Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DE SANTA CRUZ DO SUL - UNISC
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS - MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LEITURA E COGNIÇÃO
Silvana da Rosa
DO TEMPO MEDIEVAL AO CONTEMPORÂNEO: O CAMINHO
PERCORRIDO PELA FIGURA FEMININA, ENQUANTO ESCRITORA E
PERSONAGEM, NOS CONTOS DE FADAS.
Santa Cruz do Sul, novembro de 2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Silvana da Rosa
DO TEMPO MEDIEVAL AO CONTEMPORÂNEO: O CAMINHO
PERCORRIDO PELA FIGURA FEMININA, ENQUANTO ESCRITORA E
PERSONAGEM, NOS CONTOS DE FADAS.
Esta Dissertação foi submetida ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Mestrado, Área de Concentração em
Leitura e Cognição, Universidade de Santa Cruz do Sul
UNISC, como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Letras.
Orientadora: Profª. Dr. Alba Olmi
Santa Cruz do Sul, novembro de 2009
ads:
COMISSÃO EXAMINADORA
Profª. Dr. Alba Olmi (UNISC/RS) – Orientadora
Profª. Dr. Juracy Assmann Saraiva (FEEVALE/RS)
Profª. Dr. Betina Hillesheim (UNISC/RS)
AGRADECIMENTOS
Sou grata à Vera Teixeira, amiga, colega de trabalho, pelo empréstimo de
materiais que tanto auxiliaram em minha pesquisa.
Quanto à Vera, mulher culta, de caráter único, íntegro. Feminina, feminista.
Professora, contadora de histórias em aulas de História.
Sou grata à professora Alba, minha incansável orientadora.
Quanto à Alba, pessoa de admirável fibra, de invejável sabedoria e
determinação.
Mulher que sentiu as tradições impregnadas nos contos do passado, mas que
optou em viver as re-escrituras no presente.
Sou grata a Deus por estar comigo, enviando-me fadas e anjos que me
acompanharam durante a construção desse trabalho, também formado de contos.
Sou grata a Deus por me presentear com minha filha.
Sou grata a minha princesa que tanto compartilhou da construção da minha
história e tanto ouviu contos de fadas.
À medida que as mulheres se tornam mais
conscientes do quanto de sua própria experiência
elas devam suprimir, a fim de enquadrar-
se nas
histórias dos homens, cresce o seu desejo de ter
uma literatura própria, em que histórias de
mulheres sejam contadas do ponto de vista da
mulher.
CHRIST apud GUEDES,1997, p.78.
RESUMO
O presente trabalho de pesquisa se constitui de um estudo sobre a evolução da
figura feminina dos contos de fadas, através dos tempos, observando-se também,
particularmente, o surgimento de mulheres escritoras em um universo
essencialmente masculino, bem como sua contribuição para que a mulher
adquirisse direitos intelectuais e sociais em relação à escrita e à publicação de suas
obras. Considerando-se o seu contexto próprio de vida, a personagem feminina foi
analisada nas várias versões de diversas obras inseridas em um espaço temporal
correspondente ao período que abarca desde o século V até meados do século XX.
Posteriormente a essa data, observa-se que as releituras e re-escrituras dos contos
de fadas, por parte de mulheres escritoras, passam a retratar a nova conduta da
figura feminina, que se distancia da milenar tradição cultural, até então padronizada
pelos ditames sociais masculinos. Em função disso, o trabalho abordou também,
tangencialmente, a questão da intertextualidade.
Palavras-chave: contos de fadas; trajetória da personagem feminina; mulheres
escritoras; releituras e re-escrituras; intertextualidade; feminismo.
ABSTRACT
The present research constitutes an approach to the female characters in fairy
tales along the time. We can observe that the new-look shows us new women-
writers, in a essentially male universe, and their contribution to the intellectual and
social rights in relation to female writing and the visibility of their books. Considering
their own life context, some female characters has been observed over several
versions inserted in a space going from the V century to the middle of the XX century
and over. After that period, we can observe that the re-readings and re-writings of
fairy tales, produced by women writers, start to show the new behavior of the
feminine character, far from the old cultural tradition patterned by social male
precepts. Because of those reasons, the work had to approach either, though
tangentially, the issue of intertextuality, because the traditional fairy tales were re-
written in sight of the social changes related to women free from patriarchal
impositions, with the advent of feminism.
Key-words: fairy tales; trajectory of female characters; women writers; re-reading
and re-writing; intertextuality; feminism.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Lista de ilustrações, conforme a obra Contos de fadas: edição comentada e
ilustrada, de Maria Tatar (2004).
1 Charles Perrault ................................................................................................... 32
2 Contos da Mamãe Gansa, de Charles Perrault, 1695 ......................................... 33
3 Jacob e Wilhelm Grimm ....................................................................................... 37
4 O príncipe e a Bela adormecida, de Walter Crane, 1876 ..................................... 38
5 Hans Christian Andersen ..................................................................................... 39
6 A Pequena sereia, de Jeanne Harbour, 1932 ..................................................... 40
7 O príncipe e a Pequena sereia, de Edmund Dulac, 1911 ................................... 41
9 Bela adormecida em seus aposentos, de Edward Burne-Jones, 1870-90 ........... 50
10 Barba-Azul entrega à mulher a chave do quarto secreto, de Gustave Doré, 1861
.................................................................................................................................. 51
14 Bela recebendo o pai, após a viagem, de Walter Crane, 1875 ......................... 58
15 Pele de asno fugindo de casa, de Gustave Doré, 1861 .................................... 59
21 Jeanne-Marie Leprince de Beaumont ................................................................ 82
22 A Fera e o pai de Bela, de Walter Crane, 1875 ................................................. 83
24 A porta sendo aberta, de autor anônimo ......................................................... 110
25 A esposa prestes a ser castigada, de Walter Crane, 1875 ............................. 112
Lista de ilustrações, conforme a obra Da Fera à Loira: sobre contos de fadas e
seus narradores, de Marina Warner (1999).
8 A Sibila ................................................................................................................. 48
11 Cinderela ............................................................................................................ 54
12 Cinderela, a madrasta e as irmãs ...................................................................... 55
13 A Bela e a Fera: versão Disney ........................................................................ 57
16 Pele de asno e o Príncipe doente ..................................................................... 59
17 A velha senhora contando os Contos da Mamãe Gansa para as crianças ...... 66
18 Homens observadores, mulheres contadoras de histórias ............................... 69
19 Les Contes des Fées, obra da baronesa d’Aulnoy ............................................ 72
20 Marie Jeanne L’ Hérietier de Vilandom .............................................................. 77
23 Angela Carter .................................................................................................. 108
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 11
1. CONTOS DE FADAS .......................................................................................... 13
1.1 Contos de fadas: povo origem ....................................................................... 14
1.2 Origens: obras primeiras e seus enfoques ................................................... 15
1.3 Conceituações e postulados .......................................................................... 21
2. ESCRITURA DOS CONTOS DE FADAS: TERRITÓRIO MASCULINO ............ 25
2.1 Homens escritores de contos de fadas ......................................................... 26
2.2 Os contos moralizantes de Charles Perrault ................................................ 30
2.3 Homens escritores dos séculos XVII a XX: avanços e retrocessos para a
inserção feminina no mundo intelectual ............................................................. 34
2.4 O papel social desempenhado pelas mulheres segundo certa ótica
masculina ............................................................................................................... 46
2.5 No universo literário masculino, a figura da mulher contadora e tradutora
de histórias ............................................................................................................ 63
3. A INSERÇÃO DA MULHER ESCRITORA NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL
AO LONGO DOS TEMPOS ..................................................................................... 71
3.1 Efeitos e mudanças no papel feminino na sociedade .................................. 72
3.2 Percalços que retardaram a efetiva inserção feminina no mundo
intelectual ............................................................................................................... 86
3.3 A evolução da figura feminina também ressaltada pela ótica masculina:
Lewis Carrol, Lyman Frank Baum e Monteiro Lobato ....................................... 91
4. RELEITURA E RE-ESCRITURA DOS CONTOS DE FADAS: TERRITÓRIO
FEMININO .............................................................................................................. 100
4.1 Abordagem intertextual ................................................................................. 101
4.2 Releituras e re-escrituras de contos de fadas tradicionais de Perrault e de
Beaumont .............................................................................................................. 105
4.3 Escritoras engajadas no processo de composição da identidade
feminina ................................................................................................................. 126
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 134
REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 140
INTRODUÇÃO
As histórias de fadas são a ligação mais visceral que temos com a
imaginação de homens e mulheres cujos trabalhos criam nosso mundo [...]
A nossa cultura é altamente individualista, e acredita piamente na obra de
arte como coisa única, e no artista como um ser original, um criador
inspirado pelos deuses. Mas os contos de fadas o são assim, nem seus
criadores. Quem inventou primeiro as almôndegas? Em que país? Existirá a
receita definitiva de sopa de batatas? Vamos pensar em termos de lides
domésticas. O que eles estão dizendo, então, é essa é a maneira como eu
faço minha sopa de batatas.
CARTER, Angela. O quarto do Barba-Azul, 1999, p. x, grifos da autora.
As histórias orais, incluindo fadas, são tão antigas quanto a história da
humanidade, pois o narrativas que buscam, em sua essência, explicar a natureza
humana e o seu entorno. Por conseguinte, é possível afirmar que a vida humana é
uma narrativa, formada a partir de múltiplos elementos constituintes. É evidente que
os contos pertencentes a tempos distantes, na modernidade, têm sido alvo de
alterações como modo de adaptação a uma realidade diferenciada. Dessa forma, a
personagem feminina retratada em narrativas, correspondente ao contexto próprio
em que estava inserida, veio sofrendo consideráveis transformações sociais,
prevalentemente ao longo dos últimos cinqüenta anos. Delimitando-se o espaço
temporal entre o século V até a metade do século XX, constata-se que a mulher foi
aos poucos e tardiamente - tornando-se figura representativa da descrição de um
universo essencialmente formado por homens escritores. Somente em meados de
1180 é que se começa a perceber a tímida e incipiente presença feminina no
mundo literário, através de Marie de France, que traduziu para o francês belas
narrativas escritas pelos primitivos líricos bretões. Evidentemente, Marie de France
traduziu obras de homens escritores, o que é de se considerar natural para a época,
porém o que se destaca é a sua atitude, a coragem em realizar essa atividade,
incomum às mulheres da época, a qual serviu de impulso inicial para que,
posteriormente, as mulheres escrevessem suas próprias obras. Mais tarde, em
1690, Mme d’Aulnoy publica História de Hipólito, cuja personagem central é uma
fada e, a partir dessa primeira narrativa, a adesão feminina à escritura de obras
somou diversas adeptas.
12
Ainda no século XVII, a França conheceu as “preciosas”, seguidoras de Mme
d’Aulnoy, que se caracterizavam por serem intelectuais e escritoras as quais, em
reuniões públicas, apresentavam seus trabalhos e, sutilmente, ditavam modismos.
É evidente que a expansão feminina no campo literário foi lenta, tanto que,
ainda na primeira metade do culo XX, esses contos de fadas se estenderam de
forma tradicional, ou seja, enfocando mulheres submissas ao domínio paternal,
subjugadas a preceitos sociais e religiosos e que acordam após um longo período
de sono, como em A bela adormecida, uma vez que ao longo dos vários séculos em
que essa obra foi disseminada, a Bela seguiu inerte, adormecida em seus anseios
mais íntimos.
Aproximadamente a partir da década de cinqüenta, os contos sofreram
reconstruções que se adequaram ao contexto sócio-político-ideológico-cultural vivido
pela personagem feminina. Descortina-se assim a nova identidade da mulher, uma
vez que se constata uma figura independente, decidida, trabalhadeira, intelectual e
também bela. Considerando um universo anterior de homens escritores de contos
destinados às mulheres e crianças, vemos, agora, escritoras como Angela Carter,
em O quarto do Barba-Azul, e a romancista Margaret Drabble, em The Radiant
Way, A Natural Curiosity e The Gates of Ivory, entre muitas outras, evidenciando
essas mudanças de comportamento da mulher.
Com base no acima exposto, tem-se a intenção de analisar o percurso
evolutivo da figura feminina, circunscrito a diversos contos de fadas, partindo da
Idade Medieval, mais especificamente do século V até a contemporaneidade,
observando a trajetória da mulher também enquanto escritora, tentando retratar a
tradição cultural padronizada pelos ditames sociais ocidentais, e realizando também
um estudo comparado entre as histórias tradicionais e as re-escrituras produzidas
por escritoras feministas na atualidade.
1. CONTOS DE FADAS
É sabido que os contos de fadas acompanharam a humanidade e seu
processo evolutivo. Conseqüentemente, a origem dessas narrativas entrelaça-se à
da própria humanidade. Desse modo, torna-se imprescindível o surgimento de
algumas dúvidas a respeito dos contos de fadas, tais como: qual o povo que
primeiramente os registrou? Quais as primeiras obras e como se define contos de
fadas?
Neste capítulo inicial, a pretensão é responder esses questionamentos que
nos instigam. E, para que isso aconteça, o primeiro subcapítulo enfocará as variadas
denominações de contos de fadas no território mundial, bem como, a sua origem, ou
seja, os povos que, em ordem primeira, empregaram esses contos.
Na seqüência, serão vistas as primeiras obras consideradas embrionárias dos
contos de fadas, respectivamente, os seus autores e as temáticas apresentadas nas
mesmas.
E, finalizando este capítulo, verificar-se-ão inúmeras definições de contos de
fadas, provenientes de estudiosos, historiadores, escritores, especialistas da área,
visando elucidar a significação deste gênero narrativo que, sem dúvida, representa
“[...] a linguagem internacional de toda a espécie humana de idades, raças e culturas
(FRANZ, 1981, p.38). “
14
1.1 Contos de fadas: povo origem
A velha suspirou compassivamente. “Minha linda”, disse ela “alegre-se e
não se preocupe mais com sonhos. Os devaneios diurnos não merecem
confiança, todos sabem, e até mesmo os noturnos funcionam ao contrário
[...] Mas vou lhe contar alguns contos de fadas para alegrá-la”.
APULEIO apud WARNER, 1999, p. 25.
De acordo com Câmara Cascudo (2004), os contos de fadas denominam-se
contos de encantamento e constituem a cultura de cada parte do mundo,
correspondendo ao Tales of magic, Tales of supernatural, o Cuentos, Conti,
Racconti, Fairy Play, Marchem, o mi-soso dos negros de Angola, skarki dos russos”
(p. 21).
Segundo Novaes Coelho, o conto de fadas compõe a história da humanidade
e, como tal, difundiu-se em todo o território mundial, atendendo as peculiaridades
próprias de cada região e recebendo variadas denominações:
Na França, a denominação é conte de fées; na Inglaterra, fairy tale; na
Espanha, cuento de hadas; na Itália, racconto di fata; na Alemanha,
märchen [...] Em Portugal e no Brasil [...] como contos da carochinha. (O
conto de fadas, 1987, p. 12)
A autora salienta que os contos de fadas são de origem céltica e abordam
temáticas que buscam a integralidade humana, a nível espiritual e moral, ou seja, os
conflitos individuais e interiores, os quais representam a amplitude da vida, baseada
no ser único e em relação.
Os contos de fadas [...] são de origem celta e surgiram como poemas que
revelavam amores estranhos, fatais, eternos... Poemas que são apontados
como células independentes, mais tarde integradas no ciclo novelesco
arturiano, essencialmente idealista e preocupado com os valores eternos do
ser humano: os de seu espírito. (COELHO, 1987, p.13-14, reticências e
grifos da autora)
Novaes Coelho cita ainda que os celtas criaram as fadas, “através de seus
valores espirituais ou religiosos e de sua inteligência prática e criadora” (1987, p.
31), uma vez que, como pastores de carneiros, possuíam características incomuns
para uma época em que os homens, em sua maioria guerreiros, eram dotados de
primitivismo e perversos sentimentos.
15
Os primitivos contos resistiram ao passar dos tempos devido à sua afinidade
com a essência humana, a espiritualidade. Em razão disso, as histórias,
comunicadas em diferentes formas e suportes, como em pedras, buas, papiros,
ainda são lidas e apreciadas.
As obras primeiras não se apagaram com os cataclismos do tempo. Elas, tais
como sombras inseparáveis, acompanharam o ser humano. Sendo assim, através
dessas obras é que se pode mergulhar nesse misterioso universo, procurando a luz
do entendimento a respeito da vida e da mente humana.
1.2 Origens: obras primeiras e seus enfoques
E como encontraram,
Tal qual encontrei;
Assim me contaram,
Assim vos contei!...
CASCUDO, 2004, p. 23.
Observa-se que a data exata em relação às origens dos contos não se sabe
bem ao certo precisar, uma vez que, a partir do momento em que o homem
descobriu e aprendeu as diferentes formas de comunicação, o seu universo interno
e externo adquiriu forma, cor, simbologia e, assim, migrou como em ondas sonoras,
acentuando o imaginário dos povos que no mundo habitavam. Consoante a isso, os
registros escritos remontam a séculos antes de Cristo, tendo-se, como exemplo,
o século II a.C, em Amor e Psiquê, do escritor latino Apuleio, uma vez que nesse
havia indícios que, posteriormente, poderiam constituir os contos de fadas e,
dentre eles, A bela adormecida, A Bela e a Fera, entre outros. No entanto, o que
realmente se comprova é que as origens dos contos de fadas provêm de fontes
célticas.
Novaes Coelho cita que Calila e Dimna, obra difundida em inúmeras versões
pelo mundo, teve, posteriormente, Abn Al-Mukafa como responsável pela versão e
registro árabe fiel da coletânea, no século XVIII, uma vez que “resulta de narrativas
pertencentes originalmente ao Pantshatantra (apólogos usados pelos pregadores
16
budistas, a partir do século V) e à primitiva epopéia indiana Mahabarata, escrita
entre os séculos IV a.C. e IV d.C.)” (COELHO, 1987, p.17).
Abdallah, Abn Al-Mukafa, significa o filho do homem de mão atrofiada, ou
seja, seu pai recebeu esse castigo em torturas por não se portar de acordo com os
preceitos muçulmanos. Abn Al-Mukafa nasceu em Firuzabad, na Pérsia, por volta do
ano 724, porém viveu na cidade iraquense de Bassora, conforme Mansour Challita
1
.
(1967, p. 206)
Mansour Challita acrescenta ainda qual o momento histórico vivido na
escritura da obra Calila e Dimna, bem como a sua avaliação a respeito da mesma:
A lenda faz remontar a gênese desse livro, numa versão hindu, à época de
Alexandre. Dessa data até Abn Al-Mukafa, estende-se um milênio de lutas e
tormentas, durante o qual a obra evoluiu e aprimorou-se: o que explica, sem
dúvida, a riquíssima experiência política e humana nela concentrada. Assim,
Calila e Dimna se distingue por três superioridades: é uma das maiores
obras da literatura árabe; é uma das grandes obras da ciência política; é
uma das três maiores coletâneas de fábulas de todos os tempos: igual, em
beleza, às fábulas de Esopo e La Fontaine, superior a elas em sabedoria e
profundidade. (CHALLITA, 1967, p. 207)
Calila e Dimna pode ser percebido de duas formas, como um tratado de
política ou como um receituário de boa conduta. A obra é composta por vinte e seis
narrativas e, conforme Novaes Coelho:
2
O fio condutor de cada grupo de narrativas (= um livro) é “Dabshalim, rei da
Índia,” que pede uma estória a “Báidaba, príncipe dos filósofos,” para ilustrar
uma situação “exemplar”: os males da intriga, do ciúme ou da inveja; a
ambição desmedida; a precipitação imprudente no agir; a irreflexão das
palavras, etc. (COELHO, 1991, p.16)
A referida obra traz como personagens principais dois animais, os chacais,
que agem de acordo com as características humanas. Estes se denominam Calila e
Dimna, atribuindo o nome à coletânea.
Os dois animais representam a personalidade humana, ora voltada para o
bem-fazer e para as virtudes, ora voltada para as atitudes pecaminosas. Durante
1
As mais belas páginas da literatura árabe: amor, humorismo, sabedoria, espiritualidade.
2
Panorama histórico da literatura infantil/juvenil: das origens indo-européias ao Brasil contemporâneo.
17
essas variações de temperamento, o conflito da narrativa se instala, quando o
personagem chacal Dimna mata um boi. Ato considerado gravíssimo, pois esse
animal é sagrado na Índia.
Contudo, Dimna realiza esse ato grotesco por ser um mau-caráter,
ambicionando o que não lhe é devido. Calila representa o equilíbrio, a sabedoria,
o conhecimento, é o exemplo de integridade que a maioria dos seres humanos
deseja alcançar. Em suma, a narrativa representa a complexidade da mente
humana.
Conforme Novaes Coelho, Calila
representa o homem prudente que se contenta com as circunstâncias em
que vive; Dimna representa o ambicioso e astuto que esconstantemente
desejando ultrapassar-se e se igualar aos poderosos. Neles, estão
simbolizadas as duas tendências polares que desde sempre diferenciaram
os homens: a que os leva a se contentarem em satisfazer suas
necessidades básicas, materiais... e a que os incita a almejarem planos
mais altos de realização pessoal (seja através da astúcia e da ação nefasta;
seja através da Sabedoria, Conhecimento, grandes ações, conquista de
posições superiores aos demais, etc. (COELHO,1991, p.17, reticências da
escritora)
segundo Menendez Pelayo, em Orígenes de la novela, citado por Novaes
Coelho, a moral da referida obra não tem nada a acrescentar aos que o lêem, porém
atribui às vicissitudes, como a astúcia e a manha, valor indevido.
A moral de Calila e Dimna não é, por certo, muito elevada nem muito
severa. Na fábula tem predominado, desde sua mais remota origem, um
certo sentido utilitário, um conceito de vida muito pouco desinteressado e
que concede mais do que seria justo à astúcia e à manha. (PELAYO apud
COELHO, 1991, p. 17)
De acordo com a moral de Calila e Dimna, uma fábula tunisiana que se
assemelha à mesma. A raposa e a gazela, assim denominada, em As mais belas
páginas da literatura árabe: amor, humorismo, sabedoria, espiritualidade, (p. 279-
280), a fábula aborda como eixo temático a busca por água, uma vez que a raposa
tenta aproveitar-se da ingenuidade da gazela, objetivando sorver sozinha toda a
água constante em um poço. Contudo, a raposa que se precipita à frente do dócil
animal, é impedida de realizar seu plano, tendo em vista que os animais da floresta
18
cortam-lhe o caminho, atrasando-a. Em conseqüência disso, a gazela chega
primeiro e desfruta daquela água cristalina. Provavelmente, essas narrativas sejam
reminiscência das fábulas do Esopo, muito anteriores à tunisiana, uma vez que em
Esopo encontra-se a bula do lobo e da ovelha, sendo que o lobo trata de culpar a
ovelha por turvar a água que ele quer beber sozinho.
Constata-se então, assim como em Calila e Dimna, que a astúcia e a manha
são valores negativos que jamais devem ser cultuados, vindo a trazer sofrimento a
quem os pratica.
Novaes Coelho salienta ainda que dentre a coletânea de narrativas que
compõem Calila e Dimna , “pelo menos duas, que são consideradas precursoras
dos contos de fadas: O anacoreta e a rata e Ilaz, Chadarm e Irakht” (1987, p.19).
Além disso, faz-se necessário ressaltar que Calila e Dimna o é uma obra única,
mas sim uma coleção, dividida em três livros: Pantschatantra, Mahabarata e Vischno
Sarna. Coelho cita ainda as histórias que compõem cada um desses livros:
1. Pantschatantra – As Cinco Histórias, englobando as estórias: “O Leão e o
Boi”; “Os Corvos e os Corujões”; “A Pomba-de-Colar”; “O Corvo, o Rato, o
Cágado e o Veado”; “O Macaco e o Cágado” e “O Eremita e o Mangusto”[...]
2. Mahabarata, com três tábuas: “O Rato e o Gato”; “O Rei e a Ave Fanza” e
“O Leão e o Chacal”. 3.Vischno Sarna, com a estória da “Cobra e o Rei dos
Sapos”. (COELHO, 1991, p. 26)
Sendebar ou O livro dos enganos das mulheres é também originário da Índia,
de autoria do escritor hindu Sendabad, e é a segunda obra oriental citada por
Coelho como gênese dos contos de fadas. Essa obra foi traduzida para muitas
línguas entre os séculos IX e XIII e apresenta a mesma estrutura temática e
elementos que se desenvolvem a partir da tríplice aliança paixão-ódio-sabedoria,
características essas próprias de um conto de fadas, de acordo com a autora:
[...] embora o tenha fadas como personagens, pode ser incluído entre os
precursores do conto de fadas, uma vez que o seu conflito básico é de
natureza existencial: a Paixão amorosa e a Sabedoria da palavra são
postos em jogo para a preservação ou a destruição de uma vida.
(COELHO, 1987, p. 22, grifos da autora)
19
Convém salientar que a Índia foi o berço de duas preciosidades que
delinearam o mundo literário, uma vez que, a partir dessas obras iniciais, inúmeras
outras surgiram, as quais deram continuidade ao ciclo dos contos de fadas.
Quanto à segunda obra que serviu como semente aos contos de fadas,
Novaes Coelho refere-se à origem escrita de Sendebar:
A menção mais remota da coletânea dessa obra é a de Almasudi, no século
X, em sua famosa compilação Prados de Ouro, onde, ao tratar dos antigos
reis da Índia, menciona o filósofo hindu, Sendaba, autor do livro Os Sete
Visires, o Pedagogo, o Jovem Príncipe e a Mulher do Rei, - título que
corresponde exatamente ao argumento do Sendebar atual. [...] Foi
descoberto também um poema persa, traduzido para o árabe, Baktiar-
Nameh (ou História dos dez vizieres), que é idêntico às narrativas de
Sendebar, e entrou em algumas versões das Mil e Uma Noites. (COELHO,
1991, p. 26-27)
Sendebar possui vinte e seis narrativas que se entrelaçam ao mesmo tempo,
sendo que cada história é uma novidade, surpreendendo e envolvendo a quem a lê.
Esse livro alcançou a Península Ibérica juntamente com Calila e Dimna, porém, o
que realmente deve ser ressaltado é que, a partir de Sendebar se passou a
conceber a mulher como portadora de características pouco virtuosas, em
conseqüência do enredo tratado pela referida obra. Nela já se observa de antemão a
presença de uma madrasta, mentirosa e ambiciosa, esposa de um rei. O rei, por sua
vez, tinha um filho adulto, fruto de seu primeiro casamento. A rainha-madrasta,
talvez apaixonada pelo seu enteado, ou objetivando somente prejudicá-lo, ou ainda,
apaixonada e rejeitada pelo jovem, querendo vingar-se, arquitetou um astuto plano.
Acusou-o de ter tentado violentá-la. Assim, o pai-rei, seguindo as leis vigentes da
época e, além do mais, que o fato havia se tornado público, condenou o filho à
morte. A penalidade seria a execução do filho-príncipe, a qual foi adiada por sete
dias. Durante esse tempo, a defesa, representada por sete sábios, e a acusação,
pela madrasta-rainha, julgavam o caso. Enquanto isso, o príncipe-enteado a tudo
assistia calado. Essa atitude foi-lhe ordenada, pois os sábios previram que um
grande mal o cercaria se alguma palavra dissesse. No oitavo dia, o desfecho
acontece. Como o prazo para o perigo acontecer já havia expirado, o príncipe,
então, defende-se e a rainha-madrasta tem um final infeliz, tal como em A Bela
dormindo no bosque de Perrault e Sol, Lua e Tália de Giambattista Basile, uma vez
20
que os sentimentos e as atitudes das velhas-rainhas também se assemelham, bem
como a omissão e fraqueza de caráter do rei.
Posteriormente, a obra Sendebar fez-se semente em uma terra fértil, repleta
de homens sedentos por contarem suas histórias. A partir dessa obra surgiu o conto
As aventuras de Simbad, o marujo, inserido em As mil e uma noites. Na verdade, a
obra As mil e uma noites é o somatório das duas obras origem Calila e Dimna e
Sendebar, pois apresenta a mesma estrutura narrativa das anteriores ou “a idêntica
estrutura-em-cadeia”, como afirma Novaes Coelho (1991, p. 20).
Marina Warner, em um movimento de busca do passado, em Da fera à loira:
sobre contos de fadas e seus narradores, também cita a origem dos contos e quais
as obras que se constituíram a partir da obra embrionária.
A Índia, por exemplo, é citada como a fonte de uma coletânea seminal de
setenta contos, o Panchatantra (os cinco livros), que foi compilado por volta
do século VI a. C. e atribuída a Bidpai (ou Pilpay), um lendário sábio
brâmane. Jean de La Fontaine, enquanto passeava pelas margens do Sena
em Paris na década de 1660, encontrou um livro de autoria de Bidpai,
comprou-o, e os contos que leu tornaram-se uma das fontes de inspiração
fundamentais de suas próprias fábulas, que comumente são consideradas o
apogeu da urbanidade gálica [...] (WARNER, 1999, p. 20)
De acordo com Warner, o Panchatantra foi compilado por um sábio brâmane
por volta do século VI a. C. Novaes observa que as narrativas contidas no mesmo
passaram a ser pregadas nos primeiros séculos d.C. Verificou-se ainda que os
contos de fadas se originaram de povos indo-europeus, os quais eram oriundos do
sudoeste da Alemanha, mas foram expulsos de seu território pelos romanos, entre
os séculos II a. C e o I d. C, vindo esses povos a se espalharem pela Europa e Ásia
e migrarem para diversos países. Além disso, constatou-se que as obras Calila e
Dimna e Sendebar foram as primeiras que deram origem aos contos de fadas de
que se tem registro na história.
A partir dessas duas obras, consideradas mães dos contos de fadas, torna-se
possível inferir que, através delas, um mundo primitivo está representado, onde a lei
do mais forte é considerada fato comum. Sendo assim, escritores e estudiosos,
embasados na análise dessas obras embrionárias e em suas ramificações,
21
buscaram a significação dos contos procurando, dessa forma, adentrar na trama
atemporal, fictícia e real humanas, registrada nos contos de fadas.
1.3 Conceituações e postulados
O conto de fadas é, em si mesmo, a sua melhor explicação, isto é, o seu
significado está contido na totalidade dos temas que ligam o fio da história.
FRANZ,1981, p.15.
Quanto à conceituação de contos de fadas, Novaes Coelho os define como
narrativa
com ou sem a presença de fadas (mas sempre com o maravilhoso), seus
argumentos desenvolvem-se dentro da mágica feérica (reis, rainhas,
príncipes, princesas, fadas, gênios, bruxas, gigantes, anões, objetos
mágicos, metamorfoses, tempo e espaço fora da realidade conhecida etc.) e
têm como eixo gerador uma problemática existencial. Ou melhor, têm como
núcleo problemático a realização essencial do herói ou da heroína,
realização que, via de regra, está visceralmente ligada à união
homem/mulher. (1987, p.13)
Bruno Bettelheim
3
afirma que os contos de fadas habitam o mundo real, o
consciente, e o inconsciente, o irreal, sendo que esse misto de magicidade e
concretude é que fascina o ser humano, correspondendo ao que ele já conhece e ao
que a imaginação pode alcançar: “As histórias de fadas falam ao nosso consciente e
ao nosso inconsciente e, por conseguinte, não precisam evitar as contradições,
que elas coexistem facilmente no nosso consciente” (1997, p. 20).
Mendes (2000)
4
salienta que os contos derivam de rituais primitivos,
praticados em tempos extremamente longínquos, a tal ponto de, nessa época, a
mulher ser considerada divindade e apresentar significativo papel na sociedade. Por
sua vez, o homem era personagem-antagonista e, como tal, seu papel também
constituía função secundária, como a de transformar a menina em mulher.
[...] os contos são herdeiros dos mitos, por sua vez se originam de rituais
praticados nas comunidades primitivas. Nessas comunidades, a mulher
tinha um papel social importante como sacerdotisa e as divindades eram
femininas. [...] O dado mais importante, no entanto, seria a preponderância
e a importância das personagens femininas nas narrativas. [...] O
3
Na terra das fadas: análise dos personagens femininos.
4
Em busca dos contos perdidos: o significado das funções femininas nos contos de Perrault.
22
personagem masculino é secundário, nem mesmo tem nome e representa
apenas o instrumento de transformação e realização da mulher. (MENDES,
2000, p. 125)
Por sua vez, Vladimir Propp
5
afirma que o conto tem uma estrutura uniforme
que, inicialmente, prepara o leitor ou ouvinte para um clima harmônico, a fim de que
esse atente integralmente e viva em detalhes o emaranhado de tensões fictícias que
se sucederão, envolvendo uma família e seus integrantes.
As primeiras palavras do conto: Em um certo reino, em um certo Estado...”
introduzem o ouvinte em uma atmosfera especial, que se caracteriza pela
tranqüilidade épica. Mas trata-se de uma impressão ilusória. Ante ele não
tardarão a se desenrolar acontecimentos extremamente tensos e vibrantes.
Essa tranqüilidade é um recurso artístico que contrasta com a dinâmica
interna do conto, geralmente vibrante e trágica, às vezes cômica e realista.
O conto prossegue assim: “... havia um camponês que tinha três filhos”; ou
então: “... um czar que tinha uma filha,” ou ainda: “... havia três irmãos;”
resumindo, o conto apresenta uma família [...] (PROPP, 2002, p. 29)
Amarilha
6
atribui valores psicológicos e sociológicos aos contos de fadas,
ressaltando a importância da acessibilidade desses contos às crianças, como forma
de interação e compreensão dos problemas humanos, quer individuais ou sociais:
No meu entender, os contos de fada, com seu rico referencial simbólico,
ressaltam o papel que a literatura deve ter para a criança. O de tornar
acessível ao leitor experiências imaginárias que sejam catalisadoras dos
problemas do desenvolvimento humano e assim proporcionar autoconfiança
sobre o seu próprio crescimento. (AMARILHA, 1997, p. 73-74)
Conforme Marina Warner
7
, os contos de fadas surgiram como uma válvula de
escape, como um apelo ou alento para as mulheres cansadas de serem
menosprezadas e injustiçadas por uma sociedade patriarcal, onde a lei do mais forte
imperava:
Os contos de fadas sugerem uma situação em que o próprio menosprezo
pelas mulheres abriu, para elas, a possibilidade de exercitar a imaginação e
comunicar suas idéias. A responsabilidade das mulheres pelas crianças, o
desprezo vigente por ambos os grupos e a suposta identificação daquelas
com as pessoas simples, a gente comum, entregaram-lhes os contos de
fadas como um tipo diferente de estufa, onde podiam semear seus próprios
brotos e plantar suas próprias flores [...] (WARNER, 1999, p. 22)
5
As raízes históricas do conto maravilhoso.
