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A
LTAIR FERRAZ NETO
REVOLUÇÃO SOCIAL E MST:
LIMITES E APROXIMAÇÕES
Londrina
2008
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A
LTAIR FERRAZ NETO
REVOLUÇÃO SOCIAL E MST:
LIMITES E APROXIMAÇÕES
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação, em Ciências Sociais da Universidade
Estadual de Londrina, como requisito parcial à
obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Eliel Ribeiro Machado
Londrina
2008
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ALTAIR FERRAZ NETO
REVOLUÇÃO SOCIAL E MST:
LIMITES E APROXIMAÇÕES
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Prof. Dr. Eliel Ribeiro Machado
Universidade Estadual de Londrina
________________________________________
Prof. Dr. Antônio Ozaí da Silva
Universidade Estadual de Maringá
________________________________________
Prof. Dr. José Mário Angeli
Universidade Estadual de Londrina
Londrina, 4 de Julho de 2008.
Dedico este trabalho aos meus pais,
Altair F. Filho e Jussara. Pela força
de todas as horas...
AGRADECIMENTOS
De alguma maneira, não poderíamos deixar de lado os agradecimentos, pela
etapa que se encerra com a consecução deste trabalho, simplesmente porque ao concluirmos um
estudo, chegamos também ao ponto de partida pelo qual trilhamos, na lembrança das pessoas que,
de uma forma ou de outra, estiveram presentes na pesquisa, no trabalho em si, no apoio, de
qualquer maneira, para que chegássemos até aqui.
Na famosa afirmação de Marx, “não é a consciência dos homens que determina
o seu ser, mas o contrário, é o seu ser social quem determina sua consciência”, encerra nosso
problema. Pois aqui não nos furtamos de aprender com o “nosso” social, com as conquistas e
com os amigos que fizemos nessa trajetória.
É claro que o desenvolvimento desse estudo, na etapa a que chegamos, não teria
sido possível sem os primeiros movimentos e o apoio do professor Eliel Machado, um batalhador
das grandes conquistas teóricas, com a vivência no dia a dia, e com quem tivemos um diálogo já
nas primeiras pegadas do GEPAL (Grupo de Estudos de Política da América Latina), do qual
fizemos parte, e que, sem dúvida, também contribuiu imensamente pelos debates, conversas,
simpósios e no intercâmbio com outros pesquisadores e colegas. Um agradecimento aos amigos
Jean e Rafael.
Agradeço aos professores e colegas de curso pelos diálogos e disposição em
compartilhar conosco idéias e conhecimento. Aos que, direta ou indiretamente, contribuíram na
formação desse trabalho, como o professor Pedro Roberto (UEL), pela semente lançada já na
primeira etapa da graduação, com o estudo do conceito de revolução, e onde pudemos fazer parte
na iniciação científica. À Capes, pela bolsa oferecida, e que nos veio em boa hora. Aos
funcionários do departamento de Ciências Sociais e da Pós-graduação da UEL. À Dik Pereira,
pela meticulosa revisão desse texto.
Aos grandes amigos, Luciano e Clarice, pela paciência, consideração e ajuda na
concretização desse trabalho, e no empenho pessoal em dividir conosco o objetivo de tornar
verdadeiros nossos anseios.
Gostaríamos de lembrar também do pessoal dos assentamentos, Ireno Alves e
Marcos Freire, e os amigos de Laranjeiras do Sul/PR, Ana, Elizete, Preto, Sr. Orlando, Maurão,
que nos viabilizaram o transporte por uma imensa região que, hoje, são assentamentos, e as
informações que obtivemos, sem as quais não poderíamos ter concluído esse trabalho.
FERRAZ NETO, Altair. Revolução social e MST: limites e aproximações. 2008. 100f.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina,
2008.
RESUMO
Nas duas últimas décadas, desde a formação do MST, no Brasil, as recentes transformações no
capitalismo formaram um terreno propício à entrada do neoliberalismo enquanto projeto político
para o país. Isso corresponde dizer que a direção das lutas, anteriormente atreladas ao movimento
operário, foram, então, assumidas por movimentos populares e que, no caso do MST, ganham
projeção nacional. Com isso, o estudo transita pela noção clássica do conceito de revolução no
MST, e o quadro de lutas e embates que esse processo acarreta. Os avanços e os limites, nesse
sentido, constituem resultado de um processo histórico anterior, com contraditórias
especificidades, como o problema do campesinato, no interior do capitalismo, como possíveis
“sujeitos” sociais encontráveis nessa estrutura. A década de 1990, com as imposições do contexto
neoliberal, tornando fecundo o terreno às frações do capital ligadas ao setor financeiro, parecem
perdurar e ditar as novas direções mercantis no Brasil. Analisamos esse quadro questionando a
hipótese do MST como um movimento de caráter popular e decisivo: o potencial revolucionário
de um movimento que tem assumido a direção contestatória da maioria dos conflitos de terra, e
conquistado, em certa medida, “espaço” político na luta contra a hegemonia dominante.
Palavras-chave: Revolução. Neoliberalismo. MST. Transformação social.
FERRAZ NETO, Altair. Social Revolution and MST: limits and approximations. 2008. 100f.
Dissertation (Master Degree in Social Science) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina,
2008.
ABSTRACT
Over the last two decades, since the formation of MST, in Brazil, the recent changes in capitalism
formed a propitious terrain for neoliberalism to settle as a political project for the country. This
equals to stating that the leadership of the movement, previously connected to the labour
movement, have been taken over by popular movements and that, in MST's case, gains nation-
wide projection. As a result, the research travels through the classical notion of the concept of
revolution within MST, and the big picture of fights and battles that such process leads to. The
advances and the limits, in this sense, constitute the results of a previous historic process, with
contradictory specifities , as a problem of Campesinato's cause, within capitalism, as being
possible social “subjects” likely to be found in such structure. In the decade of 1990, with
imposition of the neoliberal context, making fertile the terrain to the fractions of capital linked to
the financial sector, they seem to endure and dictate the new mercantile trends in Brazil. We
analysed this subject questioning the hypothesis of an MST turning into a popular and decisive
movement that has taken the contestatory lead of the majority of the conflicts for land, and
achieving, to some extent, political “space” in the fight against the dominant hegemony.
Keywords: Revolution. Neoliberalism. MST. Social transformation.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 9
CAPÍTULO I – NOTAS SOBRE O CONCEITO DE REVOLUÇÃO SOCIAL E A
QUESTÃO DO CAMPESINATO ..................................................................... 13
1.1 A
LGUMAS NOTAS TEÓRICAS E POLÍTICAS SOBRE O CONCEITO DE REVOLUÇÃO
S
OCIAL ................................................................................................................... 14
1.2 O
PROBLEMA DA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL NA AMÉRICA LATINA E BRASIL ................ 22
1.3 A
LUTA POLÍTICO-IDEOLÓGICA DOS TRABALHADORES NO BRASIL A PARTIR DO FINAL
DA DÉCADA DE 1970.............................................................................................. 28
1.4 O
PROBLEMA DO CAMPESINATO E SEU PAPEL NO PROCESSO REVOLUCIONÁRIO............ 33
1.5 O
PROTAGONISMO DO CAMPESINATO NO BRASIL E O SURGIMENTO DE “NOVOS
S
UJEITOS ................................................................................................................ 41
CAPÍTULO II – MST: DA BASE SOCIAL À LUTA POLÍTICA NO BRASIL........ 46
2.1
MST: BREVE HISTÓRICO E A QUESTÃO DE SUA BASE SOCIAL........................................ 46
2.2 MST: E
STRUTURA ORGÂNICA E O PROGRAMA POLÍTICO NACIONAL............................. 58
CAPÍTULO III – AVANÇOS E LIMITES DAS POTENCIALIDADES
REVOLUCIONÁRIAS DO MST ...................................................................... 69
3.1 P
ALAVRAS INTRODUTÓRIAS ........................................................................................... 69
3.2 MST
E HEGEMONIA NEOLIBERAL NO BRASIL NA DÉCADA DE 1990 .............................. 69
3.3 A
LGUMAS CONTROVÉRSIAS TEÓRICAS SOBRE O LIMITE DAS LUTAS DO MST............... 80
3.4 EMBATES POLÍTICOS E IDEOLÓGICOS E UMA ALTERNATIVA POTENCIALMENTE
REVOLUCIONÁRIA .................................................................................................. 87
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 92
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 94
9
INTRODUÇÃO
O intuito desse estudo é levantar o problema do conceito de revolução no MST.
Para isso, priorizaremos a delimitação do conceito que vem nas pegadas de Marx e que,
indubitavelmente, sofre maiores considerações na teoria do campesinato de Lênin. Não queremos
enfatizar unicamente a teoria clássica para explicar nosso estudo, mas ressaltar que uma gama
enorme de trabalhos transita sobre as propostas do MST.
Elegeremos algumas teses e trabalhos de vários pensadores que já perpassaram
a problemática dos Sem-Terra, sem com isso esquecer que o problema da revolução no Brasil não
é um tema novo. Para tanto, objetivamos alcançar o debate preocupado mais com o problema do
que com o esgotamento do assunto por demais complexo. Problematizaremos, portanto, os
avanços e os limites que nos permitem estudar a trajetória política do MST, sobretudo na década
de avanço neoliberal dos anos 1990.
Ao centrarmos o foco neste período, sentimos que a necessidade de
complementá-lo ia além dos limites de nosso estudo. Por isso recorremos, no primeiro capítulo,
aos apontamentos que enxergamos como fundamentais do ponto de vista histórico sobre o
conceito de revolução social que abarca a teoria, e só posteriormente, sua problematização nos
acontecimentos na América Latina e no Brasil, especificamente.
O debate sobre as questões da terra e do universo agrário tem como sujeito o
campesinato e está, na atualidade, cercado por críticas que perpassam todas as discussões sobre
os “agentes” possíveis encontráveis para um processo político revolucionário. Nosso objetivo é
encarar a questão da seguinte maneira: a) entender que do ponto de vista histórico-social
existiram passagens que dinamizaram esse problema, como é o caso da revolução de Outubro em
1917, colocando questões nunca antes imaginadas pelo próprio Marx, e traduzindo o papel do
campesinato no processo revolucionário; b) analisar, ainda que brevemente, as relações entre as
lutas sociais no campo e o protagonismo destes sujeitos que, no âmbito das contradições do
capitalismo atual, estão num posicionamento crítico e combativo nas lutas populares,
reivindicando e até mesmo “exigindo” respostas dos mais diversos setores do aparelho de Estado,
mas curioso, quando vistos do ângulo das relações de produção diretas.
10
A escolha do MST nos pareceu inevitável, sobretudo por parecer óbvia a
importância que esse movimento social tem no panorama brasileiro e até latino-americano.
Poderíamos arriscar que nas décadas de avanço neoliberal no Brasil, nenhum movimento estivera
tão em voga como o MST, até mesmo frente às conhecidas “esquerdas” nacionais tão combativas
num passado próximo e de processos políticos ditatoriais, mas, que na atualidade enfrentam o
problema de sua relação com as massas. Portanto, nossa preocupação com os “dilemas” sobre
partido e sobre as questões que se referem a ele, estão nas considerações de um passado de luta
que perseguira as organizações de esquerda no Brasil, assim como os equívocos de sua leitura.
A representação e o contexto das lutas populares no campo que, em diferentes
períodos da história brasileira sempre existiram, nos chamaram a atenção pelo fato de se
pautarem pelo conteúdo político direto de reação coletiva, aí nos mais variados anseios e
objetivos, e também pela questão tão debatida sobre o campesinato no capitalismo brasileiro.
Nosso ponto de vista fica evidente quando enxergamos o campesinato, mesmo na atual fase, e em
condições de se posicionar politicamente.
No segundo capítulo, mergulhamos nas considerações específicas sobre o MST.
Aqui iremos desde um breve histórico do movimento até o problema que cerca a questão da terra
sobre a clássica contradição, hoje ainda mais evidente, entre a renda e a posse, a propriedade que
é discutida e colocada em “xeque” pelo MST quando ocupam e tornam públicos os elementos
dessa lógica, jurídica e politicamente.
Para tanto, é necessário uma maior consideração sobre as questões de sua atual
base de sustentação, que são os agentes sociais que compõem o movimento, conferindo hoje ao
MST uma heterogênea formação de seus integrantes. Esse quadro coaduna com o fato e a
maneira como se estrutura o movimento. Sua locomoção no teor das políticas neoliberais é
importante, e diríamos até decisivas, no direcionamento das políticas públicas no campo
brasileiro, por isso, aqui neste trabalho nos ativemos à plataforma política que o MST cunhara
nestes anos de existência. Propostas que são por nós analisadas, como documentos e programas,
difundidos pelo movimento.
O próprio conceito de movimento social parece ser ultrapassado quando o MST
mergulha, em nível nacional, e extrapola o caráter localista e regionalizado, preservando, numa
estrutura orgânica bastante dinâmica, o conteúdo de cada especificidade.
11
Portanto, os avanços, os recuos e limites das potencialidades revolucionárias do
MST são, no terceiro capítulo, melhor discutidas. Essa potencialidade só poderia ser mais bem
analisada se discutíssemos anteriormente o avanço da década neoliberal que se consolidou na
década de 1990. Procuramos evidenciar que o quadro de lutas e embates que o MST trava com o
Estado é, na verdade, configurado por questões de classe e que são levadas, política e
juridicamente, para o plano das “reformas”. “Reforma agrária” pode ser um termo bastante
lúgubre neste panorama, por isso problematizamos esse conceito, usado de diferentes maneiras e
atendendo a diferentes interesses.
Os interesses das classes dominantes, em suas diversificadas frações com a
hegemonia do capital financeiro, parecem saltar por cima dos interesses mais elementares das
esferas do trabalho. No campo, na cidade, ou nas esferas intraburguesas, quando o latifúndio é
questionado, obriga frações importantes dessa mesma burguesia a se articular. O MST aparece
neste cenário. Quando nas imposições mais contraditórias que o neoliberalismo impôs ao Brasil,
enquanto projeto político, o MST também se articulou de diferentes maneiras, algumas até muito
criativas e conhecidas, como a lógica dos acampamentos.
Todavia, nosso objetivo não poderia ser outro senão o de distanciar a análise
das “receitas revolucionárias” das conjecturas socialistas idealizadas. Nosso ponto de vista
aborda algumas controvérsias importantes no âmbito das teorias sobre o MST, controvérsias que
criticam veementemente o movimento e sua articulação, tanto pela sua efetiva “base social”,
propriedade e capital, até a questão da noção de emancipação.
Por fim, consideramos os embates políticos e ideológicos das criações advindas
da luta do MST com a alternativa potencialmente revolucionária, formulada em nossa hipótese,
na medida dos questionamentos e das propostas conquistadas nessa luta por terra. Conquistar um
espaço, lutar coletivamente pela terra, produzir – ainda com todas as críticas que se possa fazer a
esse modelo, e discutir coletivamente os rumos, as estratégias e o enfrentamento direto são
formas de luta que não podem ser ignoradas.
Se as “invenções democráticas”
1
seguem o encalço dos “novos” sujeitos em seu
potencial transformador e desafiador dos moldes democráticos burgueses, no MST, o problema
1
Expressão utilizada por Machado (2004). Em sua tese Eliel Machado analisa as “invenções democráticas” dos sem-
terra no Brasil e dos piqueteiros na Argentina nos anos 1990, como avanços da luta contra o neoliberalismo e as
potencialidades que estas “invenções” cunham com muita “criatividade” no âmbito do papel político das lutas
populares como a dos sem-terra. O termo, portanto, toma rumo diferente do que em Claude Lefort.
12
de se cair numa contradição fundamental, nos assentamentos de reforma agrária, aponta um
limite. Acabam por reafirmar o panorama capitalista que pretendem questionar, até porque esses
indivíduos precisam produzir para viver. Mas a conquista da terra tem implicações estratégicas,
sobretudo nas mãos dos trabalhadores.
Com a conquista desse espaço de luta, os trabalhadores, na essência de sua base
social – o semiproletariado, agricultores semi-autônomos e a heterogênea camada que compõe o
MST –, também encontram nos anseios da inflamada luta no campo a abertura de espaços de
socialização política. A luta pode ser imediata, segmentada, equivocada, ou até descompassada,
porém, é no processo destes embates, na maioria das vezes, no confronto com a polícia, nas
ocupações, na precária condição de vida no campo, que se efetiva uma consciência, que é
também construída socialmente, seja no ideário da luta pela terra e reforma agrária, seja pela
própria sobrevivência. Talvez, os limites imponham restrições ao potencial da revolução,
contudo, é a própria revolução que irá criar seu próprio processo.
13
CAPÍTULO I – NOTAS SOBRE O CONCEITO DE REVOLUÇÃO SOCIAL E A
QUESTÃO DO CAMPESINATO
Se o tema da revolução parece instigante, incontestavelmente é, ao mesmo
tempo, espinhoso. Isso para não dizer que falar de revolução social às categorias do marxismo é
de posse da obra de Marx, no mínimo a reprodução do que já fora dito, ainda que a discussão
esteja fincada na contramão político-teórico-ideológica da doutrina neoliberal na atualidade, em
seu notável realismo alienante, pois assim como o conceito de revolução fora por demais
estudado, o próprio marxismo se configura como a ciência da transformação social. Portanto, a
“idéia de revolução” aqui neste trabalho segue acompanhando um processo de lutas e resistências
que se aplicam ao MST enquanto movimento social que parece encabeçar a direção dos
movimentos contestatórios ao neoliberalismo e suas vicissitudes no Brasil.
Uma importância político-ideológica recai sobre o MST, sobretudo na trajetória
de sua constituição e surgimento, dado que remeteremos em palavras posteriores do capítulo, mas
que, em linhas gerais, lembraremos da seguinte forma: o Movimento dos Trabalhadores Rurais
Sem Terra (MST) faz menção já a um contexto de significativas transformações no cenário
político brasileiro, sobretudo pela posição que parece assumir perante movimentos e partidos de
uma conhecida esquerda “revolucionária” no Brasil de décadas anteriores. Essa importância deve
ser relativizada, não somente pelo conteúdo e movimento que a expressão revolucionária coloca
nas mãos de certo dinamismo combativo das esquerdas em décadas anteriores, mas ainda pelo
intenso e contraditório período político-social dos anos 1990.
Neste capítulo examinamos, fundamentalmente, algumas questões teóricas
sobre o conceito de revolução social; problematizamos, sumariamente, o seu significado na
América Latina, a partir das experiências das revoluções cubana e sandinista para, a seguir,
refletirmos sobre as lutas sociais do final da década de 1970 que originaram o Partido dos
Trabalhadores (PT), a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e, um pouco depois, o próprio
Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST). Com isso, fazemos um exame teórico e político
do campesinato, principalmente a partir das contribuições leninistas, a fim de compreendermos,
minimamente, o protagonismo do MST na década de 1990.
14
1.1 ALGUMAS NOTAS TEÓRICAS E POLÍTICAS SOBRE O CONCEITO DE REVOLUÇÃO SOCIAL
Há uma imensa propensão, principalmente por parte de todo um conjunto
ideológico e que, de fato, a burguesia, num sentido amplo, passa a agregá-lo, em tornar a
revolução e todo seu conteúdo em algo “heróico”, de aspirações “apaixonadas”, fruto das
idealizações, em suma, individualizadas, das “figuras” centrais responsáveis por todo o processo
como verdadeiros “messias” à teologia, anulando, de alguma maneira, o papel e sustentáculo
principal das massas no processo.
Dialeticamente, sabe-se que o processo de produção e reprodução do capital
tende a seguir o caminho da acumulação. Nessa trajetória, onde “não há espaço para todos” na
divisão social da riqueza capitalista, o pólo detentor dessa mesma riqueza jamais poderia
prescindir de um aparato político-ideológico que, não somente escamoteasse essa dominação,
mas a garantisse.
O problema então poderia ser numérico, não fosse o fator principal residir na
própria condição de existência da classe despossuída. Despossuída de qualquer meio de produção
que não fosse sua força de trabalho e a sobrevivência. Essa condição tem sua explicação pelas
determinações econômicas, sociais e políticas no processo que, num primeiro momento, se
remete à propriedade privada dos meios de produção como condição primordial na exploração do
“homem pelo homem”.
Pois bem, essa própria estrutura de classes da sociedade capitalista permite,
assim, as idas e vindas de um processo contínuo de lutas conjunturais e permanentes que, no
limite, se pautam pela sobrevivência das classes em confronto. O essencial nisso tudo é a
aquisição, por parte do proletariado, de um pensamento que dê conta ao menos de revelar tais
contradições, num compasso em que a luta de classes é suscetível a várias adaptações. Por isso,
a idéia de revolução pode deixar de ser intensa em algumas conjunturas político-
sociais para ressurgir em outras, sem perenizar uma situação de total
esquecimento da transformação social. Devido à história ser caracterizada pela
transitoriedade das relações sociais (FERREIRA, 1999, p.XI).
O conceito de revolução social, quando visto desta forma, é obscurecido no
bojo das contradições de algumas conjunturas históricas, mas entendemos que, em outras, torna a
15
aparecer sem jamais perder seu conteúdo. Retomando nosso problema, é fato que, do rompimento
estrutural se vislumbra o primeiro olhar de uma emancipação social e humana. Dado o caráter
concreto do movimento social é que podemos pensar o movimento contraditório e permanente da
sociedade, com suas forças sociais – Estado, ideologias, etc. – onde rupturas radicais e
extraordinárias podem superar formas históricas de sociabilidade. Portanto, faz sentido, na
atualidade, mais do que nunca, a compreensão do conceito, sobretudo por dar o devido apreço à
afirmação de que “nenhuma formação social desaparece antes que no seu seio se desenvolvam
todas as forças produtivas que for capaz de conter” (MARX, 1983, p.25), colocando o próprio
Marx na pauta do dia e enriquecendo o campo teórico dos pensadores do real, já rico em
determinações
2
.
A ciência segue o seu tempo, e nem mesmo a maior das construções teóricas
pode antecipar esse tempo. Relembrando Lênin que, parafraseando Marx e Engels, chamava
atenção para o fato de que o início da revolução socialista, ao se configurar em um país de
capitalismo atrasado, inflamaria o processo também em nações desenvolvidas. Nem mesmo Rosa
Luxemburgo, e o próprio Trotsky, com sua concepção de revolução permanente, “libertaram” o
pensamento marxista das imposições atuais. Por isso, é importante ressaltar que, na “roda
gigante” do movimento histórico, o modo de produção capitalista – a totalidade concreta a que
nos referimos – desenvolve em seu interior importantes transformações que o fazem adquirir
especificidades bem diferentes do capitalismo no século XIX. Assim, não é algo novo constatar
que o marxismo atual, frente os avanços do capitalismo contemporâneo, teve de fato que
apresentar uma auto-reflexão crítica que, nas palavras de Robin Blackburn, “amplia e desenvolve
as idéias de Marx em áreas onde haviam permanecido vagas e ambíguas, dando margem a
interpretações erradas” (BLACKBURN, 1993, p.115).
O desdobrar dos acontecimentos devem entender a dicotomia capital-trabalho,
melhor dizendo, o embate primeiro da totalidade capitalista e suas metamorfoses. O que não
constitui tarefa fácil, ainda que não enderece imediatamente nosso objeto. Importantes
transformações na reprodução do trabalho assalariado que, por sua vez, fizeram a classe operária
fabril se tornar minoritária, principalmente a despeito da crise ideológica provocada pelo declínio
do chamado “socialismo real”, com suas especificidades nos dias atuais, não devem ser
2
A teoria da revolução ocupa o pensamento de autores importantes no Brasil. A julgar pelos trabalhos de Aarão Reis
Filho (1990) e por que não citar Caio Prado Jr. na sua A Revolução Brasileira.
16
pormenorizadas. Destas transformações, sobrevém um questionamento central a toda teoria
marxista, que passa por “encaixar” o proletariado fabril não mais como única força
revolucionária existente, tendo de analisar, no interior das mudanças no capitalismo do século
XX, a presença cada vez mais acentuada do Estado e seu papel no próprio setor produtivo-
industrial, redefinindo toda a estrutura de classes.
A esse quadro, nas últimas décadas, se acrescenta a reforma capitalista
neoliberal, com suas inelutáveis transformações do sistema historicamente determinado. O que
parece conduzir, no entendimento de alguns estudiosos, o pensamento marxista para o campo das
reformas. Daí autores como Jacob Gorender (1998), por exemplo, questionarem os limites e
potencialidades: será que o marxismo, e as diferentes correntes no bojo de sua composição, se
vêm frente a seu maior obstáculo, quando questionadas sobre o modelo liberal, posto que ora
deixam de lado a ruptura estrutural como tal, pensando efetivamente em reformas da estrutura
capitalista
3
?
É claro que a dificuldade de se entender, no interior desse quadro
contemporâneo, os “novos sujeitos” para um processo de politização revolucionário está
colocada. A constatar a pequena burguesia, resistente ao processo efetivo de proletarização, o
trabalho informal, a prestação de serviços, a questão do campesinato e o próprio trabalhador
assalariado, como fora levantado. A esfera do trabalho assalariado, em suas várias instâncias,
continua perdendo conquistas significativas diante da globalização sob a égide do capital
financeiro e seu “parasitismo” (GORENDER, 1998, p.63). A atualidade se defronta com a
3
O pensamento reformista não poderia deixar de ser mencionado neste trabalho, ainda que como breve nota,
sobretudo pelo debate acerca da ruptura estrutural e da questão “reforma ou revolução?”. Contra a proposta
revolucionária enquanto ruptura estrutural violenta, o revisionismo de Bernstein (1997), as mudanças viriam de
encontro a um fundamento que partiria assim do próprio capitalismo, desmentindo certas previsões marxistas, apesar
de se apoiar no teor do seu pensamento. Em seu Postulados do Socialismo, Bernstein limitava, por assim dizer, o
alcance do materialismo histórico onde criticava, por exemplo, a teoria marxista do valor-trabalho. Tendo as idéias,
os imperativos éticos, um valor interventor no curso da história, em vez de expulsá-las, o socialismo deveria integrá-
las, e não fazer da luta de classes e da transformação econômica o único “motor e coração” da história, como deixa
claro em uma de suas obras: “Às palavras ‘concepção materialista da história’ aderem ainda todas as falsas
interpretações e equívocos que estão intimamente ligados ao conceito de materialismo. O materialismo filosófico, ou
materialismo da ciência natural, é determinista, num sentido mecânico. A concepção marxista da história não o é.
