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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
CLÁUDIO REZENDE RIBEIRO
Ouro Preto, ou a produção do espaço cordial
Rio de Janeiro
2009
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II
Cláudio Rezende Ribeiro
Ouro Preto, ou a produção do espaço cordial
Tese de doutorado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Urbanismo, Faculdade
de Arquitetura e Urbanismo, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como requisito
parcial à obtenção do tulo de Doutor em
Urbanismo
Orientadora: Rosângela Lunardelli Cavallazzi
Rio de Janeiro
2009
R484
Ribeiro, Cláudio Rezende,
Ouro Preto, ou a produção do espaço cordial./
Cláudio Rezende Ribeiro. – Rio de Janeiro: UFRJ/FAU, 2009.
213 f.: il., 30 cm.
Orientadora: Rosângela Lunardelli Cavallazzi.
Tese (Doutorado)
UFRJ/PROURB/Programa de Pós-Graduação em
Urbanismo, 2009.
Referências bibliográficas: p.194-200.
1. Urbanismo – Ouro Preto (MG). 2. Patrimônio histórico –
Ouro Preto (MG). I. Cavallazzi, Rosângela Lunardelli . II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, Programa de Pós-Graduação em
Urbanismo. III. Título.
CDD 711.4098151
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III
IV
A todos os habitantes de Ouro Preto de todos os tempos, que nunca permitiram que sua cidade se
reduzisse a um palco.
V
AGRADECIMENTOS
Quando terminei minha dissertação de mestrado, afirmei que esta parte
do texto é uma das mais importantes por revelar o caráter, muitas vezes oculto, da
produçao coletiva de um trabalho acadêmico que quase sempre é lembrado apenas
como atividade solitária. Depois de tantas mudanças vividas durante o curso de
doutorado, permaneceu esta minha percepção em relação aos agradecimentos.
Obviamente que todos os possíveis equívocos encontrados neste texto
são de minha total e exclusiva responsabilidade, fruto de minhas escolhas teóricas,
históricas e políticas. A começar pelas possíveis injustiças que se cometerá aqui em
forma de omissão, estas fruto de um cansaço e de falhas memoriais. A todos que
contribuíram para a confecção deste trabalho e não se encontram aqui citados,
meus agradecimentos e minhas desculpas primeiras são a eles dedicados.
Não seria possível concluir este trabalho da forma como se encontra sem
o auxílio recebido por diversas instituições ao longo deste trajeto. Foram elas o
CNPq que me financiou em meu primeiro ano de estudo; a CAPES, que possibilitou
minha estadia de um ano em Paris, onde pude ampliar minha base teórica e de
vivência urbana e de onde remeto meus agradecimentos maiores à pessoa de
Nancy da Silva Santos que me apoiou durante todo este processo complexo de
mudança; e, por fim, agradeço também à FAPERJ que, através de seu programa de
auxílios e bolsas garantiu a continuidade de meus estudos asua conclusão deste
trabalho.
A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo
da FAU/UFRJ que acompanharam a execução deste trabalho, em especial Denise
Pinheiro Machado e Lilian Fessler Vaz que tanto contribuíram para o
amadurecimento de meus debates no campo do urbanismo e da produção científica
propriamente dita.
Merecem meu agradecimento também o eficiente, sempre prestativo e
cordial, no melhor sentido do termo, corpo cnico do PROURB: Keila Maria de
Araújo Silva, Carlos Eduardo Galdiano Lopes, Marluce Francisca Assunção D.
Francisca – e o recém chegado Henrique.
A minha orientadora, Rosangela Lurnadelli Cavallazzi, devo meu
reconhecimento como acadêmica perspicaz e precisa em suas orientações e,
VI
principalmente, minha admiração por sua abertura, receptividade e respeito pela
produção de seus alunos que, como eu, podem alçar vôos teóricos autônomos sem
perder o seu apoio sempre vigilante. Seu respeito para com nossa produção é
imenso, assim como se torna imenso nosso respeito e, sobretudo, nosso carinho
para com ela.
Da mesma forma sou grato a todos os alunos que agregam o Grupo de
Pesquisa Direito e Urbanismo pelas considerações feitas ao longo de nosso
convívio.
Também agradeço aos servidores do Arquivo Central do IPHAN do Rio de
Janeiro pela presteza de seus serviços.
Em Paris sou grato a todos aqueles que tornaram minha estadia naquela
cidade um momento agradável e bastante frutífero ainda que duro. Sobretudo
agradeço aos funcionários da École Nationale Supérieure d’Architecture de Paris
Belleville e também de La Villette, assim como aqueles da École des Hautes Études
en Sciences Sociales (EHESS), onde cursei diversas disciplinas.
A co-orientação de Yannis Tsiomis, em Paris, foi-me de profunda
importância para inúmeras conexões teóricas e conceituais deste trabalho que
certamente não alcançaria o rumo aqui apresentado sem sua colaboração precisa.
Em Ouro Preto devo agradecer à equipe de gerência do Centro Cultural
da FIEMG e, especialmente, à equipe do IPHAN local que esteve sempre aberta às
minhas intromissões e responderam prontamente aos meus apressados chamados
concedendo importantes entrevistas. Meu agradecimento especial às amigas Liliane
e Simone, que tanto contribuíram às minhas reflexões ouro-pretanas. Também
importantes para uma continuidade aprofundada deste trabalho foi a cooperação dos
alunos e professores do curso de Tecnólogo em Conservação e Restauração de
Imóveis do Instituto Federal de Minas Gerais de Ouro Preto.
Minhas duas anfitriãs ouro-pretanas, Paola e Cristina, com as respectivas
companhias de Ande Chispita, Sérgio e Felipe, possibilitaram, simplesmente, que
este trabalho acontecesse. Não há palavras para agradecer sua cooperação.
Todos os meus amigos que compreenderam minhas ausências, cansaços
e resmungos durante este longo tempo de produção intelectual; agradeço sobretudo
àqueles que me apoiaram de maneira mais direta, como os colegas de turma, Omar,
Laura, Monica, Ronald e Carlos Fernando, e também aos antigos companheiros de
VII
outras investigações como João Gabriel, Breno e Régis, cujos apoios tanto
auxiliaram nestes tempos.
A todos os colegas que puderam me visitar em Paris, ou que estavam
e tornaram minha estadia mais leve em meio a tanta chuva, Tiago, Leo, Rosa,
Beto, Carine e Trovão, Ana e Paulo, Eva, Ieda, Carla e Fabiana Izaga.
A toda minha família, tanto a carioca quanto a mineira que tem parte em
todos os agradecimentos acima e nos que ainda deverão ocorrer ao longo de meus
trabalhos futuros.
A Renata, esposa, amiga, companheira de carinho e de debates
acadêmicos, tanto no sol quanto na chuva e que sempre me deixa a certeza de que
muitas coisas tão ou mais importantes que a reflexão científica nesse mundo,
meu mais puro reconhecimento e agradecimento.
VIII
Sobre o tempo, sobre a taipa,
a chuva escorre. As paredes
que viram morrer os homens,
que viram fugir o ouro,
que viram finar-se o reino,
que viram, reviram, viram,
já não vêem. Também morrem.
(Morte das casas de Ouro Preto, Carlos Drummond de Andrade)
IX
RESUMO
Esta tese trata de relações sociais observadas a partir de seu viés
espacial. O trabalho constrói novas interpretações no campo urbanístico das práticas
de preservação de um tecido urbano tombado como patrimônio histórico nacional,
tendo a cidade de Ouro Preto como caso-referência. No intuito de contribuir para o
debate a respeito das questões urbanas, procurou-se estabelecer um novo conceito
analítico da produção do espaço brasileiro: o espaço cordial. Trata-se de uma
proposição de interpretação deste espaço a partir do acondicionamento da teoria de
Henri Lefebvre a respeito da produção do espaço segundo a descrição social
brasileira realizada por Sérgio Buarque de Holanda em seu Raízes do Brasil, onde
este autor forja o conceito do homem cordial. A partir da observação das
representações do espaço ouro-pretano assim como de seus espaços de
representação aliados às suas práticas sociais conseguiu-se demonstrar formas
relacionais entre o espaço e a sociedade que evidenciam a política de preservação
histórica nacional como forma de dominação do espaço que alimenta a
incompletude do alcance da cidadania brasileira, assim como também se construiu
possíveis novas respostas espaciais e sociais que seriam capazes de retomar a
conquista da autonomia social, renovando o debate sobre a atual conjuntura de
nossa formação nacional em transformação.
Palavras chave: Ouro Preto Patrimônio histórico Homem cordial –Urbanismo
Cidadania
X
RÉSUMÉ
Titre: Ouro Preto ou la production de l’espace cordial.
La thèse suivant construit nouvelles interpretations dans le champ
d’urbanisme par rapport aux pratiques qui concernent la preservation des sites
classés comme patrimoine national au Brésil tenant la ville d’Ouro Preto comme cas
specifique d’observation. La contribuition principale se trouve dans la production d’un
nouveau concept capable d’interpreter la façon qui la société bresiliénne produit son
espace: l’espace cordiale. L’origine de ce concept vien d’une lecture de la théorie
social et spatiale d’Henri Lefebvre fait à partir de la description sociologique de la
formation bresiliénne construit par Sérgio Buarque de Holanda dans Racines du
Brésil. Les observations faites à partir de les representations de l’espace d’Ouro
Preto, aussi comme de leurs spaces de representation et encore à partir de ces
pratiques sociales font capables de montrer la façon que les politiques de
preservation du patrimoine national travaillent pour une domination de l’espace que
maintient le citoyen bresilien toujours loin de son histoire et de son realisation pleine.
Mots clés: Ouro Preto Patrimoine historique L´homme cordial –Urbanisme
Citoyennété
XI
ABSTRACT
Title: Ouro Preto or the production of the cordial space.
The following thesis is based on social relations observed through its
spatial bias in order to build new forms of understanding the practices over the
preservation of cultural heritage related to urban sites in Brazil. Among many cities
eligible to be the main object of this study, it was Ouro Preto the one chosen due to
its privileged interface with Brazilian national identity. A new concept was here
created as a manner of bringing different analysis to the field of urban studies, that is,
the “cordial space”. It came out from the crossing of two different theories, the Henri
Lefebvre’s production of space and rgio Buarque de Holanda’s “cordial man”.
Thus, it was possible to evidence the way the policies of heritage preservation in
urban sites become a form of space and social domination due to the “cordiality” that
remains even in the representations of the space as in the spaces of representation
as well in the social practices that one can observe in a city like Ouro Preto. It was
also possible to determinate new possibilities in spatial production in this city due to
new forms of technical spread that takes place there nowadays.
Keywords: Ouro Preto – Cultural heritage – Cordial man – Urbanism – Citizenship
XII
LISTA DE FOTOGRAFIAS
Todas as fotografias, com exceção da número 22, extraída de Lia Motta (1987), são parte do acervo
do autor.
Fotografia 1 – Fundos do Rosário visto a parir do Pilar – foi esta a foto que causou a abordagem
Fotografias 2 e 3 – Fachadas anteriores e posteriores de casas na Rua São José
Fotografias 4 e 5 – Fachadas anteriores e posteriores de casas no entorno da Igreja de Antônio Dias
Fotografia 6 – Hotel Pilão, hoje Centro Cultural da FIEMG
Fotografias 7 e 8 À direita percebe-se a movimentação da rua em dia útil, hoje uma das principais
referências no comércio da cidade. A outra foto mostra o referido Hotel Toffolo, ainda hoje no mesmo
lugar, como era de se esperar.
Fotografia 9 – Fachadas da Rua São José que equivalem à imagem de cidade colonial divulgada e
reconhecida pelo senso comum.
Fotografia 10 Fundos da Rua São José, onde o moderno e o colonial o se apresentam de forma
tão harmoniosa...
Fotografias 11,12 e 13 Diferentes locais do novo caminho, o Horto dos Contos” que possivelmente
desencadeará novas intervenções estetizantes no espaço ouro-pretano, no intuito de harmonizar as
visadas por ele geradas.
Fotografias 14 e 15 – Exemplos semelhantes aos da Rua São José. A primeira foto mostra fundos da
Rua do Rosário enquanto a outra é uma vista a partir da escadaria frontal da Igreja do Carmo.
Fotografia 16 – Panorama do Largo do Cine Vila Rica, vendo-se à esquerda a fachada lateral da
Casa dos Contos em convivência com o Grande Hotel no início da Rua das Flores. Ao centro está a
atual sede do Ministério Público, um dos ícones das transformações iphanianas (o cinema
propriamente dito está na parte oposta a esta visada).
Fotografia 17 – O Cine Vila Rica.
Fotografias 18 a 21 Diversos ângulos de um dos prédios alterados pelo IPHAN em meados do
século XX, onde se pode perceber a estranheza dos elementos estéticos da edificação em relação à
cachorrada colocada para lhe dar ares coloniais. A sensação de estranhamento pela ausência da
platibanda é inevitável para um observador mais experiente na leitura de estilos arquitetônicos.
Fotografias 22 e 23 A foto acima mostra o antigo edifício eclético que foi “maquiado” de colonial
através da introdução de cachorrada e respectiva eliminação da generosa platibanda, além de
alteração no ritmo de cheios e vazios da fachada do edifício. Note-se que, posteriormente, brota um
novo edifício “colonial” entre os dois prédios da primeira fotografia.
Fotografias 24 a 26 – O “feíssimo” Grupo Escolar Pedro II em diversos ângulos.
Fotografias 27 e 28 Edifício eclético presente no Largo do Cine Vila Rica e a paisagem encontrada
no lado do oposto do mesmo, com a fachada lateral da Casa dos Contos e vista parcial do Grande
Hotel de Ouro Preto.
Fotografias 29 a 34 – O Grande Hotel de Ouro Preto em diversos ângulos que mostram seus
constrastes e suas harmonias com a paisagem local.
Fotografias 35 e 36 Frente e fundos de um bom exemplo de “concreto a pique”, próximo à Igreja
Antônio Dias e ainda em construção (em 2008), revelando os limites do modo de produção do espaço
forjado pelos ideais iphanianos.
Fotografia 37 Fotografia 37 Praça Tiradentes, com o seu homenageado sempre vigilante à antiga
Casa de Câmara e Cadeia, ou seria o contrário?
Fotografias 38 e 39 Na primeira foto vê-se o atual prédio da UFOP, antiga Escola de Minas e
anterior Palácio dos Governadores. Abaixo encontram-se, respectivamente, o Centro Cultural da
FIEMG em primeiro plano, seguido da atual Câmara dos Vereadores de Ouro Preto e da Casa da
Baronesa, sede do IPHAN.
Fotografia 40 Panorama da atual aparência da Praça (ou estacionamento) Tiradentes. Sua
paisagem já fora bem menos árida ao longo de suas inúmeras transformações.
Fotografias 41 e 42 – O novo edifício que abriga o Centro Cultural da FIEMG.
Fotografia 43 – Ruínas do Hotel Pilão ainda exalando fumaça uma semana após o incêndio.
Fotografias 44 a 46 – O Hotel Pilão como referência da subida da Rua Direita.
Fotografias 47 e 48 À esquerda vê-se o gradil na fachada lateral. À direita um detalhe do mesmo,
demonstrando o discreto diálogo entre o novo e o antigo realizado na reconstrução do hotel.
XIII
Fotografias 49 e 50 – Interior do Centro Cultural da FIEMG, com suas “portas sempre abertas”.
Fotografias 51 e 52 Interior do Centro Cultural da FIEMG, mostrando sua cara “moderna” e sua
conectividade entre os diferentes espaços.
Fotografia 53 Detalhe do Palácio dos Governadores (hoje pertencente à UFOP, e antiga Escola de
Minas), um forte em plena praça.
Fotografia 54 Edifício próximo à Igreja do Pilar. Qual a técnica legítima para este tipo de
reprodução?
Fotografia 55 – A Igreja de Santa Efigênia.
LISTA DE FIGURAS:
Figura 1 Desenhos de Lúcio Costa em Documentação Necessária construindo a desejada transição
“natural”, ou cadeia evolutiva, entre as formas de se produzir espaço em diferentes épocas.
Figura 2 – Desenho esquemático do “percurso metodológico “e suas respectivas divisões.
Figura 3 – Desenho esquemático do híbrido “concreto a pique”.
Figura 4 Gráfico das respostas da questão número 4, onde o IPHAN aparece, à frente da Prefeitura
Municipal de Ouro Preto, como instituição de maior influência na cidade.
Figura 5 – Gráfico das respostas da questão número 5, onde, além da caracterização do autoritarismo
do IPHAN, surpreende a boa avaliação da Câmara Municipal, à qual se atribui, por especulação e
percepção local, a excessiva relação de assitencialismo desta instituição.
Figura 6 Gráfico referente à pergunta número 11, demonstrando o predomínio simbólico do
patrimônio religioso.
XIV
LISTA DE SIGLAS
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento
CEFET – Centro Federal de Educação Tecnológica
CIAM – Congresso(s) Internacional(is) da Arquitetura Moderna
FAOP – Fundação de Arte de Ouro Preto
FIEMG – Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais
GAT – Grupo de Assessoramento Técnico
IFMG – Instituto Federal de Minas Gerais (antigo CEFET)
IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
PMOP – Prefeitura Municipal de Ouro Preto
UFOP – Universidade Federal de Ouro Preto
UNESCO – United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization
(Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura)
XV
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO
16
2 SOBRE O CONCEITO DE URBANISMO
2.2 O URBANO EM LEFEBVRE
2.3 CONTEXTUALIZANDO A ANÁLISE DO ESPAÇO PARA A
SOCIEDADE BRASILEIRA.
20
23
28
3 SOBRE O MÉTODO DE CONSTRUÇÃO DESTA TESE
31
4 DO HOMEM CORDIAL AO SEU ESPAÇO
4.1 CIDADANIA, CORDIALIDADE, NAÇÃO E SOCIEDADE
4.2 REFLEXÕES A RESPEITO DO CONCEITO DE NAÇÃO
4.3 AS IMPLICAÇÕES CONCEITUAIS DO ESPAÇO CORDIAL
42
50
58
66
5 O CONCEBIDO: A NAÇÃO (CORDIAL) DO IPHAN
69
6 A VIVÊNCIA: O ESPAÇO DA RECORDAÇÃO NACIONAL
6.1 PERCORRENDO O ESPAÇO CONTEMPORÂNEO DE OURO
PRETO
6.1.3 A Rua São José (antiga Rua Tiradentes)
6.1.2 O Largo do Cine Vila Rica
6.1.3 A Rua das Flores
6.1.4 A Praça Tiradentes
84
88
92
103
111
128
7 A PERCEPÇÃO DO ESPAÇO OURO-PRETANO
7.1 PATRIMÔNIO E CIDADANIA: UMA RELAÇÃO CONCEITUAL
7.2 ENTRE A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E O PATRIMÔNIO
EDUCATIVO
7.3 OURO PRETO NA ERA DE SUA REPRODUTIBILIDADE
TÉCNICA
7.4 HABITAR O PATRIMÔNIO: DA REGRA PARA O MODELO
7.4.1 Dos ouro-pretanos
7.4.2 Do IPHAN
149
153
158
160
165
167
176
XVI
8 CONCLUSÃO: O ESPAÇO CORDIAL
182
REFERÊNCIAS
194
ANEXOS
201
16
1 INTRODUÇÃO
Apesar de tudo, o arquiteto não tem poder sobre mim. Se eu quero
demolir ou transformar a casa que ele construiu para mim, instalar
novas divisórias ou instalar uma lareira, o arquiteto não tem
nenhum controle. (FOUCAULT, 2001, p.1097, traduzido pelo
autor
1
)
Esta declaração de Michel Foucault ajuda a esclarecer diversas
razões contidas na produção do trabalho que se segue. Afirma-se que, caso
o pensador francês habitasse na cidade de Ouro Preto, chegaria a
conclusões diferentes. Certa vez, enquanto perambulava pelas ruas daquela
cidade em busca de fotografias para o presente trabalho ocorreu um fato
inusitado que faz sentido em cidades que vivem o mesmo drama urbano
ouro-pretano. Andava vestido sem nenhuma identificação que me
denunciasse como vinculado a alguma instituição pública, nenhum crachá,
nenhum caderno à mão, apenas minha máquina fotográfica que me fazia
passar como um turista usual. Após tirar uma foto através de um portal de
uma oficina mecânica que me possibilitava melhor ângulo para meu objeto de
pesquisa, segui meu caminho pelas imediações da Igreja do Pilar. Eis que,
alguns segundos mais tarde, fui abordado por uma garota ofegante que de
pronto me indagou, com certa perplexidade no olhar: “há algo de errado?”
O leitor destreinado do convívio em cidades ditas históricas
certamente teria reação diferente da minha. Respondi com um sorriso que
não havia nada de errado, que apenas fotografava a paisagem local, como
era de se esperar em uma situação típica do lazer turístico predominante.
Satisfeita, a garota retornou ao seu lugar de trabalho.
Como habitei por certo tempo na vizinha cidade de Mariana,
logo percebi que na pergunta da adolescente estava contida uma complexa
gama de relações sociais e espaciais típicas de quem vive sob o jugo dos
órgãos de preservação do patrimônio nacional. Talvez por não ser a
paisagem que fotografei um promissor modelo de cartão postal, as pessoas
daquela oficina logo supuseram que eu era algum tipo de fiscal, algum tipo de
1
Après tout, l’architecte n’a pas de povoir sur moi. Si je veux démolir ou transformer la
maison qu’il a construite pour moi, installer de nouvelles cloisons ou ajouter une cheminée,
l’architecte n’a aucun controle.
17
espião do comportamento espacial que mais tarde utilizaria minha imagem
como alguma denúncia da desarmonia paisagística daquele monumento
urbano. Ao contrário do que queria Foucault, os arquitetos também vigiam e
punem. Este episódio reforçou a necessidade da produção de um trabalho
que não apenas evidenciasse esta relação de dominação social e espacial,
como também lhe desse algum sentido científico, isto é, construísse
ferramenta teórica capaz de localizá-lo em situações diferenciadas.
Fotografia 1 Fundos do Rosário visto a parir do Pilar foi esta a foto que causou a
abordagem
O desencontro da fala de Foucault em relação à realidade ouro-
pretana revela outra motivação da confecção desta tese: como trabalhar com
a teoria espacial a partir de espaços periféricos? diversos discursos
produzidos sobre o espaço e suas transformações, e estes discursos partem
de formações e vivências particulares de seus produtores com relação a seus
respectivos espaço e sociedade. É usual utilizar-se de diversas teorias
espaciais e sociais produzidas a partir de realidades sociais particulares,
notadamente as centrais, sem que se considere seus limites de
universalidade. Assim, ao se construir este estudo, fez-se todo um esforço
teórico e conceitual de cruzamento de diferentes discursos advindos de
diferentes lugares científicos e sociais a fim de lhes utilizar de modo crítico
em um trabalho que se quer pertencente não somente ao campo do
urbanismo, mas ao campo dos estudo urbanos produzidos pela e através da
18
vivência de espaços periféricos. Logo, a facilidade de se negar Foucault sem
desconsiderar a importância de sua obra. Também a necessidade de se
utilizar Lefebvre de forma crítica, articulando-o com uma das teorias mais
fecundas produzidas sobre a realidade da reprodução social brasileira: a
teoria do homem cordial desenvolvida por Sérgio Buarque de Holanda.
A partir destes dois autores e de suas respectivas teorias realizou-
se um trabalho que, tendo Ouro Preto como seu objeto de análise
privilegiado, rompeu com duas apropriações mais usuais do tema abordado.
A primeira delas foi tratar Ouro Preto a partir de sua condição de cidade
contemporânea. De forma alguma vai se encontrar nas páginas que se
seguem uma reconstrução historicista da produção do espaço ouro-pretano.
Não que se considere desnecessária tal abordagem, como se verá a seguir,
entende-se que a abordagem crítica das transformações históricas deste
espaço são mais que bem vindas, são necessárias. Mas um trabalho como
este fugiria ao escopo e, por que não, ao desejo do autor desta tese.
O segundo rompimento diz respeito à teoria do urbanismo,
bastante afeita à produção de modelos muitas vezes revestidos de
cientificidade. Françoise Choay (2007), em seu A regra e o modelo chama
a atenção para esta relação existente entre duas modalidades do pensar
urbanístico: utópico (modelo) e científico (regra). A autora critica o excesso de
permanência desta primeira que acaba por perder seu viés crítico originário
em A utopia de Thomás Morus para desencadear em seu oposto: uma rigidez
à imaginação e à diversidade espaciais.
Optou-se, portanto, por realizar um trabalho crítico que opera na
direção de se evidenciar uma regra que acabou por se enrijecer como
modelo. O discurso e a prática do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional (IPHAN), assim como suas reações, conflitos e consequências
nesta cidade adquirem um papel central na condução do trabalho que se
apresenta.
A tese se forjou na observação e no desvelamento destes
elementos com o intuito de se criar um novo conceito que desse conta de
abranger as complexas relações sociais e espaciais percebidas, por exemplo,
no curioso caso relatado acima. A opção pela construção de um conceito ao
invés de um modelo se deu por dois motivos: o primeiro deles seria a
19
tentativa de contribuir para o enriquecimento do debate contemporâneo no
campo do urbanismo através da retomada da obra de um pensador que
soube como poucos caracterizar a sociedade brasileira. Compreende-se que
o conceito de espaço cordial aqui construído amplie o espectro analítico das
situações urbanas brasileiras, posto que, como se verá, o conceito foge à
razão dualista incapaz de explicar as complexas relações sociais e espaciais
de uma formação nacional periférica que não se funda, portanto, nas mesmas
condições de cidadania, direitos e deveres teoricamente precisas, claras e
impessoais dos países centrais de onde se costuma importar as teorias
analíticas.
O segundo motivo de se criar aqui um conceito, e não um modelo,
foi a vontade de se trazer um operador teórico capaz de possibilitar sua
extrapolação à análise aqui apresentada de forma crítica e contundente.
Produziu-se um conceito pois o foco de análise do trabalho não foi um
produto, mas sim a produção e, portanto, não se desejou criar algo que se
focasse nos fins encontrados no espaço, mas sim em seus meios; serviria o
modelo ao primeiro de forma adequada, um conceito, pelo contrário, se
encaixa teoricamente de forma mais precisa na análise do processo
produtivo, por ser mais passível de se redefinir por novas produções de
sentido no processo de interpretação e ainda conservar sua capacidade
crítica, aliás, quase sempre ausente no outro caso.
Por fim, o conceito criado auxiliou de fato a responder diversos
questionamentos e estranhamentos que originaram a análise pretendida
sobre a cidade de Ouro Preto. E o fez criando não apenas respostas, mas
originando perguntas novas e também novas contradições que serão
capazes de criar outros problemas alimentadores da ação de se produzir
ciência, como, aliás, é de se esperar de um trabalho intelectual.
20
2 SOBRE O CONCEITO DE URBANISMO
Intrinsecamente ao termo urbano está o conflito. Esta afirmação
resume o tom com que se pretende trabalhar esta tese. Mais que uma
simples idéia, trata-se de método de construção epistemológica. Quando se
afirma que o conflito acompanha o urbano considera-se que a relação
espaço-sociedade é repleta de embates e disputas que são forjados e
percebidos tanto no campo das idéias quanto no campo das ações. Este
posicionamento metodológico implica reflexões sobre conceitos fundamentais
ao campo disciplinar do urbanismo, a começar por ele próprio.
O termo urbanismo se inclui nesta relação conflituosa e de disputa.
Disputa que se mostra presente desde sua definição. Segundo Choay (2005),
o termo foi criado em 1867 pelo engenheiro-arquiteto catalão Ildefonso
Cerdá, quando produziu sua Teoria geral da urbanização destinada à
ampliação da cidade de Barcelona. Tal tratado tem como diferencial em
relação a outras obras contemporâneas, como os relatos de Haussmann a
respeito das reformas de Paris, o fato de estabelecer o urbanismo de forma
científica. A Teoria cria um método, objetivos e objeto próprio além de formas
de aplicação do que foi nomeado pelo autor como urbanismo
2
.
Ainda segundo Choay (2005), este estatuto científico do termo vai
receber, ao longo do século XX, diversas críticas tanto por seus resultados,
notadamente a partir dos anos 60 em resposta às conseqüências dos
projetos dos urbanistas do movimento moderno (CIAM), quanto pela
impossibilidade do urbanismo ser considerado uma ciência autônoma ou,
pelo menos, exclusiva de uma única área do saber.
A resposta a este debate gerou, dentre outras coisas, uma
ampliação do campo profissional de atuação diante daquilo que se
compreende como urbanismo. Sociólogos, filósofos, geógrafos, antropólogos,
economistas, enfim, profissionais de diversas áreas das ciências humanas
debruçaram-se de maneira intensificada ao tema, enriquecendo e
pluralizando e disputando um campo antes dominado por arquitetos e
engenheiros.
2
A mesma Choay também trata disto em seu clássico “A Regra e o Modelo”, possibilitando
um entendimento mais profundo sobre a origem e as características da teoria da edificação.
21
Estes profissionais, por sua vez, não apenas continuaram sua obra
urbana, mas aderiram muitas vezes às críticas feitas ao urbanismo “purista”,
por assim dizer, aquele focado na produção de um espaço baseado em uma
análise profundamente técnica ou estética, notadamente formalista, que
negava diversos outros aspectos relacionais da vivência humana.
Em relação ao Brasil, segundo Leme (2005), os profissionais que
lidavam com o urbanismo, a partir do final do século XIX, tinham sua
formação nas escolas de engenharia civil ou de engenharia-arquitetura, o que
demonstra um caráter fortemente tecnicista, refletindo a predominância à
época nos países centrais que influenciaram a formação neste campo. A
autora ainda nos remete à formação de uma certa divisão em relação à
abordagem urbanística no meio profissional:
É importante destacar que durante este período – do final do
século 19 aos anos 60 foram se configurando duas linhas de
urbanismo: uma que se iniciou nos planos de melhoramentos que,
em seguida, se ampliaram para o conjunto da área urbana, para a
aglomeração e receberam como denominação, na década de
70, de planos diretores de desenvolvimento integrado.
A outra linhagem é aquela que tem origem no movimento
modernista e se difunde com os Congressos do CIAM. No Brasil, a
construção de Brasília será a ressonância principal deste
movimento. As duas linhagens são diferentes em seus princípios e
objetivos. (LEME, 2005, p. 21-22)
Sem diminuir a importância deste debate, ainda hoje presente nos
centros universitários formadores dos novos arquitetos e urbanistas, é mais
importante para o presente estudo perceber os traços comuns entre ambas
linhagens. Estes traços não se encontram no âmbito de conceitos e objetivos,
mas sim na forma de concepção destes. Interessante notar que os mesmos
traços de concepção serão também percebidos na discussão a respeito da
formação da nação brasileira que será realizada a seguir, revelando uma
dinâmica predominante da formação do pensamento brasileiro.
O primeiro deles é o fato de que ambas as linhagens se formam a
partir de uma importação de modelos e idéias que podem ser atribuídos, em
sua maioria, como de origem francesa. Assim, ao contrário de Cerdá, que
produzira uma obra teórica para a reformulação da “capital catalã”, ou de
Haussmann, que, à sua maneira, refez Paris; nós construímos Belo
Horizonte, reformamos o Rio de Janeiro, e erguemos Brasília para citar
22
apenas algumas obras realizadas nos moldes de um pensamento
estrangeiro, com toques de originalidade percebidos, talvez, nesta última.
Em segundo lugar, que se destacar que aqui houve uma
predominância das idéias frente à ação. Apesar de termos erguido cinco
grandes cidades, as capitais estaduais Teresina, Belo Horizonte, Goiânia e
Palmas, além de Brasília, a partir de áreas vazias
3
em pouco mais de um
século; pode-se afirmar que uma característica marcante deste urbanismo é o
excesso de planos em relação à sua execução, ou melhor, excesso de
crença nas idéias em detrimento das intervenções espaciais propriamente
ditas.
diversas análises a respeito dos chamados planos-discurso
4
,
principalmente no que se refere ao planejamento urbano, demonstrando que
este campo não foge a um conhecido traço da sociedade brasileira: a
capacidade de elaborar um mundo de idéias avançadas que servem como
suporte a, e dominação de, uma realidade oposta.
Esta pequena introdução referente ao termo urbanismo e à sua
complexidade serve de justificativa para o esclarecimento que se fará a
seguir a respeito da utilização do termo urbanismo neste trabalho. Para tal,
como se afirmou no início, recorre-se a autores que assumem o conflito como
característica inerente àquilo que se denomina como urbano.
Antes de concluir este item vale um breve esclarecimento sobre a
utilização do termo urbanismo. Aqui se quer nomeá-lo como a ciência que
trata do espaço urbano e não como as técnicas que se utiliza em nome de
um planejamento. Mesmo que se considere que ambos os significados do
termo se relacionem de maneira estreita, não se quer aqui deixar vidas
frente à empreitada deste trabalho de se produzir um pensamento científico
de uma ciência relativamente nova que, como se colocou anteriormente e
ainda será detalhado mais à frente, pretende ser uma ciência que se paute no
caráter urbano da sociedade, notadamente sobre sua dimensão conflituosa
em sentido amplo.
3
Quando se diz “vazio” considera-se uma área sem ocupação urbana. No caso de Belo
Horizonte, por exemplo, existia uma fazenda e um pequeno arraial que fora destruído por
completo, só restou uma residência, para a construção ex nihilo da nova capital.
4
Conferir, por exemplo, a obra de Maricato, Brasil, cidades – alternativas para a crise urbana
(2001), onde se realiza uma síntese crítica da trajetória do planejamento urbano no Brasil.
23
2.2 O URBANO EM LEFEBVRE
No Dictionaire de l’urbanisme e de l’aménagement, Choay (2005)
termina o verbete urbano construindo uma definição bastante ampla, como
sendo:
[...] A nova civilização que se estabelece em escala planetária,
suprimindo a antiga diferença entre cidade e campo, e podendo
ser definida como o sistema operatório, válido e aplicável em todos
os lugares, constituído tanto pelas redes materiais e imateriais
quanto pelos objetos técnicos e cuja manipulação ressoa num
circuito fechado sobre as relações que nossas sociedades mantém
com o espaço, o tempo e o homem. (CHOAY, 2005, p. 908-909,
traduzido pelo autor, grifo do autor).
5
Tal definição, quase enciclopédica, passa uma idéia não apenas
ampla, mas difusa do termo. No entanto, pode-se tomar tal definição
contraditoriamente como precisa, posto que o termo urbano carrega consigo
tal amplitude de significados e aplicações que um dicionário o poderia fugir
a isto ao tratar de seu verbete, considerando-o ao mesmo tempo preciso e
difuso.
Para o presente estudo, no entanto, é necessário aprofundar-se,
ou ainda, posicionar-se em relação ao termo para que se esclareça de qual
urbano vai se tratar e, conseqüentemente, qual o caráter urbanístico da
pesquisa que se constrói.
Em trabalho anterior
6
, se abordou, a partir do pensamento
lefebvriano, uma construção onde o urbano aparece como o local de
evidenciação dos conflitos sociais, numa perspectiva política e politizante do
termo, que aqui se reproduz:
A multiplicação e a complexificação das trocas no sentido amplo
da palavra não podem continuar sem que existam locais e
momentos privilegiados, sem que esses lugares e momentos de
encontro se libertem das coações do mercado, sem que a lei do
valor de troca seja dominada, sem que se modifiquem as relações
que condicionam o lucro.(...) A interpretação revolucionária, até o
momento, não levou em consideração esses novos elementos.
5
[...] la nouvelle civilisation qui se met en place à l’échelle planétaire, supprimant l’ancestrale
différence entre ville et campagne, et pouvant être definie comme le système opératoire,
valable et veloppable en tous lieux, constitué par des réseaux matériels et immatériels
ainsi que par des objets techniques et dont la manipulation retentit dans un circuit bouclé sur
les rapports que nos sociétés entretiennent avec l’espace, le temps et les hommes.
6
Cf. minha dissertação de mestrado. O Muro da maré: risco e vizinhança no planejamento
urbano. Disponível na internet em http://teses.ufrj.br/IPPUR_M/ClaudioRezendeRibeiro.pdf.
24
Não seria possível que definindo mais rigorosamente as relações
entre a industrialização e a urbanização, na situação de crise, se
contribuísse para a superação da contradição do continuísmo e do
descontinuismo absoluto, do evolucionismo reformista e da
revolução total? Se se deseja superar o mercado, a lei do valor de
troca, o dinheiro e o lucro, não será necessário definir o lugar
dessa possibilidade: a sociedade urbana, a cidade como valor de
uso? (LEFEBVRE, 2004b, p. 74)
Ora, quando o autor coloca desta maneira a existência necessária
de locais e momentos privilegiados libertadores das coações do
mercado, não estaria se referindo, por exemplo, a conflitos
constantemente realizados nos cenários urbanos
contemporâneos? o seriam os conflitos uma forma de
enfrentamento às leis mercadológicas que regem, condicionam,
disciplinam e direcionam a cidade em nome de um planejamento?
[...]. Os conflitos são, muitas vezes, uma concretização da
discussão política que se torna geradora de momentos que
reificam a apropriação da cidade a partir de seu valor de uso. Eles
são possuidores de potencial extremo para aqueles que acreditam
em uma prática diferenciada de condução das questões urbanas
distante e oposta ao que se chama hoje de planejamento. [Tal
situação], acredita-se, poderia ser superada através da elevação
do político a um primeiro plano, ou seja, através da análise de
conflitos sociais que vão abordar questões referentes ao uso e
apropriação social do espaço urbano. (RIBEIRO, 2006, p. 63-4)
Esta maneira de reconhecer o urbano será aqui ampliada, posto
que, além da questão política evidenciada pelos conflitos sociais, pretende-se
compreender o urbano a partir da apropriação deste pela sociedade também
partir de sua forma, de seu espaço. Considera-se que o valor de uso atribuído
ao urbano por Lefebvre se reflete também na configuração espacial, posto
que esta pode ser considerada como a última resposta social aos conflitos
referentes ao urbano: “com o espaço, o tempo e o homem”.
Tal abordagem, inclusive, é também assumida por Lefebvre em
seu livro La production de l’espace quando, ao construir seu conceito de que
o espaço social é um produto social, constrói uma relação tríplice de
abordagem deste espaço (produto) social, que são: as práticas sociais, as
representações do espaço e os espaços de representação (LEFEBVRE,
2000).
Esta relação contraditória e complementar entre estes três termos
possui aqui uma importância por se tratar de uma mudança não somente
conceitual, mas igualmente metodológica para se construir um pensamento
urbano. Lefebvre supera o dualismo conceitual. A partir de sua forma de
abordar o espaço, o autor consegue superar a dicotomia muitas vezes
25
presente em diversas análises científicas que contrapõem o tempo ao
espaço, o rural à cidade, o masculino ao feminino. Sua maneira de construir
um pensamento a respeito do urbano partindo de uma base tríplice auxilia na
análise que se pretende aqui realizar, na medida em que, como propõe o
próprio Lefebvre na mesma obra, pretende-se abordar o urbano aqui em três
frentes que se misturam: o percebido, o concebido e o vivido.
A partir destes três aspectos, pretende-se, portanto, compreender
de que maneira um espaço é produzido na medida em que é vivido por seus
habitantes e visitantes, concebido como símbolo nacional e percebido por
seus produtores e utilizadores, que são os mesmos sujeitos sociais.
Este estudo pretende se utilizar desta abordagem do termo urbano
para compreender quais as transformações contidas em um espaço que fora
produzido para fins diversos ao de símbolo nacional e então passa a ter tal
título em determinada fase de sua história. Como se conformam e
transformam os espaços de dominação e de apropriação de uma cidade, no
caso, Ouro Preto, cujo foco de existência reside na contradição entre a
preservação, a habitação e sua transformação? Some-se a isso a
possibilidade de se discutir a similitude da nação representada e vivida num
mesmo espaço. Responder tais questões supõe a utilização de uma
concepção do termo urbano voltada para seu caráter político, formal e
cotidiano no tempo e no espaço.
Esta visão complexa do termo urbano carrega consigo uma outra,
a do termo urbanismo. Da mesma maneira que se considera aquele como um
terreno da realização da “sociedade urbana, a cidade como valor de uso”, isto
é, como uma possibilidade de formação social onde o percebido, o vivido e o
concebido se encontram como aspectos de uma constante transformação; o
urbanismo aparece aqui como uma ciência que seja capaz de não apenas
perceber estas transformações, mas de evidenciá-las tanto nas práticas
sociais, como nas representações do espaço e nos seus espaços de
representação.
Considera-se, portanto, para esta pesquisa, que o urbanismo deve
designar aqui uma ciência que evidencie, a partir do espaço da cidade, as
relações que o produzem e, num caminho inverso e complementar, as formas
pela qual este pode se transformar. Além do planejamento ou do projeto, o
26
urbanismo deve se construir aqui como um apontamento da realização da
cidade em sua complexidade.
Não se faz tal reflexão no intuito de se medir alguma eficiência ou
precisão deste campo do saber. Muito pelo contrário, pretende-se apenas
problematizar a riqueza do mesmo no momento de confecção desta tese. A
profusão temática existente nos trabalhos do campo do urbanismo, enfim, a
heterogeneidade deste campo, parece bastante gratificante ao pesquisador
consciente de que a pesquisa urbanística não assumiu uma feição monótona,
repetitiva, e por isso mesmo possui em si um certo caráter de constante
descoberta, constante criação.
Este caráter dinâmico pode aparentar que a pesquisa urbanística
não possui uma maneira de se realizar, um método próprio, e por isso o
deva ser considerada como ciência autônoma. Não se concorda com tal
abordagem, tampouco se pretende aqui encontrar este caminho seguro de
uma metodologia rígida que venha ditar as normas específicas de uma
pesquisa urbanística. Compreende-se que este campo científico sempre
deverá conter este caráter de novidade e de criação em sua forma de ser
concebida. Talvez seja esta a sua característica permanente: a inovação, a
incerteza, a disputa. Tais facetas são coerentes com o perfil tanto do
pesquisador urbanista quanto do seu objeto, as cidades e seus espaços
sempre novos, o que nos remete à frase inicial de que o conflito é intrínseco
ao conceito de urbano.
Espera-se ter esclarecido que é dentro deste contexto que se
pretende construir aqui esta tese de doutorado, assim como, da mesma
forma que se pretende realizar um estudo sobre a cidade, pretende-se
realizar uma discussão sobre o papel da pesquisa urbanística
contemporânea.
Existe ainda uma questão que deve ser tratada: qual cidade se
pretende estudar. O conceito de cidade deva ser complexificado para que os
motivos desta pesquisa se tornem mais claros não apenas para o leitor como
para seu autor. Cada vez mais a cidade é vista como um sujeito social
protagonista de diversas mudanças no mundo contemporâneo e esta
retomada do espaço como lócus privilegiado de estudo reflete por si uma
pista de como a pesquisa urbanística se torna cada vez mais essencial. Aldo
27
Rossi, em sua Arquitetura da cidade constrói um preciso raciocínio a respeito
de como se enfrentar seu estudo:
O nexo destes problemas [da ciência urbana] e suas implicações
relacionam a ciência urbana com o conjunto das ciências
humanas; mas em tal quadro creio que essa ciência tem uma
autonomia própria, ainda que no decorrer deste estudo várias
vezes eu me pergunte quais são as características de autonomia e
os limites de uma ciência urbana. Podemos estudar a cidade de
muitos pontos de vista, mas ela emerge de modo autônomo
quando a consideramos como dado último, como construção,
como arquitetura; em outras palavras, quando analisamos os fatos
urbanos pelo que são como construção última de uma
elaboração complexa -, levando em conta todos os dados dessa
elaboração que não podem ser compreendidos pela história da
arquitetura, nem pela sociologia, nem pelas outras ciências.
Inclino-me a acreditar que a ciência urbana, entendida desse
modo, pode constituir um capítulo da história da cultura e, por seu
caráter global, um dos capítulos principais. (ROSSI, 2001, p. 4,
grifo do autor)
Esta característica da cidade “como construção última de uma
elaboração complexa” seponto de referência desta pesquisa. A partir desta
definição, conjugada ao entendimento do que vem a ser urbano supracitado,
pretende-se abordar o objeto ampliando ao máximo o espectro de sua
produção no intuito de se compreender o que representa seu espaço, o que
ele diz ao pesquisador e o que se pode dizer a partir dele.
Mas não se vai apenas considerar a cidade como um campo
aberto sem contexto algum. É preciso delimitar a ótica de sua apreensão para
não se deparar com a armadilha do generalismo que conduz o pesquisador a
um labirinto de referências do qual não há saída. Quer se produzir ciência e
não um conto de influências borgeanas. Feitas tais reflexões, portanto, parte-
se para uma contextualização inicial a respeito de uma forma de se adotar a
teoria lefebvriana para um caso-refrência de espaço produzido em um país
periférico.
28
2.3 CONTEXTUALIZANDO A ANÁLISE DO ESPAÇO PARA A SOCIEDADE
BRASILEIRA.
Conforme fora referido anteriormente, pretende-se realizar uma
análise a respeito das transformações ocorridas na produção do espaço
contemporâneo da cidade de Ouro Preto. Da mesma maneira como este
recorte seesclarecido em seu devido momento, é necessário agora que se
situe a base teórica exposta acima. A necessidade de tal situação se faz por
não se desejar utilizar uma reflexão por simples capricho e de forma gratuita,
vício comum que acarreta em respostas não apenas automáticas como
distorcidas exatamente por se distorcer a maneira de utilização das bases
teóricas.
Portanto, não se pode utilizar-se, incolumemente, de uma
interpretação lefebvriana de maneira automática em um contexto diferente do
francês ou europeu em geral. Da mesma maneira que aquele autor coloca
que cada sociedade constrói seu espaço próprio, o que autoriza inclusive a
percepção das condições sociais de uma região a partir de seu espaço;
interpreta-se que também o espaço da teoria, o espaço da ciência de cada
região também se constrói de forma distinta em sociedades diferentes
exatamente por cada uma possuir uma base de formação diferenciada.
Inevitável, portanto, destacar aqui que particularidades
estruturais entre o espaço (social) europeu e o brasileiro. Apesar de
semelhanças diversas devido às interconexões sistêmicas e relações de
dependência entre as duas regiões, é importante que se ressalte aspectos
qualitativos que promovam uma abordagem mais próxima do espaço
periférico e que alcancem respostas que fujam à tradicional relação de
inferioridade entre parâmetros brasileiros perante os europeus. Espera-se,
com o presente estudo obter-se, ainda que se utilizando também de reflexões
de um pensador europeu, respostas que se fiem na produção espacial
realizada por uma sociedade periférica.
Para que isto aconteça, é necessário extrair do pensamento
escolhido como base, pelos motivos acima expostos, elementos que,
combinados com análises realizadas a respeito de particularidades sociais da
29
periferia, produzam um diálogo capaz de trazer à tona uma análise mais
complexa desta realidade social e espacial.
Entende-se que esta sociedade não se construiu sobre as bases
tradicionais da formação capitalista. Portanto, apoiado na idéia lefebvriana de
que cada sociedade produz seu espaço, afirma-se que o espaço pleno, ou
puro, do capital, aquele abordado em seu La production de l’espace, não
seria suficiente ou adequado para se construir uma análise mais próxima de
um tecido sócio-espacial como o que seaqui abordado. Faz-se necessário,
então, criar um conceito de entendimento da produção espacial que se apóie
em algum traço característico desta sociedade, dos quais se vai utilizar o
conceito de cordialidade, consagrado por Sérgio Buarque de Holanda, por
reconhecer ser um dos mais fecundos instrumentos da interpretação
sociológica brasileira.
A introdução da cordialidade à análise espacial aparece aqui com
dupla função epistemológica. Ao mesmo tempo em que contextualiza uma
teoria forjada a partir de uma realidade não periférica, auxilia na
complexificação do entendimento do que vem a ser um estudo de urbanismo.
A introdução de um conceito advindo da sociologia no âmbito de um estudo
com pretensões analíticas focadas no espaço tem como objetivo declarado a
ampliação do espaço teórico delimitado pela parcelaridade da realidade
científica. A contaminação de diferentes campos científicos, ao invés de
enfraquecer, possibilita um aumento da capacidade de feitura de um estudo
mais fecundo e aberto, sem abrir mão de características intrínsecas ao
campo específico de pertencimento deste, no caso, o urbanismo.
Esta contaminação será aqui concretizada na forma de construção,
ao longo do texto, de um novo conceito operacional de análises urbanas
pautadas em uma formação espacial e social periférica: o espaço cordial.
Pode soar um pouco estranho caracterizar o espaço com uma adjetivação
forjada para a teoria social. Se, por um lado, espaço e a sociedade são
instâncias independentes no tocante à teoria, por outro lado, as relações
entre estas duas instâncias, ao serem evidenciadas na forma de um conceito,
podem render a possibilidade de criação de novas questões referentes tanto
ao espaço quanto à sociedade.
30
Antes de se passar ao conceito de espaço cordial, peça
fundamental para a construção desta tese, é importante finalizar esta
introdução apontando a dinâmica que se segue no trabalho.
Este conceito deve ser capaz de evidenciar as relações contidas
num espaço que se pauta como símbolo de uma nação, na medida em que
se considera que a cidade monumento tem muito a dizer sobre o caráter
nacional que representa e vice-versa. No entanto, não se espera que este
conceito seja o somente instrumento de interpretação da situação particular
que é o objeto desta tese, mas pretende-se forjar uma ferramenta com
potencial para o processo de interpretação de diversas relações espaciais
inseridas no contexto brasileiro.
Para tal, pretende-se, ao longo do trabalho, realizar diversos testes
do conceito criado de modo a amadurecê-lo, um deles no campo estritamente
teórico, onde se vai tecer as relações do espaço cordial com a questão das
cidades brasileiras e do patrimônio histórico urbano e, posteriormente, um
teste empírico, onde se vai utilizá-lo para se compreender as observações
realizadas em campo para que ao mesmo tempo se evidenciem novas
interpretações do espaço em questão e se reforce a proficiência do conceito
criado.
Entende-se, por fim, que, passados estes testes, tenha-se criado
uma base teórico-prática suficiente para se transpor, em trabalhos ulteriores,
este conceito de espaço cordial para além de uma cidade que seja símbolo
consagrado da nação brasileira, possibilitando como que por metonímia, que
outras relações espaciais não monumentais também se insiram neste
contexto de análise, posto que também pertencem ao mesmo contexto social,
espacial e nacional, ainda que de forma diversa.