6
Estão mortas as fadas?
7
Da Fera à Loira: sobre contos de fadas e seus narradores.
23
Sheldon Cashdan (2000)
8
afirma que os contos relatam e representam a
história em suas épocas. Em tempos difíceis como em pós-guerras, percebia-se
essa realidade através das narrativas, como as de Andersen, por exemplo: “Os
contos de fada são documentos históricos únicos, que nos mostram como era a vida
em certos períodos da história - épocas em que cada dia era em si uma batalha pela
sobrevivência” (CASHDAN, 2000, p. 62).
D’Onofrio
9
afirma que “sob a denominação de conto popular, conto de fadas
ou conto da carochinha, agrupam-se inúmeras narrativas de temas e motivos os
mais variados” (2006, p. 110) e salienta ainda que as narrativas apresentam
estruturas peculiares, sendo que os seus autores e narradores são desconhecidos,
uma vez que essas histórias acompanham a humanidade e são o patrimônio cultural
efetivo da mesma. Além disso, os seus personagens representam funções em um
tempo e espaço indeterminados.
a escritora Clarissa Pinkola Estés
10
sustenta que nos contos de fadas
instruções que conduzem à compreensão da evolução feminina. O passado, para a
autora, é o elo e a condução para que a mulher encontre o seu autoconhecimento.
Os contos de fadas, os mitos e as histórias proporcionam uma
compreensão que aguça nosso olhar para que possamos escolher o
caminho deixado pela natureza selvagem. As instruções encontradas nas
histórias nos confirmam que o caminho não terminou, mas que ele ainda
conduz as mulheres mais longe, e ainda mais longe, na direção do seu
próprio conhecimento. As trilhas que todas estamos seguindo são aquelas
do arquétipo da Mulher Selvagem, o Self instintivo inato. (ESTÉS, 1994,
p.19)
Por sua vez, Franz
11
afirma que “o estudo dos contos de fadas é essencial,
para nós, pois eles delineiam a base humana universal” (1981, p. 38), esclarecendo
ainda que os contos estão além de quaisquer diferença, quer sejam culturais ou
raciais, “podendo assim migrar facilmente de um país para outro. A linguagem dos
contos de fadas parece ser a linguagem internacional de toda a espécie humana de
idades, raças e culturas” (FRANZ, 1981, p. 38).
8
Os 7 pecados capitais nos contos de fadas: como os contos de fadas influenciam nossas vidas.
9
Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa.
10
Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem.
11
A interpretação dos contos de fadas.
24
Desse modo, depreende-se, através da cultura popular, que os contos de
fadas tratam de temas universais e antagônicos. Emaranham-se sentimentos como
amor e ódio, atitudes de poder e submissão, bem como desígnios de vida e morte. A
bem da verdade, o início e o término da narrativa assemelham-se, uma vez que a
estabilidade da mesma é alcançada nesses dois períodos. Primeiramente, esse
equilíbrio é desestabilizado com um conflito que gera um ou inúmeros outros
problemas existenciais e, no momento em que esses são reconhecidos e
solucionados, a harmonia é retomada.
Quanto à conceituação de conto de fadas, nota-se que é a atribuição dada a
uma história fantasiosa, a qual tem fadas como personagens, podendo também não
as ter, além de reis, rainhas, príncipes, princesas e bruxas. Por outro lado, se o
próprio Lobato denominou o “Mundo das Maravilhas” (1990, p. 249) o lugar onde os
personagens vivem e desempenham seus papéis dentro dos contos, percebe-se,
desta forma, então, que o enredo transcorre em um mundo mágico envolto por
florestas e castelos, sendo que a temática central do mesmo é a luta do bem contra
o mal. Assim, esse último acaba perdendo a batalha, e o castigo é aplicado ao
malfeitor. Convém salientar que nos contos o fracasso também é castigado, e a
coragem enaltecida, como em Rosinha dos espinhos, dos Irmãos Grimm, sendo que
nesse muitos homens que vieram salvar a princesa pereceram nos espinheiros,
porém, o príncipe, que era destemido, alcançou tamanha proeza: acordar e
conquistar a princesa. Essa função heróica do príncipe foi assim enfatizada pelos
Irmãos Grimm e, dessa mesma maneira, outros também o fizeram, uma vez que o
território para os escritores de contos de fadas tinha a demarcação masculina.
2. ESCRITURA DOS CONTOS DE FADAS: TERRITÓRIO MASCULINO
Este capítulo se propõe a realizar uma trajetória em território masculino,
salientando que, especificamente, as obras de homens escritores ora facilitaram ora
dificultaram para que a mulher conquistasse espaço em âmbito social e intelectual.
Desse modo, o primeiro subcapítulo aborda os homens escritores que
redigiram fábulas e contos, a partir das células embrionárias Calila e Dimna e
Sendebar.
Na seqüência, o estudo enfocará o escritor Charles Perrault, uma vez que o
mesmo é caracterizado como inovador para a época, na elaboração de seus contos
de fadas, e pioneiro para a Literatura Infantil. Na verdade, Perrault é considerado
inovador pois inseriu no final de seus contos lições de moral, e pioneiro na escritura
de contos para o público infantil.
Em seguida, verificar-se-ão as contribuições ou restrições que os homens
escritores impuseram às mulheres, através de suas obras, em função da conquista
de direitos comuns aos dois sexos e também quanto à inserção das mesmas no
meio intelectual literário.
De acordo com isso, será visto em obras selecionadas o papel social
desempenhado pelas mulheres de acordo com a visão masculina.
E, para finalizar esse capítulo, observar-se-á que, nesse universo de homens
literatos, à mulher era permitido unicamente contar e traduzir obras masculinas.
26
2.1 Homens escritores de contos de fadas
Never may believe
These antic fables, nor these fairy toys.
Lovers and madmen have such seething brains,
Such shaping fantasies, that apprehend
More than cool reason ever comprehends...
And as imagination bodies forth
The forms of things unknown, the poet’s pen
Turns them to shapes, and gives to aery nothing
A local habitation and a name...
WARNER
12
, 1999, p. 307.
Em um tempo em que a TV ainda não existia, os contos folclóricos e infantis
eram prestigiados como entretenimento para as famílias que, em ambiente
doméstico, ouviam ou narravam histórias que se moldavam às angústias e às
alegrias de quem as contava ou as ouvia. Desse modo, as histórias que
representavam o momento lúdico para as famílias, difundiam-se rapidamente,
resultando no surgimento de inúmeros livros escritos por homens que se apoiaram,
em sua maioria, nas duas obras originárias: Calila e Dimna e Sendebar.
De acordo com Novaes Coelho, no século XII, o judeu Pedro Alfonso traduziu
cerca de trinta fábulas ou contos retirados de Calila e Dimna, Sendebar e Barlaam e
Josafá (1991, p. 35). Na seqüência, encontra-se a obra de Raimundo Lúlio, datada
de 1286, denominada Libres de Maravelles. Essa é considerada bastante original,
mas de clara descendência de Calila e Dimna e do Romance da Raposa (1991, p.
36). No século XV, escrita em letra gótica, Horto do esposo, é obra de um monge
português anônimo.
Contudo, é mais um trabalho descendente da obra-origem, citada
anteriormente, uma vez que apresenta a fábula do unicórnio e, entre contos
exemplares, destacam-se ainda duas fábulas, onde o “exemplo” é dado por animais
(1991, p. 40).
12
Nunca poderei acreditar/Nessas fábulas antigas, nesses brinquedos de fadas./ As mentes febris dos amantes e
dos loucos,/ Suas fantasias moldadoras, percebem/ Mais do que a fria razão pode abarcar.../ E quando a
imaginação concebe/ O contorno de coisas desconhecidas, a pena do poeta/ Transforma-as em formas, e
concede ao etéreo nada/ Um endereço e um nome...(SHAKESPEARE, W. Sonho de uma noite de verão).
27
Com o Renascimento, o século XVI traz consigo consideráveis mudanças
mundiais, ocasionadas pelas grandes navegações. Além disso, a invenção da
imprensa e o acesso ao papel propiciaram o ambiente necessário para que o
desenvolvimento cultural e literário proliferassem, associados ao ideal humanista
que invadia o espírito humano ocidental.
No campo literário e em solo italiano, é publicada a obra Noites agradáveis
por Gianfrancesco Straparola, em 1554. Straparola compõe seu trabalho resgatando
e registrando a tradição oral de origem oriental e medieval. Processo caracterizado
como “composições que nasceram da espontaneidade popular, lembradas a
princípio pela tradição oral e mais tarde gravadas numa língua mais ou menos
evoluída e idônea à arte [...]”, é o que afirma Leoni
13
(1966, p.13).
Apesar de utilizar o mesmo método de Straparola, algo torna singular a obra
de Gonçalo Fernandes Trancoso que, em 1575, publica Contos e histórias de
proveito e exemplo. A sua obra é uma mistura do conhecido e o desconhecido, ou
seja, o misto entre a tradição popular e o novo, representado pela novelística do
Renascimento. O fruto dessa recente roupagem para a época chegou ao Brasil
em 1618.
No entanto, o que deve ser ressaltado no estilo literário de Trancoso é que ele
inseriu a filosofia voltada ao moralismo e à postura edificante da mulher. Novaes
Coelho tece comentários a respeito do objetivo dessa obra:
É considerada a primeira obra que introduziu o gênero novelesco bocaciano
em Portugal. Entretanto, sua intenção principal era bem mais moralizante.
Pertence claramente à linha da literatura “exemplar”, edificante (muito
comum na Idade Média), mas consegue fundir esse lastro clerical com a
tradição folclórica, cheia de humor (trocadilhos, provérbios, paradoxos,
adivinhas, situações equívocas, etc.). (COELHO, 1991, p. 57)
Por sua vez, a Itália é novamente berço de outro escritor, Giambattista Basile,
que apresenta o Pentamerone, obra publicada após a morte do escritor, entre 1634
e 1636, com o pseudônimo de Gian Alessio Abbattutis. Nessa inclui-se Sole, Luna e
13
Literatura Universal: esboço geral de uma história comparada das literaturas.
28
Talia, um conto de fadas há muito presente na memória e na cultura oral dos
napolitanos.
Sole, Luna e Tália ou Sol, Lua e Tália
14
assemelha-se aos demais contos de
A bela adormecida, que surgiram posteriormente a essa obra, porém o que
caracteriza a história como única é a presença de opostos em sua narrativa, ou seja,
“desde o rotineiro e o vulgar até o sublime”, bem como os pólos extremos que
compõem a personalidade humana, dispostos em harmonia perfeita em um único
texto.
Enquanto, o mundo preludiava a Era Clássica, em pleno século XVI, no Brasil
vivia-se o medievalismo, uma vez que, historicamente, este país havia sido
recentemente descoberto e, em conseqüência disso, os interesses voltavam-se para
a educação doutrinária e à formação cultural do povo, sendo que as inovações
chegaram tardiamente em solo brasileiro. Novaes Coelho apresenta claramente
essa situação:
Manoel da Nóbrega e José de Anchieta são os dois primeiros nomes que,
no Brasil, se ligariam às atividades embrionárias de educação, cultura e
literatura que o século XVI conheceu. Assim, no momento em que, em
Portugal, Camões dava voz à renovação renascentista, criando as formas
da alta poesia, que iria se constituir em modelo durante toda a Era
Clássica, no Brasil José de Anchieta, ainda segundo modelos medievais,
escrevia os autos religiosos (destinados à representação para as
populações indígenas) e compunha seus singelos poemas em louvor da
Virgem. (COELHO, 1991, p. 66)
José Horta Nunes
15
(1994), também descreveu o cenário brasileiro, em
âmbito educacional e literário, no período medieval, a partir da definição da palavra
catequese, ou seja, a forma de ensino oferecida ao povo brasileiro nessa época:
“Catequese é um projeto educacional que introduz uma prática de linguagem no
Brasil. Diante do propósito inicial de ensinar a religião aos índios, essa prática
consiste em um trabalho sobre as línguas, ao lado do desenvolvimento de técnicas
de ensino doutrinário” (NUNES, p. 96-97).
14
Tradução de Alba Olmi. In: A princesa que dormia: nas versões dos Irmãos Grimm, de Charles Perrault, de
Giambattista Basile e de Sílvio Romero (Edição plurilíngüe). Florianópolis: Paraula/EDUNISC, 1996.
15
Formação do leitor brasileiro: imaginário da leitura no Brasil-Colônia.
29
Assim, a literatura moralizante e os contos de fadas, difundidos no período
medieval, estendem-se até o século seguinte, e é a partir daí que os contos passam
a fazer parte da recém-criada Literatura Infantil. Novaes Coelho apresenta essa
criação desta forma:
Cavaleiros andantes, reis, rainhas, princesas e príncipes bons e maus,
fadas, bruxas, metamorfoses de criaturas humanas em animais (ou vice-
versa), ogres e ogressas (sic) canibalescos, maldições, profecias,
madrastas, crianças abandonadas, crianças que o entregues a alguém
para serem mortas, fantasmas e magos, gênios benfazejos e malfazejos... é
a fantástica legião de personagens que a partir do século XVII os escritores
cultos vão descobrir na tradição oral dos povos europeus e criar a Literatura
Infantil que hoje conhecemos como “tradicional”... (COELHO, 1991, p. 66)
Conforme o exposto, surge na França do século XVII a literatura voltada para
crianças e representada através de fábulas e contos, uma vez que os escritores
buscaram entre a cultura do povo as narrativas orais passadas de geração a
geração. Inicialmente, a Literatura Infantil era proposta como ação educativa e
moralizante, voltada não somente à criança, mas também e, principalmente, à
mulher. Novaes Coelho descreve esse acontecimento histórico e determinante para
a Literatura Infantil:
É na França, na segunda metade do século XVII, durante a monarquia
absoluta de Luís XIV, o “Rei Sol”, que se manifesta abertamente a
preocupação com uma literatura para crianças ou jovens. As Fábulas (1668)
de La Fontaine; os Contos da Mãe Gansa (1691/1697) de Charles Perrault;
os Contos de Fadas (8 vols. 1696/1699) de Mme. D’Aulnoy e Telêmaco
(1699) de Fénelon são os livros pioneiros do mundo literário infantil, tal
como hoje o [sic] conhecemos. (COELHO, 1991, p. 75, grifos da autora)
É sabido que dentre os culos XII a XVII, o ensino doutrinário catequético
sobrepujava o contexto literário, visando moralizar a postura da criança e da mulher.
Consoante a isso, ainda no século XVII, os olhos se voltaram para os menores
leitores e surge a Literatura Infantil, representada por fábulas e contos.
Neste novo cenário criado para a Literatura Infantil, Perrault é um dos
pioneiros a divulgar para o mundo dos infantes os seus contos de fadas com claro
fundo moralizante, que serão vistos a seguir.
30
2.2 Os contos moralizantes de Charles Perrault
Servir uma beleza ingrata
É só perda de tempo e de trabalho
E pretendê-la amável quando trata
É ser como o Grou, um paspalho.
PERRAULT, 2007, p. 155
.
Charles Perrault revive o popular através da literatura, uma vez que insere
em suas obras a magicidade lúdica, bem como inova, ao acrescer à mesma uma
lição de moral, o que faz direcionar o entendimento do leitor, evitando possíveis
ambigüidades interpretativas. De acordo com Novaes Coelho, ele defendeu, de certo
modo, a causa feminista, apoiando Mlle. L’Héritier, sua sobrinha, que lutava pela
valorização da mulher quanto à aquisição de direitos intelectuais, embora, ao
mesmo tempo, Perrault tenha também assumido posições nada feministas em seus
contos.
Da mesma forma, as lições das narrativas apresentam acentuado cunho
moralista destinado à postura feminina.
De outro modo, Novaes Coelho salienta que a posição defendida por Perrault
é percebida através das temáticas abordadas em seus contos, sendo que versam
sobre “mulheres injustiçadas, ameaçadas ou vítimas” (COELHO, 1987, p. 66). Para
a escritora, essa abordagem escolhida por Perrault ressalta seu apoio à causa
feminista.
Mendes
16
opõe-se à afirmação de Novaes mencionada anteriormente, uma
vez que para Mendes o objetivo desse escritor era realmente moralizar o papel
feminino
17
, inserido em uma estrutura familista, predominante na época, sustentando
que os textos do mesmo falam
do significado das funções femininas na sociedade e do significado das
funções culturais da narrativa mítica. Num e noutro se consolida a ideologia
familista da classe burguesa, que definia seu papel social no século XVIII.
(2000, p. 110)
16
Em busca dos contos perdidos: o significado das funções femininas nos contos de Perrault.
17
As idéias de Mendes são bastante pertinentes, uma vez que os contos de Perrault sempre trazem uma lição
moralizante para a mulher e não para o homem, o que seria mais viável se ele realmente estivesse engajado à
causa feminina.
31
Mendes menciona ainda que Perrault, considerado pioneiro na escritura dos
contos infantis, utilizou-se dos mesmos para mascarar o seu real objetivo, ou seja,
doutrinar a mulher, iniciando com os menores leitores/ouvintes desde a infância até
a idade adulta, ressaltando os papéis sociais.
Maria Tatar
18
solidariza-se com a posição de Mendes. Entretanto, para ela, as
lições moralizantes citadas das obras de Perrault não correspondem ao contexto dos
contos apresentados. Além do mais, os menores leitores não entendiam o que as
referidas lições pretendiam ensinar, uma vez que se embasavam em digressões
sociais e de caráter, comuns ao público adulto.
[...] Em 1697, ao publicar Contos da Mamãe Gansa, Charles Perrault
acrescentou a cada um pelo menos uma lição moral, por vezes duas.
Freqüentemente, contudo, essas conclusões morais não se harmonizavam
com os eventos na história e vez por outra não ofereciam nada além de
uma oportunidade para um comentário social aleatório e digressões sobre
caráter. As diretrizes comportamentais explícitas acrescentadas por Perrault
e outros tendem a não funcionar quando visam crianças [...] (TATAR, 2004,
p.12)
Assim, Perrault compilou contos existentes, oriundos da cultura popular.
Desse modo, ele publica onze contos inseridos no livro Contos da Mamãe Gansa,
entre 1691-1697, destinados às crianças e aos adultos que são: 1. A bela
adormecida no bosque; 2. Chapeuzinho vermelho; 3. Barba-Azul; 4. O gato de
botas; 5. As fadas; 6. A gata borralheira ou Cinderela; 7. Henrique, o topetudo; 8. O
pequeno polegar; 9. A pele de asno; 10. Os desejos ridículos e 11. Grisélidis.
18
Contos de fadas: edição comentada e ilustrada (2004).
32
Figura 1: Charles Perrault
33
Figura 2: Contos da Mamãe Gansa, de Charles
Perrault, 1695
Percebe-se que, se Perrault, de certa forma, solidarizou-se com as mulheres,
pelo menos em seus contos, as suas intenções não se tornaram claras, uma vez
que, em suas obras e nas lições de moral, verifica-se a transparência de uma
linguagem desmedidamente machista, conservadora e patriarcal. Além disso, o olhar
desse escritor não se voltou para observar as potencialidades femininas fora do
âmbito familiar, pois suas personagens assumiam a obediência, a submissão, o
temor, a apatia, como características fundamentais femininas que se enfatizavam
nas lições de moral.
As contribuições ou restrições que os demais homens escritores ofereceram
ou impuseram à figura feminina, em âmbito cio-intelecto-cultural, através de suas
obras, seguem no próximo subcapítulo.
34
2.3 Homens escritores dos séculos XVII a XX: avanços e retrocessos para a
inserção feminina no mundo intelectual
[...] pequenas e sofridas histórias são bem
representativas das dificuldades que as
escritoras [...] enfrentaram nos séculos
passados e até nas primeiras décadas
deste, para se imporem numa sociedade
que se recusava a aceitar a concorrência
feminina, em qualquer de seus domínios.
LIMA DUARTE, 1997, p. 56.
Ainda no século XVII, João Amos Komensky, Comenius, publica Didática
Magna, obra essa em que o autor sugere que o ensino deve ser adequado às
diferentes idades. Comenius propõe também a igualdade entre homens e mulheres,
partindo do princípio de que todos o racionais e de que não privilegiados
perante Deus, portanto, devem ser instruídos, independente de sexo.
Didática Magna, a obra de Comenius, apresenta valor considerável para a
inclusão feminina no campo intelectual, uma vez que o autor, embasado em
princípios cristãos quanto à igualdade desprovida de privilégios, escancara a
deslealdade das relações humanas, visto que somente homens abastados até então
poderiam conhecer e ter acessibilidade ao mundo letrado: “O próprio Deus assegura
que, diante d’Ele, não privilégio de pessoas” (COMENIUS apud NOVAES, 1991,
p.111).
Novaes Coelho sustenta a importância dessa obra para aproximar-se mais
dos anseios do indivíduo, uma vez que a mesma estaria alçada em diferentes faixas
etárias para o ensino-aprendizagem. Além disso, essa obra faz transparecer a triste
realidade de um mundo selvagem, onde a violência predominava nas relações entre
os homens, sendo que essa situação se comprovava nas histórias registradas da
época, assim como nos contos de fadas.
Essa atitude reformista de Comenius, no século XVII, tem para nós um
valor indicial: indiretamente revela a violência que imperava, como regra,
nas relações entre os homens. O que torna mais compreensíveis a
violência, a agressividade e a maldade onipresentes nos “contos de fadas”
ou nos contos prodigiososdestinados às crianças, e mesmo nas novelas
de cavalaria (a despeito de todo seu elevado idealismo) e em outras formas
narrativas destinadas aos adultos. (COELHO, 1991, p.111)
35
Rousseau, posterior e contrariamente, em o Livro IV de Emílio (1762),
declarou repulsa à leitura das fábulas pelo público infantil e infanto-juvenil. De
acordo com ele, essas acentuavam demasiadamente o caráter negativo dos
personagens. Além disso, observa-se que o referido escritor mostrou-se favorável ao
idealismo patriarcal, em relação à estrutura familiar, uma vez que a mulher deveria
estar condicionada ao comando masculino e dele ser servidora. Aliás, esse protótipo
feminino esteve presente na literatura até o século XIX.
Novaes Coelho registrou em sua obra o que Rousseau pensava a respeito
das fábulas disponibilizadas às crianças e pré-adolescentes. Assim, ele menciona no
Livro IV de Emílio:
Ensinamos as fábulas de La Fontaine a todas as crianças, e não uma
que as compreenda. E se as entendessem, seria pior ainda, porque a moral
ali está tão misturada e desproporcionada à sua idade que levaria mais
facilmente ao vício do que à virtude. Direis que está um paradoxo. Seja,
mas vejamos se não são verdades. (ROUSSEAU apud COELHO, 1991, p.
126)
De certo modo, as idéias de Maria Tatar correspondem às de Rousseau, ou
seja, ela afirma que se torna inacessível para as crianças a compreensão da moral
presente nos contos de Perrault, uma vez que os infantes aprendem realmente
através da observação e da experiência pessoal e não por meio de palavras
aleatórias e, não raramente, acompanhadas de vaguidão de sentido. Tatar
argumenta ainda que o inverso proposto nas lições das histórias acontece, quando
posto em prática pelos menores aprendizes.
Novaes Coelho cita ainda as idéias de Rousseau sobre as mulheres e seus
deveres, extraídas de sua obra seguinte, o Livro V de Emílio:
Toda educação das mulheres deve ser relativa aos homens. Agradá-los,
ser-lhes úteis, se fazerem amar e honrar por eles, educar os jovens. Cuidar
dos grandes, aconselhá-los, tornar-lhes a vida agradável e doce: eis os
deveres das mulheres em todos os tempos, e o que devemos ensinar-lhes
desde a infância. (ROUSSEAU apud COELHO, 1991, p.127)
É notório que, durante a caminhada feminina com destino à emancipação,
aconteceram avanços e recuos. Enquanto Comenius, no século XVII, buscava a
inclusão intelectual da mulher, argumentando através de discursos cristãos,
Rousseau, no século XVIII, retrocedia, sustentando que a educação feminina
36
deveria estar condicionada à dos homens, e que as mulheres deveriam ser
orientadas para servi-los, sendo comparadas a meras escravas dos caprichos de
seus senhores.
Em 1778, no Brasil, João Rosado de Villa Lobos e Vasconcelos publica uma
obra voltada para a educação dos meninos, denominada Livro dos Meninos. Apesar
de o ensino, aparentemente, ter sido oferecido a qualquer cidadão, ainda a distância
entre os sexos fazia-se visível, uma vez que obras específicas para meninos e
outras para meninas, impregnadas de moralismos, ainda eram difundidas.
Quanto à literatura, o século XVIII assemelha-se ao anterior, uma vez que
homens escritores redigem suas obras de acordo com a sociedade patriarcal vigente
à época. no século XIX a mescla entre o culto e o popular e, com esse meio-
termo, surge o romance. Por sua vez, a criança é vista como um possível leitor e,
assim, a literatura volta-se a esse público. É nesse século que as narrativas do
fantástico-maravilhoso surgem e têm os filólogos Jacob e Wilhelm Grimm como
adeptos.
A partir dessa perspectiva de que as crianças estavam sendo inseridas no
contexto literário, poderia se pensar que a mulher seria a próxima a usufruir desse
direito. No entanto, as obras dos Irmãos Grimm ainda descrevem a figura feminina e
o seu entorno em um espaço repleto de fraquezas, ansiedades, culpas, medos,
tristezas e convencionado de acordo com os moldes patriarcais.
37
Figura 3: Jacob e Wilhelm Grimm
Entre os anos de 1812 e 1822, os Irmãos Grimm publicaram o volume Contos
de fadas para crianças e adultos contendo quarenta e uma histórias: A bela
adormecida; Os músicos de Bremen; Os sete anões e a Branca de neve; O
chapeuzinho vermelho; A gata borralheira; As aventuras do irmão folgazão; O corvo;
Frederico e Catarina; Branca de neve e Rosa vermelha; O ganso de ouro; A donzela
que não tinha mãos; O pescador e suas esposas; A dama e o leão; O alfaiate
valente; Os sete corvos; O rato, o pássaro e a salsicha; A casa do bosque; O lobo e
as sete cabras; A guardadora de gansos; O príncipe rã; O caçador habilitado;
Olhinho, doisolhinhos, tresolhinhos; O lobo e o homem; O príncipe e a princesa; A
luz azul; O lobo e a raposa; O enigma; A raposa e a comadre; A raposa e o gato;
Margarida, a espertalhona; A alface mágica; As três fiandeiras; João jogatudo; A
morte da franguinha; A velha do bosque; O prego; Joãozinho e Maria; O diabo e a
avó; O senhor compadre; João, o felizardo e o Pequeno polegar.
Nesses contos a descrição da figura feminina segue os padrões sociais
determinados à época, ou seja, mulheres escravizadas e injustiçadas, comumente
maltratadas por mulheres mais velhas. Aliás, o estereótipo anjo e demônio é
bastante claro nas obras dos Irmãos Grimm. As mulheres-anjo constantemente são
testadas em seus valores morais (honestidade, paciência, despreendimento
material, obediência, inabalável) e, quando vitoriosas, o recompensadas com
um casamento e/ou uma posição em ascensão na sociedade.
38
Figura 4: O príncipe e a Bela adormecida, de
Walter Crane, 1876
Posteriormente aos Irmãos Grimm e também redigindo contos, o escritor
dinamarquês Hans Christian Andersen publicou cento e sessenta e oito contos entre
os anos 1835 e 1872, sendo que os de maior sucesso são: O patinho feio; Os
sapatinhos vermelhos; A rainha da neve; O rouxinol e o imperador da China; O
soldadinho de chumbo; A pastora e o limpador de chaminés; A pequena vendedora
de fósforos; Pequetita; Os cisnes selvagens; A roupa nova do imperador; O
companheiro de viagem; O homem da neve; João e Maria; João grande e João
pequeno.
39
Figura 5: Hans Christian Andersen
As histórias narradas por Andersen apresentam algo novo: dois contrastes
marcantes, o mundo fantástico e a triste realidade envolta pela miséria, marcada
pelo pós-guerra.
Apesar de o escritor estar vivendo em um cenário nada propenso à aquisição
de valores e respeito aos direitos humanos, de certa forma, Andersen contribuiu
para a ascensão da personagem feminina, uma vez que ele, através do conto A
pequena sereia, caracterizou a personagem sereia através de atitudes nada
convencionais para uma mulher e nem ao menos para um ser encantado, ou seja, o
autor a vestiu de valores, ideais, atitudes e lhe concedeu voz, características até
então pouco comuns na Literatura Infanto-juvenil.
40
Figura 6: A Pequena sereia, de Jeanne
Harbour, 1932
Em A pequena sereia, Andersen inovou a estrutura estabelecida e
tradicionalmente arraigada do conto de fadas. Nessa narrativa, a protagonista é
vítima do destino, do meio familiar, da sociedade. Por sua vez, as circunstâncias que
a envolvem a instigam a aventurar-se em busca da concretização de seus objetivos
e de seu amadurecimento intelectual, assim distanciando-se de seu lar e dos laços
familiares, principalmente do paternal. Uma vez que a heroína é órfã de mãe, a
sereia embrenha-se no mundo terreno, enquanto o príncipe aproxima as suas
atitudes às de um homem comum, sendo que não enfrenta dragões e monstros e
nem salva mocinhas desamparadas ou em perigo. Além disso, singular também é o
desfecho da história, uma vez que é bem conhecida a frase “e viveram felizes para
sempre” em contos de fadas, porém nessa o final feliz o acontece, sendo o final
da mesma um convite à pluralidade imaginativa do leitor:
E a pequena sereia levantou seus braços claros em direção ao sol de Deus
e pela primeira vez sentiu que lágrimas lhe corriam pelas faces.
No navio havia de novo ruídos e vida. Ela viu o príncipe com sua bela noiva
procurando-a; tristes contemplavam as espumas efervescentes como se
soubessem que ela se havia atirado às águas. Invisível, ela beijou a testa
41
da noiva, sorriu para ele e sumiu com as outras filhas do ar numa nuvem
rosada que viajava pelos céus [...] (ANDERSEN, 1994, p.26)
19
Figura 7: O príncipe e a Pequena sereia, de Edmund
Dulac, 1911
Em 1865, surge o clássico Alice no País das Maravilhas, criado pelo inglês
Charles Lutwidge Dodgson, tendo como pseudônimo Lewis Carrol. Além dessa obra,
em 1872, o autor publica Alice através do espelho e o que Alice encontrou lá.
Realmente, Carrol apresenta a personagem feminina mais próxima do
espelho, mais condizente com a sua realidade. A menina Alice sobrepõe-se ao
mundo real, ao universo masculino, uma vez que a protagonista assume atitudes a
então pertinentes somente aos homens, bem como vive aventuras fora do âmbito
familiar.
19
Leoni, referindo-se a Andersen, sustenta em sua obra que “no período romântico Hans Christian Andersen
conquistou renome mundial com seus deliciosos contos que unem a ingenuidade pictórica com a delicada moral
humana” (1966, p. 161-162).
42
Em 1900, o americano Lyman Frank Baum lança O maravilhoso feiticeiro de
Oz, assim primeiramente intitulado, posteriormente foi denominado O mágico de Oz.
Em O mágico de Oz, de Baum, o autor salienta as reais potencialidades da figura
feminina, através da personagem-protagonista, que está longe da sociedade
patriarcal que a comprime e asfixia.
De acordo com Novaes Coelho, “nessa época
20
são criadas inúmeras coleções
de livros infantis, que durarão até o início do culo XX” (1991, p. 195), sendo que
os escritores responsáveis por essas obras foram: Adolfo Coelho; Henrique Marques
Júnior; João da Motta Prego; Manoel Pinheiro Chagas, entre outros. Percebe-se
que, apesar da abundante literatura da época devido ao predomínio de escritores, a
mulher ainda não tinha espaço, enquanto personagem, leitora e escritora, nem as
obras escritas por homens privilegiavam o público feminino, além disso, os livros que
eram destinadas às crianças, em especial às meninas, apresentavam expressivo
cunho moralista.
Aliás, o ponto comum entre essas obras é a instrução didática que se inseriu
na Literatura Infantil e esse elo continuou por muito tempo, até incentivar a rejeição
dos brasileiros por modelos estrangeiros. No entanto, apesar de a mulher estar
inserida nessa instrução “didático-literária”, evidentemente com a finalidade de ser
boa filha, boa esposa, boa mãe, ainda se tinha o mundo bem diferenciado dos
homens e das mulheres.
Conforme a reação negativa do povo em relação a modelos didáticos
estrangeiros, principalmente vindos de Portugal, surge, assim, uma literatura mais
próxima da realidade brasileira.
Desse modo, em meados do século XIX, surgiram inúmeras livros infantis
voltados ao contexto brasileiro, mas, na verdade, o enfoque atribuído à mulher
permanece o mesmo disseminado nas obras anteriores, ou seja, mulheres cruéis ou
inexpressivas que necessitam de severa doutrinação. Sendo assim, foram
publicadas as obras: O livro do povo (1861), de Antônio Marques Rodrigues; O
20
Final do século XIX e início do século XX.
