Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE ANHEMBI MORUMBI
WILSON ROBERTO VIEIRA FERREIRA
CINEGNOSE:
A Recorrência de Elementos Gnósticos na Recente
Produção Cinematográfica Norte-Americana
(1995 a 2005)
São Paulo
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
WILSON ROBERTO VIEIRA FERREIRA
CINEGNOSE:
A Recorrência de Elementos Gnósticos na Recente
Produção Cinematográfica Norte-Americana
(1995 a 2005)
Dissertação de Mestrado apresentada à Banca
Examinadora, como exigência para a obtenção do
título de Mestre do Programa de Mestrado em
Comunicação, área de concentração em
Comunicação Contemporânea da Universidade
Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr.
Luiz Antônio Vadico.
São Paulo
2009
ads:
WILSON ROBERTO VIEIRA FERREIRA
CINEGNOSE:
A Recorrência de Elementos Gnósticos na Recente
Produção Cinematográfica Norte-Americana
(1995 a 2005)
Dissertação de Mestrado apresentado à Banca
Examinadora, como exigência para a obtenção do
título de Mestre do Programa de Mestrado em
Comunicação, área de concentração em
Comunicação Contemporânea da Universidade
Anhembi Morumbi, sob a orientação do Prof. Dr.
Luiz Antônio Vadico.
Aprovado em 14/09/2009
___________________________________________
Prof. Dr. Luiz Antônio Vadico
___________________________________________
Profa. Dra. Roseana de Lima Soares
__________________________________________
Prof. Dr. Rogério Ferraraz
DEDICARIA
Dedico esse trabalho à minha esposa Tati pelos lindos filhos que me deu e pela inspiração e
incentivo à retomada da carreira acadêmica.
AGRADECIMENTOS
A Universidade Anhembi Morumbi pela oportunidade ao conceder a bolsa de
estudos para o programa de mestrado.
A Professora Dra. Bernadete Lyra e ao Prof. Dr. Gelson Santana por terem
concedido a possibilidade da realização de trabalhos de compensação de falta em
decorrência do meu acidente e cirurgia em meio ao semestre letivo das disciplinas
no primeiro semestre de 2008.
Ao meu orientador Professor Dr. Luiz Vadico pelas importantes considerações
metodológicas, principalmente sobre a importância das análises fílmicas nos estudos
do campo audiovisual.
Ao Professor Dr. Rogério Ferraraz pelas importantes observações críticas feitas
durante a minha exposição no III Encontro da Comunicação Contemporânea da
Universidade Anhembi Morumbi.
Ao carinho e compreensão da minha família pelo natural distanciamento que o
pesquisador experimenta ao empreender um trabalho de dissertação, e pela
paciência com as obscuras digressões diárias sobre Gnosticismo e Cinema.
“Tudo o que você precisa já está dentro da
sua mente”
(Pinky Dink Doo – Discovery Kids)
RESUMO
A produção cinematográfica norte-americana recente (1995 a 2005) conta com
diversos filmes onde é marcante a recorrência de elementos temáticos inspirados
em narrativas míticas do Gnosticismo (conjunto de seitas sincréticas de religiões
iniciatórias e escolas de conhecimento nos primeiros séculos da era cristã). Os
temas incluem, freqüentemente, conspirações cósmicas, universos paralelos,
amnésia e paranóia. Demonstra um interesse por uma ambivalente relação entre o
sujeito e a realidade, consciência (especialmente alterada por estados de
consciência iluminados) e revolta contra sistemas autoritários de controle. Filmes
como Cidade das Sombras (Dark City, 1998), a Vida em Preto e Branco
(Pleasantville, 1998), Show de Truman (Truman Show, 1998), Vanilla Sky (Vanilla
Sky, 2001), entre outros, apresentam uma idéia geral de que o mundo que
percebemos é uma ilusão criada por alguém que não nos ama e que a chave para
revelar a ilusão e descobrir a realidade reside numa forma de autoconhecimento ou
iluminação. Uma pista para descobrirmos essa conexão entre gnosticismo e cinema
passa pela discussão entre misticismo e imaginário tecnológico. Fortemente
conectado com o imaginário social deste final e início de novo século, a produção
cinematográfica atual norte-americana refletiria um imaginário tecnológico que
alguns autores definem como “gnosticismo tecnológico” ou “tecnognose”. As
análises fílmicas dessa dissertação procurarão encontrar características gerais que
apontem para uma especificidade do filme gnóstico dentro do campo
cinematográfico.
Palavras-chave: Cinema. Gnosticismo e Religião. Novas Tecnologias. Imaginário
Tecnológico.
ABSTRACT
The North American film production recent (1995 to 2005) has several films where
the striking recurrence of thematic elements inspired by the mythical narratives
Gnosticism (set of syncretic sects and schools of iniciatic religions of knowledge in
the first centuries of the Christian era). The topics include, often, cosmic
conspiracies, parallel universes, paranoia and amnesia. Demonstrates an interest in
an ambivalent relationship between the subject and reality, consciousness
(particularly altered states of consciousness by illuminated) and rebellion against
authoritarian systems of control. Films such as City of Shadows (Dark City 1998), Life
in Black and White (Pleasantville, 1998), Truman Show (Truman Show, 1998),
Vanilla Sky (Vanilla Sky, 2001), among others, have a general idea that the world we
perceive is an illusion created by someone who does not love us and that the key to
reveal the illusions and discover the reality is a form of consciousness or
enlightenment. A clue to discover the connection between gnosticism and film is the
discussion between mysticism and imagery technology. Strongly connected with the
social imaginary of the end and beginning of new century, the North American film
production current reflect an imaginary technology that some authors define as
"gnosticism technology" or "techgnosis”. The dissertation film analyzes will find
general features that point to a specific gnostic movie in the film camp.
Key words: Cinema. Gnosticism and Religion. New Technologies. Technological
Imaginary.
LISTA DE TABELAS
Tabela 1 - Lista preliminar de filmes .......................................................................... 22
Tabela 2 – Lista de filmes que compõem o corpus de análise .................................. 23
Tabela 3 – Corpus de análise dividido por grupos de protagonistas ......................... 24
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO
................................................................................................................ 9
1.1. Gnosticismo e Gnose
.......................................................................................... 9
1.2. Tecnognose: o “gnosticismo tecnológico”
................................................... 13
1.3. Cinegnose: o “filme gnóstico”
......................................................................... 16
1.4. O Método
............................................................................................................... 19
PARTE I – Gnosticismo e Modernidade
................................................................... 26
1. O Ressurgimento Gnóstico na Modernidade: o Romantismo
.................. 26
2. A ironia no filme: o Gnóstico e o Gótico
.......................................................... 30
3. Filme gnóstico: o gnosticismo como forma cultural
..................................... 37
PARTE II - Elementos Gnósticos em filme
.............................................................. 42
1. Os Protagonistas
.................................................................................................... 42
1.1. O Viajante - Grupo “Suspensão”
......................................................... 47
1.2. O Detetive - Grupo “Paranóia”
.............................................................. 50
1.3. O Estrangeiro - Grupo “Melancolia”
.................................................... 53
2. A Narrativa
................................................................................................................ 56
3. Os Personagens
..................................................................................................... 78
3.1. O Demiurgo
................................................................................................ 79
3.2. Os Arcontes
................................................................................................ 85
3.3. Sophia
.......................................................................................................... 88
4. Temas
........................................................................................................................ 92
4.1. Grupo “O Viajante”
................................................................................... 92
4.2. Grupo “O Detetive”
................................................................................... 99
4.3. Grupo “O Estrangeiro”
........................................................................... 107
5. Simbolismo e Iconografia
................................................................................... 115
5.1. Acordar/Despertar
.................................................................................. 115
5.2. Olho
............................................................................................................ 120
5.3. Marionetes e Avatares
.......................................................................... 122
5.4. Água
........................................................................................................... 127
5.5. Iconografia Noir
....................................................................................... 129
5.6. Símbolos de Teorias Conspiratórias
................................................ 133
5.7. Iconografia religiosa
............................................................................... 134
5.8. Simbolismos recursivos
........................................................................ 139
PARTE III – Análises Fílmicas
.................................................................................... 144
Filme: Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças
................................... 144
Filme: A Passagem
................................................................................................... 165
Filme: Show de Truman
.......................................................................................... 178
CONSIDERAÇÕES FINAIS
........................................................................................... 199
BIBLIOGRAFIA
............................................................................................................. 2099
FILMOGRAFIA
.............................................................................................................. 2133
9
1. INTRODUÇÃO
Tal como budismo e hinduísmo, o gnosticismo afirma que esta realidade é
uma ilusão. No entanto o gnosticismo vai mais longe, na verdade representando o
deus da criação (“Demiurgo”, “Saklas” ou “Yaldabaoth”), como uma divindade
inebriada e enlouquecida pelo próprio poder e o cosmos material como uma mal
sucedida criação. Ele é um pseudo Deus que mantém as almas dos homens no
sono. As forças do sono são tão avassaladoras que podem ser superadas por
meio de uma forma especial de introspecção: a gnose.
A produção cinematográfica norte-americana recente (1995 a 2005) conta
com diversos filmes que giram em torno desta mitologia. Os temas incluem,
freqüentemente, conspirações cósmicas, universos paralelos, amnésia e paranóia.
Demonstra um interesse por uma ambivalente relação entre o sujeito e a realidade,
consciência (especialmente alterada por estados de consciência iluminados) e
revolta contra sistemas autoritários de controle. Filmes como Cidade das Sombras
(Dark City, 1998), a Vida em Preto e Branco (Pleasantville, 1998), Show de Truman
(Truman Show, 1998), Vanilla Sky (Vanilla Sky, 2001), entre outros, apresentam
uma idéia geral de que o mundo que percebemos é uma ilusão criada por alguém
que o nos ama e que a chave para revelar a ilusão e descobrir a realidade reside
numa forma de autoconhecimento ou iluminação.
Mas como estas narrativas míticas da antiguidade foram parar nas sinopses,
roteiros e nas mesas de produtores dessas produções cinematográficas norte-
americanas? Ou melhor, como explicar que nesse momento de final e princípio de
novo século, marcado pelo predomínio de um imaginário tecnocientífico triunfal em
todas as áreas (computação, comunicação, biologia etc.), temos a ascensão dessa
mitologia do início da era cristã em plena cultura de massas?
1.1. Gnosticismo e Gnose
Para abordarmos essa questão, em primeiro lugar temos que definir o termo
“Gnosticismo”. É um termo usado para designar todo um conjunto de seitas
10
sincréticas de religiões iniciatórias e escolas de conhecimento nos primeiros séculos
da era cristã. É também aplicado a renascimentos atuais desses grupos e, por
analogia, a todos os movimentos que se baseiam no conhecimento secreto da
“gnose”. Essa generalização pode levar a uma confusão, tornando a noção de
“gnóstico” ou “gnosticismo” vaga e escorregadia. Pela natureza oculta do
ensinamento gnóstico e pelo fato de muito material a respeito ser proveniente das
críticas da ortodoxia cristã torna-se difícil uma descrição precisa dos antigos
sistemas gnósticos. A descoberta, em 1945, dos textos gnósticos do século IV em
Nag Hammadi (Egito) trouxe uma maior clarificação sobre a natureza do gnosticismo
na Antiguidade, embora muitos concordem que o tema continue com muitos pontos
dúbios.
Ao mesmo tempo, o chamado moderno gnosticismo tem se desenvolvido a
partir das origens no Ocultismo do culo XIX. Em meados daquele século, Eliphas
Levy trás todo o espectro de assuntos do gnosticismo à luz do dia por meio da
discussão da cabala judaica. Do pioneirismo de Levy, surge em cena a maior figura
do renascimento do oculto: Helena Blavatsky que se tornou a figura embrionária do
movimento espiritual alternativo não somente do século XIX mas de grande parte do
século XX. A fundação da Sociedade Teosófica em 1875 por Blavatsky e o trabalho
de seu devotado aluno G.R.S.Mead (tradutor especializado em textos gnósticos e
herméticos), tornou o gnosticismo acessível ao público fora da academia, o que
preparou o caminho para o gnosticismo para as massas no século seguinte.
Por isso o termo “gnosticismo” tem sido aplicada a muitas seitas modernas
que têm acesso aos arcanos iniciáticos. Longe de trazer uma clarificação torna ainda
mais impreciso o conceito, obstruindo a verdadeira compreensão histórica.
Alguns autores sugerem uma divisão entre o Gnosticismo Cristão ou Histórico
(que fez uma interpretação heterodoxa ou mística dos Evangelhos) e o Gnosticismo
Hermético (um conceito que se aplica a toda uma gama de escolas ou seitas que se
baseia na “gnosis”, uma forma especial de conhecimento esotérico iniciático)
1
.
Outros afirmam que a imprecisão do conceito se deve às próprias origens sincréticas
do Gnosticismo Histórico (um amálgama de platonismo, neo-platonismo, estoicismo,
1
FAVROD, Charles-Henri. O Ocultismo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977.
11
budismo, antigas religiões semiticas e cristianismo)
2
. Stephan Hoeller, por exemplo,
prefere falar em “atitude gnósticapara explicar os sucessivos renascimentos ao
longo da história:
Consiste em uma certa atitude da mente, uma ambiência psicológica
(...) um certo tipo de alma é, por sua própria natureza, gnóstica.
Qualquer que seja o seu ambiente geográfico, cultural ou espiritual esta
gravita inevitavelmente para uma visão de mundo gnóstica. Quando
aquela predisposição ideológica encontra o estímulo de algum elemento
de transmissão gnóstica, está fadado a surgir um renascimento
3
No entanto, alguns historiadores acreditam que a característica unificadora
das diversas escolas e seitas é a significante influência budista/hinduísta nas re-
interpretações da Bíblia, em particular do livro do Gênesis, através da adição de um
prólogo original
4
. Esta re-interpretação inclui tanto uma cosmogonia como um
sistema moral, muito mais do que uma descrição factual da criação. Está delineado
no clássico gnóstico “Apócrifo de João”.
5
, um dos principais textos encontrados em
Nag Hammadi. Este livro desenvolve todos os temas míticos sobre os quais os
visionários gnósticos irão propor suas respostas. Escrito em torno de 150 DC, nele
pode ser encontrado o mito da queda, criação e salvação. Para ele a origem da vida
não está no Deus bíblico, mas em um radical e transcendente poder, uma divindade
mais elevada e definida em termos tão abstratos que exclui todo antropomorfismo e
envolvimento com o mundo. Para além desse mistério, encontram-se diversas
emanações andrógenas, aeons, cada qual sendo uma manifestação única de suas
origens. Juntos, as origens e suas manifestações compõem o Pleroma, a
2
Cf. HUTIN, Serge. Los Gnósticos, EUDEBA: Buenos Aires, 1963.
3
HOELLER, Stephan A., Gnosticismo: tradição oculta. Rio de Janeiro: Nova Era, 2005, p. 155-156.
4
“budistas estiveram em contato com os cristão de Tomé (ou seja, cristãos que conheceram e
usaram tais escritos Evangelho de Tomé) no Sul da Índia”. CONZE, E. “Buddhism and Gnosis”
Apud: PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. R. de Janeiro: Objetiva, 2006, p. xxii.
5
WISSE, Frederik.(tradução) “O Apócrifo de João” IN: ROBINSON, James M. A Biblioteca de Nag
Hammadi. São Paulo: Madras, 2007. Um dos vários textos escritos nos primeiros anos da era cristã
que comprova que o cristianismo original tinha pensamentos muito mais diversificados do que hoje. A
foi unificada, quando a corrente cristã romana, adotada pelo imperador, baniu todos os outros
grupos cristãos. Após a morte de Jesus, os cristãos compartilharam relatos da vida e das lições de
Cristo. Dezenas deles foram escritos, mas os próceres da igreja elegeram quatro para o Novo
Testamento. No século 20, evangelhos rejeitados foram redescobertos. Alguns, como o de Pedro,
assemelham-se aos quatro escolhidos. Outros, como o de Judas, têm diferenças drásticas e
valorizam a gnose – o conhecimento de Deus pela percepção da centelha divina que existe no
indivíduo.
12
harmoniosa e espiritual plenitude. Um desses aeons, Sophia, rompeu o equilíbrio ao
criar um novo ser sem a aprovação do grande Espírito ou de sua consorte. Esta
turbulência produziu um ser ignorante, Ialdabaoth. Este, imediatamente, foi exilado
no reino material fora do Pleroma. Sozinho no reino da matéria, estupidamente
passou a acreditar ser o deus único e produziu um cosmos imperfeitamente baseado
no Pleroma. Imediatamente cria anjos (archons) para governar o mundo e ajudar na
criação do homem dando origem a um universo onde a matéria dividida está no
lugar do espírito unificado e a desilusão substitui a verdade original. O próprio
homem é moldado através da imagem perfeita do Pai e aprisionado neste universo
imperfeito. A esperança está em que a Eternidade secretamente sempre alcança os
homens e planta a partícula divina (pneuma) nas almas doentes e sofredoras.
Temos o início de uma luta contínua entre os poderes da luz e da escuridão pela
possessão dessas partículas. Elas somente serão ativadas no homem no momento
de iluminação (gnose) onde tomamos consciência de sermos exilados das nossas
origens, o Pleroma. A partir daí, rejeitamos as formas e convenções do plano físico
como fantasmas de um pesadelo, como ilusões perpetradas por um deus que
conspira contra nós.
Do mesmo modo, a mãe também enviou para baixo o seu espírito, que
é nela a semelhança e a cópia daqueles que estão no pleroma, pois é
ela que preparará a moradia para os aeons que descerão. E ele os fez
beber a água do esquecimento do chefe archon, para que não
soubessem do lugar de onde eles tinham vindo. Conseqüentemente, a
semente permaneceu por algum tempo (lhe) atendendo, para que,
quando o Espírito vier dos aeons sagrados, ele possa se elevar e ser
curado da sua imperfeição, e para que assim todo o pleroma possa
novamente se tornar um lugar perfeito e sagrado”
6
Os poderes de Ialdabaoth aprisionam o homem em um corpo material que
bebe da água do esquecimento. Finalmente Cristo, outro aeon, é enviado para
“salvar” (“curar” seria a palavra certa) a humanidade ao fazer as pessoas lembrarem-
se das suas origens celestiais. Somente aqueles que tiverem o conhecimento
(iluminação ou gnose) retornarão ao Pleroma; os outros serão reencarnados até
alcançarem o conhecimento.
6
Ibidem, p. 110.
13
Veremos que essa cosmogonia e sistema moral será o ponto de partida das
reflexões dos três principais filósofos do gnosticismo dos princípios da era cristã:
Valentim, Basilides e Mani. Cada um deles vai oferecer um método diferente de
resgate (gnose) desta partícula divina interior, criando uma espécie de mitologia que
será recorrente no grupo de filmes gnósticos que analisaremos na Parte II desta
dissertação.
1.2. Tecnognose: o “gnosticismo tecnológico”
Uma pista para descobrirmos essa conexão entre gnosticismo e cinema
passa pela discussão entre misticismo e imaginário tecnológico. “Tecnognose” é o
termo cunhado por Erik Davis
7
para designar o surpreendente renascimento do
misticismo ou esoterismo no interior do imaginário tecnológico, seja através dos
criadores, seja por meio dos seus usuários. Seria a chave para compreendermos a
aspiração por transcendência mediante o autoconhecimento, primeiro no plano da
tecnociência e, mais tarde, na cultura de massas, em particular no cinema.
O avanço da pesquisa tecnocientífica a partir do término da II Guerra
Mundial apontou para uma importante ruptura com a visão moderna sobre a Ciência.
O trabalho do sociólogo português Hermínio Martins é um excelente ponto de partida
para entendermos esta mudança radical na filosofia da Ciência
8
. Para ele, a
tecnociência atual suplantou a tradição positivista e modernista, presente, sobretudo,
nos textos inaugurais de filosofia da tecnologia na segunda metade do século XIX.
Esta tradição via a tecnologia como um mero instrumento de dominação da natureza
e controle planetário. Este instrumento seria de natureza antropomórfica e
antropocêntrica, isto é, a tecnologia e seus instrumentos seriam projeções das
funções internas do corpo (sobretudo as mãos, a parte mais tecnogênica do corpo).
Tal visão é solapada pela tecnociência contemporânea que supera o
princípio ontológico que atribui prioridade do orgânico sobre o mecânico. As novas
criações (biotecnologia, clonagem, nanotecnologia, realidade virtual ou a própria
7
DAVIS, Erik. Techgnosis: myth, Magic and mysticism in the age of information. London: Serpents
Tail, 2004.
8
MARTINS, Hermínio. Hegel, Texas e Outros Ensaios de Teoria Social. Lisboa: Edições Século XXI,
1996.
14
tecnologia computacional) apontam para a superação dos limites do orgânico. Victor
Ferkiss vai caracterizar esta nova perspectiva com um conceito aparentemente
paradoxal: “gnosticismo tecnológico”
9
. O gnosticismo histórico caracterizava-se pelo
horror ao orgânico e a uma aversão ao natural. Tais elementos seriam inimigos do
espírito na sua busca por iluminação. Ora, a tecnociência atual aproxima-se de tal
filosofia ao propor a superação dos parâmetros básicos da condição humana:
finitude, contingência, mortalidade, corporalidade, animalidade e limitação
existencial. Ferkiss, assim como Martins, apontam para esse surpreendente
cruzamento entre as aspirações tecnológicas contemporâneas e as utopias
gnósticas por transcendência.
Poderíamos contra-argumentar que tal cruzamento seria mero paralelismo,
analogia ou metáfora. Mas diversos autores, entre eles Raymond Ruyer
10
e
Theodore Roszak
11
, detectaram e mapearam a semente do misticismo em
comunidades científico-acadêmicas ou tecnófilas. Ruyer afirma que este movimento
gnóstico surge discretamente nos meios científicos das universidades de Princeton e
Pasadena nos EUA durante a II Guerra Mundial. A princípio entre físicos,
cosmólogos e biólogos para, em seguida, alastrar-se por outras áreas,
principalmente através da Cibernética e Teoria da Informação. Roszak rastreia
este mesmo movimento na formação do Vale do Silício na Califórnia e entre as
comunidades de geeks que participaram da revolução do computador pessoal e da
Internet.
Como sugere Roszak, é como se a tecnociência pretendesse, através do
computador, tornar-se um “atalho para Satori”. Das experiências místicas das drogas
nos anos 60 aos computadores pessoais e os mundos virtuais tecnológicos, Roszak
observa uma linha de continuidade: a motivação mística por transcendência, a
procura de um atalho que mais rápido conduza à gnose, sem necessidade de
disciplina, meditação ou ascese.
9
FERKISS, Victor. Technology and Culture: gnosticism, naturalism and incarnational integration,
Cross-currents, XXX, 1980.
10
RUYER, Raymond. A Gnose de Princeton. São Paulo: Cultrix, 1989.
11
ROSZAK, Theodore, From Satori to Silicon Valley: San Francisco and the American Counterculture,
Lagunitas: Lexikos Publishing, 1986.
15
Aqui, suspeito, ser a razão pela qual Buckminster Fuller, Marshall MacLuhan,
e outros tecnófilos utópicos deram uma resposta de acordo com a jovem
contracultura. O acid rock havia preparado as audiências para suas
mensagens. Combinado com sica e luzes, num ataque total aos sentidos,
puderam fazer tudo parecer possível. Induziram um sentimento de grandeza e
euforia, fazendo as realidades políticas parecerem tigres de papel. (...) Ao
mesmo tempo esta experiência conectou com poderes místicos primordiais
da mente (...). Estas experiências provenientes dos laboratórios da indústria
cultural de alguma forma conectou seus discípulos com o antigo, o primitivo e
o tribal. (...) Aqui, então, encontramos a mesma surpreendente mistura entre
o sofisticado/científico e o natural tal como Buckminster Fuller reivindicava
para a geometria geodésica, e que o Vale do Silício associou ao computador
pessoal. ‘Esta geração, absolutamente, engoliu computadores inteiros, tal
como droga’, observou Stewart Brand em uma entrevista em fevereiro de
1985 para a San Francisco Focus Magazine. Pode haver mais literalidade
nessa metáfora do que ele pretendia.
12
Se no século XX a Física e a Cosmologia descrevem um cenários de caos e
improbabilidade (Deus parece que joga dados com o universo através da formulação
da Teoria do Caos de N. Bohr e o Princípio da Incerteza de Heisenberg), a partir
dessa confirmação da secreta crença gnóstica da primária imperfeição do cosmos, o
misticismo vai introduzir-se na Ciência para dar forma a uma nova biologia
constituída a partir de uma peculiar relação entre a biologia e a ciência
computacional. A Teoria da Informação e o modelo do código binário computacional
vão oferecer o esquema para a concepção do DNA na década de 1950. A vida
passa a ser vista como uma espécie de biocomputador. O DNA é uma forma de
processamento de dados, assim como o computador, podendo esse instrumento de
processamento, portanto, ser encarado como uma forma de vida emergente. Alguns
admitem que estejamos perto do momento da criação de novos chips para
computadores constituídos de DNA-RNA.
Robert Jawstron, da NASA, foi um dos primeiros a propor o advento da
“inteligência descorporificada”. Ele antevê o dia em que nos tornaremos uma “raça
de imortais” baseados em uma mente computadorizada.
Um dia um cientista será capaz de retirar o conteúdo da sua mente e
transferi-lo para a memória do computador. Porque a mente é a essência
do ser, podemos dizer que tal cientista entrou no computador e passou a
12
Ibid., p. 36.
16
habitá-lo. No mínimo podemos afirmar que a partir do momento que o
cérebro humano habita um computador ele está liberado da fraqueza da
carne mortal... Ele está no controle do seu próprio destino. A máquina é
seu corpo, ele é a mente da máquina... Esta parece ser para mim a forma
mais inteligente e madura de vida no universo. Habitar placas de silício e
não mais limitado pela duração da vida no interior do ciclo mortal de um
organismo biológico. Tal espécie de ser vivepara sempre.
13
Criador da realidade virtual, Jaron Lernier acredita que tal motivação mística
torna-se o principal atrativo do ciberespaço. Para ele, muitos hackers têm a
esperança de um dia viverem para sempre após um upload final para o interior de
um computador. Lernier caracteriza essa fantasia como o início de uma “cultura de
zumbis” dominado por ex-humanos que “estão preparados para deixar tudo para trás
imaginando viverem em um disco rígido, interagindo unicamente com outras mentes
e demais elementos de um ambiente que existe somente em um software
14
Portanto, a essência do ser, a mente (ou a partícula de luz que nos liga à nossa
casa originária, a Pleroma), pode ser digitalizada como informação. Este é o atalho
para a gnose: a tecnologia como a via mais rápida para a realização do projeto de
redimir a humanidade exilada e aprisionada nos círculos materiais.
Esta antiga busca gnóstica em transcender a carne parece ser o subtexto
emocional por trás da eufórica reação a cada novidade em informática no mercado e
a cada website ou blog com frivolidades que é lançado. Lernier chega a sugerir uma
nova categoria psicológica de usuários: a “nerdice”: intelectualmente busca
digitalizar qualquer distinção de qualidade, sentimento e afeto. Emocionalmente,
procura abrigo que o proteja da intimidade humana e das demandas corporais.
1.3. Cinegnose: o “filme gnóstico”
Nesta dissertação vamos entender como “filme gnóstico” um conjunto de
filmes de variados gêneros cuja característica unificadora é a recorrência de
“elementos gsticos”. Nossa hipótese é a de que esses elementos recorrentes
13
JASTROW, Robert. The Enchanted Loom: Mind in the Universe, New York, Simon and Schuster,
1984, pp. 166-67.
14
LANIER, Jaron. "Agents of Alienation," Journal of Consciousness Studies, volume 2, no. 1, 1995,
pp. 76-81.
17
correspondem tanto às narrativas míticas cosmogônicas e morais dos principais
pensadores do gnosticismo histórico (Basilides, Valentim e Mani) como a diversos
simbolismos místicos ou esotéricos associados ao sincretismo do chamado
Gnosticismo Hermético. Ou seja, o filme gnóstico reduziria o Gnosticismo a um
sentido mais geral como uma atitude filosófica ou religiosa que englobaria ou
inspiraria a maior parte das doutrinas esotéricas ou ocultistas. A partir disso, a
análise fílmica, cujos resultados são apresentados na Parte II desse trabalho,
procurou encontrar características gerais que apontassem para uma especificidade
do filme gnóstico dentro do campo cinematográfico.
Partimos para a formulação da hipótese sobre a existência dos filmes
gnósticos a partir de dois referenciais teóricos com os quais nos deparamos durante
a pesquisa.
Primeiro, a idéia de Marc Ferro de que todo filme é um documento porque
representaria o imaginário de uma determinada sociedade ou período histórico: "o
imaginário é tanto história quanto História, mas o cinema, especialmente o cinema
de ficção, abre um excelente caminho em direção aos campos da história
psicossocial nunca atingidos pela análise dos documentos"
15
Não importa se o filme
refere-se a um passado remoto ou imediato, pois sempre vai além do seu conteúdo:
Toda imagem é histórica, na medida em que ela é produto de seu
tempo e carrega consigo, mesmo que de forma indireta, sub-reptícia e
muitas vezes inconsciente para quem a produziu, as ideologias, as
mentalidades, os costumes, os rituais e os universos simbólicos do
período em que foi produzido.
16
Portanto, se uma conexão entre cinema e sociedade, ou seja, se o filme
pode ser considerado um repositório do imaginário social contemporâneo e se
sabemos que este imaginário atual é fortemente marcado por um desenvolvimento
tecnológico impulsionado por tecno-utopias de natureza gnóstica, talvez possamos
entender o porquê da recorrência de elementos do gnosticismo no cinema.
15
FERRO, Marc. Cinema e História.São Paulo: Paz e Terra, 1992, p.12.
16
NOVÓA, Jorge, e NOVA, Cristiane (Org.). Interfaces da história: caderno de
textos. v. 1, n. 1. Salvador: Bahia, 1998, p.10.
18
Fortemente conectado com o imaginário social deste final e início de novo século, a
produção cinematográfica atual, em particular a norte-americana, refletiria não
apenas o imaginário tecnológico transcendentalista como, também, questões
existenciais, éticas e espirituais decorrentes de tal imaginário.
Nesse ponto, chegamos ao segundo referencial teórico dessa dissertação: a
discussão sobre o “cinema gnóstico” feita por Eric Wilson. Para ele, através dos
tempos, os pensadores têm se esforçado em compreender como as aparências
efêmeras da realidade podem conectar-se com algo tão estável e duradouro
(espírito, alma). Dividiram o mundo entre superfície e profundidade, destino e
liberdade, conformidade e conversão. Meditações em torno desse dilema (dos
ensaios de Kant e Descartes, passando pelas apologias de Tomas de Aquino e
Agostinho até os mitos alquimistas, cabalistas e gnósticos) marcam a história do
pensamento ocidental. Tal dilema parece ressurgir sempre em momentos de crise
de paradigmas. Para Wilson, na atualidade passamos por uma nova crise: o
desaparecimento das distinções entre realidade e virtualidade, espiritualidade e
tecnologia:
Mesmo em nossa era pós-moderna, ostensivamente focada na
superioridade dos ambientes materiais sobre os reinos espirituais, esse
problema persiste. Apesar do ceticismo dos intelectuais em relação à
metafísica e cansados de dualismos, são obrigados a se confrontar com
a velha dificuldade platônica pela seguinte razão: ao produzir as
‘realidades virtuais’, os tecnólogos contemporâneos têm ignorado
distinções essenciais. Qual a diferença entre uma forma empírica e sua
simulação computadorizada? Como alguém pode distinguir entre um
órgão autônomo e seu duplo mecanizado? São os computadores
capazes de desenvolver uma consciência ética? Pode a dependência
mecânica levar à desumanização?
17
Segundo Wilson, o “filme gnóstico” irá refletir esse atual colapso nas
distinções entre aparência e realidade. Nas suas palavras, o “filme gnóstico”:
Apresenta correntes do gnosticismo que surgiram após Platão: não
unicamente Gnosticismo, mas, também, suas conseqüências naturais,
Cabala e Alquimia. Apesar de importantes diferenças, essas três
tradições munem diretores de cinema com narrativas prontas sobre as
17
WILSON, Eric. Secret Cinema: Gnostic vision on film. Nova York: Continuum, 2006, p. vii.
19
relações entre superfície e profundidade com plots sedutores e cenas
surpreendentes
18
Wilson quer ir mais além ao defender a existência do “cinema gnóstico”, um
gênero fílmico ainda não reconhecido. Mais do que isso, o autor ainda sugere que
pelas especificidades desse “novo gênero” (a de “explodir” as convenções dos
gêneros tradicionais) pode oferecer ao espectador uma potencial possibilidade de
vivenciar a experiência do sagrado. O autor não consegue sustentar essa pretensão
pelo fato de seu trabalho carecer não de análises fílmicas como, também, de um
consistente estudo de recepção que explique as relações entre o sagrado e a
experiência cinematográfica.
Mesmo limitando-se a uma tradicional análise de conteúdo, Wilson nos
oferece interessantes insights sobre conexões, analogias e simbolismos entre
Gnosticismo e o corpo dos filmes analisados pelo autor.
Por isso, o presente trabalho não tem a mesma pretensão de Wilson
(defender o filme gnóstico como um novo gênero ou estudar a possibilidade de
autênticas experiências com o sagrado no cinema). Vamos nos concentrar no
estudo da recorrência dos “elementos gnósticos” no processo de análise fílmica.
Dessa maneira, a partir do mapeamento dessas recorrências, tentaremos conseguir
traçar a evolução e as transformações desse imaginário dentro do período estudado
(1995 a 2005) e encontrar (ou não) o que torna esses filmes especificamente
gnósticos.
1.4. O Método
A princípio assistimos a uma lista de 34 filmes (tabela 1) sem delimitação por
período histórico. Essa lista preliminar foi feita a partir da sugestão de autores como
Erick Wilson, Jeniffer Emick e diversos sites e blogs na Internet sobre Gnosticismo e
18
Ibid., p. viii.
20
religiões alternativas
19
. na primeira recepção desses filmes podemos perceber o
enorme sincretismo entre elementos do gnosticismo histórico e toda uma gama de
referências místicas e esotéricas. Como estabelecer um primeiro recorte dentro
desse grupo para organizar nossas análises fílmicas?
O primeiro recorte foi temporal. A escolha do período de análise (1995 a
2005) está fundamentada neste a priori epistemológico de o cinema poder ser
considerado um documento representativo do imaginário social de um determinado
período histórico. O que temos nesse período de tempo? A partir do bombástico
lançamento do Windows 95, tivemos o crescimento especulativo das potencialidades
da Internet e das tecnologias computacionais. Paralelo a isso, o crescimento das
técnicas motivacionais e de auto-ajuda explicitamente inspirados em modelos de
programação de computadores. Em 2.000 temos a quebra das empresas “ponto
com” e da bolsa Nasdaq e, com isso, a desaceleração de toda uma ciberutopia. Por
isso, a curiosidade da pesquisa em saber se alguma alteração na forma como os
elementos gnósticos são dispostos nos filmes. Se a recorrência de elementos
gnósticos na produção cinematográfica norte-americana entra em cena neste
período aonde as ciberutopias tecnológicas chegam ao auge, haveria alguma
transformação ou a inclusão de novos elementos temáticos após o divisor de águas
do ano 2.000?
A partir dessa delimitação histórica o corpus da análise fílmica foi reduzido
para 17 filmes (tabela 2)
Diante desse extenso corpus de análise, com uma variedade de gêneros e
natureza de produção (independentes e hollywoodianos) como estabelecer os
primeiros recortes paradigmáticos que criem um ponto de partida para a análise?
Todos os filmes partilham de um mesmo eixo temático: a condição de o
protagonista estar em um ambiente em que não distingue mais o que é ilusão e o
19
“Gnostic Film Festival” disponível em <http://egina2.blogspot.com/2006/08/gnostic-film-
festival.html> (acessado em 07/05/20008). EMICK, Jennifer, “Hollywood Goes Gnostic?” In:
<http://altreligion.about.com/library/weekly/aa072302a.htm> (acessado em 03/12/2007).; ”Gnosticism
- Heresiologists and Detractors”disponível em <http://www.experiencefestival.com/gnosticism_-
_heresiologists_and_gnostic_detractors> (acessado em 02/03/2008). “X-Men, Emerson,
Gnosticism”disponível em <http://reconstruction.eserver.org/043/Klock/Klock.html >(acessado em
15/03/2007).
21
que é realidade ou, pelo menos, a percepção de realidade torna-se
progressivamente instável. Assistindo a esses filmes percebe-se que os percursos
que conduzem o protagonista à descoberta da verdade são variáveis, porém,
podemos perceber padrões: a busca da verdade realiza-se por meio de uma
verdadeira reforma íntima favorecida ou por uma cadeia de eventos ou por um
sentimento vago de mal estar que impulsiona o protagonista a mudanças de
atitudes. A primeira hipótese é a de que estaríamos, então, diante da recorrência de
arquétipos, isto é, elementos recorrentes de um imaginário social.
Sabendo que a abordagem que Jung faz do Gnosticismo
20
é de que suas
narrativas contêm importantes arquétipos persistentes na cultura até hoje, partimos
para o conceito de gnose descrito pelos três maiores pensadores gnósticos:
Basilides, Valentim e Mani. Como veremos na Parte II dessa dissertação, cada um
deles sugere que a gnose provém, respectivamente, de três estados alterados de
consciência: suspensão, paranóia e melancolia. Fazendo uma analogia dessas
descrições com os protagonistas dos filmes analisados, a correspondência foi
interessante e rica em possíveis significados interpretativos.
Mais ainda, deparamo-nos com as idéias de Victoria Nelson, discutidas na
Parte I dessa dissertação, de que todo um imaginário místico derivado do ocultismo,
cabala e alquimia presentes na literatura fantástica e romântica do século XVIII e
XIX ressurge na cultura de massas do século XX em contos, estórias em quadrinhos
e no cinema. Essa discussão das origens da mitologia pop do século XX nos fez
lembrar o trabalho de Nelson Brissac Peixoto, Cenários em Ruínas
21
, onde o autor
faz um verdadeiro inventário da imagerie arquetípica cinematográfica de filmes
derivados de antigas novelas policias, filme noir, western e literatura de best-seller.
Seu objetivo é o de descrever “os três modos de constituição da subjetividade e do
mundo na cultura contemporânea” a partir das estórias míticas dos três tipos de
protagonistas: o Detetive, o Viajante e o Estrangeiro. As descrições de Brissac sobre
esses tipos de protagonistas se mostraram em grande parte análogas aos
20
Cf. HOELLER, Stephen. Jung e os Evangelhos Perdidos: uma apreciação junguiana sobre os
Manuscritos do Mar Morto e a Biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Cultrix/Pensamento, 1993.
JUNG, C.G.. Símbolos da Transformação, Petrópolis: Vozes, 1995 e JUNG, C.G. Sete Sermões aos
Mortos.
21
PEIXOTO, Nelson Brissac. Cenários em Ruínas. São Paulo: Brasiliense, 1987.
22
personagens iniciáticos caracterizados pelos pensadores gnósticos citados. Claro
que a analogia se resume apenas na caracterização inicial dos protagonistas em
relação ao seu mal-estar no mundo. Brissac não imagina nenhuma saída ou
caminho espiritual para esses personagens, a não ser “telões eletrônicos e fachadas
decoradas, ao redor dos quais tudo cai em abandono e decrepitude. (...) recomeçar
tudo outra vez, retomando estas imagens e estórias banalizadas, estes locais de
fantasia agora em escombros. (...) Tudo neste mundo desde logo é simulacro”
22
As
narrativas gnósticas pretendem ir além desse simulacro do mundo a partir de três
estados alterados de consciência que propiciam a gnose. Portanto, a descrição
desses estados gnósticos orientou a divisão do corpus de análise em três grupos
(tabela 3).
Tabela 1 - Lista preliminar de filmes
1962
Fellini Otto e Mezzo
Fellini Oito e Meio
1974
Zardoz Zardoz
1976
The Man Who Fell to Earth O Homem que Caiu na Terra
1987
Angel Heart Coração Satânico
1982
Blade Runner O Caçador de Andróides
1986
Blue Velvet Veludo Azul
1995
Dead Man Homem Morto
1995
Twelve Monkeys Os Doze Macacos
1997
Mad City O Quarto Poder
1997
Devil`Advocate O Advogado do Diabo
1997
Lost Highway Estrada Perdida
1997
The Game Vidas em Jogo
1997
Wag The Dog Mera Coincidência
1998
Dark City Cidade das Sombras
1998
What Dreams May Come Amor Além da Vida
1998
The Truman Show O Show de Truman
1998
Pleasantville A Vida em Preto e Branco
1999
The Thirteenth Floor O Décimo Terceiro Andar
1999
Being John Malkovich Quero ser John Malkovich
1999
Existenz Existenz
1999
American Beauty Beleza Americana
1999
Matrix Matrix
22
Ibid., p. 7.
23
1999
Ed TV Ed TV
1999
Fight Club Clube da Luta
2000
Memento Amnésia
2000
X-Men X-Men
2001
Vanilla Sky Vanilla Sky
2001
Donnie Darko Donnie Darko
2002
Minority Report Minority Report - A Nova Lei
2003
Identity Identidade
2006
Inland Empire Império dos Sonhos
2006
Click Click
2006
A Scanner Darkly O Homem Duplo
2007
The Number 23 Número 23
Tabela 2 – Lista de filmes que compõem o corpus de análise
1
1995
Dead Man Dead Man
2
1997
Mad City O Quarto Poder
3
1997
The Game Vidas em Jogo
4
1998
Dark City Cidade das Sombras
5
1998
The Truman Show O Show de Truman
6
1998
Pleasantville A Vida em Preto e Branco
7
1999
The Thirteenth Floor O Décimo Terceiro Andar
8
1999
Being John Malkovich
Quero ser John Malkovich
9
1999
Matrix Matrix
10
1999
Fight Club Clube da Luta
11
2000
Memento Amnésia
12
2001
Vanilla Sky Vanilla Sky
13
2001
Donnie Darko Donnie Darko
14
2003
Identity Identidade
15
2003
Paychek O Pagamento
16
2004
Eternal Sunshine of the Spotless Mind Brilho Eterno de uma Mente sem
Lembrança
17
2005
Stay A Passagem
24
Tabela 3 – Corpus de análise dividido por grupos de protagonistas
O Viajante
“Suspensão”
O
Detetive
“Paranóia”
O
Estrangeiro
“Melancolia”
Homem Morto Cidade das Sombras Show de Truman
Vidas em Jogo O Décimo Terceiro Andar Donnie Darko
A Vida em Preto e Branco A Passagem O Quarto Poder
Quero Ser John Malkovich Identidade
Clube da Luta O Pagamento
Matrix Amnésia
Vanila Sky
Brilho Eterno de uma
Mente Sem Lem
branças
A partir daí procedemos à análise fílmica de cada um desses filmes. Nessa
análise privilegiamos a investigação de cada filme nos seguintes planos: narrativa,
temas, personagens e protagonistas, simbolismos e iconografia. Na Parte II fazemos
uma descrição geral de cada um desses planos da análise, procurando encontrar
especificidades de cada um desses grupos. Na parte III apresentamos análises
fílmicas integrais de representantes de cada um dos grupos. Na Conclusão fazemos
uma análise crítica dos resultados das análises fílmicas.
Está claro que nessa dissertação privilegiamos a procura das formas de
representação de um determinado imaginário social no interior dos filmes. Não
levamos em consideração o meio produtor dos filmes (grupo de autores, técnicos e
colaboradores da criação) ou os aspectos socioeconômicos do filme (independente
ou hollywoodiano). Embora sejam aspectos relevantes (e que, possivelmente, se
levados em consideração poderiam trazer importantes contribuições sobre a
discussão da representação do imaginário social nos filmes), excedem a própria
natureza inicial desse trabalho.
25
Tendo em vista a escassa bibliografia sobre Gnosticismo e cinema (apenas o
livro de Eric Wilson), o propósito desse trabalho é o de início de uma discussão
sobre o tema. Além disso, essa discussão oferece uma contribuição não para os
estudos das sobre religião e cinema, mas também como esforço para compreender
a natureza do imaginário tecnológico e social atuais.
26
PARTE I – Gnosticismo e Modernidade
1. O Ressurgimento Gnóstico na Modernidade: o Romantismo
Simone Petrement destaca a inegável afinidade entre o Romantismo e o
Gnosticismo. “... O sentimento que aparece na gnose, quase em todas as partes, é o
sentimento romântico por excelência: o sentimento dos limites do destino e o desejo
de romper esses limites, de quebrar a condição humana, de evadir-se de tudo
1
. É
através do Romantismo, nos séculos XVIII e XIX que o Gnosticismo deixa o
submundo para ascender à literatura e à cultura através de nomes como William
Blake, Percy Shelley, Gerard de Nerval, Baudelaire, Rimbaud. Em todos eles
encontramos a redescoberta da atitude e das imagens do pensamento gnóstico. A
abordagem do gnosticismo pelo Romantismo é nitidamente sincrética, associando o
gnosticismo cristão com o hermético (alquimia e cabala). Figuras como Nerval e
Goethe, por exemplo, beberam em fontes gnósticas, cabalistas e alquímicas.
Enquanto Goethe trabalhava com complexos simbolismos iniciáticos derivados da
alquimia, Nerval estudou profundamente livros de esoterismo, magia e metafísica.
Mas não devemos ver nisso uma simples curiosidade de erudito. Nerval
que era franco-maçom, não nos esqueçamos quis conhecer por
conta própria os mistérios da iniciação, da teogonia e do destino. O
ocultismo nervaliano reúne elementos de origem muita diversa, mas
esta ‘gnosis’ sincrética se orienta ao redor de um símbolo central: a da
Mãe Divina
2
Esse tipo de abordagem apontará para a tendência predominante da
retomada das mitologias gnósticas na cultura de massas: o mix do gnosticismo
clássico com toda uma gama de práticas e simbolismos das mais variadas
procedências marcada pelo rótulo genérico de “esoterismo”.
De qualquer forma, esse interesse pelo misticismo como referencial para
discutir temas como destino, condição humana e emancipação metafísica esbarrou
1
PETREMENT, S. Le Dualisme Ches Platon, lês gnostiques et s manichéens. Paris: PUF, 1974, p.
129.
2
HUTIN, Serge. Los Gnósticos, EUDEBA: Buenos Aires, 1963, p. 71.
27
nas limitações objetivas da linguagem: como a linguagem poderia representar o
incognoscível? O caminho que o Romantismo percorrerá entre a transcendência e a
linguagem, o incognoscível e a representação é a ironia. Veremos na Parte II dessa
dissertação como os elementos desse tipo de ironia reaparecerão no plano narrativo
dos filmes gnósticos. Primeiramente, vamos entender as motivações místicas e
filosóficas que estiveram por trás desse importante elemento literário do
Romantismo.
A Ironia romântica
Não importa a sua forma, a ironia surge na lacuna entre aparência e
realidade, representação e presença. Pensadores do fim do século XVIII,
principalmente Friedrich Schlegel, acreditavam que essa lacuna era constitutiva da
natureza humana proveniente do antagonismo entre o desejo de representar o
mundo e a impossibilidade de fazê-lo.
Até o advento do Romantismo a ironia fazia parte da retórica clássica, sempre
associada à dissimulação. A esta forma de ironia puramente retórica opõem-se a
ironia literária, inaugurada pelos primeiros românticos. O grupo de Iena
3
(formado
pelos irmãos August e Friedrich Schlegel, Novalis, entre outros) começa a teorizar
sobre a ironia como um procedimento auto-reflexivo a partir da leitura de Cervantes,
Shakespeare e Diderot. O traço distintivo da ironia passa a ser a intrusão da figura
do autor na obra literária, isto é, o caráter auto-reflexivo, a consciência do jogo na
obra e sobre a obra:
... A ironia romântica (...) não se esgota na mera interrupção do fluxo narrativo
com o narrador dirigindo-se ao leitor. É, muito além disso, um recurso que se
destina a fomentar uma constante discussão e reflexão sobre literatura um
3
Foi muito importante na eclosão do Romantismo o movimentado círculo de Iena (Berlim de 1798 a
1800), onde se distinguiram os irmãos Schlegel, ao lado de Novalis e Tieck, além de Karoline
Michaelis (1769-1809) - nome de solteira - casada com August e, mais tarde, em segundas pcias,
com o filósofo alemão Friedrich Schelling (1775-1854). Novalis,foi o maior poeta do grupo. Seguiram-
se muitos outros, entre os quais os irmãos Grimm - Wilhelm (1786-1859) e Jakob (1785-1863);e
Heinrich Heine (1797-1856), certamente o último romântico alemão, como poeta.
28
processo do qual o leitor forçosamente participa. Essa participação é
alcançada na medida em que o escritor destrói a ilusão de verossimilhança e
desnuda o caráter ficcional da narrativa, chamando a atenção do leitor para
como o texto foi construído.
4
Mas o alcance da noção de ironia pode ser estendido para além da literatura
como afirma Arthur Nestrovski. Ele situa a ironia no âmbito da linguagem em geral e
aponta a filosofia crítica como marco fundamental na crise de confiança na
linguagem:
De uma perspectiva filosófica, é com a obra de Kant que vêm à tona as
insuficiências da linguagem como instrumento de dominação da experiência
(...). A partir de Kant, e de maneira cada vez mais marcada até nossos dias, a
filosofia, a poesia e a música passam a ser, acima de tudo, disciplinas da
consciência
5
A moderna concepção da ironia tematiza o intervalo entre a linguagem e a
experiência empírica. A ambição pela imediatez dos modernos parece ser uma
procura sempre renovada de uma linguagem absoluta, pela busca de uma palavra
definitiva que nome às coisas. Desta ambição fadada ao insucesso é que eclode
a ironia moderna inaugurada pelos românticos. A ironia é justamente a tentativa de
gerir uma angústia fundamental inerente aos seres da linguagem: o sofrimento com
o impossível desejo de dizer “a coisa”.