Feitas estas considerações, passa-se agora à metodologia de
construção desta tese para posteriormente se discutir o conceito chave da
mesma, o espaço cordial, que ocupará esta primeira parte, de caráter
conceitual, do trabalho.
31
3 SOBRE O MÉTODO DE CONSTRUÇÃO DESTA TESE
A produção de estudos científicos foi objeto de diversas páginas
e definições em infinitos e necessários trabalhos e tratados epistemológicos.
Infinitos devido ao fato da disputa pelo saber refletir as disputas sociais como
um todo, sempre renováveis, mesmo que nem sempre se tratem de
inovações. Necessários que um campo em disputa necessita de regras.
Regras que não necessariamente são seguidas, mas servem de referência
tanto para o campo da manutenção como para o da ruptura.
Antes, porém, de esclarecer a forma de abordagem e de produção
deste trabalho, faz-se necessária a enunciação da localização de quem o
produz
7
. A origem discursiva se mostra como um posicionamento importante
para o campo da ciência, menos para a proteção do enunciador do que para
o esclarecimento da origem do pensamento posto. Tal atitude se justifica
devido a, no mínimo, duas características da forma de produção de saber.
A primeira delas seria a atual profusão de temas, escolas e
novidades incessantes no campo científico que se no tempo-espaço
contemporâneo, no assim chamado por muitos de pós-modernismo. A
definição clara da origem de pensamento, de posicionamento científico,
auxilia a percepção do receptor perante uma possível coerência do trabalho
produzido, possibilitando maior franqueza tanto na aceitação quanto no
rebatimento das idéias propostas. Obviamente que tal atitude não elimina
absolutamente a força interpretativa do receptor.
Tomando como exemplo este próprio estudo, pode-se rapidamente
perceber que seu autor não assume aqui o papel de crença na neutralidade
técnica ou científica. A própria enunciação deste fato coloca em xeque
aqueles que, porventura, insistirem na neutralidade técnica muitas vezes
utilizada como recurso em diversas áreas do saber e, de forma não menos
intensa, no campo do urbanismo, onde por vezes a técnica da neutralidade
carrega consigo elementos da estética como justificativa última de ação e
reflexão.
7
Devo esta reflexão ao curso ofertado pelo professor Carlos Vainer, “Globalização e políticas
territoriais centro e periferia: revisitando o debate” e a todos os que participaram daquela
empreitada teórica.
32
Sobre este aspecto, Edward Said, ao expor a origem de sua
compreensão a respeito do “orientalismo”, constrói a reflexão que se expõe a
seguir, bastante elucidativa dos caminhos que as ciências percorrem e das
trilhas que se permitem percorrer com maior ou menor legitimidade:
Assim, é provável que um estudo econômico do potencial
energético soviético a longo prazo e seu efeito sobre a capacidade
militar seja encomendado pelo Departamento de Defesa [dos
EUA], e mais tarde adquira uma espécie de status político que
seria impossível para um estudo da primeira ficção de Tolstoi,
financiado em parte por uma fundação. No entanto, ambas as
pesquisas pertencem ao que a sociedade civil reconhece como
uma área comum, os estudos russos, mesmo que uma delas
possa ser feita por um economista muito conservador e a outra por
um historiador literário radical. O meu ponto aqui é que “Rússia”
como um tema geral tem prioridade política sobre distinções mais
sutis como “economia” e “história literária”, porque a sociedade
política no sentido de Gramsci entra em campos da sociedade civil
como a academia e satura-os de um significado que diretamente
lhe concerne. (SAID, 2007
,
p.38-9)
Pode-se realizar uma releitura do trecho acima se substituindo
“estudos russos” por “estudos urbanos” e imaginar equivalentes do citado
potencial energético como algum estudo calcado na técnica, adensamento do
tráfego, por exemplo, enquanto Tolstoi pode ser pensado como o tema de
estudo aqui desenvolvido. Tal exercício de releitura faz entender que estudos
de “urbanismo” englobam uma variedade tal de abordagens que a
enunciação de sua origem seja uma ação teórica que garanta a diferenciação
entre os diferentes tipos de “Rússias” a serem observadas.
A segunda característica a se destacar seria uma espécie de, na
falta de melhor termo, franqueza epistemológica. Quando se anuncia a
origem de um discurso possibilita-se a corrosão de certas máscaras
existentes no debate do campo científico. Voltando o exemplo ao presente
estudo, ao se enunciar tanto o que já fora exposto a respeito da incorporação
do conflito como sua mecânica geradora quanto ao que agora se anuncia de
que esta tese se produz a partir de uma visão de mundo calcada em sua
periferia; descarta-se primeiro a possibilidade de se apostar na definição de
consensos neste trabalho e, em segundo lugar, questiona-se a incorporação
total e cega de idéias produzidas a partir do centro, debate este mais que
necessário em se tratando de um estudo voltado para o espaço e sua
33
produção. Retorna-se a Said e seu orientalismo para reforçar o argumento
aqui exposto a partir de sua colocação a respeito de uma alteridade reflexiva
que produziu o discurso que o mesmo analisa em sua obra:
Pois, se é verdade que nenhuma produção de conhecimento nas
ciências humanas jamais pode ignorar ou negar o envolvimento de
seu autor como sujeito humano nas suas próprias circunstâncias,
deve ser também verdade que, quando um europeu ou um
americano estuda o Oriente, não pode haver negação das
principais circunstâncias de sua realidade: ele se aproxima do
Oriente primeiro como um europeu ou um americano, em segundo
lugar como um indivíduo. (SAID, 2007, p.39)
Deve-se, portanto, assumir tal condição ao se produzir aqui um
estudo urbano qualitativo que se orienta no entendimento da produção de
espaços de uma nação periférica e, sobretudo, enxergada a partir da
periferia, confrontando elementos analíticos e uma história de pensamento
que deve se apoiar sobre esta condição, ao invés de incorporar uma visão
centrista, ocidentalizante do objeto de estudo. Do mesmo modo assume-se a
aproximação do objeto de estudo com seu estudioso, posto que não como
se manter aquilo que se chamou de franqueza epistemológica sem se
considerar que a cidade faz parte da construção intelectual do autor deste
trabalho, e este envolvimento é estreito e fundamental. Aborda-se o objeto
deste trabalho dialeticamente como um usuário da cidade e um estudioso da
mesma.
Feitas estas observações a respeito do trabalho que se produz,
passa-se à maneira pela qual se pretende enfrentar o objeto de estudo
propriamente dito. Já se esclareceu acima o contexto urbano do debate,
assim como se pretendeu esclarecer a forma de se compreender a cidade
“como construção última de uma elaboração complexa”. Resta agora
esclarecer os mecanismos de realização de tal empreitada.
Apropriar-se de uma cidade para fins científicos é tarefa que
conduz a amplos caminhos de possibilidades. Uma cidade pode ser real,
imaginária, simbólica, habitada ou estética. Da mesma forma uma cidade
pode ser litorânea, “histórica”, contemporânea, metropolitana, central,
periférica, nacional ou global. Enfim, infinitos termos designam este objeto
que é plural por excelência.
34
Uma das maneiras de se fechar o cerco é se delimitar a forma pela
qual se compreende a origem das cidades. Existe uma espécie de mito de
criação das cidades predominante no senso comum teórico
8
que afirma ser a
dominação pelo homem das técnicas agrícolas que possibilitaram aos seres
“primitivos” o abandono do nomadismo e a fixação em um espaço que se
desdobraria no que hoje se conhece como cidade.
Tal definição implica em duas correspondências não incorporadas
nesta tese. A primeira delas reside em uma espécie de finalidade histórica
que acaba por transformar o passado em uma naturalidade coerente,
encadeada linearmente, que desemboca na forma através da qual o
enunciador percebe o objeto cidade em sua contemporaneidade. A segunda
correspondência se encontra exatamente nesta percepção de que as
aglomerações humanas se formaram, como ainda se formariam, a partir de
um caráter extremamente funcional-economicista. As cidades seriam,
portanto, conseqüência da necessidade humana de se alimentar, produzir e
gerir seus recursos de forma racional. Seria tarefa quase inútil utilizar-se de
tais pontos de vista e ao mesmo tempo fugir, como se deseja, de análises
teleológicas e quantitativistas. Além disto, a técnica serviria aqui somente
como instrumento voltado para a produção e reprodução social sem
possibilitar alguma possibilidade de ruptura.
Prefere-se uma outra abordagem que considera a cidade como
uma construção social que necessariamente diferencia o homem dos outros
animais, posto que relacionada com a criação de símbolos que se tornam
origem de uma apropriação espacial. Lewis Mumford, em seu conhecido livro
“A cidade na história” sugere tal formulação de maneira precisa:
No desenvolvimento dos aglomerados humanos permanentes,
encontramos a expressão de necessidades animais semelhantes
às que se verificam em outras espécies sociais; contudo, até os
indícios urbanos mais primitivos revelam mais do que isso. Pouco
depois de se ter descoberto a trilha do homem no mais antigo dos
acampamentos ou dos instrumentos de pedra lascada, encontra-
se a prova de interesses e inquietações que o tem
correspondente animal; em particular, uma cerimoniosa
preocupação pelos mortos, manifestada em seu sepultamento
deliberado com evidências cada vez maiores de piedosa
apreensão e temor.
8
Conferir, por exemplo, a tese de Leonardo Benevolo em sua História da cidade (2005).
35
O respeito daquele homem antigo pelos mortos [...] teve talvez um
papel maior ainda que as necessidades de ordem mais prática, ao
fazer com que procurasse um local fixo de encontro e afinal um
ponto contínuo de fixação. [...] Constituíam marcos aos quais
provavelmente retornavam os vivos, a intervalos, a fim de
comungar com os espíritos ancestrais ou de aplacá-los. Embora o
ajuntamento de alimentos e a caça não encorajarem a ocupação
permanente de um sítio único, pelo menos os mortos reclamam
esse privilégio (MUMFORD, 2004, p. 12-3)
Ao contrário da que fora eleita pelo senso comum teórico, esta
definição da possível origem da cidade na história não aponta nem uma
certeza nem uma finalidade. A firmeza com que este autor descreve o caráter
hipotético de sua origem das cidades tem como base não apenas o seu
caráter de especulação, mas sua força metodológica. Mumford não escreveu
este trecho de seu livro para definir de forma hermética o porquê da
existência das cidades, mas desejou esclarecer a maneira pela qual ele
pretendia entender as suas transformações ao longo de sua obra, ou seja,
elevando o simbólico além do patamar da funcionalidade racionalista que
enxerga a sociedade através de seu viés da sobrevivência, e não da vivência.
Obviamente que não se deve imaginar que a finalidade das
cidades de Mumford seria se transformarem em modernos cemitérios, pois
sua apropriação do tema descarta a ligação natural da origem de um objeto
social com um fim em si
9
. Ao mesmo tempo em que o autor abre mão da
finalidade da história, reforça a coerência teórico-metodológica de seu livro,
não sem méritos, um dos mais utilizados quando se trata deste tema.
Pretende-se adotar uma postura semelhante à de Mumford, sem a
mínima pretensão de equivalência intelectual, frente ao objeto de trabalho.
Este posicionamento significa por um lado adotar uma percepção menos
funcionalista e mais simbólica frente à cidade estudada: Ouro Preto. Significa
também que se pretende uma coerência metodológico-analítica ao longo do
trabalho que não apenas o conduza de forma clara, ainda que conflituosa,
como o anuncie da mesma maneira.
No entanto, ao contrário daquele autor que pauta seu estudo
histórico-sociológico nas teorias da dominação de inclinações claramente
9
Não se deve confundir aqui este mito de origem de Mumford com seu conceito de
“necrópolis” adotado no mesmo livro.
36
weberianas
10
, adota-se aqui um método que parece mais adequado aos
estudos sócio-espaciais urbanos onde o concreto, ainda que simbólico,
desempenhe papel estruturante dentro dos marcos do conflito urbano
esclarecidos de produção e reprodução do espaço.
se disse no capítulo inicial que as teorias lefebvrianas sobre o
espaço são o fio condutor do presente trabalho. No entanto, além da forma
como se apropriou de seu conceito de urbano, faz-se agora necessário
esclarecer como sua teoria auxilia na construção metodológica deste
trabalho.
Antes de chegarmos a Lefebvre, no entanto, debrucemos um
pouco, como o mesmo o fez, sobre certas reflexões de Marx a respeito da
apropriação do concreto.
Em seu texto “Para a crítica da economia política”, há uma famosa
consideração de Marx a respeito do método da economia política:
O concreto é concreto porque é a síntese de muitas
determinações, isto é, a unidade do diverso. Por isso o concreto
aparece no pensamento como o processo da síntese, como
resultado, não como ponto de partida, ainda que seja o ponto de
partida efetivo e, portanto, o ponto de partida também da intuição e
da representação. (MARX, 1996, p. 39-40)
Esta sua consideração evidencia uma maneira de se portar
metodologicamente que aponta para a construção de um gesto científico a
respeito da cidade “como construção última de uma elaboração complexa”.
Com isto quer se dizer que uma cidade deve ser também o ponto de partida e
o ponto de chegada de uma análise urbanística. A síntese do e no concreto
se encontram na cidade e na produção de seu espaço, mas percebê-la é
tarefa que requer uma aproximação tal que a permita ocorrer de forma crítica.
A concordância com esta reflexão de Marx aponta que este estudo
não considera a cidade como objeto quantitativista e funcionalista.
Obviamente que esta forma de apropriação deverá ser compreendida como
parte de seu diverso que conduz à totalidade, posto que também existe, mas,
de forma alguma, deverá conduzir os rumos da pesquisa. Afasta também a
10
Como também o faz Sérgio Buarque de Holanda; o que não descarta a possibilidade de se
apoiar de forma mais intensa, neste estudo, no materialismo dialético lefebvriano.
37
possibilidade de leitura do espaço urbano de forma dual, posto que se deseja
encontrar a representação de um concreto síntese e não recorte. Isto remete
à forma através da qual Lefebvre anuncia a necessidade de rompimento com
a parcelaridade científica quando se busca alcançar o urbano de forma
analítica:
É a cidade essa soma de indícios e de indicações, de variáveis e
de parâmetros, de correlações, essa coleção de fatos, de
descrições, de análises fragmentárias porque fragmentantes? [...]
Ou se declara que a “cidade”, a realidade urbana como tal não
existe e que existem apenas séries de correlações. Suprime-se
esse assunto”. Ou então continua-se a afirmar a existência do
global. Aborda-se, delimita-se o global, seja partindo de
extrapolações em nome de uma disciplina, seja baseando-se
numa tática “interdisciplinar”. Não se apreende esse global. A não
ser através de um empreendimento que transcende as
decupagens”. (LEFEBVRE, 2004b, p.38)
Acrescentar uma reflexão a respeito deste questionamento
lefebvriano é tarefa do método de produção do presente trabalho. A
complexificação e entrelaçamentos de temas e olhares que se debruçam
sobre a cidade em conjugação com a construção de um raciocínio que se
contamina da realidade urbana levando-o a trilhar um caminho não linear,
mas nem por isso incoerente e tampouco menos científico, faz parte de uma
estratégia de produção de conhecimento que almeja coerência com seu
objeto de estudo complexo e conflituoso: a cidade.
Voltando-se ao texto de Marx, um esclarecimento, também
bastante conhecido, de seu método que alicerça aquilo anteriormente
anunciado a respeito da finalidade histórica presente em certas apropriações
do objeto urbano:
A anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que
nas espécies animais inferiores indica uma forma superior não
pode, ao contrário, ser compreendido senão quando se conhece a
forma superior. A Economia burguesa fornece a chave da
Economia da Antiguidade, etc. Porém, não conforme o método dos
economistas que fazem desaparecer todas as diferenças históricas
e vêem a forma burguesa em todas as formas de sociedade.
Pode-se compreender o tributo, o dízimo, quando se compreende
a renda da terra. Mas não se deve identificá-los. (MARX, 1996,
p.43, grifo do autor)
38
Isto auxilia a percepção de que um espaço considerado
monumento histórico hoje não o era quando produzido concretamente e,
certamente, passa por diferentes percepções mesmo no próprio campo
simbólico da monumentalidade. A atual cidade de Ouro Preto não é a mesma
cidade confusa da época das minas, e muito menos a mesma encontrada
pelos modernistas do IPHAN
11
nas décadas de 1920 e 30. No entanto, ela
também possui elementos permanentes daquelas épocas, daqueles espaços.
Seu tecido urbano é um jogo conflituoso de apropriações políticas,
simbólicas, temporais. A Praça Tiradentes é, ao mesmo tempo espaço de
memória de protesto contra a execução do famoso Alferes, de encantamento
por parte dos visitantes do início do século XX e de apropriação simbólica por
parte de instituições do grande capital, como se verá em capítulo posterior.
Este complexo movimento de vai-e-vem metodológico deve ser o
mais eficaz para se compreender o todo concreto de um espaço urbano.
Espera-se com ele ser capaz de se enxergar a cidade de Ouro Preto e seus
conflitos urbanos relativos à produção de seu espaço a partir da cidade hoje
existente. É importante e necessário retirar Ouro Preto de seu contexto de
cidade antiga, notadamente uma suposta “cidade do século XVIII”, e de novo
incorporá-lo, para que se compreenda o que ocorre e o que ocorreu em suas
transformações que a deixaram da forma como hoje se encontra.
Estas transformações não se dão, no entanto, de maneira linear no
tempo e nem mesmo ocorrem apenas em seu espaço construído de forma
tangível. A cidade monumento pode assim ser adjetivada devido a diversas
apropriações que recebeu e recebe por parte de seus moradores, de seus
visitantes e de seus construtores de símbolos.
Partir do concreto de uma cidade para se alcançar seu concreto
síntese não é tarefa simples e muito menos possível de ser feita de maneira
pretendidamente completa, universal. É preciso perceber espaços e
caminhos tanto no método quanto no objeto para que não se adentre em um
labirinto borgeano de onde a saída seja a concretização do nada.
11
A nomenclatura do atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) é
numerosa ao longo de sua existência que data de setenta anos atrás. Por motivos de
simplificação, adotar-se-á a nomenclatura e sigla atuais. Sobre este assunto, assim como
sobre a trajetória desta instituição, conferir o completo trabalho de Maria Cecília Londres
FONSECA – “O patrimônio em processo”.
39
Para se orientar este mergulho urbano nas ladeiras ouro-pretanas
é necessário, portanto, que se crie um caminho de aproximação que respeite
esta ordem aqui debatida, ordem que parte do concreto para sua síntese. O
caminho escolhido opera segundo recortes sugeridos por Lefebvre em seu La
production de l’espace: as formas complementares de observação da
produção do espaço social que resultarão em sua síntese balizam o trabalho
a seguir, garantindo uma visão ampla, complexa, relacional, conflituosa e
capaz de produzir uma descrição deste espaço que dialogue com sua
produção, sua reprodução e sua percepção.
A tríade lefebvriana do espaço social vivido, percebido e concebido
se torna uma ferramenta metodológica adequada e que conduzirá este
trabalho rumo ao conhecimento urbano. Assim, considerando-se a cidade de
Ouro Preto como símbolo nacional, pode-se conjeturar, a partir da lógica
lefebvriana, que haja:
a) O concebido: uma representação deste espaço que o
aproxima ao conceito de nação criado ao longo da formação
republicana brasileira, notadamente através do Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
b) O vivido: esta concepção, por sua vez, transformou
simbólica e concretamente, os espaços de representação
daquela cidade: suas ruas, praças, monumentos e seus
edifícios públicos e privados separadamente e em conjunto.
c) O percebido: a vivência nestes espaços alterou a percepção
de seus habitantes no que diz respeito às suas práticas
sociais, adaptando-se ou se resistindo à maneira de se viver
e conceber seu espaço a partir das designações de um
Estado Nação “à brasileira”.
A partir desta determinação, aqui simplificada, a respeito do
concreto ouro-pretano pretende-se investigar, após seu detalhamento, a
seguinte possibilidade de síntese que carrega em si um conflito capaz de
gerar não apenas uma outra forma de se perceber aquele espaço, como de
se pensar sua transformação: qual seria a reação/criação das práticas sociais
40
que alimenta ou questiona a produção dos espaços de representação
daquela cidade de modo a transformar, ou re-significar a representação deste
espaço, isto é, a representação da nação?
Para que esta consideração possa ser concretizada é necessário
que se compreenda tanto a forma como tais representações se forjaram
quanto suas conseqüências para o espaço produzido além de, obviamente,
tentar se compreender como as práticas sociais se dão nestes espaços com
relação à sua apropriação.
Os capítulos que se seguem, portanto, apoiar-se-ão nesta tríade
lefebvriana a fim de tecer relações que possibilitem o entendimento de uma
cidade contemporânea e, ao mesmo, evidenciem o significado da identidade
nacional em contraposição à sua prática institucional. Após o próximo
capítulo, que ainda perpetuará e encerrará este longo debate teórico a
respeito de como se estudar cientificamente uma cidade de uma nação
periférica, vai-se construir a abordagem orientada ao entendimento da
produção do espaço ouro-pretano da maneira a seguir.
O capítulo 5, “A nação (cordial) do IPHAN”, vai tratar do concebido,
ou seja, debaterá sobre a construção do discurso do IPHAN a respeito do
patrimônio histórico brasileiro, mais especificamente sobre a orientação
histórica utilizada para a legitimação do espaço colonial como representação
da idéia nacional de desenvolvimento moderno, delimitando assim uma das
facetas do espaço cordial.
O capítulo seguinte, “O espaço do IPHAN” abordará, de forma
crítica, diversas transformações do tecido urbano ouro-pretano realizadas a
partir da representação acima mencionada. O vivido.
o timo capítulo, “A percepção do espaço cordial”, tratadas
práticas sociais que se o pautadas na produção do referido espaço a partir
de entrevistas e questionários aplicados a diversos sujeitos sociais que se
relacionam com ele de alguma forma.
A partir desta construção será possível sintetizar os conflitos
internos e conjugados de cada parte do trabalho a fim de se construir uma
caracterização das relações sócio-espaciais contemporâneas da cidade,
atualizando a maneira de se enxergar seu espaço e possibilitando a
41
realização de novas questões que proporcionem uma contribuição à reflexão
urbanística e científica como um todo.
Antes de se definir, porém, a maneira como se deu sua formação
simbólico-nacional e as conseqüências diretas de transformação deste
espaço, faz-se necessário, como fora dito, uma atualização periférica do
pensamento espacial aqui posto. Atualização que auxiliará no entendimento
das práticas sociais e espaciais a serem observadas em Ouro Preto e que se
dará em forma de um conceito a ser testado nos estudos de campo: é
necessário que se pense o espaço cordial.
42
4 DO HOMEM CORDIAL AO SEU ESPAÇO
Das diversas contribuições lefebvrianas sobre a relação entre o
espaço e a sociedade, parece fecunda a noção de que uma sociedade
específica possui seu espaço específico, e, da mesma forma, pode-se
observar (ou realizar) mudanças e permanências sociais a partir da
transformação de seu espaço.
Calcado nesta interseção dinâmica que compõe o espaço social,
questiona-se simultaneamente qual seria o espaço relativo à sociedade
brasileira e como ambos vem se transformando. Para se responder a tais
perguntas, primeiro é necessário caracterizar teoricamente sobre qual
sociedade brasileira se está referindo para então se partir para uma
observação a respeito da sua condição de transformação, ou de
permanência, a partir de seu espaço urbano. Espaço que recebeu o devido
tratamento teórico nos capítulos anteriores.
Para responder à caracterização anteriormente relacionada é que
se adotar como central o conceito de homem cordial e os seus
desdobramentos. Segundo Monteiro (2005):
[...] a cordialidade ganharia sua fórmula mais conhecida quando
Sérgio Buarque de Holanda, na década de 1930, emprestando a
expressão ao poeta Ribeiro Couto, inventou o “homem cordial”.
Num ensaio sobre “corpo e alma do Brasil”, publicado em 1935, e
depois no seu livro Raízes do Brasil, de 1936, o futuro historiador
procurava compreender, através do “homem cordial”, a
importância das relações pessoais na conformação do espaço
público no Brasil. (MONTEIRO, 2005, p.118-9)
Esta precisa contextualização do termo traz à tona um aspecto seu
que é merecedor de destaque, que é a relação da cordialidade com o espaço
público, notadamente, com o espaço em si. Quando se afirma que rgio
Buarque de Holanda destacou a relação deste traço social brasileiro, a
pessoalidade, com o espaço público não se deve atribuir uma compreensão
de que se trata do mesmo espaço que se pretende abordar neste estudo.
Não se quer dizer com isso, deixe-se claro, que o caráter público não
receberá papel primordial no entendimento que aqui se tenta construir. Ao se
explorar como objeto um núcleo urbano dotado de título de monumento
43
nacional, toma-se já como premissa que seu caráter público, inclusive e
principalmente o simbólico, será peça chave para a análise que se segue.
Porém, quando Monteiro utiliza a palavra espaço público,
interpreta-se aqui uma forma de utilização do termo espaço que não inclui,
necessariamente, um caráter concreto, ou seja, o espaço construído. É por
compreender que cabe ainda uma análise sobre o homem cordial através de
sua interseção dinâmica com seu espaço construído que se pretende aqui
transpor aquele adjetivo para o conceito de espaço: o espaço cordial.
Antes de adentrarmos diretamente em uma definição do que seria
este espaço, é preciso que se esclareça melhor certos desdobramentos do
conceito firmado por Sergio Buarque de Holanda. Após um esclarecimento
quase desnecessário a respeito da famosa polêmica em torno do
entendimento do termo ‘cordial’, deve-se tratar aqui da forma de utilização do
mesmo que se pretende adotar, e também problematizar o destino deste
homem cordial seguindo fecundas contribuições de João Cezar de Castro
Rocha em seu livro intitulado O exílio do homem cordial.
Mesmo que se considere tema superado tanto pelos diversos
estudos realizados, como pela simples leitura cautelosa do texto de Raízes
do Brasil, é importante ressaltar o sentido aqui adotado para a cordialidade. O
termo é assim apresentado por Sergio Buarque, em parte muitas vezes citada
de seu texto:
se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira
para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o
“homem cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a
generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos
visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter
brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e
fecunda a influência ancestral dos padrões do convívio, informados
no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes
possam significar “boas maneiras”, civilidade. o antes de tudo
expressões legítimas de um fundo emotivo e extremamente rico e
transbordante. (HOLANDA, 1999, p.146-7)
É sabido, no entanto, que alguns autores da época tomaram este
conceito de cordialidade como um traço de bondade do homem brasileiro
12
.
12
Cf. o capítulo “As origens e os equívocos da cordialidade brasileira” do livro de Castro
Rocha (2004) para um debate detalhado a respeito desta querela. Conferir também o texto O
44
Para estes, o homem cordial seria, apenas, aquele que possui lhaneza no
trato, mas não carregaria consigo sua incapacidade de lidar com a
impessoalidade, traço este definidor de sociedades que, ao longo do século
XX, foram se mudando para as grandes cidades, tornando-se urbanas. O
próprio Sérgio Buarque inseriu uma nota de esclarecimento no capítulo “O
homem cordial”, onde, aproveitando para atribuir o termo a Ribeiro Couto
esclarece o que o levou a recuperar a expressão:
[...] Não pareceria necessário reiterar o que es implícito no
texto, isto é, que a palavra “cordial” de ser tomada, neste caso,
em seu sentido exato e estritamente etimológico [...], [portanto] se
eliminam aqui, deliberadamente, os juízos éticos e as intenções
apologéticas[...]. Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade,
estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo
social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente,
sentimentos positivos e de concórdia. (HOLANDA, 1999, p. 204-5,
nota 6 da página 146)
Entende-se que as palavras do próprio autor, melhor que
quaisquer outras, já esclareçam o sentido atribuído à cordialidade que aqui se
adota. Não restam dúvidas sobre a complexidade e a precisão do termo, de
modo que não se vai insistir na querela que acaba por julgar o povo brasileiro
como dotado de uma bondade órfã de justificativas. Parte-se então para a
forma como se pretende explorar este conceito segundo reflexão feita por
João Cezar de Castro Rocha:
Em primeiro lugar, o próprio Sérgio Buarque sugeriu a
possibilidade de ampliar o universo do homem cordial [...]. O
conceito de homem cordial não pode definir uma hipotética
brasilidade, uma vez que também revela mecanismos presentes
em outras sociedades.
[...] Assim, o homem cordial dribla a ineficiência objetiva das
instituições blicas, dado o predomínio da esfera privada,
mediante um sistema paralelo à ordem institucional, com base em
contatos pessoais. (CASTRO ROCHA, 2004, p.78)
homem cordial de Luiz Caversan (2008), publicado na Folha online, contrariando o otimismo
do autor da presente tese, confirma a ainda atual, e talvez eterna, necessidade de se
reforçar, ou disputar, o significado proposto por Sérgio Buarque de Holanda para o termo
(Anexo B).
45
Este autor propõe, portanto, uma ampliação da aplicação do termo
para além de uma definição exclusiva da formação social brasileira
13
. Adota-
se esta sua perspectiva por concordar tanto com seus argumentos de que a
cordialidade ocorre em diversos países da América Latina quanto da
possibilidade de se considerar a cordialidade como conceito sociológico
amplo capaz de descrever diversas situações que se apóiem tanto no que diz
respeito a formações sociais de diversas nacionalidades quanto no que se
relaciona com outras esferas da vida social não necessariamente ligadas à
nacionalidade.
Esta ampliação do entendimento da cordialidade como ferramenta
sociológica ampla abre o caminho para a realização do experimento que se
pretende neste estudo. Não apenas se concorda que o termo suscite uma
utilização mais fecunda, como se procura ampliá-la para uma área diversa do
conhecimento humano, o urbanismo, construindo um entendimento de qual
seria o tipo de espaço construído pela cordialidade que reciprocamente a
alimenta.
Como seria o espaço construído por uma sociedade cujo traço de
sociabilidade teimosamente presente é a cordialidade? Qual a chave para se
compreender a produção do espaço público e do privado em uma sociedade
onde estas duas formas de convivência se dão de maneira tão mesclada?
Espera-se que o entendimento da produção do espaço cordial seja capaz de
auxiliar na busca por tais respostas e, ainda mais, instigar novas formas de
produção espacial que tencionem à sua superação.
O fato de a sociedade cordial ser incapaz de lidar com a
impessoalidade além de “o pavor que [...] sente em viver consigo”
(HOLANDA, 1999, p.147) certamente traz reflexos para a forma que constrói
e se apropria de seus espaços privados e públicos. O entendimento deste
pavor de viver consigo mesmo deve ser capaz de auxiliar, inclusive, como se
sua capacidade de lidar com este outro que é o seu passado, sua
memória.
13
Ao contrário do que muitos imaginam, os traços de cordialidade não são sentidos apenas
no Brasil. Mostra-se comum em diversas sociedades latino-americanas, como, por exemplo,
na sociedade Argentina, mas não se vai tratar aqui desta multiplicidade territorial do
cordialismo. Sugiro a leitura de: CASTRO ROCHA, João Cezar de (org.). Cordialidade
brasileira – mito ou realidade?
46
A noção de espaço cordial aparece aqui como possibilidade de
interpretação espacial para além de categorias como formalidade e
informalidade, ilegalidade e legalidade, apropriação e abandono.
Compreende-se que por se insistir em enxergar o espaço, em numerosos
estudos, através de categorias funcionais para sociedades formadas de
maneira clássica não se consegue perceber particularidades da formação
periférica cordial e, principalmente, não se consegue enxergar um horizonte
de superação para diversos de seus problemas urbanos.
Quando se diz formação clássica, entenda-se como sociedades
que passaram por períodos de formação social rumo ao capitalismo de
maneira completa, ou original, e que desembocaram nas atuais sociedades
burguesas pautadas na individualidade, e cada vez mais no individualismo
14
,
e na cidadania, isto é, as nações centrais. Não se acredita ser este o caso do
Brasil, assim como de quase todas as outras nações do globo formadas a
partir do final do século XIX. A relação entre esta particularidade de sua
formação social, a cordialidade, o espaço e o patrimônio cultural edificado
será abordado de maneira aprofundada no próximo item.
Por hora vale acrescentar que a peculiaridade da formação das
nações centrais, por assim dizer, impede que se utilize de maneira eficaz a
noção, por exemplo, de diferenciação entre espaço público e privado em
terras periféricas da mesma forma que se lhe faz em referência às
sociedades do centro. Há que se colocar as idéias em seus lugares. Ora, se o
comportamento cotidiano cordial suplanta a todo instante, através de diversas
manobras, a impessoalidade arraigada no fundamento da cidadania burguesa
completa, é imperioso que se experimente enxergar seus espaços de
maneira mais profunda, ou ainda, mais adequada.
Para finalizar, portanto, a contextualização deste conceito, é mister
que se debata ainda o destino do homem cordial apontado por Sérgio
Buarque e sua permanência atual para que se delineie a coerência da
utilização do conceito em construção.
14
Interessante ressaltar que a sociedade cordial não ameniza a tendência burguesa ao
individualismo. Este encontro de duas temporalidades em uma sociedade ajuda a reforçar
a idéia de que para se alterar a maneira se lida com o espaço o é suficiente a tentativa de
construção de uma cidadania burguesa clássica, mas que se pensar alguma outra forma
de relação social pautada em um maior e mais amplo dialogismo.
47
Na definição do termo supracitada, extraída de ‘Raízes do Brasil’,
Sérgio Buarque diz que a cordialidade é “um traço definido do caráter
brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a
influência ancestral dos padrões do convívio, informados no meio rural e
patriarcal”.
Esta afirmação conduz a uma idéia de que, finda a influência dos
padrões rurais de convívio, estaria a cordialidade em vias de se esvair como
característica determinante da “sociedade brasileira”. Segundo Castro Rocha
(2005):
A urbanização e a vida moderna literalmente levariam à superação
da cordialidade. Logo, o conceito não poderia definir uma
brasilidade atemporal.
[...] (A) racionalização dos meios de produção, exigida pelo mundo
moderno, deveria domar os impulsos anárquicos do homem
cordial. (Mas) o homem cordial é ainda nosso vizinho; nos rituais
mais simples do cotidiano, está ele. A bem da verdade, ele quer
dizer todos nós [...].(CASTRO ROCHA, 2005, p. 9-15)
Esta observação de Castro Rocha soa o apenas útil à
contemporização do conceito de espaço cordial como também abre uma
fresta para um entendimento conceitual, caro ao urbanismo, que esclarece
um dos possíveis motivos da permanência insistente deste caráter cordial.
Por um lado, concorda-se que a cordialidade não pode ser
considerada como característica social atemporal, mas existe, nas palavras
de Castro Rocha, uma idéia que deve ser aqui aprofundada nesta retomada
do pensamento de Sérgio Buarque, aprofundamento que parece possível
a partir do olhar do urbanista que chega para complementar a análise precisa
do homem das letras.
Quando se afirma que a urbanização deveria ter levado à
superação da cordialidade, mas não o fez, está implícito que somos, já,
urbanos, o que faz com que a premissa de Sérgio Buarque se torne, senão
ultrapassada, passível de outras análises.
Porém, o que se percebe aqui, e não se faz isso por simples
defesa e aderência cega aos escritos do historiador, é que, na verdade, não
alcançamos plenamente uma urbanização digna deste nome. Isto significa
que rgio Buarque não errou ao escrever que a cordialidade seria superada
48
com a urbanização, mas foi otimista ao considerar que a urbanização
chegaria de forma célere com o aprofundamento da industrialização. Esta
veio, mas não trouxe com ela o caráter urbano definitivo. Os traços de
ruralidade permanecem inclusive nos escritórios dos centros financeiros do
país, supostamente construídos sob a égide da racionalidade impessoal.
O leitor, armado de dados como a surpreendente estatística
veiculada em todos os meios de comunicação de que o Brasil possui mais de
80% de seu território em meio urbano, estranhará a afirmação feita há pouco.
que se considerar, no entanto, que a urbanização vista desta forma é
compreendida de forma ou quantitativa, como se o fato de se viver
majoritariamente em “cidades” trouxesse, naturalmente, urbanidade a uma
sociedade; ou funcional, como se a racionalidade garantisse o urbano como
quer Castro Rocha.
Lembre-se que se afirmou, no início desta tese, que o conceito
de urbano carrega em seu âmago o conflito como definição mais pura. O
conflito, no entanto, não combina com a lhaneza. Para que se haja conflito é
imprescindível que se altere a predominante pessoalidade, caso contrário o
debate se transmuta em briga pautada pelo ódio e não pela razão. É notória a
permanência desta incapacidade de realizar um embate de idéias que seja
afastado da afeição. A formação social brasileira construiu um homem que
carrega suas idéias no coração e, portanto, questioná-las significa um gesto
de questionamento de fidelidade, de amizade.
Assim, concorda-se ainda com rgio Buarque quando este diz
que a cordialidade não permanecerá quando superada a “influência ancestral
dos padrões do convívio”, porém, entende-se, como o faz Castro Rocha, que
estas não são exclusivas do “meio rural e patriarcal”. No entanto, considera-
se que, mesmo não estando mais a população brasileira submetida, em sua
maioria, ao meio rural, como comprovam as estatísticas, estamos ainda em
uma formação urbana não concluída. Lembrando que Lefebvre, em seu A
revolução urbana (2004a) esclareceu a diferença entre “industrial” e “urbano”
Donde se conclui que a superação da cordialidade ainda pode se dar
concomitante com a construção qualitativa de um caráter urbano, pautado em
uma superação da incapacidade, ou pavor, de conviver com o conflito de
modo permanente. Este conflito, talvez se realize de maneira mais intensa
49
em sociedades e espaços onde a formação nacional se deu de forma
clássica e o habitante se converteu em cidadão pleno, o que não ocorreu, e é
provável que não ocorra, em terras periféricas.
Não se quer afirmar com isso que a única maneira de se alcançar
tal urbanidade seja almejar a forma de convívio dos países do centro. Muito
pelo contrário, é preciso que se rompa com o “pavor que sente em viver
consigo” e se descubra qual a saída para a construção de uma forma própria
de cidadania, ou melhor, de uma maneira de rompimento com a cordialidade,
e, para isso, entende-se ser indispensável que se compreenda a produção do
espaço desta sociedade cordial. É necessário que se pense a respeito da
maneira pela qual esta sociedade poderá buscar sua urbanidade além do
rural e também do industrial.
Somente após entender como se produz este espaço cordial é que
será possível construir ferramentas para superá-lo. Dito isto, passa-se para a
compreensão mais aprofundada da construção da cidadania e da
nacionalidade sob a influência da cordialidade, entendimento necessário para
que se possa adentrar, posteriormente, nas peculiaridades da relação com o
patrimônio que se mostra como um reflexo desta formação social.
Um estudo focado nas questões patrimoniais vai auxiliar a
destacar evidências de uma nacionalidade periférica, que neste espaço
afloram de forma mais concreta as relações sociais e as formas espaciais
que delinearam esta formação nacional, com todas as suas peculiaridades,
rompimentos e permanências. É a partir desta relação da cordialidade com
sua espacialidade que se vai compreender, por exemplo, o porquê de nos
apropriarmos de locais públicos como se privados fossem, ou, pelo contrário,
não o fazermos em certos locais ditos públicos.
50
4.1 CIDADANIA, CORDIALIDADE, NAÇÃO E SOCIEDADE
A língua portuguesa possui uma amplitude semântica que permite
que certas atividades, notadamente aquelas relacionadas ao uso direto da
palavra, desenvolvam-se de maneira extremamente fértil contribuindo para
uma riqueza cultural no campo da poesia, da música e da literatura de um
modo singular.
Esta mesma riqueza, no entanto, pode acarretar em profundas
acumulações conceituais num mesmo signo que, em certas situações, como
no caso da palavra cidade e de seus termos complementares cidadão e
cidadania, acabam por gerar um conflito que se reflete também, e tão bem,
nas ações relativas a estes conceitos.
Percebe-se, desde a construção da palavra à sua utilização um
conflito que evidencia, ou mascara a complexa relação entre a sociedade e
seu espaço. A palavra cidadão sintetiza, no senso comum, a forma através
da qual o homem molda seu espaço enquanto é moldado por aquele, porém,
equivalendo-se ao termo “voluntário”, destacando apenas uma parte dos
deveres que este tem com seu conjunto social, esquecendo-se
deliberadamente de seus direitos
15
.
A necessidade de se compreender melhor tal conceito e seu
processo de formação reside, portanto, na possibilidade de o homem se
relacionar de forma libertária com suas criações, dentre elas a cidade, que
em neste espaço cordial acaba por nomear um cidadão incompleto na
medida em que não se enxerga, ou é enxergado, como seu produtor.
raízes históricas para essa percepção. Uma delas seria a
produção do espaço durante a colonização brasileira que construiu uma
percepção dos termos vila e cidade de maneira a hierarquizá-los, de modo
que ‘vila’ adquiriu uma importância menor que ‘cidade’, único termo a ganhar,
inclusive, em certas ocasiões, a adjetivação de ‘real’, quando da primeira fase
de ocupação do espaço colonial pela metrópole. As cidades reais eram
aquelas dotadas normativamente do poder máximo na colônia, onde se
15
Esta equivalência de cidadania com voluntarismo, que significa a negação dos direitos em
nome de deveres escessivos é percebida constantemente na grande mídia em geral.
51
alojavam os que possuíam contato direto e privilegiado com a Coroa
Portuguesa, segundo Nestor Goulart Reis Filho (1968)
16
:
Nas capitanias pertencentes à Coroa, cabiam exclusivamente a
essa as tarefas de urbanização, reservando-se ao rei os atos
relativos à criação ou à elevação dos povoados à condição de vilas
e cidades. Os núcleos de maior importância, fundados como
cidades, eram instalados somente nesses territórios, ficando os
seus habitantes subordinados diretamente ao Governo Geral;
eram as chamadas cidades reais. (REIS FILHO, 1968, p. 67)
Esta hierarquização de termos, que se refletia diretamente na
construção de um poder centralizador no amplo território colonial gerou uma
relação na qual um povoado que desejasse alguma autonomia em seu
processo de consolidação política deveria adquirir o status de cidade. Vale
ressaltar que, mesmo nas regiões onde a economia predominante era
produzida em meio rural, era nas aglomerações urbanas que o poder político
mais amplo se exercia, numa complementaridade entre fazendas e
câmaras
17
.
O caso específico de Minas Gerais, que mais interessa ao
presente estudo, diferencia-se deste padrão não pela relação entre vila e
cidade real, mas pela contradição de sua formação espacial.
Da mesma forma que hoje se reconhece o Brasil como um país
urbano devido às estatísticas ocupacionais de seu território, considera-se que
Minas Gerais nasceu urbana devido ao fato de suas atividades extrativistas
não exigirem uma espacialidade rural tradicional, mas algo que se
assemelhasse aos núcleos citadinos dos países centrais.
A partir da descoberta do ouro em seu território, em finais do
século XVII, formaram-se diversas aglomerações em uma velocidade antes
desconhecida na colônia, incluindo a mais dinâmica de todas à época, Vila
Rica, hoje Ouro Preto. É conhecido o significativo esvaziamento populacional
de outras áreas do Brasil e mesmo de Portugal, inclusive daquelas bastante
remotas, devido à migração populacional em busca do metal precioso
18
.
16
Para um melhor esclarecimento sobre a urbanização do Brasil colônia, conferir: Nestor
Goulart Reis Filho Contribuição ao estudo da evolução urbana do Brasil (1500/1720). As
questões aqui referidas se encontram em seu Capítulo II.
17
Cf. OLIVEIRA, Francisco de. O estado e o urbano no Brasil.
18
Cf. PRADO JR., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo
52
Em relação à hierarquização do poder, é famoso o fato de Mariana
ter sido a primeira cidade de Minas Gerais mesmo sendo Vila Rica, futura
Ouro Preto, o centro econômico e político mais importante daquela capitania
à época. Mariana ganhara tal título por ter sido escolhida para receber a sede
do bispado católico mineiro, ainda hoje residente. Para receber tal
incumbência, era exigido pela Igreja que o espaço urbano não podia ser uma
‘vila’, mas ‘cidade’. E, por outro lado, havia por parte da coroa portuguesa um
certo receio de elevar Vila Rica a este status, posto que tal ato criaria uma
indesejável independência da mesma, que afetaria a necessidade de rígido
controle da Coroa para confiscar sua parte da produção aurífera
19
. Segundo
Vasconcelos (1977) Vila Rica somente será elevada a cidade nos tempos
do Império, junto com as demais capitais de províncias, em 1825; o que não
significa que não haja tentado o fazer anteriormente, como o próprio Sylvio de
Vasconcelos conta:
Animados pelo desenvolvimento do lugar, solicitam os vereadores
ao rei, em 1714, que eleve a Vila à categoria de cidade,
concedendo-lhe os “mesmos privilégios de que gozam os cidadãos
de S. Paulo”. Consultado, porém, o Governador Gomes Freire de
Andrade, opina este que não lhe parece ter o Senado feito à S.
Majestade “tão relevantes serviços que seja merecedor de tão
especial graça”, aconselhando, assim, o indeferimento do pedido.
(VASCONCELOS, 1977, p. 31. grifos do autor)
Esta construção histórica da cidade no Brasil pelos portugueses,
aqui brevemente exposta, criou uma oposição entre este termo e o seu irmão,
a vila. Oposição fundada em uma hierarquização que é até hoje percebida
tanto quando definimos um pequeno aglomerado como sendo uma vila, que
inclusive é sinônimo de locais de habitação popular ou favelas em certas
regiões, como em Belo Horizonte; quanto também quando definimos por
cidade o chamado “centro” urbano, ou seja, o local de concentração dos
órgãos dos poderes públicos e de acumulação maior dos setores privados de
um município.
Nesta concepção opositora entre vila e cidade, o cidadão seria,
simplesmente, o habitante da cidade, inclusive diferenciado de seu
19
Cf. FONSECA, Cláudia Damasceno. O espaço urbano de Mariana: sua formação e suas
representações. (1998).
53
companheiro, o habitante da vila, ou o vilão. O cidadão se torna, assim, o
habitante de um espaço geográfico definido, onde é aquele espaço que
representa o poder, não necessariamente compartilhado por seu habitante.
Morar na cidade cria um cidadão adjetivado como uma espécie de título de
nobreza desprovido de valor.
Tal fato, inclusive, denota uma relação controversa no que tange
as definições destes termos em latim e em grego. Naquele idioma a que
estamos ligados mais profundamente, é o cidadão quem produz a cidade,
enquanto no grego, esta é que o produz
20
. Assim, apesar da origem latina,
pode-se afirmar que, aqui, o cidadão é produzido pela cidade, ou, pelo
menos, é conseqüência da existência desta, e estaríamos mais próximos,
portanto, da lógica grega, numa curiosa relação original de deslocamento de
idéias.
Além do fato pitoresco de tal caracterização, reside uma relação
conceitual da qual não se pode fugir. Mesmo sendo este cidadão advindo da
existência de cidades, este conceito não se aproxima de fato daquele criado
na cultura que é tida pela civilização ocidental como seu berço. No mundo
das idéias da civilização clássica da Grécia, a cidade, que construía seus
cidadãos, era associada à idéia de lis, que conjuntamente a uma prática
política tornava seus habitantes cidadãos construtores da dinâmica produtora
daquele espaço, e de suas formas de representação.
No caso brasileiro, a cidade, como fora mostrado, denota uma
relação de “título de poder espacial”, ou ainda, de autorização ou concessão
de poder, para alguns, em determinado espaço. De certa forma, se
considerarmos o cidadão latino como sujeito ativo da produção da cidade,
enquanto que o sujeito ativo da relação grega seria a própria cidade, ou a
idéia que representava, aqui, tanto esta quanto aquele foram, e ainda o são,
frutos de uma concessão, ou seja, não denotam nenhuma conquista de
cidadania, o denotam nenhuma forma de atividade do sujeito social, pode-
se afirmar que ambos são frutos de uma relação onde é a passividade seu fio
condutor.
20
Cf. TSIOMIS, Yannis. Ville-Cité, 1998.
54
A cidadania moderna, no entanto, carrega consigo uma relação de
direitos e deveres onde não cabe esta relação que é quase um pacto social
de concessão-passividade tão presente em uma formação social autoritária.
Milton Santos (2002) resume da seguinte forma o trajeto da condição política
da cidadania ocorrida nas nações centrais:
A cidadania evolui por meio de um processo de lutas
desenvolvidas paralelamente em diversos países, que leva da
condição de “membro da sociedade nacional”, no século XVII, ao
“direito de associação”, no século XIX, até serem alcançados os
“direitos sociais” em pleno século XX. (SANTOS, 2002, p.21)
Não percorremos esta trajetória, pelo menos não de maneira
linear. É necessário, no entanto, passar-se da relação grega e latina para a
matriz francesa do pensamento social brasileiro para que esta questão se
torne mais clara. É sabido que, quando se dissolveu o estatuto colonial
brasileiro, importou-se do pensamento francês uma organização ideológica,
filosófica e política, mas o a prática. Caio Prado Júnior, no encerramento
de sua “Formação do Brasil Contemporâneo”, expõe esta característica deste
processo inacabado de ocidentalização:
[...] Tudo que se escreveu no Brasil desde o último quartel do séc.
XVIII, que é quando realmente se começa a escrever alguma coisa
entre nós, traz o cunho do pensamento francês: idéias, o estilo, o
modo de encarar as coisas e abordar os assuntos.
[...] a ideologia revolucionária francesa venceria estas resistências
[às idéias jacobinas], e se adotará “oficialmente” para as
circunstâncias brasileiras. Nos seus traços gerais, ela parecia
perfeitamente aplicável às necessidades políticas da colônia.
(PRADO JÚNIOR,1979, p. 376-7)
Pode-se afirmar que esta vitória à resistência às “idéias jacobinas”
reflete, de outro modo, a forma de se apropriar idéias que se expôs acima e
que deformou o conceito grego de cidade e cidadão. É justamente a entrada
do pensamento francês que esclarece a diferenciação entre intenção e gesto
do que vem a ser uma cidade, ou, mais especificamente, um cidadão e,
conseqüentemente, a cidadania devido à existência, nesta língua, de
diferentes termos para designar tais significados de forma mais precisa, ou
impessoal, que no português.
55
Tsiomis (1998) esclarece que a cidade, espacialmente, pode ser
designada em francês por ville, e seu habitante, a quem chamamos de
cidadão, seria o citadin, diferente, portanto do citoyen, que é tido como o ser
possuidor de direitos e deveres políticos, o cidadão “grego”. A cidadania,
portanto, seria neste contexto uma noção política, e não absolutamente
espacial, ou identitária-nacionalista, como aqui também a tratamos, por
exemplo, quando nos referimos a uma pessoa que possui uma cidadania
portuguesa. Esta cidadania, citoyenneté, é uma construção política ligada a
direitos e deveres em um espaço, também político, que seria a cité
21
.