43
método Abílio (1868), de Abílio César Borges; O amiguinho Nhonhô (1882), de
Meneses Vieira; Série instrutiva (1882), de Hilário Ribeiro; Livros de leitura e série
didática (1890), de Felisberto de Carvalho; Coisas brasileiras (1893), de Romão
Puiggari; Série Puiggari/Barreto (1895), de Romão Puiggari e Arnaldo de Oliveira
Barreto; Cartilha das mães (1895), de Arnaldo de Oliveira Barreto; Livros de leitura
(1895), de João Kopke; Antologia nacional (1895), de Fausto Barreto e Carlos de
Laet; Contos da carochinha (1896), de Figueiredo Pimentel e Leituras infantis
(1900), de Francisco Vianna.
Posteriormente e também seguindo a idéia nacionalista, Viriato Correia
publica Era uma vez, em 1908; Olavo Bilac e Manuel Bonfim, com Através do Brasil,
em 1910; Arnaldo de Oliveira Barreto, com Biblioteca infantil, em 1915 e Tales de
Andrade, com Saudade, em 1919.
Segundo Novaes Coelho, nos anos 40, dissemina-se a literatura
quadrinizada, juntamente com as coleções estrangeiras de “novelas de aventuras da
literatura européia ou norte-americana. Surgem traduções de romances românticos
franceses, para o público feminino” (1991, p. 245). Nessa época, para as meninas-
moças propagaram-se as coleções: Biblioteca das moças; Coleção menina e moça,
Coleção rosa, Biblioteca das senhorinhas, de autores diversos. Visto que, a partir do
momento em que novelas e romances são destinados à clientela feminina, percebe-
se que novo enfoque é dado à mulher, o de leitora. Da mesma forma, é acessível às
meninas-moças leitura selecionada. Evidentemente que, apesar de a mulher
enfrentar restrições quanto ao tipo de leitura apropriada ao sexo feminino, por outro
lado, ela já se inseriu no mundo intelectual como leitora.
Ainda nessa época, a literatura volta-se à área da informação,
conseqüentemente, os contos de fadas passaram a ser classificados como
falsidades que distanciavam os leitores da realidade, incentivando a floração de
sentimentos ilusórios nos mesmos. Aliás, de certo modo, as idéias de Rousseau,
divulgadas no século XVIII, estavam sendo revigoradas dois séculos mais tarde.
Marly Amarilha (1997), referindo-se à Literatura Infantil, salienta que essa
foi criada nas últimas décadas do século XVIII, visando aculturar a novos padrões
44
civilizatórios os pequenos leitores. Padrões esses advindos a partir da Revolução
Francesa e da crescente industrialização mundial, por isso obras instrucionais e
pouco ou nada lúdicas surgiram.
Contudo, somente após o século XIX é que as crianças brasileiras tiveram
acesso a textos dessa natureza:
E somente em fins do século XVIII que se consolida um conceito mais
específico do que seja infância. A necessidade de se educar essa nova
geração e introduzi-la nos moldes civilizatórios que se impunham, com a
Revolução Francesa e o processo de industrialização, em toda a Europa,
criavam também espaço para a produção cultural ao público emergente.
Nasce, assim, uma literatura de cunho didático, em que o lúdico é apenas
um recurso para a instrução. A partir de critérios pedagógicos, os livros que
compunham as bibliotecas dos adultos foram adaptados para as crianças.
As fontes foram diversas: os contos populares, lendas e fábulas se
constituíram no primeiro repertório de literatura para as crianças. Essa
literatura não tinha um objetivo puramente estético, mas nela predominava o
tom instrucional e pedagógico, o que contribuiu para diminuir-lhe o status
frente a outras manifestações artísticas. No Brasil, a Literatura Infantil
demora a se manifestar. E em torno de 1900 que podemos traçar os
primeiros textos dessa natureza, mas aqui também ela se apresenta com as
características encontradas na Europa. (AMARILHA, 1997, p. 46)
A partir dos anos 50, a literatura re-descobre a fantasia, visto que se
percebeu que o lúdico e a magia são itens indispensáveis para se compor a
Literatura Infantil. Assim, as histórias em quadrinhos também se disseminaram
mundialmente e, no Brasil, a tradução de Beyond (Terror negro) é realizada, e outras
histórias surgem, como Histórias macabras (Thomas Morgan); O homem invisível
(Tiradez); A garra cinzenta (Bremond/Renato Silva). Além disso, surge Monteiro
Lobato, com Narizinho arrebitado, uma espécie de re-escritura das antigas fábulas.
Lajolo e Zilberman
21
teceram comentários a respeito da preocupação de
Monteiro Lobato em criar uma Literatura Infantil e Infanto-juvenil especialmente para
esse blico, pois, antes dele, tinha-se a coletânea de contos de origem européia, a
qual foi, inicialmente, criada para os adultos e, após, adaptada ao público infantil.
Em 1921, Monteiro Lobato publica Narizinho Arrebitado, após ter se
preocupado com a literatura infantil, conforme sugere a correspondência
trocada com Godofredo Rangel, com quem comenta a necessidade de se
21
Literatura infantil brasileira, história e histórias, 1984.
45
escreverem histórias para crianças numa linguagem que as interessasse.
(LAJOLO e ZILBERMAN, 1984, p. 45)
Anteriormente a Lobato, era motivo de preocupação de Romão Puiggari a
carência de obras que valorizassem os temas brasileiros, tanto que, em Coisas
Brasileiras (1893), ele apresenta, no prefácio de seu livro, o apelo de José Veríssimo
a favor da valorização do nacionalismo. Novaes cita o que José Veríssimo afirma:
neste levantamento geral que é preciso promover a favor da educação
nacional, uma das mais necessárias reformas é a do livro de leitura.
Cumpre que ele seja brasileiro, não feito por brasileiros, que não é o
mais importante, mas brasileiro pelos assuntos, pelo espírito, pelos autores
trasladados, pelos poetas reproduzidos e pelo sentimento nacional que o
anime. (VERÍSSIMO apud NOVAES, 1991, p. 213)
Verifica-se que o interesse pela criação de uma literatura nacionalista era
crescente, mas, quanto à figura feminina, esta mostrava-se ainda marginalizada,
vista como leitora de obras escritas e selecionadas por homens.
Nos anos 50, alguns contos haviam sido produzidos pela mídia, através de
filmes e desenhos animados cinematográficos, consolidados posteriormente até os
nossos dias. Evidentemente que, com essa mudança de suportes (do livro à
televisão), alguns personagens perderam ou acentuaram expressivamente as suas
características originais. Conseqüentemente, a publicação e a difusão dessas
obras alcançaram o sucesso e o território mundial. Contudo, na maior parte das
vezes, os valores patriarcais cultuados tanto nas linhas como nas entrelinhas desses
livros, mesmo no discurso televisivo, ainda vigoraram pelas décadas seguintes.
A década de sessenta marcou-se como o período em que inúmeras traduções
e adaptações de livros juvenis foram realizadas a partir de obras conhecidas no
âmbito literário. Nos anos 70-80, o universo de homens escritores ainda
predominava, porém o número de escritoras começava a se mostrar mais animador,
tendo em vista as décadas anteriores em que a participação feminina na escritura e
publicação de obras era pouco expressiva.
De acordo com isso, os escritores de diversos gêneros literários e não
somente de contos de fadas - dos anos 80, foram, entre outros: Amaury Braga da
46
Silva, Assis Brasil, Antônio Hohlfeldt, Carlos Moraes, Josué Guimarães, Jorge Miguel
Marinho, Libério Neves, Lourenço Diaféria, Lino Albergaria, Luiz Galdino, Luís
Puntel, Luís Camargo, Pedro Bandeira, Ricardo Azevedo, Ricardo da Cunha Lima,
Roniwalter Jatobá. E, nesse contexto de homens escritores, nota-se que a presença
masculina realmente era abundante e dominante, enquanto isso, a mulher tentava
firmar-se como escritora em território hostil.
Percebe-se que, através das obras dos escritores vistos, houve muitos
retrocessos que impossibilitaram a inclusão feminina efetiva no contexto literário. É
bem verdade que escritores como Comenius, Andersen, Carrol, Baum e Lobato
possibilitaram que a sociedade observasse a personagem feminina sob prisma
diferenciado, mas ainda muito faltava para que o sistema vigente, condicionado por
obras e discursos que repetiam e disseminavam falsos moralismos, valorizasse a
mulher em semelhante posição à do homem.
2.4 O papel social desempenhado pelas mulheres segundo certa ótica
masculina
A mulher que os deuses cumulam com a
dupla beleza do corpo e da alma é uma
verdade ao mesmo tempo evidente e
misteriosa. Compreendemo-la pelo amor e
tocamo-la com os dedos da pureza. Mas
quando procuramos descrevê-la com
palavras, desvanece-se atrás do nevoeiro
da hesitação e do equívoco.
GIBRAN, Kahlil. Asas partidas: o primeiro
amor de Gibran.1983, p. 98.
Visto que os papéis feminino e masculino eram bem determinados, tanto
literária quanto socialmente e, de acordo com os novos ideais iniciados pelo
Catolicismo, Novaes Coelho (1991) menciona que, na busca de se transferir a
imagem de madrasta-má, ou seja, a mulher perversa, à de uma nova personagem,
surgem, entre os séculos XII e XIII, as fadas. Estas se caracterizavam como,
praticamente, enviadas do Divino, ou seja, em uma narrativa em que aparecesse
uma situação crucial, elas surgiriam para amenizar ou resolver tal dificuldade. Na
47
verdade, as fadas
22
atuavam para suavizar a prerrogativa da maldade, sendo que o
heroísmo não era atribuído a elas, mas direcionado ao príncipe que surgia para
salvar vítimas indefesas.
As fadas foram provenientes do Ocidente e, mais especificamente, da novela
de cavalaria, que muito contribuiu para que o homem convivesse com valores mais
altruístas, como a luta por sentimentos nobres, abandonando, de certa forma, o
primitivismo cruel de épocas passadas.
Por outro lado, Marie-Louise von Franz afirma que as fadas foram adaptações
e junções de mulheres do passado que muito auxiliaram, porém anonimamente ou
como antagonistas, nas tramas dos contos:
Essas “fadas” se aproximam das velhas mulheres sábias e cheias de
experiência, um pouco feiticeiras e curandeiras, que presidem aos partos. É
assim que a palavra que as designa no conto de Grimm, Weise Frau,
designa tanto as mulheres sábias quanto as parteiras. (FRANZ, 1995, p. 30)
De outro modo, Marina Warner afirma que a Sibila, figura oposta às fadas,
mas, igualmente sábia, era considerada a bruxa pagã dos oráculos. Todavia, ela
redimiu-se de seus pecados, uma vez que o culto à Sibila foi associado ao de santa
Ana, na França do culo XVII e, assim, como em um passe de gica, de bruxa
tornou-se a avó, a narradora querida dos contos de fadas.
22
No conto de Basile, por exemplo, as fadas madrinhas prestam auxílio à mãe letárgica, que deu à luz a um casal
de gêmeos, após ter sido estuprada por um rei que, por aquelas redondezas caçava, mas que havia contraído
matrimônio com outra rainha. O curioso nessa história é que em momento algum se faz menção à ação
animalesca e digna de punição do rei. Basile enfeita e encanta com magicidade essa cena que, de certa forma,
pode-se imaginar o inverso à violência, como se o estupro fosse algo inevitável diante de tamanha beleza da
princesa e, além disso, algo corriqueiro, pois, após praticar esse ato, o rei retornou para o seu reino, esquecendo
do que havia acontecido. O perceptível nesse conto é que a esposa do rei é que é a megera, pois jamais lhe
concedeu filhos, enquanto que a
atitude dele é considerada normal, pelo menos para Basile, escritor dessa época.
O que se nota é que as questões de bondade e crueldade variam quanto ao gênero do praticante, ou melhor, se o
estuprador foi o rei, como já citado em Basile, é aceitável, porém a incapacidade de a rainha conceder-lhe filhos,
é que é considerada inaceitável, cruel.
48
Figura 8: A Sibila
É notório que o papel da mulher que esteve secularmente atrelado à figura
feminina presente nos contos de fadas é verificado como exemplo de adoção do
ideal patriarcal. No entanto, esse papel, desempenhado fora da história escrita,
assumia outra realidade. No enredo do cotidiano, a vida era madrasta, uma vez que
não havia príncipes, nem castelos, nem encantos. A mulher não era vista e nem
tratada como princesa. O seu papel assemelhava-se, sim, ao de uma gata
borralheira, real e fictício.
Sabe-se que, tradicionalmente, o personagem feminino é o portador de uma
herança cultural, onde valores e posturas estão pré-determinados, e este deve,
49
inquestionavelmente, moldar-se a estes, visto que para a mulher era característica a
identidade de filha, mãe, esposa. Por representar a passividade e a inconsciência, a
intelectualidade jamais estaria a seu alcance, pois não possuía inteligência o
bastante para assumir esta atividade. E, como o homem sempre representou o
oposto das características femininas, coube a ele, então, o sinônimo da atividade, do
fazer, do consciente.
Márcia Hoppe Navarro (1997) cita as idéias de Guerra Cunningham, uma vez
que ela
examina os significados primários atribuídos a cada gênero no código
simbólico que serve de suporte à tradição cultural do patriarcado. Em tal
código, o “masculino” define-se como sinônimo de “atividade” e da
“consciência”, enquanto o “feminino” representa o “passivo” e o
“inconsciente”. Tradicionalmente, os personagens masculinos caracterizam-
se pelo “fazer” - em atividades variadas em seu papel econômico e produtor
- , enquanto a mulher também se caracteriza a partir de seu papel primário
que é a reprodução biológica. Como resultado, afirma Guerra, da totalidade
complexa que constitui ser mulher, a imaginação masculina selecionou e
abstraiu a maternidade para torná-la a “essência” exclusiva de sua
identidade. (CUNNINGHAM apud NAVARRO, 1997, p.47-48, grifos da
autora)
Ainda convém comentar a citação já mencionada de Mendes (subcapítulo 1.3,
p. 21-22), uma vez que esse autor salienta a preponderância e a importância da
personagem feminina, em comunidades primitivas, em detrimento da masculina que
se tornara figura secundária e anônima em seu papel, designada por sua patente, ou
seja, a de príncipe ou de rei, servindo, assim, como uma fada madrinha “masculina”
que transforma e realiza a mulher na história.
50
Figura 9: Bela adormecida em seus aposentos, de
Edward Burne-Jones, 1870-90
É sabido que os aspectos “negativos” da mulher, outrora ressaltados, foram
suavizados com o tempo, que, concomitante a isso, ela perdeu a identidade
própria. A figura feminina absorveu as características das “Belas” dos contos de
fadas, que são mulheres servis, acomodadas e conformadas com o ambiente hostil
em que estavam inseridas. Sendo assim, às que não se enquadravam nessa
moldura de personagem angelical, sobrar-lhe-ia a de amargurada, horrenda e infeliz.
Percebe-se em Rosinha dos espinhos, dos Irmãos Grimm, a presença da décima-
terceira mulher bia ou bruxa, figura desagradável e vingativa, porém não mais
a madrasta perversa, citadas nos contos de Perrault.
23
E, quando da inexistência da mulher má, é comum verificar-se a imagem de
heroínas submissas e obedientes nos contos de fadas, e essa situação também é
presente em Barba-Azul, de Perrault
24
. O autor declara que o motivo que tornava o
Barba-Azul tão feio e amedrontador era tão-somente a cor nada convencional de
sua barba.
23
No conto A bela dormindo no bosque, a maldade recebeu personagem substituto em Perrault, ou seja, a sogra
possuía descendência ogra, uma vez que satisfez seu instinto canibal quando pensou ter devorado seus netos e
nora.
24
Contos de Perrault (1999).
51
Era uma vez um homem que possuía belas casas na cidade e no campo,
baixelas de ouro e de prata, móveis de madeira lavrada e carruagens
douradas. Mas, para sua infelicidade, esse homem tinha a barba azul, e
isso o tornava tão feio e tão assustador que não havia nenhuma mulher e
nenhuma moça que o fugisse de sua presença. (PERRAULT, 1999, p.
189)
Segundo a história de Perrault, Barba-Azul era um homem ogro que testava a
obediência de suas esposas, dando a elas um molho de chaves, sendo que uma
jamais poderia abrir um quarto secreto. A chave pertencente ao quarto secreto era
mágica, uma vez que denunciava com manchas de sangue, caso fosse usada.
Figura 10: Barba-Azul entrega à mulher a
chave do quarto secreto, de Gustave
Doré, 1861
Enquanto em Cinderela encontravam-se irmãs emprestadas que a invejavam,
em Barba-Azul as vizinhas e amigas da heroína desempenhavam esse papel. É
nítida a semelhança também em Branca de neve, Cinderela, Pele de asno e A bela
adormecida quanto ao desfecho, em que as princesas são salvas pelo beijo e/ou
união eterna com o príncipe.
em Barba-Azul, os dois irmãos da heroína chegaram para salvá-la no
momento crucial da vida dela, sendo que, no desfecho final, ela, viúva, emprega
52
parte da fortuna herdada do falecido marido para o seu próprio dote, ao casar-se
com um homem bondoso.
Em observância à personagem feminina nos contos de fadas, denota-se que
a representação cultural da mesma estigmatiza um tipo de mulher que deve ser
castigada com a própria vida pelo fato de ser monstruosa e malvada; o segundo tipo,
que já foi visto, é o modelo ideal e angelical de mulher: linda e submissa, incapaz de
conduzir sua vida sem a presença de uma figura masculina.
Propp confirma esses dois tipos distintos de mulheres cultuados
historicamente nos contos, porém o autor se refere a princesas, mulheres
comumente descritas por suas ações e atitudes, raras vezes em aspecto físico
detalhado:
[...] É verdade que, por um lado, ela é uma noiva fiel, que aguarda seu
prometido e recusa-se a todos os que tentam obter sua mão enquanto este
está ausente. Por outro lado, é um ser pérfido, vingador e maldoso, sempre
disposto a matar, afogar, mutilar, roubar seu pretendente; e a principal
tarefa do herói ao chegar ou quase chegar à posse dela consiste em domá-
la. [...]
[...] Os dois tipos de princesa são determinados menos por qualidades
pessoais do que pelo curso da ação [...] (PROPP, 2002, p. 365-6)
Maria Tatar contrapõe-se a Propp, afirmando que os contos atribuem valor
demasiado ao físico e material em relação ao personagem, como em Cinderela, ou
seja, “os contos de fadas atribuem alto valor às aparências, e a beleza de Cinderela
bem como seu magnífico traje, a distingue como a mais linda do reino (TATAR,
2004, p.38).
Nos contos de Basile, Grimm e Romero também ocorre percepção
semelhante à de Maria Tatar, ou melhor, a beleza física da mulher assume grande
importância para a sua ascensão na escala social, bem como as riquezas materiais
de que possa dispor. Além disso, se a personagem for chamada de Bela (em A Bela
e a Fera ou A bela adormecida), jamais se poderia imaginar alguém que fosse
desprovido de beleza física. Dessa forma, essas observações são comprovadas
através de alguns exemplos, no momento do primeiro encontro do príncipe ou rei
com a princesa:
53
Ela era o linda que ele não pôde deixar de olhá-la, e curvou-se e deu-lhe
um beijo [...] Então comemorou-se com toda a pompa o casamento do
príncipe com Rosinha dos Espinhos, e ambos viveram felizes para sempre.
(GRIMM
25
, 1996, p.19)
O rei, vendo-a assim, pensou que estivesse dormindo, chamou-a: mas
que ela não acordava, por mais que fizesse, o rei, aquecendo-se com tanta
beleza [...] (BASILE, 1996, p.55)
Um dia embrenhou-se muito pelo mato, dando aí com uma casa, do que ele
ficou muito admirado, e para ela dirigiu-se. Chegando lá, viu uma moça
muito bonita, ficando o rei logo muito apaixonado por ela. (ROMERO, 1996,
p. 69)
A partir do Renascimento, em âmbito literário, percebe-se que a mulher
começou a ser vista sob um novo prisma, porém, em nível social, ela continuou a ser
mero objeto, passiva e obediente a atitudes paternais. Aliás, essa visão social e,
diga-se generalizada, ultrapassa a Antigüidade e prolonga-se até fins da Idade
Média. E somente com a chegada do Renascimento é que a mulher principia a
renascer, transformando-se em sujeito da ação. Novaes Coelho sustenta que:
É compararmos o registro histórico com o registro literário das relações
Homem/Mulher, nas cortes medievais, e compreendermos a enorme
distância que ia da realidade dos fatos à idealização dos valores. Ao nível
da História, vê-se tais relações marcadas pela violência e pela
promiscuidade mais rude, mostrando que o respeito pela mulher era
praticamente nulo, pois ela era apenas uma peça útil ou inútil no jogo dos
interesses pelo poder. Enquanto, ao nível literário, se impunha a idealização
mais absoluta, que transformava a Mulher, do ser inferior e dominado que
era na vida real, em um valor superior e precioso a ser atingido por todo
homem que procurasse sua realização humana integral [...] (COELHO,
1991, p. 50, grifos da autora)
De outro modo, no século XX, Marina Warner destaca que a personagem
feminina, outrora passiva, transformou-se em sujeito de ações más. De certa forma,
inclusive Walt Disney, através dos filmes Branca de neve e os sete anões e
Cinderela, contribuiu para que a crueldade feminina se acentuasse através da
madrasta e da bruxa , as quais roubaram a cena dos protagonistas príncipes e
25
Essas passagens foram retiradas de:
GRIMM, Irmãos. In: A princesa que dormia: nas versões dos Irmãos Grimm, de Charles Perrault, de
Giambattista Basile e de Sílvio Romero (Edição plurilíngüe). Florianópolis: Paraula/EDUNISC, p. 19, 1996.
BASILE, Giambattista. In: A princesa que dormia: nas versões dos irmãos Grimm, de Charles Perrault, de
Giambattista Basile e de Sílvio Romero (Edição plurilíngüe). Florianópolis: Paraula/EDUNISC, p. 55, 1996.
ROMERO, Sílvio. In: A princesa que dormia: nas versões dos irmãos Grimm, de Charles Perrault, de
Giambattista Basile e de Sílvio Romero (Edição plurilíngüe). Florianópolis: Paraula/EDUNISC, p. 69, 1996.
54
princesas. Tem-se a impressão de que quem assiste a essas produções artísticas
mal pode esperar o momento para que a maldade entre em ação.
Os dois filmes [Branca de Neve e os sete anões e Cinderela] se concentram
com prazer exuberante na madrasta perversa e violenta, com seus cabelos
negros como as penas de um corvo e as garras de uma ave de rapina; nem
mesmo os poderes inventivos de Disney conseguiram salvar os príncipes de
uma banalidade sem expressão e as heroínas de um sentimentalismo
açucarado. O poder autêntico emana das mulheres más, e a fada-madrinha
gorducha e simpática, em Cinderela, parece não ser páreo para elas. A
visão de Disney afetou a idéia que todos faziam dos próprios contos de
fadas: até que escritores e antologistas reabrissem os olhos, heroínas
passivas e infelizes e mulheres mais velhas, vigorosas e perversas,
pareciam características genéricas [...] (WARNER, 1999, p. 239)
Figura 11: Cinderela
55
Figura 12: Cinderela, a madrasta e as irmãs
Em consonância com o aspecto estereotipado da figura feminina, presente
nos contos, a mulher era descrita, enquanto malvada, feia, poderosa e representada
pela bruxa, pela fada ruim, pelas irmãs invejosas, pela rainha má. Enquanto
bondosa, obediente, irresoluta, angelical, bela, era caracterizada como princesa,
filha órfã, fada.
Atualmente, as características más da mulher são amplamente discutidas,
tanto que o assunto mereceu uma reportagem da revista Época (2004). Nessa
reportagem é apresentada a obra de Shelley Klein, uma vez que a autora desvendou
o universo das s, perfilando as quinze mulheres mais cruéis do ponto de vista
histórico e não ficcional.
Martha Mendonça, a profissional responsável pela reportagem, introduz a
temática em questão afirmando que:
Antinatural ou não, a ficção es lotada de vilãs assustadoras,
definitivamente mais marcantes que os homens. Elas povoam os contos de
fadas, novelas e clássicos do cinema. As madrastas de Branca de Neve e
Cinderela são ícones dessa idéia: aquelas que deveriam estar no lugar da
mãe, mas, ao contrário, são perversas e competitivas com suas pobres
enteadas. (MENDONÇA, 2004, p. 68-69)
56
De certa forma, é necessária uma análise mais detalhada quando Martha
Mendonça afirma que as vilãs são mais marcantes que os homens na ficção, visto
que narrativas repletas de homens incomparavelmente cruéis, e o Barba-Azul,
citado anteriormente, é um deles.
Mendonça cita ainda o que o psicanalista Lindenberg Rocha salienta sobre a
questão:“A madrasta da Branca de neve, linda de um lado e bruxa do outro, é um
símbolo fortíssimo desse poder de vida e morte da mulher, essa matriz da
humanidade” (2004, p. 69). Além disso, Martha Mendonça acrescenta a visão do
Mauro Alencar
26
, uma vez que este acredita que “as más enfeitiçam as platéias, são
a mola propulsora da trama, mais que as mocinhas” (2004, p. 70).
De acordo com Marina Warner, o ódio da mulher mais velha em relação à
mais jovem outra característica negativa da mulher - presente nos contos,
representa a sua fragilidade e dependência quanto aos cuidados e atenção que a
família poderia lhe proporcionar
27
:
o ódio da mulher mais velha e a disputa entre gerações podem ser frutos
não apenas da rivalidade, mas também da culpa diante dos fracos e
dependentes. O retrato da sogra ou madrasta tirana pode esconder sua
própria vulnerabilidade, pode oferecer uma desculpa para os maus-tratos
que receberia. (WARNER, 1999, p. 260)
No conto A Bela e a Fera, provavelmente originário de Amor e Psiquê, obra
de Apuleio, a figura feminina é testada em sua confiança e obediência, assim como
em Barba-Azul, de Perrault. Sendo assim, faz-se pertinente ressaltar que a maldade
estava presente, num primeiro momento, na mente masculina, parecendo que
qualquer ato feminino era digno de desconfiança. E os contos realmente identificam
o que as mulheres vivenciavam em sociedade, ou seja, seus companheiros
consideravam-se donos de suas vidas e corpos e as tratavam como suas escravas,
tornando-se, às vezes, verdadeiros monstros para elas. Essa temática é evidenciada
26
Doutor em telenovelas pela Universidade de São Paulo.
27
Como exemplo, observa-se o retrato apresentado pela França, após a Revolução, uma vez que a sociedade não
era nada propícia à mulher que perdia todos os bens após a morte de seu esposo, falecido principalmente em
combate na guerra, tendo ela que viver à custa de parentes. Devido a isso, criava-se uma acentuada rivalidade
entre mulheres jovens e mais velhas, sendo que as viúvas é que enfrentavam perigos reais, uma vez que se
tornavam vulneráveis ao estarem desacompanhadas. A presença masculina era fundamental e indispensável para
a constituição familiar e, mais especificamente, para a própria sobrevivência feminina.
57
nas obras de madame d’Aulnoy, Murat e Jeanne-Marie Beaumont, escritoras que
vivenciaram esses tempos difíceis, em que essa posição masculina era dominante.
Na versão apresentada pela Walt Disney, a Fera é representada de uma
forma mais humana e suas atitudes com a Bela são bastante carinhosas e
prestativas. Evidentemente que esse homem-animal mostrou-se impiedoso e cruel
ao exigir a filha do mercador como pagamento de dívida.
Figura 13: A Bela e a Fera: versão Disney
Por sua vez, o pai de Bela (assim como de Cinderela, de Bela adormecida e
de Branca de neve) fez-se ausente, fraco, incapaz de assumir a sua verdadeira
paternidade, a ponto de entregar a própria filha à Fera. Nessa situação, tanto a Fera
quanto o pai de Bela apresentaram atitudes inquestionáveis quanto à crueldade. De
outro modo, até mesmo as figuras femininas assemelham-se em Cinderela e Branca
de neve. As heroínas, representadas por mulheres mais novas, são vítimas de inveja
e de crueldade de madrastas de mais idade, que ora figuram como bruxas.
58
Figura 14: Bela recebendo o pai, após a viagem,
de Walter Crane, 1875
Além disso, comprovando-se “a malignidade masculina”, naturalmente traço
cultural, observa-se, no conto Pele de asno, de Perrault, que o pai é bastante
presente, embora no sentido de assediar sua filha. Tanto que a princesa, vestida de
mendiga e usando uma pele de asno, foge das garras do mesmo. É sabido que em
povos antigos, que viveram antes da Idade Média, o incesto era permitido, uma vez
que a filha mais velha deveria assumir as obrigações do lar e com seu pai, desde
que sua mãe tivesse falecido. A partir da Idade Média esse conto passou a revelar e,
até certo ponto, condenar, a atitude do pai incestuoso.
59
Figura 15: Pele de asno fugindo de casa, de Gustave
Doré, 1861
Figura 16: Pele de asno e o Príncipe doente
60
Clarissa Estés (1994)
28
observa que o que a mulher vestia, ou quando
demonstrava estar alegre e, conseqüentemente, seu próprio corpo exibia esse
estado de espírito, já representava risco para que ela fosse violentada, sendo que os
maus-tratos às meninas eram atitudes comuns à época, visto que elas deveriam
suprimir seus anseios básicos através de uma educação extremamente severa.
[...] A mulher que se enfeitava despertava suspeitas. Um traje ou o próprio
corpo alegre aumentava o risco de ela ser agredida ou de sofrer violência
sexual. Não se podia dizer que lhe pertenciam as roupas que cobriam os
seus próprios ombros.
Era uma época em que os pais que maltratavam seus filhos eram
simplesmente chamados de “severos”, em que as lacerações espirituais de
mulheres profundamente exploradas eram denominadas “colapsos
nervosos”, em que as meninas e as mulheres que vivessem apertadas em
cintas, amordaçadas e contidas, eram consideradas “certas”, enquanto
aquelas que conseguiam fugir da coleira uma ou duas vezes na vida eram
classificadas de “erradas”. (ESTÉS, 1994, p.18, grifos da autora)
Além de o pai ser um antagonista ou um pai ausente, não tendo presença
marcante ou, de outro modo, mostrando-se cruel nos contos de fadas, a imagem de
homem-príncipe-herói é bastante intrigante, uma vez que, em Grimm, observa-se o
seguinte:
Cem anos exatos haviam se passado, e chegado o dia em que Rosinha dos
Espinhos deveria despertar. Assim que o príncipe aproximou-se da cerca
viva, os espinhos eram inúmeras flores belas e grandes que se afastavam
sozinhas, deixando-o passar ileso, fechando-se de novo atrás dele [...]
(GRIMM, 1996, p.17)
Nessa situação, questiona-se por que o príncipe é considerado um herói, pois
todo o ambiente que, outrora, era fatalmente contrário aos que se aproximavam,
inusitadamente, após o término do período de sonolência da princesa, tornou-se
mágico, não apresentando mais nenhuma dificuldade a quem chegasse lá. Aliás,
abrir-se-lhe-ia passagem. Dessa forma, é possível se questionar se havia o auxílio
de alguma fada madrinha ou algum ser mágico que direcionasse o caminho para o
príncipe e o estivesse acompanhando. Sendo assim, o príncipe tornou-se herói por
acaso, imerecidamente. Tanto que, na versão de Perrault, também não variação
quanto à casualidade do surgimento do herói:
28
Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do arquétipo da mulher selvagem.
61
O jovem príncipe, com esta conversa, sentiu-se todo aceso; acreditou, sem
vacilar, que daria um fim a tão bela aventura; e impelido pelo amor e pela
glória, resolveu ir ver na hora do que se tratava. Mal aproximou-se do
bosque e todas as árvores grandes, o mato e os espinheiros foram-se
afastando para deixá-lo passar: caminhou para o castelo que avistava ao
fim de uma longa alameda que trilhou e, o que o surpreendeu um pouco, viu
que ninguém da comitiva pudera segui-lo, porque as árvores se tornaram a
fechar assim que ele passou. o deixou de prosseguir seu caminho: um
príncipe jovem e apaixonado é sempre valente [...] (PERRAULT, 1996, p.
34-5)
No caso do conto de Basile (Sol, Lua e Tália), visto anteriormente, não
presença de heroísmo, uma vez que o rei encontra a princesa por acaso,
adormecida e indefesa em seu castelo, abusa sexualmente da mesma e retorna ao
seu reinado, sumindo covardemente desse cenário inicial e esquecendo do feito
praticado. No entanto, o que se percebe nos contos escritos por homens é que as
ações selvagens praticadas por príncipes e reis são atenuadas de forma
incomparável. De outro modo, a figura feminina, representada pela princesa ou
rainha é figurante em seu papel e dependente dos atos masculinos, mas quando
esta decide agir por impulso próprio, geralmente comete falhas imperdoáveis. Aliás,
contrariamente à avaliação masculina, a ação indevida feminina ganha projeções
catastróficas, a ponto de fazê-la perder a vida e ser usada como exemplo a não ser
seguido pelas demais.
Por outro lado, paradoxalmente, segundo Franz, o herói é,
[...] o restaurador da situação sadia, consciente. Ele é um ego que
restabelece o funcionamento normal e sadio de uma situação, onde todos
os egos da tribo ou nação estão desviando-se do padrão básico e instintivo
da totalidade. (FRANZ, 1981, p. 72)
Analisando-se a definição de herói vista acima, de se convir que a
afirmação de Franz é bastante pertinente, uma vez que o personagem príncipe ou
rei assume, sim, um papel dúbio nos contos de fadas, mas depende dele o retorno
da harmonia no enredo, outrora conflitante. Desse modo, o príncipe representa o
equilíbrio, aquele que reestrutura a história em questão para que, sucessivamente,
se tenha e se garanta um final feliz para a mesma.
Em relação à austeridade da figura feminina, Propp salienta que alguns povos
cultuavam os limites, o exílio para o sexo feminino imposto pela sociedade, ou seja,
62
a princesa deveria viver em reclusão, jamais podendo ver a luz do sol e nem
conviver em sociedade: “[...] Nos contos georgianos e mingrelianos, a princesa é
chamada mzedunag av. Esse termo pode ter dois sentidos: “não vista pelo sol” e
“que não viu o sol” [...]” (PROPP, 2002, p. 33).
