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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Retratos do exílio: experiências, solidariedade e militância política de
esquerda na fronteira Livramento - Rivera (1964-1974).
Marlon Gonsales Aseff
Florianópolis, dezembro de 2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Retratos do exílio: experiências, solidariedade e militância política de
esquerda na fronteira Livramento - Rivera (1964-1974).
Marlon Gonsales Aseff
Dissertação orientada pelo Professor
Dr. Paulo Pinheiro Machado e
apresentada a Banca Examinadora
Como requisito parcial para obtenção do
Título de Mestre em História
2
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Florianópolis, Dezembro de 2008
Retratos do exílio: experiências, solidariedade e militância política de
esquerda na fronteira Livramento - Rivera (1964-1974).
MARLON GONSALES ASEFF
Esta disssertação foi julgada e aprova em sua forma final para obtenção do título de
MESTRE EM HISTÒRIA SOCIAL
BANCA EXAMINADORA:
________________________________________________________________
Prof. Dr. Paulo Pinheiro Machado - Orientador (HST/UFSC)
___________________________________________________________________
Dr. Ricardo Virgilino da Silva (CSO - UFSC)
___________________________________________________________________
Dr. Luiz Felipe Falcão (HST - UDESC)
____________________________________________________________________
Dr. Henrique Espada Rodrigues Lima Filho (Suplente HST - UFSC)
3
SIGLAS:
ALN – Ação Libertadora Nacional
ANL – Aliança Nacional Libertadora
AP – Ação Popular
ARENA – Ação Renovadora Nacional
CENIMAR – Centro de Informações da Marinha
CIE – Centro de Informações do Exército
CIEX – Centro de Informações do Exterior
DOPS – Departamento de Ordem Política e Social
FRENTE AMPLA – Oficializada em 19 de novembro de 1966, grupo político que reuniu
Carlos Lacerda, Juscelino Kubitscheck e João Goulart contra o regime militar.
FRENTE AMPLA – O mesmo que Frente Amplio
FRENTE AMPLIO – Coalizão de centro esquerda uruguaia
FUG – Frente Única Gaúcha
MDB – Movimento Democrático Brasileiro
MNR – Movimento Nacional Revolucionário
MLN-T – Movimiento de Liberación Nacional - Tupamaros
M3G – Marx, Mao, Marighella e Guevara
OLAS – Organização Latinoamericana de Solidariedade
PCB – Partido Comunista Brasileiro
PCBR – Partido Comunista Brasileiro Revolucionário
PC do B – Partido Comunista do Brasil
4
PCU – Partido Comunista Uruguaio
PSD – Partido Social Democrático
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro
SNI – Serviço Nacional de Informações
SUPRA – Superintendência da Reforma Agrária
UNE – União Nacional de Estudantes
VAR-PALMARES – Vanguarda Armada Revolucionária Palmares
VPR – Vanguarda Popular Revolucionária
5
RESUMO
Esta pesquisa aborda as experiências de militantes políticos, exilados na cidade de Rivera, e
sua cidade gêmea, Santana do Livramento, na fronteira Brasil-Uruguai. Trata dos modos de
sobrevivência e de solidariedade vivenciados por esse grupo, bem como as negociações
com o poder ditatorial estabelecido a partir de 1964, e a militância política de resistência
constituida a partir daquele território. Para tanto, utilizou-se da História Oral e de
embasamentos da Micro-História na reconstituição do cotidiano daquela região em um
período de 10 anos a partir de 1964. Por esta fronteira passaram militantes de expressão
política naquele momento e que viriam a consolidar suas lideranças posteriormente, com a
redemocratização do país. Ali se estabeleceu um território permeado pela solidariedade,
onde ativistas e a população local trocaram experiências e partilharam momentos de tensão
e esperança.
Palavras-chave: exílio, ditadura, memória, fronteira, solidariedade.
ABSTRACT
This investigation explores the experiences of political militants, exiled on the city of
Rivera, and its twin, the city of Santana do Livramento, on the border Brasil-Uruguai.
Approach the ways of survival and solidarity, as well the negociations that this group
developed with the brazilian dictatorship, in a period that begins in 1964 and for the next
ten years. The people from these cities lived in the two past centuries a series of common
fights and political activisms that exceed the limits of the simple instititucional line that
separate both nations. Revolutions and political fights that are conspired at those places
influenced the political destiny of the borders of South America. In 1964, with the coup d`
état that shake the political structures in Brazil, this unusual border play the part of a
decisive turn, one more time, in the history of South America political fights.
Key-Words: exile, dictatorship, border, solidarity, memory.
6
Sumário
Agradecimentos............................................................................................................8
Apresentação.................................................................................................................9
CAPÍTULO I
De Fronteira e exílios: um cotidiano diferente.
1.1. Uma cidade diferente............................................................................................. 17
1.2. Entre combates e exílios........................................................................................ 22
1.3. A fronteira através da literatura............................................................................. 27
1.4. Excludente através das décadas..............................................................................31
1.5. A FUG conspira em Rivera.....................................................................................35
1.6. A chacina dos comunistas.......................................................................................38
CAPÍTULO II
Do outro lado da fronteira: Os caminhos da solidariedade.
2.1. “Todos para Rivera”................................................................................................47
2.2. Homens de fronteira, ratos! ....................................................................................59
2.3. A imprensa na linha de fogo....................................................................................68
2.4. Rota natural de fuga.................................................................................................76
2.5. Rumo a Montevidéu, passando pela fronteira..........................................................81
2.6. Os Lares da acolhida................................................................................................85
2.6.1. Orlando Burmann: recepção e passagem..............................................................87
2.6.2. Calle Molles 534 - O esquema de fronteira .........................................................98
2.6.3. Tentativa de Seqüestro em Rivera.......................................................................106
2.7. Romeu Figueiredo de Mello: resistência possível..................................................111
2.8. A família Santana: combatentes da desigualdade...................................................121
2.8.1. A chácara do Castelhano .....................................................................................122
2.8.2. A casa da Calle Paysandu....................................................................................124
2.9. “Antônio Almafuerte”, desafiando o arbítrio.........................................................127
2.10. O “Hotel” de Nery Medeiros................................................................................138
2.11. Família Penalvo: com Jango no exílio..................................................................142
CAPÍTULO III
Trabalho, experiências e solidariedade no exílio
3.1 Mallharia Burmann, êxitos, fracassos e sobrevivência ............................................154
3.2 Sobrevivência e militância, uma difícil opção..........................................................160
3.3 Espaço de contato e solidariedade, a Confeitaria Metropolitana..............................163.
3.3.1 Um guerrilheiro na Metro.......................................................................................167
3.4.Adán Fajardo luta pela dignidade..............................................................................171
3.5 Redes de amizade, parentesco, negociações .............................................................182
Considerações Finais......................................................................................................191
Fontes Bibliográficas......................................................................................................195
7
AGRADECIMENTOS
Esta pesquisa não poderia ser realizada sem a confiança em mim depositada
pelos membros do Programa de Pós-graduação em História (PPGH), que aceitaram a
tarefa proposta, incentivando e estimulando na absorção de uma carga teórica
fundamental para a conclusão do desafio que foi estudar esse período ainda delicado
na história recente do país, e particularmente na fronteira do Brasil e Uruguai.
Agradeço ao CNPQ, por ter proporcionado uma bolsa de estudos, que foi
fundamental para a realização da pesquisa, bem como a FAPEU, que possibilitou
viagens e auxílio para a conclusão deste trabalho.
Agradeço a colaboração fundamental de Liane Chipollino Aseff, que sugeriu
novas perspectivas de abordagem, indicou fontes e compartilhou de muitas incursões
de campo em sua fase inicial. Também o apoio de minha família, nas pessoas de
Maria Helena e Jesus Aseff, sempre prestativos e prontos para auxiliar.
Agradeço aos entrevistados, personagens que vivenciaram aqueles difíceis anos
do exílio, e que em mim confiaram, ao abordar um tema ainda dolorido e repleto de
traumas. Todos foram de fundamental importância nesta investigação. Agradeço a
cada um, na pessoa de Perseverando Fernandes Santana, memorialista da fronteira,
sempre disposto a compartilhar suas impressões, seus arquivos, com humildade e
grande aporte intelectual.
Por fim, gostaria de compartilhar os acertos e pontos altos desta pesquisa com
meu orientador, professor Dr. Paulo Pinheiro Machado, que indicou renovados
caminhos e apontou eventuais falhas. Sem a sua bússola, esta pesquisa não seria
possível. Também gostaria de agradecer ao prazeroso convívio e os momentos de
grande crescimento intelectual proporcionados pelos professores Dr. Henrique
Espada Lima Filho e Dr. Adriano Luiz Duarte.
Este trabalho é dedicado a Tiago Chipollino Aquines e Sofia ChipollinoAseff.
8
Apresentação
Esta pesquisa aborda a constituição de relações de trabalho e solidariedade
vivenciadas pelos exilados brasileiros na cidade de Rivera, Uruguai, fronteira com a
cidade brasileira de Santana do Livramento. Pretende historicizar a trajetória desse
grupo, bem como aqueles que atravessaram essa fronteira em busca de refúgio e salvo
conduto, em um período de 10 anos, a partir da deflagração do golpe de estado que
destituiu o presidente João Goulart do poder, em 1º de abril de 1964.
Em sua dimensão mais ampla, esta dissertação busca reconhecer os aspectos de
solidariedade, trabalho e integração política desse grupo nos anos que separam o
golpe brasileiro da ofensiva ditatorial uruguaia, em um período aonde os governos
militares viriam a se instalar em todo o Cone Sul. Motivou-me nessa empreitada o
ineditismo dessa abordagem, particularmente no que se refere a esta singular
fronteira, dentro da história do exílio brasileiro. Nessa trajetória, podemos ver surgir
renovados personagens de uma luta política que teve em 1964 um turno decisivo na
história recente do país, inserida em uma cronologia de lutas que se desenvolveu
intensamente nos dois últimos séculos da história do Brasil e da América Latina.
Gostaria de enfatizar o aspecto dessa pesquisa enquanto uma história conectada aos
processos que sacudiram a América Latina nesse período, antes de delimitá-la
unicamente ao contexto brasileiro dos acontecimentos.
1
Para construir este relato busquei na História Oral e em arquivos delimitados,
como jornais, manuscritos pessoais, cartas e uma bibliografia específica, o relato de
fontes que vivenciaram de alguma maneira o momento político em questão, desde
militantes que tiveram suas vidas afetadas diretamente pelos acontecimentos, até
anônimos protagonistas que de uma maneira ou de outra se viram envolvidos na teia
1
“Em 1962, os militares peruanos antecipam-se à posse do populista Haya de la Torre e ocupam o poder; em
1963, um golpe militar derrubou o governo do moderado e confiável Juan Bosch, na República Dominicana;
em 1964, caíram os também populistas João Goulart, do Brasil, e Paz Estenssoro da Bolívia ; em 1965, as
tropas da OEA, capitaneadas pelos Estados Unidos, intervieram e impediram uma restauração democrática na
República Dominicana; em 1966, as Forças Armadas ocuparam o poder na Argentina; em 1968, novamente
os militares assumiam o governo no Peru; em 1973, chegaria ao fim a experiência socialista chilena com o
sangrento assalto ao poder por Pinochet; também no mesmo ano , deixava o Uruguai de de ser a ‘Suíça da
América’; em em 1976, mais uma vez os militares ocupavam o governo argentino após um curto interregno
9
de solidariedade e luta pela sobrevivência que urdiu a todos os que procuraram abrigo
nessa região de fronteira. Em cerca de 40 horas de entrevistas gravadas com 30
pessoas, busquei o relato dos envolvidos de alguma maneira naquele exílio. Desde os
atores políticos estabelecidos em ambas cidades e que se envolveram diretamente
com o novo grupo, até os solitários combatentes políticos e aqueles que vivenciaram
com suas famílias a nova realidade do desterro. Pesquisei em acervos que incluem a
Biblioteca Nacional do Uruguai, em Montevidéu, o Museu de Comunicação Social
José Hipólito da Costa e o Acervo da Luta contra a Ditadura, no Museu do RS, em
Porto Alegre, as bibliotecas municipais de Santana do Livramento e Rivera, até
acervos pessoais em Porto Alegre, Pelotas, São Borja e Santa Maria. Nos relatos orais
sobressaíram-se o depoimento das mulheres, esposas e mães de família, que tiveram
que acompanhar seus maridos na busca pelo refúgio. Também as lembranças dos
filhos dessas famílias exiladas, que vivenciaram uma realidade de dificuldades desde
um ponto de vista infantil, porém não menos intenso.
Busquei na História Oral caminhos para a construção dessa pesquisa,
observando limites e possibilidades, assim como novos direcionamentos nas diversas
redes de significados abertos ao historiador. Conforme assinala Antônio
Montenegro
2
, o próprio termo "História Oral" ainda carrega consigo um significado
para muitos tido como pejorativo, separando-se daquela história usualmente
considerada "pura", ou seja, vertida de documentos escritos e de fontes apresentadas
como confiáveis. Traria no seu cerne algo difícil de ser mensurado, etéreo,
confundido muitas vezes com a memória e seus imprecisos caminhos. A construção
de uma história onde o historiador se faça inteiro em seu ofício, no entanto, deve
envolver fontes escritas e orais, submetidas a um debate que resulta no texto, livre de
visões interiorizadas, de sensos comuns, determinismos e naturalizações. É certo que
a subjetividade também está implicada no processo onde, conforme Montenegro, é
preciso "rachar" a idéia de um tempo passado, presente e futuro. Entretanto, para
historicizar um fato é preciso ir além de simples perguntas e respostas, já que muitas
questões não estimulam memória alguma. Ou seja, é necessário para o historiador
de governantes civis. In: GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. História Contemporânea de América
Latina: 1960-1990. Porto Alegre. UFRGS Editora, 1993. p.28.
2
MONTENEGRO, Antônio. História Oral e Memória. São Paulo: Contexto, 1994. p.115.
10
cruzar as dimensões da memória com outras relações, muitas vezes subjetivas e
implicadas no contexto. A este desafio me propus.
A questão remete a uma necessária articulação da história oral com outros tipos
de fontes históricas, e a necessidade da história oral alcançar diferentes fontes, como
condição imprescindível para vencer um caráter individual inerente. Como "arquivo
provocado", nas palavras de Jean-Jacques Becker, a história oral tem como primeira
dificuldade a fala particular, onde não se fala em nome de um grupo, mas no
individual.
3
Nunca confiar em uma única fonte é um mandamento que deve ser
acompanhado sempre da prudência, ao adaptar o método ao objeto.
4
Arquivos
provocados podem reconstituir lembranças deliberadas, que coincidam, se adaptem, e
justifiquem fatos que ocorreram mais tarde, justificando assim posições políticas ou
atitudes anteriormente adotadas. Há necessidade de verificação da natureza do
depoimento, o processo de constituição e a validade, bem como os usos e
interpretações da entrevista. Torna-se necessário, como lembra Carlos Fico
5
, detectar
possíveis “deslocamentos de sentido”, onde a memória, impregnada por novas
demandas, desvia-se para um caminho que antes de mais nada busca justificativas,
incorporando visões distorcidas, mesmo acreditando-as verdadeiras. Daí o cuidado
necessário ao colher essa memória construída sob as experiências realmente vividas,
mas também enquanto ecos dessas experiências, com as distorções, as culpas, os
fantasmas, as colorações da hora, as projeções, como assinala Carina Perelli.
6
Contradições que devem ser observadas pelo historiador, como bem mostrou
Alessandro Portelli ao analisar o pós-guerra na Roma libertada, onde muitas vezes a
memória é filtrada, substituída, exterminada por outra memória, na busca de uma
coerência e um significado. Um espaço onde as contradições podem perturbar a
construção de uma memória “coerente e pacífica”.
7
3
BECKER, J.J. "O Handicap do a posteriori" in FERREIRA, Marieta de Morais e AMADO, Janaína. (org.)
Usos e Abusos da História Oral. Rio de Janeiro: FGV, 2ª edição, 1998, p. 27.
4
Idem. P.29.
5
Reflexões mais aprofundadas sobre estas questões podem ser obtidas em FICO, Carlos. Como eles agiam.
Rio de janeiro: Record, 2001.
6
PERELLI, Carina. “El Poder de la memória, la memória del poder” apud SOSNOWSKI, Saul (org).
Represion, Exílio y Democracia – La Cultura Uruguaya. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental. 1987.
p. 322.
7
PORTELLI, Alessandro. “A Bomba de Turim: a formação da memória no pós-guerra”. In: História Oral. v.
9. n 1. p. 69-72, jan-jun 2006.
11
Cabe aqui reforçar que o debate acerca dos conceitos de memória e história
posiciona renovadas formas de conceber a prática historiográfica, estando os relatos
orais no centro dessa discussão sobre a produção de fontes documentais seguras.
Jacques Le Goff, em sua obra “História e Memória” adverte para uma perspectiva
eficaz da memória, questionando a dita objetividade na construção dos fatos a partir
de documentos históricos escritos. Para Le Goff, os processos de manipulação se
manifestam em todos os níveis da constituição do saber histórico.
8
Em tempo, Marieta de Moraes Ferreira e Janaína Amado sublinham que poucas
áreas têm esclarecido melhor que a história oral o quanto a pesquisa empírica de
campo e a reflexão teórico-metodológica estão indissociavelmente interligadas,
demonstrando de maneira convincente como o objeto histórico é sempre resultado de
uma elaboração. Como nas palavras de Jacques Revel, uma história que confira
“estatuto ao excepcional e ao único”, onde o social é lido como uma realidade
construída pelo historiador.
9
Convém ressaltar que, na intenção de reforçar a peculiaridade dos laços
culturais dessa região, onde a indefinição de uma fronteira física delimitada propõe
uma cultura em comum, que dialoga constantemente, mantive as transcrições das
entrevistas com o linguajar típico dessa fronteira. Ali as palavras em espanhol são
apropriadas pelo português falado do lado brasileiro, e vice-versa. Muitas vezes é o
“portunhol” que se sobressai, em uma mistura que ao final não pertence a nenhum
dos dois idiomas, mas que reforça um espaço em comum entre as populações de
Rivera e Santana do Livramento. Interessante notar, por exemplo, que em
determinados relatos, como o do advogado uruguaio Jorge Fajardo, o entrevistado
falou em espanhol fluente em um primeiro contato, e sem que ninguém o
influenciasse para isso, trocou o idioma para o português, em um segundo encontro.
Feitas essas observações, devo acrescentar que busquei estabelecer nos três
capítulos que compõem esta dissertação uma reflexão acerca do exílio brasileiro em
Rivera, em suas nuances de atuação política e de luta pela sobrevivência. Também me
propus a explorar algumas questões que superam os movimentos de fuga e
8
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Unicamp, 4
a
Edição, 1996.
9
REVEL, Jacques. A invenção da Sociedade. Rio de Janeiro: Bertrand. 1989. p. 6, 7.
12
resistência, buscando responder a algumas indagações que apontam para a dinâmica
política da região de fronteira, para além dos limites do “nacional”, bem como a
situação ambígua e singular dessa região, de troca política e econômica.
10
No primeiro capítulo o estudo irá contemplar a fronteira como território de
fuga, conspiração e exílios desde as lutas Imperiais pela constituição do território.
Situo a região em suas peculiariedades geográficas e econômicas, buscando através
do depoimento de personagens que estiveram diretamente envolvidos com a luta
política na região durante o século 20, mostrar as características da exclusão social e
da luta sindical naqueles municípios durante o século passado. Busquei também
estabelecer determinados marcos da luta política que se intensifica a partir dos
tratados de limites entre os impérios português e espanhol e posteriormente entre os
estados brasileiro e uruguaio. Antes de me propor a realizar uma irrisória “história
geral” das cidades e da região, quero sim mostrar como os marcos institucionais nem
sempre estiveram presentes nos desdobramentos de lutas políticas urdidas na rica
confluência social e cultural de fronteira. Para isso, fiz uso de referências
historiográficas da região, marcada pela investigação de historiadores como Ivo
Caggiani, Waldemar Rodrigues Navarro, Aníbal Barrios Pintos, Cirino Bittencourt de
Carvalho, além de escritores, jornalistas e viajantes referidos ao longo deste capítulo.
Também utilizei a perspectiva antropológica de Andréa Quadrelli, na identificação de
como essa população vive um ambiente em comum, mesmo sob marcos de estados-
nação bem delimitados. Com isso, pretendi trabalhar dentro de novas e variadas
perspectivas, que vislumbrassem campos intradisciplinares, necessários para a
compreensão de novos temas, surgidos de minhas pesquisas sobre a dimensão do
exílio e as especificidades desse objeto de estudo.
Em um contexto onde a fronteira surge como palco de uma história rica em
fugas, exílios e negociações, acentuam-se características locais únicas, relacionadas
com as trocas culturais, econômicas e políticas entre os dois países. Nesse espaço as
10
O espaço físico que compreende essas cidades teve um papel não menos protagonista das lutas que ali se
desenvolveram. Partilho aqui das reflexões de Bernard Lepetit, quando afirma que “o território é
essencialmente uma memória, e seu conteúdo é todo constituído de formas passadas – istó é, de algumas
dentre elas, das quais só subsiste o que pode ser compreendido pela sociedade que, em cada época, trabalha
seus quadros”. In: LEPETIT, Bernad. Por Uma Nova História Urbana. São Paulo: Edusp. 1996. p 149.
13
famílias exiladas alteraram e fundaram novas relações culturais entre si e a
comunidade em seu entorno. Para trazer à luz esses personagens, busquei um modelo
que se contrapõe a uma história de cunho totalizante, que prioriza apenas uma escala
de observação como variável de experimentação, prisioneira de uma "tendência geral
mais visível". Nas palavras de Jacques Revel:
[...] Já que os modelos narrativos-analíticos clássicos deixaram de ser convincentes, que é
preciso fazer – que se pode fazer – para contar uma vida, uma batalha, um episódio qualquer ?
Se, por hipótese, renunciarmos às convenções estabelecidas do gênero – a continuidade de uma
história inscrita entre um começo e um fim, a descrição com base na evidência, etc – que
acontece com os objetos que o historiador se atribui? Eles se tornam objetos problemáticos.
Uma experiência biográfica [...] pode assim ser relida como um conjunto de tentativas, de
escolhas, de tomadas de posição diante da incerteza. Ela não é mais pensável apenas sob a
forma da necessidade, mas como um campo de possibilidades entre as quais o ator histórico
teve de escolher.[...] A escolha de um modo de exposição participa aqui da construção do
objeto e de sua interpretação.
11
Para entender as conjunturas do exílio e suas nuances, priorizei uma abordagem
distanciada de uma visão simplista e dicotômica, onde “dominados e dominantes”
surgem como elementos impedidos de se posicionar sob novos prismas, atrelados a
determinados mecanismos de poder. Diminuindo a escala de observação, ou antes,
variando essa escala na busca por uma representatividade de amostras, busquei
identificar a espiral de reações, as memórias políticas e sentimentais que os
indivíduos em torno daquela comunidade fronteiriça foram experimentando a partir
de 1964. Procurei dessa forma “uma atitude intelectual que se alimenta da convicção
de que o olhar através do microscópio, o interesse pelo minúsculo – ou mesmo, no
limite, pela miudeza e por aquilo que mais facilmente se negligencia -, pode revelar
dimensões inesperadas dos objetos e, com sorte, perturbar convicções arraigadas no
domínio da história”.
12
Um desafio que envolveu um olhar aproximado sobre essas
redes de convívio e de solidariedade, que mostram, em outra instância, os
desdobramentos dos projetos políticos e pessoais dessa geração.
No segundo capítulo abordo a fronteira já sob os efeitos do golpe cívico-militar
de 1964. Debruço-me sobre o momento do golpe na vida dos atores locais e os
primeiros momentos do exílio. A rota natural de fuga para o Uruguai é
11
REVEL Jacques. Microanálise e construção do social. In: Jogos de Escalas: a experiência da micro-análise.
Rio de Janeiro: FGV, 1988. p. 37, 38.
12
LIMA. Henrique Espada. A micro-história italiana. Escalas, indícios e singularidades. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2006. p.13,14.
14
particularmente analisada, assim como a atuação da imprensa local na tentativa de
resistir e os efeitos que o movimento imprimiu na vida política local. Abordo os lares
de acolhida, onde exilados já estabelecidos em Rivera recebiam aqueles que
buscavam abrigo provisório ou passagem para outros países do continente. Revelo o
chamado “esquema de fronteira” e um de seus maiores articuladores, o deputado
petebista cassado, Beno Orlando Burman. Outros protagonistas das ações solidárias e
de articulação política também são trazidos à tona, como o clã de Romeu Figueiredo
de Mello, Antônio Apoitia Neto e as famílias Santana e Medeiros, entre outros atores
desse período.
Finalmente, no terceiro capítulo, debruço-me sobre as ações de solidariedade
efetuadas pelos atores políticos locais, médicos, advogados e militantes anônimos,
que permitiram uma vida minimamente digna ao grupo exilado a poucos metros do
território brasileiro. Mostro as ações de acolhida, as formas de trabalho e as condições
de vida que o grupo experimentava. Trago à luz as negociações entre essas famílias e
os agentes da repressão estabelecidos no Brasil, as redes de parentesco e a tolerância
política estabelecida entre as famílias exiladas e os responsáveis pela nova ordem.
Essa reflexão também vai abordar a difícil tarefa do grupo exilado em reconstruir a
vida familiar e profissional longe de sua terra natal, mas a poucos metros da pátria,
muito embora separados por uma linha imaginária que configurava os limites da
liberdade.
Nessa empreitada busquei o relato oral de pessoas que estiveram envolvidas no
calor dos acontecimentos que moldaram aqueles anos na fronteira com o Uruguai.
Pessoas como o advogado Antônio Apoitia Neto, que exerceu um papel importante
na acolhida e auxílio aos que buscavam o refúgio uruguaio. O pecuarista
Perseverando Santana, memorialista da fronteira, que guarda a vivência dos anos
mais intensos da política regional, desde a revolução de 30 até o golpe de 1964 e seus
desdobramentos. Também foi importante colher o depoimento de uma geração de
protagonistas daquelas lutas, mesmo vivenciando-as em um período da infância e
adolescência, como é o caso do advogado uruguaio Jorge Fajardo, o engenheiro
Pedro Dávila de Mello, o vereador Sérgio Burmann. Desvendando verdadeiras teias
de relacionamentos, fui montando peças de um quebra-cabeça que aos poucos foram
15
acrescidas de um ou outro nome, que por sua vez revelavam novas conexões. Nessa
missão, foram importantes os arquivos pessoais, assim como os periódicos e revistas
pesquisados na Biblioteca Nacional do Uruguai. Também os jornais brasileiros, e
particularmente os de Santana do Livramento e Rivera. Algumas fontes que poderiam
acrescentar muito a esta pesquisa não se mostraram disponíveis, por motivos
diversos, como o advogado Tarso Genro, então Ministro da Justiça do governo
brasileiro, ou o professor Estoécel Santana, em Santana do Livramento. Por outro
lado, há de se considerar que a pesquisa em fontes bibliográficas, como as obras de
memórias do período, exigiu um esforço sempre presente, ao considerar-se as
ressignificações e legitimações de posições adotadas naquele momento e que hoje
devem ser pesadas, separadas, avaliadas meticulosamente. Por fim, devo dizer que
documentos inéditos como os apontamentos de Beno Orlando Burmann foram
fundamentais para uma compreensão dos acontecimentos, medidos em parâmetros
novos e que sugeriram novas ligações ao quebra-cabeça que se desenhava, enfocando
as redes de solidariedade e a atuação dos grupos de exilados naquela fronteira.
16
CAPÍTULO I
De fronteira e exílios, um cotidiano diverso.
1.1 - Uma cidade diferente
Santana do Livramento e Rivera podem ser consideradas cidades gêmeas.
Principal núcleo urbano encravado em pouco mais de mil quilômetros de fronteira
entre Brasil e Uruguai, a região possui características que a distingue das demais
áreas de fronteira brasileiras, pois é notável a integração cultural entre os dois povos,
ao mesmo tempo em que resistem os marcos institucionais e de nacionalidades bem
definidas. Desde as primeiras décadas do século XIX, a região se constituiu em
espaço privilegiado de trânsito internacional de pessoas no Cone Sul e uma das
principais rotas de comércio entre Brasil, Uruguai e Argentina, ainda sob seus
Estados em gestação. Ali, é possível se afirmar, se gerou uma “cultura política de
fronteira”, onde as atuações políticas muitas vezes extrapolaram os limites territoriais,
como veremos, moldando um cenário de intensa troca política, com ingredientes que
se acentuariam nas lutas pela independência dos países do Prata e, posteriormente,
nas idas e vindas das revoluções, exílios e movimentações políticas que imprimiram
uma característica singular a região. Eventos em comum, como os conflitos políticos
localizados, a industrialização e os surtos de crescimento econômico, fizeram surgir
atores políticos bem definidos, como os operários que desconheciam fronteiras, ou os
grupos políticos caudilhescos. Os interesses em comum além dos impérios
centralizadores, os grupos comunistas do Brasil e Uruguai, atuando em conjunto sob
causas que extrapolavam os limites institucionais, e os militantes da esquerda latino-
americana sufocada com os golpes de estado que atravessaram a história recente
desses povos moldaram essa cultura política em comum.
Conforme assinala o historiador uruguaio Waldemar Rodriguez Navarro,
Sant'Ana do Livramento e Rivera se constituíram desde o início de sua formação em
um "povo de fronteira" o que delimita a partir daí suas intensas relações econômicas e
17
políticas e os conflitos que derivaram dessa convivência.
13
Resultado de uma disputa
secular entre Portugal e Espanha pelas terras do Prata, a região fronteiriça manteve-se
pelas primeiras décadas do século XIX como centro das atenções do Império
brasileiro e o estado Uruguaio em gestação.
Mapa físico da fronteira do Brasil com o Uruguai
13
NAVARRO, Waldemar Rodriguez. Villa Ceballos: Los que pusieron los cimientos. Historia de Rivera,
Tomo I, Rivera: Atlântida. 1981. p. 07.
18
Do primeiro tratado de limites entre Brasil e Uruguai, assinado em 12 de
outubro de 1851, até a consolidação dos povos de Sant'Ana do Livramento e
Rivera
14
, a região manteve um aspecto de povoado internacional, onde os marcos
determinantes dos territórios serviram de escudo legal, quando necessário, ou
simplesmente desapareciam quando as estratégias políticas assim pediam. Nessa
fronteira, pode-se dizer, o limite territorial entre o Brasil e o Uruguai, atravessa
ambos centros urbanos, embora também seja possível "afirmar o contrário, são as
cidades as que parecem atravessar o limite político internacional, e é isso o que torna
esta fronteira em uma fronteira tão singular".
15
Das lutas entre espanhóis e portugueses pela conquista da enorme faixa que
hoje compreende a fronteira brasileira com o lado oriental até os posteriores tratados
de limites entre o Império Brasileiro e o Uruguai, quando as normatizações sobre os
destinos dos cerca de mil quilômetros de fronteira se clarificaram, os dois povoados
já se fitavam em um espaço em comum, com linhas demarcatórias mal percebidas
pelas interações sociais cotidianas.
Conforme Navarro, a linha demarcatória,
Hubo que atravesar una ciudad internacional, Rivera y Sant' Ana, cruzándola por el medio;
bajar y subir calles entre los cerros, dar vueltas a las esquinas, descender por la línea media
de las avenidas, seguir líneas rectas y trazar ángulos agudos como quien marcha sobre un
tablero de ajedrez, atravesar dos plazas públicas. En resumen, una verdadera proeza, un
triunfo del equilibrio para senãlar el limite entre dos soberanias.
16
Em pouco mais de mil quilômetros de fronteira entre Brasil e Uruguai, Santana
do Livramento e Rivera constituem o maior entre cinco centros urbanos, onde os
limites políticos e territoriais se confundem, constituindo-se em uma região de
trânsito internacional de pessoas no Cone Sul, e uma das principais rotas entre Brasil,
Uruguai e Argentina. Ali não existem obstáculos físicos que separem os Estados do
14
O povoado de Santana surgiu oficialmente em 30 de julho de 1823, quando a comunidade recebe o ato de
licença para criação de uma igreja. Rivera surge como Villa Ceballos, em 1862, invocando o nome do nobre
espanhol que expulsara os portugueses da Colônia de Sacramento e invadira o Brasil por duas vezes.
15
QUADRELLI, Andrea. A Fronteira Inevitável. Um estudo sobre as cidades da fronteira de Rivera (ROU) e
Sant´Ana do Livramento (Brasil) a partir de uma perspectiva antropológica. Tese de doutorado apresentada ao
PPG. Antropologia Social da UFRGS, Orientador. Prof. Dr. Ruben George Oliven, Porto Alegre, RS, 2002,
p.15.
16
NAVARRO. Villa Ceballos. Op. Cit., ps, 34, 35.
19
Brasil e Uruguai, apenas uma linha imaginária que desafia o simples limite
institucional.
17
O surgimento das duas cidades, no entanto, demarcou a resistência das
nacionalidades sobre os territórios concorridos e, nesse contexto, Rivera surge para se
contrapor à nacionalidade brasileria, em franco desenvolvimento na extensa faixa de
fronteira. Sínteses da construção dos estados-nação, com sua característica de região
demarcatória, as terras ao norte do Uruguay, e toda a região de fronteira disputada,
sempre esteviveram mais ligadas ao projeto de expansão luso e brasileiro do que
espanhol ou mesmo uruguaio. Nessas terras, ao norte do Rio Negro, a expansão
brasileira acontecia de maneira pacífica e natural,
En estas zonas del Norte con fronteras totalmente abiertas con el Brasil la penetración
brasilera era permanente. En 1845, en el Parlamento brasilero, en Río de Janeiro el Diputado
Souza Ferraz preconizaba al parecer, la intercención directa del Imperio, por lo menos hasta
las márgenes del Río Negro. Y para convencer a sus pares de la racionalidad de su empeño
decía: “Veo, señores, que teneis una idea muy equivocada de lo que es la frontera Sur.
Pasando el Rio Yaguarón hasta el Río Negro, el traje, las costumbres, el idioma, todo es
brasilero. Y terminaba con esta afirmación contundente: “hasta la tierra es brasilera”.
18
A discussão em torno da formação de um novo povoado para contrapor o
avanço brasileiro estabeleceu no parlamento uruguaio uma avaliação pragmática da
situação na fronteira do norte, com declarações enfáticas dos deputados a favor de um
plano de ocupação efetiva do território, sob pena de perda da soberania, ameaçada.
Yo no encuentro otro camino para salvar nuestra independência que establecer colonias en la
frontera, cuesten lo que cuesten. Si queremos ser orientales, si queremos ser independientes,
ésta es la única solución”.“Del otro lado del Río Negro, dentro de nuestro território, mandan
exclusivamente las autoridades brasileras”. “Este asunto es de vida o muerte. Es el más grave
que puede presentarse hoy al Poder Legislativo. Después de largas desgracias, ha ido
estabeleciéndo-se sobre esta desgraciada tierra una conquista pacífica, subterránea, sorda...”.
(Montevidéu, 1862)
19
Em sua argumentação, o deputado Diago já identificava o fantástico potencial
comercial desse ponto geográfico, e assim declarava o lado uruguaio como o grande
vencedor dessa disputa territorial, prenunciando uma efetiva liderança econômica
exercida por Rivera nos anos que iriam se seguir, em especial no ramo varejista.
17
QUADRELLI. Andréa, Op. Cit., p.15.
18
NAVARRO, Villa Ceballos, Op; Cit, p.20, 21.
19
Idem, p.22.
20
Desde el punto de vista comercial son tantas las ventajas del pueblo que por esa ley vamos a
fundar, que seguramente el comercio de Sant’Ana quedará reducido a los frutos del Brasil. La
razón de esto radica en la diferencia en los impuestos a los artículosde importación; hay
efectos que en el Brasil pagan el 35% y en nuestras Aduanas no pasan del 18% o el 20%. El
pueblo de “Ceballos” ha de surtir a pueblos brasileros vecinos: A Don Pedrito, a Alegrete,
pueblo de mucho comercio, a Bagé (...) De modo que existen cuatro pueblos cuyos habitantes
vendrán a comprar a Ceballos en razón de que en su compra ganarán un cuarenta o cincuenta
por ciento sobre los precios que tienen que pagar en el Brasil.
20
A partir da afirmação de Rivera em relação a Livramento, e o fortalecimento da
cidadania uruguaia na região, o desenvolvimento econômico local obedeceu a uma
ordem pendular, seguindo as regras da valorização das moedas, ora privilegiando o
lado brasileiro, ora o lado uruguaio, dependendo das políticas cambiais e as
ingerências governamentais.
Mapa da linha de fronteira urbana entre Santana do Livramento e Rivera.
20
Ibidem, p.59, 60.
21
As primeiras décadas do século XX encontraram a economia santanense
fortalecida pela industrialização capitaneada pelo frigorífico Armour e setores de
transformação de produtos primários e derivados do couro. A produção era escoada
para os grandes centros do país, do Prata e da Europa, fortalecendo uma oligarquia
rural que desconhecia fronteiras. Do início desse processo de industrialização aos
anos 1950, Santana viveu o apogeu de uma vida cultural e noturna repleta de
atrações, mesmo de companhias européias que desembarcavam em Montevidéu e por
lá passavam, rumo aos grandes centros brasileiros. Foi também o apogeu de um
caudilhismo político comandado até meados da década de trinta pela família Flores
da Cunha, época de em que as desavenças políticas não raro eram resolvidas em
crimes bárbaros e o contrabando era moeda corrente.
21
1.2 - Entre combates e exílios.
A fronteira se caracterizou desde o início da colonização por ser local de
refúgio e abrigo político aos que lutavam contra o poder centralizador do Estado-
Nação, que cresceria com o passar das décadas, até acabar por estrangular as
tentativas caudilhescas de autonomia, como no caso dos federalistas brasileiros e
blancos, uruguaios
22
. Habitada por famílias brasileiras nos primeiros anos, uma
extensa faixa uruguaia da fronteira via-se sucessivamente conflagrada por interesses
contrários ora ao poder central uruguaio, ora aos ditames do Império e, mais tarde, da
república brasileira. A cidadania pouco importava quando se tratava de importar
homens de um lado ou outro da fronteira, e impor um novo molde político às regiões,
conferindo assim um aspecto original dessa cultura política urdida naquela região de
fronteira.
Em 1869, incidentes envolvendo forças políticas uruguaias, conspirando a partir
de Santana do Livramento, provocaram um atrito entre o governo uruguaio e o
Império, conforme assinala o historiador Anibal Barrios Pintos, em sua obra "Rivera
21
Liane Chipollino Aseff bem assinala o terror instaurado na época “das cidades sem lei” em Memórias
Boêmias: Histórias de uma cidade de fronteira. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2008, p.27.
22
O Partido Federalista do Rio Grande do Sul, fundado em 1892, defendia o parlamentarismo e a união
federativa, e confrontava-se às idéias positivistas apregoadas pelo Partido Republicano Riograndense.
No Uruguai, o Partido Blanco, ou Nacional, de origem conservadora e rural, confrontava-se com os adeptos
do Partido Colorado, defensores de idéias liberais e com base sólida na capital.
22
en El Ayer".
23
O incêndio do quartel da polícia da vila de Rivera, que resultou em
tiroteio e desordens, gerou a manifestação do comissário da 4
a
Secção de Polícia, que
relatou ao seu superior, em Taquarembó, o que considerou "el echo mas barbaro por
la Nación Brasilera". Na carta endereçada ao chefe de polícia, Vital Zapata,
informava que,
(...) la fuersa de los infames hera mayor y e sido bencido completamente derrotado con
pérdida de algunos hombres que ignoro los que abran muerto como a sido de noche yo e
salbado com cuatro prebiniéndole que me an incediado la guardia y salido bajo del incendio
com el caballo baliado y como debo quedar reuniendo algunos hombres para sostener mi
deber asta que V.E. tome sus energicas medidas en amor de la Nación de tan terrible atentado
(...).
24
O que poderia parecer um gesto de desagravo e disputa de fronteiras por parte
dos brasileiros, no entanto, foi habilmente considerado pelo Império como uma
situação de conflito unicamente entre forças políticas uruguaias, que se valeram da
situação de fronteira para usar a cidade brasileira como um despiste. Conforme
apurou o historiador santanense Ivo Caggiani, a alegação do governo uruguaio, de
que um grupo de homens armados teria queimado o quartel da polícia, em abril de
1869 e mesmo assaltado Rivera em março de 1870, não foram aceitas pelo chefe da
polícia riograndense, que esteve na fronteira, enviado pelo presidente da Província,
para averiguar os fatos. Desse modo, o relatório enviado a presidência da Província
ressaltava que,
"É inteiramente inexato que tenha sido por três vezes assaltada a povoação de Rivera do Estado
Oriental, por quadrilhas de brasileiros organizadas na vila de Sant' Ana do Livramento com a
proteção das respectivas autoridades, como afirma o chefe político de Taquarembó em seu
ofício de 27 de abril do corrente ano, que serviu de base às reclamações constantes das
mencionadas notas. A povoação de Rivera tem sido, é verdade, por vezes assaltada, e vários
conflitos tem ali havido entre as forças legais e a dos revoltosos intitulados Blancos, mas as
autoridades de Sant'Ana do Livramento nada tem que ver com esses conflitos, a menos que se
não queira obrigar essas autoridades a intervir na pacificação da revolta que aflige aquele país,
o que seria sumamente singular. Como é sabida, a povoação oriental, de que se trata, fica tão
unida a de Sant'Ana que os habitantes de ambas as povoações vivem na mais perfeita
convivência e como se fossem um só povo, e daí que nasce naturalmente o equívoco em que
labora o chefe político daquela vila e às suas autoridades a paternidade de tais conflitos, aliás
promovidos pelas forças rebeldes, que ainda hoje se acham ocupando a povoação de Rivera"
25
23
PINTOS, Barrios, Aníbal. Rivera en el ayer. Rivera: Minas, 1963, p. 25.
24
Idem, p.167.
25
CAGGIANI, Ivo. Sant’Ana do Livramento – 150 anos de História. 2º Vol., Santana do Livramento: Editora
Museu Folha Popular, 1984, p.17.
23
O caso foi dado por encerrado pelo governo uruguaio, que reconheceu o
comando das desordens pelo oriental Castro Perdomo, residente em Sant'Ana,
auxiliado por um brasileiro e partidários de Aparício Saraiva, líder blanco.
26
Nova
invasão a Rivera voltaria a acontecer em 23 de agosto de 1893, durante a Revolução
Federalista, - quando os oposicionistas a Floriano Peixoto e, especialmente, a Julio de
Castilhos, se levantaram em armas. Desta vez, a novata república brasileira arcou
com a indenização, tendo de reconhecer os excessos da força governista, comandada
pelo capitão e chefe político santanense, João Francisco Pereira de Sousa, e seu irmão
Bernardino Pereira, que perseguiram os revoltosos Rivera adentro, tendo sido
assassinados um tenente uruguaio e um funcionário da Aduana. Ivo Caggiani anota
que o jornal riverense Las Notícias registrou o incidente, indicando o fato como
acontecido em 25 de agosto, data da independência uruguaia:
"VIOLACION DEL TERRITORIO NACIONAL, SAQUEOS, DEGÜELLOS Y FECHORÍAS -
En la noche del 25 de agosto , invadieron nuestro país por la parte Oeste de esta población,
fuerzas legales brasileras, en crecido número. Se diseminaron por grupos en un radio de cerca
de dos leguas en suelo oriental, saqueando varias casas, arrancando de ellas a los hombres
que hallaron, degollaron a Eliseo Cabrera, Juan Rivero, Gerónimo Diáz, Manuel Lino
Pereira, Constancio Alves, Francisco Castillo, Cándido Ferreira, hirieron a Juan Machado de
tres balazos, dejando atado a Laurindo Bentos; secuestraron al Brasil a varios indivíduos de
los que unos se escaparon, otros fueron sueltos y de otros nada se sabe, estruparon una menor
y praticaran toda clase de fechorías. De los degollados algunos eran orientales; a cinco de las
víctimas les cortaran una oreja, y al oriental Gerónimo Díaz las dos; unos fueron hallados en
territorio nacional, y otros en el Brasil, sobre la línea. (...) ULTIMA HORA - Acaba de
comunicarse que fue anoche muerto por los brasileros el teniente del Regimento 4 de
Caballeria D. Silvestre Cardozo. Se nos dice que anoche fue muerto el empleado de aduana D.
Medardo González".
27
As fechorías - ou maldades - seriam exercidas mais uma vez e com força
redobrada contra os exilados da Revolução Federalista. Opositores ferrenhos do
governo Julio de Castilhos, derrotados em 1895, os desterrados federalistas editavam
dois jornais em Rivera. Dali, em uma singularidade política dessa relação de
fronteira, propagavam ferozes críticas tanto ao Castilhismo quanto aos Blancos. Em
1903, uma dissidência do partido Blanco colocou no poder o colorado José Batlle y
26
Filho de pais brasileiros, nascido no Departamento de Cerro Largo, no Uruguai, Aparício Saraiva foi
comandante dos lanceiros Maragatos, na Revolução Federalista que convulsionou o Rio Grande do Sul, Santa
Catarina e Paraná. Líder do Partido Nacional (Blanco), comandou três revoluções contra o domínio dos
Colorados, que desde 1865, ocupavam o poder político no Uruguai. Morreu em decorrência de ferimentos no
combate de Massoller, na linha divisória de Santana e Rivera, em setembro de 1904. Irmão de Gumercindo
Saraiva, líder Federalista, Aparício é cultuado herói entre admiradores uruguaios e brasileiros.
27
Sant’Ana do Livramento – 150 anos de História. CAGGIANI, Ivo. Op.cit. p. 18.
24
Ordoñez, levando as regiões uruguaias comandadas pelos Blancos a um levante
armado. Na fronteira, castilhistas e Blancos mantinham um equilibrado entendimento
político, nas figuras dos caudilhos Abelardo Márquez, chefe político uruguaio, e o
coronel João Francisco Pereira de Souza, republicano. A esse respeito, Ivo Caggiani
lembra que,
Interesses recíprocos dos governantes do Rio Grande do Sul (castilhistas) e do Partido
Nacional (blancos) fomentaram uma "entente cordiale" entre ambos. A tal ponto chegou essa
verdadeira aliança blanco-castilhista, que o Partido Nacional recebia, abertamente, de Julio de
Castilhos (através do coronel João Francisco Pereira de Souza) valioso auxílio em armas e
munições.
28
À frente do jornal O Maragato, destacava-se o líder federalista Rafael Cabeda,
que mantinha junto a Rodolfo Costa, uma linha combativa que não poupava os
desmandos de João Francisco, no lado brasileiro da região, ou os excessos do blanco
Abelardo Márquez, qualificado pela pena de Cabeda como "simples tropeiro, elevado
de um momento a outro por uma cruel ironia do destino, à posição de chefe político
de um dos mais importantes departamentos fronteiriços". O descontentamento dos
Blancos e Republicanos com a atuação de Rafael Cabeda, Rodolfo Costa e Paulino
Vares, editor de O Canabarro, levou ambos grupos políticos a um pacto de
perseguição e agressão aos exilados. O resultado foram mortes e atos de violência,
deflagrados a partir da madrugada de 16 de março de 1903. Prestes a encampar uma
guerra civil contra os Colorados, autoridades de Rivera deram início a uma verdadeira
caçada aos maragatos
29
exilados em Rivera.
Desde o anoitecer do dia 15 corria nas duas cidades que "O Maragato", então o mais visado,
seria atacado. Na Chefatura de Rivera havia grande movimento bélico. A "Guarda Urbana"
fora, inclusive, aquartelada. Por precaução, Rafael Cabeda e Rodolfo Costa trataram da defesa
da redação e oficinas do jornal, ainda que acreditassem tratar-se apenas de mais uma ameaça
das que já se haviam acostumado a receber. Pouco antes da meia noite encontravam-se
reunidos ali dezoito voluntários, velhos e dedicados combatentes federalistas, entre os quais
incluíam-se os funcionários d´O Maragato, precariamente armados, mas com a firme decisão
de enfrentar a situação até as últimas conseqüencias. Aproximadamente às duas e meia da
madrugada do dia 16, um contingente da Guarda Urbana, fortemente armado, foi postado em
frente ao jornal, enquanto que forças do Caty, paisanos sob as ordens de Gentil Gomes (irmão
do intendente Ataliba José Gomes) e a guarda aduaneira, sob o comando do auxiliar Justino
Torres, tomavam posição sôbre a linha divisória.
30
28
Idem, Ibidem p.21.
29
Os federalistas, chamados Maragatos, adeptos de Gaspar da Silveira Martins, levantaram-se em armas, em
1893 contra os partidários de Julio de Castilhos, do Partido Republicano Riograndense, apelidados de
Chimangos. O confronto se repetiria em 1923, desta vez tendo como líderes Joaquim Francisco de Assis
Brasil (Federalista) e Antônio Augusto Borges de Medeiros (Republicano).
30
Sant’Ana do Livramento – 150 anos de História. CAGGIANI, Ivo. Op.cit. p.22,25.
25
Seguiu-se uma intensa fuzilaria, onde os homens da Guarda Urbana foram
repelidos pelos combatentes acantonados no Maragato, enquanto durou-lhes a
munição. Sem chances de resistir, ainda assim os trabalhadores da tipografia não
aceitaram as garantias de segurança ofertadas pelos Blancos, que diziam estar atrás
apenas de Rafael Cabeda e Rodolfo Costa. O que ocorreu, no entanto, mostrou as
reais intenções dos agressores,
Esgotada a munição, os defensores d´O Maragato empreenderam a retirada, abandonando a
tipografia e procurando abrigo nos prédios vizinhos. Nem todos, porém, conseguiram refúgio
seguro, sendo muitos deles aprisionados. Nessa oportunidade, procurando evadir-se, o preto
Francisco foi atingido por diversas descargas, caindo sem vida em frente à Livraria La France.
Do pessoal que defendia o prédio atacado, apenas fora ferido o tipógrafo Pedro Caranta,
administrador das oficinas do jornal, que, sem condições de fugir, ocultou-se dentro de uma
grande caixa que servia para guardar o papel. Quando os blancos conseguiram entrar foi ele
descoberto e ali mesmo degolado. Boaventura Izaguirre, julgando-se inseguro no local onde se
encontrava, saiu à rua e investiu sobre a linha divisória, na esperança, talvez, de atingir a
guarda que custodiava a Alfândega (localizada onde hoje se encontra o Varejo Sayon), mas foi
alvejado várias vezes. Antes de cair mortalmente ferido quase na esquina da Avenida
Tamandaré, matou com certeiro balázio ao jovem Pedro Curvello, de apenas dezessete anos, e
que integrava o contingente civil às ordens de Gentil Gomes. [..] Ali mesmo Boaventura
Izaguirre foi degolado pelo tenente Conceição Coronel, pertencente às forças do Caty.
31
Rafael Cabeda escondeu-se no sótão da casa de seu cunhado, David da Silva,
que, enfermo de tifo, corria sérios riscos em meio aos justiciamentos promovidos
pelos blancos. Rodolfo Costa procurou abrigo dentro de um rolo de arame farpado na
casa comercial de Francisco Iriondo. Paulino Vares foi capturado e solto no dia
seguinte, mas teve a oficina tipográfica destruída pelo fogo. A sorte de Rafael
Cabeda, entretanto, ainda estava em jogo. Ivo Caggiani acrescenta a seu relato o
depoimento do ex-senador e jornalista uruguaio Alfredo Lepro, que em 1932
descreveu o que se seguiu a chacina, nas páginas do jornal riverense Tradición
Colorada.
Em seu relato diz o jornalista que, embora fosse do comentário popular que
Rafael Cabeda teria fugido de seu esconderijo vestido de mulher, nada de verdadeiro
continha a versão. Foi a atuação decisiva de Carmen Cabeda Silva, irmã do tribuno
federalista e mulher de David da Silva, que mudou o rumo do plano homicida de João
Francisco e Abelardo Márquez. Em meio ao tumulto da hora, entre tiros perdidos,
homens intimidantes e toda a sorte de perigos para Colorados e maragatos, Carmen
31
Idem, Ibidem, p.25
26
Cabeda Silva foi pedir a proteção ao Coronel Alfredo Barbosa, chefe da Guarnição
Militar de Sant'Ana para seu marido.
Rafael Cabeda estava fora da pauta. Mesmo que a não intervenção das forças
federais nas políticas locais fosse a norma, o pedido foi aceito e Rafael Cabeda
acabou detido nas dependências do Exército, livrando-se da chacina. Quando o calor
da hora passou, voltou a Rivera sob um salvo-conduto. O evento reforça o caráter
ambíguo dessa cultura política de fronteira, onde contar com uma rede de apoio em
ambos os lados da linha divisória fazia parte de um conjunto de experiências
determimantes para a sobrevivência. Em 1964 essa rede de apoios iria se repetir,
mesmo que sob outra conotação de alianças.
1.3 - A fronteira através da literatura.
Desde os primeiros delineamentos, a linha de fronteira caracterizou-se como um
elemento de vulnerabilidade natural, transformando-se em lugar de refúgio político e
local de abrigo aos contrabandos de gado e mercadorias, que ainda hoje marcam o
cotidiano da região. O simples ato de atravessar a linha imaginária da fronteira
revelou-se desde então uma prática natural aos foragidos e degredados, reforçada
através da literatura local, conforme relata o cronista santanense:
Ali, ocultou-se entre as macegas, pois sabia que o inspetor deveria passar por aquele local;
quando o viu aproximar-se acompanhado de um praça da Brigada Militar, armado com uma
"Winchester" o alvejou, matando-o, e a seguir atirou também no ordenança, ferindo-o em uma
perna; feito isto, montou a cavalo e a rédea solta rumou para Santa Rita a fim de apanhar o
trem para Cacequi. Chegou quase junto com o trem, apenas teve tempo de soltar a montaria e
embarcar para com destino a Livramento-Rivera, nesta cidade, viveu muitos anos até a
prescrição do crime.
32
Assim, o limite territorial como ideário de fuga acompanhou a região através
dos séculos. O escritor argentino Ricardo Piglia reforçou essa concepção na obra,
posteriormente transformada em filme de sucesso, Plata Quemada. Nessa história
verídica, Piglia narra a saga de quatro assaltantes de banco, perseguidos pela polícia
argentina, que se vêem encurralados em um prédio de Montevidéu. A salvação
possível, que não acontece, seria a fuga pela fronteira.
32
O autor refere-se ao caso específico do filho de um fazendeiro do 3º distrito do Ibicuí da Armada, que em
1935, após uma desavença com o inspetor local, armou uma emboscada seguida da morte desse policial.
CARVALHO, Bittencourt de, Cirino. Lendo o Passado. Sant´Ana do Livramento: Edigraf, 1986, p.179.
27
Estaban esperando que se acalmara la tormienta e que Nando les mandara un contacto para
cruzar por tierra al Brasil. Le prometieron mas (dinheiro) si los llevaba a la frontera, a Rio
Grande do Sul, por el norte, por Santa Ana (do Livramento).
33
No imaginário literário do continente, a fronteira que teve por mérito abrigar
uma série de escritores fundamentais, como José Hernandez, Jorge Luis Borges e
Jorge Amado, encontra-se envolta em um misto de admiração, mistério e crueza.
Jorge Luis Borges, considerado um dos maiores escritores contemporâneos,
assinalaria em 1968, na obra Nueva Antologia Personal, o seu fascínio por Santana
do Livramento. Na complexa narrativa intitulada “TLÖN, UQBAR ORBIS
TERTIUS”, onde o autor parte em busca de uma seita secreta, descoberta ao acaso em
manuscritos, é na fronteira brasileira-uruguaia que ele vai encontrar pistas do
“fantástico”, de uma terra ao mesmo tempo fascinante e perigosa, rude e bela,
(...) Tal fue la primera intrusión del mundo fantástico en el mundo real. Un azar que me
inquieta hizo que yo también fuera testigo de la segunda. Ocurrió unos meses después, en la
pulpería de un brasilero, en la Cuchilla Negra. Amorin y yo regresábamos de Sant’Anna. Una
creciente del río Tacuarembó nos obligó a probar (y a sobrellevar) esa rudimentária
hospitalidad. El pulpero nos acomodó unos catres crujientes en una pieza grande, entorpecida
de barriles e cueros. Nos acostamos, pero no nos dejó dormir la borrachera de un vecino
invisible, que alternaba denuestos inextricables con rachas de milonga. Como es de suponer,
atribuimos a la fogosa caña del patrón ese griterío insistente...A la madrugada, el hombre
estaba muerto en el corredor. (...) Nadie sabia nada del muerto, salvo “que venía de la
frontera”.
34
O morto fronteiriço trazia nas mãos um objeto pesadíssimo, embora muito
pequeno, que oferecia ao mesmo tempo a sensação de asco e medo. Assim surge a
região da fronteira no imaginário borgiano, com um testemunho da intromissão do
fantástico no mundo real. Nas palavras de Pimentel Neto, o Brasil (e essa fronteira)
seriam para o escritor “uma região imaginária onde tudo é possível? Poderia ser isto
uma visão do paraíso, entendido como um” país das maravilhas “onde bandidos,
pastores, ébrios e magos compartilham o mesmo solo?
35
É o próprio Borges quem
busca nas lembranças de um assassinato presenciado na fronteira as cores para pintar
a região, abrigo de idealistas e transeuntes, portal mágigo de um sul caudilhesco e
prenhe de belezas cruas,
33
PIGLIA, Ricardo. Plata Quemada. Buenos Airtes: Editorial Planeta, 1997. p.36.
34
BORGES, Jorge Luis. “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius in: Nueva Antologia Personal. México: Siglo
Veintiuno Editores, 1986, p.90, 91.
35
NETO, Aydano Pimentel de Almeida. Entre espelhos e labirinto, Op. Cit., p.81.
28
[...] Neste momento estou voltando a iniciar o descobrimento infinito, que é o descobrimento
do Brasil. Eu o conheci, pela primeira vez, faz uns quarenta ou cinquenta anos, em Santana do
Livramento, no Rio Grande do Sul, onde vi pela primeira vez – e espero que pela última –
matarem a um homem, nessa violenta fronteira do Rio Grande do Sul, então terra de
contrabandistas. Agora estou pensando já num poema sobre o Brasil [...].
36
Embora seja o assassinato a primeira referência ao ambiente de fronteira, que
traz no cerne a violência, o contrabando e uma implícita “lei do mais forte”, Borges
associa a região a uma Buenos Aires mítica, que já não mais existia, como nos dias de
sua infância. Em entrevista a uma revista brasileira, pouco antes de falecer, o escritor
reforça a impressão que a fronteira lhe transmitiu, quando por lá passou 10 dias, no
final dos anos 40: “Em Santana do Livramento, por exemplo, toco uma autenticidade
gauchesca mantida mais pura do que na Argentina ou no Uruguai: é uma forma que
tenho de voltar ao passado da minha infância”.
37
Antes de Borges, outro escritor fundamental das letras argentinas também
experimentou o abrigo de Santana do Livramento, mas como exílado. De abril de
1871 e fevereiro de 1872, José Hernendez, o escritor de Martín Fierro, considerado
marco da literatura argentina e latino-americana, se estabelece na fronteira,
acompanhando o caudilho Ricardo López Jordán, que intentara um golpe contra o
governo da província de Entre-Rios, assassinando o governador Justo José de
Urquiza. O governo argentino reagiu aos acontecimentos e os rebeldes liderados pelo
caudilho foram vencidos, buscando a fronteira brasileira para um exílio estratégico,
Por longo período, os argentinos irritaram-se com uma afirmação que consideravam mera
demonstração da empáfia brasileira. Era-lhes muito ofensiva a idéia de que Martín Fierro, o
gaucho por excelência, criação imortal de José Hernández, pudesse ter sido parido em Santana
do Livramento, na região da Campanha do Rio Grande do Sul. Os vestígios deixados pelo
poeta, entretanto foram dobrando a resistência. Em 1940, o jornalista J. M. Fernández Saldara,
do jornal portenho La Prensa, perseguiu os rastros do poeta até a cidade brasileira, rompendo
uma barreira — na Argentina, mencionava-se sempre rapidamente o exílio de Hernández no
Brasil, eludindo-se arrogantemente o nome de Santana do Livramento. Hoje, praticamente não
se duvida que a primeira parte do livro, publicada em Buenos Aires em dezembro de 1872,
tenha sido escrita à mão numa caderneta de bolicho quando José Hernández se alojava num dos
quartos da casa do comerciante espanhol Pedro Garcia. O prédio ainda resiste, apesar de várias
agressões, na esquina das ruas Rivadávia Correa e Uruguai.
38
36
BORGES, Jorge Luis, citado em SCHARTZ, Jorge (org.) Borges no Brasil. São Paulo: Editora Unesp.
2001. P.79
37
Op.Cit p. 490
38
CARLE, Ricardo. Na divisa entre vida e literatura. Caderno Cultura. Jornal Zero Hora. Porto Alegre. 28 de
março de 1998.
29
Na cidade, Hernandez conviveu com Lopez Jordan e outros combatentes
envolvidos diretamente no assassinato de Urquiza, como Juan Pirán e Pedro
Aramburú.
39
. Em Santana do Livramento, Hernandez participou ativamente do
quartel general montado por Lopez Jordan, que não poderia estabelecer-se no
Uruguai devido ao apoio que dera aos revolucionários blancos de Timóteo
Aparício
40
. Na fronteira, os exilados tramavam um novo levante contra o presidente
argentino Domingo Faustino Sarmiento.
Pelas diligências que faziam a linha regular de Sant’Ana do Livramento a Paysandu e Salto,
no Uruguai, chegavam e saiam correspondências mantendo o caudilho em contato com seus
companheiros exilados de outras localidades. Emissários iam e vinham, trazendo notícias da
Província de Entre Rios ou trazendo instruções para os jordanistas que aguardavam a palavra
de ordem de um novo movimento armado contra o todo-poderoso Sarmiento.
41
O levante armado de Jordan só viria a acontecer nos primeiros meses de 1873,
tendo Hernandez desfrutado o tempo necessário para dar início a sua obra mestra:
“Martín Fierro”. Envolvido com a vida citadina, assim como os demais exilados, que
tiveram uma ótima receptividade da população, entre a conspiração política e a
literatura,
Contava-se que, nos momentos de ócio Hernández ia para a Praça Caxias (atual General
Osório), e sentava-se nas proximidades do local onde agora está alojado seu busto. Sob as
frondosas árvores, ele buscava a inspiração para contar a história do gaúcho valente e justo que
combatia a injustiça, movido por seu próprio código de conduta. O idealismo do poeta também
teria deixado rasgos na vida social de Livramento. O surgimento, logo depois de sua partida, da
loja maçônica Caridade Santanense, seria um legado da militância de Hernández.
42
Já no Estado Novo, seria o escritor Jorge Amado, outro expoente da literatura
latinoamericana, que se valeria dos préstimos da fronteira para dar continuidade a seu
ofício no exílio. Preso em 1939 e com suas obras proibidas desde 1937, Amado
exilou-se em Montevidéu, não sem antes estabelecer contato com os camaradas da
39
“López Jordán era el último caudillo, defensor quijotesco de una causa política, de un sistema de vida social
y económico en las provinciais argentinas que entaba ya en el ocaso irremediable de su destino. Era federal y
autonomista sin concesiones [...] Su prestigio pues, sobre los criollos comarcanos era indiscutibleAudaz y
valiente hasta la temeridad. Jefe prestigioso de la conducción de la guerra gaucha”. (BIANCHI, E. Martín
Fierro, un poema de protesta social. Buenos Aires. 1952. p.32. In: CAGGIANI. I. Sant’Ana do Livramento
150 anos de História. 2º Volume. Santana do Livramento: Aspes/Museu Folha Popular, 1984, p.163.
40
“Entre 1870 y 1872 Timoteo Aparicio encabezó una revolución contra el Presidente Gral. Lorenzo Batlle,
que fue llamada “la revolución de las lanzas” porque fue la última lucha civil en que la lanza fue el arma
principal, antes de la generalización de las armas de fuego, primero la carabina Remington y luego el fusil
Mauser ”. Sitio http://www.escueladigital.com.uy/biografias, acessado em 20.08.2007.
41
CAGGIANI. Ivo. Sant’Ana do Livramento – 150 anos de História. 2º Volume., Op. Cit., p.164.
42
CARLE, Ricardo Op; cit.
30
fronteira. Recebia especial atenção do livreiro Farias, que alimentava com livros e
publicações brasileiras o seu ofício de escritor, desterrado na capital uruguaia. No
exílio Jorge Amado escreveu o livro sobre a trajetória de Luis Carlos Prestes, O
Cavaleiro da Esperança.