Muito mais do que tematizar as relações entre o mundo e a linguagem, a
ironia romântica aborda a nossa relação com o mundo. As produções românticas
são permeadas por um doloroso sentimento de perda, por uma percepção de
ruptura em todos os setores da vida. Uma desconfortável sensação de hiato que se
instaurou entre homem/mundo, homem/natureza, experiência/representação,
sujeito/objeto, coisa/palavra, afeto/linguagem, etc. Ou seja, a impossibilidade de uma
relação plena, perene e imediata que se impõe violentamente à subjetividade
romântica.
4
VOLOBUEF, K. Frestas e Arestas. A prosa de ficção do romantismo na Alemanha e no Brasil. São
Paulo: Editora da UNESP, 1998, p.99.
5
NESTROVSKY, A. Ironias da Modernidade, São Paulo: Ática, 1996, p. 8.
29
O romântico tem um olhar extremamente crítico em relação ao presente: toma
distância da realidade em que vive, tenta objetivá-la e a si mesmo em um movimento
reflexivo e auto-reflexivo. Mas esta crítica se faz acompanhar por uma espécie de
nostalgia da unidade perdida, de uma época onde todos os hiatos e lacunas
estavam preenchidos ou preenchíveis, aspira à unificação daquilo que está
fragmentado, a restauração da plenitude e da harmonia perdidas.
Mas as coisas são mais nuançadas do que isso. A ironia caracteristicamente
romântica é o permanente movimento de vai-e-vem entre a consciência crítica e
pessimista do mundo (a consciência da impossibilidade da recuperação da unidade
perdida) e a sua negação (o reencontro da unidade). Esta talvez seja a diferença
entre o estilo romântico em relação às outras formas de reflexividade modernas.
As dimensões estéticas desse tipo de ironia são muitas: a fragmentação como
forma preferida de representação, isto é, como um consciente elemento de uma
completude jamais alcançável; o narrador autoconsciente que expõe as próprias
construções da realidade para, dessa forma, explicitar suas limitações; a mistura
entre texto primário e comentário em uma mesma página; a descrição não-
conclusiva de pontos de vista inconciliáveis que deixa o leitor em um limbo
interpretativo; o poema que se consome em dois significados contraditórios que se
co-habitam e se anulam.
Dessa forma, ao desenvolver uma poética, uma filosofia e um método (a
ironia), o romantismo cria um anseio pelo absoluto, uma espécie de busca religiosa
que, de um lado, toma seriamente as percepções fragmentárias do mundo material
como forma de revelação do espírito e, do outro, toma essas mesmas percepções
como formas inferioras que encobrem como um véu o invisível. Tal como argumenta
Wilson, a ironia transcendental do romantismo exemplifica este irônico
questionamento religioso próximo da tradição gnóstica. Ao ver a matéria como uma
ilusão que impede o conhecimento do espírito, o gnosticismo necessariamente vai
tecer uma complexa relação com a realidade material: por um lado, pode rejeitar a
matéria como irreal e não tomar a sério os eventos como se eles não existissem; por
outro toma seriamente a realidade material como algo que se opõe ao espírito
30
conferindo a ele qualidades positivas. Aproxima-se do Romantismo ao utilizar a
ironia como um método de questionamento religioso:
Ironia é a única maneira pela qual o gnóstico negocia esses extremos, a
única maneira pela qual ele possa fingir que a realidade material seja
significativa embora sabendo que não tenha sentido, que ele possa estudá-la
como uma negativa revelação e ignorar a matéria como um obscuro véu (...).
Esta busca requer ironia: a habilidade de sustentar formas enquanto as
explode.
6
2. A ironia no filme: o Gnóstico e o Gótico
O filme gnóstico parece caracterizar-se por uma espécie de autoconsciência.
Procura abordar temas metafísicos ou espirituais dentro de narrativas verossímeis,
procurando apresentar tais temas de uma forma plausível. Filmes como Matrix
(Matrix, 1999), Inteligência Artificial (AI, 2001) e Homem Morto (Dead Man, 1995)
partilham dessa “ironia transcendental”. Matrix está consciente do fato de que ele
próprio é uma ilusória forma de sugerir que todas as outras formas são também
ilusões. Os espectadores são convocados a encarar esse filme como uma denúncia
contra o embrutecedor status quo e, ao mesmo tempo, rejeitá-lo como parte do
mesmo sistema que denuncia. Inteligência Artificial sabe que é simultaneamente
uma crítica da nossa mecanizada existência e uma demonstração de como as
máquinas podem tornar-se mais vivas que os humanos. Esse conflito incentiva os
espectadores a levar a rio essa peça cinematográfica de virtuosismo tecnológico
e, ao mesmo tempo, rebaixá-lo como um filme excessivamente mecanizado e sem
vida. Dead Man está consciente do fato de que o filme enfatiza as virtudes da
conversão de um personagem durante uma jornada de transformação espiritual em
uma narrativa repleta de clichês rígidos do gênero western. Este duplo vínculo
convida os espectadores a participar das metamorfoses do protagonista e
simultaneamente questionar a validade dessas ostensivas mudanças. Nesses três
casos os espectadores são inquiridos a encarar os filmes ou como uma legitima
6
WILSON, Eric G. Secret Cinema: Gnostic vision on film. Nova York: Continuum, 2006, p. 21.
31
imitação de algum evento verossímil (como um realístico retrato da sofredora
condição humana) ou como uma paródia de qualquer idéia de autenticidade, como
uma espécie de ataque formal à construção do senso comum.
Explicando melhor, esses filmes exploram mundos fantásticos (do passado,
presente ou futuro, mundos prováveis e mundos dos sonhos). Mas, apesar disso,
alcançam uma espécie de realismo, uma “integridade mimética”. o descrevem
eventos empiricamente familiares, mas nos apresentam mundos prováveis,
verossímeis. Uma vez que os espectadores aceitem as premissas desses filmes,
reconhecerão neles seus próprios esquemas e convenções sociais, sabendo o que
esperar e retirando prazer da gica narrativa. Os espectadores não tendem a ver
esses filmes como violações da realidade, mas como extensões do real, como
representações de potenciais ainda não realizados ou de interiores ainda não
externalizados. Mas, ao mesmo tempo, esses filmes podem perturbar nosso
conceito de realidade através de inovações formais. Estilisticamente enfraquecem
suas próprias premissas, drenam a autenticidade de suas narrativas. Ao fazê-lo
parodiam-se a si mesmos: são realísticas explorações de idéias importantes ou
formalmente rejeições astutas do realismo mais sério? São para serem levados a
sério ou não?
Esta parece ser a chave desse tipo de ironia: nunca está claro se a ironia está
presente ou não. Isso distingue a ironia derivada do Romantismo – uma séria
procura filosófica, poética e religiosa da ironia instrumental uma técnica aplicada
especialmente para a sátira. Vamos tentar entender a diferença entre essas duas
espécies de ironia.
Vejamos o filme de Woody Allen Desconstruindo Harry (Deconstructing Harry,
1997). Está repleto de artifícios irônicos. Neste filme a obra literária de Harry Block
(Allen) serve como instrumento para dissecar o próprio autor. Harry contracena com
os próprios personagens ficcionais de sua galeria literária. Ficção e realidade
confundem-se ao ponto que passamos a questionar a estrutura do filme como sendo
mais uma obra literária de Harry Block. O filme inteiro é uma resposta irônica de
Allen aos críticos que vêem nos seus personagens um reflexo do próprio cineasta.
Cada um dos elementos do filme destaca o fato de que o filme é um artifício, uma
32
das muitas possibilidades de representar a realidade. Aqui a ironia funciona com
óbvios objetivos humorísticos: esvaziar as convenções cinematográficas que
sustentam as identidades dos personagens e a narrativa linear.
Ao contrário, um diretor que se aproxima da ambígua atmosfera da ironia
romântica é Kubrick. Nele, a ironia nunca é óbvia. Vendo o filme De Olhos Bem
Fechados (Eyes Wide Shut, 1999) nunca podemos ter certeza se podemos levar a
sério o personagem de Tom Cruise, o Dr. Bill Harford. Será que Kubrick quer nos
dizer, através da atuação linear e inexpressiva de Cruise, que Dr. Bill representa
alguém com uma sexualidade reprimida, um médico amante fatal ou uma paródia do
típico homem americano? Em Laranja Mecânica (A Clockwork Orange, 1971) as
cenas de violência são tomadas por uma atmosfera ambígua perturbadora: o
espectador pode encarar a violência coreografada ao som de música clássica como
uma paródia de gênero ou como uma descrição realista das potencialidades mortais
de uma consciência amoral.
Os filmes gnósticos aproximam-se dessas qualidades Kubrickianas, deixando
os espectadores em um limbo interpretativo entre a e a dúvida. Esse limbo pode
conduzir as audiências a curiosos interstícios entre oposições. Esse vazio cognitivo
pode certamente ocasionar no espectador um apático niilismo, mas também pode
trazer novos insights na relação entre extremos, alcançar o terceiro termo possível
para além de todo conflito. Se a ironia gnóstica fosse tão óbvia, poderia
simplesmente inspirar dúvida. Se a ironia não existisse, o filme gnóstico apenas
inspiraria fé.
Para Wilson, é justamente neste vago meio-termo que transita o filme
gnóstico:
Assim como o instrumento da ironia é o recurso do Romantismo para a
religiosa busca do absoluto (buscar o inominável por meio da
linguagem, explicitando suas limitações) o filme gnóstico vai buscar o
numinoso através da experiência de ruptura, da implosão irônica dos
gêneros, da ambigüidade capaz de gerar vazios cognitivos.
7
7
Ibid., 24.
33
Se esta ambigüidade do filme gnóstico derivada da ironia romântica poderia
provocar “vazios cognitivos” e através disso, propiciar o “numinoso” na experiência
cinematográfica é algo que foge às pretensões das análises fílmicas deste presente
trabalho. Porém, as colocações de Wilson a respeito da ambigüidade narrativa
desse grupo de filmes são pertinentes e verificadas nos resultados das análises
fílmicas que veremos adiante.
Outra proposta interessante de Wilson é a associação dessa ambigüidade
irônica com elementos do Fantástico, presentes no gênero Gótico. Vamos
aprofundar essa conexão.
O Gótico gnóstico
Não é surpreendente que a ironia dos filmes gnósticos tenha um sabor gótico.
Apesar das importantes diferenças entre os gêneros fílmicos ficção científica, filme
noir, horror e fantasia, todos eles partilham dos mesmos elementos góticos: o
obscurecimento das fronteiras entre a descrição realista de mundos familiares e
experimentos formais ou descrever terras de estranhos sonhos; a mistura ambígua
entre percepção e projeção; o conflito entre razão e inconsciência.
Esses elementos góticos estão intimamente relacionados com a ironia
romântica. Samuel Taylor Coleridge, autor do conto The Rime of Ancient Mariner,
parece sugerir isso ao afirmar que:
Pessoas e personagens sobrenaturais, ou no mínimo românticas, ainda que
se transfiram para dentro da nossa natureza íntima dando um interesse
humano e um aspecto de verdade suficientes para suspender a descrença do
momento, constituem a fé poética.
8
O que Coleridge chama de “sobrenatural” ou “romântico”, poderíamos definir
como gótico: uma narrativa como The Rime na qual presenças invisíveis, locais
exóticos e eventos extraordinários são dominantes. Esse tipo de trabalho paira entre
a realidade e a fantasia de maneira que passamos a considerar seriamente eventos
8
COLERIDGE, Samuel Taylor. Biographia Literaria, Volume II, Princeton: Princeton University Press,
1983, p.5-6.
34
que, de outra forma, normalmente não aceitaríamos. Este nível de dissolução das
fronteiras entre credulidade e incredulidade é irônico. Leva o leitor a acreditar no
inacreditável. Encoraja-o a questionar a realidade empírica. Colocando abaixo
dicotomias inadequadas como crença/descrença, verdade/mentira, etc.,
testemunhando a dissolução das formas, o leitor desse conto gótico deverá alcançar
um terceiro caminho para além das certezas dadas.
Freud indiretamente corrobora com essa tese de Coleridge ao afirmar que o
sentimento gótico cresce a partir de uma insolucionável ambigüidade diante da
irrupção do “Estranho” no cotidiano
9
. Freud sustenta que as pulsões inconscientes
provêem da inesperada erupção de medos que foram por muito tempo reprimidos. O
inconsciente é o retorno do reprimido, a perturbadora fusão entre o conhecido e o
desconhecido. De um lado essa pulsão reprimida é monstruosa, chocante, motivo
pelo qual foi a muito escondido no inconsciente. Ao mesmo tempo essa mesma
energia inconsciente deve necessariamente retornar por ser a força essencial da
motivação e organização psíquica.
Agora, imaginemos um homem em um museu mal-iluminado que testemunha
a um assustador evento: uma estátua ganhando vida. Ele está aterrorizado pelo
espetáculo, mas tem uma sensação de déjà vu como se tivesse vivenciado essa
experiência muitas vezes antes. A estátua viva personifica o medo arcaico do morto
que retorna à vida. Essa experiência estremece as categorias essenciais da
civilização racional. Pelo fato de homem no museu ter por muito tempo reprimido
esse primitivo e oculto medo, a estátua passa a produzir nele um sentimento
simultâneo de repulsa e atração: ele tem repulsa pela erupção do estranho, mas, ao
mesmo tempo é atraído pela revelação daquilo que vem de suas próprias
profundezas. O estranho evento do artifício que ganha vida é repetidamente exibido
em numerosos filmes que apresentam essa atmosfera gótica e irônica: o familiar o
empírico status quo torna-se estranho. E o desconhecido o inconsciente bizarro
– torna-se familiar.
9
Cf. FREUD,S. “O estranho” in História de uma neurose infantil e outros trabalhos. Edição standard
brasileira das obras completas de S. Freud. Vol XVII (1917-1919). Tradução de Eudoro Augusto
Maciera de Souza. Rio de Janeiro, Imago Editora Ltda, 1976.
35
Em seu trabalho sobre o fantástico, Tzvetan Todorov enfatiza a conexão entre
o inconsciente e a ambigüidade. Embora Todorov faça uma distinção entre o
fantástico e o estranho, sua definição de fantástico pode estender a noção freudiana
de inconsciente.
Primeiro, é preciso que o texto obrigue ao leitor a considerar o mundo das
personagens como um mundo de criaturas vivas e hesitar entre uma
explicação natural e uma explicação sobrenatural dos acontecimentos
evocados. A seguir, esta hesitação pode ser igualmente experimentada por
uma personagem; desta forma o papel do leitor é, por assim dizer, confiado a
uma personagem e ao mesmo tempo a hesitação encontra-se representada,
torna-se um dos temas da obra; no caso de uma leitura ingênua, o leitor real
se identifica com a personagem. Enfim, é importante que o leitor adote uma
certa atitude para com o texto: ele recusará tanto a interpretação alegórica
quanto a interpretação “poética”. Estas três condições não têm valor igual. A
primeira e a terceira constituem verdadeiramente o gênero; a segunda pode
não ser satisfeita
10
Para ele a ambigüidade é a essência do fantástico, é a sua irredutível
ambigüidade a incapacidade de dizer se um acontecimento é natural ou
sobrenatural. Ao contrário, o Estranho pode ser explicado por meio da razão: após
instituir um desequilíbrio entre a realidade e o sobrenatural, o evento insólito pode
ser equacionado por meio das leis da realidade material. Como vimos acima, a
erupção do inconsciente reprimido descrita por Freud é dotada de uma ambigüidade
semelhante à noção de fantástico de Todorov: a nebulosa relação entre o positivo (o
natural, o familiar) e o misterioso (o sobrenatural, o desconhecido). No final de um
conto fantástico ou gótico, seja ele The Rime de Coleridge ou O Iluminado (The
Shinning, 1977) de Kubrick, os espectadores estarão sempre diante de, no mínimo,
duas interpretações válidas e diametralmente opostas: será que o protagonista de
The Rime experimentou terrores sobrenaturais ou sofreu insanas alucinações? O
Hotel Overlook de O Iluminado era literalmente perseguido ou infectado por
projeções psíquicas? Essas questões permanecem sem resposta. Por isso, essa
irredutibilidade produz o terror associado com o modo gótico, o medo pelo
desconhecido. Mas essa confusão também abre possibilidades de transcendência,
de ir para além do dado.
10
TODOROV, Tzvetan, Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 39.
36
E como o gótico está conectado com o gnóstico? Se Freud demonstra como o
estranho que aflora do inconsciente produz neurose e psicose, Heidegger vai nos
mostrar, sob o ponto de vista filosófico, como o estranho vai inspirar conhecimento e
energia. Tal como Freud, Heidegger vai encarar o estranho como um modo de
abertura onde o familiar torna-se desconhecido e o desconhecido torna-se íntimo.
Algumas vezes, porém, aquilo que vem ao encontro no interior de um mundo
reconhecível não o faz com a familiaridade usual: em nosso mundo mais
próximo está presente o estranho, o não-familiar, o que choca. O estranho é
algo que impõe um obstáculo ao sentido, é a falta de um significado claro, de
referencialidade.
O não-familiar é o que não entra logo em relação, em conformidade com meu
entorno cotidiano. É precisamente o esforço de compreensão do estranho
que propicia aberturas de sentido, ou seja, que abre as possibilidades de
iluminação dos entes. Este choque” se mostra no contexto da lida cotidiana
na forma do imprevisível, da perturbação da totalidade referencial. A quebra
do sentido habitual de algo onde alguma coisa a torna “visível”, força-nos a
uma pausa para percebê-la. Ela escapa, neste momento, à obviedade
inerente ao mundo, aparecendo como não mais pertencente a ele.
11
O fato de essa totalidade referencial ser a base na qual percebemos a
presença do mundo, a ruptura da familiaridade pela ausência de uma racionalidade
que outrora pertencia à totalidade fechada traz à tona “a pálida e insignificante
presença do mundo”. Esta ausência que perturba o lidar no mundo é, para
Heidegger, o que, afinal, traz à luz suas potencialidades não percebidas. O que
suspeitamos ser sonhos misteriosos, o abismo do Ser, é o núcleo da sua vida, o
mais intrínseco princípio. Conduzido a esse abismo do nem isso, nem aquilo
tornamo-nos inseguros. Mesmo assim, por ser o nada tudo, e a ausência (esta
totalidade referencial impessoal e não percebida) a dimensão impessoal que gera
todas as presenças, passamos a nos assegurar de estarmos tomados por uma visão
da origem. Esta estranha erupção é a gnose, a percepção intuitiva do todo.
11
SILVA, Antônio Almeida R. da, “Relação entre Espaço e Lugar no pensamento de Martin
Heidegger” Correlatio, n. 11, Universidade Metodista de São Paulo. Disponível em
<http://www.metodista.br/ppc/correlatio/correlatio11/relacao-entre-espaco-e-lugar-no-pensamento-de-
martin-heidegger/> (acessado em 09/01/2009).
37
3. Filme gnóstico: o gnosticismo como forma cultural
É compreensível que o filme gnóstico migre de gêneros influenciados pelo
gótico: ficção científica, ao explorar as ambíguas relações entre homens e
máquinas; filmes de fantasia ao apagar os limites entre sonho e realidade; filme noir
ao revolver os limites entre as projeções psíquicas e a realidade empírica; filmes de
horror ao expor as ambíguas inter-relações entre monstruosidade e milagre. uma
razão histórica para esta conexão entre o Gnóstico e o Gótico. Como descreve
Victoria Nelson, desde a era moderna formas esotéricas de conhecimento como o
Gnosticismo, Cabala e Alquimia foram empurradas para as margens da cultura.
“Na atual era aristotélica o transcendental foi empurrado para o submundo,
onde pode ser encontrado de forma distorcida fora das fronteiras das
expressões religiosas. Nossos impulsos religiosos reprimidos podem ser
encontrados em livros e filmes sobre o fantástico. Podemos encontrar nossa
crença na alma imortal ao observar as formas como simulacros humanos
fantoches, ciborgues e robôs surgem como descendentes diretos em
imagens descritas nas estórias de ficção científica e filmes
contemporâneos”
12
Nelson argumenta que a partir da re-apropriação das idéias de Platão no
século XV, principalmente a alegoria da caverna tal descrita em A República, a
noção de “um mundo físico como um duplo refletido em um espelho” acabou
influenciando profundamente as crenças religiosas e científicas a partir do século
XVI. Nelson exemplifica isso com obras literárias de Coleridge, Kafka e Poe para
demonstrar como a alegoria da caverna passa a significar “o meio caminho entre a
parte superior do mundo e a grande e mais misteriosa região abaixo”
13
Para ela, das
figuras literárias do século XX é interessante e válida a conexão do escritor Philip K.
Dick (autodenominado escritor gnóstico de livros de ficção científica, muitos
adaptados ao cinema como Blade Runner: O Caçador de Andróides – Blade Runner,
1982 - e Cidade das Sombras – Dark City, 1997) com figuras como Giordano Bruno
e as arcanas tradições da Cabala e Alquimia. Esta confluência entre religião oculta e
12
NELSON, Victória, The Secret Life of Puppets. Cambridge: Havard UP, 2001. p. viii.
13
Ibid. p. 14.
38
expressões marginais alcança sua força total na literatura popular do século XX: o
fantástico mundo de estranhos contos, histórias em quadrinhos e filmes góticos.
A Modernidade trouxe esta atração pelo universo herético e esotérico
rejeitado pelos meios oficiais. E por dois motivos. De um lado, as inovações
tecnológicas modernas como o telégrafo, o telefone, a fotografia e o cinema
trouxeram condições para se constituir uma mentalidade estruturada pela
reflexividade e autoconsciência. As formas de comunicação técnicas possibilitaram
inéditas formas abstratas de linguagem e codificação, produzindo uma espécie de
consciência metalingüística ou fática em relação aos meios. Daí a aguçada
percepção dos limites representativos da linguagem demonstrada pelo Romantismo
e a sua abordagem irônica da linguagem literária e o seu criticismo filosófico.
Por outro lado, o cotidiano efêmero, fragmentado e instantâneo produzido
pelo estilo de vida moderno trouxe o impulso de querer congelar o momento.
Em resposta a esse problema, formas como a literatura panorâmica, a
fotografia e o cinema tentaram fixar distrações fugazes e sensações
evanescentes identificando momentos isolados da experiência ‘presente’.
Nesses discursos literários, artísticos e filosóficos, a negociação entre a
efemeridade e a suspensão do movimento surgiu como uma característica
definidora da modernidade
14
Esta busca do congelamento do instante parece ser uma resposta a um
problema apontado de forma persuasiva por Heidegger: o esvaziamento do
presente. Para ele, a partir do momento em que cognição e sensação se dissociam
na modernidade com a efemeridade, eles não podem mais habitar o mesmo
instante.
Na medida em que a ‘presença’ nomeia uma categoria de consciência, ela
existe mediante a capacidade de reconhecê-la. No entanto, esse
reconhecimento não pode acontecer no mesmo instante em que acontece a
presença. O presente, de fato, o pode ocorrer, uma vez que a mente pode
reconhecer o presente somente depois que ele não é mais presente; o
14
CHARNEY, Leo & SCHWARTZ, Vanessa (org.), O Cinema e a Invenção da Vida Moderna. São
Paulo: Cosac & Naif, 2001, p. 21.
39
presente pode ser reconhecido somente depois de ter se tornado passado.
Não podemos nunca estar presentes em um presente
15
Este “estar-perdido”, como Heidegger conceituou, constitui a alienação da
vida moderna. Como antídoto, Heidegger propõem o “momento da visão” para
podermos compreender a instantaneidade de uma presença presente: uma
experiência não racional, uma experiência que preenche com a sensação de estar
presente no presente. Voltamos à descrição feita anteriormente de Heidegger a
irrupção do Estranho em um mundo familiar. Ele descreve esta experiência como
local do êxtase, beatitude, arroubo: “tem que ser entendido no sentido ativo como
um êxtase. Isso significa arroubo absoluto com o qual o sujeito é arrebatado a
quaisquer possibilidades e circunstâncias encontradas na situação”
16
A pintura impressionista, a fotografia e o cinema parecem ser uma resposta a
este anseio ou mal estar trazido pela vida moderna: a busca de uma experiência do
absoluto, do particular, da totalidade em experiências fragmentadas e abstratas. Em
outras palavras, a vida moderna vai trazer o anseio pela transcendência, pelo
sagrado que pode ser traduzido pelo indivíduo de duas formas: ou na busca vulgar
por fantasias escapistas ou na legítima busca pela experiência do sagrado. Neste
quadro, passa a fazer sentido o renascimento, na modernidade, de toda uma “sub-
cultura” esotérica ou mística. E o cinema, paradoxalmente um dispositivo
essencialmente abstrato e fragmentado, passa a ser um dos lócus da busca dessas
experiências transcendentes. Não é à toa que famosas salas de exibição nos anos
20 do culo passado assumem serem espaços da fantasia, excesso e escapismo
onde as audiências podem testemunhar imagens de filmes sobre tumbas e templos.
Por exemplo, o Egyptian Theater, aberto em Hollywood 1923 – no mesmo ano que a
cripta de Tutankamon foi descoberta dispunha de uma tela circundada por quatro
colunas decoradas por hieróglifos, um auditório cercado por efígies e escaravelhos e
o teto desenhado com estranhas gravuras. Ou o Oriental Theater, aberto em
Chicago em 1926, decorado por jardins ao estilo oriental, uma mistura de imageries
15
CHARNEY, Leo, “Num instante: o cinema e a filosofia da modernidade”, In: CHARNEY, Leo &
SCHWARTZ, Vanessa (org.), Ibid., p. 389.
16
HEIDEGGER, Martin. O Ser e o Tempo Apud CHARNEY, Leo. Ibid, p.389.
40
budista e islâmica, incluindo vistosos domos e brilhantes estátuas de Buda. Ou,
ainda, o Mayan Theater de Los Angeles, completado em 1926, que era uma
reminiscência dos antigos templos Maias, povoado por intrincadas esculturas vividas
pinturas.
Esses e muitos outros espaços construídos nas cadas de 20 e 30 foram
obviamente desenhados para seduzir audiências com vulgares fantasias escapistas
de mundos orientais sensuais e exóticos, uma embalagem para os sonhos
oferecidos pelos filmes. Mas, possivelmente os construtores dessas arquiteturas
bizarras expressaram um arquétipo: a idéia de que visões transformadoras de
plenitude espiritual somente podem ocorrer em espaços ainda não sentidos, onde
alguém, por um momento, possa se libertar do ego e experimentar a imensidão do
universo.
Esta busca do espiritual na experiência cinematográfica na modernidade seria
a necessidade refletida por um imaginário por trás dos filmes gnósticos. Porém, tal
qual o Romantismo que explorava as limitações da linguagem literária ao tentar
exprimir o incognoscível, o filme gnóstico tamm vai experimentar essa mesma
dualidade.
Essa duplicidade torna o contemporâneo filme gnóstico comercial em
um veículo especialmente apto para explorar temas heterodoxos.
Diferente das clássicas, vanguardistas e cult reedições das idéias
gnósticas, versões comerciais contemporâneas possuem um duplo
vínculo, um conflito entre a embalagem exotérica e a visão esotérica.
Alguns filmes gnósticos auto-conscientemente exploram essa
contradição. Refletindo a impossibilidade da sua própria existência
são meditações metafísicas e mercadorias vulgares esses filmes
consomem a si mesmos e conduz as audiências para espaços
indefinidos: abismos de interpretação, regressões infinitas sobre
problemas insolúveis. Essas negações são confusas e potencialmente
sem significado. Porém elas também libertam os espectadores da
hermenêutica do status quo e os introduz a inovadoras e possivelmente
redentoras formas de ver e ser
17
17
WILSON, Eric G. Op. Cit., p .x.
41
Excetuando-se as considerações apologéticas de Wilson de que a
experiência cinematográfica do filme gnóstico pode “libertar os espectadores da
hermenêutica do status quo”, vamos perceber, de qualquer forma, nesse grupo de
filmes, essa dualidade entre as convenções tradicionais do gênero e os conteúdos
mitológicos e arquetípicos. Como mitologias ou narrativas gnósticas que denunciam
o mundo como uma ilusão podem ser representadas por um veículo essencialmente
ilusório: de um lado, como dispositivo (com toda a carga ilusória de identificação e
voyeurismo) e, do outro, como indústria cultural?
Como veremos na Parte II dessa dissertação, ao abordar temas, personagens
simbolismos e iconografias de natureza esotérica ou gnóstica, o filme gnóstico exige
uma narrativa complexa ou, no mínimo, o clássica, contrariando muitas das
convenções do gênero. A ironia caracteristicamente romântica vai nortear o plano
narrativo desses filmes. A auto-reflexividade, ambigüidade interpretativa,
fragmentação, narrador autoconsciente, confusão das vozes narrativas etc. são
características derivadas diretamente do Romantismo. Procuram representar
conteúdos que tematizam a ilusão da realidade expondo a própria ilusão dos
recursos fílmicos de representação.
42
PARTE II - Elementos Gnósticos em filme
1. Os Protagonistas
Para compreendermos como a produção cinematográfica norte-americana
recente desenvolve elementos do gnosticismo devemos acompanhar como os
visionários gnósticos encararam os enigmas e soluções que envolvem a condição
humana nesse mundo: como um iniciado pode escapar do ilusório mundo da matéria
se toda a sua experiência provém deste mundo material? Se, em toda a sua vida,
apenas habitou a aparente solidez das aparências como poderá distinguir algo que
não seja mera aparência? Basilides, Valentim e Mani, os três principais visionários
gnósticos do início da era cristã, vão oferecer, cada um a sua maneira, soluções
para estes enigmas. Veremos mais adiante como os filmes gnósticos também
abordam esses mesmos enigmas e soluções.
A narrativa mítica sobre Criação, Queda e Ascensão tal como descrita no
Apócrifo de João trouxe dúvidas para os pensadores gnósticos. Eles atentaram para
a uma questão negligenciada pelo autor do Apócrifo: como poderá o adepto
espiritual extrair a si próprio de dentro das ciladas da realidade material e escapar
das suas condições somáticas e limitações culturais? Os pensadores gnósticos
ofereceram três soluções para esse enigma: suspensão, paranóia e melancolia. Três
estados alterados de consciência que permitiriam ao iniciado alcançar a gnose e
furar o véu da ilusão da realidade.
A teoria de Basilides
1
sobre o verdadeiro Deus, tal qual descrita por Hipólito
2
,
pode ser resumida na idéia da Grande Negação: se a verdade sobre Deus está além
do conhecimento humano, a negação do conhecimento é o sagrado caminho. O
homem acolhe os objetos do saber e as palavras como fossem veículos do
conhecimento na esperança de que possam revelar a verdade das coisas. Em um
1
Basílides (117-138 DC). Filósofo gnóstico de Alexandria, possivelmente originário de Antioquia.
Admitiu um princípio incriado, o Pai, cinco hipóteses emanadas dele e trezentos e sessenta e cinco
céus, um dos quais é o nosso mundo comandado pelo Demiurgo (Yahweh, Jeová ou Javé).
2
HIPPOLYTUS., Refutation of All Heresies. Book X, Chapter X. Disponível em <http://www.mb-
soft.com/believe/txu/hippoly9.htm >(acessado em 25/02/2009).
43
mundo de ilusões o conhecimento dele só poderá ser também ilusão. Por isso
Basilides recomenda ao iniciado aos mistérios o silêncio. Ou seja, incapaz de
discernir a diferença entre aparência e realidade Basilides sugere a suspensão, um
estado de silêncio melancólico
3
. A linguagem induz ao erro porque Deus é o Nada,
está além daquilo que é possível ser nomeado. As coisas devem ser apreendidas
sem a linguagem (arretos). Mais adiante, veremos como esta mitologia gnóstica
marcará um conjunto de ícones e mbolos do cinema gnóstico. Chamaremos o
personagem fílmico que vive neste estado de suspensão basilidiana como o
Viajante.
Ao contrário dessa espécie de suspensão de Basilides, Valentim
4
sugere uma
espécie de “passividade ativa”, um agressivo questionamento do status quo a partir
da radical suspeita sobre a realidade reinante: a paranóia. Para ele, as qualidades
falhas do mundo material (ignorância, erro e mal) conduzem o homem a um erro
mental. Como um ser que habita o tempo e o espaço, o homem é incapaz de,
através do conhecimento, contemplar o plano atemporal e sem limites de Deus. Tal
erro teria iniciado ainda no Pleroma quando as emanações, após surgirem do vazio
e lançadas para a existência, passaram a buscar, em vão, as suas origens. Isso
acabou criando um erro cósmico. Tal busca acabou sendo mal sucedida, pois estas
emanações não se atentaram ao fato de que o Pai é incognoscível. Estava fundada
a noção de Conhecimento, a crença de que todo conhecimento pode ter um objeto.
Mas o objeto é inacessível ao conhecimento. Conhecimento do fenômeno é
ignorância por reduzir a mente à rigidez. Este erro eterno causa o crescimento do
desejo e do medo desejo de querer controlar um objeto que lhe é externo e medo
de não conseguir conhecer e controlar esse objeto criando uma armadilha no
interior de um miasma de objetos externos à mente. Porém, a matéria não é
constituída por uma substância permanente, mas é um estado mental. Todos os
3
Os alunos que decidiam seguir a escola de Basilides eram obrigados a observar um silêncio de
cinco anos com o propósito de criar condições para o cultivo da gnose sem dissipar suas intenções
em conversas.
4
Professor gnóstico, aluno de o Paulo, quase se tornou papa. Nascido em Cartago em torno de
100 DC, fez uma interpretação gnóstica da mensagem de Cristo. Para ele, Cristo o foi um
“salvador”, mas um curador” já que nada para ser salvo pois o mundo é imperfeito não pelo
pecado mas pela obra falha de um deus criador inautêntico.
44
seres nascidos nesse universo re-encenam este erro ao confundir ignorância com
conhecimento.
Se o iniciado começa a suspeitar de que os objetos ao redor são ilusórios,
como, então, poderá discernir entre a sanidade das suas percepções e a insanidade
que o mundo pretende rotulá-lo? Como separar o desejo do medo? Através da
paranóia. Diferente da estrita concepção narcísica de paranóia a idéia de que o
sujeito tem de que o mundo está focado em uma perseguição contra si próprio a
concepção valentiniana está no limite entre a sanidade e a loucura, através de uma
desconfiança radical em relação ao mundo ao redor que está dado. Vivendo nesta
espécie de limbo, corre o risco de cair para um lado ou para o outro: tornar-se
irremediavelmente insano ou preparar-se para ocultar-se em uma lúcida loucura
habitando um espaço entre a claridade e a instabilidade emocional. Veremos que
esse é um tema predileto nos filmes gnósticos. Permeia argumentos, construções de
personagens e o próprio ambiente iconográfico talvez da maioria dos filmes
analisados. Se, por definição, o gnosticismo nega a realidade material como uma
ilusão fabricada por propósitos desconhecidos, a paranóia é o caminho através do
qual as personagens buscarão a iluminação. Chamaremos o protagonista que surge
nesses filmes como o Detetive.
Finalmente, temos a melancolia como solução da escola gnóstica
maniqueísta. Mani
5
sustenta que o cosmos é dividido em dois poderes opostos: Bem
e Mal, Luzes e Trevas, Espírito e Matéria. Influenciado pelo dualismo de Zoroastro,
Mani cria uma visão de alta intensidade dramática. No início o universo foi dividido
entre deidades das Trevas (habitando os rculos materiais) e da Luz. A certa altura
o mundo material atacou as regiões espirituais. Para contra-atacar, Deus criou um
ser humano primordial (anthropos, uma figura cósmica não ligada a Adão ou a
outros seres humanos, a não ser de forma indireta) para descer ao mundo material e
combater as forças das Trevas armado com cinco elementos (fogo, vento, água, luz
e éter). Mas foi ostensivamente derrotado e aprisionado. O Rei da Luz enviou, então,
um espírito para trazer esse anthropos de volta para casa. Porém, apenas a sua
5
Viveu no Irã no século III DC. Depois de uma viagem à Índia, Mani retornou ao Irã para desenvolver
sua doutrina. Cruelmente executado por um traiçoeiro monarca instigado pelo clero zoroastriano, sua
religião floresceu por vários séculos tornando-se a principal fonte de transmissão da tradição
gnóstica.
45
forma conseguiu retornar, deixando para trás os cinco elementos que compunham a
sua alma. Para libertar essas partículas, Deus criou o cosmos com Adão e seus
filhos. A cada momento, a criatura humana, um anthropos decadente, ouve o
chamado da luz para que, ao cultivar o espírito, emancipe partes da alma até que
todas as almas sejam libertadas e a matéria seja aniquilada. É claro que as forças
das Trevas procuram impedir esse intento por meio de uma dramática luta cósmica.
A chave para libertar-se da conspiração das forças do mal é a melancolia. A
partir dessa “falha da racionalidade”
6
, o homem recusa os códigos de uma
sociedade inautêntica por meio do desdém, depressão e tristeza:
Mas o mundo conspira contra essa depressão ao oferecer breves
consolos para a matéria (hylé) ou alívios para a mente (psyche).
Hedonismo seduz no primeiro caso; ortodoxia religiosa no segundo. O
gnóstico deve evitar esses caminhos e manter aberta a ferida do seu
espírito (pneuma). Insatisfeito com o mundo externo volta-se para a
partícula íntima, sua conexão com o macro cósmico anthropos que
ainda o espera no pleroma
7
Diferente da paranóia valentiniana, onde o homem não conhece plenamente a
natureza da atmosfera que conspira e tenta juntar os pedaços de um quebra-cabeça
em busca de algum sentido, na melancolia maniqueísta o homem sabe que foi
abandonado no mundo do Mal. A única esperança para escapar do destino é
cultivando um desdém em relação a tudo ao redor e fugir das tentações
consoladoras do Cristianismo e do Hedonismo.
A suspensão de Basilides parece ser muito próxima da melancolia de Mani. A
diferença é que aqui experimentamos uma melancolia agressiva. Enquanto a
suspensão melancólica de Basilides induz ao silêncio e a renúncia a qualquer
instrumento da linguagem como fonte de erro, a melancolia agressiva de Mani
sugere a exposição da ferida aberta do espírito ao negar os consolos do mundo
material até alcançar a insanidade febril. Veremos mais adiante que filmes como
6
WILSON, Eric G. “The Dark Art”, disponível em <http://www.uga.edu/garev/spring07/wilson.pdf>
acessado em 19/01/2008.
7
IDEM, Secret Cinema: Gnostic Vision in Film, Nova York: Continuum: 2006, p. 40.
46
Show de Truman desenvolvem essa dramática narrativa dualista. À personagem
que vai incorporar esta filosofia maniqueísta daremos o nome de o Estrangeiro.
Esses são os três estados alterados de consciência que criam condições para
a irrupção da gnose, um conhecimento que brota do coração de forma misteriosa e
intuitiva. Dentro do filme gnóstico, estes três estados vão orientar os protagonistas
na busca pela Verdade. São verdadeiras transformações íntimas, salvações
individuais.
É importante salientar que as provações que os protagonistas vão enfrentar
não são decorrentes de pecados, erros ou transgressões. Ou seja, a jornada de
sofrimentos e dificuldades não se constitui em castigo. É aqui que temos uma
diferença fundamental entre o filme gnóstico dos outros tipos de filme: o protagonista
não passa por uma expiação, mas está em busca da salvação através do
conhecimento espiritual.
A maioria dos sistemas religiosos reconhece, de alguma forma, que o mundo
é imperfeito. A humanidade é o principal vilão. A corrente judaico-cristã, por
exemplo, sustenta que a transgressão do primeiro casal humano precipitou a queda
não somente da raça humana, mas de toda a criação. Ao contrário, o gnosticismo
acredita que se o mundo é falho é porque foi criado de maneira falha. O mundo não
caiu, foi imperfeito desde o começo. Foi obra de uma divindade imperfeita, o
Demiurgo, uma forma híbrida de consciência emanada de um plano transcendente e
harmônico (a Pleroma) a partir do Deus original e perfeito. Ele fez a forma, mas não
a vida interior do mundo. Inebriado com o poder e por acreditar ser o único deus do
universo, aprisiona o homem e a sabedoria (Sophia) no interior da criação,
aprisionando-os.
Portanto, toda a jornada de provas, dificuldades e sofrimentos pela qual o
protagonista terá que passar é resultado de um mundo corrompido e falho na sua
essência e não por culpa dele.
Caracterizando a gnose como o oposto da episteme (do conhecimento
científico), jamais o protagonista vai buscar fora dele um instrumento que o ajude a
realizar a reforma íntima (livro, religião, terapia etc.). Como acredita o Gnosticismo,
tudo do que necessitamos já está dentro de nós.
47
1.1. O Viajante - Grupo “Suspensão”
O tema comum desse grupo é o Jogo. Narrativas de personagens que se
encontram presos em um jogo da qual não sabem quando começou e quando irá
acabar. As fronteiras entre aparência e essência, ficção e realidade estão
suspensas. O Jogo mistura-se com a própria percepção que os personagens têm
sobre o que entendem como realidade. O Jogo sempre parece dar errado, o controle
da situação parece estar irremediavelmente perdido criando uma suspensão radical
das fronteiras e diferenças. Neste estado psicológico de suspensão cria-se uma
passagem através da qual o protagonista irá saltar (morte, salto para o abismo,
queda etc.). É a Grande Negação de Basilides, a indução ao silêncio interior pela
fuga da linguagem, do discurso, da cadeia racional dos eventos.
Em Vidas em Jogo (The Game, 1997) o rico banqueiro Nicholas Van Orton
(Michel Douglas) vive uma vida rotineira e solitária. Até que no seu 48º aniversário (o
ano em que seu pai cometeu suicídio) ganha um estranho presente do seu irmão
Conrad (Sean Pen): um cartão de entrada para um jogo oferecido pela empresa
Consumer Recreation Service (CRS). A princípio a natureza do jogo não está clara,
mas, aos poucos, demonstra ser uma espécie de role-playing game que se integra
totalmente na vida real das pessoas. O Jogo toma o controle da sua vida e Nicholas
torna-se vítima de uma fraude financeira que rapidamente desintegra seu império.
Nicholas é seqüestrado, largado só e sem dinheiro no México enquanto suas contas
bancárias são drenadas. O clímax chega ao momento em que Nicholas, na
cobertura do prédio da empresa CRS dispara sua arma contra as supostas pessoas
que lhe aplicaram o golpe. Inadvertidamente atinge mortalmente seu irmão Conrad
que estava com o grupo de amigos e funcionários da CRS que iriam revelar-lhe que
tudo fazia parte do Jogo. Desesperado, Nicholas joga-se da cobertura, estraçalha
um telhado envidraçado e cai em segurança em um imenso airbag. embaixo
estão Conrad e amigos revelando a falsidade de tudo que aconteceu. O Jogo, na
verdade, foi um arranjo para chacoalhar o irmão e trazê-lo de volta para a realidade,
para entender a lição de que a vida deve ser mais bem aproveitada.
48
O tema Jogo aparece de forma indireta em Vanilla Sky (Vanilla Sky, 2001). No
filme encontramos David Aames (Tom Cruise) um rico e bem sucedido editor que
tem tudo o que quer. Charmoso e sedutor, David sente que sua vida está
incompleta. Em uma festa encontra a mulher de seus sonhos, Sofia (Penélope
Cruz). Desesperado por ter mais informações dessa mulher misteriosa não percebe
que está sendo observado pela ciumenta namorada Julie (Cameron Diaz). A
narrativa salta para frente. Encontramos David preso em uma penitenciária e usando
uma máscara prostética. Um psicólogo conversa com ele à procura da verdade por
trás de um assassinato. Ao retornar ao presente vemos David sobreviver a um
acidente de carro provocado por uma discussão com a ciumenta Julie. Seu rosto fica
irremediavelmente deformado, obrigando-o a usar esta máscara. se passaram
meses e nenhum cirurgião conseguiu restaurar a fisionomia de David. Sofía não
quer nem olhá-lo. Num momento de desespero, ele toma um porre e acaba
dormindo na sarjeta. Ao acordar, tudo parece sofrer uma transformação. Sofía o
ama, os cirurgiões reconstroem seu rosto, mas algo algo estranho no ar. De uma
hora para outra Sofía desaparece e, em seu lugar, aparece o rosto de Julie, que
afirma ser Sofía, com um documento de identidade em seu nome. É nesse
momento que David cai num abismo de seu pior pesadelo, não entendendo nada do
que se passa, não conseguindo compreender se perdeu o juízo ou se uma trama
para enganá-lo. Ao final descobrimos que David é um homem em estado criogênico
que sonha imagens que lhe foram artificialmente implantadas por uma empresa. A
única forma de escapar desta realidade virtual criada é saltando do alto do arranha-
céu para retornar à própria realidade: a vida em estado de suspensão.
Em Vanilla Sky temos o Jogo como um sonho lúcido (e lúdico) criado por uma
empresa (a LE Life Extension), dentro do qual o controle é perdido tornando-se
tudo um pesadelo. O Jogo é uma obra do Demiurgo/companhia (em Vidas em Jogo
a companhia CRS). Como obra de um Demiurgo, é uma cópia imperfeita da
realidade. O Jogo reduz os personagens à ignorância e ao silêncio. São incapazes
de discernir as fronteiras entre mentira e verdade. Tal como proposto por Basilides,
esta situação cria o estado de suspensão, o tertium quid, a terceira alternativa entre
a ilusão e a realidade.
49
A suspensão encontra o clímax numa situação altamente simbólica nesse
grupo de filmes: o salto/morte. Em Vidas em Jogo e Vanilla Sky os protagonistas
saltam num abismo, o simbolismo da suspensão, o salto para o vazio, o silêncio, o
grau zero de sentido.
Em Vidas em Jogo após o protagonista passar por toda jornada do Jogo e
demonstrar que está iniciando a reforma íntima (por exemplo, pela primeira vez
pergunta para a governanta como era seu pai e pede perdão para a ex-esposa por
ter sido frio e indiferente durante o casamento) ele deve passar pelo momento
máximo de introspecção. Como em vários momentos o Jogo passa a mensagem de
que ele deve abandonar a Razão, Nicholas é direcionado a ter o impulso do suicídio
e salta do alto do edifício da CRS. O salto é o simbolismo da suspensão, esvaziar o
pensamento, o grau zero da mente, o vazio e o silêncio. O impulso do suicídio vem
após Nicholas ouvir de um dos personagens do Jogo ao tentar ajudar Conrad
baleado, jogado no chão: “Nunca deixe um atirador controlar a situação!”. “Controle”
é a palavra chave da vida de Nicholas (ele não gosta de surpresas) e isso foi o
motivo de ter baleado e matado o irmão acidentalmente. Portanto, decide não mais
controlar sua vida e deixar-se levar pelo fluxo do Jogo. Esvazia o pensamento e
salta do edifício.
Podemos nomear as personagens protagonistas desse grupo como o
Viajante. Todos eles são bem estabelecidos, bem sucedidos, ricos ou famosos ou no
gozo da plena capacidade criativa. Porém falta algo. É necessário empreenderem
uma jornada para que todo o sentido seja suspenso, o tertium quid se apresente e o
salto para a gnose seja dado.
Essa Viagem pode ser tanto literal (como a jornada espiritual empreendida
pelo protagonista no Oeste norte-americano acompanhado de um guia espiritual
indígena em Homem Morto Dead Man, 1995), uma jornada através do interior da
mente (Clube da Luta Fight Club, 1999; Brilho Eterno de Uma Mente Sem
Lembranças Eternal Sunshine Of The Spotless Mind 2004; Vanilla Sky), ou
através de um jogo propriamente dito (a maratona Pleasantville em A Vida em Preto
e Branco – Pleasantville, 1998 ou o jogo da CRS em Vidas em Jogo).
50
1.2. O Detetive - Grupo “Paranóia”
O tema comum deste grupo é explicitamente a Memória. A memória do
protagonista foi perdida. Mas não por uma simples amnésia momentânea. Este
esquecimento é a própria constituição do seu ser e da própria realidade que o
envolve de forma conspiradora. Ele tem que resolver um enigma proposto, sem
saber que a solução final desse enigma levará à própria identidade perdida ou
esquecida. Esta perda cria o estado de paranóia: em quem confiar? Como distinguir
a verdade da mentira, a ilusão da realidade? Por que os fatos se sucedem sem
causalidade? Como saber se o que ele sente é sanidade ou loucura? É através
desse estado psicológico que, segundo Valentim, o iniciado encontrará a iluminação.
Na ficção científica noir Cidade das Sombras (Dark City, 1998) temos uma
nova dimensão da paranóia. John Murdock (Rufus Sewell) acorda num estranho
quarto de hotel e descobre-se sem memória e caçado por brutais e bizarros
assassinos. Enquanto tenta juntar os pedaços do passado, descobre que está numa
cidade controlada por seres conhecidos por Os Estranhos”. A cidade na verdade é
um imenso laboratório que reproduz os aspectos de uma grande metrópole. Os
Estranhos têm o poder de colocar cada habitante em estado de sonolência enquanto
suas identidades são trocadas e todo o ambiente ao redor é alterado. Chamam isso
de “sintonizar”. Na verdade os Estranhos são alienígenas em extinção que precisam
migrar para o corpo de uma nova raça. Por isso, pretendem estudar os seres
humanos descobrindo neles o que torna o espírito durável e vital apesar das
sucessivas trocas diárias de identidades. John Murdock é mais uma dessas
identidades “sintonizadas” pelos Estranhos, com memórias pré-fabricadas
implantadas através de uma injeção aplicada entre os olhos (simbolismo esotérico
do “terceiro olho”).