De acordo com essa idéia de solidão, observa-se o ambiente-chave do conto
A bela adormecida, o quarto, uma vez que os ambientes estritamente internos eram
os únicos permitidos à mulher. Enquanto que aos homens cabia-lhes escolher o que
desejassem.
Propp afirma ainda que, nos contos de caráter novelesco, geralmente se
percebe a presença de mulheres aprisionadas após o casamento e testadas,
cotidianamente, quanto a sua fidelidade ao marido.
[...] Nos contos de cunho novelesco, após o casamento, o marido “constrói
para sua mulher um palácio onde havia uma única janela”, etc. Na
seqüência, percebe-se que assim se fez para testar a fidelidade da esposa.
Às vezes esse confinamento tem como objetivo perseguir uma mulher:
“ - Prenderam sem motivo a pobre mulher inocente. O senhor mandou
construir uma torre de tijolo em seu pátio e ali a trancou. Deixaram-lhe
apenas uma janelinha, por onde lhe passavam água e pão seco”. O motivo
das jovens e das mulheres aprisionadas é amplamente conhecido no
gênero novelesco, onde os maridos ciumentos utilizam tal processo [...]
(PROPP, 2002, p. 41)
Como curiosidade, faz-se necessário conferir que, por outro lado, existe a
aplicação de outro sistema social e familiar no mundo, além do patriarcal. Marie-
Louise von Franz
29
demonstra uma outra realidade vivida pela mulher no Sul da
Índia, uma vez que se vive uma estrutura matriarcal e isso o representa
situação inversa à patriarcal, ou seja, que o sexo feminino seja o mandatário. Nada
disso acontece nesse sistema, mas aqui se tem a realidade, não a ficção:
as mulheres confiam espontaneamente em sua natureza feminina. Têm
consciência de sua importância, do fato que possuem traços particulares
que as diferenciam dos homens, e de que estes não implicam em nenhuma
inferioridade. Têm uma segurança inteiramente natural em suas existências
e em seu comportamento humanos. (FRANZ, 1995, p. 16)
No entanto, somente em decorrência da disseminação do movimento
29
O feminino nos contos de fadas.
63
feminista
30
no mundo ocidental, é que as mulheres, vítimas de maridos e pais cruéis,
bem como de um sistema patriarcal arraigado com raízes bastante profundas,
puderam se opor à sua sorte e, a partir daí, brilharam em novos papéis dentro e fora
de histórias escritas ou a serem escritas.
2.5 No universo literário masculino, a figura da mulher contadora e tradutora
de histórias
O fellow, come, the song we had last night,
Mark it, Cesario, it is old and plain;
The spinsters and the knitters in the sun,
And the free maids that weave their thread with bones,
Do use to chaunt it : it is silly sooth,
And dallies with the innocence of love,
Like the old age.
SHAKESPEARE apud WARNER, Twelfth Night, II, iv, 1999, p.231
31
.
Muitas mulheres participaram indireta ou diretamente do mundo literário, quer
seja como contadoras de histórias para os próprios escritores ou através da
participação feminina no conto das mesmas. Franz sustenta que “pelos escritos de
Platão sabemos que as mulheres mais velhas contavam às suas crianças histórias
simbólicas “mythoi”. Desde então, os contos de fadas estão vinculados à educação
de crianças” (1981, p. 17).
30
Surgido nos países ocidentais entre as décadas de 1930 e 40, o Movimento Feminista é um movimento cio-
político, que luta pela igualdade de direitos entre os sexos. Olmi, referindo-se ao Movimento Feminista, cita
também o Pós-Modernismo, uma vez que ambas as correntes político-culturais são recentes. Desse modo, Olmi
apóia-se em Sarup para definir tais correntes:
Como reconhece Sarup, feminismo e pós-modernismo surgiram como duas das mais importantes correntes
político-culturais das últimas décadas. Ele aproxima os dois movimentos, tendo em vista que apresentam
semelhanças, pois ambos trouxeram uma crítica apropriada e abrangente da filosofia e da relação entre filosofia e
cultura, no sentido mais amplo possível. Ambos tentaram desenvolver um novo modelo de crítica social que não
se apóia em sustentáculos filosóficos tradicionais [...] (OLMI, 2003, p. 109).
Além disso, Olmi cita a voz de Hutcheon para expressar as contribuições do pensamento feminista para o
ocidente: “As mulheres ajudaram a desenvolver a valorização pós-moderna das margens e do ex-cêntrico como
uma saída com relação à problemática de poder dos centros e às oposições entre masculino e feminino” [...]
(HUTCHEON apud OLMI, 2003, p. 108).
31
Amigo, a canção que ouvimos ontem,/ Note bem, Cesário, é antiga e simples;/ As fiandeiras e tecelãs ao sol,/
E as donzelas livres que fiam com ossos,/ Costumam cantá-la: é tolo alívio,/ E brinca com a inocência do amor,/
Como a velhice. (Noite de Reis, II, iv).
64
No universo de homens-escritores-medievais surge Marie de France que, em
1180 divulga o mais famoso Isopet (estória de animais, narrada em versos e em
língua “romance”), pertencente também à célula-mater, Calila e Dimna.
Marie de France seguiu o exemplo de sua mãe e de seu bisavô, pois era filha
de Alienor D’Aquitânia, conhecida como protetora de poetas e artistas. Por sua vez,
o bisavô era o mais antigo dos trovadores provençais. Dessa forma, Marie de
France, com o sangue literário fluindo em suas veias, tornou-se a primeira poetisa
francesa da história, sendo de sua autoria os Lais de Marie de France.
Segundo Novaes Coelho, a poetisa estava “encantada com os primitivos e
líricos lais bretões, impregnados desse novo ideal, entrega-se aos trabalhos de
traduzi-los para o francês: narrativas maravilhosas, conhecidas como os Lais de
Marie France (1987, p. 49, grifos da autora). Evidentemente, foram apenas
traduções, mas, a partir destas, homens e, principalmente, mulheres francesas
tiveram acesso às obras, possibilitando que o público feminino se inserisse no
cenário intelectual e, posteriormente, passasse a escrever seus próprios livros.
Os Lais traduzidos por France somam dez: Lai dYonec; Lai de Bisclavaret;
Lai de Lanval; Lai de Iwenec; Lai de Fresno; Lai de Tidorel; Lai de Eliduc; Lai de
Guingamor; Lai de Tiolet e Lai de Madressilva.
Faz-se pertinente ressaltar que o novo ideal citado anteriormente, que
encantou France, prenuncia o período vindouro, o surgimento do período medieval
que, para ela, corresponderia a novas perspectivas, principalmente no campo
literário.
Assim, no período medieval correspondente ao período que vai do século V
ao século XV, mais especificamente em seu final, a crueldade, a brutalidade
primitiva da sociedade, retratada nas narrativas, vai se apagando nas linhas e
entrelinhas dos contos, à medida que os costumes burgueses proliferam, refinando
os hábitos do povo. Um exemplo disso foi a transição de homens guerreiros para
cortesãos. Essa pacificação interna da sociedade iniciou-se e prosseguiu com
grande lentidão nos séculos XI e XII, chegando a completar-se entre os séculos XVII
65
e XVIII, sendo que a nobreza cortesã da França ocupou uma posição específica
nessa mudança de padrões de conduta, pois os costumes franceses refinados
disseminaram-se além-fronteiras.
Essa modificação social, ou melhor, esse refinamento cultural, se fez propício
para a entrada de mulheres na literatura e, enquanto ainda não apareciam
mulheres-escritoras, as contadoras de histórias iam surgindo. Novaes Coelho cita
que “Katherina Wieckmann, camponesa de extraordinária memória, teria sido para
os Irmãos Grimm a grande fonte transmissora” (1991, p.140) das histórias cultuadas
e transmitidas oralmente pelos povos.
Câmara Cascudo também observa, em sua obra, que o conto O fiel Dom José
foi contribuição de Luísa Freire, uma cearense contadora de histórias:
Luísa Freire, branca, analfabeta, residiu em nossa casa de 9 de junho de
1915 até 23 de julho de 1953, quando faleceu. Nascera em junho de 1870.
Foi colaboradora preciosa em literatura oral. Com maiores anotações
publiquei no Porto, Portugal, um volume inteiro contendo “Trinta Estórias de
Bibi”. Bibi era seu apelido dado por mim quando menino e conservado a
vida inteira. (CASCUDO, 2004, p.30)
Referindo-se ainda a contadores de histórias, Cecília Meireles
32
cita que os
que contavam histórias no passado são os antepassados dos escritores atuais.
O gosto de contar é idêntico ao de escrever – e os primeiros narradores são
os antepassados anônimos de todos os escritores. O gosto de ouvir é como
o gosto de ler.
Assim, as bibliotecas, antes de serem estas infinitas estantes, com as vozes
presas dentro dos livros, foram vivas e humanas, rumorosas, com gestos,
canções, danças entremeadas às narrativas. (MEIRELES, 1979, p. 42)
32
Problemas da literatura infantil.
66
Figura 17: A velha senhora contando os
Contos da Mamãe Gansa para as
crianças
Salienta-se que, no convívio social, é comum ouvir-se histórias narradas por
avós que contam a respeito de seu tempo pretérito e também de outros tempos
que não lhes pertenceram, mais longínquos ainda, e os fatos desses tempos foram
ouvidos, vividos ou criados por seus ancestrais. Marina Warner observa que a mais
antiga referência ao conto que senhoras idosas narravam aos seus familiares e,
principalmente, a crianças, encontra-se no Górgias, de Platão:
Platão, no Górgias, referiu-se depreciativamente ao tipo de conto mythos
graós, o conto das velhas – narrado pelas amas para divertir ou assustar as
crianças. Possivelmente, trata-se da mais remota referência ao gênero.
Segundo relatos, quando os meninos e meninas de Atenas estavam prestes
a embarcar para Creta, para serem sacrificados ao Minotauro, velhas
senhoras desciam até o porto para lhes contar histórias e distraí-los de seu
sofrimento. (WARNER, 1999, p.39)
Realmente, milagres essas velhas senhoras faziam ao entreter crianças
condenadas à morte, uma vez que a temática dessas narrativas abordava
magicidade, fantasia, fadas e a vitória de sentimentos nobres, por mais que esses
custassem as suas vidas.
67
É sabido que Giambattista Basile, Perrault, os Irmãos Grimm e Sílvio Romero,
entre outros, registraram a cultura oral de seu povo, visando entretenimento, ou com
fundo moralista ou, até mesmo, como oferecimento a parentes de um rei da época,
porém o que deve ser ressaltado é que o contar histórias era uma característica
comum às mulheres fiandeiras desses tempos.
Antigamente, era comum entre mulheres fiandeiras o ouvir, o contar e o
recontar de histórias. De acordo com Novaes Coelho, “Perrault [...] conhecedor
como era, da mitologia pagã, teria associado a tarefa das Parcas (tecer a vida dos
homens) com o tecer estórias que formam a rede humana” (1987, p. 69).
Lílian de Lacerda (2003)
33
descreve a dificuldade que as mulheres contadoras
de histórias - que viveram antes do século XX - enfrentaram para, ao menos, serem
alfabetizadas. E, quanto a serem escritoras, nesse período, considerava-se um
sonho inatingível.
Entretanto, Lacerda enfatiza que, por mais que as mulheres estivessem
inseridas em um meio de censuras quanto ao ingresso ao mundo letrado e literário,
algo as faz lembrar, com prazer e saudades, as avós contadoras de histórias.
Segundo Lacerda, referindo-se às avós do passado:
[...] Elas são portadoras da ancestralidade do grupo, carregam os segredos
da família, guardam na memória os fatos, os acontecimentos e as histórias
imaginárias ou sabidas de cor aprendidas oralmente ou por meio de
diferentes impressos a que tiveram acesso. (LACERDA, 2003, p. 193)
Conforme o exposto, Maria Helena Cardoso (1973) afirma a importância do
ato de ouvir histórias para o desencadeamento do imaginário infantil e salienta que,
quando ouvia histórias, narradas por sua avó, sentia que o processo interativo
ampliava-se e adquiria formas inimagináveis:
Bem pequena ainda, adorava estórias: às noites, assentada nos degraus de
tijolos da escada da cozinha da casa de vovó, ou deitada na caixa-
frasqueira da sala de costura, à luz bruxuleante da lamparina de querosene,
que deixava nos cantos um enorme espaço de sombra, ou à chama clara
fixa do lampião, ouvia da cozinheira, ou de vovó, estórias maravilhosas, que
me enchiam a cabeça, me fazendo arregalar os olhos de admiração ou
33
Álbum de leitura: memórias da vida, histórias de leitoras.
68
estremecer de pavor. Quando o medo era muito, me achegava a um dos
meus irmãos, assentados próximos a mim. [...] De tal modo gostava dos
personagens das estórias que ouvia, que costumava conversar baixinho
com eles, quando não cantava seus nomes em estribilho [...] (CARDOSO,
Maria Helena. 1973, p.97)
34
É bem verdade que a fama de as avós serem contadoras de histórias não
surgiu neste século e muito menos por acaso. Na aurora dos tempos, de todos os
tempos, as Sibilas eram mulheres que possuíam extremada sabedoria, tanto que a
elas era atribuído o dom de inventar histórias; o presente informar e o futuro prever.
Cecília Meireles (1979) cita que Selma Lagerlöf, ao receber o prêmio Nobel
em 1909, enfatizou o seu fascínio pelas senhoras que vivem isoladas em florestas
ou lugares quase inacessíveis ao simples mortal (como se feiticeiras ou Sibilas
fossem), pois a ensinaram a ver e entender naturalmente as histórias do mundo.
O interessante é que na história de vida do ser humano sempre havia ou há
uma mulher contadora de histórias e também por trás de um homem escritor: com
Perrault, a babá de seus filhos ou a sobrinha Mll. L’Héritier; com os Irmãos Grimm,
Katherina Wieckmann e Jeannette Hassenpflug; com Câmara Cascudo, Luísa
Freire, já vistos anteriormente.
Dessa forma, torna-se indiscutível que a transmissão oral dos contos seja
quase que prevalentemente de autoria de mulheres. Situação essa lembrada por
Marina Warner:
[...] embora os escritores e colecionadores do sexo masculino tenham
dominado a produção e a disseminação de contos maravilhosos populares,
estes freqüentemente eram transmitidos por mulheres no ambiente íntimo
ou doméstico. (1999, p. 43)
34
Por onde andou meu coração.
69
Figura 18: Homens observadores, mulheres contadoras de histórias
A esse respeito, Marina Warner cita Italo Calvino, uma vez que ele,
analisando diversos suportes folclóricos do século XIX, verificou também que as
fontes desses contos eram femininas, o que pode significar uma tradição cultural
própria desse gênero: “Italo Calvino, em sua coleção de Fiabe ou Fábulas italianas
de 1956 a resposta italiana aos irmãos Grimm – chamou atenção para esse
aspecto da tradição, observando que várias antologias de folclore do século XIX,
que ele consultou e adaptou, citavam fontes femininas [...]” (WARNER, 1999, p. 41).
Embora os contos sejam compostos por personagens masculinos e
femininos, é nas mulheres que este trabalho de pesquisa procura se ater, uma vez
que, no processo evolutivo da mulher, enquanto personagem e escritora, a literatura
é a comprovação fiel do que os tempos mais remotos da humanidade revelam a
respeito de seu papel social. Entretanto, o que se percebeu é que em um universo
de homens escritores, havia sempre mulheres contadoras e tradutoras de histórias
70
e, muito depois, é que surgiram as escritoras. Evidentemente que foi bastante tardia
a participação da mulher escritora comparada à dos homens, visto que é somente
no século XVII, em 1608, com Mme. de Rambouillet, que os pensamentos, desejos e
ideais femininos passaram a ser conhecidos em obras escritas, através do
Preciosismo, movimento literário que recebeu adeptos da literatura, sendo que
esses trabalhos eram expostos em salões para o entretenimento de variado público
e, posteriormente, disseminaram intelectuais em todo o mundo.
3. A INSERÇÃO DA MULHER ESCRITORA NA LITERATURA INFANTO-JUVENIL
AO LONGO DOS TEMPOS
No capítulo precedente observou-se que a escritura de contos de fadas era
direito exclusivo e incontestável dos homens. Esse universo era de autoria
masculina.
neste capítulo a abordagem será a respeito das mulheres. Na verdade,
será acompanhada a trajetória da mulher escritora que se inseriu no meio
intelectual, sobretudo na área da Literatura Infanto-juvenil.
O espaço temporal entre os culos XVII a XX foi delimitado, uma vez que,
devido à imposição masculina que conspirava contra a presença feminina no
contexto literário, o resultado foi a tardia inserção da mulher nesse período.
Num primeiro momento, o estudo analisará os efeitos e mudanças no papel
feminino na sociedade, salientando-se que desta vez é a mulher que escreve a sua
história.
Em seguida, serão observados os percalços que retardaram ou que
impossibilitaram o ingresso efetivo da figura feminina no mundo intelectual.
Entretanto, assim como homens escritores tornaram inviável,
temporariamente, a real participação feminina no contexto literário, outros
contribuíram para que a mesma se projetasse nesse meio, pelo menos na ficção.
Lewis Carrol, Lyman Frank Baum e Monteiro Lobato ressaltaram a figura feminina
através de suas personagens. Esta será a abordagem final, trabalhada no terceiro
subcapítulo.
72
3.1 Efeitos e mudanças no papel feminino na sociedade
Os livros que têm resistido ao tempo são os que possuem uma essência de
verdade, capaz de satisfazer a inquietação humana por mais que os séculos
passem.
MEIRELES apud COELHO, 1991, p. 9.
É possível afirmar que o século XVll foi marcado pelo gosto do conto da
carochinha, e Marie Catherine d’Aulnoy escreveu inúmeros deles, os quais são
conhecidos ainda hoje no meio literário, sendo de sua autoria a expressão Contes
de fée, contos de fadas, adotada por gerações passadas e atuais.
Figura 19: Les Contes des Fées, obra da baronesa
d’Aulnoy
De acordo com Novaes Coelho, Mme d’Aulnoy escreve contos maravilhosos e
publica oito volumes, introduzindo o modismo dos contos de fadas também entre os
adultos. Casualmente, Perrault publica seus contos na época em que, no cenário
intelectual burguês, surge Mme d’Aulnoy. A escritora engaja-se também no mundo
dos contos de fadas e, em 1690, publica História de Hipólito, Conde de Douglas.
Posteriormente, Memórias da Corte de Espanha e Relação da Viagem à Espanha,
caracterizados como relatos de viagens.
73
Cinco anos depois, inicia a publicação de oito volumes de contos
maravilhosos que, desafiando o racionalismo clássico e o modelo dos
antigos greco-latinos”, lançavam a “moda das fadas” entre os adultos. Moda
que vai durar anos. É entre 1696 e 1698 que Mme D’Aulnoy publica: Contos
de Fadas; Novos Contos de Fadas ou As Fadas em Moda; Ilustres Fadas;
etc. (COELHO, 1991, p. 98)
Marie-Catherine, também chamada baronesa d’Aulnoy, era de nacionalidade
francesa, nasceu entre 1650/51 e faleceu em 1705. A referida escritora apresenta
dois volumes de histórias, sendo que nestes misturam-se viagens fantásticas,
novelas mágico-realistas e contos de fadas, tendo a co-autoria de Henriette-Julie de
Castelnau, a condessa de Murat.
Quanto à vida pessoal dessa escritora, sabe-se que foi bastante turbulenta,
principalmente em relação aos inúmeros relacionamentos amorosos e casamentos
que manteve, devido a isso se torna possível observar que suas obras eram o
retrato de sua própria vida. Marina Warner comprova essa comparação entre a vida
e a obra da escritora d’Aulnoy:
[...] D’Aulnoy ultrapassou os limites aceitos pela sociedade e, ao mesmo
tempo, parece que conseguiu uma fonte diferente de renda. Antes de adotar
os contos de fadas, sua carreira foi ainda mais atribulada do que a de
Henriette-Julie de Murat.
Os contos copiosos e rebuscados que escreveu correspondem às violentas
transformações que ocorreram em sua própria vida, assim como reagem,
num espírito de revolta, aos conflitos políticos e às coerções sociais de sua
época. (WARNER, 1999, p. 319)
Talvez, quanto ao estilo irreverente de viver e escrever, d’ Aulnoy possa ser
comparada a Jean-Nicolas Arthur Rimbaud, um poeta francês do culo XlX, que
migrou para vários países, participando de rculos Literários assim como fez a
escritora. Além disso, Rimbaud expressou em seus versos a franqueza e, de certo
modo, a ironia com que tratava sexo, violência e também a vida mundana. Tanto
que o poeta Rimbaud reescreve a poesia de Albert Glatigny sobre o nascimento de
Afrodite, a deusa Vênus, porém comparando-a a uma prostituta, em Venus
Anadyomène, modificando integralmente a magia descritiva da figura mitológica,
considerada uma das mais belas da mitologia greco–romana.
uma distância temporal de dois séculos entre d’Aulnoy e Rimbaud, mas
muito em comum entre ambos, como o sucesso acompanhado de escândalos que
74
cercavam suas vidas. No filme de Agnieszka Holland, denominado Eclipse de uma
paixão, é possível constatar a história de vida de Rimbaud.
Além disso, na biografia de d’Aulnoy, relatada por Marina Warner, constata-se
uma vida bastante incomum, marcada por calúnias, difamações, prisão, fuga a
supostos países, como Holanda, Espanha e Inglaterra. No entanto, em 1685
retornou à França e retomou a literatura, abrindo um salão que se tornou bastante
movimentado em Paris.
Segundo Warner, “em 1782, por exemplo, vários contos de fadas de madame
d’Aulnoy foram coligidos e publicados em inglês sob o título Queen Mab: containing
a sellect collection of only the best, most instructive and entertaining tales of the
fairies”. A autora salienta ainda que
um conto de fadas do estilo antigo apresenta Oberon, Robin Goodfellow e
outras figuras do folclore mágico local, e conta uma fábula à moda das
baladas escocesas sobre a cura mágica de desprezado protagonista,
Edwin, o corcunda - um típico conto de fadas sobre os fracos que são
recompensados[...] (WARNER, 1999, p.107)
Em suas narrativas, d’Aulnoy utilizava-se de maridos bestiais como
personagens para construir um conto. Na verdade, a escritora criava um mundo
fictício em que o amor conjugal, algumas vezes possível, era alcançado com muita
dificuldade.
Dentre as produções de d’Aulnoy, Le mouton enfatiza a união de um casal
nada convencional, o noivado de uma princesa e um carneiro que possui hábitos
cortesãos. Além do enfoque que envolve noivos animalescos e casamentos
arranjados, nesse conto a desavença familiar entre o rei e a filha mais jovem,
noiva do carneiro. Devido a esse desentendimento com o pai, a garota é expulsa do
castelo, porém, no final da narrativa, o pai-rei reconcilia-se com a filha e esta é
coroada rainha ao lado do pai. Cena essa assistida pelo noivo que morre com o
coração partido.
75
Em Le dauphin não variação temática como nos demais contos criados
pela autora. Assim, nesse um pretendente a casar-se com uma princesa, porém
ele é considerado feio e horripilante pela mesma, parecendo-se com um ser
animalesco. Livorette, a princesa, é arrogante e propõe ao pretendente que só
casará com ele no momento em que ele se transformar em um pássaro e por ela for
domesticado. A situação propõe o inverso do que acontecia realmente com as
mulheres.
Em Le serpentin vert, a escritora aborda os temas antagônicos beleza/feiúra,
visto que a protagonista da história foi amaldiçoada ao nascer pelo pior dos males
para a época, a falta de beleza, sendo que isso poderia resultar em não conseguir
arranjar casamento.
Além disso, Hidessa, a protagonista, foi rejeitada pelos pais, tendo que se
refugiar na floresta, onde encontra uma serpente verde, cuja aparência causa
repulsa à menina. Nesse mesmo momento, ela é interpelada por uma fada que a
aconselha a não dar valor às aparências e, sim, a buscar a essência de cada ser.
Seguindo esse conselho, Hidessa passou a receber visitas noturnas de um
amante, a quem jamais pôde ver, assim como em Amor e Psiquê de Apuleio. Mas a
curiosidade a traiu e, ao observar uma serpente em seu leito, apavorou-se.
Posteriormente, inúmeras provações desumanas Hidessa tem de enfrentar. Com
isso, após três anos exilada, sofrendo cruéis castigos, ela retorna vitoriosa e
descobre, é claro, que a serpente é um belo príncipe.
Segundo Marina Warner, observando as obras de d’Aulnoy, “as histórias
relatam obsessivamente essas figuras da autoridade feminina, poderosas e
efetivamente fatais, que abusam de sua posição [...]” (1999, p. 265).
Faz-se pertinente nesse momento mencionar as idéias de Geoffrey Chaucer
em relação às mulheres em geral e não somente direcionadas à d’Aulnoy, que,
coincidentemente correspondem com as de Warner. Evidentemente que Warner se
refere às obras específicas de d’Aulnoy, enquanto Chaucer amplia essa
característica, atribuindo-a a todas as mulheres, sem exceção. Ou melhor, Chaucer
76
afirma que os anseios femininos resumem-se tão somente em a mulher querer
comandar o seu parceiro e obter o poder. Assim sendo, não mais mistérios. Lélia
Almeida (2003)
35
cita, então, a visão desse escritor quanto à postura feminina:
Para Chaucer, portanto, através das personagens femininas a quem ele
voz, as mulheres querem mandar nos homens, querem mandar nos
maridos, as mulheres querem o poder, o que as mulheres querem é, pura e
simplesmente, mandar. Não há muitos mistérios. (ALMEIDA, 2003, p.20)
Na verdade, é possível afirmar o oposto do que Chaucer mencionou. As
mulheres, através de suas personagens femininas, estão apenas retomando as
rédeas de suas decisões, ou seja, estão recuperando os seus papéis de
protagonistas atuantes, o que não pode ser confundido com autoritarismo e ânsia de
poder. Conseqüentemente, quando é mostrada uma nova postura das personagens,
a sociedade também começa a vê-las sob uma outra ótica e, assim, a transformar-
se, oportunizando um espaço intelectual maior à mulher.
Os contos de d’Aulnoy tratam, sim, de relacionamentos forçados e acertados
pelas famílias dos noivos, acordos comuns à época. Em razão disso, tornam-se
uniões infelizes protagonizadas por maridos que o eram homens e, sim, animais.
As suas histórias são retratadas e vistas de forma realista, uma vez que perderam o
caráter encantado e mágico dos contos de fadas, tornando-se reflexões sobre os
relacionamentos humanos, o que mostra uma mudança relevante nas temáticas dos
contos.
Além de d’Aulnoy, Marie–Jeanne L’Héritier também trazia em seu sangue a
ânsia de escrever. Característica essa que se acentuava, uma vez que era filha de
um poeta, Nicolas L’Héritier e, como foi mencionado, sobrinha ou prima (não se
sabe) de Perrault.
35
As meninas más na literatura de Margaret Atwood e Lucía Etxebarría.
77
Figura 20: Marie Jeanne L’Hérieter de Vilandom
De acordo com Marina Warner, Marie–Jeanne L’Héritier, “embora pertença
por idade à geração mais jovem, era muito íntima de Charles Perrault; as mães
deles, Françoise e Paquette Le Clerc, eram ou irmãs ou primas” (1999, p. 202).
Marina Warner salienta ainda que:
Marie–Jeanne L’Héritier de Villandon começou a compor contos de fadas na
década de 1690, e publicou Bigarrures ingénieuses em 1697 o próprio
título, com suas alusões à astúcia e ao heterogêneo, anunciava sua
empresa de narração de histórias dentro do modo cômico da trapaça e do
engano. (WARNER, 1999, p. 202)
Após a morte do pai de L’Héritier, a sua família empobreceu, porém ela
continuou freqüentando a alta sociedade, incluindo os Círculos Literários. L’Héritier
tornou-se amiga íntima da escritora Madeleine de Scudéry, dona de um salão, o qual
passou a pertencer à Marie–Jeanne L’Héritier, após a morte da escritora e amiga.
Assim como Perrault, L’Héritier redigia contos de fadas, tendo como fonte a
sua babá, coincidentemente como Perrault que teve a babá de seus filhos, e ela
78
continuou escrevendo, mesmo quando esses contos foram considerados tolices
vulgares e femininas por escritores da época.
L’Héritier utilizou-se dos contos de fadas para unir as diferentes classes
sociais, babás e literatas, mostrando a realidade deprimente em que a mulher vivia,
independendo da classe a que pertencia. Estilo também adotado por d’Aulnoy,
porém essa escritora distanciava-se de Marie–Jeanne L’Héritier quanto ao uso do
linguajar, e também quanto à expressão de sentimentos e de valores adotados.
L’Héritier, pertencente à tradição francesa, através da ngua culta, redigia
contos elegantes, os quais eram considerados excessivamente rebuscados para o
entendimento popular. Pelo contrário, d’Aulnoy o possuía “papas na língua” como
foi visto, uma vez que essa escritora retratava o vulgar e o mundano, bem como
amores bestiais. Enquanto L’Héritier recolhia os contos populares e os lapidava,
acrescentando a eles valores e sentimentos superiores, d’Aulnoy os escancarava,
sem censura ou pudor.
Marina Warner cita o posicionamento de L’Héritier quanto às histórias vindas
diretamente da boca do povo:
Essas histórias se encheram de impurezas ao passarem pela boca da gente
comum, assim como a água pura se polui com lixo ao passar por um bueiro
sujo. Quando as pessoas são simples, são também grosseiras: o sabem
o que é apropriado. Se um evento licencioso e escandaloso é mencionado
ligeiramente, a história que contarão depois se encherá com todos os
detalhes. Esses atos criminosos são relatados com um bom propósito,
mostrar que eram sempre punidos, mas o povo, de quem os recebemos,
relatam-nos sem cobri-los com nenhum véu, e de fato os vinculam tão
firmemente às questões que revelam que fica difícil contar as mesmas
aventuras e mantê-los ocultos do público. (WARNER, 1999, p. 206)
Convém salientar mais uma diferença entre d’Aulnoy e L’Héritier, ou seja, a
primeira compunha seu enredo com metamorfoses de animais; a segunda não
inseria seres animalescos em suas narrativas, mas sim, propunha às suas heroínas
desafios até então considerados masculinos. Isso acontece em Marmoisan ou
L’innocent tromperie, uma vez que a heroína disfarça-se de homem e vai para a
guerra. A garota se faz passar pelo irmão gêmeo que havia morrido de forma
inusitada.
79
Marmoisan, assim a heroína se chamava, destacou-se pela bravura entre os
demais guerreiros e, como a escritora abominava a linguagem inculta e mundana,
transferiu, então, essa aversão a sua personagem. A heroína jamais participava de
um círculo de conversa masculina, onde o assunto principal era a conduta feminina.
Afinal, a heroína cai nas graças de um príncipe que, após descobrir sua verdadeira
identidade, casa-se com ela.
Faz-se interessante ressaltar que, já nessa época, século XVII, L’Héritier
assim como d’Aulnoy, mostravam uma nova identidade da personagem feminina:
mulheres inteligentes que podiam muito bem direcionar suas vidas, bem como
assumir funções masculinas e desempenhá-las da melhor forma possível. Tanto
que, em Marmoisan, o príncipe valoriza a mulher, primeiramente, pela sua bravura
como soldado, e, após, pela sua beleza.
Além de Marmoisan, L’Héritier escreveu La robe de sincerité, uma vez que a
heroína é uma tecelã chamada de Hermínia que auxilia o pai, o falso mago
Misandro, em uma cômica e ardilosa mentira. Misandro afirma ao rei de Creta que
um manto capaz de denunciar se as mulheres são fiéis ou infiéis, quando usado
pelas mesmas. Assim, sob a ordem do rei, a filha do mago, Hermínia, e sua mãe,
passaram a tecê-lo. Logo após o manto estar pronto, os homens exigiram que as
mulheres o usassem, com isso a confusão começou, pois o referido vestuário
deveria mostrar em seu bordado a situação da mulher, porém nada se via, o que
deixava o sexo masculino enlouquecido. No entanto, quando os homens saem do
estado de insanidade, vêem que foram enganados. Hermínia, procurando salvar a
vida do pai, assume a culpa pela invenção do fato e, por isso, é perdoada.
Nesse conto, percebe-se nitidamente a amplitude da ingenuidade masculina,
que se faz grotesca ao acreditar que um manto pode transparecer o interior humano.
Além disso, torna-se evidente a sabedoria, a humildade feminina e a generosidade
em que a filha assume a culpa para salvar a vida de seu pai.
De certo modo esse conto apresenta versão semelhante, criada em 1837, por
Hans Andersen, A roupa nova do rei. Ambos, L’Héritier e Andersen, criam artefatos
80
que, supostamente, quando usados, podem refletir o interior, as virtudes ou os vícios
humanos.
Referindo-se ao conto La robe de sincerité, de L’Héritier, Warner salienta que:
Os adultérios e outros crimes que os homens fantasiavam, quando não
viam nada no manto, representam as calúnias atiradas sobre mulheres
inocentes; a colaboração de Hermínia com o pai revela a teia de fidelidades
conflitantes em que as mulheres são presas; os contos e imagens que
teceu, como os escritos da própria L’Héritier, representam seu protesto a
história diferente, a versão feminina [...] (WARNER, 1999, p. 211)
Soma-se ao círculo de escritoras de contos de fadas, bem como, ao das
preciosas, Julie-Henriette de Castelnau de Murat. A escritora, nascida em 1670, na
Bretanha, deixou-a para casar-se com o conde de Murat e residir em Paris.
A poetisa esteve exilada, após redigir textos acusatórios sobre o rei Luis XIV e
a suposta amante do mesmo. Durante seu período de reclusão, inúmeros boatos
sobre sua postura “insana” disseminaram-se. Nesse tempo, Murat escreveu contos e
novelas, o que fez transparecer o seu amargor em relação aos convencionalismos
sociais e, até mesmo, em relação ao amor. Julie Murat foi libertada após a morte
do rei, tendo assim permissão para retornar a Paris.
