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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Centro Biomédico
Instituto de Medicina Social
MARIA MOSTAFA
Professores na encruzilhada entre o público
e o privado: o curso Gênero e Diversidade na
Escola.
Rio de Janeiro
2009
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MARIA MOSTAFA
Professores na encruzilhada entre o público e o
privado: o curso Gênero e Diversidade na Escola
Dissertação apresentada como
requisito parcial para obtenção do
título de Mestre, ao Programa de
Pósgraduação em Saúde Coletiva,
do Instituto de Medicina Social da
Universidade do Estado do Rio de
Janeiro. Área de concentração:
Ciências Humanas e Saúde.
Orientador: Prof. Dr. Fabíola Rohden
Rio de Janeiro
2009
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C A T A L O G A Ç Ã O N A F O N T E
U E R J / R E D E S I R I U S / C B C
M915 Mostafa, Maria.
Professores na encruzilhada entre o público e o privado: o curso Gênero e
diversidade na escola / Maria Mostafa. – 2009.
125f.
Orientador: Fabíola Rohden.
Dissertação (mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de
Medicina Social.
1. Formação de professores – Teses. 2. Valores sociais Teses. 3. Políticas públicas
Teses. 4. Relações de gênero Teses. 5. Relações sociais – Teses. 6. Orientação sexual –
Teses. I. Rohden, Fabíola. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de
Medicina Social. III. Título.
CDU
37.043
____________________________________________________________________________
___
Para as minhas irmãs Joana e Laura.
Agradecimentos
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj)
pela bolsa de estudos que tornou possível a realização desse trabalho.
À professora Fabíola Rohden pela orientação e pela oportunidade de me
aproximar do GDE.
Aos professores Sérgio Carrara e José Maurício Arruti pelos ricos
apontamentos da Qualificação.
À minha mãe, Solange Mostafa, por toda a ajuda e o incentivo, pela
disponibilidade em me atender em qualquer questão a qualquer momento e
pela generosidade que marca a sua prática docente, da qual pude desfrutar na
condição especial de filha.
Ao meu pai, pelo suporte tecnológico “top de linha” e pelas conversas no
msn que me acalmaram nos momentos mais aflitos.
Às minhas irmãs Joana e Laura, pela estrutura emocional e
cumplicidade em toda a minha vida. Obrigada por nunca descuidarem da
irmãzinha caçula.
À Cláudia Ribeiro, grande amiga proporcionada pelo IMS, e reforçada
nas voltas da Uerj para Niterói, por ter sido uma pessoa com quem eu pude
compartilhar muita coisa nesses dois anos, inclusive a orientadora!
Aos amados de sempre, que entenderam os meus sumiços e
continuaram presentes: Nelson, Fernanda, Morgana, Maya, Juliana, Lívia,
Bruno e Dani.
Aos professores do Colégio Kattenbach por terem feito minha vida
alegre e muito divertida nas horas mais desesperançosas. À Sabine
Kattenbach, coordenadora, pela amizade verdadeira e cuidadosa. À Elza
Kattenbach, diretora (coincidentemente cursista do GDE) pela acolhida
generosa, pela amizade e pela revisão dessa dissertação. Obrigada
Kattenbach!
Aos colegas de turma do mestrado, pelo compartilhamento solidário de
informações e pelos chopps ocasionais.
Resumo
A presente pesquisa busca analisar os conflitos de valores em uma política
pública para a diversidade na escola. Para tanto, inicialmente é feita uma
discussão teórica que problematiza a questão dos valores nas políticas
públicas. A partir dessa discussão e também da reflexão sobre as questões de
gênero e sexualidade nas sociedades modernas, o curso piloto Gênero e
Diversidade na Escola, realizado em 2006, é analisado. O curso se destinou à
atualização de 1.200 professores do e do ciclo (antigas a ries) do
Ensino Fundamental da rede pública do país nas temáticas de gênero,
sexualidade e orientação sexual e relações étnico-raciais, tendo sido elaborado
numa parceria entre a Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, o
Ministério da Educação, a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da
Igualdade Racial, o Conselho Britânico e o Centro Latino Americano em
Sexualidade e Direitos Humanos. O curso, por ter sido oferecido a distância e
ambientado em uma plataforma virtual de aprendizagem, gerou diversos
materiais. Para essa pesquisa foram utilizados principalmente os relatos dos
cursistas e dos professores on-line nos runs de discussão de caso. A partir
desses relatos observou-se que a discussão do assunto sexualidade
apresentou alguns conflitos entre os valores promovidos pelo curso e os
valores apresentados pelos cursistas. Essa conflito se tornou ainda mais
evidente ao se comparar as discussões sobre sexualidade com as discussões
dos temas ligados ao gênero e à questão racial, que fluíram com uma menor
número de entraves. A concepção de sexualidade que o curso promoveu se
pautou nas ciências sociais, enquanto a concepção dos cursistas esteve mais
de acordo com uma concepção de moral e ciência mais tradicional e fechada.
Palavras-chave: Políticas Públicas; Sexualidade; Relações de Gênero;
Formação de Professores; Diversidade.
Title: Teachers at the crossroads between public and private: the Gender and
Diversity at School course
Abstract
This research seeks to analyze the conflict of values in public policy for diversity
in school. Thus, initially there is a theoretical discussion that problematizes the
issue of values in public policy. From that discussion and reflection on issues of
gender and sexuality in modern societies, the ongoing pilot Gender and
Diversity in Schools, held in 2006, is analyzed. The course is intended to update
1200 teachers of the 3rd and the 4th cycle (former 5th through 8th grades) in
the public elementary school in the country on issues of gender, sexuality and
sexual orientation and ethnic-racial relations, and was developed in partnership
between the Special Secretariat for Policies for Women, the Ministry of
Education, the Special Secretariat for Policies to Promote Racial Equality, the
British Council and the Latin American Center on Sexuality and Human Rights.
The course, being offered by distance in a virtual learning platform, has created
various materials. For this research were mainly used the online teachers
forums for discussion of case. From these reports it was noted that discussion
of sexuality issue presented some conflict between the values promoted by the
course and the values of the students. This conflict became even more evident
when comparing the discussions about sexuality with the discussions of the
issues related to gender and race, which flowed with a smaller number of
barriers. The conception of sexuality that the course promoted is guided by the
social sciences, while the conception of sexuality os the students was more in
line with morality and science with a more traditional and closed point of view.
Keywords: Public Policy; Sexuality; Gender Issues; Teacher Training;
Diversity.
Sumário
I – Introdução.......................................................................................................7
II - Gênero, Sexualidade e Individualismo: reflexões teóricas......................12
2.1 Políticas públicas e individualismo.................................................................12
2.2 A importância das relações de gênero e sexualidade nas sociedades
modernas.............................................................................................................22
2.2.1 Sexualidade e Biopoder...................................................................22
2.2.2 Habitus e gênero .............................................................................28
III - O curso Gênero e Diversidade na Escola ................................................35
3.1 Sexualidade e direitos humanos....................................................................35
3.2 Contexto da elaboração do curso .................................................................39
3.3 Descrição do curso........................................................................................44
IV - Valores em conflito.....................................................................................57
4.1 Descrição metodológica.................................................................................57
4.2 A recepção do curso: análise dos fóruns de discussão de caso...................60
4.3 Os relatórios ................................................................................................111
V- Considerações Finais.................................................................................116
Bibliografia.......................................................................................................121
I – Introdução
Em 2006, foi realizado o curso piloto Gênero e Diversidade na Escola
(GDE) visando a atualização de 1.200 professores do e do ciclo (antigas
a séries) do Ensino Fundamental da rede pública do país nas temáticas
de gênero, sexualidade e orientação sexual, e relações étnico-raciais.
As instituições responsáveis pelo desenvolvimento e execução do curso-
piloto foram: Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos do
Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(CLAM-IMS/UERJ); Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM);
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir);
Ministério da Educação (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade - Secad/MEC e Secretaria de Ensino a Distância - Seed/MEC) e
British Council.
O desenho do GDE se iniciou em 2004, quando a Secretaria Especial de
Políticas para Mulheres articulada com o British Council
1
, estabeleceu a
necessidade de um projeto de formação de profissionais de educação na
temática de gênero. Após essa primeira resolução, o Ministério da Educação e
a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da
Presidência da República foram incorporados ao projeto, e à temática de
gênero foi adicionada a discriminação étnico-racial e a discriminação devido à
orientação sexual. No ano seguinte, as secretarias do Governo Federal
envolvidas no projeto, convidaram o CLAM para desenvolver e executar um
curso de educação à distância que combatesse o racismo, a homofobia e o
sexismo (ROHDEN e CARRARA, 2008).
1
O British Council participou do curso visando um intercâmbio entre as iniciativas brasileiras e
britânicas na área da educação e diversidade, além de parte da contribuição financeira.
Os municípios que participaram do curso-piloto foram: Niterói e Nova
Iguaçu (RJ), Maringá (PR), Dourados (MS), Porto Velho (RO) e Salvador (BA).
Tais municípios contemplam todas as regiões brasileiras e apresentam
diferentes perfis de tamanho e localização tornando o curso, e mais
especificamente o material que lhe é resultante, uma amostra de como os
professores brasileiros lidam com as demandas do Estado para o tratamento
dos temas relativos à diversidade no ambiente escolar.
Por ser uma grande tentativa de concretizar, para os professores, as
políticas públicas para o respeito à diversidade na educação, esboçadas na
LDB/1996 e no Plano Nacional de Educação de 2001, o curso piloto, que foi
executado dentro da metodologia dos cursos a distância, produziu um
instigante material que nos ajuda a entender a relação entre essas três esferas:
políticas públicas, a educação e diversidade.
A realização do curso Gênero e Diversidade na Escola é justificada pela
importância que a escola e a educação formal apresentam na formação das
concepções dos alunos sobre as temáticas de gênero, sexualidade e
raça/etnia.
As relações de gênero, segundo Bourdieu (2003), estão definidas por
um habitus, em algum lugar entre a estrutura e a agência, se constituindo como
uma estrutura estruturada que atua como estrutura estruturante, conforme o
vocabulário do autor. O professor, que é antes de tudo uma pessoa de seu
tempo, também é responsável pela reprodução da hierarquia de gênero, o que
o torna uma ferramenta estruturante.
O habitus das relações de gênero se apresenta dessa forma como um
conjunto dos valores que o professor traz consigo, que lhe foi ensinado por
diferentes instâncias como família, escola e religião, e que repassa aos alunos.
Daí a necessidade de políticas que alertem os professores para a interrupção
desse modelo reprodutivo de valores.
Por outro lado, no que concerne à sexualidade, de acordo com Foucault
(1988),o professor também é ferramenta do dispositivo da sexualidade. Como
sujeito moderno, ele atua como um representante dos mecanismos de controle
da sexualidade dentro da escola. Isso porque, para o autor, na passagem para
a modernidade Ocidental ocorreu a migração de uma sociedade que tinha o
sangue como importante elemento dos mecanismos de poder para uma
sociedade da sexualidade.
Desde então o Estado tem se esforçado para se apropriar dessa
temática, e repassar à população as concepções de uma sexualidade
“saudável” determinada pelas nuances do biopoder. O próprio GDE pode ser
visto como um investimento do Estado no domínio da sexualidade, nos
parâmetros do que é hoje considerado saudável e correto, como o respeito à
diversidade e a igualdade de gênero.
Assim sendo, o professor carrega consigo concepções particulares das
relações de gênero e sexualidade resultantes de sua formação, sobre as quais
o Estado, por meio de políticas blicas como o curso em questão, se esforça
para regular.
Esta dissertação pretende problematizar tal adequação entre valores
pretendidos pelas políticas públicas, tal como eles se materializam nos
conteúdos curriculares do curso Gênero e Diversidade na escola, e os valores
expressos pelos professores nas ferramentas interativas do curso. Afinal, como
operar a transformação do habitus para uma determinada visão de gênero e
sexualidade, expressa nesse caso pelo Estado como a defesa da igualdade e,
mais especificamente, o respeito à diversidade sem ferir direitos instituídos por
essa mesma lógica?
As questões de gênero e sexualidade constituem o foco principal dessa
análise. Apesar de o curso ter sido edificado com base em três pilares: gênero,
sexualidade e raça/etnia, nessa pesquisa, a questão racial é trabalhada de
forma diferenciada, não por ser menos importante, mas simplesmente porque
gênero e sexualidade constituem, mais tempo, área de grande interesse
particular. Não seria possível, por conta da experiência adquirida na nossa
trajetória em estudos de gênero e sexualidade, e da falta de experiência na
questão racial, analisar da mesma forma as três questões. Esse desnível em
nosso conhecimento sobre a questão racial é o motivo pelo qual o é feita
uma problematização teórica sobre esse tema.
Mesmo assim, como a transversalidade entre as três áreas era uma
premissa básica do curso, isolar as áreas de gênero e sexualidade não seria
vantajoso e nem possível. Por isso, a questão racial também foi observada,
embora de uma forma muito menos pretensiosa do que as outras questões, na
medida em que foi possível comparar a reação dos cursistas nos três
diferentes temas. Curiosamente, é justamente pela premissa transversal do
curso que as posturas dos cursistas nos temas de gênero e sexualidade
puderam se tornar mais visíveis aos nossos olhos, graças ao contraste dos
posicionamentos em cada questão.
Uma pesquisa interessante seria investigar as representações de
raça/etnia no curso com mais profundidade e mais propriedade teórica do que
essa pesquisa se propôs a fazer. Uma pesquisa que rastreie melhor a
articulação institucional que resultou na elaboração do curso, também seria de
grande relevância, tarefa que não pôde ser feita de forma muito detalhada
que não era exatamente esse o nosso objetivo principal.
O curso Gênero e Diversidade na Escola continua a ser oferecido em
uma versão um pouco diferente do piloto. Desde 2008 o GDE passou a ser
parte do Sistema Universidade Aberta do Brasil (UAB), disponível por meio de
um edital da Secad/MEC para Instituições Públicas de Ensino Superior do país
(Gênero e Diversidade na Escola, 2009).
O curso piloto, por ser muito recente, ainda não foi muito explorado no
meio acadêmico salvo duas exceções de que temos conhecimento: um livro
composto por artigos reflexivos sobre o curso, escrito por pessoas envolvidas
em diferentes segmentos da aplicação do curso, como professores on-line e
coordenadores, editado pelo CLAM (ROHDEN, ARAÚJO e BARRETO, 2008) e
uma dissertação de mestrado. A dissertação, de autoria de Dirce Grosz (2008)
teve um propósito diferente dos que nortearam essa pesquisa, uma vez que a
autora trabalhou com as representações de gênero dos professores que
participaram do GDE por meio de entrevistas feitas com esses após o curso
piloto. O livro do CLAM é citado algumas vezes pois nos ajudou a compreender
algumas de suas questões formais, como seus conteúdos e sua gestão.
O capítulo inicial dessa dissertação faz uma passagem pelas discussões
teóricas que possibilitaram essa pesquisa. As relações entre o universal e o
particular são elucidadas na primeira parte do capítulo, situando o curso
Gênero e Diversidade na Escola em meio às tensões dessa relação. Na
segunda parte do capítulo é trabalhada a importância das questões de gênero
e sexualidade nas sociedades modernas do ponto de vista de alguns autores
que dialogaram com essas questões.
O capítulo seguinte faz uma descrição geral do curso. Para tanto, na
primeira parte do capítulo é feita uma trajetória rápida dos direitos sexuais,
que o GDE é aqui compreendido como resultante dessa arena. Na segunda
parte do capítulo, o curso é contextualizado nas políticas públicas para gênero
e sexualidade na educação e nas justificativas legais que apresenta para a sua
realização. Na última parte desse capítulo, são descritos: seus conteúdos,
ferramentas da plataforma virtual de aprendizagem, dinâmica da aplicação e
dinâmica do funcionamento do curso como um todo.
No último capítulo, são analisados os conteúdos dos fóruns de caso do
piloto, que foram seus espaços da plataforma virtual onde os cursistas e
professores on-line debatiam situações didáticas que refletiam os conteúdos
das diferentes unidades. Na segunda parte do capítulo, são utilizadas
informações provenientes de dois relatórios que resultaram do curso o
relatório da avaliação temática e o relatório da avaliação dos professores
para confirmar os achados dos fóruns de caso.
Nas considerações finais são feitas algumas conclusões possíveis a
partir da discussão teórica do capítulo inicial com a análise do capítulo sobre os
fóruns. Essas conclusões pretendem sistematizar a proposta da dissertação,
que é analisar como se deram as tensões entre os valores da política pública e
os valores dos cursistas.
II - Gênero, Sexualidade e Individualismo: reflexões teóricas
O Gênero e Diversidade na Escola foi um curso de formação continuada
para uma amostra de professores de escolas públicas brasileiras. Nesse
capítulo, o curso vai ser analisado a partir de sua definição como uma política
pública para gênero, sexualidade e o respeito à diferença, como um todo. Para
que se entenda o cenário em que o GDE se coloca, essa política blica será
compreendida em dois pontos. No primeiro, trataremos das políticas públicas
de uma forma mais ampla, recorrendo a autores que problematizaram as
disputas de valores nas sociedades modernas como Dumont (1985), Guattari
(1986) e Rouanet (1993).
No segundo ponto trataremos das especificidades levantadas a partir
das políticas públicas de gênero e sexualidade. Para tanto, Foucault (1988,
1996, 2002 e 2003) e Bourdieu (1983, 2002, 2003 e 2004) nos ajudarão a
compreender as questões de sexualidade e gênero e seus desdobramentos
para com a educação. Pretendemos, dessa forma, situar o curso nero e
Diversidade na Escola nas reflexões teóricas sobre os temas privilegiados
nessa análise: políticas públicas e as questões de gênero e sexualidade.
2.1 Políticas públicas e o individualismo
O curso Gênero e Diversidade na Escola pode ser classificado como
uma política pública em favor do respeito à diversidade. De uma forma geral, é
possível dizer que o valor do respeito à diferença está sendo repassado aos
professores de escolas públicas como demanda do seu empregador, o Estado,
para ser praticado no seu exercício profissional. Há, nesse processo, portanto
uma disputa entre os valores do Estado e os valores trazidos pelos
professores, caso não sejam coincidentes. Para compreender essa questão, é
necessário que utilizemos um referencial teórico dando conta das disputas de
ideologias e suas tensões nas sociedades modernas.
Dumont (1985) apresenta a noção de políticas públicas como políticas
exemplarmente tecidas na época moderna. O autor inicia sua análise sobre o
valor nos modernos e nos outros contrapondo a antropologia, cujas pretensões
são essencialmente sociais, à filosofia moderna, como crença na autonomia,
emancipação e liberdade do indivíduo. Em seguida, diferencia a filosofia antiga
dos gregos que cultivam a um tempo o Bem, o Verdadeiro e o Belo, da
filosofia dos modernos na qual a separação da ciência, estética e moral “ou
entre o ser e o valor moral, entre o que é e o que deve ser” (1985, p. 240).
Aponta o autor que “valor” em nossos tempos designa algo diferente do
Ser, por conta da fragmentação das esferas econômicas, políticas, morais e
estéticas na época moderna. Como conseqüência, rejeita a palavra no plural,
valores, pois revela “uma tendência para atomizar cada configuração geral em
nossa cultura” (1985, p. 242). Ao apontar a pesquisa de Kluckhohn (1951) no
estudo comparativo de cinco culturas, Dumont destaca vários pontos
importantes em sua argumentação: a essencialidade dos valores para a
integração e a permanência do corpo social, o vínculo estreito entre idéias e
valores e o mais importante, a hierarquização dos valores, isto é, o fato de que
os valores são organizados hierarquicamente.
Dumont cita então a matriz para a comparação das orientações de
valores num sistema de valores em que elementos universais encontrados
por toda parte. Mesmo assim, destaca que “o quadro mencionado (...) ainda
não aplica, com suficiente amplitude o reconhecimento da hierarquia” (1985, p.
247).
O autor entende o valor como estando numa relação de dependência em
face de uma hierarquia. Conforme esclarece Duarte (2003), hierarquia para
Dumont é um princípio pelo qual toda a experiência humana pressupõe uma
distribuição diferencial do "valor" no mundo. Diferencial este que permite a
orientação do sujeito em situação.
Essa hierarquização dos valores, segundo Dumont, não é admitida pelos
modernos. O autor menciona então a importância de não separar a idéia e o
seu valor, adotando como objeto de estudo as idéias-valores ou os valores-
idéias, entendendo-os como multidimensionais e inter-relacionados. Para ele,
idéias e valores são hierarquizados de modo particular na sua análise da
cultura indiana (cita o exemplo do englobamento, em que a pureza engloba o
poder).
Muito diferente é a situação da cultura moderna em que o valor se
vincula ao indivíduo e como resultado temos a separação entre Idéia e Valor
“daí a universalidade abstrata do imperativo kantiano” (Dumont, 1985, p. 271).
O imperativo kantiano reza que cada indivíduo deve se dar a sua lei
moral conforme gostaria de vê-la praticada por toda a humanidade. Essa
totalização parece a Dumont uma universalidade abstrata. O autor pretende
uma valoração que seja mais concreta, em análises específicas, apesar de
defender a figura universal do valor que engloba as análises particulares.
“Cada configuração particular de idéias e de valores está contida com todas as
outras numa figura universal de que ela é uma expressão parcial” (Idem, p.
274).
Há em Dumont uma recusa de valores universais, mas em sentido
diferente dos valores propostos pela filosofia moderna por ele criticada: ele não
resgata o indivíduo moderno com a correlata liberdade, igualdade, autonomia,
autodeterminação kantianas.
O autor crê mais na importância de analisar cada sistema concreto de
valores com suas tensões internas geradas pelo princípio da hierarquia quando
confrontado pelas forças sociais individualizantes da modernidade.
Conforme aponta Duarte (2003), “as sociedades ‘modernas’ não podem
ser assim linearmente descritas como ‘individualistas’, mas sim como referidas
à ‘ideologia do individualismo’, em intensidade e formas que só a análise
empírica pode determinar”. Seguindo ainda a análise de Duarte, ressaltamos
que a variação valoral na sociedade “(...) o implica necessariamente
‘dominação’ e ‘exploração’ (categorias estruturantes das idéias individualistas
de ‘poder’, ‘Estado’ e ‘classe social’)” (2003, sem referência de página).
Por percebemos que Dumont (1985) rejeita também o marxismo das
classes sociais, tampouco aceita a celebração das diferenças culturais pelo
perigo do relativismo cultural e da perda dos valores que a defesa das
diferenças pode acarretar. O autor aposta na hierarquia dos valores.
Reconhecer o outro como verdadeiramente outro, pode se dar pela
hierarquia e conflito.
A substituição das filosofias modernas pela antropologia parece a
Dumont (1985) uma reformulação do problema do filósofo, porque a
antropologia está preocupada, segundo o autor, com o progresso do
conhecimento do valor.
Conforme indica Duarte, “todas as sociedades são essencialmente
holistas, na medida em que têm que pressupor um agenciamento de sentido,
uma cosmologia, a priori e que têm de se fundar em algum tipo de ordem
relacional (...)” (2003, sem referência de página).
A teorização de Dumont (1985) baseia-se na contraposição entre o
modelo relacional e hierárquico de “pessoa praticado nas sociedades
tradicionais e o modelo de “indivíduo” moderno, sem relação entre o cognitivo,
o estético e os valores. O autor defende um resgate da hierarquia dos valores
como modelo explicativo para melhor compreendermos a contemporaneidade,
contra as premissas da igualdade.
Políticas públicas são também uma hierarquização de valores. Não
políticas sem prioridades e sem jogos de poder. A teorização dumontiana ajuda
na percepção dos valores como constitutivos das sociedades em qualquer
época, mas principalmente nas sociedades modernas, onde ao contrário do
que uma análise simplista poderia pressupor, o princípio da hierarquia vige até
com mais intensidade.
Vários autores têm participado do debate entre o universal e o particular
em nossa contemporaneidade. Além de Dumont, com quem abrimos este
capítulo, é possível também mapear autores que fazem intersecção com a
antropologia. Vejamos como a questão dos valores se coloca para Felix
Guattari (1986), ao falar da mesma divisão semiótica entre as categorias
antropológicas, em seguida, acompanhemos o mal estar da modernidade de
Rouanet (1993) no mesmo tema.
O conceito de cultura para Guattari é um conceito profundamente
reacionário. O autor afirma sua opinião explicando que através deste conceito
separa-se atividades semióticas em esferas, por exemplo, música, artes
plásticas ou literatura, atividades essas que passam a ser as atividades da
cultura. No entanto, os povos, as etnias, os grupos sociais não vivem essas
atividades como uma esfera separada, ao contrário, são “atividades articuladas
umas às outras num processo de expressão, e também articuladas com sua
maneira de produzir bens, com sua maneira de produzir relações sociais”
(GUATTARI, 1986, p. 19).
O autor está explicando que os povos, as etnias, os grupos sociais o
assumem essa categorização, porque são as categorizações da antropologia.
O mesmo processo se com relação à escolarização das crianças. Antes da
escolarização, as crianças brincam e sonham, mas cedo ou tarde terão que
aprender essas “dimensões de semiotização no campo social normalizado” em
sessões temporais como “agora é hora de brincar, agora é hora de estudar,
agora é hora de sonhar, etc.” (Idem, p. 19).
Neste exemplo de separação semiótica Guattari está explicando o
segundo sentido de cultura, “a cultura-alma”. Para ele a palavra cultura teve
muitos sentidos na história, sendo que “cultivar o espírito” é o mais antigo. É o
primeiro sentido que ele chama de “cultura valor”, designando um julgamento
de valor que determina quem tem e quem não tem cultura; o segundo sentido é
o da “alma coletiva”, sinônimo de civilização; essa dimensão da cultura sofreu
muitas ambigüidades, pois tanto sustentou o partido hitleriano com a noção de
volk (povo) quanto embasou uma multiplicidade de movimentos sociais em
processos de emancipação para reapropriação de sua própria cultura onde
vemos expressões como cultura negra, cultura underground, cultura técnica,
entre outras.
ainda um terceiro núcleo semântico para a cultura que o autor
identifica à cultura de massa ou cultura-mercadoria onde não haveria
propriamente territórios coletivos de cultura como nos casos A e B (primeiro e
segundo sentidos de cultura, cultura-valor e cultura-alma), mas onde a cultura
seria “todos os bens, todos os equipamentos (casas de cultura), todas as
pessoas especialistas que trabalham nesse tipo de equipamento) todas as
referencias teóricas relativas a esse funcionamento (Idem, p. 19) .
É cultura de massa “tudo o que contribui para a produção de objetos
semióticos”, livros, filmes, etc., mas o autor adverte: “cultura aqui não é fazer
teoria mas produzir e difundir mercadorias culturais sem levar em consideração
os sistemas de valor do nível A (cultura-valor) e sem se preocupar com os
níveis territoriais de cultura, que são da alçada do nível B (cultura-alma)”
(Idem, p. 19).
Por que então o conceito de cultura é profundamente reacionário para
Felix Guattari? Porque preso a esses três núcleos de semiotização, a cultura se
desloca do campo das micropolíticas passando a se autonomizar em esferas
separadas. O texto em que o autor expõe suas idéias é uma transcrição de
mesa redonda promovida pelo jornal Folha de São Paulo em setembro de
1982. O convidado inicia a sua fala no debate esclarecendo que o título por ele
proposto foi reiteradamente traduzido de forma inadequada e que talvez o fato
não se deva a um problema de tradução; o título proposto foi “Cultura de
massa e singularidade” e o veiculado foi “Cultura de massa e individualidade”.
O autor problematiza a tradução como sendo um dos efeitos da cultura
de massa: “talvez seja difícil ouvir o termo singularidade e nesse caso, traduzi-
lo por individualidade me parece colocar em jogo uma dimensão essencial da
cultura de massa. A individualidade pode ser considerada como um valor
hierarquicamente disposto pela cultura de massa, ou pela ideologia englobante,
nos termos de Dumont.
Para o autor no fundo somente uma cultura, a capitalística
2
. o
existe para ele cultura popular e cultura erudita; “há uma cultura capitalística
que permeia todos os campos de expressão semiótica. É isso que tento dizer
ao evocar os três núcleos semânticos do termo ‘cultura’” (Idem, p. 23).