A cena inicial revela o simbolismo gnóstico que o filme vai abordar: John
acorda (“nasce”) em uma banheira cheia d’água e completamente nu. Por algum
motivo passa a ter uma sensação de estranhamento e suspeita com os objetos
pessoais das memórias pré-fabricadas (chaves, as iniciais numa maleta, um cartão
postal de um lugar chamado Shell Beach). É a paranóia que criará o estado
51
incomum de consciência que resultará no renascimento para a verdade sobre a
ilusão criada por um Demiurgo. Seu poder de “sintonizar” que ele acidentalmente
descobre tem forte simbolismo: ele possui a mesma habilidade de mentalmente
alterar a realidade que o Demiurgo. O homem tem faculdades semelhantes ao Deus
imperfeito que o criou.
Em Amnésia (Memento, 2.000) Leonard (Guy Pearce) é um investigador de
uma companhia de seguros que sofre de perda da memória de curto prazo. Ele
procura os assassinos de sua esposa e, para compensar sua deficiência, cria um
metódico sistema de notas, tatuagens e fotos para lembrar-se dos eventos
anteriores. Sua relação com a realidade é de total estranhamento e paranóia: em
quem pode confiar? E, o que é pior, poderá ele confiar nas suas próprias anotações
feitas a partir de situações das quais ele não se lembra? Leonard enfrenta profundas
crises existenciais e epistemológicas sobre a própria natureza ontológica da
realidade. A fala inicial de Leonard na primeira seqüência apresenta o dilema e
paranóia da personagem:
Onde está você? Em algum quarto de motel. Você apenas acordou num
quarto de motel. Essas são as chaves. Você sente como estivesse pela
primeira vez nesse quarto, mas talvez você esteja aqui há uma semana,
três meses. É difícil de dizer. Eu não sei. É apenas um quarto qualquer.
8
A vida de Leonard é a desconfiança gnóstica da concreticidade do real. No
fundo, a questão do real é um problema de crença, o que torna instável a percepção
do mundo:
Eu tenho que crer num mundo fora da minha mente. Tenho que crer
que minhas ações permanecem tendo um sentido embora não consiga
lembrar qual seja. Tenho que acreditar que quando meus olhos fecham
o mundo permanece lá. O mundo ainda está lá? Está fora? Sim.
Todos nós precisamos de espelhos para relembrar a nós mesmos quem
somos. Eu não sou diferente.
9
8
“Memorable Quotes for Memento” in: IMDB (Internet Movies Database) Disponível em
<http://www.imdb.com/title/tt0209144/quotes> (acessado em 24/01/2008)
9
Idem.
52
Buscar os assassinos da sua esposa implica em buscar sua própria
identidade. A paranóia o faz crer em fatos e não em memórias, certeza
epistemológica na qual baseia o sistema de anotações que fará Leonard encontrar a
verdade: “memórias podem mudar a forma de um quarto, a cor de um carro. Podem
distorcer. São apenas interpretações, não uma gravação. Memórias tornam-se
irrelevantes se tenho os fatos”
10
.
A personagem deste grupo de filmes, portanto é o Detetive. É aquele que
busca o que se perdeu. Tudo está mergulhado na obscuridade. As investigações o
levam para um mundo fragmentado e incompreensível povoado por gente cujos
compromissos e motivações não são claros. Defronta-se sem cessar com o mundo
da simulação. O mundo com suas conexões e eventos são falsos, fabulações
conspiratórias de um Demiurgo/Diabo/Alienígena.
A fragmentação do mundo falso em que o Detetive movimenta-se é
representada pela própria narrativa não-linear dos filmes desse grupo: Flash-backs,
Flash-forwards, narrativas paralelas etc. Amnésia, por exemplo, adota uma
complexa narrativa onde as seqüências em cores estão cronologicamente invertidas
enquanto as cenas em preto e branco estão em ordem cronológica.
A experiência da perda é o evento central para o detetive. Vive em estado
constante de deslocamento e desorientação. Freqüentemente é atingido na cabeça
ou drogado, delira, perde os sentidos. Ao acordar não sabe onde está, quanto tempo
se passou, o que aconteceu. Estas características não são exclusivas dos filmes
gnósticos. São tomadas do típico protagonista dos filmes do gênero noir dos anos
‘30 e ‘40. Porém, enquanto o gênero clássico noir gira em torno do tema do
“humano, demasiado humano”, o “detetive” gnóstico procura solucionar não o
enigma das relações pessoais, mas o enigma da ilusão da realidade que aprisiona o
espírito.
Na vida do Detetive um profundo sentido gnóstico a respeito da natureza
corrompida da realidade: a vida não opera por soma, mas por subtração. A vida
mais nos retira do que nos dá. Não há evolução, acumulação, progresso, mas perda,
roubo, involução. Por isso, é marcante que o enigma a ser resolvido comece por
10
Idem.
53
pistas, objetos, verdadeiros rastros, escombros da uma identidade que se perdeu ao
longo do caminho. Em O Pagamento (Paycheck, 2003), o protagonista Michel
Jennings (Ben Affleck) é um engenheiro reverso que prestava serviços sigilosos de
espionagem industrial para grandes empresas. Faz parte do seu trabalho o
apagamento voluntário das memórias para proteção da propriedade intelectual dos
seus clientes. Em troca, recebe grandes pagamentos que lhe garante uma vida
confortável do ponto de vista financeiro e superficial do ponto de vista existencial.
Porém, Jennings propõe um enigma para si mesmo: ao receber o pagamento do
último e mais demorado serviço (três anos) descobre que renunciou ao pagamento
de 90 milhões de dólares em ações em troca de um envelope com prosaicos
objetos: óculos de sol, chave, maço de cigarros, uma bala de revólver etc. São
rastros da memória de uma vida perdida. O detetive tem que buscar a si mesmo por
meio das ruínas do passado, recuperar o que a vida lhe subtraiu.
Em Cidade das Sombras encontramos de novo o protagonista tentando
solucionar o enigma da memória/identidade a partir de um rastro de objetos; roupas,
carteira, mala etc. Para reforçar ainda mais o aspecto de ruína desses rastros,
quando o protagonista John Murdock sai do hotel aturdido, em estado de amnésia, é
informado que a sua carteira estava no Automat (uma rede de fast-food). estão
mais pistas para saber sua identidade (foto da sua esposa, documentos etc.). O
atendente do Automat põe a carteira em um dos nichos que se abrem com inserção
de moeda. A identidade parece ter o mesmo nível ontológico de uma rede de fast-
food, ou seja, como fosse mercadoria ou qualquer coisa disponível.
1.3. O Estrangeiro - Grupo “Melancolia”
O tema comum desse grupo é o Confronto. Tudo começa com a relação de
estranhamento dos protagonistas com o lugar onde moram, vivem e se relacionam.
São estrangeiros dentro do seu próprio país vivendo um auto-exílio. Sentem não
pertencer àquele mundo, estão em constante mal-estar e à deriva. O que está
errado? Tudo parece estar no lugar, seguindo os padrões e expectativas do status
quo. O Estrangeiro pressente a inautenticidade do mundo em que ele está.
54
Demonstra desdém aos papéis sociais, padrões, modelos de felicidade. É um
melancólico. Pretende se reconhecer no submundo, nas ruínas, em todos os lugares
que estão acabando, no erro, no suicídio, na morte. Este fascínio pelo universo
looser levará o protagonista a um confronto final contra o Demiurgo que criou este
mundo inautêntico que o rodeia.
Show de Truman dramaticamente nos apresenta a cosmologia de Mani: a luta
entre Trevas e Luz e a sedução da realidade pela simulação. Christoff (Ed Harris), o
produtor de TV, é o Demiurgo. Ele cria um imenso estúdio em forma de domo onde
as condições meteorológicas são controladas por computadores, tudo sob um céu
falso, um pequeno mar simulando oceano, e uma cidade ficcional chamada
Seaheaven habitada por atores que representam scripts pré-determinados. Ele
necessita criar um simulacro da realidade para realizar seu sonho: tomar uma
criança (Truman Burbank) desde o nascimento, colocá-la em um ambiente simulado
e acompanhar com as meras o seu crescimento em cada ação, até tornar-se
homem. É claramente o simbolismo do aprisionamento de Adão no Paraíso
engendrado pelo deus-demiurgo. Como tal, surge Eva
11
para “tentar” Adão: a atriz
Sylvia (Natascha McElhone) rompe com o seu papel no programa e tenta alertar
Truman sobre a ilusão na qual está aprisionado.
O que Christof pretende com o seu gigantesco reality show? Tal qual o
Demiurgo de Mani, quer aprisionar o anthropos (criar um ser humano puro, original e
espontâneo, “uma estrela que inspira milhões”) para roubar dele a partícula de Luz,
tal como é descrita na gnóstica mitologia maniqueísta da batalha contra as Trevas.
Truman é um homem comum vivendo uma vida comum. Tem uma esposa
normal, vizinhos normais e um amigo normal. Mas não está feliz. um vazio.
Melancólico, tem fantasias escapistas com as Ilhas Fiji. Quer conhecer o mundo.
Romper com o habitual, com o papel pré-determinado de um agente de companhia
de seguros. Até que um acidente misterioso acontece: do céu azul cai, na sua frente,
11
Na mitologia gnóstica Eva não era a personagem estúpida persuadida pela serpente do mal a
tentar Adão, mas sim uma mulher sábia, uma verdadeira filha de Sophia, a Sabedoria Celestial. Foi
ela que despertou o Adão adormecido em sua prisão, segundo o Apócrifo de João. Eu tenho o
conhecimento anterior da pura Luz; dou o pensamento do espírito imaculado ... Levanta-te e lembre-
se ... e siga a origem que sou eu ... e cuidado com o sono profundo” (WISSE, Frederick (tradução) “O
Apócrifo de João” IN: ROBINSON, James M. A Biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Madras,
2007. p. 109-110.
55
um spot de estúdio. Esse spot traa suspeita de que um mistério por trás da
rotina. Sua melancolia torna-se febril. Decide então pular para o abismo, desafiar a
morte para fugir daquela vida. À noite rouba um barco e decide rumar para o
horizonte do mar de Seaheaven. Começa o confronto final com o Demiurgo. Assim
como o Deus vingativo do Velho Testamento
12
, Christoff tenta matar Truman pela
desobediência criando violentas tormentas no mar cenográfico. “Isso é o melhor que
pode fazer?”, desafia Truman.
O estrangeiro aspira ao sagrado, à transcendência, ao autêntico, aquilo que
denuncie a falsidade que constitui a vida nesse mundo. Por isso inventa um mundo
para si. Cria sua própria origem, constrói uma mitologia que ajude a explicar seu
estranhamento em relação ao mundo. Truman cria um imaginário em torno das ilhas
Fiji, habita antecipadamente esse sonho. Truman apaixona-se por uma extra do
reality show (notório para um Estrangeiro apaixonar-se por uma atriz secundária do
programa). Tenta relembrá-la a partir de fragmentos de recortes de fotografias de
revistas. Um retrato imaginário das suas origens.
Em Donnie Darko (Donnie Darko, 2001), Donnie também cria um mundo
alternativo para si: a viagem no tempo. Ele quer voltar para sua casa, que o é
nesse mundo. Sente-se atraído por uma looser, outra estrangeira, sem família, sem
pais, estranha naquela cidade.
Ao contrário da melancolia de Basilides, a melancolia do Estrangeiro de
Mani é ativa. O protagonista pressente o confronto final. Seu distanciamento de tudo
e de todos é uma forma de dizer “adeus” por antecipação. Ele sabe que vive uma
contagem regressiva e que deve partir sem criar nenhum vínculo afetivo com
ninguém. Isso é evidente no protagonista de Donnie Darko. Melancólico, ele vive
uma guerra íntima contra as instituições repressivas daquela sociedade: a escola
(que depreda e causa uma inundação) e o escritor famoso de livros de auto-ajuda
(incendeia sua casa). Tudo para preparar-se para conflito final na noite de
Halloween contra os valentões da escola Seth e Alex (símbolos do status quo
conformista e vazio) que determinará a morte de sua namorada e a sua disposição
12
Para o Gnosticismo a descrição feita de Deus pelo Velho Testamento na Bíblia Sagrada
corresponderia a todas as características de Yaldabaoth, o Deus-Demiurgo imperfeito. Cf. HOELLER,
Stephen, Gnosticismo: tradição oculta. Rio de Janeiro: Nova Era, 2005.
56
em sacrificar-se por todos. O conflito final o faz despertar desse mundo (“estou
voltando para casa”, diz Donnie).
2. A Narrativa
A estrutura narrativa clássica constrói os seus pilares na busca pela ilusão de
realidade. Encenação naturalista, mudanças invisíveis entre um corte e outro,
continuidade de olhar e movimento, manutenção do eixo de 180 graus, sincronismo
entre som e imagem. Cada cena é amarrada em si mesma e em função das cenas
imediatamente anteriores e posteriores, em uma relação contínua de causa e
conseqüência. O roteiro clássico obedece a uma métrica que determina a duração
das partes do filme, como apresentação dos personagens, introdução do conflito,
primeiro plot e assim por diante. A estrutura lógica e a busca incessante pela
verossimilhança são pertinentes à natureza do discurso, colocando o espectador em
contato direto com o significado e não causando possíveis dificuldades de leitura.
Ao contrário, o filme gnóstico empreende diversas desarticulações narrativas
com o objetivo de questionar a narrativa clássica e a passividade do espectador
diante do efeito realista da linguagem fílmica. Se pensarmos a narrativa como uma
série de eventos encadeados, reais ou imaginários, que ocorre ao longo de um
tempo determinado pela estória, podemos considerar o conceito de tempo como o
ponto crítico nos filmes gnósticos.
O gnosticismo encara o tempo como uma prisão, fonte de mistificação, ilusão
e engano.
Igual ao mundo físico, o tempo que subjaz, por outro lado, em todas
as manifestações do cosmos visível é mescla’ e ‘mancha’: O ciclo do
tempo não é outra coisa que a Fatalidade; o tempo pertence ao mundo
material, enquanto que o mundo superior é atemporal (e se diz
separado do primeiro por um limite que em princípio é absoluto). O
tempo é mal e constitui-se numa fonte de angústia; a gnose se opõe
tanto à doutrina estóica do tempo cíclico, circular, como à doutrina cristã
de um tempo linear que se estende irreversivelmente desde a criação O
tempo, que em si mesmo é insuficiência, nasceu de um desastre, de
uma ‘deficiência’, do desmoronamento e a dispersão no vazio, no
kenoma, em uma realidade que existia antes, uma e integral, o sonho
57
do Pleroma, da ‘plenitude’, do Aión, da Eternidade O gnóstico não
aspira mais do que ser liberado do tempo, estabelecer-se ou
restabelecer-se fora de todo devir, de volta ao estado que se supõem
existia no princípio: a estabilidade, a verdade do Pleroma, do Aión, do
ser eterno, do ser completo.
13
Por isso, o filme gnóstico vai explorar formas narrativas opostas às formas
clássicas e lineares (introdução ambiental; apresentação das personagens;
nascimento do conflito; conseências do conflito; golpe de teatro resolutório). As
narrativas gnósticas tentarão sempre destacar a instabilidade temporal da realidade,
isto é, como por trás do aparente encadeamento linear dos eventos, escondem-se
abismos temporais e espaciais, os múltiplos universos contínuos e descontínuos e a
própria ontologia do real (ou a verossimilhança) confundida com possíveis projeções
psíquicas do protagonista.
Uma primeira forma de explorar essa questão do tempo é apresentar uma
estória, aparentemente, como fosse uma narrativa clássica e linear. Aos poucos, vão
sendo inseridos elementos novos e irônicos que vão desconstruindo essa narrativa.
Podemos encontrar tal caractestica nos filmes Homem Morto e Vidas em Jogo.
Em Homem Morto a estória é narrada, aparentemente, de forma linear, como
uma estória descrita do começo até o fim. É a narrativa de um western clássico, com
personagens e situações aparentemente típicas de um filme do gênero. Porém, a
frase de Nobody (índio que acompanha o protagonista) de que a morte é como fosse
“a passagem através do espelho” é a chave de compreensão da estrutura narrativa
do filme. As seqüências iniciais de finais do filme parecem se “espelhar” por diversos
aspectos.
Na seqüência inicial um trem conduz Blake (Johnny Depp) para a cidade dos
homens brancos e, no final, uma canoa leva-o para o mar a partir de uma aldeia
indígena Kwakiutl; A caminhada inicial de Blake pelas ruas da cidade observando,
assustado, as atividades urbanas (um caixão recém construído sendo carregado, um
cavalo urinando, uma prostituta fazendo sexo oral em um beco) se combinam ao
olhar desorientado de Blake, próximo da morte, quando passa pela aldeia dos
13
HUTIN, Serge. Los Gnósticos. EUDEBA: Buenos Aires, 1963, p. 14.
58
Kwakiutl; O estranho monólogo do maquinista do trem na seqüência inicial (“olha
para a janela... isso não te lembra quando você estava no barco? E mais tarde
naquela noite você estava deitado olhando para o teto, e a água batendo na sua
cabeça, não era diferente da paisagem e você pensou: ‘por que a paisagem está se
movendo, mas o barco está parado’”) prefigura a seqüência final do filme quando
Blake ruma para o mar num bote para “atravessar o espelho” onde o mar e o céu
encontram-se.
Encontramos também elementos dessa narrativa espelhada na peregrinação
de Blake com Nobody através da floresta, perseguidos pelos pistoleiros. Vemos
praticamente cada paisagem duplicada, primeiro com eles e depois com os
pistoleiros. Esta estrutura narrativa espelhada ou cíclica é reforçada pela marcação
da música minimalista de Neil Young em guitarra elétrica e com feed-back, tocando
o mesmo tema, com pequenas variações, várias e várias vezes.
A narrativa é pontuada insistentemente por fade outs para o preto e blackouts
entre cenas e seqüências, dando um ritmo lento, hipnótico, como uma meditação
espiritual. Essa quebra constante da narrativa com fade outs um aspecto
fragmentado e, ao mesmo tempo, unificador pela repetição que reforça (ao lado da
trilha musical) a idéia de eventos em circularidade, tal qual um mantra.
em Vidas em Jogo a aparente linearidade narrativa do gênero thriller, ao
qual o filme parece se inserir é, aos poucos, diluída pelo tempo psicológico
predominante que faz o espectador ficar em dúvida se a sucessão dos fatos são
reais ou projeções do estado psicológico dos personagens. Os fatos se sucedem
numa cronologia linear, porém, os estados psicológicos do protagonista Nicholas
põem em dúvida o senso de realidade das situações.
Por exemplo, nos créditos iniciais temos imagens como fossem de uma
melancólica montagem de filmes caseiros acompanhada por uma pungente música
instrumental de piano. Uma sucessão de imagens da abastada infância de Nicholas
e do seu irmão Conrad, sempre diante do pai apático, desinteressado e desatento
com um cigarro no canto da boca. Esse conjunto de imagens sugere que Nicholas é
ríspido, frio e solitário devido à indiferença paterna e posterior suicídio cometido no
59
mesmo casarão onde mora. Fragmentos dessas filmagens caseiras surgem como
flashs em várias seqüências da narrativa sugerindo a relação direta entre os fatos
atuais e os eventos traumáticos do passado.
Nas cenas onde Nicholas está mergulhando na paranóia (por desconfiar que
qualquer coisa ou qualquer um possa estar fazendo parte do Jogo), o som ambiente
torna-se um amálgama de vozes distorcidas e ecos, reforçando que o que vemos é
a percepção da realidade pelo ponto de vista psicológico do personagem. Ou, ainda,
a seqüência onde Nicholas tenta retirar uma chave da boca de um palhaço de
madeira (que havia encontrado diante da porta do casarão na seqüência anterior)
enquanto assiste na TV um telejornal de economia, é mais um exemplo do tempo
psicológico que confunde o espectador. A transmissão é interferida pelo Jogo da
CRS e o âncora do telejornal começa a falar com Nicholas sobre as regras do Jogo
que se inicia. A seqüência chega ao inverossímil: como uma empresa capaz de tal
proeza tecnológica, é capaz de cometer erros primários ao longo da estória como,
por exemplo, esquecer uma etiqueta de preço em um lustre (o que acabou
denunciando a falsidade do interior de uma casa armada cenograficamente para
enganar o protagonista)? Ou seja, Nicholas realmente conversa com a transmissão
de TV ou tudo não passa de fruto do delírio originado por uma condição paranóica?
Desarticulações Narrativas
Filmes como Clube da Luta se utilizam de recursos como a intertextualidade,
metalinguagem e ironia para desestabilizar a narrativa clássica. Por um lado, estes
discursos chamam a atenção do espectador para a artificialidade dos recursos
formais da narrativa (no final, tudo no cinema é ilusão, linguagem, construções
arbitrárias) e, ao mesmo tempo, para o engano das percepções do próprio
protagonista: a realidade também é uma ilusão.
O filme Clube da Luta começa com uma narrativa off de Jack (Edward Norton)
onde a estória é contada pelo seu ponto de vista. Através da credibilidade que o
narrador tem na narrativa clássica (acreditamos que ele tenha a visão do todo,
diferente do espectador que está apenas começado a tomar conhecimento da
60
estória) somos levados a acreditar que ele e Tyler Durden (Brad Pitt) não são a
mesma pessoa. Supomos que o narrador tenha um conhecimento do todo e que
introduzirá o espectador, didaticamente, à seqüência de encadeamentos dos fatos.
Mas, ao longo do filme, a narrativa oferece evidências descontextualizadas de que
Durden e Jack são a mesma pessoa. Temos uma descontinuidade espaço-temporal
que leva à fragmentação da narrativa. Esta fragmentação vai expor a própria
condição do narrador: no momento em que ele confronta-se com Tyler próximo do
final, para surpresa do espectador e do próprio narrador, descobrimos que, na
verdade, os dois personagens são uma pessoa. Isso é, ao longo da narrativa,
acompanhamos as impressões de um narrador que tem a sua visão limitada por
uma divisão esquizofrênica da personalidade.
Recursos de intertextualidade como na seqüência onde o narrador explica
sua devoção ao “consumismo instintivo caseiro”. Jack é mostrado andando pelo seu
apartamento que, através do recurso de fusão de imagens, transforma-se num
catálogo de venda de produtos. O personagem percorre seu apartamento que, ao
mesmo tempo, transforma-se no catálogo dos próprios produtos que o decoram
(figura 1).
Figura 1
Muitas vezes o filme utiliza-se do recurso da meta-narrativa para quebrar a
ilusão de realidade. Em um deles, no início do filme, Jack vira-se para a câmera e
pede licença para interromper o fluxo narrativo e explicar quem era o personagem
Tyler Durden. Didaticamente, explica o processo de projeção de um filme em uma
sala de cinema e que Tyler era um projecionista que inseria frames pornográficos
61
durante a troca dos rolos. Temos um triplo exercício de metalinguagem. Primeiro, ao
explicar ao espectador o processo de projeção que está ocorrendo no exato instante
em que o filme na tela. Segundo, ao explicar o processo de inserção dos frames
pornográficos subliminares em filmes familiares e, terceiro, ao surgir frames
subliminares (pornográficos e das imagens de Tyler) em vários momentos do filme a
que assistimos (figuras 2 a 4).
Figura 2
Figura 3
Figura 4
Em muitos momentos a narrativa é interrompida por explicações, reforços ou
diagnósticos parciais de uma situação. Tanto o personagem de Jack como o de
Tyler param diversas vezes e olham para a mera produzindo a desarticulação
espaço-temporal como quando, em tom de desabafo, com a imagem borrada e
tremendo ao ponto de percebermos os furos laterais da película, Tyler declara: “você
não é seu emprego. Você não é o dinheiro que tem no banco. Você não é o carro
62
que dirige. Você não é o conteúdo de sua carteira. Você não é as calças que você
veste.” Parece que o subtexto é: nada que o espectador vê é real. Inclusive o filme.
Múltiplos Universos
Um dos pontos mais complexos da narrativa dos filmes gnósticos é a
representação e a articulação dos múltiplos níveis de realidade ou dos universos.
Tentam apresentar, de uma forma plausível, o multifacetamento do que o
protagonista entende ser a realidade. Aqui, a narrativa lança mão de recursos como
cor, fotografia e a transição dos personagens pelos diversos universos para indiciar
aos espectadores as mudanças de nível de realidade.
Um exemplo dessa narrativa complexa é o filme O Décimo Terceiro Andar
(The Thirteenth Floor, 1999) por encadear três níveis de representações (o filme é
baseado no livro de Daniel Galouye Simulacron 3). Esses níveis entram em contato
por meio de uma complexa trama de personagens que são nativos ao nível,
visitantes daquele nível e personagens que transcendem o nível.
Analisando mais detidamente este exemplo, podemos dividir a narrativa em
“Simulacro Um”, o futuro aparente de Los Angeles de 2.024; “Simulacro Dois”, o
aparente presente de Los Angeles de 1998; e “Simulacro Três”, o aparente passado
de Los Angeles e Pasadena em 1937.
O Simulacro Dois é o mundo aparentemente do presente ambientado em Los
Angeles. As cores que identificam este nível começam com azul, verde e vermelho
para evoluírem para amarelo, preto e branco. As cenas dos interiores são em grande
parte muito escuras, cinza e azul, em ambientes sombrios e esfumaçados.
diversas pistas que identificam a irrealidade desse nível de representação como os
vazios de memória do protagonista Douglas Hall. Outra evidência é quando Douglas
Hall vai ao “fim do mundo” ou ao limite da simulação daquele nível. Dirige seu
carro passando por todas as barreiras e sinais de trânsito impedido ou de estrada
fechada a encontrar os limites da representação, frames e estruturas não
concluídas ou renderizadas (figuras 5 e 6).
63
Figura 5
Figura 6
Outra pista da irrealidade deste nível é o apartamento Douglas Hall,
semelhante ao de Deckard, personagem do filme Blade Runner - o caçador de
Andróides, filme clássico de ficção científica dos anos 80. A referência é proposital
quanto à irrealidade do próprio protagonista do filme: assim como em Blade Runner
(onde paira a dúvida sobre Deckard se ele é humano ou replicante), também no
Décimo Terceiro Andar, na medida em que a narrativa avança, desconfiamos da
natureza real do personagem Douglas Hall.
Temos também os jà vus de Douglas Hall com a suposta filha do Sr. Fuller.
Ele tem a constante sensação de tê-la conhecido em outro lugar. A certa altura, a
Srta. Fuller responde: “talvez em outra vida”. Uma resposta que se constitui em mais
uma pista sobre algo errado com aquele nível de representação.
O Simulacro Três e o nível ambientado na Los Angeles e Pasadena de 1937.
As cores desse nível estão saturadas em tonalidade pia, o que ajuda a entender
que as primeiras seqüências que abrem o filme estão situadas neste nível de
representação. A tonalidade sépia tem um motivo ambíguo ou irônico: de um lado
decorre da falta ainda de ajustes na cor e textura como informa Douglas Hall a
Whitney após retornar ao Simulacro Dois. “Mas as unidades não percebem”. Por
outro lado, um dos motivos que fizeram Hannon Fuller simular uma Los Angeles de
1937 é retornar às reminiscências da juventude. Sugere uma imagerie midiática a
partir das películas cinematográficas em sépia dessa época (figura 7).
64
Figura 7
Assim como no Simulacro Dois, sucedem-se vazios de memórias dos
personagens nativos Fergusson e Grierson e déjà vus de Grieson ao ser conduzido
aos locais em que ele freqüentava possuído pelo seu usuário Hannon Fuller. Estas
pistas do Simulacro Três levantam ao espectador suspeitas de que, igualmente, o
Simulacro Dois possa ser mais um mundo simulado.
o Simulacro Um é, aparentemente, a Realidade de onde tudo se originou,
isto é, de onde começaram os sucessivos planos de simulação apresentados no
filme. Neste nível as cores mudam: cores naturais tingidas de rosa, laranja e
tonalidades de pêssego. É a Realidade aparente, como um autêntico happy end
(casa em frente a uma praia, grupos de gaivotas voando, um cachorro brincando na
areia, um lindo r do Sol). Mas este nível, apresentado na última seqüência do
filme, tem um repentino final onde a imagem encolhe-se até transformar-se numa
linha, reduzindo-se a um ponto de luz de um monitor de TV (figuras 8 a 11). Uma
pista da irrealidade, inclusive, do Simulacro Um: seque alguém puxou o fio da
tomada? Este ambíguo e irônico final sugere que o próprio Simulacro Um é,
também, uma simulação como os demais níveis.
65
Figura 8
Figura 9
Figura 10
Figura 11
Mas por que todos os mundos simulados são da cidade de Los Angeles em
diferentes épocas (1937, 1998 e 2024)? A narrativa faz uma simbólica referência a
um dos princípios do Gnosticismo Hermético de Hermes Trimegisto
14
: “O que está
em cima é como está embaixo, e o que está em baixo é como está em cima”
15
. É o
princípio da Correspondência aplicado tanto na Astronomia na antiguidade como na
Alquimia. Na verdade, um princípio hermético influenciado pela metafísica platônica
(para Platão, o mundo percebido pelos sentidos é uma reprodução distorcida das
formas puras existentes no mundo das Idéias). É marcante a evolução das cores e
texturas desde o Simulacro Um ao Três. Na primeira Los Angeles a tonalidade sépia
14
Hermes Trimesgisto, “sábio três vezes”, foi quem primeiro transmitiu o conhecimento divino e
celeste por escrito: Filosofia, Química e Cabala. Alguns afirmam que ele teria sido faraó egípcio.
Outros que ele teria escrito seus ensinamentos em hebraico, o que faz com que se suponha que
fosse hebreu. Viveu durante a época de Moisés, e sendo faraó, foi iniciado nos mistérios do
sacerdócio, preparado para exercer as funções de rei. Também Hermes é associado à Thot, deus
egípcio que era representado por um íbis. Thot simbolizava a escrita, o dom da fala e tinha também o
dom de vivificar, pois teria curado o olho do deus Horus.
15
TRÊS INICIADOS, O Caibalion. São Paulo, Editora Pensamento: 2006, p. 28.
66
denota uma insuficiência do mundo simulado. No Simulacro Dois as cores estão
mais aprimoradas, mas ainda tudo é escuro e os contornos imprecisos (como em um
filme noir). Chegando ao Simulacro Um, as cores são suaves, naturais. É a idéia
platônica do mundo perceptivo como uma pálida imagem das formas puras
presentes em um plano superior do Ser. Mas, além disso, essa pluralidade de
mundos simulados e concêntricos (“milhares”, tal como afirma o personagem Jane
Fuller) aponta para essa arquitetura cosmológica hermética do Princípio da
Correspondência. Esse princípio está também presente na cosmologia proposta por
Basilides, sobre um universo composto por 365 mundos, onde um plano desconhece
a existência do outro
16
.
Ainda dentro do Princípio da Correspondência do Gnosticismo Hermético, é
curiosa a coincidência entre os três níveis de simulação do filme e os “Três Planos
de Correspondência do universo descritos pela Filosofia Hermética: o Plano Físico,
Mental e Espiritual.
As três divisões não são senão graus ascendentes da grande escada
da Vida, o ponto mais baixo da qual é a Matéria não diferenciada, e o
ponto mais elevado o Espírito. E, aliás, os diversos Planos penetram
uns nos outros, assim esta não sólida e exata divisão pode ser colocada
entre os mais elevados fenômenos do Plano Físico e o mais inferior do
Plano Mental; ou entre os mais elevados do mental e os mais baixos do
Físico.
17
A narrativa sugere que os níveis de simulação são planos em graus
ascendentes, representado pelo aprimoramento das cores e texturas. Podemos
associar cada um desses níveis aos seguintes planos de correspondência:
Simulacro Três (Los Angeles de 1937) – Plano Físico. Aqui tudo é mais
grosseiro. A tonalidade sépia, as texturas. É que Hannon Fuller vai para fazer
sexo com mulheres mais jovens, dançarinas de um cabaré em um luxuoso hotel.
Nesse nível ocorrem as seqüências mais violentas do filme. É um mundo analógico
e sensível. Quando Ashton transcende para o Simulacro Dois, caminha pelo
16
“O sistema basilidiano concebe Criação, Poderes e Princípios sem fim, os 365 céus governados
por Abrasax, de onde originam-se os 365 dias do ano.” BUNSEN, Christian Carl J. Hippolytus and His
Age or the Beginnings and Prospects of Christianit (1852). Kessinger Publishing Rares Reprints,
2009, p. 115.
17
TRÊS INICIADOS, Op. Cit., p. 29.
67
laboratório entre os vários mainframes que compõem o hardware do sistema de
simulação. “Foi aqui que eu nasci!”, exclama maravilhado, numa espécie de êxtase
espiritual. Aproxima-se com o rosto da superfície dos mainframes e tenta sentir,
cheirar a presença do seu mundo contida ali. Não consegue compreender a
natureza da arquitetura digital dos mundos.
Simulacro Dois (Los Angeles de 1998) – Plano Mental. Aqui as cores e
texturas mais aprimoradas, porém, com uma pesada ambientação noir. Para o
ocultismo, o “o plano de pensamentos viventes”. É o único mundo que conseguiu
criar uma simulação dentro da simulação. É o mundo Digital. O pensamento
científico é colocado em ação e transforma-se em “forma-pensamento”: todo o
sistema de simulação que recria a Los Angeles do passado a partir das
reminiscências da infância de Hannon Fuller. A tecnologia é sofisticada, mas ainda
necessita de pesadas interfaces como monitores e scanners, ao contrário do
Simulacro Três onde a interface com o sistema de simulação resume-se a uma
espécie de headphone.
Simulacro Três (Los Angeles de 2024) Plano Espiritual. Cores suaves e
naturais e texturas muito mais aprimoradas. Parece ser o único Plano que tem
consciência sobre os demais. Lá Douglas Hall encontra seu amor e a atmosfera é de
leveza.
Outro exemplo dessa correspondência simbólica da narrativa ocorre no filme
A Passagem (Stay, 2005). Aparentemente narra-se a luta de um psiquiatra para
evitar que seu paciente Henry cometa um suicídio. A narrativa inicia-se num espaço
cênico-temporal aparentemente cronológico e linear. Com o passar do tempo
começam a surgir na narrativa estranhas descontinuidades nas seqüências de
planos, identidades se fundem ou dividem, pessoas se movem de um lugar ao outro
numa técnica que funde as tomadas, costurando todas as cenas em uma enorme
bricolagem. É como se não houvesse intervalo entre as seqüências e como tudo
fosse um sonho através da lógica de condensações e deslocamentos. Há momentos
em que uma escada em espiral desce infinitamente em uma seqüência incrível,
angustiante, e mesmo assim leva ao início em apenas um lance. O tempo se parte e
transita constantemente, assim como lugares. Cada vez mais a narrativa pistas
68
da instabilidade das identidades e da própria realidade ao encontro final entre o
psiquiatra e Henry, na ponte em que tentará o suicídio. Tudo se revela ter como
ilusões de um homem entre a vida e a morte, agonizando após um acidente
automobilístico naquela mesma ponte, dessa vez no mundo físico. Temendo morrer
e tomado pelo sentimento de culpa por achar ser o responsável pelo acidente que
matou seus pais e namorada, insiste em manter-se naquela realidade transitória.
A narrativa articula duas estórias, dois plots. De um lado, o acidente que
ocorre no Plano Físico e, do outro, a narrativa do psiquiatra que tenta salvar o seu
paciente no Plano Mental. Todos os personagens e cenas, na verdade, eram
formas-pensamento dentro do plano dos “pensamentos viventes” (o “Plano Mental”)
materializadas e postas em ação a partir da consciência atormentada de Henry.
A Meta-narrativa das Cores
Como vimos no filme O Décimo terceiro Andar, as cores têm uma função
indiciadora e metalingüística, isto é, ao mesmo tempo caracteriza para o espectador
a mudança dos níveis de simulação e faz referência cinematográfica dos antigos
filmes em coloração sépia. A Los Angeles de 1937 baseia-se nas memórias
cinematográficas do seu criador, adotando uma coloração correspondente aos filmes
dessa época. Dessa forma, a narrativa dos filmes gnósticos cria um subtexto: a
natureza artificial da realidade, das memórias da realidade e da própria linguagem
cinematográfica.
Um filme que apresenta essa dupla utilização narrativa das cores é A Vida em
Preto e Branco. O filme conta a estória do adolescente David (Tobey Maguire) que
tem um obsessivo interesse pela série de TV dos anos 50 Pleasantville. Vivendo
com sua mãe divorciada (Jane Kaczmarek) tem algumas brigas com sua irmã
gêmea Jennifer (Reese Whitherspoon). Numa delas, ela quer assistir a MTV com
seu namorado, justamente quando está para começar a Maratona Pleasantville. Eles
brigam pelo controle remoto até quebrá-lo. Um estranho técnico de TV (Don Knotts)
surge com um novo controle remoto, um poderoso equipamento de alta tecnologia
69
que os teletransportam para dentro da série Pleasantville, como filhos do vendedor
George Parker (William H. Macy) e sua esposa Betty (Joan Allen). Como "Bud" e
"Mary Sue," eles passam a viver numa residência em preto-e-branco em uma cidade
onde não existe sexo e a temperatura está sempre nos 22 graus. Lá a vida é sempre
prazerosa, os livros o têm palavras, os banheiros não têm vasos sanitários,
marido e mulher dormem em camas separadas, o time de basquete da escola
sempre ganha e ninguém jamais questiona nada. Mas como personagens
provenientes do mundo dos anos 90, quebram o equilíbrio daquele universo que,
aos poucos, vai assumindo um colorido tecnicolor. Desejos reprimidos vêm à
superfície e buracos vão aparecendo no estilo de vida dos anos 50. Os habitantes
de Plesantville vão mudando suas vidas por meio de estranhas e fascinantes
formas.
O contraste entre as cores e o preto-e-branco é ponto central da narrativa do
filme, marcando não apenas a diferença entre o mundo real e ficcional como,
inclusive, fazendo sutis incursões metalingüísticas na linguagem narrativa clássica.
Em A Vida em Preto e Branco temos um filme dentro de um filme, ou seja, a
série dos anos 50 Pleasantville cultuada por David. À medida que os personagens
da série vão descobrindo as emoções e o inesperado dentro da previsível rotina da
cidade televisiva, as cores vão surgindo, em pigmentação tecnicolor. Isso uma
sutil diferença entre a qualidade das cores que surgem no mundo ficcional televisivo
e as cores do mundo real dos anos 90.
As seqüências em preto-e-branco narram um mundo igualmente esquemático
que divide tudo entre certo e errado, prazeroso e desprazeroso, e assim por diante.
A chegada de David e Jennifer a esse mundo vai criar comportamentos
disfuncionais aos padrões esquemáticos de Pleasantville. O surgimento das cores
vai ocorrer a partir de dois tipos de desvios. Primeiro, a descoberta da sexualidade e
das emoções que Jennifer vai provocar. E, segundo, a quebra da rotina ou da ordem
mecânica dos eventos provocada por David.
O surgimento das cores pontua uma meta-narrativa que o filme cria: uma
desconstrução ou uma crítica à narrativa clássica de Hollywood. Por exemplo, os
personagens esquemáticos são desconstruídos diante de acontecimentos
70
inesperados. Eles simplesmente não sabem como se comportar. Por exemplo,
sempre as bolas lançadas pelo time de basquete de Pleasantville caem na cesta.
Até o momento que David uma resposta inadequada ao capitão do time que
queria convidar sua irmã Mary Sue para sair. David recorda desse diálogo de um
episódio da série, mas, temeroso do comportamento da irmã ao sair com um
personagem ficcional, aconselha não ser uma boa iia. Transtornado e catatônico,
o capitão do time lança a bola com raiva e ela não cai na cesta. Evento novo e
inexplicável. O treino ra e todos olham, perplexos, para a bola e afastam-se dela
como se pudessem ser contagiados por algum tipo de doença. A fala do
personagem (“não sei o que faria se ela não saísse comigo”) é ambígua e irônica:
não se refere apenas ao vazio emocional (o coração partido do jovem apaixonado
diante da rejeição), mas, também, a perplexidade meta-narrativa do personagem
que não sabe como dar continuidade ao plot.
Show de Truman apresenta uma sutil utilização das cores. O céu da cidade
de Seaheaven sempre está azul, as cores são saturadas, hiperreais. As texturas e
cores de Seaheaven são “cenográficas”, isto é, o filme exagera nas cores e texturas
para ficar evidente que a construção da cidade não foi baseada nas cidades reais do
lado de fora do estúdio, mas cópia da cópia de filmes publicitários.
Narrativas em abismo
Essa Seaheaven cenográfica apresenta uma curiosa característica desses
filmes gnósticos: como representar uma cidade cenográfica dentro de uma
linguagem cenográfica? Explicando melhor, como caracterizar a natureza fake de
Seaheaven se o cinema, em si, enquanto dispositivo e cenografia, já é ilusão?
A premissa do filme Show de Truman conduz a narrativa a uma regressão
onde temos planos dentro de planos: vemos atores reais que performam atores
fictícios que trabalham no ficcional Truman Show. Temos, em conseqüência, atores
fictícios que performam não personas reais, mas personagens da imagerie
publicitária (Seaheaven não se baseia no dia-a-dia das cidades reais, mas no
cotidiano do imaginário dos filmes publicitários). Portanto, atores ficcionais que
71
performam os mundos simulados da publicidade. Nas seqüências em que vemos a
inserção de merchandising no reality show temos uma situação paradoxal: se temos
atores reais representando atores ficcionais que performam mundos publicitários
simulados, o momento do merchandising deve ser bem evidente dentro de uma
narrativa que insere ficções dentro de ficções: o merchandising é exagerado para
ficar bem evidente ao espectador e evitar que se perca nessas ficções em abismo.
Temos nas seqüências de merchandising, portanto, uma espécie de meta-ficção ou
uma representação irônica ou saturada da publicidade.
Podemos perceber esta narrativa em abismo, também, no filme Vidas em
Jogo: vemos atores reais que representam serem atores (os empregados da CRS
que performam o Jogo para Nicholas) que simulam serem personagens dentro de
uma realidade simulada. Isto é, temos uma representação inicial (vemos atores que
atuam em um filme) que se insere numa simulação (atores que simulam serem
pessoais reais no mundo ficcional do filme) que, na verdade, se inserem numa
simulação maior (a criação de uma supra-realidade sem controle para Nicholas).
O ápice dessa narrativa em abismo pode ser encontrado no filme Quero Ser
John Malkovich (Being John Malkovich, 1999). Vemos um filme cujo ator interpreta a
si mesmo como personagem que cita elementos autobiográficos (referências a sua
trajetória como ator, companhias teatrais em que atuou, fotos da sua juventude etc.).
A narrativa chega ao paroxismo de ironizar a própria condição esquizofrênica do
ator: no final, não apenas um indivíduo, mas um grupo de pessoas migra
definitivamente para a cabeça de John Malkovich. E qual o destino final da
identidade dele, hospedeiro de dezenas de pessoas ao longo da narrativa? Não é
revelado. Parece que o ator não possui mesmo identidade, é um esquizofrênico
ocupacional, decorrência da própria natureza do seu trabalho. O limite dessa
metalinguagem chega ao momento em que ele próprio atravessa o portal e entra na
sua própria cabeça. O que encontra é “o que ninguém deve jamais ver”: o
narcisismo. Todos na seqüência do restaurante (não importando o sexo) são como
cópias dele mesmo, repetindo compulsivamente seu nome (figura 12 e 13).
Narcisismo e esquizofrenia, a condição do ator. Este recurso metalingüístico serve,
mais uma vez, como alegoria dentro de um tema abstrato: a discussão da
identidade.
72
Figura 12
Figura 13
Na medida em que os filmes gnósticos querem explorar o tema da ilusão da
realidade abordando a mídia ou jogos midiáticos como ferramentas que colaboram
para a criação dessa ilusão, as narrativas propiciam o surgimento desse paradoxo
de filmes dentro de filmes, e a narrativa se multifacetando em vários níveis.
Elementos Irônicos
Esta narrativa em abismo conduz à discussão dos elementos irônicos
presentes nos filmes gnósticos. Como vimos anteriormente, a ironia narrativa é auto-
reflexiva, isto é, aponta caminhos para que o espectador questione não apenas a
ilusão da realidade (tema e simbologia centrais nos filmes gnósticos), mas, também,
as limitações ou o artificialismo da própria linguagem que tenta denunciar a ilusão da
realidade.
O primeiro elemento irônico recorrente é a percepção da realidade ou como
resultante de uma projeção psíquica do personagem ou como falsa percepção a
partir das limitações existenciais, psicológicas ou de pontos de vista do protagonista.
Em Vanilla Sky, praticamente grande parte da trama a que assistimos é do
ponto de vista do protagonista David em estado criogênico. O céu em tonalidade
baunilha, os momentos amorosos com Sofia etc., foram compostos a partir das
memórias de David (na verdade “sonhos lúcidos” criados por uma empresa de
73
criogenia), memórias que, por sua vez, foram construídas a partir de um repertório
iconográfico midiático da sua juventude (capas de álbuns, filmes clássicos, vídeo
clipes etc.).
Ou, ainda, no filme Amnésia onde a narrativa a que assistimos é limitada pela
condição do protagonista sofrer de perda da memória de curto prazo.
Um segundo elemento irônico recorrente é a ambigüidade do desfecho das
narrativas, com diferentes interpretações que se anulam. Ao mesmo tempo os
desfechos sugerem ou um típico happy end hollywoodiano ou, ao contrário, um
desfecho por vezes niilista ou pessimista. Do universo de dezessete filmes
analisados, sete apresentaram esse tipo de final irônico (Brilho Eterno de Uma
Mente Sem Lembranças, O Pagamento, Cidade das Sombras, Identidade, Donnie
Darko, Show de Truman, O Décimo Terceiro Andar)
Vamos nos deter mais detalhadamente em dois exemplos: os filmes
O Pagamento e Cidade das Sombras.
Em O Pagamento Michael Jennings (Ben Affleck) é um especialista em
engenharia reversa: analisa o produto da empresa concorrente e desenha uma nova
versão que excede as características originais. Ao finalizar esse trabalho, suas
memórias correspondentes ao período de tempo em que trabalhou são apagadas
para proteger a propriedade intelectual de seus clientes. James Hethrick (Aaron
Eckhart), CEO da empresa Allcom, oferece um misterioso trabalho que envolve um
projeto ultra-secreto da área de ótica, com uma duração de no mínimo três anos. Em
troca do apagamento das memórias desse período, Hethrick oferece participação
nas ações da empresa. Ele completa o trabalho e descobre que desistiu dos milhões
de lares em ações em troca de um enigmático envelope contendo uma série 20
diferentes objetos, aparentemente sem nenhum nexo. Por que desistiu de uma
fortuna em ações por um envelope? Perplexo, Jennings se vê numa situação onde a
Allcom tenta matá-lo, ao mesmo tempo em que agentes do FBI tentam capturá-lo
por suspeita de um crime que não se lembra de ter cometido. Jennings é
materialista e consumista, capaz de trocar suas memórias por polpudos
pagamentos. Mas, surpreso, descobre que renunciara ao grande pagamento da
Allcom pelo amor a Rachel (Uma Turman) e que o envelope continha pistas
74
enviadas para si mesmo para recuperar as memórias apagadas, voltar ao seu amor
e denunciar a perigosa e ilegal pesquisa na qual a Allcom está envolvida.
A narrativa foca no processo de transformação interior de Jennings: de um
individuo materialista a alguém que não apenas busca recuperar a memória, mas a
própria identidade, voltando-se a valores mais elevados e espirituais. Mas a
seqüência final é ironicamente ambígua, pois sugere duas interpretações
excludentes.
Na seqüência final temos os heróis protagonistas Jennings, Shorty e Rachel
em uma estufa. Jennings carrega sacos nas costas. Plano em close nos sacos que
identificamos ser de fertilizantes orgânicos. Tudo cercado de plantas, construindo
um clima de serenidade e pureza após todas as perseguições e violência. Temos
Jennings transformado, longe da vida til e materialista e, agora, voltado à pureza e
a natureza. Porém, vem a última revelação, a vigésima pista do envelope é revelada.
Jennings se lembra de uma frase atrás do bilhete de pastelzinho da sorte chinês, um
dos objetos do envelope: “se olhar apenas onde o pode ir, perderá as riquezas
abaixo”. Ele olha para uma gaiola com um casal de pássaros, comprada junto com
Rachel. Associa a frase à condição de um pássaro em uma gaiola. E puxa o piso da
gaiola e encontra um bilhete de loteria premiado no valor de 90 milhões de dólares
(exatamente o valor do pagamento da Allcom renunciado, aparentemente em nome
do amor por Rachel). A narrativa indicava a ruptura do protagonista com uma vida
fútil e materialista. Porém, ao contrário, Jennings faz o seu próprio pagamento e, ao
mesmo tempo, nega ser sócio na floricultura de Rachel.
Rachel: “Estou procurando um sócio para minha firma”.
Jennings: “Para quê?”.
Rachel: “Para salvar o mundo.
Jennings: “Acho que não sirvo”.