Em Le palais de la vengeance, Murat aborda o desgaste de sentimentos com
o passar do tempo, como o amor. No conto, narra-se a história de uma feiticeira
que, no apogeu de sua crueldade, enclausura dois jovens amantes em um palácio
de cristal. Durante o confinamento, ao invés de o casal fortificar os seus sentimentos
virtuosos, acontece o contrário, eles descobrem que não mais se amam.
Murat, em Le palais de la vengeance, coloca em xeque a conhecida frase final
dos contos de fadas “e eles viveram felizes para sempre”. A escritora mostra que
nem todo relacionamento afetivo é eterno e que o amor, se não for verdadeiro, pode
se desgastar com o tempo. Dessa forma, a escritora, sutilmente, sugere que os
casamentos podem ser desfeitos, caso não mais se tenha sentimentos de afeição
entre ambos.
81
Les lutins du château de Kernosyra consiste de três contos interpolados.
Novamente, narra-se a história de um confinamento, mas, desta vez, é o de duas
irmãs órfãs que estão sob a tutela de uma tia e interesseira. Com a chegada de
dois jovens galantes, essa rotina entediante modifica-se: bailes e inúmeros
divertimentos acontecem, acompanhados pela escritura de histórias de acordo com
os festejos.
No entanto, esse período feliz possui tempo delimitado, condicionado pela
vinda de um pretendente para uma das meninas, escolhido pela tia, sendo que esse
é tão tolo e inculto a ponto de não saber diferenciar o que é um animal de caça de
uma vaca leiteira. Dessa forma, Murat denuncia a clausura e os relacionamentos
detestáveis que as mulheres de sua época eram condicionadas a viver e, mais uma
vez, retoma a questão da ignorância masculina.
Em Peau d’ours, o conto desenrola-se a partir do momento em que um ogro,
o Rinoceronte, deseja casar-se com a princesa Hawthorn. A cerimônia acontece,
porém, em uma vacilada do ogro que sai da caverna para caçar ursos para a ceia, a
serva da princesa costura a mesma em uma pele de urso. Hawthorn, ao cobrir-se
com essa pele, percebe que é encantada, pois ela tornou-se uma linda ursa.
Quando, ao fugir, é capturada por um príncipe, seu mistério é desvendado.
Murat, em Peau d’ours, denuncia, além da clausura feminina, outra
contravenção a que ela é submetida, ou seja, a mulher precisava disfarçar ou anular
os seus anseios mais íntimos para poder sobreviver em uma esfera em que a
sociedade e as leis eram regidas somente por homens e somente a eles era
permitida a totalidade de direitos. Além disso, a escritora ressalta a falta na
esperteza do homem-ogro, uma vez que em um “cochilo” deste a mulher o supera
em sua sabedoria e agilidade.
Aos nomes de L’Héritier, d’Aulnoy e Murat acresce-se Jeanne-Marie Leprince
de Beaumont. A escritora francesa Beaumont, nascida em 1711, tornou-se notável
durante o século XVIII ao sugerir que as suas meninas, as quais cuidava como
governanta, eram inteligentes e capazes de refletir e opinar sobre a qualidade das
82
obras que lhes eram oferecidas para leitura. Warner cita a afirmativa de Beaumont
quanto a isso:
elas dirão com muita gravidade sobre um livro que estão lendo: “O autor se
desviou do assunto; diz coisas muito fracas. Seu princípio é falso; suas
inferências também devem ser.” E mais ainda: minhas meninas provarão o
que dizem. Não julgamos de forma correta a capacidade das crianças; nada
está fora do alcance delas [...] Hoje em dia as damas lêem todo tipo de
livros: de história, política, filosofia, e até mesmo os que tratam de religião
[...] Portanto devem ser [...] capazes de discernir entre verdade e falsidade.
(WARNER,1999, p. 328)
Jeanne-Marie Leprince de Beaumont foi uma das tantas mulheres de sua
época que manteve por dois anos um casamento arranjado por sua família.
Posteriormente, contraiu uma segunda união e teve vários filhos.
Figura 21: Jeanne-Marie Leprince de Beaumont
Beaumont escreveu mais de setenta obras, dentre essas Le magasin des
enfants, em 1757. Sua obra se canonizou com o conto A Bela e a Fera. rias de
suas obras têm caráter didático, e a autora escreve de acordo com a ideologia cristã,
ou seja, atribuindo castigos e recompensas às ações do homem, bem como
abordando os valores humanos, porém o que a tornou realmente inovadora foi a
utilização dos contos de fada como medida educadora para crianças e jovens. Entre
seus contos está La Belle et la Bete (A Bela e a Fera). Neste, a heroína Bela
submete-se a casar com um homem-animal para salvar a vida de seu pai. O que
não poderia se esperar é que o monstro se revelasse um verdadeiro cortesão, assim
83
conquistando Bela, que consegue salvá-lo da morte, afirmando amá-lo e que com
ele deseja ficar eternamente.
Figura 22: A Fera e o pai de Bela, de Walter
Crane, 1875
A moral dessa narrativa assemelha-se à do livro O Pequeno Príncipe, de
Saint-Exupéry, ou seja, o que é essencial é invisível aos olhos. A beleza da Fera
escondia-se em seu interior, o que poderia torná-lo realmente belo eram as suas
virtudes. E, quanto à heroína, ela deveria enxergar o invisível e sacrificar-se
sempre, em prol da felicidade de seus familiares.
O conto A Bela e a Fera de Beaumont foi baseado no existente, escrito por
Gabrielle-Suzanne Barbot Gallon, madame de Villeneuve (1695-1755), inserido na
novela denominada Les contes Marins ou La jeune américaine, em 1740.
Segundo Warner, referindo-se a Beaumont, é relevante a habilidade da
escritora em atribuir aos contos de fadas a importância devida, tornando-o recurso
necessário à educação, bem como transformar o rude, o homem selvagem em
cortesão e, além disso, mostrar que o amor é possível, até mesmo em uniões nada
convencionais, como entre uma mulher e um animal, pois esse sentimento é a
essência da vida e está além de diferenças, preceitos e preconceitos.
84
Mas foi essa governanta sensível e bondosa, madame Leprince de
Beaumont, em meados do século XVIII, a primeira a usar os contos de
fadas para educar os jovens desse modo. Sua visão do amor e simpatia
femininos redimindo o selvagem que há no homem tornou “A Bela e a Fera”
um dos contos de fadas mais estimados do mundo, que nunca deixou de
inspirar em meninas e meninos sonhos de experimentar o poder do
amor. (WARNER, 1999, p. 333)
Além de Beaumont enfatizar a importância da leitura para a educação, em
1687, é lançado um livro específico para as meninas, ou seja, voltado à educação
feminina, o Tratado da Educação das Meninas, escrito por Fénelon. Nessa obra o
ensino doutrinário é característico, visto que as meninas são preparadas para serem
esposas e mães.
A seguir, Mlle. L’Héritier de Vilandom, defensora das fábulas contadas pelas
velhas senhoras, adepta do Preciocismo e seguidora de Mme d’Aulnoy, publica
Obras Misturadas em 1696.
Em 1774, Mme. Le Prince de Beaumont, em tradução de Joaquim Inácio de
Freitas, publica a obra Thesouro de Meninas. Nesta, o próprio título da obra a
identifica como sendo instruções educacionais específicas para o sexo feminino.
foi visto que o passo inicial para o ingresso e a difusão intelectual feminina
deu-se com Mme. de Rambouillet, em 1608, na França, uma vez que a vida
mundana dos salões tornou-se mais refinada, através de apresentações literárias
que aconteciam. Entretanto, muito antes disso, tem-se a presença da participação
feminina e também “feminista”, segundo Moacyr Scliar. Scliar cita uma data, bem
remota. Segundo ele, em A primeira transgressora
36
, a primeira transgressora
feminina e “feminista” foi Lilith, uma personagem bíblica que, adepta de hábitos e
valores nada convencionais, escandalizou a sociedade da época. Essa mesma
personagem figura no cenário folclórico da Suméria e da Babilônia, mas
representando o caráter demoníaco das mulheres.
Por sua vez, de acordo com Scliar, as feministas a transformaram em um
modelo representativo de suas aspirações: “Existe nos Estados Unidos uma revista
chamada Lilith (independente, judaica e francamente feminista). Um livro sobre
36
Crônica publicada no jornal Donna ZH, em 17 de agosto de 2008.
85
feminismo chama-se A Ascensão de Lilith. Um festival feminista tem como
denominação Lilith Fair, a Feira de Lilith” (2008, p. 17).
As idéias de Scliar confirmam o que J.D. Eisenstein afirmara em O Livro de
Lilith (1991), citado por Eduardo de Assis Duarte (1997). Desse modo, Eisenstein
narra em sua obra a história da criação da primeira fêmea, Lilith, obra do Divino,
concebida para acompanhar Adão na Terra. No entanto, a personagem não ficou
subjugada às ordens de Adão e preferiu percorrer o mundo, criando asas que a
levariam para bem longe de seu companheiro.
Convém salientar que a personagem Lilith faz lembrar As meninas más, de
Margaret Atwood e Lucía Etxebarría, que nada mais são do que mulheres que se
fizeram fortes, devido aos muitos tormentos familiares e sentimentais que sofreram
durante suas histórias de vida. Na verdade, através de seus anseios íntimos, seus
conflitos, culpas, sonhos, as personagens refletem a vida difícil da mulher que
decide se opor a uma sociedade machista. Conseqüentemente, elas se tornaram
exigentes e determinadas, não aceitando a vida medíocre que, provavelmente, elas
teriam se vivessem o papel de uma bela eternamente adormecida imposto pela
sociedade. E, de acordo com Lélia Almeida:
O romance da espanhola Lucía Etxebarría, Amor, curiosidad, prozac y
dudas, de 1996, o conta a história de uma vilã, como o de Atwood. Mas
talvez conte, da mesma maneira, das vontades das mulheres de serem
diferentes das princesas e boas meninas dos contos de fadas e das novelas
sentimentais [...] (ALMEIDA, 2003, p.31)
Desse modo, nos contos escritos entre os séculos XVII e XVIII é perceptível o
anseio primeiro da mulher escritora, que consiste em não mais reproduzir a mesma
imagem “insossa” feminina de tempos distantes. A mulher escritora, recém chegada
neste contexto literário masculino, está preocupada em descobrir, em determinar os
reais valores e compor a identidade feminina em suas obras, distante do tão
conhecido, escrito por mãos e conceitos masculinos.
86
3.2 Percalços que retardaram a efetiva inserção feminina no mundo intelectual
[..] se conhecemos as condições de vida da grande maioria das mulheres
nos séculos passados, os obstáculos que enfrentaram - das teses médicas
“provando” sua incapacidade intelectual, ao esforço dos filósofos e
governantes incentivando o recolhimento - não podemos nos admirar do
reduzido número de escritoras hoje conhecido.
LIMA DUARTE, 1997, p. 56-7.
Além das escritoras já citadas no subcapítulo anterior, algumas outras se
destacaram no final do culo XIX e início do XX: a russa Sophie Rostopchine,
Condessa de Ségur, com os Novos contos de fada (1856); a americana Louise Mary
Alcott
37
, com Little women (1868), e a norte-americana Eleanor Hodgman Porter,
com Pollyana (1915).
no Brasil, em meados do século XIX, quando o povo sentiu repulsa por
modelos estrangeiros, uma literatura brasileira surgiu e, com isso, inúmeras obras
infantis, tais como: Contos infantis (1886), de Júlia Lopes de Almeida; Livro das
crianças (1897), de Zalina Rolim, e O Livro da infância (1899), de Francisca Júlia da
Silva Munster.
A romancista Júlia Lopes de Almeida foi membro atuante do movimento
nacionalista, buscando uma literatura essencialmente brasileira e, com esse espírito,
lançou o livro Contos infantis, composto por sessenta narrativas em verso ou prosa.
Entretanto, Zalina Rolim, apesar de escrever para crianças, foi quem se
destacou efetivamente no incipiente movimento feminista iniciado em São Paulo.
Novaes Coelho, caracterizando a escritora Zalina Rolim, afirma:
Figura que teve significativa participação no movimento feminista que mal
se iniciava, em São Paulo, e também nos projetos de inovação do ensino
básico, a paulista Zalina Rolim (1869/1961) escreveu principalmente poesia.
O volume Livro das Crianças, coletânea de contos e estorietas em versos,
foi publicado pelo Governo de o Paulo, tornando-se com essa divulgação
um dos grandes sucessos na literatura escolar da época. (COELHO, 1991,
p. 216)
37
Louise Mary Alcott e Eleanor Hodgman Porter não redigiram contos de fadas, mas fizeram diferença enquanto
escritoras de Literatura Juvenil, por isso foram citadas.
87
Já Francisca Júlia da Silva Munster sobressaiu-se pela luta em favor da
disseminação da cultura e da literatura para as crianças, bem como pela renovação
do ensino propiciado a elas.
Além das escritoras já mencionadas, as quais publicaram suas obras em
meados do século XIX, destinadas ao público infantil, ainda soma-se a mineira
Alexina de Magalhães Pinto, com As nossas histórias, em 1907. Ela irmanou-se a
Francisca Júlia Munster, quanto à busca pela renovação do ensino primário e,
acresceu, ainda, a renovação das leituras infantis.
A seguir, Presciliana Duarte de Almeida, com Páginas infantis, publicada em
1908, associa suas idéias às de Zalina Rolim, uma vez que divulgou em suas obras
os novos anseios feministas
38
e educacionais. Consoante a isso, Novaes Coelho cita
que Presciliana Duarte foi uma figura de destaque em âmbito literário e educacional,
enquanto mulher e feminista:
Figura feminina de destaque no movimento cultural, literário e educacional
paulista, no entre-séculos, a mineira Presciliana Duarte de Almeida
(1867/1944) teve ação importante na divulgação das novas idéias feministas
e educacionais. Incentiva a criação da revista estudantil A Aurora (no
Ginásio lvio de Almeida SP), escreve peças de teatro que leva à
encenação pelos escolares e, em 1908, publica Páginas Infantis, coletânea
de estorietas referendadas por uma carta-prefácio de João Kopke. Em
1914, escreve o livro de leitura O Livro das Aves (crestomatia em prosa e
verso), adotado em várias escolas paulistas. (NOVAES, 1991, p. 219)
Percebe-se que, timidamente, as mulheres se inserem no mundo intelectual,
porém o número de homens escritores ainda é maior. No Brasil, Júlia Lopes de
Almeida, Zalina Rolim, Francisca Júlia da Silva Munster, Alexina de Magalhães Pinto
e Presciliana Duarte de Almeida eram, realmente, consideradas as pioneiras que,
38
No século XX, cabe ressaltar também a presença de Simone de Beauvoir que não escrevia contos de fadas e,
pelo contrário, a eles mostrava-se avessa. Beauvoir escreveu sobre as mulheres, tornando-se um ícone feminista,
o modelo da mulher liberal moderna, seguida fielmente por mulheres escritoras que se espelharam nela para
embrenharam-se no mundo intelectual e literário sem preconceitos. Desde cedo, a referida escritora participou de
grupos de filósofos que estudavam o Existencialismo, uma vez que as causas humanas, existenciais e sociais
referentes à mulher interessavam-na muito.
Juliana Albuquerque, estudiosa da vida e obra de Beauvoir, salienta que a própria autora afirma:
“O certo é que até aqui as possibilidades da mulher foram sufocadas e perdidas para a humanidade: é tempo,
em seu interesse e no de todos, de deixá-la enfim correr todos os riscos, tentar a sorte.” (BEAUVOIR apud
ALBUQUERQUE, 2009 p. 29)
88
provavelmente, incentivaram muitas crianças, jovens e leitoras de várias idades a se
tornarem escritoras no século seguinte.
Contudo, não é de se surpreender com o número inexpressivo de escritoras,
devido à pressão em relação à mulher, em observância ao cultivo dos padrões
tradicionais da época e isso se verificava de tal forma que, até mesmo o que ela
devia ler era “sugerido”. Mas essa realidade não era vivida no Brasil, Laura
Cavalcanti Padilha (1997) mostra um dado importante, porém quanto a escritoras de
poesias, na década de 50, em Angola, Cabo Verde e Guiné Bissau.
[...] a poesia angolana feminina começa a surgir na década de 50, fato este
confirmado também com respeito a Cabo Verde onde, em 36 (trinta e seis)
poetas, uma mulher. No caso de Angola, 6 (seis), para 53
(cinqüenta e três), enquanto em São Tomé e Príncipe, para 7 (sete),
duas e nenhuma em Guiné Bissau, onde, aliás, só se registra o nome de um
poeta [...] (PADILHA, 1997, p. 63)
No Brasil, mudanças lentas começaram a surgir a partir da semana da Arte
Moderna, em 1922, quanto às novas formas de linguagem e expressão.
Conseqüentemente, obras novas surgiram no mercado, mas a acessibilidade das
mesmas às mulheres continuava a ser demasiadamente lenta e, além disso, o tipo
de leitura era lhe sugerido, uma vez que alguns livros não poderiam faltar em sua
biblioteca, como a Bíblia, de cunho religioso e de higiene pessoal (relacionada à
criança e à purificação espiritual da mulher). Esses livros eram os indicados para a
leitura feminina, entre outros.
Conforme o exposto anteriormente, faz-se interessante ressaltar uma
curiosidade que talvez invada a mente de todo pesquisador ou leitor, ou seja, por
que as escritoras francesas são sempre postas em destaque quando se buscam as
mulheres escritoras de contos de fadas? Várias respostas para este questionamento
podem surgir, como, por exemplo: porque a França foi o berço de inúmeras
descobertas e surgiu o Iluminismo o que pode ter propiciado o caminho para a
mulher se inserir no campo literário. De outro modo, Sara Castro-Klarén, citada por
Márcia Hoppe Navarro, menciona uma alternativa mais condizente. Segundo Márcia
Navarro, a escritora Sara Castro-Klarén sugere que:
89
[...] a escritura de mulheres latino-americanas está historicamente marcada
pelos sinais da marginalidade social, das hierarquias raciais e, como tal,
“feminismo” no âmbito de tais segmentações sociais, historicamente
determinadas. Essa autora compara a discriminação que a mulher sofre
com outros tipos de opressão, apontando que a exclusão da mulher do
discurso patriarcal não difere da exclusão resultante do racismo: “o eterno
feminino” se assemelha ao eterno “bom selvagem” [...] (NAVARRO, 1997, p.
44-45, grifos da autora)
Como se não bastassem as questões preconceituosas a que a mulher era
submetida, um outro fator também vem justificar o número reduzido de escritoras em
relação aos homens, ou seja, algumas se esconderam à sombra de pseudônimos ou
desistiram de escrever visando não serem repreendidas e punidas. Além disso, em
épocas anteriores, as mulheres eram consideradas seres o inteligentes e, para
tanto, as histórias que elas escreviam eram queimadas ou roubadas pelos maridos
ou familiares (até mesmo para publicá-las como se fossem escritas por eles
mesmos). Era comum a existência de escritoras anônimas ou a utilização de
pseudônimos, freqüentemente masculinos, como exemplo, as irmãs Brontë que,
inicialmente, ficaram conhecidas como os irmãos Bell, para que elas pudessem se
proteger da opinião pública ou porque foram desaconselhadas a desenvolver tal
atividade, considerada estritamente masculina.
Virgínia Woolf, citada por Constância Lima Duarte (1997, p. 58), sugere que
muitos escritores anônimos que publicaram seus textos em diversos suportes em
tempos passados, na verdade, seriam elas, as anônimas.
Constância Lima Duarte menciona inúmeras histórias que comprovam as
dificuldades enfrentadas pelas mulheres ao tentarem tornar-se escritoras. Um
exemplo será citado somente como detalhe ilustrativo à questão, uma vez que a
escritora mencionada não escrevera contos de fadas, mas poesia:
Para falar de literatura de autoria feminina e de cânone, lembro algumas
histórias de mulheres, à guisa de ilustração. Começo com a última que tive
notícia e que foi publicada recentemente no jornal Folha de São Paulo. Era
uma pequena nota e trazia a informação de um artigo recém publicado em
Londres afirmava que vários poemas incluídos em The Waste Land, de T.
S. Eliot, não seriam de sua autoria e sim de sua primeira esposa, Vivien
Haigh Eliot, também escritora. O autor do artigo afirma que Vivien havia
publicado muitos dos poemas sob o pseudônimo de Fanny Marlowe, na
revista Criterion, e que Eliot, “diante da instabilidade emocional da esposa”,
a havia internado em um manicômio britânico, onde ela ficou até falecer [...]
(LIMA DUARTE, 1997, p. 53)
90
Além do caso citado, um característico no Brasil, envolvendo a escritora
Auta de Souza, ou seja, em sua família, composta por homens escritores, não se
permitia o surgimento de uma escritora. Provavelmente, não o preconceito
tumultuava a mente masculina, como também o medo da concorrência com o
trabalho feminino. Sendo assim, os escritos dela foram reprovados, não agradando
em nada seus familiares que, curiosamente, também eram poetas e intelectuais.
Inserido no rol dos homens escritores que, de certa forma, aceitavam o
preconceito em relação à exclusão do pensamento feminino literário brasileiro e,
conseqüentemente, a exclusão da mulher na literatura, estava o escritor Graciliano
Ramos, citado por Constância Lima Duarte. Na verdade, quando o referido escritor
se deparou com a obra O Quinze, de Rachel de Queiroz, duvidou ter sido escrito por
uma mulher, pois a cultura patriarcal estava tão arraigada em seu ser,
principalmente em seus conceitos e preceitos, que ele não acreditou que o estilo
adotado pela escritora fosse um processo natural feminino.
O Quinze caiu de repente ali por meados de 30 e fez nos espíritos estragos
maiores que o romance de José Américo, por ser livro de mulher e, o que
na verdade causava assombro, de mulher nova. Seria realmente de
mulher? Não acreditei. Lido o volume e visto o retrato no jornal, balancei a
cabeça: _ Não ninguém com este nome. É pilhéria. Uma garota assim
fazer romance! Deve ser pseudônimo de sujeito barbado.
Depois conheci João Miguel e conheci Rachel de Queiroz, mas ficou-me
durante muito tempo a idéia idiota de que ela era homem, tão forte estava
em mim o preconceito que excluía as mulheres da literatura. Se a moça
fizesse discursos e sonetos, muito bem. Mas escrever João Miguel e O
Quinze não me parecia natural. (RAMOS apud LIMA DUARTE, 1997, p. 59,
grifos da autora)
A história confirma que, também em âmbito mundial, havia poucas mulheres
que puderam tornar-se escritoras, devido ao preconceito que envolvia a figura
feminina e, nesse sentido, firmar-se como escritora não era uma tarefa nada fácil.
Evidentemente que, ao conhecer as condições de vida, as dificuldades por elas
enfrentadas, os atestados médicos comprovando a insanidade e a incapacidade
intelectual feminina, é de se compreender a sua escassa participação antes da
década de 40.
No entanto, percebe-se que devido ao trabalho realizado por essas mulheres
escritoras é que novos horizontes se abriram para elas e para tantas outras que
91
estavam por vir. Tanto que homens escritores engajaram-se em sua causa
emancipatória, presenteando o meio literário com personagens femininos inovadores
que inspiraram o mundo intelectual.
3.3 A evolução da figura feminina também ressaltada pela ótica masculina:
Lewis Carrol, Lyman Frank Baum e Monteiro Lobato
[...] Raro é o conto que menciona armas de fogo. Falam
sempre de carruagem, espada, transportes a cavalo, reclusão
feminina, autoridade paterna, absolutismo real.
CASCUDO, 2004, p.13.
No século XIX, e até meados do século XX, o mundo literário inglês, norte-
americano e brasileiro sofreu radicais transformações, principalmente com o
surgimento destas obras marcantes, entre outras: As aventuras de Alice no país das
maravilhas, O mágico de Oz e Narizinho arrebitado.
Poderia se pensar até então que as mulheres contribuíram para a sua
própria causa, mas isso não é verdadeiro, uma vez que o apoio à evolução feminina
se deu também por homens escritores, como Charles Lutwidge Dodgson, Lyman
Frank Baum e Monteiro Lobato, que abraçaram essa causa, em virtude da real
importância conferida às mulheres em suas obras.
Em relação à personagem Alice, criada por Carroll, parece que essa veio
compor os traços, as características psicológicas de outras, elaboradas por Baum e
Lobato. No entanto, apesar de existir uma distância temporal considerável em
relação às obras de Carrol e Baum e às obras de Lobato, o que corresponde,
aproximadamente, a cinqüenta anos, as suas personagens Alice, Dorothy e Lúcia
assemelham-se. As três são personagens protagonistas que não temem o
desconhecido e, nem mesmo, os adultos. Alice, Dorothy e Lúcia dialogam com estes
numa interlocução de igual para igual e os auxiliam a encontrar soluções para
problemas cotidianos. Além disso, são movidas pela curiosidade e, para satisfazê-la,
embrenham-se em aventuras inusitadas.
92
Charles Lutwidge Dodgson (Lewis Carrol) nasceu em Daresbury, Cheshire, na
Inglaterra, em 1832 e faleceu em Guildford, em 1898. Ele foi um matemático
britânico e criador de obras que são consideradas clássicas da literatura universal,
tais como, As aventuras de Alice no país das maravilhas (1865) e Alice através dos
espelhos e o que Alice encontrou lá (1872).
Em um comentário de apresentação da obra As aventuras de Alice no país
das maravilhas para os pequenos leitores, Elias José afirma que a personagem
Alice pode ser comparada a uma atriz circense que realmente sabe como entreter
seu público, conduzindo-o ao mundo encantado:
[...] Alice é a personagem mais indicada para levar alguém ao país do
sonho, do faz-de-conta, do fantástico, do maravilhoso, do mágico mágico
mesmo, com doiduras [sic] como aquelas que você gosta de ver no circo.
(JOSÉ, 2002, p. 7)
Segundo Elias José, Lewis Carrol criou sua obra observando uma menina de
dez anos de idade, muito vivaz e criativa, filha de amigos seus. Inicialmente, Carrol
jogava com as palavras e seus significados, visando entreter a garota.
Posteriormente, o jogo de palavras e seus estranhos significados vieram a compor
sua obra.
Ao escrever sua história, Lewis Carrol partiu do mundo real. Alice, uma
menina de 10 anos que ele conheceu, chamou sua atenção pela
inquietação, pela alegria e pela facilidade de inventar moda. O autor, então,
começou a brincar com as palavras para diverti-la. Dessa brincadeira ele
logo passou à construção do livro. Criou fantasiando, com a imaginação
toda solta e livre. Ele queria fazer arte com as palavras [...] (JOSÉ, 2002,
p.7)
Dessa forma, a menina até então observada transformou-se na
personagem Alice
39
, que era extremamente curiosa, capaz de “enfiar o nariz em
qualquer lugar, tanto que acabou entrando na toca de um coelho, a fim de descobrir
o que havia em seu interior.
39
Davi Arrigucci (1999) questiona e compara a atitude de Alice, quando essa cede à curiosidade “[...] E
ao ceder à curiosidade, seguindo o passo de Alice entre nós, como não ver espelhada na resenha bisbilhoteira a
impressionante capacidade da menina para meter o nariz em toda toca disponível?” (p.141)
93
Alice cede ao seu instinto de curiosidade, seguindo um coelho falante e,
inusitadamente, chega no País das Maravilhas. A menina, bastante inventiva, é
capaz de imaginar de um modo bastante singular o que estava por vir:
Quantos quilômetros será que eu já caí até agora? - disse em voz alta. -
Devo estar chegando perto do centro da Terra. Gostaria de saber se vou
passar direto através da Terra! Como seria engraçado se eu fosse sair bem
no meio daquelas pessoas que andam de cabeça para baixo! Teria de
perguntar a eles: Por favor, aqui é a Nova Zelândia ou a Austrália?”
(CARROL, 2002, p.12)
O autor instiga o imaginário infantil, uma vez que a menina Alice aumenta ou
diminui de tamanho comendo pedaços de cogumelo ou ingerindo quidos. Essa
mudança de estatura permite à menina não ultrapassar portas, como também
vencer obstáculos.
A menina supre o somente as suas necessidades básicas em “BEBA-ME”
(p.15) e “COMA-ME” (p.16) (comendo e bebendo), mas também as pertinentes a
uma criança perfeitamente saudável que vive em um mundo de faz-de-conta.
Além disso, neste mundo criado por Carrol, à menina Alice é permitido
pensar, tomar atitudes, agir naturalmente. Comportamento esse destoante dos
moldes da época, mas que prenuncia novos tempos para a personagem feminina,
para a mulher escritora, para a estrutura patriarcal vigente.
De acordo com isso, Alice, sendo uma menina altiva e espontânea, fala seus
pensamentos, sem antes analisá-los. A situação em que a garota conversa com um
rato, querendo que ele conheça sua gata Dinah, é um exemplo disso:
- Mesmo assim, eu gostaria de poder mostrar a você nossa gata, Dinah. Ela
é tão queridinha. E fica ronronando tão bonitinho perto da lareira, e é tão
caçadora de ratos... Oh, me perdoe! - O Rato ficara com o pêlo todo
arrepiado. - Nós não vamos mais falar sobre ela. (CARROL, 2002, p. 22)
É interessante ressaltar a localização do País das Maravilhas nessa obra. Ele
fica muito além do fundo da toca do coelho e abriga animais e objetos que possuem
características humanas, porém fora de seus juízos normais. Os animais conversam,
o coelho é atrapalhado, o bicho-da-seda é fumante, enfim, eles contam histórias e
94
divertem os leitores, enquanto as pessoas adultas falam palavras desconexas e
apresentam atitudes insanas. a menina Alice mostra mais bom senso em relação
aos demais, apesar de ser apenas uma menina de dez anos de idade.
Posteriormente, surge O mágico de Oz, de autoria de Lyman Frank Baum. O
escritor era norte-americano, nascido em Chittenango, Nova York, em 1856.
Pertencente a uma rica família alemã, além de escritor, Baum também era
teatrólogo e teosofista.
Frank Baum começou a escrever muito cedo, uma vez que era amante dos
livros. Tendo escrito sessenta obras, O mágico de Oz
40
é considerada como uma
obra singular, que se tornou um clássico mundial. Tanto que o autor escreveu
sucessivas continuações desta, alcançando também o sucesso. Contudo, o que
realmente o imortalizou foi a versão O mágico de Oz para o cinema.
O interessante em O mágico de Oz é que o próprio escritor esclarece o
objetivo do livro e que pretensão ele teve ao escrevê-lo: O Mágico de Oz foi escrito
para agradar a criança de hoje. Ele pretende ser um moderno conto de fadas, que
narra apenas coisas maravilhosas e alegres, excluindo a angústia e o pesadelo”
41
.
Provavelmente, quando o escritor menciona ter escrito um moderno conto de
fadas, ele esteja se referindo à nova postura da personagem feminina nesse
contexto. Dorothy, a personagem-protagonista, é uma menina órfã, criada pelos tios
Henry e Ema, no interior do Kansas.
Apesar de seus pais não estarem vivos e presentes, ela não é uma menina
triste ou chorosa. Pelo contrário, é uma garota determinada, falante, inteligente e
feliz. Características até então distantes das princesas dos contos. Ao mesmo
tempo, Dorothy é humilde e bondosa, traços esses bastante conhecidos e
cultuados durante séculos nas histórias de fadas. Dessa forma, Baum utilizou-se de
características que estavam arraigadas, pertencentes à mulher-personagem e, além
40
Escrita em 1900, denominando-se, inicialmente, O maravilhoso feiticeiro de Oz.
41
Depoimento extraído da contra-capa do livro de Frank Baum (1969).
95
disso, ousou, mostrando outra face dessa mesma personagem que ainda estava
encoberta.
Quanto ao enredo da história, sabe-se que a menina é levada por um ciclone
a uma terra desconhecida, onde, assim como em As aventuras de Alice no país das
maravilhas, os animais falam e os seres inanimados possuem vida e voz.
O interessante é que a menina, sendo levada pelos fortes ventos, mostrou-se
corajosa, não temendo o desconhecido. Pelo contrário, Dorothy, que é inventiva por
excelência, imaginou-se em um barco sacolejando e, quando os ventos tornaram-se
mais amenos, em um berço sendo embalada.
Além dessa situação há inúmeras outras que demonstram a coragem de
Dorothy, porém uma merece destaque, ou seja, quando ela encontra,
inusitadamente, pelo caminho, o leão Covarde.
O pequeno Totó, encontrando afinal um inimigo para enfrentar, correu
latindo na direção da fera, que abriu a bocarra para morder o cachorrinho;
Dorothy, sem ter consciência do perigo a que se expunha, avançou para o
leão e deu-lhe um tapa sonoro no focinho, gritando:
- Atrevido! Atrevido! Um leãozão do seu tamanho mordendo um cachorrinho
pequenininho! (BAUM, 1969, p.42)
A protagonista, destemidamente, avança em território desconhecido, tal qual
príncipes do passado, que não para conquistar princesas, mas virtudes, pelas
quais seus estranhos amigos tanto ansiavam. Evidentemente que ela também queria
encontrar o caminho de casa, pois demonstrava estar bastante determinada em
seus ideais. Contudo, isso não a impedia de auxiliar os que dela necessitassem. O
curioso é que representantes do sexo masculino é que precisavam descobrir o que
neles já existia. O espantalho, o homem de lata, e o leão recuperam cérebro,
coração e coragem, aventurando-se com Dorothy e, como ela, encarando e
resolvendo com sabedoria as dificuldades que encontravam pelo caminho. Outrora,
personagens muito conhecidos, como a Bela adormecida, jamais sairiam do seu
ambiente familiar e, acompanhados de homens estranhos, jamais iriam a lugares
desconhecidos.
96
Por sua vez, a menina Lúcia, ou Narizinho arrebitado, como assim foi
apelidada, também adormeceu e sonhou com um país encantado e,
coincidentemente, foi levada desse país, ou seja, o Reino das Águas Claras, até o
Sítio do Pica-pau Amarelo, embalada por fortes ventos.