Atribui ao fundamento econômico da vida das nações uma influência determinante, mas condicionada, sobre as
formas que esta vida adquire” (BERNSTEIN, 1997, p.41). À luz das reflexões deste autor, a concentração industrial,
como prevista por Marx, não produziu seu efeito maciço de desapossamento dos pequenos burgueses, tanto quanto a
ação operária travou a proletarização anunciada, pois, no limiar do pensamento de Bernstein, afastaria a teoria do
próprio Marx da assertiva real de compreensão da sociedade, e sua importância enquanto pensamento. Importantes
pontos que constituíam a prova que faltava para a afirmação de que as reformas são efetivamente eficazes,
contrariando o paradigma de revolução como ruptura estrutural.
17
presença de uma nova configuração da classe operária, devido, principalmente, a essa revolução
tecnológica que se assenta na informatização e nos métodos organizacionais japoneses, como
afirma o próprio Gorender. Marx e Engels, já naquela época, se deparavam com o fato de que os
operários, os detentores da prática revolucionária, não se portavam enquanto classe concreta.
Engels observava, em seus estudos, certo “aburguesamento” da classe operária inglesa, referindo-
se ao monopólio industrial e colonial da Inglaterra, que permitia à burguesia inglesa transferir aos
trabalhadores uma parcela de seus ganhos extraordinários. Pouco mais tarde, também Lênin se vê
frente à mesma questão. Apoiando-se em Kautsky, Lênin afirma que, espontaneamente, a classe
operária não atingiria a consciência revolucionária de classe e que, quando deixada a si mesma,
somente alcançaria a consciência sindical, ou a luta pelas reivindicações econômicas.
Se o atual estágio do desenvolvimento capitalista nos permite, sem demora,
observar a constante reconfiguração dos quadros efetivos e componentes da esfera
trabalho/capital, ou, como queiram, da classe operária, como a descrita por Marx em 1848
4
, o
problema da tomada consciente das condições reais e efetivas de sua exploração – do proletariado
enquanto classe politicamente organizada –, não pode ser pormenorizado. Não somente pela
atualidade comportar transformações, mas pelo entendimento de que os próprios antagonismos de
classe assumem formas diferentes em diferentes épocas, como as “revoluções não caminham
sozinhas” (FERNANDES, 1979, p.14). Assim, é necessário – se se pretende efetivamente uma
ciência social – fazer menção aos sujeitos. O fim do antagonismo, e a supressão da luta de
classes, não podem vir de mãos dadas com o acaso. Assim como a história não pode ser
antecipada, o significado da revolução hoje, e em qualquer tempo histórico, deve se ligar às
massas e o problema da consciência efetiva. E se “nenhuma revolução gravita no vácuo e
tampouco caminha segundo as intenções mais puras, mais sinceras, e mais revolucionárias”
(FERNANDES, 1979, p.7), também o conceito deve ser objeto de reflexão por parte das teses
mais comprometidas com a transformação e, consequentemente, o almejar de um novo projeto
societário.
Dito isso, nada há de novo em constatar que a revolução se inicia com a ação,
pelas forças constitutivas do mundo do trabalho, e pode ser entendida pelo rompimento da idéia
de propriedade privada capitalista, segundo Karl Marx. O enfoque, entretanto, deve preservar que
4
Pretendemos desenvolver melhor esta questão posteriormente. Os imbricamentos da estrutura capitalista devem,
como dito anteriormente, ser levados em conta. No nosso caso, as imposições do receituário neoliberal e o atual
avanço capitalista, que pretendemos expor no terceiro capítulo.
18
a crítica de Marx à civilização industrial-capitalista não se limita apenas à propriedade privada
dos meios de produção: é não só radical como abrangente, coloca a totalidade das formas
industriais de produção existentes e a totalidade da sociedade burguesa moderna em questão.
Apareceria, então, como um momento extraordinário na história concreta da sociedade como um
todo. Por isso, necessitaria de um “membro passivo, de uma base material”, pois “a teoria só se
concretiza num povo na medida em que é a realização das suas necessidades” (MARX, 2002,
p.54).
É claro que o conceito de revolução, como o empreendido por Marx e Engels,
jamais poderia aparecer como um processo descolado do real. Daí ele se conferir a realidades de
capitalismo “avançado”, em países desenvolvidos industrialmente, que possam contar com um
vasto conjunto de trabalhadores assalariados, efetivamente em condições de criticarem as ditas
“revoluções políticas”, ou até mesmo os “golpes de Estado”, que não atingem as bases materiais e
sociais. Todavia, o desenvolvimento histórico coloca o conceito em alerta, pois a via européia de
constituição do capitalismo, com sua sociedade burguesa, supostamente com classes sociais bem
definidas, não se constituiria em outros países ou realidades sociais (asiáticas, africanas e latino-
americanas), às vicissitudes de um então chamado capitalismo periférico. Por isso, o pensamento
marxista atual teve de reconsiderar o processo revolucionário no chamado “socialismo real”,
contrapondo-o até mesmo ao processo refletido por Marx e Engels.
Entendendo a revolução sempre como a transformação profunda da totalidade
social, Marx e Engels jamais deixaram de lado a afirmação de que o agente revolucionário – o
proletariado – encontraria, através dessa transformação, o caminho da luta contra a dominação de
classe. Com isso, se o rompimento estrutural violento acarreta, como conseqüência, o
desalojamento de forças sociais, temos de observar o alcance que o conceito admite, visto
aceitarmos a tese da revolução como o “coração” da teoria.
Lembramos que os cuidados aqui são direcionados a não perdermos de vista a
dimensão do conceito, visto o espaço de algumas considerações iniciais comportarem – como é
peculiar ao materialismo histórico – os elementos que, em síntese, estruturam este trabalho.
Assim, não se faz necessário advertir o leitor de que a proposta não atinge, e nem mesmo de
longe contempla, qualquer pretensão de revelar caminhos ou “receitas” revolucionárias. A
história não é feita de modelos, e o próprio Marx já indicara que a revolução, enquanto conquista
do poder político pelo proletariado organizado, não se processaria de maneira idêntica em todas
19
as partes.
Todavia, é necessário, antes mesmo de diferenciar algumas etapas desse
processo, colocar em miúdos a concepção de poder que assumimos aqui. A compreensão de que
esse poder não é, e nem pode ser relação social, ainda que se constitua enquanto parte dela, visto
o conceito se referir a um tipo preciso de relação social que se caracteriza pelo conflito, no
processo da luta de classes. Portanto, o Estado, enquanto instituição política, comporta uma das
esferas da dimensão social, ainda perante o poder político, que não pode ser descartada. Por isso,
problematizar a conquista do poder político pelo proletariado é entender os caminhos da
conjuntura de classes, mas não distante do grau de desenvolvimento das próprias forças
produtivas que sublimam as estruturas,
Assim, pois, afirmar que as relações de classe são, a todos os níveis, relações de
poder, não é de maneira alguma admitir que as classes sociais estejam
estabelecidas em relações de poder ou que delas possam ser derivadas. As
relações do poder, tendo como campo as relações sociais, são relações de classe
e as relações de classe são relações de poder, na medida em que o conceito de
classe social indica os efeitos da estrutura sobre as práticas, o de poder os efeitos
da estrutura sobre as relações entre práticas das classes em “luta”
(POULANTZAS, 1977, p.99).
Assim, problematizando estruturas e relações sociais, o conceito de poder
indicaria então os efeitos desta estrutura, portadora em si das relações de produção sobre as
relações das práticas das classes sociais em luta. Para que toda essa estrutura capitalista funcione
de maneira eficaz, é necessário – aqui historicamente apreendida no processo em que a própria
burguesia lapida de diferentes maneiras sua dominação –, ressaltar a preponderância de toda uma
estrutura político-jurídica que “policie”, estrategicamente, o movimento das frações burguesas,
juntamente com a preservação, ou até mesmo a renuncia, em determinados períodos históricos,
desse “palco” político que constitui o Estado capitalista.
É necessário salientar que, onde se coloca a preponderância de um aparelho de
Estado, também se impõe a questão revolucionária de sua superação. Contudo, apesar de simples
o enigma não se encerra aqui. Ora, na mais elementar visão histórica tem-se que o Estado,
“enquanto aparelho especial de coação dos homens”, tem sua gênese na divisão da sociedade em
classes antagônicas e que se impõe como um aparelho, complexo é verdade, necessário à
20
manutenção do “equilíbrio” social. Estrategicamente posicionado, sabemos que jamais seria
possível “coagir a maior parte da população a trabalhar sistematicamente para outra parte sem um
aparelho permanente de coação” (LÊNIN, 1988).
Engels, em A origem da família da propriedade privada e do Estado, afirma
que o Estado não é um poder imposto à sociedade do exterior, onde os caminhos só levam ao
entendimento de que essa sociedade se desenvolve numa “contradição insolúvel com ela própria,
cindindo-se em oposições inconciliáveis”. Daí a sua preponderância. Sua gênese e sua existência
parecem provar que as contradições de classe são inquestionavelmente insolúveis. Por isso, a
questão já nasce com o problema de sua superação, pois o homem, enquanto ser social, não pode
estar fadado à lógica que não só o oprime, mas que fora por ele criado. Em Lênin também
concordamos que,
se o Estado nasceu em virtude das contradições de classe serem inconciliáveis,
se ele é um poder que se situa acima da sociedade e que “se lhe torna cada vez
mais estranho”, é evidente que a emancipação da classe oprimida é impossível,
não só sem uma revolução violenta, mas ainda sem a supressão do aparelho de
poder do Estado que foi criado pela classe dominante e no qual está
materializado este caráter “estranho” (LÊNIN, 1986, p.19).
O Estado, em sua composição conjuntural, atende ao chamado capitalismo
monopolista nas mais variadas formas de efetivação: “Governo central, parlamento,
administração, forças militares e policiais, judiciário, governo subcentral e assembléias
legislativas”, ainda devemos incorrer de instâncias como “instituições sociais que compõem um
sistema de previdência social”, por exemplo. O que se entende por prática democrática também
consolida uma estrutura partidária efetivamente disposta muito menos em revelar as contradições
que implicam. Um olhar à sociedade capitalista deve apreender a dimensão do que se entende por
cidadão, figura coberta por “privilégios” no interior da estrutura “desigual dos processos de
trabalho, valorização” e exploração (FERREIRA, 1999, p.18).
Portanto, o leitor já a par do referencial teórico deste trabalho pode optar pela
idéia conflitante de Estado, na medida em que tipos diferentes de Estado podem corresponder a
tipos diversos de relações de produção. Opta-se por essa análise do Estado, sobretudo porque, ao
refletir sobre o conteúdo do conceito de revolução, a sua imagem aparece selada às relações de
poder, nas quais jamais podem ser vistas em si mesmas. Mais ainda, porque à luz da questão do
21
Estado e sua teoria geral, esconde enigmas que a atualidade tem de enfrentar. Enigmas que
endereçam, fundamentalmente, o ponto de um aparato ideológico que constitui o alicerce da
dominação capitalista burguesa, por não se deixar evidenciar imediatamente.
Mas o que de fato significa esse dado ideológico e o que de fato representa no
processo da luta de classes? Não pormenor Lênin, em Como iludir o povo, de forma discursiva
desenvolve, não somente o problema da consciência, como introduz que o processo da luta de
classes carrega consigo os sortilégios do discurso democrático, escamoteado no teor magistral da
bandeira de igualdade e liberdade. O pensamento que aceita a luta de classes deve, para além de
compreender seu conteúdo histórico, reconhecer que, “numa república burguesa – mesmo a ‘mais
livre e democrática’ de todas – a liberdade e igualdade” só podem ser sempre a “expressão da
igualdade e liberdade dos proprietários de mercadorias” (LÊNIN, 1979, p.8). Nesse sentido, a
“escravatura salarial” dos trabalhadores deve compreender que, no interior da trama política se
desenrola em conjunto, a cadeia de frações ou segmentos incorporados, à lógica da exploração.
O que, nesse caso, corresponde afirmar que nosso endereço aqui serve a
referência de uma análise, não somente da burguesia e sua frações, mas, sobretudo, do caráter que
o processo da luta de classes engendra aos sujeitos sociais, onde a dominância se presta a papéis
ascendentemente ideológicos.
No mesmo discurso, Lênin atenta já para a existência de setores
“intermediários” ao processo de politização revolucionário, não como dado especulativo e até
mesmo carente de prognósticos indubitáveis. Sua assertiva se refere a um segmento específico da
totalidade social, ora hesitante, de importância decisiva no impasse da então “utopia possível” – o
campesinato: “Durante a revolução proletária, quando a luta de classes se agudizou ao ponto de
se tornar uma guerra civil, só loucos e traidores ousavam falar em ‘liberdade, igualdade e unidade
da democracia do trabalho’”, num contexto da prática efetiva de luta decisiva do proletariado
contra a opressão burguesa (LÊNIN, 1979, p.9).
O importante aqui não consta da construção de um arcabouço teórico “novo”.
Apenas chamamos atenção ao que nos parece prudente reiterar ao pensamento de Lênin que, de
fato, já nos atentava para a reflexão das chamadas classes médias, dos segmentos sociais médios,
do campesinato, etc.:
22
Estes setores intermediários têm que se juntar a uma das forças principais, ou ao
proletário ou a burguesia. Não pode ser de outra maneira. Aquele que não
compreendeu isto ao ler O capital de Marx não compreendeu nada em Marx,
não compreendeu nada do socialismo e é, na prática, um filisteu e um
vulgarizador, seguindo cegamente a burguesia. Mas aquele que o compreendeu
não se deixará enganar por frases sobre ‘liberdade’ e ‘igualdade’, pensará e
falará sobre fatos, isto é, sobre as condições concretas de aproximação do
camponês e do trabalhador, da sua aliança contra o capitalismo, do seu acordo
contra os exploradores, os ricos e os especuladores (LÊNIN, 1979, p.9).
Por fim, atingimos teoricamente o ponto central da luta de classes no interior do
processo revolucionário – o movimento e o posicionamento de classe no processo da luta contra o
capital. Daí a importância de uma discussão sobre o campesinato e seu papel nessa luta,
historicamente. No nosso caso, pretendemos ir mais além nessa questão, fundamentalmente por
perceber que a luta campesina no Brasil se remete à constituição de classe nos embates pela terra
na atualidade. Aqui, e de imediato, adentraremos a questão brevemente para, a posteriori,
atingirmos sua efetiva atualidade no Brasil e no MST.
1.2
O PROBLEMA DA TRANSFORMAÇÃO SOCIAL NA AMÉRICA LATINA E BRASIL
De alguma maneira o ideário revolucionário sempre esteve presente às ações
mais controversas da luta pela transformação social na América Latina no último século. O que
na história não se pode esconder é o caráter e o teor da luta em cada país latino-americano, onde
o importante nelas “não era o seu número, mas seu enorme e crescente peso demográfico, e a
pressão que representavam coletivamente” (HOBSBAWM, 2004, p.337):
Os rebeldes latino-americanos na década de 1950 inevitavelmente se viram não
só recorrendo à retórica de seus libertadores históricos, de Bolívar ao José Martí
da própria Cuba, mas à tradição antiimperialista e social-revolucionária da
esquerda pós-1917. Eram a favor da “reforma agrária”, o que quer que quisesse
dizer isso, e, pelo menos implicitamente, contra os norte-americanos, sobretudo
na pobre América Central, tão longe de Deus, tão perto dos EUA, na expressão
do velho homem forte mexicano Porfírio Díaz (HOBSBAWM, 2004, p. 426-
427).
23
Mesmo com os equívocos e as desventuras de uma leitura da realidade que se
configurava, a idéia de mobilização das massas, no intuito da transformação social, perpassara o
ideário “revolucionário” no século XX, sobretudo na América Latina. Com isso, temos que
precisar melhor os elementos que enxergamos, no que tratamos, sobre a revolução.
Se tentássemos atingir um ponto de preponderância decisiva no teor do
processo revolucionário, de maneira geral e sem diferenciações, mas ainda não esquecendo a
ferramenta da história, alcançaríamos, sem dúvida, a questão do desenvolvimento da democracia
na maioria dos países latino-americanos. A essa questão sobrevém outra, que surge atrelada ao
conteúdo do próprio socialismo como passagem transitória de um modo ao outro, como é comum
à teoria, que se remete ao problema de atingir uma formação social capaz de dar conta dos
interesses dos trabalhadores, operários, camponeses, jovens, mulheres, etc., e que, efetivamente,
como determinante democrática às finalidades da produção, da distribuição, enfim, a divisão
igualitária dos meios e instrumentos disponíveis de produção e transformação da natureza, no
processo de sociabilidade.
Nesse sentido, o conceito de democracia deve trazer consigo também o
problema da emancipação dos trabalhadores, na medida em que a única forma de libertação
efetiva é a auto- emancipação político-econômica e social de classe, pois, “sem a auto-
emancipação dos trabalhadores por meio de sua própria experiência – quer dizer, sem democracia
efetiva – não é possível avançar no caminho da transição para o socialismo” (LÖWY, 1989, p.59-
60).
Portanto, falar de revolução social é falar também, e fundamentalmente, de uma
das características essenciais do processo de construção do socialismo e emancipação do
capitalismo, e de qualquer forma de exploração, alienação e opressão dos homens pelos homens,
é falar de democracia no sentido pleno. Diferente daquele que conhecemos tanto, em que o
conceito é colocado como um fim em si mesmo e as conquistas sinalizam muito mais para a
centralização de todo o poder político no Estado, decorrente de um processo de luta efetivamente
de classes. Dito de outra forma: sob o capitalismo, a democracia encobre as relações de
dominação de classe, mas, sob o socialismo, ela deve ser a sua própria essência, “o regime
político socialista e o exercício, pela via não-estatal, do poder político de uma classe social não
24
exploradora” (SAES, 1986, p.87
5
).
Sobre a democracia burguesa e a democracia proletária, Saes (1994),
desenvolve um trabalho de conceituação interessante. Para ele, a definição de democracia
socialista deve passar por um “reexame” das características fundamentais da democracia
burguesa. Os elementos “a) pluripartidarismo ilimitados, [...] b) plena vigência de liberdades
políticas para todos, [...] c) vigência efetiva da mais estrita legalidade”, segundo o autor,
convergem para um sistema de “garantias às liberdades individuais” e que só é viável com a
presença de um Estado regulador (p.185). Não podemos, evidentemente, reconstruir aqui toda a
trajetória conceitual que o autor assume sobre a democracia no socialismo, mas resumidamente,
“é este, portanto, o elemento novo a ser agregado às formulações marxistas clássicas sobre a
democracia socialista e proletária: a participação ativa das massas trabalhadoras, não apenas na
escolha da democracia estatal e no exercício de um rigoroso controle sobre ela, mas também na
desestatização crescente da formação social onde se constrói o socialismo” (p.195).
A revolução social é a expressão democrática das aspirações populares na
transição da democracia burguesa à democracia socialista. Por isso, no nosso caso é importante
essa discussão. Ela permite refletir sobre as aspirações populares de um movimento social (o
MST, por exemplo) que se mobiliza politicamente, no âmbito nacional, tendo como foco o
regime de propriedade, e que já no âmbito de sua estrutura orgânica tem contribuições e indícios
de avanços democráticos na perspectiva coletiva do trabalho e das decisões. Dito isso, tomamos
de empréstimo a afirmação de Löwy sobre o problema da revolução na América Latina, na
questão democrática do socialismo:
5
Segundo Saes, no capitalismo, a democracia burguesa, além de forma de Estado, é também um regime político:
“Como tal, ela consiste na configuração da cena política correlata à forma democrática de Estado. Ou seja, para que
um Estado de qualquer tipo (escravista, asiático, feudal, burguês) assuma forma democrática (intervenção efetiva do
órgão de representação direta da classe exploradora no processo de implementação da política de Estado), é
necessário que os membros da classe exploradora possam exprimir abertamente sua intenção de: a) participar,
através de um órgão de representação direta, do processo de definição/execução da política de Estado; b) imprimir
uma certa direção – seja ela aprovada ou não pelo corpo de funcionários ou pelo conjunto da classe exploradora – à
política de Estado” (SAES, 1986, p. 24-25).
25
Sem revolução, isto é, sem destruição pela insurgência popular do aparelho
repressivo do Estado burguês, de suas estruturas repressivas e burocráticas, não
é possível começar a transição para o socialismo. A expropriação dos
latifundiários, das empresas multinacionais e dos capitalistas que podem levar
meses, ou mesmo anos; mas o ponto de partida indispensável é a rebelião
popular armada que rompe com o sistema policial-militar do Estado oligárquico-
capitalista e constrói, em seu lugar, um Estado de tipo novo, apoiado num
exército revolucionário e em milícias operárias, camponesas e populares. Esta é
a experiência da Nicarágua, de Cuba e de todos os países do terceiro mundo em
transição para o socialismo. Toda tentativa de iniciar um processo de transição
no contexto do Estado burguês, com suas estruturas repressivas intactas, só pode
conduzir a derrota dos trabalhadores: a trágica experiência do Chile, em 1973,
confirma-o nitidamente. A democracia socialista não é uma “extensão” da
democracia burguesa (no qual os instrumentos de poder real ficam nas mãos da
classe dominante), mas tem como ponto de partida a liquidação das estruturas
repressivas do Estado burguês e a implantação de um poder de natureza
diferente, organicamente vinculado ao povo trabalhador em armas (LÖWY,
1989, p.61).
Ainda dentro dos limites e das colocações do problema da democracia
socialista, aparece a questão da organização revolucionária, do partido revolucionário, ou de uma
instância capaz de encabeçar um movimento revolucionário, engendrado no teor das relações
capitalistas.
O avanço do processo de transição para o socialismo deve compreender a
importância do problema da organização política dos trabalhadores, de sua relação direta, ou
indireta, na exploração capitalista, e a forma da constituição destes trabalhadores enquanto classe
politicamente organizada.
Neste sentido, as experiências concretas na América Latina têm contribuições.
Com todas as críticas que se possa fazer às propostas de transição para um modelo socialista, e os
entraves políticos, econômicos e sociais no caminho da práxis revolucionária efetiva, o elemento
popular é relevante. Ainda em Löwy, o caminho das experiências dos pequenos países
periféricos, nos limites óbvios que relativizam o alcance democrático acima mencionado, e com
todas as especificidades de um capitalismo atrasado, exigindo considerações e reflexões
diferentes, destaca-se o elemento da participação popular. Para esse autor, as lições de Cuba e
Nicarágua colocam alguns avanços positivos às questões da transição para o socialismo, onde,
entre eles, destacam-se a emancipação dos trabalhadores e o problema da participação popular
efetiva na conquista da democracia e do socialismo:
26
Mas a questão chave da participação democrática das massas no Estado não fora
resolvida. A partir de 1975, seria criada uma solução nova e original, sem
precedentes em nenhum outro estado de transição para o socialismo: o poder
popular. [...] O princípio essencial do poder popular é que toda unidade de
produção ou de serviço que fornece bens ou serviços à comunidade deve ser
gerida e controlada por essa comunidade. Isso significa que as escolas, centros
médicos, lojas, bares, fábricas, cinemas, centros de diversão e etc., são
administrados pelo poder popular de cada comunidade. Só as unidades e setores
de atividade que trabalham para o país inteiro serão controlados a nível nacional:
a frota mercante, a indústria pesada, os bancos, a pesca, o sistema ferroviário; a
gestão das outras atividades será feita a nível municipal ou provincial. Numa
comunidade dada, a população elege seus delegados à assembléia municipal; as
assembléias municipais elegem as assembléias provinciais, e estas, a Assembléia
Nacional, numa estrutura piramidal de delegação de poderes (LÖWY, 1989,
p.65).
Mas a questão da organização e das lutas populares na América Latina não
pode ser pormenorizada, sobretudo pela história das conhecidas revoluções latino-americanas.
Devem ser vistas, no mínimo, como formas originais de resistência e criativas “saídas”, ainda
que, no imediato cotidiano, reveladoras e reflexo da propensa via de mobilização das mais
amplas camadas populares em torno de seus interesses.
Talvez, esses mesmos elementos coloquem em “xeque” a conhecida hipótese de
que o proletariado é “ontologicamente reformista
6
”, isso pelo fato das aspirações populares
(como no caso do MST no Brasil) extrapolarem o conteúdo imediato das reivindicações, por
exemplo, em sua forma de organização política, enfrentamento direto, etc.. Para nós, resta a
constatação óbvia de que as colocações sobre o problema de uma organização revolucionária, que
se locomova de imediato, do ponto de vista econômico, das relações de exploração para o
político, da consciência política de classe, estão e permanecem colocadas em aberto. Isso as
6
Sobre o problema da ontologia “reformista” do proletariado, Jacob Gorender (1999) foi quem o lançou
no interior do pensamento marxista no Brasil. No nosso entender, tal tese se sustenta como “provocativa”
aos debates no marxismo atual. Em sua obra, O Marxismo Sem Utopia, Gorender lança mão de elementos
da história que, de fato, parecem intrigar essa questão. Daí para o autor, o marxismo atual, face às
imposições – ainda maiores – do capitalismo contemporâneo, ter de aceitar a tese de que a classe operária
seja ‘ontologicamente’ reformista. Pois a história demonstra-nos que, no cotidiano, a classe dos
trabalhadores não ultrapassa as fronteiras da ideologia do reformismo, e fora do cotidiano empreende lutas
com o simples objetivo reformador, não revolucionário: “Quanto mais desenvolvida e poderosa a classe
operária, mais reformista é a sua conduta política, maior sua preferência pelos benefícios de possível
obtenção dentro do regime capitalista e mais taxativa sua rejeição de iniciativas revolucionárias. Ou seja, a
condição ontológica reformista da classe operária não se enfraquece, mas se fortalece com o seu
desenvolvimento” (GORENDER, 1999, p.38).
27
revoluções latino-americanas não conseguiram transpor.
Parece claro que o capitalismo dependente permanece, e tanto as
transformações revolucionárias em Cuba, como os ideais sandinistas na Nicarágua, citada por
Löwy (1989), têm de se locomover no interior dessa lógica e coadunar com ela. Resta saber, e
levantar o que de concreto podemos retirar destas experiências, como o problema da organização
e da participação popular:
A organização da população por bairros é uma forma original, que surgiu das
revoluções latino-americanas, e obteve grande êxito. Os Comitês de Defesa da
Revolução, em Cuba, e os Comitês de Defesa Sandinista, na Nicarágua,
conseguiram mobilizar e organizar as massas de maneira mais eficaz e ampla
que qualquer outra instituição. Permitiram que extensos setores do povo
participassem ativamente das tarefas concretas da revolução em seus bairros:
defesa diante da sabotagem contra-revolucionária, distribuição de bens
racionados, tarefas de saúde ou de educação, etc. [...] É inevitável, inclusive
dentro de organizações de massa desse tipo, que possam aparecer tendências
autoritárias, repressivas ou burocráticas que tem conseqüências muito negativas.
Problemas desse tipo [...] são perigos que ameaçam uma organização de massas,
quando esta não é efetiva e democraticamente controlada por seus membros
(LÖWY, 1989, p. 71-72).
Mas os processos que elencamos passam pela compreensão dos elementos que
se referem a conteúdos de países em “transição” (Cuba e Nicarágua
7
), e que, na realidade, apenas
nos servem para sublinhar o teor das lutas populares, sua participação no processo da
transformação, e o caráter político das reivindicações quando de massa. Se transportássemos
apenas para as questões brasileiras, sentiríamos a falta de um elemento que apareça dando certo
nexo a esses dados, pois a efetiva construção, mesmo que por parte das esquerdas mais
combativas no Brasil, de um espaço para a transformação não se configurou num sentido pleno.
7
Com a vitória eleitoral de Violeta Chamorro em 1988 e a derrota dos sandinistas, a transição ao socialismo também
se esgotou.
28
1.3 A LUTA POLÍTICO-IDEOLÓGICA DOS TRABALHADORES NO BRASIL A PARTIR DO FINAL DA
DÉCADA DE 1970
Com o fim da ditadura militar e início do processo de democratização, entre o
final da década de 1970 e início dos 1980, o proletariado brasileiro se vê diante de um dilema:
lutar pela institucionalização do novo regime, mas, ao mesmo tempo, conservar práticas políticas
não- institucionais, não contempladas no âmbito do Estado burguês que não perdeu seu caráter de
classe no processo. É também neste processo, mas que não se esgota nele, que o MST surgirá.
As greves operárias, que podem ser descritas a partir já da década de 1970,
abrem caminho diferente na história brasileira das lutas políticas. A evidência de um operariado
reivindicativo assusta, de imediato, as classes proprietárias, que não tardariam a responder no
plano político de suas representações – militarismo, neoliberalismo. O ícone de 1978, a greve de
São Bernardo do Campo, na Saab Scania do Brasil, principiara o que, de fato, menos queriam as
mentes do regime militar e sua política econômica.
Não há como negar a importância decisiva das greves iniciadas pelos
metalúrgicos do ABCD, como prelúdio de sua extensão para outros setores, categorias e regiões
do Brasil, onde a conseqüência indicadora do movimento a que deságua passa por um operariado
que readquire capacidade mobilizadora, até então praticamente inédita, em função da
desmobilização ocasionada pelo golpe militar em 1964.
O desencadeamento desse processo permite concluir que a luta reivindicativa
desafiadora dos operários, luta que desemboca nos conteúdos “democráticos” e que resultou no
que temos hoje por “democracia” – democracia capitalista, obviamente –não corresponde
efetivamente ao que se reivindicava. Um dos principais instrumentos de luta foram as greves, a
paralisação do processo produtivo direto, que abriram caminho para a reorganização política e
sindical dos trabalhadores, além de terem contribuído para a queda do regime militar. As
novidades, entretanto, são a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos
Trabalhadores (CUT):
29
A idéia de criar o Partido dos Trabalhadores representa o ponto de convergência
para a maior parte das organizações, grupos e indivíduos da esquerda marxista,
os quais canalizam suas energias para a construção de um partido operário, de
massas e com independência de classe. Quando o PT é assumido publicamente
pelos lideres sindicais agrupados em torno de Lula, esses setores estão
naturalmente inseridos no projeto de sua construção (SILVA, 1999, p.156).
Não há dúvida de que a fragmentação político-ideológica por que passa o
movimento operário, principalmente na condição do campo socialista, tem originalmente de
entender o processo a que se insere a luta de classes, com isso, expressar a condição genérica de
identificação com a classe. Historicamente, a luta e a reivindicação dos trabalhadores, nos anos
1980, devem ser interpretadas ainda com um enfoque mais amplo, seja de recuo da classe
operária, observada na atualidade, seja pela reconfiguração do pensamento das esquerdas no
Brasil.
É interessante observar que, na década de 1980, a economia brasileira se
encontrava num período de altas taxas de inflação aliada à recessão
8
, que conferia um
posicionamento, tanto das classes trabalhadoras quanto da burguesia, contudo, o conteúdo e as
relações políticas do bloco no poder, que controlava as políticas de Estado brasileiro durante esse
período, sofrem alterações que não colocam em “xeque” significativamente as relações intra-
burguesas, ainda que num quadro de substituição de um governo militar por um governo civil.
O terreno político e institucional para os partidos de esquerda recém
legalizados, para os movimentos sociais, incluindo o sindical, estava se desenhando, na medida
em que as transformações políticas caminhavam com desfechos rápidos. Combativos ou não,
basta mencionar a criação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) em 1983, que reage aos
governos militares do General Figueiredo e suas extensões no governo Sarney:
8
Sobre a questão que perpassa o entendimento do capitalismo e o sindicalismo no Brasil ver ainda contribuição de
ALVES (2002, p. 71-94), Trabalho e sindicalismo no Brasil: um balanço crítico da “década neoliberal” (1990-
2000).
30
A CUT, durante a década de 80, lutou para implementar uma estratégia sindical
de combate à política de desenvolvimento pró-monopolista, pró-imperialista e
pró-latifundiária do Estado brasileiro. Em primeiro lugar, a CUT foi
gradativamente consolidando a partir de seu congresso de fundação em 1983, e
até o seu terceiro congresso regular, em 1988, uma plataforma de
transformações econômicas e sociais antagônica à política de desenvolvimento
do Estado brasileiro, além de intervir de modo ativo na luta pela democracia. De
um congresso para o outro, a CUT foi aprovando e reafirmando as seguintes
palavras de ordem, referentes à economia e à política social: não pagamento da
dívida externa, estatização do sistema financeiro, estatização dos serviços de
saúde, da educação e do transporte coletivo, reforma agrária, sob controle dos
trabalhadores, contra a privatização das estatais. Em momentos críticos da luta
democrática, a CUT aprovou, em seus congressos, palavras de ordem tais como:
boicote ao colégio eleitoral, que acabaria por eleger Tancredo Neves, e a luta por
uma Constituinte exclusiva e soberana, opondo-se à atribuição de poderes
constituintes ao Congresso que deveria ser eleito em 1986 (BOITO Jr., 1996, p.
80-105).
Não vamos discutir este processo, apenas retomaremos a ponto de elencar a
fisionomia do Estado brasileiro frente à conjuntura de “reordenamento” das classes, e o processo
político correspondente. O avanço da vigência neoliberal, portanto, encontra um cenário de
readequação das esquerdas diante do capital brasileiro, que mal se estruturaria quando de sua
entrada. Mas o fato é que esse conjunto de questões remete à importância dos “novos” atores
políticos, do alcance e limites de suas lutas, como é o caso dos movimentos sociais desde os anos
1970:
As questões são antigas, mas revelam a dialética difícil entre as lutas
institucionais e não-institucionais, as reivindicações pacíficas e o uso da
violência revolucionária. Elas não comportam respostas fáceis: a experiência
histórica recente tem demonstrado que os movimentos populares de nossos dias
estão encontrando soluções parciais e originais, distanciando-se de modelos
preconcebidos, como nos exemplos citados do MST e Chiapas. Parece que a
realidade se afasta tanto daqueles que imaginam a transformação como a
repetição da “queda do Palácio de Inverno” dos czares, como daqueles que se
voltam apenas para mudança institucional, dentro da ordem (RIDENTI, 1998,
p.176).
Silva (1999), em sua análise, observa elementos que, de imediato, nos remetem
à conjuntura histórica, não somente das lutas dos trabalhadores dos anos 1980, mas os caminhos e
descaminhos que a esquerda, fundamentalmente de cunho marxista, toma mediante as
31
transformações políticas do período,
Outros se vêem apenas como “embriões” deste futuro partido – mas,
invariavelmente, se colocam como ponto de partida para a sua construção. Há os
que continuam acreditando no PT como uma possibilidade estratégica, como um
espaço privilegiado de disputa pela construção de uma alternativa
revolucionária. E, finalmente, há aqueles que, na ânsia de elaborar a crítica ao
“autoritarismo” do modelo de partido bolchevique, terminaram por negar
qualquer perspectiva revolucionária (SILVA, 1999, p. 193).
Embora se tenha de analisar a especificidade de cada movimento político que se
presta a uma leitura da realidade brasileira, a conjuntura a que nos remetemos vale enquanto
fórmula para tal análise. É interessante observar as transformações que essa esquerda engendra
no caminho de sua reorganização acelerada. A suposta abertura “democrática” – emoldurada no
teor do capitalismo, obviamente atrelada aos ditames do capital – parece seduzir setores da
esquerda que se prestam muito mais a debater o teor de suas teses ao redor de um projeto
democrático para o país. As tendências mais marxistas enquadram as propostas leninistas,
emolduradas no desfecho revolucionário da Rússia, ainda que suas reflexões colocassem
proposituras diferentes para o Brasil, e essa esquerda, na maior de suas autocríticas, refletisse
sobre as teses de ligação com a “massa”. “A direção é o povo
9
”, o partido, no limite, teria de se
ligar ao povo (SILVA, 1999, p.156).
Já em 1984, em meio ao “agito” político que toma conta da mobilização social
em torno da campanha conhecida na vulgata brasileira como “Diretas Já
10
”, a onda “democrática”
que assola o pensamento das correntes políticas e sociais, aparece enquanto reflexo de uma
conjuntura de crise econômica massiva, com índices inflacionários exorbitantes, convergindo de
um longo período de ditadura, onde o conhecido episódio de mobilização social em torno da
campanha pelas eleições presidenciais diretas no Brasil coroa o desfecho do que é comum
chamar de “redemocratização”.
9
Nessa passagem Silva (1999), faz referência a Sader (1988) no problema da esquerda e seu esforço de organização
nos anos 1980, como representa a fala de um de seus militantes: “você trocou Lênin por Paulo Freire!” (SADER,
1988, p.167).
10
Referimo-nos ao conhecido episódio da história brasileira, a campanha das “Diretas Já”, que mobilizou milhares
de pessoas em diversas capitais brasileiras, em pleno regime militar. Trata-se da reivindicação de eleições
presidenciais diretas no Brasil, em 1984, que só se consumou, em 1989, com a eleição de Collor de Mello. A
proposta foi apresentada na Câmara dos Deputados pelo então deputado federal, Dante de Oliveira, na forma de
Emenda Constitucional.
32
Nesse sentido, a construção e a caminhada dos partidos de esquerda, nesse
período no Brasil, resumidamente PCB, PC do B, e o próprio MR-8, passam, mais uma vez, por
um período de recuo político revolucionário, num quadro turbulento dos propósitos
“democráticos” dos anos 1980, onde, ora auto-proclamavam-se o partido do proletariado, ora se
viam de “castigo”, espectadores do recrudescimento do ideário de criação do Partido dos
Trabalhadores.
O processo de rearticulação das organizações e partidos marxistas, e marxistas-
leninistas, também atinge os que ficam de fora do projeto de construção do PT.
Neste período, o PCB enfrenta outra vaga de cisões. Sua linha política é
questionada abertamente: a começar pelo legendário Luís Carlos Prestes; pelos
renovadores (também conhecidos como eurocomunistas); a dissidência paulista
agrupada em torno de David Capistrano e do jornal “A Esquerda” (muitos dos
quais, a começar por Capistrano, aderem ao PT); e, pelas dissidências que, em
vários estados, formam os Coletivos Gregório Bezerra (CGB) (SILVA, 1999,
p.157).
O desenvolvimento dos fatos é bem conhecido. Resta saber se o movimento e a
direção dos pensamentos desses partidos encontra base social de efetivação para um projeto de
socialização do poder. Acreditamos que não. Mencionamos o final da década de 1980, quando o
Partido dos Trabalhadores (PT) encontrava-se maciçamente consolidado como principal partido
de oposição, imerso nas próprias condições de disputas políticas institucionais para o governo
central.
O fim dessa década (1980), já anunciava o reordenamento das “forças” que
então se colocariam como resistência à ordem burguesa no Brasil que, mais adiante, submergiria
efetivamente no neoliberalismo. Com isso, há também que se considerar que as lutas populares
assumem um posicionamento que estas esquerdas deixam no descanso. O agitado período
político da década de 1980 desemboca num processo de reconfiguração das próprias classes
sociais nos anos 1990, o que parece colocar o movimento operário na defensiva. O interessante,
para nós, é ressaltar que a emergência do MST, no Brasil, surge nesse espaço. Daí que nos parece
oportuno uma análise do surgimento desse movimento, que assume a direção contestatória das
lutas populares no país, mas não sem antes analisarmos teoricamente o problema do campesinato
e seu papel no teor do processo revolucionário, para tentarmos entender esse “sujeito” social e a
sua posição, que está fora da relação direta e do embate fundamental entre ‘capital x trabalho’.
33
1.4 O PROBLEMA DO CAMPESINATO E SEU PAPEL NO PROCESSO REVOLUCIONÁRIO
Nas linhas que se seguem, referimo-nos à observância do campesinato no
Brasil, com vistas a uma etapa significativa da questão que remete ao papel do campesinato no
processo revolucionário. Isso porque, se centrarmos a discussão apenas no problema da revolução
no Brasil, acabamos por perder de vista a dimensão das lutas também no campo brasileiro. Ao
delimitarmos a “figura” do camponês, estamos também embarcando no corpo de teses que
advogam a favor da perspectiva de que o campesinato, no Brasil, constitui peça fundamental para
a compreensão dos conflitos no campo, e também lançando algumas definições da camada
substancial que irá compor o MST. Para tanto, utilizaremos como referência o estudo de Lênin, O
Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia, dentre outros pesquisadores atuais.
Talvez, caberia aqui uma definição, por nossa parte, do que vem a ser essa
figura do camponês, ponto que não estenderemos à pesquisa, porém, nos remete imediatamente a
um “sujeito” que, vivendo na terra, produzindo, plantando e colhendo, trabalha diretamente com
ela e, portanto, envolvido diretamente com os sortilégios da natureza. Socialmente inserido numa
determinada totalidade concreta – como não poderia deixar de ser –, suas relações estão
condicionadas, de imediato, às relações sociais na pequena localidade em que vive, estendendo-se
às especificidades urbanas
11
. Essa definição pode parecer imprecisa, quando de sua colocação às
imposições marxistas, nua e crua às próprias questões estruturais das relações de produção
especificamente. Mas o modo de vida, as aspirações, a definição de camponês e as populações
camponesas só poderiam ser analisadas mediante a natureza da diversidade que se aplicam a
nosso objeto e nosso campo de estudo, sobretudo pela multiplicidade de formas e ambiguidades
que definem esse agente social:
Os camponeses são produtores livres de dependência pessoal direta – são
“autônomos”; sua sobrevivência de homens livres lhes impõe laços de
solidariedade cuja quebra, ou enfraquecimento, ameaçam seu modo de vida;
esses laços mais primários são os de parentesco e de vizinhança, que os levam a
procurar se agrupar em “comunidade”; a busca de sua permanência e reprodução
numa mesma “terra” (ou no mesmo “terroir”, como se diz em francês),
traduzidas como apego a terra, é a marca do sucesso do seu modo de vida e a
fonte de seu cuidado com seu ambiente: a migração para ele é uma fatalidade, a
expulsão, uma degradação inaceitável (CARVALHO, 2005, p.94).
11
Uma inspirativa introdução sobre o camponês pode ser encontrada em MOURA (1986).
34
Não é a dicotomia campo/cidade que autodefine a questão camponesa, mas sim
o Estado. O aparelho que, de diferentes maneiras, impõe também à figura do camponês a
obrigação dos impostos, a legitimidade à propriedade da terra, aos contratos, etc., pontos que
garantem a circulação do capital numa via de mão única, e num “fluxo contínuo e estável das
rendas camponesas às classes rurais e urbanas com poder econômico” (MOURA, 1986, p.15).
Daí é possível pensar
a ambigüidade que pode advir da observação de uma sociedade primitiva onde
seus membros são cultivadores da terra, mas não canalizam excedentes para não-
trabalhadores. Esses povos são agricultores, mas não camponeses. Assim
também, se torna mais pertinente à distinção entre camponês e trabalhador rural
proletarizado. Este, desapossado da terra e de seus instrumentos de trabalho, em
suma, dos meios de produção, não mais dispõe da autonomia social mínima dos
cultivadores, fundada no controle costumeiro ou jurídico da terra (MOURA,
1986, p.15).
Portanto, o quadro que viemos delineando acima, a despeito do conceito de
revolução social e as vicissitudes do Estado de maneira geral, permite afirmarmos que o
campesinato, na análise da luta de classes no campo, é muito mais complexo do que a dicotomia
geral entre burgueses e proletários no modo de produção capitalista, sobretudo porque essa classe
aparece antes mesmo do próprio capitalismo. Por isso,
o campesinato não é nem burguês, nem assalariado, mas contém elementos das
duas classes: posse e/ou propriedade dos meios de produção e exploração de
força de trabalho. Também não pode ser entendida como a síntese das duas
classes, porque, historicamente é anterior a elas, o proletariado é que surge a
partir de transformações do campesinato nas formações sociais capitalistas
(CAMPOS, 2006, p.146).
Daí o afastamento de alguns pensadores atuais em aceitar a figura do
“camponês” nos moldes capitalistas, visto esse conceito transitar, historicamente, numa
complexidade de especificidades. Ora, entender a presença ou não desse sujeito, é também ter de
compreender a contradição fundamental a que ele está inserido, pois, no limite, pode colocá-lo, e
o coloca, em contraposição com o próprio proletariado:
35
No Brasil, a palavra camponês desapareceu do léxico oficial; cheira o atraso do
homem do campo. Desapareceu também do dicionário de muitos cientistas da
agronomia e até das Ciências Sociais, pois o conhecimento do homem do campo
postula do estudioso um trabalho persistente de campo. É-lhe preferida a
expressão vaga e homogeneizadora de “agricultor familiar”, cuja fácil
identificação se reduz a algumas variáveis quantitativas de números de
trabalhadores, familiares e exteriores a ela, e de quantidade de meses de trabalho
externos ao grupo doméstico [...] Esta opção metodológica adotada nas esferas
oficiais facilita, evidentemente, a utilização da estatística graças a seu poder de
homogeneização redutora de uma categoria social muito complexa e
diversificada (CARVALHO, 2005, p. 94).
No nosso trabalho, procuraremos ficar nos meandros do capitalismo na
definição do camponês, sobretudo pelo conceito de revolução social que vem na esteira do
pensamento de Marx e, posteriormente, com Lênin, se remeter ao desenvolvimento do próprio
capitalismo. Daí que poderíamos descrever esse camponês de diferentes maneiras, aqui, daremos
o caráter de classe, obviamente.
Falar de transformação social no capitalismo, além de difícil, é também
compreender que o debate está ainda em aberto. As transformações do capital, e sua incrível
capacidade de “mutação” diante das crises, unem-se contraditoriamente às classes sociais e suas
frações. No Brasil, essas colocações vão para além da trajetória comunista e suas origens teóricas.
A despeito da tese da organização política da militância, tem de compreender que a luta política
encontra elemento próprio e concreto, “a revolução cria seus próprios fatos”. E se, efetivamente,
“as revoluções anteriores tiveram que lançar mão de recordações da história antiga para se
iludirem quanto ao próprio conteúdo” (MARX, 2002, p.24), a leitura da esquerda aqui parece não
ser diferente.
Queremos chamar a atenção para as lutas sociais que têm notória importância
no campo brasileiro. Lutas que, apesar de, na maioria das teses, não encontrarem lugar,
preenchem um papel fundamental na luta política e social no país. Exemplos não faltam: Guerra
de Canudos, Contestado, Trombas e Formoso sob as quais, segundo Martins (1986, p.27), os
camponeses têm uma reiterada experiência de confronto direto com o Estado, por meio de seu
braço armado, o Exército. Pode-se arriscar em dizer que isto pouco mudou nos dias atuais
12
.
12
Há, evidentemente, outros episódios importantes sobre as lutas camponesas ao longo da história brasileira, mas
não nos deteremos sobre elas para não nos desviarmos do nosso foco que é abordar teórica e politicamente a questão
do campesinato.
36
Se as lutas e resistências do proletariado em geral são importantes, até pelo
papel fundamental desempenhado por ele no processo de produção capitalista, as dos camponeses
também o são e não podem ser desprezadas. Entretanto, é preciso recorrermos a uma tarefa
intelectual difícil e, diga-se, aberta, polêmica, não resolvida: a definição teórica e política do
campesinato e seu papel no processo de transformação social, algo que nos remete mais
diretamente ao nosso objeto: MST. Para nos auxiliar neste processo, valemo-nos de algumas
contribuições leninistas.
Já se sabe que a base central do capitalismo é a acumulação. Esse caminho
segue acompanhando também todo o processo de decomposição dos pequenos agricultores, tidos
por Lênin como campesinos, dado que, na cultura de mercado, os colocam na posição ou de
patrões, ou de operários agrícolas. Lênin problematizou as questões do campesinato à luz,
obviamente, das experiências concretas da Rússia czarista. Em O desenvolvimento do capitalismo
na Rússia, Lênin aponta para um processo de decomposição do campesinato russo em comunhão,
por assim dizer, com as características de uma economia essencialmente agrícola. O
desencadeamento da formação de um mercado interno propício à grande indústria são analisados
por ele, com as imposições de um capitalismo no qual não há obstáculos em seu caminho de
expansão, e as particularidades da propriedade fundiária que, no limiar deste capitalismo, não
fizeram, e nem mesmo fazem, frente às mudanças sociais que implicam na causa de um modo de
produção que coaduna com outro.
O campesinato, classe heterogênea, sobreviveu ao capitalismo, não como
simples objeto da contradição fundamental do capital, como já vimos, mas recompondo
socialmente o próprio campo onde encontramos o campesinato rico, médio e pobre, além dos
trabalhadores rurais assalariados.
Sob esse prisma, a figura do camponês não só convive com especificidades de
diferentes modos de produção, mas é capaz de perpetrar a lógica capitalista, baseado em sua
heterogeneidade. A questão é a de se saber qual é o limite dessas metamorfoses por que passa o
campesinato no atual estágio do desenvolvimento capitalista, e, obviamente, sem afastarmos
essas colocações do grau de desenvolvimento das forças produtivas. Deparamo-nos com autores
que também problematizam a persistência do campesinato sob o capitalismo:
37
A importância desse fato reside no fato de que o sistema capitalista dominante,
que determina a organização do trabalho e da apropriação da terra em muitas
formações sociais espalhadas pelo mundo, não erradicou o camponês. Em outras
palavras, os processos sociais que viabilizam a existência do camponês têm sido
mais expressivos e fortes do que aqueles que o levam a extinção. É mais correto
falar em recriação, redefinição e até diversificação do campesinato do que fazer
uma afirmação finalista. Nem mesmo nas sociedades socialistas é possível falar
numa abolição do trabalho familiar camponês (MOURA, 1986, p. 17).
É claro que as categorias são instrumentos da análise, e não podem ser fixadas
como verdades, sem transformações e mudanças. A atualidade está colocada para afirmar tal
implicação. É muito difícil a delimitação desse sujeito à categoria de classe, e do próprio
marxismo às imposições atuais, visto o quadro de constante alteração, até mesmo no que é tido
pelos marxistas como base produtiva do capital. O próprio Lênin, ao constatar o papel histórico e
“progressista” do capitalismo, admite que a potencialização das forças produtivas, e a
“socialização” acelerada destas forças produtivas, têm de aceitar a especificidade de cada esfera
da economia:
Como tentamos demonstrar detalhadamente em cada etapa da nossa exposição
factual, o reconhecimento do caráter progressista desse papel é perfeitamente
compatível com o pleno reconhecimento dos aspectos negativos e sombrios do
capitalismo, com o pleno reconhecimento das contradições sociais profundas e
multilaterais que são inevitavelmente próprias do capitalismo e revelam o caráter
historicamente transitório desse regime econômico. Precisamente os populistas,
que tentam por todos os meios apresentar o problema como se o reconhecimento
do caráter progressista do capitalismo fosse uma forma de apologia,
precisamente eles erram ao subestimar (e, por vezes, ao omitir) as profundas
contradições do capitalismo russo, obnubilando a desintegração do campesinato,
o caráter capitalista da evolução da nossa agricultura, a formação de uma classe
de operários assalariados industriais e agrícolas com posse de um lote de terra,
escamoteando o absoluto predomínio das formas inferiores e piores do
capitalismo na famigerada indústria “artesanal” (LÊNIN, 1982, p.373).
Portanto, há aí um elemento colocado pelas apresentações da proposta leninista
que não ofusca a trajetória das suas colocações. O capitalismo não atingira nem mesmo o grau de
desenvolvimento como o previsto por Marx em O Capital, sem com isso deixar sua análise
carente de afirmações, e o problema do avanço do capital perpetua, alterando e
metamorfoseando, sua aparente configuração. De fato, o campesinato russo sofreu um processo
38
de desintegração mediante a passagem de uma agricultura baseada essencialmente na economia
camponesa para a capitalista, nas palavras de Lênin, latifundiária. Nesse sentido, a base social de
um possível processo de transformação só poderia vir daí
13
. Essa questão nos remete, então, ao
problema dos camponeses e da classe operária que, no capitalismo, podem se colocar em lados
opostos pela própria estrutura da lógica da propriedade privada dos meios de produção.
Nesse sentido, o papel assumido pelo campesinato na conjuntura de sua própria
“desintegração”, frente aos desencadeamentos que não tardariam a desfechar na revolução de
1917, foi, inevitavelmente, o caminho lógico do próprio desenvolvimento de sua classe. Se o
campesinato, na Rússia, vinha de um processo de decomposição que deixava clara a condição
transitória de um modo de produção que parecia não se sustentar, e passava a contar com as
muletas de um modo de produção vindouro, que coabitava o mesmo espaço e limites físicos,
como no caso da terra, a sua transformação começa por descortinar o caráter da propriedade
capitalista na medida de sua própria reformulação diante da propriedade então feudal.
Lênin procura demonstrar esse fato ao revelar o caráter de uma economia
latifundiária. Com isso, demonstra características de modos de produção que habitam períodos
históricos simultaneamente. Como no caso do problema camponês, acaba por deixar implícito
todo o caráter fundamental da figura desse camponês no processo revolucionário, e o faz de uma
maneira que parece estruturar o sistema capitalista num país economicamente agrário, a crítica a
esse desencadeamento aparece em seus estudos posteriormente, quando a figura do camponês
parece entravar o desenlace das articulações da transformação socialista na Rússia.
13
Complementarmente às colocações leninistas sobre o problema do campesinato, Trotsky, em Como Fizemos a
Revolução de Outubro, levanta questões que falam por si, como a colocação essencial da posição das classes sociais
no momento da tomada do poder de Estado: “Desde os primeiros dias da revolução, o nosso partido revelou a firme
convicção de que a lógica dos acontecimentos o conduziria ao poder. Não desejo falar aqui dos teóricos do nosso
partido, que muitos anos antes desta revolução e até mesmo antes de 1905, analisando as relações entre as classes
sociais russas, afirmaram que um movimento revolucionário vitorioso colocaria inevitavelmente o poder do Estado
nas mãos dos proletários, apoiados pela grande massa dos camponeses pobres. Esta afirmação apoiava-se na
insignificância da burguesia democrática e na concentração da indústria em escassas mãos, que determinavam assim
a excepcional importância da classe operária. O pouco significado da classe média não é, todavia, mais que o reverso
do poder do proletariado. A guerra produziu aparências ilusórias a este respeito, porque concedeu um papel decisivo
ao exército, que na realidade era formado por camponeses. Se a revolução se tivesse dado numa época mais normal,
se se tivesse dado num período de paz, como em 1912, o proletariado teria assumido uma atitude de comando logo
desde o primeiro momento, arrastando consigo pouco a pouco os camponeses. Mas a verdade é que a guerra
modificou a lógica dos acontecimentos. Os camponeses estavam organizados militarmente no exército e, antes de
estarem unidos pelas suas aspirações e idéias, encontravam-se unidos nos próprios regimentos. Os pequenos
burgueses, espalhados por esses regimentos, sentiam quase na totalidade os sentimentos revolucionários próprios da
sua classe. O descontentamento social das massas aumentava e adensava-se com o desaire militar. Mal se iniciou o
movimento revolucionário, as forças progressistas do proletariado restauraram as tradições de 1905 e incitaram as
massas a organizar-se em blocos representativos, ou seja, em sovietes” (TROTSKY, 1979, p.16).
39
Para resolver esse problema é que Lênin desenvolve a questão da aliança da
classe operária e do campesinato, que pode representar um dos maiores avanços que sua teoria
conseguiu abarcar:
Ainda hoje é assim nas nossas aldeias. Põe-se a questão: Onde procurar uma
saída e por que meios melhorar a sorte do camponês? Os pequenos camponeses
só podem sacudir o jugo do capital associando-se ao movimento operário,
ajudando-o na sua luta pelo regime socialista, pela transformação da terra, assim
como dos outros meios de produção (manufacturas, fábricas, máquinas, etc,.),
em propriedade social. Querer salvar o campesinato defendendo a pequena
exploração e a pequena propriedade contra a escalada do capitalismo seria
retardar inutilmente a evolução social, enganar o camponês fazendo-o acreditar
na possibilidade de um bem-estar no regime capitalista, dividir as classes
trabalhadoras assegurando a uma minoria uma situação privilegiada à custa da
maioria (LÊNIN, 1983, p.7).
Nas próprias formulações sobre o processo de desenvolvimento do modo
capitalista, e o desencadeamento das transformações econômicas na Rússia de então, a passagem
de uma agricultura feudal para a capitalista é um elemento central nas colocações de Lênin sobre
o problema da economia camponesa para a latifundiária. Isso porque, nesta última, há elementos
que reportam a própria época da servidão. Para nós, interessa observar que, com o surgimento do
capitalismo e o fim da “agricultura baseada na corvéia
14
”, não há um completo processo de
extinção do camponês, mas um lançamento reeditado desse sujeito em outros moldes, diferentes
daqueles de um sistema econômico que consistia toda unidade agrícola dividida em terras
senhoriais e terras camponesas.
A importância dessas questões, sobretudo na Rússia, onde a revolução de
outubro coloca problemas ainda hoje debatidos, servem como instrumento na análise da
“transição” capitalista, que não poderiam surgir como mágica e fantasmagoria:
14
Sobre esse problema, o próprio Lênin irá reservar um espaço importante em seu O desenvolvimento do
capitalismo na Rússia, onde irá expor no capítulo III o tópico dos traços fundamentais da passagem da agricultura
baseada na corvéia para a capitalista.
40
A economia capitalista não poderia surgir subitamente, nem a corvéia podia
desaparecer de repente. O único sistema econômico possível era, pois, um
sistema de transição, combinado e associando traços da corvéia e do sistema
capitalista. E são precisamente esses traços que caracterizam de fato a estrutura
da economia latifundiária após a reforma. Apesar de uma diversidade infinita de
formas, própria de uma época de transição, a organização da economia
latifundiária reduz-se atualmente a dois sistemas básicos em combinações as
mais variadas: o sistema de pagamento em trabalho e o sistema capitalista
(LÊNIN, 1982, p. 125).
Há uma série de combinações para análise, que vão da quebra de uma íntima
relação de dependência entre a figura desse camponês e do senhor, que não constitui algo novo
ressaltar, porém, importante para afirmar a separação entre a economia camponesa e a economia
senhorial, somado ao fato de que a própria estrutura capitalista, aos poucos aparece como
alternativa de um sistema econômico baseado no “livre” trabalho.
Assim, se o capitalismo não pode ser subestimado, com todas as contradições
que implicam no caminho histórico do seu desenvolvimento, o campesinato, enquanto classe, tem
de admitir sua transformação e um complexo processo de conexões estruturais, que vão do
“sistema de pagamento em trabalho
15
” à valorização do mercado capitalista.
O papel de classe do campesinato e sua importância no processo
revolucionário, devem ser compreendidos como elementos fundamentais em qualquer possível
desencadeamento desse tipo. Assim como a transformação social do capitalismo deve levar em
conta as possibilidades concretas e efetivas para sua superação, a figura do campesinato – aí em
todo e qualquer período dessa história – coloca questões que não eliminam as implicações
clássicas de sua continuidade, mesmo em moldes capitalistas. Com o processo de sua
“desintegração”, nas palavras de Lênin, surge também uma reedição da questão da propriedade
que, no capitalismo divide, fragmenta e esconde as diferenças até mesmo do campesinato
pobre/rico que, no caso da Rússia, por nós mencionado, teve significativa importância. É claro
que, no limite destas linhas, não pretendemos estender esse episódio, contudo, ressaltamos o
15
Segundo Lênin; “ora os camponeses trabalham por dinheiro as terras do proprietário com seus próprios
instrumentos; é o caso do ‘trabalho por tarefa’, do ‘trabalho por deciatina’, a ‘cultura por ciclo’ etc. Ora eles tomam
trigo ou dinheiro em empréstimo, reembolsando o total ou os juros em trabalho – aqui, o caráter da servidão e da
usura típico do sistema do pagamento em trabalho aparece claramente. Às vezes, os camponeses pagam a poltrava
(isto é: são obrigados a pagar em trabalho a multa prevista em lei); outras, trabalham ‘pela honra’, ou seja, de graça,
apenas pela comida, para não perder outros ‘biscates’ oferecidos pelo proprietário. E, finalmente, é muito
generalizado o fato de os camponeses trabalharem apenas em troca da terra, seja na forma da parceria, seja no
trabalho direto para pagar a locação” (LÊNIN, 1982, p. 128).
41
papel e a importância decisiva do campesinato na Rússia pré-revolucionária – o campesinato
pobre compondo importantes quadros até mesmo do exército czarista –, base social ao lado de
um proletariado incipiente, e elemento principal no descontentamento com as imposições que
implicavam a sua condição.
1.5
O PROTAGONISMO DO CAMPESINATO NO BRASIL E O SURGIMENTO DE “NOVOS SUJEITOS
Se pensarmos na atualidade as especificidades de nosso objeto, estas
transformações se complexificam ainda mais. No caso brasileiro, o problema do campesinato é de
difícil apreensão devido à diversificada estrutura sócio-econômica de cada região de um país de
dimensões continentais. As diversas modalidades, em proporções e densidade, fazem referência a
um campesinato heterogêneo, coberto de especificidades e relações, contrariando o estereótipo
principal de camponês que passa a orientar e ordenar toda forma de questões e políticas públicas
para o campesinato no país:
o ‘tipo ideal brasileiro’ do campesinato se tornou o campesinato do Sul e
Centro-Sul. É esta referência que orientou todas as políticas públicas brasileiras
para o campesinato – quando houve, inclusive as políticas recentes de
colonização. O Norte ficou o refúgio dos camponeses atrasados, os ‘caboclos’
(CARVALHO, 2005, p.95).
Desde o conceito até sua verificação na atual conjuntura, o problema do
campesinato, nesse capítulo, vem em defesa, não somente da existência ou não dessa classe em
moldes capitalistas, mas concluímos que, historicamente, há um certo distanciamento das
esquerdas que queriam a revolução no Brasil, mesmo com um esforço combativo, em diferentes
períodos históricos e dinamismos “revolucionários” no teor das formas de organização, fazendo
releituras, empreendendo combates, ora parecem ignorar essa classe, historicamente importante e
fundamental, ora quando buscam a sua sujeição, o fazem na vertical, na contramão do
amadurecimento histórico das condições efetivas para a transformação social, como a prevista
pelo próprio Marx e, mais que isso, ignorando assim o papel do próprio campesinato num
42
possível processo revolucionário
16
.
Parece claro que o próprio estágio que atingiu o capitalismo atual no campo não
pode ser entendido simplesmente pelas relações de produção baseadas na compra e venda da
força de trabalho, e na própria expropriação do camponês da terra e dos meios de produção. O
fato é que a dinâmica do capital lança mão da propriedade capitalista da terra. Com isso, a lógica
da acumulação tem de verificar outro elemento: a contradição fundamental que há entre a renda
da terra e a propriedade da terra. É aqui o ponto onde a atividade produtiva camponesa, que se
identifica com a terra de diferentes maneiras, se submete às leis do mercado e atende às
demandas da reprodução ampliada do capital.
Mesmo atrelado à lógica do capital, esse sujeito social transita e se movimenta
no mercado, na condição de produtor de mercadorias, salvo peculiaridades que o fazem
trabalhador para o capital industrial, agroindustrial etc., mesmo habitando a sua parcela de terra:
16
Entre 1972 e 1974, o PC do B liderou a luta guerrilheira no Araguaia quando o Exército nacional aniquilara a
resistência. Entretanto esse capítulo não se deu em vão. As Forças Guerrilheiras do Araguaia – FORGA – no teor de
um caráter conspirativo e clandestino desencadeiam um dos episódios mais importantes pós-64 no Brasil. Mesmo
abafada pela repressão, esse período colocou todo aparato de dominação deste Estado nacional em ação repressiva a
milícia “revolucionária”. O Partido Comunista do Brasil foi de fato o único partido que conseguira a elaboração e a
consecução de uma guerrilha armada no campo. A estruturação da façanha durou seis anos e mais dois de luta e
confronto armado direto contra o exército. O partido revelou uma extrema capacidade organizativa visto o material
humano e os recursos da estrutura guerrilheira. Segundo Jacob Gorender, a partir de 1967, “fixou-se à margem
esquerda do rio Araguaia, no sul do Pará, um grupo de militantes com treinamento na China”, dos quais figuras
significativas e de expressão importante à militância comunista como: “Osvaldo Orlando da Costa (Osvaldão), João
Carlos Haas Sobrinho, André Grabois, José Humberto Bronca e Paulo Mendes” (GORENDER, 1987, p.207)
procurados pela repressão e que contaram já em 1970 com um contingente de outros militantes totalizando 69
guerrilheiros treinados ainda em seu período de preparação. É interessante ressaltar o caráter da luta de classes em
meio ao enfrentamento direto com o aparato repressivo do Estado. Esse caráter ainda que advindo de uma leitura
equivocada da realidade brasileira, proviria dos avanços e recuos que a luta traria já dos espaços urbanos, compondo
assim uma nova estratégia de luta no país, a guerrilha no campo e no interior da mata. No plano político-ideológico
os guerrilheiros foram obrigados estrategicamente a evitar toda e qualquer atuação política evidente e a ação do
movimento em seu início restringe-se a aquisição de um contingente enviado pelo partido à região. No ano de 1972,
os combatentes venceram duas brigadas do Exército nacional, para somente em 1974 serem derrotados. Ainda
segundo Gorender, o problema do processo de politização que o movimento deveria engendrar mediante a massa –
na região e posteriormente para todo o proletariado urbano – se coloca: “O trabalho político já começa vinculado a
mais alta forma de luta revolucionária – a luta armada direta contra o Estado, representado pelo exército. Convidava-
se a população a apoiar esta luta e mesmo tomar parte dela, sem ter passado pela mediação de formas de luta
inferiores e adquirido, no processo, a convicção da necessidade de pegar em armas”. (GORENDER, 1987, p.209). O
restante, a história se encarrega de nos elucidar. Contraditoriamente ao que almejavam os líderes da guerrilha, a
guerra popular prolongada, nos moldes que o próprio partido introduziu ideologicamente do maoísmo, então em
voga na esquerda, acabou centrada no “foquismo castro-guevarista” (GORENDER, 1987, p.211). Tal episódio lhe
custou a vida nos anos que se sucedem. Com o contingente, quase que total de militantes, mortos ou presos, pelo
exército e pela repressão do governo Médici, o partido “retira-se de cena” e do quadro combativo das lutas contra o
regime em meio à ditadura.
43
Essa transformação não torna a sociedade rural homogênea, muito menos
transforma os camponeses em massa indiferenciada submetida às leis do capital.
Como as práticas sociais se dão em sociedades concretas, caracterizadas por
diferentes tipos de trabalhadores, aí incluídas as frações camponesas, essa nova
subordinação se caracteriza de diversas formas, cada uma delas demandando
uma explicação que se some à construção da totalidade do sistema social
(MOURA, 1986, p.65).
Com isso, inúmeras combinações dotam essa categoria de uma série de
particularidades. No caso do MST, alguns teóricos tratam-no como “novos camponeses”:
O novo camponês é um agricultor que se constituiu sobre pautas não tradicionais
de acesso a terra. Em muitos casos está cada vez mais dependente do mercado,
podendo ser comprador de terras e tem sua existência cada vez mais mediatizada
pela mercadoria. Pode ser também cliente dos projetos de reforma agrária. Nesse
caso são colonos, assentados da reforma agrária e “sem terra”. Aqui também
podem estar incluídas as várias formas de integração à agroindústria de
produção de aves, suínos e mamona, conformando a categoria “integrados”.
Estes camponeses mantêm relações diferenciadas com o mercado e com os
recursos naturais, com a família e com a organização social, conformando um
campesinato de distintas expressões, [...] (CARVALHO, 2005, p.149).
Atualmente, o campesinato brasileiro lança questões de décadas anteriores,
entretanto, isso aparece de diferentes maneiras, pois o problema da terra parece adquirir
importância política na luta anti-sistêmica. Levando-se em conta a importância política do MST
no cenário nacional dos anos 1990 para cá, resta-nos compreender que contribuição tem a dar à
luta proletária ao se apresentar como um movimento anticapitalista.
Sabe-se que a questão do campesinato surge vinculada ao processo de luta pela
terra. Pode parecer óbvio colocado desta forma, porém, tem implicações no limite e na
constituição das lutas populares no campo e na delimitação do contingente social destas lutas:
O aumento significativo do número de sindicatos de trabalhadores rurais, o
crescimento das ações que chegam aos tribunais da justiça comum e trabalhista,
movidas por lavradores, os movimentos sindicais que resultam em contratos
coletivos de trabalho, envolvendo diferentes frações do campesinato brasileiro,
tais como pequenos sitiantes, posseiros e parceiros, são indícios de um forte
ímpeto na luta por uma autêntica cidadania. E esta vem adquirindo substância
processualmente, isto é, através da luta pelo contrato de trabalho e,
principalmente, da luta pela terra (MOURA, 1986, p.53).
44
Um quadro que ressalta a questão da ação política e jurídica das lutas
camponesas, que remontam as ações das ligas camponesas a partir de 1955, e que nem mesmo os
mecanismos de que dispunha o Estado na forma de repressão violenta, foram capazes de eliminar
por completo a capacidade de mobilização política, tanto dos camponeses, como dos assalariados
rurais. Esse é um dos elementos que caracterizam, portanto, esses sujeitos.
Basicamente, o que marca o período, por assim dizer, de constituição de uma
“nova” figura camponesa, além do conjunto de transformações impostas pelo capitalismo no
campo, foram os planos de reforma agrária propostos pelo governo federal, introduzindo assim
um “novo” termo na dimensão rural brasileira – a categoria de “assentado”. A partir daí, a relação
da figura desse camponês com as ações do Estado são caracterizadas por esse enquadramento,
que enrijece e rotula as relações dos agentes.
Colocado dessa maneira, pode parecer que as ações partiram da própria
estrutura política, e não dos agentes e das lutas sociais que, no limite, foram fundamentais nesse
caso. Estes camponeses, na luta por permanecerem na terra, moldaram tais questões. Apesar de
antiga essa questão, para nós, começa a se definir num conturbado período de recuo das lutas
operárias na década de 1990. Define-se no aparecimento de uma figura combativa, no conteúdo
da formação de forças populares que alcançam alguns avanços que vêm em favor do homem no
campo.
Se a terra cumpre uma função social importante, cabe definir o que estamos
querendo analisar, no âmbito dos agentes sociais, que viabilizam as transformações que
colocamos. Para não alongarmos muito a questão, pontuamos de maneira direta, o campesinato
pobre, que compõe a base social do MST e constitui nosso foco juntamente com a heterogênea
estrutura do movimento que discutiremos adiante.
Esses “novos” camponeses têm aí uma representação significativa na atualidade
de resistência, e limitações que remetem diretamente à questão da terra, sendo esta um elemento
fundamental na transformação social do modo capitalista de produção:
O MST optou por ter como base social “os mais pobres entre os pobres do
campo”, ou seja, grupos sociais de ocupação episódica, sem moradia definida,
sem acesso a escolaridade e facilmente vítimas de manipulações políticas de
toda ordem. Tem como desafio principal tentar pressionar socialmente para
alterar um padrão de propriedade da terra historicamente consolidado no Brasil,
o qual se caracteriza pela forte concentração da terra nas mãos de uma minoria
de proprietários (CARVALHO, 2005, p. 156).
45
Trata-se, portanto, de um movimento social que tem se confrontado, desde o
início, com o Estado de diferentes maneiras, desde o momento da ocupação de terras,
consideradas improdutivas pelo próprio Estado através, principalmente, do INCRA (Instituto
Nacional de Colonização e Reforma Agrária), passando pelo assentamento e, uma vez
assentados, na luta por créditos para plantio, colheita e comercialização, ou seja, exige do Estado
o “reconhecimento” de sua luta, e esta exigência pode ser um dos fatores que limitam a sua
própria ação política. Estas questões serão abordadas mais adiante.
46
CAPÍTULO II – MST: DA BASE SOCIAL À LUTA POLÍTICA NO BRASIL
2.1 MST: B
REVE HISTÓRICO E A QUESTÃO DE SUA BASE SOCIAL
Apesar de vários trabalhos sobre o surgimento do MST, procuraremos analisar,
resumidamente, os contextos econômico, político-social e ideológico que o influenciaram de
forma latente.
Como é peculiar de um movimento social, o surgimento do MST também tem
um caráter local que, num ajuste de condições concretas, o impulsiona para além dessa fronteira.
Historicamente, existe um período em que esse ajuste de condições forma um movimento, mas
que se afasta das colocações atuais pertinentes a ele. Esse período é conhecido como período de
formação do MST, que vai de 1978 a 1984, quando das primeiras fagulhas da luta no Rio Grande
do Sul.
Sob o regime militar ocorre o desenvolvimento do capitalismo no campo, com a
mecanização e a abertura de novas fronteiras agrícolas, voltadas basicamente para a exploração
de grãos por indústrias transnacionais. Um exemplo disso é a introdução do cultivo da soja, que
acelerou todo esse processo de mecanização. Com isso, houve um constante processo de
aplicação de tecnologias mais avançadas do ponto de vista do capital, mais lucrativas, e
dinamizadas por um mercado em constante transformação, colocando os camponeses numa
situação de pauperização e expulsão massiva da terra. De acordo com Harnecker,
el aumento brusco de la concentración de la propriedad de la tierra y del
creciente número de trabajadores rurales sin tierra; la reducción de las
alternativas que pudieran mejorar esta situación que desencadenaba inseguridad
y miseria entre una población acostumbrada a vivir com cierto nivel de
estabilidad; la influencia de las pastorales progresistas de varias iglesias y el
proceso de democratización que vivía entonces el país fueron el marco en el que
nacieron, lenta pero decididamente, iniciativas espontáneas de ocupaciones de
tierra. Así se fue constituyendo la base social que cimentó al MST
(HARNECKER, 2002, p.23).
A migração do campo para as cidades mais industrializadas, no fim da década
de 1970, agrava o desemprego, precariza as condições de trabalho, e leva-os a viver nas periferias
47
dos centros urbanos, em favelas e curtiços.
Outra corrente migratória ocorreu nas zonas inóspitas dos estados de Rondônia,
Pará e Mato Grosso fortemente atraída pela propaganda de terras em “abundância” e a riqueza
das terras. Na verdade, o governo militar buscava contar com mão-de-obra barata para promover
a exploração de metais, pedras preciosas e madeira (HARNECKER, 2002, p.20), isso sem contar
o povoamento e a habitação nas localidades mais ásperas do território, incluindo as regiões de
fronteira:
De esta manera, desde el punto de vista socioeconómico, se cerraron las dos
salidas que hasta esse momento habían tenido los campesinos expulsados de las
tierras por la mecanización agrícola. [...] Esta situación generó la necesidad de
buscar una tercera salida: intentar resistir en el campo y buscar formas de lucha
que permitiesen conseguir tierra allí donde vivían. [...] Los campesinos que
eligieron esta última opción pasaron a constituir la base social que generó al
MST (HARNECKER, 2002, p. 21).
Com a crise da ditadura militar, o Brasil submerge num cenário rico em
manifestações de descontentamento popular, até então reprimidas pelo regime, e que ganham
novo ímpeto e se recrudescem, tomam forma, como as greves operárias e as grandes lutas
sindicais da periferia de São Paulo, e que mais tarde daria origem ao Partido dos Trabalhadores
(PT).
Na década de 1980, há uma maior abertura política reivindicativa com relação
aos anos anteriores de ditadura militar, e o campesinato parece perder o receio de reivindicar
pontos que levam a construção de pequenas formas de organização, como oposições sindicais
rurais que, com esse espaço, parecem encontrar lugar. Enquanto a maioria das oposições sindicais
rurais apareciam incorporando-se à Central Única dos Trabalhadores (CUT), pela própria
característica das políticas públicas de assistencialismo, que outorgava a esse tipo sindical alguns
serviços, como assistência médica, odontológica, venda de produtos etc., uma corrente do
sindicalismo parece se simpatizar mais com as origens do MST propriamente, fazendo referência
a um sindicalismo combativo, que mais adiante se incorporariam a CUT.
El movimiento sindical combativo apostó a dinamizar la estructura del sindicato
desde dentro. Se preocupó de introducir el aspecto de la lucha social y por eso
simpatizó desde un comienzo com las luchas del naciente MST. Muchos de sus
dirigentes participaron en los eventos de los inicios. Se dice que en el Primer
Encuentro Nacional del Movimiento el 80% de los presentes eran dirigentes
sindicales (HARNECKER, 2002, p.23).
48
No terreno ideológico, a maioria dos pesquisadores que estudam o MST parece
concordar quanto à influência fundamental das pastorais e das igrejas no processo de formação
do movimento. Foi com a influência da Comissão Pastoral da Terra (CPT), a união de lideranças
e trocas de informação, que se articulariam, a partir dali, em nível nacional.
As lutas que preparam o surgimento do MST, precisamente de 1978 a 1984,
não serão aqui analisadas, todavia, uma grande grade de lutas eclodiu em diversos lugares quase
que simultaneamente, cujo conteúdo foi levado, ou divulgado, pela igreja e pela própria mídia.
Alguns elementos destacam-se nesse processo: a) Uma série de lutas locais,
simultâneas, em vários lugares diferentes, b) lutas de caráter e objetivos estratégicos, similares
quanto à forma de organização e, c) rápido crescimento de famílias envolvidas. Destes elementos
podemos citar alguns exemplos, como as ocupações da gleba Macali e Brilhante, já em 1979, da
Encruzilhada do Natalino em 1985, acampamento com mais de duas mil e quinhentas famílias na
ocupação da fazenda Anoni, noroeste do Rio Grande do Sul:
A partir desta data, aumentaram as ocupações de terras em vários estados. Eram
lutas localizadas que traziam em si uma experiência comum: sua forma de
organização. Alguns desses movimentos já haviam criado suas próprias
denominações que traziam nas suas siglas, a sua localização, como, por
exemplo, nas lutas no Estado do Paraná: Movimento dos Agricultores Sem-
Terra do Oeste (Mastro); Movimento dos Agricultores Sem-Terra do Sudoeste
(Mastes). No Estado de São Paulo surgia o Movimento dos Sem-Terra do Oeste
do Estado de São Paulo e o Movimento dos Sem-Terra de Sumaré, etc.
(FERNANDES, 1999, p.76).
Mas a divulgação das lutas pela imprensa foi o que faltava para uma possível
articulação nacional, uma troca de experiências que, no limite, propiciasse uma autonomia
política nacional.
