22
com as obras-primas do modelo tradicional, estendendo-se desde Bach, de quem o
século XIX se apropriara como seu, até Brahms, e não mais além. Se se pode
afirmar que o Modernismo converteu muitos musicólogos em conservadores
musicais, também pode-se dizer que o Modernismo transformou muitos teóricos em
reacionários.
O próprio modelo foi uma criação característica do século XIX. Até por volta de
1800 [...] o repertório consistiu predominantemente de composições da própria
época; qualquer dimensão histórica era quase inexistente. Mas, depois da geração
de Hoffmann ter aprendido a venerar a música de Haydn, Mozart e Beethoven,
pressupôs-se automaticamente que o modelo continuaria crescendo no futuro, e que
as sólidas raízes para que isso ocorresse poderiam ser descobertas no passado,
bastando que os musicólogos se dessem ao trabalho de descobri-las. (Assim, uma
vez Bach reintegrado no modelo, o grande especialista de Bach, Philipp Spitta,
dedicou um esforço ingente aos precursores seiscentistas de Bach, Scheidt, Schütz e
Buxtehude). É como se a poderosa idéia de Hoffmann acerca da Quinta Sinfonia,
crescendo de uma célula-motivo única, tivesse sido transferida para o próprio
modelo. A grande música cresceu como se proviesse de algum misterioso pool
genético de origem alemã; historicismo, organicismo e nacionalismo foram todos
amalgamados na ideologia da época. Quando, depois de Schubert, Mendelssohn e
Schumann, surgiu uma disputa em torno da autenticidade dos ramos representados
por Wagner e Brahms, a questão foi finalmente resolvida, não por Tovey ou
Schenker, mas por Schoenberg, quando atribuiu ao segundo a origem de sua
própria linhagem. De fato, quase até os dias de hoje, a contínua evolução orgânica
do modelo da grande música permaneceu para muitos músicos um dogma
inconsciente. (KERMAN, 1987, p.89).
Kerman fez objeções, também, quanto ao modo de análise positivista, caracterizado
por uma extremada objetividade na abordagem da obra musical, distanciando-a por demais do
contexto que lhe deu origem, e pelo fenômeno do monismo, generalizado entre os analistas
desde os anos do pós-guerra, a despeito dos métodos por eles aplicados.
A concentração obstinada [dos analistas] nas relações internas de uma única obra
de arte é, em última instância, subversiva, no que diz respeito a qualquer visão
razoavelmente completa da música. A estrutura autônoma da música é apenas um
dos muitos elementos que contribuem para seu significado e importância. A
preocupação com a estrutura é acompanhada da negligência em outros aspectos
vitais – não só todo o complexo histórico [...], mas também tudo o mais que torna a
música afetiva, tocante, emotiva e expressiva. Ao retirar-se a partitura de seu
contexto a fim de examiná-la como organismo autônomo, o analista retira esse
organismo da ecologia que o sustenta. Dificilmente parece possível, em nossos dias,
ignorar essa sustentação.
Nos anos do pós-guerra, entretanto, uma poderosa atração foi exercida por
analistas – e exatamente por aquelas correntes de análise que se apoiavam de modo
sumamente dogmático num único princípio, um monismo ou (como foi por vezes
expresso de maneira reveladora) um “segredo” de forma ou coerência musical. Os
analistas que diferiram fundamentalmente em seus sistemas analíticos eram, não
obstante, monistas nesse sentido. [...] O atrativo da análise sistemática era
propiciar uma visão positivista da arte, uma crítica que poderia apoiar-se em
operações precisamente definidas e aparentemente objetivas, e repelir os critérios
subjetivos (e que, geralmente, sequer se autodenominava crítica) (KERMAN, 1987,
p.93).
Esses questionamentos com respeito à natureza e função da análise musical e à
limitação da abordagem analítica formalista, encetados a partir de meados da década de 1960