Em 1920, Lobato escreve o conto infantil A história do peixinho que morreu
afogado. Em 1921, o autor re-elabora e amplia esse mesmo conto, acrescendo nele
uma série de aventuras vividas pela menina Lúcia no Sítio do Pica-pau Amarelo,
que desta vez publica-o sob o título de Narizinho arrebitado.
Narizinho vive no sítio de Dona Benta, sua avó e, de certa forma, este é um
lugar que, de acordo com a imaginação da menina, torna-se encantado.
Lúcia, assim como as demais personagens vistas, desempenha papéis que
se distanciam da personagem até então conhecida, como Branca de neve, Cinderela
ou Bela adormecida, pois a menina não espera passivamente os fatos acontecerem,
como as demais que sofriam ações predestinadas por madrastas, fadas ou bruxas.
A menina Lúcia mostra-se possuidora de um espírito consciente, crítico e
voltado para o social, pois questiona possíveis situações que não poderiam ser
justas ou que poderiam causar transtornos não somente aos habitantes do sítio do
Pica-pau Amarelo, mas também ao Reino das Águas Claras.
Enquanto menina e vivendo em um sítio, muitas ações, historicamente
atribuídas somente a meninos, eram praticadas por ela, como subir em árvores,
brincar com Pedrinho e direcionar as regras do jogo, bem como dançar, correr,
andar livremente em ambientes externos e mostrar-se feliz ou infeliz se algo o a
agradasse. Além disso, Lúcia possuía imaginação muito fértil, por isso não era
levada muito a sério por Dona Benta e Tia Nastácia.
Dona Benta, de fato, nunca dera crédito às histórias maravilhosas de
Narizinho. Dizia sempre: “Isso são sonhos de crianças”. Mas depois que a
menina fez a boneca falar, Dona Benta ficou tão impressionada que disse
para a boa negra: _ Isto é um prodígio tamanho que estou quase crendo
que as outras coisas fantásticas que Narizinho nos contou o são simples
sonhos, como sempre pensei.
97
- Eu também acho, sinhá. Essa menina é levada da breca. É bem capaz de
ter encontrado por alguma varinha de condão que alguma fada tenha
perdido...Eu também não acreditava no que ela dizia, mas depois do caso
da boneca fiquei até transtornada da cabeça [...] (LOBATO, 1990, p. 33-34)
Narizinho arrebitado, como princesa do Reino das Águas Claras, é a imagem
de menina-princesa que prenuncia novos tempos para a mulher, enquanto
personagem e membro social atuante. Ela é uma menina simples, cheia de viva e
que de princesa só possui o título, pois não apresenta nada em sua personalidade e
postura que possa lembrar a alta nobreza.
Percebe-se, ao analisar-se Narizinho arrebitado, que não somente cia
assume a função de protagonista nas histórias, mas também Emília, que é a
personagem que cresce, evoluindo gradativamente na narrativa do autor:
[...] Tia Nastácia, negra de estimação que carregou Lúcia em pequena, e
Emília, uma boneca de pano bastante desajeitada de corpo. Emília foi feita
por Tia Nastácia, com olhos de retrós preto e sobrancelhas tão em cima
que é ver uma bruxa. Apesar disso Narizinho gosta muito dela, não almoça
nem janta sem a ter ao lado, nem se deita sem primeiro acomodá-la numa
redinha entre dois pés de cadeira. (LOBATO, 1990, p. 6)
Emília, de mera boneca de pano, pertencente à menina Lúcia, passa a ser
falante, com o auxílio do Doutor Caramujo, tornando-se audaz, independente e
questionadora, representando os anseios a respeito da vida, do homem e do mundo,
vivenciados inclusive pelo próprio autor.
Luciana Sandroni, conferindo à boneca Emília sua importância nas obras de
Lobato, escreve o livro Minhas memórias de Lobato, sendo que a boneca narra a
sua história junto ao autor, porém de seu ponto de vista feminino.
-Tive uma idéia mirabolante! Vou escrever minhas memórias.
Dona Benta não entendeu nada. Será que Emília estava sofrendo de
amnésia e tinha esquecido que já tinha escrito as Memórias de Emília?
- Mas, Emília, você escreveu suas memórias. Não me diga que já tem um
segundo tomo!
- Não, é que eu tive a idéia de escrever as memórias do Monteiro Lobato, e
é claro que metade do livro vai ser sobre mim, que eu sou a personagem
mais importante que ele criou. Por isso o livro vai se chamar “Eu e Lobato”.
(SANDRONI, 1997, p. 5)
98
É importante salientar que, até mesmo quanto à constituição familiar, os três
escritores citados inovaram, uma vez que as três meninas (Alice, Dorothy e Lúcia)
pertencentes às narrativas em questão, não moravam com o pai e a mãe, o que era
incomum em uma família tradicional naquela época.
No caso de Alice, menciona-se a presença de sua irmã. Dorothy, menina
órfã, morava no Kansas com os tios. Narizinho estava no tio com a avó, tia
Nastácia, e o primo Pedrinho.
Parece que a situação de as meninas estarem longe dos pais (vivos ou
mortos) possibilita que a imaginação das mesmas flua naturalmente de forma que
alcance terras distantes, uma vez que se eles estivessem presentes poderiam impor-
lhes regras e restrições.
Além de Lúcia ser uma personagem bastante expressiva, Lobato concedeu
também à boneca, características semelhantes. Com certeza, as personagens
femininas criadas por Carrol, Baum e Lobato “roubaram” as cenas nas histórias, ou
seja, brilharam por se mostrarem simples e autênticas. Na verdade, esses autores
também se mostraram autênticos, abordando cenários e temáticas em suas histórias
que se distanciavam do já conhecido, como “carruagem, espada, transportes a
cavalo, reclusão feminina, autoridade paterna”, como mencionou Câmara Cascudo.
Além disso, eles não colocaram um personagem masculino em posição de
destaque em suas narrativas, o que indicaria conformidade com os valores
patriarcais e com as estruturas sociais vigentes, mas escolheram personagens
femininas para se tornarem sujeitos da ação, desfazendo-se do estereótipo de
meros objetos-femininos propagados em um passado ainda recente, sendo que
nesse a participação feminina ainda era considerada insignificante. Com certeza, a
escassez ou a ausência de figuras masculinas foi um detalhe importante utilizado
pelos escritores para que não se evidenciassem os convencionalismos desse
sistema.
Os referidos escritores contribuíram para que a voz feminina fosse resgatada.
Esse novo enfoque dado à figura feminina ou, quem sabe, esta nova prática
99
discursiva em que as meninas pensam, falam e agem, contribuem para
“desmascarar a ‘universalidade’ do discurso crítico tradicional da cultura dominante”
(NAVARRO, 1997, p.49, grifo da autora), uma vez que a autoria das ações
correspondiam, em geral, única e exclusivamente, a personagens masculinos.
Essas personagens representam os anseios femininos, visto que as mulheres
queriam simplesmente viver de forma natural, e não acuadas em um submundo
servil, somente moldando-se a convencionalismos e a padrões sociais que não
coincidiam com seus gostos, desejos, atitudes. Assim sendo, desejavam
compartilhar um mundo em igualdade de papéis, independendo do sexo a que
pertencessem.
Como foi visto, Carrol, Baum e Lobato inovaram na criação de suas
personagens femininas, distanciando-se da lógica comum da época, concedendo a
uma menina atitudes e ações consideradas próprias do sexo masculino, bem como
se utilizaram da magia e do mundo fantástico, talvez para mostrar ou alertar que
mudanças eram necessárias em relação à concepção da personagem feminina,
enquanto figura decisiva e atuante no cenário literário.
Quem sabe, futuramente, em plano fictício, essas três personagens (Alice,
Dorothy e Lúcia) crescidas possam vir a se parecer com as meninas más de
Margaret Atwood e Lucía Etxebarría ou, quem sabe, com as personagens femininas
de Margaret Drabble, ou seja, imagens de mulheres que realmente sabem o que
querem, construindo suas vidas, conforme suas vontades, mas com um detalhe que
as torna realmente especiais, o interesse pelas causas sociais e a vontade
incontrolável de consertar o mundo. Em conseqüência dessas atitudes e anseios,
talvez, Alice, Dorothy e Lúcia possam ser consideradas os embriões das
personagens criadas por Atwood, Etxebarría e Drabble.
4. RELEITURA E RE-ESCRITURA DOS CONTOS DE FADAS: TERRITÓRIO
FEMININO
É sabido que as noções de intertextualidade, bem como outros conceitos que
permeiam e orientam as discussões na esfera literária, são ainda relativamente
recentes, mas ainda muito em pauta na atualidade. A presença efetiva feminina em
âmbito literário também é um dado recente, e os intertextos utilizados por algumas
escritoras em suas obras remontam a textos calcados em estruturas arcaicas,
machistas e patriarcais.
Desse modo, o primeiro momento deste capítulo fará uma breve abordagem
intertextual, conforme alguns teóricos da área, o que introduzirá o subcapítulo
seguinte, ao se observar o hipotexto, bem como os demais hipertextos que serão
apresentados.
Posteriormente, uma breve exposição sobre paródia antecederá a análise de
algumas releituras e re-escrituras de contos de fadas tradicionais de Perrault e de
Beaumont. Dentre os inúmeros contos destes escritores, foram selecionados Barba-
Azul (1999), de Perrault, A Bela e a Fera, de Beaumont (2004) e as releituras de
Carter, contidas na obra O quarto do Barba-Azul (1999), abrangendo os contos O
quarto do Barba-Azul, A corte do Sr. Lyon, A noiva do tigre e A garota da neve.
A análise da figura feminina, enquanto personagem, será realizada nos contos
escolhidos. Além disso, o estudo se enriquecerá com os comentários das teóricas
Marina Warner e Maria Tatar a respeito de contos de fadas. Ainda, os tipos de
discursos utilizados por Carter, Perrault e Beaumont serão analisados, de acordo
com os especialistas Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1998).
Por último, serão realizadas algumas abordagens quanto às escritoras
Margaret Drabble e Lucía Extrebarría, além de Carter que, através de suas releituras
e re-escrituras de romances, engajaram-se na composição da personagem feminina.
A teórica Marie-Louise von Franz secitada também, de acordo com seus estudos
realizados nesta área.
101
4.1 Abordagem intertextual
Os contos variam infinitamente, mas os fios são os mesmos. A ciência popular vai
dispondo-os diferentemente. E são incontáveis e com a ilusão da originalidade.
CASCUDO, 2004, p. 22.
Sabe-se que toda literatura passa por uma renovação na medida em que
mudam os tempos e os autores. Por isso, os contos tradicionais da antigüidade têm
sido alvo de releituras como modo de adaptação a uma realidade diferenciada.
Assim, Angela Carter, por exemplo, “re-aproveitandoo conhecido, insere-o em
sua narrativa, dando a ela características originais, uma vez que nova tessitura e
novas expectativas são acrescidas à mesma. Esse processo de constituição de um
texto denomina-se intertextualidade.
Julia Kristeva
42
, apoiando-se em Bakhtin, afirma que “todo texto se constrói
como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro
texto” (1974, p. 64). Além disso, Kristeva sustenta que “em lugar da noção de
intersubjetividade, instala-se a de intertextualidade e a linguagem poética lê-se pelo
menos como dupla” (1974, p. 64). Nessa duplicidade de leituras, presença de
vozes de vários autores de diferentes épocas, constituindo uma única obra.
Alba Olmi, citando Kristeva (2003), salienta que o texto literário
se insere no conjunto dos textos: é uma escritura-réplica (função ou
negação) de um outro (dos outros) texto(s). Pelo seu modo de escrever,
lendo o corpus literário anterior ou sincrônico, o autor vive na história e a
sociedade se escreve no texto. A ciência paragramática deve, pois, levar
em conta uma ambivalência: a linguagem poética é um diálogo de dois
discursos. Um texto estranho entra na rede da escritura: esta o absorve
segundo leis específicas que estão por descobrir. Assim, no paragrama de
um texto, funcionam todos os textos do espaço lido pelo escritor.
(KRISTEVA apud OLMI, 2003, p. 266)
Olmi ainda afirma que, na própria etimologia da palavra texto, do latim textus,
tem-se o que é “tecido entrelaçado”: “Nessa afirmativa está implícita a idéia de algo
que resulta da relação de elementos pré-existentes ao texto, o que evidencia a
presença intertextual” (OLMI, 2003, p. 265).
42
Introdução à Semanálise (1974).
102
Por sua vez, Koch conceitua intertextualidade “como aquilo que diz respeito
aos modos como a produção e recepção de um texto dependem do conhecimento
que se tenha de outros textos com os quais ele, de alguma forma, se relaciona”
(KOCH, 2000, p. 46).
Marly Amarilha salienta que o processo intertextual é o de revitalizar o
passado, revivendo novamente, sob novos ângulos, algo conhecido: “[...] Ao
retomar na história contemporânea os ecos do passado, o leitor tem a oportunidade
de despertar todo um sistema vital que estava resguardado no texto” (AMARILHA,
1997, p. 89).
De certa forma, intertextualidade é a desconstrução, a renovação e a
ampliação do existente no campo literário. Provavelmente, não exista nada
totalmente original, pois o que se constrói no presente aborda reminiscências
advindas de outros tempos. Seria, então, acertado afirmar que os textos são
“solidários” entre si, ou seja, comunicam-se, entrelaçando e ressaltando culturas,
ideologias, valores, crenças e a história vivida pela humanidade em cada época.
No encontro do leitor com o texto é bem possível que se incite um impacto de
desconstruções, releituras, construções, uma vez que quem está lendo traz consigo
a sua bagagem cultural-ideológica-social que esbarra ou desliza ou se põe na
tangente em meio ao que o autor evoca. Nesse momento surgem desconstruções
que se dividem em dois mundos, o do leitor e o do autor. O processo posterior é a
releitura, o buscar o que se conhece e compará-lo com o que está sendo lido,
vivenciado. Por sua vez, quando o leitor consegue encontrar os encaixes das partes
desmontadas, desfiguradas, naturalmente assimila dois universos diferentes, o do
autor e o do leitor, formando um único universo, que se faz enriquecido, novo, único,
consistente, resultando em uma real construção, no entendimento, no conhecimento
do que foi lido.
Quanto à inserção de um texto em outro, resultando na construção de uma
nova obra literária, Olmi sustenta que o espaço literário é aberto para a apropriação,
o surgimento e o “re-surgimento” de novas idéias:
103
Essa apropriação, [...] foi e deverá ser um lugar, um espaço de proliferação,
de disseminação capaz de produzir e re-produzir idéias, formas, conceitos e
conteúdos e de ser aceita como fenômeno absolutamente natural,
despreocupado de citação de fontes, influências e referências, de acordo
com os postulados mais recentes dos estudos em Literatura Comparada.
(OLMI, 1998, p. 7)
Entretanto, segundo Nitrini:
Intertextualidade e influência constituem conceitos que funcionam bem
operacionalmente para se lidar com manifestações explícitas, mas sua
instrumentalização para se analisarem ocorrências implícitas dificilmente
apresenta resultados satisfatórios, pois estas dependem muito da erudição
do leitor. (NITRINI, 1997, p.167)
É possível afirmar, observando a citação de Nitrini, que os elementos
intertextuais que compõem uma obra podem ser observados pelo leitor que os
conhece, uma vez que o implícito torna-se explícito. De outro modo, se esse jamais
leu ou ouviu um determinado conto de fadas, ou um romance, não encontrará a
presença intertextual presente nele.
Consoante a isso, Peônia Guedes menciona a citação de Margaret Drabble,
uma vez que Drabble explicita como lida com o processo intertextual em suas obras,
ou melhor, as adaptações que ela realiza de acordo com os diferentes leitores:
O problema de alguém com um background como o meu é que tenho uma
sobrecarga de alusões literárias. E para me comunicar com pessoas que
não têm essa carga, tenho de tentar esconder e esquecer coisas, ou
assegurar-me de que estão vindo das profundezas e não da superfície do
texto. (DRABBLE apud GUEDES, 1997, p. 40)
Quando se trata de intertextualidade e quando as mulheres decidem
enveredar pelo caminho dos intertextos em suas obras, Jean Franco pensa o
seguinte:
Todo escritor - tanto homens como mulheres - enfrenta o problema da
autoridade textual ou da voz poética já que, desde o momento em que inicia
a sua produção, estabelece relações de afiliação ou de diferença para com
os mestres do passado. Este confronto tem um interesse especial quando
se trata de uma mulher escrevendo contra” o poder asfixiante de uma voz
patriarcal, assim, continua Franco, a intertextualidade é um terreno de luta
onde a mulher se enfrenta com as exclusões e com a marginalização do
passado. (FRANCO apud NAVARRO, 1997, p. 46)
104
Na verdade, o que Jean Franco percebe é o confronto entre autores
historicamente conhecidos ou cânones que conquistaram o público e, com isso,
adquiriram voz de autoridade em relação aos escritores mais recentes. E se essa
batalha pelo espaço literário acontece entre homens escritores, imagine-se onde se
pode encontrar uma lacuna para a inserção da autoria feminina. Além de a mulher
lutar pelo seu espaço contra valores ultrapassados, excludentes, impostos pelo
sistema patriarcal, ainda tem que enfrentar uma batalha maior, ou seja, concorrer no
campo literário com homens que já traçaram a literatura conforme seus moldes.
Nessa perspectiva, depreende-se que a literatura escreve a sua própria
releitura, ou seja, o escritor produz a partir do embasamento literário que constitui a
própria literatura e, assim, no recém-criado, o antigo renasce. Dessa forma, seria
acertado afirmar que a intertextualidade desencadeia um processo triplo na mente
de quem a percebe, ou seja, observando-se a obra primeira, a obra é reconstruída e
o material é absorvido e reconstruído na mente do leitor.
O curioso nesse processo de apropriações, referido por Olmi, é como um
texto A pode se relacionar com um texto B, e o que entre ambos, de acordo com as
relevantes diferenças, pode ser apresentado efetivamente como evidência
intertextual?
Quando se percebe a presença de hipertextos
43
, verificando-se o uso de
referências, diálogos, na verdade, o que se busca é desvendar as semelhanças e/ou
diferenças em relação ao hipotexto
44
.
Segundo Olmi observa, Genette “prefere o conceito de transtextualidade
45
-
ou transcendência textual do texto definida como tudo aquilo que coloca o texto,
explícita ou implicitamente, em relação com outros textos” (OLMI, 2003, p. 267).
43
É a inclusão e/ou modificação de um ou vários textos em outro, uma vez que o surgimento do novo texto pode
ser a soma de vários outros textos e/ou sua alteração parcial ou total.
44
É o texto-origem.
45
Genette divide o processo em cinco categorias: intertextualidade, paratextualidade, metatextualidade,
hipertextualidade e a arquitextualidade (cf. Olmi, 2003).
105
Segundo Genette, intertextualidade “é uma relação de co-presença entre dois
ou mais textos [...] como a presença efetiva de um texto noutro” (GENETTE apud
OLMI, 2003, p. 267). Essa “relação de co-presença entre textos”, é que se
analisada a seguir nas re-escrituras de alguns contos de fadas.
4.2 Releituras e re-escrituras de contos de fadas tradicionais de Perrault e de
Beaumont
What happened to the mother
who looked at the snow? I don’t say
(you don’t know this grammar yet)
how mothers and stepmothers change,
looking, and being looked at.
It takes a long time...
Sinister twinkling animals,
Hollywood ikons, modern Greek style:
a basket of images, poison at work
in the woodland no Cretan child
ever sees. Closer to home
I’ve seen a loved girl turn feral.
These pages lurk in the mind,
speak of your sister,
her mother, and me. Perhaps,
already, of you
46
.
PADEL apud WARNER, 1999, p. 233.
Segundo Sylvia Paixão (1997), “quando se olha a cultura e a literatura sob o
ponto de vista feminino, nada mais pode continuar igual a antes: nem a sociedade,
nem a arte, nem a história” (p.72).
Na verdade, o que a escritura com identidade feminina realizou nestas últimas
décadas foi um trabalho árduo de reelaboração de uma estrutura social decadente,
não mais representativa do contexto presente. Desse modo, o que se observa é que
a velha estrutura asfixiante e machista perdeu prazo de validade diante da evolução
feminina e feminista.
46
O que aconteceu à mãe/ que olhava para a neve? Não digo/ (você ainda não sabe essa gramática)/ como mães e
madrastas mudam, // olhando e sendo olhadas./ Leva muito tempo.../ Animais sinistros e cintilantes,/ Ícones
hollywoodianos, estilo grego moderno:// uma cesta de imagens, veneno em ação/ no bosque que nenhuma
criança cretense/ jamais vê. Mais perto de casa/ Vi uma menina amada tornar-se feroz.// Essas páginas
escondem-se na mente,/ falam de sua irmã,/ de sua mãe e de mim. Talvez,/ já, de você.
106
Conseqüentemente, ao se reestruturar a sociedade, compõe-se também uma
nova história que passa a ser escrita assim como a arte que absorve os novos ares,
renovando-se.
Tendo-se como referência que as primeiras versões dos contos de fadas
foram redigidas por homens, visando atender aspirações contextuais daquele tempo
próprio, atualmente, tanto re-escrituras quanto paródias existem e se tornam
necessárias, uma vez que essas se adaptam a uma realidade distinta,
principalmente porque os valores sociais, morais, intelectuais não são mais os
mesmos, comparados a tempos longínquos. Dwight Macdonald, citado por Linda
Hutcheon, o bem argumentou, quando definiu a paródia, afirmando que “somos
exploradores que olhamos para o passado e a paródia é a expressão central do
nosso tempo” (mcDONALD apud HUTCHEON, 1989, p.11).
De acordo com o exposto, torna-se acertado afirmar que a paródia é a nova
forma de escrever o existente, com um diferencial, o irônico, que objetiva mostrar
que os tempos mudaram e os antigos escritos não mais correspondem ao modo de
viver, pensar e agir da humanidade. Segundo Linda Hutcheon:
A paródia é, pois, na sua irônica “transcontextualização” e inversão,
repetição com diferença. Está implícita uma distanciação crítica entre o
texto em fundo a ser parodiado e a nova obra que incorpora, distância
geralmente assinalada pela ironia. Mas esta ironia tanto pode ser apenas
bem humorada, como pode ser depreciativa; tanto pode ser criticamente
construtiva, como pode ser destrutiva. O prazer da ironia da paródia não
provém do humor em particular, mas do grau de empenhamento do leitor no
“vaivém” intertextual (bouncing) para utilizar o famoso termo de E. M.
Forster, entre cumplicidade e distanciamento. (HUTCHEON, 1989, p. 48,
grifos da autora)
Alba Olmi (2006) acrescenta que, na atualidade, por exemplo, “o conto
tradicional é re-contextualizado e re-adaptado às novas exigências sociais
femininas, para tornar-se a expressão de um outro ponto de vista, longe da
mitificação da imagem da mulher, típica da cultura patriarcal” (OLMI, 2006, p. 10).
Esta breve exposição a respeito da paródia se fez necessária para que se
passasse a analisar alguns contos tradicionais do passado, re-escritos por Angela
Carter.
107
Evidentemente que, como foi mencionado no capítulo anterior, escritores
como Monteiro Lobato colaboraram para a desmistificação da inferioridade feminina,
mas, apesar de sua importante contribuição à literatura, ainda faltava a
sensibilidade, o sexto sentido, a visão de mulheres inseridas no processo de
composição da nova identidade da figura feminina. Dessa forma, contos infanto-
juvenis foram revistos na contemporaneidade, como A Bela e a Fera, de Jeanne-
Marie Leprince de Beaumont (1757), uma vez que nesse se observou a
personagem Bela comparando-a à mulher contemporânea de Angela Carter. Além
dessas escritoras, verificar-se-á o estudo realizado pelas teóricas Maria Tatar e
Marina Warner a respeito dos contos de fadas. E, ainda, os tipos de discursos
utilizados por Carter, Perrault e Beaumont serão vistos de acordo com os
especialistas Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1998).
No entanto, o estudo da postura da figura feminina deter-se-á na obra O
quarto do Barba-Azul, de Angela Carter, sendo nesta obra selecionados os contos O
quarto do Barba-Azul, A corte do Sr. Lyon, A noiva do Tigre e A garota de neve para
serem analisados, tendo, como contraponto, os textos-origem de Perrault e de
Beaumont.
Angela Olive Stalker nasceu em 7 de maio de 1940 e assumiu o sobrenome
Carter após casar-se com Paul Carter, em 1960. A sua vida profissional dividiu-se
entre ser professora universitária e escritora, sendo que inúmeras obras ela
escreveu, consagrando-se como escritora, inclusive recebendo premiações por seu
segundo romance The magic toyshop (1967) e pelo terceiro também Several
perceptions (1968). De acordo com Vivian Wyler (em nota de prefácio), além desses
dois romances, Carter escreveu ainda o romance Shadow dance (1966), o
romance surrealista Love (1969-72), a coletânea Fireworks: nine profane pieces
(1974), o romance A paixão da Nova Eva (1977), em 1979 o ensaio The Sadeian
woman e a coletânea de contos O quarto do Barba-Azul. Carter publica ainda
Noites no circo (1984), sendo premiada por esta obra, a coletânea Black Vênus
(1985), Wise Children (1991) e, em 1993, acontece a publicação póstuma dos
contos de American ghosts and old world wonders, pois ela vem a falecer de câncer
em 1992.
108
Figura 23: Angela Carter
Ainda segundo Wyler, Angela Carter começou a sua carreira literária na
década de 60, “quando se especializou em literatura inglesa do período medieval na
Universidade de Bristol” (1999, p. x) e o que realmente a destacou foi a sua forma
original de compor suas obras, ou seja, a releitura de contos de fadas muito
conhecidos, narrados pela boca do povo. Visto que Carter possuía um gosto
literário bastante eclético, parece que ela absorveu o que de melhor leu em diversos
períodos da história para constituir suas obras.
Seguindo a receita que ela dá [...] para os contos de fadas, “feitos de
pedaços de histórias perdidas, misturadas com outras e adaptadas
pessoalmente pelo contador ao gosto da platéia”, ela foi fazendo
acréscimos a esse caldo básico, em que giravam Chaucer e um certo tom
farsesco. Um pouco de tudo. Simbolismo francês, leituras de Barthes e
Foucault, surrealistas, filmes de Godard e Buñuel, Mary Shelley, Swift,
109
Blake (favorito, desde a infância), Poe, Lewis Carroll e os filmes de horror B,
da Hammer. (WYLER, 1999, p. x-xi)
É bem verdade que Angela Carter colocou em prática a teoria parodística ao
escrever O quarto do Barba-Azul, uma vez que ela redistribuiu ironicamente os
papéis dos personagens em seus contos, visto que, histórica e tradicionalmente,
esses eram acostumados a assumirem funções determinadas de acordo com
preceitos sociais masculinos.
Em O quarto do Barba-Azul, A corte do Sr. Lyon e A Noiva do Tigre e A
garota de neve; Carter recriou textos célebres, como os contos de fadas e
acrescentou aos mesmos caráter crítico e satírico, narrando-os de acordo com a
visão do que realmente interessa ao universo feminino. Processo esse que se
constitui como um novo percurso realizado a partir do que existe, ou seja, do
hipotexto.
Além de Carter reescrever os contos de fadas, de acordo com a visão
feminina, ela também mostrou-se diferente ao descartar a frase introdutória dos
contos “era uma vez”, apresentando uma recente proposta narrativa que o
consagra a cópia de um parágrafo introdutório típico da construção masculina.
Em O quarto do Barba-Azul (1999), por exemplo, os intertextos também são
perceptíveis em inúmeros momentos, como quando o personagem Barba-Azul
decide afastar-se temporariamente do castelo, devido a negócios e entrega o molho
de chaves à sua atual esposa, ressalvando que uma das chaves não deveria ser
usada. Os textos de Perrault, Barba-Azul (1999), e de Carter(1999) se cruzam e, em
um certo ponto, as semelhanças se mostram mais acentuadas entre ambos.
Inclusive, a inglesa Carter cita a França como localização do castelo de Barba-Azul
em seu conto, origem do escritor Perrault e da publicação do conto.
- Esta é a chave do armário da louça... Não ria, querida; nele se encontra
um resgate de rei em Sévres e de rainha em Limoges. E a chave do quarto
trancado onde se guardam cinco gerações de prata.
[...] estava quase na hora de partir. lhe faltava falar de uma chave, e ele
hesitou um pouco; por um instante pensei que a fosse separar para pôr no
bolso e levar.
- Que chave é essa? - perguntei, uma vez que a troça que tinha feito de
mim me imbuíra de certa ousadia. - A chave do seu coração! Dê-me! [...]
110
- Oh! - disse ele. - Não é a chave do meu coração. É antes a chave do meu
inferno.
[...] Trata-se apenas da chave de um quartinho na base da torre ocidental,
atrás da destilaria, no fundo de um corredorzinho escuro cheio de horríveis
teias de aranha que lhe ficariam grudadas no cabelo e a assustariam se
você se aventurasse a ir lá. Ah! E iria achar o quartinho muito sem graça!
Mas tem de me prometer, se me ama de verdade, manter-se afastada dele.
[...] (CARTER, 1999, p. 26-27)
“Aqui estão as chaves dos dois grandes armários”, disse ele, e estas aqui
são as das baixelas de ouro e de prata, que não são usadas todos os dias
[...]. Quanto a esta chavezinha aqui, é a do quarto que fica no final da
grande galeria do andar inferior. Você pode abrir tudo, ir a toda parte, mas
nesse pequeno cômodo está proibida de entrar. E é uma proibição tão
rigorosa que, se você se aventurar a abri-lo, não nada que não deva
esperar da minha cólera”. (PERRAULT, 1999, p. 190)
Figura 24: A porta sendo aberta, de autor anônimo
O interessante, no estilo de Carter, é que ela usa as sutilezas para rememorar
contextos pertencentes ao passado, como ao referir-se à chave do armário da louça
que pertencera ao rei, em Sévres, e à rainha, em Limoges, uma vez que essas
louças são delicadíssimas em sua estrutura. O irônico é justamente isso, o grotesco
Barba-Azul em contraste com tais preciosidades. Inegavelmente, a sutileza é uma
111
característica própria do sexo feminino, e o discurso de Carter se choca com o
discurso autoritário, direto, incontestável de Perrault, perceptível nos exemplos
acima.
Em outro momento, quando a personagem-protagonista se detém em
observar o quarto dos horrores, deixa cair de sua o a chave da porta, sendo que
esta fica manchada de sangue
47
que escorre no local.
Com os dedos trêmulos, abri a frente do caixão vertical, que tinha a face
esculpida num ricto de dor. Depois, subjugada, deixei cair a chave que
ainda retinha na outra mão. Caiu no charco que seu sangue formava.
(CARTER, 1999, p. 40)
[...] Após alguns instantes começou a ver que o chão estava todo coberto de
sangue coagulado, no qual se refletiam os corpos de várias mulheres
mortas, ao longo das paredes. Eram todas as mulheres que Barba-Azul
havia desposado e às quais havia cortado o pescoço, uma após a outra. Ela
pensou morrer de pavor, e a chave do quarto, que tinha acabado de tirar da
fechadura, cai-lhe da mão. (PERRAULT, 1999, p. 193-4)
O diferencial no discurso de Carter pode ser percebido na voz da
personagem, que narra a situação conflitante em que está envolvida e, ao mesmo
tempo, protagoniza a cena. no discurso de Perrault, o narrador conta os fatos
acontecidos, como se fosse um observador, alheio à situação em que a esposa do
Barba-Azul está enfrentando.
Ainda em outra situação, quando o Barba-Azul de Carter chama sua esposa
para ser decapitada, instantaneamente vem à tona o conto de Perrault, Barba-Azul,
uma vez que aos títulos
48
das obras se assemelham. No entanto, a escritora criou
dois recursos ainda inexistentes para o escritor francês, ou seja, o uso do telefone,
uma vez que o chamamento para a execução da protagonista veio através de uma
ordem pelo telefone, além do telégrafo que o ogro utilizou como justificativa, ou
melhor, o recebimento de uma correspondência telegráfica permitiu o retorno do
mesmo antecipadamente.
47
Segundo Carter e Perrault a chave é encantada (detalhe esse que caracteriza os contos como de fadas), sendo
assim o sangue impregnado na mesma mostra que a violação da regra da obediência não foi cumprida.
48
No conto Alice-lobo, segundo Vivian Wyler, Carter fez “uma homenagem a Lewis Carrol” (1999, p. xviii),
talvez seja através da adoção do nome de Alice para a menina-lobo, personagem-protagonista, como também
para o título da obra. Além disso, neste mesmo conto, quando Alice descobre o espelho e o investiga de tal forma
que acaba se ferindo nele (p. 224), pode ser coincidência ou talvez a autora quisesse se referir à obra Alice
através dos espelhos e o que Alice encontrou lá (1872), de Lewis Carrol
.
112
Figura 25: A esposa prestes a ser castigada, de Walter Crane, 1875
Nessas passagens menções claras, embora parodiadas, da história
original que está inserida na obra de Carter. No caso do hipertexto, em O quarto do
Barba-Azul, a história original foi alterada, por mais que algumas ações sejam
revividas, percebe-se que essas se apresentam com novas perspectivas. Sendo
assim, o texto re-elaborado, re-escrito, torna-se um hipertexto, uma vez que a
escritora buscou a narrativa primeira e a adaptou, segundo a ótica feminina.
É pertinente salientar que Carter, em O quarto do Barba-Azul, respeita o
discurso de Perrault e de Beaumont, da forma como foi elaborado, porém a escritora
apresenta um diferencial, ou seja, o discurso de Carter age dentro do discurso
constituído pelos escritores em questão.
113
O discurso de Carter, inserido em um contexto existente, apresenta
variações em relação ao estilo narrativo, além da abolição da frase inicial e
tradicional em contos de fadas, ou seja, a escritora utiliza o narrador autodiegético,
uma vez que, no conto O quarto do Barba-Azul, a personagem narradora é a própria
protagonista da história e, sendo assim, direciona os rumos da narrativa de acordo
com seus anseios.