A cultura capitalística massificante produz “indivíduos normalizados,
articulados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas de
submissão...”. Polemizando com a noção de internalização porque ela “implica
uma idéia de subjetividade como algo a ser preenchidoo autor vai defender
2
Guattari (1986) acrescenta o sufixo ístico a capitalista para abranger as sociedades do
terceiro mundo ou as economias socialistas do leste europeu entendendo que em nada elas se
diferenciam na maneira como produzem a subjetividade.
que o que há, ao contrário da internalização, é “simplesmente uma produção
de subjetividade inconsciente” (1986, p. 16).
A idéia da hierarquização de valores proposta por Dumont (1985) pode
ser vista também na análise de Guattari (1986) sobre a cultura, uma vez que
para ele também aqui uma universalização imposta dos valores tidos como
mais importantes. No entanto Guattari também explica que esses valores não
são reproduzidos de forma idêntica pelos indivíduos, que reagiriam a essa
universalização com processos de singularização.
Ele explica que a máquina capitalística produz os sonhos com que
sonhamos, produz aquilo que acontece conosco, quando nos apaixonamos e
assim por diante. Apesar disso, defende “que é possível desenvolver modos de
subjetivação singulares (...) processos de singularização (1986, p. 16). Para o
autor, possibilidade de se desenvolver processos de singularização
recusando a manipulação e construindo “modos de sensibilidade, modos de
relação com o outro, modos de criatividade que produzam uma subjetividade
singular. Uma singularização existencial que coincida com um desejo, com um
gosto de viver, com uma vontade de construir o mundo...” ( idem .p.17)
Para Guattari (1986) os processos de singularização poderão vingar
se a cultura sair de esferas fechadas sobre si mesma como descrito nos três
modelos discutidos, cultura-valor, cultura-alma e cultura-mercadoria.
Nos autores aaqui revisados, é pensada a modernidade e a produção
do sujeito, vale dizer a produção dos valores e da cultura, bem como a
produção das sociedades modernas em contraposição às sociedades
tradicionais. Da mesma forma, no texto “A coruja e o sambódromo”, Rouanet
(1993) ao discutir os entraves entre o particular e o universal colabora para o
debate sobre as questões que se combinaram no GDE, que se tratou de um
curso cuja realização, gestão e recepção foram resultantes desses mesmos
entraves.
Rouanet (1993) abre suas reflexões dizendo que a heroína do ensaio é
uma coruja. Informa que a coruja foi uma ave arrogante, representante que
foi da razão universal. Tanto a razão teórica quanto a prática, capaz de legislar
para os homens. Mas hoje, diz Rouanet, a coruja “(...) anda triste e cabisbaixa,
tiritando de frio e com medo da própria sombra. Ela se recorda de sua
juventude radiosa, quando repousava nas oliveiras sagradas, contemplando o
Acrópole, e lembra-se com orgulho do seu período de apogeu, quando foi
canonizada na Notre-Dame, transformando-se na deusa Razão”.
(ROUANET,1993, p. 46).
Daí por diante, continua o autor, “(...) foram desastres sobres desastres.
Vieram os românticos, com seu Volk, veio Nietzche, com sua vontade-de-
potência, e veio Heidegger, com seu Dasein, todos negando à mísera criatura
seu direito a existir.” (Idem).
Rouanet ironiza dizendo que a coruja decide viajar sem pedir seu
conselho; se pedisse ele lhe contaria que “(...) em toda parte ela está sendo
acusada de um pássaro etnocêntrico, que quer transferir para o mundo inteiro
hábitos que valem nos bosques europeus e um pássaro totalitário (...) que
quer impor seus pios a toda a floresta, silenciando gorjeios polifônico (...)”
(idem, p. 46).
Percebe a coruja em seu vôo que a primeira guerra está acontecendo de
novo na Iugoslávia e que a segunda guerra está em vias de acontecer na
Alemanha. Nessa primeira revoada, a coruja percebe “a matança
indiscriminada de homens, mulheres e crianças, em nome de ignóbeis
particularismos nacionais, étnicos e religiosos(idem, p. 47).
No segundo bater de asas, a coruja pousa em Berlim e lá percebe
barbáries sendo praticadas contra imigrantes turcos, negros e vietnamitas.
Mais um vôo e a festa vista pela fresta do sótão: uma festa de estudantes
estrangeiros onde estão presentes um paquistanês, um nigeriano e um
brasileiro: “é um grupo heterogêneo mas unificado por uma emoção forte o
ódio ao europeu por uma idéia central a especificidade do Terceiro Mundo
e por uma ambição comum manter a identidade das respectivas culturas”
(Idem, p. 47).
Após passar pelo oriente onde muitos episódios acontecem a coruja
“ainda com o coração aos pinotes, atravessa o Atlântico” (Idem, p. 48). Em
terras americanas “o pandemônio se desencadeia. Uma estudante acusa a
ideologia dos direitos humanos de ser falocrática, por ter usado ‘homem’ como
termo genérico, em vez de ter se referido, especificamente aos direitos da
mulher” (Idem, p. 48).
Ainda em terras americanas a coruja tenta se defender dos
particularismos, enfrentando uma guerra conceitual, dizendo que em sua
Atenas nativa, os homossexuais e os velhos eram respeitados, mas é
imediatamente repreendida, segundo a escrita metafórica de Rouanet (1993,
p.49); os jovens contemporâneos insistem na representação “pessoas com
orientação diferente dos heterossexuais” e “pessoas cronologicamente
privilegiadas” respectivamente.
Saindo das terras do norte americano ela enfrenta no México os debates
sobre a teoria da ciência onde os progressos científicos estão sendo
interpretados como paradigmáticos e não livres. Após voltas e sobrevôos pelas
discussões dos schoolars, a coruja “Exausta e tossindo muito (...) resolve
divertir-se (...). Ela chega ao Rio. Ei-la no sambódromo (ROUANET 1993,
p.50).
O tema da escola de samba no Sambódromo “(...) é a emergência entre
nós de um novo tipo de humanidade, sensual, espontâneo e intuitivo, em tudo
diferente da humanidade gringa; o florescimento, em nosso meio , de um saber
próprio (...)” (idem, p. 50).
Não um saber próprio, mas “(...) uma ciência ajustada às
particularidades nacionais; e o surgimento de uma nova moral, que convenha
ao nosso clima, à nossa formação multiracial e às nossas raízes históricas
(Idem p. 50).
Com esses vôos o autor defende o iluminismo da modernidade pois o
que ela [a coruja] percebeu foi uma insurreição planetária contra o universal”
(Idem p. 51). O autor afirma que “o iluminismo não exclui a diferença, mas
exclui a diferença como ideologia. A diferença é um fato, não uma virtude e
nem sempre esse fato merece ser idealizado (Idem p. 69).
Concordamos com o autor porque positivar a diferença pode levar a
entender as culturas como um multi-universalismo. Ao realçar uma
particularidade evidenciam-se valores, ou melhor, criam-se valores
diferenciados, como alertava Guattari nas três formas de cultura analisadas
(valor, alma e mercadológica).
Equivale à cilada da diferença como alerta Pierucci (2001). As
particularidades não podem ser idealizadas como alerta Rouanet (1993), mas
foi através de reinvindicações de ideais identitários que conseguiu-se avanços
nas políticas, leis e práticas como Lei da Maternidade, leis contra atitudes
racistas ou homofóbicas, rampas para deficientes e outras conquistas.
A discussão vale não pelos ideais a partir de particularidades, mas ideais
universais incluindo particularidades. Ou seja, não se pode enquadrar em
ideais todas as particularidades. Essas identidades foram produzidas. A
produção simbólica das categorias identitárias obrigam-nos a nos incluir em
alguma categoria. Esse direcionamento de nossas particularidades é
subjetivado pela lógica capitalística ou pela hierarquização de valores, nos
termos propostos por Guattari e Dumont, respectivamente.
Afinal, o homem é desde sempre uma multiplicidade, sendo ele
produzido por um social repleto de diferenças. Como abarcar as diferenças
num todo concreto parece ser a preocupação dos três autores em seus estilos
diferentes de escrita e pensamento. Preocupação essa que reflete o desafio
maior das políticas afirmativas nas sociedades modernas.
2.2 A importância das relações de gênero e sexualidade nas
sociedades modernas
Podemos ousar pensar que o curso Gênero e Diversidade na Escola se
constitui como uma política pública que trata da diferença. Quais as condições
que levaram à emergência das questões de gênero e sexualidade a uma
política oficial, encomendada pelo governo
3
para serem replicadas aos alunos
das escolas públicas brasileiras?
Para compreender o porquê desses temas terem se tornado uma política
pública é necessário entrar no debate teórico sobre sexualidade e gênero.
2.2.1 Sexualidade e Biopoder
A compreensão de Michel Foucault (1988) sobre o dispositivo da
sexualidade explica a razão da sexualidade ter se tornado um campo em
disputa nas sociedades modernas. A partir do conceito de biopoder, o poder
sobre a vida gerido pelo poder político, é possível compreender a criação do
curso Gênero e Diversidade na Escola, entendido aqui em sua porção de uma
política pública para a área da sexualidade.
O conceito de biopoder, criado e discutido por Michel Foucault, é
definido a partir da análise das transformações e permanências do poder
soberano, especificamente, do direito deste sobre a morte.
Uma das formas de poder soberano foi, por muito tempo, o direito sobre
a vida e a morte de seus súditos. E para demarcar esse direito sobre a vida, o
soberano tinha, de fato, o poder sobre a morte, pois ele podia fazer o súdito
morrer, ou deixar viver. O soberano tinha o direito de matar e por isso ele podia
exercer seu direito sobre a vida.
Na época clássica surgiu uma mudança nos mecanismos de poder do
Ocidente. Esses mecanismos, que eram baseados na apreensão e no confisco
de coisas, tempo, corpos e vida, passaram a atuar sobre a produção de forças,
3
A palavra “governo” aqui utilizada não pretende homogeneizar o conflituoso campo a que se refere. O
que se pretende, apenas, é facilitar a nomeação do diverso conjunto governamental que se empenhou no
curso piloto Gênero e Diversidade na Escola.
seu crescimento e sua ordenação, mudança que acabou por deslocar o direito
de morte, o fazer morrer para um poder que conduziria a vida.
Essa nova forma de apresentação do poder sobre a vida permite
justificar o direito de expor a morte, por exemplo, não mais numa guerra
travada em nome do soberano, mas numa guerra travada em nome da
existência do grupo pelo qual se luta, justifica que, em prol da necessidade de
fazer todos viverem, alguns devem se sacrificar:
“Mas esse formidável poder de morte (...) apresenta-se agora
como complemento de um poder que se exerce, positivamente,
sobre a vida, que empreende sua gestão, sua majoração, sua
multiplicação, o exercício sobre ela, de controles precisos e
regulações de conjunto”
(FOUCAULT, 1988, p.129).
Dessa forma, o princípio biológico no nível da vida, da espécie, da raça e dos
fenômenos de população, substituiu o princípio jurídico do poder soberano e
tornou-se uma questão de estratégia entre Estados. “Pode-se dizer que o velho
direito de causar a morte ou deixar viver foi substituído por um poder de causar
a vida ou devolver à morte” (Idem).
Para Foucault o biopoder foi concretamente desenvolvido a partir do
século XVII em duas frentes. A primeira se concentrou no controle dos corpos
por meio das disciplinas, e a segunda, que surge a partir do século XVIII, se
concentrou no corpo-espécie, no corpo como suporte dos processos biológicos,
realizados por meio de intervenções e controles reguladores. A combinação
dessas duas frentes das disciplinas do corpo e das regulações da população
– constitui uma tecnologia própria para o exercício do poder sobre a vida.
Diversas técnicas passaram então a operar a sujeição dos corpos e o
controle das populações. No campo das disciplinas, instituições como a escola,
o hospital e o quartel se encarregaram da acomodação dos mecanismos de
poder sobre o corpo. No campo das regulações, os problemas de natalidade,
longevidade e saúde pública, por exemplo, operaram a acomodação dos
mecanismos de poder sobre os fenômenos globais, de população.
Inaugura-se assim, na articulação dessas duas séries a série da
anátomo-política: corpo, organismo, disciplina, instituições e a série da bio-
política: população, processos biológicos, mecanismos regulamentadores,
Estado – a era do biopoder.
O desenvolvimento desse biopoder acarretou uma mudança no sistema
jurídico da lei. Ora, para uma sociedade que opera uma tecnologia de poder
que tem como cerne a vida, não faz sentido a lei ser identificada à morte, como
seu recurso por excelência. Nessa nova forma de organização, a lei funciona
cada vez mais como norma e as instituições judiciárias se integram com outros
aparelhos reguladores, como o médico.
Em contrapartida a esse novo poder, no próprio século XIX, Foucault
afirma que foram desenvolvidas forças de resistência que se apoiaram no que
esse próprio poder investia: a vida. A partir de então a vida foi o principal objeto
das lutas políticas que passaram a enfocar, por exemplo, direitos relacionados
ao corpo, à saúde e à felicidade.
Nesse novo cenário, Foucault coloca o sexo como importante foco da
disputa política, pois entende que o sexo faz a articulação entre a anátomo-
política e a bio-política, entre as técnicas disciplinares e os procedimentos
reguladores: “a sexualidade está exatamente na encruzilhada do corpo e da
população” (FOUCAULT, 2002. p.300). O sexo faz parte das disciplinas do
corpo ao mesmo tempo em que faz parte das regulações das populações.
Foucault delimita quatro mecanismos de controle baseados na
sexualidade que avançaram ao longo dos dois últimos culos. Desses quatro
mecanismos que realizaram a integração dos processos reguladores com as
técnicas disciplinares, dois teriam se apoiado nas exigências de regulação para
alcançar resultados ao nível da disciplina, e os outros dois teriam percorrido o
caminho inverso.
A histerização das mulheres, que resultou numa intensa medicalização
de seus corpos, se deu a partir da crescente importância atribuída ao papel da
mãe no zelo pela saúde e bem estar de seus filhos: no processo de
responsabilização da mulher pelo cuidado com o futuro da nação, seus corpos
foram disciplinados por meio da medicalização. Da mesma forma, a
patologização da sexualidade precoce, epidemia que comprometeria o futuro
da sociedade e da espécie, serviu de pano de fundo para a pedagogização da
sexualidade das crianças. Os mecanismos que percorreram o caminho inverso,
apoiando-se nas disciplinas, mas visando intervenções reguladoras, se
apresentam no controle da natalidade e na psiquiatrização das perversões.
Essa intervenção médica na sexualidade a partir do século XIX, visando
a saúde e higiene do corpo e conseqüentemente garantindo as condições
ideais de reprodução da população, acabou por inaugurar uma ciência
específica sobre a sexualidade a sexologia que tinha por objetivo maior a
regulação médica do campo erótico para os interesses da reprodução
biológica.
Essa vontade de saber sobre o sexo, que caracteriza o Ocidente
moderno, o que Foucault chama de scientia sexualis, adaptou os rituais de
confissão, que antes eram embutidos na penitência cristã, para delimitar os
métodos científicos para se extrair a verdade sobre o sexo.
Dessa forma, as confissões vão se tornando alvo de operações
terapêuticas e o sexo sai da esfera da culpa e do pecado e entra na esfera do
normal e do patológico: “o sexo aparece como um campo de alta fragilidade
patológica: superfície de repercussão para outras doenças, mas também centro
de uma nosografia própria, a do instinto, das tendências, das imagens, do
prazer e da conduta” (FOUCAULT, 1988. p.66).
Para Foucault, na passagem para a modernidade Ocidental, ocorreu a
migração de uma sociedade que tinha o sangue como importante elemento dos
mecanismos de poder para uma sociedade de sexualidade na qual o sexo é
alvo e objeto. “Foram os novos procedimentos de poder, elaborados durante a
época clássica e postos em ação no século XIX, que fizeram passar nossas
sociedades de uma simbólica do sangue para uma analítica da sexualidade
(FOUCAULT, 1988, p.139).
A sanguinidade estaria ligada à lei, à morte, à transgressão, ao
simbólico e à soberania. Enquanto a sexualidade se relacionaria com a norma,
com o saber, com a vida, com o sentido, com as disciplinas e as
regulamentações.
Foucault adverte no entanto, que a simbólica do sangue não foi
completamente substituída pela analítica da sexualidade, uma vez que a
preocupação com o sangue e a lei tem rondado a gestão da sexualidade.
Como poderia o poder de fazer viver, o biopoder, exercer o direito de matar?
Para Foucault o racismo permitiu que esse poder, que tem o grande
objetivo de aumentar a vida, exercesse a função de morte; a emergência do
biopoder teria inserido o racismo, que existia muito tempo, nos
mecanismos do Estado.
O racismo, segundo o autor, seria primeiramente, o meio de introduzir
um corte baseado no domínio considerado biológico entre o que deve viver e o
que deve morrer, e assim fragmentar esse domínio da vida, do qual esse poder
se encarregou: “uma maneira de defasar, no interior da população, uns grupos
em relação aos outros” (FOUCAULT, 2002, p.304).
A outra função do racismo é estabelecer uma relação positiva entre
matar e viver. Quanto mais um indivíduo matar seus inimigos, mais chances ele
tem de viver. Uma relação de tipo guerreiro que mata com o objetivo de ampliar
a vida, portanto compatível com o biopoder. O racismo, no entanto, não permite
a morte dos inimigos de um indivíduo, mas os inimigos da espécie: os
degenerados que representam um perigo biológico para a população e cuja
eliminação tornará a vida mais sadia e mais pura. O racismo é a forma pela
qual o poder de normalização exerce o direito soberano de matar.
Dessa forma, pode-se compreender o evolucionismo do culo XIX
como uma maneira de interpretar as relações de colonização, a necessidade
de guerras, a criminalidade, a loucura, a sociedade de classes, etc. O
genocídio colonizador, por exemplo, é paradoxalmente permitido pelo biopoder,
pois encontra na teoria evolucionista, de melhoramento da espécie, a
justificação para sua concepção racista.
Como desdobramento dessa visão, pode-se compreender o
desenvolvimento da antropologia também no século XIX,
que misturou o
conceito biológico de raça com “as produções sociológicas e psicológicas das
culturas humanas” (LÉVI-STRAUSS, 1978, p.329) na etnografia das
sociedades tidas como atrasadas, primitivas ou selvagens.
Foucault entende a experiência nazista como o maior exemplo da
generalização do biopoder simultaneamente à generalização do direito
soberano de matar. A sociedade nazista se formou na sobreposição de um
Estado racista, um Estado assassino e um Estado suicida e dessa forma
possibilitou a prerrogativa da exterminação o dos judeus, bem como dos
próprios alemães, pois a raça ariana se provaria superior se completamente
exposta à morte e assim regenerada na sua pureza. Afinal, para Gobineau, o
pai das teorias racistas, as diferenças entre as grandes raças eram qualitativas,
mas para além dessas diferenças, a mestiçagem era o principal problema a ser
eliminado (LÉVI-STRAUSS, 1978). Dessa forma, as teorias eugênicas, apesar
de já existirem, atingiram seu apogeu com o nazismo (BIRMAN, 2005, p.44).
Segundo o conceito de biopoder, a sexualidade tem sido interesse do
Estado nas sociedades modernas ocidentais. O controle da sexualidade das
crianças manifesta um dos mecanismos desse biopoder, que é claramente
perceptível no ambiente escolar. Ao falar do nascimento da medicina social,
Foucault (1996) esclarece que a foi por via da medicina que o controle da
sexualidade foi inserido nas escolas.
As transformações do mundo capitalista, como afirma Foucault (1996),
não fizeram a passagem de uma medicina coletiva para uma medicina
individualista, ao contrário, o capitalismo inseriu o indivíduo no social e deu
origem a uma medicina social. Essa nova medicina, a partir do culo XIX,
passou a se preocupar também com a prevenção, considerando pertencente
ao seu campo assuntos outrora excluídos, como a organização das cidades e o
comportamento sexual dos alunos do ensino escolar.
Com o crescimento das cidades e o conseqüente aumento das
instituições como: hospitais, cemitérios, escolas e quartéis, a medicina social,
embora reconhecendo a importância desses espaços institucionais para o
funcionamento da cidade, os identifica com a desordem urbana.
Dessa forma, os espaços ocupados por essas instituições se tornarão
objetos das modificações da medicina, seja pelo julgamento de localização
inadequada ou pela intervenção na organização do espaço interno. Assim
esses espaços entendidos como uma pequena cidade se tornaram também
medicalizados.
Visando proteger a saúde física e moral da criança, o saber médico
incidirá sobre os estabelecimentos de ensino, local de formação de cidadãos
devidamente úteis e sadios (MACHADO et al., 1978).
Além da organização material da escola, como a limpeza e a divisão do
espaço, o estudante, ao entrar na escola, até mesmo no primeiro ato da
matrícula, passa a ser domínio médico. O corpo e a moral dos estudantes
deveria ser construído e controlado por um rígido programa que tem como
principal meta prevenir a desobediência e a masturbação.
A desobediência deveria ser enfrentada com castigo, mais moral do
físico, enquanto a masturbação, um mal que poderia trazer várias doenças
para a criança, deveria ser combatida com a ginástica.
Com um argumento pautado nas ciências médicas, o controle
sexualidade se insere na escola. A relação com o curso Gênero e Diversidade
na Escola é direta, pois privilegiando temas diferentes de outrora, a gravidez
adolescente e a contaminação por DSTs/Aids por exemplo, se tornam objeto
do controle da sexualidade no ambiente escolar.
2.2.2 Habitus e gênero
A dificuldade da conciliação entre o respeito à individualidade e o direito
à diversidade, tratada na primeira parte desse capítulo também pode ser
compreendido na relação entre estrutura e agência pensada por Bourdieu.
Além disso, a análise do autor sobre as relações de gênero ajudam a entender
porque a escola e a educação são esferas que incidem sobre essas relações.
Para tratar do pensamento de Bourdieu, a compreensão do conceito de
habitus é primordial.
O renomado sociólogo francês Pierre Bourdieu baseou muitas de suas
análises no conceito de habitus, que foi recuperado da tradição aristotélica e
cuidadosamente desenvolvido pelo autor. Seja em suas pesquisas sobre a
educação, ou sobre a distinção social, ou sobre a sociedade da Cabília, tal
conceito forneceu uma importante base para suas concepções sociológicas.
Tais concepções, pautadas na relação entre a incorporação das estruturas
sociais pelos sujeitos e na sua agência, se dedicam à explicar as nuances da
reprodução da ordem social.
Pierre Bourdieu intenciona situar sua obra entre o que o autor chama de
subjetivismo e objetivismo, que seriam formas distorcidas e reduzidas do
conhecimento sociológico.
O subjetivismo, identificado principalmente com a forma fenomenológica
de conhecer o mundo social, restringir-se-ia a descrever as ações e interações
sociais, sem, no entanto, levar em conta a relação dessas interações com as
estruturas objetivas que também lhe são constitutivas. Para Bourdieu essa
forma de análise social confere uma autonomia extremada ao sujeito, cujas
ações representariam em si mesmas a concepção total do mundo social.
No diâmetro oposto ao subjetivismo, estaria o objetivismo, que descarta
de sua analítica o plano da consciência do sujeito. A ruptura com a experiência
subjetiva imediata seria, para Bourdieu, a etapa essencial para que se possa
explicar de modo científico o mundo social. No entanto, o objetivismo também é
alvo de duras críticas pelo pensamento bourdieusiano: “o objetivismo tenderia a
conceber a prática apenas como execução de regras estruturais dadas, sem
investigar o processo concreto por meio do qual essas regras são produzidas e
reproduzidas socialmente” (NOGUEIRA e NOGUEIRA, 2004, p.25).
Dessa forma, o objetivismo falharia em explicar aquilo que se tornou um
dos conceitos chaves elaborados por Bourdieu: a articulação entre os planos
da estrutura e da ação. A concepção objetivista reconhece as propriedades
estruturantes da estrutura, mas não evidencia a forma com que o indivíduo
dialoga com as estruturas sociais na sua prática. Ao contrário, no objetivismo a
prática é um ato mecânico, resultante, quase que de forma absoluta, das
determinações sócio-estruturais.
O conceito de habitus desenvolvido por Bourdieu seria, portanto, a
operação de uma terceira teoria, nem objetivista, nem subjetivista e sim
praxiológica:
“Nesse sentido, (...) a noção de habitus exprime
sobretudo a recusa a toda uma série de alternativas nas
quais a ciência social se encerrou, a da consciência (ou
do sujeito) e do inconsciente, a do finalismo e do
mecanicismo, etc.” (BOURDIEU, 2004, p.60).
Assim, o habitus se apresenta como um conceito capaz de conciliar as
teorias opostas que dão conta por um lado da realidade exterior, e por outro
das realidades individuais: Habitus é então concebido como um sistema de
esquemas individuais, socialmente constituído de disposições estruturadas (no
social) e estruturantes (nas mentes)” (SETTON, 2002, p.63)
O habitus deve ser entendido como um sistema de disposições duráveis,
estruturas estruturadas, que atuam como estruturas estruturantes das práticas
e representações; como uma matriz de experiências vivenciadas por cada
sujeito, em função de sua posição nas estruturas sociais, que ordenam
internamente sua subjetividade e orientam (estruturam) suas ações.
(NOGUEIRA e NOGUEIRA, 2004).
A origem do conceito de habitus, contudo não é de completa
responsabilidade de Bourdieu e remete a noção aristotélica de hexis, presente
na doutrina sobre a virtude, significando uma predisposição do caráter moral
para determinar sentimentos e desejos numa situação e, como tal, a nossa
conduta.
Bourdieu introduziu a noção de habitus em seu trabalho, na publicação
de dois artigos de Panofsky traduzidos por Bourdieu para o francês. Um artigo
era sobre a arquitetura gótica e outro sobre o Abade Surger.
Ao retomar o conceito aristotélico convertido pela escolástica em
habitus, o autor pretendia recuperar a agência do sujeito, reduzida no
estruturalismo e na sua teoria da ação, ao papel de suporte. Bourdieu desejava
evidenciar a capacidade criativa e de ação do habitus e do agente.
O autor escolheu retomar um termo antigo por identificar alguns de seus
objetivos com o de outros filósofos que, de um modo ou de outro, se
apropriaram da noção aristotélica em oposição ao dualismo Kantiano como
Hegel, ou na tentativa de sair da filosofia da consciência como Husserl, ou
ainda ao utilizar a hexis em sua dimensão de porte e postura do corpo
socializado como Mauss (BOURDIEU, 2004).
Bourdieu também retoma a noção de hexis pela convicção de que o
trabalho de conceituação pode ser cumulativo e realmente é o que faz, pois é
na sua obra que se encontra “a mais completa renovação sociológica do
conceito delineado para transcender a oposição entre objetivismo e
subjetivismo: o habitus é uma noção mediadora que ajuda a romper com a
dualidade (...) entre indivíduo e sociedade” (WAQUANT, 2007, p.6).
No livro “A Dominação Masculina” (2003), em seu estudo sobre a
sociedade cabila, Bourdieu analisa que a divisão entre os sexos está “na ordem
das coisas” (p.17), naturalizada em objetos, no mundo social, e incorporada
nos agentes por meio do habitus. A concordância entre as estruturas objetivas
e cognitivas legitima a naturalização da divisão socialmente construída dos
sexos.
Para o autor, a força da ordem masculina é evidenciada justamente
porque é tida como neutra, sem necessidade de justificativa, constituindo de
maneira completamente naturalizada o alicerce da ordem social.
A divisão entre os sexos fundamenta um “programa social de percepção
incorporada” (p.18), que se aplica a todas as coisas do mundo e tem início no
corpo. O corpo biológico, mais especificamente a diferença anatômica entre os
órgãos sexuais, conformam o corpo construído pelo mundo social como
realidade sexuada. A atribuição de um corpo ao masculino ou ao feminino já
está “enraizada na relação arbitrária de dominação dos homens sobre as
mulheres” (p.20).
Assim, a divisão biológica entre os sexos, estrutura estruturada, atua
como justificativa natural da diferença entre os gêneros, estrutura estruturante:
Dado o fato de que é o princípio da visão social que
constrói a diferença anatômica e que é esta diferença
socialmente construída que se torna o fundamento e a caução
aparentemente natural da divisão social que a alicerça, caímos
em uma relação circular que encerra o pensamento na
evidência de relações de dominação inscritas ao mesmo tempo
na objetividade, sob a forma de esquemas cognitivos que,
organizados segundo essas divisões, organizam a percepção
das divisões objetivas.” (BOURDIEU, 2003, p.20).