Percebe-se, portanto, que na língua francesa a relação entre o significado
das palavras que designam a vila e a cidade não é de hierarquia. Ville e cité
recebem significados referentes a diferentes campos do pensamento
humano, aquele é político, este é referente ao espaço. O que acontece, no
entanto, quando se adota a idéia de cidadania, tal como a francesa, em um
lugar onde seu correspondente, a cidade, não acompanha a mesma
formação histórica?
Esta mescla de idéias gerou, no Brasil, territórios urbanos,
chamados de cidades, que possuem seus cidadãos, porém, não
necessariamente dotados de cidadania, somos citadins sem citoyenneté. A
cidadania é uma construção social que ainda não fora completamente
alcançada, na prática, na vivência social brasileira. Da Matta (1987) trata da
questão da cidadania brasileira como um código de comportamento que
opera paralelamente a outro, relacionado a esta estrutura familiar de
sociedade, que se baseia na construção de uma rede social que está fora da
normatização legal, e que serve como complemento, ou substituição, de um
escopo comportamental baseado na impessoalidade, no individualismo dos
direitos e deveres de um cidadão aqui derivado da cité, e não da “cidade”,
obviamente.
Este entrelaçamento de conceitos e comportamentos denota,
segundo Da Matta, uma oposição entre duas outras instituições que seriam a
sociedade e a nação: “[...] como cidadão eu pertenço a um espaço
eminentemente público e defino o meu ser em termos de um conjunto de
21
Esta reflexão, baseada na distinção feita por J. J. Rousseau, foi extraída da obra:
TSIOMIS, Yannis. Ville-Cité: des patrimoines europeéns. 1998. p.26
56
direitos e deveres para com uma outra entidade também universal, chamada
de ‘nação’” (DA MATTA, 1987, p. 73). Paralelamente, é sabido que a
construção social brasileira se deu em termos patrimonialistas, familiares ou,
melhor dizendo, cordiais, para se utilizar o termo de Sérgio Buarque de
Holanda; assim, existe um conflito interno ao comportamento brasileiro que
se reflete em diversos, senão em todos os aspectos de sua vivência. Ainda
segundo Da Matta em “outros termos, uma nação brasileira que opera
fundada nos seus cidadãos, e uma sociedade brasileira que funciona fundada
nas mediações tradicionais” (DA MATTA, 1987, p. 95). Afirma-se inclusive
que ambas, a sociedade e a nação, convivem na mesma cidade, que possui
assim um caráter duplo neste caso.
É certo que alguns passos vêm sendo dados rumo à construção da
cidadania no Brasil. No entanto, notam-se diversas permanências do que
antes fora exposto ao se debater as linhas de formação urbanística brasileira
e que aqui se repetem como manifestação de uma maneira de pensar e agir:
a afeição pelas idéias, advindas de uma crença positivista em leis que
alterariam a vida do indivíduo, num movimento cíclico de concessão e
passividade calcado nas idéias e quase nunca na prática. Aliás, pode-se dizer
que, em questões jurídicas, somos sempre cautelosos em relação à eficácia
das normas e, pelo contrário, esquecemos da necessidade de sua eficácia
social
22
.
A Constituição Federal atual, por exemplo, é apelidada de
constituição cidadã. Ora, nada mais exemplar de um comportamento cordial
do que chamar de cidadão um ente abstrato que é sabido não possuir seu
reflexo correspondente no terreno social. Tenta-se encaixar de forma abrupta
uma relação que não foi aqui moldada historicamente: a cidadania, segundo
Faoro (2001,): “A vida social será antecipada pelas reformas legislativas,
esteticamente sedutoras, assim como a atividade econômica será criada a
partir do esquema, do papel para a realidade.” (FAORO, 2001, p. 882)
22
Conferir, a respeito deste debate sobre a eficácia social das normas jurídicas, o seguinte
texto de Cavallazzi (2000): Práticas Sociais Instituintes e Sua Tradução Jurídica e
Urbanística, além de outros escritos seus sobre o tema.
57
Milton Santos também nos alerta para este fato, antecipando o
problema em um texto seu que fora escrito quando a “constituição cidadã” se
via ainda como uma novidade e uma promessa:
A luta pela cidadania não se esgota na confecção de uma lei ou da
Constituição porque a lei é apenas uma concreção, um momento
finito de um debate filosófico sempre inacabado. Assim como o
indivíduo deve estar sempre vigiando a si mesmo para não se
enredar pela alienação circundante, assim o cidadão, a partir das
conquistas obtidas, tem de permanecer alerta para garantir e
ampliar sua cidadania. (SANTOS, 2002,p.105).
A vigilância deste debate inacabado se dá também a partir do
entendimento da produção espacial que possui um papel protagonista na
disputa pela cidadania, ou por conquistas que se equivalham à idéia de uma
sociedade onde direitos e deveres se equilibrem e sejam pautados na
autonomia do indivíduo seja em relação ao Estado, seja em relação ao
mercado. Não se pretende aqui encontrar uma resposta entre o que deve ser
mais correto, se um comportamento cidadão, derivado da nação completa ou
se um comportamento cordial, derivado de uma dada formação periférica,
mesmo porque se acredita que não é a partir de uma premissa dualista que
se vai compreender fenômenos sociais e espaciais neste território. Espera-
se, sim, complexificar o entendimento do espaço urbano brasileiro e,
principalmente, da produção de um espaço considerado patrimônio de uma
nação, espaço este imerso em um universo social relacional e que, como tal,
pede uma análise que fuja a um dualismo não apenas conceitual, mas
também intelectual.
Afirma-se que não se deve tentar perceber ou classificar onde
ocorre uma força cordial, ou “social”, dominante em contraposição a uma
força cidadã, ou “nacional”, e vice-versa na produção do espaço urbano aqui
analisado. Deve-se, no entanto, compreender como se este jogo dinâmico
de forças para, inclusive, perceber uma outra possibilidade, talvez mais
próxima do significado “latinode cidade supracitado, ou seja, aquele em que
os cidadãos é que a produzem, de maneira a superar a dicotomia entre a
sociedade e a nação a partir de uma prática que fundiria ambos de uma
58
maneira diferenciada das ideologias importadas, partindo da prática à idéia, e
não do caminho inverso.
Para se debruçar, porém, no objeto chave para a busca do
entendimento supracitado, que será a produção do espaço da cidade de Ouro
Preto, é preciso um entendimento maior da construção da idéia de nação,
inclusive porque esta, assim como a cidade, não representa uma entidade tão
rígida como se possa imaginar, ainda mais no caso aqui estudado.
Para se compreender tal construção sem fugir ao objetivo central
deste trabalho, vai-se primeiro realizar breves reflexões sobre a
maleabilidade do conceito de nação para depois enxergá-la a partir do reflexo
do que foi definido como seu patrimônio histórico e artístico no caso particular
brasileiro, isto é, sua representação simbólica nacional. Mas não se pretende
aqui realizar mais uma análise a respeito unicamente do conteúdo ou da
ideologia contida na caracterização deste patrimônio, mas da forma como foi
construído e praticado, procurando os traços de uma cidadania e seus
embates, ou encontros, com a cordialidade.
4.2 REFLEXÕES A RESPEITO DO CONCEITO DE NAÇÃO
A palavra nação costuma carregar consigo, segundo um senso
comum, uma série de elementos que a representam, como língua, território,
bandeira, hino, algumas manifestações sociais e uma certa identidade de um
povo. Outra característica importante da idéia de nação é que esta carrega
uma certa unidade, uma espécie de elo que às vezes é tido como um destino
comum ou reconhecimento entre os seus representados, como uma
naturalidade social. Não é necessário, no entanto, aprofundar-se muito sobre
o tema para que se perceba que tal naturalidade esconde diversos conflitos
na construção social deste conceito. Bastaria, por exemplo, destacar que
sobre o manto da nação escondem-se inúmeros conflitos internos de uma
dada organização social como aqueles oriundos de suas diferentes classes
sociais. Este aspecto será confirmado de maneira concreta quando feita a
análise direta da interferência, ou interseção, deste conceito com seu espaço
representativo em Ouro Preto.
59
Sabe-se que a concretização do termo nação é um acontecimento
histórico e, como tal, não acarreta uma fixidez no decorrer do tempo. Como
nos lembra Canclini (1994), “Aquilo que se entende por cultura nacional muda
de acordo com as épocas”, ou mesmo Hobsbawm (1998) quando afirma que
“[...] a identificação nacional e tudo o que se acredita nela implicado pode
mudar e deslocar-se no
tempo, mesmo em períodos muito curtos”
23
.
Pode-se exemplificar tal complexidade pelas diferentes formas
através das quais uma nação é percebida por diferentes conjuntos sociais.
Tome-se como exemplo uma nação que representa em sua essência todo um
ideário de uma construção nacional clássica: voltemos à França. Para muitos,
símbolos como a bandeira tricolor, a Marseillaise e o 14 de julho seriam uma
boa definição do que vem a ser a França. Basta, porém, dirigir-se a um
argelino para se conhecer um lado bastante diferente de quem fora
colonizado por aquela nação
24
.
Dentro do próprio território francês, inclusive, a diferença entre a
região parisiense, a île-de-France, e o resto do país é fortemente destacada
no que diz respeito a certos traços de identidade, de economia, de classe e
de centralidade enfim. E ainda, dentro da região parisiense encontram-se
variados tratamentos dispensados pela mesma nação a diferentes segmentos
da população, basta adentrar alguma banlieue pobre como as que aparecem
constantemente em noticiários de cunho policialesco com seus carros em
chamas e outra mais abastada como aquela em cuja administração se
revelou o atual presidente Sarkozy para que tais diferenças se tornem de fácil
percepção.
Ainda sobre o “hexágono
25
europeu, Pierre Nora (1984) discute,
ao realizar sua revisão da construção histórica da nação e da república
francesas, a existência de uma essência combativa no caráter republicano
que conduzirá o caráter nacional francês. Segue-se uma observação
interessante realizada pelo historiador que ajudará bastante, por contraste, a
enxergar particularidades desta formação nacional que se afasta bastante
daquele modelo:
23
Conferir também A crise do Estado-nação, organizado por Adauto Novaes (2003)
24
Sobre este assunto, cf. Les damnés de la terre, de Frantz Fanon (2002).
25
Forma geométrica adotada pelos franceses para representar seu país, por se assemelhar,
segundo seu olhar, ao contorno nacional da França quando observado em um mapa.
60
Esta memória [da república] adquire coerência a partir daquilo que
exclui. Ela se define na contraposição, ela vive de inimigos.
Inimigos muitas vezes bastante reais, mas também
fantasmagóricos. A república tem necessidade de adversários para
desenvolver sua atitude genética de encarnar o todo, o todo da
sociedade constitutiva da Nação, o “Terceiro Estado” contra os
“privilegiados”, os patriotas contra os “aristocratas”, os pequenos
contra “os grandes”, o povo contra seus opressores, sem
mencionar os “trabalhadores” contra os monopólios”. (NORA,
1984, p.652, traduzido pelo autor)
26
Percebe-se que o confronto dentro do conceito de nação
republicana francesa é seu caráter constitutivo. Nora, ao concluir sua reflexão
neste texto, afirma que a memória republicana chega a abarcar,
simultaneamente, o gaullismo e o comunismo notando, no entanto, uma
convivência conflituosa, pautada na disputa entre estes dois
posicionamentos. Como se observará mais adiante, por aqui se dará, ao se
construir uma nação republicana, uma aversão a qualquer confronto
prontamente resguardada pela cordialidade que se refletirá de forma efetiva
no espaço, e, no caso do espaço simbólico nacional, de maneira ainda mais
evidente.
Essa observação demonstra como a “nação” não é nada mais que
uma construção histórica e social e, portanto, carregada de variadas
apropriações como qualquer outra que assim adquire diferentes
interpretações segundo recortes territoriais, econômicos, de classe ou
culturais.
A organização em nações, ou Estados Nacionais, é parte da
história recente da humanidade, que ganha vulto na Europa em finais do
século XVIII e ocorre de maneira ampla na América ao final do século XIX ou
mesmo início do século XX, assim como na África na segunda metade do
século passado. O conceito de nação é, como se viu, bastante flexível e
acarreta conflitos de diversas origens e finalidades. Segundo Lefebvre:
26
Cette mémoire tient sa cohérence de ce qu’elle exclut. Elle se definit contre, elle vit
d’ennemis. Ennemis à coup sûr bien reels, enemies également fantasmés. La république a
besoin d’adversaires pour developer son aptitude nétique à incarner le tout, le tout de la
société constitutive de la Nation, le Tiers État contre les “privilegiés”, les patriots contre les
“aristocrates”, les petits contre “les gros”, le people contre ses oppresseurs, pour ne pas
évoquer les “travailleurs” contre les monopoles”
61
Pouco a pouco, ao longo do século [XIX] a nação se torna um
simples slogan utilizado de forma tão fácil pelas causas as mais
diversas que este sentimento se revela plástico e contudo ainda
dinâmico apesar das decepções e confusões das relações e das
utilizações contraditórias. (LEFEBVRE, 1988,132-133, traduzido
pelo autor)
27
A construção social do conceito de nação não escapa, pois, à
dinâmica relacional intrínseca a outros conceitos e práticas como liberdade,
consumo, mercadoria, espaço, cidade, cidadania ou urbano. Em cada canto
do globo, em diferentes momentos de sua história, a nação fora utilizada por
diversos setores específicos de cada sociedade para diferentes fins como nos
lembra também Lefebvre:
Na França, durante este período [século XIX], fala-se sempre de
“liberdade” política formal tanto como privilégio dos Franceses
como “missão” da França. Na Itália, onde a burguesia está
dispersa e desesperada, o enunciado se faz ainda mais sublime.
Na Espanha, a idéia nacional se reduz ao ódio reacionário sobre o
estrangeiro. Na Alemanha, é o Estado – a idéia prussiana da
potência política e militar que aproveita da impotência da
burguesia democrática. (LEFEBVRE, 1988,135, traduzido pelo
autor)
28
Este panorama traçado pelo autor nas vésperas da Segunda
Guerra Mundial corrobora com o que fora dito acima a respeito da
flexibilidade do conceito de nação. Sua utilização vasta e duradoura, porém,
trouxe consigo, além de uma certa naturalização de sua existência no
decorrer do século passado, uma apropriação social do termo como se o
mesmo estivesse acima de tudo e de todos e, por fim, fosse também eterno.
Esta fetichização da nação, que encontra sua concretude maior
nos movimentos nacionalistas tantos de outrora quanto contemporâneos,
27
“Peu à peu au cours du siècle la nation devient un simple slogan d’autant plus facilement
utilisé pas les causes les plus différentes que ce sentiment se révèle plastique et cependant
toujours vivace malgré les déceptions et l’enchevêtrement des rapports et des utilisations
contradictoires.” Nesta obra Le nationalisme contre les nations, publicada pela primeira vez
em 1937, o autor constrói dialeticamente a relação entre o conceito de nação e seu
rebatimento social mais perceptível àquela época, o nacionalismo.
28
En France, pendant cette période, on parte toujours de “liberté” politique mais formelle, et
comme privilège des Français et mission” de la France. En Italie, la bourgeoisie est
dispersée et désesperée, la phrase se fait d’autant plus sublime. En Espagne, l’idée
nationalitaire se réduit à la haine actionnaire de l’étranger. En Allemagne, c’est l’Etat
l’idée prussienne de la puissance politique et militaire qui profite de l’impuissance de la
bourgeoise démocratique.
62
notadamente no velho continente, também se apresenta em terras brasileiras.
Porém, aqui não vai se dar apenas como o “tradicional” nacionalismo ufanista
e xenófobo, mas de uma maneira diversa, exatamente por ter sido diversa a
forma pela qual se construiu o conceito de nação brasileira.
É fundamental que se compreenda o significado concreto da
formação nacional no Brasil para que se possa dar continuidade aos estudos
aqui propostos. Para isto, pode-se abarcar o tema a partir de diversos vieses,
mas, especificamente no presente estudo, vai-se compreender a nação
brasileira a partir da sua apropriação e utilização pelo Estado no campo da
memória construída no espaço. Quando é criada uma instituição encarregada
de definir não apenas o que vem a ser o patrimônio brasileiro, mas também
de o classificá-lo, salvaguardá-lo e geri-lo, criam-se também símbolos e
práticas de manutenção que dizem bastante sobre a concretude nacional
brasileira.
O entendimento deste complexo emaranhado ideológico e prático
e, principalmente, sua forma de atuação, é peça principal para a
compreensão de tanto como se deu a produção do espaço ouro-pretano
neste último século, objeto específico do presente estudo, quanto da
produção do espaço brasileiro de forma mais ampla. O fato de Ouro Preto ser
uma cidade onde a abrangência do caráter simbólico nacional se , de
forma prática, com uma abrangência espacial quase que total faz com que
seu estudo adquira uma densidade como que transformando Ouro Preto num
espaço-tipo do que a nação brasileira é e também do que pretende ser ou se
anuncia como sendo.
Esta relação entre o patrimônio e a nação aparece como uma
possibilidade de ligação entre a construção da cidadania e a produção do
espaço. É a partir do esclarecimento do que foi considerado patrimônio,
limitado, neste caso, ao patrimônio edificado, que se pode entender qual
espaço era valorizado pela idéia de nação brasileira. Dessa forma, vai se
perceber, a partir da maneira como a nação mantém seus espaços símbolo,
quais traços de cidadania surgem, ou são negados, na produção destes
através da tutela estatal nacional. Este estudo vem mostrar qual a
representatividade efetiva da nação a partir de sua conduta no tocante à
criação de seus símbolos situados no espaço, comprovando como a ação do
63
Estado nacional acaba por contradizer a idéia de uma nação que se
produziria conjuntamente com a construção de uma cidadania respectiva.
Não apenas as justificativas classificatórias que escolheram certos
espaços, como Ouro Preto, para serem os representantes de um caráter
nacional, mas principalmente a prática referente à apropriação destes
espaços como símbolo é que vai denotar, ou evidenciar, qual o caráter
nacional concreto que surge na relação entre o órgão que implementa esta
construção ideológica no espaço e aqueles que o habitam, ou entre o Estado
e seus “cidadãos”.
Os conflitos advindos dessa relação entre habitar um espaço e
apropriá-lo e, concomitantemente, mantê-lo como símbolo nacional tutelado
pelo Estado possibilitará a compreensão de certas práticas que poderão
auxiliar no entendimento do conflito entre a nação e a sociedade, ou ainda,
entre a cidadania e a cordialidade, tendo a transformação da paisagem, ou a
produção do espaço, sempre como evidência última.
Perceber-se-á, portanto, uma diferenciação entre um “espaço
cordial” e um “espaço nacional”, ou ainda, mais que uma diferenciação, uma
complementaridade, uma relação.
No caso específico de Ouro Preto, adianta-se que, por exemplo,
dentro da área incluída no perímetro de tombamento, a seqüência de
fachadas preservadas das casas tombadas corresponda espacialmente,
carregando-se na tinta, ao que se está chamando aqui de “espaço nacional
brasileiro”, o espaço onde o poder do Estado atua de forma mais dura e se
reconhece como representado, o espaço do mando. Por outro lado, é na
parte posterior das casas, nos seus fundos, que se evidencia aquilo que
completa o que se chama aqui de “espaço cordial”, onde modificações
realizadas para além da presença do Estado a partir de uma estratégia que
será esclarecida adiante e que denota este confronto, ou convivência, entre
nação e cordialidade, complexificando um espaço que, quando encarado
como um todo, não se consegue definir se se trata de representação da
nação cordial ou de um cordialismo nacional.
64
Fotografias 2 e 3 – Fachadas anteriores e posteriores de casas na Rua São José
65
Fotografias 4 e 5 Fachadas anteriores e posteriores de casas no entorno da Igreja de
Antônio Dias
Enfim, o espaço resultante deste conflito gerado por uma tutela
rígida de preservação e pelas estratégias encontradas pelos moradores
daquele lugar para adaptar este espaço ao seu uso revela formalmente uma
relação social onde atuam simultaneamente a impessoalidade e a lhaneza, a
nação e a cordialidade. Esta maneira de produzir o espaço pede um
entendimento que supere a dualidade analítica que acabaria por classificar,
por exemplo, uma mesma construção como legal, em sua fachada anterior, e
ilegal em sua extensão posterior. O conceito de espaço cordial aparece para
dar conta desta questão e possibilitar novas respostas a respeito da
transformação espacial brasileira.
66
4.3 AS IMPLICAÇÕES CONCEITUAIS DO ESPAÇO CORDIAL
Além desta superação da dualidade do espaço da cidade acima
citado, há outras diversas camadas relacionais, às vezes mais sutis, por onde
se evidencia esta produção do espaço cordial como a apropriação do espaço
público simbólico de Ouro Preto ou as transformações de caráter privado que
trabalham com alterações nestes símbolos que denotam formalmente a
complexa confusão de relações advindas da cordialidade.
Um caso exemplar que será tratado com detalhe mais à frente é a
maneira pela qual a Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais
reconstruiu um casarão incendiado em 2003 em plena Praça Tiradentes,
utilizando-se do simbolismo construído pelo Estado em seu favor ao implantar
ali um “centro cultural” travestido de imóvel do século XVIII.
Fotografia 6 Hotel Pilão, hoje Centro Cultural da FIEMG. Aqui claramente a apropriação
privada da produção do espaço nacional, o típico espaço cordial.
O conceito de espaço cordial, portanto, aparece como uma chave
de interpretação de relações espaciais que vão além da questão da
formalidade e da informalidade. A interpretação do espaço produzido no
Brasil nestes termos duais acaba por pressupor que as definições legais se
dão de maneira impessoal, o que não ocorre de fato, sobretudo no Brasil. A
incompletude da formação nacional, reclamada por Sérgio Buarque atinge
todas as instâncias de convívio social e, como tal, é imprescindível que este
fato seja levado em consideração quando se analisa o espaço produzido por
esta sociedade e quando se produz discurso científico sobre o mesmo.
Assim como o homem cordial contemporâneo carrega consigo
uma permanência diferente daquela prevista por seu idealizador, o espaço
cordial também se manifesta de diferentes formas. Essa certeza de que o
67
espaço é reflexo do homem que o produziu e vice-versa é que anima o autor
desta tese a seguir com a construção do termo que, quando despontar de
forma completa deverá auxiliar a criar e também responder diversas novas
questões referentes não só ao espaço ouro-pretano.
Não se pode adiantar as respostas que se quer obter por motivo
óbvio, uma pesquisa o contém em seu germe sua conclusão, ou não se
trata de pesquisa, e sim de imposição. Mas as perguntas às quais este
conceito se submetido caminham na direção de demonstrar que visões
dualistas, como aquelas pautadas na simplificação do espaço em legal e
ilegal, ou mesmo em público e privado não abrangem a complexidade do que
se vem produzindo neste território até então.
A ausência de separação clara entre Família e Estado
29
, entre
pessoal e impessoal, entre sociedade e nação encaminha os estudos
referentes ao espaço ouro-pretano para lugares onde isto se revela de forma
sutil, mas ainda assim profunda.
Assim, a relação entre o espaço privado e a paisagem pública,
entre o simbólico e o concreto, será investigada tendo por base essa
complexa relação social que a cordialidade nos proporciona. Não se pode
entender, por exemplo, as alterações fachadistas realizadas pelo IPHAN
apenas como uma fase necessária da preservação ouro-pretana. Não se
pode analisar a ampliação que os habitantes realizam nos fundos e frentes de
suas casas apenas pelo viés da alteração da paisagem em conseqüência de
descumprimento de uma norma preservacionista. Não se pode também
compreender a instalação do Grande Hotel, o restauro de um casarão
incendiado transformado em centro cultural, apenas pelo viés da agenda
cultural. Existe algo que une estas ações, o apenas por se tratar de um
mesmo espaço urbano, o que é um fato importante, mas por se tratar de
ações que carregam consigo um traço relacional que vai além da produção
espacial capitalista central. Os estudos feitos nesta tese vão demonstrar qual
29
Sérgio Buarque de Holanda inicia o capítulo “O homem cordial” de suas Raízes do Brasil
com o seguinte texto: “O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos,
uma integração de certos agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família
é o melhor exemplo. Não existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas
antes uma descontinuidade e até uma oposição.” (Holanda, 1999, p. 141). A partir desta
clara definição vai construir como esta é mais uma idéia que se transforma num grande mal
entendido no Brasil.
68
é este traço de união, e levanta-se a hipótese segundo a qual a construção
do conceito de espaço cordial será de bastante utilidade para isso.
Passa-se então à análise do primeiro componente da tríade
lefebvriana, a representação do espaço nacional. O conceito de nação
construído e utilizado pelo IPHAN, assim como suas práticas gerais devem
ser aqui apresentados, sem exaustão, para que se complete um arcabouço
contextual da questão aqui construída, ao mesmo tempo que se compreenda
um pouco mais sobre a abrangência da cordialidade que, como não poderia
deixar de ser, se mostra presente também no Instituto de criação do caráter
nacional oficial.
69
5 O CONCEBIDO: A NAÇÃO (CORDIAL) DO IPHAN
A atuação do órgão nacional de preservação do patrimônio
histórico brasileiro fora abordada em diversas obras e através dos mais
variados enfoques. Tal fato lança uma necessidade de delimitação do que se
pretende tratar neste estudo. De pronto se afirma que não se vai realizar aqui
nenhuma revisão historiográfica da trajetória deste instituto. que se
considerar, no entanto, certos aspectos de sua atuação, notadamente no que
diz respeito à cidade de Ouro Preto para que esta tese ganhe em coerência.
Esta necessidade advém de dois motivos principais. O primeiro
deles possui um caráter temático referente ao objeto de estudo. É impensável
conceber a produção do espaço ouro-pretano sem se debruçar na atuação
deste órgão ao longo do século XX, e até hoje, naquele sítio, evidenciando-se
nesta atuação traços que explicitem a formação daquilo que se intitula
espaço cordial.
O segundo motivo carrega consigo uma certeza metodológica. O
espaço social é produzido de forma relacional e, para que se o compreenda é
preciso voltar o olhar para uma totalidade concreta de sua produção, à qual
está intimamente ligada a atuação iphaniana no caso de Ouro Preto. É por
considerar que um estudo urbano se baseia no conflito e depende da
abrangência de observação para se nomear como tal que não se pode fugir a
certas características de trabalho deste órgão. Assim, não se admite que um
estudo urbano interprete as transformações espaciais baseando-se apenas
em sua forma, justamente por se acreditar que as formas não são neutras e
carregam em si inúmeros processos de naturezas várias. Ignorar tal
complexidade seria atribuir uma abordagem míope a um processo que
demanda esforço analítico fundado na abertura de saberes.
Feitas estas considerações, espera-se conseguir extrair
informações que não apenas complementem a idéia posta aentão sobre a
produção de um espaço simbolicamente nacional, mas que a complexifiquem
a tal ponto que a transforme em conceito cada vez mais denso, propício
portanto, a servir ao enriquecimento da observação empírica que se vai
desenvolver.
70
O atual IPHAN não possui uma trajetória linear e muito menos
desprovida de crises e rupturas em seu direcionamento político. Sua
formação possui elementos bastante contraditórios como o fato de ter sido
encabeçado por intelectuais pertencentes ao movimento modernista que,
mundo afora, não era afeito às tradições e à história da maneira como aqui se
percebeu. Mas é exatamente esta aparente contradição que traz elementos,
em seu germe, de imersão em atitudes tipicamente cordiais que irão se
refletir em sua maneira de conceber a representação do espaço simbólico da
nação brasileira e suas regras de conduta.
Dito de outra maneira, quando se incorpora a cordialidade como
traço característico de comportamento social, a contradição modernista de
observar-se o passado e, inclusive, dar-lhe importância capital à sua prática,
revela-se assim como continuidade de um comportamento baseado na
pessoalidade, na lhaneza presente na forma de construir idéias e ideologias.
A contradição moderna se diminui perante a manutenção cordial.
A estratégia eficaz do IPHAN em construir simbolicamente a
memória passa por ter preenchido uma das propriedades cordiais mais
destacadas, que é aquela referente à aversão ao isolamento que resulta na
necessidade de apoio através da proximidade.
Para se ilustrar tal afirmação, resgata-se um texto daquele que foi
um dos que melhor simbolizaram, personalisticamente, o IPHAN, que é o
arquiteto Lúcio Costa. Este eterno consultor do órgão escreveu, em 1938,
época da fundação do IPHAN, um texto que carrega, como síntese, o que se
pretende aqui evidenciar. Em Documentação Necessária, Lúcio Costa quer
ressaltar a importância de se estudar o casario civil das cidades para que não
apenas se compreenda melhor a produção do espaço arquitetônico de
determinada época, como também para que se aprimore a arquitetura
contemporânea que, segundo o autor, possui formação cada vez mais fraca
em suas escolas e despojada de senso regional, resultando em cópias
gratuitas de residências estrangeiras mostradas cada vez mais no recém
nascido cinema. Sobre este último aspecto, é inegável a agudeza de
percepção do arquiteto e, acrescenta-se, ainda é válida!
Destaca-se também a importância e ineditismo do tema principal
do texto, que só seria formalmente concretizado mundo afora décadas depois
71
com a publicação da Carta de Veneza pela UNESCO, referente à proteção de
sítios urbanos. Interessa também a maneira como o arquiteto aborda as
diferentes mudanças construtivas segundo as condições materiais de seu
tempo, enriquecendo a compreensão histórica do espaço. O destaque
necessário nesta análise, no entanto, reside na postura, cordial, de Lucio
Costa perante estas questões levantadas em seu texto.
neste texto uma clareza da maneira através da qual este
arquiteto construiu uma ligação direta e suave entre a arquitetura colonial
brasileira e a arquitetura moderna da qual se tornara declaradamente
defensor e difusor. Note-se que, à época, conseguir colar as duas formas de
produção espacial, isto é, a pré e pós-república, não se tratava apenas de um
mero esforço intelectual no sentido de preservação do passado, muito pelo
contrário, significava a legitimação de uma “ideologia arquitetônica” que
garantiria, oficialmente, a produção futura do espaço segundo os cânones
defendidos por este arquiteto e sua escola, o que aliás ocorreu, como é
sabido.
Em Documentação Necessária reside uma chave de compreensão
desta transição suave entre as duas formas de se produzir espaço que é
conceitualmente balizada através da aproximação de técnicas construtivas
que lastreariam a desejada similitude. Em certa parte do referido texto, Lúcio
Costa afirma que “o engenhoso processo de que são feitas [as residências
coloniais] barro armado com madeira – tem qualquer coisa do nosso
concreto-armado” (COSTA, 1997, p. 459). O fato de chamar o método de
construção conhecido como pau-a-pique de barro armado, por si só, ilustra
ricamente a pessoalidade presente em seu texto com a função de criar uma
relação entre as duas conflitantes formas de produzir o espaço que, além de
se pautarem na ruptura de sistema político, a república, juntamente a isso se
pautavam na ruptura técnica, a saber, a industrialização da construção civil.
inúmeras diferenças presentes entre o modo de construir em pau-a-pique
(ou barro armado) e em concreto armado, mas Lúcio Costa prefere destacar,
ou melhor, criar uma semelhança entre as duas técnicas de produção
espacial. Ao invés de ruptura e transformação, conciliação e manutenção:
nada mais cordial.
72
Porém, é em outro excerto do mesmo texto que se encontra
argumentação tanto mais sutil quanto mais profunda sobre este tema e que
revela consigo conseqüências definidoras da forma pela qual se deu a
construção da nação cordial pelo IPHAN:
Resultariam, de um exame assim menos apressado [dos vários
sistemas e processos de construção], observações curiosas, por
isto que em desacordo com certos preconceitos correntes e em
apoio das experiências da moderna arquitetura, mostrando,
mesmo, como ela também se enquadra dentro da evolução que se
estava normalmente processando. (COSTA, 1997, p.459, grifo do
autor)
Figura 1 Desenhos de Lúcio Costa em Documentação Necessária construindo a desejada
transição “natural”, ou cadeia evolutiva, entre as formas de se produzir espaço em diferentes
épocas.
Ora, além da proximidade e pessoalidade, o que se constrói nesta
linha de pensamento é uma transição natural, ou normal, da história. Esta
forma de concepção de mundo surte maior interesse quando se leva em
conta que, durante o texto, ao defender o estudo da arquitetura civil colonial,
Lucio Costa aborda a produção espacial segundo as condições técnicas e
políticas de cada época, mas, ao transpor o passado ao presente, a omite,
suavizando-a, naturalizando-a conforme fica claro no esquema representado
pela Figura 1.
Não se trata, no entanto, de incoerência teórica ou histórica, mas
de coerência retórica e política. Da mesma maneira que se disse acima que a
suposta contradição moderna brasileira de aproximar passado, presente e
futuro encontra explicação na cordialidade brasileira, diz-se também desta
parte do texto, pois não se quer aqui pensar que Lucio Costa ignorava as
73
alterações técnicas que forjaram o surgimento da arquitetura moderna, muito
pelo contrário, o que se afirma é que, mesmo conhecendo-as bem, o autor
prefere, ao invés de destacar o rompimento que estas acarretam, omiti-las e
transformá-las em transição suave, corrente e normal, ou, mais ainda,
próxima e pessoal.
Observe a complexidade retórica aqui presente. se disse que a
cordialidade não se trata de relação baseada no bom trato, mas na
pessoalidade. Quando Lucio Costa aproxima as duas arquiteturas, se por um
lado ele evita destacar o rompimento claro presente na técnica, estética e
tudo o mais, por outro ele cria um laço que permite tanto o apego quanto o
desprezo. Ao arquiteto não interessa convencer o leitor de que a arquitetura
moderna é a melhor, ou, mesmo que interesse, isso se torna secundário
perante a argumentação de que a arquitetura moderna nos é próxima, nos é
natural. Aceito este argumento, o debate se desloca para outro patamar, que
seria o do convencimento a respeito da qualidade daquela arquitetura, porém,
não se questionaria mais sua propriedade como continuísta natural de uma
formação nacional. O homem cordial não suporta a convivência consigo
mesmo, e este isolamento não deve ser pensado aqui apenas em questão de
individualidade, espaço ou nacionalidade, mas também no que diz respeito
ao tempo: o homem cordial do presente possui uma relação próxima, pessoal
e sem rupturas também com seu passado.
Esta forma de concepção histórica, aliás, apresenta também um
certo traço positivista. Sérgio Buarque de Holanda também chamou a
atenção em Raízes do Brasil para o gosto do intelectual brasileiro pelo
positivismo e, também, para o peso que esta forma de conceber a realidade
atribui à ciência e ao intelectual, mesclando saber e poder lastreado pela
“verdade científica”. Não se vai aqui aprofundar o tema do positivismo, mas
não se pode omitir dois fatos que dizem respeito ao apego existente por ele
na formação social brasileira. O primeiro deles é a maneira como se formou o
IPHAN a partir de uma reunião de intelectuais que, mesmo incorporados a
um poder totalitário vigente à época do Estado Novo, criam uma barreira, um
descolamento do regime a partir de sua autoridade, científica, de um notório
saber que lhes garantiria um posicionamento acima das questões políticas. O
segundo, estreitamente relacionado com o primeiro, consiste na afirmação de
74
uma neutralidade técnica que se baliza na mesma condição de intelectual
engajado apenas com a “nação”, ou apenas com a arte-arquitetura,
independente dos rumos políticos sociais e que é belamente ilustrado pelas
seguintes palavras do próprio Lucio Costa escritas para a contracapa de seu
livro-testamento, Registro de uma vivência, onde este afirma que: “Não sou
capitalista nem socialista, não sou religioso nem ateu, acredito
simplesmente na minha velha teoria das resultantes convergentes.
30
(COSTA, 1997)”.
Mas as considerações a respeito da ligação direta realizada entre
a colônia e a república por Lucio Costa e abraçada pelo IPHAN como um
todo não se resumem ao seu caráter formal de cordialidade. De certa forma,
esta auxilia a explicar sua aceitação ao revelar seu caráter retórico, como
visto acima. Porém, que se realizar uma crítica não à forma, mas
também ao conteúdo deste pacote de pensamento que traz consigo
implicações necessárias para a compreensão da produção dos espaços de
memória que se deram sob sua tutela, como Ouro Preto. A cordialidade serve
aqui de correia de transmissão de um conteúdo que, mesmo o sendo
deliberadamente desejado por seus enunciadores, não deve ser negado.
O caráter de naturalidade que se dá à continuidade de estilos
arquitetônicos traz inevitavelmente consigo um caráter de naturalidade
histórica típica do positivismo e que compartilha com outros modos do pensar
a crença cega na esteira do progresso técnico-social alma do modernismo
como redentor da história. Em um texto anterior, datado de 1934, este
bastante famoso, intitulado Razões da nova arquitetura, Lucio Costa, ao
defender de maneira brilhante a arquitetura moderna como representante de
seu tempo, reforça esta idéia de continuidade histórica através da técnica:
Assim, a crise da arquitetura contemporânea, como a que se
observa em outros terrenos, é o efeito de uma causa comum: o
advento da máquina. É pois natural que, resultando de premissas
tão diversas, ela seja diferente, quanto ao sentido e à forma, de
30
Mesmo em se considerando que o próprio nome da referida Lei das resultantes
convergentes” a que Lucio Costa se refere seja por si só elucidativo de seu caráter
conciliador, vale à pena conferir seu conteúdo conforme aquele arquiteto a concebeu: “o
desenvolvimento científico e tecnológico não é o oposto da natureza, mas a própria natureza
que, através de seu estado lúcido que somos nós revela o lado oculto, virtual” (COSTA,
1994, p.93)
75
todas aquelas que precederam, o que não a impede de se guiar
naquilo que elas têm de permanente pelos mesmos princípios e
pelas mesmas leis. As classificações apressadas e estanques que
pretendem ver nessa metamorfose, naturalmente difícil,
irremediável conflito entre passado e futuro, são destituídas de
qualquer significado real. (COSTA, 1997, p.110, grifo do autor)
O progresso técnico-social, ou o “advento da máquina”, é a base
do surgimento do movimento moderno em arquitetura. Os textos fundadores
de Le Corbusier não deixam dúvidas sobre isso. Este progresso significava,
para aquele arquiteto, um rompimento total com os espaços anteriores,
clamando por uma arquitetura nova que correspondesse aos modos
burgueses de vida que se consolidavam no cenário social, mas ainda
habitavam os restolhos de outrora: “os homens vivem em velhas casas e
ainda não pensaram em construir casas para si.[...] As casas não mudaram.
A religião das casas permanece idêntica há séculos. A casa desabará.”
(CORBUSIER, 1998, p.5)
Portanto, o rompimento com as formas do passado era ponto
passivo na teoria corbusiana e se justificava, dentre outras coisas, em uma
crença incondicional no progresso cnico-social que a era das máquinas
proporcionaria à civilização. Lúcio Costa, no entanto, ao construir seu
pensamento e sua práxis em meio a uma mudança de seu viés neocolonial
de início de carreira para uma adoção dos padrões corbusianos como
profissão de fé, consegue conciliar o passado e o presente a partir de uma
abordagem das técnicas construtivas que as despem de um peso social e
político. Mantém a forma e a pujança “corbuseana”, mas sob diferente
discurso, diferente conteúdo que torna as técnicas construtivas um mínimo
denominador comum entre as diferentes eras, eis a correia de transmissão de
seu pensamento cordial. Mais tarde, o mesmo arquiteto voltará a esta
ligação, porém não mais através da técnica, mas sob o signo da obra de
arte
31
. Segundo Cardoso (1996):
Aqui a contribuição original [de Lúcio Costa, referindo-se a Razões
da Nova Arquitetura]. Se era possível localizar a mesma
“honestidade construtiva”, buscada pelos modernistas em
determinados estilos do passado, como colocava Warchavchik
em seu manifesto, era também possível encontrar essa mesma
31
Cf. Intra o item sobre a Rua das Flores
76
coerência em nosso passado colonial. Poderiam ser assim
constituídos os elementos necessários para uma reavaliação dos
princípios que até então norteavam a prática dos arquitetos. Desde
que se olhasse para o passado com olhos de...modernista.
(CARDOSO, 1996, p. 99)
Por aqui houve, portanto, uma quase mágica conciliação entre o
progresso técnico-social e a preservação de espaços “retrógrados”. Aliás, não
apenas a preservação, mas uma ligação, continuidade. se demonstrou
que esta mágica se apóia na cordialidade, capaz de eliminar conflitos através
da proximidade (amigável ou não), resta agora compreender qual visão de
futuro, ou melhor, de passado esta estratégia acarretou direta ou
indiretamente.
Para que se compreenda o desdobramento deste positivismo
apoiado na cordialidade do discurso, é necessário que se desdobre a análise
para o significado desta transição doce em relação ao que se entende por
história e sua relação com a questão social do patrimônio. Só assim se
possível uma complementação do que se entende, conforme o título deste
item, como sendo a nação cordial do IPHAN.
Esta percepção de continuidade da história que concilia os
conflitos acaba por evidenciar o viés político impregnado na produção do
espaço, incluída a sua preservação. O espaço social, segundo Lefebvre,
contém uma tríplice relação entre o percebido (as práticas sociais), o
concebido (as representações do espaço) e o vivido (os espaços de
representação). A opção histórica realizada pelo IPHAN interfere diretamente
na construção do espaço social concebido através das representações deste
espaço, obviamente causando reflexos diretos nas outras categorias que se
entrecruzam necessariamente.
A transição natural, sem rompimentos, de um espaço, o da
memória, para o outro, o do futuro, através da técnica e da estética direciona
uma leitura das práticas sociais voltadas para um progresso inevitável que se
torna a justificativa de um passado. É para dar razão à nova arquitetura que
se deve realizar a documentação necessária dos espaços da velha
arquitetura. Isto denota uma forma peculiar de apropriação histórica. Lucio
Costa enxerga, por exemplo, nos estudos das casas antigas uma forma de se
aprimorar a produção da arquitetura contemporânea. É, aliás, através desta
77
ponte que ele faz a ligação do passado com o futuro do espaço nacional
brasileiro.
Ora, de certa forma a assertiva de Lucio Costa faz sentido, na
medida em que não se deve privar dos ensinamentos presentes a
experiência anterior acumulada. Observando-se por este prisma, sua
construção histórica se torna legítima e, ainda mais, precisa e necessária.
Porém, reside aí uma opção política que interferirá, como se verá mais
adiante, de maneira profunda e resistente na atuação do órgão de construção
e preservação da memória nacional, o IPHAN. De início quer-se esclarecer
que a legitimidade de tal opção é inquestionável, não se trata aqui de
desmontá-la inclusive porque seria inócua tal tentativa posto que tal opção
ainda hoje subsiste, demonstrando também sua eficácia. Não se deve negar
a necessidade de, no entanto, evidenciá-la, já que sua legitimidade não
pressupõe obviedade nem perenidade e muito menos garante que haja, com
ela, uma concordância.
É por acreditar na capacidade de transformação dos espaços de
representação, espaços vividos, que se realiza a crítica que se segue. O
espaço social da memória nacional contém em sua construção uma visão
histórica voltada para o futuro, lastreada pela cnica, construção esta que
acarretou, inclusive, no falseamento simbólico, das representações destes
espaços como se verá mais adiante.
Por agora, é importante que se discuta uma faceta desta
apreensão do passado, uma espécie de omissão advinda do culto ao
progresso. Para que se compreenda de qual omissão está aqui se afirmando,
recorre-se a um texto de 1940, Sobre o conceito de história, de Walter
Benjamin. Sem temer a exaustão, reproduz-se, na íntegra, sua segunda tese,
que auxilia bastante no esclarecimento do raciocínio aqui pretendido:
“Pertence às mais notáveis particularidades do espírito humano,
[...] ao lado de tanto egoísmo no indivíduo, a ausência geral de
inveja de cada presente em face do seu futuro”, diz Lotze. Essa
reflexão leva a reconhecer que a imagem da felicidade que
cultivamos está inteiramente tingida pelo tempo a que, uma vez
por todas, nos remeteu o decurso de nossa existência. Felicidade
que poderia despertar inveja em nós existe tão somente no ar que
respiramos, com os homens com quem teríamos podido
conversar, com as mulheres que poderiam ter-se dado a nós. Em
outras palavras, na representação da felicidade vibra
78
conjuntamente, inalienável, a [representação] da redenção. Com a
representação do passado, que a História toma por sua causa,
passa-se o mesmo. O passado leva consigo um índice secreto
pelo qual ele é remetido à redenção. Não nos afaga, pois,
levemente um sopro de ar que envolveu os que nos precederam?
Não ressoa nas vozes a que damos ouvido um eco das que estão,
agora, caladas? E as mulheres que cortejamos não têm mais
irmãs que jamais conheceram? Se assim é, um encontro secreto
está então marcado entre as gerações passadas e a nossa. Então
fomos esperados sobre a terra. Então nos foi dada, assim como a
cada geração que nos procedeu, uma fraca força messiânica, à
qual o passado tem pretensão. Essa pretensão não pode ser
descartada sem custo. O materialista histórico sabe disso.
(BENJAMIN, apud, LOWY, 2005, p.48)
Sem levar em consideração o caráter messiânico do texto de
Benjamin
32
, mas aproveitando de toda sua delicadeza para enunciar um
raciocínio, esclarece-se que na concepção histórica iphaniana uma
omissão para com as gerações passadas. O encontro secreto entre o
passado e o presente é posto de lado ao se encarar a história com os olhos
unicamente voltados para o futuro. Quando Lucio Costa descreve a
necessidade de se aprender a construir com o passado para se projetar um
futuro ele faz esta opção. Note-se que seria também legítimo que se
observasse o presente para que se reparassem os erros cometidos no
passado. No entanto, uma concepção como esta, além de não garantir um
futuro previsível, o progresso, acaba por exigir a administração de conflitos,
ou melhor, a incorporação dos mesmos o que, como se sabe, é o oposto da
cordialidade que oscila entre a docilidade e o autoritarismo.
A representação do espaço social da memória como ponte para
um futuro lastreado pelo progresso imbrica que os erros do passado sejam
esquecidos, e junto com eles, as derrotas. O espaço cordial se mostra, assim,
como o espaço da naturalização da técnica; é o progresso que vai aproximar,
de forma pessoal, o passado com o futuro. Este, no entanto, aparece
montado nas costas do passado, tapando-lhe os olhos e dando a direção a
seguir, sendo obedecido prontamente devido à familiaridade que os une.
Lowy, ao comentar esta tese, chama a atenção, inclusive, que “[Benjamin]
rejeita explicitamente a doutrina progressista “clássica” do combate para as
32
Sobre este texto de Benjamin, existe uma excelente análise realizada por Michael Lowy, de
onde, aliás, retirou-se a tradução das teses: “Walter Benjamin: aviso de incêndio. Uma leitura
das teses “Sobre o conceito de história”.
79
gerações do futuro – mas daquelas do passado e do presente” (LOWY, 2005,
p.53). Tal comentário remete de forma direta, inclusive, ao discurso
contemporâneo de sustentabilidade
33
, que a tudo serve, mas por hora não se
deve deter em tal assunto por se desviar em demasiado do tema aqui tratado.
É necessário que se retome Benjamin para aprofundar-se a compreensão
das conseqüências advindas da visão do passado explicitada por Lucio
Costa. Em sua tese de número VII, o autor faz uma consideração precisa,
mas não menos poética, a respeito das heranças culturais:
[...] Todo aquele que, até hoje, obteve a vitória, marcha junto no
cortejo de triunfo que conduz os dominantes de hoje [a
marcharem] por cima dos que, hoje, jazem por terra. A presa,
como sempre de costume, é conduzida no cortejo triunfante.
Chamam-na de bens culturais. Eles terão de contar, no
materialismo histórico, com um observador distanciado, pois o que
ele, com seu olhar, abarca como bens culturais atesta, sem
exceção, uma proveniência que ele não pode considerar sem
horror. Sua existência não se deve somente ao esforço dos
grandes gênios, seus criadores, mas, também, à corvéia sem
nome de seus contemporâneos. Nunca um documento da
cultura que não seja, ao mesmo tempo, um documento da
barbárie. E, assim como ele não eslivre da barbárie, também
não o eso processo de sua transmissão, transmissão na qual
ele passou de um vencedor a outro. Por isso, o materialista
histórico, na medida do possível, se afasta dessa transmissão. Ele
considera como sua tarefa escovar a história a contrapelo.
(BENJAMIN, apud LOWY, 2005, p. 70)
Essa passagem, famosa, de Benjamin, ilustra o ponto a que se
pretende chegar. De forma alguma se pretende caracterizar, inocuamente,
Lucio Costa de defensor premeditado da barbárie. Tal vulgarização não
apenas contradiria as ações daquele arquiteto como vulgarizaria (no sentido
negativo do termo) o pensamento de Benjamin por ser carregada de um
dualismo ao qual se disse o ser condizente com a forma de análise aqui
pretendida. Além do mais, seria por demasiado incoerente a utilização de
textos benjaminianos para incorrer em simples maculação da memória do
trabalho de Lucio Costa: o urbanista de Brasília teve grande responsabilidade
33
Sobre a visão do autor a respeito da sustentabilidade, conferir também sua dissertação de
mestrado: O Muro da maré: risco e vizinhança no planejamento urbano. Disponível na
internet em http://teses.ufrj.br/IPPUR_M/ClaudioRezendeRibeiro.pdf.
80
no enriquecimento cultural do país, mas este fato não o exime de ser
criticado.
Quando se compara as vertentes estéticas e políticas que
disputaram com os modernos a hegemonia da produção espacial e simbólica
durante o período do Estado Novo, percebe-se o relativo ganho social
advindo da vitória moderna
34
. No entanto, isso não quer dizer que não
houvesse outras saídas possíveis e mesmo que outras formas de legitimação
não estivessem simplesmente fora da órbita da disputa em virtude da
situação política em que o país se encontrava.
Concorda-se em parte com Cavalcanti (2006) quando este afirma a
superioridade do projeto dos modernos: mais globalizante, sofisticado e
inclusivo da complexa realidade brasileira” (p. 105). O autor coloca-o como
capaz de conciliar a estética futurista com um discurso social industrializante
que fora concretizado, em parte, na produção de projetos de habitação
popular de alta qualidade. Isto demonstra que uma, ou várias, facetas
positivas da atuação dos modernos junto aos órgãos governamentais
construtores da imagem nacional e republicana.