Lembro que aquela noite eu estava deitada, acordada, no vagão-leito,
imersa num suave e delicioso êxtase de excitação, com a face em brasa
comprimida na impecável fronha do travesseiro e o bater do coração a
imitar o bater dos grandes pistões que incessantemente impeliam o trem
que me afastava de Paris, da mocidade, da quietude branca e fechada do
apartamento de minha mãe, em direção ao país inimaginável do casamento
[...] (CARTER, 1999, p. 3)
Quanto à organização do tempo e à manipulação de distância, percebe-se, no
exemplo acima, que a narradora-personagem-protagonista vive no tempo presente,
mas busca na memória fatos passados, apresentando dessa forma um hiato
temporal, característica própria do narrador autodiegético.
Segundo Carlos Reis e Ana Cristina Lopes (1998), narrador autodiegético
configura
a expressão [...], introduzida nos estudos narratológicos por Genette [...],
designa a entidade responsável por uma situação ou atitude narrativa
específica: aquela em que o narrador da história relata as suas próprias
experiências como personagem central dessa história. Essa atitude
narrativa arrasta importantes conseqüências semânticas e pragmáticas,
decorrentes do modo como o narrador autodiegético estrutura a perspectiva
narrativa, organiza o tempo, manipula diversos tipos de distância, etc.
(p.118, grifo dos autores)
Além de os narradores diferirem em Carter, em relação a Perrault e a
Beaumont, há também outro desvio no conto de Carter, acima citado, o eu que narra
e o eu narrado. nos contos de Perrault, Barba-Azul, e de Beaumont, A Bela e a
Fera, o papel de narrador não é exercido por nenhuma personagem, uma vez que o
narrador relata a história de forma impessoal, alheio aos fatos. Consoante a isso,
nos contos de Perrault e de Beaumont, percebe-se a presença do narrador
heterodiegético, observado nos exemplos que seguem:
114
Era uma vez um homem que possuía belas casas na cidade e no campo,
baixelas de ouro e de prata, móveis de madeira lavrada e carruagens
douradas. Mas, para sua infelicidade, esse homem tinha a barba azul, e
isso o tornava tão feio e tão assustador que não havia nenhuma mulher e
nenhuma moça que não fugisse da sua presença [...] (PERRAULT, 1999, p.
189).
Era uma vez um rico negociante que vivia com seus seis filhos, três rapazes
e três moças. Sendo um homem inteligente, não poupou despesas na
educação dos filhos, dando-lhes excelente instrução. Suas filhas eram muito
bonitas, mas a caçula principalmente despertava grande admiração [...]
(BEAUMONT apud TATAR, 2004, p. 66).
De acordo com Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, narrador heterodiegético é
a expressão [...], introduzida no domínio da narratologia por Genette [...],
designa uma particular relação narrativa: aquela em que o narrador relata
uma história à qual é estranho, uma vez que não integra nem integrou,
como personagem, o universo diegético em questão [...] (1998, p. 121).
Além de a obra de Carter apresentar diferenças estruturais em sua narrativa
em relação às obras originais, percebe-se ainda que, através de sua obra, Carter
procurou inserir uma nova mulher em seu contexto. A autora ainda contemplou o
universo e os sentidos femininos, utilizando-se “fartamente” de descrições de
cheiros, sensações, roupas, jóias, comidas, acompanhadas de metáforas, em O
quarto do Barba-Azul.
Ao adequar a figura feminina ao seu real contexto, Carter, na verdade,
mostrou a verdadeira face feminina, enquanto mulher, que muito se escondia
atrás de caricaturas rabiscadas por homens. Além disso, Carter descreveu a mulher
exatamente como ela é, de cara limpa, ou seja, aquela que, apesar de estar mais
independente, procura se encontrar, entender-se, imergindo freqüentemente e tão
ferozmente em seus conflitos interiores que se mostram impregnados de fragmentos
de heranças passadas, como a insegurança, a falta de confiança em si mesma.
Três vezes casado no breve espaço da minha vida com três graças
diferentes, convidava-me agora, como para demonstrar o ecletismo do seu
gosto, a juntar-me a essa galeria de mulheres bonitas, eu, filha de pobre
viúva, eu, de cabelos cor de rato que ainda tinham as marcas das tranças
que deixara de usar tão pouco tempo antes, eu, de cadeiras ossudas e
nervosos dedos de pianista. (CARTER, 1999, p. 9)
115
Observando-se o conto A Bela e a Fera (La Belle et la Bete, 1757)
49
,
de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont, a personagem Fera, o noivo de Bela,
causava repulsa, aversão à mesma. em A noiva do tigre, de Carter, o oposto
aconteceu, uma vez que Bela sentiu desejo sexual pela Fera, ainda mais quando
essa exalava seu cheiro natural de macho no cio.
Na verdade, na recomposição dos papéis femininos, Carter invadiu os
espaços pertencentes aos personagens masculinos, visto que, quando a
transformação contempla um dos gêneros, conseqüentemente todo o contexto sofre
modificações. Com isso, torna-se perceptível que a mitificação do homem-príncipe e
rei não tem mais valia numa relação em que a mulher entende o seu papel, o seu
espaço, o seu valor, desvendando ou permitindo transparecer as imperfeições
masculinas e o desejo destas:
Quando pensava que a partir de então iria compartilhar os lençóis com um
homem cuja pele, como a dele ou a dos sapos, continha uma sugestão
viscosa e úmida, sentia vaga desolação por haver despertado dentro de
mim, agora, que já estava sarada a ferida de mulher, certo anseio
repugnante por suas carícias, como o anseio de mulheres grávidas pelo
gosto do carvão, da cal ou de comida estragada. (CARTER, 1999, p. 28)
A nova mulher (que na verdade não é tão recente assim, mas somente nestas
últimas décadas ela pôde se mostrar em sua essência) o homem como um ser,
dotado de muitas imperfeições, tanto que ela é sutil o bastante para discernir os
verdadeiros discursos, não admitindo as falsas promessas masculinas.
É sabido que a feminista Simone de Beauvoir, com a obra Le deuxième sexe
(O segundo sexo), escrita em 1949, se mostrava a “nova mulher”, uma vez que
silenciou o mundo para que ouvissem que essa idéia de dominação patriarcal devia
ser abolida da sociedade. Além disso, o seu apelo se estendeu pela abolição do mito
do “eterno feminino”, assim como ela o denominava. Assim como Beauvoir, Angela
Carter também aderiu ao Movimento Feminista, e suas idéias eram bastante
49
Coincidentemente ou não, Clarice Lispector também re-escreve esse mesmo conto de fadas, denominado A
Bela e a Fera ou a Ferida Grande Demais, direcionando a temática para as diferenças sociais e humanas entre as
pessoas. A Fera, de Lispector, é um mendigo desdentado que possui uma chaga sangrando em sua perna. Por sua
vez, a Bela é uma senhora da alta sociedade que possuía uma vida alienada. Ela, na verdade é uma fera letrada,
porém fútil, prostrada em valores consumistas. Para Bela, o ser ainda era um processo latente, algo obscuro para
sua compreensão.
116
transparentes em suas obras. De acordo com Vivian Wyler, Carter explicava a sua
adesão ao movimento desta forma:
Se o louco persiste em sua loucura, ele se torna sábio. Eu imagino que seja
desta maneira que eu tenha alcançado o feminismo, ao analisar a sensação
de que sempre havia algo que ficava do lado de fora do quadro, e descobrir
que era uma coisa bem importante, afinal, porque todo o tempo que eu
pensara que as coisas estavam indo muito bem, estava sendo considerada
uma cidadã de segunda classe. (CARTER apud WYLER, 1999, p. xiii)
Carter não só se desfez do tradicional início dos contos de fadas, como
também relativizou o “sempre”, em “eles viveram felizes para sempre”, comprovando
o contrário, pois nem sempre os casamentos são duradouros, nem sempre se vive
feliz em um único relacionamento e nem sempre a mulher tem que assumir o papel
de eterna vítima em uma união, ou sofrer calada nas mãos de um algoz. De certo
modo, Murat havia questionado, não o início como Carter, mas a frase final dos
contos de fadas, ainda no século XVII.
Em A Bela e a Fera, como foi visto, Beaumont também mostrava
indignação pela mulher ter que seguir um roteiro pré-estabelecido para sua vida,
uma vez que esse não permitia outras escolhas à mulher, além do casamento e da
maternidade. Beaumont ainda também se mostrava contrária a casamentos
escolhidos e impostos pela família dos noivos, sendo que os familiares geralmente
visavam o somatório de bens financeiros. Tratava-se de negócios e não de
relacionamentos amorosos.
Ao longo do conto, percebe-se que a personagem de Carter em momento
algum deixou transparecer ingenuidade ao narrar os momentos íntimos que teve
com seu marido. De forma realista, consciente percebeu que aqueles momentos
vividos, para ela não apresentavam nada de magicidade. Ironicamente, evidenciava-
se a dura realidade, ou seja, o seu casamento era um negócio, onde ela era a
mercadoria e o Barba-Azul, o comprador.
Além disso, o casamento, para a personagem, em O quarto de Barba-Azul,
não significava amarrá-la ao monstro para sempre ou por toda vida. A autora mostra
que a mulher não se atrela única e exclusivamente àquele homem específico por ter
117
tido relacionamentos íntimos com o mesmo. Percebe-se ainda nesse conto que a
personagem, herdeira de medos e culpas do passado, está soltando as suas
amarras. Desse modo, a protagonista de Carter é a nova personagem que também
retrata a nova mulher na esfera social, ou seja, é uma mulher autêntica, bem
informada, inteligente, de personalidade forte assim como a mãe. É aquela que
mostra a sua intelectualidade e é capaz de, senão conduzir na medida certa o seu
sentimentalismo, saber muito bem que a excitação pode ser sentida sem estar
acompanhada de amor.
E comecei a tremer como cavalo antes da corrida, ainda com uma espécie
de medo, porque sentia excitação a um tempo estranha e impessoal de
amor e repugnância, excitação que eu não era capaz de sufocar, por sua
carne branca e pesada [...] (CARTER, 1999, p. 17)
Estava deitada sozinha na cama. E desejava-o e ele repugnava-me.
(CARTER, 1999, p. 28)
Já no século XVII, Julie Murat, em Le palais de la vengeance havia defendido
sutilmente a idéia de que o amor com o tempo podia se esvair. Evidentemente que,
para aquela época, contestar a verdade consagrada do discurso masculino não era
tarefa fácil, por isso o que se pensava era escrito implicitamente.
Felizmente, os novos tempos e a coragem de escritoras do passado
propiciaram que mulheres como Carter não mandassem recados e, sim,
escrevessem sobre a transparência dos sentimentos femininos. Evidentemente que,
ao contrário de Perrault, Carter não direcionou as suas obras ao público infantil, pois
percebe-se que o erotismo explícito é mostrado constantemente em suas narrativas.
Na verdade, Carter retoma a sexualidade feminina, sufocada ainda em um passado
não muito distante. Tanto que a escritora descreve a sexualidade à flor da pele, em
contrapartida com a decadência do amor.
[...] Senti-me tonta, como à beira do precipício; tive medo, não tanto dele, da
sua presença monstruosa, pesada, como se ao nascer lhe tivessem dado o
dom de uma gravidade maior que a de todos nós, presença que, mesmo
quando eu me sentia mais apaixonada por ele, mesmo quando ela me
oprimia sutilmente... Não, eu não tinha medo dele; mas de mim. (CARTER,
1999, p. 25-26)
118
De outro modo, a personagem-protagonista de Carter queria algo mais em um
relacionamento, além de somente ser objeto de desejo sexual. Em O quarto do
Barba-Azul, a protagonista, quando se deparou com a partida inesperada do marido,
confessou (lamentando o único momento de intimidade que teve com o Barba-Azul):
“E tive de me contentar com isso” (CARTER, 1999, p. 23).
Situação semelhante ocorre em A noiva do tigre, uma vez que Bela não
consegue entender as atitudes da Fera, visto que ela o deseja sexualmente, no
entanto, ele somente quer vê-la nua: “Julguei que a Fera tinha desejado muito pouco
perto do que eu estava preparada para lhe oferecer [...]” (CARTER, 1999, p. 108).
É sabido que, em tempos precedentes, jamais se discutia quanto à vontade
sexual da mulher, tanto que a virgindade era um fator essencial para que a mesma
se casasse e fosse aceita pela sociedade, uma vez que a moça considerada impura
era posta fora de seu lar e não mais era aceita no convívio familiar. Tanto que para
homens como o Barba-Azul, ignorantes ogros, a castidade feminina era motivo de
orgulho. O Barba-Azul, em Carter, comparou sua recente esposa casta às demais,
que possuíam vida pública e, com isso, sentiu-se enaltecido em sua virilidade
masculina em desposar uma menina nessa situação.
- A criada deve ter trocado as roupas de cama - ele anunciou. - Não
penduramos na janela os lençóis ensangüentados para que toda a Bretanha
soubesse que você era virgem, porque isso não se faz nestes tempos
civilizados. Mas devo dizer que teria sido a primeira vez que em meus vários
casamentos que poderia ostentar tal bandeira. (CARTER, 1999, p. 23)
Em O quarto do Barba-Azul, Carter desnuda a fêmea para mostrar o seu
corpo e seus desejos que em nada diferem dos masculinos, como em: “Minha pele
arrepiava-se quando ele me tocava” (CARTER, 1999, p. 9). Sendo assim, Carter
evidencia que o corpo da mulher possui uma linguagem que deve ser ouvida, tanto
que a autora desvincula o amor de sexo, ideal imposto às mulheres. Em relação a
isso Vivian Wyler (1999) menciona que o conto do Barba-Azul:
[...] propõe uma mulher que escolhe o lugar certo de colocar seu desejo,
que desvincula sexo de amor, que pode até aceitar o sadomasoquismo se
esta for uma troca negociada entre os parceiros. No decorrer da década de
80, Carter seria apelidada de “sacerdotisa da pornografia pós-graduada”.
(WYLER, 1999, p. xv)
119
Angela Carter mostra que hoje a virgindade o é considerada tema em voga
para a figura feminina, visto que a mulher se desfez dos espartilhos e de
vestimentas físicas e morais que a amordaçam e a escondam dos conturbados
olhos masculinos.
Em O quarto do Barba-Azul, a escritora criou um personagem cego, o
afinador de pianos e, com isso, comprovou aquele antigo ditado popular “cego é
aquele que não quer ver”, uma vez que esse personagem enxergou além do que os
olhos humanos são capazes de ver, ou seja, ele desvendou o mistério de Barba-
Azul com o auxílio da personagem-protagonista.
Possivelmente, a partir dessa situação, enxergar o que os olhos não vêem, a
escritora quisesse mostrar aos leitores que as características humanas, não
somente as femininas, são inatas, uma vez que, por um determinado tempo, essas
podem ser escondidas, abafadas, mas, em um certo momento, o inevitável
acontece, elas afloram, é uma situação normal à natureza humana. Por exemplo, em
contos precedentes, as mães das heroínas assumiam posturas submissas.
Enquanto em Branca de neve se tem uma mãe pensativa quanto à cor de cabelo e
de pele de seu futuro bebê, em Bela adormecida e Cinderela a figura materna se fez
ausente, em O quarto do Barba-Azul, de Carter, a figura materna foi descrita em um
cenário digno de filme de faroeste, ou seja, ela vinha cortando os ventos, montada
em um cavalo, com a saia erguida até a cintura e trazendo consigo uma pistola. A
mãe, neste conto, é uma heroína, que chega velozmente tal qual uma fera para
proteger sua amada cria, matando o agressor da mesma. No entanto, a valentia
dessa mulher não tomou forma somente neste momento, segundo sua filha, a
coragem já há muito acompanhava sua mãe:
Ao completar 18 anos, minha mãe abatera um tigre que estava devorando
um homem e que tinha atacado as aldeias montesinas a norte de Hanói.
Agora, sem hesitar um momento, levantou a pistola de meu pai, apontando-
a e disparou uma única e impecável bala, que atravessou a cabeça de meu
marido. (CARTER, 1999, p. 58)
Percebe-se que Carter, além de narrar a cena da chegada da mãe da
protagonista de forma bem humorada, deseja algo mais, ou seja, as palavras da
autora ditam novas idéias que se configuram em atitudes revolucionárias,
120
impressionantes. Na verdade, essa cena recompõe outra cena, a tradicional dos
contos de fadas, em que o príncipe chega, montado em seu cavalo, para salvar a
princesa.
Além disso, a mãe não era uma personagem ingênua que veio salvar a filha,
auxiliada por uma fada madrinha. Nada disso aconteceu, a mãe, mulher decidida,
forte e inteligente, trouxe consigo um revólver e, pelo jeito, sabia muito bem usá-lo. E
o homem rendeu-se diante do poder desta mulher.
Ironicamente este personagem reconstrói a nova imagem feminina que não
inutiliza o velho. A imagem bem conhecida de que a mulher é e e zelosa pelo
seu filho permanece, mas a partir daí se propõe uma figura recém-criada, saída do
forno, que extrapola os limites impostos para a figura feminina, uma vez que ela se
mostra aguerrida, corajosa e dotada de um sentido a mais em relação aos homens,
a sensibilidade, caracterizando a mulher, hoje e sempre. Somando-se a isso, a
autora brinca, ironiza com a imagem masculina consagrada em contos passados, ou
seja, a mãe resolve o caso com as suas próprias mãos, enquanto o homem que a
acompanhou durante o trajeto até o castelo era um mero espectador, um adorno
imóvel que nada acresceu à situação.
Em A corte do Sr. Lyon, de Angela Carter, o príncipe tinha a “cabeça de leão;
juba e fortes patas de leão; erguia-se nas patas traseiras como um leão furioso, mas
vestia um smoking de veludo vermelho-escuro e era dono dessa casa maravilhosa e
das colunas que a rodeavam” (CARTER, 1999, p. 68). Percebe-se que a descrição
de Carter em nada representa o estereótipo de homem perfeito e ideal. Aliás, nem
sequer é homem, na verdade é um animal, aparentemente feroz, mas a aparência
de nada importa se o mesmo veste-se elegantemente e possui muitos bens. Estes
são os valores sociais cultuados pela humanidade.
Carter, em A corte do Sr. Lyon, aproveitou a descrição de Branca de neve
para compor sua personagem que, na verdade, chamou-se Bela, uma vez que a
escritora utilizou-se do enredo de A Bela e a Fera e, além disso, rememorou um
trecho de As aventuras de Alice no país das maravilhas para estruturar a sua
narrativa.
121
Esta linda moça, com uma pele que tinha a mesma luz interior, como se ela,
também, fosse toda feita de neve [...] (CARTER, 1999, p. 63)
Nem sequer dinheiro teve para comprar para a sua Bela, para a sua
menina, para a sua querida, a rosa branca que ela tinha pedido; a única
prenda que ela queria, sem se importar com o que pudesse vir a acontecer,
sem se importar com ele poder vir a ser de novo muito rico [...] (CARTER,
1999, p. 64)
[...] Em cima da mesa, uma travessa de prata; no gargalo de uma garrafa de
uísque, uma placa com a inscrição BEBA-ME, e a tampa da travessa de
prata tinha gravado COMA-ME em letra cursiva [...] (CARTER, 1999, p. 66)
A corte do Sr. Lyon também é “um conto de fadas”, desse modo havia sinais
de encantamento nos portões e nas portas do castelo, que facilitaram a passagem
do viajante, pai de Bela. Isso faz lembrar Rosinha dos espinhos, de Grimm e A Bela
dormindo no bosque, de Perrault, uma vez que ambos os príncipes embrenharam-se
em cercas-vivas para entrar no castelo e, como magia, elas se abriam, fechando-se
após eles passarem.
Bela gostava muito de ler e era uma moça humilde. Na verdade, seu pai
tinha sido rico, mas perdeu tudo em jogos de cartas. A partir dessa atitude
inconseqüente do pai e de muitas outras mostradas no decorrer da história, percebe-
se o seu espírito fraco e inexpressivo.
Bela não presenciou a riqueza e nem viveu nela, pois ainda o havia
nascido. Sua mãe falecera ao dar à luz a menina. Assim como a personagem Bela
de Beaumont, a Bela de Carter também era dotada de sentimentos nobres e, talvez
por ser órfã de mãe, tinha real adoração pelo pai. Em conseqüência disso, faria
qualquer coisa para ajudá-lo e vê-lo feliz: “Não que ela não tivesse vontade própria;
mas tinha um invulgar senso de obrigação e, além disso, era capaz de ir até os
confins do mundo pelo pai, a quem amava profundamente” (CARTER, 1999, p. 70).
Nesse conto, a história original (hipotexto) e a recriada (hipertexto), como é de
se esperar, cruzam-se incessantemente, contudo, o surpreendente no conto recriado
é a Fera tornar-se uma herbívora, pois perdeu a coragem de caçar animais para se
alimentar.
- Estou morrendo, Bela - disse ele, num murmúrio fendido do antigo
ronronar. - Tenho estado doente desde que você foi embora. Já não
122
conseguia caçar, vi que não tinha coragem de matar aqueles delicados
animais, já não conseguia comer. Estou doente e vou morrer, mas morro
feliz, porque você me veio dizer adeus. (CARTER, 1999, p. 78-79)
E, no final, como no conto original, a metamorfose acontece, o encanto que o
havia tornado animal acaba. De outro modo, o encanto poderia ter se iniciado, uma
vez que a Fera se tornou num belo homem e, a partir daí, poderia se sugerir um
novo recomeço para a história.
Segundo Maria Tatar, em versões subseqüentes à original nem sempre se
encontra a explicação sobre o príncipe ter sofrido tal encantamento que o
transformou em uma fera, mas no conto de Beaumont, menciona-se que uma fada
má o havia enfeitiçado e o transformado em animal.
[...] Poucas versões da história explicam por que o príncipe sofreu
encantamento. Em algumas delas, a razão é sua arrogância, ou sua falta de
caridade para com uma mulher. (TATAR, 2004, p. 82)
Uma fada má condenou-me a viver sob essa forma até que uma bela moça
consentisse em me desposar [...]. (BEAUMONT apud TATAR, 2004, p. 82)
em A noiva do tigre, Carter situa o conflito do conto em sua frase inicial:
“Meu pai perdeu-me num jogo de cartas para a Fera” (1999, p. 83). Na verdade,
ambos os contos, A corte do Sr. Lyon e A noiva do tigre, abordam a história de A
Bela e a Fera. Desse modo, o nome da personagem-protagonista é o mesmo, além
de ambas serem órfãs de mãe.
Em A noiva do tigre, a razão da morte da mãe de Bela foi o cio do pai,
sendo que ele perdeu tudo em jogo, até mesmo o dote recebido pela família da
noiva, quando se uniram em casamento. Neste caso, a escritora revive um antigo
costume, estipulado por preceitos patriarcais, em que o casamento se efetivava
mediante pagamento.
Assim como Barba-Azul, a Fera de A noiva do tigre disfarçava-se de humano,
usando scara e peruca. Desse modo, Carter ironiza a representação dos papéis
masculinos, mascarados em falsos príncipes, porém perceptíveis aos olhos
femininos.
123
[...] Ah! Sim, uma linda cara; mas com demasiada simetria para ser
inteiramente humana: o perfil da máscara é a imagem perfeita do outro lado,
demasiado perfeita, misteriosa. Usa também uma peruca, de cabelos não
verdadeiros, atada na nuca por um grampo, uma cabeleira como as que se
vêem em retratos antigos. Um lenço de seda pura preso por uma pérola
esconde-lhe o pescoço. E luvas de pelica castanha, tão grandes, todavia,
que não parecem esconder mãos. (CARTER, 1999, p. 86-87)
a personagem Bela, em A noiva do tigre, desde a infância se mostrava
diferente, ou melhor, não se portava como as demais meninas. Era bastante vivaz e
rebelde, o que incomodava suas babás. Além disso, apreciava boas leituras.
Segundo Maria Tatar, tratando-se de Bela, não era nada comum apresentar-se
personagens de contos de fadas como leitores.
[...] É inusitado para personagens de contos de fadas aperfeiçoarem-se
através da leitura. A maioria deles é relegada a trabalhos servis em casa, ou
parte em viagens pelo mundo. (TATAR, 2004, p. 66)
No conto de Beaumont, Bela é desmedidamente nobre de coração, a ponto
de se sentir feliz por trocar a sua vida pela de seu pai, acrescentando que nunca foi
muito apegada à mesma e seria uma forma de provar a sua afeição por ele. Ainda,
no conto de Beaumont, Bela tem duas irmãs. Já no conto contemporâneo de Carter
a protagonista é filha única. No entanto, em Beaumont, a atitude de Bela em relação
às irmãs que a maltrataram é surpreendente, uma vez que ela as perdoa sem
nenhum ressentimento. A respeito disso, Tatar menciona:
[...] Como algumas Cinderelas (a de Perrault, para citar um exemplo), Bela
estava pronta a perdoar as irmãs, por mais perversas que tivessem sido.
Nos contos populares orais, Belas e Cinderelas tendem a ser menos
magnânimas. (TATAR, 2004, p. 74)
Em A noiva do tigre, com o passar do tempo, a menina Bela cresceu e as
suas características percebidas na infância afloraram em uma personalidade forte,
decidida, inviolável, virgem. Tanto que Bela não aceitava a situação de ter sido
vendida, trocada em jogo para a Fera. Dessa forma, a escritora aborda os temas
como prostituição, dinheiro, casamentos negociáveis e desprovidos de sentimentos.
Muitas passagens presentes no conto A noiva do tigre são reminiscências do
conto original, o hipotexto, como a visão do pai de Bela pelo espelho; a eclosão do
124
fogo dentro e fora da lareira; o oferecimento da roupa para cavalgar ou a roupa
limpa, pronta para ser usada; o desejo de Bela ver seu pai, entre outras.
Em A garota da neve, Carter seguiu seu estilo próprio, recortando passagens
de outros contos de fadas e inserido-as em sua recriação, tais como Branca de neve
(de Jacob e Wilhelm Grimm), de que a autora aproveitou o título também para
compor sua obra, além de Sole, Luna e Talia (de Giambattista Basile).
Em Grimm, o conto se inicia com o desejo de a rainha ter um filho, seguindo
características determinadas pela futura mãe. Em Carter, o conde deseja ter uma
garota conforme caracterizações semelhantes às da rainha do conto de Grimm. No
entanto, o conde não deseja uma filha, mas uma amante, pois ele se apresentava
cavalgando com a esposa ao lado.
[...] ela estava sentada a costurar, junto de uma janela com uma moldura de
ébano. Enquanto costurava, olhou para a neve e espetou o dedo com a
agulha. Três gotas de sangue caíram sobre a neve. O vermelho pareceu tão
bonito contra a neve branca que ela pensou: Ah, se eu tivesse um filhinho
branco como a neve, vermelho como o sangue e tão negro como a madeira
da moldura da janela” [...] (BEAUMONT apud TATAR, 2004, p. 86)
- Gostaria de ter uma garota branca como a neve - diz o conde.
Continuam a cavalgar. Chegam a um buraco na neve, cheio de sangue. Ele
diz:
- Gostaria de ter uma garota vermelha como o sangue.
Continuam a cavalgar; um corvo está pousado num galho nu.
- Gostaria de ter uma garota negra como as penas de corvo. (CARTER,
1999, p. 161)
Ao final das falas, o conde obteve o objeto de seu desejo, a garota da neve.
Assim como a rainha que, pouco tempo depois, deu à luz a uma menina. No
entanto, a garota da neve, tal qual Cinderela, sofre provações advindas não da
madrasta, mas da condessa, esposa do conde.
Em A garota da neve, a moça perece em uma das provas impostas pela
condessa. Como em Sole, Luna e Tália, a garota da neve, espeta o dedo em uma
roseira e morre e, mesmo estando morta, ela é abusada sexualmente pelo conde,
na presença de sua esposa. Em seguida, ambos partem. Cena semelhante é
narrada em Sole, Luna e lia, uma vez que a princesa havia espetado “uma lasca
de linho debaixo da unha” (BASILE, 1996, p. 53) e se encontrava adormecida. O rei,
125
que também era casado, entrou no castelo e, encontrando-a sozinha e encantada,
estuprou-a, posteriormente, esquecendo-se do ocorrido.
No primeiro conto, O quarto do Barba-Azul, há a presença marcante da mãe
da protagonista. Nos dois subseqüentes, A corte do Sr. Lyon e A noiva do tigre, as
protagonistas eram órfãs de mãe e, no último conto, A garota da neve, não se faz
menção aos pais da moça. Maria Tatar, a respeito disso, comenta que muitas
narrativas enfocam essa temática, visando enaltecer a benevolência de uma mãe
morta, em contrapartida vê-se uma madrasta cruel que se encontra viva.
[...] Os contos de fadas muitas vezes cindem a figura materna em dois
componentes: uma mãe boa, morta, e uma madrasta malévola, viva. Isso
permite às crianças preservar uma imagem positiva da mãe ao mesmo
tempo em que se entregam a fantasias sobre a maldade materna. (TATAR,
2004, p. 96)
De acordo com o que foi visto, é possível afirmar que o texto literário é o
reflexo social e histórico da humanidade, uma vez que perpassam nele situações
isoladas, somando-as, arrematando-as em um único contexto, o próprio texto, que
nada mais é que um processo intertextual. E o interessante é que nesses dois
últimos séculos as mulheres não escreveram somente contos de fadas, mas a
história social, a sua trajetória de vida. E, mais especificamente, quanto aos contos
analisados de Carter, percebe-se a verdadeira identidade feminina.
Carter comprovou que não é mais concebível considerar as mulheres como
“cidadãs de segunda classe”, uma vez que suas personagens protagonizam seus
papéis na ficção e na vida real. Além disso, a escritora desconstruiu a velha imagem
da figura feminina, recriando a mulher contemporânea. Essa não é princesa e nem
admite parecer-se como tal. É uma mulher normal que deseja tomar as rédeas de
seu destino, buscando a felicidade.
Na verdade, a escritora emancipou a figura feminina de um longo período de
dependência masculina. E, agora, considerada independente, a mulher quer
desfrutar de seus direitos.
126
Junto a Carter, as escritoras Drabble e Extrebarría também engajaram-se no
processo de composição da identidade feminina, o que será visto no subcapítulo
seguinte.
4.3 Escritoras engajadas no processo de composição da identidade feminina
Hoje, os estudos sobre a literatura feminina, feitos quase
sempre pela própria mulher, buscam uma leitura engajada com
o social, mostrando como as obras escritas por homens
construíram a estereotipia do feminino, através da passividade,
da história, ou do caráter fraco e maléfico das personagens
femininas.
PAIXÃO, 1997, p.73.
Neste subcapítulo serão realizadas algumas abordagens quanto às escritoras
Margaret Drabble e Lucía Extrebarría que, através de suas releituras e re-escrituras,
engajaram-se na composição da personagem feminina em suas obras, embora não
sejam autoras de contos infantis. Será citada ainda a teórica Marie-Louise von
Franz, de acordo com seus estudos realizados nesta área.
Margaret Drabble também adotou o mesmo processo de Carter. Apesar de
escrever romances e não contos, a escritora criou personagens e roteiros
concernentes aos novos tempos. Além disso, Drabble salienta a importância dos
romances e de suas personagens femininas, quando mostram a realidade vivida
pela mulher em âmbito mundial, visto que essas narrativas contribuem para a
composição da identidade social e psicológica feminina, em tempo presente e
também para uma perspectiva futura.
Muitas pessoas lêem romances a fim de encontrar padrões ou imagens
para futuras possibilidades para saber como se comportarem, o que
podem esperar ser mais tarde. Não queremos nos parecer com as mulheres
do passado, mas onde está nosso futuro? É isso, exatamente, o que muitos
romances escritos por mulheres estão tentando responder; alguns em
termos cômicos, outros de forma trágica e outros, ainda, de maneira
especulativa. Vivemos num mundo sem coordenadas, no que se refere ao
modo de viver e à moral; estamos tendo que criar nossa própria moralidade,
à medida que avançamos. Nosso campo é vastíssimo, padrões
totalmente novos a serem criados... os que sentem a necessidade de fazê-
127
lo estão ativamente empenhados em criar um novo padrão, um novo
esquema. (DRABBLE apud GUEDES, 1997, p. 8)
Assim como Drabble, Angela Carter também se enquadra nesta busca e
criação de um novo padrão a ser seguido pela mulher, em observância às suas
personagens femininas, ou seja, ambas mostram que nem tudo está perfeito ou é
aceitável do modo como se encontra. Desse modo, Drabble propõe ajustes ou
afrouxamentos para situações que se relacionam ao contexto feminino. E, tratando-
se da composição da identidade da mulher, principalmente em sua integridade
psicológica, quer na vida real ou na ficção, nada melhor que a própria mulher
realizar o seu auto-retrato e apresentá-lo à sociedade para que seja difundido.
Além disso, mais uma coincidência remete às obras de Drabble e Carter, as
referências intertextuais. Os romances de Drabble estão repletos de intertextos,
assim considera Guedes, comentando o estilo narrativo da escritora:
Seria impossível listar aqui todas as alusões e citações explícitas ou os
ecos sutis que entrelaçam as obras de Shakespeare, Austen, Dickens, Eliot,
Lawrence e outros com a trilogia de Drabble. Os textos de Drabble sempre
foram repletos de referências intertextuais. A intertextualidade é um aspecto
significativo de seu estilo narrativo e delineia a sua relação com um sentido
de tradição literária em permanente mudança e evolução. (GUEDES, 1997,
p. 60)
No entanto, nas obras de Drabble os intertextos acontecem também com as
personagens que se repetem em obras seqüenciais, conseqüentemente as suas
narrativas não apresentam final. Dessa forma, a escritora incita o leitor a buscar a
continuidade do texto que não se finda na última linha.
Provavelmente, Drabble tenha adotado esse estilo, abolindo o final de suas
narrativas, deixando as últimas linhas “entreabertas” à imaginação para salientar um
anseio feminino, a busca de uma “brecha”, um espaço no mundo dos homens, para
que a mulher possa mostrar o quanto é capaz, determinada em seus objetivos
pessoais e profissionais.