As divisões da ordem social marcadas pelas relações sociais de
dominação entre os gêneros, inscrevem, para o autor, dois habitus diferentes, o
masculino e o feminino que se apresentam em “hexis corporais opostos e
complementares” (p.41) e em princípios classificantes de coisas e práticas
como masculino e feminino. Aos homens relaciona-se o exterior, o público, o
lado direito, o seco, o alto; enquanto às mulheres relaciona-se o úmido, o
baixo, o interior e o privado.
Por meio da divisão social dos gêneros, o que é determinado às
mulheres como sendo natural, como por exemplo a imposição histórica do uso
da saia, confia à própria dominada um status natural de submissão na
hierarquia da dominação (uma vez que imposto o uso da saia uma postura
específica lhe é inscrita, que esta vestimenta não permite corridas a passos
largos ou que se sente sem ter as pernas cerradas).
Dessa forma, a incorporação da dominação também pela dominada é
uma estratégia poderosa e difícil de ser rompida: “elas estão condenadas a dar,
a todo instante, aparência de fundamento natural à identidade minoritária que
lhes é socialmente designada” (p.41)
Os esquemas de pensamento resultantes da incorporação da
dominação tornam o ato de conhecer, na verdade, o ato de reconhecer a
dominação, fazendo com que o dominado, no caso a mulher, contribua para a
violência simbólica sofrida por ela própria.
“Também sempre vi na dominação masculina, e no
modo como é imposta e vivenciada, o exemplo por excelência
desta submissão paradoxal, resultante daquilo que eu chamo
de violência simbólica, violência suave, insensível, invisível a
suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias
puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou,
mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento,
ou, em última instância do sentimento” (BOURDIEU, 2003, p.7-
8).
Ir contra essa gica é duplamente difícil, pois se esse é o modo como a
mulher é concebida pela sociedade, contrariá-lo o requer a fabricação de
uma nova identidade social do ser feminino, como primeiramente, sentir os
efeitos de uma disposição em que se a mulher assumir o domínio, é rebaixada
socialmente e se torna uma mulher diminuída. (BOZON apud BOURDIEU,
2003).
Entre os fatores institucionais da reprodução da divisão dos gêneros,
Bourdieu (2003) cita a Escola como um dos responsáveis por continuar a
transmitir os pressupostos da representação patriarcal, mesmo após a
libertação da tutela da Igreja sobre a Escola. Embora algumas mudanças
visíveis tenham ocorrido na condição das mulheres graças a um maior acesso
à educação formal, o autor afirma que a permanência de certas desigualdades
na instituição escolar não deve ser mascarada, como, por exemplo, quando
professores das disciplinas científicas solicitam mais os rapazes do que as
moças.
A escola seria, portanto, um local importante para o enfrentamento das
desigualdades de gênero, o que explica políticas públicas como o Gênero e
Diversidade na Escola.
O referencial teórico trabalhado nesse capítulo demonstra que o
princípio da hierarquização de valores está presente nas sociedades
modernas. Essa idéia irá embasar a análise do GDE, uma vez que o curso
representou uma política pública em prol da diversidade. Isso quer dizer que o
próprio respeito à diferença tornou-se um valor a ser implementado em
detrimento de outros. Assim, ao analisar o material do curso será possível
investigar como se deu essa coexistência de valores: a relacionalidade do
individualismo como valor englobante.
O capítulo a seguir busca apresentar e descrever o curso GDE a partir
do contexto internacional sobre os direitos sexuais nos últimos anos. Esse
contexto se conformou numa política sexual específica que inseriu a
sexualidade em políticas públicas para a educação como no caso do GDE.
Nessa conjuntura, os objetivos e os conteúdos do curso serão apresentados
para que a análise do curso, com o recorte teórico aqui trabalhado, seja
possível.
III - O curso Gênero e Diversidade na Escola
“(...) o curso Gênero e diversidade na escola tem por
objetivos políticos, sociais e educacionais desenvolver a
capacidade de professores/as de à séries do
Ensino Fundamental da rede pública, para que possam
compreender e posicionar-se diante das transformações
políticas, econômicas e socioculturais que requerem o
reconhecimento e o respeito à diversidade sociocultural
do povo brasileiro e dos povos de todo o mundo. O
reconhecimento de que negros e negras, índios e índias,
mulheres e homossexuais, dentre outros grupos
discriminados, devem ser respeitados/as em suas
identidades, diferenças e especificidades porque tal
respeito é um direito social inalienável” (PEREIRA et al,
2007, p.37).
Nesse capítulo o que se propõe é uma descrição geral do curso Gênero
e Diversidade na Escola. Para tanto, primeiro seanalisada a trajetória dos
direitos humanos e sexuais para tornar coerente a elaboração do curso dentro
do contexto nacional e internacional das políticas públicas para sexualidade,
de uma forma geral, e para a sexualidade dentro da educação. Em seguida o
que se pretende é a descrição da estrutura do curso, de modo que seja
possível estabelecer relações entre seus objetivos e conteúdos com os valores
dos cursistas, que será o assunto do próximo capítulo.
3.1 Sexualidade e direitos humanos
Os direitos humanos, desde a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, em 1948, apresentam como característica intrínseca à sua trajetória
um caráter ambíguo, fruto das mesmas tensões entre o universal e o particular
trabalhadas no capítulo anterior. Isso porque os direitos humanos se
estabelecem, desde então, em duas frentes: por um lado enfocam o princípio
de defesa da individualidade e por outro, se esforçam para garantir a
segurança social (VIANNA, 2004).
Essa duplicidade vai ser responsável por algumas contradições dentro
da esfera dos direitos humanos “(...) em determinados momentos o que
aparece em primeiro plano é a defesa dos direitos sociais como parte da
organização de certas ‘bandeiras’ ou grupos políticos (...) em outros é a da
liberdade individual que pode merecer destaque” (VIANNA, 2004, p.18).
Em 1993, na II Conferência Internacional de Direitos Humanos, realizada
em Viena, duas importantes direções para a área dos direitos humanos foram
definidas. A primeira diz respeito à inclusão das organizações não-
governamentais “como atores relevantes na implementação dos direitos
humanos” (idem, p.18). A outra se refere ao desdobramento da noção inicial de
indivíduo que agora passa a abarcar sujeitos específicos tidos como
minoritários, o que teve como conseqüência direta a incorporação das
questões específicas das mulheres e das crianças no texto final da
Conferência.
De uma forma geral, a elaboração do curso Gênero e Diversidade na
Escola se relaciona com o crescimento da discussão sobre gênero e,
principalmente, sobre sexualidade dentro do campo dos direitos humanos.
Antes de 1993, a sexualidade estava ausente do discurso internacional sobre
os direitos humanos. Segundo Petchesky (1999) a Conferência Internacional
sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo, em 1994 e a IV
Conferência Mundial da Mulher, realizada em Beijing, 1995, são marcos
internacionais da linguagem sobre os direitos sexuais.
A autora explica que essa ausência pode ter acontecido por causa da
idéia dos direitos humanos se apoiarem na divisão entre as esferas pública e
privada. No entanto, Petchesky atenta para o fato de que essas divisões entre
o público e o privado nunca terem sido muito rígidas nos princípios
estabelecidos pelos direitos humanos, que desde a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, em 1948, temas como a família, a religião, o casamento
heterossexual e a reprodução aprecem de forma implícita aos direitos
humanos. É na Conferência do Cairo de 1994 que a sexualidade começa a
aparecer em documentos internacionais como um campo por si só, embora
ligado exclusivamente à saúde e não ao prazer.
Na plataforma de ação da Conferência de Beijing, em 1995, as mulheres
são consideradas, pela primeira vez na história desse tipo de documento, como
seres sexuais, além de reprodutivos. Após essas duas conferências, os direitos
reprodutivos, entendidos como “a capacidade de se reproduzir e a liberdade de
decidir se, quando e com que freqüência” (PETECHESKY, 1999, p. 21) foram
definitivamente inseridos na linguagem dos direitos humanos. Apesar disso,
não , nesses documentos, nenhuma menção aos corpos femininos
sexualizados ou aos corpos não heterossexuais relacionando o prazer ao
direito.
Nesse sentido, os direitos sexuais foram edificados numa tônica de
negação, a negação do abuso e o direito à privacidade, concretizado no lema
feminista “nosso corpo nos pertence”, o que leva a duas questões: a proteção
contra os abusos, exclusivamente, e a proteção de certos usos dos corpos de
acordo com uma lógica privada. Essa dificuldade em tratar os direitos sexuais
de uma forma mais positiva, ao invés de somente negar o abuso, se deve,
entre outras coisas, à homofobia e às contradições dos movimentos feministas
e de lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e transgêneros (LGBTTT)
que procuram ao mesmo tempo transformar a sociedade e fazer parte dela,
implicando em “riscos de compromisso e da co-opção” (Idem, p. 33).
Ainda assim, um enfoque mais liberatório dos direitos sexuais também
apresenta seus dilemas. Entre eles está a problemática de tratar os direitos
sexuais como uma categoria inclusiva e universal, que acaba por se tornar
excludente, como a força adquirida pela expressão “direitos sexuais e
reprodutivos” que terminou por direcionar os direitos sexuais para os direitos
reprodutivos.
Para Alice Miller (2000) a relação entre os direitos sexuais e os direitos
reprodutivos fez com que os direitos sexuais fossem vistos de uma forma geral
como uma subdivisão dos direitos reprodutivos. Uma das conseqüências disso,
de excluir da alçada da proteção dos direitos humanos as práticas não
heterossexuais e não reprodutivas, foi deixar essas práticas para o domínio da
moral, da religião ou da regulação criminal.
Para Miller, o desenvolvimento de uma política de direitos sexuais como
direitos humanos que seja aplicável a uma maior diversidade de pessoas exige
a compreensão das teorias da construção social da sexualidade, pois na
determinação de marcos de direitos específicos, como no caso dos marcos
contra a violência sexual, não se abordou as implicações do pensamento crítico
da construção social da sexualidade.
Segundo a autora, as demandas e a linguagem dos direitos sexuais têm
progredido dentro das esferas do ativismo e dos marcos legais de formas
múltiplas e contraditórias pois os direitos humanos freqüentemente atendem a
grupos específicos de acordo com a categoria de direitos, como raça, sexo,
idade e nação.
As tensões características da esfera dos direitos humanos e,
principalmente da incorporação da sexualidade como um importante campo
para essa esfera, estiveram presentes no curso Gênero e Diversidade na
Escola pois a instituição responsável pela execução do curso foi uma
organização vinculada a uma universidade pública de reconhecida atuação no
campo dos direitos sexuais: o Centro Latino Americano em Sexualidade e
Direitos Humanos (CLAM).
A própria participação do CLAM no projeto, a convite da Secretaria de
Políticas para as Mulheres (SPM) da Presidência da República indica uma
aproximação do governo para com os direitos humanos. Essa aproximação
pressupôs, em alguma medida, que o curso também seria fruto de tensões,
uma vez que ao invés de ter sido formulado com diretrizes fechadas pelo
próprio governo, o curso foi elaborado em parceria com uma instituição atuante
no campo do estudo e da pesquisa em gênero e sexualidade, com uma
perspectiva de direitos humanos.
3.2 Contexto da elaboração do curso
O crescimento do debate sobre a sexualidade na esfera dos direitos
humanos, e as tensões que provem daí, tiveram um desdobramento específico
para a educação, que certamente também aumentou a possibilidade de
realização de um curso que tratasse dessa temática para professores da
educação básica.
A partir de 1998, com a publicação dos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCNs) para o ensino fundamental, as questões de gênero e
sexualidade são trabalhadas de forma mais concisa em documentos do
governo para direcionar os conteúdos escolares.
Apesar da Constituição Federal de 1988 mencionar os direitos relativos
à diversidade, quando defende o “bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” (Art. 3º, IV),
ao discutir o sistema educacional brasileiro, as questões de gênero e
sexualidade não estão presentes (VIANNA e UNBENHAUM, 2004). É somente
com a aprovação dos PCNs, em consonância com o crescimento de
campanhas realizadas pelo movimento LGBTTT (com o apoio do programa
Nacional DST e AIDS) (HENRIQUES, BRANDT, JUNQUEIRA e CHAMUSCA,
2007) e com a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1996 que as
temáticas de gênero e sexualidade são tratadas explicitamente como temas da
educação brasileira.
Dentro dos PCNs, as questões de gênero e sexualidade estão presentes
nos temas transversais, que se constituem de recortes de conteúdos das
diversas disciplinas escolares objetivando enfatizar o modo como as relações
sociais deveriam ser constituídas para a prática da cidadania, efetivando assim,
uma determinada forma de regulação moral (UBERTI, 2000). São seis os
temas transversais: ética, meio ambiente, orientação sexual, saúde e trabalho,
pluralidade cultural e consumo.
A inclusão desses temas nos currículos das nossas escolas, também se
relaciona com a solidificação do conceito pós-estruturalista do currículo que,
para além das teorias críticas, que compreendiam o currículo como um
território político, visualizado como o poder Estatal, o compreende como uma
rede de poderes, não mais limitadas às relações econômicas, mas englobando
os processos de dominação nas questões da raça, etnia, gênero e sexualidade
(SILVA, 2003).
Mesmo sendo elaborado como um parâmetro e não como uma diretriz
obrigatória, os PCNs pretendem alcançar outros locais da produção
pedagógica estabelecendo, de acordo com Vianna e Unbenhaum “uma meta
educacional para a qual devem convergir as ações políticas do MEC, tais como
as relativas aos projetos voltados para formação inicial e continuada de
professores, à análise e compra de livros e outros materiais didáticos e à
avaliação nacional” (2004, p.89).
Após a publicação dos PCNs, no entanto, a aplicação prática dessa
ampla meta educacional se restringiu às determinações curriculares,
executadas principalmente por causa do Programa Nacional do Livro Didático
que passou a adotar como um dos critérios para a aprovação e compra de
coleções de livros didáticos pelo MEC, a conformidade com os PCNs
(MIRANDA e LUCA, 2004).
No que tange ao conteúdo impresso, as determinações do MEC, a partir
dos PCNs, parecem dar conta de temas importantes, outrora excluídos dos
conteúdos escolares. Pode-se afirmar que os conteúdos foram modificados,
mas certamente a mudança dos conteúdos não é suficiente para
transformar o ensino em sala de aula para que contemple os direitos humanos
de uma forma ampla. A maneira com a qual os professores se relacionam com
as temáticas de gênero e sexualidade também é fundamental para que a
transformação ambicionada nos PCNs se realize de forma mais concreta.
Nesse contexto, a criação do Programa Brasil sem Homofobia em 2004,
integrado pelos ministérios da Cultura, Educação, Trabalho e Emprego, Justiça,
Saúde e Relações Exteriores; as Secretarias Especiais de Políticas para as
Mulheres e da Promoção da Igualdade Racial e a Secretaria de Direitos
Humanos, e também a criação do Plano Nacional de Políticas para Mulheres,
no mesmo ano, revelam um quadro oficial de comprometimento com a
ampliação de políticas públicas para o enfrentamento do sexismo e da
homofobia na sociedade brasileira.
O curso piloto Gênero e Diversidade na Escola que foi realizado em
2006 para professores da rede pública brasileira é reflexo desse processo. O
curso expressou uma tentativa de oferecer uma formação nas temáticas de
gênero, sexualidade, raça e etnia para esses profissionais, uma vez que as
licenciaturas e as formações de professores nas universidades brasileiras não
priorizam esses assuntos (MEYER, RIBEIRO e RIBEIRO, 2004).
A execução de políticas para as questões de gênero, raça, etnia e
orientação sexual está presente nas resoluções da Conferência Nacional de
Políticas para as Mulheres, em 2004. Em fins desse mesmo ano realizou-se o
Seminário Internacional Educando para a Igualdade de Gênero, Raça e
Orientação Sexual.
A partir desses dois eventos começou-se a discutir um curso de
formação de educadores, que abordasse articuladamente os temas de gênero,
orientação sexual e relações étnico-raciais. Estiveram presentes no seminário
acadêmicos e membros de entidades da sociedade civil ligados à ações
educativas dos temas em questão.
O curso foi concebido inicialmente como uma parceria da Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), com a Secretaria Especial de
Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir) ambas vinculadas à
Presidência da República -, e com o Ministério da Educação.
De acordo com o relatado nas diretrizes político-pedagógicas do curso
(PEREIRA et al, 2007) os documentos que orientaram as metas presentes no
curso foram:
• Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, de 2003.
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional LDB (Lei 9.294, de 20-
12-1996), em específico seu art. 26-A, que determina a obrigatoriedade do
ensino da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana nos currículos da
Educação Básica (Lei n° 10.639).
• Plano Nacional de Política para as Mulheres, de dezembro de 2004.
• Programa Brasil sem Homofobia, Programa de Combate à Violência e à
Discriminação contra GLTTB e Promoção da Cidadania Homossexual, de
março de 2004.
A oferta do curso, ainda segundo as diretrizes político-pedagógicas do
GDE (PEREIRA et al, 2007, p. 34), enquadra-se numa ação de política pública
que está de acordo com os seguintes artigos da Constituição Federal:
Art. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático
de direito e tem como fundamentos:
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
Art. 3º Os objetivos fundamentais da República são:
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor,
idade e quaisquer outras formas de discriminação;
Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações
internacionais pelos seguintes princípios:
VIII – repúdio ao terrorismo e ao racismo;
Art. 5º Todos são iguais perante e lei, sem distinção de qualquer natureza;
XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória aos direitos e liberdades
fundamentais;
XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à
pena de reclusão.
As diretrizes (PEREIRA et al, 2007, p.35) ainda afirmam que o Brasil, como
signatário da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, deverá
respeitar os seus artigos e cita:
Art. 1º Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos,
são dotados de razão e consciências e devem agir em relação uns aos outros
com espírito de fraternidade;
Art. 2º Toda pessoa tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades
estabelecidas nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de
raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política, ou de outra natureza, origem
nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
Além disso, também é citado como justificativa legal a Declaração e Programa
de Ação da Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Discriminações Correlatas (Durban, África do Sul, 8/9/2001) e a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a
Mulher – CEDAW.
3.3 Descrição do curso
De acordo com Pereira et al (2007) o curso Gênero e diversidade na
escola, em sua fase piloto, dirigiu-se à atualização de 1.200 professores do
e ciclo do Ensino Fundamental da rede pública de seis municípios do país
nas temáticas de gênero, sexualidade e orientação sexual, e relações étnico-
raciais. A carga horária total do curso foi de 200 horas, sendo 30 delas
presenciais e 170 horas de ensino on-line, que ocorreram entre junho e
setembro de 2006, no e-ProInfo (www.eproinfo.mec.gov.br), ambiente
colaborativo de aprendizagem do Ministério da Educação.
As instituições responsáveis pelo desenvolvimento e execução do curso-
piloto foram: Centro Latino-Americano em Sexualidade e Direitos Humanos do
Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(CLAM-IMS/UERJ); Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM);
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR);
Ministério da Educação (Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade - SECAD/MEC e Secretaria de Ensino a Distância - SEED/MEC) e
British Council. A participação dessas instituições foi oficializada por meio de
um Protocolo de Intenções assinado em 11 de agosto de 2005.
De acordo com Rohden e Carrara (2008), o CLAM ficou responsável pela
execução do projeto, sendo suas principais funções: a coordenação da
elaboração do material didático, a seleção e o treinamento dos professores
on-line e dos orientadores temáticos, a seleção dos cursistas e, em parceria
com o Governo Federal, a coordenação do desenvolvimento do programa.
Ainda na fase em que o projeto estava sendo discutido com as equipes dos
órgãos do governo federal (SPM, SECAD/MEC e SEPPIR), foi acordado a
necessidade de contratação de especialistas das áreas de educação e
educação a distância para integrar a equipe do CLAM (BARRETO e ARAÚJO,
2008).
Os municípios que participaram do curso-piloto Niterói e Nova Iguaçu
(RJ), Maringá (PR), Dourados (MS), Porto Velho (RO) e Salvador (BA) –
contemplam intencionalmente todas as regiões brasileiras e apresentam
diferentes perfis de tamanho e localização.
Os estados e municípios que participaram do curso tiveram a
responsabilidade de “disponibilizar a estrutura dos núcleos tecnológicos das
secretarias estaduais de educação e laboratórios de informática das escolas
para capacitar os professores nas tecnologias do ambiente virtual utilizado”
(ROHDEN e CARRARA, 2008 p.13). O ambiente virtual utilizado foi o e-
ProInfo, desenvolvido pelo Ministério da Educação, por meio do Programa
Nacional de Informática em Educação (ProInfo).
Ainda segundo Rohden e Carrara (2008), o objetivo geral do curso foi
“ampliar a compreensão sobre a dinâmica dos processos de discriminação
presentes na sociedade brasileira, especificamente o racismo, o sexismo e a
homofobia, possibilitando o fortalecimento de ações de combate a essas
práticas na e por meio da escola” (p.12). Ainda assim, não foi objetivo do curso,
segundo seus coordenadores, instrumentalizar os professores cursistas para
trabalharem com as temáticas tratadas no curso em sala de aula e sim
“propiciar as/os cursistas a compreensão das implicações éticas das diferentes
posições em jogo e possibilitar a construção de sua própria opinião nesse
debate” (ROHDEN e CARRARA, 2008, p.13).
De acordo com relatório estatístico (BARRETO, 2007), de fato o curso
piloto teve um total de 1.415 cursistas inscritos, sendo que 1.071 alunos
efetivamente iniciaram o programa. Desses, 865 concluíram as atividades. A
evasão ficou em 19% no decorrer dos três meses de duração do curso. Esse
índice é considerado baixo quando comparado à média de evasão dos cursos
de educação a distância em geral, que gira em torno de 30% a 35%.
Os cursistas foram divididos em 36 turmas, sendo que para cada turma
um professor on-line foi designado para mediar a aprendizagem dos conteúdos
desenvolvidos pelos professores especialistas. As turmas se dividiram em dois
tipos: a regular e a mista. A regular era composta por cursistas de um mesmo
pólo e a mista contava com cursistas de diferentes municípios, dentre os
contempladas no piloto. Os professores on-line foram assistidos por duas
coordenadoras pedagógicas de Educação a Distância, que os orientaram em
relação à metodologia do ensino a distância, e por quatro orientadores de
tema, que ficaram disponíveis para esclarecer dúvidas em relação à
abordagem dos temas principais do curso.
Para cada um dos municípios escolhidos foram selecionados 200
profissionais de educação para participar do curso. Apesar da maioria serem
professores, também participaram alguns representantes de outras categorias
envolvidas com a Educação Básica como gestores das secretarias estaduais e
municipais e orientadores educacionais.
As diretrizes político-pedagógicas do curso (PEREIRA et al, 2007)
explica a escolha dos profissionais do ao ano
4
do Ensino Fundamental
por dois motivos: o primeiro, porque os temas trabalhados no curso são mais
presentes entre adolescentes e jovens dos ensinos Fundamental e Médio, e o
segundo porque o curso objetivou contemplar profissionais das redes municipal
e estadual, e como o Ensino Médio é provido em maior parte pela rede
estadual, optou-se somente pelos terceiros e quartos ciclos do Fundamental.
O documento também afirma que os professores on-line foram
selecionados entre profissionais com bom domínio prévio na área de
conhecimento dos módulos e com algum conhecimento das tecnologias
necessárias para a aplicação do curso a distância. Os professores on-line se
dividiam entre estudantes de pós-graduação e profissionais s-graduados, e
passaram por uma capacitação nas temáticas do curso e na plataforma virtual
de aprendizagem.
De acordo com Barreto e Araújo (2008) a elaboração dos conteúdos e
do material didático do curso ocorreu logo após o processo de negociação das
parcerias e definição da grade curricular do curso e gerou um debate intenso
graças aos diferentes propósitos das instituições que estavam representadas
4
À época da elaboração e oferta do curso, o ensino fundamental contava com um ano a menos. As séries
em questão eram a 5ª, 6ª, e 8ª. Atualmente, foi adicionado um ano no primeiro segmento do
fundamental tirado da educação infantil, portanto, o terceiro e quarto ciclo do ensino fundamental são
constituídos pelo 6º, ,8º e 9º anos. A mudança da nomenclatura de “série” para “ano” é oficial e está
assim definida para evitar confusões. Nessa dissertação optou-se pela nova nomenclatura para facilitar o
entendimento, já que a série antiga é igual ao 6º ano atual, e que cada vez mais cai em desuso a
nomenclatura antiga.
no curso. O material foi desenvolvido por professores acadêmicos
especializados nos assuntos tratados no curso, chamados de “professores
especialistas” sendo que o conteúdo final recebeu contribuições da equipe
governamental e dos professores on-line.
O curso Gênero e Diversidade na Escola foi dividido em cinco módulos –
I- Diversidade, II- Gênero, III- Sexualidade e orientação sexual, IV- Relações
étnico-racias e V- Avaliação e cada módulo foi subdividido em unidades. A
seguir, a descrição dos conteúdos e objetivos de cada módulo.
•Módulo I – Abertura.
O primeiro módulo do curso fez uma apresentação geral do projeto
incluindo metodologia, cronograma e avaliação. Além disso, o módulo de
abertura procurou discutir os conceitos de cultura, diversidade cultural,
etnocentrismo, estereótipo, preconceito e discriminação (ROHDEN e
CARRARA, 2008).
Os conceitos de cultura e de diversidade cultural foram trabalhados para
problematizar o caráter de comportamentos e identidades sociais. com a
discussão sobre o etnocentrismo, pretendeu-se debater os estereótipos que
recaem sobre determinados grupos sociais e sua naturalização. A partir daí
concepções etnocêntricas e estereótipos foram abordadas na sua articulação
com o preconceito e a discriminação. O dulo também discutiu a inserção da
escola na eliminação do preconceito e de práticas discriminatórias. Com duas
unidades, o módulo de abertura foi assim dividido:
Unidade 1: Apresentação.
Projeto;
Metodologia;
Cronograma;
Avaliação;
Ambiente e-ProInfo.
Unidade 2: Diversidade .
Apresentação;
Uma definição de cultura;
A diversidade cultural;
Etnocentrismo, estereótipo e preconceito;
Dinâmica cultural e respeito e valorização da diversidade;
O ambiente escolar face aos temas tratados.
•Módulo II – Gênero.
O segundo dulo tratou das relações de gênero, seja na sociedade
brasileira como um todo ou na esfera escolar. Para tanto discutiu a construção
social das identidades de gênero e o papel da escola na desconstrução dos
estereótipos de gênero. Temas como a divisão sexual do trabalho e de tarefas
foram abordados nesse módulo.
A desconstrução das categorias de gênero binárias foi trabalhada de
forma paralela com o questionamento do binarismo no plano da sexualidade.
Também se buscou a intersecção entre gênero e raça. Além dessas questões
foi trabalhada nesse módulo a violência de gênero de uma forma geral e
especificamente no ambiente escolar: “Ressalta-se que, de forma sutil e quase
imperceptível, estão presentes na escola formas de discriminação nas práticas
docentes, nas atividades didáticas e nos conteúdos curriculares que reforçam
as diferenças sociais entre homens e mulheres, tratando-as como se fossem
naturais” (ROHDEN e CARRARA, 2008, p. 17).
As unidades do módulo sobre gênero foram assim divididas:
Unidade 1: Gênero: um conceito importante para o conhecimento do mundo
social.
Apropriação cultural da diferença sexual;
Importância da socialização na família e na escola;
Construção social da identidade adolescente/juvenil e suas marcas de
gênero;
Diferenças de gênero na organização social da vida pública e privada;
Unidade 2: A importância dos movimentos sociais na luta contra as
desigualdades de gênero.
Discriminação de gênero no contexto da desigualdade social e étnico-racial;
A importância dos movimentos sociais;
A contribuição dos estudos de gênero;
A permanência da violência de gênero;
Participação feminina no mercado de trabalho: indicador preciso da
desigualdade de gênero.
Unidade 3: Gênero no cotidiano escolar.
Escola como espaço de eqüidade de gênero;
O gênero na docência;
Diferenças de gênero no cotidiano escolar;
Sucesso e fracasso escolar sob um enfoque de gênero;
Práticas esportivas construindo o gênero;
Gênero no currículo escolar.
•Módulo III - Sexualidade e orientação sexual
O módulo sobre sexualidade e orientação sexual teve como principal
objetivo “promover a reflexão sobre a relação entre sexualidade e sociedade,
discutindo as convenções relativas ao corpo, à identidade de gênero e à
orientação sexual, bem como a diversidade de valores, comportamentos e
identidades, segundo diferentes culturas, grupos sociais, contextos históricos e
experiências pessoais” (ROHDEN e CARRARA, 2008, p. 18). De acordo com
a perspectiva dos direitos humanos, o módulo buscou provocar nos cursistas
uma sensibilização para situações de preconceito, discriminação e violência
relacionadas à sexualidade.
Ainda de acordo com Rohden e Carrara (2008), a concepção de
sexualidade que esteve presente nesse módulo foi a da sexualidade como um
fenômeno que envolve dimensões além da biológica e psicológica, como
aspectos culturais, sociais, históricos e políticos. Além disso, foi discutida a
imposição da heterossexualidade na cultura ocidental moderna como normal e
natural.
A educação sexual no Brasil também foi um tema trabalhado nesse
módulo. Partiu-se da crítica à biologização presente na inserção da
sexualidade na educação brasileira. Aproximar as questões da sexualidade no
contexto educativo da realidade dos adolescentes foi outra intenção do módulo
que frisou para os cursistas que “As abordagens educativas para jovens sobre
prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), AIDS e gravidez
devem ser feitas tendo em vista que a formação e mudança de
comportamentos, suas escolhas e desejos não dependem apenas de decisões
racionais” (ROHDEN e CARRARA, 2008, p. 20).
As unidades do módulo de sexualidade e orientação sexual foram:
Unidade 1: Sexualidade: dimensão conceitual, diversidade, discriminação.
Sexualidade, sociedade e política;
A noção moderna de sexualidade;
O corpo e a sexualidade;
Identidade de gênero e orientação sexual;
Orientação sexual: desejos, comportamentos e identidades sexuais;
O combate à discriminação sexual.
Unidade 2: Saúde, sexualidade e reprodução.
As experiências e visões dos/as jovens sobre saúde, sexualidade e temas
afins como: diversidade sexual, direitos sexuais e reprodutivos, gravidez,
desejo, prazer, afeto, Aids e drogas, a partir do recorte de gênero, étnico-
racial e de classe;
Os limites e possibilidades das propostas educativas no âmbito escolar
focadas na saúde, na reprodução e na sexualidade;
A importância de ações conjuntas de diferentes instituições do governo, de
empresas e da sociedade civil na construção de ações educativas e
assistenciais relativas à saúde, sexualidade e reprodução;
Unidade 3: Sexualidade no cotidiano escolar.
Diversidade sexual na escola;
Controle sobre o gênero e a sexualidade a partir de jogos e brincadeiras;
Espaços formais de educação sexual na escola;
Diferentes fontes de informação sobre sexualidade.
•Módulo IV – Relações étnico-raciais
O estudo de conceitos-chave, como raça, racismo e etnicidade foi a
forma com que o quarto módulo abordou as questões de raça/etnia.
Além da
desigualdade racial, esse módulo trabalho também os sistemas de
classificações étnico-raciais, das intersecções dos preconceitos de raça,
gênero e sexualidade, e os preconceitos de raça/etnia nos currículos escolares
e livros didáticos.
Para tanto, a trajetória da questão racial no Brasil é trabalhada,
descrevendo as teorias racistas dos séculos XIX e XX, e a defesa da
miscigenação para o “branqueamento” da nação. A partir daí, o mito da
democracia racial é problematizado.
Sobre os diferentes preconceitos trabalhados “o módulo leva a
compreender que racismo, homofobia e machismo estão difusos na sociedade
não sendo exclusivos de nenhum grupo social” (ROHDEN e CARRARA, 2008,
pp. 20-21).
As unidades desse módulo ficaram assim distribuídas:
Unidade 1: Noções de raça, racismo e etnicidade.
Os conceitos de raça, racismo e etnicidade;
Sistemas de classificação de cor e raça em uma perspectiva comparada: as
diferenças nas classificações raciais entre Brasil e Estados Unidos;
A relação entre as classificações raciais e as formas de racismo;
A inter-relação entre raça, sexualidade, etnia e gênero;
Unidade 2: Desigualdade Racial.
Raça, gênero e desigualdades: alguns dados;
As especificidades da desigualdade étnico-racial no cenário das
desigualdades no Brasil;
Estereótipos, preconceito e discriminação racial.
Unidade 3: Igualdade étnico-racial também se aprende na escola.
“Escola Sem Cor” em um país de diferentes raças e etnias;
Estereótipos e preconceitos étnico-raciais no currículo escolar;
Do combate ao racismo à promoção da igualdade étnico-racial;
O que muda com a Lei n° 10.639/2003;
As Diretrizes Curriculares para a educação das relações étnico-raciais.
• Módulo V – Avaliação
O quinto módulo se dedicou à avaliação do curso. Essa avaliação foi
realizadas com base em três segmentos:
Elaboração do Memorial; consiste em um texto elaborado pelo cursista
abarcando sua experiência e desenvolvimento no curso todo. Para tanto, o
cursista deveria usar os seus registros na ferramenta interativa do e-ProInfo
denominada Diário de Bordo.
Produção e apresentação do trabalho final; o cursista deveria apresentar
uma proposta de atividade ou um projeto sobre os temas trabalhados no
curso.
Realização da auto-avaliação.
Além das atividades desenvolvidas nesse quinto módulo, a participação dos
cursistas nos fóruns ao longo do curso também foi avaliada e constituiu parte
da nota final dos cursistas.
A nota final dos cursistas foi assim elaborada:
-Participação nos fóruns (3.0 pontos)
-Trabalho final (3.0 pontos)
-Memorial (2.0 pontos)
-Auto-avaliação do/a cursista (2.0 pontos)
Para ser aprovado o cursista deveria obter uma média mínima de 5.0
pontos.
Como um todo percebe-se que os conteúdos do curso refletem a
perspectiva das ciências sociais e dos direitos humanos como ponto de partida
para a discussão.
Segundo Rohden e Carrara (2008), essa premissa teve
papel fundamental na escolha dos especialistas convidados a escrever os
textos que serviram de base para os conteúdos finais do curso.
Além desses
textos, também foram desenvolvidos casos a partir dos quais as discussões
interativas se realizariam nos fóruns de discussão de caso.
Como foi dito, a oferta do curso, na etapa não-presencial, foi feita por
meio da plataforma e-ProInfo, que é um ambiente de aprendizagem virtual do
Ministério da Educação. Para se compreender a dinâmica dos cursistas nessa
etapa do curso se faz necessária a descrição das ferramentas do e-ProInfo e
das atividades nelas propostas. Essa descrição consta nas diretrizes político-
pedagógicas do curso (PEREIRA et al, 2007).
- Diário de Bordo: Na abertura do módulo, antes da leitura de cada unidade, era
proposto ao cursista escrever o que sabia ou tinha vivenciado sobre o
tema a ser tratado. Ao final do estudo, logo depois da leitura do que os outros
cursistas da turma escreveram no fórum e da leitura dos textos temáticos e do
resumo da unidade, ele era novamente convidado a escrever no Diário de
Bordo para registrar a comparação das suas idéias com as dos demais
cursistas. O texto produzido no Diário de Bordo pelo cursista não era
disponibilizado para ser compartilhado pela turma. Somente o professor on-line
daquele cursista tinha acesso a esse texto.
- Fórum de caso: o cursista era convidado pelo professor on-line a participar do
Fórum no momento da abertura da unidade. Esse fórum permanecia aberto
durante toda a semana de realização do estudo da unidade. O fórum se
estabelecia a partir de um caso que o professor on-line escolhia para ser posto
em debate entre aqueles apresentados a ele no material didático.
- Bate-papo: atividade livre que podia ser realizada por iniciativa dos cursistas
da turma ou de grupos que queriam se formar dentro dela.
Assim, de forma resumida, a dinâmica do cursista consistia em logo ao
início do módulo ler a proposta de estudo e se dirigir ao Diário de Bordo para
escrever o que lhe era solicitado. Em seguida, a partir da tela-guia, ler os textos
temáticos e de seus complementos. O ritmo de leitura era determinado pelo
cursista apesar de que lhe era determinado o prazo máximo de uma semana
para ler os textos temáticos de cada unidade e realizar as atividades propostas
no Diário de Bordo e no Fórum, a partir do que fosse indicado para discussão
(PEREIRA et al, 2007).
Ao professor on-line cabia convocar os cursistas a iniciarem as
atividades da unidade relativa àquela semana; estimular os cursistas a
realizarem as atividades propostas (leitura, participação no Fórum, registros no
Diário de Bordo); abrir, motivar, participar e encerrar os fóruns; acompanhar os
fóruns e sempre conduzir a discussão dos debates no sentido de que não se
afastassem do tema central da unidade e que os objetivos de aprendizagem
sejam atingidos; ser sempre atencioso, estimulante, diretivo em relação ao
tema em pauta, com o cuidado de respeitar as diferenças regionais, culturais e
mesmo religiosas que possam existir entre os cursistas; incentivar, nos fóruns e
nos textos produzidos no Diário de Bordo, o relato e a troca de experiências
docentes entre os cursistas, para que fosse aproveitada a riqueza da
diversidade regional presente entre os participantes; solicitar que lessem os
textos temáticos, definindo sempre o prazo semanal de leitura de cada unidade
e colocando-se à disposição para esclarecer possíveis dúvidas; solicitar, ao
final da unidade, que cumprissem a atividade proposta na tela resumo da
unidade e que essa deveria ser realizada no Diário de Bordo (PEREIRA et al,
2007).
Como foi dito, o professor on-line foi orientado por duas
coordenadoras pedagógicas de educação a distância e por quatro orientadores
de tema. O papel dos orientadores temáticos foi dar “apoio aos professores on-
line para esclarecer dúvidas, principalmente durante o dulo dedicado ao
tema que orientava e, durante os outros módulos, garantir que houvesse um
tratamento transversal de todos os temas” (PEREIRA et al, 2007, p.48). Para
tanto, os orientadores temáticos coordenavam um fórum no qual trabalhavam
as demandas trazidas pelos professores on-line e também os assuntos que
julgavam necessários de acordo com o acompanhamento das turmas.
Nesse capítulo, pudemos entender que políticas originaram o curso
Gênero e Diversidade na Escola em meio à inclusão da sexualidade no campo
dos direitos humanos. Após situar o curso na esfera dos direitos sexuais e na
esfera das políticas para a educação, a descrição da complexa estrutura do
curso se fez necessária, que para análise do discurso dos cursistas nos
fóruns de caso, a ser feita no próximo capítulo, precisaríamos entender o que é
um fórum de caso e quais eram os objetivos e conteúdos trabalhados no curso.
IV- Valores em conflito
Como vimos na discussão teórica do capítulo II, a construção do sujeito
moderno está inserida na lógica do individualismo, da valorização do indivíduo
como valor englobante, nos termos utilizados por Dumont (1985). O curso
Gênero e Diversidade na Escola pode ser entendido como uma política
moderna que coaduna com os pressupostos problematizados pelo autor. Ao
mesmo tempo em que o curso é gerido dentro da ordem da valorização do
indivíduo também ambiciona educar para a promoção de posturas valorizadas
pelos direitos humanos. Para compreendermos como essa questão se
desenrolou durante a oferta do GDE, esse capítulo se dedicará a analisar a
discussão entre os cursistas e os agentes responsáveis pela aplicação do
curso, principalmente no tocante ao debate entre a idéia de supremacia do
indivíduo e a tônica no respeito à diversidade.
4.1 Descrição metodológica
O material escolhido para a análise foram debates entre os cursistas
entre si e professores on-line nos runs de caso. Dentre toda a documentação
resultante da realização do curso que nos foi disponibilizada pelo CLAM
5
, os
conteúdos dos fóruns de caso foram julgados como mais profícuos para a
análise que aqui será feita. Após a leitura de todo material verificou-se que em
todas as outras produções dos cursistas houve uma preocupação com a
avaliação, que é perceptível nessas produções uma tentativa de reproduzir,
por parte dos cursistas, os conteúdos dos textos que lhes foram apresentados
durante o curso.
A avaliação que foi feita sobre os fóruns de caso foi por grau e qualidade
da interação e não pelo conteúdo das mensagens em si, o que permitiu que
5
Também resultaram da participação dos cursistas: os fóruns de dúvidas conceituais, os
trabalhos finais apresentação de uma proposta de atividade com alunos dos e ciclos do
Ensino Fundamental sobre os temas gênero, sexualidade e orientação sexual e relações
étnico-raciais e os memoriais, em que os cursistas deveriam apresentar a síntese dos
conceitos trabalhados ao longo do curso, demonstrando ter incorporado seus principais
aspectos.
eles se expressassem de forma mais desprendida do discurso “oficial” do
curso. O outro rum do curso, o fórum de dúvidas conceituais, apesar de não
recair sob a tônica da avaliação como o memorial e o trabalho final, foi um
fórum de pouca participação, que se restringia a esclarecer dúvidas dos
cursistas sobre os conceitos trabalhados nas unidades.
Para definir os fóruns de caso como um local privilegiado para a análise
que aqui se pretende fazer, uma longa etapa de leitura dos materiais que nos
foram disponibilizados foi empreendida. Além dos materiais que os cursistas
produziram, como os dois fóruns, o trabalho final e o memorial, também foram
lidos todos os relatórios provenientes do curso: o relatório estatístico, os anais
das oficinas de avaliação do curso (realizadas em Brasília após o término do
piloto) o relatório de orientação temática, o relatório de avaliação dos
professores on-line e o relatório das aulas presenciais. Além disso, o convite
para realizar a revisão de algumas publicações resultantes do curso propiciou
o conhecimento a fundo do conteúdo e de todo o funcionamento do curso, o
que facilitou a escolha dos fóruns de caso como o alvo fundamental para essa
análise
6
.
A intenção em pesquisar o discurso dos fóruns de caso não foi de
analisar as posições individuais dos cursistas e sim os posicionamentos destes
enquanto coletivo. Se o objetivo fosse investigar o posicionamento de cada
cursista individualmente teria sido mais interessante analisar os textos dos
Diários de Bordo, que essa era uma ferramenta do e-ProInfo que permitia o
acesso somente para o cursista e seu professor on-line. Mesmo assim, é
importante frisar que por questões éticas esse material não nos foi
disponibilizado.
Com relação às questões éticas, todos os envolvidos com o curso
sabiam que o material dos fóruns públicos poderiam ser usados em análises
posteriores. Para proteger a identidade dos cursistas e dos professores on-line
seus nomes foram trocados por nomes fictícios ao longo da análise do fóruns
de caso presente nesse capítulo.
6
Para uma outra pesquisa, também seria interessante analisar a distância entre o discurso dos
cursistas nos espaços formais de avaliação, como o trabalho final e o memorial, e o discurso
dos fóruns de caso.
Durante o levantamento e leitura dos materiais do curso, a hipótese de
combinar as posições dos cursistas com a sua região também foi levada em
conta, mas após a leitura dos fóruns verificou-se que a marcação regional não
foi muito relevante, e incorporá-la na analise pouco contribuiria para os
objetivos definidos para essa pesquisa.
Além dos fóruns de discussão de caso, também serão utilizados, na
segunda parte do capítulo, os relatórios de orientação temática e de avaliação
dos professores on-line, que nos ajudarão a entender como se deu a aplicação
dessa política pública, já que esse dois “personagens” do curso, os professores
on-line e os orientadores temáticos, eram seus representantes no contato com
os cursistas.
Nos fóruns de caso os cursistas eram instigados a se posicionarem sobre
as temáticas do curso. Os casos discutidos nesses fóruns expunham diferentes
ângulos das questões trabalhadas na parte teórica do curso a partir de diversas
situações, reais ou inventadas. Assim, os cursistas opinavam sobre as
situações e deixavam transparecer quais os valores que lhes eram caros.
Como foi dito no capítulo anterior, os fóruns de caso eram abertos antes da
unidade ser iniciada e eram encerrados no final da unidade, o que totaliza em
um fórum para cada unidade em cada turma. Como foram 36 turmas no curso,
sendo que em 10 unidades a discussão de caso (uma unidade do módulo
diversidade, três do módulo gênero, três do dulo sexualidade e orientação
sexual e três do módulo relações étnico-raciais), o corpus da análise é
constituído de 360 fóruns.
Os fóruns de discussão de caso apresentam algumas marcas que
interessam a discussão que essa pesquisa intenciona instigar. Os relatos
retirados dos fóruns pretendem mostrar essas marcas, não pela quantidade de
vezes em que elas aparecem, mas pela sua representatividade. Assim, optou-
se aqui não pela exposição de uma grande quantidade de relatos e sim pelos
relatos que me pareceram mais sociologicamente significativos.
Cada fórum para a discussão de caso tinha duração de uma semana e era
de participação obrigatória pelos cursistas. Assim que o professor on-line
responsável pela turma escolhesse um dos casos entre aqueles apresentados
a ele no material didático para serem debatidos (uma média de três por
unidade), convidava os cursistas a participarem do fórum.
Segundo o relatório de avaliação do curso pelos professores on-line, o
fórum de casos foi a melhor ferramenta para fins de aprendizagem, pois
permitia a interação, trazia as novidades dos casos a cada semana e
provocava a discussão.
Para preservar as identidades dos cursistas e dos professores on-line seus
nomes foram trocados por nomes fictícios, assim como informações adicionais
sobre as turmas foram omitidas.
4.2 A recepção do curso: análise dos fóruns de discussão de caso
Módulo Diversidade:
No primeiro módulo do curso o conteúdo trabalhado discutiu os
conceitos de cultura, diversidade cultural, etnocentrismo, estereótipo,
preconceito e discriminação. Como foi um módulo introdutório, apresentou
apenas uma unidade com discussão de caso, a unidade 2, intitulada
“diversidade”.
Dois casos foram disponibilizados para os professores on-line
escolherem para serem trabalhados em suas turmas. Apesar dos dois casos
tratarem de assuntos diferentes, um sobre o preconceito contra a
homossexualidade numa emissora de televisão e o outro sobre o preconceito
racial numa escola, a tônica dos dois casos foi o respeito à diversidade de uma
forma geral. A seguir, transcrevo na íntegra o caso e as questões norteadoras
tal como apresentados no curso (forma também a ser seguida nas outras
unidades e módulos).
Caso 1: Diversidade e raça/etnia.
Júlio era um adolescente tímido, mas, como outros garotos de sua idade,
procurava seu estilo. Por isso, experimentava diferentes roupas e cortes de cabelo.
Prestes a concluir o Ensino Fundamental, decidiu deixar os cabelos crescerem. Com
muito gel e cremes, procurava mantê-los hidratados e fazer alguns penteados com
tranças. Após algum tempo, percebeu que uma das funcionárias da escola onde
estudava olhava torto” para ele. Na última semana de aulas, Júlio resolveu soltar as
madeixas e assumir o modelo black power. Foi o estopim da bomba! A funcionária, em
público, foi logo gritando: “Onde vai com este ninho de cobras?! Aqui é uma escola.
Piolho é uma praga!! Basta encontrar uma cabeleira mal cuidada para empestear a
escola toda!! Para quê menino de cabelo comprido? É muito melhor e mais bonito,
para ‘cabelo ruim’, raspar curtinho como os jogadores de futebol e os pagodeiros”.
Entre risos dos colegas, Júlio continuou andando. Tinha vontade de
desaparecer. Ele se perguntava: “Por que ela não falava assim com o Marcelo que,
além de cabeludo, enfrentava todo mundo na escola?”. O dia acabou. Júlio foi para
casa e pediu para sua mãe trançar seus cabelos. Com o cafuné da mãe, Júlio foi
contando o ocorrido e chorando a sua raiva. No dia seguinte, a mãe procurou a
funcionária e tentou argumentar, falar que seu filho merecia respeito como todos os
alunos; que o cabelo negro solto também era bonito etc., mas ficou falando sozinha. A
conversa foi encerrada com a frase: “Manter a escola limpa, sem piolho, é obrigação
de todos, também dos pais, sejam eles de qualquer cor. Na escola não importa se a
pessoa é negra ou se é branca! O importante é ser limpinho!”. Muito indignada, a mãe
foi a uma organização buscar apoio para denunciar aquela situação que considerou
como discriminação racial.
Questões:
- Avalie a situação a partir de cada um/a dos/as atores/atrizes: Júlio, a mãe, a
funcionária. O que você acha do comportamento deles/as? Que outras reações
poderiam ter tido?
- Do seu ponto de vista, o caso pode ser classificado como uma situação de racismo?
Por quê?
- Na perspectiva de respeito à diversidade e à promoção da igualdade racial, que
tratamento você daria ao caso para torná-lo um fato educativo?
O direcionamento para a diversidade, visualizado nas perguntas que
deveriam orientar a discussão nos fóruns, pode explicar a facilidade com que
os cursistas formaram as suas opiniões nas diferentes turmas, que não
coincidentemente, em muito se assemelharam.
“Ao meu ver o preconceito e a discriminação, seja
ele qual for, é crônico. Acredito que a funcionária não
teve aquela atitude por pura maldade. O preconceito
está embutido em nós e o que precisamos é quebrá-lo. É
por isso que nosso papel enquanto educadores é
fundamental neste processo. Acho que a funcionária não
teve a oportunidade que estamos tendo.” Ana, Maringá.
Caso 2: Respeito à diversidade.
A veiculação do programa Tarde Quente, apresentado por João Kleber,
provocou o pedido de que fosse cassada a concessão da emissora RedeTV! em razão
de “pegadinhas” ofensivas aos homossexuais e a outros grupos. A RedeTV! chegou a
ficar 24 horas fora do ar por não ter cumprido uma ordem judicial.
No dia 12 de dezembro de 2005, após acordo judicial entre a emissora, o
Ministério Público e seis ONGs de defesa de direitos humanos e direitos dos
homossexuais, estreou o programa Direitos de Resposta que foi concebido como
"contrapropaganda".
A partir dessa data, a emissora exibiu 30 programas Direitos de Resposta, das
16 às 17 horas, em que foram discutidos temas como cidadania, direitos humanos,
diversidade sexual, diversidade de gênero.
Questões:
- Algumas pessoas criticam a ação judicial contra a emissora, dizendo que pode
significar uma ameaça à democracia. O que você acha disso?
- Você acredita que é possível existir uma emissora de TV que respeite a diversidade?
Justifique sua resposta.
- Que espaço é dado à TV em sua atividade pedagógica? Como ela entra em sua sala
de aula?
No caso “respeito à diversidade”, apesar do caso enfocar uma situação
de ofensa a homossexuais, a discussão do fórum ficou em torno da questão
proposta no final do caso, sobre a democracia. Nos debates nas diversas
turmas se falou muito na problemática do respeito aos direitos versus a
liberdade de expressão, mas a questão específica da discriminação sexual não
foi abordada. Exemplo disso é o relato abaixo:
“O Brasil tem vivido ondas de liberdade, que
muitas vezes o são utilizadas para o bem de todos,
pudera... Vivemos um modelo capitalista decadente onde
a concentração de renda não é ilegal, mas com certeza
imoral. Na busca da maior audiência as TV, abertas ou
não, praticam um vale tudo acirrando as diferenças,
resgatando valores medievais, rotulando as minorias
como bárbaros, que não possuem alma, violentos e
marginais.... As leis estão aí, cabe ao Ministério Público
sofrear os abusos praticados e punir no rigor da lei, mas
não devemos deixar tudo às mãos de Juizes e
Promotores. Devemos exercitar nosso direito de cidadão,
resgatando a dignidade humana que por vazes parece,
em nós adormecidos. A escola pode com clareza
amenizar a curto prazo as diferenças de gênero, sexo,
etnia, religião, econômico, construindo uma sociedade
justa para todos, com isso acredito que programas
educativos devam ser utilizados, por nós professores
bem como, também denunciarmos os abuso praticados
pela mídia nacional.” Carla, Dourados.
Módulo Gênero:
Unidade 1:
Na primeira unidade do módulo sobre gênero intitulada “Gênero: um
conceito importante para o conhecimento do mundo social”, três casos foram
apresentados para os professores on-line:
o caso 1 “Gênero, Moda e Representação”,
o caso 2 “Gênero e Profissionalização” e
o caso 3 “Gênero e maternidade na adolescência”.
O primeiro caso foi escolhido pelos professores on-line para ser
discutido em 8 turmas, e colocava os cursistas para pensar sobre a forma
como as mudanças do comportamento social de homens e mulheres ao longo
do tempo pode ser visível nas mudanças do vestuário e nos modos de
representação das relações de gênero.
Caso 1: “Gênero, Moda e Representação”.
Durante uma aula de História, cujo tema era mudanças no vestuário”, Marcelo,
de 13 anos, aproveita para contar à classe um fato que aconteceu com o seu pai,
Vinícius, quando ele tinha a sua idade: ao se curvar para usar o bebedouro da escola,
levou um chute nas nádegas de um colega de turma, enquanto outro o chamava de
“viadinho”. O motivo da violência física e verbal foi, segundo contou Vinícius ao filho, a
intolerância dos outros garotos com o brinco que ele usava.
O professor de Marcelo poderia ter aproveitado esse fato para contar, por
exemplo, que em época não muito distante usar brincos e ter cabelos longos eram
traços tipicamente femininos, ao passo que vestir calças compridas era um hábito
majoritariamente masculino. E poderia ter ressaltado que essas mudanças no
vestuário e no modo de representação (cabelos, adereços) demonstram alterações
nos costumes e valores sociais que incidem nas classificações de gênero e revelam
transformações no comportamento social de homens e mulheres ao longo do tempo.
Questão:
- Se você fosse o/a professor/a de Marcelo, como aproveitaria esse fato narrado por
ele para debater com a classe as mudanças sociais e os modos de representação nas
relações de gênero? Como aproveitaria para enriquecer o tema da aula?
O debate nos fóruns não foi muito acirrado e a maioria dos cursistas não
demonstam resistência em levar a questão para sala de aula, a exemplo da
cursista abaixo no relato de uma experiência positiva:
“Bem, acho que o que eu faço sempre...
intensificar o debate sobre a naturalização das diferenças,
pelo respeito aos gostos individuais. Trabalho com alunos
de e séries, que estão numa fase de afirmação e
contestação. Se utilizam de roupa e maquiagem para se
posicionarem diante do grupo.” Rosa, Niterói.
A cursista esclarece que tem acordo firmado no início de cada ano, com
seus alunos, sobre a impropriedade de utilização de chacotas de uns para com
outros: “Meus alunos entendem sempre isso super bem e fazemos debates
incríveis! Aproveitando a parada do Orgulho GLBTT em Niterói”. Rosa, Niterói.
O caso 2 foi indicado para ser trabalhado em 9 turmas e tratava da
divisão social entre profissões masculinas e femininas e também da
distribuição de homens e mulheres nessas carreiras.
Caso 2: Gênero e profissionalização.
Com o objetivo de apresentar o tema “orientação vocacional” entre os alunos da
série e do ensino médio, uma escola da cidade de Maringá (PR) promoveu uma
semana de oficinas profissionalizantes. Uma das oficinas oferecidas era “Moda e
costura”. Das trinta vagas disponíveis, apenas duas foram preenchidas por meninos. A
direção da escola explicou a desproporção, segundo ela esperada, argumentando que
culturalmente a oficina era destinada às meninas.
Ainda hoje, cozinhar e costurar são afazeres considerados tipicamente
femininos, quando realizados no espaço doméstico e financeiramente pouco
valorizados. Por outro lado, ao se tornarem fontes de prestígio social e de boa
remuneração, essas atividades passam a ser identificadas aos homens chefes de
cozinha de importantes restaurantes, costureiros de grifes famosas que, em alguns
casos, são definidos como gays pelo fato de se interessarem por atividades tidas
como femininas.
Questão:
- Como você usaria esse exemplo para levar seus alunos e alunas a refletirem o
apenas sobre a divisão social que existe entre profissões e ocupações masculinas e
femininas, mas também em como se a distribuição de homens e mulheres nessas
carreiras?
Nos debates desse caso, os fóruns se assemelharam com os das
turmas que discutiram o caso 1: a participação dos cursistas foi ao mesmo
tempo pequena e tranqüila. Muitos defenderam a equidade de salários entre
homens e mulheres e ressaltaram o papel da escola na desconstrução dos
preconceitos sobre pessoas que escolhem profissões que são culturalmente
relacionadas a outro gênero.
Diferentemente dos casos 1 e 2, o caso 3 “Gênero e maternidade na
adolescência” foi escolhido para ser discutido em 19 turmas e contou com uma
grande participação dos cursistas. O caso conta a história de uma aluna de 15
anos que, ao ser repreendida pela professora por dormir em sala de aula, se
queixa do cansaço físico que o cuidado de seu bebê de 8 meses lhe causa,
principalmente por não poder contar com a ajuda do pai do seu filho, que os
visita nos finais de semana.
Caso 3: Gênero e maternidade na adolescência.
Após três dias de ausência, Juliana, de 15 anos, chega à escola pela manhã
com olheiras, cansada e desanimada para encarar as atividades didáticas da turma da
série da qual é aluna. Ela quase chega a dormir na hora da leitura de um pequeno
texto proposto pela professora de português. Ao chamar sua atenção para a
importância daquela atividade, a educadora escuta de Juliana suas queixas em
relação à sobrecarga de trabalho com o filho de 8 meses, que está doente.
Mãe adolescente, Juliana explica que não conta das tarefas relativas aos
cuidados com o bebê, e que não pode contar com a ajuda da avó com quem mora,
pois é bem idosa. Também conta que o namorado, pai de seu filho, costuma ir
visitá-los nos fins de semana para brincar com o bebê, mas que não a ajuda durante
as noites e no dia-a-dia com as idas ao posto de saúde para consulta ao pediatra, com
as tarefas domésticas (lavar, passar a roupinha do bebê, fazer a papinha, lavar as
mamadeiras etc.). Chorando na frente da turma, Juliana desabafa: diz que está
esgotada, sem poder sair, estar com suas amigas, se divertir, ouvir música e dançar,
como fazia antes.
Questões:
- Como você agiria no lugar da educadora?
- Como aproveitar esse relato e trabalhar com a turma as questões pertinentes às
diferenças de gênero?
- Como discutir os papéis de pais e mães em eqüidade de direitos e deveres?
Apesar do foco do caso e das perguntas ser como a questão de gênero
se relaciona com o cuidado dos filhos, os cursistas imediatamente iniciaram um
debate sobre o polêmico tema da gravidez na adolescência.
Ora tratado como um problema, ora visto como um rito de passagem, o
tema predominou nas 19 turmas em que o caso foi tratado, e a discussão dos
papéis de pais e mães em eqüidade de direitos e deveres, embora presente,
parece ter sido considerado de menor importância.
Preocupação com o aumento da gravidez na adolescência aparece de
fato na fala dos cursistas: “Caros colegas, maternidade na adolescência, é um
fato preocupante (...) as estatísticas mostram que vem aumentando
gradativamente o número de adolescentes grávidas.” Carlos, Maringá.
Os cursistas se questionam sobre os motivos desse “mal”: “Se faz
necessário saber, onde está a falha, será que o excesso de liberdade não
contribui? Ou quem sabe o cio-econômico também não tem alguma parcela
de contribuição?” Carlos, Maringá. E ainda na fala do mesmo cursista: “resta-
nos saber de que maneira atacar esse mal que está prejudicando nossos
adolescentes.(...)”.
Também esteve presente a relação entre a gravidez e etapas ideais de
vida que, uma vez desencontradas, são geradoras de tragédias:
“Trabalharia com a turma a conseqüência de pularem
etapas de sua vida, que em horas erradas transformam
em tragédias, mesmo sendo um filho. E A Escola fazer
palestras preventivas, não as meninas, mas aos
meninos”.Raquel, Nova Iguaçu.
A relação entre gravidez na adolescência e pobreza é marcante na fala da
cursista abaixo:
“O caso de Juliana reflete o que está acontecendo com
muitas de nossas adolescentes principalmente de baixa
renda. A falta de informação sexual tem feito de muitas
jovens, mães precoces. (...) No horário de coordenação
pediria aos professores que sempre que houvesse
oportunidade dentro das suas disciplinas enfocasse
problemáticas como sexo, drogas, conflito familiar etc.,
buscando conhecer melhor a vida dos nossos alunos.
Acredito que um trabalho coletivo abrange uma maior
parte de nossos alunos e facilita distribuir ajudas.” Maíra,
Salvador.
nesses relatos uma visão de inadequação entre gravidez e
adolescência, recente na história ocidental, que considerou a adolescência a
melhor época na vida de uma mulher para o exercício da maternidade.
Diferentemente desse passado não tão distante, adolescência é vista hoje
como um período de imaturidade e divertimento, e uma gravidez necessitaria
de um ambiente estável e seguro (ALTMANN, 2005).
Esse tipo de visão, quando expressa por educadores, confirma a tese de
que a escola tem se esforçado para controlar a moral sexual da geração mais
jovem, principalmente quando o exercício dessa sexualidade representa um
risco de contaminação por DSTs/AIDS (BOZON, 2004).
Relacionando-se diretamente com a biopolítica discutida no capítulo II, o
argumento do controle da sexualidade dos adolescentes ganha força, o que
identifica a escola, e mais ainda, os professores, como instrumentos das
tecnologias de regulação da população, como explica Foucault (1988).
Unidade 2:
Na segunda unidade do módulo sobre gênero intitulada “A importância
dos movimentos sociais na luta contra as desigualdades de gênero” os três
casos apresentados aos professores on-line foram:
• o caso 1 “Gênero e Violência”,
• o caso 2 “Gênero, prevenção e violência” e
• o caso 3 “Gênero, educação e assédio”.
O caso 1, escolhido para ser debatido em metade das turmas (18) narra
a história de uma moça que foi fisicamente agredida pelo seu ex-namorado, um
traficante de drogas, e a repercussão dessa notícia em uma sala de aula.
Caso 1:
“Gênero e Violência”.
A professora chega à sala de aula e uma discussão acalorada entre os/as
alunos/as da série, em torno de uma notícia no jornal. Tratava-se do espancamento
de uma moça, por ciúmes de seu ex-namorado, inconformado pelo fato dela tê-lo
trocado por outro. Na saída de uma festa noturna, ele a surpreende e a agride. A
turma estava dividida pelo fato de o agressor ser um conhecido traficante de drogas da
região. Alguns rapazes e moças achavam que quem se envolve com bandido tem
mais que apanhar, mesmo, isso já seria esperado, ela não deveria ser também alguém
tão decente, pois já estaria com outro, não tinha o que reclamar agora etc. Outra parte
da turma pensava diferente, achava condenável o ocorrido e não via justificativas para
aquela violência masculina.
Questões:
- Se você fosse o/a professor/a desse caso, como agiria nessa situação?
- Como poderia aproveitar esse caso para o debate em sala de aula sobre o tema da
violência de gênero?
Todos os cursistas que participaram dos runs condenaram a violência
de uma forma geral. No entanto, a violência de gênero, especificamente,
apesar de trabalhada, ficou em segundo plano. Muitos cursistas tentaram
rebater o argumento de que a moça também era culpada pela agressão, afinal
se envolveu com um traficante, uma pessoa essencialmente perigosa.
Mesmo combatendo a violência em qualquer situação, o argumento
utilizado por vários cursistas tentou relativizar a imagem de inconseqüente da
garota; o que por sua vez acaba reafirmando a possibilidade de existir a
violência de gênero de acordo com o comportamento da mulher:
“Para o primeiro grupo que alega a conduta da moça como
duvidosa por namorar com bandido, levaria as seguintes
reflexões: será que a mesma não o deixou por descobrir
que o namorado era violento e drogado? Quem garante
que a moça ao iniciar o relacionamento conhecia a índole
do namorado?”. Cássia, Dourados.
O caso 2, “Gênero, prevenção e violência”, trabalhado em nove turmas,
narra a história de um menino de 12 anos.
Caso 2: Gênero, prevenção e violência
No decorrer de uma palestra realizada na escola sobre prevenção de DSTs/AIDS, ao
comentar sobre a importância do uso da camisinha, um garoto de 12 anos, da 6ª série,
muito atordoado, conta o que houve em sua casa na noite anterior. Seu pai havia
forçado sua mãe a manter relações sexuais com ele, mas ela se recusou pelo fato de
ele não aceitar usar a camisinha. Como ele tem outras mulheres, vive na farra, na rua,
sua mãe, aconselhada pelo posto de saúde, não aceita mais ficar com ele, sem a
camisinha. O pai ficou furioso e saiu quebrando tudo, agredindo a mulher, tentando
obrigá-la a fazer sexo. Segundo o relato do aluno, foi horrível a confusão na casa, a
gritaria, ninguém pôde dormir direito, com medo do pai. O garoto disse nem querer
mais ouvir falar nessa tal de camisinha, para não se lembrar do ocorrido.
Questões:
- Se você estivesse presente no momento do depoimento do garoto, o que faria nessa
situação? Como agiria?
- Como aproveitaria esse relato para refletir com os/as outros/as aluno/as a situação
de violência doméstica, muito comum entre familiares dos/as jovens presentes em sala
de aula.
Na discussão do caso todos os cursistas, mais uma vez, condenaram a
violência e deram razão à mãe do garoto. No entanto, para fundamentar seus
posicionamentos, alguns cursistas se apoiaram em argumentos de fundo moral
e privado como a religiosidade e a compreensão de que o ato sexual é antes
de tudo um ato de amor:
“Ao debater a violência doméstica com nossos alunos,
sem dúvida surgirão outros casos, até piores. aqueles
que procuram ajuda em grupos de apoio e outras
instituições para resgatar a própria família. Entretanto,
ainda vemos pais matando filhos e filhos matando pais
pelos mais variados motivos, como uso de drogas,
bebidas alcoólicas e outros. Tudo isso comprova a
ausência de Deus nos corações, o desrespeito ao outro e
sua desvalorização.” Jaqueline, Maringá.
“Se eu estivesse presente nessa discussão, aproveitaria
para dizer ao menino como sua mão foi corajosa e está
coberta de razão, mostrando não para ele, mas para
toda a classe a importância do uso do preservativo, e que
ele é necessário para se evitar a transmissão de doenças.
Conversaria também sobre a importância do amor no ato
sexual, embora a maioria das pessoas o vejam como
simples prazer e satisfação que é o que me parece que o
texto mostra, se ele realmente se preocupasse com a sua
esposa não queria correr o risco de que ela viesse a
contrair alguma doença.” Valdeci, Maringá.
É notável nas duas falas acima a centralidade de um certo romantismo
para as relações matrimoniais, pois ambas falam no amor. Não se percebe nos
relatos um possível distanciamento entre as posturas pedagógicas dos
cursistas, supostamente condizentes com os preceitos da ordem do público, de
argumentos baseados em crenças pessoais, da ordem do privado.
O caso 3 “Gênero, educação e assédio”, também trabalhado em nove
turmas, é sobre um professor de educação física que, ao receber um desabafo
de um aluno assediado por outro aluno mais velho, o chama de “boiola”.
Caso 3: Gênero, educação e assédio.
Um aluno de 15 anos, da 5ª série, diz ao professor de educação física que está sendo
insistentemente assediado por um colega mais velho, de 18 anos, da série.
Confessa temer que ele tente currá-lo a qualquer momento, e que aconteça o pior. O
professor desconversa, diz que ele estaria exagerando, que se ele for homem mesmo
isso não ocorrerá. Afirma que o colega da série está dando essa prensa nele
porque ele anda meio "boiola", cheio de trejeitos femininos. O que precisa, mesmo,
aconselha o professor, é se portar como homem, dar duro no camarada, mostrar a ele
que você não é bicha, veado.
Questões:
- Como você avalia a situação exposta acima?
- Comente a atuação do professor. Como você agiria no lugar dele?
- Acha que o rapaz saiu dessa conversa de que modo?
Dos três casos, esse foi o caso que suscitou menos entusiasmo por
parte dos cursistas. A atitude machista e o deslocamento da culpa para o
vitimizado foram condenados pelos cursistas.
“Sei que muitas vezes sentimo-nos chocados e até
impotentes diante de situações que nos são trazidas
pelos/as alunos/as, quando nos procuram em busca de
apoio ou ajuda, porém, mesmo que não possamos
auxiliá-los/as de imediato, está sempre presente o
interesse em resolver a situação da melhor forma e o
mais breve possível. Não me parece provável que algum
professor, por mais preconceituoso que seja, tenha uma
atitude tão grosseira e aja de maneira a comprometer-se
tanto.
Creio que a melhor maneira a agir nesse caso é
em conjunto. Assim, relataria o fato à coordenação e ao
SOE de modo a encontrarmos a melhor saída para a
resolução do problema. Ambos os alunos devem ser
ouvidos e esclarecidos quanto às suas atitudes e às
possíveis conseqüências delas decorrentes.
O rapaz, obviamente, deve ter sentido frustração,
falta de apoio, sentimento de injustiça, descaso,
desamparo e, ainda, que permanecemos como nossos
ancestrais que foi apontada a possibilidade de agir
igualmente com violência e desrespeito de modo a impor-
se e demonstrar que ‘é macho’”. Mariana, Niterói.
Unidade 3:
Na unidade 3 do módulo 2: “Gênero no cotidiano escolar”, as turmas se
dividiram nos dois casos apresentados:
• o caso 1 “Festa na turma - divisão sexual de tarefas” e
• o caso 2 “Atividades extra-classe – dança, futebol e voleibol”.
Das três unidades desse módulo, esta foi a que contou com a menor
participação dos cursistas.
Nos dois casos os temas discutidos foram parecidos, o caso 1 foi sobre
a divisão sexual das tarefas em uma festinha escolar (meninas cuidam da
comida e os meninos da bebida e do som) e o caso 2 foi sobre a preferência de
determinadas atividades físicas por meninos e meninas (meninas preferem
dança, meninos futebol e ambos escolhem o voleibol).
Caso 1: Festa na turma - divisão sexual de tarefas
O fim de ano se aproxima e uma turma da sua escola resolve fazer uma
festinha de confraternização. Para isso, a direção da escola autoriza que a festa seja
realizada nas duas últimas aulas de uma sexta-feira, na sala de aula da turma. Antes
disso, alunos e alunas se organizam na preparação da festa. Decidem que as meninas
contribuam com as comidas, e os meninos com as bebidas. Um menino da turma fica
encarregado de trazer um aparelho de som para que possam dançar.
O dia da festa chega. Enquanto alguns meninos arrumam o som e selecionam
as músicas que serão tocadas, as meninas arrumam a mesa com as comidas e as
bebidas. Depois do lanche, algumas garotas dançam ao som da música. Os meninos
apenas ficam olhando e conversando.
Questões:
- Essa divisão de tarefas "meninas trazem comidas e meninos, bebidas" é bastante
comum nas escolas brasileiras. Na sua escola, isso também ocorre?
- O que essa divisão de tarefas nos revela sobre uma perspectiva de gênero?
- Que outras questões de gênero aparecem no caso descrito?
- Enquanto professora ou professor, de que modo você poderia interferir na situação
descrita?
Caso 2: Atividades extra-classe – dança, futebol e voleibol
Os professores e as professoras de Educação Física de uma escola decidem
oferecer algumas atividades físicas extra-classe aos alunos e alunas. Abrem
inscrições para dança, futebol e voleibol. Meninas e meninos podem se inscrever.
Após duas semanas, um grande número de meninas inscritas para a dança
e apenas três meninos. No futebol, a situação é inversa, vários meninos e poucas
meninas. No voleibol o número de meninas e meninos é aproximadamente
equivalente.
Questões:
- Como você explicaria essas diferenças de gênero em termos de interesse nas
atividades propostas?
- Enquanto professora ou professor, como você lidaria com essa situação?
- Como você pensa que os alunos e alunas da sua escola responderiam a um convite
semelhante para participarem de grupos de dança, futebol e voleibol? Você considera
importante que meninos e meninas tenham experiências em todas essas atividades ou
não? Como você faria para incentivá-los a isso? Como você lidaria com possíveis
preconceitos, por exemplo, em relação a meninos que dançam e a meninas que jogam
futebol?
Nas discussões dos dois casos, as contribuições dos cursistas foram no
sentido de explicitar o papel da construção social do gosto masculino e
feminino. Os cursistas atentaram para o injusto preconceito sobre as pessoas
que escolhem atividades usualmente relacionadas a outro gênero. Os temas
trabalhados nesses casos, pelo conteúdo das contribuições postadas nos
fóruns de caso, parecem estar em consonância com os valores dos cursistas.
Módulo Sexualidade:
Unidade 1:
Na primeira unidade do módulo 3 “Sexualidade: dimensão conceitual,
diversidade, discriminação” – foram apresentados três casos:
• o caso 1 “Relato de uma professora”, trabalhado em 17 turmas,
• o caso 2 “Qual o problema?”, discutido em 9 turmas, e
o caso 3 “Violência moral na escola” que foi trabalhado nas
restantes 10 turmas.
O caso 1 consistia num relato de uma professora sobre Juninho, um
aluno de 16 anos, que começou a apresentar problemas de rendimento escolar
depois que seus pais e colegas descobriram que ele era homossexual.
Caso 1: Relato de uma professora
“Juninho tem 16 anos e sempre foi um ótimo aluno. semanas eu vinha
percebendo que estava triste e desatento às aulas. Hoje, na saída para o intervalo, fui
procurada por uma garota da turma que me contou que os pais do Juninho
descobriram que ele ‘é gay’ e que o pai anda batendo nele. Além disso, ele se ‘abriu’
com uma menina que contou para outras pessoas e que, por isso, os meninos ficam
zombando dele, dizendo em voz alta na sala que ‘viado tem mais é que apanhar pra
tomar jeito de homem’.
Eu disse que me dispunha a conversar com ele, e pedi à garota que lhe desse
o recado de que poderia me procurar ao final da aula, na outra sala. Após a aula,
Juninho me procurou e, em poucos segundos, chorava desesperadamente. Procurei
acalmá-lo e, então, ele me disse que coisas muito ruins tinham acontecido na vida
dele de uma hora para outra e que ele não sabia o que fazer. Ele relatou, então, que
depois de um dia em que a mãe mexeu em suas coisas e encontrou uma poesia que
havia escrito e dedicado a um colega do curso de computação, passou por uma
conversa muito difícil com os pais e estava tendo suas saídas controladas, não podia
mais usar o telefone, podendo sair apenas para a escola, e que a mãe estava se
encarregando de levá-lo e buscá-lo na escola todos os dias.
Além disso, ele estava sendo obrigado a ir a um psicólogo da igreja
freqüentada pela mãe, que prometeu a ela que o ajudaria a ‘curar-se do seu problema’
e a ‘virar homem’. Contou, também, que vinha sendo constantemente surrado pelo pai,
que lhe diz ‘coisas horríveis’ como: ‘Prefiro ter um filho morto do que viado’ e ‘Logo
você vai estar doente, espalhando Aids por ou se travestindo pela rua’. Juninho
disse que tem tido muitos pesadelos à noite e não sabia até onde ia agüentar tudo
aquilo, ainda mais porque contou o que estava acontecendo a uma garota da sala, que
comentou com seus amigos, e se formaram boatos. Agora, além do problema em
casa, precisa conviver com os colegas que ficam fazendo gozações entre si quando
ele passa.”
Questões:
- Se você fosse o/a professor/a do Juninho, como agiria frente a uma situação como
essa? Que orientações poderiam ser dadas ao garoto?
- Você acredita que seja adequado procurar trabalhar essas questões com alunos/as?
Por quê? Se sim, como poderia ser feito esse trabalho?
- E com relação à família, você acredita que há orientações que possam ser dadas?
Se sim, que orientações seriam essas? Há espaço na escola para esse tipo de
diálogo?
De uma forma geral os cursistas reconheceram a gravidade do assunto,
tanto que expressaram de diversas formas o quão despreparados se sentiam
para lidar com a questão, principalmente quando envolvia a família do aluno.
“Como a professora Clara, também acho essa situação
narrada muito difícil! E também agiria, a princípio, como a
professora agiu, iniciaríamos uma conversa e a partir
dessa conversa veria que ações devem ser praticadas
quanto a esse caso. (...) Quanto à família, considero que
procuraram quem precisava ser procurado, que é um
psicólogo, pessoa que deveria estar muito mais que
qualquer outra pessoa preparado para auxiliar a ambos.”
Maria , Dourados.
Como se vê na contribuição de Maria, a scientia sexualis discutida no
capítulo II se faz presente por intermédio da figura do psicólogo, um
profissional com autoridade científica para falar as verdades do sexo. Em todo
o curso ficou evidente a confiança nos profissionais das ciências da saúde para
tratar dos temas da sexualidade em prejuízo dos saberes dos professores
cursistas.
Alguns cursistas também defenderam a idéia de que na adolescência
não se pode ter certeza da orientação sexual.
“Em relação ao adolescente, teria com ele uma conversa
sobre a adolescência, que é uma fase de transição, que
ele ainda não se encontra, do ponto de vista biológico,
maduro o suficiente para decidir sobre sua opção sexual.
Que nesse momento, o que ele sente pelo outro garoto
pode ser apenas uma atração, que futuramente irá se
confirmar (ou não). E sugeriria que, enquanto não
atingisse a maioridade, ele fosse se conhecendo melhor,
aprendendo e refletindo sobre sua sexualidade, para mais
adiante fazer sua opção. Isso tranqüilizaria os pais e
amenizaria a situação. Com a sala teria a mesma
postura, esclarecendo legalmente o caso, trabalhando as
idéias preconceituosas e discriminatórias e fazendo com
que, aos poucos, fossem tendo uma outra visão sobre o
ocorrido.” Angélica, GDE 06, Maringá.
Nessa contribuição, a cursista deixou claro o seu repúdio à violência,
mas ao tratar do questão da homossexualidade de Juninho indicou que seria
melhor que o aluno tomasse uma atitude de assumir ou não apenas quando
saísse da escola. Segundo Guacira Lopes Louro (1999), a escola é uma das
instituições onde se instalam os mecanismos do dispositivo da sexualidade e é
uma entre as múltiplas instâncias sociais que exercitam uma pedagogia da
sexualidade e do gênero, colocando em ação várias tecnologias de governo.
Para a autora, ao mesmo tempo em que a escola intenciona produzir homens e
mulheres “normais” e portanto heterossexuais, procura desestimular a
sexualidade, que deverá ser exercitada na vida adulta, após o término dos
anos escolares.
Nota-se ainda a referência a uma concepção de “maturidade biológica”
que orienta a análise da cursista.
Outra questão que esteve presente nas discussões desse caso foi uma
relação bastante freqüente, nas postagens dos cursistas, entre
homossexualidade e DSTs. Ao discutir a contribuição de uma cursista no
fórum, que alegou que primeiramente aconselharia Juninho nas questões de
saúde, a professora on-line fez o seguinte questionamento:
“A orientação ‘prática’ da colega Roseni, em
relação aos ‘cuidados necessários para salvaguardar sua
saúde’ está correta, mas devem ser dados a todos/as
os/as adolescentes, não é mesmo? É comum acharmos
que os/as homossexuais são pessoas promíscuas e que
vão espalhar doenças por aí, mas isso é puro preconceito
da nossa parte”. Silvia, GDE 06, Maringá.
E a cursista reafirmou o seu argumento:
“Professora Silvia, colegas cursistas: certamente as
orientações sobre cuidados com a saúde sexual devem
ser dadas a todos/as alunos/as. Entretanto, as estatísticas
apontaram, entre outros, os ‘homossexuais’ como grupo
de risco e estamos falando do caso do Juninho”. Roseni,
GDE 06, Maringá.
É curioso notar como a cursista retruca a intervenção da professora. A
insistência no próprio argumento confirma uma resistência à mudança de
valores no campo da sexualidade. Apesar da diversidade de posicionamentos,
os relatos mais tradicionais, como esse que traz para o debate a suposta
existência de “grupos de risco”, demonstram como muitos cursistas relutam
para aceitar a visão sobre sexualidade que o curso pretendeu passar e
insistem nos seus argumentos, por mais que se distanciem do discurso dos
professores on-line.
Na discussão do caso 2, a postura dos cursistas foi diferente. O caso era
sobre um homem que se queixava dos estereótipos que recaíam sobre ele, aos
quais ele não correspondia, o que lhe trazia muitas represálias.
Caso 2: “Qual o problema?”.
“Sou diferente. E daí? Eu sou negro, uso brinco, odeio praticar esportes e
também não gosto de pagode. E daí, qual o problema? O problema é que, desde que
me conheço por gente, convivo com o preconceito. Você pode estar pensando, que
cara mais chato, todo mundo sabe que no Brasil não tem essa de racismo. Não tem?
Você que pensa. Eu era criança e estudava numa escola particular. Era o único negro
da sala. Tinha colegas que olhavam para a minha cara e riam, outros que nem
chegavam perto, parecia que eu tinha uma doença contagiosa. Um dia até essa eu
tive de ouvir: ele é preto, mas é legal. Pensa que essas coisas não machucam?
Machucam sim, e como! Depois, fui para uma escola pública e os problemas
diminuíram. Quer dizer, em termos. Quando na aula de Educação Física perceberam
que eu era um perna de pau e que odiava jogar futebol e basquete, todo mundo achou
estranho. Como se todo negro nascesse jogando bola. Quando pus brinco então,
nem te conto. Uns caras começaram a me chamar de jaboticaba: preto e frutinha.
Todas essas coisas fizeram com que durante muito tempo eu me sentisse inferior aos
outros, como se eu fosse um sujeito sujo, feio e com menos valor”.
Questões:
- Como estereótipos a respeito de classe, raça, gênero e sexualidade se entrecruzam
nesse caso?
- De que maneira estereótipos sobre a sexualidade de homens negros e sobre a
homossexualidade convergem na expressão “jaboticaba”, usada para ofender o
garoto?
- Como o professor deveria atuar ao presenciar gozações ou uso de apelidos que
mobilizem preconceitos com relação à sexualidade no ambiente escolar?
- Após a leitura da unidade 1 do Módulo 3, como você utilizaria o caso do garoto
chamado de “jaboticaba” e “frutinha” para desconstruir preconceitos ligados à
sexualidade e à homossexualidade na sala de aula?
Mais uma vez, nesse caso os cursistas foram bem enfáticos no combate
aos preconceitos que ali foram tratados. O cruzamento do preconceito de raça
com o de sexualidade e o de classe tornou o debate muito menos complicado
do que no caso 1, que tratava da homossexualidade na escola. Os cursistas
levaram a discussão para a questão dos preconceitos e estereótipos gerais e
expuseram sua opinião sem as ressalvas que fizeram na discussão do caso
anterior – “um caso complicado e difícil”.
“Como professora conversaria com a turma, fazendo com
que percebam a grande bobagem que estão falando e
perceber que jabuticaba é uma fruta muito gostosa
propícia ao nosso solo brasileiro, sendo frutinha uma
forma racista ao se referir a qualquer colega, que uma
coisa é ser homossexual e outra é não gostar das
mesmas coisas que todos, só para dizer que está na
moda. Temos o dever de aceitar todos como eles são e
não de uma maneira uniforme ou ditada pelos outros.”
Janete, Nova Iguaçu.
“Infelizmente, pessoas pobres, negras e homossexuais
são timas de múltiplas discriminações por não fazerem
parte do estereótipo construído em nossa sociedade
‘eurocêntrica, cristã e católica’. Apesar de nossa
sociedade ter sido formada pela pluralidade cultural, a
maioria das pessoas que nela habita ignoram a
possibilidade de conviver com pessoas que ‘transgridem’
o padrão pré-estabelecido, pré-determinado e
estereotipado. Assim, a diferença é vista como algo que
deve ser dizimado, esquecido e perseguido.” Camila,
Salvador.
A discussão do caso 3, assim como no caso 2, não apresentou grandes
polêmicas entre os cursistas. O caso “Violência moral na escola” tratava de
situações de maus-tratos, opressão e humilhação entre alunos e
complementava a discussão com um texto que trazia informações de
entrevistas de pessoas discriminadas por opção sexual.
Caso 3: Violência moral na escola.
Seguem abaixo um conjunto de trechos de matérias publicadas em jornais nos
últimos três anos. Todas elas se referem à questão da violência moral (ou bullying) em
ambiente escolar. Leia os trechos abaixo e comente a partir das questões propostas
ao final.
“A filha de Luiza (nome fictício) era um exemplo de boa aluna, com um ótimo
rendimento ao longo dos anos na mesma escola particular. De repente, a menina
começou a ficar triste quando voltava da aula, irritada facilmente, com auto-estima
baixa. Ao mesmo tempo, as notas começaram a diminuir, o boletim ficou vermelho e
ela fugia das aulas. A família não conseguia entender o que estava acontecendo. “No
começo, não dizia a causa de tudo por vergonha”, lembra a mãe.
Em silêncio, a garota passou a ser agredida cotidianamente no colégio por um grupo
composto por adolescentes de ambos os sexos. Eram apelidos, músicas ofensivas,
discriminação e isolamento. Situações que aconteciam na frente de professores, que
se omitiam. (...)”
(Fonte: Agressões diárias na escola. Jornal O Povo. Fortaleza, 29 de setembro de
2004. Matéria on-line em http://www.noolhar.com/opovo/fortaleza/405063.html)
“Quanto mais rejeitado o aluno se sente, pior o desempenho escolar,
principalmente entre os mais jovens”, afirma o diretor de avaliação básica do Ministério
da Educação (MEC), Carlos Henrique Araújo. A constatação foi feita a partir dos
resultados do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Saeb) que, pela
primeira vez, traz a relação entre rejeição e amizade na sala de aula com o
desempenho dos estudantes. (...)
(Fonte: Apelidos e brincadeiras que ferem. Jornal O Povo. Fortaleza, 29 de setembro
de 2004. Matéria on-line em http://www.noolhar.com/opovo/fortaleza/405062.html)
“Há os apelidos afetivos, mas aqueles que magoam. também gestos
para pôr de lado alguém, não demonstrar interesse pela amizade. Isso tem acontecido
geração após geração”. O relato é do supervisor de um colégio particular de Fortaleza,
Aroldo de Aguiar, com 23 anos de experiência escolar. Dentre tantos casos, ele
considera que os apelidos que mais magoam se referem à sexualidade.
“Fui procurado no início do semestre por uma mãe que queria mudar o filho de
escola porque a criança era chamada freqüentemente de homossexual. Ele não era de
jogar bola, estudava muito, tímido e os colegas tiveram raiva disso”, cita. Ele garante
que mantém um acompanhamento firme para evitar casos do tipo. (...)
(Fonte: Professores mal preparados. Jornal O Povo. Fortaleza, 29 de setembro de
2004. Matéria disponível em http://www.noolhar.com/opovo/fortaleza/405072.html)
Questões:
- Gozações, apelidos e formação de “grupinhos” são comuns no ambiente escolar; em
que medida essas práticas podem ser entendidas como uma modalidade de violência?
- Uma recente pesquisa, realizada por um conjunto de instituições - CLAM, CESeC,
USP, Unicamp e APOGLBT na Parada do Orgulho GLBT (de gays, lésbicas,
bissexuais, travestis e transexuais) de São Paulo no ano de 2005, apontou que 65,7%
dos/as 720 GLBT entrevistados/as foram vítimas de agressões motivada pela
orientação sexual ou identidade de gênero e 72,1%, de discriminação. Entre os/as
discriminados/as, 32,6% citou o ambiente escolar como um local em que passou por
situação de discriminação. Entre os/as que foram vítimas de agressões, 9,3%
apontaram como a agressão mais significativa que sofreram na vida uma agressão em
que os/as autores/as foram colegas de escola ou faculdade. Você percebe gozações,
apelidos e mecanismos de isolamento de alunos/as por esse motivo no seu cotidiano
escolar? Poderia relatar alguns casos?
- O que poderia ser feito para reduzir os casos de discriminações e/ou agressões
envolvendo a orientação sexual e a identidade de gênero no ambiente escolar? Como
a escola poderia colaborar para formar cidadãos e cidadãs que não contribuam para
compor essas estatísticas citadas na pesquisa realizada na Parada?
Os cursistas tiveram o mesmo empenho em se posicionar contra a
violência do que no caso 2: concordaram entre si na afirmação que muito tem
que ser feito para mudar a discriminação sexual na escola. No entanto, a idéia
de que os professores não têm preparo para lidar com esse tipo de situação
também foi predominante.
“Falar sobre orientação sexual na escola ainda é
um tabu. Acho que a escola, em geral ainda não ainda
não está preparado para lidar com esse assunto, Muitos
docentes ministram aulas de educação sexual, mas não
abrangem as questões das diferenças na preferência
sexual, abordando apenas assuntos tradicionais como
preservativos e métodos anticoncepcionais.
Muitos adolescentes com tendências homossexuais
sofrem discriminação, preconceitos e buling na escola,
estes acabam sendo alvos de chacotas dos colegas e
chegam a ser desrespeitados moralmente. Levando os
a abandonar os estudos. E na maioria das vezes nós,
professores nem nos damos conta do que está
ocorrendo. Precisamos mesmo estar mais atentos.
A escola precisa de intervenções mais rias
sobre sexualidade, precisamos construir uma cultura de
convivência com a diversidade. Talvez, criar políticas
educacionais de promoção e respeito a diversidade. As
pessoas tendem a ter preconceitos daquilo que não tem
contato, e utilizando principalmente o debate e o
questionamento das irracionalidades, com certeza
ajudaria muito no combate a discriminação contra
homossexuais.” Odair, Dourados.
Unidade 2:
Nessa unidade, intitulada “Saúde, sexualidade e reprodução” foi feito o
entrelaçamento das questões de saúde e sexualidade. Os casos trabalhados
foram:
• caso 1 “Drogas e HIV” em 12 turmas,
• caso 2 “Gravidez e aborto” em 13 turmas e
• caso 3 “Prevenção” em 11 turmas.
O caso 1 era sobre um aluno de 17 anos que começou a traficar
cocaína, depois virou usuário da substância e um dia acabou revelando para a
professora que era portador do HIV.
Caso 1: Drogas e HIV.
Erik é um jovem de 17 anos. Ele mora na periferia de uma grande cidade, cursa a
série de um colégio público e, até dois meses atrás, vendia balas em um sinal de
trânsito. Após uma festa na casa de um conhecido do seu primo, conheceu um
pessoal que vendia cocaína na noite. Depois de um tempo saindo com eles, Erik viu
na comercialização de drogas uma possibilidade de ganhar muito mais do que
ganhava como vendedor de balas. Desde então passou a vender papelotes (pequena
quantidade e cocaína) nos bailes. Como esta nova atividade exigia sua presença em
programas noturnos, ele mudou sua rotina, conheceu novas pessoas e depois de um
tempo começou a fazer uso de cocaína.
Um dia Erik chegou atrasado em sala de aula. Ele parecia muito agitado, entrou
e saiu da sala várias vezes. A professora percebeu seu comportamento e lhe
perguntou se estava tudo bem. Ele respondeu que não estava passando muito bem,
mas disse não ser nada grave. A professora viu que ele estava suando muito e que
tinha um machucado no braço. Ela então, fez um movimento em direção a ele como
se fosse segurar seu braço para ver o machucado. Ele puxou o braço para trás e
gritou: “Não!”. Assustada, a professora perguntou o que está acontecendo.
Demonstrando muito nervosismo, Erik acabou desabafando, contando que estava com
HIV.
Questões:
- Como educador/a de Erik, qual seria a sua reação diante desta delicada situação?
- O caso deveria ser levado à direção da escola?
- Você optaria por manter sigilo?
- Você o orientaria a buscar ajuda de um/a outro/a profissional?
- Você saberia indicar serviços públicos que realizam atendimentos a pessoas
soropositivas?
No debate dos fóruns, os cursistas foram bem enfáticos sobre a
necessidade de se ajudar ao aluno, tanto para ele se livrar do vício como para
receber os devidos cuidados médicos, como no relato da cursista abaixo:
“Como educadora procuraria pessoas que possam
ajudá-lo como profissionais que atuam na área. Mas
jamais recriminaria, pois ele demonstra carência e não
violência, dificuldades financeiras, que levam as pessoas
a fazerem qualquer coisa sem pensar. Quanto a guardar
sigilo faria num primeiro momento, para os outros alunos
da escola, pois não saberiam das reações, mas para o
grupo de professores colocaria o caso e pediria ajuda no
que fazer. Isso é claro se o adolescente permitir, pois se
deve respeitar a individualidade e também fazer valer a
cumplicidade entre aluno e professor e vice e versa.”
Cláudia, Dourados.
Diferentemente do caso 1, o caso 2 sobre gravidez na adolescência e
aborto gerou bastante polêmica.
Caso 2: Gravidez e aborto.
Ao entrar na sala de aula, a professora um grupo de adolescentes
conversando animadamente num clima de segredo. A professora se aproxima e
percebe que o grupo está falando sobre uma de suas alunas, chamada Tamires.
Tamires, uma jovem de 15 anos, mora com a mãe e mais dois irmãos de uma
segunda união da mãe. Apesar de não demonstrar interesse especial pelos estudos,
ela costuma freqüentar a escola com assiduidade. Entretanto, no último mês Tamires
vem faltando muito às aulas. Naquela semana ela ainda não havia comparecido ao
colégio. A professora sabe que ela vem enfrentando problemas familiares. Desde que
o segundo marido da mãe foi embora, seis meses, a mãe passa a maior parte do
tempo fora de casa, trabalhando, e cabe a Tamires cuidar dos irmãos menores.
A professora se aproxima do grupo e pergunta: “Escutei vocês falando o nome
da Tamires. Vocês sabem se aconteceu alguma coisa com ela? Estou preocupada,
pois ela tem faltado muito às aulas”. As jovens se entreolham e ficam em silêncio até
que uma delas diz:
(Final 1) “A Tamires está grávida e disse que vai parar de estudar”.
(Final 2) “A Tamires estava grávida e fez um aborto no início desta semana...
Soubemos que ela não está passando bem”.
Questões:
- Se você estivesse no lugar desta professora, você aproveitaria este fato para
abordar, em sala de aula, a questão da gravidez na adolescência?
- Em sua opinião, o tema do aborto deve fazer parte da discussão sobre gravidez e
métodos anticoncepcionais?
- Como você abordaria a questão do aborto?
Os cursistas não tiveram problemas para falar sobre saúde e
sexualidade, sobre a necessidade da orientação sexual entre os jovens para
que a gravidez na adolescência, “indesejada”, “imatura” e “precoce” não ocorra.
No entanto, quando passam pela temática do aborto, os cursistas parecem
temer a discussão e se posicionam contra, na maioria das vezes, lembrando
que no Brasil o aborto é um crime. Em uma das turmas que discutiu esse caso
a professora on-line tenta problematizar um pouco mais a questão:
“Reconheçamos, é muito mais fácil lidar com
sexualidade e saúde do que com orientação sexual,
identidade sexual e demais conceitos da Unidade 1, não é
mesmo? Conseguimos falar mais abertamente sobre
gravidez na adolescência, métodos contraceptivos, DSTs
etc., do que de homossexualidade, transgêneros, casais
homossexuais... Não é à toa que vocês relatam que as
escolas trabalham com sexualidade e saúde, como é o
caso do projeto “Adolescência”(...). É que são questões
que estão no plano da racionalidade, da ciência. O
problema é que nos sentimos constrangidos em falar
sobre as questões da sexualidade que envolvem afetos,
emoções, prazer? Aí fica difícil lidar com elas.” Estela,
Maringá.
Alertando que nem tudo são flores no tema da sexualidade e saúde, a
professora on-line estimula os cursistas a falarem mais sobre aborto: “como
vocês abordariam um tema tão polêmico, sem cair nas argumentações de
cunho religioso?” Argumenta ainda que quando evocamos argumentos
religiosos, interrompemos a discussãoque crenças não são geralmente tidas
como objetos de discussão.
Os cursistas, apesar de afirmarem que é possível trabalhar o aborto em
sala de aula de forma desvinculada das questões religiosas, na maior parte das
vezes continuaram a utilizar argumentos de cunho moral/religioso.
“Trabalharia esse tema mostrando a importância do direito
à vida, principalmente dos mais fracos, que não podem se
defender. Discutiria no sentido de que o ato de conceber
uma criança implica em responsabilidades, pois o
resultado de um ato irresponsável pode conceber uma
vida, e o valor dessa vida, é igual o valor das pessoas que
a conceberam. Se dar o direito de tirar uma vida, estamos
dando o direito de outras pessoas tirarmos a nossa
também. Ou seja, todas as vidas devem ter o mesmo
valor”. Ivete, Maringá.
“Sim, seria um momento de reflexão, onde poderia expor
aos alunos, as conseqüências de uma gravidez não
planejada e ainda caracterizada por uma adolescente de
15 anos.Na verdade, é um momento propício, visto que,
eles presenciam o fato e os problemas acontecendo.
Diante disso, seria interessante abordar a questão do
aborto, sobre os riscos de vida,(ainda maiores à gestante
adolescente), e também à morte de um pequeno ser
humano. Nesse sentido, devemos sensibilizar aos
educandos, orientando-os ao uso de anticoncepcionais e
também da importância do uso de preservativos durante
suas relações sexuais, para que, conseqüências
indesejáveis futuras, não aconteçam...” Maria Eduarda,
Maringá.
Em outras turmas a posição dos cursistas foi semelhante a dos relatos
acima:
“É muito difícil falar sobre este assunto que
envolve desejos, educação, período de mudanças
(adolescência), comportamento agressivo de alguns
adolescentes, falta de maturidade para uma vida adulta,
etc.. Como professora faria um debate sobre o assunto
passaria algum filme com o mesmo tema, para facilitar a
discussão o que com certeza faz parte de minha
obrigação como professora e pessoa responsável, mas
acredito o neste caso o que mais conscientiza e a
formação dentro de casa. Os pais mais preocupados e
conscientes procuram cuidar melhor de seus filhos e
filhas conscientizando dos riscos de uma gravidez
inconsequente. Quanto ao aborto sou totalmente contra
pois se trata de matar uma criança e por isso passaria
aos meus alunos que para tudo existe uma solução, e
para a gravidez precoce também. E se isso aconteceu
nada melhor do que ter esse filho e criá-lo da melhor
forma possível para que seja uma pessoa responsável e
feliz, e fazer de tudo para que isso não se repita.”
Lucília, Maringá.
Em seguida o professor on-line tenta problematizar a visão da cursista:
“Percebe Lucília, que ao impor seu valor você
determina o que é certo para o outro e com isso mais
uma vez essas pessoas perdem a possibilidade de sua
autonomia e essa gravidez muitas vezes é por falta de
autonomia, de decisão própria. O que você acha?
Rodrigo.
É curioso notar como na discussão desse caso o debate entre cursista e
professor on-line é invertido. Dessa vez prevalência da autonomia do individuo
frente a questões da ordem moral é utilizada como argumento pelo professor
on-line. A cursista, apesar de dizer que concorda com o professor on-line,
continua reafirmando o seu argumento:
“Concordo com você, mas os alunos sempre
esperam de nós professores e pais uma palavra decisiva
e neste caso eu o posso ficar em cima do muro é uma
questão de vida ou morte”. Lucília, Maringá.
O caso 3 “Prevenção” colocou a questão de uma aula de biologia, sobre
o tema da gestação, onde uma aluna pergunta se é preciso usar alguma coisa
para evitar a gravidez na primeira relação.
Caso 3: Prevenção.
Dentro do conteúdo programado para o curso de Biologia, dirigido a uma turma
do último ano do ensino fundamental, estava prevista a inclusão da descrição e do
funcionamento do aparelho reprodutor feminino e masculino, da concepção e da
gravidez. Durante uma aula, na qual a professora estava descrevendo o
desenvolvimento do feto durante a gestação, uma de suas alunas lhe pergunta: É
preciso usar alguma coisa para evitar a gravidez na primeira vez, mesmo que os dois
sejam virgens e ela não esteja em um período fértil?
Questões:
- Que tipo de orientação você daria a esta aluna?
- Você ampliaria a discussão, mencionando a importância da prevenção às doenças
sexualmente transmissíveis (DSTs) e ao HIV?
Os cursistas foram enfáticos na necessidade de trabalhar os assuntos
indicados pelo caso. No entanto, mais uma vez a queixa de que os professores
não estão sendo capacitados para essas questões esteve muito presente.
“Eu particularmente tenho certa dificuldade para
conversar sobre sexo. Acredito que essa dificuldade foi
internalizada através da forma com que fui criada. Meus
pais eram muito fechados nesse sentido, então sinto um
certo bloqueio quando tenho que falar sobre o referido
assunto. Hoje em dia é tudo bem diferente,os pais são
muito abertos tornando tudo menos complicado. Nem
posso comparar a abertura que meus pais me deram
com a que dou hoje aos meus dois filhos adolescentes.
Apesar da dificuldade, tento ao máximo me aproximar
deles sempre que posso para estar orientando e
colaborando para que o processo de aprendizagem
sobre sexo seja bem mais natural do que foi comigo.
Penso que as dificuldades são resultado da construção
histórica da vida de cada ser humano e a transformação
requer calma e é claro, vontade de colaborar para uma
mudança sadia e sem mitos. Tenho consciência de que
como educadora devo transpor meus obstáculos
pessoais e contribuir na sistematização do assunto
lembrando que o mesmo deve ser algo muito natural para
que não haja bloqueios os quais resultarão em
dificuldades. Mas para isso, como foi dito neste fórum
a necessidade de preparação por parte dos
profissionais para que seja algo que venha colaborar de
forma efetiva para o crescimento do ser humano”.
Marina, Maringá.
Apesar de lembrarem que falar sobre sexualidade não é dever do
professor de biologia, muitos cursistas alegaram dificuldade em falar sobre
sexo. Em contrapartida, cursistas professores de biologia falaram sobre o
assunto com fluência.
“Não podemos mais admitir aulas de Biologia que
abordem somente morfologia e fisiologia sem
contextualizar. É compromisso do professor,
principalmente de Biologia, explicar, exemplificar... o dia a
dia. E antes de tudo estar preparado para as questões
que irão emergir. Como professora de Biologia sei que os
(as) alunos(as) nos procuram mais para conversar sobre
aborto, gravidez, problemas com namorados (as),
problemas na família... Mas todos os docentes têm que
estar preparados para conversar com alunos que os
procurem, às vezes por uma questão de identificação.
Não se pode exigir de um docente que, de repente,
mude sua maneira de ver as coisas e consiga ter uma
abertura para conversas ou como lidar com situações do
cotidiano escolar, se ele não foi preparado para isto.”
Daniela, Salvador.
“Olá, concordei com o que você estava falando
sobre como deve ser dada a aula sobre reprodução.
Também sou professora de biologia, e também concordo
com você quando diz que nossas aulas tem que ser mais
dinâmicas quando abordamos o assunto sexo. Este é um
assunto que sempre que necessário estou abordando.
Gostaria de saber como trabalha este assunto em sala de
aula.” Queila, Maringá.
Unidade 3:
Na terceira e última unidade do módulo sobre sexualidade, “Sexualidade
no cotidiano escolar”, os três casos apresentados foram:
caso 1 “Professor gay e o preconceito no ambiente escolar”,
utilizado por 19 turmas,
• o caso 2 “Educação sexual nas escolas”, trabalhado em 13
turmas e
o caso 3 “Moralismo e preconceito”, trabalhado em apenas
quatro turmas.
A discussão do caso 1 era sobre as repercussões que um professor
homossexual pode provocar em uma escola pública e em uma escola
particular:
Caso 1: Professor gay e o preconceito no ambiente escolar
Uma escola contrata um novo professor de História. O ano letivo se inicia e ele
chega para seu primeiro dia de aula. Bem vestido, de corpo malhado, bonito rosto, ele
logo chama a atenção de colegas e estudantes. Entra em sala para sua primeira aula
e, quando começa a falar, ouvem-se cochichos pela sala.
O mesmo ocorre nas aulas seguintes. Durante o recreio, na sala dos professores
e das professoras, todos/as são cordiais e gentis. Conversam sobre as férias e outras
amenidades. No entanto, no dia seguinte, quando o professor não está presente, por
não ter aula naquele dia, o assunto principal que circula à boca pequena pela sala é a
homossexualidade do novo professor de História.
Imaginemos dois desfechos para essa situação:
(Final 1) Trata-se de uma escola pública, tendo o professor sido aprovado por
concurso público. Durante algum tempo, fala-se sobre sua orientação sexual, mas,
passado alguns meses, o assunto parece perder o interesse. Ele continua a
desenvolver seu trabalho e torna-se um professor querido por parte dos estudantes.
(Final 2) Trata-se de uma escola particular. Na segunda semana de aula, um grupo de
estudantes procura a direção reclamando do professor. Não falam explicitamente
sobre sua orientação sexual, mas argumentam que não gostam das suas aulas. Após
o primeiro bimestre, na reunião com mães e pais, alguns deles aproveitam para
reclamar com a direção sobre o novo professor. Dizem que ele representa um mau
exemplo para seus filhos e sugerem que a escola contrate um novo docente. Sabendo
do ocorrido, um outro grupo de estudantes procura a direção e posiciona-se a favor do
professor. Não há unanimidade de opiniões.
Questões:
- Comente os dois desfechos da situação e crie um final para a situação na escola
particular.
- Crie um novo desfecho para a história descrita, que você imagina ocorreria caso o
professor de História ingressasse na sua escola. Como você agiria frente a essa
situação?
Os cursistas em sua grande maioria se colocaram contra o preconceito e
muitos afirmaram que a receptividade desse professor em uma escola pública
seria melhor, uma vez que esse seria um ambiente mais democrático e
tolerante.
“Achei ridículo os colegas falarem pelas costas,
pois cada um faz o que quer, embora eu não concorde
com essa opção, não tenho o direito de criticar pois a
vida é da pessoa e sua escolha também.
No caso do professor da escola particular o ideal é
que não houvesse nenhuma discriminação, ou seja ele
ter liberdade de ensinar, independente de sua opção
sexual, pois sua opção não influencia em nada, o
importante é que ele seja competente e não entre nessa
particularidade, sua vida particular.
Eu agiria normalmente, aliás na minha escola
um professor homossexual, e nada é comentado sobre
isso. Ele é tratado normalmente como qualquer outro
colega. Acho terrível a crítica, creio que não temos o
direito de criticar nem na frente nem nas costas, pois o
respeito deve estar acima de tudo.” Lúcia, Dourados.
Na discussão do caso 2 “Educação sexual nas escolas” os cursistas
demonstraram opiniões diferentes. O caso expunha algumas reportagens sobre
uma política federal que intenciona reduzir a idade do início das aulas de
educação sexual de 13 para 10 anos de idade:
Caso: Educação sexual nas escolas.
Aluno de 10 anos receberá educação sexual, afirma nova política federal
O governo federal vai antecipar o início da educação sexual, que inclui a distribuição
de preservativos nas escolas públicas, de acordo com a nova política de saúde do
adolescente. Hoje, o público-alvo é dos 13 aos 24 anos, mas o Ministério da Saúde vai
priorizar os alunos de 10 a 15 anos, faixa etária na qual o número de gestações não
segue a tendência de queda do resto da população.(...)
Desde o ano passado, os ministérios da Saúde e da Educação desenvolvem
programa em 482 escolas públicas, com jovens de 13 a 24 anos, para prevenir Aids e
outras doenças sexualmente transmissíveis, a gravidez precoce e os abortos
clandestinos decorrentes.
Dados do SUS mostram que o número de partos de adolescentes com 15 a 19
anos caiu 21% de 1998 a 2003. Porém, para as meninas de 10 a 14 anos, o número
se manteve na média de 28 mil partos ao ano. (...)
(Fonte: Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano, 16 de março de 2005)
Questões:
- Você concorda que a educação sexual na escola deva ocorrer com estudantes a
partir de 10 anos de idade?
- Como voconduziria uma prática de educação sexual na sua escola com esse
público?
Os cursistas, de uma forma geral concordaram com a iniciativa do
governo. No entanto enquanto alguns cursistas se justificaram argumentando
que a sexualidade faz parte da vida; muitos acreditam que a educação sexual
deve se iniciar cedo para conter e disciplinar a vida sexual dos alunos, que está
precocemente sendo iniciada.
“Penso que esta iniciativa do governo federal
esteja correta, uma vez que alunos de ciclo (9 a 12
anos + ou -) praticam sexo, e pior, sexo sem
segurança. Devemos tratar o assunto de forma natural e
garantir que todos, meninos e meninas, tenham acesso a
preservativos e informações. Não podemos contar coma
sorte, ou com a suposta ingenuidade de nossas crianças.
Aqui na escola ainda não fazemos este tipo de trabalho,
mas acredito ser necessário. Em minha aula, certa vez,
uma menina de 9 anos disse que queria crescer logo. Eu
perguntei pra quê? Ela disse: para ter relações sexuais
com meu namorado. Eu aconselhei dizendo que ainda
não era a hora certa e que havia coisas mais importantes
a serem pensadas.
Está cada vez mais precoce este tipo de
comportamento. A iniciativa do governo federal junto às
escolas é necessária.” Denise, Niterói.
“A sexualidade faz parte da vida humana desde
sempre, bebês já a possuem. Quanto mais cedo e mais
naturalmente tratarmos destas questões, estaremos
contribuindo para que as pessoas as exercitem de forma
mais consciente de suas possibilidades e conseqüências.
Sexualidade não é somente o coito e deve ser
considerada em sua plenitude. Higiene e saúde fazem
parte deste assunto e pode ser um bom início de
conversa, bem como as diferenças biológicas entre
homens e mulheres. Saber sobre seu corpo e seu
funcionamento, sobre as mudanças que ocorrem física e
mentalmente no desenvolvimento humano, contribui para
uma vida sexual mais ajustada às necessidades e
vontades do indivíduo. Algumas meninas iniciam suas
atividades sexuais antes da primeira menstruação, se
para uma mulher adulta orgasmo e camisinha podem
ainda representar um tabu, para uma menina poder ser
maior ainda a dificuldade em tratar destes assuntos,
muitas vezes servindo como objetos sexuais de seus
parceiros somente.
Vale ainda ressaltar que a forma de pensar do
adolescente e da criança são diferentes da forma do
adulto, muitas das minhas amigas e conhecidas que
engravidaram na adolescência não engravidaram por
acaso. Algumas queriam viver com seus namorados e
puderam contar com o apoio da família após a gravidez,
uma prima minha chegou a ter três filhas para “ajudar” a
ficar com o pai das crianças. Outra amiga queria ter
“alguém seu”, e teve dois filhos de pais diferentes sem
pensar em se casar, ela achava que ter filho era um
compromisso menor que se casar. Brincar de casinha,
com o favorecimento que algumas famílias proporcionam
ao novo casal, também serve como um fator de
favorecimento a repetição da gravidez na adolescência
na mesma família.
Ainda, de acordo com psicólogos, um pensamento
mágico pode fazer parte das ações da criança e do
adolescente e embora saibam de suas possíveis
conseqüências, alguns (algumas) acham que com ela ou
ele nunca vai acontecer. Este pensamento contribui para
que a reincidência da gravidez precoce ocorra, mesmo
vivendo as dificuldades da primeira gravidez a menina
acha que se aconteceu uma vez não acontecerá
novamente com ela. Possibilidades diferentes entre si e
diferentes da falta de informação somente podem estar
presentes, ou não, em uma mesma turma e ouvir é tão
importante quanto falar para que nossa fala como
educadores, possa de fato contribuir para o aprendizado
destas e outras questões.” Dirce, Niterói.
O caso 3 “moralismo e preconceito” era sobre uma garota negra, filha de
uma senhora que liderava o prostíbulo da região:
Caso 3: Moralismo e preconceito.
Certo dia, em uma escola, uma menina chega para a aula com um álbum de
fotografias tiradas no piquenique de final de semana. Eram fotos de um passeio com
sua mãe, suas amigas e seus namorados, em uma cachoeira da região. As fotos
produziram um verdadeiro alvoroço na escola. Os comentários sussurrados logo
deram lugar a protestos veementes, de que a direção da escola não poderia tolerar
aquilo e que providências enérgicas deveriam ser tomadas.
É colocada em questão a permanência na escola da aluna portadora do álbum
de fotografias. A garota, negra, era filha de uma senhora que liderava o prostíbulo da
região. As fotos que retratavam um animado piquenique entre amigos na cachoeira
revelavam algo mais. Entre os participantes do passeio estava um pai de uma outra
aluna da escola, desacompanhado da esposa e filha. Ora, eis aí o que fez emergir o
insuportável da presença da menina na escola. Provavelmente, ela não imaginava que
o seu gesto lhe traria tamanho transtorno. A mãe foi chamada à escola pela direção e
a transferência da aluna lhe foi entregue.
Questões:
- Escreva dois ou três parágrafos, comentando o episódio.
- Se esse fato tivesse ocorrido na sua escola, de que modo você teria agido?
- De que maneira essa situação constrangedora poderia fazer parte da sua prática
pedagógica?
Os cursistas foram todos contra a atitude tomada pela diretora do caso e
muitos propuseram que a prostituição fosse mais problematizada em sala de
aula. Alguns cursistas questionaram o cruzamento da questão racial nesse
caso:
“Engraçado como me veio a seguinte pergunta a mente: A
menina tinha que ser negra? Nada a ver, concordo! Mas
sempre o lado negativo vem com o negro! Seque uma
menina de pele clara sofreria o mesmo tipo de ação por
parte da escola? Tudo bem, estamos falando sobre
preconceito, mas tem que ser só com o negro?”
É interessante e louvável a crítica da cursista à combinação dos preconceitos
no caso. Como operar a transversalidade dos temas de uma forma produtiva
parece ter sido um ponto de conflito na aplicação do curso.
“Mas vamos ao que interessa! Veja só, que culpa tem a
menina se o pai da outra aluna estava desfrutando do
piquenique com outras mulheres? Isso é um problema
dele e da esposa dele, ele que resolva! Claro que ela não
deveria mostrar o álbum na escola, acho que nem a mãe
dela imaginava disso acontecer. O que deveria ser feito é
um trabalho de conscientização com os alunos do que
deve ou não ser levado à escola.” Graziela, Nova Iguaçu.
Módulo Raça/Etnia
Unidade 1:
Os três casos disponíveis para a unidade 1 do módulo 4, “Noções de
raça, racismo e etnicidade”, ficaram assim divididos entre as turma:
• caso 1 “Raça e identidade” – 6 turmas;
• caso 2 “Homofobia e discriminação racial” – 15 turmas e
• caso 3 “Raça e história” – 15 turmas.
Na discussão do caso I, sobre as dificuldades enfrentadas por uma
mulher ao ser classificada como mestiça na África do Sul do Apartheid, os
fóruns foram pequenos e os cursistas se posicionaram contra o preconceito
racial e os regimes totalitários.
Caso 1: Raça e identidade
O caso abaixo foi extraído do livro Apartheid e resistência, de Klaas Jonge (Cortês
Editora/Eboh Editora. África do Sul / São Paulo, 1991):
Sandra Laing, nascida de pais brancos, em Piet Retief, Transvaal, foi afastada da
escola depois que o diretor notificou à polícia que sua pele estava escurecendo e seu
cabelo ficando “crespo”. Classificada, então, de mestiça, foi depois reclassificada
como branca, mas ainda assim continuou não sendo aceita por nenhuma escola
branca. Indagado por que não mandava a filha para uma escola na Suazilândia, país
vizinho e independente, próximo de lá, o pai alegou ser contra escolas multirraciais.
Sandra apaixonou-se por um homem negro e tentou ser reclassificada como
“africana”, no que foi impedida pelos pais. Abandonada pela família e ignorada pelo
Estado, fugiu com o namorado para a Suazilândia, aos 15 anos de idade. Mas nem
assim se livrou de seus problemas. Foi devolvida à polícia sul-africana, sendo detida e
forçada a deixar seus dois filhos, que acabaram internados num orfanato para
mestiços. Sandra morreu recentemente num acidente.
Questões:
- Do que nos fala a história de Sandra? Seu drama pessoal explicita uma situação
social e sociológica complexa. Histórias como essa são recorrentes nos textos sobre a
África do Sul do período do Apartheid. Discuta e reflita sobre como sistemas
totalitários com base na raça afetam a vida dos indivíduos. Busque na internet dramas
similares que foram vividos no sistema nazista e os compare com o regime do
Apartheid.
- Você acha possível que uma situação como esta ocorra no Brasil? Discuta sobre o
papel que diretores/as de escola tem na manutenção de estruturas sociais desiguais.
“Entendo que o caso da Sandra é um desses que
fere profundamente nossa alma, pois além de não ser
aceita pelo Estado ainda teve que vivenciar atitudes
discriminatórias dentro da própria família. São fatos como
estes que nos leva a repensar os nossos conceitos.
Fazer um julgamento sobre determinadas pessoas, tendo
como base a cor da sua pele, é sem vida, a maior e
mais perversa forma de exclusão, discriminação e
preconceito étnico-racial. No Brasil, como disse a colega
Sônia, temos exemplos semelhantes à este, ou melhor,
um péssimo exemplo, tendo em vista que exemplo é
aquilo que serve como modelo, falo dos índios que desde
o início do descobrimento nunca foram respeitados nem
vistos como Homens dignos de serem aceitos e conviver
em sociedade, lembro os negros, que são
menosprezados devido a sua cor; chamo atenção para a
classe daqueles que não nasceram ricos, nem tiveram
oportunidade de acesso à Educação, Saúde, segurança
e assistência social. Isso nos mostra que as diferenças
de raça e cor precisam ser extintas, porém o depende
somente da compreensão da sociedade, mas de que se
faça cumprir o que está posto na lei, de maneira
efetiva.” Solange, Nova Iguaçu.
na discussão do caso 2, sobre um menino negro, homossexual e
morador de uma favela, as repostas dos cursistas foram longas e elaboradas.
O caso pedia para os cursistas refletirem sobre a constatação em algumas
pesquisas de que a homofobia é vivenciada de forma mais dramática do que a
discriminação racial:
Caso 2: Homofobia e discriminação racial
O caso transcrito abaixo faz parte de uma entrevista concedida para uma
pesquisa sobre raça e homossexualidade, no Rio de Janeiro. A trajetória utilizada,
para posterior reflexão, é a de um jovem homossexual, negro, morador do subúrbio
carioca, que tinha 17 anos na ocasião da entrevista:
Mateus tem uma trajetória dramática e paradigmática. “Bicha” alegre e
“caricata”, como denunciou um amigo; “negro” ou “moreno”, como ele diz, 16 anos,
filho de um traficante que morreu antes mesmo dele nascer... “de engano”, como ele
explicou. Em uma favela próxima da casa de Mateus, 17 anos, “eles” mataram o
pai do rapaz achando que ele fosse “outra pessoa”.
Mateus se dedicou por algum tempo à dança, e hoje faz supletivo, como muitos
jovens da região, para compensar consecutivos abandonos escolares. Sobre sua
trajetória escolar, disse-me com orgulho: “nunca fiquei reprovado, sabe”. Ele fazia
dança em uma escola pública e não está agora matriculado em nenhum curso. Na
região não nenhum local onde ele pudesse dançar ou mesmo fazer algum outro
curso que fosse do seu interesse. Ele disse que tinha algumas noções de informática,
adquiridas em um curso rápido que fez em uma igreja Batista da região e que chegou
a ir a uma favela próxima para tentar ingressar em um curso de dança, mas achou
perigoso ficar entrando na comunidade: tinha medo de ser “confundido” como
aconteceu com seu pai e desistiu.
São muitas as formas de desigualdades vivenciadas por Mateus. Nesse jogo
de “sujeições combinadas” chama atenção como a sua orientação sexual se justapõe
às demais categorizações sociais.
Como morador de uma região relativamente tranqüila - ainda que próxima de
favelas com forte histórico de violência - Mateus padece da patente falta de oferta e de
iniciativas públicas e privadas comum em regiões mais pobres do subúrbio carioca que
parecem passar despercebidas às iniciativas sociais de origens diversas. Sua rede de
contatos e amigos gays propicia, eventualmente, acesso a algum tipo de emprego.
Alguns trabalharam como garçom, motorista entre outras ocupações que não exigem
alta escolaridade. Um sonho comum destes jovens homossexuais negros do subúrbio
carioca? Alguns me confidenciaram: gostariam de se tornar cabeleireiros!
(Fonte: Reflexões sobre raça, (homos)sexualidade e pobreza no subúrbio carioca.
Laura Moutinho e Crystiane Castro - mimeo).
Questões:
- Em pesquisas universitárias, que abordam o tema da homofobia e da discriminação
racial em distintos espaços sociais, relatos que colocam que o problema da
homossexualidade (que vai dos gays e lésbicas, passando pelas travestis e
transgêneros) é vivido de forma mais dramática do que o da discriminação racial.
Discuta esta questão, considerando o que foi refletido até o momento. Considere sua
experiência como educador/a ao tratar do assunto.
- Reflita sobre como se dão certas “sujeições combinadas” em sua escola. Reflita
sobre sua própria maneira de perceber este tipo de situação. Como você, enquanto
educador/a, reage quando tem que lidar com uma queixa que tenha como base a
orientação sexual e de gênero (caso das travestis, por exemplo) e se, na sua opinião,
o fator em destaque neste contexto seria a discriminação racial.
Os cursistas analisaram bem as questões que se combinaram nesse
caso. Vários cursistas hierarquizaram os preconceitos, concordando com o
texto que o preconceito acerca da sexualidade seria pior do que o preconceito
de raça/etnia.
“Como educadora muitas questões atípicas
acontecem no meu cotidiano escolar. Claro que a
discriminação racial não se compara com os de GLTTS,
pois esses não são considerados "normais" perante a
sociedade. Isso é refletido na escola, onde o preconceito
é mais acirrado sem nenhum disfarce. Eu como
educadora lido com essas questões de maneira
amenizadora, quando surge alguma situação de
discriminação eu aproveito o momento para trabalhar de
forma séria e ao mesmo tempo jocosa, o que faz que o
assunto seja amenizado e que não cause mais
constrangimento tanto para o/a discriminador/a quanto
para o/a discriminado.” Nazaré, Porto Velho.
O caso 3 apresentava um trecho do texto “Raça e História”
7
e a partir daí
suscitava algumas questões para o debate:
Caso 3: Raça e História.
O texto abaixo foi extraído do livro Raça e história, do antropólogo Claude Lévi-
Strauss. Esse livro foi publicado pela primeira vez em 1952. Trata-se de uma
encomenda que a UNESCO fez ao antropólogo e a alguns outros intelectuais e
cientistas renomados da época, acerca do problema do racismo. Naquele momento, o
mundo ainda estava chocado com as atrocidades que poderiam ser cometidas em
nome da pureza racial, e a UNESCO liderou várias iniciativas a respeito do tema:
“A simples proclamação da igualdade natural entre todos os homens e da
fraternidade que os deve unir, sem distinção de raças ou de culturas, tem qualquer
coisa de enganador para o espírito, porque negligencia uma diversidade de fato, que
se impõe à observação (…). As grandes declarações dos direitos do homem têm, elas
também, esta força e esta fraqueza de enunciar um ideal muitas vezes esquecido, que
o homem não realiza a sua natureza numa humanidade abstrata, mas nas culturas
tradicionais.”
Questões:
- A partir do texto apresentado acima, das discussões realizadas nesta unidade e
tomando por base sua experiência como educador/a, reflita sobre os problemas e
limites, no cotidiano escolar, de conciliar a idéia mais ampla e universal de igualdade
com a diversidade de gênero, classe, raça e sexualidade experimentada de fato em
seu cotidiano.
- Você considera importante ter programas específicos para atender as diversidades
nas escolas? Como você acha que eles devem ser elaborados?
- Sua escola tem algum instrumental para recolher informações sobre as diversidades
estudadas neste curso? Se sim, em quais momentos são utilizados? Quem organiza
as informações?
Apesar das turmas em que foi discutido o caso 2 terem concluído que a
homofobia é mais dramática que a discriminação racial, o que se percebe nas
postagens dos fóruns das turmas que escolheram o caso 3, é que a maioria
dos cursistas não se refere às questões de gênero e sexualidade para falarem
da igualdade em contraposição à diversidade o preconceito de raça e etnia
foi priorizado nas contribuições dos cursistas.
“Na escola, de maneira geral, as crianças brancas e
negras não recebem o mesmo tratamento. Muitos
professores reservam uma cota maior de contato físico e
7
LÉVI – STRAUSS, Claude. "Raça e História". In: Os Pensadores, vol. L, São Paulo, Abril
Cultural, 1978.
palavras carinhosas aos alunos brancos e desta forma os
alunos negros se sentem inferiorizados e os brancos
passam a crer que têm mais valor do que seus colegas.
Na escola não se pesquisas sobre
discriminação e alguns professores, no entanto, vêm
rompendo o silêncio e tratam do assunto. Esse número
tende a crescer. Não existem programas específicos para
atender as diversidades e muito menos instrumentos de
informações.” Gilson, Maringá.
É importante a fala do cursista sobre a falta de pesquisas no tema da
diversidade na escola. Essas pesquisas podem até estar ocorrendo;
entretanto o percurso entre a produção de conhecimentos na universidade e
sua disponibilidade no ambiente escolar ainda é restrita.
O depoimento abaixo inicia-se com uma longa exposição acerca da
igualdade mas o cursista conclui sua argumentação baseado apenas na
questão racial. O que nos faz pensar novamente se falar de raça é mais fácil do
que falar de sexo.
“Acredito que deva estar sempre clara para os
alunos a idéia da igualdade trazida nas Declarações
Universais, como uma igualdade meramente jurídica.
Todos são iguais perante a lei e que essa igualdade veio
atender interesses de grupos que ocuparam o poder. Ter
conhecimento dessa igualdade jurídica é, na minha
opinião, de suma importância. Ela, apesar de tudo, é um
instrumento na luta pelos direitos do cidadão. Porém, é
importante confrontar essa igualdade legal com a
realidade vivida por nós. A lei procura uniformizar as
diferenças. E se os "diferentes" têm status de "iguais" o
seu insucesso e problemas sociais o de sua
responsabilidade. Os negros, por exemplo, embora "iguais
aos brancos" perante a lei, ocupam as posições mais
inferiores na sociedade. Por quê? Aí vem o perigo da
idéia de igualdade. Se a lei igualou, a natureza se
encarregou de desigualar. A natureza e não fatores
sociais, culturais, históricos e políticos, passa a explicar a
desigualdade social.
Por isso cabe à escola trabalhar diversidade.
Nossos alunos precisam entender que o discurso,
construído séculos, sobre naturalização das diferenças
reforça a discriminação e os preconceitos. Temos o
direito de sermos tratados como iguais em nossas
diferenças.” Cibele, Salvador.
Unidade 2:
Na segunda unidade do módulo IV, “Desigualdade social”, foram
discutidos:
• o caso 1: “Raça e mercado de trabalho” em 13 turmas,
• o caso 2: “Ações afirmativas e educação” em 16 turmas e
• o caso 3: “Discriminação em bancos”, em 7 turmas.
Nos casos 1 e 2, as questões trabalhadas referiram-se quase que
exclusivamente ao tema raça/etnia.
Caso 1: Raça e mercado de trabalho.
Nosso primeiro caso é o texto de uma entrevista concedida a Márcia Lima,
professora especialista deste curso, para a pesquisa de sua tese de doutorado em
sociologia intitulada Serviço de branco, serviço de preto: um estudo sobre cor e
trabalho no Brasil, defendida em 2001:
João é um vendedor de uma loja de eletro-eletrônicos, 28 anos, casado, pai de
três filhos. Se autoclassifica como negro. Trabalha nessa loja há cinco anos. Ingressou
como fiscal de salão (segurança) e trabalhou durante dois anos nessa função e
trabalhava, três anos, como vendedor. No momento da entrevista, a loja passava
por uma reestruturação em termos de perfil de consumidor - estavam optando por
vender mercadorias mais caras - e havia uma discussão em torno do perfil de João
para continuar trabalhando:
M - Como é que era a função de Fiscal de Salão?
João - Era para inibir as pessoas de pequenos furtos na loja, porque a loja
trabalha com um sistema que é o seguinte. E a loja, ela têm as mercadorias, são
postas dentro da loja, sendo que as mercadorias furtadas ou danificadas, então, essas
mercadorias são cobradas do funcionário. Então, o Fiscal de Salão foi criado, essa
função já existe, mas foi criado pra que nós evitássemos que essas mercadorias
fossem furtadas ou até danificadas, pra que evitássemos que os funcionários
pagassem.
M - Você tinha alguma recomendação? Tinha tipos suspeitos?
João - Não. Eles não dizem negros. Ele visava muito as pessoas de baixa
renda. A discriminação era social, nem chegava a ser racial. Existia a racial, mas mais
a social no caso.
Após trabalhar dois anos nessa função, ele pediu para ser promovido a
vendedor e, depois de muita insistência, ele conseguiu. Para ele, nessa ocasião, foi a
primeira vez que percebeu que poderia enfrentar dificuldades nesse trabalho por ser
negro:
João - Então, eu cheguei até eles [a gerência] e pedi pra ser promovido a
vendedor, que a outra gerente que havia na loja, sempre colocava que eu era um
ótimo Fiscal de Salão. Era justo aquele lance que eu te falei, eu sempre procurei ser o
melhor em tudo o que faço. Então acabava que eu era um bom Fiscal, mas sempre
nisso aí eu sentia que era muito em parte de que eu era grande, de que eu era negro.
Então, estava ali mais para inibir do que para conquistar os clientes, entendendo?
Eu sempre senti aquilo, mas eu ficava na minha.
Segundo ele, o preconceito também pode estar colocado por uma instância
que não está diretamente em contato com ele:
João - (...) deixa eu te explicar uma coisa. Sobre isso que você es me
perguntando, fica difícil te responder. A discriminação racial vem dos donos e
praticamente eles não trabalham diretamente contigo, trabalha é o gerente. O gerente,
praticamente, ele precisa de você, por tudo que você faz, você adquire conhecimentos
maiores do que o gerente. Então, gerente é sempre do seu lado. Ele só esconde o que
está acontecendo, mas isso vem direto dos patrões.
M - Então nunca foi dito a você, claramente, essa coisa?
João - Não... Foi dito a mim, não. Agora que o subgerente saiu foi que ele falou
que eles queriam me mandar embora por eu não alcançar o perfil da loja. Eu não me
enquadro ao perfil da loja porque sou negro e sou alto. Não pela altura e sim por eu
ser negro (...) Eles estão procurando atingir um público que não pode ter um negro pra
ficar atendendo essas pessoas, por isso também eles não podem me mandar embora,
porque eu sou um dos que mais conhece as mercadorias aqui; fica aquele
contratempo, mas o lado negro pesou bastante.
Questões:
- Em um determinado momento da entrevista, João diz o seguinte: "Então estava ali
mais para inibir do que para conquistar os clientes, entendendo?" Como podemos
associar esta experiência ao debate sobre estereótipos, preconceito e desigualdade?
- O que você destacaria nesse depoimento, num trabalho educativo?
Na discussão desse caso os cursistas foram enfáticos na necessidade
de combate aos preconceitos relacionados à raça/etnia, como no relato abaixo:
“No caso do João que trabalhava na loja ele
estava mais para inibir as pessoas, do que para
atendê-las,ele não estava sendo bem para ser vendedor
por que a loja achava que ele ia assustar os clientes, e
na verdade é o que acontece. Sei de vários fatos que
aconteceram com colegas minhas em lojas, estas
preparam seus vendedores para não atenderem bem os
mais pobres e principalmente negros. Acho que um
trabalho educativo não deve ser estendido somente à
sala de aula, mas toda a sociedade e com rigor. Acho
que a lei que pune a prática do racismo, deveria estar
afixada na recepção de qualquer órgão do governo e da
rede privada, junto com o slogan ‘AQUI NÃO SE
PRATICA O RACISMO’ ou ‘RACISMO É CRIME’. Seria
muito importante e imprescindível que as pessoas negras
fossem mais informadas e conscientizadas da sua igual
igualdade de oportunidade e de que se não for bem
atendida em qualquer órgão, ou descartada numa
seleção de emprego, para denunciar os opressores,
também as delegacias deveriam estar melhor
preparadas, para atender com dignidade as pessoas que
chegam com a denúncia. Se bem que isso não acontece
com os negros, é acima de tudo com a aparência,
modo de vestir, porte físico etc.” Gabriela, Porto Velho.
O caso 2, sobre ações afirmativas na educação, apesar de ser um tema
polêmico não provocou muita discussão entre os cursistas.
Caso 2: Ações afirmativas e educação
Leia e comente a matéria abaixo:
“Ações afirmativas: Educação concentra iniciativas para negros.”
Em segundo lugar nos projetos que visam reduzir a desigualdade estão as
áreas de trabalho e renda.
Maior exemplo da desigualdade racial no Brasil, a educação concentra 44,2%
das iniciativas de ação afirmativa para negros no país. Ação afirmativa é qualquer
política pública ou privada criada com o objetivo de reduzir desigualdades, como de
gênero e cor.
Dados do Afro (Centro de Estudos Afro-Brasileiros) da Universidade Cândido
Mendes e informações obtidas pela Folha em outras instituições contabilizam a
existência, desde 1999, de pelo menos 208 iniciativas governamentais e não-
governamentais de ação afirmativa para negros.
Foram consultados, além do Afro, o Ceris (Centro de Estatística Religiosa e
Investigações Sociais), órgão ligado à Igreja Católica, a Fundação Ford, o Ministério
da Educação, universidades e ONGs.
Não dados consolidados sobre os anos anteriores, mas especialistas,
governo e ONGs apontam um aumento das ações afirmativas depois da Conferência
das Nações Unidas contra o Racismo, a Discriminação, a Xenofobia e a Intolerância
Correlata, realizada em setembro de 2001 em Durban, na África do Sul.
Em segundo lugar nas iniciativas de ação afirmativa para negros, estão as de
geração de trabalho e renda (18,7% do total). Projetos mistos de educação e trabalho
representam 1,7%. Também existem iniciativas nas áreas de direitos humanos
(13,3%), informação (7,2%), cultura (5,5%) e legislação (4,5%), entre outras.
As ONGs são as principais promotoras das ações, coordenando 36,5% dos
programas. Um quarto dos projetos é de iniciativa governamental (União, Estados e
municípios), e parcerias entre governo e ONGs promovem 9,1% deles.
Também têm se multiplicado as iniciativas em universidades, muitas das quais
públicas. O programa Políticas da Cor, do Laboratório de Políticas Públicas da Uerj
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro), com apoio da Fundação Ford, financia
outros 27 projetos de ação afirmativa no ensino superior, sendo 17 em universidades.
Há ainda projetos de sindicatos, partidos e empresas.
Para a coordenadora do Afro, Rosana Heringer, as ONGs provocaram a
proliferação de ações afirmativas, mas, nos últimos anos, os governos aumentaram
sua participação, e as políticas públicas precisam ser ampliadas.
Entre as iniciativas cooperativas de trabalho, grupos culturais, bolsas para
estudantes negros -como as oferecidas pela Fundação Ford e pelo Instituto Rio
Branco-, cursinhos pré-vestibulares, passando por campanhas de esclarecimento e
legislação sobre o assunto.
"As iniciativas cresceram. Isso é um avanço. Mas ainda grande demanda
por ações afirmativas, principalmente no ensino superior", afirmou Heringer, que fará
uma pesquisa analisando os resultados das ações afirmativas para ver o que foi
implementado e o que não prosperou.
No segundo caso está, na avaliação dela, o decreto 4.228, de maio de 2002,
que determinava o estabelecimento de metas para aumentar a proporção de negros
nos cargos da administração pública e nunca foi regulamentado.
Alguns órgãos federais, como o STF (Supremo Tribunal Federal) e os
ministérios da Justiça e do Desenvolvimento Agrário, implementaram portarias
determinando reserva de vagas para contratar servidores negros.
(Fonte: Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano, 19 de janeiro de 2004)
Questões:
- A partir do que foi apresentado nesta unidade, discuta o porquê de a educação ser
um dos principais alvos de ações afirmativas?
- Qual a importância das organizações não-governamentais na implementação dessas
políticas?
- Das iniciativas apontadas na matéria, qual chamou a sua atenção? Por quê?
- Que aspectos do texto você abordaria em sala de aula?
Na discussão desse caso, cada cursista expôs a sua opinião, que nem
sempre foram compatíveis, mas não houve debate entre os cursistas
colocando em confronto argumentações opostas.
“Penso que as políticas de ações afirmativas
devem sim iniciar pela educação, visto que é a partir do
acesso ao conhecimento, à cultura, à informação e
posteriormente ao trabalho que o indivíduo cria
condições reais de combater o preconceito, reduzir as
desigualdades e ter acesso aos direitos que deveriam
ser comuns para todos. Como isso não acontece na
prática, cabe ao poder público organizar meios, traçar
estratégicas para que os cidadãos/ãs tenham seus
direitos garantidos de acordo com a Constituição
Federal.” Bruna, Dourados.
o caso 3 discutia a discriminação de negros e mulheres em bancos,
afirmando que esses raramente são contratados, e quando são, ganham
menos do que os homens brancos.
Caso 3: Discriminação em bancos.
DESIGUALDADE: Pedida ação contra suposta discriminação em banco
Ministério Público entra na Justiça do Trabalho com ação para combater o que
como discriminação a negros e mulheres
O Ministério Público do Trabalho entrou ontem na Justiça trabalhista de Brasília
com uma ação civil pública contra os bancos Bradesco, Itaú, ABN Amro e Unibanco
por suposta discriminação contra mulheres e negros.
A ação envolve os bancos que se recusaram a participar do programa
"Igualdade para Todos", lançado em abril pela Procuradoria do Trabalho, que
estabelece como metas promover a admissão de um número maior de negros,
aproximar as médias salariais de brancos e negros e criar critérios de ascensão
profissional mais transparentes.
O procurador do Trabalho Otávio Brito Lopes disse que o objetivo do programa
é combater a discriminação racial e de gênero, buscando isonomia dos trabalhadores
vulneráveis.
Dados levantados pelo Ministério Público do Trabalho mostram a baixa
admissão de negros e mulheres nas empresas, especialmente nos bancos.
Conforme mostrou reportagem da Folha em julho, os negros recebem em
média 63% dos salários dos brancos. Já as mulheres ficam com 60% do salário
masculino no setor, segundo os dados apresentados.
Brasília
Em Brasília, por exemplo, os cinco maiores bancos privados possuem um total
de 1.858 trabalhadores. Desse total, somente 18,7% são negros - sendo 10,6% do
total, homens e 8,1%, mulheres. Em o Paulo, o setor emprega 64.750 pessoas.
Desse total, 7,9% são negros.
Para marcar a entrega da ação, os bancários fizeram um protesto na tarde de
ontem em frente ao Fórum do Trabalho em Brasília. Na pauta de reivindicações dos
bancários, que estão em campanha salarial, consta também a busca pela igualdade
de oportunidades.
"A discriminação, seja que tipo for, deve ser combatida de todas as formas,
pois são meios de aumentar a exploração de homens e mulheres, brancos e negros",
afirma Neide Fonseca, secretária de políticas sociais da CNB-CUT (Confederação
Nacional dos Bancários) da CUT.
Outro lado: Instituições negam acusação da promotoria
O Bradesco disse que tem uma política de gestão que respeita a diversidade
étnica, cultural e religiosa prevista no código de ética da instituição.
O Banco Real informou que mantém amplo programa de diversidades,
enfocando afrodescendentes, mulheres e pessoas com deficiência.
O Itaú cita seu código de ética e informa que seu comitê de diversidade é
responsável por implementar e monitorar a evolução das contratações e progressão
de negros, deficientes físicos e mulheres no banco.
A Fenaban (Federação Nacional de Bancos) informou que não se pronunciaria
como entidade sobre a acusação.
(Fonte: Folha de S.Paulo, editoria Dinheiro, 13 de setembro de 2005)
Questões:
- Como você analisa a recusa desses bancos em participar do Programa?
- Como você avalia esse Programa?
- Que tratamento você daria a esse Programa em sala de aula, para torná-lo um fato
educativo?
Os cursistas elaboraram suas contribuições tendo como foco a
diversidade de uma forma geral e não valorizaram situações específicas de
discriminação.
“Quanto aos compromissos da educação, esta
pode e deve estar favorecendo, debates, estudos,
análises frente a necessidade de que todos precisam
estar preparados, habilitados, qualificados. o tem
como eu exigir espaços profissionais, se me falta o
principal... Preciso ter conhecimento e saber utilizar estas
informações em favor das situações problemas.
Portanto, vejo que toda esta discussão em torno
da desigualdade, da discriminação, não será superado
apenas em garantir cotas e acessos, mas sim deve ser
garantido o ingresso a preparação inicial, acadêmica e
profissional. Isto acontece no início da vida escolar do
aluno. Precisamos preparar o profissional, construir para
garantir sua vaga no mercado de trabalho, isto por ser
melhor qualificado e não porque a lei lhe garante este
espaço por atender itens na lista dos excluídos.
Atualmente, todos os excluídos das oportunidades de
emprego, sofrem inicialmente a ausência de formação, o
devido preparo para uma qualificação compatível no
mundo trabalhista.
Portanto, acredito que não adianta só tratar os
efeitos, precisamos combater a doença. Neste caso tem
sido, fortalecer a corrente por uma educação de
qualidade para todos, ACESSO E PERMANÊNCIA.
Daqui a dez anos, o futuro profissional terá perfis bem
mais brasileiros.” Célia, Porto Velho.
Unidade 3:
Na última unidade do módulo sobre relações étnico-raciais, “Igualdade
étnico-racial também se aprende na escola” os três casos trabalhados foram:
• caso 1: “Definições de tipos raciais”,
• caso 2: “Política de cotas nas universidades públicas” e
• caso 3: “Realidade dos indígenas”
Todos os casos enfocaram as questões de raça e etnia e seus
desdobramentos na escola sem, no entanto, inserir as questões de gênero e
sexualidade de maneira transversal, como fora feito nas duas unidades
anteriores.
Caso 1: Definições de tipos raciais
É dia 20 de Novembro. Dia da Consciência Negra! A orientação dada pela
coordenadora pedagógica da escola é a de que todas as aulas devem abordar a
questão étnico-racial. Nem todos/as tiveram oportunidade de conversar com o
professor de história, que por trabalhar com o assunto mais tempo poderia dar
algumas dicas. Na aula de português, para fugir da quase tradicional leitura e
interpretação de texto sobre os Quilombos dos Palmares, a professora propõe uma
atividade grupal. Solicita que os estudantes procurem o significado de brancos, negros
e índios na cultura brasileira. Um grupo segue a proposta ao “pé da letra”: vai ao
dicionário, procura e encontra as seguintes definições:
Branco: “Brilhante. Da cor da neve, do leite, da cal. Alvo, claro, translúcido. Homem de
pele clara. Sem mácula, inocente, puro, cândido, ingênuo. Pessoa de alto nível social.
Incapacidade de recordar-se de algo”.
Índio: “Indivíduo pertencente a qualquer um dos povos aborígines das Américas. Certo
tipo de papagaio. Valentão”.
Negro: “De cor preta. Diz-se de indivíduo de etnia ou raça negra. Sujo, encardido,
preto. Muito triste. Melancólico, funesto, lutuoso. Maldito, sinistro. Perverso, nefando.
Escravo. `Trabalhar como um negro’. Trabalhar muito.”
(Fonte: FERREIRA. Aurélio Buarque de Holanda. Novo Aurélio Século XXI: o
Dicionário da Língua Portuguesa. 3ª ed. Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999)
Questões:
- Qual sua opinião sobre a atividade? Que reações você imagina que os alunos
(brancos e não-brancos) tiveram?
- Quais relações você estabeleceria entre estas definições e os “tipos raciais” do
Conde de Gobineau, estudados na unidade 1 deste módulo?
- Em sua opinião, como os/as educadores/as devem lidar com as obras literárias, as
expressões artísticas, as definições dos dicionários e outros materiais que contenham
visões preconceituosas e discriminatórias?
- Como você continuaria esta aula?
“Sem dúvida alguma o tema Consciência Negra
deve ser abordado em sala de aula, acredito ainda que
não somente o professor de história deve trabalhar com
este assunto e sim, todos os professores, independente
da área de conhecimento. Antes de o professor orientar a
atividade deveria ter planejado a aula desta pesquisa e
previsto que desta forma seus objetivos não seriam
alcançados, pois da forma que foi ministrado trouxe uma
impressão discriminatória às pessoas da cor negra,
deixando uma impressão negativa e uma idéia de
superioridade para os brancos. Assim sendo, houve uma
frustração com relação à aula. Eu continuaria a aula
mostrando aos alunos que nem sempre devemos aceitar
por verdade as afirmações das obras literárias ou
registros nos dicionários são de caráter científico não se
preocupando com a consciência humana”. Carlos,
Dourados.
Caso 2: Política de cotas nas universidades públicas
As cotas para negros nas universidades públicas têm acirrado o debate sobre
relações raciais, racismo, meritocracia, identidade racial, entre outros. Transcrevemos
aqui, duas mensagens, enviadas por professores universitários a outros professores,
via e-mail. Uma contrária às cotas e outra favorável:
Queridos amigos,
A lógica do argumento é impecável. A discriminação realmente constitui uma
dificuldade de acesso do elemento negro ao ensino superior. Mas por que resolver
o problema do afro-descendente? Para a mesma lógica, e desde que a posição
socioeconômica não trabalhe como linha de corte, eu proponho imediatamente que
outros discriminados sejam igualmente contemplados: cotas de 51% para mulheres;
cotas de 4,7% para os descendentes de indígenas; cotas de 0,3% para as pessoas
que sofreram violência ou violência sexual na infância; cotas de 0,8% para cegos ou
pessoas com sérias deficiências visuais; cotas de 2,1% para portadores de Síndrome
de Down; cotas (ser definido) para travestis e transexuais; cotas de 1,2% para
paraplégicos ou hemiplégicos; cotas de 0,1% para gagos ou pessoas afetadas por
outras dificuldades semelhantes; cota de 4,9% para vegetarianos. A lista não é
certamente exaustiva. Mas certamente pode ser completado no processo de
discussão. Ou será que permanece algum bom senso? Saudações.
Queridos amigos,
Para termos certeza de que não se trata apenas de uma defesa de privilégios de cor,
seria importante que aqueles que estão emitindo opinião contra e a favor de cotas se
identificassem em termos de cor. Eu sou fenotipicamente branca e totalmente a favor
das políticas de ações afirmativas dentre as quais se inclui agora a nossa política de
cotas sociais - de ações afirmativas para não brancos. Aliás, devo dizer que, ao ler as
posições dos colegas (até agora todos homens...) contrários a essas políticas, fico
temendo pela nossa conquista - conquista das mulheres - em relação a cotas mínimas
nos partidos e sindicatos. Posso até imaginar o tipo de argumento que levantaram
quando nós, mulheres, entramos com nossas demandas de cotas mínimas de 30%
para mulheres e negros nas Câmaras Municipais, Assembléias Legislativas,
Congresso Nacional etc. Afinal, o poder sempre esteve em mãos de homens brancos:
não é fácil abrir mão de privilégios milenares.
(Fonte: SANTOS, J. T. Cotas na UFBA: De dilemas e tergiversações. In: GOMES, N.
L. (org.). Tempos de lutas: ações afirmativas no contexto brasileiro. SECAD/MEC,
2006)
Questões:
- Em sua opinião, qual o principal conflito trazido pelas idéias de cada um dos
professores?
- Com qual dos argumentos você se identifica mais? Por quê?
- Que crítica você faria ao argumento do qual discorda?
- O educador e a educadora usaram o recurso virtual (e-mail) para expressar suas
opiniões. Você tem utilizado esse recurso para dizer o que pensa sobre determinados
assuntos? De que forma?
- Que estratégia você usaria para levar este debate para a sala dos/as professores/as?
- E para a sala de aula? Você acha importante discutir este tema com seus/suas
alunos/as? Por quê?
“Os conflitos são frutos da situação
socioeconômica, dos indivíduos, em função da
distribuição de renda do país. Me identifico com o
segundo argumento, pois o Brasil ao longo de sua
história estabeleceu um modelo de desenvolvimento
excludente, impedindo assim o acesso e permanência na
escola, o sistema de cotas eu vejo como um meio para
que se faça uma correção no sistema de desigualdade
entre grupos permitindo um tratamento igualitário. Tenho
dialogado com colegas, mas não faço uso orgãos de
imprensa. Discutiria o assunto cotas, nas universidades,
tanto com os professores/as como com alunos/as e
abriria para debate.” Rosicleide, Maringá.
Caso 3: Realidade dos indígenas
Leia e comente o artigo abaixo:
Os índios famintos de Dourados
A morte de crianças na Reserva Indígena de Dourados, em Mato Grosso do
Sul, e em Campinápolis, em Mato Grosso, revelam o caos indígena no país. Na
quarta-feira desta semana conversei com a deputada federal de Mato Grosso, Thelma
de Oliveira, membro da Câmara dos Deputados que acabava de chegar de uma visita
a Dourados junto com outros deputados de comissão.
O resumo da situação de Dourados é de chorar. São 11.500 índios de três
etnias: terena, guaranis e caiuás ajuntados artificialmente numa área de 3.500
hectares, na década de 70. A aldeia acabou ficando na área urbana de Dourados,
onde os índios acabaram se envolvendo numa subaculturação com os defeitos da
vizinhança e sem os seus valores ancestrais. Usam álcool, drogas, prostituem-se,
sofrem estupros, conflitam-se internamente, vivem sem emprego numa aldeia
poeirenta de terra vermelha, onde não existe água. Os homens são recrutados por
“gatos” intermediários para trabalhar nas usinas de cana de açúcar e deixam as
famílias passando fome, à espera unicamente da comida que vem nas cestas básicas
incertas doadas pelo governo federal.
Nascem 500 crianças por ano na aldeia nesse ambiente de miséria, acrescido
da discriminação da população de Dourados. O índice de mortalidade é de 64 entre
cada 1 mil crianças nascidas vivas, contra 29 entre os brancos.
Segundo a deputada Thelma a crise tem piorado muito com os cortes
orçamentários feitos nos orçamentos da Fundação Nacional do Índio-Funai e da
Fundação Nacional de Saúde-Funasa. Os recursos que mantinham minimamente a
Reserva de Dourados foram reduzidos e a própria prefeitura de Dourados cortou as
parcerias que mantinha. O governo do estado também não se envolve mais no
assunto. O pior, diz a deputada, é que esta situação surgiu, cresceu e ninguém
planejou o futuro.
Hoje, além de tudo isso, acumulam-se disputas entre as lideranças das três
etnias, uma questão fundiária entre eles na medida em que para comprar comida
muitos venderam os lotes do assentamento, onde vivem sob o nome de aldeia
indígena.
Mas o mais dramático talvez seja o fato de estarem projetando uma nova etnia
que os índios antevêem, resultante da miscigenação forçada. Eles estão chamando de
“Guateca” (guaranis, terenas e caiuás). Num ambiente como o que vivem, esta pode
ser a sua sentença de extinção.
(...)Sem espaço físico, os índios perdem a sua identidade. Sem identidade eles
não capazes de se situarem no mundo que os cerca.
(Fonte: Diário de Cuiabá, artigo de Onofre Ribeiro, 27 de março de 2005).
Questões:
- O que você achou do artigo? Por quê?
- Como você relacionaria com os temas abordados nas jornadas presenciais, das
aulas inaugurais do curso?
- Como utilizaria este artigo em sala de aula? Que tal escrever para o articulista Onofre
Ribeiro ([email protected]), comentando alguns aspectos do texto? O artigo
é de 27 de março de 2005, pesquise na Internet se houve mudança do cenário.
“O texto retrata uma realidade cruel que acontece
na aldeia indígena de Dourados. Conheço esta aldeia e
estive lá, em julho de 2004, onde presenciei um índio se
enforcar em uma árvore que ficava a 300 metros da
estrada que faz ligação entre Dourados em Itaporã. Na
ocasião, perguntei a uma colega o que podia ter
acontecido. E a resposta foi que aquilo era comum na
aldeia em virtude da aculturação, e que talvez ele tenha
bebido demais. Perguntei ainda, como se dava a relação
entre os índios e os moradores de Dourados que é
caracterizada como uma cidade universitária composta
em sua maioria por jovens advindos de toda região de
Mato Grosso do Sul. Ela não soube me responder mas
afirmou que os índios moravam na aldeia de forma muito
precária, e que a vida naquela aldeia era caracterizada
pela marginalidade, insegurança, desemprego e
violência. Meu filho Kainãn, tinha na época 7 anos e
encheu os olhos de lágrimas dizendo ‘mamãe estes
índios não vivem como os índios’. E, em seguida
perguntou: ‘Quem tirou o jeito dele ser índio, ser índio
não é ser gente comum’. Eu perguntei, então ‘o que é ser
índio meu filho?’ E ele na sua inocência respondeu: ‘Ah!
Mamãe, ser índio é ser índio. É, ser diferente. É isso
que eu sei’. Estas palavras estão gravadas em minha
mente até os dias de hoje. E, este caso fez eu reviver a
história dos índios de Dourados.
Mas voltando ao questionamento, sei a realidade
daquela aldeia, e não vou ser repetitiva, pois o caso
disse tudo. Por outro lado, penso que pelo tempo que
aquela comunidade sofre deveria existir políticas
públicas voltada para povo indígena. Quanto a relação do
tema sobre o que aprendemos na aula presencial, tem
sentido direto, pois, a aula presencial abordou a
diversidade em que vivemos e a importância da
transversalidade dos diversos temas.
Ao levar este caso para sala de aula, conversaria
com os alunos sugerindo um debate sobre a formação de
professores indígenas em escolas indígenas e nas
aldeias. Pediria que eles pesquisassem sobre as regiões
que contam com uma universidade indígena.
Perguntaria aos alunos o que esses professores
aprendem, se usam computadores, se fazem pesquisa
na Internet. E, por fim, afirmaria que os professores
indígenas deveriam escrever seus mitos e as lembranças
dos mais velhos, e poderiam torna-se profissionais na
área da saúde, simultaneamente aprendendo com pajés,
ou forma-se em advogados, defendendo suas
comunidades e outros cidadãos. Tudo isso deveria
acontecer com naturalidade e como respeito às
diferenças e aos valores dos outros”. Morgana, Porto
Velho.
Respeitando a direção da discussão que os casos propuseram, os
cursistas realizaram suas contribuições refletindo sobre raça, etnia e o contexto
escolar.
4.2 Os Relatórios
Depois da realização, alguns relatórios foram redigidos pelas equipes
responsáveis pela aplicação do curso. O relatório desenvolvido com base na
avaliação do curso pelos professores on-line e o relatório desenvolvido pelos
orientadores temáticos contribuem para que se compreenda como foi a relação
entre a política pública e os cursistas. Isso se deve ao fato de tanto os
professores on-line quanto os orientadores temáticos terem sido responsáveis,
em grande parte, pela aplicação do curso. Dessa forma, combinando as
resoluções desses relatórios com os relatos dos cursistas nos fóruns de caso,
poderemos chegar a algumas conclusões acerca dos conflitos de valores
expressos entre cursistas e “aplicadores” da política pública no GDE.
Os professores on-line responderam a um questionário
8
de 30 perguntas
entre setembro e outubro de 2006. O questionário privilegiou os seguintes
temas: o conteúdo temático, a metodologia de ensino utilizada e as tecnologias
utilizadas para o curso a distância.
Sobre os conteúdos dos módulos, o Módulo III, Sexualidade e
Orientação Sexual, foi considerado o módulo mais difícil de ser trabalhado
pelos professores on-line, pois segundo eles, envolveu questões de ordem
cultural, ética e religiosa.
Os conteúdos do módulo IV, Relações étnico-raciais eram, segundo os
professores on-line, mais conhecidos pelos cursistas. Isto permitiu-lhes ficar
mais à vontade com os temas desse módulo. Essa constatação dos
professores on-line, combinada com os relatos apresentados na primeira parte
do capítulo aponta para a conclusão de que, de uma forma geral, é muito mais
comum que se compartilhe a “agenda” política moderna de respeito às
diferenças étnico-raciais do que a de sexualidade. Pelo menos no plano do
discurso, que é o que foi trabalhado nesse capítulo, parece ser muito difícil que
um posicionamento sobre raça/etnia, que seja hoje considerado
preconceituoso, seja admitido.
A orientação temática é apresentada no Projeto Político Pedagógico do
curso Gênero e Diversidade na Escola como forma de suporte permanente aos
professores on-line. Por meio do relatório da orientação temática
9
desenvolvido
com base no fórum de orientação temática, descrito no capítulo anterior, é
possível perceber os entraves da aplicação do curso, uma vez que coube à
8
As informações sobre o questionário estão presentes no relatório de autoria de Elizabeth
Rondelli, Karla Vaz Cavalcanti e Maria Lúcia Cardoso.
9
Relatório elaborado por Maria Lúcia Cardoso, Ari Sartori, Regina Facchini, Mariana Cunha e
Denise Botelho.
orientação temática o apoio aos professores em cada um dos módulos e o
acompanhamento do debate nas turmas para o incentivo à transversalidade no
tratamento dos temas.
No módulo sobre gênero, dentre as questões trazidas pelos professores
on-line ao Fórum de Orientação Temática, estavam casos de conflitos entre o
conteúdo do curso e a religião dos cursistas. Os orientadores temáticos
orientaram os professores on-line a instigar a reflexão sobre a influência que as
convicções políticas e religiosas exercem nas atividades pedagógicas dos
cursistas.
É possível perceber nas recomendações dos orientadores temáticos e
nos próprios debates nos fóruns de caso, um cuidado para não interferir de
forma ofensiva nas crenças dos cursistas. Mesmo assim, percebe-se que
uma diretiva da política blica que se impõe, afinal se o objetivo do curso é
sensibilizar esses professores da rede pública para questões que, por vezes
passam por suas crenças privadas, não há como evitar o debate.
No Fórum de Orientação Temática do módulo sobre sexualidade e
orientação sexual, unidade 1, os professores requisitaram mais informações
sobre os direitos LGBTT na legislação brasileira, demanda que foi atendida
pelos orientadores do tema. A ênfase nos direitos sexuais na forma de lei foi o
argumento mais concreto utilizado para atingir os cursistas. Por vezes, os
próprios cursistas pediam que esses direitos lhes fossem disponibilizados pois
assim poderiam combater situações de preconceito com a própria lei vigente no
país.
Da mesma forma, quando alguns professores on-line pediram uma maior
base para a argumentação, uma vez que muitos cursistas se apoiaram em
idéias baseadas em representações sociais mais tradicionais da adolescência
e da responsabilização familiar sobre a sexualidade dos filhos, foi aconselhada
a explicitação das representações sociais do adolescente como não-sujeito e o
amparo no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).
No Fórum de Orientação Temática, os professores on-line apresentaram
dificuldade em lidar com a tendência de alguns cursistas em discutir o aborto
como “crime e ação contra a vida indefesa”. Os professores on-line foram
orientados a disponibilizar o Dossiê da Rede Feminista de Saúde (dados
epidemiológicos sobre os agravos à saúde e mortalidade de mulheres
associados à ilegalidade do aborto) para sensibilizar os cursistas sobre a
questão do aborto.
A tensão demonstrada pelos professores on-line justifica-se, uma vez
que a legalização do aborto não está prevista de forma geral na legislação
brasileira. Aqui é possível perceber os conflitos do qual o curso em si resulta. O
curso oferecido pelo governo em alguns ministérios e secretarias foi
desenvolvido e aplicado predominantemente por uma instituição atuante nos
direitos sexuais e diretamente relacionada ao meio acadêmico, um lugar de
produção de conhecimento no qual críticas e reflexões ao próprio governo o
freqüentes.
Na análise dos fóruns foi possível constatar quais temas os cursistas
consideraram mais difíceis de serem trabalhados no contexto escolar: gravidez
na adolescência, violência de gênero, aborto e homossexualidade
(principalmente na adolescência) foram os temas que provocaram os ânimos
dos cursistas independente do módulo em que se encontravam.
Tanto na discussão do caso sobre violência de gênero, do módulo
sobre gênero, quanto no caso sobre aborto, no módulo de sexualidade, ficou
evidente a dificuldade dos cursistas em desvincular suas práticas como
educadores de suas questões de ordem moral/religiosa. Nesses dois casos
muitos cursistas construíram seus argumentos citando Deus, o amor e a defesa
da vida.
A preocupação em controlar a sexualidade dos alunos foi bastante
visível nos casos em que a temática da gravidez na adolescência esteve
presente e ficou bem clara no caso em que se discutiu a redução da idade para
o início das aulas de educação sexual.
Além dessas constatações, foi possível observar que nos casos em que
ocorreram o cruzamento das questões de raça e sexualidade, seja no módulo
de sexualidade ou no módulo de raça/etnia, prevaleceu entre os cursistas a
discussão sobre a discriminação racial.
V – Considerações Finais
O argumento teórico central dessa pesquisa se baseou em autores que
discutem o universal e o particular nas sociedades modernas ocidentais. De
acordo com Dumont (1985), cada sistema concreto de valores nessas
sociedades apresenta tensões internas geradas pela coexistência das forças
sociais individualizantes da modernidade, ideologia englobante, com valores
relacionais ou holistas.
Frente à preeminência do individualismo, discutida no capítulo II, o
objetivo geral dessa pesquisa foi analisar como as forças sociais
individualizantes da modernidade se combinam a uma perspectiva mais
relacional numa política pública para gênero, sexualidade e raça/etnia na
educação, no curso Gênero e Diversidade na Escola.
Para isso, analisamos o local no qual a política pública e o seu objeto, os
professores da rede pública, se encontraram de forma a tornar o mais visível
possível esse debate. Assim optamos por analisar o conteúdo dos fóruns de
discussão de caso, que foi uma ferramenta interativa do ambiente virtual de
aprendizagem utilizado no curso.
Depois dessa análise, podemos concluir que o curso Gênero e
Diversidade na Escola se enquadra nos termos de uma política pública com
orientação moderna, no qual o respeito à diversidade se apresenta como valor
predominante. Os cursistas ora estavam de acordo com esse valor, como na
maior parte dos debates de gênero e raça, ora se posicionavam de forma
contrária, como em muitos debates sobre o tema da sexualidade.
Percebemos que houve, na aplicação dessa política pública, um conflito
inevitável causado por um embate de valores. Mais do que isso, a análise dos
conteúdos dos fóruns provou que esse conflito é mais evidente em alguns
temas que em outros. Em alguns temas, portanto, os cursistas expressaram
uma reação maior às opções do curso. Isso porque nesses temas as
concepções da ordem privada dos cursistas se distanciaram dos valores que a
política pública tentava promover.
Os temas sobre os quais os cursistas apresentaram uma maior
resistência em aceitar a visão que estava sendo valorizada na política pública
se relacionaram à sexualidade de uma forma geral. Nos casos em que a
sexualidade era central como nos casos sobre gravidez na adolescência, sobre
homossexualidade, ou sobre sexualidade de crianças e adolescentes, os
cursistas debatiam com mais intensidade que nos casos em que se discutiu
unicamente a diferença de gênero e os preconceitos raciais.
O módulo sobre sexualidade foi considerado o mais difícil de ser
trabalhado pelos professores on-line, mas mesmo nos outros módulos, na
maioria das vezes em que a sexualidade aparecia combinada às outras
questões, os cursistas simplesmente ignoravam a parcela de sexualidade no
caso e falavam de uma forma genérica sobre preconceitos e estereótipos ou
então privilegiavam um tema em que o debate com os professores on-line não
fosse tão acirrado, como os relatos dos fóruns sobre raça/etnia deixam
concluir.
O curso expressou uma política pública universalista para os direitos
sobre gênero, sexualidade e raça/etnia, considerados portanto como
responsabilidades da esfera pública. A concepção de incluir essas questões
como dever do Estado é fruto da trajetória dos direitos humanos, como
pudemos perceber por meio da discussão realizada no capítulo III. À defesa da
liberdade individual, estabelecida como parâmetro dos direitos humanos desde
antes da Declaração de 1948, é adicionada a proteção social. As garantias à
privacidade, à honra e à reputação, reafirmadas nessa declaração, são
somadas à garantia de “direitos fundamentais para a própria construção da
individualidade” (VIANNA, p.17, 2004).
Essa duplicidade fundamental dos direitos humanos é explicada por
Vianna (2004) da seguinte forma: de um lado, esses direitos atuam no sentido
de defender o indivíduo frente ao Estado, como no direito à privacidade, e do
outro, os direitos humanos promovem a defesa do indivíduo pelo Estado. No
desenvolvimento dessa segunda fase dos direitos humanos, na qual o Estado
deveria promover alguns direitos fundamentais para garantir a segurança social
dos indivíduos, os grupos minoritários considerados em situação de risco social
são incluídos na esfera dos direitos humanos, trazendo desdobramentos para o
campo da sexualidade (VIANNA, 2004).
Foi possível notar nessa pesquisa, que essa mudança de foco das
questões que antes pertenciam à esfera privada e que agora viraram para a
vida pública, e a forma como essas questões estão sendo definidas pelas
políticas públicas, causaram um estranhamento nos cursistas, representando
aqui os indivíduos dessas sociedades modernas.
Não que a sexualidade, que explicitou essa tensão durante o curso,
não fosse um tema da responsabilidade pública algum tempo. De acordo
com Foucault (1988) e sua teoria do biopoder, desde a passagem para a
modernidade ocidental a sexualidade aparece como campo de disputa pelo
Estado. Aliás, a sexualidade já estava presente nas escolas brasileiras desde o
século XIX, quando eram condenadas algumas formas de expressão da
sexualidade dos alunos (MACHADO et al., 1978). O que ocorre é que a
sexualidade tida como saudável atualmente, e portanto merecedora de defesa
do Estado, é a sexualidade definida pelo campo dos direitos sexuais, do qual o
CLAM, responsável pela elaboração e aplicação da política pública, deriva.
Os conteúdos dos fóruns de caso apontaram que essa concepção mais
antiga de sexualidade, que ainda está muito presente nos indivíduos das
sociedades modernas, se baseiam em duas premissas, que foram os dois
principais focos de resistência dos cursistas: a moral e a biológica. No entanto,
não é o objetivo dessa dissertação adentrar na explicação de porque a
sexualidade se mostrou como o tema de maior resistência por parte dos
cursistas. É muito mais o “diagnóstico” que levou a essa afirmação. Aqui nos
interessa apenas apontar quais as possíveis respostas para essa questão.
A premissa moral foi expressa pelos cursistas por meio da religião ou de
um posicionamento mais amplo sobre a defesa da vida, do amor, etc. A
premissa biológica da sexualidade, que até hoje domina o assunto nas escolas,
como pudemos observar pelo relato de uma professora de biologia, que
afirmou que os professores dessa disciplina realmente são mais procurados
pelos alunos para falar de sexualidade, também parece embasar muitas
declarações dos cursistas.
Consideramos então, que a agenda dos direitos das mulheres assim
como a agenda dos direitos relacionados à raça/etnia, pelo menos no plano do
discurso, o que não inviabiliza esses mesmos cursistas de terem práticas que
ferem esses direitos, estão mais assimiladas pelos professores brasileiros, dos
quais os cursistas são uma pequena amostra, do que a agenda dos direitos
sexuais. Isso porque, como pudemos observar nos relatos dos cursistas, o
discurso deles sobre sexualidade, apesar de diverso, em muitas ocasiões
diferiu do discurso promovido pelo curso, o que raramente ocorria nas questões
de gênero e raça.
Enquanto o curso baseia seus conteúdos em visões advindas das
ciências sociais e dos direitos sexuais, os cursistas expressaram visões que
colocam a sexualidade ora como pertencente a uma moral privada, que
também lhes é um direito garantido pela lógica do individualismo e pelos
próprios direitos humanos em sua faceta fundadora, ora como submetida aos
domínios dos saberes biomédicos, que adquiriam notável legitimidade nas
sociedades modernas.
O cruzamento dessas duas premissas, do pertencimento do campo da
sexualidade a uma moral privada e aos saberes biomédicos, é refletido nas
inúmeras vezes em que aparece nos relatos o apelo a um profissional mais
qualificado para tratar do assunto: um psicólogo.
O psicólogo o estaria representando aqui justamente um profissional
que trata da vida privada das pessoas com a legitimidade que a ciência, de
uma forma geral, adquiriu em nossa sociedade? Apesar desse ser apenas um
apontamento despretensioso, embasa as hipóteses levantadas nessa
conclusão, de que o tratamento da sexualidade foi tenso no curso todo pois a
compreensão de sexualidade dos alunos se pautou em dois pilares: moral e
ciência, definidas de forma mais fechada e conservadora, que diferiam da
compreensão de sexualidade que o curso estava promovendo.
O apelo ao psicólogo também se relaciona com a divisão das disciplinas
escolares e do conhecimento, uma vez que os cursistas não se sentem
preparados para lidarem com um campo que não lhes foi ensinado como
pertencentes à sua disciplina.
Embora tenhamos mostrado como é delicado o processo da promoção
de direitos pelo Estado em face dos valores pessoais, não deixamos de
defender a realização de políticas públicas para a área da sexualidade na
educação. Apenas atentamos que essas políticas não podem ser pensadas
perdendo de vista a problematização feita nessa dissertação.
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