A CPT, que já possuía certa organização nacional e se fazia presente nas lutas
pela terra, “promovia” os encontros das lideranças das lutas localizadas:
Foi com a troca de experiências que a articulação nacional desses movimentos
começou a ser construída na perspectiva de superação do isolamento e em busca
da autonomia política. Essa superação se fazia necessária em razão das
dificuldades enfrentadas no desenvolvimento das lutas localizadas. As lutas
acontecem no campo, porém, o processo de conquista da terra não acontece só
no campo, mas, sobretudo na cidade. Assim, uma articulação nacional poderia
permitir a construção de uma forma de organização social que fortaleceria esse
processo de conquista, construindo uma infra-estrutura para a luta
(FERNANDES, 1999, p.77).
49
Da articulação dos diversos movimentos e lutas que ocorriam localmente,
nasceu o MST
17
. Um movimento de camponeses sem-terra, organizado nacionalmente, “que iria
se articular para lutar por terra e pela reforma agrária” (FERNANDES, 1999, p.79). Um encontro
nacional, que surge a partir dos encontros de algumas lideranças, preponderantemente, das lutas
existentes no Sul do país.
Na ocasião de seu primeiro encontro nacional, pautado por um período de lutas
e ocupações em pleno auge do desencadeamento antiditatorial (1984), participaram líderes
populares de várias ocupações: precisamente uns cem representantes de 13 Estados, entre eles
numerosos dirigentes sindicais rurais (HARNECKER, 2002, p.33). Consideramos também este
encontro como marco de fundação do MST.
O MST conta com uma grande estrutura organizativa que, por sua natureza
essencialmente prática, combina elementos sindicais, partidários e dos movimentos sociais.
Segundo Bogo (2003), a estrutura organizativa do MST nunca poderia ser estática e deve ter uma
dimensão pedagógica:
O MST nunca teve muita preocupação com a rigidez de sua estrutura orgânica.
Por sempre ter se caracterizado como um “movimento de massas”, a
preocupação nunca foi fazer da estrutura um dogma, mas adotar formas
orgânicas que estivessem de acordo com as necessidades de cada época. Sendo
assim, nunca tivemos uma estrutura organizativa pesada de se carregar. Ao
contrário, é muito leve e dinâmica. Qualquer camponês a entende e, por isso, se
empenha em protegê-la, como sendo uma ferramenta de trabalho (BOGO, 2003,
p.53
18
).
A estrutura orgânica do MST começa a se definir no processo. Um movimento
autônomo, de massas, que luta pela terra e reforma agrária, mesclando elementos estruturais que
se remetem a características sindicais, partidárias e também populares, na realização da luta
efetiva pela terra. Na ocasião de seu primeiro encontro começa-se a definir o papel que o
17
Quanto à denominação, utilizaremos a abreviação mais popular de Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra, que também adota a sigla MST. Neste sentido, segundo Harnecker (2002, p.34), “la sigla MST fue usada por
primera vez en el campamento de Ronda Alta en 1983, cuando los líderes de Encruzilhada de Natalino crearon una
comisión para organizar una protesta al descubrir un nuevo proyecto gubernamental para construir 25 hidroeléctricas
en el río Uruguay, en la frontera entre Santa Catarina y Rio Grande do Sul.”
18
Pode-se objetar que uma visão como a de Bogo (2003), vista de “dentro”, por assim dizer, sobre o MST, tem
implicações parciais. Entretanto, um olhar sobre a estrutura orgânica relativa ao movimento nos é de grande
contribuição em suas colocações.
50
movimento alçava alcançar. Assim, é a partir dque se distancia de suas origens sindicais e
eclesiais e, na busca para construir e manter sua condição de movimento popular:
Se insiste en que debe ser un movimiento de lucha de masas y no de negociación
burocrática o cupular. Los sindicatos de la época estaban acostumbrados a hacer
gestiones administrativas, a mandarle cartas reivindicativas al Instituto Nacional
de Conolonozación y Reforma Agraria (Incra) y a plantear en todos sus
congresos la reivindicación de la reforma agraria, pero se reducían sólo a eso.
Ésa era la práctica sindical más común. Fue el MST quien introdujo la lucha de
masas como una necesidad. Según sus dirigentes, esse asunto de los petitorios
dirigidos al gobierno com una lista de firmas abajo, las audiencias, etcétera, no
resolvían nada. La experiência había demonstrado que sólo com la lucha de
masas – única forma de cambiar la correlación de fuerzas políticas en la
sociedad – la reforma agraria podía avanzar (HARNECKER, 2002, p.34). [grifo
da autora]
Nos anos que se seguiram, de 1985-1990, consta de um período intenso de
rápido crescimento, em que o movimento colhe as constantes mudanças e dinâmica de sua base
social, que já vinha se intensificando, de luta em luta, de ocupação em ocupação.
Em janeiro de 1985 ocorre seu primeiro congresso, realizado em Curitiba-PR,
em que participam 1.500 delegados, de 23 estados nacionais, entre outras figuras representantes
de entidades e instituições. A importância desse congresso se deve pela definição que o MST
aqui assume frente às outras forças e setores da esquerda no Brasil, quando resolve não apoiar as
condições da “Nova República”. Esse posicionamento político lança o MST como uma força de
oposição voluntariosa, mas que começa, de fato, a se colocar como uma das únicas forças de
oposição às imposições que não tardariam em chegar, atreladas as políticas agrárias de então:
La Contag y todo el sindicalismo reformista, influidos por el PCB, or el PC do B
y por otras fuerzas de izquierda, consideraron que el Plan Nacional de Reforma
Agraria propiciado por el gobierno iba a ser implementado y, por esta razón,
estimaron que el movimiento campesino debía tener una actitud colaboracionista
com el gobierno. El MST, en cambio, consideró que aquella reforma no podía
quedar subordinada a la buena voluntad del nuevo gobierno civil y planteó la
necesidad de llevar adelante una contundente lucha de masas para presionar por
ella (HARNECKER, 2002, p.37).
51
“A terra é para quem nela trabalha!”, dizia a insígnia de seu primeiro congresso,
que conclui que a “ocupação é a única solução!”, revelando o caráter do objetivo estratégico
adotado por ele. O número de ocupações se multiplica e o caráter dessas lutas passa cada vez
mais a atrair militantes de todos os Estados, o que leva a dinamizar e diversificar sua base social.
Essa dinâmica se reflete no texto de seu primeiro congresso:
1. Que a terra só esteja nas mãos de quem nela trabalha;
2. Lutar por uma sociedade sem exploradores e sem explorados;
3. Ser um movimento de massa autônomo dentro do movimento sindical para
conquistar a reforma agrária;
4. Organizar os trabalhadores rurais na base;
5. Estimular a participação dos trabalhadores rurais no sindicato e no partido
político;
6. Dedicar-se a formação de lideranças e construir uma direção política dos
trabalhadores;
7. Articular-se com os trabalhadores da cidade e da América Latina
(FERNANDES, 1999, p. 79).
Essas diretrizes acompanhavam uma variada combinação de ruptura e
características que ainda se ligavam à sua formação. Ao passo que novos pontos foram colocados
na luta histórica dos trabalhadores rurais, alguns objetivos estavam entrelaçados com as questões
sindicais e de partido. Mas a relação a essas instâncias, e à própria igreja, já se prestava em outros
moldes, nos quais se ligavam, intimamente, a ampliação da luta efetiva e a consolidação do
movimento. Nesse sentido, o quadro de reivindicações colocadas foi:
1. Legalização das terras ocupadas pelos trabalhadores;
2. Estabelecimentos da área máxima para as propriedades rurais;
3. Desapropriação de todos os latifúndios;
4. Desapropriação das terras de multinacionais;
5. Demarcação das terras indígenas, com reassentamento de posseiros pobres em
áreas da região;
6. Apuração e punição de todos os crimes contra os trabalhadores rurais;
7. Fim dos incentivos e subsídios do governo ao pro-álcool, JICA e outros
projetos que beneficiam os fazendeiros;
8. Mudança da política agrícola do governo dando prioridade ao pequeno
produtor;
9. Fim da política de colonização. (FERNANDES, 1999, p. 80).
52
Os anos seguintes se pautaram nos avanços e limites da condição da luta
material pela terra que o movimento podia engendrar. Após um período de intensas ocupações,
lançadas em meio a uma “nova” forma de organização estratégica de resistência, o movimento se
depara com as implicações político-ideológicas e policiais que sempre acompanharam o dia a dia
das resistências e conflitos pela terra para o MST.
O período das eleições que levam Collor de Melo ao governo, e a derrota das
esperanças de um governo dos trabalhadores em 1990, foi, para o MST, um dos períodos mais
lúgubres, e que fechou as expectativas de uma reforma agrária “rápida e profunda”. A violência
direta dos órgãos que representavam o governo e aparelhos de Estado como na função de polícia,
recaíram sobre o movimento com mãos de ferro. O MST passou então a tentar resistir para
sobreviver à ofensiva do novo governo, que o escolheu para reprimir: “A polícia federal invadiu
suas sedes estaduais, levou-se a documentação e impulsionou processos judiciais contra o
movimento. Estava decidida a acabar com o MST” (HARNECKER, 2002, p.49).
Foi nesse período que se criou e discutiu o sistema cooperativista dos
assentados (SCA), e a idéia de criar a Confederação de Cooperativas de Reforma Agrária do
Brasil (Concrab), num intento de fortalecer organicamente a lógica do movimento a partir da
política dos assentamentos
19
,
Aunque desde 1989 hasta 1994 se mantuvo la misma consigna: ‘Ocupar, resistir,
producir’, em este período se puso el acento en ‘resistir’. El movimiento se dio
cuenta de que la lucha iba a ser muy dura, que el desarrollo alcanzado hasta
entonces no era suficiente para salirle al paso a la ofensiva de Collor y que, por
lo tanto, era necesario robustecerse orgánicamente, así como fortalecer los
asentamientos. Surge así el intento de reunir a los miembros más activos del
MST em núcleos de militantes y de fomentar lãs Cooperativas de Producción
Agropecuárias como puntos fuertes de resistencia tanto política como económica
(HARNECKER, 2002, p. 49).
As transformações do capital e o período de intensas mudanças políticas no
cenário nacional trazem novas sementes para a trajetória do MST. Com a destituição de Collor e
a entrada do governo Itamar Franco, novos ventos assinalam uma maior abertura ao diálogo com
19
A forma de cooperativismo apregoada pelo MST pretende respeitar variadas formas e modelos de cooperação no
campo. Considera a organização dos assentados e pequenos agricultores em grupos familiares ou de produção que
devem, sobretudo, respeitar as diferenças regionais e apontar para um novo modelo tecnológico (HARNECKER,
2002, p.51).
53
o governo, que passa a negociar diretamente com o movimento por meio de seu ministro do
trabalho, Walter Barelli, e pela primeira vez, então, uma delegação dessa organização foi
recebida oficialmente por um presidente (HARNECKER, 2002).
A escalada neoliberal, mesmo que anunciada, consegue surpreender setores da
própria burguesia que se redefinem. Com a abertura comercial e a liberalização, alguns setores da
economia nacional se vêem entregues a uma dinâmica de mercado diferente. No campo, mesmo
com esse redirecionamento, o movimento se vê em confronto com as transformações impostas à
agricultura e que prevalecem até os dias atuais
20
.
Ao mesmo tempo em que o movimento engendra conquistas que ultrapassam o
limite de sua própria organização, sofre, de outro lado, uma grande ofensiva por parte do governo
na implantação de um modelo neoliberal agroexportador no campo, sobretudo nos mandatos de
Fernando Henrique Cardoso (principalmente de 1994 a meados dos anos 2000). Tal política ora
optava pelo confronto direto com a polícia, ora tentava a cooptação ideológica com a mídia e
outros setores da informação
21
. Como ressalva Harnecker (2002, p.59),
se ponían em acción así los três componentes de la táctica clásica de las clases
dominantes frente a um movimiento popular em ascenso: primero, el intento de
cooptación – entregando algunas migajas o adulando a líderes vanidosos,
personalistas o débiles ideológicamente –; segundo, el esfuerzo de dividir al
movimiento de masas; y tercero, la represión. Si no funciona ni la cooptación ni
la división, viene la represión. La burguesía siempre ha actuado así em la
historia de la lucha de clases. El MST tiene que estar preparado para eso,
sostiene João Pedro Stédile.
A implantação do modelo agroexportador no Brasil representou uma forte
cooptação ao MST, pois desencadeou a crise da pequena agricultura, em cuja base o movimento
se apóia: endividamento, crise agrícola e o constante processo de pauperização a que estava
fincada a pequena propriedade no processo. Essa crise, que concerne a grande massa de pequenos
agricultores na década de 1990, contrasta com o desempenho da agricultura nos anos 1980,
sobretudo, no final da década, a partir de 1986, quando as “super-safras” prepararam o terreno à
20
Sobre os impactos neoliberais daremos atenção maior no terceiro capítulo.
21
Harnecker (2002, p.59) define essa questão da seguinte forma: “Percibiendo que la táctica de la cooptación
tampoco funcionaba, el gobierno decidió emplear la del aislamiento: no negociar. Para hacerle frente el MST
organizo la gran marcha a Brasília em abril de 1997 que, por su masividad y combatividad, logró conmover a todo
Brasil. Luego de este acontecimiento, terminó predominando la táctica del garrote.”
54
classe do empresariado rural, que inicia nova década em condições extremamente favoráveis e
abrangentes, de uma estrutura agroindustrial que surgia também com o destaque para o papel
dirigente, político-econômico, de uma camada historicamente mais “recente” de grandes
empresários agrários – “a grande burguesia agrária” –, “estreitamente vinculados à estrutura
agroindustrial e ao mundo empresarial em geral” (GERMER, 2002, p.265):
Este desempenho da agricultura brasileira na década de 80 tem, como uma das
suas causas, o fato de que o setor empresarial experimentou uma sequência de
safras extremamente favoráveis em toda segunda metade da década. Em
primeiro lugar, houve três “super-safras” seguidas, em 1987, 1988 e 1989; em
segundo lugar, houve grandes safras de arroz desde 1986, ano em que o arroz
não acompanhou a quebra devida à seca, em todo o Centro-Sul do país, o que
adquire significação quando se sabe que o arroz é um produto
predominantemente de produção empresarial; em terceiro lugar, houve super-
safras de trigo desde 1985, decorrentes de uma elevação sustentada e expressiva
(e repentina) da produtividade, que motivou a imediata ampliação da área
cultivada. Também esse fato adquire elevada significação porque, sendo o trigo
plantado em sucessão com a soja, no Sul do país, resulta que as super-safras de
trigo de 1985 e 1986 compensaram, em certa medida, a quebra das safras de
milho e soja, no Sul, em 1986; em quarto lugar, o segmento empresarial ligado
ao setor cítrico teve uma sucessão de safras crescentes e com preços elevados, e
o setor sucro-alcooleiro teve um bom desempenho durante toda a década,
recebendo elevados subsídios oficiais (GERMER, 2002, p. 266-267).
Na contramão desse setor “nascente” está uma grande parcela de pequenos
agricultores, que segue medindo seu curso de empobrecimento e proletarização. Para estes, o
desenvolvimento econômico dos anos 1990 foi sentido com os efeitos também agressivos, de
uma estrutura política preocupada com as reformas de mercado e a cooptação das manifestações
desde a base:
Ao contrário do segmento empresarial, a grande massa de pequenos agricultores
prossegue em sua trajetória de empobrecimento e proletarização (integral ou
parcial), ao mesmo tempo que os segmentos intermediários lutam para
sobreviver e integrar-se estavelmente à estrutura comercial cada vez mais
competitiva da agricultura. Dada esta complexidade da realidade agrária atual,
poder-se afirmar que as perspectivas de evolução da agricultura brasileira nos
anos 90 só podem ser adequadamente avaliadas desde que se leve em conta à
estrutura capitalista de classes que está em formação e os conflitos fundamentais
de interesses que ela encerra (GERMER, 2002, p.267).
55
Torna-se compreensível que a base social que compõe o MST esteja
intimamente ligada à questão dos “semi-assalariados”, ou “semiproletários” do campo
22
, que
constitui, “ao lado do proletariado propriamente dito, uma ampla força de trabalho a serviço do
capital em seu processo de expansão” (GERMER, 2002, p.269).
A composição efetiva do MST não poder ser estimada, a própria condição
heterogênea dos extratos de sua base social impede delimitações rígidas. O que podemos afirmar,
entretanto, é que o MST tem a sua “base social predominantemente no semiproletariado agrário”,
ou seja, entre os “pequenos agricultores semi-autônomos” (denominados semi-assalariados),
frações em que as contradições e a exploração também aparecem acirradas, o que “origina uma
postura contundente de contestação ao sistema estabelecido” talvez até no mesmo pé de
igualdade com o proletariado efetivo (GERMER, 1994, p.276):
A direção da luta dos trabalhadores só pode ser dada pela camada que, devido à
maior intensidade da sua contradição com a ordem capitalista, compreende que o
único meio de conquistar os seus direitos é lutar contra o capitalismo e por um
regime em que não haja explorados nem exploradores: o socialismo. Esta
camada, na agricultura, é o proletariado rural (GERMER, 1994, p.280).
Embora o proletariado rural concretamente possua as condições mais objetivas,
acirradas da luta contra a lógica capitalista, é justamente o “semiproletariado” que assume, por
meio do MST, a posição de “luta mais contundente contra o sistema, através da sua bandeira
principal, que é a reforma agrária, sob o controle dos trabalhadores” (GERMER, 1994, p.281).
Atualmente, as lutas populares, no Brasil, ainda têm a dizer sobre o MST. Mas é preciso cautela
com as conjecturas socialistas. Nosso objetivo passa pelo potencial no MST. Nesse sentido, o
quadro acima desenhado deve aparecer, sobretudo, na análise dos impasses organizativos e
político- ideológicos enfrentados pela classe trabalhadora rural e que permanece em aberto. Não
22
A definição dada por Germer (2002) destes agentes, passa pelos dados coletados em 1985 em que “os semi-
assalariados constituem uma parcela majoritária dos agricultores recenseados na faixa de 0 a 20 há. de área total”.
Esse número, segundo o autor, foi obtido por meio da “reelaboração” dos dados censitários, cujo critério foi a
insuficiência de recursos produtivos: “Assim, foram considerados semi-assalariados os agricultores, arrolados pelo
Censo Agropecuário, da faixa de menos de 20 ha. de área total que preencham as seguintes condições: ou não são
proprietários da terra, ou, sendo proprietários, não possuem sequer equipamentos de tração animal para explorá-la,
ou ainda, não possuem a terra nem equipamentos. – Fonte:IBGE-Brasil. Censo Agropecuário 1985” (GERMER,
2002, p.268). Suas conclusões apontam para um cruzamento de dados e análise do censo de 1985, levando em conta
um rearranjo do quadro da estrutura de classes da agricultura brasileira.
56
cabe recair sobre esse movimento social a pretensa “missão” histórica de todo o proletariado.
No teor do processo de ocupações de terra, as características convergem e
contribuem para uma delimitação – ainda que não muito precisa – da estrutura do movimento.
Entre essas características estão os fatores que acompanham a dicotomia campo-cidade, num
movimento de fluxo e refluxo populacional, como a expulsão da terra, o desemprego e a
concentração fundiária.
Essa lógica tem aumentado uma estrutura de famílias sem-terra onde, para além
da delimitação social do MST, estão os assalariados, parceiros, meeiros, etc.:
O movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), desde 1985, vem
defendendo a existência de pelo menos 4,8 milhões de famílias sem-terra. O
governo, especificamente o ministro extraordinário de política fundiária, sempre
contestou esse número. Todavia, no estudo recente encomendado pelo Nead
(Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento) do Gabinete do Ministro
Extraordinário de Política Fundiária, foi apresentado o número de 4,9 milhões de
famílias. Esses números são referências que têm como critérios de seleção de
possíveis beneficiários dos projetos de assentamentos, os trabalhadores rurais
definidos como assalariados, parceiros, meeiros e filhos de pequenos
proprietários. A questão é que não somente esse público está sendo assentado.
Em muitos assentamentos há a participação de trabalhadores de origem urbana,
que não conseguindo emprego, encontram na luta pela terra, muitas vezes, a
única alternativa de sobrevivência. É muito difícil saber quantos são, quanto
representam do total de assentados, porque um dos critérios para que sejam
assentados é a origem rural. Assim, todos os trabalhadores de origem urbana não
revelam suas procedências (FERNANDES, 1999, p.128).
Os critérios para delimitação social do MST são, basicamente, os dados
estatísticos com base, essencialmente, na questão dos assentamentos rurais de reforma agrária. O
caso dos trabalhadores rurais que resolveram, por exemplo, de alguma maneira tentar a vida nas
cidades em atividades com grau específico de qualificação à precariedade, e retornam ao embate
no campo, pela própria condição excludente do capitalismo urbano-industrial, ou, até mesmo os
trabalhadores de origem urbana que, na luta pela terra, acabam encontrando uma alternativa às
vicissitudes urbanas, não pode ser mensurado de forma precisa:
57
No dia 7 de fevereiro de 1999, o MST realizou uma ocupação histórica em
Porto Feliz, no Estado de São Paulo. Pela primeira vez, em sua história,
ocupou uma área com 80% de trabalhadores desempregados urbanos. Essa
ocupação coloca- nos a questão da necessidade de mudança de critérios para
definir o público que participará dos projetos de assentamentos. Os
argumentos que defendem o não assentamento de trabalhadores de origem
urbana não se sustentam na realidade. Muitos camponeses vieram ser
metalúrgicos, trabalhadores da indústria da construção civil, motoristas e
cobradores de ônibus entra tantas outras ocupações na cidade, migrando em
massa desde a década de cinqüenta até meados da década de oitenta. Hoje,
muitos desses trabalhadores e suas famílias estão excluídos do acesso ao
trabalho, moradia, educação, etc. Diante dessa realidade, a volta ou a ida para
a terra é uma alternativa ao desemprego. A perspectiva de voltarem a ser, ou
se tornarem, camponeses é um fato construído na luta organizada pela terra
(FERNANDES, 1999, p.129).
Uma maior precipitação, no que se refere à delimitação da base social que
compõe o MST, poderia ser um desvio, apesar dessa base se fundar prioritariamente, a nosso ver,
por trabalhadores rurais semiproletários ou semi-assalariados. O propósito aqui é destacar a sua
heterogeneidade – da essência de sua base social até extratos de trabalhadores que vêm compor o
movimento em sua extensão – como característica fundamental do MST, é o que lhe confere, ao
mesmo tempo, uma dinâmica político-organizacional menos rígida e, portanto, obriga uma
organização de direção nacional a se voltar, principalmente, ao propósito de suas bases e aos
limites concretos a que se propõe lutar:
Segundo dados fornecidos por sua própria direção, o MST está organizado em
22 Estados do Brasil. Pesquisa realizada pela revista Veja revela que, “nos
acampamentos, as fileiras do MST são formadas, numa maioria de 60%, por
agricultores arruinados, mas também por agricultores sem perspectiva,
servidores desiludidos. O que a cidade lhes oferece é a desesperança,
desagregação familiar, empregos humilhantes ou desemprego. A alternativa
buscada por quem foi parar num acampamento é outra – um pedaço de terra que
lhe garanta o sustento”. Já entre os assentados, grande parte “se organiza em
torno de cooperativas de produção, que já somam 55 associadas às centrais
ligadas a Confederação das Cooperativas de Reforma Agrária do Brasil
(Concrab)” (Veja, 1491:35: 16/04/97). (ALMEIDA; SÁNCHEZ, 1998, p.80).
O caráter efetivo da luta pela terra recrudesce a composição do MST num
movimento, ora de ascensão, ora de recuo, frente à conjuntura político-ideológica, na medida
58
desse próprio caráter. Assim, o que podemos afirmar é que a tática da ocupação de terra tornou-se
um elemento eficaz para a implantação dos assentamentos rurais. O MST foi quem preconizou
isso no Brasil.
A pertinência dessa tática é outra questão que só poderá ser colocada após uma
maior análise da estrutura orgânica e organização política efetiva do movimento em conjunto
com suas formas de luta.
2.2 MST: E
STRUTURA ORGÂNICA E PROGRAMA POLÍTICO NACIONAL
De uma maneira geral, nacionalmente o MST se estrutura organicamente na
contramão de uma forma rígida e imutável de organização. Um panorama do movimento indica
que os limites organizacionais se modificam e se transformam segundo o desenvolvimento e o
contexto de lutas travadas desde a sua formação. Essa capacidade relativa de transformações em
sua estrutura é o que, curiosamente, confere ao MST hoje uma atuação ampla em vários setores
populares, ligando e construindo quadros em toda parte, pois suas reivindicações extrapolam a
questão da terra.
Nesse sentido, as bases e a construção de todo o processo de formação da
militância e da formação de quadros do MST já estão dados “a partir da prática da luta do próprio
povo dá-se o processo de aprendizagem mais rico do movimento” (MAURO; PERICÁS, 2001,
p.99). Somado a isso, aparece o papel que o Estado também exerce quando despende as suas
forças para impedir a atuação do movimento:
À medida que se forma uma ocupação, imediatamente se manifestam as
instituições – como o Incra, o governo, o poder judiciário, a polícia –, assim
como o latifundiário e sua organização – às vezes paramilitar –, a imprensa e a
sociedade. A matéria-prima para o estudo inicial, de como funciona a sociedade,
está ali e é o fruto da ação e reação provocadas a partir de uma ocupação. Neste
processo, identificamos quem é quem, os amigos e os inimigos, os que nos
combatem e os aliados dos trabalhadores na luta pela terra e pela reforma agrária
no Brasil. Não é preciso muito discurso para que as pessoas entendam a
realidade (MAURO; PERICÁS, 2001, p. 98).
59
É claro que uma estrutura como a que presta o MST deve ter configurações
específicas de um lugar ao outro no cotidiano. Da dimensão nacional, confere o panorama de um
movimento de massa que, ora avança politicamente, ora retrocede concretamente, dado que
perdura o dia-a-dia do movimento em seu próprio ponto de vista. Parece natural que uma
estrutura que se locomove pela base sofra, assim, as imposições e ofensivas de todos os lados, em
todos os tipos de cooptações possíveis, no entanto, o que concerne a essa mesma estrutura certa
agilidade para conter tais agressivas intempéries é o processo permanente de formação e
reconfiguração de suas próprias “bases”. Isso não corresponde dizer que esta mesma estrutura
não mantenha seu “esqueleto” de organização política. Ao longo dos anos, desde a sua formação,
o movimento tem provado essa capacidade organizativa.
Se compreendermos o termo “base” como a heterogênea e diversificada
estrutura social que compõe o MST, temos que, de imediato, nos remeter ao caráter do objetivo
de sua luta. As estratégias, as ações e a própria consecução organizacional só podem vir daí. No
compasso inicial da luta pela terra, algumas práticas de ação, como a ocupação e os
acampamentos, estão colocadas como o desmembramento do processo de formação dos quadros
que, no limite, caminham juntos. O processo de conscientização política, na composição destes
quadros, parece se identificar com os primeiros contatos desse trabalhador “sem-terra” a integrar
a organização ou participar de um acampamento
23
:
Quando se realiza uma ocupação, a primeira tarefa é organizá-la. São preparados
grupos com dez, quinze, cinqüenta famílias – o número de cada grupo é relativo
–, e os núcleos escolhem um coordenador(a), um vice, um responsável pela
higiene, outro por saúde, pela educação, pela alimentação, pela segurança, pela
negociação e assim por diante. As tarefas assumidas pelas pessoas a partir daí
começam a ser desenvolvidas no acampamento. Cria-se, então, uma
coordenação local e as equipes/setores. Todos têm uma função interna. É
importante destacar que este método participativo permite que as pessoas se
sintam importantes e úteis a comunidade (MAURO; PERICÁS, 2001, p.98).
23
Mauro; Pericás (2001, p.99) coloca essa questão da seguinte forma: “Para se conseguir a massificação das lutas e
a qualificação da organização, é preciso fazer trabalho de base, que é lento, constante, personalizado. Organizar as
pessoas não é o mesmo que fazer propaganda e agitação. Estas podem ser feitas através dos meios de comunicação,
panfletos carros de som, etc. Mas organizar significa ter militantes para ir até o povo e conhecer sua realidade, sua
cultura, seus costumes. Assim, haverá uma formação política recíproca. Uma organização que não fizer trabalho de
base, dificilmente terá muitos militantes; e sem militantes, dificilmente organizará o povo para poder mobilizá-lo
quando necessário.”
60
Os pesquisadores do assunto parecem convergir para o fato de que o MST é
organizado por grupos de família. Dentro desta estrutura básica existe um corpo funcional de
militantes e comissões de trabalho, que se dividem por setores das atividades variadas, tanto nos
acampamentos, como nos assentamentos: saúde, escola, segurança, trabalho, etc., onde um
representante de cada uma destas esferas deve passar a formar parte de instâncias regionais,
estaduais e até nacionais de cada setor:
A estrutura orgânica do MST começa pela base, organização dos grupos de
famílias nos acampamentos e assentamentos formando as coordenações internas,
as coordenações e direções, regionais, estaduais e nacionais, bem como os
setores de educação, formação, finanças, comunicação, frente de massas
(organizador das lutas), saúde, gênero, produção (cooperativas de base,
regionais, estaduais e a Concrab – Confederação Nacional das Cooperativas de
Reforma Agrária do Brasil), o nível nacional e o setor de relações internacionais.
São milhares de militantes envolvidos nas diferentes instâncias e tarefas do
MST. São militantes humildes e a maioria trabalha sem receber nada. Trabalha
porque acredita e pela convicção de estar fazendo história como sujeitos, e não
como espectadores. Aqueles que aparecem publicamente, nos meios de
comunicação, apenas cumprem uma tarefa decidida pelo conjunto e são simples
militantes como os demais (MAURO; PERICÁS, 2001, p.102).
Se a estrutura organizacional tem como base grupos de famílias, isso só poderia
ser efetivo mediante a própria formação de quadros específicos na organização. Essa formação
nos interessa aqui. Apesar de suas lideranças e alguns intelectuais valorizarem, no MST, sua
estrutura organizacional descentralizada, horizontal, desburocratizada e democrática, na prática
política, cada uma dessas características não se prestam de modo pleno e tampouco perfeito. De
maneira geral, os problemas organizacionais são colocados como dificuldades a serem superadas
e para nós são limitações de uma estrutura que se organiza nacionalmente.
Em nível nacional, a coordenação do movimento é formada por membros de
todos os Estados brasileiros, que, por sua vez, foram eleitos em cada encontro estadual. Também
participam representantes das centrais das cooperativas estaduais
24
, membros da direção nacional
24
A organização em cooperativas é uma das formas adotadas pelos assentamentos para transitar, também, em meio à
lógica de mercado. Segundo a cartilha do sistema cooperativista dos assentados (SCA), a “direção política do SCA é
superior a direção legal das CCAs” (Cooperativas Centrais). “O que vale é a direção política; a direção legal é pró
forma. A direção política deverá ser eleita ou referendada pelos Encontros Estaduais, de forma participativa e
democrática. Recomenda-se que parte dos membros da direção política sejam também da direção legal do SCA, para
não criar dicotomia” (SCA, 1998, p. 52).
61
(que são eleitos no encontro nacional) e os chamados setores nacionais, que se ligam as esferas de
produção, educação, saúde, comunicação, frente de massa, finanças, etc.
ESTRUTURA ORGANIZACIONAL DO MST
25
CONGRESSO NACIONAL
I
ENCONTRO NACIONAL
I
COORDENAÇÃO NACIONAL
I
DIREÇÃO NACIONAL – SECRETARIA NACIONAL
I
SETORES NACIONAIS
I
1 2 3 4 5 6 7 8 9
1.Relações internacionais, 2.Secretaria Nacional, 3.Sistema Cooperativista dos Assentados,
4.Frente de Massa, 5.Educação, 6.Formação, 7.Comunicação, 8.Finanças, 9.Projetos.
Mesmo o movimento procurando preservar que não existem cargos de chefes,
presidentes, diretores, etc., essa estrutura lembra o “centralismo democrático” das organizações
partidárias leninistas. Figuras representativas que aparecem como lideranças no processo e que
também surgem aí em sua base estrutural vinculada à luta efetiva, lideranças que organizem
politicamente as massas. Essa carência e a transmissão direcional do processo de massificação
das lutas requerem muita cautela na análise. Isso porque a luta concreta não pode sair das mãos
de lideranças e sim da realidade, que é contraditória, do embate estrutural das classes.
O MST se propõe a fazer trabalho de “base” no intento de organizar
25
Sobre o formato da organização do movimento e sua estrutura orgânica nos baseamos nas contribuições de
Fernandes (1999).
62
politicamente as massas. Para isso, tem como fundamental a proposta de formação de militantes
que, em resumo, são os responsáveis diretos de ligação com o “povo”. Nessa constante
construção de quadros de organização, o movimento tende a apregoar, como ferramentas de
formação, as ocupações, marchas, enfrentamentos diversos que, no limite, colocam como prática
estratégica de luta.
O fato é que, se o processo de construção e organização política da luta pela
transformação social se descolar, por assim dizer, dos objetivos e da necessidade concreta dos
militantes que a massificam, qualquer organização desse tipo nasce fadada à cooptação. Por isso,
acreditamos que o MST se mantém sobre a constante reconfiguração de sua base social, que
submergiu de um constante quadro de luta no campo, encontrando nele, num determinado
período da história brasileira, uma forma de organização.
Nos acampamentos, uma das maiores instâncias são as assembléias gerais. São
nessas ocasiões que se decidem a direção e o funcionamento do acampamento, regido por regras
que devem ser incorporadas por todos que ali vivem. De hábitos a transgressões de convivência, é
nesse encontro que se tomam as decisões coletivas de cada acampamento, mesmo com
imperfeições. Aqui está, talvez, um dos maiores avanços e contribuições do MST
26
:
A combinação de movimento popular com luta política e sindical, requer do
MST flexibilidade na sua forma de organização interna. Nos acampamentos,
normalmente submersos no calor da luta política mais imediata – polícia, justiça,
jagunços etc. – os sem-terra praticamente vivem em estado permanente de
assembléia. As discussões e avaliações políticas coletivas são muito importantes
e visam garantir a permanência de todos no acampamento. Os sem-terra chegam
a viver quatro anos embaixo da lona preta e, sem dúvida alguma, é um exercício
“pedagógico” fundamental para a formação política de cada um. Nesse período,
crianças, adolescentes, homens, mulheres, idosos “fazem” política
diuturnamente (MACHADO, 2004, p.177).
Discutiremos, posteriormente, as implicações estratégicas a que se lança o
MST, como a dicotomia que, na maioria das vezes, se coloca na questão
26
Mauro e Pericás (2001, p.98) definem essa questão da seguinte maneira: “A maior instância decisória do
acampamento é a assembléia geral. Nela são aprovadas as linhas gerais de atuação e o regimento interno. Alguns
exemplos: É proibido o roubo; é proibido qualquer tipo de agressão física a qualquer pessoa (nos acampamentos os
índices de violência contra a mulher e as crianças são pequenos); é proibido andar embriagado (em alguns
acampamentos é proibido o consumo de álcool; a melhor experiência, porém, resultou não em proibir o álcool, mas
em desenvolver campanhas educativas a respeito dos males causados pela bebida); é proibido o porte de armas de
fogo; e outras regras que a comunidade achar conveniente. A transgressão das mesmas implica advertência pública
perante assembléia, e a reincidência a expulsão, também por decisão do mesmo foro.”
63
acampamento/assentamento e nas inferências políticas que isso acarreta. Por enquanto, nos
prendemos aos limites e considerações organizacionais e específicas referências à estrutura e
programa do movimento.
O que não podemos furtar é o fato de que, para além dos limites imediatos de
sua base social, o MST tem sido original em suas estratégias de luta. No entanto, essa luta
política tem suas limitações. Desde o programa até sua ação política mais imediata, a questão da
transformação social tem sido colocada como de fundamental importância e como objetivo do
MST. O problema, então, pode tomar outras direções: a) A terra ser o condicionante do
desencadeamento revolucionário; b) a questão ontológica e o núcleo das relações de produção
capital versus trabalho – devido à base social que compõe o MST situar predominantemente no
semiproletariado agrário e não se encontrar em contradição direta com o capital; c) da
organização política efetiva e sua ligação com as condições concretas e historicamente
amadurecidas para a transformação a que se propõem como a consciência de classe.
Adiantamos, entretanto, algumas observações em relação ao programa político
de reforma agrária do MST
27
. O movimento tem clareza que a reforma agrária só se realizará com
uma transformação social ampla:
Essa proposta de reforma agrária se insere como parte dos anseios da classe
trabalhadora brasileira de construir uma nova sociedade: igualitária e socialista.
Desta forma, as propostas de medidas necessárias fazem parte de um amplo
processo de mudanças na sociedade e, fundamentalmente, da alteração da atual
estrutura capitalista de organização da produção (CONCRAB – MST, 1998,
p.19
28
).
O conceito de reforma agrária ganha contornos diferentes e se presta como a
chave de ligação dos anseios populares com a luta política. Esse termo tem sido usado pelo MST
como elemento no processo de organização e combate político da militância que, no limite, forma
o corpo do movimento. Em praticamente todos os discursos, manifestações e ocupações, questões
como a “democratização da terra” e da “produção”, a “garantia de trabalho para todos,
combinando com distribuição de renda” (CONCRAB – MST, 1998, p.17) tem sido defendidas
pelo MST como bandeiras de luta:
27
Elencamos as principais reivindicações do MST na página 50.
28
Programa agrário aprovado pela Coordenação Nacional e pelos Encontros Estaduais do MST de novembro de
1994 a março de 1995.
64
A reforma agrária significa um conjunto de medidas necessárias que consiga
alcançar aqueles objetivos. Esse conjunto de mudanças começa,
necessariamente, pela democratização da propriedade da terra e dos meios de
produção, base para qualquer mudança social efetiva. [...] Para isso, se deverá
alterar a atual estrutura de propriedade realizando desapropriações (com
indenizações aos proprietários) e expropriações (sem indenização, nos casos de:
grileiros, criminosos, cultivo de drogas, contrabandistas, trabalho escravo, etc.);
para que se garanta o direito de todos trabalharem na terra, e que ela esteja
subordinada aos objetivos gerais assinalados (CONCRAB–MST, 1998, p.20).
A veiculação da Reforma Agrária aos objetivos estratégicos do movimento
podem ser observadas em seu programa e adquire significativa importância na luta ideológica e
prática cotidiana destes indivíduos. Mas não é só isso. Ao vincular Reforma Agrária e luta por
terra, o MST demonstra que sua bandeira vai além da luta no campo. Por outro lado, faz isso num
contexto de arrefecimento do movimento operário, seu potencial aliado. Questões efetivas do fato
do MST “encabeçar” a direção contestatória das lutas populares nos anos 1990 aparecem no
discurso e no programa cunhado em meio a isso. Bastante abrangente os objetivos colocados pelo
movimento na questão da Reforma Agrária são principalmente:
Garantir trabalho para todos, combinando com distribuição de renda;
Produzir alimentação farta, barata e de qualidade a toda população brasileira,
em especial nas cidades, gerando segurança alimentar para toda sociedade;
Garantir o bem estar social e a melhoria nas condições de vida de forma
igualitária, para todos os brasileiros. De maneira especial aos trabalhadores e,
prioritariamente, aos mais pobres.
Buscar permanentemente a justiça social, a igualdade de direitos em todos os
aspectos: econômico, político, social, cultural e espiritual;
Difundir a prática dos valores humanistas e socialistas, nas relações entre as
pessoas, eliminando-se as práticas de discriminação racial, religiosa e de gênero.
(CONCRAB – MST, 1998, p. 19).
O MST, ao indicar a necessidade política de formar um amplo arco de alianças
com forças de esquerda, revela que, sozinho, não consegue reunir condições para efetivar a
transformação social. Ele deixa claro também que este arco passa pelos partidos de esquerda,
movimentos sindicais e sociais:
65
Só conseguiremos tomar o poder se as esquerdas forem capazes de deixar de
lado seus pequenos problemas e se unirem em torno de uma causa comum. É
fundamental a unificação das forças progressistas para que possamos lutar com
eficácia contra o modelo atual. Já temos um inimigo externo comum, que é o
imperialismo norte-americano, e um inimigo interno, que são as elites,
representadas pelo governo que atualmente está no poder (MAURO; PERICÁS,
2001, p. 133).
Ao fazer estas ponderações, o MST está levando em consideração que há
inúmeros movimentos sociais que também lutam por reforma agrária, mas nenhum deles, às
exceções do MST e da CONTAG (Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura),
está organizado nacionalmente, como podemos observar abaixo:
Movimentos Sociais em Luta pela Terra no Brasil
Nome Estado(s) início
Sindicato de Trabalhadores Rurais/Fetags/Contag
(1996 = ano em que iniciaram as ocupações de
terra)
MG – RJ – ES – BA – PE – PB –
RN – CE – PI – PA – MT – TO –
GO - MS
1963
Comissão Pastoral da Terra – CPT BA – PB - PE 1975
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra –
MST
RS – SC – PR – SP – MG – RJ –
ES – BA – SE – AL – PE – PB –
RN – CE – PI – MA – PA – TO –
DF – GO – RO – MT – MS
1984
Movimento de Luta pela Terra – MLT BA – PA 1994
Movimento dos Trabalhadores – MT PE 1996
Movimento Camponês de Corumbiara – MCC RO 1996
Movimento da Libertação dos Sem Terra – MLST PE – MG – RN – SP – GO 1997
Liga Operário Camponesa – LOC RO 1998
Movimento dos Agricultores Sem Terra – Mast SP (Pontal do Paranapanema);RN 1998
Departamento Rural da Central Única dos
Trabalhadores – CUT-MS
MS 1999
Movimento dos Trabalhadores Rurais – MTR MS 1999
Movimento da Libertação dos Sem Terra de Luta
– MLST de Luta
MG (Triângulo Mineiro) 2000
Movimento dos Trabalhadores do Brasil – MTB PE 2001
Fonte: Fernandes, 2001, p.66.
66
A proposta de reforma agrária da Contag, aprovada no 3º Congresso Nacional
dos Trabalhadores Agrícolas, em meados de 1979
29
, exige do governo que seja “massiva e
drástica, visando promover a melhor distribuição da terra e modificações estruturais no regime de
sua posse, uso e propriedade” (CONTAG–PROGRAMA, 1979, p. 159):
a) distribuição massiva da terra em áreas de maior concentração de assalariados,
parceiros, arrendatários, posseiros e ocupantes;
b) redistribuição imediata, ao Trabalhador Rural, das terras que se encontram em
áreas prioritárias de Reforma Agrária e em áreas desapropriadas;
c) discriminação e titulação das terras públicas, com entrega imediata ao
legítimo trabalhador rural;
d) luta pela não destinação de áreas às grandes empresas. (CONTAG–
PROGRAMA, 1979, p. 159).
Nesse sentido, o que sobressai são determinações que colocam a luta política
como intra-sistêmica, que está no limite jurídico da questão da posse e propriedade da terra. Em
outros termos, apresenta a reforma agrária como uma “justa” distribuição à função social da terra,
como bem comum. Está longe, portanto, de algo que lembre uma transformação social, ampla e
profunda, uma vez que se encaixa nos estratos limites legais das questões agrárias:
1 – que o Movimento Sindical reivindique maior independência do poder
Judiciário em relação ao Executivo;
2 – que o Movimento Sindical tome a iniciativa de denunciar todos os casos de
corrupção que ocorram no aparelhamento judiciário;
3 – que se reivindique o preenchimento imediato das comarcas vagas e a criação
de novas comarcas;
4 – que, nos casos graves de atraso e emperramento processual, as entidades
sindicais desenvolvam pressões para o andamento normal da ação;
5 – que o Movimento Sindical de Trabalhadores Rurais continue reivindicando a
criação e implantação, em todo território nacional, de uma Justiça Agrária para
julgar todos os casos relativos ao uso, posse e propriedade da terra;
6 – que o Direito Agrário seja matéria obrigatória em todas as Faculdades de
Direito, Agronomia e Administração Pública;
7 – que seja criado um código agrário que reúna toda a legislação existente, e
que as lideranças sindicais sejam ouvidas na sua elaboração (CONTAG–
PROGRAMA, 1979, p. 173).
29
Baseamo-nos nos Anais do 3° Congresso Nacional dos Trabalhadores Rurais, de 21 a 25 de maio de 1979,
Brasília-DF. Contag – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura, p.154-168.
67
Programa gerido com base essencialmente no Estatuto da Terra, essas
proposições da Contag servirão de “base”, ou parâmetro, indistintamente para outros movimentos
que surgirão nesse período. O MST trilha caminho diverso: ao mesmo tempo em que desafia os
ícones legais ao realizar uma ocupação de terra, age dentro da lei ao ser assentado (forma
cooperativas, busca crédito e vende seus produtos no mercado).
Comparativamente, a proposta de reforma agrária do MST é mais ampla que a
da Contag, pois, além de lutar por uma sociedade socialista, cujos meios de produção estejam sob
controle dos trabalhadores, defende que a formação do “novo homem” deve começar em práticas
e posturas cotidianas nos acampamentos e assentamentos:
El movimiento se preocupa de la persona humana en forma integral. Es la lucha
por la tierra, la casa, la comunidad, la educación, la salud, la cultura, las mujeres,
los jóvenes [...] No existe outra organización en Brasil que trabaje com todas
estas dimensiones. [...] Nos entusiasmamos mucho com eso y dejamos brechas
abiertas. Ahora hemos descubierto que uno de nuestros grandes problemas es la
escasa conciencia que tiene nuestro pueblo de su condición de clase explotada.
Tiene claro que tiene que luchar por mejores condiciones económicas, por
crédito, pero no de que tiene que luchar por una nueva sociedad (HARNECKER,
2002, p.161).
O conteúdo de reforma agrária amplia a concepção intra-jurídica do regime de
propriedade, no compasso das lutas e ocupações, deixando explícito o caráter contraditório das
relações de posse. Junto com isso, aparecem questões como o trabalho coletivo da terra e certa
autonomia política do movimento.
O que parece intrigar é que, nos moldes socialistas conhecidos, a propriedade,
ou a posse da terra, deve estar subordinada ao cumprimento de sua função social, como coloca a
proposta do MST. O problema é o efetivo volume para esta passagem. A Reforma Agrária como
objetivo de acesso democrático a terra nos moldes colocados pelo MST, no limite, confunde-se,
no máximo, com um processo de nacionalização da terra no Brasil. Isso porque não é somente o
quadro de lutas e embates que devem ser analisados, mas o grau de desenvolvimento do próprio
capitalismo. A atual estrutura de posse e propriedade não pode ser modificada pelo acesso e o que
se convém colocar como democratização da terra. Há mais que se integrar a conjuntura. A
fragmentação dos grandes latifúndios pode representar um avanço na luta e nas conquistas contra
o capital, talvez, não como medida para um desencadeamento revolucionário, mas como
68
elemento de conquista para os trabalhadores. Isso tem implicações e um impacto no processo da
luta de classe. Basta verificar que o próprio conteúdo dos conflitos no campo tem um caráter
bastante violento.
69
CAPÍTULO III – AVANÇOS E LIMITES DAS POTENCIALIDADES
REVOLUCIONÁRIAS DO MST
3.1 PALAVRAS INTRODUTÓRIAS
O foco central desse capítulo é problematizar a questão da organização política
do MST, em que as estratégias de ação e o processo de mobilização são vistos com relação à
seguinte hipótese: o MST apresenta elementos potencialmente revolucionários. A apresentação
dessa hipótese se dá ao longo de sua trajetória político ideológica
30
.
Para isso, dividimos este capítulo em três partes: 1) a reação deste movimento à
implantação das políticas neoliberais no país, sobretudo na década de 1990; 2) algumas
controvérsias teóricas e políticas em relação ao protagonismo do MST no cenário nacional
brasileiro; e 3) a questão da revolução social, sobre um “sujeito” que está “fora” do núcleo duro
da relação capital/trabalho.
3.2 MST
E HEGEMONIA NEOLIBERAL NO BRASIL NA DÉCADA DE 1990
Para entendermos o processo de constituição da hegemonia neoliberal no
Brasil, na década de 1990, explanaremos, sumariamente, seu processo político em escala
mundial, para depois nos atermos no Brasil. Feita essa ressalva, explanaremos a atuação política
do MST diante da implantação de políticas neoliberais que afetaram, de forma substancial, o
proletariado brasileiro de modo geral.
Não somente as mudanças nas relações entre capital e trabalho, que
acompanham o desenvolvimento do capitalismo pré-neoliberal, e que aparecem dando suporte a
30
Como advertimos anteriormente, o MST sozinho não é capaz de engendrar um processo de transformação social,
pois, necessitará articular um amplo arco de alianças anti-sistêmico que englobe os setores representativos do
proletariado urbano e rural, bem como os partidos de esquerda que se identificam com um projeto de tal
envergadura.
70
ele, devem ser analisadas. Portanto, se de fato a crise do marxismo é hoje a crise da teoria da
revolução proletária, se verifica em virtude não só das transformações advindas do embate
fundamental entre capital e trabalho, ainda que como base dinâmico-estruturante do processo,
mas também das metamorfoses que o caminho da acumulação capitalista toma frente ao
neoliberalismo e suas esferas político-ideológicas, tendo o Estado como ferramenta.
O capitalismo cria, como outrora criara, formas de Estado que corporificam
qualquer coisa de algo que jamais aparecerá revelando sua essência. No revolto mar do jogo
político, nada mais encontramos do que o turvo lugar dos conflitos entre as classes sociais, e suas
inimagináveis formas de se metamorfosear em diversificadas frações, comportando conflitos,
mesmo no interior das próprias classes. No fazer-refazer, criar-recriar, constituir para se destituir,
como próprio do processo dialético, o proletariado, enquanto negação de seu oposto, se constitui
como classe portadora de um projeto político que se distancia da superficialidade social. Destitui-
se com vistas a um projeto de transformação social que o coloca – o proletariado na conjuntura
revolucionária – como única classe “verdadeiramente revolucionária”. Por isso, não há nada de
novo em constatar que o Estado mesmo, em resumo, constitui-se enquanto materialização do
partido da classe que domina, isto é, elemento de organização e representação política das classes
dominantes.
Mas é necessário, no entanto, verificar o que, de fato, confere à atualidade
social e suas inquietudes, sobretudo por essa mesma atualidade, se revestir de uma “nova”
processualidade, onde as esferas de movimentação do capital reiteram e complexificam as
proposições de O Capital, de Marx. Essa conjuntura assiste, como nunca, a autonomia relativa da
esfera do capital dito financeiro (para Marx a forma do capital monetário ou capital-dinheiro),
sobre os demais setores da economia burguesa, sobretudo pela sua valorização especulativa do
capital monetário, em detrimento da exploração da mais-valia. Enquanto, atualmente, os maiores
“ninhos de acumulação de lucros financeiros são os grandes fundos” (fundos de pensão, fundos
mútuos), segundo Chesnais (1996, p.246), apenas constatamos uma profunda reconfiguração da
classe operária à precarização do trabalho, da expansão da prestação de serviços agora
desarticulada da esfera produtiva. O que assistimos, em novos tempos, é a agressiva do capital
contra o século de conquistas da classe operária, a força de trabalho perde direitos alcançados
com grandes sacrifícios, e os trabalhadores se vêem lançados, incondicionalmente, à selva do
mercado, o que se traduz em uma queda acentuada de seu padrão de vida, portanto, exigindo
71
respostas dos agentes.
Nesse sentido, é conhecido entre os pesquisadores do assunto os sortilégios de
uma estrutura neoliberal. Segundo Anderson (1998), o modelo neoliberal obteve êxito quando de
sua análise imediata aos fins a que pretendia. Em todos os países onde o neoliberalismo colocou
suas amarras, assistiu-se, mesmo que em um primeiro momento, a quedas inflacionárias e ao
aumento significativo nas taxas de lucro. O contraste aparece quando esse aumento de
lucratividade vem necessariamente acompanhado também do aumento efetivo do desemprego
estrutural e taxas de inflação, escamoteando o caráter repressivo dado às reivindicações dos
trabalhadores.
Para esse autor, dois grandes campos neoliberais se desenvolveram
mundialmente desde o pós-guerra, fundamentalmente nos anos 1970, quando a maioria dos
governos da OCDE – Organização Européia para o Comércio e Desenvolvimento – “tratava de
aplicar remédios keynesianos às crises econômicas” (ANDERSON, 1998, p.11). Na Europa e
América do Norte, onde o capitalismo imperava com êxito, a hegemonia deste programa não se
realizou do dia para a noite. Preparar o terreno para o desenvolvimento de um capitalismo
“avançado”, duro e sem regras que o elegessem – esta era a condição de existência do
neoliberalismo.
Mesmo nestes dois grandes campos de propagação do neoliberalismo temos
que analisar as especificidades. Isso porque o avanço dessa proposta não se dá de maneira
idêntica em todos os países. Nos Estados Unidos, por exemplo, onde a presença de um Estado de
bem-estar do tipo europeu era quase nula, o foco neoliberal recaiu sobre a corrida armamentista,
que o colocava em competição militar com a então União Soviética:
Mas esse recurso a um keynesianismo militar disfarçado, decisivo para uma
recuperação das economias capitalistas da Europa ocidental e da América do
Norte, não foi imitado. Somente os Estados Unidos, por causa de seu peso na
economia mundial, podiam dar-se ao luxo do déficit massivo na balança de
pagamentos que resultou de tal política (ANDERSON, 1998, p.13).
Com isso, os quadros da história começam a fazer sentido. Na Europa,
inicialmente, somente os governos explicitamente de direita adentraram o neoliberalismo e
posteriormente, qualquer governo, “inclusive os que se autoproclamavam e se acreditavam de
72
esquerda, podia rivalizar com eles em zelo neoliberal” (ANDERSON, 1998, p.14).
Mas o fator que parece saltar aos olhos é o problema do Estado. No capitalismo
europeu, o que se contrapôs ao Estado de bem-estar foi a manutenção de um “Estado forte, sim,
em sua capacidade de romper o poder dos sindicatos e no controle do dinheiro, mas parco em
todos os gastos sociais e nas intervenções econômicas”:
A estabilidade monetária deveria ser a meta suprema de qualquer governo. Para
isso seria necessária uma disciplina orçamentária, com a contenção dos gastos
com bem-estar, e a restauração da taxa “natural” de desemprego, ou seja, a
criação de um exército de reserva de trabalho para quebrar os sindicatos.
Ademais, reformas fiscais eram imprescindíveis, para incentivar os agentes
econômicos. Em outras palavras, isso significava reduções de impostos sobre os
rendimentos mais altos e sobre as rendas. Desta forma, uma nova e saudável
desigualdade iria voltar a dinamizar as economias avançadas, então às voltas
com uma estagflação, resultado direto dos legados combinados de Keynes e
Beveridge, ou seja, a intervenção anticíclica e a redistribuição social, as quais
haviam tão desastrosamente deformado o curso normal da acumulação e do livre
mercado. O crescimento retornaria quando a estabilidade monetária e os
incentivos essenciais houvessem sido restituídos (ANDERSON, 1998, p. 11).
Nosso intuito é uma explanação sumária sobre o desenvolvimento do
neoliberalismo em suas origens européias e norte-americanas, até porque, não estenderemos a
questão, sobretudo pelo debate estar em aberto. As condições efetivas mostram-nos que o
movimento neoliberal está inacabado, a desregulação econômica, o desemprego massivo, a
repressão às reivindicações, a redistribuição de renda em favor do capital e a própria “onda” de
privatizações de bens públicos, vem colocar a América Latina como a “terceira grande cena de
experimentações neoliberais”, ainda na opinião do mencionado autor.
Em Petras (1998), encontramos a constatação de que, na América Latina, o
avanço do neoliberalismo encontrou maior dificuldade em propalar suas teses, com esforços para
adentrar a grande maioria dos povos latino-americanos. A natureza das transformações impostas
às classes populares, a forma conjunta neoliberalismo-democracia, apregoada pelos Estados
Unidos, enquanto difusor imediato para a América Latina, “não conseguiram ganhar a aliança da
massa dos latino-americanos” (PETRAS, 1998, p.20).
Tanto Anderson (1998) quanto Petras (1998) parecem concordar quanto à
intervenção estatal. Para esses autores, a intervenção não diminuiu, apenas mudou de forma e
73
direção. Ao invés de nacionalizar e trazer para o controle do Estado alguns setores até mesmo
estratégicos, ele privatizou. Portanto, para onde quer que olhemos, o Estado parece ser ferramenta
indiscutível na relação econômica, política e social entre a medida das classes:
O Estado interveio para transferir os recursos econômicos dos serviços sociais
dos grupos assalariados para os subsídios aos exportadores. O Estado interveio
na relação capital-trabalho, limitando o trabalho para quebrar os sindicatos,
prender e assassinar os grevistas e líderes sindicais. O Estado interveio para
baixar as tarifas, aumentar os preços, diminuir os salários: ele estabeleceu novas
regras e novas instituições para fazer cumprir a nova ordem (PETRAS, 1998,
p.25).
No Brasil, os anos de ditadura militar vêm repercutir os ecos do passado
também nos anos 1980. O período de redemocratização do país segue acompanhando a “cartilha”
do Consenso de Washington, assistindo, em toda a América Latina, o avanço sem precedentes do
neoliberalismo em sua história. No caso brasileiro, a retórica populista neoliberal vem de
encontro à eleição de Collor à presidência de um país que acabara de emergir de um longo
período de ditadura militar. Também a crise em que se encontrava o país, mediante os desatinos
do governo Sarney, contribuiu para um terreno fecundo à propagação do pensamento
neoliberal
31
. Portanto, no Brasil, a ofensiva desse capital toma para si o caráter “matizado” de
uma versão muito particular. Enquanto no quadro chileno e na Argentina, a derrota da esquerda e
do movimento popular chegava a passos largos, dando certezas duradouras ao neoliberalismo, no
Brasil é diferente. Sader (1997) enfatiza a distância maior em relação ao golpe militar de 1964, o
período de expansão econômica brasileira, ocorrido ao longo dos anos de 1960 e 1970, com a
conseqüente renovação e fortalecimento social e político das classes dominadas que, de fato,
“gerou uma correlação de forças menos desfavorável a estas e menos propícia para a imposição
pura e simples do neoliberalismo”.
Resta saber se o neoliberalismo “sobrevive a si mesmo”, pela incapacidade da
esquerda em construir alternativas viáveis à sua superação, como levanta Sader. Alternativas que
efetivamente compreendam as crises e as vicissitudes do Estado, com olhos a uma possibilidade
concreta, a um projeto de socialização do poder.
O projeto neoliberal realmente almejava a reanimação do capitalismo mundial
31
Estes episódios são discutidos, dentre outros autores, em Biondi (1999), Batista (1994) e Lesbaupin (2003).
74
avançado. Talvez com um “efeito colateral” significativo a essa economia dita “globalizada”, a
esfera financeira que, mediante a mundialização do capital “põe a moeda (não a produção) como
centro de suas operações especulativas” (Gorender, 1998). Essa dimensão financeira
mundializada aparece como elemento de influência decisiva sobre a estratégia de estabilização
adotada pelo “Plano Real” do governo Fernando Henrique Cardoso, na década de 1990, uma vez
que tal estratégia se mostrava altamente dependente dos fluxos internacionais de capitais de curto
prazo, por exemplo
32
.
Em princípio, é necessário que tenhamos clara a noção de que a política
neoliberal alterou o perfil aparente das classes sociais no interior da própria lógica capitalista. Em
breve análise da burguesia brasileira, constatamos uma reconfiguração dos quadros, evidenciados
a partir do jogo de interesses capitais entre determinados setores dessa burguesia, que também
podem comportar certa “hierarquização”:
De fato, a política neoliberal prioriza o grande capital bancário em detrimento do
grande capital industrial e, mais recentemente, colocada diante de conflitos entre
o capital financeiro internacional e o grande capital bancário nacional, no
processo de desnacionalização do setor bancário, tem evidenciado suas ligações
preferenciais com o capital financeiro internacional. Já o pequeno e médio
capital, de base principalmente nacional, é o setor da burguesia que ganha menos
com o neoliberalismo (BOITO Jr., 2002, p. 25).
Todavia, segundo o autor, parecem faltar análises mais detidas sobre o
problema da esfera do capital fundiário, uma fração do capital que se retrai, na década de 1990,
em detrimento dos fatores associados ao ascenso financeiro do capital especulativo no interior do
“bloco no poder” das burguesias nacionais
33
.
No que se refere à relação entre as diferentes frações do capital, denota-se o
predomínio do capital financeiro que, durante o primeiro governo FHC, aparece favorecido por
uma política cambial de sobrevalorização do real, que leva à constatação do “movimento
impressionante de descentralização de capitais” em favor dos grandes grupos “econômico-
32
Sobre esse assunto observar Fiori (1997); Cano (1999) e Filgueiras (2001).
33
Mais à frente, alinharemos a questão da esfera agrária com processo a que recorre a burguesia fundiária brasileira.
Nas colocações de Coletti (2006), aqui já citadas, apoiaremos o fato de que esta fração do capital recorre, na
conseqüência do desenvolvimento das políticas neoliberais, ao aparelho político de Estado como peça fundamental
na segurança e preservação de seus interesses.
75
financeiros” (FILGUEIRAS, 2006, p.190):
Redefine-se, portanto, na década de 1990, a direção do desenvolvimento
capitalista no Brasil. A essa redefinição corresponde, no plano político, uma
nova organização interna do sistema de interesses capitalistas que exerce, desde
1964, a hegemonia no seio do bloco do poder (SAES, 2001, p. 127).
Por isso, a emergência de movimentos sociais, no imediato, aparece
intimamente ligada ao neoliberalismo e à crítica ao governo em seu primeiro plano. Mediante
mudanças profundas do capitalismo no Brasil, como a abertura comercial e financeira, onda de
privatizações advinda de uma política estatal, que suprimia, e suprime, cada vez mais direitos
sociais dos trabalhadores e uma desregulamentação do próprio mercado de trabalho
34
, não há
como negar uma profunda mudança também nos quadros do proletariado brasileiro, tanto quanto
toda estrutura de classes e de frações de classe que, no nosso caso, apenas mencionaremos:
A resistência e a luta da maioria das classes trabalhadoras contra o bloco no
poder neoliberal aparece, no plano político, no plano sindical e em novos
movimentos sociais. [...] Ressaltemos uma idéia geral: estão fora da frente
neoliberal o operariado industrial mais organizado, a maioria da baixa classe
média, o campesinato – principalmente o campesinato pobre – e ampla e variada
gama de trabalhadores de baixa renda, subempregados, desempregados e
autônomos de diversos tipos (BOITO Jr., 2002, p. 33).
O neoliberalismo lança suas amarras “tardiamente” no Brasil, sobretudo por
conta da “demora” das classes dominantes em aderirem rapidamente ao processo, na medida em
que a estrutura produtiva no país impunha uma contrariedade óbvia. Segundo Filgueiras, “a
contradição fundamental se referia ao processo de abertura comercial – que atingia de forma
bastante diferenciada, os diversos ramos de produção industrial e agroindustrial”. Mais que isso,
34
Sobre a proposta de avanço e consolidação do modelo neoliberal no Brasil, Filgueiras (2006) empreende uma
análise onde podemos constatar três grandes momentos político-econômicos: “Esse processo, de implantação e
evolução do projeto neoliberal, passou por, pelo menos, três momentos distintos, desde o início da década de 1990,
quais sejam: uma fase inicial, bastante turbulenta, de ruptura com o MSI e implantação das primeiras ações concretas
de natureza neoliberal (governo Collor); uma fase de ampliação e consolidação da nova ordem econômico-social
neoliberal (primeiro governo FHC); e, por último, uma fase de aperfeiçoamento e ajuste do novo modelo, na qual
amplia-se e consolida-se a hegemonia do capital financeiro no interior do bloco dominante (segundo governo FHC e
governo Lula)” (FILGUEIRAS, 2006, p.186).
76
o “projeto neoliberal” tinha um caráter avassalador e peculiar na América Latina, gerindo uma
alta capacidade característica de absorver, ou suprimir, qualquer forma reivindicativa, seja via
desemprego massivo, seja via conjuntura ideológica, etc. Ainda segundo esse autor, há uma
diferenciação entre neoliberalismo, projeto neoliberal e neoliberalismo periférico. O projeto
neoliberal se refere à “forma como, concretamente, o neoliberalismo se expressou num programa
político-econômico específico no Brasil” (FILGUEIRAS, 2006, p.179)
35
.
Com isso, a estrutura social brasileira se complexifica. Na medida da
fragmentação da classe operária, o movimento de unidade burguesa é visto vigorosamente
pendendo na direção do controle político da sociedade, sobretudo quando seus interesses se vêem
ameaçados de imediato.
E se, de fato, a ameaça torna-se concreta, a burguesia e suas frações (industrial,
comercial, financeira, latifundiária), não hesitam em abrir mão do controle político direto da
sociedade para preservar seus interesses gerais. Basta à nossa observação a eleição de Fernando
Collor, em 1989, que confere unidade às diferentes frações do capital em torno do projeto
neoliberal.
O advento do neoliberalismo aparece, então, associado à abertura comercial, às
privatizações e a desregulamentação da força de trabalho. Esse coup de main à brasileira tem
como “ídolo” o “mártir” de 1989, mesmo ano da queda do então chamado “socialismo real”, que
parece colocar os movimentos sociais em alerta quanto ao plano das reivindicações mais
evidentes. A diferença é que nosso aventureiro não se oculta sob a máscara férrea mortuária de
Napoleão, e sim, sob o manto ou a alçada de uma burguesia assustada que não tardaria em
abandonar seu ícone.
Podemos afirmar, sem dúvida, que a maior das conquistas do projeto neoliberal
aparece no plano ideológico. Nunca, anteriormente, um projeto havia combinado características
tão furtivas à consciência de um proletariado já na defensiva, como em tal período.
35
Em Filgueiras (2006), a definição conceitual dos três aspectos é colocada da seguinte maneira: “o primeiro diz
respeito a doutrina político-econômica mais geral, formulada, logo após a segunda guerra mundial, por Hayek e
Friedman, entre outros – a partir da crítica ao Estado de bem estar social e ao socialismo e através de uma
atualização regressiva do liberalismo .[...] O segundo, se refere à forma como, concretamente, o neoliberalismo se
expressou num programa político-econômico específico no Brasil, como resultado das disputas entre as distintas
frações de classes da burguesia e entre estas e as classes trabalhadoras. Por fim, o modelo econômico neoliberal
periférico é resultado da forma como o projeto neoliberal se configurou, a partir da estrutura econômica anterior do
país, e que é diferente da dos demais países da América Latina, embora todos eles tenham em comum o caráter
periférico e, portanto, subordinado ao imperialismo.(FILGUEIRAS, 2006, p.179).
77
A partir deste dado abrem-se duas frentes, sem as quais não podemos examinar
o processo de dominação ideológica. A primeira passa pela mudança no perfil e na composição
das classes trabalhadoras no Brasil, vinculadas a um discurso hegemônico que conseguisse
“minar”, de maneira eficaz, as organizações populares, sindicais e políticas dos trabalhadores
constituídas nos anos 1980
36
. E, em segundo lugar, esse tipo de investida possibilitou a
consolidação de uma nova configuração do “bloco do poder”, sob a hegemonia prescrita do
capital financeiro e do capital produtivo multinacional
37
.
Com isso, os quadros desenhados a partir da lógica de reprodução do capital
redimensionam a geografia do próprio proletariado, hoje mais do que nunca. No caso brasileiro,
essa geografia não pode deixar de considerar movimentos sociais que, em certa medida, lutam
por condições mínimas e urgentes para assegurar a subsistência de seus indivíduos, como é o
caso do MST: empreende uma crítica categórica ao modelo capitalista neoliberal, explicitando
suas contradições e ambigüidades.
Essencialmente, o choque dos movimentos populares, na atualidade, atinge de
forma nada homogênea o Estado burguês. A luta política passa, ora pelo exercício do
enfrentamento direto com a repressão do Estado, ora pela estrutura deste aparelho, onde, no curso
destes enfrentamentos, revelam contradições internas que deixam em aberto e exposto o caráter
de classe do aparelho estatal
38
. O elemento “chave” desse processo é a questão da “legalidade” do
movimento: As ocupações de terras são, via de regra, atos ilegais, mas o assentamento é “legal”,
reconhecido pelo Estado, e passa a receber financiamento público. O MST tem clareza dessa
contradição, e pode ser que aí, entre a ocupação e o assentamento, resida um elemento
36
Apesar de nossas colocações se voltarem prioritariamente à década de 1990, temos de considerar a “investida”
neoliberal que aparece como resposta às reivindicações emergentes de um período de intensa mobilização dos
trabalhadores já na década de 1980.
37
Harnecker (2002) tem importantes contribuições sobre o modelo neoliberal no Brasil. Para a autora, este modelo
consistiria “en una gran internacionalización de la economía. El mercado interno es abastecido por productos
importados. En épocas anteriores casi no se importaban productos agrícolas; sólo se importaba un poco de trigo da
Argentina, pero el 90% se producía en el país. Hoy se gastan cinco mil millones de dólares al año en productos
alimenticios para el mercado interno, cuando casi todos los productos podrían ser producidos en Brasil” (p.60).
38
Menciono os episódios onde o MST passa a ganhar um enfoque maior quando de sua projeção no cenário
nacional. Os episódios do massacre dos trabalhadores rurais em Corumbiara–RO em agosto de 1995, e de Eldorado
de Carajás–PA, em abril de 1996. O problema da crítica ao movimento aparece como retaliação imediata à ascensão
do MST enquanto movimento social capaz de desencadear um processo maior de questionamento do próprio modelo
neoliberal no Brasil. Assim que o movimento passa a incomodar frações significativas da burguesia, o Estado
aparece para exercer sua função e o faz “brilhantemente”. A forma principal escolhida para tratar com essas questões
passa, fundamentalmente, pela criminalização dos movimentos tratados como “caso de polícia” em meio a medidas
judiciais e à “reintegração de posse”.
78
pedagógico para o conjunto dos trabalhadores: só com muita luta e, algumas vezes, com
derramamento de sangue, é que um ato considerado “ilegal” pode se tornar “legal”, dentro dos
limites da ordem burguesa. Por detrás desta questão reside outra: a legitimidade das ocupações,
pois, ao final, transformam-se em assentamentos reconhecidos pelo próprio Estado que antes
reprimiu.
O reconhecimento estatal do assentamento não está isento da ideologia
burguesa. Ao contrário, reconhecer um assentamento significa, também, impor um modelo de
organização social da produção através do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária)
39
.
Esse instituto empreende um modelo de reforma agrária voltado,
prioritariamente, para a propriedade familiar, em contraposição ao modelo coletivista do MST.
Essas diferentes concepções ganham contornos reais de luta política: “Determina-se o tamanho
dos lotes individuais e se planeja pequenas propriedades que apenas reproduzem a realidade da
região. [...] Ou seja, a lógica da Estrutura Fundiária do assentamento é contrária a uma possível
cooperação” (MACHADO, 2007, p.10). Mas não é só isso, o Estado “exerce” papel fundamental
sobre os assentamentos, pois, além do reconhecimento legal, controla os créditos aos assentados,
enquanto prospera o agronegócio.
Com isso, queremos encerrar esse tópico, com a ilustração de alguns dados que
evidenciem esse caráter. Na década de 1990, em comparação com as décadas anteriores (de 1969
a 1980), os recursos do Estado destinados ao crédito rural se retraíram. Para Coletti (2006), isso
significa dizer que, na década de 1990, os mecanismos então conhecidos de financiamento da
agricultura, “típicos dos anos 1970 e baseados em fartos recursos subsidiados concedidos pelo
Tesouro Nacional, foram deixados de lado”. Isso ocorreu devido à necessidade, ainda segundo o
autor, do Estado, em controlar os gastos públicos ou “do setor público no âmbito do projeto
neoliberal” (COLETTI, 2006, p.135):
39
O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) é uma autarquia federal, criada com a função
prioritária de realizar a reforma agrária, manter o cadastro nacional de imóveis rurais e administrar as terras públicas
da União. Está implantado em todo o território nacional por meio de 30 Superintendências Regionais. Sobre isso ver
<http://www.incra.gov.br>.
79
TABELA – Evolução dos recursos destinados ao crédito rural
Fonte: BANCO CENTRAL DO BRASIL (2002).
(*): IGP-DI – Indice Médio Anual
Ainda na constatação de Coletti (2006), o dispêndio do Tesouro Nacional com
o crédito rural, em 1999, foi praticamente insignificante. Apenas 0,02% do montante total dos
recursos. Por outro lado, “o Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) juntamente com a Poupança
Rural (poupança-ouro do Banco do Brasil)” e os “Recursos Obrigatórios (25% sobre os depósitos
à vista do sistema bancário) se tornaram responsáveis, em fins de 1999, por 79% do
financiamento” (COLETTI, 2006, p.135). Com isso, também é desenhado um quadro onde o
Estado passa a retrair sua participação nos investimentos em detrimento do aumento significativo
80
do setor privado nos recursos principalmente nos anos 1990. Esses dados se contrapõem, em
certa medida, à balança comercial do agronegócio brasileiro que, entre 1998 e 2004, portanto,
final da década de 1990, atuava em superávit favorável onde a taxa de crescimento do PIB
agropecuário foi de 4,67% ao ano, segundo dados do próprio Ministério da Agricultura
40
. Assim,
o caráter de classe do Estado parece ficar evidente já na distribuição dos recursos e escondido no
discurso das políticas agrárias.
3.3 ALGUMAS CONTROVÉRSIAS TEÓRICAS SOBRE OS LIMITES DAS LUTAS DO MST
A despeito dos avanços do capitalismo na agricultura brasileira, ele não é
“puro”, está entrecortado por outros meios e formas de produção. Não é difícil se perceber a
variedade relativamente grande de grupos, camadas ou classes que compõe o campo: meeiros,
posseiros, arrendatários, proletariado rural, semiproletariado rural, pequenos, médios e grande
capital:
No extremo oposto da estrutura de classes, conforme já foi dito, a força de
trabalho assalariado está dividida em dois grandes segmentos: o proletariado,
propriamente dito, e o semiproletariado. O primeiro segmento, embora
numeroso, é de formação recente, está disperso pelo território e ainda não
desenvolveu a sua auto-identificação político-ideológica como classe
assalariada, embora este processo já tenha se iniciado. O segmento
semiproletário é formado por um contingente também numeroso de pequenos
agricultores, recenseados pelo censo agropecuário, arrolados na listagem dos
produtores. Entretanto, a análise mais detalhada da sua situação revela que se
trata, na realidade, de produtores semi-autônomos, pois a precariedade da terra e
demais recursos produtivos que, eventualmente possui, os obriga a recorrer ao
trabalho assalariado, fora do seu pequeno estabelecimento, a fim de
complementar a manutenção familiar. Assim, mais da metade deles não é
proprietária da terra que trabalha, submetendo-se ao pagamento de renda em
diversas formas, renda esta que caracteriza, não um aluguel ou renda capitalista,
mas um excedente do produto do trabalho, que ele transfere ao proprietário da
terra (GERMER, 1994, p.271).
Para Germer, a construção desse “grande bloco da força de trabalho rural”
constitui um conjunto difuso e “heterogêneo”, com diferenciações internas significativas que lhe
40
Dados obtidos do Ministério da Agricultura: <http://www.agricultura.gov.br>.
81
conferem até mesmo uma fragmentação do ponto de vista político (GERMER, 1994, p.271).
Ao longo de sua trajetória, o MST tem sublinhado uma crítica veemente ao
latifúndio pelo apelo às ocupações de terra no país. Sua ação, nos anos 1990, coloca diversos
fatos político - sociais, com a recorrência de mobilizações, acampamentos e ocupações,
envolvendo grande número de pessoas, “dando maior visibilidade às lutas por terra; um trabalho
cotidiano e molecular de fortalecimento dos assentamentos” quer na esfera produtiva “(através da
criação de cooperativas, por exemplo)”, quer na política; “formação de lideranças, constituindo e
liberando quadros para expandir a ação do MST em outras regiões” (MEDEIROS, 2002, p.50).
O Programa de Reforma Agrária do MST, no bojo das lutas sociais dos anos
1990, implica, necessariamente, em que o Estado, “com tudo o que representa de poder”, na sua
configuração política institucional “(executivo, legislativo, judiciário, segurança e poder
econômico) seja o instrumento fundamental de implementação das propostas” (STÉDILE, 2005,
p.210).
Sobre isso, algumas reflexões entendem, fundamentalmente, que o MST, ao
astear a bandeira da reforma agrária, levanta também uma série de proposituras, entre as quais,
sua proposta de construção do socialismo não teria sustentação. Dentre elas, está a questão de que
o desenvolvimento de suas lutas estaria voltada para a redistribuição da terra e da renda, ainda
nos moldes capitalistas de produção, ou seja, reivindicar terra seria o mesmo que reivindicar
capital.
A condição de camponês estaria colocada na medida da manutenção da
pequena propriedade, cuja existência, atualmente, estaria dada pelo capital, e não propriamente
pela terra. Em outros termos: é um movimento tipicamente de pequenos burgueses.
Como dissemos anteriormente, o MST ocupa o centro da luta política de
oposição à implantação das políticas neoliberais, sob os governos Collor (1990-1991) e,
principalmente, Cardoso (1995-1998; 1999-2002).
Se, por um lado, o movimento operário mais tradicional entra em refluxo,
representado por suas organizações sindicais, como a CUT (Central Única dos Trabalhadores), e
políticas, como o PT (Partido dos Trabalhadores), que teve seu candidato à presidência da
república derrotado nas eleições de 1989, por outro, o protagonismo da resistência ao
neoliberalismo é assumido por um sujeito que só pode confrontar o capital indiretamente – o
MST. Além disso, com raras exceções, ele se lança nessa oposição praticamente sozinho, e toda a
82
fúria repressiva do Estado burguês recaiu sobre ele.
O protagonismo do MST, no cenário político brasileiro e latino-americano,
dividiu as atenções de intelectuais, militantes e acadêmicos, tanto à esquerda como à direita.
Resgataremos apenas uma parte das críticas ao movimento, precisamente aquelas que mais tem a
ver com o que esboçamos neste trabalho.
De um lado, Bertero (2006) afirma que o MST luta pela construção de uma
nova sociedade ancorada nos moldes da pequena propriedade agrária, cuja existência é
determinada pelo capital e não pela propriedade da terra. O MST concebe a pequena propriedade
como camponesa, contrariando a própria condição proletária e semiproletária dos trabalhadores
imersos em primeiro plano, à realidade do limite fundamental do capital com o trabalho
assalariado. Neste sentido, defende a “pequena produção” em bases burguesas e que o
movimento pretende “perpetuar” (BETERO, 2006, p.163), seja pela implantação nos
assentamentos de agroindústria ou da própria lógica das cooperativas. Esses dados somente se
completariam com a luta pela reforma agrária.
O limite das lutas do movimento já estaria, em sua própria condição de
existência da figura do camponês que, no MST, lutaria contra a própria lógica da expropriação
capitalista e por uma distribuição mais justa da terra e da renda ainda sob o manto do capital:
Limitar-me-ei a dizer que seu agente principal é imaginário, simplesmente
porque não há camponês no Brasil. Imaginário também é o socialismo que
professa, vale reiterar, cristão, que não suprime o capitalismo. Ao revés,
confirma-o. O que quer é, na verdade, um capitalismo mais igualitário e justo,
apoiado na pequena produção. Oscila, dessa maneira, entre um reformismo
distributivista, e um conservadorismo, por se tratar de mera reforma sob a ordem
social instituída, cujo teor é pequeno-burguês e cristão (BERTERO, 2006,
p.165-166).
Para o autor, a luta do MST é extemporânea, pois mesmo que se autodenomine
“camponês”, essa figura não “combina” com o modo de produção capitalista que, como vimos,
predomina no Brasil, sobretudo a partir dos anos 1970. O capitalismo, portanto, destruiu a
economia de subsistência não mercantil, a terra passou a ser do capital e converteu o camponês
em capitalista:
83
O campo deixa de ser campo. Une-se à cidade. Não apenas por industrializar-se,
senão também por desruralizar-se, ao ter a sua população diminuída em termos
relativos e absolutos, e, ao ter sua sociabilidade modificada, à imagem da
sociabilidade da cidade, pelo fato de mercantilizar as suas relações, e, enfim, por
urbanizar-se, ao incorporar o modo de vida urbano. Trata-se de um processo
revolucionário, por meio do qual ele, campo, submete-se ao domínio direto e
franco do capital, que lhe impõe a sua racionalidade. Obriga-se, por isso, a
inovar continuamente as suas condições de produção. Os seus partícipes são
impelidos a isso pela concorrência, que tem atrás de si a lei do valor, reguladora
da dinâmica capitalista (BERTERO, 2006, p. 167-168).
Mais adiante, Bertero compara as lutas proletárias (avançadas, revolucionárias)
com as do MST (conservadoras, retrógradas):
A não ser por engano, proletário não luta por terra, menos ainda por capital-
dinheiro. Luta, isso sim, por emprego, maiores salários, melhores condições de
trabalho e de vida e outros direitos, que no momento lhe estão sendo retirados, e,
no limite, luta pela abolição da propriedade privada dos meios de produção e do
capitalismo, que o MST, com seu reformismo pequeno-burguês, quer preservar.
Se hoje ele luta por terra, isso se deve em grande parte ao MST e à igreja
católica, sua aliada, que o induzem a essa prática equivocada e retrógrada
(BERTERO, 2006, p. 169).
A despeito da retórica antiimperialista, anti-monopolista e anti-latifundiária e da
defesa de uma sociedade socialista, o máximo que sua ação pode resultar é num capitalismo de
pequenos proprietários:
O MST, com a sua defesa intransigente da reforma agrária, incongruentemente
nega e, ao mesmo tempo, confirma a propriedade privada da terra. Nega-a,
quando invade propriedades, as quais pretende expropriar. Confirma–a, ao
defender a pequena propriedade. O que é tão privatista quanto o latifúndio que
condena e o neoliberalismo a que se opõe. A diferença é, para ele, de quantidade
e não de qualidade. O que o incomoda é o tamanho da propriedade, não a sua
natureza. Na sua defesa da pequena propriedade, chega ao extremo de pretender
proibir que bancos, empresas estrangeiras, grupos econômicos que não
dependem da agricultura, possam ter terras (BERTERO, 2006, p.179).
De outro lado, Navarro (2001) critica o MST a partir de um eixo teórico
político diverso, embora coincida, em linhas gerais, em pelo menos um ponto com as análises de
84
Bertero (2006), qual seja: o desenvolvimento do capitalismo no campo. Não desconsidera a luta
dos pequenos agricultores, mas entende que se trata de uma “mobilização sem emancipação”:
Diferentemente de outras possibilidades conceituais [...], a idéia de emancipação
[...] é informada restritivamente por uma dimensão essencialmente política.
Refere-se, precisamente, às chances das classes subalternas e os grupos sociais
mais pobres, a partir de diferentes identidades, construírem, de forma autônoma,
diversas formas de associação e representação de interesses e, mais relevante,
poderem adentrar o campo das disputas políticas e aí exercerem seu direito
legítimo de defender reivindicações próprias e buscar materializar suas
demandas, sem eliminação ou constrangimentos politicamente ilegítimos
materializados por grupos sociais adversários (NAVARRO, 2002, p.196-197).
O autor deixa claro que se distancia inteiramente da “ambiciosa idéia
(fantasiosa nesta quadra da história) da correspondência entre emancipação e a grande
‘transformação societária’, marcada pela profunda ruptura política, com a ‘origem existente’”
(NAVARRO, 2002, p.197). Em outras palavras, “emancipação” não se confunde com ruptura
anti-sistêmica que é, inclusive, a hipótese que levantamos neste trabalho: que elementos políticos
e ideológicos o MST têm para contribuir no processo de luta pelo socialismo?
Dentre as diversas críticas de Navarro ao MST, destaca-se o abismo entre a sua
“base social e a agenda discursiva e as formas de ação social escolhidas pela direção”,
diretamente ligada à organização como seus funcionários. Ao chamar a atenção para a sua
burocratização, inclui o movimento dentro de um ideário leninista,
ainda que simplificado, por parte do pequeno grupo de dirigentes principais, que
sacrificou até mesmo a orientação do jornal da organização, que passou a ser
mero instrumento de “agitação e propaganda”. Como resultado, neste período
decidiu-se também organizar este movimento social como “movimento de
quadros” (e não de massas, como se pensava [...] centralização organizada
(NAVARRO, 2002, p. 204).
Como se vê, por estes termos o MST não pode, sequer, ser considerado um
movimento social, estando mais próximo das organizações político-partidárias, de viés marxista-
leninista, comuns na história política do Brasil. O autor reivindica que os “movimentos sociais”
não devem prescindir de um alto grau de participação de seus membros e uma estrutura decisória
85
flexível e democrática, ao contrário das organizações inspiradas nos manuais leninistas:
Se assim não for, a referência já será uma organização, tal como o MST optou
por aderir, a partir de 1986, e os riscos maiores, entre tantos outros, são
exatamente aqueles de todas as organizações formais não democráticas – e, em
especial, aquelas que se julgam portadoras do iluminismo político-ideológico
(NAVARRO, 2002, p. 204).
O MST, ao perder seu caráter organizacional originário, “repete a melancólica
trajetória de outros agrupamentos políticos, situados no campo da esquerda tradicional, apenas
aparentemente promissores quando iluminados pelo foco de suas ações externas” (NAVARRO,
2002, p.228)
41
. Daí que permanecem:
Sob os símbolos e ícones elaborados para efeito externo, contudo, subjaz a
silenciosa desconfiança de seus participantes subalternizados, o
desconhecimento acerca dos objetivos do próprio Movimento, os impasses
produtivos existentes em todos os assentamentos rurais, a feroz disputa política
pela hegemonia na organização dos pobres do campo, o desprezo pela práticas
sociais democráticas e, surpreendentemente, como antes apontado a reiteração
do controle social e das formas de mando usuais no meio rural brasileiro, antes
exercidos pelos grandes proprietários de terra e seus prepostos, hoje
materializados sobre outras formas e acobertados pelo discurso progressista
(NAVARRO, 2002, p.229).
A despeito destas e de outras críticas que se possam fazer ao MST, é preciso
deixar claro que seríamos levianos se atribuíssemos categoricamente ao movimento um caráter
revolucionário. Destacamos, todavia, que, ao apresentar forma de organização social específica,
diferindo-se tanto do movimento sindical e dos partidos políticos marxistas-leninistas, e ao
assumir a bandeira do socialismo, acaba criticando aquelas organizações centralizadoras e com
pouca mobilização de massas. Em outros termos, prevê uma estruturação que busca uma
participação real dos acampados e assentados, mobilizando curiosamente o mais humilde dos
“militantes” até os “cargos” de direção do movimento, “cargos de direção nacional exercidos sem
privilégios” (MACHADO, 2004, p.135). Em outro autor, isso ganha as seguintes considerações:
41
Essas colocações se referem na medida de nosso objeto, onde, em linhas posteriores, faremos menção à questão do
potencial revolucionário do MST.
86
A originalidade do movimento está, sobretudo, no seu caráter, que combinou
aspectos populares, sindicais e políticos. A dimensão popular do MST residiu
em dois fatos. O primeiro porque é um movimento aberto para a participação de
todos os interessados em lutar pela terra, desde homem, mulher, criança, idoso,
não se restringindo a uma filiação. Além disso, desde a sua origem, foi aberto
para a sociedade, não se restringindo aos agricultores, sem, no entanto, perder
sua característica de movimento de trabalhadores rurais. O segundo fato, que o
caracterizou como movimento popular, refere-se às lutas por ele empreendidas
quanto à moradia, à saúde e à educação, típicas bandeiras de lutas dos
movimentos populares (MARTINS, 2004, p. 141).
Mesmo com o refluxo político ideológico do proletariado brasileiro, dos anos
1990 para cá, a atuação do MST acabou obrigando-o a se posicionar diante da implantação das
políticas neoliberais. Isto não significa um amadurecimento social, político e ideológico dos sem-
terra, mas fez com que setores vulneráveis da esquerda se colocassem favoráveis às suas
bandeiras, principalmente a da reforma agrária. Este quadro não está encerrado, ao contrário:
O presente das incertezas superadas, aberto a novas possibilidades e alternativas
no assentamento e na reforma agrária, ainda não produziu o seu próprio
discurso, ainda não gerou a sua épica, ainda não produziu uma identidade nova.
O estranho, o interveniente, o invasor, simbólico que há no agente de mediação
das lutas sociais ainda fala no lugar do trabalhador. Nega-lhe, na prática, o que
verdadeiramente interessa num programa de reforma agrária, que é a sua
emancipação plena, a oportunidade de organizar e expor seu próprio
entendimento da experiência social e ressocializadora, de passar do nada da
condição de sem-terra para as possibilidades amplas da reinserção social num
mundo de horizontes (MARTINS, 2003, p.9).
É nesse sentido que reconhecemos esse potencial. Na luta pela terra, o espaço
de luta e resistência é construído quando o movimento torna público o caráter da sua situação ao
ocupar uma propriedade ou um latifúndio: “Conquistar a terra, uma fração do território, e se
territorializar é um modo eficaz de reação e de demonstração da sua forma de organização”
(FERNANDES, 1999, p.238). A sobrevivência, como sujeito histórico, dos trabalhadores rurais
sem-terra está intimamente ligada a esse espaço de luta e resistência que, no limite, é o resultado
das forças despendidas por esses agentes, na reflexão e na busca por respostas à ordem
capitalista.
87
3.4 EMBATES POLÍTICOS E IDEOLÓGICOS E UMA ALTERNATIVA POTENCIALMENTE
REVOLUCIONÁRIA
A luta do MST se assemelha, em vários aspectos, a dos movimentos sociais na
atual conjuntura da América Latina
42
. O que, com isso, se quer dizer é que a construção das
estratégias de luta e enfrentamento dos movimentos sociais estão para além das estruturas
burocráticas institucionalizadas dos partidos políticos, da prática política partidária, articulada,
em sua maioria, por estatutos, regulamentos, normatizações, leis e diretrizes, incorporadas desde
as conhecidas “fichas de filiação” até ao direito compulsório do “voto democrático”. O
diferencial, portanto, no movimento, “foge” às estruturas burocráticas dos partidos políticos,
sobretudo por não restringir-se a ela. Em sua estruturação, a alternativa buscada por quem foi
parar no acampamento, prioritariamente, passa pela questão de um “pedaço de terra que lhe
garanta o sustento”, daí que a luta política aparece, adiante, atrelada a uma necessidade imediata,
e só então toma a forma organizacional de movimento. Assim,
cada acampamento ou assentamento estabelece suas próprias regras, mas em
geral, o órgão soberano é a assembléia. A espinha dorsal dos assentamentos e do
SCA é constituída pelos núcleos de base, ou núcleos de produção. Os
representantes dos núcleos formam a direção do assentamento. Além disso,
devem ser criados, imediatamente, um grupo de mulheres e um grupo de jovens,
e combinados datas e locais das assembléias do assentamento. Os princípios que
norteiam a direção do assentamento são, a direção coletiva, a divisão de tarefas e
funções, o profissionalismo, a polivalência, a disciplina o planejamento, a
vinculação com as massas, a crítica e a autocrítica e o centralismo democrático
(ALMEIDA; SÁNCHEZ, 1998, p.81).
Contudo, é necessário cautela e nos prevenir dos apontamentos apologéticos.
Para tanto, esclarecemos alguns limites no curso do desenvolvimento das estratégias de luta do
42
As lutas e o caráter dos movimentos sociais que, atualmente, reivindicam do Estado e não mais diretamente do
capital, sua condição são melhores discutidos em Machado (2006): “Se o proletariado tinha, potencialmente,
capacidade de paralisar a produção e a reprodução do capital, os ‘novos’ sujeitos somente confrontam o capital,
indiretamente, ao questionarem as formas de propriedade burguesa. Esses sujeitos, portanto, não sendo capazes de
paralisar a produção do capital, atingem-no, por exemplo, ao bloquearem estradas, pontes, ruas, ocuparem
latifúndios, etc. Se o proletariado reivindicava do capital, em geral, melhores salários, redução da jornada de trabalho
e melhoria das condições de trabalho, os ‘novos’ protagonistas lutam por meios de produção sob controle dos
trabalhadores, ou seja, pela formação de cooperativas de produção, comercialização e serviço” (p.13).
88
movimento.
Se o acampamento se configura num espaço de rompimento com a própria
relação de dependência pessoal, que muitos desses trabalhadores estavam inseridos, “ascender à
categoria de assentado retoma muitos aspectos daquela dependência”:
Agora já não dependem mais do armazém do patrão, mas são diretamente
dependentes dos técnicos do Incra, do gerente do banco que tem o poder de
decidir sobre o acesso ou bloqueio aos créditos rurais para a construção de obras
de infra-estrutura e para o desenvolvimento da produção. Os créditos que, num
primeiro momento, são um alívio, uma esperança de que o sonho com a terra
pode virar realidade e de que a reforma agrária pode vir a acontecer, se
transformam no pesadelo do endividamento. Muitos assentados desconhecem o
que terão de pagar ao Incra quando assinam o contrato de assentamento, até
porque ‘durante a fase de preparação para a luta, o discursso dos mediadores
refere-se à conquista da terra com ato definitivo e não se ouve falar em compra
de terra’ (GONÇALVES, 2005, p. 260).
Um dos problemas, de fato, nos vários assentamentos, é a junção de um
conjunto de dificuldades para uma “inserção social” dos indivíduos que “não flui
automaticamente do ato de assentar e do acesso a terra” (MARTINS, 2003, p.39). O próprio
sistema financeiro, mesmo quando não atua como “agente do programa federal de reforma
agrária, atua autonomamente, com diretrizes próprias, de mercado (financeiro), orientadas para o
lucro. Atua, portanto, como fator de concentração fundiária” (MARTINS, 2003, p.39), em
direção contrária à proposta de reforma agrária:
É possível que parte dos desistentes e dos que optam pela revenda de terras,
mesmo sendo ela ilegal, no fundo revelam uma compreensão desse conjunto de
dificuldades. Uma compreensão em grande parte demarcada pela redução
progressiva do tempo que, subjetivamente, podem tolerar como tempo
necessário para o reenraizamento. No final, ao transformarem-se em rentistas, na
venda da terra ou no seu arrendamento a terceiros, tanto quanto qualquer
latifundiário, entram no “jogo do sistema”, nas suas urgências financeiras o
desenraizamento e a rapidez da decadência social, da perda de perspectivas
(MARTINS, 2003, p.40).
Mas outro problema se dirige à ação do Estado de encaixar posses e assentados
no programa de reforma agrária, ao “encobrir” a situação desses assentados pela legalidade. Com
89
isso, “ameniza” os conflitos no campo, para evitar justamente a violência, os despejos e a questão
da repercussão imediata deles: “Portanto, a motivação do Estado não é aí a de chegar tarde”
(MARTINS, 2003, p.41). O movimento de desarticular os focos de tensão social é um caráter da
luta política e está certificado no próprio Estatuto da Terra.
Não é necessário, portanto, ressaltar que, sem essa medida, os embates se
agravam e os “conflitos se eternizam”. Daí que a motivação do Estado, nesse caso, se volta
prioritariamente à retenção dos conflitos, à contenção das lutas no campo, antes mesmo dos
interesses econômicos sobressaírem. O interesse é próprio e está intrinsecamente relacionado
com o Estado: “suprimir os fatores de conflito. O Estado entra aí como gestor do contrato social,
como magistrado nas relações conflitivas de interesse que podem ser, também, relações de
classe” (MARTINS, 2003, p.41).
Não podemos ignorar o limite da luta pela terra do MST: os acampados
reivindicam a institucionalização, pelo Estado, à prática da ocupação. Cai-se, assim, numa
contradição fundamental onde, “na maioria das vezes, essa reivindicação apela para um discurso
fortemente aprisionado no interior da ideologia jurídica burguesa”, quando se remetem ao
“caráter improdutivo da propriedade que está sendo ocupada”, por exemplo (GONÇALVES,
2005, p.264).
Sobre isso, soma-se o fato de que, nos assentamentos, esse discurso está voltado
muito mais para as políticas do Estado que contribuem para a “viabilidade econômica do
assentamento”, ou seja: “Trata-se da viabilização econômica a assentamentos inseridos” no modo
de produção capitalista e, portanto, “sujeitos às relações mercantis e, mais ainda, a produção de
valor e mais-valor”, onde a questão do Estado, enquanto aparato político da classe dominante,
passa a ser caracterizado muito mais como uma instância social que “não age bem”
(GONÇALVES, 2005, p.264).
O MST confronta, no plano jurídico-político, o “direito sagrado de
propriedade”, e demonstra, nos acampamentos e assentamentos, que é possível produzir
coletivamente. Talvez aqui esteja lançada uma das maiores contribuições do movimento – a idéia
de propriedade coletiva da terra:
90
Se lembrarmos o caráter intocado que o direito de propriedade tem na sociedade
brasileira, e se recuperarmos o processo constituinte recente, no qual as
principais bandeiras de reforma agrária foram derrotadas pela forte articulação
dos interesses fundiários da classe dominante (Silva, 1987; Veiga, 1990), é
possível vislumbrar o potencial de radicalidade e a força social do projeto de luta
pela terra que o MST vem assumindo. Mas a grande novidade apresentada pelo
MST talvez consista na realização, já no decorrer da luta, de um exercício
prático de viver coletivamente (ALMEIDA; SÁNCHEZ, 1998, p. 88).
Não podemos esquecer que o movimento, ao apresentar esta “novidade”, fez
sob condições políticas e ideológicas adversas: se por um lado ocorreu um recrudescimento das
classes dominantes sob o governo Cardoso, por outro, o movimento operário mais ativo estava se
“retirando” do cenário de lutas. Um exemplo contundente deste processo foi a greve dos
petroleiros em 1994-1995, quando o governo Cardoso se mostrou intolerante para com os
grevistas. A despeito da resistência dos operários da Petrobrás, a derrota não tardou a ocorrer,
principalmente, em função da ocupação de algumas refinarias pelo Exército brasileiro.
Procuramos chamar atenção para o conteúdo das lutas camponesas, nem sempre
vistas como tal. Como disse, anteriormente, o MST nasce ligado às reivindicações e aos
processos de luta, portanto, da necessidade de mudanças na lógica, mesmo que na medida das
necessidades imediatas dos indivíduos. Cumpre ressaltar que, na história da luta de classes no
Brasil, o caráter dado às manifestações no campo sempre foram “periféricos”, com relação ao
proletariado inserido diretamente na cadeia produtiva do capital, na contramão das inúmeras lutas
e embates em processo e históricas na busca por espaço ou pela terra. Mas essa contramão nos
interessa. Em suas lutas, na formação do movimento, esses trabalhadores, ao conquistarem o seu
próprio espaço, construíram também um espaço de “socialização política” (FERNANDES, 1999,
p.68), onde, direcionado, se volta à elaboração de práticas, de formas de luta e enfrentamento nos
diferentes níveis das relações sociais. Neste sentido, aumentam o alcance da luta pela terra, que
passa a ser compreendida para além da questão econômica, “ou seja, é também um projeto sócio-
cultural de transformação de suas realidades” (FERNANDES, 1999, p.69). Os efeitos sociais,
portanto, sobre as práticas das relações sociais, se deslocam desse nível à sociedade em geral:
“Estes são fruto dos conflitos e, também, das ações desses sujeitos que têm por objetivo causar
transformações específicas e gerais nas relações de poder” (FERNANDES, 1999, p.69).
A conquista da terra, portanto, tem muito mais implicações do que as relações
91
de propriedade em geral. A concentração desse espaço de luta nas mãos dos trabalhadores tem
motivações estratégicas políticas e ideológicas. Se a tese da revolução social tem de encontrar
“base” efetiva para sua elaboração, não se pode negar que, com esse espaço de luta, ele ganha
aliado forte. Mas é claro, essas conquistas não têm viabilidade alguma se, junto não
acompanharem conquistas que propiciem um desenvolvimento econômico, político, social e
cultural, e se o proletariado, stricto sensu, não estiver disposto a uma luta anti-sistêmica com suas
organizações tradicionais (sindicais e partidos). Sabe-se, todavia, que nem um nem outro são
capazes de empreender este tipo de luta isoladamente. Será necessária a construção de alianças
políticas entre os oprimidos do campo e os da cidade, embora a situação de pauperização a que
estão submetidos já indique, objetivamente, de que não se trata apenas de um desejo, mas de uma
real possibilidade. É claro que o capital não se manterá inerte caso isto ameace seus reais
interesses.
92
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao abordar os avanços e limites que cercam o panorama da luta de um
movimento como o MST, no Brasil, parece que, de imediato, temos que reconsiderar afirmações
preestabelecidas e verificar em que medida se encontra o conceito de revolução na atual
conjuntura, já que nos propomos a fazer uma análise do problema da transformação social.
Portanto, procuramos indícios que pudessem indicar o caminho da compreensão da luta política
do movimento e da forma como as bandeiras da “Reforma Agrária” e da luta por transformação
social adquirem conteúdo sob o protagonismo político do MST.
Perfizemos, em vários momentos, questões que observamos ao longo da década
de 1990, das controvérsias e das críticas ao movimento, ao seu programa político de reforma
agrária. Por isso, ao fim do trabalho, não concluímos, como alguns podem esperar, que a
revolução tem uma data marcada, mas convertemos essa dúvida em dados concretos e abordamos
o assunto por demais controverso e “espinhoso” pelas afirmações socialistas.
Pode não ser dado novo constatar as formulações e as saídas criativas
encontradas pelo MST e os agentes que o integram. Porém, não duvidamos que esses elementos
constituem avanços, do ponto de vista político, das reivindicações que extrapolam o nível mais
imediato. Numa grande combinação de luta política com movimento popular, o MST constrói,
conforme constatamos, no ideário das pessoas que o integram, uma ideologia que permite uma
participação coletiva e fundamentalmente política. Essa participação, que atualmente segue
atrelada à própria condição de existência destes indivíduos, é o que confere aos sujeitos a
possibilidade de conquista por direitos, educação, luta e consciência política. Cria valores
socialistas, como o trabalho coletivo da terra, as decisões por assembléia e, por que não concluir,
a própria existência do movimento, que se refaz pelo caminho dessa mesma luta.
Nada disso seria possível sem “luta”. Por isso, priorizamos esse termo, crentes
de que ele vai além desse nosso trabalho, mas contribui conosco. Como nas críticas que
perfizemos, estão colocadas inquietações que não poderíamos deixar de atentar. Lutar pela terra
pode se confundir com a luta pelo capital, na medida das colocações que recaem na lógica do
próprio universo mercantil, porém, lembramos que, apesar da hegemonia do capital, esses
mesmos sujeitos dão novos significados à conquista da terra, embora, no limite, têm que
93
sobreviver e vender seus produtos ao mercado capitalista.
Evidentemente que não diremos aqui que é o MST quem será o portador da
bandeira da revolução proletária, até porque não depende de um único sujeito. Mas,
indiscutivelmente, esse movimento tem mexido com as bases sociais e revertendo isso em luta
política. O que concluímos foi esse potencial. O potencial de inflamar e obrigar frações
dominantes a se rearticularem, se posicionarem, ora na ofensiva, ora na defensiva, como produto
da própria contradição do processo no campo, no universo agrário, onde o problema da
propriedade – nó da estrutura capitalista de produção – encontra, desde os clássicos, uma
irracionalidade para o próprio capital.
A preponderância do Estado, no neoliberalismo, não foi por nós esquecida. A
forma adotada e assumida pelo Estado, sobretudo nas décadas em que o neoliberalismo colocou
suas amarras no Brasil, converge para uma representação deste aparelho voltada à preservação
dos interesses mercantis-financeiros, e o que adentramos e procuramos evidenciar foi o caráter
das lutas do MST nesse processo, como produto e agente de conquistas significativas, como a
conquista da terra, ainda que nos moldes capitalistas de produção.
Por isso, vamos além de dizer que não estão só questionando e tornando
explícito o regime de propriedade nas questões “jurídico e politicamente” impostas (Machado,
2004, p.173), mas, tocando numa das questões mais elementares em toda a lógica capitalista que
é a renda, o lucro do capital e manutenção da lógica. Assim como os operários responsáveis por
fazer “girar” toda a estrutura da produção de mercadorias nas fábricas podem parar o processo
produtivo em sua origem, no caso do MST a propriedade fundiária e seus desdobramentos. No
entanto, a questão agora é a consciência de classe, e essa parece caminhar à distância dos
acontecimentos de uma organização capaz de fazer girar a mola da história mais rapidamente.
94
REFERÊNCIAS
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1980.
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lutas sociais contra o neoliberalismo. Lutas Sociais, São Paulo, n. 05, p. 77-91, 2° sem. 1998.
ANDERSON, P. Balanço do neoliberalismo. In: SADER, E.; BORÓN, A. (Org.). Pós-
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