto de referência
em relação a estudos em AD tidos como bastantes atuais. Na verdade, venho investindo
esforços em estudos que possam oferecer algumas contribuições em relação ao processo de
formação do sujeito-leitor, de tal modo a conceber a leitura como uma atividade direcionada
para sentidos não propriamente estabilizados (VITORINO, 2003).
Para essa discussão, em primeiro lugar, retomo a concepção de assujeitamento que diz
respeito à natureza da subjetividade, à qualificação do sujeito pela sua relação constitutiva
com o simbólico (PÊCHEUX, 2001/1969). Tal concepção foi proposta na constituição do
quadro epistemológico inicial da AD, na sua dita primeira fase (AD-
1).
Nessa fase, propõe-se uma subjetividade assujeitada às coerções da formação discursiva (FD),
67
que, por sua vez, sustenta os dizeres. Isso implica a noção de “máquina discursiva”. Uma
máquina cuja estrutura é responsável pela geração de um determinado processo discursivo
(MUSSALIM, 2001, p.118). Quando faz essa proposta, Pêcheux pensa em sujeitos que
acreditam que ‘utilizam’ seus discursos quando, na verdade, são seus ‘servos’, seus
‘suportes’” (PÊCHEUX, 2001/1983, p. 311, aspas do autor). Trata-se de um posicionamento
em que não se considera o sujeito em sua individualidade, pois quem fala é a ideologia.
Na segunda fase da AD (AD-2), são propostos deslocamentos, tais como os que vão da
“justap
osição dos processos discursivos à tematização de seu entrelaçamento desigual”
(PÊCHEUX, 2001/1983, p. 313). Entrelaçamento desigual diz respeito a relações de força
desiguais entre processos discursivos, com influência desigual uns sobre os outros. Conforme
essa proposta, as relações entre as “máquinas” discursivas estruturais tornam-se o objeto de
estudo da AD (PÊCHEUX, op. cit., p. 314, itálico e aspas do autor). Nesse quadro, a noção de
máquina estrutural fechada vai perdendo espaço para a noção de FD. No entanto o sujeito do
discurso continua sendo concebido como “puro efeito de assujeitamento à maquinaria da FD
com a qual ele se identifica” (op. cit., p. 314).
Em segundo lugar, recoloco em cena a concepção de sujeito que se pauta na concepção
bakhtiniana de dialogismo (AUTHIER-REVUZ, 1982, 1990, 1998). Essa nova discussão
sobre a questão do sujeito submetido à linguagem (noção lacaniana) considera a
heterogeneidade constitutiva de todo discurso. Essa é uma concepção condizente com a
terceira fase da AD (AD-3), em que se considera a primazia do interdiscurso sobre o discurso.
Tal afirmação nos permite discutir uma noção de sujeito que se constitui na relação
identidade/alteridade, por isso descentrado e movido pela ilusão discursiva de unidade.
Assim, é possível à AD conceber um sujeito que “vai perdendo a polaridade centrada ora no
eu ora no tu e se enriquecendo com uma relação dinâmica entre identidade e alteridade”
(BRANDÃO, 1997, p. 62).
A heterogeneidade constitutiva pode ser abordada tanto pela revelação quanto pela ocultação
do Outro na própria fala ou no próprio texto, o que implica necessariamente sua relação com
o Outro, isto é, trata-se de um fenômeno concebido no nível do interdiscurso. Interdiscurso,
nesse caso, diz respeito aos discursos constituídos pela relação de interdependência uns dos
outros para depois serem colocados em relação (BRANDÃO, 1997, p. 72). Pensar a
heterogeneidade constitutiva nos permite, pois, conceber um sujeito que, por um lado, utiliza
alguns mecanismos para cercear a presença do interdiscurso no seu discurso. Por exemplo,
68
tomar uma posição contrária a um ponto de vista tido como universal ou distanciar-se dele,
atuando pela rejeição, renúncia, interdição. Por outro, um sujeito que pode inscrever no
próprio texto diferentes formas de aparecimento de outro enunciador assimilação,
remissões, referências, citações, sustentação do dizer a partir da voz do senso comum, entre
outras –, gerando efeitos de polifonia (CORRÊA, 2004, p. 253-286).
A heterogeneidade constitutiva do sujeito é um fenômeno que tem bastante aceitação entre os
analistas do discurso na atualidade, embora muitos pesquisadores acreditem que a
concepção de sujeito ainda seja uma questão em aberto (POSSENTI, 2003, entre outros). Já
sobre sujeito/circunstância, acredita-se que essa relação seria um ponto de não retorno. Isso
significa fundamentalmente aceitar que “o sujeito é segundo em relação a seu entorno
social, linguageiro, ideológico, cultural, até mesmo biológico” (POSSENTI, op. cit., grifo do
autor). Na verdade, ao pensar a dimensão sócio-histórica da linguagem, a AD empreende um
esforço teórico no sentido de buscar alguns parâmetros que contribuam para que se investigue
a linguagem em seu uso e funcionamento, considerando-se a correlação
sujeito/sentido/circunstâncias.
Admitindo-se, então, que, em termos mais ou menos correntes na AD, o sujeito é efeito, nota-
se um descontentamento em relação a essa formulação (POSSENTI, op. cit., grifo do autor).
A inquietação a esse respeito deve-se ao fato de se acreditar que tal noção situa o discurso da
AD, ainda que involuntariamente, “no interior das filosofias que ela pretende negar as das
causas e efeitos” (p.2). Visto assim, o sujeito não é origem do sentido, da história. Esse é um
posicionamento que desconsidera qualquer atuação do sujeito dita “intencional”. Trata-se de
uma noção de sujeito questionável, pois não mais espaço nos estudos linguísticos para se
conceber um sujeito sem circunstâncias ou que delas tenha pleno controle, até mesmo em
estudos ditos conservadores (POSSENTI, op. cit.).
Outra questão que se ressalta, nesse caso, é a discordância (por razões teóricas e empíricas)
desse teórico em relação à tese da AD apresentada no início deste capítulo, tributária de
Pêcheux (2001/1969, 2001/1975b), segundo a qual o sujeito é assujeitado. O posicionamento
contrário a essa noção de assujeitamento é sustentado na seguinte direção: “se os sujeitos não
inventam o jogo, não significa que não joguem” (POSSENTI, 2003, p.2). Quanto ao sujeito
de razão que a AD recusa, em diálogo com Althusser (2003/1974), é aquele que competiria
com Deus. É o Cogito, e não o simples autor de um ato de fala, por exemplo. Então, não se
deveria pensar que o sujeito (um sujeito desses que falam) tenha tal dimensão (POSSENTI,
69
2003). Com base nesse posicionamento, considera-se até mesmo inútil o conceito de “sujeito
de uma FD, com a qual os sujeitos se identificariam ou não” (op. cit.). Salienta, ainda,
Possenti que o próprio Foucault (1984), também, havia abandonado a idéia de
assujeitamento pleno ao considerar um sujeito das práticas cotidianas, submetido a
circunstâncias que decerto não o deixam livre, mas também não o subjugam completamente.
Esse posicionamento, em relação ao qual manifestei meu apoio, é um dos pilares neste
estudo, em que procuro assumir a idéia do descentramento do sujeito que pode ocupar várias
posições enunciativas, e dispõe de um mínimo de liberdade para realizar um trabalho com a
linguagem. Com isso, vejo possibilidades para se investigar alguns mecanismos de controle
de que se valem os sujeitos para significar/significar-se.
Proponho-me, neste ponto, atentar para um deslizamento da concepção de sujeito para a de
autor. Com tal fenômeno, subentende-se uma não sobreposição dessas duas noções em AD.
Inicio essa discussão, reiterando a concepção de autor proposta por Foucault (2004/1971),
teórico com o qual a AD dialoga ao construir seu quadro epistemológico inicial. Esse teórico
concebe o autor como “princípio de agrupamento do discurso, unidade e origem de suas
significações, foco de sua coerência” (p. 26). Desse ponto de vista, “seria um absurdo negar a
existência do indivíduo que escreve e inventa” (Op. cit., p. 28), pois é tido como responsável
pelo texto que produz, situação em que está investido da função de significar, com base num
quadro de referência em que se situa num determinado processo enunciativo-discursivo.
Quanto à noção de sujeito, proposta por Orlandi (2004), também abrange “um lugar, uma
posição discursiva, marcada pela sua descontinuidade nas dissensões múltiplas do texto” (p.
84). A noção de autor também é “uma função da noção de sujeito, responsável pela
organização do sentido e pela unidade do texto, produzindo o efeito de continuidade do
sujeito (Op. cit., grifo e parênteses da autora)
.
Por meio desse movimento, em que se transita
da noção de sujeito para a de autor e não o contrário, ressaltamos que Orlandi (2004), ao invés
do que propõe Foucault (op. cit.)
9
, procura estender essa noção de autoria para o uso
cotidiano, concebendo-a, então, como função enunciativa do sujeito, distinta da de
enunciador / locutor. Vejamos.
9
Foucault vale-se da noção de autor para situações enunciativas especiais, tais como aquelas em que o texto
original, “de autor”, se opõe ao comentário” (ORLANDI, 2004, p. 69).
70
A função-autor, para nós, não se limita, como em Foucault (2004/1971), a um
quadro restrito e privilegiado de produtores “originais” de linguagem que se
definiriam em relação a uma obra. Para nós, a função-autor se realiza toda vez que o
produtor da linguagem se representa na origem, produzindo um texto com unidade
[...]. Em outras palavras, ela se aplica ao corriqueiro da fabricação da unidade do
dizer comum, afetada pela responsabilidade social: o autor responde pelo que diz ou
escreve, pois é suposto estar em sua origem. (ORLANDI, 2004, p. 69)
Mas poderíamos falar do sujeito sem falar do autor, ou vice-versa, já que não há uma
sobreposição entre essas duas noções? Para responder a esse questionamento, por uma
questão metodológica, e que não há uma simetria entre essas duas noções, parto da noção
de sujeito à noção de autor, e não do contrário. Trata-se de um posicionamento que comungo
com Carreira (2001). A esse respeito, a autora propõe as seguintes questões:
Por que partimos da noção de sujeito e não da de autor? Por que precisamos falar do
sujeito quando falamos do autor? Por que não precisamos falar de autor para falar do
sujeito? (CARREIRA, 2001)
Considerando-se tais questionamentos, e em face da noção de autoria como um princípio de
origem e de continuidade, tratar de sujeito sem tratar de autor implica reconhecer a
legitimidade da função-autor apenas quando tal função recai sobre um sujeito investido da
posição de sujeito-autor, respondendo, necessariamente, pelo que diz ou escreve. Portanto,
não de qualquer posição, e sim daquela que lhe confere responsabilidade social e legitimidade
para assumir a função-autor (chargista, cronista ou articulista num determinado jornal, por
exemplo). Nesse caso, a assunção pelo sujeito de determinados papéis sociais não seria
necessariamente indício de sua posição-autor, mas a situação contrária sim. Por exemplo, um
chargista, ao assumir a posição de pai, poderá desvincular-se provisoriamente da função
anterior. No entanto, se se encontra no exercício da função de chargista ou de articulista, será
inevitavelmente visto como fonte, origem de seu dizer. Isso ocorre porque nesse novo
processo enunciativo-discursivo é conclamado a se identificar perante os leitores de uma
revista ou um jornal, levando-se em conta a cadeia enunciativa em que está
inquestionavelmente inserido.
Um estudo histórico sobre a constituição do quadro teórico da AD, que ressalta aspectos
envolvendo a concepção lacaniana de inconsciente
10
pode contribuir para que se respondam a
10
Em conformidade com essa vertente teórica, o inconsciente estrutura-se como uma linguagem, como uma
cadeia de significantes latente que se repete e interfere no discurso efetivo, como se houvesse sempre, sob as
71
essas questões, particularmente, recorrendo às concepções de sujeito e de inconsciente
propostas por Lacan, em diálogo com Freud (PÊCHEUX, 2001/1975b).
Da perspectiva lacaniana, o sujeito é visto como sendo “da ordem da linguagem”
(MUSSALIM, 2001, p. 107). Dessa forma, “o sujeito não é “um”, mas sim aquilo que um
significante representa para outro significante, ou seja, o que emerge entre os significantes.
Nesse sentido, o sujeito não é uma posição, mas a possibilidade de ocupar alguma posição e
nela significar algo. E essas posições, conforme já assinalado, mudam. Sendo assim, o sujeito,
por vezes, se “descaracteriza” para ocupar novas posições, e, a partir delas, filiar-se a uma
nova rede de sentidos.
Se acrescentarmos a essa perspectiva a noção de alteridade, à luz de sua articulação necessária
com a concepção bakhtiniana de dialogismo, podemos identificar formas de heterogeneidade
mostrada marcada e não-marcada no discurso que indiciam, de alguma forma, marcas da
presença da alteridade no mesmo. De fato, a articulação dessas noções aponta para a língua
como sendo um objeto da instância da incompletude princípio da AD assinalado
anteriormente. Assim, é possível pensar em momentos de singularidade do sujeito. Esse
espaço é justamente aquele em que o sujeito está investido da função de autor. Trata-se da
possibilidade de o sujeito se desvencilhar, pelo menos em parte, de uma existência
condicionada à existência do Outro. O “eu”, nesse sentido, emerge de um distanciamento
necessário e ilusório do Outro. Essa seria uma função do sujeito, isto é, a de construir uma
imagem de unidade para si, que, na verdade, advém do Outro. Paradoxalmente, um Outro que
não deixa de emergir, ecoar, atestando a presença da alteridade no discurso do mesmo.
Também, a noção de ideologia e a teoria dos dois esquecimentos (1 e 2), de Pêcheux,
mostram-se relevantes para que compreendamos esse fenômeno. No que diz respeito à
ideologia, nesse quadro teórico, afirma-se que
o caráter comum das estruturas-funcionamentos designadas, respectivamente, como
ideologia e inconsciente é o de dissimular sua própria existência no interior mesmo
do seu funcionamento, produzindo um tecido de evidências “subjetivas”, devendo
palavras outras palavras, como se o discurso fosse sempre atravessado pelo discurso do Outro, do inconsciente.
(MUSSALIM, 2001, p. 107)
72
entender-se este último adjetivo não como “que afetam o sujeito”, mas “nas quais se
constitui o sujeito”. (PÊCHEUX, 1997/1975a, p. 153, grifos e aspas do autor)
Essa visão de ideologia nos possibilita pensar não somente a constituição do sujeito forma
de existência particular –, como também as possíveis manobras do sujeito em face de sua
“dependência” da exterioridade. Afinal, cabe à ideologia fornecer “evidências da existência
espontânea do sujeito como origem ou causa de si , a evidência de que você e eu somos
sujeitos” (PÊCHEUX, 1997/1975a, p. 151-158). Não se pode, portanto, dizer que “o sujeito é
interpelado pela ideologia”. Deve-se, isso sim, considerar que “a ideologia interpela os
indivíduos em sujeitos” (p. 155). Noutros termos, “não se fala ao sujeito, nem do sujeito,
antes que ele possa dizer ‘eu falo’” (p. 154), que a interpelação ideológica atinge o sujeito
desde o momento inicial de sua constituição.
Dando sequência a esse raciocínio, pode-se afirmar que a constituição do sentido junta-se à
constituição do sujeito” (Op. cit., p. 153, grifos do autor). Pode-se, ainda, dizer que a
ideologia, enquanto exterioridade constitutiva do sujeito, é da dimensão do Outro.
Já a propósito do questionamento inicial sobre a intercambialidade entre as noções de
sujeito/autor, coloco em pauta a teoria dos esquecimentos 1 e 2 (PÊCHEUX e FUCHS,
2001/1975b), porque também nos ajuda a compreender algumas dimensões da constituição
do sujeito. Essa teoria dos esquecimentos
11
, com base na interpelação ideológica, sustenta o
pressuposto de que o sujeito tem uma “ilusão necessária” de que constrói a própria unidade
subjetiva (p. 171). São os esquecimentos 1 e 2, cuja oposição se efetua em relação à zona em
que trabalham.
Parece-me mais conveniente abordar, em primeiro lugar, o esquecimento 1, também
denominado “esquecimento ideológico” (ORLANDI, 2002, p. 35). Esse esquecimento, da
instância do inconsciente, situa-se numa zona inacessível ao sujeito e reflete o “sonho
adâmico: o de estar na inicial absoluta da linguagem” (ORLANDI, 2002, p. 35). Por essa
razão, é “constitutivo da subjetividade na língua” (PÊCHEUX, op. cit., p. 177). Trata-se de
um processo de base linguística, inconsciente e ideológico, em que o sujeito tem a ilusão de
11
Segundo o próprio cheux (2001/1975), esquecimento, nesse caso, não se trata de um distúrbio da memória.
Designa, paradoxalmente, o que nunca foi sabido e que, no entanto, toca o mais próximo o “sujeito falante” (p.
238, grifos e aspas do autor).
73
ser a origem de seu discurso, apagando ou recalcando sua relação com a alteridade. O sujeito
realiza esse apagamento, colocando em relação famílias parafrásticas matrizes do sentido
constitutivas dos efeitos de sentido (ORLANDI, op. cit.).
o esquecimento 2, da instância do pré-consciente/consciente, encontra-se na “zona dos
processos de enunciação” (PÊCHEUX, 2001/1975b, p. 177). É também denominado
“esquecimento enunciativo” (ORLANDI, 2002, p. 35). Tem base nos processos discursivos
que são analisáveis na superfície do discurso. Trata-se de uma zona em que o sujeito pode
penetrar conscientemente (PÊCHEUX, op. cit. p. 177, grifo do autor): selecionando certos
dizeres e rejeitando outros; privilegiando algumas sequências discursivas e apagando outras;
delimitando os ditos e não-ditos. Em razão disso, pode-se dizer que a sintaxe não é dotada de
neutralidade, isto é, “o modo de dizer não é indiferente aos sentidos” (ORLANDI, 2002, p.
35).
Nesse quadro teórico, é como se o sujeito dissesse “quero dizer isso e não aquilo”. Essa zona
penetrada pelo sujeito, de certa forma, permite-lhe precisar o que queria dizer, e,
consequentemente, denegar o que não queria dizer. Na realidade, essa tentativa de controlar o
sentido acaba por evidenciar seu descontrole, além de conferir ao sujeito “a ilusão de que o
discurso reflete o conhecimento objetivo que tem da realidade” (BRANDÃO, 1997, p. 66).
Em síntese, esse “esquecimento” produz no sujeito a impressão da realidade do pensamento
como se houvesse uma relação imediata entre pensamento/linguagem/mundo (ORLANDI,
2002). Como vimos, a oposição entre os dois esquecimentos refere-se à zona em que
trabalham a do inconsciente (esquecimento 1) e a do pré-consciente, consciente
(esquecimento nº 2). Essa distinção nos sugere
uma analogia com a teoria lacaniana do outro vs o Outro: identificação imaginária
(“outro” com o minúsculo) está do lado do “esquecimento 2”; processo de
interperlação-assujeitamento do sujeito (o “Outro de Lacan) do lado do
“esquecimento nº 1”. (MALDIDIER, 2003, p, 43, aspas e parênteses da autora)
Observa-se que Pêcheux, ao propor essa teoria dos esquecimentos, busca estabelecer uma
relação entre ideologia e inconsciente, deixando à mostra um sujeito descentrado, que
acredita, no entanto, ser origem de seu dizer. Por não se dar conta de que não é centro, o
sujeito, também, não consegue perceber sua “irresponsabilidade” em relação aos efeitos de
sentido dos dizeres que assume como se fossem próprios. Isso lhe permite “suportar” seu
assujeitamento à ideologia.
74
Concebido por Pêcheux (1997/1975a) como uma posição enunciativo-discursiva fruto do
esquecimento 1 –, e pela tentativa de controle do sentido fruto do esquecimento 2 –,
enquanto tal, o sujeito localiza-se na ideologia. Como resultado desse posicionamento, pode-
se dizer que, para a AD, recalcados são os sentidos interditados pela ideologia para um dado
sujeito, ou seja, a interdição se sobre o imaginário do sentido. Já o autor é visto como um
princípio que “limita o acaso do discurso pelo jogo de uma identidade que tem a forma da
individualidade e do eu(FOUCAULT, 2004/1971, p. 29, grifos do autor). Enfim, é aquele
que, conscientemente ou em estado de pré-consciência, exerce uma prática de controle sobre
seus ditos, interditando alguns dizeres, ressaltando outros como sendo seus, enfim,
procurando apagar a heterogeneidade constitutiva do sujeito e do discurso (AUTHIER-
REVUZ, 1982, 1990).
A propósito do questionamento inicial sobre o “deslizamento” da noção de sujeito para a de
autor e vice-versa, talvez possamos dizer que os esquecimentos 1 e 2 atuem na construção do
“eu” porque procuram apagar a submissão do sujeito à ideologia (CARREIRA, 2001). Nessa
direção, o autor é aquele que, de certa forma, penetra pelo menos pré-conscientemente no
esquecimento 2. Trata-se de um posicionamento em que a autora se apropria de uma das
concepções de “zona de atuação” do sujeito propostas por Pêcheux – a de “zona dos processos
de enunciação”. Nesse sentido, pode-se pensar na susceptibilidade do sujeito de poder se
movimentar em duas diferentes zonas. Tal fenômeno nos permite afirmar que ao transitar na
zona do esquecimento 2 instância da pré-consciência e da consciência –, o sujeito se
constitui autor, ou seja, aquele a quem cabe a busca de controle do sentido.
Se o esquecimento 2 lida com os restos do 1, penetrar em um implica penetrar no outro
(CARREIRA, 2001). Desse ponto de vista, é possível conceber uma dimensão subjetiva do
autor. Ao se submeter à linguagem, o sujeito deixaria emergir no seu discurso aquilo que fala
à sua revelia. No entanto não se trata do que somente é falado pela ideologia, porque, pelo
discurso do Outro, também, se pode estabelecer “uma porta de entrada singular no simbólico
para cada sujeito” (op. cit.). Pode-se dizer, então, que a localização do sujeito na ideologia
(posição) lhe permite exercer o papel de autor. Dessa posição, pode significar/ressignificar o
já-lá, dando aos já-ditos uma “interpretação” dita particular.
Se a unidade se entre o que um autor diz e o que a ideologia dita, tal fato cria uma
intercambialidade necessária para o sujeito e para o discurso (CARREIRA, op. cit.). Então,
singularidade e reciprocidade deixariam marcas significantes do sujeito em suas manobras de
75
contenção do sentido. Nessa direção, conforme vimos defendendo, o autor é apreensível
enquanto posição e é diferente do sujeito, que está interditado. Em outros termos, o autor é,
também, o sujeito que se descaracterizou enquanto tal ao ocupar uma determinada posição,
indiciando o sujeito. Também, discutindo a noção de autoria, Borges e Moreira (2004)
afirmam que
num mundo institucionalizado, em que tudo é protocolado e registrado, onde o
estado de direito impõe um patenteamento a toda forma de invenção, criação e
produção, determina regras de “pertencimento”, instaura e regulamenta a
apropriação, o processo de autoria não pode ficar na mera oralidade, sob pena do
não reconhecimento, por falta da identificação, de alguém a quem possa ser
imputada a autoria. (BORGES e MOREIRA, 2004, p. 3)
Tal fundamento se encontra na mesma direção de teses da AD, tais como as que sustentam o
pressuposto de que, embora o sujeito não seja a fonte, a origem de seu dizer, ao assumir-se
como autor da organização da dispersão num todo coerente, o sujeito embora não seja origem,
apresenta-se como responsável pela unidade e coerência de seu discurso. Nesse sentido,
concebe-se o autor como uma “posição na filiação de sentidos, nas relações de sentidos que
vão se constituindo historicamente” (ORLANDI, 2004, p. 15) e o sujeito como “aquele que é
interpretado pela história” (op. cit.). De um lado, o autor construindo redes que constituem a
possibilidade de significação. Por outro lado, o texto como resultante de um gesto de autoria.
Essas considerações nos permitem afirmar que, ainda que se opte pelo anonimato, todo texto
pressupõe um sujeito que assuma o papel de autor.
Por essa razão, partimos da noção de sujeito para a de autor, e não do contrário. Trata-se de
um ponto em que nos encontramos em conformidade com Foucault (2004/1971), que, entre
outras questões, trata da ordem do discurso, portanto, da entrada do sujeito nessa ordem
(2004/1971). Com base nesse posicionamento que se pauta na teoria dos esquecimentos 1 e
2 podemos concluir que a concepção de sujeito não recobre a de autor, embora o sujeito até
acredite ser o responsável pela própria unidade subjetiva. Em virtude disso, podemos dizer
que se fala do sujeito quando se fala do autor, mas não precisamos necessariamente falar do
autor para falar do sujeito.
Como tais formulações teóricas se sustentam num princípio de constitutividade do discurso,
do sujeito, do sentido e das condições de produção no processo enunciativo (MUSSALIM,
2001), não se ocupam do discurso sob um foco estritamente linguístico. Por isso nos
permitem não apenas compreender um sujeito produzindo textos, mas também nos levam a
76
compreender a correlação sujeito-leitor/sentido em face de condições específicas num
determinado processo enunciativo-discursivo. Trata-se de uma discussão que realizaremos, de
modo especial, na seção seguinte.
3.2 Sujeito, sentido e circunstâncias sócio-históricas: uma abordagem no âmbito da
Análise do Discurso
Nesta seção, o objetivo é propor uma discussão sobre alguns princípios teóricos que nos
permitem compreender alguns fatores que levam o sujeito-leitor a atribuir certos sentidos a
um dado texto. Para isso, considero: i) estudos que se situam em AD, em especial, as
reflexões realizadas na seção anterior, envolvendo a noção de sujeito-autor; ii) estudos em
Análise do Discurso (AD)
12
, sobretudo, os de Maingueneau (2001, 2005, 2006). O propósito
principal é buscar subsídios para compreender a atividade empírica de sujeitos-leitores
investidos de uma posição discursiva produzindo sentidos, em dadas circunstâncias sócio-
históricas.
Em virtude disso, as instâncias de enunciação serão concebidas em termos de lugares –
posição discursiva numa determinada topografia social. Em tal topografia, os sujeitos são
inscritos, e, a partir daí, ganham identidade. Esse sistema de lugares – que ultrapassa o sujeito
define qual é a posição que pode e deve ocupar cada indivíduo para dela ser o sujeito
(FOUCAULT, 1986/1969, p. 126). Embora tal fenômeno coloque em evidência a questão do
assujeitamento, noção sobre a qual já levantamos algumas restrições, também ressalta a
relação sujeito/posição discursiva/sentido, um aspecto fundamental neste estudo. Na verdade,
estamos concebendo sujeitos descentrados, dispersos, inscritos numa instância sócio-
histórica-cultural constitutiva do sentido.
12
Embora os fundadores da chamada Análise do Discurso Francesa (ADF) e os da Análise do Discurso (AD)
sejam teóricos franceses, diferenças no quadro teórico proposto. A corrente denominada ADF nasceu nos
anos de 1960, na França, e tem Pêcheux como seu principal articulador. Propõe, grosso modo, desvendar a
manipulação ideológica dos discursos. No Brasil, essa vertente tem seguidores no sul do País. Já a AD tem como
um dos principais representantes na atualidade Charaudeau com sua Teoria Semiolinguística. Em seu quadro
teórico, propõe analisar diferentes discursos sociais e suas variantes, considerando-se fortes características
psicossociológicas. No Brasil, a AD conta com vários pesquisadores em Minas Gerais (UFMG, por exemplo) e
no Rio de Janeiro (UFRJ), além de outros (MACHADO, 2001, p. 44-46).
77
No entanto não basta conceber o sujeito dessa forma, é preciso também situá-lo dentro de um
quadro social onde são produzidos textos, cuja circulação e produção têm uma relação de
constutividade com as cenas de sua enunciação. A cena de enunciação, por sua vez, associa
três cenas de fala: i) Cena englobante; ii) Cena genérica; iii) Cenografia (MAINGUENEAU,
2001, p.85-93; 2006, p. 111-116). Essa escolha foi feita porque, nesse referencial teórico,
consideram-se as condições históricas de produção dos textos, permitindo-nos, então, vê-los
como discursos ou como manifestação de discursos. Também, não se concebe o texto como
um conjunto de signos inertes, mas sim como um “rastro deixado por um discurso em que a
fala é encenada” (MAINGUENEAU, 2001, p. 85). Dessa maneira, concebe-se o sujeito-leitor
como parte de um corpo sócio-histórico-cultural. Esse é exatamente um ponto nodal neste
estudo em que se propõe levantar alguns princípios e categorias para a compreensão de
fatores determinantes do sentido.
Na abordagem de cada uma dessas três cenas evidenciadas anteriormente, consideram-se, de
modo muito especial, os textos publicitários (MAINGUENEAU, 2001). Trata-se, como já
dissemos, de uma abordagem do texto enquanto discurso. Esses dois fatores encontram-se
perfeitamente dentro dos propósitos deste estudo, uma vez que, na constituição do corpus,
entre os textos oferecidos à leitura para possíveis registros, vários deles situam-se exatamente
nesse quadro cênico. Quadro cênico diz respeito ao tipo de discurso e ao gênero de discurso
em que se situam os textos. Com base nesse quadro, é possível repensar o funcionamento da
linguagem humana, portanto, questões relativas à produção de sentido nos diferentes
domínios discursivos, especialmente, quando se consideram os três planos da cena de
enunciação (MAINGUENEAU, op.cit.). Na concepção de cena de enunciação
(MAINGUENEAU, op. cit.), propõe-se o envolvimento simultâneo do leitor em três cenas, a
considerar o ponto de vista assumido: cena do tipo de discurso (cena englobante), cena do
gênero de discurso (cena genérica), cena construída pelo texto (cenografia).
Embora não se conceba uma relação hierárquica entre essas três cenas, por questão
metodológica, primeiramente, conceberei a cena englobante. Conforme anunciado, cena
englobante é a que corresponde ao tipo de discurso (jurídico, científico, religioso, político,
publicitário, entre outros). Nesse caso, se o leitor se depara com um panfleto na rua, por
exemplo, espera-se que ele saiba determinar a que tipo de discurso remete ou em que contexto
discursivo emerge esse texto. Por exemplo, ao se deparar com textos que circulam em
diferentes esferas (rua, escola, igreja, entre tantas outras), o leitor sabe, geralmente, situá-los
numa determinada cena englobante. Esse é certamente um dos procedimentos pelos quais
78
interpreta os textos com que se depara, respondendo a questões, tais como: i) em nome de quê
o texto o interpela? ii) tendo em vista qual finalidade ele teria sido organizado? Considerando-
se tal cena, não se pode pensar em atemporalidade. Na verdade, essa característica aliada a um
quadro espaço-temporal é que define, de fato, a situação dos parceiros, conforme esse
referencial teórico. Ainda se deve levar em conta que não se pode falar de uma mesma cena
para toda e qualquer sociedade e para toda e qualquer época. Também, as relações entre as
cenas variam de uma conjuntura a outra (2006, p.111-112). Assim, dado um texto, a figura do
co-enunciador é vista como aquela capaz de determinar o discurso diante do qual se encontra
(religioso? jurídico? científico?).
Em segundo lugar, abordaremos a “cena genérica”. Essa cena diz respeito à possibilidade e
mesmo à necessidade de os sujeitos verem-se confrontados com gêneros do discurso
particulares, com rituais sócio-linguageiros que definem várias cenas genéricas. Isso ocorre
porque a cena englobante, embora possa contribuir para que se alcance a cenografia
engendrada por um dado texto, por si só, não é suficiente para se especificarem as atividades
discursivas nas quais se encontram engajados os sujeitos. Estas duas cenas a englobante e a
genérica constituem-se no que podemos denominar espaço estável no interior do qual o
enunciado ganha sentido (quadro cênico). Nesse quadro teórico, pensa-se, então, um sujeito-
leitor submetido a coerções e a limites de diferentes naturezas, pois deve
ler/compreender/interpretar textos com base num quadro cênico que tem em mente, embora
não se confronte com esse quadro diretamente. Há casos em que a cena de enunciação
abrange apenas essas duas cenas. Trata-se de gêneros do discurso cuja configuração é mais
estável, como o caso de uma receita culinária, um requerimento, uma receita médica, entre
outros. No entanto ocorrem situações em que uma terceira cena pode intervir – a cenografia.
Cabe ao leitor legitimar ou não a cenografia, à medida que adentra o texto, de modo a se
convencer que se trata mesmo de uma determinada cenografia e de nenhuma outra. A
cenografia não se refere nem ao tipo nem ao gênero de discurso, que é instituída pelo
próprio discurso. Nesse sentido, a cena de fala da qual um texto pode ou pretende originar-se
pode se manifestar por meio de diferentes cenografias, sem que se altere a cena genérica (p.
113, grifo do autor). Por exemplo, um texto, da perspectiva da cena dita genérica, pode se
apresentar com uma configuração pouco previsível e assim ser visto pelo parceiro que detém
a iniciativa no processo de interpretação. Nesse caso, o quadro cênico é colocado em segundo
plano. Outro aspecto importante é que a escolha da cenografia não é algo indiferente. Nessa
situação, apenas no processo enunciativo, pode-se compreender a cenografia proposta, e,
79
então, legitimá-la. Para tanto, o sujeito-leitor deve compreender e aceitar o novo lugar que lhe
é atribuído, de modo a situar o texto num universo de sentido do qual a cenografia participa.
Em casos assim, em que os gêneros ou os tipos de discurso necessitam se impor contra outros
pontos de vista e buscar uma adesão que não se encontra dada, ocorrem incursões em
relação à tomada da palavra em situações ditas de maior risco. Duas figuras associam-se e
correlacionam-se numa cenografia a do enunciador e a de co-enunciadores. Esses dois
lugares, por sua vez, “supõem uma cronografia (um momento) e uma topografia (um lugar),
das quais pretende originar-se o discurso” (p. 113, grifo do autor).
Trata-se de pólos indissociáveis, isto é, a identidade dos parceiros da enunciação, o momento
de enunciação e os lugares devem estar em relação de sintonia (MAINGUENEAU, op. cit.)
Para desempenhar bem seu papel, a cenografia o pode ser vista como um mero quadro, um
cenário, ou mesmo como um “elemento de decoração” (p. 114), como se o discurso viesse
ocupar um espaço pronto, construído e independente do próprio discurso. Na verdade, a
cenografia é um processo de enlaçamento paradoxal (p.114, grifo do autor). Esse paradoxo se
deve ao fato de que a situação de enunciação só é legitimada progressivamente no processo de
enunciação. Então, a cenografia não é somente a fonte do discurso, mas aquilo que ela
engendra (2005, p. 87, grifos do autor). Ela é ao mesmo tempo origem e produto do discurso
(2006, p. 114, grifo do autor).
Desse ponto de vista, um enunciado validado pelo leitor deve, retroativamente, validar a
cenografia, de modo a estabelecer que tal cenografia, de onde provém a palavra é, de fato, a
cenografia solicitada para se atingir um determinado fim. Por exemplo, contar uma história,
promover uma mercadoria, denunciar uma injustiça. Considerando-se esse quadro teórico,
pode-se pensar em situar os gêneros do discurso em dois polos extremos: i) os que,
geralmente, se limitam à cena genérica catálogo telefônico, receita médica, requerimento;
ii) aqueles que suscitam a escolha de uma cenografia textos publicitários, literários,
filosóficos. Entre os dois polos, estão os gêneros suscetíveis de diferentes cenografias, os
quais, na maioria das vezes, se limitam a uma cena genérica rotineira catálogo telefônico,
guia turístico, por exemplo.
Esses conceitos que dizem respeito à cena enunciativa serão retomados, de alguma forma, ao
longo deste estudo. Não necessariamente na ordem em que aqui se encontram relacionados,
nem com o mesmo destaque. De fato, as três noções que englobam a concepção de cena
enunciativa interessam a este estudo por serem justamente as que podem evidenciar uma
80
maior especificidade em relação à compreensão de princípios nos quais se baseiam os
sujeitos-leitores no processo de construção de sentidos.
Nesse referencial, em que se aborda a noção conceitual de cena enunciativa, o sujeito, ao
assumir a posição de sujeito-leitor assume um papel de destaque em relação a: i) identificar a
cena englobante (tipo de discurso), a partir da qual se define o estatuto dos parceiros e um
quadro espaço-temporal; ii) estabelecer a “identidade” do gênero do discurso (papéis,
circunstâncias, suporte, finalidade, entre outros). Com base no quadro cênico, também, deve
dar-se conta de cenografias construídas pelo texto, quando for o caso, de forma até mesmo a
colocar em segundo plano a cena englobante, quando for o caso.
Esse quadro teórico nos permite pensar em espaços discursivos que incluem a figura dos
sujeitos-leitores, entre outras questões. Neste estudo, os sujeitos-leitores são vistos como
entidades psicossociais, e podem ter um caráter ativo na produção e na reprodução do social.
Logo, são sujeitos que devem participar ativamente da definição de uma situação na qual se
acham inscritos. Em decorrência desse posicionamento teórico, ler, compreender, interpretar
textos não são vistos como atos passivos, mas sim como atividades suscetíveis de se
configurarem em respostas a já-ditos/pré-construídos, podendo, ser, na realidade, um real
posicionamento diante de um dado texto.
Logo, estamos concebendo a leitura como uma atividade dialógica, que diante de um texto
pode gerar outros textos. Não se trata, assim, de uma leitura pautada apenas por uma
mentalidade normativa e reguladora, conforme dito. Ao contrário, levamos em
consideração a possibilidade de o sujeito se movimentar por meio de gestos de leitura mais
livres, até mesmo conflituosos, sendo passível de, no mínimo, atualizar-se, indo além de
pactos pré-estabelecidos. Sob o mesmo ponto de vista, o sujeito-leitor pode também ter
competência para dialogar com o texto não como um objeto pronto, pré-construído, nem
mesmo como um “patrimônio” que se recebe por “sucessão hereditária” (VITORINO, 2003).
Na verdade, um sujeito que conta de estabelecer relações, organizar informações, construir
sentidos, deixando de ser um mero receptáculo de pré-construídos para se assumir com aquele
que pode vivenciar um processo até mesmo dito “criador” (VITORINO, op. cit.).
Com base nesse posicionamento, o sujeito-leitor pode ser levado a construir sentidos,
exercendo o papel de co-enunciador do texto (MAINGUENEAU, op. cit.). Essa construção
pode se dar tanto a partir da figura do enunciador construída pelo texto, como por meio da
81
percepção que o leitor tem do ritual sócio-linguajeiro em que se envolve. Assim, o resultado
de uma atividade de leitura centra-se nas estratégias discursivas suscetíveis de produzirem
efeitos de sentido. Esse resultado
pode ser estudado através das características da encenação do dizer, configurada no
texto, o resultado do processo de interpretação pode ser captado de duas formas:
seja através do texto interação, seja de forma psico experimental, isto é, testando-se
os sujeitos interpretantes. (CHARAUDEAU, 2001, p.32, grifo do autor)
Nesse caso, o que é significativo, a meu ver, é o fato de se considerar, de um lado, o texto
interação (produto da leitura), e, por outro lado, a possibilidade de um trabalho de
investigação a partir dos sujeitos interpretantes, o que envolve a correlação
sujeito/circunstância/sentido, considerando-se, sobretudo, limites impostos ao sujeito-leitor
em face da posição discursiva que pode ocupar em certas instâncias, um ponto central neste
estudo.
Ao situar esses dois aspectos da instância de recepção apontados anteriormente (texto-
interação, sujeito interpretante), convém ressaltar que não estamos concebendo a recepção
exatamente sob a mesma ótica da produção. Além de não considerar a possibilidade de
perfeita simetria entre as instâncias de produção e recepção, concebemos o texto como sendo
um objeto que pode trazer marcas mais perceptíveis da instância de produção, ao contrário do
que ocorre com o produto do processo de recepção o texto-interação. Na realidade,
concebemos as marcas do processo de produção como sendo passíveis de observação mais
imediata, diferentemente do que ocorre com o texto interação, embora esse produto também
possa indiciar a projeção de leitura, como em qualquer “jogo” de linguagem. Esse fenômeno,
certamente, contribuirá para procedermos à análise do corpus realizada em capítulo posterior.
Se se tratar de um dos possíveis produtos da leitura, como é o caso da leitura-escritura (texto-
interação), tão frequente nos meios escolares, com base em comandos, tais como: i) Leia o
texto que se segue e registre sua leitura no espaço indicado; ii) Discuta o texto abaixo; iii)
Registre o que você tem a dizer sobre tal texto. Nesses casos, acredito que teremos registros
escritos a partir dos quais poderemos perceber a presença das marcas discursivas nas marcas
linguísticas evidenciadas nesses registros.Trata-se de um viés importante, neste estudo, pelo
fato de contribuir para que se investigue a possível relação sujeito/produção do
sentido/circunstâncias históricas e sociais, do ponto de vista da recepção, e, em decorrência,
82
dizeres mais característicos da posição/circunstância em que os sujeitos-leitores compreendem
textos, posições ideológicas a que se submetem, imagem que fazem do enunciador.
Atribuir importância às duas figuras enunciador e co-enunciador no processo de
construção de sentidos não implica, nesse caso, dizer que esses dois parceiros desempenham
papel idêntico, porém igualmente importantes. Cada qual tem sua especificidade, e ambos
mantêm uma relação dialógica mediada pelo texto. Desse ponto de vista, o parceiro
enunciador pode oferecer pistas linguísticas, textuais, semiolinguísticas ao parceiro co-
enunciador, que, por sua vez, pode reconhecê-las e situá-las em relação ao discurso que se
pretende proferir. Para que ocorra o efeito desejado, uma condição é que o sujeito co-
enunciador considere que, em dada situação de enunciação, a palavra só pode ser validada por
meio dessa mesma enunciação. Disso praticamente depende o sucesso da relação de co-
construção de sentidos mediada por esses dois parceiros.
Esse é um tratamento bastante singular em relação à instância de recepção, devido às
dimensões que Maingueneau (2001, 2006) atribui a essa instância, abrangendo, sobretudo,
aspectos que sobredeterminam o funcionamento da linguagem humana na sociedade nem
absoluta restrição, nem absoluta liberdade. Mas como apreender a instância de recepção para
fins de investigação empírica? Não se trata de um fenômeno facilmente apreensível, conforme
salientam inúmeros pesquisadores, entre eles, Mendes (2003), para quem,
apreende-se o texto escrito de uma forma relativamente fácil em relação à grande
dificuldade (se não impossibilidade) de apreensão da leitura. Os textos escritos
constituem uma ancoragem bastante concreta podem ser lidos em voz alta até por
quem não entenda o que está lendo, podem ser colecionados e preservados em
bibliotecas, podem ser selecionados por tipos, neros, podem constituir corpora
diversos, podem ser medidos, inventariados, alterados, analisados, parafraseados,
citados e até podem ser lidos. Quanto à leitura, embora ela seja uma realidade
inquestionável, ela não é algo facilmente capturável, se é que o é de alguma
maneira: quase todas as formas sugeridas até hoje para a apreensão da leitura passam
necessariamente por uma leitura de um outro ou pela própria escritura, ou ainda por
formas orais de reprodução de um texto. (MENDES, 2003, p. 243-244)
Ciente desse caráter próprio da instância de recepção, buscamos, neste estudo, descrever /
explicar alguns princípios teóricos norteadores do sentido, instrumentos importantes para que
se compreendam especificidades do papel do sujeito nessa instância. Apesar de algumas
limitações, todos esses estudos (MAINGUENEAU, 2001, 2006; MARI, 2007; MENDES,
2003; CHARAUDEAU, 2001, 2004; entre outros autores) nos oferecem um referencial
teórico para que se possa investigar sujeitos-leitores colocando suas representações
83
individuais/coletivas em confronto com as representações individuais/coletivas dos sujeitos
parceiros no processo de comunicação, conforme veremos. Essas representações podem ou
não se estabilizar à medida que vão sendo compartilhadas. Na verdade, o que, de fato,
interessa a este estudo é buscar respostas para questões, tais como: Como o sujeito-leitor
significa textos? A quais restrições se submete ou a quais está submetido? Quem é o sujeito
da recepção na prática (lendo textos)?
Parece-me sensato ressaltar que tais questões nos aproximam ainda mais da figura do sujeito-
leitor, produzindo sentido em face de determinadas circunstâncias cio-históricas. Esse
último questionamento, a meu ver, abrange os dois primeiros, além de nos levar a reflexões
sobre como conceber o processo de recepção, considerando-se o “descompasso entre a
atividade de produção e a de recepção” (MARI, 2007, p. 44). Nessa discussão, conforme
anunciado, partiremos da noção de sujeito para a de autor, embora o sujeito até acredite ser o
responsável pela própria unidade subjetiva.
Em razão desse posicionamento que assumimos, tratar da autoria é possível se
considerarmos a assunção de uma posição. Desse ponto de vista, uma posição é assumida
tanto no lugar da produção quanto na instância de recepção. Mas como o especial interesse
deste estudo é a relação sujeito/circunstâncias/sentido na instância de recepção, um dos
aspectos que mais nos interessam na proposta de Maingueneau (op. cit.) são as discussões
relativas às estruturas necessárias ao funcionamento da linguagem humana,
independentemente dos anseios de seus falantes. O que nos interessa propriamente é a
discussão que abrange possíveis restrições e estratégias a que se submetem os sujeitos-leitores
em relação à produção do sentido na instância de recepção, envolvendo a concepção de cena
enunciativa.
Nessa direção, o leitor “não é livre ao construir uma interpretação, mas dispõe de algum
espaço de manobra para um ajuste singular de sua leitura” (MARI, 2002, p. 47). Buscamos,
pois, levantar alguns princípios e categorias que norteiam o processo de produção de sentidos,
considerando-se, primordialmente, a ótica da recepção. Em relação a esse aspecto, não
estamos considerando restrições em caráter universal, mas sim local, pois “algo que se
constrói intersubjetivamente não pode ser validado com pretensões universais, pois “não
sabemos o que é um sujeito universal, nem o que conhecemos como normas para sua
sustentação” (MARI, 2007, p. 38).
84
Se dispõe de algum espaço de manobra, trata-se, conforme já disse, de um sujeito-leitor capaz
de promover rupturas, desconstruções, conflitos, em face de já-ditos, pré-construídos. Logo,
estamos atribuindo ao sujeito-leitor a possibilidade de co-autoria. Pensamos, então, em uma
possível singularidade da leitura e nas condições em que tal fenômeno se daria. Na verdade,
buscamos instrumentos para compreender, na prática, o sujeito-leitor, produzindo sentidos,
um propósito já anunciado em diferentes momentos deste texto. Um sujeito-leitor que
trabalhe com certa margem de liberdade, sim, embora diferentemente do sujeito-autor, isso se
pensarmos apenas no plano biofisiológico.
Sob esse foco, somos levados a concluir que o sujeito apresenta características específicas do
humano, acima de tudo. É aquele que pode tomar a fala, assumir uma posição social e até
mesmo ser movido por uma intenção comunicativa. Tais índices não se encontram numa
relação de justaposição, mas sim de indissociabilidade. Assumir tal princípio implica
reconhecer que a língua e a atividade do sujeito-leitor são indissociáveis. Em outras palavras,
não se concebe a língua como um instrumento externo de comunicação, exterior ao sujeito,
mas sim como uma forma de atividade que envolve pelo menos dois interlocutores. Logo, não
se trata de uma atividade em que o sujeito se apropria da língua, embora se subordine a um
conjunto de normas e regras. Também, não é o caso de se pensar em interlocutores agindo
através da língua, mas sim no fato de que, por meio dessa atividade, eles se constituem
sujeitos.
Trata-se de um deslocamento em relação ao olhar que se coloca sobre a linguagem porque
implica ter à disposição um instrumento para que se possa compreender o discurso em
diferentes circunstâncias. Um instrumento com alguma fragilidade, certamente, mas que nos
permite investigar o funcionamento da linguagem humana de uma outra dimensão. Em outros
termos, busca-se compreender a linguagem como uma atividade discursiva de sujeitos
psicossociais afetados pelas circunstâncias cio-históricas constituídas na relação eu/outro.
Dessa forma, considera-se o descentramento do sentido, uma vez que o eu só ganha existência
na necessária relação com um tu (outro), um dos pontos mais relevantes dos estudos de
Bakhtin (1999/1929, entre outros).
O funcionamento da linguagem, dessa perspectiva, é visto a partir da concepção de
enunciação, um fenômeno a partir do qual podemos vislumbrar o sujeito se movimentando
nas diversas instâncias, participando de atividades comunicativas. Tal posicionamento requer
85
que consideremos interlocutores submetidos a determinadas convenções, ocupando
determinados lugares sociais, dispondo de algum nível de liberdade, ainda que vigiada.
Nesse cenário, como se inscreveria o sujeito na instância da recepção? Estaria ele submetido
às mesmas coerções a que se submete o sujeito da instância da produção? Seria ele o sujeito
de Foucault um sujeito que tem uma gênese, uma história? Seria ele o sujeito de Possenti
(2001) um sujeito desses que falam? Seria ele o sujeito de Charaudeau (2001) um sujeito
que se inscreve numa situação comunicativa e, aí, participa de um “jogo”, submetendo-se a
regras, contratos, rituais? Enfim, seria ele o sujeito da AD um sujeito descentrado parte de
um corpo sócio-histórico cultural? Teríamos, então, um ser psicossocial-histórico-cultural,
agindo num mundo de representações e códigos? Se assim for, como pensar a margem de
manobra e de liberdade de que pode dispõe o sujeito da recepção?
Parece-me sensato dizer que o “esquecimento enunciativo” de Pêcheux (esquecimento 2)
responderia, pelo menos em parte, a essas questões.
Sendo
do âmbito do pré-
consciente/consciente, e, pautando-se nos processos discursivos analisáveis na superfície do
discurso, o esquecimento 2 é uma esfera em que o sujeito pode penetrar conscientemente
(PÊCHEUX, op. cit. p. 177, grifo do autor): na seleção e/ou rejeição dos dizeres; na escolha
de sequências discursivas e/ou no apagamento de outras; na transgressão e/ou na subversão;
no silenciamento dos ditos e não-ditos, por exemplo.
Nessa direção, a pergunta que nos cabe fazer é se existiriam regras a serem seguidas pelo
sujeitos-leitores ao produzirem sentidos. Esse também é um dos principais questionamentos
de Mari (2002, p. 52). Caso se obtenha uma possível resposta para essa questão, ficaria um
outro problema a se investigar, que, a meu ver, é igualmente inquietante. Por que o sujeito-
leitor seguiria determinadas regras e não outras? Por que tomaria um determinado
direcionamento e não outro? Por que evidenciaria algumas categorias e não outras? Enfim,
que “forças” moveriam o sujeito quando investido da posição de sujeito-leitor?
O próprio Mari (2002, p. 56) salienta três fatores de “desproporções consideráveis” relativos a
questões que devem merecer uma atenção especial no quadro enunciativo, na instância da
recepção: fator textual (leitores se submetem a condições textuais diversas); fator
experimental (leitores realizam uma atividade empírica); fator intencional (leitores movem o
sentido de um texto). Considerando-se esses três fatores envolvidos nessa formulação, creio
que o fator intencional merece destaque, pelo fato de esse conceito ser de especial importância
86
para a compreensão de fatos relativos ao deslocamento de sentidos em relação ao ‘“sempre-já-
aí” da interpelação ideológica que fornece-impõe a “realidade” e seu “sentido” sob a forma da
universalidade’ (PÊCHEUX, 1997/1975a, p. 164, aspas do autor).
Também, podemos pensar o fator intencional do ponto de vista da teoria do esquecimento 2
zona do pré-consciente/consciente. Também, pode-se pensá-lo como sendo um
“conhecimento a priori que cada um dos parceiros reais da troca possui (ou constrói para si) a
respeito do outro” (MACHADO, 2001, p. 49). Conhecimento, nesse caso, diz respeito a
saberes constituídos a partir de “representações imaginárias” (PÊCHEUX, 1997/1975a, p. 85),
porque resultam de apelos dos sujeitos a saberes supostamente partilhados intertexto,
interdiscurso, memória discursiva.
Se assim é, trata-se de representações desses saberes, logo, não são apreensíveis nem
objetivamente, nem na sua totalidade. Considerando-se, nesse quadro, que tais apreensões se
dão entre sujeitos psicossociais, como conceber certos aspectos da identidade psicossocial dos
parceiros (categoria sócio-profissional, posição hierárquica, estado emocional, por exemplo)
de forma objetiva? Saberes compartilhados “de forma imaginária”, logo, por meio de
representações imaginárias, seriam construídos ou compartilhados por sujeitos apreendidos
objetivamente?
E é nesse âmbito, mais precisamente, que vislumbro uma não pulverização plena dos
princípios básicos constituintes do quadro epistemológico inicial da AD (PÊCHEUX,
2001/1969), que, por vezes, se apregoa, sobretudo, quando se fala de marginalização da AD
em face da AD dita contemporânea. Estudos da gênese da AD mostram que Pêcheux,
valendo-se de estudos sociológicos, foi o primeiro a tratar dos “lugares representados
(PÊCHEUX, 2001/1969, p. 82-83) nos processos discursivos, cuja posição implica as
“condições de produção do discurso” (p. 79). Para ele, “o que funciona nos processos
discursivos é uma série de formações imaginárias que designam o lugar que A e B atribuem
cada um a si e ao outro” (p. 82). Assim, trata-se de uma “imagem que eles se fazem de seu
próprio lugar e do lugar do outro” (p. 82-83, grifos do autor).
Essas imagens que A e B se
fazem de si mesmo, do outro e do referente do discurso são diferentes instâncias do processo
discursivo que, por sua vez, são produto de processos discursivos anteriores e decorrentes de
outras condições de produção (p. 115, grifos do autor). E diz mais, o referente (contexto,
situação) também é um objeto imaginário, isto é, o ponto de vista do sujeito e não da
realidade física (p. 83, grifo do autor).
87
Como vimos, de modo inovador para a época, Pêcheux propõe o conceito de “condições de
produção” para explicar o processo de produção do discurso – conjunto de mecanismos
formais que produzem um discurso de tipo dado em “circunstâncias” dadas (p. 74, aspas do
autor). Com o intuito de elaborar tal conceito, Pêcheux (op. cit.) realiza uma leitura crítica da
concepção saussuriana de instituição, sobretudo em relação ao fato de se desconsiderar sua
relação com o sociológico. Dessa perspectiva, o externo está no interno para Pêcheux.
Concebendo-se a instância de recepção desse ponto de vista, partimos do pressuposto de que
os sujeitos não são a fonte do sentido, a semântica não é imanente à linguagem, os
significados não se encontram prontos e acabados, ao contrário, concebemos sujeitos-leitores
capazes de realizar deslocamentos e enfrentamentos em face de pré-construídos, promovendo
rupturas em relação a processos cristalizados de produção do sentido. E isso se quando o
sujeito vivencia conflitos, confrontos, novos gestos de compreensão nos jogos interlocutivos,
que, por sua vez, são mediados por textos, que se configuram em gêneros do discurso.
3.3 Gêneros do discurso no universo bakhtiniano: sujeito-leitor e produção do sentido
A proposta desta seção é basicamente discutir o gênero do discurso sob o foco de diferentes
manifestações do dialogismo, além de retomar a concepção de “cena de enunciação”
(MAINGUENEAU, 2001, 2006). Essa opção nos permite dispor de um quadro teórico
propício para que se investiguem possíveis fatores que estariam levando o sujeito-leitor, de
um lado, a revestir seu dizer de discursos supostamente cristalizados, por outro, a reconhecer
certas dimensões constitutivas do sentido esfera/gênero; instância/discurso/processos
discursivos; lugares/papéis sociais/representações. Um foco central, então, é discutir um
referencial teórico cuja relevância é dispor de categorias, a partir das quais se permite
investigar por que certas dimensões do texto estariam merecendo menor ou maior atenção de
sujeitos-leitores, em registros escritos, decorrentes de atividades de leitura, em situação de
ensino-aprendizagem.
88
3.3.1 A natureza dialógica dos gêneros do discurso: responsividade, intercambialidade
e polifonia
Fator constitutivo dos gêneros do discurso e questão central nos estudos bakhtinianos, o
fenômeno dialógico é evidenciado por Bakhtin em vários momentos de seus estudos (1986,
2000, 2006 [1929], entre outros). Seguramente, esse quadro teórico ocupa um papel de
destaque neste estudo. Não somente porque o gênero do discurso, do ponto de vista
bakhtiniano, pode ser concebido como um objeto que “reporta às formações combinatórias da
linguagem em suas dimensões verbal e extraverbal”, mas também porque pode ser visto como
“formas discursivas criadoras da linguagem, de visões de mundo e de sistema de valores
configurados por pontos de vista determinados” (MACHADO, 2006, p. 133). Tais estudos
apontam, assim, para a natureza dialógica da linguagem, bem como para formas de
representação dessa natureza. Em seus estudos, Fiorin (2006, p. 18-59) e Barros (2006, p. 28-
35) situam a perspectiva dialógica bakhtiniana, de modo especial, sob dois eixos.
O primeiro eixo diz respeito ao dialogismo como “modo de funcionamento real da linguagem
e princípio constitutivo da linguagem” (FIORIN, op. cit., p. 24). Tal como proposto pelo
teórico russo, essa dimensão do dialogismo compreende um quadro epistemológico segundo o
qual “todo enunciado comporta um começo absoluto e um fim absoluto: antes de seu início,
os enunciados dos outros, depois de seu fim, os enunciados respostas dos outros”
(BAKHTIN, 2000, p. 294). Abrange também “a interação entre interlocutores como princípio
fundador da linguagem” (BARROS, 2006, p. 29). Concebido como interação verbal que se
estabelece entre o eu e o outro (interlocutores), por meio de textos, o dialogismo, de tal
perspectiva, compreende “o sentido do texto” e a “significação das palavras” como
dependentes da “relação entre sujeitos”. Característica constitutiva do gênero, a
intercambialidade dos sujeitos falantes é evidenciada por Bakhtin (2000) em vários momentos
de seus estudos. Dessa perspectiva, ao compreender a significação (linguística) de um
discurso, o ouvinte “adota simultaneamente, para com este discurso, uma atitude responsiva
ativa(BAKHTIN,
2000, p. 290, grifo do autor). Essa atitude de responsividade “está em
elaboração constante durante todo o processo de audição e de compreensão desde o início do
discurso” (BAKHTIN, op. cit.). Em relação a essa face do dialogismo bakhtiniano, interessa-
nos, sobretudo, o fato de tal trabalho se coadunar com uma perspectiva de linguagem em que
as figuras dos parceiros da comunicação verbal são concebidas como participantes de
“processos ativos” (BAKHTIN, 2000, p. 290, grifos do autor). Nesses processos, “o ouvinte
89
que recebe e compreende a significação (linguística) de um discurso adota simultaneamente,
para com este discurso, uma atitude responsiva ativa (p. 290, grifo e parênteses do autor)”.
Trata-se, portanto, de considerar não somente que “o ouvinte torna-se o locutor” (p. 290), mas
também que “o próprio locutor como tal é, em certo grau, um respondente, pois “não é o
primeiro locutor, que rompe pela primeira vez o eterno silêncio de um mundo mudo” (p. 291,
grifo do autor). Desse ponto de vista, a “intersubjetividade” deve vista como “anterior à
subjetividade”, pois a relação entre os interlocutores “não apenas funda a linguagem e
sentido ao texto, como também constrói os próprios sujeitos produtores do texto” (BARROS,
op. cit.). Esse princípio dialógico bakhtiniano compreende, ainda, cada enunciado como sendo
“um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados” (p. 291). Convém ressaltar que,
quando se fala nessa face do dialogismo, não se propõe dois “tipos” de dialogismo entre
enunciados e entre o locutor e seu interlocutor –, pois “todo dialogismo compreende relações
entre enunciados” (FIORIN, 2006, p. 32). Além desse dialogismo que diz respeito ao
“entrelaçamento de discursos que, veiculados socialmente, se realizam nas e pelas interações
entre sujeitos” (BRAIT, 2006, p. 95), Bakhtin (op. cit.) concebe uma outra face do
dialogismo, a que abrange as vozes que falam e polemizam no interior dos textos e
reproduzem o diálogo com outros textos de diferentes formas – polifonia.
O segundo eixo do dialogismo abrange, assim, a “incorporação pelo enunciador da voz ou das
vozes de outro (s) no enunciado” (FIORIN, 2006b, p. 32). Essas vozes podem ser ocultadas
(monofonia) ou não (polifonia). Sob esse ponto de vista, uma clara dintinção entre
dialogismo e polifonia. O termo dialogismo “fica reservado para o princípio dialógico
constitutivo da linguagem de todo discurso”. polifonia emprega-se para caracterizar um
certo tipo de texto, aquele em que o dialogismo se deixa ver, aquele em que são percebidas
muitas vozes” (BARROS, 2006, p. 34). Nesse sentido, o dialogismo é uma “forma
composicional”, ou seja, “maneiras externas e visíveis de mostrar outras vozes no discurso”
(FIORIN, op. cit.), ou ainda, “formas e graus de representação da heterogeneidade da
linguagem” (BRAIT, 2006, p. 96). Na verdade, essa face do dialogismo é abordada
primeiramente por Authier-Révuz (1982), ao refletir sobre o lugar dado ao Outro na
perspectiva dialógica, ressaltando “um outro que atravessa continuamente o um” (p. 10).
Concebe-se, assim, a existência de textos polifônicos e outros supostamente monofônicos
aqueles cujos diálogos se ocultam “sob a aparência de um discurso único, de uma única voz”
(BARROS, 2006, p. 34). Polifonia e monofonia são, então, “efeitos de sentido decorrentes de
procedimentos discursivos por definição e constituição dialógicos” (BARROS, op. cit.). A
90
relevância da abordagem do gênero por essa ótica consiste em nos chamar a atenção para o
fato de que tudo o que é dito por um falante, não pertence a ele, uma vez que o discurso
vem permeado por vozes de naturezas diversas, manifestando, de alguma forma, sua relação
com outros enunciados. Ponto de vista segundo o qual o enunciado está repleto de
“reações-
respostas a outros enunciados numa dada esfera da comunicação verbal”
(BAKHTIN,
2000, p.
316). E tais reações assumem formas variáveis, pois se pode introduzir diretamente o
enunciado alheio no contexto dos próprios enunciados, como também se pode introduzir-lhes
apenas palavras isoladas ou orações que ali se encontram “a título de representantes de
enunciados completos” (op. cit.). Um outro ponto é que, sob essa perspectiva, pode-se
contemplar não somente a diversidade, mas também a flexibilidade e a irreprodutibilidade,
entre outras características da natureza dos gêneros do discurso. Observar a produção do
sentido sob esses dois eixos do dialogismo bakhtiniano guarda, ainda, a importância de tal
perspectiva contribuir para a compreensão de determinados elementos reguladores do sentido.
Neste estudo, prioritariamente, a percepção de efeitos de sentido por sujeitos-leitores, a partir
da leitura de diferentes gêneros do discurso, em situação de ensino-aprendizagem.
Complementarmente a esse referencial teórico, abordamos também o gênero sob o foco de
estudos de Maingueneau (2001, 85-93; 2006, p. 111-131) e de Matencio (2006a, 2006b,
2007), entre outros (BRAIT, 2001, 2006a, 2006b; BRANDÃO, 1997; FIORIN, 2006;
POSSENTI, 2004, por exemplo). Do percurso percorrido por Maingueneau, valho-me da
concepção de “cena de enunciação” (op. cit.), anunciada anteriormente, e de “competência
genérica” (MAINGUENEAU, 2001, p. 43-44). Cena de enunciação, nos termos de
Maingueneau (op. cit.), é um conceito segundo o qual o discurso deixa um “rastro” em que a
fala é encenada. Dessa perspectiva, é possível não somente identificar no corpus (registros
escritos) efeitos de sentido evidenciados pelos sujeitos da pesquisa, mas também delimitar
alguns fatores que teriam levado esses sujeitos-leitores a ressaltarem certos efeitos de sentido
e não outros. Já competência genérica é um conceito segundo o qual “o discurso jamais se
apresenta como tal, mas sempre na forma de um gênero particular” (p. 43), ponto de vista que
contribui para que se possa compreender usuários da língua, identificando ou não certos
gêneros, e tendo ou não um “comportamento adequado em relação a eles” (p. 44). A
importância dessa escolha teórica decorre também do fato de que os gêneros podem ou não
suscitar uma determinada cenografia, isto é, a “cena instituída pelo próprio discurso”
(MAINGUENEAU, 2006, p.112). Assim sendo, cabe ao sujeito-leitor estar atento, de modo
91
especial, aos gêneros do discurso que podem suscitar diferentes cenografias (os publicitários,
os literários, os de caráter filosófico, por exemplo).
Da abordagem de Matencio (2006, 2007), o que interessa a este estudo é, sobretudo, a
valorização que a autora atribui às “relações que o sujeito estabelece com a linguagem em
seu processo de aprendizagem e, por esse caminho, as relações que estabelece com o dito e
com o dizer” (2007), bem como ao fato de defender que estudar os gêneros do discurso
significa não apenas estudar textos, mas também condições sociais, históricas, ciscunstanciais
pelas quais um gênero do discurso se materializa como texto (op. cit.).
A partir dos estudos de Maingueneau e Matencio (op. cit.), podem ser ressaltadas três
dimensões da linguagem. A relevância desse estudo consiste no fato de nos possibilitar a
compreensão da noção de competência genérica: i) dimensão situacional da enunciação
identidade, papel dos interlocutores, por exemplo; ii) organização formal do enunciado
estilo, construção composicional, nos termos bakhtinianos; iii) condições materiais suporte
de veiculação dos textos, restrições espaço-temporais. Raciocínio certamente viável para se
chegar ao gênero do discurso, desde que pensemos na conjunção dessas três dimensões
constitutivas do gênero, as quais, por sua vez, devem ser ativadas conjuntamente pelos
sujeitos-leitores (MARI e MENDES, op. cit.).
3.3.2 Locutor/Alocutário: intercambialidade e protagonismo nos processos
enunciativos
Vimos que o gênero do discurso, na perspectiva bakhtiniana, tem uma natureza
constitutivamente dialógica, que pode ser concebida, entre outras dimensões, a partir da
relação eu e outro. Considerando-se o processo enunciativo em que se inscreve, o locutor
toma a palavra, e, desse lugar, espera “uma resposta, uma concordância, uma adesão, uma
objeção, uma execução, etc” (op. cit., p. 291).
Desse ponto de vista, o locutor termina seu enunciado para passar a palavra ao outro ou para
dar lugar à compreensão responsiva ativa do outro” (BAKHTIN, 2000, p. 294). Não se espera,
pois, “uma compreensão passiva que, por assim dizer, apenas duplicaria seu pensamento no
espírito do outro” (op. cit., p. 291). O ponto de vista exposto abrange uma responsividade, de
um lado, marcada pelo consenso e entendimento, por outro lado, pela divergência, tensão,
92
conflito. Entendendo-se, nesse caso, que tanto a voz a que se adere quanto à voz de que se
discorda nem sempre está incorporada na materialidade do texto. os papéis dos parceiros
nos processos interlocutivos locutor e alocutário são intercambiáveis, logo não são dados
previamente, mas se definem nos processos enunciativos.
13
Entre outros aspectos, essa perspectiva bakhtiniana fundamenta este estudo porque nos
permite investigar se os sujeitos da pesquisa estiveram ou não mais atentos a alguns
pressupostos teóricos discutidos em classe pelo professor-pesquisador, a ponto de os
considerarem, explicitamente, na folha destinada aos registros de leitura (corpus). Conforme
os objetivos traçados e a natureza das questões propostas, buscamos, assim, compreender a
linguagem “à medida que esta faz sentido para sujeitos inscritos em estratégias de
interlocução, em posições sociais ou em conjunturas históricas” (MAINGUENEAU, 1997,
p.11).
Além dessa noção de posição social, em Análise do Discurso, fala-se também em papel social
(CHARAUDEAU, 2004, p.362-363). Embora os dois conceitos – posição social, papel social
se relacionem a status, hierarquia, dizendo respeito, portanto, “às diferentes posições que
um sujeito falante pode assumir” (op. cit.), falar de papel é mais do que pensar em status,
porque implica “o modo de enunciação no qual estão engajados os sujeitos falantes” (p. 362).
Em síntese, papel social diz respeito a determinadas condutas padronizadas nas práticas
sociais as quais, em razão justamente das práticas não são apenas de ordem sociológica, mas
também linguageira. Não há, pois, “correspondência biunívoca entre papel social e papel
linguageiro”. Charaudeau (op. cit.) ressalta, por exemplo, que “um mesmo papel social
(professor) pode dar lugar a vários papéis linguajeiros (questionar, avaliar, explicar)”. Por sua
vez, “um mesmo papel linguajeiro (questionar)”, no dizer desse teórico, também “pode ser
desempenhado em posições sociais diferentes (professor, delegado de polícia, médico)”, (op.
cit.).
13
Ao se posicionar desse modo, Bakhtin formula seu pensamento e reflexões, justamente, para uma direção
contrária à dos estudos saussureanos, segundo os quais “o papel ativo do outro no processo de comunicação
verbal fica minimizado ao extremo” (op. cit., p. 292, grifo de Bakhtin). Entretanto, mesmo se posicionando
contrariamente a Saussure, o teórico não desconsidera, de forma alguma, o sistema da ngua, pois defende que
“se por trás de um texto não há uma língua, já não se trata de um texto, mas de um fenômeno natural” (op. cit., p.
331).
93
Com base nessa noção de papel social, nos propusemos, neste estudo, levar os sujeitos da
pesquisa no papel de futuros professores de língua/linguagem em processo de formação
inicial a lerem diferentes gêneros do discurso, em situação de ensino-aprendizagem, de
forma que o professor-pesquisador pudesse investigar se esses sujeitos priorizariam (ou não),
em registros escritos, determinados efeitos de sentido. Nesse caso, a assunção dessa atitude
responsiva seria decorrente, sobretudo, do que lhes é proposto como tarefa pelo professor-
pesquisador, no âmbito do domínio acadêmico. Esses sujeitos, conforme vimos, não são
concebidos como um eu individualizado”, mas como um nós, sujeitos sociais marcados por
uma diferenciação ideológica (BAKHTIN, 2006 [1929]). Esse nós se constitui na
multiplicidade, como resultado da interação entre o eu e o outro – ambos protagonistas,
considerando-se, sobretudo, que
toda palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato de que procede
de alguém, como pelo fato de que se dirige para alguém. Ela constitui justamente o
produto da interação do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expressão a um
em relação ao outro (BAKHTIN , 2006 [1929], p. 117, grifos do autor).
Como decorrência desse modo de se conceber o processo interativo, o dizer está sempre
orientado para um interlocutor situado social e historicamente, também protagonista. Além de
acreditar no protagonismo de ambas as figuras envolvidas num processo enunciativo, a
exemplo de Mari (2002, p. 44), defendo que não uma relação de perfeita simetria entre as
instâncias de produção e recepção, pois aquele que cria o texto não tem nenhuma
ascendência sobre aquele que pode vir a lê-lo” (op. cit.).
Considerando-se, em especial, neste estudo, a instância de recepção, convém observar
também que os sujeitos-leitores se colocam diante do texto não apenas em atitude de
consenso, mas também em posição de conflito com o próprio grupo ou fora dele, por estarem
submetidos a limites, a restrições e a coerções, ao se posicionarem numa certa “ordem do
discurso”. Entendendo, assim, o sujeito, a linguagem é relacionada a sua exterioridade, a um
sentido num determinado tempo/espaço, de forma que a tríade ngua/história/ sociedade são
vistas como interdependentes. Essa perspectiva também nos interessa porque nos permite
pensar o processo de produção do sentido, considerando-se, sobretudo, sujeito/atualidade do
sentido e sua relação com a memória discursiva (interdiscurso), conforme já ressaltamos.
Posicionamentos de conformidade e/ou de discordância, por parte do sujeito-leitor, na
realidade, efetivam-se nos processos interativos, que se dão inevitavelmente por meio de
94
gêneros do discurso, nos quais emergem os textos que expõem a linguagem em seu
funcionamento (MATENCIO, 2006). Por sua vez, os gêneros “formas de combinação das
formas da língua” (BAKHTIN, 2000, p. 304) emergem dos mais diversos domínios
discursivos e em diferentes situações de interação. Ponto de vista segundo o qual cada uma
das situações de uso da ngua implica sua mediação por meio de um determinado gênero e
não outro, em vista de diferentes relações de domínio e poder. Pensando-se na diversidade e
na variedade de gêneros em face destes três fatores – circunstância, posição, parceiros –, vê-se
que os gêneros somente se constituem no processo de comunicação verbal. Nesse processo, os
interlocutores adotam uma atitude responsiva ativa”, mesmo que o grau dessa atividade seja
muito variável – uma compreensão ativa muda, um ato resposta, por exemplo (p. 290, grifo do
autor).
Partindo-se desse princípio, os gêneros textuais são fenômenos históricos que se relacionam a
aspectos culturais e sociais. Por conseguinte, estão em consonância com uma abordagem
discursiva de linguagem, em que a ngua é pensada como manifestação do discurso na
enunciação, e decorrência das ações do homem em suas interações sociais. Vimos, assim, que
Bakhtin não concebe o enunciado como uma unidade da língua, mas como uma unidade da
comunicação verbal (p. 295, grifos do autor), cujas fronteiras são determinadas pela
alternância dos sujeitos falantes” (p. 294, grifos do autor). Característica constitutiva do
gênero – a intercambialidade dos sujeitos falantes – é evidenciada pelo autor em vários
momentos de seus estudos:
O ouvinte que recebe e compreende a significação (lingüística) de um discurso adota
simultaneamente, para com este discurso, uma atitude responsiva ativa: ele
concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para
executar, etc, e esta atitude do ouvinte está em elaboração constante durante todo o
processo de audição e de compreensão desde o início do discurso (BAKHTIN, 2000,
p. 290, grifo e parênteses do autor).
Trata-se, pois, de um ponto crucial na vertente bakhtiniana o caráter de protagonismo que se
atribui aos parceiros envolvidos num processo enunciativo-discursivo. O autor crê que o
locutor, por ser “um respondente, pois não é o primeiro locutor, que rompe pela primeira vez
o eterno silêncio de um mundo mudo” (p. 291)
,
considera “a existência dos enunciados
anteriores aos quais seu próprio enunciado está vinculado por algum tipo de relação” (p. 291).
95
3.3.3 Gêneros do discurso e dialogismo: diversidade, flexibilidade e irreprodutibilidade
Como acabamos de ressaltar, um dos eixos a considerar, em se tratando do dialogismo
bakhtiniano, é o que concebe o texto como “ponto de intersecção de muitos diálogos,
cruzamento das vozes oriundas de práticas de linguagem socialmente diversificadas”
(BARROS e FIORIN, 1999, p. 4).Trata-se de uma constatação feita por Bakhtin, a partir de
um estudo investigativo sobre o gênero romance. Nesse estudo, o autor pôde observar que a
configuração desse gênero favorece, de modo muito particular, a “combinação” de formas
discursivas diversas. Na verdade, ações de linguagem das esferas cotidianas dos homens
comuns e fundamentadas em tradições culturais mais distantes da cultura dita letrada.
Evidencia, assim, a “prosificação da cultura letrada” (MACHADO, 2005, p. 154).
Sobre esse estudo, chama-nos a atenção, ainda, o fato de que, ao contrário dos gêneros
constituídos no campo da Poética e da Retórica, tal como formulado por Aristóteles
marcados por fixidez, hierarquia, purismo –, e, posteriormente, consagrados nos estudos
literários; os gêneros da prosa comunicativa do cotidiano (prosaicos) foram concebidos por
Bakhtin, não apenas com base no universo teórico da teoria clássica, mas, sobretudo, a partir
do dialogismo do processo comunicativo (MACHADO, 2005, p. 151-155).
E como os enunciados prosaicos dizem respeito a manifestações linguísticas do cotidiano, o
teórico pôde observar que esses gêneros permitem manifestações da pluralidade cultural, tais
como a paródia, o grotesco, a estilização, a carnavalização, a heteroglossia, o hibridismo, a
efemeridade, entre outras características (MACHADO, 2005, p. 159-162). Bakhtin situa,
assim, seus estudos no domínio da prosa e nos processos enunciativos do cotidiano, ciente de
que, nas enunciações ordinárias, circulam uma diversidade enorme de gêneros, pois “a
variedade virtual da atividade humana é inesgotável” (BAKHTIN, 2000, p. 279). Dessa
forma, “cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai
diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais
complexa” (op. cit.). Aspecto obviamente não abordado por Bakhtin, a emergência das mídias
eletrônico-digitais, tais como a Internet, a TV, o telefone celular, por exemplo, tem propiciado
uma expansão praticamente inumerável de gêneros.
Mas a diversidade de gêneros é tamanha,
principalmente, porque as pessoas não trocam orações, assim como não trocam palavras ou
combinações de palavras, trocam enunciados” (p. 297).
96
A importância de que se reveste esse estudo bakhtiniano deve-se não somente ao fato de
acolher a diversidade de gêneros do âmbito do cotidiano (comunicados, receitas culinárias,
ditos populares, notícias, propagandas, por exemplo), mas, sobretudo, por conceber o gênero
como “instrumento de mediação entre o sujeito e o outro, entre o sujeito e o objeto, entre o
sujeito e uma dada atividade e, enfim, entre o sujeito e uma dada esfera social” (MATENCIO,
2006d, p. 218). Essa diversidade e flexibilidade são vistas por Bakhtin como características
que dificultam um estudo dos gêneros num terreno comum, pois, segundo o próprio autor, não
é fácil para a ciência abranger a variedade de gêneros, sob a mesma ótica.
Ainda nos termos bakhtinianos, a “irreprodutibilidade” (p. 332) do texto pelo sujeito é outra
característica que dificulta o estudo do gênero, sua constituição e funcionamento.
Evidentemente, cada acontecimento na vida de um texto (uma releitura, uma citação, uma
nova execução, entre outros) resulta num “novo elo na cadeia histórica da comunicação
verbal” (op. cit.), logo, num novo enunciado. Os enunciados, por sua vez, circulam sob
condições específicas de cada uma das esferas da atividade humana. Cada enunciado pode (ou
não) se configurar num novo gênero, a depender de seu uso nas diferentes esferas, o que lhe
confere uma certa “especificidade” (BAKHTIN, 2000, p. 279). E isso não ocorre apenas “por
seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da
língua (lexicais, fraseológicos e gramaticais), mas também por sua construção composicional”
(op. cit.). Certamente, tais recursos textuais e linguísticos não são elementos que se
encontram à deriva no texto. Ao contrário, prestam-se, principalmente, para sugerir ao sujeito-
leitor a circulação de um texto em novos domínios discursivos, de forma que se possa
constatar, por exemplo, posições sócio-históricas de onde os sujeitos enunciam.
Constatadas a diversidade, a flexibilidade e a irreprodutibilidade, entre outras características
da natureza do gênero do discurso, há, ainda, um outro ponto bastante divulgado nesse estudo
bakhtiniano, a saber: os gêneros são tipos relativamente estáveis de enunciados” (p. 279,
grifos do autor), e podem ser utilizados na configuração de novos gêneros, situação em que
assumem propriedades desse novo gênero. E isso se sem nenhuma norma aparente a reger
tal apropriação. Em face de tais possibilidades, “o enunciado é um fenômeno complexo,
polimorfo, desde que o analisemos não mais isoladamente, mas em sua relação com o autor (o
locutor) e enquanto elo na cadeia da comunicação verbal” (p. 318). Essa característica
certamente evidencia um ponto primordial nos estudos bakhtinianos: todo enunciado tem um
caráter essencialmente dialógico.
97
Em vista de tais constatações, importa que os sujeitos-leitores, em face de um texto,
considerem não somente a relativa estabilidade dos gêneros do discurso, mas também sua
constante transição decorrente de sua inevitável relação com o tempo (histórico) e o espaço
(social). Tal atitude pode lhes favorecer a confirmação (ou não) das próprias expectativas a
respeito de um determinado texto, a partir do que se conhece sobre outros textos parecidos.
Neste estudo, um ponto a se investigar é se os sujeitos da pesquisa também consideraram a
reconfiguração de um texto em face de sua circulação num novo suporte, considerando-se, por
exemplo, que as “expressões mesmo texto e mesmo gênero não são automaticamente
equivalentes (MARCUSCHI, 2002, p. 21, grifos do autor).
Pensar o gênero desse modo é, principalmente, pensá-lo como manifestação de discursos, isto
é, formas enunciativas cuja existência tem natureza social, cultural, histórica. De tal forma, o
gênero abrange esferas de atividades humanas muito específicas, possibilitando o emprego de
códigos culturais emergentes. E, por se tratar de uma “manifestação de emergência” (op. cit.,
p. 154), se constitui em contextos sócio-culturais específicos, concretizando-se nos processos
interativos, ambientes bastante férteis para manifestações da heterogeneidade discursiva
mostrada e não mostrada (AUTHIER-RÉVUZ, 1982).
3.3.4 Gêneros do discurso, dialogismo e heterogeneidade discursiva
Tal como propõe Authier-Revuz (1982), apoiando-se nos estudos de Bakhtin sobre o
dialogismo, articulados a estudos do discurso como produto do interdiscurso concebidos em
AD (op. cit.), a heterogeneidade constitutiva é condição de existência de todo discurso, uma
vez que “o outro não é um objeto exterior (de que se fala) mas uma condição (constitutiva
para quem se fala) do discurso de um sujeito falante, que não é a fonte primeira deste
discurso” (p. 49, parênteses da autora).
Por essa razão, tudo o que é dito por um falante não pertence a ele, uma vez que o discurso
vem permeado por vozes de naturezas diversas, manifestando, de alguma forma, sua relação
com outros enunciados. Essas vozes, em algumas situações, mostram-se distantes, anônimas,
imperceptíveis, quase impessoais e se juntam às vozes próximas que, simultaneamente,
emergem no momento da fala. O enunciado está, pois, repleto de
“reações-respostas a outros
enunciados numa dada esfera da comunicação verbal”
(
BAKHTIN, 2000, p. 316). E tais
98
reações assumem formas variáveis, pois se pode introduzir diretamente o enunciado alheio no
contexto dos próprios enunciados, como também se pode introduzir-lhes apenas palavras
isoladas ou orações que ali se encontram “a título de representantes de enunciados completos”
(op. cit.).
Na verdade, têm um caráter de “resposta ao que foi dito sobre o mesmo objeto,
sobre o mesmo problema” (p. 317). Ressalta-se, nesse ponto, a relatividade da autoria
individual. Não somente porque o enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros
enunciados” (p. 316), mas também porque os neros “não são indiferentes uns aos outros
nem são auto-suficientes” (op. cit.).
Privilegiar o gênero, nesse recorte, implica, entre outros posicionamentos, considerar a
primazia de sua natureza interdiscursiva, fundamentada no fato de que “um locutor não é um
Adão bíblico, perante objetos virgens, ainda não designados, os quais é o primeiro a nomear”
(BAKHTIN, 2000, p. 319). Considera-se, então, uma “relação inextricável” entre “o Mesmo
do discurso e seu Outro” (MAINGUENEAU, 2005, p. 33). Como decorrência, o texto é visto
como tendo a propriedade intrínseca de se constituir a partir de outros textos, sendo, por isso,
atravessado pelo discurso do Outro, situação em que a alteridade não deixa necessariamente
marcas visíveis no texto – heterogeneidade mostrada não-marcada.
Do mesmo modo, “as palavras, os enunciados de outrem estão tão ligados ao texto
que não podem ser apreendidos por uma abordagem linguística stricto sensu” (op. cit.).
Pode-se, então, afirmar que “em todo enunciado, contanto que o examinemos com apuro,
descobriremos as palavras do outro, ocultas ou semiocultas, e com graus diferentes de
alteridade” (BAKHTIN, 2000, p. 318), já que
um enunciado é sulcado pela ressonância longínqua e quase inaudível da alternância
dos sujeitos falantes e pelos matizes dialógicos, pelas fronteiras extremamente
tênues entre os enunciados e totalmente permeáveis à expressividade do autor (p.
318).
Nesse âmbito, o texto tido como monofônico é aquele marcado por uma “ressonância
longínqua e quase inaudível dos sujeitos falantes”, quando ocorre, na verdade, uma ocultação,
um abafamento das vozes. no caso do texto se apresentar com um caráter polifônico,
situações de adesão e de não adesão às perspectivas polifonicamente introduzidas. Entre os
casos de adesão, estão incluídas as pressuposições, alguns tipos de parafraseamento, a
argumentação por autoridade, o uso do futuro do pretérito, entre outros (FIORIN, 2006b, p.
33-54; MAINGUENEAU, 1997, p. 76-92). Em relação a situações em que o locutor não
99
adere à perspectiva polifonicamente introduzida, estão incluídos os enunciados introduzidos
por expressões, como ao contrário/pelo contrário, quando se opõem à perspectiva do
enunciador, polifonicamente introduzida; a negação; as aspas de distanciamento com suas
diversas funções e outros (FIORIN, op. cit., MAINGUENEAU, op. cit.). Em síntese, pode-se
afirmar que a heterogeneidade mostrada marcada é “acessível aos aparelhos linguísticos, na
medida em que permite apreender sequências delimitadas que mostram claramente sua
alteridade” (MAINGUENEAU, 2005, p. 33). outros conceitos cunhados posteriormente
por estudiosos de Bakhtin – interdiscursividade e intertextualidade, por exemplo –, que
também nos ajudam a compreender o fenômeno dialógico como constitutivo dos gêneros do
discurso.
3.3.5 Gêneros do discurso, interdiscursividade e intertextualidade
Coloco em pauta, neste momento, uma reflexão sobre interdiscursividade e intertextualidade
14
dada a relevância desses conceitos para que se possa investigar sujeitos-leitores, evidenciando
(ou não) essas manifestações do dialogismo bakhtiniano (em registros escritos), articulando-as
(ou não) à percepção de efeitos de sentido, pensando-se, a exemplo de Bakhtin (2000), todos
os textos como constitutivamente dialógicos.
Esses dois conceitos propostos a partir de estudos do dialogismo bakhtiniano ganharam
destaque e importância nos estudos linguísticos contemporâneos, apesar de tais termos jamais
terem sido mencionados explicitamente na totalidade da obra do filósofo russo. O termo
intertextualidade, por exemplo, foi proposto por Kristeva
15
, ao discutir o texto literário, com
base na obra do filósofo russo. Já a noção conceitual de interdiscursividade também foi
abordada posteriormente por estudiosos do discurso (MAINGUENEAU, 1997, por exemplo)
e corresponde à necessária relação entre discursos na constituição de qualquer texto.
14
Segundo Fiorin (2005, p. 162), o termo intertextual aparece uma única vez na obra do autor russo, na tradução
brasileira, feita a partir do francês, no seguinte fragmento: “As relações dialógicas intertextuais e intratextuais.
Seu caráter específico (extralingüístico). Diálogo e Dialética” (BAKHTIN, 2000, p. 331). Essa tradução, no dizer
de Fiorin, pode estar contaminada de ressonâncias da obra de Kristeva, pois, na tradução espanhola, o termo
intertextual não ocorre.
15
Julia Kristeva, semioticista francesa, fez estudos da obra bahtiniana cujos resultados foram publicados com o
título de Bakhtine, le mot, le dialogue et le roman e veiculado em Critique. Revue générale de publications.
Paris, v. 29, fascículo 239, 1967, p. 438-465 (FIORIN, 2006, p. 163).
100
Trata-se, portanto, de um conceito mais abrangente. o termo intertextualidade fica restrito
apenas aos casos em que “a relação discursiva é materializada em textos” (op. cit.). A
intertextualidade, então, “não é mais uma dimensão derivada, mas, ao contrário, a dimensão
primeira de que o texto deriva” (BARROS E FIORIN, 1999, p. 4). Na intertextualidade,
confirma-se a presença de um intertexto, marcando a alteridade. no caso da
interdiscursividade basta que se coloque em cena diferentes vozes delimitadas, por exemplo,
pela negação. Essas diferentes vozes podem representar enunciadores reais ou até mesmo
virtuais. A partir daí, pode-se concluir que a concepção de interdiscursividade recobre a de
intertextualidade, isto é, todo caso de intertextualidade é um caso de interdiscursividade, mas
nem todos os casos de interdiscursividade abrangem manifestações intertextuais (KOCH,
1997b). Em síntese, podemos dizer que “quando a relação dialógica não se manifesta no texto,
temos interdiscursividade, mas não intertextualidade” (FIORIN, 2006, p. 181). No entanto
“nem todas as relações dialógicas mostradas no texto devem ser consideradas intertextuais”
(op. cit.). Esse quadro teórico guarda, assim, a importância de voltar-se para dimensões da
linguagem que nos permitem conceber, por exemplo, conflitos sociais e históricos que se
cristalizam num dado discurso, numa dada época.
Na verdade, no dizer de Bakhtin (2000, p. 331), relações dialógicas “intratextuais” (dentro
do texto) e “intertextuais” (entre textos). No caso das relações intratextuais, duas ou mais
vozes dialogam no interior do próprio texto, como, por exemplo, nos casos em que narrador e
personagem mantêm uma relação dialógica na constituição de um gênero, tal como o
romance. Já as relações intertextuais ocorrem quando um texto se relaciona dialogicamente
com outro(s) texto(s) já constituído (s).
Pensa-se até mesmo num terceiro sentido (mais amplo) para o fenômeno dialógico, que, nesse
caso, seria visto como “um princípio de constituição dos seres humanos; um modo de agir e
de estar no mundo” (FIORIN, op. cit, p. 192). As noções conceituais que abrangem
interdiscursividade e intertextualidade são também relevantes porque favorecem uma
investigação a propósito da ocorrência/não ocorrência de uma “regulação” dos sentidos,
permitindo-nos, ainda, considerar as condições sócio-históricas de produção e de circulação
dos textos.
Enfim, ao discutir questões conceituais relativas ao dialogismo bakhtiniano na constituição do
gênero do discurso, é possível pensar um sujeito-leitor investido da função de significar com
base em gêneros do discurso cuja cena englobante (tipo de discurso) e cena genérica (gênero
101
do discurso) compõem o “espaço estável no interior do qual o enunciado ganha sentido”
(MAINGUENEAU, 2006, p. 112).
Convém ressaltar ainda que muitas “cenas de enunciação” (MAINGUENEAU, 2001, p.85-94;
2006, p. 111-116) podem ser reduzidas apenas a partir desse quadro estável. Por exemplo, nos
casos em que os gêneros se configuram em modelos, fórmulas preestabelecidas (atas de
reuniões, listas telefônicas, receitas médicas). Por outro lado, gêneros cuja natureza exige a
escolha de uma cenografia, tais como um texto publicitário, um poema, um discurso político
(MAINGUENEAU, 2001, p. 85-89).
Ler, nesse caso, é compreender não somente os gêneros que se situam num quadro cênico
mais estável, mas também aqueles suscetíveis de cenografias variadas. Esse é o caso de
grande parte dos textos selecionados pelo professor-pesquisador para compor as cinco
atividades de leitura, a partir das quais se constituiu o corpus (registros escritos) deste estudo.
Com a análise desses registros escritos, buscaremos, sobretudo, respostas para questões, tais
como: i) Por que dados textos teriam produzido aqueles sentidos? ii) Por que o sujeito-leitor
teria dito algo daquele modo? Quais não-ditos estariam silenciados pelo próprio modo como
foram ditos os elementos dados (silenciamentos)? Esses questionamentos, cujos
enquadramentos deverão estar devidamente situados nos fundamentos epistemológicos que os
sustentam, serão discutidos no próximo capítulo.
102
C
APÍTULO 4
4 A PERCEPÇÃO DE EFEITOS DE SENTIDO NO ÂMBITO ACADÊMICO EM
SITUAÇÃO DE ENSINO-APRENDIZAGEM
Neste capítulo, analiso dados iniciais obtidos a partir de registros escritos realizados com base
em propostas de leitura denominadas, respectivamente, I e II (anexos 1a e 1b). O principal
intuito é investigar a percepção de efeitos de sentido por sujeitos-leitores, a partir da leitura de
diferentes gêneros do discurso. Outro propósito é investigar sujeitos-leitores movidos pela
especificidade dos títulos dos textos apresentados para as atividades de leitura, estabelecendo
(ou não) uma correspondência imediata título/gênero. Verifico, ainda, se os sujeitos da
pesquisa estiveram mais atentos a alguns pressupostos teóricos discutidos em classe pelo
professor-pesquisador, a ponto de os considerarem, explicitamente, no formulário destinado
aos registros de leitura. O objetivo final deste estudo é descrever/explicar/investigar alguns
princípios teóricos norteadores da produção do sentido, a partir de uma situação de ensino-
aprendizagem, na esfera acadêmica.
4.1 Reconhecimento do gênero do discurso: um fator de “economia cognitiva”
Antes de dar início à análise dos registros escritos (texto-interação) produzidos pelos sujeitos-
leitores, com base nas propostas de leitura I e II, retomo, inicialmente, a proposta I, a partir da
qual foram realizados os primeiros registros. Essa primeira atividade foi elaborada com base
em uma pequena coletânea de 5 (cinco) textos, veiculados nos jornais Estado de Minas e Hoje
em dia, previamente selecionados pelo professor-pesquisador. Esses textos apresentam em
comum, como título ou como palavra-chave no título, o termo ‘Comunicado’, e não se
configuram no gênero ‘Comunicado’ propriamente. Remetem-nos a uma determinada cena
de enunciação”, isto é, podem abranger diferentes tipos de discurso (cena englobante),
variados gêneros do discurso (cena genérica), além de diversificadas cenografias
(MAINGUENEAU, 2001, 85-93; 2006, p. 111-131). Textos dessa natureza vêm sendo
publicados, com certa freqüência, no domínio jornalístico, em suportes, como o Estado de
Minas, o Hoje em Dia, o Folha de São Paulo, por exemplo.
103
Três foram as principais razões que me conduziram à escolha desse referencial para a
composição da primeira proposta de leitura: i) os cinco textos exigem dos sujeitos-leitores a
compreensão de diferentes cenografias mobilizadas, embora sua compreensão pareça ser
possível apenas com base num “quadro cênico” cena englobante, cena genérica ; ii) a
particularidade do título desses textos, isto é, o fato do termo ‘Comunicado’ também ser
utilizado pelos usuários da língua, e não propriamente pelos pesquisadores – como título de
textos que circulam em outros âmbitos, como o comercial, o acadêmico-científico, por
exemplo; iii) O fato de que, a exemplo de Matencio (2007a), também defendo que se deve
“promover situações de ensino e de aprendizagem à luz dos gêneros, e não propriamente
ensinar os gêneros”. No caso do ‘Comunicado’ proveniente dos domínios comercial e
acadêmico-científico, geralmente, são utilizados suportes, tais como quadro de avisos, murais,
muros dos pátios escolares, por exemplo. Trata-se, ainda, de uma das situações que
orientariam o leitor para o estabelecimento de uma correlação imediata título/gênero, assim
como ocorre com outros textos, tais como a nota promissória, o histórico escolar, o
requerimento, entre outros.
Escolheram-se tais textos também porque se desejava investigar sujeitos-leitores,
estabelecendo (ou não) a correspondência título/gênero, considerando-se a seguinte questão:
No caso de não haver correlação imediata título/gênero, como se conduziria o sujeito-leitor,
em relação à percepção do gênero? Em suma, desejava-se investigar o título de uma
perspectiva enunciativo-discursiva, porque, sob esse foco, é possível observar influências
dessa característica dos textos os textos, normalmente, têm título no reconhecimento da
‘identidade’ dos gêneros do discurso pelos sujeitos-leitores, e, como decorrência, na produção
de efeitos de sentido.
Vejamos, então, algumas características “relativamente estáveis” (BAKHTIN, 2000, p.279)
do gênero ‘Comunicado’ situado nos âmbitos comercial / acadêmico-científico e de textos de
título ‘Comunicado’ veiculados no domínio jornalístico. Esses textos foram utilizados pelo
professor-pesquisador na constituição da atividade de leitura I.
16
Pela via dos estudos de
16
Convém observar que faço essa reflexão sob o enfoque de alguns estudiosos do gênero do discurso
(BAKHTIN, 2000; DOLZ e SCHNEUWLY, 2004; MAINGUENEAU, 2001, 2004, 2006; MARI e SILVEIRA,
2004; MARI e MENDES, 2007; MATENCIO, 2002, 2003, 2006a, 2006b; SCHNEUWLY e DOLZ, 2004), cuja
trajetória nos permite compreender várias dimensões que envolvem o funcionamento dos gêneros do discurso.
104
Bakhtin (2000), considera-se que “dadas condições específicas para cada uma das esferas da
comunicação verbal geram um dado gênero, ou seja, um dado tipo de enunciado,
relativamente estável do ponto de vista temático, composicional e estilístico” (BAKHTIN,
2000, p.284). Pensa-se, também, o texto como um “elo na cadeia da comunicação verbal”
(p.308), cuja manifestação implica ao locutor concluir seu enunciado “para passar a palavra
ao outro ou para dar lugar à compreensão responsiva ativa do outro” (p. 294). Sob a
abordagem de Schneuwly e Dolz (2004),
um dos paradoxos do nero, dentre outros, reside no fato de que eles são mais ou
menos imediatamente referenciáveis e referenciados cotidianamente nas práticas de
linguagem de tal forma que podemos frequentemente nomeá-los sem muita
hesitação e, na comunicação cotidiana sempre o fazemos –, mas nunca se prestam à
definição sistemática e geral, sem dúvida por causa de seu caráter multiforme,
maleável, “espontâneo” (DOLZ e SCHNEUWLY, 2004, p. 57, aspas do autor).
do ponto de vista de Maingueneau aborda-se o gênero sob o foco da “cena de enunciação”
(2001, 85-93; 2006, p. 111-131), um conceito segundo o qual o discurso deixa um “rastro” em
que a fala é encenada. Com base nos estudos de Matencio (2006b), considera-se que as
instâncias ou esferas sociais delimitam historicamente os discursos e seus processos,
particularmente, no que se refere às relações entre instituições, lugares e papéis sociais e às
suas representações”. Pelo percurso escolhido por Mari e Silveira (2004), pode-se avaliar o
gênero como “dispositivos-de-sentido que permitem a formatação de gêneros discursivos” (p.
67).
Como se pode depreender, na perspectiva desses estudiosos, são reconhecidas várias
dimensões constitutivas do sentido, tais como esfera/gênero; instância/discurso/processos
discursivos/sentido; lugares/papéis sociais/representações; reconhecimento/enfoque a
posteriori. A relevância desse enfoque é contribuir para que se possa compreender os gêneros
como “dispositivos de comunicação sócio-historicamente definidos” (MAINGUENEAU,
2004, p. 45). Também, sob esse olhar, os gêneros do discurso podem ser caracterizados com
base nos “papéis dos participantes, suas finalidades, seu médium, seu enquadramento espaço-
temporal, o tipo de organização textual que eles implicam” (MAINGUENEAU, op. cit.).
Consideram-se, pois, as instâncias sociais de onde emergem os textos.
Selecionado o percurso teórico, caracterizamos, primeiramente, o gênero Comunicado’ que
emerge a partir de instâncias comerciais, acadêmico-científicas. Nessa abordagem,
focalizamos esse gênero, considerando tanto a total “impossibilidade de sistematização” dos
105
gêneros como também o fato de não se poder pensá-lo como uma “unidade de base” (DOLZ e
SCHNEUWLY, 2004, p. 57), devido a não regularidade de que estão investidos os gêneros.
Por esse ângulo, “os conteúdos e os conhecimentos se tornam dizíveis por meio de um
gênero” (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004, p. 75).
Se, por um lado, a diversidade característica dos gêneros parece ser um ponto inquestionável
para esses estudiosos do gênero, paradoxalmente, por outro lado, parece haver certas
regularidades a partir das quais podemos pensar um determinado gênero, tal como o
‘Comunicado’. Por meio desse gênero, geralmente, veiculam-se informações pontuais e
breves: uma data e horário de reunião, uma mudança de horário de trabalho, uma rápida tarefa
a cumprir, por exemplo. Pode-se dizer também que se configura como um texto bastante
curto, cuja linguagem é mais próxima da norma padrão, sem se ater a purismos. Essa
dimensão confere-lhe uma certa estabilidade, que pode ser um dos pontos de referência para
sua compreensão. Valendo-se desse “dispositivo-de-sentido” (MARI e SILVEIRA, 2004, p.
67), o locutor – gerente de uma empresa, diretor de uma escola, coordenador de um curso, por
exemplo – procura atribuir uma certa formalidade a uma informação que poderia ser de
caráter apenas oral. Isso é feito de modo a favorecer a troca verbal ou mesmo para se evitarem
conflitos, questionamentos, dúvidas. Nesse caso, assim como em qualquer situação de troca
verbal, a posição social dos parceiros gerente/empregado, diretor/professor,
médico/paciente, envolve posicionamentos de natureza ideológica. Em decorrência, abrange o
“planejamento de ações orientadas para um fim, e sua execução em material linguageiro
(MATENCIO, 2006a, grifo da autora).
Para a Análise do Discurso, essas divisões baseadas na posição dos parceiros e outras
sustentadas em posicionamentos de natureza ideológica discurso capitalista, discurso
cristão, discurso religioso, entre outros são “unidades indissociáveis dos gêneros do
discurso que elas mobilizam e da forma como os mobilizam” (MAINGUENEAU, 2001, p.
62). Espera-se, pois, que os sujeitos-interlocutores conheçam “deveres e direitos associados
ao gênero” (MAINGUENEAU, op. cit., p. 64). Por exemplo, no caso em que um funcionário
falte propositalmente a uma reunião cuja data e horário haviam sido fartamente divulgados
numa empresa, por meio de um ‘Comunicado’, o faltoso deve pensar nas possíveis
consequências dessa escolha.
Esse parece ser um dos motivos pelos quais, no âmbito acadêmico, com certa frequência,
exige-se uma assinatura como garantia” de o Comunicado ter chegado aos interlocutores
106
previstos. O desconhecimento do que se propõe, nesse caso, não deve ser utilizado como
desculpa para a não realização do que se solicita. Esse ‘Comunicado’ teria, assim, uma
natureza injuntiva, pois, geralmente, orienta o sujeito-interlocutor a realizar uma determinada
ação comparecer a uma reunião, chegar mais cedo ao trabalho, entregar um planejamento,
por exemplo.
Essas situações nos mostram a importância de o sujeito-leitor compreender o funcionamento
dos gêneros discursivos emergentes de sua área de atuação e formação. Essa compreensão
pode ser um “fator considerável de economia cognitiva” (MAINGUENEAU, 2001, p. 63,
grifo do autor). Primeiramente, porque o sujeito aprende a moldar a própria fala pelas
“formas do gênero”. Também, porque, ao ouvir a fala do outro, sabe logo, “desde as primeiras
palavras, descobrir seu gênero, adivinhar seu volume, a estrutura composicional usada, prever
o final”. Enfim, desde o início, o sujeito é sensível ao “todo discursivo” (BAKHTIN, 2000, p.
285). No entanto, a exemplo de Bakhtin (2000) e de Maingueneau (2001, p. 65), não se está
pensando o gênero do discurso como “formas que se encontram à disposição do locutor a fim
de que este molde seu enunciado nessas formas”. No caso do ‘Comunicado’, assim como de
alguns outros gêneros, pode-se pensar em novas formas estrutura composicional com o
mesmo propósito comunicativo. O importante é que se pense na noção de gênero,
considerando-se os processos discursivos, ou seja, “uma certa configuração material
(linguística, textual) própria do funcionamento de um dado discurso” (MATENCIO, 2006b).
O ponto da vista da autora é produtivo na medida em que concebe o gênero “à luz da
categorização genérica”. Assim, é possível “visualizar tanto os movimentos de estabilidade
dos processos sócio-históricos implicados quanto a instabilidade que caracteriza a
atualização de tais processos em eventos singulares de interação” (MATENCIO, op. cit.). Não
dissociação entre essa idéia e a proposição de Maingueneau (2001, p.65-68), para quem o
gênero está submetido a rituais que definem várias cenas genéricas. Por isso se submete a um
“conjunto de condições de êxito” finalidade reconhecida, estatuto dos parceiros, um lugar e
um momento legítimos, um suporte material, uma organização textual (MAINGUENEAU,
2001, p. 65-68).
107
Desse ponto de vista, um ‘Comunicado’ que circule numa repartição pública, propondo, por
exemplo, uma mudança no horário de trabalho dos funcionários, dependendo do “papel
social” conduta de ordem sociológica, linguajeira (CHARAUDEAU, 2004, p.362-363)
daquele que toma a iniciativa de propor a mudança, pode não surtir o efeito desejado. Ou
ainda, o fato de os parceiros da troca comunicativa estarem deslocados em relação à
legitimidade do ‘lugar/momento’ pode provocar um efeito de transgressão, porque essa
dimensão também é constitutiva do gênero (MAINGUENEAU, op. cit., p. 66). Por exemplo,
se um gerente, em situação de férias numa praia, vale-se de um gênero, tal como um
‘Comunicado’, para propor uma reunião de trabalho, tendo como parceiro da troca verbal um
subordinado, também em férias na mesma região, provavelmente, sua atitude não será vista
com bons olhos pelo interlocutor, e sim, possivelmente, como algo abusivo. caso a
proposta parta do parceiro subordinado, pode-se pensar num convite para um encontro
informal ou até mesmo numa “piada” de mau gosto. Nos dois casos, deslocamentos dos
efeitos de sentido. O não comparecimento a reuniões propostas, nessas situações pode até
gerar um pedido de desculpas, de ambos os parceiros, mas não uma punição.
Já quanto à temporalidade, o gênero Comunicado, com tais características, não obedece a uma
periodicidade regular, pois circula apenas até que se concretize uma reunião marcada, ou se
vigore um novo horário de trabalho proposto, por exemplo. Após, o texto é descartado pelo
fato de se tornar obsoleto. E, por se direcionar a alocutários, geralmente próximos, na maioria
das vezes, não se publica esse “tipo” de texto no suporte jornal, e sim em folhas de papel,
afixadas em murais, paredes, quadros de aviso.
Neste estudo, não investigo esse “Comunicado” propriamente, mas sim textos que circulam
na mídia impressa e têm como tulo ou como palavra-chave no título o termo
108
‘Comunicado’
17
. Nesse caso, geralmente, não se caracterizam pela correlação imediata
título/gênero.
Esses textos intitulados ‘Comunicado’, na verdade, nem sempre se configuram no gênero
Comunicado propriamente, mas sim em diferentes gêneros do discurso. Também, apresentam
uma grande diversidade de sequências tipológicas, tal como pode ocorrer com a maioria dos
textos. Na primeira etapa da coleta de dados, os cinco textos previamente selecionados foram
lidos, simultaneamente, pelos três diferentes grupos (A, B, C) nos quais foram inscritos os
sujeitos da pesquisa para fins de estudo. Como essa proposta teve um caráter diagnóstico,
envolver, na coleta de dados, sujeitos-leitores de níveis diferenciados, poderia me indicar (ou
não) algum nível de avanço na qualidade da leitura realizada, embora não fosse essa a
principal questão a ser investigada. Esses sujeitos foram convidados pelo professor-
pesquisador a fazer a leitura dos cinco textos que se seguem, com base no comando
apresentado no Quadro 2, a seguir:
Proposta de Leitura I
Leia os textos 1 a 5 (anexos). Registre APENAS os aspectos que considerar MAIS
SIGNIFICATIVOS sobre cada um deles.
Obs. Esta atividade tem caráter estritamente INDIVIDUAL. Para maior fidelidade dos dados, é importante que
NÃO consultem colegas, livros ou teóricos em geral.
Quadro 2: Enunciado e categorias apresentadas aos sujeitos da pesquisa, na proposta de leitura I
Fonte: Elaboração própria a partir do quadro teórico adotado
A partir de então, apresento os 5 (cinco) textos que compuseram a atividade de leitura I
17
Meu interesse por esse gênero é mesmo anterior ao início da realização deste trabalho, que se deu em 2004.
Durante 5 (cinco) anos, a partir de 2000, coletei praticamente todos os textos com essa característica, veiculados
em publicações diárias, de três jornais brasileiros: Folha de São Paulo, Estado de Minas, Hoje em Dia.
109
Figura 1: Texto I
Fonte: Estado de Minas Quarta-feira, 10 de julho de 2002, p. 5. Caderno Política.
110
Figura 2: Texto II
Fonte: Estado de Minas Sexta-feira, 12 de dezembro de 2003, p. 15. Caderno Economia.
111
Figura 3: Texto III
Fonte: Estado de Minas Quinta-feira, 5 de fevereiro de 2004, p. 15. Caderno Economia.
112
Figura 4: Texto IV
Fonte: Hoje em Dia, Domingo, 31 de outubro de 2004
113
Figura 5: Texto V
Fonte: Estado de Minas. Quarta-feira, 02 de fevereiro de 2005
Feita a apresentação dos cinco textos
19
, passo a discutir cada um deles, com base no quadro
referencial proposto. Em seguida, apresento e discuto dados relativos à leitura realizada pelos
sujeitos da pesquisa.
19
Pude observar, no período de 2000 a 2004, que o jornal em que mais se publica esse ‘tipo’ de texto, dentre os
três mencionados anteriormente, é o jornal Estado de Minas. A publicação se geralmente nos Cadernos de
Economia e Política, respectivamente, um forte indício dos alocutários que se deseja alcançar. Como se são
textos que emergem no âmbito das interações dialógicas do cotidiano, e tem, como possíveis alocutários,
homens ditos comuns, ou seja, leitores de jornais brasileiros.
114
4.1.1 O gênero “Comunicado”: o texto sob o foco do quadro social de sua produção e
circulação
Nesta seção, analiso o gênero do discurso a partir de uma abordagem em que se leva em conta
a dimensão social e histórica da linguagem humana. Em vista disso, retomo, de modo
especial:
i) A perspectiva bakhtiniana de gênero do discurso segundo a qual o
gênero se caracteriza por uma estabilidade temática, composicional e
estilística, além de apresentar uma natureza constitutivamente
dialógica.
ii) A concepção de “cena de enunciação” (MAINGUENEAU, 2001,
p.85-94; 2006, p. 111-131), na qual se propõe o envolvimento
simultâneo do leitor em três cenas, a considerar o ponto de vista
assumido: cena do tipo de discurso (cena englobante), cena do gênero
de discurso (cena genérica), cena construída pelo texto (cenografia).
iii) Os estudos de Matencio (2002, 2006a, entre outros), segundo os
quais deve-se considerar “as relações entre uma certa materialidade
linguística e textual e os processos discursivos”, além de se poder
observar o sujeito-professor em processo de formação inicial, a partir
de “dimensões envolvidas nas condições de produção, recepção e
circulação do texto” (p. 12).
Além de acrescentar, em caráter de complementaridade,
iv) o posicionamento dos teóricos Dolz e Schneuwly (baseado no
percurso bakhtiniano) para os quais todo texto pertence a uma
categoria de gênero do discurso, a despeito de seu caráter
“multiforme, maleável, ‘espontâneo’”(DOLZ e SCHNEUWLY
,
2004,
p. 57, aspas dos autores).
v) O enfoque adotado por Mari e Silveira (2004), segundo o qual o
gênero é um “dispositivo-de-sentido”.
A relevância desse percurso teórico é decorrente do fato de se partir sempre de reflexões que
consideram a submissão do texto ao quadro social de sua produção e circulação. Em se
tratando da concepção bakhtiniana de dialogismo, por exemplo, não se trata somente da
115
interação face a face, mas também do embate entre dois ou mais discursos. na concepção
de “cena de enunciação”, de Maingueneau, considera-se que “um texto não é um conjunto de
signos inertes, mas o rastro deixado por um discurso em que a fala é encenada
(MAINGUENEAU, 2001, p. 86). Nesse quadro teórico, cena englobante é a que diz respeito
ao tipo de discurso, a seu estatuto pragmático (jurídico, científico, religioso, político,
publicitário, entre outros). Essa cena é que define o “estatuto dos parceiros e um certo quadro
espaciotemporal” (op. cit., 2006, p. 11), logo “a emergência de um gênero é fruto do
enquadre dado pelo sujeitos em interação, ao evento no qual atuam” (MATENCIO, 2006a).
Cabe, pois, ao leitor se colocar numa determinada cena para ler / interpretar um texto ou para
observar como o texto interpela seu leitor. Quanto à cena genérica, vimos que diz respeito à
possibilidade e mesmo à necessidade de os sujeitos verem-se confrontados com gêneros do
discurso particulares, e com rituais sócio-linguageiros que definem várias cenas genéricas.
Isso ocorre porque a cena englobante, por si (tipo de discurso), não é suficiente para se
especificarem as atividades discursivas nas quais se encontram engajados os sujeitos,
portanto, insuficiente para que se defina a grande diversidade de gêneros discursivos com os
quais o leitor se depara. Essas duas cenas a englobante e a genérica constituem-se num
espaço estável no interior do qual o enunciado ganha sentido (quadro cênico). Já a cenografia
não se refere nem ao tipo nem ao gênero de discurso, já que é instituída pelo próprio discurso.
Nesse sentido, a cena de fala da qual um texto pode ou pretende originar-se pode se
manifestar por meio de diferentes cenografias, sem que se altere a cena genérica
(MAINGUENEAU, 2006, p. 113, grifo do autor). Com base nesse referencial, vimos, ainda,
que gêneros do discurso são “instituições de fala sócio-historicamente definidas, de grande
instabilidade, e que não se apreendem em taxinomias compactas” (op. cit., p. 112).
Enfim, a opção por analisar os cinco textos a partir desse quadro teórico é porque se
consideram as condições sócio-históricas de produção dos textos como constitutivas do
sentido, permitindo-nos vê-los como discursos. Desse ponto de vista, parte-se do pressuposto
básico de que “a língua penetra na vida através dos enunciados concretos que a realizam, e é
também através dos enunciados concretos que a vida penetra na língua” (BAKHTIN, 2000, p.
282). Além disso, os gêneros do discurso são vistos de uma perspectiva interativa dialógica,
em que tanto se considera a relação eu / outro – papéis intercambiáveis – como se considera o
fato de o gênero se constituir como um elo na cadeia da comunicação verbal (p. 318). Quanto
ao tipo textual, comungo com Marcuschi (2002, p. 22) o pressuposto de que está relacionado
à natureza linguística do texto:
116
Usamos a expressão tipo textual para designar uma espécie de construção teórica
definida pela natureza linguística de sua composição (aspectos lexicais, sintáticos,
tempos verbais, relações lógicas). Em geral os tipos textuais abrangem cerca de meia
dúzia de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição,
descrição, injunção (grifos do autor).
Desse ponto de vista, o texto é heterogêneo, por ser tipologicamente variado, além de não se
poder pensar numa correlação natural tipo/gênero. A partir desse referencial, investigo
elementos reguladores dos efeitos de sentido produzidos pelos sujeitos-leitores, a partir das
categorias conteúdo, locutor/alocutário, gênero do discurso/domínio discursivo,
linguagem/estratégia textual dominante (natureza linguística do texto), suporte, dialogismo
constitutivo. Conforme vimos, essas categorias foram selecionadas, principalmente, porque
evidenciam um conjunto de dimensões relacionadas à atribuição de sentido ao texto;
ressaltam seu caráter dialógico; além de colocarem em evidência tanto aspectos
configuracionais (de natureza formal), como aspectos de natureza sócio-histórica,
constitutivos do sentido. Por essa razão, favorecem uma leitura que conta de um fenômeno
próprio a todo discurso o dialogismo e suas diferentes manifestações, além de diferentes
cenografias implicadas, quando for o caso.
Por uma questão metodológica, inicio a análise pelo texto I P & G Comunicado. Para
compreender esse texto, é preciso que situemos alguns fundamentos que sustentam sua cena
englobante (discurso do setor econômico, comercial), cujos aspectos são observáveis pela
relação desse texto com a circunstância sócio-histórica de sua produção e circulação. Por
exemplo, o locutor (Procter e Gamble) é, providencialmente, cuidadoso, e busca sensibilizar
o consumidor em relação ao ocorrido, afirmando que constatou a existência no mercado de
falsificação do produto Vick Vaporub, lata com 12 gramas. Vê-se também que o locutor, ao
interpelar o consumidor (alocutário), solicita providências aos órgãos oficiais em relação à
falsificação de um de seus medicamentos, dizendo que assim que tomou conhecimento,
informou à Anvisa Agência Nacional de Vigilância Sanitária, para que a mesma adote as
providências cabíveis – bem como iniciou investigações. Em seguida
,
apresenta características
do produto falsificado que pode ser identificado pela seguinte característica: Número de lote
1094P, com data de validade MAR/05). Também, informa e.mail e telefone de contato,
propondo que o consumidor-paciente, em caso de dúvida, entre em contato com o Serviço de
Atendimento ao Consumidor pelo telefone 0800-7015515 ou pelo e.mail [email protected].
Enfim, a empresa procura construir para si uma imagem de compromisso, de respeito ao
consumidor, mostrando-se ética nas relações comerciais que empreende.
117
Tal comportamento nos permite compreender que esse locutor, ao assumir um determinado
lugar enunciativo, numa esfera social, por meio de um texto, faz emergir “representações das
ações que se deve empreender”, bem como dos modos como tais ações podem se
“materializar numa forma linguajeira” (MATENCIO, 2006a). No texto em questão, o
locutor, ao construir para si uma imagem de idoneidade e de comprometimento, manifesta
uma atitude preventiva frente à ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Essa
agência é responsável pela fiscalização de remédios comercializados no Brasil. O não
atendimento pelas empresas brasileiras a algumas normas desse órgão institucional não
resultará apenas em consequências para o consumidor, mas também para as próprias
empresas, que poderão ver cassadas sua autorização de funcionamento, além de estarem
sujeitas a processos movidos pelos próprios consumidores que se sentirem prejudicados.
Então, essa pretensa ‘cordialidade’ do locutor em face de seu interlocutor nada tem de natural
e impensado. Ao contrário, a empresa protege o consumidor para se autodefender,
divulgando-se. Com tais estratégias, o locutor adota uma cenografia bastante propícia para
que se alcance o principal alocutário a ANVISA. A empresa Procter & Gamble fala ao
interlocutor 1 (consumidor) para, na verdade, falar ao interlocutor 2 (ANVISA). Nesse caso,
constrói para si uma imagem de comprometimento, ao tornar pública a falsificação de um de
seus produtos o Vick Vaporub –, arcar com as consequências decorrentes desse fato, bem
como divulgar as providências tomadas. A partir do texto, os efeitos de sentido perceptíveis
são, pois, o de precaução, o de autodefesa, o de divulgação de uma imagem ética, e não
apenas o de informação. Esses aspectos me levam a situar o texto I como sendo um exemplar
do gênero informe publicitário (cena genérica). nero normalmente veiculado na mídia
impressa, de interesse coletivo, emerge em situações em que as empresas precisam se
posicionar perante órgãos institucionais e consumidores, em relação a assuntos polêmicos,
delicados, conflituosos, tais como falsificação de medicamentos, recall de peças diversas,
produtos em desacordo com as normas do INMETRO, decisões institucionais, propagandas
enganosas, entre outros. Valem-se dessa situação para se autopromover na maioria das vezes.
Já em relação à natureza linguística, nota-se que o texto é tipologicamente heterogêneo, como
são praticamente todos os textos. Há, pois, sequências narrativas, como em detectou
recentemente a existência de falsificação do produto Vick Vaporub; tomou conhecimento;
informou à Anvisa. Sequências injuntivas ocorrem em situações, tais como caso identifique
algum produto com tal característica, não o utilize; em caso de dúvida, entre em contato com
o nosso Serviço de Atendimento. Por fim, confirmam a heterogeneidade tipológica na
118
construção desse texto a presença de sequências descritivas, como se constata em número do
lote 1094P, com data de validade mar/05. Pode-se dizer, ainda, que, na seleção lexical feita,
o emprego de um conjunto de palavras e/ou expressões que remetem o leitor à cena
englobante em que se inscreve o texto, como é o caso dos termos falsificação, produto,
consumidores, número de lote, data de validade, autoridades sanitárias, entre outros.
O texto II – “Comunicado à Classe Médica e aos Consumidores de Coumadin 1mg”
emerge no mesmo domínio discursivo em que se situa o texto I discurso do âmbito da
Economia, das práticas comerciais (cena englobante). Do ponto de vista que adotamos,
conhecer antecipadamente o funcionamento de um gênero do discurso pode auxiliar o leitor a
compreender a “cena de enunciação” que lhe corresponde, de forma a saber o que buscar no
referido gênero, que, na realidade, está apenas atualizando um determinado texto. Nesse caso,
a configuração desse texto nos leva a categorizá-lo também como um informe publicitário
(cena genérica), tal como o texto I.
Um exame da estrutura composicional do texto II, bem como dos demais textos que compõem
a atividade de leitura I, nos permite observar um dos eixos do dialogismo bakhtiniano,
constitutivos do gênero do discurso. Trata-se da relação interativa eu/tu que não se face a
face, no caso dos cinco textos analisados, por terem sido veiculados por meio do suporte
jornal – Estado de Minas, Hoje em Dia. Nesse dispositivo midiático, alguns textos geralmente
são assinados (artigos, propagandas, reportagens) e outros não (editoriais, notícias, erratas).
Os assinados são de responsabilidade de quem os assina. Já os não assinados, do Conselho
Editorial. Os textos nos quais se baseia este estudo se situam no primeiro caso. Isso significa
que estamos diante de locutores que, pelo menos à primeira vista, reivindicam para si uma
responsabilidade perante seus dizeres.
Dada a importância do suporte na constituição do sentido, convém lembrar que, em
conformidade com Maingueneau (2001), consideramos o texto “inseparável de seu modo de
existência material” (p. 68). Também, descartamos a possibilidade de se considerá-lo apenas
como um conteúdo a ser transmitido por meio de veículos materiais (um jornal, um livro, uma
revista) ou mesmo por intermédio de suportes eletrônico-digitais (Internet, televisão,
homepage, telefone celular, por exemplo), entre outros. Paradoxalmente, falar dessa
dimensão do texto, neste estudo, também é falar do dizer (assunto, conteúdo), que é
necessariamente constituído pelo meio através do qual o texto ganha existência (material,
virtual), mas considerando-se o quadro social de sua produção e circulação. Convém ressaltar,
119
ainda, que a mudança de suporte pode interferir no modo de recepção do texto, portanto, nos
efeitos de sentido possíveis.
Levando-se em conta essa dimensão da linguagem, no domínio dos estudos discursivos, os
efeitos de sentido perceptíveis a partir de um texto se sustentam num princípio de
constutividade com suas condições de produção. Em relação ao tema (conteúdo abordado),
também se considera necessariamente a circunstância sócio-histórica em que um texto se
inscreve como constitutiva de seu dizer. Não estamos pensando, então, em enunciados cujos
sentidos seriam estáveis, a serem depreendidos pelos sujeitos-leitores com base no
conhecimento do léxico e da gramática da língua (MAINGUENEAU, 2001, p. 19-20, grifo do
autor).
Considerando-se, pois, a relação suporte/assunto /sentido, em face dos textos que ora
abordamos, podemos afirmar que tratam dos seguintes temas: i) falsificação de medicamento
texto I; ii) troca de medicamento em embalagem texto II; iii) inconformismo de empresa
em relação a posicionamento institucional desfavorável sobre suas transações comerciais
texto III; denúncia de arbitrariedades da Polícia Federal no Norte mineiro texto IV;
divulgação da regularização do pagamento de servidores do Estado de Minas Gerais texto
V. Esses assuntos sofrem alterações, assim que se adentra a cenografia proposta pelos textos,
conforme veremos ao longo desta reflexão:
i) Responsabilidade: A empresa detectou falsificação do produto VicK
Vaporub; Informou o ocorrido à Anvisa; Solicitou providências;
Iniciou investigações. A Bristol-Myers Squibb, por sua vez, informa
que está recolhendo as unidades do lote 146080 de Coumadin 1mg,
como medida preventiva.
ii) Cuidado / Zelo
: “Caso identifique algum produto com tal
característica, não o utilize”; “O tratamento com Coumadin 1mg não
pode ser interrompido, pois poderia ocorrer aumento na formação de
coágulos e trombose”.
iii) Cordialidade: “Em caso de dúvida, entre em contato com o nosso
Serviço de Atendimento ao Consumidor pelo telefone ou e.mail”; “Em
caso de dúvida, consulte seu médico”.
iv) Ética/Respeito: A Proctor & Gamble está empenhada na
colaboração com os órgãos oficiais e reafirma seu compromisso de
respeito aos consumidores e às autoridades sanitárias”; A Bristol-
Myers Squibb adotou voluntariamente este procedimento com o
objetivo de garantir a segurança de seus consumidores”.
120
Observa-se que os locutores empresas farmacêuticas buscam, por meio do autoelogio,
eximir-se, perante os alocutários (consumidores), de qualquer responsabilidade relativa a
consequências indesejáveis decorrentes do consumo indevido de tais medicamentos. Na
verdade, o locutor previne-se para evitar contratempos posteriores, de ordem econômica. O
texto invoca, pois, uma cenografia particular que permite a um sujeito-leitor mais atento
considerar, não propriamente um embate entre superiores (empresas) e inferiores
(consumidores), e sim um confronto entre duas outras forças, pode-se dizer, igualmente
poderosas: Empresas Procter & Gamble/Bristol-Myers versus ANVISA (Agência Nacional
de Vigilância Sanitária). Órgão institucional responsável pela vigilância sanitária no Brasil, a
ANVISA é, a meu ver, o alocutário primeiro desses dois textos. Isso porque, pelas leis
internacionais e brasileiras, uma empresa farmacêutica que permita a circulação de
medicamentos que contenham qualquer irregularidade que possa prejudicar o consumidor-
paciente pode ser punida por esse órgão governamental. Em casos mais graves ou
reincidentes, pode-se até mesmo impedir a empresa de continuar operando no País. Valendo-
se, então, dessa cenografia, as duas empresas procuram se precaver, demonstrando sua
‘preocupação’ com o ocorrido não propriamente ao consumidor, mas sim para alcançar um
outro alocutário (ANVISA). Na verdade, fala ao consumidor para falar, de fato, à ANVISA,
com o intuito de demonstrar publicamente a esse órgão institucional por meio de um jornal
de ampla circulação que foram tomadas providências cabíveis em relação ao fato
ocorrido, precavendo-se, pois, de futuros processos judiciais engendrados pelos pacientes em
razão do consumo indevido de medicamentos adulterados.
Já os alocutários a quem se direcionam os textos III, IV e V, são, respectivamente, o CADE, a
comunidade do Estado do Espírito Santo / funcionários da Nestlé Brasil; a comunidade do
Norte de Minas/produtores rurais/ a Polícia Federal; os servidores do Estado de Minas Gerais.
Em III, vê-se que o locutor também se assume como uma empresa (NestBrasil), tal como
ocorre em I e II. Novamente, duas poderosas forças entram em confronto, o que nos remete à
mesma cena englobante (discurso do poder econômico) em que se situam os dois primeiros
textos. Observa-se que o texto III é estruturado de forma a despertar nos interlocutores os
mesmos sentimentos e atitudes experimentados pela empresa Nestlé: surpresa, perplexidade,
preocupação, em face da “desconstituição da operação de compra da Garoto” pelo CADE.
Conselho Administrativo de Defesa Econômica, o CADE é um órgão governamental,
vinculado ao Ministério da Justiça, cuja principal atribuição é orientar, fiscalizar, prevenir e
apurar abusos de poder econômico. Em vista desse embate (Nestlé versus CADE) que, na
121
verdade, sustenta o texto III, observa-se a construção de uma cenografia que merece uma
reflexão, isto é, a Nestlé (locutor 1) até parece defender o interesse de seus funcionários e os
da comunidade do Estado do Espírito Santo (locutor 2), mas defende, de fato, os próprios
interesses. Por isso pretende “definir criteriosamente os próximos passos a serem seguidos”
para assegurar o futuro da Garoto, e, como decorrência, o próprio futuro. Considerando-se
essas características, pode-se dizer que o texto III se configura como sendo mais um exemplar
do gênero informe publicitário (cena genérica). Quanto à natureza linguística, o texto também
é tipologicamente heterogêneo. Há a ocorrência do tipo argumentativo, no parágrafo, como
em a Nestlé Brasil sente-se na obrigação de analisar os termos em que a questão foi
colocada para definir criteriosamente os próximos passos a serem seguidos. Ao final, realiza-
se o tipo narrativo em Brasília, 4 de fevereiro de 2004.
em IV, o alocutário é levado a experimentar o sentimento de repúdio vivenciado pelo
locutor, em face da prisão de dois produtores rurais. Para isso, o locutor, exercendo uma dupla
posição social (presidente/coordenador), vale-se de diferentes estratégias argumentativas
lamentável episódio, clima de instabilidade, prisão arbitrária, invasores fortemente armados,
entre outros para denunciar a prisão de produtores rurais do Norte de Minas. Na realidade,
assume os papéis de Presidente da Associação Rural de Montes Claros e de Coordenador do
Movimento Paz no Campo para questionar a prisão de produtores rurais pela Polícia Federal,
ação que considerou arbitrária. Ao fazer tal questionamento, além dos recursos linguísticos
utilizados nos três primeiros textos, coloca em cena duas vozes antagônicas: fazendeiros-
produtores rurais versus MST. Confronta, então, os diferentes pontos de vista defendidos por
essas duas grandes forças. Nesse caso, mesmo não havendo clara demarcação das vozes no
texto, é possível identificá-las com relativa facilidade.
Primeiramente, o locutor confunde a própria voz com a dos fazendeiros-produtores rurais,
colocando-se como um nós: Hoje, como todos nós sabemos, o nosso meio rural vive um clima
de total instabilidade. Desse lugar, mostra que os fazendeiros produzem alimentos e buscam
se prevenir contra invasores fortemente armados, além de serem produtores rurais geradores
de emprego e promotores do desenvolvimento, enfim, aqueles que geram empregos e
semeiam o desenvolvimento. Em seguida, distancia-se do discurso que atravessa o próprio
discurso, valendo-se de uma caracterização do outro que o leva ao mais completo descrédito,
por meio de uma caracterização que tira toda a credibilidade do elemento oponente, ao
afirmar que são grupos invasores de terra, sem qualquer respaldo ou legalidade jurídica, que
não respeitam o direito à propriedade e ocupam na calada da noite, fazendas que, para a
122
maioria absoluta dos produtores rurais da região, são sua única fonte de sustento. Ao final,
contrapõe as duas forças ideológicas: Quem está errado: Os fazendeiros que produzem
alimentos e buscam se prevenir contra invasores fortemente armados ou aqueles que
sobrevivem do afã de invadir propriedades, acabando com patrimônios construídos ao longo
de vidas inteiras? De um lado, estão os que produzem alimentos e geram empregos. De outro
lado, estão os invasores de terra, sem respaldo ou legalidade jurídica.
Ressalta-se, nesse exemplo, um princípio do dialogismo bakhtiniano: “A expressividade de
um enunciado é sempre, em maior ou menor grau, uma resposta, em outras palavras:
manifesta não sua própria relação com o objeto do enunciado, mas também a relação do
locutor com os enunciados do outro” (BAKHTIN, 2000, p. 317, grifo do autor). Essas
características nos levam a afirmar que o texto IV se configura no gênero carta
argumentativa aberta (cena genérica).
O tipo argumentativo é predominante nesse texto, conforme se pode observar em vários
momentos: i) “A Polícia Federal efetuou arbitrariamente, em verdadeira atitude de inversão de
valores, a prisão dos produtores rurais Fernando Resende Penido e Delfrânio Rezende Penido,
que são, antes de tudo, geradores de emprego e promotores do desenvolvimento no campo
norte-mineiro; ii) “O nosso meio rural vive um clima de total instabilidade, provocado única e
exclusivamente pela ação de grupos invasores de terra”; iii) “Aquando vamos viver este
clima de terror?”; entre outros.
Em V, “Comunicado”, cujo locutor é o Governo de Minas, no primeiro plano, também se
observa um ‘eu’ travestido de ‘ele’ o Governo de Minas. Esse ‘ele’, traz para o texto o
enunciado de um discurso outro em “honrando o compromisso assumido de valorizar os
servidores estaduais”. Compromisso, certamente, anterior à existência do texto. Talvez uma
promessa de campanha, ou quem sabe, um pronunciamento na TV. O que importa, nesse caso,
para que possamos compreender os fundamentos bakhtinianos do dialogismo na linguagem, é
que “os enunciados não são indiferentes uns aos outros, nem são auto-suficientes; conhecem-
se uns aos outros, refletem-se mutuamente” (op. cit., p. 316). Ressalta-se, também, que esse
comportamento, no discurso político (cena englobante), é uma prática muito comum, isto é,
exalta-se a própria imagem (de competência) para que se realce a imagem negativa do outro
(de incompetência). Vimos, assim, em V, que o locutor (Governo de Minas) constrói para si
uma imagem de competência (déficit zero / pagamento antecipado / fim da escala de
pagamentos) e de responsabilidade (compromisso assumido / valorização dos servidores
123
estaduais). Em contrapartida, constrói, simultaneamente, a figura do opositor político (mau
gerenciador das contas públicas, insensível às necessidades dos servidores). Cenografia que,
certamente, busca levar os interlocutores (servidores públicos) a se darem conta da
‘eficiência’ do Governo em questão. Tais características nos permitem situar o texto V como
sendo um anúncio publicitário institucional (cena genérica). Publicado no jornal Estado de
Minas, esse texto dirige-se a um amplo público servidores do Estado de Minas Gerais.
Como o jornal é um suporte em que o leitor busca informações específicas, a leitura, nesse
caso, passa a ter um caráter mais operatório, funcional. O leitor de jornal, na maioria das
vezes, procura obter informações de caráter bem particular. leitores que lêem o
Caderno de Esportes, assim como leitores que se ocupam apenas do Caderno de
Economia.
Em função dessa especificidade, esse leitor pode recorrer aos textos veiculados nesse suporte,
basicamente, por meio de dois tipos de abordagem. De um lado, pode valer-se do pressuposto
de que, por serem veiculados no jornal, são textos supostamente imparciais, logo,
merecedores de crédito, confiáveis. Por outro lado, se for um leitor mais atento, pode
relativizar a pretensa objetividade do jornal e, então, atribuir pesos diferenciados a cada
leitura feita, considerando-se aspectos, como, por exemplo, o posicionamento ideológico do
jornal lido. Em se tratando do texto V, acreditamos que um fator que lhe atribui uma
dimensão diferenciada, em relação a outros ‘Comunicados’, tão freqüentes nesse jornal
mineiro. Trata-se do ‘peso’ da assinatura do Governo do Estado, num momento em que o
governador mineiro tem sua gestão bem avaliada por parte de seus eleitores. Um leitor mais
cuidadoso, então, não verá esse texto apenas como veiculador de informação sobre alterações
em datas de pagamento dos servidores públicos mineiros, quando, na verdade, se constrói
uma imagem de competência desse Governo. Tal situação nos leva a perceber o caráter
claramente publicitário do texto. Todos esses recursos dizem respeito a características
próprias do discurso político (cena englobante), levando-nos, então, a concluir que o próprio
gênero contribui para a escolha dessa cenografia.
Para se chegar a gênero do discurso/ sentido, estamos levando em conta dois eixos do
dialogismo bakhtiniano, conforme anunciamos. O primeiro eixo é o que concebe o
dialogismo como sendo um “modo de funcionamento real da linguagem e princípio
constitutivo da linguagem” (FIORIN, op. cit., p. 24). Abrange a interação verbal que se
estabelece entre o eu e o outro (locutor/alocutário), por meio de textos, quando se evidenciam
as figuras do locutor / alocutário. Compreende, também, cada enunciado como sendo “um elo
124
da cadeia muito complexa de outros enunciados”(BAKHTIN, 2000, p. 291). o segundo
eixo abrange as vozes que falam e polemizam no interior dos textos e reproduzem o diálogo
com outros textos de diferentes formas (polifonia). Como o fenômeno polifônico é também
constitutivo do gênero do discurso, passo a abordá-lo nos textos em foco, de modo a
investigar formas de inserção das vozes do outro na constituição desses textos, um aspecto
discutido em relação ao texto IV.
Partimos, então, do princípio de que o texto está permeado por outras vozes, mesmo não
havendo diálogo no sentido restrito, fenômeno amplamente estudado por Bahktin (1986,
2000, entre outros). A linguagem, nessa perspectiva, tem uma dimensão profundamente
interativa, pois toda enunciação é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. A
partir desse ponto de vista, podem ser explicadas manifestações dialógicas nos cinco textos
ora analisados.
Comecemos por analisar a ocorrência desse fenômeno nos dois primeiros textos: ‘P & G
Comunicado (texto I), da Procter & Gamble e ‘Comunicado à Classe Médica e aos
Consumidores de Coumadin 1mg’ (texto 2), da empresa farmacêutica Bristol-Myers Squibb.
No texto I, o locutor se vale do dialogismo constitutivo, estruturando o parágrafo inicial a
partir de menção a processos interlocutivos que o precedem: “A Procter & Gamble comunica
que detectou recentemente em algumas regiões do País a existência de falsificação do produto
Vick Vaporub” (grifo meu). Ao se detectar uma falsificação desse nível, diligências foram
feitas, e foram mediadas, certamente, por textos. Esse resultado (a confirmação da
falsificação) é que se constitui no elemento-chave para a formulação desse texto. Logo após,
no segundo parágrafo, o fenômeno dialógico se repete em “Assim que tomou conhecimento,
informou à ANVISA para que a mesma adote as providências cabíveis”. Caso em que um
discurso é construído a partir de um relato de uma situação vivenciada anteriormente (tomou
conhecimento da troca do medicamento).
em se tratando do texto II, a manifestação dialógica se confirma logo no segundo
parágrafo, por meio do relato de um aspecto de um fato anterior à existência do texto:
“Constatamos a existência no mercado (grifo meu) de um frasco de Coumadin 1mg” de 30
comprimidos (cor rosa), contendo entre eles um comprimido de Coumadin 5mg (cor
pêssego)”. Essa forma de organização do texto provoca no alocutário um efeito de
monofonia, mas, na verdade, dados dessa natureza, para serem considerados pela referida
empresa, ou foram denunciados diretamente à própria empresa (via consumidor,
125
farmacêuticos, órgãos de inspeção) ou veiculados previamente na mídia impressa e/ou
televisual. De qualquer modo, trata-se de um dizer sobre outro dizer. Observa-se, nesses
exemplos, que o processo de significação passa necessariamente pelo dialogismo uma
condição de linguagem na perspectiva bakhtiniana. Como vimos, nesses exemplos, não se
trata apenas de relações dialógicas que se dão no diálogo face a face, mas também de relações
com enunciados previamente constituídos em processos enunciativos precedentes. Essa
reflexão sobre o dialogismo constitutivo nos permite compreender o modo real de
funcionamento da linguagem, isto é, o locutor, para dar existência ao próprio discurso, traz
para seu texto o discurso alheio. E é a partir desse discurso, com o qual se coloca em atitude
de dissenso/consenso, conflito/aliança que constrói o próprio discurso.
Com intuito de levantar alguns princípios segundos os quais os sujeitos-leitores fundamentam
a produção do sentido, do ponto de vista da recepção, examino, a seguir, elementos
reguladores dos efeitos de sentido produzidos pelos sujeitos-leitores, de modo que se possa
verificar possíveis fatores determinantes do sentido. Trata-se de um trabalho a ser realizado
cautelosamente, dada a quase impossibilidade de se comprovar empiricamente todas as
marcas desses elementos.
4.2 A percepção do “Comunicado” no âmbito acadêmico em situação de ensino-
aprendizagem
Nesta seção, o intuito é realizar uma análise qualitativa dos dados obtidos, a partir de três
atividades de leitura realizadas em situação de ensino-aprendizagem. O mérito dessa
metodologia consiste no fato de expor no próprio trabalho as etapas e suas possíveis
vantagens e fragilidades. A quantificação dos dados também contribui para a compreensão
dos registros de leitura e de suas ênfases. Apesar dos aspectos positivos, estamos cientes de
que a coleta pode apresentar pontos de vulnerabilidade, devido às limitações impostas pelo
próprio “formulário” utilizado (suporte). Primeiramente, apresento dados quantitativos
resultantes da atividade de leitura 1a, os quais contribuem para a compreensão do resultado
obtido. Conforme vimos, essa proposta, de caráter diagnóstico, foi organizada com base nos
cinco textos sobre os quais acabamos de discorrer.
Participaram da primeira etapa da coleta de dados, bem como das duas etapas seguintes 62
(sessenta e dois) alunos de períodos finais de um curso de Letras, conforme caracterizado.
126
A primeira etapa diz respeito à proposta inicial (diagnóstica, exploratória). Os sujeitos da
pesquisa foram organizados em três grupos: A – sexto período (21 alunos); B – sétimo
período (20 alunos); C oitavo período (21 alunos). Os nomes desses sujeitos foram
codificados com o intuito de preservar seu anonimato. Para se obterem os dados apresentados
na Tabela 1, que se segue, convém ressaltar que, na atividade 1, propositalmente, não foram
apresentados direcionamentos específicos sobre quais categorias os sujeitos-leitores deveriam
considerar. Solicitou-se apenas que abordassem, nos registros escritos, os “aspectos mais
significativos” sobre cada um dos cinco textos selecionados. As categorias apresentadas
foram, pois, trazidas à tona pelos próprios sujeitos da pesquisa, nos registros escritos. Tratava-
se, assim, de uma atividade de caráter exploratório. É preciso considerar que a ausência de
um direcionamento preciso para essa tarefa é um dos fatores determinante dos resultados,
que, para grande parte dos sujeitos da pesquisa, tratava-se de uma situação de interação entre
professor e aluno. Acerca da atividade 1, os dados apontaram as categorias relacionadas na
Tabela 1 como sendo as mais evidenciadas nos registros escritos. Convém ressaltar que a
representação desses percentuais nas colunas reflete uma correlação entre a presença de
determinadas categorias e sua ausência, o que não se reflete explicitamente na referida Tabela.
Estes são os dados quantitativos iniciais obtidos. Vejamos.
Tabela 1: Principais categorias evidenciadas no corpus – atividade diagnóstica
CATEGORIAS
SUJEITOS DA PESQUISA
GRUPO A
GRUPO B GRUPO C
Conteúdo /
informação / assunto
83,9 % 89,5 % 84,7 %
Locutor 66,6 % 60,9 % 60,6 %
Gênero 29,5 % 27,6 % 44,7 %
Alocutário 26,6 % 13,3 % 34,3 %
Linguagem 11,4 % 0 % 13,3 %
Estratégia textual 4,8 % 0 % 10,6 %
Domínio discursivo
4,0 % 2 % 7,6 %
Suporte 4 % 2,8 % 20,9%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
127
Os dados da Tabela 1 podem ser mais bem visualizados no Gráfico 1, que se segue.
83,9%
66,6%
29,5%
26,6%
11,4%
4,8%
4,0%
4,0%
89,5%
60,9%
27,6%
13,3%
2,0%
2,8%
84,7%
60,6%
44,7%
34,3%
13,3%
10,6%
7,6%
20,9%
Conteúdo /
informação
/ assunto
Locutor Gênero Alocutário Linguagem Estratégia
textual
Domínio
discursivo
Suporte
GRUPO A GRUPO B GRUPO C
Gráfico 1: Principais categorias evidenciadas no corpus – atividade diagnóstica
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
Chegamos a essas categorias, basicamente, por meio de dois critérios. Ora foram
explicitamente nomeadas pelos sujeitos da pesquisa nos registros, ora não nomeadas, mas
evidenciadas por meio de índices linguísticos (descrições, exemplos, dados, comentários,
dimensões do texto ressaltadas, entre outros) que nos remetem às categorias elencadas na
Tabela 1 e no Gráfico 1, respectivamente.
Considerando-se os grupos A, B, C, observa-se que conteúdo e locutor foram as categorias
mais merecedoras da atenção dos sujeitos da pesquisa, nos registros escritos. Nos três níveis,
mais de 80% dos sujeitos fizeram menção à categoria conteúdo, chegando praticamente a 90
%, no grupo B (9 registros em cada 10). Em relação à categoria conteúdo, pode-se mesmo
dizer que se trata de uma quase unanimidade entre os sujeitos da pesquisa. Esse é um
resultado até certo ponto esperado, considerando-se que todo texto trata de algum
assunto/tema/conteúdo. Já em relação a locutor, constataram-se mais de 60 % de menção nos
128
três grupos. No Grupo A, 66,6% consideraram essa categoria nos registros (a maioria
absoluta). Vejamos essa particularidade do Grupo A, no Gráfico 2, que se segue.
83,9%
66,6%
29,5%
26,6%
11,4%
4,8%
4,0% 4,0%
Contdo /
informação /
assunto
Locutor Gênero Alocutário Linguagem Estratégia
textual
Domínio
discursivo
Suporte
GRUPO A
Gráfico 2: Categorias mais evidenciadas quantitativamente no corpus (Grupo A)
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
Esses dados nos sugerem que o texto, pelo menos à primeira vista, parece estar sendo visto
pelos sujeitos da pesquisa como um objeto a partir do qual alguém (um locutor) diz algo
(conteúdo / informação). Observa-se, ainda, que duas outras categorias mereceram menção
nos registros, embora bem mais comedida gênero e alocutário. A categoria gênero’ teve
atenção especial do grupo C, em relação aos grupos A e B, sem, contudo, atingir a maioria
(44,7%). Vejamos, no Gráfico 3, a categoria linguagem em paralelo à categoria conteúdo,
entre outras mais.
129
89,5%
60,9%
27,6%
13,3%
0,0% 0,0%
2,0%
2,8%
Contdo /
informação /
assunto
Locutor Gênero Alocutário Linguagem Estratégia
textual
Domínio
discursivo
Suporte
GRUPO B
Gráfico 3: Categorias mais evidenciadas quantitativamente no corpus (Grupo B)
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do corpus
Observa-se, no Gráfico 3, que a categoria linguagem, por sua vez, foi completamente
ignorada pelo grupo B (0 % de menção) e pouco mencionada, nos registros, pelos grupos A
e C (11,4% e 13,3 %), respectivamente, conforme se no Gráfico 1. A categoria estratégia
textual que diz respeito à natureza linguística do texto, como se pode observar, também não
obteve grande atenção nos registros. Não qualquer registro dessa categoria no grupo B,
apenas 4,8% (menos de um registro em cada 20) no grupo A e 10,6% para o grupo C, como se
vê, no Gráfico 1.
Domínio discursivo, uma categoria que diz respeito à cena englobante em que se pode situar
o texto, também foi uma dimensão da linguagem pouco privilegiada nos registros. No grupo
B, apenas 2,0% dos registros ocuparam-se dessa categoria; no grupo A, 4%; e, no grupo C,
7,6% (Gráfico 1). Sobre suporte, no Gráfico 4, que se segue, é possível visualizar esse
resultado de forma mais explícita.
130
84,7%
60,6%
44,7%
34,3%
13,3%
10,6%
7,6%
20,9%
Contdo /
informação /
assunto
Locutor Gênero Alocutário Linguagem Estratégia
textual
Domínio
discursivo
Suporte
GRUPO C
Gráfico 4: Categorias mais evidenciadas quantitativamente no corpus (Grupo C)
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do corpus
No Gráfico 4, é possível observar que a categoria suporte foi a quinta mais lembrada pelos
sujeitos-leitores do Grupo C 20,9%. É um resultado significativo, já que nos grupos A e B,
as menções chegaram apenas a 4,0% e a 2,8%, respectivamente. Esses dados iniciais nos
mostram que dimensões do texto que dizem respeito a algumas questões de natureza
situacionais (MAINGUENEAU, 2001), tais como enquadramento espaço-temporal,
canal/suporte, papel social do parceiro alocutário, por exemplo, não obtiveram muita atenção
dos sujeitos, em se tratando dos registros escritos.
Por fim, cotejando-se os gráficos de 1 a 4, além das especificidades que acabamos de
ressaltar, é possível observar a dominância da categoria conteúdo/assunto/informação (mais
de 80% de menção nos três grupos pesquisados – A, B,C). Sobre esse resultado, pode-se dizer
que, ao selecionarem essa categoria, os sujeitos-leitores, parecem, de fato, ter feito essa opção,
pois feita essa abordagem do texto, nem haveria espaço no formulário de respostas para que
se ocupassem de outras dimensões do texto. Fica, assim, bastante evidenciado que os sujeitos
da pesquisa apontam um claro interesse pelos dizeres de natureza parafrástica.
Também, vimos que há indícios de que os sujeitos da pesquisa conheceriam outras categorias,
situadas no campo dos estudos enunciativo-discursivos, mas não as teriam considerado
131
importantes a tal ponto de mencioná-las prioritariamente nos registros, embora a simples
referência a certas categorias não indique necessariamente registros de leitura mais bem
elaborados. Com essas observações, não se quer dizer que seriam esperados registros
qualitativamente superiores, apenas em função do período cursado pelos sujeitos da pesquisa.
Esse resultado pode, ainda, nos levar a pressupor que algumas atitudes produtivas de leitura
estariam sendo deixadas de lado, a despeito de esses leitores terem avançado na área
específica de sua formação acadêmica. Atitudes produtivas, neste estudo, dizem respeito a um
trabalho que ocupa, de modo especial, da formação do sujeito-leitor, apontadas em texto
anterior (VITORINO, 2003). Por exemplo: i) considerar o caráter enunciativo-discursivo da
linguagem como constitutivo do sentido, de tal modo que os textos não sejam definidos ou
caracterizados apenas pela informação que veiculam; ii) analisar o funcionamento das
relações dialógicas que se manifestam em textos que se configuram em gêneros variados, os
quais, por sua vez, emergem de diferentes domínios; iii) conceber a linguagem como
dialógica e, por isso, o lugar das relações sociais; iv) levar em conta a importância do suporte
para a circulação de sentidos nas esferas sociais; entre outras dimensões da linguagem. Enfim,
ao ler textos, convém considerar as implicâncias advindas da concepção de se olhar os textos
nos jogos interlocutivos nos quais se inscrevem.
Também, não se considera explicitamente, na maioria dos registros, o fenômeno dialógico,
isto é, a participação do outro / Outro (tu / vozes) na constituição do sentido. Ao evidenciar
esse resultado, não estamos querendo afirmar que apenas nomear certas categorias, seria um
fator determinante para a percepção de certos sentidos. Na realidade, faz-se necessário que o
leitor esteja bastante atento a aspectos tidos como bem básicos. E isso inclui as informações
veiculadas pelo texto, o conteúdo abordado, a natureza linguística do texto e sua relevância
para a produção do sentido. Esse resultado, então, pode ser um simples indício de que muitos
leitores, de fato, não consideraram significativo evidenciar algumas categorias nos seus
registros de leitura. Outro fator a considerar é que a própria menção ao conteúdo pode indiciar
muitas outras categorias. Também, não se pode desprezar a idéia de que a pouca relevância
dada nas “respostas” a algumas dimensões da linguagem pode desencadear alguma perda em
relação a uma visão mais perspicaz diante do texto.
No quadro teórico da Análise do Discurso (AD), “é praticamente um consenso, apesar de
problemática, que a noção de gênero não considera os lugares independentemente das falas
que eles autorizam, nem tampouco as falas independentemente dos lugares dos quais são
partes constitutivas” (MAINGUENEAU, 2004, p. 43). Problemática, nesse sentido, é
132
privilegiar, na noção de gênero, algum tipo de dado (mídia, conversação, documentos
administrativos, por exemplo) em vez de se considerar a “radical diversidade das produções
verbais” (MAINGUENEAU, op. cit.). Observa-se, ainda, considerando-se os três grupos, que
o melhor desempenho coube ao Grupo C, e o pior, ao Grupo B, conforme se evidencia no
Gráfico 1. Não houve, portanto, um desempenho linear entre os grupos, embora tal resultado
até pudesse ser o esperado.
Veremos, a seguir, como os sujeitos evidenciam, nos registros escritos, as categorias
selecionadas para a análise, que têm a ver com critérios sócio-históricos / situacionais (papéis
sociais do locutor/alocutário implicados, suporte utilizado, questão espaço-tempo, por
exemplo) e discursivos (estratégia textual indissociável de critérios situacionais). É importante
ressaltar que os exemplos utilizados neste trabalho, a partir de então, não foram selecionados
por constarem de um ou outro grupo, mas sim pela representatividade em relação à categoria
analisada. Em função disso, na ordem de entrada dos textos utilizados como exemplos, nem
sempre levamos em consideração o pertencimento a este ou àquele grupo, mas sim o fato de
serem de interesse da categoria pesquisada no referido item. Para manter a fidelidade dos
registros, convém lembrar que esses textos (exemplos) não foram submetidos a correções de
qualquer natureza. Por uma questão metodológica, inicio a análise com base na categoria
conteúdo/assunto, a mais mencionada; prossigo com as categorias locutor/alocutário, gênero
do discurso, estratégias textuais/linguagem, e, por fim, concluo o estudo com as categorias
suporte e dialogismo constitutivo.
Antes de dar início à análise, devo ressaltar que a questão central a ser investigada é a
produção do sentido, do ponto de vista da recepção, a partir, basicamente, da seguinte
questão: Por que o sujeito-leitor teria percebido determinados efeitos de sentido e não outros?
A exemplo de Matencio (2006a), também creio que “os estudos dos gêneros têm o potencial
de promover reflexões acerca das relações entre a materialidade linguística e textual e o
contexto histórico de produção de sentidos e não meramente o contexto imediato em que se
a textualização”. Também, defendemos, em conformidade com Mari e Mendes (2007),
que a atividade de produção de sentido, com base em textos, “reporta a uma condição
necessária ao funcionamento de uma língua”. Tal atividade é também uma “extensão quase
automática” para se abordar a questão da leitura “uma estratégia possível para a produção
do sentido” (MARI e MENDES, 2007, p. 11). Logo, “ler é produzir sentido” (op. cit.). O
sujeito realiza tal atividade intuitivamente, caso, por exemplo, dos simples usuários da língua
nas práticas sociais cotidianas, ou valendo-se também de categorias previamente elaboradas,
133
conforme fazem os pesquisadores, os profissionais da linguagem, os estudantes, por exemplo.
No caso deste estudo, busca-se compreender a produção do sentido, com base nas categorias
selecionadas, considerando-se os registros escritos (texto-interação) resultantes da atividade
de leitura I, a começar pela categoria conteúdo/assunto.
4.2.1 Conteúdo/assunto: sentidos predeterminados pelo sistema e pelo texto
Vejamos, a partir de então, exemplos extraídos do corpus a propósito da categoria
conteúdo/assunto. O exemplo 1 é bastante representativo dentre os que se ocupam dessa
dimensão dos textos, porque a evidencia desde o parágrafo inicial.
Exemplo 1
20
- Grupo A/ ARAL
21
O comunicado apresenta a identificação da empresa emissora de alerta, bem como a
marca e elementos pertinentes ao produto falsificado para que o leitor (consumidor) o
identifique. Traz de maneira clara esclarecimentos” e formas de contato, assumindo
sua falha e predisposição a corrigi-la. (grifos meus, parênteses e aspas do autor)
Em primeiro plano, observa-se que o sujeito-leitor categoriza este texto como comunicado
para, em seguida, ocupar-se de apontar assuntos abordados, afirmando que o texto apresenta
a identificação da empresa emissora, a marca e elementos pertinentes ao produto falsificado,
bem como traz esclarecimentos e formas de contato. Com essa escolha, dá-nos a impressão
de que, para ele, o sentido seria algo imanente ao texto: o comunicado apresenta / traz de
maneira clara. Um outro texto que ressalta essa categoria, no Grupo A, é o que se segue.
Exemplo 2 – Grupo A/SWO
20
Os registros escritos, que constituem o corpus investigado neste estudo, não sofreram correções de qualquer
natureza, de modo a preservar sua configuração ‘original’.
21
Os sujeitos da pesquisa tiveram seus nomes codificados para preservar seu anonimato.
134
O texto I do gênero comunicado tem como objeto informar aos consumidores de Vick
Vaporub da falsificação ocorrida por alguns vândalos com “este” produto. A Procter e
Gamble é uma empresa organizada, que preocupa com o direito do cidadão, visando a
melhoria dos “produtos oferecidos”. (aspas do autor, grifos meus)
Neste registro, evidências de que o texto lido está a serviço de uma informação: O texto
tem como objetivo informar aos consumidores de Vick Vaporub da falsificação ocorrida. O
efeito de sentido que o sujeito-aluno percebe é o de informação. O texto 3, que se segue, é
outro exemplo representativo no corpus, porque também considera essa dimensão do texto.
Exemplo 3 - Grupo B/ MCA
O texto informa sobre a falsificação do produto (todas as especificações necessárias
para que tal produto seja identificado). Informa que a empresa tomou as devidas
providências junto à Anvisa, e que as investigações foram iniciadas. (parênteses do
autor, grifos meus)
O sujeito-leitor ressalta, em 3, a mesma percepção evidenciada no exemplo 2, afirmando /
reafirmando que o texto diz alguma coisa: o texto informa / todas as especificações /
informa. No exemplo 4, que se segue, essa percepção volta a se confirmar.
Exemplo 4 – Grupo C/NGR
O texto informa sobre a desconstituição da operação de compra da “chocolates Garoto”
e a reação da “Nestlé do Brasil” frente à situação. (grifo meu)
Nos quatro exemplos, representativos de um universo de mais de 80 % de menções, nos três
grupos, vimos que a situação se repete. Os sujeitos, ao registrarem sua leitura, considerando-
se um comando que lhes solicitava registrar apenas aspectos mais significativos do texto,
fizeram menção à categoria conteúdo (informação), ora retomando o assunto / tema dos
textos na íntegra ora parafrasticamente. Ao selecionarem essa categoria, os sujeitos-leitores,
135
parecem de fato, ter feito essa opção, pois feita essa abordagem do texto, não haveria espaço
no “formulário de respostas” para que se ocupassem de outras dimensões do texto.
Tal resultado nos leva a concluir que os sujeitos da pesquisa reproduzem o que, normalmente,
se faz, em se tratando de leitura, isto é, a busca do tema. Isso ocorre, geralmente, quando se
trata de leituras propostas nas instâncias escolares, como é o caso desta coleta de dados. Os
sujeitos da pesquisa:
(1) Teriam considerado, de fato, a categoria conteúdo/assunto/tema a
mais importante, por acreditarem que os sentidos se definem pela
busca dos conteúdos (O que o texto quis dizer?).
(2) Parecem acreditar na informação como algo imanente ao texto.
(3) Conheceriam outras categorias, situadas no campo dos estudos
enunciativo-discursivos, mas não as teriam considerado importantes a
ponto de mencioná-las prioritariamente nos registros.
(4) Na maioria das vezes, desconsideraram a natureza enunciativo-
discursiva da linguagem, nos registros escritos.
Partindo-se da primeira hipótese, que, de fato, é o que pode ser observado empiricamente nos
registros escritos, e, considerando-se que o texto é um “dispositivo-de-sentido” (MARI e
SILVEIRA, 2004, p. 27), proponho as seguintes questões: i) Por que teriam sido percebidos
esses efeitos de sentido (informação/conteúdo/assunto)? ii) Por que teria sido registrado
prioritariamente essa dimensão do texto? Por que não teriam sido consideradas outras
dimensões do texto que poderiam levar a novos efeitos de sentido? Trata-se, neste estudo, de
buscar possíveis respostas, a partir do texto-interação, para a compreensão de possíveis
princípios norteadores do sentido. Para isso, tomamos como base o seguinte quadro teórico:
i) O “conteudismo” é resultado do que a AD denomina “perfídia da
interpretação”, isto é, na leitura, considera-se o conteúdo (suposto) das
palavras, e não como poderia ser o funcionamento do discurso na
produção dos sentidos (ORLANDI, 2004b, p. 64).
ii) Não se concebe um sujeito sem circunstância ou que dela tenha
pleno controle, logo, sujeito/circunstância são dimensões
interdependentes (POSSENTI, 2003).
136
iii) Um sistema de lugares numa determinada topografia social define
a posição que pode e deve ocupar cada indivíduo para dela ser o
sujeito (FOUCAULT, 1986 [1969], p. 126)).
iv) Não é quem escreve que significa; quem também produz
sentidos. E o faz em condições sócio-historicamente determinadas
(ORLANDI, 2005, p. 59).
Esses pressupostos nos ajudam a articular os resultados aqui apresentados à possível
correlação sujeito / sentido / circunstância na qual o sujeito se inscreve ou é inscrito (1). Em
razão disso, ganha identidade numa determinada posição social (2). Como sujeito-aluno-
professor, em processo de formação inicial, em situação de ensino-aprendizagem, tende a
considerar o conteúdo (suposto) das palavras, e não o funcionamento do discurso na produção
dos sentidos (3). E o faz sob determinadas condições sociais, históricas, ideológicas (4). Em
síntese, temos o que se apresenta no Quadro 3.
Princípios teóricos norteadores da produção do sentido: Princípio 1
A percepção do conteúdo do texto decorre
da relação de interdependência entre
posição social / identidade / circunstância, é, pois, resultante de condições sócio-
históricas e ideologicamente situadas, nas quais se inscreve o sujeito-leitor no
processo de significação.
Quadro 3: Princípio teórico norteador da produção do sentido - 1
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus articulados ao quadro teórico adotado
O princípio 1, que nos remete ao processo de produção de sentidos, permite-nos compreender
os primeiros resultados obtidos nos registros da atividade primeira sobre a quase totalidade da
referência à categoria conteúdo/assunto, que, por sua vez, aponta para a categorização dos
textos com base, principalmente, em sua dimensão “informativa”. Convém considerar que, na
ordem do discurso, a noção de informação/repetição/completude se instaura num âmbito
muito próprio, isto é, situa-se como uma das dimensões da historicidade que caracteriza o
discursivo. Em outras palavras, pode-se dizer que a textualidade é histórica (ORLANDI,
2005, p. 68-74). Assim considerando, levantamos, a seguir, algumas hipóteses que, de algum
modo, poderiam explicar esse resultado inicial:
137
(1) Os sujeitos-leitores teriam instaurado a relação sujeito-aluno
versus sujeito-professor, papéis sociais circunscritos à esfera
acadêmica, em situação de ensino-aprendizagem (circunstância
imediata).
(2) No âmbito acadêmico, ainda se pensaria a leitura como uma
estratégia para se descobrir o conteúdo, a mensagem, as informações
do texto. O efeito de “informação” (evidenciado nos registros) seria,
então, decorrente dessa forma de cerceamento da qual os sujeitos nem
teriam se dado conta.
(3) Os sujeitos-leitores teriam reproduzido sentidos
institucionalizados, cujo efeito de “transparência” é apenas aparente,
se considerarmos o funcionamento discursivo da compreensão.
Em síntese, os sujeitos da pesquisa, colocando-se no papel de sujeitos-alunos, em situação de
ensino-aprendizagem, num âmbito em que, com certa frequência, ainda se escreve para ser
corrigido, e não para ser lido (a despeito de todos os esforços dos pesquisadores em estudos
linguísticos), teriam respondido à questão: Quais idéias / informações estão contidas neste
texto? Tal resultado nos mostra que os sujeitos atribuíram um “pesobem maior ao pré-
construído (textos informam algo). Em decorrência, os sujeitos também teriam se “esquecido”
de registrar outros efeitos de sentido possíveis, tais como o de precaução, defesa, divulgação.
Em razão disso, na maioria absoluta dos registros, também não teriam levado em conta fatores
a partir dos quais a ideologia torna evidente o que não é (ORLANDI, 2005, p. 59), ou seja, a
relação entre os textos lidos, sua circunstância imediata de enunciação e sua relação
constitutiva com um determinado contexto social, histórico e ideológico.
Ao ressaltarmos tal resultado, não desejamos, com isso, desprezar dados que se situaram no
âmbito do repetível (sentidos constituídos), mesmo porque foram quantitativamente os
mais evidenciados na maioria dos registros. De um lado, acreditamos que tais informações
nos revelam um dado crucial, isto é, permite-nos constatar que os sujeitos estabelecem uma
espécie de relação automática entre texto / conteúdo do texto, desconsiderando outras
dimensões da linguagem (situacionais, institucionais, sociais, históricas, por exemplo). Por
outro lado, evidencia-se a emergência de que se realize um trabalho mais bem direcionado, no
que diz respeito à formação do sujeito-leitor, professor em processo de formação inicial.
Nesse caso, um possível foco poderia ser dado à formação de leitores mais atentos a certos
aspectos do texto, de tal forma que pudessem conduzir não somente a própria leitura, mas
também o registro da leitura com base em variadas dimensões da linguagem envolvidas na
constituição dos textos.
138
Considerados os dados obtidos, cuja análise se situa no âmbito dos estudos discursivos, a
prática de controle sobre os sentidos demonstrada pelos sujeitos da pesquisa é até mesmo
esperada, devido à natureza ideológica do sujeito (1), que, embora esteja submetido a
regulações e coerções (2), dispõe de certos espaços que lhe permite realizar “manobras” em
direção a novos movimentos do sentido (3). Feitas essas considerações, os dados evidenciados
nos registros podem ser, sucintamente, explicados / descritos pelo princípio teórico que se
apresenta no Quadro 4.
Princípios teóricos norteadores da produção do sentido: Princípio 2
Submetidos a certas regulações e coerções, os sujeitos exercem uma prática de controle
sobre os sentidos, mas dispõem de espaços para ressignificar pré-contruídos.
Quadro 4: Princípio teórico norteador da produção do sentido - 2
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus articulados ao quadro teórico adotado
Ao nos defrontarmos com esse princípio norteador do sentido (Princípio 2), convém ressaltar
que, no âmbito dos estudos discursivos, certa prática de controle sobre os sentidos é até
mesmo esperada, devido à natureza ideológica do sujeito. No entanto, os sujeitos dispõem de
espaços que lhes permitem realizar “manobras” em direção a novos movimentos do sentido. E
é exatamente a partir desse foco que se podem situar estudos que instiguem os sujeitos a
intervirem no repetível, de forma a produzir novos conhecimentos. Dentre esses estudos,
encontram-se aqueles que abrangem a relação de interatividade entre locutor / alocutário.
Vejamos, a seguir, a relevância atribuída à figura do locutor e à do alocutário nos registros
escritos.
4.2.2 Locutor/alocutário: intercambialidade e responsividade nos processos
interlocutivos
A noção de locutor/alocutário com a qual operamos, neste estudo, resulta de estudos pautados
na perspectiva bakhtiniana, segundo os quais os papéis sociais ocupados pelos sujeitos num
evento interativo não são previamente definidos, ao contrário, definem-se no processo
enunciativo, e são intercambiáveis. Neste trabalho, a figura do locutor foi a segunda categoria
139
mais mencionada pela maioria absoluta dos três grupos, os quais não atribuíram ao parceiro
alocutário a mesma relevância nos registros média próxima a 25,0 %, nos três grupos. Esse
resultado nos conduz a algumas hipóteses. Primeiramente, pode-se dizer que o texto parece
ser uma via de mão única para esses sujeitos: Alguém (locutor) diz algo (conteúdo,
informação) por meio do texto. Não se considera, explicitamente, na maioria dos registros, a
figura do alocutário nos processos discursivos “instaurados historicamente pelos sujeitos, que,
por sua vez, se instauram e são instaurados por esses discursos” (BRAIT, 2006, p. 95), uma
das faces do dialogismo bakhtiniano. Em segundo lugar, pode-se pensar também que esse
“apagamento” do alocutário nos registros teria ocorrido em razão de o sujeito-leitor ocupar o
lugar de “beneficiário” da maioria dos “Comunicados”. Por isso, o outro plano de
interlocução (interno ao texto), teria ficado “apagado”. no caso do texto V, como o leitor
não é o “beneficiário” do “Comunicado”, fica, então, mais fácil chegar a um outro para
ocupar esse lugar. A esse respeito, o corpus nos permitiu selecionar um dos textos
representativos em que se evidencia apenas a categoria locutor. Vejamos.
Exemplo 5 – Grupo A/DGE
A Nestlé Brasil, mediante a negativa do CADE, em não permitir a compra da fábrica
Garoto (Espírito Santo), divulga uma nota, discordando da ação tomada pela entidade,
prometendo retomar a intenção de compra da referida fábrica. (parênteses do autor, grifos
meus)
Observa-se, no exemplo 5, que esse sujeito-leitor evidencia a figura do locutor – Nestlé Brasil
como responsável pelo dizer: “A Nestlé Brasil divulga uma nota”. Uma particularidade da
estrutura composicional dos 5 (cinco) textos que compuseram as atividades de leitura pode ter
favorecido a obtenção desse resultado (média acima de 60,0% de menção, considerando-se os
três grupos), ou seja, os cinco textos apresentam explicitamente a figura do locutor na sua
estrutura composicional em posição de destaque, fontes diferenciadas e negrito. Vejamos, nos
exemplos 6 e 7, outras situações em que se evidencia esse resultado.
140
Exemplo 6 – Grupo B/MAC
A Procter e Gamble comunica a existência de falsificação de Vick Vaporub,
esclarecendo que informou a Anvisa e iniciou investigações; o lote do produto falsificado
é o 1094P, válido até MAR/O5. (grifos meus)
Exemplo 7 – GrupoC/GMA
A empresa farmacêutica Bristol-Myers comunica que está recolhendo do mercado
consumidor o medicamento Coumadin 1mg de 30 comp., como medida preventiva,
pois entre eles contém 1 comp. de 5mg, por ser um medicamento de uso contínuo, o
tratamento ñ pode ser interrompido, e, caso o paciente ingerir o de 5 mg poderá causar
efeitos colaterais. (grifos meus)
Nos dois casos (6 e 7), a figura do locutor foi claramente evidenciada pelos leitores nos seus
registros de leitura: A Procter e Gamble comunica falsificação/ informa à Anvisa / inicia
investigações; a Bristol-Myers, por sua vez, comunica o recolhimento do medicamento
Coumadin. Nesses dois exemplos, assim como em V, evidenciam-se os locutores (Procter &
Gamble, Bristol-Myers), mas desconsidera-se o alocutário. Construindo-se o registro de
leitura dessa forma, parece ser negado ao texto, pelo menos nos registros, seu caráter
dialógico, que, na perspectiva adotada, define-se, tanto pelo diálogo imediato entre
interlocutores (locutor / alocutário) como pela relação dialógica com outros textos
previamente existentes.
Como dissemos, em relação à categoria locutor, obteve-se um número considerável de
menções (a maioria absoluta dos registros). Em contrapartida, a figura do interlocutor foi
praticamente “esquecida”. Esse resultado pode ter sido bastante favorecido também pela
própria característica dos textos que compuseram a atividade. Ressalta-se, assim, a
necessidade imperativa de se trabalhar no espaço acadêmico estratégias de leitura que
considerem essa dimensão constitutiva da linguagem (a relação interativa eu/tu), de modo a
formar sujeitos-leitores que dêem conta do fenômeno dialógico e passem a considerá-lo não
apenas intuitivamente. Apesar de pouco lembrada, vejamos, a seguir, três casos em que a
categoria alocutário foi evidenciada nos registros (média de 26,6 % de menções,
considerando-se os três grupos).
141
Parece-nos sensato ressaltar que o fato de alguns sujeitos da pesquisa evidenciarem a figura
do outro, embora seja algo diferenciado, no universo de dados disponíveis, pode significar
muito pouco em termos de leitura, uma vez que a leitura implica a articulação dessa dimensão
a outras dimensões da linguagem constitutivas do texto. Segue-se o exemplo 8.
Exemplo 8 – Grupo A/CAR
A Procter e Gamble informa aos consumidores da existência de falsificação do produto
Vick Vaporub, lata com 12 gramas, já informado à ANVISA – Agência Nacional de
Vigilância Sanitária. O produto pode ser identificado pelo número do lote 1094P, data de
validade Mar/05. (grifos meus)
No registro 8, nota-se que se mencionam as figuras do locutor / alocutário ( Procter & Gamble
/ consumidores, respectivamente), embora não se articule qualquer correlação que evidencie a
percepção do sujeito-leitor sobre o jogo de interesses que impulsiona o locutor a se
manifestar, publicamente, a propósito da falsificação do produto Vick Vaporub. Nesse caso,
condições enunciativas / históricas que teriam movido o sujeito locutor – Procter & Gamble –
a se valer de um suporte como o jornal. Como vimos, no dizer bakhtiniano, “o locutor termina
seu enunciado para passar a palavra ao outro ou para dar lugar à compreensão responsiva
ativa do outro” (BAKHTIN, 2000, p. 294). Nesse âmbito, o dialogismo é um princípio
constitutivo do enunciado. Não no sentido estrito em que o outro estaria circunscrito apenas
ao diálogo face a face. Mas sim um dialogismo perpassado pela alternância dos sujeitos
falantes. O locutor, ao se posicionar, “formula perguntas, responde-as, opõe objeções que ele
mesmo refuta” (op. cit. p. 295). No exemplo 9, também se ressalta a figura do alocutário.
Exemplo 9 – Grupo B/ ARS
Texto informativo, público alvo servidores ativos do estado, comunicando alteração da
data do pagamento, a partir da folha de janeiro. Publicado no Estado de Minas, 2 de
fevereiro de 2005. (grifos meus)
Em quais sistema de regras e princípios teria se pautado o sujeito-leitor de 9 para que
evidenciasse, no registro, o alocutário (servidores ativos do estado)? Por que teria omitido o
142
locutor, indo numa direção diferenciada, em relação aos demais sujeitos da pesquisa, que se
ocuparam, sobretudo, da figura do locutor (mais de 60%, em média). Vimos, anteriormente,
que as regras do dizer podem estar condicionadas pelos lugares de onde se fala, cujos
domínios são constituídos institucionalmente (FOUCAULT, 1986[1969), 2004[1971]. Nesse
caso, sujeito-aluno, circunscrito no âmbito acadêmico, em situação de ensino-aprendizagem,
ressalta o seguinte a propósito do texto V: o texto informa algo (alteração da data de
pagamento) a alguém (servidores ativos do estado). O efeito de sentido de que se conta é o
de informação. Parece não considerar que o discurso “mobililiza estruturas de outra ordem
que as da frase (MAINGUENEAU, 2001, p.52, grifo do autor)”.
A resposta para o que se questiona pode estar exatamente no fato de não se considerar essa
dimensão da linguagem de que fala Maingueneau (op. cit.). O discurso é, pois, organização
situada para além da frase (submete-se a regras de organização vigentes em grupo social
determinado); forma de ação sobre o outro (toda enunciação constitui um ato que visa
modificar uma situação); é interativo (toda enunciação é marcada por uma interatividade
constitutiva); é contextualizado (não sentido fora de um ‘contexto’); assumido por um
sujeito (um eu se coloca como fonte de referências pessoais, temporais, espaciais, em relação
ao que diz e em relação a seu co-enunciador); regido por normas (cada ato de linguagem
implica normas particulares); considerado no bojo de um interdiscurso, pois o sentido do
discurso é traçado no interior de um universo de outros discursos” (MAINGUENEAU, 2001,
p. 51-56). Em suma, essas outras dimensões da linguagem não foram consideradas no
registro. Provavelmente, essa seria uma das razões pelas quais não se alcançaram outros
efeitos de sentido. Em 10, evidencia-se não somente a figura do alocutário, mas também a do
locutor. Vejamos.
Exemplo 10 – Grupo C / SLC
Sujeito comunicante Alexandre Viana / Presidente da Sociedade Rural de Montes
Claros / Coordenador do Movimento Paz no Campo
Suj. destinatário – Leitores do jornal (Hoje em dia e população em geral)
Gênero: Comunicado (Suporte: papel jornal)
Objetivo: Esclarecer a população sobre as atitudes da Polícia Federal e protestar contra a
prisão dos produtores rurais.
Veículo: Jornal Estado de Minas. (grifos meus)
143
Em se tratando do exemplo 10, aponta-se uma diversidade de categorias, a tal ponto de se
topicalizar o texto para tal fim. Esse parece ser o caso de um sujeito-leitor “afetado” pelos
estudos acadêmicos, a partir dos quais considera algumas categorias (sujeito comunicante,
sujeito destinatário, gênero, veículo) que, de fato, poderiam levá-lo a uma leitura mais
proficiente, embora isso não tenha ocorrido. De forma sucinta, podemos apontar os seguintes
resultados a propósito da relevância / não relevância atribuída às figuras do locutor /
alocutário nos registros. A esse respeito, os sujeitos-leitores:
(1) Atribuem destaque à figura do locutor (mais de 60 % de menção
nos registros), embora não evidenciem, na mesma proporção, o
parceiro alocutário (média próxima a 25,0 %, nos três grupos).
(2) Não evidenciam sua percepção sobre as condições enunciativas e
históricas que teriam impulsionado o locutor a se manifestar,
publicamente, por meio de um jornal.
(3) Parecem desconsiderar que o discurso é assumido por um sujeito
que se coloca em relação a seu co-enunciador (MAINGUENEAU,
2001, p. 51-56).
Se, por um lado, os sujeitos da pesquisa, parecem considerar certa dimensão constitutiva da
linguagem, isto é, na troca verbal, um locutor que assume um determinado papel social,
por outro, praticamente desconsideram, nos registros, a figura dos outros parceiros da
comunicação verbal (interlocutores) como sendo participantes de “processos ativos”
(BAKHTIN, 2000, p. 290, grifos do autor). Esse fato nos sugere que marcas dialógicas dos
textos não atuaram como elementos condicionadores dos registros escritos. Esse resultado
nos mostra ainda que não basta informar ao leitor determinadas categorias e conceitos. Ao
contrário, é preciso lhe propor novas reflexões com o intuito de ajudá-lo a realizar uma leitura
mais atenta a diferentes dimensões do texto, oferecendo-lhe novas condições de trabalho.
Nesse caso, uma das propostas poderia ser a realização de discussões sobre o fenômeno
dialógico como constitutivo do sentido, considerando-se efeitos de sentido possíveis a partir
de suas diferentes formas de representação no texto. A partir dessa constatação, busco
compreender fatores reguladores do sentido. Para isso, retomo alguns pressupostos nos quais
me baseei ao discutir esse eixo do dialogismo bakhtiniano:
144
i) A interação entre interlocutores “não apenas funda a linguagem e dá
sentido ao texto, como também constrói os próprios sujeitos
produtores do texto” (BARROS, 2006, p. 29).
ii) O dialogismo compreende “o sentido do texto” e a “significação
das palavras” como dependentes da “relação entre sujeitos
(BARROS, op. cit.)
iii) “O locutor termina seu enunciado para passar a palavra ao outro ou
para dar lugar à compreensão responsiva ativa do outro” (BAKHTIN,
2000, p. 294).
iv) Ao compreender a significação de um discurso, o ouvinte “adota
simultaneamente, para com este discurso, uma “atitude responsiva
ativa” (BAKHTIN,
2000, p. 290, grifo do autor).
Sob essa perspectiva, é possível pensar os resultados aqui apresentados de forma a considerar
que a troca verbal entre parceiros compreende uma relação de interatividade (1), na qual e
pela qual os sujeitos se constituem co-enunciadores (2). Evidenciando essa natureza dinâmica
dos processos interlocutivos (3), considera-se que o locutor passa a palavra ao outro, que, por
sua vez, assume uma atitude de responsividade / intercambialidade durante todo o processo de
compreensão de um determinado texto (4). Sumariamente, temos o que se apresenta no
Quadro 5.
Princípios teóricos norteadores da produção do sentido: Princípio 3
O sentido é resultante da relação de interatividade dos parceiros (locutor / alocutário) nos
processos interlocutivos, nos quais e pelos quais se constituem co-enunciadores, papéis de
natureza responsiva e intercambiável.
Quadro 5: Princípio teórico norteador da produção do sentido - 3
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus articulados ao quadro teórico adotado
Pelo resultado obtido e por esse princípio em que nos baseamos (princípio 3), retomamos,
então, duas questões: Por que os sujeitos da pesquisa teriam dado prioridade à figura do
locutor, e mantido um certo silenciamento a propósito do parceiro interlocutor? Por que
parecem negar a interação verbal que se estabelece entre o eu e o outro (interlocutores), por
meio de textos? Nesse caso, ressaltando, nos registros escritos, prioritariamente, o papel do
locutor, e mostrando-se mais indiferentes à figura do interlocutor (média de 25% de
menções).
145
Neste estudo, conforme salientado, procuro assumir a idéia do “descentramento do sujeito
que ocupa várias posições enunciativas”, mas “dispõe de um mínimo de liberdade para
realizar um trabalho com a linguagem”. Com isso, vejo possibilidades para se investigarem
alguns mecanismos de controle a que se submetem os sujeitos ao significar, com base num
quadro de referência em que esses sujeitos se situam num determinado processo enunciativo-
discursivo (universo acadêmico, em situação de ensino-aprendizagem). Proponho, a seguir,
uma análise do corpus, no que se refere à categorização dos gêneros discursivos pelos sujeitos
da pesquisa.
4.2.3 Gêneros do discurso: enunciados inscritos numa esfera da atividade humana
Do ponto de vista adotado, falar de gênero é pensar nas mais variadas esferas da atividade
humana em que se constituem e atuam, implicadas as condições de produção, de circulação
e de recepção. Nesse sentido, os gêneros tendem a ser efêmeros, uma vez que se moldam à
espacialidade (material, virtual), à posição dos parceiros (cliente/vendedor, aluno/professor,
médico/paciente), a dispositivos comunicacionais novos (um terceiro invisível, como no caso
do teatro, ou de interlocutores num estúdio, em face dos telespectadores; caráter estático ou
não dos interlocutores, como no caso de interlocutores que podem até realizar outras ações
enquanto falam). Em suma, não se pode relegar a um segundo plano toda essa dimensão da
comunicação verbal (MAINGUENEAU, 2001, p. 63-83).
Em vista dessas dimensões da linguagem, no âmbito da Análise do Discurso, deve-se
considerar não somente a variedade e a pluralidade das esferas, mas também a diversidade
genérica. Propõe-se, pois, considerar classificações atribuídas aos textos pelos próprios
usuários da língua (ditos populares, conversas, hinos, orações, por exemplo) e outras
estabelecidas por pesquisadores e especialistas (divulgação científica, artigo científico, ensaio
filosófico, por exemplo). Neste estudo, por se pautar na proposta bakhtiniana, não se coloca a
classificação / categorização do gênero como objeto de estudo a priori, devido à quase
impossibilidade (BAKHTIN, 2000) de se alcançar o gênero por meio desse critério (os
gêneros são instáveis, maleáveis, plásticos, heterogêneos). Por isso consideramos, sobretudo,
a formulação pautada pelo dialogismo e sua manifestação em textos.
146
Como discutido, pesquisadores contemporâneos também vêm atribuindo ao gênero um papel
central nos estudos linguísticos, considerando, entre outras dimensões, tanto “as formas
regulares pelas quais se configuram os textos” (MATENCIO, 2006a), quanto a possibilidade
de o gênero funcionar como “matriz a priori para a percepção de certos efeitos de sentido”
(MARI e MENDES, 2007, p. 15). Nessa medida, assinalam que conhecer previamente o
funcionamento de um gênero é um fator de economia cognitiva” (MAINGUENEAU, p. 63,
grifo do autor), pois, embora o gênero não seja uma forma para se moldar o enunciado, não se
pode ignorar a relativa estabilidade dos textos. De tal modo, o reconhecimento de um
determinado gênero permitiria ao sujeito-leitor prever / antecipar possíveis efeitos de sentido
que poderiam ser confirmados ou não.
A importância de se considerar essa dimensão do texto deve-se ao fato de que os sujeitos-
leitores “categorizam e/ou tipificam intuitivamente as situações de interação em que se
engajam e os textos que lhe são pertinentes” (MARI e MENDES, op. cit., p. 18). E isso se
apesar de toda a instabilidade gerada pelos inovadores suportes eletrônico-digitais, por
exemplo, mencionando-se somente uma das inúmeras dimensões que concorrem para a
instabilidade dos gêneros. Ao que se sabe, e.mail, blog, site são categorizações bastante
aceitas pelos usuários da Internet, e são denominações que não se originaram nas esferas
acadêmicas propriamente. Então, se a ciência categoriza os textos para chegar aonde os
usuários da língua já se situaram, e os usuários da língua, por sua vez, valem-se de
classificações, provavelmente pautadas nas características e configurações dos gêneros que
emergem nas práticas cotidianas (a despeito de toda a flutuação dos textos), por que não se
levar em conta essa dimensão do texto nos estudos de caráter científico?
Com base nesse posicionamento, também defendo que “a expectativa criada a partir do
reconhecimento do gênero, em termos da formulação de hipóteses prévias de
leitura/interpretação, deve ser “testada” e pode ser mantida (ou não) no decorrer do próprio
ato de leitura, que atualiza a enunciação” (MARI e MENDES, 2007, p. 19). Esse
entendimento também me conduziu a selecionar, para a composição da atividade I, os 5
(cinco) textos cujos títulos também vêm sendo utilizados pelos usuários para categorizar
gêneros que circulam nas práticas cotidianas. Esses textos foram categorizados pelos sujeitos
da pesquisa em 44,7 % dos registros (Grupo C), além de terem 29,5 % de menções no Grupo
A, e 27,6 %, no Grupo B. Ressalta-se que se tratava de uma atividade diagnóstica e a escolha
dessa categoria não havia sido proposta pelo professor-pesquisador. Investigo, a seguir, como
essa questão, que diz respeito à categorização dos textos, foi abordada pelos sujeitos da
147
pesquisa. Inicialmente, apresento uma classificação feita por sujeitos do Grupo C, segmento
que mais se ocupou dessa categoria nos registros (mais de 40 %). Por exemplo, evidencia-se,
em 11, a denominação atribuída ao gênero.
Exemplo 11 – Grupo C/ SLC
O texto 1 se configura no gênero Comunicado, obedecendo à forma-padrão. Temos a
empresa P & G que procura informar ao consumidor do produto ViK Vaporub sob uma
possível falsificação do mesmo. O texto apresenta, em princípio, uma tipologia narrativa,
mas também características descritivas. O suporte é o papel e o veículo o jornal Estado
de Minas. (grifos meus)
Além de trazer para seu texto a nomeação do gênero, afirmando que se trata do gênero
Comunicado, esse leitor também ressalta que o texto apresenta uma tipologia narrativa, mas
também características descritivas. Seu conhecimento sobre o funcionamento do texto lhe
permitiu abordar também outros indicadores do funcionamento dos gêneros, tal como o
suporte, visto como o papel e o veículo o jornal Estado de Minas. Já as categorias abordadas
(gênero / tipologia / suporte) nos levam à hipótese de que o fato de esse sujeito-leitor se situar
no Grupo C pode ter contribuído para esse resultado. Nos grupos A e B, não houve qualquer
caso dessa natureza.
E, mesmo tendo a ‘preocupação’ de nomear o gênero, especificar a tipologia, abordar o
suporte, esse sujeito afirma que o efeito de sentido percebido é apenas o de informação, pelo
menos no registro: “Procura informar ao consumidor do produto ViK Vaporub sob uma
possível falsificação”. É pouco, a meu ver, que, “grosso modo”, todo texto informa alguma
coisa. Na verdade, esse sujeito, mesmo considerando importantes categorias (gênero,
tipologia, suporte), não conta de perceber outras dimensões do texto (situacionais,
institucionais, por exemplo) que o levariam a novos efeitos de sentido. Esse leitor, ao que
parece, demonstra um olhar especial para a diferenciação de determinados dimensões
envolvidas na constituição dos gêneros (tipologia textual, suporte, por exemplo), isto é, um
certo domínio em relação a um conjunto de saberes que o leva a perceber, na materialidade
linguística oferecida, fenômenos a que outros sujeitos da pesquisa não atribuíram qualquer
importância nos seus registros de leitura. A despeito disso, não se vale desse referencial para
148
perceber as “regras do jogo”, sobretudo, a cenografia em que se situa o texto. Em relação à
categorização do gênero, trago, em 12, mais uma exemplificação.
Exemplo 12 – Grupo B/ ASR
A Nestlé publica um comunicado no qual se posiciona contrária à decisão do plenário do
CADE no sentido de determinar a desconstituição da operação de compra da Chocolates
Garoto. O argumento da Nestlé é que a companhia é muito importante para a
comunidade do Espírito Santo. (grifo meu)
Em relação ao texto II (Comunicado à Classe Médica e aos Consumidores de Coumadin
1mg), cuja leitura está registrada em 12, o sujeito denomina-o de “comunicado”. Para esse
aluno, parece tratar-se de um ‘tipo’ de gênero do discurso. De qualquer forma, houve a
percepção de que se trata de um processo particular de organização textual. No entanto não se
vale dessa competência para ir às subjacências / adjacências envolvidas na constituição do
texto. Em todo o registro, se ocupa de parafrasear o assunto abordado pelo texto, silenciando,
então, outras importantes dimensões da linguagem na constituição do gênero do discurso. Em
outro registro do mesmo grupo B, outro sujeito-leitor também menciona a categoria gênero.
Nesse caso, explicitamente. Vejamos tal situação em 13.
Exemplo 13 – Grupo B/CSC
O texto “Comunicado” da empresa Procter & Gamble do Brasil tem como suporte o
gênero informativo, que tem como objetivo informar ao público-alvo, os
consumidores, as divergências encontradas no produto Vick Vaporub. Ao veicular
este texto, a empresa faz menção ao respeito que tem pelos consumidores, o que falta
aos políticos em relação aos leitores. (grifos meus, aspas do autor)
Em 13, o sujeito-leitor, à primeira vista, parece perceber que texto e gênero são diferentes
objetos: O texto (que se caracteriza como) “Comunicado”. Além disso, cuida de apontar um
dos aspectos do dialogismo bakhtiniano, isto é, para esse leitor, o gênero se constitui com
base numa relação de interatividade entre um eu’ e um ‘tu`: O texto “Comunicado” da
empresa Procter & Gamble do Brasil que tem como objetivo informar ao público-alvo, os
149
consumidores(grifo meu). Convém ressaltar que esse é um dos casos que se situam num
universo de 25% de menções a essa categoria, nos registros escritos. ao falar de suporte
mostra que ainda não domina esse conceito e nem mesmo o de gênero: “O texto tem como
suporte o gênero informativo”. Ressalta-se, nesse caso, uma lacuna na formação desse sujeito-
leitor: ele sabe apontar certas categorias (gênero, suporte), mas não sabe exatamente onde se
situam, de modo que pudesse fazer uso desse referencial, ao ler textos.
Vejamos, a seguir, uma outra exemplificação a propósito dessa mesma categoria em registros
do Grupo A. Esse grupo, conforme vimos, cursava o sexto período, portanto, supostamente,
poderia estar em desvantagem em relação aos demais grupos, no que se refere a estudos
teóricos e práticos que abrangiam o objeto investigado. No entanto, quantitativamente,
superou o Grupo B (sétimo período): 29,5% contra 27,6 %, respectivamente. O exemplo 14 é
representativo do Grupo A.
Exemplo 14 – Grupo A/ GCF
O primeiro texto é um comunicado de uma empresa que fabrica o remédio Vick
Vaporub e informa aos seus clientes que houve uma falsificação do produto. E assim
faz um comunicado à todos, informando os itens importantes para o reconhecimento
dos mesmos. (grifos meus, vírgulas e crase do autor)
No que diz respeito à percepção de texto e gênero, parece-me não se encontrar num estágio
muito diferente daquele evidenciado pelo sujeito de 13: i) reconhece uma diferenciação entre
texto e gênero. Para ele, o primeiro texto é um comunicado; ii) percebe o dialogismo
constitutivo, reconhecendo que se trata de uma empresa que informa a seus clientes a
falsificação de seu produto. O que não se constata nesses dois registros (13 e 14), nem nos
anteriores, é qualquer indício de que os sujeitos-leitores situam o texto numa cena englobante
(tipo de discurso), e, provavelmente, como decorrência disso, também não teriam se dado
conta da cenografia escolhida. Não percebendo a cenografia, não percebem outros efeitos de
sentido, nem chegam ao gênero, de fato.
Propósito já evidenciado anteriormente, essa reflexão tem como um dos focos investigar se
sujeitos-leitores, movidos pela especificidade dos títulos dos textos apresentados para a
proposta de leitura I, estabeleceriam (ou não) uma correlação imediata título/gênero.
150
Considerando-se a diversidade de gêneros de que se valem os usuários da língua nas práticas
sociais, constata-se que a correspondência imediata título / gênero pode ocorrer em vários
casos (diário de classe, errata, histórico escolar, nota promissória, guia telefônico, sumário,
nota de falecimento, entre tantos outros), desde que a cenografia utilizada se coloque dentro
de um modelo preestabelecido. No entanto não se trata de um aspecto imprescindível na
constituição do gênero, pois há muitos textos cujos títulos estão relacionados não ao gênero,
mas ao conteúdo abordado e/ou domínio em que emergem editoriais, artigos de opinião,
teses, dissertações, por exemplo. Há, também, os que se relacionam ao quadro cênico
engendrado – pronunciamento, em rede nacional de TV; aula; teleconferência; por exemplo. E
há, ainda, textos que nem sempre se valem de um título na sua estrutura textos
publicitários, provérbios, por exemplo. Vimos que, propositalmente, os 5 (cinco) textos
constitutivos da atividade 1 foram selecionados por estarem numa relação de proximidade.
Todos tinham, como título ou como palavra-chave no título, o termo ‘Comunicado’; foram
veiculados na mídia impressa; e apresentavam, de alguma forma, um caráter publicitário.
Também, apresentavam certas particularidades, tais como a emergência em diferentes
domínios, a forma de representação das vozes, a estrutura composicional. Essas características
nos levaram a supor que esses textos poderiam colocar os sujeitos-leitores diante de algum
desafio em relação à categorização do gênero. De fato, houve bastante dispersão em relação a
esse aspecto. Vejamos esses dados, quantitativamente, nas Tabelas 2 (Grupo A), 3 (Grupo B)
e 4 (Grupo C), respectivamente:
Tabela 2: Correlação título/gênero do discurso – Grupo A
GÊNEROS
GRUPO A – Atividade diagnóstica
TEXTOS
Categorização I II III IV V
Comunicado 38,0% 42,9% 19,0% 14,3% 28,5%
Informe --- --- --- --- 4,8%
Nota/Nota de repúdio --- --- 4,8 % 9,5% ---
Não categorizou 61,9% 57,1% 76,0% 76,2% 66,6%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus.
151
Tabela 3: Correlação título/gênero do discurso – Grupo B
GÊNEROS
GRUPO B – Atividade diagnóstica
TEXTOS
Categorização I II III IV V
Comunicado 20,0% 15,0% 30,0% 30,0% 30,0%
Informe --- --- --- --- ---
Nota/Nota de repúdio --- --- 10,0% --- ---
Gênero informativo 5,0% 10,0% 5,0% --- ---
Manifesto --- --- --- 5,0% ---
Mensagem --- --- --- --- 5%
Não categorizou 75,0% 75,0% 55,0% 65,0% 65,0%
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do corpus
Tabela 4: Correlação título/gênero do discurso – Grupo C
GÊNEROS
GRUPO C – Atividade diagnóstica
TEXTOS
Categorização I II III IV V
Comunicado 19,0% 14,5% 28,5% 28,5% 23,8%
Informe --- --- --- --- ---
Nota/Nota de repúdio --- --- 9,5% --- ---
Gênero informativo 4,8% 9,5% 4,8% --- ---
Manifesto --- --- --- 4,8% ---
Mensagem --- --- --- --- 4,8%
Não categorizou 76,1% 76,1% 57,1% 66,1% 71,8%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
152
Em relação a esse resultado, queremos salientar que não estamos considerando apenas a
“categorização pela categorização” dos gêneros como um fator determinante para a
construção do sentido, uma vez que o leitor pode perfeitamente ler um texto, sem se ater à sua
nomeação. O que realmente estamos levando em conta é o fato de o sujeito-leitor poder
comportar-se como convém em face dos múltiplos gêneros do discurso (MAINGUENEAU,
2002, p. 43). Cotejando-se as Tabelas 2, 3 e 4, três situações ficam bastante evidenciadas:
(1) Nos três grupos, um número considerável de sujeitos-leitores (mais
de 70,0%, em alguns casos), desconsidera, nos registros, a cena
genérica a que correspondem os cinco textos (gênero do discurso).
Esses sujeitos parecem desconsiderar que “cada enunciado tem seu
estatuto genérico” (MAINGUENEAU, 2001, p. 44). Essa
“competência genérica” (p. 43) lhe permitiria, por exemplo, identificar
um texto como sendo um exemplar de um determinado gênero, o que
lhe permitiria avaliar a necessidade de lê-lo ou não. Esse resultado fica
bastante evidenciado em relação ao Grupo A, na coluna à direita, do
Gráfico 5, que se segue.
38,0%
61,9%
42,9%
57,1%
19,0%
4,8%
76,0%
14,3%
9,5%
76,2%
28,5%
4,8%
66,6%
Comunicado Informe Nota/Nota de repúdio Não categorizou
I II III IV V
Gráfico 5: Referência à cena genérica no corpus – Textos de 1 a 5
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus.
(2) Nos três grupos, quando se considera a cena genérica, acredita-se
que os cinco textos, no interior de uma cena de enunciação,
correspondem a exemplares do gênero “Comunicado”. Tal fato indica
que, para esses sujeitos, parece haver uma correspondência imediata
título/gênero, independentemente da cenografia engendrada pelo
texto. O Gráfico 6, seguinte, em que se evidencia esse resultado, em
relação ao Grupo B, nos sugere que o conhecimento desses sujeitos
153
sobre gêneros não parece estar centrado em questões de natureza
sócio-histórica, e sim formais, estruturais. Consultando-se a primeira
coluna à esquerda, veremos que 30,0% dos leitores categorizam três
dos cinco textos apresentados como sendo um “Comunicado”. A o
categorização também é bastante elevada (mais de 70,0%, em duas
situações).
20,0%
5,0%
75,0%
15,0%
10,0%
75,0%
30,0%
10,0%
5,0%
55,0%
30,0%
0,0% 0,0%
5,0%
65,0%
30,0%
5,0%
65,0%
Comunicado Informe Nota/Nota de
repúdio
Gênero
informativo
Manifesto Mensagem Não
categorizou
I II III IV V
Gráfico 6: Correlação título/gênero – Grupo B
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
(3) Diferentemente do Grupo A, a dispersão em relação à
categorização do gênero é bem maior nos Grupos B e C. Quando se
classificam os textos lidos, ocorrem nomeações diversas, tais como
informe, nota, nota de repúdio, manifesto, mensagem gênero
informativo, também apontados pelo Grupo B. No Gráfico 7,
seguinte, podemos observar dados quantitativos que dizem respeito a
essa dimensão do texto, em relação ao Grupo C.
154
19,0%
4,8%
76,1%
14,5%
9,5%
76,1%
28,5%
9,5%
4,8%
57,1%
28,5%
4,8%
66,1%
23,8%
4,8%
71,8%
Comunicado Informe Nota/Nota de
repúdio
Gênero
informativo
Manifesto Mensagem Não
categorizou
I II III IV V
Gráfico 7: Correlação título/gênero – Grupo C
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
assinalamos nossa crença em que os usuários da língua, intuitivamente, categorizam os
gêneros, considerando suas especificidades. Se isso ocorre, essa poderia ser uma forma de o
sujeito selecionar melhor os textos que quer ou precisa ler nas práticas cotidianas. Também,
esse seria um fator de “economia cognitiva” (MAINGUENEAU, 2001, p. 63), uma vez que o
conhecimento da relativa estabilidade de um determinado gênero permitiria ao sujeito-leitor
identificar “um enunciado como sendo um folheto publicitário ou uma fatura” (op. cit. p. 64),
e, então, decidir se o leria ou não. Vimos, ainda, que um texto se inscreve numa cena
englobante (tipo de discurso) e se situa numa cena genérica (gênero do discurso). Essas cenas
compõem o “espaço estável no interior do qual o enunciado ganha sentido”
(MAINGUENEAU, 2006, p. 112). Muitas cenas de enunciação podem ser reduzidas apenas a
esse “quadro estável”, por exemplo, nos casos em que os gêneros se configuram em modelos,
fórmulas preestabelecidas – atas de reuniões, listas telefônicas, receitas médicas, por exemplo.
Por outro lado, gêneros cuja natureza exige a escolha de uma cenografia, tais como um
texto publicitário, um texto filosófico, um discurso político (MAINGUENEAU, 2001, p. 85-
89). Esse é o caso dos cinco textos ora analisados, pois exigem dos sujeitos-leitores a
155
compreensão das cenografias implicadas, embora sua compreensão pareça ser possível
apenas com base no quadro cênico.
Efetivamente, nos registros, não nos deparamos com muitas situações em que os sujeitos se
ocupassem das cenografias implicadas nos diferentes textos. Na verdade, a representatividade
no corpus até mesmo em relação à cena englobante (tipo de discurso) foi mínima: 4,0%, 2,0%
e 7,6%, nos Grupos A, B e C, respectivamente. O quadro cênico propriamente dito (tipo de
discurso / gênero do discurso) também foi minimamente evidenciado (apenas 8 registros em
310, considerando-se o Grupo C). Não se obteve nenhum registro a esse respeito nos Grupos
A e B, conforme evidenciado. Mesmo nos poucos casos em que se ressalta esse “espaço
estável” (MAINGUENEAU, 2001, p. 87) nos registros, ora se percebe o espaço instável em
que se situam tipo de discurso e gênero do discurso (cenografia implicada), ora não se
percebe. Apresento, em primeiro plano, registros ilustrativos da última situação. Comecemos
pelo exemplo 15, em que não se percebe o espaço instável.
Exemplo 15 – Grupo C/ VRD
O Comunicado utiliza o discurso indireto, ou seja, a empresa usa do jornal, da imprensa,
para informar aos consumidores o mal ocorrido com o produto, informando a existência
da falsificação do produto e as características do falso medicamento que está
circulando no mercado, fazendo assim o dialogismo. (grifos meus)
Neste registro, ressaltam-se duas cenas de fala: Cena genérica e cena englobante
(“Comunicado”/ “A empresa usa do jornal, da imprensa”), sem, contudo, se chegar à
cenografia mobilizada, situação necessária, em se tratando do texto I. Nota-se que o efeito de
sentido de que se conta é o de “informação” “A empresa usa do jornal para informar aos
consumidores o mal ocorrido” (grifo meu). Na verdade, seria necessário relacionar essas duas
cenas de fala a uma terceira cena (cenografia), isto é, a fala da Procter & Gamble, via mídia
impressa, direcionada a consumidores sobre uma possível falsificação do produto Vick
Vaporub, na verdade, é uma atitude de precaução da empresa frente a órgãos institucionais
que a fiscalizam. Isso nos leva a afirmar que o texto se fundamenta em processos enunciativos
anteriores, situados em domínios comerciais, políticos, institucionais. No exemplo 16, que se
segue, também podem ser observadas referências à cena de enunciação, porém já se percebe a
instabilidade do quadro cênico.
156
Exemplo 16 – Grupo C/JGL
O comunicado da P & G tem como intenção principal informar sobre a falsificação de
seu produto e das medidas tomadas, assim como alertar quanto ao consumo indevido do
mesmo. O texto está inserido no Caderno de Política, do jornal Estado de Minas talvez
com a intenção de se apresentar politicamente correto e/ou servir como crítica quanto à
fragilidade da segurança. (grifos meus)
Duas cenas de fala estão explicitadas neste registro: cena genérica em primeiro plano “O
Comunicado da P & e G”; e, logo após, cena englobante “O texto está inserido no Caderno
de Política, do jornal Estado de Minas”. Nota-se que a categorização apresentada para esse
texto não é “Comunicado”, considerando-se a cenografia proposta. Afirma-se, inicialmente,
que a intenção principal é “informar”. Em seguida, parece-me haver um recuo, em “talvez
com a intenção de se apresentar politicamente correto e/ou servir como crítica quanto à
fragilidade da segurança”. Nesse último exemplo, quando se mostra indeciso (Talvez com a
intenção de) o sujeito-leitor adentra a cena genérica proposta, mas não se mostra muito certo
disso. Parece-me ter colaborado para essa leitura final certa insegurança sobre o
funcionamento do tipo de discurso a que corresponde o texto. No exemplo 17, a seguir,
associam-se três cenas de fala: cena englobante, cena genérica, cenografia.
Exemplo 17 – Grupo C/CSM
Texto 5 é quase uma propaganda eleitoral do digníssimo governador Aécio Neves,
uma vez que o déficit zero fora focado, logo no ano eleitoral. Com o intuito de atrair
o olhar dos servidores para o que mais lhe chama a atenção – o SALÁRIO, e este será
pago (como de direito) no quinto dia útil. Legal né? (grifos meus, destaque do autor)
Neste registro, o sujeito evidencia, desde o início, a cenografia proposta pelo texto, ao afirmar
que se trata de quase uma propaganda eleitoral do digníssimo governador Aécio Neves (cena
genérica), e ironizar a figura do então Governador de Minas – a quem se refere como
digníssimo e suas ações eleitoreiras, tais como o déficit zero sendo focado, logo no ano
eleitoral. O emprego irônico de ‘digníssimo e o uso do operador ‘logo’ evidenciam que o
leitor se conta da cenografia escolhida.. Na verdade, vale-se da ironia como “princípio
157
estruturador de seu discurso” (BRAIT, 1996, p. 57). Utiliza-se, também, de procedimentos
irônicos em outros momentos da composição de seu texto, tais como em: i) O salário se
pago como de direito no quinto dia útil; ii) Legal ? (grifos meus). Ao fazer isso, descarta o
efeito de ‘informação’ percebido pela maioria dos sujeitos da pesquisa, dando-se conta do
discurso que, de fato, é proferido por meio deste texto, isto é, divulgam-se feitos positivos
com o intuito de se construir uma imagem de competência para o então Governo de Minas.
Em 18, que se segue, a cenografia implicada também não é indiferente ao sujeito-leitor,
apesar da categorização inadequada que se atribui ao gênero. Vejamos.
Exemplo 18 – Grupo C/JGL
O Comunicado inserido no caderno de Economia do Estado de Minas por estar
relacionado a negócio, compra da Chocolates Garoto pela Nestlé, é uma crítica por parte
desta última sobre o posicionamento do CADE quanto à negociação. A mesma vem sob a
máscara da preocupação com a Fábrica da Garoto, seus colaboradores e comunidade
local, não se referindo ao seu interesse comercial quanto à compra da mesma. (grifos
meus)
Inicialmente, o sujeito-leitor associa as duas cenas que compõem o quadro estável da cena de
enunciação: O Comunicado cena genérica; no caderno de Economia do Estado de Minas
cena englobante. Vale-se, em seguida, do tipo de discurso (Caderno de Economia, negócio,
negociação) para alcançar a cenografia implicada: i) “por estar relacionado a negócio, compra
da Chocolates Garoto pela Nestlé, é uma crítica por parte desta última sobre o
posicionamento do CADE quanto à negociação”(grifos meus); ii) “A mesma vem sob a
máscara da preocupação com a Fábrica da Garoto, seus colaboradores e comunidade local,
não se referindo ao seu interesse comercial quanto à compra da mesma” (grifos meus).
Para avançar nesse percurso em que se discute a percepção de gêneros, devo, ainda, pontuar
que, por um lado, é preciso reconhecer a importância de “possíveis critérios de mapeamento /
reconhecimento dos gêneros pelos sujeitos -leitores, o que lhes possibilitaria o seu domínio
sob a forma de uma “competência genérica” (MARI e AGUIAR, 2007, p. 20), nos termos
propostos por Maingueneau (2001, 2006). Isso sem nos esquecermos da noção de cenografia
que não diz respeito propriamente a um quadro, a um cenário, mas sim supõe uma “certa
situação de enunciação que vai sendo validada progressivamente por intermédio da própria
158
enunciação” (MAINGUENEAU, 2001, p. 17). Ler, nesse caso, é compreender, não somente
os gêneros que se situam num quadro cênico mais estável, mas sobretudo os suscetíveis de
cenografias variadas. Por outro lado, a discussão em torno de tais critérios parece ser, ainda,
um longo caminho a ser percorrido, a despeito de todos os esforços nesse sentido por parte de
estudiosos da linguagem (BAKHTIN, 2000; BRONCKART, 1999, MAINGUENEAU, 2001,
2004, 2006; MARCUSCHI, 2002; MARI e SILVEIRA, 2004; MARI e MENDES, 2007;
MATENCIO, 2002, 2006a, 2006b,2007; SCHNEUWLY, B. & DOLZ, J., 2004, por
exemplo).
A partir desses estudos, sobretudo, os de Bakhtin (op. cit.), Maingueneau (op. cit.), Mari e
Aguiar (2007, p. 20, 21) e Matencio (2006a), ressaltam-se três dimensões da linguagem cuja
relevância é nos possibilitar a compreensão da noção de competência genérica : i) dimensão
situacional da enunciação (identidade, papel dos interlocutores, por exemplo); ii)
organização formal do enunciado (estilo, construção composicional, em termos bakhtinianos);
iii) condições materiais (suporte de veiculação dos textos, restrições espaço-temporais). No
entanto esse raciocínio é viável para se chegar ao gênero do discurso se pensarmos na
conjunção dessas três dimensões constitutivas do gênero do discurso. Dimensões que devem
ser ativadas conjuntamente pelos sujeitos-leitores (MARI e MENDES, op. cit.).
A tentativa de aproximação das categorias título / gênero, neste estudo, foi proposta com o
intuito de investigar se essa seria uma das dimensões para se chegar ao gênero do discurso,
conforme dissemos. O título, neste estudo, foi considerado como elemento constitutivo da
estrutura composicional dos textos. No entanto divergências a esse respeito. Maingueneau,
por exemplo, acredita que o título é um “paratexto”, um fragmento verbal que acompanha o
texto propriamente dito, assim como uma assinatura, uma nota de rodapé, um comentário na
margem (2001, p. 81). Independentemente da forma como se concebe o título, o que se pôde
compreender a respeito da correlação título/gênero, parecem ser dados favoráveis às seguintes
considerações:
(1) Os sujeitos da pesquisa, nos casos em que se ocuparam de
categorizar o gênero (79 menções em 310 registros 25,3%),
associaram título a gênero, afirmando que se tratava de um
‘Comunicado’, sem, contudo, evidenciar conhecimento sobre
especificidades do gênero em questão.
(2) Registros em que não foram feitas menções ao gênero (212 em
310 68,4%) também não se traduziram na compreensão da
respectiva cena de enunciação.
159
(3) Diferentemente das duas situações anteriores, em alguns registros
(19 em 310), constataram-se categorizações diferenciadas dos gêneros
(informe, nota, manifesto, mensagem, entre outros). Nesses casos,
também não se alcançou a cenografia proposta.
(4) Nos poucos registros em que a cenografia foi explorada (8 casos
em 310), os sujeitos chegaram aos efeitos de sentido implicados,
valendo-se, sobretudo, da caracterização da cena englobante, a
despeito de categorizarem indevidamente o gênero como sendo
“Comunicado”.
Como vimos, nos casos analisados, não havia uma correspondência imediata título/gênero,
uma vez que os textos em foco não se limitavam ao cumprimento de uma cena genérica. Na
verdade, em linhas gerais, os sujeitos demonstraram desconhecimento das características
típicas do gênero “Comunicado” (tanto de exemplares preestabelecidos como dos cinco
exemplares propostos), bem como daquelas características inerentes à cena englobante em
que se situam esses textos (tipo de discurso). Em resultado mostra que o reconhecimento de
especificidades da cena genérica (gênero do discurso) pelo sujeito-leitor, embora se trate de
uma importante dimensão para a compreensão das “atividades discursivas nas quais se
encontram engajados os sujeitos” (MAINGUENEAU, 2006, p. 112), não se trata de um
aspecto suficiente para que se compreenda a cenografia engendrada pelos textos. A
cenografia, nos casos analisados, foi alcançada a partir de reflexões do sujeito-leitor sobre
a cena englobante (tipo de discurso). Considerando-se também que “a cenografia não é
imposta pelo gênero ou tipo de discurso, sendo instituída pelo próprio discurso”
(MAINGUENEAU, op. cit.), e, ainda, que a cenografia “tem inevitavelmente por efeito fazer
passar a cena englobante e a cena genérica ao segundo plano, de modo que o leitor se
encontre preso numa armadilha” (op. cit., p. 113), os resultados deste estudo nos permitem
afirmar que, mesmo que a cena englobante seja colocada em segundo plano pela cenografia
proposta, deve-se considerar sua especificidade (da cena englobante) para se alcançar a
cenografia. No caso dos sujeitos da pesquisa, a maioria não conseguiu explorar, nos registros
escritos, a cenografia proposta, tendo, pois, percebido os textos como meros “comunicados”
cujos efeitos de sentido são o de “informação”. Como um dos focos centrais deste estudo é
discutir os resultados obtidos para, a partir deles, buscar alguns princípios que norteiam o
processo de produção do sentido, proponho a seguinte questão: i) Que fator mais poderia
contribuir para que os sujeitos da pesquisa alcançassem, de fato, os efeitos de sentido de
certos textos? Para discutir o que estamos questionando, coloco em pauta novamente o
seguinte quadro teórico:
160
i) Os textos nos remetem a uma determinada “cena de enunciação”
que, por sua vez, compreende a cena englobante – tipo de discurso – e
a cena genérica gênero do discurso. (MAINGUENEAU, 2001, p.
85-89).
ii) Cena englobante e cena genérica compõem o “quadro cênico do
texto” (espaço estável). O leitor pode se confrontar não diretamente
com o quadro cênico, mas com uma cenografia (MAINGUENEAU,
op. cit.).
iii) Cenografia diz respeito a “certa situação de enunciação que vai
sendo validada progressivamente por intermédio da própria
enunciação” (MAINGUENEAU, 2001, p. 17).
iv) Não se coloca a classificação / categorização do gênero como
objeto de estudo a priori, devido à quase impossibilidade de se
abranger o gênero por meio desse critério (BAKHTIN, 2000).
v) Paradoxalmente, o gênero, mesmo sendo referenciável e
referenciado, nunca se presta a uma definição sistemática e geral,
devido a seu caráter multiforme, maleável, “espontâneo” (DOLZ e
SCHNEUWLY, 2004 p. 57, aspas do autor).
Articulando-se esse referencial teórico aos resultados obtidos neste item, podemos afirmar
que os textos implicam uma cena de enunciação, compreendendo, pois, uma cena englobante
e uma cena genérica (1), mas os textos, mesmo os que se enquadram num quadro cênico tido
como mais estável, podem engendrar diferentes cenografias (2). Devido a essa natureza
maleável dos textos, a priori, não se deve buscar compreendê-los apenas a partir de sua
classificação/categorização (3). Em síntese, temos o que se apresenta no Quadro 6.
Princípios teóricos norteadores da produção do sentido: Princípio 4
A compreensão da cena englobante (tipo de discurso), ainda que colocada em segundo
plano pela cenografia, facilita a percepção de diferentes cenografias engendradas pelos
textos, mesmo nos casos em que não se categoriza devidamente a cena genérica (gênero do
discurso).
Quadro 6: Princípio teórico norteador da produção do sentido – 4
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus articulados ao quadro teórico adotado
161
A seguir, discuto exemplos representativos do corpus no que se refere à materialidade do
texto, sua percepção e apreensão de efeitos de sentido.
4.2.4 Linguagem: materialidade do texto e percepção do sentido
Nos registros produzidos pelos alunos dos três grupos, referências a estratégias textuais foram
muito escassas no corpus: 4,8%, 0%, 10,6%, nos grupos A, B e C, respectivamente, fato
também constatado pelo professor pesquisador em estudos anteriores (VITORINO, 2003).
Estratégias textuais, neste estudo, dizem respeito a indicadores verbais e não verbais
(MAINGUENEAU, 2001, p. 79-83). Os indicadores verbais são recursos de natureza
linguística propriamente, tais como uma data, uma assinatura, uma epígrafe, um prefácio, uma
nota de rodapé, uma citação à margem, além do emprego de “diferentes tipos textuais
narração, descrição, injunção, exposição, argumentação” (MARCUSCHI, 2002, p. 25-29),
entre outros recursos. Não verbais são elementos icônicos variados, tais como gráficos,
tabelas, fontes diferenciadas, itálicos, negritos, cores, fotografias, ilustrações, diagramação do
texto, entre outros (MAINGUENEAU, 2001, p.81).
Na realidade, em grande parte dos textos, todas essas marcas ancoram-se na situação de
enunciação, e mesmo os enunciados desprovidos desse tipo de marcas nos remetem ao seu
contexto (MAINGUENEAU, 2001, p. 25). Por isso uma construção de sentido que se
apercebe do material linguístico manuseado pelo produtor do texto e pelos sujeitos-leitores, na
apreensão de efeitos de sentido, é, de fato, relevante. Aspectos formais, estruturais ou
linguísticos, na verdade, não definem os gêneros, mas não se pode desprezar a forma
(MARCUSCHI, 2001, p. 21). Esse entendimento nos conduz a afirmar que esses aspectos são
importantes na caracterização de determinados textos, supostamente mais estáveis do ponto
de vista formal – receita médica, bula de remédio, catálogo telefônico, por exemplo.
Nos registros que compõem o corpus, parece-me que muitos leitores vão à busca dos supostos
objetivos do texto ou à procura de pistas que os teriam levado a perceber determinados efeitos
de sentido, sem se preocuparem em desvendar, nos registros, outros possíveis sentidos
vinculados à materialidade do texto, uma situação também constatada em estudo anterior
(VITORINO, 2003). Na prática, muitas vezes, o retorno ao texto se quando se instaura
uma eventual dificuldade de compreensão. No entanto essa atitude deveria fazer parte da
162
rotina de todo leitor, pois é preciso que se reconheça na materialidade do texto, e também no
quadro social de sua produção, recepção e circulação possibilidades para a construção de
sentidos.
Registros de leitura que não consideram certos aspectos constitutivos do sentido tendem a ser
de natureza parafrástica, ainda que o leitor tenha atentado para várias dimensões da linguagem
no próprio processo de leitura. No caso deste estudo, aqueles leitores que evidenciaram
algumas categorias básicas para a produção do sentido, ao ressaltá-las, com frequência,
alcançaram certos efeitos de sentido, não percebidos pela grande maioria dos sujeitos da
pesquisa. Em face dessa constatação, uma proposta para um trabalho mais efetivamente
direcionado para a formação do sujeito-leitor parece ser aquele que cuida de ressaltar,
rotineiramente, no processo de ensino-aprendizagem, um conjunto de dimensões
situacional, institucional, sócio-histórica relacionadas à atribuição de sentidos ao texto.
Essas noções conceituais podem levar o sujeito-leitor à percepção de diferentes efeitos de
sentido, conduzindo-o a diferentes leituras. Por extensão, pode-se pensar, ainda, em registros
de leitura em que tais fatores sejam também ressaltados. Para isso, deve-se levar o sujeito-
leitor em processo de formação a refletir sobre conexões múltiplas, encadeamentos e
inconstâncias que envolvem o processo de produção do sentido.
Assim, devem-se privilegiar procedimentos de leitura que facilitem o diálogo com instâncias
hipertextuais; atentando, de modo especial, para diferentes efeitos de sentido possíveis, e não
apenas para a decodificação do texto. Enfim, um trabalho que contemple, no processo de
ensino-aprendizagem da leitura, a língua/linguagem em seu funcionamento, refletindo sobre
sua potencialidade significativa. Por exemplo, um fator a considerar é que o produtor do texto
não constrói casualmente uma estrutura formal para o texto. Assim, ainda que se possa
considerar uma abordagem sincrônica do sistema da língua, nos moldes propostos por
Saussure, a apreensão de uma língua natural pode ocorrer por meio de “produções verbais
efetivas”. Essas produções podem ser articuladas a “situações de comunicação muito
diferentes”, ou seja, “formas de realização empíricas” chamadas textos (BRONCKART,
1999, p. 69). Há, pois, enorme probabilidade de que o texto esteja movido por circunstâncias
que precisam ser consideradas na leitura. Por pensar a relação materialidade do texto /
produção do sentido como algo a ser investigado, neste estudo, estratégias textuais
observáveis nos cinco textos que compuseram a atividade I, e, que, porventura, possam ter
sido consideradas como merecedoras de destaque, nos registros escritos, serão investigadas,
ainda que menções a essa categoria sejam exceções no corpus (4,8% – Grupo A, 0% - Grupo
163
B, 10,6% - Grupo C). Para isso, destacaremos, inicialmente, fragmentos de alguns registros
de leitura do Grupo A, nos exemplos l 9, 20 e 21.
Exemplo 19 – Grupo A / ARAL
Apresenta receptor (es) em destaque (caps lock) e locutor em fonte menor, sendo todos
os esclarecimentos digitados em “fonte menor”. Traz informações relevantes em nota
de rodapé”, em fonte bem menor que a maior parte do texto e data o comunicado.
Fornece, também, forma de contato. (grifos meus, parênteses e aspas do autor)
Certamente, esse leitor reservou uma atenção particular a questões de natureza formal no seu
registro (“receptor em destaque”, “fonte menor”, “nota de rodapé”, “data”, “forma de
contato”), a ponto de desconsiderar quaisquer outras questões. Neste estudo, a despeito de tal
cuidado ser fundamental, devido à relação de constutividade materialidade do texto / sentido,
parece ter sido uma questão relegada a segundo plano. Na realidade, esses dados trazidos à
tona não foram suficientes para que o leitor se ocupasse, no registro, da relação manifestação
material do discurso / constituição do próprio discurso. O exemplo 20 é um outro texto em
que se aborda essa dimensão do texto.
Exemplo 20 – Grupo A/CSK
O segundo texto também se trata de um comunicado escrito na linguagem padrão,
fragmentos descritivos, título em destaque, possui termos técnicos, texto organizado em
parágrafos, possui trexos que se descrevem como uma bula
; comunicado de alerta. (grifos
meus, ‘trexos’ do autor)
Em 20, novamente, as estratégias textuais não foram percebidas em função da percepção do
sentido, e sim em função da caracterização / pela caracterização, tal como se o discurso fosse
indiferente a essa disposição formal. Caso tal relação tivesse sido estabelecida, o registro de
leitura poderia fornecer mais evidências, na escrita, sobre as relações de sentido feitas por
esse sujeito-leitor, ao tratar de linguagem. O texto do exemplo 21 também mostra aspectos da
estrutura formal do texto.
164
Exemplo 21 – Grupo A/ARR
Utilizando de recursos como título, a logomarca, um slogan Good Food, Good Life”, a
Nestlé vem a público, através de um jornal notificar a desconstituição da Garoto, que
segundo a Nestlé, é de suma importância social, e de desenvolvimento para o estado do
Espírito Santo. (grifos meus)
Na busca da construção de sentidos para o texto, esse leitor, ao tratar de questões formais
(“título”, “a logomarca”, “Good Food, Good Life”), parece se dar conta de que o texto está, de
alguma forma, associado a um enunciador e a um suporte material. Tal situação se observa em
“Utilizando de recursos como título, a logomarca, um slogan Good Food, Good Life”, a
Nestlé vem a público, através de um jornal”. Essa ocorrência pode ser vista, por um lado,
como um avanço em relação aos dois registros anteriores, pelo fato de se perceber que os
textos envolvem elementos de ordens diversas parceiros legítimos, suporte material, por
exemplo. Por outro lado, foram deixadas de lado, não somente outras questões linguísticas,
mas também elementos cruciais na constituição do gênero lugar, momento, periodicidade,
entre outros aspectos. Sobre referência às particularidades das estratégias textuais nos
registros, serão focalizados, a seguir, alguns fragmentos de registros do Grupo C. Vejamos
como tal categoria é mencionada em 22.
Exemplo 22 – Grupo C/ FRD
A forma da escrita, título, subtítulo, o nome da empresa em negrito no final, os
parágrafos. Através da denúncia da pirataria, a empresa aproveitou para se autopromover.
A parte do jornal que foi veiculada a denúncia também é considerável Política”. (grifos
meus)
Observa-se, neste registro, que o sujeito-leitor faz referência a instâncias que devem ser
mobilizadas para que se leia um texto: “A forma da escrita, título, subtítulo, o nome da
empresa em negrito no final, os parágrafos; A parte do jornal que foi veiculada a denúncia”.
Falta-lhe, marcar melhor (no registro) que também dispõe de uma competência genérica para
165
lidar com este tipo de enunciado: o gênero de discurso de que trata o texto, o conteúdo
abordado, seus interlocutores, o comportamento a ser adotado em relação ao texto
(MAINGUENEAU, 2001, p. 45). Em suma, os dados que menciona são recursos constitutivos
do sentido, mas o leitor parece ignorar isso. Trazer à tona tais informações é abranger um
aspecto do texto necessário à produção de determinadas inferências e deduções a respeito da
emergência vivenciada pela empresa farmacêutica em questão a Procter & Gamble. No
entanto considerar informações dessa natureza, mas não as articular a outras instâncias pode
comprometer a qualidade da leitura, que tende a ficar apenas num nível básico de
decodificação do texto. Na verdade, efeitos de sentido possíveis, tais como autopromoção,
autodefesa, por exemplo, foram deixados à deriva pelo sujeito-leitor em relação ao texto do
exemplo 22. Em 23, também se delineia um perfil de leitor que pouco investe nas
possibilidades de significação dos textos.
Exemplo 23 – Grupo C/DGI
O terceiro texto é tão formal quanto o texto anterior. É curto, com certa característica
jornalística, mais concreta. Coloca toda a informação em poucas palavras, e de forma
mais resumida. ( grifos meus)
Este texto também faz referência a alguns dispositivos de que a língua dispõe para sugerir ao
leitor determinadas relações de sentido. Até mesmo a simples menção a esses mecanismos
linguísticos mostra que o sujeito-leitor os considera relevantes na construção de
significados. Ao mencionar, no registro de leitura, evidências da materialidade do texto lido,
como “O terceiro texto é tão formal, toda a informação em poucas palavras; de forma mais
resumida”, considera uma importante instância. No entanto, a exemplo de 22, o texto 23
também não demonstra articulação de outras dimensões que intervêm no conhecimento do
discurso. Agindo assim, esse leitor parece sinalizar que sua leitura está restrita aos limites da
materialidade de um texto. E isso pode indicar uma limitação quanto à sua competência para
interagir com o texto. Em 24, a referência a várias dimensões pelas quais um texto leva ao
sentido também pressupõe um leitor mais atento.
166
Exemplo 24 – Grupo C/SLC
Sujeito comunicante: Governo do Estado de Minas
Sujeito destinatário: Servidores públicos do Estado
Gênero: Comunicado (suporte: papel/jornal)
Tipo: narrativo, descritivo
Objetivo: informar aos servidores públicos sobre a mudança na data dos pagamentos
Veículo: Jornal Estado de Minas
O registro do exemplo 24 é o único caso, entre os 310 coletados, a fazer menção a tantas
dimensões do texto num único registro sujeito-comunicante/sujeito destinatário; gênero,
tipologia textual, objetivo, veículo. Com isso, mostra que se conta de que um gênero do
discurso envolve elementos de ordens diversas, dentre elas, a de natureza linguística tipo
narrativo, descritivo. Ao evidenciar elementos da materialidade dos textos lidos, tais como o
tipo narrativo / descritivo, fica evidente que esse leitor trata de alguns aspectos de natureza
linguística que podem levar à construção de sentidos. No entanto, mesmo ressaltando todas
essas dimensões, o leitor parece considerar o enunciado como portador de um sentido estável:
informar. Na verdade, parece tomar o texto V, pode-dizer, apenas na sua superfície. Desse
modo, desconsidera especificidades da instância que o comunica – esfera política.
Como acabamos de ressaltar, nos seis últimos exemplos, os leitores fizeram referências a
ingredientes significativos para a construção de significados, como formalidade/informalidade
da língua, recorrência a dados linguísticos de diferentes dimensões, porém não os articularam
a outras dimensões da linguagem. Uma leitura que contempla os recursos linguísticos, a ponto
de trazê-los à tona no registro, poderia mostrar que esses leitores reconhecem na língua a
possibilidade de levar à construção do sentido. Na verdade, uma dimensão que, certamente,
poderia interferir na recepção dos textos, e evidenciada no texto-interação. Afinal, tanto
sequências tipológicas variadas quanto diferentes estratégias textuais podem resultar em
novos gêneros textuais, portanto, novos efeitos de sentido.
Ressalta-se, então, a necessidade de estudos reflexivos sobre a produção de sentido, a partir de
ações específicas de trabalho com/sobre o texto. Um trabalho que considere, além de outras
dimensões fundamentais, a dimensão linguística do texto, de tal modo que a escolha de
estratégias linguísticas e textuais pelos sujeitos produtores do texto seja vista pelo sujeito-
167
leitor como um fator que pode refletir o lugar de onde se fala, o domínio discurso em que se
sustenta, posicionamentos ideológicos, entre outros aspectos. Conforme havia constatado
em estudo anterior (VITORINO, 2003), evidencia-se mais uma vez a demanda de se
trabalhar, nos espaços institucionais de educação formal, conceitos que podem orientar
melhor o leitor para a potencialidade significativa dos textos. Esse trabalho pode levar os
sujeitos-leitores a atribuírem a devida atenção, não somente às marcas linguísticas, mas
também a outras dimensões constitutivas do sentido, a ponto de ressaltá-las e diferenciá-las
nos registros de leitura, o que poderia levá-los à percepção de novos efeitos de sentido.
O gênero do discurso, então, não se caracteriza somente por aspectos sócio-históricos,
institucionais, situacionais, mas também formais, sejam eles textuais ou linguísticos, por isso
não se pode desprezar a forma, que está vinculada às demandas das/nas práticas discursivas
em que emergem. Essa maneira de compreender os gêneros nos permite recorrer à discussão
realizada, para apontar estes resultados obtidos:
(1) Dados da materialidade do texto trazidos à tona não foram
suficientes para que o leitor se ocupasse, no registro, da relação
manifestação material do discurso / constituição do próprio discurso.
(2) Geralmente, estratégias textuais não foram percebidas em função
da percepção do sentido, e sim em função da caracterização / pela
caracterização, tal como se o discurso fosse indiferente a essa
disposição formal.
(3) Ao tratar de questões formais, alguns leitores parecem se dar conta
de que o texto está, de alguma forma, associado a um enunciador e a
um suporte material, embora não articulem essa dimensão da
linguagem à percepção de novos efeitos de sentido.
(4) Muitos leitores propõem um registro de leitura restrito aos limites
da materialidade do texto lido. E isso pode nos sugerir alguma
limitação desses sujeitos em relação a condições necessárias para se
alcançarem certas especificidades de dados textos.
Propõe-se, neste estudo, articular esse resultado ao quadro teórico adotado na medida em que
é possível estabelecer entre eles uma confluência, o que pode ser bastante produtivo para a
compreensão de princípios que norteiam o processo de produção do sentido. A questão que
proponho, neste ponto, é: Que princípio teórico norteia a correlação materialidade do texto /
efeitos de sentido? Para precisar um pouco mais esta reflexão, evidencio alguns pressupostos
teóricos bastante pontuais nos quais me baseei ao longo deste estudo, para, a partir deles,
168
compreender mais um dos princípios que norteiam o processo de produção do sentido.
Vejamos.
i) Aspectos formais, estruturais ou linguísticos, na verdade, não
definem os gêneros, mas não se pode desprezar a forma
(MARCUSCHI, 2002, p. 21).
ii) A apreensão de uma língua natural pode ocorrer por meio de
“produções verbais efetivas”, que podem ser articuladas a “situações
de comunicação muito diferentes”, enfim, a “formas de realização
empíricas” chamadas textos (BRONCKART, 1999, p. 69).
iii) Por meio de marcas de várias tipologias, pode-se chegar ao gênero
de discurso de que trata o texto, ao conteúdo abordado, a seus
interlocutores, ao comportamento a ser adotado em relação ao texto
(MAINGUENEAU, 2001, p. 45).
Aceitando-se esse apoio teórico, é possível afirmar que os resultados apresentados neste item
apontam para a importância da materialidade do texto na percepção do sentido (1), pois ainda
que marcas linguísticas e textuais não definam os gêneros do discurso (2), por meio delas,
são alcançadas diferentes dimensões envolvidas na constituição dos textos (3), as quais
contribuem para a percepção de efeitos de sentido (4). Podemos, assim, sumariamente, chegar
ao princípio que se apresenta no Quadro 7.
Princípios teóricos norteadores da produção do sentido: Princípio 5
uma correlação materialidade do texto / efeitos de sentido decorrente do fato de
elementos formais / estruturais / linguísticos facilitarem o acesso a diferentes dimensões da
linguagem constitutivas dos gêneros do discurso materializados como textos.
Quadro 7: Princípio teórico norteador da produção do sentido – 5
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus articulados ao quadro teórico adotado
Neste item, vimos que, em muitos casos, as formas até podem determinar os gêneros, embora
isso não seja uma regra a priori, mas poderá haver casos em que o próprio suporte – modo de
manifestação material dos discursos, modo de difusão, mídium em que os textos são
veiculados determinarão o gênero (MAINGUENEAU, 2001, p. 72), porque “o modo de
transporte de recepção do enunciado condiciona a própria constituição do texto, modela o
gênero do discurso” (MAINGUENEAU, op. cit.). E é por essa perspectiva que nos
ocuparemos da correlação gênero / suporte, no corpus ora em discussão.
169
4.2.5 Suporte: um meio de acessibilidade ao texto nas práticas sociais
Neste estudo, a exemplo de Marcuschi, não estamos considerando que o “suporte determine o
gênero e sim que o gênero exige um suporte especial”, embora haja casos em que “o suporte
determina a distinção que o nero recebe” (MARCUSCHI, 2003). Em uma parcela muito
restrita do corpus, fez-se menção ao suporte material em que foram veiculados os textos
(4,0%, 2,8% e 20,9%, nos Grupos A, B e C, respectivamente). Entre esses poucos registros,
são representativos os que se seguem.
Exemplo 25 – Grupo A/VGI
É um texto que foi publicado em um jornal lido pela maioria da população mineira, tendo
o intuito de alertar e informar a população brasileira que foi detectado a falsificação do
produto Vick Vaporub. (grifos meus)
Veja-se que o sujeito-leitor do texto 25 percebe a relação do suporte com a circulação do
gênero que veicula, afirmando que se trata de um texto publicado em um jornal lido pela
maioria da população mineira, evidenciando como se dá o funcionamento do texto lido (texto
I), nas práticas sociais. Caso em que o intuito do texto, segundo o leitor, seria alertar /
informar à população brasileira a falsificação de um produto. A despeito de se considerar, no
registro, a relevância do suporte na circulação do gênero, não se determina a direção que, de
fato, o texto toma. Nesse caso, “competências” que intervêm no conhecimento do discurso”
(MAINGUENEAU, 2001, p. 44, aspas do autor). No texto lido, por exemplo, há fortes
evidências de que os principais co-enunciadores, de fato, não são os que se apresentam na
“superfície” do texto, conforme já discutimos. O exemplo que se segue é representativo do
Grupo B.
Exemplo 26 – Grupo B/OAE
A empresa Procter & Gamble utiliza-se de importante e abrangente veículo, o jornal,
para comunicar a presença de um produto falsificado que erroneamente leva o nome da
marca. Dessa forma, a empresa mais uma vez reafirma o seu compromisso de respeito
aos consumidores e às autoridades sanitárias”, oportunizando ainda o contato público-
empresa. (grifos meus, aspas do autor)
170
O suporte, em 26, parece ser visto, simultaneamente, como um fixador, pois, segundo o
sujeito-leitor, o texto utiliza-se de importante e abrangente veículo, o jornal, e como um
condutor do texto, pois oportuniza ainda o contato público-empresa. Neste estudo, suporte
textual tem a ver com a idéia de um portador do texto, mas não no sentido de um meio de
transporte ou veículo, nem como um suporte estático, e sim como um locus físico com
formato específico que serve de ambiente de fixação do gênero materializado como texto”
(MARCUSCHI, 2008, p. 74). Nesse caso, que nível de influência teria o suporte jornal sobre
o texto suportado (texto I)? O próprio sujeito-leitor parece responder à questão. Para ele, a
empresa mais uma vez reafirma o seu compromisso de respeito aos consumidores e às
autoridades sanitárias, oportunizando ainda o contato público-empresa. Evidencia-se, nesse
caso, o suporte selecionado pela empresa – importante e abrangente veículo, o jornal como
um elemento facilitador da aproximação entre locutor (empresa farmacêutica) e
interlocutores (autoridades sanitárias) e 2 (consumidores). Em síntese, a acessibilidade ao
texto é atribuída à natureza do suporte. Vejamos, a seguir, mais dois textos que fazem menção
à categoria suporte, a começar pelo exemplo 27.
Exemplo 27 – Grupo C/PLN
Texto em caráter de manifesto para protestar contra o fato da polícia Federal ter efetuado
arbitrariamente a prisão de dois produtores rurais importantes para a região de Montes
Claros. Atinge tanto a polícia quanto ao governo, devido ao fato do que está acontecendo
no meio rural com as invasões dos sem-terra. Pode circular em jornais, revistas rurais.
(grifo meu)
A probabilidade de circulação do texto IV em diferentes suportes é um dado significativo,
neste registro. Vê-se que o sujeito-leitor parece considerar o pressuposto de que os gêneros
desenvolvem nichos mais adequados, seja para se fixarem ou circularem (MARCUSCHI,
2008, p.175), admitindo-se como sendo uma das funções do suporte fixar o texto, tendo em
vista os alocutários a que se direcionam (polícia, produtores rurais). No exemplo 28, a idéia
de suporte como um lugar onde se informa algo a alguém é a primeira a ser ressaltada no
registro. Vejamos.
171
Exemplo 28 – Grupo C/ HGC
O governo do Estado de Minas Gerais informa no jornal Estado de Minas, à sua
comunidade leitora, decisão tomada quanto ao pagamento dos servidores estaduais.
Sendo assim, percebemos que este comunicado, para além de informar, tem o objetivo
de divulgar a conjuntura política do estado. Vejamos a persuasão na frase: “Será
antecipado para sexta-feira” (grifos meus).
Em 25, o sujeito-leitor vale-se de sua “competência genérica” (MAINGUENEAU, 2001, p.
43) para demonstrar que compreende a cenografia proposta, o que lhe permite inferir que o
texto propõe para além de informar, pois tem também o objetivo de divulgar a conjuntura
política do estado. E essa divulgação é facilitada em função da especificicidade do suporte
jornal, pois tal locus contribui para promover uma circulação mais ampla dos textos
suportados. Os efeitos de sentido que esse sujeito-leitor evidencia o de informação, o de
divulgação são perfeitamente possíveis a partir da cena englobante em que se situa o texto
(discurso político). Para “garantir” sua percepção traz, inclusive, uma citação textual: “Será
antecipado para sexta-feira”. Esse dispositivo textual, somado a outros, tais como “déficit
zero”, “fim à escala de pagamentos”, “salários pagos no quinto dia útil do mês”,
provavelmente, conduziu o sujeito-leitor tanto ao suporte e ao tipo de discurso (discurso
político), quanto a alcançar, pelo menos em parte, a cenografia proposta pelo texto.
Como vimos, no Grupo C (8º período), a representatividade em relação a essa categoria foi a
maior entre os três grupos (20,9%). Esse resultado pode ser decorrente de avanços no
processo de formação desses sujeitos, que teriam considerado dimensões de ordens diversas à
medida que avançam no processo de sua formação como leitores. Em termos gerais,
obtivemos os seguintes dados:
(1) Percebe-se a relevância do suporte na circulação de um texto, mas
não se trata de um dado suficiente para que se perceba a direção que,
de fato, o texto toma (a maioria absoluta).
(2) Houve casos de reconhecimento do suporte como um elemento
facilitador da aproximação entre locutor e interlocutores, embora
muito escassos.
(3) Constata-se que o suporte pode levar tanto ao tipo de discurso,
quanto a alcançar a cenografia proposta pelo texto (situações raras).
172
São dados quantitativamente poucos, mas suficientes para nos levar à seguinte questão: Qual
seria o papel do suporte na constituição do sentido? A exemplo dos itens anteriores,
retomamos, como parâmetro para essa discussão, os seguintes excertos:
i) “O modo de transporte e de recepção do enunciado condiciona a
própria constituição do texto, modela o gênero do discurso
(MAINGUENEAU, 2001, p. 72).
ii) casos em que o suporte determina a distinção que o gênero
recebe (MAINGUENEAU, 2001, p. 72).
iii) Suporte textual tem a ver com a “idéia de um portador do texto,
mas não no sentido de um meio de transporte ou veículo, nem como
um suporte estático, e sim como um locus no qual o texto se fixa e que
tem repercussão no gênero que suporta” (MARCUSCHI, 2008,
p.175).
iv) Os gêneros desenvolvem nichos mais adequados, seja para se
fixarem ou circularem, admitindo-se que uma das funções do suporte
é fixar o texto (MARCUSCHI, 2008, p.175).
Ressaltando-se, assim, a importância do suporte na constituição do texto, portanto, do sentido,
e, considerando-se os resultados obtidos, podemos afirmar que é inegável a relevância do
suporte para a percepção do sentido (1), pois se configura como elemento facilitador para se
alcançar tanto o tipo de discurso (cena englobante) quanto cenografias implicadas pelos textos
(2), além de poder determinar a própria constituição do texto (3). Sumariamente, temos:
Princípios teóricos norteadores da produção do sentido: Princípio 6
O suporte condiciona a percepção do sentido, determina a constituição do gênero,
além de configurar-se como um dos fatores de acessibilidade à cena englobante e
à
cenografia engendrada por um dado texto.
Quadro 8: Princípio teórico norteador da produção do sentido – 6
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus articulados ao quadro teórico adotado
Prosseguimos esta discussão, evidenciando mais uma das faces do dialogismo bakhtiniano, a
que considera a constituição do texto em função da cadeia de processos interlocutivos a partir
dos quais se constitui.
173
4.2.6 Dialogismo constitutivo: o texto como parte de uma cadeia de processos
interlocutivos
Nesta investigação, outro eixo a considerar a propósito de dimensões da linguagem que nos
permitem compreender a atribuição de sentidos ao texto – é o que se refere a uma outra face
do dialogismo bakhtiniano, isto é, a que concebe o texto um “elo na cadeia da comunicação
verbal”, que não pode “ser separado dos elos anteriores que o determinam” (BAKHTIN,
2000, p. 320). Neste estudo, vimos, anteriormente, que Authier-Revuz (1982), com base em
Bakhtin, concebe a heterogeneidade constitutiva uma condição de existência de todo discurso,
uma vez que “o outro não é um objeto exterior (de que se fala) mas uma condição
(constitutiva para quem se fala) do discurso de um sujeito falante que o é a fonte primeira
deste discurso” (p. 49, parênteses da autora), uma dimensão do texto cuja menção no corpus,
abordaremos, a partir de então.
O que nos interessa nesse foco de Authier-Revuz (op. cit.) são os casos de produções escritas
(corpus) nas quais se fizeram menção às relações dialógicas que sustentam os cinco textos
lidos pelos sujeitos-leitores: 21 (vinte e um) registros em cada um dos três Grupos (A, B, C),
portanto, um total de 63 (sessenta e três) registros em 310. Nesse universo, constatamos duas
diferentes situações: i) um grupo menciona no texto marcas do dialogismo, mas parece não se
dar conta disso; ii) outro grupo não apenas menciona o fenômeno, mas parece, de fato,
perceber do que se trata. Visto que o corpus me ofereceu, nos Grupos A, B e C, situações que
se repetiram, julguei pertinente trazer à mostra um texto representativo de cada um desses
Grupos. Os exemplos apresentados a seguir figuram entre os textos do primeiro grupo, que
consideram o dialogismo constitutivo dos textos, mas retomam tal e qual o texto-base, sem
qualquer comentário adicional sobre o fenômeno dialógico. Vejamos um registro selecionado
entre os mais representativos do Grupo A.
Exemplo 29 – Grupo A / SCA
A Nestlé Brasil se surpreende com a decisão tomada pela maioria do plenário do CADE
(Conselho Administrativo de Defesa Econômica), em relação a compra da Chocolates
Garoto, haja visto que a Garoto é uma empresa de impacto e importância para o Estado do
Espírito Santo. (grifo meu)
174
O texto 29 é um dos exemplos típicos do Grupo A, em que se evidencia o fenômeno dialógico
por meio de um breve relato decisão tomada pela maioria do plenário do CADE que
aponta para a existência de processos enunciativos que precedem o texto, isto é, a decisão
que, de fato, levou a Nestlé a se valer da mídia impressa para se posicionar a respeito de tal
situação. Nesse caso, não se explicita a constituição do texto em função da cadeia de
processos interlocutivos a partir dos quais se constitui. O exemplo 30 é representativo do
grupo B entre os textos que evidenciaram marcas do dialogismo constitutivo.
Exemplo 30 – Grupo B/ SRP
Com o objetivo de garantir a segurança de seus consumidores, a Bristol-Myers Squibb
informa que constatou a existência no mercado de um frasco de Coumadin 1mg, de 30
comprimidos e entre eles 1 comprimido de 5mg, que poderia causar reações adversas
decorrentes de superdosagens. Mesmo sendo este o único caso identificado, a empresa
solicita a atenção dos consumidores que tenham frascos do medicamento de lote 146080 e
se possível entrar em contato com eles. (grifo meu)
Em 30, abordou-se o fenômeno dialógico, ao se evidenciar que a Bristol-Myers constatou a
existência no mercado de um frasco de Coumadin 1mg, de 30 comprimidos, fato que,
certamente, desencadeou a veiculação de tal texto, na mídia impressa. Esse exemplo nos
mostra que o tratamento dado pelo sujeito-locutor (Bristol-Myers Squibb) ao discurso, na
realidade, tem a ver com o funcionamento dialógico e com a natureza do gênero do discurso.
Textos dessa natureza, circulando na mídia impressa, com as limitações que o suporte jornal
lhe imprime (inclusive de espaço), não teriam e nem precisariam trazer à mostra, por inteiro, o
fato que gerou o texto. Na abordagem feita pelo sujeito-leitor do exemplo 31, Grupo C, vale a
pena observar que a situação se repete.
Exemplo 31 – Grupo B/HGR
A Sociedade Rural de Montes Claros comunica através do movimento Paz no Campo e
vem a público manifestar todo o seu repúdio em relação ao ocorrido na sexta-feira,
29/10/04, na fazenda Correntes, município de Jequitaí, quando a Polícia Federal efetuou
a prisão dos produtores rurais Fernando Resende e Delfrânio Resende que são grandes
geradores de emprego e promotores do desenvolvimento no campo norte mineiro. (grifo
meu)
175
O caráter dialógico do texto evidenciado, neste registro, também se manifesta por meio do
relato de um fato anterior ao texto, conforme ocorreu em 30: “A Sociedade Rural de Montes
Claros vem a público manifestar todo o seu repúdio em relação ao ocorrido na sexta-feira,
29/10/04. Pelo registro, não como dizer que o sujeito-leitor se dá conta dos fundamentos
do dialogismo que sustenta os dizeres nos quais se pauta o texto IV, uma vez que apenas
menciona um fato evidenciado pelo locutor de IV. Não se ocupa, pois, de explicitar ao
leitor as vozes a partir das quais se pronuncia o locutor. Ao registrar sua leitura, o sujeito-
leitor deixa à mostra, não somente sua indiferença ao lidar com essas vozes (processos
interlocutivos precedentes), mas também no que diz respeito àquelas que evidenciam o
embate entre duas outras vozes ressaltadas no próprio texto a dos sindicalistas e a do
MST.
Na totalidade dos registros resultantes da proposta de leitura I 310 registros, em apenas 3
(três) registros, ocupou-se explicitamente do dialogismo constitutivo. Devido a esse reduzido
número, discuto, a seguir, os três casos. O próximo texto é único entre os registros do Grupo
A.
Exemplo 32 – Grupo A/DGE
O comunicado quatro faz referências a fatos já mencionados. É um discurso direto e
explícito quando o autor nos relata os fatos ocorridos na fazenda e a posição da polícia
diante do ocorrido. O texto traz em sua estrutura formal a descrição e a argumentação,
pois o autor descreve os fatos ocorridos e põe diante deles o seu ponto de vista e o que
espera da justiça em relação ao ocorrido. (grifos meus)
Neste texto, o sujeito-leitor faz referência explícita a uma manifestação dialógica na
constituição do texto IV, destacando, no início, que o comunicado quatro faz referências a
fatos mencionados. E não somente isso, pois percebe também que tais fatos são trazidos
para o texto para que o locutor se posicione sobre eles, evidenciando que o autor descreve os
fatos ocorridos e põe diante deles o seu ponto de vista. Examinando-se o dialogismo no texto
IV, verifica-se mais uma vez que as formas de representação do discurso outro no próprio
discurso pode, de fato, se prestar a diferentes interesses (posicionamento do locutor como
adversário / aliado, respostas a possíveis objeções do locutor, emissão de um julgamento, por
exemplo). Nesses casos, não se assumem essas falas como sendo as do locutor, ao contrário,
176
busca-se manter um distanciamento do texto mencionado, passando ao leitor o efeito de
monofonia. Como não ocorreu qualquer representatividade no Grupo B a esse respeito,
apresento, a seguir, os dois únicos casos do Grupo C. O exemplo 33 é o primeiro deles em
que o fenômeno dialógico é abordado explicitamente.
Exemplo 33 – Grupo C/ARL
O texto 1 Comunicado da Procter e Gamble é considerado dialogismo explícito, pois faz
referência a um fato detectado, trazendo consigo o discurso direto quando reafirma seu
compromisso diante dos consumidores. Sua estrutura formal é descritiva observada
através da constatação que o texto esclarece a todos.
No caso do exemplo 33, observa-se que a menção O texto 1 Comunicado da Procter e Gamble
é considerado dialogismo explícito não corresponde ao exemplo dado pois faz referência a um
fato detectado. Como se vê, não se trata de uma exemplificação que, de fato, confirma o
dialogismo explícito, e sim o constitutivo. em trazendo consigo o discurso direto seria um
caso de dialogismo explícito, porém não consta uma situação semelhante em nenhum
momento do texto I. No exemplo 34, também se mencionam manifestações dialógicas no
registro.
Exemplo 34 – Grupo C/VDR
Este comunicado traz um dito, pois relata algo que aconteceu antes com o mesmo
ocorrido do momento, e descreve a situação. (grifo meu)
A constatação que faz o sujeito-leitor do texto 34 o texto traz um dito, pois relata algo
que aconteceu antes é um procedimento significativo para que se possa alcançar os
discursos veiculados pelo sujeito-locutor, bem como os lugares ocupados pelos sujeitos-
interlocutores que se defrontam em atitude de consenso/dissenso, por meio de textos. Como
não se atingiu esse ponto no registro, não se pode dizer que se chegou à compreensão do
funcionamento dialógico da linguagem. Acreditamos que é preciso compreender, e não
177
apenas conhecer essa dimensão constitutiva da linguagem para que se possa alcançar os
efeitos de sentido decorrentes da inscrição de certas vozes no texto.
Em relação a esse resultado, pode-se dizer que os sujeitos da pesquisa (63 registros em 310):
(1) Salientam movimentos dialógicos no texto-interação, mas parecem
não se dar conta dos fundamentos do dialogismo que sustenta os
dizeres nos quais se pautam.
(2) Deixam à mostra, não somente sua indiferença ao lidar com vozes
relativas a processos interlocutivos precedentes, mas também em
relação a vozes conflitantes no próprio texto.
(3) Percebem fatos trazidos para o texto para que o locutor se
posicione sobre eles, embora sejam casos de exceção (3 em 310
registros).
(4) Parecem desconhecer que, por meio da dimensão
constitutivamente dialógica da linguagem, pode-se alcançar efeitos de
sentido decorrentes da inscrição de certas vozes no texto.
Como vimos, considera-se, neste estudo, o dialogismo como um fenômeno inerente à natureza
da linguagem, portanto, constitutivo do texto. Da mesma forma, torna-se relevante um
aspecto, tal como a consideração desse fenômeno nos registros escritos. Não pela simples
menção, ao contrário, pelo fato de que tal referência, se devidamente articulada, poderia levar
o sujeito-leitor a efeitos de sentido necessariamente implicados quando se colocam em cena
certas vozes e não outras. Com base nessas constatações, um questionamento que proponho,
neste ponto, é: Se o texto está necessariamente envolvido nos percursos dialógicos que o
precedem/sucedem/constituem, como facilitar a compreensão dessa articulação
dialogismo/texto/sentido? Para discutir este ponto, recolocamos em pauta os seguintes
percursos teóricos, amplamente discutidos a propósito do dialogismo, que, do ponto de
vista adotado, também compreende:
i) A “incorporação pelo enunciador da voz ou das vozes de outro (s)
no enunciado” (FIORIN, 2006, p. 32).
ii) Uma “forma composicional”, ou seja, “maneiras externas e visíveis
de mostrar outras vozes no discurso” (FIORIN, 2006, p. 32).
iii) “Formas e graus de representação da heterogeneidade da
linguagem” (BRAIT, 2006, p. 96)
iv) A heterogeneidade constitutiva como condição de existência de
todo discurso (AUTHIER-REVUZ, 1982).
178
v) O outro não como um objeto exterior, mas uma condição do
discurso de um sujeito falante, que não é a fonte primeira deste
discurso (AUTHIER-REVUZ, 1982).
Correlacionando-se esses pressupostos aos resultados deste item, constatamos que é possível
propor uma articulação dialogismo/texto/efeitos de sentido (1), por intermédio da explicitação
das formas e graus de representação das vozes incorporadas ao texto pelo enunciador (2), de
tal modo a redimensionar a articulação entre vozes e formas e graus de representação das
vozes / sentido (3), atentando, de modo especial, para o dialogismo constitutivo da linguagem
(4). Sumariamente, temos o que se apresenta no Quadro 9.
Princípios teóricos norteadores do sentido: Princípio 7
A correlação dialogismo constitutivo / texto / efeitos de sentido é explicitável
/compreensível por intermédio do redimensionamento da articulação vozes / formas e
graus de representação das vozes incorporadas ao texto pelo enunciador.
Quadro 9: Princípio teórico norteador da produção do sentido – 7
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus articulados ao quadro teórico adotado
Ao concluirmos esta parte do estudo, pudemos perceber que esses princípios teóricos
norteadores do sentido (1 a 7), reguladores de/da leitura pelos sujeitos, formulados com base
na articulação resultados obtidos / quadro teórico proposto, por um lado, retomam categorias
previamente elencadas e trazidas como essenciais na discussão teórica dos capítulos
antecedentes – relação interativa locutor/alocutário, gênero do discurso, dialogismo, cena
englobante, materialidade do texto/sentido, por exemplo. Por outro lado, fizeram emergir o
papel crucial de certas categorias na constituição do sentido dimensões interdependentes da
linguagem, cena englobante / sentido, a correlação suporte/cenografia, a articulação voz,
forma e grau de representação da voz/sentido, por exemplo. Para ampliar essa discussão,
passo a analisar, no próximo capítulo, resultados de duas outras etapas de coleta de dados
(Propostas de leitura II e III), as quais foram realizadas, propositadamente, a partir de
atividades de leitura direcionadas, ao contrário, da proposta I, de caráter diagnóstico.
179
180
C
APÍTULO 5
5 RELAÇÕES DO SUJEITO COM A SIGNIFICAÇÃO: A INTELIGIBILIDADE, A
INTERPRETAÇÃO E A COMPREENSÃO
No quinto capítulo, proponho uma análise de dados levantados com base nas propostas de
leitura II e III, referentes à segunda e à terceira etapa da coleta de dados, respectivamente.
Nessas propostas, ao contrário da anterior (Proposta I), de caráter exploratório / diagnóstico,
as atividades de leitura foram situadas a partir de categorias, ora evidenciadas no corpus pelos
próprios sujeitos da pesquisa, ora previamente selecionadas pelo professor-pesquisador,
considerando-se os objetivos e critérios propostos. O intuito final dessa discussão, dada a
natureza do quadro teórico adotado e dos resultados obtidos, é descrever/ explicar/ investigar
mais alguns princípios teóricos norteadores da percepção do sentido, enfocando, de modo
especial, a inteligibilidade, a interpretação e a compreensão, no âmbito da Análise do
Discurso. Assim como no capítulo anterior, para a análise de dados, considerar-se-ão
sujeitos-leitores, em situação de ensino-aprendizagem, situados na esfera acadêmica, que, a
exemplo de outras instâncias, delimitam sócio-historicamente os discursos e seus processos.
5.1 A determinação sócio-histórica dos processos de significação
Nesta seção, realizo uma análise qualitativa de dados resultantes da proposta de leitura II.
Essa atividade foi realizada por todos os sujeitos participantes da atividade I (Grupos A, B,
C), caracterizados. Propositalmente, esse exercício foi elaborado com base nos mesmos
textos trabalhados anteriormente, porém a partir de categorias previamente selecionadas
pelo professor-pesquisador, ao contrário da proposta I de caráter diagnóstico / exploratório.
Para a seleção de categorias, consideraram-se as que foram evidenciadas pelos próprios
sujeitos da pesquisa nos registros escritos decorrentes da primeira proposta, além de outras
estrategicamente selecionadas pelo professor-pesquisador. Como já vimos, tais categorias
põem em evidência dimensões da linguagem constitutivas do sentido dialogismo,
materialidade do texto, gênero do discurso, entre outras. Foram apresentadas, portanto,
orientações mais precisas e específicas, de modo a ressaltar as categorias de análise, no
181
próprio formulário de registro de leitura. A partir dessa proposta, propôs-se analisar /situar
/explicar um novo direcionamento de leitura e sua atuação como um elemento regulador do
sentido. No formulário da coleta de dados, solicitou-se que fossem considerados alguns
pressupostos teóricos que vinham sendo amplamente discutidos em classe. Vejamos.
Leia os textos de números 1 a 5. Registre sua leitura nas lacunas abaixo, conforme as
solicitações feitas. Para a realização dessa atividade, leve em conta os seguintes
pressupostos teóricos:
Toda palavra dirige-se a um interlocutor.
A situação e os participantes mais imediatos determinam a enunciação.
As condições de emprego da língua são determinadas a partir de uma prática de
linguagem.
Cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, sendo isso que chamamos gêneros do discurso (BAKHTIN, 2001)
Além dessas orientações teóricas, ofereceram-se lacunas para que os alunos pudessem
explicitar dados sobre as seguintes categorias, previamente selecionadas pelo professor-
pesquisador: locutor, interlocutor, intencionalidade, suporte, conteúdo, estratégia textual,
gênero. Nessa proposta, os números de 1 a 5 dizem respeito à ordem de entrada dos textos na
constituição da referida atividade. A proposta completa apresentada aos sujeitos da pesquisa
foi a que se segue, no Quadro 10.
182
Proposta de leitura II
Leia os textos de números 1 a 5. Registre sua leitura nas lacunas abaixo,
conforme as
s
olicitações feitas. Para a realização dessa atividade, leve em conta os seguintes
pressupostos teóricos:
Toda palavra dirige-se a um interlocutor.
A situação e os participantes mais imediatos determinam a enunciação.
As condições de emprego da língua
são determinadas a partir de uma prática de
linguagem.
Cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de
enunciados, sendo isso que chamamos gêneros do discurso (BAKHTIN, 2001)
Locutor
(Quem fala?
Papel social
representado)
Alocutário
(Para quem
fala? Papel
social
representado)
Intencionalidade
(Provável objetivo
visado na
interlocução)
Suporte
Conteúdo
(De que
assunto
trata o
texto?)
Estratégia
textual
dominante
(narrativa,
descritiva, argu-
mentativa, etc)
Gênero
Textual
01.
02.
03.
04.
05.
Quadro 10: Enunciados e categorias apresentadas aos sujeitos da pesquisa, na proposta de leitura II
Fonte: Elaboração própria a partir do quadro teórico adotado
Observa-se, na proposta II, espaços em aberto para serem preenchidos, relacionados a cada
categoria indicada, de forma a abranger os cinco textos trabalhados. Buscou-se, assim,
oferecer aos sujeitos-leitores, gradativamente, um maior grau de especificidade e de precisão
a propósito do que se propunha considerar sobre os textos, além do quadro teórico salientado.
Com essa estratégia, o intuito foi buscar mais subsídios, além dos obtidos na realização da
atividade I, que nos auxiliassem na busca de vestígios das dimensões da linguagem que esses
leitores trariam à mostra, nos seus registros de leitura, consideradas as novas condições de
recepção. Em relação a essa proposta, particularmente, estamos considerando a possibilidade
de que sua extensão e complexidade, possa afetar , de alguma forma, os dados obtidos.
183
Ainda assim, recorremos a essa atividade para a coleta de dados, devido ao fato de os sujeitos
da pesquisa terem lido previamente os textos de apoio, durante a atividade diagnóstica, o
que poderia minimizar possíveis impasses e dificuldades, inclusive em relação ao tempo.
Consultado o corpus, em relação às categorias “locutor e suporte”, observou-se que 100% dos
sujeitos apontaram os dados solicitados no formulário da proposta, preenchendo as lacunas
em aberto. Um aspecto que pode ter contribuído para esse êxito é o fato de tais informações já
se encontrarem devidamente explicitadas nos cinco textos. Tal resultado nos mostra sujeitos-
leitores referindo o sentido à ngua, ao co-texto linguístico. Já no que se refere à figura do
alocutário, houve grande variação e mesmo impropriedades. Provavelmente, teria concorrido
para esse resultado o fato de que essa era uma informação correlacionada a cenografias
engendradas pelos textos, na maioria das vezes, não alcançadas pelos sujeitos da pesquisa.
Quanto a conteúdo, priorizaram-se as informações básicas, a exemplo de dados mais
evidenciados na “superfície” dos textos, tal como ocorrera na atividade I
22
. Dentre todas as
categorias propostas, duas nos puderam oferecer uma discussão mais significativa sobre
fatores determinantes do sentido: estratégia textual e gênero do discurso.
Estratégia textual, neste estudo, diz respeito a dados de natureza linguística (linguagem,
seleção lexical, tipologia textual, entre outros) e não linguística (cores, fontes diferenciadas,
título, paragrafação, quadros, tabelas, gráficos, entre outros). No caso da atividade II,
estratégia textual abrangeu apenas tipologia textual, como se pode observar na exemplificação
apresentada entre parênteses, no próprio formulário da proposta II. Isso se deve ao fato de que
uma maior abrangência desse conceito, ainda o havia sido discutida com os sujeitos da
pesquisa, por ocasião da coleta de dados. Os registros realizados pelos sujeitos-leitores
resultaram nos dados apresentados nas Tabelas 5, 6 e 7 Grupos A, B e C, respectivamente.
Quantitativamente, os números evidenciados nas três primeiras colunas foram os mais
relevantes, nas três situações. Para a obtenção das categorias apontadas nessas três tabelas,
recorremos a nomeações feitas pelos sujeitos-leitores nos próprios formulários de leitura
decorrentes da proposta II.Vejamos, inicialmente, dados do Grupo A, na Tabela 5.
22
No que diz respeito aos resultados obtidos sobre a categoria “intencionalidade”, optei por não discuti-los, neste
estudo, pelo fato de tal categoria não ser de especial interesse no âmbito do quadro teórico adotado. Essa fuga foi
constatada pelo professor-pesquisador apenas no próprio processo de análise do corpus.
184
Tabela 5: Dados do corpus sobre a categoria “estratégia textual” – Grupo A
Estratégia textual dominante – Grupo A
Textos
Descrit. Arg.
Narra
Tiva
Exposi
tiva
Narrat./
Descrit.
Inform./
Arg.
Arg./
Narrat.
Arg./
Dissert.
Outros
01
42,9%
33,3%
14,3%
--- 9,5% --- --- --- --
02
57,2%
14,3%
9,5% --- 9,5% --- --- --- 9,5%
03
19,0%
57,2%
9,5% 4,8% --- --- --- 4,8% 4,8%
04
19,0%
66,6%
--- --- 4,8% --- 4,8% --- 4,8%
05
52,8%
28,6%
9,5% --- --- 4,8% --- --- 4,8%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
Esses dados podem ser mais bem visualizados no Gráfico 8, que se segue.
42,9%
57,2%
9,5%
19,0%
9,5%
4,8% 4,8% 4,8%
19,0%
4,8%
4,8%
4,8%
52,8%
4,8%
4,8%
14,3%
9,5%
33,3%
9,5%
9,5%
14,3%
57,2%
66,6%
9,5%
28,6%
Descrit. Arg. Narrativa Expositiva Narrat./
Descrit.
Inform./
Arg.
Arg./
Narrat.
Arg./
Dissert.
Texto 1 Texto 2 Texto 3 Texto 4 Texto 5
Gráfico 8: Dados do corpus sobre estratégia textual dominante
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
185
No que se refere à natureza linguística dos cinco textos, no Gráfico 8, vê-se que, para a
maioria absoluta do Grupo A (6º período), os textos têm caráter descritivo, argumentativo ou
narrativo. Somando-se as três colunas, obtivemos um percentual de mais de 80% para os
textos 2, 3 e 4, e mais de 90%, em se tratando dos textos 1 e 5. Nesse universo, um caso que
nos chamou a atenção foi o do texto 4. Para esse texto, particularmente, não ocorreu qualquer
menção quanto à tipologia narrativa. Referências a tipologias heterogêneas (narrativa /
descritiva, informativa / argumentativa, argumentativa / narrativa, argumentativa /
dissertativa) também ocorreram: o percentual oscilou entre 9,5% a 19% de menções, a
depender do texto. Para que possamos fazer um cotejo de dados evidenciados nos registros
relativos à proposta de leitura I (diagnóstica) em face dos novos números resultantes da
proposta II (direcionada), retomo, a seguir, dados do Gráfico 2, para que se possa observar a
oscilação entre percentuais médios resultantes das duas diferentes propostas de leitura (I e
II), no que se refere a estratégia textual dominante. Vejamos tal situação na Tabela 6, que se
segue.
Tabela 6: Dados do corpus a propósito de estratégia textual – atividade diagnóstica versus atividade direcionada
– Grupo A
Estratégia textual dominante: descritiva, argumentativa, narrativa – Grupo A
Proposta I (atividade diagnóstica) Proposta II (atividade direcionada)
4,8% (menção espontânea) 86,7% (menção direcionada)
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
Na Tabela 6, é possível observar que a categoria “estratégia textual” foi praticamente
ignorada pelo Grupo A, tendo obtido apenas 4,8% de menção nos registros, no momento
inicial. Já, por ocasião da atividade direcionada, os números se mostram quantitativamente
bem superiores (86,7%), considerando-se a média de referência aos cinco textos. Nesse caso,
embora os sujeitos-leitores tenham se posicionado frente a especificidades solicitadas pelo
professor-pesquisador, com base numa nova proposta de leitura, não fizeram uso dessa
dimensão da linguagem para o registro de diferentes efeitos de sentido. Tal fato ocorrera
em relação à proposta I. Na Tabela 7, que se segue, estão registrados dados do Grupo B (7º
período), referentes à mesma categoria.
186
Tabela 7: Dados do corpus sobre a categoria estratégia textual – Grupo B
Estratégia textual dominante – Grupo B
Textos
Descrit.
Arg.
Narra
tiva
Descrit./
Arg.
Nar./
Descr.
Inform./
descrit
Narrat./
Arg.
Arg./
Narrat.
Outros
01
20,0%
30,0%
5,0% 20,0% 15,0%
10,0% --- --- ---
02
55,0%
5,0% 10,0%
10,0% --- 15,0% 5,0% --- ---
03
15,0%
55,0%
5,0% 5,0% --- 15,0% --- 5,0% ---
04
--- 35,0%
20,0%
5,0% 5,0% 5,0% 25,0%
--- 5,0%
05
20,0%
30,0%
25,0%
--- --- 25,0% --- --- ---
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
Os dados da Tabela 7 encontram-se mais bem visualizados no Gráfico 9, seguinte.
20,0%
20,0%
55,0%
10,0%
5,0%
15,0%
5,0%
5,0%
5,0%
20,0%
5,0%
5,0%
25,0%
5,0%
20,0%
25,0%
30,0%
10,0%
15,0%
5,0%
15,0%
5,0%
10,0%
15,0%
55,0%
35,0%
5,0%
30,0%
25,0%
Descrit. Arg. Narra tiva Descrit./
Arg.
Nar./
Descr.
Inform./
descrit
Narrat./
Arg.
Arg./
Narrat.
Outros
Texto 1 Texto 2 Texto 3 Texto 4 Texto 5
Gráfico 9: Dados do corpus sobre estratégia textual – Grupo B
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
Vê-se, novamente, que, para a maioria absoluta dos sujeitos que constituem o Grupo B (7º
período), os textos têm caráter descritivo, argumentativo ou narrativo: 55%, em se tratando
187
dos textos 1 e 4; 70%, no que se refere ao texto 2; e 75%, em se tratando dos textos 3 e 5.
Nesse Grupo, duas outras situações também se destacaram. Primeiramente, uma referência a
tipologias heterogêneas (descritiva / argumentativa) bastante significativa. Chega-se a um
percentual de 20% de menção, apenas no caso do texto 1. Em segundo lugar, situo a menção
recorrente à tipologia informativa / descritiva como sendo também um dado relevante, pois,
além de abranger os cinco textos da proposta II, atinge 25% de citações, no que se refere ao
texto 5. Considerando-se os cinco textos, pode-se dizer, resumidamente, que as menções
variaram entre um percentual de 25% a 45%, considerando-se os cinco textos. Nesse caso,
particularmente, chama-nos, ainda, a atenção o fato de o termo “informativa” não se situar no
campo de uma tipologia textual propriamente. Referências a outras tipologias heterogêneas
(narrativa / descritiva, narrativa / argumentativa, por exemplo) constituíram-se em dados
quantitativamente significativos, se comparados aos do Grupo A. Para que possamos fazer
uma análise entre dados evidenciados nos registros relativos à proposta de leitura I
(diagnóstica, exploratória) em face dos novos números resultantes da proposta II
(direcionada), retomo dados do Gráfico 3 para que se possa observar a variação entre
percentuais médios resultantes das duas diferentes propostas de leitura (I e II), no que se
refere a estratégia textual dominante, em se tratando do Grupo B. Na Tabela 8, que se segue,
podemos observar tais dados.
Tabela 8: Dados do corpus a propósito de estratégia textual – atividade diagnóstica versus atividade direcionada
- Grupo B
Estratégia textual dominante: descritiva, argumentativa, narrativa – Grupo B
Proposta I (atividade diagnóstica) Proposta II (atividade direcionada)
0,0 % (menção espontânea) 66% (menção direcionada)
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
Em se tratando de resultados da atividade diagnóstica, na Tabela 8, constata-se que a
categoria “estratégia textual” não obteve qualquer atenção nos registros, no caso do grupo B,
ao contrário do que ocorrera na segunda proposta de leitura, cujo percentual médio atingiu
66% . Sobre essa dimensão da linguagem, vimos que, apesar de aspectos formais / estruturais
/ linguísticos não definirem os gêneros, não se deve desprezar a forma, pois, do ponto de vista
do que têm demonstrado os estudos dos textos e dos discursos, uma relação constitutiva
188
entre materialidade do texto / instância de produção, recepção, circulação / sentido. Na
Tabela 9, estão registradas as informações fornecidas pelos sujeitos do Grupo C (8º período),
a propósito da mesma categoria.
Tabela 9: Dados do corpus sobre a categoria estratégia textual – Grupo C
Estratégia textual dominante – Grupo C
Textos Descrit. Arg.
Narra
Tiva
Exposi
Tiva
Narrat./
Descrit.
Inform./
Arg.
Descrit./
Arg.
Argum./
Narrat.
Dialogal
01
33,4% 9,5% 38,0%
--- 14,3% 4,8% --- --- ---
02
33,3% 9,5% 19,0%
4,8% 14,4% 9,5% 9,5% --- ---
03
9,3% 67,0% 19,0% --- --- 4,7% --- --- ---
04
4,8% 42,7%
23,7%
--- --- --- 4,8% 14,5% 9,5%
05
14,3% 24,0%
33,0%
4,8% 4,8% 4,8% 9,5% 4,8% ---
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
Esses dados encontram-se mais bem explicitados no Gráfico 10, seguinte.
189
33,4%
33,3%
4,8%
9,5%
9,3%
19,0%
4,8%
23,7%
4,8%
14,5%
9,5%
14,3%
4,8%
9,5%
4,8%
38,0%
14,3%
4,8%
9,5%
19,0%
14,4%
9,5%
9,5%
67,0%
4,7%
42,7%
4,8%
33,0%
4,8%
24,0%
Descrit. Arg. Narraiva Expositiva Narrat./
Descrit.
Inform./
Arg.
Descrit./
Arg.
Argum./
Narrat.
Dialogal
Texto 1 Texto 2 Texto 3 Texto 4 Texto 5
Gráfico 10: Dados do corpus sobre a categoria estratégia textual – Grupo C
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
No Gráfico 10, vê-se que, para a maioria absoluta do Grupo C (8º período), os textos têm
caráter descritivo, argumentativo ou narrativo: 61,8% (texto 2), cerca de 71% (textos 4 e 5),
80,9 % (texto1) e 95,3% (texto 3). Nesse grupo, um caso que nos chama a atenção é o do
texto 3. Em relação a esse texto, houve praticamente um consenso em relação à tipologia
dominante, ou seja, 67% dos sujeitos da pesquisa acreditam tratar-se da tipologia
argumentativa. Quanto à menção a tipologias heterogêneas (narrativa / descritiva, informativa
/ argumentativa, descritiva / argumentativa), os dados nos mostram que os sujeitos se dão
conta desse fenômeno em todos os textos, pois ocorreram menções que variam entre 4,7% a
33,4%, a depender de cada texto. Para cotejar dados evidenciados nos registros resultantes da
proposta II (direcionada), em face de dados anteriores sobre “estratégia textual”, relativos à
proposta de leitura I diagnóstica / exploratória retomo, a seguir, na Tabela 10, dados
apresentados anteriormente no Gráfico 4.
190
Tabela 10: Dados do corpus a propósito de estratégia textual – atividade diagnóstica versus atividade direcionada
– Grupo C
Estratégia textual dominante: descritiva, argumentativa, narrativa – Grupo C
Proposta I (atividade diagnóstica) Proposta II (atividade direcionada)
10,6 % (menção espontânea) 76,1% (menção direcionada)
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
No que se refere à proposta de caráter diagnóstico, sobre “estratégia textual”, observou-se,
apenas 10,6% de menções, no que concerne ao Grupo C. Sobre essa categoria, também
salientamos que tais registros não foram articulados a outras dimensões da linguagem, de
modo a levar os sujeitos-leitores a perceberem novos efeitos de sentido. De tal modo, pode-se
dizer que o registro de leitura se manteve num nível mais básico de decodificação do texto.
Esse fato nos indicou, ainda, um perfil de leitor menos atento à relevância de certas dimensões
da linguagem na constituição do sentido.
no caso da proposta de leitura II, que ora discutimos, vimos que se tratou de um exercício
em que se explicitaram as categorias a serem consideradas. Vimos, ainda, que o principal
intuito do direcionamento mais preciso foi investigar se tal fator seria um determinante do
sentido. Sobre essa proposta, os registros de leitura dos três Grupos A, B e C e as Tabelas 6, 8
e 10 nos mostraram, progressivamente, que os sujeitos-leitores se posicionaram frente a essa
especificidade da nova proposta, mas não se valeram desse diferencial para a percepção de
diferentes efeitos de sentido. Na Tabela 11, a seguir, apresento dados que dizem respeito à
categoria “gênero do discurso”. Os termos relacionados na referida tabela foram nomeados
pelo sujeito-leitor no formulário de registros, atendendo à solicitação do professor-
pesquisador.
191
Tabela 11: Dados do corpus a propósito da categoria gênero do discurso – Grupos A,B e C
Gênero do discurso – Grupos A, B e C
Textos Comunicado Informativo Nota Propaganda Carta Outros
01
64,5% 22,5% 6,5%
--- ---
6,5%
02
69,3% 19,3% 4,8%
--- ---
6,6%
03
56,4% 17,7% 9,7%
---
6,4% 9,8%
04
58,1% 11,3% 6,4%
---
11,3% 12,9%
05
64,5% 14,5% 9,7% 6,4%
---
4,9%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
Na Tabela 11, observa-se que os sujeitos-leitores parecem estabelecer uma correlação
imediata título/gênero. Vê-se que maioria afirma que os textos são “Comunicados”. Essa é
justamente uma resposta a uma das questões a que nos propusemos investigar, no início deste
trabalho, quando focalizamos o título de uma perspectiva enunciativo-discursiva. Sobre esse
resultado, convém relembrar que a proposta II, assim como a I, foi elaborada com base em
uma pequena coletânea de 5 (cinco) textos, veiculados nos jornais Estado de Minas e Hoje em
dia, previamente selecionados pelo professor-pesquisador. Esses textos apresentavam em
comum, como título ou como palavra-chave no título, o termo ‘Comunicado’, e não se
configuravam no gênero ‘Comunicado’ propriamente. Abrangiam diferentes tipos de discurso
(cena englobante), e remetiam o sujeito-leitor a uma determinada “cena de enunciação” e a
variados gêneros do discurso (cena genérica), além de diversificadas cenografias
(MAINGUENEAU, 2001, 85-93; 2006, p. 111-131).
Conforme dissemos, esse referencial também foi selecionado para a composição da proposta
de leitura porque os cinco textos exigiam dos sujeitos-leitores a compreensão de diferentes
cenografias mobilizadas, embora, à primeira vista, sua compreensão parecesse possível
apenas com base num “quadro cênico” cena englobante e cena genérica. Outro fator diz
respeito à particularidade do título desses textos. O termo ‘Comunicado’ vem sendo utilizado
pelos usuários da ngua, e não propriamente pelos pesquisadores como título de textos
192
emergentes em outros âmbitos, como o comercial, o acadêmico-científico, por exemplo. Por
se tratar de uma atividade realizada em situação de ensino-aprendizagem, também considerei
o fato de que se deve promover situações de reflexão sobre textos à luz dos gêneros do
discurso. Em relação a esse resultado, os mesmos dados podem ser visualizados no Gráfico
11, que se segue.
64,5%
69,3%
56,4%
9,7%
58,1%
6,4%
11,3%
64,5%
4,9%
22,5%
6,5%
6,5%
6,6%
19,3%
4,8%
9,8%
17,7%
6,4%
11,3%
12,9%
14,5%
9,7%
6,4%
Comunicado Informativo Nota Propaganda Carta Outros
Texto 1 Texto 2 Texto 3 Texto 4 Texto 5
Gráfico 11: Dados evidenciados percentualmente no corpus a propósito da categoria gênero do discurso
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
No Gráfico 11, vê-se, por exemplo, um percentual bem próximo a 60%, em se tratando dos
textos 3 e 4; mais de 60%, em relação aos textos 1 e 5; e próximo a 70%, no caso do texto 2.
E, se considerarmos que o termo “Informativo”, por vezes, é utilizado como sinônimo de
“Comunicado”, esse número se amplia ainda mais, alcançando um percentual próximo a 90%
de menções para os textos 1 e 2, maior que 70%, para 3 e 5, e superior a 60% para o texto 4.
No caso ora analisado, mesmo quando foram propostas informações teóricas mais pontuais
sobre o processo enunciativo-discursivo, sobre o gênero do discurso, bem como a propósito
de algumas faces do fenômeno dialógico, essas informações, embora detalhadas e sugestivas,
193
não atuaram como elementos condicionadores dos registros de leitura. Esse é um dado
também constatado pelo professor-pesquisador em estudo anterior (VITORINO, 2003).
Uma das conclusões a que se pode chegar a partir desse resultado diz respeito à necessidade
de se propiciar ao sujeito-leitor, principalmente aos que se encontram em processo de
formação inicial, condições mais adequadas para que possam ser discutidos os processos de
significação, em situação de ensino-aprendizagem. Por exemplo, do ponto de vista da AD,
pode-se promover uma ampla discussão sobre a historicidade do sentido, sobre o
funcionamento ideológico da linguagem, sobre uma suposta “estabilidade referencial”, entre
outras possibilidades. Convém ressaltar que refletir sobre a “historicidade do sentido”, para a
AD, não é estudar a “história refletida no texto”, mas sim a “historicidade do texto em sua
materialidade”, ou seja, “o acontecimento do texto como discurso” (ORLANDI, 2002, p. 68).
Mas não podemos ignorar, também, que lidamos com um conjunto de restrições que levam os
sujeitos a imaginarem que o melhor é assumir, em certas situações, uma atitude responsiva
passiva, e não ativa.
Na análise das “respostas” relativas à proposta de leitura II, sucintamente, o que se pôde
concluir a respeito de uma leitura mais direcionada, em que se apontam certas dimensões da
linguagem, são dados que nos levam às seguintes considerações:
(1) Dimensões da linguagem constitutivas do sentido (suporte, locutor,
estratégia textual, por exemplo) foram devidamente reconhecidas e
registradas, quando explicitadas nos próprios textos da proposta.
(2) Para a maioria absoluta dos Grupos A, B e C, os textos têm caráter
descritivo, argumentativo ou narrativo.
(3) Referências a tipologias heterogêneas também ocorreram, embora,
quantitativamente, pouco significativas. Para esse resultado, pode ter
contribuído o fato de que, no comando de leitura II, solicitou-se
menção à estratégia textual “dominante”.
(4) Os sujeitos-leitores tendem a estabelecer uma correlação imediata
título / gênero: 60% (textos 3 e 4), e mais de 60% (textos 1, 2 e 5).
(5) A oferta de informações teóricas mais pontuais sobre o processo
enunciativo-discursivo, sobre o gênero do discurso, bem como a
propósito de algumas faces do fenômeno dialógico, embora detalhadas
e sugestivas, não atuaram como elementos condicionadores dos
registros de leitura.
194
(6) No que se refere à figura do alocutário, houve grande variação e
até mesmo impropriedades. Provavelmente, teria concorrido para esse
resultado o fato de que essa era uma informação correlacionada a
cenografias engendradas pelos textos, discutidas no capítulo anterior.
(7) Quanto a conteúdo, priorizaram-se as informações básicas, a
exemplo de dados mais evidenciados na “superfície” dos textos, tal
como já ocorrera na atividade I
Vimos, anteriormente, que, na proposta II (atividade direcionada), ao contrário do exercício I
(exploratório), haviam sido explicitadas as categorias de análise, além de pressupostos
teóricos discutidos em classe, ao longo do Curso ora pesquisado. Isso foi feito com o intuito
de investigar se a explicitação de tais dimensões da linguagem favoreceria aos sujeitos-
leitores a percepção de outros efeitos de sentido, além da informação propriamente dita. A
despeito disso, constatou-se que a nova estratégia de leitura não contribuiu, efetivamente, para
que os sujeitos-leitores produzissem um registro de leitura, qualitativamente diferenciado, em
relação ao anterior (Proposta I). Embora tenham tido o cuidado de trazer para o registro
algumas peculiaridades dos cinco textos, no que se refere às categorias solicitadas, os sujeitos-
leitores não articularam tais dados à construção de novos efeitos de sentido.
Acerca desse resultado, certamente, estamos considerando o direcionamento dado à proposta
de leitura como um importante fator determinante tanto desse resultado (registros decorrentes
da proposta II) quanto do resultado antecedente (registros resultantes da proposta I),
principalmente, quando comparados a resultados de estudos investigativos anteriores
(VITORINO, 2003). Por exemplo, de um lado, quando se propõem comandos, a partir dos
quais se deve produzir um texto, os sujeitos tendem a gerar registros nos quais se consideram
certas dimensões constitutivas do sentido (manifestações dialógicas, por exemplo). Por outro,
quando se propõe um comando em que as categorias devem ser consideradas por meio do
preenchimento de lacunas deixadas propositalmente em aberto, os sujeitos tendem a não
articular tais dados, de forma a colocar em relação enunciado / enunciação.
E não se trata apenas de uma hipótese, mas sim de resultado de observações empíricas
realizadas pelo professor-pesquisador, em trabalho anterior (VITORINO, 2003). Por exemplo,
numa situação de estudo, em que também se investigava a leitura, do ponto de vista da
recepção, propôs-se aos sujeitos da pesquisa, naquela ocasião (graduandos em História),
uma atividade de leitura mais direcionada. O direcionamento dado, nesse caso, constituiu-se
195
de quatro questões em que foram apresentadas, progressivamente, orientações cada vez mais
precisas e específicas, de modo a ressaltar algumas categorias de análise. Nesse caso, tais
categorias não foram topicalizadas, nem postas em colunas, a exemplo da proposta II, que se
apresenta no início desta seção, mas sim evidenciadas em pequenos textos (comandos de
leitura).
Nessa ocasião, observou-se que o sujeito-leitor tende a ir mais adiante, fazendo uma leitura
mais atenta a diferentes dimensões da linguagem, quando submetido a novas condições de
produção de leitura. Pode-se, pois, afirmar que diferentes formas de explicitação das
categorias de análise nas propostas de leitura (em um pequeno texto / em colunas, por
exemplo) são fatores determinantes do direcionamento dado a registros de leitura. No entanto
não estamos considerando que apenas um registro mais cuidadoso garanta ao sujeito-leitor um
diálogo pleno com o texto, mas sim que tal fator pode ser um dos mais significativos meios
para que os sujeitos-leitores possam se envolver com a rede de textos de que se constitui um
texto, de forma a problematizar a leitura, a partir da própria posição de sujeito-leitor.
Todas essas considerações nos apontam para um fenômeno que não se pode negar, isto é,
pautando-se nos registros escritos, vê-se que a maioria absoluta dos sujeitos da pesquisa
parece não se dar conta de que o sentido é sócio-historicamente determinado. Considerando-
se, pois, o caráter de historicidade que caracteriza o funcionamento discursivo da linguagem,
essas são fortes evidências de que os sujeitos que emergem nos discursos são eles próprios
marcados pelo interdiscurso (exterioridade).
Para compreender esse fenômeno, no âmbito dos estudos do discurso, recorro a três conceitos
cujo tratamento dado à constituição do sentido nos permite compreender algumas distinções
bem específicas sobre as relações do sujeito com o processo de significação: i)
inteligibilidade; ii) interpretação; iii) compreensão
23
(ORLANDI, 2002, p. 26-28; 2005, p.72-
75). Valer-se da condição de inteligibilidade é referir o sentido apenas à língua. Interpretar é
referir o sentido ao co-texto (contexto linguístico). Já compreender é problematizar os
23
Sobre a abrangência das concepções de “interpretação e compreensão”, propostas por Orlandi (2002, 2005),
pesquisadora com a qual me alinho, neste estudo, parece-me conveniente ressaltar que tais conceitos, em alguns
estudos linguísticos, são propostos diferentemente. O que aqui se como “compreender”, concebe-se como
“interpretar” e vice-versa. Adoto a distinção proposta por Orlandi devido à produtividade dessa perspectiva para
a análise do corpus, no âmbito do quadro teórico adotado.
196
processos de significação, buscando compreender como os sentidos se constituem, a partir da
correlação enunciado / enunciação.
Assim, do ponto de vista discursivo, o sujeito-leitor, ao produzir sentidos, pode operar com: i)
o inteligível – atribuir sentido “atomizadamente”; ii) o interpretável atribuir sentido, a partir
de uma suposta “estabilidade referencial”, reproduzindo o supostamente já-lá-produzido, o
repetível (interdiscurso); iii) o compreensível atribuir sentido a partir de uma relação de
problematização com os próprios processos de significação. Dessa perspectiva, pode-se dizer,
sucintamente, que interpretar é produzir sentido a partir da própria posição de sujeito-leitor.
compreender é problematizar as próprias condições de produção de leitura. É saber que o
“sentido poderia ser outro” (ORLANDI, 2005, p. 73). De um lado, está o texto, resultado de
um processo de produção; do outro, está o sujeito-leitor, cuja função enunciativo-discursiva é
determinada sócio-historicamente.
Com base nessa distinção, pode-se dizer que a maioria dos registros escritos situam-se mais
próximo do que se denomina “interpretável”, considerando-se a dimensão discursiva da
linguagem. O que nos leva a tal afirmação é o fato de que a maioria parece ser resultante da
hipótese de que haveria uma relação imediata texto / sentido. Convém ressaltar que o
repetível, na ordem do discurso, refere-se a uma das “dimensões da historicidade”, isto é, ao
enunciável (ORLANDI, 2005, p. 68).
Dessa forma, para compreender possíveis fatores reguladores do sentido, convém recorrer a
reflexões que se centrem, de um lado, na ilusão da transparência da linguagem, de outro, nos
processos de produção do sentido. Para tanto, retomo os seguintes pressupostos teóricos:
i) Compreender é saber como um objeto simbólico (texto, por
exemplo) produz sentidos (ORLANDI, 2002, p. 26).
ii) Não se pensa o gênero como uma “unidade de base”, pois são
investidos de irregularidades (DOLZ e SCHEUWLY, 2004).
iii) As esferas sociais delimitam historicamente os discursos e seus
processos, particularmente, em relação à correlação instituições /
lugares / papéis sociais / representações (MATENCIO, 2006b).
iv) Os gêneros são dispositivos de comunicação constituídos sócio-
historicamente (MAINGUENEAU, 2004).
Articulando-se esse quadro teórico aos resultados obtidos, pode-se dizer que, para se alcançar
a compreensão (1), faz-se necessário investigar as irregularidades de que se investem os
197
gêneros do discurso (2), cuja identidade se constitui nas esferas sociais que delimitam os
discursos e seus processos, considerando-se a correlação instituições / lugares / papéis sociais
/ representações (3). Nessas instâncias, os textos se constituem gêneros do discurso, objetos
simbólicos sócio-historicamente constituídos (4). Sumariamente, temos o que se apresenta no
Quadro 11.
Princípios teóricos norteadores da produção do sentido: Princípio 8
Compreender é problematizar a correlação entre esferas sociais / instituições / lugares
/ papéis sociais / representações, instâncias, nas quais emergem as irregularidades,
intrínsecas aos gêneros do discurso, objetos simbólicos sócio-historicamente
constituídos.
Quadro 11: Princípio teórico norteador da produção do sentido – 8
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus articulados ao quadro teórico proposto
Nesta segunda parte do estudo, pudemos perceber que o princípios teórico 8, “regulador”
de/da leitura pelos sujeitos assim como os princípios de 1 a 7 também elaborados com
base na articulação resultados da atividade de leitura / quadro teórico proposto, não somente
nos leva a categorias centrais para a discussão teórica proposta, desde o início deste estudo,
como também trazem à tona outras categorias que nos permitem compreender fatores
determinantes do sentido, do ponto de vista da AD – legibilidade, interpretação, compreensão.
Como vimos, várias categorias explicitadas pelo professor-pesquisador, no formulário de
registro de leitura, não foram articuladas a outras dimensões da linguagem pelos sujeitos-
leitores. Em vista disso, algumas questões que se colocam novamente são: Por que tais
informações não teriam sido articuladas pelos sujeitos-leitores a outras dimensões do texto?
Por que a maioria teria feito registros dos quais emergiram uma leitura de caráter mais
intuitiva ou mesmo no nível do “interpretável”?
Se, por um lado, esses questionamentos ressaltam a necessidade de se atentar para uma
reflexão mais ampla sobre a constituição dos processos de significação, por outro, chama-nos
também a atenção para o destaque dado pelos sujeitos-leitores nos registros, ao caráter
repetível / enunciável. Em decorrência, o foco no tema / conteúdo / assunto (Proposta I) ou
mesmo o simples reconhecimento e menção a algumas dimensões da linguagem (Proposta II)
até podem ser vistos como ações significativas, porque, a partir desse referencial, pode-se
198
problematizar a correlação esferas sociais / instituições / lugares / papéis sociais /
representações / historicidade / sentido. De tal forma, pode-se também investigar alguns
aspectos condicionadores dos processos discursivos de significação, cio-historicamente
determinados e permeados por relações de força e poder. É o que procuraremos discutir na
próxima seção.
5.2 Sentido: posições ideológicas postas em jogo num processo sócio-histórico
Nesta seção, analisamos registros de leitura decorrentes da proposta de leitura III, terceira
etapa da coleta de dados. Essa proposta foi elaborada com base na seleção prévia de pequenos
enunciados, constitutivos de diferentes gêneros do discurso (charge, tirinha, propaganda,
poema, notícia, entre outros), emergentes dos domínios jornalístico, publicitário, literário.
Consideraram-se como parte dos critérios norteadores da seleção dos enunciados
constituintes da referida proposta as categorias: i) tipologia textual; ii) grau de
formalidade/informalidade da linguagem. Esses critérios se justificam porque, do ponto de
vista que adotamos, ocorre uma clara demarcação entre tipos textuais (narração, descrição,
dissertação, injunção, exposição) e gêneros discursivos (notícia, editorial, crônica, por
exemplo).
A esse respeito, convém esclarecer que não se pensou, de forma alguma, numa relação
imediata tipo / gênero, mas sim se atentou para esse critério como um dos fatores
determinantes para se chegar à “compreensão”, pois tal atividade supõe necessariamente uma
relação do sujeito com a língua / linguagem. Assim, embora não se considere um sentido
apenas a partir do linguístico, acreditamos que esse é um dos determinantes para se chegar à
significação. Além disso, dispositivos formais são também importantes pelo fato de nos
permitirem compreender melhor a relativa estabilidade dos gêneros, principalmente, no que
diz respeito, ao tema abordado (conteúdo), a sua estrutura composicional específica e ao
estilo (recursos lingüísticos e textuais). Com essa nova proposta, objetivou-se investigar o
sujeito-leitor correlacionando (ou não) a dimensão linguística do texto a outras dimensões da
linguagem a que essa materialidade poderia estar vinculada (situacional, institucional, sócio-
histórica), considerando-se que “não palavra que não seja emitida de um lugar e que não
convoque o interlocutor a um lugar correlativo” (MAINGUENEAU, 2000, p. 94).
199
Uma outra preocupação que também norteou a escolha dessa diversidade de gêneros é
também porque concebo a relevância de se pensar na formação do sujeito-leitor-professor. Já
em estudo anterior (VITORINO, 2003), procurei investigar a leitura no processo de formação
de graduandos de um curso de História. Um dos principais objetivos desse trabalho foi
nortear a atividade de leitura a partir de atividades pautadas num repertório de textos que
privilegiasse relações intertextuais explícitas. O principal intuito foi “favorecer aos sujeitos-
leitores a construção de uma leitura deslinearizada, múltipla” (p. 23).
Por esse olhar, pode-se ver o sujeito-aluno, professor em processo de formação inicial,
submetendo-se ou não a sentidos já legitimados nas práticas sociais. Pensa-se, principalmente,
na formação do professor cujo objeto de reflexão e estudo se situa não apenas no contato com
a diversidade textual, mas, sobretudo, na possibilidade de, a partir desse universo, investigar
o funcionamento discursivo da compreensão. Para tanto, é preciso levar em conta questões
relativas à determinação sócio-histórica dos processos de significação, isto é, compreender é
produzir sentido “a partir de uma relação de problematização com os próprios processos de
significação” (ORLANDI, 2005, p. 74).
Para esta parte do estudo propriamente, levamos em conta o princípio, segundo o qual as
pessoas, ao falarem, estão submetidas a procedimentos de controle pelo simples fato de que o
que dizem subordina-se a um lugar, a uma instituição, a uma ordem um dos sistemas de
exclusão (FOUCAULT, 2004 [1971], p. 9). Cabe, pois, a âmbitos ditos institucionalizados, o
controle, a regulação do dizer, sobretudo, quando se defrontam duas forças o poder e o
desejo. Desse ponto de vista, “não se tem o direito de dizer tudo, não se pode falar de tudo em
qualquer circunstância”, pois “qualquer um não pode falar de qualquer coisa” (FOUCAULT,
op. cit.). Assim, se “o discurso está na ordem das leis”, (op.cit. p. 7), a que “ordem(lugar
institucional, domínio discursivo, gênero do discurso, por exemplo) poderia estar subordinado
cada um dos textos que constituíram a proposta de leitura III?
Quando propusemos esse questionamento aos sujeitos da pesquisa, assumimos a perspectiva
bakhtiniana segundo a qual o enunciado é um acontecimento único, aberto à repetição, à
transformação, à reativação, que, por sua vez, se constitui com base num contexto situacional
imediato, sócio-histórico, ideológico. os sentidos não são vistos como propriedades dos
enunciados, mas sim construídos / produzidos a partir deles, num confronto de relações sócio-
historicamente fundadas, o que, inevitavelmente, nos remete às instituições. Dessa
200
perspectiva, perguntou-se aos sujeitos da pesquisa: A que “ordem” poderiam estar
subordinados vários enunciados, dentre eles, o que se apresenta no Quadro 12, a seguir?
Enunciado constitutivo da proposta de leitura III
Nada de iogurte, refrigerantes, bolachas com recheio
24
Quadro 12: Enunciado apresentado aos sujeitos da pesquisa, na proposta de leitura III
Fonte: Elaboração própria a partir do quadro teórico adotado
Sobre o enunciado do Quadro 12, solicitou-se aos sujeitos-leitores que respondessem,
hipoteticamente, às seguintes questões: Quais seriam seus prováveis interlocutores? De que
domínio teria emergido ou poderia emergir (jornalístico? publicitário? literário?) Em que
gênero poderia se configurar?.
Para se evitar uma dispersão na análise dos inúmeros dados decorrentes dessa proposta,
optou-se por investigar, nesta seção, registros de apenas um dos textos oferecidos à leitura:
“Nada de iogurte, refrigerantes, bolachas com recheio”. O principal intuito dessa análise é
reiterar, ampliar e/ou expandir as conclusões iniciais obtidas, considerando-se a leitura de
um novo gênero do discurso. Nessa proposta, o professor-pesquisador solicitou / explicou aos
sujeitos-leitores que investigassem e registrassem no formulário as categorias solicitadas,
pensando-se, hipoteticamente, numa possibilidade de funcionamento desse texto em um dado
contexto situacional / sócio-histórico. Segue-se, no Quadro 13, o formulário adotado para o
registro de leitura decorrente da terceira proposta.
Proposta de leitura III
24
No formulário de registro de leitura, as condições de produção e circunstâncias de enunciação do referido
enunciado não se encontravam, propositalmente, contempladas.
201
Texto
Lugar institucional
dos sujeitos envolvidos
Professor?
Jornalista? Mãe?
Aluno? Juiz?, etc.
Domínio discursivo
Jornalístico? Literário?
Publicitário?, etc.
Gênero discursivo
Em que gênero poderia
se configurar?
Nada de iogurte,
refrigerante, bolachas
com recheio.
Quadro 13: Enunciado e categorias apresentadas aos sujeitos da pesquisa, na proposta de leitura III
Fonte: Elaboração própria a partir do quadro teórico adotado
A partir dessas categorias, objetivou-se investigar os sujeitos-leitores estabelecendo (ou não)
uma possível correlação texto / locutor, alocutário / domínio discursivo / gênero do discurso,
pensando-se na natureza sócio-histórica dos sentidos, e num sujeito discursivo, descentrado,
movido pelo inconsciente e pela ideologia (AUTHIER-REVUZ, 1982). Essa reflexão foi
proposta porque, do ponto de vista adotado, as pessoas, ao falarem, submetem-se a
procedimentos de controle, de organização e até mesmo de distribuição e de redistribuição de
seus dizeres, uma vez que os enunciados submetem-se a leis que regulam seu funcionamento
(FOUCAULT, 2004). Por conseguinte, regulam o discurso, isto é, a atividade de sujeitos
inscritos em contextos determinados
25
(MAINGUENEAU, 2000, p. 47).
Sobre o enunciado em destaque na proposta III, em que se desconsiderou propositalmente as
circunstâncias imediatas de sua enunciação, parece tratar-se de um enunciado que, como
qualquer enunciado, pode sofrer certas interdições quanto à correlação tabu / ritual / sujeito.
Submetendo-se esse texto a “princípios externos de controle do discurso”, isto é, a leis que se
submetem às instituições, as quais controlam os discursos (FOUCAULT, op.cit.)
26
, os sujeitos
da pesquisa levantaram, por solicitação do professor-pesquisador, algumas hipóteses que
poderiam estar envolvidas no processo enunciativo-discursivo desse enunciado. Vejamos as
hipóteses levantadas pelos sujeitos da pesquisa 49 participantes, considerando-se os Grupos
25
.
Em nossa sociedade, há mecanismos de exclusão que envolvem tabu do objeto, ritual da circunstância, direito
privilegiado do sujeito (FOUCAULT, 2004/ [1971], p. 9), os quais formam uma grade complexa e mutável,
colocando em jogo poder e desejo.
26
Foucault (2004) trata, também, de princípios internos de controle do discurso, aspecto que não será abordado
neste estudo.
202
A, B, C e a terceira etapa da coleta de dados. A propósito do item “lugar institucional dos
sujeitos envolvidos”, uma das categorias solicitadas no formulário, os dados obtidos estão
explicitados na Tabela 12, que se segue.
Tabela 12: Dados do corpus a propósito da categoria “lugar institucional” – Grupos A, B e C
Proposta de leitura III
Lugar institucional
Grupos A, B C
Menções
Proporção
01. médico /paciente 23/49 46,9%
02. mãe/ filho 19/49 38,9%
03. nutricionista/cliente 04/49 8,2%
04.repórter/ telespectador 01/49 2,0%
05. mãe/aluno 01/49 2,0%
06. escola / estudante 01/49 2,0%
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
Em 12, é possível observar que “médico / paciente” (46,9%), “mãe / filho” (38,9%) e
nutricionista / cliente (8,2%) foram as hipóteses mais citadas, em se tratando da categoria
“lugar institucional” – um total de 94%. Vejamos tais dados representados no Gráfico 12.
203
46,9%
38,9%
8,2%
2,0% 2,0% 2,0%
médico / paciente mãe / filho nutricionista /
cliente
repórter /
telespectador
mãe / aluno escola /
estudante
GRUPOS A, B e C
Gráfico 12: Dados do corpus a propósito da categoria “lugar institucional” – Grupos A, B e C
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus
Teria concorrido para os resultados apresentados na Tabela 12 e no Gráfico 12,
respectivamente, o fato de a maioria dos sujeitos da pesquisa ser do sexo feminino (mais de
80%)? Essa é uma questão que ficou em aberto. Mas em caso afirmativo, tal situação
denunciaria, de alguma forma, a sujeição desse público ao discurso da perfeição estética / da
saúde (cena englobante). “reportagem/telespectador” foi a menção menos previsível. A
despeito disso, também poderia se enquadrar nessa mesma cena englobante, assim como as
duas outras menções (mãe/aluno, escola/estudante).
No que se refere à categoria “gênero discursivo”, perguntamos aos sujeitos da pesquisa: “Em
qual gênero o enunciado poderia se configurar?”
27
A esse respeito, os registros apontaram os
27
Optou-se por trabalhar, nesse caso, com a categoria “gênero”, embora tal conceito pudesse não abranger
exatamente o essencial da informação proposta, que, por sua vez, engloba a idéia de “recomendação/conselho
médico”. Tal escolha se deve, especialmente, a duas razões. Por um lado, os participantes da pesquisa não
haviam trabalhado em classe, até o momento da coleta de dados, qualquer noção sobre a “força ilocucional” dos
enunciados, embora, intuitivamente a tenham apontado nos registros escritos. Por outro, estudos sobre
especificidades do texto chárgico, gênero no qual se inscreve o enunciado proposto, vinha sendo objeto de
investigação e reflexão por parte desses mesmos sujeitos, ao longo de todo o semestre. Não se desejava, pois, no
instante da coleta de dados realizar um trabalho de investigação com base em conceitos ainda não discutidos
pelos informantes dos dados, embora se reconheça a relevância e mérito da perspectiva não adotada.
204
seguintes dados: i) conselho médico, aviso, bilhete (Grupo A); comunicado, bilhete, diálogo
(Grupo B); recomendação médica, conversa, bilhete, diálogo, receita (Grupo C). Essas foram
as denominações mencionados nos registros, levando-se em conta os três grupos. Nesse
universo, os nomes mais evidenciados quantitativamente foram “bilhete” e “diálogo”. No
entanto o termo “bilhete” foi o único mencionado nos três níveis. Com esse resultado, não se
pode dizer que os sujeitos da pesquisa ignorem a concepção de gênero do discurso
propriamente, mas sim que eles se mantêm no âmbito do “repetível”, quando se trata de uma
possível hipótese sobre a configuração do texto apresentado.
no que diz respeito à categoria “domínio discursivo”, houve uma dispersão generalizada.
Os sujeitos ora apontam para gênero (bilhete, conselho, conversa oral, diálogo informal,
receituário, por exemplo), ora para linguagem (informal, coloquial, informalidade,
informativo, indireto livre, entre outros) ou modo verbal (imperativo). Por fim, registros
indicativos do domínio propriamente dito (literário, acadêmico, jornalístico, por exemplo),
mas constituem-se quase uma exceção no corpus. Por esse resultado, pode-se dizer que o
conceito de “domínio discursivo” ainda se encontrava em aberto para a grande maioria dos
sujeitos da pesquisa.
Ainda sobre esse resultado evidenciado na Tabela 12 convém lembrar que,
propositalmente, os sujeitos da pesquisa não tiveram acesso a quaisquer referências que os
levassem às condições de produção / circunstâncias de enunciação do texto em foco. A
predominância das hipóteses apresentadas pode nos oferecer algumas possibilidades para que
possamos compreender a correlação entre texto/contexto/sujeito/sentido. Esse resultado
também evidencia o fato de que um determinado enunciado parece ser feito sob medida para
circular em certos lugares, para ser dito por certas pessoas, e possibilitar certos sentidos e não
outros.
Por exemplo, se observarmos atentamente os dados apresentados no Gráfico 12, podemos
constatar que a maioria absoluta dos alunos (94%) remeteu o enunciado a dois diferentes
domínios discursivos discurso da perfeição estética, discurso da saúde. Tal fato demonstra
que os sujeitos da pesquisa teriam sido movidos pela sua relação com a historicidade do
discurso. Isso nos leva a afirmar que os sujeitos-leitores levantam hipóteses de sentido a
partir do plano do interdiscurso. No quadro teórico da AD, falar de um certo lugar significa
inserir-se em uma formação discursiva (FD), ou seja, aquilo que numa formação ideológica
dada, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada determina o que
205
pode e deve ser dito” (PÊCHEUX, 2001 [1975], p. 166). Nesse sentido, as regras do dizer
podem estar condicionadas, entre outros mecanismos, pelos lugares sociais de onde se fala,
cujos domínios são constituídos institucionalmente. Considerando-se esse mesmo princípio,
os resultados obtidos evidenciam posições sócio-culturais e ideológicas assumidas pelos
sujeitos, mesmo que não se dêem conta disso. Assim, ao levantarem hipóteses sobre o
funcionamento de um dado texto em uma instância enunciativa, os registros de leitura nos
mostraram que os sujeitos-leitores:
(1) Não tenderiam a provocar maiores deslizamentos de sentido e/ou
rupturas, quando se situam na posição de sujeitos-alunos-leitores, na
esfera acadêmica, em situação de ensino-aprendizagem.
(2) Estariam submetidos a coerções anônimas, históricas, tendo, por
isso, evidenciado sentidos já cristalizados.
(3) Não ignorariam a concepção de gênero do discurso propriamente,
mas se mantêm no âmbito do “repetível”, a propósito de uma possível
configuração / reconfiguração de um dado texto em um gênero do
discurso.
(4) Desconheceriam a abrangência do conceito de “domínio
discursivo”.
Orientando-me por essa constatação, busco compreender fatores reguladores da produção do
sentido. Para isso, retomo/proponho alguns pressupostos teóricos nos quais me baseio ao
discutir essa dimensão da linguagem:
i) O sujeito, um ser ideológico, é marcado pela historicidade. Seus
dizeres são recortes das representações de um tempo e de um espaço
social. (BRANDÃO, 1998)
ii) O mesmo leitor não o mesmo texto da mesma maneira e em
condições distintas de produção de leitura. (ORLANDI, 2001)
iii) Todo o funcionamento da linguagem se assenta na tensão entre
processos parafrásticos estabilização, memória e processos
polissêmicos – deslocamentos, rupturas. (ORLANDI, 2002)
A partir deste quadro teórico e dos resultados obtidos, pode-se afirmar que compreender é
problematizar os dizeres (1), os quais são recortes de representações situadas em um tempo e
espaço (2), resultantes de condições distintas de leitura (3), pautadas na tensão entre
206
processos parafrásticos e processos polissêmicos. Sucintamente, temos o que se apresenta no
Quadros 14.
Princípios teóricos norteadores da produção do sentido: Princípio 9
Compreender é problematizar os dizeres, que, por sua vez, são recortes de representações
situadas em um tempo e espaço, resultantes, pois, de condições distintas de leitura,
pautadas na tensão entre processos parafrásticos e polissêmicos.
Quadro 14: Princípio teórico norteador da produção do sentido – 9
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus articulados ao quadro teórico adotado
Sobre a produção do sentido, que se considerar, também, o sistema de dispersão e
regularidade de que se investem os textos. Dessa perspectiva, sempre que se puder descrever,
entre certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão e se puder definir uma
regularidade uma ordem, correlações, posições, funcionamentos, transformações entre os
objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, teremos uma formação
discursiva (FOUCAULT, 1986/1969, p. 43). Assim, dispersão e regularidade, envolvendo
certo número de enunciados nos remetem a uma mesma FD. Pressupõe-se, desse modo, que o
sistema de dispersão e regularidade deve ser descrito com base em “certo número de
enunciados”, considerando-se os “tipos de enunciação”, entre outras questões. Como a
enunciação também é vista, neste estudo, como o singular, o irrepetível, o acontecimento
condicionado sócio-historicamente (DUCROT, 1984), haveria como descrever
regularidade/dispersão com base em processos enunciativos vários.
Considerando-se essa abrangência da noção conceitual de FD, pode-se dizer que os sujeitos
da pesquisa não teriam como colocar em paralelo um “certo número de enunciados”, nem o
sistema de dispersão/regularidades em que poderia estar envolvido o texto “Nada de iogurte,
refrigerante, bolachas com recheio”, em diferentes circunstâncias enunciativas, porque
dispunham apenas desse enunciado, sem qualquer outra referência às suas condições de
produção / circulação. E esse foi justamente um direcionamento proposital dado a essa
atividade pelo professor-pesquisador. Desejou-se, com isso, investigar a percepção do sentido
por parte dos sujeitos-leitores, considerando-se apenas pistas linguísticas / textuais. Essa
poderia ser também uma oportunidade para investigar se ocorreria (ou não) o levantamento de
hipóteses com menor grau de previsibilidade sobre possíveis instâncias de funcionamento
desse texto. Mas é preciso pensar também que mesmo os sentidos mais previsíveis poderão
207
não se confirmar, quando desconsideradas algumas dimensões do processo enunciativo, tais
como as sociais, ideológicas, culturais, por exemplo.
Partindo-se, então, das hipóteses apresentadas pelos sujeitos da pesquisa, na Tabela 12,
colocamos em pauta a seguinte reflexão: i) Por que esse enunciado estaria investido dessa
significância e não de outra(s)?; ii) Quais não-ditos estariam silenciados pelo não-dizer
(silenciamento)?. Vimos que a maioria absoluta dos sujeitos-leitores, quando questionados,
fizeram remissão do enunciado proposto a um dos seguintes domínios (cena englobante):
discurso da perfeição estética, discurso da saúde. Ao efetivar tal referência nos registros, o
sujeito-leitor trouxe à tona a condição de sujeito assumida na FD que o teria interpelado, de
forma a levá-lo à nomeação destes alocutários: paciente, filho, telespectador, cliente, por
exemplo. Nesse caso, a representação de alocutário construída é a de pessoas que, por algum
motivo, deveriam se submeter a uma espécie de dieta, que lhes proibiria, taxativamente, o
consumo de alguns alimentos considerados guloseimas iogurte, refrigerantes, bolachas
recheadas, por exemplo. A representação do possível locutor, por sua vez, é a de alguém cuja
posição ocupada institucionalmente lhe autoridade para assumir aquele dizer médico,
nutricionista, mãe. Por que a figura do “pai” não teria sido lembrada sequer uma única vez,
em quarenta e nove menções? Esse é um ponto que a AD situa no âmbito do não dito / do
silenciamento. Para a AD, “todo dizer tem relação com o não dizer” (ORLANDI, 2002, p.
82). Desse ponto de vista, quando se diz “mãe”, dizer presentificado no formulário, informa-
se, em decorrência, o que foi esquecido o termo pai. Esse não dito (pai), por sua vez, se
sustenta na memória discursiva, no interdiscurso. Nesse caso, equivale à posição discursiva
assumida, e não a uma simples escolha lexical. Tal fato evidencia, também, a representação
sustentada pelos sujeitos da pesquisa sobre as possíveis relações mãe/pai/filho.
Para ampliar essa discussão, partimos do princípio segundo o qual “toda formação discursiva
dissimula pela transparência do sentido que nela se constitui sua dependência com respeito ao
‘todo complexo com dominante’ das formações discursivas”
(PÊCHEUX, 1997 [1975], p. 162,
aspas do autor
)
. Uma FD pode compreender várias formações ideológicas
um conjunto de
atitudes, representações, imagens que os falantes têm sobre si próprios, sobre seu interlocutor,
sobre o próprio referente
(BRANDÃO, 2008, p. 30).
No dizer de Pêcheux (op. cit.), “todo
complexo com dominante” equivale a interdiscurso (1997, p. 162). Já Foucault (op. cit.) se
vale da expressão “sistema de dispersão”. As duas noções conceituais nos remetem à
heterogeneidade discursiva, às distintas formações discursivas de que se constitui uma FD,
208
embora regidas pela força do imaginário da unidade (regularidade). Essa confluência entre os
dois autores não se sustenta plenamente em Maingueneau (2000).
Para Maingueneau (op. cit.), a maneira pela qual apreendemos as formações discursivas oscila
entre uma “concepção contrastiva” em que cada uma é pensada como um “espaço autônomo”
posto em relação com outros e uma “concepção interdiscursiva” para a qual uma formação
discursiva se constitui e se mantém através do interdiscurso (p. 69). Embora se valha da
concepção de interdiscurso, confluindo, nesse ponto, para os mesmos fundamentos teóricos de
Foucault (op. cit.) e de Pêcheux (op. cit.), faz isso em função de uma noção de contraste para
a compreensão de uma FD espaço autônomo em relação a outros versus concepção
interdiscursiva. Nesse caso, propõe um conceito de FD ora oscilante entre a dependência /
autonomia de sua relação com a exterioridade (o interdiscurso, a memória do dizer, o contexto
enunciativo historicamente determinado), ora se constituindo apenas nessa relação com
discursos outros. Desse ponto de vista, os sujeitos da pesquisa ao remeterem o enunciado da
proposta III ao discurso da estética, da saúde, teriam se ancorado prioritariamente numa
dimensão “interdiscursiva”. Por esse olhar, um texto não provém do nada, pois sua origem
revelaria sua relação com um domínio histórico e culturalmente situado.
Maingueneau considera também que “os sujeitos reconhecem e produzem enunciados que
pertencem a esta ou aquela formação discursiva” (1997, p. 105). Quando diz “produzem
enunciados que pertencem a esta ou aquela formação discursiva”(grifo meu), a forma verbal
“pertencem” pode nos sugerir um efeito de sentido que vimos questionando, neste estudo, isto
é, se “pertence a”, o enunciado já nasceria previamente assujeitado a uma determinada
formação discursiva. Nesse caso, não se considerariam outras dimensões do processo de
significação? E as determinações sócio-históricas na constituição do sentido e dos sujeitos?
Se não considerarmos esse quadro, um conjunto de dimensões em que a linguagem não se
como evidência não seria levado em conta.
Vimos defendendo ao longo deste texto, uma relação de constutividade entre enunciado /
enunciação / sentido. Dessa forma, a relação tempo / lugar / circunstância em que um
determinado enunciado foi proferido é irrepetível em sua totalidade. Não há mais como
proferi-lo de modo idêntico, porque sua totalidade se perdeu no tempo, embora recente. Se
a enunciação conhece o presente porque ocupa um lugar determinado no tempo / espaço /
circunstância, certas condições para se dizer que um determinado enunciado nos remete a
uma certa FD e não à outra, veicula um certo discurso e não outro, produz certos efeitos de
209
sentido e não outros: i) condições enunciativas (pressupostos, instâncias enunciativas,
polifonia, entre outras); ii) condições históricas (formações discursivas, formações
ideológicas, heterogeneidade discursiva, interdiscurso, por exemplo).
Concebendo-se o discurso como efeitos de sentido entre interlocutores (PÊCHEUX,
2001[1975], todos esses conceitos passam a ser centrais para a compreensão da relação de
um discurso com outros discursos, e, por extensão, da produção do sentido. Dentre esses
conceitos, destaco o de interdiscurso, porque nos permite observar o sujeito atribuindo
sentido a partir de um conjunto de saberes compartilhados pelos indivíduos, com base numa
“exterioridade já-dita”, ou ainda como um “efeito de pré-construído” e “espaço de memória
no acontecimento” (GUIMARÃES, 2005, p. 70). Desse modo, podemos compreender
delimitações das relações de aproximação de determinados enunciados a certas FDs e não a
outras. Nesses termos, proponho pensarmos o funcionamento do enunciado “Nada de iogurte,
refrigerantes, bolachas com recheio”, hipoteticamente, em novas condições enunciativo-
discursivas. Após, podemos fazer um paralelo entre os dados apresentados no Tabela 12,
pelos sujeitos da pesquisa, em face dos propostos pelo professor-pesquisador, no Quadro 15,
seguinte.
Sociedade, discurso e interdição: Procedimentos externos de controle do discurso
Texto
Lugar institucional
ocupado pelos
interlocutores
(Quem fala?)
Instituição
(De onde fala?)
Domínio discursivo
Nada de iogurte,
refrigerantes, bolachas
com recheio.
Funcionário público
municipal /
Família carente
Governo municipal Político
Quadro 15: Procedimentos externos de controle do discurso
Fonte: Elaboração própria a partir do quadro teórico adotado
Considerados os dados apresentados no Quadro 15, quando se remete o texto ao discurso
político, e, colocando-os em paralelo aos dados da Tabela 12 (discurso da estética / da saúde),
pode-se dizer que, quando se pensou o funcionamento de um mesmo enunciado em outras
condições enunciativas, evidenciaram-se, pelo menos, dois fatores determinantes do sentido:
i) novas circunstâncias da enunciação; ii) mudança de posição social dos parceiros envolvidos
210
no processo enunciativo de médico/paciente, mãe/filho para funcionário público / família
carente. Esse foi um dos principais motivos que nos levaram a incluir tais categorias no
formulário de registro da proposta III.
Para entendermos discursos veiculados nos textos, podemos também nos perguntar: Quais
fatores regulariam a restrição temática? Considerados os dados apresentados pelo professor-
pesquisador, no Quadro 11, veremos que um dos mais importantes fatores a regular a restrição
temática é o próprio processo enunciativo. Obviamente, a partir desse raciocínio, um
enunciado podenos remeter a uma FD, a um domínio discursivo, se consideradas certas
condições enunciativas.
Quanto à regulação dos sentidos a serem construídos sob certas condições de
tempo/lugar/circunstância (ritual de que se investe), uma restrição do discurso proposta por
Foucault (op. cit.), ocorre quando o próprio sujeito, valendo-se, por exemplo, de sua
legitimação num novo lugar social, numa atividade interativa, pode se valer de seu “poder”
nessa nova circunstância para produzir certos efeitos de sentido e não outros. sobre a
disponibilização da palavra, trata-se uma questão de posição do sujeito, uma vez que a
simples mudança de posição dos parceiros envolvidos no processo enunciativo, pode ocorrer
durante o próprio processo, e não necessariamente precedê-lo, tal como ocorre em tantas
situações de interação em que os papéis comunicativos do sujeito podem se deslocar com
certa frequência. No Quadro 16, que se segue, poderemos ver dados propostos pelo professor-
pesquisador, resultantes do funcionamento do enunciado anterior, em um outro processo
enunciativo. Os dados registrados também nos sugerem a possibilidade de seu funcionamento
em um novo domínio discursivo. Vejamos.
Sociedade, discurso e interdição: Procedimentos externos de controle do discurso
Texto Lugar institucional
ocupado pelos
interlocutores
(Quem fala?)
Instituição
(De onde fala?)
Domínio discursivo
Nada de iogurte,
refrigerantes,
bolachas com
recheio.
Top model
/agenciador
Agência de moda
Discurso da
perfeição estética,
da beleza plástica
Quadro 16: Procedimentos externos de controle do discurso
Fonte: Elaboração própria a partir do quadro teórico adotado
211
Delineia-se, em 16, a remissão ao discurso da perfeição estética, da beleza plástica, assunto
tão ao gosto de praticamente todos os domínios midiáticos na atualidade, aliás, fato também
apontado pelos sujeitos da pesquisa, na Tabela 12. Sendo assim, reafirmamos que, para a
compreensão do processo de produção do sentido, desse ponto de vista, é preciso pensar na
figura de um sujeito discursivo, descentrado, movido pela ideologia, situação em que a
condição sócio-histórica institucional (exterioridade) em que emerge um determinado texto é
constitutiva de seu sentido e a linguagem não se reduz a um nível meramente linguístico. No
que tange a promover ou não deslocamentos de sentido / rupturas, no processo de significar
um dado texto, os resultados obtidos situaram-se no seguinte quadro:
(1) A maioria absoluta dos sujeitos da pesquisa tendem a remeter um
dado enunciado a um discurso consagrado pelo uso, porém, mesmo
sentidos usuais, somente se confirmarão num dado processo
enunciativo.
(2) Ao significar, o sujeito assume a posição de sujeito-aluno,
evidenciando a FD que o teria interpelado.
(3) Novas circunstâncias de enunciação e mudança de posição dos
parceiros envolvidos no processo enunciativo são fatores
determinantes do sentido.
(5)Um dado texto, ainda que deslocado de seu contexto (imediato,
sócio-histórico), evoca sua relação com um domínio histórico e
culturalmente situado.
Esses resultados nos evidenciaram um alto grau de previsibilidade, no processo de
significação. Trata-se de uma leitura do âmbito do “legível”, do “interpretável”, e não do
“compreensível”. Vê-se, assim, que o sujeito lê como se houvesse um já-lá-construído, um já-
lá demarcado ideologicamente no próprio texto, bastando, para isso, apenas recobrar dados da
memória discursiva, do interdiscurso. Trata-se, assim, de uma leitura de caráter mais intuitivo,
tal como ocorrera, nas duas etapas anteriores. Na verdade, apenas salienta sua condição de
sujeitos-leitores participantes de práticas sócio-historicamente situadas. Mas a Análise do
Discurso dispõe de outras categorias que nos permitem investigar o funcionamento discursivo
do texto, como, por exemplo, a noção conceitual de “compreensão” sobre a qual refletimos
anteriormente. Compreender um texto é diferente de interpretar. Interpretar é valer-se do
repetível. Compreender é problematizar / desautomatizar a relação enunciação / enunciado /
sentido (ORLANDI, 2005, p. 72-75). Com um propósito parcialmente conclusivo, retomo o
212
seguinte quadro teórico, para, em seguida, estabelecer uma articulação entre os resultados
obtidos e esse referencial.
i) Compreender é cotejar com outros textos e pensar num contexto
novo, considerando-se o meu contexto, o contexto contemporâneo, o
contexto futuro. É ter a sensação de que estou dando um passo novo,
de que me movimentei (BAKHTIN, 2000, p. 404).
ii) Os sentidos são muitos, mas sempre um enunciável
(preexistente), e é a partir dele que cada um pode intervir (ORLANDI,
2005, p. 69).
iii) O processo de significação, embora aberto, é regido, é
administrado. O lugar do movimento é também o lugar do trabalho da
estabilização e vice-versa. (ORLANDI, 2004b, p. 13).
Articulando-se esse referencial teórico aos resultados obtidos no que diz respeito à terceira
etapa da coleta de dados, podemos afirmar que compreender é intervir no interpretável, por
meio de gestos de compreensão (1), de modo a movimentar os sentidos (2), que são abertos,
mas regulados pelo próprio processo enunciativo (3).Em ntese, temos o que se apresenta no
Quadro 17.
Princípios teóricos norteadores da produção do sentido: Princípio 10
Compreender é intervir no interpretável, por meio de gestos de compreensão, de modo a
movimentar os sentidos, que são abertos, mas regulados pelo próprio processo enunciativo.
Quadro 17: Princípio teórico norteador da produção do sentido - 10
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus articulados ao quadro teórico adotado
De fato, é evidente o processo de reconfiguração a que, geralmente, pode estar submetido o
interdiscurso, o que leva a FD a “incorporar elementos pré-construídos produzidos fora dela”,
redefinindo-a, redirecionando-a (MAINGUENEAU, 1997, p.113.). Tal fenômeno foi bastante
evidenciado, neste estudo, quando se apresentaram algumas hipóteses para o funcionamento
do texto Nada de iogurte, refrigerante, bolachas com recheio”, no Quadro 10 (sujeitos da
pesquisa) e nos Quadros 13 e 14 (professor-pesquisador). Essa possibilidade põe em
evidência o pressuposto de que a redefinição e o redirecionamento de uma FD ocorre,
sobretudo, com base em níveis extralinguísticos (pré-construídos, já-ditos, conjuntura sócio-
histórica). Vejamos uma outra possível situação, no Quadro 18.
213
Sociedade, discurso e interdição: Procedimentos externos de controle do discurso
Texto
Lugar institucional
ocupado pelo
interlocutores
(Quem fala? Para quem
fala?)
Instituição
(De onde fala?)
Domínio discursivo
Nada de iogurte,
refrigerantes,
bolachas com
recheio.
Funcionário público
municipal /
família carente
agenciador / top
model
Governo municipal /
Agencia de moda
Político/da perfeição
estética / da beleza
plástica
Quadro 18: Procedimentos externos de controle do discurso
Fonte: Elaboração própria a partir do quadro teórico adotado
No Quadro 16, observam-se dados propostos pelo professor-pesquisador, que poderiam ser
resultantes de um possível funcionamento do mesmo enunciado em uma outra instância
enunciativa, isto é, um âmbito que abrangeria, ainda hipoteticamente, agora, em caráter de
simultaneidade, a figura dos dois pares de interlocutores, já mencionados nos Quadros 13 e
14. Esse novo funcionamento apontado em 16 poderia ser explicado, nos moldes
foucaultianos, como um provável exercício da função enunciativa, que, por sua vez, é regido
por um conjunto de “regras anônimas, históricas, determinadas no tempo e no espaço”
(FOUCAULT, 1986, p. 133). Tal processo enunciativo, numa perspectiva discursiva, poderia
ser perfeitamente legitimado, que as práticas discursivas são dinâmicas, e, por isso, podem
resultar em novos movimentos de sentido. Tomando-se, então, prática discursiva, a exemplo
de Foucault (op. cit.), além de Brait (2008), como sendo uma “produção verbal ou verbo-
visual, necessariamente inserida em determinada esfera” (p. 18), a qual “possibilita e
dinamiza sua existência”, além de interferir diretamente em suas “formas de produção,
circulação e recepção” (op. cit.), pode-se compreender o processo de produção de
determinados textos que emergem a partir de determinada esfera discursiva”, ideológica, tal
como o que se segue, no Quadro 17. Esse texto coloca em cena um sujeito-locutor que ocupa,
num dado jornal, a posição de chargista. Esse chargista, marcado pela historicidade, e,
dividindo o espaço de seu discurso com leitores do jornal Folha de São Paulo, propôs-lhes o
seguinte texto:
214
Figura 6: Charge
Fonte: Folha de São Paulo, sábado, 1º de fevereiro de 2003, A2
Este é o texto de onde o professor-pesquisador extraiu o enunciado “Nada de iogurte,
refrigerante, bolachas com recheio”, parte constitutiva desta charge, publicada em 1º de
fevereiro de 2003, no Folha de São Paulo, e apresentada para leitura aos sujeitos da pesquisa,
na proposta de leitura III. Nessa charge, o sujeito-chargista provocou um surpreendente
deslocamento de sentidos, que nos é sugerido por diferentes movimentos do mesmo
enunciado, com base no imbricamento de duas diferentes instâncias enunciativas. Como os
dois quadros da charge ocupam, neste texto, espaços físicos quantitativamente semelhantes,
não se pode dizer que o sujeito-chargista tenha privilegiado qualquer das duas situações,
principalmente, quando se pensa na não linearidade da leitura.
A partir desse exemplo, podemos considerar que os sujeitos estão investidos de uma
“potencialidade significativa”. Assim, assumindo determinados lugares discursivos, o sujeito
faz circular os sentidos, situando-se numa determinada FD, incorporando elementos pré-
construídos, produzidos fora dela, e, a partir deles, pode provocar sua redefinição e
redirecionamento, tal como ocorreu na constituição do texto chárgico anterior. Nesse caso,
215
pode suscitar, igualmente, o chamamento de seus próprios elementos para organizar sua
repetição, mas também provocando, eventualmente, o apagamento, o esquecimento ou mesmo
a denegação de determinados elementos (MAINGUENEAU, 1997, p. 113).
Vê-se que, ao serem colocadas lado a lado, no texto chárgico, as duas instâncias enunciativas
não se mantêm isoladas, ao contrário, se aliam e se inscrevem / são inscritas numa nova
instância enunciativo-discursiva em que dois âmbitos se intercruzam, permitindo ao sujeito-
leitor a percepção de novos efeitos de sentido, em decorrência da inscrição do texto num outro
domínio discursivo sócio-historicamente situado, conforme se pode ver no Quadro 19.
Sociedade, discurso e interdição: procedimentos externos de controle do discurso
Lugar institucional
ocupado pelos
interlocutores
(Quem fala? Para quem fala?)
Instituição
Domínio discursivo
Efeitos de sentido
Chargista / leitores do
Folha de São Paulo
Jornal Folha
de
São Paulo
Jornalístico,
Mídiático
Denuncia-se a
suscetibilidade do homem
à influência do outro, onde
quer que se situe, num
mundo miserável, ou, ao
contrário, num universo
glamoroso, sedutor.
Critica-se o momento
sócio-histórico-político, a
fome, as desigualdades
sociais, a subserviência.
Quadro 19: Procedimentos externos de controle do discurso
Fonte: Elaboração própria a partir do quadro teórico adotado
A propósito do Quadro 19, não se pode dizer que tais efeitos de sentido estejam no nível do
que se diz consolidado, em se tratando do funcionamento do enunciado “Nada de iogurte,
refrigerante, bolachas com recheio”. Ao contrário, esse enunciado é tomado numa nova
função numa condição enunciativa muito específica. Tal fato nos evidencia também que o
sujeito pode ter um caráter ativo na produção do sentido, podendo fazer circular diferentes
discursos, a depender das condições enunciativas em que se circunscreve (circunstâncias
sócio-históricas-ideológicas), enfim, pode produzir novos conhecimentos.
216
Convém lembrar que um dos temas abordados na charge é o Fome Zero, um programa
considerado carro-chefe, dentre os programas sociais apresentados no momento inicial do
primeiro período do governo Lula, presidente recém-empossado, na ocasião em que o texto
foi publicado fevereiro/2003. Vê-se que os dois enunciados podem / devem ser
considerados como um todo constituinte da charge. Não devem, pois, ser lidos isoladamente.
Dessa forma, nos remetem a um determinado momento sócio-histórico-político, denunciando
a desigualdade social,
a subserviência, a fragilidade humana. Considerando-se a
especificidade do movimento de sentidos propostos a partir do texto chárgico, Quadro 18,
devemos entender as práticas discursivas como produções verbais / visuais /
semiolinguísticas, a partir das quais podemos fazer circular novos sentidos, apesar das
coerções sócio-históricas a que inevitavelmente estamos submetidos.
Assim, pode ocorrer uma situação de enunciação específica, tal como a que envolve o
enunciado “Nada de iogurte, refrigerante, bolachas com recheio”, investido de determinados
efeitos de sentido nessa nova instanciação do discurso. Nesse caso, não no plano do “repetível
/ enunciável”, conforme apontado na Tabela 12, mas sim remetendo o sujeito-leitor a uma
nova cena englobante (domínio jornalístico, midiático) e a novos efeitos de sentido. O fato de
o sujeito-chargista fazer funcionar um determinado enunciado, movimentando seu dizer rumo
à produção de novos sentidos, mostra-nos que o sujeito pode ter um caráter ativo na produção
/ reprodução do social. Na realidade, os sujeitos podem atualizar suas imagens e
representações sem as quais inexiste a compreensão relação com a historicidade,
atravessada pela reflexão, pela crítica (ORLANDI, 2005, p. 74). No que tange a esse ponto da
reflexão propriamente, a discussão ora realizada aponta para as seguintes considerações:
(1) As práticas discursivas estão em relação dialógica com pré-
construídos produzidos fora dela (interdiscurso). Por um lado, esse
fenômeno contribui para a estabilização dos sentidos, por outro,
também favorece um processo de reconfiguração / redefinição /
redirecionamento, de um dado enunciado, de tal modo a reinscrevê-lo
numa nova formação discursiva (FD).
(2) As práticas discursivas são dinâmicas, por isso podem resultar em
novos movimentos de sentido.
(3) Os sujeitos, inscritos numa dada posição social, marcados pela
historicidade, e, dividindo o espaço de “seu discurso” com os
interlocutores, podem propor deslocamentos de sentido, de modo a
provocar a emergência de uma nova instância enunciativa.
217
Em decorrência disso, a compreensão pode não ser uma experiência psicológica da ação dos
outros, mas sim uma atividade dialógica que, diante de um texto, pode gerar outros textos,
produzindo novos conhecimentos. Não se trata, assim, de um ato passivo, mas de uma atitude
responsiva ativa, em face de um pré-construído, configurando-se, pois, como um real
posicionamento diante do texto. Para ampliar essa discussão, retomo o seguinte quadro
teórico:
i) A compreensão se instaura no reconhecimento de que o sentido é
sócio-historicamente determinado (ORLANDI, 2005, p. 73).
ii) A escolha de uma cenografia não é indiferente, pois o discurso,
desenvolvendo-se a partir de sua cenografia, pretende convencer
instituindo a cena de enunciação que o legitima (MAINGUENEAU,
2006, p. 113).
Esse quadro teórico, em face das reflexões ora propostas, nos conduz a afirmar que
compreender é reconhecer que o sentido é sócio-historicamente determinado (1), e pode ser
problematizado a partir de cenografias que legitimam cenas de enunciação (3). Temos,
sumariamente, o que se apresenta no Quadro 20.
Princípios teóricos norteadores da produção do sentido: Princípio 11
Compreender é reconhecer / problematizar / explicar a determinação sócio-histórica dos
sentidos com base em cenografias cujos discursos legitimam cenas de enunciação.
Quadro 20: Princípio teórico norteador da produção de sentido – 11
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus articulados ao quadro teórico adotado
Colocado dessa forma, o sentido não é somente efeito da memória (interdiscurso) ou apenas
resultado do funcionamento da língua no acontecimento, ao contrário, o sentido resulta de
“efeitos da memória e do presente do acontecimento” (GUIMARÃES, 2005, p. 70). No caso
da charge, Figura 6, percebe-se esse fenômeno, observando-se o sujeito-chargista fazendo
funcionar o mesmo enunciado, em duas diferentes instâncias enunciativas, de modo a remetê-
las a uma outra instância. Provoca-se tal efeito, entre outras razões, pelo fato de se propor a
mudança de posição dos parceiros envolvidos no processo enunciativo. Como o dizer é
afetado pela posição social de quem fala, ao atribuir o mesmo dizer a diferentes co-
enunciadores, o sujeito-chargista provocou a emergência de uma nova instância enunciativa
discurso sócio-histórico-político. Vimos, assim, que alguns textos, tal como a charge, nos
218
sugerem que o sujeito, ao se inscrever em novos domínios (literário, publicitário, filosófico,
jornalístico, por exemplo), pode, mais facilmente, promover deslizamentos, rupturas,
produzindo novos efeitos semânticos, deslocando, pois, sentidos consagrados pelo uso.
Vimos, também, que o sujeito, por ter um caráter heterogêneo, se constitui na sua relação com
a alteridade, podendo (ou não) inserir o pré-construído em novos domínios discursivos. As
reflexões feitas, neste ponto, sobre a relação sujeito/instância enunciativo/ sentido nos levam a
concluir que:
(1) Os sentidos se constituem na relação sujeito / texto / exterioridade
(interdiscurso).
(2) De uma perspectiva enunciativa, o enunciado não pertence
previamente a uma formação discursiva, tal como se o texto estivesse
com seu “destino” de uso rigorosamente traçado.
(3) sobre a “disponibilização” do discurso, o que conta é a posição
do sujeito numa instância enunciativa.
(4) Os enunciados podem ser submetidos a novas condições
enunciativas, de modo a provocar certos efeitos de sentido.
(5) O dizer é afetado pela posição social de quem fala, por isso ao
atribuir o mesmo dizer a diferentes co-enunciadores, o sujeito pode
provocar a emergência de uma nova instância enunciativa.
Vimos, assim, que, quanto à regulação dos temas a serem abordados sob certas condições de
tempo/lugar/circunstância, o próprio sujeito, valendo-se de sua legitimação num novo papel
social (sujeito-chargista, por exemplo), durante o processo interativo, pode utilizar seu poder /
saber nessa nova circunstância para construir e possibilitar novos sentidos, por exemplo,
atribuindo o mesmo dizer a sujeitos que ocupem diferentes posições sociais. Para melhor
compreensão desse fenômeno, retomo o seguinte quadro teórico:
i) Compreender é refletir sobre a (e não refletir a) função do efeito do
eu-aqui-agora, que é a instância das formulações (horizontalidade), em
sua necessária relação com a constituição (verticalidade) dos sentidos
(ORLANDI, 2005, p. 73).
ii) O sujeito, um ser ideológico, ajusta sua fala, sua atividade
enunciativa, tendo em vista seu interlocutor e também por que dialoga
com a fala de outros sujeitos, no nível interdiscursivo (BRANDÃO,
2008, p. 31).
219
iii) O interdiscurso (o repetível) está no intradiscurso – sequência
linguística específica (ORLANDI, 2005, p. 68).
iv) A cenografia engendrada pelos textos pode por em contato
diferentes co-enunciadores (MAINGUENEAU, 2001, p. 91).
Com base nesse referencial teórico e nas discussões propostas sobre o movimento de sentidos,
a partir da charge, Figura 6, podemos concluir que compreender é problematizar a instância
das formulações (1), o que abrange as posições sociais de onde se fala (2), que condicionam o
dizer, portanto, os sentidos (3). De tal forma, o sujeito situa sua leitura, tanto no plano da
enunciação quanto no vel do interdiscurso (4), que, por sua vez, está no intradiscurso (5).
Sucintamente, temos o que se apresenta no Quadro 21, que se segue.
Princípios teóricos norteadores da produção do sentido: Princípio 12
Compreender é problematizar a instância das formulações, abrangendo dizeres
/ sentidos
condicionados pelas posições sociais de onde se fala, situando, pois, a leitura tanto n
o
plano da enunciação quanto no nível do interdiscurso, que, por sua vez,
está no
intradiscurso.
Quadro 21: Princípio teórico norteador da produção do sentido - 12
Fonte: Elaboração própria a partir de dados do corpus articulados ao quadro teórico adotado
Esta parte final do estudo, em que se discutiram dados relativos à segunda e à terceira etapas
da coleta de dados, contribuiu, efetivamente, para que se pudessem explicar/descrever mais
alguns fundamentos teóricos em que se fundamentam os processos de significação, na ordem
do discurso. Considerando-se as reflexões feitas e os princípios norteadores da produção do
sentido descritos, neste capítulo e no anterior, pode-se dizer que o discurso é o “lugar” da
encenação da significação, produto da interação de sujeitos sócio-históricos, ideologicamente
situados. Assim considerando, os sentidos são decorrentes de diferentes processos
interlocutivos, nos quais se inscrevem ou são inscritos os sujeitos, constituindo-se co-
enunciadores, papéis de natureza responsiva e intercambiável. No próximo e último capítulo,
apresento, em caráter conclusivo, resultados das discussões e reflexões que perpassaram todo
o trabalho.
220
CAPÍTULO 6
6 DAS RELAÇÕES DO SUJEITO NOS PROCESSOS SIGNIFICATIVOS
Apresento, neste capítulo, síntese dos resultados obtidos a partir da análise de registros de
leitura realizados pelos sujeitos da pesquisa, em três diferentes etapas. Trata-se de um estudo
investigativo sobre relações do sujeito com a significação, incidindo sobre a percepção de
efeitos de sentido, do ponto de vista da recepção, a partir de uma situação de ensino-
aprendizagem, num espaço institucional de educação formal. O objetivo final deste estudo foi
descrever/explicar/investigar alguns princípios teóricos norteadores da produção do sentido,
articulando-se resultados obtidos ao quadro teórico adotado.
6.1 Síntese dos primeiros resultados: Proposta de leitura I – atividade diagnóstica
Nos dois últimos capítulos, centrei meu interesse em descrever/explicar/investigar alguns
princípios teóricos que fossem relevantes para a compreensão / descrição das relações
empreendidas pelos sujeitos nos processos de significação. Para essa abordagem, considerou-
se o quadro teórico proposto pela Análise do Discurso, complementarmente aos resultados
obtidos por meio da análise de corpus. Como vimos, um dos objetivos principais foi realizar
um estudo investigativo sobre fatores determinantes da produção do sentido, envolvendo
sujeitos-professores-leitores em processo de formação inicial, a partir de uma situação de
ensino-aprendizagem, na esfera acadêmica, que, por sua vez, delimita sócio-historicamente
os discursos e seus processos constitutivos, a exemplo de outras instâncias sociais. O intuito
central foi investigar a atribuição de sentidos que confirma a estabilidade, o pré-construído
(posicionamentos parafrásticos), bem como a que se situa no universo da subversão, do
confronto, da instabilidade (movimentos polissêmicos). Convém lembrar que, na ordem do
discurso, paráfrase e polissemia são duas forças a partir das quais os sujeitos trabalham
continuamente os dizeres. Parafrasear é retornar aos mesmos espaços do dizer (memória,
interdiscurso). quando se promovem rupturas, deslocamentos, confrontos, trabalham-se
movimentos polissêmicos, isto é, que afetam os sentidos. E é na tensão entre jogos
parafrásficos / polissêmicos que se constroem novas redes de sentidos.
221
Pensando-se essas relações de significação, a parte inicial da análise pautou-se numa
atividade de leitura, de caráter diagnóstico/exploratório, a partir da qual pudemos
investigar/descrever/explicar alguns princípios teóricos norteadores da produção do sentido,
formulados com base na articulação resultados obtidos / quadro teórico proposto. Os
princípios a que chegamos nos conduziram, de modo especial, a duas direções. Por um lado,
retomaram categorias que foram previamente elencadas e trazidas como essenciais na
discussão teórica dos capítulos antecedentes (locutor/alocutário, gênero do discurso, suporte,
dialogismo, cena englobante, materialidade do texto/sentido, por exemplo). Por outro, fizeram
emergir o papel crucial de certas categorias na constituição do sentido, a exemplo de algumas
dimensões interdependentes da linguagem: cena englobante / sentido; correlação
suporte/cenografia; articulação sentido e voz / forma e grau de representação da voz, entre
outras. Essas dimensões constituíram-se no principal foco do estudo subsequente realizado
com base na coleta de dados decorrentes das propostas de leitura II e III.
É justamente a partir desses dados e reflexões iniciais, que propusemos as seguintes questões:
i) Os sujeitos da pesquisa tenderiam a priorizar sentidos que se situam no campo
parafrástico? ii) Ou se inclinariam a ressaltar, prioritariamente, posicionamentos
polissêmicos? A propósito desses questionamentos, realizaram-se mais algumas reflexões
relativas à compreensão de alguns fatores reguladores do sentido. Os resultados obtidos
serão retomados, sumariamente, na próxima seção.
6.2 Síntese dos resultados: Propostas de leitura II e III – atividades direcionadas
Nesta seção, retomo análise de dados gerados nas duas últimas etapas da coleta de dados,
decorrentes das propostas de leitura II e III, respectivamente. Vimos que, nessas etapas,
propositadamente, apresentou-se maior direcionamento ao leitor nos formulários de registro
de leitura. Sobre resultados relativos à proposta de leitura II, foram apresentadas algumas
considerações, de caráter conclusivo, dentre as quais, destacamos, por exemplo, o fato de que
algumas dimensões da linguagem constitutivas do sentido (suporte, locutor/alocutário,
estratégia textual, por exemplo) foram reconhecidas e registradas, quando devidamente
explicitadas nos próprios textos oferecidos à leitura. Os sujeitos da pesquisa, na sua maioria,
explicitaram as categorias solicitadas no formulário da nova proposta de leitura, preenchendo
as lacunas deixadas em aberto pelo professor-pesquisador. Mas, nos registros, não se valeram,
222
efetivamente, desses dados para evidenciarem compreensão de outras dimensões da
linguagem também determinantes do sentido – situacional, institucional, por exemplo. Vimos,
assim, que a oferta de informações teóricas mais pontuais sobre o processo enunciativo-
discursivo, sobre o gênero do discurso, bem como a propósito de algumas faces do fenômeno
dialógico, embora detalhadas e sugestivas, não atuaram como elementos condicionadores dos
registros de leitura.
Com relação à terceira proposta de leitura, atividade elaborada com base na seleção prévia de
um enunciado constitutivo de uma charge, no formulário de registro, também foram levadas
em conta diferentes dimensões da linguagem envolvidas na constituição do referido texto
(locutor/alocutário, domínio discursivo, gênero do discurso, por exemplo). Considerações
relativas ao momento inicial da análise de dados dessa terceira etapa apontaram,
conclusivamente, para o fato de que a maioria dos sujeitos da pesquisa não tenderiam a
provocar maiores deslizamentos de sentido, quando se situam na posição de sujeitos-alunos-
leitores, em situação de ensino-aprendizagem. Enfim, os sujeitos voltam-se prioritariamente
para uma leitura de natureza parafrástica. Esse é um dado que confirma resultado também
apontado na primeira etapa da coleta de dados – atividade diagnóstica. Enfim, no processo de
significação, em face de um dado texto, nos registros, os sujeitos parecem não considerar a
possibilidade de inscrevê-lo em circunstâncias de enunciação que se situem fora do plano do
repetível, o que poderia levá-los a movimentar novas redes significativas, produzindo uma
leitura de caráter polissêmico.
Ainda nessa etapa, atentou-se para a possibilidade de se promoverem outros deslocamentos de
sentido, a partir da mudança de estatuto dos parceiros na instância enunciativa, entendendo-
se, nesse caso, as práticas discursivas como produções verbais / visuais / semiolinguísticas, a
partir das quais o sujeito pode movimentar sentidos, ainda que esteja submetido a coerções
sócio-historicamente determinadas. A partir dessa reflexão, vimos, particularmente, a
relevância de o sujeito se valer da própria potencialidade significativa para provocar
deslizamentos de sentidos.
Por fim, propôs-se atentar, de modo especial, para o caráter heterogêneo do sujeito, que se
constitui na sua relação com a alteridade, podendo inserir o pré-construído em novos
domínios discursivos. Pode-se, por exemplo, atribuir o mesmo dizer a diferentes
locutores/alocutários, de tal modo a provocar a emergência de uma nova instância
enunciativa.
223
Concluída a análise, vimos que os sujeitos da pesquisa tendem a apreender o inteligível, e, a
partir daí, constituírem-se em intérpretes, mas, na maioria das vezes, não alcançam a
“compreensão”, mesmo quando se situam diante de diferentes textos. Enfim, nas três
diferentes etapas de coleta de dados, categorias de natureza sócio-histórica, situacional,
enunciativo-discursiva e sua relevância para a emergência de novas redes significativas,
praticamente, não foram consideradas, nos registros escritos. E esse é um resultado, até certo
ponto, esperado pelo professor-pesquisador, quando se optou por pensar discursivamente o
funcionamento da linguagem, pois, na ordem do discurso, ao dizer, o sujeito vale-se de
discursos em processo como se fossem próprios. Na verdade, consideramos o fato de que
há um já-dito que sustenta a possibilidade mesma de todo dizer (ORLANDI, 2002, p. 32). Por
outro lado, constataram-se casos, embora restritos, em que a cenografia engendrada pelos
textos foi evidenciada nos registros. E isso se deu, principalmente, a partir de reflexões do
sujeito-leitor sobre a correlação texto / cena englobante (tipo de discurso) em que o texto se
inscrevia. Nesse caso, situou-se a leitura no plano da “compreensão”.
Convém ressaltar que todos esses resultados podem ter sido decorrentes do tipo de atividades
propostas e das próprias condições de leitura. Para se alcançar a compreensão, algumas
possibilidades foram apresentadas, ao longo deste estudo, por meio da descrição/explicação
de alguns princípios teóricos norteadores da produção do sentido. Na realidade, apresentaram-
se tais princípios com o intuito de contribuir para que a temática abordada amplamente
discutida por pesquisadores em estudos linguísticos possa se tornar também um objeto mais
acessível para profissionais de língua/linguagem que queiram valer-se de uma discussão
teórica, no campos dos estudos do discurso, para orientar sua própria prática, sobretudo, a
que se volta para a formação de novos leitores, nos âmbitos escolares/acadêmicos. Soma-se a
isso a necessidade de se trabalhar pela construção de um perfil de sujeito-leitor que questione
o funcionamento ideológico da linguagem, ou melhor ainda, que se ocupe de manifestar esse
questionamento ao registrar a própria leitura.
Também, a exemplo de Matencio (2006b), acredito que os gêneros devem ser estudados em
termos do funcionamento dos domínios discursivos em que circulam. Em vista disso, “não se
pode imaginar que o foco apenas no que se diz seja suficiente para possibilitar uma
construção identitária voltada à autonomia do professor”. Ressalta-se, assim, a emergência de
se trabalhar, rotineiramente, no universo escolar/acadêmico estratégias de leitura que
considerem outras dimensões constitutivas da linguagem (situacionais, sócio-históricas,
discursivo-enunciativas, por exemplo), de modo a formar sujeitos-leitores que dêem conta
224
dessa abrangência do texto e passem a considerar sua implicação na constituição de sentidos,
não apenas no próprio processo de leitura, mas também nos registros de leitura, que esse é
um instrumento a partir do qual podemos perceber vestígios/pistas/marcas das dimensões da
linguagem consideradas.
225
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os resultados ressaltados, neste estudo, assim como havia discutido em trabalho anterior
(VITORINO, 2003), também nos apontam para certa necessidade de se investir ainda mais
no processo de formação dos sujeitos-leitores, em relação a um ensino de leitura que não
somente evidencie, mas também coloque, como prioridade, desde as séries iniciais da
Educação Básica, dimensões do texto apontadas anteriormente. Tal proposta pode situar-se no
âmbito das representações que os sujeitos-leitores fazem de sua própria identidade. Assim,
pensar as condições de produção da leitura, nos moldes pechetianos, implica considerar, entre
outras dimensões da linguagem, a posição dos protagonistas do discurso, a saber: i) as
próprias condições do produtor do texto: Quem é? De que lugar fala? O que pretende? Em
que acredita?; ii) a figura do alocutário: Quem é? Que posição ocupa? Em que acredita?.
Além dessas representações dos lugares ocupados pelos sujeitos, faz-se também necessário
considerar representações dos sujeitos sobre as circunstâncias ambientais e sócio-históricas:
Que grau de formalidade é necessário? Em que situação estamos? Quais crenças e valores são
compartilhados? Enfim, deve-se considerar variadas instâncias nas quais se inscrevem os
textos nos processos interlocutivos. Então, não se pode esquecer que o que está em jogo na
relação com o repetível não é o sujeito-em-si, mas sim posições do sujeito que regulam a
própria atividade enunciativa. Nesse caso, por exemplo, os registros escritos a partir dos
quais trabalhamos foram resultantes da interação sujeito-professor/sujeito-aluno, na esfera
acadêmica. Na ordem do discurso, os lugares ocupados pelos sujeitos não são da ordem do
empírico, mas das formações imaginárias. Trata-se, pois, de considerar como esses lugares
foram representados no discurso, isto é, que imagem os sujeitos da pesquisa fizeram do seu
próprio lugar e do lugar do professor, principalmente, em se tratando de uma situação de
ensino-aprendizagem, como é o caso dos registros de leitura ora discutidos. E não apenas isso,
mas também a imagem que fizeram da própria temática abordada nos cinco textos dados à
leitura. Convém considerar que esse jogo de imagens é um dos determinantes dos registros de
leitura, mas não é o único fator a se considerar, pois é apenas uma parte do sistema de
restrições que sobredeterminam os discursos. Consideradas tais dimensões, essa abordagem
deveria ser feita a longo prazo, em todo o processo de formação dos sujeitos-leitores. A
ausência de um trabalho dessa natureza, de caráter contínuo e progressivo, pode ser um dos
226
fatores que teriam levado os sujeitos da pesquisa a situarem a própria leitura, apenas no
plano do legível, do interpretável.
Convém ressaltar que propostas e reflexões tidas como bastante pertinentes em relação ao
ensino-aprendizagem da leitura, à formação de leitores, vêm sendo objeto de estudo e reflexão
dos estúdios da língua/linguagem um bom tempo. Por um lado, muitos desses estudos
vêm sendo discutidos nas escolas do País, principalmente, nos últimos dez anos. E os
resultados práticos desses trabalhos, nas esferas escolares/acadêmicas, vêm sendo sentidos.
Não me refiro a dados quantitativos, mas sim a situações, tais como a oferta de uma
diversidade de gêneros nos espaços institucionais de educação formal, entre tantas outras
atitudes produtivas de leitura que vêm sendo empreendidas e poderiam ser mencionadas. Por
outro lado, o nível de exigência em relação à qualidade da leitura vem se tornando cada vez
maior, e nem sempre as estratégias de trabalho que vimos adotando vêm resultando na
formação de leitores cujo perfil se deseja construir, isto é, leitores aptos a lidar com a
complexidade e a enorme variedade de informações que ora vem circulando em nossa
sociedade, na chamada “era da informação”.
No caso do curso pesquisado, por exemplo, o ensino da leitura já está vinculado a situações de
ensino-aprendizagem em que as determinações sócio-históricas de produção do texto/discurso
são vistos como constitutivos do sentido. E isso ainda não se refletiu, o quanto poderia, nos
registros, quando, por exemplo, os sujeitos nomeiam certas categorias (sujeito, suporte,
locutor, gênero, por exemplo). O que ainda não se pôde perceber, satisfatoriamente, são
indícios de que os sujeitos se valem dessas dimensões da linguagem para promoverem
rupturas/movimentos de sentido.
Evidencia-se, assim, a demanda de se continuar trabalhando, nos espaços institucionais de
educação formal, conceitos que podem orientar melhor o leitor para a potencialidade de
significação dos textos. Creio que um trabalho dessa natureza, mais sistematizado e em longo
prazo, tenderia a levar os sujeitos-leitores a atribuírem a devida atenção a outras dimensões
constitutivas do sentido, a ponto de ressaltá-las e diferenciá-los nos registros de leitura, o que
poderia levá-los à percepção de novos efeitos de sentido.
Para isso, é importante propiciar aos sujeitos-leitores melhores condições para que
problematizem a própria leitura. Por exemplo, em situação de ensino-aprendizagem: ii) levar
em consideração a figura do “outro” e sua participação na constituição dos sujeitos e das
227
identidades. Isso aponta tanto para o “outro” enquanto discurso como para o “outro” enquanto
interlocutor; ii) valer-se de textos disponíveis no universo cultural cujas condições de
produção, circulação e consumo funcionem como condicionadores para novas leituras; iii)
analisar o funcionamento das relações que se manifestam em textos, os quais, por sua vez,
configuram-se em gêneros discursivos variados, de forma a conceber a linguagem como
dialógica e vinculada à interação verbal, por isso, o lugar das relações sociais. Essas são
algumas atitudes produtivas de leitura, entre outras, apontadas pelo professor-pesquisador em
estudo anterior (VITORINO, 2003).
No seu trato usual com a língua/linguagem, em situação de ensino-aprendizagem, pode-se,
também, propiciar ao sujeito-leitor discussões que o levem a uma relação mais reflexiva com
especificidades da cena englobante (tipo de discurso) e da cena genérica (gênero do discurso).
Tais particularidades são vistas como uma possível forma para se compreenderem as
atividades discursivas nas quais os sujeitos podem se engajar, embora não se trate de um
aspecto suficiente para que se compreenda a cenografia engendrada pelos textos. Pode-se,
assim, instigar o sujeito-leitor a provocar deslocamentos, rupturas, considerando-se, por
exemplo, que os gêneros são suportes para a veiculação de significados nas diversas esferas
sociais. Como as relações sociais evoluem, os sentidos poderão sofrer implicâncias dessas
mudanças.
Nessas considerações finais, em que trato de prováveis lacunas no processo de ensino-
aprendizagem da leitura nas esferas escolares/acadêmicas, e no próprio processo de
escolarização, convém ressaltar que os resultados obtidos, os princípios teóricos a que
chegamos e as categorias elencadas são frutos de um estudo que pode e deve ser ampliado.
Por isso seria pretensioso, de minha parte, afirmar que os sujeitos pesquisados, de fato, não
saberiam ler ou mesmo que a situação escolar/acadêmica seria meramente “castradora”,
quando se trata da formação do sujeito-leitor. Prioritariamente, o que está em discussão, neste
momento, é a contribuição de categorias situadas no âmbito da Análise do Discurso, que, ao
teorizar a interpretação, nos oferece uma grande contribuição sobre algumas relações do
sujeito nos processos significativos, e, por extensão, sobre a leitura, propondo um quadro
teórico cuja dimensão nos permite compreender a determinação sócio-histórica dos processos
de significação
.
228
Devido às limitações que me foram impostas pelo recorte feito neste trabalho, não cheguei a
conferir um tratamento especial à correlação suporte/gênero, em decorrência do deslocamento
do suporte em que foram veiculados e sua implicação na produção de sentidos. Esse é um
ponto que ficou em aberto e poderia ser ampliado, em outros estudos investigativos. Um outro
estudo poderia ser direcionado, também, para a análise de registros escritos decorrentes da
leitura de textos que se configurem em diferentes gêneros do discurso cujo quadro social de
sua produção e circulação poderiam ser, particularmente, discutidos. O intuito dessa
discussão, considerando-se a natureza dos princípios teóricos adotados, seria buscar mais
alguns subsídios para que se pudesse compreender o processo de produção de sentidos,
levando-se em conta as esferas sociais que delimitam sócio-historicamente os discursos e seus
processos. Em decorrência, não se deixaria de apontar outras dimensões da linguagem a serem
consideradas pelos sujeitos-leitores quando se deseja fazer emergir novas redes de sentido,
quer nos movimentos de subversão (polissêmicos), quer a partir dos posicionamentos de
estabilidade (parafrásticos).
Uma outra proposta de trabalho em relação ao processo de formação do sujeito-leitor incidiria
sobre uma das metas do plano proposto, em 2006, na Bienal do Livro, em São Paulo, por
ocasião do lançamento oficial do Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL). Dentre as
principais metas, apontaram-se: aumentar o índice nacional de leitura em 50% (de 1,8 para 2,7
livros por habitante/ano); implantar bibliotecas em todos os municípios do país; realizar
anualmente pesquisa nacional de leitura; implementar centros e núcleos voltados para
pesquisa, estudos e indicadores nas áreas do livro e da leitura; ampliar de 47% para 57% o
índice de pessoas, acima de 14 anos e com hábito de leitura, que possuem pelo menos dez
livros em casa; aumentar em 10% o índice per capita de livros não didáticos adquiridos, entre
outras (ABRELIVROS, 2008). São metas importantes, sem dúvida, mas direcionadas apenas
para o aumento da oferta de leitura. No meu entendimento, que se pensar, principalmente,
na qualidade da leitura que se faz. Para isso, acrescentaria a esse universo de medidas uma
única meta, para fins investigativos: Quais recursos/estratégias/metodologias vêm sendo
utilizados, nos mais diversos espaços educativos, para se formar um sujeito-leitor em
condições de enfrentar as muitas adversidades que a singularidade dos textos vem lhe
impondo cada vez mais? Vê-se, a partir dessas propostas, que não concebemos a leitura
apenas como uma oportunidade de aproximação com o universo dos livros, mas sim como
uma das mais relevantes possibilidades para se chegar à construção de novos conhecimentos.
229
R
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