No entanto, como afirma Benjamin, a cultura e sua transmissão
estão intrínsecas à barbárie. Ora, concordar com tal afirmação exige, como
diz o autor alemão, certo distanciamento. É necessário, na medida do
possível, fugir da cordialidade perante os modernos e, dentre eles,
principalmente Lúcio Costa, para que se realize a análise e se construa um
novo entendimento das conseqüências de sua atuação. Coloca-se que a
abordagem das ações decorrentes da preservação do patrimônio no Brasil
enquadra-se de forma mais precisa naquilo que Bourdieu (2007) denomina
como “poder simbólico”:
34
Curioso notar, também algumas semelhanças, como, por exemplo, o repúdio às obras
ecléticas do século XIX tanto pela linha moderna quanto pela neocolonial (Cf. CAVALCANTI,
2006, p. 103 e p.227). Isto talvez seja um traço de cordialidade presente em Lúcio Costa
que, através de sua carreira percorreu ambos os estilos e acabou por tentar (com relativo
sucesso ideológico) uma conciliação teórica. Este fato, aliás, demonstra um forte culto à
pessoalidade por si só revelador do traço cordial da sociedade (que implicará em sua
vertente espacial diretamente) quando um arquiteto, sozinho, consegue condensar e
direcionar todo um debate a respeito da maneira através da qual toda uma nação se
relacionará com diversos de seus símbolos concretos da memória.
81
O poder simbólico como poder de constituir o dado pela
enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de
transformar a visão do mundo e, deste modo, a acção sobre o
mundo, portanto o mundo; poder quase mágico que permite obter
o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou
econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se
exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário. [...]
O poder simbólico, poder subordinado, é uma forma transformada,
quer dizer, irreconhecível, transfigurada e legitimada, das outras
formas de poder [...] (BOURDIEU 2007, p.14-15)
Sendo assim encarada, a ação do órgão de criação e manutenção
da identidade nacional se insere em uma gica que, mesmo sendo pautada
pela cordialidade no caso brasileiro, apóia-se em uma construção social onde
aqueles que exercem o poder muitas vezes não se percebem como tal, o que
não isenta responsabilidade, mas retira o peso da intencionalidade que
muitas vezes é colocada de maneira simplória em diversas críticas rasas à
atuação daquele órgão. Não se quer aqui repetir tal erro, posto que o desejo
desta tese é evidenciar os mecanismos de produção e reprodução de um
espaço submetido a determinadas normas que geram conflitos específicos.
Perceber tais mecanismos pode auxiliar um debate crítico rumo à
transformação de práticas e de seus discursos de forma mais direta que
procurar alguma relação de culpa pessoal sobre um determinado processo
social, o que significaria a repetição da cordialidade. Ainda segundo
Bourdieu:
A razão e a razão de ser de uma instituição (ou de uma medida
administrativa) e dos seus efeitos sociais, não está na “vontade” de
um indivíduo ou de um grupo mas sim no campo de forças
antagonistas ou complementares no qual, em função dos
interesses associados às diferentes posições e dos habitus dos
seus ocupantes, se geram as “vontades” e no qual se define e se
redefine continuamente, na luta e através da luta a realidade
das instituições e dos seus efeitos sociais, previstos e imprevistos.
[...] Ao atribuirmos [...] os efeitos de dominação a uma vontade
única e central, ficamos impossibilitados de apreender a
contribuição própria que os agentes (incluindo os dominados) dão,
quer queiram quer não, quer saibam quer não, para o exercício da
dominação por meio da relação que se estabelece entre as suas
atitudes, ligadas às suas condições sociais de produção, e as
expectativas e interesses inscritos nas suas posições no seio
desses campos de luta [...].(BOURDIEU, 2007, p.81-6)
E como será observada mais adiante, esta relação entre os
dominados e o dominante gerou uma produção espacial específica advinda
82
das práticas preservacionistas, principalmente ao serem incorporadas pelos
moradores de diversas formas diferentes que se tornam mais facilmente
compreensíveis quando observadas sob o viés da cordialidade. Portanto,
longe de se considerar amigo ou inimigo de Lucio Costa, afirma-se aqui que a
política de preservação e memória nacional do IPHAN, ao se voltar para a
construção do futuro progressista do Brasil carregou consigo, além de
acumulação cultural, a produção de barbárie. Afirma-se também que esta
produção de barbárie se reflete no espaço social, e, como não poderia deixar
de ser, o faz de forma ainda mais evidente naqueles espaços de
representação da memória nacional, como Ouro Preto.
Pode-se afirmar que se criou uma certa naturalização do
patrimônio onde a memória oficial instituída pelo IPHAN acabou sendo
admitida como única, criando uma espécie de modelo estilístico de
preservação, onde o que se difere deste modelo torna-se uma afronta à
memória, torna-se equivocado, fora de lugar. Portanto, aquilo que se
aproxima do que é considerado como sendo representante de uma memória
aceitável, oficial, torna-se relevante, o resto é transformado ou destruído, e
estes gestos se enquadram no que se denomina “preservação” do patrimônio
carregando consigo uma boa dose de barbárie, exercida também por aqueles
moradores que incorporaram este sentido histórico iphaniano. Sobre este
processo de seleção de uma memória oficial uma colocação de Castriota
(2003) que a ilustra de forma clara:
O poder de rememoração não é algo natural, mas sim uma
conquista [...] por meio da qual os homens aprendem a se
apropriar progressivamente do seu passado individual e coletivo. A
memória [...] vai ser também uma capacidade seletiva: para se
lembrar é preciso esquecer. Este nos parece ser o mecanismo que
rege as políticas de preservação do patrimônio, que,
implementadas tradicionalmente pelos estados, visam à
construção de uma identidade nacional. [...] [Para] se criar uma
memória nacional, privilegiam-se certos aspectos em detrimentos
de outros. (CASTRIOTA, 2003, p.186)
Esta escolha entre o que se lembra e o que se esquece não é
destituída de ações autoritárias, sobretudo em uma formação social como a
brasileira, cordial. Portanto, mesmo que se concorde com o que diz Castriota,
83
é necessário entender o espaço que se deu a partir da experiência praticada
aqui nesta esfera de escolha da memória para que se fuja às generalizações
como “os homens aprendem” acima colocado. que se interrogar quais
homens e, no caso particular da produção do espaço, é fundamental
entender como aprendem ou se também ensinam ou se impõem.
Por fim, afirma-se que esta barbárie é advinda, dentre outras
coisas, dos reflexos das escolhas da forma de preservação aqui adotadas
que denotam este caráter cordial percebido na produção do espaço social,
inclusive nas práticas associadas à política que, mesmo Lucio Costa,
deliberadamente declarava como sendo alheia à arquitetura, com fórmula
conciliadora que por si só exalta a pessoalidade:
Em momentos como este, pouco adianta falar à razão: não apenas
porque nenhuma atenção será prestada a quem não grite, como
porque alguém acaso escutando muito se arrisca ser vaiado.
Ninguém se entende: uns, impressionantemente proletários,
insistem em restringir a arte aos contornos do sintetizadores do
cartaz de propaganda, negando interesse a tudo que não cheire a
suor; outros eminentemente estetas, pretendem conservá-la em
atitude equívoca e displicente entre nuvens aromáticas de incenso.
Como sempre, no entanto, a verdade não se vexa: além da
benção do sorriso branco, todos têm o seu bocado no colo
opulento e colhedor da boa babá. (COSTA, 1997, p.109)
Esta caracterização da cordialidade presente na construção da
representação do espaço ouro-pretano vai se mostrar presente também ao se
analisar, no próximo capítulo, o seu espaço de representação análogo: a
esfera da vivência advinda desta representação.
84
6 A VIVÊNCIA: O ESPAÇO DA RECORDAÇÃO NACIONAL
Recordar: Do latim re-cordis, tornar a passar pelo coração
(GALEANO, 2002, p.11)
A cidade de Ouro Preto, como monumento nacional que se tornou,
carrega em sua transformação espacial recente elementos que auxiliam no
entendimento da maneira como a nação se fez e se faz representada. A
velha dicotomia existente entre intenção e gesto está aqui presente de tal
forma que torna este espaço capaz de evidenciar, talvez melhor que qualquer
outro, os conflitos existentes na construção nacional brasileira através da
forma como se lida, aqui, com o espaço urbano.
Na sua inscrição no livro de tombamento, encontra-se, após uma
breve descrição de sua transformação paisagística, a seguinte conclusão:
“Mais do que todas as cidades coloniais mineiras, Ouro Preto conseguiu, por
diversos fatores, manter a sua antiga imagem setecentista, constituindo-se no
exemplo mais autêntico da civilização urbana aqui implantada pelos
colonizadores portugueses” (IPHAN)
35
. Percebe-se neste trecho um traço
estetizante de sua valoração, posto que se afirma que a manutenção da
“imagem setecentista” garantiria a Ouro Preto a autenticidade da “civilização
urbana aqui implantada”. Esta idéia de se tomar a imagem paisagística como
meio de afirmação social será continuamente utilizado neste espaço a partit
da atuação do órgão responsável pela identidade nacional.
Esta consideração se torna ainda mais precisa ao se destacar o
conhecido fato de ter sido esta cidade inscrita no Livro das Belas Artes do
IPHAN, em 1938, somente sendo incluída no Livro Histórico e também no
Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico em 1986. No entanto, mesmo
após esta ampliação do alcance monumental deste sítio urbano, que foi fruto
de uma mudança na conduta do Instituto, entende-se que ainda hoje é sua
feição estética a mais valorizada assim como a da maioria dos sítios urbanos
tombados pelo IPHAN.
35
Cf. Anexo A - Ouro Preto, MG: conjunto arquitetônico e urbanístico (Ouro Preto, MG)
85
A bem da verdade, Ouro Preto é detentora do mais antigo título de
Monumento Nacional do Brasil, datado de 1933, anterior, portanto, à própria
fundação do IPHAN. Sobre este acontecimento, nos conta Malhano (2002):
O tombamento de Ouro Preto, em 1933, antecedendo ao próprio
Decreto-lei que criou o SPHAN, constituía um esforço no sentido
de construção imaginária de uma nação através do direito à
perpetuidade e à preservação do patrimônio.
Foi organizado um movimento a favor do tombamento com o culto
à Inconfidência e à cidade com a criação de um Museu em Ouro
Preto em 1942. (Malhano, 2002, p.56)
Some-se a isso que, em 1980, a cidade é incluída como o primeiro
Patrimônio Cultural da Humanidade brasileiro pela UNESCO. Todos estes
“títulos” são construtores da representação do espaço que se produz em
torno daquele sítio, e, como tal, dialogam de forma intensa com os espaços
de representação produzidos naquele lugar.
Há no espaço vivido de Ouro Preto, no entanto, certa peculiaridade
em relação a outros sítios tombados, pois “depois da retomada econômica, o
núcleo original reafirmou-se como o centro vivo [...] da economia do
município. Ouro Preto não é uma cidade dormitório, nem uma cidade de fim-
de-semana e nem [...] voltada exclusivamente ao atendimento de turistas”
(VIEIRA, 2006, p. 135). Portanto, desde meados do século passado
36
,
quando houve uma retomada do crescimento econômico da cidade com a
instalação de um novo ciclo de extração mineral em seu território, Ouro Preto
tornou-se uma cidade cujas características sócio-econômicas não condiziam
com a “vontade” do órgão de preservação, posto que houve um aumento
populacional significante e, junto com ele, uma tendência à ampliação e
transformação de seu sítio urbano
37
.
Este vigor econômico ajuda a evidenciar os conflitos advindos da
tentativa de conciliação do discurso iphaniano entre o colonial e o moderno,
que Ouro Preto recebeu, além de intervenções unicamente estéticas,
36
“A partir de 1945, o crescimento econômico de Ouro Preto foi retomado e prendeu-se à
evolução do complexo industrial de Saramenha, protagonizado pela Alcan (Alumínio Minas
Gerais S/A, hoje Novelis).” (VIEIRA, 2006, p.35)
37
É importante lembrar que a cidade encontrada pelos modernistas no início do século XX se
encontrava esvaziada devido à transferência da capital do estado para Belo Horizonte, em
1897 e que subtraiu, segundo VIEIRA (2006, p.38), 45% de seus habitantes.
86
transformações e rupturas sociais características de uma cidade industrial
típica. Esta dose de realismo colocou à prova a impossibilidade de
manutenção cordial de uma ruptura trazida com a indústria, levando a cidade
a forjar, como se verá adiante, uma produção espacial que, em nome da
preservação, transformou sua “autenticidade” colonial em um espaço híbrido
que aqui se denomina como cordial devido à sua forma de produção.
As transformações de seu espaço se darão a partir tanto da
influência das pressões “desenvolvimentistas” quanto de diversas alterações
em seu tecido urbano
38
realizadas pelo próprio IPHAN, que não foram
poucas, e que acabaram por influenciar de maneira direta a forma pela qual a
população local passaria a produzir seu espaço desde então. Ainda segundo
Vieira (2006):
O pseudocolonial desenvolveu-se tendo o colonial como
referência; houve assimilação da linguagem colonial, porém
adaptada a realidades distintas daquela em que se inscrevia a
tipologia anterior: nova forma de morar, novas demandas da vida
moderna, novos materiais, novas técnicas, nova organização
urbana, como lotes e quadras em dimensões, formas e arranjos
diferentes. A tipologia desvincula exterior e interior e adota
simplificações expressas em “colagens” que representam o desejo
de “ser colonial”; por isso, possui caráter cenográfico. Esta
tipologia foi até certo ponto conduzida/produzida pela política de
preservação do IPHAN. (VIEIRA, 2006, p. 103-4)
Esta conclusão a que chega Vieira reforça o argumento que se
constrói aqui. No entanto, o que se quer evidenciar, além desta constatação,
é que o espaço vivido em Ouro Preto se produziu desta forma devido à
tentativa de se diluir rupturas, de se negar conflitos: característica do espaço
cordial. A atuação do IPHAN neste sentido se de duas formas principais,
primeiramente servindo de exemplo do que e como se deve ou não se
transformar e valorizar no espaço ouro-pretano em nome de um discurso
conciliador; e em um segundo momento, como se perceberá mais claramente
no próximo capítulo, determinando a continuidade de uma forma de atuação
38
Para este levantamento recorre-se tanto ao texto referência de Lia Motta, “A SPHAN em
Ouro Preto uma história de conceitos e critérios” (1987) como quanto à esclarecedora
dissertação de mestrado “As tipologias arquitetônicas de Ouro Preto no século XX: estudo
comparativo entre os inventários de 1949 e 2002” (2006), realizada por Liliane de Castro
Vieira que foi generosamente disponibilizada pela autora.
87
inviável, a não ser a partir de um autoritarismo típico da cordialidade, que
garante a ausência de debates sempre pela força do mando.
As primeiras alterações a serem destacadas são bastante
conhecidas e servem de referência para a compreensão da produção
espacial local, influenciando, ainda hoje, o modo de se perceber a cidade.
Ambas reforçam a maneira pela qual o IPHAN encarava o sítio urbano, ou
seja, de forma necessariamente estetizante:
As primeiras ações do patrimônio [...] não levavam em
consideração sua [dos centros tombados] característica
documental, sua trajetória e seus diversos componentes como
expressão cultural e parte de um todo socialmente construído.
(MOTTA, p.108, 1987)
São exemplos destas ações em território ouro-pretano a
implantação do Grande Hotel assim como as alterações realizadas junto ao
atual edifício do Cine Vila Rica e seus arredores.
É necessário, pois, que se adentre nestes espaços. É percebendo-
se a forma pela qual foram transformados, assim como os reflexos destas
transformações em sua reprodução que se vão evidenciar diferentes facetas
da produção do espaço cordial a fim de se desvelar este complexo concreto
que é o espaço de representação nacional e sua efetiva relação com a
sociedade que o percorre, que o habita.
No item anterior, a partir dos discursos referentes a este espaço
nacional e a maneira pela qual este fora consolidado, aferiu-se que o espaço
cordial possui a característica de transformar em conciliação os rompimentos
técnico-sociais de diferentes estágios da sociedade, no caso, a sociedade
colonial daquela semi-industrial em vias de se expandir. Comprovou-se com
isso que no espaço cordial não há espaço para o conflito, para o confronto,
mas para a convivência amigável, mesmo quando autoritária, de diferenças
temporais em nome de um futuro comum e próspero.
Deve-se agora procurar as evidências materiais deste espaço
cordial onde o mesmo se concretizou. Esta convivência de discursos
inconciliáveis, se correta for a análise aqui pretendida, certamente se refletirá
na forma adquirida por um espaço e, como este é sempre relacionado às
88
construções sociais, obrigatoriamente deve se encontrar nas técnicas de
transformação deste espaço os mesmos traços de cordialidade.
6.1 PERCORRENDO O ESPAÇO CONTEMPORÂNEO DE OURO PRETO
Como tudo na ciência, diversas maneiras de se descrever um
espaço e suas transformações. Como se trata aqui de um estudo urbanístico,
escolhe-se um percurso para guiar as observações a serem feitas. A escolha
de um percurso como fundamento de observação não é mera estratégia
retórica para criar uma interface com a técnica urbanística. Trata-se de
instrumento facilitador de verificação. Espera-se que o leitor deste trabalho
possa acompanhar o que será aqui relatado de forma presencial na cidade de
Ouro Preto. Este caminho a ser percorrido, portanto, aparece aqui como
ferramenta de complemento metodológico que auxilia a comprovação do que
será abordado.
O trecho escolhido para ser percorrido não é obra do acaso
39
. Tais
caminhos carregam consigo uma função de síntese e de desvelamento.
Síntese por se tratar de trecho denso no que diz respeito às transformações
ocorridas, que o, assim, exemplares. A função de desvelamento surge do
fato de ser este caminho representante do que de mais simbólico possui a
cidade, no que tange ao escopo do patrimônio nacional aqui tratado. À
medida que o leitor percorrer este espaço de forma crítica, é certo que se
desvelará diante de seus olhos a cordialidade através das diversas
contradições ali presentes.
Da mesma maneira que se escolheu Ouro Preto como objeto a ser
analisado pelo fato desta cidade concentrar em sua produção espacial
39
Por feliz coincidência, após escolher o percurso a ser realizado nesta tese, deparei-me
com a sugestão de passeios a feita por Manuel Bandeira em seu “Guia de Ouro Preto”
que reproduz exatamente os mesmo trechos, com exceção do passeio rumo a Antonio Dias
onde não se adentra neste estudo. Diversas citações deste texto ilustrarão, portanto, os
passos a serem dados a seguir. Este Guia faz parte de uma série de obras semelhantes
escritas por autores renomados no intuito de promover uma visitação pelos centros
tombados do país a partir de um olhar referenciado nas forma de se perceber os espaços
conforme o ideário do IPHAN, o que acrescenta, além do fator de coincidência, um certo
acerto metodológico por parte deste estudo na medida em que o caminho a ser percorrido
aqui quer exatamente problematizar este mesmo ideário. outros guias com o mesmo teor
para outros centros tombados, como, por exemplo, os de Recife e Salvador, escritos por
Gilberto Freyre e Jorge Amado, respectivamente.
89
elementos mais intensamente ligados à questão da construção identitária
nacional que outros sítios, recorta-se este espaço para se clarear mais o
exposto.
Não se deve confundir, portanto, o recorte feito como
direcionamento epistemológico ou particularismo oportunista. A escolha que
se faz aqui é fundada em metodologia. Voltando-se a Marx, quando este
escolhe, para descrever as relações sociais do capitalismo, n’O Capital, a
análise da mercadoria e, sobre esta, constrói aquilo que chama de
Acumulação Primitiva, sua escolha se porque, antes de se adentrar no
complexo concreto, é necessário retirar deste suas categorias construtoras
para então se retornar à análise do concreto, unidade do diverso.
Da mesma maneira, podia se ter escolhido um outro espaço
tutelado pelo IPHAN, como a Praça Tiradentes da cidade do Rio de Janeiro,
ou o centro histórico da cidade de Salvador, para se desvelar o que aqui se
faz. Acontece, porém, que espaços como estes sofrem interações e pressões
sociais de tal monta que exigiriam trabalho por demais dispendioso, além de
desnecessário, para se enxergar as relações que aqui se pretende.
O método escolhido para esta tese, portanto, permite, senão exige,
que se escolha um espaço onde as relações procuradas para investigação,
ou seja, aquelas advindas da influência direta da construção de identidade
nacional, se dêem de maneira mais clara. Ora, se mesmo nesta situação tais
relações sócio-espaciais não aparecem de forma óbvia, donde a necessidade
de confecção deste estudo para evidenciá-las, que dizer de outros espaços
onde a complexidade é ainda maior.
Nada impede, no entanto, que as investigações realizadas aqui,
neste caminho escolhido em Ouro Preto, possam, após esclarecidas suas
relações de produção espacial, ser testadas em outros locais de modo a se
configurar o espaço cordial como categoria consolidada de análise do espaço
brasileiro. No entanto, não se vai realizar tais extrapolações, posto que se
considera tarefa de tal monta que exigiria outro trabalho semelhante a este,
senão maior. Compreende-se que a percepção, enunciação e comprovação
da possibilidade científica da existência de novo conceito seja, por si só,
trabalho pertinente ao tamanho da tarefa de uma tese como esta. Considera-
90
se, portanto, Ouro Preto como uma espécie de “tipo ideal” para a
investigação que aqui se realiza.
Feitas estas considerações, é hora de apresentar o “caminho
metodológico” a ser percorrido nas próximas páginas, caminho que balizará,
em suas paradas, os itens que se seguem no presente texto.
Inicia-se o percurso a partir da Rua São José (antiga Rua
Tiradentes). Trata-se de local privilegiado para a observação de aspectos
introdutórios da confirmação do espaço cordial. Primeiramente por ser esta
rua uma das mais características do imaginário a respeito de Ouro Preto. Ali
se concentram boa parte dos principais e mais tradicionais serviços voltados
para o turismo, como restaurantes, assim como a maioria, senão a totalidade,
das agências bancárias existentes no distrito sede daquele município
40
. Sua
situação geográfica é peculiar. Por acompanhar o leito do rio Tripuí, que corta
a cidade, fez-se plana, o que é raro em se tratando de Ouro Preto. Este fato
deve ter ajudado na concentração de serviços ali, onde se pode caminhar de
maneira tranqüila, e também ajuda a quem percorrer o caminho aqui sugerido
a iniciar sua tarefa de maneira, pode-se dizer, menos exaustiva.
Ainda continuando no privilégio dos locais planos, alcança-se o
largo do Cine Vila Rica, cujo nome oficial é Praça Reynaldo O. Alves de Brito,
porém, sem desrespeito algum para com tal figura, vai-se utilizar a outra
denominação, por ser mais adequada à identificação local. Trata-se de
espaço repleto de intervenções iphanianas no sentido de transformar Ouro
Preto na cidade setecentista. Em nome da coerência, do convívio harmônico
de formas paisagísticas, aí se realizou diversas “maquiagens” em vários
edifícios de forma a moldar o espaço ao imaginário colonial, é local
privilegiado de observação do que se denominou mais tarde como “estilo
patrimônio”.
Caminhando-se em direção à Praça Tiradentes, ponto final do
trajeto, percorre-se a Rua das Flores, atual Rua Senador Rocha Lagoa, onde
se encontra a intervenção síntese do discurso original do IPHAN que
aproxima o moderno do colonial, apontando os rumos do futuro a partir da
40
Ouro Preto é um município de grande área, 1245 Km
2
segundo o IBGE, e se divide em
vários distritos. A análise aqui realizada se concentra em seu distrito sede, que encerra,
ultrapassando, os limites do sítio classificado como Monumento Nacional e Patrimônio da
Humanidade.
91
apropriação simbólica da construção do passado: o Grande Hotel de Ouro
Preto, projeto pelo arquiteto Oscar Niemeyer e que revela a face do lhano
convívio temporal do espaço cordial evidenciado no item anterior.
Chega-se, enfim, à Praça Tiradentes, onde se observa a maneira
pela qual se dá, hoje, a perpetuação desta forma de se produzir o espaço,
fixada ali, de maneira mais clara, pela convivência lado a lado da Casa da
Baronesa, sede do IPHAN e do novo Centro Cultural da FIEMG, citado em
capítulo anterior.
Figura 2 Desenho esquemático do “percurso metodológico e suas respectivas divisões.
(Imagem tratada pelo autor a partir de foto digital extraída da internet em
http://www.googlemaps.com)
Descrito o trajeto, é hora de percorrê-lo para que se evidencie e se
perceba as várias facetas do espaço cordial, que receberá, no próximo
capítulo, as adições da terceira vertente de investigação lefebvriana que o
complexificará e densificará: aquela das práticas sociais, o seu viés
percebido.
92
6.1.3 A Rua São José (antiga Rua Tiradentes)
A rua mais animada de
Ouro Preto é a de
Tiradentes. é que estão
os Correios e Telégrafos, o
Hotel Tóffolo, a
Associação Comercial
(esta em prédio nôvo [sic]
mas imitando os sobrados
do velho estilo), o único
cinema da cidade, os
melhores cafés e
confeitarias, as principais
casas de comércio.
(BANDEIRA, 1967, p.57)
Começa-se por esclarecer que o cinema referido por Manuel
Bandeira é o mesmo Cine Vila Rica que referencia o largo a ser analisado
proximamente, cujo logradouro recebe hoje diferente nomeação.
Fotografias 7 e 8 À direita percebe-se a movimentação da rua em dia útil, hoje uma das
principais referências no comércio da cidade. A outra foto mostra o referido Hotel Toffolo,
ainda hoje no mesmo lugar, como era de se esperar.
93
A Rua São José oferece elementos de observação urbana
bastante importantes para se compreender outros aspectos do que se busca
aqui confirmar como sendo o espaço cordial. Além da referida relação de
convivência entre passado e futuro aparentemente inconciliáveis, senão
através da cordialidade, na construção do espaço simbólico realizado pelo
IPHAN, aqui se pode examinar alguns aspectos de cunho urbanístico
concretizados neste espaço que determinam outras características de
cordialidade. Da mesma maneira vai-se enfrentar este problema nos outros
trechos a serem percorridos.
Esta rua faz parte do chamado, por Sylvio de Vasconcelos,
caminho tronco, que é nada mais que a permanência das trilhas iniciais da
produção do espaço ouro-pretano. Situada em sítio privilegiado em meia
encosta que acompanha o leito do rio Tripuí, localizado atrás das fachadas
posteriores das construções à direita da Fotografia 7, esta rua é das poucas
que acompanham a curva de nível deste sítio, o que, inclusive, ajuda a
explicar, senão determinar, a sua ainda atual função de centro comercial pela
facilidade de ali se transitar.
Mas não se vai deter neste tipo de exame descritivo historicista
deste espaço. Interessa perceber como se evidencia sua cordialidade. Para
tal, remete-se inicialmente a uma carta enviada em 1761 pela Coroa
Portuguesa ao Governador do Piauí a respeito de regras de construção nas
vilas da colônia
41
:
[as casas deviam ser] sempre fabricadas na mesma figura
uniforme, pela parte exterior, ainda que na outra parte inferior as
faça cada um conforme lhe parecer, para que desta sorte se
conserve a mesma formosura nas vilas, e nas ruas delas a mesma
largura, que se lhe assinar nas fundações. (VASCONCELOS,
1977, p.88)
Esta regra parece ter sido levada à cabo em todas as vilas
coloniais, garantindo assim o seu usual aspecto de uniformidade que anos
depois foi considerado pelos intelectuais do IPHAN como um dos aspectos
estéticos mais valorizados na cidade de Ouro Preto, garantindo seu
tombamento como objeto artístico e autorizando algumas uniformizações
41
Cf. VASCONCELOS, 1977, p.88
94
como a seguir serão vistas. No entanto, a topografia do sítio ouro-pretano
acabou por gerar uma ocupação diferenciada, como o mesmo Sylvio de
Vasconcelos nota em sua obra:
E enquanto as frentes das casas que cordeiam as vias públicas,
de certo modo se aprumam, se formalizam, arrumadas, para o
interior, os fundos se esparramam num à vontade típico, ajeitando-
se como podem à difícil topografia local, resolvendo com
franqueza e naturalidade os seus programas, orgânicos e
funcionais. Varandas, puxados, escadas, cozinhas, o forno, o
chiqueiro, pousam em qualquer lugar disponível,
despreocupadamente, agarradas as construções umas às outras,
ajudando-se mutuamente, como se desta cooperação
dependesse a sobrevivência. (VASCONCELOS, 1977, p.173)
Esta poética passagem assinala um fenômeno recorrente em uma
cidade cujo espaço se produziu em sítio tido como inadequado por ser
íngreme demais, como se houvesse algum sítio próprio para se erguer uma
cidade, fruto da ocupação próxima aos locais de exploração mineral, como
não poderia deixar de ser.
No entanto, quando esta cidade se torna símbolo nacional devido à
sua harmonia formal, há então uma espécie de rompimento interpretativo
deste tipo de ocupação em função da necessidade de se manter um discurso
corporificado em forma urbana. A harmonia acaba falando mais alto que a
inadequação.
Acontece que à manutenção da paisagem harmônica de Ouro
Preto como cidade síntese da originalidade brasileira não cabe a
continuidade de sua produção espacial baseada em tempos com velocidade
industrial, portanto, a convivência cordial entre a colônia e o futuro se
garante por ser anunciada por quem interessa tal continuidade, ao Estado e
seus apoiadores. E eis que surge um conflito que se evidencia de forma
exemplar no espaço da Rua São José. A Fotografia número 9, assim como a
número 7, representam o imaginário que o senso comum possui de Ouro
Preto como cidade símbolo da beleza colonial brasileira que confirma seu
aspecto colonial.
95
Fotografia 9 Fachadas da Rua São José que equivalem à imagem de cidade colonial
divulgada e reconhecida pelo senso comum.
No entanto, ao se observar a Fotografia número 10 a seguir
descobre-se um outro modo de se produzir o espaço da mesma rua, da
mesma cidade:
Fotografia 10 Fundos da Rua São José, onde o moderno e o colonial não se apresentam
de forma tão harmoniosa...
96
Estes edifícios de quatro, cinco e talvez mais andares distanciam-
se um pouco do que Sylvio de Vasconcelos considerava um bando de
construções “ajeitando-se como podem à difícil topografia local”. Aqui a
cordialidade revela uma de suas faces espaciais concretizadas. A ruptura
modernista, industrial, está ali, lado a lado com a permanência colonial em
um mesmo edifício, em um mesmo lugar, em uma mesma rua. Porém, tal
convivência, nada harmoniosa como pretendia o ideário iphaniano, é
possível por se tratar de local pouco visto, distante da observação do visitante
que se encanta com a coerência do discurso iphaniano concretizado nas
fachadas ouro-pretanas.
A Fotografia 10 foi tirada a partir de um novo caminho que se abriu
em Ouro Preto, o “Horto dos Contos”, que se trata de uma trilha preparada
para visitação turística que segue o leito do rio Tripuí, proporcionando uma
vista privilegiada desta face ouro-pretana. se diz da confecção de um
concurso para redesenhar estas fachadas, numa tentativa de se harmonizar o
conjunto modernista-industrial agora mais devassado pela trilha.
Independentemente da veracidade de tal informação, o seria
surpreendente que ocorra um concurso como este se realize a fim de se
continuar de forma coerente a aplicação das normas de manutenção
simbólica praticadas pelo IPHAN nesta cidade.
Fotografias 11,12 e 13 – Diferentes locais do novo caminho, o “Horto dos Contos” que
possivelmente desencadeará novas intervenções estetizantes no espaço ouro-pretano, no
intuito de harmonizar as visadas por ele geradas.
Mais do que isso, uma alteração como esta estará em pleno
acordo com o que se denomina espaço cordial. É somente ao ser visto por
outros que interessaria a alteração deste espaço na direção de uma
adequação ao que a sociedade, ou melhor, a autoridade social considera
97
como sendo aceitável para determinada função. Nesse caso, enquanto os
fundos destas residências não conviviam com as outras paisagens de modo
privilegiado, não se mostravam como algo a ser percebido, pouco importava
sua aparência, mas quando se transformam em protagonistas de um espaço,
é necessário que se lhes alterem, posto que a convivência consigo mesmo, o
assumir a existência de um espaço como este perante os outros, é
simplesmente inaceitável ao espaço cordial, como o é ao seu homem:
Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do
que o brasileiro. Nossa forma ordinária de convívio social é, no
fundo, justamente o contrário da polidez. Ela pode iludir na
aparência e isso se explica pelo fato de a atitude polida consistir
precisamente em uma espécie de mímica deliberada de
manifestações que são espontâneas no “homem cordial”: é a
forma natural e viva que se converteu em fórmula. Além disso a
polidez é, de algum modo, organização de defesa ante a
sociedade. Detém-se na parte exterior, epidérmica do indivíduo,
podendo mesmo servir, quando necessário, de peça de
resistência. Equivale a um disfarce que permitirá a cada qual
preservar inatas suas sensibilidade e emoções.
Por meio de semelhante padronização das formas exteriores da
cordialidade, que não precisam ser legítimas para se
manifestarem, revela-se um decisivo triunfo do espírito sobre a
vida. Armado dessa máscara, o indivíduo consegue manter sua
supremacia ante o social. E, efetivamente, a polidez implica uma
presença contínua e soberana do indivíduo. (HOLANDA, 1999,
p.147, grifo do autor)
Estas observações de Sérgio Buarque de Holanda caracterizam de
forma precisa o que se quer aqui demonstrar neste espaço exemplificado
aqui na Rua São José. Note-se que esta polidez que se detém
epidermicamente no indivíduo, ocorre também aqui neste espaço. Isso não
se dá de forma natural, mas socialmente construída. O trecho da carta
endereçada ao governador piauiense citado por Sylvio de Vasconcelos e
reproduzido acima atesta sua origem histórica que é a mesma que Sérgio
Buarque buscou para sua análise ao considerar que as heranças coloniais
portuguesas ainda estavam marcantemente presentes na sociedade
brasileira.
Este híbrido entre a padronização das formas exteriores e um
“salve-se quem puder” na parte posterior de uma mesma edificação adquire,
no entanto, conteúdo adensado quando assumimos que estamos vivendo no
século XXI, e não no XVIII como querem muitos. Acontece que os fundos das
98
casas encontradas por Sylvio de Vasconcelos certamente não possuíam o
volume e a proporção de edifícios modernos hoje encontrados neste espaço
e não somente à rua o José se encontram tais exemplos, conforme nos
demonstram as fotografias 14 e 15:
Fotografias 14 e 15 Exemplos semelhantes aos da Rua o José. A primeira foto mostra
fundos da Rua do Rosário enquanto a outra é uma vista a partir da escadaria frontal da Igreja
do Carmo.
99
Não somente o volume e a proporção dos edifícios, mas também a
composição das fachadas nos remete a um tipo de construção, um tipo de
espacialidade que não é harmônico ao colonial, trata-se de construções com
características modernas, porém adornadas, em sua maioria, com elementos
“coloniosos”. Ao invés de barro armado, o que se percebe aqui é uma
espécie de “concreto-a-pique”. Entende-se que o discurso e a prática do
IPHAN que cordialmente uniram modernidade e colonialismo em uma mesma
linhagem acabou por legitimar espaços como os demonstrados acima. No
entanto, espaços como estes se mostram alvos de críticas do próprio órgão,
e do senso comum, ao apontar os problemas da “conservação” da cidade de
Ouro Preto. Vieira (2006) conclui sua análise sobre as tipologias
arquitetônicas de Ouro Preto no século XX com uma observação que
corrobora e amplifica o que aqui se observa:
A consolidação da tipologia pseudocolonial representa, a nosso
ver, a mitificação e a mistificação do monumento histórico. O
IPHAN promoveu uma imagem tradicional em Ouro Preto na
medida em que se preocupou em manter as fachadas com
aspecto colonial, mas pouco se mencionou os aspectos urbanos
ou culturais. Ironicamente, a imagem colonial está hoje no
subconsciente coletivo dos ouro-pretanos e é repetida sem que
isso seja exigido [...]. Na produção arquitetônica da cidade nos
últimos anos, ficou difícil avaliarmos o que foi imposto e o que foi
espontâneo. (VIEIRA, 2006, p.139)
Desconfia-se, no entanto, da existência de espontaneidade na
produção deste espaço. A cordialidade não se faz presente apenas na
relação fachada-fundo, polidez-mímica; como se sabe, a cordialidade acaba
por definir certos comportamentos sociais que legitimam e mantém um
autoritarismo permanente. É óbvio que o homem cordial que realiza sua
mímica deliberada de polidez quer agradar a alguém de quem depende de
certa forma para sobreviver: seu chefe, seu senhor, alguma autoridade de
que necessite o cumprimento de seus direitos. Como não garantias
impessoais nesta sociedade, ou melhor, como estas são ainda bastante
frágeis, é necessário que o homem cordial, quando oprimido, recorra a
normas de convívio que agradem ao outro homem cordial, aquele que oprime
e que por ditar as normas se encontra em um patamar superior a elas.
100
Seguindo a mesma lógica, é adequado à manutenção da
cordialidade um tremendo apego às idéias, que, ao serem trabalhadas por
quem “lhe é de direito”, transformam-se em normas top-down que garantem,
assim, uma impressão de impessoalidade normativa que não se lastra nos
conflitos concretos, caso somente viável em situações de ruptura.
O espaço cordial, este híbrido de legalidade e ilegalidade, de
formalidade e informalidade, de colonial e de moderno, está inserido em uma
lógica onde a norma aparece para (e a partir de) uma justificação discursiva
de uma idéia que geralmente é alheia à realidade do locus de sua aplicação.
Afirma-se que este estranho espaço perde toda sua estranheza ao se romper
com análises duais que acabariam por separar o híbrido, tornando sua
fachada legal/formal/colonial e seus fundos ilegais/informais/modernos (neste
caso, contemporâneos demais para uma cidade do século XVIII).
Figura 3 – Desenho esquemático do híbrido “concreto a pique”.
Não há possibilidade de se manter um pensamento dual e, ao
mesmo tempo, querer mudar este espaço, ou sua interpretação, a não ser
pelo viés do autoritarismo que também existe na forma de se produzir
interpretações científicas.
Este híbrido, por menos que se deseje, é coerente com a proposta
patrimonialista do IPHAN, pois traz a convivência entre o moderno e o
colonial, porém, destituída da técnica que o órgão enunciou como detentor
absoluto: produzir e julgar o que é ou o boa arquitetura, como se discutirá
mais detidamente em capítulo posterior. Enxergar um espaço como este
101
como sendo incoerente, incorreto, é esquecer que a proposta inicial de
símbolo nacional aproximava o inconciliável em nome de uma cordialidade
temporal entre o passado e o moderno e, consequentemente, entre as duas
formas de se produzir espaço nas diferentes sociedades.
Negar a cordialidade em nome de uma norma impessoal onde a
preservação de um ambiente urbano se pautaria em um pacto social de
cooperação entre a sociedade e órgão responsável pela sua manutenção ou
é incorrer em um erro de percepção histórico social de como foram forjadas
tais regras ou é tentar impor um modelo ideal de preservação segundo
modelos externos que não se aplicam ao caso brasileiro.
Aqui imperou o autoritarismo e a falta de diálogo, como se verá
com mais detalhes no próximo capítulo, que geraram estes híbridos que, vale
repetir, estão de certa forma condizentes com a regra estabelecida pelo
IPHAN. A tentativa de dissimulação entre a ruptura do moderno com o
colonial está presente neste híbrido que permite a convivência de diferentes
espaços sob uma mesma casca. Castriota descreve esta transformação de
forma precisa:
Frente às dificuldades de se analisar projetos caso a caso, o
SPHAN, caminha, então, cada vez mais para um enrijecimento das
normas, passando a exigir uma série de traços estilísticos nas
novas edificações [...].
Com a exigência de se seguir uma série de design guidelines para
as novas edificações, aparece por toda Ouro Preto o chamado
“estilo patrimônio”, representado por construções contemporâneas
que emulam velhas casas do século XVIII. Como se acreditava
que a cidade não iria crescer muito, a atenção do SPHAN voltava-
se primordialmente para as fachadas, não considerando outros
aspectos tais como dimensões dos lotes, implantação da casa no
lote e seu volume, que logo iriam se mostrar muito importantes. E,
como de fato a cidade desenvolveu-se com muita rapidez,
especialmente a partir da década de 60, a conseqüência mais
danosa desse tipo de ação terminou sendo a falsificação do
conjunto, com o surgimento de uma arquitetura híbrida, em que as
edificações do “estilo patrimônio” fundem-se com os exemplares
originais. (CASTRIOTA, 2003, p.195)
No entanto, ao invés de se concordar com o fato de que não se
acreditava que a cidade fosse crescer muito, afirma-se que não se desejava
que isto ocorresse. O moderno e o colonial somente podiam conviver em
harmonia segundo regras determinadas que, como se comprovou, não se
102
pautavam em observações e debates a partir do concreto. O positivismo
presente na cordialidade se manifesta de forma clara nesta percepção
equivocada da estagnação eterna da cidade símbolo.
Quando a cidade, enfim, se “desenvolveu”, ou seja, quando a
indústria alcança aquele sítio de forma mais direta a partir da implantação de
novas mineradoras que retomam a atividade que deu origem à vila, não
houve como transformar a ruptura em harmonia conforme os desejos ideais
de preservação do Estado, restando-lhe a vigilância e a punição. Surge então
um espaço que demonstra sua coerência quando entendido pelo viés da
cordialidade. Curioso notar a observação de Cavalcanti (2006) que, ao
descrever a atuação do mesmo órgão, coloca-a em posição contrária à
percebida em Ouro Preto:
É revelador compararmos as características do Sphan e do Setor
de Censura de Fachadas, o órgão por meio do qual os acadêmicos
buscavam exercer o domínio e o controle da produção
arquitetônica. Este último abrangia apenas as formas externas da
produção de prédios isolados e atuava na negatividade, vetando
formas que parecessem inadequadas aos cânones da Escola de
Belas Artes. o Sphan passa a exercer o controle através da
positividade, prescrevendo normas e inculcando preceitos
construtivos, apresentando uma capilaridade muito mais
abrangente de seus poderes: trabalha respaldado pelo conceito de
identidade nacional, selecionando tanto a produção pretérita a ser
eternizada como a futura, que figurará ao lado desse panthéon
construtivo. (CAVALCANTI, 2006, p.227)
Considera-se que esta observação seja possível somente em
relação ao projeto que o IPHAN construiu, e não à sua atuação concreta; ou
então a partir de observações feitas em locais onde o poder deliberativo
deste órgão em relação à produção do espaço seja menor, como no caso das
grandes cidades em que as prefeituras municipais dividem, quando não
sobrepõem, o poder do órgão da identidade nacional
42
. Onde este possui
poderes quase plenos, sua resposta se como um enrijecimento de regras
estilísticas bastante próximas de um “Setor de Censura de Fachadas” que
gera inúmeros conflitos e reforça uma percepção dual da cidade, onde
fachadas, mesmo que falseadas no melhor “estilo patrimônio”, são tidas como
aceitáveis e as demais construções, loteamentos e ampliações, mesmo que
42
Conferir próximo capítulo deste trabalho.
103
modernas, não o aprovadas pelo órgão que, revestido da autoridade
técnica, condena estas intervenções a um estigma de ilegalidade e não abre
nenhum caminho de diálogo social para tentar solucionar o problema de
todas as características cordiais, é a aversão ao conflito e ao debate que se
mantém mais forte.
Pensa-se assim a cidade de forma dualista, impossibilitando o
surgimento de algo novo que corresponda formalmente à utilização do
espaço pelos seus habitantes e visitantes que, ao se sentarem nas varandas
localizadas nos “puxadões” para almoçar, ou entrar em seus escritórios para
trabalhar não diferenciam o espaço entre legal e ilegal, mas o apropriam
segundo seu fluxo de utilização que rompe com qualquer decupagem urbana
possível. Mas para que se compreenda ainda mais a forma de produção do
espaço cordial vivido é necessário que se continue o trajeto proposto que
evidenciará outras facetas complementares deste conceito.
6.1.2 O Largo do Cine Vila Rica
Trata-se de um largo situado ao fim da Rua São José e ainda
privilegiado por uma condição relativamente plana que lhe um ar de ponto
de descanso para aquele que percorre o trajeto deste estudo, posto que a
próxima observação se dará em terreno íngreme bem característico de Ouro
Preto, a Rua das Flores.
Este largo é um espaço fundamental para o entendimento da
produção do espaço ouro-pretana por possuir elementos onde a atuação do
104
IPHAN se deu de forma intensa na direção de se consagrar a imagem que o
órgão desejava como sendo legítimo símbolo de um patrimônio histórico
brasileiro.
Fotografia 16 – Panorama do Largo do Cine Vila Rica, vendo-se à esquerda a fachada lateral
da Casa dos Contos em convivência com o Grande Hotel no início da Rua das Flores. Ao
centro está a atual sede do Ministério Público, um dos ícones das transformações iphanianas
(o cinema propriamente dito está na parte oposta a esta visada).
Fotografia 17 – O Cine Vila Rica.
Foram realizadas neste local algumas das intervenções de cunho
estético mais significativas na direção de uma uniformização paisagística que
fosse capaz de harmonizar o ambiente urbano de forma a lhe dar ares
setecentistas, eliminando elementos arquitetônicos de construções do culo
XIX que, se por um lado davam a Ouro Preto uma condição de cidade em
desacordo com o imaginário simbólico que os modernistas desejavam
consagrar como original, por outro representavam um período estético da
arquitetura que não se enquadrava no gosto destes intelectuais, como Motta
105
esclarece em seu texto que é referência sobre a análise deste período, uma
espécie de autocrítica institucional:
Dentro desse critério restaurador eram previstas ainda ões
corretivas, com a exigência, na aprovação de projetos de reformas,
da retirada de frontões e platibandas características da tímida
evolução de Ouro Preto posterior ao século XVIII. (MOTTA, 1987,
p.110)
Não é nenhuma novidade para os estudiosos do assunto este tipo
de intervenção na cidade. O que se quer entender aqui é o mecanismo de
ação que produziu este espaço e sua manutenção nos dias atuais que
evidencia uma objetificação histórica do patrimônio que vai se converter em
uma incorporação posterior desta historicização oficial, aquilo que Bourdieu
descreve quando define seu conceito de habitus. Esta imposição de um
poder simbólico é que interessa ao presente estudo, pois é através de sua
compreensão e evidenciação que se permitirá realizar uma crítica
diferenciada ao estatuto de legitimidade do patrimônio histórico brasileiro ao
mesmo tempo em que se compreenderá de forma desvelada a maneira como
hoje atua este poder e sua reprodução.
Esta relação social que se origina na produção do espaço é que
permite o entendimento de como se dá, nos dias atuais, a construção de um
edifício contemporâneo totalmente “disfarçado” de construção colonial em
plena Praça Tiradentes, como se verá em item posterior deste capítulo. E
insiste-se na idéia de que as relações de cordialidade definidoras do caráter
social brasileiro o de extrema importância para que se perceba a maneira
de transmissão e legitimação deste poder simbólico praticado pelo Estado e,
obviamente, possa se tentar enxergar onde se dão as transformações
possíveis de romper com tal comportamento.
Além da sensação de falseamento paisagístico que estas
alterações espaciais dão a este espaço, surge também uma prática que
garante ao Estado a exclusividade de realizá-las de forma legítima.
106
Fotografias 18 a 21 Diversos ângulos de um dos prédios alterados pelo IPHAN em meados
do século XX, onde se pode perceber a estranheza dos elementos estéticos da edificação
em relação à cachorrada colocada para lhe dar ares coloniais. A sensação de estranhamento
pela ausência da platibanda é inevitável para um observador mais experiente na leitura de
estilos arquitetônicos.
A alteração realizada o possui uma carga de importância para a
produção do espaço apenas por seu viés estético, mas também pelo simples
fato de ser uma alteração. Estas duas facetas destes gestos revelam de
forma diversa a maneira pela qual a interferência do IPHAN se na
produção do espaço cordial.
Primeiramente é bom que se detenha em seu caráter estético por
ser este usualmente criticado e destacado em diversos trabalhos sobre o
assunto. Como se afirmou a respeito das construções da Rua São José,
houve por parte do IPHAN uma clara atuação de construção imagética
daquilo que se definiu como sendo um representante simbólico do legítimo
legado colonial brasileiro. Fez-se assim as alterações necessárias para a
107
manutenção da paisagem desejada, de forma a se afirmar o espaço colonial
como digno de lembrança em nome de sua ligação cordial com o futuro
modernista, e desenvolvimentista, que se imprimia ao Brasil do Estado Novo.
Estas alterações estéticas possuem, portanto, a importância de
revelar a forma com a qual se pretendia moldar o passado naquele espaço. E
esta forma vai impactar de duas maneiras a continuidade histórica da cidade.
Inicialmente ela surge como uma alteração para aqueles que presenciaram a
mudança, que não foi de modo algum delicada e suave como atesta a
diferença existente entre o edifício do antigo Liceu de Artes e Ofícios, atual
Cine Vila Rica:
Fotografias 22 e 23 A foto acima mostra o antigo edifício eclético que foi “maquiado” de
colonial através da introdução de cachorrada e respectiva eliminação da generosa
platibanda, além de alteração no ritmo de cheios e vazios da fachada do edifício. Note-se
que, posteriormente, brotam dois novos edifícios “coloniais” vizinhos ao cinema.
Tal mudança na paisagem, posteriormente, dilui-se na percepção
deste espaço na medida em que várias gerações de ouro-pretanos e de
visitantes encontram tal espaço modificado e, portanto, salvo àqueles
especialistas em leituras estilísticas aquele local se mostra cronologicamente
homogêneo, impedindo a incorporação das mudanças que houve ao longo do
tempo naquela cidade. Lauro Cavalcanti (2006) reforça esta idéia quando
estuda um tema próximo ao tema presente:
108
A arquitetura, tendo como matéria formas duráveis, apresenta de
modo concreto em nossas cidades a produção da estética
dominante, ou aquela por ela selecionada. O reconhecimento
desse domínio é colhido no cotidiano das pessoas, que percebem
as suas formas através de princípios de internalização, tendendo a
naturalizá-los como partes de uma paisagem urbana preexistente:
prédios, estilos, cores e texturas são incorporados como formas
dadas, sem questionamento de seus mecanismos de implantação.
(CAVALCANTI, 2006, p.9)
Como se verá mais tarde, a única mudança que se deixará
perceber de forma clara levará a marca da arquitetura moderna, ainda em
disputa pelo domínio estético, criando assim, a posteriori a confirmação da
teoria de Lúcio Costa a respeito da continuidade legítima e harmoniosa entre
as duas realidades espaciais e possibilitando assim uma ponte concreta para
o ideário de que também as mudanças sociais se dão da mesma forma, isto
é, harmonicamente.
Não se quer afirmar aqui que esta negação da diversidade
temporal no espaço seja unicamente responsável pela idéia de transição sem
ruptura, cordial portanto, de diferentes fases da história política, econômica e
social da história brasileira. Mas não se pode negar o peso simbólico que tal
paisagem adquire ao ser transformada, principalmente da maneira através da
qual se deu tal mudança.
Esta alteração significa também a afirmação da autoridade do
transformar como se afirmou acima. Além de seu caráter estético, interfere
nesta transmissão de poder simbólico a autoria da mudança. Esta permanece
arraigada no modo de se produzir o espaço ouro-pretano, ou seja, o Estado
detém a autoridade da condução das alterações, e, portanto, da
transformação. O gesto da mudança não é permitido ou mediado pelos
cidadãos ouro-pretanos, o que leva ao questionamento da existência de uma
essência cidadã neste espaço, posto que o patrimônio histórico o é
construído aqui como forma de diálogo histórico promovedor de um
entendimento das mudanças sociais, mas é tratado como forma de legitimar
uma história contada pelo Estado e se referenciando em sua capacidade de
(co)mando. É importante lembrar que dentro da sociedade cordial o Estado é
prolongamento da Família, portanto, não são todos os que participam do
pacto fundador de seu funcionamento. Lefebvre, ao descrever o espaço
109
social, faz uma consideração a respeito do papel do Estado que deve aqui
ser retomada para um melhor entendimento deste mecanismo, desta técnica
de transmissão de poder que se realiza na construção simbólica do
patrimônio:
[...] O Estado e o poder político se querem e se fazem redutores
das contradições; a redução e o reducionismo aparecem então
como meios ao serviço do Estado e do poder: não como
ideologias, mas como saberes; não ao serviço de um dado Estado,
ou de um dado governo, mas ao serviço do Estado e do poder em
geral. Como o Estado e o poder político reduziriam as contradições
(os conflitos nascentes e renascentes na sociedade) senão pela
mediação do saber, utilizando estrategicamente de uma mistura de
ciência e de ideologia?
43
(LEFEBVRE, 2000, p.127, traduzido do
autor)
As mudanças realizadas nestes espaços ouro-pretanos incorporam
esta descrição de um reducionismo como meio de manutenção e legitimação
do Estado brasileiro. A partir desta combinação de detenção exclusiva de um
saber que serve a uma condução social pautada na negação dos conflitos a
instituição responsável pelo patrimônio histórico finca neste espaço a
memória de que o gesto de mudança é autorizado somente quando provém
das mãos do Estado ou quando segue as normas estabelecidas por ele. Se
um turista desprovido de conhecimento técnico observa este largo como
exemplo de uma paisagem homogênea, o morador ouro-pretano percebe aí a
autoridade do Estado que o impõe métodos e códigos de conduta que, ao
serem seguidos, dão-lhe condição de entrada na legalidade, ou seja, de fazer
parte da Família Estado, caso contrário, fica sobre o quase cidadão a idéia de
que seu espaço é ilegal, portanto está fora da esfera de direitos e deveres.
O espaço cordial, no entanto, traduz esta separação de legalidade
e ilegalidade de forma nebulosa, posto que os gestos realizados pelo Estado
não são condizentes com as próprias normas impostas ao moradores da
cidade. A dualidade legal versus ilegal se mescla quando um mesmo tipo de
43
“L’État et le pouvoir politique se veulent et se font réducteurs des contradictions; la
réduction et le réductionnisme apparaissent donc comme des moyes au service de l’État et
du pouvoir: non pas en tant qu’idéologies mais en tant que savoir; non pás au service de tel
État, ou de tel gouvernement, mais au service de l’État et du pouvoir en general. Comment
l’État et le pouvoir politique réduiraient-ils les contradictions (les conflits naissants e
renaissants dans la societé) sinon par la médiation du savoir, en usant stratégiquement d’une
mixture de science et d’idéologie?
110
alteração, isto é, um falseamento estético de um edifício antigo é percebido
como legítimo neste largo (e em outras alterações semelhantes praticadas
pelo IPHAN em outros locais da cidade) e ilegítimo nos edifícios supracitados
formados de “concreto-a-pique” na Rua São José. O reducionismo das
contradições sociais de que fala Lefebvre aparece aqui como gesto inicial de
afirmação da construção da memória social, para depois perder seu viés de
continuidade estética e adquirir o caráter de dominação técnica, do saber
transformar. Não são todos os que podem produzir e transformar o espaço
cordial, que a cordialidade se define nesta mescla entre Família e Estado.
Concorda-se mais uma vez com Lefebvre, quando este se aproxima da
transformação de um espaço absoluto em um espaço abstrato e afirma que:
Falta dizer que todo Estado nasce da violência e que o poder
estatal se mantém através da violência exercida sobre um
espaço. [...] Cada Estado pretende produzir o espaço de uma
realização, ou mesmo de um maravilhamento, aquele espaço de
uma sociedade unificada, portanto homogênea
44
. (LEFEBVRE,
2000, p.323, traduzido pelo autor)
Cada Estado realiza este exercício de violência simbólica à sua
maneira. Aqui, pelo que se viu até então, imperam as relações cordiais de
transmissão de poder que refletem no espaço de maneira sutil, mas possível
de se desvelar, principalmente em um sítio urbano onde as relações
simbólicas se revestem de tanto peso social como Ouro Preto. A confirmação
e a evidenciação do estabelecimento desta relação de autoritarismo se
confirmará e ganhará mais legitimidade quando se deixar de lado o largo em
que se realizou as observações acima e se tomar o lego suficiente para
encarar a ladeira da Rua das Flores, que se torna mais difícil de se percorrer
tanto quando se observa o terreno íngreme que a conforma quanto se depara
com a densidade da intervenção aí feita, considerada peça chave para a
confirmação do estilo moderno como simbolicamente legítimo da
representação estatal brasileira e divisor de águas de quem pode ou não
interferir de modo legítimo na produção do espaço nacional.
44
Il reste que tout État naît de la violence et que le pouvoir étatique ne persiste que par la
violence exercée sur un espace. [...] Chaque État prétend produire l’espace d’un
accomplissement, voire d’un épanouissement, celui d’une société unifiée, donc homogène.
111
6.1.3 A Rua das Flores
A rua das Flôres abre-se em
cima numa espécie de largo,
onde fica o Grupo Escolar
Pedro II, feiíssimo,
adaptação de um quartel de
cavalaria, e a chamada
Fonte dos Cavalos.
(BANDEIRA, 1967, p.66)
Esta observação de Bandeira em seu Guia demonstra como a
relação entre esquecimento e lembrança se deu na construção do patrimônio
histórico brasileiro. Longe de ser o principal objeto de debate deste trecho, tal
consideração não deve escapar à configuração da produção do espaço ouro-
pretano, principalmente por ter sido esta uma das atitudes mais repetidas
pelo IPHAN em território brasileiro, a saber, a desconsideração da produção
do espaço do século XIX no Brasil que possuía como linha estilística aquilo
que se denomina eclético.
se viu as alterações realizadas em nome de uma pureza
setecentista em Ouro Preto no Largo acima percorrido. Não se sabe por qual
razão alguns representantes ecléticos foram deixados à mostra aqui e ali
nesta cidade, sendo o “feiíssimo” Grupo Pedro II um destes exemplos,
obviamente.
E muito menos se pretende aqui debater o motivo destas lacunas.
Interessa mais compreender o significado das transformações realizadas que
foram suficientes para demarcar a maneira cordial de se produzir um espaço.
Mas não se pode aqui deixar de lado uma certa ironia que esta cordialidade
acabou por produzir. O período estilístico denominado eclético se pauta na
mescla de elementos construtivos e decorativos, sobretudo estes últimos, de
diferentes estágios da produção arquitetônica em um mesmo edifício.
112
Fotografias 24 a 26 – O “feíssimo” Grupo Escolar Pedro II em diversos ângulos.
113
Trata-se de uma espécie de pastiche catálogo onde uma única
construção revive elementos de momentos passados rompendo com o rigor
de marcação temporal clara tão caro aos modernos que, por isso mesmo,
negavam a utilização de quaisquer elementos decorativos em suas
construções no intuito de valorizar a verdade” construtiva de um tempo em
que a beleza se bastava na evidenciação funcional. Referência declarada à
beleza que havia no funcionamento de uma máquina industrial qualquer,
motivo que chegou a fazer com que Le Corbusier viesse a elogiar os
engenheiros por sua leveza e condenar os arquitetos por sua exagerada
necessidade de ornamentação, típica do período eclético.
Esta “verdade” simples da construção moderna foi utilizada,
inclusive, como argumento de Lúcio Costa na comparação cordial entre o
pau-a-pique e o concreto armado, posto que considerava a simplicidade das
residências ouro-pretanas
45
uma característica digna de resgate para a
memória arquitetônica. A ironia reside exatamente no imprevisto caminho
inverso que as atitudes iphanianas tomaram, gerando o híbrido aqui chamado
de “concreto-a-pique”, em oposição ao barro-armado de Lúcio Costa,
presente em diversos locais da cidade, como nos casos analisados da Rua
São José que, de certa maneira, guarda algo de eclético em sua
caracterização, como uma espécie de neo-eclético, ou mesmo pós-moderno,
no sentido arquitetônico do termo
46
.
Esta negação do eclético, no entanto, surtiu o efeito desejado
pelos modernos, como se pode observar ao se comparar a construção de
duas cidades símbolo do período republicano brasileiro. Quando se observa
as construções realizadas ao se erguer Belo Horizonte, no final do século
XIX, prevalecerá o eclético de forma acachapante, no entanto, décadas mais
tarde, ao se construir a capital nacional, opta-se com a mesma intensidade
45
Lúcio Costa, ao comparar e interligar tais simplicidades obviamente não incorpora o fato de
a simplicidade moderna vir desta tentativa de padronização industrial da construção
enquanto a herança ouro-pretana ser fruto, certamente, da pobreza que se instaurou
naquelas terras, apesar, ou devido à riqueza que de se extraía. Tome-se como exemplo os
poucos exemplos das casas dos mais ricos da cidade mineira e se vai perceber aí a negação
de qualquer simplicidade. Obviamente que isto não era objetivo da análise de Lúcio Costa e
nem mesmo retira sua legitimidade, mas nem por isso deve-se descartar tal consideração
quando se quer realizar, como neste estudo, um entendimento das conseqüências deste
discurso e de sua conseqüente prática na produção do espaço.
46
Cf. Também Fotografias 22 e 23 neste trabalho.
114
pelo moderno. Obviamente que a construção da capital mineira não se
poderia dar de acordo com os nones modernos, o que seria um
anacronismo, porém, a mudança do estilo adotado na capital nacional indica
que houve o apenas passagem de tempo, mas consolidação de poder
simbólico cuja construção passa pelo entendimento da cordialidade do
espaço
47
.
Essa característica de “convivência pacífica” em nome da ausência
de qualquer tipo de confronto tão característica da descrição de Sérgio
Buarque de Holanda se afirma na produção do espaço de maneira variada.
Quando se lê, por exemplo, o seguinte texto a respeito da concepção urbana
do planejador de uma nova cidade em que:
[o urbanista] pretendia [...] construir uma cidade protótipo do
urbanismo mais avançado da época, cuja concepção seria a base
e o limite da sociedade que desejava fazer existir – moderna,
organizada, com funções definidas e espacialmente localizadas.
Deveria exaltar a grandeza do governo que, em sua demonstração
simbólica de força, desencadearia um importante efeito político
captando a confiança e provando a solidez do poder. E ao Estado
caberia não a responsabilidade pela construção como também
pelo processo de ocupação e desenvolvimento; (GUIMARÃES,
1996, p.127)
tem-se a impressão de se estar falando de Brasília, quando na
verdade o texto se refere a Belo Horizonte. E o que mais impressiona é,
agora sim, mais adiante no mesmo texto, a idéia de uma convivência cordial
que se repetirá nos dois projetos, que distam seis décadas um do outro,
incluindo aí um processo inteiro de industrialização do país que
supostamente alteraria estruturalmente sua composição de forças sociais que
levariam da mesma forma a alterar o pensar e produzir de seu espaço,
mesmo que o oficial. Mas o que se é uma manutenção das mesmas
relações de dominação social refletidas e influenciadas por sua produção do
espaço:
47
Sobre esta consolidação do moderno como estilo oficial no Brasil, conferir o bom trabalho
de Lauro Cavalcanti: Moderno e Brasileiro a história de uma nova linguagem na arquitetura
(1930-60) que, aliás, auxiliou bastante no esclarecimento de certas questões expostas neste
item da tese.
115
Na área destinada [em Belo Horizonte] á construção de
residências dos funcionários públicos, não havia separação
hierárquica do espaço. A única diferença existente referia-se ao
tipo de casa, destinando-se as maiores aos funcionários de mais
alto escalão e as menores aos que tinham funções menos
qualificadas. Essa concepção de Aarão Reis deixa claro seu
pensamento com relação à estratificação da sociedade que, ao
mesmo tempo que admite a diferenciação social, a
possibilidade de convivência harmoniosa entre os funcionários de
escalões mais altos e aqueles que exerciam funções mais simples,
como trabalhadores manuais e mecânicos.
Curiosamente, anos mais tarde, o projeto de Lúcio Costa e de
Niemeyer para Brasília insistiria nessa proposta de convivência
harmoniosa entre os diversos escalões do funcionalismo público.
(GUIMARÃES, 1996, p. 133, grifos do autor)
Não é preciso destacar que nem em um quanto no outro tal
expectativa se confirmou, em ambas houve um forte aumento do preço do
solo, cada uma por suas razões, que devolveu à cidade, cordialmente,
aspectos de segregação. Cavalcanti realiza uma descrição das
características que levaram o projeto moderno a ser adotado pelo(s)
governo(s) brasileiro(s) que acaba por reforçar esta idéia de convivência, sem
conflitos, entre oposições:
Vislumbram os modernos brasileiros ocasião ímpar: a legitimação
de dominantes no presente pela justificativa ética de uma ação
futura e o domínio do órgão encarregado de selecionar o que é
relevante do passado. No campo da arquitetura, ao assumirem os
pólos do passado e do futuro, logram colocar-se, em uma
perspectiva evolucionista, como a natural depuração e os
herdeiros de toda uma tradição construtiva brasileira: “Descobrindo
o Brasil de novo, forjaram o próprio passado” (Campofiorito: 1985).
As estruturas simplificadas e multiplicáveis do novo estilo
igualariam as casas de ricos e pobres no aspecto construtivo,
possibilitando a produção em larga escala de casas operárias.
Gostar ou não das formas modernas não seria mais uma opção
estética, mas sim uma necessidade ética e social, como afirmava
corbusianamente Lucio Costa. (CAVALCANTI, 2006, p. 106)
Este discurso aparentemente ingênuo, mas bastante eficaz e bem
orquestrado, que levou os modernistas à posição que possuem no Brasil
revela, por sua franqueza, seu lado mais perverso, a idéia de que através da
técnica se dominaria a política, ou melhor, esta seria eliminada através da
convivência harmoniosa proporcionada pela primeira. É somente em uma
sociedade marcada pelo traço, e pelo desejo, da cordialidade que um
discurso como este pode adquirir tamanha força e legitimidade, alcançando a
116
unanimidade. Talvez seja esta a razão de se ter construído aqui, e apenas
aqui, obra tão fantástica e pura como Brasília. No entanto, a manutenção
deste pensamento e sua força em mobilizar corações e mentes continuam
ainda hoje resistentemente fortes e, para que se entenda melhor o porquê de
tal manutenção, assim como a maneira de sua sustentação, há que se voltar
à antiga capital mineira.
O trecho escrito por Manuel Bandeira fez com que se saltasse, no
debate aqui travado, um trecho do percurso que se torna impossível no
caminhar, e como este estudo se trata de espaço, é importante que se
retome o rumo conforme o mesmo se apresenta concretamente, para que
não se perca a seqüência paisagística e a coerência do trabalho. Olhando-se
uma última vez à esquerda no Largo do Cine Vila Rica se enxerga ainda um
exemplo de arquitetura eclética preservado como tal neste mesmo espaço.
Talvez tenha sido deixado assim por não interferir, ao contrário dos outros
edifícios observados, no entorno do objeto arquitetônico que se encontra no
lado oposto, no sopé da Rua das Flores: o Grande Hotel de Ouro Preto
projetado por Oscar Niemeyer.
117
Fotografias 27 e 28 Edifício eclético presente no Largo do Cine Vila Rica e a paisagem
encontrada no lado do oposto do mesmo, com a fachada lateral da Casa dos Contos e vista
parcial do Grande Hotel de Ouro Preto.
O Grande Hotel é objeto de inúmeras discussões
48
sobre diversos
temas referentes ao patrimônio, dentre eles a forma de se inserir um objeto
arquitetônico contemporâneo em um sítio considerado como “histórico” que
se consolidou no Brasil, ao menos enquanto idéia. Este debate fornece
elementos esclarecedores da consolidação do moderno como estilo
48
Em todos os textos encontrados se encontrou referência a uma famosa carta de Lúcio
Costa a Rodrigo Melo Franco de Andrade sobre a questão da inserção do edifício de Oscar
Niemeyer nesta cidade. Esta carta tornou-se verdadeiro paradigma de reflexão sobre o tema
no Brasil, tendo inclusive sido lida, antes de se consultar os textos que lhe fazem referência,
nos próprios arquivos do IPHAN ao se investigar o famoso caso. Ela encontra-se transcrita
por inteiro no texto de Lia Motta utilizado para esta tese e que também está disponível no site
do IPHAN (www.iphan.gov.br) na seção referente às Revistas do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional.
118
“naturalmente herdeiro” do colonial e, além disto, que é o que interessa no
presente estudo, evidencia a forma de atuação do IPHAN que consolidou
simbolicamente não apenas um estilo arquitetônico, mas uma prática
produtora do espaço simbólico imbuída de uma conduta que, como aos
poucos se esclarece, não auxiliou na consolidação de uma democracia plena
no Brasil, mantendo a cordialidade, esta “inimiga” do dissenso e do conflito,
como forma de reprodução social dominante. Manuel Bandeira, ao descrever
este Hotel resume seu significado para o debate a respeito da atuação
iphaniana:
Em nosso terceiro passeio subamos pela ladeira que começa entre
a Casa dos Contos e o chafariz: é a Rua Senador Rocha Lagoa,
antiga das Flôres. Nos socalcos da esquerda, acha-se o Grande
Hotel, construído de 1940 a 1944. Coube à Diretoria do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional resolver o difícil problema de dotar a
cidade com uma casa onde viajantes e turistas encontrassem
agasalho e confôrto e que não atentasse contra a fisionomia
tradicional de Ouro Prêto. A solução, realmente feliz, foi achada no
projeto de Oscar Niemeyer, que levou em conta umas tantas
características comuns à técnica do concreto armado e à do pau a
pique. Seja dito que o arquiteto não quis, absolutamente, imitar a
aparência das edificações antigas, sabendo o que há de artificioso
e de falso nessa imitação, e temendo, muito acertadamente, que
viesse a passar como antigo o que é, afinal, do nosso tempo.
Procurou antes fazer com que o hotel, necessariamente moderno,
se destacasse o menos possível na paisagem colonial. Fêz obra
de boa arquitetura atual, e esta, como assinala um entendido, vai
sempre bem com a boa arquitetura de qualquer período anterior; o
que o combina é a falta de arquitetura. Foi assim resolvido um
problema de hoje com o emprêgo adequado dos processos
contemporâneos de construção. A obra fêz-se com a cooperação
técnica e financeira do Govêrno federal e do Govêrno de Minas
Gerais. (BANDEIRA, 1967, p. 66, grifo do autor
49
)
Esta solução, além de feliz, trata-se de uma espécie de divisor de
águas na produção do espaço de Ouro Preto. Não fossem as transformações
futuras desta cidade que acabaram por “imitar a aparência das edificações
antigas” por recomendação direta ou não do próprio IPHAN, poder-se-ia
afirmar que se encontra nesta ladeira um exemplo bem colocado de
rompimento estético e espacial de um tempo passado em relação ao tempo
presente.
49
O “entendido” a que se refere Bandeira é, obviamente, Lúcio Costa.
119
No entanto, este edifício emblemático representa, para o presente
trabalho, a confirmação da possibilidade de se denominar um espaço como
cordial. O Grande Hotel serve de justificativa o da necessidade de se
demarcar o tempo presente, como quer Manuel Bandeira, mas sim da
autonomia do Estado em conduzir a maneira de produção e reprodução
social a partir de sua gerência territorial. A concretude da continuidade
construída entre o passado e o presente no discurso identitário nacional
encontra seu representante mais óbvio, e que por essa mesma razão
esconde relações menos claras de controle e poder simbólicos.
O moderno e o colonial estão neste espaço lado a lado não para
reforçar a novidade e a possibilidade de transformação, mas para confirmar a
irmandade existente entre estes dois tempos, que acaba por trazer à tona a
continuidade das desigualdades e segregações existentes nas duas épocas,
consagradas por uma obra que se por um lado carrega consigo uma carga
estética que lhe dá ares de obra de arte, por outro o se descola de sua
função social e política que lhe imprime a concretude de um produto. É sobre
este produto que se quer aqui debater.
A proposta de construção do hotel foi feita pela Prefeitura
Municipal de Ouro Preto, em 1938, ano de fundação do atual IPHAN que foi
solicitado para coordenar tal empreitada. Inicialmente se pensou em realizar
um projeto de Carlos Leão, então arquiteto do Serviço, cujo partido estético
era claramente neocolonial. Porém, ao perceber que poderia estar indo
contra sua própria batalha de consolidação do moderno como símbolo da
nova nação, Lúcio Costa interfere na decisão enviando seu pupilo, Oscar
Niemeyer, para a cidade a fim de realizar um projeto mais adequado aos
novos tempos corbuseanos
50
.
50
Cf. os textos de Lia Motta e de Lauro Cavalcanti supracitados para um detalhamento desta
história, que por mais interessante que seja, não cabe aqui reproduzi-la com mais detalhes.
120
Fotografias 29 a 34 O Grande Hotel de Ouro Preto em diversos ângulos que mostram seus
constrastes e suas harmonias com a paisagem local.
121
De maneira breve, Niemeyer propôs um edifício bastante próximo
do que hoje se encontra no local, com a diferença mais substancial que seu
projeto não se utilizava de telhas coloniais, mas sim de cobertura vegetal
sobre laje plana, alteração feita a partir de sugestão de Lúcio Costa, que,
estando em Nova Iorque envolvido com a construção do também famoso
pavilhão do Brasil, envia a famosa carta ao “dr. Rodrigo”, onde coloca as
suas impressões sobre o assunto, que se tornarão, discursivamente, um
paradigma para a ação do IPHAN. Segundo Cavalcanti (2006), esta carta
possui a peculiaridade de dotar as obras modernas de um estatuto artístico,
igualando-as, pois, às obras de arte tombadas do período colonial e, portanto,
justificando, através desta equivalência, a convivência harmônica entre
ambos os estilos artísticos
51
.
Ora, o projeto de O.N.S. [Oscar Niemeyer Soares] tem pelo menos
duas coisas de comum com elas [as velhas construções] beleza e
verdade:. Composto de maneira clara, direta, sem compromissos,
resolve com uma técnica atualíssima e da melhor forma possível,
um problema atual, como os construtores de Ouro Preto
resolveram da melhor maneira então possível, os seus problemas.
De excepcional pureza de linhas, e de muito equilíbrio plástico, é,
na verdade, uma obra de arte e, como tal, não deverá estranhar a
vizinhança de outras obras de arte, embora diferentes, porque a
boa arquitetura de um determinado período vai sempre bem com a
de qualquer período anterior – o que não combina com coisa
nenhuma é a falta de arquitetura. (Arquivo central do IPHAN, s/d)
Portanto, se antes era a técnica que mediava as relações entre
passado e futuro, agora é o estatuto artístico que o faz. Esta relação de
equivalência qualitativa revela um ponto central da produção do espaço
cordial. Quando Lucio Costa realiza esta operação onde o colonial é igual, em
qualidade, ao moderno, ele instititui uma forma de controle espacial rígida
regida pela instituição governamental que vai, ao mesmo tempo controlar o
que é bom em relação ao passado e autorizar o mesmo no presente. Esta
operação de controle é fundamental para o entendimento do que vai se
desenrolar ao longo das décadas seguintes em Ouro Preto, como se viu em
algumas linhas, ou metros atrás, nas partes anteriores do percurso.
51
Deve-se considerar, no entanto que os modernos não consideravam sua forma de
construir como sendo um estilo tout court. (Cf. CAVALCANTI, 20006)
122
Lucio Costa afirma que a boa arquitetura vai bem com boa
arquitetura, independentemente do período. Note-se, no entanto, que a boa
arquitetura do passado escolhida em Ouro Preto é, em sua maioria, uma
arquitetura não produzida por arquitetos; o casario colonial era construído,
assim como o contemporâneo, de acordo com as possibilidades dos
moradores que, no século XVIII eram, em sua maioria, pobres, ao mesmo
tempo que o trabalho de um arquiteto, no século XVIII, não era um serviço
acessível para as classes de baixa renda. Portanto, Lúcio Costa equaliza
uma arquitetura dotada de técnica contemporânea e construída a partir de
uma técnica profissional a um outro tipo de produção do espaço, realizada de
maneira, na falta de melhor termo, leiga. Assim, não havia problema algum
entre a necessidade ou não de um arquiteto para se realizar boa arquitetura,
no entanto, era necessário que houvesse um arquiteto legitimado pelo poder
do Estado para afirmar que uma arquitetura sem arquitetos era boa,
conciliando-a com a produção técnica moderna.
Esta complexa operação de equivalência é que permite, décadas
mais tarde, a negação do mesmo instituto da legitimidade de uma arquitetura
popular realizada com técnicas contemporâneas. Importa menos ao IPHAN
uma continuidade no processo social da produção do espaço como forma de
legitimação de uma paisagem. Importa-lhe mais o poder simbólico adquirido
pelo órgão na definição tanto do que é bom em relação ao passado, ao
presente e ao futuro. Esta capacidade de julgamento legitimada pelo Estado
é um operador central do espaço cordial, que vive sob regras rígidas das
quais não se sabe o direcionamento, mas apenas a origem do mando.
Esta autonomia de decisão sobre a paisagem garantida por esta
equação entre arquiteturas que legitimou a convivência de obras
explicitamente contrastantes sem que se assumisse um discurso de ruptura,
nunca desejado na cordialidade, garante que, quase sete décadas mais
tarde, a seguinte consideração do seu formulador seja transformada em letra
morta:
Sei, por experiência própria, que a reprodução do estilo das casas
de Ouro Preto só é possível, hoje em dia, à custa de muito artifício.
Admitindo-se que o caso especial dessa cidade justificasse,
excepcionalmente, a adoção de tais processos, teríamos, depois
de concluída a obra, ou uma imitação perfeita, e o turista
desprevenido correria o risco de, à primeira vista, tomar por um
123
dos principais monumentos da cidade uma contrafação, ou então,
fracassada a tentativa, teríamos um arremedo ‘neocolonial’ sem
nada de comum com o verdadeiro espírito das velhas construções.
(Arquivo Central do IPHAN, s/d)
Além dos diversos “arremedos neocoloniais” presentes na cidade,
fruto desta mesma política que Lúcio Costa imaginava poder ter tido rumo
diferenciado, merece destaque, e será tema do próximo ponto deste
percurso, o fato do próprio órgão deliberar a favor de um pastiche completo
realizado em plena praça Tiradentes. Esta aparente incoerência da ação do
“serviço do patrimônio” torna-se coerente quando se lhe observa a partir do
viés do controle da produção do espaço, do qual nunca abrira mão em nome
de um compartilhamento mais democrático de decisões. E esta característica
policial será reforçada em um trecho da carta de Lúcio Costa que, fora esta
certeza da ação iphaniana, parece uma divagação quixotesca perante o que
se produziu nesta cidade:
E o constituirá [o Grande Hotel de O. N. S.] um precedente
perigoso possível de ser imitado depois com arquitetura
porquanto Ouro Preto é uma cidade pronta e as construções
novas que, uma ou outra vez, se fizerem, serão
obrigatoriamente controladas pelo SPHAN que terá mesmo de
qualquer forma, mais cedo ou mais tarde, de proibir em Ouro Preto
os fingimentos ‘coloniais’. (Arquivo Central do IPHAN, s/d)
Feitas tais colocações imbuídas de tantas certezas desfeitas com o
tempo, o arquiteto termina o documento com recomendações de algumas
alterações ao projeto orginial de ONS, no intuito de harmonizá-lo um pouco
mais com a paisagem e evitar, como se pode imaginar, a evidência da
ruptura inevitável entre os dois modos de se produzir o espaço, num esboço
de confissão de cordialidade que deve ser reproduzida aqui na quase
totalidade, mesmo temendo uma exaustão por parte do caminhante leitor:
Agora, na qualidade não de arquiteto filiado aos CIAM e de
técnico especialista do SPHAN, mas ainda, de seu amigo, sinto-
me na obrigação de dizer o seguinte:
Diante da reação instantânea [...] e o apoio moral à iniciativa [de
adoçao do projeto de ONS], e por avaliar perfeitamente as
consequências possíveis, senão mesmo prováveis, desse ‘caso’
em que, por falta de amparo, você poderá se ver na contingência
de ter de sacrificar todo esse esforço de mais de dois anos de que
124
sou testemunha [a criação e condução do próprio IPHAN à
maneira moderna], comprometendo-se, então, irremediavelmente
o seu programa de realizações so Serviço e não se fazendo,
assim, nem uma nem outra coisa, me pergunto se o objetivo em
vista justifica os riscos da experiência e corresponde
verdadeiramente para outros que não para nós, arquitetos à
importância do que está em jogo. E que você, ontem, me
comunicou haver solicitado do O.N.S. o estudo de uma variante
que procurasse atender mais de perto às características locais
ouro-pretanas [...] me pergunto também, e ainda aqui sem perder
de vista os CIAM nem o SPHAN, se, em casos assim tão
especiais, e dadas as semelhanças tantas vezes observadas entre
a técnica moderna metálica ou de concreto armado e a
tradicional do ‘pau-a-pique’, não seria possível de se encontrar
uma solução que, conservando integralmente o partido adotado e
respeitando a verdade construtiva atual e os princípios da boa
arquitetura, se ajustasse melhor ao quadro e, sem pretender de
forma nenhuma reproduzir as velhas construções nem se
confundir com elas, acentuasse menos ao vivo o contraste entre
passado e presente, procurando, apesar do tamanho, aparecer o
menos possível, não contar, melhor ainda, não dizer nada (assim
como certas pessoas grandes e gordas mas de cuja presença a
gente acaba esquecendo), para que Ouo Preto continue à
vontade, sozinho no seu canto, a reviver a própria história. L.
(Arquivo Central do IPHAN, s/d, grifos do autor)
Ergue-se então, ao lado do feiíssimo grupo escolar, imponente
edificação moderna, coroando a posteriori e com a interferência de seu
próprio autor, a teoria da continuidade e harmonia existente entre o entorno
colonial e a estética moderna presentes em diversos textos seus como se
disse acima. O hotel surge assim como uma espécie de salvação paisagística
para a poluída Rua das Flores.
É esta a forma de produção espacial que se quer cordial, é esta a
maneira de lidar com o espaço que a nova nação colocará aos seus
habitantes, isto é, um espaço que se molda em nome da continuidade, em
nome da autoridade e sem um encaminhamento de debate com a sociedade
que o habitará. Não se quer aqui defender de forma aguerrida que o trabalho
de projetar de um arquiteto deva ser totalmente deliberado por uma
coletividade, o que resultaria em uma ingenuidade e mesmo em um
voluntarismo que beira o populismo.
Porém, quando se trata de definições a respeito das decisões que
devem ser tomadas em nome da construção e manutenção da memória
nacional que se cria, o fato da ausência de um debate de maior abrangência
em nome de uma heterogeneidade, em nome de um conflito, representa
125
aspecto importante ao se pensar o que ocorre com a relação de um povo
com seu patrimônio histórico.
O caso do Grande Hotel é destacado por Cavalcanti (2006)
52
como
de grande importância para a consolidação do campo moderno na disputa
pela hegemonia estética e espacial nacional:
O episódio do Grande Hotel de Ouro Preto no qual o Sphan
rejeita a construção de um prédio neocolonial em favor de um
projeto moderno de Oscar Niemeyer, concedendo a este último um
status de obra de arte tão importante quanto o de outros prédios
tombados como monumentos nacionais marca o momento em
que os modernos conseguem impor os princípios internos de seu
universo simbólico, estabelecendo uma postura patrimonial
segundo a qual novas edificações em cidades históricas podem e
devem ser efetuadas em estilo moderno. (CAVALCANTI, 2006,
p.14-5, grifo do autor)
Concorda-se com este autor neste aspecto, mas destaca-se o
caráter de imposição que se estabelece a partir de então. Obviamente que
Cavalcanti se refere a uma imposição que se sobre outros campos que
disputavam junto ao governo Vargas esta hegemonia arquitetônica (os
“acadêmicos” e os neocoloniais), mas entende-se que tal imposição se deu,
por fim, em escala social de maior amplitude.
No entanto, esta hegemonia intelectual dos modernos não evitou
os pastiches como se pôde perceber em item anterior. Esta aparente
contradição se explica quando se toma por base esta relação de imposição
de uma forma de intervenção que se estrutura na suposta continuidade
técnica existente entre dois tipos diferentes de se produzir um espaço. Ora,
na medida em que o Estado se autorizado em implementar uma obra de
tal vulto e de tal impacto, vêem-se também os moradores. Porém, não é
assim que se constrói o espaço cordial, e aqueles a quem não se deu voz
quando da consolidação de um determinado estilo de construção e de uma
determinada memória social, quando resolvem construir seus espaços
52
Este livro de Cavalcanti constrói, dentre outras coisas, um argumento de que o Grande
Hotel é obra fundamental para o entendimento do desenvolvimento da arquitetura moderna
brasileira, colocando-o em de igualdade, por exemplo, com o episódio da construção do
Ministério da Educação no Rio de Janeiro, hipótese acatada também pelo presente autor.
Conferir também a obra de Cêça Guimaraens (2002), Paradoxos Entrelaçados, para um
entendimento da forma de atuação dos modernos para casos de convívio de edifícios
verticais novos com o centro tombado da cidade do Rio de Janeiro.
126
oriundos da modernização industrializadora se vêem obrigados a mimetizar o
antigo. E reside a contradição da argumentação moderna, pois se por um
lado a mimetização não era bem vinda como se percebe no caso da
construção do Grande Hotel, a teoria de continuidade cnica e artística entre
o colonial e o moderno serve como uma luva para, inclusive, justificar este
mesmo mimetismo que se a partir de novos modos de construção. O fato
de não se querer assumir uma ruptura no discurso do IPHAN permitiu que o
mesmo servisse, como contra-argumentação por parte dos moradores, de
justificativa para o que aconteceu em Ouro Preto.
O desejo de conciliação do espaço cordial gerou um local onde a
história o se apresenta como ruptura, mas como confusão, como ilusão,
como falseamento.
Fotografias 35 e 36 Frente e fundos de um bom exemplo de concreto a pique”, próximo à
Igreja Antônio Dias e ainda em construção (em 2008), revelando os limites do modo de
produção do espaço forjado pelos ideais iphanianos.
O autoritarismo do espaço cordial pode ser percebido também, no
caso do Grande Hotel, através do discurso recolhido por Cavalcanti de um
ex-funcionário do IPHAN, José de Souza Reis, que esteve presente no
debate:
[...]Estava à vista de uma maquete de gesso do projeto [para o
hotel] imaginado pelo Carlos Leão, não com base em seus
conhecimentos atualizados de arquitetura [moderna]
demonstrados em vários trabalhos [...] mas, sim em outra faceta
de sua personalidade que eu ainda desconhecia e que depois foi
se manifestando em outras oportunidades [...]: a do profissional a
serviço do cliente na forma que lhe parecia atender aos anseios e
preferências artísticas deste. E, no caso em apreço, o Carlos Leão
127
pensava estar indo ao encontro do que Rodrigo esperava para
Ouro Preto. (CAVALCANTI, 2006, p. 112-3)
53
Esta fala parece bastante reveladora sobre a forma como se deu a
construção do Instituto do Patrimônio. O arquiteto, supostamente, queria
agradar ao cliente que o era nem a Prefeitura de Ouro Preto, nem mesmo
a população ouro-pretana, ou o “povo brasileiro” mas sim o chefe do Instituto,
o “dr. Rodrigo”. Não se quer aqui colocar como novidade o fato de uns
poucos intelectuais terem trabalhado de forma independente em um
departamento institucional construído sob a égide do Estado Novo. Mas
que se encarar que este fato não contribui de forma significativa para a
implementação de uma democracia e para o aprofundamento da cidadania
no país. E, levando-se em consideração que o referido Instituto foi bastante
eficaz em imprimir sua construção de passado, não se pode fugir ao fato de
que a construção identitária contemporânea é fruto desta relação de poder
que se pauta claramente em aspectos cordiais, confirmado inclusive pelo
tratamento dado ainda hoje a Rodrigo Mello Franco de Andrade, “dr.
Rodrigo”, por vários envolvidos no campo da preservação patrimonial
brasileira (e, como a excessão que confirma a regra, surpreendentemente
ausente no depoimento supracitado).
Este traço de manutenção do sistema político e social brasileiro
não costuma possuir predominância em diversos debates arquitetônicos
sobre o IPHAN, que costumam manter certo distanciamento político em nome
de uma pureza estetizante da questão, como se fosse possível tal isolamento
num campo onde estética e política se vêem intimamente associados.
Entende-se que o fato de assumir este viés autoritário de construção
identiária não represente uma diminuição da obra dos modernistas no país,
mas sim uma adequada colocação desta num campo político e social, o que
possibilita clarear certas relações que se mantém ainda hoje e que, em nome
de um aprofundamento democrático, devem ser expostas e debatidas para
que se rompa de vez com este espaço cordial.
53
Esta faceta da personalidade de Carlos Leão a que se refere José Reis é vista por
Cavalcanti como uma negação de característica importante aos arquitetos modernos, isto é,
não ceder ao gosto do cliente no que toca ao projeto de arquitetura, que é considerado uma
obra de arte. Concorda-se com este argumento, mas considera-se que isto não é apenas
uma característica dos arquitetos modernos, mas do campo da arquitetura em geral. Sobre a
delimitação do campo da arquitetura a partir da teoria de Bourdieu, conferir o interessante
livro de Garry Stevens (2003): O círculo privilegiado.
128
O texto de Cavalcanti, revelando-se uma das excessões, coloca de
certa forma este debate e, mesmo não realizando a crítica na mesma direção
que o presente estudo, aponta um certo triunfo moderno que revela várias
facetas desta relação de poder que a arquitetura moderna exerce no espaço
e na sociedade brasileiros:
Os arquitetos modernos brasileiros conseguiram, dessa forma,
realizar o sonho de todo revolucionário: o controle dos los
erudito e popular, além de reconhecimento de sua sabedoria entre
o passado e o futuro. Brasília e Ouro Preto corporificam a
especificidade do modernismo brasileiro: Lúcio Costa e Oscar
Niemeyer projetaram a capital do futuro, ao mesmo tempo que
remodelaram a face da capital simbólica de nosso passado
colonial. (CAVALCANTI, 2006, p. 15)
Concorda-se com quase tudo da afirmação acima, salvo o que diz
respeito ao “sonho de todo revolucionário” que faz sentido quando se
considera, por exemplo, o Estado Novo como sendo fruto de revolução. E
assim, num rompimento abrupto, toma-se fôlego para terminar a subida da
rua das Flores e se chegar à Praça Tiradentes, onde este percurso pelos
espaços de representação da cidade terá fim.
6.1.4 A Praça Tiradentes
A Praça Tiradentes está sobre o
morro de Santa Quitéria, que
separa as duas freguesias de
Ouro Preto e Antônio Dias. É o
sítio mais imponente da cidade,
com dois palácios que se
defrontam: Museu da
Inconfidência, antigo Paço
Municipal, e a Escola de Minas,
antigo Palácio dos
Governadores. No centro a
Estátua de Tiradentes.
(BANDEIRA, 1967, p. 66)
que se acrescentar à caracterização de Manuel Bandeira outras duas
edificações que pesam sobre a paisagem da praça, a Casa da Baronesa, sede do
129
IPHAN na cidade e o antigo Hotel Pilão, hoje um centro cultural pertencente à
Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais, a FIEMG.
Fotografia 37 – Praça Tiradentes, com o seu homenageado sempre vigilante à antiga Casa de
Câmara e Cadeia, ou seria o contrário?
A praça Tiradentes, ao contrário do que possa imaginar um visitante
neófito não é o núcleo de formação da cidade. Ouro Preto foi se configurando em
variados arraiais que acompanhavam o leito do rio repleto do “falso fausto”
54
. Sua
fundação conecta e une, principalmente, três dos principais arraiais da região de Vila
Rica: Nossa Senhora do Pilar de Ouro Preto, Antônio Dias e Padre Faria,
consolidando um modelo centrípeto
55
de formação espacial desta cidade.
Sua conotação de espaço do poder é facilmente percebida ao se
percorrê-la. Está a antiga Casa de Câmara e Cadeia (hoje Museu da
Inconfidência), a Câmara dos vereadores permanece na praça, mas em outro
edifício, está também o Palácio dos Governadores (depois sede da Escola de
Minas
56
, hoje pertencente à UFOP), assim como se localiza a sede do IPHAN e,
mais recentemente, o referido braço simbólico da FIEMG. Curiosamente não fica
a sede da Prefeitura Municipal de Ouro Preto, confirmação urbana de uma relação
de poder que ainda está por ser explicitada neste estudo. Concluindo um texto sobre
54
Expressão emprestada da obra de Laura de Mello e Souza (2004): Desclassificados do Ouro. A
autora demonstra, dentre outras coisas, como a riqueza adquirida pela extração do metal precioso no
século XVIII era muito mais aparente que efetiva à grande maioria dos habitantes de Vila Rica e das
Minas Gerais como um todo.
55
Cf. Sylvio de Vasconcellos: Vila Rica...
56
A Escola de Minas tem papel importante não apenas na vida cotidiana da cidade através da
permanência de seus alunos como habitantes temporários da cidade, principalmente em seu centro
histórico, mas também na construção do caráter nacional de Ouro Preto, a partir de sua atuação
perante o campo da exploração do subsolo brasileiro. Cf. A Escola de Minas de Ouro Preto José
Murilo de Carvalho (2002).
130
as diversas configurações desta praça, de onde se retirou algumas das informações
sobre o logradouro, Ivo Porto de Menezes (2002) oferece uma descrição quase
poética da sua centralidade para a cidade, completanto o rosário de instituições que
lá estiveram ou ainda estão:
Vale a pena, sem dúvida, estar a meditar sobre o evoluir de uma cidade,
aqui enfocado, é verdade, apenas em uma de suas faces, aquela talvez
mais importante por se constituir, a partir de certa época, no coração
mesmo da vila, centro das decisões, sejam do Governador, seja dos
Senhores Membros do Senado da Câmara, dos Juízes Ordinários ou de
Fora, seja, posteriormente, dos Membros da Assembléia Provincial, dos
Senhores Senadores Estaduais ou da Câmara dos Deputados, também
dos Juízes de Direito [lá se localizava também o Fórum], centro da cura
das doenças de seus habitantes [refere-se à antiga Santa Casa], centro de
concentrações de conjurados como os de 1720, preconizado como centro
do movimento que se planejava em 1789, centro de toda a vida da vila, por
muitos e atuais anos. (MENEZES, 2002, p.79)
No entanto, é importante que se foque no que hoje se encontra, para
que se entenda de maneira definitiva a forma pela qual se produz o espaço cordial
percebida a partir de sua vivência (seguindo a tríade lefebvriana do concebido, do
vivido e do percebido). Antes, porém, vale apresentar um trecho dos
Desclassificados de Laura de Mello e Souza que ilustra a importância dos edifícios
governamentais como símbolos de um poder que ainda ressoa:
A presença dos presos na mesma casa em que os camaristas exerciam
suas funções tece repercussões sobre os povos: “...as cadeias
públicas...tornaram-se os maiores edifícios entre o casario, estampando
suas janelas gradeadas sobre a praça principal. E como funcionem nestes
mesmos edifícios os governos das comarcas e câmaras, o povinho não
tarda em confundir os atos do governo com tudo o que seja coerção e
violência.” (MELLO E SOUZA, 2004, p.169)
131
Fotografias 38 e 39 Na primeira foto vê-se o atual prédio da UFOP, antiga Escola de Minas e
anterior Palácio dos Governadores. Abaixo encontram-se, respectivamente, o Centro Cultural da
FIEMG em primeiro plano, seguido da atual Câmara dos Vereadores de Ouro Preto e da Casa da
Baronesa, sede do IPHAN.
A praça, apesar de manter este caráter simbólico do poder, sofreu
inúmeras transformações ao longo de sua existência: possuiu um pelourinho que
depois fora substituído por uma coluna em homenagem aos inconfidentes que
posteriormente foi trocado pelo imponente monumento que hoje se encontra;
possuiu chafariz em frente ao Palácio dos Governadores, assim como uma Capela
demolida por ocasião da melhoria do caminho que leva a Mariana (conhecido como
o caminho “das lages”); da mesma maneira já possuiu árvores e jardins que hoje não
deixaram nenhuma marca como pode se perceber pela Fotografia de número 40
tirada a partir da escadaria do Museu de Inconfidência
57
.
57
Cf. MENEZES (2002)
132
Fotografia 40 Panorama da atual aparência da Praça (ou estacionamento) Tiradentes. Sua
paisagem já fora bem menos árida ao longo de suas inúmeras transformações.
No entanto, independentemente de suas mudanças espaciais, sua
permanência simbólica como centro de poder permanece desde sua fundação, e
esta condição a torna elemento privilegiado de entendimento de como se dá a
produção do espaço cordial. Não se vai aqui deter nos diversos edifícios construídos
ao longo do tempo que reforçam seu caráter de local de comando, mas um dentre
eles oferece a oportunidade de se compreender a atualização da produção espacial
ouro-pretana por evidenciar os limites de atuação do IPHAN e, principalmente, a
força da técnica que move esta atuação; técnica que, consolidada em diversos
outros espaços, como se demonstrou nas análises anteriores, ganha ares
contemporâneos a partir da forma como se deu a construção do novo edifício que
abriga hoje o Centro Cultural da FIEMG.
133
Fotografias 41 e 42 – O novo edifício que abriga o Centro Cultural da FIEMG.
Este edifício representa a atualização da cordialidade, sua mantunenção
contemporânea. Ele reforça a condição de permanência inerente ao espaço,
permanência que, como se observa, auxilia na manutenção de outras formas de
relação social além da produção do espaço material. Se por um lado as próprias
políticas culturais do IPHAN sofreram diversas alterações e rompimentos rumo a
uma ampliação conceitual do que vem a ser patrimônio, o mesmo o se reflete em
sua relação original com o espaço. A dificuldade de se alterarem as construções se
reflete na impossibilidade de se alterar o modo de pensá-las, de concebê-las. É
nesta relação que se percebe de forma mais clara como a manutenção do espaço
produzido, vivido, interage de forma dialética com a do concebido e do percebido. A
inércia material atinge também a social, reforçando-a. A dificuldade de mudanças é
materializada na permanância dos objetos, como se pode constatar na forma como
134
se deu a não alteração de um espaço possível de renovação imagética no coração
da cidade de Ouro Preto.
Às vésperas da comemoração da Semana Santa, festa religiosa muito
tradicional em Ouro Preto, do ano de 2003, um casarão, conhecido como Hotel
Pilão, incendiou-se em plena Praça Tiradentes. Não foi a primeira vez que isso
acontecia na cidade. Na mesma praça houve o incêndio do antigo fórum em 1949
e, mais recentemente, na cidade vizinha, Mariana, ocorreu na década de 90 outra
destruição pelas chamas da Igreja do Carmo, que se encontrava em fase final de
seu restauro.
O autor desta tese estava em reunião na capital do estado no dia do
incêndio, chegando à noite na cidade de Ouro Preto, a tempo de ver ainda as
últimas chamas consumirem o que restava do edifício e presenciar o medo da
comunidade ouro-pretana de que o fogo se alastrasse pelo resto do quarteirão, o
que possivelmente ocasionaria a destruição de boa parte do bairro de Antônio Dias,
incluindo a sede da Câmara e o próprio IPHAN com seus respectivos arquivos
históricos, além de, é claro, inúmeras moradias que, felizmente, foram
poupadas
58
.Assim relata a repercussão do incêndio o chefe do escritório técnico do
IPHAN local, Benedito Tadeu de Oliveira:
Houve uma grande sensibilização da população, das autoridades e dos
políticos. No dia seguinte ao incêndio, o Governador do Estado de Minas
Gerais, Aécio Neves, visitou a cidade, prometendo reconstruir o antigo
hotel e melhorar as instalações, modernizando os equipamentos do Corpo
de Bombeiros local. Foram instalados dois inquéritos policiais, um pela
Polícia Federal e outro pela Polícia Civil. Estes foram reunidos na Polícia
Federal e, a pedido do Ministério blico Federal, arquivados na Justiça
Federal por falta de provas referentes à causa e autoria do incêndio.
(OLIVEIRA, 2006, p.17)
58
Houve um problema com o fornecimento de água dos hidrantes de Ouro Preto que impossibilitou
que seu precário corpo de bombeiros interferisse de imediato no incêndio. Para dar fim ao problema,
foi preciso aguardar a chegada de auxílio das vizinhas Itabirito e Mariana, de empresas de mineração
e, principalmente, do Corpo de Bombeiros de Belo Horizonte, localizado a 100 km do local do
incêndio. Esta demora, além de resultar na destruição quase total do casarão, ameaçou todo o
entorno do prédio atingido. Algumas poucas residências e lojas vizinhas foram consumidas também
pelas chamas.
135
Fotografia 43 – Ruínas do Hotel Pilão ainda exalando fumaça uma semana após o incêndio
59
.
Não interessa aqui o resultado das investigações ou causas da
destruição; tais esclarecimentos, por si só, seriam motivos para um estudo à parte,
mas sim a resposta dada ao ocorrido. O edifício era utilizado, em sua parte superior,
como hotel e em seu térreo havia diversos comércios que iam de lojas voltadas para
venda de pedras preciosas para turistas a eletrodomésticos para os ouro-pretanos.
Segundo Grammont
60
:
também indícios de que, em 1868, no local das três casas, existiam
apenas duas e, em 1894, uma única residência. Assim, o Hotel Pilão pode
ser uma edificação do século XVIII, reestruturada no século XIX. Essa
constatação é confirmada pela estrutura da construção remanescente do
incêndio: colunas de tijolos e vigas de ferro ao invés das de madeira
utilizadas nas antigas construções. As escavações recentes revelaram
também estruturas de fundações em alvenaria de pedra dos séculos XVIII
e XIX. (GRAMMONT, 2006, p. 145)
Além das perdas materiais de seus usuários, ficou a perda simbólica de
um pedaço da praça: “ ‘A subida da rua Direita, era um vazio total.’ (D. Flor, 67 anos,
59
Aliás, observando-se a foto aérea utilizada neste trabalho, retirada do site GoogleMaps, percebe-se
ser ainda da época anterior ao restauro, de modo que, no universo digital, ainda se percebe a ruína, o
que problematiza uma outra questão, referente ao “tempo real” atribuído às informações da “rede”.
60
Anna Maria de Grammont realizou sua dissertação de mestrado, que foi posteriormente publicada
em forma de livro, tendo como objeto de estudo o incêndio do hotel e suas repercussões junto à
comunidade ouro-pretana: Hotel Pilão um incêndio no coração de Ouro Preto. Sua obra vale não
apenas como referência sobre o ocorrido, mas também para ilustrar diversas visões a respeito do
patrimônio dos moradores da cidade, em perspectiva diferente da adotada aqui, em parte por ser a
autora moradora da cidade, em parte por representar o pensamento da elite da mesma. De qualquer
forma, recomenda-se sua leitura para se entender o universo ouro-pretano que gira ao redor do “mito”
do patrimônio histórico. Algumas referências de texto atribuídas a Benedito Oliveira são extraídas do
prefácio que o mesmo fez para este livro, outras são retiradas de sua entrevista realizada para esta
pesquisa Anexo D. Optei por separar seus escritos do livro de Anna como se fossem texto à parte
para facilitar para o leitor a origem das falas referentes ao caso do Hotel Pilão.
136
ouropretana (sic), moradora do Centro, professora estadual aposentada, grau
completo). (GRAMMONT, 2006, p.160-1)”. Esta fala extraída do livro de Grammont
reflete a sensação de ausência, ou de estranheza, vivida, inclusive pelo autor deste
trabalho, ao percorrer a cidade nos meses que se seguiram à destruição. Este não
possui registros do vazio da subida, mas as fotografias abaixo demonstram, por
oposição, a forte presença do imóvel como ponto de fuga da subida da rua Direita:
O incêndio, se por um lado provocou uma sensação de perda, por outro
trouxe uma oportunidade de debate sobre a produção do espaço de um núcleo
urbano tombado. Que fazer? o seria este um momento privilegiado de debate a
respeito das mudanças espaciais na cidade? Não seria a hora de se criar um debate
público, facilitado pela comoção do ocorrido em plena praça, a respeito das
conduções simbólicas daquela paisagem urbana? Como não há espaço para o
debate em meio à cordialidade nada disso ocorreu. A resposta veio três anos
depois, com a construção de um novo edifício que traz em sua manutenção formal
uma novidade na produção do espaço. A reconstrução do hotel se fará a partir das
mesmas premissas do cenário urbano, mas desta vez não se dará pelas mãos do
Estado.
se viu que o espaço cordial consegue aliar, a partir da técnica,
diferentes concepções construtivas em nome de um discurso de manutenção e
continuidade, se viu também que o mesmo espaço, devido às suas regras
autoritárias, gera um falseamento histórico a partir da apropiração de seu ideário, e
agora surge, a partir de uma possibilidade técnica, o coroamento deste espaço. A
reconstrução de um edifício por parte de um órgão privado que se apropria
simbolicamente da estética criada pelo Estado.
137
Fotografias 44 a 46 – O Hotel Pilão como referência da subida da Rua Direita.
138
A construção do Grande Hotel acima analisada representou a concretude
de um discurso oficial que diluía as contradições sociais a partir de uma continuidade
estética e espacial. As alterações realizadas no largo do Cine Vila Rica reforçaram a
presença do Estado na adequação social de uma paisagem ao seu discurso. As
ampliações das casas segundo o método do “concreto-a-pique”, o assim chamado
estilo patrimônio, representa a submissão e a resistência da comunidade às rígidas e
até pouco tempo atrás, obscuras regras de preservação da paisagem. São referidas
como um inesperado e indesejado falseamento oriundo de um improvével
crescimento “desenvolvimentista” da cidade. Agora surge um objeto único, uma
intervenção não Estatal que utiliza da força econômica para aprovar um projeto de
falseamento histórico que, por sua vez, coaduna com a idéia de manutenção de um
cenário social e espacial. Mais uma vez não houve debate, mais uma vez não houve
ruptura. O enfraquecimento do Estado se faz presente nesta nova configuração de
um espaço que se altera para não mudar.
Havia diversas formas de se tratar este caso, segundo os debates sobre
restauro que se ampliaram bastante ao longo do século XX. Não é natural a opção
pela reconstrução, ela possui significado e aqui se afirma, como se poderá constatar,
que é a opção pela harmonia, pela manutenção social tão cara à cordialidade que
ditou a forma de condução da obra concluída três anos após o incêndio. Em
entrevista realizada para este estudo, o chefe do escritório técnico do IPHAN de
Ouro Preto expõe da seguinte maneira as opções existentes em casos como este:
Numa situação desse tipo - eu tenho uma reflexão pequena - mas eu estou
sempre atento a este tema desde a época que estudei na Itália. Este é um
tema que causa muita polêmica. Numa situação deste tipo você tem mais
ou menos três, segundo Bruno Zevi, opções. Aqui a gente teve quatro: a
primeira seria deixar o lote vazio, até houve uma proposta da Associação
Comercial de deixar o lote vazio com as ruínas, encaminhada inclusive
para o Ministro da Cultura. A segunda seria fazer uma coisa moderna
contrastante, não precisaria nem ser contrastante, uma intervenção
moderna no sentido de contemporânea; a terceira, fazer uma reconstrução
e a quarta uma construção que reinterprete todo o seu entorno. (Cf. Anexo
D)
A quarta opção, que foi adotada, foi justificada, também por ele, da
seguinte maneira, na mesma entrevista:
139
Bom, deixar o vazio foi descartado porque não daria para ficar com esta
lacuna que seria uma agressividade devido ao incidente do incêndio, seria
difícil de se sustentar uma proposta assim. Colocar um edifício moderno,
muito contemporâneo, também poderia causar essa estranheza, seria
como no caso de ter uma falha em um dente e se colocar um dente de
ouro: por exemplo, uma edificação de vidro e com teto jardim seria uma
loucura; teríamos que “fechar a Casa da Baronesa” e irmos embora daqui.
Até hoje o pessoal ainda não engoliu o Grande Hotel do Oscar Niemeyer,
imagina se faz um negócio assim. O correto seria fazer uma intervenção
que mostrasse que é de hoje, mas que conseguisse re-equilibrar essa
harmonia da praça. (Cf. Anexo D)
Concorda-se que uma intervenção mais crítica e enriquecedora daquele
espaço, independentemente de ser “correta” ou não, deveria se pautar nesta relação
entre obra contemporânea que se mostrasse como tal e que conseguisse se
relacionar com seu entorno, mesmo que em desarmonia. Não foi o que ocorreu. Mas
o que chama atenção nesta fala é o fato de um representante do mesmo órgão que,
anos antes, tinha a força de intervir na cidade através da construção do Grende
Hotel em nome de um discurso desenvolvimentista, hoje não possuir a mesma
legitimidade. Isso pode soar como um avanço em relação ao olhar da instituição
sobre a realidade e as vontades de seus habitantes. Afinal, como aquela obra ainda
não foi “engolida”, seria interessante que se respeitasse a vontade local de não se
realizar uma interferência de tal monta mais uma vez.
No entanto, não se crê neste direcionamento. Primeiramente porque,
como se verá no próximo capítulo, as relações entre o IPHAN e a comunidade não
se pautam pelo diálogo por diversos motivos
61
. Segundo por não ter havido consulta
a respeito do assunto antes de se aprovar a intervenção em questão. Além do mais,
como se se debateu, que se destacar que o “gosto” pela manutenção
paisagística foi socialmente construído pela atuação do próprio IPHAN que, quando
realizou a construção do Grande Hotel não o encarava como ruptura.
O que parece ter ocorrido é, de um lado, o enfraquecimento de um
discurso nacional que justificasse a intervenção de algo novo, ainda que travestido
de harmonia. Por outro lado, consequentemente, perdeu força também o IPHAN,
que se viu submetido à vontade dos industriários mineiros, que ao adotarem a obra
61
Dentre eles o sucateamento da estrutura do IPHAN que não possui material humano condizente
com suas tarefas, isso será discutido posteriormente, mas é necessário se esclarecer que, se não há
da parte do IPHAN uma declarada vontade de abertura participativa, também não se deve imaginar
seu oposto como uma verdade, isto é, uma declarada vontade de controle absoluto. As construções
sociais são mais complexas que a simples dualidade e as razões do poder que o IPHAN exerce são
mais complexas que um simples autoritarismo.
140
como sua tarefa, apresentaram projeto próprio sem consulta prévia ao
enfraquecido Instituto, que teve que se desdobrar para garantir a execução segundo
certas normas suas (Conferir “Entrevista de Benedito Tadeu de Oliveira” – Anexo D).
No prefácio ao livro de Anna de Grammont, o mesmo técnico elabora, de
forma mais sistemática, a opção feita pela reconstrução. Reproduz-se aqui esta
justificativa por revelar de forma mais clara seus traços de cordialidade:
A opção pela reconstrução, que em princípio não é recomendada pela
teoria moderna da restauração, levou em conta os seguintes fatores:
[1]complexidade de uma intervenção em um espaço urbano
fortemente caracterizado pela harmonia de seu conjunto
arquitetônico;
[2]caracterização da intervenção como reintegração de uma grande
lacuna urbana da Praça Tiradentes, causada pela destruição do
antigo Hotel Pilão;
[3]dificuldades para se organizar um concurso público para a
escolha de técnicos com sólidas formões teórica e prática no
assunto para a elaboração de um projeto de intervenção em uma
propriedade privada;
[4]sentimento de que a grande maioria da população de Ouro Preto
aprovaria uma reconstrução no local. (OLIVEIRA, 2006, p.18)
Estes quatro itens são de importância crucial para o entendimento da
produção contemporânea do espaço em Ouro Preto. A primeira justificativa
demonstra aquilo que já se disse, isto é, por um lado a atual fraqueza institucional do
IPHAN que não o autoriza a elaborar, ou exigir, uma intervenção complexa, que se
entende aqui como algo que dialogue de forma nova com a harmonia construída
pelo discurso pretérito do próprio órgão. O segundo item serve como identificação do
incêndio a outras destruições similares onde a reconstrução foi feita. Se antes o
mesmo IPHAN se pautava numa abordagem estética apoiada em uma relação
original com o passado, agora o mesmo órgão se agarra a exemplos exteriores para
justificar sua atuação, no melhor estilo cordial de não poder conviver consigo
mesmo.
O terceiro item reforça esta inversão de forças, quando o Mercado não
necessita mais do aval do Estado para se impor, posto que, conforme relatado na
entrevista, a FIEMG impôs seu arquiteto e sua força política para construir seu
projeto: “Quem comprou o imóvel foi a FIEMG, que chegou aqui com um arquiteto
contratado, despreparado para este tipo de intervenção, até possuía muita
141
experiência técnica, mas não para enfrentar este tema. E chegou também aqui com
o projeto em estágio bem avançado.” (Anexo D).
Por fim, o quarto item é o mais revelador. Ao enunciar este “sentimento”
sobre a reação da população ouro-pretana, demonstra-se que, independentemente
da orientação dada à construção do novo edifício, não houve uma consulta ou um
debate em relação ao tema, e esta é a principal característica da produção do
espaço cordial, seu autoritarismo revestido de compreensão, de convivência. Não se
quer aqui desautorizar a percepção do técnico do IPHAN que, por seu envolvimento
cotidiano possui legitimidade em afirmar o que, ou como a população percebe e
recebe as possíveis alterações em seu espaço. No entanto, o que se deve destacar
é que este “gosto” pela permanência foi construído ao longo tempo pelo próprio
órgão que agora utiliza deste argumento para justificar a aprovação de um projeto
“harmônico”:
Bom, não poderia ser muito diferente porque qualquer coisa muito diferente
disso ia causar uma reação popular. que entra a questão da afetividade
que eu cito exemplo do campanário de Veneza e da praça do Mercado de
Varsóvia e uma intervenção maior ainda que eu conheci antes da queda do
muro de Berlim. Assisti a um filme sobre o tema no sindicato dos arquitetos
da Rússia...Leningrado foi praticamente toda reconstruída e eu vi uma
cerimônia filmada no dia em que eles conseguem restaurar uma escultura
de um jardim, não do Palácio do Inverno, mas do Palácio de Verão, toda
em ouro, baseada numa fotografia...então na hora em que essa escultura
sai pela cidade a população toda sai correndo atrás, você imagina o que é
isso?! Então a reconstrução nesse caso tornou-se legítima, como em
certos casos, danos de guerra, grandes acidentes...ou que envolve honra
nacional. E isso aqui não é muito diferente considerando que se fizesse
uma pesquisa, como a Anna [de Grammont], inclusive, fez. E todo mundo
fala que seria correr contra a corrente fazer uma intervenção muito
diferente. Poderia, eu acho, existiria a possibilidade de ser feito uma
intervenção de reinterpretação, mas teria que ser muito sutil.(Anexo D)
Fotografias 47 e 48 À esquerda vê-se o gradil na fachada lateral. À direita um detalhe do mesmo,
demonstrando o discreto diálogo entre o novo e o antigo realizado na reconstrução do hotel.
142
O discurso utilizado pela instituição e confirmado pela obra citada na
entrevista é o da afetividade. Seria a afetividade a condutora da memória que
justificaria a manutenção da paisagem urbana da cidade em nome da preservação
do patrimônio histórico. Está fechado o ciclo do espaço cordial.
Esta suposta afetividade, também construída socialmente, como se viu,
ao servir de justificativa para a manutenção estética de uma paisagem urbana,
transforma a história em memória, em recordação. Retira a postura crítica que o
movimento do pensar histórico introduz no homem moderno em nome de uma
relação pautada no coração, na recordação, na cordialidade. Segundo Afonso
Carlos Marques dos Santos (2007):
Em 1981, o historiador José Honório Rodrigues chamava a atenção para o
uso abusivo, entre nós, “da palavra ‘memória’, sobretudo quando aplicada
à defesa do patrimônio histórico”, afirmando que, “esse uso da palavra
desprestigia e menospreza a cultura histórica” (Rodrigues, 1981, p.41).
Defendia, então, José Honório, que “obras de arte e outros monumentos do
patrimônio nacional são históricos, e não servem apenas como
lembranças (ibid.). No seu entender, residiria o sentido formal da
palavra memória, vinculado à recordação. [...] Para José Honório, portanto,
não se deveria confundir memória com a história, uma vez que esta, ao
contrário da outra, é uma “disciplina de análise e de crítica”. (SANTOS,
2007, p.89)
Este trecho coloca um debate fundamental à produção do espaço cordial.
A crítica histórica está ausente deste espaço. O patrimônio histórico deveria ser
qualificado como memorialista. Não se quer afirmar que deveria o patrimônio ser
histórico, impessoalmente crítico, para ser legítimo. Porém, não se pode ao mesmo
tempo enunciá-lo como tal e praticá-lo de modo diferente. A recordação afetiva é
construída no espaço cordial como se fosse história. A pessoalidade, a lhaneza está
aí presente de forma considerável, construindo uma relação de manutenção de
certas lembranças em nome de uma história oficial, que acaba por criar a noção do
“gosto” pela manutenção do espaço, que reflete-se no gosto pela manutenção
social.
O uso desta recordação como apropriação de capital simbólico por parte
da FIEMG fica explicitado ao se obervar o discurso construído por esta instituição
em suas publicações voltadas para a divulgação de seu novo espaço. Nas palavras
do presidente da Federação:
143
O ganho para os industriais de Minas é muito grande, daí o entusiasmo
enorme dos empresários para com esse projeto [do Centro Cultutral].
Todos estão cientes de que o desenvolvimento do turismo no estado
impulsiona a indústria mineira de um modo geral, estimulando o
crescimento econômico e a melhoria das condições sociais do estado.
(FIEMG, 2005, p.2)
Este argumento é respaldado pelo governador do Estado de Minas
Gerais:
Ao reabrir as portas do antigo Hotel Pilão, parte importante do conjunto
arquitetônico de Ouro Preto e agora transformado em Centro Cultural e
Turístico, os dirigentes do Sistema FIEMG demonstram, mais uma vez, o
alto senso de responsabilidade e cidadania que move os empresários
mineiros. (FIEMG, 2006, p.2)
Sentimento também relatado pelo servente de pedreiro que trabalhou na
obra:
Uma simples conversa com o servente de pedreiro Wesley Júnio Mendes
Malaquias funciona como exemplo, na prática, do que a autora Anna Maria
de Grammont descreve em seu livro[...]. Fica claro o tipo de relação com o
patrimônio que ajuda a reforçar os laços das pessoas com a necessidade
de preservar o passado. [...]
Depois da recuperação do telhado, surgiu a possibilidade de continuar
trabalhando na reconstrução. Fui contratado, com carteira [...]. Fiquei
muito satisfeito”, afirma o servente de pedreiro. [...] De um lado, o fato de
estar trabalhando “com carteira”. De outro, a possibilidade de participar de
uma obra importante para sua cidade. [...] “Conseguir o emprego foi bom,
ainda mais trabalhando numa obra que protege a cidade”, afirma Wesley.
(FIEMG, 2006, p. 5)
O Estado, o Capital e o Trabalho unidos cordialmente para trazer boas
recordações ao cenário da cidade. Esta é a nova faceta da produção do espaço
simbólico que se apresenta aqui de modo exemplar.
O uso atual da casa reflete de vários modos esta apropriação da memória
para uso de legitimação do capital. Em entrevista à diretora do Centro Cultural,
Bernadete Cunha
62
, compreendeu-se melhor a maneira como as relações de
vivência deste espaço se dão.
O Centro Cultural recebeu, em seu primeiro ano de funcionamento,
aproximadamente 100.000 visitantes, o que confirma seu sucesso enquanto
62
Esta foi a única entrevista da qual não há um registro gravado, posto que não fui autorizado a fazê-
lo. No entanto, que se destacar a presteza e cordialidade com que fui recebido e atendido pela
diretora e funcionários da casa.
144
empreendimento voltado para o turismo de massa assim como a lacuna existente na
cidade de um espaço semelhante, atestando o acerto da estratégia de seu órgão
mantenedor em construir ali um de seus braços simbólicos voltados para a cultura
de massa
63
.
A casa, como se refere sua diretora ao centro cultural, é pensada para
“servir a cidade”, posto que a FIEMG atendeu a um “pedido dos mineiros”. Sua
tarefa principal, além de trazer diversas exposições de artistas nacionais e
internacionais, além de artistas locais, é distribuir informação a respeito da estrutura
turística de Ouro Preto e seus arredores, afirmando-se como o principal, senão
único, ponto de apoio ao turista que chega na cidade, possuindo todos os
funcionários, que são necessariamente ouro-pretanos, formação bilíngue.
Hoje a diretora celebra aquilo que pode ser considerado um grande
avanço de apropriação simbólica por parte da FIEMG, que é o fato de o casarão
ser conhecido, entre os ouro-pretanos, como centro cultural FIEMG e não mais como
hotel Pilão.
Seu discurso revela, além de um raio-X de seu funcionamento, dois
aspectos que evidenciam tanto a forma de funcionamento deste mecanismo de
apropriação simbólica como uma de suas consequências inevitáveis, advindas de
ser um espaço privado.
O primeiro aspecto reside no fato, repetido insistentemente durante a
conversa, de que todo o projeto do Centro é custeado pela FIEMG sem auxílio
algum do Estado, ou seja, não está inserido em nenhuma lei de incentivo, ou
renúncia, fiscal. Este argumento oculta a apropriação simbólica. Não se pode afirmar
que não apoio do Estado num empreendimento de tal monta, posto que uma
afirmação deste tipo leva em conta apenas uma forma de uso do capital, o
financeiro, deixando de lado o ganho simbólico que obteve aquela instituição ao se
apropriar de forma bem sucedida de todo um discurso simbólico construído ao longo
de setenta anos de atuação do órgão federal de criação e manutenção da identidade
nacional. Revela-se uma tentativa de descolamento do Estado, construindo um
discurso de autonomia do mercado que se pauta na simplificação das trocas de
mercadoria contemporâneas. se disse, ao se analisar o caso do Grande Hotel,
que o discurso do IPHAN conseguiu construir uma relação de equivalência entre o
63
A FIEMG mantém outros três Centros Culturais no estado em: Mariana, Uberaba e Belo Horizonte.
145
contemporâneo e o tradicional a partir de seu viés cnico construtivo e estético.
Essa igualdade qualitativa de diferentes feições construtivas é utilizada aqui de
forma direta a partir da troca de mercadoria simbólica entre a legitimidade do Estado
e da Indústria que investe em construir uma nova cara na exploração de outros
meios de acumulação como o turismo de massa.
O segundo aspecto está diretamente relacionado ao espaço criado pelo
projeto arquitetônico levado a cabo pela instituição. Se por um lado houve o cuidado
de se manter a mais-valia simbólica do aspecto exterior do edifício, repetindo a
tradicional e histórica valorização fachadista de Ouro Preto conforme se viu acima,
por outro, houve uma remodelagem de seu interior, trazendo à obra traços de
“modernidade”
64
.
Esta remodelagem, além da imagem de novidade, alterou a dinâmica do
espaço da praça, criando uma continuidade desta reafirmada pela sequência
permanente de portas abertas enquanto a casa estiver em funcionamento (ela
fecha em poucos feriados, como Natal). Assim, criou-se uma ligação nova entre a
praça e sua rua adjacente, configurando o centro cultural um ponto de passagem e
de descanso tanto para os visitantes quanto para os ouro-pretanos, sendo muito
requisitado também o uso de seus banheiros. Este relato de sua diretora revela uma
inesperada ruptura do espaço utilizado pelo habitante da cidade que demonstra ser
possível alterações positivamente recebidas no espaço, contrariando o senso
comum em relação à opinião geral dos moradores sobre a relutância em novas
espacialidades. Isto demonstra a necessidade de se debater com a população
diversas formas de apropriação e transformações espaciais que rompam, tanto em
quem produz, quanto em quem absorve, o discurso voltado para a questão das
fachadas como única possibilidade de leitura do espaço. Abre possibilidade de se
pensar, inclusive, alterações nas próprias fachadas que possibilitem novos usos e
apropriações da paisagem urbana deste local.
64
As fotos que se seguem foram tiradas com a devida autorização da diretora da casa para fins
estritamente acadêmicos, posto que não é permitido, por motivos de proteção da propriedade
intelectual do projeto arquitetônico, tirar fotos de seu interior.
146
Fotografias 49 e 50 – Interior do Centro Cultural da FIEMG, com suas “portas sempre abertas”.
147
Fotografias 51 e 52 Interior do Centro Cultural da FIEMG, mostrando sua cara “moderna” e sua
conectividade entre os diferentes espaços.
148
Há, no entanto, um fato a se destacar sobre esta relação de conformação
de passagem entre o edifício novo, privado, e a praça, pública. O que se percebe é
que, se por um lado isto demonstra uma abertura da casa pela instituição, por outro
também uma apropriação da praça pela instituição, que ganha com isso um novo
espaço de influência. Não se deve apenas dar crédito ao discurso proferido pela
diretora da casa em relação a esta abertura. Ao entrevistar as técnicas do IPHAN
para fins desta tese, ouviu-se uma história que serve de finalização da
caracterização do espaço cordial pelo seu viés vivido. Uma das técnicas, ao conduzir
alunos de um curso de formação local, a FAOP (Fundação de Arte de Ouro Preto)
em um passeio no centro os levou para conhecer o Centro Cultural da FIEMG. Qual
não foi a supresa da entrevistada ao ver que um dos alunos, “nativo”
65
, não
conseguiu entrar no centro. Sua dificuldade o residia em nenhuma barreira física,
o mesmo era totalmente capacitado fisicamente e as portas do centro cultural
estavam lá, abertas como sempre. O aluno ficou travado, hesitando, simbolicamente
impedido de adentrar naquele local que não lhe pertencia. O aluno somente
conseguiu vencer a barreira da opressão simbólica quando conduzido pela
professora, praticamente pedindo licença para entrar naquele espaço, segundo
relatou uma das cnicas. Este aluno não faz parte da família cuja recordação está
tão bem representada pela memória cordial ouro-pretana.
A partir de agora entra-se no terceiro nível de apropriação da cidade, o
universo do percebido, onde se vai compreender as vozes e o espaço produzido
pelas práticas sociais determinantes nas relações inerentes ao campo do patrimônio
histórico, referenciadas aqui pelas entrevistas feitas com os cnicos do IPHAN e
com os moradores da cidade.
65
Gíria local que diferencia os alunos da universidade vindos de fora da cidade daqueles lá nascidos,
os nativos.
149
7 A PERCEPÇÃO DO ESPAÇO OURO-PRETANO
Este capítulo fecha a tripla relação lefebvriana da produção social do
espaço a partir da análise das práticas sociais percebidas por seus sujeitos. Esta
produção e reprodução é verificada aqui no campo das relações criadas em torno da
preservação do patrimônio histórico, ou memorial, da cidade de Ouro Preto.
A concepção deste espaço, analisada no capítulo 5, tornou a cidade um
local onde os conflitos sociais e espaciais se diluem em torno de um debate estético
e cnico, encobertando outras relações cotidianas e criando uma espécie de bruma
que faz de Ouro Preto um tipo de cidade que vive a passagem dos tempos e suas
consequentes transformações de maneira particular.
Suas práticas sociais o ditadas por um congelamento temporal que
acompanha os discursos oficiais que as cercam ao recortar e negar parte do que se
passava no cotidiano colonial que se formou em meio a estritas e repressivas regras
de convivência com consequentes e permanentes respostas revoltosas. A descrição
encontrada na inscrição da cidade no Livro do Tombo do IPHAN ilustra este discurso
oficial de maneira direta:
A fase áurea da produção se estendeu de 1725 até mais ou menos 1750,
quando começam a ser notados os primeiros sintomas da decadência das
minas. O grande êxito da atividade nesse período se reflete nas moradias,
que ganham novos acréscimos, suas varandas de trás se ampliam, surgem
os forros de madeira, as portas e janelas ganham almofadas. (Cf. Anexo 1)
Esta descrição sucinta da exploração aurífera nas Minas Gerais
demonstra a memória escolhida a perdurar que seria sua fase áurea e os
melhoramentos que a mesma trouxe para Vila Rica desconsiderando a opacidade
dos seus espaços presentes na época colonial que se forjou em meio a extrema
desigualdade social e pobreza. Tal discurso se arraigou no senso comum e no
imaginário que envolve Ouro Preto e domina a condução de visitas turísticas,
culturais e educacionais que se pautam como sendo portadoras de um caráter
histórico.
No entanto, a historiografia contemporânea vem, a duras penas,
desmanchando esta imagem simplificada e barrocamente ilusória da vida colonial,
demonstrando como o autoritarismo impedia até mesmo o enriquecimento de
“brancos” que exploravam o metal desejado em nome da manutenção de uma
150
desigualdade das relações metrópole-colônia e, em âmbito mais particular, daqueles
que pertenciam ou não à Família Estado. Em Desclassificados do ouro, Laura de
Mello e Souza faz uma releitura da vida das Minas Gerais setecentistas,
demonstrando como a opressão imperava fosse sobre os escravos, fosse sobre os
mestiços mais pobres, sobrando apenas alguns poucos casos de um enriquecimento
esplendoroso, muito bem retratado por obras que hoje são tidas como das mais
importantes de Ouro Preto, como a imponente e bela Casa dos Contos. Sem falar
nas Igrejas e em um dos exemplos mais marcantes, o Palácio dos Governadores,
concebido como um edifício militar, um forte em plena praça.
Fotografia 53 Detalhe do Palácio dos Governadores (hoje pertencente à UFOP, e antiga Escola de
Minas), um forte em plena praça.
Esta história continua ausente das representações ouro-pretanas,
confirmando o fato do distanciamento necessário do confliito como fator de
manutenção do espaço da memória cordial. Compreende-se que, da mesma
maneira, que se demonstrar como as autoridades de hoje ajudam a manter o
controle de uma população que sempre se viu de frente com a opressão em todos
os momentos de sua história.
151
Outro fator importante a se destacar na produção e reprodução da vida
social ouro-pretana remete a uma situação generalizada da realidade colonial
brasileira: a herança administrativa portuguesa. Sabe-se que a hierarquia entre os
Governos Gerais, Ouvidorias, Relações e congêneres não possuía, pode-se dizer,
uma linha muito clara na administração portuguesa, tanto e, como não poderia
deixar de ser, em suas colônias. Mandos e desmandos sempre foram regra, fator
fundamental para a formação da cordialidade, que se pauta na pessoalidade para
sobreviver a tantas leis impossíveis de serem seguidas. Faoro (2001) comenta
ironicamente esta questão: “De Dom João I a Getúlio Vargas, numa viagem de seis
séculos, uma estrutura político-social resistiu a todas as transformações
fundamentais, aos desafios mais profundos, à travessia do oceano largo” (FAORO,
2001, p.866)
De certa maneira isso acaba por ocorrer ainda nas cidades
contemporâneas, onde não se estabeleceram regras efetivas de convívio e práticas
sociais. Planos Diretores são seguidamente ignorados por quem os produz, os
poderes municipais desautorizam e são desautorizados pelos seus pares de outras
instâncias desta formação nacional periférica. Resta ao habitante da cidade a
opressão conjunta de todas as regras que funcionam contra ele na proporção direta
de sua exclusão desta grande família que é o Estado brasileiro.
Esta herança é forte em Ouro Preto, onde a instância de regulação
urbana legítima pós Constituição de 1988, a prefeitura municipal, não encontra, ou
não procura, respaldo perante o órgão federal de “controle estético local”, o IPHAN,
que acaba por desempenhar papel de regulador urbano maior segundo questionário
aplicado aos moradores da cidade.
sete décadas presente na vida dos ouro-pretanos, a instituição
patrimonial continua sendo maior ponto de referência no tocante aos assuntos
relacionados à produção e reprodução do espaço. As entrevistas realizadas com os
técnicos do Instituto parecem demonstrar uma tentativa de alteração deste cenário,
conforme se perceberá nos itens que se seguem.
No entanto, a autoridade do especialista ainda é condição atribuída como
necessária para a absorção da construção social de um patrimônio histórico. Ainda
se mantém um discurso onde a população ouro-pretana, principalmente a menos
escolarizada, mais pobre e moradora de áreas menos centrais, necessitaria de uma
educação patrimonial para compreender os motivos da preservação de um
152
patrimônio que supostamente deveria lhe representar como cidadão brasileiro.
Mesmo quando se tenta construir uma visão mais crítica do assunto, como no caso
do referido livro Hotel Pilão, no qual a autora questiona a legitimidade do patrimônio,
a resposta costuma recair na possibilidade de se construir esta legitimidade em
forma de educação patrimonial. Não um questionamento efetivo sobre a não-
legitimidade e a não aceitação da população deste patrimônio que lhe foi imposto.
sete décadas conflitos em relação à forma dada a este patrimônio,
há sete décadas não se consegue manter este patrimônio da maneira como o
discurso iphaniano o desejava, e ainda quem afirme que isto é uma questão de
educação, de convencimento, ao invés de se admitir que este patrimônio muitas
vezes não serve de representação legítima de uma unidade populacional, posto que
este todo que se quer uma nação não pode ser construído sem representações
conflituosas e heterogêneas, a não ser através de um mando autoritário.
Não se quer dar a entender que um patrimônio nacional ou de qualquer
outra instância de organização social que um patrimônio histórico social e público,
enfim, deva ou mesmo possa ser aceito, incorporado, de forma imediata e ampla.
Patrimônio histórico trata-se de disputa social, e de disputa urbana quando se
concretiza neste âmbito da paisagem. Porém, quer se evidenciar a existência de
uma lacuna crítica a respeito da forma de construção e condução do patrimônio
histórico nacional brasileiro que se naturaliza discursivamente e desvaloriza aqueles
que, de alguma forma, o recusam.
Antes de se adentrar na percepção deste espaço identificada e
compreendida através de depoimentos presentes nos questionários e entrevistas
realizados em Ouro Preto, que se fazer, portanto, duas breves reflexões, uma
sobre esta questão da educação patrimonial e outra sobre o significado de se habitar
um patrimônio.
153
7.1 PATRIMÔNIO E CIDADANIA: UMA RELAÇÃO CONCEITUAL
A partir do pano de fundo anteriormente traçado onde se considera a
nação como uma construção histórica e, portanto, em permanente transformação; e
onde se percebe uma permanência de um caráter cordial na sociedade; é
necessário perguntar-se como pode o patrimônio edificado auxiliar no rompimento
deste e na transformação daquela tanto em relação a seu passado, quanto a seu
futuro. Esta pergunta se faz importante posto que introduz uma vertente espacial em
um debate onde nação, história, tradição e rompimento são peças chave,
evidenciando-se um encontro conflituoso nesta espacialização do debate.
Entende-se que, ao se incorporar a questão patrimonial nesta querela,
abre-se a possibilidade de se repensar antigas questões como a usual pergunta:
como devemos transformar a sociedade para que ela respeite e compreenda o
patrimônio? Porém, espera-se uma inversão neste debate, posto que se pretende
pensar como pode o patrimônio edificado interferir na edificação de uma cidadania e,
conseqüentemente, na transformação do que se entende por nação
66
?
O primeiro aspecto a se levar em conta nesta reflexão é a permanência
do caráter cordial numa sociedade urbana. Já se afirmou que, segundo Sérgio
Buarque de Holanda, a cordialidade haveria de ser rompida com esta transformação
social brasileira, posto que à época de sua obra o autor apontava a cordialidade
como um caráter residual de um tempo e de um espaço social brasileiro
descompassados com a promessa (hoje consolidada) de mudança em direção à
industrialização por que passava o Brasil.
Ora, em se tratando hoje o Brasil de um país industrializado e que ainda
possui claramente em suas relações sociais os traços da cordialidade, fica claro que
este “descompasso” revela, na verdade, a ausência de rompimento total com o
modo, digamos, “ruralista” da sociedade brasileira. Houve um longo passo
econômico, mas a perna social não se moveu de tão inchada.
66
José Maria Gómez faz uma interessante reflexão a respeito das transformações nacionais e a
cidadania que amplia o debate travado neste estudo: É preciso ser também, com um mínimo de
direitos, obrigações e garantias institucionais, “cidadão do mundo” [...]: um cidadão que tem acesso e
é reconhecido como membro de comunidades políticas interligadas – a do Estado-nação, a de
regiões supra-estatais e a da ordem global –, exercendo assim cidadanias múltiplas e diversas
(GÓMEZ, 2000, p.134). É bom deixar claro que Gómez não prega a formão de um Estado mundial
reconhecedor desta cidadania global, o que também é assumido pelo presente estudo. Assim como
se reconhece esta necessidade de uma re-significação social do que deva ser a cidadania
contemporânea em direção a uma globalização, ou melhor, a um internacionalismo cidadão.
154
Pode-se, portanto, imaginar que tudo que diz respeito ao campo
estritamente econômico caminha na velocidade dos fluxos monetários
internacionais, enquanto as relações sociais não apenas empacam como um jegue
teimoso, mas muitas vezes recuam como um caranguejo. E as relações espaciais
transitam entre estes dois modelos, refletindo concretamente a síntese deste retrato
estranho que se pintou a respeito de um país repleto de transformações e
permanências coincidentes num mesmo espaço.
Os conflitos espaciais acabam por evidenciar esta dicotomia quando a
forma de apropriação “cordial” do espaço, por ser familiar e patrimonialista age em
conjunto com a forma de transformação do espaço baseado no econômico; em
outras palavras, a apropriação privada da coisa pública (traço fundamental da
cordialidade) serve à transformação exigida pelo capital. E, no meio desta dicotomia
cúmplice, fica o patrimônio edificado vendo ruir junto com si mesmo a função social
da propriedade pública e privada.
E eis que se retoma o pensar do início desta reflexão, não será a partir da
transformação social que se vai conseguir revalorizar o patrimônio, mas é a partir
deste que se poderá auxiliar na revalorização daquela. Para tal, há que se trabalhar,
junto ao conceito de patrimônio edificado, a sua apropriação pública, na direção de
uma possível edificação de cidadania, ou de alguma outra relação social que
corresponda a um caráter menos perverso na idéia de transformação, ou mesmo
superação, da nação; lembrando-se que a nação, como instituição histórica que é,
vive em constante transformação.
Para se problematizar a questão da apropriação retorna-se a Lefebvre
(2000) que em sua Produção do Espaço contrapõe o espaço apropriado ao espaço
dominado. O autor debate uma diferenciação entre estes conceitos onde, no limite, o
espaço apropriado, ligado a permanências e à identidade, seria aquele da família (o
interior de uma casa) e o espaço dominado seria o espaço público, comunitário (a
rua). Continuando sua análise, Lefebvre expõe o fato da dominação espacial ter se
superposto à apropriação a partir, por exemplo, da ação do Estado quando este
controla o espaço público.
Seria interessante, segundo o autor, trabalhar esta dicotomia entre o
espaço apropriado e o espaço dominado no sentido de se produzir um espaço
diferencial, que se entende aqui como um espaço de autonomia, num sentido amplo
e humano da palavra. Lefebvre reforça em sua obra que a retomada da apropriação
155
espacial é fator fundamental para uma transformação social, seguindo uma linha de
pensamento onde esta retomada significaria um enfraquecimento do poder de
dominação do Estado. O que não significa sugerir que o espaço da família vai se
equivaler ao dominante, muito pelo contrário, acredita ser a nova apropriação uma
superação tanto da dominação realizada pelo Estado quanto uma renovação de um
domínio familiar, em favor, como já fora dito, de um espaço de autonomia.
Tal conceituação parece importante para o tema aqui trabalhado, mas é
necessário problematizá-la para a formação social capitalista não clássica, ou
periférica. Aqui as coisas se deram de forma diversa à realidade francesa, ou
capitalista ocidental, lefebvriana, e as diferenças residem de forma proeminente na
relação entre Estado e Família, por exemplo. se disse que um dos traços da
cordialidade é o tratamento da coisa pública como privada, tomando-se, portanto, o
Estado como extensão da Família. Tal constatação nos leva obrigatoriamente a uma
reinterpretação da relação entre o que vem a ser apropriação e dominação, termos
que vão se mesclar e se confundir cordialmente.
Como classificar o espaço blico (entendendo o patrimônio urbano
edificado como participante do espaço público) no Brasil? Ora, na medida em que o
espaço público seria aquele cujo controle estaria a cargo do Estado, chegando-se ao
extremo no caso de espaços monumentais nacionais, poder-se-ia afirmar que os
espaços públicos brasileiros, como quer Lefebvre, seriam espaços tipicamente de
dominação. No entanto, ao se afirmar que o Estado, e conseqüentemente a coisa
pública são tratados no Brasil como uma extensão familiar, privatizante portanto,
pode-se pensar num espaço de dominação apropriada. O espaço público, portanto,
pode ser interpretado, no Brasil, como aquele onde o Estado autoriza a sua
privatização, ou mesmo a sua privação, como se percebeu no caso do Hotel Pilão. O
caráter de apropriação exerce um peso nestas relações espaciais que acabam por
pressionar as dinâmicas explicitadas por Lefebvre numa direção inversa à
autonomia, ou à convivência relacional das dinâmicas espaciais.
O mesmo acontece em relação ao patrimônio que, como se disse,
encaixa-se na categoria espaço público na medida em que carrega consigo uma tal
carga simbólica que desfaria a possibilidade de caracterização privatista do mesmo.
No entanto, seguindo a tradição da formação cordial, mesmo o espaço simbólico é
passível de privatização em termos bem mais sutis. A própria relação do IPHAN com
a história realçada anteriormente demonstra uma espécie de apropriação, ou
156
dominação, do espaço simbólico por um projeto que se firma em relações e idéias
pessoais, no caso, a crença na arquitetura moderna como redentora do progresso.
Esta complexa relação entre o espaço de dominação e apropriação se
mostrou de forma clara quando se descreveu os espaços de vivência de Ouro Preto,
onde as regras rígidas da preservação geraram construções falseadas ora
legitimadas (Hotel Pilão), ora negadas pela instituição oficial (os casos da rua São
José).
A repetição de tais práticas leva a crer que o caráter de apropriação fala
mais alto que o de dominação. uma clara apropriação “familiar” de um bem cuja
permanência não diria mais respeito a esta esfera, reforçando o que fora dito acima
por Da Matta sobre o caso brasileiro: “Em outros termos, uma nação brasileira
que opera fundada nos seus cidadãos, e uma sociedade brasileira que funciona
fundada nas mediações tradicionais”. É esta sociedade, ou família, que fala aqui
mais alto.
Ora, este espaço deveria ser o espaço do cidadão, gerido por uma
relação fundada na entidade da nação, porém, como o brasileiro, via de regra, não
percebe, e nem constrói esta relação de forma clássica, ele relega o que é nacional
ao Estado do qual, supostamente, não faz parte. O Estado é visto como outro, ou
como já se disse, como uma família à parte da qual não se pertence e, muito menos,
se interfere.
Note-se que, segundo estes exemplos, o espaço cordial ganha ares de
negação do urbano, isto é, ao invés do exercício do conflito, o que se realiza é sua
negação através da indiferença ou da intolerância, que são reflexos da não
identificação do público com seu espaço. Tal fenômeno deve possuir alguma relação
com a não identificação com sua memória. Milton Santos coloca uma observação
importante ao debater o espaço do cidadão que ilustra bem o que se tenta aqui
compreender:
Quando o homem se defronta com um espaço que o ajudou a criar, cuja
história desconhece, cuja memória lhe é estranha, esse lugar é a sede de
uma vigorosa alienação. Mas o homem, um ser dotado de sensibilidade,
busca reaprender o que nunca lhe foi ensinado, e vai pouco a pouco
substituindo a sua ignorância do entorno pelo conhecimento, ainda que
fragmentário. O entorno vivido é lugar de uma troca, matriz de um processo
intelectual. (SANTOS, 2002,p.81)
157
Esta citação de Milton Santos ajuda a esclarecer a falha dos discursos
que insistem em dizer que a população ouro-pretana não está ainda apta a
compreender os significados do patrimônio. Ao que parece, ela não apenas
compreendeu o significado, como o transforma a todo momento ao negar diversas
regras construtivas a que foi submetida. Não se quer ingenuamente defender certas
transformações espaciais em nome de um discurso que reforça a propriedade
privada ao extremo, como também é comum se encontrar nestes locais, e que
negam a coletividade simbólica de um bem em nome da possibilidade de
apropriação total por parte do proprietário. Mas é fato que o discurso nacional sobre
o patrimônio se pautou em um futuro desenvolvimentista que, quando alcançou a
superfície da cidade símbolo, foi-lhe negado peremptoriamente.
Concorda-se que o conhecimento do espaço vivido seja fonte de
autonomia, de rompimento com uma alienação que alcança níveis extremos quando
adentra a própria formação concreta de uma sociedade em relação a seu passado.
Quando o homem cordial se associa a um passado por proximidade com o futuro
que se lhe mostra inevitável, acaba por negar-lhe outros passados que poderiam lhe
servir de referência para a construção de seu presente.
Não se quer dizer que tais traços sejam rígidos e eternos na sociedade,
mas percebe-se que a confusão entre a apropriação e a dominação se de forma
a corroborar o seu caráter cordial. A conseqüência primeira de tal situação é que
uma cisão, ou melhor, uma descontinuidade entre o espaço público e o privado,
descontinuidade que se constrói na manutenção de uma “ultra-apropriação” dos
espaços, sejam eles públicos ou privados, que resulta numa exclusão de sentido
relacional que se espera em um espaço que se denomine como urbano. Tal fato
ainda se complica quando se acrescentam as formas de gerenciamento destes pelo
Estado, que nos últimos tempos as têm transferido para o setor privado, ampliando
assim essa “promiscuidade” quase Freyreana de sua produção.
Outra conseqüência é a degeneração do espaço público simbólico que
perde sua característica de conjunto exatamente por esta descontinuidade de
práticas que incorrem sobre o mesmo. Uma área tombada qualquer, que possua
uma escala urbana, acaba por se transformar atomizadamente, no que diz respeito
às transformações individuais de imóveis que fazem parte do conjunto. A nação se
enfraquecida em seu espaço simbólico, demonstrando para aqueles que querem
enxergar o fracasso de sua tentativa de discurso unificador da sociedade.
158
7.2 ENTRE A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL E O PATRIMÔNIO EDUCATIVO
Como superar, ainda que conceitualmente, esta situação de forma a se
alcançar uma relação mais harmônica entre o cidadão, o patrimônio e a nação no
caso brasileiro? Como fora afirmado anteriormente, muitas vezes imagina-se que é a
partir da Educação que se transformaria esta condição. Somente um povo educado
seria capaz, por exemplo, de reconhecer um patrimônio como público e,
conseqüentemente, adquirir um pertencimento mais estreito a um Estado-Nação.
Vale ressaltar que uma solução como esta costuma colocar a Educação acima de
outras instituições sociais e, conseqüentemente, descolada das mesmas.
Considera-se a Educação como um ente construído em um mundo abstrato, tão
distante da realidade do suposto cidadão quanto a própria nação o é.
Outra vertente comum anuncia a necessária e urgente alteração de leis
no intuito de, ao atualizá-las, considerar como resolvido o problema.
Independentemente das definições do que vem a ser Educação no primeiro caso, ou
qual o senso de mudança do que ocorre no segundo, é importante destacar que tais
idéias tão impregnadas no senso-comum contêm um ponto de interseção que é
compartilhado pela caracterização desta nação periférica.
A constante convicção de que instituições abstratas são capazes de,
verticalmente, resolver os problemas sociais é típica da constituição de uma nação
que fora também ela formada imersa em tal crença. Este traço positivista da
construção nacional, que perdura ainda hoje ao se tentar solucionar diversas
mazelas, encontra abrigo histórico na maneira pela qual se deu a formação do mito
nacional por seu órgão oficial, o IPHAN, como já fora destacado anteriormente.
Quer se afirmar com isso que, seguindo uma tendência positivista,
construiu-se uma instituição, oficializada, aliás, por um decreto, onde este traço das
idéias como construtoras da realidade ficaram realçadas na medida em que foram
legitimadas a partir de discursos de diversos intelectuais que conduziram este órgão
que foi o construtor e divulgador do caráter nacional. A idéia assumida como sendo
a de nação brasileira foi construída por mentes eruditas, letradas, para então ser
implementada e apresentada a seus cidadãos, a exemplo de tantos outros
processos oficiais do país. Foi um reconhecimento externo que contou ao cidadão
qual era seu patrimônio, e essa externalidade era exatamente a esfera do Estado,
que nunca fez parte da vida do brasileiro.
159
Não se quer, repete-se, com essa observação, desconsiderar toda a
história e o papel relevante do Instituto, muito menos diminuir sua importância e a de
seus fundadores, que atuaram na chamada “fase-heróica” do IPHAN e, obviamente,
daqueles que ainda hoje mantém viva a atuação do Instituto, atuando talvez de
forma bem mais heróica que outrora. Muito pelo contrário, é importante que se
discuta alternativas para a própria atuação do mesmo, e de outros órgãos
semelhantes de diferentes esferas de poder ao invés de se desmantelá-las de vez
em nome, por exemplo, do mercado.
A questão patrimonial, notadamente a edificada e urbana, mas não
somente esta, possui um caráter tão importante para a (trans)formação nacional que
ela deve adquirir um grau primário na formação social. Invertendo as propostas
colocadas anteriormente onde se deveria realizar alguma ação (abstrata) para se
salvaguardar o patrimônio, o que se propõe é que a partir do conhecimento e do
reconhecimento do patrimônio é que se vai permitir a construção de novas relações
de sociabilidade capazes de, num movimento crítico, superar questões permanentes
da história. Situações permanentes por estarem naturalizadas, condição
insustentável quando se percebe a produção de um espaço público e simbólico
como histórica e, portanto, transformável.
A incorporação de práticas coletivas e relacionais que busquem uma
ampliação da percepção patrimonial por uma população deve ser integrada ao
próprio conceito de patrimônio, de forma a possibilitar uma revisão de práticas que
influenciem e transformem a forma pela qual o espaço do patrimônio é apropriado
pela sociedade, seja através de sua visitação, seja a partir de sua habitação,
equilibrando a balança entre a apropriação e a dominação, na direção da superação
desta dicotomia.
Pensa-se aqui em práticas sociais (pedagógicas?) que possibilitem um
rompimento da distância existente entre o espaço público e seu habitante, ou seja,
uma aproximação, ou talvez, uma fusão do Estado e do cidadão na direção de uma
autonomia a partir do espaço. Imagina-se que, muito além de uma educação
patrimonial, onde o patrimônio aparece como adjetivo, o que se deve pensar em
realizar é uma patrimonialização educativa, onde este adquira um caráter
substantivo e possibilite que, enfim, os cidadãos construam a sua cidade, superando
a cordialidade por aquilo que lhe convier, posto que é a partir de uma prática
160
transformadora que uma mudança se dará. Uma mudança como esta significa,
inclusive, revisão do passado, ou, pelo menos, entendimento do mesmo.
Mas este adiantamento propositivo adquire aqui ainda um caráter
especulativo cujo objetivo é exercitar a compreensão do que ocorre na produção do
espaço cordial nos monumentos nacionais. Antes de se decretar uma idéia de
rompimento na ação, é importante que se tenha em mente os processos de
formação da situação atual e, principalmente, a maneira pela qual a atualidade se
produz. Esta produção está intimamente ligada ao fato de que os locais tidos como
patrimônio nacional são cidades contemporâneas, habitadas. Habitar o patrimônio
requer um pensar e um agir próprios.
7.3 OURO PRETO NA ERA DE SUA REPRODUTIBILIDADE TÉCNICA
Para se compreender a especificidade deste gesto que é habitar o
patrimônio, há que se considerar uma distinção que já foi de certa forma aqui
iniciada, mas que merece um olhar mais aprofundado, que é a relação dialética entre
um produto e uma obra de arte, assim como entre a característica histórica ou
memorial de um monumento, que se relaciona com o primeiro par dialético citado e
interfere bastante no significado de se habitar o patrimônio. Tome-se um
esclarecimento feito por Choay (2001) a respeito da relação existente entre um
monumento e um monumento histórico a partir da teoria de Alois Riegl:
Outra diferença fundamental observada por A. Riegl, no começo do século
XX: o monumento é uma criação deliberada (gewollte) cuja destinação foi
pensada a priori, de forma imediata, enquanto o monumento histórico não
é, desde o princípio, desejado (ungewollte) e criado como tal; ele é
constituído a posteriori pelos olhares convergentes do historiador e do
amante da arte, que o selecionam na massa dos edifícios existentes,
dentre os quais os monumentos representam apenas uma parte. Todo
objeto do passado pode ser convertido em testemunho histórico sem que
para isso tenha tido, na origem, uma destinação memorial. De modo
inverso, cumpre lembrar que todo artefato humano pode ser
deliberadamente investido de uma função memorial. (CHOAY, 2001, p. 25-
6, grifo do autor)
Este esclarecimento dado pela autora é peça chave para o entendimento
da condição de monumento histórico da cidade de Ouro Preto. A questão reside no
fato, esclarecido anteriormente, da mescla entre o histórico e o memorial que se
deu na criação dos monumentos brasileiros, fruto da cordialidade. O que acontece
161
por aqui é que foram convertidos, ao inverso do que indica Riegl, os objetos
memoriais em históricos. A visão crítica da qual é impregnada a ciência histórica foi
aqui destituída de sua amplitude na medida em que houve uma apropriação cordial
da história, onde apenas certo tipo de memória foi considerada legítima,
notadamente aquela pertencente aos que produziam o Estado, que, como se sabe,
é imiscuído de fortes traços familiares neste caso. Houve uma “dominação
apropriada” dos valores históricos em função da manutenção de certa memória que
excluiu diversos sujeitos sociais destas recordações, criando uma nova linhagem de
desclassificados, os desclassificados históricos.
A legitimidade deste patrimônio memorial se fez em parte pela operação
de equalização técnica dos produtos espaciais descrita e também a partir de um
discurso estético forte, lembrando-se que a cidade de Ouro Preto fora tombada
inicialmente segundo seus dotes estéticos e, mesmo sendo incluída cadas em
outros Livros do Tombo, a prática não acompanhou este gesto.
Mantém-se ainda intenso discurso estetizante quando se debate a
preservação do patrimônio dito histórico da cidade. se viu como existe um certo
clamor por uma educação patrimonial que incuta nos habitantes da cidade um saber
que valide seu olhar em relação ao patrimônio na direção de torná-lo apropriado pelo
ouro-pretano. Encontra-se com dificuldade, no entanto, um direcionamento de ação
em sentido inverso, ou seja, uma construção social de um patrimônio que o adeque
aos diversos estratos sociais, e porque não às diversas classes sociais que
produzem aquele espaço. Afonso Carlos Marques dos Santos (2007) também se
apoia em Riegl ao abordar o movimento relacional existente entre a obra de arte e a
história:
A arte, revelava Riegl [...] interessava de início de “um ponto de vista
puramente histórico” e o monumento como um elo indispensável no
desenvolvimento da história da arte. Compreendido neste sentido, o
“monumento artístico” seria, portanto, na realidade, um “monumento da
história da arte”, seu valor, considerado deste ponto de vista, seria menos
artístico que histórico. Daí resultaria sem sentido a distinção entre
monumentos artísticos e monumentos históricos, uma vez que os primeiros
estariam incluídos nos últimos e com eles se confundindo. (SANTOS, 2007,
p. 123)
Esta relação entre a arte e a história se mostra, portanto, como uma pedra
indispensável na construção social do patrimônio histórico. Como se viu, em terras
brasileiras ela se deu de forma amalgamada invertida ao se considerar o que foi
posto por Afonso dos Santos; criando bases para uma estetização memorial. Não
162
são os monumentos artísticos que se tornaram históricos, mas sim houve um
preenchimento estético de recordações. A situação do patrimônio histórico em Ouro
Preto nunca se libertou desta origem e não se alcançou o status de história, num
sentido crítico e abrangente, que conduzisse a um debate amplo dos rompimentos
sociais ocorridos ao longo do percurso “civilizatório” brasileiro. A seletividade da
memória, apoiada em um discurso técnico e estético prevaleceu e deu origem às
transformações espaciais que foram narradas acima e que se completarão mais
adiante a partir das práticas sociais a ela diretamente relacionadas.
Lefebvre (2000) também debateu a questão sobre a propriedade de obra
(de arte) ou de produto intrínseca a certas cidades, tomando como exemplo maior a
cidade de Veneza e chegando à conclusão de que a obra integra a cidade que é
produzida, que, neste caso, não a intencionalidade da criação artística, sendo
esta própria característica sua atribuída socialmente, produzida continuamente posto
que habitada e sempre renovada.
Mas, de todos estes autores aqui citados, parece que foi Benjamin (1996)
quem melhor conseguiu sintetizar a condição artística do espaço produzido ao
analisar uma outra forma de produção contemporânea estética, o cinema. Em seu
famoso A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, o autor examina a
situação das artes com o advento da industrialização, que, ao contrário do que
queriam os modernos do IPHAN, rompe com diversos modos de existência
anteriores. Tratando do caso específico do cinema, Benjamin acaba por esclarecer
não a grandeza e o alcance que a chamada sétima arte possui nos tempos
modernos, mas a mudança fundamental dos tempos industriais em que a
quantidade acaba por se transformar em qualidade. Inicialmente, é importante notar
uma aproximação entre o cinema e a arquitetura que o próprio autor realiza e que
autoriza de certa forma as aproximações que se realizam a seguir: “(...) a pintura não
pode ser objeto de uma recepção coletiva, como foi sempre o caso da arquitetura,
como antes foi o caso da epopéia, e como hoje é o caso do cinema” (BENJAMIN,
1996, p.188).
Esta apropriação coletiva é determinada, em partes, no caso da
arquitetura, pelo fato de seu produto ser habitado (num sentido amplo do termo) e,
portanto, receber diferentes significações tanto de seus habitantes quanto daqueles
que o apropriam como objeto construtor de sua paisagem urbana cotidiana. Da
mesma forma, é objeto de recepção coletiva em relação ao tempo, quando adquire
163
significação memorial ou histórica, sendo importante ressaltar que coletividade o
pressupõe universalidade, homogeneidade e muito menos democracia, como se
percebe no caso onde uma certa coletividade aporpria-se de paisagens em nome de
sua memória ao mesmo tempo negando a memória de outros coletivos. A descrição
sobre a produção do cinema por Benjamin reflete uma similitude com o patrimônio
histórico ainda maior quando se observa a seguinte passagem:
O filme acabado não é produzido de um só jato, e sim montado a partir de
inúmeras imagens isoladas e de sequências de imagens entre as quais o
montador exerce seu direito de escolha imagens, aliás, que poderiam,
desde o início da filmagem, ter sido corrigidas, sem qualquer restrição.
(BENJAMIN, 1996, p. 174)
Pode-se afirmar que, da mesma forma, há escolhas do que deverá ou não
ser lembrado, condição primordial de existência do patrimônio, sem a qual arrisca-se
a viver a tormenta do personagem de Funes, o memorioso de Borges (2007). A
questão que se coloca em todo o percurso deste estudo é quem possuiu e quem
ainda detém o papel de montador da cena patrimonial, ou ainda, para que platéia foi
produzido este filme.
Importante ressaltar a característica primordial da reprodutibilidade,
responsável pela produção dos espaços complexos resultantes da política do IPHAN
em Ouro Preto, como aqueles aos quais se concluiu serem fruto da técnica do
“concreto a pique”. A reprodução do espaço estabelecido pelo IPHAN se deu pelo
viés industrial da equação técnica cordial entre colonial e moderno. Esta
reprodutibilidade dos “edifícios coloniais”, no entanto, por ser uma consequência
imprevista pela teoria iphaniana, é considerada como ilegítima ao ser produzida e
reproduzida pelos habitantes da cidade:
Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do
domínio da tradição o objeto reproduzido. Na medida em que ela multiplica
a reprodução, substitui a existência única da obra por uma existência serial.
E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao encontro do
espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido.
Esses dois processos resultam num violento abalo da tradição, que
constitui o reverso da crise atual e a renovação da humanidade. Eles se
relacionam intimamente com os movimentos de massa, em nosso dias.
(BENJAMIN, 1996, p. 168-9)
A ação dos movimentos de massa pode ser exemplificada neste caso,
mesmo que não deliberadamente organizada, como a resposta dada à política
164
preservacionista pelos habitantes ouro-pretanos ao atualizarem o objeto colonial
reproduzindo-o à sua maneira. Este gesto acabou sendo legitimado pela
reconstrução do referido casarão pela FIEMG, viabilizado com a ajuda da técnica,
sempre acompanhada da política, e que determinou a autorização daquela cena
pelo diretor do filme, possuidor de olhar privilegiado pelo poder institucional que lhe
é atribuído, como se verá no próximo item. A tradição criada pelo IPHAN foi abalada
por sua própria condição dúbia de conciliação de opostos. A manutenção da cena
barroca como legítima memória oficial ganhou seu revés quando o choque com a
indústria se fez menos doce e distante que o desejado, interferindo diretamente no
cenário intocável, ou melhor, tocável apenas pela mão do comando. De todas as
premissas adotadas pelo IPHAN em Ouro Preto, talvez apenas o aspecto barroco
tenha perpetuado quando esta instituição permitiu, ou teve que permitir, a ilusória
reconstrução do Hotel Pilão. A mistura de técnicas, tão temida pela pureza da ação
original iphaniana e tão fomentada pelo caráter cordial de seu discurso, atingiu seu
ápice e legitimou, de uma vez por todas, a junção impossível da colônia e da
república, mas agora através da mão visível do mercado.
Fotografia 54 Edifício próximo à Igreja do Pilar. Qual a técnica legítima para este tipo de
reprodução?
Para se compreender melhor a prática social presente na produção deste
espaço complexo, que se realizar uma reflexão mais direta sobre o significado de
se habitar este espaço, seja como coadjuvante, protagonista ou, na maioria dos
casos, antagonista.
165
7.4 HABITAR O PATRIMÔNIO: DA REGRA PARA O MODELO
Como se demonstrou, habitar o patrimônio requer certa estratégia de
conduta social que envolve diversos fatores que vão desde o reconhecimento do
lugar em que se vive como sendo representante de uma memória coletiva, ou
seletiva, a reações às regras e normas que são fruto desta condição. Maria
Gravari-Barbas (2005) coloca que:
[...] o fato de “habitar o patrimônio” não é neutro. As populações que
habitam devem fazer face ao duplo peso da memória e das restrições
ligadas ao quadro da vida.
Habitar em um lugar carregado de história, revestido de sentido não
somente para aqueles que o habitam, mas igualmente para grupoas sociais
maiores, implica relações multiplas, nuançadas, às vezes contraditórias
entre o Homem e o seu meio. (GRAVARI-BARBAS, 2005, p. 15, traduzido
pelo autor
67
)
Esta condição complexa, pautada pela não neutralidade é percebida por
diversos moradores de diversos sítios históricos em todo o mundo onde a
necessidade de memória e de história atuam de forma a criar a necessidade destes
espaços. Neste estudo quer se evidenciar as particularidades advindas desta
condição nesta sociedade pautada pelos traços de cordialidade.
Os itens a seguir, que encerram a observação pautada na tríade
lefebvriana são frutos de duas atividades distintas e correlatas. Primeiramente
apresenta-se o resultado da pesquisa feita com alguns alunos do recém criado curso
de Tecnólogo em Conservação e Restauração de Imóveis do Instituto Federal de
Minas Gerais (antigo CEFET), que ainda será objeto de reflexões posteriores.
Optou-se por este universo de pesquisa não apenas pela predisposição de seus
alunos e professores, mas pelo fato deste curso reunir um público heterogêneo,
incluindo jovens e adultos com distintas situações sociais mas que possuem como
fator de unidade serem, em sua maioria, moradores da cidade.
Além disso, o fato de serem alunos do referido curso o colocam em
situação de testemunho privilegiado, por possuírem alguma formação a respeito
67
[...] le fait d’“habiter le patrimoine” n’est pas neutre. Les populations qui y habitent doivent faire face
au double poids de la mémoire et des contraintes liées au cadre de vie.
Habiter dans un lieu chargé d’histoire, revêtu de sens non seulement pour ceux qui y habitent, mais
également pour des groupres sociaux plus larges, implique des relations multiples, nuancées, voire
contradictoires entre l’Homme et son milieu.
166
das regras, técnicas e teorias patrimoniais que, se por um lado não é fundamental
para tornar legítima sua relação com o patrimônio, por outro serve de lastro contra
futuros possíveis questionamentos a respeito da qualidade dos resultados obtidos
por aqueles que crêem ser necessário “educação patrimonial” para sua aceitação
68
.
Posteriormente vai se dar voz aos técnicos do IPHAN local. Realizou-se
entrevistas com três técnicos
69
(quase a totalidade dos funcionários) que
trabalham além de uma ex-funcionária que ainda habita aquela cidade. Estas
contribuições são fundamentais para o entendimento das relações sociais de conflito
existentes nesta cidade, revelando as dificuldades institucionais, suas tentativas de
mudança, e também de permanência:
[...] Um lugar patrimonial pode ser habitado ao preço de alterações, de
modificações, de inscrições, sob pena, para seu proprietário, de
permanecer o visitante de uma concha vazia de sentidos (N. Ortar).
pode ser habitado se for transformado. Cada sociedade e cada época
colocam de forma precisa aquilo que considera ser os limites aceitáveis
desta transformação, mas em todos os casos parece ser mais importante
insistir sobre o que é transformado do que sobre o que perdura. No final
das contas, é através da leitura das transformações que se pode obter um
olhar mais pertinente sobre o investimento nos lugares realizado por
aqueles que o habitam. (GRAVARI-BARBAS, 2005, p. 24, traduzido pelo
autor
70
)
68
Reuniu-se um total de 19 questionários preenchidos por esses alunos, número suficiente para um
estudo que não se propõe quantitativista ou refém das armadilhas da estatística.
69
A entrevista com o diretor do escritório técnico se encontra reproduzida na íntegra como anexo
deste trabalho. Optou-se por reproduzi-la não por questões de hierarquia, mas, dentre diversos
motivos, por esta conversa ter se focado de forma mais direta sobre o tema condutor desta tese.
70
[...] Un lieu patrimonial ne peut être habite qu’au prix de changements, de modifications,
d’inscriptions, sous peine, pour son propriétaire, de rester le visiteur d’une coquille vide de sens(N.
Ortar). Il ne peut être habite que s’il est transformé. Chaque société et chaque époque pose certes ce
qu’elle considère être les limites acceptables de cette transformation, mais dans tous les cas il semble
tout aussi important d’insister sur ce qui est transformé que sur ce qui perdure. Au bout du compte,
c’est à travers la lecture des transformations qu’on peut porter un regard plus pertinent sur
l’investissement des lieux par ceux qui y habitent.
167
7.4.1 Dos ouro-pretanos
A maioria dos entrevistados o apenas habita como também nasceu na
cidade de Ouro Preto, refletindo o perfil dos estudantes do IFMG que em são
majoritariamente moradores da cidade, ao contrário do que ocorre com aqueles da
Universidade Federal de Ouro Preto onde há um número maior de pessoas que vêm
de outras cidades para estudar e habitar em Ouro Preto
71
, nas famosas “repúblicas”.
A quase totalidade dos entrevistados afirma gostar de morar na cidade,
apesar da metade pretender se mudar de lá, o que parece ter alguma relação com a
perspectiva de emprego, mas não se vai adentrar neste tema que foge ao escopo
desta tese. O fato de gostarem da cidade tem maior relevância por demonstrar sua
relação positiva com o território, o único questionário que pôs em dúvida esta
relação afirmou, no entanto, gostar da cidade para estudar
72
e morar, opondo a isto
a ausência de lazer e trabalho. Além da questão do emprego mencionada, chama
a atenção o fato de um habitante de uma cidade que é relacionada ao turismo e ao
lazer não perceber tais opções para si. Mas também não se deve adentrar nesta
questão que, por si só, mereceria um estudo na medida em que o par dialético lazer
e trabalho é colocado em xeque nesta cidade onde o trabalho relacionado ao lazer é
visto por muitos como sua redenção. Vale repetir que um discurso “no ar” da
cidade no qual o turismo seria a solução para seus problemas. Apesar disso, a
estrutura turística de Ouro Preto é precária em vários sentidos, não uma
organização de serviços de infraestrutura consolidada, pouca participação dos
habitantes nesta rede de trabalho além de o existir uma organização que fixe o
turista por muitos dias na cidade e na região. Ouro Preto é uma cidade que se
sustenta a partir de seu subsolo, mais uma permanência colonial, apesar da
atualização das técnicas...
Esta percepção da redenção pelo turismo é compartilhada pelos
entrevistados que, ao afirmar em sua quase totalidade ser positivo o fato da cidade
ser um monumento nacional, justificaram em boa parte esta resposta pelo fato desta
sua condição representar melhoria pelo viés turístico. Apenas um entrevistado
71
As idades dos entrevistados são também variadas, há alunos com mais de cinquenta anos de idade
assim como os há com 17, mas há um dado que os une que é o fato da renda per capta ser bem
menor que o PIB per capta apresentado pelo IBGE, que seria, em 2006, equivalente a R$24.050,00
anuais.
72
Importante ressalvar que o estudo também pode ser considerado trabalho.
168
afirmou ser importante a valorização por motivos não econômicos, como o
reconhecimento de sua beleza e de sua história “pelo mundo”. De certa forma isto
pode indicar uma vontade dos ouro-pretanos em se descolar da indústria da
mineração, muitas vezes considerada predatória e, por não ser uma forma de
geração de renda renovável, haver sempre o temor do possível abandono das
mineradoras quando acabar sua “colheita”
73
, o que sugere a necessidade da cidade,
como um todo, buscar outras formas de se sustentar
74
. Percebe-se, no entanto, uma
ausência de um debate mais profundo sobre este tema onde a instância “a cidade”
seja desvelada para as diferentes condições e possibilidades de ganho de seus
habitantes que, como se percebeu em relação à distribuição de renda, não possuem
as mesmas condições de se apropriar de uma possível riqueza futura advinda de
uma exploração mais organizada do turismo.
Por outro lado, esta colagem da situação patrimonial à sua exploração
turística revela uma tendência cada vez mais forte de enquadramento de bens
patrimoniais em uma lógica de mercadorização intensa, tendência percebida, por
exemplo, pelos industriais do estado de Minas Gerais e muito bem estruturada pela
construção de seu centro cultural como se viu acima. Compreende-se que este
discurso de mercadorização, longe de ser uma tendência natural, é fruto, dentre
outras coisas, do enfraquecimento da ação do próprio IPHAN, que acaba por refletir
as alterações do que se entende por nação brasileira em consonância com a
sociedade de mercado contemporânea. mais de uma década funciona,
paralelamente ao IPHAN, um programa de manutenção dos monumentos nacionais,
financiado pelo BID, que, além de uma estrutura e financiamento renovados, carrega
também um discurso novo sobre o patrimônio e seu uso. Segundo sua própria
definição:
O Programa tem como objetivos preservar áreas prioritárias do patrimônio
histórico e artístico urbano sob proteção federal, aumentar a
conscientização da população brasileira acerca desse patrimônio,
aperfeiçoar a gestão desse patrimônio, estabelecer critérios para
implementação de prioridades de conservação e aumentar a utilização
econômica, cultural e social das Áreas de Projeto.(...)
A descoberta do patrimônio cultural como fonte de conhecimento e de
rentabilidade financeira vem transformando essas áreas em pólos culturais,
incentivando a economia por meio do incremento do turismo cultural e
geração de empregos. O Programa conta com apoio dos estados e
73
De forma análoga, pode-se considerar que o patrimônio também é “colhido” na cadeia turística da
qual estas cidades monumento acabam por se inserir mesmo que de forma precária.
74
Esta percepção foi encontrada, em trabalho anterior, na cidade vizinha, Mariana, que, em relação
aos aspectos econômicos, repete o modelo de Ouro Preto.
169
municípios, de forma que suas intervenções afetem, direta e indiretamente,
a economia, a educação e a cultura local, e facilitem, assim, a inclusão
cultural, social e econômica da população. (PROGRAMA MONUMENTA
BID, grifo nosso)
Esta gica mercadorizante de apropriação, explícita no texto acima, é
responsável hoje por boa parte da manutenção do patrimônio histórico em 26
cidades de expressão nacional no que tange ao projeto de memória construído pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. As primeiras sete cidades
contempladas pela seleção dos órgãos competentes foram: Rio de Janeiro/RJ, Ouro
Preto/MG, Olinda e Recife/PE, Salvador/BA, São Luiza/MA e São Paulo/SP. Outras
cidades se candidataram posteriormente e foram incluídas ao longo dessa década
de existência do Programa, o elas: Alcântara/MA, Belém/PA, Cachoeira/BA,
Congonhas/MG, Corumbá/MS, Goiás/GO, Icó/CE, Laranjeiras/SE, Lençóis/BA,
Manaus/AM, Mariana/MG, Natividade/TO, Oeiras/PI, Pelotas/RS, Penedo/AL, Porto
Alegre/RS, São Cristóvão/SE, São Francisco do Sul/SC, Serro/MG.
A abrangência deste programa, como se percebe, é bastante ampla,
alterando significativamente a condução dos temas histórico-urbanos do país,
alteração que se firma em uma proposta que se denomina “recuperação sustentável”
e que traz um outro paradigma para o entendimento da condução dos assuntos de
patrimônio histórico do Brasil. Observe-se a definição de sustentabilidade dada pelo
próprio Programa:
Entende-se por sustentabilidade a geração permanente de receita
suficiente para garantir o equilíbrio financeiro das atividades e manter
conservados todos os imóveis da Área de Projeto (...), inclusive
monumentos cujas receitas sejam insuficientes para sua conservação.
Trata-se, via de regra, de áreas economicamente deprimidas, cuja
sustentabilidade é tributária da intensificação do fluxo de freqüentadores e
turistas na Área de Projeto, bem como da intensificação do uso de seus
imóveis. Para tanto, as intervenções devem focar a melhoria da
acessibilidade e da atratividade da área.(...)
Dessa forma, os projetos devem incorporar a iniciativa privada desde a sua
concepção, tanto na condição de potenciais operadores, como de parceiros
em empreendimentos imobiliários e comerciais, com vistas ao esforço de
revitalização das áreas de intervenção no âmbito do Programa.
(PROGRAMA MONUMENTA BID, grifo nosso)
Esta rápida transformação da condução do patrimônio nacional que sai da
esfera da construção identitária para a da apropriação simbólica a partir de
iniciativas “sustentáveis” contribui fortemente para o contexto do enfraquecimento da
ação do IPHAN em Ouro Preto.
170
Outro fator destacado pelos entrevistados sobre a positividade da cidade
ser um monumento foram as melhorias urbanas advindas deste título. Segundo eles
esta condição pressiona os órgãos blicos a manter a cidade bem conservada,
pelo menos os seus monumentos. Chama a atenção o fato de ter sido colocado este
fator como uma vantagem em relação a outras cidades, posto que facilitaria a
arrecadação de fundos para a cidade
75
, demonstrando a aceitação de um cenário
notadamente de competição entre os municípios da federação.
Por fim, dois entrevistados consideraram negativa a condição da cidade
ser monumento, um devido ao aumento do custo de vida, o segundo devido ao fato
de sua situação impedir a “evolução da cidade”. Esperava-se que este último fator
fosse mais citado nos questionários, posto que foi senso comum em relação à
condição de habitar uma cidade monumento. A leitura que se faz desta concepção
no discurso tem profunda relação com as outras respostas. Se em momentos
anteriores havia a sensação de atraso e de impedimento de uma evolução, de um
“desenvolvimento” de uma área tombada por suas restrições construtivas, hoje este
discurso parece ter sido desmontado em nome da possível valorização
mercadológica de uma paisagem urbana “histórica”. Esta alteração acompanha tanto
o enfraquecimento da estrutura do órgão responsável pela identidade nacional como
da própria identidade do que vem a ser uma nação que se enfraquece, ou se
transforma, rumo a uma mercadorização competitiva dos bens simbólicos, como
expressa a constatação de CHOAY (2001) em relação ao patrimônio do mundo
ocidental de forma geral:
A palavra mágica: valorização [mise-en-valeur]. Expressão chave, da qual
se espera que sintetize o status do patrimônio histórico edificado, ela não
deve dissimular que hoje, como ontem, apesar das legislações de
proteção, a destruição continua pelo mundo, a pretexto de modernização e
também de restauração, ou à força de pressões políticas, quase sempre
irresistíveis. (...) Essa expressão-chave, que deveria nos tranqüilizar, é na
realidade inquietante por sua ambigüidade. Ela remete a valores do
patrimônio que é preciso fazer reconhecer. Contém, igualmente, a noção
de mais-valia. É verdade que se trata de mais-valia de interesse, de
encanto, de beleza, mas também de capacidade de atrair, cujas
conotações econômicas nem é preciso salientar. (CHOAY, 2001, p. 212,
grifo nosso)
75
Existe um programa de distribuição do ICMS do governo do Estado de Minas que “premia” os
municípios que realizarem, dentre outras ações, a criação de um Conselho Municipal de Patrimônio
Histórico. Este programa, conhecido como Lei Robin Hood, funciona dentro de uma lógica
incentivadora da competição intermunicipal.
171
Este enfraquecimento dos valores nacionais na direção do fortalecimento
dos valores de mercado teve seu mecanismo de transmissão da acumulação
simbólica analisados e evidenciados no referido caso do hotel Pilão. É preciso
comprender, no entanto, as permanências representativas da nação neste campo
patrimonial, para que se compreenda de que se trata esta transformação e não se
cometa um erro histórico de se afirmar que a situação anterior, nacional, era melhor
que a atual do mercado, e, obviamente, nem o seu oposto. Vale, neste caso, a
advertência que nos faz Tsiomis (1996):
A crise urbana é também o resultado do neoliberalismo, que fez com que
as lógicas de mercado se tornassem dominantes [...] Da experiência
recente podemos extrair uma breve conclusão. Se o Estado Total é um
erro, o Privado Total é uma catástrofe.(Tsiomis, p. 28, 1996)
Algumas questões parecem reveladoras sobre o peso e a influência do
IPHAN sobre a percepção das práticas sociais da cidade. É comum, em cidades de
pequeno porte, onde o assistencialismo é ainda uma realidade acachapante que
desmancha a percepção do avanço democrático do país, serem as respectivas
prefeituras e câmaras municipais instituições tidas como as principais condutoras do
ritmo de vida dos habitantes
76
. Entre os entrevistados, no entanto, não foi esta a
percepção encontrada. O IPHAN foi a instituição mais vezes citada como a primeira
ou segunda em influência na cidade, e em nenhuma vez foi colocada em último
lugar – também este, resultado único.
Pergunta número 4
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
PMOP CÂMARA TJ IPHAN GovEstMG
Instituição
1 2 3 4 5
Figura 4 Gráfico das respostas da questão número 4, onde o IPHAN aparece, à frente da Prefeitura
Municipal de Ouro Preto, como instituição de maior influência na cidade.
76
Esta observação não desconsidera a existência de relações assistencialistas nas grandes
metrópoles, apesar das mudanças do modo de funcionamento destas nestes locais.
172
A leitura desta resposta se faz por dois caminhos diferentes que se
encontram mais tarde. Por um lado isso pode indicar a legitimidade do IPHAN
perante a população ouro-pretana, que o teria como referência governamental mais
diretamente atuante. Pode significar também o uma presença integral do órgão
federal, mas uma retirada de cena da Prefeitura Municipal, que pode estar agindo de
forma mais cordial que as outras instituições ao tomar “posse” de suas funções de
forma excessivamente patrimonialista. Como se verá mais tarde pelo relato do
IPHAN, isto acontece de fato. No entanto, tais leituras perdem um pouco de
importância quando separadas da pergunta seguinte, a respeito da caracterização
do modo de atuaçao destes órgãos:
Pergunta número 5
0
2
4
6
8
10
12
14
PMOP IPHAN mara
Instituição
Acessível Participativa Democrática Centralizadora Autoritária Inacessível
Figura 5 – Gráfico das respostas da questão número 5, onde, além da caracterização do autoritarismo
do IPHAN, surpreende a boa avaliação da Câmara Municipal, à qual se atribui, por especulação e
percepção local, a excessiva relação de assitencialismo desta instituição.
A percebeção a respeito da atuação de três das cinco instituições antes
analisadas esclarece o descompasso da relação existente entre a produção do
espaço da cidade e o avanço das instituições democráticas típicas de espaços
políticos onde impera a cidadania. A instituição apontada como a mais influente da
cidade é a mesma caracterizada como sendo a mais autoritária e centralizadora e
menos acessível e democrática.
Pode-se dizer que as respostas em relação à influência da instituição
foram dadas em função de uma parte significativa dos ouro-pretanos questionados
estarem inseridos no campo da preservação arquitetônica e, por isso mesmo,
tendendo a observar a cidade a partir deste viés. Mesmo assumindo-se esta
173
abordagem, a qual o presente autor não considera ser determinante, não se
descarta o fato desta última avaliação. Muito pelo contrário, o fato de serem os
entrevistados pertencentes ao campo da preservação lhes daria maior compreensão
da atuação daquela instituição.
Independentemente destas possíveis leituras, percebe-se que as
observações referentes à cordialidade do espaço produzido estão aqui reforçadas
pelo autoritarismo de sua forma de produção. Como se enunciou anteriormente,
cordialidade e cidadania não caminham de mãos dadas, posto que a pessoalidade
existente naquela, muitas vezes lida como traço de lhaneza, revela aqui seu traço
mais forte de mando. Se o Instituto soube criar um universo estético de convivência
entre o passado e o futuro sem aparentes rupturas, conseguiu também consolidar
esta transição passiva de diferentes sistemas políticos preservando o autoritarismo
das relações políticas coloniais, como se fossem também uma forma de patrimônio.
Continuando a análise do questionário, adentra-se em perguntas
referentes ao significado simbólico que o patrimônio transmite a estes moradores da
cidade. “Beleza”, “arte”, “história” e “passado” foram os itens mais assinalados a
respeito deste tema, que, ao se conjugar com quais sujeitos históricos estariam
representados nos monumentos da cidade, a Igreja foi a mais citada, seguida dos
escravos, dos inconfidentes e dos artistas:
Pergunta número 11
0
2
4
6
8
10
12
14
16
18
Sujeitos sociais representados pelos monumentos
Igreja Mineradores Inconfidentes Escravos Artistas Poticos Mulheres Outros
Figura 6 Gráfico referente à pergunta número 11, demonstrando o predomínio simbólico do
patrimônio religioso.
174
Como se percebe, ao contrário dos que alegam a ausência de uma
“educação patrimonial”, a representação simbólica de Ouro Preto difundida pelo
IPHAN parece estar satisfatoriamente incutida no imaginário da população da
cidade. A cidade do século XVIII com suas belas igrejas construídas por artistas
geniais como Aleijadinho foi palco do movimento de libertação nacional mais
famoso, a Inconfidência Mineira, tendo Tiradentes como o representante mais
famoso. A exemplificação dada pelos entrevistados a respeito de como estariam
estes símbolos concretizados no espaço indicou serem as Igrejas do Pilar e São
Francisco de Assis as mais lembradas, assim como a “estátua de Tiradentes”
representaria aos inconfidentes de forma mais notável, e, por último, Aleijadinho
aparece como o artista principal.
Houve, no entanto, um alto número de indicações dos escravos como
sendo um dos sujeitos sociais mais bem representados da cidade
77
. Sua
representação está relacionada principalmente a dois locais: a Igreja de Santa
Efigênia e a Mina do Chico Rei. Aquela é bem religioso tombado isoladamente e
representa, assim como a Igreja do Rosário, local de culto de uma irmandade de
negros forros e simbolicamente relacionada à Mina de Chico Rei, posto que se
acredita ter sido esta igreja construída com fundos advindos desta mina. Por sua
vez, Chico Rei é personagem famoso por ter sido escravo que, sendo rei em sua
terra africana, conseguiria em terras brasileiras retomar seu prestígio e acabaria por
se tornar proprietário da mina que hoje leva seu nome. A epopéia de Chico Rei seria
menos próxima da história que da lenda ou recordação; fato é que a Santa Efigênia,
por ser Igreja, é reconhecida como patrimônio histórico nacional, enquanto a Mina de
Chico Rei não o é. De certa forma, sua condição de símbolo não reconhecido pelo
poder público atesta o fato de que apenas certas recordações fazem parte da
identidade nacional oficial, como a narrativa do esplendor da cidade setecentista ou
o alto teor libertário dos inconfidentes, simbologia também construída com certa
distância da ciência histórica, mas aceita como recordação oficial.
77
Este fato reforça a tese de Laura de Mello e Souza a respeito dos desclassificados, que aqui, no
campo da recordação, também se encontram não representados.
175
Fotografia 55 – A Igreja de Santa Efigênia.
Antes de ampliar a análise para a percepção iphaniana sobre suas
relações com a cidade e seus habitantes, vale destacar duas últimas constatações
importantes advindas dos questionários aplicados. A primeira delas reflete a
permanência do “fachadismo” na leitura da cidade por seus habitantes. Apenas três
entrevistados colocaram os fundos das casas da rua São José como melhores
representantes de sua cidade, em contraposição aos outros que marcaram as
fachadas que dão para a rua como sendo sua imagem ouro-pretana mais legítima.
O fato de haver, mesmo que em minoria, pessoas que considerem os
edifícios de “concreto a pique” como melhores representantes da cidade de Ouro
Preto, independentemente do afeto que aqueles que os selecionaram lhe atribuem,
significa que, mesmo dentro de um universo imagético forte do que deveria ser a
cidade de monumento, outras formas de leitura de um espaço que certamente
também refletem outras formas de produzi-lo.
Isto se percebe também ao se ler o que de pior em morar em Ouro
Preto. Dentre as diversas colocações como “clima chuvoso” e “os morros da cidade”,
apareceram aqui e ali algumas colocações como impedimento de realizações de
obra ou a falta de conscientização a respeito do patrimônio por seus moradores. Mas
foram dois os assuntos mais enumerados: o trânsito, o transporte urbano e o
176
sistema viário, que considero como pertencente a um único tema, o de mobilidade
urbana, que, assim como da maioria das cidades brasileiras é um obstáculo à
apropriação da cidade por seus habitantes. Assim como o é também o segundo
problema mais indicado: falta de emprego e salários baixos. Ambas fazem parte de
um conjunto de ausências de garantias de autonomia individual que pintam um
quadro perverso da precária existência de cidadania nestas terras. Para que a
relação de autonomia individual se concretize por aqui, é indispensável o papel do
patrimônio histórico como instituição de fundação de debates e superações de
conflitos também históricos. Patrimônio este, aliás, cuja preservação é tida, segundo
a maioria dos entrevistados, não apenas um dever, mas também um direito.
7.4.2 Do IPHAN
Ivan. É assim que muitos chamam a instituição responsável pela
condução dos assuntos do campo da preservação e legitimação da identidade
nacional em Ouro Preto. Não se pode afirmar que o apelido seja derivado da história
do czar russo, o Terrível, certamente a troça advém de corruptela da sigla e
semelhança sonora. No entanto, o fato de se atribuir à instituição um nome pessoal
não deixa de trazer uma leitura da relação existente entre esta e a comunidade ouro-
pretana.
se disse, mas vale repetir, que não é objetivo desta tese caracterizar o
IPHAN como instrumento deliberado de opressão popular. Tal caracterização, além
de erro histórico, seria também teórico. Mas não se pode fugir às consequências das
ações deste órgão junto à continuidade de afastamento popular nas decisões
públicas brasileiras especificamente em seu caso naquilo que tange a apropriação
simbólica de monumentos.
A produção do espaço cordial, como se viu, passou pela construção
argumentativa do IPHAN em relação à forma de se produzir o espaço de recordação
brasileiro onde se predomina a idéia de uma transição passiva entre o colonial e o
moderno. As permanências sociais e políticas que tal decisão acarreta não podem
ser descartadas ao se tentar realizar uma leitura do espaço contemporâneo daquela
cidade. E o autoritarismo percebido pela população, como se viu anteriormente nos
resultados da aplicação do questionário, é uma destas permanências que mantém
177
distante o patrimônio de seus habitantes, tornando estes exilados em seu próprio
território.
Mas não se deve descartar as agruras por que passam os funcionários
deste instituto ao tentar, precariamente, dar continuidade ao seu trabalho de
manutenção da memória nacional. Existem dois fatores que permeiam a atividade do
órgão nesta cidade que, se não justificam a manutenção de seu comportamento
institucional, revelam a dificuldade que se teria caso se tentasse alguma mudança, o
que, aliás, como se verá, parece estar por acontecer.
O primeiro diz respeito à precariedade de funcionamento dos escritórios
do Instituto, principalmente nas últimas duas décadas, nesta era da nova república
quando o Estado teve força suficiente para abrir mão de diversas atribuições suas
para o mercado
78
. A entrevista ao chefe do escritório em Ouro Preto demonstra isto
de forma clara:
Desde a morte de Aloísio Magalhães
79
que o IPHAN entrou nessa
decadência e até hoje não se recuperou totalmente. [...] Com o quadro
técnico que a gente tem, é impossível! A gente não dá conta nem de
fiscalizar a cidade... É quase como pegar uma pessoa e lhe entregar uma
arma e soltar na Amazônia e lhe dizer: vigie a Amazônia![...]Quando eu
cheguei aqui, em 2002, o IPHAN tinha um faxineiro, que não era do IPHAN,
a Simone, que é historiadora, a secretária, e um técnico, só. De para
melhorou, hoje você tem uma arquiteta e um engenheiro, além de mais
outros dois funcionários que foram transferidos para cá. Então, pode-se
dizer que cresceu mais que cem por cento. (Cf. Anexo D)
Este sucateamento pode, no entanto, ser entendido de duas maneiras. Se
por um lado, como obstáculo, ele prejudica a atividade do instituto, por outro, como
possibilidade, abre caminho para um maior envolvimento comunitário na direção de
se suprir a necessidade de fiscalização exclusiva do IPHAN por uma abordagem
dialógica e participativa. Isso, no entanto, significaria um abandono, por parte do
78
O autor português Boaventura de Souza Santos faz uma interessante abordagem sobre o
enfraquecimento estatal a partir de sua minimização e a contraditória situação de que, para um
Estado outrora forte se tornar mínimo, é necessário que sua força se volte contra si para enfraquecer
a si mesmo. Cf. SANTOS, Boaventura de Souza (Org.): A Globalização e as ciências sociais. Vale
ressaltar que, no caso do Brasil, o Estado forte nunca se pautou, como na Europa, em um Estado de
Bem Estar Social pleno, de modo que seu enfraquecimento aqui se dá de maneira mais agressiva,
exatamente por não existir a condição de um Estado com força suficiente para se minimizar de
maneira menos impactante, se é que esta existe.
79
Aloísio Magalhães é tido como responsável por uma mudança de rumo do campo patrimonial
brasileiro, abrindo novas perspectivas conceituais para o trabalho do instituto, como, por exemplo, o
debate em relação ao patrimônio imaterial. Faleceu prematuramente em 1982. Sobre este assunto,
conferir A retórica da Perda, de Gonçalves (2002).
178
Estado, de seu poder simbólico de julgamento do que é ou não representativo da
nação brasileira.
A opção pela fiscalização como meta maior do órgão revela que, em uma
situação de extrema precariedade, onde somente o mínimo necessário, o essencial
se mantém em funcionamento, é a relação de autoridade que predomina. Segundo a
mesma entrevista:
O IPHAN não tem gente, não tem recurso técnico nem humano para
abordar este tipo de ação. A ação nossa aqui é praticamente de
fiscalização e punição. Então, realmente, o IPHAN é uma entidade que não
é muito simpática na cidade. Apesar de que se não fosse o IPHAN Ouro
Preto já teria “desaparecido” ou descaracterizado há muito tempo. Eu tenho
a impressão que é uma entidade antipática e é também uma instituição
que, pelos atendimentos que eu faço hoje não é dia de atendimento e
pela maneira que as pessoas chegam aqui, é uma instituição que também
causa medo(Cf. Anexo D, grifo do autor)
Portanto, independentemente das boas vontades contidas nos ideários
“heróicos” da criação do IPHAN, criou-se, dentro do próprio instituto de pretendida
legitimação da identidade nacional, uma prática que se mostra mais resistente que
os monumentos a serem preservados. A noção que se cria é que, além de se tentar
preservar uma paisagem, quis se preservar também uma forma, cordial, de se
conduzir as questões blicas, onde a absorção do conflito, do diálogo, não aparece
como questão predominante.
Outro fato importante é que o Instituto não considera sua atuação como
descaracterizante da paisagem urbana local, como se percebe pela fala acima
destacada. A noção de que a descaracterização existiria sem a atuação do IPHAN
implica duas prerrogativas argumentativas das quais não se pode fugir. A primeira
delas é a consideração de que sua atuação foi puramente “mantenedora” paisagem
original da cidade, o que não é fato como se demonstrou anteriormente. A
segunda, mais determinante para este estudo, é a naturalização da condição
preservacionista da cidade. Ora, caso não houvesse o IPHAN, ao contrário do que
se afirma, certamente não haveria descaracterização, pois também não haveria a
necessidade de preservação que, repete-se, não é natural. Sem querer se deter em
cenários inúteis, a inexistência da atuação iphaniana em qualquer cidade chamada
histórica lhe conferiria uma resignificação que consequentemente levaria a uma
imprevisível produção do espaço diferenciada da atual. Não se sabe se Ouro Preto
179
estaria mais ou menos preservada sem o IPHAN, sabe-se apenas que estaria
diferente. A afirmação de que hoje está menos “descaracterizada” não é apenas
historicamente falsa, mas teoricamente insustentável, por não partir do concreto
existente neste espaço.
Voltando às práticas de abertura institucional em curso, houve algumas
tentativas de mudança, mas, então, o órgão esbarra no segundo elemento que
complexifica as relações produtivas do espaço cordial: a relação entre as instituições
públicas, principalmente com a Prefeitura Municipal.
Salvo em alguns breves momentos, não houve cooperação institucional
de fato entre os dois órgãos detentores de hegemonia para lidar com as questões do
espaço urbano municipal. As entrevistas realizadas com técnicos e ex-técnicos do
instituto trouxeram à tona a existência de um projeto da década de 80 que tinha
como função criar um vínculo institucional entre IPHAN e a Prefeitura Municipal de
Ouro Preto (doravante, PMOP). O Grupo de Assessoramento Técnico, ou GAT, foi
um trabalho, aliás, retomado nos dias atuais, de diálogo institucional que visava a
criação e esclarecimento de regras e trâmites de aprovação de obras na cidade.
Porém, não houve continuidade deste trabalho em função da alteração do campo
político do poder executivo municipal que, como é de praxe, desconsiderou o que
havia sido realizado anteriormente.
Esta prática descontinuísta que se liga de forma estreita à apropriação
privada de um mandato público ajuda a explicar a predominância do IPHAN como
elemento de maior influência na vida dos habitantes da cidade. Além de sua
presença forte e constante, um recuo do executivo municipal que não quer se
“desgastar” com punições e multas aos seus eleitores. Quando perguntado sobre a
possibilidade de abertura institucional à participação popular no IPHAN, seu chefe
local colocou esta questão:
Vai depender da continuidade do trabalho. Porque às vezes se inicia um
trabalho e não se conclui. E também depende da abrangência deste
trabalho. Não se pode dizer com segurança se isso vai dar certo, pois o
problema é muito grande. Existe aí um passivo que, por mais que se
trabalhe - agora estamos trabalhando junto com a prefeitura - é uma coisa
muito complicada de se reverter. Por gestão mais aberta não sei bem o que
você quer dizer, mas o IPHAN participa do GAT [Grupo de Apoio Técnico
da PMOP], participa de três ou quatro conselhos aqui na cidade, e lá
também as pessoas podem opinar, o próprio presidente da APOP
80
participava de um desses conselhos. (Cf. Anexo D)
80
Associação Patrimonialista de Ouro Preto. Criada por proprietários insatisfeitos com o IPHAN,
funda-se em argumentação contrária à de autonomia popular, ou luta por cidadania. Seu argumento
180
Este delicado equilíbrio entre as instituições públicas da cidade revela a
fraqueza da fundação democrática, o mal entendido de Sérgio Buarque de Holanda,
nestas terras. Há, no entanto, um novo projeto iniciado naquele escritório que pode
ser um início de um revés desta imagem e desta prática centralizadora do órgão
preservacionista:
Mas a atual presidência tomou uma iniciativa e está montando um projeto
que está sendo implantado de forma pioneira aqui em Ouro Preto e que se
chama “Casa do Patrimônio”, cujo objetivo é fazer uma aproximação com a
comunidade, inclusive propondo ações que a beneficiem e que dessa
forma possam melhorar um pouco a imagem do IPHAN na cidade. Este
projeto está se iniciando agora. (Cf. Anexo D)
Segundo entrevista realizada com as técnicas responsáveis por este
projeto, a “Casa do Patrimônio” trata de uma ampliação da ação do órgão para além
de sua função fiscalizadora e punitiva. A Casa da Baronesa, sede so IPHAN local
começaria a desempenhar um papel de abertura ao funcionar como uma espécie de
museu pedagógico que buscaria trazer a população, a partir de diversas ações
conjuntas, para dentro do Instituto, com o intuito de se mostrar aos habitantes sua
forma de trabalho e suas funções. Além disto, a previsão de criação de visitas
guiadas ao centro histórico destinadas, inicialmente, aos estudantes da UFOP, para
que os mesmos, que são parte significativa dos habitantes do perímetro tombado,
comecem a vivenciar a cidade de maneira diferenciada. O projeto prevê uma
ampliação à medida que se colocar em atividade, sugerindo uma mudança de
atitude do órgão que experimentaria formas mais dinâmicas de se relacionar com a
comunidade da cidade, reduzindo seu papel historicamente autoritário.
Além disto, houve a publicação de uma portaria inédita no âmbito do
órgão, esclarecendo as regras de preservação de forma clara, possibilitando assim
certa impessoalidade nas análises dos projetos de construção da cidade:
Essa portaria tem origem mais antiga...só foi publicada em 2004, mas é de
1996, debatida no GAT original, ouvindo os técnicos da UFOP, PMOP,
IPHAN e IEPHA. Como eu estava sendo muito questionado pela justiça, a
coisa estava muito tensa, e essas regras não eram oficiais, resolvemos
publicá-las depois de realizarmos uma revisão. Mas será revista, de novo,
agora. Pois ela só se refere a uma Zona de Proteção Especial específica
da cidade e não a todo o perímetro tombado, ao qual o Plano Diretor
se baseia no direito total à propriedade a fim de deslegitimar a atuação pública do IPHAN. Conferir na
entrevista ao Chefe do escritório técnico do IPHAN alguns outros detalhes de sua atuação.
181
regula. Adotaremos, portanto, as diretrizes do Plano Diretor, que foi
elaborado de forma participativa. Mas acho que é uma das poucas cidades
que possui uma portaria publicada, uma regra clara. Acho um absurdo esse
número grande de cidades históricas sem nenhuma regra clara. (Anexo D)
A adoção destas regras e sua ampliação para o domínio do Plano Diretor
apontam ao mesmo tempo duas respostas aos respectivos problemas listados no
início deste item. Primeiramente, em se considerando o Plano Diretor como um
processo participativo, demonstra-se um direcionamento da condução do órgão em
aceitar outras leituras da cidade que não apenas a sua. Em segundo lugar, esta
ação reforça a integração institucional entre o poder executivo municipal e o IPHAN,
posto que as referidas regras começariam a se mesclar, sugerindo uma
institucionalização de processos comuns para a população de órgãos de diferentes
origens, o que demonstra uma ampliação, de ambas as partes, daquilo que se
entende por ser uma cidade.
Mas ainda um longo caminho a se percorrer na direção do rompimento
do espaço cordial. As relações institucionais devem ser consolidadas de maneira
mais forte a partir destas ações, mas isso não significa uma abertura suficiente na
direção de garantir aos moradores da cidade um debate em torno do que lhe
representa. O poder simbólico da instituição ainda não se alterou, e continua a ser
garantido por decreto:
Agora, a decisão do IPHAN é soberana, a decisão final é do IPHAN senão
estaríamos desrespeitando o Decreto Lei 25. [...] Mas veja, por exemplo, o
GAT, o prefeito tentou colocar que a decisão do GAT seria soberana, o
próprio departamento jurídico do IPHAN disse o, pois não podemos abrir
mão de nossa atribuição, a aprovação final em relação a um bem tombado
é do IPHAN, o tem outro modo de atuar. Você pode até ouvir a todos,
mas a decisão final é nossa. (Cf. Anexo D)
Não se espera, por fim, que esta mudança parta da própria instituição. A
garantia de sua legitimidade institucional se reforçou através da técnica e é também
através dela que se enxerga novos horizontes para a construção de uma legtimidade
de fato em torno de futuras discussão e prática sobre o papel do patrimônio histórico
na produção do espaço de cidades como Ouro Preto.
182
8 CONCLUSÃO: O ESPAÇO CORDIAL
Dentre diversos estranhamentos dinamizadores da produção deste
trabalho, foi colocada no início deste texto uma questão fulcral. Como se a
reação/criação espacial e social às práticas que alimentam a produção e a
reprodução dos espaços de representação nacional na direção de um
questionamento, de uma transformação, de uma re-significação, enfim, desta
representação? Esta pergunta integra um contexto onde a própria instituição
nacional é enxergada tanto como histórica quanto como impossibilitada de possuir
uma legitimidade natural e, junto a ela, também a instituição da cidadania.
A construção desta resposta se deu a partir de um estudo que partiu da
noção de espaço como instância analítica primordial. Esta premissa permeou todo
este estudo essencialmente urbano que se pautou na evidenciação de regras que
acabam por se tornar modelos. Escolheu-se para este fim o caso-referência de Ouro
Preto que foi tratado aqui como espaço de produção urbana contemporâneo, e não
como um produto, capaz de oferecer elementos de análise suficientes para o estudo
em questão.
Para responder a este questionamento foi também necessário interrogar-
se sobre a forma de produção do espaço da representação nacional de forma a fugir
de certezas analíticas pautadas em uma percepção dualista e positivista da
realidade urbana de um lugar especificamente representativo como Ouro Preto. Esta
interrogação trouxe à tona a necessidade, e a utilidade, de se criar um novo conceito
que desse conta de condensar as relações sociais e espaciais no âmbito da
formação nacional brasileira.
O conceito construído, o espaço cordial, foi trabalhado a partir de uma
abordagem do urbanismo como uma ciência capaz de evidenciar as transformações
espaciais e sociais a partir do marco teórico lefebvriano que constrói uma relação
complexa entre as práticas sociais, as representações do espaço e seus espaços de
representação somado à leitura da formação social brasileira construída por Sérgio
Buarque de Holanda em seu livro “clássico de nascença”, Raízes do Brasil. Foi por
entender que uma análise sobre o homem cordial a partir de sua relação com o
espaço construído seria capaz de iluminar novas questões no campo urbanístico
que se transpôs aquele adjetivo para o conceito de espaço.
183
O espaço cordial surge então como uma resposta teórica na medida em
que caracteriza uma forma particular de produção espacial intimamente relacionada
com o perfil social periférico. Trata-se de uma inversão de costumeiras análises
urbanas que se pautam em uma comparação teórica desta realidade com modelos
centrais e que nunca o capazes de criar novas questões, e por isso não criam
também novas respostas, que evidenciem modos outros de se produzir e de se
transformar o espaço e a sociedade. Tais análises acabam, finalmente, por manter a
condição de produção teórico-crítica arraigada a estrangeirismo e rmas tão
comuns das idéias fora de lugar.
A criação do conceito de espaço cordial aparece como uma contribuição à
produção de uma crítica no campo urbanístico pautada a partir do concreto social e
espacial. O conceito foi construído na direção de se desnaturalizar as relações
percebidas no ambiente urbano onde a nacionalidade se coloca de forma intensa.
Mas as características deste espaço, aqui o marcadamente presentes, não se
reduzem àqueles lugares escolhidos como representantes maiores da nação ideal
brasileira. O espaço cordial se mostrará presente onde e quando houver a
predominância destas relações pessoais descritas por Sérgio Buarque de Holanda e
servirá à sua manutenção principalmente enquanto não for percebido como tal.
O espaço cordial seproduzido onde e quando houver a convivência de
discursos inconciliáveis que não se evidenciem como tal em forma de conflito. Esta
relação sempre se dará de forma opressiva e extremamente individualizante, por
exemplo, quando espaços públicos se transformam, disfarçadamente, em privados
em nome de um progresso técnico. A técnica, aliás, neste espaço, será sempre
naturalizada, posto que a naturalização de uma atividade humana é por si só,
conciliação de discursos opostos. Foi esta sua característica que garantiu a
progressão dócil e o convívio amistoso, e ao mesmo tempo opressor, de um
passado com um futuro garantidor de uma finalidade social e espacial que negou a
heterogeneidade da história em nome de uma formação que se forjou como nação.
Ana Clara Torres Ribeiro realiza uma reflexão a respeito da exploração cultural do
patrimônio histórico que reforça as consequências advindas da cordialidade
espacial:
184
Transformados em atratores de fluxos de consumidores animados por
promessas de acesso à cultura, os ambientes urbanos preservados,
higienizados e estetizados por um gesto potencialmente único oferecem
resistência à apreensão da vida de relações que animava e articulava,
explicando-os, palácios e casebres. Sem dúvida, o estímulo à
contemplação, que é tão presente nos arranjos estetizantes dos acervos
históricos e na cenarização clean ajustada ao tipo médio do consumidor de
cultura, equaliza lugares e desconstrói possibilidades de aprendizado.
(RIBEIRO, 2004, p. 98, grifo do autor)
Esta negação do aprendizado pelo espaço remete à dificuldade de se
formar cidadãos a partir dele. Muito pelo contrário, como afirma Milton Santos
(2002), vive-se a formação de consumidores mais-que-perfeitos ao invés de
cidadãos plenos. O fato de se percorrer e se conhecer a Praça Tiradentes,
anteriormente citado, através de um centro cultural “gratuitoe de “livre-acesso” que
legitima uma instituição privada e privatizante, mesmo trazendo novidades na
animação cultural local, oferece-lhe através de um consumo que, disfarçado de
passivo, atua de forma constante no universo de disputas simbólicas concretamente
travado sobre a produção do espaço:
O consumidor não é o cidadão. Nem o consumidor de bens materiais,
ilusões tornadas realidades como símbolos: a casa própria, o automóvel,
os objetos, as coisas que dão status. Nem o consumidor de bens imateriais
ou culturais, regalias de um consumo elitizado como o turismo e as
viagens, os clubes e as diversões pagas; ou de bens conquistados para
participar ainda mais do consumo, como a educação profissional, pseudo-
educação que não conduz ao entendimento do mundo. (SANTOS, 2002,
p.56)
Pode-se dizer o mesmo das diversas formas de educação patrimonial que
negam a apropriação autônoma e crítica de um espaço fornecendo assim
explicações prontas que transformam a possibilidade de conhecimento na
acumulação de informações consumíveis.
Junte-se a isso que o espaço cordial também será produzido onde e
quando houver este híbrido de legalidade e ilegalidade, formalidade e informalidade
inserido em uma lógica normativa que parte de ideais necessariamente alheios à
realidade de sua aplicação que, portanto, servem ora a uma configuração social, ora
ao seu oposto, criando um estigma de incerteza e insegurança urbana que não é
sentido por quem faz parte da criação e domínio destas lógicas.
A eficácia jurídica das normas não acompanha seu par social. Trata-se de
um espaço que se molda, assim, na continuidade social enrijecida por uma
185
autoridade técnico-política e alheia à possibilidade de debate e conflito social
legitimado. Esta característica garantiu, conforme demonstrado neste caso-
referência que é Ouro Preto, a negação oficial dos edifícios de “concreto a pique” ao
mesmo tempo que impulsionou a construção do “novo” edifício “neo-eclético” pelo
grande capital mineiro em nome da harmonia paisagística.
A manutenção do espaço cordial sempre se dará em nome da afetividade.
A preservação espacial e social de antigos modos e práticas será sempre ligada a
uma memória, ou recordação, que se distancia da história em nome de uma
naturalização e homogeneização de um passado. A afetividade coletiva se
anunciada como única e total e garantirá as permanências, inclusive a permanência
do controle da seletividade do que deva ser mudado. Esta técnica de produção de
discursos históricos harmônicos é que garante a elevação de “lendas”, a exemplo
daquelas referentes ao esplendor da sociedade mineira do século XVIII, como sendo
discurso dotado de hegemonia social. E esta concretização de discursos unânimes
geram o engessamento de espaços que acabam se tornando pouco afeitos a
mudanças que seriam capazes de colocar em xeque a harmonia afetiva ao trazer à
tona o conflito alimentador de urbanidade.
Por fim, o espaço cordial será ainda produzido onde e quando houver
esta mescla de Família e Estado capaz de reduzir as contradições sociais inclusive
pela construção simbólica desta recordação social que se reproduz em forma de
dominação técnica.
Esta forma de se produzir o espaço, como se vê, não se encontra
presente apenas naqueles locais onde o viés simbólico nacional é predominante.
Mas a análise realizada a partir de Ouro Preto serviu não apenas como auxílio
fundamental para sua percepção, mas também como ponto de partida para o
questionamento a respeito das transformações nacionais pelas quais passamos.
A compreensão da forma como este espaço é produzido e reproduzido
auxiliou a evidenciar o que antes era visto como negação simbólica do espaço
nacional como sendo uma possibilidade de reação e deslegitimação da simbologia
unificadora nacional. Possibilitou também a constatação de que este espaço não é
esvaziado de conflitos sejam eles concretos ou simbólicos, o que auxilia no
questionamento não apenas do sucesso da construção nacional brasileira como
também incita a pensar novas respostas capazes de transformar este discurso e
esta prática nacional.
186
A desconstrução deste espaço e desta sociedade, porém, não se dará de
maneira simples e direta, o que fica mais claro ao se compreender as razões
históricas de sua existência. Em A conquista da América, Todorov (2003) demonstra
como a técnica comunicativa é capaz de negar o outro ou ainda de se apropriar dele
em nome da dominação. Ao relatar a conquista da região do México pelos
espanhóis, ele demonstra como a sociedade moderna ocidental se pautou, na
relação com o outro, em dois paradigmas: o da identificação e o da negação. No
primeiro, o homem ocidental considerava o outro como igual a si, porém, em estágio
inferior de desenvolvimento social e, portanto, passível de dominação. No segundo,
o outro se mostra negativamente diferente e deve ser a todo esforço não apenas
dominado, mas extirpado, negado. O homem cordial é aquele outro que foi, de
maneira diferenciada, à portuguesa, incorporado como inferior e, ao aceitar este
estigma, busca se igualar ao superior incorporando suas idéias, inclusive aquelas
referentes a nação, a patrimônio ou a cidadania e age como se estivesse na direção
de alcançar um lugar que o aguarda, mas que nunca está lá. O espaço cordial é
mantenedor desta busca. É de certa forma o espaço de negação, ou
homogeneização, do outro na direção de uma superioridade desterrada e inatingível.
Constroem-se regras para alcançar um modelo.
Evidenciar a existência deste espaço e tentar superá-lo a partir de sua
concretude não é tarefa pequena, mas também não é inalcançável. Para que isto
ocorra, porém, é preciso que se aceite a existência deste espaço e o compreenda de
modo a não perder de vista o alvo de sua superação. Pelo que se percorreu no
presente estudo, uma das características que devem ser dominadas para sua
superação é sua técnica produtiva, para que esta possa se desnaturalizar e, enfim,
transformar-se. Como última contribuição desta tese, apresenta-se um cenário que
demonstra que, em Ouro Preto ocorre, hoje, uma possibilidade desta transformação
que pode auxiliar a desmantelar esta complexa relação opressora que está contida
no espaço cordial.
O fato de que a produção limitada de racionalidade é associada a uma
produção ampla de escassez conduz os atores que estão fora do círculo da
racionalidade hegemônica à descoberta de sua exclusão e à busca de
formas alternativas de racionalidade, indispensáveis à sua sobrevivência. A
racionalidade dominante e cega acaba por produzir os seus próprios
limites. (SANTOS, 1999, p.247)
187
Esta consideração a respeito dos espaços de racionalidade feita por
Milton Santos percorre diversas etapas da compreensão da produção do espaço
cordial e também de sua superação. A racionalidade dominante imposta pelo
discurso e práticas do IPHAN encontra seu limite por dois viéses contemporâneos
diferentes.
Por um lado houve a absorção mercadorizante de seu espaço simbólico
como foi observado no item referente à construção e apropriação do novo espaço
junto à praça Tiradentes. Este rompimento do limite de atuação do IPHAN não se
deu de uma hora para outra, mas a partir de um percurso de alteração dos rumos
nacionais, que se viram concretizados de forma mais clara, talvez, pela
implementação do Programa Monumenta anteriormente referido. De certa forma
reflete o encontro, a absorção de dois tempos que antes se diferenciavam, o tempo
da nação e o tempo do mundo, do mercado mundial, das empresas supranacionais.
O encontro destes tempos se concretizado no encontro destes espaços, pois,
como nos lembra o mesmo Milton Santos, é “através do processo da produção, [que]
o “espaço” torna o “tempo” concreto”.(SANTOS, 1999,p.46)
Mas há um outro limite, oposto, que também se percebe rompido. A
produção dos edifícios a partir do “concreto a pique” demonstrou, além de qualquer
relação de ilegalidade ou de informalidade, uma impotência do controle total do
tempo e do espaço por parte daquela instituição. Não se pode apenas atribuir a
estas mudanças um simples estatuto de apropriação excessiva do direito de
propriedade e negação do valor social de um símbolo concretizado no espaço. Ora,
este símbolo foi alterado pelos próprios moradores a quem deveria significar algo,
existe também uma negação de características sociais e espaciais que se viram,
de uma hora para outra, congeladas por decreto oficial mas que ainda assim se
viram transformadas pelo mesmo processo, industrial, que era exaltado pelas forças
da racionalidade oficial.
Ao contrário do que afirma, a política de preservação do IPHAN não
manteve aquela paisagem, mas criou obstáculos à sua transformação que se viram
transpostos por uma apropriação diferenciada do desejo oficial. A cordialidade serviu
aqui como ferramenta de imitação da estética oficial. O espaço da recordação
iphaniana era composto de uma forma que justificava um conteúdo, mas ambos
eram contraditórios, conciliados apenas pela vontade de dissipar as rupturas tão
comum ao comportamento político hegemônico brasileiro. O colonial e o moderno
188
foram colocados juntos em um discurso e praticados de formas diferentes pelos
atores do processo. Enquanto os arquitetos oficiais praticavam sua “boa arquitetura”
em objetos que marcavam seu discurso, a população, alijada do código
arquitetônico, mantido como segredo dominado apenas pelos técnicos oficiais,
construiu seu próprio híbrido, também colonial, também moderno, mas “não-
arquitetônico”.
Este processo deu à paisagem de Ouro Preto um incômodo status de
falsidade histórica. Ao observar sua paisagem, hoje, fica a mesmo o mais
experiente perito perdido entre réplicas e originais do século XVIII expostos em um
labiríntico percurso social, espacial e político que é aquela cidade. Muitos apontarão
uma cisão, onde aqueles edifícios em que prevalece uma certa aura original
preenchida de barro seriam as vitórias do IPHAN em contraposição às próteses de
concreto armado que enganam o visitante.
Esta tese foi desvelando este corriqueiro engano. Não há cisão naquele
espaço. uma continuidade complexa e contraditória de produções de objetos que
são frutos de um discurso originário do próprio Instituto que representa a ausência
de ruptura da forma oficial de conceber a sociedade: eis o espaço cordial.
A técnica é, pois, um dado constitutivo do espaço e do tempo operacionais
e do espaço e do tempo percebidos (...). Ela poderia, assim, ser essa
buscada referência comum, esse elemento unitário, capaz de assegurar a
“equivalência” tempo-espaço. (SANTOS, 1999, p.45)
Esta equivalência tempo-espaço proporcionada pela cnica de que fala
Milton Santos foi peça chave ao discurso iphaniano: tão difundida e pelo mesmo
motivo capaz de ser apropriada de formas variadas, reforçando-a e questionando-a,
mas sempre se lhe referindo.
A equivalência técnica realizada entre a forma de se produzir espaços de
diferentes épocas, uma equivalência diacrônica propalada pelos arquitetos do
Instituto, foi apropriada pela população ouro-pretana como uma equivalência de se
produzir o espaço sincronicamente. A força do discurso estético e memorialista do
IPHAN fincava seu suporte na técnica. Haveria diversas opções de negação do
discurso daquele órgão, poder-se-ia ter construído edifícios ecléticos, modernos ou
“pós-modernos” naquele cenário, mas o convencimento pela técnica fez com que se
reproduzisse de forma contemporânea uma paisagem passada. Houve uma
189
produção do espaço equalizadora de diferentes tempos, negando e mantendo a
retórica oficial ao mesmo tempo.
De um lado a produção oficial, lutando para salvaguardar sua memória
por meio de ações punitivas e exemplos “pedagógicos”. De outro lado aqueles que
não se viram atingidos pela mesma memória, desejosos de explorar o lado
desenvolvimentista da nação por se fazer, produzindo à sua maneira a conciliação
de paisagens opostas.
Este conflito revela uma certa indisposição para o convívio harmônico
nacional, revela, ao mesmo tempo, uma sensação de não pertencimento ao projeto
de nação; de qualquer maneira, revela uma incompletude, uma inadequação da
construção nacional periférica.
Mas para se concluir esta pesquisa deve-se apontar certos caminhos
percebidos durante o processo de investigação. Caminhos inesperados que
apontam para uma nova temporalidade, uma nova apropriação que poderá
transformar, mais uma vez, a forma de se produzir o espaço de Ouro Preto, mais
uma vez a técnica surge como possibilidade de condução a novos rumos sociais.
Se por um lado percebe-se uma tentativa de abertura institucional de
diálogo social por parte do IPHAN, por outro sabe-se que não será apenas pelo
trabalho daquele órgão que se poderá alcançar uma transformação social e espacial
daquele ambiente urbano em nome de um reconhecimento legítimo dos conflitos
simbólicos ali existentes. Trata-se de mudança significativa e necessária, mas não
suficiente.
Dois novos acontecimentos institucionais ocorridos na cidade
recentemente apontam a possibilidade de novos conflitos que possivelmente
deverão abranger de forma mais ampla a sociedade ouro-pretana na direção de uma
dominação autônoma de seu espaço. Um deles me parece menos importante, mas
digno de nota, que é abertura de um curso de Arquitetura e Urbanismo na
Universidade Federal de Ouro Preto. Menos importante por dois motivos estruturais.
O primeiro deles é que, tradicionalmente, os alunos desta Universidade são, em boa
parte, advindos de cidades outras que não a própria Ouro Preto e para acabam
por regressar findo o tempo de graduação. O segundo motivo parece-me mais
esclarecedor, que é a própria característica ainda reinante em nos cursos de
arquitetura e urbanismo, que não se pautam por uma apropriação concreta da
realidade local como meta de ensino. Não se trata de característica nacional, como
190
se pode perceber pela leitura da obra de Garry Stevens (2003) já citada neste
mesmo trabalho, mas característica ainda por ser rompida no próprio campo da
arquitetura. Existe, porém, certa possibilidade de que este curso traga novos ares ao
debate deste campo e possa seguir a herança inicial da Escola de Minas que, em
seus tempos de fundação, trouxe inovações ao ensino universitário brasileiro
exatamente por se pautar em trabalhos voltados para o entendimento da realidade,
no caso, geológica, do espaço em que se se inseria, como nos conta JoMurilo de
Carvalho (2002). De qualquer maneira é importante o fato de que novas produções
críticas passarão a ser realizadas sobre aquela cidade a partir de novos olhares.
No entanto, é no novo curso de Tecnólogo em Conservação e
Restauração de Imóveis, criado pelo Instituto Federal de Minas Gerais, antigo
CEFET, assim como no Curso Técnico em Conservação e Restauração de Bens
Culturais da Fundação de Arte de Ouro Preto que se encontram possibilidades de
alteração dos rumos de debate e de práticas técnicas e simbólicas naquele espaço.
Para que se compreenda a importância deste curso, relata-se aqui um
fato ocorrido com uma das entrevistadas, ex-funcionária do IPHAN e atual
professora deste mesmo curso, Maria Cristina Rocha Simão
81
. Conta a entrevistada
que, ao realizar uma obra de reforma em sua casa, que está inserida no centro
histórico tombado da cidade, sugeriu-lhe o operário local responsável pela obra a
substituição da estrutura antiga de madeira de sustentação do piso por laje de
concreto, alegando a facilidade da execução e a descartabilidade daquele todo
construtivo. Este comportamento do operário da construção local denota a
apropriação do discurso desenvolvimentista que ganha reforço pelas supostas
condições de facilidade técnica e econômica advindas da industrialização parcial da
construção civil. Não querendo produzir mais um “falseamento”, procurou a
entrevistada um engenheiro especialista em técnicas construtivas que lhe sugeriu a
manutenção do madeiramento, que é mais aconselhado, sobretudo, devido ao
excesso de umidade daquele local. Teve o operário, contrariado, que substiituir as
madeiras antigas por novas. O que mais surpreendeu a entrevistada foi que, além da
81
Importante ressaltar que a entrevista não se pautava sobre a caracterização deste curso ou sobre
alguma reflexão próxima à que se realiza nesta conclusão, mas sobre sua atuação no IPHAN e sua
condição de moradora da cidade. A percepção da importância do curso ministrado pela entrevistada
se deu em reflexões posteriores, apenas ao se entrar em contato com a realidade contemporânea da
cidade de forma mais incisiva durante a pesquisa.
191
manutenção de técnica construtiva adequada, esta condução da obra lhe saiu mais
barata que “bater a laje”.
Ora, era de se esperar tudo, menos a economia de recursos. Tal fato
contraria qualquer impressão apressada a respeito de métodos construtivos
contemporâneos. Mais do que isso, alerta para o fato de que a transformação
industrial, pautada na racionalidade, não resposta a qualquer problema que se
lhe põe, mesmo quando se trata de questão tão racional como a economia. Este fato
acaba por demonstrar a insustentabilidade do discurso conciliador iphaniano. Não
a forma de se produzir espaço anterior à indústria se rompe com a chegada dos
novos processos, como o diálogo entre as mesmas pode se dar de forma
impositiva, “batendo a laje” sem muita reflexão sobre a técnica e suas
consequências:
O meio ambiente construído constitui um patrimônio que não se pode
deixar de levar em conta, que tem um papel na localização dos eventos
atuais. (...) Esses conjuntos de formas ali estão à espera, prontos para
eventualmente exercer funções, ainda que limitadas por sua própria
estrutura. O trabalho já feito se impõe sobre o trabalho a fazer. (SANTOS,
1999, p.113)
Esta imposição do trabalho já feito constitui-se em ruptura e deve como tal
ser encarada. As cidades não nasceram da indústria, como nos conta Lefebvre, e
deverão permanecer, transformando-se, quando a premência daquela diminuir ou se
transformar, o que de certo modo se percebe na sociedade contemporânea,
apressadamente chamada por alguns como sociedade pós-industrial. E é nesse
contexto que se percebe o surgimento daqueles cursos como peças-chave para uma
futura transformação do modo de se produzir espaço em Ouro Preto, numa ponta
que pode ser possivelmente contrária às alterações mercadorizantes.
Pela primeira vez depois de muito tempo os moradores da cidade de Ouro
Preto, como são a maioria daqueles que estudam nos referidos institutos, realizarão
um encontro crítico com sua forma original de construção. Serão abastecidos de um
discurso que lhes foi negado durante décadas sob a alegação da condição alteada
do especialista oficial. As ferramentas técnicas que receberão nestes cursos
proporcionarão a criação de um campo de saber que possibilitará o desenvolvimento
crítico a respeito das cnicas de produção espacial e, como se disse acima é
“através do processo da produção, [que] o “espaço” torna o “tempo” concreto”.
192
Portanto, não estarão apenas resgantando um savoir-faire perdido, como nos serve
de exemplo o discurso do operário da reforma acima relatado, estarão os ouro-
pretanos recebendo ferramentas de compreensão de seu tempo, de seu passado e
de seu presente. Não como não haver interferência em seu futuro. O espaço
cordial deverá sofrer, de alguma forma, alguma mudança:
[...] o mesmo objeto, ao longo do tempo, varia de significação. Se as suas
proporções internas podem ser as mesmas, as relações externas estão
sempre mudando. uma alteração no valor do objeto, ainda que
materialmente seja o mesmo, porque a teia de relações em que está
inserido opera a sua metamorfose, fazendo com que seja substancialmente
outro. (SANTOS, 1999, p.78, grifo do autor)
Esta mudança valorativa do objeto patrimonial, que reflete de forma
decisiva na re-significação da cidade por seu habitante pode representar um
movimento a favor do aprimoramento da cidadania, ou da construção de uma
relação social outra mais consistentemente pautada na relacionalidade, no conflito e
que consolide uma espécie de direito ao patrimônio. A construção simbólica, e
prática, de um patrimônio da forma como aqui se relatou, ou seja, centrada em um
autoritarismo voltado para uma seleção memorialista desigual, senão exclusivista,
não retira a necessidade de existência de um patrimônio. O avanço da sociedade
urbana se dará a partir da ampliação da forma de se construir a memória espacial de
cada lugar, abrangendo diversos extratos sociais e temporais como representantes
históricos e de recordação. Esta ampliação da capacidade técnica pode significar um
ganho para aqueles que creem na ampliação de mecanismos a favor da cidadania e
contra a mercadorização das relações sociais. Da mesma forma, significará um
ganho para a alteração dos padrões cordiais da sociedade, diminuindo o espaço de
entrada do comando autoritário ao permitir que determinada camada social se
reaproprie de seu passado através de sua produção espacial.
Não se quer aqui deixar como conclusão uma carga de otimisto
exagerado em relação às possibilidades de mudança nas relações sociais e
espaciais da cidade. Há inúmeras limitações em jogo, como a possibilidade de
utilização destes cnicos e de sua técnica como aceleradores da nova forma de se
produzir espaço sob o tempo acelerado do mercado; assim como um obstáculo
na criação deste curso concomitante com o de Arquitetura e Urbanismo que deverá
proporcionar inúmeras dificuldades no reconhecimento profissional deste novo
193
técnico em nome de um discurso corporativista de reserva de mercado do outro
profissional consolidado. No entanto, o fato é que aparece, depois de grande
lacuna, uma possibilidade de apropriação de discurso técnico que permita o
surgimento de conflito capaz de concretizar uma discussão política geradora de
momentos de apropriação da cidade a partir de seu valor de uso; trazendo, assim, à
cidade símbolo da nacionalidade cordial uma lufada daquilo que, neste trabalho, se
chamou de urbano.
Os dias nunca amanhecem serenos; o ar é um nublado perpétuo; tudo é
frio naquele país, menos o vício, que está ardendo sempre [...] a terra
parece que evapora tumultos; a água exala motins; o ouro toca desaforos;
destilam liberdades os ares; vomitam insolências as nuvens; influem
desordens os astros; o clima é tumba da paz e berço da rebelião; a
natureza anda inquieta consigo e, amotinada por dentro, é como no
inferno (CONDE DE ASSUMAR apud MELLO E SOUZA, 1999, p.88
82
)
82
Trata-se de trecho do famoso Discurso Histórico e Político do Conde de Assumar, Governador das
Capitanias de São Paulo e Minas Gerais realizado para justificar a execução de Filipe dos Santos e
que demonstra como já foi Ouro Preto um local de resistência aberta e constante ao poder de
dominação política.
194
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.
201
ANEXOS
ANEXO A – Ouro Preto, MG: conjunto arquitetônico e urbanístico (Ouro Preto, MG)
Descrição:Descoberta em fins do século XVII a área onde se situa a cidade de Ouro Preto, sua
ocupação se efetivou na primeira década do século seguinte, distribuindo-se os habitantes
pioneiros em núcleos esparsos, localizados nos morros ou às margens de córregos onde era maior a
afluência do ouro. Em 1711, ao ser erigida oficialmente a vila, os arraiais primitivos já se encontravam
interligados, desenvolvendo-se daí por diante o seu tecido urbano, tal como se hoje, entrecortado
de becos, travessas e ladeiras, com as ruas principais acompanhando o desenho topográfico dos
morros e córregos. A população cresceu rapidamente e as primeiras capelas foram insuficientes para
atender as necessidades religiosas de seus habitantes, surgindo por volta de 1730 os edifícios
definitivos das matrizes de Nossa Senhora do Pilar e Conceição de Antônio Dias. A fase áurea da
produção se estendeu de 1725 até mais ou menos 1750, quando começam a ser notados os
primeiros sintomas da decadência das minas. O grande êxito da atividade nesse período se reflete
nas moradias, que ganham novos acréscimos, suas varandas de trás se ampliam, surgem os forros
de madeira, as portas e janelas ganham almofadas. Apesar desse esplendor, a taipa e o pau-a-pique
ainda não haviam cedido lugar ao quartzito do Itacolomi, só aproveitado mais tarde, na construção do
Palácio dos Governadores, iniciada em 1747. Somente na segunda metade do século XVIII é que Vila
Rica começou a tomar o aspecto atual. O surgimento das duas principais Ordens Terceiras do Carmo
e São Francisco, entre 1740 e 1760, compostas pelas classes mais abastadas, se reflete de maneira
favorável no movimento de construção das igrejas e até mesmo no valor estético desses
monumentos, pois, como se sabe, a rivalidade entre as ordens terceiras e as irmandades determinou
a construção de algumas obras-primas do Barroco e do Rococó no segundo quartel do século XVIII,
nas quais trabalhariam tanto os mestres portugueses como uma primeira geração de artistas
mineiros, principalmente mulatos, esses últimos com uma nova e mais livre interpretação dos
elementos formais, a exemplo de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, o mais importante nome da
época. Assim, a vila estava urbanamente definida e grandes obras públicas são erigidas, como o
Palácio dos Governadores, os inúmeros e bem ornamentados chafarizes, as sólidas pontes de
cantaria. Nesse período, as primitivas construções particulares de canga ou pau-a-pique cedem lugar
a prédios com reforço de alvenaria, com maiores requintes de acabamento e surgem também
empreendimentos urbanos de maior vulto. Até fins do século, a vila viu melhorar o seu arruamento,
com praças e ruas pavimentadas em pedra. Estão construídas ou em fase de conclusão, dentre
outras, as Matrizes de Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora do Pilar de Antônio Dias, as
belas igrejas do Carmo - construída a partir de 1767, uma das mais ricas, cujo risco foi modificado
pelo Aleijadinho tornando seu frontispício curvo e as torres circulares - e de São Francisco de Assis
(1766) - obra-prima do Aleijadinho, onde a dinâmica barroca se verifica a partir do frontispício em
planos, destacando-se a portada monumental. Destacam-se ainda a bela Igreja de Nossa Senhora do
Rosário, sede de uma irmandade de pretos, cuja planta é toda resolvida em curvas, e a Igreja de
Santa Efigênia, pertencente a outra irmandade de pretos, pelo seu excepcional conjunto de talha,
202
tendo ali trabalhado o entalhador e escultor Francisco Xavier de Brito, que igualmente colaborara na
Matriz do Pilar. A par, porém, dessas criações marcantes, seria impossível mencionar inúmeros
outros exemplares da arquitetura religiosa de Ouro Preto que apresentam características notáveis
tanto na arquitetura, quanto na arte das esculturas e nas pinturas do seu interior. Cabe porém
ressaltar a singularidade do Barroco local, onde se verifica a perfeita adaptação dos modelos
tradicionais portugueses às condições e aos materiais locais, como o emprego da alvenaria caiada
com pedra-sabão. É também interessante observar a evolução da decoração interna da influência do
Barroco português para as soluções mais leves do Rococó. Quanto à arquitetura civil, embora nem
sempre adote soluções imponentes, caracteriza-se sobretudo pela elegância das formas, conferindo à
cidade uma ambientação extremamente agradável e uniforme. Entre seus melhores exemplares, o
Palácio dos Governadores, projetado por Alpoim, domina a praça principal e lembra o poderio colonial
até mesmo em seu aspecto semelhante ao de uma fortaleza. Do outro lado da mesma praça fica a
Casa de Câmara e Cadeia (atual Museu da Inconfidência), projetada pelo governador Luís da Cunha
Menezes, predominando em suas linhas o espírito neoclássico. Já a Casa dos Contos vincula-se
muito mais aos modelos do norte de Portugal, com seus fortes cunhais de pedra e seus detalhes mais
eruditos também trabalhados em cantaria. Sobressai ainda na cidade, a beleza de seus inúmeros
chafarizes barrocos que, singelos ou eruditos, empregam o vocabulário formal do estilo com grande
criatividade, a exemplo dos chafarizes do Passo de Antônio Dias, dos Contos, de Marília, da Glória,
entre outros, além de pontes e capelas dos Passos. Mais do que todas as cidades coloniais mineiras,
Ouro Preto conseguiu, por diversos fatores, manter a sua antiga imagem setecentista, constituindo-se
no exemplo mais autêntico da civilização urbana aqui implantada pelos colonizadores portugueses, o
que levou Ouro Preto, por decisão da UNESCO, à condição de Cidade Monumento Universal, em
1981.
Livro Histórico
Inscrição:512 Data:15-9-1986
Livro de Belas Artes
Inscrição:039 Data:20-4-1938
Livro Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico
Inscrição:098 Data:15-9-1986
Nº Processo:0070-T-38
Observações:A cidade de Ouro Preto foi erigida em
Monumento Nacional de acordo com o Decreto
22928, de 12/07/1933. O Conjunto Arquitetônico de Ouro Preto é um dos bens inscritos pela
UNESCO na lista do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, em 21/09/1980.
203
ANEXO B Texto “O homem cordial” de Luiz Caversan publicado na Folha
online.
204
205
ANEXO C – Questionário aplicado aos alunos do IFMG
Questionário de pesquisa referente à tese de doutoramento de Cláudio Rezende Ribeiro junto
ao PROURB-UFRJ
Nome:________________________________________________________
Profissão:______________________________________________________
Idade: _____ Sexo: Masculino/ Feminino
Natural de: Ouro Preto/ Outra localidade: ______________________
Endereço:___________________________________________________________
_________________________________________________________
e-mail (opcional):________________________________________________
Renda Domiciliar Mensal: (Salário Mínimo (
S.M
.) = R$465,00)
Até 5
S.M
.
De 5,1 a 10
S.M
.
Mais que 10
S.M.
Quantidade de pessoas por domicílio:_________________
1 – Você gosta de morar/trabalhar/estudar em Ouro Preto?
Sim Não
2 – Você pretende se mudar de Ouro Preto?
Sim Não
3 Você acha que Ouro Preto ser um monumento nacional é um fator
positivo?
Sim Não
Por quê?_______________________________________________________
___________________________________________________________________
_________________________________________________________
4 Em sua opinião, quais das instituições abaixo exercem maior ou menor
influência na cidade de Ouro Preto? (numere de 1 a 5, sendo 1 o mais
importante)
Prefeitura Municipal de Ouro Preto
Câmara dos Vereadores
Tribunal de Justiça
IPHAN
Governo Estado de Minas Gerais
206
5 Marque as opções abaixo que melhor caracterizem, em sua opinião, as
formas de atuação das respectivas instituições (marque, no máximo, três
opções):
5.1 - Prefeitura Municipal de Ouro Preto
Acessível Centralizadora Autoritária
Democrática Inacessível Participativa
5.2 - IPHAN
Acessível Centralizadora Autoritária
Democrática Inacessível Participativa
5.3 – Câmara dos Vereadores
Acessível Centralizadora Autoritária
Democrática Inacessível Participativa
6 Quais das características abaixo melhor definem, em sua opinião, o que
Ouro Preto simboliza?
Liberdade Beleza Arte
Revoltas Progresso História
Riqueza Repressão Atraso
Passado Presente Futuro
Minas Gerais Brasil Cidadania
7 Qual das imagens abaixo melhor representa, para você, a cidade de Ouro
Preto?
A -
B -
8 Para você, em poucas palavras, o que de melhor e de pior em morar em
Ouro Preto?
Melhor:
Pior:
207
9 – Em qual lugar de Ouro Preto você mais gosta de permanecer?
______________________________________________________________
10 – Você se identifica com algum monumento de Ouro Preto? Qual?
11 Quais dos seguintes sujeitos sociais históricos você percebe
representado nos monumentos de Ouro Preto? (marque quantos desejar)
Igreja Mineradores Inconfidentes
Escravos Artistas Políticos
Mulheres Outros:__________________________________
12 Das opções que você tiver marcado acima, indique um exemplo de um
monumento ou de um lugar que as represente em Ouro Preto:
Igreja
Mineradores
Inconfidentes
Escravos
Artistas
Políticos
Mulheres
Outros
13 Ouro Preto é considerado um mbolo da nação brasileira. Você se
representado como cidadão brasileiro no espaço ouro-pretano? Em caso
afirmativo, onde e como?
___________________________________________________________________
___________________________________________________________________
____________________________________________________
14 – Conservar o patrimônio histórico, para você, é:
Um dever Um direito Ambos
Muito obrigado por sua colaboração!
208
ANEXO D – ENTREVISTA A BENEDITO TADEU DE OLIVEIRA
(Chefe do escritório técnico do IPHAN em Ouro Preto - concedida em 02 de abril de 2009, na sede do
Instituto em Ouro Preto.)
Como tem sido a relação entre os moradores de Ouro Preto e o IPHAN nos últimos anos, vo
acredita que ela tenha sofrido alguma mudança?
Não consigo avaliar algum tipo de mudança, pois estou aqui apenas sete anos. Na verdade,
acredito que tanto o IPHAN como os outros órgãos públicos, mas principalmente em relação ao
IPHAN que fez o tombamento da cidade, acredito que essa relação deve ter ficado tranqüila por
muitos anos, porque por muito tempo a cidade não cresceu. Mas as tensões começam a aparecer na
medida em que a cidade começa a crescer e a se modificar. O IPHAN até fez alguns programas de
educação patrimonial através do Museu da Inconfidência, mas não houve uma política rigorosa de
esclarecimento do porque do tombamento, da importância do monumento, do porque das
legislações... Isso realmente não houve. O IPHAN não tem gente, não tem recurso técnico nem
humano para abordar este tipo de ação. A ação nossa aqui é praticamente de fiscalização e punição.
Então, realmente, o IPHAN é uma entidade que não é muito simpática na cidade. Apesar de que se
não fosse o IPHAN Ouro Preto teria “desaparecido” ou descaracterizado muito tempo. Eu tenho
a impressão que é uma entidade antipática e é também uma instituição que, pelos atendimentos que
eu faço hoje não é dia de atendimento e pela maneira que as pessoas chegam aqui, é uma
instituição que também causa medo.
Levando-se em consideração que esta falta de recursos humanos é crônica no IPHAN...
Desde a morte de Aloísio Magalhães que o IPHAN entrou nessa decadência e até hoje não se
recuperou totalmente.
Exatamente... Mas, ainda assim, vocês vêm tentando algo para suprir este déficit de abertura
do IPHAN para com a comunidade?
Com o quadro técnico que a gente tem, é impossível! A gente não conta nem de fiscalizar a
cidade... É quase como pegar uma pessoa e lhe entregar uma arma e soltar na Amazônia e lhe dizer:
vigie a Amazônia! (risos). Mas a atual presidência tomou uma iniciativa e está montando um projeto
que está sendo implantado de forma pioneira aqui em Ouro Preto e que se chama “Casa do
Patrimônio”, cujo objetivo é fazer uma aproximação com a comunidade, inclusive propondo ações que
a beneficiem e que dessa forma possam melhorar um pouco a imagem do IPHAN na cidade. Este
projeto está se iniciando agora.
Agora, o IPHAN, acho que na época do Aloísio Magalhães, já foi mais simpático. Possuía inclusive
uma equipe treinada e que fazia obras de graça para as pessoas carentes. Isso realmente é uma
209
coisa bacana. Agora, ficar aqui fiscalizando e abrindo ações, que, por sua vez geram multas...
pessoas que tem certas multas que cresceram tanto que hoje o próprio valor do imóvel não paga.
Qual a composição do corpo técnico do IPHAN de Ouro Preto atualmente, são em maioria
arquitetos e urbanistas ou não?
Quando eu cheguei aqui, em 2002, o IPHAN tinha um faxineiro, que não era do IPHAN, a Simone,
que é historiadora, a secretária, e um técnico, só. De para melhorou, hoje você tem uma
arquiteta e um engenheiro, além de mais outros dois funcionários que foram transferidos para cá.
Então, pode-se dizer que cresceu mais que cem por cento (risos).
Em relação ao partido adotado na obra do Hotel Pilão, o Centro Cultural da FIEMG, você
coloca, em um prefácio de um livro [da Anna de Grammont], exemplos que seriam similares
como o da torre sineira de Veneza e do centro histórico de Varsóvia. Independente destes
exemplos, o partido adotado é uma escolha de valorizar a harmonia da paisagem consolidada
de Ouro Preto, principalmente na época de seu tombamento. Existe algum debate por uma
valorização pelo contraste, ou seja, da inserção de objetos novos em Ouro Preto? Como se
este debate aqui no IPHAN?
A pessoa mais indicada para falar disso sou eu mesmo. (interrupção breve da entrevista por um
funcionário). quem está sentado aqui sabe como foi que aconteceu e porque teve este desfecho.
Numa situação desse tipo - eu tenho uma reflexão pequena - mas eu estou sempre atento a este
tema desde a época que estudei na Itália. Este é um tema que causa muita polêmica. Numa situação
deste tipo você tem mais ou menos três, segundo Bruno Zevi, opções. Aqui a gente teve quatro: a
primeira seria deixar o lote vazio, até houve uma proposta da Associação Comercial de deixar o lote
vazio com as ruínas, encaminhada inclusive para o Ministro da Cultura. A segunda seria fazer uma
coisa moderna contrastante, não precisaria nem ser contrastante, uma intervenção moderna no
sentido de contemporânea; a terceira, fazer uma reconstrução e a quarta uma construção que
reinterprete todo o seu entorno. Bom, deixar o vazio foi descartado porque não daria para ficar com
esta lacuna que seria uma agressividade devido ao incidente do incêndio, seria difícil de se sustentar
uma proposta assim. Colocar um edifício moderno, muito contemporâneo, também poderia causar
essa estranheza, seria como no caso de ter uma falha em um dente e se colocar um dente de ouro:
por exemplo, uma edificação de vidro e com teto jardim seria uma loucura; teríamos que fechar a
Casa da Baronesa” e irmos embora daqui. Até hoje o pessoal ainda não engoliu o Grande Hotel do
Oscar Niemeyer, imagina se faz um negócio assim. O correto seria fazer uma intervenção que
mostrasse que é de hoje, mas que conseguisse re-equilibrar essa harmonia da praça. vem a
pergunta: quem faria isso? Eu cheguei a dizer que teriam três pessoas que fariam isso, sendo que
duas já estavam mortas: uma seria a Lina Bo Bardi, a outra seria melhor ainda que foi o arquiteto que
acredito influenciou a Lina Bo Bardi, que é o Carlo Scarpa... E o Álvaro Siza, talvez. No Brasil o sei
se teria... Podia até ter, mas acontece que não foi assim. O lote era de um proprietário particular.
210
Quem comprou o imóvel foi a FIEMG, que já chegou aqui com um arquiteto contratado, despreparado
para este tipo de intervenção, até possuía muita experiência técnica, mas não para enfrentar este
tema. E chegou também aqui com o projeto em estágio bem avançado. Eu tentei evitar ao máximo a
reconstrução e tender um pouco para uma reconstrução mais simplificada que garantisse a unidade
arquitetônica da Praça Tiradentes, mas que de uma certa forma pudesse mostrar que foi uma
reconstrução, uma intervenção contemporânea. Foi um tremendo esforço. Tive uma reunião com o
presidente da FIEMG em sua sede onde ele disse, que lançaria lajes de concreto no projeto e
desapareceria com todas as ruínas - pois nós conseguimos salvar grande parte das ruínas. Obtive
então o apoio do Ministério Público. E o arquiteto teve que simplificar ao máximo os elementos
construtivos e arquitetônicos, salvando as ruínas, e tentar identificar os fragmentos que restaram. As
ruínas estão dentro, sendo fácil identificá-las e na fachada eles não conseguiram dar uma boa
solução e além de tudo em um final de semana que eu estava no México participando de um
congresso, a fachada que restava caiu, o que foi motivo de ação pública...Foi o máximo que
consegui, com muito esforço. Tem essa ação correndo pedindo indenização para a FIEMG por causa
do desabamento da fachada...Bom, não poderia ser muito diferente porque qualquer coisa muito
diferente disso ia causar uma reação popular. que entra a questão da afetividade que eu cito
exemplo do campanário de Veneza e da praça do Mercado de Varsóvia e uma intervenção maior
ainda que eu conheci antes da queda do muro de Berlim. Assisti a um filme sobre o tema no sindicato
dos arquitetos da Rússia...Leningrado foi praticamente toda reconstruída e eu vi uma cerimônia
filmada no dia em que eles conseguem restaurar uma escultura de um jardim, não do Palácio do
Inverno, mas do Palácio de Verão, toda em ouro, baseada numa fotografia...então na hora em que
essa escultura sai pela cidade a população toda sai correndo atrás, você imagina o que é isso?!
Então a reconstrução nesse caso tornou-se legítima, como em certos casos, danos de guerra,
grandes acidentes...ou que envolve honra nacional. E isso aqui não é muito diferente considerando
que se fizesse uma pesquisa, como a Anna [de Grammont], inclusive, fez. E todo mundo fala que
seria correr contra a corrente fazer uma intervenção muito diferente. Poderia, eu acho, existiria a
possibilidade de ser feito uma intervenção de reinterpretação, mas teria que ser muito sutil.
(mais uma breve interrupção)
É fácil ler a Carta de Veneza e entender que se deveria fazer algo diferente, atual. o recebi muitas
críticas e se recebesse estava bastante preparado para argumentar. Mas é fácil ler a Carta e dizer
algo...a Carta é o quê? É quase que uma “mini-legislação” que reflete um pensamento que está por
detrás e que as pessoas não conhecem, da teoria e história do restauro. Então quando se lê
desavisadamente uma Carta corre-se o risco de sair falando bobagem.
Pode-se realmente acreditar que aquilo é uma verdade consensual... E porque a idéia de se
fazer um concurso de arquitetura se impossibilitou, foi devido a vocês não acreditarem nesta
possibilidade ou porque a FIEMG já impossibilitou uma ação como esta?
211
Já chegou com o arquiteto, com o contrato assinado. Tinha todo tipo de pressão para executar a obra
em um prazo curto. Foi praticamente impossível.
As intervenções que o IPHAN realizou que resultaram na eliminação do período eclético, assim
como a construção do Grande Hotel, criam uma sensação na população de que as
intervenções são legítimas quando é o IPHAN que as faz? Isso chega a ser colocado para
vocês?
O pessoal fala isso. Às vezes até com certa razão. Colocando que existem dois pesos, duas medidas.
Não apenas em relação ao IPHAN poder realizar mudanças, mas que algumas pessoas podem e
outras não. A questão das intervenções na arquitetura eclética não me parece ser percebida pela
população. Mas existe uma questão com o Grande Hotel. Mas porque disto, onde está a origem
disto? Eu acho que está no próprio IPHAN. No momento que o IPHAN faz este tipo de intervenção
tentando transformar a arquitetura do século XIX em arquitetura do século do XVIII, na tentativa do
IPHAN também orientar as pessoas a fazerem casas semelhantes àquelas do século XVIII, que a Lia
Motta chama de arquitetura do patrimônio...ela chama não, o povo é que chama...
Estilo patrimônio...
É, estilo patrimônio. Qualquer coisa diferente disso a população estranha. Ainda estranham o Grande
Hotel, estranham o que se tiver de diferente e moderno.
A população aqui me parece ter uma referência no IPHAN, para certas coisas, mais forte que
na Prefeitura. Para questões do cotidiano urbano.
Acreditam mais no IPHAN. A prefeitura começou a entrar com mais força nesta área recentemente.
Existe algum questionamento de legitimidade de seu cargo, ou seja, pelo fato de você não ser
eleito como um prefeito o é?
falaram sim. Depois que a gente conseguiu fazer uma demolição em um supermercado, surgiu a
“associação patrimonial” de Ouro Preto.
A APOP...
Na verdade o cara que montou a APOP, além de despreparado é um oportunista que iludiu os que
tinham obras irregulares e estavam com processo, dizendo que ia resolver seus problemas. Resolveu
então enfrentar o IPHAN e ele chegou a fazer este tipo de questionamento. Na verdade ele é
presidente de uma associação de infratores, que são processados pelo IPHAN.
212
Você acredita que um projeto como a Casa do Patrimônio vai trazer uma legitimidade maior, e
mesmo um entendimento maior do trabalho do IPHAN junto à população, e que isso possa
mais tarde gerar uma pressão de maior abertura do IPHAN em relação à sua gestão, não como
deseja a APOP, mas você enxerga esta possibilidade?
Vai depender da continuidade do trabalho. Porque às vezes se inicia um trabalho e não se conclui. E
também depende da abrangência deste trabalho. Não se pode dizer com segurança se isso vai dar
certo, pois o problema é muito grande. Existe um passivo que, por mais que se trabalhe - agora
estamos trabalhando junto com a prefeitura - é uma coisa muito complicada de se reverter. Por
gestão mais aberta não sei bem o que você quer dizer, mas o IPHAN participa do GAT [Grupo de
Apoio Técnico da PMOP], participa de três ou quatro conselhos aqui na cidade, e também as
pessoas podem opinar, o próprio presidente da APOP participava de um desses conselhos.
Quando chegamos aqui em 2002, montamos um Comitê Consultor do IPHAN para suprir as
deficiências da prefeitura. Então tinham diversas entidades que estavam representadas para discutir
as questões mais graves. Depois, com a retomada do GAT, não tinha mais porque manter aqui este
comitê. Agora, a decisão do IPHAN é soberana, a decisão final é do IPHAN senão estaríamos
desrespeitando o Decreto Lei 25.
Mas veja, por exemplo, o GAT, o prefeito tentou colocar que a decisão do GAT seria soberana, o
próprio departamento jurídico do IPHAN disse não, pois não podemos abrir mão de nossa atribuição,
a aprovação final em relação a um bem tombado é do IPHAN, não tem outro modo de atuar. Você
pode até ouvir a todos, mas a decisão final é nossa.
O GAT foi retomado quando?
No segundo governo do Ângelo [Oswaldo, atual prefeito de Ouro Preto]. Foi criado no primeiro,
interrompido por outro prefeito e depois voltou.
Quando digo participação, por exemplo, refiro-me, por exemplo, a uma negociação na hora da
montagem de uma portaria como a atual 122, que as diretrizes de intervenção em Ouro
Preto.
Essa portaria tem origem mais antiga...só foi publicada em 2004, mas é de 1996, debatida no GAT
original, ouvindo os técnicos da UFOP, PMOP, IPHAN e IEPHA. Como eu estava sendo muito
questionado pela justiça, a coisa estava muito tensa, e essas regras não eram oficiais, resolvemos
publicá-las depois de realizarmos uma revisão. Mas será revista, de novo, agora. Pois ela só se refere
a uma Zona de Proteção Especial específica da cidade e não a todo o perímetro tombado, ao qual o
Plano Diretor regula. Adotaremos, portanto, as diretrizes do Plano Diretor, que foi elaborado de forma
participativa. Mas acho que é uma das poucas cidades que possui uma portaria publicada, uma regra
clara. Acho um absurdo esse número grande de cidades históricas sem nenhuma regra clara.
213
Muito obrigado pela entrevista.
Caso tenha mais perguntas pode me enviar por e-mail. E por fim ressalto a importância, para sua
pesquisa, da questão fundiária em Ouro Preto, que complica bastante as relações sobre o tema do
patrimônio, pela dificuldade de se verificar as escrituras e as dimensões dos respectivos lotes, não
tem lote aqui que bata com a escritura. Isso ajuda a explicar o porquê da existência dessas
ocupações em encostas, por exemplo.
Mais uma vez, obrigado pela entrevista.
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