Um final ambíguo: o mundo foi salvo, Jennings conseguiu resguardar o seu
amor por Rachel do apagamento das memórias de três anos, mas, ao mesmo
tempo, as indicações da gnose alcançada não o transformaram. Não houve
renuncia, mas, ao final, a efetivação do pagamento, por outros caminhos e a
continuidade dos laços com o mundo materialista.
75
Na ficção-científica Cidade das Sombras novamente temos um aparente
happy end hollywoodiano da vitória do bem sobre o mal: Após o confronto final com
os Estranhos, John Murdoch vence e destrói as máquinas que fabricavam toda a
ilusão cidade-laboratório que aprisionava os humanos. Dr. Schereber (que ajudava
os Estranhos, mas, secretamente, conspirava contra eles) olha entusiasmado para o
Salvador e trava o diálogo final:
“Schereber: Eu sabia que você conseguiria. Tem o poder deles agora.
Controla a máquina deles.
John: onde está Emma?
Schereber: Ela não é mais Emma. Foi reinjetada.
John: Devolva as lembranças dela.
Schereber: Não posso. A unidade onde armazenavam as lembranças
foi destruída. O que fará agora? (Fala com o olhar entusiasmado à
espera de mudanças revolucionárias).
John: Vou consertar tudo. Disse que eu tinha o poder não disse?
(corta para o close no rosto decepcionado de Schereber).
John: posso fazer as máquinas realizar o que eu quiser... fazer desse
mundo o que quiser... desde que me concentre o bastante.
(John concentra-se nas máquinas, fazendo o relógio andar novamente
para frente)
Schereber: para onde você vai?
John: Shell Beach
(corta para o rosto novamente decepcionado de Schereber)”
Apesar de todo o processo paranóico que o conduziu à busca e ao encontro
da verdade (a retirada do véu da ilusão e a descoberta de que toda a realidade era
uma construção dos Demiurgos/Estranhos), John prefere restabelecer a ilusão. Se
Shell Beach (uma lembrança artificial de uma infância idílica e do nascimento de
uma história de amor com Emma) era apenas uma ilusão, John torna-a real com seu
poder de “sintonização”: constrói um mar envolta da cidade e produz uma praia
artificial, a partir das imagens dos falsos cartões-postais. Decepcionado, Schereber
o messias ou o salvador preferindo a ilusão à transcendência. Um final feliz
irônico.
76
O paradoxo do futuro no filme gnóstico
Voltamos agora ao tema que abriu esse capítulo: tempo e narrativa. Se para o
Gnosticismo o tempo é ilusão, fonte de engano e alienação, como o futuro pode ser
representado nesse grupo de filmes? Ou seja, se o encadeamento linear dos
eventos, como uma seta que aponta do passado para o futuro, é uma ilusão que
aprisiona o espírito, de que maneira ficções-científicas como O Pagamento e Matrix
podem representar os episódios das previsões e profecias? Resposta: através de
paradoxais previsões e profecias “sem futuros”.
Em O Pagamento, Jennings descobre que as pesquisas que a Allcom estava
envolvida tinham a ver com uma quina que faria previsões do futuro a partir de
uma lente curva que simularia a própria curvatura do Universo. Seu inventor foi
assassinado a mando da Allcom e ele, Jennings, como um engenheiro reverso, foi
encarregado de recriar a máquina a partir de um protótipo. A certa altura da
narrativa, perplexo, Jennings descobre que a máquina que construíra, na verdade,
era uma irônica forma de prever o futuro. Através de um mecanismo de profecia
auto-realizadora o futuro previsto não acontecia porque estava lá, mas por que a sua
divulgação fazia o futuro previsto acontecer de fato. O futuro como profecia auto-
realizadora é a própria configuração de um evento circular, tautológico: o futuro não
é previsto como um fato objetivo que está em algum lugar à frente no tempo, mas
porque a sua divulgação evoca um novo comportamento que acaba confirmando a
“profecia”, na verdade, uma falsa premissa que se torna verdade.
Um futuro tautológico, recursivo, uma circularidade viciosa entre crença e
comportamento.
Jennings: “Meu Deus, é o futuro. A máquina prevê a guerra, entramos
em guerra para evitá-la. Prevê uma praga, juntamos todos os doentes e
acabamos criando uma praga. Todo o futuro que ela prevê, fazemos
acontecer. Perdemos todo o controle sobre nossas vidas. Ver o futuro
nos destruirá. Se mostrar o futuro a alguém, ele não terá futuro.
É a ironia final: o futuro dobra-se sobre si mesmo, criando um efeito recursivo.
Vamos falar em recursão quando se trata da própria energia que reentra
do efeito na causa ou quando o output alimenta o input em retorno (...).
77
Em suma, o fato de que alguns anúncios chegam, com efeito, a realizar-
se sublinha uma vez mais o quanto a palavra se encontra tomada
indicialmente na camada dos comportamentos, ações e reações cuja
seqüência nunca é linear, mas emaranhada, recursiva ou complexa
18
Também é curioso o papel de profeta do Oráculo no filme Matrix. Neo
surpreende-se com a aparência do Oráculo: uma senhora com aspecto de típica
dona de casa, em uma prosaica cozinha preparando biscoitos no forno. Parece que
o Oráculo tem consciência do caráter auto-realizador das profecias, isto é, o fato de
que o anúncio de uma profecia pode fazer o evento ocorrer ou não, alterando a
espontaneidade dos acontecimentos. Isso fica claro no diálogo em torno do vaso
que se quebra:
Oráculo: E não se preocupe com o vaso.
Neo: Que vaso?
(Neo vira-se e esbarra no vaso que cai e quebra-se no chão)
Oráculo: Esse vaso.
Neo: Como você sabia?
Oráculo: O que vai mesmo fazer seus miolos queimarem é: você teria
quebrado se eu não tivesse dito nada?
Paradoxo quântico: a visualização do objeto altera a própria constituição do
objeto. Ou seja, a queda do vaso o decorreu de uma inexorabilidade do futuro,
mas por uma profecia que acabou se auto-realizando como verdade. Se a Matrix é
uma gigantesca máquina de calcular similar a imaginada pelo matemático francês do
século XVIII Laplace (que vislumbrava a possibilidade do controle e previsibilidade
total do universo a partir do momento que todas as coordenadas e variáveis fossem
conhecidas por um “Computador Laplaciano”), o Oráculo insere nos códigos-fonte
desse cosmos um elemento de acaso: a profecia auto-realizadora. O Oráculo
profetiza que Neo terá fazer uma escolha: “Numa mão terá a vida de Morpheus. Na
outra mão terá a sua vida. Um de vocês vai morrer”. Se a profecia auto-realizadora é
a concretização de expectativas, o Oráculo sabe que Neo luta contra a idéia de
destino e fará de tudo para impor o livre-arbítrio. Neo lutará contra o destino e
18
BOUGNOUX, Daniel, Introdução às Ciências da Informação e da Comunicação. Petrópolis: Vozes,
1992, p. 235-240.
78
salvará a ambos numa seqüência que terminará no duelo final com o Agente Smith.
Embora não confirme ser ele, Neo, o Salvador, de forma indireta cria circunstâncias
para que ele se torne como tal. Ou seja, o Oráculo nada fala sobre o futuro, mas
apenas insere na previsibilidade dos códigos da Matrix o elemento do acaso através
da profecia que se auto-realiza.
Além disso, o Oráculo não quis admitir que Neo era o Salvador porque,
curiosamente, as profecias auto-realizadoras parecem não funcionar com anúncios
de natureza positiva ou promissora
19
. Mais um motivo para conseguir, de forma
indireta, que Neo assumisse o papel de O Escolhido na estória. Certamente, se o
Oráculo dissesse para Neo que ele era, de fato, O Escolhido a profecia não se
realizaria.
Concluindo, a partir destes dois exemplos (os únicos filmes que tratam o tema
do futuro dentro do nosso corpus de análise) podemos lançar a hipótese de que os
filmes gnósticos privilegiam muito mais o tema do passado do que do futuro. Na
verdade, o Gnosticismo procura libertar-se do devir e retornar ao estado do princípio
de tudo: a estabilidade e a verdade do Pleroma, do ser eterno, do ser completo. Por
isso, parece que o tema do passado é muito mais confortável do que tratar sobre o
futuro. Muitos filmes com temáticas gnósticas abordam o retorno ao passado como
uma tentativa de alterar o presente, como, por exemplo, o filme O Efeito Borboleta
(The Butterfly Effect, 2004). Dessa maneira, quando o futuro é tratado, somente
pode ser subordinado ao tempo do presente, isto é, o futuro como desdobramento
de expectativas já contidas no tempo presente.
3. Os Personagens
Na maior parte dos filmes gnósticos, em torno do protagonista teremos uma
tríade de personagens que, juntos, vão compor a trama principal das narrativas.
Simbolicamente, dentro da mitologia gnóstica, são o Demiurgo, os Arcontes e
Sophia.
19
Cf. Idem.
79
3.1. O Demiurgo
Dentro do grupo dos filmes analisados, o Demiurgo ora é identificado por um
personagem de poder e arbitrariedade, ora por uma figura alienígena como uma
raça extraterrestre ou, ainda, como uma entidade implícita na estória da qual emerge
valores ou um estilo de vida inautêntico (sociedade de consumo, a Lei da
Reencarnação, uma empresa ou grupos de grandes corporações).
Para a mitologia gnóstica a primeira característica do Demiurgo é a de ele ser
a fonte de um erro cósmico, como o tempo e o devir, por exemplo.
As escrituras gnósticas dizem que o Demiurgo projetou ciclos de tempo
como uma imitação pobre da eternidade atemporal. A ordem, a
grandeza e a legitimidade do cosmos são adulteradas; e mais do que
provável, sob a aparência de ordem imutável e da progressão casual o
cosmos é caótico e casual
20
Em Cidade das Sombras, os Demiurgos são os “Estranhos”, representados
como seres alienígenas “tão antigos quanto o tempo”. Essa descrição dá um
aspecto divino ou de entidade espirituais a esses seres, muito mais do que ETs. A
partir dos seus poderes de “sintonização”, isto é, de através das forças mentais
capazes de materializar formas materiais, criam uma espécie de parque temático
humano, uma cidade-laboratório feita a partir da imagerie midiática da cultura
humana. Mas todo esse cosmos criado para aprisionar os seres humanos parte de
um erro fundamental: tentar captar o eterno a partir do contingente. Diariamente
submetem os humanos a sucessivas trocas de identidades e papéis para encontrar,
no contingente, a essência do humano. A cidade transforma-se numa caótica troca
de cenários e identidades, transformando as pessoas em meros joguetes.
No western Homem Morto, o personagem de John Dickinson é o Demiurgo.
Ele o proprietário de uma metalúrgica de Machine City, poderoso artífice e
mantenedor da cidade. Assim como na mitologia gnóstica onde o Demiurgo é o
criador do cosmos material, Dickinson é dono de uma fábrica pesada de
transformação (metal, fogo, etc.) que dá origem à cidade Machine.
20
HOELLER, Stephan. Op. Cit., p. 205.
80
Na seqüência inicial o foguista da locomotiva, após ouvir o motivo de Blake ir
Machine City e apresentar a carta de garantia de emprego adverte:
Eu não sei ler, mas uma coisa eu garanto... eu jamais confiaria em
palavras escritas num pedaço de papel, principalmente de um Dickinson
da cidade de Machine.
A afirmação é basilidiana, pois, para ele, a linguagem induz ao erro. Como
produto de um cosmos material imperfeito, a racionalidade nada pode revelar. O
foguista que alerta para o perigo é analfabeto, mas sabe do perigo potencial daquela
carta. Daí a necessidade do estado de suspensão, de silêncio e ausência de
pensamentos, que o protagonista buscará ao longo da sua jornada.
Em Quero ser John Malkovich a presença do Demiurgo esta implícita no erro
da Lei da Reencarnação contra a qual luta o grupo do Dr. Lester. O grupo tenta
burlar todas as leis do cosmos material a partir da descoberta dos portais que
conduzem o ego para um “corpo-receptor” sem ser “absorvidopor ele, isto é, sem
cair no esquecimento e na perda da identidade, conseguindo, dessa maneira, a
imortalidade da alma. Tal imortalidade é impossibilitada por um erro fundamental no
cosmos físico: o esquecimento originado pelas sucessivas reencarnações.
Além do erro fundamental na obra do Demiurgo, uma incompletude na
arquitetura cósmica da criação: ele não cria diretamente o mundo, mas somente um
modelo etérico, faltando para essa criação a energia que a anime: o Espírito ou a
Luz:
Baseado no padrão dos reinos que estão nas alturas, começando do
mundo invisível o mundo visível foi inventado. Assim que a
incorruptibilidade olhou para baixo na região das águas, a sua imagem
nas águas apareceu; e as autoridades da escuridão ficaram
apaixonadas por ela. Mas eles não conseguiram prender essa imagem
que surgiu para elas nas águas por causa das suas fraquezas desde
que os seres que possuem somente alma não conseguem prender
aquela que possui um espírito pois são inferiores, enquanto a que
possui espírito vem das alturas
21
21
“A Hipóstase dos Arcontes”, In: ROBINSON, James M., Op. Cit., p. 146.
81
É a segunda característica do Demiurgo: ela está à procura do elemento que
anima o cosmos material, a Luz que está mesclada com a escuridão. Originada nos
reinos das alturas (o Pleroma), esta luz mescla-se na escuridão porque o ser
humano, inconscientemente, a detém. Por isso, o Demiurgo tenta aprisioná-lo para
extrair dele esse elemento que, organizado pelos princípios corrompidos do cosmos
físico, completará a lacuna da sua criação. Podemos citar três filmes que descrevem
simbolicamente este desejo do Demiurgo: Cidade das Sombras, Matrix e O Quarto
Poder (Mad City,1997) .
Em Cidade das Sombras, tal qual como nas mitologias gnósticas narradas por
Mani, o Demiurgo aprisiona os seres humanos no cosmos material para extrair dele
as partículas de luz que descende do Anthropos original, o ancestral de todos os
seres humanos. Anteriormente, Anthropos foi enviado a este mundo para derrotar o
demiurgo, porém ao ser derrotado é mantido como prisioneiro. No filme esta
narrativa mítica é representada na busca dos Estranhos pelo segredo da alma
humana. Toda a cidade constituiu-se num experimento para descobrir, a partir de
sucessivas trocas de papéis e identidades dos seus habitantes, o elemento
duradouro na alma humana: o espírito. Como uma raça em extinção, eles precisam
encontrar uma nova raça cuja essência seja eterna para que possam migrar suas
consciências para esse novo receptor. Seus rostos pálidos, frios, em longos
sobretudos negros sugerindo uma referência imagética com Nosferatus, sugerem
uma raça em decadência pela apatia e depressão, necessitando de uma nova
energia que os anime, algo vital.
Nos filmes gnósticos Demiurgos podem transformar-se em máquinas como no
filme Matrix. Novamente, o Demiurgo aprisiona e escraviza os seres humanos para
roubar algo de que ele necessita. Em Matrix, a energia elétrica produzida pelo corpo
humano para manter em funcionamento as próprias máquinas que dominam o
planeta. Aqui, a estratégia para arrancar a “luz” dos humanos é menos metafísica do
que em Cidade das Sombras: as máquinas criam uma realidade virtual para arrancar
energia dos corpos, muito diferente da experiência metafísica dos Estranhos.
Morpheus: O que é a Matrix? Controle. A Matrix é o mundo dos sonhos
gerado por computadores, construída para manter-nos sob controle e
transformar o ser humano nisso. (mostra uma pilha Duracell)
82
E como a Matrix extrai a energia necessária? Aqui encontramos outro paralelo
com a mitologia gnóstica: o cosmos material produz esquecimento. Distraído com os
problemas e afazeres da existência física o ser humano esquece-se das suas
origens em planos mais elevados. Como podemos observar nessa fala do
personagem Agente Smith, na seqüência do interrogatório de Morpheus:
Já olhou para tudo isso de cima? Maravilhado com sua beleza, sua
genialidade? Bilhões de pessoas, vivendo suas vidas, distraídas. Você
sabia que a primeira Matrix foi criada para ser um mundo humano
perfeito, onde ninguém sofreria, onde todos seriam felizes? Foi um
desastre. Ninguém aceitou o programa. Perdemos safras inteiras.
Alguns acham que não tínhamos a linguagem de programação para
descrever o seu mundo perfeito. Mas eu acho que, os seres humanos
definem a realidade a partir da desgraça e do sofrimento. Então o
mundo perfeito era um sonho do qual o seu cérebro primitivo tentava
acordar.
De um lado, é a forma como o Demiurgo mantém os humanos no sono do
esquecimento: por meio das ilusões do mundo material (seus problemas,
ocupações, afazeres e dilemas). Mas porque os humanos recusaram a primeira
versão da Matrix de um mundo utópico dos sonhos? Logo, as máquinas entenderam
a gica baudrillardiana do próprio livro Simulacros e Simulações, referenciado no
princípio do filme: as simulações dos sonhos e de lugares felizes não se impõem
como principio de realidade, mas apenas são contrafações que justificam a
“realidade” do mundo fora dos parques temáticos como Disneylândia. Ou seja, o
simulacro do imaginário débil e infantilizado dos parques temáticos dos sonhos de
felicidade apenas serve, através da negatividade, para salvaguardar a miragem do
real. O código da Matrix tem um paralelo com a própria descrição baudrillardiana da
binariedade do código da sociedade: a criação da simulação do efeito de realidade a
partir da oposição binária entre ilusão e realidade. Por isso, os humanos tentavam
acordar na primeira versão da Matrix: sentiam falta do efeito de realidade produzido
pelo velho código binário do antigo mundo humano. Necessitavam da dureza da
realidade para ela se opor ao mundo dos sonhos e fantasias.
No filme O Quarto Poder o Demiurgo é o próprio circo midiático em torno do
drama pessoal do protagonista. Sam Baily (John Travolta), desesperado por ter sido
83
demitido do seu trabalho como segurança, retorna ao local do seu emprego (Museu
de História Natural) para tentar entrar em um acordo com sua patroa (a curadora do
museu Mrs. Banks Blythe Danner). Intencionando intimidá-la, Sam chega armado
e com uma sacola repleta de dinamites. Max Breckett (Dustin Hoffman um
jornalista em baixa após ser punido pela rede de TV onde trabalha com o
rebaixamento a uma emissora regional) está no museu quando, acidentalmente,
Sam dispara sua arma atingindo outro segurança que sai para a rua cambaleando.
Em reação, Sam toma a todos no museu como reféns (crianças que visitavam o
museu naquele momento e Mrs Banks). Max tem em mãos um furo de reportagem
que poderá fazê-lo novamente retornar ao jornalismo nacional da emissora. A partir
daí, Max fará de tudo para conduzir a história à repercussão nacional, criando um
circo midiático em torno do museu. Sam, um ingênuo e comum morador de uma
típica cidade do interior, vê-se enredado numa teia de interesses que tem a mídia
como o centro de tudo.
Por que a mídia interessa-se pelo drama pessoal de Sam Bailey? Aos 35
anos e sem emprego sente-se acabado e sem perspectiva. Esconde da esposa a
perda do trabalho, tentando resolver tudo por conta própria. Melancólico e impotente
diante dos fatos da vida (não tem estudo e o se acha inteligente ou esperto),
na mídia (personificada pelo “rapaz das notícias”, Max Breckett) o único caminho
para uma saída. Max fala que ele é popular e simpático para a opinião pública. Para
Sam, Max torna-se seu agente pessoal. Pensa em um livro sobre a história, um
telefilme e aum programa sobre pesca, o “Cantinho de Pesca do Sam”. Tal qual
Max, Sam é traído pelo jogo midiático. Sam é ingênuo e espontâneo, matéria-prima
necessária em qualquer show midiático para, em seguida, esta essência íntima ser
corrompida pelo script e protocolos do roteiro ficcional.
Max: por que não estudou?
Sam: não tinha dinheiro... e parece que não era muito inteligente
Max: também não estudei... não podia pagar
Sam: como é que fez para ser tão esperto?
Max: dizem que graças ao meu encanto... é algo que você tem
Sam: encanto?
Max: encanto, personalidade
84
Sam: nesse caso poderia animar um programa de televisão?
Max: por que não? Já é até famoso!
Sam: sim, mas famoso no mal sentido
Max: Não tem importância em televisão. Sabem quem é.
A ingenuidade e espontaneidade de Sam é o que busca o Demiurgo
midiático, o que torna o seu drama telegênico. Max orienta Sam a acompanhar um
script, ou uma espécie de protocolo, que a mídia e a opinião pública esperam em
eventos como esse (por exemplo, libertar duas crianças, uma negra e outra branca,
para não ser acusado de racismo, reivindicações plausíveis etc.). A partir daí a
realidade se transfigura para a supra-realidade: Sam assume o personagem de
seqüestrador, consegue a simpatia da opinião pública e até pensa em um futuro
programa na TV. Assim como na mitologia gnóstica o Demiurgo cria a forma, mas
não o conteúdo da existência (necessitando da matéria-prima humana para dar
vivacidade à criação), da mesma maneira a mídia precisa capturar e explorar o
espontâneo e o ingênuo para dar movimento ao clichê do seu universo.
A terceira característica do Demiurgo é o inebriamento pelo poder por
acreditar ser o único Deus da existência. Além da ignorância, ele é cheio de vaidade
e presunção. Acredita que está sozinho e, em suas próprias palavras, “que ele é o
único Deus e que não existe outro Deus acima dele”
22
Essa característica do
Demiurgo é explorada principalmente no filme O Décimo Terceiro Andar, um filme
onde o grande tema parece ser o do choque entre Demiurgos que se imaginavam o
único Deus do Universo até descobrirem o contrário.
Hannon Fuller é o artífice do sistema de simulação que recria a Los Angeles
de 1937. Considerado o “Einstein da sua geração” por Whitney (programador de
computador da empresa de Fuller), os motivos para recriar uma Los Angeles do
passado são puramente pessoais: mergulhar nas memórias da sua juventude. Mas
ele descontrola-se, perdendo os limites morais ou éticos. Sem perceber que a
autonomia e o autodidatismo das unidades virtuais estavam desenvolvendo nelas
consciência, passa a abusar do seu correspondente virtual Grierson, sair com
mulheres jovens, beber, fumar, colocando em risco a vida conjugal dessa unidade
22
HOELLER, Stephan A., Op. Cit., p. 52
85
no Simulacro Três (sua esposa desconfia que ele tenha uma amante). David, o
artífice do Simulacro Dois (a Los Angeles de 1998), igualmente perde o controle de
si mesmo inebriado com o poder, como descreve sua esposa Jane:
Jane: Ele era um cara decente, mas algo aconteceu. Ele começou a
usar a simulação como seu brinquedo pessoal.
Douglas: Como Fuller com as garotas.
Jane: Ele se tornou um deus e isso o corrompeu. Ele começou a gostar
de matar. Começou a abusar.
Tal qual o Demiurgo da mitologia gnóstica, com sabedoria limitada e
imperfeita, cria ilusões para aprisionar as almas em seu cosmos (no filme, as
unidades são programadas algoritmicamente para o descobrirem as limitações da
simulação como cores e texturas imperfeitas ou para não se deslocarem até o “fim
do mundo”). Arrogante, acreditando ser o único deus e o seu mundo como o único,
passa a acreditar que todos devem curvar-se a sua divindade.
3.2. Os Arcontes
Os Arcontes, ou os “pequenos regentes” tal como descritos nas narrativas
gnósticas, são os maliciosos anjos criados pelo Demiurgo para auxiliá-lo, por meio
das armas do mal e da ilusão, manter o homem aprisionado no interior dos círculos
da matéria. O grupo de filmes analisados explora as três grandes características
desses personagens, tal como descritas nas obras gnósticas de diversas correntes:
a capacidade de iludir (pela religião, pela Ciência ou pela Razão); capacidade de
seduzir (pela sensualidade ou pelos símbolos de Poder); e o inebriamento pelo
próprio poder a ponto de não perceber os limites.
Em A Vida em Preto e Branco, Big Bob, o presidente da Associação
Comercial de Pleasantville é o personagem que cumpre o papel de líder da hoste
que tenta reparar o estrago causado pelos comportamentos desviantes de David e
Jennifer. Como todo malicioso arconte, tenta conquistar as pessoas através de três
86
formas: pela racionalidade, pela sedução e pela religião. Por exemplo, quando tenta
seduzir George Parker à causa da reação contra as mudanças em Pleasantville,
convidando-lhe a ser membro da Associação Comercial da cidade e entragando-lhe
uma caixinha com um bottom da Associação (uma honra para uma minoria de
cidadãos figura 14); ou quando, em um discurso para incitar os cidadãos a evitar
as mudanças, usa a mesma estrutura da fábula bíblica da separação do “joio e do
trigo” (“As coisas sempre foram agradáveis. Recentemente tornaram-se
desagradáveis. Parece-me que a primeira coisa que temos a fazer é separar as
coisas que são agradáveis das coisas que são desagradáveis”); ou quando utiliza a
lógica tautológica para provar que a derrota inédita do time de basquete de
Pleasantville foi um fato estranho (não derrotas no mundo perfeito da ficção),
apesar da existência do ditado “não se pode ganhar sempre” (“mas eles ganham
sempre, sempre ganharam, mas se eles nunca perderam antes e nunca empataram,
é porque puderam ganhar sempre, não é?”). Os planos iniciais das seqüências de
Big Bob estão sempre em plongé, evidenciando sua condição de poder (figuras 15 e
16).
Figura 14
Figura 15
Figura 16
87
Em o Décimo Terceiro Andar, dois personagens procuram manter o status
quo do nível de simulação da Los Angeles de 1998: Whitney (programador de
computadores) e o detetive McBain. A posição deles em momentos cruciais da
narrativa é a da manutenção do status quo ou, simplesmente, a de ignorar a
Verdade, preferindo a manutenção da ilusão em seu nível de mundo simulado.
Whitney, programador de computadores da empresa de pesquisas de Fuller,
simplesmente ignora o horror moral demonstrado por Douglas Hall ao retornar do
Simulacro Três:
Douglas: Isto tudo é um erro. Este projeto todo. Este experimento.
Estamos manipulando pessoas!
“Whitney: Está falando loucuras. Sei que foi uma viagem ruim...
Douglas: Viagem ruim? (fala irado, ameaçando agredir Whitney). Essas
pessoas são reais, tão reais como você e eu.
Whitney: Sim, porque nós as projetamos assim. Mas, no fim, são um
monte de circuitos eletrônicos.
Douglas: E tem mais. Vou acabar com essa viagem ruim, agora. Vou
contar a todos amanhã
Whitney: Não pode fazer isso. São seis anos de nossas vidas. De todos
nós. Não pode puxar o fio da tomada e simplesmente ir para casa!
Para Whitney, tudo não passa de “um monte de circuitos eletrônicos”. Sem
compreender a dimensão moral e existencial do que fazem, acredita que Douglas
teve apenas uma “viagem ruim” (na verdade, a consciência de Douglas quase morre
nas mãos da unidade correspondente de Whitney - Ashton). É o princípio do delírio
de poder científico: sem perceber as limitações existenciais, reduz a realidade a
“circuitos eletrônicos”. Já o personagem do detetive McBain opta pela ilusão. A
investigação sobre Jane Fuller conduz à descoberta da Verdade, mas apesar disso,
prefere que Jane embora para o seu mundo e deixe todos em paz na Los
Angeles de 1998. Por quê? Pragmatismo? Para manter sua posição de poder e
autoridade em Los Angeles? Uma coisa é certa: McBain prefere o aparente realismo
da simulação a qualquer reflexão metafísica ou espiritual a cerca da sua condição.
Com isso, ajuda a manter o status quo.
“McBain: E então? Alguém vai me desligar agora?
88
Jane: (balança a cabeça negativamente)
McBain: Olhe-me. Faça um favor. Volte para o lugar de onde veio e
deixe-nos em paz aqui, certo?”
Mas o filme que mais apresenta todas as dimensões dos arcontes é o Show
de Truman. Os personagens arcontes reúnem as características tal qual descritas
pela mitologia gnóstica: ilusão, sedução e inebriamento pelo poder. Os técnicos da
sala de controle localizada na lua artificial do céu de Seaheaven demonstram um
evidente inebriamento pelo poder de manipular e controlar como demonstrado em
seqüências como, por exemplo, quando observam o comportamento excêntrico de
Truman diante do espelho do banheiro (um lugar íntimo para um indivíduo no mundo
“real”) fazendo ironias e piadas. Meryl, a esposa de Truman, o seduz com a vida
conjugal e o objetivo de terem um filho. A cada desejo de Truman de sair de
Seaheaven, viajar e conhecer o mundo, Meryl joga-se em Truman e fala em ter um
filho.
Marlon é o Arconte especial, é aquele que racionaliza. Utilizando-se de
argumentos mesclados do senso comum da filosofia de auto-ajuda, religiosidade e
muitas caixas de cerveja procura racionalizar ou justificar as questões existenciais e
a crescente paranóia de Truman. Sempre tenta anestesiar Truman com cervejas,
enquanto procura convencê-lo com uma rie de argumentos da lógica do bom-
senso.
3.3. Sophia
Um dos mais importantes aeons na mitologia gnóstica, essa personagem é
explorada nos filmes gnósticos em três aspectos: como aquela que decaiu sob o
jugo do Demiurgo, como aquela que desperta no protagonista a necessidade da
gnose e como aquela que, secretamente, doa seu amor e sabedoria aos homens ao
contribuir com importantes padrões arquetípicos à Criação.
Dentro das narrativas gnósticas, a história de Sophia é a história de um exílio.
Tendo residido nas elevadas alturas da Plenitude (Pleroma), ele deixou sua morada
89
e desceu aos reinos do caos e da alienação. Tendo ficada afastada da Luz do Pai
Primordial, a viu refletida na profundeza do Abismo. À distância, pensou que fosse a
Luz primordial do Pai. Para viajou, afastando-se cada vez mais nas profundezas
até que foi finalmente interceptada pelo Limite (Horos). A partir desse ponto ocorre
uma profunda divisão na natureza de Sophia que corresponderá, segundo Hoeller, a
um importante arquétipo da personalidade humana, bastante explorada no tema da
busca da gnose pelos protagonistas dos filmes gnósticos:
Neste ponto ocorreu uma estranha divisão na natureza de Sophia. Seu
ser superior, seu núcleo essencial, tornou-se iluminado e ascendeu
misticamente de volta à Plenitude, enquanto o seu ser inferior
permanece na alienação. Em virtualmente todos os mitos gnósticos
existe uma relação íntima entre a natureza e a condição da alma
humana ou espírito, de um lado, e o arquétipo transcósmico, do outro.
Por isso compreendemos que a nossa própria consciência emergiu de
um todo primordial e prosseguiu para a alienação e o caos, ainda que,
mesmo em estado confuso, continuemos a sentir uma conexão, não
importa tão tênue seja, com um ser superior, transcendental. Assim
como Sophia, estamos divididos em dois: a nossa personalidade
humana habita na confusão e alienação, enquanto o nosso ser eterno
partilha do todo e da sabedoria.”
23
Distante das suas origens e isolada, emana ou manifesta poderes que se
condensam nos elementos que constituirão o universo material (terra, fogo, ar e
água, tal como imaginados na Antiguidade). Produz também uma forma híbrida de
consciência: o Demiurgo. Esse verdadeiro filho bastardo de Sophia começa a
construir o seu reino, formado por sete esferas, presidido, cada um deles, por um
Arconte do Tempo, regendo o destino e ajudando a aprisionar os espíritos.
A individualidade inferior de Sophia ajuda, secretamente, a Luz que está
presente no mundo, organizando e animando a criação corrompida das esferas
materiais. Tenta, por diversas formas, lembrar ao homem que, por mais tênue que
seja, existe o vínculo místico da fagulha de luz interior com a Plenitude original.
Esta narrativa mitológica e arquetípica é simbolicamente representada em
muitos filmes gnósticos. Em o Décimo Terceiro Andar Jane Fuller é a personagem
feminina correspondente. Assim como Sophia, rebela-se contra o Demiurgo por
desejar que as almas do cosmo material sejam livres diante de uma divindade
23
HOELLER, Stephan A. Op. Cit., PP-50-51.
90
enlouquecida. Jane rebela-se contra David, o Demiurgo que torna o sistema de
simulação num brinquedo pessoal. Jane apaixona-se por Douglas:
Jane: David disse que me mataria
Douglas: Por quê?
Jane: Me apaixonei por você.
Douglas: Você nem me conhece.
Jane: Conheço, sim. Desde que a simulação foi criada eu observo você.
Sua bondade... Sua integridade. Me apaixonei por você antes mesmo
de conhecê-lo.
Douglas: Como pode me amar. Eu nem mesmo sou real. Não pode se
apaixonar por um sonho.
Jane: Você é mais real para mim do que tudo que já conheci.
Jane apaixona-se por Douglas antes mesmo dele existir. Na sua concepção,
as partículas de luz (bondade, integridade) estão nele (já estavam
algoritmicamente programadas nas características da unidade para aquele mundo
simulado). Tal qual o homem, (originado de um Anthropos proveniente do Pleroma,
derrotado e aprisionado nesse cosmos) que possui partículas de luzes que anseiam
pela libertação da tirania do Demiurgo, é ajudado por Sophia que o ama e o auxilia
na busca pela gnose. Assim como Jane observa Douglas desde que a simulação foi
criada, igualmente Sophia observa o caminho traçado pelo homem dentro do
cosmos material desde o início dos tempos.
Sophia é representada como uma mulher que decaiu (prostituta,
marginalizada) ou que presta algum tipo de trabalho ou serviço nos domínios do
Demiurgo. Mas, secretamente, ajuda o protagonista em seu caminho para a gnose
ou, pelo menos, cria as circunstâncias que propiciam a elevação espiritual. Em
Homem Morto a única personagem feminina do filme, Thel, a ex-prostituta, tem um
papel decisivo para o início da jornada espiritual de Blake. Seguindo a mitologia
gnóstica de Sophia, ela cai para as esferas materiais ou, como representa o filme,
torna-se prostituta na cidade do Demiurgo. Sophia tem o papel de criar as
circunstâncias para que o protagonista alcance a gnose. Ao ser pega em flagrante
pelo noivo Charlie Dickinson (filho do Demiurgo) com Blake em seu quarto e diante
da arma apontada por ele, Thel coloca se corpo à frente do de Blake e é atingida
91
mortalmente pelo tiro. Blake, também atingido seriamente, foge para a sua jornada e
purgatório que conduz a sua ascensão espiritual.
No Clube da Luta temos o simbolismo do duplo aspecto de Sofia, como mito
gnóstico e como arquétipo, na personagem Marla.
Jack (Edward Norton) é um executivo yuppie que trabalha como investigador
de seguros de uma grande empresa. Tem uma vida consumista e valores
superficiais. Vive em constantes crises de insônia e extravasa sua ansiedade em
sessões de terapia grupal, ao lado de gente com câncer, tuberculose e outras
doenças, pois é no meio de moribundos que Jack se sente vivo e assim
consegue dormir. Esse paliativo é interrompido pela chegada de Marla Singer
(Helena Bonham Carter), uma viciada em heroína com idéia fixa de suicídio.
Repentinamente entra na sua vida Tyler Durden (Brad Pitt). Eles se conhecem em
um vôo e mal se falam, mas quando o apartamento de Jack explode
misteriosamente ele vai morar com Tyler, que vive em uma casarão caindo aos
pedaços. Tyler lhe oferece uma perigosa alternativa: por à prova seu instintos em
combates corporais. Assim nasce o Clube da Luta, que ganha diversos adeptos que
aliviam suas tensões arrebentando cada um a cara do outro. Com o tempo, Tyler
demonstra que seus planos vão além da criação do clube, uma mania, que ganha
adeptos no país inteiro e assim Tyler sonha em concretizar o seu "Projeto Caos".
Com o passar do tempo, estranhos déjà vus e lapsos temporais vão crescendo a
suspeita de que, na verdade, Jack e Tyler são a mesma pessoa, os dois lados de
uma personalidade dividida por um delírio esquizofrênico.
Típico personagem feminino dos filmes gnósticos, Marla serve de mediação
para que o protagonista encontre a verdade. De um lado ela também busca um
prazer voyuerista ao fazer o mesmo tour pelos grupos de apoio. Ela é viciada em
heroína, obcecada pela idéia de suicídio, fuma e toma café compulsivamente. De
outro, é a chave para o Jack compreender a natureza da sua divisão esquizofrênica:
Jack é o lado da personalidade alienada, confusa, presa aos valores da esfera
material; enquanto Tyler é aquele que aspira a demolição da criação do Demiurgo
(os grandes prédios corporativos que são implodidos na seqüência final, enquanto
Jack/Tyler, ao lado de Marla, observa tudo pela janela).
92
Dentro dos filmes analisados é marcante a relação inicial do protagonista com
Sophia: déjà vus, uma estranha ou inexplicável atração, relação de amor e ódio. O
protagonista sempre sente uma atração ou um interesse inexplicável pela
protagonista que representa Sophia na narrativa.
Um exemplo é a seqüência do filme O Pagamento onde é mostrado o
primeiro encontro entre Jenning e Rachel (personagem correspondente a Sophia,
bióloga que trabalha na empresa do demiurgo, a Allcom). Jennings sente-se
estranhamente atraído por ela, mas confunde-a com uma mulher comum. uma
cantada grosseira e recebe uma resposta atravessada. Na composição dos planos
de Rachel ela aparece quase sempre atrás de uma vela acesa em primeiro plano. A
seqüência tem 29 planos dos quais 15 são de Rachel. Destes planos, em 12
aparece uma vela acesa em primeiro plano (figura 17). A insistência dessa
composição na seqüência de apresentação da personagem-chave da trama é
claramente simbólica: a vela como símbolo esotérico do elo entre o plano mental do
pensamento humano e o mundo etéreo. Mais tarde o amor por Rachel será o
caminho para a gnose do protagonista.
Figura 17
4. Temas
4.1. Grupo “O Viajante”
O tema central desse grupo é “O Jogo”. O protagonista deve passar por um
Jogo para alcançar a introspecção necessária para conseguir a transformação
íntima. A natureza do Jogo é a de uma jornada, de um caminho a ser percorrido pelo
93
protagonista a procura de um centro espiritual. Jogo e Viagem estão cercados de
toda uma simbologia arquetípica, explorada pelos filmes gnósticos.
O Jogo é fundamentalmente um símbolo de luta, luta contra a morte
(jogos funerários), contra os elementos (jogos agrários), contra si
mesmo (contra o medo, a fraqueza, as dúvidas etc.) (...) Combate,
sorte, simulacro ou vertigem, o jogo é por si um universo, no qual,
através de oportunidades e riscos, cada qual precisa achar o seu lugar
24
Dentro dos filmes gnósticos analisados, o jogo privilegiado é aquele que
confronta o protagonista com os seus medos e limitações interiores. O Jogo parece
ser um caminho através do qual toda a cisão psíquica entre uma identidade
mundana e mística é eliminada, ao ser criado, em diversas circunstâncias da partida,
um estado alterado de consciência. São essas circunstâncias variadas do Jogo que
possibilitam a Viagem do protagonista, onde é explorada toda uma variedade
simbólica iniciática e de descoberta:
O simbolismo da viagem, particularmente rico, resume-se, no entanto
na busca da verdade, da paz, da imortalidade, da procura e da
descoberta de um centro espiritual. (...) As viagens são igualmente a
série de provas preparatórias para a iniciação encontradas nos
mistérios gregos, na maçonaria e nas sociedades secretas chinesas.
25
A conclusão do Jogo é o Salto, vertigem, queda, um estado basilidiano de
suspensão, de anulamento da consciência e da razão para que a conexão com a
espiritualidade seja revelada.
No western Homem Morto o Jogo é representado pela caça que move toda a
estória: os caçadores de recompensa no encalço de Blake por supostamente ter
assassinado a sangue frio o filho do poderoso Demiurgo Dickinson. A não ser pelo
alerta dado pelo seu companheiro de jornada, o índio Nobody, de que estavam
sendo seguidos pelo fato de “o cheiro do homem branco preceder a sua presença”,
Blake não tem consciência disso e nem do destino ou propósito da sua jornada com
o guia indígena.
24
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 2009, p. 518.
25
Ibid, p. 951.
94
O estado de suspensão é a gnose final do personagem. Num salto de fé,
entrega-se aos propósitos de Nobody (através de uma barca, encaminhá-lo para o
“espelho das águas” para que faça a transição para o “lugar de onde todos os
espíritos vieram e para onde todos retornam” o simbolismo do Pleroma) deixa-se
ser levado pelo barco para o seu destino. Depois do estado de confusão mental na
chegada à aldeia Kwakiutl representado numa seqüência que se espelha com a
primeira seqüência do filme, temos um longo fade-out para vermos Blake, com
roupas rituais, deitado na areia da praia ao lado do barco. Um take longo de mais de
meio minuto, em silêncio, apenas ouvindo-se o barulho do mar. O grau zero dos
pensamentos, o estado de suspensão, como se o ritmo hipnótico, tal qual um mantra
ao longo do filme inteiro,\ culminasse com o vazio total de pensamentos e o estado
de suspensão desejada para o protagonista ser conduzido pela corrente das águas.
Matrix e Clube da Luta abordam os jogos de luta como a busca da disciplina
interior como forma de alcançar o silêncio mental e a gnose. Em Matrix o processo
de treinamento do protagonista Neo para entender a Matrix e conseguir transformá-
la e manipulá-la é feito a partir de carregamentos de verdadeiros softwares de jogos
de luta para treinamento. A natureza de uma jornada a ser percorrida é explicita no
filme: “há uma diferença entre conhecer o caminho e percorrer o caminho”, afirma
Morpheus. Está claro que os programas de treinamento não existem apenas com o
intuito de aprimorar a técnica de luta: o conhecimento das técnicas de lutas marciais
é carregado para a mente de Neo imediatamente. É necessário algo mais: o domínio
de si mesmo, ignorar os medos, esquecer que ele luta com uma entidade real. Ou
seja, Neo deve “libertar a mente”. Na sala de espera para conversar com o Oráculo,
Neo observa um menino com trajes de monge budista entortando talheres. O
menino argumenta: “não tente entortar uma colher. Isso é impossível. Apenas tente
ver a verdade, que não há colher. Então você verá que não é ela que entorta, é você
mesmo”. Neo levará o filme inteiro para entender a natureza do Jogo: não é ele que
enfrenta entidades reais com a força bruta da técnica, mas a consciência que
“entorta” o programa da Matrix. Quando entram no programa de sparring para
treinamento de lutas, Morpheus didaticamente avisa Neo quanto à natureza do
ambiente virtual: “Este é o sistemas de sparring, igual à realidade programada da
Matrix. Tem as mesmas regras básicas como a gravidade, mas algumas podem ser
95
distorcidas, outras podem ser quebradas”. Morpheus, diante do espanto de Neo com
a velocidade dos movimentos do seu oponente durante uma luta marcial, responde:
“Você acredita que posso ser forte e rápido nesse lugar unicamente com os meus
músculos? Você pensa que é ar o que está respirando nesse momento?”
O objetivo do Jogo, portanto, é libertá-lo da racionalidade da consciência que
produz medo e limitação. Velho tema basilidiano: os instrumentos da Razão (a
linguagem e a lógica) unicamente produzem medo e ansiedade, diante de um objeto
que resiste a qualquer nome e identidade. Como a própria narrativa sugere, Neo
sempre está em um conflito entre oposições: o trabalho numa grande corporação
versus atividade de hacker; chegar no horário para manter o emprego versus
desemprego; a pílula vermelha versus pílula azul; livre-arbítrio versus destino;
Realidade versus ilusão. O Jogo fará Neo entender que essas oposições são ciladas
da Razão, de um código binário que escraviza os humanos e a consciência de Neo.
O salto final vem por meio de uma decisão que Neo tem que tomar entre a
sua vida e a de Morpheus. Neo decide salvar Morpheus, aprisionado em um prédio
fortemente guardado na Matrix para interrogatório, apesar de todas as evidências de
que é impossível retirá-lo de lá. Nunca os humanos lutaram contra um agente. Numa
seqüência marcada por saltos do alto de prédios e a quase queda do helicóptero,
temos a preparação para o duelo final de Neo com o agente Smith. Ao perceberem
que Neo não está fugindo e que fica para enfrentar o Agente, Morpheus fala: “ele
está começando a acreditar”. Entendemos que se refere à autoconfiança, fé em si
mesmo, necessária para Neo considerar-se o Salvador. Mas, é muito mais do que
isso. O que Morpheus chama de “acreditar” é buscar o silêncio interior, mesmo na
maior seqüência de ação. Isso é representado após o “salto” final (para a morte).
Após Neo ressuscitar (simbolicamente retornar do silêncio, do vazio mental), ele
finalmente vê o que é a Matrix: uma seqüência de códigos fonte. Deixa de ser mero
usuário, ou seja, deixa de manipular uma mera interface chamada realidade para
entrar no domínio dos códigos-fonte. No filme, é o domínio do sagrado, da gnose. As
seqüências em bullet time ao longo do filme durante as lutas de Neo, são simbólicas
por representarem esses breves momentos de grau zero do pensamento que ele
consegue alcançar ainda de forma efêmera.
96
“O quanto conhece a si mesmo se nunca entrou numa luta?”. Esta questão
formulada por Tyler no filme Clube da Luta a dimensão simbólica do jogo da Luta
para a narrativa. O Clube da Luta é o tema central em torno do qual todos os
caminhos de busca da gnose partem. De forma basilidiana, o caminho para
encontrar a verdade está dentro de si mesmo, na procura do silêncio interior pela
negação da linguagem, do pensamento, pela procura do silêncio e do grau zero de
sentido. A Luta tem um aspecto de disciplina, ascese, tal qual um mantra onde os
pensamentos e a racionalidade são subjugados à disciplina da repetição até que se
convertam no oposto: o estado de suspensão de sentido para a libertação da
consciência. Faz parte dessa emancipação o descarte de todo que é externo ao ser:
“Você não é a sua conta bancária. Nem as roupas que usa. Você não é o conteúdo
da sua carteira. (...)”. A partir do momento em que o apartamento de Jack é
misteriosamente destruído por um incêndio, acaba a sua vida consumista. Muda-se
para o casarão de Tyler, caindo aos pedaços, e, em pouco tempo, estão se
esmurrando na frente de um bar. Jack vai perdendo tudo, do apartamento ao seu
próprio corpo. “Isso é liberdade. Quando perde todas as esperanças, então você
está livre”. A dor impingida a si mesmo no Clube da Luta é o último descarte para
alcançar a gnose: o distanciamento da dor do próprio corpo, a disciplina e
concentração necessária para alcançar o silêncio interior. Este parece ser o caráter
marcial do Clube da Luta, um jogo onde nem a individualidade mais interessa
porque “todos fazemos parte de um mísero composto universal”, como anuncia
Tyler.
O Salto Final surge simbolicamente na abertura da narrativa com um trecho
da seqüência que será a última do filme. “Três minutos. É isso aí. Grau zero”, fala
Tyler com o cano de um revólver enfiado na boca de Jack. O “Grau zero” é
simbólico: é o momento da detonação das bombas que irão destruir os prédios das
grandes corporações que se aproxima e, ao mesmo tempo, o testemunho do “fim do
mundo”. Jack dispara na sua própria boca para matar Tyler, o outro lado do seu ego
cindido. “Meus olhos estão bem abertos agora”, fala Jack para Tyler antes de puxar
o gatilho. Ele não precisa mais dele, a reforma íntima se realizou.
97
“Siga o coelho branco”
São bastante simbólicos os caminhos ou indicativos para o protagonista ser
introduzido ao Jogo. Tanto no filme Vidas em Jogo como em Matrix a referência
simbólica ao personagem do coelho branco de Alice no País das Maravilhas de
Lewis Carroll.
Em Vidas em Jogo há a emblemática seqüência quando Nicholas chega a
sua residência e a encontra toda grafitada com tinta fluorescente. Começa a tocar no
aparelho de som a música White Rabbit da banda de Acid Rock Jefferson Airplane.
Chame a Alice
Quando ela estiver apenas pequena.
Quando os homens no tabuleiro de xadrez
Levantarem e lhe disserem onde ir,
E você consumira há pouco um tipo de cogumelo
E sua mente estiver movendo-se lentamente,
Pergunte à Alice;
Eu acho que ela saberá.
Quando lógica e proporção
Tiverem caído por terra
E o Cavaleiro Branco estiver falando ao contrário
E a rainha vermelha "corte a cabeça dela!"
Lembre-se o que o rato silvestre disse:
"Alimente sua cabeça. Alimente sua cabeça.
O Jogo clama pela necessidade de Nicholas abandonar a lógica e a razão,
deixar a sua obsessiva necessidade de controle, esvaziar o pensamento e entregar-
se. Esse é o objetivo do Jogo, alcançado por Nicholas ao final quando salto do
edifício da CRS.
Em Matrix, Neo dorme em frente à tela do computador (na verdade, cochila. A
narrativa sugere que ele sofre de insônia, um símbolo da não adequação do
personagem à realidade em que vive) enquanto, no monitor, passam imagens de
reportagens na imprensa sobre a fuga de Morpheus de um cerco policial em um
aeroporto (mais tarde sabemos que Morpheus é perseguido pela justiça na Matrix
por ser um perigoso hacker). As imagens desaparecem, a tela torna-se preta apenas
com um cursor piscando, de onde surgem as palavras: “Acorde, Neo...” Simbólica
98
alusão da necessidade de Neo despertar do próprio sono no qual os habitantes da
Matrix estão. Em seguida vem outra linha de mensagem: “siga o coelho branco”.