1.4 - Excludente através das décadas
Desde sua emancipação de simples povoação com características militares a
município, Santana do Livramento manteve características de sociedade estratificada,
em que as grandes famílias, detentoras do latifúndio rural, exerceram o poder político
local, alinhavando seus interesses de classe aos da administração pública. Ernesto
Levy, santanense e líder estudantil exilado em Montevidéu em 1969, entende que as
condições econômicas e políticas da fronteira pouco se alteraram com o passar das
décadas. Para esse ator político local, a cidade ainda mantém traços do caudilhismo
exacerbado que marcou a região desde seus primórdios, com uma característica
militarista e de subordinação entre as classes. Apesar da gradual perda de poder
econômico do latifúndio e a quebra de um braço industrial importante como o
Frigorífico Armour, as famílias latifundiárias detentoras do poder econômico sempre
mantiveram o status de classe alta na fronteira. Essa relação de forças, que por
determinados momentos contrapôs grandes lideranças da esquerda a uma organização
do poder oligárquico que sempre trazia já as sementes do que seria a UDR (União
Democrática Ruralista), pendeu para o lado conservador chegando ao golpe de 1964,
com seus atores bem identificados. Conforme lembra Ernesto Levy, se o latifúndio
criou uma base econômica, por outro lado nunca demonstrou um compromisso social.
“Eram grandes fazendeiros, grandes exportadores, que criaram os grandes
monopólios da carne e da exportação. Mas nunca investiram na cidade. Famílias que
tiveram mil terrenos e imóveis. Chegavam a comprar mil imóveis, e nunca investiram
nada na cidade”.
43
A atividade pecuária e os grandes latifúndios ganharam novo impulso com a
consolidação na fronteira do Frigorífico Armour, de capital majoritariamente norte-
43
LEVY, Ernesto. Advogado santanense, líder estudantil. Santana do Livramento. Entrevista concedida ao
autor em 21/07/2006.
31
americano. O negócio aconteceu em 1918, depois que o uruguaio Don Pedro Irigoyen
vendeu sua Saladeria, estabelecida em Sant’Ana do Livramento, para o grupo
multinacional. Para a escolha do município foi decisiva sua posição fronteiriça, que
oferecia uma linha férrea bem estabelecida no Uruguai, o que permitiria um
escoamento dos produtos derivados da carne diretamente para os mercados mundiais,
pelo Porto de Montevidéu.
O poder dos grandes trustes norte-americanos da carne se expandia pela
América Latina desde o início do século, e consolidava nas primeiras décadas um
poder regional que atravessava a fronteira dos Estados.
Em 1907 a Companhia Swift comprou o Frigorífico La Plata na Argentina, sendo que no ano
seguinte, o La Blanca foi comprado por uma sociedade das firmas Armour, Swift e Morris [...]
Em 1911, no Uruguai, a Swift comprou o Frigorífico Montevidéu, e em 1917 o Frigorífico
Artigas, que se havia consorciado com a Armour e Morris, passou a ser propriedade desse
conglomerado. Em 1918, o Packers de Chicago possuíam seis frigoríficos no Brasil, dois em
São Paulo e quatro no Rio Grande do Sul – Swift, Armour e Wilson – o primeiro em Rio
Grande e Rosário, os outros dois em Sant’Ana do Livramento. No dia 4 de julho, aniversário
da independência dos Estados Unidos, foi realizada uma festa de inauguração da Companhia
Armour em Livramento, no Clube Comercial. O sr. Hamford Finney, presidente da firma
americana na cidade, ao discursar aos santanenses prometeu “os mercados do mundo” para os
produtos da empresa.
44
Com um novo e definitivo impulso econômico, a região assistiria a chegada de
novos trabalhadores oriundos principalmente da Itália e Espanha, vindos pelo Porto
de Montevidéu. Pedreiros com alta qualificação, especialistas em panificação,
marceneiros e ferreiros, tinham em comum uma posição política inovadora para os
padrões da região. Valorizavam a união dos trabalhadores em agrupamentos por
categorias, adeptos das idéias anarquistas e posteriormente das emergentes lutas
socialistas. Ernesto Levy relembra do princípio da organização sindical em uma
fronteira que definiu como “absolutamente excludente”
:
[...] Tanto é que um fato interessante é que a primeira base do partido comunista do Brasil foi
em Santana do Livramento. Porque houve uma briga entre um grupo anarquista, com a
formação em Livramento do primeiro grupo comunista. E aí, entre famílias do Rio Grande do
Sul e aqui se formou o grupo comunista. Italianos e espanhóis e que vieram trabalhar na Swift
Armour, principalmente pedreiros, carpinteiros, gente qualificada que aqui não tinha. Aqui só
sabiam trabalhar com couro, não é? [...] em 1931 Lucio Soares Neto veio para cá e dirigiu a
primeira tomada de terra em Santana do Livramento, em 1947, que foi a primeira
desapropriação de terra no Rio Grande do Sul. Isso deu base para a constituição estadual, em
1946, na qual Leonel Brizola era constituinte, de fazer um pagamento para as desapropriações.
Foi a primeira no Rio Grande do Sul, contra a Swift Armour, e a formação de colônias de
trabalhadores rurais. Dirigidos por líderes como Astrimônio de Melo, foi um choque muito
44
ALBORNOZ, Vera Lima Prado. Armour, Uma Aposta no Pampa. Santa Maria: Palotti, 2000, p. 93.
32
grande entre a extrema direita, composta por ingleses, depois norte-americanos, representantes
de Governo. E aqui como zona de fronteira, uma luta ideológica muito grande.
45
Nesse contexto surge a figura do líder sindical Santos Soares
46
, que viria a criar
em 1918 uma das primeiras ligas comunistas do país, antes mesmo da fundação
oficial do Partido Comunista Brasileiro, em 1922. A liderança de Santos Soares
cresceu durante a primeira greve que eclodiu nos frigoríficos Armour e Wilson, a 13
de março de 1919. A pauta de reivindicações exigia redução da jornada de trabalho de
dez para oito horas, aumento de salários para os trabalhadores braçais e um ganho de
25% para os salários das mulheres. Também pediam a instituição de horas extras para
o trabalho nos domingos ou fora de horário. O evidente desalinho entre as leis
trabalhistas vigentes no Uruguai e no Brasil ganhava nova conotação no ambiente de
trabalho do frigorífico. Ali, trabalhadores uruguaios, brasileiros e de outras
nacionalidades submetiam-se a um ordenamento laboral arcaico e injusto. Do outro
lado da linha divisória, no entanto, os trabalhadores uruguaios viviam a plena
vigência das idéias preconizadas pelo presidente José Batle y Ordóñez, que criara a
partir de seu primeiro mandato, em 1903, uma série de normas legais de proteção aos
trabalhadores, posteriormente reforçadas pela Constituição de 1917, que incluia
jornadas de trabalho de oito horas, indenização por acidentes de trabalho, licença
maternidade, proteção aos idosos e inválidos e a intermediação estatal em casos de
conflitos laborais. Em contraposição, no Brasil as reivindicações dos trabalhadores
ainda eram tratadas como caso de polícia. A imbricada ligação entre os movimentos
de trabalhadores brasileiros e uruguaios expunha com clareza as disparidades que
acometiam os operários de um lado ou outro da linha divisória.
O potencial explosivo dessa experiência distinta atravessava a linha de fronteira
e ganhava um contorno central nessa cultura política que se desenhava, somando-se a
forte influência anarquista que muitos operários argentinos, uruguaios e espanhóis
alimentavam. Os ecos dessas novas demandas políticas já estavam estampados no
45
LEVY, Ernesto. Entrevista citada.
46
Santos Soares, pedreiro, nascido em Santana do Livramento, teve sólida atuação na organização dos
trabalhadores locais a partir do final da década de 10. Posteriormete aderiu ao comunismo e foi figura central
na luta sindical dos trabalhadores do Frigorífico Armour, Cervejaria Gazapina e segmentos varejistas da
cidade. Faleceu em 1951.
33
jornal anarquista A Evolução
47
, impresso em português e espanhol em Santana desde
1911. Nesse contexto cresceria a influência aglutinadora de Santos Soares, fortalecida
pelo emergente movimento comunista e a liderança nacional de Luis Carlos Prestes.
Em um raro testemunho sobre as atividades políticas de Santos Soares, o jornalista e
militante comunista Isaac Akcelrud anotou:
Na folha de serviço de Santos Soares à causa do proletariado inscreve-se em relevo a sua
atuação como organizador e dirigente da primeira greve contra uma empresa imperialista no
Rio Grande do Sul. Foi a greve dos trabalhadores do Friogorífico Armour. Organizada a liga,
Santos Soares não permitiu que os comunistas se fechassem num estreito círculo sectário (...)
com palavras simples utilizando a própria experiência dos trabalhadores, Santos Soares
organizou uma verdadeira campanha de sindicalização. Surgiram organizações sindicais de
diversas profissões. Nas assembléias, um jovem tribuno operário inflamava as massas. Aos 28
anos, Santos Soares era um líder querido dos trabalhadores, reconhecido como seu chefe. Ele
não perdia oportunidade e não desprezava nenhum setor. Operários da construção civil,
padeiros, pequenos contingentes de trabalhadores de diversas profissões ele unia e organizava
em seus respectivos sindicatos e no sindicato de ofícios vários.
48
Hélio Santana Alves, militante comunista na fronteira desde 1946- quando
deixou a propriedade rural da família em Rivera e veio para a cidade - relembra da
organização sindical mantida pelos PCs, brasileiro e uruguaio, como uma unidade que
desconhecia divisões nacionais:
Para se analisar a situação da fronteira naquela época, era como se fosse um partido só. Tanto
se militava no partido brasileiro como se militava no partido uruguaio. Onde havia um ato do
partido iam quase todos das duas cidades. Aos grandes atos do partido comunista brasileiro,
compareciam os comunistas do partido uruguaio, e assim também do outro lado. Mas o
fundamental para mim, é que o marxismo-leninismo vinha de Santos Soares, que muitas vezes
dava aula no partido comunista uruguaio. Foi o único elemento que mais se aproximou do
marxismo naquela época.
49
Ele relembra de Santos Soares como o legítimo líder marxista em meio ao
“esquerdismo” ralo, reinante naqueles dias entre os militantes do partido. Segundo o
militante, a massa operária era herdeira das lutas dos maragatos, que acabaram por se
alinhar com a diretriz comunista, a partir do final da década de 1910,
Eu sempre tive, na minha concepção, que nós não entendíamos de marxismo-leninismo, nós
entendíamos de esquerdismo. Marxista era esse velho, Santos Soares, que mesmo com a saúde
47
O historiador Ivo Caggiani assinala essas diferenças em Cadernos de Sant’Ana do Livramento. 150 anos de
história. 2º Vol., Santana do Livramento: Editora Museu Folha Popular, 1984, p.55.
48
Akcelrud, Isaac. Revista Problemas, nº 39, Rio de Janeiro, 1952. Apud: MARÇAL, João Batista.
Comunistas Gaúchos. Porto Alegre: Editora Tchê, 1986. p.119.
49
Helio Santana Alves militou ativamente nas bases sindicais do PCB santanense a partir de 1946,
influenciado por Santos Soares. Sobrevivente da chacina que vitimou quatro militantes comunistas em 1950,
manteve-se ligado aos preceitos comunistas até sua morte, aos 96 anos, em 2008. Entrevista concedida ao
autor em 21/02/2006.
34
abalada, dava orientação de cima da cama. Todos os operários de fábrica e padaria lidavam
com ele. Tinha mil e tantos operários militantes, entre o Armour, a Padaria Aragonez e outras,
uma quantidade enorme. Foi um baluarte das lutas políticas entre Santana do Livramento e
Rivera. Tinha uma biblioteca marxista, que era notável que um operário tivesse uma biblioteca
tão perfeita!
50
1.5 - A FUG conspira em Rivera.
Em 1932, por ocasião da Revolta Constitucionalista, a fronteira viria a abrigar
novos exilados. Se em Rivera reuniam-se os remanescentes da FUG (Frente Única
Gaúcha), refratários ao regime de Vargas e seu interventor no Rio Grande do Sul,
Flores da Cunha, por Santana passariam os dissidentes do golpe promovido pelo
Colorado Gabriel Terra, em 1933. Entre os insurgentes constava a liderança de
Waldemar Ripoll, advogado e jornalista, membro do Partido Libertador
51
, que
procurava articular desde a cidade uruguaia uma reação armada contra o poder
central, e em última instância, contra o governo Flores da Cunha. Um acordo entre os
ditadores da ocasião, Getúlio Vargas no Brasil e Gabriel Terra no Uruguai, colocaria
mais uma vez o grupo brasileiro exilado sob a vigilância das forças policiais da
fronteira.
A presença de paulistas e gaúchos exilados no Uruguai, ao final da fracassada revolta de 1932,
não foi um acontecimento acidental. Na verdade, o Uruguai caracterizou-se historicamente por
ser o refúgio de grupos políticos dissidentes, ou contrários aos governos situacionistas no Rio
Grande do Sul ou no Brasil. A diferença (...) refere-se ao apoio recíproco entre os governos
nacionais dos dois países, que trocavam informações e vigiavam os exilados do país vizinho,
ao mesmo tempo em que articulavam tratados de restrição da mobilidade, permeabilidade e
complementaridade que ocorriam na região de fronteira.
52
Expoente do Partido Libertador, Waldemar Ripoll tomou parte no levante
gaúcho de 1930 que colocou Vargas no centro do poder da república, em uma união
com o Partido Republicano Riograndense (PRR), alinhados na Frente Única Gaúcha
(FUG). O pacto não durou o tempo necessário para que as disputas políticas internas
50
Helio Santana Alves. Entrevista citada.
51
O partido Libertador foi fundado em 1928 por antigos partidários do Partido Federalista do Rio Grande do
Sul. Em 1929 alia-se ao Partido Republicano Riograndense e leva Getúlio Vargas ao poder, na Revolução de
30. Em 1932, seus partidários rompem com Getúlio e partem para o exílio depois do fracasso da revolta
constitucionalista.
52
RANGEL, Carlos Roberto da Rosa. A conspiração revolucionária da oposição brasileira a Vargas no
Prata. s/d. p.3..
35
amainassem, e parte expressiva da FUG, salvo o interventor Flores, se alinhasse com
os rebelados paulistas, que pediam a Constituinte e a volta do estado de direito.
No centro da conspiração fronteiriça encontrava-se Waldemar Ripoll, que
acalentava o sonho de revolucionar o país, ou, se não fosse possível, ao menos o Rio
Grande do Sul. Uma aliança estratégica entre as ditaduras de Vargas e Gabriel Terra,
no entanto, mantinha o contingente de revolucionários de ambos os lados, sob
vigilância constante. Um movimento armado contra o ditador uruguaio vinha sendo
alimentado em Santana do Livramento, do lado oposto à trincheira mantida pelos
rebelados brasileiros. Nesse contexto, o congresso do Partido Libertador acontece em
1933, na cidade de Rivera, sob a vigilância de agentes brasileiros infiltrados, que
vinham à fronteira reconhecer lideranças militares exiladas, sob a anuência do
governo Terra.
A cidade uruguaia mais uma vez desempenharia uma função essencial no
reagrupamento dos insurgentes. O plano de retornar ao Estado por uma via
revolucionária logo foi abandonada pelos companheiros de Ripoll, com a adesão
gradativa dos revoltosos paulistas à política de reaproximação promovida pelo
Governo Vargas. O jornalista viu-se cada vez mais isolado, vigiado de perto pelos
agentes da polícia de Flores da Cunha, que promoveria a morte de outros militantes
gaúchos. O comunista Mário Couto, líder sindical, seria assassinado em plena luz do
dia, durante uma greve da Companhia Carris, em Porto Alegre, em 17 de janeiro de
1935. Da mesma forma, em 13 de outubro daquele mesmo ano, foi morto o advogado
Aparício Córa de Almeida, militante comunista, secretário da Aliança Nacional
Libertadora no Rio Grande, colega e conterrâneo de Ripoll. O destino do jornalista e
ideólogo do PL não seria diferente. Assassinado em Rivera a golpes de machado,
enquanto dormia, a 31 de janeiro de 1934, a morte de Waldemar Ripoll reforçou mais
uma vez a fragilidade da linha de fronteira enquanto salvo-conduto político.
No conto de Humberto Setembrino Carvalho, advogado e militante comunista,
o destino de Ripoll é retratado na ficção, reverenciado como o de um injustiçado,
idealista, que teve de fugir das garras da ditadura e da oligarquia rural que
denunciava, e iria encontrar a morte, em um crime político que não seria novidade
naquela fronteira:
36
Waldemar desafia governos e poderosos. Desafios, sempre os desafios. Uma constante em sua
vida. Acadêmico, presidiu a Federação de Estudantes, lutando pela implantação de uma
universidade no Estado. Na Revolução de 30, comandou a tomada do edifício dos Correios e
Telégrafos, em Porto Alegre. Vitoriosa, aquela revolução, ardentemente desejada, fora traída.
Não se implantara o estado de direito, dominara-a a ditadura. A procrastinação contínua de
uma nova lei fundamental que institucionalizasse os ideais de 30 levou-o à Revolução de 32,
também traída no Rio Grande do Sul. O esforço de Cerro Alegre fora vão. Seguiu-se a derrota.
As prisões em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. O navio e o exílio. Lisboa. Depois, a volta,
clandestina. Antofogasta, Buenos Aires, Montevidéu e Artigas. Finalmente, Rivera. As lutas
intestinas da Frente Única, onde se reuniam os exilados. A aceitação da anistia ou a volta pelas
armas? Mais desafios... As lutas internas da Frente foram se aguçando de tal sorte que
Waldemar teve de se afastar do hotel, onde residia com seus companheiros, para não romper
com os amigos, alugando a casa da calle Brasil. O afastamento da coletividade dos exilados
resultava em perigo à sua segurança. Os inimigos já haviam tentado matá-lo em plena avenida
principal de Rivera e à luz do dia. Agora, morava com o Corrêa, que ontem viajara, ficando
com o João, um "sordado véio do general Honório Lemes", como o próprio João se
apresentara, acolhido como caseiro, a quem passou a se referir, bondosamente, como "o meu
secretário".
53
Por ironia, seria o caseiro acolhido pelo espírito solidário de Waldemar Ripoll,
o autor do crime que chocou a opinião pública gaúcha. Por trás da tragédia, recaiam
as suspeitas sobre o chefe da Polícia Aduaneira de Santana, Camilo Alves da Silva,
acusado de mandante. Homem forte de Chico Flores, irmão do governante do Estado,
José Antônio Flores da Cunha, Camilo comandava a rede do “contrabando oficial” na
região, ou seja, administrava para si e os seus apaniguados os negócios ilegais através
da linha de fronteira, agindo com mão de ferro contra seus opositores.
54
Por ironia,
pouco menos de três anos depois, seria o próprio Flores da Cunha quem viria buscar
em Rivera a porta de entrada para o exílio. Deposto pelo presidente e ex-aliado,
Getúlio Vargas, Flores “de madrugada cruzou a linha divisória que separa Santana de
Rivera e foi se exilar no Uruguai. Estava finalmente aberto o caminho para Getúlio
Vargas, duas semanas depois, valendo-se de um forjado Plano Cohen, instaurar a
ditadura do Estado Novo no Brasil”.
55
53
CARVALHO, Humberto Setembrino Correa de. Ponaim, Canto e Morte; ou Um conto, um tanto
fantástico, sobre um fato histórico, com elementos de Tragédia. Conto inédito, s/d. Arquivo do autor
54
“O patronato político local de Santana do Livramento estava representado pela família Flores da Cunha
desde 1910, tornando-se Livramento um reduto do situacionismo republicano [...] O coronel Francisco Flores
da Cunha, conhecido como Chico Flores, era irmão de José Antônio e próspero fazendeiro sobre quem pesava
sérias suspeitas de envolvimento no contrabando de gado e manipulação da polícia aduaneira a seu favor. In:
RANGEL, Carlos Roberto da Rosa. Crime e castigo. Conflitos Políticos no Rio Grande do Sul (1928-1938).
Passo Fundo: Editora UPF, 2001, p.47.
55
SCHIRMER, Lauro. Flores da Cunha: de corpo inteiro. Porto Alegre:RBS Publicações. P.55.
37
1.6 - A chacina dos comunistas.
Em setembro de 1950 a fronteira viveria um novo episódio da truculência
policial, de proporções ainda maiores. O caso ficaria conhecido nacionalmente como
O chacina dos quatro A. O assassinato de quatro militantes do Partido Comunista –
Aladim Rosales, Ary Kulmann, Aristides Correa Leite e Abdias da Rocha ocorreu no
Largo do Parque Internacional, uma extensa área verde, urbanizada e localizada na
fronteira dos dois países, metade em território brasileiro e metade em terras
uruguaias. Pois foi nesse local privilegiado e cultuado do lazer fronteiriço, o centro
vivo da região, que na noite de 24 de setembro de 1950, deu-se a tragédia. Em
Santana, os comandos da repressão encontravam-se nas figuras de Eleú Gomes da
Silva, comandante da Brigada Militar, Ciro de Abreu, comandante do Exército e do
delegado da polícia civil, o polêmico Zacarias, alcunhado zombateiramente por seus
adversários de “galo de lata”. Lúcio Soares Neto, advogado ligado às causas
populares era então o secretário do Partido Comunista.
56
O ponto inicial do episódio foi uma pixação, interrompida pela polícia. O ato
político ocorreria em um tapume onde estava sendo construído o prédio do Palácio do
Comércio, que posteriormente se consolidaria em um tradicional ponto comercial e
de escritórios, em frente ao Parque e do lado brasileiro, a poucos metros da linha
divisória. Os comunistas, reunidos em torno da sigla do Partido Republicano,
apoiavam o candidato Solon Pereira Neto, recém convertido às fileiras socialistas, em
sua corrida ao parlamento gaúcho. Na lembrança de Perseverando Santana,
tradicional pecuarista da cidade, membro do PCB e testemunha dos fatos, a ação
apanhou os militantes de surpresa, embora acontecimentos anteriores já
prenunciassem um embate.
57
Cerca de dez policiais, entre civis e militares, encontravam-se no grupo que
chegou atirando. À frente, estava o inspetor Castilho. Um dia antes do conflito,
policiais haviam apagado outras pixações e ameaçado os militantes. Durante o
56
Lúcio Soares Neto chegou em Santana em 1940, quando exerceu a defesa de Camilo Alves, chefe da
alfândega e principal acusado do assassinato de Waldemar Ripoll. Posteriormente militou nas fileiras do PCB,
exercendo a função de secretário. Abandonou o partido no início da década de 50, após o episódio da chacina.
57
Perseverando Santana lembra que o clima tenso entre a polícia e os militantes, que já haviam sido
advertidos em outra ocasião, demonstrava que o enfrentamento poderia ocorrer.
38
confronto, que aconteceu por volta das 22h, sete militantes faziam a segurança do
grupo, sendo que cinco deles reagiram ao fogo com uma rápida troca de tiros.
Conforme recorda Perseverando Santana, primeiro balearam Ari Kulmann. Hélio
Santana Alves, que se confrontou com os policiais armados, brandindo nas mãos
apenas um relho, levou um tiro nas nádegas. Aristides, filho de tradicional família de
comunistas, dono de uma livraria, tinha apenas um pincel na mão, quando foi baleado
no peito. O militante Santos Rodrigues também foi atingido e caiu ferido. O operário
e líder sindical do Armour, Aladim Rosales levou um tiro “à queima roupa”. O
militante quando viu seu companheiro, agarrou-se em um poste e disse: "estou
gravemente ferido", caindo sem vida logo em seguida. Abdias, líder camponês das
redondezas do frigorífico, caiu já dentro do Café Tupinambá, tradicional e concorrido
reduto boêmio, com uma bala a lhe varar a boca. Ari Kulmann, ferido mortalmente,
foi levado com vida ao hospital, e antes de morrer proferiu a sentença "É a luta
doutor", adotada pelo escritor santanense Arlindo Coitinho como título para o livro
onde rememora os fatos.
58
Perseverando Santana relembra de boatos que associaram a chacina a “uma
mera disputa por uma mulher” entre Lucio Soares Neto e o delegado Zacarias.
Entretanto, descarta tal hipótese, recordando-se da reunião anterior ao fatídico
acontecimento, realizada na casa de Lucio, onde ficara decidida uma pixação aberta
no Parque. A poucos metros do local, em solo uruguaio, Perseverando Santana e Sona
Santana, sobrinho e tio, aguardavam o ponto certo de um pirão de cola, que seria
usado para colar cartazes contra o integralista Plinio Salgado. Momentos antes,
sentados em uma das mesas do restaurante Doña Maria, Persevarando, Sona e Ari
Kulmann, que não estava escalado para a pixação, conversavam e aguardavam.
Persevando lembra que, em meio a um ambiente tenso, o companheiro Ari disse:
"Tchê, vocês não tem um revólver? Sim, porque hoje vai se dar alguma coisa".
Kullman decidiu então participar das pixações e “tomou” o pincel de Magalhães, que
estava já preparado para o serviço. Na praça estavam escalados para dar segurança ao
grupo os companheiros Olmos, Lucio Soares Neto, Hugo Negressauert, Doralino
Trindade, Pedro Perez, Santos e Gusmão.
58
COITINHO, Arlindo. É a luta Doutor. Porto Alegre: Renascença, 2001.
39
Conforme Perseverando:
Pouco tempo depois chegou um guri correndo avisando que havia acontecido um tiroteio.
Fomos eu e Sona para lá, mas o conflito já tinha terminado. Ainda examinamos Hélio, para
verificar se o balaço não tinha atingido algum órgão vital. A Brigada cercou o local, nos cercou
e como estávamos do lado uruguaio da linha avisamos ‘Tamo no Uruguai seu!’
59
Hubert Echevi, militante que tinha sido demitido dois anos antes do Frigorífico
Armour por sua atuação sindical, participava do grupo de apoio, encarregado da
segurança aos companheiros. Ele recorda do clima tenso que a cidade vivenciara, e do
momento em que o comitê estadual do partido deu sinal verde para o ato político,
Era época de eleição...e se supo que la policía ia tomar represálias, e se consultó a Porto Alegre
e yo era uno, solo yo, que estava com Lucio quando recibió ordenes de que podian hacer
pichamento legalmente, que estava todo determinado de que no ia passar nada. Entonces aí se
resolvió hacer, se convocó a la gente toda e se fez, se começo a pichar [...]quando vê, somos
surpreendidos pela polícia. E chegou atirando, insultando e atirando e matando. E matou
quatro.
60
Perseverando Santana relata que um dos agressores, Mário Cunha, teria
escapado de um tiro disparado por Hubert Echevi. Logo após o incidente, chegou ao
local o comunista, militante no Partido Colorado, Francisco Cabeda, conhecido como
Chico Cabeda, que teria participação decisiva na rede de apoio aos exilados do golpe
de 1964, na cidade de Rivera. Perseverando e Sona aproveitaram a saída do Cine
América e se misturaram entre as pessoas, anônimos. Nesse momento, um amigo de
Perseverando, o chofer de praça conhecido como Nego Ventura, perfila o carro ao
lado dos dois indicando: "Embarquem, embarquem". O destino seria a casa de Ary
Kulmann e Aristides, na rua Silveira Martins. Hubert Echevi revive os momentos da
luta, em que os quatro companheiros foram assassinados, em um enfrentamento
aberto, em pleno centro da fronteira,
Estavam completamente desprevenidos, a arma deles era o pincel e a cal. Houve um que estava
pixando, era parente do Perseverando, tinha uma fustinha, sabe o que é fusta? Um relhinho, e
brigou de fusta. Tinha outro, que morreu, o finado Aristides Corrêia, que tinha um aparato que
vinha nos carburadores dos auto antiguo, como que uma güela, assim, flexíble, e deu três ou
quatro mangasso num deles com aquilo, e caiu morto, assassinado. Era mais ou menos las diez
de la noche, era temprano todavia[...]
61
59
SANTANA, Perseverando Fernandes. Pecuarista e membro do partido comunista brasileiro em Santana do
Livramento. Entrevista concedida ao autor.
60
ETCHEVI, Hubert. Entrevista concedida ao autor.
61
Idem.
40
O Brasil vivia então os dias de repressão aos comunistas do Governo Dutra, de
indisfarçável alinhamento com as diretrizes políticas norte-americanas
62
. No Rio
Grande do Sul, o governo do pessedista Walter Jobim assumia a mesma postura. O
anticomunismo disseminava-se pelo continente e o PCB partia para uma posição de
maior enfrentamento com as forças da repressão, que o colocara na ilegalidade desde
maio de 1947, pedindo inclusive a derrubada do Governo Dutra.
63
Hubert Echevi era
um dos encarregados da segurança do grupo, que escrevia palavras de ordem nos
muros, como “Fora o Facismo”, “Abaixo o imperialismo”, “Viva a Democracia”
64
.
Lucio Soares Neto, secretário do Partido, relembra:
(...) a pixação era contra o império e mais nada, era contra a marcha do imperialismo. A
pixação era com o pessoal do Armour, aliás o Armour era a nossa força, os operários de lá
eram a nossa força, nós ganhávamos todas as eleições no bairro. Eu fui vereador, aliás eu fui
suplente de vereador, porque a massa do Armour era consciente e me apoiaram e eu tirei o
segundo ou terceiro lugar, fiquei na suplencia
65
Hubert Etchevi recorda dos primeiros momentos da luta como uma surpresa,
que continuou por momentos infindáveis, quando saiu então à caça dos agressores,
Quando eu chego, e dou tiro nas costas dele, e digo tu gosta de matar desarmado, filho desta e
daquele, e dou tiro, surge o Mário Cunha do outro lado e me dá seis tiros! De pertinho, de riba,
e eu vi, e eu tô com o revolver cargado, então tinha taximetrista e tinha um que era muito
amigo, o Ventura, que também é morto, e que foi soldado do Honório Lemes
66
, um homem
que tinha muita experiência, não tinha medo do tiroteio, tinha outro que chorava, que se
agachava nos pés dele no auto e dizia, “Vão me matar, vão me matar!” (risos) E quando o
Mário Cunha me atirou seis tiros, quando ele começou a me atirar eu vi que ele atirava mal,
porque ele olhava e colocava o revólver fora da linha onde estava eu não é? e eu deixei que
atirassem seis tiros. E quando ele atirou ele abriu os braços e me deu as costas, se rendendo,
mas tinha atirado seis tiro. Eu ia matar ele pelas costas e o Ventura me grita do auto: Não mata!
Eu quase recostei o revólver nele, e ele fazia “Ah, Ah”, apav
67
orado.
62
Os comunistas, que haviam obtido resultados eleitorais expressivos nas eleições de 1945 e 1947, foram
vítimas de uma ferrenha perseguição por parte do governo, que assim se integrava no contexto internacional
da Guerra Fria, e tiveram sua atuação política legal novamente proibida.
63
“A direção nacional do PCB reagiu ao arbítrio do Governo Dutra com um extremismo ressentido. Mudou
do pacifismo à pregação da violência revolucionária imediata. O desequilíbrio passional imprimiu um
catastrofismo apocalíptico no documento publicado a 1º de agosto de 1950 e assinado por Prestes, em nome
do Comitê Central”. In: GORENDER. Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo: Ática., 2003. P.23
64
Conforme depoimentos ao autor de Helio Santana, Lucio Soares Neto, Perseverando Santana e Eustáquio
Apoitia.
65
NETO, Soares Lúcio. Entrevista conjunta concedida a Marlon Gonsales Aseff e Liane Chipollino Aseff.
66
Aclamado como verdadeiro herói popular na região da fronteira, Honório Lemes combateu ao lado dos
federalistas em 1893 e posicionou-se contra o governo de Borges de Medeiros em 1923, sendo elevado ao
posto de General das tropas maragatas, rebeladas. Grande estrategista militar, embora semi-analfabeto, aderiu
a revolta contra o governo Arthur Bernardes em 1924. Aprisionado por Flores da Cunha em 1925, cercado de
admiração mesmo por seus oponentes, terminaria aderindo a revolução de 30, convidado pelo próprio Flores,
pouco depois de deixar a prisão. No entanto, não teve tempo de se unir a nova causa revolucionária, pois uma
peneumonia o levaria a morte três dias antes da revolta que colocaria Vargas no poder.
67
ETCHEVI , Hubert. Entrevista citada.
41
O companheiro conhecido como Santos Rodriguez, uruguaio, foi ferido nas
duas pernas e, caído, arrastou-se poucos metros, ficando no lado uruguaio da linha.
Segundo Hubert Echevi, seria fuzilado pelos policiais santanenses, não fosse a
intervenção da polícia uruguaia, que, em meio aos acontecimentos, tomou posição na
linha divisória e impediu a continuidade do massacre, alegando que o militante estava
em território uruguaio e não poderia ser tocado.
Na obra É a luta doutor, o cronista santanense Arlindo Coitinho recriou o
clima de repressão e insegurança reinante, onde os comunistas são acusados, entre
outras práticas, de tramar o envenenamento da água da cidade. Por trás da polícia,
descreve Coitinho, quem mandava eram os dirigentes norte-americanos do Frigorífico
Armour. Em uma passagem do livro, o delegado Zacarias conversa com a amante,
disputada por ele e Lúcio Soares Neto, no livro descrito como “doutor Catulo”,
- Porque tu não volta com o tal comunistóide...o tal de Catulo ? Ela ficou em silêncio, apenas
olhando-o nos olhos. Ele seguiu rosnando. – Esses comunistas...um dia nós matamos todos! Ela
notava às léguas, que o delegado tinha verdadeiro pavor do doutor Catulo. – Mas e por que?
Não sabia porque, mas na cabeça do delegado, uma coisa monstruosa se processava, e no fundo
de sua consciência, alguém lhe dizia. – És um capacho da elite... – Tinha a impressão que todos
gozavam de sua cara, até pareciam saber que os gringos não tinham o mínimo respeito por ele.
Para todos os efeitos, o doutor Zacarias era um molecão. Numa tarde,, quando estava no clube
privado do frigorífico, lhe disseram: - Que yo mi pienso ste coso...eu não quer comunistas na
cidade... – Ele ficava quieto, cabeça baixa, indefeso. E ainda Esméria vinha lhe encher a
paciência: - Esses estrangeiros mandam na cidade! – Ué, de onde ela teria tirado essa ? No
fundo, no fundo, ela dizia a verdade. Na cidade, comentavam, principalmente os mais
esclarecidos: - Quem manda na cidade são os forasteiros.... – É, talvez a gente tenha que
aprender inglês! Era verdade, os gringos sempre eram ouvidos. A última palavra era deles, e a
última palavra era a lei. Eles pisam na gente! – muitos diziam.
68
Antônio Montenegro utilizou-se da história oral para interpretar o medo do
comunismo, na Pernambuco dos anos 50, onde buscou revelar um imaginário popular
repleto de ameaças veladas, insufladas por uma propaganda política que viria
desaguar no golpe militar de 1964. O historiador reconstruiu a vivência da percepção
do medo através de lembranças de sua infância, de grandes incêndios em canaviais e
relatos orais retirados de relatórios policiais e matérias dos jornais do Recife,
Passados todos esses anos, descubro nessa pesquisa um reencontro com memórias múltiplas,
cuja lenta e laboriosa construção a escrita deste artigo de certa forma ajudou-me a entender,
acompanhando fios e teias que urdiram aquele presente/passado de incêndios carregados de
68
COITINHO, Arlindo. É a luta doutor. Op; Cit, p. 80, 81.
42
signos aterrorizantes e apocalípticos. [...] A pesquisa possibilitou, ainda, trilhar alguns
labirintos da produção dessa associação (incêndio versus perigo e ameaça à ordem e ao status
quo ) e perceber como ela não obedece a uma lógica unitária, ou a um plano organizado e pré-
definido. Antes, revela um deslocamento de sentido que vai sendo operado, de incêndio como
ato criminoso para incêndio também como ato político, sobretudo à medida que os
proprietários constatam uma mudança na forma dos trabalhadores rurais reivindicarem seus
direitos. Observa-se nos jornais e nos relatórios policiais que desde a década de 1940 os
proprietários colocam-se sempre criminalizando os incêndios e algumas vezes também
levantando suspeita de ação de comunistas.
69
Poderíamos estabelecer uma relação e dizer que os mesmos sintomas dessa
criminalização dos comunistas aconteciam na fronteira daqueles anos, estigmatizados
pela condição de militantes da causa operária, conforme recorda Hubert Echevi:
Quando nós morava numa vila ali perto do Povo Novo, lá pela década de 50 e 60, jogavam até
pedra nas casa, era um pessoal que não tinha consciência política nenhuma, não é? uma
gurizada que era mandada né?os maestros mandavam e eles faziam né? Para fazer isso, de
chamar a gente de comunista e mostrar que tinham mais força!
70
Para os envolvidos diretamente no incidente da chacina, fugir para Rivera foi à
única alternativa. Muitos dos principais dirigentes do partido, como o pecuarista
Aquiles Santana Alves, viviam na cidade uruguaia, onde montavam um posto de
observação a salvo da polícia brasileira. Esses postos seriam de grande utilidade em
ocorrências de enfrentamento, como a que os comunistas seriam submetidos,
geralmente associadas às lutas no Frigorífico Armour, que já remontavam os
primeiros anos de atuação, ainda sob o comando de Santos Soares. O veterano líder
comunista, já doente, vivia seus últimos meses de vida, mas ainda seria importante na
reordenação do grupo, graças aos seus conselhos que rechaçavam revanches ou
mesmo a queda do grupo em eventuais novas armadilhas e provocações. Logo após a
chacina, para fugir da perseguição, Hubert Echevi caminhou por uma noite inteira,
em busca de abrigo em um sítio de parentes de sua mulher em Rivera:
Viajei toda noite, guiado por uma estrela, ensinado por outro parente, cortando campo. Fiquei
tirado no chão porque me saia calambre, como ovo de galinha, câimbras como dizem vocês, de
tanto caminhar, andar, não é? Isso na noite da chacina, quando eu já ia embora, sem
comunicação com ninguém, que a coisa não estava muito boa, né?
71
Lúcio Soares Neto, baleado, foi levado às pressas para Rivera, onde foi tratado
por um médico simpatizante da causa operária, conhecido como Polla. De origem
69
MONTENEGRO, Anônio. Torres. Labirintos do medo. O comunismo (1950-1964). s/d
70
ETCHEVI, Hubert. Entrevista citada.
71
Idem.
43
russa, o chamado Polaco, deu os primeiros socorros a Lúcio, que permaneceu um
período abrigado por correligionários comunistas, uruguaios de Tacuarembó, que
viviam em uma casa no centro de Rivera. Lucio Soares Neto lembra:
[...] eu fui ferido. Eu soube quando eu bati numa porta pedindo para um conhecido para albergá
lá em Rivera, porque não podiam invadirem Rivera, não? eu me abriguei na casa de um amigo
de Rivera. [... ] fui atendido em casa, na casa de um médico comunista. No parque foram
mortos quatro companheiros nossos, foram assassinados. Eu escapei por um erro do
automóvel, eu agarrei o parque na direção de Rivera. Não se pode descrever bem o que é uma
luta, uma luta armada, eu levei um tiro aqui, que atravessou, foi de raspão. (...) foi um salve-se
quem puder naquela hora ali, e quando eu me alberguei em Rivera eu, já pouco tempo depois,
eu já sabia que tinha companheiros mortos.
72
O advogado viveria entre Rivera e Montevidéu, com inserções clandestinas no
território brasileiro, até ser julgado e absolvido em 1955. Do outro lado da linha
divisória residia o abrigo, pois, em suas lembranças, “o Uruguai garantia a segurança,
o Uruguai sempre garantiu a segurança das pessoas. Então eu estava num café, no
Uruguai, e a polícia passava e ficava olhando e não faziam nada”.
73
Prestigiado advogado criminalista, Lucio viria para a fronteira depois de
colaborar no inquérito policial que apurava a morte do então secretário da ANL,
Aparício Córa de Almeida.
74
Ironicamente, veio atuar na defesa de Camilo Alves, o
chefe aduaneiro acusado de mandar matar o jornalista e advogado Waldemar Ripoll.
Em Santana, manteve uma linha de atuação em defesa dos mais carentes o que viria
repercutir entre os operários do Armour. Nos quadros do PCB municipal, quando do
episódio da chacina no Parque Internacional, a linha mantida pelo diretório seguia a
cartilha proposta pela diretriz estadual, que estimulava o enfrentamento de seus
militantes com a ordem estabelecida. Anos depois, iria renegar o comunismo como
bandeira ideológica e aderir ao trabalhismo. Nas lembranças de Ernesto Levy, Lúcio
Soares Neto desempenhou um papel fundamental no confronto com a política elitista
dos grandes empreendedores rurais e aos industriais do Armour:
Nos anos 30, Lucio Soares Neto veio para Livramento e dirigiu a primeira tomada de terra em
Santana do Livramento, que resultou na primeira desapropriação de terra no Rio Grande do
Sul. Isso deu base para a constituição estadual, em 1946, na qual Leonel Brizola era
constituinte, de fazer um pagamento para as desapropriações. Foi a primeira no Rio Grande do
Sul, e contra a Swift Armour, quando surgiram a formação de colônias de trabalhadores rurais.
Ele surge na linha de Astrimônio de Melo., que foi dirigente sindical rural até os 80 anos.
72
NETO, Soares Lúcio. Entrevista citada.
73
Idem, Ibidem.
74
João Batista Marçal narra o episódio em Comunistas Gaúchos – A vida de 31 militantes da classe operária.
Op.,Cit. P.13.
44
Depois junta-se a essa luta o Ari Saldanha , dirigente do partido comunista que reforça aqui,
como zona de fronteira, uma luta ideológica muito grande, que vai desaguar na chacina dos
militantes comunistas na Praça Internacional.
75
Lucio Soares Neto abandonaria o partido logo após o episódio, negando o
legado comunista. Atuando como respeitado criminalista na região, mais tarde,
durante a ditadura militar, exerceria a vereança pelo PTB. Hélio Santana Alves
permaneceu preso por oito meses no Uruguai, sendo libertado posteriormente, graças
a um acerto político e intervenção de sua família com autoridades uruguaias. Voltou à
atividade de liderança sindical e partidária, mesmo sendo proibido de penetrar em
território brasileiro por 20 anos, passando a viver em Rivera definitivamente.
Perseverando Santana manteria suas posições políticas, com uma sólida atuação nos
bastidores da política local, afinado com as idéias de Luis Carlos Prestes e os ditames
do PCB. Hubert Echevi, depois de ser expulso do Frigorífico Armour, voltou a
prestar serviços especializados para a multinacional, na condição de torneiro
mecânico, onde reuniu expressivo capital, tornando-se proprietário rural no Uruguai.
A trajetória dos comunistas naquela fronteira, onde a militância conjunta nos
espaços do Brasil e Uruguai não raras vezes foi a tônica da atuação sindical, reforça
mais uma vez o aspecto de interdependência econômica, cultural e política,
acentuando o aspecto de uma cultura política de fronteira, constituída ali. Essas
experiências, que envolvem questões como a dupla cidadania, o parentesco e as
negociações políticas aproximaram o território de Santana e Rivera através dos anos
como um elemento em comum, protagonizando ou refletindo as lutas locais,
desenvolvidas de um lado ou de outro daquela fronteira. O surgimento de interesses
sócio-econômicos e culturais em comum define a formação das fronteiras
geopolíticas no espaço platino, podendo gerar discórdias, como nas sucessivas lutas
pela delimitação de território e ocupação de espaços, quanto aproximar e integrar
mentalidades. Muitas vezes essas características não são excludentes, ocorrendo
simultaneamente em momentos do processo histórico.
76
75
LEVY, Ernesto. Entrevista citada.
76
REICHEL, Heloisa Jochims, GUTFREIND, Ieda. Fronteiras e guerras no Prata. São Paulo: Atual, 1995.
p.4,5.
45
Conforme procurei mostrar neste capítulo, essa cultura política original, surgida
de um conhecimento prévio entre os atores políticos e sociais que ora integravam o
espaço uruguaio, ora brasileiro, sempre esteve presente na experiência cotidiana da
fronteira. A dupla cidadania e o exemplo das leis trabalhistas uruguaias, por um lado,
foi decisiva para consolidar a luta sindical do início do século 20 em Santana do
Livramento. Os exílios políticos, por sua vez, reforçaram o caráter de negociação, do
estabelecimento de bases de apoio e resistência e uma área de atuação comum entre
as duas nacionalidades. Foi assim que atuaram os federalistas derrotados, com seus
jornais editados em Rivera, os partidários da Frente Única gaúcha, em 1932 e os
representantes da esquerda brasileira em 1964 e nos anos subseqüentes. Com o golpe
no Uruguai, mais uma vez a fronteira mudaria de “câmbio” e seria no território
brasileiro o espaço da fuga, da solidariedade e do auxílio.
46
CAPÍTULO II
Do outro lado da fronteira: Os caminhos da solidariedade
2.1 “Todos para Rivera!”
No dia 1
o
de abril de 1964, o militante do PCB, Hubert Echevi, descia a Rua
dos Andradas, principal via de Santana do Livramento, com os bolsos cheios de
munição e um revólver na cintura, precavido e à espera dos desdobramentos políticos
que se desenhavam naqueles dias tensos. Sobrevivente da chacina no Parque
Internacional, operário da organização do campesinato santanense na década
seguinte, Hubert pesava os rumores de golpe, disseminados pela cidade. O clima de
confronto que pairava na fronteira era intenso, conforme se recordou:
[...] eu não me juntava com ninguém, quando vinha um comunista eu dizia: te abre, te abre,
anda só que o troço pode esquentar de um momento a outro aí, e é melhor andar só que
acompanhado! Quando eu cheguei em casa veio um tintureiro que morava em frente a minha
casa, se chamava seu Oswaldo, dissimulando com um pano na mão, que ele trabalhava
limpando roupa. E me disse assim pra mim, em frente do Perseverando e o outro: Hubert é pra
você ir imediatamente para Rivera, manda dizer o Zéca Remédi. O Zeca Remédi era um sujeito
rico, que tinha um genro dele que era o chefe principal do exército. E ele era muito bom com
nós todos, ele era simpatizante do partido. Mandou dizer que fosse pra Rivera porque já
vinham me prender..
E saí pra fora e já estava a camioneta para me prender parada em frente a
porta da minha casa. Aí eu disse o seguinte, se ninguém fez nada em todo o Brasil pelo Jango
Goulart, se ninguém fez valer o Jango, eu faço agora nesse momento. E saí de revólver, e a
polícia saiu me namorando. E eu queria sair pra Rivera, mas não deu e saí pra lá (aponta para o
lado de Santana). E eles me acompanhando. E eu dizendo, o primeiro que eu vou atirar vai ser
no acompanhante, porque o acompanhante é que traz a arma boa, a melhor arma no exército.
Eu vou atirar nele primeiro, pertinho um do outro, de namoro. Aí eu dobrei num lugar que a
camioneta não passava (...) Eles me deixaram, eu então peguei pra lá, costiei a Hidráulica,
entrei em Rivera e cheguei na casa da minha mãe.
77
Vítima do enfraquecimento e divisão da própria esquerda naquele período,
Hubert encontrou no lado uruguaio o refúgio necessário para pensar os próximos
passos que poderiam ser dados no intrincado jogo político que o golpe oferecia à
relutante militância do PCB. A militância local, embora identificada majoritariamente
com o Partido Comunista e setores do PTB, vivenciava momentos semelhantes aos
descritos por Reis Filho:
Os comunistas brasileiros enfrentaram a experiência do golpe divididos, e é possível que a
divisão tenha influenciado de alguma forma a própria derrota. Mas a quebra do monolitismo
em torno do velho Partido Comunista não fora produto do acaso. Tanto a POLOP como o PC
77
ETCHEVI, Hubert. Entrevista concedida ao autor.
47
do B negavam o papel dirigente da burguesia nacional na revolução brasileira. De modo geral,
anunciavam a falência das classes dominantes. Segundo a POLOP, o capitalismo perdera o
impulso expansivo. O PC do B falava de estagnação. Ambas as organizações referiam-se à
sólida aliança que se estabelecera entre as classes dominantes, rejeitavam a tutela burguesa e
estavam de acordo quanto ao impasse em que se encontrava o país. [...] O desprezo pelo jogo
institucional era uma dedução. Não se chegava ao boicote da luta legal. Mas subestimavam-se
as eleições enquanto fatores de transformação. Não restava outra saída e, a rigor, tratava-se de
uma imposição objetiva: a luta armada era a única alternativa possível. O PCB era
desqualificado como partido de vanguarda. Estava falido, destinado à derrota e ao
desparecimento.
78
Para Hubert, Rivera se mostraria como uma alternativa que muitos não tiveram
em outros rincões do país. Abrigado na sede do partido Blanco, com quem mantinha
uma aproximação ideológica que só poderia florescer em uma fronteira como aquela:
a veneração à memória de Aparício Saraiva, o líder federalista e caudilho Blanco.
Graças a essas coincidências ideológicas próprias de uma cultura política de fronteira,
que por tantas vezes configuraram alianças e semearam discórdias, Hubert conseguiu
abrigo próximo da Avenida Sarandi, a principal via da cidade uruguaia, onde
estabeleceu sua morada provisória. Ali se reunia com os companheiros foragidos e os
que atravessavam as poucas quadras que separavam a casa uruguaia do território
brasileiro, guardado por patrulhas militares. Na sede improvisada, alguns
companheiros o visitavam, refletindo sobre a nova realidade nacional. Como assinala
Reis Filho, os primeiros momentos foram de incredulidade, estupefação.
A rápida vitória do golpe militar apanhou desprevenidas as organizações comunistas. A
surpresa da derrota, mais a surpresa do que a derrota, foi uma experiência dolorosa e
desagregadora. O momento exigia uma reflexão crítica sobre as bases sociais e históricas do
desenlace inesperado. Por que um movimento tão amplo, inédito na história da república, fora
vencido de forma tão melancólica? Como se haviam articulado com tanto êxito as elites
dominantes? A nova situação impunha o repensar das fórmulas teóricas, dos programas, da
estratégia e da tática. Parecia inevitável um amplo acerto de contas - uma reavaliação dos
procedimentos , dos métodos de trabalho, da retórica e, sobretudo, das concepções sobre o
Brasil e sobre a revolução brasileira.
79
No calor dos acontecimentos, ninguém poderia prever que o golpe militar iria
durar mais de duas décadas. O veterano militante do Movimento de Justiça e Direitos
Humanos do Rio Grande do Sul, Jair Krishke, responsável pela passagem de muitos
militantes políticos brasileiros e uruguaios pela fronteira, lembra que o golpe pegou a
todos desprevenidos, sob uma falsa sensação de resistência que ainda emanava da
78
REIS FILHO, D.A. A Revolução faltou ao encontro. Os comunistas no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1989
p.39.
79
Idem, Ibidem. p.45.
48
campanha da Legalidade, em 1961. Naquele momento, Leonel Brizola conseguiu
articular as forças populares e progressistas do Exército e evitar o que seria o efetivo
golpe contra a posse de João Goulart. Ele relembra da Legalidade como uma ocasião
“muito forte na vida de todos nós, muito jovens, e um momento de grande relevância
política na vida das pessoas que se envolveram”. Desse modo, quando surge 1964 e o
golpe político se mostra em sua real dimensão, existia uma vaga certeza de que tudo
poderia ser contronado: “nós nem sabíamos o que era a tal de Doutrina de Segurança
Nacional. Para nós era mais um dos tantos golpes que acontecem na América Latina.
Pensávamos que daqui a dois ou três anos a gente derruba esses milicos, faz uma
eleição de novo e vamos em frente”.
80
Em Santana, persistia a lembrança da Legalidade como um episódio valoroso,
em que as camadas populares mostraram sua força e venceram os golpistas. Feitos de
cunho heróico, como a Coluna Internacional, onde defensores da constituição
brasileiros e uruguaios – reuniam-se nas dependências do CTG Fronteira Aberta, a
poucos metros da linha divisória, atendendo ao chamamento de Brizola. Ali se
ofereciam para a defesa da ordem constitucional, sonhando com as façanhas de um
passado de lutas em comum, onde pouco importava a nacionalidade, mas o calor da
causa.
A renúncia de Jânio, no entanto, encontrou a fronteira já sob o trauma de outro
crime político. Uma semana antes do desatino do presidente, havia sido assassinado o
prefeito municipal de Santana, o petebista Camilo Alves Gisler. O crime teria sido
motivado por desavenças político-partidárias.
81
Passava do meio-dia de 18 de agosto
de 1961, quando o ex-prefeito Francisco Góes, o Pancho Góes, pecuarista que havia
precedido Gisler na Prefeitura Municipal desferiu uma série de tiros no
correligionário e então desafeto político. O crime aconteceu, como no epísódio dos
comunistas, bem sobre a linha divisória, em frente ao Parque Internacional e próximo
a um pequeno marco que divide os dois países, colocado na entrada da uruguaia
80
Jair Krishke desenvolveu durante as ditaduras brasileira e uruguaia um importante serviço em prol dos
perseguidos políticos no Cone Sul. Fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos do Rio Grande do
Sul, mantém até os dias de hoje uma atuação fundamental na busca pela justiça aos afetados diretamente pelas
ditaduras latinoamericanas. Entrevista concedida ao autor.
81
O episódio aguarda uma devida investigação pela historiografia. O carismático comerciante Camilo Alves
Gisler rompia um ciclo de pecuaristas que sucediam-se na administração municipal.
49
avenida Sarandi. A disputa interna acabou no assassinato, e a administração
municipal passou para o comando do vice-prefeito Hermínio Menezes. Em 1964,
Menezes seria substituído por outro petebista, Sérgio Fuentes, que exerceria o
mandato por três meses, até ser cassado pelo golpe de abril.
No âmbito estadual, a crise deflagrada em 25 de agosto de 1961 consolidava a
liderança de Leonel Brizola, que soube como poucos tocar no sentimento cívico do
gaúcho, apelando para um passado épico, como a unir a enfraquecida sociedade
sulista, ainda muito afastada do poder central da república, que priorizava o sudeste
industrializado.Governador desenvolvimentista, Brizola criou a Caixa Econômica
Estadual, estatizou as companhias de telefonia e energia elétrica, desenvolveu de
maneira inigualável a rede escolar, conferindo grande impulso à educação, e como se
não bastasse, deu início a um programa de reforma agrária. Foi diante dessa liderança
que milhares de gaúchos e brasileiros responderiam com a adesão contra o
impedimento da posse de João Goulart, em meio à crise deflagrada pela renúncia de
Jânio Quadros. Por outro lado, se a classe dominante brasileira ainda não conseguia
se unir definitivamente na proposta do golpe, influenciando os demais setores da
sociedade, no Rio Grande restava a lembrança do trauma que significou o suicídio de
Vargas, que não por acaso semeara as bases de um nacionalismo que deixara Jango
como herdeiro legítimo, e Brizola como ardente defensor.
Do outro lado se posicionavam as mesmas forças militares e udenistas que
provocaram o gesto trágico de Getúlio, não sem antes obrigarem seu ministro do
Trabalho, Jango, a renunciar depois de propor um aumento de 100% para o salário
mínimo, intocado nos anos de Governo Dutra. Do embate travado naquele mês de
agosto de 1961, pesou o apoio do Terceiro Exército, o maior e mais aparelhado do
país, através da adesão do general José Machado Lopes. Somando-se ao sentimento
legalista amplamente difundido na Brigada Militar, a campanha da Legalidade atingia
também o Rio de Janeiro e outros estados do país. Com a adesão popular, o
movimento tinha forças para subir o país e fazer valer a posse de João Goulart. No
entanto, conjunções políticas que resultaram em uma negociação no Congresso o
fariam aceitar uma emenda parlamentarista. Assim, Tancredo Neves, líder do PSD,
foi elevado a primeiro ministro da nação, restando um amargo sabor de derrota aos
50
defensores incondicionais de sua posse. Jango só retomaria os plenos poderes de
presidente, depois da vitória em um avassalador plebiscito popular, em janeiro de
1963.
Três anos após esses acontecimentos, o golpe civil-militar não encontrou
resistência no titubeante governo Goulart. A reação não veio. Muitos militares que se
colocaram a favor da Legalidade sofreram represálias dentro das forças armadas,
diante da inação de Jango. Existia um vácuo que dificilmente seria preenchido pelas
forças da esquerda, desconfiadas dos reais propósitos do presidente. José Wilson da
Silva, tenente da aeronáutica que participou do reservado grupo brizolista no exílio
em Montevidéu, viveu em Porto Alegre os momentos cruciais do golpe, junto a João
Goulart e a cúpula militar que o acompanhava. Para ele, a traição dos altos comandos
da república, que se abstiveram em encarar uma resistência no momento crucial
penalizou os que se atreveram a remar contra a maré golpista:
Jango, político populista, nacionalista e progressista, mas com hábitos e condicionamentos
puramente burgueses, mentalidade latifundiária, acostumado a tratar com lideranças
aristocráticas e generais, começou a contatar altos comandos, todos temerosos dos “terríveis
comunistas” infiltrados em seu governo, segundo a panfletagem entreguista, e nunca deu uma
ordem expressa e determinativa. Mostrou temor, indecisão e claudicância. Foi fraco e sem
aptidão para o comando. Não esteve à altura do momento ou conscientemente não quis.
Estamos condicionados a uma estrutura vertical, onde todos esperam sempre a ordem de
alguém, especialmente nos meios militares, e como o presidente nunca foi claro e nenhum
chefe maior tomou posição, os golpistas foram avançando. Quando algum janguista ou
brizolista quis reagir já estava desmotivado pela inoperância do governo e seus sistemas de
defesa.
82
As divergências contra a reticente liderança de Goulart iriam dividir
definitivamente os exilados oriundos das fileiras trabalhistas, na fronteira e em
Montevidéu, em grupos simpatizantes de Brizola ou Jango, que pouco contato
mantinham entre si. Os comunistas desconfiavam de Brizola e demonstravam
simpatia por Goulart, enquanto os brizolistas não perdoavam o modo elitista e as
origens aristocráticas do ex-presidente. Na fronteira, esses grupos eram claramente
identificáveis, e embora mantivessem contatos, não privilegiavam ações em conjunto.
82
SILVA, José Wilson da. O Tenente Vermelho. Porto Alegre: Editora Tchê. 1987. p. 99.
51
José Wilson da Silva, o Tenente Vermelho.
José Wilson recorda dos momentos decisivos dos dias 1º e 2 de abril, quando
Jango acompanhado de cinco ministros desembarcou em Porto Alegre e dirigiu-se
para uma fatídica reunião na casa do comandante do 3º Exército, General Ladário
Telles, à rua Cristóvão Colombo 3232,
O Brizola vinha fazendo ingentes esforços desde que o Jango havia chegado para que montasse
a resistência a partir de Porto Alegre, reconstituindo o Governo legal, sem contudo lograr êxito.
Fiquei irritado porque ele, Brizola, não nos estava colocando a par da verdadeira situação do
que se passava nas discussões lá dentro. Enquanto discutiam, sabendo que Jango não queria
resistir, nós nos enterrávamos até o pescoço, com comprometimentos desnecessários. (...)
Quando eu havia saído do quarto, tinha entrado o general Floriano Machado, chamado o
Presidente para um canto, segundo soube, e dissera-lhe: - Presidente, tropas de Curitiba estão
marchando para Porto Alegre, o senhor tem duas horas para deixar o país se não quiser ser
preso. O Jango apavorou-se e quis obedecer. Nisto, vem entrando dona Neusa Brizola e segura
o Jango na saída: - Janguinho, não podemos abandonar essa gente assim no mais. Vamos ficar
todos e resistir, para o que der e vier. (...) O Jango, ao ver-nos naquela disposição, pegou-me
pelo braço e caminhamos para a sala dos fundos, seguidos pelos demais. Em seguida me disse:
- Wilson, vai haver derramamento de sangue e eu não quero isso. A situação é ruim. (...) Eu
não sou revolucionário, o revolucionário é o Brizola aí. Vocês se acertem com ele.
83
A falta de uma resistência articulada logo se fez sentir na fronteira, depois que
silenciaram os rumores de que Jango Goulart combateria os insurgentes. José Wilson
assinala o pouco caso do Presidente contra a verdadeira guerra ideológica instalada
83
Idem.p. 92.
52
dentro da caserna como uma das causas para o sucesso do levante. Some-se a isso as
desconfianças da esquerda com o já desgastado presidente negociador, e a
determinação de setores da extrema direita e da sociedade civil, cooptada pelo medo
do comunismo, alimentado pelos discursos radicalizados. Conforme aponta José
Wilson,
Jango não tinha apoio em 31 de março. A esquerda não dava mais, não confiava, e quando a
gente viu, tava naquele vazio. Porque a expressão do grande capital vamos dizer assim,
aparecia nos comandos militares, porque os aparelhos da elite são as tropas, não são? Então
fizeram um trabalho muito grande nas tropas, houve um trabalho de estado maior, para cooptar
os comandos militares, e não só os militares, mas todos os comandos da sociedade brasileira.
Nos comandos militares houve um trabalho estruturado, com tarefas. E conseguiram depois de
1961, cooptar e manipular as elites militares. Eles lançaram tudo, o grande capital liderado
pelos americanos fez o possível e o impossível para segurar o Brasil [...] Mas eles contavam
que haveria uma resistência. Eu sempre considerei que 15% das forças armadas eram
nacionalistas, ou comunistas, ou de esquerda. 15% eram de direita ou filo-americanos, e 70%
eram e são funcionários públicos. O que correr e pegar o bastão primeiro comanda o restante.
Eles foram mais hábeis, mais capazes, tinham muito dinheiro, e assumiram o comando. Os
nossos ficaram esperando uma ordem do Jango. O Jango queria negociar...e a direita não
brinca. A direita age. E a direita agiu e assumiu o comando. E o Jango esperava que, uma vez
derrubado, fosse para a fazenda ITU, como fez o Getúlio, e de lá voltava como senador. Mas os
tempos eram outros. Ele tinha aquela visão de caudilho, mas os tempos internacionalmente
eram outros. Ele foi para o Uruguai, e queriam matar ele no Uruguai e terminaram de uma
maneira indireta matando mesmo, e isso ainda não está bem esclarecido .
84
Em Santana do Livramento, a eleição para a prefeitura municipal do petebista
Sérgio Fuentes – o Índio Fuentes -, consolidada em outubro de 1963, significava uma
ruptura no equilíbrio da política local.
85
Embora não fosse novidade um prefeito
petebista, Fuentes gozava de forte apoio popular e tinha ligação com setores
progressistas do Governo Goulart, que poderiam desdobrar-se em ações ainda não
mensuradas totalmente pela elite local, caso o governo federal levasse adiante os
programas de reformas. Ex-combatente da mitológica “Divisão de Sant’Ana”, força
revolucionária que se levantou contra a reeleição de Borges de Medeiros em 1923,
herdeira dos ideais maragatos da revolução federalista, era contabilista e jornalista,
diretor-fundador do prestigiado jornal Folha Popular.
84
SILVA, José Wilson da. Entrevista concedida ao autor.
85
Homem identificado com os ideais getulistas desde a revolução de 30, posteriormente ligados à vertente
petebista, Sérgio Fuentes esplanava suas convicções desde o primeiro editorial da Folha Popular, jornal por
ele criado no alvorecer do Estado Novo, em dezembro de 1937: “terminada como está a luta política, por
força da dissolvição dos partidos – ato altamente patriótico do Grande Presidente Dr. Getúlio Vargas – o
nosso jornal se dedicará exclusivamente a noticiar os fatos importantes que se desenrolam diariamente na
vida da comuna, do Estado e do Paiz” in: FOLHA POPULAR, nº 01, Santana do Livramento. 16 de dezembro
de 1937, p.2.