Desse modo, ela aproxima a ficção da vida real, uma vez que a vida é um
processo contínuo, que se desenrola cotidianamente. Provavelmente, essa nova
construção seja uma característica tipicamente feminina.
128
Nesse ponto, Angela Carter, Margaret Drabble e Lucía Etxebarría
assemelham-se, ou seja, suas personagens vivem conflitos psicológicos comuns a
qualquer mulher quando se encontra num processo de descobrimento e composição
de sua própria identidade.
“Eu gostaria”, disse Liz Ablewhite , após a meia-noite, com o olhar fixo nas
colunas flamejantes esbranquiçadas, irregulares, brilhantes e incertas da
lareira à gás, “de entender o sentido das coisas”. “Coisas” significava ela
própria. Ou pelo menos era assim que ela pensava. Eu gostaria”, disse
Alix, “de mudar as coisas”. “Coisas” não significava ela mesma. Ou pelo
menos ela achava que não. “Vocês querem chegar muito alto”; dizia Esther,
“eu quero obter informações interessantes. isso”. (DRABBLE apud
GUEDES, 1997, p. 22)
[...] No ha merecido la pena esforzarme en demostrar que soy una buena
chica. Antonio se ha muerto y no me importa. Borja está vivo y no me
importa. Lo único que me importaba, lo único que ha importado siempre, era
limpiar una mancha. Pero eso tampoco importa ya. Al fin y al cabo, la
limpieza ya no me obsesiona. Anita organizó una revancha de opereta y
Ana duerme con un extraño, confinada en una casa que ha demostrado no
necesitarla, recluida en un calabozo que ella misma ha decorado. Y yo me
siento vacía como una mujer burbuja. (ETXEBARRÍA apud ALMEIDA, 2003,
p. 35)
Essas três escritoras apresentam em suas obras o novo perfil da personagem
feminina. Além disso, Carter acresceu às suas personagens uma característica
comum ao sexo feminino na vida real, o sexto sentido. Etxebarría, utilizando-se
das personagens, irmãs Gaena, mostra o conflito psicológico vivido por três
mulheres (Cristina, Rosa e Ana), percebido através do vazio de suas vidas e das
escolhas erradas que fizeram, seguindo critérios medíocres, arraigados em falsos
valores.
[...] yo era la tonta de la casa, una buena chica sin más, pero me temo que
no era tan tonta, que soy demasiado lista, lo suficientemente lista, al menos,
para darme cuenta de que esta vida que llevo no me dice nada, y que lo que
yo querría es ser como tú, pero lo suficientemente tonta para no saber cómo
arreglar este desaguisado en que yo misma me he metido. (ETXEBARRÍA
apud ALMEIDA, 2003, p. 35)
De certa forma, essa procura contínua da mulher vem ao encontro das idéias
de Beauvoir, citadas por Zahidé Lupinacci Muzart.
O que falta essencialmente à mulher de hoje, para fazer grandes coisas, é o
esquecimento de si: para se esquecer é preciso primeiramente que o
indivíduo esteja solidamente certo, desde logo, de que se encontrou.
129
Recém-chegada ao mundo dos homens, e mal sustentada por eles, a
mulher está ainda ocupada com se achar. (BEAUVOIR apud MUZART,
1997, p. 89)
A mulher pode ainda não ter se achado no “mundo dos homens”, como
Beauvoir fez menção, e talvez, um dos motivos para que ela se depare com esse
período de desencontro seja porque, durante muito tempo, tenha sido obrigada a se
esconder do mundo, omitindo seus pensamentos e a sua própria identidade. No
entanto, percebe-se que muito do que a mulher sentia, tornava-se explícito na
composição das narrativas aqui trabalhadas.
Visto que Carter e Drabble, entre outras, inovaram em seus estilos narrativos,
relativizando palavras e contextos autoritários, bem como, atribuindo diferentes
interpretações para as últimas linhas de seus textos, percebe-se, desse modo, que
as escritoras contemporâneas estão modificando os finais de suas obras,
objetivando aproximá-los à nova postura feminina que se distancia de antigos
encargos patriarcais, como o casamento e a maternidade. A esse respeito, Guedes
menciona que:
[...] As escritoras do século XX têm tentado modificar os finais dos
romances – habitualmente episódios de casamento ou morte – criando
narrativas que oferecem uma série diferente de opções à heroína,
questionando assim as imagens tradicionais da socialização da mulher [...]
(GUEDES, 1997, p. 18)
Convém mencionar aqui, novamente, Margaret Drabble, citada por Peônia
Guedes (1997), uma vez que a escritora de romances como The Radiant Way, A
Natural Curiosity e The Gates of Ivory utiliza-se destes para apresentar ao público,
em especial feminino, a nova imagem da Cinderela contemporânea. Na verdade, as
personagens de seus romances, Liz, Alix e Esther, são Cinderelas ao avesso, ou
seja, mulheres que não admitem seguir o roteiro original desse conto de fadas. Na
verdade, a imagem de uma Cinderela sofredora, humilhada e sonhadora elas
decidem não viver, pois desejam ser felizes, compondo as suas próprias histórias,
desvinculadas de um passado marcado por preconceitos e censuras.
Desse modo, torna-se também impossível deixar de comparar as
personagens princesas de contos passados (de Basile, Perrault e Grimm) com a
130
princesa de Angela Lago, uma vez, apesar do distanciamento temporal dessas
narrativas, elementos intertextuais que as interligam deixando-as com um “ar de
semelhança”. Além disso, as personagens criadas por Angela Lago surpreendem
em adotar posturas nada convencionais, ou seja, personagens decididas e donas de
seus destinos, se comparadas às personagens de narrativas historicamente
disseminadas no meio cultural da humanidade, sendo que o papel feminino de suas
histórias está realmente condizente com o assumido pela mulher hoje, enquanto
personagem, mulher e escritora.
De outro modo, segundo a escritora chilena Guerra, citada por Navarro, a
produção feminina, mais especificamente, latino-americana, seria uma “proliferação
de sombras, a apropriação estratégica de modelos masculinos” (1997, p. 48). No
entanto, verifica-se que as obras das escritoras latino-americanas, como Angela
Lago e Lucía Etxebarría se contrapõem ao que Guerra afirma. Talvez, se Guerra
mencionasse que algumas e belíssimas exceções, fosse mais acertada a sua
colocação.
Angela Lago (2000) retrata o já conhecido em um novo contexto. Na verdade,
a escritora não reescreveu nenhum conto de fadas, mas a forma com que os
personagens, até então perenizados em seus papéis e posturas sociais, assumem
papéis inesperados é surpreendente. Tanto que o futuro príncipe, chamado Seinão,
é considerado um menino zonzo, indeciso e que o sabe o que realmente quer da
vida. Além disso, não possui sangue real, mas apaixona-se pela princesa.
A princesa não é nada convencional em suas atitudes, ou seja, é uma jovem
independente, inteligente e debochada. E, por não levar a sério o amor de Seinão,
propõe a ele uma tarefa impossível em troca de sua mão em casamento. Nessa
tarefa não há dragões e nem ao menos princesas que dormem sonos seculares.
Seinão deveria ir não sei onde e buscar não sei o quê. De acordo com a
determinação dessa prova, a princesa não queria se casar com o moço, aliás, ela
escolheria quem seria seu marido. Decisões impossíveis séculos atrás, uma vez
que a mulher era condicionada a aceitar as ações do destino, as quais significavam
as decisões da sociedade patriarcal.
131
O futuro príncipe foi submetido a uma missão que exigia coragem, situação
semelhante imposta aos demais príncipes de contos precedentes, que, na verdade,
representavam a coragem de forma simbólica, ou seja, eram os homens certos para
um certo momento. Assim, ele, o Seinão, andou em inúmeras direções e foi até o
inferno. Chegando lá, começou a trabalhar como atualizador dos arquivos e pastas
de pecados e pecadores. Em troca, receberia a encomenda da princesa, que ele
mesmo não sabia o que era.
De certa forma, essa obra retoma a idéia de que os príncipes do passado
também foram até o inferno para conquistar o amor da princesa. No entanto, um
certo dia, o diabo dispensou o garoto com um embrulho nas os, assim dizendo:
“É não sei o quê, mas você o pode abrir, pois se abrir deixa de ser” (2000, p. 18).
O menino chegou vitorioso ao palácio entregando o “não sei o quêà princesa, uma
vez que a sua tarefa era ir buscá-lo. Agora, Seinão está muito bem casado com a
princesa que não o queria, e o embrulho segue embrulhado.
Nessa história, o ambiente é o mesmo das narrativas conhecidas, uma vez
que havia um palácio e os sábios, conselheiros da princesa. Além disso, apesar de o
pretendente da jovem ser desorientado e não possuir sangue real, ele agiu como os
demais príncipes, sendo vitorioso em sua missão. Contudo, o diferencial está na
atuação da personagem feminina, a qual tem muito em comum com a mulher
contemporânea, pois ela se tornou independente, decidida, uma vez que é de sua
escolha optar pelo matrimônio ou não. E essa decisão era única e exclusiva da
jovem, sendo que os pais dela participaram da narrativa, porém jamais opinaram
quanto a sua escolha. Somando-se a isso, a missão atribuída ao futuro príncipe de ir
buscar um embrulho era somente um teste para se medir as suas virtudes e talvez, a
curiosidade deste, visto que em Amor e psiquê, a personagem feminina não
conseguiu ser mais forte que o seu ímpeto curioso e, por isso, ela não foi bem em
sua aventura, inicialmente. Seinão mostra-se diferente, tanto que o embrulho que ele
traz segue da mesma forma.
A imagem do príncipe Seinão de Angela Lago é bastante parecida com a
figura proposta por Liz Lochhead, citada por Izabel Brandão, isto é,
132
a imagem do príncipe que deveria simbolizar a perfeição, a completude e a
força do sexo masculino, é massacrada e ironizada pela princesa. Depois
de anos a fio reclusa, a princesa passou a se conhecer melhor e a
questionar todas as coisas que não entende ou que não preenchem seus
pré-requisitos. (LOCHHEAD apud BRANDÃO, 1997, p. 201)
Mais de cinqüenta anos se passaram desde o grito de basta das feministas
que não mais aceitam papéis submissos na ficção e na vida real. Aliás, Laura
Cavalcante Padilha tão bem expressou essa idéia, citando em seu artigo a fala de
Paula Tavares, escritora angolana: “Eu sinto-me melhor quando grito” (TAVARES
apud PADILHA, 1997, p. 67). Laura Padilha ainda afirma que o grito recalcado das
mulheres escritoras foram silenciados no passado pelos cordéis da dominação e que
Paula Tavares é um exemplo dessa repressão machista contra a escritura e
publicação de livros.
Franz já afirmava que “homens e mulheres não poderão reencontrar sua
natureza profunda senão no reconhecimento e no respeito de sua
complementaridade” (1995, p. 262). De acordo com essa visão, os tempos se
mostram renovados, uma vez que hoje, a mulher, a Bela adormecida do passado,
não necessita mais de um beijo para acordar. Mas, talvez, de um beijo para dormir,
após muito tempo estar acordada, escrevendo ou re-escrevendo sua história, numa
trajetória histórica em que assumiu inúmeros papéis, que variaram desde o de bruxa
até o de fada. No entanto, o mais importante no momento é escrever de próprio
punho a narrativa de sua vida e nela mostrar que a Bela não se encontra mais em
sono profundo e que papéis assumidos em remotos tempos não mais condizem com
sua postura contemporânea. É evidente que nesse contexto a emancipação
feminina o diz respeito somente à mulher, mas à libertação de um sistema
histórico de dominação masculina.
Foi graças a mulheres de diferentes épocas como Beaumont, Carter, Atwood,
Drabble, Etxebarría, Lago, Warner, Tatar, Lochhead, Franz, entre outras que,
pensando a personagem feminina ao longo de uma incessante caminhada de
sacrifícios e lutas, conseguiram desmistificar a representação determinada pelos
preceitos masculinos. Tanto que na atualidade vêem-se a Julie, as Angelas, as
Margarets, a Lucía, a Marina, a Maria, a Liz, a Marie-Louise, filhas, irmãs ou
mulheres de quem? A ninguém interessa responder esta questão porque elas
133
possuem as suas próprias sombras, não precisam representar que são sombras de
figuras masculinas. Elas representam o novo feminino que se abstraiu de modelos
passados. A imagem de donzela reprimida, a menina ignorante ou ingênua (como
em A bela adormecida) ou o extremo, a bruxa perversa, não se encaixa mais em
cenários contemporâneos. Visto que ao longo deste percurso, que pode ser
caracterizado como feminino, muitas transformações aconteceram, especialmente
relacionadas à postura ingênua da mulher. E essa mudança gradativa e contínua
pode ser muito bem representada pelas personagens de Carter, Drabble e
Etxebarría, entre outras.
Hoje, fruto de reivindicações, lutas, guerras, conquistas são colhidas. Sendo
acertado afirmar que a emancipação da figura feminina, enquanto escritora,
personagem e membro social, é parte da emancipação humana, o que deve resultar
no equilíbrio almejado de saberes por ambos os sexos. Desse modo, homens e
mulheres podem viver em harmonia os seus verdadeiros papéis em contos de fadas
ou na vida real, retratando os novos tempos, desde que saibam respeitar os seus
espaços e as suas próprias individualidades.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
É sabido que os contos existem desde o surgimento da humanidade,
contribuindo para moldar a sociedade em seu tempo e valores. O curioso é a
influência que estas narrativas exercem sobre a estrutura psicológica e social das
pessoas. Tanto que, ainda hoje, muitos sonham em ser príncipes e princesas, reis e
rainhas, além de desejarem viver em um conto de fadas, por mais que seja através
de outros meios. Como exemplo disso, os concursos de beleza em que a mulher
vive um conto de fadas na contemporaneidade.
No entanto, o que se observa na constituição desses desejos é que as
características dos personagens sofreram profundas transformações. Narrativas que
correspondem a modelos alinhavados e costurados em séculos antes de Cristo,
ainda circulam, no entanto percebe-se que moldes de príncipes-heróis e princesas-
indefesas desatualizaram-se em meio à evolução da humanidade.
É bem verdade que a mulher ainda sonha em ser princesa ou rainha, mas
com uma condição: ser normal. Nada de incorporar uma Madre Tereza de Calcutá.
Aliás, essa exigência fazia parte do passado, em que a mulher deveria ter uma boa
formação religiosa, que se estendia a ser uma boa filha, esposa, mãe, mulher
devota. Essa formação já não consta mais dos manuais de conduta feminina.
Desde os séculos IX a XIII, com a obra Sendebar, de Sendabad, a figura da
mulher permaneceu inerte, sem personalidade própria, em seus papéis, enquanto
bruxa, madrasta, fada, princesa ou rainha, e essa perspectiva feminina foi
disseminada também no século XIX pelos contos dos Irmãos Grimm, vindo somente
a ser repensada em meados do século XX, quando a recomposição da personagem
feminina passou a ser estruturada sob um novo enfoque, consoante com a ótica
feminista.
Percebe-se, realmente, com a obra Sendebar, ou também chamada de O livro
dos enganos das mulheres que a mulher passou a ser lograda, enganada em seu
papel, como traiçoeira, falsa, má. E, para desfazer esses enganos, muito
135
registrados e disseminados através da cultura e entre as culturas, Bettelheim e
Clarissa Pinkola Estés comprovaram que todo ser humano pode ser bom e mau,
sendo que essa variação torna-se comum quando o mesmo interage no meio em
que vive, uma vez que estes dois pólos opostos habitam o consciente humano.
Anteriormente a Bettelheim e Pinkola Estés, escritores como Basile, Perrault,
Grimm, Romero divulgaram e persistiram na velha imagem do mito feminino, anjo ou
demônio, que, na verdade, eles, como homens escritores, desejavam perpetuar,
uma vez que a sociedade feminina era moldada de acordo com os ditames
masculinos.
No entanto, movimentos começaram a se formar contra a discriminação
feminina, ainda quando os folhetins estiveram em voga e os contos ultrapassaram a
oralidade dos lares para alcançarem as ruas. Na verdade, as mulheres que
começaram a se reunir contra o poder asfixiante patriarcal, viram-se como soldados
que tomavam a frente e se prostravam diante de um pelotão extremamente armado
com valores excludentes e preconceituosos.
Nessa batalha, muitas mulheres morreram, outras foram presas ou internadas
em hospícios, mas foram raríssimas as que conseguiram driblar a vigilância
masculina. Seguiram redigindo seus contos, suas histórias anônimas ou registradas
com pseudônimos. Infelizmente, a história mostra que escrever contra a voz
patriarcal é como se a princesa lutasse de mãos vazias contra o dragão.
Mesmo contrariando a situação adversa, um movimento se formou. As
preciosas somaram forças, registrando as suas vivências, amarguras, desejos nos
contos de fadas. Inicialmente, as escritoras divulgavam suas obras a um grupo
seleto no interior de seus quartos ou salões.
Essas mulheres ousaram inserir-se em um universo de homens escritores.
Algumas iniciaram seus trabalhos auxiliando escritores na redação de livros. Outras
traduziram obras de homens, é claro!
136
Seguidoras de Mme d’Aulnoy continuaram a sua luta em favor das conquistas
femininas, apesar de sofrerem constantes humilhações, maus-tratos. Nesse
movimento de adesão literária, formado pelas preciosas, mulheres de muitas partes
do mundo irmanaram-se a esta causa.
Posteriormente, mulheres de coragem redobrada surgiram, as escritoras que
comprovaram que o estereótipo da figura feminina criada pelos homens em nada
condizia com a sua realidade. Elas estavam cansadas de usarem máscaras que
representavam papéis dissimulados no contexto literário e social.
Obras belíssimas surgiram, à luz da célula-mater oriental Calila e Dimna.
Evidentemente que as mulheres escreveram usando pseudônimos, principalmente
masculinos, para se protegerem e se inserirem em uma sociedade em que a
condição da figura feminina estava subjugada por longo do tempo ao poderio
masculino/patriarcalista.
Tristes realidades registradas em Marmoisan ou L’innocent tromperie, Peau
d’ours, Le magasin des enfants. Nessas narrativas, as escritoras vestiram suas
personagens de homens, soldados, em peles de urso, para serem vistas,
valorizadas ou fugirem de freqüentes maus-tratos. Nessas estão os registros de
tempos difíceis em que as mulheres eram condenadas a viver na segunda classe,
como diria Angela Carter.
No Brasil, em meados do século XIX e XX, escritoras como Júlia Lopes de
Almeida, Zalina Rolim, Francisca lia da Silva Munster e Alexina de Magalhães
Pinto começaram a despertar para o mundo literário, escrevendo para o público
infantil.
De outro modo, o reinado das mulheres começou sem mesmo elas se
tornarem princesas, sob novo perfil, com Reinações de Narizinho, de Monteiro
Lobato. Mundialmente, Alice e Dorothy já tinham mostrado a nova face feminina.
Essas personagens-protagonistas criadas por Lobato, Carrol e Baum
possibilitaram à mulher, na ficção, mostrar a sua real identidade e seu espírito de
137
liderança. Assim, percebiam-se novos rumos quanto ao destino da mulher, enquanto
personagem e membro social.
Visto que, em meados dos anos 50, o Movimento Feminista se firmou, em
muitas partes do mundo, inclusive no Brasil, convém salientar a presença de
Presciliana Duarte, dentre as escritoras brasileiras, que foi uma figura de destaque,
em âmbito literário e educacional, enquanto mulher e também feminista.
Dessa forma, com a disseminação do feminismo, sistemas sociais foram
revistos e, conseqüentemente, a literatura se inseriu nesta reavaliação. Marina
Warner havia afirmado que os contos de fadas possuem poder perene, ou seja, a
essência desses são sempre iguais, o que de diferencial são os interesses e as
necessidades do povo que determinam a sua moldura: “São histórias que possuem
um poder permanente, como mostra sua Antigüidade, porque os significados que
geram estão, eles mesmos, sempre mudando de forma e dançando segundo a
necessidade do público” (1999, p. 22). E os interesses do povo mudaram, tanto que
ritmos diferentes exigem novos movimentos, embasados em leituras representativas
de sua realidade.
De certo modo, os dolorosos anseios e apelos femininos do passado se
tornaram realidade. Essas solicitações tinham sido escritas nas linhas e
entrelinhas dos contos. Assim, as novas conquistas das mulheres, na verdade, não
passam de antigas reivindicações femininas. Na verdade, a militância política
feminista associada ao grupo restrito de escritoras transformaram a história social da
humanidade. Tanto que hoje a mulher pode optar pela carreira militar e concorrer a
patentes com os demais, homens e mulheres.
Conquistas as mulheres realmente tiveram, após uma longa caminhada de
escravidão, medo, obediência. Adquiriram sim, o direito ao voto, à educação, à
liberdade, à sexualidade, de optar ou não pelo casamento, de concorrer a cargos
públicos, de participar da esfera política e administrativa de seu país, de controle da
natalidade, de disputar vagas de trabalho em igualdade com homens, de conquistar
seu espaço profissional fora de casa (com isso, somando, infelizmente, uma dupla
138
jornada), mas o que se faz importante é que, através do trabalho, principalmente
literário, a distância entre homens e mulheres se fez menor.
Carter, Atwood, Lago, Drabble, Etxebarría, Lochhead, são escritoras que,
através de seus trabalhos, desmistificaram a personagem feminina, identificando a
nova mulher, que é decidida, corajosa, inteligente, sutil, esclarecida, trabalhadeira,
sensual, longe de endeusamentos, tanto que ela ainda sente momentos de
insegurança, medo e vazio existencial.
E, nessa releitura dos papéis femininos, as paródias, os intertextos se fizeram
mais que pertinentes, uma vez que o resultado foi o nascimento da mulher
contemporânea, que não admite mais estar constantemente sob o jugo masculino.
É bastante sugestivo o título usado por Pinkola Estes (Mulheres que correm
com os lobos), pois as mulheres correm com os lobos e não mais correm dos lobos.
E, segundo Marina Warner, as mulheres variam de fera à loira, de acordo com seu
bel-prazer. Agem como feras se querem lutar por seus ideais, seus filhos, sua
família. Quando querem mostrar-se femininas, as feras transformam-se em
morenas, ruivas, loiras, dependendo de seu estado de espírito.
As escritoras feministas adequaram seus personagens às atuais estruturas
sociais, bem como diria Rita Terezinha Schmidt (Mulheres e literatura: (trans)
formando identidades). Angela Carter permitiu que a Fera tirasse sua máscara e
vestimentas seculares, transformando-o, senão em um príncipe, em um animal
bonzinho. A personagem Bela, que muito vinha sofrendo, pensando em morrer,
na época de Beaumont, em Carter, deseja mais é viver e ser feliz. O ogro Barba-
Azul, de Perrault, tem um páreo duro para enfrentar, a sogra, personagem de Carter.
A história das protagonistas mulheres na literatura de autoria feminina registra
sua trajetória ao longo de séculos em que buscavam conquistar seu espaço. Além
disso, as obras escritas por mulheres assumem grande importância para o público
feminino, uma vez que contribuem para a composição da identidade da mulher em
tempo presente e futuro, quer seja na ficção ou na vida real.
139
Segundo Guedes, “a reinterpretação dos contos de fadas por escritoras
contemporâneas fornece textos mais positivos para as mulheres, em que os
estereótipos são rompidos e as possibilidades de desenvolvimento feminino são
reexaminadas e expandidas” (GUEDES, 1997, p. 78-79).
Contrariamente ao que Chaucer mencionou a respeito do sexo feminino, ou
seja, que quer mandar (ALMEIDA, 2003, p. 20), é possível afirmar que a mulher,
enquanto escritora e personagem, não quer representar papéis, mas quer sim viver
o seu papel em um espaço conquistado, em um território não mais somente
masculino.
Comprova-se, através da história que páginas e páginas foram escritas pelos
homens. Agora, novas páginas estão construindo ou reconstruindo o percurso
literário feminino, prenunciando novos tempos de igualdade.
A partir dessas observações, verifica-se a necessidade de se buscar
possíveis respostas ou alternativas que contribuam para o campo literário,
resultando em projetos novos relacionados à evolução da figura feminina nos contos
de fadas, através dos tempos, e também na ficção, seja ela assinada por mulheres
ou homens.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE, Juliana. Simone de Beauvoir: suas lutas feministas continuam
atuais. Revista Mátria. Brasília: Publicação da Confederação Nacional dos
Trabalhadores em Educação - CNTE, edição 2009, ano 7, n. 7, mar. 2009.
ALMEIDA, Lélia. As meninas más na literatura de Margaret Atwood e Lucía
Etxebarría. Revista Signo. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, v. 28, n. 45 (jul./dez.), p.
17-40, 2003.
AMARILHA, Marly. Estão mortas as fadas? Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
ANDERSEN, Hans Christian. A pequena sereia. Trad. Per Johns. Porto Alegre:
Kuarup, 1994.
ARRIGUCCI, Davi. Outros achados e perdidos. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.
BASILE, Giambattista. Sol, Lua e lia. In: A princesa que dormia: nas versões dos
irmãos Grimm, de Charles Perrault, de Giambattista Basile e de Sílvio Romero
(Edição plurilíngüe). Florianópolis: Paraula/EDUNISC, 1996.
BAUM, L. Frank. O mágico de Oz. Trad. Paulo Mendes Campos. Rio de Janeiro:
Tecnoprint, 1969.
BETTELHEIM, Bruno. Na terra das fadas: análise dos personagens femininos. Trad.
Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
BRANDÃO, Izabel. Liz Lochhead: reescrevendo papéis femininos em forma de
poesia. In: SCHMIDT, Rita Terezinha (Org.). Mulheres e literatura: (trans) formando
identidades. Porto Alegre: Palloti, 1997.
141
CARDOSO, Maria Helena. Por onde andou meu coração. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1973.
CARROL, Lewis. As aventuras de Alice no País das Maravilhas. Trad. Ricardo
Gouveia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
CARTER, Angela. O quarto do Barba-Azul. Trad. Carlos Nougué. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
CASCUDO, Luís da Câmara. Contos tradicionais do Brasil. São Paulo: Global, 2004.
CASHDAN, Sheldon. Os 7 pecados capitais nos contos de fadas: como os contos de
fadas influenciam nossas vidas. Trad. Maurette Brandt. Rio de Janeiro: Campus,
2000.
CHALLITA, Mansour. As mais belas páginas da literatura árabe: amor, humorismo,
sabedoria, espiritualidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.
COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas. São Paulo: Ática, 1987.
___________________. Panorama histórico da literatura infantil/juvenil: das origens
Indo-européias ao Brasil contemporâneo. São Paulo: Ática, 1991.
D’ONOFRIO. Salvatore. Teoria do texto 1: prolegômenos e teoria da narrativa. 2 ed.
São Paulo: Ática, 2006.
DUARTE, Constância Lima. O cânone e a autoria feminina. In: SCHMIDT, Rita
Terezinha (Org.). Mulheres e literatura: (trans) formando identidades. Porto Alegre:
Palloti, 1997.
DUARTE, Eduardo de Assis. A mãe obscura ou o diabo de saias no cordel
nordestino. In: SCHMIDT, Rita Terezinha (Org.). Mulheres e literatura: (trans)
formando identidades. Porto Alegre: Palloti, 1997.
142
ESTÉS, Clarissa Pinkola. Mulheres que correm com os lobos: mitos e histórias do
arquétipo da mulher selvagem. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Rocco,
1994.
FRANZ, Marie-Louise von. O feminino nos contos de fadas. Trad. Regina Grisse de
Agostino. Petrópolis, RJ: Vozes, 1995.
_____________________. A interpretação dos contos de fadas. Trad. Maria Elci
Spaccaquerche Barbosa. Rio de Janeiro: Achiamé, 1981.
GENETTE, Gerard. Palinsesti: la letteratura al secondo grado. In: OLMI, Alba. Uma
escritora de ficção e a ficção de uma escritora: os múltiplos processos da
autobiografia estética em Janet Frame. São Paulo: Scortecci, 2003.
GIBRAN, Kahlil. Asas partidas: o primeiro amor de Gibran. Trad. Mansour Challita.
Rio de Janeiro: Associação Cultural Internacional Gibran, 1983.
GRIMM, Irmãos. Rosinha dos espinhos. In: A princesa que dormia: nas versões dos
irmãos Grimm, de Charles Perrault, de Giambattista Basile e de Sílvio Romero
(Edição plurilíngüe). Florianópolis: Paraula/EDUNISC, 1996.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do
século XX. Trad. Teresa Louro Pérez. Rio de Janeiro: edições 70, 1989.
GUEDES, Peônia Viana. Em busca da identidade feminina: os romances de
Margaret Drabble. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1997.
KOCH, Ingedore Villaça. O texto e a construção dos sentidos. São Paulo: Contexto,
2000.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Trad. Lúcia Helena França Ferraz. São
Paulo: Perspectiva, 1974.
143
JOSÉ, Elias. Nota de apresentação. In: CARROL, Lewis. As aventuras de Alice no
País das Maravilhas. Trad. Ricardo Gouveia. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
LACERDA, Lílian de. Álbum de leitura: memórias de vida, histórias de leitoras. São
Paulo: UNESP, 2003.
LAGO, Angela. Indo não sei aonde buscar não sei o quê. Belo Horizonte: RHJ, 2000.
LAJOLO, Marisa; ZILBERMAN, Regina. Literatura infantil brasileira, história e
histórias. São Paulo: Ática, 1984.
LEONI, G.D. Literatura universal: esboço geral de uma história comparada das
literaturas. Rio de Janeiro: Edições de ouro, 1966.
LOBATO, Monteiro. Reinações de Narizinho. São Paulo: Círculo do Livro, 1990.
MEIRELES, Cecília. Problemas da literatura infantil. 2 ed. São Paulo: Sumus, 1979.
MENDES, M. B.T. Em busca dos contos perdidos: o significado das funções
femininas nos contos de Perrault. São Paulo: Editora UNESP: Imprensa Oficial do
Estado, 2000.
MENDONÇA, Martha. Malvadas demais: o mito da crueldade feminina segue através
dos tempos e ganha livro com as perversas da História. Revista Época. São Paulo:
Globo, n. 342, dez. 2004.
MUZART, Zahidé Lupinacci. A questão do cânone. In: SCHMIDT, Rita Terezinha
(Org.). Mulheres e literatura: (trans) formando identidades. Porto Alegre: Palloti,
1997.
NAVARRO, Márcia Hoppe. O discurso crítico feminista na América Hispânica. In:
SCHMIDT, Rita Terezinha (Org.). Mulheres e literatura: (trans) formando identidades.
Porto Alegre: Palloti, 1997.
144
NITRINI, Sandra. Literatura comparada: história, teoria e crítica. São Paulo: EDUSP,
1997.
NUNES, José Horta. Os leitores “na Europa” e “no Brasil”. Formação do leitor
brasileiro: imaginário da leitura no Brasil-Colonial. Campinas, SP.: Editora da
UNICAMP, 1994.
OLMI, Alba. Renovando a tradição pelos caminhos da intertextualidade. Revista
Signo. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, v. 31, p. 7-17, 2006. (Número especial)
__________ Uma escritora de ficção e a ficção de uma escritora: os múltiplos
processos da autobiografia estética em Janet Frame. São Paulo: Scortecci, 2003.
__________. Literatura grega: intertextualidade e interdisciplinaridade. Revista
Signo. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, v. 23, p. 7, n. 34, jan./jun. 1998.
PADILHA, Laura Cavalcanti. A diferença interroga o cânone. In: SCHMIDT, Rita
Terezinha (Org.). Mulheres e literatura: (trans) formando identidades. Porto Alegre:
Palloti, 1997.
PAIXÃO, Sylvia. A literatura feminina e o cânone. In: SCHMIDT, Rita Terezinha
(Org.). Mulheres e literatura: (trans) formando identidades. Porto Alegre: Palloti,
1997.
PELAYO, Menendez. Orígenes de la novela. In: COELHO, Nelly Novaes. Panorama
histórico da literatura infantil/juvenil: das origens Indo-européias ao Brasil
contemporâneo. São Paulo: Ática, 1991.
PERRAULT, Charles. Contos e fábulas: Charles Perrault. Trad. Mário Laranjeira.
São Paulo: Iluminuras, 2007.
PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. Trad. Regina Regis Junqueira. Belo
Horizonte: Villa Rica, 1999.
145
PERRAULT, Charles. A Bela dormindo no bosque. In: A princesa que dormia: nas
versões dos irmãos Grimm, de Charles Perrault, de Giambattista Basile e de Sílvio
Romero (Edição plurilíngüe). Florianópolis: Paraula/EDUNISC, 1996.
PROPP, Vladimir. As raízes históricas do conto maravilhoso. Trad. Rosemary
Costhek Abílio, Paulo Bezerra. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
REIS, C.; LOPES, A. C. M. Dicionário de teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1988.
ROMERO, Sílvio. O rei caçador. In: A princesa que dormia: nas versões dos irmãos
Grimm, de Charles Perrault, de Giambattista Basile e de Sílvio Romero (Edição
plurilíngüe). Florianópolis: Paraula/EDUNISC, 1996.
SANDRONI, Luciana. Minhas memórias de Lobato. São Paulo: Companhia da
Letrinhas, 1997.
SCHMIDT, Rita Terezinha (Org.). Mulheres e literatura: (trans) formando identidades.
Porto Alegre: Palloti, 1997.
SCLIAR, Moacyr. A primeira transgressora. Jornal Zero Hora, Porto Alegre, 17 ago.
2008. Donna ZH, p.17.
TATAR, Maria. Contos de fadas: edição comentada e ilustrada. Edição, introdução e
notas Maria Tatar. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2004.
WARNER, Marina. Da Fera à Loira: sobre contos de fadas e seus narradores. Trad.
Thelma Médici Nóbrega. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
WYLER, Vivian. Nota de prefácio. In: CARTER, Angela. O quarto do Barba-Azul.
Trad. Carlos Nougué. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo