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Quem sou eu? Um dos quatro filhos de um tenente-coronel na reserva, que ficou
órfão aos sete anos de idade, educado por mulheres e por estranhos, e que, sem que
o houvessem preparado com qualquer educação mundana ou intelectual, penetrou no
mundo por volta dos dezessete anos. Não tenho grandes riquezas, não ocupo na
sociedade um lugar particularmente brilhante e, sobretudo não tenho princípios.
Careço de amigos influentes, não tenho modo de vida plausível, mas o meu amor-
próprio não tem medida. Sou feio, grosseiro, sujo e mal-educado, se vejo as coisas
como as vê o mundo. Sou irascível, chato, intolerante e tímido como uma criança.
Sou um labroste com todas as letras. O que sei aprendi-o sozinho, mal, por
sacolejões, de modo descosido; e é bem pouco. Sou intemperante, indeciso,
inconstante, estupidamente vaidoso e expansivo como todos os fracos. Coragem não
tenho nenhuma. A minha preguiça é tal que a minha ociosidade se tornou para mim
uma exigência. Sou boa pessoa, entendendo por isto que gosto do bem, fico de mal
comigo quando dele me afasto e é com prazer que volto atrás. Todavia uma coisa há
que pode comigo mais que o bem: é a glória. Sou tão ambicioso que, a darem-me a
escolher entre a glória e a virtude, muito me temo que não escolhesse a primeira.
Modesto é que não sou, sem sombra de dúvida. Por isso me vêem com este ar de cão
batido, por fora, que, se querem saber o que é orgulho olhem lá para dentro.
Sou o doente número 1 do asilo de loucos que é a minha casa de Iasnaia Poliana.
Temperamento sanguíneo. Categoria, a dos loucos mansos. A minha loucura
consiste em crer que posso mudar a vida dos outros por meio de palavras. Sintomas
gerais: não suporto o actual regime; grito contra tudo e contra todos, excepto contra
mim; mudo como ventoinha e sou irritadiço, sem resguardo por quem se prontifica a
escutar-me às boas. Muita vez, após a excitação e a fúria, baqueio a um estado de
hipersensibilidade e lágrimas, que é tudo quanto há de menos normal. Sintomas
particulares: entrego-me a trabalhos manuais, engraxo e fabrico calçado, ceifo feno e
realizo outras fainas materiais.
No que tange à minha vida, se a considero do ponto de vista do bem e do mal
que pude fazer, dou-me conta de que toda a minha longa existência se divide em
quatro períodos: a primeira, época poética, maravilhosa, inocente, radiosa, da
infância até aos catorze anos. Vêm depois vinte anos horríveis de grosseira
depravação ao serviço do orgulho, da vaidade e, sobretudo do vício. O terceiro
período, de dezoito anos, vai do meu casamento à minha ressurreição espiritual: o
mundo poderia também qualificá-la de moral, pois durante anos levei uma vida
familiar honesta e regrada, sem me abandonar a nenhum dos vícios que a opinião
pública reprova. Mas interessava-me estritamente tão-só pelas preocupações egoístas
concernentes à minha família, ao sucesso literário e a todas as minhas pessoais
satisfações. Enfim, a quarta fase, aquela em que vivo, após minha redenção moral.
A tudo isso nada desejo mudar, a não ser os maus hábitos contraídos no decurso dos
períodos anteriores. (TOLSTOI, 1972, p. 5).
Acredita-se, assim, que o trecho acima citado vale por toda uma cronologia da vida e
obra de Leon Tolstói, pois temos o olhar que mais nos interessa: o do próprio autor, isto é, o
autobiográfico. É possível detectar nessa autobiografia algumas características e afinidades
que aproximam Leon Tolstói de Lima Barreto, ou vice-versa, aliás, o trecho que se repete a
seguir parece ter sido escrito pelo próprio Lima Barreto:
Sou o doente número 1 do asilo de loucos que é a minha casa de Iasnaia Poliana.
Temperamento sanguíneo. Categoria, a dos loucos mansos. A minha loucura
consiste em crer que posso mudar a vida dos outros por meio de palavras. Sintomas
gerais: não suporto o actual regime; grito contra tudo e contra todos, excepto contra
mim. (TOLSTOI, 1972, p. 5).