53
Com o golpe já em andamento, nos primeiros momentos do dia 1º de abril,
Sérgio Fuentes decide dispor a Prefeitura Municipal como sede da resistência. No
saguão do prédio é instalado um transmissor de rádio, doado por militantes
comunistas de Rivera. Para lá se dirigem representantes sindicais, jornalistas, ativistas
políticos e simpatizantes do governo deposto. A ocasião estava carregada de um
simbolismo sombrio, pois na tarde de 31 de março falecia o ex-prefeito e baluarte do
trabalhismo santanense, João Souto Duarte. A Rádio Cultura saiu do ar em
homenagem ao filho ilustre, mas na mesma faixa de sinal passou a irradiar a rádio
clandestina. Nas lembranças do jornalista Elmar Bones, a cena da primeira resistência
surge em todas as suas cores,
[..] com o auxílio do partido comunista de Rivera, alguém conseguiu, não sei quem, veio a
informação de que tinham conseguido um transmissor de rádio. E que era um transmissor que
tinha uma potência que dava para colocar em cima da rádio local, e passar a fazer uma
pregação, chamar a população para as ruas, porque ninguém sabia o que estava acontecendo,
tinha um zum-zum-zum que já tinham dado um golpe, que o Jango já tinha sido derrubado,
mas tinha uma boataria enorme dizendo que não, que o Jango estava no Rio Grande, que iria
resistir e tal, aí nós fomos para a prefeitura, o pessoal veio, trouxeram esse técnico, trouxeram
esse transmissor numa camioneta, entraram pelos fundos da prefeitura, que a prefeitura era do
PTB, era do Sérgio Fuentes, e instalaram esse transmissor, e no saguão da prefeitura ficou um
estúdio de rádio. E aí as pessoas se revezavam fazendo pronunciamentos. Então a gente botava
a rádio no ar, em um horário assim, meio-dia, que é um horário que todo mundo tá ouvindo a
rádio, botava em cima da rádio local, da Cultura, e metia discurso, convocando os estudantes,
eu, o Ruschel, o Kenny falava, convocando os estudantes, convocando os jovens, aí vinha
outro e convocava os camponeses. Chegou a durar um dia, até que no dia seguinte de manhã o
exército descobriu. E lacrou tudo. Quando nós estávamos lá dentro o exército chegou e cercou
a prefeitura com um aparato de guerra.
86
Em 1964, os jornalistas Elmar Bones e Kenny Braga eram estudantes e
ensaiavam os primeiros passos na redação do jornal santanense A Platéia, que lhes
serviria de escola para a profissão que iriam abraçar dali em diante. Kenny lembra de
personalidades afinadas ideológicamente com o grupo estudantil, que desenvolviam
amplo diálogo político e literário, em tertúlias e reuniões informais. Uma delas era o
então juiz de direito em Santana, José Paulo Bisol. O outro era o professor de
literatura e escritor Alfredo Paiva. O pecuarista e membro do PCB local,
Perseverando Fernandes Santana também recorda da ativa participação de Bisol nos
meios da esquerda local, quando freqüentava, em Rivera, a casa de Aquiles Santana
86
BONES, Elmar. Jornalista. Entrevista concedida ao autor.
54
Alves, ativo membro do PCB santanense. No dia do golpe, estiveram reunidos mais
uma vez, conforme recorda Perseverando,
Eu, em seguida imediato ao golpe fui pra a prefeitura, por recomendações do Bisol. Tínhamos
um grupo de esquerda...e ele tava aqui na época, até foi impedido de embarcar no aeroporto..E
teve lá na casa do Aquiles, até conversei com ele lá na casa do Aquiles, e ele aconselhou que
viéssemos por precaução. Era juiz. E tinha contatos com o partido, um sujeito muito talentoso,
brilhante, fazia tertúlias literárias. E a prefeitura era do Sérgio Fuentes, um sujeito de muito
valor. Era maragato, trabalhista. Mas um sujeito que não tinha restrições com esquerda,
progressista.....uma coragem tremenda. Então nós fomos lá para a prefeitura, eu, o Chico
Cabeda, tava esse Danilo Ucha, que pertencia a esse grupo que o Brizola meio influenciava,
dirigia...E o Bisol tava na prefeitura. Ficamos conversando e tudo, e o Índio ali. Botou alto-
falante, reunir o povo, resistir, essas coisas toda. Dali a um pouco, a gente sentiu que já não
tinha mais resistência, e cada um tomou seu rumo. Tava todo mundo...tava o Marcos, o
Aquiles, o Dalto, um paraguaio que tinha aí, médico, tanto é que ele nos aconselhou: - todos
pra Rivera!
87
Na edição do dia 03 de abril de 1964, junto com o anúncio do fim da resistência
legalista, a Folha Popular registrava a reação das forças políticas municipais, sob o
comando do prefeito Sérgio Fuentes:
Em Livramento
S. Fuentes Campeão da Legalidade – Quando as primeiras horas da manhã de quarta-feira foi
conhecida a notícia de que a forças rebeldes em Minas Gerais haviam iniciado um movimento
subversivo visando depor o presidente constitucional, dr. João Goulart, o prefeito municipal
jornalista Sérgio Fuentes compareceu ao palácio intendencial, onde após convocar seus
assessores instalou uma frente de resistência ao golpe. Imediatamente a prefeitura transformou-
se no centro de todas as atenções da cidade, tendo a Rádio Cultura passado a transmitir
diretamente de seu gabinete na Prefeitura Municipal, integrando-se na “cadeia da legalidade”
liderada pelo valoroso e destemido deputado federal Leonel Brizola. A vigília cívica contou
com o apoio integral da maioria da população santanense que independente de qualquer
chamamento foi levar ao prefeito trabalhista o conforto moral na hora dramática em que os
alicerces da democracia foram sacudidos pelo movimento golpista. Aproximadamente ao meio
dia de ontem um contingente da Guarnição local compareceu a Prefeitura de onde requisitou os
transmissores da Rádio Cultura, que saiu do ar.
88
Da tribuna da Folha Popular, Sérgio Fuentes deu voz aos movimentos que se
colocavam frontalmente contra o golpe no calor dos primeiros momentos. Ainda no
dia 03 de abril, logo após os incidentes ocorridos na Prefeitura, o jornal insuflava a
resistência, buscando apoios e listando manifestações contrárias ao levante,
noticiando fatos como uma passeata dos estudantes uruguaios em favor do governo
Goulart.
87
SANTANA, Perseverando. Entrevista citada.
88
FOLHA POPULAR, Santana do Livramento. 03 de abril de 1964, p.4.
55
Estudantes Uruguaios Fizeram Passeata de Repúdio ao Golpe e Em Favor de JG
Montevidéu, 3 (FP) – Portando cartazes que taxavam os militares que depuseram o presidente
João Goulart de “gorilas” e que diziam ainda reconhecer em João Goulart o presidente
constitucional e legal de todos os brasileiros, uma grandiosa manifestação dos estudantes
uruguaios foi realizada nas primeiras horas da noite de ontem, pelas principais ruas da capital
uruguaia. A cidade que vive em clima agitado e de espectativa desde o momento em que foi
anunciado que o presidente brasileiro João Goulart, se dirigia para Montevidéu, assistiu uma
grandiosa manifestação estudantil que foi acompanhada de perto por forte dispositivo policial,
que se limitou apenas a acompanhar o desenrolar pacífico da passeata. Durante toda a tarde de
ontem e as primeiras horas de hoje o povo aguardou nas ruas a chegada do primeiro mandatário
do Brasil, ao qual – caso se confirmasse sua vinda para território uruguaio – seria recebido
ainda como chefe de Estado e lhe seria tributada uma recepção popular digna do prestígio que
goza em todo o Uruguay.
89
Em rápidas pinceladas, o repórter uruguaio descrevia um prefeito envolto pelas
pesadas circunstâncias da hora: El Prefecto Fuentes, un hombre de edad, enjuto y
pequeño, decidido “legalista”, hablaba descorazonado: “Tudo no ha sido mais que
un bluff”
90
O correspondente do jornal uruguaio El Pais estava com Sérgio Fuentes
no dia 3 de abril na Estância Carpinteria, na localidade uruguaia de Vichadero, cerca
de 200 quilômetros da fronteira, ainda no departamento de Rivera. Ali, levados pelo
petebista, estava um forte efetivo de policiais e repórteres de Santana e Montevidéu, à
espera da provável chegada de João Goulart, em fuga das terras brasileiras. O bluff
poderia ter sido obra do acaso, ou armado por Fuentes, soldado petebista e que muito
improvavelmente acionaria a polícia uruguaia e as atenções dos golpistas para o
encontro com Jango. Um despiste parece ter sido o episódio da Estância Carpinteria,
muito embora não possa ser comprovado. Os jornalistas não escondiam a decepção,
conforme anota a crônica do EL PAIS: “Doscientos kilómetros de intransitable
camino y una espera de horas para localizar al doctor João Goulart”. O verdadeiro
circo armado por Fuentes foi descrito pelo cronista montevideano:
ESTANCIA CARPINTERIA, 4 (de nuestro enviado especial William Puente) – Pocos minutos
despues de lãs 8 de la mañana de hoy, la expectativa sobre la presencia de João Goulart en
este lugar quedo terminada al no ser encontrado aqui el presidente. La certeza del Prefecto de
Livramento, Sérgio Fuentes, que afirmaba que Jango se encontraba en la estância
Carpinteria, a 50 kiílómetros de Vichadero hizo que prácticamente toda la atención de
Uruguay y Brasil se centrara en este establecimiento de campo.(...) El tenia la secreta
esperanza de que Jango estuviera aqui y de este modo entrevistarlo y saber “sus intenciones
para o futuro do Brasil”.
91
89
Idem.
90
INFRUCTUOSA EXPECTATIVA SE VIVIO AYER EM LA ESTANCIA CARPINTERIA EN BUSCA DE
“JANGO”. EL PAIS .Montevidéu, 05 de abril de 1964, p.13.
91
Idem.
56
Sérgio Fuentes (C) e o cronista do El Pais (D) esperam por Jango na estância Carpinteria
Sobre a estância pesavam suspeitas de que fosse propriedade de Leonel Brizola,
embora estivesse em nome de dois sócios, proprietário de outros negócios rurais no
Brasil, sendo administrada por Moacir Souza, fazendeiro de Pelotas e trabalhista de
primeira hora. No interior da casa, os jornalistas encontraram uma pequena estátua de
gaúcho, onde se lia “Aqui mora um PTB”. William Ponte anota as circunstâncias em
que Fuentes deu início à verdadeira caravana em busca do paradeiro de João Goulart.
A la medianoche del viernes el prefecto llegó a la Jefatura de Policía de Rivera, acompañado
de cuatro de sus colaboradores parta solicitar permisso a los efectos de trasladarse hasta este
lugar donde afirmaba que tenia informes confidenciales de la llegada de Goulart que se
habria produzido este dia a las 16 horas. Luego de rápidas consultas del Jefe de Policía, Juan
A. Navarro con el Ministério del Interior, el permiso fue concedido y a lãs 2 de la mañana de
hoy se ponia en marcha una caravana que a un promedio de 90 kph. se desplazó en dirección
a Vichaderos. El coche del Prefecto iba escoltado por un jeep de la policía e por el vehiculo
donde viajaban el cronista y el fotógrafo de EL PAIS, asi como otros dos automóviles con
elementos de la prensa de Rivera y Livramento. Casi 200 kilómetros debieron ser recorridos
por caminos casi intransitables y en médio de la densa polvadera que levantaba la caravana.
Durante el trayecto en cuatro oportunidades soldados armados interceptaron los vehiculos
57
requisando documentos. Seis horas más tarde, a la hora 8, se produjo el arribo a esta
estância.
92
A espera por Goulart seria em vão. Às 17h35 daquele mesmo dia ele estaria
pousando no aeroporto General Artigas, em Pando, na zona metropolitana de
Montevidéu, com grande estardalhaço da imprensa uruguaia. Nos próximos dias a
chegada do staff mais próximo do presidente seria praxe nos aeroportos da região.
Jango foi recebido pelos dois filhos e pela esposa, Maria Tereza. No dia anterior, o
repórter do EL PAIS anotava: “En Rio Grande del Sur la noticia de la caída de João
Goulart fue recebida con cierta pesadumbre”. Em um de seus primeiros
pronunciamentos no exílio, o presidente deposto marcava o que o distinguia dos
políticos golpistas.
[...] Que nade se engañe, al hablar de comunismo en mi gobierno se procura huir de los
problemas que afligen a la nación, sobretodo de las distribuiciones de las reformas. Tiradentes
fue acusado de ser revolucionário francês. Getúlio Vargas fue victima de las mas torpes
acusaciones; ahora pretenden apuntarme como comunista. En el primer caso se ha querido
impedir la independencia de nuestra pátria; en el segundo se queria por debajo de la
legislacion trabalhista anular las conquistas decisivas en la emancipacion nacional. En mi
caso se quiere impedir el camino pacifico de las reformas de estructuras, capaces de integrar
a millones de brasileños en mejores condiciones de vida y trabajo. La verdad es que los grupos
poderosos que querian inpedir mi politica de defensa de los interesses nacionales por la
diciplina del capital estranjero y de las remesas de lucro para el exterior, por la
nacionalizacion de la economia del petroleo, por la desparicion de tierras inproductivas, por
el latifúndio nocivo, por la acción vigorosa de los organismos públicos defendiendo la bolsa
del pueblo contra las ganancias desmedidas de los especuladores, por la limitacion ordenada
de los alquilleres para el abrigo de las familias modestas, de los tejidos, los calzados, los
medicamentos, los libros de estúdio, son las reformas de base por las cuales el gobierno cayo,
por las cuales permanecere luchando, para ayudar a mi pueblo a dejar las “favelas” y los
“mocambos”, las enfermedades y el desempleo, la penúria y el analfabetismo
93
Com a chegada de Jango em Montevidéu, a perplexidade da efetivação do
golpe deixou os atores políticos da fronteira à espera das novas ações do “Comando
Revolucionário”, que em breve iria divulgar uma lista de deputados e prefeitos
cassados e o primeiro Ato Institucional. Para os envolvidos diretamente com os
partidos opositores e líderes sindicais, a saída emergencial foi um breve resguardo em
Rivera, à espera dos acontecimentos. A movimentação de atores políticos perseguidos
e auto-exilados começava a aumentar dia-a-dia, conferindo um outro perfil político à
fronteira, renovando um ciclo que mais uma vez abraçaria a região. Em Montevidéu,
92
Ibidem.
93
Jango Acusa. Goulart se pronuncia sobre los problemas de su nacion. EL PAIS 06 de abril de 1964, p.14.
58
o escritório da CIA já anotara a relativa facilidade com que os atos conspiratórios
tinham frutificado para a queda do presidente brasileiro e preparava-se para a
vigilância cerrada aos exilados que começavam a chegar.
Montevidéu, 1º de abril de 1964. No Brasil está tudo terminado com relação a Goulart, e muito
mais depressa do que era de se esperar [...] A base do Rio avisou que provavelmente Goulart
virá para o Uruguai, e isso significa que os temores de Holman com relação a problemas com
exilados tinham fundamento. O reconhecimento do novo governo militar pelos Estados Unidos
foi quase que imediato, não mais discreto, mas acho que bastante sintomático da euforia que
deve reinar agora em Washington, depois que dois anos e meio de operações (destinadas a
evitar que o Brasil descambasse para a esquerda com Goulart) frutificaram auspiciosamente.
Nossa campanha contra ele seguiu a mesma linha que as efetuadas contra a infiltração
comunista nos governos de Velasco e Arosemena, dois ou três anos atrás, no Equador.
Segundo Holman, a base do Rio e suas outras dependências estavam financiando as
manifestações urbanas em massa contra o governo de Goulart para provar que os velhos temas
como Deus, pátria, família e liberdade sempre prevalecem. A queda de Goulart se deve,
indubitavelmente, em grande parte à operação eleitoral que retrocede ao ano de 1962. A
preocupação de Holman é a nova e crescente onda de exilados, que serão somados aos
paraguaios e argentinos já sob a nossa supervisão.
94
2.2 - Homens de fronteira, ratos!
Frente à reação francamente desabonadora do golpe cívico-militar entre os
uruguaios, que nem mesmo os representantes da imprensa de tom conservador
conseguiam esconder, emissários da ditadura desembarcam em Montevidéu menos de
uma semana depois de consumada a tomada de poder pelos militares. O objetivo era
desqualificar o presidente João Goulart, seu staff mais próximo, e toda e qualquer
pessoa que estivesse na condição de exilado político. A chegada da primeira dama e
seus filhos em Montevidéu logo após o golpe já havia sido registrada por EL PAIS
como tendo causado “profunda comoção” entre a população uruguaia. Para inaugurar
o trabalho de “relações públicas” da ditadura que se instalava, foram requeridos o
jornalista Antônio Porto Jobinho, de “O Jornal” e o deputado estadual pela UDN da
Guanabara, Everardo Magalhães Castro. Mais uma vez, o estereótipo fortalecido nas
escaramuças de revoluções como a farroupilha e federalista servia para estigmatizar a
fronteira como terra rebelde e sem lei, avessa ao poder central e a ordem republicana,
que teria parido João Goulart e sua turma de “corruptos”.
94
AGEE, Philip. Dentro da “companhia”. Diário da CIA. São Paulo: Círculo do Livro. 1976. p.366, 367.
59
A imprensa uruguaia registra a ofensiva dos emissários da ditadura brasileira.
Philip Agee, agente da CIA em Montevidéu registrou a consternação com que o
povo uruguaio recebia a notícia do golpe no Brasil, a chegada do ex-presidente
exilado e as novas atribuições de vigilância sobre o grupo político brasileiro que
começava a aportar na capital uruguaia.
Montevidéu, 5 de abril de 1964. Goulart chegou aqui ontem e foi acolhido por uma
surpreendente manifestação de entusiasmo. O golpe militar, na verdade, foi recebido no
Uruguai com muito desagrado, porque Goulart havia sido eleito por voto popular e também
porque um poderoso governo militar brasileiro pode significar problemas com os exilados aqui
no Uruguai. Já estão começando a chegar membros do governo de Goulart e a base do Rio está
enviando um telegrama atrás do outro pedindo para que apressemos os nossos relatórios de
chegadas. A nossa única fonte dessas informações é o comissário Otero, cujo Departamento de
Ligações e Investigações se encarrega de registrar os exilados. É óbvio que a base do Rio se
está dedicando inteiramente a apoiar o governo militar; a chave para farejar qualquer indício de
conspiração e contragolpe está na captura de Leonel Brizola, elemento de extrema-esquerda e
cunhado de Goulart, deputado federal pela Gunabara (Rio de Janeiro) e no momento
foragido.
95
95
Idem, p.368.
60
Em uma coletiva de imprensa, Jobinho e Magalhães se esforçaram para
derrubar o clima de perplexidade entre a população uruguaia e contra-argumentar aos
atentos jornalistas montevideanos,
“No fue una revolución totalitária, ni fue una revolución fascista: el actual Presidente Castello
Branco lucho en Itália contra las fuerzas de Mussolini”. “Se quiere acaso mejores
credenciales democráticas que essas?”E inmediatamente agrega: “Goulart y los suyos, en
cambio son hombres de baja condición moral: hombres de frontera que viven solo del
contrabando, ratones”
96
A argumentação dos vencedores tratava de desqualificar algumas das melhores
cabeças do governo Goulart, reconhecidas no Uruguai como grandes intelectuais.
Sobre o antropólogo e educador Darcy Ribeiro, de renomado prestígio internacional,
afirmavam: “corrupto”. Do médico, geógrafo e sociólogo Josué de Castro, autor de
dezenas de obras, traduzido em mais de 30 idiomas, não exitavam: “inculto”. A
imprensa registrava:
“Hoy no hay mas de cien presos políticos en todo Brasil, y los que hay son simplemente
criminales comunes”, contesta Porto Jobinho, a una pregunta. Sus próximas declaraciones se
refieren a Darcy Ribeiro y son contundentes; “Como jefe de la Casa Civil, Ribeiro recibió 550
millones de cruceiros, de los cuales no rindió cuenta; ahora disfrazado de maestro, de
intelectual, Ribeiro engaña a los uruguayos” (...) Antônio Porto Jobinho habla de Josué de
Castro, al que acusa de haber vendido leche enviado gratuitamente por UNICEF, agregando
que “es un inculto, un hombre que intelectualmente es ignorado en Brasil y que gracias a
fraudes ha adquirido un enorme prestigio internacional, un ratón.
97
É sabido que as tentativas do governo militar em imputar aos petebistas
afastados do governo a condição de corruptos foram frustradas por comissões de
inquérito infrutíferas. Para o militar e pecuarista santanense Omar do Prado Lima,
que a partir de 1965 passou a exercer o cargo de oficial de Relações Públicas do
Governo Costa e Silva, o mau trato da coisa pública não era atributo de Goulart.
Conforme recorda: “Organizamos um inquérito para encontrar irregularidades do
governo Jango junto à presidência da República, mas não achamos nada. Jango era
uma ótima pessoa, só não tinha estofo para ser presidente”.
98
Na missão parlamentar
a Montevidéu, no entanto, valiam todas as argumentações destinadas a diminuir o
96
SENSACIONALES DECLARACIONES SOBRE EL URUGUAY COMUNICA DIPUTADO BRASILEÑO.
EL PAIS. 06 de abril de 1964, p.17.
97
Idem.
98
LIMA, Omar do Prado. Pecuarista. Entrevista concedida ao autor.
61
impacto negativo que o golpe causara. Para isso, era fácil partir de um ponto comum,
a condição do presidente deposto de grande proprietário de terras, herdeiro do
populismo à la Vargas, a quem deveria ser imputada a baixa condição moral para o
exercício do cargo e a pecha de milionário descomprometido. Quando indagado sobre
as reformas que o governo deposto propunha, os jornalistas reparam que Antônio
Jobinho “parece assombrarse de la palabra”, mas responde:
“La reforma era un pretexto”, dice en seguida: “un pretexto para mantener ocupado al
pueblo, porque en realidad la reforma no le convenia a Goulart, el mayor latifundista de
Brasil”. Y aclara: “Cuanto mas hablaba de reformas, mas haciendas compraba” (...)
Inmediatamente los periodistas montevideanos le informan del juicio que Goulart le habia
iniciado a la revista “Time” por declaraciones que consideraba falsas e injuriosas y que
contestando a un artículo que le atribuía la compra de tierras después de Haber asumido la
presidência, ofrecia a “Time” esas tierras por el precio de un dólar. “Time no va a entrar en
polemicas”, fue la contestacion de Porto Jobinho. Y antes de dejar de hablar mostro
abundantes fotos, distribuyó un folleto del diputado Antônio Carlos Magalhães, que contiene
una lista de las tierras de Goulart en Brasil (con números de registros y de escrituras) y
exhibió diários brasileños que certifican la actual libertad de prensa.
99
Magalhães Castro, na tentativa de desabilitar João Goulart entre os uruguaios,
efatizava que o presidente deposto possuia “una de las mayores cuentas bancárias de
Suiza, una de las mayores colecciones de autos, el mayor acopio de tierras (el 1% de
todo el território brasileño), el stud de carreras más grande”. Enfatizava também
que a viagem de um parlamentar e um jornalista brasileiro ao Uruguai fazia parte de
uma turnê pela América Latina, com o objetivo de explicar “a revolução”. Viagem
que teria o apoio da Asssembléia Legislativa da Guanabara e “inclusive de partidos
que levaram a presidência João Goulart”. Como de posse de um renovado “Plano
Cohen”
100
, tratava-se agora de alertar o povo uruguaio e tecer considerações sobre a
situação política do país vizinho, “infiltrado de comunistas”, fato que levou o editor
do conservador EL PAIS, a considerar como um dado “realmente inquietante”.
99
SENSACIONALES DECLARACIONES SOBRE EL URUGUAY COMUNICA DIPUTADO BRASILEÑO.
EL PAIS. 06 de abril de 1964, p.17.
100
Em 1937, os integralistas forjaram o "Plano Cohen", em que dizia-se que os socialistas planejavam uma
revolução maior e mais bem-arquitetada do que a de 1935, e teria o amplo apoio do Partido Comunista da
União Soviética. Os militares e boa parte da classe média brasileira, assim, apóiam a idéia de um governo
mais fortalecido, para espantar a idéia da imposição de um governo socialista no Brasil. Com o apoio militar e
popular, Getúlio Vargas derruba a Constituição, e declara o Estado Novo.
In: http://pt.wikipedia.org/wiki/Era_Vargas
. Acesado em 22/08/2007.
62
Prossegue Everardo Magalhães Castro:
“Lo primero que quiero decir (...) es una denuncia al pueblo brasileño y una proclama al
pueblo uruguayo, de que los comunistas y los corruptos - Goulart y el resto de los exilados –
abusando de la hospitalidad y la benevolencia de las autoridades de este pais (el Uruguay) lo
estan convirtiendo en una plataforma para poder volver a Brasil”. Luego se refiere a las
actividades del ex-presidente brasileño y de su gente afirmando que luego del actual trabajo
de “Relaciones Públicas que ahora están realizando para crear simpatias a favor del gobierno
derrocado (Ribeiro con los estudiantes e Brizola com los sindicatos), éstos tentarán regresar a
través de la frontera (Carpinteria podría ser el punto) para crear guerrillas en el estado de
Rio Grande do Sul. Las seguientes afirmaciones de Magalhães Castro se refieren a nuestro
país y son realmente inquietantes. Dice: “el Uruguay es un país tremendamente infiltrado de
comunistas, mucho más que en Brasil”
101
O escritório da CIA em Montevidéu anotou o mal estar que a interferência dos
emissários brasileiros causou no governo uruguaio, que mantinha uma política
francamente receptiva aos exilados brasileiros, não sem antes prever um
endurecimento nessa relação, com a crescente influência no país da emergente
ditadura brasileira.
[...] O governo brasileiro continua a nos pressionar no sentido de agirmos contra a
possibilidade de Goulart, Brizola e outros exilados recomeçarem suas atividades políticas –
embora já se esteja permitindo a alguns asilados da embaixada uruguaia algumas saídas, o que
por enquanto aliviou um pouco a tensão. Foi enviado para cá um representante com a
finalidade de fazer uma conferência com a imprensa e tentar estimular a ação de controle dos
exilados. Contudo, os comentários do representante foram contraproducentes, porque, além de
acusar os adeptos de Goulart e Brizola de conspiração contra o governo militar ( através de
movimentos estudantis, trabalhistas e governamentais no Brasil), ele também declarou que o
Uruguai está infiltrado por comunistas e, portanto, passou a constituir uma ameaça para o resto
do continente. O ministro das Relações Exteriores do Uruguai replicou mais tarde, dizendo que
o Partido Comunista está legalizado no Uruguai, mas que o país absolutamente não está
dominado por ele.
102
O status da faixa de fronteira para militantes políticos e agentes da repressão se
modificara radicalmente com a crescente leva de perseguidos solicitando asilo no
Uruguai, ou mesmo vivendo clandestinamente no país. Sérgio Fuentes, o prefeito
afrontado de Santana do Livramento, seria detido poucos dias após comandar a
caravana a Vichadero, em busca de João Goulart. O incumbido da tarefa seria o
comandante do Oitavo Regimento, Agnóphilo Brant, com quem o prefeito mantinha,
101
SENSACIONALES DECLARACIONES SOBRE EL URUGUAY COMUNICA DIPUTADO BRASILEÑO.
EL PAIS. 06 de abril de 1964, p.17.
102
AGEE, Philip. Dentro da “companhia”. Diário da CIA. Opcit. P. 383, 384.
63
até aquele momento, uma relação bastante cordial, e que ficaria irremediavelmente
abalada. A causa da detenção e imediata transferência para o Quartel em Uruguaiana
seria a ida do prefeito a Vichadero, sem uma prévia autorização da Câmara de
Vereadores para se ausentar do país, fato que para o cotidiano fornteiriço soava
absurdo. Em sua defesa, Fuentes argumentou que a localidade de Vichadero fazia
parte do município de Rivera, onde o próprio comandante militar brasileiro vivia.
Como iriam prendê-lo por isso, quando os deslocamentos entre as duas cidades eram
fato corriqueiro em cidades geminadas como Santana e Rivera? Naquele momento,
no entanto, e sob os alegados motivos que levaram Fuentes ao município vizinho, o
argumento foi em vão. Mesmo com o respeito que imputava pelos seus mais de 70
anos, ficou detido por cerca de 30 dias em Uruguaiana. A um afilhado, escreveu da
prisão pedindo apoio à família, que temia por eventuais represálias e mesmo o
suprimento de necessidades básicas.
103
Destituída momentaneamente do comando de
Fuentes - e sob a guarda do historiador, sócio e colaborador do prefeito, Ivo Caggiani
- a menos de 15 dias passados do golpe, a Folha Popular anotava:
PTB Preocupado: Cassação de Mandatos de Legisladores e Prefeitos – Porto Alegre, 13 (FP)
– A cassação de mandatos de deputados federais e de líderes políticos, embora esperada,
causou, como não poderia deixar de ser, fortes preocupações nos líderes trabalhistas do Estado.
Conhecidas as primeiras cassações, os deputados do PTB, vereadores e líderes, começaram a
conjeturar sobre quais seriam os atingidos pelas medidas nos legislativos estadual e nos
legislativos municipais. A expectativa é enorme no seio do PTB, pois segundo os bastidores,
cerca de cincoenta trabalhistas no Rio Grande do Sul teriam seus mandatos cassados com perda
de direitos políticos. Igualmente foi ventilada a possibilidade de o Comando Revolucionário
cassar o mandato dos prefeitos trabalhistas de toda a fronteira, como medida de segurança
contra movimentos articulados pelos políticos azilados em países vizinhos.
104
Perseverando Santana recorda que Indio Fuentes foi intimado a assinar um
termo de licença médica da prefeitura, fato que se negou a consumar, deixando para o
poder militar a responsabilidade do gesto arbitrário. Pouco tempo depois, após uma
segunda detenção em Uruguaiana, o prefeito era esperado nas bordas do município de
Santana por um efetivo militar disposto a novamente enquadrá-lo. Foi avisado a
tempo por correligionários que o trocaram de automóvel e seguiram rumo a Rivera.
O processo de impedimento de Sergio Fuentes, formulado pelo Coronel Knaack de
103
Jesus Echeveste Aseff, meu pai, afilhado de Sergio Fuentes, relata que era o encarregado de levar ao
prefeito o lanche da tarde, todos os dias. No bilhete endereçado de Uruguaiana, pedia para o afilhado zelar
para que sua família não passasse fome. Entrevista concedida ao autor.
104
FOLHA POPULAR, Santana do Livramento. 13 de abril de 1964, p.4.
64
Souza, comandante do 7º Regimento de Cavalaria e da Guarnição Federal, foi
protelado várias vezes, devido a recorrentes falta de quorum.
Sérgio Fuentes, prefeito cassado de Santana do Livramento.
No dia 23 de abril a Câmara de Vereadores avaliou, em vão, o pedido de
afastamento, que patinava sem o apoio da maioria e com a bancada do PTB impondo
uma série de obstáculos à realização da sessão. Em 1º de maio o prefeito é instado a
prestar declarações de bens e no dia 6 sofre novo adiamento o mandado de segurança
impetrado por Índio Fuentes junto a Tribunal de Justiça do Estado. A petição
baseava-se na alegação de que o mandado deveria ser julgado pela vara criminal e
não pela vara cível. Finalmente na sexta-feira, 15 de maio de 1964, depois de votação
secreta, a Câmara Municipal de Vereadores aprova por oito votos a sete e edita o
decreto legislativo nº 01/64, de 14 de maio de 1964, suspendendo definitivamente
65
Sérgio Fuentes de suas funções frente ao executivo municipal. Acuada, a Folha
Popular, jornal comandado por Sergio Fuentes e seu sócio e secretário municipal Ivo
Caggiani, assinala:
S. Fuentes Impedido: Molinos Deverá Assumir
A Presidência da Camara de Vereadores promulgou ontem o decreto de impedimento do
Prefeito Sérgio Fuentes, cuja denúncia acusando-o de haver incorrido em crime de
responsabilidade o pedido de “impeachment” deu entrada somente ante ontem na Justiça Civil.
Ontem a sra. Maria Luiza Cassales, presidente do Legislativo santanense promulgou o decreto
que determina o afastamento do chefe do executivo, a fim de aguardar o pronunciamento da
justiça.
DEFESA – A defesa do prefeito Sérgio Fuentes estará a cargo do ilustre causídico santanense
Dr. Nery Hamilton Ilha.
VICE DEVERÁ ASSUMIR HOJE – Em virtude do impedimento do sr. Sérgio Fuentes, o vice-
prefeito Milton Molinos deverá assumir o cargo na tarde de hoje. Pela manhã nossa reportagem
entrou em contacto telefônico com a residência do sr. Milton Molinos, mas não conseguiu sua
palavra, de vez que o mesmo se encontrava acamado. Segundo informações de seus familiares,
até aquele momento (09,30 horas), o sr. Milton Molinos não havia recebido qualquer
comunicação a respeito.
105
As idas e vindas do processo judicial só seriam interrompidas pela cassação
promulgada em outubro do ano seguinte, depois da edição do segundo Ato
Institucional, que selava a sorte de inúmeros políticos trabalhistas em todo o país,
entre eles o prefeito santanense. Conforme foi publicado no Diário Oficial do Estado,
Aplicação do art. 15 do Ato Institucional n. 2
27 de outubro de 1965.
n. Ordem 122
Sérgio Fuentes
Penalidade: Suspensão dos direitos políticos por 10 anos e cassação do mandato de Prefeito
Municipal de Livramento, Estado do Rio Grande do Sul.
DO 22.4.66
106
Nas recordações de Perseverando Santana, Sérgio Fuentes surge como um líder
austero e inflexível com o arbítrio instalado a partir do golpe. “No programa de rádio
que tínhamos na Rádio Cultura, de tom nacionalista e que vinha desde a Legalidade,
demos apoio à candidatura de Índio Fuentes, contra a chapa de Hélio Viegas e
Honório Arteche, candidatos da UDN”. Ainda sobre o apoio de seus partidários
comunistas, o amigo relembra que “ele foi alertado sobre o perigo de um apoio do
grupo comunista, no que ele prontamente rechaçou e disse que aceitava abertamente o
105
FOLHA POPULAR, Santana do Livramento. 15 de maio de 1964, p.3.
106
Arquivos do DOPS, Memorial do Rio Grande do Sul. Acervo da Luta Contra a Ditadura. Pesquisado em
12/04/2006.
66
apoio sim!”.
107
O vice-prefeito, Milton Linn Molinos, assumiria o posto até o final
do mandato. Embora filiado ao PTB, não oferecia resistência aos ditames do regime
militar, além de servir provisoriamente para a nova ordem como um bom exemplo de
tolerância política, estratégia breve, que iria se esgotar a partir de 1968, com a
indicação no ano seguinte de um interventor municipal e o endurecimento da ordem
política em todo o país.
A mudança brusca no ordenamento institucional de Santana obedecia a uma
diretriz que se repetia em todo o país, e que por sua vez, seguia um ziguezague
latinoamericano de estabelecimento de pactos sociais e cíclicas falências, desde a
colônia até aqueles agitados anos 60 do século 20. Nesse momento, como nota Túlio
Halperin Donghi, a guerra fria já abraçava um continente combalido por uma crise
econômica e social, que desaguaria em uma severa polarização e a repressão armada
às distintas frações da esquerda:
Por volta de 1960, os sinais de esgotamento das soluções inauguradas sob os sucessivos
estímulos da crise da guerra (baseadas numa industrialização graças à qual a economia
conseguira satisfazer grupos sociais diversos, cuja concordância fundamental tornara possível a
afirmação de soluções políticas apoiadas por mais de um setor social) se tornam cada vez mais
evidentes. Perdendo as esperanças de poder consolidar o frágil equilíbrio nascido das respostas
dadas à crise de 1929, a América Latina dirige-se para um novo período de choques entre
agrupamentos políticos, ligados ao aumento da tensão entre grupos sociais e econômicos.
108
À crise econômica e social que engolfava a América Latina somavam-se os ares
de guinada política que a revolução cubana propagava sobre o continente. A guerra
fria ardia ainda mais com o pacto entre os guerrilheiros da Sierra Maestra com a
União Soviética, a partir das declarações de Fidel Castro, em novembro de 1961, de
que se tornara marxista-leninista. A polarização ideológica só iria piorar com a crise
dos mísseis e o fracasso da Aliança para o Progresso, onde o governo Kennedy
tentava uma aposta ao mesmo tempo de reformismo social e intervenção política,
junto às conservadoras oligarquias latinoamericanas. Octávio Ianni destaca o caráter
imperialista da política norte-americana para o continente, impulsionada por recursos
doutrinários como a Aliança para o Progresso, surgidos a partir de concepções como
a Doutrina Monroe. Também se associa a reflexão de Donghi, quando reforça o
caráter decisivo do malogro das estratégias de desenvolvimento econômico
107
SANTANA, Perseverando Fernandes. Entrevista citada.
108
DONGHI, Túlio Halperin. História da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1975. p. 257.
67
capitalista, ensaiados na América Latina no período das duas grandes guerras. Para
Ianni, o fracasso das políticas destinadas a criar um capitalismo nacional em alguns
países latinos, por um lado, e um capitalismo associado, por outro, gerou a
instabilidade política que desaguaria na deposição de Jacobo Arbens, em 1954, na
Guatemala; de Juan Domingo Perón, em 1955, na Argentina, de João Goulart, em
1964, no Brasil; de Víctor Paz Estensoro, em 1964, na Bolívia, e de Fernando
Belaúnde Terry, em 1968, no Peru.
109
2.3 - A imprensa na linha de fogo
Desde os primeiros momentos do golpe de 1º abril de 1964, e posteriormente
com o recrudescimento da censura pelo AI-5
110
, os jornais santanenses Folha
Popular e A Platéia, destacaram-se como opositores ao novo regime. A Folha
Popular mantinha-se desde sua fundação, em dezembro de 1937, ligado aos ideais
trabalhistas de Sérgio Fuentes e seu sócio e colaborador, Ivo Caggiani.
O jornalista Kenny Braga viveu o período do golpe como repórter e redator do
jornal A Platéia
111
, que durante o governo Goulart manteve estreita afinidade com as
idéias trabalhistas de João Goulart. Kenny vivenciou momentos da repressão à
imprensa santanense e muitas vezes também se valeu de fugas ocasionais para o outro
lado da linha divisória. Com humor relembrou aqueles dias:
Eu tinha 18 anos. Era um guri. Ali me tornei editorialista do jornal. Lembro que, em 1964, já
havia ocorrido o golpe militar e o jornal A Platéia estava praticamente cercado pelos militares,
porque tinha essa posição de independência. Escrevi um editorial que custou o fechamento do
jornal por vários dias, porque, naquela época, é bom que vocês saibam, não valia a
constituição, que foi derrogada pelos militares. Um coronel de Rosário do Sul mandou
apreender a edição de A Platéia que continha uma notícia que não agradava ao exército. O
Toscana, editor, ficou muito indignado com a atitude do coronel. Chamou e me disse que
deveria escrever um editorial condenando aquela atitude. Lembro até hoje que escrevi um
editorial, publicado na primeira página, que se chamava Sinal dos Tempos. Eu era boêmio.
Saía do jornal ali pelas dez, onze horas da noite, e ia com meus amigos para Rivera, aquela
roda boêmia, os cabarés! No outro dia eu voltava às onze horas, mais ou menos, para
recomeçar meu trabalho. Esqueci do editorial que eu tinha escrito, nem tinha lido o jornal
109
IANNI, Octavio. Imperialismo na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 1988. p 136,137.
110
A promulgação do Ato Institucional nº 5, a 13 de dezembro de 1968 instituiu o recesso no Congresso,
cassou deputados, suspendeu a garantia do habeas-corpus e das liberdades individuais. Manteria acuada a
sociedade brasileira por uma década.
111
O jornal A Platéia, também fundado no ano de 1937, circulou inicialmente como informativo da
programação de filmes exibidos no Cinema Internacional, historicamente manteve-se como porta voz dos
poderosos da região, entretanto nos anos sessenta abrigou uma verdadeira usina de formação de jornalistas,
que viriam a trabalhar nas melhores redações do país. Graças ao perfil desses profissionais, aproximou-se das
forças que contestavam o golpe civil-militar.
68
naquela manhã, pois levantei tarde. Quando cheguei na esquina do jornal, a uma quadra da
linha divisória com o Uruguai, eu vi que toda a quadra estava ocupada por soldados do exército
com baioneta calada. Lembrei do editorial e pensei: "Ih, isso deu rolo, é o editorial que nós
fizemos ontem". Imediatamente fiz a volta e fui na direção a Rivera, no Uruguai. De lá
telefonei para um amigo meu, que era secretário da redação, Luiz Carlos Vares, que foi um dos
grandes mestres que eu tive, e ele disse: "Onde é que tu estás Kenny ?". Eu disse: "Estou aqui
em Rivera". "Não volta tão cedo, porque o Toscano já foi levado agora de manhã para
Uruguaiana, e está preso, tudo por causa desse editorial aí que tu escreveu". Então eu digo:
"Não, mas eu não quero voltar mesmo, eu vou ficar aqui na casa da minha avó, no Uruguai, e
não vou voltar tão cedo" [...].
112
No jornal A Platéia, dirigido por Toscano Barbosa, a linha editorial trafegava
por um caminho de independência, preconizado pelo editor-chefe, embora se
aproximasse com clareza das idéias defendidas pelo governo Goulart. Ali
trabalhavam os então aprendizes de jornalista, Kenny Braga e Elmar Bones, egressos
de movimento estudantil, da União Santanense de Estudantes Secundaristas, a USES.
Nas lembranças de Elmar, Toscano “era um jornalista cioso da sua liberdade, do
direito de dizer o que imaginava que deveria ser dito, mas que tinha uma bronca da
elite pastoril de Livramento”
113
. A aproximação dos jovens com Toscano Barbosa se
deu através dessa linha ideológica em comum, que se colocava frontalmente contra a
elite pecuarista. O jornal da USES era realizado pelos dois estudantes e impresso no
parque gráfico de A Platéia. Foi através das idéias expressas no jornal que Kenny e
Elmar chamaram a atenção de Toscano. Depois dessa aproximação inicial, trabalhar
na Platéia, foi um passo natural. Elmar Bones relembra daqueles anos como um
tempo de muita inserção política dos estudantes na comunidade,
(...) nós fizemos o jornal e circulou uns dois anos. E através da Uses nós começamos a nos
vincular ao movimento estudantil estadual, que naquele momento estava se mobilizando para
apoiar as reformas de base do João Goulart. (...) havia um programa de alfabetização de
adultos, para fazer nos redutos populares, nas vilas, nos lugares de subúrbio, na periferia das
cidades, e o Governo Federal dava uma verba (...) um dinheiro xis para a gente comprar o
equipamento, que era para a produção de alguns slides e um projetor. Com isso tu montava
uma classe numa vila, armava lá num barraco, e fazia. (...) tu participava do universo da
alfabetização do cara, usando as palavras do universo dele. Então primeiro tu ia na vila e fazia
uma pesquisa da linguagem, das palavras chave do universo do cara. Depois tu selecionava
essas palavras e tu começava a ensinar o cara a escrever a partir dessas palavras, era bem
simples. (...) Tava tudo organizado, aí nos juntamos com o pessoal do Grupo dos Onze, havia
um movimento operário, um movimento camponês, aí fundamos uma Liga Operária-
Estudantil-Camponesa. Era uma agitação muito grande. A coisa tava andando assim, aí veio o
golpe,...
114
112
BRAGA, Kenny, in http://www.pucrs.br/famecos/vozesrad/kenny/kenny.html. Acessado em 15/04/2007.
113
BRAGA, Kenny e BONES, Elmar, Entrevista citada.
114
Idem.
69
Com o golpe, e a reversão abrupta das políticas de alfabetização que estavam
sendo promovidas pela USES, baseada no método Paulo Freire, e o desmantelamento
de sua direção, os jornalistas ficaram à deriva, em uma sociedade que se fechava cada
vez mais. Kenny lembra que logo após o golpe, ele e mais alguns companheiros de
jornal encararam pela primeira vez a possibilidade de sair da cidade e buscar um novo
rumo na capital. Sentiria saudades do seu Cerro do Marco, espaço preferido para as
filosofar e manter discussões políticas. O Cerro, naqueles dias, era eleito pela boemia
intelectualizada como um tipo de templo fronteiriço, localizado no centro da cidade,
na linha divisória,
Tinha o Pio de Almeida, que era jornalista e poeta, nosso companheiro, porque nós
trabalhamos juntos na Platéia, e ele defensor da reforma agrária e nós também defendendo a
reforma agrária...e o Pio de Almeida conosco, ali no Cerro do Marco, no final da tarde, nós
tentando decifrar nosso destino, para onde nós iríamos, e olhando a cidade lá embaixo e houve
um tempo em que a nossa resistência se resumia a atuação no jornal. O jornal era, o que sobrou
foi a A Platéia, porque a Platéia nos acolhia, nos dava emprego, e abria seus espaços para que a
gente escrevesse alguma coisa, porque o Toscano nunca aceitou a censura prévia. E é tão
espetacular isso, tão espetacular esse capítulo da Platéia, que todos os jornais brasileiros
estavam censurados após o golpe de 1964. Todos. A única exceção era o Correio da Manhã do
Rio de Janeiro. No Rio Grande do Sul não tinha nenhuma exceção, só a Platéia.
115
Nos meses que se seguiram ao golpe, A Platéia continuou mantendo uma linha
editorial de indignação com os rumos do novo governo, publicando artigos de
jornalistas do centro do país, que criticavam sistematicamente a quebra da ordem
constituicional. Toscano Barbosa constantemente mandava transcrever a coluna de
Carlos Heitor Cony, do carioca Correio da Manhã, para publicar na primeira página
do jornal. Caso achasse o texto um pouco recatado, pedia a Kenny Braga que
reescrevesse partes do texto e adaptasse à linha política do jornal,
Ele mandava esquentar. Uma vez contei isso pro Cony aqui, anos depois e ele morria de rir.
Uma vez o Toscano não gostou do capítulo final. Disse: "Seu Kenny, modifica isso aqui! Isso
aqui não tá bem aqui, muda o parágrafo". Eu quis argumentar, mas Toscano, a coluna é do
cara, e tá assinado[...]"Mas o jornal é meu!" Bom, aí me matou, e eu mudei o final da coluna. O
Toscano seguidamente ia preso, para Segunda Divisão de Cavalaria, em Uruguaiana. E o
motivo é que esses oficiais de fronteira estavam muitas vezes acima da lei, estavam acima da
constituição. Então o cara lia uma notícia no jornal e não gostavam do que liam e mandavam
apreender a edição inteira do jornal, como aconteceu uma vez em Rosário. E o Toscano ficava
indignado. [...] E ele até me dizia assim: "Pau nesse crápula seu Kenny, pau nesse crápula!"
116
115
Idem. O Cerro do Marco, um monte incrustrado na linha divisória, bem ao centro das duas cidades,
inspirou gerações de literatos, poetas e intelectuais riverenses que costumavam utilizar o lugar para saraus
literários entre as décadas de trinta e quarenta. Olyntho Maria Simões, Agustín Bissio e Hipólito Zaz de
Recarey estavam entre o grupo.
116
BRAGA, Kenny. Entrevista citada.
70
O advogado Antônio Apoitia Neto e Toscano Barbosa, diretor de A Platéia.
Elmar Bones enfatiza que a figura de Toscano Barbosa surge naquele momento
como um legalista, um cidadão que não aceitava a deposição do presidente João
Goulart através da força. Embora não seja equivocado afirmar que houvesse uma
aproximação financeira entre Toscano e Jango, o veículo constituía-se de fato em um
raro baluarte dos ideais trabalhistas. Porta-voz do ex-presidente em um ambiente de
repressão total aos jornais opositores, onde grande parte da imprensa preferiu aderir à
nova ordem, o diretor-proprietário da Platéia fazia questão de colocar a palavra
revolução entre aspas, desconsiderando e afrontando o regime. No início dos anos
71
sessenta A Platéia era distribuída de avião para todos os municípios da fronteira oeste
gaúcha. Conforme Elmar Bones,
Eu me lembro que quando o Jânio morreu, digo, renunciou, o Toscano mandou o jornal de
avião para toda a fronteira oeste, para chegar primeiro que os jornais da capital com a notícia,
que ele captava pelos telégrafos de Rivera, ele tinha um esquema. E ele colocava AP. E todo
mundo pensava que era Associated Press, mas era A Platéia. E ele tinha um telegrafista de
Rivera, que captava o noticiário da AP, a agência de notícia mandava as notas via telégrafo,
então ele captava essas notícias ao mesmo tempo em que todo mundo recebia no país.
117
Com a boa circulação e um jornalismo engajado, o jornal santanense era
considerado um verdeiro oasis entre a imprensa regional. Publicava novos autores e
poetas, muitas vezes de cidades vizinhas como Quaraí e Uruguaiana. Depois do
golpe, resistiu enquanto pôde, e serviu de contraponto ao discurso unificado dos
meios de comunicação censurados.
Na Folha Popular, a repressão aos ideais trabalhistas viria a reboque do
impedimento de Sérgio Fuentes, com agressões gratuitas ao diretor de redação, o
jornalista e historiador Ivo Caggiani. Poucos dias antes do impedimento de Fuentes,
uma denúncia anônima, como seria cada vez mais freqüente daqueles dias em diante,
alertava o Exército da existência de armas e material subversivo na redação do jornal,
que amanheceria cercado por um forte contingente de soldados armados. Depois de
realizada a invasão na redação, nada foi encontrado. O fato gerou uma irada resposta
de Caggianni no dia seguinte, estampado nas páginas do jornal, acusando o anônimo
“lacaio”.
Mais tarde, o jornalista descobriria que a denúncia havia sido formulada pelo
coronel reformado e presidente da conservadora Associação Rural, Armando de
Freitas Rolim.
118
As denúncias passaram a fazer parte do cotidiano das redações
santanenses a partir de então. Conforme o advogado e jornalista Flávio Tavares,
banido do país e acusado de participar de um grupo insurgente ligado a Leonel
Brizola, é a partir de 1964, “quando se entroniza o dogma da segurança interna,
baseado na suspeita de que toda reivindicação é uma sabotagem subversiva, que o
adulador desponta como modelo”. O próximo passo lembra Tavares, foi a
117
BONES, Elmar. Entrevista citada.
118
Diários de Ivo Caggiani. Manuscrito Inédito. Arquivo Família Caggiani.
72
incorporação desse novo personagem ao quotidiano político, com força arrebatadora,
já como delator. “O alcagüete só não foi elevado à condição de ‘herói patriótico’
(como na Alemanha de Hitler, na Itália fascista e na URSS de Stálin) porque o
sarcasmo público o reduziu a uma expressão satírica: o ‘dedo duro’ ”.
119
Como se não
bastassem às denúncias anônimas, a Folha também enfrentaria o boicote do envio do
papel para impressão, que era remetido de Porto Alegre, mas estranhamente não
chegava a Santana do Livramento. Em 15 de maio de 1964, dia em que Sérgio
Fuentes era oficialmente impedido de suas atribuições pela Câmara de Vereadores o
jornal alertava:
Em virtude de que o papel destinado a impressão da Folha Popular, embarcado em Porto
Alegre há vários dias, ainda não chegou a esta cidade, somos obrigados a circular em formato
tablóide. Todas as providências cabíveis foram tomadas para que esse problema seja resolvido
com a maior urgência possível e que FP possa voltar a seu formato habitual. Por esse motivo de
todo alheio a nossa vontade, pedimos excusas.
120
Nos meses que se seguiram ao golpe, Toscano Barbosa em A Platéia e Ivo
Caggiani, na Folha Popular, ecoavam os artigos publicados na imprensa do centro do
país, em especial os articulistas cariocas, que batiam de frente com a nova ordem.
Naquele momento, em uma parcela expressiva da imprensa carioca, como os jornais
Última Hora, Jornal do Brasil e Correio da Manhã, avolumavam-se artigos que
desnudavam os desmandos do golpe de abril. Até jornalistas não alinhados com o
direcionamento nacionalista pela qual se pautavam alguns veículos de imprensa,
adeptos do governo Jango, acusavam a violência do novo regime, como fez o
jornalista Carlos Heitor Cony, do Correio da Manhã, poucos dias antes do golpe
completar um mês,
A SOI-DISANT Revolução de 1º de Abril pode ter alguns aspectos simpáticos. A subida do
marechal Castelo Branco ao poder seria um destes aspectos simpáticos. Mas o que prevalece
são os aspectos não apenas antipáticos, mas repulsivos. E para sabermos qual o aspecto mais
antipático ou mais repulsivo - o páreo é duro. De minha parte, não tenho dúvidas em apontar a
pior faceta do 1º de abril: o ilegal e violento desrespeito à dignidade humana. Perdoa-se a
confusão, os equívocos, as precipitações das primeiras horas. Mas a confusão, os equívocos e
as precipitações perduram ainda. O Ato Institucional - parece - institucionalizou a confusão, os
equívocos e as precipitações. E estou sendo generoso ao não mencionar as perseguições e as
vinganças que também se institucionalizaram nesta súbita e medieval caça às feiticeiras que
estamos vivendo. A plebe ignora os responsáveis por tudo isso. Conhecemos apenas os
executores, o longo braço desta lei ilegal que aí está: a Polícia, os esbirros, os alcagüetes de
119
TAVARES, Flávio. Memórias do Esquecimento. São Paulo: Globo, 1999.p. 163.
120
FOLHA POPULAR, Santana do Livramento. 15 de maio de 1964, p.3.
73
uma e de outros. Mas ninguém sabe ao certo em nome de que princípio ou para que fins estão
conspurcando a dignidade humana através de prisões e punições idiotas e violentas.
121
Jefferson Barros, jornalista gaúcho, testemunhou nos bastidores do jornal
Última Hora em Porto Alegre a trajetória da campanha da Legalidade e os anos de
governo Goulart. No relato de suas memórias, onde tenta reconstruir as últimas
publicações do jornal que, posteriormente, viria a ser transformado na alinhada Zero
Hora, o repórter relembra como o golpe aniquilou as pretensões de um jornal
“nacional e popular”, o braço gaúcho da rede de Samuel Wainer.
A Última Hora gaúcha foi o único jornal da rede a circular dia dois de abril. Refugiado na
embaixada do Chile, desde o dia primeiro, Samuel Wainer percebia que seus maiores temores
estavam se confirmando. Não se tratava de um golpe a ser sustado por um suicídio espetacular
como em 1954, nem por um contra golpe militar legalista como em 1955. Menos ainda por
uma resistência popular organizada como na Legalidade em 1961. Tratava-se de um golpe para
montar um novo poder. Para desmontar a incipiente democracia. As primeiras vítimas seriam
as organizações populares, sindicais, estudantis, personalidades e partidos progressistas de
esquerda, e a imprensa, principalmente a rede Última Hora. Mas a repressão não queria fechá-
la, queria comprá-la para usar seu prestígio popular com sinal invertido.
122
Os movimentos de repressão política em uma cidade tradicionalmente
conservadora e excludente, com a crescente perseguição aos que não apoiavam
abertamente a nova ordem, levou a redação da Folha a buscar um precário equilíbrio
entre o que poderia ou não ser enfatizado como posição política, sem cair na linha de
mira dos vitoriosos do embate de 1º de abril. Menos de um mês após o 13 de
dezembro de 1968, que decretou o marco da repressão aberta aos meios de
comunicação, a Folha passou a publicar editoriais muitas vezes disfarçados em
artigos ou colunas sociais, permeados de uma narrativa irônica e provocativa. Para
esses textos valiam os pseudônimos da redação. Kenny Braga escrevia sob o
codinome de Mirinho Durão, mas havia também o Dr. K-Botino, ou ainda as análises
cruas e cheias de nostalgia de Nei Messias, cronista da Folha da Tarde.
Em uma das edições de 1969, o articulista Roberto Mello ocupava parte nobre
da página três para expôr os desencantos de uma geração atordoada por um clima de
perseguição e delação. O clima sinistro de solidão e paranóia envolve o cidadão
121
CONY, Carlos, Heitor. “Res sacra reus”, Correio da Manhã, 28/04/64, in: ALVIN, T, C. (org). O Golpe
de 64: A imprensa disse não. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. p.62.
122
BARROS, Jeferson. Golpe Mata Jornal. Desafios de um tablóide popular numa sociedade conservadora.
Porto Alegre: JA Editores.1999, p.144.
74
vencido, o estudante, o jornalista, o operário que retornou para uma sociedade
vigiada,
A cidade despertou com outros olhos. Também os olhos que olhavam para as ruas desertas não
eram mais os mesmos. Estrangeiros voltamos.[...] Era noite e as árvores do Parque gemiam.
Queriam nos assustar. Os bancos frios esfriaram ainda mais seus assentos. As tartarugas da
fonte vieram à tona, mostrando suas caratonhas em máscaras tremendas. Tudo e todos.
Desconhecidos, janelas, portas, calçadas, bancos, árvores, tartarugas diziam: "vão embora, vão
embora". A cidade nos corria, nos enxotava. Nos esquecera. Também nós não a reconhecíamos
mais. A imagem que ficara, apenas ficara na memória. Não existia mais. A realidade atual é
diferente. O retorno cada vez fica mais difícil. E a gente fica naquela estranha posição de
estrangeiro no mundo. A cidade natal nos recusa, as cidades porque passamos não nos
aceitam.
123
O desencontro das gerações e a falta de opção em uma época que se mostrava
fechada para os protagonistas e simpatizantes de um outro projeto de Brasil ecoavam
nas páginas da Folha Popular, que driblava as determinações de censura, estampando
em suas páginas as impressões do cronista, antevendo a grande onda de repressão e
crimes políticos que se avizinhava.
Os textos, redigidos em figuras de linguagem e recheados de metáforas,
denotavam uma estratégia usual, de despiste da censura.
A difícil vez do encontro chegou. Como coisa que não se espera. O difícil encontro. No verão.
O desamor de verão. A cidade está cada vez mais viva. Com melhores e mais tocantes côres.
Existe gente. As ruas estão mais brilhantes, as manhãs mais coloridas. Os fins de tarde
consomem-se entre as mesinhas amarelas, testemunhas mudas da revolução que fizemos. Uma
revolução pior que a outra, do desencontro. Talvez do desencanto. Como o do pintor que
passou o ano todo namorando uma tela, trabalhando nela pela madrugada - ouvindo música
erudita russa - e não conseguiu passar para o pano o que desejava. Imagine. A frustração dos
desentendimentos, a não compreensão dos mesmos fatos, repetidos há anos. Todos os dias.
Cada minuto um desencontro. As palavras estão cada vez ficando mais difíceis de serem
entendidas. Os livros continuam sendo editados, mas as palavras soam ôcas, pronunciadas num
deserto rochoso. Apenas o eco responde pela imensidão, levando o verbo mais longe, de
paredão em paredão. A rocha não entende. Também nós não mais nos entendemos. Talvez as
mesinhas amarelas tenham alguma coisa a ver com isso. Talvez. Testemunhas mudas das
oscilações, recuos e atos de fé. Promessas não cumpridas. O nosso amor é tímido, juvenil,
maravilhoso e doido. Como o engraxate adventício, que tenta - se vê pelo rosto - mas não se
anima a perguntar se quero graxa.
As palavras estão ficando difíceis. Economicamente, juntamos nossas palavras para atos
melhores, ocasiões mais propícias e conspícuas. Que seria de nós se não pensássemos na
existência de melhores atos? Egoísticamente vamos guardando nossas palavras para o
desencontro final. Porque haverá o desencontro final. (grifo do original)
124
Ivo Caggiani era reconhecido pelo setor militar como um colaboracionista dos
exilados e fugitivos. Jurema Caggiani, viúva do historiador falecido no final da
123
FOLHA POPULAR. Estrangeiros. Santana do Livramento. 11 de janeiro de 1969, p.3.
124
FOLHA POPULAR. A difícil vez. Santana do Livramento. 12 de janeiro de 1969, p. 03.
75
década de noventa, lembra que foram inúmeros os perseguidos políticos que Caggiani
auxiliou a cruzar a fronteira. O esquema era simples e funcionava sempre que
necessário. Um “senhor velhinho”, conforme relembra Jurema, funcionário da Polícia
Civil - coordenada por Acílio Pereira da Cruz, amigo de Caggiani e com ligações de
amizade com petebistas – chegava na residência do jornalista e historiador munido de
carteiras de identidade falsas. O segundo passo seria atravessar para o Uruguai,
geralmente sob a guarda “de um padre aí de Rivera”, que pelos cruzamentos de
relatos levantados por esta pesquisa apontam para o Padre Veríssimo, da Paróquia da
Cuaró. O religioso exerceu a recepção a fugitivos políticos de maneira intensa e sua
atuação será mais bem entendida nas páginas seguintes. Jurema Caggiani acredita
que, mesmo com a estreita amizade entre o delegado e seu marido, Acílio não
suspeitava do esquema. Transferido de Santa Maria, onde havia organizado uma
operação de combate ao contrabando de gado, membro histórico do PSD, o novo e
poderoso delegado da ditadura era, no entanto, um homem com passagens de infância
e de amizade que o ligavam ao outro lado da moeda. Filho de Leôncio Pereira da
Cruz, fundador do PTB, Acílio foi menino com Jango Goulart, do qual o pai, Vicente
Goulart, mantinha com seu pai a correaria "Cruz e Goulart", em São Borja. Foi nesse
ambiente, de trabalhismo e à sombra de Getúlio Vargas, que o menino Acílio cresceu.
Nos anos que se seguiram ao AI5 e por toda a década de 70, Ivo Caggiani seria
intimado a comparecer inúmeras vezes ao regimento do exército, instado a prestar
declarações sobre textos publicados na Folha Popular. Na década seguinte, o
jornalista seria praticamente obrigado a passar o controle do jornal para um
colaborador, enquanto Toscano Barbosa não agüentaria por muito tempo as pressões
políticas e econômicas – incluindo uma campanha da Associação Comercial pelo
boicote de anúncios no jornal – e venderia o veículo.
2.4 - Rota natural de fuga
Aos que empreendiam uma rota de fuga por Livramento, a sobrevivência em
território fronteiriço exigia uma carga de informações sobre os costumes locais, que
incluía o conhecimento do sinuoso traçado que separa os países. Ficou célebre na
região o episódio de um pistoleiro baiano, que em 1927 fugiu para a fronteira com
76
sua companheira, em busca de refúgio no Uruguai. Pediu para ser encaminhado ao
Hotel Comércio, conforme indicações de um amigo de Porto Alegre que conhecia os
meandros da região. Porém por engano do condutor do veículo que o transportava
veio parar no Hotel Comércio, de Santana do Livramento! O cronista santanense
Arlindo Coitinho deixou assinalado o caso nas páginas magistrais de João Bispo,
onde narra os eventos que se desenrolaram a partir desse simples engano. Dois hotéis,
com o mesmo nome estavam a não mais que uma dezena de quadras de distância um
do outro, contudo isso poderia significar a vida ou a morte. Para João Bispo e sua
companheira, significou o cerco da polícia e o suicídio.
125
Por inúmeras vezes a linha imaginária exerceu uma atração ilusória e
enganadora. Eleita como uma rota de fuga natural para o Uruguai, os cerca de 600
quilômetros que separam a capital gaúcha de Santana do Livramento nunca foram
fáceis de transpor, como poderia parecer. As rotas de trem, via Santa Maria e
Cacequi, ou de carro e mesmo as de ônibus - mais usadas – esbarravam
constantemente na vigilância militar. O militante do PTB gaúcho, Índio Vargas -
encarregado de estabelecer uma ponte entre o ex-governador Leonel Brizola, exilado
em Montevidéu - e a resistência, lembra das dificuldades para chegar até a fronteira e
as estratégias usadas pelos militantes, destinadas a furar o bloqueio do exército e
entrar no Uruguai,
[...] para nós passar era uma dificuldade, tinha que ter um controle das barreiras. Então
digamos que fosse de carro. Podia ir até determinado lugar, depois saía a pé, fazia a volta,
passava pelos campos ali, a pé tudo, tinha que ser gente bem preparada, fisicamente. Não podia
ser muito velhão não, tinha que ser meio novo. Passar pelo banhado, para ir pegar uma outra
condução lá adiante. Tudo dificílimo
126
.
Uma das tantas rotas empreendidas pelos “esquemas de fronteira” era mantida
pelo jornalista e religioso dominicano Frei Beto, ligado à Carlos Marighela e à ALN
(Ação Libertadora Nacional), que ajudava sistematicamente seus parceiros a cruzar
para o Uruguai, nos idos de 1966, enquanto experimentava ele mesmo um auto-exílio
no Seminário Cristo Rei, na cidade gaúcha de São Leopoldo.
125
COITINHO, Arlindo. João Bispo. Santana do Livramento: 1ª Edição, Gráfica Editora A Platéia S. A,
1985.
126
VARGAS, Índio. Jornalista. Entrevista concedida ao autor.
