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ZÉLIA RAMONA NOLASCO DOS SANTOS FREIRE
A CONCEPÇÃO DE ARTE EM LIMA BARRETO E
LEON TOLSTÓI: DIVERGÊNCIAS E
CONVERGÊNCIAS
ASSIS
2009
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1
ZÉLIA RAMONA NOLASCO DOS SANTOS FREIRE
A CONCEPÇÃO DE ARTE EM LIMA BARRETO E
LEON TOLSTÓI: DIVERGÊNCIAS E
CONVERGÊNCIAS
Tese apresentada à Faculdade de Ciências e Letras
de Assis – UNESP – Universidade Estadual
Paulista para a obtenção do título de Doutor em
Letras (Área de Conhecimento: Literatura e Vida
Social
).
Orientadora: Profa. Dra. Sílvia Maria Azevedo
ASSIS
2009
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
Biblioteca da F.C.L. – Assis – UNESP
Freire, Zélia Ramona Nolasco dos Santos
F866c A concepção de arte em Lima Barreto e Leon Tolstói: diver-
gências e convergências / Zélia Ramona Nolasco dos Santos
Freire. Assis, 2009
227 f. : il.
Tese de Doutorado– Faculdade de Ciências e Letras de Assis-
Universidade Estadual Paulista.
1. Literatura comparada. 2. Literatura – História e crítica. 3.
Barreto, Lima, 1881-1922. 5.Tolstói, Leão, graf, 1828 - 1910. I.
Título.
CDD 809
869.93
891.7
ZÉLIA RAMONA NOLASCO DOS SANTOS FREIRE
A CONCEPÇÃO DE ARTE EM LIMA BARRETO E
LEON TOLSTÓI: DIVERGÊNCIAS E
CONVERGÊNCIAS
COMISSÃO JULGADORA
TESE PARA OBTENÇÃO DO TÍTULO DE DOUTOR
Faculdade de Ciências e Letras - UNESP
Área de Conhecimento: Literatura e Vida Social
Presidente e Orientador
Profa. Dra. Sílvia Maria Azevedo
2º Examinador
3º Examinador
4º Examinador
5º Examinador
Assis, de de 2009.
3
A Antonio,
Patrícia e Tales
4
AGRADECIMENTOS
A conclusão deste trabalho devo em grande parte ao auxílio e colaboração recebidos de
algumas pessoas a quem agradeço. E, de forma particular, gostaria de manifestar minha
gratidão.
Quero, em primeiro lugar, agradecer à UEMS - Universidade Estadual de Mato Grosso do
Sul, pela concessão da bolsa de pesquisa o que possibilitou meu afastamento integral das
atividades de Ensino do Curso de Letras, da Unidade de Dourados, e assim pude privilegiar a
Pesquisa.
Agradeço a minha orientadora, Professora Sílvia Maria Azevedo, Doutora em Letras e Livre
docente, machadiana confessa, pela orientação segura, paciente e confiante; pela palavra
amiga e por me transmitir forças quando as minhas se esvaíam.
A leitura crítica dos professores Rosane Gazolla e Luiz Roberto Velloso do Cairo no Exame
de Qualificação que foi imprescindível para a conclusão dessa pesquisa.
As Professoras Luisa Melo de Vasconcellos (UEMS) e Eva Mercedes Martins Gomes
(UFMS), pela preciosa segunda leitura para a Banca de Qualificação e Defesa,
respectivamente.
A Olga e André, casal que trabalha junto no “Última Hora”, com excelência na formatação e
impressão de trabalhos acadêmicos e responsáveis por mais esse.
Aos funcionários da Seção de Pós-Graduação da UNESP/Assis, Faculdade de Ciências e
Letras, pelo pronto atendimento.
Aos funcionários da Biblioteca da UNESP/Assis: Lucelena, Aldo e Vânia pela presteza com
que sempre me atenderam.
A Veronice Faria de Moura, ex-coordenadora do Curso de Letras de Amambai e ex-gerente
da Unidade de Dourados, pela companhia e amizade durante esses longos anos.
A Claudia Marisa, pela companhia nas viagens para UEMS/Amambai e pelo alto astral
contagiante, e em especial, a sua mãe D. Mercedes, pessoa que carinhosamente me acolheu
aqui em Assis.
5
Os cursos de Pós-Graduação propiciaram-me o conhecimento de muitas pessoas interessantes.
Entre elas, Mariléia Gartner e Fátima Liuti, hoje amigas valiosas. Obrigada pelo afeto, pelo
estímulo e pela alegria que vocês sempre proporcionaram.
Ao Marcos, pela atenção e carinho, que com seu jeitinho mineiro, sem querer querendo, veio
para ficar nas terras de Mato Grosso do Sul.
Aos amigos que não tiveram tempo para ver esse momento:
Luiz Antonio Álvares Gonçalves, ex - reitor da UEMS, por ter acreditado no meu potencial e
pelo apoio incondicional às minhas atividades docentes e aos meus projetos;
Eliane Fernanda da Cunha Ferreira, Doutora em Machado de Assis, pelo incentivo constante e
que soube seguir a orientação deixada pelo mestre de que: “O melhor modo de viver em paz é
nutrir o amor próprio dos outros com pedaços dos nossos”;
Sílvio Emerson Rompatto, técnico administrativo da UEMS e ex-acadêmico do Curso de
Letras, jovem, inteligente e cheio de vida, pela colaboração irrestrita na realização dos
eventos do Curso de Letras. Em nome do qual estendo meus agradecimentos a todos
acadêmicos e ex-alunos, os que foram e os que são a mola propulsora da minha busca de
conhecimento.
A grande família dos tios emprestados: D. Luísa e Sr. Laércio (in memória), pela carinhosa
recepção em Tupã/SP; esse período de UNESP serviu também para reaproximação do
sobrinho distante.
Como os de casa, acabam ficando sempre para o final, agradeço imensamente aos meus pais
Paulo e Zilda que sempre acreditaram ser o conhecimento a melhor herança a ser deixada; aos
meus irmãos: César e Paulinho, (nessa seqüência, a rima é melhor), pelo exemplo a ser
seguido e pelo privilégio de ter na família dois Doutores em Literatura; às minhas irmãs:
Meire, Tuca, Leila e Sinésia, amigas de todas as horas, e aos meus sobrinhos: Éder, Xinho,
Neguinho, Rayanne, João Paulo, Letícia, Luiz Felipe e Isadora, pela bagunça aos domingos.
Ao Antonio Freire, meu companheiro e grande entusiasta, que muitas vezes deixou seu
trabalho para acompanhar-me nas viagens para Assis e, também, pela divisão das tarefas na
educação de nossos filhos, nos vários momentos em que estive ausente, pois, sem a sua ajuda
esse trabalho não seria possível. E, aos meus filhos: Patrícia e Tales, razão da minha vida e
aos quais espero ter deixado o exemplo de que nada é impossível. Esta tese também é de
vocês. Enfim, agradeço a Deus por mais essa conquista!
6
Parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e honestos é
deixar de lado todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos
gêneros e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar,
conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças,
sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as
nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento
dos homens, para soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que
caibam todas, pela revelação das almas individuais e do que elas têm
de comum e dependente entre si.
(BARRETO, “Clara dos Anjos”, 1956, p. 33).
Eu cumpri com o melhor das minhas capacidades este trabalho que
me ocupou por quinze anos, sobre um assunto próximo a mim – o da
arte. Ao dizer que este assunto me ocupou por quinze anos eu não
quero dizer que comecei a escrever sobre arte quinze anos atrás,
pensando que, uma vez que me incumbi da tarefa, eu deveria ser
capaz de cumpri-la sem interrupção. Provou-se, no entanto, que as
minhas visões sobre o assunto estavam tão longe de serem claras que
não conseguia arranjá-las num modo que me satisfizesse. Desde
aquela época jamais parei de pensar sobre o assunto e recomecei a
escrever seis ou sete vezes; mas, toda vez depois de ter escrito uma
boa parte, via que era incapaz de levar o trabalho a uma conclusão
satisfatória e era obrigado a deixá-lo de lado. Agora acabei e não
importa o quão mal eu tenha realizado a tarefa, a minha esperança é
de que o meu pensamento fundamental sobre a falsa direção da arte
que a nossa sociedade tomou e está seguindo, sobre as razões disso e
sobre o real destino da arte, esteja correto, e que por isso o meu
trabalho não seja sem utilidade.
(TOLSTÓI, “O que é Arte?”, 1994, p. 153).
7
FREIRE, Z. R. N. dos S. A Concepção de Arte em Lima Barreto e Leon Tolstói: divergências
e convergências. 2009. 227 f. Tese (doutorado em Letras) – Faculdade de Ciências e Letras de
Assis, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis, 2009.
RESUMO
A presente tese tem por objetivo avaliar a concepção de arte dos escritores Afonso Henriques
de Lima Barreto (1881-1922) e Leon Tolstói (1828-1910) sob um viés comparatista, em busca
das divergências e convergências entre ambos. Concepção de arte que apresentam nas
respectivas obras, “O destino da literatura” e O que é Arte?. Os escritores desempenharam o
papel de “semeador de idéias” e de “batedor do futuro” ao se posicionarem contrários aos
“mandarins literários”. Uma arte voltada para o social, aliás, uma literatura militante. Lima
Barreto criou uma arte literária que rompeu com os moldes convencionais na virada do século
XIX, que tinha como principais representantes: Machado de Assis, Rui Barbosa, Coelho Neto,
entre outros; enquanto Leon Tolstói rompeu com a poética romântica e o realismo francês.
Ambos foram, terminantemente, contrários à estética da arte pela arte. A referência aos
escritores russos é constante na obra barretiana, até porque Lima Barreto jamais omitiu suas
leituras. Desde o romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, o primeiro a ser escrito por
Lima, é possível detectar a presença de Leon Tolstói. Presença essa que permeia todo o
projeto literário de Lima Barreto e que se faz sentir através da posição que ambos assumem
em relação a temas em comum, tais como: a Propriedade, a Igreja, o Estado, a educação da
mulher, o serviço militar obrigatório, entre outros. Revelando assim, um eixo em comum: o
ideário anarquista. Mas, principalmente, por refletirem sobre a função da literatura e o fazer
literário.
Palavras-chave Literatura Comparada, Lima Barreto, Leon Tolstói, Romance Realista,
Crítica Literária.
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FREIRE, Z. R. N. dos S. The Conception of Art in Lima Barreto and Leo Tolstoi: agreements
and disagreements. 2009. 227 p. Doctoral dissertation (D. Litt.) – Faculdade de Ciências e
Letras de Assis, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Assis, 2009
ABSTRACT
This dissertation was carried out to evaluate the conception of art found in the works of
Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) and Leo Tolstoi (1828 -1910) according to a
comparative point-of-view, in order to find out agreements and disagreements between them.
Conception of art found in their works “O destino da literatura” and “O que é Arte?”. Both
writers played the role of “sowers of ideas” and “beaters of the future” as they put up
opposition to the so-called “literary mandarins”. An art oriented to the social issue, that is, a
militant literature. Lima Barreto created a literary art which broke off the ties with
conventional models in the turn of the 19
th
century, whose main representatives were
Machado de Assis, Rui Barbosa, Coelho Neto, among others; Leo Tolstoi, in his turn, broke
off the ties with Romantic poetry and French Realism. Both were utterly opposed to the
esthetics of art for art’s sake. References to Russian writers are often found in Lima Barreto’s
works, since he never omitted his readings. As early as his first novel Vida e Morte de M. J.
Gonzaga de Sá, one can notice Leo Tolstoi’s influence. Influence which permeates all of his
literary project and which is felt through the opposition both writers assume in connection
with issues they have in common such as: Property, the Church, the State, women’s
education, obligatory military draft, among others. Thus, they showed the axis they had in
common: the anarchist belief system. But, mainly, because they pondered over the function
and the making of literature.
Keywords: Comparative Literature, Lima Barreto, Leon Tolstoi, Realist Novel, Literary
Criticism.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 10
1 LIMA BARRETO E OS ESTUDOS COMPARATISTAS
18
1.1 Lima Barreto e Machado de Assis
25
1.2 Lima Barreto e Coelho Neto 34
1.3 Lima Barreto e Euclides da Cunha 36
1.4 Lima Barreto, Gógol, Dostoiévski e Leon Tolstói 40
2 LEON TOLSTÓI NO BRASIL 54
3 AS IDEIAS ESTÉTICAS DE LIMA BARRETO E LEON TOLSTÓI 82
3.1 Lima Barreto 83
3.2 Leon Tolstói 88
3.3 Lima Barreto, Leon Tolstói e o Ideário Anarquista 95
3.4 “O Destino da Literatura” 104
3.5 “O que é Arte?” (1898) 111
4 LIMA BARRETO E LEON TOLSTÓI NAS TRINCHEIRAS
LITERÁRIAS: DIVERGÊNCIAS E CONVERGÊNCIAS
118
4.1 A Função Social da Literatura: Comunicação, Ligação e
Comunhão entre as Pessoas
120
4.2 O Sinal da Arte: O Poder de Contágio 128
4.3 Linguagem Literária Rumo ao Procedimento de Singularização
131
4.4 Semelhanças de Estilo, Sentimentalismo e Temas Recorrentes em
Leon Tolstói e Lima Barreto 146
4.5 Rastros de Leon Tolstói em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá
172
CONCLUSÃO 178
BIBLIOGRAFIA
183
APÊNDICES 198
10
INTRODUÇÃO
ENTRE O DESLEIXO E A GENIALIDADE
No “curso da vida e das leituras”; assim, obtive contato com a obra do escritor
Afonso Henriques de Lima Barreto. Desde 1999, ainda na Graduação, tenho me dedicado a
esse estudo, realizando cursos de Especialização, na Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul / Campus de Dourados e Mestrado, na Unesp, de Assis (2003). Dada a riqueza da obra
barretiana, e considerando outros caminhos teóricos, observados durante os trabalhos
anteriores, mas não totalmente explorados, principalmente os relacionados à Literatura
Comparada, o arquivístico e os Estudos Culturais, amplia-se o leque de investigações para o
estudo das relações literárias do escritor.
De início, o que me atraiu para o estudo da obra do escritor Lima Barreto foi a
leitura do “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, obra que marcou, e acredito que ainda marca,
o leitor, pela sinceridade com a qual o escritor retrata o ser humano, especialmente o
sofrimento e a tristeza humana. Aliás, não me recordo de encontrar, retratada em sua obra,
alguma cena de alegria, o que não quer dizer que a obra barretiana seja feita somente de
tristezas. Mais tarde, no Mestrado, cursei a disciplina “Tópicos especiais: realismo urbano”,
ministrada pelo professor visitante J. R. Oakley, da Universidade de Birminghan (Inglaterra),
o que contribuiu para reforçar minha opção por Lima Barreto e possibilitou o conhecimento
de obras literárias, até então, ignoradas na graduação de Letras. Embora de forma não
aprofundada, pois, de outro modo não teria sido possível, porque a disciplina ocorreu de
forma condensada, ela me possibilitou saber com quais leituras devo ocupar-me futuramente.
Atribuo o sucesso alcançado pela disciplina ao amplo conhecimento, demonstrado pelo
professor Oakley, sobre literatura brasileira, e, também, ao fato de ele ser um grande
estudioso da obra de Lima Barreto.
Assim, na dissertação do Mestrado, procurei reavaliar a trajetória literária de Lima
Barreto, considerando o contexto histórico da virada do século XIX e a recepção crítica do
escritor. Destinei um capítulo, “Encontros e desencontros”, para tratar das relações literárias
do escritor com Machado de Assis e seus contemporâneos: Coelho Neto, Euclides da Cunha e
Monteiro Lobato. Apesar de Machado de Assis ter falecido quando Lima despontava para a
carreira literária e não existir registro de que os dois tenham tido algum contato, logo, a crítica
11
estabeleceu uma oposição irremediável entre os dois: Machado firmou-se como o escritor
oficial; Lima, o maldito. É notório, na obra barretiana, que Lima sempre fez questão de citar
suas fontes, isto é, os autores e as obras que leu ou a quem fez referência; já, quanto a
Machado de Assis, Lima Barreto tinha por ele forte rejeição.
A Crítica literária, quando não ignorava Lima Barreto, considerava-o “desleixado”,
recalcado ou alcoólatra e não percebeu o caráter inovador da obra barretiana: uma linguagem
esteticamente revolucionária, se confrontada aos padrões vigentes no período em questão. Em
função disso, a obra barretiana foi relegada pela crítica oficial e taxada de memorialística e
autobiográfica, características que a conceituavam como literatura menor.
Como resultado dessa aproximação de Lima Barreto aos seus contemporâneos,
vimos que a avaliação crítica, na maioria das vezes, deixou o escritor em segundo plano,
sobretudo no que se referia à questão do estilo. Esse é um dos fatores da não compreensão da
obra barretiana pela crítica do período, pois, para Lima Barreto, o importante era a sinceridade
do escritor e a urgente necessidade de atingir um maior número de leitores de forma direta,
sem rodeios, isto é, uma literatura do povo para o povo. Contrariava, assim, o culto à
linguagem acadêmica em vigor, que tinha Machado de Assis, Rui Barbosa e Graça Aranha
como principais representantes do bem escrever. Não compreenderam, os críticos, que, ao
apresentar deslizes de sintaxe e de estilo, Lima Barreto iniciava uma nova fase da literatura
brasileira. Esse foi o meio que o escritor utilizou para romper com as estéticas parnasiana e
simbolista presentes no final do século XIX e início do século XX. Posicionou-se contra a
estética da “arte pela arte”, concepção parnasiana de que a arte deve estar descompromissada
da realidade, mais voltada para a perfeição formal. Essa ideia está explícita na conferência
literária “O destino da literatura”, juntamente com as indicações de leitura que deram suporte
e embasamento teórico a Lima Barreto.
No texto referido, Lima cita autores e obras que demonstram os pressupostos
estéticos barretianos, enfatizando, sobremaneira, a obra “O que é Arte?”, de Leon Tolstói. O
fato despertou-me a atenção, visto que Lima faz referência aos escritores russos com certa
frequência em sua obra; portanto, pesquisar as relações literárias de Lima Barreto com os
autores russos, mais, especificamente, com Leon Tolstói, deve contribuir para ampliar as
possibilidades de compreensão da obra barretiana. Com isso, vi a oportunidade de dar
sequência ao estudo de Lima Barreto, no Doutorado, uma vez que uma das suas exigências é
fazer algo inédito, e, até aquele momento, não tinha conhecimento de que alguém já o tivesse
feito.
12
Ao analisar, porém, a fortuna crítica de Lima Barreto, deparei-me com alguns
estudos que abordavam, de certo modo, sua relação com os escritores russos e, por extensão,
Leon Tolstói, mas sem, contudo, aprofundar a investigação. Entre os estudos encontrados está
o de Anoar Aiex, “As idéias sócio-literárias de Lima Barreto” (1990), que procurou “[...] fazer
um levantamento das principais noções que, até certo ponto, formam o arcabouço ideológico
de Lima Barreto” (AIEX, 1990, p. 7). Em síntese, Aiex aborda a relação de Lima com os
temas que mais preocuparam o escritor, entre eles: anarquismo, comunismo, feminismo,
outros.
O segundo estudo, o ensaio “Lima Barreto e o romance russo” (1996), de Maria
Angélica Madeira, afirma que Lima encontrou, na literatura russa, os elementos para a
formulação de uma “estética da sinceridade”. A crítica procura demonstrar, também, como
Turguênief, Leon Tolstói, Górki e, principalmente, Dostoiévski comparecem, não só na
biblioteca do escritor e em cartas, como no diálogo que a obra barretiana estabelece com esse
filão da “literatura do subterrâneo”. Constata-se que, Madeira, em seu ensaio, aproxima Lima
Barreto muito mais a Dostoiévski do que a Leon Tolstói.
O terceiro, o texto de Maria Salete Magnoni, dissertação de Mestrado, “Um
dissidente na República das Letras: as idéias libertárias em Lima Barreto”, de 1998, teve por
objetivo “[...] traçar um esboço de retrato intelectual de Lima Barreto, para então examinar a
presença das idéias libertárias em sua formação intelectual” (MAGNONI, 1998, p. 2). O
estudo de Magnoni aproxima-se, em parte, do de Aiex, por voltar-se para Lima Barreto e
Leon Tolstói através do ideário anarquista.
Desse modo, propus-me a investigar a relação entre a concepção de arte de Lima
Barreto e a de Leon Tolstói. Muito embora não constitua algo inédito, pois as relações
literárias de Lima com os escritores russos estão explícitas em sua obra. Trata-se, portanto, de
algo a ser feito, uma vez que os poucos estudos encontrados abordam essa relação
superficialmente. Na obra de Lima Barreto, há um terreno fértil para essa aproximação, daí a
possibilidade de explorar essa relação: Lima Barreto e Leon Tolstói, de forma mais
concludente.
Sendo, assim, é importante destacar dois estudos aos quais recorri por tratarem o
assunto de forma sistemática. O primeiro, da pesquisadora Alice Áurea Penteado Martha
(1995), que apresenta um inventário crítico sobre o escritor Lima Barreto; o segundo, do
pesquisador Bruno B. Gomide, mais recente, que trata do romance russo de forma geral: Da
estepe à caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936)”, de 2004. Esses estudos tornaram-
se referência obrigatória para todos que pretendem estudar Lima Barreto e a literatura russa.
13
Uma vez delimitado o objeto, foi preciso definir a linha teórico-metodológica da
pesquisa, que mais se apresenta como um desafio do que como solução: o comparatismo
literário. Isto é, sob a ótica da Literatura Comparada, porém, não mais no sentido da Literatura
Comparada tradicional, que se estabelecia na questão binária de fontes e influências, mas,
sim, voltando-se para a questão da intertextualidade que, segundo Julia Kristeva. “Todo texto
se constrói como um mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de textos; ele
é uma escritura réplica (função e negação) de outro (dos outros) texto(s)” (KRISTEVA, 1974,
p. 64). Constata-se, assim, que a leitura intertextual substitui o tradicional estudo das fontes e
influências. Nesse sentido, o comparativismo literário proporciona uma (re) leitura de Lima
Barreto, não como devedor ou, simplesmente, como quem sofreu a influência de Leon
Tolstói, mas possibilitando mostrar, além das semelhanças, também as diferenças entre
ambos. E, com isso, ressaltar o que existe de singular na literatura de Lima Barreto, que,
mesmo contrariando a crítica de sua época, estabelece-se como precursor das características
modernas da narrativa. Acrescenta-se que o diálogo que a obra barretiana mantém com outros
textos é uma das características que denota sua modernidade.
Ao acompanhar o percurso histórico do comparativismo literário, desde os seus
primórdios, constata-se certa instabilidade no método, que parece estar em frequente estado
de evolução, sofrendo mudanças e adaptações, de acordo com o espaço e o tempo. Trabalhar
com o confronto e a comparação de textos literários é um recurso consideravelmente antigo,
do qual a crítica especializada se tem utilizado com frequência e que, conforme podemos
constatar, já fazia parte das avaliações críticas feitas a Lima Barreto.
Antonio Candido, no texto intitulado “Literatura Comparada”, afirma que “[...]
estudar literatura brasileira é estudar literatura comparada” (CANDIDO, 1993, p. 211). Essa
afirmativa vem reforçar o que foi dito anteriormente sobre a situação de instabilidade da
literatura comparada e, também, da crítica literária, uma vez que a produção literária, no
Brasil, esteve sempre muito dependente dos exemplos externos, não só na forma como se
escrevia, como se avaliava, mas, ainda, sobre “o que” se escrevia. O paralelo, entre os
escritores brasileiros e os autores estrangeiros, tem sido, desde a origem da crítica até os
nossos dias, um dos critérios utilizados para caracterizá-los e avaliá-los. Junta-se a ele a
referência, que surge como técnica de caracterização crítica. Segundo Candido, isso não
ocorria em contextos formalmente comparatistas, até porque ainda não se falava em literatura
comparada, o que demonstra a existência de uma vocação comparatista como algo extensivo à
própria atividade crítica no Brasil.
14
É importante ressaltar que a “[...] comparação, mesmo nos estudos comparados, é
um meio, não um fim” (CARVALHAL, 1999, p. 7). Apesar de a comparação não ser
exclusiva da literatura comparada, o que irá caracterizá-la, como tal, será seu emprego
sistemático, uma vez que o método (ou métodos), conforme Carvalhal, não antecede à análise,
mas dela decorre.
Recorrer-se-á, se necessário, aos recursos oferecidos pela Crítica Literária, Teoria da
Literatura, Estudos Culturais, etc.; visto que, Carvalhal (1999) reconhece a utilização do
rótulo literatura comparada como designação de um amplo e variado leque de investigações
diferentes, enquanto objeto de análise e enquanto metodologia.
Por fim, partindo da constatação de que a obra barretiana é terreno fértil para se
pesquisar as relações literárias do escritor, este estudo visa avaliar, pelo viés comparativo, o
quanto a concepção de arte de Lima está relacionada à concepção tolstoiana de arte. Essa
concepção, ao que parece, justifica e embasa todo o projeto literário de Lima, que se volta
para uma literatura militante. Uma vez constatado que Lima Barreto, ou melhor, que sua obra
dialoga com escritores consagrados, renomados e integrantes da tradição literária, tais como,
Leon Tolstói, Dostoiévski, Turguênief e outros, automaticamente, reforça-se a qualidade da
obra e do projeto literário barretiano. As relações literárias do escritor Afonso Henriques de
Lima Barreto (1881-1922) despertam interesse por sua obra, pois algumas são negadas
veementemente, outras assumidas sem reservas. Acredita-se que isso se dê devido à postura
direta e coerente do escritor entre o que pregava e o que fazia. Constata-se que, dentre as
relações literárias explicitadas em toda a obra barretiana, as que mais se destacam são as
relacionadas aos escritores russos, principalmente a Dostoiévski e Leon Tolstói.
Desse modo, é importante fazer a contextualização do escritor Lima Barreto no
campo literário da virada do século XIX, isso conforme a teoria de Pierre Bourdieu de que, na
concepção do fato literário o dito e o dizer, o texto e seu contexto são indissociáveis. Isto é,
pensar o surgimento de uma obra num tempo e num local determinado. Para isso, Pierre
Bourdieu criou os conceitos de campo e habitus, por meio dos quais se pretende refletir sobre
as relações literárias de Lima Barreto, questão abordada por Sérgio Miceli no estudo que
analisa a trajetória de literatos atuantes na República Velha e no período Vargas.
Engana-se quem ainda atribui ao escritor o adjetivo de “desleixado”, tal como a
crítica da época o classificou no início de sua atividade literária, em 1905. A visita ao arquivo
barretiano (leia-se Coleção Limana, conforme chamava o escritor sua biblioteca) mostra-nos
o quanto o escritor já se preocupava com os princípios que norteariam sua produção literária,
buscando uma forma de inscrever-se no universo literário e, assim, na história, ao lado de
15
grandes homens. Tal como na presente pesquisa, que o coloca ao lado de um dos maiores
gênios da literatura mundial, Leon Tolstói.
Segundo Maria Zilda F. Cury (1993, p. 78), “[...] fazer falar as fontes é voltar o olhar
para as ruas das cidades em cujos calçamentos ainda ressoam os passos de escritores e
intelectuais e os seus sonhos de mudança”. Assim, entrar em contato com o arquivo de Lima
Barreto nos leva a rever o universo ficcional do escritor com suas angústias e sofrimentos e a
reconstruir os caminhos percorridos por ele para a produção de suas obras, principalmente os
subúrbios do Rio de Janeiro, que parecem estar vivos na obra barretiana. Ainda, de acordo
com Cury, com a ida ao arquivo de Lima, busca-se “[...] repensar o lugar da crítica e para
reviso da história da literatura” (CURY, 1993, p. 78).
Além dessa breve apresentação, a pesquisa estrutura-se em quatro capítulos,
descritos a seguir.
O primeiro capítulo procura contextualizar o escritor Lima Barreto no campo
literário, político e social, da virada do século XIX, momento em que o escritor estreia na
literatura. Enfatizando, sobremodo, o campo literário e suas relações literárias. Não obstante,
isso não quer dizer que um campo seja mais importante que o outro, pois, segundo Pierre
Bourdieu, todos os campos contribuem e influem de igual modo no resultado da obra. Em um
segundo momento, abordar-se-ão os trabalhos já existentes que tiveram como objeto de
estudo o escritor Lima Barreto, com o intuito de situá-lo no contexto comparatista. Inclui-se a
manifestação da crítica inicial sobre o escritor, que o avaliou pelo viés do confronto
comparativo – ainda que seja uma simples aproximação – uma vez que as manifestações
críticas restringiam-se às alusões e paralelismos, sem, de fato, aplicar os conceitos teóricos
relativos ao contexto comparatista. Dessa forma, tem-se o viés comparativo entre Lima
Barreto e os seguintes escritores: Machado de Assis; os contemporâneos: Euclides da Cunha e
Coelho Neto, e Lima Barreto e os escritores russos: Dostoiévski e Leon Tolstói.
No segundo capítulo, tratar-se-á da presença de Leon Tolstói no Brasil e,
consequentemente, como se deu a recepção do escritor russo. Principalmente, investigar-se-á
de que forma, e como, Leon Tolstói era lido, no Brasil, na virada do século XIX. Ressalta-se
que Lima Barreto teve contato com as obras de Leon Tolstói traduzidas da língua francesa e,
principalmente, com as traduções que estavam disponíveis no Brasil naquele período.
Pretende-se traçar também uma visão geral sobre o escritor Leon Tolstói e, para isso, recorrer-
se-á a aspectos biográficos, autobiográficos e à fortuna crítica, enfatizando-se questões, como:
quem foi o homem e o artista, e o que ele realizou, não só para o povo russo, como para toda a
Humanidade. Utilizamo-nos das palavras de Boris Schnaiderman, um dos maiores estudiosos
16
da literatura russa, no Brasil, para demonstrar sua percepção da obra desse grande escritor
russo, melhor dizendo, desse “gigante” russo: “Multiforme e riquíssima, fascinante sempre, a
obra de Tolstói continua a afirmar que uma vida humana é insuficiente para apreciá-la em
toda a sua profundidade” (SCHNAIDERMAN, 1983, p. 8).
O terceiro capítulo centrar-se-á nas concepções de arte de Lima Barreto e Leon
Tolstói, nos pressupostos estéticos e na participação de ambos no ideário anarquista.
Pretende-se abordar os principais temas, em comum, tratados pelos escritores, tais como: a
Igreja, O Estado, a propriedade, o serviço militar obrigatório, a mulher, entre outros. Desse
modo, ater-se-á à apresentação de dois textos que sintetizam as ideias literárias de cada um
dos escritores referidos. O primeiro, “O Destino da literatura”, de Lima Barreto, tido como o
“testamento literário” e “profissão de fé” do escritor, no qual ele demonstra a fidelidade aos
seus princípios estéticos. Escrito em 1921, por ocasião de um convite do médico
e amigo, Dr.
Ranulfo Prata, para que ele fizesse uma conferência literária em Mirassol do Oeste, uma
cidadezinha no interior paulista, nas proximidades de São José do Rio Preto. O segundo, “O
que é a Arte?” (1897), de Leon Tolstói, um dos ensaios mais polêmicos do escritor e o que
levou mais tempo a ser concluído. O texto tolstoiano provocou um grande debate entre os
intelectuais e os artistas, não só pelas ideias polêmicas apresentadas, que se chocavam com as
novas propostas estéticas, mas, também, por trazer à tona um outro questionamento em
relação à arte que continua pertinente: o de “[...] determinar sua função, sua relação com a
sociedade” (FABRIS, 1994, p. 18). Ambos foram selecionados, por reunirem a essência das
ideias dos respectivos escritores sobre arte e literatura.
O quarto e último capítulo têm, como objetivo, o confronto literário entre os dois
escritores Lima Barreto e Leon Tolstói, e uma análise na perspectiva comparativista, com o
objetivo de demonstrar a influência da concepção tolstoiana de arte na produção artística
barretiana. Uma questão de fundamento relevante assume evidência, qual seja a de
demonstrar – por intermédio de uma investigação aplicada à linguagem literária exercitada
pelo discurso barretiano – o caráter de consciência de execução de um procedimento criativo-
literário próprio e adaptado às condições e referências nacionais. Afasta-se, dessa forma, da
influência no âmbito da mera transcrição, para elevar-se à condição de plenitude original que
– a despeito da crítica, tanto no que diz respeito ao conteúdo quanto à expressão –, o fez
captar e exercitar o novo na Literatura Brasileira do período. Para isso, verificar-se-ão
mediante os possíveis cruzamentos entre os textos, as confluências e divergências, isto é, as
semelhanças e diferenças entre a concepção de arte de Lima Barreto e a de Leon Tolstói. Em
primeiro lugar, recorrer-se-á às concepções de arte de cada escritor para verificar se,
17
realmente, as características da arte apregoadas por Leon Tolstói em O que é a Arte?, são as
mesmas apontadas por Lima Barreto. Principalmente, ao que se refere à função social da
literatura, ao procedimento de singularização da linguagem, à forma como cada escritor
“desmistifica” a poética romântica, as semelhanças de estilo literário entre ambos e a presença
de temas recorrentes em um e outro.
Como se vê, o escritor Lima Barreto não fugiu ao seu destino: “[...] que me importa
o presente! No futuro é que está a existência dos verdadeiros homens” (BARRETO, 1956,
v. XIII, p. 68). E, mesmo que lhe custasse uma vida inteira, se os “verdadeiros homens” são
aqueles que lutam por um ideal, agem em conformidade com o que falam e não se rendem às
intempéries da vida: eis Lima Barreto, o “verdadeiro homem”.
18
1 LIMA BARRETO E OS ESTUDOS COMPARATISTAS
Quando me julgo – nada valho; quando me
comparo, sou grande.
Lima Barreto (Diário Íntimo, 1904).
Ao nos dedicarmos ao estudo de Lima Barreto, constatamos o quanto de veracidade
existe na afirmação de Antonio Candido: “Estudar literatura brasileira é estudar literatura
comparada” (CANDIDO, 1993, p. 211). Isso porque, o escritor Lima Barreto, embora
buscasse ser original, estava estreitamente vinculado aos escritores estrangeiros, conforme
verificamos por meio das referências aos diversos escritores encontradas na obra barretiana,
principalmente aos russos. De modo geral, a produção literária brasileira demonstra ter-se
constituído através da literatura estrangeira, quer tenha sido para concordar ou discordar dessa
última. Em um primeiro momento, as afinidades apresentadas, em relação ao modelo europeu,
eram sinônimas de auto-afirmação, por demonstrarem algum “grau de parentesco
(CANDIDO, 1993, p. 211) com uma literatura já reconhecida. Por outro lado, a avaliação
crítica de nossos escritores ocorria sob o crivo da aproximação aos modelos externos: quanto
mais se encontrassem indícios de filiação aos moldes estrangeiros, mais positiva a avaliação
crítica. Ocorria, conforme Candido: “Uma espécie de comparatismo não intencional,
elementar e ingênuo” (CANDIDO, 1993, p. 212).
Esse foi o procedimento utilizado pela maioria da crítica inicial sobre o escritor
Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), ou seja, suas avaliações críticas
apresentavam forte inclinação comparativista. Consequentemente, Lima Barreto foi um dos
escritores mais avaliados por meio de comparações com outros escritores. O que, segundo
Antonio Candido, reflete as características da crítica da época, uma vez que a mesma não se
ateve – de fato – à obra do escritor, mas sim apresentava “[...] uma vocação comparatista
espontânea e informal” (CANDIDO, 1993, p. 213). Pois, quando não fazia o contraponto
entre vida e obra, avaliando um em detrimento do outro, ou ainda, avaliando um em função do
outro; avaliava-o em contraponto aos escritores seus contemporâneos: Graça Aranha, Coelho
Neto, Euclides da Cunha e, principalmente, Machado de Assis, fundador da Academia
Brasileira de Letras. Embora Machado já não estivesse entre os vivos quando Lima estreou na
literatura, o contraponto entre ambos tornou-se lugar comum na crítica literária e Machado
tornou-se uma espécie de um “duplo” para Lima.
19
Demorou, mas a crítica literária evoluiu e tem demonstrado que é possível avaliar
cada escritor “per si”, libertando-o, assim, de seu “duplo”. Em se tratando de Lima Barreto,
embora o escritor tenha sido alvo fácil para comparações, não se encontram muitas pesquisas
acadêmicas realizadas no âmbito dos estudos comparatistas que o tenham como objeto de
estudo. Inicialmente, algumas avaliações críticas apareceram, sob uma perspectiva
comparativista, em periódicos,
1
sem muito aprofundamento, tal qual era feita a Crítica, desse
período, ainda não de todo consolidada com métodos e técnicas definidos e esclarecedores.
Pode-se dizer, também, que o panorama no qual se encontrava a Literatura Comparada era o
mesmo, ou seja, não existia ainda um consenso sobre sua natureza, seus objetivos e métodos:
“Literatura comparada propriamente dita, só quando o século XX já estava chegando à
metade” (CANDIDO, 1993, p. 213).
A obra de Lima continua atual, como afirma João Antonio, um admirador declarado
do escritor: “[...] está tudo aí, vivo, pulando nas ruas, se mexendo incrivelmente sem solução
[...] Da mesma forma descarada com que o mulato flagrou esta vida carioca; brasileira, sul-
americana” (ANTONIO, 1977, p. 13). Assim sendo, o estudo das relações literárias de Lima
vem reforçar a importância de seus escritos e a atualidade de suas críticas, sendo possível
analisar sua obra de um outro ângulo, para, assim, constatarmos a multiplicidade de “Limas
Barretos” construída ao longo de cada confronto e comparação, resultado das possibilidades
interpretativas propiciadas por várias leituras que foram feitas dos romances do autor.
Utilizando-se da teoria de Pierre Bourdieu
2
para contextualizarmos o escritor Lima
Barreto, no período em que escreveu e publicou suas obras, foi preciso pensar sobre a trama
de relações sociais e políticas do escritor com os dirigentes políticos e sociais que atuavam na
virada do século. Isto é, os detentores do poder, principalmente, por volta de 1909, quando
Lima Barreto estreia nas letras com Recordações do escrivão Isaías Caminha. Essa relação
conflituosa marcou fortemente, e de modo negativo, a imagem do romancista, no campo
literário do período. Com isso, é pertinente recorrer à observação de Pierre Bourdieu, quando
1
Sobre o quanto as inovações técnicas influenciaram na literatura e na crítica que era veiculada nos periódicos,
é importante conhecer o estudo de Flora Sussekind, “O cinematógrafo de letras: literatura técnica e
modernização no Brasil”, São Paulo: Companhia das Letras, 1987. Nesse sentido, também, a obra de Lima
Barreto é exemplar ao desvendar a vida nos bastidores de um jornal, principalmente no romance Recordações
do escrivão Isaías Caminha. Ver ainda “Forma e história na crítica brasileira de 1870-1950”, de João
Alexandre Barbosa, para se ter um painel da crítica literária brasileira, principalmente, no tocante ao confronto
de atitude crítica: análise formal ou interpretação histórica (BARBOSA, 1990, p. 68). No que se refere à
crítica brasileira contemporânea de jornais, Barbosa a qualifica como “[...] quase simples press-releases, sem
maior esforço de análise e interpretação” (1990, p. 73), situação que mudou a partir dos anos sessenta.
2
Ver As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. BOURDIEU, P. Tradução de Maria Lúcia
Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. E, também, “Campo do Poder, Campo Intelectual e
Habitus de Classe”, In: A economia das trocas simbólicas. BOURDIEU, P. Org. Sérgio Miceli. São Paulo:
Perspectiva, 2007. p. 183-202.
20
diz que “o julgamento da história que será o último julgamento da obra e do autor já está
comprometido no julgamento do primeiro leitor, e a posteridade deverá contar com o sentido
público que os contemporâneos lhe terão legado” (BOURDIEU, 1968, p. 113). Daí a
importância dessas reflexões sobre a obra barretiana, pois, no caso de Lima Barreto, ao ser
avaliado negativamente logo na estreia, resultou em uma trajetória literária e social
tumultuada e cheia de percalços. Vê-se que o escritor só não foi totalmente aniquilado pela
crítica literária, então elite dominante, devido à determinação e obstinação de assumir seu
lugar no campo social e literário: “Eu quero ser escritor, porque quero e estou disposto a
tomar na vida o lugar que colimei. Queimei meus navios, deixei tudo por estas coisas de
letras” (BARRETO, v. X, 1956, p. 294).
O escritor Lima Barreto presenciou tanto a abolição da escravidão quanto a
instauração do regime republicano e sua consolidação, sua produção literária situa-se num
período de transição da história política do Brasil denominada República Velha (1889-1930).
Período histórico e político retratado em suas obras com riqueza de observações e avaliação
crítica.
3
A República deu origem a um processo de desestabilização e reordenamento social,
4
além de várias crises políticas. A impressão negativa da República foi compartilhada por
Aristides Lobo, em carta ao Diário Popular, em 18 de novembro de 1889: “O povo assistiu
àquilo bestializado, sem saber o que significava, julgando tratar-se de uma parada”
(BASBAUN, 1975, v. 2, p. 18). Constam, a partir da proclamação da República, os
enfrentamentos do escritor Lima Barreto com as classes detentoras do poder político,
econômico e literário. O primeiro maior problema trazido pela República foi a demissão do
pai do escritor da Imprensa Nacional, antes, Tipografia Nacional, pelo fato de ele ser
correligionário e compadre de Visconde de Ouro Preto. Somente depois, em março de 1890,
por interferência de Cesário Alvim, então no Ministério do Interior, João Henriques é
nomeado escriturário das Colônias de Alienados da Ilha do Governador. Trabalho esse em
que, pouco tempo depois, ele se torna alienado, alterando totalmente os rumos da vida do
filho.
3
Ver Bagatelas, v. IX, 1956, p. 52. “Quando em 1889, o senhor Marechal Deodoro proclamou a República eu
era menino de oito anos. Embora fosse tenra a idade em que estava, dessa época e de algumas anteriores eu
tinha algumas recordações. Das festas por ocasião da passagem da Lei de 13 de Maio ainda tenho vivas
recordações; mas da tal história da proclamação da República só me lembro que as patrulhas andavam, nas
ruas, armadas de carabina e meu pai foi, alguns dias depois, demitido do lugar que tinha. E é só. Se alguma
coisa eu posso acrescentar a essas reminiscências é que a fisionomia da cidade era de estupor e de temor.
Nascendo como nasceu, com esse aspecto, de violência, ela vai aos poucos acentuando as feições que trazia no
berço”.
4
Conforme José Murilo de Carvalho, “A proclamação da República trouxe grandes expectativas de maior
participação no poder por parte não só de contra-elites, mas também de camadas antes excluídas do jogo
político”. Cf.: CARVALHO, José Murilo de. Os bestializados, o Rio de Janeiro e a República que não foi.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 22.
21
Na crônica “São Paulo e os Estrangeiros”, de 1917, Lima Barreto faz uma avaliação
bastante negativa da República, enfatizando a política econômica sem escrúpulos que se
expandiu no período, afirmou que “[...]; da proclamação da República só me lembro que as
patrulhas andavam, nas ruas, armadas de carabina e meu pai foi, alguns dias depois, demitido
do lugar que tinha” (BARRETO, 1956, v. IX, p. 52). É importante avaliar, então, que o
confronto social sofrido por Lima Barreto apresentou proporções gigantescas devido ao fato
de que ele, bem ou mal, quando criança, e até por volta dos dezenove anos, fazia parte do
mundo social. Frequentava as melhores escolas, tinha um padrinho importante e, talvez, em
função disso, as pessoas não demonstrassem o preconceito de modo explícito tal qual veio a
ocorrer, depois, na Escola Politécnica.
Ao analisar a trajetória de literatos atuantes na República Velha e no período Vargas,
Miceli (2001), utilizou-se como critério de seleção a existência de memórias ou biografias,
sendo, através desse material, que se estabeleceu a atuação de cada escritor dentro do campo
literário, político e social nas respectivas épocas de atuação. No caso de Lima Barreto, além
de ter registrado suas memórias em dois volumes: Diário Íntimo e Cemitério dos Vivos, pode-
se dizer, então, como Antonio Arnoni Prado (1989, p. 3):
Ler os livros de Lima Barreto é de alguma forma participar do drama do
intelectual sitiado. Mais talvez do que isso, é um exercício de consciência histórica
que conta com a vantagem, como poucas vezes noutro escritor brasileiro, de um
difícil testemunho: constatar como a vida, e nesta a opressão e o fracasso, se
converte em literatura.
Miceli avalia que o princípio subjacente à experiência social de Lima Barreto, como
também as tomadas de posição estéticas e políticas que dela resultam concentra-se na
convergência de dois movimentos opostos. Primeiro, a familiarização com o universo da
classe dirigente, devido à educação singular que recebeu por intermédio de seu padrinho, com
todas as implicações que tal fato teve no tocante à percepção das alternativas de carreira, das
amizades, das leituras, e, segundo a permanência do vínculo à sua classe de origem. Isso
permitiu, ao escritor, apropriar-se das maneiras de pensar e sentir estranhas ao seu meio de
origem e, ao mesmo tempo, permitiu-lhe assumir um ponto de vista objetivo, acerca do
mundo social, a partir de sua primeira experiência com esse mundo. Essa reflexão está
presente no Diário Íntimo:
A família que se junta a uma outra, de educação, instrução, inteligência inferior,
dá-se o que se dá com um corpo quente [...] Foi o que se deu conosco. Eu,
entretanto, penso me ter salvo. Eu tenho muita simpatia pela gente pobre do Brasil,
22
especialmente pelos de cor, mas não me é possível transformar essa simpatia
literária, artística, por assim dizer, em vida comum com eles [...] A minha vida de
família tem sido uma atroz desgraça. Entre eu e ela há tanta dessemelhança, tanta
cisão, que eu não sei como adaptar-me. Será o meu “bovarismo”? [...] Desgraçado
nascimento tive eu! Cheio de aptidões, de boas qualidades, de grandes e poderosos
defeitos, vai morrer sem nada ter feito [...]
Há de ser difícil explicar esse sentimento doloroso que eu tenho de minha casa,
do desacordo profundo entre mim e ela; é de tal forma nuançosa a razão de ser disso
[...] A minha melancolia, a mobilidade do meu espírito, o ceticismo que me corrói
[...] nasceu da minha adolescência feita nesse sentimento da minha vergonha
doméstica. (BARRETO, v. XIV, 1956).
A educação singular que recebeu só foi possível porque Lima Barreto teve os
estudos custeados pelo padrinho Visconde de Ouro Preto, conforme se confirma pelo bilhete
que se segue: “Niterói, 4 de março de 1893. Il Sr. Barreto. Em cumprimento de suas ordens,
mandarei segª feira o meu filho ao escritório do Exmo. Sr. Visconde de Ouro Preto receber o
trimestre de seu filho Afonso, meu aluno. (a). William Cundit” (BARRETO, 1956, v. XVI,
p. 33). A presença do padrinho, segundo Miceli, permite a Lima Barreto, de início, uma
carreira relativamente distante do polo intelectual, a profissão de engenheiro. (MICELI, 2001,
p. 34). Contudo, o padrinho consegue assegurar apenas uma adesão precária às carreiras
masculinas dominantes, isso porque, logo, o afilhado não sentia mais aquela admiração pelo
padrinho e, em seu lugar, percebeu que “Os protetores são os maiores tiranos” (BARRETO,
v. XIV, 1956, p.34). Conforme Barbosa (1975), Lima estudou no Liceu Popular Niteroiense,
um dos melhores do tempo, frequentado pela classe dominante. Entre seus colegas de Liceu,
constam: Otávio Kelly, Américo Ferraz de Castro, Manuel Ribeiro de Almeida, Ricardo
Greenhalgh Barreto, Caio Guimarães, os irmãos Sauerbronns Magalhães, Carlos Pereira
Guimarães. Colegas que, depois, se destacaram na magistratura, no jornalismo, na carreira das
armas, no magistério (BARBOSA, 1975, p. 40).
Para essa classe, filhos de pais ricos, não existiam preocupações com dinheiro,
compravam os livros que queriam, vestiam-se nos melhores alfaiates, contavam com as
relações de família, os “pistolões”, que lhes abriam todas as portas. Lima Barreto não sentia a
diferença de classe nos tempos do colégio – nem no Liceu Popular Niteroiense, nem no Paula
Freitas – porém, na Escola Politécnica foi onde a diferença social e o preconceito emergiram
com toda força. Consta um episódio bastante elucidativo, na questão do preconceito racial,
envolvendo o escritor Lima Barreto, quando, um veterano, ao saber o bonito nome do novo
colega, proferiu o seguinte comentário para o secretário da Escola, o Sr. Souza Ferreira: “_
Vejam, só! Um mulato ter a audácia de usar o nome do rei de Portugal” (BARBOSA, 1975,
p. 88). Sem dúvida, Lima Barreto sofreu por ser mulato e pobre, e desabafou, no Diário
23
Íntimo: “É triste não ser branco” (BARRETO, v. XIV, 1956, p. 130). Por meio do contato
com suas memórias, constata-se que o escritor atribui ao fato de ser mulato a principal causa
“de sua exclusão social, sua infelicidade, sua decadência física, as alucinações, o alcoolismo,
o celibato forçado” (MICELI, 2001, p. 36). Embora, alguns afirmem que nunca existiu
preconceito de raça, recorrendo, para isso, ao exemplo de André Rebouças, um mestre negro
ilustre da Escola do Largo do São Francisco de Paula (BARBOSA, 1975, p. 87).
5
Lima Barreto, aos dezenove anos, sendo o filho mais velho, vê-se obrigado a
abandonar o curso da Escola Politécnica devido à doença do pai, em 1902. Agora, teria que
trabalhar para ajudar em casa. Assim, o escritor relata sua situação:
Desde muito eu desejava abandonar o meu curso. Aquela atmosfera da escola
superior não me agradava [...] Todos os meus colegas, filhos de graúdos de toda
sorte, que me tratavam, com um compassivo desdém, formavam uma ambiência que
me intimidava, que me abafava, se não me asfixiava. Fui perdendo o estímulo; mas a
autoridade moral de meu pai, que me queria ver formado, me obrigava a ir tenteando
[...]
Os últimos anos, passei-os pelos corredores da escola, a discutir [...] ou a ler na
Biblioteca Nacional ou Municipal; mas sobretudo na própria escola. Eu lia Kant,
Spencer, Comte, até o velho Condillac li, e Le Bom [...]. (BARRETO, v. IX, 1956,
p. 195).
Ao sair da Escola Politécnica, seu círculo de relações sociais e literárias aumentou
consideravelmente, pois começou a frequentar os cafés, local de encontros e discussões de
toda ordem, tanto política quanto literária. Passou a escrever para os jornais, esporadicamente,
na ânsia de conseguir um trabalho que fosse garantido; prestou concurso de amanuense para a
Secretaria de Guerra. Sendo nomeado, em 27 de outubro de 1903, onde permaneceu por
quinze anos. Mesmo depois de ter assumido o cargo na Secretaria de Guerra, continuava a
escrever para os jornais, no intuito de conseguir um dinheiro extra. Colaborou em revistas de
curta duração, como O Diabo e A Quinzena Alegre, levado por Bastos Tigre, ex-colega da
Politécnica. Depois, seria a vez de Carlos Viana, também da Politécnica, em fins de 1903,
confiar-lhe a secretaria da Revista da Época, na qual Lima ficou pouco tempo, visto que, além
de não ter ordenado fixo, recebia pro labore, e o escritor jamais se conformaria em escrever
louvores aos mandarins da política.
Na Secretaria de Guerra, demonstrou estar sempre insatisfeito porque não podia
dedicar-se por inteiro à literatura e dizer sem restrições o que pensava. Aposentado, em 1918,
5
Ver “A verdade sobre Lima Barreto”. Vamos ler!, Rio de Janeiro, n. 213, 29 ago. 1940. Depoimentos de
Everardo Backheuser e Manuel Ribeiro de Almeida, em conversa com F.A.B. “Na Escola de São Francisco,
no meu tempo, não havia preconceito de cor”, escreveu Nicolao Ciancio.
24
desabafa e explica suas atitudes anteriores.
6
Observa-se que o escritor se mantém coerente às
suas ideias por toda a vida, pois, em 1922, meses antes de morrer, escreve orgulhoso: “Sou
escritor e, se mérito outro não tenho, me gabo de ser independente” (BARRETO, v. XII,
1956, p. 74).
No campo literário, esse período, de 1900 a 1922, foi designado como o pré-
modernismo. Miceli (2001) traz uma nova interpretação para esse período, pois contraria a
crítica tradicional de que esse interstício tivesse sido “uma fase de estagnação da atividade
literária” e, sim, de que, nessa fase, se desenvolveram “as condições sociais favoráveis à
profissionalização do trabalho intelectual, sobretudo em sua forma literária, e à constituição
de um campo intelectual relativamente autônomo, em conseqüência das exigências postas
pela diferenciação e sofisticação do trabalho de dominação” (MICELI, 2001, p. 16). Desse
modo, Miceli afirma que, ignorar esse momento de expansão da atividade intelectual no
Brasil, relegar os produtores da época, tachando-os de “subliteratos” [...], é o mesmo que
desconhecer as condições sócio-históricas em meio às quais se constitui o campo intelectual
sob cuja vivência estava vivendo (MICELI, 2001, p. 16).
Sendo, assim, observa-se que Lima Barreto encontrava-se no centro dessa
efervescência intelectual, pois, apesar das dificuldades, trabalhava e estava diretamente ligado
à imprensa, não no comando, como Monteiro Lobato, mas, nos bastidores dos jornais, nos
cafés e nas rodas literárias. Conforme Miceli, a imprensa dominava toda a vida intelectual e
constituía a principal instância de produção cultural da época, fornecendo a maioria das
gratificações e posições intelectuais. Os escritores profissionais viram-se obrigados a
ajustarem-se aos gêneros recém importados da imprensa francesa: a reportagem, a entrevista,
o inquérito literário e, em especial, a crônica. O que foi retratado com riqueza de detalhes, no
romance Recordações do Escrivão Isaías Caminha, livro de estreia de Lima Barreto: “Era a
Imprensa, a Onipotente Imprensa, o quarto poder fora da constituição!” (BARRETO, v. I,
1956, p. 174). O resultado foi o silêncio imposto, ao escritor e à sua obra, por Edmundo
Bittencourt, diretor do Correio. O preço pago pelo escritor foi alto: “Sofreiam nosso
6
“Aposentado como estou, com relações muito tênues com o Estado, sinto-me completamente livre e feliz,
podendo falar sem rebuços sobre tudo que julgar contrário aos interesses do país [...]. Esperava desde muito
estes dias de completa liberdade, de independência quase total, para poder dizer da minha pobreza a franca e
verdade aos poderosos e ricos que assim se fizeram por toda a sorte de maneiras, honestas e desonestas. Hei de
dizer-lhes aos poucos... Durante os quinze para os dezesseis anos em que guardei as conveniências da minha
situação burocrática, comprimi muito a custo a minha indignação e houve mesmo momentos em que ela, desta
ou daquela forma, arrebentou. Muitas atitudes minhas, incompreensíveis aos olhos desses fariseus por ai,
vinham do angustioso recalque dos ímpetos de minha alma e da obrigação em que estava de dizer pela metade
aquilo que eu podia dizer totalmente” (BARRETO, v. IX, 1956, p. 134).
25
pensamento porque quem não aparece no jornal não aparecerá nem no livro, nem no palco,
nem em parte alguma – morrerá. É uma ditadura” (BARRETO, v. IV, 1956, p. 90).
Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo (1995, p. 55) em Lima Barreto e o Fim do
Sonho Republicano , refletiu sobre o importante papel da obra literária de Lima Barreto:
Em seus romances Lima Barreto também apresenta o processo de transformação da
Literatura em objeto de troca, com toda a sua complexa ambigüidade. Revela isso
em todos os campos, dos jornais, dos editores, enfim da comercialização do papel às
convicções, às idéias e sentimentos dos escritores.
Como se vê, Figueiredo aponta para preocupações do escritor Lima Barreto sobre a
arte literária que dialogam com as reflexões de Leon Tolstói, em O que é Arte?(1898).
Desse modo, o objetivo deste capítulo é relacionar algumas leituras que apresentam
um olhar comparativista sobre o escritor Lima Barreto e, ao mesmo tempo, colocar em
diálogo essas leituras, desvendando o que as aproxima e o que as diferencia. O olhar
comparativista presente nesses textos foi decisivo para a escolha deste suporte teórico,
considerando-se que a fortuna crítica de Lima Barreto é vasta, no Brasil e no exterior.
1.1 Lima Barreto e Machado de Assis
[...] Jamais o imitei e jamais me inspirou. Que me falem
de Maupassant, de Dickens, de Swift, de Balzac, de
Daudet – vá lá; mas Machado, nunca! Até em
Turguênieff, em Tolstói podiam ir buscar os meus
modelos; mas, em Machado, não! “Le moi”.
Lima Barreto (Correspondências. Tomo II, 1956).
Os escritores, Lima e Machado, tiveram trajetórias de vida e literárias bastante
diversas. Machado de Assis era aclamado e respeitado, ainda em vida, e considerado, pela
maioria da crítica, um dos maiores no quadro da literatura brasileira; enquanto Lima Barreto,
aos olhos da crítica, era visto como o oposto de Machado; era o “desleixado”, o “desajustado”
social. Esse antagonismo, entre os dois, estabeleceu-se de forma tão profunda que, até os dias
de hoje, ainda é possível perceber sua presença. Machado firmou-se como o escritor oficial;
Lima, o maldito. Com isso, a aproximação realizada entre ambos diminuiu e dificultou,
26
também, o reconhecimento do valor literário da obra barretiana, além de ter deixado um
legado mais negativo que positivo para Lima.
Para este estudo, os críticos e teóricos literários que se manifestaram sobre Lima
Barreto e Machado de Assis apresentar-se-ão em dois grupos distintos. O primeiro está
composto por Tristão de Athayde, José Oiticica, Austregésilo de Ataíde, Vítor Viana, Jackson
de Figueiredo, os quais se manifestaram em periódicos (PENTEADO MARTHA, 1995). O
segundo, composto por Lúcia Miguel Pereira, Alfredo Bosi e Álvaro Marins, que se
manifestaram em trabalhos acadêmicos, demonstrando, assim, o longo período decorrido para
uma mudança na avaliação crítica entre Lima Barreto e Machado de Assis, visto que, o estudo
de Pereira foi publicado em 1950; o de Bosi, em 1969 e o de Marins, em 2002. Além, dos
críticos e estudos citados, recorro, ainda, ao posicionamento e avaliação crítica do próprio
Lima Barreto em relação a Machado de Assis, que não deixa dúvidas quanto à avaliação que
faz de Machado: “Jamais o imitei e jamais me inspirou” (BARRETO, 1956, v. XVII, p. 256).
De modo geral, os textos críticos que aproximaram Lima Barreto e Machado de
Assis constataram a presença da caricatura, da sátira, do humor e da ironia em suas obras. Um
dos aspectos, que mais fortemente se arraigou entre a crítica literária inicial, refere-se à
oposição de ambos quanto ao estilo. Essa avaliação encontra-se bastante clara no artigo de
José Oiticica, de 1916, que escreve, para A Rua, sobre os aspectos linguísticos da obra limana.
Ele diz que Lima “[...] é um Machado de Assis sem correção gramatical, porém com vistas
amplas, hauridas no socialismo e no anarquismo” (OITICICA, 1916 apud PENTEADO
MARTHA, 1995, p. 82). Machado de Assis notabilizou-se por escrever em uma linguagem
altamente acadêmica, isto é, dentro do mais alto padrão linguístico vigente. Daí a facilidade
com a qual a crítica contou para classificar a escrita de Lima Barreto como totalmente fora do
padrão vigente, pois utilizavam padrões linguísticos opostos. Sobre isso, Lima fez uma
observação na carta escrita a Austregésilo Ataíde, datada de 19 de janeiro de 1921: “Machado
escrevia com medo do Castilho e escondendo o que sentia, para não se rebaixar” (BARRETO,
1956, v. XVII, p. 257). E posiciona-se quanto à opção feita: “Não tenho medo da palmatória
do Feliciano e escrevo com muito temor de não dizer tudo o que quero e sinto, sem calcular se
me rebaixo ou se me exalto” (1956, v. XVII, p. 257).
Ainda no ano de 1916, Jackson de Figueiredo, em A Lusitana, aproxima os dois
escritores no que se refere ao recurso da ironia. Porém, em lados opostos. Conforme Jackson,
Lima Barreto não possui delicadeza e intenção filosófica; sua ironia forte, chicoteante,
assemelha-se à de Swift. Machado de Assis, porém, revela leveza e intenção filosófica,
aproximando-se do sombreado pudor de Sterne. A avaliação de Jackson de Figueiredo
27
diferencia-se das anteriores, pois não fica somente nas críticas a Lima Barreto, observando
que o criador de Policarpo Quaresma: “[...] supera ao criador de Dom Casmurro, por ser mais
humano e mais verdadeiro” (FIGUEIREDO, 1916 apud PENTEADO MARTHA, 1995,
p. 83).
7
Em 1919, no “Jornal do Commércio”, Vítor Viana aborda a questão do humorismo
na obra dos dois grandes escritores, considerando-os próximos aos ingleses, mas ressalva que,
em Machado, o humor reveste-se de doçura e resignação, uma vez que o escritor pretendia
melhorar os homens; já, em Lima Barreto, o humor não é resignado, trazendo marcas de
revolta, de protesto e mais ardor político. Essa avaliação seria contraposta, em 1920, pela de
Austregésilo de Ataíde.
João Ribeiro também chamou a atenção para a questão do humorismo. Segundo ele,
em Lima, o humor é menos delicado, menos tímido, mais veemente e mais desenvolto, em
comparação ao humor presente na obra de Machado. Nesse mesmo ano, Tristão de Athayde
escreve: “Um discípulo de Machado”. O título do texto já explicita a opção de Athayde por
Machado e o humor é, novamente, objeto de comparação entre ambos. Para Athayde, Lima é
humorista da estirpe intelectual de Machado de Assis, mas, na semelhança, aponta diferenças:
afirma que o mestre chegou ao humorismo perfeito, ou seja, ao equilíbrio supremo entre
pensamento e estilo; o discípulo, por sua vez, atingiu o humorismo do primeiro impulso,
responsável pela impregnação, em sua obra, de incerteza, desleixo, e certa incontinência de
pensamento. Ressalta mesmo o caráter de discípulo de Lima: “[...] ainda não alcançou a
impassibilidade do ‘humour’. Lá chegará, se vencer o tédio de viver” (ATHAYDE, 1919,
p. 13).
Somente em 1920, aparece uma voz dissonante das manifestações críticas
destacadas até o momento. É o caso de Austregésilo de Ataíde, que, em carta a Lima Barreto,
elogiando-lhe o romance, Histórias e Sonhos (1920), protesta contra a aproximação que
alguns críticos haviam feito entre Lima Barreto e Machado de Assis, pois, a seu ver, seriam
dois escritores que apresentavam estilos, tendências e temperamentos totalmente diversos.
Austregésilo deixa transparecer sua preferência e admiração por Lima Barreto. Vê, Machado
de Assis, como “pessimista desapiedado”, que “se embebe do puro fel das suas revoltas
íntimas” e, ainda, “onde o sangue mulato animava o gênio dum heleno sem parelha”
8
. Como
se vê, as críticas a Machado não são poucas, embora reconheça a qualidade de mestre do
7
Este texto foi publicado em A Lusitana, Rio de Janeiro, 10-06-1916 e saiu na íntegra como prefácio do volume
Feiras e Mafuás, v. X, 1956, organizado por Francisco de Assis Barbosa, com a colaboração de Antônio
Houaiss e E. M. Cavalcanti Proença.
8
Ver carta na íntegra na edição das Obras de Lima Barreto (BARRETO, 1956, v. XVII, p. 253).
28
escritor: “Donde se vê que o mestre dos mestres, Machado de Assis, era genial e
propositadamente perverso, sem olhos para a bondade humana [...]” (BARRETO, 1956,
v. XVII, p. 253). O crítico avalia exatamente a questão do determinismo de Lima, em
contraposição ao alheamento de Machado, no que concerne às relações das personagens com
o meio. Conforme Austregésilo, esse alheamento de Machado denota a falta de sintonia entre
os personagens machadianos e a realidade circundante.
Mais uma vez, ressalta-se a linguagem rebuscada usada por Machado, bem como a
forma impecável utilizada para retratar seus personagens, o que, segundo Austregésilo, dá a
impressão de artificial. Austregésilo não para aí; a comparação que faz entre os dois escritores
vai mais além. Outro fato a destacar é a questão da ironia, a qual, embora presente nos dois
escritores, apresenta-se de maneira muito distinta. Ataíde analisa a ironia em Machado: “Ele
expõe a chaga purulenta, elegante e risonho, sem compadecimentos da dor alheia, tal como
um médico, num anfiteatro de lições [...]” (BARRETO, 1956, v. XVII, p. 255). Ainda
analisando a ironia, dessa vez referindo-se a Lima: “Você vive e vibra com os seus
personagens, porque eles são filhos da sua alma, rebolada, como a deles, nos descalabros da
existência, e experiente das misérias que os afligem” (BARRETO, 1956, v. XVII, p. 255).
As comparações entre um escritor, tido por genial e outro que, apesar do talento,
encontrava dificuldades para ser aceito, são pertinentes. Nota-se que, ao serem aproximados,
Machado permanece incólume diante da crítica – mesmo essa sendo negativa – tal é o poder e
o prestígio conquistado. Enquanto que, para Lima, cada palavra que venha enaltecer a obra e
o escritor é de extrema relevância, tal é o contexto ao qual a crítica o relegou. Cada qual fez o
caminho que lhe foi possível traçar dentro do contexto e da época na qual viveram e
escreveram suas obras. Não obstante, algumas características e a descendência africana são
compartilhadas pelos dois escritores. Quanto à descendência, constata-se um fato curioso:
essa só é explícita quando os críticos se referem a Lima Barreto, pois, quando aludem a
Machado de Assis, jamais o designam como mulato explicitamente, quando muito, citam sua
condição de mestiço. Esse fato, intencional ou não, denota o posicionamento preconceituoso
da crítica. O pior é perceber que Lima era conhecido como “mulato desleixado”, com toda a
carga negativa que o vocábulo mulato pode sugerir como termo oriundo das teorias
naturalistas sobre a degeneração de animais, derivado de mulo, animal que não se reproduz.
Por analogia, as teorias racistas denominaram mulato ao mestiço de branco e negro,
apregoando, inclusive, sua esterilidade após algumas gerações. Por essa razão, no início do
século, o termo mulato vinha sempre carregado de um sentimento muito forte de
29
discriminação racial e social: desleixado, sujo, estéril, bêbado e vingativo (PENTEADO
MARTHA, 1995, p. 195).
Ainda quanto às aproximações, ambos fizeram parte do funcionalismo público. A
diferença primordial entre eles está na forma como cada um desenvolveu seu trabalho literário
e, principalmente, a forma como se posicionaram diante dos fatos. A postura de Machado de
Assis diante da literatura e do social – o que o tornou, na época, modelo literário – fez com
que Lima Barreto jamais gostasse de ser comparado ao escritor: “[...] sempre achei no
Machado muita secura de alma, muita falta de simpatia, falta de entusiasmos generosos, uma
porção de sestros pueris” (BARRETO, 1956, v. XVII, p. 256). Embora Lima reconhecesse os
méritos de escritor, em Machado, não aprovava a atitude dele frente à miséria humana:
“Machado é um falso em tudo. Não tem naturalidade. Inventa tipos sem nenhuma vida”
(ATAÍDE, O Cruzeiro, 1949).
A postura de Machado de Assis é vista, por esse ângulo, não somente por Lima
Barreto, como, também, por uma parte da crítica. Um forte argumento da crítica de oposição a
Machado é o de que ele escrevia de forma reticente, como quem prefere escrever nas
entrelinhas. Para não se confrontar com a elite, recorria a muitos subterfúgios. Tal
procedimento está implícito na maneira como Machado encara o fato de ser negro; apesar de
mulato, não colocou sua pena em favor da causa. Enquanto Lima assume essa condição
abertamente, lutando, sofrendo e reivindicando maior espaço para si mesmo e para seus
semelhantes, o outro, porém, age de forma totalmente oposta. Dessa forma, Machado não
critica diretamente a sociedade burguesa – pela qual foi aceito – e, se o faz, é de forma sutil,
camuflada. Exige, portanto, para sua apreensão e compreensão, um leitor perspicaz que seja
capaz de ler as entrelinhas; daí a avaliação equivocada do suposto “alheamento” de Machado
por uma parcela da crítica, na virada do século XIX.
Como é sabido, no Brasil, o processo de formação de leitores foi um tanto quanto
demorado e, ainda hoje, ocorre certa relutância quanto a essa atividade. Se fosse possível
medir, diria até que o grau de dificuldade para ler Machado aumentou consideravelmente em
relação ao início do século XIX. Em função disso, destaca-se o trabalho da pesquisadora
Azevedo (2008)
9
que, em muito, contribui para a divulgação e compreensão do escritor;
ministrando palestras, organizando seminários, principalmente no ano de 2008, época que se
comemorou o centenário da morte do “velho bruxo”.
9
AZEVEDO, S. M. “Machado de Assis e a Filosofia: Modos de Leitura”. In: MARIANO, A. S.; OLIVEIRA,
M. R. D. Recortes Machadianos. São Paulo: Nankin; EDUSP, 2008. Ver também da mesma autora: “A
Trajetória de Machado de Assis: do jornal das famílias aos contos e histórias”. 3 v. Tese de Doutorado, USP,
1990.
30
Diante da concepção de literatura militante da qual Lima Barreto era adepto,
Machado de Assis teria sido útil à sociedade se tivesse posto todo seu potencial a serviço do
povo, de forma que fosse inteligível e atingisse os que realmente necessitavam de orientação.
Ou seja, a população que se encontrava totalmente desamparada e relegada pelo poder
público. Lima, ao tomar conhecimento do discurso, feito por Pedro Lessa, sobre Machado, no
qual ressaltava o “extraordinário poder de abstração” (BARRETO, 1956, v. X, p. 35), do
autor de D. Casmurro, reagiu de acordo com os princípios estéticos que sempre defendeu:
“Um escritor, cuja grandeza consistisse em abstrair fortemente das circunstâncias da realidade
ambiente, não poderia ser – creio eu – um grande autor. Fabricaria fantoches e não almas,
personagens vivos” (1956, p. 38). Vê-se que Lima encara a arte em função do meio em que
vive, e assim se manifesta sobre as críticas que João Ribeiro faz sobre o romance Numa e a
Ninfa (1915) e em defesa de sua personagem Edgarda: “Nós, dado a fraqueza do nosso
caráter, não podemos ter uma heroína de Ibsen e, se eu a fizesse assim, teria fugido daquilo
que o senhor tanto gabou em mim: o senso da vida e da realidade circundante” (BARRETO,
1956, v. XVII, p. 246). Com isso, torna-se transparente um traço distintivo entre os dois
escritores: o tratamento dado às personagens sob uma visão determinista. Para Lima, o
“extraordinário poder de abstração”, tido por Pedro Lessa como característica singular e
elogio para um bom escritor, antes, é um defeito. Ao contrário do alheamento de Machado de
Assis, no que concerne às relações das personagens com o meio, apontado por Austregésilo,
Lima Barreto coloca-se biograficamente em suas obras. E essa postura nelas se reflete de
forma ambígua, ora de forma positiva, ora negativa, dependendo da crítica. Mas o que
transpassa boa parte da fortuna crítica de Lima Barreto é que ele deveria ter sido mais
impessoal, característica que, segundo seus críticos, engrandeceria a obra barretiana.
De modo geral, a recepção crítica inicial da obra de Lima Barreto, apresentada em
periódicos, foi bastante contrária ao projeto literário do escritor, pois se via apenas o descuido
com a linguagem, o aspecto panfletário e o abuso do traço caricatural nas avaliações feitas.
Percebe-se, nelas, uma crítica presa à ideia de uma literariedade ligada a um alto grau de
elaboração ficcional.
Como constatada, a mudança na avaliação crítica da obra barretiana ocorreu de
forma lenta e gradual. Somente a partir de 1970, o interesse por essa obra aparece com
alguma constância. Isso porque a obra de Lima Barreto passa a ser objeto de pesquisa para a
elaboração de teses e dissertações. Nesse período, foram comemoradas duas datas
significativas: o cinquentenário da morte do escritor (1972) e o centenário de seu nascimento
(1981), o que propiciou o interesse por Lima Barreto, tanto na Academia quanto na Imprensa.
31
São dessa época os ensaios de Carlos Nelson Coutinho (1974), Sônia Brayner, (1973),
Antonio Candido (1976) e, também, as teses de Osman Lins (1976), de Antônio Arnoni Prado
(1976) e de Carlos E. Fantinati (1978).
Dando sequência à abordagem comparativa entre os escritores Lima Barreto e
Machado de Assis, fundamentada em pesquisas acadêmicas, pretende-se demonstrar se
ocorreu de fato uma mudança na avaliação crítica da obra barretiana, quando contraposta à de
Machado de Assis. Essa mudança parece ter início com o ensaio de Alfredo Bosi: “Ficção:
Lima Barreto e Graça Aranha” (1969), no qual Bosi aponta para uma relação determinista
entre vida e obra: “A biografia de Afonso Henriques de Lima Barreto explica o húmus
ideológico de sua obra: a origem humilde, a cor, a vida penosa de jornalista pobre e de pobre
amanuense, [...]” (BOSI, 1969, p. 93).
Ao se aprofundar na avaliação sobre o estilo de Lima Barreto, Bosi o considera, ao
mesmo tempo, “realista e intencional” (BOSI, 1969, p. 95), observando que não é apenas no
campo ideológico que coexistem espírito crítico e representação, essa coexistência se verifica
também no campo estilístico. Ou seja, o que aparenta ser apenas simplicidade, naturalidade e
instinto, no estilo limano, deve ser, também, uma forma de combate: “[...] as cenas de rua ou
os encontros e desencontros domésticos acham-se narrados com uma animação tão simples
[...] e deixam transparecer naturalmente a paisagem, os objetos e as figuras humanas” (BOSI,
1969, p. 95). Para Bosi, expressão e representação no texto barretiano estão em sintonia, uma
vez que o autor procurava o meio de expressão que melhor pudesse representar o Rio de
Janeiro, em sua produção.
Bosi observa que uma leitura mais detalhada da obra barretiana revela semelhança
estilística com Machado de Assis, em relação à dubiedade e à contradição, considerando,
porém, a superioridade de Machado:
Um encontro mais íntimo com o estilo de Lima Barreto sugere algumas
semelhanças notáveis com o “andamento” da frase machadiana cuja velada ironia se
entremostra nas restrições, nas dúvidas, nas ambíguas concessões à mentalidade que
deseja agredir: é a linguagem do “mas”, do “talvez”, do “embora”, sistemática nos
romances do Machado de Assis, dispersa e isolada na urgência polêmica e
emocional desta Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. (BOSI, 1969, p. 101).
Como se percebe, ocorre uma inversão na avaliação crítica: antes, o desleixo e a
imperícia no uso da língua desqualificavam o escritor Lima Barreto; agora, passam a
representar indícios de modernidade na obra barretiana, uma vez que apresentam
“semelhanças notáveis” à frase machadiana.
32
Lúcia M. Pereira, em História da Literatura Brasileira: Prosa de Ficção (de 1870 a
1920), adota, em sua abordagem, o ponto de vista histórico, apregoando que “[...] numa
literatura incipiente se deve atribuir importância às circunstâncias do tempo e do meio”
(PEREIRA, 1950, p. 13). No capítulo “Prenúncios Modernistas”, expõe sua avaliação sobre a
obra de Lima Barreto; aqui também Machado de Assis serve de contraponto a Lima Barreto.
A crítica faz um paralelo entre a vida e a obra de ambos, ressalta algumas semelhanças,
prevalecendo as diferenças. A balança continua a pender favoravelmente para Machado de
Assis, embora Lúcia M. Pereira demonstre um avanço para a equivalência crítica entre os dois
escritores. Refere-se, a Lima Barreto, como “a voz áspera e amarga”, “um atormentado
reclamava o direito de se fazer ouvir”, e marca as diferenças: enquanto a “vida de Machado de
Assis descreveu uma harmoniosa curva ascendente, a de Lima Barreto se desenvolveu em
ritmo catastrófico” (PEREIRA, 1950, p. 277). Não deixa, porém, de ver a obra de Lima
Barreto como “prenúncios modernistas”, isto é, um elo entre o romance machadiano e as
tendências da ficção modernista depois de 1930.
Observa-se que a autora, ao afirmar que ambos se aproximam por terem se utilizado
exclusivamente da ficção, e, por intermédio de seus personagens, interrogarem a existência,
aponta a diferença, ao afirmar que Machado usou da literatura “como uma interrogação, uma
decifração de enigmas”, enquanto Lima Barreto encarava-a sob o mesmo ângulo, porém era
mais positivo, “só chegava a tais questões através da realidade próxima”; portanto, a seu ver,
de forma menos apurada. Continua a avaliação da obra barretiana pelo viés vida e obra,
principalmente ao avaliar o romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá: “O homem bom e
sensível, o burocrata azedo e o boêmio insubmisso, que coexistiam no autor sem se fundirem,
tiveram parte na feitura do livro” (PEREIRA, 1950, p. 282). Outro ponto, já ressaltado pela
crítica e que Lúcia M. Pereira reafirma, refere-se ao descuido com o qual, a seu ver, Lima
Barreto escrevia. Para depois, ver, na “[...] natural limpeza de seu estilo, a sua permeabilidade
às solicitações da natureza, a sua vibração íntima, as suas precisas anotações psicológicas, de
sabor muitas vezes machadiano” (PEREIRA, 1950, p. 283).
Para Lúcia M. Pereira, das obras de Lima Barreto, o Vida e Morte de M. J. Gonzaga
de Sá é a mais literariamente composta. No entanto, Lima Barreto optou por estrear nas letras
com o Isaías Caminha, enquanto o Gonzaga de Sá permaneceu na gaveta, só vindo a público
em 1919. É possível que isso tenha ocorrido, talvez, em função de esse ser mais
“machadiano”, nas palavras do próprio Lima: “Era um tanto cerebrino o Gonzaga de Sá,
muito calmo e solene. Pouco acessível, portanto” (BARRETO, 1956, v. VXI, p. 13). Tanto é
possível, que alguns estudiosos veem, na personagem Augusto Machado, pseudo-autor e
33
narrador do livro, uma homenagem velada ao “bruxo do Cosme Velho” (FIGUEIREDO,
1995, p. 69). Pereira, porém, depois de destacar trechos nos quais “[...] o processo psicológico
é o mesmo, o mesmo o método dos dois romancistas” (PEREIRA, 1950, p. 283), julga como
vagas essas semelhanças e diz não ser possível falar em influência, mas, sim, em
coincidências, nas atitudes literárias de dois escritores, noutros pontos tão diferentes.
Aproxima-os, definitivamente, no entanto, ao pensar em uma possível evolução do romance:
“O autor de Policarpo Quaresma será um continuador da linha de Dom Casmurro,
representando a ligação entre a sua obra e as correntes modernas” (PEREIRA, 1950, p. 284).
O estudo de Álvaro Marins de Almeida, Machado de Assis e Lima Barreto: da ironia
à sátira (2002), da UFRJ, aproxima os dois escritores no que se refere à elaboração artística de
uma postura crítica diante da realidade histórica. Conforme Almeida, tanto um quanto o outro
foram autores meticulosos na criação artística, o que significa idas e vindas na difícil
construção de uma obra orgânica. De forma simplista, Machado de Assis apareceria como um
escritor do final do Império e Lima Barreto surgiria como um escritor da Primeira República,
ou República Velha. Para Almeida, se os contextos históricos parecem distanciá-los, a
complexidade do processo de evolução política que o País viveu durante o período fez – e faz
– parte de um continuum, possibilitando, pelo menos em tese, estabelecer a aproximação.
Assim como a crítica de hoje entende que Machado foi um intérprete crítico do
Império – mas não só do Império –, conforme Robert Schwarz, e em grande medida
corroborada por outros pesquisadores, como John Gledson, Raimundo Faro e Kátia Murici,
para citar apenas alguns, da mesma forma, Lima Barreto foi um crítico da República velha –
cujos fundamentos insistem em se manter até os nossos dias –, tomando-se por base, aqui, o
estudo de Sevcenko, vertente de análise à qual podem se agrupar também, grosso modo,
Antonio Arnoni Prado, Carmem Lúcia Negreiros e Beatriz Resende.
10
Outro ponto, em que Almeida aproxima os dois escritores, refere-se ao tratamento
do humor na criação das respectivas obras, pois esse funciona como o elemento-chave da
construção formal. Machado de Assis estaria mais para a ironia e Lima Barreto mais para a
sátira. Almeida aborda os dois aspectos constituintes da criação literária em ambos, a ironia e
a sátira, com o objetivo de indicar de que forma o humor atua como elemento de crítica
ideológica na obra dos dois escritores; as obras analisadas foram: “A mão e a luva”, de
Machado de Assis, e “Numa e a Ninfa”, de Lima Barreto. Almeida refuta algumas questões
10
Quanto a essas avaliações críticas, consultar as seguintes obras: “Lima Barreto: o crítico e a crise ” (1979), de
Arnoni Prado; “Lima Barreto e o fim do sonho republicano” (1995), de Carmem L. N. Figueiredo “Lima
Barreto e o Rio de Janeiro em fragmentos” (1993), de Beatriz Resende.
34
críticas sobre o antagonismo entre Lima e Machado. Questiona a classificação romântica
atribuída ao Machado da primeira fase; é contrário ao fato de esse autor não se envolver com
a sociedade e renegar a própria raça, isto é, sendo mulato e vivendo em pleno período
abolicionista, não ter engajado sua literatura nessa campanha, assim como uma suposta
ausência de negritude em Machado. Enfim, apresenta uma análise de forma bastante
elucidativa, com saldo positivo para ambos os escritores. Constata-se que Almeida, através de
sua análise, consegue estabelecer uma justa equivalência entre o autor de “Policarpo
Quaresma” e o fundador da ABL, embora deixe explícita sua preferência por Machado. Esse é
o papel que se espera de uma nova postura crítica: avaliar sem, contudo, desprivilegiar,
desmerecer a obra ou o autor.
1.2 Lima Barreto e Coelho Neto
Outro escritor, além de Machado de Assis, que se contrapôs ao estilo barretiano, foi
Henrique Coelho Neto (1864-1934). A julgar por sua forte atuação, não somente nas letras
como também na política, Coelho Neto – hoje – encontra-se em lugar inverso ao de Lima: é o
“esquecido”.
Coelho Neto pode ser considerado um contemporâneo de Lima. Contudo, não se
encontra traço de similaridade entre eles, mas uma total disparidade. Disparidade social,
disparidade na linguagem e na concepção de literatura. Coelho Neto era representante
consagrado do padrão estético predominante, ou melhor, da literatura oficial, conservadora, e,
Lima, representante da literatura pré-modernista. Refiro-me ao período de 1900 a 1922, na
literatura brasileira, denominado Pré-modernista por Tristão de Athayde que, segundo
Alfredo Bosi (BOSI, 1973, p. 11), deve ser entendido em dois sentidos que chegam ao
contraste. No primeiro, o prefixo pré assume conotação de mera anterioridade temporal e o
período literário, assim designado, caracteriza-se como extremamente conservador, reunindo
escritores neoparnasianos tradicionalistas que, sob o critério estético, podem ser considerados
antimodernistas. Nesse sentido, o pré-modernismo acaba sendo o prosseguimento das
tendências realistas, naturalistas e parnasianas. No segundo, o prefixo conota forte sentido de
precedência temática e formal em relação aos valores da literatura modernista, notadamente
do período de 1930, devendo ser visto como movimento renovador, oposto ao
conservadorismo presente no sentido citado anteriormente. Nesse aspecto, Lima Barreto
35
representa a literatura pré-modernista, mais compromissada com a renovação e bastante
crítica ao aspecto social.
Sendo, Coelho Neto, representante do academicismo, da escrita oficial, não é de
estranhar que Lima se oponha a ele de forma direta. No artigo, “Histrião ou Literato?”, Lima
critica a forma de escrever de Coelho Neto e a falta de conhecimento dos problemas sociais
desse autor. “O Senhor Coelho Neto é o sujeito mais nefasto que tem aparecido no nosso
meio intelectual” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 189). E, ainda: “Sem visão da nossa vida,
sem simpatia por ela, sem vigor de estudos, sem um critério filosófico ou social seguro, o
Senhor Neto transformou toda a arte de escrever em pura chinoiserie de estilo e fraseado”
(BARRETO, 1956, v. XIII, p. 188-191). Coelho Neto escrevia bonito, era adepto da literatura
pela literatura, contrário à concepção de Lima, tanto de literatura quanto a de escritor,
concepções que serão abordadas no terceiro capítulo deste estudo.
Um estudo sobre Lima Barreto e Coelho Neto, sob a ótica comparativista, intitulado
“A Hélade e o Subúrbio – confrontos literários na belle époque carioca” (2006), de Maurício
da Silva, apresenta uma análise sistemática das obras ficcionais mais relevantes de ambos os
escritores e estabelece características que demonstram, no confronto das opções textuais de
cada um, o quanto são significativas as divergências (ou, eventualmente, as semelhanças) na
linguagem, na estrutura narrativa, no tratamento sistemático. Maurício faz um caminho
inverso àquele que, até então, a crítica do período procurou fazer, isto é, utilizar-se das
produções especificamente ficcionais como mero auxílio à análise de suas posições
ideológicas e estéticas.
Silva realiza uma análise que vai, sistematicamente, da generalização para a
particularização. Num primeiro momento, aborda um “suposto” confronto entre tendências
literárias, em geral (literatura oficial versus pré-modernismo), para, depois, chegar a um
“suposto” confronto entre tendências, em particular (Lima Barreto versus Coelho Neto). Num
segundo momento, trata do confronto entre representantes, partindo de um “suposto”
confronto entre concepções literárias, para chegar a um “suposto” confronto entre faturas
literárias, propriamente ditas. Nota-se a reincidência da palavra “suposto”, que demonstra a
postura da maioria da crítica por ele questionada, uma vez que essa não fizera, de fato, esse
confronto, feito agora por Silva. Ele desenvolve, assim, um trabalho metódico de comparação
entre tendências estéticas e obras literárias diversas, estabelecendo, de modo conclusivo, as
semelhanças e diferenças entre duas vertentes consideradas tradicionalmente antitéticas pela
crítica nacional.
36
No entanto, ressalta-se que, embora Silva tenha procurado fazer uma análise pautada
de fato nos textos literários e ausentar-se de qualquer favoritismo a esse ou aquele, Lima
Barreto sai engrandecido desse confronto. Desse modo, Silva contribui significativamente
para a reavaliação positiva de Lima Barreto. Isso se deve, em parte, à contextualização
histórica da crítica, que adquire, em cada época, novos referenciais judicatórios. E, aqui, cabe
citar Lima Barreto, quando ele, ao se sentir renegado pela crítica, se manifestou: “Que me
importa o presente! No futuro é que está a existência dos verdadeiros homens” (BARRETO,
1956, v. XIII, p. 68).
1.3 Lima Barreto e Euclides da Cunha
Sílvio Romero, Tristão de Ataíde e José Veríssimo fizeram uma avaliação crítica
sobre a obra de Euclides da Cunha. Em síntese, Sílvio Romero compreendeu que Os sertões
(1902) foi “[...] um estudo social do nosso povo firmado até certo ponto na observação direta”
(COUTINHO, 2002, p. 207). Já Tristão de Ataíde escolheu Os sertões para figurar entre os
dois grandes livros dos últimos 50 anos; o outro foi Um estadista do Império (1897), de
Joaquim Nabuco. Outro crítico a fazer uma avaliação sobre Os sertões foi José Veríssimo:
(COUTINHO, 2002, p. 209): “[...] é ao mesmo tempo o livro de um homem de ciência, um
geógrafo, um etnógrafo; de um homem de pensamento, um filósofo, um sociólogo, um
historiador; e de um homem de sentimento, um poeta, um romancista, um artista”. Destaco,
aqui, o posicionamento crítico de José Veríssimo referente ao romance de Euclides, pois, por
volta de 1909, ele avalia também a obra barretiana. Percebe-se que algumas características
comuns aos dois escritores são avaliadas positivamente na obra euclidiana, enquanto, na obra
barretiana, as mesmas características deterministas e positivistas são consideradas como “o
seu excessivo personalismo”.
Ambos criaram obras fortemente calcadas no real e, principalmente,
contextualizadas historicamente, o que é avaliado de forma diferenciada pela crítica. Em
Euclides da Cunha, isso foi visto e recebido de forma positiva. Já, em Lima Barreto, o que
permanece é a crítica negativa e depreciativa. São muitos os fatores que diferenciam os dois
escritores. Um deles se pode atribuir à linguagem utilizada pelos escritores. Euclides escreve
com uma linguagem academicista e mantém o estilo elevado do começo ao fim. Segundo Bosi
(1970, p. 308), “[...] pode-se apontar no Euclides manipulador do verbo o contemporâneo de
37
Rui e de Coelho Neto, o leitor intemperante do dicionário à cata do termo técnico ou
precioso”. No que se refere à linguagem, as oposições continuam. Euclides da Cunha usou de
todos os recursos da linguagem jornalística. Mais uma ocasião em que o jornalista está
presente no escritor. A transparência e fluidez presentes nos textos, bem como as matérias
jornalísticas, dão uma sensação maior de realidade, em que o escritor mescla documentos e
acontecimentos do dia-a-dia. Em, Os sertões, Euclides da Cunha faz uma descrição
determinista da terra, do homem e da luta, enquadrando-o em uma cultura científica e
histórica.
Euclides da Cunha, tanto quanto Lima Barreto, escreveu deixando marcas pessoais
inegáveis, porém é incompreensível que somente a obra de Lima Barreto tenha sido
classificada de autobiográfica e memorialística. Classificação vista como pejorativa no início
do século XX, e que marca, escritor e obra, profundamente. A verdadeira literatura, para José
Veríssimo, seria “representação”, “síntese”, “e mesmo realista, idealização”. Com essas
palavras se expressa o crítico – em relação à obra Recordações do Escrivão Isaías Caminha
de Lima Barreto –, o que, na avaliação de Veríssimo, é, justamente, o que falta à obra do
escritor. Esse era o ideal de literatura predominante e compartilhado pela crítica oficial do
período.
Uma abordagem crítico-comparativa entre Euclides da Cunha, autor de Os sertões
(1902), e o escritor Lima Barreto, foi feita por Nicolau Sevcenko, em Literatura como Missão
(1999). No prefácio ao livro, assim se posiciona Francisco de Assis Barbosa: “[...] centrando a
sua análise crítica em duas figuras aparentemente marginalizadas tanto política como
intelectualmente, apesar do êxito incontestável alcançado pelas obras que publicaram:
Euclides da Cunha e Lima Barreto” (SEVCENKO, 1999, p. 13). É estranho aceitar o
“aparentemente marginalizadas”, com referência ao escritor Lima Barreto, uma vez que, mais que
ninguém, Francisco de Assis Barbosa conheceu e teve contato com a obra barretiana, pois foi
biógrafo do escritor e, automaticamente, constatou de perto a marginalização sofrida por Lima
Barreto. Nota-se, assim, uma postura indefinida e de meios termos da parte de Barbosa, que não
corresponde à visão explícita, escancarada e preconceituosa estabelecida pela crítica oficial desde
a estreia de Lima Barreto.
O estudo de Nicolau Sevcenko possibilita uma equiparação entre as atuações de
Euclides da Cunha e Lima Barreto na belle époque, mediante análise sob uma perspectiva
histórica. Sevcenko encontra, na obra de ambos, elementos significativos para a elucidação, tanto
das tensões históricas quanto dos seus dilemas culturais. O livro é composto de seis capítulos. No
primeiro capítulo, “A Inserção Compulsória do Brasil na Belle Époque”, o autor faz uma
38
retomada histórica de tudo o que estava acontecendo no Brasil, mais especificamente, no Rio de
Janeiro. Segundo Sevcenko, o advento da República trouxe, em seu bojo, amplas transformações
do espaço público, do modo de vida e da mentalidade carioca, e quatro princípios nortearam essas
transformações:
[...] a condenação dos hábitos e costumes ligados pela memória à sociedade tradicional; a
negação de todo e qualquer elemento de cultura popular que pudesse macular a imagem
civilizada da sociedade dominante; uma política rigorosa de expulsão dos grupos
populares da área central da cidade, que será praticamente isolada para o desfrute
exclusivo das camadas aburguesadas; e um cosmopolitismo agressivo, profundamente
identificado com a vida parisiense. (SEVCENKO, 1999, p. 30).
Nesse período, o País passou por um processo de “regeneração”, cujo significado
sintetiza-se nas expressões “o Rio civiliza-se” e “ditadura do smartismo”. A esse processo,
Lima se opõe sem meios termos, como, também, a esses quatro princípios citados
anteriormente. Seu projeto literário demonstra bem isso: primeiro, faz questão de preservar os
hábitos e costumes da sociedade; segundo, busca resgatar a cultura popular; terceiro, critica a
expulsão dos grupos populares da área central para os subúrbios, sem uma infra-estrutura
adequada; quarto, critica abertamente o cosmopolitismo vigente e reforça o nacional.
No segundo capítulo, “O Exercício Intelectual como Atitude Política: os Escritores-
cidadãos”, demonstra que o engajamento se torna a condição ética do homem de letras. Nesse
período, o principal núcleo de escritores carioca fez-se conhecer por “mosqueteiros-
intelectuais”. No terceiro capítulo, “Euclides da Cunha e Lima Barreto: Sintonias e
Antinomias”, Sevcenko aborda as semelhanças e as diferenças encontradas na vida e na obra
dos dois escritores. Por meio de um cotejamento crítico entre as obras de Lima Barreto e
Euclides da Cunha, proporciona uma visão dos campos de tensões históricas que marcaram a
belle époque. No quarto capítulo, “Euclides da Cunha e o Círculo dos Sábios”, divide sua
análise em três enfoques: a linguagem, a obra e os fundamentos sociais. No quinto capítulo,
“Lima Barreto e a República dos Bruzundangas”, utiliza-se do mesmo modo de análise
aplicado a Euclides e sob o mesmo enfoque, só que, agora, o escritor é Lima Barreto.
Como vimos, a maioria da crítica manifestou-se quanto aos processos da ironia e da
caricatura utilizados por Lima Barreto em suas obras. Sevcenko também aponta a ironia e a
caricatura como recursos básicos da ficção barretiana. A ironia, concebendo-a de forma
bastante ampla, “que vai da simples malícia ao mais profundo humour”; quanto à caricatura,
“[...] ela deriva de sua convicção de que a realidade não fala por si, é preciso que ela seja
exagerada criticamente para revelar os seus defeitos e expor as deformações que despertem o
desprezo geral” (SEVCENKO, 1999, p. 167). O crítico diz, ainda, que os modelos, tanto da
39
ironia quanto do humour e da caricatura, Lima vai buscar nos “[...] grandes mestres do
gênero, folheando avidamente Swift, Dickens, Voltaire, Balzac, Daudet e Maupassant com
destaque” (SEVCENKO, 1999, p. 167). É importante destacar que a avaliação de Sevcenko
mostra-se positiva ao apontar as possíveis influências no estilo de Lima, porém o mais
importante é o fato de Sevcenko ter percebido que Lima se preocupou em preservar sua
originalidade e que não é possível filiá-lo a esse ou aquele escritor, “[...] antes ocorrendo o
autor acrescentar muito de si próprio e dos outros ao que retira de cada um” (SEVCENKO,
1999, p. 167).
O sexto e último capítulo, “Confronto Categórico: a Literatura como Missão”,
divide-se em três tópicos: “Disparidade elementar”, “Identidade profunda” e “Literatura e
Ação pública”. Enfim, assim se estrutura e resume a obra de Sevcenko. A análise de
Sevcenko apresenta-se sob um enfoque historicista, isto é, estuda cada escritor pautando-se
em uma contextualização histórica da belle époque. Desse modo, as obras e posturas, tanto as
de Lima Barreto quanto as de Euclides da Cunha, são explicadas e justificadas em função do
contexto histórico.
Constata-se, então, que a avaliação de Sevcenko coloca os dois escritores em
equilíbrio, isto é, ambos ocupando lugares de destaque na literatura brasileira, com o mesmo
grau de participação e importância. Sevcenko demonstra que, apesar dos escritores, Lima e
Euclides, posicionarem-se de formas totalmente contrárias um do outro, cada qual agiu de
maneira coerente com as ideias que professavam.
Ao retomar alguns dos estudos e avaliações críticas sobre os escritores
contemporâneos a Lima – quando do momento das respectivas estreias no mundo literário –
pela crítica oficial vigente, deu-se preferência aos que apresentavam uma perspectiva
comparada. Pelo visto, as aproximações apresentadas, nos periódicos, ocorreram de modo
superficial, porém isso marcou profundamente a obra e o escritor Lima Barreto. Quanto à
avaliação crítica de Bosi e Pereira, embora fazendo a opção pelo modo de escrita de Machado
de Assis, ambos estabelecem uma visão positiva da obra de Lima Barreto. Já os trabalhos de
Sevcenko (1999) e os de Almeida e Silva, mais recentes, apresentam uma análise sob a
perspectiva comparativista de forma mais abrangente, constatando-se, nesses trabalhos, que a
avaliação do escritor Lima Barreto realmente atinge o lugar tão esperado pelo escritor. A
avaliação crítica do escritor Lima Barreto realmente passa por mudanças; a crítica privilegia,
agora, outro foco. Deixa de dar importância à vida do autor e enfatiza sua criação ficcional,
isto é, o texto. A citação retirada do Diário íntimo (1904), de Lima Barreto – de certa forma –
40
vem justificar o percurso de aproximações e comparações que há pouco percorremos; nela,
Lima denota coerência, bom senso e cobrança exagerada consigo mesmo: “Quando me julgo
– nada valho; quando me comparo, sou grande” (BARRETO, 1956, v. XIV, p. 52).
1.4 Lima Barreto, Gógol, Dostoiévski e Leon Tolstói
A influência da literatura russa faz-se presente em toda a obra de Lima Barreto,
conforme se constata nas referências feitas pelo escritor. Em nenhum momento Lima Barreto
oculta o que leu; não satisfeito em ler a literatura russa sozinho, ele a recomenda ao jovem
escritor Jaime Adour da Câmara, em carta datada de 27-7-1919: “Leia sempre os russos:
Dostoiévski, Tolstoi, Turguênief, um pouco de Gorki; mas, sobretudo, o Dostoiévski da Casa
dos Mortos e do Crime e Castigo” (BARRETO, 1956, v. XVII, p. 171). Sendo assim, é
legítima essa aproximação e comparação entre Lima Barreto e os grandes da literatura russa.
Alguns críticos já apontaram algumas dessas afinidades literárias; mesmo que
resultado de impressões, registraram-se algumas considerações sobre essa relação. Destaca-se,
em primeiro lugar, a avaliação de Tristão de Ataíde
11
, pelo fato de enfatizar o homem, o
escritor e a concepção de arte de Lima Barreto, fatores importantes que vêem ao encontro de
nosso objetivo. Tristão de Ataíde atribui-lhe características que, em muito, o aproxima às
descrições dos eslavos apresentada por M. de Vogué:
Nascera literariamente, para dizer a grande dor ignota dos humildes. E essa
piedade pelo sofrimento dos vencidos, esse carinho pelas almas delicadas que a
miséria amarrota, nunca lhe desamparou a pena, antes cresceu com os anos a medida
que o mal de viver o integrava de novo na massa anônima de onde se arrancara
sozinho. Ele, que tanto se elevou, que em pouco tempo tinha criado em nossas letras
uma fisionomia nova e peculiar de romance, foi o intérprete dos medíocres, dos
apagados, daqueles que passam como sombras ou como engrenagens, humilhados
pela Sociedade, com S maiúsculo, e indispensáveis a ela. Para eles reservara todo o
seu poder recalcado de simpatia. Nascera carinhoso e bom, com essa frágil
sentimentalidade do nosso sangue mesclado, nele sensível e patente. Trouxe para a
vida – como se entreve em toda sua obra, onde a alma do criador reponta em cada
criatura menos transitória e caricatural –, trouxe para a vida um grande desejo de paz
e de harmonia, uma sensibilidade ávida de doçura e de perdão. (ATAIDE, 2001,
p. 58-59).
11
Trabalho originalmente publicado em O Jornal, 26 nov. 1922. “Vida literária”. Depois, em LIMA, A. A.
Estudos Literários. Rio de Janeiro: Aguilar, 1966. v. 1. p. 748-753. Edição organizada por Afrânio Coutinho
com assistência do autor.
41
O vocabulário empregado não deixa dúvidas quanto à aproximação estabelecida:
dor, humildes, piedade, sofrimento, carinho, almas, miséria, mal de viver, massa anônima,
medíocres, apagados, humilhados, simpatia, carinhoso, bom, frágil sentimentalidade, desejo
de paz e harmonia, sensibilidade ávida de doçura e de perdão.
Diante dessa avaliação, saltam-nos algumas perguntas: se essas características são
próprias do escritor, até que ponto Lima Barreto pode ter sido influenciado pelos romancistas
russos? E, se de fato houve essa influência, é possível manter esse elo com coerência por tanto
tempo? Ou somente foi possível uma vez que já havia no escritor um ambiente e espírito
favorável? Perguntas que poderão ou não ser respondidas no decorrer do texto, isso se tiverem
respostas, ou, simplesmente, servirão para instigar o raciocínio.
Tristão de Ataíde (2001, p. 58) observa que, Lima Barreto, “em pouco tempo tinha
criado em nossas letras uma fisionomia nova e peculiar de romance”, isto é, trazendo para a
ficção “a grande dor ignota dos humildes”, que, até então, não tinha lugar na literatura
brasileira. Para esclarecer o que vem a ser essa “fisionomia nova e peculiar de romance”,
recorre ao escritor Lima Barreto:
A literatura do nosso tempo, [escreveu num artigo de 1916, reproduzido no
prefácio da Histórias e sonhos...], possa ela realizar, pela virtude da forma, não mais
a tal beleza perfeita da falecida Grécia, que já foi realizada; não mais a exaltação do
amor, que nunca esteve a perecer; mas a comunhão dos homens, de todas as raças e
classes, fazendo que todos se compreendam, na infinita dor de serem homens, e se
entendam sob o açoite da vida, para maior glória e perfeição da humanidade.
(ATAIDE, 2001, p. 59).
Conforme Tristão de Ataíde, Lima Barreto não buscou nem a inspiração e muito
menos a expressão, mas o espírito e a técnica dos romancistas russos
12
. E acrescenta: “Foi, em
grande parte, nessa extraordinária literatura russa de ficção que Lima Barreto buscou a força
para criar, entre nós, o romance social” (ATAIDE, 2001, p. 59). Aproxima-os através do
sentimento profundo de humanidade ligado a um senso inato da realidade presente em ambos.
E como “esses russos remotos e iluminados de estranho fulgor”, Lima Barreto possuía “o
sentido da escravidão social da alma humana” (p. 59). Tal como outros críticos, Araripe
Júnior acredita que, não somente os russos serviram de inspiração para Lima Barreto, como
também se aproximava do espírito britânico pelo humour.
12
“Vemos logo, nessa profissão de fé, qual a classe de romancistas a que foi pedir – não a inspiração, que lhe era
inata, nem propriamente a expressão, ditada pela convicção com que escrevia – mas o espírito da obra e a sua
técnica geral” (p. 59). Ver: ATAIDE, T. Lima Barreto. In: BARRETO, L. Lima Barreto Prosa Seleta. Rio de
Janeiro: Nova Aguilar, 2001. p. 59.
42
Agripino Grieco, no prefácio ao volume Marginália, afirma que: “Insista-se em que
tudo ‘era povo’ nesse escritor. Amou os miseráveis, não como os realistas franceses, pelo
amor ao pitoresco do vício e da miséria, mas porque o animava uma piedade quase doentia de
eslavo. Havia nesse mestiço um neto de Gogol” (BARRETO, 1956, v. XII, p. 16).
A avaliação de Agripino Grieco também aproxima Lima Barreto dos russos quase da
mesma forma, pois enfatiza o mesmo paradigma de M. de Vogué que já estava presente
também na avaliação de Tristão de Ataíde. E quando o chama de “um neto de Gogol”,
remete-nos à observação feita por Dostoiévski: “Todos nós saímos do “Capote”, de Gogol”, e
a filiação é evidente tanto em Dostoiévski
13
, quanto em Leon Tolstói. Assim, por extensão,
Lima Barreto é relacionado diretamente à fonte, isto é, à origem de todo o realismo dos
romancistas russos aos quais se assemelha sua fisionomia literária. Essa filiação observa-se
nos tipos generalizados presentes no romance russo, pois a maior parte teve origem em Almas
Mortas. Conforme M. de Vogué, isso transparece no canto VII, com a descrição do
proprietário rural, Tentetnikof, que muito lembra o Lavretski, de Turguenef, o Besuchof e o
Levine de Leon Tolstói e o Policarpo Quaresma de Lima Barreto. Vê-se que não só o tipo de
proprietário rural criado por Gógol, mas também o funcionário, o oficial reformado, o criado,
são figuras que se perpetuam nos escritores referidos sem que sofram grandes alterações nos
traços gerais deixados por Gógol.
Certifica-se que a obra barretiana realmente está plena do espírito de Gógol e dos
romancistas russos contemporâneos a Gógol; se por um lado Gógol foi considerado o escritor
realista no melhor sentido do termo e o mais russo dentre eles, de outro, Lima Barreto, a seu
tempo e modo, foi considerado o mais humano e mais brasileiro dos escritores. Na “Confissão
de um autor”, de Gogol, aparece uma frase que é bem provável que Lima Barreto a tenha
seguido como modelo: “Procurei a vida na sua realidade não nos sonhos da imaginação e
cheguei assim àquele que é a fonte da vida” (GOGOL apud VOGUÉ, 1950. p. 133). Sendo
assim, Lima Barreto aproxima-se a Leon Tolstói, pois se Gógol entregou-se ao misticismo,
Leon Tolstói colocou em prática o papel de profeta com a criação do “tolstoísmo”. Pois,
conforme M. de Vogue, o escritor, para o público russo, é “o guia de sua raça” e “poeta no
sentido antigo e total da palavra – vates, poeta, profeta” (VOGUÉ, 1950, p.142). Daí a
13
A filiação é evidente em Dostoiévski, visto que seu primeiro livro “Pobre Gente” está em germe no “Capote”.
O triste herói de Dostoiewski, Dieuvouchkine, não passa de uma versão mais desenvolvida e mais sombria de
Akaky Akakievitch. Ressalta-se que em “Pobre Gente” já contém em germe todos os outros. Ver: VOGUÉ,
M. O romance russo. Rio de Janeiro: Ed. A noite, 1950. p. 111.
43
concepção de arte tolstoiana que tanto impressionou Lima Barreto, fazendo-o exercê-la como
um sacerdócio
14
.
É interessante ressaltar, Um mulato no reino de Jambon (as classes sociais na obra
de Lima Barreto)
15
, de Maria Zilda Ferreira Cury (1981), no qual Cury destaca o campo
semântico das palavras escrivão/escrevente/escritor, que acompanham a evolução do
personagem Isaías Caminha. Conforme Cury, Isaías faz o seguinte percurso: em primeiro
lugar Isaías Caminha o jornalista, era “redator” do jornal no Rio de Janeiro, seria “escrevente”
“uma vez que o sujeito do discurso seriam os interesses da empresa”. Ao sair do jornal para
ser “escrivão” no interior, a personagem torna-se “escritor”, assim, “sujeito de seu discurso”.
(CURY, 1981, p. 107). E, ainda, o nome Isaías Caminha remete para uma escrita de denúncia
da opressão e da injustiça e para o anúncio de algo novo. Com base na interpretação bíblica e
na história, assinala a contradição presente no nome da personagem, quando, profeta,
empreende “a escrita do livro, como uma tarefa de redenção dos seus” (p. 104). Quando
escrivão, da frota de Cabral, anuncia algo novo: a descoberta da nova terra, porém, defende a
“opressiva visão ideológica” em relação ao índio.
As relações de Lima com os romancistas russos também são apontadas por Gilberto
Freyre, no prefácio à obra Diário Íntimo, no qual se refere a Lima Barreto como “[...] esse homem
do trópico com alguma coisa de russo dos gelos em sua vocação de escritor de romances ao
mesmo tempo sociais e introspectivos. Aqueles romances em que os sofrimentos do autor se
confundem com os dos personagens” (BARRETO, 1956, v. XIV, p. 9). Enquanto Eugênio
Gomes, no prefácio à obra Cemitério dos vivos, ressalta que Lima Barreto recomendava, em
1919, a Jaime Adour da Câmara, um escritor estreante, para que lesse os russos:
[...] já havia realizado quase toda sua obra de ficção, mas sua impregnação de
literatura eslava, especialmente de Dostoiévski, vinha de longe, como se pode inferir
da atmosfera espiritual e, concretamente, de algumas passagens do romance
Recordações do Escrivão Isaías Caminha, que data do começo do século.
(BARRETO, 1956, v. XV, p. 9).
Por meio dessas aproximações apresentadas, constata-se que elas estão permeadas
pela leitura da obra Le roman russe (1886), de Eugene Melchior de Vogué. Alguns termos
14
Ver: O profeta e o escrivão de Carlos E. Fantinati, Assis – São Paulo: ILPHA-HUCITEC, 1978. Este estudo
demonstra o caráter profético do escritor no romance “Recordações do escrivão Isaías Caminha” e exprime
sua concepção e vivência da literatura como uma arte participante, ou melhor, uma literatura militante.
15
O estudo de CURY analisa a partir da contextualização histórica da obra de Lima Barreto algumas
contradições encontradas na mesma, sobressaindo o contraste entre os discursos: o consciente, presente nas
crônicas e o propriamente literário. Sendo o das crônicas condicionado pela ordem cultural e o literário, onde
o simbólico e o imaginário disputam o espaço do real num produto paradoxalmente chamado de ficção.
CURY no geral da análise apresenta duas posturas contraditórias: o fatalismo e a denúncia.
44
utilizados pelos críticos explicitam essa presença: amor aos miseráveis, piedade quase doentia
de eslavo, romances sociais e introspectivos, nos quais os sofrimentos do autor se confundem
com os dos personagens. Enfim, características que demonstram, sem sombra de dúvida, a
influência dos escritores russos desde o início da carreira literária de Lima Barreto.
É o próprio escritor que nos confirma essa relação e sente-se à vontade em enumerar
os autores de sua preferência. Com isso, é possível perceber os escritores que, numa medida
ou em outra, servem de orientação para fundamentar os pressupostos estéticos do escritor
evidenciados na obra através de citações ou referências: “[...]; e que campo vasto está aí para
uma grande literatura, tal e qual nos deu a Rússia, a imortal literatura dos Tourguêneffs, dos
Tolstói, do gigantesco Dostoiévski, igual a Shakespeare, e, mesmo Gorki!” (BARRETO,
1956, v. XVII, p. 165).
Nas referências encontradas na obra barretiana, fica explícito o número de escritores
a quem Lima faz menção e, o mais importante, é constatar não ser mera citação ou simples
referência. Ao que parece, Lima não faz por simplesmente fazer, ainda menos por recurso
retórico vazio ou demagógico. É relevante observar a predominância dos escritores russos;
mais ainda, Lima sugere vivenciá-los a fundo, a ponto de transpor para a vida e a obra muitas
reflexões e pensamentos desses grandes mestres. É notável a admiração de Lima pelos
escritores russos, isso está explícito em seu projeto literário. Lima não nega o quanto leu os
russos, aliás, refere-se a eles com frequência no decorrer de toda sua obra, não só no Diário,
como, também, através de seus personagens. Conforme se pode observar em um trecho de
“Recordações do Escrivão Isaías Caminha”: “Procurei-os, confesso; e, agora mesmo, ao
alcance das mãos, tenho os autores que mais amo. Estão ali O Crime e o Castigo de
Dostoiévski, um volume dos Contos, de Voltaire, A Guerra e a Paz, de Tolstói, [...]”
(BARRETO, 1956, v. I, p. 120).
“Procurei-os, confesso”, assim falava o escritor na voz de sua criatura. Determinado
a conquistar a glória, dedicou-se com afinco às atividades literárias. Sabia das próprias
limitações e, por isso, procurou, nos grandes autores, modelos, normas e, mais do que tudo, o
“segredo de fazer” romance. Obras como Crime e Castigo (1866), de Dostoiévski, A Guerra e
Paz (1869), de L.Tolstói, Rouge et Noir (1830) de Stendhal, Cousine Bette (1846), de Balzac,
Éducation Sentimentale (1869), de Flaubert, Antéchrist (1878) de Renan, e os autores: Eça,
Voltaire, Taine, Barres, France e Swift aparecem citados e referenciados pelo escritor, em
Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919), por meio da voz do personagem Gonzaga de Sá:
“[...] alguns deles me deram a sagrada sabedoria de me conhecer a mim mesmo, de poder
assistir ao raro espetáculo das minhas emões e dos meus pensamentos” (BARRETO, 1956,
v. IV, p. 23).
45
Desse modo, através dos escritores russos citados por Lima Barreto: Dostoiévski,
Leon Tolstói, Turguênief e M. Górki, constata-se que o universo da literatura russa não lhe
era estranho. Por isso, antes de nos atermos à relação literária entre o escritor Leon Tolstói e
Lima Barreto, foco desta pesquisa, verificar-se-ão algumas aproximações já apontadas entre
Lima Barreto e os russos. Ressalta-se que Fiódor Mikháilovitch Dostoiévski (1821-1881) é o
autor a quem Lima Barreto mais foi associado por afinidades literárias. E isso o escritor
enfatiza ao recomendar a literatura russa a Jaime Adour da Câmara: “Leia sempre os russos
[...]; mas, sobretudo, o Dostoiévski da Casa dos Mortos e do Crime e Castigo” (BARRETO,
1956, v. XVII, p. 171). Período em que se desenrolava a Revolução bolchevique, 1919, e na
mesma carta na qual indicava a literatura russa aparecem alguns livros de sociologia:
Kropótkin, Reclus, Comte e Spencer. Nota-se que, Lima Barreto, além de escritor, crítico e
jornalista, também era um leitor antenado, o que demonstra que ele sabia muito bem o quanto
a literatura russa refletia sobre os problemas sociais.
Lima Barreto não só recomenda a leitura do escritor como também enfatiza a teoria
estética de Dostoiévski na conferência “O destino da literatura”, e se refere a “um livro
famoso, hoje universal – o Crime e Castigo, de Dostoiévski – que deveis conhecer”
(BARRETO, 1956, v. XIII, p. 59). Cita a obra de Dostoiévski como exemplo número um de
obra que representa o ideal de Brunetière: “[...]; uma tal importância, dizia eu, deve residir na
exteriorização de um certo e determinado pensamento de interesse humano, que fale do
problema angustioso do nosso destino em face do Infinito e do Mistério que nos cerca, e aluda
às questões de nossa conduta na vida” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 59). Muito próximo, o
argumento apresentado por Lima Barreto, das ideias veiculadas por M. de Vogue, em relação
ao romance russo, mas quer distância dos “helenizantes”. A obra de Dostoiévski é resumida
minuciosamente e é modelo por ser transmissora de moral e instrumento de comunhão. Lima
ressalta: “Trata-se de um estudante que curte as maiores misérias em São Petersburgo.
Lembrem-se bem que se trata de miséria russa e de um estudante russo” (BARRETO, 1956,
v. XIII, p. 59).
Constata-se que o diálogo de Lima Barreto com M. de Vogué extrapola o discurso
crítico e a maioria das referências presentes em contos e romances feitas à literatura russa está
relacionada às obras Crime e Castigo e Recordações da casa dos mortos, obras as quais M. de
Vogué tinha dado preferência. No que se referem aos contos de Lima Barreto alguns lembram
diretamente o estilo dostoievskiano: “Um que vendeu a sua alma”, saiu, em A Primavera, Julho
de 1913; “O único assassinato de Cazuza” na Revista Souza Cruz, em Fevereiro de 1922 e
“Mágoa que rala”, s/d.; os dois primeiros encontram-se no volume Lima Barreto Prosa Seleta,
2001; e o terceiro, no volume Histórias e Sonhos, Contos, volume VI, editado pela Brasiliense.
46
No conto, “Um que vendeu a sua alma”, retrata os sofrimentos de uma alma
dilacerada, cheia de decepções e desgostos, tipicamente o mundo dos subterrâneos de
Dostoiévski. Devido à miséria, busca soluções: “Mas dinheiro! – como arranjar? Pensei meios
e modos: Furtos, assassinatos, estelionatos – sonhei-me Raskólnikoff ou coisa parecida”
(BARRETO, 2001, p. 1101) e, ao desejar a Morte, sem ser atendido, apela para o Diabo, que
o atende. O inusitado transparece também na negociação de sua alma com o Diabo, que lhe
oferece um preço bem abaixo do proposto, e o narrador aceita. Já, no conto “O único
assassinato de Cazuza”, relata a vida sofrida, simples e de misérias de Hildegardo Brandão,
para os íntimos “Cazuza”. Depois de descrever a rotina de Cazuza, relata que, entre os
hábitos, estava a conversa franca e amistosa com seu amigo doutor Ponciano, colega de
preparatórios e muito íntimos. E, em uma dessas conversas, o assunto descamba para a
violência na sociedade, tanto no campo quanto na cidade, isto é, os assassinatos. Quando
Cazuza questiona como esses políticos andam tão satisfeitos com tantas “cruzes” a marcar a
ascensão deles, confessa:
Se porventura matasse creia que eu, a que não tem deixado passar pela cabeça
sonhos de Raskólnikoff, sentiria como ele: as minhas relações com a humanidade
seriam de todo outras, daí em diante. Não haveria castigo que me tirasse semelhante
remorso da consciência, fosse de que modo fosse, perpetrado o assassinato. Que
acha você? (BARRETO, 2001, p. 1049).
Observa-se que Cazuza, no caso o narrador, confessa ter “sonhos de Raskólnikoff”
e, num caso semelhante, “sentiria como ele”, isto é, o narrador compartilha e se irmana a
Raskólniff em seus sentimentos de remorso.
No terceiro conto, “Mágoa que rala”, o mais extenso dos três, divide-se em duas
partes. A primeira, narra as ações de Dom João VI, no Rio de Janeiro, e um pouco de sua
história desde que saiu de Portugal. Isso tudo para contextualizar o local no qual se passaria o
assassinato: o jardim Botânico. A segunda parte enfatiza o enredo de fato, isto é, o assassinato
da alemã, que Lima Barreto aproxima ao de Raskólnikoff de Dostoievski, em “Crime e
Castigo”, devido à forma como se desenrola a investigação e a dificuldade de se encontrar
provas, apesar da confissão. Lourenço, o suposto assassino, se autoincrimina como forma de
“resgatar a sua falta de um modo “heróico, romanesco e místico” da honestidade”
(BARRETO, 1956, v. VI, p. 177). Lima Barreto induz que Lourenço, tal qual Raskólnikoff,
tenha sido influenciado por um caso muito semelhante que havia saído em uma pequena
revista:
47
[...] acontecido na Alemanha, em Essen, e contado em um livro do Senhor Hugo
Fridlaender e resumido no Le Temps por Th. De Wyzewa. Tratava-se de um tal
Alfred Land que, tendo praticado uma pequena falcatrua, um furto doméstico, se
sentiu tão angustiado, tão cheio de mágoa, de ralação íntima a lhe pedir expiação da
falta, que não trepidou em acusar-se como autor de um assassínio misterioso, o qual
ele estava materialmente impossibilitado de executar. (BARRETO, 1956, v. VI,
p. 177).
Porém, Lima complementa que, aqui, o juiz não tem a mesma curiosidade como o
“juiz de instrução do Crime e Castigo”, de ler as pequenas revistas “para estar a par da
psicologia mórbida dos criminosos cerebrais e inexplicáveis” (BARRETO, 1956, p. 178).
Lourenço foi absolvido, mas transparece a vontade do narrador de que ele fosse condenado tal
qual Raskólnikoff. Desse modo, torna-se difícil fazer a leitura desses contos sem se reportar a
Dostoiévski; não tanto devido às referências explícitas no texto, mas pelo significado dos
acontecimentos. No terceiro conto, “Mágoa que rala”, Dostoiévski é retomado de forma direta
e indiretamente; direta, quando Lima cita “Crime e Castigo” e, indiretamente, quando se
refere ao caso que saiu na pequena revista. Pois, é sabido que, quase na mesma época em que
Dostoiévski estava concluindo “Crime e Castigo”, foi publicado um caso real bastante
semelhante ao da ficção. Para se ter uma ideia do significado dessa obra que assegurou a
popularidade do autor e motivou Lima Barreto a escrever, basta saber que “Crime e Castigo”
é “o mais profundo estudo de psicologia criminal escrito, depois de ‘Macbeth’” (VOGUÉ,
1950, p. 208).
Dos romances de Lima Barreto, Cemitério dos vivos (1953) é o que apresenta maior
proximidade ao escritor Dostoiévski, devido, não só, às referências encontradas, como,
também, ao estilo introspectivo. Obra inacabada, que é, em parte, um prolongamento do
Diário íntimo e que, na edição de 1956, formava com este uma unidade. Essa obra apresenta
memórias e reflexões em torno da vida num manicômio, observada de perto pelo escritor,
quando internado no Hospício Nacional. Para Alfredo Bosi, na obra Cemitério dos vivos, o
foco “[...] é o próprio mistério da vida humana, lançadas às mais degradantes condições da
miséria, da humilhação e da loucura” (BOSI, 1969, p. 102). Enfatiza, ainda, que: “Há
momentos que fazem lembrar (si parva licet...) as Recordações da Casa dos Mortos do gênio
russo, não tanto pela analogia da situação quanto pela sinceridade ardente do documento
humano” (BOSI, 1969, p. 102).
É interessante observar nessa obra as várias referências que Lima Barreto faz a
Dostoiévski; em uma das situações, o escritor, ao visitar a biblioteca do Hospício, nota a falta
de várias obras: “Logo ao entrar na secção, [...] notei que a biblioteca tinha mudado de lugar.
[...] Não havia mais o Vaperau, Dicionário das Literaturas; dous romances de Dostoiévski,
48
creio que Les Possédés, Les Humilliés et Offensés;” (BARRETO, 1956, v. XV, p. 42). E,
ainda: “[...] sonhei Dostoiévski, mas me faltou a sua névoa” (BARRETO, 1956, v. XV, p. 81).
Outra referência na qual Lima Barreto denota conhecer bem a obra de Dostoiévski refere-se a
uma situação bastante constrangedora por ele vivenciada, no hospício: “[...] pus-me nu
também. Lembrei-me um pouco de Dostoiévski, no célebre banho da Casa dos Mortos; mas
não havia nada parecido” (BARRETO, 1956, v. XV, p. 157). Enfim, são inúmeras as
referências encontradas, feitas tanto ao autor quanto às suas obras. Mais uma característica
que se sobressai ao contrapô-los, refere-se ao desejo de redenção no sofrimento, porém é
importante ressaltar que esse desejo não se limita a Dostoiévski, pode-se estendê-lo a Leon
Tolstói.
Eu me tinha esquecido de mim mesmo, tinha adquirido um grande desprezo pela
opinião pública, que vê de soslaio, que vê como criminoso um sujeito que passa pelo
hospício, eu não tinha mais ambições, nem esperanças de riqueza ou posição: o meu
pensamento era para a humanidade toda, para a miséria, para o sofrimento, para os
que sofrem, para os que todos amaldiçoam. (BARRETO, 1956, v. XV, p. 183).
No projeto literário do escritor Lima Barreto, a aproximação com os escritores
russos está por toda parte, se, por um lado, aproxima-se de Leon Tolstói, de outro, pende para
Dostoiévski, com o qual apresenta traços em comum, principalmente, quanto ao tema
abordado, privilegiando os “humilhados e ofendidos”. Ambos abordaram a vida dos
miseráveis, dos pequenos burgueses e dos personagens devorados por desgraças,
contradições, tormentos e dramas psicológicos. Tanto Lima como Dostoiévski retratam em
suas obras muito das próprias vidas; vidas de privações, de humilhações, de sofrimentos
físicos. Lima, com o álcool, e Dostoiévski, com as crises de epilepsia. É possível perceber
Lima Barreto leitor de Dostoiévski ao aproximar os títulos de obras dos respectivos escritores.
Dostoiévski escreveu Memórias da Casa dos Mortos (1861) e Memórias do Subterrâneo
(1864), enquanto, Lima escreveu O subterrâneo do Morro do Castelo (1905) e Cemitério dos
Vivos (1953). Dostoiévski escreveu Memórias da Casa dos Mortos quando de sua temporada
forçada na Sibéria, em que descreve as recordações da vida no cárcere, na convivência terrível
com ladrões, prostitutas e criminosos. Enquanto, Lima escreveu, mas não concluiu Cemitério
dos Vivos quando de suas estadas no hospício.
Outra aproximação efetuada entre Lima Barreto e Dostoiévski encontra-se na obra
Lima Barreto: o elogio da subversão (1983), de Régis de Morais, onde o autor constata: “[...]
Dostoiévski morreu em 1881, e Lima Barreto nasceu em 1881; o russo nasceu em 1822, e o
brasileiro morreu em 1922. Ambos, grandes viciados – o primeiro no jogo e o segundo na
bebida – e, portanto, grandes sofredores” (MORAIS, 1983, p. 9).
49
Essas coincidências podem não levar a nenhum resultado prático de análise, mas
instauram certa inquietude. Por outro lado, essas correspondências textuais não são produtos
do acaso, uma vez que se encontram em um escritor específico: Dostoiévski fez parte do rol
de leituras de Lima Barreto. Voltando a Régis de Morais e às aproximações:
Dostoiévski obstinado em escrever uma literatura inequivocamente russa, em cima
da vida e dos valores mais caros ao povo russo, até mesmo implicante com
influências do oeste europeu; Lima Barreto na mesma obstinação de praticamente
inventar o caminho tropical e brasileiro da ficção. (MORAIS, 1983, p. 9).
Realmente, são coincidências que nos levam a refletir, principalmente, quando nos
damos conta de que Lima manifesta, em toda a sua obra, uma admiração declarada pelos
russos. Para Régis de Morais, referir-se à mera coincidência em Lima e Dostoiévski fica,
desde o começo, descartado: “[...] a sensação que experimento é a de uma continuidade,
apesar de tudo que vejo de descontínuo entre aspectos de um e outro ensaio” (MORAIS,
1983, p. 9). Nesse estudo, Régis de Morais refere-se à obra “O mito de Sísifo”, de Albert
Camus, e faz uma comparação entre Lima e Sísifo. Em síntese, o mito de Sísifo constitui-se
na condenação de Sísifo pelos deuses a uma luta contínua em empurrar, sem interrupção, um
rochedo até o alto de uma montanha, donde a pedra tombaria por seu próprio peso. Pensaram,
com razão, que não havia punição mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança.
Analisando por esse viés, Morais faz um paralelo entre as ações, atitudes, enfim, todos os
acontecimentos da vida do escritor, o que ele pretendia e o resultado obtido, reforçando, ao
final, o contraste entre o homem e o meio social: uma luta inútil. “Toda a vida de Lima
Barreto fora, até ali, como seria até o fim, uma exemplificação do mito de Sísifo” (MORAIS,
1983, p. 23). Régis o vê como: “[...] o típico homem forte que morreu esmagado entre, de um
lado, a imagem que fez de si mesmo e seus projetos de vida e, de outro, a imagem que o meio
preconceituoso lhe impingiu e a indiferença que este devotou aos seus projetos pessoais”
(1983, p. 30). Ao tratar de Literatura Russa, Régis de Morais escreveu para a “Coleção
Encanto Radical”, o livro Dostoiévski – um operário dos destinos (1982). Ao escrever depois
sobre Lima fez essas aproximações entre os dois escritores.
Existe de fato uma relação literária considerável entre Lima e os escritores russos
citados e não é por acaso que Lima se refere a eles com o entusiasmo de quem os conhece,
principalmente quando se trata de Literatura engajada, ou, no dizer do próprio Lima:
Literatura militante. Essa postura militante que Lima assume tão coerentemente, tanto na vida
quanto na obra, é que nos leva a compará-lo e a aproximá-lo – muito mais do que deixa
50
transparecer em suas obras – de outro grande escritor russo: Lev Nikolaievitch Tolstói (1828-
1910), mais, especificamente, da concepção de arte tolstoiana. Poucos pesquisadores ousaram
aproximar Lima Barreto e Leon Tolstói através da concepção de arte. Não a desenvolvem, de
fato, uma vez que essa aproximação não constitui o “corpus” principal de nenhum dos textos
consultados. O primeiro, de Anoar Aiex, As idéias sócio-literárias de Lima Barreto, 1990; o
segundo, o ensaio “Lima Barreto e o romance russo”, 1996, de Maria Angélica Madeira; em
terceiro, o texto de Maria Salete Magnoni, dissertação de Mestrado, “Um dissidente na
República das Letras: as idéias libertárias em Lima Barreto”, de 1998.
Anoar Aiex (1990), em As idéias sócio-literárias de Lima Barreto, faz um
levantamento das principais noções que formam o “arcabouço ideológico” de Lima. Recorre
muito mais à obra jornalística, às memórias e aos trabalhos de crítica literária do autor e se
utiliza da obra de ficção barretiana como apoio, mais para “esclarecer e exemplificar” do que
para “analisá-la pelo seu valor literário” (AIEX, 1990, p. 7). Anoar Aiex ressalta que “[...] a
atividade jornalística de Lima não deve ser julgada segundo os padrões atuais” (1990, p. 7),
pois não se trata de jornalismo diário, é muito mais que isso. Nas palavras de Lima, seu
jornalismo compreende “[...] reflexões sobre fatos, coisas e homens de nossa terra, que, julgo,
talvez sem razão, muito próprias de mim” (BARRETO, 1956, v. IX, p. 37). Vale ressaltar que,
em toda sua atividade jornalística, Lima posiciona-se, expõe-se e, abertamente, “esclarece a
que veio”. Ele próprio assume categoricamente os riscos quando opta por publicar seus
artigos esparsos, reunindo-os no volume Bagatelas: “[...] seria mais prudente deixá-los
enterrados [...], pois muitos deles não são lá muito inocentes; mas, conscientemente, quero
que as inimizades que eles possam ter provocado contra mim, se consolidem [...]”
(BARRETO, 1956, v. IX, p. 37).
Anoar Aiex faz um laborioso levantamento da atividade jornalística de Lima e
destaca o número de publicações em cada jornal, o que não cabe abordar aqui, mas que serve
como material de consulta para quem se interessar. Esse levantamento teve por base os
seguintes volumes: Coisas do Reino de Jambom, Bagatelas, Feiras e Mafuás, Vida Urbana,
Marginália e Impressões de Leitura, volumes esses que englobam a maioria das publicações
jornalísticas de Lima.
Lima Barreto afirma, na “Advertência” de Bagatelas, que os seus artigos apareceram
“em revistas e jornais modestos” e, como justificativa, diz não gostar da grande imprensa.
Astrojildo Pereira (1963, p. 34) ressalta que as “[...] Recordações do Escrivão Isaías Caminha
constituem justamente a mais expressiva demonstração desse... digamos desamor, para não
carregar palavra mais áspera”. Ainda, conforme Astrojildo Pereira, há um pouco de exagero
51
de Lima quando diz que seus artigos haviam aparecido primitivamente em “revistas e jornais
modestos”, visto que nem todos eram tão “modestos” assim. Cita, como exemplos, o A.B.C. e
o Hoje, semanários que desfrutaram de considerável notoriedade política e literária.
Além do levantamento da atividade jornalística de Lima Barreto, Anoar Aiex
seleciona e aborda alguns temas e problemas que mais se destacam, a seu ver, da produção
jornalística do escritor. São eles: as organizações operárias, o anarquismo, feminismo e
antifeminismo, os Estados Unidos e Brasil, Primeira Guerra Mundial, Monarquia e República
e também a função e o objetivo da literatura. O texto de Anoar Aiex é de fato bastante
relevante para a compreensão das ideias sócio-literárias de Lima Barreto.
O texto de Maria Angélica Madeira (1996), “Lima Barreto e o romance russo”
16
,
contextualiza o escritor na belle époque, e o considera exemplar de uma posição subalterna,
na constelação dos outros “lugares de fala” significativos de sua época: “[...] escrevendo
sempre contra, demarcando-se dos seus próximos, dos seus contemporâneos”. Justificando
“[...] sua busca eclética por muitas tradições, seu experimentalismo desconcertante, a
descontinuidade e a desigualdade de sua própria obra ficcional” (MADEIRA, 1996, p. 7).
Conforme Madeira, a afinidade de Lima Barreto com os russos, explícita em suas obras,
contribuiu para que o escritor formulasse “uma concepção estética de fundo ético”, a “estética
da sinceridade.” Ela trabalha com a hipótese de que Lima Barreto estaria introduzindo na
literatura brasileira uma tradição nova, até então desconhecida entre nós, a tradição de um
“realismo trágico introspectivo”. Por seu comprometimento com o social, e sendo exilado do
Império, Lima volta-se para as tendências anarquistas, principalmente da linha anarquista
pacifista do conde de Saint Simon e do príncipe Kropotkin.
Para Madeira, a principal contribuição de Lima Barreto, dentre as inovações que
trouxe à prosa de ficção, foi “[...] o experimento de técnicas que permitiram criar histórias de
enredo muito diluído e aumentar a ‘profundidade de campo’, tornando possível a exploração
da subjetividade individual, interioridade escavada, eu fragmentado” (MADEIRA, 1996,
p. 9). A noção de intertextualidade que “[...] remete à metáfora do tecido, à idéia de que cada
texto é um palimpsesto onde várias camadas de vozes podem fazer-se ouvir” (MADEIRA,
1996, p. 10), abre espaço para abordagens que permitem estabelecer, de outra maneira, a
relação entre estética e sociedade, através da poética histórica. Assim, para Madeira, a obra de
Lima é “desigual e mesmo um pouco brutal, às vezes mal-acabada, repetitiva, confessional”
(MADEIRA, 1996, p. 11). O que, segundo Madeira, demonstra não só as condições precárias
em que foi construída, a busca intelectual inquieta, investindo, ao mesmo tempo, em muitas
16
Agradeço ao Prof. Bruno Gomide (USP) pela indicação e envio deste artigo.
52
direções diferentes, como também deixa marcas de seu encontro com a literatura russa, Leon
Tolstói, Turguênief, Dostoiévski, autores com os quais dialoga.
Madeira resume a importância da descoberta da literatura russa, para Lima Barreto,
em três aspectos fundamentais: uma “estética da sinceridade”; à construção dos personagens e
ao aprofundamento de sua força subjetiva e a narrativa como fluxo, ritmos da memória ou da
sensação que diluem o enredo. E aproxima Lima Barreto de Dostoiévski, especificamente,
através de uma fonte comum que lhes fornece material, a cultura popular. Faz referência à
análise de Bakhtin quanto à revolução que o texto dostoievskiano trouxe ao romance ocidental
através dos processos técnicos polifônicos que permitiram romper com o ponto de vista
unívoco e monológico. Madeira interpreta os textos de Lima como fragmentos, “fraturas
compositivas” e o próprio Lima como um “escritor basicamente experimental”, além de
afirmar que “Gonzaga de Sá tem pouco a ver com Isaías Caminha ou Clara dos Anjos”
(MADEIRA, 1996, p. 15). Não encontra também muita unidade nos contos, ou pelo menos
um projeto estético que os explicite e os subsuma.
Já o texto de Maria Salete Magnoni, “Um dissidente na República das Letras: as
idéias libertárias em Lima Barreto”, de 1998, teve por objetivo “[...] traçar um esboço de
retrato intelectual de Lima Barreto, para então examinar a presença das idéias libertárias em
sua formação intelectual” (MAGNONI, 1998, p. 2). Em síntese, o texto de Magnoni abrange
uma contextualização histórica, aspectos da história de vida do escritor, parte da formação
intelectual de Lima e considerações sobre o Anarquismo e suas correntes. Nesse tópico,
Magnoni avança em relação ao texto de Anoar Aiex. Ao abordar o pensador russo Leon
Tolstói e suas ideias libertárias, aproxima-o de Lima Barreto e faz uma breve incursão quanto
ao diálogo que Lima mantém com a concepção de arte de Leon Tolstói, reunidas no livro O
que é a Arte? (1897). Digo uma “breve incursão”, pois Magnoni não se aprofunda nesse
tópico. Volta-se para o comunismo libertário e as ideias libertárias nas crônicas de Lima,
tópicos que realmente ocupam a parte central de seu texto. Graduada em História, Magnoni
justifica sua opção por Lima pelo fato de “[...] sua produção estar inserida num período muito
instigante da história política do Brasil” (MAGNONI, 1998, p.2). De fato, a obra de Lima
Barreto tem muito a oferecer não só para quem se dedica ao estudo da História como também
para os estudiosos de Literatura, principalmente porque Lima ficcionalizou a maioria dos
acontecimentos históricos brasileiros.
Os estudos de Anoar Aiex e Magnoni compreendem uma análise das “idéias sócio-
literárias” e das “idéias libertárias” de Lima Barreto; grosso modo, pode-se dizer que as
aproximações apresentadas ocorrem pelo viés do ideário anarquista. De certa forma, perpassa
53
essas leituras um sentido pejorativo da palavra anarquista, que acaba por se estender ao
escritor. Embora apresentem uma proximidade em relação ao tema que proponho como objeto
deste estudo, diferenciam-se, pois o fato de Lima Barreto propagar ideias libertárias em sua
obra de ficção já é conhecido em sua fortuna crítica.
Quanto ao ensaio de Madeira, ele demonstra uma aproximação de Lima Barreto com
o romance russo em linhas gerais e mais, especificamente, com Dostoiévski. Esses estudos,
enfocando as relações literárias de Lima Barreto e os escritores russos, foram retomados com
o objetivo de termos conhecimento do que já foi feito a esse respeito. De alguma forma, já
abordaram essa afinidade de Lima Barreto com os russos, mas nada de forma conclusiva; e,
pelo visto, não se esgotaram as possibilidades de investigação. A propósito, todos esses
estudos contribuem significativamente para melhor compreensão da literatura barretiana.
Pensando nisso, é que nos propomos a investigar como a concepção de arte de Leon
Tolstói está presente no projeto literário barretiano. Aqui se encontra o ineditismo desse
estudo, pois, ao contrário de Madeira (1998, p. 15), que afirma: Gonzaga de Sá tem pouco a
ver com Isaías Caminha ou Clara dos Anjos”, além de não encontrar também muita “unidade
nos contos” ou, ainda, declarar que Lima não tem um projeto estético, defendemos a tese de
que a literatura barretiana – apesar da vida tumultuada do escritor – foi criada com base em
um projeto literário coeso, que teve, desde o início, a concepção de arte tolstoiana guiando sua
criação literária.
54
2 LEON TOLSTÓI NO BRASIL
Uma combinação esquisita: o cérebro de um
químico inglês e a alma de um budista indiano.
E.M. Vogué.
Eu sei que não existe homem mais digno do título
de gênio, mais completo, mais contraditório e mais
belo em tudo, sim, em tudo.
Máximo Górki
Ao nos referirmos à presença de Leon Tolstói no Brasil, a primeira questão que se
coloca é quanto à importância de expormos a biografia desse autor. Talvez seja importante
para os leitores iniciantes, isto é, para os que estão tendo contato com Leon Tolstói pela
primeira vez, mas não imprescindível. Isso porque Leon Tolstói deixa marcas autobiográficas
na maioria de seus personagens: Nicolas Irteniev, Nechludoff, Besuchoff, Pedro ou Levine.
Sendo assim, o leitor que tiver contato com uma obra de Leon Tolstói já terá conhecido uma
das facetas do escritor, porém, é importante ter contato com todas as obras, pois, dessa forma,
terá o retrato completo de Leon Tolstói.
Espera-se, então, que quem ainda não conheça o “grande escritor da terra russa”,
sinta-se motivado a conhecê-lo. As palavras acima, de Górki e de Vogue, nos dão alguma
dimensão da dificuldade e da responsabilidade de se falar sobre o “gênio” Leon Tolstói
(1828-1920). Ao todo, são noventa volumes de suas obras completas na edição russa
definitiva, treze volumes são consagrados aos diários e às notas autobiográficas e trinta
volumes às cartas. Conhece-se o adolescente de dezessete anos tanto quanto o idoso de
oitenta. Constata-se que Leon Tolstói é o escritor de quem mais possuímos documentos e
fotografias, a quantidade de diários, de confissões, de cartas íntimas ou não, deixadas por
Leon Tolstói é incomparável, foram batidos todos os recordes no gênero.
Para Stefan Zweig (1935, p. 64): “Um fanático da verdade, como Tolstói, só pode
ser um autobiographo apaixonado”. Dessa forma, recorro às palavras do “autobiographo
apaixonado” que, apesar da extensão, justificam-se plenamente pela descrição concisa de si
mesmo que Leon Tolstói nos oferece e, principalmente, pela exposição corajosa feita em seu
diário de 7 de julho de 1854, aos 22 anos, quando Leon Tolstói faz uma síntese avaliativa de
toda sua vida, dividindo-a em quatro períodos, conforme se verá a seguir:
55
Quem sou eu? Um dos quatro filhos de um tenente-coronel na reserva, que ficou
órfão aos sete anos de idade, educado por mulheres e por estranhos, e que, sem que
o houvessem preparado com qualquer educação mundana ou intelectual, penetrou no
mundo por volta dos dezessete anos. Não tenho grandes riquezas, não ocupo na
sociedade um lugar particularmente brilhante e, sobretudo não tenho princípios.
Careço de amigos influentes, não tenho modo de vida plausível, mas o meu amor-
próprio não tem medida. Sou feio, grosseiro, sujo e mal-educado, se vejo as coisas
como as vê o mundo. Sou irascível, chato, intolerante e tímido como uma criança.
Sou um labroste com todas as letras. O que sei aprendi-o sozinho, mal, por
sacolejões, de modo descosido; e é bem pouco. Sou intemperante, indeciso,
inconstante, estupidamente vaidoso e expansivo como todos os fracos. Coragem não
tenho nenhuma. A minha preguiça é tal que a minha ociosidade se tornou para mim
uma exigência. Sou boa pessoa, entendendo por isto que gosto do bem, fico de mal
comigo quando dele me afasto e é com prazer que volto atrás. Todavia uma coisa há
que pode comigo mais que o bem: é a glória. Sou tão ambicioso que, a darem-me a
escolher entre a glória e a virtude, muito me temo que não escolhesse a primeira.
Modesto é que não sou, sem sombra de dúvida. Por isso me vêem com este ar de cão
batido, por fora, que, se querem saber o que é orgulho olhem lá para dentro.
Sou o doente número 1 do asilo de loucos que é a minha casa de Iasnaia Poliana.
Temperamento sanguíneo. Categoria, a dos loucos mansos. A minha loucura
consiste em crer que posso mudar a vida dos outros por meio de palavras. Sintomas
gerais: não suporto o actual regime; grito contra tudo e contra todos, excepto contra
mim; mudo como ventoinha e sou irritadiço, sem resguardo por quem se prontifica a
escutar-me às boas. Muita vez, após a excitação e a fúria, baqueio a um estado de
hipersensibilidade e lágrimas, que é tudo quanto há de menos normal. Sintomas
particulares: entrego-me a trabalhos manuais, engraxo e fabrico calçado, ceifo feno e
realizo outras fainas materiais.
No que tange à minha vida, se a considero do ponto de vista do bem e do mal
que pude fazer, dou-me conta de que toda a minha longa existência se divide em
quatro períodos: a primeira, época poética, maravilhosa, inocente, radiosa, da
infância até aos catorze anos. Vêm depois vinte anos horríveis de grosseira
depravação ao serviço do orgulho, da vaidade e, sobretudo do vício. O terceiro
período, de dezoito anos, vai do meu casamento à minha ressurreição espiritual: o
mundo poderia também qualificá-la de moral, pois durante anos levei uma vida
familiar honesta e regrada, sem me abandonar a nenhum dos vícios que a opinião
pública reprova. Mas interessava-me estritamente tão-só pelas preocupações egoístas
concernentes à minha família, ao sucesso literário e a todas as minhas pessoais
satisfações. Enfim, a quarta fase, aquela em que vivo, após minha redenção moral.
A tudo isso nada desejo mudar, a não ser os maus hábitos contraídos no decurso dos
períodos anteriores. (TOLSTOI, 1972, p. 5).
Acredita-se, assim, que o trecho acima citado vale por toda uma cronologia da vida e
obra de Leon Tolstói, pois temos o olhar que mais nos interessa: o do próprio autor, isto é, o
autobiográfico. É possível detectar nessa autobiografia algumas características e afinidades
que aproximam Leon Tolstói de Lima Barreto, ou vice-versa, aliás, o trecho que se repete a
seguir parece ter sido escrito pelo próprio Lima Barreto:
Sou o doente número 1 do asilo de loucos que é a minha casa de Iasnaia Poliana.
Temperamento sanguíneo. Categoria, a dos loucos mansos. A minha loucura
consiste em crer que posso mudar a vida dos outros por meio de palavras. Sintomas
gerais: não suporto o actual regime; grito contra tudo e contra todos, excepto contra
mim. (TOLSTOI, 1972, p. 5).
56
É em função dessa proximidade, entre Lima Barreto e Leon Tolstói, que se pretende
rastrear a presença do escritor russo, no Brasil, a fim de explicitarmos de que forma se dá essa
aproximação. Além das manifestações de Lima Barreto sobre a Revolução russa, encontram-
se inúmeras referências aos russos na obra barretiana e, principalmente, a Leon Tolstói, em
correspondências e sugestões de leitura entre amigos de sua roda literária. Em 10 de junho de
1908, em carta a Antonio Noronha Santos, o escritor demonstra estar em contato com a
literatura russa e com Leon Tolstói:
Escrevo-te de minha casa. Hoje é dia de Corpus Christi e não fui trabalhar. O dia
está magnífico, muito puro, suave e um pouco frio. Li agora mesmo o Ana Karênina
de Tolstói, uma adaptação ao teatro, por um tal Giraud. Senti que tinhas razão em
gabar o livro. Deve ser extraordinário. (BARRETO, 1956, v. XVI, p. 84).
Embora Lima Barreto estivesse se referindo a uma adaptação de Ana Karênina ao
teatro, o escritor demonstra grandes expectativas quanto ao romance: “Deve ser
extraordinário”.
Em grande parte, a recepção de Leon Tolstói pelo meio literário brasileiro deu-se de
forma bastante positiva, tal qual a de Lima Barreto. Dessa recepção, encontra-se registro na
historiografia literária brasileira, por volta de 1900; Brito Broca foi o primeiro a abordar as
modas literárias em voga no início de 1900 e “Tolstoi e o anarquismo” (BROCA, 2004,
p. 169) foi um dos assuntos destacados. Obra de referência para a historiografia literária no
Brasil, na qual geralmente se encontram referências e registros da formação cultural dos
homens de letras do País, e paralelamente, do Rio de Janeiro, no período da belle époque. Rio
de Janeiro e belle époque, respectivamente, espaço e tempo nos quais se desenrolou a
atividade literária de Lima Barreto, mais que isso, período em que transcorreu quase toda a
vida do escritor.
Sobre o romance russo, destaca-se, também, o estudo “Da Estepe à caatinga: o
romance russo no Brasil (1887-1936)”, de Bruno Gomide (2004). A delimitação cronológica é
justificada por Gomide devido ao fato de que, nesse período, concentra-se a ascensão e queda
do romance russo. Isto é, na segunda metade da década de 1880, apareceram os primeiros
textos que utilizavam os romancistas russos como contraponto a questões literárias candentes,
em movimento similar ao que se fazia em outros países das Américas, da Ásia e da Europa,
mesmo nos países eslavos. E, a data final (1936), por representar a diminuição de importância
das discussões suscitadas no fim de século, deu lugar à procura de novos referenciais para
tratar da literatura russa, além de representar o período anterior às novas relações político-
57
culturais do Estado Novo, que trouxeram alterações quantitativas e qualitativas. Primeiro,
porque ocorre um aumento no volume de textos publicados sobre literatura russa; segundo, o
aparecimento de novos ensaístas e projetos editoriais mais encorpados, como a edição de
Dostoiévski, da José Olympio, a partir do início da década de 1940.
O estudo de Gomide é imprescindível para quem pretende aprofundar seus
conhecimentos sobre o romance russo, além de ser um valioso suporte de pesquisa
bibliográfica sobre o assunto. Apresenta um levantamento de obras e autores brasileiros sobre
a recepção do romance russo, no Brasil, bem como obras e autores estrangeiros que trataram
do romance russo sob uma perspectiva comparativa. Este estudo incorpora e extrapola a
maioria dos trabalhos críticos anteriores, sendo que a maior parte do material de pesquisa
encontra-se em língua inglesa, francesa e espanhola, segundo Gomide, nesta última, em
menor quantidade.
Gomide (2004) apresenta uma relação dos críticos brasileiros que se manifestaram
sobre o romance russo: Clóvis Bevilacqua, Mário de Andrade, Augusto Meyer, Araripe
Júnior, Alceu Amoroso Lima, José Veríssimo, Artur Orlando, Tasso da Silveira, Vicente
Licínio Cardoso e Hamilton Nogueira. Conforme Gomide, essa produção literária está
disposta da seguinte forma: Mário de Andrade, Augusto Meyer e Araripe Júnior “só
escreveram apontamentos ou artigos”; Alceu Amoroso Lima estava capacitado para escrever,
na década de 1920, o que seria um volume sobre Dostoiévski. Não o fez, e a tarefa coube a
Hamilton Nogueira. Clóvis Bevilacqua publicou apenas um artigo sobre literatura russa, que
se encontra em Épocas e individualidades, sendo o único sobre um escritor estrangeiro. José
Veríssimo dedicou ao tema três ensaios de sua série Homens e coisas estrangeiras (GOMIDE,
2004, p. 20).
Segundo Brito Broca (2004), a voga de Leon Tolstói no Brasil deu-se juntamente
com as atividades anarquistas e socialistas aqui presentes nas duas primeiras décadas do
século XX. E, ao contrário do que se esperava, a influência e repercussão de tal voga no
âmbito da política, ocorreram tal qual entre 1930 e 1940, no Brasil, em que proliferaram os
marxistas puramente “literários”. Assim, para muita gente, em 1900, o anarquismo foi
também apenas “literatura” e Leon Tolstói era o paradigma desses reformadores utópicos. A
influência de Leon Tolstói na criação literária do período, principalmente no romance, é
bastante perceptível. Constata-se a presença das ideias tolstoianas nos escritores Curvelo de
Mendonça, Fábio Luz, Pausílipo da Fonseca e Domingos Ribeiro Filho. Os escritores,
Curvelo de Mendonça e Fábio Luz, procuraram, “sem êxito”, escrever romances tolstoianos.
No Correio da Manhã, Pausílipo da Fonseca publicou em folhetim, de outubro a dezembro de
58
1911, o romance socialista: A vitória da fome. Domingos Ribeiro Filho publicou romances de
tendência revolucionária, entre os quais O cravo vermelho, “estudo de uma moral”, ao qual
Lima Barreto fez uma avaliação crítica não só do livro como também do autor (BARRETO,
1956, v. XIII, p. 184). Os escritores citados estiveram, de uma forma ou de outra, ligados ao
escritor Lima Barreto, quer seja através do ideário anarquista ou ainda por serem colegas de
trabalho nos jornais do Rio de Janeiro. Para esses escritores, voltar-me-ei no próximo
capítulo, quando situarei Lima Barreto em relação ao ideário anarquista.
No Brasil, como em toda a Europa, a recepção e a divulgação do romance russo
possuem um marco, o antes e o depois da obra “Le Roman russe” (1886) de Eugène-Melchior
de Vogué (1848-1910). Mas é importante que se diga que não foi essa a única obra a tratar da
literatura russa, porém foi a que teve maior repercussão. Desse período, são também as obras
de Ernest Dupuy, “Les grands maîtres de la litterature russe” (1885) e a de Emile Hennequin,
Écrivains francisés” (1889). Essas obras tinham em comum o interesse pela literatura russa
e, ao mesmo tempo, faziam uma revisão dos caminhos percorridos pelo romance realista
francês. Seus autores veem no romance russo a fórmula capaz de recolocar o romance francês
nos trilhos, uma vez que constatam uma diferença fundamental entre o conceito literário
ocidental e o russo, pois para os russos não existe “a arte pela arte”, o mais importante é “ter o
que dizer”, e a forma, tão valorizada no Ocidente, é deixada de lado.
Ernest Dupuy, em “Les grands maîtres de la littérature russe”, aborda a diferença
entre os conceitos literários:
Nós (os franceses) encontramos desde logo certo mal-estar em meio aqueles
romances russos cheios de arte, porém desprovido de pequenos artifícios; romances
cujo desenvolvimento se parece com o curso da vida, cujas personagens vacilam, às
vezes se detêm; romances em que a ação se desdobra lentamente e o autor não se
preocupa em atingir uma conclusão. Basta-lhe anotar os fatos e deitar luz sobre os
caracteres. Esta naturalidade perfeita, que a princípio confunde um pouco, acaba por
se tornar um grande encanto. Não há nada melhor para fazer-nos refletir sobre a
importância pueril que damos a técnica, assim como sobre o vazio, muitas vezes
lamentável de nossos romances de mecanismo industrial [...]. (DUPUY apud
CHOSTAKOWSKY, 1948, p. 9).
Dupuy constata o contraste entre o romance francês e o romance russo: o primeiro
enfatiza a forma literária, levando-a as últimas consequências e dá importância demasiada à
técnica; o segundo preza a simplicidade, a naturalidade no processo literário, o que nos leva a
deduzir, inicialmente, que, para os romancistas russos, a atividade literária não lhes exige
nenhum esforço.
59
Eugène-Melchior de Vogué, na introdução do “Le roman russe” (1886), também
chama a atenção para o modo como o romance francês se desenrolava e demonstra certo
descontentamento em relação ao mesmo:
Nossa tradição intelectual protesta contra a estética necessária do realismo [...];
queremos que nos pintem em alguns traços um personagem e uma cena. O realismo
tira toda sua força de sua simplicidade, de sua ingenuidade; nada é menos simples e
menos ingênuo do que o gosto de uma raça envelhecida, espiritual, saturada de
retórica. (VOGUÉ, 1950, p. 27-28).
Em seguida, refere-se aos escritores russos:
A alma flutuante dos russos vai derivando através de todas as filosofias; faz seus
estágios no niilismo e no pessimismo; um leitor superficial poderia, por vezes,
confundir Tolstoi com Flaubert. Mas o niilismo não é jamais aceito sem revolta; essa
alma nunca se mostra impenitente, ouvimo-la gemer e ansiar; retoma finalmente a
posse de si mesma e resgata-se pela caridade; mais ou menos ativa em Turguenef e
Tolstoi; frenética até tornar-se uma paixão dolorosa em Dostoievski. Tais escritores
bandeiam o vento de todas as doutrinas vindas de fora, cépticas, fatalistas,
positivistas; mas nas fibras mais íntimas do coração permanecem cristãos, de que
uma voz eloqüente dizia outrora: “Não deixaram de compartilhar desse lamento
universal com que os homens e as coisas, tributários do tempo, alimentam o fluxo
inesgotável”. (VOGUÉ, 1950, p. 39).
Melchior de Vogué generaliza a marca do cristianismo ortodoxo sobre os escritores
russos ao apontar “um livro regulador [...]; é o venerável volume [...] o Evangelho de
Ostromir de Novgorod (1056); no meio das produções recentes da literatura nacional, esse
volume representa-lhes a fonte e o espírito” (VOGUÉ, 1950, p. 10). O que denota uma análise
perspicaz de quem é grande conhecedor da literatura e cultura russa, além de colocá-la acima
da literatura francesa, abalando seu prestígio internacional.
A publicação do “Le roman russe” de Melchior de Vogué, em 1886, na França,
propiciou uma difusão internacional do romance russo e também de inúmeras traduções. No
Brasil, a recepção crítica dos russos deu-se, em grande parte, através das traduções das
versões francesas, uma vez que o desconhecimento e a não fluência do idioma russo, com
algumas raras exceções, era predominante entre os críticos em geral, não só entre os
brasileiros. Essa preocupação se faz presente no texto de José Carlos Júnior (1860-1896), o
qual escreveu no periódico cearense A quinzena, entre agosto de 1887 e abril de 1888, vários
artigos sob o título “Apontamentos esparsos”, nos quais a literatura russa era o centro das
reflexões. Logo no primeiro texto, de 26 de agosto de 1887, manifesta sua preocupação por
não dominar o idioma:
60
Não muitos anos passarão sem dúvida, antes que a necessidade de conhecer a
língua russa venha se nos impor e constituir uma parte essencial da educação
literária, devendo figurar no programa dos liceus. Enquanto, porém, isto não se dá,
resignemo-nos a familiarizar-nos com o espírito eslavo por meio das traduções, que
felizmente vão inundando a França, a Alemanha, a Itália. (JÚNIOR apud GOMIDE,
2004, p. 121).
Um dos poucos estudiosos que se dedicou a aprender a língua russa foi Melchior de
Vogué, após conseguir um emprego de funcionário da embaixada francesa, em
Constantinopla, onde permaneceu por seis anos, durante os quais fez diversas viagens a países
vizinhos. Aos 28 anos, foi nomeado terceiro secretário, em São Petersburgo, e não perdeu
uma chance de aprofundar seus conhecimentos da língua e da cultura russas. Desse modo,
preparou-se para a produção de sua mais famosa obra, não resta dúvida de que Vogué
conhecia bem o país e a literatura da qual seria divulgador. Segundo Gomide, Vogué foi
educado no espírito cristão e, ao se analisar os russos que criara no seu O romance russo,
constata-se que os mesmos exalam uma bondade natural. Magnus Röhl sugere que os
sustentáculos de O romance russo – piedade, caridade, sofrimento, compaixão – são
inspiradas diretamente no vocabulário da Bíblia e no romantismo cristão de homens como
Chateaubriand (apud GOMIDE, 2004, p. 86). Constata-se que a recepção de Vogué, cheia de
simpatia pelos russos, foi a que permaneceu tanto na Europa quanto no Brasil, não aparecendo
discordâncias por um longo período.
O estudo de Vogué sobre o romance russo, antes de ser publicado em volume, saíra,
anteriormente, em forma de artigos, na Revue des Deux Mondes, revista muito requisitada
pela elite ilustrada e também pelo escritor Lima Barreto, que a tinha como leitura de
cabeceira. Além da Revue des Deux Mondes e do volume do “Le roman russe” constam ainda
no inventário da “Limana” a Revue de Paris e Revue Philosophique, revistas clássicas nas
quais circulavam, entre outros artigos, também publicações anarquistas. O gosto pelas revistas
francesas, bastante presente em Lima Barreto, estende-se aos seus personagens. Em “Gonzaga
de Sá”, encontra-se manifestada tal preferência: “De todas a Revue des Deux Mondes é a que
mais queria e citava”. Lima Barreto sempre esteve em contato com a imprensa, escrevendo,
lendo, avaliando e criticando tudo o que aparecesse a sua frente. Por ser um homem de letras,
embora não gostasse desse qualificativo, por toda sua vida viveu e conviveu nas rodas
literárias. Sendo assim, é possível que Lima tenha tido acesso não somente aos artigos de
Melchior de Vogué, na Revue des Deux Mondes, como também aos produzidos no Brasil por
Tobias Barreto, Clóvis Bevilacqua, José Carlos Júnior e Artur Orlando. Os escritores citados
foram os primeiros no Brasil a se manifestarem sobre os russos, quer seja sobre política,
61
literatura ou cultura, a partir da metade dos anos 1880, especificamente, de 1883 a 1886,
período em que ocorre uma ampla divulgação dos romancistas russos no exterior e no Brasil.
É importante registrar que o acesso a alguns desses textos só foi possível devido ao trabalho
de Gomide.
Segundo Gomide (GOMIDE, 2004, p. 75), no Brasil, os anúncios de lançamento de
obras de escritores russos aparecem em revistas ilustradas. Na Vida Moderna, figuram edições
francesas de Leon Tolstói, divulgadas pela livraria Lombaerts como as “últimas novidades de
Paris”. Á la recherche du bonheur está na edição de agosto de 1886, Que faire? aparece em
março de 1887 e Ma confession sai dois meses após. Todos lançados em Paris pelas editoras
Perrin e A. Savine. Um exemplar do Que Faire?, em julho de 1887, já estava nas mãos do
abolicionista baiano André Rebouças (1843-1898). No ano que antecedeu a abolição,
pretendia encontrar na doutrina de Leon Tolstói soluções para os problemas brasileiros: a
questão da miséria e a organização do trabalho após o fim oficial do regime escravista. Aliás,
foi movido por interesses semelhantes a esses que o escritor Lima Barreto aproximou-se da
literatura russa.
Pelo visto, a primeira recepção de Leon Tolstói foi pelo aspecto doutrinário de suas
obras. Nada de Guerra e Paz ou de Ana Karênina e sim, Que fazer?, Minha confissão e Em
busca da felicidade, obras nas quais a doutrina do tolstoísmo estava em primeiro plano.
Gomide afirma que, ao contrário dos romances anteriores, que seriam assimilados a partir
desse momento numa visão retrospectiva, a produção de Leon Tolstói, representada por
aqueles volumes, e mediada pelas flutuações e idiossincrasias do mercado parisiense, era
estudada assim que saia das mãos de Leon Tolstói (GOMIDE, 2004, p. 76).
A partir de 1920 e 1930, ocorreu uma mudança para melhor das traduções francesas,
quando intelectuais conscienciosos de NRL e da Gallimard substituem as traduções obsoletas
da Plon, Hachette e Bienstock (GOMIDE, 2004, p. 113). No que se refere a qualquer análise e
comentário dos críticos brasileiros sobre os russos Dostoiévski e Leon Tolstói, no período de
fins dos anos 1880 até a década de 1920, devem ser levadas em conta as traduções as quais
eles tinham em mãos, pois muitas vezes eles tinham “adaptações bastante modificadas”. O
ciclo autobiográfico da juventude de Leon Tolstói variava entre Nikolinka, Lembranças,
Etapas de uma vida. Kholstomier era História de um cavalo, A morte de um cavalo, O
romance de um cavalo. Alma de criança, feita a partir de Ame d’ enfant, era uma das poucas
traduções em português de literatura russa disponíveis no mercado no começo do século XX,
adaptação de Halpérine-Kaminsky para a segunda parte de Niétotchka Niezvânova (GOMIDE,
62
2004, p. 114). Constata-se que, em parte, ocorriam modificações devido ao descaso do
tradutor; e em parte, de caso pensado, fator integrante da divulgação dos escritores russos.
As traduções de Dostoiévski, Turguênief, Gógol e Puchkin foram as que mais
apresentaram variações em relação ao original. Já Leon Tolstói – apesar da vigilância
exercida pela censura – teve como acompanhar algumas das traduções, principalmente as
traduções das obras doutrinárias produzidas durante suas duas últimas décadas de vida (1890-
1910), quando se transformou em uma das figuras públicas mais importantes do mundo. As
obras ficcionais de Leon Tolstói sofriam menos nas mãos dos tradutores do que as de
Dostoiévski, pois elas encaixavam-se mais nos padrões estabelecidos do romance e da novela.
Não é o momento para se traçar um paralelo entre Leon Tolstói e Dostoiévski,
porém, ao se referir a um, o outro logo aparece como contraponto. Na história da literatura,
encontram-se alguns exemplos raros de escritores que se apresentam sempre associados a um
“duplo”. Esse é o caso de Leon Tolstói em relação a Dostoiévski, autor cujas obras vêm sendo
editadas no Brasil em traduções feitas diretamente do original russo. Dostoiévski é o seu
“duplo” e vice-versa. E essa aproximação entre os dois maiores escritores da Rússia foi objeto
de vários estudos. Dimítri Mierejkóvski, em seu livro L. Tolstói e Dostoievski, Vida e Obra,
publicado na Rússia em 1901-1902, via no primeiro “o profeta da carne” e no segundo “o
profeta do espírito”. Se há elementos que os atraem, há mais ainda que os distanciam. Leon
Tolstói foi o primeiro a ter suas obras publicadas no Brasil e em número maior que as de
Dostoiévski. Outro importante trabalho a se dedicar a esses escritores é Tolstoi e Dostoievski,
de George Steiner, com duas edições, a primeira, de 1959,
17
e, a segunda, de 1996. Em 2006,
saiu uma edição brasileira pela Editora Perspectiva, com tradução de Isa Kopelman.
Gomide, no amplo painel que trata da recepção do romance russo no Brasil, ressalta
que, na virada de século e na belle époque, havia um número pequeno de revistas ilustradas e
jornais diários, mas não desprezível, de contos russos. Leon Tolstói e M. Górki eram os mais
publicados nesse período, porque eram duas figuras vivas e atuantes e também se somam os
vínculos mantidos com o ideário anarquista. Um levantamento apresentado dessas
publicações, nesse período, encontra-se assim sequenciado: no periódico Rua do Ouvidor,
quatro narrativas de Leon Tolstói: “O lobo e o moujik” (maio de 1899), “O pecado e o
castigo” (janeiro de 1900), “A origem do mal” (dezembro de 1901) e “O pecador
arrependido” (novembro de 1902). Foram publicados, no mesmo periódico, “A vida”, de
M.Górki (dezembro de 1907), e “Os dois irmãos”, de Turguênief (janeiro de 1899). Leon
17
STEINER, George. Tolstoy or Dostoievsky: An essay in the Old Criticism. (Título do original em Inglês).
63
Tolstói contava ainda com “Um juiz modelo” (Diário popular, novembro de 1897), “O
jogador” (Leitura para todos, junho de 1909) e “O homem dos olhos claros” (Careta, agosto
de 1917). A Sonata a Kreutzer foi folhetinizado no Diário de notícias carioca, a partir de 15
de dezembro de 1890, logo após o lançamento europeu da novela. Renascença, outra
importante revista ilustrada, publicou “Uma fábula de Tolstoi” (maio de 1904). Alguns textos
de Tchekhov apareciam aqui e ali, como no esquisito “O sarcófago” (Diário popular, 1897), e
em “Olhos de sono” (Leitura para todos, janeiro de 1907). “A noite da Ucrânia” (Seleta,
março de 1916), de M.Gógol, servia amiúde de ilustração de comentários dos críticos
(GOMIDE, 2004, p. 169). A maioria dos periódicos citados é do Rio de Janeiro, e Lima
Barreto, jornalista e autodidata que foi, sem dúvida, acompanhou de perto toda a divulgação
do romance russo.
Essas publicações estavam diretamente ligadas aos altos e baixos da vida política
imperial. Em, Os anais, por exemplo, a revolução russa de 1905 promove número
significativo de notas sobre a Rússia política, cultural e literária. No Almanaque do Globo
aparecem dois textos de M.Górki (“A canção das procelárias” e “Os homens fortes”) e um na
Careta (“Uma que já não vive”), publicados em 1917, que deixam transparecer a expectativa
em torno da revolução de outubro, prestes a se realizar (GOMIDE, 2004, p. 170). Constata-se,
assim, uma estreita relação dos escritos russos com o ideário libertário e socialista.
Dostoiévski, bem menos traduzido em relação a Leon Tolstói, aparece com “A árvore
sentimental” no Diário popular (dezembro de 1897). “Um club da má língua” foi
folhetinizado no periódico anarquista A vanguarda (maio de 1911). Leon Tolstói aparece de
forma constante e é diretamente ligado às questões libertárias, com contos, lendas e anúncio
de lançamento em periódicos da linha O amigo do povo. Sem dúvida, um dos principais
canais de difusão social da literatura russa.
Em função dessa ampla divulgação dos escritores russos, a imagem de Leon Tolstói
se popularizou através da imprensa, estava por todo lado, tanto nas grandes revistas como a
Revue des Deux Mondes, quanto nas pequenas como a Careta. Mesmo depois de morto, Leon
Tolstói apareceu na revista Careta a 28 de setembro de 1912, em um anúncio do tônico
“Bananose simples”, no qual aparece a figura do escritor russo idoso, o rosto marcado pelos
82 anos de idade, já no final da vida, pensativo e tristonho, demonstrando o “antes” da
utilização do fortificante. É interessante destacar que Lima Barreto escreveu para vários
jornais e revistas, porém a que recebeu o maior número de seus trabalhos foi a revista Careta,
pois nessa, a partir de 1919, tinha “[...] salário fixo, como redator efetivo, assinando crônicas
com o seu próprio nome ou com vários pseudônimos” (BARBOSA, 1975, p. 278). Outra
64
imagem a se tornar comum, nas revistas francesas era a imagem de Leon Tolstói camponês,
descalço e com alfanje na mão, periódicos de todas as orientações – simbolistas, anarquistas,
socialistas e mundanos – traziam artigos de e sobre Leon Tolstói, que tratavam das mais
variadas questões. A popularidade do escritor atingiu um alto índice e, em função disso, sua
imagem foi registrada por máquinas fotográficas e filmadoras Kodak especialmente doadas
pela companhia, enquanto a voz do escritor foi gravada por um fonógrafo que ganhara de
presente do próprio Thomas Edson.
Conforme Gomide (2004), no que se refere à recepção específica nos meios
libertários e socialistas, a circulação de obras russas via periódicos, ainda que se utilizasse do
intermediário francês, utilizava, mais que outros intelectuais, as traduções espanholas e
portuguesas. A recepção de Leon Tolstói e dos russos que estamos rastreando está
diretamente ligada à recepção dos mesmos por Lima Barreto, por isso, é imprescindível que
recorramos a este para exemplificarmos a afirmação feita acima. Encontra-se registrado na
correspondência de Lima Barreto a Jaime Adour da Câmara, de 27-7-1919:
Hei de te mandar as melhores publicações (as baratas, bem entendido) que puder
sobre coisas sociais. Há brochurazitas muito boas e baratas em espanhol, português e
francês, de Kropótkine, de Hamon, de Reclus, etc. Julgo indispensável ler o
“maluco” do Comte e o Spencer, Introdução à Ciência Social e A Moral entre os
Diferentes Povos. (BARRETO, 1956, v. XVII, p. 171).
A propósito, as publicações de literatura russa em livro são em número ainda menor
do que em periódicos (GOMIDE, 2004, p. 170). Entre 1887 e a década de 1920, o número de
publicações é bastante irrisório, o que não reflete a repercussão cultural da qual o romance
russo era sujeito. Como se vê, a mediação francesa é inevitável na recepção do romance russo,
quase não existem estudos críticos e traduções em português, porque os intelectuais buscavam
as fontes francesas.
No caso de Lima Barreto, o escritor leu o “Le roman russe”, em francês, visto que
essa obra foi publicada, no Brasil, somente em 1950, com a tradução de Brito Broca. Ao
contrário do romance A Sonata a Kreutzer, de Leon Tolstói, que foi publicado sem demora
pelas editoras Garnier (sem data, provavelmente, em 1895), J. Ribeiro dos Santos (1906) e
Empresa Romântica Editora (1909). A Casa Garnier publicou, no início do século, outro
volume de literatura russa, fora da linha dos romancistas em voga. Foi A morte dos deuses, de
Dmitri Mierejkóvski. Autor praticamente desconhecido do público brasileiro, Mierejkóvski,
escreveu “Das causas da decadência da literatura russa” e um volume de crítica, comparando
Dostoiévski e Leon Tolstói, obra influente nas décadas seguintes.
65
No que se refere ao desconhecimento de Dmitri Mierejkóvski, pelo público
brasileiro, realmente é bastante considerável, visto que José Veríssimo, crítico literário e leitor
exigente, declara, em 1901, no livro “Homens e Coisas estrangeiras”, que não o conhecia:
“Este nome não dirá, talvez, grande coisa ao leitor, como não disse a mim; não o conhecia
sequer de referência” (VERÍSSIMO, 2003, p. 271). Embora José Veríssimo afirmasse, em
1901, não conhecer Mierejkóvski, Lima Barreto faz referência ao escritor em carta a Antonio
Noronha Santos, datada de 5 de setembro de 1917: “Manda-me o segundo volume do
Herculano e o meu Mereikóvski” (BARRETO, 1956, v. XVI, p. 108). Essa referência, apesar
do longo período que a separa da de José Veríssimo, demonstra que Lima Barreto teve
contato com quase tudo o que era publicado dos escritores russos.
Fora da corrente anarquista, que disponibilizava obras de Górki e Kropótkin, os
livros de Mierejkóvski e Leon Tolstói foram, nesse período, os dois únicos lançamentos
simultâneos no Brasil e na Rússia em forma de livro (GOMIDE, 2004, p. 173). É provável
que essas edições de Mierejkóvski e Leon Tolstói receberam maior atenção dos críticos
porque tinham o timbre da Garnier, pois o mesmo não ocorreu com as outras: Americana,
Empresa Romântica, Castilho, Coleção “Chic”. Sem dúvida, a Casa Garnier era a grande
editora e publicava apenas os autores consagrados. Por isso, foi severamente criticada por
Lima Barreto: “Velho rico, ignorante das nossas coisas, certamente já mentecapto, o seu
critério nas publicações era o dos pistolões recebidos e do nome que o autor tinha no mundo”
(BARRETO, 1956, v. XIII, p. 281).
18
Ampliando o quadro da recepção e tradução de Leon Tolstói, no Brasil, encontra-se,
ao lado dos escritores já citados, Boris Schnaiderman, autor com vários estudos sobre
literatura russa. Sobre Leon Tolstói, Schnaiderman escreveu “Leão Tolstói: antiarte e
rebeldia” (1983), pela Editora Brasiliense. Tratou da história e assimilação da literatura russa,
no Brasil, sendo que a maioria de seus artigos encontra-se no volume Projeções: Brasil,
Rússia, Itália (1978). Dentre as traduções efetuadas por B.Schnaiderman, estão as seguintes
obras de Leon Tolstói: Três Novelas (“Felicidade Conjugal”, “A Morte de Ivan Ilitch” e
“Sonata a Kreutzer”, Boa Leitura, São Paulo, 1962, republicada pelas Edições de Ouro e pelo
Círculo do Livro), e Khadji-Murat, no livro Novelas Russas (Cultrix, São Paulo, 1963).
Buscando dar maior completude à recepção do romance russo, no Brasil, cito Leonid
Shur, estudioso que também tratou das relações culturais entre a Rússia e a América Latina,
nos séculos XVIII e XIX. Shur dedicou uma atenção particular à ocorrência de temas
18
Primeiramente, o artigo “O Garnier morreu”, de Lima Barreto, saiu na Gazeta da Tarde, Rio de Janeiro, 7-8-
1911. Ver Impressões de Leitura, p. 281 e 282.
66
brasileiros na imprensa e na literatura russa da época, em sua obra Relações literárias e
culturais entre Rússia e Brasil, 1986, livro que, conforme o próprio autor, originou-se de
pesquisas elaboradas e publicadas em 1963 e 1966. Conforme Shur, por volta de 1955,
quando teve início o estudo das relações literárias russo-brasileiras, prevalecia a ideia de que,
nos séculos XVIII e XIX, a literatura brasileira era desconhecida para os leitores russos e que
as relações literárias entre os dois países ter-se-iam estabelecido há, relativamente, pouco
tempo, ou seja, no século XX. Entre as pesquisas que resultaram nessa obra, apenas um artigo
do autor, “Origem das relações literárias russo-brasileiras”, foi publicado, em tradução para o
português, no Rio de Janeiro, em 1963.
Quanto às publicações dos romancistas russos e, particularmente, da obra de Leon
Tolstói, no Brasil, a Editora Nova Aguilar tem desempenhado um papel importante na
divulgação da obra completa do autor pela seriedade do trabalho. Constam, até o momento,
quatro edições: a primeira edição, em 1961; a segunda, em 1976; a terceira, em 1993 e a
quarta, em 2004. Outras editoras se voltaram também para a importância dos escritores
russos, como a L&PM e a Companhia das Letras; a primeira editou, em 2007, o romance
Guerra e Paz de Leon Tolstói, 4 volumes em caixa especial; a segunda editou o mesmo
romance, o qual passou por uma adaptação para atender ao público infanto-juvenil, trabalho
da escritora Silvana Salerno. Até há pouco tempo, no Brasil, as traduções dos autores russos
apareciam via outros idiomas, principalmente o francês. Ressalta-se que foi o Leon Tolstói
traduzido via língua francesa ao qual Lima Barreto e todos os outros escritores brasileiros
tiveram acesso. Segundo os especialistas em tradução, elas prejudicaram o valor literário das
obras russas, pois ocorreu uma nivelação de todos os escritores. Além disso, o humor
sarcástico dos moscovitas se perdeu e não se notam as nuances de linguagem entre
personagens de diferentes extratos sociais. Gomide aponta, resumidamente, as principais
alterações feitas pelas traduções: “quebra” e redução de parágrafos; nivelamento da
linguagem; adições de texto, às vezes capítulos inteiros; mudança de léxico para termos mais
suaves; manutenção de algumas expressões “típicas” em russo para dar cor local (GOMIDE,
2004, p. 116). Agora, é importante ressaltar que as traduções diretas do russo surgem a passos
lentos.
Ultimamente, encontram-se, no mercado, algumas traduções diretas, principalmente
de Leon Tolstói, Dostoiévski e Tchekhov, o que tem possibilitado um renascimento da
literatura russa no Brasil. De um lado, entre os principais tradutores diretamente do russo,
estão B. Schnaiderman, o maior divulgador da cultura russa no Brasil; Aurora F. Bernardini,
que se dedica às obras de Isaac Babel (1894-1941); Paulo Bezerra e Tatiana Belinky. De
67
outro, encontram-se as editoras que apóiam essas publicações; entre as que se destacam, estão
a Cosac e Naify e a editora 34.
Pelo que consta na relação da biblioteca Limana, Lima Barreto teve acesso aos
escritores russos através de traduções indiretas, principalmente por intermédio do idioma
francês, com todos os altos e baixos que se apresentavam nessas traduções, e se mostrou leitor
assíduo dos russos por toda vida. É possível dizer que a simpatia de Lima Barreto pelos russos
se deve, em primeiro lugar, ao fato de o escritor ser um leitor angustiado, irrequieto, sempre
em busca de algo original para sua criação literária. Na correspondência do escritor ao amigo
A. Noronha Santos, de 19 de janeiro de 1911, Lima explica sua relação com a leitura:
Quando estou muito aborrecido, mando meu irmão comprar livros e devoro-os.
Comprei cinco volumes do Maupassant, Taine, Yvette e outros [...]; Comprei
também quatro volumes de história do Albert Malet, compêndios de liceu [...].
Nestes dias em que tenho me metido em casa, aumentei minha biblioteca de cerca de
trinta volumes. (BARRETO, 1956, v. VXI, p. 93).
Em segundo lugar, essa simpatia deve-se à leitura efetuada da obra “Le Roman
russe”, de Melchior de Vogué, que é uma história poética da literatura russa. Uma obra que,
mais do que todas as outras do período, cumpriu o papel de não só divulgar a literatura russa
como, também, de angariar leitores e adeptos ao realismo russo. Lima Barreto foi adepto
declarado da literatura russa e sua recepção dos russos, assim como a da maioria dos
estudiosos e críticos literários do Brasil, no fim do século XIX, está perpassada pela leitura do
Le Roman russe” de Vogué, para quem “Turguenef tem a graça e a poesia de Corot; Tolstoi,
a grandeza simples de Rousseau; Dostoiewski, a aspereza trágica de Millet” (VOGUÉ, 1950,
p. 181). De forma a sintetizar ainda mais, Leon Tolstói era um “niilista e místico” e
Dostoiévski encampava a “religião do sofrimento”, mas, acima de tudo, possuíam uma
característica marcante dos anos quarenta: a “simpatia humana”.
A obra “O romance russo” foi considerada pela crítica como uma das principais do
fim do século XIX e Brito Broca, no prefácio da edição brasileira de 1950, resume os
objetivos do autor:
Opor à secura do realismo e do naturalismo francês a amplitude artística e humana
do realismo russo; atrair as vistas do público francês para uma literatura estrangeira,
oferecendo-lhe novos padrões e propondo-lhe, por meio de uma inteligente
assimilação, um movimento renovador; reagir, pela exaltação do espiritualismo
eslavo, contra o materialismo de que se imbuíram aquelas escolas na França.
(VOGUÉ, 1950, p. 9).
68
Essa mesma expectativa de ânsia de renovação quer seja sob o ponto de vista
literário, quer sob o aspecto filosófico, que se encontra na obra de Vogué, encontra-se também
na produção literária de Lima Barreto. O escritor, ao se opor ao tipo de literatura reinante na
virada do século XIX, colocava-se contrário à “arte pela arte”, então praticada. Em 1911, em
uma de suas crônicas diárias para o jornal, aconselha algum iniciante na literatura,
demonstrando o ideal literário almejado e um possível método para o fazer literário: “Escreve
muito, a todo o momento, narre as suas emoções, os seus pensamentos, descubra a alma dos
outros, tente ver as cousas, o ar, as árvores e o mar, de modo pessoal, procure o invisível no
visível, aproxime tudo em um só pensamento [...]” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 265).
Nesse conselho, encontra-se muito da renovação literária apontada por M. de Vogué
que os escritores russos, principalmente, Leon Tolstói, Turguênief e Dostoiévski, passaram a
representar para o mundo, a partir de 1880. Brito Broca sintetiza sua visão dos escritores
russos da seguinte forma: Turguênief “dá-nos um realismo equilibrado, todo feito de poesia e
de ternura humana”; Dostoiévski “isto é um mundo novo” e Leon Tolstói “uma arte superior,
harmonizando o tumulto instintivo da alma eslava com o espírito ocidental” (BROCA, 1950,
p. 9-10). Esses foram os mestres que realizaram uma verdadeira revolução no romance.
Leitor e adepto da literatura russa, Lima Barreto, mais do que ninguém,
compreendeu a importância que o romance russo passou a representar, deixando o lugar
periférico que antes ocupava no quadro literário, para uma posição central. Tal afirmativa se
confirma em uma crônica do escritor, de 26 de outubro de 1920, que leva o título “Estudos”,
mesmo título da obra de Albertina Berta, da qual Lima Barreto faz uma avaliação.
O seu estudo sobre a “Evolução do romance” é magistral, embora lhe faltem
referências ao romance russo, como já foi notado. Creio que a autora do Estudos não
desconhece a influência dele sobre a novela francesa dos anos próximos. Até em
Maupassant é bem sensível a influência de Tourguêneff. (BARRETO, 1956, v. XIII,
p. 121).
O escritor Lima Barreto cobra da autora “referências ao romance russo”, ressaltando
“a influência dele sobre a novela francesa dos anos próximos”. Nota-se que o romance russo,
para o escritor, ocupa lugar de destaque em relação ao romance francês, isto é, o romance
russo deixa de ser influenciado para influenciar a “novela francesa dos anos próximos”. O que
nos remete à ideia polêmica, apresentada por M. de Vogué, no início do O romance russo, de
que, com “os romancistas russos, a Rússia, pela primeira vez, antecipou o movimento do
Ocidente, ao invés de segui-lo” (VOGUÉ, 1950, p. 18). Creio que polêmica para aquele
momento, pois, agora, na época em que vivemos, todo o cânone foi posto em cheque.
69
Demorou, mas chegou a vez de os russos traçarem as diretrizes para o romance. Gógol,
Turguênief, Dostoiéwski e Leon Tolstói, esses foram os romancistas russos que realizaram a
revolução no romance. Porém, não foi tão simples a aceitação do modelo russo pelos
franceses e europeus, uma vez que a Rússia era um país sem tradição literária. Entretanto,
tudo que os franceses estavam sentindo falta, no final do século XIX, os russos tinham em
abundância: um realismo equilibrado, todo feito de poesia e de ternura humana (VOGUÉ,
1950, p. 9).
Lima Barreto capta o novo momento da literatura russa, uma aparição instantânea e
poderosa, nas palavras de Vogué: “[...] sua chegada [da literatura russa] ao palco literário foi
súbita e imprevista” (VOGUÉ, 1950, p. 37), principalmente se levado em conta que, na
opinião dos franceses, se tratava de uma “Nação deteriorada antes de amadurecer” (VOGUÉ,
1950, p. 38). Avaliando a posição de destaque, conquistada pela literatura russa, Lima Barreto
a toma como modelo, visando fazer o mesmo com a literatura brasileira. Na tentativa de
atingir seus objetivos, Lima Barreto enfatiza a importância de uma literatura militante, voltada
para os “humilhados e ofendidos” e vai contra os “mandarins da literatura”, que praticavam a
literatura como “sorriso da sociedade”.
Os romancistas russos com os quais Lima Barreto demonstra ter alguma afinidade,
principalmente Leon Tolstói, são representantes da Escola Natural russa, uma corrente de
prosa narrativa das décadas de 1840 e 1850. No dizer de M. de Vogué, a Arte Nova “[...];
exprime a vitória da coletividade sobre o indivíduo, da multidão sobre o herói, do relativo
sobre o absoluto. Chamaram-na realista, naturalista; bastaria, para defini-la, chamá-la
democrática” (VOGUÉ, 1950, p. 20). Aqui se encontra a origem das afinidades do escritor
com os romancistas russos. Compreende-se que “democrática” deriva de “Democracia”, do
grego demokratia, que é uma forma de governo em que a soberania é exercida pelo povo. A
julgar pelo contexto histórico da Rússia, de perseguições políticas, de censura, de servidão, de
exílio na Sibéria, de miséria do povo, nada mais original que os intelectuais e escritores
conscientes da problemática social russa empreendessem uma revolução através da literatura.
Momento no qual se voltam para o povo quer seja para educá-lo, observá-lo ou para buscar
uma sabedoria popular através de suas histórias, lendas, contos, enfim, do folclore.
Por isso, os intelectuais e escritores que se propuseram e tiveram coragem para ir
contra o poder estabelecido dos Czares foram classificados de revolucionários e anarquistas.
Da mesma forma, Lima Barreto analisava a situação política, econômica e social do Brasil,
recém instaurada a República e proclamada a libertação dos escravos. Essa situação, de
alguma forma, refletia o contexto social russo, para o qual Lima Barreto se voltava em busca
70
de uma solução para o caso dos escravos recém libertos e na maioria negros que foram
abandonados ao relento, sem trabalho, comida, habitação e sem saúde, um verdadeiro caos
social. Daí o fato de encontrarmos na literatura de Lima Barreto alguns pontos que o
aproximam à Arte Nova, que M. de Vogué chamou de “democrática” e, também, a Leon
Tolstói. Principalmente no tocante às principais características da Arte Nova, apontadas por
M. de Vogué: “[...]; exprime a vitória da coletividade sobre o indivíduo, da multidão sobre o
herói, do relativo sobre o absoluto” (VOGUÉ, 1950, p. 19).
Essas características estão presentes em toda a obra de Leon Tolstói, mais
fortemente no romance Guerra e Paz, quando o autor apresenta sua teoria da história.
Encontram-se também em muitos momentos na obra barretiana: Lima Barreto utiliza-se de
seus personagens para expor suas convicções e posturas ideológicas. Destaco um trecho do
romance Vida e morte de M. J. de Gonzaga de Sá, no qual, através de Gonzaga de Sá, Lima
Barreto expõe sua teoria filosófica, isto é, a ideia de que só o acaso decide sobre a sorte das
coisas: “[...] que o Acaso, mais do que outro qualquer Deus, é capaz de perturbar
imprevistamente os mais sábios planos que tenhamos traçado e zombar de nossa ciência e da
nossa vontade. E o Acaso não tem predileções [...]” (BARRETO, 2001, p. 568). Assim, Leon
Tolstói, em Guerra e Paz, desmitifica o herói, colocando em evidência os mais simples
soldados, ao invés das mais altas patentes, como os verdadeiros responsáveis pelo desenrolar
de uma guerra e, ainda em Guerra e Paz, coloca no centro o anti-herói Napoleão.
Procedimento similar ao de Leon Tolstói está presente em Lima Barreto, em Triste Fim de
Policarpo Quaresma, no qual também desmitifica não só seu herói Policarpo Quaresma,
como, ainda, o presidente Floriano Peixoto, tirando-lhes as características de super-homem,
próprias de um herói e que o colocam acima do bem e do mal. O seu herói é, agora, de carne e
osso, um simples mortal, sujeito a todo tipo de intempéries, e dessa aparente fraqueza brota
sua força.
Destaca-se outro trecho do romance Vida e morte de M. J. de Gonzaga de Sá, no
qual Lima Barreto deixa clara a “vitória da coletividade sobre o indivíduo”. O seguinte trecho
pode parecer contraditório, pois Lima, ao enaltecer o indivíduo: “Para mim só há indivíduos
[...]” (2001, p.574), despe-o de todas as convenções sociais, tornando-o um só e ao mesmo
tempo todo o mundo, em um sentido amplo de coletividade. O fato de que ele nivela os
indivíduos e os iguala em todos os graus de distinção, manifesta-se na voz de Gonzaga de Sá:
“Sabes bem que não tenho superstição de raça, de cor, de sangue, de casta, de coisa alguma.
Para mim só há indivíduos e eu, mais do que ninguém [...] podia tê-las” (BARRETO, 2001,
p. 574). E mais: “Os indivíduos me enternecem; isto é, o ente isolado a sofrer; e é só! Essas
71
criações abstratas, classes, povos, raças, não me tocam [...] Se efetivamente não existem!?”
(BARRETO, 2001, p. 583). Nesse sentido, a literatura militante de Lima Barreto é também
democrática, uma vez que se volta para o povo e se coloca a serviço das questões sociais: “Eu
sou Sá, sou o Rio de Janeiro, com seus tamoios, seus negros, seus mulatos, seus cafuzos e
seus “galegos” também [...]” (BARRETO, 2001, p. 575).
Como se vê, algumas características da “Escola naturalista, realista” ou
“democrática” dos romancistas russos estão presentes na literatura barretiana. Que Lima leu o
livro de M. de Vogué, “Le Roman russe”, não nos resta dúvida, nós o constatamos através da
relação de sua biblioteca “A Limana”, assim designada pelo escritor e em referência feita no
“Diário íntimo”, em 05 de janeiro de 1908, ao registrar o encontro com Cecília, uma
prostituta:
Quando saio de sua casa, depois de sua ingenuidade, depois de sentir que a
prostituição lhe roçou de leve, posso dizer com M. de Vogué, a respeito da Casa dos
Mortos, de Dostoiévski: fico contente em ver que a nossa humanidade é melhor.
Sinto por ela que há um cristal de pureza inalterável como núcleo eterno da pessoa
humana, e que raramente ele se desagrega, mesmo sob o império das mais baixas
degradações por que possamos passar. (BARRETO, 1956, v. XIV, p. 127).
Como se vê, Lima faz referência à obra Casa dos Mortos, de Dostoiévski,
perpassada pela recepção de Vogué. Logo, Lima Barreto teve acesso ao Leon Tolstói, “um
fenômeno espontâneo”, propagador do “niilismo” e “místico”, divulgado por M. de Vogué, do
qual era simpatizante declarado. É possível dizer que o fato de o escritor Lima Barreto estar
envolvido com os ideais revolucionários presentes nos romancistas russos pode ter
influenciado sua decisão ao optar com qual romance estrearia, visto que, em 1909, o romance
Vida e Morte de M. J. de Gonzaga de Sá já estava praticamente concluído quando o escritor,
Lima Barreto, optou por estrear nas letras com Recordações do Escrivão Isaías Caminha. É
através de seu personagem Gonzaga de Sá que o escritor se manifesta, ao criticar a literatura
que se fazia no Brasil e contra a qual se levantou:
A nossa emotividade literária só se interessa pelos populares do sertão,
unicamente porque são pitorescos e talvez não se possa verificar a verdade de suas
criações. No mais, é uma continuação do exame de português, uma retórica mais
difícil a se desenvolver por este tema sempre o mesmo. (BARRETO, 2001, p. 615).
A crítica feita demonstra o poder de análise e observação sob medida do escritor
sobre a literatura reinante: “continuação do exame de português” e “retórica mais difícil”.
Além de demonstrar também a negação de Lima Barreto a esse tipo de literatura. Porém, o
mais interessante é destacar que, ao fazer essa análise, Lima Barreto deixa transparecer seu
72
conhecimento e preferência pelos escritores russos e recorre como parâmetro somente a um
escritor inglês e dois russos, conforme se verifica na citação seguinte:
Quando tu verás, na tua terra um Dostoiévski, uma George Eliot, um Tólstoi
gigantes destes, em que a força de visão, o ilimitado da criação, não cedem o passo à
simpatia pelos humildes, pelos humilhados, pela dor daquelas gentes donde às vezes
não vieram – quando? (BARRETO, 2001, p. 615).
Embora o Gonzaga de Sá só tenha sido publicado em 1918, o que pode ter
propiciado ao escritor a reescrita de sua obra, no todo ou em parte, tudo leva a crer que, já na
primeira versão, em 1909, essa análise e comparação estivessem presentes. “Força de visão”,
“o ilimitado da criação”, “simpatia pelos humildes, pelos humilhados” são características
destacadas por Lima Barreto que se sobressaem nos escritores russos e preponderantes na
leitura do “Le Roman russe” de M. de Vogué.
Como vimos, a recepção primeira de Leon Tolstói deu-se através de suas obras
doutrinárias, enfatizou-se, assim, o Leon Tolstói profeta, pensador e filósofo e, depois, o
romancista. Nota-se que, inicialmente, isto é, logo que apareceram as traduções das obras de
Leon Tolstói, não ocorreu essa preocupação em discernir Leon Tolstói profeta do Leon
Tolstói romancista. Ambos foram muito bem recebidos entre o público leitor e a crítica
literária ainda não atentou no quanto de pensador e de artista havia em Leon Tolstói.
Essa tarefa coube, em parte, a José Veríssimo, ensaísta, historiador da literatura e
crítico literário, bastante atuante em seu tempo, enquanto escritor “se revela um leitor da
literatura universal” (BARBOSA apud VERÍSSIMO, 2003, p. 12) e enquanto crítico seu
trabalho é “uma importante contribuição para o próprio estudo da época brasileira em que se
inscrevem, termômetros sensíveis de aspirações e circulações intelectuais” (BARBOSA apud
VERÍSSIMO, 2003, p. 12). Veríssimo se manifestou sobre Leon Tolstói em artigos
publicados em “Homens e coisas estrangeiras”, antes, em três volumes e reeditados pela
Topbooks, em 2003, em volume único. Os artigos são: Tolstoi (1900), Tolstoi e sua doutrina
(1901) e Tolstoi contra Shakespeare (1907). De início, esses artigos foram publicados no
jornal e, quase sempre, sofrem alguma alteração para a edição em livro. No caso dos textos
sobre Leon Tolstói, o primeiro ensaio “Tolstoi”, ocorreu uma junção de três artigos:
“Tolstoi”, de 15 de janeiro de 1900, “O último romance de Tolstói”, de 22 de janeiro e “Ainda
a Ressurreição de Tolstói”, de 12 de março, do mesmo ano, e que correspondem às três partes
do ensaio, tal como está publicado no volume.
Em seu primeiro texto, Tolstoi (1900), José Veríssimo, depois de comentar as
origens aristocráticas do escritor russo, vê, em Leon Tolstói, “um grande espírito e um grande
73
coração” (VERÍSSIMO, 2003, p. 161). Ao se referir à literatura moderna, coloca-a em
oposição à literatura de Leon Tolstói. Enquanto, na primeira, predomina o diletantismo, Leon
Tolstói faz dela “um órgão moral da vida humana”, “uma grande coisa”, “[...] um órgão vital
da humanidade, que transporta ao domínio do sentimento as concepções da razão, e dá-lhe por
fim superior hoje ‘realizar a união fraternal dos homens’” (VERÍSSIMO, 2003, p. 162). Daí
sua definição da doutrina de Leon Tolstói como um “anarquismo evangélico”, além de
ressaltar que “[...] sua obra de apostolado não matou nele as qualidades eminentes de artista,
antes a aumentou e engrandeceu” (VERÍSSIMO, 2003, p. 166). Veríssimo, ao abordar o
romance “Ressurreição”, ao qual teve acesso através de um ensaio de Teodor Wyzewa, no
Temps, ressalta que, na terceira e última parte do romance, “[...] o romancista sacrificou o
poeta, o artista, ao propagandista, ao doutrinário” (VERÍSSIMO, 2003, p. 174). Mas afirma
que o que vale é que em Leon Tolstói “[...] há uma tal opulência de verdade e de real e sincera
emoção que ele pode gastá-las em desenvolvimentos dispensáveis sem desperdiçá-las”
(VERÍSSIMO, 2003, p. 174). Nota-se que Veríssimo refere-se, principalmente, ao Leon
Tolstói doutrinário, uma vez que comenta apenas as obras recentemente publicadas por Leon
Tolstói, nas quais o que mais ressaltava era o aspecto doutrinário, tal como em
“Ressurreição”.
No segundo texto, Tolstoi e sua doutrina (1901), já pelo título se percebe o enfoque
dado ao ensaio: o aspecto doutrinário de Leon Tolstói. De início, Veríssimo refere-se ao fato
de os movimentos revolucionários russos colocarem em evidência o conde Leon Tolstói e
enfatiza que Leon Tolstói foi excomungado pela igreja oficial russa e ameaçado pelo governo.
Buscando a perfeita compreensão do conde, procura contextualizá-lo em seu meio e em seu
momento.
Quanto à literatura russa, trata-a por “eminentemente sincera”; quanto a Leon
Tolstói, trata-o como “um profeta em Israel”, “o apóstolo” que conserva “de sua antiga
grandeza” somente “a sua pena de escritor, para com ela combater pela sua nova fé”
(VERÍSSIMO, 2003, p. 326). Um exemplo sublime de “abnegação pessoal e de completo
devotamento a uma causa desinteressada de que se honre em todos os tempos a humanidade”
(p. 326) e que pode ser definido com exatidão de “anarquista cristão”. Resume a doutrina de
Leon Tolstói “em uma moral tirada diretamente dos Evangelhos” (p. 329) e ressalta que a
reforma de Leon Tolstói não era nem de natureza econômica, nem de natureza política, mas
exclusivamente de natureza moral e religiosa. Resume ainda o que era o mal para Leon
Tolstói: “[...] as religiões, o Estado, a organização social atual; é este mundo organizado pela
74
violência, vivendo da violência; é o capitalismo, é a propriedade, é a luta que, ao seu parecer,
nós mesmos criamos nele” (VERÍSSIMO, 2003, p. 330).
Refere-se também à “Escravidão Contemporânea” como um dos mais fortes escritos
da propaganda tolstoísta, no qual Leon Tolstói verifica a existência de uma escravidão na
sociedade ocidental contemporânea. Veríssimo questiona se havia alguma diferença entre um
escravo, da antiguidade ou de hoje, ou, ao menos, de um servo russo de antes da abolição dos
servos, apenas quarenta anos antes, e um trabalhador manual, um carregador dos caminhos de
ferro da Rússia. Bem se vê que Veríssimo logo fez associações entre a situação da escravidão
no Brasil e na Rússia. Quanto à doutrina de Leon Tolstói, Veríssimo não se preocupou em
discutir “o merecimento teórico” da mesma, bastando, para legitimá-la, “sua nobre e alta
inspiração humana”, e encerra seu segundo ensaio afirmando sobre a doutrina de Leon
Tolstói:
A sua elevação moral é sublime – e por isso mesmo irrealizável; e o homem que
a apostoliza, com a ciência de um sábio, a arte de um grande escritor e a forte
convicção de um profeta, é seguramente, apesar de excomungado da Igreja e do
Estado, um dos mais nobres, dos mais augustos, dos mais veneráveis que a
humanidade jamais produziu. (VERÍSSIMO, 2003, p. 334).
Como se vê, na citação acima, Veríssimo põe em pé de igualdade tanto o “homem
que a apostoliza” quanto “a arte de um grande escritor”, isto é, o Leon Tolstói doutrinário e o
Leon Tolstói romancista.
Já em seu terceiro e último ensaio, Tolstoi contra Shakespeare, de 1907, Veríssimo
aponta para o fato de que as críticas de Leon Tolstói direcionadas a Shakespeare não foram as
únicas e, muito menos, inéditas. Para isso, cita o escritor inglês, Ernest Crosby, cujo ensaio
Shakespeare e a classe operária contraria a opinião do poeta socialista e republicano
Browning, para quem Shakespeare era “dos nossos”. Para Crosby, Leon Tolstói “[...] não tem
o gosto dos tempos modernos, com as suas tendências crescentes para a democracia, que ele
desprezava as massas e nenhuma simpatia tinha pela idéia de lhes aumentar a influência ou de
lhes melhorar a situação” (VERÍSSIMO, 2003, p. 541). H. Taine se junta a Crosby e a Leon
Tolstói nas críticas feitas à forma e maneira shakespearianas, embora sua opinião sobre o
poeta seja contrária à de Leon Tolstói.
O artigo de Crosby tinha tudo para passar despercebido, uma vez que Shakespeare
era uma figura bastante comum, na Inglaterra, e cultuada por todos os ingleses; enquanto que
o de Leon Tolstói, “[...] pela eminência de seu autor na literatura e no pensamento moderno,
causou muito maior impressão e teve muito mais repercussão”(VERÍSSIMO, 2003, p. 542).
75
A junção do artigo de Crosby, o de Leon Tolstói e longos trechos do Que é arte?, ambos
traduzidos por J. W. Bienstock resultou em um volume publicado através de um editor
francês
19
.
Para Veríssimo, a estética de Leon Tolstói deriva de seu sentimento religioso e de
seu pensamento filosófico e “é a única que tem coerência, unidade, lógica”, desde Hegel. Está
exposta no Que é arte? e Veríssimo diz aceitar a definição de arte de Leon Tolstói, visto
“[...] que nenhuma ainda foi dada mais clara, mais precisa, mais completa e mais exata”
(VERÍSSIMO, 2003, p. 543). Porém, Veríssimo não concorda em um ponto, quando Leon
Tolstói resume todos os sentimentos transmitidos pela arte em sentimento religioso: “Onde a
meu ver enfraquece a concepção tolstoiana é no querer que a arte não tenha outras emoções
que as da religião qual ele concebeu e definiu em diversos livros, especialmente nos seus
Evangelhos” (p. 544). Quanto ao parecer de Leon Tolstói referente a Shakespeare, acredita
que tenha resultado de uma análise fecunda e séria. Além disso, com relação às inúmeras
censuras feitas por Leon Tolstói, diz que “[...] qualquer de nós pode por si mesmo verificá-
las” (p. 547).
No entanto, Veríssimo não quis assumir a difícil decisão de ir contra o cânone, pois
Shakespeare é o próprio cânone segundo Harold Bloom. Por isso, recorreu ao crítico francês
James Darmesteter, o qual, após apontar muitas contradições, incoerências e absurdos em
MacBeth, conclui que Shakespeare teria lhe perguntado, “[...] com o sorriso do gênio: – Mas
que tem isso?” (VERÍSSIMO, 2003, p. 548). E utiliza-se desse desfecho para rebater as
críticas de Leon Tolstói a Shakespeare: “Que tem isso?”. Mas não sem antes reafirmar o gênio
e o caráter de Leon Tolstói.
Ao retomarmos os ensaios de Veríssimo, embora de forma resumida, buscou-se
demonstrar de que forma Leon Tolstói foi recebido no contexto brasileiro. Os ensaios escritos
por Veríssimo deixam transparecer que a leitura de Leon Tolstói foi objeto de muitas
reflexões, aprofundadas a cada ensaio, pois entre o primeiro e o último transcorreu um
período de sete anos. Vê-se que Veríssimo, crítico literário, atuante e respeitado por seus
pares, principalmente por Lima Barreto, que o tinha em alta conta, foi sem dúvida
responsável, entre outros, pelo processo de divulgação da obra de Leon Tolstói no Brasil.
Constata-se, também, que a avaliação crítica de Veríssimo consolida e reafirma as ideias de
Melchior de Vogué, não as contrariando em nenhum momento.
19
O volume ao qual José Veríssimo se refere é Shakespeare, par Le Comte L. N. Tolstoi, 2e. édition, Paris,
Calmann-Lévy (1907).
76
Essa postura crítica foi a que permaneceu durante um bom tempo entre os críticos
brasileiros, talvez em função da tradução francesa a qual todos tiveram acesso. Havia
unanimidade em declarar que Leon Tolstói tinha um “grande espírito” e um “grande coração”
(VERÍSSIMO, 2003, p. 161). Em respaldo a essa afirmativa, é importante observar que, no
periódico, Rua do Ouvidor, apareceram os seguintes textos de Leon Tolstói: “O lobo e o
moujik”, 17 de maio de 1899; “O pecado e o castigo”, 13 de janeiro de 1900; “A origem do
mal”, 7 de dezembro de 1901 e “O pecador arrependido”, de 1 de novembro de 1902
(GOMIDE, 2004, p. 571-578). Esses textos veiculam o lado doutrinário de Leon Tolstói:
apresentam um fundo moralizante e religioso, além de estarem imbuídos de uma função
educadora.
É importante ressaltar que o crítico Araripe Júnior
20
também dedicou vários artigos
aos escritores russos, em sua obra, encontram-se várias referências à literatura russa e,
especialmente, a Dostoiévski, no período de 1887 a 1911, ano de sua morte. Quanto às ideias
literárias e a atividade crítica de Araripe Júnior foram reforçadas por Hippolyte Taine, o
evolucionismo de Spencer e o cientificismo de Émile Hennequin (CAIRO, 2001, p. 19). A
influência de Taine, com sua famosa tríade – raça, meio, momento – é bastante forte em sua
obra. Opta por enfatizar o meio e com isso cria “o princípio da obnubilação brasílica” que
conforme Cairo “entende-se a transformação por que passavam os europeus ao atravessarem o
oceano Atlântico e a sua conseqüente adaptação ao meio físico e ao ambiente primitivo”
(CAIRO, 2001, p. 20). Observa-se que a lei da obnubilação brasílica se aplica também no
nível das ideias, elas, ao serem transportadas, adaptaram-se ao meio ambiente, adquirindo
certa originalidade, o que foi chamado por Araripe Júnior de estilo tropical.
Conforme Gomide, apesar de Araripe Júnior ter comungado com os juízos literários
emitidos por M. de Vogué, ele produz “algumas dissonâncias em relação aos lugares-comuns
da crítica de fim de século” (GOMIDE, 2004, p. 247). Sua opção por Dostoiévski já denota
uma dessas dissonâncias, uma vez que Vogué deu preferência a Leon Tolstói. O autor de
“Guerra e Paz” aparece poucas vezes na obra crítica de Araripe, sendo no “Movimento
literário do ano de 1893”, p. 91, e no Crepúsculo dos povos, p. 230, o que, conforme Gomide,
são comentários fora da área da literatura. Araripe dá ênfase maior aos artistas escandinavos,
ou, ainda, as “literaturas do norte” (GOMIDE, 2004, p. 248), revelando, assim, como eram
chamados os russos e escandinavos nos principais periódicos internacionais, nos quais via
20
Sobre Araripe Júnior consultar: “A geração de 70 do século XIX e a construção da história da literatura
brasileira” (CAIRO, 2001). Ver ainda do mesmo autor: O salto por cima da própria sombra (1996).
77
amplas possibilidades de crescimento no sistema literário brasileiro devido ao contexto
histórico semelhante.
Araripe Júnior, no artigo “Movimento literário do ano de 1893”, aponta para a
invasão da topografia eslava na poesia e na prosa poética em uma parte dos “novos”
escritores. Entre eles, Cruz e Souza é um dos que mergulha no universo eslavo: “Os perpétuos
gelos do Volga e do Neva para sempre rolam, em densas camadas sobre o teu coração...”
(CRUZ E SOUZA, 1924, v. 2, p. 412). E, também:
No entanto, aqui me apareces, metida em pele de Astrakan, melancólica, pálida,
vaporosa, livorescida quase, como aquelas belezas apagadas e tristes que vem dos
frígidos ares desolados do Norte. / Porque tu acabas de vir da Rússia agora, das
fulgurantes estepes, da ostentação militar do Tzar de ferro, ouvindo os clamores do
dinamite [...] (1924, p. 459).
Demonstrando nesses versos uma tendência niilista dos russos. Cruz e Souza deixa
explícita a influência logo no título do poema: “Estesia eslava”, o que, apesar do título, não
aparece nenhuma referência a topografia eslava, a aproximação se dá por evocar um
sentimento de nostalgia.
Araripe Júnior avalia que a alavancada dos russos e eslavos no campo artístico
ocorreu devido à prática da sinceridade na literatura. Em 1887, quando o crítico teve o
primeiro contato com a literatura russa, não encontrou a “inspiração virgem e forte”, somente
depois, com a explosão das traduções de Leon Tolstói e Dostoiévski, é que alterou sua
avaliação. Apesar de demonstrar admiração pelos escritores russos, enfatiza a força
“sugestivamente dramática” dos escandinavos, é o que se percebe no seu estudo sobre o pós-
naturalismo de 1894:
Se é verdade que a arte, agoniza exausta nos boulevards da antiga Lutécia, não é
menos certo que os povos do norte, Russos e Escandinavos, apresentam-se cheios de
uma inspiração virgem e forte. A nova geração de romancistas brasileiros nada
perderia, se, afastando um pouco de si os livros cansativos dos psicólogos franceses,
meditasse a arte neo-shakesperiana com que os Dostoiewsky, os Tolstoi descobriram
e procuraram pintar a alma dos seus personagens, e a força sugestivamente
dramática com que os Ibsen e os Bjornson conseguiram restituir aos vultos
históricos de sua pátria e à vida real e contemporânea de suas cidades o interesse dos
monumentos eternos. A lição não deixaria de ser proveitosa, pelo menos no que toca
aos escandinavos, aos quais não coube em herança luta tão nefasta como o que
repercutiu principalmente nos livros de Turgueneff – a luta da liberdade contra a
autocracia moscovita; e desanuviada de todo pessimismo, que resulta do medo e da
opressão, essa lição literária teria a vantagem de pôr em contato almas novas, que
ainda não chegaram a conhecer os períodos clássicos das literaturas. Ali, ao menos,
não se encontra uma estética mórbida buscando desculpar a deliqüescência dos
escritores e poetas com a sobrecarga dos aparelhos científicos. (ARARIPE JUNIOR,
1958, s/p).
78
Observa-se que Araripe faz aqui sua avaliação crítica com ênfase no meio, uma vez
que, segundo ele, os russos, por terem enfrentado uma grande repressão na política,
transferem isso para a obra através do pessimismo e niilismo, enquanto que os escandinavos,
por enfrentarem uma situação livre desses problemas, apresentavam alguma vantagem em
relação aos russos. Isso Araripe deixa explícito em seu estudo sobre Ibsen:
[...] com Os espectros, o dramaturgo escandinavo firmara uma literatura realista,
que nada tem de comum com a de Zola, com a de Dumas filho, nem mesmo com a
dos Goncourts.
Essa literatura só tem seu símile, como afirmei em outra parte, na literatura do
torturado Dostoiévski, mas com esta diferença fundamental: o romancista russo
obtivera a lucidez que caracteriza as suas obras, ralado pelo sofrimento constante de
uma enfermidade terrível, ao passo que o autor de Brand pôde meditar o que a
observação lhe oferecia, livremente, e provocar em si mesmo a febre artística,
quando se mostrava a oportunidade de o fazer. (ARARIPE JUNIOR, 1911, p. 145).
Araripe demonstra, ainda, a superioridade de Ibsen, quando o caracteriza com a
junção das qualidades dos principais romancistas russos:
Dois escritores russos existem que dariam fundidos a média do autor dos
Espectros: são Tolstói e Dostoiévski. Como Tolstói, o dramaturgo escandinavo
prega um evangelho novo; revolta-se contra o erro social e se isola para depurar a
sua doutrina numa espécie de cilício estético. Como Dostoiévski, ele penetra nos
arcanos da alma humana e ousa com a luz de seu gênio iluminar os meandros
obscuros e perigosos dessa região, que se recusa obstinadamente ao exame do
filósofo, e onde a curiosidade vulgar não pode se deter sem ser punida ou com a
loucura ou com o pessimismo dos micromaníacos. (ARARIPE JUNIOR, 1911,
p. 101).
Desse modo, enfatiza-se que, mesmo Araripe demonstrando mais simpatia pela
“literatura do norte”, ou, ainda, pelos escandinavos, o crítico contribuiu para que a recepção
dos romancistas russos ocorresse no meio literário brasileiro de forma avassaladora, pois, pelo
visto, seu parâmetro de avaliação era sempre os russos. Como se vê, na ampla repercussão
que teve seu estudo sobre literatura russa: “O sentimento trágico do século XIX”,
primeiramente foi publicado em 1905, no Almanaque Garnier, depois, passou a integrar,
também, o volume Ibsen, em 1911, e a Obra crítica.
Além disso, é importante ressaltar a maneira como se deu a recepção de Leon
Tolstói pelo escritor Euclides da Cunha, contemporâneo a Lima Barreto, uma vez que revela
certa similitude com a avaliação crítica apresentada por M. de Vogué. Euclides da Cunha
manifesta-se sobre a Rússia e os russos, em ensaio escrito em 1904, sob o título de “A missão
da Rússia”. Euclides aponta para o mistério da alma eslava ao afirmar: “A Rússia é bárbara”.
79
De início, chama a atenção para o “[...] abandono da originalidade de pensar e sentir pela
imitação e pela cópia obrigatória” (CUNHA, 1904, p. 104) da Europa, para em seguida “[...] a
transformação: as gentes, constituídas de factores tão estranhos, surgiram revestidas das
melhores conquistas moraes do nosso tempo” (p. 105). Para Euclides, o romance russo “é a
glorificação de um infortúnio(p. 105) e tem lugar garantido para “[...] todos os humildes,
todos os doentes, todos os fracos: o mujik, o criminoso impulsivo, o revolucionário, o
epiléptico incurável, o neurastênico bizarro e louco” (CUNHA, 1904, p. 106).
No entanto, Euclides não analisa nem uma obra, muito menos um escritor, em
particular; aliás, ele se refere sempre de modo generalizado tanto ao romance quanto ao
escritor russo. Quanto ao romance, Euclides já o caracterizou, quanto aos escritores, afirma
que são dominados por “um largo e generoso sentimento de piedade”, deixando para trás o
humanitarismo francês e a filantropia britânica. Demonstra conhecer profundamente o povo
russo, principalmente, o conflito que se coloca entre as duas Rússias: “[...] a nova, dos
pensadores e artistas, e a Rússia tradicional dos czares” (CUNHA, 1904, p. 107).
Vê-se que, no Brasil, a maioria dos escritores se rendeu ao romance russo, e o
escritor Monteiro Lobato não ficou de fora. Em 1909, Lobato escreve a Godofredo Rangel,
comentando as leituras realizadas: Leon Tolstói, Balzac, Stendhal, mas o destaque recai sobre
o escritor russo: “O Ana Karênina, que li agora, ponho-o junto de Guerra e Paz, Lírio no Vale
de Balzac e Le rouge et le noir de Stendhal. Como é grande Tolstói! Grande como a Rússia”
(LOBATO, 1948, p. 245). Encontram-se em seguida mais comentários sobre a obra e o
escritor Leon Tolstói: “Mando Karênina. Livro de gênio como haverá pouquíssimos no
mundo” (LOBATO, 1948, p. 266). Pelo contexto, deduz-se que, talvez, Godofredo Rangel
não estivesse de todo convencido da importância da obra, daí o fato de Lobato reafirmar, em
carta, sua avaliação e tentativa de persuadir o amigo: “Eu bem que vivia a berrar louvores a
Tolstoi, sem que me desse ouvidos. Tolstoi é gênio, de sentar à mão direita de Shakespeare.
Leia depois de ‘Ana Karênina’ a ‘Guerra e Paz’ – a novela panorâmica de maior fôlego que
jamais foi escrita, toda ela gênio, gênio e mais gênio” (LOBATO, 1948, p. 267).
Todas essas referências nos levam a crer que Monteiro Lobato foi um leitor assíduo
das obras tolstoianas. Seus registros demonstram que sua leitura passou por um processo de
amadurecimento e reflexão, não só pela constância como, também, pelo longo período de
contato, pois sua correspondência com Godofredo Rangel data de 1909 e, em 1915, continua
“mergulhado” na leitura da obra de Leon Tolstói, o que se confirma pelas palavras do escritor:
“Ando mergulhado em ‘Ana Karênina’ e desmealhando o processo de Tolstói. Que prodígio
80
de vida! Como a Rússia inteira palpita e freme ali! Como Tolstoi bate longe Flaubert e os
relatórios dos Goncourts...” (LOBATO, 1948, p. 28).
Não demorou muito para que Monteiro Lobato, depois de ter analisado o romance
russo e, praticamente, o dissecado, demonstrasse que esse esquema de romance já poderia ser
substituído, pois sua estrutura estaria ultrapassada. É o que se encontra na correspondência
com Godofredo Rangel, em 1909, quando planejavam escrever uma obra em conjunto: um
livro de contos, que segundo as expectativas de Lobato seria “Todo cheio de novidades, na
forma e no entrecho”, passando longe dos “adulteriozinhos de Paris” (LOBATO, 1948,
p. 245). Além, de “Madame Bovary” de Gustave Flaubert, no rol dessa crítica incluem-se as
obras “Ana Karênina” e “A sonata a Kreutzer” de Leon Tolstói.
Conforme podemos observar, constata-se que, Euclides da Cunha, José Veríssimo,
Monteiro Lobato e Lima Barreto fizeram parte do grupo de escritores brasileiros que se
entusiasmaram com os romancistas russos. Talvez, fosse o caso de repetir que a recepção dos
russos, no Brasil, deu-se de forma tão fervorosa como na França, uma verdadeira febre. Aliás,
os termos utilizados na recepção crítica para designar a quantidade de romances russos que foi
editada, tanto na França quanto no Brasil, refletem bem o contexto: “avalanche”, “invasão”.
Como resultado dessa franca divulgação do romance russo, principalmente do escritor Leon
Tolstói e em homenagem ao autor de “Guerra e Paz”, foi criada, no estado do Ceará, a Villa
Tolstói, na propriedade de Valdemiro Cavalcante. Esse escrevia sob o pseudônimo de “Ivan
d’Azof” e fazia parte da “Padaria espiritual”, um grupo que se reunia constantemente para
discussões literárias e sociais (GOMIDE, 2004, p. 208). Nessa mesma ânsia de exaltação, a
recém criada Academia Brasileira de Letras também prestou sua homenagem ao ilustre conde
escritor, elegendo-o, por unanimidade, como membro correspondente, em 25 de outubro de
1898, conforme consta na ata da sessão.
Contagiado pela literatura russa, Lima Barreto desempenhou importante papel na
divulgação dos romancistas russos e, principalmente, de suas ideias literárias, políticas e
sociais. A difusão dos romancistas russos não se limita às referências encontradas na obra
barretiana. Lima Barreto recomenda a leitura dos russos aos escritores iniciantes, conhecidos
ou não. Além de ter sido um dos escritores que mais se identificou com os ideais veiculados
pela literatura russa, ideais que se embasavam no bem-estar do próximo e da sociedade, como
um todo, especialmente em prol dos menos favorecidos. Nisso, Lima colocou todo seu poder
crítico. Com a Revolução Russa de 1917, muito próximo de aposentar-se, Lima Barreto se vê
impelido a manifestar-se e o faz da maneira mais combativa, pois era simpatizante dessa
revolução. A maioria dos artigos escritos sobre a Revolução Russa encontra-se no volume
81
Bagatelas; no artigo sob o título “No ajuste de contas...”, datado de 1º de maio de 1918, Lima
Barreto declara o motivo que o inspirou: “Terminando este artigo, que já vai ficando longo,
confesso que foi a revolução russa que me inspirou tudo isso” (BARRETO, 1956, v. IX, p. 96).
Alguns desses artigos serão abordados mais adiante com o objetivo de contrapor as
ideias e os posicionamentos do escritor Lima Barreto e os de Leon Tolstói. Alguns temas em
comum destacam-se por demonstrar semelhanças e afinidades entre os escritores, tais como, a
concepção do papel da mulher, do Estado, da Igreja, da propriedade, do serviço militar
obrigatório, entre outros. Analisado por esse ângulo, o escritor Lima Barreto foi o maior
divulgador dos ideais da Revolução Russa e, por extensão, dos escritores russos, ele explica
por que: “Digo ideais e não as fórmulas e medidas especiais, porquanto, desde o começo,
tinha visto que elas não podiam ser as mesmas em todos os países”, (BARRETO, 1956, v. IX
p. 161). Pelo visto, a aproximação de Lima aos escritores russos não é fruto do acaso, mas
resultado de reflexões e análises desempenhadas pelo escritor.
82
3 AS IDEIAS ESTÉTICAS DE LIMA BARRETO E LEON TOLSTÓI
Com o reconhecimento das ideias estéticas que perpassam o projeto literário de
Lima Barreto e Leon Tolstói, buscam-se alguns fatores que contribuam para a compreensão
desses autores e de suas respectivas obras literárias, principalmente, fatores que demonstrem
uma aproximação na concepção de arte dos dois escritores. Lima Barreto e Leon Tolstói
eram, basicamente, “[...] autodidatas, com toda a arrogância, a insegurança e a limitação de
um autodidata” (JOHNSON, 1990, p. 124). Lima Barreto, mesmo frequentando a Escola
Politécnica, nos últimos anos, passava mais tempo lendo pelos corredores, quando não na
Biblioteca Nacional, e Leon Tolstói chegou, até mesmo, a ser castigado devido ao mau
comportamento na escola.
Ambos não foram grandes estudantes e, muito cedo, abandonaram a escola sem
remorsos, pois não se adaptaram ao meio acadêmico, por motivos próprios a cada um. Leon
Tolstói decidiu-se a abandonar aquele “templo da ciência” por dois motivos: primeiro, porque
seu irmão Sérgio a deixara, visto ter completado os estudos; segundo, porque, para Leon
Tolstói, a escola “[...] com as suas exigências, não só não favorecia, mas contrariava”
(GILLES, 1962, p. 44) o seu crescimento pessoal.
Lima Barreto, por sua vez, quando seu pai adoeceu de fato, sentiu-se livre para
abandonar a Politécnica: “Estava livre, mas, por que preço meu Deus!” e confiante, vendo
nisso uma esperança: “Ia me fazer por mim mesmo, em campo muito mais vasto e mais
geral!” (BARRETO, 1956, v. IX, p. 196). Enquanto Leon Tolstói, ainda na adolescência, se
auto-impôs “regras de vida”, Lima Barreto fazia planos, traçava programas de estudos
filosóficos, além de escrever um “decálogo”, que interrompeu na terceira regra. Na parte
inicial do plano de aprendizado filosófico de Lima Barreto, encontra-se uma frase de Maine
de Biran: “No esforço voluntário, a reflexão interior se apercebe de um ‘eu’ que quer e de um
‘não-eu’ que resiste” (BARRETO, 1956, v. XIV, p. 35). Essa frase sintetiza a angústia, a sede
de conhecimento, o conflito interior e a insatisfação com o mundo, especialmente as
contradições – para não dizer, a vida – desses dois escritores, que outra coisa não fizeram a
não ser buscar a si mesmos.
Lima Barreto e Leon Tolstói, apesar de terem tido origens e modos de vida muito
diferentes, convergem para um ponto em comum, a literatura. Utilizaram-se da literatura
como um meio de lutar pelos seus ideais, que, de modo abrangente, estão muito próximos: a
transformação da sociedade por meio da literatura, isto é, da arte. Ambos possuem uma visão
83
bastante engajada de literatura, vendo-a como um elemento de transformação social. Ambos,
tanto Lima quanto Leon Tolstoi, refletiram sobre o fazer literário e exprimiram seus
posicionamentos estéticos em textos de variada natureza. Lima, de forma esporádica, mas não
menos intensa; enquanto Leon Tolstói escreveu o ensaio “O que é Arte?” (1898). Esse
trabalho demorou quinze anos para ser concluído, e contém as opiniões do autor sobre a arte,
as condições econômicas, sociais e culturais que a geraram e suas considerações sobre como
ela deveria ser.
Vale comentar que cada escritor, a seu tempo, sentiu a necessidade de romper os
padrões estéticos vigentes. Leon Tolstói contraria os padrões estéticos do realismo francês,
que se voltava para o culto da “arte pela arte”, enquanto Lima Barreto contraria os padrões
estéticos dominantes, no início do século XIX, de uma forte tendência ao culto à linguagem
formal, mas ainda românticos, simbolistas e parnasianos. A leitura dos respectivos autores e o
reconhecimento de suas ideias estéticas demonstrar-nos-á o modo como cada escritor
contrariou esses padrões, então vigentes, cada qual na sua época e em seu contexto histórico.
3.1 Lima Barreto
Eu sou Afonso Henriques de Lima Barreto. Tenho
vinte e dois anos. Sou filho legítimo de João
Henriques de Lima Barreto. Fui aluno da Escola
Politécnica. No futuro, escreverei a História da
Escravidão Negra no Brasil e sua influência na
nossa nacionalidade.
(Lima Barreto, Diário Íntimo, 1903)
Dizem os filósofos que, uma ideia, nós a definimos; um objeto real, nós o
descrevemos. Todavia, quando nos referimos a um ser humano, nem a definição nem a
descrição servem ao propósito. Ao ser humano, o que vale é biografá-lo. Constata-se, pela
citação acima, que Lima já sabia que o que vale para o homem é biografá-lo. E não há como
apresentar o escritor sem recorrer à sua biografia. Isso, porém, Francisco de Assis Barbosa já
havia feito de forma indiscutível em uma obra de referência para quem quer se iniciar em
Lima Barreto.
84
Na busca dos pressupostos estéticos do escritor, pretende-se traçar as possíveis
influências na formação de Lima Barreto, destacando-se de que forma essa influência se
reflete na produção barretiana. Ressalta-se, aqui, o estudo “O Profeta e o escrivão” (1978), de
Carlos Erivany Fantinati, no qual o autor opta pelo romance “Recordações do escrivão Isaías
Caminha”, para analisar a concepção de literatura apresentada por Lima. Nesse aspecto,
também, Anoar Aiex, em “As idéias sócio-literárias de Lima Barreto” (1990), contribui
bastante, ao fazer um levantamento “[...] das principais noções que, até certo ponto, formam o
arcabouço ideológico de Lima Barreto” (AIEX, 1990, p. 7).
Tendo como referência os estudos de Fantinati e Anoar, constata-se que a concepção
de literatura do autor teve a influência do pensamento de Hippolyte-Adolf Taine, Ferdinand
Brunetière, Jean-Marie Guyau e Anatole France. Todos contribuíram para uma concepção
única, e o escritor Lima Barreto revela-se, em carta a um moço iniciante nas letras, um dos
muitos que lhe escrevia pedindo conselhos e apreciações críticas, da seguinte forma: “A
perfeição, eu a procurarei para cada vez mais aproximar-me dela, se pode entender isso como
correção, proporção das partes, percuciência sagaz na análise das coisas e dos homens, etc.,
etc” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 19). E, em outra carta: “É preciso incorporar as suas
leituras a si mesmo e elas aparecerão mais belas, pois surgirão transfiguradas por um
pensamento novo e seu” (p. 19).
“É preciso incorporar as suas leituras a si mesmo” (BARRETO, 1956, v. XIII,
p. 19), pelo visto foi o que Lima, conscientemente, fez, uma vez que se embasa em Hippolyte
Taine (1828-1893) para estabelecer a ligação entre a arte e a sociedade, visto que, conforme o
princípio taineano, a obra literária seria o veículo mais seguro para penetrar-se na alma de um
homem e de uma época. Nesse sentido, o escritor concebe-a como um meio de compreensão
desses e de seu meio, como forma de compreensão da própria obra. “Para ele, a literatura é
um instrumento para compreender uma época, uma nação e para fazer uma sondagem da
natureza humana em geral” (WEINSTEIN apud AIEX, 1990, p. 43).
Tendo como premissas “meio, raça, momento”, o determinismo taineano parte do
princípio de que a obra literária deve ser construída a partir de elementos da realidade
individual e social. Vejamos uma referência a Taine encontrada em “Impressões de Leitura”:
“A beleza para Taine é a manifestação por meio dos elementos artísticos e literários, do
caráter de uma ideia mais completamente do que ela se acha expressa nos fatos reais”
(BARRETO, 1956, v. VIII, p. 58). Encontra-se, no “Diário Íntimo”, outra referência a Taine:
“Mas como te dizia... desde o meu Isaías Caminha, que só trato de obedecer à regra do meu
85
Taine: a obra de arte tem por fim dizer o que os simples fatos não dizem” (BARRETO, 1956,
v. XIV, p. 183).
Jean-Marie Guyau foi outro autor que contribuiu para a formação dos fundamentos
estéticos de Lima. Conforme S. Brayner (1979), Guyau teve bastante influência no início do
século XIX, com a obra “A arte do ponto de vista sociológico”, que “[...] marcou a
confirmação da organização formal da estética sociológica do início do século XX”
(BRAYNER, 1979, p. 149). Lima reafirma, assim, o caráter representativo da arte já
formulado mediante a leitura de Taine e incorpora o sentido da obra de arte como
solidarização humana. Em consequência, é possível dizer que as ideias de Taine e Guyau se
complementam no sentido de que a obra de arte tem como função retratar o homem e seu
mundo e, além disso, levá-lo à reflexão sobre si mesmo. Compete-nos dizer que Lima Barreto
encontra, nas ideias de Guyau, uma fórmula teórica através da qual poderia lutar pela
compreensão mútua entre os homens, acabando com o preconceito por meio da própria arte.
Para Guyau, essa poderia erguer “[...] o homem de sua vida pessoal à vida universal, não só
pela sua participação nas ideias e crenças gerais, mas também pelos sentimentos
profundamente humanos que exprime” (GUYAU apud BARRETO, 1956 v. XII, p. 19).
Com isso, para Lima, a arte teria a função de humanizar os homens, sensibilizando-
os para os problemas uns dos outros, com o fim de elevar o homem da vida pessoal à vida
universal, de modo a restabelecer uma ligação mais solidária entre eles. Mais uma vez, recorre
a Guyau para expressar sua concepção de arte: “Isto em geral dentro daquele preceito de Guyau
que achava na obra de arte o destino de revelar umas almas às outras, de restabelecer entre elas
uma ligação ao mútuo entendimento dos homens” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 72).
“É preciso incorporar suas leituras a si mesmo”; verifica-se que Lima, ao
“incorporar” as ideias de Guyau, colocava em prática reivindicações muito próprias, isso
devido ao preconceito e à discriminação social sentidos pelo escritor durante toda a vida.
[...] a arte literária se apresenta com um verdadeiro poder de contágio que a faz
facilmente passar do simples capricho individual para um traço de união, em força
de ligação entre os homens, sendo capaz, portanto de concorrer para o
estabelecimento de uma harmonia entre eles orientada para um ideal imenso em que
se soldem as almas aparentemente mais diferentes, reveladas, porém, por ela, como
semelhantes no sofrimento da imensa dor de serem humanas. (BARRETO, 1956,
v. XIII, p. 62).
Quanto mais a obra de arte apresentar força e poder de contágio, em relação ao
leitor, mais se firmaria o verdadeiro caráter e beleza da obra literária. É o que Lima tenta
86
explicar, ao analisar a obra, Crime e Castigo, de Dostoiévski: “É preciso que esse argumento
se transforme em sentimento; e a arte, literatura salutar tem o poder de fazê-lo, de transformar
a idéia, o preceito, a regra em sentimento” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 62).
Com esse desejo de solidarização, busca-se, também, uma neutralização das
diferenças sociais entre os homens, e justifica-se a reincidência constante dessa ideia,
sobretudo pelo caráter combativo do autor em relação aos contrastes sociais do País, dos quais
também era vítima. Resume-se, com as palavras do próprio autor, o princípio de
solidarização: uma aproximação dos problemas “dos humildes aos poderosos”.
De Taine, a concepção de arte e realidade; de Guyau, a ideia da obra de arte como
instrumento de solidariedade entre os homens. Com Brunetière, adiciona-se ao pensamento
estético de Lima a concepção de uma arte engajada, isto é, a arte a serviço do bem social, da
humanidade: “Brunetière diz em seu estudo sobre a literatura que ela tem por fim interessar,
pela virtude da forma, tudo o que pertence ao destino de todos nós” (BARRETO, 1956,
v. XIII, p. 73). Para Lima, a arte deve ter sempre o compromisso de tratar de questões
relativas ao interesse humano, como se observa no comentário sobre Brunetière: “[...] tal
importância, dizia eu, deve residir na exteriorização de um certo e determinado pensamento
de interesse humano que fale do problema angustioso de nosso destino em face do Infinito e
do Mistério que nos cerca e aluda a questões de nossa conduta de vida” (BARRETO, 1956,
v. XIII, p. 59).
Como se vê, as ideias estéticas de Taine, Guyau e Brunetiére compõem a base do
pensamento estético de Lima e estão de tal modo entrelaçadas que formam um todo coeso,
tornando-se difícil dizer quando uma termina e quando começa a outra. A esses três filósofos,
grandes influenciadores da concepção de arte de Lima Barreto, acrescenta-se Leon Tolstói.
Assim como da concepção de Brunetiére e de Leon Tolstói, Lima Barreto “incorpora”,
especificamente, a concepção de arte engajada, em prol do homem e da sociedade. Isto é, a
arte deve abranger, além de produto estético, um produto ideológico, por meio do qual se
possa tematizar sobre os problemas da humanidade, tendo por finalidade a transformação da
sociedade.
Em, “O Destino da Literatura”, Lima sintetiza sua reflexão e percepção sobre a arte,
mais especificamente, sobre a Literatura, com várias perguntas que constituem “[...] em
súmula o resumo do problema da importância e do destino da Literatura que se contém no da
Arte em geral” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 56). Entre essas questões, destaca-se a principal
delas: “Em que pode a Literatura, ou a Arte contribuir para a felicidade de um povo, de uma
nação, da humanidade, enfim?” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 56). Para, em seguida,
87
apresentar a resposta: “[...] o destino da Literatura e da Arte deixou de ser unicamente a
beleza, o prazer, o deleite dos sentidos, para ser cousa muito diversa” (BARRETO, 1956,
v. XIII, p. 64).
Essa resposta pode ser considerada a essência da concepção de arte tolstoiana; e
como o escritor não esconde suas fontes, eis a referência efetuada:
Tolstói, no livro de que me venho servindo [O que é arte?] e a cujo título mais atrás
aludi, critica muito justamente semelhante opinião, com as seguintes palavras:
“Quando se quer definir todo um ramo de atividade humana, é necessário procurar-
lhe o seu sentido e o seu alcance. Para fazer isso, é primeiramente estudar tal
atividade em si mesma, na dependência de suas causas e efeitos, e não
exclusivamente nas suas relações com os prazeres que ela nos proporciona”.
(BARRETO, 1956, v. XIII, p. 65).
Pode-se dizer, então, que a concepção de arte tolstoiana é a mais abrangente, por
conter todas as outras. Como visto, Lima obteve respaldo teórico para seu projeto de uma
literatura militante, não escreveu aleatoriamente, pesquisou e selecionou o que melhor
atenderia a seu objetivo: a transformação social através da literatura. Esse caráter engajado de
arte, ao qual Lima Barreto se propõe por intermédio de seus mestres, parece-nos que equivale,
de forma aproximada, à função social da literatura, formulada por Antônio Cândido, em
Estímulos da criação literária, segundo a qual a obra literária engloba uma abordagem das
relações humanas dentro dos grupos sociais:
A função social comporta o papel que a obra desempenha no estabelecimento de
relações sociais, na satisfação de necessidades espirituais e materiais, na manutenção
ou mudança de uma certa ordem na sociedade. Assim, os episódios da Odisséia [...]
reforçavam a consciência dos valores sociais, marcavam as prerrogativas, a etiqueta,
os deveres das classes, estabeleciam entre os ouvintes uma comunhão de
sentimentos que fortalecia a sua solidariedade [...]. (CÂNDIDO, 1985, p. 46).
A Odisséia, de Homero, poderia ser utilizada aqui para representar o conceito de arte
literária preconizado por Lima Barreto, que aspira o social (realidade) e se volta para a
solidariedade, na tentativa de sensibilizar os homens entre si, visando à transformação das
estruturas sociais. Enfim, uma estética realista, de caráter social, cuja finalidade consiste em
perscrutar os fatos da vida, enfocando os sentimentos mais variados do homem frente a eles.
Trata-se do revelar a humanidade dos homens através do enredamento da própria vida. Isso
nos remete diretamente a Leon Tolstói, quando ele ressalta que os acontecimentos espirituais
– “íntimos” – são “[...] a experiência mais real e imediata dos seres humanos; eles e somente
eles são aquilo de que, em última análise, é feita a vida” (BERLIN, 1988, p. 52). Esses
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acontecimentos espirituais “íntimos”, tão importantes para L.Tolstói, “[...] são largamente
esquecidos pela história, tal como é normalmente escrita” (BERLIN, 1988, p. 52).
Desse modo, o trabalho dos grandes escritores seria observar a realidade, focalizar
os problemas sociais e transformá-los em matéria artística capaz de gerar no leitor um desejo
de reparar tal situação. Enfim, a arte deveria promover o retrato crítico da vida dentro da arte,
como nos lembra Lima Barreto, ao analisar a obra Tumulto da vida, de Adelino de Magalhães,
onde, segundo o escritor, faltou essa qualidade fundamental:
Há nele uma grande capacidade de observação até o mínimo detalhe, à minúcia,
é vivo e ligeiro; tem grande originalidade no dizer, mas lá vem o “mas” – o Sr.
Adelino de Magalhães não quer ver nada além dos fatos concretos, atém-se às
aparências, pretende ficar impassível diante do Tumulto da vida (é o título de sua
última obra) e não o perfuma de sonho, de dor, de piedade e de amor. (BARRETO,
1956, v. XIII, p. 101).
Para Lima, é necessário muito mais que os fatos. Deveriam estar caracterizados
também os sentimentos, pois eles é que forneceriam os argumentos para a modificação da
“conduta da vida” dos receptores, só, então, a obra literária poderia chegar ao objetivo de
comunicar um “ideal humano”, transcendendo a mera beleza plástica, como propunha
L.Tolstói: “[...] o que se pede em primeiro lugar a um poeta é sua emoção diante do encanto
do mundo, do seu transcendente mistério, a revelação deste por alguma forma” (BARRETO,
1956, v. XVI, p. 274).
Assim, a arte engajada torna-se o elo entre as diretrizes estéticas levantadas. A
vinculação da literatura com a realidade, de onde ela surge, é apenas o processo para atingir o
objetivo, lembrado por Guyau, de solidarizar. Desse modo, as ideias estéticas de Taine,
Guyau, Brunetiére e Leon Tolstói influenciaram Lima Barreto na elaboração de uma linha
geral que perpassa seu pensamento estético, facilitando, dessa forma, sua compreensão.
Destacam-se, com isso, três diretrizes que compõem o pensamento estético de Lima Barreto:
arte vinculada à realidade, arte engajada e arte solidarizadora.
3.2 Leon Tolstói
A julgar por quem foi Leon Tolstói, é passível de se pensar que ele não necessitasse
de influências externas para elaborar suas obras e seu pensamento estético. Encontra-se
registrada uma legião de seguidores que Leon Tolstói e o tolstoísmo tiveram por todo o
89
mundo, entretanto, as teorias raramente nascem do vazio. Para encontrar os pressupostos
estéticos de Leon Tolstói, é preciso realizar um levantamento das leituras efetuadas pelo
escritor, seus autores e obras preferidas, desde a infância até a juventude, ou, mais
precisamente, até o período em que já havia escrito suas principais obras: Guerra e Paz
(1869) e Ana Karênina (1879).
Leon Tolstói, quando criança, dava pouca atenção às lições, mas lia muito e com
bastante interesse. Ele retomava sempre certas passagens da Bíblia, as velhas lendas populares
e os contos das Mil e Uma Noites, assim como os poemas de Puchkin. Antes de entrar para a
Universidade, já eram leituras de sua preferência: Eugênio Oneguine, de Puchkin, Um Herói
do Nosso Tempo e Taman, de Lermontov, a Viagem Sentimental, de Sterne, Rousseau e o
Evangelho de São Mateus. Aos dezessete anos, quando seu foco era tornar-se um rapaz
comme il faut”, lia muito Gógol, Puchkin, toda a obra de Rousseau, seu autor preferido,
Sterne, Schiller e os Evangelhos. Era atraído não somente pela beleza literária dos textos, mas
descobria neles, também, o espírito e a filosofia. Sua admiração por Rousseau, aliada a uma
vontade de ser sempre notado, levou-o a querer fazer-se passar por filósofo e a parecer-se com
o seu ídolo, de quem trazia uma medalha ao pescoço. Sua irmã Maria descreveu, em tom
humorístico, na sua morada de campo, “o caro filósofo”:
Cobria-se – escreve ela – com uma espécie de toga, comprida e horrível, de
flanela cinzenta, que trazia de noite e de dia, e, para não tropeçar nela, cosera alguns
botões nos panos pendentes e aí os prendia quando passeava. Durante dias inteiros
rodava através dos bosques, e quando estava fatigado estiraçava-se, a cabeça
pousada sobre algum grosso volume de filosofia, Voltaire, Rousseau ou Hegel.
(GILLES, 1962, p. 45).
A primavera, passava-a em Yasnaia Poliana, aos dezenove anos, cheio de esperança
e entusiasmo e, sem dúvida, influenciado pela leitura das Memórias de um caçador, de
Turgueniev, e de Anton o Miserável, de Grigorovitch, que expunham cruamente a miserável
condição do camponês russo. Queria melhorar a dos seus mujiques e tinha a cabeça cheia de
projetos de reforma, que colocaria em prática em “Manhã de um senhor”, onde o protagonista,
o príncipe Nekliudov, ao expressar o que pretende, é o porta-voz do próprio Leon Tolstói:
“Exercer influência [...] sobre essas pessoas [...]; tirá-las da miséria, conceder-lhes o bem-
estar, dar-lhes instrução [...], corrigir seus vícios [...]; desenvolver nelas a moral, obrigá-las a
amar o bem [...]” (TOLSTÓI, 1993, v. III, p. 676).
Na verdade, Leon Tolstói encantava-se e desencantava-se muito rapidamente pelas
coisas. Contudo, no período em que estava encantado por algo, dedicava-se por inteiro a tal
90
empreendimento. Depois de meses dedicando-se à agricultura, passava a projetar máquinas
agrícolas. Fez, pelo menos, três tentativas de reforma educacional, assim como de reforma
agrária, na última delas escrevendo seus próprios manuais. Com a música, não foi diferente, e
Leon Tolstói chegou a contratar um músico alemão chamado Rudolf para lhe dar aulas e
passou a escrever um tratado de harmonia, sob o título de Fundamentos da Música e Regras
para o Seu Estudo. Todavia, o que realmente prendia sua atenção era a leitura. Como um
rapaz “comme il faut”, lia os livros em voga e os seus autores favoritos, a quem se juntavam
Herzen e Dickens, cujo David Copperfield aparecera havia pouco em tradução russa.
Pensava, às vezes, em escrever. Entretanto, encarava a literatura mais como um
passatempo do que como uma carreira. Sua tia Tatiana o aconselhou: “[...] com a tua
imaginação – dissera-lhe ela um dia –, [devias] escrever um romance” (GILLÉS, 1962, p. 56).
Certa ocasião, bruscamente, Leon Tolstói começou a narrar a visita que tinha feito, na
véspera, à mulher por quem se julgava apaixonado, a princesa Scherbatov, que viria a ser a
História do Dia de Ontem. No entanto, não estava contente com seu estilo. “Disse a mim
próprio – escreve ele -: vou andar para frente e descrever tudo o que vejo. Mas como
descrever melhor? As letras formam palavras e as palavras frases, mas como transpor as
sensações? A descrição não basta...” (GILLÉS, 1962, p. 56). Sempre inconstante, depressa
abandonou a novela, e, influenciado por Dickens, ao que parece, resolveu fazer antes a
narração dos seus anos de infância.
Quando partiu para o Cáucaso, Leon Tolstói leu obras sobre o local, entre elas, a de
Lermontov, cheias de ardentes descrições do país. Depressa se sentiu cativado pelos encantos
selvagens da vida indígena. Como verdadeiro leitor de Rousseau, deu-se a descobrir o “bom
selvagem” que “vive conforme a natureza”. Para esse jovem civilizado, que lera demais
Rousseau – as obras desse escritor haviam-no acompanhado no seu exílio caucasiano – a
beleza selvagem das mulheres caucasianas o torturava. Em seu romance, Os Cossacos (1863),
narra a trama romântica do jovem oficial Olenine, seu duplo, com Mariana, tendo como
inspiração sua paixão por Marenka. Olenine, o herói romântico, pensará em resolver essa
“situação anormal”, através do casamento com Mariana, mas isso é, todavia, literatura, o
artilheiro, conde Leon Tolstói, por seu lado, não encarou seriamente tal ideia.
A presença de Rousseau é constante em suas obras, no Romance Dum Proprietário
Rural, narra a vida de um pobre que procura a realização de um ideal de felicidade e de
justiça, primeiro na vida do campo, e, depressa desiludido, volta-se, em seguida, para a vida
familiar, para descobrir, por fim, que a felicidade consiste em trabalhar para a felicidade dos
outros.
91
De agradável passatempo, a literatura torna-se a principal atividade de Leon Tolstoi
que exercitava seu estilo narrativo, descobrindo que o essencial, “quer ande mal ou bem, é
escrever, escrever, sempre” (GILLÉS, 1962, p. 74). No Diário, encontram-se várias passagens
em que o escritor fala da necessidade de deixar correr a inspiração sem se preocupar em
agradar ou escolher expressões corretas. Na segunda leitura, porém, para colocar em ordem, é
preciso suprimir muito e, por fim, em uma terceira leitura, corrigir a linguagem. “Estas
expressões incorretas, mas habituais.... – observa ele – aparecerão à posteridade como uma
prova de mau gosto. Tolerar essas expressões significa que se foi levado na corrente da época;
corrigi-las, é estar em avanço sobre ela” (GILLÉS, 1962, p. 74). Visava alto, não querendo,
como ele escrevia ao seu irmão Sérgio, “tornar-se um escrevinhador de jornais”. Estava, aliás,
convencido de ter valor – e talvez gênio –, pois confiava a si mesmo essa idéia no Diário. “Estou
perfeitamente certo – concluía – de adquirir um dia a celebridade!” (GILLÉS, 1962, p. 74).
Na busca de aperfeiçoar-se no ensino e na educação dos mujiques, Leon Tolstói
passou por Genebra e instalou-se na aldeia de Clarens, na margem do lago. Comoveu-se com
a lembrança de Rousseau, que ali situara a ação do romance A Nova Heloísa, e ficou,
literalmente, deslumbrado com a beleza do lugar. Ali permaneceu três meses, participando de
excursões, corridas de remo e tendo longas conversas com a sociedade russa local, fora isso,
dedicava-se à leitura. Encontrara uma Bíblia na sua mesa de cabeceira do hotel e relia os
Evangelhos e, do mesmo modo, Balzac, o Memorial de Las Cases e Proudhon. Em Clarens,
registra seu contato com a natureza o que, certamente, para um discípulo de Rousseau, não
passaria em branco:
Amo a natureza, quando ela me rodeia de todos os lados, quando as mesmas
folhas que, agitadas pelo vento, trazem sombra ao meu rosto, formam o azul da
floresta longínqua, quando, em volta de mim, zumbem e volteiam milhares de
insetos, as joaninhas voam..., as aves cantam. (GILLÉS, 1962, p. 127).
De Lucerna, Leon Tolstói envia uma carta a seu amigo Botkine, em que, entre outros
assuntos, refere-se à sua arte e explica porque escrevia:
Quando escrevo desejo uma coisa – dizia ele –, é que outro homem, um homem
próximo do meu coração, se alegre com o que me alegra a mim, se indigne com o
que em mim produz indignação, ou que chore as minhas lágrimas que eu choro. Não
sinto a necessidade de dizer o quer que seja ao mundo inteiro. (GILLÉS, 1962,
p. 129).
Leon Tolstói regressou à Rússia em agosto de 1857 e, nos três anos seguintes,
produziu as obras: Lucerna e Alberto (1857), Três Mortes (1858), e A Felicidade Conjugal
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(1859). Observa-se que em todas está presente o homem simples, o homem natural, como o
bom-selvagem, de Rousseau, é idealizado em detrimento do homem civilizado à europeia. É a
sublimação do mujique, que se sobrepõe moralmente aos demais. O ambiente literário de
Sebastopol não agradou muito a Leon Tolstói, mas, apesar dos momentos de desânimo, sua
paixão pela literatura aumentou. Contudo, suas ideias não eram as dos círculos intelectuais
russos da época, os quais, desejosos de apressarem a evolução política e social do país,
interessavam-se principalmente por uma literatura de atualidade e de combate. Conforme
Daniel Gillés, nesse período, Leon Tolstói foi um defensor feroz da arte pura, daquela “arte
pela arte”, que condenaria quarenta anos mais tarde. Porém, como gostava de contrariar a
opinião comum, na ocasião de sua recepção na Sociedade Literária de Moscou, assim expôs:
Seja qual for a importância da literatura política – disse ele –, que reflete os
interesses passageiros da sociedade, e a sua necessidade para a evolução nacional,
existe outra literatura, e essa reflete as necessidades eternas de toda a humanidade,
as mais queridas e as mais profundas criações dum povo, uma literatura acessível a
todos e a todas as idades, uma literatura sem a qual nenhum povo forte e fecundo
pode desenvolver-se. (GILLÉS, 1962, p. 132).
Os princípios de Leon Tolstói, em matéria de educação, quase se poderiam resumir
nas palavras: “instrução livre e espontânea” (GILLÉS, 1962, p. 156). Influenciado por
Rousseau e, em menor grau, por Montaigne e Fröebel, dizia estar convencido de que
“o essencial é a igualdade e a liberdade” (GILLÉS, 1962, p. 156). As suas visitas às escolas de
Kissingen, Dresda e Marselha, se não o tinham, propriamente, levado a descobrir novos
métodos educativos, tinham-no, pelo menos, convencido de uma coisa: a nocividade de toda a
obrigatoriedade, de todas as disciplinas e de todas as rotinas. Não se contentava, portanto, em
evitar com horror as chamadas por apito, os braços cruzados e as recitações gaguejadas, na
sua escola não havia interrogatórios, notas da semana, concursos e nem classificações. Entre
as matérias propostas, os alunos escolhiam livremente aquelas que lhes interessavam, tendo
em vista que, para Leon Tolstói, o papel do educador consistia essencialmente em auxiliar a
criança a tornar-se ela própria, a desenvolver-se.
Leon Tolstói preocupava-se ao máximo em dar autenticidade às suas obras literárias,
pesquisava e estudava os documentos da época. Consultava os arquivos, anotava as memórias
dos contemporâneos de Alexandre, lia as de Marmont e pediu a ajuda do sogro e de sua tia
Tatiana na reunião dos documentos. Entre as leituras que influenciaram sua concepção de
história, encontram-se a obra de Joseph de Maistre, Os Miseráveis de Victor Hugo –
“impressão imensa”, dirá ele, mais tarde – e a Crônica de Carlos IX de Merimée, autor que ele
achava “muito inteligente e sensível, mas destituído de talento” (GILLÉS, 1962, p. 206). Tal
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como Victor Hugo, que, ao escrever Os Miseráveis, fizera a peregrinação, Leon Tolstói quis
ver com seus próprios olhos o campo de batalha de Borodino.
Na obra Guerra e Paz, encontra-se muito da Ilíada, aliás, aproximação feita pelo
próprio Leon Tolstói. Romain Rolland confirma que Leon Tolstói, durante o período em que
escrevia Guerra e Paz, “se alimentava de Homero e Goethe”. Vê-se que, retomando os
princípios da epopeia clássica (a Ilíada foi uma das leituras prediletas de Leon Tolstói logo
que aprendeu grego, estudo que concluiu homem feito), quis pintar a paz e a guerra na
expressão mais vasta dos seus efeitos.
Boris Eichenbaum aponta que Leon Tolstói, ao se afastar “dos pais, ele retorna aos
avós”:
Seus mestres e inspiradores são Sterne, Rousseau, Bernardin de Saint-Piérre,
Franklin, Buffon, Goldsmith. Infância reflete a influência de Topffer, educado na
tradição do século XVII, nos contos sobre Sebastopol, Tolstói segue a trilha de
Sthendal – “último adventício do século XVIII”. (EICHENBAUM, 1983, p. 87).
Isaiah Berlin, em seu texto, “O porco-espinho e a raposa”, traça as raízes da visão de
história de Leon Tolstói, além da influência de outros escritores:
É corrente afirmar que devia muito a Rousseau e provavelmente desse autor,
tanto quanto de Diderot e do Iluminismo francês, derivaram seus métodos analíticos
e anti-históricos de abordar os problemas sociais, em particular a tendência de tratá-
los em termos de categorias intemporais, lógicas, morais e metafísicas, e não de procurar
sua essência, conforme preconizava a escola histórica alemã, em termos de crescimento
e resposta a um ambiente histórico em transformação. (BERLIN, 1988, p. 69).
Berlin aponta, ainda, a influência que os eslavófilos contemporâneos, românticos e
conservadores, exerceram sobre Leon Tolstói. Pogodin e Samarin eram os mais próximos de
Tolstói:
[...] e opunha-se como eles às teorias científicas da história então em voga, quer se
tratasse do positivismo metafísico de Comte e seus seguidores ou dos conceitos mais
materialistas de Tchernichevski e Pissarev, ou os de Buckle, Mill e Herbert Spencer,
além da tradição empírica inglesa em geral, com tintas do materialismo científico
francês e alemão, à qual todos esses autores, muito diferentes em suas várias
tendências, pertenciam. (BERLIN, 1988, p. 70).
Dentre os eslavófilos, especialmente Tiuttchev, cuja poesia Leon Tolstói admirava,
pode ter contribuído para que ele desacreditasse das teorias históricas que tomavam como
modelo as ciências naturais, as quais, para Leon Tolstói, “não conseguiam apresentar uma
verdadeira explicação sobre o que faziam e sofriam os homens”. Além do que, eles podem ter:
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[...] fortalecido o natural antiintelectualismo e antiliberalismo de Tolstói, bem como
sua visão profundamente cética e pessimista sobre a força dos motivos não-racionais
no comportamento humano, que ao mesmo tempo dominam os homens e os iludem
em relação a si mesmos. (BERLIN, 1988, p. 71).
De Proudhon, a quem Leon Tolstói visitou em 1861, Isaiah Berlin aponta as
características que mais agradavam a ele: “[...] o irracionalismo confuso, o puritanismo, o
ódio à autoridade e aos intelectuais burgueses, além do apego a Rousseau e a violência de
tom” (BERLIN, 1988, p. 72). Apesar de Leon Tolstói não ter sido influenciado pelos
idealistas alemães clássicos, ele sentia admiração pelo filósofo Schopenhauer, por quem se
sentiu atraído devido à concepção propagada “[...] de um quadro melancólico da vontade
humana impotente, que se debate desesperadamente contra as leis rigidamente determinadas
do universo” (BERLIN, 1988, p. 72). Para Berlin, de todas as dívidas literárias de Leon
Tolstói, a mais óbvia é aquela que se refere a Stendhal. Em sua conhecida entrevista com Paul
Boyer, em 1901, além de Rousseau, Leon Tolstói cita Stendhal entre os autores que mais o
tinham influenciado. Sobre a guerra, muito deteve da descrição da batalha de Waterloo, em La
Chartreuse de Parme, quando Fabrice vagueia pelo campo de batalha “sem nada entender”
(BERLIN, 1988, p. 73).
Por trás de Stendhal, Isaiah Berlin aponta Joseph de Maistre, “uma figura ainda mais
despojada e destrutiva”, a quem Stendhal pode ter recorrido ao elaborar seu novo método de
interpretar a vida social e a quem Leon Tolstói – certamente – recorreu para elaborar sua
filosofia da história. Muitas são as semelhanças entre as concepções de Leon Tolstói e Joseph
de Maistre e, dificilmente, elas podem ser atribuídas ao acaso. Leon Tolstói deixa pistas ao
anotar em seu diário: “Estou lendo Maistre”, no dia 1º de novembro de 1865, quando chegava
à metade de Guerra e Paz, e, no dia 7 de setembro de 1866, solicitou, por escrito, ao editor
Barteniev que lhe enviasse o “arquivo Maistre”, isto é, suas cartas e anotações. De Maistre,
Leon Tolstói tinha as Soirées, bem como a correspondência e as cartas diplomáticas, cujos
exemplares foram encontrados na biblioteca de Iasnaia Poliana.
Berlin aponta várias passagens, em Guerra e Paz, que confirmam que Leon Tolstói
recorreu ao arquivo de Maistre, além de apontar, ainda, Jikharev – que conheceu Maistre e o
descreveu com cores brilhantes –, a cujas memórias Leon Tolstói recorreu. De Maistre, Leon
Tolstói valeu-se da concepção de que as vitórias, em geral, estão diretamente ligadas “ao
intangível fator do ânimo moral”, isto é, para Leon Tolstói, o “espírito” impalpável das tropas
e seus comandantes. Segundo Isaiah Berlin, Leon Tolstói, ao enfatizar “o imponderável e o
incalculável”, revela o que é “parte e parcela” do irracionalismo de Maistre.
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Maistre e Leon Tolstói compartilham das visões sobre “o caos e a impossibilidade
de controlar as batalhas e as guerras” e, também, do desprezo às explicações fornecidas pelos
historiadores acadêmicos para a violência humana e o apetite da guerra. Berlin refere-se ao
historiador francês, Albert Sorel, como o responsável pelo paralelo entre Maistre, um teocrata,
e Leon Tolstói, um “niilista”, mas que, apesar disso, eles “[...] encaravam as causas
primordiais dos eventos como algo misterioso, que envolve a redução das vontades humanas à
nulidade” (BERLIN, 1988, p. 77). Ambos se referem aos intelectuais com desprezo e
hostilidade, além de exaltarem a sabedoria do povo simples, e veem o mundo ocidental como
se estivesse “apodrecendo”, rumo à decadência. Muitos pontos em comum e muitos que os
opõem; conforme Isaiah Berlin, Leon Tolstói ficaria chocado com a aproximação “[...] com
esse apóstolo das trevas, defensor da ignorância e da servidão” (BERLIN, 1988, p. 81). Mas,
quando se trata das questões sociais, “o tom de Maistre é o que mais se aproxima do de
Tolstói” (p. 81).
Dickens, Homero, Goethe, Rousseau, Victor Hugo, Proudhon, Stendhal e Joseph de
Maistre foram lidos e consultados por Leon Tolstói – alguns mais, outros menos –, porém, de
cada um, ele reteve algo para sua grandiosa obra e, de alguma forma, todos contribuíram para
a obra de Leon Tolstói.
3.3 Lima Barreto, Leon Tolstói e o Ideário Anarquista
A aproximação do escritor Lima Barreto a Leon Tolstói se dá pelo viés da
problemática social, principalmente através das ideias libertárias, ideias essas que estão
diretamente ligadas à concepção de arte de ambos. Um dos fatos principais que os une é o fato
de eles conceberem a literatura como elemento fundamental para a transformação social, pois
a manejavam como uma arma afiada contra a sociedade burguesa, principal inimiga do
indivíduo, na visão dos autores.
Tanto Leon Tolstói como Lima Barreto são vistos como anarquistas. Conforme
Errico Malatesta (1853-1932), pensador e militante anarquista italiano, a palavra Anarquia
era, geralmente, entendida no sentido de desordem, confusão; ainda hoje, ela é entendida
nesse sentido. A distinção entre a palavra e o conceito se faz primordial para a compreensão.
É importante ressaltar que a palavra Anarquia vem do grego e significa sem governo,
estado de um povo que se rege sem autoridade constituída; ela pode “[...] ser usada para
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expressar a condição negativa de ausência de governo, quanto à condição positiva de não haver
governo, por ser ele desnecessário à preservação da ordem” (WOODCOCK, 1983, p. 8).
Assim, anarquia, anarquismo, anarquista são palavras que comportam um sentido
denotativo e outro conotativo, sendo necessário recorrer ao contexto em que estão inseridas
para determinar-lhes o significado. Errico Malatesta enfatiza que o erro não depende da
palavra, mas da coisa em si, e a dificuldade encontrada pelos anarquistas na propaganda não
depende do nome que eles se dão, mas do fato de que seu conceito fere todos os preconceitos
arraigados que o povo cria da função do governo ou, como se diz, ordinariamente, do Estado
(MALATESTA, 2001, p. 14). O anarquismo defende a ideia de que o Estado não só faz mal
ao indivíduo, como também é absolutamente desnecessário e, portanto, dispensável. Errico
Malatesta diz que tudo que o “[...] governo faz é [...] dominação, e ordenado para defender,
aumentar e perpetuar seus próprios privilégios e aqueles da classe da qual é o representante e
o defensor” (MALATESTA, 2001, p. 29).
Leon Tolstói e Lima Barreto são anarquistas por professarem essas ideias, podendo
ser tachados de “niilistas” e panfletários. Isso, porém, ocorre muito mais no âmbito do
discurso do que propriamente da ação. Não se faz necessário enfatizar que, para escritores de
atitude, tal qual Leon Tolstói e Lima Barreto, a ação é o próprio discurso. “Niilista” diz-se da
pessoa partidário do niilismo, enquanto que “Niilismo” significa a redução a nada; absoluta
descrença; sistema que tem partidários na Rússia, que visa à destruição radical da ordem
social estabelecida. Já, panfletário, conforme consta no dicionário, significa: adj. Relativo a
panfleto; próprio de panfleto; (fig.) que emprega linguagem violenta; s.m. aquele que faz
panfletos; panfletista. Neste caso, se refere aos escritores no sentido figurado, isto é, aquele
que emprega linguagem violenta. Os atributos que ambos recebem podem refletir-se de modo
positivo tanto quanto negativo, o que dependerá do receptor. Caso tenham o Estado, como
receptor, ou melhor, os representantes do governo, automaticamente, terão uma recepção que
refletirá o sentido negativo.
Lima e Leon Tolstói foram assim classificados devido à disposição desses escritores
em combater as instituições que consideravam pervertidas, tais como a literatura, a arte, o
jornalismo, a política, a república, a igreja ortodoxa, a burguesia, o Estado e tudo o mais que
os desagradasse. Daí a associação de ambos ao ideário anarquista. Enfim, a definição
adequada do termo, relacionada à postura dos escritores, sempre oscilou entre: anarquistas,
comunistas, socialistas, libertários; embora esses termos estejam interligados, pode-se dizer,
então, que “revolucionários” os definiria melhor. Contudo, ressalta-se que nenhum dos dois
escritores gostava de ser assim denominado, conforme veremos a seguir.
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No que se refere a Lima Barreto, as palavras de Francisco de Assis Barbosa (1952),
biógrafo do escritor, embasam tal definição: “É ele o anticonvencional. É o antiacadêmico. É
ainda mais do que isso: é o revolucionário” (BARBOSA, 1975, p. 240). Se, por um lado,
Lima Barreto se posiciona, praticamente desde o início de sua carreira literária, de maneira
anarquista, o mesmo não ocorre com Leon Tolstói. Membro da aristocracia russa proprietária
de terras, juntamente com Kropotkin e Bakunin, compunha o trio mais ilustre dos teóricos
anarquistas (MAGNONI, 1998, p. 57). Leon Tolstói não se considerava um anarquista, mas
um cristão. Anarquistas, para ele, seriam aqueles que procuravam transformar a sociedade
utilizando-se da violência. Porém, sua rejeição ao Estado, à propriedade, à violência das leis, e
o fato de ser favorável a que os homens dispusessem sobre suas próprias vidas lhes credencia
à tradição libertária.
No Brasil, por volta de 1900, emerge uma literatura social, cujo aparecimento
coincide com as primeiras greves no Rio de Janeiro. Esses romances e contos de conteúdo
social representam, na verdade, a expressão de ideias novas, que vinham da Europa, através
de livros franceses e de correntes imigratórias. Entre lavradores e operários, principalmente
italianos, desembarcavam, também, os anarquistas, muitos deles já acostumados ao trabalho
de agitação política. Exatamente nesse período, conforme nos informa Brito Broca (2004,
p. 169), constata-se que “[...] a voga de Tolstói no Brasil conjugou-se com as atividades
anarquistas e socialistas aqui verificadas nas duas primeiras décadas do século XX” e, ao
contrário do que se esperava, o anarquismo, em sua maior parte, se ateve à literatura.
Conforme constatou Antonio Cândido (2000, p. 130), “[...] diferentemente do que sucede em
outros países, a literatura tem sido aqui, mais do que filosofia e as ciências humanas, o
fenômeno central da vida do espírito” e ainda, a literatura “[...] preencheu a seu modo a
lacuna, criando mitos e padrões que serviram para orientar e dar forma ao pensamento”
(CANDIDO, 2000, p. 131).
Para Brito Broca (2004), na ficção, o resultado das obras produzidas a la anarquismo
ou ainda a la tolstoísmo não foi grande coisa. Nesses moldes, constam: “Regeneração”
(1904), de Manuel Curvelo de Mendonça (1870-1914); “A vitória da fome”, de Pausílipo da
Fonseca, publicado em folhetim de outubro a dezembro de 1911; “O cravo vermelho” (1907),
de Domingos Ribeiro Filho, entre outros. No geral, apresentam uma inspiração libertária e
tolstoiana. Ressalta-se que os romances de cunho anarquista, basicamente, constituem-se de
três elementos: a descrição de uma sociedade burguesa, a apresentação e crítica das
contradições dessa sociedade e a projeção de uma sociedade utópica baseada nos preceitos do
ideário anarquista (FENERICK, 1997, p. 7).
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Segundo Curvelo de Mendonça, os escritores, a começar por ele mesmo, Fábio Luz,
Domingos Ribeiro e Elísio de Carvalho, eram os “discípulos de Tolstói” e seguidores de
“Kropótkine”. Ao falar do movimento socialista, no Brasil, no capítulo das influências, cita,
desde Jesus de Nazaré a Karl Marx e Kropotkin, passando por Babeuf, Cabot, Fourier,
Proudhon, Ruskin e Leon Tolstói. Aos “discípulos de Tolstói” e seguidores de “Kropótkine”
se junta o escritor Lima Barreto, pois, ao iniciar-se nesse período nas letras, já demonstra estar
a par dessas leituras, pois as cita tanto nas obras de ficção quanto nas crônicas e artigos para
os jornais. E elas constam no relatório da Limana, incluindo a Revue des Deux Mondes,
Mercure de France ou a “última brochura de Félix Alcan”.
Os escritores Fábio Luz, Domingos Ribeiro Filho e Curvelo de Mendonça,
representantes da chamada Literatura útil, de caráter libertário, participaram da criação da
revista Floreal, da qual Lima Barreto foi o maior responsável. Como se vê, a aproximação
entre esses escritores não é gratuita, ocorre por compartilharem interesses e ideias voltados
para o social. Interesses e ideias que estão explícitos na apresentação da revista Floreal:
Não se trata de uma revista de escola, de uma publicação de “clã” ou maloca
literária [...]
Não se destina pois a Floreal a trazer a público obras que revelem uma estética
novíssima e apurada; ela não traz senão nomes dispostos a dizer abnegadamente as
suas opiniões sobre tudo o que interessar a nossa sociedade, guardando as
conveniências de quem quer ser respeitado. É uma revista individualista, em que
cada um poderá, pelas suas páginas, com a responsabilidade de sua assinatura,
manifestar as suas preferências, comunicar as suas intenções, dizer os seus
julgamentos, quaisquer que sejam. (BARRETO, 1956, v. XIII, p.181-182).
O lançamento da revista Floreal deu-se em 1907, e essa postura crítica, franca e
livre, Lima Barreto apresentará tanto na ficção quanto na vida pessoal. “Dizer abnegadamente
as suas opiniões sobre tudo o que interessar a nossa sociedade”, “com a responsabilidade de
sua assinatura”, “manifestar suas preferências, comunicar as suas intenções, dizer os seus
julgamentos, quaisquer que sejam”, estas são regras de compromisso, de seriedade,
principalmente, de sinceridade. Apesar da revista Floreal não ter passado da quarta edição,
Lima procurou seguir essas regras à risca em seu projeto literário. Embora se expondo e
comprometendo-se por defender suas ideias, nem sempre vistas com bons olhos, Lima, ainda
assim, resguardava-se, e só depois de ter se aposentado do serviço de amanuense da Secretaria
de Guerra é que se sentiria livre para dizer tudo o que queria.
Mesmo assim, não deixou de criar romances notadamente com uma preocupação
social. O estigma da cor marca toda a obra de Lima Barreto e, conforme Monteiro Lobato,
Lima introduziu, em nossa literatura, a “crítica social, sem doutrinarismos dogmáticos”, o
99
que, de certo modo, aproxima-o da ficção da década de 1930. Ou melhor, Lima adianta em
suas obras a preocupação com o social, tema que, somente depois, será retomado pelos
romancistas.
Já a adesão de Leon Tolstói ao ideário anarquista, ou melhor, sua revolta contra o
Estado, torna-se explícita e toma um caminho sem volta, em 1857, por ocasião de sua estada
em Paris, quando assiste, no dia 25 de março, a uma execução pública na guilhotina e, a partir
de então, vê o mal que o Estado pratica em nome da ordem. Em carta a V. P. Botkin,
escreveu: “Lei do homem - que absurdo! A verdade é que o Estado é uma conspiração
designada não só a explorar, mas acima de tudo a corromper seus cidadãos... Eu nunca vou
servir qualquer tipo governo em lugar algum” (SHIRER, 1996, p.53). Esse fato perseguiu
Leon Tolstói o resto de sua vida. Em suas Confissões, vinte e dois anos mais tarde, o escritor
retomou essa recordação e, imbuído de suas preocupações morais, tornou-se mais enfático:
“Compreendi, não pela razão, mas por todo o meu ser, que nenhuma teoria sobre a
racionalidade da ordem existente e do progresso poderia justificar tal ato” (TOLSTÓI apud
ZWEIG, 1967, p. 31). Conforme Stefan Zweig (1967, p. 15): “Do pesquisador nasceu um
crente, do crente um profeta, e do profeta ao fanático não há mais do que um passo”.
Constata-se que, de fato, a evolução de Leon Tolstói deu-se de forma gradativa,
pois, quando assistiu à execução em Paris, estava com 29 anos. A partir daí, até os 50 anos,
época em que, de fato, Leon Tolstói toma consciência do sofrimento da humanidade, ele vive
um período feliz com sua família e suas obras. Por volta dos 50 anos, Leon Tolstói passa por
uma crise existencial e escreve seu primeiro livro doutrinal, “Minha Confissão”, que é
interditado pela censura; e o segundo, “Minha Fé”, pelo Santo Sínodo, o que resulta na
excomunhão do escritor. Conforme Zweig (1967, p. 15), “[...] Tolstoi, desde então, dirigiu-se
para um caminho que o transforma, irresistivelmente, no inimigo mais resoluto do Estado, no
anarquista e no adversário da coletividade mais apaixonado da época contemporânea”. Para
Zweig, Leon Tolstói posiciona-se de forma mais contundente que os reformadores Lutero e
Calvino, ou ainda, no domínio social, os anarquistas mais audaciosos, como Steiner e os de
sua escola. De pesquisador do Evangelho, transforma-se em anarquista radical; se, antes,
deixara a Igreja Ortodoxa, agora, abandona moralmente a comunidade do Estado,
“o verdadeiro Anticristo” na terra.
A partir de então, destaca-se o Leon Tolstói doutrinário, o profeta de uma nova
religião: “o tolstoísmo”, tendo por princípio a “não-violência”. Para Stefan Zweig, o “homem-
cristão”, de Leon Tolstói é “O anarquista puro”. Mas como será esse “anarquista puro”?
100
O que ele pensa e faz? Antes, porém, é necessário recorrer à distinção entre sua revolta
religiosa – a de um “cristão puro” – e a atividade dos profissionais da luta de classes, aliás,
feita pelo próprio Leon Tolstói.
Quando encontramos revolucionários, pensamos muitas vezes, erradamente, que
há pontos de contacto entre eles e nós. Uns e outros, gritamos: abaixo o Estado,
abaixo a propriedade individual, abaixo a injustiça e muitas outras coisas. No
entanto, uma grande diferença nos separa: para o cristão não existe Estado, enquanto
eles querem aniquilar o Estado. Para o cristão todos os homens são iguais, enquanto
pretendem destruir a desigualdade. Os revolucionários combatem exteriormente o
governo, enquanto o cristianismo não o combate de nenhum modo mas sim destrói
os fundamentos do Estado, interiormente. (ZWEIG, 1967, p. 21).
“O homem cristão” de Leon Tolstói e os “revolucionários da luta de classes”,
embora tenham os mesmos objetivos – a luta contra o Estado, contra a propriedade individual,
contra a injustiça e a desigualdade social –, divergem, devido à forma de ação e reação
praticada por eles, ser diferente. A revolução religiosa é bem mais perigosa, porque “destrói
os fundamentos do Estado, interiormente”. Para Leon Tolstói, é mais importante a
passividade do que a violência coletiva dos revolucionários, pois ele visa uma revolução de
almas e não de punhos. Leon Tolstói acredita que, para mudar a ordem do mundo,
primeiramente é necessário que os homens se modifiquem a si mesmos.
O “homem cristão” Leon Tolstói, que reflete sobre a importância da arte e escreve
“O que é a Arte?” (1898), texto no qual apresenta suas novas ideias e atitudes para com a
criação literária, é o grande influenciador de Lima Barreto. É justamente nesse “homem
cristão” e em sua concepção de arte que se encontram fortes indícios de aproximação à
concepção de arte de Lima Barreto e Leon Tolstói. Ver-se-á, porém, em primeiro lugar, a
aproximação que ocorre entre ambos através das ideias libertárias. Isto é, algumas
preocupações manifestadas pelo escritor Lima Barreto que fazem parte também das reflexões
de Leon Tolstói, “o anarquista puro”.
Lima Barreto, na crônica “Homem ou boi de canga?”, manifesta-se contrário ao
serviço militar obrigatório, não aceita que, em nome da defesa da pátria, milhares de homens
sejam levados aos campos de batalha a dar tiros uns contra os outros, colocando suas próprias
vidas em risco, sem terem a mínima noção do por quê estavam ali. Nessa crônica, narra que,
em 1893, aos doze anos de idade, quando do episódio da Revolta da Armada, soube pela boca
de seu pai que um dos homens indagara o motivo da contenda entre Floriano Peixoto e
Custódio de Mello. Esse acontecimento marcou-o profundamente:
101
Esse pequeno fato, que podia passar completamente despercebido, feriu-me
imensamente naquela fraca idade que eu tinha então. Nunca pude imaginar que um
homem arriscasse sua vida sem saber porque, nem para que. Pareceu-me isto
estúpido e indigno mesmo da condição de homem. Um ato desses, de jogar a própria
existência devia ser perfeitamente refletido e consciente. Ficou-me o fato; e, anos
depois, muitos anos mesmo, quando fui ler o formidável – Guerra e Paz de Tolstói,
encontrei uma cena, não idêntica, mas do mesmo fundo. Não me recordo bem como
é; mas dela se desprende que o soldado nada sabe dos motivos por que combate.
E assim é feita a guerra.
As massas de combatentes, homens simples e sem luzes, em geral, não sabem
nitidamente porque dão tiros uns contra os outros.
Às vezes, os seus chefes e diretores conseguem instilar no espírito deles vagos
motivos patrióticos... (BARRETO, 1956, v. IX, p. 274).
Desse modo, é impossível fazer a leitura dessa crônica sem recorrer à fonte explícita,
no texto: Guerra e Paz, de Leon Tolstói; quem já a conhece sentir-se-á contemplado, e quem
não a conhece será induzido à leitura. A crônica de Lima Barreto “dialoga” com a maior obra
de Leon Tolstói e, ao reafirmar a relevância do que é posto em questionamento – “a condição
de homem” – no texto tolstoiano, demonstra sua visão crítica dos acontecimentos históricos.
Ao citar Guerra e Paz, embora dizendo “Não me recordo bem como é”, traz à tona toda a
essência do texto tolstoiano que se reatualiza na crônica barretiana na qual enfatiza a condição
de homem, a crítica à guerra e à filosofia da história, reflexões caras a Leon Tolstói.
Lima Barreto compartilha de um sentimento precioso ao movimento libertário, que,
historicamente, sempre se posicionou contra o militarismo, as guerras e o envio compulsório
de cidadãos trabalhadores aos campos de batalha. Tal sentimento está presente em Leon
Tolstói, que também se opunha radicalmente ao serviço militar obrigatório. A opinião
tolstoiana era a de que os governos garantem que o exército serve, basicamente, para proteger
o país do ataque de inimigos externos, mas isso não é verdade. Ele é necessário, antes de
qualquer coisa, contra os próprios cidadãos, e todos os homens que prestam serviço militar
tornam-se, involuntariamente, cúmplices em atos de violência que o governo inflige aos seus
súditos. Para Leon Tolstói, o serviço militar obrigatório é “[...] o último estágio da violência
que o governo utiliza para manter íntegra a estrutura do poder e é o limite extremo a que pode
chegar a submissão. Ele é a pedra angular do arco que mantém de pé o edifício e sua remoção
derrubaria todo o sistema...” (TOLSTÓI apud WOODCOCK, 1981, p. 190-191).
Outro ponto, a aproximar Lima Barreto e Leon Tolstói, ocorre através da Revolução
Russa de 1917, pois Lima foi um dos primeiros escritores a se manifestar sobre essa
revolução, no Brasil. Sua significação histórica e suas consequências para o mundo inteiro
foram abordadas, por Lima, em vários artigos. Enquanto Leon Tolstói, na visão de Stefan
Zweig, devido a seu radicalismo intelectual, foi o “[...] precursor, o verdadeiro predecessor da
revolução russa” (ZWEIG, 1967, p. 25).
102
Conforme Astrojildo Pereira, em “No ajuste de contas...”, artigo datado de 1º de
maio de 1918, Lima Barreto faz uma espécie de manifesto político, tornando público seu
programa revolucionário, no qual “[...] expõe com franqueza as suas idéias e propõe uma série
de medidas, que a seu ver viriam resolver os problemas políticos, econômicos e sociais
colocados na ordem do dia” (PEREIRA, 1961, p. 15). Questões pertinentes e coerentes com o
pensamento de Lima, que, ao se referir a nossa “burguesa finança governamental”, critica-a
por aumentar os impostos e cortar o quadro de amanuenses e serventes para equilibrar os
orçamentos; chama o presidente à responsabilidade de coibir os arroubos administrativos de
cada ministro, alerta para a “pesada massa de impostos” que recai sobre os gêneros de
primeira necessidade e, principalmente, recai “sobre a quase totalidade da população
brasileira que é de necessitados e pobríssimos”. A crítica à política e ao desenvolvimento
econômico de São Paulo vem à tona, pois o escritor observa que ele “é guiado pela seguinte
lei: tornar mais ricos, os ricos; e fazer mais pobres, os pobres.” Apesar da crítica aos políticos,
procura não generalizá-la, ressaltando que, muitos deles, assim agem por “mero vício de
educação”. Como não poderia deixar de fora, refere-se também à “abolição da escravatura
negra”, na qual, segundo Lima, ocorreu fenômeno semelhante, pois, embora muitos se
dissessem abolicionistas, eram, antes, escravocratas e tinham a propriedade como algo
inviolável e sagrado.
Lima, tal qual Leon Tolstói, posiciona-se contra a propriedade, a Igreja e o Estado,
observando que os fundamentos da propriedade estavam passando por uma revisão. Para
Lima:
A propriedade é social e o indivíduo só pode e deve conservar, para ele, de terras
e outros bens tão-somente aquilo que precisar para manter a sua vida e de sua
família, devendo todos trabalhar da forma que lhes for mais agradável e o menos
possível, em benefício comum. (BARRETO, 1956, v. IX, p. 90).
O escritor critica a atuação do Estado em relação aos “atrozes impostos” que
esmagam os que nada têm; manifestando-se, devido a isso, contra a monopolização de terras
por parte da Igreja, “meia dúzia de sujeitos espertos e sem escrúpulos”, “em geral fervorosos
católicos”; propõe reformas que, a seu ver, seriam a solução: “[...] uma revisão draconiana nas
pensões graciosas, uma reforma cataclismática no ensino público, suprimindo o ‘doutor’ [...];
a confiscação de certas fortunas, etc., etc.” (BARRETO, 1956, v. IX, p. 96). Estende sua
critica à atuação da Igreja frente à situação da escravidão, pois acreditava que ela não
103
influenciava seus seguidores tanto quanto deveria.
21
Lima sempre se demonstra preocupado
em respaldar seus pontos de vista e suas opiniões, citando os teóricos lidos, como forma de
dar credibilidade ao que diz e, até mesmo, de auto-afirmação. Nesse mesmo artigo, “No ajuste
de contas”, cita Bastiat e sua obra Mélanges d’Économie Politique, “[...] porque foi sua leitura
que me fez considerar e analisar melhor certos fatos e não ficar como o grosso do povo preso
‘ao que se vê’, sem procurar a verdadeira explicação no ‘que não se vê’” (BARRETO, 1956,
v. IX, p. 91). Enfim, posiciona-se abertamente contra a política, o Estado, a Igreja, para
finalmente confessar que sua inspiração para o artigo partiu da Revolução Russa.
Em outro artigo, datado de julho de 1918, intitulado “Vera Zassúlitch”, retoma a
Revolução Russa como tema de suas reflexões e demonstra sua avaliação ao dizer que “[...] a
Revolução Russa abala, não unicamente os tronos, mas os fundamentos da nossa vilã e ávida
sociedade burguesa” (BARRETO, 1956, v. IX, p. 72). Acrescenta, ainda: “Não posso negar a
grande simpatia que me merece tal movimento; não posso esconder o desejo que tenho de ver
um semelhante aqui, de modo a acabar com essa chusma...” (p. 72). Mais uma vez, ressalta
que “Precisamos deixar de panacéias; a época é de medidas radicais” (BARRETO, 1956,
v. IX, p. 73). De certa forma, Lima quer reafirmar suas sugestões de reformas manifestadas no
artigo citado anteriormente. E continua avaliando os acontecimentos políticos na Rússia:
“Não há quem [...], não lobrigue nele uma profunda e original feição social e um alcance de
universal interesse humano e de incalculável amplitude sociológica” (p. 73). Nesse mesmo
artigo, Lima demonstra-se defensor de Vera Zassúlitch, uma militante russa que, além de ser
encarcerada, foi designada como louca: “[...] o que nos interessa, é o caráter dessa mulher, é a
sua abnegação, é o seu sacrifício em prol do sofrimento de outrem que ela absolutamente não
conhecia” (BARRETO, 1956, v. IX, p. 77). Mais uma vez, Lima demonstra estar a par dos
acontecimentos políticos e sociais da Rússia e avalia-os sempre como situação paralela à do
Brasil.
Em, “Sobre o maximalismo”, artigo datado de março de 1919, Lima reafirma a
defesa da Revolução de Outubro e levanta polêmica com o famoso escriba Azevedo Amaral,
editor de O País, órgão conservador e oficioso. A seu ver, Azevedo Amaral era protegido pela
fama, até certo ponto merecida, mas que já estava extrapolando, pois falava coisas sobre a
revolução russa que não condiziam com os fatos. Questiona e contrapõe-se ao fato de
Azevedo Amaral ter chamado Jean Jacques Rousseau de “[...] anarquista, ou que o
21
“Esta incapacidade que a Igreja demonstrou para abolir a escravidão negra nas colônias dos países
catolicíssimos, como a França, a Espanha e Portugal, dá a entender que ela não tem mais força para reprimir
no coração dos fiéis a ganância, a cupidez, mesmo quando essa ambição desenfreada de dinheiro e de lucro se
faça em troca da dignidade moral da pessoa humana” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 85).
104
anarquismo tinha origem na ‘filosofia sentimental e chorosa’ do autor do Contrato Social”
(BARRETO, 1956, v. IX, p. 157). Lima Barreto, assim como Leon Tolstói, era admirador e
leitor extremado de J. J. Rousseau, ambos nutriam muito mais que admiração pelo escritor,
além de professarem a ideia roussoniana de que o homem é bom e quem o corrompe é a
sociedade. Esses autores, em suas respectivas obras, fizeram um pacto em prol do homem
simples, do povo, como sendo modelo a ser seguido e cultuado. Leon Tolstói chegou,
inclusive, a usar um pingente com a foto do mestre, que carregava ao pescoço como um
talismã, já Lima Barreto almejava escrever uma grande obra, confissão, essa, feita por
intermédio de seu personagem Gonzaga de Sá: “Se eu pudesse, se me fosse dado ter o dom
completo de escritor, eu havia de ser assim um Rousseau, ao meu jeito, pregando à massa um
ideal de vigor, de violência, de força, de coragem calculada, que lhes corrigisse a bondade e a
doçura deprimente” (BARRETO, 2001, p. 615).
Em, “Sobre o maximalismo”, reafirma as quatro medidas sugeridas no artigo “No
ajuste de contas”: supressão da dívida externa, confiscação dos bens das ordens religiosas,
extinção do direito de testar e estabelecimento do divórcio e reafirma que “[...] todo o mal está
no capitalismo, na insensibilidade moral da burguesia, na sua ganância sem freio de espécie
alguma, que só vê na vida dinheiro [...]” (BARRETO, 1956, v. IX, p. 163).
Buscou-se, aqui, demonstrar o cruzamento de ideias entre Lima Barreto, Leon
Tolstói e o ideário anarquista, concretizada no cruzamento de vozes. A julgar pelo teor de
seus escritos, é possível dizer que a firme resolução de ambos de colocar em prática os
respectivos desejos e vontades, principalmente a de auto-afirmação, independe de fatores
externos, e, sim, constitui uma característica imanente dos escritores, pois eles fizeram da
literatura uma permanente arma de combate.
3.4 “O Destino da Literatura”
A missão da literatura é fazer comunicar umas almas
com as outras, é dar-lhes um mais perfeito entendimento
entre elas, é ligá-las mais fortemente, reforçando desse
modo a solidariedade humana, tornando os homens mais
capazes para a conquista do planeta e se entenderem
melhor, no único intuito de sua felicidade. (BARRETO,
1956, Impressões de leitura, p. 190).
A opção por esses textos – “O destino da literatura” e “O que é Arte?” – deve-se ao
fato de ambos apresentarem um esboço das ideias mais importantes de cada um dos escritores,
105
tanto Lima Barreto quanto Leon Tolstói refletiram sobre o papel da arte e, especificamente, da
literatura. Constata-se o posicionamento de ambos contra os critérios estéticos vigentes na
literatura, questionando o papel e a função dela na sociedade e, os dois escritores, cada qual
em seu tempo, instauraram um processo de ruptura com os moldes vigentes.
A reflexão de Lima Barreto, sobre a arte e sua finalidade, encontra-se em quase toda
a obra barretiana: nos romances, no volume Impressões de leitura e na Correspondência. Mas
é em “O destino da literatura” que se encontra praticamente um roteiro de estética da obra
barretiana. Trata-se de uma conferência literária escrita em 1921, para ser proferida em
Mirassol (SP), mas, que, conforme os registros, jamais foi realizada. Só que, dessa vez, o que
impediu Lima de proferir a conferência não foram as desculpas com as quais recusava os
convites por não concordar com as futilidades que cercavam essa atividade literária, mas um
motivo superior às suas forças, o álcool. A conferência literária, não proferida, tornou-se um
de seus mais importantes textos, no qual Lima faz referência aos escritores a quem recorreu
para reforçar e endossar a própria palavra, sendo eles: H. Taine, Guyau, Brunetiére, T. Carlyle
e Leon Tolstói. Nela, Lima Barreto faz uma síntese de seu pensamento estético e considera-a
como sendo a primeira e, talvez a última, “[...] porque estou encerrando o que prontamente se
chama carreira literária” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 55). É provável que Lima Barreto, ao
sentir os efeitos implacáveis do álcool e da vida desregrada, já pressentisse o fim que lhe
estava próximo, pouco depois, em 1º de novembro de 1922.
A ideia principal da conferência resume-se na seguinte questão levantada pelo
escritor: “Em que pode a Literatura, ou a Arte contribuir para a felicidade de um povo, de uma
nação, da humanidade, enfim?” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 55-56). E mais, Lima Barreto
enfatiza “[...] em súmula o resumo do problema da importância e do destino da Literatura que
se contém no da Arte em geral” (p. 56).
Lima Barreto opõe-se à concepção de Arte de Baumgartem, que “[...] a definia como
tendo por objeto o conhecimento da Beleza, sendo que esta é o perfeito ou o absoluto,
percebido pelos sentidos e tem por destino deleitar e excitar este ou aquele desejo nosso”
(BARRETO, 1956, v. XIII, p. 57). Assim, o escritor não compactua com os moldes vigentes
e, ao recusá-los, o faz de forma consciente, isto é, sabendo justificar o porquê de tal recusa.
Dessa forma, Lima Barreto se manifesta sobre a arte. Suas posições aparecem sempre ao
negar e criticar a arte vigente e, em contraponto, apresenta sua concepção sobre a arte. Sobre
isso, Cavalcante Proença fez a seguinte observação: “Grande número de seus conceitos nos
chega, de certo, por antonímia, através de ataques ao que julga errado” (PROENÇA, 1956,
p. 12).
106
A forma como Lima Barreto se manifesta, principalmente em relação à literatura e
ao papel do escritor, encontra-se nas avaliações críticas que ele fazia das inúmeras obras
recebidas de escritores que se iniciavam na literatura. Lima Barreto exerceu, também, a
função de crítico literário, e o próprio autor comenta o fato queixando-se da falta de tempo
para poder analisar todos os livros que recebia, ou, ainda, das lacunas em sua formação
literária para exercer a crítica, sobretudo de textos poéticos:
A oferta de livros não cessa de me ser feita. É cousa que muito me desvanece;
mas muito me embaraça também.
Às vezes são poetas que me oferecem suas plaquets e mesmo seus livros.
Sou obrigado, por delicadeza e para não parecer presunçoso, a dar uma opinião
sobre eles.
Ora, nunca estudei, mesmo nos seus menores elementos, a arte de fazer versos;
não conheço as suas escolas [...], entretanto segundo as praxes literárias, tenho, ou
por carta ou em artigo, que dar opinião sobre as obras poéticas que me são enviadas.
(BARRETO, 1956, v. XIII, p. 97).
Lima Barreto demonstrou-se sempre imbuído de sinceridade e humildade em suas
avaliações críticas. Nessa atitude, fica explícita a censura ao modo como os críticos literários
desempenhavam essa atividade, pois, demonstrando uma recepção acolhedora em relação aos
novos escritores, visava incentivá-los e estimulá-los na nova tarefa, bem diferente do modo
que a crítica se manifestou sobre suas obras.
O melhor exemplo disso está presente nas várias críticas que Lima Barreto dirigiu ao
escritor Coelho Neto, legítimo representante de uma literatura fútil, conforme avaliação feita
por ele. Desse modo, demonstrar-se-á a concepção de literatura de Lima Barreto através das
críticas dirigidas a Coelho Neto. Na crônica literária, publicada em A Lanterna, em 18 de
janeiro de 1918, intitulada “Literatura e Política”, Lima avalia o desempenho de Coelho Neto
como “literato-político”. Avalia negativamente a ambos, tanto o literato quanto o político.
Transparece em sua crítica que, se Coelho Neto fosse outro tipo de escritor, mais combativo e
participante dos problemas de seu tempo, com certeza seu desempenho enquanto político seria
outro, mais positivo: “Não se impressionou com as mais absorventes preocupações
contemporâneas que lhe estavam tão próximas”, e ainda: “As cogitações políticas, religiosas,
sociais, morais, do seu século, ficaram-lhe inteiramente estranhas” (BARRETO, 1956, v.XIII,
p. 75). Outras avaliações demonstram diretamente a crítica ao Coelho Neto, escritor:
[...] em um século deste, o Senhor Coelho Neto ficou sendo unicamente um plástico,
um contemplativo, magnetizado por Flaubert da Mme. Bovary, com suas chinesices
de estilo, querendo como os Goncourts, pintar com a palavra escrita, e sempre
fascinado por uma Grécia que talvez não seja a que existiu mas, mesmo que fosse,
só nos deve interessar arqueologicamente. (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 75-76).
107
“Um plástico, um contemplativo” são características que não combinam com o
político, muito menos com o literato de “um século deste”
22
, visto que, para Lima Barreto, a
literatura tinha que ser obrigatoriamente militante. Lima critica o fato de Coelho Neto buscar
seus modelos na cultura clássica e cultuar uma Grécia há muito ultrapassada para o seu
tempo, que “[...] só nos deve interessar arqueologicamente” (BARRETO, 1956, v. XIII,
p. 76); e mais: “[...] ele nunca pode perceber que nós, hoje, não podemos sentir como a Grécia
e que os seus Deuses nos são estranhos perfeitamente e quase incompreensíveis” (BARRETO,
1956, v. XIII, p. 190). Diante dessa atitude, percebe-se que o escritor Lima Barreto reivindica
uma literatura militante voltada para os problemas e assuntos do nosso País, em prol de uma
literatura própria, e não uma cópia, uma imitação dos moldes clássicos. Como se vê, Lima
Barreto, além de criticar as características literárias de Coelho Neto, renega-as, reforçando,
com isso, as suas concepções.
Na crônica “Histrião ou Literato?”, publicada na Revista Contemporânea, de 15 de
fevereiro de 1918, Lima Barreto refere-se a Coelho Neto como “[...] o sujeito mais nefasto
que tem aparecido no nosso meio intelectual” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 190).
Principalmente pelo fato de que sua “[...] notoriedade tem sido feita através da arte da escrita”
(p. 188), Lima Barreto repudia peremptoriamente o modo de Coelho Neto escrever: “[...] o
Senhor Neto transformou toda a arte de escrever em pura chinoiserie de estilo e fraseado”
(p. 189). Afirma que o “[...] estilo, música do período, imagens peregrinas e outras cousas que
são o cortejo da arte de escrever, que são os seus meios de comunicação, de sedução, mas não
são o fim próprio da literatura” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 189). E, ainda, que Coelho Neto
“[...] quer fazer constar ao público brasileiro que literatura é escrever bonito, fazer brindes de
sobremesa, para satisfação dos ricaços” (p. 190).
Além de explicitar suas concepções sobre a arte e sobre a literatura, em particular,
Lima Barreto reivindica uma mudança de postura dos escritores diante do quadro nacional:
“No nosso tempo de literatura militante, ativa, em que o palco e o livro são tribunas para as
discussões mais amplas de tudo o que interessa o destino da humanidade” (BARRETO, 1956,
v. XIII, p. 164). E, assim, propõe, no artigo “Amplius!”, de 31 de agosto de 1916, o papel do
escritor:
22
Pode-se dizer que aqui se encontra o caráter inovador da literatura barretiana, pois Lima compreende que,
para retratar esse tempo de mudanças, é preciso que a literatura e o escritor estejam comprometidos com o
aqui e agora. “Em um século de crítica social, de renovação latente, das bases de nossas instituições [...]”;
“Em anos como os que estão correndo, de uma literatura militante, cheia de preocupações políticas, morais e
sociais, a literatura do Senhor Coelho Neto ficou sendo puramente contemplativa, estilizante, sem cogitações
outras que não as da arte poética, consagrada no círculo dos grandes burgueses embotados pelo dinheiro.”
(BARRETO, 1956, v. XIII, p. 76).
108
Parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado
todas as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros e aproveitar de cada um
deles o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar
certas usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as
nossas grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para
soldar, ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das
almas individuais e do que elas têm de comum e dependente entre si. (BARRETO,
1956, v. VI, p. 33).
Conforme Lima Barreto, não há mais espaço para escritores, como Júlio Dantas e
Antero de Figueiredo: “[...], dous inócuos fazedores de frases bimbalhantes” (BARRETO,
1956, v. XIII, p. 164). Os dois autores portugueses eram muito prestigiados no meio literário
brasileiro, todavia, Lima não os avaliava da mesma forma. Acreditava que os escritores
brasileiros sofriam “uma nefasta influência dos portugueses”, pois “lhes copiavam os
cacoetes, a estrutura da frase”, não escrevendo “como o seu meio o pede e o requer”
(BARRETO, 1956, XIV, p. 100). No rol dos autores portugueses, Lima combate também a
literatura dos parnasianos, dos nefelibatas, dos acadêmicos e dos bacharéis ilustrados,
principalmente, dos médicos literatos, por não escreverem para o seu tempo. Fazem “[...] uma
literatura de clube, imbecil, de palavrinhas, de coisinhas” (p. 100).
Lima postula, para a literatura e para a arte, em geral, características bem diferentes
e opostas àquelas do ideal de beleza e deleite que estavam em exercício, isto é, uma literatura
militante. No texto, ao levantar questões, como “Em que pode a Literatura, ou a Arte
contribuir para a felicidade de um povo, de uma nação, da humanidade, enfim?” (BARRETO,
1956, v. XIII, p. 55), expõe uma das preocupações centrais de toda a obra. A compreensão do
fenômeno artístico, para o escritor, só é possível ao relacioná-la com a sociedade:
“O debate a esse respeito não está encerrado enquanto não concordarem os sábios e as
autoridades no assunto que o fenômeno artístico é um fenômeno social e o da arte é social
para não dizer sociológico” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 56).
A função social da literatura está implícita em toda a obra do escritor, por dois
motivos: primeiro, o homem Lima Barreto vê-se impedido de ter acesso àquilo que lhe é de
direito, devido ao preconceito racial e aos inúmeros sofrimentos que o acompanham por toda
a vida. Segundo, o intelectual Lima Barreto percebe a grande distância entre o poder público e
o indivíduo, ou melhor, as classes dirigentes e o povo. Quando reivindica, sempre inclui o
próximo, transformando a obra literária em uma reivindicação coletiva. Lima Barreto é
defensor de uma literatura empenhada nos problemas existenciais do indivíduo em face da
sociedade. Daí o fato de acreditar em uma literatura que não mais tenha por fim a beleza, pois,
segundo Lima, “[...] o destino da Literatura e da Arte deixou de ser unicamente a beleza, o
109
prazer, o deleite dos sentidos, para ser cousa muito diversa” (BARRETO, 1956, v. XIII,
p. 64). O escritor encontra, nas palavras de Leon Tolstói, a definição que mais vem ao
encontro de seu pensamento:
Quando se quer definir todo um ramo de atividade humana, é necessário
procurar-lhe o seu sentido e o seu alcance. Para isto fazer, é primeiramente
indispensável estudar tal atividade em si mesma, na dependência de suas causas e
efeitos, e não exclusivamente nas suas relações com os prazeres que ela nos
proporciona. (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 65).
E, ainda: “Se dissermos que o fim de certa atividade humana é unicamente o prazer,
e só sobre ele fizermos repousar a nossa definição, será ela evidentemente falsa. É o que se dá
com a definição de Arte assim concebida” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 65).
O fio condutor do pensamento estético de Lima torna-se explícito em “O destino da
literatura” devido às referências feitas pelo próprio escritor. Depois de citar Leon Tolstói, é a
vez de confirmar que se utilizou, também, de Taine, Guyau, e de Brunetière (BARRETO,
1956, v. XIII, p. 57). Além desses, encontram-se referências a Tomas Carlyle e Camerino
Rocha, porém, em menor quantidade. Os filósofos citados influenciaram na formação das
ideias estéticas de Lima Barreto, e suas concepções de arte já foram abordadas anteriormente.
Sendo assim, resta-nos verificar se a noção de arte de Leon Tolstói foi, de fato, utilizada por
Lima Barreto. São vários os indícios de que tal apropriação tenha ocorrido, o principal deles
consiste nas referências, citações, alusões, comentários feitos, por Lima Barreto, das obras e
do escritor Leon Tolstói.
De Leon Tolstói, nota-se que o escritor assimilou o conceito de que a arte não é
somente a “beleza, o prazer, o deleite dos sentidos”, mas, sim “cousa muito diversa”.
Entenda-se por “cousa muito diversa” a arte que tem, por fim, algo muito mais prático, como
a transformação do receptor, isto é, do leitor. Para isso, vê a necessidade de a arte estar
imbuída de sentimento: “É preciso que esse argumento se transforme em sentimento; e a arte,
literatura salutar tem o poder de fazê-lo, de transformar a idéia, o preceito, a regra em
sentimento” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 62). Além disso, Lima Barreto ressalta que “a arte
literária se apresenta com um verdadeiro poder de contágio”. Esse “poder de contágio” visa
acima de tudo à união e a solidariedade entre os homens. Com isso, o escritor define o
destino da Literatura: “[...] é tornar sensível, assimilável, vulgar esse grande ideal de poucos a
todos, para que ela cumpra ainda uma vez a sua missão quase divina” (BARRETO, 1956,
v. XIII, p. 68).
110
Ao enfatizar a função da literatura como meio de comunicação, e ressaltando a
responsabilidade dela em relação ao momento histórico, Lima Barreto traz à tona a relação
entre a obra e o escritor. Pois, assim como a literatura deveria tratar das “questões da época”
(BARRETO, 1961, v. XIII, p. 73), o escritor, o artista, deve se ocupar dos problemas que
estão a sua volta, isto é, do tempo presente.
Sendo assim, o escritor tem responsabilidade em desempenhar o papel de “semeador
de ideias” e de “batedor do futuro” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 77). Papel, esse, que o
escritor Lima Barreto desempenha na vida pessoal tanto quanto na ficção; e, contrariando a
elite que dominava a literatura do período, isto é, os “mandarins literários”; reivindica seu
lugar nas letras: “Por mais que não queiram, eu também sou literato e o que toca a coisas de
letras não me é indiferente” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 74).
Diante dessa postura corajosa, constata-se, realmente, que Lima desempenhou o
papel de “semeador de ideias” e “batedor do futuro”, quer seja como escritor, jornalista ou
simples cidadão carioca que morava no subúrbio do Rio de Janeiro. Entretanto, é como
escritor que se sobressai e entra para a história da literatura, e é como escritor, utilizando-se
da literatura, que busca uma mudança na sociedade: “É chegada, no mundo, a hora de
reformarmos a sociedade, a humanidade, não politicamente que nada adianta, mas
socialmente que é tudo” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 165). Com isso, evidenciam-se as
influências estéticas de Guyau, Taine e Brunetière, que foram coerentemente assimiladas por
Lima para compor seu projeto literário: arte vinculada à realidade, arte engajada e arte
solidarizadora.
Essas três concepções de arte estão inseridas na concepção de arte de Leon Tolstói.
Em síntese, ele defende que o essencial na arte é constituir-se em um instrumento de
comunicação e ligação entre os homens, isto é, o seu poder de contágio. Lima Barreto
demonstra tê-la assimilado de modo convincente, conforme se verifica na citação a seguir:
A arte, tendo o poder de transmitir sentimentos e idéias, sob a forma de
sentimentos, trabalha pela união da espécie; assim trabalhando, concorre portando,
para o seu acréscimo de inteligência e de felicidade.
[...] Ela explicou e explica a dor dos humildes aos poderosos e as angustiosas
dúvidas destes, àqueles; ela faz compreender, uns aos outros, as almas dos homens
dos mais desencontrados nascimentos, das mais dispersas épocas, das mais dispersas
raças; ela se apieda tanto do criminoso, do vagabundo, quanto de Napoleão
prisioneiro ou de Maria Antonieta subindo à guilhotina; ela, não cansada de ligar as
nossas almas, umas às outras, ainda nos liga à arvore, à flor, ao cão, ao rio, ao mar e
à estrela inaccessível; ela nos faz compreender o Universo, a Terra, Deus e o
Mistério que nos cerca, para o qual abre perspectivas infinitas de sonhos e de altos
desejos. (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 67).
111
Nada mais tolstoiano que essa citação de Lima Barreto. Se a lêssemos isoladamente,
sem indicação do autor, é bem provável que a julgássemos um trecho da obra, “O que é Arte”,
de Leon Tolstói e não do texto, “O destino da Literatura”. Não obstante, esse processo não
depõe contra o fazer artístico de Lima Barreto; ao contrário, isso demonstra que o escritor
assimilou de Leon Tolstói o que era importante para a reformulação da arte literária que
pretendia fazer, visto que a julgava necessária e imprescindível diante das transformações
sociais que ocorriam naquele período. Constata-se, assim, que quem saiu ganhando foi a arte
literária.
3.5 “O que é Arte?” (1898)
Leon Tolstói, no prefácio à edição inglesa de 1898, revela que a obra “O que é
arte?” tivera várias publicações na Rússia, porém todas com vários cortes e alterações por
parte da censura. Atribuía, portanto, à edição inglesa o mérito de apresentá-la na forma
original. Justifica-se por ter permitido que as edições saíssem com tantas alterações, pois, ou
se fazia da forma como a censura admitisse, ou, então, nada. Sendo, assim, permitira sua
publicação, ao avaliar o bem que sua obra faria ao povo russo, mesmo tendo suas principais
ideias alteradas pela censura.
Alguns críticos referem-se a “O que é arte?” tratando-a por panfleto, porém o
próprio Leon Tolstói designou-a como artigo. Isso, talvez, em função do volume apresentado,
pois, comparado ao conjunto de sua obra, é um dos menores. Essa obra de Leon Tolstói,
constituída por vinte capítulos, apresenta suas reflexões sobre as relações da arte com a vida,
em geral. Conforme confissão do autor, esse tratado sobre a arte foi resultado de quinze anos
de trabalho:
Eu cumpri com o melhor das minhas capacidades este trabalho que me ocupou
por quinze anos, sobre um assunto próximo a mim – o da arte. Ao dizer que este
assunto me ocupou por quinze anos eu não quero dizer que comecei a escrever sobre
arte quinze anos atrás, pensando que, uma vez que me incumbi da tarefa, eu deveria
ser capaz de cumpri-la sem interrupção. Provou-se, no entanto, que as minhas visões
sobre o assunto estavam tão longe de serem claras que não conseguia arranjá-las
num modo que me satisfizesse. Desde aquela época jamais parei de pensar sobre o
assunto e recomecei a escrever seis ou sete vezes; mas, toda vez depois de ter escrito
uma boa parte, via que era incapaz de levar o trabalho a uma conclusão satisfatória e
era obrigado a deixá-lo de lado. Agora acabei e não importa o quão mal eu tenha
realizado a tarefa, a minha esperança é de que o meu pensamento fundamental sobre
a falsa direção da arte que a nossa sociedade tomou e está seguindo, sobre as razões
disso e sobre o real destino da arte, esteja correto, e que por isso o meu trabalho não
seja sem utilidade. (TOLSTÓI, 1994, p. 153).
112
Acredita-se que o autor tenha, realmente, necessitado desse tempo, em função do
caráter polêmico que suas ideias suscitariam no meio intelectual. A seriedade da reflexão é
indiscutível: “Desde aquela época jamais parei de pensar sobre o assunto e recomecei a
escrever seis ou sete vezes; mas, toda vez depois de ter escrito uma boa parte, via que era
incapaz de levar o trabalho a uma conclusão satisfatória e era obrigado a deixá-lo de lado”
(TOLSTÓI, 1994, p. 153). Essas reflexões sobre a arte retomam e, ao mesmo tempo, renegam
as várias definições de que o objeto da arte seja a beleza, o belo. Leon Tolstói, em seu tratado,
parte da gênese dessa definição que está em Baumgarten, o autor que fundou a estética, em
1750, demonstrando os inúmeros filósofos que se detiveram sobre essa questão sem chegar a
um consenso. Aponta para o significado divergente que a palavra “beleza” adquire na língua
russa e nas demais línguas europeias, como fator desse impasse. Em russo, a palavra krasota
(Beleza) “[...] significa simplesmente aquilo que agrada a vista” (TOLSTÓI, 1994, p. 30).
Embora os russos empreguem há algum tempo as expressões “ação feia” ou “bela música”,
estão em desacordo com a língua russa. Isto porque, na língua russa, “uma ação pode ser boa,
desagradável ou ruim” (p. 30), o adjetivo “belo” pode referir-se apenas “a um homem, a um
cavalo, a uma casa, a um lugar, a um movimento”. Demonstra que, para a língua russa, “a
palavra e a noção de bom [...] implica a noção do ‘belo’, ao passo que essa última noção não
implica, necessariamente, o conceito do ‘Bom’” (TOLSTÓI, 1994, p. 30).
Leon Tolstói ilustra, assim, o desacordo de significados das palavras “belo” e
“beleza” na língua russa e nas línguas europeias, porém o significado europeu dessas palavras
já estava sendo assimilado pelos russos. A partir dessa constatação, o escritor russo apresenta,
no capítulo III, um amplo rol de definições, do belo e da beleza, por inúmeros filósofos,
começando por Baumgarten (1714-1762). Não convém enumerar todos esses filósofos e,
menos ainda, a filosofia estética de cada um, devido à proporção que tomaria essa relação. É
importante, porém, enfatizar que, dentre os inúmeros filósofos nomeados, encontra-se o
escritor francês Véron, com quem Leon Tolstói demonstra ter algumas afinidades. A Estética
de Véron (1878) apresenta similaridade com a de Leon Tolstói em relação ao sentimento
como característica da arte. Vejamos o parecer do próprio Leon Tolstói sobre Véron:
Distingue-se das obras afins se não por outra coisa, pela maior clareza e
facilidade. Sem dar uma definição exata da arte, o autor tem o mérito de
desembaraçar a estética de todas as noções vagas do belo absoluto. Segundo Véron
(1825-1889), a arte é a manifestação de uma emoção revelada por meio de qualquer
combinação de linhas, de formas, de cores, ou de uma sucessão de movimentos, de
sons ou palavras sujeitas a certos ritmos. (TOLSTÓI, 1994, p. 39).
113
Leon Tolstói, ao fazer um levantamento histórico de todas as filosofias estéticas, a
fim de verificar o que vem a ser o “belo” e a “beleza”, desde Baumgarten e Hegel, posiciona-
se de forma contrária em relação a todas elas. Por um lado, demonstra ter alguma afinidade
com a filosofia estética de Véron no que se refere à questão do “sentimento”; por outro,
manifesta certa aversão à estética de Sully que, segundo ele, “[...] afronta[m] resolutamente o
problema da arte independentemente do conceito de beleza” (TOLSTÓI, 1994, p. 41). Na
obra, Sensation and Intuition: Studies in Psychology and Aesthetics (1874), Sully faz a
seguinte definição de arte: “[...] é apenas um produto idôneo para proporcionar ao produtor
um prazer ativo e para suscitar uma impressão agradável em certo número de espectadores ou
ouvintes, abstraindo-se de todas as considerações de utilidade prática” (p. 41). A arte, como
“prazer ativo”, “impressão agradável” e sem “considerações de utilidade pública”, realmente,
não se coaduna com a concepção artística de Leon Tolstói.
Leon Tolstói resume as estéticas existentes: “[...] que o objetivo da arte é beleza, que
a beleza é reconhecida pelo deleite que ela dá e que o deleite é uma coisa boa e importante,
porque ele é o deleite” (TOLSTÓI, 1994, p. 46). Afirma, ainda, que o que “[...] é considerado
definição da arte não é definição coisa nenhuma, mas apenas um ardil para justificar a arte
existente” (TOLSTÓI, 1994, p. 47). Ao deixar de lado a definição de arte, que tem por fim a
beleza, passa a relacionar as definições não baseadas na beleza, porém todas são descartadas e
chega à própria definição de arte. Para isso, vai formulando-a aos poucos, conforme se
constatará na citação a seguir:
Para definir mais corretamente a arte, faz-se mister renunciar nela reconhecer
apenas uma forma de prazer e considerá-la antes como uma das condições essenciais
da vida humana. Sob tal aspecto a arte se apresentará a nós, de imediato, como um
meio de comunicação entre os homens. (TOLSTÓI, 1994, p. 50).
Desse modo, Leon Tolstói chega ao conceito: “A arte é a atividade humana em que
um homem, conscientemente, através de certos signos exteriores, comunica a outras pessoas
sentimentos que ele vivenciou, de modo a contaminá-las e fazê-las vivenciar os mesmos
sentimentos” (TOLSTÓI, 1994, p. 51). Assim sendo, para Leon Tolstói, como já visto, o
essencial na arte é o seu poder de contágio.
Ao defender a comunicação e a ligação entre os homens, como função da arte, Leon
Tolstói condena a separação que passou a existir: uma, a arte das classes cultas, isto é, dos
bem instruídos, e a outra, a do povo. Além dessa arte que gera “a opressão de multidões”, não
é dado ao povo o poder de escolha, pois ela torna-se “inacessível devido ao seu alto custo” e
114
“estranha pela sua própria natureza” (TOLSTÓI, 1994, p. 65), isso porque transmite
sentimentos humanos distantes daqueles oriundos das condições de vida trabalhadora. Leon
Tolstói classifica essa divisão em arte boa e arte ruim; desse modo, a arte das classes cultas
passou a ser produzida em grande escala, utilizando-se dos seguintes métodos: os
empréstimos, a imitação, os efeitos e a excitação da curiosidade (p. 89). Com isso, ocorreu o
aumento das contrafações da arte, que estão diretamente relacionadas: 1) à profissionalização
dos artistas; 2) à crítica de arte; 3) ao ensino artístico (TOLSTÓI, 1994, p. 102).
Leon Tolstói defende, como a única forma para se distinguir a arte verdadeira de sua
contrafação, o contágio artístico. Vejamos o que ele diz:
Se um homem, sem nenhum esforço de sua parte, perante a obra de outro homem,
experimenta uma emoção que une aquele a outros, que, contemporaneamente,
receberiam a mesma impressão, isto significa que a obra diante da qual se encontra é
obra de arte. E uma obra pode ser tão bela quanto se queira poética, ricas e efeitos e
interessante, mas não será obra de arte se não despertar em nós aquela emoção muito
particular, a alegria de nos sentirmos em comunhão com o autor e com outros
homens em companhia dos quais lemos, contemplamos ou ouvimos a obra em
questão. (TOLSTÓI, 1994, p. 119).
Encontra-se aqui o ponto de maior aproximação entre a concepção de arte de Lima
Barreto e a de Leon Tolstói, referente ao papel da verdadeira arte:
A verdadeira obra de arte produz o efeito de suprimir a distinção entre a pessoa a
quem se dirige o artista, como de igual modo entre essa pessoa e todas as outras às
quais se dirige a mesma obra de arte. E é precisamente nessa supressão de todas as
barreiras entre os homens, nesta união do público com o artista, que reside a virtude
principal da arte. (TOLSTÓI, 1994, p. 119).
Conforme Leon Tolstói, “[...] quanto mais forte a comunicação, mais verdadeira é a
arte enquanto arte, independentemente do conteúdo ou, antes, do valor dos sentimentos que
nos transmite” (TOLSTÓI, 1994, p. 120). Para avaliar esse grau de comunicação da arte, Leon
Tolstói estipula três condições: 1) da maior ou menor singularidade, originalidade e novidade
de sentimentos expressos; 2) da maior ou menor clareza com a qual são expressos;
3) finalmente, da sensibilidade do artista, isto é, da maior ou menor intensidade com a qual
experimenta, ele próprio, o sentimento que expressa (TOLSTÓI, 1994, p. 120). A primeira
das condições, a singularidade dos sentimentos, garante uma maior ação sobre quem os
recebe; enquanto a clareza de expressão dos sentimentos é o que nos possibilita a sensação de
estarmos unidos ao artista. Essa sensação de união ao artista será maior e melhor se o receptor
perceber que o artista está emocionado com a própria arte. Das três condições, Leon Tolstói,
115
porém, reduz todas à terceira: a sinceridade. “Acima de tudo, porém é o grau de sinceridade
do artista que determina o grau de contágio artístico” (TOLSTÓI, 1994, p. 120).
Na visão de Leon Tolstói, a sinceridade, como condição essencial da arte, está
sempre presente na arte popular e longe da arte feita pelas camadas superiores, visto que, essa
última, está mediada pela profissionalização do trabalho artístico, que traz consigo “[...] as
considerações de lucro, de conveniência e de amor próprio” (p. 120). Pelo que se vê, essas são
as condições para se distinguir a verdadeira arte de sua contrafação e medir o “grau de
excelência da arte” (p. 120). Conforme se constata no trecho em destaque:
A ausência de qualquer dessas condições exclui a obra da categoria da arte e
relega à da contrafação da arte. Se a obra não transmite a peculiaridade do
sentimento do artista e é, portanto não individual, se está expresso de forma não
inteligível, ou se não procedeu da necessidade interior do autor pela expressão, não é
uma obra de arte. Se todas essas condições estão presentes mesmo em mínimos
graus, então a obra, mesmo que seja fraca, é ainda uma obra de arte. (TOLSTÓI,
1994, p. 121).
Dessa forma, Leon Tolstói distingue a arte do que não é arte e também define a
qualidade da arte enquanto arte, independentemente do seu tema, isto é, à parte do fato de os
sentimentos expressos serem bons ou maus. Como vimos, toda verdadeira arte deve
apresentar essas condições, porém, nem sempre isso ocorre, e os resultados da ausência da
verdadeira arte são muitos. Leon Tolstói afirma, ainda, que o progresso humano depende de
dois órgãos: a arte e a linguagem: “Por meio da linguagem, o homem permuta seus
pensamentos. Por meio da arte, permuta seus sentimentos com os homens de seu tempo,
igualmente com os sentimentos das gerações passadas e futuras” (TOLSTÓI, 1994, p. 135).
No entanto, para Leon Tolstói, a arte, sua contemporânea, não estava cumprindo o
papel que lhe cabia como órgão indispensável; ele aponta algumas das consequências da
perversão da arte. A primeira refere-se ao enorme consumo de trabalho humano; a segunda,
ao dispendioso gasto das classes ricas para viver de uma maneira falsa e ociosa; a terceira, à
confusão e à perturbação que esse mau funcionamento suscita na mente dos jovens e da gente
do povo, nas pessoas que não foram pervertidas por teoria mentirosas; a quarta encontra-se no
fato de que os homens das classes superiores, ao verem reproduzir-se com frequência o
contraste entre a beleza e o bem, acabam por considerar o ideal da beleza como o mais
elevado entre os dois, desvinculando-se, assim, dos deveres da moral; e, por fim, a quinta
consequência, a arte ruim que floresce entre as classes superiores, pervertendo-as diretamente,
pelo seu poder de contágio artístico, reforçando nelas os mais detestáveis sentimentos, no que
toca à felicidade dos homens, quais sejam, a superstição, o patriotismo e a sensualidade
116
(TOLSTÓI, 1994, p. 139). Sendo assim, para Leon Tolstói, a arte contemporânea tem um
objetivo definido: excitar e difundir, o mais que possa, a depravação (p. 140). Leon Tolstói
compara a arte, sua contemporânea, a uma prostituta, daí o fato de ela estar sempre enfeitada,
vendável, e de como ela é sedutora e ruinosa (p. 145).
Vista dessa maneira, a arte das classes superiores, para Leon Tolstói, “chegou ao
fundo do poço”, a partir do momento em que se desvinculou da consciência religiosa, e ele
não vê a possibilidade da arte do futuro, isto é, a que almeja ser continuação daquela. Logo, a
arte do futuro não terá como finalidade expressar sentimentos acessíveis apenas a alguns
privilegiados, mas, sim, manifestar a mais elevada consciência religiosa a toda a humanidade.
No futuro não será considerada arte senão aquela que expressar os sentimentos que
impelirem os homens à união fraterna, ou mesmo sentimentos tão universais que
podem ser experimentados pelas raças humanas. Apenas essa arte será assinalada
entre todas, admitida, encorajada, difundida. (TOLSTÓI, 1994, p. 147).
A arte almejada por Leon Tolstói não terá valor mercadológico, e estenderá, assim,
seu poder de contágio, através dos sentimentos e da comunicação entre os homens, na busca
de uma comunhão universal. Essa arte desejada por Leon Tolstói, além de pregar a união e a
inclusão de todos, independentemente da classe social, busca também uma transformação do
próprio artista. Nesse entendimento, o novo artista não terá mais a arte como ofício; sua
expressão artística será resultado de um dom superior que resultará do fato de que ele, o
artista, vive uma vida normal, isto é, comum a todos os mortais. Logo, o artista não será mais
considerado como um ser de outro mundo, com poderes superiores; será artista,
independentemente de sua origem social, desde que sinta necessidade e tenha capacidade de
realizar o ato de criação. Será necessário, porém, que não só o artista esteja inserido na
realidade cotidiana como, também, sua criação deverá estar intimamente ligada a essa
realidade. Dessa forma, tornar-se-á acessível a todas as classes sociais e a maioria comum dos
homens há de compreendê-la. Para Leon Tolstói, a arte do futuro terá uma “[...] expressão
breve, simples, clara e livre de toda sobrecarga inútil própria para transmitir os sentimentos do
artista” (TOLSTÓI, 1994, p. 150).
Como pudemos observar, o desenvolvimento humano, para LeonTolstói, depende da
arte e da linguagem e, para que a arte retome seu verdadeiro caminho, é imprescindível que
“[...] outra atividade espiritual humana igualmente importante – a ciência – em íntima
dependência com a arte, abandone a falsa trilha que ela também, como a arte, está seguindo”
(TOLSTÓI, 1994, p. 153). As duas, em sintonia, voltar-se-ão para o bem da humanidade,
117
porém, quem decidirá o que é importante para a arte e para a ciência será “[...] a percepção
religiosa de uma dada época e sociedade, isto é, pela compreensão comum do objetivo de vida
que as pessoas daquela época ou sociedade possuem” (TOLSTÓI, 1994, p. 154).
Arte não é um prazer, um consolo ou um entretenimento; a arte é um assunto de
peso. A arte é um órgão da vida humana transmitindo a percepção racional dos
homens para o campo dos sentimentos. Na nossa era a percepção comum religiosa
dos homens é a consciência da fraternidade do homem – sabemos que o bem estar
do homem está na união com os seus semelhantes. A verdadeira ciência deveria
indicar os vários métodos de aplicar essa consciência à vida. A arte deveria
transformar essa percepção em sentimento.
A tarefa da arte é enorme. Através da influência da verdadeira arte, auxiliada
pela ciência, guiada pela religião, aquela cooperação pacífica do homem que é agora
mantida por meios externos – pelas nossas cortes judiciais, polícia, instituições de
caridade, inspeções de fábricas, e assim por diante – deveria ser obtida pela
atividade livre e alegre dos homens. A arte deveria fazer com que a violência fosse
posta de lado.
E é somente a arte que pode alcançar isso. (TOLSTÓI, 1994, p. 160).
Nesse sentido, a definição de arte de Leon Tolstói, em síntese, busca a união
universal do homem por meio da democratização da arte.
Tendo em vista as inúmeras citações do escritor Lima Barreto, referentes a Leon
Tolstói, principalmente na conferência literária “O destino da literatura”, na qual recorre ao
escritor russo “[...] em sua sólida e acessível obra – O que é Arte?” (BARRETO, 1956,
v. XIII, p. 57), é irrefutável a presença da concepção tolstoiana de arte no projeto literário de
Lima Barreto. Visando à confirmação dessas influências literárias no projeto literário de Lima
Barreto, far-se-á a seguir um levantamento e análise dessas características tolstoianas de arte
nos principais romances de Lima Barreto.
118
4 LIMA BARRETO E LEON TOLSTÓI NAS TRINCHEIRAS
LITERÁRIAS: DIVERGÊNCIAS E CONVERGÊNCIAS
Quando me julgo – nada valho; quando me comparo, sou grande.
Lima Barreto (Diário Íntimo, 1904).
Ao entrarmos em contato com a obra de Lima Barreto, indiretamente, entramos em
contato com a biblioteca limana, isto é, as leituras efetuadas pelo escritor. Detentor de uma
honestidade intelectual difícil de encontrar entre os escritores atuantes naquela época, isso
jamais lhe permitiu abster-se de uma opinião sobre o que quer que fosse. Sempre em busca da
verdade e da informação correta, demonstrou coerência nas atitudes do homem e do escritor.
Os romancistas russos, como se vê, tiveram lugar de destaque nas leituras barretianas, isso
ficou bastante evidente em suas obras, pois fez questão de mostrar suas fontes literárias.
A literatura russa, com os escritores Leon Tolstói e Dostoiévski, serviu de parâmetro
para que Lima Barreto pensasse a literatura brasileira da virada do século XIX: “Quando tu
verás na tua terra um Dostoiévski, uma George Eliot, um Tolstói – gigantes destes, em que a
força de visão, o ilimitado da criação, não cedem o passo à simpatia pelos humildes, pelos
humilhados, pela dor daquelas gentes donde às vezes não vieram – quando?” (BARRETO,
1956, v. IV, p. 134). No Brasil, entre os principais acontecimentos, estão: a Abolição da
Escravatura (1888), a Proclamação da República (1889), a Revolta da Armada e a Revolução
Federalista no Sul (1893); na Rússia, a libertação dos servos (1862), a Revolução de 1905, o
massacre de Odessa, e em 22 de janeiro de 1905, em São Petersburgo, o sinistro “domingo
vermelho” e, ainda, a Revolução de Outubro de 1917, que varreu a Rússia Imperial, porém
que Leon Tolstói já não acompanhou. Enfrentando situações políticas, econômicas e sociais
com algumas semelhanças, principalmente no fato de relegar o povo a segundo plano, nada
mais natural que o escritor brasileiro percebesse aí uma saída para os problemas brasileiros. O
que mais o atraiu foram as ideias libertárias de Leon Tolstói, daí às relações literárias e à
concepção de arte foi uma questão de tempo. Ver-se-á que nem foi tanto tempo assim, pois
em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá já se encontravam rastros de leituras de Leon
Tolstói.
Nesse período, tanto na Rússia quanto no Brasil, vivia-se uma dissociação entre o
artista e a sociedade e, também, entre a classe dominante e o povo, em função de uma
119
ascendente supervalorização de tudo o que fosse estrangeiro. No caso da Rússia, ocorria uma
invasão da cultura e da literatura europeia, principalmente francesa. No Brasil, não ocorreu de
modo diferente, predominando, ainda, a influência dos franceses. Daí, a necessidade
percebida por Leon Tolstói e Lima Barreto de se voltarem para os respectivos países em busca
do nacional, ou o tipicamente russo e o tipicamente brasileiro.
Como escritores, repudiaram o convencionalismo literário, entendendo-se com isso
o modelo de literatura francesa; buscaram uma renovação na linguagem literária e se voltaram
para o povo e para a cultura popular. Cultuavam J. J. Rousseau, chegando a adotar um
comportamento bastante despojado, trajando roupas simples e pregando um ideal de vida
voltado para a natureza. Leon Tolstói dedicou-se a fazer as próprias botas, a ceifar o trigo e
procurou não se utilizar de serviços alheios, isto é, de outras pessoas. Compactuavam as ideias
libertárias, eram contrários à propriedade, ao Estado, à Igreja e ao casamento. Entretanto,
enquanto Lima Barreto não se casou para se dedicar exclusivamente à literatura, Leon Tolstói
o fez e teve treze filhos e, apesar de negar o casamento, jamais conseguiu se separar de sua
mulher, Sônia Tolstáia.
Embora Leon Tolstói fosse um aristocrata, e Lima Barreto, mulato, pobre,
marginalizado e funcionário público, ambos decidiram-se pela literatura, assumindo, dessa
forma, a responsabilidade de “semeador de ideias”, de “batedor do futuro” e de “sociólogo e
apóstolo social” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 77). Homens e artistas empenharam-se em prol
do social, percebendo-se certa dificuldade ao separar um e outro, pois se observa uma forte
marca autobiográfica na maioria de seus personagens protagonistas. Aliás, a presença do
autobiográfico em suas obras foi bastante criticada quando das respectivas estreias, inclusive
o fato de criarem personagens representando-se ou às pessoas próximas de cada um dos
autores.
No caso de Leon Tolstói, em Guerra e Paz (1869), muitos personagens, como o
príncipe Andrei Bolskonski e o aristocrata distraído, Pierre Besukhov, têm traços do autor;
inquieto e sarcástico, o primeiro; terno e distraído, o segundo. Maria Bolkonskaia, feia, pura,
temente do pai, não era outra senão a própria mãe de Leon Tolstói, Maria Volkonskaia.
Natacha Rostova, uma das personagens mais fascinantes, é jovem, bonita, alegre, de sorriso
esfuziante. Leon Tolstói criou-a a partir de sua cunhada mais jovem, Tânia Behrs, com quem
fazia longos passeios a cavalo, ouvia suas histórias, fazia-lhe perguntas sobre seus
sentimentos e anseios. Anotava tudo em sua memória e, trabalhando com a imaginação,
construiu a inesquecível Natacha, que se casa com Pierre Besukhov, no final do romance. Em
Ana Karênina, Leon Tolstói coloca muitos traços de seu próprio casamento com Sofia Behrs
120
e, em Levine, deixa transparecer traços das crises místicas e religiosas de que ele próprio seria
vítima mais tarde. Na maioria das obras de Leon Tolstói, é possível encontrar traços
autobiográficos, abrindo-se, talvez, uma exceção para os contos infantis.
Praticamente, por toda a obra ficcional de Lima Barreto, encontram-se traços
autobiográficos; agora, o que mais o marcou foi o romance de estreia, Recordações do
Escrivão Isaías Caminha (1909), no qual escreve contra o preconceito de cor e a
mediocridade que domina nosso meio social. Além disso, pode-se encontrar, ainda, uma sátira
mordaz dirigida contra o jornalismo e a literatura banal do Rio de Janeiro, no início do século
XX. Conforme B. Quadros, a chave do romance, “para um leitor a par da vida carioca em
1907”, seria o mesmo que “abrir uma porta aberta” (BARRETO, 1956, XVII, p. 14).
Laje da Silva, Pascoal Segreto; Raul Gusmão, João do Rio; Veiga Filho, Coelho
Neto; Plínio Gravatá o próprio Lima; Micaelóvski ou Gregoróvski, e ainda
Rostolopp, o tonifinante e inesquecível Mário Cataruzza; Losque, Gastão Bousquet;
Rolim, Francisco Couto; Floc, Itiberê da Cunha; doutor Franco de Andrade, Afrânio
Peixoto. (BARRETO, 1956, v. XVII, p. 14).
Pelo visto, as personagens retratadas eram pessoas influentes na sociedade carioca
de então, de onde brotou a forte rejeição que induziu ao esquecimento tanto o autor quanto a
obra. O fato de ter retratado pessoas reais não teria o mesmo valor se não tivesse feito com
arte, pois, com o tempo, ninguém mais saberia quem era quem. No entanto, os tipos
permanecem através da ficção e da arte.
4.1 A Função Social da Literatura: Comunicação, Ligação e Comunhão
entre as Pessoas
A verdadeira obra de arte produz o efeito de suprimir a
distinção entre a pessoa a quem se dirige o artista, como de
igual modo entre essa pessoa e todas as outras às quais se
dirige a mesma obra de arte. E é precisamente nessa supressão
de todas as barreiras entre os homens, nesta união do público
com o artista, que reside a virtude principal da arte.
(L. TOLSTÓI, 1994, p. 119).
A missão da literatura é fazer comunicar umas almas com as
outras, é dar-lhes um mais perfeito entendimento entre elas, é
ligá-las mais fortemente, reforçando desse modo a
solidariedade humana, tornando os homens mais capazes para
a conquista do planeta e se entenderem melhor, no único
intuito de sua felicidade.
(BARRETO, v. XIII, 1956, p.190).
121
A exposição das convicções de Lima Barreto e Leon Tolstói sobre arte, nos
respectivos textos apresentados anteriormente: “O destino da literatura” e O que é Arte?
serviu para que delimitássemos a concepção de arte dos escritores. Em decorrência disso,
pretende-se, através da reflexão sobre os textos de Lima Barreto e Leon Tolstói, cotejar e
explicar, quando possível, as semelhanças e as diferenças entre ambos.
A herança recebida de Leon Tolstói, por Lima Barreto, reside, ao que tudo indica, na
concepção de Arte postulada pelo escritor russo, explícita no livro O que é a Arte? (1898).
Conforme Leon Tolstói, esse assunto o ocupou por quinze anos, isto é, enquanto escrevia suas
principais obras, ensaios, tratados, sobre temas ligados à justiça social, religião, moralidade,
estava a refletir sobre a questão da arte. Essa preocupação constata-se quase uma década
antes, em trecho de Sonata a Kreutzer de 1891:
O que é a música? Não sei. O que é a música? Que efeito produz? E por que atua
desse modo? Dizem que eleva as almas. É absurdo! É mentira! Exerce uma grande
influência (refiro-me a mim próprio) mas não eleva a alma de maneira nenhuma.
Não faz isto? A música obriga-me a esquecer a minha existência, a minha situação
real, transforma-me. Debaixo de sua influência parece-me sentir aquilo que não
sinto, compreender o que não compreendo e ser capaz daquilo que na realidade não
sou. Creio que a música atua como o bocejo ou como o riso; uma pessoa perde a
vontade de dormir mas boceja se bocejar outra; não tem de que se rir mas ri ao ouvir
o riso dos outros. A música provoca em mim o mesmo estado de espírito que tinha o
compositor quando a escreveu. A minha alma confunde-se com a sua e o nosso
estado de espírito transforma-se; mas não sei por que é que me acontece isso. [...]
Ao som de uma marcha militar, os soldados desfilam, e ao duma música para
dançar, dança-se, e a música conseguiu assim seu objetivo. Participa-se numa
música cantada e a música justificou também a sua razão de ser. Mas em geral uma
pessoa não sente mais do que irritação, e não sabe o que fazer. É por isso que ela às
vezes atua de modo terrível. (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 1136).
Questões realmente polêmicas, visto reconhecerem que a música exerce uma grande
influência sobre o ouvinte, transforma-o, faz acreditar que pode fazer, compreender, sentir o
que, na realidade, não pode; provoca a comunhão de alma e espírito entre ouvinte e
compositor, possibilitando uma transformação. Porém, ignora a causa dessa sua
transformação, colocando, assim, em dúvida, a autonomia artística e defendendo uma visão
funcional da experiência estética. Desse modo, O que é a Arte? (1898) é um livro polêmico,
posto que a ideologia ali veiculada vinha contra a ideologia reinante entre a intelectualidade e
os artistas, em geral. A ideologia referida tratava-se da questão relacionada à autonomia
artística, ou melhor, do artista. Não só, por isso, como, também, por referir-se a um outro
questionamento em relação à arte, ou seja, o de “determinar sua função, sua relação com a
sociedade” (FABRIS, 1994, p. 18).
122
De início, constata-se, em Lima Barreto e em Leon Tolstói, uma característica que
se apresenta como a principal responsável pela atitude literária de ambos: uma insatisfação
com a corrente estética de tendência formalista que predominava no período em que
escreviam. Por isso, Leon Tolstói e Lima posicionaram-se contra o princípio estético da arte
pela arte. Com essa mudança de percepção do fazer literário, cada qual buscou praticar uma
literatura que estivesse mais próxima dos interesses populares, e não dos burgueses. Negam,
com isso, a autoridade da tradição artística e literária e inserem o novo em seu fazer literário.
Chiampi (1991, p. 15), ao tratar da modernidade estética e dos poetas fundadores, avalia-os da
seguinte forma: “Pode-se dizer que os poetas fundadores, para serem modernos, tiveram que
ser antimodernos”. Daí a inserção de Lima Barreto, juntamente com Leon Tolstói, no grupo
de escritores representantes da modernidade.
O novo, praticado na literatura pelos escritores, está diretamente ligado à presença
de uma acentuada preocupação social e a uma nova postura do escritor frente ao papel que lhe
cabe na sociedade, isto é, um escritor engajado aos problemas sociais. Tal atitude resulta na
busca de uma nova linguagem literária através de novas formas de expressão. Ao que parece,
os escritores sentiram a necessidade captada e exposta por Roman Jakobson em sua
Novíssima poesia russa – esboço primeiro, pois, segundo ele, “a linguagem poética se
desgasta de tempos em tempos, e então se torna preciso absorver do linguajar cotidiano outras
formas e construções” (JAKOBSON apud EIKHENBAUM, 1973, p. 14).
Com o intuito de fundamentar a hipótese a respeito da herança tolstoiana presente na
obra de Lima, neste último capítulo, tratar-se-á de uma análise comparativista entre a
concepção de arte tolstoiana e a de Lima Barreto. Pode-se dizer que Lima Barreto se
apropriou da concepção tolstoiana de arte no momento em que faz da literatura uma arma de
combate e de crítica mordaz contra os preconceitos e as mediocridades do poder. Distanciou-
se, assim, do fazer estético ou da preocupação com a estética literária e buscou cada vez mais
escrever de forma clara, simples e direta. A preocupação maior do escritor Lima Barreto era
com o conteúdo e não com a forma. Aliás, pode-se dizer que o seu estilo literário visa a
clareza, a simplicidade e a comunicação entre os homens. Lima Barreto, tanto quanto Leon
Tolstói, coloca-se, objetivamente, sem subterfúgios, em suas obras literárias através de fatos
autobiográficos. Pode-se, dessa forma, descobrir os escritores em muitos dos seus principais
protagonistas. Lima Barreto encontra-se, então, em Policarpo Quaresma, Isaías Caminha,
Gonzaga de Sá, Clara dos Anjos, Leonardo Coração dos Outros e Vicente Mascarenhas,
enquanto Leon Tolstói encontra-se em Levine, Vronski, Nekheulidov, Irteniev e outros.
123
Uma das maiores preocupações de Leon Tolstói em O que é a Arte? refere-se à
relação da arte com a vida, em geral. A mesma preocupação é motivo da conferência:
“O destino da literatura”, de Lima Barreto, na qual faz a seguinte questão: “Em que pode a
Literatura, ou a Arte contribuir para a felicidade de um povo, de uma nação, da humanidade,
enfim?” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 55-56). Ambos reivindicam uma arte compreensível
por todos, e criticam sem meias palavras o que, segundo eles pregavam, seria o artificialismo
na arte. Lima Barreto critica a literatura de Coelho Neto, Rui Barbosa e Machado de Assis;
enquanto Leon Tolstói critica a arte de Baudelaire, Verlaine, Mallarmé, Wagner e
Shakespeare, para falar somente desses.
Leon Tolstói questiona e posiciona-se contrário à arte moderna, pois, de acordo com
ele, ela instaura um distanciamento entre a arte das classes privilegiadas e a do povo por dois
motivos: primeiro, porque a arte moderna requer gastos exorbitantes além da opressão de
multidões, os trabalhadores; segundo, porque essa arte é totalmente ininteligível para o povo.
Afirma, ainda, que esse distanciamento teria ocorrido a partir do momento em que as classes
superiores deixaram de propagar a arte, que tinha por base os sentimentos mais elevados
nascidos da consciência religiosa da vida, acessível a todos, e passam a propagar a arte para
dar, a uma determinada classe social, a máxima soma de prazer. Disso resultou uma perversão
do conceito de arte na sociedade europeia, e enfraqueceu a própria arte. Isso em função de três
motivos: primeiro, a arte, ao propor-se o prazer como objetivo único, ficou desprovida dos
conteúdos religiosos relativos à vida; segundo, ao restringir-se a um círculo restrito de
pessoas, perdeu sua beleza formal, tornando-se obscura e afetada e, em terceiro, a arte cessou
de ser espontânea e sincera, para se tornar artificial e rebuscada. Ao enfatizar os sentimentos
das classes superiores, acaba por reduzi-los a três categorias: o sentimento da vaidade, o
sentimento do desejo sexual, o sentimento do tédio pela vida. A partir de então, as condições
exigidas para que uma obra de arte fosse válida e mesmo poética foram: a vagueza, o
mistério, a obscuridade, a inacessibilidade às massas, a imprecisão, a indeterminação e a
recusa da eloquência (TOLSTOI, 1994, p. 71).
Sendo, assim, Leon Tolstói condena toda a literatura dos simbolistas e decadentistas,
principalmente os franceses, pois, segundo eles, “os franceses são os corifeus do novo
movimento artístico, enquanto o resto da Europa contenta-se em imitá-los” (p. 73). E, no
Brasil, não ocorreu de modo diferente, daí a reivindicação de Lima por uma arte que refletisse
os problemas da sociedade.
Em Lima Barreto, a reflexão sobre a função social da arte perpassa todas as suas
obras, de Recordações do escrivão Isaías Caminha a Clara dos Anjos. Francisco de Assis
124
Barbosa, no Prefácio ao romance Recordações do escrivão Isaías Caminha, edição de 1956,
afirma “que [sua obra] está impregnada de um profundo sentimento humano e de uma
admirável compreensão do fenômeno social” (BARBOSA apud BARRETO, 1956, p. 15). E,
ainda que “o verdadeiro Brasil está mais nos livros de Lima Barreto que nos dos escritores
citadinos ou regionalistas, tidos e havidos como os mais representativos do nosso 1900 literário,
como Graça Aranha, Coelho Neto, Afonso Arinos ou Valdomiro Silveira” (BARBOSA apud
BARRETO, 1956, p. 17). “Profundo sentimento humano” e “compreensão do fenômeno
social” são características que já se encontram no romance Recordações do Escrivão Isaías
Caminha, sua obra de estreia, em 1909. Nesse romance, mais do que retratar a situação
conflitante entre o protagonista e a sociedade devido ao preconceito racial e de classe, vai
propiciar
[...] o alargamento do universo da crítica romanesca, que abrange, entre outros
elementos, os vários tipos de marginalidade – como a do pobre, a da mulher, a do
destituído de amigos influentes – e ainda o ambiente corrompido da imprensa, a
gramatiquice dos falsos literatos e os jogos de poder. (FIGUEIREDO, 1995, p. 25).
Convém lembrar, ainda, que Figueiredo destaca a abrangência da reflexão e da
preocupação do autor sobre a sociedade de modo geral, isto é, “os vários tipos de
marginalidade”, e não somente com os problemas restritos ao seu contexto e com os seus
iguais na cor da pele. No geral, os principais temas expostos no Recordações são: preconceito
racial, discriminação social, oportunismo, necessidade de padrinho para conseguir emprego,
ignorância do povo, superficialidade e arrogância de falsos intelectuais e jornalistas, o jogo de
interesses e a parcialidade dos jornais que só divulgam o que lhes interessa e da forma que
lhes interessa, entre outros.
Lima Barreto aproxima-se, nesse romance, a Leon Tolstói, pela acentuada
preocupação social presente em suas páginas, como, ainda, por questionar a forma e função da
arte, isto é, da literatura, expondo, assim, sua concepção de arte. Observa-se que a concepção
de literatura do escritor Lima Barreto, veiculada nesse romance, destaca-se, uma vez que,
nesse período, virada do século XIX, jornalismo e literatura nunca estiveram tão próximos.
Essa proximidade entre jornalismo e literatura se faz presente também no modo de escrever
que Lima Barreto desenvolveu em suas obras, sendo bastante criticado por isso, mas
posiciona-se de modo decisivo:
O meu correspondente acusa-me também de empregar processos do jornalismo
nos meus romances, principalmente no primeiro.
125
Poderia responder-lhe que, em geral, os chamados processos do jornalismo
vieram do romance; mas mesmo que, nos meus, se dê ao contrário, não lhes vejo
mal algum, desde que eles contribuam por menos que seja para comunicar o que
observo; desde que possam concorrer para diminuir os motivos de desinteligência
entre os homens que me cercam. (BARRETO, 1956, v. VI, p. 34).
Nota-se, na concepção de arte aqui explícita, o quanto ela reflete a noção tolstoiana,
enfatizando o poder de comunicação e ligação entre os homens: “A arte é a atividade humana
em que um homem, conscientemente, através de certos signos exteriores, comunica a outras
pessoas sentimentos que ele vivenciou, de modo a contaminá-las e fazê-las vivenciar os
mesmos sentimentos” (TOLSTOI, 1994, p. 51).
Isaías Caminha, pseudo-autor do romance, refere-se com frequência a sua
dificuldade para escrever e para elaborar suas recordações, além das dúvidas que aparecem ao
compor seu texto: “Penso – não sei por que – que é este meu livro que me está fazendo mal...”
(BARRETO, 1956, v. I, p. 119). Reforça, ainda, sua concepção de uma arte militante,
engajada: “Não é o seu valor literário que me preocupa; é a sua utilidade para o fim que
almejo.” (p. 119). Ou seja: “Com elas queria modificar a opinião dos meus concidadãos,
obrigá-los a pensar de outro modo.” (p. 120). Vê-se bem que o escritor, aliás, o pseudo-autor,
Isaías Caminha, pretende demonstrar que as razões para seu fracasso não estão nele e, sim, na
sociedade.
Torna-se evidente que Lima faça oposição aos “literatos” oportunistas que surgem
da noite para o dia, simplesmente trocando elogios entre um pequeno grupo que tinha acesso
ao mercado editorial e, também, ao jornal: “Eu não sou literato, detesto com toda a paixão
essa espécie de animal. O que observei neles, no tempo em que estive na redação do O Globo,
foi o bastante para não os amar, nem os imitar.” (BARRETO, 1956, v. I, p. 120). Essa crítica
ferrenha a esses literatos deve-se à superficialidade com que eles se fazem e se mantêm nos
periódicos, utilizando-se da superficialidade temática e de eloquência verbal. Nesse período,
constata-se uma supervalorização da imprensa e ela torna-se rival da literatura, além de que os
escritores colaboram intensamente nas colunas dos periódicos. Lima Barreto, assim a
classifica no romance, Recordações do escrivão Isaías Caminha, quando, ao retratar os
bastidores do jornal O Globo que, na realidade, tratava-se do jornal Correio da Manhã: “Era a
imprensa, a Omnipotente Imprensa, o quarto poder fora da Constituição!” (BARRETO, 1956,
v. II, p. 174). Não obstante enfrentasse vários obstáculos, o escritor não deixa de lado sua
preocupação com a forma: “Se me esforço para fazê-lo literário é para que ele possa ser lido,
pois quero falar das minhas dores e dos meus sofrimentos ao espírito geral e no seu interesse,
126
com a linguagem acessível a ele. É este o meu propósito. O meu único propósito”.
(BARRETO, 1956, v. I, p. 120).
A concepção de arte do escritor Lima Barreto acentua-se mais através do
procedimento de desmascarar o ambiente artificial da redação do jornal O Globo, o que se
torna explícito por intermédio dos personagens: Gregoróvitch, Lobo, Leporace e Floc. Visto
que estamos a tratar aqui das relações de Lima Barreto com os russos, Ivã Gregoróvitch
Rostóloff vem marcar presença nas obras barretianas. Jornalista, formado em Línguas
Orientais e Exegese Bíblica, na Universidade de Sófia, tendo começado o curso no Cairo, isso
em Isaías Caminha (1909), já em Numa e a Ninfa (1915), é Gregory Petrovich Bogolóff,
diretor da pecuária nacional, e Lima Barreto também publica em fascículos, as Aventuras do
Dr. Bogóloff (1919). Esse personagem, criado por Lima, além de denotar sua simpatia pelos
russos, serve para extravasar o lado caricatural, ressaltando-se que o Dr. Bogóloff traz muito
do próprio autor
23
. Contudo, a presença do Dr. Bogóloff não pára por aí, o próprio Lima
Barreto nos revela, em dois artigos reproduzidos no volume Bagatelas, que se utilizou do
pseudônimo para assinar, no mínimo, dois artigos que saíram n’A Lanterna, semanário
esquerdista de São Paulo.
Por intermédio de Leporace, “secretário, arrogante como todo jornalista, formado,
sem emprego, sem fortuna” (BARRETO, 1956, v. II, p. 156), “sumidade em literatura e
jornalismo, árbitro do mérito, distribuidor de gênios e talentos” (p. 156), o narrador
desmascara o papel subserviente de muitos no meio jornalístico por não terem competência.
Com Floc, pseudônimo de Frederico Lourenço do Couto, crítico literário do jornal, demonstra
a limitação intelectual, a incapacidade de se exprimir com facilidade, diante da ausência nele
do dom da comunicação; facilita, também, o acesso à imprensa e a divulgação das obras,
somente para os que “fizessem versos, certos rapazes de sua amizade, bem nascidos,
limpinhos e candidatos à diplomacia.” (BARRETO, 1956, v. II, p. 182). Além de confundir
“arte, literatura, pensamento com distrações de salão; não lhes sentia o fundo natural, o que
pode haver de grandioso na função da arte. Para ele, arte era recitar versos nas salas, requestar
atrizes e pintar aquarelas lambidas, falsamente melancólicas” (p. 182). Quando se suicidou,
Isaías não encontrou, em sua biblioteca, “nenhum historiador, nenhum filósofo, nenhum
estudo de crítica literária, mas dez de anedotas literárias de autores de todos os tempos e de
todos os países” (p. 183). Com Lobo, expõe o culto exagerado à gramatiquice.
23
Ver PEREIRA, A. A máscara do Dr. Bogóloff. (2001). Primeiramente, publicado em Interpretações. RJ: Casa
do Estudante do Brasil, 1944.” Mas isso parece revelar também a existência de uma certa afinidade entre o
criador e a sua criatura, entre o romancista e o personagem, no caso o Dr. Bogóloff sem a máscara” (p. 58).
127
Da mesma forma, Lima Barreto já se insurgia contra o esquema utilizado pelos
mandarins da literatura para compor romances, pois, segundo o autor, além de só se
preocuparem “com os populares do sertão”, talvez, em função de serem “pitorescos” e não
poderem verificar “a verdade de suas criações”:
No mais, é uma continuação do exame de português, uma retórica mais difícil a se
desenvolver por este tema sempre o mesmo: Dona Dulce, moça de Botafogo em
Petrópolis, que se casa com o doutor Frederico. O comendador seu pai não quer,
porque o tal Dr. Frederico, apesar de doutor, não tem emprego. Dulce vai à superiora
do colégio das irmãs. Esta escreve à mulher do ministro, antiga aluna do colégio,
que arranja um emprego para o rapaz. Está acabada a história. É preciso não
esquecer que Frederico é moço pobre, isto é, o pai tem dinheiro, fazenda ou
engenho, mas não pode dar uma mesada grande. Está aí o grande drama de amor em
nossas letras, e o tema de seu ciclo literário. (BARRETO, 1956, v. IV, p. 133-134).
Com esse procedimento, fica claro que Lima Barreto insurge-se contra a literatura
bem comportada de seu tempo e renuncia ao padrão de linguagem vigente que se pautava pelo
“exame de português” e “retórica mais difícil”. Na crônica, Volto ao Camões, publicada no
A.B.C., em 27.4.1918, ao comentar a peça O Reposteiro Verde, de Júlio Dantas, Lima Barreto
critica o “palavreado luxuriante” que não traz uma ideia e não revela uma alma e, muito
menos, contribui para por em comunicação a sociedade e provocar o mútuo entendimento.
Observa-se, assim, que Lima não só pratica uma literatura social, como cobra de outros
escritores, através da crítica literária, que a pratiquem. O autor percebeu que mudanças sociais
eram necessárias e que a literatura é um meio importante para essa transformação: “É
chegada, no mundo, a hora de reformarmos a sociedade, a humanidade, não politicamente que
nada adiante; mas socialmente que é tudo” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 165).
Do mesmo modo, Leon Tolstói reafirma sua concepção de literatura vinculada a
uma função social, em “A manhã de um senhor”, onde o protagonista, o príncipe Nekliudov,
ao expressar o que pretende, é o porta-voz do próprio Tolstói: “Exercer influência [...] sobre
essas pessoas [...]; tirá-las da miséria, conceder-lhes o bem-estar, dar-lhes instrução [...],
corrigir seus vícios [...]; desenvolver nelas a moral; obrigá-las a amar o bem [...]” (TOLSTÓI,
1993, v. III, p. 676). Enfatiza, assim, o papel do escritor e intelectual engajados nos problemas
da sociedade, isto é, de “sociólogo e apóstolo social”, pondo em prática uma literatura
militante.
128
4.2 O Sinal da Arte: O Poder de Contágio
Existe, apesar de tudo, um sinal certo e infalível para distinguir a arte verdadeira de
sua contrafação; é aquilo que chamamos de contágio artístico. Se um homem, sem
nenhum esforço de sua parte, perante a obra de outro homem, experimenta uma
emoção que une aquele a outros, que, contemporaneamente, receberiam a mesma
impressão, isto significa que a obra diante da qual se encontra é obra de arte. E uma
obra pode ser tão bela quanto se queira poética, rica em efeitos e interessante, mas
não será obra de arte se não despertar em nós aquela emoção muito particular, a
alegria de nos sentirmos em comunhão com o autor e com outros homens em
companhia dos quais lemos, contemplamos ou ouvimos a obra em questão.
(TOLSTOI, 1994, p. 119).
[...] a arte literária se apresenta com um verdadeiro poder de contágio que a faz
facilmente passar do simples capricho individual para um traço de união, em força
de ligação entre os homens, sendo capaz, portanto de concorrer para o
estabelecimento de uma harmonia entre eles orientada para um ideal imenso em que
se soldem as almas aparentemente mais diferentes, reveladas, porém, por ela, como
semelhantes no sofrimento da imensa dor de serem humanas (BARRETO, 1956,
v. XIII, p. 62).
É possível dizer que Lima foi seriamente “contagiado artisticamente” pela
concepção de arte de Leon Tolstói. Para Leon Tolstói, quanto maior o poder de contágio,
maior é o poder de comunicação; quanto mais forte a comunicação, mais verdadeira é a arte.
Conforme Leon Tolstói, são três as condições básicas que determinam o grau de comunicação
da arte: singularidade dos sentimentos expressos, clareza de expressão e sinceridade da
emoção transmitida. Essas condições encontram-se presentes na obra barretiana, alguns
romances mais, outros, menos, mas sempre presente a preocupação em “contagiar” o leitor.
Considerando o número de referências que o escritor Lima Barreto faz dos escritores russos e,
em particular, de Leon Tolstói, de sua concepção de arte, parece-nos plausível uma associação
da concepção tolstoiana de arte ao projeto literário de Lima Barreto.
De todos os ensinamentos colhidos em Leon Tolstói, a sinceridade, como condição
essencial da arte, foi lição jamais esquecida por Lima Barreto. Está presente desde o artigo de
apresentação da revista Floreal, em que afirmava não se tratar de “uma revista de escola, de
uma publicação de ‘clã’ ou maloca literária” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 181):
Não se destina, pois a Floreal a trazer a público obras que revelem uma estética
novíssima e apurada, ela não traz senão nomes dispostos a dizer abnegadamente as
suas opiniões sobre tudo o que interessar a nossa sociedade, guardando as
conveniências de quem quer ser respeitado.
Desde o princípio da carreira literária, o escritor Lima Barreto mantém firme uma
linha norteadora de seu projeto literário, arrolando ideias e concepções que se consolidam
129
com o passar do tempo. Já, no ano de 1903, Lima Barreto registra, no Diário Íntimo, a
intenção de escrever sobre a escravidão negra no Brasil e sua influência na nossa
nacionalidade. No mesmo Diário, dois anos mais tarde, encontra-se o registro de seu desejo
de produzir uma espécie de “Germinal” (ZOLA, 1885) negro, com o qual introduziria o
“negrismo” na literatura brasileira. Em 1909, estreia com Recordações do escrivão Isaías
Caminha, aliás, opção do escritor, pois, nessa época, já possuía o Vida e Morte de M. J.
Gonzaga de Sá quase pronto, além de outros projetos de romance, inclusive o de Clara dos
Anjos, cuja primeira versão data de 1904. Como se vê, há um tema central que perpassa toda
obra barretiana que é a questão do preconceito racial, do qual o escritor sempre se sentiu
vítima. Em consequência, aborda o conflito entre as personagens protagonistas e a sociedade
com a qual convivem.
Além de ter traçado um objetivo artístico no artigo de apresentação da Revista
Floreal, lançada em 1907, que era o de “dizer abnegadamente as suas opiniões sobre tudo o
que interessar a nossa sociedade”, Lima Barreto traz a público, características e ideias
literárias que serão reforçadas nos escritos da maturidade. Como se constata, em “Amplius”,
de 1916, ocasião em que, respondendo às críticas sobre o romance Triste Fim de Policarpo
Quaresma (1915), reafirma seus ideais estético-literários:
Parece-me que o nosso dever de escritores sinceros e honestos é deixar de lado todas
as velhas regras, toda a disciplina exterior dos gêneros e aproveitar de cada um deles
o que puder e procurar, conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas
usanças, sugerir dúvidas, levantar julgamentos adormecidos, difundir as nossas
grandes e altas emoções em face do mundo e do sofrimento dos homens, para soldar,
ligar a humanidade em uma maior, em que caibam todas, pela revelação das almas
individuais e do que elas têm de comum e dependente entre si. (BARRETO, 1956,
v. V, p. 33).
Para o escritor Lima Barreto, a sinceridade
24
e a honestidade são características
imprescindíveis a um escritor e intelectual, aliás, ao que tudo indica, ele as praticou ao último
grau tanto na vida quanto na ficção. Constata-se, no trecho em destaque, que o escritor propõe
24
Lima Barreto sempre refletiu sobre a sinceridade em seus escritos e via-a como método e como maneira de ser
essencial ao artista. Isto quando de sua visita a José Veríssimo depois que o crítico fez alguns elogios ao
“Policarpo Quaresma”. [José Veríssimo] “falou da nossa literatura sem sinceridade, cerebral e artificial.
Sempre achei a condição para a obra superior a mais cega e absoluta sinceridade. O jacto interior que a
determina é irresistível e o poder de comunicação que transmite à palavra morta é de vivificar. Agora mesmo
acabo de ler o Carlyle, Hero Worship, no herói profeta, Maomé, que ele diz ser um sincero, acrescentando:
“I should say sincerity, a deep, great, genuine sincerity is the first characteristic of all men in any way heroic”.
O Veríssimo disse coisa semelhante, dizendo-nos que a glória dos segundos românticos, do Castro Alves, do
Fagundes, do Laurindo, do Casimiro, era imperecível, tinha-se incorporado à sorte da nação, porque eles
tinham sido sobretudo sinceros. Concordei, porque me acredito sincero. Sê-lo-ei? Às vezes, penso ser; noutras
vezes, não. Eu me amo muito; pelo amor em que me tenho, com certeza amarei os outros”. (BARRETO,
1956, v. XIV, p. 125-126).
130
uma ruptura com a tradição: “deixar de lado todas as velhas regras”, através de atitudes
favoráveis à renovação, que viria a partir de 1922, com a Semana de Arte Moderna. Lima
procura estabelecer uma literatura mais próxima do povo, intentando diminuir o
distanciamento entre escritor e público, tão comum na virada do século XIX, com o culto ao
academicismo aristocrático, mantido através da literatura de Machado de Assis, Coelho Neto,
Rui Barbosa, entre outros.
A aproximação entre escritor e público, buscada por Lima Barreto, tinha por
finalidade ser lido e compreendido, pois o escritor, ao escrever de forma direta, pretendia
tornar o texto literário acessível a um público leitor mais simples, isto é, do povo, para atingir
seu objetivo de transformar a sociedade através da arte, ou seja, da literatura.
Automaticamente, essa atitude era de confronto com a postura corrente nos meios literários
das altas rodas que utilizavam uma linguagem rebuscada, satisfazendo-se com a leitura apenas
dos seus pares.
Nessa postura de Lima Barreto, constata-se uma estreita ligação à concepção de arte
tolstoiana, pois Leon Tolstói considera que a real função da arte na sociedade é a de
instrumento de comunicação e ligação entre os homens. Vejamos:
Toda obra artística obtém o efeito de pôr aqueles que lhe experimentaram o fascínio
em comunicação com aquele que foi seu autor e com todos aqueles que, antes ou
depois, foram ou serão seus participantes. A arte age como a palavra que serve de
ligação entre os homens, transmitindo-lhes o pensamento, lá onde por meio da arte,
são comunicados pensamentos e emoções. A peculiaridade deste último meio de
intercurso, distinguindo-o do intercurso por meio de palavras, consiste nisso:
enquanto por palavras um homem transmite seus pensamentos a um outro, pela arte
transmite seus sentimentos. (TOLSTOI, 1994, p. 50).
Na citação acima, expõe-se uma relação – muito próxima – entre o conceito de arte
de Lima Barreto e Leon Tolstói, destacando o contágio artístico, a comunicação e ligação
entre os homens, características da concepção de arte tolstoiana que servem de embasamento
para o projeto literário de Lima Barreto.
Robert A. Oakley, estudioso da obra barretiana, da Universidade de Birmingham, na
Inglaterra, refere-se à associação entre Leon Tolstói e Lima Barreto de forma bastante
produtiva. Ao referir-se à concepção de arte de Lima Barreto, assim, manifesta-se Oakley
(1998, p. 3): “É a mesma visão da arte autêntica no presente e no futuro oferecida por Tolstói
nos capítulos 15-20 de Que é a arte?”. Oakley aponta para o fato de Lima ter sido
influenciado também por Thomas Carlyle, autor do ensaio “Os heróis” (1840), que expõe a
concepção de arte como sacerdócio, enquanto que para Lima seria “missão quase divina”.
131
O escritor Lima Barreto, ao colocar em prática uma literatura militante, isto é,
engajada nos problemas sociais e, mais, ainda, com os pobres e humilhados da sociedade,
opõe-se, não só à classe social dominante, como, também, à ideologia dominante. A condição
de tripla marginalidade – racial, social e intelectual – faz com que Lima Barreto exerça uma
visão crítica quanto às condições da vida social e cultural do Rio de Janeiro, na Primeira
República. Conforme Oakley (1998, p. 6),
[...] a prosa de ficção de Lima Barreto exprime uma tentativa de dramatizar qua
artista tolstoiano, o destino do escritor neste mundo, e ao mesmo tempo, o escritor
tem a obrigação de cumprir o seu destino carlyleano e tolstoiano de profeta pelo bem
da humanidade. Para Lima Barreto, o ato de escrever nach der Wahrheit (à procura
da verdade) é o supremo destino do escritor.
Lima Barreto, tal qual Leon Tolstói, volta-se para a cultura popular que encontra
expressão não apenas na linguagem – a qual foi fator preponderante para o “estranhamento”
que a obra causou no meio literário – mas, também, na música, nas danças, nas formas de
reunião social. Beatriz Resende, no artigo “Lima Barreto: a opção pela marginália”, afirma
que “A opção de Lima Barreto é por uma retórica despojada do ornamental, uma de bagatelas,
representante da marginália, a escrita das feiras e mafuás” (RESENDE, 1983, p. 73). Opção
que lhe custou muito, pois, em função disso, o escritor permaneceu em um “inexplicável
esquecimento”. Como se vê, Lima Barreto não fugiu ao seu destino. Daí, ao verificar as
relações literárias entre Lima Barreto e Leon Tolstói, constata-se que as concepções de arte
propagadas pelos escritores, de fato, têm muito em comum, principalmente, no que se refere
ao que seja o supremo destino do escritor: a verdade, e sempre a verdade.
4.3 Linguagem Literária Rumo ao Procedimento de Singularização
“Regra. Chamar as coisas pelo nome.”
(Diário. L. Tolstói)
É interessante reforçar o contexto literário no qual Leon Tolstói (1828-1910) e Lima
Barreto (1881-1922) criaram suas obras e emitiram suas avaliações críticas, principalmente,
às direcionadas à arte literária. O “grande escritor da terra russa”, como Turguênief chamava
132
Leon Tolstói, desde suas primeiras obras, praticou uma literatura realista e foi radicalmente
contrário à poética romântica. Leon Tolstói, em “Algumas palavras sobre Guerra e Paz”,
artigo escrito com a intenção de explicar o ponto de vista do autor, visto que não era romance,
nem poema, nem crônica histórica, afirma que essa “declaração de indiferença para com as
formas convencionais da produção artística na prosa” (TOLSTOI, 1993, v. I, p. 1551) está de
acordo com o que ocorre na história da literatura russa de Almas Mortas, de Puchkin, a Casa
dos Mortos, de Dostoiévski: a destituição às formas recebidas da Europa.
Leon Tolstói utiliza-se de uma linguagem direta, volta-se para os detalhes, sem
deformá-los por metáforas. Aliás, chegou a anotar no diário, no início de sua atividade
literária: “Regra. Chamar as coisas pelo nome.” Pode-se dizer que se originou daí toda sua
criação literária, pois ao chamar as coisas pelo nome de maneira simples, clara e direta, ou
seja, “desmetaforizando” a linguagem utilizada, retratou, como nenhum outro escritor até
então, a vida e a miséria humana.
A arte literária de Leon Tolstói provoca, assim, o verdadeiro “estranhamento” a que
V. Chklovski se refere no artigo “A arte como procedimento”. Para Chklovski, o objetivo da
arte “é dar a sensação do objeto como visão e não como reconhecimento; o procedimento da
arte é o procedimento da singularização dos objetos e o procedimento que consiste em
obscurecer a forma, aumentar a dificuldade e a duração da percepção” (CHKLOVSKI, 1973,
p. 45). Conforme Chklovski, o procedimento de singularização em Leon Tolstói consiste no
fato de
[...] que ele não chama o objeto por seu nome, mas o descreve como se o visse pela
primeira vez e trata cada incidente como se acontecesse pela primeira vez; além
disto, emprega na descrição do objeto, não os nomes geralmente dado às partes, mas
outras palavras tomadas emprestadas da descrição das partes correspondentes em
outros objetos. (CHKLOVSKI, 1973, p. 46).
Chklovski demonstra esse procedimento de singularização na maioria das obras de
Leon Tolstói, principalmente na descrição das batalhas ocorridas em Guerra e Paz, que, por
serem extensas, não foram citadas. O exemplo citado para demonstrar como se dá o método
de singularização, em Leon Tolstói, é Kholstomer (História de um cavalo), 1886, no qual a
narração é conduzida por um cavalo e os objetos são singularizados pela percepção
emprestada ao animal, e não pela nossa. Esse procedimento está, também, na descrição dos
salões e do teatro, em Guerra e Paz, na descrição da cidade e do tribunal, em Ressurreição, e
na descrição do casamento, em A Sonata a Kreutzer, e outros tantos exemplos são
encontrados na obra de Leon Tolstói. Segundo Chklovski, essa maneira de ver os objetos fora
133
de seu contexto o conduziu, em suas últimas obras, a aplicar o método de singularização na
descrição de dogmas e ritos, método segundo o qual ele substituía as palavras de linguagem
corrente pelas palavras habituais de uso religioso; resultou daí qualquer coisa de estranho, de
monstruoso, que foi, sinceramente, considerado por muita gente como blasfêmia
(CHKLOVSKI, 1973, p. 50).
Em função da concepção de arte apresentada pelos escritores, nada mais natural que
buscassem novas formas de expressão, não mais o culto da arte pela arte, mas, sim, uma
linguagem menos rebuscada, mais próxima do real. Com essa escolha, Lima Barreto instaurou
um impasse com os “mandarins da literatura”, que o classificou de “desleixado”, o que,
acertadamente, provocou uma mudança na avaliação crítica do escritor, a partir de 1970.
Impasse maior ou igual ao de Lima foi o instaurado por Leon Tolstói entre os
artistas e intelectuais atuantes, quando da publicação do O que é a Arte?, em 1898. Colocou
por terra, digamos assim, toda a “alta literatura”. Propunha novos rumos para a arte em geral,
principalmente, que ela tivesse por finalidade a expressão dos sentimentos. Por isso, a
linguagem literária de Leon Tolstói pauta-se nas três condições básicas que determinam o
grau de comunicação da arte: singularidade dos sentimentos expressos, clareza de expressão e
sinceridade da emoção transmitida, condições essas não encontradas na arte moderna por
Leon Tolstói. Ressalta-se que essas condições sugeridas pelo autor, já estavam presentes em
sua arte desde sua primeira obra Infância, publicada em 1852, pela revista O Contemporâneo.
É importante ressaltar que, muito embora Leon Tolstói se pautasse em sua arte na
simplicidade, isso, na realidade, era resultado de intensa elaboração artística, visto que todas
as suas principais obras: Guerra e Paz, Ana Karênina, Ressurreição, até um conto
25
, eram
reformulados, reescritos e recopiados várias vezes. Nota-se que esse procedimento se
intensifica a partir da “conversão moral” de Leon Tolstói, pois o escritor empenha-se em
contos populares, ao modo das narrativas tradicionais russas, não que antes não tivesse escrito
estórias destinadas ao povo. Porém, com a crise, recusa a sabedoria livresca, volta-se para um
forte tom moralizante e vê, na tradição popular, o verdadeiro caminho.
Alguns críticos atentaram para esse procedimento, conforme B. Shnaiderman, em
Leon Tolstói, a “busca do espontâneo, do próximo à natureza, que há em toda a obra de
Tolstói, encontrava aí uma expressão veemente e uma simplicidade que era o resultado de
intensa elaboração” (SCHNAIDERMAN, 1983, p. 22). Assim, também, Aurora Fornoni
25
Ver SCHNAIDERMAN, B. L. Tolstói. Antiarte e rebeldia. São Paulo: Brasiliense, 1983. “Por exemplo,
conservam-se num arquivo soviético trinta e três versões manuscritas e várias tipográficas com correções do
autor, do conto ‘O que faz viver os homens’” (1881).
134
Bernardini, ao se referir ao O que é a Arte?, enfatiza que é preciso tomar alguns cuidados
quanto “a ‘sinceridade’ do autor na imperiosa manifestação de seu “sentimento” [...] “Ela será
no processo mesmo de elaboração artística tolstoiana, elaborada de maneira tão peculiar que o
estranhamento, na acepção dos formalistas russos hoje mais do que consagrada, passa a ser
considerado parte essencial de sua doutrina verbal, de seu modo de escrever” (FORNONI
apud CHIAMPI, 1991, p. 162). Pelo visto, “a busca da simplicidade, a expressão dos
sentimentos através da arte é resultado de “uma personalidade criadora” (p. 161).
De modo semelhante, Paulo Rónai, na introdução à obra A morte de Ivan Ilitch,
assim avalia o estilo de Leon Tolstói: “Seria difícil precisar em que medida o estilo contribui
para a impressão poderosa da novela, tanto mais que em Tolstói o estilo não se vê, não se
percebe, de tão natural, de tão subordinado à idéia com que nasceu” (RÓNAI, 1963, p. 18).
Vê-se que a simplicidade e a clareza da linguagem tolstoiana estão a serviço da concepção de
arte do autor. Para completar, Paulo Rónai (1963, p. 18) avalia a linguagem literária de Leon
Tolstói:
A frase do nosso escritor é desadornada, ‘coloquial’, sem requintes verbais. Ele
chega a multiplicar propositadamente as conjunções subordinativas e os pronomes
relativos, e não hesita em repetir muitas vezes as palavras frequentes da conversação
para conseguir inteira naturalidade.
O crítico percebe com clareza a intenção do autor, isto é, qual a intenção de Leon
Tolstói com a arte literária: “É um estilo acessível aos leitores mais simples e que, entretanto,
exprime com exatidão e relevo os matizes mais finos, dando forma perfeita às sensações mais
fugidias e nebulosas” (RÓNAI, 1963, p. 18).
O estilo tolstoiano fica muito mais evidente nos fragmentos de notas registrados por
M. Górki, por isso, é imprescindível tratar aqui das reminiscências de Górki
26
sobre Leon
Tolstói, até porque aponta para um Leon Tolstói sem “tolstoísmo”, enfatizando o Leon
Tolstói artista, desvinculado da santidade tolstoiana e não o filósofo, o santo e criador de uma
religião. Embora o aproxime de “um deus, não com Jeová ou com alguém do Olimpo, mas
um deus bem russo, sentado num trono de bordo, sob uma tília dourada” não deixa de afirmar
que prefere o pecador ao santo: “[...]; que seja pecador, próximo ao coração do mundo,
pecador dos pés à cabeça, próximo ao coração de cada um de nós para sempre” (GÓRKI,
2006, p. 39). Para se ter uma ideia da importância desses fragmentos de notas, enfatizam-se as
26
As reminiscências de Górki sobre L. Tolstói estão à disposição em português em duas edições. A primeira,
Leão Tolstói, traduzidas por Rubens Pereira dos Santos, fazem parte da dissertação de Mestrado na USP, São
Paulo: Perspectiva, 1983; a segunda, “Três russos e como me tornei um escritor”, traduzida por Klara
Gourianova, São Paulo: Martins, 2006.
135
palavras de Boris Eichenbaum: “Górki liberta Tolstói do ‘tolstoísmo’ e mostra-nos sua
fisionomia realmente vigorosa, gigantesca, terrivelmente russa” (EICHENBAUM, 1983,
p. 82). Outro crítico a exaltar esses escritos foi Thomas Mann (1988), considerando o escrito
mais importante de M. Górki.
Realmente, a riqueza das anotações de M. Górki consiste em desnudar o estilo do
“grande escritor da terra russa”, segundo ele, “sua linguagem parecia uma cadeia ininterrupta
de palavras ‘indecentes’” (GÓRKI, 2006, p. 13), o que, de início, o constrangeu, mas depois
percebeu que era uma maneira peculiar ao escritor. Palavras ‘indecentes’ não existem na obra
tolstoiana, o que se percebe é o procedimento de afastar o texto do convencionalismo literário,
até mesmo, o procedimento de singularização ou de estranhamento apontado por V.
Chklovski.
Em decorrência desse procedimento, na busca da singularidade, Leon Tolstói se
revela um grande apreciador do estilo popular: “[...] os mujiques sabem criar bem. Tudo é
simples, poucas palavras, mas muito sentimento. A verdadeira sabedoria é lacônica, como
‘Deus nos acuda!’” (GÓRKI, 2006, p. 10). Observa-se que Leon Tolstói ressalta a
necessidade de se escrever de forma simples, sem truques, já que o povo fala de maneira
simples, mas fala bem. Na busca da simplicidade, volta-se para uma linguagem coloquial, mas
sempre demonstrando preocupação com o processo literário. Não era possível transcrever as
falas populares, “ipsis litteris”, mas, sim, elaborá-las a contento. Para Górki (2006, p. 45):
“Era preciso vê-lo falando para entender a singular, a indizível beleza de sua linguagem que
parecia incorreta, cheia de repetições das mesmas palavras, impregnada de simplicidade
campestre”. E, acrescenta que: “A força de suas palavras não estava apenas na entonação, no
frêmito de seu rosto, mas no jogo e no brilho dos olhos, os mais eloqüentes que eu jamais
tinha visto” (GÓRKI, 2006, p. 45).
Stefan Zweig, em seus vários estudos sobre Leon Tolstói, nos dá uma visão
completa do homem e do artista, ambos com poderes inigualáveis. Quanto ao homem, Zweig
reforça a qualificação feita por M. Górki: “um homem humanidade”.
É de fato, um homem como todos nós, feito da mesma argila frágil e possuidor das
mesmas imperfeições terrestres, mas conhecendo-as mais profundamente e
suportando-as mais dolorosamente. Leão Tolstói não foi de espécie diferente nem
mais elevada que os outros espíritos de seu século. Unicamente foi mais homem do
que a maioria, mais moral, mais forte, mais lúcido, mais ardente e mais apaixonado
e, por assim dizer, uma primeira prova – mais nítida – desta primitiva forma
invisível elaborada na oficina do criador do universo. (ZWEIG, 1935, p. 179).
Para Zweig, a obra de Leon Tolstói atingiu a perfeição, pois parece a própria
realidade, visto que ele conseguiu dissimular sua origem artificial, ocultando o mais
136
perseverante trabalho de artífice. Isso através de muito trabalho e intensa (re) elaboração, com
paciência, sempre em busca da verdade e da clareza: “[...] Tolstoi com o fanatismo do
trabalhador impecável, lima, aprimora e requinta a sua prosa; martela-a e cinzela-a” (ZWEIG,
1935, p. 41). Ao mesmo tempo: “Tolstói nunca necessitou aprender sua arte de narrador e
nunca a desaprendeu; seu talento natural não conhece desenvolvimento nem declínio,
progresso nem regressão” (p. 43). Zweig qualifica a arte tolstoiana, de “outonal”
27
e embora
prefira Leon Tolstói a Dostoiévski, tal qual M. de Vogué, é adepto da avaliação de Vogué de
que Dostoiévski era um viajante que só andou de noite: “[...] [embora] a atmosfera moral
pese, a princípio, mais tragicamente” (ZWEIG, 1935, p. 55), [em Dostoiévski] ainda há
“clarões de arrebatamento e de embriaguez [que] iluminam às vezes à noite e, pelo menos
durante alguns segundos, os corações se extasiam num céu de visões”. Enquanto a arte de
Leon Tolstói, ao contrário, “desconhece qualquer assomo e consolação; é sempre de uma
gravidade sagrada, transparente como a água e tão pouco excitante quanto ela; pode-se, graças
a sua admirável limpidez, perceber o fundo, mas o que aí se vê, jamais exalta ou transporta a
alma” (ZWEIG, 1935, p. 55-56).
Depois de M. Górki e Stefan Zweig, é a vez de Boris Eichenbaum
28
contribuir com
sua crítica esclarecedora sobre a famosa crise de Leon Tolstói, afirmando que, até então, tem-
se perpetuado uma visão ingênua sobre Leon Tolstói através de sua própria Confissão.
Colocaram-no em uma redoma de vidro e lá permaneceu. Agora, depois de Górki tê-lo
libertado do “tolstoísmo”, B. Eichenbaum vê a necessidade de libertá-lo dos historiadores de
literatura, pois aí também vigora “uma representação sacra, lastimável, um clichê”
(EICHENBAUM, 1983, p. 82). Para Eichenbaum, o livro de C. Leôntiev, Sobre os Romances
do Conde L. N. Tolstói, escrito em 1890 e reeditado em 1911, é o que analisa com precisão e
adianta muito daquilo que só agora começa a chamar a atenção dos críticos:
A linguagem, ou falando de maneira mais geral e antiga, o estilo, ou ainda
expressando isto de outra forma, a maneira de contar, é um objeto exterior, mas este
objeto exterior na literatura é o mesmo que o rosto e as maneiras do homem: ela é o
mais evidente, a expressão externa da mais secreta vida do espírito, mais interior
27
“A paisagem de Tolstoi dá sempre a impressão de outono: em breve será o inverno; e cedo a morte se
apoderará da natureza e, então, todos os humanos como o eterno humano que existe em nós, terão cessado de
viver. É um mundo sem sonho, sem quimera, sem ilusão, um mundo terrivelmente vazio e mesmo sem Deus
(não é senão mais tarde que Tolstoi o introduzirá em seu cosmos, como razão de vida, tal fizera Kant como
razão de Estado): não possui outra luz além de sua verdade implacável, dispõe apenas de sua clareza
igualmente implacável” (ZWEIG, 1935, p. 55).
28
Estudioso da obra tolstoiana escreveu dois ensaios: “Sobre Leão Tolstói” (1919) e “Sobre as crises de Leão
Tolstói” (1920), que figuram em seu livro Skvoz Litieratúru (Através da Literatura), Leningrado, Editora
Academia, 1924. Disponível no Brasil pela Ed. Perspectiva com tradução de Rubens Pereira dos Santos, no
volume: Leão Tolstói. Máximo Górki., 1983.
137
[...] nas obras literárias existe algo quase inconsciente, ou de fato inconsciente e
profundo, que se manifesta com uma clareza espantosa justamente nos
procedimentos exteriores, no fluxo geral do discurso, em seu ritmo, na escolha das
próprias palavras. (EIKHENBAUM apud GÓRKI, 1983, p. 83. grifos do autor).
Conforme C. Leôntiev, a crise pela qual passa Leon Tolstói e que o leva aos contos
populares e à doutrina, não era uma crise de sua criação artística, mas uma passagem desde
muito tempo preparada de uns “procedimentos”.
Seria impossível superá-lo no estágio atingido por ele, porque toda escola
artística possui, como tudo na natureza, seu limite e seu ponto de saturação. Isto é
tão exato que o próprio Conde Tolstói depois de Ana Karênina começou a sentir
necessidade de buscar outro caminho – o caminho dos contos populares e da
doutrinação moral. Ele provavelmente adivinhou que não escreveria mais nada
melhor que Guerra e Paz e Ana Karênina, no gênero anterior, no estilo anterior.
(EIKHENBAUM apud GÓRKI, 1983, p. 83. grifos do autor).
C. Leôntiev enfatiza, desse modo, que não importa o espírito do conteúdo de contos,
como A Vela, Três Anciãos, O que Faz as Pessoas Viver, etc., pode ser religioso, moral,
doutrinário; o que realmente importa para C. Leôntiev é saber como escreve Leon Tolstói. O
importante é constatar que “o mais genial de nossos realistas”, aborreceu-se e se enojou com
muitos procedimentos habituais de sua própria escola (EIKHENBAUM apud GÓRKI, 1983,
p. 84). Ao enfatizar a errônea interpretação, mantida por muito tempo, da crise de Leon
Tolstói, afirma: “Entende mal de arte e não entende absolutamente Tolstói aquele que pensa
que ele pudesse alguma vez “deixar de ser” artista” (EIKHENBAUM apud GÓRKI, 1983,
p. 84). Eichenbaum recorre ao poeta e crítico Apolon Grigóriev (1822-1864) que observou
logo nos primeiros contos de Leon Tolstói que ele “colocou para si como problemas, até com
certa coação, expulsar o musicalmente inapreensível na vida, no mundo moral, na arte”
(EIKHENBAUM apud GÓRKI, 1983, p. 85). Diante de avaliação tão perspicaz, constata-se
que essa atitude tolstoiana repudiava os cânones românticos. Daí o fato de que Leon Tolstói
“se tornou ‘moralista’ somente porque era um artista. Ele não sofreu a crise, mas a própria
arte” (EIKHENBAUM apud GÓRKI, 1983, p. 85).
Para demonstrar a forma radical que Leon Tolstói criou para aniquilar a poética
romântica, Eichenbaum aponta o seguinte:
Ele muda o material, os procedimentos, a forma. Em lugar do refinado estilo
metafórico, em lugar da ênfase, da sintaxe musical, a frase simples, mas difícil e
quase desajeitada. Em lugar da torrente confusa dos sentimentos e das paisagens
emocionalmente matizadas, descrições miúdas de detalhes, a decomposição e a
desestratificação da vida espiritual. Em lugar da temática, o paralelismo de algumas
linhas, somente encadeadas, mas não entrelaçadas. (EIKHENBAUM
apud GÓRKI,
1983, p. 87).
138
Observa-se que, ao repudiar os clichês românticos: “estilo metafórico”, “a ênfase”,
“sintaxe musical”, “torrente confusa dos sentimentos”, “paisagens emocionalmente
matizadas”, “a temática”, afirmava, automaticamente, a necessidade de uma nova escola: o
“realismo”. Leon Tolstói, já nos primeiros diários, questiona a poética romântica sobre a visão
dada às paisagens. Conforme se pode constatar no trecho em destaque:
Dizem que olhando a bela natureza, vêm pensamentos sobre a grandeza de Deus e a
insignificância dos homens; vêem na água a imagem da amada, outros dizem que as
montanhas pareciam dizer isto e mais aquilo, e as folhas também e que as árvores
convidavam para alguma parte. Como se pode ter semelhante idéia? É preciso
esforçar-se muito para entranhar na cabeça tais disparates. (EICHENBAUM apud
GÓRKI, 1983, p. 88).
Leon Tolstói segue na derrocada dos clichês românticos, pondo por terra as imagens
dos valentões românticos, criados à maneira de Marlínski e Lérmontov e, até mesmo, o
tradicional Cáucaso “poético” não resiste:
Todos na Rússia imaginam o Cáucaso como grandioso, com as eternas geleiras
virgens, com as torrentes impetuosas, com os punhais, com as capas, com as
circassianas, tudo isto é algo terrível, e na realidade nisso não há nada de alegre. Se
eles soubessem, pelo menos, que nunca visitamos as geleiras virgens, e certamente
não há nada de alegre em visitá-las, e que o Cáucaso se divide nos governos de:
Stavrópolsk e Tiflis etc. (TOLSTOI apud GÓRKI, 1983, p. 88).
Observa-se que, durante algum tempo, Leon Tolstói não trata do amor, do “poético”,
em suas obras, até que escreve o romance Felicidade Conjugal. Entretanto, esse romance não
prega e nem exalta o amor tal qual a poética romântica, desmistifica-o. O herói, um homem de
idade avançada, não quer declarar seu amor da forma habitual nos romances:
Quando eu leio romances, diz ele, sempre imagino como deve estar preocupado o
rosto do Tenente Striélski ou de Alfredo, quando ele diz: “Eu te amo, Leonor!” e
pensa que de repente ocorrerá algo inusitado; e nada acontece nem a ela nem a ele,
sempre os mesmos olhos e o mesmo nariz e tudo sempre o mesmo. (TOLSTOI,
1993, v. I, p. 304).
Vê-se que, longe da poética romântica habituada a ter o casamento como desfecho,
Leon Tolstói se utiliza dele como enfeixe. Mais que isso, Leon Tolstói recusa o “próprio
gênero da novela romântica – como o herói central e o tema amoroso” (EIKHENBAUM apud
GÓRKI, 1983, p. 89). Para Eichenbaum, não é exato dizer que Leon Tolstói se tornou
moralista após Confissão, ou que o escritor entrou em crise, quem entrou em crise foi a
139
própria arte a fim de superar a poética romântica. Era necessário que a arte se voltasse de
modo novo para a vida, para se justificar, isto é, a “passagem para um primitivo intencional”
que inundará as páginas do tratado O que é a Arte?, que aparece em seguida. Nesse tratado,
Leon Tolstói posicionar-se-á contrário àquelas “miudezas” ou à imitação:
Em literatura este método consiste em descrver nos mínimos detalhes a aparência
externa, os rostos, as roupas, os tons e as habitações dos personagens representados,
com todas as ocorrências encontradas na vida. [...] Mas tire dos melhores romances
do nosso tempo os seus detalhes e o que restará? (TOLSTOI, 1994, p. 131).
Daí o fato de Leon Tolstói voltar-se para “o domínio da arte infantil popular”, que
não era considerado objeto digno de arte. Com isso, Leon Tolstói recusa-se a aproveitar o
tradicional material “poético”.
Do mesmo modo, Lima Barreto não seguiu o estilo academicista tão em voga na
virada do século XIX, não porque não dominasse o processo da escrita formal, como apontou
a crítica; mas, sim, porque procurou escrever de forma clara, simples, direta, para que
atingisse rapidamente seu objetivo que era o de transformar a sociedade através da literatura.
Houaiss, no prefácio ao volume Vida urbana, de Lima Barreto, afirma que “o uso eficaz do
instrumento da linguagem – necessidade e finalidade da linguagem – esteve sempre presente”
(BARRETO, 1956, v. XI, p. 9), como, também, “se reitera, com freqüência obstinada, a
discussão, em plano teorizado, das questões gramaticais e estilísticas” em toda a obra de Lima
Barreto (p. 10-11). Muitos exemplos referentes a essa questão, presentes na obra de Lima, já
foram apontados anteriormente. Pretende-se ressaltar aqui algumas importantes conclusões
sobre a língua de Lima Barreto, apontadas por Houaiss
29
, pois essa análise em muito contribui
para a reflexão e a compreensão da obra e do escritor. Com isso, deixa-se de lado
definitivamente, a avaliação crítica, comumente encontrada, de que Lima Barreto não
29
Sobre a língua de Lima, eis as conclusões apontadas por Houaiss: a) não é um espontâneo absenteísta: ao
contrário, é ela decorrente de um continuado esforço de assimilação de recursos, faculdades e possibilidades,
para o mais eficaz uso; b) não se trata, porém, de uma assimilação passiva, em que todas as prescrições das
preceptivas e proscrições e regrinhas dos gramáticos fossem aceitas; ao contrário, L.B. tem constante atitude
combativa no respeito, procurando, por todos os meios, pela diversidade, pela variedade, pelas equivalências,
concomitâncias, sincretismos, mostrar que a fixidez autoritária da gramática estava longe de corresponder à
realidade viva de língua nas suas infinitas potencialidades; c) esta última atitude, porém, não era gratuita ou
meramente instintiva, nem mesmo apenas empírica, mas antes procurava fundar-se em autoridades
gramaticais e filológicas; e não de segunda importância ressaltar que suas estimas, dentre as autoridades,
convirjam precisamente para aqueles gramáticos e filólogos que justamente são hoje considerados melhores e
mais categorizados, gramáticos que em seu tempo representavam a tendência moderna do estudo da língua no
Brasil. Vemo-lo, assim, quase sempre, coerentemente, colocar de um lado o Sotero, o Castro Lopes, o
Cândido de Figueiredo, e o padre Vieira e os seiscentistas, e de outro lado o Said Ali, o João Ribeiro, e o Eça
de Queirós e tantos espíritos de escol das letras francesas. HOUAISS, A. In: Vida urbana. Prefácio.
(BARRETO, 1956, v. XI, p. 23).
140
dominava os processos da escrita. O “uso eficaz do instrumento da linguagem”, para Lima
Barreto, equivale a uma linguagem militante, isto é, em prol do social, da comunicação e
ligação entre as pessoas. Isto é, uma função utilitária da linguagem tal qual a de Leon Tolstói.
Assim sendo, observa-se a linguagem utilizada por ambos na descrição dos homens
que assumem o mais alto posto de representação política e social. De um lado, Napoleão
Bonaparte; de outro, Marechal Floriano. O que se encontra é o mesmo processo de
desmitificação de duas figuras importantes, amadas e veneradas em seus respectivos
contextos. Atente-se que esse procedimento dos escritores foi muito criticado e não visto com
bons olhos, uma vez que soou como atitude de desrespeito e total falta de nacionalismo.
Compreende-se, porém, que as descrições estão condizentes e coerentes com o pensamento
dos escritores. Lima Barreto assim descreve a fisionomia do Marechal Floriano Peixoto:
Era vulgar e desoladora. O bigode caído; o lábio inferior pendente e mole a que se
agarrava uma grande “mosca”; os traços flácidos e grosseiros; não havia nem o
desenho do queixo ou olhar que fosse próprio, que revelasse algum dote superior.
Era um olhar mortiço, redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não
lhe era individual, mas nativa, de raça; e todo ele era gelatinoso – parecia não ter
nervos. (BARRETO, 1956, v. II, p. 208-209).
Nota-se que, na linguagem utilizada, está presente a adjetivação, a gradação e
também a enumeração, o que contribui significativamente para que ela se torne: simples,
direta, sem subterfúgios. Isso vem reforçar a intenção do escritor que era a de desmascarar, ou
melhor, dar a conhecer o verdadeiro homem que se escondia por trás do título de Marechal. A
descrição toma maiores proporções, uma vez que o Marechal Floriano Peixoto ocupava um
alto posto, não só na política como, também, na consideração de Policarpo Quaresma, que o
tinha na conta de um “ídolo político”, uma espécie de “Luís XI forrado de um Bismarck”
(BARRETO, 1956, v. II, p. 209). A decepção também aumenta, pois “Com uma ausência
total de qualidades intelectuais, havia no caráter do Marechal Floriano uma qualidade
predominante: tibieza de ânimo; e no seu temperamento, muita preguiça” (p. 209). E, mais
ainda, denominado por “homem-talvez”, cuja concepção de governo era de “uma tirania
doméstica” (p. 212). Por fim, Policarpo Quaresma conclui que “todo o sistema de idéias que o
fizera meter-se na guerra civil se tinha desmoronado. Não encontrara o Sully e muito menos o
Henrique IV” (BARRETO, 1956, v. II, p. 278).
Já no romance Guerra e Paz, de Leon Tolstói, o autor retrata a imagem de Napoleão,
o ditador francês, como maníaco da própria grandeza e deixa transparecer a responsabilidade
de Napoleão pelo terrível massacre na guerra de 1812. Conforme George Steiner, Leon
141
Tolstói rompeu decisivamente com os tratamentos prévios do assunto imperial, pois o motivo
napoleônico alimentou inúmeros romances no século XIX.
30
Inclusive em Recordações do
Escrivão Isaías Caminha (1909), Lima Barreto faz referência a Napoleão, quando o pai de
Isaías informa ao filho que o mesmo nasceu “quando Napoleão ganhou a batalha de
Marengo” (BARRETO, 1956, v. I, p. 45). Em Guerra e Paz, Napoleão é apresentado de modo
direto, mas não de súbito: “seu aparecimento em Auterlitz traz as marcas do método oblíquo
de Stendhal [...]. Mas, depois, à medida que o romance avança, ele é mostrado por inteiro, tal
como era” (STEINER, 2006, p. 17).
Para Steiner, isso reflete mais do que uma mudança na técnica narrativa.
“É consequência da filosofia da história de Tolstói e de seu parentesco com a epopeia heroica.
Além do mais, revela o desejo de um homem de letras – um desejo particularmente forte em
Tolstói – de circunscrever e, desse modo, dominar o homem de ação” (STEINER, 2006,
p. 17). Antes, porém, de escrever Guerra e Paz, Leon Tolstói tinha planejado escrever um
romance sobre a época de Pedro, o Grande, onde o próprio imperador também apareceria.
Mas, ao pesquisar os arquivos, sentiu aversão pela figura histórica de Pedro, o Grande, e
deixou de lado esses planos. Assim, se refere a Pedro I, num fragmento:
[...] aquele bêbado contumaz, devasso, sifilítico e ateu Piotr, que decepava cabeças
de streltzi [tropas que se revoltaram contra Pedro, o Grande]. Com suas próprias
mãos para se divertir, e que aparecia ao povo erguendo sacrilegamente louvores a
Cristo, com uma caixa para garrafas de vodca, à feição de Evangelho, e uma cruz
feita de piteiras em falo [...]. (TOLSTOI apud SCHNAIDERMAN, 1983, p. 20).
Sob o aspecto político, essa atitude de dizer o que pensa, demonstra que Leon
Tolstói era um escritor autêntico e não se prendia às convenções políticas, pois, como se sabe,
a censura na Rússia, nesse período, era bastante rigorosa. O fato de Leon Tolstói ser conde, de
família aristocrática, contribuiu para que o Csar não o extraditasse para a Sibéria, porém não
evitou que o Santo Sínodo o excomungasse da Igreja Ortodoxa Russa. Sob o aspecto literário,
Leon Tolstói busca a simplicidade da linguagem, que, conforme se viu, nada tem de simples.
Em outra passagem, observa-se o modo como cada escritor descreve pessoas e
coisas relacionadas ao teatro. Lima Barreto, em Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, assim
30
Ver STEINER, G. “A Revolução e o Império tiveram um importante papel de fundo para o romance do século
XIX, mas somente um papel de fundo. Quando os romances se movem muito perto do centro, como em Tale
of Two Cities (Um Conto de Duas Cidades), de Dickens, e de Les Dieux ont soif (Os Deuses têm sede), de
Anatole France, o aspecto da ficção propriamente perde em plenitude e distinção. [...] Na Comédia Humana,
a lenda napoleônica é um centro de gravidade na construção da narrativa. [...] Tanto A Cartuxa de Parma
como O Vermelho e o Negro de Stendhal são variações sobre o tema do bonapartismo, investigações sobre a
anatomia do espírito quando exposto à realidade em sua forma mais violenta e majestosa”. p. 17.
142
se refere ao vestuário feminino: “Contudo, vulgarmente, e muito, na entrada, parecia-me que
aquelas damas, envoltas em capotes e outros agasalhos, tinham o ar de quem ia para o banho;
enquanto, na sala, de colos nus, sob o rebrilho das luzes, surgiam-me como mármores de
museu” (BARRETO, 1956, v. IV, p. 153). Nos termos utilizados pelo escritor ocorre um
estranhamento, pois “envoltas em capotes”, “ar de quem ia para o banho”, “mármores de
museu” não condizem com a elegância que se espera para um lugar como esse, o teatro.
E continua na descrição do ambiente, quanto ao restante:
[...] as cadeiras dos camarotes que me pareceram bem inferiores às da sala de jantar
da minha modesta casa. Notei-lhes o forro de reles papel pintado, o assoalho de
tábuas de pinho barato; alonguei o olhar pelo corredor e além de acanhados, julguei-
os sujos, vulgares, a guiar os passos para lugares escusos. O teto sempre me intrigou.
Com os seus varões de ferro atravessados, supus que se destinassem os trapézios e
outras coisas de acrobacia. Ópera, ou circo? (BARRETO, 1956, v. IV, p. 153).
O estranhamento que decorre é completo, e faz parecer que ele se dá não só com o
personagem Gonzaga de Sá como se estende ao leitor, causando certa repulsa pelo ambiente.
Buscando, assim, uma simplicidade na linguagem, com o intuito de atingir o maior número de
leitores possível, Lima Barreto, conforme Cavalcante Proença, no Prefácio ao volume
Impressões de leitura, deixa transparecer, muitas vezes, “a mesma angústia que marca a
composição dos adolescentes”.
31
Nessa busca da clareza, possível apenas através da
simplicidade, ressalta-se o desejo de comunicação e a vontade de explicar-se, de influir sobre
os leitores. Proença avalia que desse desejo de clareza, de Lima Barreto, resulta certa
abundância de enumerações e sua variante, a gradação, em sua linguagem literária. Aponta,
ainda, algumas características do estilo de Lima Barreto, tais como, a utilização do
movimento ternário na disposição dos elementos sintáticos, dos advérbios e dos verbos e,
também, na descrição dos tipos logo após os elementos triméricos com a presença de um
aposto circunstancial.
Conforme se vê, Cavalcante Proença apontou características importantes relativas à
linguagem literária de Lima, não detectou, porém, o que estava por trás desse estilo “juvenil”
do autor, não percebendo o que essa linguagem literária trazia de novo em seu bojo, isto é, a
ruptura com a tradição, entenda-se aqui, a linguagem academicista vigente.
Num primeiro momento, pode-se considerar a existência de várias diferenças entre
os escritores Leon Tolstói e Lima Barreto, quer seja cultural, de classe, de posição social,
31
Conforme Proença: “A ânsia de clareza, levando à redundância, a vontade de explicar, de esclarecer, de
detalhar minuciosamente, presente em Lima Barreto, na sua abundância de possessivos e de artigos
indefinidos, os professores vão encontrar nos meninos que começam a escrever e receiam a incompreensão do
leitor” (PROENÇA, 1956. p. 9).
143
porém a que nos interessa neste estudo, no âmbito da ficção e da criação literária, refere-se ao
modo como cada escritor desmistifica a poética romântica. Leon Tolstói desmonta a poética
romântica, demonstrando, na própria narrativa, com a mudança de material, de procedimentos
e da forma, tal como apontou Eichenbaum. Questionando a convenção literária da visão
romântica dada às paisagens apresentadas:
Dizem que olhando a bela natureza, vêm pensamentos sobre a grandeza de Deus e a
insignificância dos homens; vêem na água a imagem da amada, outros dizem que as
montanhas pareciam dizer isto e mais aquilo, e as folhas também e que as árvores
convidavam para alguma parte. (EICHENBAUM apud GÓRKI, 1983, p. 88).
Coloca, ainda, em descrédito a poética romântica: “Como se pode ter semelhante
idéia? É preciso esforçar-se muito para entranhar na cabeça tais disparates.” (EICHENBAUM
apud GÓRKI, 1983, p. 88).
Derrubando todos os clichês românticos, surgem as imagens dos valentões criados à
maneira de Marlínski e Lérmontov, até o Cáucaso “poético”: “Todos na Rússia imaginam o
Cáucaso como grandioso, com as eternas geleiras virgens, com as torrentes impetuosas, com
os punhais, com as capas, com as circassianas, tudo isto é algo terrível, e na realidade nisso
não há nada de alegre” (TOLSTOI apud GORKI, 1983, p. 88). Desmistifica e contraria a
visão romântica do Cáucaso, demonstrando que essa visão jamais existiu, de fato “é algo
terrível”, “na realidade não há nada de alegre”. Ao invés da idealização romântica, a
realidade, a verdade ou, mesmo, a singularização e o estranhamento: “Se eles soubessem, pelo
menos, que nunca visitamos as geleiras virgens, e certamente não há nada de alegre em visitá-
las, e que o Cáucaso se divide nos governos de: Stavrópolsk e Tiflis etc.” (A Derrubada).
Essa destruição da poética romântica está presente no texto de modo direto, Leon
Tolstói não escreve sobre o amor romântico e é contrário à convenção romântica de que todos
os finais têm que ser felizes e, de preferência, com um casamento e a tradicional expressão:
“viveram felizes para sempre”. Em Leon Tolstói, o casamento não é um desfecho, antes, um
enfeixe, recusa, ainda, o “próprio gênero da novela romântica – como o herói central e o tema
amoroso” (EICHENBAUM apud GÓRKI, 1983, p. 29).
Em Lima Barreto, a poética romântica desmistifica o escritor brasileiro e a si
mesma, pois ele não trata do amor em suas obras.
32
É o que se encontra em Triste Fim de
32
Ver BARRETO, L. Cemitério dos Vivos. 1956, v. XV. “Parecia-me ridículo ter esse sentimento de tratar de
amor. Parecia-me ridículo ter esse sentimento e ainda mais ridículo analisá-lo ou
tratá-lo em livro Todo o
amor, parecia isto a mim, me humilhava, e não queria o fato de
descrever um qualquer encontrasse (sic) em
mim a prova de fraqueza e rebaixamento de mim mesmo”. “Evitando o amor, voltei as minhas vistas para os
grandes livros de aventura; e, por eles, vi bem que os romances que as narram são talvez os que mais resistem
ao tempo. Não foi, porém, por isso, nem mesmo pela sua aparente facilidade; foi tão-somente para evitar o
escolho do Amor, que comecei a escrever um”. (p. 168-169)
144
Policarpo Quaresma, pois, nesse texto, o protagonista Policarpo Quaresma defende a visão
romântica do Brasil encontrada nos livros de sua biblioteca e “estabelece a narrativa
romântica como a grande interlocutora de seus textos” (FIGUEIREDO, 1998, p. 20).
Policarpo era “patriota” fanático. Seu nacionalismo é ufanista e xenófobo. Só vê qualidades
em sua pátria, criticando e detestando tudo o que é estrangeiro. “Desde moço, aí pelos seus
vinte anos, o amor da pátria tomou-o por inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio;
fora um sentimento sério, grave e absorvente” (BARRETO, 1956, v. II, p. 32).
Bem se vê que a desmistificação da poética romântica ocorre, também,
paralelamente à oposição à estética simbolista-parnasiana. O que se dá, tanto no nível
temático quanto no aspecto formal, visto que Lima Barreto contraria a visão romântica do
Brasil criada pela poética romântica, além de ir contra o culto da “arte pela arte”. Desse modo,
Policarpo Quaresma é um herói, contudo, um herói às avessas, considerando-se que não
conseguiu jamais atingir seus objetivos. Esse herói às avessas se justifica pelo fato de que
Lima Barreto detectou o estranho distanciamento entre o país real e o país criado
ficcionalmente, isto é, nas obras românticas e ao caracterizá-lo como um ardoroso patriota,
isso nada mais é que uma estratégia narrativa para melhor desmascarar a visão romântica
criada para o Brasil.
A trajetória de Policarpo pode ser dividida em três projetos nacionalistas, aliás, são
três tentativas e todas frustradas: o cultural, o agrícola e o político. As terras não eram
produtivas e o “plantando tudo dá” é desmascarado. Policarpo “estudou a Pátria, nas suas
riquezas naturais, na sua história, na sua geografia, na sua literatura e na sua política”
(BARRETO, 1956, v. II, p. 33). É interessante observar que Lima Barreto cita, no próprio
texto, trechos de obras românticas: “O ministério era liberal, ele se fez conservador e
continuou mais do que nunca a amar a terra que o viu nascer” (BARRETO, 1956, v. II,
p. 32). “Todas as manhãs, antes que a ‘Aurora, com seus dedos rosados abrisse caminho ao
louro Febo’” (p. 33). É nesse ritmo que se dá a narrativa de Triste Fim de Policarpo
Quaresma, isto é, conforme Policarpo Quaresma vai fazendo suas leituras das obras
românticas, ou melhor suas “desleituras”, alguns trechos delas vão sendo citados.
33
Em
alguns, aparece a referência, pois o próprio narrador informa; em outros, deixa transparecer
que é uma citação de algum escritor romântico porque aparece entre aspas.
33
Ver: “Sentado na cadeira de balanço, bem ao centro de sua biblioteca, o major abriu um livro e pôs-se a lê-lo
à espera do conviva. Era o velho Rocha Pita, o entusiástico e gongórico Rocha Pita da História da América
Portuguesa. Quaresma estava lendo aquele famoso período: “Em nenhuma outra região se mostra o céu mais
sereno, nem madruga mais bela a aurora; o sol em nenhum outro hemisfério tem raios mais dourados...” mas
não pode ir ao fim. Batiam à porta. Foi abri-la em pessoa.” (BARRETO, 1956, v. II, p. 35).
145
Quanto à narrativa, utiliza-se de longas descrições tanto das personagens quanto do
meio, o que dá uma visão romântica
34
de tudo o que o cerca, porém, no meio desse
procedimento, Lima Barreto rompe com a visão romântica e utiliza a linguagem do
“estranhamento”. É o que se constata em alguns casos: “Apesar da pompa, esteve longe de ser
uma noiva majestosa. [...] e, desse modo, ela desaparecia dentro do vestido, dos véus e
daqueles atavios obsoletos com que se arreiam as moças que se vão casar” (BARRETO, 1956,
v. II, p. 148). Em outro caso, quando recorda os acontecimentos históricos ocorridos no Rio
de Janeiro, observa-se o seguinte:
[...] Não havia ainda cem anos que as carruagens d’El Rei Dom João VI, pesadas
como naus, a balouçarem-se sobre as quatro rodas muito separadas, passavam por ali
para irem ter ao longínquo Santa Cruz. [...] Não obstante os soldados remendados,
tristemente montados em “pangaré” desanimados, o préstito devia ter a sua
grandeza, não por ele mesmo, mas pelas humilhantes marcas de respeito que todos
tinham que dar à sua lamentável majestade. (BARRETO, 1956, v. II, p. 48).
Vê-se que Lima Barreto destrói a visão romântica, utilizando-se da ironia, da
caricatura e do procedimento de estranhamento: “atavios obsoletos”, “arreiam” (sic), ambos
totalmente fora de contexto, desapropriados para a situação e, na outra citação, desmascara a
visão romântica, bastante arraigada, de riqueza, de poder e de bravura, do Brasil e da família
real, perpetuada nos livros de sua biblioteca.
A concepção de Lima Barreto quanto ao casamento, um dos clichês e um dos
principais focos da poética romântica, é revelada com bastante criticidade e ironia, embora se
utilizando do modo de narrativa romântica. Ismênia, por exemplo, ao esperar anos a fio pelo
noivo, ao preparar o enxoval, aprender a cozinhar, bordar e passar, é o retrato do
desmascaramento da visão romântica de casamento que se faz de dentro para fora. Isto é, ao
retratar a obsessão de Ismênia pelo casamento, e levando-se em consideração o fato de ela e,
ao mesmo tempo, todas as moças, daquela época, terem um fim certo que era casar, vivendo
para isso, além do fato de não se concretizar o casamento de Ismênia, Lima Barreto destrói
toda a encenação romântica que cerca tal acontecimento. O que se pode estender ao
tratamento dispensado às mulheres pela sociedade patriarcal e machista daquele período. O
que se confirma com as palavras dos pais de Ismênia, o Coronel Albernaz e Dona Maricota:
“Enfim – dizia Albernaz à mulher, na noite do pedido, quando já recolhidos – a cousa vai
acabar. Felizmente, respondia-lhe Dona Maricota, vamos descontar essa letra” (BARRETO,
1956, v. II, p. 65). Lima Barreto dá o golpe final quando Olga, sua afilhada, casa-se “por
34
Ver BARRETO, L. Triste Fim de Policarpo Quaresma, 1956, v. II, p.101. “Lá fora, era o dia lindo, os ares
macios, o mar infinito e melancólico, as montanhas a se recortar num céu de seda – a beleza da natureza
imponente e indecifrável”.
146
hábito de sociedade, um pouco por curiosidade e para alargar o campo de sua vida e aguçar a
sensibilidade” (BARRETO, 1956, v. II, p. 102). Porém, mais ainda quando, no final, a
afilhada rompe com esses laços que a amarram, rebelando-se contra as convenções sociais e
transformando-se em senhora e dona de seu destino.
Constata-se que as concepções de arte dos dois escritores são convergentes entre si,
entretanto, a diferença maior entre eles está no modo como cada escritor a põe em prática, tal
como se observa quanto à desmistificação da poética romântica. Uma outra diferença, que se
estabelece entre ambos, refere-se ao lugar ocupado por cada um, de onde falam. Leon Tolstói,
aristocrata, família nobre, pertencente às altas rodas da sociedade de Kazan, Moscou e São
Petersburgo, aliás, amado e venerado como homem, escritor, filósofo e religioso, critica a
Igreja, o Estado, o Czar, a propriedade, porém, nada lhe acontece de tão drástico. Aliás, a
atitude que mais o marcou foi justamente a excomunhão da igreja ortodoxa russa. É um
aristocrata criticando a aristocracia. Em contrapartida, Lima Barreto, mulato, funcionário
público, pobre, descendente de escravos, alcoólatra, com crises de loucura, critica os
mandarins literários, o governo, a igreja, a imprensa e é jogado no esquecimento, seu nome é
proibido de aparecer durante cinquenta anos nas folhas do jornal Correio da Manhã, sendo
retratado e caricaturado n’O Globo, em Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909).
Atitude semelhante tomou o restante dos jornais; a resposta às críticas, foi o silêncio.
A questão financeira foi outra agravante para Lima Barreto, já que ele vivia na maior
miséria e, embora trabalhasse e recebesse salário, esse mal dava para sustentar a família. Leon
Tolstói não passou nem perto dessa situação e, nesse quesito, talvez, tenha sido Dostoiévski
quem mais se aproximou de Lima Barreto. Aliás, Leon Tolstói jamais soube o que era a
miséria, sempre viveu no maior luxo e com muita mordomia, viajou muito e conheceu vários
países. Enquanto um se esforça para parecer um mujique, um trabalhador braçal, o outro
reclama que as pessoas insistem em lhe querer contínuo (BARRETO, 1956, v. XIV, p. 52).
4.4 Semelhanças de Estilo, Sentimentalismo e Temas Recorrentes em Leon
Tolstói e Lima Barreto
Partindo da constatação de que a concepção de arte de Lima Barreto e de Leon
Tolstói tem muito em comum, sobretudo no que se refere à função social da literatura, o
confronto entre a linguagem literária dos escritores nos abre novas perspectivas para análise,
147
visto que ambos procuraram uma nova maneira para se expressar, já que a arte literária em
vigência, nos respectivos países, não atendia às necessidades da época. Leon Tolstói, na
Rússia, posiciona-se contra a poética romântica e Lima Barreto, no Brasil, situa-se, não
apenas contra a poética romântica, mas, também, contra a simbolista e a parnasiana, isso
porque, no Brasil, mais do que em outros países, as correntes teóricas chegavam bem depois.
Dessa forma, os autores posicionaram-se contrários à arte pela arte.
Realistas, opondo-se à arte pela arte, rejeitaram os padrões literários convencionais,
que se restringiam a uma minoria privilegiada e procuraram criar uma arte literária voltada
para o povo. Uma arte que refletisse sobre os problemas sociais, levando-lhes a
conscientização de seus direitos e deveres e proporcionando-lhes, ou mesmo provocando, uma
transformação social. Para isso, foi necessário escrever de modo a tornar a arte literária
simples, compreensível ao povo. Daí a oportunidade de verificar como se dá essa busca pela
clareza, pela simplicidade, enfim, como ela se apresenta no texto literário e como os autores
viabilizam uma arte literária que seja acessível ao povo, isto é, às classes sociais
desprivilegiadas. Como se observou no decorrer do contato com os dois escritores, ambos se
dedicaram compulsivamente à literatura e refletiram, constantemente, sobre arte em suas
obras.
Quanto às semelhanças de estilo entre os dois escritores, pode-se dizer que, se Leon
Tolstói aplicou o “procedimento de singularização” e o “estranhamento” em suas obras e a
simplicidade aplicada à linguagem literária era resultado de intensas elaborações, do mesmo
modo, pode-se afirmar que Lima Barreto se utilizou desses recursos de modo consciente.
Pois, conforme análise feita por Houaiss sobre Lima Barreto, a linguagem literária barretiana
é resultado do conhecimento, domínio e opção do escritor.
Esse procedimento se confirma em Lima Barreto na obra Cemitério dos vivos. Nesse
texto, através de Vicente Mascarenhas, o autor deixa transparecer a preocupação com a escrita
e com o aperfeiçoamento da arte de escrever.
Tratei de ler os autores com cuidado, de observar como dispunham a matéria,
como desenvolviam, a procurar teorias de estilo, e isto, como todo principiante, fui
procurar no enfado dos clássicos; mas, bem depressa, abandonei esse sestro e o meu
escopo foi unicamente vazar o melhor possível o pensamento que queria vazar no
papel. (BARRETO, 1956, v. XV, p. 138).
“Apurei-me, afinei-me, escrevendo duas, três e mais vezes a mesma cousa”
(BARRETO, 1956, v. XV, p. 138).
148
Veio-me a reflexão de que não era mau que andasse a escrever aquelas tolices.
Seriam como que exercícios para bem escrever com fluidez, claro, simples, atraente,
de modo a dirigir-me à maioria comum dos leitores quando tentasse a grande obra,
sem nenhum aparelho rebarbativo e pedante de fraseologia especial, ou um falar
abstrato que faria afastar de mim o grosso dos legentes. (BARRETO, 1956, v. XV,
p. 138).
E ainda:
Seria melhor que me dirigisse ao maior número possível com auxílio de livros
singelos, ao alcance das inteligências médias, com uma instrução geral, de que
gastar tempo com obras só capazes de serem entendidas por sabichões enfatuados na
sua inteligência, pelas tradições de escolas e academias e por preconceitos livrescos
e de autoridade. (BARRETO, 1956, v. XV, p. 139).
Quando Mascarenhas, na voz de Lima Barreto, afirma: “Apurei-me, afinei-me,
escrevendo duas, três e mais vezes a mesma cousa” (BARRETO, 1956, v. XV, p. 138), vê-se
que a forma literária não foi totalmente deixada de lado. Aliás, o estilo de Lima Barreto foi
criado de maneira que tornasse possível atingir os objetivos propostos pelo escritor. Isso não
aconteceu de forma diferente em Leon Tolstói, é o que se demonstrará em seguida, recorrendo
a algumas citações da obra de um e outro. Diante disso, decidiu-se disponibilizar, anexo, o
paralelo das citações encontradas em Lima Barreto e Leon Tolstói, para que o leitor curioso
tenha acesso a elas de modo completo.
Em Lima Barreto, a enumeração demonstra a busca do termo próprio, processo que
ocorre à vista do leitor. Como demonstração dessa estratégia, cita dois exemplos retirados do
“Diário Íntimo”, quando pretende escrever um romance “sombrio, trágico e misterioso” e fala
de malucos “semimortos, aniquilados, anulados”. O desejo de precisão do escritor alonga as
enumerações: “Era um terror baço, sem coragem, sangrento, às ocultas, sem grandeza, sem
desculpa, sem razão e sem responsabilidade” (P.Q.). A gradação comparece com frequência:
o velho português tinha “retidão, energia e franqueza”. O amigo já descrê de tudo, “da arte, da
religião, da ciência”. “Os engenheiros ficaram atarantados, atordoados, apavorados”. O
homem que tinha ideias “era um pingar de idéias, diário, constante e teimoso”. Esse homem
“era pródigo e era generoso e era desperdiçado” (H.S.)
Em muitos pontos, as enumerações aparecem de modo preciso: “Xisto Beldroegas
vivia obsedado com avisos, portarias, leis, decretos e acórdãos” (H.S.) O predicativo de três
elementos, o tricólon, recurso retórico muito frequente na baixa latinidade e, ainda hoje, na
poesia popular: Cassi “mal-educado, bronco, analfabeto”. As cortesãs estrangeiras “de dentro
das rendas surgiam espectrais, apagadas, lívidas como moribundas”. O filho de Gabriela era
149
“taciturno, reservado e tímido”, e o padrinho, “duro, desdenhoso, severo em demasia” (C.A.).
D. João VI era tido por “preguiçoso, indolente, vadio” (H.S.). Outros elementos sintáticos
dispõem-se triméricos: Manuel Capineiro, diante do boi estraçalhado pelo comboio, exclamou
“cheio de pesar, de saudade, de desespero” (G.S.). A arte de D’Annunzio “é uma apologia de
sangue, de volúpia e de crueldade” (Mg.). Alzira, “mulher batida pela sorte, pelo infortúnio,
pela maldade dos homens” (H.S.).
Esse movimento ternário chega a atingir os advérbios de modo: Policarpo pensava
ganhar contos de réis “tirados da terra facilmente, docemente, alegremente”. Quaresma
convalesce “longamente, demoradamente, melancolicamente” (P.Q.). Nem os verbos se
excluem do movimento: No botequim do subúrbio, “os transeuntes param, conversam e
bebem” (G.S.). Em Isaías Caminha, a presença desse compasso ternário dá-se logo no início:
“A tristeza, a compressão e a desigualdade de nível mental do meio familiar agiram sobre
mim”.
Observa-se, na descrição de tipos, pois, logo depois do predicativo trímero, segue-
se, com frequência bem notável, um período iniciado com aposto circunstancial. Por esse
processo, variando, embora, o aspecto formal, continua a adjetivação, no desejo de fixar a
personagem descrita. Quando, ao tratar da figura do preto Manuel de Oliveira, o faz do
seguinte modo: “Cabinda de nação, ele viera muito menino da Costa da África”. “Sóbrio,
trabalhador e disciplinado, o velho preto cabinda não sofria nenhum constrangimento” (F.M).
No romance Ana Karênina, de Leon Tolstói, logo no início, encontra-se um
parágrafo no qual se presencia esse procedimento: “Dolly, a mulher sempre diligente, cheia de
preocupações e tão limitada, segundo pensava Oblonski, sentara-se com o bilhete na mão e
olhava-o num misto de cólera, horror e desalento” (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 14). Observa-se
que, na descrição de Dolly, está presente o movimento ternário e, na seqüência, a repetição
em ternário dos substantivos: “misto de cólera, horror e desalento”. Logo em seguida,
encontra-se: “Em vez de ofender-se, negar, justificar-se, pedir perdão ou mesmo mostrar
indiferença [...]” (p. 14). Observa-se que o movimento ternário também está presente ao se
tratar dos verbos.
A gradação se mostra na narrativa como forma de desenvolvimento da ação e, ao
mesmo tempo, de certo detalhamento dessa mesma ação: “Era, inclusive, da opinião que a
esposa, esgotada, envelhecida, sem beleza nem atrativos, conquanto simples e boa mãe de
família devia ser condescendente por espírito de justiça” (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 15). E dá
continuidade no processo de repetição ternária: “Embora, na realidade, não lhe interessasse
150
nem a ciência, nem a arte, nem a política, defendia firmemente as mesmas opiniões da
maioria e do jornal [...]” (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 17).
A presença do aposto circunstancial se apresenta e desempenha a função de reforçar
e enfatizar a descrição da personagem, buscando, com isso, tornar a descrição mais precisa.
O professor, um homenzinho de óculos, de testa estreita, calara-se por momentos
para cumprimentar Levine, continuando em seguida o seu discurso sem lhe prestar a
mínima atenção. Levine sentou-se, à espera de que o professor se fosse, mas não
tardou a interessar-se também pela discussão. (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 32).
“Nicolau, o irmão mais velho de Constantino Levine e gêmeo de Sérgio Ivanovitch,
era um homem perdido. Dissipara grande parte da fortuna, tinha relações com pessoas
extravagantes e de má reputação e não falava com os irmãos” (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 34).
A enumeração é um recurso recorrente no estilo de Leon Tolstói: “Estudara ciências
naturais, mas nunca estabelecera relação entre as conclusões da ciência sobre as origens do
homem, os reflexos, a biologia, a sociologia e as questões que ultimamente o preocupavam
cada vez mais, isto é, o sentido da vida e o significado da morte” (TOLSTOI, 1993, v. II,
p. 32).
A adjetivação é utilizada com a finalidade de facilitar o conhecimento das
personagens e a aproximação do leitor. Assim ele o faz na descrição de Vronski:
“É imensamente rico, bela figura, e com boas relações. É ajudante-de-campo e, além disso,
rapaz muito simpático e bom moço. Quando lidei com ele aqui pude verificar que também é
culto e muito inteligente: é um homem que há de ir longe” (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 45).
E, ao falar das mulheres: “- Pensa numa mulher agradável, tímida, afetuosa, só e pobre que
tudo sacrificou por ti” (p. 46). “Toda a diversidade, todo o encanto, toda a beleza da vida se
compõe de luzes e de sombras” (p. 47).
O que se observa quanto à descrição dos personagens é que elas são dadas a
conhecer pelo leitor de forma gradual e intensa, e, a cada momento, as descrições de uma
mesma personagem são reforçadas e um outro aspecto é dado a conhecer pelo leitor. Tal é o
caso da descrição de Vronski: “Vronski era um homem moreno, não muito alto, de forte
compleição, belo, e de fisionomia extremamente serena e grave. Tudo na sua figura, desde os
negros cabelos curtos e o rosto recém-barbeado até ao folgado uniforme novo, era simples e
ao mesmo tempo vistoso” (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 54).
A gradação ocorre frequentemente, o que demonstra uma simplificação tanto de
estilo quanto de linguagem, por parte de Leon Tolstói: “Dirigiu-se diretamente para o seu
151
quarto do Dusseau, pediu a ceia e assim que se despiu e que deitou a cabeça no travesseiro,
adormeceu pesadamente” (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 60); “Não só não apreciava a vida
familiar, como via qualquer coisa estranha, hostil, e sobretudo ridícula na família [...]” (p. 60);
“E fê-lo de um modo tão agradável, tão simples e sobretudo tão confiado!” (TOLSTOI, 1993,
v. II, p. 60). Observa-se que, além da gradação presente, ocorre a repetição da conjunção
“sobretudo” por três vezes em um curto espaço, um para cada parágrafo. Além das duas já
citadas há pouco, com a intenção de demonstrar a gradação presente, a repetição do termo
“sobretudo” ocorre uma terceira vez: “Como poderia ele considerar repreensível uma coisa
que tão grande prazer lhe proporcionava e que tão agradável era, sobretudo para ela, Kitty?”
(TOLSTOI, 1993, v. II, p. 60). Nessa repetição, percebe-se a intenção de ênfase da
observação feita pelo escritor. E, ao falar sobre Alexei Alexandrovitch, marido de Ana
Karênina, recorre a gradação ternária de palavras e de significado: “Sei que é homem
inteligente, sábio e um tanto sobrenatural...” (p. 61) Ao falar de Levine recorre ao mesmo
processo já utilizado: “É um rapaz muito nervoso, que às vezes costuma ser desagradável,
mas outras é capaz de ser muito simpático. É um coração de ouro, uma natureza reta e
honrada” (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 62); a mesma forma se repete ao se referir a Ana: “Ana
Karenina permanecia imóvel, muito direita, os olhos risonhos” (p. 65); “Corou, inclinou-se
ligeiramente e aproximou o rosto dos lábios da velha condessa; depois soergueu-se e com o
mesmo sorriso inquieto estendeu a mão a Vronski” (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 65). Ocorre,
também, uma descrição gradual dos movimentos de Ana, o que transmite certa agilidade e
simplicidade ao estilo tolstoiano.
A recorrência desses processos de adjetivação, enumeração, gradação e repetição é
constante no texto de Leon Tolstói. Sendo possível encontrar uma boa parte deles num
parágrafo, tal como se apresenta no que se segue, ao se referir a Ana:
Ana não parecia uma senhora de sociedade nem a mãe de um filho de oito anos, mas
uma garota de vinte anos, a julgar pela flexibilidade dos seus gestos, a frescura e a
vivacidade de expressão, que ora lhe transparecia nos lábios ora nos olhos, agora
séria e logo triste, coisa que muito surpreendeu Kitty. Foi precisamente esta
particularidade que a seduziu: para além da simplicidade de Ana, adivinhava todo
um mundo de poesia, misterioso, complexo, que se lhe afigurava inacessível. Depois
do jantar, quando Dolly se retirou para seus aposentos, Ana levantou-se e
aproximou-se do irmão, que acendia um cigarro. (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 72).
Observa-se que a recorrência desses processos de maneira alguma empobrece ou
torna menos literário o texto de Leon Tolstói, aliás, com esses recursos estilísticos percebe-se
que sua narrativa se torna clara, simples, sendo muito mais atrativa ao leitor.
152
Vale lembrar que as citações apresentadas são suficientes para demonstrar um pouco
do estilo tolstoiano presente em Ana Karênina, e, principalmente, para demonstrar que esse
estilo se identifica, e muito, com o de Lima Barreto. Porém, ressalta-se que as possíveis
semelhanças encontradas na obra de Lima Barreto não param nisso, daí o porquê de não
relacionarmos todas as recorrências encontradas em Ana Karênina, pois se estenderia bastante
nessa parte.
Diante das semelhanças encontradas nos respectivos estilos dos escritores, é
importante esclarecer que, no que se refere ao movimento ternário dos advérbios de modo
presente no estilo de Lima Barreto, constata-se uma diferença, pois ele não ocorre em Ana
Karênina de Leon Tolstói, visto que os advérbios de modo, nessa obra, aparecem de forma
única. O que demonstra que Lima Barreto não somente absorveu como transformou o estilo
tolstoiano, adequando-o e acrescentando algo novo e próprio. É válido esclarecer que Lima
Barreto, em nenhum momento, escondeu que leu os escritores russos e Leon Tolstói.
Os autores se aproximam quer seja em relação aos conteúdos ou quanto aos aspectos
formais. Observa-se que, em Lima Barreto, alguns traços físicos de seus personagens são
realçados, porém o que predomina mesmo é a sua preocupação com os olhos. Cada escritor
ressalta esse ou aquele traço. Machado de Assis, por exemplo, demonstrou certa fixação pelos
braços de seus personagens. Essa tendência em ressaltar os olhos como “espelhos da alma”,
isto é, como o centro de interesse de seus personagens e através deles dar a conhecer a índole
boa ou má de cada um, está presente nos dois escritores.
Conforme se constata nas citações, Lima Barreto apresenta em suas obras uma
variedade de olhos, de todos os tipos, cores e formatos: “São olhos de crianças e mulheres,
olhos de várias cores, com estilhas e estrias, doces ou duros, fugidios ou firmes, até chegar a
Adélia
35
, menina pobre que ‘era só olhar’” (PROENÇA, 1956, p. 24). Há, ainda, o olhar dos
submissos: Policarpo lembrava-se de Anastácio, “o seu preto velho, o seu longo olhar, não
mais com aquela ternura passiva de animal doméstico, mas cheio de assombro, de espanto e
35
BARRETO, L. Histórias e Sonhos. 1956, v. VI, p. 115. “Adélia” é o título de um conto de Lima Barreto, no
qual ele deixa explícita a força que o olhar da personagem acarreta no processo de descrição da mesma, desde
criança até a fase adulta. Em contraste ao tipo físico sem nenhum atrativo de Adélia, Lima sobrecarrega ao
enfatizar o olhar: “O seu olhar, entretanto, era calmo. Era azul-turquesa, e doce, e vago. No meio da desgraça
de seu corpo, a placidez do seu olhar tinha um ar zombeteiro”. (p. 116); “e o olhar sempre o mesmo, a ver
caravelas ao longe”; Adélia após casar-se “unicamente mudou num instante o olhar que ficou duro e
perverso”; o casamento melhorou-lhe o aspecto físico mas continuou “sempre com aquele olhar fora do corpo
e das cousas reais e palpáveis” ; e mesmo depois de viúva “O seu olhar vago, fora dos homens e das cousas,
atravessava o véu negro como um firmamento com uma única estrela no engaste de um céu de borrasca”;
passou a freqüentar as confeitarias, mas “o seu olhar não pousava nunca nos espelhos e nas armações. Andava
longe dela, longe daqueles lugares”; morreu muito cedo como a criança que se fora: “um frangalho de corpo e
um olhar vago e doce, fora dela e das cousas”.
153
piedade, rolando muito nas órbitas as escleróticas muito brancas” (P.Q.). Isaías Caminha, ao
recordar-se da mãe: “De quando em quando ela me lançava os seus olhos aveludados,
redondos, passivamente bons, onde havia raios de ternura ao encarar-me” (I.C.). A bondade
de coração também se expressa pelo olhar: Floc, após o suicídio: “Os olhos semicerrados
tinham uma longa e doce expressão” (I.C.); e a velhinha, “de grande velhice e largo olhar de
bondade” (Mg.).
As personagens boas, apresentadas por Lima Barreto, nós as reconhecemos pelo
olhar, pois todas são doces pessoas de olhos doces: Gonzaga é, assim, descrito: “Os olhos,
seus doces olhos perdiam o brilho, apareciam mortiços e ganhavam uma estranha auréola”
(G.S.). Tal como as pessoas boas são caracterizadas através do olhar, as pessoas fingidas
também o são, é o caso do padeiro de Itaporanga, com “o seu olhar inquieto e fugidio, mas
vivo quando se fixava, era de velhaco mercadejante, bem com o código e as leis” (I.C.).
Existem, ainda, os céticos: o velho professor, pai de Cló, tinha “o olhar calmo em que não
havia mais nem espanto, nem reprovação, nem esperança” (H.S.). As mulheres, em que o
sexo predomina e, que, para Lima Barreto, eram más, terão olhos lúbricos: Madame Santos
Carvalho “com aqueles olhos de fome, olhos de insatisfação, de curiosidade, de vontade de
provar todos os frutos do jardim do mundo” (I.C.).
Lima Barreto requer uma ampla variedade de olhares, visto que cada uma de suas
personagens tem o olhar conforme as características que lhe são próprias. A inquietação, a
falta de segurança dos tímidos, a ânsia dos curiosos de gozo ou de sabedoria se traduzem e
são retratadas no olhar: o guarda do hospício, “grandes olhos sequiosos de entender alguma
coisa, o único traço grande de sua fisionomia” (D.I.); a gente grã-fina do Lírico, com “não sei
quê de inquietação, não sei quê de desassossego no olhar” (G.S.). Enfim, através dos olhos,
reconhece-se o estado de espírito dos personagens barretianos, se estão de mau humor, se são
fortes ou não. Os olhos são armas poderosas utilizadas na conquista amorosa: a Viscondessa
de Varrenes, “a deitar os seus grandes olhos de Juno para a massa masculina” (I.C.). Além
disso, na galeria de olhos do escritor, constam os olhos das crianças e até do inanimado: o
volume da legislação, no serviço, “mirava-me, olhava-me, com um olhar tão meigo”. A maior
de todas é a galeria dos olhos femininos, que apresenta ampla variedade, pela cor, pelo brilho,
pela expressão, exprimindo a própria alma.
A ênfase dada aos olhos e ao olhar, na descrição dos personagens, também se
encontra em Leon Tolstói, como se pode verificar nas citações seguintes: Levine ao retornar a
Moscou para se declarar a Kitty a encontra na estação de esqui e fica a observar: “O contraste
entre a graça juvenil do rosto e a beleza feminina do busto davam-lhe um encanto todo
154
especial, que Levine muito apreciava. Mas o que sempre o assombrava nela eram os olhos,
tímidos, serenos e sinceros [...]”, (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 36); os olhos são utilizados como
um complemento na descrição de seus personagens, principalmente dos estados emocionais,
tais como: alegria, tristeza, angústia e, através deles, é possível detectar a verdade, a mentira e
a falsidade daquilo que dizem. Em uma conversa da princesa com sua filha Kitty, a mãe se
enternece ao ver “lágrimas nos olhos da filha” (p. 51) e “replicou Kitty, corando e olhando a
mãe nos olhos” (p. 51), e a mãe chega à seguinte conclusão a respeito da fala da filha: “Com
estes olhos não pode mentir” (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 51).
Do mesmo modo, o olhar tem um poder essencial quando se trata de conquistas
amorosas e, nesse caso, Kitty, ao ficar frente a frente com Levine, vê o mesmo “tímido na sua
força, fixando nela um olhar ardente. Kitty fitou-o francamente face a face, e estendeu-lhe a
mão” (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 52); “e sem afastar de Levine os olhos suplicantes e
acariciadores. Levine fitou-a. Kitty corou e calou-se” (p. 52); “então (Levine) fixou nela os
olhos” (p. 52). Através do olhar também L. Tolstói deixa transparecer o pensamento das
personagens, Kitty ao passar junto de Levine, “os olhos dos dois encontraram-se” (p. 57) e é
como se Kitty dissesse: “Se me puder perdoar, perdoe-me”, “Sou tão feliz!” (p. 57); enquanto
que “ripostou o olhar de Levine” dizendo: “Odeio-os a todos, tanto a você como a mim
mesmo” (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 57); essa comunicação que ocorre com os personagens
através do olhar torna-os mais íntimos, principalmente porque as palavras ficam em segundo
plano, conforme comentários de Levine: “Precisamente o agradável é que nenhum de nós
tenha dito nada e que, no entanto, nos compreendamos um ao outro só com essa muda
linguagem dos olhares; hoje disse mais claramente do que nunca que me ama” (p. 60); o
contato fatal, que ocorre entre Ana e Vronski, fica registrado através do olhar de ambos, e isso
é descrito por Leon Tolstói em um longo parágrafo:
Curvou-se e ia entrar no vagão quando sentiu necessidade de voltar a olhá-la, não
atraído pela sua beleza, nem pela sua elegância, nem pela singela graça que se
desprendia de toda a sua pessoa, mas apenas porque a expressão do seu rosto
encantador, quando passara junto dele, se mostrara especialmente suave e delicada.
No momento em que se voltou, também ela olhara para trás. Seus brilhantes olhos
cinzentos, que pareciam escuros graças às espessas pestanas, detiveram-se nele,
amistosos e atentos, como se o reconhecessem, e imediatamente se desviaram para a
estação, como que procurando alguém. Naquele rápido olhar, Vronski teve tempo de
lhe observar a expressão de uma vivacidade contida, os olhos reluzentes e o sorriso
quase imperceptível dos lábios rubros. (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 63).
A aproximação entre Kitty e Ana ocorre também através do olhar; Kitty admirava
Ana pela sua beleza e, ao mesmo tempo, percebe o risco que corre em relação a Vronski.
155
Kitty percebia “nos olhos (de Ana) esse mundo singular que nunca lhe fora revelado”
(TOLSTOI, 1993, v. II, p. 73). Através do olhar, Leon Tolstói fala mais do que por palavras,
tal é o caso da visita de Vronski à casa de Stepane, justo no dia da chegada de Ana. Essa
situação explicita o motivo para o leitor e não para Kitty e os demais, pois “Todos se
entreolharam sem dizer palavra e em seguida puseram-se a folhear o álbum de Ana”
(TOLSTOI, 1993, v. II, p. 76).
Pelo exposto, é impossível não relacionar o modo como Leon Tolstói enfatiza e
emprega o olhar e os olhos dos personagens na comunicação entre eles, com a maneira que
Lima Barreto também o emprega em sua obra. Em ambos, fica explícita a função de que os
olhos são “o espelho da alma”. Os olhos, sendo “o espelho da alma”, automaticamente,
refletem o lado bom e o lado mau de cada personagem, isto é, as boas e as más pessoas. Ver-
se-á, em primeiro lugar, como essa divisão se explicita nos escritos de Lima Barreto e,
embora se saiba que há subdivisões no sistema de classificação dos personagens, são esses os
dois tipos que predominam em sua obra. Para os maus, a adjetivação varia, o escritor lhes
empresta “olhos de folha-de-flandres”, “feições de porco ou de ave de rapina, de anta ou
antropóide”. É interessante observar que, em sua biografia, Lima Barreto aparece “amando os
bichos, economizando, juntando dinheiro, moeda a moeda, para comprar um casal de
pombos” (BARBOSA, 1975, p. 44), deduz-se, então, que daí, talvez, viesse a justificativa
para que os animais aparecessem como símiles, caricaturando pessoas. Diz-se “talvez” porque
tanto pode ser como pode não ser essa a justificativa, ou, pelo menos, não a única. No caso da
caracterização das personagens más, Lima Barreto, ao fazer as descrições, assemelha-os aos
bichos: Aires D’Ávila movia-se pela sala “com a dificuldade de um boi que arrasta a relha
enterrada da charrua” (I.C.) e quando Isaías o encontra, de quatro, no bordel, era “uma espécie
de tapir ou de anta” (I.C.).
Já, em Guerra e Paz, observa-se que as descrições em muito se assemelham com as
utilizadas por Lima Barreto, porém com algumas diferenças, as de Leon Tolstói apresentam-
se mais suaves, não chegam à caricatura. A situação em que surgem essas descrições refere-se
ao momento em que o príncipe André comunicava a Hipólito sobre sua ida para a guerra e
Lisa, sua esposa, toma conhecimento do fato: “Tinha adotado um tom de amuo e fazia um
trejeito que lhe dava um ar já não alegre, mas quase animal, um ar de um pequenino esquilo”
(TOLSTOI, 1993, v. I, p. 380); e mais:
Subitamente, o arzinho de esquilo furioso que se pintara no rosto da princesa
converteu-se num medo impressionante, digno de piedade. Lançou, furtivamente,
com os seus belos olhos um rápido olhar ao marido e teve essa expressão tímida e
submissa de um cão batido que foge com a cauda entre as pernas. (TOLSTOI, 1993,
v. I, p. 381).
156
Nas leituras empreendidas, constatou-se que esse estilo literário está presente em
Guerra e Paz e Ana Karênina, de Leon Tolstói, e é provável que se estenda as outras obras
tolstoianas, o que, desde já, fica como sugestão para pesquisas posteriores.
No cotejo dos textos, constata-se que há semelhanças inegáveis entre os estilos
apresentados e o importante é observar que, para Lima Barreto, essa relação resulta em
transformação, isto é, em “um resultado artístico autônomo” (CIONARESCU apud NITRINI,
2000, p. 127). Ocorre em Lima Barreto, portanto, uma identificação ao estilo de Leon Tolstói,
dificultando apontar o que se refere a um e a outro. Tal é a transformação obtida no estilo
literário de Lima que nos parece que tudo lhe é próprio e original. Outro aspecto fortemente
presente em Lima Barreto, que muito denuncia pontos de contato com Leon Tolstói, na forma
como é apresentada na ficção, refere-se ao papel desempenhado pela natureza, mas fica, aqui,
também, a proposta para pesquisas futuras, inclusive, sugerindo-se uma análise da relação de
ambos com Rousseau. Anexas, encontram-se algumas citações referentes a essa questão da
natureza nos dois escritores para que se tenha uma ideia do profícuo trabalho que está por ser feito.
Ao seguir as pistas deixadas por Lima Barreto através de Isaías Caminha, quando, ao
se referir ao livro que escrevia: “Não nego que para isso tenho procurado modelos e normas.
Procurei-os, confesso” (BARRETO, 1956, v. I, p. 120). E, mais: “Confesso que os leio, que
os estudo, que procuro descobrir nos grandes romancistas o segredo de fazer” (p. 120),
ressalta-se que, entre os “grandes romancistas” citados, encontra-se Leon Tolstói. Escritor que
foi estudado, assimilado e transformado, visto que o estilo barretiano está impregnado de
elementos oriundos dessa fonte literária, não apenas de um único modo, mas em diferentes
manifestações, conforme se vem demonstrando nas referências citadas. Vê-se que, quanto
mais se aprofunda na análise da concepção de arte de Lima Barreto, paralela a de Leon
Tolstói, mais se compreende a função militante de literatura tão bem empenhada por ele. E
que, para ser posta em prática, é necessário: clareza, simplicidade, singularidade e ainda estar
imbuída do sentimento de seu criador. Isso tudo para que a arte exerça sua real função social
de comunicação, de ligação e de comunhão entre os homens.
Quanto à presença do sentimentalismo na linguagem literária dos escritores, pode-se
observar, nas citações seguintes, que ambos apresentam concepções semelhantes:
A arte age como a palavra que serve de ligação entre os homens, transmitindo-lhes o
pensamento, lá onde por meio da arte, são comunicados pensamentos e emoções. A
peculiaridade deste último meio de intercurso, distinguindo-o do intercurso por meio
de palavras, consiste nisso: enquanto por palavras um homem transmite seus
pensamentos a um outro, pela arte transmite seus sentimentos. (TOLSTOI, 1994,
p. 50).
157
“A arte, tendo o poder de transmitir sentimentos e idéias, sob a forma de
sentimentos, trabalha pela união da espécie; assim trabalhando, concorre portanto, para o seu
acréscimo de inteligência e de felicidade” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 67).
É possível detectar, por intermédio dos historiadores da literatura russa, uma outra
justificativa para o resultado literário a que os romancistas russos chegaram: de seguidores a
seguidos. Seria interessante, portanto, traçar um esboço da história da literatura russa, pois, de
acordo com o crítico literário russo, Ovsiánico-Culicovsqui, acredita-se que “não há como
compreender a literatura de uma determinada época sem conhecer previamente a vida social e
pública do país e o modo de ser econômico-social que forma a base desta vida”
(CULICOVSQUI apud CHOSTAKOWSKY, 1948, p. 8). Com isso, conhecer-se-ia o
ambiente em que os escritores russos nasceram, viveram e idealizaram suas obras. Todavia,
não sendo possível dar a conhecer, aqui, a história da literatura russa por completo, procurar-
se-á delimitar uma justificativa para o sentimentalismo eslavo, visto que ele não se restringe
apenas a um procedimento literário, mas é muito mais que isso, está entranhado na literatura
russa.
Conforme Paulo Chostakowsky, o chamado “enigma russo” é um equívoco, pois os
intelectuais ocidentais encastelaram-se em sua própria tradição para julgar a Rússia e os
russos, daí a incompreensão. De modo a exemplificar, em Lima Barreto, no Diário íntimo, de
1900, encontra-se uma referência que dá uma ideia de como esse conceito dos russos e da
Rússia, de modo geral, alastrou-se no Brasil. Um professor, em conversa com o pai de seu
aluno: “Que espécie de geometria quer que eu ensine? A euclidiana, a russa, a de
Reimann...?” O pai pensa um pouco e diz: “A melhor”. “Todas são boas”, retruca o professor,
“pois todas são certas”. “Então ensine ao menino a russa, deve ser mais esquisita”
(BARRETO, 1956, v. XIV, p. 31).
Chostakowsky afirma existir uma razão fundamental para que os conceitos literários,
russo e ocidental, sejam diferentes: “os russos não são europeus; tampouco são asiáticos, são
eurásicos” (1948, p. 8). Os russos não apreciam em literatura “a arte pela arte”, ou por falta de
cultura, segundo os ocidentalistas, ou por superioridade espiritual, segundo os eslavófilos.
“Para eles literatura é vida e se não é vida não é nada” (CHOSTAKOWSKY, 1948, p. 8), a
forma não importa, “o importante é ter o que dizer” (p. 8). Chostakowsky aponta para uma
literatura russa estreitamente dependente do meio e, aqui, talvez, esteja a justificativa para a
posição deles frente à literatura, principalmente, na questão do sentimentalismo. O povo russo
teve sempre uma vida demasiado trágica, espiritual e materialmente, para necessitar de
158
artifícios ao pintar os diferentes graus de padecimentos humanos. Dessa forma, a
simplicidade, a humildade, a sinceridade dos escritores russos são naturais e compreensíveis.
O início da cultura russa, conforme E. L. Gatto, coincide com a conversão ao
Cristianismo das tribos eslavas que saíram de seus países de origem durante o primeiro
milênio da era cristã, fixando-se nas planícies do grande território europeu oriental, para
formar, no século seguinte, o império russo. Antes da conversão ao Cristianismo, os eslavos
orientais, chamados, hoje, de eslavo-russos, tinham em comum com todos os outros eslavos,
ocidentais e meridionais, e os povos indo-europeus, o culto da natureza e dos antepassados e o
fato de serem pagãos. A religião natural misturou-se, em parte, ao Cristianismo, mas mesmo
depois da conversão, na poesia popular, nas cerimônias de caráter profano e mundano,
resquícios do paganismo permaneceram. Ao levar a escrita, fizeram-no como revestimento de
uma doutrina já elaborada e perfeita, enquanto a escrita levava consigo uma língua já pronta
(GATTO, 1958, p. 13). Com isso, a poesia originária dos eslavos-russos não aderiu à língua
trazida pelo Cristianismo e continuou a se perpetuar através da oralidade. A escrita ficou,
então, restrita ao culto e às coisas de ordem espiritual, enquanto a língua, trazida pelo
Cristianismo nos livros religiosos para uso do culto, espalhou-se e capacitou algumas pessoas
a ler; era uma língua semelhante à autóctone. Semelhante, mas não igual, porque, do eslavo
comum, formaram-se vários dialetos, daí a distinção entre eslavos orientais, eslavos
ocidentais e eslavos meridionais. Linguisticamente, a conversão ao Cristianismo significou
uma tomada de contato entre os dialetos eslavo-orientais e aquele outro dialeto em que os
livros sagrados eram originariamente escritos. Era esse um dialeto macedônico, o primeiro a
ver os seus sons transformados nos sinais mágicos da escrita, é justamente aquele que a
ciência tem chamado, pela sua antiguidade, língua paleoslava, ou, pela sua origem, língua
vetero-búlgara, ou, ainda, pelos fins a que serviu após a sua representação gráfica, língua
eslavo-eclesiástica.
Essa língua penetrou na Rússia com os primeiros livros e, aos poucos, influiu na
língua falada, e dessa, por sua vez, sofreu influências, até a prevalência definitiva da língua
simples e espontânea do uso cotidiano sobre aquela, fossilizada em fórmulas e rebuscas da
artificiosa literatura dos doutos (GATTO, 1958, p. 14). Essa transformação durou vários
séculos, não só para os eslavos-russos, mas para todos os eslavos ortodoxos; mais lenta para
os russos, pois eles se cercaram de um meticuloso cuidado, visto que a língua servia de ponto
de partida da própria fé religiosa. Nos primeiros séculos do Cristianismo, apesar do seu
fervor, os russos não tiveram uma tradução completa da Bíblia; só parte dela: o Evangelho, os
Atos dos Apóstolos, os Salmos de David foram traduzidos, copiados e recopiados. Os russos
159
aprenderam a ler os salmos e muitos se serviram deles como livro de previsão e magia.
O mais antigo texto evangélico que, escrito certamente na Rússia, chegou até nós, é o
chamado Evangelho de Ostromir, obra do diácono Grigory (1056-1057), realizado por ordem
de Ostromir, primeiro magistrado de Novgorod, texto esse tão bem percebido e retratado em
M. de Vogue (1950):
Percorrendo-lhes os livros mais estranhos, adivinhamos nas vizinhanças um livro
regulador para o qual todos os outros gravitam; é o venerável volume, em lugar de
honra na Biblioteca Imperial de Petersburgo, o Evangelho de Ostromir de Novgorod
(1056); no meio das produções recentes da literatura nacional, esse volume
simboliza-lhes a fonte e o espírito. (VOGUÉ, 1950, p. 39).
A sentimentalidade presente nos russos constitui avaliação crítica corrente que se
firmou com a publicação do “Le roman russe” (1886), de E. M. de Vogué, na França, isto é,
“o sentimentalismo eslavo” que se reverte em sinceridade e simpatia humana, ou, ainda, “a
religião do sofrimento”. Características que sobressaíram nos escritores russos,
principalmente em L.Tolstói, e que foram amplamente difundidas entre escritores brasileiros,
no início do século XIX. Acredita-se que, nesse breve histórico de evolução da língua russa,
antes eslavo popular, depois, o eslavo eclesiástico, reconstituiu-se, em parte, a origem dessas
características tão preciosas aos romancistas russos.
Desse modo, no que se refere à sentimentalidade em Leon Tolstói, encontram-se, em
Guerra e Paz, as seguintes passagens, nas quais é possível observar como o autor se utilizou
desse procedimento: “E acrescentou que Sua Majestade se tinha dignado testemunhar ao
Barão Funke beaucoup d’estime, enquanto o olhar novamente se lhe velava de tristeza”
(TOLSTOI, 1993, v. I, p. 359); “O seu bondoso rosto macerado pelas lágrimas só refletia
receio e inquietação” (p. 369); “Monsieur Pierre não sabia a quem prestar atenção; fitava-os a
todos, sorrindo. O seu sorriso não era como o das demais pessoas, [...]: ficava com o seu quê
de infantil, de pobre-diabo, um pouco estúpido até, com o ar de quem quer pedir perdão”
(p. 374); “O príncipe André olhou-o com bondade, mas, apesar disso, no seu olhar amável e
amistoso sentia-se-lhe a superioridade” (TOLSTOI, 1993, v. I, p. 383). Mais referências da
obra tolstoiana encontram-se anexas.
Em Lima Barreto, o sentimentalismo e a piedade humana se fazem presentes na
maioria de seus personagens, sendo protagonistas ou não, e as referências ao texto bíblico são
inúmeras. Com isso, é possível afirmar que o autor tem uma tendência a exaltar o culto à
“religião do sofrimento”. Não de forma induzida, pois, na obra de Lima Barreto, pode-se
160
observar uma perfeita interação entre a ficção e a vida real, nada soa em falso, processo esse
que Antonio Arnoni Prado aborda em seu estudo crítico (PRADO, 1989).
Através do protagonista Isaías Caminha, personagem na qual o escritor Lima Barreto
“se interna com o gosto quase masoquista de uma segunda encarnação” (MONTENEGRO,
1953, p. 144), o escritor reivindica seu lugar nas letras com determinação, visto que o caráter
confessional da obra barretiana se faz presente. O importante aqui é observar que o escritor
teria todos os motivos para fazer uma obra de ódio, em resposta aos sofrimentos vividos, mas,
ao contrário, ele escreve uma obra de amor. É o personagem Isaías Caminha que nos diz sobre
isso:
Percebi que me viam como exceção; [...] a contradizer tão malignas e infames
opiniões, seja em que terreno for, com obras sentidas e pensadas, que imagino ter
força para realizá-las, não pelo talento, que julgo não ser muito grande em mim, mas
pela sinceridade da minha revolta que vem bem do Amor e não do Ódio, como
podem supor. (BARRETO, 1956, v. I, p. 274).
Embora registre todas as amarguras, ela se reverte em piedade por ele mesmo:
“Eu era como uma árvore cuja raiz não encontra mais terra em que se apóie e donde tire vida;
era como um molusco que perdeu a concha protetora e que se vê a toda a hora esmagado pela
menor pressão” (BARRETO, 1956, v. I, p. 87). Isaías Caminha relata seu desencontro com a
sociedade: “Sentia-me só, só naquele imenso formigueiro humano, só, sem parentes, sem
amigos, sem conhecidos que uma desgraça pudesse fazer amigos.” (p. 86).
Já, em Triste Fim de Policarpo Quaresma, segunda obra de Lima Barreto a ser
publicada e uma das principais obras do escritor, o sentimentalismo e a piedade humana
transbordam de suas páginas. Oliveira Lima foi um dos críticos a detectar tal característica e,
assim, se manifestou em texto publicado no O Estado de S. Paulo, de 13 de novembro de
1916, por ocasião do aparecimento da 1ª edição do romance.
Em Policarpo Quaresma predomina o sentimento: banha o livro um sopro de
compaixão, uma vibração misteriosa de piedade que resgata qualquer defeito de
composição, que ainda possa apresentar essa segunda tentativa, no gênero romance,
da mais prometedora vocação da geração nova, espírito no qual se alia ao senso do
pitoresco e social. (OLIVEIRA LIMA apud BARRETO, 1956, v. II, p. 9-10).
Ao lermos o artigo na íntegra, nota-se que Oliveira Lima não aponta nenhuma
relação direta do escritor Lima Barreto com os escritores russos, contudo, essa relação se
estabelece de modo indireto, pois se encontram aqui praticamente os mesmos argumentos:
sopro de compaixão, vibração misteriosa de piedade, aplicados aos romancistas russos quando
161
do período do boom editorial, momento em que se deu ampla divulgação à Literatura russa.
Agora, se Oliveira Lima já tinha conhecimento da obra de Vogué e dos escritores russos ou
não, resta-nos a dúvida, porém a veracidade de sua avaliação não deixa dúvidas, nem mesmo,
a um leitor iniciante.
Em Lima Barreto, parece-nos que o sentimentalismo e a piedade humana se
revertem em uma doçura inexplicada das coisas e das pessoas. No Triste Fim de Policarpo
Quaresma aparece Ismênia que dizia: “Mamãe... Eu vou morrer” e “continuava a repeti-lo
pacientemente, docemente, serenamente”. Já muito doente “as palavras saíam-lhe dos lábios,
seguras, doces e naturais” (P.Q.), entre outras.
A referência apontada demonstra um amor nostálgico pelas coisas e pessoas, não
seria bem amor, pois Lima Barreto relutou muito em tratar do amor em suas obras, o mais
acertado, talvez seja um sentimento de humanidade. Sobre a presença dessa doçura incontida
em Lima Barreto, Cavalcante Proença afirmou, acertadamente: “A translação de sentido que
se opera em doçura, identificando-se com bondade, transborda para o tato, para as sensações
de carícia e maciez, com sinestesias curiosas” (PROENÇA apud BARRETO, 1956, v. XIII,
p. 31). Para exemplificar essa “translação de sentido”, eis algumas referências: O doutor
Campos quer definir a amizade de Policarpo: “Agora, a sua voz era doce, flexível, sutil” e “as
palavras caíam-lhe da boca, adocicadas, dobravam-se, coleavam” (P.Q.).
Quanto à translação de sentido em Leon Tolstói, destacam-se os seguintes exemplos:
“No momento em que o carro deslizava maciamente por cima da palha estendida debaixo das
janelas, [...]” (TOLSTÓI, 1993, v. I, p. 427); “O tempo estava suave, uma atmosfera de
outono, mas chuvosa” (p. 485); “e na luz brilhante do sol podiam distinguir-se os objetos a
distância como cobertos por uma camada de verniz” (p. 485); “Saindo do bosque, apareceu-
lhe diante dos olhos a vastidão dos campos, imenso tapete de veludo verde, uniforme, onde se
viam, aqui e ali, pequenas manchas de neve” (TOLSTÓI, 1993, v. I, p. 145).
As relações literárias entre ambos permitem-nos observar que o sentimentalismo e a
piedade humana são características comuns aos dois escritores e inundam as páginas de suas
principais obras, principalmente, porque a arte, para Lima Barreto e Leon Tolstói, tem a
função de comunicação e ligação entre os homens através do sentimento expressado.
As afinidades literárias e ideológicas entre os escritores, Lima Barreto e Leon
Tolstoi, evidenciam-se no estilo, nos temas, nas posições assumidas, nas reflexões sobre o
mistério, sobre Deus, sobre a sociedade, sobre os homens. Enfim, é possível associar o
personagem Policarpo Quaresma ao próprio Leon Tolstói. Ademais, já houve quem
162
comparasse a corrida de Policarpo Quaresma, nu, em crises de loucura, à fuga de Leon Tolstói
de Yasnaia Poliana pouco antes de sua morte.
Para os escritores, dispostos em ordem cronológica, primeiro Leon Tolstói e depois
Lima Barreto, que propugnavam uma arte democrática com uma função social, justifica-se a
escolha de temas em comum que refletissem sobre questões relacionadas à sociedade e a
maioria deles relacionada às questões urgentes de seu tempo. Os temas recorrentes nas
reflexões desses autores são: pátria, patriotismo, Estado, leis, propriedade, igreja, mulheres,
morte, educação, guerra, serviço militar obrigatório, entre outros. Alguns serão elencados para
consolidar essa aproximação, visto ser importante enfatizar que a maneira que os escritores se
posicionaram, sobre esses temas, está ligada e influencia diretamente a concepção de arte
apresentada por eles, por apresentarem, ainda, posicionamentos semelhantes. Muitas dessas
reflexões apareceram não somente nas obras de ficção como nas crônicas e artigos escritos
para jornais e, no caso de Leon Tolstoi, é importante enfatizar que muitas dessas reflexões
estão presentes também em sua obra doutrinária.
O primeiro tema a ser tratado refere-se à questão da forma como ambos concebem a
ideia de pátria e, consequentemente, de patriotismo. Em Triste Fim de Policarpo Quaresma, a
personagem principal é um major de hábitos regulares, subsecretário do Arsenal de Guerra e
que, durante os lazeres burocráticos, “estudou a Pátria, nas suas riquezas naturais, na sua
história, na sua geografia, na sua literatura e na sua política” (BARRETO, 1956, v. II, p. 33).
Personagem que foi, primeiramente, comparado ao Dom Quixote pelo crítico Oliveira Lima,
em um artigo de O Estado de São Paulo, em novembro de 1916, quando da primeira edição
do romance e, depois, consta como prefácio dessa obra. Tal comparação literária permanece
quando se trata de análises referentes à personagem. Para Oliveira Lima:
O Major Quaresma viverá na tradição, como um Dom Quixote nacional. Ambos são
tipos de otimistas incuráveis, porque acreditam que os males sociais e sofrimentos
humanos podem ser curados pela mais simples e ao mesmo tempo mais difícil das
terapêuticas, que é a aplicação da justiça da qual um e outro se arvoraram em
paladinos. Um levou sovas por querer proteger os fracos; o outro foi fuzilado por
querer na sua bondade salvar inocentes. Visionários ambos; assim tratou o marechal
de ferro o seu amigo Quaresma e trataria Dom Quixote, se houvesse lido Cervantes.
(BARRETO, 1956, v. II, p. 9-10).
Sob a perspectiva dessa análise literária, Osmar Pimentel retoma o viés comparativo
em artigo da Folha da Manhã, São Paulo, de 12 de novembro de 1949, depois, publicado
como prefácio da obra “Os Bruzundangas”, da edição Brasiliense. Para Osmar Pimentel,
Policarpo “é mais que um Dom Quixote, mais que uma alegoria”; ou melhor, “uma paródia
163
sul-americana do herói cervantino”, mas, em parte, “um sósia do seu criador [...] uma
projeção, no campo da ação prática, de algumas idéias do sutil contemplativo da política que
Lima Barreto foi” (BARRETO, 1956, v. VII, p. 13). Seguindo as análises da personagem
Policarpo Quaresma, que a colocam em comparação com Dom Quixote, Olívio Montenegro
avalia-a como “um primo pobre de Dom Quixote, pelo exagero de caricatura”, e enfatizará a
“extraordinária personagem” Ricardo Coração dos Outros (MONTENEGRO, 1953, p. 178).
Por fim, Cavalcanti Proença, afirma no prefácio de “Impressões de leitura”, que
“Triste Fim de Policarpo Quaresma” “Como Dom Quixote é um livro de combate. O livro de
Cervantes se opõe a Amadis de Gaula”, bem como “o Policarpo Quaresma se opõe ao
“Porque me ufano de meu País”, de Afonso Celso (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 39).
Cavalcanti Proença aponta que o contraste entre a convenção literária e a realidade presente
no “Policarpo Quaresma”, “é o mesmo que foi explorado por Mark Twain no conto do “Bom
Menino” (p. 39). Percebe-se que o combate aqui se trava mediante atitude do Major
Quaresma que, ao acreditar naquilo que os livros de sua biblioteca pregavam a respeito da
pátria, empenha-se em colocar em prática a realização de projetos que visem a “emancipação
da pátria” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 34). Em função desse ideal de “emancipação da
pátria” e em prol do resgate da identidade brasileira, Policarpo Quaresma, baseado no que
diziam os livros sobre a pátria, vai tentar colocar em prática mudanças na cultura, na
agricultura e na política do País. Cada tentativa frustrada do personagem Policarpo Quaresma
é utilizada como recurso do escritor Lima Barreto para demonstrar o vazio e a inutilidade do
conceito de pátria, patriotismo e nacionalismo e, principalmente, a necessidade de uma
revisão desses valores. Vejamos uma reflexão do personagem ao final da narrativa:
Iria morrer, quem sabe naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida?
Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-la
muito, no intuito de contribuir para sua felicidade e prosperidade. Gastara sua
mocidade nisso, a sua virilidade também, e, agora, que estava na velhice, como ela o
recompensava? Matando-o. E o que não deixara de ver, de gozar, de fruir, na sua
vida? Tudo. Não brincara, não pandegara, não amara – todo esse lado da existência,
que parece fugir um pouco à sua tristeza necessária, ele não vira, ele não provara, ele
não experimentara.
Desde os dezoito anos que o tal do patriotismo lhe absorvia e por ele fizera a
tolice de estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram grandes? Pois que
fossem... Em que lhe contribuiria para a felicidade de saber o nome dos heróis do
Brasil? Em nada... O importante é que ele tivesse sido feliz.
Foi? Não. Lembrou-se das suas cousas de tupi, do folk-lore, das suas tentativas
agrícolas... Restava disso tudo em sua alma alguma satisfação? Nenhuma!
Nenhuma! (BARRETO, 1956, v. II, p.284-285).
164
É possível destacar a proximidade dessas reflexões feitas por Policarpo Quaresma às
reflexões presentes em Guerra e Paz, Ana Karênina, A Morte de Ivan Ilitch, nas quais Leon
Tolstói reflete sobre a vida e nossa própria existência.
No romance Triste Fim de Policarpo Quaresma, encontra-se, na descrição da guerra
feita por Policarpo Quaresma em carta enviada à Olga, sua irmã, no Sítio “Sossêgo”, uma
abordagem que em muito se aproxima da de Leon Tolstói. Em primeiro lugar, ambos são
contrários à guerra e à maneira como ela é conduzida pelos governantes, dessa forma, é
importante que se diga que a descrição apresentada faz uma severa crítica social. E, tal qual
na descrição de Leon Tolstói, em Guerra e Paz, Policarpo Quaresma descreve os
acontecimentos de forma que nos direciona a termos a mesma impressão dos fatos. “Que
combate, minha filha! Que horror!” (BARRETO, 1956, v. II, p. 270); “Uma confusão, um
infernal zunir de balas, clarões sinistros, imprecações – e tudo isto no seio da treva profunda
da noite[...].” (p. 270); vê-se que nenhum relatório feito dos combates apresentará os fatos da
forma como eles realmente ocorreram devido mesmo à imprevisibilidade do momento.
Policarpo Quaresma continua em sua descrição:
Houve momentos que se abandonaram as armas de fogo: batíamos a baioneta, a
coronhadas, a machado, facão. Filha: um combate de trogloditas, uma cousa pré-
histórica... Eu duvido, eu duvido, duvido da justiça disso tudo, duvido da sua razão
de ser, duvido que seja certo e necessário ir tirar do fundo de nós todos a ferocidade
adormecida, aquela ferocidade que se fez e se depositou em nós nos milenários
combates com as feras, quando disputávamos a terra a elas... Eu não vi homens de
hoje; vi homens de Cro-Magnon, do Neanderthal armados com machados de sílex,
sem piedade, sem amor, sem sonhos generosos, a matar, sempre a matar [...].
BARRETO, 1956, v. II, p. 270).
A influência tolstoiana se faz presente ante tal proximidade de sentido e, não
satisfeito em aproximar-se através dos temas e da forma abordada, de repente, é como se o
personagem Policarpo Quaresma passasse a assumir o próprio discurso de Leon Tolstói, em
Confissões. Arrependido, com remorso, em busca de consolo e perdão:
Este teu irmão que estás vendo, também fez das suas, também foi descobrir dentro
de si muita brutalidade, muita ferocidade, muita crueldade... Eu matei, minha irmã;
eu matei! E não contente de matar, ainda descarreguei um tiro quando o inimigo
arquejava a meus pés... Perdoa-me! Eu te peço perdão, porque preciso de perdão e
não sei a quem pedir, a que Deus, a que homem, a alguém enfim... Não imaginas
como isto faz-me sofrer [...]. (BARRETO, 1956, v. II, p. 270).
Ainda quanto ao tratamento dispensado por Lima Barreto à guerra, é imprescindível,
aqui, recorrermos mais uma vez à crônica “Homem ou boi de canga?”:
165
Esse pequeno fato, que podia passar completamente despercebido, feriu-me
imensamente naquela fraca idade que eu tinha então. Nunca pude imaginar que um
homem arriscasse sua vida sem saber porque, nem para que. Pareceu-me isto
estúpido e indigno mesmo da condição de homem. Um ato desses, de jogar a própria
existência devia ser perfeitamente refletido e consciente. Ficou-me o fato; e, anos
depois, muitos anos mesmo, quando fui ler o formidável – Guerra e Paz de Tolstói,
encontrei uma cena, não idêntica, mas do mesmo fundo. Não me recordo bem como
é; mas dela se desprende que o soldado nada sabe dos motivos por que combate.
E assim é feita a guerra.
As massas de combatentes, homens simples e sem luzes, em geral, não sabem
nitidamente porque dão tiros uns contra os outros.
Às vezes, os seus chefes e diretores conseguem instilar no espírito deles vagos
motivos patrióticos[...]. (BARRETO, 1956, v. IX, p. 274).
Uma vez que ela faz referência a uma situação ocorrida na época da Revolta da
Armada e que o escritor a relaciona à impressão que ele teve ao ler o romance de Leon
Tolstói, Guerra e Paz, observa-se que o escritor, então com doze anos de idade, ao narrar o
fato acontecido em 1893, atentou para o inusitado da situação, isto é, um soldado que combate
sem nada saber dos motivos pelo qual combate. “Ficou-me o fato; e, anos depois, muitos anos
mesmo, quando fui ler o formidável – Guerra e Paz, de Tolstói, encontrei uma cena, não
idêntica, mas do mesmo fundo” (BARRETO, 1956, v. IX, p. 274).
No romance, Triste Fim de Policarpo Quaresma, o autor registra a preocupação com
uma legislação que permite o abuso do poder e da autoridade. No caso, o Dr. Campos, não
contando com o apoio de Policarpo, aplica-lhe a lei, isto porque Policarpo negou-se a
participar de uma falcatrua nas eleições municipais proposta pelo Dr. Campos, presidente da
Câmara dos Vereadores. A lei, nesse caso, é aplicada como castigo e denota o abuso de poder
e de autoridade do Dr. Campos. Policarpo Quaresma ao tomar consciência da situação na qual
foi envolvido. Assim se manifesta:
A luz se lhe fez no pensamento.... Aquela rede de leis, de posturas, de códigos e de
preceitos, nas mãos desses regulotes, de tais caciques, se transformava em potro, em
polé, em instrumento de suplícios para torturar os inimigos, oprimir as populações,
crestar-lhes a iniciativa e a independência, abatendo-as e desmoralizando-as.
(BARRETO, 1956, v. II, p. 182).
A lei é um dos temas abordados pelo escritor Lima Barreto e por Leon Tolstói e, em
ambos, se dá o mesmo tratamento, além de constatarmos a mesma concepção e coerência de
tratamento em vários momentos das respectivas obras. Como se vê, Lima Barreto trata desse
tema no romance Triste Fim de Policarpo Quaresma e retorna a ele na crônica Hábeas-
Corpus Curioso, de 1920, na qual relata um caso de um rapaz paulista que raptou a moça com
quem desejava casar-se porque o pai da moça não consentia no casamento. Diante da
166
situação, o autor faz o seguinte comentário: “Concordo porque, a ter quem me governe,
prefiro meus pais, a todos os luminares do Catete, do Supremo Tribunal e do Congresso”
(BARRETO, 1956, v. X. p. 52). Dessa forma, com a contínua negação por parte do pai, a
justiça resolve que a moça deverá ir para um asilo de freiras. O pai, então, resolve aceitar o
casamento, pois não queria que a filha fosse parar num asilo de freiras, agora, porém, quem
não aceita é a justiça. Diante de caso tão curioso, os três, pai, filha e aspirante a marido,
impetraram um habeas-corpus, que lhes foi negado, indo, o rapaz, parar na cadeia. Diante de
tal arbitrariedade, o cronista assim se manifesta:
Toda essa barulhada que não quero esmiuçar mais, vem mostrar que, além de
inúteis, muitas dessas leis são contraditórias, umas destruindo as outras e concorre
para não simplificar a nossa vida e as nossas relações sociais, mas para complicá-las,
obscurecer o que é claro e, quase sempre, dar razão a quem não tem, mas que pode
dispor de argumentadores e trabalhistas jurídicos de profissões que se fazem pagar
caro [...].
Quando será que os homens se hão de convencer da inutilidade e da importância
de leis que só servem para complicar a sua existência e esmagar os mais fracos?
(BARRETO, 1956, v. X, p. 54).
Nesse caso, Lima Barreto reflete sobre o fato de que as leis servem para esmagar os
mais fracos e reforçar ainda mais a desigualdade. Visto que as leis são manipuladas pelos
detentores do poder, eles as criam e aplicam ao seu bel prazer. Esse mesmo tom a tratar das
leis, encontra-se na crônica As Formigas e o Prefeito, de 1918, na qual, Lima Barreto
questiona a falta de determinação e a ambiguidade da lei imposta pela prefeitura do Rio de
Janeiro, para que as formigas fossem extintas, pois não definia claramente quem deveria faze-
lo. Assim, mais uma vez, Lima manifesta-se contrário às leis: “Nada entendo de leis, nem
quero entender. Sou radicalmente contra elas, pois me julgo de algum jeito maximalista”
(BARRETO, 1956, v. XI, p. 142). Ressalta-se que Lima busca, em todas as circunstâncias:
contribuir, apresentar uma solução e mesmo se posicionando contrário à lei, Lima apresenta
duas propostas ao prefeito: que deixasse claro no artigo e determinasse quem, de fato, seria
encarregado de tal missão: matar as saúvas; ou disponibilizasse um grupo de homens capazes
de executar tal tarefa com um preço módico.
Pelo que se vê, as concepções dos romancistas sobre governo e leis são
convergentes, tendo em vista que ambos as concebem pelo viés das ideias libertárias. Nessa
crítica às leis, o escritor Lima Barreto deixa inferir suas leituras dos teóricos anarquistas,
principalmente, a Kropotkin, em A inutilidade das leis, artigo de 1886, numa análise atenta
sobre a legislação que existe para regular a humanidade, dividindo-as em três categorias:
proteger a propriedade, o governo e o indivíduo.
167
Leon Tolstói, com sua doutrina social, rejeita, do mesmo modo, o Estado e a
propriedade, uma vez que estão interligados, isto é, um existe para proteger o outro. Proteção
que se dá através das leis:
Se as leis existem, é necessário que haja uma força capaz de obrigar as pessoas a
respeitá-las. E só há uma força capaz de fazer com que alguns seres se submetam à
vontade dos outros e esta força é a violência. Não a violência simples, que alguns
homens usam contra seus semelhantes em momento de paixão, mas uma violência
organizada, usada por aqueles que têm o poder nas mãos para fazer com que os
outros obedeçam à sua vontade. (TOLSTÓI, 1981, p. 107).
Leon Tolstói, uma vez que o Estado faz uso da “violência organizada” para ter sua
vontade acatada, é favorável à extinção desse uso, juntamente com a propriedade, pois a ideia
principal do tolstoísmo é a não-violência.
Além da reflexão sobre teses em comum, os escritores Lima Barreto e Leon Tolstói
demonstram persistência nos temas tratados em suas obras, não há uma mudança radical de
tema de uma obra para outra, constata-se que eles são recorrentes. No caso do romance Clara
dos Anjos, que Lima Barreto concluiu no ano de sua morte, em 1922, e foi publicado,
postumamente, em folhetins da Revista Souza Cruz, entre 1923-1924 e em 1948, pela Editora
Mérito, esteve praticamente, desde o início de suas investidas literárias, presente nas
preocupações do escritor. Aparece, então, na primeira versão incompleta, em 1904, um
romance inacabado constituído por três capítulos; depois, aparece um conto publicado em
1919 e, por fim, um romance em sua versão final (1922). O tema que perpassa as três versões
é o seguinte: a sedução de uma moça de cor por um rapaz branco; ocorrem algumas
alterações, bem possível que sejam em função do gênero apresentado conto, novela e
romance, mas o eixo principal da narrativa permanece
36
. Diferenças registradas pelo próprio
escritor em carta a Almáquio Cirne, em janeiro de 1921: “Desenvolvi um conto, Clara dos
Anjos, que está no meu último livro. Saiu coisa bem diferente, se bem que o fundo seja o
mesmo. O título é o do conto” (BARRETO, 1956, v. XVII, p. 203).
Em função dessas três versões que foram publicadas e dos muitos apontamentos
37
,
constata-se que Lima Barreto, ao contrário do que foi dito pela crítica, preocupou-se, e muito,
com o fazer literário. Em Clara dos Anjos, bem como nos demais romances barretianos:
36
Ver Francisco de A. Barbosa, A vida de Lima Barreto. p.144. “A história de Clara dos Anjos seria, contudo, a
mesma do conto e da novela: a mulatinha que se deixa perder por um rapaz de condição superior à sua, o qual
se recusava ao casamento, para consertar o malfeito”.
37
Na edição do Diário íntimo, pela Brasiliense, org. de Houaiss e Proença consta de uma Nota Prévia que diz:
“Trata-se de fato de material que se gradua desde páginas iniciais, inteiramente elaboradas, a páginas de
meros apontamentos e rascunhos, no sentido do que viria a ser a arquitetura definitiva do romance, por sinal
de maior envergadura do que a novela escrita vinte anos depois” (BARRETO, 1956, v. XIV, p. 20).
168
Triste Fim de Policarpo Quaresma e Recordações do escrivão do Isaías Caminha, observa-se
que Lima Barreto: “comunica a outras pessoas, sentimentos que ele vivenciou, de modo a
contaminá-las e fazê-las vivenciar os mesmos sentimentos” (TOLSTÓI, 1994, p. 51). Embora
narrando a história de Clara dos Anjos de forma singular, no final da narrativa, já inclui o
drama de todas as mulheres negras e da mesma classe social. Não é sem motivos que o
escritor a dedica: “Á memória de minha mãe” e como epígrafe inicial retira das “Histórias do
Brasil” de João Ribeiro: “Alguns as desposavam (as índias); outros, quase todos, abusavam da
inocência delas, como ainda hoje das mestiças, reduzindo-as por igual a concubinas e
escravas”. Aqui, mais uma vez, o escritor defende a tese de que a responsabilidade pela queda
moral e social de Clara encontra-se na sociedade. É o padrinho Marramaque quem vai
denunciar os acontecimentos futuros como fatídicos, isto é, não há como Clara e, por
extensão, todas as outras mulheres negras evitarem esses acontecimentos trágicos:
[...] ele sempre observou a atmosfera de corrupção que cerca as raparigas do
nascimento e da cor de sua afilhada; e também o mau conceito em que se têm as
suas virtudes de mulher. A priori, estão condenadas; e tudo e todos parecem
condenar os seus esforços e os dos seus para elevar a sua condição moral e social.
(BARRETO, 1956, v. V, p. 71).
Observa-se que o narrador atenta para o fato de que Clara “fora criada com o recato
e os mimos que, na sua condição, talvez lhe fossem prejudiciais” (BARRETO, 1956, v. V,
p. 71), procedimento semelhante encontra-se em “Gonzaga de Sá”, quando ele, estando no
trem do subúrbio, faz a seguinte reflexão: “Longe de me confortar a educação que recebi só
me exacerba, só fabrica desejos que me fazem desgraçado, dando-me ódios e, talvez
despeitos! Por que ma deram? Para eu ficar na vida sem amor, sem parentes e, porventura,
sem amigos?” (BARRETO, 1956, v. IV, p. 110). No caso de Clara que tinha “uma natureza
amorfa, pastosa” (BARRETO, 19556, v. V, p. 139) e que, sem “ser leviana, era, entretanto, de
um poder reduzido de pensar, que não lhe permitia meditar um instante sobre o seu destino,
observar os fatos e tirar ilações e conclusões” (p. 140), tudo contribuía para a derrocada da
personagem: “A idade, o sexo e a falsa educação que recebera, tinham muita culpa nisso tudo;
mas a sua falta de individualidade não corrigia a sua obliquada visão da vida” (BARRETO,
1956, v. V, p. 140). Por fim, o narrador descreve a tomada de consciência frente à situação:
Agora é que tinha a noção exata de sua situação na sociedade [...] não era uma moça
como as outras, era muito menos no conceito de todos. [...] A educação que
recebera, de mimos e vigilâncias, era errônea. Ela devia ter aprendido da boca de
seus pais que a sua honestidade de moça e de mulher tinha todos por inimigo. [...] O
169
que era preciso, tanto a ela como às suas iguais, era educar o caráter, revestir-se de
vontade [...] e bater-se contra todos os que se opusessem, por este ou aquele modo,
contra a elevação dela, social e moralmente. Nada a fazia inferior às outras, senão o
conceito geral e a covardia com que elas o admitiam. (BARRETO, 1956, v. V,
p. 155).
Referindo-se aos vários motivos responsáveis pela derrocada moral e social de Clara
e de “suas iguais”, o narrador demonstra soluções para a resolução do sofrimento das
mulheres de cor. Sendo assim, sua literatura desempenha as funções que Leon Tolstói
determina à arte, que são: a de comunicação e de ligação entre os homens, visando sempre a
transformação social e a “supressão de todas as barreiras entre os homens” (TOLSTÓI, 1994,
p. 119).
A concepção de arte tolstoiana se torna mais explícita ao nos depararmos com a
personagem Leonardo Flores, figura na qual se reconhecem muitos traços do próprio escritor
Lima Barreto:
Leonardo Flores, poeta, um verdadeiro poeta, que tivera o seu momento de
celebridade no Brasil inteiro e cuja influência havia sido grande na geração de
poetas que se lhe seguiram. Naquela época, porém, devido ao álcool e desgostos
íntimos, nos quais predominava a loucura irremediável de um irmão, não era mais
que uma triste ruína de homem, amnésico, semi-imbecilizado, a ponto de não poder
seguir o fio simples da conversa. Havia publicado cerca de dez volumes, dez
sucessos, com os quais todos ganharam dinheiro, menos ele, tanto assim que, muito
pobremente, ele, mulher e filhos agora viviam com o produto de uma mesquinha
aposentadoria sua, do governo federal. (BARRETO, 1956, v. V, p. 93).
Além das várias semelhanças que nos remetem a Lima Barreto: o álcool, os
desgostos íntimos, a presença da loucura, entre outras; Leonardo Flores também é porta-voz
do escritor quanto à concepção de arte apresentada:
Pairei sempre no ideal; e se este me rebaixou aos olhos dos homens, por não
compreenderem certos atos desarticulados da minha existência, entretanto elevou-
me aos meus próprios, perante a minha consciência, porque cumpri o meu dever,
executei a minha missão, fui poeta! Para isso fiz todo o sacrifício. A Arte só ama a
quem a ama inteiramente, só e unicamente; eu precisava amá-la, porque ela
representava não só a minha redenção, mas toda a dos meus irmãos, na mesma dor.
(BARRETO, 1956, v. V, p. 135).
Tal qual Lima Barreto, Leonardo Flores concebia o trabalho literário como uma
missão e via na arte sua redenção e a de seus irmãos. Isto é, a arte é percebida como forma de
compensação e de redenção. Daí a atitude de indignação de Leonardo Flores quando Meneses
encomenda-lhe alguns versos.
170
- O que? [...] Pois tu não sabes quem sou eu, quem é Leonardo Flores? Pois tu não
sabes que a poesia para mim é a minha dor e é a minha alegria, é a minha própria
vida? Pois tu não sabes que abandonei todas as honrarias da vida, [...] unicamente
para não desviar dos meus propósitos artísticos? (BARRETO, 1956, v. V, p. 134).
Mais adiante, depois de referir-se ao sentimento com o qual inundava seus versos,
diz: “Quem sente isto, meu caro Meneses, pode vender versos? Dize, Meneses!” (BARRETO,
1956, v. V, p. 136).
A presença de Leon Tolstói em Lima Barreto está além das referências
demonstradas, pois, em contato com a obra barretiana, deparamo-nos com expressões que nos
remete à memória trechos praticamente iguais aos da obra do escritor russo. Pode-se apontar
para um procedimento intertextual, no qual o processo de escrita resulta do processo de leitura
de um corpus literário anterior. Lima cita essa frase atribuindo-a a Jean-Marie Guyau, na
conferência “O Destino da Literatura”: “Ama tudo para tudo compreender; tudo compreender
para tudo perdoar” (BARRETO, 1956, v. XIII, p. 66), e em Leon Tolstói encontra-se: “Tout
comprendre c’est tout pardonner” (TOLSTOI, 1993, v. I, p. 453), em francês posto que à
época, era natural. Em Lima Barreto, a citação de Guyau reforça o poder de comunicação da
arte, especialmente a Literatura; em Leon Tolstói, a frase dita por Maria, irmã do príncipe
André, não faz referência direta a Guyau, mas enfatiza o aspecto doutrinário do “tolstoísmo”,
pois é um pedido de solidariedade e compreensão para com a cunhada. Isso reforça a
concepção de arte de ambos no sentido de que a arte não pode ser fria, impassível, distante e
alheia dos problemas e sentimentos do ser humano.
Objetivando reforçar o estudo comparativo da literatura dos referidos escritores, no
Cemitério dos vivos, Vicente Mascarenhas, o protagonista, discorrendo sobre seus
sofrimentos, afirma: “O abismo abriu-se a meus pés e peço a Deus que ele jamais me trague,
nem mesmo o veja diante aos meus olhos, como o vi por várias vezes...” (BARRETO, 1956,
v. XV, p. 137); em Ana Karênina, Alexei Alexandrovitch, o marido de Ana, ao perceber que
sua esposa poderia estar apaixonada por outro, o narrador fala por ele:
A impressão que experimentara naquele momento era a de um homem que passa
tranquilamente por uma ponte suspensa sobre um precipício e se apercebe, de súbito,
que a ponte está desmantelada e o abismo a seus pés. Esse abismo era para ele a vida
real, a ponte, a existência artificial, a única coisa que até então conhecera do mundo.
(TOLSTOI, 1993, v. II, p. 134).
Outra referência que aproxima os dois romancistas em Cemitérios dos Vivos: “Digo
com franqueza, cem anos que viva eu, nunca poderá apagar-me da minha memória essas
171
humilhações que sofri.” (BARRETO, 1956, v. XV, p. 67); em Ana Karênina , Kitty diz o
seguinte: “Não, não, cem anos que eu viva nunca poderei esquecer esta afronta” (TOLSTOI,
1993, v. II, p. 200).
No Diário Íntimo o escritor Lima Barreto, em 03 de Janeiro de 1905, registra suas
observações sobre a sua família, sua gente, “os de cor”, como ele mesmo falava, e embora
demonstrasse simpatia e fossem pessoas de seu sangue, avaliava-os sem piedade: “Há em
minha gente toda uma tendência baixa, vulgar, sórdida.” E, o escritor faz a seguinte avaliação,
“Eu tenho muita simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor, mas não é
possível transformar essa simpatia literária, artística, por assim dizer em vida comum com
eles, pelo menos com os que vivo, que, sem reconhecerem a minha superioridade,
absolutamente não tem por mim nenhum respeito e nenhum amor que lhes fizesse obedecer
cegamente.” (BARRETO, 1956, v. XIV, p. 76); enquanto, em Leon Tolstói, mais
precisamente em Ana Karênina, Levine, apesar de demonstrar uma fraterna afeição pelos
camponeses: “admirava-lhes o vigor, a mansidão, o espírito de justiça”, não deixa, porém, de
apontar-lhes os defeitos, quando sentia necessidade: “a sua incúria, a sua falta de asseio, a sua
tendência para a bebedeira, o seu gosto da mentira” e justifica-se: “Como homem de
sentimentos que era, por natureza pendia a amar o próximo, sem excluir os camponeses; mas
alimentar por eles sentimentos especiais, isso afigurava-se-lhe impossível” (TOLSTOI, 1993,
v. II, p. 215).
Ocorre outra passagem em Recordações do escrivão Isaías Caminha que denuncia a
presença do estilo de Leon Tolstói, devido às semelhanças encontradas no procedimento
literário. Isaías Caminha, ao se referir aos seus primeiros dias no Rio de Janeiro, só, sem
dinheiro, sem amigos, tem esperança de que a sorte lhe apareça dentro de uma caixa de
fósforos: “Oh! Meu Deus! – que dentro dela houvesse uma nota de quinhentos mil-réis”,
assim, a descreve: “Era então com o coração palpitante que me abaixava junto à relva para
levantar do chão uma velha caixas de fósforos, lavada e desbotada pelas chuvas, já sem
rótulo, humilde objeto que tenazmente resistira às vassouradas e às intempéries para atrair o
meu olhar maravilhoso” (BARRETO, 1956, v. I p. 88). Enquanto que em Hadji Murat, Leon
Tolstói começa e conclui a narrativa com a referência a um cardo tártaro:
Á minha frente, à direita do caminho, divisei um pequeno ramo. Quando me
aproximei vi que era um cardo tártaro, igual aquele que cortara inutilmente.
Compunha-se de três caules. Um deles estava arrancado, e o troço que restava
parecia um braço amputado. Os outros dois apresentavam cada um a sua flor. Mas
essas flores, que tinham sido belas, estavam enegrecidas naquele momento. Um dos
caules pendia, truncado, com a flor suja no extremo; o outro, apesar de cheio de
172
terra, mantinha-se erguido. Era evidente que a planta fora esmagada por uma roda;
mas continuara viva e a erguer-se. Era como se lhe tivessem arrancado um pedaço
do corpo, como se lhe houvessem aberto as entranhas, amputado um braço e
arrancado um olho. No entanto continuava de pé, sem deixar-se vencer pelo homem
que aniquilara os seus irmãos a sua volta. (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 1164).
Observa-se que o tratamento que Leon Tolstói dispensa a um pequeno ramo, todo
estraçalhado, judiado, por uma roda, Lima Barreto transfere-o a uma velha caixa de fósforos,
que também está estraçalhada, desbotada pelas chuvas e, assim, ambos resistem
demonstrando a força interior e mágica existente em cada ser. Além de causar no leitor o
estranhamento por um objeto tão simples que assume poderes e importância desmesurada no
contexto.
4.5 Rastros de Leon Tolstói em Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá
Sabe-se que o romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919) foi o primeiro a
ser escrito, mas não o primeiro a ser publicado, isso em função da opção de Lima Barreto. É
interessante, portanto, detectar se já existiam rastros de leituras de Leon Tolstói presentes na
referida obra. Tal ocorrência nos leva a deduzir que, entre as inúmeras leituras feitas por Lima
Barreto, de fato, os romancistas russos, sobremodo Leon Tolstói e Dostoiévski permanecem
como fontes de provocações e reflexões literárias.
De início, o título já nos remete aos escritores russos; Dostoiévski com Crime e
Castigo e Leon Tolstói com Guerra e Paz, palavras antônimas que se excluem e se
complementam, mas o que mais transparece é a ideia mesma de junção, pois ambos abarcam
um sentido universal. Remete-nos, de modo mais específico, a Leon Tolstói, que supera seu
medo da morte trazendo-a para perto de si, principalmente em A Morte de Ivan Ilitch e Três
Mortes.
Segundo S. Zweig, a morte foi preocupação constante em Leon Tolstói, muito cedo,
aos dois anos de idade, foi levado a despedir-se da mãe. A ideia da morte o perseguiria para
todo o sempre. A forma que teve para tirar um pouco o sobrepeso desse infausto
acontecimento foi aprender a viver com ele. Para isso, inicia cada nota de seu diário com três
letras misteriosas: S. e. v. (“Se eu vivo”). Antes, o que era terrível serve de degrau para a
perfeita expressão artística, pois ao descrevê-la inúmeras vezes, compreende-a. “[...] para
173
descrever esses cem transpasses, Tolstoi teve antes que viver, sofrer e suportar cem vezes a
morte em sua alma transtornada” (ZWEIG, 1935, p. 37).
Desse modo, “Vida e Morte” não se limita às de Gonzaga de Sá, mas passa a ser
motivo e causa da própria existência da narrativa. Conforme se pode observar pelas palavras
do biógrafo de Gonzaga de Sá:
Para se compreender bem um homem não se procure saber como oficialmente
viveu. É saber como ele morreu; como teve o doce prazer de abraçar a Morte e como
Ela o abraçou. Depois de contar este grande fato da vida de um amigo, decifrar-lhe-
ei os gestos íntimos e os seus atos insignificantes exporei. Não há erro, penso,
procedendo assim. (BARRETO, 1956, v. IV, p. 37).
Ocorre no caso de Gonzaga de Sá tal qual com Isaías Caminha, isto é, o
procedimento utilizado foi o mesmo, a morte é o motivo que dá vida à narrativa e Lima
Barreto encarrega-se de publicar as respectivas obras conforme nos informa em “Breve
Notícia” de Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909) e “Advertência” de Vida e
Morte de M. J. Gonzaga de Sá (1919). É o próprio Gonzaga que faz uma enfática defesa da
morte: “- E a morte tem sido útil, e será sempre, continuou Gonzaga de Sá. Não é só a
sabedoria que é uma meditação sobre ela – toda a civilização resultou da morte” (BARRETO,
1956, v. IV, p. 127).
No Gonzaga de Sá, parece-nos que Lima Barreto resolveu colocar em prática os
“processos revolucionários do romance moderno” e “deixar de lado todas as velhas regras,
toda a disciplina exterior dos gêneros e aproveitar de cada um deles o que puder e procurar,
conforme a inspiração própria, para tentar reformar certas usanças” (BARRETO, 1956, v. V,
p. 33). Tristão de Ataíde, pseudônimo de Alceu Amoroso Lima, escreveu um artigo sobre
Lima Barreto, justamente no ano de publicação de Gonzaga de Sá, em 1919, com o título:
“Um discípulo de Machado” e foi publicado no O Jornal, de 18-6-1919, e depois, em 1956,
publicado como prefácio da mesma obra pela Brasiliense. Tristão de Ataíde afirma que o
meio “é quase uma personagem”, no caso de Gonzaga de Sá é a repartição pública. Sintetiza-
o desse modo:
O livro é grande olhar, pousado sobre a ordem das coisas e das idéias [...]. Dos
vários aspectos do Rio, a quem ama, tira Gonzaga agudas reflexões e conceitos sutis
[...]. O espetáculo do teatro lírico, as francesas da Rua Gonçalves Dias, a gente de
Petrópolis ou o pessoal do subúrbio [...]. Um grande amor pelo Rio e uma verdadeira
compreensão de sua paisagem emolduram a ação que é nula, por assim dizer.
(BARRETO, 1956, v. IV, p. 15).
174
Da análise apresentada por Tristão de Ataíde sobre o Gonzaga de Sá, duas
características serão sempre retomadas nas avaliações seguintes: o apego de Gonzaga de Sá a
cidade do Rio de Janeiro e a ausência de ação. Enquanto Paulo Rónai, no prefácio à edição da
Editora Mérito, de 1947, aponta para a falta de enredo do livro, uma vez que não se pode
considerar como tal o fato de Augusto Machado e Gonzaga de Sá trocarem idéias e
impressões, passeando pelas ruas do Rio de Janeiro ou sentados no banco do passeio público.
Paulo Rónai observa que a narrativa do romance foge do “trilho” da ficção barretiana e são
conduzidas pelas associações soltas. Em função disso, Paulo Rónai reforça a aproximação de
Lima Barreto aos “processos revolucionários do romance moderno”. A justificativa para isso
pode-se encontrar no comentário que o narrador Augusto Machado faz sobre o protagonista
Gonzaga de Sá: “é tal a incoerência, é tal a falta de ligação dos seus atos, que o vejo na
memória como o vi naquela tarde, em um café a circunvagar o olhar por tudo: – enigmático”
(BARRETO, 1956, v. IV, p. 137). Já, Lúcia Miguel Pereira diz o seguinte sobre o mesmo
romance barretiano: “O mais bem escrito, o mais composto [...] o menos pessoal”, aquele em
que “a ironia não desandara em sarcasmo nem o humour em caricatura” (PEREIRA, 1988,
p. 281) e acrescenta uma “narrativa um pouco solta” (p. 284). De certa forma, as avaliações
apresentadas são condizentes com a obra e em muito representam – antecipadamente – as
características do romance moderno.
Em “Gonzaga de Sá”, é possível apontar a ênfase que Lima Barreto dá ao “meio”, o
que o torna quase uma personagem, como um fator de aproximação ao procedimento utilizado
por Leon Tolstói no romance Guerra e Paz, pois a Rússia e o povo russo podem ser
considerados também como personagens do romance tolstoiano. E, se no caso de Gonzaga de
estabeleceu-se a dúvida se o mesmo poderia ser considerado um romance, em função das
características apontadas pela crítica, com Guerra e Paz não foi diferente. Leon Tolstói
precisou responder por escrito às críticas e entre elas aparece o fato de que Guerra e Paz não
se inclui nas técnicas do perfeito romance. No artigo intitulado: “Algumas Palavras a
Propósito de Guerra e Paz”, publicado nos Arquivos Russos (março de 1868), Leon Tolstói
faz a defesa:
“Que vem a ser Guerra e Paz?”, interrogava o escritor. E respondia: “Não é um
romance, um poema muito menos, e não é sequer uma crônica histórica. Guerra e
Paz é o que o autor quis e pôde exprimir pela forma como o exprimiu”. E alegava
ser essa a tendência natural das grandes obras da literatura russa: Das Almas Mortas,
de Gogol, às Recordações da Casa dos Mortos, de Dostoiévski. “Não existe na
nossa literatura qualquer obra em prosa que se eleve um pouco acima do normal que
se haja submetido inteiramente à forma do romance, do poema ou da novela”
(TOLSTOI, 1993, p. 20).
175
É ainda pela voz de Gonzaga de Sá que o autor, ao criticar a presença sempre do
mesmo tema na nossa literatura, questiona: “Quando tu verás, na tua terra um Dostoiévski,
uma George Eliot, um Tolstói – gigantes destes, em que a força de visão, o ilimitado da
criação, não cedem o passo à simpatia pelos humildes, pelos humilhados, pela dor daquelas
gentes donde às vezes não vieram – quando?” (BARRETO, 1956, v. IV, p. 134). Como se vê
a “simpatia pelos humildes, pelos humilhados” não está somente na avaliação de Lima como
também é característica “sine qua nom” de toda a obra barretiana. Sem esquecer que Gonzaga
de Sá demonstra, tal qual Leon Tolstoi, uma admiração exacerbada por J.-J. Rousseau,
inclusive desejando escrever à sua maneira: “ – Se eu pudesse, aduziu, se me fosse dado ter o
dom completo de escritor, eu havia de ser assim um Rousseau, ao meu jeito, pregando à
massa um ideal de vigor, de violência, de força, de coragem calculada, que lhes corrigisse a
bondade e a doçura deprimente” (BARRETO, 1956, v. IV, p. 134). E tal qual Rousseau:
“Quis ali, em segundos, organizar a minha República, erguer a minha Utopia, e, por instantes,
vi resplandecer sobre a terra dias de Bem, de Satisfação e Contentamento. Vi todas as faces
humanas sem angústia, felizes, num baile!” (BARRETO, 1956, v. IV, p. 141). Porém, ao
mesmo tempo em que Gonzaga de Sá almejava uma transformação no povo, logo se
perguntava: “que tinha eu, homem de imaginação e leitura; que tinha eu de levar desassossego
às suas almas. Às daquela pobre gente, de lhes comunicar o meu desequilíbrio nervoso?”
(BARRETO, 1956, v. IV, p. 140). Essa atitude de Gonzaga representa todo o niilismo de
Lima Barreto o que o reaproxima mais uma vez de Leon Tolstói:
Tudo isto era sem remédio. Morto um preconceito ou uma superstição, nasciam
outros. Tudo na terra concorre para criá-los: a Arte, a Ciência e a Religião são as
suas fontes, são as matrizes de onde saem, e só a morte dessas ilusões, só o
esquecimento dos seus cânones, dos seus delírios e dos seus preceitos trariam à
humanidade o reino feliz da perfeita ausência de todas as noções entibiadoras. Seria
assim? (BARRETO, 1956, v. IV, p. 141).
Ao fazermos referência a J.-J.Rousseau, autor de Emile e de Confissões, ressalta-se
que além da admiração declarada de Lima Barreto e de Leon Tolstói, ambos impregnaram
suas obras de dois elementos rousseaunianos: o pedagógico e o autobiográfico
38
, sem falar no
elemento “natureza” que está implicitamente ligado a Rousseau e presente em ambos os
autores. Em Gonzaga de Sá, o protagonista, com a morte do compadre, assume a
38
MAN, T. Goethe e Tolstoi. In: ______. Ensaios. Seleção de Anatol Rosenfeld. São Paulo: Perspectiva, 1988.
p. 65. Neste ensaio Thomas Man faz um estudo comparativo de Goethe e Tolstoi e aponta entre outros
aspectos a influência de Rousseau em ambos, a qual se faz referência por detectar na obra barretiana muito de
Rousseau também, o que automaticamente nos remete a Leon Tolstói.
176
responsabilidade de educar o afilhado: “ – Vou educar o Aleixo Manuel, o filho do Romualdo.
Hei de fazê-lo um Tito Lívio de Castro” (BARRETO, 1956, v. IV, p. 138). Atividade que se
estendeu também à Dona Escolástica, irmã de Gonzaga, pois com a morte deste, a irmã
completou a missão: “Bênçãos a ambos, que, na sua missão educadora, souberam ser bons,
sem interesse e sem cálculo de espécie alguma, apesar de todos os dous terem concorrido para
ampliar, com o hábito de análise e reflexão que o estudo traz” (BARRETO, 1956, v. IV,
p. 168).
Em Gonzaga de Sá encontra-se uma referência indireta a outro romance de Leon
Tolstói, Ana Karênina, quando em uma das muitas conversas do narrador com Gonzaga de
Sá, na qual ele critica a desenvoltura demonstrada pelas mulheres, afirma que: “Quando vier o
casamento, fecham as gramáticas, queimam as músicas, e começarão a repetir a história igual
e enfadonha de todos os casamentos burgueses ou não.” (BARRETO, 1956, v. IV, p. 84).
Nessa passagem, o narrador, direta ou indiretamente, propositalmente ou não, remete-nos ao
casamento de Ana Karênina. Contudo, a referência estreita-se um pouco mais quando, em
resposta, durante a conversa dos dois, Gonzaga de Sá narra um gravíssimo acidente na estação
da Piedade.
– Há duas horas, na estação Piedade, esperava eu o trem. Afinal, foi ele anunciado.
Daí a instantes apontou, ao tempo em que um homem atravessava a linha um pouco
a montante da estação. Avisos... gritos... gestos... O trem apita. O homem entontece,
ataranta-se e é apanhado – mas de que maneira, meu Deus?! O limpa-trilhos levanta-
o, atira-o sôbre aquela espécie de plataforma-proa – sabes? O animal agarra-se a um
ferro e a locomotiva acaba parando, bem junto à estação, trazendo o pobre homem
de cabeça partida, humilhado, ensangüentado, mas vivo, vivinho, aparvalhado,
sucumbido, completamente esmagado de terror diante daquela besta paleontológica
que ele mesmo inventara. A eternidade da nossa espécie repousa sobre bases sólidas,
Machado. (BARRETO, 1956, v. IV, p. 85-86).
Outra característica presente em Gonzaga de Sá é a recusa da violência, que em
muito nos remete a Leon Tolstói e à sua máxima do tolstoísmo:
“Não resisti ao mal pela violência”, isto porque a doutrina de Leon Tolstói só admite
a resistência passiva e individual como única forma de combate permitida. Em uma
das situações Gonzaga de Sá manifesta-se assim: “– Não; a maior força do mundo é
a doçura. Deixemo-nos de barulho...”. (BARRETO, 1956, v. IV, p. 135).
Para, logo adiante, reforçar: “Para mim, afinal, ficou a certeza de que sábio era não
agir” (BARRETO, 1956, v. IV, p. 142). Situação semelhante encontra-se no romance “Ana
Karênina” através dos personagens Levine e Ana. Levine assim se manifesta: “Façamos o
177
mesmo. Não vale a pena atormentar-se. Tudo se arranjará” (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 93);
enquanto Ana diz o seguinte: “O melhor, portanto, é calar-me” (p. 103). Observa-se que
Gonzaga de Sá, Levine e Ana encontravam-se em situações difíceis, porém, em um gesto de
resignação, de autocontrole, contornavam as dificuldades de forma serena e calma, deixando
que as coisas se resolvessem por uma força imutável da natureza.
178
CONCLUSÃO
Esta tese, desde o início, teve por objetivo adentrar a um campo de reflexão que tem
muito a contribuir para a compreensão da obra de Lima Barreto, pois alguns estudiosos já
tinham alertado para a aproximação entre ele e os escritores russos. Todavia, ficaram na fase
de apontamentos, talvez em função do tempo que uma pesquisa como esta requer ou porque
não perceberam, de fato, o escritor Lima Barreto como páreo comparativo para os escritores
russos, principalmente, para o aristocrata Leon Tolstói, “o grande escritor da terra russa”. Se a
esta tese faltava, antes, seu ineditismo, aí está: a aproximação de Lima Barreto a Leon Tolstói
através da concepção de arte de ambos. Com isso, a afirmação de Lima Barreto: “Quando me
julgo – nada valho; quando me comparo, sou grande” (Diário Íntimo, 1904), pode, por fim,
ser confirmada, realmente, o autor de Triste Fim de Policarpo Quaresma, ao ficar lado a lado
com Leon Tolstói, tornou-se grande na literatura brasileira.
Vale ressaltar que a recepção dos romancistas russos, no Brasil, deu-se por via
francesa, em sua maior parte. E é preciso levar em consideração o tempo que era necessário
para que as novidades de Paris chegassem ao Rio de Janeiro, embora se tivesse a impressão de
que entre Rio e Paris houvesse conexão direta, na virada do século. No que se refere ao
tempo, destaca-se que, na época de Leon Tolstói, usava-se, na Rússia, o calendário juliano,
que, durante o século XIX, era doze dias atrasados em relação ao gregoriano, usado no
Ocidente; e, no século XX, treze dias atrasados. A Rússia adotou o novo estilo, em 1918, após
a revolução bolchevique. Esse dado é importante para quem se propõe a pesquisar os
romancistas russos, principalmente se considerarmos a questão da tradução.
Outro fator que também se faz importante refere-se ao modo como os russos
dirigem-se uns aos outros e falam formalmente de outras pessoas utilizando seus primeiros e
patronímicos nomes. Desse modo, todos, com exceção dos parentes e amigos próximos,
tratariam a condessa Tolstói por “Sofia Andreievna”, querendo dizer “Sofia, filha de Andrei”.
Enquanto Leon Tolstói era “Leon Nikolaievich”, “Leon, filho de Nikolai”. “Ovich” e “ievich”
e “ovna” e “ievna” são, em russo, as terminações patronímicas masculinas e femininas,
respectivamente. Empregam, também, o diminutivo dos primeiros nomes quando falam de ou
se dirigem a parentes ou amigos íntimos. Nesse caso, Alexandra vira “Sasha”, Maria é
“Masha”, Leon torna-se “Liovochka” e Sofia “Sonia”. Esses procedimentos são
especificidades do russo e, aos poucos, o leitor não encontra mais dificuldades.
179
Apesar de conferir autenticidade à afirmação de Pierre Bourdieu de que: “o
julgamento da história que será o último julgamento da obra e do autor já está comprometido
no julgamento do primeiro leitor, e a posteridade deverá contar com o sentido público que os
contemporâneos lhe terão legado” (BOURDIEU, 1968, p. 113); espera-se que este trabalho
tenha conseguido obscurecer, se não no todo, pelo menos em parte, o julgamento da crítica
literária inicial da obra de Lima Barreto, visto ela não ter percebido o caráter inovador da obra
barretiana: uma linguagem esteticamente revolucionária se confrontada aos padrões vigentes
na virada do século XIX. Isso porque renegou a poética romântica e a estética da “arte pela
arte”. Além disso, contrariou o culto à linguagem acadêmica em vigor, que tinha por maiores
representantes: Machado de Assis, Rui Barbosa e Graça Aranha. De início, Lima Barreto foi,
em grande parte, avaliado em contraponto a esses escritores, mas, sobretudo a Machado de
Assis, que se tornou seu maior adversário na literatura brasileira; talvez, em função da
maneira explícita com que Lima Barreto o criticava ou, ainda, pela oposição ferrenha
implantada entre os dois estilos, pela crítica literária. Um, o escritor oficial; o outro, o escritor
maldito.
Tem-se observado que a avaliação crítica é resultado do contexto histórico social em
que o crítico está inserido e, em função disso e com o passar do tempo, sofre alterações. Desse
modo, hoje, a avaliação que se tem é que Machado de Assis não é mais o escritor oficial;
muito menos, Lima Barreto é somente o escritor maldito. Constatou-se que o embate crítico
entre os escritores Lima Barreto e Machado de Assis sofreu alterações, sobretudo, entre a
crítica inicial que se manifestou em periódicos e a crítica que resultou de trabalhos
acadêmicos. O primeiro grupo com Tristão de Atayde, José Oiticica, Austregésilo de Ataíde,
Vitor Viana, Jackson de Figueiredo; o segundo, com Lúcia Miguel Pereira, Alfredo Bosi e
Álvaro Marins. Em geral, apontaram a presença da caricatura, da sátira, do humor e da ironia
nos dois escritores. Mas, o principal fator de contraste apontado foi o estilo, especialmente,
quanto à correção gramatical, pois vira, apenas, o descuido com a linguagem, o aspecto
panfletário e o abuso do traço caricatural nas avaliações feitas.
A despeito de a mudança ter ocorrido de forma lenta e gradual, registrou-se que,
com a avaliação crítica que resultou de trabalhos acadêmicos, a obra barretiana, antes
classificada negativamente de memorialística e autobiográfica, passa a ser avaliada
positivamente por isso. O que demonstra que, aos poucos, a obra e o escritor Lima Barreto
ocupam seu lugar na literatura brasileira. Principalmente, se compararmos a recepção crítica
que tiveram os contemporâneos do escritor Lima Barreto, tais como: Coelho Neto, Euclides
da Cunha e o quadro atual desses escritores na literatura brasileira. Desse modo, o
180
comparativismo literário proporcionou uma (re)leitura de Lima Barreto, na qual se pode
mostrar que o escritor não somente leu os escritores russos como os recriou a partir de sua
leitura. Compreendendo, ao modo de Jorge Luis Borges, no ensaio intitulado “Kafka e seus
precursores”, que “o texto novo, o que subverte a ordem estabelecida, o que impulsiona a
tradição e obriga a uma releitura desta é o que se converte em ponto de referência obrigatório
e fundamental, não importando a localização em que se encontra no sistema literário”
(CARVALHAL, 1999, p. 65).
No Brasil, a recepção de Leon Tolstói, “o grande escritor da terra russa”, deu-se de
forma bastante positiva, podendo-se mesmo dizer que se equiparou à recepção francesa. Entre
os que ficaram entusiasmados com o autor de Guerra e Paz, além de Lima Barreto,
encontram-se: José Veríssimo, Euclides da Cunha e Monteiro Lobato. Ao que consta, esses
leitores tiveram acesso às obras de Leon Tolstói através das traduções francesas. E, também,
ao Leon Tolstói “niilista e místico”, perpassado pela recepção de E. M. de Vogué, do Le
roman russe (1886), um admirador declarado de Leon Tolstói e um dos primeiros a perceber
que “os romancistas russos, a Rússia, pela primeira vez, antecipou o movimento do Ocidente,
ao invés de segui-lo” (VOGUÉ, 1950, p. 18). Além disso, conforme Gomide, os franceses, ao
traduzirem os romancistas russos, fizeram com que eles parecessem mais amenos,
literariamente falando. Desse modo, ressalta-se que o Leon Tolstói com o qual estamos
trabalhando e aquele que Lima leu, é o Leon Tolstói resultante das traduções francesas, isto é,
traduções de segunda mão do russo. Esse é um problema que se enfrenta até hoje, isto porque
falta muito para que as traduções diretas do russo atinjam um número razoável.
Após análise, verificou-se, também, que a aproximação de Lima Barreto ao escritor
russo Dostoiévski aparece em maior proporção do que a Leon Tolstói, tanto nas avaliações
críticas encontradas, quanto nas referências do próprio Lima. Não obstante, o que realmente
se destacou foi a semelhança entre a concepção de arte de Lima Barreto e Leon Tolstói, pelo
posicionamento emblemático que ambos apresentam ao tratar da literatura. O primeiro, em “O
destino da literatura” e, o segundo, em O que é Arte?. Constatou-se, assim, que a obra
barretiana apresenta terreno fértil para o diálogo com a concepção de arte tolstoiana e esse
diálogo encontra-se desde o romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, que foi o
primeiro a ser escrito, até Cemitério dos Vivos.
Pode-se concluir, diante de tais considerações, que a obra de Leon Tolstói, escritor e
profeta, foi lida, assimilada e transformada por Lima Barreto, visto que o estilo barretiano
ficou impregnado de elementos oriundos dessa fonte literária, não apenas de um único modo,
mas em diferentes manifestações, conforme demonstrado nos confrontos literários efetuados.
181
Vê-se que, ao aprofundar a análise da concepção de arte de Lima Barreto, paralela a de Leon
Tolstói, mais se compreende a função militante de literatura tão bem empenhada por Lima
Barreto. E, para que fosse colocado em prática, o escritor se empenhou na busca de clareza,
simplicidade, singularidade para o texto literário e, ainda, uma boa dose de sentimento do
criador: escritor, no ato da criação. Isso tudo para que a arte exercesse sua real função social
que é a comunicação, ligação e comunhão entre os homens. A admiração literária pelos
escritores russos, em Lima Barreto, é fato notório na obra barretiana, visto que extrapola a
referência feita a eles.
No texto, “O destino da literatura” (1921), de Lima Barreto, encontra-se uma síntese
do pensamento estético literário do autor, no qual reflete sobre o papel da arte,
principalmente, o papel da literatura. Embora, o escritor tenha refletido sobre a arte na maioria
de suas obras, esse texto é o que apresenta de modo sistematizado suas preocupações literárias
e, por se tratar de uma conferência literária, exigiu maior poder de síntese do escritor. Nesse
texto, formulou questões importantes sobre a arte: “Em que pode a Literatura, ou a Arte
contribuir para a felicidade de um povo, de uma nação, da humanidade, enfim?” (BARRETO,
1956, v. XIII, p. 55-56).
Pode-se dizer que questões, como essa, constituem a essência do texto O que é Arte?
(1908), de Leon Tolstói, que passou, segundo o próprio escritor, praticamente, quinze anos
refletindo, escrevendo e reescrevendo sobre isso. Em busca de uma arte engajada, em prol do
social ou, ainda, uma arte militante, observou-se que os escritores desempenharam o papel de
“semeador de ideias” e de “batedor do futuro”, ao se posicionarem contrários aos “mandarins
literários”. Somado a isso, opondo-se, também, à estética da “arte pela arte”, à poética
romântica e ainda à estética simbolista-parnasiana. Os autores voltaram-se para uma
transformação social através da literatura e, para isso, trouxeram para a criação literária uma
linguagem mais simples, capaz de atingir o maior número de pessoas e não somente um grupo
seleto.
Em um primeiro momento, a busca da simplicidade na linguagem literária fez com
que os escritores, Leon Tolstói e Lima Barreto, defendessem muito mais o conteúdo do que a
forma literária. Porém, após as análises empreendidas nas respectivas obras, contatou-se que
tanto um quanto o outro demonstraram preocupação com a forma literária. Ambos
conseguiram transferir: clareza, simplicidade e singularidade para o texto literário. Desse
modo, muitos críticos avaliaram esse novo jeito de fazer literatura como não-arte, não-
literatura.
182
Como resultado da análise da linguagem literária de cada um dos escritores,
observou-se que ambos foram contra os moldes literários vigentes, principalmente, quanto à
forma como cada escritor desmistificou a poética romântica. Leon Tolstói e Lima Barreto
renegaram o culto ao herói romântico que centralizava toda a ação do romance e era protegido
por algo sobrenatural e, em seu lugar, colocaram um herói problemático, que sofre, engana-se
e, nem sempre, acerta, como qualquer outro personagem.
Ao se estabelecer um paralelo entre as ideias estéticas de Lima Barreto e Leon
Tolstói, constatou-se a presença de pontos em comum. Principalmente, no que se refere à
ideia de uma arte voltada para o social ou, ainda, uma “arte democrática”. Lima Barreto, com
certeza, viu nessa proposta uma solução não só para o seu caso em particular, de escritor
negro, pobre, mas para todos os desprivilegiados, sem distinção de modo algum. Até porque a
situação dos escravos recém libertos, após a abolição da escravidão aqui no Brasil, em muito
se assemelhava à condição dos servos russos. Daí o fato de que, no Brasil, a recepção dos
escritores russos, com ênfase em Leon Tolstói, tenha ocorrido pelo viés do ideário anarquista,
uma vez que perceberam, na doutrina de Leon Tolstói, as soluções para os problemas
brasileiros: a questão da miséria e a organização do trabalho, após o fim oficial do regime
escravagista. Por lutarem por uma arte voltada para o social ou ainda uma “arte militante”,
conforme Lima Barreto, ambos se posicionaram sobre questões importantes para a sociedade
de modo bastante semelhante. Entre essas questões, refletiram sobre: a situação da mulher na
sociedade, o Estado, a propriedade, a Igreja, o serviço militar obrigatório, a guerra, entre
outros.
Nas análises empreendidas, constatou-se que Lima Barreto se identificou com as
ideias libertárias de Leon Tolstói e, também, com a transformação político-social sofrida pela
Rússia, daí o fato de ter refletido e analisado com detalhes a revolução russa. O autor chegou
mesmo a desejar que tal movimento acontecesse de igual modo no Brasil: “Precisamos deixar
de panacéias; a época é de medidas radicais” (BARRETO, 1956, v. IX, p. 73). Medidas
radicais, pelo visto, sempre fizeram parte da trajetória pessoal e literária do escritor, pois, ao
optar pelo romance Recordações do escrivão Isaías Caminha para sua estreia nas letras, o fez
de modo consciente. Demonstrou ser radicalmente coerente com suas ideias políticas, sociais
e literárias, jamais colocando sua caneta a serviço dos poderosos, embora a tenha usado, sem
restrições, para a transformação social que almejava realizar utilizando a arte literária.
BIBLIOGRAFIA
183
BIBLIOGRAFIA DO AUTOR
Obras de Lima Barreto, organizadas sob a direção de Francisco de Assis Barbosa, com
a colaboração de Antônio Houaiss e M. Cavalcanti Proença. São Paulo: Brasiliense, 1956,
17 v.
I - Recordações do Escrivão Isaías Caminha. Prefácio de Francisco de Assis Barbosa.
[romance]
II - Triste Fim de Policarpo Quaresma. Prefácio de M. de Oliveira Lima. [romance]
III - Numa e a Ninfa. Prefácio de João Ribeiro. [romance]
IV - Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá. Prefácio de Alceu Amoroso Lima. [romance]
V - Clara dos Anjos. Prefácio de Sérgio Buarque de Holanda. [romance]
VI - Histórias e sonhos. Prefácio de Lúcia Miguel Pereira. [sátira]
VII - Os bruzundangas. Prefácio de Osmar Pimentel. [sátira]
VIII - Coisas do Reino do Jambom. Prefácio de Olívio Montenegro. [sátira]
IX - Bagatelas. Prefácio de Astrojildo Pereira. [artigos]
X - Feiras e Mafuás. Prefácio de Jackson de Figueiredo. [artigos e crônicas]
XI - Vida urbana. Prefácio de Antônio Houaiss. [artigos e crônicas]
XII - Marginália. Prefácio de Agrippino Grieco. [artigos e crônicas]
XIII - Impressões de Leitura. Prefácio de M. Cavalcanti Proença. [crítica]
XIV - Diário Íntimo. Prefácio de Gilberto Freyre. [memórias]
XV - O cemitério dos vivos. Prefácio de Eugênio Gomes [memórias]
XVI - Correspondência ativa e passiva. 1º tomo. Prefácio de Antônio Noronha.
XVII - Correspondência ativa e passiva. 2º tomo. Prefácio de B. Quadros.
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Rio de Janeiro: Graphia, 1998.
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APÊNDICE A
LIMA BARRETO E LEON TOLSTÓI:
ENUMERAÇÃO, GRADAÇÃO E O MOVIMENTO TERNÁRIO
Conforme o indicado no texto, a seguir, apresentar-se-ão mais alguns exemplos para
demonstrar o estilo utilizado pelo escritor Lima Barreto em toda sua obra e em seguida
procurar-se-á demonstrar o mesmo processo em uma obra de Leon Tolstói, Ana Karênina.
Diz-se uma obra, pois foi nessa obra que mais nos detivemos para averiguações, constata-se
que em Guerra e Paz de Leon Tolstói está presente esse mesmo processo e o mais provável é
que se estenda às outras obras tolstoianas e desde já fica a sugestão para pesquisas posteriores.
Como se pode observar, não é somente na concepção de arte que Lima Barreto
aproxima-se de Leon Tolstói. Ao atentarmos para o estilo de linguagem presente em Lima
Barreto tendo por objetivo clareza de linguagem, acompanha-o “certa abundância de
enumerações e de sua variante, a gradação”, características detectadas por Cavalcante
Proença
39
, no prefácio ao volume “Impressões de leitura” de Lima Barreto. Conforme
Proença (1956, p. 21):
Quando falamos em enumeração, como desejo de clareza, como esforço de limitação
do descrito, deve ser explicado que ela se faz, em Lima Barreto, com finalidades
semânticas; não é puramente sonora, artifício destinado a completar as sílabas de
uma cadência – o que é mais comum – pelo adjetivo de sentido vago. (PROENÇA
apud BARRETO, 1956, v. XIII, p. 21).
Em Lima Barreto, a enumeração demonstra a busca do termo próprio, processo que
ocorre à vista do leitor, como demonstração do processo cita dois exemplos retirados do
Diário Íntimo, quando pretende escrever um romance “sombrio, trágico e misterioso” e fala
de malucos “semimortos, aniquilados, anulados”. O desejo de precisão do escritor alonga as
enumerações: “Era um terror baço, sem coragem, sangrento, às ocultas, sem grandeza, sem
desculpa, sem razão e sem responsabilidade”. O tenente revolucionário, positivista, fanático
“via passar por seus olhos uma série enorme de seus confidentes, relapsos, contumazes,
falsos, simulados, fictos e confictos, sem sesmaria, soltos por aí”. (P.Q.). A gradação
comparece com freqüência: o velho português tinha “retidão, energia e franqueza”. O amigo
39
É importante lembrar que Antônio Houaiss e M. Cavalcante Proença colaboraram com Francisco de Assis
Barbosa na organização das obras de Lima Barreto na edição de 1956, pela Brasiliense.
200
já descrê de tudo, “da arte, da religião, da ciência”. “Os engenheiros ficaram atarantados,
atordoados, apavorados”. O homem que tinha idéias “era um pingar de idéias, diário,
constante e teimoso”. Esse homem “era pródigo e era generoso e era desperdiçado”. (H.S.)
Em muitos pontos as enumerações aparecem de modo preciso: “O bote, a canoa, a
galera e o couraçado”. “Criações abstratas, classes, povos, raças”. “Xisto Beldroegas vivia
obsedado com avisos, portarias, leis, decretos e acórdãos” (H.S.) Proença percebeu que o
modo mais comum, é o predicativo de três elementos, o tricólon, recurso retórico muito
freqüente na baixa latinidade e, ainda hoje na poesia popular: Cassi “mal-educado, bronco,
analfabeto”. As cortesãs estrangeiras “de dentro das rendas surgiam espectrais, apagadas,
lívidas como moribundas”. O filho de Gabriela era “taciturno, reservado e tímido”, e o
padrinho, “duro, desdenhoso, severo em demasia” (C.A.). D. João VI era tido por
“preguiçoso, indolente, vadio” (H.S.).
Proença percebeu também que outros elementos sintáticos se dispõem triméricos:
Manuel Capineiro, diante do boi estraçalhado pelo comboio, exclamou “cheio de pesar, de
saudade, de desespero” (G.S.). A arte de D’Annunzio “é uma apologia de sangue, de volúpia
e de crueldade” (Mg.). Alzira, “mulher batida pela sorte, pelo infortúnio, pela maldade dos
homens” (H.S.). A família Cogominho, desde a República, “desfrutava empregos, rendas,
representações” (N.N.). Jornalistas “sem talento, sem pertinácia e paciência” (I.C.). Numa não
tinha sagacidade, mas “ausência total de emoção, de imaginação e orgulho inteligente” e
“esforçava-se por entrar na significação daqueles consoles, reposteiros e divãs” (N.N.).
Policarpo era desinteressado “de dinheiro, de glória e posição” e “seguia o seu sonho, isolado,
obscuro e tenaz”. E não deve ser esquecido, nesse mesmo episódio, que “Quaresma era doce,
bom e modesto”. Olga via Policarpo, “aquele homem pautado, regrado, honesto”, que pensava
“tirar da guerra, o alimento, a alegria e a fortuna” (P.Q.). Pensando em Policarpo, seu criador
acha que, diante de homens assim, “mesmo tocados por um grão de loucura, a gente sente
mais simpatia pela nossa espécie, mais orgulho de ser homem e mais esperança na felicidade
da raça”.
Esse movimento ternário chega a atingir os advérbios de modo: Policarpo pensava
ganhar contos de réis “tirados da terra facilmente, docemente, alegremente”. Quaresma
convalesce “longamente, demoradamente, melancolicamente” (P.Q.). No hospício “pensa-se
profundamente, dolorosamente, angustiadamente” (D.I.). Muitos se fingem católicos “para
enriquecer-se ignobilmente, criminosamente, cinicamente” (G.S.). Os déspotas não tinham
coragem de fazê-lo “francamente, claramente, ousadamente” (N.N.). Grupos de passantes
“moviam-se de um lado para outro, isocronamente, lentamente, tristemente” (I.C.). “Abrir
201
todas as fechaduras da vida, suavemente, docemente, rapidamente” (N.N.). O coronel
continuava a “olhá-lo furiosamente, indignadamente, ferozmente”. Ricardo contempla o
violão “demoradamente, ternamente, agradecidamente” (P.Q.).
Nem os verbos se excluem do movimento: No botequim do subúrbio “os transeuntes
param, conversam e bebem” (G.S.). Uma rua “começa larga, ampla, reta [...] de repente
bifurca-se, estrangula-se, subdivide-se num feixe de travessas” (G.S.). “Olhei, notei e concluí:
estamos em pleno carnaval” (Mg.). Clara, pensando em Cassi “ofegava, suspirava, chorava”
(C.A.). O feiticeiro que tinha horta “roçava, plantava e rachava lenha”. Sobre ele
“cochichavam que matara, que roubara, que falsificara” (H.S). Fuás, o jornalista, “gastava,
jogava, presenteava” (N.N). “O macaco rogou, instou, chorou”. (P.Q.).
Em “Isaías Caminha” a presença desse compasso ternário dá-se logo no início: “A
tristeza, a compressão e a desigualdade de nível mental do meio familiar agiram sobre mim”.
Conforme Proença, na descrição de tipos, logo depois do predicativo trímero, segue-
se, com freqüência bem notável, um período iniciado com aposto circunstancial. Por esse
processo, variando, embora, o aspecto formal, continua a adjetivação, no desejo de fixar a
personagem descrita. Quando ao tratar da figura do preto Manuel de Oliveira o faz do
seguinte modo: “Cabinda de nação, ele viera muito menino da Costa da África”. “Sóbrio,
trabalhador e disciplinado, o velho preto cabinda não sofria nenhum constrangimento” (F.M).
Feliciano Campasolo – “pesado e de pernas curtas, era com grande dificuldade que ele vencia
os dois degraus”. O Barão de Inhangá “homem inteligente, mas vadio, nunca entendera
daquilo” (G.S). O boticário Bastos, “homem formado e respeitado na cidade, vereador,
médico [...] não gostava de receitar” (C.A.). “Essa Angélica era o braço direito da patroa.
Cozinheira, copeira, arrumadeira, exercia alternativamente cada um dos seus ofícios” (C.A).
“Lafões, português de nascimento, viera menino para o Brasil”. “O pai de Cassi era
verdadeiramente um homem sério. Estreito de idéias, familiarizado no emprego público [...]
tinha profundos sentimentos morais”. “Zezé Mateus era branco com uma fisionomia
empastada [...]. Totalmente inofensivo, quase inválido pela sua imbecilidade [...] uma família
dava-lhe um barracão” (C.A). Edgarda: “nascida e criada no Rio, tendo vivido sempre nas
rodas senatoriais e burguesas, tinha ilusões de nobreza”. O chefe de polícia: “Ingênuo e
submisso, por necessidade de submissão agradecida, procurava...” (N.N.). A irmã de
Policarpo: “Educada em casa, sempre com um homem ao lado, o pai, depois o irmão, ela não
sabia lidar com o mundo”. A casa de Quaresma: “Edificada com a desoladora indigência
arquitetônica de nossas casas de campo, possuía, porém, vastas salas” (P.Q.).
202
O romance Ana Karênina de Leon Tolstói é uma obra que marca o ponto crítico da
evolução do autor, isto é, marca o doloroso momento pelo qual o escritor russo passou por
uma crise moral e religiosa. Deixando, ou melhor, querendo deixar de lado a arte pura e
dedicando-se a arte doutrinária. O que na realidade jamais aconteceu, pois embora o escritor
Leon Tolstói renegasse suas obras primas durante esse período e se esforçasse por negar a
arte, nem por isso deixou de fazer uma grande obra literária. Dostoiévski no seu Diário de um
escritor considerou o romance Ana Karênina “uma obra de arte perfeita”. Esta obra é
utilizada para demonstrar as muitas semelhanças de estilo literário entre os escritores Leon
Tolstói e Lima Barreto. Semelhanças que conhecendo os dois autores e suas respectivas obras
são automaticamente suscitadas.
As características apresentadas por Cavalcante Proença presentes no processo de
escrita literária de Lima Barreto tais como: enumeração, gradação e a utilização do
movimento ternário na disposição dos elementos sintáticos, dos advérbios e dos verbos e
ainda, na descrição dos tipos logo após os elementos triméricos a presença de um aposto
circunstancial despertam a atenção para o estilo literário de Leon Tolstói, uma vez que esses
processos também lá estão presentes.
Em Ana Karênina, logo no início do romance encontra-se um parágrafo no qual se
presencia esse processo: “Dolly, a mulher sempre diligente, cheia de preocupações e tão
limitada, segundo pensava Oblonski, sentara-se com o bilhete na mão e olhava-o num misto
de cólera, horror e desalento” (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 143). Observa-se que na descrição de
Dolly está presente o movimento ternário e na seqüência a repetição em ternário dos
substantivos: “misto de cólera, horror e desalento”. E logo em seguida encontra-se: “Em vez
de ofender-se, negar, justificar-se, pedir perdão ou mesmo mostrar indiferença [...]” (p. 14).
Observa-se que o movimento ternário também está presente ao se tratar dos verbos; “[...] o
sorriso habitual, bondoso e estúpido” (p. 14) e outros.
A gradação está presente na narrativa como forma de desenvolvimento da ação e ao
mesmo tempo de certo detalhamento dessa mesma ação: “Era, inclusive, da opinião que a
esposa, esgotada, envelhecida, sem beleza nem atrativos, conquanto simples e boa mãe de
família, devia ser condescendente por espírito de justiça”. (p. 15); “Depois, respirando a pleno
pulmões, encheu-os de ar, aproximou-se da janela com o habitual andar resoluto das suas
pernas tortas, que com tanta ligeireza lhe transportavam a vigorosa figura, afastou a cortina e
tocou a campainha” (p. 15) E no mesmo período o processo se repete: “à chamada acudiu
imediatamente o velho escudeiro Matvei, que lhe trazia a roupa, os sapatos e um telegrama”
(p. 15). “Rasgando o telegrama, leu-o, corrigindo, com sagacidade, os diversos erros de
203
palavras, e seu rosto iluminou-se” p. 16); “Stepane Arkadievitch, lavado e penteado,
dispunha-se a vestir-se, quando Matvei penetrou de novo no gabinete, em passo vagoroso, as
botas rangendo um pouco, e o telegrama na mão” (p. 16); “Matvei já tinha na mão a camisa,
aberta em forma de coleira, e soprava-lhe ciscos invisíveis” (p. 17); “Já vestido, Stepane
Arkadievitch, perfumou-se, ajeitou os punhos da camisa e, num gesto habitual, guardou nos
bolsos os cigarros, a carteira, os fósforos e o relógio de corrente dupla de berloques. Sacudiu o
lenço e, sentindo-se limpo, perfumado, são, fisicamente contente, apesar de tudo, dirigiu-se,
balançando-se ligeiramente, ora num pé ora no outro, para a sala de jantar, onde já o
aguardavam o café, as cartas e o expediente do tribunal.” (p. 17); “Quando terminou a leitura
das cartas, Stepane Arkadievitch pegou nos processos, folheou-os rapidamente, garatujou
algumas notas com um lápis enorme e, pousando tudo de lado, começou a tomar café, ao
mesmo tempo que abria o jornal da manhã, ainda úmido de tinta.” (p. 17).
E dá continuidade no processo de repetição ternária: “Embora, na realidade, não lhe
interessasse nem a ciência, nem a arte, nem a política, defendia firmemente as mesmas
opiniões da maioria e do jornal [...]” (p. 17). E de outro modo: “Inclusive, escreveu um
bilhete, rápido e desembaraçado, na sua bela letra nítida, grande e espaçada, a uma pessoa que
a podia auxiliar” (p. 20); “O rosto de Stepane Arkadievitch dilatou-se, intumesceram-se os
lábios, os olhos encheram-se de lágrimas” (p. 22); “É um infame, um homem repugnante, um
estranho, isso mesmo: um homem completamente estranho para mim” (p. 22); “Stepane
Arkadievicth suspirou e, enxugando o rosto, aproximou-se da porta em passos lentos” (p. 23).
E no mesmo parágrafo: “Permaneceu imóvel alguns instantes, enxugou os olhos, suspirou e,
aprumando-se, saiu do quarto” (p. 23); “Ninguém sabia melhor que Stepane Arkadievitch
encontrar os limites da liberdade, a simplicidade e a afabilidade necessárias para que o
trabalho se tornasse agradável” (p. 25); “Por isso mesmo fora em casa dos Tcherbatski que
sentira pela primeira vez aquele ambiente de lar nobre, intelectual e distinto, que não chegara
a conhecer entre os seus por causa da prematura morte dos pais” (p. 30); “Aparentemente,
nada mais simples do que pedir a mão da princesa Tcherbatskaia, uma vez que Levine era
homem de boa família, mais rico do que pobre, e com trinta e dois anos de idade” (p. 30).
A presença do aposto circunstancial se faz presente e desempenha a função de
reforçar e enfatizar a descrição da personagem, buscando com isso tornar a descrição mais
precisa.
O professor, um homenzinho de óculos, de testa estreita, calara-se por momentos
para cumprimentar Levine, continuando em seguida o seu discurso sem lhe prestar a
mínima atenção. Levine sentou-se, à espera de que o professor se fosse, mas não
tardou a interessar-se também pela discussão. (TOLSTOI,
1993, v. II, p. 32).
204
“Nicolau, o irmão mais velho de Constantino Levine e gêmeo de Sérgio Ivanovitch,
era um homem perdido. Dissipara grande parte da fortuna, tinha relações com pessoas
extravagantes e de má reputação e não falava com os irmão” (p. 34).
A enumeração é um recurso recorrente no estilo de Leon Tolstói: “Estudara ciências
naturais, mas nunca estabelecera relação entre as conclusões da ciência sobre as origens do
homem, os reflexos, a biologia, a sociologia e as questões que ultimamente o preocupavam
cada vez mais, isto é, o sentido da vida e o significado da morte” (p. 32).
Várias vezes abordaram tais questões, mas, ao chegarem ao ponto mais importante,
na opinião de Levine, desviavam-se imediatamente e voltavam a aprofundar, no
domínio das sutis subdivisões, as críticas, as citações, as alusões, as referências às
opiniões autorizadas, ficando ele sem perceber coisa alguma. (TOLSTOI, 1993,
v. II, p. 32).
A repetição do processo ternário se dá também nos verbos: “Perseguiam-na,
ultrapassavam-na, interpelavam-na, numa completa indiferença [...]” (p. 36); “Um rapazinho,
vestido à maneira russa, gesticulando muito e todo inclinado para diante, procurava
ultrapassá-la” (p. 36); “Levine pôs-se de pé, despiu o capote e, tomando impulso por cima do
gelo crespo, logo ali junto ao pavilhão, surgiu na superfície lisa da pista, deslizando sem
esforço, como se acelerar, retardar ou dirigir a carreira, tudo dependesse da sua vontade”
(p. 37); “– E no entanto – replicou Levine – quando analiso a minha vida, estremeço,
amaldiçôo-me e lamento-me cheio de amargura...” (p. 44); “Ao notar que a Condessa
Nordston queria falar, calou-se e ficou a ouvi-la atentamente” (p. 55).
A adjetivação é um recurso utilizado com a finalidade de facilitar o conhecimento
das personagens e a aproximação do leitor. Assim ele o faz na descrição de Vronski:
“É imensamente rico, bela figura, e com boas relações. É ajudante-de-campo e, além disso,
rapaz muito simpático e bom moço. Quando lidei com ele aqui pude verificar que também é
culto e muito inteligente: é um homem que há de ir longe” (p. 45). E ao falar das mulheres: “
– Pensa numa mulher agradável, tímida, afetuosa, só e pobre que tudo sacrificou por ti.”
(p. 46). “Toda a diversidade, todo o encanto, toda a beleza da vida se compõe de luzes e de
sombras” (p. 47). E, ainda ao descrever Vronski: “Vronski, pelo contrário, satisfazia todas as
suas ambições: era muito rico, inteligente, famoso e aguardava-o uma brilhante carreira tanto
no Exército como na Corte.” (p. 49). Na descrição da Condessa Nordston ocorre no trecho
que se segue além da adjetivação um aposto circunstancial: “Daí a cinco minutos, chegava a
205
Condessa Nordston, amiga de Kitty, que se casara no último inverno. Era uma mulher
delgada, amarelada, de brilhantes olhos negros, nervosa e enfermiça” (p. 53).
É importante destacar que tanto o processo da repetição ternária quer seja de
elementos sintáticos, de adjetivos e até mesmo de verbos, quanto o processo de gradação são
presenças recorrentes em toda a obra “Ana Karênina”. O que se dá também com a descrição
dos personagens, elas são dadas a conhecer pelo leitor de forma gradual e intensa, a cada
momento as descrições de uma mesma personagem são reforçadas e um outro aspecto é dado
a conhecer pelo leitor. Tal é o caso da descrição de Vronski: “Vronski era um homem
moreno, não muito alto, de forte compleição, belo, e de fisionomia extremamente serena e
grave. Tudo na sua figura, desde os negros cabelos curtos e o rosto recém-barbeado até ao
folgado uniforme novo, era simples e ao mesmo tempo vistoso” (p. 54).
Mais um exemplo de repetição do processo ternário: “A princesa não precisava de
lançar mão das peças de artilharia que reservava para o caso em que a conversa esmorecesse:
o ensino das letras e das ciências e o serviço militar obrigatório” (p. 55); “Enquanto eles
acreditam em mau-olhado, em feitiçarias e em aparições, nós, de nossa parte...” (p. 56).
A gradação ocorre com freqüência, o que demonstra uma simplificação tanto de
estilo quanto de linguagem por parte de Leon Tolstói: “Dirigiu-se diretamente para o seu
quarto do Dusseau, pediu a ceia e assim que se despiu e que deitou a cabeça no travesseiro,
adormeceu pesadamente” (p. 60); “Não só não apreciava a vida familiar, como via qualquer
coisa estranha, hostil, e sobretudo ridícula na família (...)” (p. 60); “E fê-lo de um modo tão
agradável, tão simples e sobretudo tão confiado!” (p. 60).
Observa-se que além da gradação presente, ocorre a repetição da conjunção
“sobretudo” por três vezes em um curto espaço, um para cada parágrafo. Além das duas já
citadas há pouco, com a intenção de demonstrar a gradação presente, a repetição do
“sobretudo” ocorre uma terceira vez: “Como poderia ele considerar repreensível uma coisa
que tão grande prazer lhe proporcionava e que tão agradável era, sobretudo para ela, Kitty?”
(p. 60). Nessa repetição percebe-se a intenção de ênfase da observação feita pelo escritor.
E ao falar sobre Alexei Alexandrovitch, marido de Ana Karênina, recorre a gradação ternária
de palavras e de significado: “Sei que é homem inteligente, sábio e um tanto sobrenatural...”
(p. 61) Ao falar de Levine recorre ao mesmo processo já utilizado: “É um rapaz muito
nervoso, que às vezes costuma ser desagradável, mas outras é capaz de ser muito simpático. É
um coração de ouro, uma natureza reta e honrada” (p. 62); a mesma forma se repete ao se
referir a Ana: “Ana Karenina permanecia imóvel, muito direita, os olhos risonhos” (p. 65);
“Corou, inclinou-se ligeiramente e aproximou o rosto dos lábios da velha condessa; depois
soergueu-se e com o mesmo sorriso inquieto estendeu a mão a Vronski” (p. 65). Ocorre uma
206
descrição gradual dos movimentos de Ana, o que transmite certa agilidade e simplicidade ao
estilo tolstoiano.
Ao se referir à Dolly, cunhada de Ana Karenina, traída por Oblonski seu marido e
irmão de Ana, o processo apresentado é o mesmo: “Trabalhava nervosamente, encolhendo e
distendendo os dedos, contando e recontando as malhas” (p. 67); “Conheço muito bem essas
exortações, essas admoestações, esses apelos a clemência cristã” (p. 68); “É inútil tentares
consolar-me. Depois do que aconteceu, tudo está irremediavelmente perdido” (p. 69); “Com a
educação que maman me deu, não era apenas inocente, era estúpida” (p. 69); “Não, agora
tudo acabou, tudo, tudo o que constituía a consolação, a recompensa dos trabalhos, dos
sofrimentos...” (p. 70). A recorrência desses processos de adjetivação, enumeração, gradação
e repetição é freqüente no texto de L. Tolstói. Sendo possível encontrar uma boa parte dos
mesmos num só parágrafo, tal como se apresenta no que se segue ao se referir à Ana:
Ana não parecia uma senhora de sociedade nem a mãe de um filho de oito anos, mas
uma garota de vinte anos, a julgar pela flexibilidade dos seus gestos, a frescura e a
vivacidade de expressão, que ora lhe transparecia nos lábios ora nos olhos, agora
séria e logo triste, coisa que muito surpreendeu Kitty. Foi precisamente esta
particularidade que a seduziu: para além da simplicidade de Ana, adivinhava todo
um mundo de poesia, misterioso, complexo, que se lhe afigurava inacessível. Depois
do jantar, quando Dolly se retirou para seus aposentos, Ana levantou-se e
aproximou-se do irmão, que acendia um cigarro. (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 72).
Observa-se que a recorrência desses processos de maneira alguma empobrece ou
torna menos literário o texto de Leon Tolstói.
A adjetivação continua na descrição de Ana, ressaltando que Leon Tolstói não
caracteriza de imediato e uma só vez suas personagens, ele as vai construindo por etapas,
gradualmente.
Uma toilette de veludo preto, muito decotada, desnudava-lhe os ombros esculturais,
de pulsos finos. Rendas de Veneza lhe guarneciam o vestido. Os cabelos negros,
sem postiços, ostentava uma grinalda de amores-perfeitos, combinando com outra
que lhe adornava a fita preta do cinto, rematada por rendas brancas. Estava penteada
com muita simplicidade. Apenas alguns caracóis de cabelo frisado na nuca e nas
fontes se lhe eriçavam rebeldes. Em volta do pescoço bem torneado brilhava um
colar de pérolas. (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 72).
No caso de Ana que é a protagonista, até mesmo quando o leitor imagina que a
conhece ainda assim aparece algo novo a seu respeito. Isto o próprio autor deixa transparecer
que tem algo mais: “Via-a sob um aspecto novo e inesperado” (p. 78). E ao falar do vestido
207
preto que Ana usava no baile diz que “era apenas uma moldura discreta que lhe punha em
evidência a inata elegância, o encanto, a perfeita naturalidade” (p. 78).
Acredita-se que essas citações apresentadas sejam suficientes para demonstrar um
pouco do estilo tolstoiano presente em Ana Karênina, e, principalmente, para demonstrar que
esse estilo aproxima-se e muito com o estilo de Lima Barreto. Porém, ressalta-se que as
possíveis influências sofridas por Lima Barreto não param nisso, daí o porquê de não
relacionarmos todas as recorrências encontradas em “Ana Karênina”, pois se estenderia
bastante nessa parte.
Diante das semelhanças encontradas nos respectivos estilos dos escritores, é
importante ressaltar que no que se refere ao movimento ternário dos advérbios de modo
presente no estilo de Lima Barreto, constata-se uma diferença, pois o mesmo não ocorre em
“Ana Karênina” de Leon Tolstói, visto que os advérbios de modo nesta obra aparecem de
forma única. O que demonstra que Lima Barreto não somente absorveu como transformou o
estilo que o influenciou, adequando-o e acrescentando algo novo e próprio. Ressaltando que
Lima Barreto em nenhum momento escondeu que leu os escritores russos e Leon Tolstói.
Nesse processo de busca de semelhanças entre os dois escritores, nota-se que ambos
se aproximam quer seja em relação aos conteúdos ou quanto aos aspectos formais. Observa-se
que em Lima Barreto alguns traços físicos de seus personagens são realçados, porém o que
predomina mesmo é a sua preocupação com os olhos. Cada escritor ressalta este ou aquele
traço; Machado de Assis, por exemplo, demonstrou certa fixação pelos braços de seus
personagens. Essa tendência em ressaltar os olhos como “espelhos da alma”, isto é, como o
centro de interesse de seus personagens e através deles dar a conhecer a índole boa ou má de
cada personagem, encontra-se não só em Lima Barreto como também em Leon Tolstói.
Conforme Cavalcante Proença (1956), no prefácio ao volume “Impressões de
leitura”, Lima Barreto apresenta uma “vitrina com olhos das mais variadas espécies e
tonalidades”: “São olhos de crianças e mulheres, olhos de várias cores, com estilhas e estrias,
doces ou duros, fugidios ou firmes, até chegar a Adélia
40
, menina pobre que ‘era só olhar’”
40
BARRETO, L. Histórias e Sonhos. p. 115, 1956. “Adélia” é o título de um conto de Lima Barreto, no qual ele
deixa explícita a força que o olhar da personagem acarreta no processo de descrição da mesma, desde criança
até a fase adulta. Em contraste ao tipo físico sem nenhum atrativo de Adélia, Lima sobrecarrega ao enfatizar o
olhar: “O seu olhar, entretanto, era calmo. Era azul-turquesa, e doce, e vago. No meio da desgraça de seu
corpo, a placidez do seu olhar tinha um ar zombeteiro”. (p. 116); “e o olhar sempre o mesmo, a ver caravelas
ao longe”; Adélia após casar-se “unicamente mudou num instante o olhar que ficou duro e perverso”; o
casamento melhorou-lhe o aspecto físico mas continuou “sempre com aquele olhar fora do corpo e das cousas
reais e palpáveis”; e mesmo depois de viúva “O seu olhar vago, fora dos homens e das cousas, atravessava o
véu negro como um firmamento com uma única estrela no engaste de um céu de borrasca”; passou a
freqüentar as confeitarias, mas “o seu olhar não pousava nunca nos espelhos e nas armações. Andava longe
208
(PROENÇA, apud BARRETO, v. XII, 1956, p. 24). Há o olhar dos submissos: Policarpo
lembrava-se de Anastácio, “o seu preto velho, o seu longo olhar, não mais com aquela ternura
passiva de animal doméstico, mas cheio de assombro, de espanto e piedade, rolando muito nas
órbitas as escleróticas muito brancas” (P.Q.). Isaías Caminha ao recordar-se da mãe: “De
quando em quando ela me lançava os seus olhos aveludados, redondos, passivamente bons,
onde havia raios de ternura ao encarar-me” (I.C.). A bondade de coração também se expressa
pelo olhar: Floc, após o suicídio: “Os olhos semicerrados tinham uma longa e doce
expressão” (I.C.); e a velhinha, “de grande velhice e largo olhar de bondade” (Mg.). No
menino Gabriel, “havia pelo seu olhar faiscações novas”. “Depois a graça o enchia e era como
se transbordasse pelo seu olhar brilhante e bondoso e agora calmo” (H.S.).
As personagens boas apresentadas por Lima Barreto as reconhecemos pelo olhar,
pois todas são doces pessoas de olhos doces: Gonzaga assim é descrito: “Os olhos, seus doces
olhos perdiam o brilho, apareciam mortiços e ganhavam uma estranha auréola”. Quando lhe
morre o compadre, chega ao bar e “os seus grandes olhos macios e vermelhos”. Em casa do
morto “os olhos macios e lentos já tinham o brilho normal”. Na caleça, acompanhando o
enterro, “o seu olhar lento e macio foi parar sobre os bondes que passavam”. (G.S.).
Assim como as pessoas boas são caracterizadas através do olhar, as pessoas fingidas
também o são, é o caso do padeiro de Itaporanga, com “o seu olhar inquieto e fugidio, mas
vivo quando se fixava, era de velhaco mercadejante, bem com o código e as leis” (I.C.).
Loberant, o diretor do jornal, “de olhar erradio, cheio de desconfiança”; quando ia à janela, o
contínuo Isaias notava-lhe “a fisionomia banhada da turva luz que se desprendia do olhar”
(I.C.). Quando Clara dos Anjos conheceu Cassi, o conquistador suburbano, o modinheiro, a
moça teve medo “daquele cantador meloso, dengoso, apesar de seu mau olhar de folha-de-
flandres”, pois ele, “cantando, revirava os olhos” e olhava as moças “com olhar lascivo”
(C.A). No hospício há “um mulato escuro, forte, rosto redondo, grande, olhos negros,
brilhantes, com uma pequena poça de desconfiança”. (D.I.). Há ainda os céticos: o velho
professor, pai de Cló, tinha “o olhar calmo em que não havia mais nem espanto, nem
reprovação, nem esperança” (H.S.). As mulheres em que o sexo predomina, e que, para Lima
Barreto eram más, terão olhos lúbricos: Madame Santos Carvalho “com aqueles olhos de
fome, olhos de insatisfação, de curiosidade, de vontade de provar todos os frutos do jardim do
mundo” (I.C.).
dela, longe daqueles lugares”; morreu muito cedo como a criança que se fora: “um frangalho de corpo e um
olhar vago e doce, fora dela e das cousas”.
209
Lima Barreto requer uma ampla vitrina de olhares, pois cada uma de suas
personagens tem o olhar conforme as características que lhe são próprias. A inquietação, a
falta de segurança dos tímidos, a ânsia dos curiosos de gozo ou de sabedoria se traduzem e
são retratadas no olhar: o guarda do hospício, “grandes olhos sequiosos de entender alguma
coisa, o único traço grande de sua fisionomia” (D.I.); a gente grã-fina do Lírico, com “não sei
quê de inquietação, não sei quê de desassossego no olhar” (G.S.); Leda, a italiana, se não era
vulgar, “devia-o a seus olhos negros, onde havia muito de nossa inquietude moderna, um
grande langor profissional”. Dona Clementina, mãe da namorada, tem “os olhos bons e, ao
contrário da filha que tinha nos seus sempre uma grande firmeza, os dela eram incertos,
distraídos e irradios, humildes sempre de bondade e não sei de que vaga e indeterminada
cisma” (D.I.). Enfim, através dos olhos reconhece-se o estado de espírito dos personagens
barretianos, se estão de mau humor, se são fortes ou não. Os olhos são armas poderosas
utilizadas na conquista amorosa: a Viscondessa de Varrenes, “a deitar os seus grandes olhos
de Juno para a massa masculina” (I.C.). Armando tinha “um requebro feiticeiro nos olhos”,
Estefânia, a normalista, ao dizer um segredo à mole Ismênia, dilata muito “os seus olhos
maliciosos e quentes” (P.Q.). Na galeria de olhos do escritor, constam ainda os olhos das
crianças e até o inanimado tem olhos: o volume da legislação, no serviço, “mirava-me,
olhava-me, com um olhar tão meigo”. A locomotiva, “suando gordurosamente” com o farol,
“um olho de ciclope que nem uma aparição sobrenatural”. Conforme Proença, a maior de
todas, é a galeria dos olhos femininos
41
, pois apresenta ampla variedade, pela cor, pelo brilho,
pela expressão, exprimindo a própria alma.
Esse destaque dado aos olhos e ao olhar na descrição dos personagens também se
encontra em Leon Tolstói, conforme se constatam nas citações que se seguem: Levine ao
retornar a Moscou para se declarar a Kitty a encontra na estação de esqui e fica a observar:
“O contraste entre a graça juvenil do rosto e a beleza feminina do busto davam-lhe um
encanto todo especial, que Levine muito apreciava. Mas o que sempre o assombrava nela
eram os olhos, tímidos, serenos e sinceros [...]”, (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 36); Leon Tolstói,
juntamente com o olhar e os olhos, enfatiza bastante o sorriso de Kitty: “e aquele sorriso que
41
Alguns exemplos da galeria de olhos femininos: Em Olga: “A luz dos seus grandes olhos negros que quase
cobriam toda a cavidade orbitária fazia fulgurar seu rosto móbil” (P.Q.). No jantar, a irmã de Gonzaga
cerimoniava “com a indiferença de seu olhar verde”; “Dona Escolástica, de plácidos olhos verdes” (G.S.). A
irmã de Policarpo era uma velha bela, “um olhar tranqüilo, calmo e doce”(P.Q.). Já a princesa Dona Isabel,
que vira em menino, lhe pareceu “loura, muito loura, maternal, com um olhar doce e apiedado”. Para Lima
Barreto, sem alma, os olhos não cintilam. Ismênia, de Triste Fim de Policarpo Quaresma, penava com o
abandono do noivo: “As pálpebras estavam roxas, até os seus pequenos olhos pardos tinham brilho e
expansão. Não tinham antes, porque ela era quase sem alma e agora tinha uma dada pelo sofrimento”
(PROENÇA apud BARRETO, 1956, v. XIII, p. 30).
210
o transportava a um mundo de magia, em que se sentia enternecido e dulcificado como só
raras vezes se lembrava de se ter sentido na primeira infância” (p. 36); “Aproximou-se de
Kitty com timidez, mas o sorriso desta tranqüilizou-o de novo” (p. 36); “ e os seus olhos
olhavam sinceros e suaves como antes” (p. 38); “olhando-o nos olhos com uma expressão
significativa” (p. 38); enquanto Oblonski aparece “com os seus olhos profundos e luminosos”
(p. 38) e em uma conversa entre Levine e Oblonski o olhar dá continuidade às palavras:
“insistiu Levine, cravando os olhos no interlocutor” (p. 43); os olhos são utilizados como um
complemento na descrição de seus personagens, principalmente dos estados emocionais, tais
como alegria, tristeza, angústia e também através deles é possível detectar a verdade, a
mentira e a falsidade daquilo que dizem. Em uma conversa da princesa com sua filha Kitty, a
mãe se enternece ao ver “lágrimas nos olhos da filha” (p. 51) e “replicou Kitty, corando e
olhando a mãe nos olhos” (p. 51), e a mãe chega a seguinte conclusão a respeito da fala da
filha: “Com estes olhos não pode mentir” (p. 51).
Da mesma forma, o olhar tem um poder essencial quando se trata de conquistas
amorosas e neste caso, Kitty ao ficar frente a frente com Levine vê o mesmo “tímido na sua
força, fixando nela um olhar ardente. Kitty fitou-o francamente face a face, e estendeu-lhe a
mão” (p. 52); “e sem afastar de Levine os olhos suplicantes e acariciadores. Levine fitou-a.
Kitty corou e calou-se” (p. 52); “então (Levine) fixou nela os olhos” (p. 52); “Ergueu para
Levine os olhos luminosos e sinceros e ao ver a angústia que se lhe pintava no rosto, replicou”
(p. 52); Levine preferiu partir a ficar vendo Kitty “que de quando em quando olhava para ele,
evitando encontrar-lhe os olhos” (p. 54). A ênfase ao olhar torna-se explícita na seguinte
situação: quando Levine estando na casa de Kitty percebe que chegou o oficial e julga que
seja Vronski. “Deve ser Vronski, pensou e para certificar-se olhou para Kitty. Esta já tivera
tempo de olhar para Vronski e agora fitava Levine. E por aquele olhar, vendo que os olhos
dela resplandeciam involuntariamente, Levine compreendeu, com a mesma certeza que se ela
própria lho tivesse dito, que Kitty amava aquele homem” (p. 54); e Vronski “Ao acercar-se da
jovem (kitty), os seus belos olhos brilharam de um modo especial e com um imperceptível
sorriso feliz e discreto de triunfador (assim se afigurou a Levine)” (p. 54); durante a conversa
Levine dirigia-se alternadamente a Kitty e a Vronski com “o seu olhar afetuoso e sereno
(p. 55).
Através do olhar também Leon Tolstói deixa transparecer o pensamento das
personagens, Kitty ao passar junto de Levine, “os olhos dos dois encontraram-se” (p. 57) e é
como se Kitty dissesse através do olhar: “Se me puder perdoar, perdoe-me”, “Sou tão feliz!”
(p. 57); enquanto que “ripostou o olhar de Levine” dizendo: “Odeio-os a todos, tanto a você
211
como a mim mesmo” (p. 57); essa comunicação que ocorre com os personagens através do
olhar torna-os mais íntimos um do outro, principalmente porque as palavras ficam em
segundo plano, conforme palavras de Levine: “Precisamente o agradável é que nenhum de
nós tenha dito nada e que, no entanto, nos compreendamos um ao outro só com essa muda
linguagem dos olhares; hoje disse mais claramente do que nunca que me ama” (p. 60);
Stepane Arkadievitch ao notar a felicidade estampada no olhar de Levine assim se expressou:
“Os cavalos fogosos conhecem-se pela marca e as pessoas apaixonadas pelos olhos” (p. 43) e
repete essa mesma frase logo adiante (p. 61), mas, sorrindo, Levine não o nega e os olhos “lhe
faiscavam” de satisfação (p. 63); enquanto que para Vronski “bastou-lhe um olhar para
compreender, pelo aspecto da desconhecida, que pertencia à alta roda” (p. 63).
O contato fatal que ocorre entre Ana e Vronski fica registrado através do olhar de
ambos, que Leon Tolstói o descreve em um longo parágrafo:
Curvou-se e ia entrar no vagão quando sentiu necessidade de voltar a olhá-la, não
atraído pela sua beleza, nem pela sua elegância, nem pela singela graça que se
desprendia de toda a sua pessoa, mas apenas porque a expressão do seu rosto
encantador, quando passara junto dele, se mostrara especialmente suave e delicada.
No momento em que se voltou, também ela olhara para trás. Seus brilhantes olhos
cinzentos, que pareciam escuros graças às espessas pestanas, detiveram-se nele,
amistosos e atentos, como se o reconhecessem, e imediatamente se desviaram para a
estação, como que procurando alguém. Naquele rápido olhar, Vronski teve tempo de
lhe observar a expressão de uma vivacidade contida, os olhos reluzentes e o sorriso
quase imperceptível dos lábios rubros. (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 63).
A aproximação entre Kitty e Ana ocorre e muito através do olhar; Kitty admirava
Ana pela sua beleza e ao mesmo tempo percebe o risco que corre em relação a Vronski. Kitty
percebia “nos olhos (de Ana) esse mundo singular que nunca lhe fora revelado” (p. 73); e
através do olhar Leon Tolstói fala mais do que por palavras, tal é o caso da visita de Vronski à
casa de Stepane, altas horas da noite e o mesmo não quis entrar, justo no dia no qual Ana
chegara, essa situação explicita o motivo para o leitor e não para Kitty e os demais, pois
“Todos se entreolharam sem dizer palavra e em seguida puseram-se a folhear o álbum de
Ana” (p. 76).
Pelo exposto é impossível não relacionar o modo que Leon Tolstói enfatiza e
emprega o olhar e os olhos dos personagens na comunicação entre eles, com o modo que
Lima Barreto também o emprega em sua obra. Em ambos, fica explícita a função de que os
olhos são “o espelho da alma”. Os olhos sendo “o espelho da alma” automaticamente,
refletem o lado bom e o lado mau de cada personagem, isto é, as boas e as más pessoas. Ver-
se-á em primeiro lugar como essa divisão se explicita na obra do escritor Lima Barreto, sabe-
212
se que há subdivisões no sistema de classificação dos personagens, porém são esses os dois
tipos que predominam em sua obra conforme M. Cavalcante Proença, no prefácio ao volume
“Impressões de Leitura”: “Para os maus, a adjetivação variava, o escritor lhes emprestava
'olhos de folha-de-flandres”, feições de porco ou de ave de rapina, de anta ou antropóide”
(PROENÇA apud BARRETO, 1956, v. XIII, p. 30). É interessante observar que Proença
aponta na biografia de Lima Barreto na qual aparece o autor sempre “amando os bichos,
economizando, juntando dinheiro, moeda a moeda, para comprar um casal de pombos”
(p. 32), deduzindo que daí, talvez, viesse a justificativa para que os animais aparecessem
como símiles, caricaturando pessoas. Diz-se “talvez” porque tanto pode ser como pode não
ser essa a justificativa, ou pelo menos, não a única.
Uma vez que o próprio Lima Barreto afirma por intermédio de Isaías Caminha ao se
referir ao livro que escrevia que: “Não nego que para isso que tenho procurado modelos e
normas. Procurei-os, confesso” (BARRETO, 1956, v. I p. 120). E entre os escritores citados
aparecem: “O Crime e o Castigo de Dostoiévski, um volume dos contos de Voltaire, A
Guerra e a Paz de Tolstói” (BARRETO, 1956, v. I, p. 120), entre outros. E mais: “Confesso
que os leio, que os estudo, que procuro descobrir nos grandes romancistas o segredo de fazer”
(p. 120).
Na relação que se estabelece com o escritor russo Leon Tolstói, observa-se que o
escritor realmente o estudou, o assimilou e o transformou; visto que o seu estilo ficou
impregnado de elementos oriundos dessa fonte literária; não apenas de um único modo, mas
em diferentes manifestações conforme se vem demonstrando através das referências feitas.
No caso da caracterização das personagens más, encontra-se em Lima Barreto algumas
descrições que são importantes relacioná-las nesse momento: Aires D’Ávila movia-se pela
sala “com a dificuldade de um boi que arrasta a relha enterrada da charrua” (I.C.) e quando
Isaías o encontra, de quatro, no bordel, era “uma espécie de tapir ou de anta” (I.C.). Na mesa
ao lado, “um gordo alemão com focinho de porco” (H.S.); e ao se referir a sobrecasaca de
Loberant, com as asas a baterem como as “asas de uma grande ave vulturiana” (I.C.); Raul
Gusmão tinha “guinchos de pitecantrópus” (D.I.); Isaías pensa na “mescla de suíno e de símio
do célebre jornalista Raul Gusmão” (I.C.); “Híbrida figura de Raul Gusmão, em sua
fisionomia de porco Yorkshire e seu corpo abastado de elefante indiano, tendo o jeito de sorrir
do Pitecantrópus erectus” (I.C.); Xisto Beldroegas, o burocrata, interpelado, “articulou
unicamente um grunhido suíno, como exigia a sua respeitabilidade burocrática”. Para
Gonzaga, Xisto tinha “passo de jabuti” e fazia um esforço para “falar, cacarejar e perguntar”
(G.S.); Vital o pretinho miúdo “com feições de pequeno símio”. O filho de Gabriela, doentio
213
com “o ventre como de um batráquio” (C.A.). Ao se referir ao comendador: “Por todo ele
havia um aspecto suíno cheio de lascívia”. E adiante: “Tudo nele era de um colossal suíno”,
“os lábios se haviam apertado fortemente e impelidos para diante se juntavam ao jeito de
focinho” (C.A.), entre outras.
Já, em “Guerra e Paz” de Leon Tolstói encontram-se as seguintes descrições, que em
muito se assemelham com as utilizadas por Lima Barreto, porém com algumas diferenças, as
de Tolstói apresentam-se mais suaves, não chega à caricatura. A situação na qual aparecem
essas descrições refere-se ao momento em que o príncipe André comunicava a Hipólito sobre
sua ida para a guerra e Lisa, sua esposa, toma conhecimento do fato: “Tinha adotado um tom
de amuo e fazia um trejeito que lhe dava um ar já não alegre, mas quase animal, um ar de um
pequenino esquilo” (TOLSTOI, 1993, v. I, p. 380); e mais: “Subitamente, o arzinho de
esquilo furioso que se pintara no rosto da princesa converteu-se num medo impressionante,
digno de piedade. Lançou, furtivamente, com os seus belos olhos um rápido olhar ao marido e
teve essa expressão tímida e submissa de um cão batido que foge com a cauda entre as
pernas” (p. 381).
Encontram-se ainda:
Nicolau e a sobrinha Sônia. Esta era uma moreninha magra, uma miniaturazinha,
com uns olhos doces, sombreados por longas pestanas, e uma farta trança negra que
lhe dava duas voltas à cabeça; [...]; a ligeireza dos seus passos, a languidez e a
flexibilidade dos seus braços, os seus modos um pouco ardilosos e reservados
davam-lhe ares de um lindo felino ainda não domesticado, mas prometendo vir a ser
um bichano encantador. (TOLSTOI, 1993, v. I, p. 393).
Na seqüência: “No seu olhar havia uma adoração tão apaixonada que ninguém se
iludiria com aquele sorriso. Toda a gente via que se o bichano ali estava tão sossegado era
apenas para, mal saísse do salão, logo pôr-se a correr e a saltar com o cousin, tal qual Bóris e
Natacha” (p. 393); “A gatinha que o comia com os olhos, parecia pronta a brincar e a mostrar
a sua natureza felina” (p. 394); “E todos eles, como um bando de pássaros assustados,
bateram as asas e despediram” (p. 399); “Sônia parecia outra, a gatinha que ela era reanimou-
se, os olhos faiscaram-lhe, dir-se-ia pronta a saltar sobre as suas patinhas elásticas, a correr
atrás do novelo de lã, coisas próprias da sua natureza” (p. 419); “- Ah! O nosso paizinho! Que
águia que ele é!” (p. 421).
Nessa cadeira perfilava-se a majestosa figura do pai, o Conde Bezukov, muito sua
conhecida, coberto até à cintura por uma manta verde-claro e os cabelos brancos, em
214
que havia qualquer coisa de leonino, a coroar-lhe a testa ampla, e as características
linhas daquele rosto amarelento sulcado de rugas. (TOLSTOI, 1993, v. I, p. 431).
“O regimento sacudiu-se, como um pássaro que espeneja as asas, e ficou imóvel”
(p. 464); ao descrever Vaska Denissov: “Erguendo a cabeça hirsuta, como as aves quando
bebem, e esporeando impiedosamente, com as pernas curtas, o seu bom beduíno[...] (p. 493).
Em “Ana Karênina”: “O sorriso desapareceu do rosto de Riabinine, onde surgiu uma
expressão cruel de ave de rapina” (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 155).
No cotejo dos textos, constata-se que há semelhanças inegáveis entre os estilos
apresentados, e o importante é observar que para Lima Barreto essa relação resulta em
transformação, isto é, em “um resultado artístico autônomo” (CIONARESCU apud NITRINI,
2000, p. 127), ocorre em Lima Barreto uma identificação ao estilo de Leon Tolstói, que fica
difícil apontar o que se refere a um e a outro. Tal é a transformação obtida no estilo literário
de Lima que nos parece que tudo lhe é próprio e original. Outro aspecto fortemente presente
em Lima Barreto que muito denuncia pontos de contato com Leon Tolstói, na forma como é
apresentada na ficção, refere-se ao papel desempenhado pela natureza. No romance Clara
dos Anjos, quando a protagonista desonrada olha a mancha de carvão que aparece entre as
estrelas, pensa: “Então no céu também se encontram manchas?”; Quando Marramaque é
assassinado, há tempestade e chuva, e o céu também se solidariza com Isaías Caminha,
humilhado na delegacia, nublando-se ou descobrindo-se. E as árvores, imponentes e
tranqüilas, indiferentes à mesquinhez dos homens. O gosto pelas montanhas e crepúsculos
também Proença o justifica dizendo haver “influência da meninice passada na ilha do
Governador, onde os crepúsculos e o recorte da serra dos órgãos são, até hoje,
impressionantes” (PROENÇA apud BARRETO, 1956, v. XIII, p. 42).
215
APÊNDICE B
REFERÊNCIAS DOS ESCRITORES SOBRE A SENTIMENTALIDADE
A esses pontos de contatos detectados através das relações literárias entre ambos,
acrescentam-se outras características comuns aos dois escritores que transbordam das páginas
de suas principais obras e por que não dizer de toda a obra barretiana e tolstoiana, isto é: o
sentimentalismo e a piedade humana. Em Lima Barreto parece-nos que o sentimentalismo e a
piedade humana se revertem em uma doçura inexplicada das coisas e das pessoas. Em Triste
Fim de Policarpo Quaresma, aparece Ismênia que dizia: “Mamãe... Eu vou morrer” e
“continuava a repeti-lo pacientemente, docemente, serenamente”. Já muito doente “as
palavras saíam-lhe dos lábios, seguras, doces e naturais” (P.Q.). “A nossa doce e resignada
gente da roça”. A crioula, amásia de Rocha, pertencia a essa “doce gente que tem sempre o
coração aberto para os infelizes” (B.). A mãe de um companheiro “é uma doce senhora que se
encantava em nossa vivacidade” (F.M.). “O povo de Bruzundanga é doce e crente, mais
supersticioso do que crente” (Br.). Gonzaga de Sá retoma a conversa “com a doçura habitual”.
Conhece-se um homem sabendo “como ele teve o doce prazer de abraçar a Morte”. E em
“Gonzaga de Sá” como em “Feiras e Mafuás” surge a espera “da doce morte, padroeira dos
aflitos e desesperados”. A voz de Gonzaga é “pausada, cheia de mansuetude e bondade”. Ele
queria dar à massa popular um ideal de coragem que “corrigisse a bondade e a doçura
deprimente”.Mas, depois de um rompante de revolta, define-se: “Não, a maior força do
mundo é a doçura”. Em “O homem que sabia javanês”, aparece um preto africano cujo rosto
dava “uma aguda impressão de velhice, doçura e sofrimento” e nas paredes do velho casarão
havia “molduras douradas e doces perfis de senhoras”. “Clara do Anjos era doce e meiga,
inocente e boa” e o carneirinho de São João “olhava doce tudo que via fora da estampa”
(H.S.). Ao russo Bogolóff, o matuto chefe de Polícia parece “um doce homem simples”, cujas
barbas possuem “doçura patriarcal”; o seu “ar era doce, bom e feliz” (N.N), entre outras.
As referências apontadas demonstram um amor nostálgico pelas coisas e pessoas,
não seria bem amor, pois Lima Barreto relutou muito em tratar do amor em suas obras; o mais
acertado talvez seja um sentimento de humanidade. Sobre a presença dessa doçura incontida
em Lima Barreto, Cavalcante Proença afirmou acertadamente: “A translação de sentido que se
opera em doçura, identificando-se com bondade, transborda para o tato, para as sensações de
carícia e maciez, com sinestesias curiosas” (PROENÇA apud BARRETO, 1956, v. XIII,
p. 31). Para exemplificar essa “translação de sentido”, eis algumas referências: O doutor
216
Campos quer definir a amizade de Policarpo: “Agora, a sua voz era doce, flexível, sutil” e “as
palavras caíam-lhe da boca, adocicadas, dobravam-se, coleavam”. Duquesa era uma pata
branca de “penas claras e macias ao olhar”. Há “muita árvore e muita sombra doce e amiga”.
“Verdura tenra de couves e repolhos”. “Olhei o céu tranqüilo, doce, de um azul muito fino”
(D.I.). “Ainda se houvesse árvores, sombra que amaciasse aquela manhã quente” (H.S.). Um
domingo em Botafogo “o ar era macio e docemente o sol faiscava nas calçadas” e a
“penumbra é algodoada e nevoenta”. “A luz macia da manhã fazia o mar aveludado”. “Olhei
um instante a seda azul do mar”. A capa do crepúsculo “roçava nas minhas faces, tocava-me
nas mãos como uma pelúcia” (I.C.). Isaías avista pela janela os relvados do jardim “verdes e
macios, de uma macieza de tapete e de um verde que afagava o olhar” (I.C.).
42
Quanto à translação de sentido em Leon Tolstói: “No momento em que o carro
deslizava maciamente por cima da palha estendida debaixo das janelas, [...]” (TOLSTÓI,
1993, v. I, p. 427); “O tempo estava suave, uma atmosfera de outono, mas chuvosa”
(TOLSTÓI, 1993, v. I, p. 485); “e na luz brilhante do sol podiam distinguir-se os objetos a
distância como cobertos por uma camada de verniz”( TOLSTÓI, 1993, v. I, p. 485); “Saindo
do bosque, apareceu-lhe diante dos olhos a vastidão dos campos, imenso tapete de veludo
verde, uniforme, onde se viam, aqui e ali, pequenas manchas de neve” (TOLSTOI, 1993, v. II,
p. 145).
A sentimentalidade presente nos russos é avaliação crítica corrente que se firmou
com a publicação do “Le roman russe” (1886), de E. M. de Vogué, na França, isto é, “o
sentimentalismo eslavo” revertido em sinceridade e simpatia humana, ou ainda “a religião do
sofrimento”. Procurar-se-á destacar algumas referências com o objetivo de demonstrar como
se apresenta essa sentimentalidade em Leon Tolstói. Em primeiro lugar, encontra-se em
“Guerra e Paz” as seguintes passagens: “E acrescentou que Sua Majestade se tinha dignado
testemunhar ao Barão Funke beaucoup d’estime, enquanto o olhar novamente se lhe velava de
tristeza” (TOLSTÓI, 1993, v. I, p. 359); “O seu bondoso rosto macerado pelas lágrimas só
refletia receio e inquietação” (p. 369); “Monsieur Pierre não sabia a quem prestar atenção;
42
Mais algumas referências a respeito dessa “translação de sentido”: As vitrinas “atapetadas de jóias e tecidos
macios”. A amante do deputado, grandes quadris e seios altos, deu a Isaías Caminha a “impressão de veludo,
de pelúcia, de coxim macio e acariciante” (I.C.); “Lá fora o dia era lindo, os ares macios, o mar infinito e
melancólico, as montanhas a se recortar num céu de seda”. As francesas vinham fazer a vida no Brasil e até
“as pedras do cais tornavam-se macias”. No dia do enterro do compadre do Gonzaga de Sá “a luz tinha mais
doçura, as fachadas mais beleza, o calçamento não era áspero”. Os namorados conversam, aos pares, “com
uma alegria, não sei quê de meloso nos seus olhares”. Quando Numa saiu “a mulher despiu-se com vagar e
doçura”. O médico de Gedeão tinha “o olhar doce” e falou “com muita macieza de voz” (N.N). “Zeca, um
pretinho de pele de veludo, macia de acariciar o olhar”. A casa do professor “era uma agrura, uma dor
amaciada pela música”. O professor Maximiliano gostava “das passagens suaves, das inflexões doces”, e Cló
entra “linda, fresca, veludosa”, Clódia de “sedosa alvura”. Floc vinha alegremente das reuniões, “no seu olhar
brilhavam cousas fugidias e doces” (I.C.).
217
fitava-os a todos, sorrindo. O seu sorriso não era como o das demais pessoas, [...]: ficava com
o seu quê de infantil, de pobre-diabo, um pouco estúpido até, com o ar de quem quer pedir
perdão” (p. 374); “O príncipe André olhou-o com bondade, mas, apesar disso, no seu olhar
amável e amistoso sentia-se-lhe a superioridade” (p. 383); “O seu bondoso rosto macerado
pelas lágrimas só refletia receio e inquietação” (p. 369); “[...] a senhora que o perseguia
sorria-lhe com uma amabilidade enternecedora e, para o não deixar afastar-se dela, pegava-
lhe, inclusive num braço.” (p. 369); “Por que não posso, como há três meses, colher novas
forças morais no teu olhar, tão meigo, tão calmo e tão penetrante, olhar de que eu tanto
gostava e que julgo ainda ver diante de mim enquanto te vou escrevendo” (p. 441);
Os seus grandes olhos esplendiam de bondade e de doçura. Iluminavam-lhe o rosto
magro e doentio, embelezando-o. O irmão quis pegar na imagem, mas ela deteve-o.
André compreendeu, benzeu-se também e beijou-a. Havia nele uma expressão ao
mesmo tempo enternecida – estava comovido – e trocista. (TOLSTOI, 1993, v. I,
p. 455).
Ao dizer estas palavras, levantou-se, aproximou-se da irmã, e, inclinando-se para
ela, beijou-a na testa. Os seus belos olhos incendiaram-se e neles brilhou um
invulgar lampejo de lucidez e bondade. Não era na irmã que o seu olhar se fixava,
mas nas trevas, para além da porta aberta por detrás dela. (TOLSTOI, 1993, v. I,
p. 455).
Em “Ana Karênina”, assim se refere a Kitty: “com aquele seu ar de menina, cheia de
candura e bondade” (p. 36); “[...] seguindo Levine com os olhos e sorrindo, doce e
carinhosamente, como se tratasse de um irmão querido” (p. 38); “Levine reconheceu que
aquele era um homem simpático, agradável e bondoso”; “Ninguém se enfadava com isso,
todos eram pessoas muito amáveis e bondosas, e tudo corria perfeitamente entre eles”
(p. 353); “O extraordinário é que naquele dia Levine tinha a impressão de ver a alma das
pessoas por pequenos pormenores, até então imperceptíveis, comprovar que todos eram
bons”; “Isso se via pela maneira como falavam com ele e como o olhavam carinhosa e
afetuosamente, até mesmo as pessoas que o não conheciam” (p. 353); “Junto ao leito da
mulher agonizante, pela primeira vez na sua vida se abandonara a esse sentimento de
comiseração pelas dores alheias contra que sempre lutara como se luta contra uma fraqueza
perigosa” (p. 369); “Quanto à recém-nascida, essa inspirava-lhe mais do que piedade:
verdadeira ternura.” (p. 369); entre outras.
218
APÊNDICE C
REFERÊNCIAS SOBRE A NATUREZA EM LIMA BARRETO E
LEON TOLSTÓI
Ao desviarmos o foco da relação vida e obra, abre-se a perspectiva de ampliarmos
essa influência a Leon Tolstói e a J.J. Rousseau, conforme já se fez referência anteriormente,
à página 22, pois ambos são escritores que constam na biblioteca limana e Lima manifestou
abertamente sua admiração pelos mesmos. Vê-se que Rousseau está duplamente presente e é
parte integrante das leituras de Lima, tanto diretamente quanto indiretamente, através de Leon
Tolstói. E, ao se fazer referência a Rousseau, a primeira idéia que surge é a relacionada à
natureza, idéia essa a qual nenhum outro escritor nos remete de modo tão vigoroso. Daí, o fato
de que tanto em Lima Barreto quanto em Leon Tolstói, ou vice-versa, o papel desempenhado
pela natureza ocupa um lugar significativo na narrativa, o que pode ser conseqüência da
grande admiração de ambos por Rousseau e, automaticamente, resultado da vasta leitura de
suas obras. A presença da natureza na obra de Lima Barreto é de tal forma impressionante que
se podem exemplificar todas as passagens com apenas uma referência: a palmeira retratada no
romance “Gonzaga de Sá” que chega a ser uma personagem barretiana:
Olhei ainda uma vez a altiva elegância da árvore, lá, muito no alto, pairando
sobre toda a cidade, e a beijar as nuvens radiantes. Há mais de vinte anos sofria a
violência inconstante dos ventos; há mais de vinte anos escapava à raiva traiçoeira
do raio; há mais de vinte anos suportava o rugido inofensivo do trovão... Todas essas
negações, e as outras vindas da terra dura, granítica e pobre, fizeram-na maior, mais
airosa, deram-lhe mais orgulho, e atiraram-na aos ares altos. Hoje, plana sobre tudo,
sobre a cidade, sobre a ingratidão do granito e olhará compassiva e desdenhosa as
pobres e cuidadas árvores que enfeitam as ruas. (BARRETO, 1956, v. IV, p. 95).
Constata-se que a palmeira assume uma personalidade própria, majestosa,
indiferente e acima do destino dos homens, em seguida: “A palmeira, em pé, muito firme,
adormecera” (p. 98). Outra passagem que retrata a presença da natureza na obra barretiana e
serve de contato com o estilo literário de Leon Tolstói, refere-se ao momento da decisão de ir
ou não para o Rio de Janeiro por Isaías Caminha:
Passava por um largo descampado e olhei o céu. Pardas nuvens cinzentas
galopavam e, ao longe, uma pequena mancha mais escura parecia correr engastada
nelas. A mancha aproximava-se e, pouco a pouco, vi-a subdividir-se, multiplicar-se;
219
por fim, um bando de patos negros passou por sobre a minha cabeça, bifurcado em
dous ramos, divergentes de um pato que voava na frente, a formar um V. Era a
inicial de “Vai”. Tomei isso como sinal animador, como bom augúrio do meu
propósito audacioso. (BARRETO, 1956, v. I, p. 48).
Observa-se que ocorre uma comunicação entre os personagens e a natureza
circundante, uma troca de sensações, de sentimentos, como se o comportamento de um
automaticamente influenciasse no outro. Essa comunicação dir-se-á que acontece com Levine,
pois o mesmo quando indeciso quanto a que atitude tomar: casar-se ou não com Kitty, passa
uma noite ao relento como se estivesse em busca de algo: “Que beleza!”, pensou, olhando
para uma estranha concha, como que de nácar, formada pelas brancas nuvens algodoadas que
se detinham no zênite, por cima de sua cabeça. “Que belo é tudo nesta magnífica noite!
Quando se teria formado essa concha? Há momentos olhei para o céu e não havia nada na
abóbada celeste a não ser as duas faixas brancas. Foi assim que imperceptivelmente mudou
meu conceito da vida” (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 248); “Estava a levantar-se um ventinho e
tudo tomara um aspecto cinzento e lúgubre. Sobrevinha esse momento sombrio que antecede,
geralmente, o nascer do sol, a vitória definitiva da luz sobre as trevas” (p. 248).
Ergueu os olhos para o céu à espera de voltar a ver a linda concha que lhe parecera
simbolizar os sonhos daquela noite. Desaparecera. Transformara-se misteriosamente
num vasto tapete de nuvens de algodão que atapetava já mais de metade do
firmamento. Ao seu olhar interrogativo, o céu, que ia ficando azul, respondia com
um altivo silêncio. (TOLSTOI, 1993, v. II, p. 249).
Essa comunicação em Leon Tolstói se explicita na seguinte passagem:
“E, efetivamente, mal pronunciou essas palavras, de repente, como se o sol se escondesse
atrás das nuvens, o rosto de Kitty anuviou-se, e uma ruga se lhe desenhou na testa. Levine
sabia que essa alteração no rosto de Kitty correspondia a uma concentração do pensamento”
(TOLSTOI, 1993, v. II, p. 37), constata-se que o estado de espírito de Kitty tem por parâmetro
as manifestações da natureza, sendo essa uma entre tantas outras referências encontradas, que
não serão relacionadas todas, pois acredita-se desnecessárias. Os recursos estilísticos
apontados nos escritores se repetem por todas as obras, tanto em Lima Barreto quanto em
Leon Tolstói.
220
APÊNDICE D
REFERÊNCIAS RETIRADAS DO ROMANCE GUERRA E PAZ
DE LEON TOLSTÓI
O mesmo processo também se observou em Guerra e Paz de Leon Tolstói,
conforme se demonstrará as referências que se seguem:
“O príncipe não respondeu, mas ela, lançando-lhe um olhar significativo, aguardava,
sem dizer palavra, que ele dissesse qualquer coisa. O príncipe Vacili franziu as sobrancelhas”
(TOLSTOI, 1993, v. I, p. 360).
Ana Pavlovna disse “erguendo os olhos cismadores” (p. 360).
“Pedro era, realmente, um pouco maior que as outras pessoas, mas o receio que se
pintara no rosto de Ana Pavlovna podia ser antes motivado por esse olhar ao mesmo tempo
tímido e penetrante, observador e franco, que o distinguia de todos os demais convidados”
(p. 363).
“Trocando um olhar de pânico” (p. 363).
“Pedro resmungou uma frase incompreensível enquanto com os olhos continuava à
procura de qualquer coisa. Teve um sorriso jovial ao cumprimentar a princesinha, como se ela
fosse um conhecimento íntimo, e aproximou-se da tia” (p. 363).
“Já o seguindo atentamente com olhos [...] e por isso abria muito os olhos, como
uma criança diante de uma loja de brinquedos. Só receava perder qualquer sábia observação
que lhe fosse dado ouvir” (p. 364).
“A princesa Helena sorriu; levantou-se, conservando nos lábios esse sorriso imutável
de mulher impecavelmente bela com que entrara no salão” p.365
“André Bolkonski : tudo nele, desde o olhar lasso e enfadado” p.368
“O príncipe André franziu as sobrancelhas e desviou o rosto. Pedro, que desde o
momento em que André entrara no salão não mais tinha deixado de o seguir com o seu olhar
alegre e amistoso, aproximou-se e pegou-lhe no braço” (p. 368).
“Pedro contemplou esta beldade, ao vê-la passar diante de si, com olhos onde havia
admiração e quase receio.” (p. 369).
“O seu bondoso rosto macerado pelas lágrimas só refletia receio e inquietação”
(p. 369).
221
“[...] a senhora que o perseguia sorria-lhe com uma amabilidade enternecedora e,
para o não deixar afastar-se dela, pegava-lhe, inclusive num braço.” (p. 369).
“O príncipe André pôs-se a sorrir olhando nos olhos Ana Pavlovna” (p. 371).
“Com tantas intrigas, tantas violência, tantos exílios, tantos suplícios, não tarda que
a sociedade francesa, a alta sociedade, claro está, se veja completamente aniquilada e para
sempre, e então...” (p. 372).
“Via-se muito bem que o visconde lhe não agradava e que, sem olhar para ele, era
ele que visava como seu adversário” (p. 372).
“Pedro olhou triunfantemente os seus interlocutores através de suas lunetas”
(p. 373).
“– Sim, sim, as idéias de pilhagem de assassínio, de regicídio” (p. 374).
“O príncipe André, de olhos fechados, parecia fatigado e sonolento” (p. 377).
“Tinha adotado um tom de amuo e fazia um trejeito que lhe dava um ar já não
alegre, mas quase animal, um ar de um pequenino esquilo” (p. 380).
Subitamente, o arzinho de esquilo furioso que se pintara no rosto da princesa
converteu-se num medo impressionante, digno de piedade. Lançou, furtivamente,
com os seus belos olhos um rápido olhar ao marido e teve essa expressão tímida e
submissa de um cão batido que foge com a cauda entre as pernas. (p. 381).
“O egoísmo, a vaidade, a tolice, a nulidade em tudo, aí tens a mulher quando se
mostra tal qual é.” (p. 382).
“tinha lido tudo, sabia tudo, compreendia tudo” (p.383).
“O príncipe André olhou-o com bondade, mas, apesar disso, no seu olhar amável e
amistoso sentia-se-lhe a superioridade” (p.383).
“Dolokov era de estatura meã, frisado, com olhos azuis-claros” (p.385).
“No seu conjunto, sobretudo com os seus olhos decididos, impudentes e inteligentes,
dava uma impressão que obrigava as pessoas a fitá-lo” (p.385).
Nicolau e a sobrinha Sônia. Esta era uma moreninha magra, uma miniaturazinha,
com uns olhos doces, sombreados por longas pestanas, e uma farta trança negra que
lhe dava duas voltas à cabeça; [...]; a ligeireza dos seus passos, a languidez e a
flexibilidade dos seus braços, os seus modos um pouco ardilosos e reservados
davam-lhe ares de um lindo felino ainda não domesticado, mas prometendo vir a ser
um bichano encantador. (p.393).
“No seu olhar havia uma adoração tão apaixonada que ninguém se iludiria com
aquele sorriso. Toda a gente via que se o bichano ali estava tão sossegado era apenas para,
222
mal saísse do salão, logo pôr-se a correr e a saltar com o cousin, tal qual Bóris e Natacha.
(p.393).
“Envolveu num olhar a prima e a filha da visita; ambas lhe dirigiram um sorriso de
aprovação” (p.394).
“A gatinha que o comia com os olhos, parecia pronta a brincar e a mostrar a sua
natureza felina” (p.394).
“ No meio da sua conversa com Júlia, deteve os olhos em Sônia. Esta lançou-lhe um
olhar cheio de amargura, retendo a custo as lágrimas, embora ainda lhe flutuasse um sorriso
nos lábios e levantando-se saiu.” (p.394).
“E todos eles como um bando de pássaros assustados, bateram as asas e despediram”
(p.399).
“ A condessa, de lágrimas nos olhos, ficou calada e pensativa” (p.400).
“O filho, de olhos baixos, seguia-a sem dizer palavra” (p.402).
“O filho deu-se conta de que, repentinamente, os olhos da mãe exprimiam uma
profunda aflição, e um ligeiro sorriso lhe aflorou aos lábios” (p.402).
“[...] sem parecer notar o olhar frio e ultrajante que ele lhe lançava” (p.402).
“O príncipe Vacili olhou para ela e depois para Bóris, como quem interroga, sem
saber o que há de fazer”. (p.402).
“Pedro sorria, e seu sorriso bom parecia traduzir o receio de que o interlocutor se
descaísse com qualquer palavra distintamente, com nitidez e secura, fitando-o nos olhos”
(p.406).
“ Sônia parecia outra, a gatinha que ela era reanimou-se, os olhos faiscaram-lhe, dir-
se-ia pronta a saltar sobre as suas patinhas elásticas, a correr atrás do novelo de lã, coisas
próprias da sua natureza” (p.419).
“ – Ah! O nosso paizinho! Que águia que ele é!” (p.421).
“ Também os olhos não eram os seus olhos habituais: havia neles ora uma expressão
escarninha e cínica, ora uma expressão aterrorizada” (p.424).
“ Lançou um olhar mau ao interlocutor” (p.426).
“No momento em que o carro deslizava maciamente por cima da palha estendida
debaixo das janelas” (p.427).
Nessa cadeira perfilava-se a majestosa figura do pai, o Conde Bezukov, muito sua
conhecida, coberto até à cintura por uma manta verde-claro e os cabelos brancos, em
que havia qualquer coisa de leonino, a coroar-lhe a testa ampla, e as características
linhas daqueles rosto amarelento sulcado de rugas. (p.431).
223
Quando Pedro se aproximou, o conde olhou-o fixamente, mas com um olhar de que
ninguém seria capaz de discernir o significado e a intenção. Ou esse olhar não queria
dizer absolutamente nada além de significar que enquanto os nossos olhos estão
abertos para algures têm de olhar, ou então muito queriam dizer. Pedro ficou imóvel
sem saber o que fazer, interrogando com o olhar a sua cicerone. Esta teve um rápido
movimento de olhos, indicando-lhe a mão do moribundo, e com a boca mimou um
beijo. (p. 433.
“Olhou para o conde. Este tinha os olhos pousados no lugar onde se encontrava a
figura de Pedro antes de se sentar” (p.433).
“O olhar e a fisionomia do moribundo traduziam impaciência” (p.433).
O conde viu o olhar aflito que Pedro teve para o braço sem vida, ou outro qualquer
pensamento perpassou nesse instante pela cabeça do moribundo: olhou para seu
próprio braço, que já não lhe obedecia, depois para a expressão aflitiva de Pedro, em
seguida de novo para o braço e pelo seu rosto passou um débil e doloroso sorriso,
que destoava da sua fisionomia, parecendo, por isso mesmo, escarnecer da sua
própria impotência. (p.434).
“lhe velavam o fulgor do olhar brilhante, inteligente e sempre jovem” (p.439).
“disse-lhe severamente, embora com um olhar meigo e cuidadoso” (p.439).
“A jovem princesa fitava, assustada, os olhos brilhantes do pai muito perto da sua
cabeça” (p.440).
Os olhos da jovem turvavam-se, não via, não ouvia mais nada, para ela nada mais
existia além daquele rosto seco e severo muito perto do seu, daquele hálito e daquele
aroma, e o seu único desejo seria fugir o mais depressa possível do gabinete para,
sozinha, resolver com tranqüilidade o problema que o pai lhe propunha. (p .440).
“A princesa Maria voltou para o seu quarto, com aquele ar triste e receoso que
raramente a abandonava e que ainda mais feios tornava os seus traços doentios e pouco
regulares: sentou-se à sua mesa de trabalho, coberta de retratos, miniaturas, cadernos e livros”
(p.441).
“Por que não posso, como há três meses, colher novas forças morais no teu olhar,
tão meigo, tão calmo e tão penetrante, olhar de que eu tanto gostava e que julgo ainda ver
diante de mim enquanto te vou escrevendo” (p.441).
“Os seus olhos sempre tristes, fixavam o espelho com uma expressão
particularmente desencantada. “Tudo para me lisonjear”, pensou, e afastou os olhos
do espelho, prosseguindo na leitura da carta. Realmente, Júlia não lisonjeava a
amiga: esta tinha, com efeito, uns olhos grandes, tão profundos e tão luminosos que
dir-se-ia irradiarem, de vez em quando, quentes raios de luz, olhos tão belos que a
cada momento, apesar da fealdade dos traços do seu rosto, lhe emprestavam mais
224
atrativos que se ela fosse, de fato, bonita. A princesa nunca seria, porém, capaz de
descobrir esta bela expressão do seu olhar, essa expressão que lhe vinha aos olhos
quando ela menos sonhava (p.441).
“Maria olhou para o irmão, e no meio das suas lágrimas deteve nele o quente e suave
olhar cheio de enternecimento dos seus grandes olhos luminosos, lindíssimos naquele
momento” (p.446).
“Por debaixo das suas espessas sobrancelhas ia lançando ao filho olhadelas
matreiras” (p.447).
“Por sobre as espessas sobrancelhas proeminentes as pessoas presentes, fixando-se
na mulher do príncipe André” (p.449).
“E rompeu num riso seco, frio e desagradável, o riso que tinha sempre, um riso só da
boca, não dos olhos” (p.450).
“Tu bem sabes que fui sempre um pouco selvagem, e agora ainda mais” (p.453).
“Olhava para o irmão timidamente e com os olhos suplicantes” (p. 454).
“A princesa Maria benzeu-se, beijou a imagem e entregou-a ao irmão” (p. 454).
Os seus grandes olhos esplendiam de bondade e de doçura. Iluminavam-lhe o rosto
magro e doentio, embelezando-o. O irmão quis pegar na imagem, mas ela deteve-o.
André compreendeu, benzeu-se também e beijou-a. Havia nele uma expressão ao
mesmo tempo enternecida – estava comovido – e trocista. (p. 455).
“A princesa Maria corou, calando-se, como se se sentisse culpada” (p. 455).
“e lamentara-se de sua sorte, do sogro, do marido” (p. 455).
Ao dizer estas palavras, levantou-se, aproximou-se da irmã, e, inclinando-se para
ela, beijou-a na testa. Os seus belos olhos incendiaram-se e neles brilhou um
invulgar lampejo de lucidez e bondade. Não era na irmã que o seu olhar se fixava,
mas nas trevas, para além da porta aberta por detrás dela. (p. 455).
“Mademoiselle Bourienne: sorriu graciosamente, [...] o seu sorriso simples e
entusiasta”. (p. 455).
“Lá fora era noite, uma noite sombria de outono” (p. 456).
“ O velho príncipe pousou a pena, e, como não compreendesse, fitou no filho um
olhar severo” (p. 457).
“Agarrou o filho com a mão ossuda e delgada, abanou-o, olhando-o, fixamente, com
as suas pupilas vivas, como se o quisesse atravessar de lado a lado. Depois, de novo, soltou
uma gargalhada fria” (p. 457).
225
“O velho continuou a dobrar e a lacrar a carta, manejando o lacre, o sinete e o papel
com a sua agilidade habitual” (p. 457); “sua caligrafia alongada, cerrada e ágil” (p. 457).
“O príncipe André, com todo o cuidado, afastou-a, examinou o estado da mulher e
fê-la assentar, docemente, numa poltrona” (p. 458).
“–Adieu, Marie – disse p/ a irmã em voz baixa; beijou-a, pegando-lhe nas mãos, e
afastou-se em passos rápidos” (p. 458).
II PARTE
“Via-se bem que admirava seu regimento, que estava orgulhoso dele e que lhe dera a
própria alma” (p. 462).
Os traços do Capitão exprimiam o desassossego do estudante a quem o professor
pergunta uma lição que ele não estudou. O nariz vermelhusco, natural conseqüência
de certa intemperança, cobrira-se-lhe de manchas e a boca tremia-lhe. O comandante
do regimento olhava-o dos pés à cabeça enquanto, ele, meio sufocado, se
aproximava, encurtando o passo, pouco a pouco. (p. 463).
“Dolokov retificou imediatamente a posição de sua perna, na fileira, e fixou o
general com os seus olhos brilhantes e escaninhos” (p. 464).
“O regimento sacudiu-se, como um pássaro que espeneja as asas, e ficou imóvel”
(p. 464).
“Pela maneira como o general comandante do regimento saudava com sua espada o
general-em-chefe, comendo-o com os olhos, sempre hirto e correto [...], (p. 465).
“No mesmo instante em que Kutuzov voltava a cabeça, mimava ele uma máscara
apropriada à circunstância e assumia imediatamente o ar mais sério, mais respeitoso e mais
inocente deste mundo” (p. 466)
“Os brilhantes olhos azuis fixaram-se no general-em-chefe com a mesma arrogância
com que se tinham pousado no comandante do regimento, como se Dolokov quisesse desse
modo rasgar o véu de convenções que tanto distanciava um general-em-chefe de um simples
soldado” (p. 467).
“– O único favor que peço, Mui Alta Excelência – disse ele, na voz sua voz lenta,
sonora e firme – é que me seja permitido apagar a minha falta e mostrar a minha dedicação ao
Imperador e à Rússia” (p. 467).
226
Kutuzov fez meia volta. Houve nos seus olhos um sorriso no gênero daquele que por
eles perpassara depois da sua entrevista com o capitão Timokine.Franziu as
sobrancelhas como se com isso quisesse significar que tudo quanto Dolokov lhe
tinha dito, que tudo quanto ele próprio lhe poderia ter respondido era coisa desde há
muito tempo, muito tempo, conhecida, que tudo isso o enfadava grandemente e que
não era nada disso que seria preciso dizer. (p. 467).
“Embora ainda se não tivesse passado muito tempo depois que André deixara a
Rússia, já tinha mudado bastante. Os seus traços fisionômicos, os seus gestos, o seu andar,
não conservavam já quase nada daquele ar afetado de outrora, do seu falso ar de fadiga e de
indolência.” (p. 472).
“No seu sorriso e no seu olhar havia mais alegria e sedução” (p. 472).
O príncipe André gozava de duas reputações absolutamente opostas. Uns – a
minoria – consideravam-no um ser diferente de todos os demais, esperavam dele
grandes coisas, ouviam-no, admiravam-no e imitavam-no: e com estes ele era
simples e amável. Os outros – a maioria – não gostavam dele, consideravam-no um
indivíduo inchado de orgulho, com um caráter frio e desagradável. Mas de tal modo
André se comportava para com eles que estes o estimavam e até mesmo o temiam.
(p. 473).
“O general desconhecido mediu com um olhar de desdém Kozlovski, que era de
pequena estatura, como que surpreendido de o não terem reconhecido” (p.473).
“O general franziu as sobrancelhas e os lábios tremeram-lhe de cólera” (p. 473).
“Leva-o a passear meu velho! – continuou, com essa ternura fraterna e jovial que os
rapazes, quando se sentem felizes, testemunham a toda a gente“ (p. 476).
“Assim que viu Rostov, o rosto iluminou-se-lhe. Sorriu alegremente e piscou-lhe o
olho!” (p. 476).
“Rostov com o mesmo ar amistoso e jovial que lhe andava sempre no rosto
(p. 477).
Rostov olhou para a janela e viu Denissov, que regressava a casa. Denissov era um
homenzinho vermelhusco de cara, com uns olhos muito negros e brilhantes, de
bigodes e cabelos desgrenhados. Trazia o dólmã desabotoado e as pregas das largas
calças flutuavam-lhe nas pernas; a barretina, toda amarrotada, caía-lhe para a nuca.
Macambúzio, de cabeça baixa, aproximou-se da escada. (p. 477).
“Depois ficou calado, fitando Rostov alegremente, com os olhos pretos cintilantes”
(p. 478).
“O tenente nunca olhava direito para o interlocutor, os olhos giravam continuamente
de um lado para o outro” (p. 478).
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“Rostov sentiu pousado nele o olhar de Denissov, ergueu os olhos e voltou a abaixá-
los. Todo o sangue das veias, que lhe estava parado na garganta, subiu ao rosto. Quase não
podia respirar” (p. 480).
“O tenente, como de costume, deixou errar os olhos, sem o fixar, e de repente,
pareceu divertir-se” (p. 482).
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