São as palavras que conduzirão Neo a uma viagem sem volta para a verdadeira
realidade. Um grupo de amigos chega ao apartamento de Neo e observa que um
deles, a garota, tem uma tatuagem de um coelho branco. Prontamente aceita seu
convite para se divertirem em uma boate. Lá encontrará Trinity que alertará sobre os
perigos que irá correr se quiser descobrir, afinal, o que é a Matrix.
O coelho tem inúmeros significados simbólicos e arquetípicos em várias
crenças e mitologias. Como um símbolo lunar, é reconhecido como o possuidor dos
segredos da vida elementar (Menebuch, o Grande Coelho) desde a glíptica egípcia:
Por participar do que não pode ser conhecido, do inacessível, sem
deixar de ser, entretanto, um vizinho, um familiar do homem sobre a
terra, o coelho ou a lebre ticos são um intercessor, um intermediário
entre este mundo e as realidades transcendentes do outro.
26
Podemos encontras outros simbolismos dentro das circunstâncias que
conduzem o protagonista ao Jogo. Novamente em Vidas em Jogo vemos o cartão
de visitas da empresa CRS que produzirá o Jogo no qual Nicholas ficará enredado.
O logotipo da empresa é em formato de triângulo, um simbolismo da onisciência
divina, o simbolismo de Deus na tradição judaica, cujo nome não se pode
pronunciar. Neste filme, a empresa fará o papel do Demiurgo dentro da trama
gnóstica, aquele que será o responsável da arquitetura de um jogo que aprisionará
Nicholas entre a realidade e a ficção e a tentativa de suicídio final será a única forma
que o protagonista vislumbrará para escapar.
Em Clube da Luta, o primeiro contato de Jack com o seu alter-ego resultante
da clivagem esquizofrênica será em um avião, onde trocam cartões de visitas. É,
então, o início de uma viagem entre sanidade e loucura. Se Jung e Henderson
estiverem certos ao afirmar que atualmente percebemos, com freqüência, que
aviões e automóveis substituem, na mitologia contemporânea, os animais fabulosos
26
Ibid. p. 541.
99
e monstros dos tempos antigos
27
, o avião nessa seqüência do Clube da Luta tem
evidente significado simbólico.
Nesta narrativa, a clivagem esquizofrênica de Jack vem da busca do
protagonista de desvencilhar-se dos valores da sociedade de consumo, projetando
no alter-ego Tyler tudo aquilo que queria ser e realizar, mas que seu status quo
impede. A sua jornada através do underground grupo de ativistas do Clube da Luta
cujo objetivo maior é a destruição da própria sociedade capitalista inicia-se
emblematicamente no interior de um avião. Tal como o simbolismo de Pégasus, o
avião exprime aspirações espirituais:
Evoca forças cósmicas do inconsciente coletivo, perante as quais o ego
consciente mede sua impotência. O avião pertence ao domínio do ar e
materializa uma força desse elemento. É o domínio das idéias, do
pensamento, do espírito
28
Jack busca a expansão espiritual. A insônia e ansiedades são o mal estar do
conflito interior que resultou na clivagem esquizofrênica. No avião inicia-se o
movimento que resultará no questionamento de todos os valores e princípios que o
oprimiam.
4.2. Grupo “O Detetive”
O tema principal dos filmes que compõem esse grupo é a Identidade e
Memória. E o estado alterado de consciência que conduzirá o protagonista à gnose
é à paranóia.
27
“Referimo-nos a aves selvagens como símbolos de independência ou de libertação. Mas hoje
poderíamos, do mesmo modo, falar em aviões a jato ou em foguetes espaciais, pois são encarnações
físicas do mesmo princípio de transcendência quando nos libertam, ao menos temporariamente, da
gravidade.” HENDERSON, Joseph L. “Os Mitos Antigos e o Homem Moderno” in: JUNG, Carl Gustav.
O Homem e seus Símbolos. Rio de janeiro: Nova Fronteira, 1987, p. 157 e Passim JUNG, Carl
Gustav. “Um Mito Moderno Sobre As Coisas Vistas no Céu” in : Obras Completas, V. X/4,. Petrópolis:
Vozes, 1991.
28
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Op. Cit., p. 105.
100
No filme O Pagamento o tema principal do filme é a memória. Como
engenheiro reverso que prestava serviços sigilosos de espionagem industrial para
grandes empresas, fazia parte do seu trabalho o apagamento voluntário das
memórias para proteção da propriedade intelectual dos seus clientes. Em troca,
recebia grandes pagamentos que lhe garantia uma vida confortável do ponto de
vista financeiro e superficial do ponto de vista existencial. Porém, Jennings propõe
um enigma para si mesmo: ao receber o pagamento do último e mais demorado
serviço (três anos) descobre que renunciou ao pagamento de 90 milhões de dólares
em ações em troca de um envelope com prosaicos objetos. Sem lembrar-se do que
fez, se vê perseguido pelo FBI e por capangas de Allcom que pretendem matá-lo. Ao
aparentemente renunciar ao pagamento em nome do amor por Rachel que, sabia,
seria esquecido, o filme tematiza a efemeridade/fragilidade das memórias diante do
devir temporal. Para a tradição gnóstica o homem é prisioneiro do tempo. O tempo é
fonte de angústia porque resultante de um cosmos imperfeito, deficiente, resultante
do desastre que foi a criação do cosmos material pelo demiurgo, aprisionando o
homem no esquecimento quanto a sua verdadeira origem. Tempo é esquecimento.
É o tema da memória que se associa ao esquecimento que é imposto por um
demiurgo. No filme, simbolizado por Hethrick, CEO da Allcom.
Aliás, o próprio demiurgo é prisioneiro da maior imperfeição da sua criação: o
tempo. Por isso, a Allcom busca clonar a máquina que o futuro (na verdade,
projeto ultra-secreto do governo norte-americano, roubado do seu criador
assassinado) e superar a limitação que o igualaria às divindades que habitam a
plenitude do Pleroma.
Assim como no filme Blade Runner, baseado em obra de Philip K. Dick, onde
o replicante lamenta o seu desligamento definitivo perguntando-se para onde iriam
suas memórias (“Se perderão no tempo... como lágrimas na chuva”), aqui os
personagens tentam reter as experiências para evitar o esquecimento. Isso pode ser
observado no diálogo entre Jennings e Rachel em que ela relembra que ele lhe
fizera uma estranha pergunta: “Se eu soubesse que não daríamos certo nós dois
juntos ainda assim ficaria com você?”
101
Rachel: “Não trocaria nossos momentos por nada. É isso o que somos; a
soma das nossas experiências. Além disso... as melhores coisas na vida são erros
enormes”
O esquecimento é voluntário, porque o homem está preso às ilusões desse
cosmos. No filme, preso às ilusões dos benefícios materiais dos pagamentos
recebidos em troca do esquecimento.
Outro tema é a paranóia, condição primordial para o personagem do
“Detetive” criar um estado alterado de consciência. Primeiro, como acreditar em um
enigma que supostamente formulou para si mesmo? Perseguido tanto pelo FBI
quanto pela Allcom desconfia de tudo e de todos. Essa associação entre o estado
alterado de consciência da paranóia e a gnose (simbolizada pela iconografia dos
olhos/olhar como significante o despertar/acordar) é encontrada nessa seqüência
crucial:
Hethrick envia para o Café Michel um clone da Rachel para enganar
Jennings, mantendo-o como alvo da arma de um dos seus arcontes (Wolfe Colm
Feore)
Com um ponto no ouvido, Maya (nome que é uma referência à deusa hindu
da ilusão) é orientada por Hethrick que observa tudo por meio de uma microcâmera.
Hethrick: Me escute com atenção Maya. Quero que diga o seguinte ..
Maya (close nos seus lábios que vão se afastando em zoom-out até um
big-close-up no rosto - figuras. 18 e 19): Michael, vejo que ainda tem o
envelope. Sei que trocou seu pertences. Eu o ajudei.
Hethrick (com a tela dividida em três planos em closes de Hethrick,
Maya e Jennings. Hethrick fala no ponto para Maya repetir as mesmas
frases): Você me deixou um recado no espelho.
Maya: Você me deixou um recado no espelho.
Hethrick: Devo pegar uma coisa com você. Para eu poder chegar ao
Stevens.
Maya: Devo pegar uma coisa com você. Para eu poder chegar até o
Stevens.
Hethrick: Você trabalhou para ele. Ele está tentando consertar a
máquina.
Maya: Você trabalhou para ele. Ele está tentando consertar a máquina.
102
Hethreck observa Jennings retirando do envelope o cartão para entrada
no campus da Allcom
Maya: esse é o cartão do campus. Tem que dar para mim. Se não
confiar em mim estaremos perdidos
Close no rosto de Jennings que olha para ela e para o envelope
pensativo e desconfiado. Titubeante, Jennings entrega o cartão para
Maya
Maya coloca o cartão na sua bolsa sob o olhar desconfiado e, agora,
perplexo de Jennings: Não se preocupe, ficaremos juntos.
Maya se levanta, inclina-se sobre Jennings e beija-o na boca. Corte
seco num plano em cores desbotado (representando memórias
passadas que persistiram ao apagamento,) com um beijo na verdadeira
Rachel.
Maya: Michael, eu te amo
Jennings olha atentamente para os olhos de Maya/Rachel. Num fade-
out mescla-se com os olhos da verdadeira Rachel. Jennings tem um
insight e pergunta; “Qual o meu time de beisebol favorito?” (figuras. 20 a
23)
Maya: isso não importa. (Resposta que vai desmascará-la).
Figura 18
Figura 19
Figura 20
Figura 21
Figura 22
Figura 23
O simbolismo do olho, um dos simbolismos recorrentes ao longo do filme,
aqui aparece em pleno momento de paranóia do protagonista. A paranóia o faz
enxergar para além da ilusão, perceber o significado dos detalhes. A seqüência
103
inicia com um close na boca, ou seja, a ilusão e a sensualidade de Maya para
mantê-lo preso à cilada que lhe seria fatal (figuras 4 e 5). Maya, a deusa da ilusão
causada pela mente humana para o Hinduísmo.
no filme O cimo Terceiro Andar temos novamente um personagem que
nada se lembra sobre um crime cujas evidências apontam para ele. Porém,
desenvolve uma dimensão mais diretamente espiritual para a paranóia. Hall acorda
pela manhã. Enquanto a secretária eletrônica anuncia os recados, David encontra
gotas de sangue na pia do banheiro e roupas sujas com sangue em um cesto de
roupas sujas. Nesse momento, ouve o terceiro recado da secretária eletrônica: “Sr.
Douglas Hall, é o detetive McBain, Polícia de Los Angeles. Pode retornar a
ligação?”. A partir daí, todas as evidências do assassinato de Hannon Fuller
apontam para ele. Ele nada lembra. Tem estranhos déjà vus com a suposta filha de
Fuller, filha que jamais seu chefe e amigo lhe havia comentado. Esse lapso da
memória e os déjà vus levam a acreditar que, de fato, cometeu o crime. Para
solucionar esse enigma, deve, pela primeira vez, entrar no sistema para encontrar a
mensagem que Fuller deixou para ele. “Honestamente, não sei mais a verdade
sobre mim. Ou eu matei Fuller e não me lembro, ou é uma cilada”, diz Douglas Hall
para Whitney antes de entrar na realidade virtual do Simulacro Um. Em uma
narrativa típica do personagem “O Detetive”, Douglas deve solucionar o enigma para
salvar a própria pele, mas a investigação o conduz para uma terrível verdade a
cerca não apenas da sua identidade, mas da existência da própria Realidade. A
investigação, que deveria ser simplesmente sobre quem matou Fuller, abre uma
espécie de caixa de Pandora, com terríveis conseqüências.
Embora desconfie de uma cilada, a paranóia não é explorada pela narrativa,
pelo menos não no sentido tradicional da percepção vaga de possíveis conspirações
ou armadilhas contra o protagonista. Apenas é rapidamente sugerida, sem maior
desenvolvimento. Douglas Hall, quase de imediato, desconfia que a mensagem
deixada por Fuller na Los Angeles de 1937, tenha a ver com o fato de não se
lembrar de tê-lo matado. Talvez, como desenvolvedor de mundos simulados,
assuma, desde o início, a desconfiança em relação à natureza da realidade ao seu
redor. Na verdade, a paranóia de Douglas Hall é de natureza espiritual, uma
desconfiança fundamental que o leva a não se espantar tanto ao observar o limite da
104
simulação do Simulacro Dois em que vive (o “fim do mundo” ou “A Verdade”). Isto é,
Douglas Hall não fica tão espantado como achamos que uma pessoa comum
deveria ficar ao chegar ao “fim do mundo”. Cinicamente, ao celular, conversa com
Jane Fuller e responde ao ser perguntado sobre onde está: “Digamos que seja o fim
do mundo” (figuras 8 e 9). Certamente, porque ele, no íntimo, desconfiasse dessa
terrível verdade que Fuller queria lhe revelar.
Uma característica recorrente sobre o personagem do Detetive é que, embora
o ele não perceba, o enigma que deve ser resolvido envolve sua própria identidade.
Como no filme A Passagem onde o psiquiatra protagonista da narrativa tenta
resolver o enigma da vida obscura que cerca seu paciente suicida Henry. Estranhos
eventos começam ocorrer: déjà vus, seqüências que se repetem, os pais de Henry,
tidos como mortos, são encontrados em estranhos estados catatônicos ou de
cegueira etc. Essa seqüência de eventos que desafiam a causalidade e a
racionalidade (os conceitos de Razão e Causa que, afinal, marcam a metodologia
psiquiátrica) vai pondo em dúvida o próprio estatuto da realidade, fazendo crescer
no protagonista um estado de constante tensão paranóica. No diálogo final com
Henry, na ponte onde supostamente tentará o suicídio, uma reviravolta: Henry revela
que tudo o que foi vivido é uma ilusão, uma passagem entre a vida e a morte. Dr.
Foster, perplexo, responde a frase que sintetiza o filme: “se isso é um sonho, o
mundo inteiro está dentro dele”. Sua identidade, na verdade, não existia. Ele nada
mais era do que uma personagem numa trama de formas-pensamento, fruto do
sentimento de culpa de Henry.
Mas a paranóia espiritual, tal qual sugerida por Valentino, é mais
aproximadamente descrita no filme Cidade das Sombras. É interessante a oposição
que o filme faz entre o inspetor Frank e John Murdoch. Frank é racional. Para tudo
uma explicação razoável conseguida através da dedução. Ao contrário, John é
paranóico. É a oposição Valentiana entre o Conhecimento e a paranóia espiritual. A
matéria é fruto do pensamento distorcido do Conhecimento. Ao contrário, a claridade
somente pode ser buscada pelo espírito numa situação muito especial: a suspeita de
que o mundo não é sólido, mas um véu que cobre o abismo do ser. O candidato a
Gnose, através dessa paranóia espiritual, deve residir no limbo entre sanidade e
loucura. E outro personagem, o detetive Eddie Walensky, também experimenta um
105
surto de paranóia criando métodos para o questionamento da realidade, mas perde-
se na insanidade e se joga nos trilhos do metrô. John Murdoch resiste e transita
entre os dois pólos. Durante a narrativa, sistematicamente vai fazendo um
questionamento ontológico da realidade. Cresce a suspeita de que, na verdade, vive
as memórias de outra pessoa e de que a realidade é uma opressiva conspiração. A
capacidade de “sintonizar” corresponde à premissa de Valentim de que a realidade
não é substância, mas estado. A surpreendente capacidade de sintonizar em um ser
humano (um dom unicamente dos Estranhos) provém da própria paranóia de John:
se a realidade é ilusão, portanto, pode ser manipulada pela força do pensamento.
Paranóia como uma espiral
Ainda no filme Cidade das Sombras, uma representação simbólica chama a
atenção: a espiral. Esta forma aparece em dois momentos: primeiro, no início do
filme, quando vemos, no quarto do hotel onde se encontra John Murdoch, o corpo de
uma mulher assassinada (figura 24). Na sua pele estão talhadas várias formas em
espiral. Mais tarde, o detetive Frank vai até o apartamento do detetive Walenski,
afastado das funções policiais por um surto paranóico. Nas paredes do apartamento
está uma série de inscrições e diversas formas em espiral (figura 25).
Encontramos a recorrência dessa forma simbólica no filme A Passagem.
Após o Dr. Foster seguir uma das pistas que levam a uma suposta namorada de
Henry, (Athena) ele chega ao ensaio de uma montagem de Hamlet, no momento em
que ouve um trecho da peça simbolicamente significativo para as suas crescentes
suspeitas sobre a realidade:
“Ator : Prisão, meu senhor?
Athena: A Dinamarca é uma prisão.
Ator: Então o mundo também é uma?
Athena: Uma muito boa no qual há muitos cárceres, repartições e
masmorras.”
106
Em seguida Dr. Foster convence Athena a encontrar-se com Henry. Ambos
começam a descer uma escada estreita em espiral (figura 26). A descida acelera-se,
os degraus não acabam e a escada parece não ter fim. De repente Athena
desaparece numa das curvas. A escada parece não ter fim. Grita, chamando-a. A
atmosfera é claustrofóbica. Dr. Foster tropeça, cai e perde os sentidos. Após
acordar, sobe as escadas para encontrar Athena no palco, ensaiando a mesma fala
da peça de Hamlet ouvida anteriormente como se nada tivesse acontecido. Mais
tarde há outra seqüência com escada em espiral: após Lila (namorada do Dr. Foster)
descobrir que todos os quadros que pintara tinham a assinatura de Henry, desce
aterrorizada as escadas: a paranóia crescente de seu namorado parece contaminá-
la também (figura 27). A seqüência vem após uma fala do Dr. Leon: “O budista
estava certo. O mundo é uma ilusão”.
Simbolicamente a espiral partilha de uma complexa simbologia do eixo e da
verticalidade. Enquanto forma ela enquadra-se perfeitamente no tema da identidade.
Por ser uma forma logarítmica, isto é, por crescer de modo terminal sem modificar a
forma total constitui-se no ícone da temporalidade, da permanência, do ser através
Figura 24
Figura 25
Figura 26
Figura 27
107
das mudanças. É a questão da identidade discutida no filme Cidade das Sombras: a
busca da essência da alma humana dentro das sucessivas trocas de papéis
impostas pelos Demiurgos.
Ao mesmo tempo, o simbolismo da espiral associa-se com o do labirinto, de
uma viagem da alma após a morte:
A espiral simboliza, igualmente, a viagem da alma, após a morte, ao
longo dos caminhos desconhecidos, mas que conduzem, através dos
desvios ordenados, à morada central do ser eterno
29
É uma interessante aproximação de um simbolismo que se encaixa
perfeitamente no argumento do filme A Passagem: a trajetória de um espírito após a
morte através dos sonhos e delírios da sua própria agonia.
4.3. Grupo “O Estrangeiro”
Os temas principais desenvolvidos são a Melancolia e o Confronto. Enquanto
o estado alterado de consciência da paranóia leva o “detetive” a preocupar-se
obsessivamente com detalhes e particularidades que ajudem a montar o quebra-
cabeça do enigma, na melancolia o enfoque está na totalidade: de início há a
sensação de que algo está errado. A constante sensação se deslocamento, de
sentir-se um estranho entre seus familiares e amigos. É uma melancolia de natureza
diferente da psicanalítica. Ela é espiritual.
Em Show de Truman a melancolia do protagonista é mais do que narcísica,
tal qual descrita por Freud em “Luto e Melancolia”
30
. Assim como a paranóia, temos
29
Ibid., p. 398.
30
“Os impulsos hostis contra os pais (desejo de que eles morram) também são um elemento
integrante das neuroses. Vêm à luz, conscientemente, como idéias obsessivas. Na paranóia, o que
há de pior nos delírios de perseguição (desconfiança patológica dos governantes e monarcas)
corresponde a esses impulsos. Estes são recalcados nas ocasiões em que é atuante a compaixão
pelos pais - nas épocas de doença ou morte deles. Nessas ocasiões, constitui manifestação de luto
108
uma melancolia espiritual ou metafísica, a de uma pessoa que acha que não
pertence àquele mundo, de ser um estranho no meio de rostos familiares. Mas,
Cristof, o diretor do reality show, tenta racionalizar a melancolia de Truman
procurando enquadrá-la dentro de um plot freudiano: sentimento de culpa pela morte
do pai, processo de lutificação, punição a si mesmo por meio de uma forma histérica
(a fobia em passar sobre superfícies aquáticas e paranóia), diminuição da auto-
estima e cessação de interesse pelo mundo. Truman luta para entender que sua
melancolia é muito além do que a natureza narcísica que Marlon tenta explicar,
ditado por Cristof através de um aparelho de ponto em seu ouvido. “Acho que estou
envolvido em alguma coisa grande”, tenta explicar a Marlon. “Talvez algo esteja para
acontecer comigo. pensou nisso Marlon, como se sua vida fosse construída para
algo?”, sente Truman que, passo a passo vai convertendo a melancolia em um
estado ativo e febril de paranóia.
Um caso exemplar de como o estado melancólico do protagonista abre um
questionamento crítico metafísico pode ser encontrado em Donnie Darko (Donnie
Darko, 2001). O filme descreve a vida de um adolescente problemático, Donnie
Darko, com uma misteriosa condição mental que o separa de um ambiente cultural
conformista: ele começa a perceber a irrealidade da vida suburbana de classe média
americana através de estados sonambúlicos e após tomar remédios
antidepressivos. Nesses estados alterados ele um coelho de dois metros de
altura chamado Frank que prevê o final do mundo em um mês. Na primeira vez que
encontra Frank, Donnie escapa da morte quando a turbina de um avião cai sobre o
seu quarto. Frank o encoraja a cometer atos de vandalismo contra instituições
opressivas e revela que existem outras realidades alternativas por meio de planos
temporais simultâneos, cada um com uma lógica pré-determinada. Aqui, a crítica às
instituições opressivas e aos papéis sociais conformistas não é ideológica, mas
metafísica: Donnie percebe que algo de errado com o mundo através de insights
e estados alterados de consciência e não a partir de princípios ideológicos ou
uma pessoa acusar-se da morte deles (o que se conhece como melancolia) ou punir-se numa forma
histérica (por intermédio da idéia de retribuição) com os mesmos estados [de doença] que eles
tiveram. A identificação que ocorre, como podemos verificar, nada mais é do que um modo de
pensar, e o nos exime da necessidade de procurar o motivo.” FREUD, S. “Carta Datada de 31 de
maio de 1897”, In: Edição Standard Brasileira, Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 275.
109
religiosos. Donnie também descobre que o plano temporal em que ele vive pode ser
revertido e que ele tem poder para fazer isso, isto é, transcender seu plano temporal
através de um vórtice e mover-se livremente por outros planos alterando destinos
pré-determinados. Após a morte de sua namorada e, mais tarde, da sua mãe na
queda de um avião sugado por outra dimensão temporal, Donnie retorna no tempo
para a noite em que viu Frank pela primeira vez. Dessa vez Donnie fica no seu
quarto e morre na queda da turbina. Um grande sacrifício que Donnie assume para
que desperte desse de mundo e altere o fluxo temporal sua namorada e sua mãe
irão escapar da morte.
A melancolia dos protagonistas de ambos os filmes vai prepará-los para o
Confronto contra o Demiurgo Cristof, no caso de Show de Truman, e contra aqueles
que representam todo o conformismo e grosseria da sociedade da qual ele sente-se
tão deslocado (implicitamente, o confronto com arcontes do Demiurgo representado
pela própria sociedade), no caso de Donnie Darko.
Donnie Darko apresenta, também, um importante tema gnóstico maniqueo: as
tentativas consoladoras da religião e do hedonismo para neutralizar a melancolia
espiritual. No filme é mostrado o confronto de Donnie Darko contra o sistema escolar
conformista e contra a figura de Jim Cunningham, celebridade e vendedor de livros
de auto-ajuda, adotado como conteúdo programático pela escola. Donnie se insurge
contra o simplismo do pensamento de auto-ajuda (agrupar todas as matizes dos
sentimentos humanos entre Amor e Medo) e incendeia a sua casa. A forma como a
professora Mr. Monnitoff aborda o método de Cunnigham é de um evidente
fundamentalismo religioso.
Semelhante ao que vemos em Show de Truman onde se tenta reduzir a
melancolia do protagonista ao script freudiano, em Donnie Darko procura-se tratar
do “problema do protagonista com sessões de psicoterapia, hipnoterapia e
remédios psicotrópicos.
Curiosamente, o filme aborda, também, o simbolismo do coelho, tanto no
aspecto esotérico como na perspectiva literária ao aproximar-se com Alice no País
das Maravilhas. A melancolia e o tédio de Donnie que criam as circunstâncias que
abrem sua consciência para a existência dos múltiplos níveis de realidade se
110
equiparam ao tédio e melancolia de Alice (“em um dia quente que a deixava
sonolenta e estúpida”
31
) que prefere correr atrás de um coelho branco a “não ter
nada para fazer”
32
. Donnie segue as ordens do enigmático coelho que aparece para
ele. Em uma dessas seqüências a figura do coelho associa-se, ainda, ao complexo
simbolismo do espelho. O coelho (Frank) aparece para Donnie no espelho do
banheiro da sua casa (Alice Através do Espelho?). Donnie tenta tocá-lo e a
superfície manifesta-se flexível, como uma superfície líquida. Esta analogia entre
espelho e água freqüentemente simboliza a utilização mágica do espelho como
instrumento de adivinhação, premonição (o coelho prevê o fim do mundo em um
mês). Por outro lado, uma correspondência direta entre o espelho e a melancolia
de Donnie: assim como o espelho reflete as pessoas, o Frank reflete os papéis
conformistas da sociedade:
Donnie: Por que você veste essa estúpida fantasia de coelho?
Frank: Por que você veste essa estúpida fantasia de homem?
A realidade multifacetada
Todos os filmes do corpus de análise possuem um ponto temático em
comum: o multifacetamento da realidade. O protagonista se desloca por uma
realidade que, pouco a pouco, vai tornando-se instável, movediça ou viscosa.
Enigmas, conspirações ou jogos confrontam o protagonista para mostrar que a
realidade na qual ele vive é uma ilusão e que existe, pelo menos, um nível para além
daquela realidade comum.
O primeiro momento é a da meta-realidade. O protagonista pressente que
algo de estranho com a realidade, em um sentido metafísico: melancolia, paranóia,
sensação de estranhamento ou de deslocamento em relação a sua vida cotidiana,
ansiedade, insônia, déjà vus, lapsos temporais. Muitas vezes a narrativa propõe
31
CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Petrópolis: Arara Azul, 2002, tradução: Clélia
Regina Ramos, p. 3.
32
Idem.
111
situações metalingüísticas que irão acirrar ainda mais essa sensação de irrealidade
ou de estar sonhando acordado.
O segundo momento é o da supra-realidade. O protagonista está inserido
nessa(s) outra(s) dimensão(ões) da realidade. A aceita e tenta entender as regras
do(s) seu(s) funcionamento e existência.
Para-realidade é o terceiro momento no qual o protagonista consegue
interagir com os personagens e com o próprio ambiente desta supra-realidade. Seu
momento máximo é a capacidade de manipulação e previsão dos eventos dessa
nova dimensão.
No filme Vidas em Jogo, por exemplo, o protagonista somente consegue
chegar ao segundo momento. Nicholas vive num estado apático e melancólico. Sabe
que algo está errado na sua vida, mas não sabe o quê. O plano metalingüístico da
realidade está presente nessa seqüência: após diálogo ríspido com o irmão Conrad,
na rua, um telefone público toca. Nicholas atende e, perplexo, ouve a reprodução as
suas falas finais desse diálogo (figura 1):
“Conrad: não vai monopolizar esta conversa
Nicholas: por que eu haveria de fazer o que diz
Conrad: Porque tem inveja de mim
Nicholas: Pára com esta exaltação
Conrad: Detesta que eu viva a minha vida
Nicholas: Baixe a voz
Conrad: Tem medo que alguém ouça
Nicholas: Pára com isso
Conrad: Tem tanto medo que alguém veja como é tarado por
manipulações
Nicholas: O que tem? O que tomou?
Conrad: Lamento muito não ter sido o que esperava de mim. Não sou
como você e nunca vou querer ser
Nicholas: Só me dá responsabilidades
Conrad: Pelo amor de Deus sou seu irmão
Nicholas: Passei a vida tentando te ajudar
Conrad: Não quero sua ajuda. Ninguém te pediu para ser um pai para
mim
Nicholas: Não me diga. Eu tive escolha? Tive escolha?
112
O plano da supra-realidade é o próprio Jogo que faz Nicholas entrar em um
plano onde as fronteiras entre realidade/ficção, racional/irracional e razão/emoção
desaparecem. É a referência à Alice no País das Maravilhas na música White Rabbit
do Jefferson Airplane que é tocada no casarão de Nicholas que ele encontra todo
grafitado com tinta fluorescente. A mensagem é: siga o coelho branco, como na
estória de Alice, deixe-se levar pela viagem do Jogo. ambientado nessa supra-
realidade, Nicholas tenta entrar no nível da para-realidade, tentando, em alguns
momentos, dialogar com os personagens do Jogo, tentar fazer uma metalinguagem
dentro do próprio jogo. Mas, sem sucesso. Como sempre, tenta manter o controle de
tudo em qualquer circunstância, mas o Jogo o obriga a deixar ser levado, pela
primeira vez na vida.
A clareza desse multifacetamento da realidade pode ser encontrada no filme
A Vida em preto e Branco. O mundo real é o dos anos 90 tal qual descrito nas
primeiras seqüências: onde escolas parecem presídios e o mundo está à beira de
crises e catástrofes. As imagens em preto e branco do canal TV Time (que
reapresenta a sitcom dos anos 50 Pleasantville) apontam para uma supra-realidade
retrô (figura 19). Ali David se refugia de um mundo no qual se sente distante e
estranho. Logo depois se vislumbra a supra-realidade: David e Jennifer são tele-
transportados para o mundo em preto-e-branco de Pleasantville por meio de um
estranho controle remoto. Assustados e perplexos ele ainda estão desajeitados
nesse ambiente ficcional. O Sr. Técnico de TV explica o que ocorreu a partir da tela
de TV: “é a realização de um sonho”, afirma (figura 20).
Ao longo da narrativa, David e Jennifer vão entendo as leis e os mecanismos
de funcionamento daquele mundo ficcional. Na medida em que interagem, desviam
os padrões de comportamento, produzindo reflexão nos personagens (tornam-se
meta-narrativos) e o surgimento da pigmentação tecnicolor neles. Para desespero
do Demiurgo/Sr. Técnico de TV, eles não querem mais voltar, que conseguiram
entender o profundo desígnio deles estarem ali: Jennifer entende o valor da leitura e
deixa de ser uma fútil popular girl e David consegue seu primeiro encontro com uma
garota e passa a ter personalidade para confrontar-se com as situações do mundo
113
real (paradoxalmente, vai encontrar isso na supra-realidade de uma sitcom). O
Demiurgo que a inocência que quer ter sob seu poder está saindo do controle e
tenta, desesperadamente, convencer David a retornar ao mundo real (“você não
merece estar nesse paraíso”, grita o Sr. Técnico de TV – figura 21).
Mas é na complexa narrativa do filme O Décimo Terceiro Andar que o
multifacetamento adquire diversas matizes. Através da tecnologia da simulação,
Fuller, Hall e Whitney abrem uma espécie de caixa de Pandora. Fuller é o primeiro a
perceber a “terrível verdade”: a pluralidade de níveis de simulação no universo.
Como vemos no diálogo-chave entre Jane Fuller (nativa do Nível Um) e Douglas Hall
(nativo do Nível Dois):
“Douglas Hall: Quantos mundos simulados como este existem?
Jane Fuller: Milhares. Mas este tem uma simulação dentro de uma
simulação. Algo que não esperávamos.
Douglas: Então teve que matar Fuller.
Jane: Não. Fui mandada após sua morte. Eu seria sua filha. Herdaria
sua empresa. E a fecharia. Mas ele nos enganou. Ele mudou seu
testamento.
Douglas: Se não foi você que matou Fuller, quem matou? Eu o
esfaqueei!
Jane: Mas não era você. Era o seu usuário. Ele se transferiu para você.
E o manipulou.
Douglas: Como um fantoche. Fantoches não têm alma. E não tenho,
assim como Fuller.
Jane: Você tem. Fuller também tinha. Não contava com isto.
Programamos este mundo para ninguém descobrir a verdade. Mas você
e Fuller descobriram. Não vê o que significa?
Douglas: Só uma pequena falha na sua tese. Nada disso é real. Se
puxar a tomada eu desapareço. E nada que eu diga, nada que eu faça
vai importar.
Jane: Meu marido é seu usuário. Ele matou Fuller.
Douglas: Sou sua unidade correspondente. Um reflexo do seu caráter.”
Os milhares de níveis de mundo simulados co-existem sem um saber da
existência dos demais. Mas o Simulacro Dois consegue algo inédito: produzir outra
simulação em um mundo simulado. Esta meta-simulação poderá produzir um
114
perigoso efeito exponencial, iniciado por Hannon Fuller ao entregar a carta ao
barman Ashley no Simulacro Três: um efeito exponencial de tomada de consciência
sobre a irrealidade dos sucessivos mundos causando um perigoso desequilíbrio ao
universo. Todos os mundos são programados para não adquirirem consciência
sobre suas próprias naturezas. Mas, como na epígrafe da famosa frase de
Descartes colocada na abertura do filme (“Penso, logo existo”), a ciência leva os
nativos do Simulacro Dois à autoconsciência (tornam-se autônomos e autodidatas
como os nativos do Simulacro Três). A ciência, paradoxalmente, conduz a uma
experiência que podemos interpretar como espiritual ou gnóstica: a percepção de
uma realidade além da atual. No caso, mais do que isso: a natureza de simulação de
qualquer realidade desse universo. Uma simulação produzida por um artífice que
tenta programar a todos para o perceberem essa natureza corrompida do
universo.
Dois protagonistas vão descobrir a supra-realidade (a consciência do caráter
artificial do seu mundo e a necessidade de buscar não sua identidade, mas a
Realidade Última a partir da qual os mundos foram construídos): Ashton e Douglas
Hall. Ashton abre a carta de Hannon Fuller (que na verdade referia-se a natureza de
simulação do Simulacro Dois) e, acidentalmente descobre, também no Simulacro
Três, o limite da simulação daquele nível. E Douglas Hall vai buscar os mesmos
limites da simulação no Simulacro Dois após descobrir que a suposta filha de Fuller,
Jane Fuller, na verdade era Natasha Molinaro, caixa de super mercado e ex-modelo.
Douglas compreende que a mesma coisa que ocorria no sistema simulado que
ajudara a criar (a transferência de consciência do usuário para as unidades
autônomas), também estava ocorrendo no mundo supostamente real. Ele segue sua
intuição e, conhecendo as limitações da simulação existentes na Los Angeles de
1937, acredita que na realidade deve haver a mesma limitação. A partir daí,
conhecendo a dimensão da supra-realidade passa a questionar sua própria
identidade e existência: “nada disso é real. Se puxar a tomada desapareço. Sou o
reflexo do caráter de meu usuário”. Na seqüência anterior, quando volta do
Simulacro Três sem conseguir pegar a carta deixada por Fuller, sua preocupação
era apenas ética e moral: “Este projeto todo... estamos manipulando pessoas! Essas
115
pessoas são reais”. Com a descoberta da dimensão da supra-realidade, seu
questionamento torna-se metafísico e espiritual.
O multifacetamento da realidade em diferentes níveis de simulação, cada uma
com suas unidades autônomas e autodidatas, não conduz à supra-realidade
(unidades tomam consciência da existência de outros níveis da existência), mas
seus habitantes começam a descobrir que podem interagir, manipular e transitar
entre os níveis. A consciência pode ser transferida para a unidade correspondente
do usuário e interagir com outras unidades autônomas (figuras 28 e 29). Aos poucos
a trama fica mais complexa e perigosa com a possibilidade das unidades autônomas
adquirirem consciência da limitação da simulação do seu nível e transcender para o
outro vel, ocupando o lugar da consciência do usuário, como ocorre com Whitney,
cuja consciência “morre” no Simulacro Três e sendo seu corpo ocupado pela
consciência de Ashton que transcende para o Simulacro Dois.
Figura 28
Figura 29
5. Simbolismo e Iconografia
5.1. Acordar/Despertar
É o simbolismo predominante. Está presente na totalidade dos filmes
analisados com algumas variações, mas mantendo o cerne simbólico: a
necessidade de o protagonista despertar de um estado de alienação, confusão ou
apego aos valores do mundo físico.
A primeira variação é associar a necessidade do despertar espiritual com o
ato de acordar do sono. Na abertura do filme Cidade das Sombras, após a fala
116
introdutória do Dr. Schreber explicando o tema central da narrativa, um plano em
travelling mostra a cidade, os prédios e as ruas congestionadas de carros e
pessoas. Ouve-se alguém gritando Weak Up!”, Acorde! Na seqüência posterior,
enquanto toda a cidade cai no sono, John desperta, nu, em uma banheira cheia de
água em um quarto de um hotel. O plano inicial da seqüência são os olhos abrindo.
Essa seqüência revela o conflito de John Murdoch: esse despertar pode ser mais um
nascimento articulado pelos Estranhos a cada meia-noite ou um potencial
renascimento da ilusão para a verdade. Ele sai da banheira, seus primeiros passos
são incertos, escorrega na água derramada no piso do banheiro. Tal como um bebê
saindo da placenta.
Na seqüência inicial de Vanilla Sky ouve-se uma voz feminina dizendo: “abra
os olhos”. Vemos, então, o protagonista David na cama, pela manhã. Percebemos
que a voz que continua a repetir “abra os olhos” vem de uma espécie de rádio-
relógio high tech ao lado da cama. Os planos posteriores, mostrando David
levantando-se da cama ao banheiro, mostram o seu apego aos valores e bens
materiais: passa pela TV de plasma e passa a mão sobre ela carinhosamente,
observa sua imagem seminua e musculosa no espelho do quarto e, no banheiro,
pega uma pinça para retirar um fio de cabelo branco que descobre ao se deter
diante do espelho. Atravessa o amplo apartamento para descer aa garagem e
pegar sua Ferrari. Aos poucos, percebe que as ruas estão desertas e que acelera
seu potente carro numa Nova York vazia. Pára seu carro em plena Times Square e
sai correndo pela rua, cercado de luminosos e telões eletrônico que apresentam
variadas marcas de grifes, rostos de modelos e clipes publicitários. Numa edição
rápida, culmina em um plano com a câmera girando em torno de David que olha
para o alto e grita. Corta para um plano em preto e ouve-se novamente “abra os
olhos” vindo do mesmo rádio-relógio. Era tudo um sonho. Mais do que isso, um
despertar de um sonho dentro de um sonho. É a necessidade de despertar dos
laços com o mundo material e seus valores fúteis e efêmeros. É o tema central, a
busca do protagonista David.
O acordar dentro de um sonho repete-se no filme A Passagem quando, após
a seqüência inicial do acidente automobilístico na ponte, um corte seco para o
plano em close do rosto do psiquiatra Dr. Foster despertando atônito, confuso. A
117
deformação em lente grande angular reforça este estado do protagonista. Na
verdade Dr. Foster faz parte do sonho de Henry, ou melhor, é o próprio Henry em
busca da superação do sentimento de culpa que o impede de aceitar a morte como
passagem.
Em outra seqüência inicial, dessa vez em Donnie Darko, a câmera faz um
travelling por uma estrada numa paisagem de florestas e montanhas. Numa curva
da estrada está um rapaz deitado, dormindo. Ao lado dele uma bicicleta. Ele acorda.
Nos primeiros segundos está aturdido e sonolento. Logo um sorriso, como
compreendesse o que ocorreu. Observa a paisagem montanhosa, com picos
envoltos por neblina. Aparece o título do filme para, em seguida, surgir um brilho
intenso, branco, que ofusca tudo. Fade out em branco para a próxima seqüência.
Donnie experimenta constantes lapsos temporais. É sonâmbulo. Aqui a necessidade
de despertar não se refere ao protagonista, mas uma mensagem para todos.
Enquanto todos dormem, Donnie está desperto em outro nível de realidade, quando
tem contato com o coelho Frank que lhe os insights para sua busca interior por
iluminação (o simbolismo da luz ofuscante após o título do filme). O sono (como o
simbolismo do esquecimento humano da fagulha de luz interior que o liga a
Plenitude originária) é o que mantém, afinal, todos prisioneiros no interior do cosmos
criado pelo Demiurgo.
No filme Cidade das Sombras os Estranhos têm o poder de indução ao sono.
Tal qual o Demiurgo, os Estranhos têm o poder de induzir os habitantes da cidade
ao sono mediante uma imposição de mão. Por isso, ninguém percebe a noite eterna,
ou seja, de que a passagem de tempo é uma ilusão criada pelas falsas memórias
implantadas nas memórias dos habitantes. Os estranhos induzem a cidade inteira ao
sono para executarem as trocas de papéis. Todos acordam como se estivessem em
mais um dia dentro de uma vida. Assim como em Quero Ser John Malkovich, é a
metáfora gnóstica da reencarnação como mais uma estratégia executada pelos
Arcontes para manter o homem preso ao cosmos material em sucessivos retornos.
também o despertar como necessidade imperiosa de renascimento,
renovação. Em Vidas em Jogo, após os créditos de abertura em que passam cenas
como fossem montadas a partir de filmes caseiros um corte seco. Volta para um
118
plano em close com Nicholas levantando a cabeça ao lavar o rosto ao acordar pela
manhã. O plano é altamente simbólico: após as cenas de filme caseiro iniciais, rosto
entre as mãos e erguendo a cabeça é como se estivesse ressurgindo da uma falta
de ar, sufocamento ou afogamento. É como se necessitasse renascer das cenas
traumáticas de um pai ausente mostradas na abertura dos créditos (figuras 30 e 31)
Figura 30
Figura 31
Quando Nicholas pega um taxi para retornar para sua casa, o motorista, mais
um personagem do Jogo, acelera e salta do carro que cai nas águas da baia de São
Francisco. Graças à manivela que lembra estar no bolso de seu paletó consegue
baixar o vidro da porta. Consegue sair do táxi e, quase sem fôlego, vem à tona. Mais
um simbolismo de renascimento (figura 32).
Figura 32
Nicholas é drogado e perde os sentidos, acordando em um caixão dentro de
um mausoléu em um cemitério de uma região pobre no México. Nicholas renasce
entre os mortos. Mais uma forte seqüência simbólica (figuras 33 e 34)
119
Figura 33
Figura 34
No filme O Pagamento o primeiro plano começa com um zoom out que inicia
num plano em close nos olhos de uma personagem virtual em uma tela
tridimensional que, em seguida, fala: “hora de acordar” (figuras 35 a 37). Uma
palavra de ordem gnóstica, uma variação de “abra os olhos” como em Vanilla Sky.
Aparentemente mero detalhe em uma exposição de tecnologia. Jennings observa a
tela e a exortação. Mas este apelo ao personagem ganha sentido ao longo da
narrativa ao vermos que a vida de Jennings é fútil e materialista: em troca do
apagamento da memória de grandes períodos da sua vida, ele recebe grandes
gratificações financeiras. Na verdade, o apelo é para ele. “Percebeu que nunca me
perguntou o que vejo quando apago suas memórias?” Pergunta Shorty (técnico
responsável em apagar suas memórias) a Jennings. “Minha vida se constitui
basicamente de memórias dos melhores momentos. É uma vida boa. O que você
apagou não importa.” Para Jennings, o que importa é receber o pagamento e
aproveitar as benesses da vida.
120
Figura 35
Figura 36
Figura 37
5.2. Olho
É um simbolismo muitas vezes complementar ao do Acordar/Despertar. Por
exemplo, em Vidas em Jogo o simbolismo do olho associado ao despertar aparece
em dois momentos. Primeiro quando Nicholas a transmissão de TV interceptada
pela CRS. O apresentador de um telejornal apresenta as regras básicas do jogo:
“receberá diversas chaves. Nunca saberá onde as encontrar, nem como terá de usá-
las” (a mesma coisa vemos em O Pagamento em relação aos vinte objetos
encontrados no envelope por Jennings) “Por isso, olhos bem abertos”. E segundo
quando os novos membros do clube de milionários freqüentado por Nicholas trocam
olhares maliciosos ao falar sobre a empresa CRS. Ao explicar do que se trata o
Jogo, um deles cita um trecho da Bíblia, do Evangelho Segundo São João nove,
versículo 25: “Tendo eu sido cego, agora vejo” Simbolismo do acordar, despertar,
abrir os olhos. O que aguça a curiosidade de Nicholas a respeito da empresa
CRS e sobre o Jogo.
Novamente, em Donnie Darko, o olho aparece constantemente pontuando a
narrativa como, por exemplo, nos planos em que aparece um pôster no quarto de
Donnie. O pôster é muito mais do que um item decorativo, pois há constantes planos
121
de Donnie com o enquadramento aproximando o símbolo ao protagonista (figuras 38
a 41).
Para o Gnosticismo, o olho tem um profundo simbolismo. Segundo Cirlot, a
essência do simbolismo do olho está contida num dito do filósofo romano Plotino,
segundo o qual “nenhum olho está capacitado a ver o Sol enquanto, de certa
maneira, não for ele mesmo um sol”
33
. Dado que o Sol é fonte de luz, e que a luz é
símbolo da inteligência e do espírito, deduz-se que o processo de ver representa um
ato do espírito e simboliza o conhecimento. Mantido aprisionado no mundo material,
mantém-se cego necessitando ser aberto pela gnose:
Oh Deus de luz, alma querida! Quem foi que obscureceu teu olho
luminoso? Cai sem cessar de uma miséria para outra, e nem sequer o
advertem... Quem te conduziu ao exílio, da tua magnífica terra divina, e
te mantém nesta sombria prisão
34
Figura 38
Figura 39
Figura 40
Figura 41
O olho deve ser aberto para revelar o “homem interior”, a centelha de Luz, a
parte da alma que mantém contato com o mundo superior. Faz parte do dualismo
33
CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Editora Moraes, 1974, p. 421.
34
Texto maniqueo citado por PETREMENT, S. Le Dualisme Ches Platon, lês gnostiques et lês
manichéens. Paris: PUF, 1974 , p. 185.
122
platônico que a alma dividida em duas partes: a que mantém contato com os
reinos das Idéias e a parte que contata o mundo físico
35
. Da mesma maneira, o
simbolismo do olho seria dotado da mesma dualidade. Para o Gnosticismo, os olhos
podem simbolizar, de um lado, a visão interior, a iluminação; do outro, a ilusão: os
olhos enganam, criam ilusões, aceita o mundo como um dado perceptivo. Essa
dualidade manifesta-se no filme O Décimo Terceiro Andar. Os olhos são os índices
de que está ocorrendo, em dado momento, a transferência de consciência dos
personagens entre os níveis de simulação. Nos olhos surge o túnel (em forma de
wormhole) que representa o percurso traçado pela consciência de um nível para
outro (figuras 42 e 43). Nos olhos vemos a transcendência entre mundos. Por outro
lado, o olho pode ser fonte de engano como, por exemplo, no fato de os habitantes
da Los Angeles de 1937 não perceberem a coloração sépia e texturas imperfeitas.
Aceitam como um dado perceptivo natural as limitações e imperfeições da
simulação.
Figura 42
Figura 43
5.3. Marionetes e Avatares
Se para o gnosticismo o corpo e o mundo físico são uma prisão que
encarcera o espírito imortal e a centelha de Luz, a metáfora mais aproximada dessa
condição é a marionete ou avatares virtuais manipulados por um usuário demiurgo.
Por outro lado, a busca desesperada pela transcendência pode conduzir a uma falsa
gnose por meio da busca de um atalho. Dois filmes discutem simbolicamente essa
questão: Quero Ser John Malkovich e O Décimo Terceiro Andar.
35
Cf. HUTIN, Serge. Op. Cit.
123
A marionete é o símbolo principal em Quero Ser John Malkovich. Além do
simbolismo óbvio presente na narrativa (Craig - John Cusack - utiliza-se da sua
habilidade de titereiro para manipular identidades e a marionete como paralelo à
condição manipulada de John Malkovich), há um significado mais profundo: as
marionetes são descendentes diretos dos antigos ídolos divinos, adorados e
animados pelos seus sacerdotes. Victoria Nelson demonstrou como na cultura
popular do século XX temos um aumento do fascínio por autômatos e bonecos com
o surgimento do conceito marionete-mestre (humana ou divina) inserida dentro de
uma cosmologia gnóstica das relações entre homem/autômato e homem/deus
36
.
Esse fascínio por autômatos ou marionetes dentro desse gstico esquema
simbolizaria a maneira pela qual podemos avaliar a própria experiência humana, ou
seja, como nos vemos como prisioneiros dentro de um cosmos hostil. Além disso, as
marionetes se metamorfosearam, na modernidade, em figuras como robôs,
ciborgues, andróides e, mais recentemente, na hibridação do corpo humano.
que, agora, com um ingrediente a mais: a criação de uma mediação para a qual a
consciência humana se transfira e transcenda a prisão da carne. O anseio humano
em migrar para mediações idealmente modeladas. O filme simboliza esse anseio
pelas mediações em diversos momentos. Podemos observar isso em dois diálogos.
Após Maxine transar com Malkovich sabendo que Lotte estava na sua cabeça,
provocativamente comenta com Craig:
Craig: Você me tortura de propósito?
Maxine: Eu me apaixonei.