77
Muitos vinham do centro do país, conforme relembra o Frei,
Em agosto, Ivo foi novamente procurado por Jarbas. Queria que o religioso o acompanhasse
até o Rio Grande do Sul, pois pretendia refugiar-se no Uruguai. Estava sendo procurado pelos
órgãos de segurança e temia viajar sozinho. [...] Não os retive mais de uma hora. Apenas o
suficiente para explicar como chegar ao Uruguai: bastava tomar o ônibus na rodoviária de
Porto Alegre com destino a Livramento - cidade fronteiriça geminada com Rivera, município
uruguaio. Para atravessar a fronteira era só cruzar a rua que divide os dois países e, do outro
lado, tomar o ônibus para Montevidéu. Isso eu aprendera por informações obtidas de pessoas
que conheciam bem a região. Nunca cheguei à fronteira, embora meus interrogadores jamais se
convencessem disso.
127
Muitas vezes, nem mesmo a vigilância militar conseguia vasculhar a extensa
região de fronteira seca com o Uruguai. Em Livramento, dezenas de ruas
atravessavam os dois países, unindo as cidades em uma só dimensão. Por essas ruas
passaram Carlos Marighella e Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo, o número dois na
hierarquia da ALN. Como Frei Beto reforça, a rota para a fronteira consolidou-se
como viável para novas e sucessivas fugas do país, convulsionado pela repressão
crescente aos movimentos de esquerda:
O bate papo e a boa carne gaúcha regada a vinho recobravam o ânimo do companheiro. Após o
cafezinho, fui levá-lo a rodoviária onde o apresentei a Francisco, estudante jesuíta que
conhecia Livramento e, a meu pedido, dispusera-se a acompanhá-lo até a fronteira. Solicitei a
Francisco aproveitar a viagem para trazer-me um croqui das cidades. Não disse, porém, que
pretendia utilizar o desenho para orientar melhor os próximos refugiados. Ao regressar, o
seminarista trouxe o que eu pedira e confirmou que Arantes atravessara para o Uruguai sem
dificuldades.
128
Cláudio Antônio Weyne Gutiérrez, militante do movimento estudantil gaúcho
em Porto Alegre e posteriormente membro da VPR, recorda de 1969 como o ano em
que o endurecimento do regime contra as esquerdas revolucionárias fez indispensável
o dispositivo de fronteira como alternativa de fuga.
Câmara Ferreira, o Toledo, segundo homem da ALN, em companhia de Paulo de Tarso
Venceslau solicitaram a Dedé que auxiliasse frei Betto em suas tarefas. [...] Para Dedé, as
passagens para o sul, principalmente para o Uruguai, não continham segredos. O MNR, quando
mantinha uma relação forte com Brizola, os usava amiúde. [...] Dedé conhecia pessoas que
tinham contato com o consulado uruguaio em Livramento, conhecia as alternativas de
passagem mais confiáveis, e tinha contatos em companhias de ônibus.
129
Nem sempre os clandestinos tinham a mesma sorte ao chegar à fronteira. Para
quem não obedecia ao plano traçado e passava imediatamente a Rivera, as
127
BETTO, Frei. Batismo de Sangue. Os dominicanos e a morte de Carlos Marighella. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1982, p.60.
128
Idem, Ibidem p.62.
129
GUTIÉRREZ, Cláudio. A Guerrilha Brancaleone. Porto Alegre: Proletra, 1999, p.18.
78
consequências poderiam ser as piores. Jair Krishke, militante dos Direitos Humanos,
responsável por uma rede de auxílio, proteção e resgate de perseguidos políticos,
relembra de uma dessas histórias, transcorrida nas cercanias da rodoviária de
Livramento. Era novembro de 1969 e a nova leva de militantes que tinham de sair do
país aumentava dia-a-dia, vítimas do AI-5, do recrudescimento da repressão e o
sistemático desmantelamento das organizações de esquerda. Nas palavras de Krishke,
Eram duas pessoas que chegaram a Porto Alegre. Um tinha sido deputado em São Paulo, eu
não lembro do nome. A outra era a então mulher do Vladimir Palmeira, dirigente da UNE.
Houve um encontro em frente ao cinema São João, na avenida Salgado Filho. Revista em baixo
do braço e tal, e foram levados para a casa de um compadre meu, onde pernoitaram e no dia
seguinte partiram de ônibus para Livramento. Na fronteira tinha-se um traçado, e ela seguiu o
mapa, fez o que tinha sido recomendado e pegou o ônibus para Montevidéu. Mas ele bobeou,
foi fazer lanche, em vez de cruzar logo. Chamou a atenção de alguém e o Cenimar - o serviço
secreto da Marinha, o pior de todos e o mais violento – o pegou.
130
Uma vez de posse de um trunfo nas mãos, os agentes faziam a rota inversa, ou
seja, voltavam com o prisioneiro, muitas vezes sob tortura, até a casa onde foi
recebido em Porto Alegre e aí desmantelavam a conexão, buscavam cúmplices e
promoviam uma varredura nas casas de acolhida. O vacilo na linha de fronteira
poderia ser o fim de uma rota segura, alimentada com os cuidados que a
clandestinidade exigia.
Assim aconteceu com o militante paulista e a pessoa que o abrigou em Porto
Alegre. A nova imprensa, arauta do movimento golpista, destacava o feito policial
com as cores que a paranóia do momento ditava,
(...) esse meu amigo tinha ido ao Uruguai, ao encontro latinoamericano do Movimento
Familiar Cristão, em Montevidéu, e ele foi de carro e tinha um daqueles mapas turísticos. E
aquilo que acontece quando a gente viaja, a gente sempre acaba trazendo o troco que sobra, em
moeda do país. E ele colocou o mapa e o dinheiro em uma gaveta. Então a imprensa publicava:
Mapas e farta quantidade de dinheiro estrangeiro apreendido. Uma coisa exorbitante. Tudo isso
só porque um cara ao invés de cruzar e fazer o que deveria ter feito, não fez. Resolveu fazer
lanche, coisa e tal.
131
O sucesso da passagem para o Uruguai implicava fatores como o envolvimento
de militantes locais e os chamados pombos-correio, que faziam a conexão entre os
clandestinos e a base de apoio na cidade. Muitas vezes, a colaboração de pessoas sem
uma marcada atuação política, longe dos olhos da polícia, se mostraria eficaz. Nas
130
KRISHKE, Jair. Entrevista concedida ao autor.
131
Idem.
79
lembranças de Elmar Bones, estudante secundarista em 1964, o auxílio era feito sem
muitas perguntas e sem o envolvimento direto nas práticas partidárias, apenas no
intuito de ajudar os patrícios que buscavam o Uruguai:
Eu me lembro que uma vez eu ia ajudar uns caras que vinham de trem. E se tu descesse na
estação ferroviária corria o risco de ser preso. Então tinha a orientação de descer pro outro lado
da rua,em vez de descer na plataforma de desembarque. E um de nós guiava o cara. Tu é
fulano? Então vem por aqui. E levava para Rivera e largava. Mas a gente nem sabia quem eram
os caras. Mas como tínhamos contato com o partido comunista, diziam olha vai chegar uns
caras e tal...fica lá cuidando e traz eles lá por aquelas tábuas e tal...E a gente ia pelo meio de
uns depósitos de madeira...nos criamos por ali....a gente passava por dentro e saía já quase na
linha divisória.
132
O envolvimento político e a ajuda de simpatizantes, policiais ou funcionários
públicos de ambas as cidades muitas vezes seria fundamental para a passagem dar
certo. Desde a resolução de problemas dos mais prosaicos até a obtenção de
documentação e passes para chegar a Montevidéu, obtenção de remédios ou auxílio
médico, tudo dependia de uma rede de solidariedade a quem ali chegava por primeira
vez. Perseverando Santana lembra de algumas pessoas, muitas vezes atuando sob o
prisma de um partido tradicional,
[...] tinha um companheiro que pertencia ao Partido Comunista, de grande valor, o Chico
Cabeda. Mas era Colorado lá em Rivera. Até condenavam ele que não podia...mas ele
justificava, "que eu como Colorado crio condições para tirar passaporte, pra tudo, para o
indivíduo ir embora". E ele fazia muito esse serviço, chegavam lá dizendo, olha eu tenho que ir
para Montevidéu, Chico, e ele conseguia tudo. Ele era do partido. Mas o pessoal achava que ele
tinha que militar no partido comunista no Uruguai, era um erro, ele tava servindo
tranqüilamente, claro, ele era integrado no partido lá de Rivera, o Colorado...um sujeito
integrado, estimado, então o sujeito que queria ir para Montevidéu, pronto. Sujeitos de grandes
valores...
133
Antônio Apoitia Neto, advogado santanense, nascido sob os preceitos
comunistas defendidos por seu pai, realizaria um importante trabalho de ligação entre
os exilados e setores da resistência que ainda mantinham postos avançados no Brasil.
Em sua avaliação, foi fundamental a acolhida da população uruguaia, que se
solidarizou com os brasileiros perseguidos desde o primeiro momento do golpe,
oferecendo muitas vezes quartos para passar a noite, roupas, comida e até dinheiro
para aqueles que deveriam seguir viagem. A rota inversa, ou seja, a saída do Uruguai
e entrada no Brasil exigia da mesma forma, sólidos contatos para driblar as forças
repressivas que estendiam suas redes ao redor da cidade. Nem mesmo o presidente
132
BONES, Elmar. Entrevista citada.
133
SANTANA, Perseverando. Entrevista citada.
80
João Goulart e seus aliados possuíam nos primeiros momentos do golpe, um esquema
confiável para deixar o Uruguai clandestinamente. Manoel Leães, piloto de Jango e
emissário do presidente, anotou as dificuldades que passou na fronteira naqueles dias.
Depois de haver deixado o Brasil em companhia do Presidente, fiquei alguns meses no Uruguai
sem nenhuma vontade de arriscar a travessia da fronteira, ainda que rapidamente. Mas chegou
o momento em que não era mais possível adiar a viagem de risco, porque meu amigo e patrão
precisava de um mensageiro de confiança para resolver problemas em suas propriedades no
Mato Grosso. Certo de que teria ajuda de um amigo que Jango considerava de sua confiança,
residente em Santana do Livramento, na fronteira com a cidade uruguaia de Rivera, fui
procurá-lo, seguro e otimista. Caberia a ele me orientar, como sairia de Santana do Livramento,
por caminhos que contornassem as barreiras policiais montadas para prevenir o ingresso de
exilados brasileiros em território gaúcho.Sua atitude foi decepcionante. Disse que não poderia
se comprometer dando acobertamento a um perseguido pelo regime militar.
134
Embora a lealdade do suposto amigo ao presidente deposto deixasse a desejar,
Leães não se deu por vencido. Embarcou em um ônibuis com destino a Porto Alegre,
e só com muita sorte conseguiu driblar o aparato repressivo que já estava armado na
região da fronteira. Conforme recorda:
Decidido a seguir em frente, comprei uma passagem de ônibus para Porto Alegre, apesar da
certeza de que meu nome constava em todas as listas de “inimigos” do regime implantado em
1964. Pois, a viagem quase terminou de uma forma desastrada. No entroncamento da estrada
entre Santana do Livramento e Dom Pedrito, o ônibus em que eu viajava foi obrigado a parar
por uma patrulha militar. [...] vivi terríveis momentos de aflição quando um cabo e um
sargento entraram no ônibus solicitando documentos dos passageiros. Quando eles se
aproximaram da minha poltrona, levantei e lhes pedi licença para ir rapidamente lá fora
satisfazer necessidades fisiológicas. Eles me deixaram passar, sem pedir a carteira de
identidade, que me denunciaria irremediavelmente. Fui lá fora e misturei-me com outros
passageiros que, após a revista, haviam saído do ônibus. Só voltei quando o cabo e o sargento
estavam satisfeitos com a revista.
135
2.5 - Rumo a Montevidéu, passando pela fronteira.
Montevidéu foi a primeira grande cidade no exterior onde o exílio brasileiro se
fez presente. E a fronteira gaúcha, especialmente as cidades de Santana do
Livramento e Rivera, foi a grande porta de passagem para milhares de pessoas que
não tiveram como permanecer em solo brasileiro sem correr sério risco de vida. Faz-
se necessário, no entanto, estabelecer algumas diferenças entre as gerações que
recorreram ao exílio e as diferenças entre esses grupos. Em um primeiro momento, o
exílio representou a derrota de um projeto político e pessoal, impôs o afastamento das
134
BRAGA, Kenny. Meu Amigo Jango: Depoimento de Manoel Leães. Porto Alegre: Sulina, 2003. p. 61, 62.
135
Idem. p.62.
81
gerações de 1964 e 1968 do cenário político e de todo o universo de referências que
lhes dera identidade.
136
Importante notar aqui que, entre militares nacionalistas,
políticos identificados com o trabalhismo, comunistas, guerrilheiros engajados na
proposta de luta armada e militantes das variadas matizes da esquerda, existem
distinções de geração e suas vivências anteriores.
Convém definir aqui as duas gerações, de 1964 e 1968, como marcos
referenciais, quando se trata de definir claramente as correntes de exilados que
buscaram a fronteira durante os anos da ditadura militar brasileira.
137
Acredito que é
possível definir duas gerações de exilados: os que saíram do país logo após o golpe,
ou em um período posterior, e os que tiveram de fugir a partir de 1968, quando o Ato
Institucional nº5, determinou o endurecimento do regime. Conforme assinala
Rollemberg,
O exílio dos anos 1960 e 1970 foi uma experiência vivida pelo que se pode considerar duas
gerações, a de 1964 e a de 1968. Os marcos fundadores foram os movimentos reformistas e o
golpe civil-militar que depôs o presidente João Goulart e as manifestações, sobretudo, de
estudantes, iniciadas em 1965/1966, em uma curva ascendente até meados de 1968, finalizando
com o ato institucional nº5.
138
No primeiro momento do golpe, foram as lideranças políticas da chamada
geração de 64 que buscaram no Uruguai o espaço para um reagrupamento possível. A
partir do 1º de abril, toda uma geração de lideranças ativas na cena política no pré-
1964 passou a ser perseguida pelo regime militar. De políticos experientes que já
atuavam antes de 1945, quando se extinguiu a ditadura do Estado Novo, até
militantes bem mais jovens que propunham transformações, apontando para a
necessidade de se recorrer ao confronto direto, sem o recurso da lei.
139
O braço gaúcho do jornal Última Hora, naquela que seria sua última edição de
caráter independente e pró-Jango, no dia 25 de abril de 1964 pedia desculpas ao
público pelos inconvenientes provocados pela interrupção da publicação, poucos dias
depois da eclosão do "vitorioso movimento revolucionário, irrompido a 31 de março".
136
ROLLEMBERG, Denise. Exílio, entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999, p.12.
137
Acompanho aqui a definição de geração como propõe Denise Rollemberg, quando adota o conceito de
Jean François Sirinelli e Jean Luchaire, ao determinar uma geração como uma reunião de homens marcados
por um grande evento ou uma série de grandes eventos, independente de uma determinada idade em comum.
138
Idem, p.51.
139
Idem.Ibidem. p.56.
82
Mário de Almeida, repórter da Última Hora gaúcha viveu os últimos dias da
imprensa livre e apontou um momento em que a retirada pelo Uruguai tornava-se a
única alternativa.
Eu recebi a notícia de que Jango desembarcava no Salgado Filho em torno de meia-noite e
seria esperado pelo general Ladário e pelo Brizola. Lá fui eu para o aeroporto. Chegou mesmo
em torno da meia-noite, durante uma chuvinha chata. Já deu o rumo certo: para a residência do
comandante do III Exército. Cheguei lá, no jipe do jornal. Passou uma hora, mais ou menos, e
o Sereno, que me conhecia da Legalidade, fez assim, com o polegar para baixo. Daí o
comandante da Brigada que estava...isto foi na noite de primeiro de abril para dois...Daí eu
pedi a ele que fosse me falar o que é que era que estava sendo decidido. E ele chegou para mim
e disse: "Mário, todo mundo no Uruguai". Então, a matéria para mim tinha terminado.
140
Santana do Livramento passou a figurar então como um portal seguro para a
passagem dos trabalhistas e pessoas identificadas imediatamente ao governo Jango,
que desciam de muitas partes do país em direção a Montevidéu. América Ineu,
exilada com a família em Rivera, recorda de figuras marcantes identificadas com o
trabalhismo que passaram por sua casa quando cruzaram a fronteira. Carlos Olavo
Pereira, jornalista mineiro envolvido na luta pela reforma agrária e as reformas de
base, ou o Coronel Dagoberto Rodrigues, ex-diretor dos Correios e Telégrafos do
governo Jango. Dagoberto, que expulsou ninguém menos que Henry Kissinger de seu
gabinete, quando este, como negociador da gigante multinacional americana de
telefonia ITT, tentou suborná-lo para a instalação da rede de comunicações de
Brasília, no Governo JK.
141
A esses homens, ligados ao trabalhismo, reuniam-se perseguidos de todas as
matizes da esquerda, envolvidos com as pressões pelas reformas de base, alguns mais
radicalizados, ligados a Leonel Brizola, outros menos, mas que tinham por objetivo a
chegada a Montevidéu, capital da primeira fase do exílio. José Wilson da Silva,
tenente da aeronáutica, cassado e posteriormente assessor militar de Brizola no
Uruguai, rememora os primeiros dias do exílio como tempos de extrema dificuldade:
Com o grande número de compatriotas no Uruguai, muitos em péssima situação, funcionários
que, perdendo o salário, nada tinham, como eu, por exemplo, foi criada a Associação dos
Asilados Brasileiros (...) Os dias que se seguiram foram de contatos com novos brasileiros que
140
BARROS, Jeferson. Golpe Mata Jornal. Op. Cit., p. 144.
141
Flávio Tavares assinala em suas memórias que “ironicamente, quatro anos e alguns meses depois,
Dagoberto Rodrigues é que não pôde mais entrar em nenhuma repartição governamental no Brasil: expulso do
Exército após o golpe militar de 1964, foi obrigado a exilar-se no Uruguai, onde passou mais de 15 anos.
Vivia tão honesta e modestamente no exílio que, durante muito tempo, nem sequer pôde ter telefone em sua
casa”. In: TAVARES, Flávio. O dia em que Getúlio matou Allende – e outras novelas do poder. Rio de
Janeiro: Record, 2004,p.144.
83
continuavam chegando, muitos verdadeiros perseguidos políticos; outros por ouvirem falar que
Jango havia fugido com malas de dinheiro.
142
Herbert José de Souza, o Betinho, líder da AP, determina que o exílio em
Montevidéu começou como uma grande perda de referenciais, e a ilusão de
continuidade da luta política, mesmo quando os sinais apontavam para outra direção,
a da derrota de um projeto político e de uma geração:
No Uruguai é o reencontro de toda a liderança do movimento popular. Aí, as realidades, vistas
de longe, parecem teatro. Como se você reagrupasse os atores reais, enquanto atores de papel
seguem o jogo. Fazíamos reuniões da Frente de Mobilização Popular com os atores reais. Mas
eles mesmos estavam cheios de ilusões. Por exemplo: “Nós, representando 5 milhões de
operários brasileiros...”, ou “Nós, os sargentos das Forças Armadas brasileiras...”, ou “Nós, os
oficiais nacionalistas...”; e assim o ex-governador, o ex-deputado, o ex-ministro...Era como se
não se tivesse aceito a realidade, se tentasse espichá-la para além de suas fronteiras.
143
Para a geração de 68, o exílio iria adquirir outra dimensão, de dificuldades
ainda maiores e busca por outros espaços de luta que se abririam, como o Chile e a
Bolívia
144
. O estudante gaúcho Cláudio Antônio Weyne Gutrierrez, perseguido, foi
obrigado a abandonar o país no final de 1969. Cláudio mantinha uma atuação
marcante junto ao movimento estudantil, sendo julgado e condenado pelo Superior
Tribunal Militar, devido a sua participação no episódio da invasão do Grêmio
Estudantil do Colégio Julio de Castilhos, em Porto Alegre. Para esse jovem estudante,
a fronteira significava o passaporte para uma retirada estratégica do país,
Alguns dias depois, no final de outubro, com o meu primo Jeca dirigindo a mais de cem
quilômetros por hora por estradas de chão batido, atingimos Rivera. Tomei o ônibus para
Montevidéu. Meu coração abrigava sentimentos contraditórios (...) o cerco às organizações
armadas brasileiras me faziam refletir. Eram como umas férias voltar à militância no Brasil.
Começaria um exílio que duraria oito anos.
145
Percebe-se que, para os militantes da geração de 68, a cidade de Montevidéu
não significou uma aproximação com aquela geração de exilados de 1964. Aqueles
militares nacionalistas, sindicalistas ou ex-deputados, ex-prefeitos ou ex-senadores,
não demonstravam o mesmo vínculo com a ação proposta pelas esquerdas
revolucionárias,
142
SILVA, José Wilson da. O tenente Vermelho. Op.,Cit. p. 143,144.
143
CAVALCANTI, Pedro Celso; RAMOS, Jovelino (org) Memórias do Exílio – de muitos caminhos. Rio de
Janeiro: Livramento, 1978, p.79.
144
Para Denise Rollemberg, no exílio as gerações de 1964 e 1968 são como duas margens, duas paralelas que
não se tocam. As pontes foram raras e frágeis.
145
GUTIERRÉZ, Cláudio. Entrevista ao autor.
84
Não havia uma vinculação de um jovem de 23 anos, e uma pessoa com 50 ou 60 anos.Esse
mundo do exílio é um mundo diferente. Tu és discriminado por um setor, aceito pelo outro,
mas entra o processo da confiança-desconfiança. Desconfiança não por uma população, mas
por um setor que já tem uma definição política contrária, é desconfiança total. E daqueles
setores que estão militando de alguma maneira, existe uma solidariedade atenta, não é? Quem
é, como é que é, como é que faz... É uma paranóia.
146
Para Ernesto Levy, a aproximação periódica com a fronteira, mesmo instalado
em Montevidéu, significou a continuidade da luta, através do auxílio a exilados e
combatentes que ainda mantinham posições de confronto com a ditadura instalada.
Assim como ele, uma série de outros exilados, corajosamente instalados em Rivera, a
poucos metros do aparato repressivo brasileiro, serviram de apoio e abrigo aos atores
políticos alijados pela nova ordem autoritária.
2.6- Os Lares da acolhida
O momento da chegada das primeiras famílias de exilados a Rivera, vindos
principalmente das cidades da fronteira oeste gaúcha, de municípios como Itaqui,
Cacequi, Dom Pedrito, São Borja, Uruguaiana e mesmo Santa Maria, obedeceu a um
impulso que reunia uma fuga possível com uma sensação de precária resistência,
dado a proximidade do Brasil. Os agentes políticos perseguidos estabeleceram uma
reação clandestina, com maior ou menor poder de fôlego. Logo depois adotaram o
caminho do exílio como única saída possível. Por isso, a partir do final de 1965 e
1966 começam a intensificar-se a chegada de famílias que iriam acompanhar seus
perseguidos e estabelecer-se em Rivera, junto a exilados com diferentes perfis de
atuação política, mas com o nacionalismo e as posições incondicionais de
enfrentamento ao regime como causa comum. Embora muitas das famílias que serão
abordadas aqui estejam perfiladas ao exílio pela perda de direitos políticos, muitas
outras com distintas características passaram pela fronteira e até fixaram residência
transitória. Como delimita Denise Rollemberg,
O exílio esteve longe de ser uma experiência homogênea. As vivências foram as mais variadas,
a começar pelo tipo de exilado. Houve os atingidos pelo banimento; houve quem decidiu partir,
às vezes até com documentação legal, por rejeitar o clima em que se vivia no país; houve
quem, pessoalmente, não era alvo da polícia política, mas se exilou ao acompanhar o cônjuge
ou os pais; houve os diretamente perseguidos, envolvidos, uns mais, outros menos, no
146
LEVY, Ernesto. Entrevista citada.
85
confronto com o regime militar; houve quem foi morar no exterior por outras razões que não
políticas e, através do contato com exilados, integrou-se às campanhas de denúncia da ditadura
e já não podiam voltar com tanta facilidade. Os casos são inúmeros. Neste universo tão diverso,
são todos exilados.
147
Importante notar que o clima político do pós-golpe era de desolação para
aqueles envolvidos com as propostas de reforma do Estado, em especial as esquerdas
atuantes e os movimentos populares, como lembra Jacob Gorender:
(...) o período 1960-1964 marca o ponto mais alto das lutas dos trabalhadores brasileiros neste
século, até agora. O auge da luta de classes, em que se pôs em xeque a estabilidade
institucional da ordem burguesa sob os aspectos do direito de propriedade e da força coercitiva
do Estado. Nos primeiros meses de 1964, esboçou-se uma situação pré-revolucionária e o
golpe direitista se definiu, por isso mesmo, pelo caráter contra-revolucionário preventivo. A
classe dominante e o imperialismo tinham sobradas razões para agir antes que o caldo
entornasse. A hegemonia da liderança nacionalista burguesa, a falta de unidade entre as várias
correntes, a competição entre chefias personalistas, as insuficiências organizativas, os erros
desastrosos acumulados, as ilusões reboquistas e as incontinências retóricas – tudo isso explica
o fracasso da esquerda. Houve a possibilidade de vencer, mas foi perdida. Mais grave é que foi
perdida de maneira desmoralizante. Com a definição incontestável no dia 1º de abril, já no dia
3 a operação Brother Sam era desativada no Caribe. Os generais triunfantes proclamaram que o
Ocidente ganhou no Brasil formidável vitória a baixíssimo custo.
148
Com o golpe posto e a chegada crescente de militantes e fugitivos de toda a
ordem à região da fronteira, os esquemas de recepção tiveram de adquirir um sentido
de urgência e praticidade. O núcleo do PCB santanense, acostumado aos anos de
clandestinidade e aos rituais de segurança, assumiu de saída a recepção aos
perseguidos. Isso não excluiu as ações de uma rede que envolvia simpatizantes de
outros partidos, famílias sem uma ligação política explícita, além de religiosos e
funcionários públicos dos dois lados da fronteira, encarregados de facilitar a
passagem para Montevidéu, sempre que possível. Policiais, funcionários de
consulado e um aparato militar muitas vezes conivente – como veremos no terceiro
capítulo – foram fundamentais para que esse equilíbrio de fronteira se estabelecesse.
Sem as redes de convivência, muitas vezes de caráter familiar, entre exilados e
militares, dificilmente seria efetivada uma passagem segura, dentro dos limites, pela
região. Como veremos a seguir, os sistemas de informação brasileiros tinham o total
controle das famílias exiladas no outro lado da linha divisória e identificavam
147
ROLLEMBERG, Denise. Exílio, entre raízes e radares. Op. Cit., p.52.
148
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. São Paulo: Atica. 2003. p.73.
86
claramente quem exercia as funções de pombo correio e quem auxiliava diretamente
os movimentos de esquerda que ainda tentavam resistir.
Nesse sentido, destacava-se por sua atuação na recepção aos fugitivos, a família
de Orlando Burmann, Romeu Figueiredo de Mello, Nery Medeiros, Adan Fajardo,
Francisco Fagundes, Aquiles Santana Alves e Antônio Apoitia Neto, entre muitas
outras, que exerceram a acolhida e a solidariedade, tão fundamentais para quem
empreende uma fuga, geralmente em precárias condições materiais e repleta de
incertezas.
2.6.1- Beno Orlando Burmann: recepção e passagem
A família do ex-prefeito de Ijuí e deputado estadual pelo PTB, Beno Orlando
Burmann, se instalou em Rivera em janeiro de 1966. Diva, a matriarca, trazia consigo
seis crianças, contando com um agregado, filho da empregada doméstica da família.
Representantes da geração de 1964, com uma atuação política muito forte no noroeste
do estado contavam com uma sólida representatividade política erguida no município
de Ijuí. Ligados ao trabalhismo, tinham no presidente cassado João Goulart um líder
referencial, e mantinham estreita amizade com Leonel Brizola. A admiração a Getúlio
Vargas colocava-os em um ambiente trabalhista em comum. Entusiasta do Governo
Goulart, Orlando Burmann anotou em um manuscrito ainda inédito,
Antes de falarmos sobre o golpe de 1
º
de abril, devemos dizer que o período em que o Brasil
foi governado por João Goulart, foi um período de paz, prosperidade e de plena liberdade.
Nunca o Brasil teve um período em que idéias, princípios, eram discutidos, debatidos em
qualquer parte, com ampla garantia para os digladiantes, discutindo-se, com liberdade, projetos
que esperava-se encaminhar o país para novos rumos, onde o povo tivesse participação nas
decisões e estas seriam tomadas visando os interesses dos brasileiros.
149
Com o advento do golpe, em quase dois anos de tensões e clandestinidade,
Burmann percorreu os caminhos da fronteira rumo a Montevidéu, em articulações
políticas com Leonel Brizola e setores da resistência instalados no Rio Grande do Sul.
Nesses primeiros anos, as tentativas de articular uma resistência armada levavam à
capital uruguaia um grupo cada vez maior de emissários, exilados e perseguidos pela
ditadura. Como grande parte dos atores políticos da hora, Orlando Burmann também
149
BURMANN, Beno Orlando. Memórias. Texto inédito, onde Burmann anotou memórias da resistência ao
golpe e os primeiros momentos de resistência. Cedido pela família ao autor em 25/05/07. p.27.
87
acreditava que o movimento que eclodiu em 1º de abril não teria vida longa, e o
reordenamento democrático viria, “mais dia menos dia”. Ligado ao nacionalismo de
Leonel Brizola, ele não demonstrava simpatias em um primeiro momento pelo
radicalismo da esquerda armada, mas o endurecimento do regime fez com que
passasse a adotar a idéia de um movimento armado como alternativa viável. Passou a
conspirar valendo-se de inúmeros disfarces para driblar a repressão, como por
exemplo, a figura de um fervoroso pastor:
[...] pensava que fosse durar três ou quatro anos. Acabou durando 21! A liberdade desapareceu,
a pessoa não fazia nada e era presa. Eu tinha me eleito deputado em 1962, fui cassado em 1964
e preso três vezes, aqui e no Mato Grosso. Nunca tinha pensado em luta armada, mas depois da
cassação e clandestinidade, passei a articular com alguns militares. Tínhamos oficiais prontos
para fazer um movimento, que não chegou a existir. Não queríamos guerrilha. Na
clandestinidade, não podíamos embarcar em rodovia ou ferrovia. Por isso ajudei muitos a
saírem de carro do país. Não sei quantas bíblias eu comprei, começava a conversar sobre
capítulos e versículos (...)
150
Nascido em Catuípe, município próximo a Santa Maria, Beno Orlando
Burmann é o quarto entre os oito filhos de uma família descendente de imigrantes
alemães. Ingressara no mundo do trabalho pelas mãos de uma tia, proprietária de
uma casa comercial em Santa Maria. Logo se transfere para Ijuí onde estuda
contabilidade e passa a exercer a profissão em um escritório da cidade. Alcança o
status de líder petebista, quando em 1947 optou pela candidatura de Alberto
Pasqualini, em contraposição a quadros do partido que passam a apoiar Walter Jobim.
Um dos fundadores do PTB na região, Beno Orlando Burmann logo descobre na
atividade política sua vocação:
[...] casa-se com uma descendente de “tradicional família” de grandes proprietários rurais da
região e líderes políticos (um dos ascendentes da sua esposa foi senador, um dos cunhados de
Burmann foi inclusive vereador pelo PTB e o filho deste foi vereador pelo MDB em Augusto
Pestana). Em 1947, Orlando Burmann foi o único vereador eleito pelo PTB em Ijuí (aos 25
anos). Durante a década de cinqüenta foi secretário-geral e presidente do partido. Em 1958, foi
um dos coordenadores da campanha de Leonel Brizola ao governo do estado. Em 1959, foi
incentivado e apoiado por Leonel Brizola como candidato a prefeito.
151
Os vínculos de amizade com Leonel Brizola fariam com que o então prefeito de
Ijuí contasse com o apoio irrestrito do governo do Estado em sua administração.
150
Depoimento a: Sindicato dos Professores do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul, acessado em
http://www.sinpronoroeste.org.br/revista_noticia.php?cod_noticia=28&cod=4.
151
GRILL, Igor Gastall. Parentescos, Redes e Partidos: As bases das Heranças Políticas no Rio Grande do
Sul. Tese de Doutorado. Porto Alegre: UFRGS, 2003, p.
362.
88
Dessa parceria resultariam algumas das principais obras da sua gestão, como a
construção de escolas, obras de eletrificação rural, casas populares, e uma escola
técnica, que conferiu novo impulso ao município. O apoio financeiro para a
construção da escola técnica foi barganhado por Leonel Brizola, em troca da
candidatura de Orlando Burmann a uma cadeira na Assembléia Legislativa do Rio
Grande do Sul, em 1962. Eleito com expressiva votação da região noroeste, mesmo
sob uma apressada campanha política, permaneceu na prefeitura municipal até
transferir-se para a legislatura estadual em 1964. Pouco antes do golpe, é instado a
abandonar a prefeitura de Ijuí para assumir uma posição relevante no já turbulento
momento político que atravessava o país. O golpe o surpreende na rearticulação da
atividade parlamentar, sendo cassado logo em seguida.
Os primeiros momentos do golpe foram vividos pelo deputado com um misto
de surpresa e desilusão pela falta de uma resposta à altura dos setores organizados,
contrários à quebra da ordem constitucional. A incredulidade era o sentimento geral
entre os parlamentares petebistas. No dia 03 de abril, no entanto, Orlando Burmann
ouviria o pronunciamento do prefeito de Porto Alegre, Sereno Chaise, que em cadeia
de rádio anunciava a opção do presidente João Goulart pela renúncia. Em suas
lembranças, não esconde o trauma dos primeiros momentos:
O anúncio, como um raio, atingiu todo o Rio Grande, cujo povo queria resistir e ir para luta.
(...) Em fins de março, durante a Semana Santa, fui para Ijui, para fazer contato com os
companheiros, com lideranças políticas, dirigentes sindicais e de entidades de classe. (...)
Lembro que (...) bati na porta da casa de nosso companheiro Walter Arbo que (..) disse-me da
preocupação que acompanhava os últimos acontecimentos. Concordei com ele mas procurei
tranquilizá-lo, pois acreditava que os militares, sendo legalistas e tendo jurado defender a
Constituição, impediriam qualquer tentativa de golpe. (...) Quando me preparava para viajar,
bateu à porta de m/casa o Arno, trazendo-me a noticia de que, iniciava-se o golpe de estado.
Liguei o radio e ouvi a Guaiba, dando as noticias. (...) Fui ouvido na Radio (Progresso, de Ijuí)
e reafirmei minha confiança no Governo e a certeza de que a democracia não seria esmagada
por um golpe liderado por maus brasileiros a serviço do capitalismo internacional e dos
interesses da extrema direita. Logo, a Radio Guaíba e Gaúcha passaram a anunciar a Cadeia
da Legalidade (tentando reviver l96l) (...) Infelizmente, já no dia seguinte, a situação começou
a mudar e logo a tarde, alguns oficiais legalistas, foram afastados das reuniões do Comando.
Quando (...) veio o pronunciamento do então Prefeito Sereno, informando que o Presidente
Jango havia desistido da resistência, já que qualquer luta, mesmo vitoriosa, exigiria o sacrifício
de muitas vidas e estas eram mais preciosas do que a eventual manutenção do poder.
Naturalmente, ficamos acabrunhados. O povo que, na noite anterior, compareceu à Praça da
Republica, aplaudindo os oradores e reafirmando sua disposição de lutar, após uma passeata
pelas principais ruas da cidade, havia se recolhido, certo de que iríamos à luta e, agora sim,
com nossa vitória, encerraríamos os ciclos de periódicas tentativas de golpe, estava novamente
na rua, fazendo manifestações e reafirmando sua disposição de defender o Governo legítimo. A
89
noticia surpreendeu a todos e, aos poucos, foram se dispersando e tomando o rumo de seus
lares.
152
Após a publicação do primeiro Ato Institucional, que decretava a cassação dos
direitos políticos de altas autoridades da república, entre elas o presidente João
Goulart, o governador Miguel Arraes e o deputado Leonel Brizola, o então deputado
trabalhista Orlando Burmann é chamado ao Palácio Piratini. É então informado que o
encontro com o chefe da Casa Civil, jornalista Plínio Cabral, seria para acertar uma
posição de neutralidade em relação ao golpe, que o liberaria da cassação, naquele
momento ainda não publicada oficialmente no Diário Oficial, de acordo com uma
proposta endossada pelo governador Ildo Meneghetti. Diante da negativa do petebista
de aceitar o pacto, no dia 07 de maio a Folha da Tarde estampava o nome de Beno
Orlando Burmann, junto a outros deputados, vereadores e prefeitos alijados pela foice
do autoritarismo. A partir de então, passou a adotar os cuidados que a clandestinidade
exigia:
[...] recebi a noticia que a milicia dos golpistas me procurava por toda cidade e, naturalmente,
em Ijui, onde minha casa era vigiada. Nem meus familiares sabiam onde eu estava. As saídas
de Porto Alegre estavam todas bloqueadas e só passavam pessoas que se identificassem nas
barreiras, onde havia listas das pessoas “procuradas”. Após 8 dias em Porto Alegre, com a
vigilância amenizando, estabeleci, com companheiros, um esquema: Partiríamos de Porto
Alegre, à noite, com 2 carros, na frente um carro com duas pessoas que, na barreira existentes
na ponte da divisa entre Porto Alegre-Canôas, ao parar, se fosse exigido documentos de todos
os ocupantes, o motorista, ao partir, simulasse errar na mudança, engatando a mudança da ré,
pisando no freio e, em seguida arrancando e seguindo viagem, indo nos esperar a uns 3
quilometros. No carro que eu ia, parado a uns 400 metros, desceria, e, enquanto o carro
seguia, eu atravessaria a rodovia, tomando os trilhos da RFFSA, passando, de a pé, a ponte
ferroviária, que distava uns 90 metros da ponte onde estava a barreira e seguiria pelos trilhos
até alcançar o carro que estaria me aguardando no acostamento. Foi o que fiz, levava na mão
uma maçã, sentei-me logo após ultrapassar a ponte, passando a comer a fruta, demonstrando
tranquilidade, enquanto que a barreira quase defronte onde eu estava, nem ligou para mim.
Seguimos adiante e, adiante, havia um posto da Policia Rodoviária, onde paramos, apenas
conferiram os documentos do motorista e do carro e seguimos. Antes de amanhecer o dia,
estava em Ijui.
153
Os próximos passos do deputado cassado seriam afinados com a arquitetura
política ditada por Leonel Brizola, desde Montevidéu, na tentativa de unir em uma
proposta de reação os setores militares nacionalistas que aparentemente aderiam ao
golpe, mas que por convicções ideológicas poderiam significar uma possível rede de
sublevação dentro das Forças Armadas. Sob o pseudônimo de Osvaldo Bohrer, ele
152
BURMANN, Beno Orlando. Memórias. Op.Cit. p. 28.
153
Idem, p.30.
90
partiu para o estabelecimento de contatos de quartel em quartel, em Santa Catarina,
Paraná e São Paulo. Com pouco dinheiro e na clandestinidade, chegava a São Paulo
em meados de maio de 1964, atuando de camelô para poder pagar as despesas de
viagem:
Os primeiros dias, em São Paulo, foram difíceis, pois possuía limitados recursos financeiros e
era necessário trabalhar em algo que me provesse de dinheiro. Junto aos camelôs, vi umas
blusas comuns, baratas, tipo cardadas, que era novidade do momento. “Investi” o suficiente
para adquirir 6 blusas, logo adiante, em cima de um jornal, botei minha “banca” e, em menos
de uma hora, as vendi, com lucro de 20%. Voltei ao atacado e adquiri mais dez peças, voltando
ao local de venda. No final da tarde as vendi, restando-me um lucro que me permitia pagar
hotel, refeições e mais despesas para viajar até Santos, onde pretendia fazer contato com um
major cujo nome me foi indicado. Retornei de Santos à noite e, no dia seguinte, cedo, já estava
novamente com minha “banca” montada, vendendo tudo o que ali expus. No dia seguinte,
depois de exercer pela manhã minha atividade de camelô, retornei a Campinas, onde além
voltar ao hotel onde estava hospedado, fui procurar mais um militar, cujo endereço me foi
fornecido pelo seu colega de Santos.
154
Em meio a uma verdadeira tempestade existencial, que o colocou de um
momento a outro, de influente político petebista e prefeito conceituado, a fora da lei,
sobrevivendo como camelô, Orlando Burmann viveu naqueles dias o primeiro
impacto do desterro. Ativista do “Grupo de 11 Companheiros”, ou “Comandos
Nacionalistas”, de Leonel Brizola, passou a buscar em Montevidéu, onde o líder
petebista armara o quartel general da resistência, a orientação de novos nomes e
contatos no Brasil. O foco imediato seriam os militares da vertente nacionalista, em
um espectro amplo que compreendia ainda os setores resistentes da Frente de
Mobilização Popular, Comando Geral dos Trabalhadores, Frente Parlamentar
Nacionalista, Ligas Camponesas e partidos políticos colocados na ilegalidade. No Rio
Grande do Sul fazia contatos com pequenos grupos de militares e, de volta a São
Paulo, matriculou-se em um curso sobre Consórcios, que passaria a usar como
alegada profissão, com o pretexto de entrar nos quartéis e contactar diretamente mais
simpatizantes para o levante nacionalista.
Com o conhecimento que tinha, sabendo que os militares, após o golpe, passaram a ganhar
salários que permitiam-lhes pagar prestações dos consórcios, com o material que estava de
posse, fácil ficava para entrar nos quartéis, sob a alegação de oferecer a oportunidade do militar
em adquirir seu automóvel. Assim, em inúmeros quartéis, tive facilitado minha entrada e o
contato com a pessoa indicada, com quem marcava o local para falarmos após o expediente (...)
O nosso movimento prosperava e as adesões aumentavam. Viajava para o interior do Estado e
para outros Estados e periodicamente seguia a Montevidéo, levando informações e de lá
trazendo instruções de pessoas que poderia procurar.
155
154
Ibidem. p. 34.
155
Idem. p.36, 39.
91
Em 1965, Orlando Burmann conheceu o chamado Sargento Raimundo –
Manoel Raimundo Soares - líder de um grupo de militares nacionalistas, nos contatos
que fez em Montevidéu junto a Brizola e ao grupo que gravitava em torno de sua
liderança. Por intermédio desse contato, viajou pelos estados de Santa Catarina,
Paraná e todo o Rio Grande do Sul, promovendo reuniões com os militares para
aglutinação de forças. “Formava grupos fechados, muitas vezes mais de um na
mesma cidade, mas sem contato um com o outro, pois, avisava, isso iria acontecer
quando se aproximasse a hora da ação”
156
, conforme relatou em seu diário ainda
inédito. O cerco da repressão, no entanto, havia chegado ao grupo dos sargentos, e o
próprio Sargento Raimundo apareceria morto, nas águas do Rio Guaíba, meses
depois, com as mãos e os pés amarrados. Desse modo, teve de sair do apartamento
onde morava em Porto Alegre, buscando abrigo na casa de um capitão da Brigada
Militar
157
, na praia gaúcha de Mariluz. Por ironia, foi preso naquela praia, confundido
com a figura de um estelionatário internacional, que havia mobilizado a polícia em
buscas a tipos suspeitos nas cidades do litoral. Ele anota em seus escritos,
Fui preso em Abril de l965. Viajava por todo Estado, por Santa Catarina e Paraná. Claro que
sempre, com todas precauções. Nos primeiros dias de abril, o grupo de Sargentos aos quais me
liguei por intermédio do Sargento Raimundo (mãos e pés amarrados), tiveram problemas. O
Sargento Raimundo me avisou, aconselhando que eu deixasse o apartamento, pois, se preso um
deles, torturado, poderia entregar-me, posto que sabia onde eu ficava quando estava em P.
Alegre. Na mesma hora o levei até Viamão, onde ele tinha um lugar seguro para ficar e,
retornando a Porto Alegre, peguei a minha pasta e segui para a praia Mariluz, onde tinha casa o
capitão da Brigada, que me ofereceu para ali ficar, quando julgasse necessário. Cheguei lá à
tardinha, não o encontrando e muito menos o caseiro, a quem tinha sido apresentado, com a
ordem de que, quando ali viesse, era para entregar-me o quarto externo, junto à garagem. Já
conhecia o dono do hotel, a que fui apresentado pelo capitão, resolvendo ir hospedar-me lá.(...)
Dia seguinte, levantei, caminhei um pouco, fui à pé até a casa do capitão, não encontrando
ninguém. Voltei ao hotel, tomei café e, vestindo calção de banho, fui caminhar e tomar banho
de sol, pois era um lindo e resplandecente dia. Caminhei bastante, nadei e lá pelo meio dia,
comecei o retorno para o hotel. Ao enfiar a chave para abrir a porta do quarto, ela foi aberta por
dentro e já dois policiais me agarraram, enquanto que pela frente entrava mais dois
156
Idem.Ibidem p.41.
157
A Brigada Militar constitui-se na força pública gaúcha, equivalente a Polícia Militar nas demais unidades
da federação. Fortalecida pelo líder do Partido Republicano do Rio Grande do Sul, Julio de Castilhos, após a
proclamação da república, a força militar gaúcha servia então aos interesses republicanos em contraposição
aos ideais liberais, efetivamente fortes no Rio Grande. Já na década de 1960, com a renúncia de Jânio
Quadros e o episódio da Legalidade, fortaleceu-se na Brigada Militar uma forte coloração nacionalista,
encarnada por Leonel Brizola e o PTB. Setores da força gaúcha protegeram Brizola nos primeiros momentos
do golpe de 1964, propiciando condições para sua fuga. Além dos sargentos, que lutavam por direitos
políticos, apoiados pelo PTB, amplos setores da oficialidade brigadiana se encontrava identificava com
Leonel Brizola e os ideais petebistas quando do golpe de 1964.
92
brigadianos. Imediatamente, deram-me um soco, houve uma rápida luta corporal, fui
dominado e logo algemado(...) Logo vi que não era eu a pessoa que eles procuravam.
Insistiram ante minhas respostas negativas, um brutamontes desferiu-me um soco no rosto que
consegui amenizar a violência, ao levantar, instintivamente, as mãos algemadas, protegendo
meu rosto. Assim mesmo, “tastaviando” fui parar na parede e, ele voltando para me bater,
consegui, mesmo de mãos amarradas, trancá-lo, evitando o novo soco, foi, quando o delegado
que chefiava a a escolta, gritou e mandou parar.(...) Lá pelas 3 horas da tarde, quando o
delegado saiu, para, pelo rádio comunicar-se com Ijuí, achei que era melhor eu dizer quem eu
era, deixando, então, incrédulos os policiais. (...) O certo era que até aquela hora, eles não
acreditavam de que eu era um ex-deputado, cassado e procurado pelas forças repressivas.
158
Levado para a delegacia de Tramandaí, após uma série de intimidações e
agressões, frente à eminência de um novo interrogatório, contou com o auxílio de um
escrivão, que lhe permitiu o sumiço de quaisquer pistas que levava consigo. Do
aliado de última hora, ele relembra,
[...] até aquele momento praticamente nada tinha anotado de meu depoimento e, só, na sala,
avisou-me que “eles” já tinham a confirmação de quem eu era, que o delegado deveria retornar
à Delegacia e iria retornar ao interrogatório. Falou baixo, para os 2 brigadianos que vigiavam a
porta da sala não ouvissem e, então, ele disse que, agora, o interrogatório seria mais violento e
perguntou se eu não queria ir até o banheiro, onde poderia me desfazer de qualquer anotação
ou documento que estava em minha roupa, autorizando-me a vestir camisa e calça (a
temperatura baixava), chamou os brigadianos e recomendou que me acompanhassem até as
instalações sanitárias, deixando eu entrar, fechando a porta e ali permanecendo, com a máxima
vigilância, para não permitir a fuga e, assim que eu saisse do banheiro, fosse reconduzido a sala
de interrogatório. Me desfiz de algumas anotações com nomes,enderêços, (em código), rasguei
tudo, coloquei no vaso e depois de algumas descargas, nada restou. Fui abrindo a porta para
sair, com todo cuidado, pois os policiais, face à recomendação, estavam nervosos.
159
Interessante observar como o mesmo fato é narrado pelo filho, César Burmann,
48 anos, mais de três décadas depois. Munido de uma lembrança diversa,
ressignificada, ele enfatiza a participação ativa da mãe, Diva Burmann, que seria uma
constante no suporte ao trabalho político do marido, e também as pressões e relações
que a família mantinha com o setor politicamente conservador.
[...] me parece que era abril, já passado a temporada de praia. Ele foi lá na praia, encontrar com
um cara, e ele tinha um Gordini na época. E ele parou o carro lá na beira da praia, fez o contato
e depois foi lá tomar banho de mar, ainda era quente. E viram o Gordini, sem placa, e a polícia
achou que era um carro roubado, pois tinha um carro roubado com essas características.
Pegaram o carro e a polícia foi lá, e quando ele chegou no carro prenderam ele. Aí
identificaram depois que prenderam, como ladrão de carro, depois identificaram que ele era um
ex-deputado, que era cassado, que era foragido, e era procurado. Aí prenderam ele, deu
manchete, na época era a Última Hora, manchete de primeira página, ex-deputado preso. E o
delegado se vangloriando...aí esteve mais de um mês preso no DOPS, na época tinha muito
preso político, eles levavam para a Febem, ali depois do Beira Rio, incomunicável. Aí a mãe
veio para cá, descobriu onde ele estava. Nós entramos com advogado, com mandato, e usamos
todas as relações que a gente tinha, e pressão...e se conseguiu, não lembro quem era o
158
BURMANN, Beno Orlando. Memórias. Op.Cit. p.40.
159
Idem.p.40.
93
advogado na época, se chegou a ser o Otávio Caruso da Rocha, que atuou muito na defesa dele,
e depois ficou muito amigo nosso. Então tiramos ele naquela ocasião.
160
Depois de retornar para Ijuí e passar uma temporada, em meados de 1965
Burmann seria preso mais uma vez, em Mato Grosso, onde esteve para
presumivelmente vender as terras de um tio de sua esposa. As articulações,
naturalmente, acompanhavam as viagens do deputado banido. Coincidentemente,
nesse momento o MNR, desde as diretrizes vindas de Montevidéu, prospectava
ligações de fronteira que futuramente deveriam servir de foco, junto as ações que
Guevara desenvolveria na Bolívia. Nesse momento a vigilância policial acompanhava
as ações de Burmann com mais intensidade. César relembra da perseguição política
no episódio em que o pai foi preso, na casa de parentes em Campo Grande, e quando
mais uma vez foi utilizada a interferência familiar na pressão aos militares para a sua
soltura, quando ficou pouco mais de um mês detido,
[...] foi a Mato Grosso, porque a família da minha mãe, meu avô, tinha terra, tinha campo lá. E
deixou de herança uma parte dos campos que eram da minha mãe e nossos. Meu e dos meus
irmãos. Aí o pai foi lá para tratar disso. Tavam querendo vender, meus tios queriam vender, na
época não valia nada. Aí o pai foi lá para tratar desse negócio, visitar a minha vó, que era viva
ainda. Aí quando eles chegaram lá, armou-se uma denúncia de indivíduos do PRP, do PSD, de
partidos de direita, que eram contra o PTB e acusavam nós do PTB, meu pai, de comunista. E
não tinha nada de comunista, mas era acusado, eles misturavam as coisas. E acusaram que ele
teria ido fazer guerrilhas, e que esse campo que nós tínhamos lá seria um campo de pouso de
aviões para a guerrilha, ligado com o Paraguai.(...) Saiu porque minha mãe e minha irmã
voltaram para Ijuí e começaram a pressionar. Aí acabaram liberando ele lá. Aí ele veio, a
cidade recebeu em caravana, festa...Ele voltou a viver em liberdade, mas como houve pressões
novamente ele acabou indo viver na clandestinidade novamente.
161
160
BURMANN, César. Entrevista concedida ao autor.
161
Idem.
94
O deputado petebista Beno Orlando Burmann, cassado em 1964.
Diva Burmann relembra do período em que o marido passou clandestino, vendo
a família em episódios isolados, vivendo a clandestinidade total, sempre em trânsito.
“O único que se arriscou por esse Brasil, aqui no Rio Grande do Sul foi o Orlando.
Os outros não se arriscavam, de sair assim. O Orlando não parava, eu nem sabia, às
vezes mandavam me buscar de noite, de madrugada, eu ia me encontrar com ele nas
estradas, em outros lugares assim, isso por um ano!”
162
Identificado com a ala mais à
esquerda do PTB, o ex-deputado sofreria a perseguição dos adversários, em um
estado polarizado, como bem identifica Daniel Caon Alves:
[...] o golpe de 1964 encontraria a cena política gaúcha: uma intensa polarização entre direita e
esquerda, ou melhor, entre o PTB, de um lado, e o PSD e seus aliados, de outro. E é preciso
salientar que um segmento que compunha o PTB estadual era formado pelos brizolistas, ala
mais radical do partido, que nacionalmente também faziam parte do núcleo conhecido como
“grupo compacto”. Esse grupo, fundado num nacionalismo radical e numa rígida leitura do
trabalhismo varguista, contrapunha-se tanto às heranças conservadoras e tradicionais da
sociedade e economia oligárquicas, quanto ao moderno desenvolvimento capitalista
relacionado ao imperialismo – por vezes, seus posicionamentos e sua aproximação com as lutas
162
BURMANN, Diva. Entrevista concedida ao autor.
95
comunistas e socialistas criavam-lhe cisões dentro do próprio partido. As suas posições eram,
portanto, exatamente opostas àquelas de seus adversários políticos no Estado.
163
Importante perceber que desavenças também havia no seio dos trabalhistas,
como veremos adiante, dividindo brizolistas e janguistas. Paulo Schilling, economista
e conselheiro político de Brizola, reafirma essa cisão quando avalia o partido desde
um ponto de vista do grupo brizolista e confirma as divisões internas que se faziam
notar, principalmente nos anos que sucederam a Legalidade até a ocasião do golpe de
estado. Para Orlando Burmann, a imersão na clandestinidade e a conseqüente decisão
em emigrar para o exílio com sua família, na fronteira de Santana do Livramento e
Rivera, seria impulsionada pelo plano frustrado do coronel do Exército Jefferson
Cardim Osório e o ex-sargento da Brigada Militar, Alberi Vieira dos Santos. No final
de março de 1965 eles deixaram as hostes brizolistas em Montevidéu e rumaram para
Rivera, depois de percorrer o interior uruguaio atrás de algumas poucas e
insuficientes armas. Da fronteira dirigiram-se pelo interior do Rio Grande do Sul,
arregimentando um total de 21 homens dispostos a sublevar regimentos militares, até
a cidade de Três Passos. Lá ocuparam um quartel e uma rádio, onde leram um
manifesto nacionalista e revolucionário. Depois de percorrerem um itinerário que
julgavam pré-insurrecto, cruzaram Santa Catarina e foram presos próximo ao
município de Leônidas Marques, no Paraná. Acusado de articular um braço do
levante proposto por Cardim Osório no Rio Grande do Sul, Burmann voltou à lista de
procurados pelos órgãos policiais:
[...] a repressão passou a buscar-me por toda parte, pois, com o levante de Três Passos-Tenente
Portela, comandado pelo Sargento Alberi e Cel. Jeferson o Exército passou a buscar-me e, aqui
no Estado, a Brigada e o Dops procurava-me em toda parte , já que fui citado como articulador
do movimento no Estado. Despedimo-nos e, dali uma semana, fui para Livramento-Rivera, em
companhia de m/esposa, onde conseguimos alugar uma casa, enquanto a Diva retornava para
Ijui, para organizar a mudança, que se efetivou nos primeiros dias de janeiro de l966. Mais
tarde, pela imprensa, tomei conhecimento da prisão, tortura, e assassinato do Sargento
Raimundo. Não dormi aquela noite, fiquei revoltado, a covardia, a falta de respeito à vida,
fiquei, mentalmente, articulando uma maneira de “dar o troco”. Até hoje não aceitei que os
cruéis assassinos tenham ficado impunes. Sei muito bem que, de parte da guerrilha, houve
excessos, mas, de parte dos que defendiam a ditadura, a barbárie, a crueldade, sempre
estiveram presentes quando , dominado um patriota, este imobilizado, fizeram da tortura, a
demonstração da sua “valentia”. Acho que a anistia ampla, geral e irrestrita, teria de ser revista,
para reexaminar casos de extrema covardia e crueldade dos repressores.
164
163
ALVES, D. C. O golpe de 1964 no Rio Grande do Sul. Apud: Ditaduras Militares na América Latina.
Porto Alegre: 2004. Editora da UFRGS. WASSERMAN, C. GUAZZELLI, C , A, B (Org.) p.146.
164
BURMANN, Beno Orlando. Memórias.Op,Cit. p. 32.
96
O plano frustrado de Alberi e Jefferson Cardim teve implicações na vida de
outras duas famílias que viriam a estabelecer uma posição de resistência em Rivera, a
do policial aposentado Oscar Fontoura Chaves, de São Sepé, e a família do
comerciante santanense Romeu Figueiredo de Mello. Conforme relata o jornalista e
ex-guerrilheiro da VPR, Aluisio Palmar
165
, Alberi e Cardim teriam saído de
Montevidéu no dia 18 de março, acompanhados pelo comerciante Alcindor Ayres, de
São Sepé. Cruzaram o Uruguai e pernoitaram em Santana do Livramento, na casa de
Romeu Figueiredo. Dali seguiram para a errática tentativa de guerrilha em Três
Passos e Tenente Portela, no interior gaúcho, com um grupo de 21 homens, entre eles
o líder portuário Adamastor Bonilha, que depois viria a se estabelecer na fronteira.
Foram presos no Paraná menos de 10 dias depois.
Aluisio Palmar sustenta que o comportamento de Alberi desde esses
acontecimentos já denunciava que os arroubos nacionalistas seriam apenas um
disfarce de um agente da repressão infiltrado nos grupos exilados. Essa impressão
viria a confirmar-se, segundo suas investigações, pelos fatos ocorridos em julho de
1974, quando Alberi encaminhou desde a Argentina um grupo de guerrilheiros da
Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), entre eles Onofre Pinto, para uma
emboscada fatal no Parque Nacional do Iguaçu, no Paraná.
166
O efeito repressivo que
se desencadeou a partir da ação do grupo de Alberi e Jefferson Cardim denuncia o
amadorismo do plano, criticado pelos exilados que planejavam em torno de Brizola
um levante de proporções maiores. Teve o efeito de um tiro no pé. Desde então, as
desconfianças em torno de Alberi e o tresloucado Jefferson se faziam sentir no grupo
de Montevidéu. Enquanto Alberi era visto como uma espécie de ordenança sem
cérebro, Jefferson era identificado como incapaz de guardar segredos, afoito por uma
ação mais rápida contra a ditadura. O tenente da aeronáutica José Wilson da Silva,
conhecido pela alcunha de Tenente Vermelho, fazia parte do estreito grupo que
planejava junto a Brizola, em Montevidéu, o levante no Rio Grande do Sul e as
165
PALMAR, Aluisio. Onde foi que vocês enterraram nossos mortos? Curitiba: Travessa dos Editores, 2005,
p.358.
166
Palmar lembra que a ação dos agentes da repressão infiltrados nas organizações da esquerda revolucionária
eram cada vez mais freqüentes e acabaram por selar a sorte desses grupos. Os chamados “cachorros”, como
sustenta que Alberi seria, estavam infiltrados em quase todos os grupos que resistiam no exílio.
97
possíveis ramificações pelo país, em especial entre os sargentos e oficiais
nacionalistas, insatisfeitos com os rumos do golpe. Conforme anota em suas
memórias
167
, a união de Alberi e Jefferson Cardim no mirabolante plano de
insurreição, dada as características de suas personalidades, foi a união “da fome com
a vontade de comer”.
Quando o Jefferson Osório fez aquilo, nós estávamos empilhando, e só faltava amarrar em
cima, vamos dizer assim. Tinha muita gente envolvida. Muita gente. Talvez o maior trabalho
feito a favor do pessoal do governo militar foi aquilo ali. Talvez o maior desmancha-trabalho
nosso[...] Por um lado reacendeu a reação deles pra cima de nós.
168
Orlando Burmann resistiu em suas tentativas de contactar grupos militares
nacionalistas, mas o estreitamento da repressão logo após o incidente de Três Passos
torna seus deslocamentos cada vez mais perigosos. Menos de um ano depois, optaria
pela fronteira como um território possível de sobreviver junto à família e, ao mesmo
tempo, servir à causa pela qual lutava.
2.6.2 – Calle Molles 534 - O esquema de fronteira
Em Rivera, Orlando Burmann seria um contato fundamental para o abrigo e
passagem de guerrilheiros que faziam a trilha de saída do país para o acesso a
Montevidéu, em um primeiro momento, e posteriores deslocamentos para o Chile e
Cuba, onde o governo de Fidel Castro mantinha apoio aos movimentos de insurreição
brasileira, privilegiando em um primeiro momento o Movimento Nacionalista
Revolucionário (MNR), de Brizola. Conforme delimita o historiador Jacob Gorender,
dissidente do PCB e um dos fundadores, em 1968, do Partido Comunista Brasileiro
Revolucionário,
O MNR pareceu aos cubanos a organização em que deviam apostar. Haviam incentivado e
apoiado Julião no plano de instalação de um foco guerrilheiro no Brasil, que nem sequer
chegou a tomar forma. Em 1965, exilados da AP e de outras procedências passaram pelo
treinamento guerrilheiro em Cuba, porém daí nada resultou de concreto. Via Montevidéu,
efetivou-se a vinculação com o MNR, fornecendo aos cubanos diversas formas de apoio,
inclusive a de treinamento, dentro da concepção foquista O apoio ao MNR inseriu-se dentro da
estratégia da revolução continental, em que as lutas guerrilheiras de vários países da América
167
SILVA, José Wilson da. O Tenente Vermelho. Op,Cit. 1987.
168
SILVA, José Wilson da. Entrevista concedida ao autor.
98
do Sul teriam o pivô no destacamento combatente chefiado pelo próprio Che Guevara na
Bolívia.
169
Pela fronteira passaram alguns dos mais ativos insurgentes contra o regime
militar, entre os anos de 1966 e 1970. Carlos Marighella, primeiro, e Carlos Lamarca,
logo depois, segundo apontam os dados originados pelo Ciex (Centro de informações
do Exterior) e somente acessados publicamente em 2007, através de uma investigação
trazida à luz pelo jornal Correio Brasiliense
170
, teriam passado por lá. Assim como
dezenas de militantes da VPR e da Ação Libertadora Nacional (ALN), que faziam o
caminho Brasil-Cuba, para treinamentos guerrilheiros, valendo-se do esquema
montado pelo ex-governador Leonel Brizola na capital uruguaia; ou fazendo o
caminho inverso: Cuba-Brasil, passando muitas vezes pelo Chile, ainda com o manto
institucional intacto, e onde os militantes da ALN e VPR mantinham células.
Nessa posição, Orlando Burmann fazia uma ligação política que extrapolava os
interesses únicos do brizolismo, realizando uma ponte entre as gerações de 64 e 68.
Pouco antes de se estabelecer em Rivera, em janeiro de 1966, Burmann conheceu os
irmãos Frank, que participariam do plano de treinamento de guerrilheiros em Cuba e
no Uruguai, visando a insurreição também encampada pelo grupo brizolista.
Conforme relatou Orlando Burmann em seu diário: “Foi por essa época que conheci
os irmãos Frank, companheiros decididos e de muita coragem, que residiam em
Pelotas e, com eles, somente conversei em Montevideo e Rivera, para onde transferi
minha residência”. De fato, os relatórios do Ciex mostram que a atuação dos irmãos
Frank, bem como todo o grupo de fronteira, ligados ou não a Carlos Marighella e a
ALN estavam em pleno desenvolvimento, sendo monitorados com extrema precisão.
Marighella foi um dos “subversivos” preferidos do Ciex. A primeira referência a ele,
disponível no arquivo secreto, se refere à expansão da ALN no Uruguai. Uma ‘célula’ seria
montada para treinar elementos provenientes do sul do Brasil. “Treinamento que incluiria
programa de preparação política e breve curso sobre explosivos”, relata o informe 676, de 19
de novembro de 1968. Consta ainda que os irmãos FRANCK e outro elemento, indicado como
Leandro, também este com curso feito em Cuba, estariam atualmente ligados ao deputado Ariel
Collazo, que, por sua vez, apoiaria o esquema de Marighella, na base da estratégia
169
GORENDER, Jacob. Combate nas Trevas. Op. Cit., P.135.
170
Em 22 de setembro de 2007, o jornalista Cláudio Dantas Sequeira, do Correio Braziliense, teve acesso a
oito mil documentos secretos do Ciex - Centro de Informações do Exército, órgão que abastecia os demais
serviços de inteligência da ditadura militar, com dados da atuação monitorada de exilados políticos. De 380
mortos pelo regime, de acordo com dados do Grupo Tortura Nunca Mais, 64 mortos constam dos arquivos a
que tiveram acesso a reportagem do Correio.
99
recomendada pela OLAS
171
. Os agentes do Ciex antecipam os planos de Marighella de lançar,
“antes do fim de 1968, a execução de um amplo plano de sabotagem das linhas férreas
brasileiras, bem como de setores vitais para o comércio exterior do Brasil”. Já o informe 32, de
6 de fevereiro de 1969, descreve plano de Marighella de trazer ao Brasil elementos treinados
em Cuba e no Uruguai. “De Cuba viriam 20 brasileiros, pertencentes ao movimento de Leonel
Brizola. Paulo de Mello Bastos estaria integrado nesse esquema, mantendo contatos com o
elemento José Francisco dos Santos, atualmente em Montevidéu e que estaria para ingressar
em território brasileiro”. Collazo seria o contato de Marighella em Montevidéu, segundo o
documento, e prepararia os brasileiros para ir a Cuba fazer treinamento de guerrilha.
172
Importante notar que, ao mesmo tempo em que cuidava da passagem de
militantes na região, articulando constantemente com Montevidéu e as organizações
clandestinas da esquerda armada, Burmann não descuidava da sucessão política em
seu reduto natal, a cidade de Ijuí. Em 1968, apóia e consolida assim a candidatura do
irmão, Wanderley, a vice-prefeito pelo MDB. Burmann relembra: “essa candidatura
eu ajudei [...] eu voltava pro Brasil clandestinamente em alguns lugares que os
companheiros pediam [...] Esse meu irmão ele nunca tinha sido político e eu ajudei na
campanha na clandestinidade”
173
Dos estimados 380 mortos ou desaparecidos durante a ditadura militar
brasileira
174
, muitos passaram pela fronteira, tendo em Orlando Burmann um elo de
ligação. Para os militares que compunham o grupo de apoio de Brizola em
Montevidéu, em especial os que gravitavam em torno do ex-coronel Joaquim Pires
Cerveira, o esquema de fronteira era o elo imprescindível para uma passagem segura
entre os dois países. Burmann seria um dos contatos, como apontam os documentos
secretos do Ciex, de 1971, referindo-se à atuação de Vítor Luis Papandreu, militar
integrante do grupo de Cerveira:
[...] Identificado como perigoso por ter sido um dos seqüestradores do vôo do México que foi
desviado a Cuba, Papandreu foi extenuamente monitorado. O informe 483 de 1970, por
exemplo, registra sua presença em Montevidéu e traça seus passos anteriores por Cuba,
171
A primeira conferência da OLAS (Organização de Solidariedade aos Povos da América Latina) aconteceu
em Havana, de 31 de julho a 10 de agosto de 1967. Ali, por inspiração de Salvador Allende e Fidel Castro,
reuniram-se algumas das principais lideranças da esquerda armada latinoamericana. Do Brasil compareceram,
entre outros, Carlos Marighella, dissidente do PCB, e Herbert José de Souza, o Betinho, pela Ação Popular.
O encontro referendou a união das esquerdas do continente contra o imperialismo norte-americano e os
princípios marxistas como orientação revolucionária.
172
SEQUEIRA Cláudio Dantas. Segredo de Estado, o Serviço Secreto do Itamaraty. Correio Brasiliense,
Brasília, 22 de junho de 2007.
173
GRILL, Igor Gastall. Parentescos, Redes e Partidos: As bases das Heranças Políticas no Rio Grande do
Sul. Op,Cit, p.358
174
O número de mortos e desparecidos são reconhecidos pela Secretaria Especial de Direitos Humanos, órgão
ligado a Presidência da República.
100
Tchecoslováquia, Argélia, Paris, Chile e Buenos Aires. [...]
Papandreu, segundo os informes,
“faria parte do esquema de escoamento de brasileiros de Cuba para o Brasil, junto a Onofre
Pinto”. O informe 020, de 20 de janeiro de 1971, registra a viagem de Papandreu ao Brasil. Ele
teria “ingressado em território brasileiro, procedente do Uruguai, via Rivera, em 30 de dez/70”.
“O marginado teria contado em Rivera com o apoio e a cobertura de Breno Burman, refugiado
brasileiro que reside naquela cidade fronteiriça, à calle Molles, no. 58.”
175
A rota de fronteira e o diálogo das esquerdas com a insurreição da guerrilha
armada no Uruguai, encarnada no ativismo dos Tupamaros, foi apontada pelo Ciex
em relatórios que abasteciam o SNI. As relações entre Orlando Burmann e segmentos
dos tupamaros ficaram bem explícitos, principalmente com a aproximação de sua
família com a do médico uruguaio Silva Antuña, ligado ao MLN-T, que dava
assistência médica à família quando necessário, tendo inclusive operado Diva
Burmann, esposa de Orlando, em uma situação emergencial. O médico santanense
Nei Almeida recorda quando emprestou seu fusca para que o colega uruguaio o
usasse em uma operação secreta.
Era um traumatologista fantástico, tupamaro, embora nunca tenha me dito, e que depois foi
preso. Era um sábado de tarde, eu estava em casa, estava chovendo, e o Silva Antuña bate lá
em casa e diz que o presidente da UNE estava de volta ao Brasil e ele precisava levar ele para
pegar o trem depois das barreiras militares. No outro dia de manhã ele me devolveu o carro, eu
não perguntei nada, nem ele me disse. Era por volta de 1969.
176
A vigilância dos espiões do serviço secreto brasileiro, no entanto, anotava o
que transcorria na fronteira, identificando passo a passo por onde transitavam os
exilados, suas ligações com Montevidéu e o trânsito de pessoas suspeitas pela
fronteira. Como reforça Cláudio Dantas Sequeira,
[...] pode-se concluir que nunca houve refúgio seguro aos brasileiros contrários ao golpe de 64.
Banidos ou exilados, eles foram monitorados a cada passo, conversa, transação ou viagem no
exterior. A malha de agentes e informantes operada pelo Itamaraty se estendeu para além da
América Latina, alcançando o Velho Continente, a antiga União Soviética e o norte da África
[...] Em uma pesquisa detalhada nos 8 mil informes que compõem o arquivo secreto do Ciex, o
Correio encontrou milhares de registros de fatos que antecederam ou precederam a morte ou o
desaparecimento de 64 asilados brasileiros. Essas informações, que ajudaram a selar o destino
dos perseguidos, tinham origem em diferentes fontes, como informantes infiltrados, agentes de
serviços de informação estrangeiros ou material apreendido com subversivos. Tudo era
processado pelos membros do Ciex, depois classificado e encaminhado aos órgãos da repressão
interna.
177
175
SEQUEIRA, Cláudio Dantas. Op.Cit.,
176
ALMEIDA, Nei. Médico santanense. Entrevista ao autor e Antônio Carlos Valente.
177
SEQUEIRA Cláudio Dantas. Op,Cit.
101
O diálogo entre as esquerdas armadas de Brasil e Uruguai, além do âmbito de
fronteira, alcançou um novo significado com as recentes revelações dos arquivos do
Ciex, que apontam a passagem de Carlos Lamarca, dirigente da (VPR) Vanguarda
Popular Revolucionária por Santana do Livramento, em “fins de outubro de 1969” e
uma posterior reunião dele com um emissário dos tupamaros, no Acre. De acordo
com o relatório examinado pelo Correio Braziliense, a passagem de Lamarca pela
fronteira aconteceu:
[...] em 1969, como atesta o informe 354, de 30 de setembro. Essa informação contradiz o
senso de que Lamarca permaneceu clandestino em São Paulo até meados de 70. “Carlos
Lamarca viajaria, no correr dos próximos dias, com destino à cidade de Montevidéu e daquela
capital seguiria viagem para Cuba, via Santiago do Chile e Praga”. O informe 412, de 10 de
novembro de 1969, diz que “em fins de out/69”. “O ex-capitão Carlos Lamarca teria chegado
clandestinamente a Montevidéu, procedente de Livramento (RS), via Rivera (ROU). Da capital
uruguaia, Lamarca viajaria – ainda de forma clandestina e, portanto, com documentação falsa –
com destino a Santiago do Chile e, daquela capital, para Praga e Havana, onde se encontraria
com sua esposa”, informa o Ciex. O informe 304, de 9 de setembro de 1970, também revela
fato inédito na trajetória de Lamarca. Segundo o documento entre 20 e 28 de julho de 1970,
“um emissário dos Tupamaros” teria entrado em contato com Lamarca, vivendo no Acre, “em
zona entre Rio Branco e a fronteira boliviana”. E o informe 483, de 8 de dezembro de 1970,
fala da sugestão de Cuba de realizar um Congresso no Chile, que seria dirigido pelo ex-capitão,
numa espécie de balanço da luta guerrilheira e com o intuito de propor a unificação de todos os
movimentos como estratégia para a revolução. O apoio de Cuba a Lamarca fez, segundo os
informes, com que elementos da ALN, descontentes, passassem a VPR.
178
A identificação de Orlando Burmann como um elemento chave no esquema de
fronteira faria com que os órgãos de espionagem, e em especial o DOPS multiplicasse
a vigilância sobre o ex-deputado trabalhista, que mantinha contato com os tupamaros
de um lado, os partidos comunistas de ambos países, e as emergentes organizações de
esquerda armada. Depois da queda do esquema de fronteira montado por Frei Beto,
em 1969, e o assassinato de Carlos Marighella, Burmann ficaria marcado pelos
órgãos de repressão como um elo do esquema que deveria ser quebrado. A forte
ligação do político petebista com altos setores das Forças Armadas, através de
vínculos familiares, como veremos melhor no terceiro capítulo, pode ter auxiliado de
maneira decisiva sua segurança naqueles anos. É preciso reforçar também que o
chamado “esquema de fronteira”, nunca obedeceu a um comando unitário, ou ações
centralizadas. Era, na verdade, uma tentativa de frações da esquerda, acuada, que
agiam aleatoriamente, sem um objetivo mais conectado que não a resistência a
178
Idem.
102
ditadura instalada, onde cada organização atuava conforme seus preceitos. No
ambiente da fronteira agiam desde o grupo comunista, cujo conceito de revolução não
previa o enfrentamento armado, mas um período anterior de libertação nacional que
incluía alianças; militantes ligados a Brizola e o MNR, nos primeiros anos, até 1966,
e posteriormente guerrilheiros identificados com a ALN e o foco guevarista, a AP, o
PC do B e a VPR.
Manoel Luiz Coelho, militante do PC do B desde os anos de universidade em
Pelotas (RS), passou o ano de 1966 na China, em um treinamento revolucionário
maoísta. Na volta, monitorado por agentes desde os aeroportos europeus, conseguiu
despistar os perseguidores e estabelecer-se em Montevidéu. Em 1968 transferiu-se
para Rivera, onde deu prosseguimento aos contatos políticos do esquema de fronteira
e consegiu emprego na Greco-Uruguaya, companhia produtora de fumo. A
identificação das atividades de Manoel Luiz Coelho na fronteira, compiladas em um
relatório da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, mostra
o teor das ações desenvolvidas pelo chamado “esquema de fronteira” e revela o
controle que os órgãos de inteligência mantinham sobre as atividades de exilados na
região:
[...] Em MAR/67 por questão de segurança homiziou-se no Uruguai, instalando-se ora em
Montevidéu, ora em Rivera, passando a manter contato com brasileiros exilados e homiziados
naquele país. Nesses contatos surgiu a idéia de passar brasileiros que se encontravam
foragidos, do Uruguay para o Brasil e vice-versa, através da fronteira Rivera-Livramento. Foi
entãop montado o ‘esquema de fronteira’, posto em prática no início de 70, e do qual Manoel
Luiz tomou parte. Mais tarde, em meados de 71, manteve contato com um militante da
organização denominada Ação Popular (AP), com quem fixou acertado um novo esquema de
fronteira, que seria passar do Brasil para o Uruguai e vice-versa, pessoas, livros, cartas e
documentos da AP. Nesse sentido, foram introduzidos no Brasil livros de caráter subversivo e,
no Uruguai, cartas e documentos.
179
O estudante Cláudio Antônio Weyne Gutierrez, ligado a VPR (Vanguarda
Popular Revolucionária), militou nos terrenos insurrecionais do Chile e Bolívia,
ambos em meio a crises políticas que os levariam a processos ditatoriais sangrentos.
Infiltrado na Bolívia, e de lá expulso pelo golpe que derrubaria Juan José Torres em
janeiro de 1971, sobrevivente do esfacelamento da VPR, Gutierrez parte do Chile
para uma nova missão: estabelecer-se na fronteira do Brasil com Uruguai,
contribuindo com uma rede de apoio que não chegou a efetivar, conforme recorda:
179
Relatório da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. Brasília, 4 de abril de 1991.
103
Minha próxima tarefa era estabelecer-me na fronteira Uruguai-Brasil e criar uma base de apoio
sem contar com os brasileiros asilados no Uruguai. Para tanto, dispunha de mil dólares e de
uma máquina fotográfica. Abandonava o Chile num momento em que a conspiração golpista
contra o governo da Frente Popular já estava em andamento. [...] No início de 1972 estava em
Montevidéu, numa pensão. Revi minha família. Eram tempos bicudos, governo Médici, época
do milagre. As notícias do Brasil e de Porto Alegre eram desoladoras. Na verdade, eram épocas,
e já fazia tempo, em que vivíamos com a morte na alma. Pouco depois, ia para Rivera. O
Uruguai de Bordaberry não era um país tranqüilo. A guerrilha encontrava-se no auge, e a
repressão começava a sua escalada, com o Exército centralizando as operações.
180
O nível de infiltrações nas organizações de esquerda recomendavam a atuação
em solitário. Mas a sobrevivência na fronteira, longe das redes de solidariedade
revelava-se tarefa difícil. Nesse momento, Gutierrez transfere-se para Rivera com a
explícita missão de efetuar o esquema de fronteira.
Cláudio Antônio Weyne Gutiérrez, isolado na fronteira, à serviço da VPR.
180
GUTIÉRREZ, Cláudio Antônio Weyne. A Guerrilha Brancaleone. Porto Alegre: Proletra. 1999. p.107
104
A falta de uma rede sólida de contatos e da ajuda que os grupos de exilados
proviam, no entanto, revelou-se crucial para o fracasso do plano:
Tentei, durante alguns meses, me estabelecer como fotógrafo. Tinha comprado um amplificador
e equipamento para revelação. Certamente, estava muito longe de ser um profissional bem-
sucedido. Trocava correspondências codificadas com a VPR. Estabelecer-me em Rivera,
construir uma infra-estrutrura para permitir a passagem de militantes, sem nenhum contato e
sem dinheiro, revelou-se uma tarefa impossível. Por volta de junho, me convenci da
inviabilidade de minha missão naquelas condições e retornei a Montevidéu.
181
As ligações de Gutierrez em Rivera consistiam em um diálogo maior com a já
acuada esquerda uruguaia, em especial com o padre Solon Verissimo, acusado pelo
DOPS de ter participado de uma rede de ajuda aos ativistas que fugiam do Brasil e
tinham ligações com Carlos Marighella, e o esquema armado por Frei Beto para
abrigar militantes no outro lado da fronteira. Em sua defesa, padre Veríssimo
declarava,
“Em mi parroquia he recibido a varias personas que por razones políticas estaban siendo
perseguidas en el Brasil. Quedaban en la parroquia mientras gestionaban su ingresso legal al
pais. Estas personas no estuvieron em ningún momento escondidas, sino que circulaban
libremente por toda la ciudad de Rivera”
182
O padre Veríssimo defendia-se nas páginas do periódico De Frente, em 7 de janeiro de 1970.
181
Idem. p.108.
182
En Brasil le Temen a Todos Los Curas. De Frente. Montevidéu, 25 de novembro de 1969. p.3.
105
Entretanto, a reação da nova ordem política mostrou-se implacável com o
religioso defensor dos oprimidos. O padre Veríssimo sofreria as agruras da repressão
em seu país, vindo a falecer alguns anos depois, de acordo com o relato de alguns de
seus companheiros, devido aos maus tratos e torturas que teria sido submetido em
diversas prisões. O padre Edson Tache, colega de Veríssimo, lembra dos três anos de
prisão a que foi submetido Veríssimo como uma das agravantes para sua morte.
Tache exercia o sacerdócio em Taquarembó. Lá conheceu o presidente deposto, João
Goulart, e fez amizade com Percy Penalvo, administrador da fazenda. Ele mesmo
sofreria na pele a repressão que se fazia intensa, em fins dos anos 60 no Uruguai.
Quando de uma visita do presidente Pacheco Areco a Taquarembó, envolveu-se em
um bate-boca trivial com um guarda-costas do presidente. Foi preso e permaneceu
detido por seis anos.
2.6.3 – ‘Tentativa de seqüestro em Rivera’
Em um ambiente de fragmentação, clandestinidade e transitoriedade, a situação
dos exilados estabelecidos na fronteira era facilmente identificável. Isso levou a ações
de repressão bem localizadas, como a que atingiu diretamente Beno Orlando
Burmann no dia 29 de março de 1971. Era noite de segunda-feira, quando o DOPS
gaúcho tentou seqüestrar Burmann. Mais uma vez, no entanto, o ex-deputado teve
sorte. Lutou contra os sequestradores
em uma das ruas centrais de Rivera, a poucos
metros da Comissaria de Polícia. Alguns depoimentos se contradizem nos métodos e
na circunstância em que se deu o fato, além de datas erradas ou imprecisas, porém
acabam se encaixando na somatória de informações que aos poucos vão compondo o
corpo dos relatos orais.
106
A edição de A Platéia de 31 de março denunciava a tentativa de seqüestro.
José Wilson da Silva, o Tenente Vermelho, assegura que o companheiro
Burmann estava em companhia de Adamastor Bonilha, membro do PC do B, ex-
integrante do grupo brizolista de primeira hora e companheiro de Jefferson Cardim e
Albery na tentativa de levante em Três Passos, quando aconteceu à tentativa de
seqüestro. Bonilha havia cumprido quatro anos de detenção devido aos incidentes de
Três Passos e naquele momento vivia junto a outros refugiados, em Rivera. José
Wilson se equivoca quanto a data correta da ação, mas narra em detalhes:
Aí por volta de outubro de 1972, o então deputado cassado, Orlando Burmann, procurou-o para
se encontrarem com um brasileiro que desejava conversar com os dois. O local do encontro era
na Praça Rio Branco. [na cidade de Rivera] A noite lá estava o indivíduo conhecido por
Maneco (Paulo Arthur, alcagüete da polícia) que os convida para descerem a rua rumo a uma
área desabitada. Em instantes, aparece uma camioneta com as luzes acesas. De dentro da
camioneta alguém pergunta por uma “calle” com sotaque carioca. Bonilha virou as costas para
a luz enquanto Burmann atendia o pedido de informação, mas nesse momento saltaram de
dentro do veículo uns homens, que mais tarde ficaram sabendo tratarem-se de oficiais
brasileiros pela conseqüência que teve. Dois tentaram agarrar Bonilha que com eles travou luta.
Uns três ou quatro se atracaram com Burmann tentando encapuçá-lo e botá-lo dentro da
camioneta. Foi luta desesperada, mas o Burmann, um homem corpulento e forte, não se deu
por vencido e ao colocarem-no de costas na traseira da camioneta, escorou-se colocou os pés
nos raptores jogando-os longe. Ato contínuo, tirou o capuz, deitou a boca no mundo e tratou de
safar-se do local. Com a dificuldade de dominar o Burmann, os agressores chamaram um dos
107
que estavam tentando ancapuçar o Bonilha, que, em luta com apenas um, conseguiu safar-se e
entrar numa casa próxima, mesmo mancando de uma perna que havia sido quebrada em Foz do
Iguaçu. Já no final da luta corporal, apareceu um policial uruguaio que por ali passava e viu o
escarcéu, reagindo com um tiro. Os raptores, desnorteados, despareceram e, na fuga, deixaram
os capuzes e outros objetos. O policial levou Burmann e os materiais para uma chefatura de
polícia. Bonilha saiu do esconderijo, foi a casa do delegado Chaves, lá exilado, saindo em
seguida à procura do advogado Adan Renê Fajardo, em casa de quem encontrou o
companheiro Plínio Petersen, também perseguido. Foram os dois para a delegacia fazer a
denúncia de brasileiros entrando no vizinho país para raptar. Bonilha estava certo de que o
Burmann havia sido seqüestrado, mas ao chegar na delegacia lá o encontrou.
183
César Burmann, filho de Beno, vivia em Porto Alegre na ocasião da tentativa de
seqüestro, e lembra dos fatos com a ótica e o detalhe do envolvimento familiar. Ele
recorda da casa da família como uma base de suporte logístico para os interesses de
Jango e Brizola na fronteira, além da ponte que o pai exercia entre os que iam ou
vinham, incógnitos, aos países do Prata.
[...] era isso que o pai fazia. E a partir daí, isso era uma atividade que acaba sendo conhecida
pela repressão, e os caras tinham uma sede muito grande dele. Queriam o fígado dele. Quando
a ditadura começou a ficar mais pesada, eu vim morar em Porto Alegre em julho de 1969, e
vim morar aqui com um primo meu que já participava do movimento estudantil. E acabou
também naquele ano de 68 em que a coisa ficou mais pesada e terminou com o movimento
estudantil e alguns foram para o movimento armado. E esse meu primo foi para a VAR-
Palmares, junto com o Bona, Garcia, e com outros aí. E eu quando vim pra cá acabei morando
com essa gente. Até nós moramos e alugamos um apartamento, que era um aparelho que
chamavam, era só gente do movimento armado. Eu era o único que não participava, mas era
simpatizante da coisa. Eu estou te contando isso para fazer a ligação. Depois, fazendo um
tempo, esse meu primo foi preso. E eu fiquei uma noite só. Mas esse meu primo ficou lá,
torturado, no DOPS. E ali, o meu pai tava lá um dia e um cara ligou dizendo que queria falar
com ele e que tinha notícias desse meu primo. Então ele ficou de se encontrar com o cara, ali
perto da igreja, ali perto da chefatura de polícia, uma rua pra baixo ali, naquela rua da igreja,
mas mais pra baixo. E marcou um encontro ali à noite. Ali na igreja, só que mais pra baixo da
praça Artigas. Que ele estava preso a gente sabia, ele esteve um tempo na Ilha..Isso foi em
1970, no meu primeiro ano da faculdade. E o pai articulava toda a coisa, todo mundo que
entrava lá né, entrava através dele e saía através dele. Aí então o cara fez essa história,
conversou com ele rapidamente, ele disse depois que ficou desconfiado do cara, mas o cara se
despediu, e ele saiu para um lado caminhando, aí veio uma camionete, uma veraneio, isso já
era noite, era inverno, escuro, não tinha ninguém na rua, o cara parou com a camionete,
aproximou dele na beira da calçada, perguntando uma informação. Quando ele foi se
aproximar do carro para dar a informação, saltaram quatro pessoas da camionete e agarraram
ele. Quando foram agarrar, ele fugiu, e derrubaram ele, e deram uma gravata e começaram a
empurrar para botar ele dentro da camionete essa. Aí ele botou os pés na porta, flexionou,
empurrou os quatro. Nessa época ele tinha um bom preparo físico, ele era um cara de porte,
tinha um metro e oitenta e pico... Aí a primeira vez os caras tentaram, ele derrubou os caras.
Aí ele caiu e veio um guardinha, o guardinha foi interpelar os caras. "O que que está
acontecendo?" Um guardinha de Rivera. E os caras disseram, "não, é um amigo nosso que tá
borracho e nós estamos levando para casa". E o pai foi falar e eles não deixaram, gravatearam,
tentaram botar novamente, aí foi que ele empurrou novamente, caiu nos caras e o guarda viu
que não era, que aquele cara ali não tava borracho, um cara borracho não faria aquilo, não teria
aquela força. Aí soltaram ele, o guarda foi pra cima, entraram na camionete e o guarda quis
183
SILVA, José Wilson da. O Tenente Vermelho. Op. Cit., p.198.
108
pegar o pai, pra ver o que que era, e o pai apavorado fugiu do guarda. E o guarda seguiu atrás
dele, e os caras deram uma volta na quadra e tentaram mais uma vez, só não abordaram
novamente porque o guarda estava junto. Aí sim que o guarda se aproximou e ele foi com o
guarda para a chefatura de polícia, aí se esclareceu a tentativa de sequestro da qual participou o
Pedro Seelig, que chefiou essa operação.
184
Diva Burmann, esposa de Orlando, é oriunda de uma família de fazendeiros e
militares da região de Ijuí. Mas ao contrário das orientações políticas familiares, mais
conservadoras, dedicava-se à causa que o marido defendia e exercia um papel
fundamental no suporte à família. Foi peça chave nos difíceis dias vividos no exílio
em Rivera, onde conferia o apoio necessário às ações políticas que Orlando mantinha
na fronteira. Ela acompanhava o marido na noite em que o DOPS gaúcho tentou
seqüestra-lo, como lembra:
Ele estava lá em Rivera, e uns amigos dele, que ele tinha contato com gente da fronteira, ele
sempre seguiu fazendo contato, com gente que queria fazer uma contra-revolução, o contra-
golpe. E marcaram pra ir encontrar com ele, e deram um nome. Mas ele não conhecia quem
era. E aí ele pegou o carro, e eu disse, tu não vai sózinho, tu não sabe quem é...e aí nós fomos.
Foi ali perto da Delegacia de Rivera, ali tem uma Igreja, e uma ruazinha que não tem muito
movimento. Eu fiquei dentro do auto, ali perto da igreja católica. E ele desceu e foi a pé lá para
encontrar essa pessoa. Ele não sabia quem era. E quando ele foi lá encontrar era uma cilada.
Tinham cinco, e tentaram pegar ele, e ele era um homem forte, porque nós tínhamos uma
chácara, e ele revirava aquelas terras, fazia horta (...) E daí foi quando quiseram prender ele,
empurraram ele pra dentro da camionete, duas ou três vezes, e ele dava um pulo, e não
conseguiam segurar ele. Ele era muito grande e forte. Da última vez ele disse que já estava
dentro, quando ele fincou com o pé no banco, empurrou assim o pé no banco e caiu pra fora. E
gritou: - Tão me seqüestrando! Gritou, gritou e ia passando um cara da polícia, que é bem perto
a delegacia ali, e disse: É o deputado Burman, tão sequestrando! Porque tinha guarda do
Uruguai que cuidavam dele, que iam lá em casa. E quando ele gritou assim, o cara esse era
conhecido até nosso, sabe? Era um sargento ali da brigada de Rivera. E viu isso e pegou e veio
correndo de revólver e deu um tiro, e eles se assustaram e soltaram o Orlando e correram. E ele
ainda deu uns tiros nos pneus do carro. E atiraram o Orlando e tentaram passar por cima do
Orlando, que estava caindo assim no lado. Mas ele deu uns tiros e não conseguiram pegar ele.
Senão iam matar o Orlando, já tinham matado um antes, uma guria que teve lá em casa. Gente
daqui. Era uma guria que tinha vindo de São Paulo, foi se exilar, filha de um médico.
185
Na página central de A Platéia, Toscano Barbosa estampava a tentativa de
seqüestro em meio a um noticiário repleto de agitações políticas pelo cone sul. Logo
abaixo da matéria central, que denunciava a agressão a Burmann, figurava a matéria
sobre o seqüestro em Montevidéu do presidente da empresa estatal uruguaia de
eletricidade, pelos tupamaros. Ao lado, a manchete avisava que o “terror explode
nove bombas em Buenos Aires”. Confirmando a versão narrada por Burmann na
184
BURMANN, Cezar. Entrevista citada.
185
BURMANN, Diva. Entrevista concedida ao autor.
109
chefatura de polícia, o jornal acrescentava: “seis elementos desconhecidos, todos
brasileiros, somente não conseguiram consumar o atentado devido à intervenção de
um agente policial riverense que, casualmente, passava pelo local (rua Monsenhor
Vera, esquina da Uruguai).[...] O Chefe de Polícia da vizinha cidade resolveu
custodiar a residência do político brasileiro.”
186
De acordo com as fontes entrevistadas, o homem responsável pela tentativa de
seqüestro seria o delegado Pedro Carlos Seelig, responsável pela linha de frente do
DOPS gaúcho, de 1969 a 1973, anos em que a tortura se institucionalizou nos porões
da ditadura. O delegado ficaria famoso em 1978, quando participou do seqüestro dos
militantes uruguaios Lílian Celiberti e Universindo Rodriguez Diaz, em Porto Alegre,
em uma colaboração entre os regimes uruguaio e brasileiro, usual desde o
alinhamento de ambas ditaduras e que posteriormente foi denominada de Operação
Condor. O “Fleury dos Pampas”, conforme anotou a imprensa gaúcha: “deve ser
entendido como o homem que executava, no DOPS, o planejamento feito pelos
outros organismos, como o Departamento Central de Informações que está ligado à 2ª
Secção do III Exército e conseqüentemente ao ponto mais elevado daquilo que o
jargão policial/militar convencionou chamar de ‘comunidade de informação’.
187
Orlando Burmann voltaria com a família para Ijuí no final de 1974, depois de uma
estratégica revisão de todos os inquéritos policiais militares a que estava submetido,
em Brasília. Mesmo absolvido, seria preso em março de 1975, onde ficaria um mês
aprisionado nas dependências do DOPS, acusado de fazer o esquema de fronteira.
186
TENTATIVA DE SEQUESTRO EM RIVERA ! A Platéia, Santana do Livramento, 31 de março de 1971.
187
TUBINO, Najar. SCHIMIDT, Caco. Um delegado acima da lei. Coojornal. Porto Alegre, Abril de 1979.
110
2.7 – Romeu Figueiredo de Mello: resistência possível
A casa situada à rua Arno Gez 470, em Rivera, a 350 metros do Parque
Internacional, pertencia à família de Romeu Figueiredo de Mello. Ali viviam sua
esposa, a sogra, e dois filhos: Pedro Antônio e Amilcar. Por seu envolvimento com o
grupo brizolista de Santana do Livramento e suas claras posições antiimperialistas,
que ideologizavam as conversas políticas de então, Romeu foi identificado como
potencial subversivo e colocado na lista negra dos que não podiam regressar a
Santana do Livramento.
Com 43 anos incompletos em abril de 1964, Romeu se estabeleceria
definitivamente naquela casa, pertencente a sua sogra, e dali só regressaria ao Brasil
morto, vitimado por um ataque cardíaco, menos de quatro anos depois. Pedro
Antônio, o filho mais velho do casal, tinha apenas oito anos quando o movimento
militar aconteceu do outro lado da linha divisória, mas em suas lembranças ficaram as
marcas do autoritarismo e dos pesados dias que passou a viver desde então.
Isso para mim foi um transtorno tremendo. Isso desestruturou completamente a família. Tive
um pai sem poder exercer a vida profissional como a gente esperava que fosse. E acuado, quase
que acuado né? [...] ficamos sem grana. E no pátio da nossa casa em Rivera, a gente fez um
pequeno aviário, e daí que nós ganhávamos o dinheiro. Nós vivíamos do abate dos frangos, dos
pollos como se diz na minha terra. E quando o pai vivo ainda, porque depois que o pai morreu
nem grana para comer a gente tinha. Os vizinhos nos ajudavam. Ele faleceu no dia 24 de maio
de 1967. Infarto do miocárdio.
188
Até o momento anterior ao estabelecimento do golpe militar, Romeu Figueiredo
de Mello exercia uma bem sucedida atividade econômica, dividida entre um
escritório de importação e exportação, que mantinha no Palácio do Comércio, um
centro comercial situado em frente ao Parque Internacional, a administração de três
unidades de processamento de café, em Livramento, Rivera e Montevidéu, e os
proveitos de uma propriedade rural. Filho de uma família de médios proprietários de
terra, na região da Coxilha Negra, na linha de fronteira com o Uruguai, Romeu vivia
como um típico cidadão santanense de classe média. Nas lembranças de Pedro
Antônio, o pai era uma pessoa identificada com a região, filho de uma brasileira e um
uruguaio de Tacuarembó, que cresceu nos anos dourados da cidade, quando os
cabarés e a vida boêmia conferia um ar de metrópole àquela distante região da
188
MELLO, Pedro Antônio Dávila de. Engenheiro. Entrevista concedida ao autor.
111
campanha. Nascido em 21 de junho de 1921, Romeu viveu o apogeu dos cinemas e
das reuniões literárias na fronteira, gosto que passou aos filhos sempre que pôde.
Meu pai teve a infância no cinema Colombo, e os filmes eram no cinema Colombo, e no
Astral, ele ia muito no cinema Colombo e tinha uma formação cultural muito grande de
cinema. Ele era um cinéfilo. E a formação literária dele foi influência da tia dele, Joaquina,
irmã da minha vó, que tinha todos os livros. Tinha Camões, uma biblioteca muito farta. E ele
leu quase todos os livros daquele tempo, e a gente herdou essa questão da literatura. Então, era
uma pessoa que lia muito, que ia ao cinema. Tanto é que ele me dizia que o cinema era uma
janela pro mundo. “Meu filho, tu tens que ir ao cinema, porque o cinema é uma janela para o
mundo”, ele me dizia. Era muito culto, falava inglês, e lia muito.
189
A política só entraria na vida do boêmio depois da segunda guerra mundial,
quando se alistou como voluntário na FEB, e viveria dias decisivos em sua formação,
na Itália conflagrada. Quando acabou a guerra, retornou com simpatias ao Partido
Comunista Brasileiro e com sérias reservas a posição norte-americana no mundo a
partir de então. As posições nacionalistas o fariam defender o Governo Jango e
alinhar-se com as idéias de Leonel Brizola, que viriam a marcá-lo na pequena
comunidade fronteiriça.
[...] foi a grande tomada de consciência me parece, por que até então era um gurizão que foi pra
guerra, e volta mais maduro não tem dúvida, e aí começa a fase de militância política digamos
assim, porque depois de uma guerra a pessoa volta adulta. Nos 25, 26 anos. Ele foi para a
guerra com 24. [...] Ele não se dizia comunista, ele se dizia nacionalista. A princípio ele era
uma pessoa, eu nunca vi ele ir a um partido político, militar e tal. A princípio ele era um
homem de esquerda e nacionalista.
190
Perseverando Santana relembra do amigo Romeu como uma figura
“maravilhosa”, que gostava da boemia e que desde cedo se mostrou mais afeito às
posições revolucionárias do que a estratégia proposta pelo PCB. Depois da guerra
esteve na sede do partido em Santana, falando aos companheiros sobre a realidade
que encontrou na Europa, do encontro em Paris com o secretário do PC francês,
Maurice Thorez. Já na campanha de Índio Fuentes para a prefeitura municipal,
discordou do discurso proferido por Perseverando na Rádio Cultura, de franco apoio
ao candidato petebista. Já possuia fortes convicções que a via democrática não iria se
sustentar no país, e que o melhor seria o enfrentamento.
189
Idem.
190
Ibidem.
112
Romeu Figueiredo de Mello, ao centro, com sua esposa, Orides, e um amigo.
A identificação aberta com um nacionalismo de esquerda levaria Romeu
definitivamente para Rivera, perseguido abertamente pelo setor militar, que nem ao
menos o deixava voltar aos campos da família, em plena linha divisória. O escritório
teve de ser fechado e a sociedade que mantinha nos negócios de café sucumbiu. De
um momento a outro, a família se viu prisioneira de um sistema político que reduziu
as ambições do pai à sobrevivência do dia-a-dia. Pedro relembra do momento em que
o golpe militar chegou na roda das conversas familiares.
Nós já estávamos em Rivera. Eu lembro que era um alvoroço tremendo dentro de casa. Eu
tinha oito anos. Mas eu lembro que era um alvoroço tremendo, não tem como esquecer aquilo.
Eu me lembro que meu pai chamava os gorilas, os gorilas, os gorilas... e ele não pôde entrar
mais em Livramento. Aí nós ficamos ilhados em Rivera. Nós já morávamos em Rivera e não
pudemos sair mais de Rivera. Ele tinha as fábricas de café em Montevidéu, em Rivera e
Livramento, mas acabou tendo problemas com os sócios e acabou perdendo, quebrando.
191
Na casa de Romeu aportariam muitos dos refugiados de primeira hora, que
tiveram de deixar o país sob pena de prisão imediata. Nas lembranças de criança de
Pedro Antônio, a casa paterna surge como o local de solidariedade extrema, ofertada
aos viajantes que procuravam abrigo naqueles primeiros dias do golpe militar.
191
Idem.
113
Pouco menos de um ano depois, por ali passariam o coronel Jefferson Cardim,
Albery Vieira dos Santos e o comerciante de São Sepé, Alcyndor Aires, que
deflagrariam a chamada “Guerrilha de Três Passos”, o levante frustrado que marcaria
a única tentativa concreta do grupo exilado em Montevidéu de desestabilizar a
ditadura instalada.
[...] como nós já morávamos lá, digamos que nós fôssemos os melhores estruturados, logo que
se deu a revolução. Já tinha a casa da minha mãe, já tinha uma bela duma casa que a gente
tinha ali. E por ser essa casa muita bem estruturada, serviu como porta de entrada para muita
gente no Uruguai, para o exílio uruguaio. Muitas pessoas passavam por ali, eu digo que quase
todas as pessoas passavam por ali. De uma maneira ou de outra meu pai interferia, ou era
consultado, como melhor colocá-las dentro do Uruguai. O meu pai era a pessoa que recebia no
Brasil e colocava dentro do Uruguai. (...) era insólito. Não tinha hora, chegavam de manhã, de
tarde, de madrugada. Umas figuras diferentes, homens quase todos, e ficavam conversando na
sala, era um mistério. E a gente queria ficar participando das conversas e acabava participando
no final. Muitas pessoas dormiram no meu quarto. Eu me lembro do sargento Alberi dormindo
no meu quarto, o Jefferson Osório...Doutor Benvenuto, o Oscar Fontoura Chaves, o professor
Chaves - que é outro, seu Valdemar, e muitas pessoas que eu nem lembro mais o nome.
192
No restrito mundo dos exilados em Rivera, as relações entre os grupos eram
inevitáveis, muito embora houvesse simpatias bem definidas pelas posições de Jango
ou Brizola. É nesse ponto que entra na conexão da casa dos Mello o policial civil
Oscar Fontoura Chaves, ambos ligados por uma amizade em comum com Jefferson
Osório e o grupo de Três Passos. Depois de deixar a casa dos Mello em Rivera, na
manhã do dia 20 de março de 1965, o grupo insurgente vindo de Montevidéu,
comandado por Jefferson Cardim Osório dirigiu-se a São Sepé, aonde iria contactar
Oscar Fontoura Chaves para uma adesão à causa.
Colaborador do governo Jango, o qual esteve servindo pouco antes do golpe em
Brasília, Oscar Chaves absteve-se em participar diretamente do plano de Cardim e
Alberi, mas seu encontro com os rebeldes seria marcado pela repressão. Nas
lembranças de América Ineu Xavier, viúva do policial, a visita do grupo na tentativa
de arregimentar seu marido para a guerrilha foi definitiva para a sua prisão, poucos
dias depois:
[...] aí veio aquela coisa que houve lá, uma guerrilha. Em Santa Catarina né? ou lá na divisa
com o Paraguai...Aí houve a formação de uma guerrilha, do Coronel Jeferson...uma coisa
louca, e o cara esse, da guerrilha, segundo...ele teria passado lá e teria convidado ele pra ir e ele
se recusou. Disse que não , que era uma coisa que não era organizada, tal e coisa e que ele não
iria. Segundo né? Eu não sei, é o que contam. Aí esse cara foi preso, foram diversos, um tal de
Alberi, foram diversos presos...e aí nos depoimentos eles teriam dito que teriam convidado ele.
192
Ibidem.
114
Tá, eles prenderam ele porque disseram que ele devia denunciar. Aí ele foi preso de novo, aí
em São Gabriel.Ele foi preso em São Sepé e levaram ele para São Gabriel, que tinha quartel.
Ele ficou lá abril, maio, junho, julho e agosto. E em agosto ele fugiu. E nem eu bem sei, foi um
horror aquilo!
193
Naquele momento, Montevidéu já contava com mais de dois mil exilados
brasileiros e a cada dia passavam pela fronteira novos clandestinos. A repressão que a
ação mal-sucedida de Três Passos desencadeou em todo o Estado iria redirecionar os
destinos de muitas famílias para o caminho da fronteira. Oscar Fontoura Chaves foi
preso e levado ao 9º Regimento de Cavalaria de São Gabriel, para interrogatório. O
advogado Índio Vargas, natural de São Sepé, engajado posteriormente no movimento
de insurreição, lembra que a população local já não suportava o trauma causado por
constantes interrogatórios a que era submetida por militares oriundos de São Gabriel,
Bagé e Santa Maria.
194
Oscar Fontoura Chaves também experimentou a prisão e o
interrogatório nos primeiros dias do golpe, porém logo foi liberado.
Desta segunda vez, no entanto, seria severamente torturado como cúmplice de
Jefferson Cardim Osório. Menos de cinco meses depois, Oscar Chaves conseguiu
cerrar as grades da cela em que o mantinham no quartel e empreendeu assim uma
fuga escondendo-se de dia nos matagais da região e deslocando-se à noite.
Conhecedor da região, onde atuava no combate ao contrabando de gado, ao lado do
delegado Acílio Pereira da Cruz, que mais tarde seria o chefe da 12ª região policial
em Santana do Livramento, conseguiu driblar as forças do exército. Auxiliado por
camponeses, Oscar chegou a Rivera, no final de 1965, onde pediu asilo político na
Chefatura de Polícia. Antes, porém foi recebido na casa de Romeu Figueiredo de
Mello. Pedro Antônio recorda do estado crítico que o policial chegou em sua casa,
vomitando e urinando sangue, devido às torturas a que foi submetido. Para dormir,
Oscar Chaves tinha de ser hipnotizado pelo doutor Adalberto Benvenutto, médico de
São Borja, exilado na fronteira com a família desde os primeiros momentos do golpe,
e que prestava serviços de toda ordem, desde que envolvesse a saúde da comunidade
de refugiados.
193
XAVIER, América Ineu. Dona de casa. Depoimento concedido ao autor.
194
VARGAS, Índio. Guerra é guerra, dizia o torturador. Rio de Janeiro: Codecri. 1981. p.17.
115
Pelos olhos de uma criança, curiosos com os acontecimentos que a cada dia
movimentavam o ambiente doméstico, ficaram marcadas as lembranças de
solidariedade da família e as condições de extrema penúria com que chegavam os
fugitivos da nova ordem, como a família Penalvo, que depois viria a administrar a
fazenda de João Goulart, em Tacuarembó.
Eu lembro da chegada do doutor Oscar. Lembro mesmo, ele era um cara forte, grande. Bem, eu
era uma criança de 11 anos, mas ele parecia um gigante. Era um homem encorpado, já
grisalho[...]Eu lembro que chegou muito nervoso, não conseguia dormir, e expelia sangue pelas
feses, pela urina...Lembro como se fosse hoje também, a minha vó cedeu o quarto dela e o
doutor Oscar dormia ali. Era o único digamos que não dormiu no quarto meu e do meu irmão,
que dormiu fora. Tinha o quarto meu e do meu irmão, e uma terceira cama, por onde passavam
as figuras. Normalmente tinha uma cama "de varde" como se diz na minha terra e normalmente
tinha um dormindo na cama. E aquele quarto da minha vó foi cedido...e era pro doutor Oscar
poder dormir...eu me lembro do doutor Benvenutto hipnotizando ele, para poder dormir....E
devagarinho ele foi revelando como é que foi a fuga dele. E eu me lembro que ele revelou que
foi a esposa dele que alcançou uma lima dentro de um pão, ou algo assim. E com essa lima ele
conseguiu fugir da cadeia. É, isso eu lembro. E passou alguns dias lá em casa e depois foi para
uma pensão. Lembro também da chegada do Perci Penalvo e da Celeste, Dona Celeste. Com
uma filha no colo, um frio danado, não tinha nem cobertor, eu me lembro que a minha mãe foi
lá e deu um cobertor pra ele, e eles ficaram um dia ou dois e depois foram embora.
195
A rotina de abrigo aos recém chegados consistia em proporcionar um descanso
por dois ou três dias, com comida, banho, e a convivência da família, até uma gradual
readaptação a nova situação. Muitos seguiam viagem para Montevidéu, depois de
assegurados passes especiais. Os que ficavam na fronteira eram encaminhados para
uma pensão, próxima ao Colégio das Freiras, nos arredores das ruas Ituizangó,
Figueroa e Faustino Carâmbula. Nessa pensão estava hospedado Oscar Fontoura
Chaves, poucas semanas depois de ter chegado à fronteira, tratando de reintegrar-se a
nova situação. É então seqüestrado por uma força policial uruguaia, que o leva para
Tranqueras e logo após para a cidade fronteiriça de Artigas, com o propósito de o
devolverem às forças militares brasileiras, que reclamava pelo fugitivo instalado em
Rivera.
Oscar Chaves não seria devolvido à ditadura brasileira graças à intervenção do
advogado Adán René Fajardo, uma figura humanista e defensor dos exilados, filiado
a lista 99, do Partido Colorado, e que teve ampla atuação em casos semelhantes
durante os anos da ditadura brasileira e, depois, na confluência de ambas as ditaduras,
195
MELLO, Pedro Antônio de. Entrevista Citada.
116
a partir de 1973.
196
No ambiente tenso do exílio, “desgastante e verdadeiro devorador
de homens”, nas palavras de Paulo Schilling, Pedro Antônio recorda das inúmeras
discussões em que seu pai e seus companheiros mantinham, onde não faltavam
elementos de traição e de ressentimento com a liderança de Jango e Brizola, que
viviam sob uma condição monetária estável, enquanto muitos correligionários e suas
famílias passavam enormes dificuldades para sobreviver no escasso mercado de
fronteira, em particular de Rivera, com menos de 50 mil habitantes e uma economia
atrelada ao setor de serviços e governamental.
No ambiente opressivo do exílio, em um país que mesmo vizinho do Brasil
possuía suas peculiaridades culturais bem marcadas, a união das famílias nas festas
natalinas e outras datas rituais era a regra. Os filhos conviviam em um ambiente
comum. Foi assim que a filha de América e Oscar ganhou o apadrinhamento de Beno
e Diva Burmann. Assim também ficaria marcada para sempre na memória do
advogado Tarso Genro a atuação de América naqueles dias, protetora e amiga, como
uma verdadeira “mãe do exílio”, que ele fez questão de reverenciar, mais de 40 anos
depois, quando voltou a fronteira para uma homenagem.
Na difícil sobrevivência do exilio, no entanto, as mágoas também permeavam
os distintos grupos afetados pelo golpe. “Eu lembro de muitas conversas de traição,
eu lembro que se falava muito em traição. Quem traiu o quê eu não sei, mas lembro
que se falava muito em traição. Alguém dedurou, alguém falou. Quem foi? Eu lembro
que era a grande incógnita, quem traiu quem”.
197
Uma grande parcela dessas
discussões referia-se ao destino dos recursos que Brizola, Jango e Darcy Ribeiro
teriam recebido de Cuba, um total de um milhão de dólares, enviados em duas vezes,
destinados a prover a insurreição e amainar as dificuldades por que passavam os
exilados. Como o dinheiro nunca chegou ao grupo da fronteira, se acenderam os
ressentimentos. José Wilson da Silva descreve a vida dos exilados em Montevidéu
como uma sucessão de dificuldades, parte devido ao paternalismo das lideranças, que
“davam o pão, mas não ensinavam a plantar o trigo”, e parte devido à falta de
iniciativas dos próprios refugiados, que muitas vezes não demonstravam aptidão para
196
A atuação de Adán René Fajardo na defesa dos exilados será melhor explicitada no terceiro capítulo.
197
MELLO, Pedro Antônio de. Entrevista Citada
117
mudar de vida, esperando das lideranças a eterna ajuda. Em 1966, o ponto central da
discórdia entre o grupo ligado a Romeu Figueiredo de Mello, em Rivera, girava em
torno do mau uso dos dólares supostamente enviados por Fidel Castro. José Wilson
vivia em Montevidéu e dá a sua versão para a controvertida questão:
Que eu saiba, o primeiro contato feito com Cuba foi através do deputado uruguaio Ariel
Collazo, levando nossa disposição de uma retomada da democracia no Brasil.(...) Fidel enviou,
a título de ajuda, quinhentos mil dólares. Desta importância, segundo um relatório de Brizola
para nós, um terço teria ficado com Jango, pois a este estavam ligados vários exilados
necessitados. Outro terço teria ficado com Darcy Ribeiro, por questões de segurança e que
também tinha parte de responsabilidade. O outro terço teria ficado com Brizola. Lembro-me
que ele, Brizola, ficou muito aborrecido porque as ações mais positivas estavam sendo feitas
pela nossa gente e ficamos desse modo com relativamente pouco dinheiro. Parte dessa
importância foi gasta com elementos no exílio, parte com a assistência a companheiros no
Brasil em situações críticas, como presos com a família sem recursos, etc., e parte com os
nossos homens-correios para a implantação já de esquemas de trabalho, aliás, tudo em função
de um plano de ação armada. Dado o número de pessoas em dificuldades pela desarticulação
da sociedade, em especial gente humilde, que eram as bases trabalhistas ou de esquerda, isto
não era mais do que uma gota d’água num oceano de necessidades.
198
A falta de apoio financeiro de Jango ou do grupo brizolista, em Montevidéu,
afetava a todos os que estavam ancorados em Rivera. Ali viviam companheiros que
exerciam importantes funções de pombo-correio, ou de passagem de companheiros de
um lado a outro da fronteira. Por isso a falta de uma assistência centralizada gerava
notórios ressentimentos. Mas entre o grupo que gravitava em torno de Romeu
Figueiredo de Mello, um detalhe deixou a questão muito mais explosiva. Parte do
dinheiro, destinado a João Goulart, teria passado pela casa de Romeu, transportado
por ninguém menos que o braço armado de Fidel na América Latina, Ernesto Che
Guevara! Hoje seria quase impossível provar essa hipótese sem o cruzamento de
relatos orais, que não foram obtidos por esta pesquisa, salvo um: o depoimento da
viúva de Romeu Figueiredo de Mello a seu filho.
Minha mãe lembra que teve um contato com o Che nas escadarias de minha casa,
acompanhado de mais dois homens vestidos de religiosos franciscanos. Eles estariam indo a
fazenda de Jango, em Tacuarembó, por entre os corredores de campo, que eram seguros e
impossíveis da polícia detectar. Traziam o dinheiro, segundo meu pai disse. E passou pela
minha casa. Minha mãe se recorda de ter visto ele, de relance, ele sorriu para ela. Eu me
lembro do meu pai dizendo que eles estavam em um corredor, não sei onde, os franciscanos
esses, y la plata.
199
198
SILVA, José Wilson da. O Tenente Vermelho. Op. Cit., p. 202.
199
MELLO, Pedro Antônio de. Entrevista Citada. Os corredores de campo citados por Pedro são caminhos
que existem entre as estâncias, estradas usadas para o transporte de gado ou que fazem a ligação entre as
propriedades rurais e as estradas de acesso aos centros urbanos. Essas estradas “não oficiais” são usadas para
o deslocamento no campo e também em rotas de contrabando.
118
Por mais fantasiosa que a versão possa parecer em um primeiro olhar, dados
biográficos de Guevara colhidos pelo jornalista argentino Hugo Gambini apontam
para sua estadia no Uruguai justamente no ano de 1966, onde teria chegado
disfarçado de frei dominicano! Dali partiria para sua última missão, na Bolívia.
Fontes ligadas a João Goulart não endossam a versão oficialmente, embora
reconheçam o fato em privado. Assim, ligando as pontas desse quebra-cabeça é
possível vislumbrar a imagem de Ernesto Che Guevara em pleno Parque
Internacional, na fronteira de Santana do Livramento e Rivera, onde a poucos metros
adentro do território uruguaio iria se valer do traçado ensinado por Romeu Figueiredo
de Mello para percorrer os corredores de campanha e chegar até a estância El Rincón,
de João Goulart, distante 66 quilômetros da cidade de Tacuarembó. Hugo Gambini,
biógrafo de Guevara, credita certo exagero nas versões que corriam sobre o paradeiro
do guerrilheiro naqueles dias, mas não se exime de anotar:
El 5 de agosto de 1966 la Cancillería del Paraguay dijo haber ordenado “una vigilancia
especial en el limite con Brasil, debido a que Guevara ha sido visto en Baribao, a escassos
kilômetros de la frontera paraguaya”. Las versiones confidenciales, demasiadas exageradas,
sostenían que El Che cirulaba disfrazado de hermano dominico, con el nombre de Fray
Hernando Juan de los Santos(...)
200
Da estadia de Ernesto Guevara no Uruguai, nos primeiros meses de 1966 não
restam mais dúvidas, apenas divergem as versões sobre a maneira de como teria
chegado à Bolívia, vindo do Uruguai. Também é interessante notar a aproximação de
Che Guevara com o grupo Tupamaro, já estabelecido como partido político
revolucionário, e que manteve estreito contato com o cubano, mesmo sem
compartilhar das táticas de guerrilha defendidas por Che
201
. Sérgio Israel, jornalista
do semanário uruguaio Brecha, reuniu algumas das versões sobre a estadia do
guerrilheiro no Uruguai, sob proteção do Partido Comunista Uruguaio, que mesmo
não estando afinado com a proposta de guerrilha rural e o foquismo, defendido por
Che, o colocou sob a proteção de seu aparato militar. O então deputado comunista
Ariel Collazo, o mesmo que proporcionou a aproximação do grupo janguista exilado
em Montevidéu com Fidel Castro, levanta a hipótese de que Guevara usara um campo
200
GAMBINI, Hugo. El Che Guevara: la biografia. Buenos Aires: Booket, 2006. p. 300.
201
Os jornalistas Antônio Mercader e Jorge de Vera vão mais além nessa questão, e afirmam que o disfarce
com que Guevara chegou na Bolívia, o de um senhor calvo sob o nome Adolfo de Mena, teria sido forjado
119
de aviação em Taquarembó quando partiu para a Bolívia, em setembro daquele ano.
Conforme o relato de Israel:
La versión difundida una década después de la muerte del guerrillero, en plena dictadura, por
la inteligencia militar uruguaya, también confirma que el Che estuvo aquí, y agrega que los
documentos que usó para arribar a Bolivia fueron robados del Ministerio de Relaciones
Exteriores uruguayo, que en esa época era el emisor de pasaportes. Jaime Pérez, sucesor de
Arismendi al frente del PCU, escribió en sus memorias que se enteró de la estadía del Che una
vez que éste se había ido, pero también confirmó que "el Che salió de Montevideo y de aquí fue
para Bolivia y mientras estuvo en Montevideo fue bajo protección del partido". El ex diputado
Ariel Collazo explicó a su vez a Brecha que aunque Arismendi nunca se lo confirmó, también
tuvo la información de que el Che estuvo en Uruguay apoyado por el pcu. Collazo, que en ese
tiempo como dirigente del Movimiento Revolucionario Oriental (Mro) era muy apreciado en
Cuba, obtuvo la versión de que el Che llegó a Bolivia en un vuelo clandestino que salió desde
Tacuarembó.
202
Do episódio restam algumas indagações. Seria o campo de aviação de Jango,
para quem supostamente o guerrilheiro havia levado o dinheiro? De outra maneira,
porque rumaria para a cidade de Taquarembó para alçar-se a sua empreitada
boliviana? Outro fato que coloca uma nova indagação nessa equação ainda por
resolver foram as constantes declarações do piloto de avião Ruben Ribeiro, que
prestava serviços ao presidente deposto. De acordo com Vladecir Fagundes, filho de
um militante comunista muito ligado a Goulart, Ribeiro apregoava aos quatro cantos
em Rivera que teria transportado Guevara em uma missão secreta. Naquele momento,
era comum os pilotos realizarem a rota Brasil-Paraguai-Uruguai, sempre com
transporte de cigarros e uísque contrabandeados. A exemplo da morte de Jango, cujas
suspeitas de assassinato tornam-se cada vez mais evidentes, Ribeiro morreria
subitamente, de um ataque cardíaco, no barco que faz a travessia de Buenos Aires
para Montevidéu, anos depois. Ribeiro iria depor em um inquérito que apurava
roubos de documentos e de propriedades do ex-presidente. Outra informação que
merece ser considerada é afirmação de Avelino Capitani, marinheiro e guerrilheiro do
foco de Caparaó, que sustenta que a viagem de Che a Bolívia teria acontecido a partir
do Uruguai e sob a companhia do coronel Dagoberto Rodrigues, homem de confiança
de Jango e na linha de frente do MNR naquele momento.
203
A estadia de Guevara no
pelo grupo Tupamaro, em apoio moral ao combatente, mesmo sem a adesão à causa da guerrilha na Bolívia.
In: Tupamaros, Estrategia Y Accion. Revista Siete Dias Ilustrados. Montevidéu, Junho de 1969.
202
ISRAEL, Sergio. Pasage clandestino y discusiones sobre estratégica y táctica. Huellas Orientales del Che.
In: www.brecha.com.uy
. Acessado em 09/12/2007.
203
Conforme depoimento de Capitani a Denise Rollemberg, em 1999. In: ROLLEMBERG, Denise.
Esquerdas revolucionárias e luta armada. Apud: FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia. O Brasil
120
Uruguai em novembro de 1966 também coincide com a articulação do foco
guerrilheiro de Caparaó e a organização de outros focos em Mato Grosso e na linha
fronteiriça.
2.8 – A família Santana: no combate a desigualdade
Os Santana formam uma família de tradicionais pecuaristas da fronteira, com
uma extensa participação em lutas políticas locais, como as revoluções federalista e
de 1923. Posteriormente encampariam as lutas de coloração marxista, na
consolidação do Partido Comunista Brasileiro na região. Mário Santana, poeta e
vereador comunista nos anos 50 tinha em seus irmãos Solon Santana, conhecido
como Castelhano, Edson Sona Santana, Rodolfina e Julieta, os mais engajados na
causa socialista. Sona Santana fora capitão da coluna de Honório Lemes durante a
Revolução de 1923, tendo participado do sangrento ‘Combate da Ponte’ sobre o rio
Ibirapuitã. Rodolfina, conforme relembra Persverando Santana, era a mais ativa das
irmãs, seguida por Julieta, a mais jovem, em cuja casa por duas vezes esteve
hospedado o líder comunista Luis Carlos Prestes, em 1946 e 1960.
Da segunda geração, destacaram-se na consolidação da causa operária na
cidade os irmãos Aquiles e Hélio Santana Alves, que tiveram no primo Persevarando
Santana, um estrategista político à altura dos acontecimentos que sacudiram as
décadas fundamentais do século 20 na fronteira, da revolução de 30 aos anos 70. De
uma família de doze irmãos, sendo sete homens e cinco mulheres, Perseverando teve
no pai, Gaspar, e na avó Maria Manuela Canabarro, neta direta do líder farroupilha
David Canabarro, a inspiração para a causa política. A aproximação de Persevarando
com o marxismo deu-se em 1936, quando, aos 16 anos, estudava no Colégio Julio de
Castilhos, em Porto Alegre. Nesse momento, conhece o romance Cacau, onde Jorge
Amado narra a vida dos trabalhadores rurais do sul da Bahia, em um dos primeiros
relatos do realismo socialista brasileiro. A convivência com o primo Aquiles, cerca de
15 anos mais velho, amigo de Waldemar Ripoll quando do seu exílio na fronteira, e a
Republicano. O tempo da ditadura: regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira. 1993. p.61.
121
esta altura já próximo das propostas socialistas, fariam a convicção de Perseverando
cada vez mais intensa.
Perseverando Fernandes Santana, intelectual do partido e memorialista da fronteira.
2.8.1- A chácara do Castelhano
Nos dias turbulentos que se seguiram ao abril de 1964, a chácara de Solon
Santana – o Castelhano - localizada em Rivera, próxima ao Parque Municipal Grã-
Bretanha, serviu de abrigo a militantes comunistas e ativistas perseguidos pela
ditadura nas cidades da fronteira oeste. A propriedade, situada na localidade de Passo
da Formiga, foi projetada inicialmente para abrigar um cassino. Pertenceu a família
de um libanês, Chaim Possada, considerado benfeitor de Rivera. Chaim por sua vez
havia comprado de Sirângelo, antigo proprietário do Cabaré Caverna, instalando ali
um Tambo (tradicional comércio uruguaio de leite). Nos anos 60, a chácara passaria
para as mãos de Castelhano, que viveria ali com sua mulher, companheira de seus
ideais solidários e revolucionários, e duas filhas. Para a ingenuidade das pequenas,
122
que não sabiam o real significado “daquele entra e sai de tantas pessoas”, tudo não
passava de diversão e novidade. As crianças costumavam brincar no salão grande da
casa, anteiormente planejado para o jogo, que abrigava naqueles dias uma grande
biblioteca. Eram proibidas de continuar a brincadeira no anoitecer, quando chegavam
os estranhos hóspedes, junto a alguns amigos dos pais. Muitos pernoitavam no
mezanino, que ficava no salão grande, e por ali passavam alguns dias. Maria Amalia
Santana recorda-se que sua mãe fazia muitas refeições, que excediam a quantidade
necessária para a alimentação da família. Mesmo impedidas de questionar para quem
seria o excedente de toda aquela comida, ela e a irmã, Margarida, transgrediam os
conselhos dos pais e antes de deitar-se davam uma espiadinha no salão, curiosas que
estavam de conhecer aqueles novos e estranhos hóspedes. “Uma vez eu vi alguns
jovens, tinha umas moças, tinha uma que chorava muito e estava vestida como se
fosse uma mendiga! Parecia muito maltratada”, relembra Maria Amália.
204
Pouco tempo depois do golpe, buscaria abrigo na chácara o sargento da
aeronáutica, Estoécel Santana, sobrinho de Solon, que se exilava ali depois de se
contrapor à quebra da ordem constitucional. Mais tarde, Estoécel viria a se consolidar
como professor, criando um curso pré-vestibular que daria oportunidade de trabalho a
muitos exilados, que ali atuariam como professores, como será abordado no próximo
capítulo. Antes, porém, viveria as mazelas de um humilde exilado, tendo de vender na
cidade os pastéis e fiambres produzidos na chácara por sua tia, sempre auxiliados pela
solidariedade dos familiares.
Seu primo, Sérgio Alves, quando criança também estava impedido de conversar
com as pessoas que chegavam no sítio. Enquanto criança, insuspeita, sua função era
mais afeita à segurança dos clandestinos. Com um misto de euforia e orgulho,
lembra-se que costumava ficar de tocaia na porteira, em um cavalo petiço, pronto
para denunciar a aproximação da polícia ou algum estranho:
Eu tinha uns nove anos, e as gurias teriam um ou dois anos mais velhas que eu. Então eu ficava
lá em baixo, na porteira, de tocaia. O tio e o pai me falavam que se eu visse qualquer cavalo ou
auto estranho à casa, eu corresse e fosse avisar. Mas eu não sabia porque, eu era muito guri, fui
saber um poco depois claro. Lembro de uma vez lá em campanha, no tio Aquiles, quando o pai
estava trabalhando por lá, exilado, morando com a vó, e eu estava lá por baixo, quando vi uns
quantos carros da policia de Rivera chegando lá pela porteira. Então, eu peguei o meu cavalo e
saí a trote alto pra cidade, pra casa do tio Aquiles, pra avisar que tinham chegado lá em
204
SANTANA, Maria Amália. Depoimento concedido a Liane Chipollino Aseff.
123
campanha, pensei que estivessem atrás do pai. Mas dessa vez não era, era uma denúncia que
tinham feito contra nós, disseram que o Brizola estava escondido por lá! O pai já tinha visto os
auto e entrado mato adentro. (risos)
205
Perseverando Santana lembra do episódio, quando a procura incessante pelo
paradeiro de Leonel Brizola movimentava a polícia gaúcha e os olhos da recém
instalada ditadura recaíam sobre os rincões da fronteira. O capitão Neri Fuentes, da
Brigada Militar, seguido por um comissário da polícia uruguaia e alguns militares
invadiram a estância de Aquiles, bem defronte a linha divisória, em busca de Brizola.
Denúncias indicavam que o líder trabalhista poderia estar ali escondido. Perseverando
Santana narra que, com a infrutífera revista do local, onde Aquiles fez questão de que
todas as casas da propriedade fossem vistoriadas, o comissário uruguaio desculpou-se
e apontou a delação: “Olhe seu Aquiles, isso não é coisa de nossotros, é coisa de allá,
de seus colegas”
206
2.8.2- A casa da Calle Paysandu
Em Rivera, a casa de Aquiles serviu de abrigo para uma série de militantes, em
fuga do Brasil ou fazendo o caminho inverso, entrando no país clandestinamente.
Situada a poucas quadras da linha divisória, na calle Paysandu, ao lado da Confeitaria
Metropolitana, outro local de resistência entre os exilados, a casa tornou-se uma
referência. Aquiles possuía formação em farmácia, mas era respeitado por seus
excelentes conhecimentos em zootecnia. Ex-secretário da Associação Rural de
Santana, mantinha boas relações com o setor agropecuário da fronteira. Intelectual
comunista, irmão do militante sindical Hélio Santana Alves, Aquiles faria da sua
residência em Rivera local de abrigo e passagem de importantes atores políticos,
opositores do regime.
Perseverando Santana relembra de um episódio que ficou marcado em sua
memória, quando encontrou na casa de Aquiles o líder da ALN, Joaquim Câmara
Ferreira, também conhecido pelos codinomes Toledo, Velho, ou ainda Walter.
Transcorria o mês de novembro de 1969, quando Joaquim Câmara, mítico dirigente
comunista, dissidente, é informado em Cuba da morte de Carlos Marighella, com
205
ALVES, Sérgio. Professor. Entrevista concedida ao autor.
206
SANTANA, Perseverando. Entrevista citada.
124
quem dividia o comando da ALN. Na volta ao Brasil, passou pelo Chile e entrou no
país pela fronteira, porta de passagem consagrada pela dissidência na luta armada. Na
memória de Perseverando ficou a imagem de um homem ponderado, calmo,
precavido. Naquele final de novembro, ao descerem a calle Agraciada em direção a
Praça Flores, trocaram impressões sobre a luta política e a estrela em ascenção de
Salvador Allende, provável vitorioso a presidência do Chile. Sem ter a exata noção da
importância de Toledo na condução da reação armada no país, Perseverando relembra
da conversa amistosa, antes do líder da ALN tomar o seu rumo. “Não sabia da
importância dele dentro do movimento, lembro que me falou com toda a serenidade
de que Allende não iria resistir no governo chileno, pois dificilmente mexeria nos
aparatos da reação, e aquilo me impressionou”.
207
Joaquim Câmara Ferreira seria
assassinado menos de um ano depois em São Paulo, sob tortura, pelo grupo do
delegado Sérgio Paranhos Fleury.
Antônio Apoitia Neto relembra da casa de Aquiles como um dos locais
fundamentais da resistência à ditadura nos primeiros anos após o golpe. Em sua
lembrança, Aquiles Alves surge como um homem extremamente inteligente,
integrado ao PCB, mesmo sem militância ativa. A casa de Aquiles abrigava ou dava
passagem para importantes nomes da resitência, servindo muitas vezes como um
filtro seguro para um retorno sem percalços ao país. Antônio Apoitia lembra quando,
em dezembro de 1967, o deputado cassado, líder sindical de expressão e figura de
ponta do PCB, Roberto Morena, passou por ali, em direção a São Paulo. Morena
dirigia-se para a VI Congresso do PCB, que se realizaria na clandestinidade. Exilado
há três anos no Uruguai, o líder político esteve na casa de Aquiles e preparava-se para
entrar no país sem disfarces, de maneira totalmente inadequada, quando foi alertado
por Apoitia.
(...) eu ia seguido lá no Aquiles Alves, ele era do partido mas não militava. Era gente de
esquerda, mas comuna. Tinha campo em Rivera, era muito inteligente, um homem alto, e teve
um episódio que nunca vou esquecer. Eu conheci no Rio o Roberto Morena, dirigente sindical,
eleito para deputado federal, mas assumido marxista. Se notabilizou pelos discursos, sempre
brilhante. E eu me lembro que cheguei na casa do Aquiles, e sempre tinha novidade, o pessoal
de esquerda frequentava muito a casa dele. E passando por ali, chguei, e ele diz: “vou te
apresentar um amigo aqui, fulano de tal, muito prazer. E ficamos conversando um pouquinho
ali. E eu conhecia de fotografia, de jornal. Era foragido. Mas era muito conhecido, se olhava e
se reconhecia na hora. E antes de eu ir embora, eu pedi uma palavrinha com Aquiles. Olha seu
207
Idem.
125
Aquiles, esse homem que o sr. me apresnetou como fulano de tal, é o Roberto Morena, e se ele
entrar assim no Brasil não passa na primeira barreira, é por demais conhecido. Ele voltou e me
apresentou oficialmente ao Morena, e aí eu disse que ele não poderia entrar assim no Brasil. O
senhor não chega em Porto Alegre, nem mesmo no trem de segunda. Sinceramente, eu só lhe vi
em congressos sindicais, mas nunca esqueci da sua fisionomia. O sr. tem que colocar um
bigode, uma cabeleira, um, óculos escuros.
208
Como a grande maioria de ativistas que pretendiam entrar no país
clandestinamente, Morena preparava-se para tomar o trem em Santana do
Livramento, misturado aos populares da segunda classe, que levava trabalhadores
rurais e toda a sorte de viajantes descapitalizados. Depois de referendar o cargo de
Secretário Geral a Luis Carlos Prestes e eleito para o comitê central do PCB, junto a
outros 31 membros efetivos e 24 suplentes, Roberto Morena viveria depois no Chile,
optando a seguir pela Tchecoslováquia, onde passou a representar o Brasil junto à
Federação Sindical Mundial.
Hélio Santana Alves e o filho Sérgio: duas gerações de comunistas.
208
APOITIA NETO, Antônio. Entrevista concedida ao autor.
126
Outro integrante da linha de frente do PCB que se valeu das trilhas e da
solidariedade dos camaradas da fronteira, principalmente no período de
clandestinidade da década de 50, foi o jornalista Armênio Guedes. Guedes mantinha
contatos com as direções dos partidos comunistas do Uruguai e da Argentina,
entrando no Uruguai invariavelmente por Rivera. Era colega de comunistas gaúchos
de destaque na atuação partidária, como o construtor santanense Sérgio Holmos, o
deputado Antônio Pinheiro Machado e o também jornalista Isaac Akcelrud. O
jornalista recorda do seqüestro e posterior assassinato de seu irmão, o dentista Célio
Guedes, por agentes ditadura, na fronteira gaúcha. Célio era motorista do Comitê
Central e voltava do Uruguai com o médico Fued Saad, que vinha de Moscou com
dólares para o partido. No Rio de Janeiro, foi jogado do sexto andar do prédio do
Cenimar, o temido serviço secreto da marinha.
Em 1971, meu irmão foi seqüestrado pelas forças da ditadura junto ao médico Fued Saad, na
fronteira de Jaguarão e Rio Branco. Nessa época não estávamos usando Livramento e Rivera
porque estava muito visada devido a proximidade de Jango, em Taquarembó, mas nos anos 50
passei muitas vezes por ali. Era só descer do avião e seguir para o Uruguai, sem precisar de
passaporte.
209
2.9 – “Antônio Almafuerte”, desafiando o arbítrio.
O advogado criminalista Antônio Apoitia Neto por muitas vezes atuou como
interlocutor entre os foragidos que deveriam atravessar a fronteira rumo a
Montevidéu, ou alcançar uma posição de relativa segurança na cidade de Rivera.
Depois passou a exercer a função de “pombo-correio”, ou seja, levar e trazer de
Montevidéu informações confidenciais, destinadas aos que permaneceram no país,
além de exercer todo o tipo de contato entre exilados e suas famílias. Para burlar o
filtro das barreiras militares, valia-se de uma carteira de identidade legítima,
elaborada por um amigo sargento, que pertencia ao serviço de identificação do
exército, em Porto Alegre. No documento, carimbado pelo Ministério da Guerra, a
209
GUEDES, Armênio. Jornalista. Entrevista ao autor.
127
foto do jovem militante vinha acompanhada pelo nome de Antônio Almafuerte, em
homenagem ao famoso professor rural e poeta argentino Pedro Bonifácio Palacios,
que assinava suas obras sob o pseudônimo Almafuerte. A identidade,
costumeiramente utilizada nas viagens a Montevidéu, acabou perdida dentro de um
livro anônimo de sua biblioteca, onde era sistematicamente guardada depois de cada
missão.
A aproximação ao grupo de exilados em Montevidéu, e em especial a relação
com o grupo que circundava João Goulart, foi facilitada por um privilegiado
interlocutor, o ex-Ministro do Trabalho e Previdência Social, Amaury Silva. Apoitia
foi apresentado ao ex-ministro nos primeiros momentos do exílio. Ele lembra de
personalidades marcantes da cena política brasileira que passaram pela fronteira e
depois se valeram das relações estabelecidas na cidade brasileira para reforçar os
contatos políticos com o país que ficara para trás.
Muita gente, muita gente passava para cá e para Montevidéu não é? O staff do Jango e do
Brizola, deputados federais, aquele Cláudio Braga, um cara que era fantástico, o Amaury Silva,
que era meu amigo pessoal, foi Ministro do Trabalho. Ele vinha todos os meses em Rivera. Ele
era o lugar tenente do Jango lá em Montevidéu. Aprendi muito com o Jango lá e conheci muito
o Jango, fiz amizade com o Jango por intermédio dele. Ele vinha aqui para contatos políticos e
eu agendava as coisas. Ele vinha aqui e me avisava, geralmente no Hotel Nuevo. Ele tinha uma
lista de coisas pra comprar em Santana, remédios geralmente, e outras coisas. E tinha contatos
com o pessoal de São Borja, São Gabriel...e eu contatava as pessoas, fazia o meio de campo.
Era meu amigo, gostava dele, eu ia lá bater papo com ele, íamos jantar juntos, em churrascaria,
e fiz muita amizade. Era uma figura notável. Ele tinha um restaurante em Montevidéu, o
Cangaceiro, que o Jango e uns amigos tinham montado pra ele lá. Em Pocitos ali. E de ministro
ele passou a ser chefe de restaurante. E eu ia muito frequentemente a Montevidéu naquela
época, estava todo mundo lá, os exilados. E levava recados pra lá, trazia de lá pra cá. Era um
menino de recados, vamos dizer assim, e levava remédios do Brasil, que lá não tinha. E
produtos brasileiros que os caras pediam.
210
Antes de regressar para Santana e reaglutinar-se junto aos companheiros do
PCB, Antonio Apoitia vivenciou momentos incertos da prisão, em Porto Alegre,
quando foi sumariamente expulso do Sindicato dos Bancários do RS, do qual fazia
parte da diretoria, oito meses depois da eclosão do golpe,
Em novembro de 64 eu estava me preparando para fazer uns exames finais na faculdade de
Direito e numa manhã chegou a Dops, com cinco policiais. Tocaram a campainha, abri o
apartamento e eles simplesmente entraram dizendo, olha nós somos policiais. Entraram e
revistaram o meu apartamento lá, pegaram os meus livros. Livros comuns, assim comprados
em livraria, nada clandestino. Eles pegaram um caixão grande que tinha lá, de papelão, e
levaram minha biblioteca praticamente toda. Levaram mais de cinquenta livros...e levaram a
mim também. Sem mandado, sem ordem, sem nada! [...] E simplesmente botaram aquele
210
APOITIA NETO, Antônio. Entrevista citada
128
caixão em uma kombi e me largaram lá na Penitenciária Estadual. [...] aí me fizeram vestir uma
farda de presidiário e eu fui lá para o Pavilhão C, numa cela. [...] Depois de um mês chegou um
guarda e disse: Olha, tu aí, te veste me acompanha. [...] subi numa camionete e me levaram
para a sede da Policia Civil, ali na Mauá, 5º andar. Na sala de interrogatório da Dops, ali era
um horror né? O 5º andar da Dops era famoso, inclusive tinha, parece que mais de uma pessoa
se jogado do 5º andar, ou jogaram ele, nunca se soube, porque morreram, naquela ocasião
morreram duas pessoas. Eu me lembro que quando eu fui para o 5º andar eu fui tremendo, eu
não sabia se iam me largar lá de cima não é? ou se iam me torturar ou o que iam fazer. E lá eu
fiquei até as duas da madrugada numa sala ali. E fizeram um interrogatório meramente formal,
um relatório que não tinha nada com nada né? E daí, lá pelas três da manhã eles disseram: Bom
pode ir embora. Eu sai lá pelas três da manhã á pé, pra casa, pro meu apartamento, barbudo,
sem tomar banho, eu sei que passei 20 dias sem tomar banho, no mês de dezembro, com um
calor insuportável, era um horror, sem água para lavar o rosto, água era só para beber. Não foi
uma prisão assim só para mim, era para todos os que estavam naquele pavilhão C. Lá as
tubulações não funcionavam, havia torneira, mas não saía água e o sanitário não tinha água.
Nós fazia as necessidade, em uma peça lá no fundo, de pé, ali num canto e ali os excrementos
foram se acumulando, era uma horror aquilo, já no fim não dá para entrar na peça, porque,
imagina mais de cinquenta pessoas fazendo as suas necessidades ali pelos cantos.
211
Na volta para a fronteira, em 1965, já diplomado como advogado, Antônio
Apoitia perfilou-se aos "rebeldes" do PCB, que votavam pela sabotagem, pela
resistência a ditadura, pela luta armada. Contrário às fugas para o Uruguai, o militante
defendia a insurreição popular e a derrubada da ditadura pelas armas. A descoberta de
um plano para detê-lo, no entanto, aproximou determinantemente o idealista da luta
armada a uma posição mais reflexiva. Pesou então a decisão por uma clandestinidade
política e uma atuação por trás das cortinas, que seria fundamental nos próximos anos
para o auxílio aos exilados, inclusive na ligação entre grupos políticos estabelecidos
em Porto Alegre e Montevidéu. As amizades locais, e a proximidade de seu pai com
um importante comandante militar, no ambiente particular de uma cidade interiorana,
auxiliou Apoitia a evitar a prisão. Mais uma vez se estabeleceria a rede de favores
locais entre setores do exército e militantes, onde a hierarquia e os determinismos
ideológicos submetiam-se aos laços de amizade locais. Essas ações, que serão melhor
entendidas no terceiro capítulo, iriam se repetir ao longo dos anos de chumbo,
quando segmentos policiais cooperavam e até facilitavam a passagem de militantes
para o outro lado da fronteira:
Eu tive informações, e não posso revelar nomes porque é alguém muito ligado ao exército, um
sujeito que eu até tinha como reacionário, mas que demonstrou ser meu amigo. Ele me
chamou, era uma pessoa ostensivamente ligada ao Governo, da repressão, da reação, uma
figura importante da cidade, que se dava com meu pai e gostava de mim. Ele me chamou e
disse: olha, eu vou abrir o jogo, eu estou informado dos fatos que estão acontecendo aí
211
Idem.
129
politicamente, inclusive tu estás na iminência de ser preso pelo Exército e em qualquer
momento eu tô esperando a ordem para te prender, então eu vou te dar um conselho, tu vai para
um lugar seguro, vai para Rivera e fica por lá que qualquer coisa eu te aviso. [...] E vou te dizer
mais, não tenho nada a ver com teu problema ideológico [...] eu sei que tu é idealista tu não tá
aí para matar ninguém, tu tá lutando pelo teu idealismo, mas tu tá na mira de ser preso, então
não entra em Santana, fica lá.
212
As idas e vindas de Rivera faziam parte de uma rotina política estabelecida na
fronteira desde os tempos da demarcação dos territórios e a consolidação das cidades.
Nos primeiros momentos do golpe e depois, a fuga para o lado uruguaio da linha
divisória seria um passaporte para a liberdade, muitas vezes enganoso, é certo, sujeito
aos rompantes da repressão, que não raras vezes penetrou no território uruguaio,
seqüestrando, vigiando e ameaçando. Nos cerca de 30 dias em que esteve auto-
exilado em Rivera, Apoitia voltava periódicamente a Santana, para participar de
reuniões e rever contatos. Para sair da relativa segurança que oferecia Rivera e
transitar no perigoso território santanense, se valia dos conhecimentos que tinha da
região.
[...] a vida clandestina ensina muitas coisas, a gente vai aprendendo assim a se cuidar né,
botava uma roupa, botava um chapéu, aquela coisa, saía para um arrabalde, lá quem sabe
aonde, pegava carona por exemplo com um amigo, dava umas voltas para despistar né,
soltavam a gente aí, num bairro por exemplo qualquer, depois ficava por lá e depois voltava a
pé, saía por um bairro desses qualquer e ia de madrugada. Porque é muito difícil controlar a
fronteira, é impossível, né. Eles controlavam a alfândega, determinada rua, mas não há como
controlar as pessoas.
213
No intrincado jogo de poder daquelas cidades, houve conflitos que se
disseminaram ignorando a demarcação de territórios, outros em que a invasão de um
território pelo país vizinho seria a legítima causa do embate. Mas quando acontece o
golpe de estado no Brasil, o Uruguai vivia o final de uma época de ouro, que
começou a entrar em declive no final dos anos 50. Desse período o país herdara um
sólido nível educacional e uma tradição democrática, sendo governado por um
Conselho Nacional de Governo, que alternou um poder executivo colegiado, entre
1952 e 1967. Portanto, não foi surpreendente que a solidariedade dos uruguaios aos
brasileiros perseguidos fosse um dos pontos positivos daquela nova relação que se
212
Ibidem.
213
Idem.
130
iniciava, e que um futuro próximo iria deixar cada vez mais similar à realidade
política e social de ambos países. Conforme enfatiza José Wilson da Silva, que iria
viver situação semelhante quando exilado posteriormente em Durazno, “é
impressionante a solidariedade dos uruguaios, chefes e operários em geral, e famílias,
com os brasileiros, mas com os gaúchos em especial. É pouca a designação de
‘hermanos’”.
214
Embora em 1964 o Uruguai vivesse dias de agitação sindical, com o
início do movimento Tupamaro, ligado aos cortadores de cana, do norte do país, a
intraquilidade social que só iria aumentar a partir dali, reforçava a simpatia pelas
causas populares e a rejeição à ditadura brasileira. Antonio Apoitia Neto lembra dos
vínculos afetivos demonstrados pela população de Rivera, no mês que lá passou, até
que as denúncias “esfriassem” do lado brasileiro.
[...] tinha um amigo lá, ele era brasileiro e tinha uma casa bem grande, ele morava sozinho, era
da família dele, que foi para campanha e deixou a casa para ele lá. A gente sempre se
acomodava, existia muita solidariedade ainda. (...) tinha muita gente perseguida e havia muita
solidariedade dos uruguaios, por exemplo, uruguaios que convidavam para almoçar em
determinada casa, outros ofereciam os quartos para dormir uns dias lá, aquela coisa toda, havia
muita solidariedade, até dinheiro para a passagem e tal, essas coisas todas.
215
A capacidade dos comunistas em receber os que chegavam clandestinos à
fronteira e promover reuniões naqueles primeiros meses de 1965, fez do grupo uma
organização confiável no pantanoso terreno dos partidos políticos, que seriam
extintos em outubro, pelo segundo Ato Institucional. Apoitia relembra que isso fez
com que novos atores políticos fossem se aproximando do partido, como uma
viabilidade local de resistência: “eles foram se aglutinando, muitos patriotas, vamos
dizer, lutadores e tal, foram se aproximando do Partido Comunista, porque era uma
organização confiável, eles não exigiam filiação nem nada, as reuniões deles eram
muito rigorosas, eles tinham uma técnica, vamos dizer assim, de reunião”. O jovem
advogado fazia parte do grupo comunista que fôra influenciado pela revolução
cubana de 1959, e vivia a crise dos que defendiam a transição pacífica ao socialismo,
214
SILVA, José Wilson da. O Tenente Vermelho. Op. Cit., p. 173,174.
215
APOITIA NETO, Antônio. Entrevista citada.
131
defendida pelo partido desde 1956, que de uma maneira ou outra significou uma
desmobilização em 1964.
216
Antônio Apoitia Neto, ou “Antônio Almafuerte” nas missões epeciais.
Da residência de sua família, localizada em um ponto estratégico da cidade, a
poucas quadras do Uruguai e próxima da rua principal de Santana, por onde
chegavam os carros vindos de Porto Alegre, Antônio Apoitia exerceu um posto de
fundamental importância na recepção de pessoas e posteriormente no serviço
chamado de “pombo-correio”, levando informações para o Uruguai ou o Brasil,
conforme a regra do jogo. Por sua casa, ou através de seus contatos, passaram
inúmeros companheiros da luta política. Os nomes geralmente eram ignorados,
usavam-se codinomes e as conversas muitas vezes não passavam de acertos e
contatos pré-estabelecidos. “Passei muita gente aqui que eu não sei quem era, pois
216
Os comunistas defendiam durante o Governo Goulart o repúdio ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e
da Aliança para o Progresso; a limitação da remessa de lucros e a expansão da Petrobras; a nacionalização das
companhias estrangeiras concessionárias de serviços públicos; a reforma agrária radical, assegurando a
distribuição da terra aos camponeses e indenizando os latifundiários com bônus; o combate à inflação, o
controle do comércio externo e o intercâmbio comercial; o repúdio à Lei de Segurança Nacional; a reforma
eleitoral, com extensão do direito de voto a todos os adultos incluindo analfabetos e militares; a política
externa independente, a coexistência pacífica, o desarmamento e a luta pela paz, e o combate aos grupos
terroristas e aos golpes militares. In: CPDOC/FGV (http://www.cpdoc.fgv.br/dhbb/verbetes_htm/6069_4.asp
),
acessado em 15/01/2006.
132
tínhamos aquela disciplina da clandestinidade”. Os que se estabeleciam em Rivera
geralmente eram homens ligados à geração de 64, dispostos a refazer suas vidas com
a família, na sensação de burlar o exílio, pois mesmo longe de suas cidades-natal,
tinham a impressão de viver no Brasil, tão próxima estavam, econômica e
culturalmente, Santana do Livramento e Rivera. Muitos filhos destes exilados
efetivamente estudavam em colégios de Santana do Livramento, vivendo uma
condição política sui generis. Apoitia faria amizade com a maioria desses novos
moradores das redondezas de Rivera, como o capitão do exército Acir Xavier Chaves.
Apoitia relembra que em pleno 1º de abril de 1964, o capitão, natural da fronteira,
estava realizando um curso de aperfeiçoamento para oficiais no Rio de Janeiro.
Quando eclode o movimento militar, as convicções políticas do capitão o colocariam
em confronto com a nova ordem. Foi preso imediatamente e depois transferido para
Santa Maria. Apoitia relembra do amigo:
Quando houve o golpe, ele tava na escola com os outros capitães, aí o general lá, disse: "Olha
houve um movimento aí, e essa coisa toda, e os que são a favor da legalidade dêem um passo
em frente", e ele pá! deu um passo para frente, ele e mais três ou quatro. Os que estão contra o
movimento militar, parece que o cara disse que ia haver uma quebra da Constituição, e quem
estivesse contra dava o passo a frente. O general disse: “bem, os que deram o passo à frente,
passem para o meu gabinete para uma conversa". E de lá ele já saiu preso, já levaram ele para
uma prisão lá, e lá ele ficou um mês detido até mandarem ele preso para Santa Maria.
217
Ele recorda que pouco tempo depois Acir Chaves fugiria do quartel em Santa
Maria de maneira espetacular, aproveitando-se de um descuido da guarda durante
uma consulta médica. Na fuga, vestiu-se com chapéu de palha e bombacha, como um
legítimo gaúcho empobrecido, e embarcou na segunda classe do trem que seguia para
Santana do Livramento. Ao desembarcar seguiu para a casa de parentes em Rivera.
Na cidade uruguaia, depois de um ano em más condições de vida, comprou uma
pequena chácara, onde tentou sobreviver arando a terra e plantando. O trabalho, no
entanto, foi em vão. Com nenhuma experiência agrícola, viu sua vida passar por uma
reviravolta que levaria à dissolução da família. Pouco tempo depois que se
estabelecera em Rivera, fugindo de uma condenação a três anos de detenção no
Brasil, o militar reencontrou a esposa e três filhos menores. A convivência não iria
durar muito tempo, pois as dificuldades impostas pela mudança de cidade e a queda
217
APOITIA NETO, Antônio. Entrevista citada
133
na qualidade de vida da família no ambiente de exílio fariam a esposa abandoná-lo
definitivamente, voltando com os filhos para Santa Maria.
Um dia a esposa fugiu com os três filhos, botou num caminhão a mudança, ele tinha uma
chacrinha, que ele comprou uma chácara e trabalhava nela, mas trabalhava de chacreiro,
produzia, plantava lá a subsistência deles né, (...) ele tinha algum recurso, mas vivia mal. Ora,
para o padrão de um oficial do exército de repente viver do produto de uma chácara, ele e um
peão lá, cavocando com arado e aquela coisa toda, mal de vida e a mulher não agüentou e foi-
se. Eu conheci a mulher dele, era uma loira muito bonita e tudo, mas não foi companheira, foi
desumana, pois pegou o carro e os móveis e colocou tudo num caminhão de mudança para
Santa Maria. Eu me lembro bem, não deixou nenhuma cadeira para o coitado sentar, eu fui lá
com ele. Daí, ele teve que conseguir dois caixões num boliche, para fazer mesa e banco.
Depois, claro a gente se reuniu aí, e cada um arrecadou alguma coisa para ele , enquanto não
vinha o dinheiro de lá, porque eu fui o procurador dele para receber o dinheiro dele, que vinha
pelo banco, eu fui até Porto Alegre, para gestionar isso, que o dinheiro que não vinha, fui no
quartel aí, para conseguir liberar o dinheiro dele, para vir por um banco aqui de Santana.
218
Foi através de Acir Chaves que Antônio Apoitia conheceria o jovem advogado
Tarso Fernando Herz Genro, auto-exilado em Rivera, depois de renunciar ao mandato
de vereador pelo MDB, em 1969, na cidade de Santa Maria. Acir Chaves era
compadre do pai de Tarso, Adelmo Genro. Em Rivera, colegas de profissão e ideais,
Apoitia e Tarso dariam início a uma sólida amizade. Na cidade, Tarso freqüentava as
casas de exilados e simpatizantes, como Orlando Burmann, Aquiles Santana e o
uruguaio Adan René Fajardo. Perseverando Santana recorda do advogado em suas
conversas políticas, onde as posições adotadas divergiam. Enquanto Tarso era
próximo da linha maoísta do PC do B, Perseverando defendia a cautela do PCB no
enfrentamento da ditadura instalada.
219
Antônio Apoitia permanecia atrelado aos ideiais do PCB, porém mais próximo
dos que propunham a luta armada. Uma de suas funções era a de conseguir um salvo
conduto para quem deveria sair clandestinamente do país. O papel necessário para
liberar o viajante a atravessar a fronteira sem mais perguntas era fornecido pela
polícia de Rivera, com quem Apoitia mantinha relações de amizade, conforme ele
reforça:
Tinha um formulário [...] Ali a gente preenchia o nome do sujeito, e no ônibus o cara
apresentava aquilo e o policial olhava e era um passe livre, uma espécie de autorização oficial
para ele entrar pro Uruguai. Claro, aquilo a gente usava moderadamente [...] era oficial, um
documento da polícia uruguaia. Um salvo conduto, carimbado, com assinatura e tudo, do chefe
de polícia, não lembro o nome que tinha. E a gente conseguia porque buscava uma amizade,
aquela coisa toda, e eu tava por dentro disso.
220
218
Idem.
219
SANTANA, Perseverando. Entrevista citada.
220
APOITIA NETO, Antônio. Entrevista citada.
134
No período de aproximadamente um ano em que Brizola esteve à frente de uma
proposta efetiva de reação armada, Antônio Apoitia reuniu-se com o líder trabalhista
em um apartamento à beira da linha divisória, em Rivera, e também no apartamento
de Montevidéu, próximo a Praça Independência. Na fronteira, logo após o golpe,
auxiliou no esquema de passagem para a capital uruguaia de políticos ligados ao
primeiro escalão do governo Jango. Em determinada missão, foi avisado que um
importante ministro do governo teria de passar para Rivera. Sua incumbência era
detectar a quantos quilômetros da cidade estava a barreira do exército, encarregada de
revistar todos os veículos que chegavam a fronteira. Como a fisionomia do político
era muito conhecida pelos militares, não adiantava o recurso de documentos falsos.
Era quando Antônio Apoitia entrava no esquema. Disfarçado de um intrépido
apaixonado, saía com uma companheira de causa no seu fusca azul, fingindo um
passeio romântico até Rosário, cidade a não mais de 100 quilômetros da fronteira. A
quilometragem exata era então marcada e passada aos que traziam o ministro de Porto
Alegre. A estratégia seguinte seria conduzir o passageiro clandestino por uma estrada
de terra, às vezes no campo de algum fazendeiro simpatizante, e seguir o trajeto por
estradas vicinais até superar o local da barreira. Passados alguns quilômetros, cortava-
se a cerca de arames e retomava-se a estrada.
As deliberações sobre quem seria ajudado a cruzar a fronteira e os locais
indicados eram determinadas nas reuniões, geralmente realizadas em grupos de cinco
pessoas, não mais. Muito embora as reuniões entre militantes do PCB garantissem
uma coesão e uma autoproteção maior, muitas vezes os participantes dessas reuniões
pertenciam a uma esquerda multifacetada, que podia reunir militantes comunistas de
Santana, pessoas ligadas aos grupos de Brizola ou Jango e até representantes de
outros movimentos armados. O grande risco sempre era o da infiltração, tanto nas
reuniões quanto nos possíveis refugiados. Por isso a passagem de amigos ficava em
um plano pessoal, cada qual se responsabilizava por seus contatos particulares.
Antonio Apoitia lembra que também havia muito malandro se dizendo exilado,
perseguido, e que na verdade só queria obter vantagens pessoais, como dinheiro,
ajuda para viagem, entre outras reivindicações.
135
Em meados de 1967, quando a constituição da Frente Ampla, uma
controvertida união entre lideranças alijadas pelo golpe, que reuniria o ex-governador
golpista Carlos Lacerda junto a Juscelino Kubitscheck e João Goulart, estava na
ordem do dia, Antônio Apoitia reuniu-se com o grupo janguista em uma de suas
viagens a Montevidéu. Foi apresentado a João Goulart no bar O Cangaceiro, onde os
exilados e simpatizantes reuniam-se, na Rambla do requintado bairro de Pocitos. O
presidente pediu-lhe um relato da receptividade que a idéia da Frente Ampla estava
tendo na fronteira, e, conseqüentemente, no Brasil.
Lembro nitidamente daquele momento. Eu cheguei no Cangaceiro, era o bar do Amaury, e eu
tinha certa intimidade com o Amaury, foi uma das figuras que mais me encantou. E chegou o
Jango e sentou em um canto ali. Então o Amaury me disse, vamos lá que vou te apresentar ao
Jango, e chegou e disse olha esse é um homemda fronteira, assim, assim...E eu sentei para
conversar com ele, e fiquei conversando respeitosamente, ele estava tomando um uísque. E ele
estava sozinho, falou com uma pessoa lá.(...) e tinha um grupo de políticos do Brasil, em outra
mesa. E eu trazia alguns dados políticos, e fiz uma análise para ele. Ele me perguntou uma
análise sobre a situação, e casualmente tínhamos feito uma análise disso no PC, na fronteira, e
dei para ele minha opinião, de que isso teria de ser levado adiante. E ele me disse, mas é isso
mesmo, essa é a posição correta. E ele se dirigiu para aqueles políticos que estavam ali, gente
de expressão. E disse, olha vocês aí o que está me dizendo o fulano que veio lá da fronteira.
Repete para eles. E eu falei brevemente. E ele disse, viram, essa é a opinião correta. E eu nunca
vou esquecer, os caras tiveram uma reação de repulsa [...]
221
Mais tarde, no início de 1970, Antônio Apoitia fazia parte de um grupo de
políticos santanenses que se deslocou até Taquarembó para visitar o ex-presidente
João Goulart na estância El Rincón. Ia junto com o grupo musical Os Vaqueanos, que
reunia alguns dos melhores músicos já formados na fronteira. Depois de uma viagem
por estradas ruins e enlameadas, o grupo chegou no início da noite na estância.
“Sempre me pareceu um homem de esquerda, mas liberal, um democrata”, foi a
lembrança que ficou em Apoitia do ex-presidente, quando saíram para caminhar à
noite, pelos arredores da casa onde estavam os convidados, para discutir o momento
político no Brasil. O grupo dividia-se entre os que tinham interesse estritamente
político e os que buscavam em Jango um possível auxílio financeiro ou patrocínios
para programas de rádio alinhados com a causa da redemocratização.
Na luta política, projetos pessoais muitas vezes tinham de ser relegados a um
segundo plano, frente à urgência das atividades revolucionárias. Antônio Apoitia
relembra de uma tarde de julho de 1970, quando passeava pelo centro da cidade e
221
Idem.
136
encontrou uma bela dama, na Farmácia Guimarães. A moça era hóspede de uma
família abastada, e estava na fronteira para participar de um baile comemorativo ao
aniversário da cidade, que se realizaria naquela noite no Clube Caixeiral. A atração
entre os dois foi recíproca e Apoitia pensou estar vivendo um verdadeiro "amor à
primeira vista". Num impulso, foi falar com a moça e após uma breve troca de
palavras combinaram de se encontrar mais tarde, no baile. Conforme relata, voltou
para casa "flanando", pensando nos detalhes da roupa que iria usar e na hora do
encontro. Mas ao chegar em sua residência encontrou um emissário de Aquiles
Santana, que pedia sua presença com urgência na casa da rua Agraciada, em Rivera.
Chegando lá, recebeu a incumbência inadiável de viajar aquela mesma noite para
Porto Alegre, levando um envelope proveniente de Montevidéu, e que deveria ser
entregue para um contato na rodoviária da capital gaúcha. Contrariado, depois de
tentar sem sucesso todos os argumentos para adiar a viagem, embrulhou o envelope
em uns jornais velhos, como costumava fazer para driblar o eventual interesse da
polícia, colocou na parte superior oposta ao seu banco no ônibus, e seguiu viagem.
Entregue a encomenda, tratou de voltar o mais rápido possível para a fronteira. Ao
chegar, empreendeu uma verdadeira busca pela moça nos mesmos locais do centro
onde a havia encontrado no dia anterior. Sem sucesso. Nunca mais veria a mulher que
tinha tocado tão profundamente seu coração. Nem ao menos seu nome sabia.
Único vereador santanense cassado pelo AI 5, Antônio Apoitia seria alijado da
vida política por mais de uma década e veria seu projeto de vida seriamente abalado.
Estigmatizado por suas ligações com o PCB, orador atento e desafeto declarado da
ditadura instalada, o advogado avaliava em seus discursos que a via democrática, da
representatividade partidária, não levaria mais a caminho algum naqueles dias. Em
março de 1969, às vésperas de ser cassado, durante a posse do interventor militar na
Prefeitura Municipal, o general da reserva Antônio Moreira Borges, Apoitia faria um
de seus últimos discursos na Câmara Municipal de Vereadores, reforçando sua
posição nascida do seio comunista, contrária ao poder político instalado no país e a
influência norte-americana nas questões políticas e econômicas da América Latina e
no Brasil, em particular.
[...] Quero ter a coragem Sr. presidente e Srs. vereadores, de proclamar que nesta Pátria muita
coisa mudou a partir do Ato Institucional n° 5, mas devo proclamar ao meu povo, devo
137
proclamá-lo alto e bom som, que eu não mudei, devo proclamar àqueles que votaram em mim,
os que me honraram com seu voto, que eu continuo o mesmo, que eu continuo pensando como
pensava (...) e eu continuo, sr. presidente, mais nacionalista do que antes, porque quero ver a
pátria brasileira livre da espoliação dos grupos internacionais, dos grupos econômicos norte-
americanos que espoliam não só a nossa Pátria mas toda a América Latina.
222
2.10. O “Hotel” de Nery Medeiros
O casarão da Avenida Brasil 1210 esquina com calle Joaquin Soares ficaria
assinalado na memória de muitos exilados e militantes em busca de abrigo, em
passagem pela fronteira. Situado a duas quadras da Avenida Sarandi, principal via de
Rivera, o velho hotel foi arrendado pelo ex-presidente do PTB de Quarai, Nery
Medeiros, que ali montou um verdadeiro quartel general da solidariedade e abrigo aos
perseguidos políticos que chegavam de todas as partes do país em Rivera. Fazendeiro,
eleito vereador pelo PTB de Quarai, Nery Medeiros não só foi impedido de assumir a
cadeira na Câmara de Vereadores como foi severamente perseguido pelos opositores
políticos da cidade, então com menos de 20 mil habitantes, que faz fronteira com
Santana do Livramento e o município uruguaio de Artigas, ao sul. Em Quaraí, berço
de literatos como Lilla Ripoll e Cyro Martins, ambos com intensas relações com o
Partido Comunista Barasileiro, Nery Medeiros construiu uma carreira política ligada
aos ideais petebistas, onde alcançou grande popularidade. Com o golpe, entrou para a
primeira lista da repressão militar e foi preso no primeiro momento. De família
constituida de grandes proprietários rurais da região de Alegrete e Santa Maria, Nery
era proprietário de uma boa extensão de terras no município, mas ao contrário de seus
pares, nutria uma grande revolta contra as injustiças sociais, que o levou à atuação
político-partidária e o alinhamento com as reformas propostas pelo então governo
Goulart.
Nos primeiros dias do golpe foi preso no quartel da cidade, acusado de
comunista e militante do Grupo de 11, liderado por Leonel Brizola. Preso por duas
semanas, Nery Medeiros conseguiu uma liberdade provisória com o pretexto de
vender algumas cabeças de gado e saldar uma dívida que havia contraído junto ao
222
Ata nº 1752 realizada em 18 de abril de 1969, na Câmara Municipal de Vereadores de Santana do
Livramento. Arquivo pessoal Antônio Apoitia Neto.
138
Banco do Brasil. Foi o espaço que encontrou para empreender uma fuga pelo matagal
que circundava a cidade, onde ficou escondido por alguns dias, devido a forte
presença de tropas na fronteira. Abatido pela empreitada, ainda teve fôlego para
atravessar o Rio Quarai, penetrando em território uruguaio, onde foi resgatado por
parentes e levado para Santana do Livramento. Pouco tempo depois sua esposa, Zely
Fontoura de Medeiros, viria juntar-se a ele, com as quatro filhas do casal, com idades
entre cinco e dezesseis anos.
Como grande parte dos exilados que se fixaram em Rivera, Nery e Zely tinham
familiares em Santana do Livramento, o que veio a revelar-se uma valiosa ajuda no
momento que foi necessário. Antes do final de abril de 1964, Zely e as filhas já
estavam vivendo na casa da avó materna, que residia em Santana. Porém o abrigo da
avó materna durou pouco tempo, pois as condições financeiras de Nery logo
permitiram que ele alugasse uma velha pensão em Rivera e transferisse para lá toda
sua família.
Adalgisa de Neri Medeiros Mottin, então com 14 anos, relembra figuras que
marcaram sua adolescência no casarão da Avenida Brasil. Por lá passaram a família
de Percy Penalvo, ativista político ligado aos pequenos agricultores de Itaqui que
viria a ser o administrador da fazenda de João Goulart em Taquarembó; o afamado
líder comunista de Uruguaiana, Ulisses Villar
223
, o médico e ex-vereador petebista de
São Borja, Alberto Benevenuto, que se tornaria o porto seguro das crianças e
mulheres exiladas por força do arbítrio contra suas famílias e o emblemático Chico
Cabeda e sua esposa, Vilda. Sobrinho de Rafael Cabeda, líder dos federalistas na
223
Sobre Villar, o engenheiro uruguaianense Elo Ortiz Duclós Filho, descreve: “Fui na estação com o Pai e a
Mãe, recepcionar o Ulisses Villar, devia ser 1948 ou 49 quando chegou de Porto Alegre, quando soltaram os
presos comunistas. Era uma temeridade ter ido. Ele era o líder do Partido Comunista em Uruguaiana, Estava
jurado de morte. Foi major dos provisórios que avançaram em 1930 e 1932. Mas nosso Pai e Mãe eram
amigos, e estavam lá e me levou. Uma grande emoção tomou conta da estação quando a brigada correu para
dar guarda ao Ulisses, pensavam que iriam matar ali.
Eles foram amigos de pescaria muitos e muitos anos. Esse cara merecia uma biografia. Gaúcho, de gaúcho
mesmo. Comunista, teórico. Um gozador, um sério, um amigaço de pescaria, um dos poucos que dava
atenção ao pirralho que ousava ir junto. muito me ensinou de atirar as linhadas, e não enroscar.
Estávamos no Arroio Garupá, perto do Cerro do Jarau, a noite, e o pai levava o Zenith a pilha ou bateria, não
sei. E vi o sorriso disfarçado, o brilho no olhar iluminado pela fogueira pouca, depois da janta, os dois
gozaram, foi um orgasmo mal disfarçado: Ouvimos que a Rússia tinha lançado o Sputnik. Gol pra eles. Foi
uma comemoração silenciosa e cúmplice. Estavam vingados”. In: www.outubro.blogspot.com
, acessado em
22/04/2005.
139
fronteira oeste, veterano das revoluções de 1893 e 1923, Francisco Cabeda Júnior, o
Chico Cabeda, viria a engrossar as fileiras do recém criado Partido Comunista
Brasileiro, em um fenômeno ainda pouco estudado pela historiografia nacional, a
conversão dos maragatos, veteranos da revolução federalista, em comunistas, nos
emergentes movimentos operários das primeiras décadas do século XX. Sua filha
adotiva, Sônia Cabeda, lembra do pai como uma figura de extrema doação aos mais
humildes, que viveu exclusivamente para a militância. Farmacêutico, costumava
oferecer remédios gratuitamente para os necessitados, além de dinheiro e comida,
sempre que podia. O resultado dessa conduta extremamente solidária foi a falência
em seus negócios, ocasião em que foi auxiliado por Nery Medeiros, com certro
auxilio financeiro e moradia. Chico Cabeda morreria em 1969, aos 72 anos, em
Rivera
A figura do médico Alberto Benevenuto também vai se destacar como ativista
dos direitos humanos entre o grupo de exilados em Rivera. Um pouco mais jovem do
que seus companheiros, ainda não completara 40 anos quando chegou a Rivera com a
esposa e dois filhos. Ali se estabeleceu na casa de Nery Medeiros uma relação de
confiança e assistência médica ininterrupta às famílias. Dessa maneira, em julho de
1965 o doutor Benevenuto realizou na casa dos Medeiros o parto de Luis Alberto,
filho de Nery e Zely. O menino recebeu o nome em homenagem ao médico. No
mesmo ano, em setembro, doutor Benevenuto realizou o parto de Neuza Penalvo,
quando a família Penalvo vivia na casa dos Cabeda, em frente a Praça Flores, na calle
Carlos Reyles. Adalgisa Machado lembra dos conselhos que o médico dava a seu pai
em favor de uma educação mais compreensiva com os filhos adolescentes.
O núcleo de exilados da avenida Brasil completava-se na casa vizinha ao velho
hotel alugado por Nery Medeiros, onde funcionava uma oficina mecânica montada
por Milton Pereira. Funcionário do alto escalão da Petrobrás chegou à fronteira
depois de perseguido e torturado nos primeiros momentos do golpe. Assim como a
maioria dos exilados que escolheram Rivera para se estabelecer, Milton tinha razões
familiares. Sua esposa, Sueli Cruxem, era de família fronteiriça, com ramificações em
ambos os lados da linha divisória. Ali, valendo-se do auxílio mútuo entre o grupo
140
exilado, Milton e um irmão, também perseguido, mantiveram uma frente de trabalho,
para sobrevivência, dentro das possibilidades que a cidade oferecia.
O policial Oscar Fontoura Chaves e “Seu Valdemar”, ferroviário de Santa
Maria, também passariam pela casa dos Machados. A palavra de ordem era a
solidariedade, e para Nery era mesmo impossível negar ajuda a um companheiro
necessitado. Nesse ambiente, formavam-se os grupos de homens, de um lado,
absorvidos pelas discussões políticas, e suas famílias, que interagiam na criação em
comum das crianças e as lidas de um novo cotidiano na fronteira. Nesse ambiente, a
posição econômica relativamente estável de Nery Machado funcionava como um
ponto de equilíbrio para o grupo. Conforme relembra Adalgisa,
Lá em casa tinham brigas homéricas de comunistas da China e comunistas da Rússia. Eles
batiam boca e brigavam, e o pai ficava só apartando as brigas deles. O próprio major Ulisses
evitava essas discussões e sempre dizia que quando era preso e indagado por sua linha política,
costumava dizer que era da linha de pescar. (...) O pai tinha facilidade, pois era fazendeiro, e o
campo dele era daqui, e os meus tios eram todos fazendeiros. E quem cuidava para ele era o pai
da mãe. Mas se tinham que vender um gado iam lá, vendiam, e traziam o dinheiro para o pai.
Muitas vezes os cunhados compravam gado do pai e nos pagavam. Então, fome nós não
passamos. Mas teve gente que passou fome.
224
A democracia ainda resistia no Uruguai de meados dos anos 60, o que tornou a
vida do grupo exilado em Rivera um tanto mais aprazível nos primeiros anos. Um
fato inusitado e que demonstra a boa relação do grupo com o poder público uruguaio
aconteceu logo depois que Nery Medeiros se instalou em Rivera. Com uma frota
envelhecida e sem condições para importar automóveis brasileiros, a polícia de
Rivera se valia de duas camionetas que Nery disponibilizava gratuitamente para as
diligências diárias. Em troca, promovia uma aproximação necessária para garantir
simpatias ao grupo exilado e garantir com isso uma maior segurança naquele terreno
próximo demais dos algozes da ditadura brasileira. Adalgisa de Néri relembra que ela
e suas irmãs eram levadas diariamente até o Colégio Estadual, onde estudavam em
Santana do Livramento, por policiais uruguaios, que passavam por sua casa, sempre
dirigindo os automóveis de seu pai.
224
MOTTIN, Adalgisa de Néri Medeiros. Entrevista o autor.
141
A relação, no entanto, encontrava-se sujeita aos percalços comuns àquela troca
de favores. Não poucas vezes as meninas irritaram-se com os policiais uruguaios, que
insistiam em proferir galanteios para as professoras da escola.
Nery Medeiros, exílio e solidariedade em Rivera.
2.11– Família Penalvo: com Jango no exílio
Quando o golpe de estado surpreendeu o Rio Grande do Sul, o vereador
petebista Percy Quartieri Penalvo estava então envolvido em uma acirrada luta
política pela reforma agrária. Membro da executiva do partido em Itaqui, região onde
os Goulart mantinham um reduto político desde os tempos de Vargas, Percy era líder
de um movimento frontalmente combatido pelo Congresso Nacional e os
latifundiários da região. As terras devolutas, conforme sublinhava o Governo Goulart,
faziam parte de uma lista de reivindicações dos pequenos agricultores e os sem terra,
que incluía a revisão da real dimensão das propriedades rurais, muitas vezes
142
acrescidas de terras protegidas pelo patrimônio nacional e da União, agregadas
ilegalmente às propriedades privadas do campo. Pouco antes do golpe, João Goulart
assinou um decreto que vinha ao encontro dessas reivindicações, conforme relata o
então ministro da Reforma Agrária, João Pinheiro Neto:
O Decreto da SUPRA, como ficou conhecido, visava a uma solução bastante simples, e que
nada tinha de subversiva: tornar de interesse público, para efeito de desapropriação, dez
quilômetros de faixas de terra ao lado de estradas, açudes e outras obras públicas. O Decreto
redigido por mim por determinação de Jango foi medida que visava apenas a conter a
especulação em torno dessas terras, já que era impossível no momento desapropriação de vulto,
com pagamento à vista e em dinheiro. Veio a “revolução” de 64, o Decreto foi sumariamente
revogado.
225
O ano de 1964 teve início sob a bandeira da reforma agrária em Itaqui, onde
Percy Penalvo destacava-se como um líder nesse embate, envolvido com a
organização de uma cooperativa mista para aos pequenos agricultores de milho, arroz,
trigo, linho, que como ele, arrendavam pequenos lotes de terra. As discussões acerca
do uso indevido das terras pertencentes ao banhado de São Donato, que divide os
municípios de Itaqui e São Borja, além da construção de uma barragem destinada ao
uso comum dos pequenos proprietários rurais, subscrita pelo próprio presidente
Jango, faziam esquentar os ânimos pré-golpe. Além do apoio do presidente João
Goulart, o grupo de pequenos agricultores contava com apoios políticos importantes
no cenário estadual, e o incentivo da Comissão de Desenvolvimento da Fronteira
Oeste, do Ministério da Agricultura.
Os ânimos acirrados na luta contra o latifúndio fizeram de Percy um alvo
identificado, junto a seu irmão Alceu Penalvo, também liderança do partido, e o
prefeito petebista recém eleito, Gil Marques. A aproximação do grupo com João
Goulart elevou o grau de fúria das forças contrárias, que posteriormente
transformariam Itaqui em uma cidade onde imperou o arbítrio, com um verdadeiro
campo de concentração erguido para deter e eliminar os adversários políticos em
pleno terreno janguista. Celeste Penalvo, esposa de Percy, relembra da figura política
de Jango e o apoio que dava aos correligionários, mesmo antes de conhcê-lo na
intimidade, como viria a acontecer menos de um ano depois do golpe:
O doutor Jango era uma pessoa amiga de todo mundo, ele recebia todo mundo. E quando ele
vinha aqui na granja, vinha aquele monte de carro, eles se vinham para cá. Vinha gente do
partido, tratar das reivindicações que eles precisavam, e ele recebia todo mundo, era uma
225
NETO, João Pinheiro. Jango, um depoimento pessoal. Rio de Janeiro: Record. p.39.
143
pessoa acessível para todos. Ele era um gaúcho que nunca mais vai ter um presidente como ele.
Era preocupado com a educação, com a juventude, tudo do ser humano, sabe...os militares não
gostaram disso. Até aturaram ele enquanto pensavam que ele ia agir como um grande
latifundiário, pois ele era muito rico, não é. Aí ele mostrou que o que ele queria era o bem do
povo, desde o início, e os militares não aceitaram. [...] Aí veio o golpe, e mostraram as unhas
os direitistas, daquela velha UDN que existia lá, e foi horrível. O pior de tudo não é tanto os
militares, são os civis que vão no quartel denunciar as pessoas. Coisa mais triste, mulher e
homem, eles corriam para o quartel, diziam olha o fulano também era atuante, ou era do Grupo
dos 11, ou era isso ou era aquilo. Então são os civis, porque os militar já cuidavam, eles já
tinham uma visão de quem era mais ou menos. Então ficamos sabendo que um mês antes, onde
nós morávamos, lá em Itaqui, já tinha uma escolta que dormia, cuidava a nossa casa e nós não
sabíamos. E depois diziam, não os militares sempre vinham à noitinha para ali, cuidar o
movimento. Já estava pronto o golpe.
226
Com o golpe, Percy passou para a clandestinidade, em um primeiro momento
escondido em residências de amigos, acompanhado pelo prefeito Gil Marques. Logo
depois, sucederam-se rápidas e infrutíferas tentativas de negociação com o Exército.
Percy passou então a ser caçado “vivo ou morto”, conforme relata Celeste Penalvo.
Depois de um mês clandestino, Percy e Gil Marques tentam atravessar o rio Uruguai
e adentrar em território argentino, mas são repelidos pela guarda argentina. Depois de
um mês clandestino, Percy ruma em direção a fronteira. A esposa, grávida, ficaria
com os parentes mais próximos e só veria o marido com uma menina de 27 dias nos
braços, em pleno inverno, no mês de julho de 1964. Em Rivera, Percy recebeu o
apoio de Romeu Figueiredo de Mello e um pequeno grupo de amigos que transitavam
entre os novos exilados, entre eles Chiquinho Cabeda, que viria a repetir os gestos de
solidariedade da época em que acolheu os comunistas exilados na ditadura de Vargas.
Cabeda iria tornar-se um protetor e grande amigo da família. Aos 36 anos, Percy
Penalvo e sua esposa, com 22 anos e uma filha recém nascida, eram acolhidos por
Cabeda e sua rede de amigos. Pouco tempo depois conheceram Nery Medeiros, que
acolheu a todos no grande casarão que arrendara em Rivera. Dos tempos incertos
vividos nesses primeiros momentos, Celeste Penalvo recorda:
E aí o Perci conheceu o senhor Neri Medeiros. Era fazendeiro, presidente do PTB em Quaraí.
Não sei se tinha sido vereador, mas era uma pessoa muito boa, muito importante para todo o
grupo ali. Ele era dono de uma fazenda.... E nós morávamos assim, dessa casa onde nós
morávamos na outra casa da esquina morava a cunhada dele, que é mulher do Danilo Ucha. Aí
o seu Neri disse, não, ele é um gaúcho bom, bem disposto, ta aí com as filhas, então vou buscar
meus móveis lá de casa, e vou arrendar. Aí surgiu um hotel, ele arrendou tudo, comprou tudo
aquilo, com cama e tudo, um casarão na Avenida Brasil, 1210. Nunca vou me esquecer. A duas
quadras à esquerda dobrando da Sarandi, uma quadra antes do posto Shell. O posto tá na
esquina de lá e a casa na esquina de cá. [...] E aí nesse lugar, tudo que é exilado que chegava
226
PENALVO, Celeste. Entrevista concedida ao autor.
144
na fronteira. .Ali nós chegamos a morar cinco famílias, e o seu Neri sustentando tudo. O doutor
Alberto Benevenuto parou ali com a família. Nós, o Silvino, com a mulher e as crianças, aí a
vó Vilca ficou pobre, sem nada, e foi pra lá também, com o vô Cabeda. Eu sei que para comer
ia tanta gente lá.
227
Já próximo do final do ano de 1964, um emissário do PTB, advogado de João
Goulart e presidente do partido em São Borja, contactou Percy em Rivera.
Preocupado com a situação dos exilados, o “Dr. Aílton”, conforme recorda Celeste
Penalvo, propôs a Percy uma visita ao presidente, que acabara de comprar uma
fazenda no município de Taquarembó, a não mais de 120 quilômetros da fronteira. A
visita renderia frutos, e a família Penalvo começaria ali uma estreita relação com o
presidente deposto e sua família, só encerrada com a morte de Jango em 1976.
Celeste Penalvo lembra do momento em que Percy conversou com Aílton e logo
depois foi encontrar-se com o presidente recém deposto:
[...] aí ele disse, o que tá fazendo Percy? Nada por enquanto, o que é que eu vou fazer ?
Preocupado, porque a gente estava vivendo com a ajuda do pessoal de Itaqui, que juntava uns
trocados e mandavam para a gente. Aí disse, então vamos lá em Taquarembó, vamos visitar o
chefe. Tu não tá fazendo nada, vamos lá. Aí o Perci me disse, vou lá na casa do doutor Jango.
Ele parece que está comprando uma fazenda em Taquarembó, e eu vou lá com o doutor Aílton.
Me avisou assim e se foram. E passou, e o doutor Aílton veio de volta, depois de quatro ou
cinco dias. Passou e me trouxe um bilhete do Percy me dizendo vou ficar mais uns dias. Na
primeira viagem. E eu pensando porque não tinha voltado com o doutor Aílton. E o doutor
Aílton passou e me disse, eu acho que o Perci vai ficar lá. O chefe eu acho que vai precisar
dele. É doutor ? Acho que sim. Mas ele está bem. Aí passou uns 15 dias e seu Neri, lá, sempre
em casa, ele tinha fazenda, tinha como viver, podia ficar sem fazer nada, me diz: Dona Celeste,
vamos saber do Perci porque que ele não veio ainda. E eu a primeira vez que falei por telefone
com eles, por que nem todo mundo tinha telefone, e na esquina tinha um posto de gasolina,
então eu pedi ali e eles me deram. Então eu liguei para lá e atendeu, aí aquela voz que nunca
mais vou me esquecer. Então eu perguntei quem falava, - aqui é o João Goulart. E aquilo me
deu uma coisa assim, porque a gente se criou vendo as coisas né, mas nunca imaginava na
minha vida. Aí me identifiquei também. - Não, o Perci está saindo para aí hoje mesmo. Hoje à
noite a senhora terá ele aí. E aquela voz...tu não espera, porque as nossas lideranças antes, te
tocavam na alma, a fundo sabe, a gente gostava dele
.
228
Pouco depois a família se transferia para a propriedade de João Goulart em
Taquarembó, onde Percy iria administrar os negócios do ex-presidente, além de
exercer uma função próxima a de um assessor político, exercendo um verdadeiro
filtro entre Goulart e uma série de pessoas que dele queriam se aproximar, de exilados
em busca de auxílio até inúmeros contatos políticos, oriundos da resistência brasileira
e mesmo de lideranças políticas uruguaias, que naquele momento já começavam a
227
PENALVO, Celeste. Entrevista Citada.
228
Idem.
145
sentir os efeitos da crise que viria a desencadear o golpe de estado em 1973. Celeste
Penalvo lembra que nos primeiros meses do pós-golpe o ex-presidente confidenciava
a ela o desejo de reconstruir as bases do PTB na fronteira oeste, através do contato
com lideranças políticas remanescentes. Para isso, Jango pretendia enviar emissários
como a própria Celeste e alguns companheiros que permaneceram intocados pelo
desterro. Neuza Penalvo recorda dos hábitos simples do líder trabalhista no exílio:
[...] ele tinha casa em Montevidéu, que morava a dona Maria e os guris. Mas o dr. Jango ele
tinha dois ou três aviões, que naquela época era comum, né? Então, tanto de avião quanto de
carro ele ia de uma fazenda para outra. Não ficava muito em um só lugar também. Gostava da
atividade campeira, ele não era um fazendeiro desses que recorre o campo de S10, de D20, ele
ia a cavalo, era gaúcho. [...] Comia nos acampamentos, na tampa da panela, no galpão. [...] Não
que ele levasse uma vida infeliz, ele gostava. [...] Tinha um churrasco ali, ele comia. [...] Uma
vez em Buenos Aires, ele tinha um apartamento lá também que tavam montando, mas ele
ficava num hotel, direto. E aí nesse apartamento, o papai sempre contava, tinha um tonel
daqueles, de combustível sabe, e uma tábua. Não tinha móveis praticamente. E aí eles fizeram
um carreteiro. Doutor Jango fez um carreteiro ali, rapidinho assim. E a mesa foi a tábua em
cima do tonel e o doutor Jango comeu na tampa da panela...Em Buenos Aires ele poderia ter
ido para onde quisesse, né?
229
Assim como para os demais exilados, o tempo passado longe da pátria foi de
extremo desgaste e penúria psicológica para as famílias Penalvo e Goulart. Neuza e
Celeste viveram os momentos de angústia e incertezas junto a Jango na fazenda de
Taquarembó, quando foi se solidificando a certeza de que o exílio seria um longo
período de suas vidas a ser transposto.
O meu pai comentava que pela vontade do pessoal que ficou aqui, eles nunca iam voltar.
Porque os políticos que iam lá, não todos, não vamos generalizar, diziam: pá, tá brabo, tá ruim,
tão prendendo, tão matando....Ninguém se preocupava, era melhor ter eles no exílio, como
bandeira, do que eles aqui. (...) Mas isso o dr. Jango dizia, eles não querem que a gente volte.
Eles querem os nossos ossos para servir de bandeira. E o Brizola também concordava, dizia a
mesma coisa. Eles se deram conta que estavam abandonados.
230
Em uma rara entrevista, Maria Thereza Goulart lembrou dos anos agitados que
a família viveu no exílio. No início, a recepção calorosa do povo uruguaio, mas com
o passar dos anos, a sombra das ditaduras latinas fechava o cerco às lideranças da
esquerda do continente, como Goulart e sua família.
Jango dizia uma frase que a gente lembra sempre: ‘o exílio é uma invenção do demônio’. No
começo, a tranqüilidade democrática do Uruguai nos protegeu e nos sentimos em paz. Mas os
229
PENALVO, Neusa. Entrevista ao autor.
230
Idem.
146
golpes sucederam-se em outros países latino-americanos, inclusive no Uruguai. A perseguição
tornou-se então implacável.
231
Em Rivera, os ambientes em que os exilados circulavam mostravam-se não raro
perigosos e com agentes infiltrados em diferentes níveis. Percy e sua família vinham
algumas vezes à fronteira, normalmente em busca de peças para reposição de
maquinários agrícolas, comprados em Livramento, ou de víveres e roupas, geralmente
mais baratos do outro lado da linha, conforme o câmbio vigente. Além da casa de
Nery Medeiros, o estabelecimento comercial de Côco Fagundes, a confeitaria A
Metropolitana, servia de ponto de apoio para o grupo. Percy sabia que poderia se
converter em um alvo fácil e recorrente, devido a sua aproximação com Jango, por
isso valia-se do esquema de proteção existente em torno de Nery Medeiros. A
aproximação de Medeiros com setores da polícia uruguaia implicava em uma rede de
proteção que mantinha o grupo informado de um eventual elemento infiltrado. Neuza
Penalvo lembra de situações envolvendo os forasteiros que chegavam na fronteira, ou
mesmo na fazenda de Taquarembó em busca de trabalho, sempre sob o olhar
desconfiado de seu pai. A favor dos perseguidos funcionava uma rede de informações
que envolviam contatos da polícia brasileira e uruguaia, além de dados privilegiados
do Exército, obtidos muitas vezes através de uma rede de parentescos:
Isso foi lá no seu Neri, ele estava manuseando uma pistolinha assim, pequena, numa roda. E o
padre aquele começou a manusear, e a gente sabia da informação do exército para matar o
papai. De dentro do exército, não era de companheiros. Porque eles precisavam tirar o papai de
perto do dr. Jango, para ele ficar, e aí o padre começou a manusear, e o papai tinha uma 45 e
ele puxou e disse: padre, guarde essa pistola, porque essa dispara, mas essa aqui também pode
disparar. Aí o padre guardou [...] se era padre mesmo não se sabe, porque depois ele sumiu.
Tem várias histórias assim ,de gente que chegava lá, dizendo ser perseguido, do norte,
Pernambuco, sei lá de que estado. Aí, conversando com ele, meu pai dizia. Pois é, não é
sargento? E tinha um serviço de informações através da própria polícia uruguaia. Sempre tem
alguém que te ajuda, tem é que saber te comunicar e te relacionar, sem te corromper, não é?
então, tinha alguns que apareciam lá fora, pedindo emprego, ficavam lá, e a gente pedia
informação pro contato da polícia, em Taquarembó, aí eles confirmavam né? teve um que meu
pai entregou ele para a polícia do Uruguai, pra que eles mandassem de volta pro Brasil. Levem
o homem de vocês de volta.
232
A situação de calma aparente que permeou os primeiros momentos na fazenda
viria a se deteriorar com a radicalização da esquerda uruguaia, em especial do
231
GOULART, Maria Thereza. Memórias do Exílio. Revista Aventuras na História. São Paulo, Março de
2008. Editora Abril. p.35.
232
PENALVO, Neusa. Entrevista citada.
147
movimento Tupamaro, que iniciou uma verdadeira escalada de ações contra o
governo, atacando alvos militares, civis e os declarados inimigos externos: norte-
americanos e os agentes ligados a ditadura brasileira. O ex-presidente brasileiro seria
extremamente vigiado, sob suspeitas de colaboração com os tupamaros e o partido
comunista uruguaio, segundo os interesses da iminente ditadura uruguaia, e de
planejar uma retomada das rédeas políticas no Brasil através de contatos que
desembocariam na criação da Frente Ampla, consolidada em finais de 1966.
233
Sob
esse ambiente monitorado transitavam Goulart e seu grupo mais próximo. As ações
desse aparato repressivo, que se consolidariam com a criação da Operação Condor,
podem ter levado posteriormente ao assassinato de João Goulart, conforme revelações
elencadas pela imprensa:
Documentos entregues ontem ao Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul (MPF/RS)
trazem novos indícios sobre a morte do ex-presidente da República João Goulart. Relatórios do
Serviço Secreto do Exército do Uruguai apontam que Jango e seus companheiros de exílio
eram monitorados por órgãos de repressão entre os países. Coincidências de datas da morte do
ex-presidente brasileiro e de assassinatos de líderes políticos na época levantam novas
suspeitas sobre o caso. Um dos relatórios sigilosos do governo uruguaio narra uma reunião
ocorrida em 1974, em Buenos Aires, entre o ex-presidente brasileiro, o ex-senador uruguaio
Zelmar Michelini e o ex-presidente da Bolívia general Juan José Torres. O curioso é que
Michelini e Torres foram brutalmente assassinadas em 1976, no mesmo ano da morte de
Jango', disse o presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, Jair Krischke, (...)
acrescentou que, no mesmo ano em que Jango morreu na Argentina, oficialmente, de ataque
cardíaco, diversos líderes políticos de Brasil, Uruguai, Bolívia e Chile foram assassinados. (...)
A investigação da morte de Jango foi retomada pelas recentes declarações de um ex-agente do
serviço secreto do Uruguai, que garante ter participado das ações para eliminar João Goulart.
Preso na Penitenciária de Alta Segurança de Charqueadas (Pasc) por envolvimento em tráfico
de armas e assaltos a carro - forte, o uruguaio Mario Neira Barreiro teria afirmado que
participou da operação para provocar a morte de Jango.
234
233
Movimento político lançado em 28 de outubro de 1966 com o objetivo de lutar pela "restauração do
regime democrático" no Brasil, a Frente Ampla teve como principal articulador o ex-governador da
Guanabara, Carlos Lacerda, e contou com a participação dos ex-presidentes Juscelino Kubitschek e João
Goulart, e de seus correligionários.[...] Depois da entrada de Goulart, e graças também à maior aceitação por
parte dos parlamentares do MDB, deu-se início a mobilizações públicas, com comícios nas cidades paulistas
de Santo André, São Bernardo do Campo e São Caetano do Sul, em dezembro de 1967, e em Londrina e
Maringá, no Paraná, no início de abril de 1968. Esses últimos eventos, reunindo mais de 15 mil pessoas,
coincidiram com as manifestações estudantis realizadas em todo o país em repúdio à violência policial que, no
Rio de Janeiro, causara a morte do estudante Edson Luís de Lima Souto no final de março. No dia 5 de abril,
por intermédio da Portaria nº 117 do Ministério da Justiça, todas as atividades da Frente Ampla foram
proibidas. CPDOC/FGV.http://www.cpdoc.fgv.br/nav_jgoulart/htm/8Exilio/Articulacao_da_oposicao.asp
Acessado em 10/02/2007.
234
COLUSSI, Joana. MPF recebe indícios sobre a morte de Jango. Correio do Povo. Porto Alegre, 23 de
fevereiro 2008. p.4.
148
Entre agosto de 1970 e setembro de 1971, dois episódios de inegável violência
iriam envolver a família Penalvo, sempre com o objetivo de atingir, direta ou
indiretamente, o presidente João Goulart. O seqüestro do cônsul brasileiro em
Montevidéu, Aloysio Dias Gomide, pelo grupo Tupamaro, em 31 de julho de 1970,
deflagrou uma indisposição diplomática entre Brasil e Uruguai, que a despeito disso,
não colocou em risco a aproximação de suas inteligências militares e setores ligados
diretamente à repressão. Isso incluía a vigilância aos exilados, sob suspeição de
participarem das ações promovidas pelos Tupamaros.
Percy Penalvo (segundo à partir da esquerda) e Chiquinho Cabeda (oitavo) ao centro.
A aproximação entre as lideranças do grupo brizolista e os guerrilheiros
uruguaios de fato existiu, quando Raul Sendic reuniu-se com Brizola e seus
assessores diretos, na busca de alternativas para a entrada de armas destinadas ao
levante brasileiro. O plano, no entanto, não foi adiante.
235
Alguns anos mais tarde, a
possibilidade dessa ligação seria retomada como uma hipótese plausível pelas forças
235
José Wilson da Silva narra o encontro em O Tenente Vermelho, Op,Cit. pg 205.
149
repressivas de ambos os países. Marco Villalobos demarca o delicado momento
político:
A situação uruguaia extrapolava suas fronteiras e entre os regimes militares do Cone Sul, a
preocupação com a segurança do continente, ameaçado pelo perigo da subversão comunista,
era um tema constante. O encontro dos Presidentes Pacheco Areco e Garrastazu Médici na
fronteira do Uruguai com o Brasil originou um documento secreto no qual a Embaixada
brasileira consultava Brasília sobre a possibilidade de haver uma reunião de dirigentes dos
serviços de segurança dos dois países. Mais urgente, a segurança dos funcionários diplomáticos
brasileiros, foi responsável pelo envio de mensagens à Brasília. Como se estivesse prevendo o
que estava por vir, o próprio Embaixador Luiz Bastian Pinto destacava os perigos que
envolviam o trabalho em um país que convivia com a guerrilha. [...] Na mesma direção, um
[...] telegrama urgente destacava o medo dos funcionários, especialmente após o assalto
realizado contra a residência da Oficial da Chancelaria, Alda Gomes Araújo, no dia 14 de julho
de 1970. [...] O mesmo telegrama não descartava a hipótese de que houvesse a participação de
grupos subversivos, eventualmente ligados ao meio exilado brasileiro no assalto.
236
O seqüestro do cônsul brasileiro deu início a um longo processo de negociações
que envolveram os tupamaros e o governo uruguaio, sob pressão da ditadura
brasileira e a crescente desconfiança com o grupo exilado, deflagrando uma reação
das autoridaes contra setores da esquerda uruguaia e militantes da esquerda brasileira
no exílio. Entre eles, o ex-presidente João Goulart. Na fazenda em Taquarembó, em
um gesto desesperado por encontrar Gomide, os militares uruguaios promoveram um
legítimo “allanamiento de morada”, ou simplesmente allanamiento, como ficaram
conhecidas as invasões a residências no Uruguai daqueles anos, na busca de
militantes e que geralmente acabavam em mortes e detenções. De metralhadoras em
punho, apontadas para Celeste Penalvo e suas três crianças, imprimindo um clima de
terror, a força policial reunida em Taquerembó revistou toda a residência, deixando
tudo de pernas para o ar, enquanto um perplexo João Goulart assistia a tudo,
impassível, sentado em uma poltrona. A partir de sua vivência, Neuza Penalvo
relembra:
Os tupamaros sequestraram o Gomide, e havia a suspeita do governo uruguaio de que o dr.
Jango dava proteção aos tupamaros. E depois até, teve um dos pilotos do dr. Jango que ficou
preso 10 anos, porque era tupamaro. O outro eles mataram na prisão. Dois pilotos do Dr. Jango
foram presos, porque eram tupamaros. Mas era casualidade, o dr. Jango nem sabia...Um era o
Garcia, o outro era o Rivero. O Rivero que morreu em Buenos Aires, agora durante a
investigação da morte do dr. Jango, que um uruguaio levantou suspeita, que o Rivero ia depor
em uma comissão lá em Buenos Aires, e aí morreu naquela passagem de Buenos Aires de
barco [...] aí eles foram procurar o Gomide, lá na estância. Eles chegaram lá em casa, porque
nós não morávamos na fazenda, nós morávamos em uma casa antes, mas era da estância. Aí
eles passaram lá, com metralhadora e tudo. E na outra casa...E metralharam até dentro do poço,
236
VILLALOBOS, Marco Antônio. Tiranos Tremei! : ditadura e resistência popular no Uruguai: 1968-1985.
Porto Alegre. EDIPUCRS, 2006. pgs 74, 75.
150
fizeram horrores. E a mamãe disse: vocês vão para a Estância, que o Perci está pra lá e o dr.
Jango está chegando. E eles chegaram na fazenda e o doutor já tinha chegado. E eles revisaram
tudo, até embaixo da cama, e ele ficou sentado. E o papai protestou, disse: quando o sr. entrou
no país o sr. pediu proteção para o governo uruguaio, e aí está a proteção. E apontava para os
milicos, né? eles tudo de metralhadora dentro da casa. E o doutor Jango dizia pra ele, mas o
que que tu quer que eu faça tchê, eu não estou no meu país.
237
Depois da frustrada a tentativa de encontrar o cônsul brasileiro, os militares
tomaram outro rumo, deixando para trás a casa em desordem e o presidente Jango
ainda atordoado. Nesse momento, chegava no campo de pouso usado pelos Goulart
em Taquarembó um personagem que trazia antigas ligações de amizade com a família
Goulart. Auto-exilado, passaria alguns dias na fazenda e logo depois tentaria retomar
uma rotina de trabalho em Rivera, auxiliado diretamente pelo grupo refugiado. Neuza
Penalvo lembra quando seu pai, atordoado pela ação militar, com os nervos à flor da
pele, foi acolher o visitante,
[...] meu pai tinha um jipe que ele usava na fazenda. E tinha telefone. E os milicos lá dentro,
revistando tudo. E tocou o telefone, tinha uma central numa localidade. E era o Dom Braga, da
Central. E falando para o meu pai, caiu um avião aqui. Vai indo um rapaz, a pé, por dentro do
campo. Era longe da fazenda, mas tinha um corredor antigo, meio desativado. Vai indo um
rapaz a pé. E meu pai largou os milico tudo. Até passaram lá em casa e pegaram uma gasolina.
[...] Eles ficaram sem gasolina e meu pai ainda deu gasolina para eles.[...] e tinha dado um
problema no avião. O avião voltou e o rapaz tava indo por dentro do campo. Imagina toda a
tensão, com os milicos revistando tudo, até por debaixo da cama. E os milicos foram embora, o
meu pai pegou o jipe e se foi pelo corredor e encontrou o rapaz caminhando. O meu pai com os
nervos à flor da pele. E o meu pai encontrou e o rapaz se apresentou pra ele: Doutor Tarso
Genro! E meu pai disse assim: o teu doutor tu deixou do outro lado da fronteira, aqui tu é um
nada. Entra nesse jipe. (risos) Claro, mas que doutor Tarso Genro, se até o presidente da
república tava lá com os milicos revistando até debaixo da cama... E aí ele ficou um tempo lá
em casa, e aí depois arrumaram trabalho pra ele lá na fronteira. [...] e aí um dia o papai recebeu
um telefonema dele. Olha Perci, quando tu vier a Rivera eu preciso falar contigo. E aí o papai
foi. E chegando lá ele disse, e aí tchê o que tu quer? E ele disse, eu arrumei para voltar para o
Brasil, e eu preciso que tu me devolva o meu título de doutor por que eu preciso dele pra
trabalhar! (risos)
238
Filho de Adelmo Genro - amigo desde os anos 30 das famílias Vargas e Goulart
em São Borja, além de figura muito respeitada na região - Tarso chegava em
Taquarembó sob a proteção do líder máximo dos trabalhistas, deposto, mas sempre
acolhedor. Ele relembra,
Quando eu saí para o exílio eu saí pelo esquema clandestino do Jango, porque eu fui a São
Borja e disse para meu pai, “olha eu não estou em condições de sair, eu tenho que ficar
escondido porque a minha organização pifou”. E o meu pai disse, então vamos tentar sair por
São Borja, pelo Jango.
239
237
PENALVO, Neuza. Entrevista Citada.
238
Idem.
239
GENRO,Tarso. Depoimento a Deraldo Goulart. In: Jango em Três Atos, documentário, 2008.
151
Pouco depois, o advogado e ex-vereador pelo MDB de Santa Maria,
encontrariam em Rivera a recepção de um grupo que não lhe deixaria só, como Nery
Medeiros, os advogados Adán Fajardo e Antônio Apoitia Neto, além de seu
companheiro do PC do B – Manoel Luiz Coelho, o Maneco. Antônio Apoitia recorda
do dia em que levou a esposa de Tarso até o local onde o advogado residia em Rivera.
“Ela trazia nos braços a pequena Luciana, recém nascida, e lembro que o Tarso ficou
muito emocionado e chorou ao conhecer a filha, ali, no exílio”.
240
Colega de ginásio
do pai de Tarso, amigo dos anos que a família Genro passou a viver em Santa Maria,
Nery Medeiros tornou-se fronteira uma referência de amizade e solidariedade que o
jovem idealista somava aos outros pontos de apoio que aos poucos começava a criar
naquela pequena cidade uruguaia.
241
A casa de Nery Medeiros, encravada no centro de Rivera, mas a menos de 800
metros do território brasileiro, era ponto de apoio a muitos companheiros de
passagem pela região. Era lá que estavam Percy Penalvo e seu filho, Paulo, de apenas
quatro anos, em setembro de 1971, quando um segundo incidente envolvendo as
forças repressivas, desta vez do Brasil, iria sacudir as estruturas da família. A vinda
de Percy à fronteira devia-se à compra de utensílios domésticos em Livramento, mas
como não podia correr o risco de entrar em território brasileiro, valia-se da ajuda de
algum companheiro menos visado. Desta vez, um amigo tomou emprestado o carro
de Percy e dirigiu-se com o menino para Livramento, para comprar botas para o
pequeno, entre outros utensílios. Mas, ao cruzarem a linha divisória, foram
interceptados por um automóvel da Polícia Federal e levados detidos para as
dependências da polícia. Ficaram um dia inteiro detidos, com os policiais enviando
mensagens a Percy, para que fosse buscar seu filho pessoalmente, o que significaria
sua automática detenção. O menino depois narrou aos pais que via o amigo sendo
agredido a tapas constantemente pela polícia. O caso só foi resolvido depois da
240
APOITIA, Antônio. Entrevista citada.
241
Tarso Genro iniciou sua militância política ainda muito jovem acompanhando o pai, logo se filia a “Ala
Moça” do PTB. Elege-se vereador pelo MDB de Santa Maria em 1968, contando então 20 anos,
identificando-se com as idéias preconizadas pela Ala Vermelha, dissidência do PC do B. Renuncia em 7 de
julho de 1969 se auto exila no Uruguai.
152
intervenção de dois advogados, amigos da família intercederam, alegando a
impossibilidade jurídica para a detenção de uma criança de quatro anos. Celeste
Penalvo, que ficara na fazenda, lembra do seqüestro:
Eu fiquei lá na fazenda, e o Percy veio com o Paulo, que era pequeno, tinha uns quatro anos.
tinha um amigo nosso que sempre ia lá, e o carro era brasileiro, e ele achou que podia. E ele
emprestou para esse amigo ir buscar umas coisas para nós, comprar umas botinhas para o
Paulo, naquela época o peso estava bom, dava para comprar. [...] E quando eles estavam
subindo naquele trevinho, onde sobe ali, na Sarandi, a Federal atacou eles ali. Pegou eles e
levaram para a polícia, levaram para a Brigada. [...] Aí eles mandaram dizer para o Percy que
se quisesse o filho, que fosse buscar. Sabiam que o Percy não podia ir. Aí entrou o Régis, que
era genro do seu Neri, tinha um rapaz que era advogado que foi lá....foram lá...[...] uma criança
que passou o dia inteiro, e deram só laranja para ele comer [...] ficou o dia inteiro, E pegaram
os papéis do Percy, tudo o que tinha na pasta, filmes e tudo.
242
Foram momentos tensos como o do seqüestro do filho de Percy e a vigilância
ininterrupta da área de fronteira que fez daqueles dias o palco das negociações e da
solidariedade entre o grupo exilado, seus pares e os demais atores políticos que
transitavam pela fronteira.
Celeste e Neuza Penalvo, em São Borja, relembram os anos difíceis do exílio.
242
PENALVO, Celeste. Entrevista Citada
153
CAPÍTULO III
Trabalho, experiências e solidariedade no exílio
3.1 – A Malharia Burmann. Êxitos, fracassos e sobrevivência.
O disfarce adequado e a coragem para enfrentar a situação adversa em pleno
solo brasileiro fizeram de Orlando Burmann um dos homens mais aptos para efetivar
as ligações de Porto Alegre com Montevidéu, e posteriormente na fronteira. Ali,
estabeleceu um elo de ligação entre os banidos e procurados pelo novo regime e a
resistência, em Montevidéu, nos primeiros anos. César Burmann, filho mais velho do
casal Orlando e Diva, com 12 anos na ocasião do golpe recorda dos tempos de
clandestinidade do pai, que enfrentava a ditadura entrando incólume nos quartéis, em
busca dos segmentos militares trabalhistas que se dispusessem a participar de uma
rebelião. Em janeiro de 1966, no entanto, a explícita repressão a Burmann fez com
que a família escolhesse a cidade de Rivera como o único território possível de
resistência política e de unidade da família. Ali passariam a estabelecer uma tentativa
de sobrevivência aliada às articulações da emergente luta armada, que passava
necessariamente pelos deslocamentos ao Uruguai, tradicional porta de saída para
Cuba, China e União Soviética.
Logo depois de chegar a Rivera, no conturbado verão de 1966, a família se
estabeleceu na avenida Paul Harris, no centro comercial do bairro Fortim, localizado
na linha divisória. A poucos metros da divisa, estabeleceria morada em uma área de
intensa passagem de pessoas, onde um intercâmbio comercial contínuo desafia os
limites do comércio legal e marca um cotidiano tipicamente de fronteira. No início, as
economias familiares e a ajuda de parentes estabelecidos em Ijuí deram suporte para
uma mudança radical na vida dos Burmann. Mas com o passar do tempo, mesmo
desfrutando de um prestígio político ainda muito forte no Rio Grande do Sul e
signatário de negócios em Ijuí, o dinheiro começou a escassear, dificultando a
sobrevivência do grupo familiar na fronteira. Foi assim que surgiu, depois de algumas
tentativas de empreendimentos que não deram o resultado esperado, a idéia de criar
154
uma malharia, aproveitando a lã uruguaia, produto valorizado e afamado por sua
qualidade. Foi o filho mais velho, César, então com 15 anos, quem deu o início ao
negócio que iria prosperar e se tornar uma das mais conhecidas malharias da
fronteira, além de suporte financeiro da família. A malharia surgiu em 1968, depois
que o jovem César assistiu na recém inaugurada TV 10, de Rivera, a propaganda de
uma loja que vendia máquinas de costura e semeou a idéia junto à família. Com a
aprovação dos pais, comprou-se a primeira máquina. No início formou-se uma
sociedade com uma vizinha que também possuía uma máquina. Surgia a malharia
DD, que reunia o nome das sócias: Diva e Dênia. Cezar descreveu o momento em que
tiveram início as atividades na família:
Começou comigo. A mãe comprou uma máquina de tricô no Augusto Leonel Fernadez, ali em
Livramento. E ela não sabia aprender e passar para as funcionárias. Então eu fui lá, aprendi
como é que era, fui para casa, fiz umas duas blusas para mim, aprendi como é que funcionava e
ensinei para as funcionárias que ela contratou. E aí começou a malharia e a coisa cresceu. Isso
em 67, 68. Aí o pai ia com freqüencia para Montevidéu, para comprar lã e mercadorias.
243
Ao contrário dos exilados que passariam para o Uruguai nos anos seguintes,
geralmente estudantes, ligados a organizações políticas que preconizavam a
resistência armada, Burmann encontrou abrigo político no governo uruguaio sendo
tratado com regalias e proteções. Com o passar do tempo e o agravamento da situação
política, o amparo desapareceu e até se reverteu em gestos de intimidaçã. Desfrutando
dessas regalias iniciais construiu um sobrado onde instalou sua malharia, valendo-se
de empréstimo bancário, fornecido sem avalistas, pelo Banco de La República Del
Uruguay. Valia-se também de uma larga experiência como contador e fiscal de
tributos, além dos predicados de prefeito conceituado da cidade de Ijuí e deputado
estadual prestigiado entre os trabalhistas.
Isso não impediu, no entanto, que a família enfrentasse as dificuldades inerentes
a uma mudança radical de vida. Os primeiros anos na fronteira foram difícies,
exigindo um complexo equilíbrio entre a subsistência e a atuação política. A
aquisição de um pequeno sítio nos arredores de Rivera foi a solução primeira e
contemplava duas vertentes: garantia uma subsistência mínima e a geração de renda,
além de servir de abrigo aos companheiros em passagem para o Uruguai. A atividade
243
BURMANN, Cézar. Entrevista citada.
155
foi seguida por outros exilados, com menor ou maior êxito, como se verá. Em Rivera,
Orlando Burmann desempenhou um papel chave no chamado “esquema de fronteira”,
essencial para a passagem de clandestinos e líderes da resistência brasileira para o
Uruguai. Para Diva, oriunda de uma família com posses e tradicional em sua cidade
natal, foram anos de adaptação às exigências de uma nova condição, como relembra:
[...] compramos uma chácara, no caminho de quem vai para Montevidéu, no bairro Bisio, antes
de passar o rio. Ficava uns quatro quilômetros ali da nossa casa, a gente ia a pé até lá. Era 4
hectares a chácara. E ali o Orlando plantava e ficavam uns exilado por ali. Dava para
sobreviver, mas o Orlando ficava muito nervoso não fazia nada, e era acostumado a trabalhar
né? Então ele ia para a chácara de manhã, plantava, virava canteiro...E eu vendia depois,
porque eu fornecia para os hotéis, acredita? Pra o Jandaia (Hotel), para as sorveterias,
moranguinho, tudo. E o pessoal se admirava pela minha situação, não é? De eu vender, diziam:
“E a senhora... nunca fez isso antes? Eu dizia:” não, nunca fiz, mas estou fazendo, porque eu
preciso”
244
Diva recorda dos anos em que a solidariedade imediata com os perseguidos e
auto-exilados, em fuga para o Uruguai, era regra. As dificuldades enfrentadas pela
família corroeram suas economias, porém valia o esforço de sobrevivência, amparado
no bom conceito que ainda usufruía Beno Orlando no Uruguai. Sua rede de amigos e
contatos políticos transitavam dos tradicionais colorados, em especial os identificados
com a Lista 99, do senador Zelmar Michellini até os insurgentes tupamaros.
[...] nós chegamos lá em situação difícil. Porque cortaram o salário do Orlando. O Orlando era
fiscal do ICM e ganhava muito bem. Tanto é que eu tenho uma aposentadoria dele, uma das
melhores aposentadorias do estado oficialmente é ele. E nós não tínhamos quase mais nada,
porque nós ficamos todo aquele tempo lá, vendendo tudo que tinha para ficar lá, sabe como é?
E aquele mundo de gente comendo e a gente gastava o nosso dinheiro. O Brizola não ajudava
em nada, o Jango não ajudava em nada. Ninguém ajudava. E ainda chegava aquela gente lá
sem dinheiro, a gente tinha que dar dinheiro e passagem para ir a Montevidéu. Tanto é que
quando nós estávamos lá, para fazer a casa que nós fizemos, um empréstimo no Banco de La
República, sem fiador, sem nada, nos deram o empréstimo. Pelas amizades que a gente tinha. E
também eles se informaram aqui no Banco do Brasil, da situação do Orlando, e ele era uma
pessoa que tinha crédito em qualquer banco que ele tirava dinheiro.
245
Sérgio Burmann, o filho mais jovem, e que seguiria os passos políticos do pai
elegendo-se anos mais tarde vereador em Ijuí, lembra desses anos como uma época
de trabalho e determinação, mesmo que muitas vezes as atividades agrícolas não
dessem tanto resultado como o esperado. Em uma cidade de economia restrita, como
244
BURMANN, Diva.Entrevista citada.
245
Idem.
156
Rivera, o trabalho em pequenas chácaras era uma saída natural para quem se
estabelecia na região, abrindo novas oportunidades para abrigar correligionários e
manter um nível mínimo de subsistência entre o grupo. Sérgio lembra:
Eu tinha seis anos, e ia na Escola Oito, aqui em Rivera, de tarde. E no verão eu saía da escola,
meu pai ia de manhã, a pé, para a chácara que era um pouco antes do Passo de Castro, à
esquerda. Ele plantava, levava uma marmita, e a minha mãe buscava ele de tarde e nos levava.
E a gente ajudava a limpar os canteiros, enquanto brincava e caçava passarinho. No outro dia
de manhã eu pegava um canastro, como diz o castelhano, e vendia um pé de alface por um
peso, ali na vizinhança, e isso ajudava. Ele produzia e eu comercializava, moranguinho, alface,
ervilha, de acordo com a estação. Levava nos boliches da redondeza. Nós tínhamos posse lá
em Ijuí e fomos vendendo as coisas para sustentar aqui. Mas nunca faltou nada, é claro que nos
privamos de bens e coisas, mas fome não passamos. Mas ele sempre deixava ressaltado que
para conseguir as coisas tu tinha que trabalhar
.
246
Em 1969, César mudou-se para Porto Alegre. Abriu-se então outra
oportunidade de negócios, com a venda dos produtos comprados mais baratos no
Uruguai para vender na capital gaúcha. Na eterna balança comercial da fronteira,
estavam em alta os produtos que chegavam com mais rapidez ao mercado uruguaio
ou simplesmente eram artigos ainda muito caros no Brasil. Produtos de ocasião,
como relógios, as primeiras giletes inoxidáveis, e uma série de mercadorias
importadas que constituíam novidade no Brasil. Vendidos em Porto Alegre, rendiam
um dinheiro extra e serviam para ajudar no sustento dos estudos, antes de aparecer
um emprego fixo. Na fronteira, a família buscava qualquer atividade econômica que
pudesse ser rentável, enquanto o negócio de roupas não crescia. Nas palavras de
Sérgio,
nós fazíamos de tudo, o que dava dinheiro nós se virava. Nós tínhamos a chácara, mas não era
muito, era para o meu pai sentir-se produtivo também. E o marido da Dênia tinha sociedade em
um táxi em Livramento, e vendeu a parte dele para nós. Foi outra atividade que eu me lembro
que nós tivemos. A outra metade do táxi era do sr. Selau, que tinha um engarrafamento ali no
outra lado da linha, em Livramento, a poucos metros da nossa casa.
247
Assim a família ia conseguindo sobreviver e contornar as adversidades de
encontrar a subsistência em uma cidade desconhecida. Mais uma vez, a situação de
fronteira ajudava, pois quando uma mercadoria valorizava-se muito em um país, era
ora de vender ali, e vice-versa. A camionete do tipo Simca-Jangada, que veio com a
família, trazendo alguns móveis da casa de Ijuí, servia para os negócios de compra e
venda de víveres. Foi assim com a venda de açúcar, comprado em Livramento e
246
BURMANN, Sérgio. Depoimento ao autor.
247
Idem.
157
vendido por quilo nos pequenos mercados de Rivera. Quando a polícia apertava o
cerco aos “contrabandos”, a solução era descer algumas quadras antes da linha
divisória de fronteira para evitar confusão. As crianças serviam de escudo para
enganar os fiscais “Tinha fiscalização, mas a minha mãe colocava as crianças, até as
dos vizinhos, que iam sentados em cima das bolsas de açúcar. E o meu pai e os meus
irmãos desciam e vendiam as bolsas de açúcar”, lembra Sérgio.
A precariedade, no entanto, acompanhava a vida da maioria dos exilados que
tentavam permanecer na fronteira. Nessa hora, estabelecer uma rede de mútua ajuda
era uma solução tão urgente quanto temporária. Não era improvável que famílias
acabassem se desintegrando frente às dificuldades enfrentadas pelo dia-a-dia em uma
pequena cidade desconhecida. Assim aconteceu com o capitão do exército Acir
Xavier Chaves, que tentou se estabelecer como chacreiro, exerceu funções de
vigilante e trabalhador nos sítios da redondeza, enquanto ele próprio trabalhava em
suas quadras de terra, acompanhado da mulher e filhos. A inexperiência no lida com a
terra acabou colaborando para a desestruturação da família, que o abandonou em
Rivera, voltando para Santa Maria.
Para Diva Burmann, a ajuda aos exilados e aos clandestinos que chegavam a
sua casa era a regra. Na chácara, ficavam por algum tempo aqueles que não possuíam
documentos para seguir viagem, ou que teriam de conseguir algum dinheiro para dar
início a uma nova etapa de vida na cidade. Na lembrança de Diva, Acir foi um desses
hóspedes temporários que passaram por sua chácara,
Eu ajudei muito também um coronel do exército, o Acir, esse eu ajudei. Ele trabalhava na
nossa chácara, mas depois ele recebeu um dinheiro do exército, que não tavam pagando nada,
mas depois pagaram uns atrasados, e ele comprou uma chácara para ele. Mas ele não tinha
carro nem nada, e era um sacrifício. E vinha de Santa Maria aquelas mudas de abacaxi para ele
plantar lá na chácara dele, mas ele não plantava nada, não tinha jeito sabe. Aí eu tinha uma
Simca Jangada, eu fazia pick-up e carregava as coisas dentro. Enchi de cabeças de abacaxi, de
mudas de abacaxi, me espinhei toda, porque ele não podia vir no Brasil, então ele me esperava
lá na linha divisória. Eu e o Cezar, carregamos aquilo e nos espinhamos tudo, passamos lá e
levamos lá para a chácara dele, para ele plantar aquelas mudas de abacaxi. Passou um tempo,
eu disse cadê os abacaxis que eu gosto muito, será que já tem, eu vou lá. Cheguei lá, não tinha
brotado um. Tinha morrido tudo.
248
A malharia, entretanto, caminhava a passos largos. Mesmo sem nenhum
conhecimento de espanhol ou da vida em uma fronteira, a família Burmann aprendia
248
BURMANN, Diva. Entrevista citada.
158
com o cotidiano da cidade o entrosamento necessário para o estabelecimento de uma
série de novos contatos e amizades. Enquanto as crianças estabeleciam uma série de
amizades nas escolas, que no futuro renderiam casamentos e um envolvimento
indissolúvel com a região, Diva Burmann passou a inovar o seu negócio, arrendando
novas máquinas para as artesãs que terceirizava. Quando a produção atingia
determinado limite, as máquinas podiam ser adquiridas pelas colaboradoras, em troca
de produção. A receita deu certo e a malharia passoua contar com uma expressiva
rede de funcionárias terceirizadas. A receita política dos Burmann unia o trabalho
com o estabelecimento de uma sintonia contínua com a comunidade, e repetia a
fórmula que sempre dera certo nos tempos de Ijuí, a construção de redes políticas por
amizades, parentesco, religião e assistencialismo, o que envolve também a paixão
pelo esporte, sendo o Internacional de Porto Alegre e o Penharol em Montevidéu, os
clubes da preferência familiar. Diva Burmann realizava ações que envolviam trabalho
e solidariedade com os demais exilados, valendo-se de um salvo conduto para entrar e
sair do país quando bem entendesse. A exemplo de seus filhos, que estudavam em
Santana, também entrava livremente no Brasil para receber pensões e repassar para
quem não podia se arriscar, ou vivia em Montevidéu.
[....] eu não sabia falar o espanhol, nunca tinha ido para Rivera, e não conhecia ninguém. Mas
eu gostei muito que assim que eu cheguei lá, a gente foi fazendo uma amizade com o vizinho, e
a gente ia na missa, a gente é muito católico, a gente se comunicava com os outros né? E meus
filhos foram estudar, e todo mundo nos deu apoio, lá tem muito PDT [...] Adorei a fronteira,
adoro. Eu acho uma maravilha aquilo lá. Olha, eu vou lá, eu fiz tantas amizades, eu tenho
afilhadas...Eu recebia dinheiro para muitos exilados, até para uma senhora de Montevidéu,
velha, viúva. A sobrinha dela, recebia pra ela, o dinheiro e dava só um pouquinho pra ela. Até
isso acontecia. E a coitada chegou lá em casa, quem trouxe ela lá em casa foi a Neuza Brizola.
"Diva, tá acontecendo isso. Eu disse pra ela que isso é muito pouco, ele era coronel do exército
e não é essa mixaria que ela tá recebendo, a outra tá ficando com o dinheiro". Aí trouxe ela lá
em casa. Aí eu fui no quartel, fui ver, e era mesmo. Aí ela passou uma procuração para mim,
levei ela lá, para mim receber pra ela e mandava. Ela tava morando em Montevidéu.
249
249
Idem.
159
3.2 – Sobrevivência e militância, uma difícil opção.
Aos militantes da geração de 68 a sobrevivência na fronteira revelou-se
especialmente difícil. Sem contatos, na solidão de outro teritório, envoltos pela
paranóia de uma perseguição política que efetivamente acontecia, sem um grupo de
apoio, o mesmo território que abrigava os Burmann se mostrava inóspito para os
jovens ativistas. Cláudio Antônio Weyne Gutierrez, membro da VPR, viveu dias
duros em Montevidéu, onde passou por uma tentativa de seqüestro e por pouco não
caiu nas mãos da repressão brasileira. Em 1969, vindo de Porto Alegre e após ter
cruzado a fronteira de Santana e Rivera rumo a capital uruguaia, viu de perto a dura
realidade que os estudantes recém exilados passavam, longe de empregos formais e
perseguidos pelos homens do Departamento de Inteligência e Enlace. Ele descreve:
O Uruguai de novembro de 1969 estava longe da prosperidade do pós-guerra, e vivia profunda
crise econômica e institucional. O presidente Pacheco Areco respondia à crise social a ao
crescimento dos Tupamaros com um governo autoritário que ultrapassava os limites dos
mecanismos constitucionais. A situação dos brasileiros no Uruguai estava muito difícil. Apesar
de toda a tradição de asilo que o País possuía, nenhum dos nossos companheiros que haviam
ingressado recentemente eram reconhecidos como asilados. O instituto do asilo, uma tradição
para as elites políticas em nosso continente, não foi pensado para proteger militantes de
movimentos sociais e revolucionários.
250
A situação dos militantes identificados com a reação armada e a chamada
geração de 68 estava particularmente difícil na Montevidéu daqueles dias. A
afinidade entre a ditadura brasileira e o caminho do arbítrio pelo qual já trihava o
governo uruguaio mostrava-se cada vez mais forte. Como aconteceria no Chile e
Argentina alguns anos depois, a vigilância política se fazia sentir com todo o seu
arsenal de terror e intimidação para quem buscava, em fuga, a fronteira e logo depois
a capital uruguaia. Em novembro de 1969, o jornalista uruguaio Alfonso Correa
anotava no combativo periódico De Frente, o clima de insegurança na fronteira e a
crescente indisposição do governo uruguaio com a chegada de novos exilados.
[...] Cuando notó que sus compañeros de la Facultad de Derecho de San Pablo iban
desapareciendo aceleradamente se decidió a irse de su estado. Lo protegió la relativa falta de
coordinación que aún existe entre un estado y otro del gigantesco país. Siempre con la meta
puesta en la frontera uruguaya, fue pagando su viaje mientras trabajaba por el camino. A los
seis meses llegó a Santa Ana de Livramento. Se sintió perseguido, dejó sus valizas en um hotel
250
GUTIÉRREZ. Op.cit; p.92.
160
y atravesó la frontera. Llegó hasta Montevideo, y como no conocia a nadie se echó a caminar
hasta que halló la embajada mexicana. Alli pidió asilo pero se lo negaron, argumentando que
lo debia solicitarlo en el proprio Uruguay “para no crear problemas de competência”. En
jefatura, donde le recomendaron ir, fue tratado amablemente y firmo una solicitud de asilo. Al
otro dia, con el pretexto de unas declaraciones suyas a un matutino lo trasladaron al CGIOR
[Centro General de Instrucción de Oficiales de Reserva] para vigilar su seguridad personal,
explicación que se lê dió, esta internado alli desde 11 de noviembre.
251
Ao mesmo tempo, a repressão política devassava as pensões montevideanas
onde residiam provisoriamente os brasileiros, e impunha o clima de terror psicológico
aos que até ali chegavam. O jornalista denunciava:
Estos casos, ya abundantes, pero aislados, todavia mirados en su contexto no están
desvinculados de otros hechos sintomáticos con que se ha tropezado la segunda gruesa tanda
de refugiados brasileños que comenzó a llegar al país desde junio de este año. Mientras a los
de la primera hora – después del golpe de estado de Castello Branco en 1964 – se lês otorgó
asilo con una demora mínima, algunos dias, una semana – a todos los que han llegado
ultimamente se les mantiene a la espectativa. [...] A Cleide Almeida Fernandes, una
realizadora cinematográfica a quien habian distinguido en su cautiverio de nueve meses en San
Pablo con una diaria comparecencia a la sala de torturas para presenciar interminables
sesiones praticadas contra sus compañeros, la fueron a visitar a su pension agentes de
Interpol. [...] un asilado, que ya había tenido problemas para renovar su documentación halló
en la puerta de su casa inconfundibles huellas de un trabajo bruscamente interrumpido
dirigido a copiar el molde de sus llaves. En más de un caso han llegado hasta los domicilios de
viejos y nuevos asilados provocadores que anuncian ser perseguidos políticos y utilizan burlos
o inteligentes argumentos para probarlo.
252
Nesse contexto de intimidação e perseguição, boa parte dos que procuravam
asilo político no Uruguai sentiam-se encurralados, sem papéis para tentar um
emprego formal, dependendo unicamente da solidariedade de alguns. Também para o
agrônomo Manoel Luiz Coelho a sobrevivência estava seriamente comprometida
naquele momento. Depois de abandonar Montevidéu e estabelecer-se na fronteira,
verdadeiro campo minado de espiões, entraria definitivamente na lista dos mais
procurados daqueles dias, sendo a ele imputado uma série de ações criminosas em
São Paulo e outros estados do país, quando nunca havia saído das fronteiras uruguais.
Como os tentáculos da repressão brasileira não conseguiam capturá-lo, seu
nome passava a ser moeda corrente nos relatórios da subversão, sempre que não
existissem outros suspeitos identificados. De sua passagem pela fronteira, ele recorda:
[...] Olha, eu durante muito tempo passei, fiz muitas aventuras ali. Mas depois que eu tive a
situação aquela do jornal, eu ainda fiz algumas aventuras, mas se tornou perigoso, porque meu
251
Uruguay-Brasil: el fin de las fronteras policiales. Jornal De Frente. Montevidéu, 25 de novembro de 1969.
p.3.
252
Idem.
161
nome tinha saído na primeira página dos principais jornais do país. No Correio do Povo, eu
estava em um café em Livramento, quando abro o Correio do Povo e dizia: identificado os
principais líderes do terrorismo. Aí dá as identificações. O assalto ao trem pagador, e eu era um
dos responsáveis pelo assalto ao trem pagador. Tem meu nome explícito ali. Eu era o homem da
metralhadora. Embora não fosse [...] e disso nos acusavam. Nós já estávamos marcados na
paleta. Acho que era uma forma de nos caracterizar como subversivo, e ter um pretexto de nos
meter uma bala, de nos matar e ficar por isso mesmo. E eu estava no café, e vi aquilo e fui
saindo de fininho. E saí pela linha divisória, e não passei mais para lá, a não ser muito
clandestinamente.
253
Manoel Coelho revê a manchete do Correio do Povo que lhe custou o emprego.
Com a referência explícita em jornais como terrorista procurado, a demissão da
companhia de fumo uruguaia, onde trabalhava, não tardou. Coelho ainda tentou
plantar fumo em um campo cedido pelo ex-presidente João Goulart, nas cercanias de
Rivera, mas a empreitada não deu resultados. Passou a fabricar charutos artesanais, na
casa onde vivia, na calle Paysandu. Ali convivia com amigos do exílio, como o
253
COELHO, Manoel. Entrevista citada.
162
correligionário Tarso Genro, o capitão Acir Xavier, o policial Oscar Fontoura Chaves
e sua esposa, América. Ele recorda da necessidade de uma precaução constante frente
a um ambiente hostil, onde não faltavam agentes infiltrados.
[...] os salafrários, vigaristas, que aplicavam golpes, iam para lá e disfarçavam-se de exilados,
inimigos da ditadura. Existiram muitos casos desses, muitos, muitos. Era preciso ter muito
cuidado. Eles vomitavam um palavreado belicista, super-revolucionário, e na verdade eram
provocadores. Eles faziam provocação para parecer uma coisa e tirar proveito disso, pegar
dinheiro de alguém lá, do próprio Brizola, ou do Jango, sob o pretexto de voltar. Eu mesmo
cheguei a fazer isso, ajudar uma pessoa. O pouco dinheirinho que eu tinha, eu dei para ele fazer
uma viagem a Porto Alegre, e no fim era um provocador. Estava lá. Então sempre tinha que se
ter muito cuidado a quem oferecer solidariedade. Porque às vezes se estava oferecendo
solidariedade para o inimigo. Evidentemente havia solidariedade, eu mesmo fiz o que foi
possível. Respondi um inquérito, fui preso e passei o que passei, sob esse pretexto. Não me
arrependo, porque é o mínimo que se pode fazer numa situação como essa.
254
Depois de sobreviver com a ajuda de amigos e através de trabalhos temporários,
como professor do cursinho pré-vestibular de Estoécel Santana, onde Tarso Genro
também lecionava, a situação foi ficando cada vez mais crítica. Em 1974, Manoel
Coelho negocia com o auxílio de familiares sua volta ao país, mas é traído pelos
homens do DOPS e preso novamente em Porto Alegre.
3.3 - A Confeitaria Metropolitana, espaço de abrigo e solidariedade.
O pequeno bar e restaurante criado em 1948 por Francisco Fagundes Lima na
Calle Paysandu, entre Sarandi e Agraciada, seria testemunho da efervescência
cultural e política da fronteira pelas décadas seguintes. Côco Fagundes, como era
conhecido, aprendeu seu ofício de confeiteiro na padaria Aragonês, tradicional casa
comercial de Santana, que reunia entre seus trabalhadores uma expressiva parcela
ligada ao partido comunista brasileiro. Ali deu os primeiros passos na militância,
dentro de um contexto político nitidamente de fronteira, pois mesmo sendo uruguaio,
era no partido brasileiro que atuava. Como muitos militantes que possuíam dupla
nacionalidade, ou que mesmo sendo uruguaios trabalhavam e militavam no lado
brasileiro daquele território emaranhado, a ligação de Côco com os companheiros
brasileiros ficaria assim estabelecida até seu falecimento, em 1988, aos 64 anos. Foi
nas lutas sindicais da efervescente década de 40 que Côco travou contato com Santos
254
Idem.
163
Soares, líder máximo dos operários santanenses e que posteriormente seria seu sogro.
Naqueles anos, pouco antes de ser colocado na ilegalidade, o PCB alcançou enorme
prestígio popular e Côco conheceu de perto o líder Luis Carlos Prestes, quando em
campanha pela Constituinte, junto a Santos Soares, comandante comunista da
fronteira. Em 1948, com o partido na ilegalidade e uma nova onda de repressão
política, Côco vê-se na condição de tentar vida nova, já como empreendedor, desta
vez em terras uruguaias. A família já vivia em Rivera, em uma casa erguida
estratégicamente por Santos Soares, a duas quadras da linha divisória.
Côco Fagundes (de óculos) e sua equipe na Confeitaria Metropolitana.
Estabelecida a 200 metros do território brasileiro, a Confeitaria Metropolitana
logo faria sucesso junto a estudantes e boêmios, graças aos dotes culinários da equipe
comandada por Côco. Vladecir Fagundes, o filho mais jovem, nascido em 1960,
lembra do ambiente familiar e acolhedor da “Metro”, como a casa ficou conhecida na
164
fronteira. Assim, quando em 1964 o golpe sacode as estruturas políticas do país, a
Metro surge como o refúgio natural da esquerda em fuga, um ponto de referência para
petebistas, comunistas e militantes dos mais diversos rincões, que buscavam a
fronteira como porta de saída. No ambiente acolhedor do bar reuniam-se vereadores
cassados, ex-prefeitos da região da campanha, velhos e novos comunistas, além dos
partidários da luta armada, que começou a tomar uma forma mais radicalizada a partir
do golpe, ratificando uma posição já defendida préviamente por setores
revolucionários existentes desde antes de 1964. Vladecir cresceu em meio ao vai e
vem de militantes e acompanhou o movimento intenso dos que faziam do bar de seu
pai um refúgio, conforme relata:
Tinha o Ulisses Villar, de Uruguaiana, que chamavam o major. O Côco tinha uma chácara com
um irmão onde criavam galinha, porco, e deram para ele morar lá. Também o Eber Trindade,
de Santa Maria, que fazia parte do grupo de 11, comunista velho, todos de uma solidariedade
ampla. O doutor Alberto Benvenutto, de São Borja [...] compunham uma rede de apoio. Ali se
incorporavam Estoécel Santana, Tarso Genro, de uma geração anterior, mas ali também
recebidos. Políticos e ex-prefeitos da fronteira oeste perseguidos, como o Curvello, de Pelotas.
[...] a confeitaria era mais do que um ponto de encontro, era um verdadeiro aparelho destinado a
articular da maneira mais segura possível a passagem dos companheiros comunistas e depois de
militantes de outras tendências. Tinha muita gente ali que não eram comunistas, mas petebistas.
255
A utilização da Metropolitana como ponto de apoio aos aliados de João Goulart
no Uruguai tornara-se evidente. Embora Côco considerasse pessoalmente Jango um
amigo dos comunistas, entre companheiros não se eximia de rotulá-lo como um bon
vivant, mulherengo, e ligado às oligarquias rurais. Isso não impedia, no entanto, que a
casa estivesse sempre aberta para Percy Penalvo, administrador da fazenda de Goulart
em Taquarembó. Frequentemente Percy usava a confeitaria como ponto de apoio para
a compra de insumos agrícolas no Brasil, que ali ficavam depositados até que fossem
levados para a fazenda. Aos contatos políticos de Jango que chegavam na fronteira
com destino a Taquarembó ou que voltavam para o Brasil na clandestinidade, a
confeitaria era referência. Vladecir rememorou algumas estratégias de saída que se
valiam da Metro como ponto central, em um tempo onde as rotas de fuga da esquerda
se confundiam com as do contrabando:
Eles chegavam aqui e muitas vezes tinham que pegar o ônibus para Porto Alegre, e eram
levados pelo Côco, só que tinham de chegar algo como dois minutos antes do ônibus partir. Ou
255
FAGUNDES, Vladecir. Entrevista concedida ao autor.
165
seja, chegavam ali e entravam no ônibus, não davam bobeira. O Côco não sabia dirigir, mas
tinha um tio que trabalhava com nós e fazia às vezes de motorista, mesmo sem estar ligado
diretamente ao partido. [...] Ali também ia gente ligada a João Goulart, e também muitos pilotos
de avião que faziam mandado para Jango [...] O Percy ia ali. Eu lembro que tinha uns caixão
empilhados lá, que eram peças de trator que o Percy comprava e deixava por ali, depois vinha,
levantava, trazia outras. Até quando houve um acidente com o Jango e morreu o motorista dele,
as malas do motorista que morreu passaram anos em um canto lá, esquecidos em uma peça.
256
No entanto, Vladecir não identifica se a ampla recepção oferecida por Côco aos
que chegavam na Metro fazia parte de uma diretriz estabelecida pelo PCB, ou se um
gesto característico dos comunistas, em uma época onde o simples fato de ser
correligionário abria as portas da casa. Nesse ambiente, onde ser comunista era uma
virtude que não se questionava, transitava Côco e seus camaradas. A literatura
marxista circulava livremente pelo Uruguai, ainda com o partido legalizado. Côco
recebia os livros da EPU (Editorial Povos Unidos), pelas mãos de Paulo Tillerman,
um judeu marxista que abandonou o Brasil para estabelecer-se em Canelones, de
onde mantinha um negócio de livros identificados com a diretriz soviética. Aquiles
Santana, vizinho da confeitaria, frequentemente se valia do telefone da casa, assim
como boa parte do grupo de exilados que por ali passavam. Wladimir Fagundes, filho
mais velho de Côco, vivia seus 13 anos de idade quando o golpe brasileiro mudou o
cotidiano do estabelecimento comercial de seu pai. Uma década mais tarde, ele
próprio viveria dias de angústia, como prisioneiro político da feroz ditadura uruguaia.
De 1964 e os anos seguintes, Wladimir recorda da intensa roda de contatos políticos
que se formavam nas mesas da Metro.
No começo havia a idéia de reação, ali por 65, e por lá se abrigavam não só comunistas, mas
todo o tipo de pessoas identificadas com a reação ao golpe. No Uruguai, começou a endurecer a
repressão no governo de Pacheco Areco, em 1967. Daí para frente começou a piorar as coisas.
Eu lembro de exilados que chegaram depois de 1968. Tinha o doutor Fajardo, que era referência
na lista 99 aqui em Rivera, e teve muita participação no abrigo aos exilados. Tinha o Burmann,
da fábrica de roupas de couro. O Percy, que era muito enérgico, um gauchão, vinha muito aqui.
E Ulisses Villar, Éber Trindade, de Santa Maria, houve gente que ficou aqui. Uma das funções
do Côco era conseguir trabalho pra essa gente. O Éber Trindade trabalho com Côco muito
tempo.
257
256
Idem.
257
FAGUNDES. Wladimir. Entrevista concedida ao autor.
166
3.3.1 –Um guerrilheiro na Metro
A primeira vez que tive contato com a trajetória do guerrilheiro Edmur Péricles
de Camargo na fronteira, foi através do relato de Perseverando Fernandes Santana.
Desse modo, referiu-se a passagem do dissidente da ALN e ativo combatente da
ditadura militar pela região:
Aqui teve outro...negro [...] que tava no cerco do Marighella, e se escapou, o Péricles! Mas
tinha o apelido Gaúcho, terrível esse nego. Mataram ele porque ele foi pro Chile, deu volta pro
Brasil e a ditadura prendeu ele na Argentina, e atirou ele no mar. Nego. Este nego é
interessante, mas ele era de guerrilha, de sequestro. Claro, dissidentes. Ele agarrou o cônsul
alemão aquele em Porto Alegre, assaltou banco do Estado lá em Porto Alegre. E teve aí em
Rivera, conversava muito comigo. E esse nego me deu um susto que até hoje eu tenho. Ele
assaltou um banco, não pôde sequestrar esse cônsul, e tavam em torno dele, na busca dele em
Porto Alegre assim como quem procura uma agulha. ...na televisão e tudo....E eu tava na
Galeria Rosário ali em Porto Alegre...Edmur o nome dele! E eu vi aquele que vinha de capa de
chuva assim...e eu olho assim e digo, parece até o Edmur, o Péricles....aí ele diz assim, - Ó
Perseverando! Como vais? E eles procurando aquele nego em toda Porto Alegre, na televisão a
toda hora....Pá! e eu entro assim de um lado, e digo, Tchê, mas tu te expondo assim, ..não mas
eu tô disfarçado, diz ele. Mas vai a puta que te pariu...Aí dois ou três dias pegaram ele..tava
hospedado num hotel no Centro da cidade. Depois que ele saiu daqui..lá por 67, 68...ele que
tava no cerco do Marighella. Não era fácil o nego. Aí ele foi pro Chile, que era o Allende. E de
lá para o retorno para o Brasil, sempre conspirando...e pegaram ele na Argentina.
258
Militante do PCB no Rio Grande do Sul desde 1952, quando exerceu a função
de jornalista na Tribuna Gaúcha, órgão de imprensa do partido, Edmur ingressou nas
fileiras comunistas em 1944, em São Paulo, sua cidade natal. Mais tarde romperia
com o Partido, seguindo os passos de Carlos Marighella. Em 1966, depois de um
tempo na clandestinidade, recorreu ao abrigo proporcionado por Côco Fagundes, e
adotou a confeitaria como ponto de reorganização da luta. Ali se estabeleceu por
cerca de um ano, reorganizando estratégias para uma nova ofensiva contra o regime,
que resultaria em uma rápida união a ALN, liderado por Marighella. Depois, criaria
em 1969 o grupo M3-G (Marighella, Mao, Marx e Guevara), com o qual atuou em
diversas ações de desapropriação a bancos em Porto Alegre. Nos dias em que viveu
em Rivera e trabalhou na Metro, Edmur chamava a atenção pela extrema cordialidade
com que sempre tratava a todos. Ali conheceu um antigo funcionário de Côco,
membro atuante do partido na fronteira, como ele, um negro alto e forte chamado
Ibanez Suarez. Perto do forno da confeitaria, trocavam idéias sobre política, enquanto
258
SANTANA. Perseverando. Entrevista citada.
167
Edmur tentava driblar o frio intenso daquele inverno. Perseverando Santana lembra
do contato estreito com Edmur e das passagens folclóricas que ficaram dos assaltos
comandados pelo guerrilheiro.
E ele tava aí exilado, ali na Metropolitana, que era dos companheiros, e ele fazia doce ali.
Deram emprego para ele. E muitas vezes falei com o nego. Uma vez me pediu para levar uma
carta para Porto Alegre, e levei...lá na rua do Arvoredo..era ligação clandestina, esse negócio de
guerrilheiro. E ele tinha isso na cabeça e foi, e agiu no Brasil, assaltou o Banco do Brasil, a
Caixa Econômica, assaltou uns três bancos. Um rapaz que foi assaltado por ele me contou. Diz
que ele chegou ali, fez uma preleção com o revólver..disse senhores, deitem-se no chão, não
reajam que os senhores vão defender o carrasco...abram o cofre, tirem o dinheiro....e se
escapou!
259
Edmur Péricles de Camargo, acolhido na fronteira por Côco Fagundes.
A relevância das ações desenvolvidas por Edmur e rememoradas por
Perseverando foram plenamente endossadas pelo advogado e jornalista Índio Vargas.
Preso em 1970 como militante do grupo armado do PTB gaúcho, vereador mais
votado em Porto Alegre em 1968, cassado logo após pelo AI5, Índio Vargas registrou
assim as lembranças sobre seu antigo companheiro e guerrilheiro urbano:
259
Idem.
168
Numa noite de Agosto de 1969 estou tranqüilo, em casa, depois do jantar. Bateram na porta.
Olhei na vigia e vi dois homens: um, conhecido, que ajudava o Grupo Armado do PTB em
algumas atividades; o segundo desconhecia. Abri a porta e abracei o companheiro. O outro, um
negro alto, forte, aparentando 50 anos, bem vestido, antes de me apertar a mão, num gesto à
moda antiga, tirou o chapéu de veludo, exibindo a cabeça raspada a navalha. Entramos e fomos
para a salinha dos livros. O homem apresentou-se: era Edmur Péricles de Camargo. Depois de
uma breve apresentação, durante a qual ressaltou que o visitante era pessoa de toda a confiança,
engajado na luta contra a ditadura, o companheiro pediu para retirar-se - assim poderíamos
conversar à vontade.
260
O guerrilheiro deixava as melhores impressões por onde passava, tido como
homem educado e cordial, concentrado em seu idealismo, mas sempre com uma
identidade esquiva. Perseverando Santana recorda que a passagem do militante pela
fronteira despertou desconfianças, devido a seu comportamento refinado. Dúvidas
que seriam cada vez mais comuns em uma esquerda paranóica com a crescente
perseguição e eliminação de seus quadros. Conforme Índio Vargas, a impressão que
ficava de Edmur era a figura de um homem completamente engajado na luta armada,
como recordou de seu primeiro encontro, ocorrido em 1969.
Maneiras polidas, palavra fluente, linguagem característica de um homem de esquerda,
entremeando a terminologia dos novos marxistas com o jargão do velho Partido Comunista,
Edmur começou expressando sua simpatia por Getúlio Vargas. Certamente supondo que eu era
parente de Getúlio, afirmou que tinha boas relações com dona Alzira Vargas do Amaral
Peixoto, a quem tratava de dona Alzirinha. [...] Percebendo que as coisas não estavam bem
claras, perguntei a Edmur se ele representava a ALN, ao que respondeu: - Não. Dissentimos de
Marighella e da ALN a respeito da concepção da luta armada e constituímos um grupo que está
seguindo caminhos mais adequados para a contestação armada da ditadura.
- Mas qual é essa concepção e em que consistem esses caminhos?
- Estamos organizando uma "Coluna Móvel Estratégica" que deverá atuar no campo e nas
cidades, sendo que as ações ocorrerão principalmente com apoio dos camponeses. Nas grandes
cidades, nosso trabalho será de arrecadação de fundos, através de expropiações bancárias,
servindo também de agitação e propaganda.
- Vocês possuem homens e armas para levar à prática um plano desse vulto? - indaguei.
- Nosso pessoal, com algum armamento, está em Minas Gerais, São Paulo e Paraná - disse
Edmur.
Depois de prestar uma série de informações sobre a situação da ALN e de outras organizações
revolucionárias, a respeito das quais teceu pormenorizadas considerações, Edmur entrou no
assunto objeto da sua presença na minha casa: por indicações de companheiros daqui do Rio
Grande do Sul, me procurara com a intenção de obter apoio logístico para as ações que levaria
a efeito em Porto Alegre e outras cidades do Estado. Disse-lhe que não poderia responder nada
antes de consultar os companheiros e de, se possível, realizarmos uma reunião para discutir o
assunto. Marcamos um ponto, com dia e hora, para a semana seguinte.
Sempre muito polido, pediu-me a gentileza de guardar uma pistola Lugger, que tirou da pasta,
esclarecendo que desde 1964 vivia na clandestinidade e não era conveniente carregar aquela
arma de guerra. E despediu-se fazendo uma reverência, como se estivéssemos vivendo no
princípio do século.
261
260
VARGAS, Índio. Guerra é Guerra, dizia o torturador. Op, Cit. p.40
261
Idem.
169
Edmur foi preso em 1970 e banido para o Chile junto com outros 69 presos
políticos, trocados pelo embaixador suiço Giovanni Enrico Bucher, sequestrado em 7
de dezembro daquele ano. Depois de sua passagem pelo Chile as datas que pontuam
seu paradeiro começam a ficar imprecisas. Em junho de 1971, teria tentado retornar
ao Brasil, via Uruguai, mas foi detido por autoridades brasileiras e argentinas no
aeroporto de Ezeiza, em Buenos Aires. Ali foi presumivelmente colocado em um
“vôo da morte”, sendo jogado ao mar. Índio Vargas relembra da notícia que leu sobre
Edmur, dando conta da captura do guerrilheiro, que nunca mais seria visto.
[..] foi morto de uma forma brutal. Ele foi preso em Ezeiza, aeroporto de Buenos Aires, e isso
eu vi em uma notícia do Correio do Povo, pequenininha assim na primeira página, o Correio do
Povo dava o noticiário internacional. E veio pela United Press: Edmur Péricles Camargo,
brasileiro, e José Maria Rita, foram presos ontem à noite no aeroporto de Buenos Aires, de
Ezeiza, em Buenos Aires, e levados por pessoas que falavam espanhol e português. Levados
para um avião aonde foram embarcados. E não se tem mais informação do destino. Nunca mais
se falou no Edmur, aquilo ali era um avião da FAB que ia pra lá, para pegar esse pessoal, e eles
atiravam no mar.
262
O desparecimento de Edmur foi investigado por Jair Krischke, anos mais tarde,
chegando à conclusão de que ele teria sido entregue ao avião da FAB por ordens do
embaixador Manoel Pio Corrêa, que comandou o serviço secreto de inteligência,
implantado no Itamaraty, destinado a monitorar os opositores do regime no exterior.
A data do desparecimento, no entanto, ainda trafega em dúvidas. Os ativistas dos
direitos humanos Nilmário Miranda e Carlos Tibúrcio sustentam que a detenção em
Ezeiza e troca de aviões pode ter acontecido em 1973, após uma fuga estratégica do
Chile
263
. Ironicamente, um documento de teor secreto, emitido pelo Ciex em 21 de
outubro de 1971, dá conta de que Edmur teria sido detido em Ezeiza em 17 de junho
de 1971, sendo entregue a policiais brasileiros e argentinos, não tendo mais se
comunicado com seus companheiros em Montevidéu ou Buenos Aires.
264
262
VARGAS, Índio. Entrevista citada.
263
MIRANDA, Nilmário, TIBÚRCIO, Carlos. Dos filhos deste solo. Mortos e desparecidos políticos durante
a ditadura militar: a responsabilidade do Estado. São Paulo: Boitempo. 2000. p 481.
264
CIEX/SECRETO. No 429, em 21/10/71. Avaliação: B-1. índice. Chile: atividades de asilados e refugiados
brasileiros. Documento: EDMUR CAMARGO. (fonte: Movimento de Justiça e Direitos Humanos – RS)
170
3.4 - Adán Fajardo luta pela dignidade.
Boa parte das famílias exiladas em Rivera não teria as mesmas condições de
sobrevivência em um ambiente de crescente hostilidade política sem o auxílio
incondicional do advogado Adán René Fajardo. Militante da Lista 99, fração de
esquerda do Partido Colorado, Fajardo atuou junto ao amigo e futuro senador pela
Frente Amplia, Zelmar Michelini, na proteção dos refugiados políticos que aportavam
em Rivera. Amigo de Antônio Apoitia Neto, que no Brasil realizava um trabalho
semelhante em prol das famílias afetadas pelo golpe, Fajardo intercedeu diretamente
a favor dos exilados, no âmbito circunscrito do poder político de Rivera e também
junto à comissão de direitos humanos da OEA (Organização dos Estados
Americanos). A presença dos militantes clandestinos que chegavam cada vez com
mais frequencia ao escritório instalado na Calle Agraciada 486, marcou a infância de
Jorge Washington Fajardo, então com seus 10 anos de idade em 1964. Naqueles dias,
seu pai vivia a intensidade da luta política que se desenrolava no Uruguai, já sob um
estopim social que prenunciava uma crise dos partidos tradicionais e o surgimento de
propostas mais radicalizadas, à esquerda. Junto ao amigo e correligionário Zelmar
Michelini, Adán Fajardo viveu os momentos angustiantes do purgatório ideológico a
que iam sendo submetidos os setores identificados com a centro-esquerda do
tradicional Partido Colorado. O resultado foi a criação do Frente Amplio, uma
coalizão que surgiu em 5 de fevereiro de 1971 e que elegeria Zelmar Michelini como
seu autêntico representante no senado da república.
Antes da consolidação da Frente, no entanto, Adán Fajardo, Zelmar Michelini e
os setores progressitas ligados a partidos tradicionais e da própria esquerda, faziam
uma leitura clara dos acontecimentos que levaram ao golpe no Brasil. Desde então, já
identificavam claramente a ofensiva norte-americana no continente. Para eles, seria
uma questão de tempo para o Uruguai e os países vizinhos serem engolfados pelo
autoritarismo que se desenhava no Brasil. Com denúncias desse teor, que atestavam a
união da oligarquia brasileira com os ditames políticos norte-americanos, Adán
Fajardo proferiu um discurso, em novembro de 1966, na avenida Sarandi, a poucos
metros da linha divisória. O evento político foi ouvido do outro lado da linha e o
171
advogado foi convidado a comparecer ao quartel do comando militar, em Santana. Lá
foi recebido e intimado não mais cruzar a linha de fronteira, pois não contaria com o
salvo conduto da proteção consular, como naquele momento. Fajardo permaneceria
assim, impedido oficialmente de cruzar a linha de fronteira até a chegada da abertura
política brasileira.
265
Dentro da Lista 99 e posteriormente no Frente Amplio, Adán defendia um
nacionalismo sem vinculações ideológicas com Cuba ou União Soviética. Era a
“América Latina para os Latino-Americanos”, como costumava apregoar, ou seja, um
caminho popular e terceiro mundista, desvinculado do modelo cubano ou chinês.
Com a chegada cada vez maior dos militantes brasileiros em trânsito pela fronteira,
em especial a partir de 1968, Fajardo coloca em prática a solidariedade gestada nos
encontros partidários. Jorge sublinha alguns nomes desses hóspedes, entre tantos que
se valeram da chácara de seu pai, na localidade de Vila Sara, a cinco quilômetros do
centro de Rivera: Edgar, Guedes, Viana, Machado, Tarso. Muitos aproveitavam para
descansar uns dias e continuavam a fuga, com destino ao Chile, Argentina, Cuba, e
até Costa Rica, pelo simples fato de que o país não possui exército. Era o trauma da
repressão que já deixava suas marcas.
Para um adolescente que experimentava as revelações da vida pela primeira
vez, as marcas da violência brasileira e do estado policialesco que se criava no
Uruguai foram definitivas. Jorge viveu o cotidiano dos fugitivos ao lado de seu pai,
sentiu de perto a perseguição política que se desenhava cada vez mais forte no
Uruguai e dividiu com os protagonistas desse tempo as frustrações e esperanças.
Nossa casa foi baleada várias vezes pelo esquadrão da morte, colocavam legendas na frente da
casa, comunista tupamaro, vai embora. Entende? A mim e a minha irmã meu pai teve de nos
esconder em uma chácara. E eu via aqueles rapazes jovens, cheios de alegria, às vezes
choravam por suas famílias que ficaram para trás, só diziam que lutavam pela liberdade. E eu
não entendia porque os bons, que riam como bons, choravam como bons, falavam como bons,
eram atingidos daquela maneira. E foi criando em mim uma rebeldia, que marcou meu
temperamento, minha cultura, na mão do meu pai, na mão do Zelmar Michelini.
266
Na OEA, Adán Fajardo e Zelmar Michelini apresentaram uma lista de pessoas
que estavam sob perseguição política na fronteira e que poderiam ser seqüestradas.
265
conforme FAJARDO, Jorge. Advogado. Entrevista concedida ao autor.
266
Idem.
172
Isso fez com que a região ficasse um pouco mais visada pelos organismos
internacionais de proteção e, de uma maneira ou de outra, ajudou a consolidar um
espaço de relativa paz. Também foi decisiva a atuação de Adán logo após a tentativa
de seqüestro de Beno Orlando Burmann, entre as ruas Uruguay e Monsenhor Vera,
bem próximo a sua casa. Quando o ex-policial Oscar Fontoura Chaves foi
seqüestrado com a anuência da polícia uruguaia e levado para Artigas, em 1965, a
pedido da ditadura brasileira, foi Fajardo que intercedeu pela sua liberdade, brandindo
as razões da OEA e ameaçando tornar o caso uma questão internacional. A estratégia
deu resultado e Oscar Chaves retornou para Rivera.
267
O advogado Adán René Fajardo, solidário com o grupo exilado em Rivera.
267
Ibidem.
173
Em Rivera, a comunidade de auto-exilados e perseguidos pela ditadura
brasileira aumentava dia-a-dia desde a decretação do AI-5. Entre o grupo ligado de
alguma maneira ao advogado Adán Fajardo, transitavam Tarso Genro, Edgar Soares
Guedes, Ulisses Villar, Estoécel Santana e Adamastor Bonilha, que integrara o grupo
de Jefferson Cardim Osório na chamada “Guerrilha de Três Passos”, em março de
1965. Para garantir a sobrevivência, realizavam todo o tipo de pequenos trabalhos.
Bonilha trabalhava em um açougue, Estoécel criou um cursinho de reforço escolar e
pré-vestibular, onde Tarso dava aulas de portugês junto a outros exilados. Assim
conseguiam suprir as necessidades básicas. Alguns contavam com o auxílio de suas
famílias no Brasil, quando isso era possível. Com uma gradual retração da sociedade
fronteiriça frente ao grupo desterrado, fruto de uma intensa propaganda ideológica
que só iria aumentar, a solução era a criação de cotas de auxílio entre os melhor
estabelecidos, e a solidariedade direta. Fajardo comenta:
Não existia trabalho formal, pois quando existe um golpe e se estabelece um status quo oficial,
em um esquema autoritário, a sociedade resiste ao exilado, porque responde ao mando do poder
de turno, dos militares. Ninguém dava trabalho formal, só os da esquerda, em algum escritório.
Do tipo, toma e paga essa conta para mim em um banco, por exemplo. Para não dizer que está
dando de comer apenas, por um problema de dignidade. Então houve uma co-gestão, um
aprender a organizar-se como movimento social oprimido, uma cultura, uma forma muito
interessante de resistir a opressão, a fome, a perseguição. [...] Ao invés de falar de solidariedade
nós a praticávamos. [...] E comiam o que nós dávamos, não plantávamos no sítio, pois eles não
eram agricultores, eram revolucionários urbanos, sob a influência de Guevara, de Goulart, ou
Prestes. [...] E fazíamos fundos para eles. Meu pai muitas vezes entrou no quarto e pediu para
minha mãe, que eu vi, Haidé, me dá três camisas, três calças e três casacos. Meu pai dava a sua
roupa, e quando vinha alguém com crianças, pegava a nossa roupa e as dava. Esse era o
conceito de solidariedade que usavam alguns dirigentes políticos daqui, e houve mais além do
meu pai, pelo menos 10 a 15 homens muito comprometidos com essa causa, como o doutor
Silva Antuña e outros. Fazíamos coletas para ajudá-los, logo que chegavam, e depois cada um
ia buscar uma forma de viver. Muitas vezes o próprio Tarso fazia mandados, as chamadas
changas”, “gestiones”, “tramites de papeles”, trabalhos informais, mas nenhum esteve preso
por ladrão.
268
Entre os expatriados que ficaram na fronteira, uma característica singular desse
convívio político se dava mais uma vez, com a inclusão dos militantes políticos
brasileiros na desesperada luta da esquerda uruguaia pela manutenção da democracia.
Logo depois da criação da Frente Ampla, em 1971, e nos meses que antecederam as
eleições de 28 de novembro, Rivera seguia o trepidante ritmo da militância, que
268
Idem.
174
buscava a eleição do general da reserva Líber Seregni para a presidência de um país
convulsionado. De um lado, a crise econômica balançava as minadas estruturas
sociais, de outro, a atuação da guerrilha tupamara alcançava êxitos nunca imaginados,
como o sequestro do Cônsul do Brasil em Montevidéu, Aloysio Dias Gomide, e do
agente da CIA e instrutor de tortura, Dan Mitrione, que não sairia vivo. A Frente
Ampla, por sua vez, buscava uma alternativa democrática para a crise. No entanto, o
destino da nação, a exemplo do que aconteceu no Brasil, estava sendo selado pelas
forças militares, coadunadas com os setores conservadores da sociedade, sob o
auspício de Washington
269
. Nem mesmo a opção de uma vitória de Wilson Ferreira
Aldunate, candidato pelo Partido Nacional (Blanco), constava como hipótese
aceitável. De acordo com revelações do general da reserva Rui de Paula Couto, que
serviu na embaixada brasileira em Montevidéu de 1967 a 1969, era certa uma
intervenção militar brasileira no país, caso Aldunate ou Seregni fossem os vitoriosos.
A operação, segundo o militar, teria sido mesmo solicitada ao exército brasileiro pelo
presidente Jorge Pacheco Areco.
270
Sob a anuência norte-americana, a Operação
Trinta Horas, como ficou conhecida, devido ao tempo necessário para o exército
brasileiro tomar todo o território uruguaio, não seria confrontada pelo exército
oriental. Serviria para pressionar a população civil a abandonar as bandeiras da
oposição, reprimir o movimento tupamaro e preparar o terreno para um golpe
promovido por Pacheco Areco. O Terceiro Exército usaria as fronteiras como base
para a invasão, e Santana do Livramento era uma peça chave no plano.O historiador
Enrique Serra Padrós deteve-se no exame daqueles acontecimentos, através da análise
de artigos publicados na imprensa uruguaia, em especial no semanário Marcha, além
de documentos desclassificados pelo governo norte-americano e uma seleta
bibliografia. Chegou a conclusão que o plano para a invasão do Uruguai,
efetivamente existiu, conforme delimitou:
[...] pode-se concluir que houve uma operação militar brasileira para intervir no Uruguai que só
não chegou à fase final, por causa da derrota eleitoral da Frente Ampla. Portanto, as denúncias
269
Para uma compreensão maior da influência norte-americana no golpe brasileiro, ver: FICO, Carlos. O
grande irmão – da operação Brother Sam aos anos de chumbo. O governo dos Estados Unidos e a ditadura
militar brasileira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
270
As revelações foram feitas por Rui de Paula Couto ao jornalista José Mitchell em janeiro de 2007, no
programa Histórias, da TVCOM – RS.
175
feitas por parte da imprensa uruguaia não eram só propaganda política de esquerda [...]
Também se pode afirmar que os EUA não só conheciam o plano como o encorajavam.
271
Nesse contexto, a militância de exilados e partidários do Frente Amplio em
Rivera, a poucos metros do território nacional, tornavam-se alvos cada vez mais
visados. Naquele momento valia mais do que nunca a premissa do fim das fronteiras
geográficas, em contraposição às fronteiras ideológicas, como sublinhava a Doutrina
de Segurança Nacional. O clima repressivo no Uruguai já beirava a total insensatez.
Conforme Padrós:
A política de Pacheco Areco acentuou a crise. O uso indiscriminado de leis de exceção, as
Medidas Prontas de Seguridad, antecipou a gestação de um Estado repressivo inédito. Seu
“ministério de empresários” loteou o Estado entre grupos que o representavam. O congelamento
de salários e a repressão contra os trabalhadores foram uma marca da sua administração.
Assumindo o discurso anticomunista da Doutrina de Segurança Nacional, todos os “focos” de
questionamento a seu governo e sua política econômica foram acusados de subversivos e
duramente atacados. Assim, proibiu jornais de oposição e inúmeras organizações políticas. Para
combater a resistência da Convención Nacional de los Trabajadores (CNT) e do sólido
movimento operário, militarizou empresas públicas e privadas, confinando trabalhadores
grevistas em quartéis, impondo a disciplina militar nas fábricas, bancos e estatais.
272
A esta altura, no inverno de 1971, a possibilidade de invasão do país já era de
conhecimento da liderança da esquerda uruguaia, que monitorava o movimento
militar na região e as conversas que vazavam da soldadesca
273
. A presença norte-
americana na fronteira foi confirmada pelo coronel Dickson Grael, um entusiasta do
golpe de 64, que na ocasião se indispôs com seus superiores por discordar do plano
de invasão. Comandante do 22º Grupo de Artilharia de Campanha, Grael participou
dos preparativos da ação e revelou que os desdobramentos da ação política dos
exilados na fronteira preocupava os generais. De acordo com Grael, a participação
ativa dos exilados brasileiros na campanha da Frente Ampla preocupava o regime
brasileiro, pois caso a vitória se confirmasse, o grupo poderia tentar ações mais
ousadas, como se infiltrar no Rio Grande do Sul, denunciar a ditadura nos organismos
internacionais de direitos humanos ou retomar uma nova ofensiva. Uma vitória da
271
PADRÓS, Enrique Serra. A ditadura brasileira de segurança nacional e a Operação 30 Horas:
intervencionismo ou neocisplatinização do Uruguai ? Ciências & Letras. Porto Alegre n.37, p. 227-249,
jan./jun. 2005
272
Idem. p.228.
273
conforme BUTAZZONI, Fernando. Seregni-Rosencof. Mano a Mano. Montevideo: Aguilar, 2002.
176
esquerda uruguaia naquele momento seria um baque muito forte na “segurança
nacional”, preconizada pela nova doutrina.
274
Em Rivera, os grupos de exilados que aderiram à luta frenteamplista reuniam-se
em um trabalho de mobilização popular que unia em um projeto comum, militantes
do Partido Comunista Brasileiro, adeptos da luta armada, dissidentes de organizações
revolucionárias que buscavam reconstruir suas vidas em Rivera. À noite, reuniam-se
em bares como a Metropolitana ou a Sabo (lê-se Sabô), locais que abrigavam os
militantes da esquerda local. Ali trocavam opiniões sobre o rumo político que deveria
nortear a frente uruguaia, pesando os erros que haviam levado o Brasil para o golpe,
em um momento de extrema confrontação ideológica.
Jorge Fajardo rememora,
Além da Metro, havia a Sabo, onde estudantes se reuniam e preparavam a reação ao golpe que
se armava no Uruguai no início dos anos 70 [...] lideranças como “Bocha” Feijó, Lombardo,
padre Veríssimo, padre Rangel [...] Ali foi um lugar incrível, e se conversava muitas horas
como deveria ser a unidade popular. E os exilados brasileiros estavam junto com nós, e muitos
se entrosaram na plataforma de luta nossa. Tomaram partido, e lutaram ao lado nosso. Gente
como o Bonilha, o Machado, o Pereira, o Edgar, essa gente lutou ao lado de meu pai, com o
Michelini. Plínio Pereira, Adamastor Bonilha, Edgar, que foi prefeito de Pelotas, Machado, toda
essa gente apoiou Michelini e meu pai porque já os conheciam. E mais que um apoio a uma
premissa ideológica, era um apoio a pessoas que encarnaram a causa da liberdade, era um apoio
fraterno como dizendo tu foste meu irmão quando tive fome, tive sede e tive frio. Tu foste meu
irmão quando fui perseguido. Era uma fraternidade espiritual, cultural e social. Não puderam
participar das listas porque não tinham cidadania uruguaia, mas eu os via participando dos
comitês de base, conversando, criando consciência política nas pessoas. Não vou dizer que
estavam fazendo um trabalho contra o governo, porque se cuidavam, mas com suas
experiências de vida, estavam demonstrando às pessoas em que consistia a luta, que havia que
organizar-se para não perder as instituições democráticas, senão ia acontecer o que acontecido a
eles no Brasil. Então a testemunha de vida deles falava mais que qualquer esquema teórico.
Diziam, defendam sua liberdade, sua democracia, se organizem, porque tivemos um golpe no
Brasil e pode vir a acontecer o mesmo aqui.
275
A vitória do colorado Juan Maria Bordaberry abortou o plano de invasão e
colocou fim ao sonho de um novo desenho democrático para o país, agravando ainda
mais a escalada de conflitos políticos. Uma soma de fatores, como o agravamento da
crise econômica, o impasse político e o crescimento dos movimentos populares
acirraram a crise, que resultou em um desfecho dramático, em 27 de junho de 1973.
274
As revelações constam em GRAEL, Dickson. Aventura, corrupção e terrorismo. À sombra da
Impunidade. Rio de Janeiro: Vozes, 1985.
275
FAJARDO. Jorge. Entrevista citada.
177
Nesse momento, Bordaberry decretou a dissolução do parlamento e a criação de um
conselho de estado, sob a gestão unilateral das oligarquias, com o aval de setores
ultraconservadores das Forças Armadas. Estava dado o golpe de estado que
transformaria o Uruguai em um dos países mais policiados do Cone Sul, além de
promover graves atentados contra os direitos humanos.
Com o golpe o exílio também mudou de endereço. Nesse momento, eram os
uruguaios, militantes da esquerda, que tinham de fugir para o Brasil. O espanhol
Antônio Higueras, militante da Frente Ampla, vivera desde criança no Uruguai, mas
não era naturalizado, como depois viria a ser no Brasil. Com o golpe, sua
permanência em Rivera mostrava-se cada vez mais perigosa. Em uma ocasião,
Antônio e dois amigos foram presos depois de uma reunião com o padre Veríssimo,
sempre visado pela repressão uruguaia. Pouco depois, em 1976, foi expulso do
Uruguai e aconselhado por um amigo da polícia a deixar o país imediatamente, para
evitar uma perseguição que já se mostrava implacável. Antônio então atravessou a
linha de fronteira e viveu os anos seguintes em Santana do Livramento. Muitas vezes
acolheu companheiros que fugiam da ditadura uruguaia e os encaminhava para o
interior do Brasil. Ele recorda dos momentos de tensão e o estado policialesco em que
se convertera o Uruguai :
Em 1971 a coisa já vinha preta [...] já estava decidido [...] e eu já não estava filiado ao partido
comunista, era um militante independente da Frente Ampla. Logo depois da eleição de 1971
minha casa foi invadida e meu cunhado seqüestrado, pois fazia parte de uma célula pseudo-
tupamara que se formou aqui em Rivera, na verdade mais romântica que outra coisa. E está
desaparecido até hoje.[...] Eu não era cidadão uruguaio, era estrangeiro. E o fato de eu morar
em Rivera, ser casado com uma uruguaia e ter dois filhos uruguaios, não valeu nada para
impedir a minha expulsão, depois do golpe, ao contrário. Eles queriam banir os comunistas,
pois estes eram mais perigosos para o sistema, embora não fossem adeptos da luta armada. E no
mesmo dia da minha expulsão, pegaram um amigo e o levaram ao exército, e o deixaram
paralítico com as torturas. [...] E com o golpe deram poder a todos os milicos, então qualquer
milico era um ser superior em cima de ti. Qualquer milico idiota, baboso, ladrão,
contrabandista, tinha poder sobre ti. E depois eu não tive coragem em nenhum momento de
entrar em Rivera, porque se me pegam eu estava perdido, por isso não arrisquei.
276
Na fronteira, a luta pelos preceitos defendidos pela esquerda antes do golpe se
desenvolvia aos trancos, com a influência da experiência brasileira, gestando uma
cultura política singular. A reação da população, no entanto, não pesava todos os
276
HIGUERAS, Antônio, construtor, artista plástico. Entrevista concedida ao autor em 23 de julho de 2007.
178
fatores de risco que estavam envolvidos em uma derrota da democracia, e o alto preço
que isso poderia significar. Jorge Fajardo lembra do comportamento refratário às
propostas do grupo progressista.
[...] as pessoas em geral não entendiam, que já se estava gestando um movimento reacionário
em nível de América, de mãos com os Estados Unidos e o capitalismo reacionário. As pessoas
diziam, não, esses são uns barbudos cubanos. Estão fazendo isso porque estão com a febre de
Cuba, olhem que democracia, olhem que liberdade. E menos de três anos depois, golpe de
estado! Era muito difícil ser de esquerda no interior do país, era mais fácil em Montevidéu,
porque ali se concentravam os focos culturais. Os que éramos de esquerda aqui, éramos loucos,
comunistas, de forma depreciativa. Tupamaros, ralés, ressentidos sociais.
277
Adán Fajardo esteve com Zelmar Michelini poucos dias antes do senador
uruguaio ser seqüestrado e assassinado em Buenos Aires, em maio de 1976. Isso o
fazia um alvo sempre vigiado pelos órgãos da repressão uruguaia. Ainda assim, nunca
abandonou a luta política e em defesa dos exilados, pelas quais sofreria as pesadas
retaliações da ditadura uruguaia. Adán foi cassado de seu cargo de advogado do
Ministério do Trabalho e seu filho Jorge, que havia sido preso em 1973, aos 17 anos,
por lutar por uma resistência cultural ao golpe, foi impedido de ocupar cargos
públicos por toda a ditadura. Adán faleceu em 25 de agosto de 1996. Daqueles anos
de militância, solidariedade e intenso conflito ideológico, Jorge Fajardo recorda :
Eu quando criança sofri muito. No colégio, ser filho de um frenteamplista era uma marca. Mas
dou graças a Deus e a meu pai, que me fizeram suficientemente forte para que não me
quebrassem. Teve muita gente que se quebrou. E hoje sou simplesmente um cidadão que apóio
a luta, mas sem ressentimentos, graças a formação cristã que tenho. Sou militante de base cristã,
minha luta revolucionária é de perspectiva cristã. Houve gente, padres, sacerdotes, muito
comprometidos, como Veríssimo, que morreu quase castrado, o machucaram muito. [...] Eu vi
com meus olhos o que é a fraternidade, não li em nenhum livro. Quando era criança eu aprendi
a entender o que é a fraternidade e solidariedade com o suor, com as lágrimas, com a
perseguição. Esse é o melhor livro para se ler, e eu o li. Quando nos balearam a frente da casa, e
pintaram nos chamando de tupamaro, comunistas, quando o meu pai ficou sem trabalho, e eu
fiquei sem trabalho. Isso forjou gente com um talento incrível. Veja onde está Tarso, esse rapaz
que dormiu no meu quarto.
278
277
FAJARDO, Jorge. Entrevista citada.
278
Idem.
179
Jorge Washington Fajardo: lembranças de uma juventude engajada.
O golpe militar no Uruguai significou um revés ao status de relativa
tranqüilidade que o grupo estabelecido em Rivera desfrutava. Para os líderes
depostos, como Leonel Brizola e João Goulart, o cerco iria se mostrar ainda mais
duro. Jango seria praticamente impedido de circular livremente por Montevidéu,
ficando acuado em sua estância de Taquarembó. A família Goulart sentiu de perto a
repressão mais estreita e os difíceis anos que estavam por vir. No momento do golpe,
foram mantidos sob vigilância, aprisionados em um quartel nas cercanias de
Montevidéu, conforme recorda João Vicente Goulart, filho de Jango:
Saímos já do ginásio encarapuçados e fomos levados para esse batalhão de Engenharia número
quatro, situado na Laguna del Sauce [...] e estivemos lá encarapuçados. Eu, como tinha 16 anos,
fiquei quatro dias.
279
Na fronteira, os anos imediatamente posteriores ao golpe cívico-militar no
Uruguai foram de extrema vigilância e repressão aos militantes políticos,
remanescentes da democracia que um dia floresceu em ambos os lados da linha
divisória. Se no Uruguai a repressão atingia níveis nunca vistos por uma população já
bastante atordoada, no Brasil a situação não era diferente. Crescia a desconfiança
entre os setores empresariais que deram apoio ao golpe e o segmento militar, graças a
tendência centralizadora e estatizante do estilo de Ernesto Geisel governar. Ao
279
GOULART, João Vicente. Depoimento a Deraldo Goulart. In: Jango em Três Atos, documentário, 2008.
180
mesmo tempo, a crise do petróleo decretava o final do chamado “milagre
econômico”. Diante desses fatores, as eleições de novembro de 1974 transformaram-
se em um verdadeiro plebiscito nacional contra o regime, conferindo uma substancial
vitória da oposição no senado e um avanço real na Câmara. Isso provocou um
enfraquecimento na legitimação do poder ditatorial entre diversos setores da
sociedade, incluindo os mais conservadores. Aos grupos refratários, como os exilados
em Rivera, restava a vigilância e a repressão aberta de dois estados policialescos.
Conforme assinala o pesquisador Bernardo Kucinski,
Quando os “castelistas” retornaram ao palácio presidencial em 1974, o poder militar efetivo era
exercido muito mais através dos mecanismos de vigilância policial do que pelo fogo dos
tanques e canhões. O famoso “regime militar” era, na verdade, um estado policial,
conseqüencia natural da primazia da luta contra o “inimigo interno”. [...] Subversão combate-se
muito mais com vigilância, delação, espionagem e tortura, do que com tanques e canhões.
Assim, quando a luta contra as guerrilhas chegou ao fim em 1972, estava consolidado um
estado policial, uma complexa teia de organismos de espionagem que tinha no seu centro
nevrálgico o Serviço Nacional de Informações [...]
280
Vladecir Fagundes lembra dos anos de extrema vigilância policial na fronteira,
quando os uruguaios tinham de buscar informações sobre o que acontecia no âmbito
da política latinoamericana nos jornais brasileiros, em especial o Coojornal. Criado
em 1975 por uma cooperativa de jornalistas em Porto Alegre, o Coojornal denunciava
as arbitrariedades do poder militar, entre outras pautas que não eram simpáticas aos
interesses da grande imprensa, comprometida com a nova ordem. Para os uruguaios,
era necessária uma precaução extrema no momento de cruzar a linha divisória e
adquirir o jornal, pois as bancas de revista próximas de Rivera não raro estavam sob a
vigilância de algum informante da polícia uruguaia. Pedro Dávila de Mello, filho do
militante Romeu Figueiredo de Mello, cuja família já vivia exilada em Rivera desde
1964, lembra da extrema violência de que se revestiu o golpe uruguaio.
281
Naqueles
dias, as ruas de Rivera eram vasculhadas por soldados, a bordo de jipes militares.
Bastava um olhar equivocado e as forças policiais apreendiam ao quartel quem quer
que fosse. Os reflexos daqueles anos de medo foram anotados por Marco Antônio
Villalobos.
Os carros de combate e os militares armados que mudaram a paisagem do centro de
Montevidéu em seu avanço sobre o Congresso trouxeram consigo a marca da repressão. Nesse
280
KUCINSKI, Bernardo. Abertura, a história de uma crise. São Paulo: Brasil Debates. 1982, p.17.
281
MELLO, Pedro Antônio. Entrevista Citada.
181
primeiro momento, que serviu para consolidar a oficialização da Doutrina de Segurança e a
conseqüente reestruturação institucional, o governo mostrou que veio para desmantelar a
resistência de entidades representativas da sociedade uruguaia. Segundo a Anistia Internacional,
somente entre 1972 e 1976, mais de 40 mil pessoas foram detidas em prisões e quartéis. Um
habitante em cada 100 foi torturado, e um em cada 500 processado pela justiça militar. [...] a
tortura começou a ser aplicada pela polícia nos presos comuns e se expandiu para os detidos
políticos, na década de 60. A partir da nova situação que se instaurou em 72, com a passagem
de todos os presos políticos à órbita da justiça militar, esta prática alcançou níveis alarmantes.
Todos os organismos envolvidos na repressão política entre 1972 e 1985 estiveram implicados
em maus tratos.
282
A situação das famílias exiladas em Rivera, especialmente das mulheres e
crianças, que podiam atravessar para o território brasileiro, também seria afetada com
o endurecimento do regime uruguaio e a eterna vigilância da polícia brasileira.
Alguns filhos de exilados estudavam em colégios de Santana, como o conhecido
“Colégio Estadual”, e atravessavam diáriamente a linha divisória para ir e vir. Muitas
vezes, no entanto, a polícia brasileira não admitia as características dessa
singularidade da luta política, que degredava o pai, mas não impedia o filho de
manter uma vida de cidadão brasileiro, já que nada constava contra os menores.
Sérgio Burman lembra de sua adolescência, vivida sob o clima pesado que por vezes
rondava a condição de filho de exilado.
Tinha um delegado da polícia civil aqui, que não tinha nada a ver com as coisas - o Savi - que
era horrível. Mas eram pessoas que queriam fazer nome em cima dos exilados. Ele me
perseguiu, eu e meu irmão, ele conhecia o nosso carro. Eu dirigia, a gente saía sem carteira, e
coisa...a gente saía para dar uma voltinha de carro, e uma vez ele nos perseguiu. Eu nunca
entrava na BR. Sempre ia pelo lado da hidráulica, e eu passei lá no Estadual para me apresentar
para as gurias, e quando eu vejo, desci do Estadual, vinha aquele corcelzinho, aí ele parou e eu
me arranquei e parei numa quadra aqui em Rivera, e meu joelho tremia, e eu tremia tudo... e ele
parou e dizia: tu vai ver, eu sei quem tu é, eu vou prender a tua mãe, o teu pai, não sei o que
mais. Eu nunca vou me esquecer.
283
3.5 – Redes de amizade, parentesco, negociações.
O estabelecimento das famílias de exilados brasileiros na fronteira a partir de
1964 pode ser dividido entre os grupos que já mantinham uma rede de parentes em
Santana e Rivera; como as famílias de Nery Medeiros, Romeu Figueiredo e os
Santana, e aqueles que lá chegavam com pouca ou nenhuma referência, como os
282
VILLALOBOS, Marco Antônio. Tiranos Tremei! : ditadura e resistência popular no Uruguai: 1968-1985.
Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. Pgs. 165, 166.
283
BURMANN. Sérgio. Entrevista citada.
182
Burmann, os Chaves, os Penalvo e os jovens da geração de 68. O sucesso da
permanência na cidade uruguaia dependia de um tênue equilíbrio de forças que exiga
uma constante negociação com a polícia santanense e de Rivera. Para isso, foi de
fundamental importância a constituição de uma rede de amizades e parentesco.
Muitas das famílias que ali conseguiram atravessar os dez anos a partir de 1964,
somente o fizeram devido a anuência dos órgãos repressivos, ou pela influência direta
de parentes ou amigos que de alguma forma mantinham relações com a ditadura.
Assim foi com Beno Orlando Burmann, cujo irmão, Clóvis, era um prestigiado
militar de carreira. A influência do irmão proporcionou uma segurança maior a Beno,
como no episódio de sua prisão no Mato Grosso, em 1965, onde recebeu tratamento
difgerenciado, graças ao bom nome que Clóvis desfrutava na corporação.
Famílias como a de Nery Medeiros e Beno Orlando Burmann mantinham uma
singular relação com Santana do Livramento. Enquanto os patriarcas encontravam-se
impedidos de cruzar a linha de fronteira, seus filhos estudavam em colégios de
Santana. Na escola, essa nova geração conheceu os filhos dos signatários da nova
ordem, que mantinham na cidade uma rede de poderes bem definidos. Não raro as
amizades constituídas a partir desses relacionamentos proporcionaram um
realinhamento de forças e uma visão renovada sobre o grupo exilado. Um episódio
que ilustra a constituição dessa rede de apoio aconteceu em 1974, envolvendo Beno
Orlando Burmann. Depois de ser absolvido dos inquéritos policiais militares a que
estava submetido, graças a um desgastante processo de defesa, tentava embarcar para
Porto Alegre, quando foi detido na rodoviária de Santana por um agente da Polícia
Federal. Sérgio Burmann recorda do episódio, onde foi decisiva a atuação do então
comandante do Sétimo Regimento, Caio Bretas, cuja aproximação com a família
Burmann nasceu da amizade dos filhos na escola.
Nessa época eu estudava com o filho do coronel Bretas, tinha o Caio Túlio e o Caio Augusto. E
eu estava me preparando para fazer Escola Militar lá em Campinas. Ele me cantou, e coisa, ele
conhecia o meu tio, aquelas pessoas que simpatizavam. Tinham uma conduta militar, mas
acompanhavam o que acontecia no mundo. [...] E na hora a Polícia Federal prendeu ele, o
Rolim, esse. E deu uma causalidade de que eu estava junto, fui eu e a mãe levar ele lá. E a mãe
se lembrou, vamos ligara para o coronel! E o homem veio de pijama. Eu liguei, não esqueço.
Disse, olha , aconteceu isso e isso...bah, ele veio de lá, de jipe, e levou preso o cara da polícia
federal, o Rolim. Lógico, botou dentro do jipe e levou para o quartel. Veio com o jipe do
183
quartel, parou tudo, ninguém mais viajou, levou mais de uma hora para viajarem. E depois
contaram que meu pai aparecia ainda na lista dos comunistas.
284
Como no episódio do coronel Bretas, a atitude ponderada de homens que
defendiam a nova ordem, ocupando postos de comando na polícia ou no Exército,
fazia a diferença em momentos cruciais do exílio na fronteira. A atuação de outro
desses homens, o coronel Geraldo Knaak de Souza, então comandante da guarnição
militar de Santana do Livramento em 1965, ficou registrado no livro de memórias de
Manoel Leães, piloto do presidente João Goulart, em um incidente ocorrido naqueles
dias,
Em setembro de 1965, minha viagem através da fronteira Livramento-Rivera terminou mal.
Comprei uma passagem aérea em Livramento, acreditando que a vigilância na fronteira havia
afrouxado. Já estava dentro do avião da VARIG quando entrou o sargento do Exército e me
chamou. Ele ordenou: ‘Desça. O senhor está preso.’. Perguntei o que havia e ele me respondeu:
O senhor sabe o que houve. Desça imediatamente.’ Fui levado para o 8º Regimento e depois
para o 7º, no alto de um morro, nos arredores de Santana do Livramento. Fiquei umas três horas
esperando, até que me chamaram para o interrogatório. Foi aquela conversa para boi dormir.
Diziam que eu era pombo-correio de Jango e que poderiam provar, porque o serviço secreto do
Exército sabia tudo a respeito do Presidente. Disse que minha bagagem estava à disposição.
Constatariam facilmente que não havia nenhuma correspondência em meu poder. Imaginei que,
naquele momento, iniciava-se uma via sacra daz qual não sairia facilmente.
285
A interferência do coronel Knaack, que exercia um posto estratégico no
comando das movimentações do Exército na linha de fronteira, surpreendeu o
assessor de Jango. Em outras ocasiões, como na denúncia relatada anteriormente
envolvendo o jornal Folha Popular, o coronel já havia dado provas de cautela. De
acordo com o depoimento de Perseverando Santana, Knaack era identificado com o
ex-presidente Juscelino Kubitscheck, sendo essa a provável origem de sua conduta
avessa a excessos. Manoel Leães registrou o respeito que o oficial demonstrou pela
situação do ex-presidente João Goulart:
Jamais poderia imaginar que um oficial digno, no comando daquela unidade, não fazia distinção
entre brasileiros. Ele reuniu todos os oficiais e fez a minha apresentação. Disse que eu era
amigo do Presidente João Goulart, vivia no exílio em Montevidéu, mas não deixara de ser
brasileiro. E que merecia todo o respeito possível. Não ia admitir que, em qualquer
circunstância, faltassem o respeito comigo. Aquelas palavras melhoraram muito a minha
situação. Não fui dormir no xadrez, mas fiquei detido no quartel das 8 às 23 horas. Eles
insistiram em conhecer detalhes da vida do Presidente no exílio. Insinuaram que o Presidente
João Goulart conspirava contrao regime dos militares. Respondi que não era verdade. O
Presidente era um brasileiro de índole pacífica que, logo após o golpe militar de 1964, evitou o
derramamento de sangue entre irmãos. E que não adiantava insistirem nas perguntas a respeito
284
Idem.
285
LEÃES, Manoel. Jango, Meu Amigo. Depoimento a Kenny Braga. Porto Alegre: Sulina. 2004.p 62.
184
de sua vida em Montevidéu porque eu não daria qualquer informação. Mais uma vez aquele
oficial digno, que me tratara com civilidade, disse que logo em seguida eu estaria em
liberdade.[...] A viagem de avião para Porto Alegre prosseguiu, sem problemas. Eu tinha em
meu poder um ‘salvo conduto’ assinado pelo coronel Geraldo Knaak de Souza, comandante da
guarnição militar de Livramento.
286
Em junho de 1964, um episódio envolvendo o chefe de Polícia também pendeu
na direção dos contra-revolucionários. Naquela ocasião, o jornalista e ativista do
PTB, Índio Vargas, voltava de Montevidéu, acompanhado do ex-presidente da Caixa
Econômica Estadual, Rafael Pereira Borges, onde esteve reunido com Leonel Brizola,
recém estabelecido no exílio uruguaio. Na volta, munidos de senhas e diretrizes para
os companheiros que ficaram no Rio Grande do Sul, passavam pela fronteira. Ainda
em território uruguaio foram reconhecidos por policiais brasileiros e convidados a
prestar esclarecimentos na delegacia de polícia, em Santana do Livramento. Depois
de um breve relato ao delegado Acílio Pereira da Cruz, foram absolvidos da suspeita
e seguiram rumo a Porto Alegre. Índio Vargas relembra:
[...] nós andava lá em Montevidéu, e quando chegamos na fronteira ali, em Livramento, de
ônibus isso aí, nós demos uma passadinha no Cassino, e depois passamos para o outro lado, é
uma rua só....e dali a pouco chegaram dois caras e disseram assim: ‘os senhores estão
convidados para dar uma explicação ali na delegacia’, delegacia do Brasil já, porque estávamos
em território brasileiro. E nós fomos. ‘Queremos saber onde é que os senhores andavam, o que
os senhores estão fazendo aqui, nós temos instruções para levá-los para a delegacia’. Podemos
ir, não tem problema nenhum. Nós viemos em Livramento, dar uma passadinha em Rivera, no
Cassino. Eu até nem conheço bem cassino, eu vim porque todo mundo vem aqui. [...] nós
viemos para dar uma jogadinha e depois comprar algumas coisinhas ali por Rivera, mais barato
né. Mas eu quando o homem disse isso aí, a primeira coisa que eu fiz foi engolir o código esse
que o Brizola fez. E o Rafael era mais sabido, mais malandro, não chegou a engolir, ficou com
o código dele (risos). E deu a explicação e colou perfeitamente.
287
Índio Vargas e Rafael Pereira Borges desconheciam, no entanto, a proximidade
do delegado com a coloração petebista, em especial com o presidente deposto.
Membro efetivo do PSD, designado pela Secretaria de Segurança Pública em meados
de 1964 para coordenar a recém criada 12ª Região Policial em Santana do
Livramento, Acílio exercia uma função revestida de enorme importância, dada a
estratégica posição da fronteira naqueles momentos de perseguição política. Após
realizar um amplo e eficaz trabalho no combate ao contrabando de gado em Santa
286
Idem. p.63.
287
VARGAS, Índio. Entrevista citada.
185
Maria, foi transferido para a fronteira, onde seria homem fundamental na vigilância e
no trato com as delicadas questões políticas que envolviam os exilados. Seu filho,
Hamilton, definiu as relações de amizade com a família Goulart e as atribuições de
Acílio quando recém chegado em Santana:
[...] pelo histórico dele na polícia eles acharam que esse era o homem para ir para Livramento.
E efetivamente nós fomos para Livramento, eu servi ao exército lá, trabalhei no Consulado
Brasileiro em Rivera. Foi logo após o golpe, no início de 1964. E aí aconteceram todas aquelas
coisas, e ele por ser homem de princípio muito forte, muito respeitado, muito acatado na
polícia, inclusive nas autoridades, e pela procedência dele, ficou muito complicado pra ele...mas
ele atuou com muita desenvoltura. Ali passaram amigos dele, amigos de infância. Ele é daquela
zona missioneira, meu avô é de São Borja, foi fundador do PTB, e ele (Acílio) foi guri com o
Jango. Meu avô, Leôncio Pereira da Cruz foi um dos fundadores do PTB. E ele é adversário
político do meu avô, ele é do PSD...e meu avô PTB, trabalhista muito forte. Mas aquela
amizade com o Jango transcendia aquela questão política, eles foram guris juntos. Então tu vê
que ficava difícil ele conduzir aquelas coisas porque era um corredor de pessoas que iam pro
Uruguai. Inclusive meu avô foi sócio do pai do Jango, do Vicente Goulart...eles tinham uma
correaria lá em São Borja, a Cruz e Goulart. O meu avô era doutor em cavalos na época,e eles
tinham aras, e meu avô que fazia aquele trabalho todo. Bom, voltando para Livramento, vê que
a coisa é complicada para ele. E ele teve aquela atuação decisiva em Livramento ali, no sentido
de evitar muitas injustiças ali, até por princípio de formação dele. Não que ele favorecesse o
pessoal que passava por lá, mas ele olhava de maneira mais humana a coisa. Inclusive ele
encaminhou para trabalhar com o Jango no Uruguai, amigos dele, que vinham para o exílio.
288
A rede de amizades de Acílio transcendia a opção partidária. Em Santa Maria
havia sido vizinho e muito amigo da família de Adelmo Genro, pai de Tarso, e que
havia sido vice-prefeito pelo PTB na cidade. Na fronteira, mantinha contatos estreitos
com seu antigo parceiro, o policial foragido Oscar Fontoura Chaves, de São Sepé,
com quem trabalhara no combate ao contrabando. Era amigo do historiador Ivo
Caggiani, cuja casa freqüentava. Mantinha com João Goulart e seus colaboradores
diretos em Taquarembó, como Perci Penalvo e sua família, uma amizade
indisfarçada. Hamilton rememorou as relações de seu pai com Jango e seus amigos
íntimos :
[...] O Perci já tava em Rivera, foi perseguido...[...] ele foi para a fronteira, foi para a Rivera. E
meu pai deu toda assistência moral, o amparo aquele, para ele, como autoridade mesmo [...] a
amizade para ele transcendeu sempre qualquer coisa. Por um amigo ele se jogava. [...] O Jango
sempre procurou ele, até como presidente. O Jango sempre tentou de todas as formas levar ele.
Apelidou até depois ele de xerife, depois que ele entrou na polícia. Tentou levar ele para o Rio
de Janeiro, depois para Brasília. O Jango ofereceu, disse: ‘Acílio eu te dou um consulado onde
tu quiser!’ Depois seria um alto cargo lá, queria ele junto dele, ele lutou sempre por isso [...] No
Uruguai continuaram mantendo contato, através de terceiros. Inclusive o Jango teria dito ao
Perci que tinha vontade de retornar, de se apresentar, e mandou preparar ele (Acílio) que ele
288
DUARTE DA CRUZ, Hamilton. Policial. Entrevista ao autor em 12/04/2005.
186
viria através das mãos dele. Que por conhecer ele, pela amizade que eles tinham ele se
apresentaria com ele. Ele sabia que ele teria esse ombro forte. Não como delegado regional,
mas como amigo. [..] mas não houve tempo, depois ele faleceu.
289
Passadas mais de quatro décadas após os acontecimentos no cassino, quando
informado por esta pesquisa das relações de amizade do delegado Acílio e João
Goulart, Índio Vargas reviu o episódio de sua detenção:
Ah, mas então taí a explicação de porque que eu achei que eles foram ingênuos. Eles não foram
ingênuos não. Eles fizeram o que eles acharam que deveriam fazer, e de acordo com a
percepção dele de toda a realidade. Eu sempre dizia...como é que essas pessoas eram policiais e
acharam que nós estávamos jogando lá, eu com essa cara jogando no cassino...Não, eu
jamais...eu achava que eles tinham um critério rigoroso para escolher as pessoas pra esse tipo de
ação. Eles tinham alguma coisa, claro, mas eles não podiam cobrir tudo. Eu achava que ali, o
delegado de Livramento, que era Regional, tinha que ser uma pessoa de absoluta confiança
deles, mas eles não tinham muita gente, essa é a verdade. [...] Tá havendo uma certa explicação
das coisas. Pareceu uma certa ingenuidade. Pessoas passando para se exilar, no outro lado, e
outros para ver cassino, fazer compras...Não era muito convincente, numa época normal seria,
mas não naquela.
290
As relações pessoais, antes dos imperativos ideológicos, também nortearam as
ações do médico Remigio Amorim. O médico militar teve atuação destacada no
auxílio aos que procuravam a linha de fronteira para se encontrar com suas famílias
na clandestinidade. Natural de Uruguaiana, Remigio viveu 25 anos em Santana do
Livramento, onde trabalhou como médico pediatra, alcançando popularidade, o que
lhe valeu o cargo de presidente da APAE e vereador, pela Arena, de 1972 a 1976. Em
1970 foi nomeado diretor do Hospital Militar, onde, segundo o depoimento de Jair
Krishke, promovia o encontro de exilados com seus familiares, vindos de Porto
Alegre ou de algum rincão do país. Seu filho, o delegado de polícia e comunicador,
Hugo Mazeron Amorim, recorda que seu pai fora médico da família do então ditador
Emilio Garrastazu Médici. Esse fato viria a abrir portas e facilitar o contato que
exercia com altos escalões militares da República. Ele mesmo, um “comunista
teórico” e diretor teatral estava na lista da repressão, e teve de ser socorrido pelo pai,
No meu caso, eu era delegado de polícia e diretor de teatro, na época. Inclusive eu ia ser
expurgado da polícia, por meus trabalhos com o teatro, e por ser um comunista teórico, que
sempre fui. Meu grupo era o de Ibsen Pinheiro, Hamilton Chaves, Carlos Araújo e Índio
Vargas. Tínhamos o grupo Nosso Teatro, amador, e promovíamos reuniões onde o assunto
289
Idem.
290
VARGAS, Índio. Op.Cit
187
sempre versava em como íamos derrubar a ditadura. Também tinha o Hélio Fontoura e o Heron
Araújo. Tínhamos sempre de cinco a oito vertentes do que fazer. O Araújo e o Índio Vargas,
por exemplo, entraram para a luta armada. Na época eu era chefe da assessoria do chefe da
polícia, só que o DOPS descobriu nossas reuniões e eu ia ser expulso. Foi quando contaram
para meu pai que eu ia ser expulso. O caso é que o pai tinha sido médico da família do Médici e
também do vice-presidente. Aí ele foi a Brasília e me tirou da lista de expurgo.
291
Hugo Amorim recusa, no entanto, qualquer intuito de colocar seu pai como
“herói” em tempos de ditadura, ou mesmo que fosse um simpatizante das lutas da
esquerda. Confere valor, isto sim, ao espírito humanista do médico, que agia no
intuito de auxiliar as pessoas, sem pesar coloração ideológica. A atuação do doutor
Remigio, contudo, não passou desapercebida aos olhos dos setores mais reacionários
da sociedade santanense, sendo ele denunciado como colaborador da subversão. O
fato não rendeu maiores conseqüências graças aos altos contatos políticos que possuía
entre a cúpula militar. Hugo Amorim recorda das inúmeras vezes que seu pai
intercedeu pelos banidos políticos, que procuravam sua ajuda devido a uma rede de
amizades, que de uma forma ou outra, acabavam chegando até ele. Aos amigos dos
amigos, Amorim proporcionava encontros e inserções no Brasil, graças a obtenção de
salvo-condutos.
[...] Detalhes de amizade, no Brasil, levam as coisas para um lado ou para outro. Há de se
sublinhar que meu pai sempre foi a favor da ditadura militar. É que existem contingências.[...]
Um belo dia, um amigo exilado em Livramento estava com a mãe muito doente em Porto
Alegre. Eu falei com o chefe do DOPS para interceder e deixar ele visitar a mãe. Mas o DOPS
era subordinado a Secretaria de Segurança e nada podia fazer. Foi quando o pai entrou em
contato com o chefe do serviço secreto do 3º Exército e deram salvo-conduto para o cara. A
única exigência era de que eu teria de acompanhar o exilado e não deixar que ele escapasse,
tentasse uma volta clandestina ou coisa parecida. Na primeira vez foi tudo bem, aí sempre que
podia o pai fazia contatos com o 3º Exército e achava salvo-condutos. Isso aconteceu uma
dezena de vezes depois da primeira. [...] Isso durou até 1976, aproximadamente.
292
Fora do restrito círculo de relações da fronteira, no entanto, as interferências e
negociações não se mostravam tão frutíferas. Para Manoel Luiz Coelho, o retorno ao
Brasil revelou-se um equívoco. Em 1974, depois de uma negociação entre sua família
e altos escalões do Exército, ficou acertada a sua volta, sem nenhuma represália. O
resultado, no entanto, foi a traição, como ele conta:
Houve um acordo entre a minha família e as autoridades brasileiras, envolvendo altas
autoridades, inclusive a chefia estadual da polícia, alguns militares graduados também
291
AMORIM, Hugo Mazeron. Policial. Entrevista concedida ao autor.
292
Idem.
188
intermediando. Então, como naquele momento, como muita gente estava retornando para o
Brasil, e eu estava numa situação muito ruim, do ponto de vista de trabalho minha situação era
terrível, não tinha mais perspectivas, o que eu fazia não estava rendendo nada, eu almejava
retornar, realmente. Aí, influenciado pela minha família, eu aceitei, embora tivesse vindo para
consultar alguns amigos aqui em Porto Alegre, clandestinamente, é lógico. E acabei voltando, e
correu como parecia, mas repentinamente me prenderam [...] me torturaram, enfim, tive de
responder um novo processo, um novo IPM. A prisão não foi tão prolongada, uns 20 dias, o
problema foram as torturas.
293
Manoel Luiz Coelho: militância na fronteira foi o pretexto para a prisão no DOPS.
Na carceragem do DOPS, em Porto Alegre, Manoel Coelho foi torturado e
inquirido sobre o chamado “esquema de fronteira”. Mesmo que o serviço de
repressão já conhecesse em detalhes os protagonistas desses meandros na fronteira,
como Beno Orlando Burmann, Coelho negou-se a cooperar. Afirmou que o esquema
consistia em passar as pessoas de um país a outro, geralmente utilizando-se do
serviço de taxistas. Afirmou que Burmann exercia tal função, muito embora isso não
fosse novidade nenhuma para seus inquisidores. Sobre possíveis ligações do grupo da
fronteira com a esquerda uruguaia, em especial os tupamaros, silenciou. No DOPS,
mais uma vez as relações de amizade entre perseguidores e perseguidos falariam mais
alto. Coelho foi liberado, mas tinha de cumprir uma missão.
293
COELHO, Manoel. Entrevista citada.
189
O diretor do DOPS, Marcos Aurélio da Silva Reis, estabeleceu laços de
amizade com Beno Orlando Burmann quando o político era prefeito de Ijuí, e ele era
o delegado de polícia, anos antes. Por isso, pedia a Manoel Coelho que interecedesse
junto ao amigo no Uruguai, para que não voltasse. “Não quero que ele passe por
isso”, dizia. Coelho voltou a fronteira e dali localizou Burmann em um balneário
uruguaio. Chegando lá, o encontrou junto a seu irmão, coronel do Exército, que
passava a impressão de que sua integridade estava assegurada em uma provável volta
ao Brasil. Burmann desprezou totalmente a mensagem de Manoel Coelho, e o
resultado foi sua detenção para interrogatório em Porto Alegre, dois meses depois,
quando tentava estabelecer-se novamente em Ijuí.
O jornal Folha da Manhã, de 12 de março de 1975, denunciava a prisão de Burmann.
190
Considerações Finais
O estudo do exílio brasileiro nessa fronteira com o Uruguai revelou uma região
rica em singularidades culturais e políticas. Neste espaço, onde a urbanização não se
interrompe, onde não existem limites físicos a separar as duas nacionalidades, as
intensas trocas econômicas, culturais, familiares e políticas formaram o que nomeei
como um meio social propício ao desenvolvimento de uma legítima “cultura política
de fronteira”. Essa característica foi sendo forjada ao longo do tempo por relações de
aliança política, dupla atuação, redes de apoio e conspirações praticadas em um
terreno comum, que por muitas vezes desconheceu o limite institucional entre os
países.
Desse intenso relacionamento, essa cultura ora priorizou aspectos de uma luta
eminentemente política, ora aspectos de uma integração econômica que alimentou
lutas comuns à população local. Assim aconteceu em 1903, com a aliança entre
adeptos do Partido Blanco, no Uruguai, e representantes do Partido Republicano
Riograndense, quando do episódio que culminou com a perseguição e morte de
Federalistas, exilados em Rivera. Também ali tiveram lugar as lutas operárias
acontecidas nos frigoríficos Armour e Swift, influencidas pelas melhores condições
de trabalho que os uruguaios desfrutavam, do outro lado da linha divisória.
Interessante observar como essa extensa história de crimes, exílios e solidariedade,
que alimentou uma convivência política em comum, vem somar-se mais tarde, a
experiência dos exilados brasileiros, logo após o golpe de 1964.
A partir do momento em que irrompe o golpe militar, e nos intermináveis dias
que a ele se seguirão, a fronteira retoma sua antiga configuração de terra de exílio,
lugar da negociação e, conseqüentemente, solidariedade. Nesse momento, os
protagonistas das lutas políticas anteriores, como o grupo comunista envolvido na
chacina de 1950, retomam uma teia de contatos e ações que se revelaria de
fundamental importância no suporte aos novos desterrados políticos. Comunistas
como Hélio e Aquiles Santana, Perseverando Santana e Antônio Apoitia, entre outros
atores políticos da sociedade uruguaia, mesmo que precariamente, dão início a uma
191
rede de apoio e recepção aos militantes perseguidos. A essas ações, somaram-se uma
rede já constituída entre esses cidadãos “binacionais”, de contatos políticos e
pessoais, como representantes das polícias brasileira e uruguaia, além de funcionários
públicos que exerciam postos fundamentais em aduanas, consulados, e locais que
envolviam o controle da passagem por esta fronteira.
Dessa delimitada rede de apoio e solidariedade constavam nomes com extensos
serviços prestados às lutas operárias locais, como os militantes do Partido Comunista
Brasileiro, Francisco Cabeda e Côco Fagundes, que desde Rivera preparavam a
passagem de perseguidos políticos para o território uruguaio, ou o clandestino retorno
ao Brasil.
Com o estabelecimento de famílias exiladas em Rivera, e aqui recordo as de
Beno Orlando Burmann, Nery Medeiros, Oscar Fontoura Chaves e Romeu Figueiredo
de Mello, o chamado “esquema de fronteira”, ganharia nova conotação. O abrigo, ou
a rápida passagem de militantes da luta armada, especialmente de 1966 a 1970, revela
um confronto aberto à ditadura que se instalara. Os inúmeros casos de combatentes da
luta armada que buscavam o Uruguai ou retornavam ao Brasil, não passou
desapercebido pelo serviço secreto do Itamaraty. Os arquivos do Ciex – Centro de
Informações do Exterior marcam a passagem de Carlos Lamarca por Rivera, em fins
de outubro de 1969, e também o guerrilheiro Vítor Luis Papandreau seria identificado
em sua passagem por ali, em dezembro de 1970. Pela fronteira também passaram
líderes da ALN, como Joaquim Câmara Ferreira. A esses contatos, e a muitos outros
que buscavam abrigo, Beno Orlando Burmann exercia uma função especial no
“esquema de fronteira”. Através de seus contatos políticos, com o grupo tupamaro e a
linha progressista do Partido Colorado, entre outros segmentos da sociedade
uruguaia, realizava com segurança a entrada - ou saída – do território uruguaio.
Importante notar as diferenças de recepção e estabelecimento nessa fronteira
das gerações de militantes de 1964 e 1968. Os que ali aportaram em 1964 e nos anos
imediatamente seguintes – como os Burmann, Medeiros, Chaves - identificavam-se
com uma militância política já consolidada, e muitas vezes valeram-se de contatos
familiares para consolidar em Rivera uma nova vida no exílio. Já os militantes de 68,
com o advento do AI5 e o recrudescimento do regime, identificavam-se com a
192
esquerda armada, sustentavam planos de insurreição e descartavam muitas redes de
apoio já consolidadas. Assim, a história do exílio brasileiro nessa fronteira ficou
assinalada ora pela exclusão política dos grupos que por ali transitavam, mas também
pelos gestos de solidariedade e reação. Nessas experiências limite que o exílio
proporciona, onde os indivíduos se comportam como “eternos turistas”, nas palavras
de Manoel Luiz Coelho, vigiados por uns, vistos com desconfiança por outros, a
solidariedade foi a marca de uma resistência. Isso não impediu, no entanto, que essa
cruel condição afetasse aquelas pessoas das mais diversas maneiras. A vigilância dos
órgãos da repressão brasileira, e posteriormente as ligações das ditaduras brasileira e
uruguaia, mantinha um eficaz controle das atividades subversivas exercidas na
fronteira. Cada família ou militante estabelecido ali estava devidamente observado e
monitorado em suas atividades, como demonstra o arquivo do Ciex. A sobrevivência
do grupo exilado só foi possível devido a uma constante negociação com os setores
militares e policiais estabelecidos na fronteira, além do estabelecimento de uma rede
de parentescos e de amizades, que muitas vezes funcionaram como um escudo. Isso
não impediu, ainda assim, que muitos vissem suas vidas desmoronarem, sofrendo as
conseqüências irreversíveis da nova condição.
A sobrevivência, e aqui me refiro ao trabalho, dessas famílias em um ambiente
desconhecido e, porque não, hostil, fez-se de formas diversas, mas sempre apoiada na
solidariedade como verdadeiro amálgama. Famílias como a Nery Medeiros se
adaptaram mais rapidamente, permitindo ampliar a ajuda a outros grupos
necessitados, não sem dispensar uma rede de proteção e favores a polícia uruguaia.
Alguns desses exilados buscaram o sustento na agricultura, em sítios, nos arredores
da cidade, porém essas experiências fracassaram. Como bem definiu Jorge Fajardo,
“não eram agricultores, eram revolucionários urbanos, sob a influência de Guevara,
de Goulart, ou Prestes”.
294
Beno Orlando Burmann consegiu unir a clandestina
militância com o trabalho em família, em tentativas comerciais de toda a ordem, entre
erros e acertos que ao final, proporcionou o surgimento da Malharia Burmann, um
singular sucesso comercial na região. Também aos militantes solitários que ali
buscaram refúgio o trabalho seria escasso, ligado as chamadas “changas”, aos
294
FAJARDO, Jorge. Entrevista citada.
193
pequenos contrabandos de mercadorias, ou experiências únicas, como a do curso pré-
vestibular de Estoécel Santana, que abrigou por algum tempo os mais letrados em
suas fileiras. Na investigação desses episódios recentes da historiografia brasileira,
procurei trazer à luz atores políticos que se encontravam circunscritos em uma
dimensão local, mas que protagonizaram de alguma maneira a luta em comum da
esquerda brasileira, onde esta fronteira desempenhou um papel de singular
importância.
A linha divisória: o obelisco do Parque Internacional divide Brasil e Uruguai.
194
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REVISTAS
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Nacional de História. São Paulo, ANPUH, vol.24, nº 47, jan-jun, 2004.
Revista do Programa de Pós-Graduação em História -Dossiê Cultura e Resistência: Dez
anos sem E.P. Thompson. UFSC. Florianópolis: Nº 12. 2004
_____________Dossiê Trabalho, Cultura e Poder. UFSC. Florianópolis: Nº 14. 2005
199
JORNAIS
*A investigação nos jornais obedeceu a seguinte cronologia de fascículos:
A Platéia, de Santana do Livramento - 1964, 1971.
Correio do Povo, de Porto Alegre – 1964, 1965, 1966, 1967, 1968, 1969.
Coojornal, de Porto Alegre - 1978, 1979, 1980, 1981.
El País, de Montevidéu – 1964, 1965.
De Frente, de Montevidéu – 1970.
Folha Popular, de Santana do Livramento – 1964, 1965, 1966, 1967, 1968, 1969.
Jornal da Semana, de Santana do Livramento – 1984.
Diário do Sul , de Porto Alegre - 2008.
Zero Hora, de Porto Alegre – 1968.
Tribuna do Povo , de Santana do Livramento – 1948.
Folha de São Paulo, de São Paulo – 1968.
O Estado de São Paulo , de São Paulo – 1968.
DOCUMENTOS
Documentos Oficiais
* Arquivos do DOPS. Memorial do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
* Ata nº 1698, Sessão Ordinária de 12 de junho de 1968. Câmara Municipal de Santana do
Livramento.
* Ata nº 1752 realizada em 18 de abril de 1969, na Câmara Municipal de Vereadores de
Santana do Livramento.
* Ata de renúncia do vereador Tarso Fernando Genro, nº 66/69, em 7 de julho de 1969
* Certidão de Idoneidade de Manoel Luiz Coelho. Poder Judiciário. Justiça Militar Federal.
1ª Auditoria da 3ª C.J.M. Certidão nº 2050/98. Em 27 de maio de 1998.
* Decreto de lei de elevação do município de San´Ana do Livramento a Vila, nº 151/1857.
* Discurso vereador Antônio Apoitia Neto. Câmara Municipal de Santana do Livramento. 9
de junho de 1969.
* Ministerio de Relaciones Exteriores – Uruguay. Nº 2714 – Documento de renúncia da
qualidade de asilado político deferido a Beno Orlando Burmann. Montevidéu, 20 de maio
de 1975.
* Biblioteca da Assembléia Legislativa do RS
* Protocolo de renúncia do vereador Tarso Fernando Genro, nº 731, em 7 de julho de 1969.
* Secretaria de Assuntos Estratégicos. Presidência da República. Ficha de Manoel Luiz
Coelho. Em 4 de abril de 1991.
200
Documentos não oficiais
Acervo particular de Antonio Apoitia Neto
Acervo particular de Beno Orlando Burmann
Acervo particular de Manoel Luiz Coelho
Acervo particular de Perseverando Fernandes Santana
Acervo da Família Francisco Fagundes
Acervo da Família Percy Penalvo
Manuscrito inédito de Beno Orlando Burmann (acervo: família Burmann)
Diário de Ivo Caggiani (acervo: Jurema Caggiani)
ARQUIVOS
Arquivo da Câmara Municipal de Vereadores de Santana do Livramento
Arquivo Câmara Municipal de Vereadores de Santa Maria
Arquivo Movimento de Justiça e Direitos Humanos - RS
Biblioteca Nacional del Uruguay, Montevideo
Biblioteca Pública Municipal, Santana do Livramento
Biblioteca Pública Municipal Artigas, Rivera
Memorial do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.
Museu David Canabarro, Santana do Livramento
Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, Porto Alegre
Secretaria da Escola Estadual Professor Liberato Salzano Viera da Cunha, Santana do
Livramento
ENTREVISTADOS
Acílio Pereira da Cruz, 84 anos, brasileiro, delegado de polícia, Porto Alegre (RS) 2005,
2006.
Adalgisa de Nery Medeiros Mottin, brasileira, 56 anos, Santana do Livramento (RS), 4 de
fevereiro 2008
América Ineu Xavier, brasileira, 76 anos, dona de casa, Rivera, 2005, 2006, 2007.
Antônio Apoitia Neto, identidade binacional, 69 anos, advogado. Santana do Livramento
(RS), 2004, 2005, 2006 2007.
Antonio Higueras, brasileiro, 64 anos, construtor, artista plástico, Santana do
Livramento(RS), 23 de julho de 2007.
Armênio Guedes, brasileiro, jornalista, 92 anos, São Paulo (SP), 11 de maio de 2008.
Celeste Penalvo, 72 anos, brasileira, dona de casa, São Borja (RS), 1º de agosto de 2007.
Cezar Terra Burmann, brasileiro, 55 anos, advogado, Porto Alegre(RS), abril de 2007.
Cláudio Gutierrez,
Diva Terra Burmann, 80 anos, brasileira, aposentada, Porto Alegre (RS), 6 de dezembro de
2006.
Edson Tache, 76 anos, brasileiro, padre, Santana do Livramento (RS) 8 de fevereiro de
2007. Entrevista realizada em conjunto com Antônio Carlos Valente.
Elmar Bones, 60 anos, jornalista, brasileiro, Porto Alegre (RS), 12 de julho de 2006.
Ernesto Levy, 60 anos, brasileiro, advogado, Santana do Livramento (RS), 24 de julho de
2007.
201
Eustáquio Apoita, brasileiro, 84 anos, construtor. Santana do Livramento (RS), 19 de julho
de 2003.
e 15.01.2004.
Hamilton da Cruz, 56 anos, brasileiro, policial, Porto Alegre (RS) 2005, 2006.
Hélio Santana Alves, brasileiro, 94 anos, pecuarista, Rivera, 2006, 2007, 2008.
Hugo Mazeron Amorim
Filho Benvenutto -
Hubert Echevi *, uruguaio, 84 anos, torneiro mecânico e pecuarista. Santana do Livramento
(RS), 2005, 2006.
Índio Vargas, brasileiro, 70 anos, jornalista, Porto Alegre (RS) 24 de julho de 2006.
Jair Krischke, 66anos, brasileiro, advogado, Porto Alegre (RS), 2006, 2007, 2008.
Jesus Echevestre Aseff, brasileiro 68 anos, empresário. Santana do Livramento, 2004,
2005, 2006, 2007.
Jorge Washinton Fajardo, advogado, uruguaio, 53 anos, Rivera. 22 de janeiro de 2006.
José Lindote, brasileiro, 85 anos, funcionário público federal aposentado. Santana do
Livramento, 28 de julho de 2006.
Jurema Caggiani, dona de casa, brasileira, Santana do Livramento (RS), 4 de agosto de
2006.
Kenny Braga, 60 anos, jornalista, brasileiro, Porto Alegre (RS), 12 de julho de 2006.
Lúcio Soares Neto, brasileiro, 93 anos, advogado. Santana do Livramento(RS), 21 de
janeiro de 2005.
Manoel Luiz de Souza Vieira Coelho, 65 anos, engenheiro agrônomo, Pelotas (RS), 27 de
abril de 2007, Florianópolis (SC) janeiro e agosto de 2008.
Nei Almeida, 67 anos, médico, Santana do Livramento, 8 de fevereiro de 2007. Entrevista
realizada em conjunto com Antônio Carlos Valente.
Neusa Penalvo,45 anos, advogada, São Borja (RS), 1º de agosto de 2007.
Omar do Prado Lima, brasileiro, 78 anos, militar, pecuarista, Santana do Livramento (RS)
20 de julho de 2005.
Pedro Antônio Dávila de Mello, identidade binacional, 49 anos, engenheiro, Florianópolis
(SC), 2006, 2007.
Perseverando Fernandes Santana, brasileiro, 86 anos, pecuarista. Santana do
Livramento ( RS), 2004, 2005, 2006, 2007, 2008.
Sérgio Alves, uruguaio, 45 anos, professor, Rivera. 25 de agosto de 2006.
Sérgio Terra Burmann, 48 anos, brasileiro, administrador, Rivera, 10 de janeiro de 2007.
Wilson José da Silva, 77 anos, brasileiro, militar, Porto Alegre, 24 de maio de 2007.
Wladimir Fagundes, uruguaio, 59 anos, anos, serigrafista, Rivera, 2006, 2007, 2008.
Vladecir Fagundes, 50 anos, uruguaio, comerciante, Rivera, 2006, 2007, 2008.
Zely Fontoura de Medeiros, brasileira, 76 anos, Santana do Livramento (RS) 4 de fevereiro
de 2008.
* Nome fictício, por solicitação do entrevistado.
202
203
RELAÇÃO DE IMAGENS
Figura 1 – pg 18, acervo: Ministério das Relações Exteriores.
Figura 2 – pg 21, acervo: Andréa Quadrelli.
Figura 3 – pg 52, acervo: do autor.
Figura 4 – pg 57, acervo: do autor.
Figura 5 – pg 60, acervo: do autor.
Figura 6 – pg 65, acervo: José Lindote.
Figura 7 – pg 95, acervo : Sérgio Burmann.
Figura 8 – pg 104, acervo: do autor.
Figura 9 – pg 105, acervo: Cláudio Antônio Weyne Gutiérrez.
Figura 10 – pg 107, acervo: Sérgio Burmann.
Figura 11 – pg 113, acervo: Pedro Dávila de Mello.
Figura 12 – pg 122, acervo: do autor.
Figura 13 – pg 126, acervo: do autor.
Figura 14 – pg 132, acervo: do autor.
Figura 15 – pg 142, acervo: Adalgisa de Néri Medeiros Mottin.
Figura 16 – pg 149, acervo: Neusa Penalvo.
Figura 17 – pg 153, acervo: do autor.
Figura 18 – pg 162, acervo: do autor.
Figura 19 – pg 164, acervo: Vladecir Fagundes.
Figura 20 – pg 168, acervo: Movimento de Justiça e Direitos Humnanos-RS
Figura 21 – pg 173, acervo: Jorge Washington Fajardo.
Figura 22 – pg 179, acervo: acervo do autor.
Figura 23- pg 189, acervo: do autor.
Figura 24 – pg 190, acervo: Sérgio Burmann.
Figura 25 – pg 194, acervo: Museo Sin Fronteras.
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