Craig: Acho que não. Eu me apaixonei, e pessoas apaixonadas ficam
assim.
Maxine: Escolheu o tipo não correspondido. Isso faz mal para a pele!
Craig: Você é má Maxine!
Maxine: Sabe como é ter duas pessoas olhando para você, com total
luxúria e devoção através do mesmo par de olhos?
Pessoas apaixonadas umas pelas outras, mas que necessitam de mediações
para consolidarem os relacionamentos. Uma espécie de sexo platônico onde o
objeto da paixão é visto através de olhos ideais, despertando impulsos exibicionistas
36
NELSON, Victória, The Secret Life of Puppets. Cambridge: Havard UP, 2001.
124
em Maxine. Ou a aspiração pelas mediações decorre da negação da condição física
atual:
Primeiro cliente da JM Inc.: Quando dizem que posso ser outro o que
querem dizer?
Craig: É exatamente o que dissemos. Podemos colocá-lo no corpo de
outra pessoa por 15 minutos.
Primeiro cliente da JM Inc.: Posso ser quem eu quiser?
Craig: Bem, você pode ser John Malkovich.
Primeiro cliente da JM Inc.: Perfeito! É minha segunda escolha, mas é
maravilhoso. Sou um homem gordo. Sou triste e gordo.”
Esta discussão liga-se ao tema da Identidade, associada, também, à questão
da Mediação e da Reencarnação: ser através do Outro (pessoa, marionete etc.). E
também a revolta e o desejo de se libertar das cordas que controlam a identidade:
quem o manipula, quem está, na verdade, dentro de você controlando-o? A primeira
seqüência do filme sintetiza esta dupla dimensão do tema da Identidade. Vemos
Craig manipulando uma marionete e fazendo o que ele denomina de “Dança do
Desespero e da Desilusão”. Craig manipula a marionete como uma mediação para si
mesmo, como ele diz a certa altura do filme (na voz de uma marionete): “Craig, por
que você gosta tanto de marionetes”, pergunta Maxine. “Maxine, não tenho certeza.
Talvez seja a idéia de ser outra pessoa por um instante. Estar em outra pele, pensar
e mover-se diferentemente, sentir de outra maneira”, diz a marionete de Craig. Ao
mesmo tempo, o boneco olha para cima, descobre que não passa de uma
marionete, revolta-se e começa a quebrar o quarto em miniatura no pequeno palco
da oficina de Craig. O boneco revolta-se com a sua condição e quer libertar-se do
manipulador. Será a condição de John Malkovich mais à frente na estória.
O que temos aqui é o tema da crise de identidade no mundo contemporâneo.
Craig é um titereiro que, embora talentoso, está desempregado. Sua esposa Lotte
fala que ele deveria arrumar um pequeno emprego. “Quem vai querer contratar um
titereiro numa economia invernal como a de hoje”.
125
Como afirma Bauman
37
, as profundas mudanças econômicas e gerenciais do
mundo contemporâneo nos força a viver como jogadores que devem experimentar a
identidade como “novos começos”, ou seja, trocar identidades como trocamos de
roupas. Portanto, no filme, Craig passa de titereiro talentoso a arquivista na
Lestercorp (por ter mãos rápidas) e, após o trabalho, explora o “bico” de ganhar
dinheiro com o portal que conduz à cabeça de John Malkovich. Mas, nessas três
situações, uma coisa que as une: a busca de uma mediação que o faça
transcender a sua vida frustrada e melancólica: no começo, as marionetes e, no
final, a cabeça de John Malkovich. No primeiro caso, a transferência é simbólica, no
segundo é literal: transferir sua consciência para a Mediação. A narrativa associa
esta transferência a um aspecto religioso ou místico: a reencarnação. Esta
aproximação que o filme estabelece entre Identidade, Mediação e Reencarnação
lembra algumas considerações de Erik Davis sobre as transformações do
Gnosticismo na passagem para o século XXI:
Os antigos gnósticos acreditavam que a prisão cósmica era o mundo
material, o mundo da carne e destino. Mas no modelo Matrix atual, o
mundo falso tornou-se o mundo da mediação; Nessa nova visão, o
despertar espiritual não o arremessa a um céu incorpóreo, mas
conecta-o de volta ao mundo físico.
38
Todos os personagens centrais do filme, e os clientes da JM Inc., querem
viver os 15 minutos na cabeça de John Malkovich. Procuram transferir-se para uma
mediação como forma de transcenderem das suas existências infelizes. É uma
parábola do espírito de final de século, onde as novas tecnologias do virtual vão
oferecer através de avatares, perfis criados em blogs, orkuts, twitters etc. a
possibilidade de viverem outras ou múltiplas identidades. No filme os personagens
perceberão que é uma falsa gnose.
Ao contrário, o grupo do Dr. Lester procura a verdadeira gnose. Pretende
alcançar a vida eterna pregando um “pequeno” golpe no Demiurgo: driblar a lei da
Reencarnação. A mitologia gnóstica na reencarnação uma perversa estratégia do
37
Cf. BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
38
DAVIS, Erik. Techgnosis: myth, Magic and mysticism in the age of information London: Serpent Tail,
2004, p. 406.
126
Demiurgo para nos manter presos nesse mundo através do esquecimento.
Condenados a recomeçar sempre do zero, não somamos conhecimentos,
esquecemos por subtração. O grupo de Lester alcança a imortalidade não mais
reencarnando, mas transferindo a consciência para um “corpo recipiente” na sua
fase mais madura em termos de consciência e formação mental. Eles têm até a
meia-noite do dia designado para transferirem-se, pois, caso contrário, “seriam
absorvidos, presos, enjaulados no cérebro do anfitrião, impossibilitado de controlar
qualquer coisa, sentenciados a ver o mundo através dos olhos de outra pessoa”,
como afirma Dr. Lester. Ou seja, a prisão da Reencarnação, tal qual denunciada
pelo Gnosticismo. Enquanto Craig, Maxine e Lotte querem transferir-se para a
mediação pelo desejo de ver o mundo através dos olhos de outras pessoas, o grupo
de Lester quer mais do que isso: mantendo intacto o núcleo da consciência, pular de
um corpo para o outro alcançando a imortalidade e mantendo a identidade.
No Décimo Terceiro Andar o propósito de Hannon Fuller em criar um sistema
computadorizado de simulação é o de transferir sua consciência para as lembranças
da sua juventude (a Los Angeles de 1937), a imersão no ambiente virtual através de
um avatar (uma “unidade autônoma e autodidata”). É o arquetípico desejo de
retornar à Plenitinude original, à Origem idílica. O Gnosticismo desdobra esta
motivação em uma complexa mitologia que prevê, para alcançar esse desejo íntimo
de transcendência, um sistemático e disciplinado caminho para a busca da Gnose.
Uma jornada espiritual de autoconhecimento. Mas, como afirma ironicamente
Roszak, a tecnociência atual pretende encontrar um “atalho para Satori”. Sem
disciplina ou autoconhecimento pretende uma transferência automática para o
Outro, incorrendo, perigosamente em potenciais problemas éticos e morais numa
situação de inebriamento pelo poder
39
. É a “iluminação precoce” a qual se refere o
personagem Tyler em Clube da Luta. Embora o questionamento desse filme esteja
colocado em outro contexto (crítica aos grupos de auto-ajuda), o princípio é o
mesmo: a crítica aos métodos e técnicas que buscam soluções rápidas para
questões de cunho espiritual ou metafísico.
39
Cf. “Tecnognose: o ‘gnosticismo tecnológico’” intertítulo da Introdução dessa dissertação.
127
5.4. Água
Esse é outro elemento simbólico dominante no corpus de análise desse
presente trabalho. Podemos considerar como um elemento simbólico porque ele
sempre está presente em momentos-chave das narrativas (como rio, chuva,
tempestade, lago, mar). Ou seja, o aparece como mero ornamento ou
contextualização geográfica. Participa como elemento ativo de significação, fazendo
parte de mudanças decisivas na ação dos protagonistas ou na interpretação da
estória.
Segundo Chevalier e Gheerbrant, a água possui três simbolismos dominantes
que pudemos identificar em nossas análises fílmicas.
As significações simbólicas da água podem reduzir-se a três temas
dominantes: fonte da vida, meio de purificação, centro de
regenerescência. Esses três temas se encontram nas mais antigas
tradições e formam as mais variadas combinações imaginárias
40
Do corpus de 17 filmes analisados, em 16 aparecem ativos simbolismos
associados ao elemento água (a exceção é O Quarto Poder). Vejamos alguns
exemplos mais significativos.
O filme Homem Morto é a estória de um jovem homem que realiza uma
jornada, simultaneamente física e espiritual, em uma terra estranha para ele, nas
fronteiras extremas do oeste americano, em algum momento da segunda metade do
século XIX. William Blake é um contador que recebe convite para trabalhar em uma
metalúrgica na cidade de Cleaveland. Em legítima defesa, Blake mata o filho do
homem mais rico da cidade e foge. A partir desse ponto, começa o purgatório de
Blake: três pistoleiros contratados o perseguem para matá-lo. Ferido seriamente e
desorientado, Blake encontra um indígena estranho e misterioso chamado Nobody
(Gary Farmer) que o conduz por situações ao mesmo tempo cômicas e violentas.
Através de um mundo caótico e violento que transforma Blake em um assassino e
fora da lei perseguido por delegados e pistoleiros, seus olhos são abertos para um
40
CHEVALIER, Jean e GHEEBRANT, Alain. Op. Cit., p. 15.
128
mundo desconhecido e espiritual, conduzido pelos ensinamentos enigmáticos de
Nobody.
Após a longa jornada de ensinamentos espirituais, Blake defronta-se com o
momento da passagem para a morte. Em um ritual indígena, é colocado numa
canoa para ser conduzido pelo rio até o mar. A leveza da canoa conduzirá Blake
para a elevação espiritual. Água, correnteza, fluxo, “espelho de água”, elementos
simbolicamente identificados com o elemento espiritual. O rio está identificado com o
elemento simbólico do Salto de Blake: entregar-se ao fluxo, à incerteza da
correnteza. Ou seja, suspensão do pensamento como condição para possibilitara
gnose. E o rio conduz para a imensidão do mar, representado pela última tomada do
filme: a imensidão do lugar “para onde todos os espíritos retornam.”
Os Estranhos têm repugnância à água no filme Cidade das Sombras. A única
forma do Dr. Schereber conseguir privacidade é refugiar-se em uma piscina, local
onde os Estranhos não entram. Água possui o simbolismo de renascimento (todos
os seres vêm da água), purificação. Em quase todas as civilizações há relatos
míticos de inundações ou dilúvios como divisores de épocas, mudanças.
Exatamente aquilo que os Estranhos não desejam. A seqüência final onde John,
com seus poderes de sintonização, constrói uma Shell Beach real para recriar o
encontro amoroso com Emma, à beira do mar, diante do novo oceano criado por
John em torno da cidade detém esse simbolismo de transformações e mudanças.
No filme A Vida em Preto e Branco, o simbolismo da água está associado à
chuva (ou como dizem os habitantes de Pleasantville “chuva autêntica”, que a
eterna previsão do tempo do local é de tempo aberto, sol e máxima e mínima de 22
graus). A chuva ocorre no ápice das transformações em Pleasantville: a Sra. Parker
abandona seu lar para ficar com o seu amor secreto (Bill Johnson, o dono do
restaurante) e passa uma noite com ele; Jennifer recusa-se a ter mais uma noite de
sexo no banco de trás do carro com Skip para ficar em casa lendo o primeiro livro da
sua vida; David tem o seu primeiro encontro romântico da vida com uma garota;
George Parker chega em casa vindo do trabalho, diz o seu rotineiro “querida,
cheguei!” e não recebe nenhuma resposta e nem encontra o jantar pronto. Sua
esposa o abandonou. Cai um temporal, simbolismo de transformações, mudanças,
129
limpeza, como um dilúvio que leva tudo embora. Representativo o final da
seqüência: um plano geral de Pleasantville, do alto, com um arco-íris sobre a cidade.
Este elemento simbólico de transformação e renovação aparece sob várias
formas nos momentos chave da narrativa no filme O Décimo Terceiro Andar.
Primeiro, quando Ashton tenta afogar Ferguson (“possuído” pelo seu usuário
Douglas Hall) na piscina de um hotel. Neste momento, a consciência de Douglas
retorna ao Simulacro Dois. Ele desperta e vislumbra os problemas éticos e morais
que aquele projeto de criar mundos simulados implica. Discute com Whitney e
decide “puxar o fio da tomada”, acabar com o experimento. É o início da
transformação íntima de David. Um segundo momento é a chuva que cai em Los
Angeles no momento em que Douglas Hall trava o diálogo-chave com Jane Fuller,
elucidando ao personagem e ao espectador o enigma dos mundos simulados e do
“fim do mundo” na Los Angeles de 1998. A composição da imagem de Douglas Hall
com a água escorrendo no vidro da janela ao fundo, compõe uma iconografia e
simbolismo característica do filme noir: o mundo dissolve-se, as certezas se vão e o
protagonista perplexo, no centro da composição do plano. E, no final, o aparente
happy end com o casal apaixonado diante da praia em um belo pôr do sol. Água,
praia, horizontes implicam expansão das fronteiras, transformações radicais de visão
de mundo. É o outro possível final perturbador: também o Simulacro Um pode ser
uma simulação e, também, os protagonistas podem ser unidades autônomas e
autodidatas de outro sistema de simulação. Como veremos na Parte III
correspondente às análises fílmicas, o filme O Brilho Eterno de Uma Mente Sem
Lembranças também possui uma seqüência final com um casal feliz em uma praia,
igualmente com duas possibilidades interpretativas como típico happy end ou um
trágico final.
5.5. Iconografia Noir
Como vimos anteriormente o sabor gótico dos filmes gnósticos faz esses
aproximarem-se do gênero noir. Podemos perceber esta aproximação
principalmente em aspectos simbólicos e iconográficos.
130
Por exemplo, no filme O Décimo Terceiro Andar a iconografia do filme faz
diversas referências ao filme noir. O aspecto simbólico principal dessa aproximação
está na representação da inconsistência, incerteza ou imprecisão da realidade ou
daquilo que percebemos como uma realidade dada. A seqüência inicial do filme,
com trilha em jazz pungente e melancólico, com a voz do pensamento do
personagem enquanto escreve uma carta. Plano geral do teto do quarto mostrando
a mesa onde o personagem redige a carta. Típico plano dos filmes noir (figura 44).
Figura 44
A composição das cenas tem a dominância do sombrio e esfumaçado.
Personagens muitas vezes na contraluz. É um mundo onde a suspeita é dominante.
Nada está muito claro e parece que o mundo não possui solidez (figura 45)
Figura 45
Chuva e ruas molhadas ajudam a compor esse cenário de falta de solidez,
desconfiança ou suspeita generalizada. Houve um crime, mas todos teriam um
motivo para assassinar o Sr. Fuller (figura 46).
131
Figura 46
Após o assassinato, o surgimento do personagem feminino, uma loura
misteriosa que diz ser a filha do Sr. Fuller que ninguém jamais ouviu falar. No
primeiro take com seu rosto em close-up, temos a típica iluminação dos rostos-chave
nas narrativas noir: Partes superior e inferior mais escuras com a faixa central do
rosto (na altura dos olhos) mais iluminada (figura 47).
Figura 47
Personagens vistos por trás de reflexos em vidros como o da janela do carro
em movimento, janelas de apartamentos, divisórias de vidro etc. (figura 48).
“É fumaça e espelhos”. Esta frase dita por Douglas Hall para
Whitney/Ashton quando tenta explicar a irrealidade não do seu mundo (o
Simulacro Três) como também da Los Angeles atual (Simulacro Dois), é o resumo
do simbolismo noir persistente em todo o filme. “Somos apenas simulações de
computador. Sinto muito Ashton, estamos presos aqui... você e eu... e todo mundo”.
Aqui a iconografia associa-se com a simbologia gnóstica: o homem preso em um
cosmos criado pelo Demiurgo: Ashton e Douglas olham através da janela um mundo
cujas certezas dissolvem-se na chuva (figura 49).
132
Figura 48
Figura 49
Encontramos a iconografia e simbologia noir exclusivamente no grupo de
filmes do protagonista o Detetive. Por esse grupo lidar com o complexo temático da
identidade e memória, aproxima-se do gênero noir pelo fato desses filmes clássicos
aproximarem-se muito dessa mesma temática.
Uma explícita aproximação entre a estética noir e o tema da identidade está
no filme Identidade (Identity, 2003). São duas estórias paralelas que
progressivamente vão se interpenetrando: enquanto um psiquiatra tenta provar a
inocência de um homem acusado de assassinatos a poucas horas da sua execução,
dez pessoas, de variadas procedências, ficam presas em um motel no deserto de
Nevada impedidas de prosseguir suas viagens devido a uma violenta tempestade. O
filme aproxima-se do gênero noir tanto em aspectos narrativos (fluidez do tempo e
do espaço que leva à confusão e instabilidade), caracterização dos personagens
(todos são suspeitos pelos assassinatos seriais que começam a ocorrer no motel.
Cada um possui fantasmas interiores que caracterizariam as suspeitas) e iconografia
(chuva, o overcoat do protagonista, olhares de suspeitas que se cruzam, a
insuportável atmosfera de desconfiança sem possibilitar identificações do
espectador com os personagens, a utilização de planos escuros em profundidade,
etc.).
O filme possui um sabor gnóstico ao ligar o tema da identidade com o tempo
e a memória: os personagens confrontam-se num espaço cuja realidade torna-se
cada vez mais inconsistente e instável, como na cena em que um dos protagonistas
estende a mão para sentir as gotas da chuva, pressentindo a natureza artificial do
mundo em que se encontra: nada verdade tudo era uma invenção da mente de um
assassino serial cuja mente está fragmentada em múltiplas personalidades. É o
133
simbolismo noir clássico da chuva como dissolução das certezas e o overcoat do
protagonista como uma tentativa de proteger-se dos destroços de um mundo que
desaba.
5.6. Símbolos de Teorias Conspiratórias
São simbolismos que parecem ter uma dupla função: de um lado ampliar a
atmosfera conspiratória na qual está inserido o protagonista e reforçar a metáfora da
realidade material como uma prisão. Por outro, é um simbolismo que faz a delícia
daqueles espectadores aficionados em teorias conspiratórias. Dá um aspecto cult ao
filme. São simbolismos sutis, feitos apenas para um público restrito.
Por exemplo, em Vidas em Jogo dois indícios que trazem o
reconhecimento ao espectador, no mínimo, interessado em teorias conspiratórias.
Quando Nicholas está em um pub de um clube fechado para milionários, ouve uma
conversa sobre a empresa CRS. Pelo tom da conversa da roda de supostas
pessoas poderosas, a CRS é uma espécie de sociedade secreta, o que somente
aguça a curiosidade de Nicholas sobre o cartão da empresa ofertado pelo seu irmão.
Ao mesmo tempo, sabemos que a narrativa se desenrola em São Francisco, EUA,
notória por sediar, nas suas imediações, sociedades secretas ocultistas como, por
exemplo, o notório Bohemian Grove
41
.
Outra pista é o próprio logotipo da CRS. O triângulo do logo da CRS faz uma
sutil referência ao simbolismo maçônico do olho sobre o triângulo, numa associação
a uma sociedade secreta. Essa é a opinião inicial de Nicholas a respeito da CRS, o
que aumenta ainda mais o clima paranóico do Jogo.
41
O jornal Newsweek na sua edição de 2 de agosto de 1982 fez uma reportagem sobre o Bohemian
Club. Sua aparência é a de um clube de campo fechado somente para homens, mas, na verdade, é
uma sociedade secreta onde são reunidos, a cada verão, grandes personalidades no campo político
e econômico: "O mais prestigioso clube de verão - o Bohemian Club - está agora reunido a 75 milhas
ao norte de São Francisco. Fortemente guardado, reúnem-se todos os presidentes republicanos
desde Herbert Hoover . Com uma poderosa clientela, invejável privacidade e rituais cabalísticos, o
Bohemian Grove tem levantado suspeitas. Seu mais importante eventos é a ‘palestra à beira do lago’.
Esse ano, o orador será Henry Kissinger que falará sobre as "Mudanças dos anos '80". Outras
personalidades atuais como Bill Gates, George Bush e George Bush Jr. são freqüentadores
confirmados”.
134
No filme O Pagamento, a Allcom é a grande corporação que desenvolve,
secretamente, uma máquina capaz de prever o futuro. Como vimos acima, fica claro
na estória que a máquina, na verdade, cria profecias auto-realizadoras. É conhecida
a teoria conspiratória de que as grandes corporações têm não a capacidade de
prever o futuro, mas de fazê-lo, de fato, acontecer. Allcom é uma sutil referência a
uma conhecida teoria conspiratória ligada à GBN (Global Business Network),
empresa de consultoria de análises de cenários futuros sediada em São Francisco
(EUA). Segundo essa teoria, a GBN (famosa por criar o método de “análise de
cenários”) na verdade é formada por uma grande rede de notáveis em diversas
áreas (GBNers). Na verdade o futuro seria mais do que previsto, mas produzido e
acelerado a partir dessa rede mundial de GBNers. Governos e grandes corporações
pagam, na verdade, para saber o quê essa rede vai criar. Como relata a revista
Wired em artigo escrito por um próprio GBNer, Joel Garreau, lembra o conceito de
“psicohistória” proposto pelo escritor de ficção científica Isaac Asimov nos anos 40
em uma série de histórias conhecidas como A Trilogia da Fundação onde pessoas
criam a ciência da Psicohistória onde o futuro poderia ser previsto confiavelmente.
De posse dessas informações, uma elite aceleraria os acontecimentos para o futuro
previsto de fato acontecer
42
. Ou seja, uma espécie de profecia auto-realizadora.
Philip K. Dick parece inspirar-se nessa idéia de Asimov no conto Paycheck da
década de 50.
5.7. Iconografia religiosa
Podemos observar uma recorrência de elementos iconográficos religiosos nos
filmes analisados. Essa recorrência ou pode ser “neutra”, isto é, inserida na narrativa
como um elemento não crítico, como um recurso para pontuar ou reforçar um
argumento, ou, ao contrário, como forma ctica para tematizar ou, algumas vezes,
ridicularizar a religião.
A religião (no caso a católica) é ridicularizada e criticada no filme Homem
Morto. No primeiro momento, os pistoleiros Wilson e Conway encontram os xerifes
mortos. Um deles, no chão, tem a cabeça sobre restos de lenha queimada,
42
GARREAU, Joel, “Conspiracy of Heretics”, In: Wired, Issue 2.11, Nov. 1994.
135
formando o aspecto de um ícone religioso como auréola em torno da cabeça (figura
50). “Parece um maldito ícone religioso”, diz Wilson. Em seguida pisa na sua
cabeça, esmagando-a, sob o olhar de desprezo do pistoleiro. Na segunda
seqüência, em um posto de trocas de um missionário religioso e repleto de citações
da Bíblia afixadas nas paredes, a visão religiosa cristã se contrapõe à visão
espiritual e gnóstica de Nobody: “Sua visão que você diz ter de Cristo é a maior
inimiga de minha visão.” O catolicismo como o grande inimigo do Gnosticismo. A
crítica da religião como instrumento de consolação que nos prende ainda mais ao
cosmos manufaturado pelo Demiurgo.
Figura 50
A utilização de iconografia religiosa como forma retórica de reforço da
narrativa pode ser encontrada em A Vida em Preto e Branco. Após Betty Parker ter
uma pequena aula com sua filha Mary Sue de como se pode ter prazer sexual sem a
companhia do marido, ela masturba-se em uma banheira com água (novamente, a
simbologia da água como elemento ou ambiente de transformações) enquanto seu
marido tenta dormir. Em êxtase por experimentar um autêntico orgasmo, começa a
ver o banheiro colorido. No auge do prazer, a árvore no jardim da casa pega fogo
(fato inesperado pois em Pleasantville nada entra em combustão). A imagem é
simbolicamente forte, numa clara referência bíblica à forma como Deus se
manifestava a Moisés: um arbusto que queimava, mas nunca se consumia (figuras
51 e 52).
136
Figura 51
Figura 52
A Alameda dos Namorados é o primeiro lugar em Pleasantville a ficar
totalmente colorido. Lá, os jovens descobrem a sexualidade no banco de trás dos
carros e tomam banho no lago totalmente nus. Através da inocência, por serem
personagens ficcionais, experimentam fascinados o totalmente novo, com o olhar
ingênuo da primeira vez. O mesmo ocorre com David. Nunca havia conseguido um
encontro com uma garota na sua vida. Pela primeira vez tem um encontro amoroso.
Embora seja do mundo real, experimenta a mesma situação dos seres ficcionais: a
ingenuidade da primeira vez. A composição dos planos sugere uma analogia com
um paraíso, algo como o Jardim do Éden (figuras 53 a 55). O simbolismo confirma-
se com a oferta dos frutos proibidos a David, proibidos por serem coloridos.
Figura 53
Figura 54
137
Figura 55
Outra referência é a do fruto proibido. A namorada de David, Christin, quer
saber como é o mundo fora de Pleasantville. Fascinada, ouve a descrição de David
e responde excitada: “uma noite dessas uns jovens vieram nadar aqui sem roupa
nenhuma”. Em seguida oferece uma porção de blueberries e come uma com olhar
lânguido para David. Fala que há muitas outras frutas naquele jardim. Ela levanta e
corre ao encontro de uma árvore, tendo uma enorme lua cheia ao fundo (figuras 56
e 58). A mão retira uma maça do galho, revelando, mais uma vez, a enorme lua
cheia (figuras 57 e 58). Com o olhar extático, oferece a maçã a David (figura 59).
Mais tarde, o Demiurgo/Sr. Técnico de TV reaparece para David num monitor para
acusar David de ter comido o fruto proibido. Apresenta um video-tape como prova e
o expulsa daquele lugar: “você não merece estar nesse paraíso” (figuras 60 e 61).
As imagens têm forte analogia com o simbolismo bíblico do fruto proibido no
Paraíso, associado ao simbolismo místico da Lua símbolo da feminilidade. Como
símbolo da fecundidade está associado às águas que provocam o início da criação.
Coincidência ou não, a próxima seqüência é a da “chuva autêntica” em Pleasantville
que marcará o ápice das transformações na cidade.
138
Figura 56
Figura 57
Figura 58
Figura 59
Figura 60
Figura 61
Outra referência bíblica é o evento do arco-íris após o dilúvio. Logo depois da
tempestade inédita em Pleasantville (marcando simbolicamente as grandes
transformações existenciais dos personagens centrais da narrativa) surge um arco-
íris sobre a cidade. A imagem é duplamente simbólica: de um lado, representa a
consolidação da vinda das cores e, por outro lado, forte associação com o arco-íris
no final do dilúvio bíblico (figura 62).
139
Figura 62
5.8. Simbolismos recursivos
Um elemento que chama a atenção nos filmes analisados são as diversas
referências a M.C. Escher, ou pelas composições visuais ou por referências diretas
às obras do artista. Estas constantes referências são muito mais do que um recurso
estilístico ou citações que façam à delícia de espectadores em busca de obras
candidatas a tornarem-se cults. Têm um forte simbolismo que se imbrica na própria
descrição gnóstica de universos alternativos que se interpenetram, eventos que
desafiam a gica linear causa/efeito e a diluição das fronteiras entre ilusão e
realidade. É a lógica da recursão, cujas obras de Escher são o grande exemplo
A célebre ‘mão que desenha a mão’ emaranha ainda mais a hierarquia
que se torna assustadora para a razão linear: como fazer a marcação e
discernir entre causa e efeito, aquele que desenha e o que é
desenhado, o operador e seu objeto? Essa figura parece a fixação em
câmera lenta de um turbilhão ou causalidade circular
43
A “causalidade circular” é muitas vezes simbolicamente e iconograficamente
representada, como no filme O Pagamento. Vimos acima que o tema da
representação paradoxal do futuro nesse filme (a quina que produz profecias
auto-realizadoras) já é o princípio da circularidade. Há referências a obras de Escher
e representações iconográficas do círculo: plano em close de bolas boading
chinesas nas mãos do protagonista (figura 63). O plano termina em fade out com o
43
BOUGNOUX, Daniel. Op. Cit., p. 233-4.
140
plano do eixo das hélices de um helicóptero, sobreponde-se às formas circulares
(figura 64); bola de cristal no primeiro encontro entre Hethrick e Jennings, uma
referência irônica à capacidade de ver o futuro buscado pela Allcom (figura 65);
reflexo numa superfície curva da chegada de Maya simulando ser Rachel no Café
Michel numa referência a uma obra de Escher (figuras 66 e 69); ainda no Café
Michel, plano em close da xícara de café com formas turbulentas circulares, numa
referência simbólica à Teoria do Caos (figura 67); uma lente curva, um dos objetos
no envelope, que amplia os diversos selos de Einstein na parte externa.
Figura 63
Figura 64
Figura 65
Figura 66
141
Figura 67
Figura 68
Figura 69
Figura 70
Uma referência ao espaço curvo de Einstein e a possibilidade de ver o futuro
(figura 68); um plano em grande angular para focar o laboratório. O ponto de vista é
o da máquina de prever o futuro, que se constitui a partir de uma lente curva que
simula a curvatura do universo (figura 70).
Em Donnie Darko, no quarto de Donnie um pôster de uma famosa gravura
de Escher de um olho cuja pupila reflete um crânio. A referência não é casual: a
interpenetração de um futuro alternativo no tempo presente produz uma
circularidade causa/efeito que produz ambigüidade e incerteza no final.
A cidade-laboratório dos Estranhos em Cidade das Sombras apresenta uma
iconografia que lembra muito as obras de Escher. Mas não apenas isso: a
interpenetração entre realidade e ilusão representa a própria natureza da cidade no
filme.
142
*******
As análises fílmicas encontraram no filme gnóstico o mesmo paradoxo
salientado pelos pensadores gnósticos do início da era cristã: como pode o iniciado
buscar a gnose superando as limitações somáticas? Se a percepção do que
entendemos ser a realidade determina nosso pensamento, como podemos
transcender tudo isso? Se o Romantismo dos séculos XVIII e XIX expressava
essa angústia em representar o incognoscível, em superar as limitações da
linguagem e tentar captar o transcendente no devir, o filme gnóstico parece partilhar
dessa preocupação.
É marcante no plano narrativo dos filmes analisados uma espécie de
reflexividade ou auto-consciência das limitações da representação por meio de
recursos irônicos como a fragmentação, as limitações da voz narrativa (muitas
vezes, tal qual o espectador, o narrador tem uma visão precária e limitada da própria
estória que relata), as narrativas em abismo, as desarticulações temporais (narrativa
espelhada, predominância do tempo psicológico etc.) e finais ambíguos com
interpretações que se anulam. É como se o filme gnóstico quisesse expressar no
plano da linguagem, a própria angústia do protagonista que vê a aparente solidez da
realidade ser colocada em xeque.
Como também vimos, o tempo é outro elemento a ser desarticulado pela
narrativa: o devir linear é questionado por uma recursividade do futuro (o futuro
como resultante de uma profecia auto-realizadora ou como uma repetição
“espelhada” como em Homem Morto). As simbologias recursivas como as diversas
referências às obras de Escher reforçam essa visão do tempo como uma
causalidade circular.
Esses são os grandes temas que o filme gnóstico recorrentemente aborda:
Jogo, Memória, Identidade ou a perda da memória e identidade, Melancolia e
Confronto. Temas esses que parecem atualizar os temas míticos das narrativas
gnósticas do início da era cristã: Emanação, Queda e Ascensão. O Jogo que, tal
qual um mantra, conduz à suspensão e o grau zero de sentido (o distanciamento da
materialidade e do corpo), os temas da Memória e Identidade que apontam para o
143
esquecimento humano da verdadeira origem e da ignorância do fato de carregar
dentro de si um fragmento dessa origem (a fagulha de Luz) e o Confronto que parte
da tomada de consciência do mal estar essencial do homem no mundo, a
confirmação de uma secreta desconfiança de que somos estrangeiros à espera do
confronto final com forças que não nos amam.
144
PARTE III – Análises Fílmicas
Se na Parte II apresentamos uma descrição geral das análises fílmicas,
procurando travar um diálogo entre os filmes e estabelecer as características gerais
dos seus respectivos grupos, agora vamos nos deter em três análises fílmicas
integrais. Analisaremos um exemplo retirado de cada um dos grupos de filmes em
torno dos quais organizamos o corpus de análise. Como vimos, cada um desses
grupos são compostos por filmes cuja característica comum é a forma como o
protagonista alcança a gnose. Em outras palavras, cada grupo vai apresentar um
diferente estado alterado de consciência (suspensão, paranóia ou melancolia) que
possibilitará a reforma íntima necessária para alcançar a gnose. Nessas análises
fílmicas exemplares vamos observar três diferentes formas pelas quais se articulam
os planos da linguagem cinematográfica. Vamos priorizar a análise fílmica de cada
exemplo para destacar a dinâmica interna entre os diversos planos da linguagem
fílmica: narrativa, personagens, temas, iconografia e simbolismo.
GRUPO 1 – O Viajante (suspensão)
Filme: Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças
(Eternal Sunshine of the Spotless Mind)
Ano de produção: 2004
Diretor: Michel Gondry
Estória e Roteiro: Charlie Kaufman
1. Sinopse:
Joel Barish (Jim Carrey) é um homem introvertido e Clementine Krucznsky
(Kate Winslet) é a namorada impulsiva e com espírito livre. Eles são
inexplicavelmente atraídos um pelo outro apesar das suas diferentes
personalidades.
Eles o sabem, mas são ex-amantes, separados após dois anos juntos. Após uma
discussão Clementine teve suas memórias desta relação apagadas voluntariamente
145
de sua mente as se submeter a um revolucionário processo de apagamento
mental. Joel fica arrasado ao encontrar-se com Clementine e perceber que ela não
lembra mais dele. Submete-se ao mesmo procedimento de apagar suas memórias.
No entanto, embora inconsciente durante o processo, Joel tem pensamentos decide
manter suas memórias de Clementine.
Grande parte da narrativa ocorre dentro das memórias de Joel onde tenta
encontrar uma maneira de preservar suas memórias de Clementine enquanto os
dois técnicos da Lacuna Inc., Patrick (Elijah Wood) e Stan (Mark Ruffalo), tentam
apagar as memórias. Assistimos as memórias sobre a história de Joel e Clementine
sendo contadas em sentido inverso. As memórias são lentamente apagadas
enquanto Joel tenta de tudo para resistir ao processo e esconder-se no interior de
sua mente. Os cnicos da Lacuna Inc. revelam-se mais do que personagens
periféricos: seus relacionamentos demonstram os danos potenciais que podem ser
causados pelo procedimento de apagamento das memórias. Mary (Kirsten Dunst),
recepcionista da empresa, teve um caso com o médico, o Dr. Howard Mierzwiak
(Tom Wilkinson), inventor do procedimento e dono da Lacuna Inc. Ela concordou em
ter as memórias desse relacionamento apagadas depois que a esposa de Mierzwiak
descobriu o relacionamento. Patrick, que é solitário e socialmente inepto, torna-se
obcecado por Clementine e usa os arquivos das memórias apagadas de Joel com a
finalidade de seduzir Clementine. Estas disputas românticas acabam tendo um efeito
crítico sobre a história principal do relacionamento entre Joel e Clementine.
Inconformada depois de descobrir o apagamento das memórias do seu caso
com Mierzwiack, ela rouba os arquivos das memórias apagadas da empresa e envia
todos os seus clientes. Assim, Joel e Clementine ouvem seus depoimentos gravados
no laboratório da Lacuna Inc. e, mais tarde, percebem que, mesmo que tudo na vida
não seja perfeito, o seu relacionamento pode ainda dar certo.
2. Narrativa:
O filme apresenta uma narrativa complexa de inserção: a narrativa é
construída numa justaposição de acontecimentos pertencentes a planos temporais e
146
espaciais diferentes. O objetivo parece o de gerar uma representação que, a
princípio, é subtraída de qualquer relação de causalidade. As relações de
causalidade vão surgindo na medida em que a narrativa aproxima-se do final e
retorna à seqüência inicial de Joel despertando em mal-estar e impulsivamente
tomando um trem para Montauk.
Como todo filme que trabalha com elementos gnósticos, a narrativa provoca
um entrelaçamento temporal que esvazia a noção de tempo cronológico em favor do
conceito de duração. Temos diversas instâncias narrativas:
a) Seqüência de abertura antes dos créditos iniciais e seqüência final de retorno à
cena de Joel despertando após o apagamento das memórias. Em narrativa clássica
com Joel-narrador nas seqüências iniciais, narrando do que ele lembra dos seus
atos pós-desmemorização.
b) Após elipse, em narrativa clássica apresentando o que deu início a tudo: os
técnicos chegando à casa de Joel para iniciar a intervenção de desmemorização.
c) Após elipse, memórias que Joel começa a reviver como se estivessem realmente
acontecendo. Metáforas começam a ser inseridas para caracterizar que se iniciou a
intervenção técnica de desmemorização: em muitos momentos a qualidade da
imagem e do som se deteriora (por exemplo, quando Joel conversa com o seu
vizinho Frank no lobby da entrada do prédio onde reside). Ou quando subitamente
detalhes diluem-se à vista como, por exemplo, na cena em que o nome de
Clementine vai embaçando até desaparecer em um cartão da Lacuna Inc. que Joel
estava lendo, ou quando os livros na Bernes and Noble (livraria onde Clementine
trabalhava) vão tornando-se brancos até desaparecerem. (figura 71)
d) Constantes presenças de metonímias (ou “deslocamentos” em um sentido da
linguagem onírica freudiana): por exemplo, quando Joel lembra a cena traumática
onde encontra Clementine com outro homem na livraria. Joel sai caminhando da
cena e retorna à casa onde conversava com seus amigos, como fossem espaços
contíguos.
147
e) Resultante de uma variação na voltagem dos equipamentos dos técnicos que
estão apagando a memória, Joel torna-se consciente em sua própria memória.
Observa a si mesmo, podendo interagir com os participantes (figura 72). Joel
experimenta isso como um déjà vu, inclusive antecipando a fala dos personagens.
f) Memórias nas quais Joel é o narrador (por exemplo, a seqüência do jantar no
restaurante chinês Kang) (figura 73).
g) Memórias nas quais Joel é um participante, mas ele pode mudar as ações do seu
personagem e mudar a conclusão dos eventos (por exemplo, na seqüência da
estação de trem onde segura a mão de Clementine para buscarem um lugar seguro
para escapar do processo de apagamento das memórias). Esse poder de Joel se
inicia a partir de um estado paranóico ao ouvir continuamente vozes externas à
diegése, vozes provenientes dos técnicos que estão na sua casa manipulando os
equipamentos da Lacuna Inc. Aos poucos, Joel vai compreendendo o intuito e a
procedência dessas vozes, iniciando a fuga de Joel e Clementine pelo labirinto das
memórias (figura 74).
h) Memórias nas quais Joel revisita vários momentos da sua infância. Nesse
momento, é como se Joel perdesse a concentração e você absorvido pelo Joel
criança, perdendo momentaneamente a consciência da situação. Metaforicamente
são alternados planos com Jim Carrey em trompe-l’oeil como Joel criança e planos
com um ator infantil como Joel, para representar este processo de absorção
momentânea (Figuras 75 e 76).
j) Memórias (ou Meta-memórias) onde Joel revisita lugares da memória que não
foram corretamente apagadas pelos técnicos. Por isso, Joel interage com
participantes degradados ou não totalmente apagados. (figura 77).
148
Figura 71
Figura 72
Figura 73
Figura 74
Figura 75
Figura 76
149
Figura 77
Elementos da ironia estão presentes na narrativa em duas formas: primeiro,
com a inserção de diversas instâncias narrativas, algumas vezes em uma mesma
seqüência, confundindo-se os pontos de vista subjetivos e objetivos ou do Joel
narrador das suas memórias, participante de eventos ou interagindo
conscientemente com personagens das suas memórias
Em outro momento o elemento irônico está presente na seqüência final com
Joel e Clementine correndo pela gelada praia de Montauk em fevereiro é ambígua,
podendo ser interpretada como dois finais excludentes: ou assistimos a um típico
happy end romântico em um final clichê com casais enamorados correndo felizes à
beira do mar ou um final trágico: as seqüências de Joel e Clementine após o
apagamento de memória ter sido finalizado, retornando ao primeiro plano que inicia
o filme (Joel despertando em sua cama pela manhã), poderiam ser mais uma
instância narrativa interna das memórias de Joel. A partir daí até o final poderíamos
estar vendo mais narrativas das memórias de Joel. Na seqüência de desfecho na
praia de Montauk as imagens do casal vão dissolvendo-se em fade out para o
branco (figuras 78 a 80). Isso acontece também em algumas seqüências anteriores
aonde objetos vão tornando-se brancos adesaparecerem (como na seqüência do
desaparecimento dos livros na Bernes e Noble) como metáfora de apagamento das
memórias. Além disso, uma descontinuidade na corrida do casal, em loop: a
corrida repete-se até o fade out. Novamente, este loop aparece como metáfora de
apagamento ou degeneração da memória como na seqüência em que Joel persegue
Clementine pela rua após uma discussão: o tempo e a perspectiva parecem estar
150
em loop, impossibilitando Joel de chegar ao final da rua e alcançar Clementine
(Figuras 81 e 82).
Figura 78
Figura 79
Figura 80
Figura 81
Figura 82
151
3. Temas:
O tema geral do filme é a Memória. Voluntariamente os personagens utilizam
os serviços da Lacuna Inc. para apagar suas memórias para poderem seguir em
frente nas suas vidas, sem o peso emocional (rancor, raiva, tristeza, saudades etc.)
de fracassos de relações amorosas do passado. Apesar do esquecimento produzido
por uma intervenção cnica, Clementine e Joel sentem o mal-estar dos buracos
existentes em suas memórias. Estes buracos são experimentados ou como
melancolia (Joel não escrevia diários porque, para ele, sua vida apenas produziria
páginas em branco) ou como paranóia. Por exemplo, Clementine é tomado pelo
pânico persecutório ao ter déjà vus com tudo que Patrick falava (na verdade ela
roubara os arquivos das memórias apagadas de Joel e as usava na tentativa de
conquistar Clementine – figura 83).
Por fim, o jogo. Joel resista ao processo de apagamento das suas memórias
ao tentar fugir, com Clementine, através dos seus labirintos mentais. Temos um jogo
de esconde-esconde entre os técnicos da Lacuna Inc. que, através das telas de
seus computadores e notebooks, rastreiam e caçam o casal em fuga. Mesmo as
interações de Joel com os participantes das suas memórias têm um quê de lúdico e
game eletrônico. Sintomaticamente, podemos encontrar no site do próprio filme um
game interativo a partir dessas passagens do filme (figura 84).
Figura 83
Figura 84
152
4. Personagens:
Joel se enquadra enquadrar no protagonista O Viajante ao se inserir em uma
narrativa como participante de um jogo que, pelo menos a princípio, não sabe como
começou e quando ou como irá acabar. Embora tanto Joel como Clementine tenham
voluntariamente adquirido os serviços de apagamento de memórias, a técnica (ou o
jogo) foge do controle, tanto para os usuários como para os técnicos. A fuga do
casal através dos labirintos da mente assume um caráter épico, como uma viagem
através da qual os personagens sofrerão uma transformação íntima. Nesta “viagem
ou “jogo” as fronteiras entre ficção e realidade, realidade e projeção psíquica se
confundem, produzindo um estado de suspensão que metaforicamente é
representado pela figura do “salto”. No filme, o “salto”, o estado de suspensão, é
representado na seqüência após Clementine sugerir a Joel se encontrarem em
Montauk após tudo acabar. Joel entrega-se e desiste de fugir dos técnicos da
Lacuna Inc. Este “salto” é representado pela visão, em travelling através da janela
de um carro, de suas memórias sendo apagadas. O carro está acelerado (Vozes em
off: “você está chapado e dirigindo”, diz Clementine. “Sim, a maconha dá equilíbrio”,
reponde Joel – figura 86). É como Joel saltasse para a morte, renunciando a
qualquer esperança. Suspensão, grau zero de sentido.
Temos como personagem representante do Demiurgo o Dr. Mierzwiack, proprietário
da Lacuna Inc. e cientista desenvolvedor da técnica de apagamento de memórias.
Tal qual na mitologia gnóstica, o Demiurgo aprisiona o homem dentro de um cosmos
artificialmente criado com o objetivo de manter em seu mundo as partículas de Luz,
partículas emanadas do Pleroma e contidas no ser humano. Mierzwiack não apenas
apaga as memórias de seus clientes como as mantém arquivadas em seu poder
(fitas gravadas, objetos pessoais, cartas, presentes etc. figura 87). O Demiurgo
induz o homem ao “sono do esquecimento” (Mierzwiack aplica mais uma injeção
com drogas na tentativa desesperada de Joel acordar e interromper o processo de
apagamento das memórias – figura 88).
Stan, Patrick, os técnicos auxiliares do Dr. Mierzwiack e Mary (recepcionista da
Lacuna Inc.) são os Arcontes. Tal como na mitologia gnóstica, são personagens que
maliciosamente induzem e tentam manipular os personagens, induzindo-os ao “sono
153
do esquecimento. Mas, como Demiurgos que se consideram as únicas divindades
do cosmos, tornam-se inebriados com o seu poder. Stan e Patrick perdem os freios
éticos. Patrick rouba os arquivos das memórias apagadas de Clementine para tentar
seduzi-la. Durante a noite, no apartamento de Joel, enquanto colocam o computador
que opera o apagamento das memórias no automático, Patrick e Stan fumam
maconha e esvaziam a garrafa de uísque do armário da cozinha (figura 89).
O personagem de Clementine atende a diversas características de Sophia das
narrativas míticas gnósticas. Ela entra na vida de Joel para tirá-lo de uma espécie
de condição letárgica (“minha vida não daria uma página de diário”) que é ainda
reforçada pelo sono induzido pelos cnicos da Lacuna Inc. Embora introvertido e
contido, é inexplicavelmente atraído pela impulsividade e inconseqüência de
Clementine. Em vários momentos da narrativa, ela exorta Joel para que “acorde” ou
“faça o seu melhor” para que as memórias sejam mantidas a salvo do processo de
apagamento.
“Clementine: Olha cara vou avisando... sou de alta manutenção, então.
Não vou pisar leve em volta do seu casamento, ou seja lá o que for. Se
quer ficar comigo, fica comigo. Muitos caras pensam que sou um
conceito, ou ... que os completo ou que vou fazê-los se sentir vivos. Mas
sou só uma garota ferrada, buscando minha paz de espírito.
Joel: Eu pensava que você salvaria minha vida.
Clementine: Lembre-se de mim. Faça o seu melhor.
Clementine trabalha em uma livraria, a Bernes & Nobles numa alusiva associação
entre o conhecimento e a consciência que ela quer trazer para Joel (figura 85).
Figura 85
154
Figura 86
Figura 87
Figura 88
Figura 89
5. Simbolismos e Iconografia
5.1. Água
Temos a presença da água em seus diversos estados (líquida, congelada,
inundação, chuva) é presença constante em momentos chaves da narrativa.
No pic-nic noturno de Joel e Clementine no lago congelado vemos as
diferenças entre Clementine e Joel. Ela é impulsiva e arrisca-se sobre o gelo fino e
trincando em alguns lugares diante de um Joel temeroso e contido. O plano de cima
do casal deitado sobre a superfície gelada e trincada tornou-se emblemática e o
pôster de divulgação do filme (figura 90).
No segundo encontro no lago, desta vez no interior das suas memórias, Joel
arrepende-se de contratar os serviços da Lacuna Inc., principalmente depois de
155
entender que as vozes extra-diegéticas eram dos técnicos em seu apartamento e
tomar consciência do complô de Patrick para seduzir Clementine.
Desesperadamente tentar fazer contato com o mundo exterior. E o que é curioso,
apelando para os céus (uma metáfora religiosa ou mística – figuras. 91 e 92).
Figura 90 Figura 91
Figura 92
Figura 93
156
No terceiro encontro no lago congelado. Dessa vez Patrick tenta reviver como
farsa o encontro das memórias apagadas de Clementine. Patrick diz as mesmas
falas ditas no passado por Joel, provocando um déjà vu em Clementine, deixando-a
paranóica e, desesperada, quer voltar para casa (figura 93).
Na fuga do casal através dos labirintos das memórias de Joel, Clementine
sugere escondê-la em memórias as quais ela não pertença. Joel, então, retorna para
Figura 94
Figura 95
Figura 96
Figura 97
Figura 98
157
uma lembrança da infância, na chuva, pulando nas poças e correndo na lama
(figuras 94 e 95).
Na sequência-chave da narrativa aonde Joel e Clementine revivem o primeiro
encontro na praia de Montauk. Clementine invade uma casa de veraneio diante de
um Joel temeroso diante da impulsividade dela. Enquanto a casa se desmorona por
causa da ação dos técnicos da Lacuna Inc., Joel faz uma mea culpa do seu
comportamento reticente naquela noite, temeroso por embarcar na fantasia
romântica de Clementine. Enquanto isso, a casa passa a ser inundada pelo mar.
Joel anda na sala com água acima dos tornozelos enquanto Joel faz um balanço dos
seus erros (“queria ter feito um monte de coisas” – figura 96).
Outra seqüência com lembranças da infância. Dessa vez em um mecanismo
onírico de condensação, Joel e Clementine estão dentro da cuba da pia da cozinha,
mergulhados na água com sabão, diante da e. “Um sentimento tão grande de
segurança”, diz Joel (figura 97).
Na seqüência onde Joel mostra uma caricatura de Clementine em um
esqueleto dentro de um barco em um mar revolto (figura 98).
5.2. Acordar/despertar:
Temos esse simbolismo logo no primeiro plano do filme: close no rosto de
Joel acordando com uma estranha sensação (figura 99).
Outro momento é quando Joel, ao atravessar a rua indo em direção da
Lacuna Inc. e carregando objetos das suas memórias de Clementine em dois sacos
de lixo, quase é atropelado por um furgão preto. “Acorda meu chapa”, grita o
motorista após frear (figura 100). Irônico, pois nesse instante Joel dorme em seu
apartamento enquanto os técnicos operam os equipamentos de apagamento de
memórias. Podemos listar outros momentos ao longo do filme em que esse
simbolismo é recorrente:
158
a) Enquanto os “arcontes” Patrick, Stan e Mary demonstram o inebriamento do
poder ao dançar, beber e fumar dentro do apartamento do adormecido Joel, Mary
demonstra preocupação diante da algazarra: “Vocês podem acordá-lo?”
(figura 101)
b) decidido em cancelar o procedimento contratado à Lacuna Inc. e preso nas
suas memórias pelo sono induzido pelos técnicos, Joel conversa preocupado com
Clementine: “Não posso cancelar, estou dormindo”. Clementine exorta: “acorde,
então!”(Figuras 102 e 103).
c) Nesta mesma seqüência, Joel força abrir seus olhos com os dedos, num gesto
caricato para demonstrar a Clementine seu desespero por querer despertar. Mas,
surpreendentemente começa a dar certo. Ele abre os olhos no mundo exterior, vê o
teto do seu apartamento e ouve as vozes dos cnicos fazendo uma abusiva
pequena festa, mas não consegue se mexer. Clementine ainda está cética com a
teoria conspiratória de Joel e toma como uma experiência mística qualquer. “Não
será mais uma profecia de Joel?”, diz Clementine (figura 104).
d) “Os olhos dele estão abertos”, diz os técnicos para o Dr. Mierzwieck. “Isso não é
bom”, responde ele. Em seguida aplica mais uma injeção com drogas para induzi-lo
ao sono. Planos e seqüências com o olhar/acordar o constantes na narrativa
(figura 105).
Figura 99
Figura 100
159
Figura 101
Figura 102
Figura 103
Figura 104
Figura 105
5.3. Símbolos de teorias conspiratórias
referências às teorias conspiratórias na seqüência inicial do filme, quando
Joel tem um impulso para pegar o trem para Montauk e faltar ao trabalho. Por que
Montauk? É uma sutil referência à célebre teoria conspiratória do Projeto Montauk,
160
cujo conteúdo tem a ver com a própria temática do filme. O Projeto Montauk seria
um projeto secreto empreendido pela inteligência militar dos EUA com experiência
de intervenção psíquica por meio de drogas e equipamentos eletrônicos para fins de
espionagem e interrogatórios. Mas o efeito colateral seria a descoberta da
possibilidade da viagem no tempo através da consciência. O plano de câmera em
que Joel esparado na plataforma da estação de trem com a placa “Montauk” em
destaque tem o aspecto de uma iconografia simbólica (figura 106).
Novamente o espírito conspiratório está de volta quando Joel pensa sobre a
verdadeira razão da existência do Dia dos Namorados: “hoje é um feriado inventado
pelas empresas de cartões comemorativos para fazerem as pessoas se sentirem um
lixo”. Joel pensa isso em uma plataforma de trem. O plano aberto mostrando as
pessoas comuns com ar conformista dá uma moldura a esse pensamento. A partir
disso, Joel tem o impulso sair correndo dali e pegar o trem para Montauk (figuras
107 e 108).
Figura 106
Figura 107
Figura 108
161
6. Análise e Comentário
Temos duas pistas que fundamentam a presença de elementos gnósticos
nesse filme. Primeiro: o roteirista Charlie Kaufman, além de ter sido roteirista do
filme Quero ser John Malkovich, é autor também de um roteiro não produzido do
filme O Homem Duplo (A Scanner Darkly, 2006) baseado em estória do escritor
Philip Dick, assumidamente gnóstico
1
. Segundo, o título do filme foi retirado de um
verso de um poema de Alexander Pope, poeta inglês do século XVIII com fortes
influências do Iluminismo e gnosticismo
2
Memória e tempo são os temas centrais no filme. Para o gnosticismo o tempo
é engano, mistificação, alienação e mentira. Dentro da cosmologia criada pelo
demiurgo o homem é um prisioneiro do tempo. O tempo pertence ao mundo
material, enquanto que o mundo superior é atemporal. O gnóstico aspira ser liberado
do tempo, libertar-se da fatalidade que reina nesse cosmos. Lacuna Inc. oferece um
conforto diante da fatalidade do tempo: o esquecimento para que possamos seguir
em frente em nossas vidas, sem o peso das reminiscências.
Se o demiurgo Dr. Mierzwiack quer impor a fatalidade, a ordem cronológica
do tempo, os personagens Joel e Clementine lutam em um sentido oposto. Joel faz
o percurso das suas memórias em caminho inverso: do último encontro na
discussão em seu apartamento ao primeiro encontro, na praia de Montauk, onde
temos a seqüência chave da narrativa que sintetiza elementos (narrativa,
simbolismos, iconografia) que encontramos ao longo do filme. Instâncias narrativas
confundem-se para esvaziar o sentido cronológico em favor do conceito de duração,
a irônica estratégia dos protagonistas (inventam uma nova memória dentro da
memória que está sendo apagada pelos técnicos representada pelo
desmoronamento da casa figura 109: inventam uma despedida que não existiu na
primeira vez). Estratégia irônica presente, por exemplo, também no filme Show de
1
Cf. DICK, Philip K. Confessions of a Crap Artist. New York: Pocket Books, 1982.
2
LUND, Roger D. Orthodoxy and Heresy in EighteenthCentury Society. Edited by Regina Hewitt and
Pat Rogers. Lewisburg, Pa.: Bucknell University Press, 2002.
162
Truman onde para escapar do mundo simulado Truman cria outra simulação para as
câmeras.
Figura 109
Vamos analisar esta sequência-chave:
Clementine sobre as escadas rindo. A casa está se desmoronando.
Pedaços caem.
Joel (depois de chamá-la): Eu realmente tenho que partir. Tenho que
tomar meu rumo. (sai andando pelo corredor)
Ouve-se Clementine de fora do plano: então vá.
Joel: e eu fui. Pensei que você fosse uma maluca.
Joel (em off): Mas você era excitante
(agora o piso da casa torna-se areia da praia. Mais pedaços caem por
todos os lados)
Ouve-se Clementine. A câmera permanece em detalhe nas pernas de
Joel que caminha. Agora o piso da casa é tomado pela água do mar:
queria que você tivesse ficado!
Joel: “Eu queria ter ficado também. Agora eu queria ter ficado” (plano
médio em Joel que anda de um lado para outro na sala diante de ampla
janela. Vêem-se pela janela as ondas do mar estourando praticamente
ao lado da casa)
Joel: Queria ter feito um monte de coisas. Oh Deus, queria que eu
tivesse... queria ter ficado ... queria (plano em detalhe nas pernas de
Joel que caminha. Sobe o nível das águas no piso da sala).
Ouve-se Clementine de fora do plano. (câmera permanece em Joel que
não pára de andar de um lado para outro): Bem, eu desci e você tinha
ido embora
Joel (rindo): É, eu saí andando pela porta
Clementine: Por quê?
163
Joel (riso sem graça): “Não sei. Me senti como um garotinho assustado,
foi além da minha vontade. Eu não sei” (caem pedaços da parede).
Clementine: você estava com medo?
Joel (pensativo, olhando para baixo, câmera acompanha mostrando o
nível da água ainda mais alto): Sim. Pensei que soubesse isso de mim.
Joel senta no sofá e fala em off (plano plongé): Voltei para a fogueira,
tentando fugir da minha humilhação, eu acho.
Clementine fora do plano: Foi algo que eu disse?
Joel olhando através da janela com ondas arrebentando ao largo da
casa: sim. Você disse então vá’ com tanto desdém, sabe?
Clementine de fora do plano: Oh, sinto muito
Joel (conformado e baixando a cabeça): Tudo bem.
Joel abre a porta da sala e sai correndo em direção à praia.
Percebemos que agora o mar está na verdade distante da casa, ao
contrário das cenas anteriores.
Clementine de fora do plano chama: Joely!
Clementine (plano a mostra no alto da escada): E se você ficasse dessa
vez? (mais pedaços das paredes caem)
Joel (retornando): Eu saí pela porta. Não restou nenhuma memória.
Clementine: Volte e invente uma despedida, pelo menos. Vamos fingir
que tivemos uma.
Clementine desce as escadas. Num plano mais alto que Joel, ela
aproxima-se: Adeus, Joel. Eu te amo. Me encontre em Montauk.
Fade out”
A seqüência inicia como a narrativa de algo já acontecido. Ao longo da
seqüência os protagonistas criam um subtexto: comentários sobre o que disseram e
os seus sentimentos naquela noite ao esmo tempo em que repetem as falas
originais das suas memórias. Clementine impede que Joel repita os mesmos atos
daquela noite: “volte e invente uma despedida”. O mulo da ironia: uma meta-
realidade ou meta-memória criada para enfrentar a fatalidade cronológica imposta
pela Lacuna Inc.
Aliás, Clementine tem, ao longo da narrativa, importância fundamental para o
despertar de Joel. Sua impulsividade e inconstância atraem Joel cuja vida, até
então, é vazia e resignada diante do devir. Clementine é o fator de desequilíbrio.
Assume o papel da mítica Sofia. Tal como na mitologia gnóstica que narra a queda
de Sofia e o retorno para o Pleroma (“não sou um conceito, sou uma garota ferrada
164
em busca de paz de espírito”), Clementine voluntariamente utiliza-se dos serviços da
Lacuna Inc. para redimir-se e ajudar Joel também na sua redenção. A seqüência de
Clementine descendo a escada e, num plano superior enquanto Joel está de
joelhos, ela se inclina e sussurra ao ouvido dele a lembrança que será a chave para
o gesto impulsivo dele do início do filme (“Me encontre em Montauk”), parece ser
altamente simbólica: Clementine/Sofia trás o conhecimento, a “iluminação” (figuras
110 e 111).
Figura 110
Figura 111
A presença do simbolismo da água é marcante em vários momentos do filme,
em especial nessa seqüência. A água tem um forte simbolismo de renovação e
caminho para o conhecimento da vida:
É amarga, com efeito nos diz Simão - a água que encontramos depois do
Mar Vermelho (Simão interpreta um versículo do Êxodo): porque ela é o
caminho que conduz ao conhecimento da vida, caminho que passa através
das dificuldades e amarguras. Mas transformada por Moisés, ou seja, pelo
Verbo, esta água amarga se converte em doce
3
A casa desmorona (símbolo familiar da estabilidade, permanência) pelo
processo de apagamento das memórias e é invadida pela água do mar para trazer
renovação. Joel se arrasta de um lado para outro na sala alagada da casa enquanto
3
Hipólito, Philosophoumena, VI, 1, 15, citado por HUTIN, Serge. Los Gnósticos
165
faz uma mea culpa do ocorrido naquela noite no passado. A água é a limpeza, voltar
às origens (a gnose como reminiscência, lembrarmos das nossas origens da qual
emanamos). Água como meio condutor e de transmissão de energias psíquicas e
espirituais. A água também é um dos símbolos do inconsciente. Entrar na água e
nela sair possui uma analogia com o ato de mergulhar no inconsciente.
Outro aspecto neste filme é o da crítica às tecnologias do self ou as
“tecnologias do espírito” no sentido dado por Sfez. A produção do filme é do começo
da primeira década desse século, logo após à quebra da Nasdaq, das empresas
“ponto com” e do refluxo de toda a panacéia que cercava a Internet e as tecnologias
informáticas no final do século XX. Desta “quebra” vem o questionamento crítico em
muitos filmes sobre a falácia das tecnologias de auto-ajuda ou de autoconhecimento
(Beleza Americana, Donnie Darko, Quero Ser John Malkovich etc.).
GRUPO 2 – O Detetive
Filme: A Passagem
(Stay)
Ano de produção: 2005
Diretor: Marc Forster
Estória e Roteiro: David Benioff
1. Sinopse
Um homem luta para salvar a vida de outro sem saber que se encontra num
universo paralelo. Sam Foster (Ewan McGregor é um psiquiatra que vive na cidade
de Nova York com a namorada, Lila (Naomi Watts), que foi no passado sua
paciente. No entanto, é um de seus pacientes que passa a ser o foco da sua
obsessão, Letham (Ryan Gosling), um jovem estudante de artes plásticas
perturbado que, durante uma sessão, anuncia que cometerá suicídio em três dias,
em seu 21º aniversário. Sam leva a sério a ameaça e tenta rastrear Henry, que
parece ter desaparecido. Sam começa a contatar uma rie de amigos e parentes
166
de Henry a sua mãe (Kate Burton), o homem que Henry alegou ser seu pai, o Dr.
Leon Patterson (Bob Hoskins), uma garçonete que regularmente servia café a Henry
(Elizabeth Reaser) e sua ex-terapeuta Dra. Beth Levy (Janeane Garofalo). Quanto
mais Sam fala com as pessoas do círculo de Henry mais ela vai aprendendo sobre si
mesmo e questionando a realidade ao seu redor. Ele começa a entrar em uma
deriva emocional.
2. Narrativa
A narrativa baseia-se em duas estórias que, aparentemente correm paralelas:
o acidente automobilístico na ponte do Brooklin que abre a primeira seqüência e a
estória do psiquiatra que tenta desesperadamente evitar o suicídio de seu paciente
Henry. Ao longo desta segunda estória, surgem flashbacks da primeira narrativa,
aonde, aos poucos, vamos juntando os pedaços dos acontecimentos que abriram o
filme (estavam no carro acidentado os pais e a namorada de Henry, por exemplo).
Desde o início, a narrativa do plot principal da estória vai lançando pistas sobre a
inconsistência da realidade:
a) A passagem da primeira para a segunda seqüência do filme é através de
um corte seco entre o rosto de Henry afastando-se do carro que incendeia e
o rosto do Dr. Sam Foster acordando. Plano em grande angular deforma o
entorno do seu rosto. Sam acorda assustado, aturdido, tonto. Ouve o som de
um bebê chorando, aparentemente vindo do apartamento vizinho. Mais
tarde, Lila dirá para ele que os vizinhos são um casal de 90 anos.
b) Em um ato falho, Lila chama seu namorado Sam de Henry.
c) Na visita de Henry ao consultório do Dr. Sam Foster, diz ouvir vozes cada
vez mais insistentes. Ele confunde as vozes reais (por exemplo, a conversa
do Dr. Foster ao telefone diante de Henry) com as vozes irreais que dizem
“não consigo mais ver isso”, “fique comigo, Henry”.
167
d) Apesar do dia ensolarado, Henry diz que tem que se apressar, pois vai
chover granizo. Mais tarde, a previsão de Henry acontece, para perplexidade
do psiquiatra.
e) Após o mentor de Sam, o Dr. Leon, falar sobre uma famosa interpretação
de Freud sobre o sonho do menino que queimava (há a inserção de um
plano rápido de um segundo com a imagem de Henry diante do carro
incendiando, trecho da seqüência inicial), surge Henry que afirma,
aterrorizado, ser ele o seu pai. Henry havia dito anteriormente que seus pais
estavam mortos.
f) Sam vai ao apartamento de Beth, a psiquiatra que anteriormente tratava
de Henry, preocupado com seu estado de saúde. a encontra alcoolizada
e sedada por medicamentos. Sam está em busca de mais informações
sobre a vida de Henry, mas sem sucesso. Ele arrasta Beth ao banheiro para
reanimá-la com um banho: “Quero que você tomar um banho”, diz Sam.
“Lavar o corpo. Nós realmente não seremos corpos, não é? Será mais como
uma lembrança do nada”.
g) Sam vai ao casarão onde mora a mãe de Henry. Ela está em estado
catatônico, confunde-o constantemente com o seu filho Henry. De repente
começa a escorrer sangue da sua testa, sob o lenço enrolado na cabeça.
Ela fala: “estou morando nessa casa 1.000 anos”. A casa está sem
móveis. Ela fala em preparar uma refeição para ele, mas as prateleiras da
cozinha e a geladeira estão vazias. A atmosfera é surreal.
h) Henry entra em um peep-show. Uma bailarina faz uma apresentação de
pole dance. Ao fundo um telão começa apresentar imagens da vida de
Henry e, principalmente, da ponte do Brooklin, local do acidente da
seqüência inicial. Henry chora compulsivamente pelo sentimento de culpa de
ser o culpado pela morte dos pais. Sobrepõem-se imagens das centenas de
palavras “desculpem-me” que, numa seqüência anterior, vemos escritas nas
paredes do seu apartamento.
168
i) Voltando da conversa com a mãe de Henry, Sam defronta-se com a
mesma cena de uma seqüência anterior: operários levantam um piano de
cauda para a janela de um apartamento enquanto uma criança deixa soltar
um balão. É o início da vertigem de Sam: quanto mais ele aprofunda-se nas
pistas sobre a vida de Henry, mas a realidade começa a perder a
consistência.
j) Desesperado, Sam chega ao apartamento de Lila e faz um desabafo que
sintetiza a sua confusão mental até aquele ponto da narrativa: “Estou vendo
coisas sem nenhum sentido, encontrando pessoas que deveriam estar
mortas e a Beth teve uma crise nervosa. O garoto que trato prevê o futuro. A
mãe dele acha que sou filho dela. Eu vi o mesmo garoto perder o balão duas
vezes no mesmo lugar”. Esgotado, Sam encosta a cabeça e dorme. Sonha
com a ponte do Brooklin e o acidente. Nesse momento, a narrativa sugere
um sonho dentro de outro sonho.
k) Sam põe Henry contra a parede exigindo explicações sobre tudo o que
está ocorrendo (pais que não eso mortos, capacidade de prever o futuro).
Todas as perguntas que Sam faz, Henry repete em cima, como se
soubesse o que ele fosse perguntar. Ambos parecem ser a mesma pessoa.
l) Numa última busca desesperada de racionalidade, sai à procura da
namorada de Henry, Athena. Descobre que é atriz e o local onde está
ensaiando, numa montagem da peça Hamlet de Shakespeare em uma sala
de teatro. Após a conversa, descem uma escada em espiral para se
encontrarem com Henry. A escada parece ser interminável, estreita,
claustrofóbica. Até o instante que Athena desaparece numa das voltas da
escada. Sam, desesperado, desce correndo até escorregar e cair. Perde a
consciência. Ele sonha ou delira com imagens da vida de Henry, as mesmas
imagens que apareciam na seqüência anterior no peep-show. Ele acorda e
retorna à sala de teatro. encontra Athena ensaiando a peça, repetindo a
mesma cena que deu origem à seqüência.
169
m) Após um encontro com Henry, Leon volta a enxergar. Ao encontrar-se
com Sam fala para ele: “o budista estava certo o tempo todo, o mundo é
uma ilusão”. Esta seqüência é intercalada com outra seqüência: a
descoberta de Lila que todos os quadros que estão no seu apartamento não
são seus, mas têm a assinatura de Henry Letham. Entre perplexa e
aterrorizada corre para tentar encontrar Sam.
n) Na última seqüência temos o fechamento de todas essas pistas inseridas
ao longo da narrativa. As vozes que Henry ouvia eram das pessoas ao redor
do acidente que tentavam ajudar. Todos os personagens que estavam
representando os mais variados papéis estavam presentes no lugar do
acidente, ou como curiosos ou pessoas que tentavam ajudar como Sam (na
verdade, médico) e Lila (enfermeira). Beth (a psiquiatra que primeiro atende
Henry para, depois, deixar o paciente para Sam dar continuidade ao
tratamento) na verdade era a primeira testemunha a ajudar Henry no local
do acidente, deixando depois para Sam. Após Henry ouvir que todos os
outros ocupantes do carro estavam mortos há um fade out para o branco,
como uma grande luz ofuscando, mostrando, em seguida o início do mundo
paralelo criado pelo sentimento de culpa pelo acidente. Entre o desejo e o
medo, realidade e ilusão, vida e morte, Henry cria um universo alternativo,
habitado por todas as pessoas que estavam ao seu redor enquanto
agonizava.
Para representar esse movimento progressivo de dissolução do tecido da
realidade, a narrativa utiliza-se de uma série de recursos de edição, montagem e
planos de câmera.
1 Nas cenas de diálogo, a narrativa ignora o eixo dos 180 graus,
mostrando os dois personagens conversando do mesmo lado da câmera. Ao
mesmo tempo quer criar uma sensação de estranheza do espectador com a
narrativa (negando o princípio básico da narrativa clássica de produzir o
efeito de realidade) e sugerir que ambos os personagens podem ser a
mesma pessoa, sublinhando a confusão de identidade não só de Henry, mas
do próprio psiquiatra Sam Foster (figuras 112 e 113).
170
Figura 112
Figura 113
2 Massiva utilização de planos inclinados sublinhando a impressão de
inquietação dos personagens. Mas a recorrente utilização desse tipo de
plano de câmera sugere mais do que isso: o próprio desequilíbrio ontológico
da realidade (figuras 114 e 115).
Figura 114
Figura 115
3 – As a seqüência em que a repetição da cena do piano sendo
erguido e o menino perdendo o balão, Sam entra num estado de vertigem. A
partir daí, muitas seqüências apresentam descontinuidade e repetições. O
tempo repete-se duas, três ou até quatro vezes em um pequeno momento. A
continuidade da realidade parece se deteriorar. Em um efeito visual, muitas
171
vezes a repetição de um mesmo ato (como abrir a porta e entrar num
apartamento) parece deformar plasticamente os objetos ao redor.
4 Tempo e espaço mostram-se fluidos criando uma atmosfera
progressivamente onírica. As seqüências fluem de uma para outra de forma
ágil e dinâmica, seja fundindo objetos (como quando uma porta fecha e se
transforma em outra que se abre) ou acelerando a montagem (como no
início, quando um personagem olha pela janela e vê, pelo vidro, a pessoa
com quem conversava na sala). Em outras palavras, o filme utiliza-se de
uma linguagem metonímica para aproximar-se da lógica do sonho. É como
se o tempo do filme fosse exatamente o tempo em que os fatos acontecem e
não existisse intervalo entre as cenas. As cenas são os únicos
acontecimentos, como um sonho. Como na Interpretação dos Sonhos em
Freud, o sonho opera em condensação e deslocamento, metáfora e
metonímia. O tempo se parte e transita constantemente, assim como
lugares. A imagem importante nem sempre é a cena central, muitas vezes o
que se passa no fundo é o que determina a seqüência. É a lógica onírica da
condensação ou da metáfora (figura 116).
Figura 116
O principal elemento irônico do filme é que a narrativa dominante é irreal.
Tudo foi resultado das projeções psíquicas de um personagem corroído pela culpa
entre a vida e a morte. Todas as pessoas ao redor dele após o acidente na ponte do
Brooklin são inseridas no seu sonho ou através de alguma particularidade que
tenham falado, ou pela ordem de chegada ao local do acidente ou, inclusive, até
pelo ponto de vista que Henry (ela está deitado no chão) tem das pessoas. Por
172
exemplo, as calças do psiquiatra Sam Foster são estranhamente curtas. Em uma
entrevista com o diretor Marc Foster ele revelou que o motivo pelo qual o psiquiatra
ter calças tão curtas para suas pernas é que assim Henry vê Sam, pela primeira vez,
curvado sobre ele para ajudá-lo. Ao fazer isso, a barra da calça é puxada para
cima
4
. Contrariando a narrativa clássica, acompanhamos uma estória a partir de um
ponto de vista de uma voz narrativa limitada e distorcida pela linguagem onírica.
Outro exemplo são alguns momentos que podemos denominar de “senso de
humor metalingüístico”, como na seqüência em que Henry está no consultório de
Sam. Há uma ironia em relação ao som diegético:
Henry: Bem, estou ouvindo vozes agora.
Sam: Vozes?
Henry: Elas vêm e vão, mas quando as ouço...
Sam: Está ouvindo agora? Certo. Poderia escrever o que estão
dizendo?
(Toca o telefone. Sam atende)
Sam: Sim?
Voz no telefone: Ei, Dr. Foster, é o Frederick.
(voltando-se para Henry) Sam: Poderia ler para mim?
Henry: Sim. “Ei, Dr. Foster, é o Frederick”.
Sam: Essa... essa voz não está na sua cabeça, essa é real.
Henry: Certo. Sei lá... talvez você possa me ajudar a diferenciar.
Henry cita o apenas a voz de Sam, mas, inclusive, a voz do interior do
telefone. Ele ouve não apenas a voz dos personagens, mas as vozes da própria
diegése. Ou seja, toda a realidade apresentada pela narrativa é uma ilusão
projetada do seu psiquismo.
Além disso, a linguagem descontínua, fragmentada, com uma série de
metonímias e condensações expõe a limitação da voz narrativa. Se, a partir da
psicanálise freudiana, a linguagem onírica é um mecanismo de defesa para que o
verdadeiro conteúdo do inconsciente aflore de forma indireta, truncada e enigmática
(salvaguardando o princípio de realidade do ego), o que o espectador acompanha é
4
Cf. The Internet Movie Data Base – IMDB. Disponível em: http://www.imdb.com/title/tt0371257/trivia
(acessado em 10/07/2009).
173
uma tentativa de ocultamento da Verdade por parte da voz da narrativa. Ou seja, o
personagem do psiquiatra Dr. Sam Foster, no fundo, representa o próprio
espectador que é desafiado a afastar os véus metonímicos e metafóricos para
descobrir a verdade de Henry.
3. Personagens
O psiquiatra Sam Foster tenta salvar a vida de um jovem estudante de artes
plásticas que anuncia que vai se matar no sábado, à meia-noite. Ele vai descobrindo
detalhes estranhos da vida do rapaz que, cada vez mais, vai colocando em xeque
sua própria identidade e a própria realidade em que vive. Em busca da solução do
enigma da vida do paciente, Dr. Sam Foster experimenta estranhos vus (cenas
e seqüências repetem-se, por ângulos diferentes). Duas características típicas do
personagem O Detetive: quanto mais ele segue as pistas para a solução do enigma,
mais este enigma parece ter a ver com ele mesmo; e as perdas de consciência nos
momentos de maior vertigem para o personagem. A racionalidade é vencida e o
personagem cai inconsciente.
Sam Foster tem um triplo papel no filme: primeiro papel, o de um psiquiatra
que tenta aplicar a metodologia cienfica para solucionar o enigma de Henry;
segundo, Sam é uma espécie de alter-ego de Henry, o núcleo racional do seu
psiquismo que tenta encontrar uma saída do próprio universo alternativo que criou.
“Você tem alguma coisa Sam. Esse garoto confia em você”, diz Lila a Sam para
explicar porque Henry constantemente o procura; e, terceiro, Sam é o próprio alter-
ego do espectador. Tal como o espectador, Sam tenta colocar ordem na linguagem
onírica representada pela edição e montagem.
Henry cria todo um universo alternativo a partir de “formas-pensamento”
(numa interpretação esotérica). O personagem cria uma ilusão para não se
confrontar com outra ilusão: o sentimento de culpa. Embora Sam, o representante
da razão, peça para Henry ficar (“Henry, tente ficar conosco”), isto é, resistir e
manter-se vivo até a chegada dos para-médicos, ele, após alcançar a gnose, a
transformação íntima com a diluição da culpa, parte para a morte.
174
Lila é uma professora de arte, ex-paciente de Sam com marcas de tentativa
de suicídio nos pulsos. Tal como em muitos dos filmes analisados nesse presente
trabalho, o personagem feminino principal (no papel gnóstico de Sophia) é o de uma
mulher que decaiu, mas que vai, apesar disso, criar condições para que o
protagonista alcance a gnose como nesse diálogo-chave de Lila questionando a
racionalidade de Sam que tenta, a todo custo, apegar-se à metodologia científica da
psiquiatria:
Lila: deixe-me falar com ele
Sam: falar com ele? Primeiro tenho que encontrá-lo
Lila: Ele vai encontrá-lo. Ele sabe que você pode ajudá-lo. É por isso
que ele volta para você.
Sam: bem, mesmo que volte não poderia deixá-lo falar com ele. Eu
violaria todas as regras da psiquiatria.
Lila: então viole! Você tem alguma coisa, Sam. Esse garoto confia em
você. Mas você nunca passou pelo que ele está passando e ele sabe
disso.
Sam: É, mas cuido de pessoas todos os dias com condições pelas
quais nunca passei.
Lila: sabe no dia que fiz aquilo... levei duas lâminas de barbear para a
banheira. Sabe por quê? Porque sabia que ficaria fraca assim que
começasse a sangrar e não queria deixar uma lâmina cair, deixando o
serviço pela metade. Consegue imaginar isso? Consegue imaginar o
que é odiar tanto a própria vida a ponto de querer levar uma lâmina de
reserva?
Sam: então o que digo a ele?
Lila: Que há muitas coisas lindas para deixar para trás.
Leon é o personagem irônico da narrativa. Cego, é reconhecido por Henry
como seu pai, o que Leon nega. Através da imposição das mãos sobre seus olhos,
faz Leon enxergar pela primeira vez. Ironicamente, ao enxergar percebe que o
mundo é uma ilusão. Mentor intelectual de Sam alerta-o sobre irrealidade do mundo,
que Sam, a todo custo, tenta não aceitar.
175
3. Temas
Temos no filme a tríade temática tradicional dos filmes com o protagonista “O
Detetive”: identidade, memória e tempo. Na medida em que avançam as
investigações, a identidade de Sam é colocada em dúvida, tanto por parte do
espectador como pelo próprio personagem. A mãe de Henry confunde-o com o
próprio filho e Lila o chama de Henry em um ato falho. O tempo ao mesmo tempo
fluído e descontínuo nos faz acreditar que a memória de Sam sofreu algum lapso.
Algo se perdeu na narrativa que tanto Sam como espectador devem recuperar.
Um trecho da peça Hamlet (referindo-se ao mundo como uma prisão) e
citação budista de Leon (“o mundo é uma ilusão”) acrescentam o tema geral que
envolve a tríade temática: há um engano sobre o que consideramos ser a realidade.
4. SIMBOLOGIA E ICONOGRAFIA
O primeiro aspecto é a presença de uma simbologia recursiva. muitas
referências iconográficas do visual das obras de Escher. Planos inclinados de
escadarias focalizadas do alto, os extras nestas escadarias mostrados duplicados ou
triplicados. Muitas vezes podemos ver duas ou três pessoas caminhando lado a
lado, vestindo as mesmas coisas e carregando os mesmos objetos (figuras 117 a
121). As referências às obras de Escher não se limitam a um mero recurso
estilístico, mas está diretamente associada à visão do tempo e espaço recursiva que
o universo alternativo de Henry apresenta. Por duas vezes Sam sonha. Ou seja, um
sonho dentro de outro sonho. Os eventos são cíclicos e a distinção causa e efeito
não está muito claro na narrativa. A frase final de Sam (“se isso é um sonho, o
mundo inteiro está dentro dele”) é síntese da simbologia recursiva do filme: quem
está sonhando quem?
176
Figura 117
Figura 118
Figura 119
Figura 120
Figura 121
Outra simbologia é a da água. Na forma de chuva, ela surge no momento
crítico do filme. Na última cartada do racionalismo de Sam para descobrir uma pista
que ajude a elucidar o enigma de Henry, parte em um taxi em busca de Athena,
suposta namorada de seu paciente. Começa a chover torrencialmente. Encontra
177
uma indicação e vai ao encontro de Athena, atriz que encena a peça Hamlet. É a
seqüência da fala que diz que “o mundo é uma prisão” e da descida na escada em
espiral. Nesta noite de chuva torrencial Leon volta a enxergar e conclui que o mundo
é uma ilusão. Essa seqüência é emblemática. Voltando a enxergar, olha o mundo
pela janela e uma tempestade (figura 122). É o simbolismo noir da chuva como
dissolução e, ao mesmo tempo, a chuva como renovação, renascimento quando
Leon consegue alcançar a gnose, ou seja, a consciência da ilusão do plano físico.
Ou melhor, da ilusão que foi criada a partir de outra ilusão criada no mundo físico.
Figura 122
Outro simbolismo é o do olho, associado à cegueira de Leon e o ato de abrir
os olhos e despertar do sono de Sam no início do filme. A cegueira de Leon é a dos
homens que não despertam para a verdade. Ao enxergar, ironicamente, conclui que
tudo é uma ilusão. Parte, em seguida, para uma estação de trem para ir embora,
após ter descoberto a Verdade. A cena dele, solitário, dirigindo-se para a plataforma
da estação na noite chuvosa é fortemente emblemática por conter um complexo
simbólico: enxergar, chuva e trem (figura 123). O renascimento associado à
simbologia inconsciente da estação de embarque “onde se encontra o ponto de
partida da evolução, das nossas novas atividades materiais, físicas e espirituais”
5
Também é emblemática o início da seqüência em que Sam pega um táxi para
ir em busca de Athena, na verdade, sua última cartada desesperada para fazer valer
sua racionalidade científica. Enquanto o táxi parte, em primeiro plano vemos o rosto
de um cego (figura 124). A metáfora da condição de Sam: a cegueira. Ele ainda não
conseguiu abrir os olhos para a Verdade.
5
CHEVALIER, Jean e GHEEBRANT, Alain. Op. Cit., p.897.
178
Figura 123
Figura 124
O “Princípio da Correspondência”
6
é sugerido na seqüência final. Após Lila e
Sam ajudarem Henry até os para-médicos chegarem ambos travam um pido
diálogo, agradecendo pela colaboração. Sam olha para Lila e tem um estranho déjà
vu, onde são inseridos sucessivos planos de um segundo com momentos deles
juntos, como namorados, no universo alternativo. Eles têm uma estranha sensação
de já terem vivido uma história juntos. Sam convida-a para tomarem um café,
sugerindo um começo de um relacionamento. Ou seja, o lebre princípio da
correspondência do gnosticismo hermético: o que ocorreu no Plano Mental reflete-se
no Plano Físico.
GRUPO 3 – O Estrangeiro
Filme: Show de Truman
(Truman Show)
Ano de produção: 1998
Diretor: Peter Weir
Estória e Roteiro: Andrew Niccol
6
Sobre o esotérico conceito de “Princípio da Correspondência” veja nas páginas 65 a 68.
179
1. Sinopse
Uma cidade artificial (Seaheaven Island) é construída para servir de cenário a
um gigantesco programa reality show. Nesse show todos os participantes são
atores, com exceção do protagonista, Truman Burbank (Jim Carrey), que, sem
saber, vive numa realidade fabricada onde todos performam scripts com o objetivo
de manter Truman imerso na ilusão de realidade e promover rentáveis
merchandisings. Truman foi um órfão prematuro, o vencedor em uma lista de
candidatos, todos frutos de concepções indesejadas. A estória segue uma trajetória
de eventos que fadespertar progressivamente em Truman a suspeita de que sua
vida está envolvida em algum tipo de artificialidade ou esquema conspiratório. Ele
começa a perceber modelos sincronizados de comportamento na sua vida cotidiana.
Por exemplo, seus vizinhos o cumprimentam todos ao mesmo tempo, da mesma
maneira, todos os dias; as mesmas pessoas e carros circulam ao redor dele em
períodos repetitivos. Gradualmente Truman pressente por trás das sincronicidades e
padrões uma realidade maior que passa a ser simbolizado pelo seu desejo de viajar
para as Ilhas Fiji. Seguindo as instruções do diretor do show (Christof, performado
por Ed Harris) todos tentam assegurar a permanência de Truman em Seaheaven.
Mas Truman está determinado a escapar.
2. Narrativa
O filme trabalha com uma narrativa de inseão. Temos ao longo do filme uma
justaposição de planos pertencentes a ordens espaciais ou temporais diferentes. A
estória vai transcorrendo através de uma espécie de representação simultânea de
pontos de vista diferentes, criando uma espécie de multifacetamento da realidade de
Truman:
180
a) Temos vídeos de making offs do programa Truman Show, com entrevistas
com o diretor Christof na abertura do filme, e vídeos documentais com a
história da produção do reality show (figura 125).
Figura 125
b) A realidade atual mostrada a partir do ponto de vista das imagens das
câmeras do reality show. A narrativa representa este ponto de vista por meio
da imagem circundada por um halo escuro ou claro (dando a idéia de uma
imagem captada por uma lente) e imagens em grande-angular, a partir de
pontos de vista bizarros (do interior do apontador de pis, do interior do dial
do aparelho de som do carro de Truman etc. – figuras 126 e 127).
Figura 126
Figura 127
c) Imagens dos próprios monitores da sala de controle (switcher) e dos
aparelhos de TV dos telespectadores, dando uma natureza meta-narrativa a
algumas seqüências (figura 128).
181
Figura 128
d) Memórias da vida de Truman relembradas por ele mesmo. uma sutil
característica para simbolizar a natureza fictícia das suas memórias: embora
sejam imagens a partir do ponto de vista interno da mente de Truman,
apresentam uma alternância entre takes com halo escuro ao redor e grande-
angular (demonstrando serem imagens captadas a partir do ponto de vistas
das câmeras do programa) e takes com enquadramento normal. Como na
seqüência onde Truman relembra a morte do seu pai por afogamento que
resultou no sentimento de culpa e a fobia por mar e travessia sobre águas
por ponte ou barco. (figuras 129 e 130)
Figura 129
Figura 130
e) Flash backs com as memórias de Truman editadas e inseridas no próprio
programa. Também aqui se percebe a alternância de takes (com halo escuro
ou claro e takes com a realidade atual” – figuras 131 e 132).
182
Figura 131
Figura 132
f) Seqüências com takes com enquadramento normal, ou seja, mostrando a
“a realidade atual” a partir de uma voz narrativa externa ao reality show e
que simplesmente descreve o desenrolar dos acontecimentos de forma
objetiva.
O elemento da ironia está presente em diversas formas narrativas. Em
primeiro lugar na narrativa em abismo. A premissa do filme conduz a narrativa a uma
regressão onde temos planos dentro de planos: vemos atores reais que performam
atores fictícios que trabalham no reality show ficcional Truman Show. Temos, em
conseqüência, atores fictícios que performam não personagens reais, mas
personagens da imagerie publicitária (Seaheaven não se baseia no dia-a-dia das
cidades reais, mas no cotidiano do imaginário dos filmes publicitários). Portanto,
atores ficcionais que performam os mundos simulados da publicidade. Nas
seqüências em que vemos a inserção de merchandising no reality show temos uma
situação paradoxal: se temos atores reais representando atores ficcionais que
performam mundos publicitários simulados, o momento do merchandising deve ser
bem evidente dentro de uma narrativa que insere ficções dentro de ficções: o
merchandising é exagerado para ficar bem evidente ao espectador e evitar que se
perca nessas ficções em abismo. Temos nas seqüências de merchandising,
portanto, uma espécie de meta-ficção ou uma representação irônica ou saturada da
publicidade.
Após várias tentativas, Truman, para escapar do imenso reality show
televisivo que desconfia ser a sua vida, engana as câmeras ao simular que dorme
183
no porão da sua casa. No lugar, Truman coloca travesseiros enganando o produtor
do programa e milhões de telespectadores. Truman foge para roubar um veleiro que,
tem esperança, o conduzirá às Ilhas Fiji. É a situação irônica da simulação em
confronto com outra simulação. Tomado pela percepção paranóica da realidade
(não uma paranóia comum a de que existe uma conspiração contra ele mas de
que o próprio mundo gira em torno dele e reponde de acordo com seus atos),
Truman responde com a simulação de sono (assim como, anteriormente, havia
desafiado a realidade ao simular estar sendo espontâneo dirigindo o carro sem
destino pré-determinado, confundindo a produção do reality show). É a “pura
aparência”, o terrorismo simbólico no sentido baudrillardiano: contra um sistema que
cria a simulação da realidade, somente outra simulação
7
.
Temos ainda um irônico final de filme, um final ambíguo que permite dupla
interpretação. Por um lado é um happy end com Truman escapando da prisão do
Demiurgo/Christof e encontrando a amada Sofia/Sylvia no “mundo real”. Vence o
confronto final ao desafiar a morte numa luta suicida com o Demiurgo. Mas, o
chamado “mundo real” que espera Truman é tão potencialmente decepcionante
quanto à realidade virtual de Seaheaven. Como o filme evidencia diversas vezes
durante a narrativa, os telespectadores são tão medíocres e estereotipados como os
personagens de Seaheaven. A heróica luta de Truman para escapar da ilusão da
realidade não consegue sensibilizar os telespectadores e fazê-los questionar a
relação com a ilusão midiática. Truman atravessará a porta para o mundo exterior
“real”, onde apenas encontrará espectadores com o guia da TV na mão em busca do
próximo programa para substituir o reality show que termina.
É irônica, também, a idéia de que o que entendemos por realidade é uma
projeção do nosso psiquismo e não uma percepção a partir de algo ontologicamente
7
“O atual sistema de dissuasão e simulação consegue neutralizar todas as finalidades, todos os
referenciais, todo o sentido, mas fracassa em neutralizar as aparências. Controla eficazmente todos
os procedimentos de sentido, mas não controla a sedução das aparências. Nenhuma interpretação
pode explicá-la, nenhum sistema pode abolir-la. É a nossa última oportunidade” BAUDRILLARD,
Jean. El Otro por Mesmo. Barcelona: Editorial Anagrama, 1988. p. 63. As “puras aparências” se
distinguem das meras aparências produzidas pelas simulações. As meras aparências produzem
sentido ao buscarem uma interpretação. Já as “puras aparências” seduzem pela vertigem dos
abismos superficiais, pelo espetáculo vazio de sentido, pela irracionalidade” que explode toda a
cadeia de signos interpretativos dos sistemas atuais.
184
dado. Isso é exemplarmente mostrado na seqüência em que Truman rouba um
veleiro e cruza o mar cenográfico de Seaheaven. Nas tomadas em que Truman está
no leme do veleiro, o horizonte do mar é apresentado com uma exagerada anomalia
ótica: é um horizonte muito próximo, sem curvatura, talvez o horizonte de um mundo
plano. Truman não percebe essa evidente anomalia, pois, afinal, ali nasceu e
cresceu, tornando tudo naturalmente como dado e evidente (figura 133).
Figura 133
3. Personagens
Truman é o Estrangeiro. Candidato entre cinco gestantes com gravidez
indesejada, Truman nasce prematuro a tempo da data de fechamento do elenco do
programa. Nasce e cresce dentro de um ambiente asséptico, destituído de qualquer
imperfeição, acaso, acidente ou imprevisibilidades. Se eventos dessa natureza
aconteciam, eram imediatamente racionalizados e incorporados como justificação do
status quo. Sente-se inexplicavelmente atraído por uma das extras do elenco
(Lauren ou Sylvia). Ela fará o papel de Sophia. Tal qual a narrativa mítica gnóstica,
Sophia é aprisionada pelo Demiurgo e decai para o cosmos material mais um dos
extras do elenco do reality show). Este é o fascínio de Truman por Laurie. Sente-se
como um estrangeiro, um estranho dentro do próprio lugar em que nasceu e
cresceu. Como o Estrangeiro, sua gnose provém do confronto final que trava com o
Demiurgo: o confronto o arrastará para os limites do cosmos onde vive, revelando a
ilusão do que era dado e evidente.
185
Os personagens arcontes reúnem as características tal qual descritas pela
mitologia gnóstica: ilusão, sedução e inebriamento pelo poder. Os cnicos da sala
de controle localizada na lua artificial do céu de Seaheaven demonstram um
evidente inebriamento pelo poder de manipular e controlar como demonstrado em
seqüências como quando observam o comportamento excêntrico de Truman diante
do espelho do banheiro (um lugar íntimo para um indivíduo no mundo “real”) fazendo
ironias e piadas (figura 134). Meryl, a esposa de Truman o seduz com a vida
conjugal e o objetivo de terem um filho. A cada desejo de Truman de sair de
Seaheaven, viajar e conhecer o mundo, Meryl joga-se em Truman e fala em ter um
filho.
Figura 134
Marlon é o Arconte especial, é aquele que racionaliza. Utilizando-se de
argumentos mesclados do senso comum da filosofia de auto-ajuda, religiosidade e
cerveja procura racionalizar ou justificar as questões existenciais e a crescente
paranóia de Truman.
Christof é o Demiurgo que do alto da sua sala de controle na lua cenográfica
controla as milhares de câmeras de Seaheaven. Tal qual na mitologia gnóstica, ele
quer apoderar-se das partículas de luz existentes no homem (na verdade fogo,
vento, água, luz e éter). O Demiurgo cria a forma do cosmos material, mas não seu
conteúdo. Necessita apoderar-se desses elementos para animar sua criação. Esse
simbolismo pode ser percebido no diálogo dentro do confronto final entre Truman e
Christof:
186
Truman (olhando para o céu): quem é você?
Christof: Sou o criador de um programa de televisão, queesperança,
alegria e inspiração para milhões de pessoas.
Truman: Então, quem sou eu?
Christof: Você é a estrela.
Truman: Nada era real?
Christof: Você era real. Foi o que fez ser ótimo assistir a você. Escute,
Truman. Não existe mais verdade lá fora do que no mundo que criei
para você. Onde há mentira, há falsidade. Mas no meu mundo não há
nada a temer. Conheço você melhor do que você mesmo.
Truman: Você nunca pôs uma câmera na minha cabeça.
Christof: Você tem medo. É por isso que não consegue fugir. Tudo bem,
eu entendo. Tenho observado você durante toda sua vida. Vi seu
nascimento. Quando deu o primeiro passo. Seu primeiro dia na escola
O Demiurgo cria uma ambiência controlada para apreender a inocência de
Truman. Tal como a narrativa do filósofo gnóstico Mani que, segundo ele, a Pleroma
cria um Antrophos (um ser humano primordial) para destruir o cosmos material, o
Demirgo derrota Antrophos e o mantém aprisionado dentro da sua criação, para
roubar dele os cinco elementos que darão vitalidade a esse mundo. Truman é a
“estrela”, aquele que “inspira e esperança a milhões”. Isso que Christof quer
roubar de Truman, a única coisa real em um cosmos essencialmente corrompido,
falso.
4. Temas Básicos
4.1. Paranóia.
A paranóia crescente em Truman ao longo da narrativa o é de natureza
narcísica, mas essencialmente espiritual, metafísica. Ele não desconfia
simplesmente de um complô contra ele, mas desconfia da própria natureza
ontológica da realidade. “Não sei o que pensar Marlon. Talvez esteja perdendo o
juízo, mas parece que o mundo gira à minha volta, de algum modo.” Truman aos
poucos vai paradoxalmente descobrindo eventos aleatórios ou acidentais em um
mundo estranhamente previsível e conformista (um spot de luz com nome de estrela
Sirius cai do céu, o rádio do carro que capta uma transmissão que narra por
187
onde Truman está passando etc.) e, ao mesmo tempo, estranhos padrões das
pessoas anônimas ao seu redor (carros e pessoas parecem dar volta ao seu redor
em um padrão reconhecível após um tempo de observação). Marlon tenta
racionalizar essa paranóia espiritual ao tentar reduzi-la a uma mera fantasia
narcísica. “É muito mundo para apenas um homem, Truman”, responde Marlon à
desconfiança ontológica de Truman de que o mundo parece girar ao seu redor.
4.2. Melancolia.
Sua Melancolia é mais do que narcísica, tal qual descrita por Freud em “Luto
e Melancolia”
8
. Assim como a paranóia, temos uma melancolia espiritual ou
metafísica, a de uma pessoa que acha que não pertence àquele mundo, é um
estranho no meio de rostos familiares. Mas, Christof tenta racionalizar a melancolia
de Truman tentando construí-la dentro de um plot freudiano: sentimento de culpa
pela morte do pai, processo de lutificação, punição a si mesmo por meio de uma
forma histérica (a fobia em passar sobre superfícies aquáticas e paranóia),
diminuição da auto-estima e cessação de interesse pelo mundo. Truman luta para
entender que sua melancolia é muito além do que a natureza narcísica que Marlon
tenta explicar, ditado por Cristof através de um aparelho de ponto em seu ouvido.
“Acho que estou envolvido em alguma coisa grande”, tenta explicar a Marlon.
“Talvez algo esteja para acontecer comigo. pensou nisso Marlon, como se sua
vida fosse construída para algo?”, sente Truman que, passo a passo vai
convertendo a melancolia em um estado ativo e febril de paranóia.
8
“Os impulsos hostis contra os pais ( desejo de que eles morram ) também são um elemento
integrante das neuroses. Vêm à luz, conscientemente, como idéias obsessivas. Na paranóia, o que
há de pior nos delírios de perseguição (desconfiança patológica dos governantes e monarcas)
corresponde a esses impulsos. Estes são recalcados nas ocasiões em que é atuante a compaixão
pelos pais - nas épocas de doença ou morte deles. Nessas ocasiões, constitui manifestação de luto
uma pessoa acusar-se da morte deles ( o que se conhece como melancolia ) ou punir-se numa forma
histérica ( por intermédio da idéia de retribuição) com os mesmos estados [de doença] que eles
tiveram. A identificação que ocorre, como podemos verificar, nada mais é do que um modo de
pensar, e o nos exime da necessidade de procurar o motivo.” FREUD, S. “Carta Datada de 31 de
maio de 1897”, In: Edição Standard Brasileira, Rio de Janeiro: Imago, 1992, p. 275.
188
4.3. Meta-realidade
Seaheaven é uma realidade meta”. Todo o gigantesco estúdio montado para
conter a vida de Truman não é uma mera estilização ou caricatura do mundo
exterior. Mais do que isso, Seaheaven é meta-publicitária: é uma projeção ou
materialização da imagerie dos filmes publicitários. Toda manhã de Truman
assemelha-se a um filme publicitário de cereais matinais, uma realidade cópia da
cópia, uma segunda natureza a partir de imagens estilizadas da realidade. Hiper-
realidade. Como Truman começa a criar uma relação de estranhamento em relação
a esse ambiente meta-real? A irrupção do acidente e do acaso em um ambiente cuja
natureza é o fluxo contínuo e previsível dos eventos chama a atenção de Truman
para um fato novo: o nível meta da realidade, isto é, a intuição de que alguns
eventos são arbitrários em contraste com o fluxo previsível do tempo. Truman
percebe que certos fatos simplesmente não se encaixam: sua esposa, Meryl, no
meio de um diálogo casual, insere falas arbitrárias (na verdade merchandisings
inseridos no reality show), desconcertando Truman.
Meryl: Deixe-me ajudar Truman, você não está nada bem
Truman: Por que quer ter um filho comigo? Não me suporta...
Meryl: Não é verdade. Deixe-me preparar uma dessas novas bebidas
“Mococoa”. Sementes de cacau naturais das encostas do Monte
Nicarágua, sem adoçantes artificiais.
Truman: Do que está falando? Com quem está falando?
Meryl: Já provei outros cacaus, mas este é o melhor.
Truman: O que isso tem a ver com tudo? Diga o que está acontecendo!
Meryl: Você está tendo crises nervosas!
Truman: Você está envolvida nisso, não é?
Truman a vida inteira conviveu com essa situação, mas a irrupção do
acaso e do acidente desperta nele a percepção do nível meta da
realidade.
4.4. Supra-realidade
A percepção dessas arbitrariedades conduz a suspeita de que sua vida esteja
envolvida em alguma coisa “muito maior”. Truman começa a perceber padrões de
comportamento e movimentação de anônimos na cidade de Seaheaven:
189
Truman: Prevejo que veremos uma senhora numa bicicleta vermelha,
seguida por um homem com flores e um fusca com um pára-lamas
amassado. Olha...
(passa uma senhora de bicicleta)
Truman: uma senhora... flores...
(passa um homem segurando flores)
Truman: ...e depois...
Meryl: Truman, isso é uma bobagem
(passa um fusca)
Truman: Aí está, o tal fusca amassado!
Lauren/Sylvia é a condutora de Truman para essa instância supra-real,
involuntariamente representado pelas Ilhas Fiji (na verdade, quando Lauren é
retirada à força do programa no momento em que tentava revelar a Verdade a
Truman, seu “pai” fala que ela vai sair Dalí, vai viajar para as Ilhas Fiji. A esperança
era Truman se esquecesse dela diante de um lugar geograficamente tão extremo).
Truman tentar juntar os fragmentos das memórias sobre Lauren e reencontrá-la no
outro lado do mundo. Truman aspira a um plano da realidade para além de
Seaheaven. Ele não apenas deseja viajar para quebrar o tédio, mas desconfia da
própria ontologia da realidade em que vive.
4.5.Para-Realidade
A melancolia é o primeiro estágio na caminhada de Truman em direção da
Verdade: o desinteresse e o estranhamento pela realidade e pessoas ao redor. Aos
poucos a melancolia torna-se febril evoluindo para a paranóia. Esse estado alterado
de consciência permite a Truman vislumbrar uma supra-realidade que apenas
desconfiava: estranhos padrões de eventos, eventos arbitrários e inexplicáveis
acidentes. O protagonista penetra na dimensão da para-realidade quando percebe
ser possível intervir no padrão dos acontecimentos: se todos os eventos e pessoas
parecem girar em torno dele, portanto, pode interagir com todos em um nível “meta”.
Primeiro, em uma seqüência onde Truman começa a desconfiar do comportamento
de todos os anônimos nas ruas de Seaheaven, atravessa a rua e faz os veículos
pararem com a mera imposição das mãos para frente (figura 135). Segundo,
190
propositalmente Truman começa a ficar “espontâneo” ao volante do seu carro
durante a tentativa de fugir de Seaheaven, fazendo uma espécie de “roleta-russa”,
entrando, inesperadamente, em qualquer rua (figura 136). Percebe que esse
comportamento imprevisível confunde os padrões de comportamento de tudo ao
redor. E, terceiro, Truman chega ao “estado da arte” dentro da para-realidade: cria
uma simulação que engana os próprios simuladores. Simula que dorme no porão da
sua casa. No lugar, está um boneco, descoberto por um atordoado Marlon, e foge
para o “mar” de Seaheaven em busca das Ilhas Fiji (figura 137).
Figura 135
Figura 136
Figura 137
191
4.6. Crítica Metafísica.
A cena final é emblemática: Truman sobe os degraus que o levam para a
porta de saída como ascendesse ao céu. Aqui está presente uma forte simbologia
gnóstica que, claramente, se associa à gnose baudrillardiana por meio da simulação
perfeita, a pura aparência. Pelo aspecto literal, Truman atravessaa porta para o
mundo exterior “real”, onde apenas encontrará espectadores com o guia da TV na
mão em busca do próximo programa para substituir o reality show que termina. Mas
a simbologia imagética é muito forte: Truman procura a transcendência - nem ilusão,
nem realidade. Busca aquilo que os gnósticos chamam de tertium quid, uma terceira
via, que ilusão e realidade pertencem à mesma cosmologia corrompida do
Demiurgo: uma realidade que cria a ilusão que simula um efeito de realidade.
5. Simbolismo e Iconografia
5.1. Mar/água:
Seqüências importantes do filme têm como cenário o mar. A seqüência em
que Lauren tenta revelar a Truman a Verdade ocorre na praia, diante das ondas
(figura 138). Iconografia marcante em filmes com temática gnóstica: à água como
simbolismo de nascimento, renovação e renascimento (além disso, é dito para
Truman que o destino de Laurie foi Ilhas Fiji, isto é, de novo o elemento água). Ao
mesmo tempo, o simbolismo da incerteza, ambivalência, dúvida e indecisão. Por fim,
o confronto final de Truman com o demiurgo ocorre no mar cenográfico de
Seaheaven. Aqui, o mar transforma-se em oceano dominado pela tormenta gerada
pelo software meteorológico do reality show. Símbolo da vida universal e origem de
toda a geração, o oceano onírico está relacionado com as lembranças cármicas de
vidas passadas e intra-uterinas
9
. Dois aspectos opostos (geração e destruição)
estão implícitos no simbolismo do oceano. É a possibilidade de evolução espiritual e
a destruição pelas forças (cármicas) da natureza. Truman desfia o Demiurgo e o
destino traçado para ele no cosmos material (figura 139).
9
Cf. Verbete “Mar” e “Oceano” em CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos
Símbolos. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 2009
192
Figura 138
Figura 139
5.2. Sophia
Lauren/Sylvia é o simbolismo de Sophia dentro da narrativa. Embora a
produção do reality show empurre Meryl para ele, Truman interessa-se por uma
extra anônima dentro do cast do programa. Ambos têm uma inexplicável atração um
pelo outro. Truman vai encontrar Sylvia em uma biblioteca, estudando um livro
(figuras 140 e 141). Forte simbolismo que associa a personagem-chave com o
conhecimento, a sabedoria e a Verdade. Esse é um dos simbolismos de Sophia
dentro da mitologia gnóstica.
Figura 140
Figura 141
5.3. Iconografias religiosas.
A narrativa oferece sugestivas iconografias com forte simbolismo ou
propositais referências religiosas genéricas tais como: uma sugestiva auréola em
torno da cabeça de Christof (no fundo, as crateras da lua cenográfica que esconde a
sala de controle do programa) no momento em que ele preocupa-se com o
193
desaparecimento de Truman (figura 142); A composição da roupa do executivo da
rede de televisão lembra a de um cardeal (figura 143); Truman aparentemente
andando sobre as águas numa direta referência a um dos milagres de Cristo
descrito nos Evangelhos (figura 144); Os vidros da janela de observação da sala de
controle do reality show assemelham-se a estrutura de vitrais de uma igreja (figura
145); quando Christof conversa com Truman a partir da sala de controle nos céu
cenográfico de Seaheaven, o céu abre-se após a tormenta, compondo uma típica
figura de livros religiosos quando a voz de Deus revela-se para profetas ou
apóstolos (figura 146); Truman escalando os degraus do “fim do mundo” como a
iconografia da transcendência, gnose ou busca do tertium quid (figura 147).
Figura 142
Figura 143
Figura 144
Figura 145
Figura 146
Figura 147
194
5.4. Lua
A Lua tem um papel simbólico importante para a filosofia dualista da salvação
de Mani, filósofo gnóstico em cujas mitologias parecem basear-se os argumentos de
Show de Truman. O Demiurgo luta em aprisionar a luz do homem dentro das trevas
do cosmos material. Alcançada a gnose, a luz liberta-se para viajar pelo céu e ser
purificada pela luz do Sol. A Lua seria o repositório dessas almas libertas pela morte
até serem preenchidas pela luz antes de serem lançadas para a libertação divina
10
.
Aqui, o Demiurgo ocupa a Lua para, através dos monitores, capturar a luz de
Truman (o fato de ser, com o seu carisma, “estrela”, iluminando e inspirando milhões
de telespectadores).
5.5. Olhos.
Truman busca em recortes de revistas olhos que correspondam ao das suas
memórias de Lauren. O olhar dela no primeiro encontro (em big close-up) na
biblioteca fascina e desperta Truman para a urgência do encontro naquele momento,
mesmo que significasse abandonar os estudos por algumas horas, às vésperas das
provas finais (figura 148). Truman tenta montar um “retrato imaginado” de Lauren a
partir de fragmentos de fotos de modelos em revistas (figura 149). Os olhos como a
simbologia do despertar, acordar para a Verdade.
Figura 148
Figura 149
10
Cf. ARCHELAUS, Herod. “Acts of Disputation with Manes” In: SALMOND, S. Ante-Nicene Fathers,
Vol. 6. Buffalo, NY: Christian Literature Publishing Co., 1886. Revisado and editado por New Advent
by Kevin Knight. Disponível em <http://www.newadvent.org/fathers/0616.htm> (acessado em
12/07/2009).
195
5.6. Memórias falsas
Além de desvendar a ilusão da realidade, Truman deve se confrontar com a
falsidade das memórias porque elas, também, foram fabricadas pelo Demiurgo.
Enquanto Truman tenta construir memórias verdadeiras, ele deve distinguir das
memórias falsas. Por exemplo, folheando o álbum de recordações da família,
descobre, na foto de casamento, através de uma lente, Meryl fazendo figa com os
dedos enquanto posa (figura 150). A seqüência das fotos do álbum revela fotos com
poses e situações exageradamente estereotipadas. Normalmente, um álbum de
recordações familiares tem um caráter clichê ou kitsch, mas, aqui, como Seaheaven
é uma segunda natureza da própria imagerie publicitária, o caráter kitsch é ainda
mais saturado (figuras 151 e 152). A mesma característica encontramos na
seqüência onde Truman e Marlon conversam na praia diante de um por de sol
exageradamente kitsch (figura 153).
Figura 150
Figura 151
Figura 152
Figura 153
196
5.7. Demiurgo como um asceta.
A forma como o Demiurgo/Christof é caracterizado através de roupas e
postura no filme lembra como alguém que consagra sua vida ao ideal da ascese, ou
seja, uma pessoa cujo estilo de vida austero e de renúncia aos prazeres mundanos
é uma forma de busca da purificação do corpo e da elevação espiritual. A começar
pelo figurino austero, de gola fechada assemelhando-se a um padre (figura 154).
Sua postura ao mesmo tempo passa força e poder e, paradoxalmente, fragilidade
como na seqüência onde, com o corpo arqueado para frente, sentado na sala de
controle do programa, conversa com Truman através do monitor (figura 155). Ele
renunciou à própria vida para dirigir o reality show. Ele mora e vive dentro dos
estúdios do programa, como uma espécie de asceta pós-moderno que busca, por
meio das imagens dos monitores, encontrar a redenção, isto é, capturar a inocência
de Truman. Aliás, sua relação com as imagens é de uma idolatria religiosa. Como
tal, a relação com as imagens não se resume a uma mera observação de um ícone,
mas na crença de um contato com o próprio índice da presença do objeto: ele olha
para o monitor com ódio e compaixão, tenta acariciar o rosto de Truman diversas
vezes a partir das imagens dos monitores da sala de controle (figuras 156 e 157).
Para os executivos da rede de televisão é mais um negócio para gerar
merchandising e dinheiro, mas para ele é uma questão religiosa ou espiritual. Tal
qual o Demiurgo da mitologia gnóstica, é inebriado pelo seu poder, mas, ao mesmo
tempo, é prisioneiro de um cosmos essencialmente corrompido arquitetado por ele
próprio. Este duplo aspecto de poder e submissão é simbolizado no filme por essa
descrição ascética do personagem Christof.
197
Figura 154
Figura 155
Figura 156
Figura 157
5.8. O espelho
Como um personagem cuja vida é um plot dentro de um reality show
construído dentro de uma cenografia elaborada como uma segunda natureza da
imagerie publicitária, a identidade de Truman é problemática. Ele olha para o
espelho, mas a superfície o reflete nada mais do que estereótipos do imaginário
midiático: assim como um cantor de chuveiro, Truman performa skatches midiáticos
de séries televisivas que passam na TV de Seaheaven (I Love Lucy e filmes B dos
anos 50) que ajudam a compor um imaginário hiper-real (figuras 158 e 159). O
espelho tem o simbolismo de transposição do limiar, de interface entre dois mundos
com lógicas opostas. Aqui, o espelho esconde o dispositivo que vigia Truman. O
espelho é uma mera continuidade daquilo que reflete. Mas, ironicamente, após uma
seqüência de performance diante do espelho, Truman fala cinicamente: “essa foi de
graça”. A paranóia de Truman (já dentro da para-realidade e tentando manipular o
198
entorno com gestos imprevisíveis) leva à desconfiança em relação ao espelho e
responde como falasse com um público virtual que o observasse.
Figura 158
Figura 159
199
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Durante as análises fílmicas percebemos uma nítida alteração temática na
passagem de final de século para início de novo século. Os anos de 1999-2000
marcam uma mudança da representação da irrealidade do mundo no qual o
protagonista vive.
No primeiro período (1995-1999) temos um mundo simulado por poderosas
tecnologias onipresentes e oniscientes, capazes de criar uma contrafação da
realidade tão perfeita que se confunde com o original, pelos menos para a
percepção dos protagonistas. Temos nessa primeira fase a clássica narrativa
gnóstica de um mundo criado por um Demiurgo (a tecnologia) para aprisionar seres
humanos. A narrativa apresenta um caráter maniqueísta (no sentido atribuído às
narrativas gnósticas de Mani) e vemos um explícito e dramático confronto do
humano contra uma divindade enlouquecida pelo poder espiritual e tecnológico.
Em O Quarto Poder vemos toda uma supra-realidade criada pelo circo
midiático envolta de um seqüestro involuntário que aprisiona o protagonista. O filme
salienta o poder tecnológico onisciente e onipresente da mídia versus a inocência e
pureza do protagonista, seduzido pelo caráter meta dos monitores de TV colocados
no interior do próprio palco das ações (Sam via-se a si próprio no museu onde
mantinha os reféns). Show de Truman reforça essa visão da tecnologia midiática,
capaz de simular um mundo para criar um novo Adão. Explicitamente inspirado na
expriência tecnognóstica do Oracle
1
nos Estados Unidos em 1991, esse filme é um
nítido exemplo da representação do imaginário tecnológico utópico e
transcendentalista de final de século.
De novo em A Vida em Preto e Branco o poder, não exatamente tecnológico,
mas mágico do Sr. Técnico de TV transporta os protagonistas para uma série de TV
1
O Projeto Oracle consistiu em colocar em imensos hangares de vidros, erguidos numa área cm
Tucson, no deserto do Arizona, quatro homens e quatro mulheres, 3.800 espécies animais e vegetais
e simulações dos cinco principais biomas do planeta Terra. Lá ficaram durante dois anos monitorados
por dois mil sensores eletrônicos e assistidos por 600 mil pagantes
200
dos anos 50, um microcosmo de simulação da realidade perfeita de adãos e evas
midiáticos. Indiretamente, Vidas em Jogo vai tocar nesse mesmo tema ao
apresentar uma empresa com tal onipotência e onisciência tecnológica que é capaz
de interferir nas transmissões de TV abertas (fazendo a programação interagir com o
protagonista) e produzir uma espécie de jogo que também interage com a vida real.
Matrix e o Décimo Terceiro Andar explicitamente representam o imaginário
tecnognóstico de final de século. Aproximam tecnociência e misticismo ao
apresentarem a tecnologia computacional como mediação possível para a
transcendência espiritual. A metáfora das unidades autônomas e autodidatas que
passam a ganhar consciência nos mundos simulados e a possibilidade dessa
consciência transcender de um mundo simulado inferior para um superior são,
explicitamente, tecnognósticas. Em ambos os filmes vemos criadores de simulações
que se tornam Demiurgos inebriados pelo poder que, novamente, procuram extrair
de seus prisioneiros a inocência ou energia de novos “adãos”.
O evidente simbolismo gnóstico maniqueo é Cidade das Sombras.
Novamente demiurgos (dessa vez uma raça alienígena) aprisionam humanos em
uma cidade-laboratório para buscar neles a essência da alma humana. A cidade é
uma gigantesca cenografia recriada a partir de fragmentos das memórias humanas
de todas as épocas, assim como a Seaheaven de Show de Truman é a pia da
cópia da imagerie publicitária.
Embora sem referência expcita ao universo tecnológico, Quero Ser John
Malkovich é uma verdadeira parábola dos destinos das identidades que buscam
mediações ou avatares, representados pela figuras das marionetes e do interior da
cabeça de John Malkovich. É o contexto midiático-tecnológico formado pela busca
da fama (somente pode se ficar 15 minutos na cabeça de Malkovich, irônica
referência a frase célebre de Andy Warhol sobre a fama) e da identidade por meio
de avatares em ambientes virtuais como Second Life.
O chamado “modelo Matrix” de gnosticismo pop parece se encerrar em 1999
com o próprio filme Matrix. Em 2000 temos a desaceleração da euforia utópica em
relação às tecnologias computacionais com a quebradeira das empresas “ponto
com” e a revelação de que a maioria dessas empresas jamais dera lucro e de que o
201
modelo utópico de uma internet com potencial socializante dentro do capitalismo
estava com seus dias contados
2
. Segundo Erik Davis, temos uma perda da euforia
tecnocultural:
O colapso da bolha das ‘ponto com’ pôs os visionários de volta para
suas confortáveis casas, e esse ‘retorno ao real’ foi cimentado ainda
pelo 11 de setembro. Euforia utópica e a vertigem pós-humana são out;
estabilidade e valores familiares são in. Ao invés da ambição pela
dissolução das fronteiras, vemos, pelo menos na política americana, a
restauração da ansiedade pela defesa das fronteiras: nação,
propriedade intelectual, religião cristã.
3
Simultaneamente, a partir de Amnésia (apesar de Clube da Luta de 1999
ser um prenuncio) temos uma alteração quanto à natureza do mundo ilusório no qual
o protagonista é prisioneiro. Agora, a origem está na mente do próprio protagonista.
O mundo ilusório pode ser resultante de uma desordem neurológica ou psíquica
(perda das memórias de curto prazo como em Amsia ou a esquizofrenia em
Identidade), conflitos interiores (o sentimento de culpa como em A Passagem),
poderes extra-sensoriais (como o dom da ubiqüidade espaço-temporal em Donnie
Darko) ou o mergulho em um mundo interior de memórias tal como em Vanilla Sky e
Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças.
A importância (ou o temor) simbólica das novas tecnologias e dos mundos
simulados parece deflacionar. Esse movimento de “retorno ao real” parece também
atingir os filmes gnósticos. Se, como Erik Davis observou, o gnosticismo pop do
“modelo Matrix” trazia uma reinterpretação paradoxal do gnosticismo (enquanto no
gnosticismo o mundo a ser transcendido é o material, no cinema o mundo que
aprisiona o homem é o das mediações, das simulações, e a transcendência é o
retorno à realidade física), após ano 2000 temos nos filmes gnósticos um retorno a
uma visão mais próxima do conceito de gnose: como salvação individual e
2
Em 1999, no auge da euforia e à beira do crash da Nasdaq o historiador inglês Richard Barbrook
lança na Internet o manifesto “Cibercomunismo: Como os Americanos Estão Superando o
Capitalismo no Ciberespaço” onde defende que a Internet está produzindo a superação do
capitalismo: “Um espectro assombra a Internet: o espectro do comunismo. Refletindo a extravagância
da nova mídia, esse espectro assume duas formas distintas: apropriação teórica do comunismo
stalinista e a prática cotidiana do cibercomunismo”.
Disponível em <http://www.imaginaryfutures.net/2007/04/17/cyber-communism-how-the-americans-
are-superseding-capitalism-in-cyberspace/> (acessado em 18/07/2009).
3
DAVIS, Erik p.400.
202
transformação íntima. Toda a narrativa mítica gnóstica (Queda e Ascensão) é
transposta para o interior do protagonista na procura do eu oculto aprisionado que
foi e que ainda é parte da Plenitude. Embora em todos os filmes analisados esteja
presente o tema da em si mesmo (o que se opõe ao catolicismo onde a
somente pode ser em Deus), somente após o ano 2000 temos um aprofundamento
desse aspecto da gnose. No modelo Matrix a “fé em si mesmo” é tratada de forma
rápida, próxima à filosofia de auto-ajuda (libertar-se dos medos ou das limitações
pessoais). Embora os mundos simulados tecnologicamente sejam a prisão do
protagonista, a tecnologia assume um papel importante para essa libertação: a
tecnologia da simulação que produz consciência e transcendência em O Décimo
Terceiro Andar ou os jogos de simulação de lutas em Matrix que ajudam Neo a
superar seus medos e libertar a consciência.
Ao contrário, a safra dos filmes gnósticos pós-2000 apresentam essas
verdadeiras “tecnologias do espírito” de forma crítica chegando até ser
ridicularizadas. Elas não são impotentes para possibilitar a reforma íntima, mas
constituem-se em verdadeiros Arcontes ou Demiurgos que aprisionam o
protagonista. A impotência dos psiquiatras em A Passagem e Identidade, a
perplexidade da terapeuta e a pedofilia do autor de livros de auto-ajuda em Donnie
Darko, a manipulativa forma terapêutica de apagamento de memórias em Brilho
Eterno de Uma Mente Sem Lembranças, o fracasso da tecnologia da empresa que
vende “sonhos lúcidos” por não prever a irrupção do inconsciente em seu cliente no
filme Vanilla Sky. A crítica apresentada a essas “tecnologias do espírito” lembra as
advertências de Mani de evitar as tentações consoladoras da religião e do
hedonismo como formas anestésicas de combater a melancolia. Em Donnie Darko
os seguidores do pedófilo escritor de auto-ajuda são apresentados quase como
fanáticos religiosos e a técnica de apagar memórias em Brilho Eterno é, na verdade,
uma forma de eliminar sentimentos de culpas para o cliente viver a vida de forma
hedonista.
Como já apresentou Sfez
4
, essas “tecnologias do espírito” possuem uma
secreta aliança com as novas tecnologias computacionais ao comparar o psiquismo
humano a um software, o cérebro a um hardware e a interioridade humana como
4
SFEZ, Lucien. Crítica da Comunicação. São Paulo: Loyola, 2000.
203
uma máquina expressiva governada pelo mesmo princípio das redes telemáticas:
rede, paradoxo, simulação e interação. Estas “tecnologias do Euchegam na crista
da onda eufórica em relação à Internet e às tecnologias computacionais e de
simulação. Aparentemente, as críticas em relação às tecnologias do espírito nos
filmes gnósticos pós-2000 se alinham ao refluxo dos sonhos utópicos
tecnocientíficos.
Outro aspecto comum dos filmes analisados é o que podemos denominar de
crítica metafísica. Muitas vezes os filmes apresentam uma crítica aos valores,
modelos e dispositivos da sociedade. Porém, não na perspectiva tradicional de uma
crítica ideológica ou política. A realidade não deve ser transformada ou reformada,
mas transcendida. Em O Quarto Poder, por exemplo, a crítica ao circo midiático não
passa pelo desvelamento dos interesses políticos ou econômicos dos executivos
das emissoras de TV. Ao contrário, foca na contaminação da própria realidade pela
aproximação massiva dos dispositivos midiáticos. No final, o protagonista vai além
das oposições: nem a realidade (volta à vida junto à família) nem a ilusão (estrela
midiática). Explode o museu onde mantinha os reféns e se mata. Show de Truman
sugere um final parecido. Truman não quer nem a ilusão (o reality show que o
aprisiona) e nem a volta à realidade (o mundo fora). Como vimos nas análises
fílmicas, procura o tertium quid. Em A Passagem, embora todos ao redor do
protagonista peçam para que fique (resista aos ferimentos e não morra), ele prefere
a terceira alternativa: nem o universo alternativo criado pela sua mente, nem a
realidade. Superada a culpa e feita a reforma íntima, procura seguir em frente
através da morte.
Em Donnie Darko vemos uma crítica ao conformismo em relação aos valores
e papéis não de uma sociedade em particular, mas da Sociedade. Mais do que isso,
a capacidade de o personagem perceber whormeholes tempo-espaço e a
possibilidade de criar futuros alternativos aprofunda o aspecto metafísico da crítica:
não apenas a sociedade, mas a própria ontologia do real é falsa.
Outra característica comum a praticamente todos os filmes analisados é a
ironia, não apenas como um elemento decorativo da narrativa, mas estruturando os
próprios recursos narrativos.
204
Se como vimos na Parte I, o Gótico vai expressar a emergência do Estranho
no cotidiano, a dissolução das fronteiras entre realidade e fantasia, projeção
psíquica e percepção, o filme gnóstico vai incorporar esses traços da ironia
romântica para acrescentar a simbologia gnóstica e a autoconsciência. Como vimos,
o filme gnóstico detém uma substância esotérica contida em um pacote exotérico,
isto é, trabalha com o tema da ilusão da realidade dentro de um produto comercial
determinado por uma ilusão: as convenções comerciais do gênero e o próprio
caráter ficcional da representação fílmica. Este tipo de filme parece estar consciente
dessa condição ao propor, como saída para essa tensão, experiências formais que
explodem a expectativa do espectador pelos clichês do gênero. Ao discutirmos
essas expectativas, quer dizer que estamos discutindo as formas de identificação do
espectador com o filme: as expectativas do espectador por personagens, desfechos
de narrativas, temas, enfim, pelos aspectos de conteúdos contados pela estória do
filme.
O filme gnóstico parece seguir o sentido contrário desse prazer
cinematográfico. A utilização dos instrumentos da ironia como a fragmentação, auto-
referência, narrativas com pontos de vista inconciliáveis, confusão entre o ponto de
vista da câmera e o ponto de vista da visão do personagem etc., dificultam essa
identificação primária.
Em A Passagem parece que vemos deliberadas falhas de continuidade,
lapsos, quebras de eixo, tudo para representar, na própria linguagem narrativa, o
universo onírico no qual o protagonista está preso. Porém, um aspecto meta:
assim como a realidade do protagonista, a mediação fílmica também é uma ilusão.
Em Amnésia a dúvida ontológica do personagem Leonard (existe uma
realidade lá fora quando meus olhos se fecham?) contamina a própria estética
narrativa: o espectador na tela algo que está acontecendo ou o quê as projeções
psíquicas do personagem imaginam estar acontecendo?
Em Identidade vemos um exemplo da tensão que o filme gnóstico sustenta. O
filme mantém duas narrativas paralelas que, ao final se anulam, criando um vazio
interpretativo para o espectador: não sabemos se tudo aquilo que presenciamos no
motel são, na verdade, projeções de uma identidade esquizofrênica de um criminoso
205
serial ou se, de fato, o os relatos dos próprios crimes cometidos por ele. A
identificação primária é instável. De qual é o ponto de vista presenciado na tela? O
filme inicia com uma narrativa clássica para reverter, ao final num limbo de
identificação. É o típico filme que, ao final, o espectador se pergunta com um ar de
desapontamento e decepção: acabou? Como assim? A quebra da ordem
encontra-se tanto na estória narrada como na linguagem narrativa irônica. Isto é,
tanto na forma como no conteúdo.
Donnie Darko apresenta estes mesmos elementos: o filme chama a atenção
pela sua temporalidade artificial ao sustentar duas narrativas opostas. Tal como um
hipertexto, o filme conta simultaneamente a estória de Donnie escapando da queda
da turbina de um avião sobre o seu quarto e Donnie morto pela queda da mesma
turbina. Uma narrativa cancela a outra deixando o espectador em dúvida sobre qual
seqüência de eventos é a válida. No filme predomina uma atmosfera de que a
realidade é composta por eventos possíveis que podem ser alterados a partir da
perspectiva de outras seqüência fabricadas Esta natureza artificial é ainda reforçada
por passagens que lembram a estética vídeo-clip dos anos 80 como na seqüência
do colégio de Donnie, ao som de Head Over Hells do Tears for Fears, um hit
daquela década.
Ou ainda, a recorrente situação de narrativa em abismo, como em Vidas em
Jogo ou Show de Truman: vemos atores que representam que são atores que
representam que são atores...
O que presenciamos nos filmes gnósticos, portanto, é a transparência da
situação ficcional. É exatamente o oposto daquilo que é exigido pela narrativa
clássica para seduzir o espectador e alcançar a identificação primária.
Ao explorar o Estranho e o Fantástico, o filme gnóstico emprega,
simultaneamente uma integridade mimética e recursos formais que, em dados
momentos da narrativa, parecem drenar as suas próprias premissas,
transparecendo o caráter ficcional e deixando o espectador em um vazio: o esses
filmes realísticas narrativas de eventos verossímeis ou paródias de qualquer
autenticidade? São filmes que pedem distanciamento, exatamente o oposto do
prazer primário do espectador: a identificação com o dispositivo fílmico, com a
206
câmera. O filme gnóstico parece ter a consciência de lidar com temas complexos,
místicos ou, até, heréticos, dentro da roupagem comercial das convenções de
gênero. Filmes, como Donnie Darko, onde temos atores comercialmente conhecidos
e consagrados (Patrick Swayze e Drew Barrymore) dentro de uma estória bizarra
(uma casa ao lado de um vórtice de tempo/espaço sobre a qual cai uma turbina de
avião), expõem essa tensão entre dois los opostos: o comercial e o experimental,
a mercadoria e a transcendência.
**********
E qual a especificidade do filme gnóstico dentro do campo cinematográfico?
Isto é, o que torna esse grupo de filmes analisados distintamente “gnósticos” em
relação aos outros filmes dos seus gêneros correspondentes?
A análise fílmica encontrou três características mais gerais ou comuns a
esses filmes. Primeiro, é o aspecto da gnose que poderia ser sintetizada na seguinte
frase: tudo do que o protagonista necessita está no interior da sua mente
5
. A
gnose é apresentada como uma reforma íntima através de uma superação de limites
pessoais (medos, traumas, apego aos valores do mundo físico etc.). O processo de
transformação é rigorosamente pessoal e interior. O protagonista não necessita de
nenhum instrumento exógeno para conseguir a transformação (livros, manuais,
técnicas, guias, mentores, Deus, magia etc.) Apenas encontramos personagens que
acompanharão o protagonista para ajudá-lo a criar situações que despertem nele a
necessidade da reforma íntima. Em geral, a gnose é iniciada a partir de sensações
ou sentimentos íntimos do protagonista (paranóia, melancolia, déjà vus, lapsos
temporais, estranhamento etc.). Isto é, a gnose não é episteme. Ela o é iniciada a
5
Aqui destacamos a associação com a epígrafe que abre essa dissertação: “Tudo o que você precisa
está dentro da sua mente” (Pinky Dink Doo Discovery Kids). Pinky é a protagonista de uma série
infantil de animação do canal Discovery Kids. Por meio da imaginação ela cria mundos e desafios
para ela e seu irmão. Coincidentemente (ou não) o mbolo estampado em seu vestido é o de uma
espiral, cuja simbologia esotérica é discutida no tema da paranóia dentro do capítulo sobre os temas
do grupo fílmico “O Detetive” nessa dissertação. Essa frase de Pinky levanta uma discussão sobre
como a mitologia gnóstica pode estar presente não apenas no cinema, mas em diversos produtos da
cultura de massas.
207
partir de um conhecimento racional ou sistematizado. A jornada gnóstica deve
conduzir à revelação, ao inesperado e, às vezes, a um violento insight que conduz o
protagonista à percepção do todo. Muitas vezes a gnose não é uma experiência que
o sujeito alcance intencionalmente. Ele é tomado por ela. Isso é que difere os filmes
gnósticos de filmes como O Último Portal (The Ninth Gate, 1999) em que o
protagonista percorre o caminho em direção à revelação através de conhecimentos
ocultistas sistematizados em livros.
O segundo aspecto é de que a jornada pela qual o protagonista percorre não
é uma expiação, mas uma “cura”, Em outras palavras, toda a provação não é
conseqüência de pecados ou deformações do caráter do protagonista, mas, antes,
decorre de uma realidade corrompida que o aprisiona. Todas as dúvidas e
sofrimentos não o castigos por alguma transgressão ética ou moral do
protagonista. Pelo contrário, é o trajeto mítico gnóstico de Emanação-Queda-
Ascensão onde o protagonista é resgatado do cosmos material ao despertar a Luz
interior por meio de situações que o ajudam a revelar o véu da ilusão. Isso é o que
distingue os filmes gnósticos de filmes como O Advogado do Diabo (The Devil’s
Advocate, 1997), onde o protagonista é seduzido pelo diabo por meio do pecado da
vaidade. Apesar do discurso final de Milton (o diabo que vem ao mundo sob a forma
de um advogado performado por Al Pacino) tentando convencer o protagonista
Kevin (Kaenu Reeves) a ser seu sucessor ter um sabor gnóstico, o drama do
protagonista centrado em um recorrente pecado da vaidade configura um típico filme
de temática religiosa conservadora. O protagonista é punido pelo seu pecado
capital.
O terceiro aspecto é uma decorrência do segundo: nos filmes gnósticos o
protagonista não é punido pela transgressão da ordem. Ao contrário das exigências
decorrentes dos gêneros comerciais onde o clichê de quebra-da-ordem-e-retorno-a-
ordem é dominante
6
, no filme gnóstico a quebra da ordem não é punida, isto é, não
6
Este clichê de "quebra-da-ordem-e-retomo-a-ordem" é a confirmação do desejo secreto do público
de acabar com os sonhos livres demais e ao mesmo tempo liquidar com idéias provocativas que
possam incomodar a necessidade por harmonia. Pode parecer estranho, mas felicidade demais
incomoda o público. As pessoas esperam que os sonhos sejam abatidos pela realidade dentro do
clichê. Mas, por quê? Para que a volta à realidade, após sair do cinema ou desligar a TV, não seja
tão traumática. Cf. MARCONDES FILHO, Ciro. Dieter Prokop. São Paulo: Ática, 1985 e
MARCONDES FILHO, Ciro. Televisão: a vida pelo vídeo, São Paulo: Moderna, 1988.
208
um restabelecimento da ordem (seja social, política, institucional, familiar, moral
ou pessoal) com a punição das pretensões de ruptura das ilusões da realidade
material. Isso distingue, por exemplo, o salto final em filmes como Telma e Louise
(Thelma e Louise, 1991) com o do filme Vidas em Jogo. Se no primeiro filme todo o
processo de questionamento da sociedade machista pelas protagonistas é punido
pela morte com o salto final no abismo, em Vidas em Jogo o salto no vazio do
protagonista é a quebra da ordem, o resultado da jornada do Viajante cujo processo
de reforma íntima significa a quebra de toda uma ordem de papéis sociais. Ou ainda,
a diferença de desfecho em um filme como Click (Click, 2006). Apesar do sabor
temático gnóstico, apresenta um protagonista punido pela sua ambição materialista
(workholic cujo objetivo é o de tornar-se sócio de uma empresa) e um final que
restabelece a ordem familiar quebrada pelo pecado.
209
BIBLIOGRAFIA
AUMONT, Jacques e MARIE, Michel. Dicionário Teórico e Crítico de Cinema,
Campinas: Papirus, 2007.
BAUDRILLARD, Jean. El Otro por Sí Mesmo. Barcelona: Editorial Anagrama, 1988.
______. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio D’Água, 1982.
BUNSEN, Christian Carl J. Hippolytus and His Age or the Beginnings and Prospects
of Christianit (1852). Kessinger Publishing Rares Reprints, 2009.
SFEZ, Lucien. A Crítica da Comunicação. São Paulo: Loyola, 2000.
BAUMAN, Zigmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.
BOUGNOUX, Daniel, Introdução às Ciências da Informação e da Comunicação.
Petrópolis: Vozes, 1992.
CARROLL, Lewis. Alice no País das Maravilhas. Petrópolis: Arara Azul, 2002,
tradução: Clélia Regina Ramos.
CHARNEY, Leo & SCHWARTZ, Vanessa (org.), O Cinema e a Invenção da Vida
Moderna. São Paulo: Cosac & Naif, 2001.
CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain. Dicionário dos Símbolos. Rio de
Janeiro: José Olympio Editora, 2009.
CIRLOT, Juan-Eduardo. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Editora Moraes, 1974.
COLERIDGE, Samuel Taylor. Biographia Literaria, Volume II, Princeton: Princeton
University Press, 1983.
DAVIS, Erik. Techgnosis: myth, Magic and mysticism in the age of information.
London: Serpents Tail, 2004.
DICK, Philip K. Confessions of a Crap Artist. New York: Pocket Books, 1982.
EMICK, Jennifer, “Hollywood Goes Gnostic?” In:
http://altreligion.about.com/library/weekly/aa072302a.htm (acessado em 03/12/2007).
FAVROD, Charles-Henri. O Ocultismo. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1977.
210
FELINTO, Erick. A Religião das Máquinas: ensaios sobre o imaginário da
cibercultura. Porto Alegre: Editora Sulina, 2005.
FERKISS, Victor. Technology and Culture: gnosticism, naturalism and incarnational
integration, Cross-currents, XXX, 1980.
FERRO, Marc. Cinema e História.São Paulo: Paz e Terra, 1992.
FREUD, S. “Carta Datada de 31 de maio de 1897”, In: Edição Standard Brasileira,
Rio de Janeiro: Imago, 1992.
______. “O estranho” in História de uma neurose infantil e outros
trabalhos. Edição standard brasileira das obras completas de S. Freud. Vol XVII
(1917-1919). Tradução de Eudoro Augusto Maciera de Souza. Rio de Janeiro, Imago
Editora, 1976.
GARREAU, Joel, “Conspiracy of Heretics”, In: Wired, Issue 2.11, Nov. 1994.
HIPPOLYTUS., “Refutation of All Heresies”. Book X, Chapter X. Disponível em
<http://www.mb-soft.com/believe/txu/hippoly9.htm> (acessado em 25/02/2009).
HUTIN, Serge. Los Gnósticos, EUDEBA: Buenos Aires, 1963.
HOELLER, Stephan A., Gnosticismo: tradição oculta. Rio de Janeiro: Nova Era,
2005.
________. Jung e os Evangelhos Perdidos: uma apreciação junguiana sobre os
Manuscritos do Mar Morto e a Biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo:
Cultrix/Pensamento, 1993.
JASTROW, Robert. The Enchanted Loom: Mind in the Universe, New York, Simon
and Schuster, 1984.
JUNG, Carl Gustav. O Homem e seus Símbolos. Rio de janeiro: Nova Fronteira,
1987.
__________. “Um Mito Moderno Sobre As Coisas Vistas no Céu” in : Obras
Completas, V. X/4,. Petrópolis: Vozes, 1991.
__________. Símbolos da Transformação, Petrópolis: Vozes, 1995.
__________. JUNG, C.G. Sete Sermões aos Mortos.
211
LANIER, Jaron. "Agents of Alienation," Journal of Consciousness Studies, volume 2,
no. 1, 1995.
LUND, Roger D. Orthodoxy and Heresy in EighteenthCentury Society. Edited by
Regina Hewitt and Pat Rogers. Lewisburg, Pa.: Bucknell University Press, 2002.
MARCONDES FILHO, Ciro (org.). Dieter Prokop. São Paulo: Ática, 1985.
______ . Televisão: a Vida pelo Vídeo. São Paulo: Moderna, 1987.
MARTINS, Hermínio. Hegel, Texas e Outros Ensaios de Teoria Social. Lisboa:
Edições Século XXI, 1996.
MEYER, Marvin. Mistérios Gnósticos: as novas descobertas. O impacto da biblioteca
de Nag Hammadi. São Paulo: Pensamento, 2005.
NELSON, Victória, The Secret Life of Puppets. Cambridge: Havard UP, 2001.
NESTROVSKY, A. Ironias da Modernidade, São Paulo: Ática, 1996.
NOVÓA, Jorge, e NOVA, Cristiane (Org.). Interfaces da história: caderno de textos.
v. 1, n. 1. Salvador: Bahia, 1998.
PAGELS, Elaine. Os Evangelhos Gnósticos. R. de Janeiro: Objetiva, 2006.
PEIXOTO, Nelson Brissac. Cenários em Ruínas. São Paulo: Brasiliense, 1987.
PETREMENT, S. Le Dualisme Ches Platon, lês gnostiques et lês manichéens. Paris:
PUF, 1974.
ROBINSON, James M. A Biblioteca de Nag Hammadi. São Paulo: Madras, 2007.
ROSZAK, Theodore, From Satori to Silicon Valley: San Francisco and the American
Counterculture, Lagunitas: Lexikos Publishing, 1986.
RUYER, Raymond. A Gnose de Princeton. São Paulo: Cultrix, 1989.
SILVA, Antônio Almeida R. da, “Relação entre Espaço e Lugar no pensamento de
Martin Heidegger” Correlatio, n. 11, Universidade Metodista de São Paulo.
Disponível em <http://www.metodista.br/ppc/correlatio/correlatio11/relacao-entre-
espaco-e-lugar-no-pensamento-de-martin-heidegger/> (acessado em 09/01/2009).
TODOROV, Tzvetan, Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva,
1992.
212
TRÊS INICIADOS, O Caibalion. São Paulo, Editora Pensamento: 2006.
VANOYE, Francis e GOLIOT-LÉTÉ, Anne. Ensaio Sobre a Análise Fílmica.
Campinas: Papirus, 2006.
VOLOBUEF, K. Frestas e Arestas. A prosa de ficção do romantismo na Alemanha e
no Brasil. São Paulo: Editora da UNESP, 1998.
WILDER, T. E. “El Gnosticismo en el Cine”disponível em <http://www.contra-
mundum.org/castellano/wilder/Gnosticismo.pdf> (acessado em 12/01/2008).
WILSON, Eric. Secret Cinema: Gnostic vision on film. Nova York: Continuum, 2006.
_______ . “The Dark Art”, disponível em
<http://www.uga.edu/garev/spring07/wilson.pdf> acessado em 19/01/08.
213
FILMOGRAFIA
1. AMNÉSIA (Memento). Direção: Christopher Nolan. Produção:
NewmarketCapital Group (EUA). Intérpretes: Guy Pearce, Carrie Anne-Moss,
Joe Pantoliano, Mark Boone Jr. E outros. Roteiro: Jonathan Nolan (conto
Memento Mori) e Christopher Nolan. Paris Filmes, 2000. DVD
(113 min).
2. BRILHO Eterno de uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the
Spotless Mind). Direção: Michel Gondry. Produção: Anonymous Content (EUA).
Intérpretes: Jim Carrey, Kate Winslet, Elijah Wood, Tom Wilkinson, Kirsten
Dunst, Mark Ruffalo e outros. Roteiro: Charlie Kaufman e Michel Gondry.
Universal Studios Home Video, 2004. DVD (108 min).
3. CIDADE das Sombras (Dark City). Direção: Alex Proyas. Produção: Mystery
Clock Cinema (EUA/Austrália). Intérpretes: Rufus Swell, William Hurt, Kiefer
Sutherland, Jennifer Connelly e outros. Roteiro: Alex Proyas. Warner Home
Video, 1998, DVD (100 min).
4. CLUBE da Luta (Fight Club).Direção: David Fincher. Produção: Art Linson
Productions (EUA/Alemanha). Intérpretes: Edward Norton, Brad Pitt, Helena
Bonham Carter, Meat Loaf e outros. Roteiro: Chuck Palahniuk (novela) e
JimUhls. Twentieth Century Fox Home Entertainment, 1999. DVD (139 min).
5. DEAD Man (Dead Man). Direção: Jim Jarmusch. Produção: Pandora
Filmproduktion (EUA, Alemanha, Japão). Intérpretes: Johnny Depp, Gary
Farmer, Crispin Glover, Robert Mitchum, John Hurt e outros. Roteiro: Jim
Jarmusch. Miramax Home Entertainment, 1995, DVD (120 min).
6. DÉCIMO Terceiro Andar, O (The Thirteenth Floor). Direção: Josef Rusnak.
Produção: Centropolis Film Productions (EUA/Alemanha). Intérpretes: Craig
Bierko, Armin Mueller-Stahl, Gretchen Mol, Vincent D’Onofrio e outros. Roteiro:
Daniel Galouye (Livro Simulacron 3) e Josef Rusnak. Sony Pictures Home
Entertainment, 1999. DVD (100 min).
7. DONNIE Darko (Donnie Darko). Direção: Richard Kelly. Produção: Pandora
Cinema (EUA). Intérpretes: Jake Gyllenhaal, Holmes Osborne, Patrick Swayze,
214
Katharine Ross, Drew Barrymore e outros. Roteiro: Richard Kelly. Flashstar
Home Video, 2001. DVD (113 min).
8. IDENTIDADE (Identity). Direção: James Mangold. Produção: Columbia Pictures
Corporation (EUA). Intérpretes: John Cusack, Ray Liotta, Amanda Peet, Alfred
Molina, John Hawkes. Roteiro: Michael Cooney. Columbia TriStar Home Video,
2003. DVD (90 min).
9. MATRIX (The Matrix). Direção: Andy e Larry Wachowski. Produção:Warner
Bros. Pictures (EUA/Austrália). Intérpretes: Keanu Reeves, Laurence
Fishburne, Carrie-Anne Moss, Hugo Weaving, Joe Pantoliano e outros. Roteiro:
Andy e Larry Wachowski. Warner Home Video, 1999. DVD
(136 min).
10. PAGAMENTO, O (Paycheck). Direção: John Woo. Produção: DreamWorks
SKG (EUA/Canadá). Intérpretes: Ben Affleck, Aaron Eckhart, Uma Thurman,
Paul Giamatti, Colm Feore e outros. Roteiro: Philip K. Dick (conto) e Dean
Georgaris. Paramount Home Entertainment, 2003. DVD (119 min).
11. PASSAGEM, A (Stay). Direção: Marc Forster. Produção: New Regency
Pictures (EUA). Intérpretes: Ewan McGregor, Ryan Gosling, Naomi Watts,
Elizabeth Raser, Bob Hoskins, Kate Burton e outros. Roteiro: David Benioff.
Twentieth Century Fox Home Entertainment , 2005. DVD (99 min).
12. QUARTO Poder, O (Mad City). Direção: Costa-Gavras. Produção: Arnold
Kopelson Productions (EUA). Intérpretes: John Travolta, Dustin Hoffman, Alan
Alda, Blythe Danner, Mia Kirshner e outros. Roteiro: Tom Matthews e Eric
Williams. Warner Home Video, 1997, DVD (114 min).
13. QUERO Ser John Malkovich (Being John Malkovich). Direção: Spike Jonze.
Produção: Gramercy Pictures (EUA). Intérpretes: John Cusack, Cameron Diaz,
Ned Bellamy, John Malkovich, Orson Bean e outros. Roteiro: Charlie Kaufman.
Columbia TriStar, 1999. DVD (112 min).
14. SHOW de Truman, O: O Show da Vida. (The Truman Show). Direção: Peter
Weir. Produção: Paramount Pictures (EUA). Intérpretes: Jim Carrey, Laura
Linney, Noah Emmerich, Ed Harris e outros. Roteiro: Andrew Niccol.Paramount
Home Entertainment, 1998. DVD (103 min).
215
15. VANILLA Sky (Vanilla Sky). Direção: Cameron Crowe. Produção: Paramount
Pictures (EUA). Intérpretes: Tom Cruise. Cameron Diaz, Penélope Cruz, Kurt
Russell, Jason Lee e outros. Roteiro: Alejandro Amenábar (filme Abre Los
Ojos) e Mateo Gil. Paramount Filmes do Brasil, 2001. DVD (136 min).
16. VIDAS Em Jogo (The Game). Direção: David Fincher. Produção: Polygram
Filmed Entertainment (EUA). Intérpretes: Michael Douglas, Sean Penn,
Deborah Kara Unger, James Rebhorn, Peter Donat e outros. Roteiro: John
Brancato e Michael Ferris. Universal Home Entertainment, 1997, DVD
(128 min).
17. VIDA em Preto e Branco, A (Pleasantville). Direção: Gary Ross. Produção: New
Line Cinema (EUA). Intérpretes: Tobey Maguire, Reese Witherspoon, William
Macy, Joan Allen, Jeff Daniels e outros. Roteiro: Gary Ross. Warner Home
Video, 1998. DVD (124 min).
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo