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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO PPG
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS V
SANTO ANTÔNIO DE JESUS - BAHIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA, MEMÓRIA E
DESENVOLVIMENTO REGIONAL.
MARIA DE CARMEM RODRIGUES FERNANDES
JATIMANE: UM ESPAÇO DE MEMÓRIAS E MANIFESTÇÕES CULTURAIS.
SANTO ANTONIO DE JESUS-BAHIA
2009
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1
_____________________________________________________
S586 Fernandes, Maria de Carmem Rodrigues.
Jatimane: um espaço de memórias e manifestações culturais/ Maria
Carmem Rodrigues Fernandes - 2009.
142 f.: il
Orientadora: Profa. Dra. Nancy Rita Sento Sé de Assis.
Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa
de pós-graduação em Cultura memória e desenvolvimento regional, 2008.
1. Cultura aspectos sociais. 2. Cultura popular. I. Assis, Nancy Rita
Sento Sé. II. Universidade do Estado da Bahia, Programa de Pós graduação
em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional.
CDD: 306
Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB
Bibliotecária: Juliana Braga CRB-5/1396.
__________________________________________________________________
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2
MARIA DE CARMEM RODRIGUES FERNANDES
JATIMANE: UM ESPAÇO DE MEMÓRIAS E MANIFESTAÇÕES
CULTURAIS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da
Universidade do Estado da Bahia, Campus V, como requisito
para obtenção do grau de Mestre.
ORIENTADORA: Profa. Dra. Nancy Rita Sento Sé de Assis
SANTO ANTONIO DE JESUS-BAHIA
2009
3
MARIA DE CARMEM RODRIGUES FERNANDES
JATIMANE: UM ESPAÇO DE MEMÓRIAS E MANIFESTAÇÕES
CULTURAIS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da
Universidade do Estado da Bahia, Campus V, como requisito
para obtenção do grau de Mestre.
ORIENTADORA: Profa. Dra. Nancy Rita Sento Sé de Assis
Dissertação aprovada em: _________ de _____________________ de 2009.
Banca Examinadora
___________________________________________________________________________
_
Profa. Dra. Nancy Rita Sento Sé de Assis
Professora Dra. da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) CampusV
___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Carmélia Aparecida da Silva Miranda
Professora Dra. da Universidade do Estado da Bahia(UNEU) Campus
___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Acácia Batista Dias
Professora Dra. Universidade Estadual de Feira de Santana
4
Em memória de meu pai
5
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, pois creio ser esta a força motivadora de nossa
existência; a minha família, que vela por mim; e ao meu marido que sempre me incentivou e
me deu força nesta empreitada. Sou grata às alunas Clausete Rosário e Rosana Conceição,
membros da comunidade remanescente de Jatimane, por terem facilitado meu acesso à
localidade e, um especial agradecimento, a D. Amaurina Rosário, madrinha desta pesquisa,
pelo empenho com que me levou de casa em casa, a visitar os guardiões da memória de
Jatimane.
Registro publicamente a gratidão que tenho a minha orientadora Nancy Rita Sento Sé,
por muitos motivos: primeiro, por ter acreditado em meu projeto de pesquisa, e ter acolhido
para orientação. Uma orientação inteligente, competente, segura; segundo pela confiança que
depositou em meu trabalho e capacidade; terceiro pelo apoio amigo, nas horas difícies em que
a dissertação parecia não ter fim, e a fonte de inspiração, esgotada; quarto, pela liberdade de
criação que me proporcionou, sempre incentivando. Foi um privilégio tê-la como orientadora.
Obrigada, por tudo!
Sinto-me uma privilegiada por ter sido aceita no Programa de Pós-Graduação do
Mestrado Multidisciplinar em Cultura Memória e Desenvolvimento Regional por ter me
concedido suporte e condições para um crescimento intelectual.
Agradeço também a contribuição da equipe docente do Programa, bem como aos meus
colegas: da Linha I, companheiros de angústias compartilhadas e pelos bons momentos ao
longo desse percurso; aos colegas da Linha II, pelos encontros e viagens compartilhadas
durante o mestrado. Um agradecimento especial à amiga e colega Fabiane Andrade, pelos
constantes contatos e desabafos multos. Aos funcionários do Programa, que completam essa
equipe de trabalho.
Um agradecimento especial às PROFª.DRª. Carmélia Aparecida da Silva Miranda e a
PROFª.DRª. Rosy de Oliveira que muito contribuíram com suas sugestões durante a
qualificação.
6
“A idéia de cultura implica a idéia de tradição de
certos tipos de conhecimentos e habilidades
legados de uma geração para a seguinte.
(BURKE: 2005. p .39.)
7
LISTA DE FIGURAS
Mapa da APA do Pratigi 34
Croqui da comunidade de Jatimane 44
Vista aérea da comunidade de Jatimane 46
Rio Jatimane 65
Transportador de mondongos de piaçava 77
Tirador de piaçava 77
Catando piaçava-1 84
Catando piaçava-2 84
Penteando piaçava 85
Mondongos de fibra de piaçava 85
Mulheres beneficiando piaçava, no espaço de um catador 85
Artesão de pente de picava 86
Mondongos da casca de piaçava 86
Mapa da estrada RL 264 93
Visão da estrada dentro da comunidade de Jatimane 97
8
LISTA DE SIGLAS
ACMI-Arquivo da Câmara Municipal de Ituberá
APA- Área de Proteção Ambiental
APEBA- Arquivo Público do Estado da Bahia
CAR - Caderno de Oportunidades
CRA-Centro de Recursos Ambientai
COOPRAP- Cooperativa dos Produtores e Produtoras do Pratigi
IDES Instituto de Desenvolvimento Sustentável do Baixo Sul
IFHAN - Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
OCT-Organização de Conservação de Terras do Baixo Sul
SEPLANTEC-Secretaria de Planejamento, Ciências e Tecnologia do Estado da Bahia.
9
RESUMO
Esta é uma análise cultural sobre as experiências históricas da comunidade de Jatimane,
tem como temática as memórias dos guardiões locais e o estudo das manifestações culturais
desta comunidade remanescente de quilombo. Utilizando os recursos do trabalho de campo,
como observação participada e entrevistas livres, filmadas e/ou gravadas, a metodologia da
história oral permitiu este estudo, a partir dos registros de memórias, associados a uma
documentação oficial, e à literatura histórica específica, que possibilitou a recuperação da
história da comunidade e a análise do seu legado cultural, materializado nas tradicionais
práticas laborais do extrativismo da piaçava e da atividade pesqueira, bem como nas
celebrações de suas festas e tradições. Estas últimas, aqui são apreendidas como uma forma
lúdica de reatualização da memória, o que favorece uma argumentação de que, nesta área, uma
tradicional cultura de resistência quilombola gestou esta comunidade negra rural, que
sobrevive nesta região. A partir desta análise conclui-se que a comunidade de Jatimane
apresenta características distintivas que podem ser associadas àquelas presentes nas
comunidades remanescentes de quilombos.
PALAVRAS-CHAVES: Cultura; Memória; Oralidade.
10
ABSTRAT
This is a cultural analysis that has as its theme the memories and the cultural events of
the remainder of the quilombo Jatimane. Using the resources of the fieldwork, as well
participatory observation, and free interviews, films and / or recorded, the methodology of
oral history led to this study, from the records of the guardians of memories locations, related
on official documentation, and a literature historically specific, the recovery of the
community‟s history and analysis of their cultural traditions embodied the working practices
of the extractive piaçava and fishing activity, and in celebration of their festivals and
traditions. These are seized as form of leisure reatualização memory which favored the
argument that, in this area, a traditional culture of resistance quilombola, gestures that black
peasantry which still survives in this region like the community of Jatimane. From this anlysis
it appears that the communities of Jatimane displays distinctive characteristics that con be
attached to those present in the remnants of quilombo communities.
KEY WORDS: Culture, Memory, Orality.
11
SUMÁRIO
LISTA DE SIGLAS
LISTA DE FIGURAS
RESUMO
ABSTRACT
CONSIDERAÇÕES INICIAIS 11
1 HISTÓRIA E MEMÓRIA DE JATIMANE 28
1.1 BAIXO SUL: UMA HISTÓRIA DE TRADIÇÃO QUILOMBOLA 29
1.2 SITUANDO A COMUNIDADE DE JATIMANE 33
1.3 O LEGADO DA MEMÓRIA: TECENDO A GÊNESE DO LUGAR 48
1.4 A POLIFONIA DOS DISCURSOS INTERNOS 53
2 VARIEDADES CULTURAIS: TRABALHO E SOCIABILIDADES 62
2.1 OS SABERES DE JATIMANE 63
2.2 HABILIDADES LABORAIS 73
2.3 A ESTRADA: UM SÍMBOLO DE MUDANÇA 92
3 MANIFESTAÇÕES CULTURAIS E MEMÓRIAS 100
3.1 A TEMÁTICA DA FESTA 101
3.2 A QUEIMA DAS PALHAS DOS PRESÉPIOS 104
3.2.1 A visitação 112
3.2.2 A musicalidade 114
3.2.3 O banquete 116
3.3 REATUALIZANDO A MEMÓRIA ATRAVÉS DAS MANIFESTAÇÕES
CULTURAIS 118
3.3.1 O casamento de Ephifânio 119
3.3.2 A moça na varanda 124
CONSIDERAÇÕES FINAIS 128
FONTES ORAIS E ESCRITAS 130
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 136
12
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Eu vou começar a contar pra vocês um pouquinho da história
que a minha madrinha me contou. Minha madrinha era filha de
uma escrava da região
1
.
Esta epígrafe faz parte do relato de memória de D. Maria Madalena Oliveira do
Rosário. Como personagem de uma trama real, a memorialista resolveu escrever sobre os
fragmentos de uma memória local, memória que a narradora teve receio que se apagasse, e de
forma prática registrou no seu caderno de anotações. É louvável a iniciativa de D. Maria
Madalena Oliveira do Rosário, aos sessenta e oito anos de idade, seu ato político intencional,
tem o objetivo de reconstruir e preservar a história do lugar. Nesta empreitada, a informante
utiliza a capacidade da memória em redimensionar suas lembranças individuais e familiares.
Seus registros são escritos pontuais, marcados com a letra trêmula de quem tardiamente
dominou a técnica da escrita.
A narrativa inicia com o credenciamento de sua fonte, trata-se de uma lembrança de
família, que sua madrinha contou. Quanto a referência de sua madrinha, ela esclarece que a
Senhora Maria do Amparo não viveu o período do cativeiro, mas, como filha de uma escrava
da região, “falava com firmeza” as histórias daquele tempo. Prosseguindo no relato, D. Maria
Madalena afirma que...
Os negros vieram fugidos, se arrancharam no mato aqui perto, um lugar
chamado Porto Velho, ficaram até passar o perigo, quando não tinha
mais risco, aí eles vieram pra cá e levantaram as casas, construíram
Jatimane. Minha madrinha me contou que havia muita dificuldade de
água, aí eles construíram o sítio aqui porque aqui tinha água boa
2
.
Em outro relato, é o Srº Manoel da Luz que nos contempla com uma entrevista rica em
informações. Neste fragmento de entrevista ele diz:
Aprendi a tirar piaçava com os outros, e sempre trabalhei de ganho.
Naquele tempo, ouvia falar que tivera escravo por aqui, mas não sei dizer
1
D. Maria Madalena Oliveira do Rosário, 68 anos de idade, casada, aposentada. Entrevistada pela autora no dia
04.01.2006, em Jatimane.
2
Idem.
13
nada não, só sei que o trabalho da piaçava era desde o tempo dos escravos, é
um trabalho escravo, isso eu também ouvia falar
3
.
Estes e outros relatos de memória, ora individual ora familiar, tomam o passado como
interpretação de um tempo vivido e dão conta de uma história do grupo e sobre o grupo.
Através dos registros de memória, os informantes retratam sua história e suas práticas
culturais, algumas delas utilizadas como marcas distintivas da comunidade.
Essas narrativas fazem parte de um repertório comum aos guardiões da memória local.
Nestes relatos, aparece inalterados uma “reinvenção” da nese local, que se aproxima da
idéia de um mito fundador, delineando uma ascendência escrava a partir dos quatro irmãos
Rosário. Segundo contam os narradores locais, no final do século XIX os irmãos André,
Boaventura, Devoto e Honório se embrenharam na mata em busca de um abrigo “protetor”
para a construção de um assentamento. O lugar escolhido foi denominado de Porto Velho,
mas a necessidade em obter água doce os levou a migrar para uma área mais propícia, onde
hoje está situado o arraial de Jatimane. A escolha de um novo espaço, ter-se-ia dado por uma
orientação de um índio chamado Mane, que teria feito amizade com os Rosários. Conforme os
relatos, Mane criava abelhas do tipo jati, que produz um delicioso mel. Assim, em
homenagem ao índio, batizaram o assentamento de Jatimane. Abelhas jati criadas pelo índio
Mane.
Estas e outras narrativas fazem parte desta pesquisa, intitulada Jatimane: um espaço de
memórias e manifestações culturais. Um estudo desenvolvido na linha I do Mestrado
Interdisciplinar em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional, voltada para a temática da
Cultura, Memória, Linguagens e Identidades, do Programa de Pós-Graduação da UNEB -
Campus V. Trata-se de uma análise cultural que tem como objeto de investigação a
comunidade remanescente de quilombo de Jatimane. Uma comunidade rural, essencialmente
negra, localizado na zona rural do município de Nilo Peçanha, mais especificamente no limite
sul do município, uma zona fronteiriça com o município de Ituberá, a 8 km da praia do
Pratigi, próximo às comunidades rurais de Sereanhém e Rio do Campo, dentro de uma região
caracterizada como Costa do Dendê, no Baixo Sul Baiano.
Nesta análise, o fio condutor é a memória local. É a partir dela que discutiremos as
manifestações de cultura e a história dos jatimanenses. Uma cultura percebida como forma de
3
Sr. Manuel da Luz, 99 anos, pescador aposentado, casado pela segunda vez. Entrevistado pela autora no dia
30.11.2007, em Nilo Peçanha.
14
resistência, que internamente foi assumida como um bem imaterial, associados a uma tradição
de antigos escravos da região.
Esta comunidade
4
negra rural, é constituída por lavradores/pescadores,
catadeiras/marisqueiras, que tradicionalmente sobrevivem do extrativismo sustentável da
piaçava e da atividade pesqueira. Internamente, o arraial é formado por aproximadamente 90
casas habitadas pela endogâmica família Rosário e seus agregados, que têm suas marcas
fenótipas bem definidas: similaridade na estatura, na cor da pele, como também nos traços
fisionômicos. Com base no Art. nº68 da Constituição Federal Brasileira, e organizados numa
associação comunitária
5
, os Rosário requereram e conquistaram o título de auto-
reconhecimento como uma comunidade remanescente de antigo quilombo da região, numa
certidão emitida pela Fundação Cultural Palmares, sob o nº03- Registro 197- fls. 03, datada de
23.03.2005
6
.
O interesse em pesquisar a comunidade surgiu de uma prática docente voltada á
valorização e ao reconhecimento da nossa diversidade cultural. Em 2006, após uma vista à
região do Pratigi houve o primeiro contato com a comunidade. A conversa com estes
trabalhadores da piaçava despertou o interesse em conhecer a história desta comunidade.
No período combinado retornei à Jatimane, sendo ciceroniada de casa em casa por
Dona Amaurina Conceição do Rosário - funcionária da escola local. Logo na primeira
entrevista, Dona Amarina do Rosário me levou à casa de sua comadre, Dona Maria Madalena
Oliveira do Rosário, uma senhora de 68 anos, que convalescia após ter sido vitimada por um
AVC - Acidente Vascular Cerebral. Minha intenção em pesquisar sobre a história de Jatimane
agradou a Dona Madalena Oliveira Rosário, que imediatamente me mostrou o seu “caderno”
de anotações sobre a memória o lugar. Em seguida, o contato com outros guardiões da
memória de Jatimane, também resultaria em enriquecedoras entrevistas que são aqui
utilizadas como fontes. No segundo dia das entrevistas, na noite do festejo da Queima das
Palhas dos Presépios, no momento do congraçamento na igreja, fui publicamente apresentada
à comunidade, como a professora/pesquisadora que iria escrever sobre a história de Jatimane.
4
Adotaremos a definição de comunidade defendida por Maclver e Page: “comunidade [...] é o termo que
aplicaremos a um povoamento de pioneiros, a uma aldeia [...] onde membros de qualquer grupo, vivam de tal
modo que partilhem [...] das condições básicas de uma vida em comum, chamamos este grupo de comunidade. A
comunidade é [...] uma área de vida social assinalada por certo grau de coesão social. As bases [...] são
localidade e sentimento de comunidade. Maclver, R. M.; Page, C. H. Comunidade e sociedade como níveis de
organização da vida social”. In: Fernandes F. Comunidade e sociedade. São Paulo: Cia. Ed. Nacional.1973. p.
122-123.
5
ACJ - Associação Comunitária de Jatimane. Fundada em novembro de 2003, desenvolve atividades sócio-
culturais.
6
BRASIL. Fundação Cultural Palmares, de 23 março de 2005. Diário Oficial da União. Poder Executivo,
Brasília, 19 de abr. de 2005. Seção 1, n. 74, fl. 03. sob o nº03- Registro 197- fls. 03.
15
Neste instante, publicamente firmei o compromisso de retornar à comunidade, com o “fruto”
desta pesquisa. Um compromisso que tem sido honrado ao longo do curso do Mestrado, pois,
a cada artigo publicado em eventos, uma cópia é entregue à comunidade. Ainda existindo a
pretensão desta pesquisadora em transformar esta dissertação em um material para-didático à
ser entregue na escola da comunidade.
Inicialmente, as entrevistas foram realizadas em dois dias. Majoritariamente, as
entrevistas foram “abertas” tendo como temática a questão quilombola, a opção em trabalhar
com este tipo de entrevistas teve como objetivo captar as informações mais significativas para
os entrevistados. Com o consentimento dos mesmos, parte deste material foi filmado. E, para
aqueles que se mostraram reticentes diante de uma câmera, suas entrevistas foram registradas
em um gravador. Esses relatos, registrados por meios eletrônicos - seja em fita cassete ou
filmagem foram aqui utilizados como fonte. As filmagens, em especial, foram utilizadas
como instrumento de análise, numa tentativa de registrar o jatimanense no seu espaço natural,
o que permite uma melhor interação sujeito-objeto. Portanto, o recurso visual para captura de
imagem, no momento da entrevista, permite uma análise não da fala, como também da sua
entonação e da expressão do entrevistado, o que possibilita a captação do não dito. A
utilização de filmagens, em eventos e em entrevistas é um valioso aliado em pesquisas
qualitativas, possibilitando uma avaliação mais criteriosa, tendo em vista que algumas
situações sociais podem se auto-explicar além de ser possível compartilhar com outras
pessoas as entrevistas que estão sendo investigadas.
Uma outra técnica utilizada foi a entrevista concedida a partir de um grupo focal.
Trata-se de um diálogo interativo entre a pesquisadora e os entrevistados, também aqui não
houve a intenção de aplicar um questionário fechado, com questões pré-estabelecidas; pois o
propósito da pesquisadora era deixar que as experiências individuais fluíssem naturalmente,
para que ela percebesse os fatos mais significativos deste grupo de entrevistados. O recurso do
grupo focal foi proposto aos mais jovens da comunidade, que concordaram em falar sobre
suas experiências de trabalho, como artesões da piaçava. No ambiente descontraído do grupo
focal, os jovens, de forma irreverente, demonstraram também suas brincadeiras e zombarias,
ao mesmo tempo em que falaram de suas pretensões futuras.
Após uma escuta ativa das entrevistas, bem como da análise das filmagens, visando a
análise das fontes orais, teve início um processo de observação participada. Segundo Martins,
só é possível empreender uma coleta de dados com base numa observação participante após o
pesquisador conseguir a aceitação e confiança dos membros do grupo social onde realiza o
16
trabalho de campo”
7
. A partir deste momento, o pesquisador entra em contato com o
cotidiano dos sujeitos sociais pesquisados, na tentativa de esclarecer alguns pontos nebulosos
da entrevista. A observação participada foi um bom mecanismo para apreciar os
comportamentos sociais e as técnicas artesanais empregadas no extrativismo e beneficiamento
da piaçava, numa tentativa de entender o significado dos sistemas culturais jatimanenses e da
sociabilidade dentro da comunidade. Concordando com Martins, este é o momento em que
ocorre o entendimento e as explicações dos significados que o grupo atribui às suas
experiências”
8
.
Desta forma, este trabalho de campo é entendido como resultado de um trabalho de
equipe, formada pela historiadora, os guardiões da memória e os demais sujeitos observados
na comunidade. Ou ainda, uma implícita aliança, alicerçada em um múltiplo interesse:
interesse da historiadora em desvendar especificidades desta história, mas interesse também
dos guardiões e sujeitos locais, que confiaram à pesquisadora a tarefa de escrever e o
compromisso de retornar à comunidade com o registro desta história.
A investigação resultou neste estudo sobre a comunidade de Jatimane, no qual
discutiremos a relação memória/história, bem como as manifestações culturais dos
jatimanenses evidentes nas atividades laborais, em suas sociabilidades e nas formas lúdicas de
se auto-representar.
Tratam-se de questões desdobradas a partir de uma investigação sobre a simbiótica
relação dos jatimanenses com a natureza, um aprendizado necessário à sobrevivência na mata,
saber internamente assumido como um legado deixado pelos mais velhos, uma herança
imaterial, uma relação estabelecida entre a cultura e a geografia do lugar. Relação que nos
encaminha às práticas de sociabilidades que os jatimanenses exercem nos espaços da terra e
da água. Espaços que permitem uma convivência direta com a natureza ao mesmo tempo em
que relações são tecidas e vivenciadas pelos sujeitos jatimanenses, prática que congrega a
parentela, e fortalece as manifestações culturais da comunidade.
Ao longo do nosso trabalho de pesquisa, tentávamos responder aos seguintes
questionamentos: através do diálogo com as memórias será possível hitoricizar Jatimane?
Diante da recente categorização como comunidade remanescente de quilombo e da
complexidade de suas práticas laborais tanto em relação ao extrativismo com a piaçava
como em relação com a atividade pesqueira, é possível investigar e inferir como a
comunidade se reconhece? Identificam-se como quilombolas? Ou com suas práticas laborais?
7
MARTINS, Gilberto de Andrade. Estudo de caso: uma estratégia de pesquisa. São Paulo: Atlas, 2006. p. 25.
8
Idem. 2006. p. 54.
17
Através das manifestações lúdicas culturais a comunidade de Jatimane pode reatualizar seus
valores e práticas comportamentais?
Esta pesquisa sobre a comunidade de Jatimane vem de encontro a anseios de ordem
profissional/pessoal. O estudo é relevante, pois faz emergir uma história que até aqui ficou
restrita à memória dos jatimanenses, uma história que pode ser percebida como parte de um
todo que compõe a história da nossa diversidade. Também proporcionou satisfação pessoal
em todas as etapas de sua construção, pois os contatos com os membros da comunidade e suas
ricas experiências de vida constituíram uma verdadeira moeda de troca para o historiador.
Também foi prazerosa a tarefa de seleção e análise dos relatos, bem como a decodificação das
informações explícitas ou implícitas nas entrelinhas, uma tarefa comparável a um curioso jogo
de quebra-cabeça, cujas peças, em conjunto, reconstruíram uma história viva e instigante.
Tendo como premissa que toda pesquisa científica apóia-se na produção de
conhecimentos anteriormente produzidos e reconhecidos pela academia, estes conhecimentos
previamente produzidos foram aqui tratados, ora como fonte de inspiração, ora como
ferramentas que fundamentaram a análise dos dados coletados.
Neste sentido, vale destacar que de forma sugestiva, este trabalho teve como referência
uma recente perspectiva historiográfica que admite a memória como fonte de investigação.
Segundo Stuart Schwartz,
A historiografia moderna [apresenta] interesse crescente pela memória coletiva e
cultural e pela maneira como ela afeta a forma como a história é comemorada,
celebrada, lembrada e esquecida. As pessoas recordam individualmente, mas
adquirem essas lembranças, mantêm-nas e recontam-nas socialmente e é isso que
as torna coletiva.
9
Esta mudança de perspectiva, em especial a obra de Rios e Mattos, é aqui tomada
como inspiração. Na obra, Memórias do Cativeiro, as autoras demonstram como recuperar as
vivências das pessoas a partir da memória do período da escravidão, relacionando as
lembranças significativas para as famílias de ex-escravos e sua relação com a idéia de
cidadania no pós-abolição. Na comunidade analisada pelas autoras, também as marcas do
corpo se apresentam como uma forma de linguagem sobre a memória do cativeiro,
evidenciada nas cicatrizes ou nas seqüelas corporais decorrentes dos castigos físicos, ao
mesmo tempo em que evidenciava uma intrínseca relação entre o escravo e a natureza.
9
Citado no prefácio de RIOS, Ana Lugão e MATTOS, Hebe. Memórias do Cativeiro: família, trabalho e
cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 9.
18
Em um outro trabalho denominado Os Combates da Memória,
10
Hebe Mattos
demonstra como a memória pode ser o fio condutor de uma investigação. No artigo, a autora
(re) utiliza as “entrevistas como uma estrutura narrativa de síntese, resultante de um confronto
entre o pesquisador e seus objetivos de pesquisa e cada um dos entrevistados”
11
, por
considerar “que a entrevista, enquanto modelo narrativo, oferece elementos para se ir além
das intenções do pesquisador”
12
. Após a análise das entrevistas, a pesquisadora observa que
alguns “entrevistados frequentemente recorrem a contos populares, ou ao que uma vez
aprenderam nos livros didáticos, na igreja ou nos sindicatos, bem como às informações
veiculadas sobre o tema pelo cinema e pela televisão”
13
.
Em outro momento, utilizando a releitura das entrevistas do Laboratório de História
Oral e Imagem da UFF - LABHOI, Hebe Mattos detecta e explora o significado de vocábulos
arcaicos, que se enunciaram no decorrer das narrativas dos entrevistados, e associa estes
vocábulos a uma transmissão de ensinamentos familiares, considerando que estes termos
teriam sido “ouvidos dos pais ou avós que haviam sido escravos”
14
. Através da releitura
destas narrativas, a autora explora os significados dos termos escravidão e liberdade nos
relatos de descendentes de escravos de antigas áreas escravistas do centro-sul brasileiro.
Os argumentos acima nos alerta para as ciladas que podem ser encontradas no caminho
do pesquisador que pretende seguir a trilha da memória como fonte de investigação, e faz
lembrar que o ofício do historiador é perseguir evidências históricas e que, portanto, a
memória pode ser o fio condutor da investigação, cabendo ao pesquisador equacionar uma
relação entre a memória e a história.
Portanto, neste estudo sobre a comunidade de Jatimane, buscando ancorar a memória
na história, documentos oficiais informam sobre a existência e reincidência de formações
quilombolas nesta região, desde o final do século XVII. Não se tratava de quilombos de
resistência heróica, e sim, marcados por uma persistência branda e contínua, que ao longo do
tempo poderiam ter concorrido para a formação de uma tradicional cultura quilombola nesta
região.
Ao analisar as memórias e as manifestações culturais da comunidade remanescente de
Jatimane, manteremos um diálogo entre os relatos dos sujeitos locais, uma documentação
oficial do arquivo público da Bahia, uma literatura histórica específica associada a trabalhos
10
MATTOS, Hebe Maria. Os Combates da Memória: Escravidão e liberdade nos arquivos orais de descentes de
escravos brasileiros. In: O Tempo, vol.3, nº. 06. Dezembro de 1998. Dossiê Escravidão e África Negra.
11
Idem, p. 5
12
Ibidem,
13
Idem, p.7
14
RIOS, Ana Lugão e MATTOS, Hebe. Op. cit. p. 8.
19
desenvolvidos recentemente pela historiografia brasileira, que se dedicam à temática dos
quilombos.
Nesta perspectiva, estaremos dialogando com a obra Liberdade por um fio
15
, dos
historiadores João Reis e Flávio Gomes, que organizaram uma coletânea de artigos sobre
formações quilombolas em território brasileiro, entre os quais informações sobre a
formação de quilombos na região do Baixo Sul Baiano.
Na mesma perspectiva, ao escrever a obra intitulada A hidra e os pântanos, Gomes
afirma que ao discutir sobre uma cultura quilombola em território brasileiro, é necessário
perceber que se trata de “recriações” culturais, entendidas como “uma extensão da cultura
escrava
16
, e como toda cultura esta deve ser “lida” no contexto, para melhor considerar as
singularidades ambientais em que estão inseridas. Assim, as “estratégias dos quilombolas para
manter sua autonomia podiam estar combinadas a contextos geográficos e socioeconômicos
diversos”
17
.
Neste mesmo foco de interesse, está baseada a obra organizada por Clóvis Moura, sob
o título Os Quilombos na dinâmica social do Brasil, que permite um aprofundamento sobre a
temática. Enveredando por esta linha de pesquisa, a geógrafa cultural Lourdes Carril faz, em
sua obra denominada Terras de negros: herança de quilombos, um estudo sobre comunidades
rurais formadas a partir de antigos quilombos. A autora afirma que as remanescências
quilombolas ficaram espalhadas no vasto território brasileiro e que os quilombos, quase
sempre, estiveram “localizados em área distante e isolada e em regiões caracterizadas pelo
baixo desenvolvimento industrial”
18
. Ainda segundo Carril, em geral, essas comunidades
integram-se ao campesinato brasileiro, mas apresentam especificidades como: agrupamentos
majoritariamente negros, com ancianidade na ocupação territorial, e “o valor da terra para
esses grupos remete à satisfação de suas necessidades, que incluem suas tradições e sua
herança cultural"
19
, seus costumes e suas histórias. A autora aprofunda a temática na obra
intitulada Quilombo, Favela e Periferia
20
.
Sobre a temática quilombola, o antropólogo José Jorge de Carvalho apresenta um
estudo de base etnográfica sobre a comunidade do Rio das Rãs, localizada no Oeste Baiano,
analisando a história, luta e tradição da comunidade. Em outro momento, é o sociólogo
15
GOMES, Flávio dos Santos e REIS, João José (Orgs.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no
Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
16
_______. A hidra e os pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil, (Séculos XVII
XIX) São Paulo: Ed. UNESP: Ed. Polis, 2005, p. 271.
17
Idem, 2005, p. 407.
18
CARRIL, Lourdes. Terras de negros: herança de quilombos. São Paulo, Scipione, 2002. p. 12.
19
Idem, 2002, p. 12.
20
_______. Quilombo, favela e periferia: a longa busca da cidadania. São Paulo: Annablume: Fapesp, 2006.
20
Valdélio Silva
21
quem analisa a mesma comunidade, percebendo este grupo social sob a
égede da resistência, num ideal de luta pela sobrevivência material e cultural, bem como pela
posse da terra, tradicionalmente ocupada. Discutindo sobre a comunidade remanescente de
quilombo de Tijuaçu, na Bahia, a historiadora Carmélia Miranda utiliza relatos orais,
documentação oficial e uma vasta bibliografia para recuperar vestígios da história desta
comunidade rural e suas manifestações culturais
22
.
Ao analisar a questão sobre quilombos contemporâneos a antropóloga O‟Dwyer, propõe
percebê-los como agrupamentos “que desenvolveram práticas cotidianas de resistência na
manutenção e reprodução dos modos de vida característicos e na consolidação de um
território próprio”
23
, redefinidos por variadas nomenclaturas como terras de pretos,
comunidades negras rurais, mocambos, quilombos ou comunidades remanescentes. Estes e
outros autores, que consolidaram grupos de pesquisa e de abordagem sobre a cultura negra,
são citados ao longo dos capítulos, no intuito de estabelecermos um diálogo com realidades
próximas das experimentadas pelos habitantes de Jatimane.
Recentemente, os estudos sobre os remanescentes de quilombos se desdobram a partir
de questões suscitadas pela Constituição Federal de 1988, mais especificamente no seu Art.
68, é um ganho real de uma antiga luta política pelo reconhecimento e valorização de uma
cultura e identidade negras. O Art. 68 estabelece o critério de reconhecimento a comunidades
remanescentes de quilombo, ao mesmo tempo em que acena com a possibilidade de
legitimação das terras tradicionalmente ocupadas. Mas, é necessário perceber que o debate,
em torno da reivindicação quilombola, traz no seu bojo a antiga questão fundiária não
resolvida no país. Assim, o Artigo nº68 pode ser entendido como uma “brecha”, uma
possibilidade de fissura no conservador sistema fundiário brasileiro, historicamente
resguardado para as classes dominantes, pois desde a Lei de Terras em 1850, que até então
vêm protelando qualquer proposta de reforma agrária.
Uma outra questão diz respeito à pouca definição do próprio Art. 68 que, no Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias, afirma: “aos remanescentes das comunidades dos
quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo
o Estado emitir-lhes o título respectivo
24
. Esta determinação suscita discussões a respeito de
21
SILVA, Valdélio Santos. Rio das Rãs à luz da noção de quilombo. Afro-Ásia, EDUFBA, Salvador: 2000.
Nº23, p. 15-16.
22
MIRANDA, Carmélia Aparecida Silva. Vestígios recuperados: experiência da comunidade negra rural de
Tijuaçu BA. Tese de Doutorado em História Social. Pontifícia Universidade Católica da São Paulo, 2006.
23
O‟DWYER, Eliane Cantarino, apud SILVA, Valdélio Santos. Rio das Rãs à luz da noção de quilombo.
Revista Afro Ásia, Salvador, EDUFBA. nº. 23, 2000, p. 15.
24
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais. 1988.
21
a quem caberia a tarefa do reconhecimento destas comunidades como remanescentes
quilombolas.
Segundo Price,
25
no I Seminário Nacional de Comunidades Remanescentes de
Quilombos, ocorrido em Brasília em 1994, o movimento negro deu “corpo” ao Art. 68, por
definir critérios de identificação, tais como: ancianidade territorial, preponderância negra,
coletividade no uso da terra, sustentabilidade em harmonia com a natureza, organização de
trabalho comunal ou familiar. Em 1995, quando o Legislativo Federal regulamentou o critério
de reconhecimento como pré-requisito necessário para tratar a questão, a polêmica chegou ao
ápice. Visando resolver esta situação, o Estado brasileiro criou um GTI (Grupo
Interministerial). Por sugestão deste “Grupo”, foi editado o atual Decreto nº4.883/2003, que
transferiu a tarefa de regulamentar as terras quilombolas do Ministério da Cultura para o
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária INCRA. De maneira disciplinadora, foi
criado o Decreto N.4.887/2003, estabelecendo o critério da auto-definição que, regulado pelo
seu Art. 2º. considera comunidades remanescentes de quilombos:
Os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-definição, com trajetória
histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de
ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida
26
.
Essa medida Federal procurou regulamentar a identificação das comunidades
remanescentes de antigos quilombos, tendo como critério a auto-identificação, e o
reconhecimento de um passado ligado à resistência escrava. Uma questão polêmica em torno
do reconhecimento destes quilombos contemporâneos, que ficou dividido entre o
reconhecimento cultural e o reconhecimento legal. Pelo trâmite estabelecido, cabe à Fundação
Cultural Palmares pronunciar-se no primeiro momento da questão, mas quem de fato analisa o
processo de reconhecimento e a possível titulação territorial é o INCRA. Isto é feito em várias
etapas, envolvendo relatórios técnicos com referências históricas e antropológicas,
diretamente relacionados à definição da área reclamada, necessária para a sobrevivência
material e cultural do grupo social, devidamente validada por agrônomos e antropólogos da
União.
Essa questão pode ter um viés culturalista. De fato o “texto do Art. 68 do ADCT [Ato
das Disposições Constitucionais Transitórias] originou-se das discussões sobre o patrimônio
25
PRICE, Richard. Reinventando a História dos Quilombos: rasuras e confabulações. Revista Afro Ásia,
Salvador: EDUFBA, nº. 23/2000.
26
BRASIL. Art. 2º do Decreto nº4. 887 20, de novembro de 2003. Instrução Normativa n. 20, de 19 de
setembro de 2005. Diário Oficial da União. Poder Executivo, Local, 2005. Seção 1.
22
cultural brasileiro, que estão na base dos Arts. 215 e 216 do Corpo Permanente da
Constituição”
27
. A prerrogativa do Art.215 pode assegurar questões relativas à valoração de
um patrimônio cultural/ambiental de um determinado grupo social brasileiro. Em seu
parágrafo 1º, estabelece que é dever do Estado proteger as manifestações das culturas
populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo
civilizatório nacional”
28
. No Art. 216 fica previsto a proteção às manifestações das culturas
populares:
Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial,
tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos
quais se incluem
29
.
De forma significativa, o parágrafo nº. V estabelece que “ficam tombados todos os
documentos e os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos”
30
.
Estas medidas legais interferem no processo de tramitação, que pode ser demorado, podendo
incorrer em possíveis desapropriações, seguidas ou não por contestações territoriais
envolvendo “terceiros.Se a área reclamada estiver em litígio, a espera se prolonga. Caso o
processo seja concluído de forma satisfatória para os quilombolas, a Fundação Cultural
Palmares publica, em portaria do Diário Oficial da União, o reconhecimento e a titulação de
mais um quinhão de terra, tradicionalmente ocupada por descendentes de escravos.
As considerações sobre o Art.nº. 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias, os Arts. nº215 e nº216 do Corpo Permanente da Constituição e uma bibliografia
específica, possibilitaram a análise dos dados coletados entre os acervos sobre a região, e as
fontes produzidas a partir das entrevistas.
Nesta pesquisa a oralidade é utilizada como método para registrar as lembranças e
vivências dos sujeitos históricos de Jatimane, uma reconfiguração da memória, transformada
em fonte de investigação e de análise. Neste sentido, o historiador Samuel Raphael, diz que
“há verdades que estão gravadas nas memórias das pessoas mais velhas e em nenhum outro
27
CARVALHO, José Jorge de (Org). O quilombo do Rio das Rãs: histórias, tradições, lutas/ organizado por
José Jorge de Carvalho, Siglia Zambrotti Dória e Adolfo Neves de Oliveira Jr. EDUFBA, 1995. p. 225.
28
Capítulo III. Título VIII. Da Ordem Social. Seção II. Da Cultura. Artigo nº. 215, apud, Constituição Federal
do Brasil. 2004.
29
Capítulo III. Título VIII. Da Ordem Social. Seção II. Da Cultura. Artigo nº. 216, apud, Constituição Federal
do Brasil. 2004. p. 124.
30
Idem. p. 124.
23
lugar, eventos do passado que só eles podem lembrar”
31
. Uma perspectiva de investigação que
comunga com a linha metodológica de Thonsom sobre a recomposição de uma história, que
tem como fonte a memória aflorada através das lembranças dos entrevistados. Segundo o
autor, o testemunho oral pode criar novas histórias, a partir das experiências vivenciadas por
sujeitos históricos antes excluídos
32
.
Este argumento converge para a afirmativa do pesquisador Eurípides Funes. Ao estudar
sobre a comunidade quilombola do Pascoval na região do Amazonas, o pesquisador afirma
que “história que está na memória dos mais velhos, bons narradores da saga de seus
antepassados [...] permitem resgatar um passado nem sempre presentes nos documentos
escritos”
33
.
Estas argumentações sobre a utilização da oralidade no fazer historiográfico dão
suporte a estudos que utilizam a memória como fonte de investigação, animando-nos ao
enfrentamento do desafio que é construir uma análise cultural, tendo a memória local como
base para esta interpretação. Mesmo porque, conforme Portelli, em algumas histórias as
fontes orais dão-nos informações sobre o povo iletrado ou grupos sociais, cuja história escrita
é ou falha ou distorcida”
34
. Além do mais, a partir da memória dos velhos contadores da
história local, é possível descortinar um “mundo” social rico e diverso que não está escrito
nos livros.
Estudar uma comunidade a partir dos relatos orais, com base na memória dos sujeitos
locais, nos encaminha para os diferentes tempos da memória. Mesmo porque, num trabalho
que utiliza a memória, o tempo se liberta das “amarras” de um recorte cronológico e,
paralelamente, percorre uma vasta temporalidade marcada por pontos de significação.
Portanto, mesmo sendo o tempo uma preciosa categoria para os historiadores, uma história
construída a partir de relatos de memória inviabiliza um recorte temporal.
Para melhor entender essas narrativas de memória, é necessário recorrer a uma linha
da academia que se dedica a esta discussão. Neste sentido, ao analisar o uso da memória como
fonte de investigação histórica, Ecléa Bosi afirma que a memória é dividida por marcos,
31
SAMUEL, Raphael. Documentação: História Local e História Oral. Rev. Brasileira de História. São Paulo,
v.09, nº19, set.1989- fev.1990. p. 230.
32
THONSON, Alistar: Recompondo a memória: questões sobre a relação entre história oral e as memórias. In:
_______. Revista Projeto História, Ética e História Oral, São Paulo: EDUC, 1997. p. 69.
33
FUNES, Eurípides A. Nasci nas matas, nunca tive senhor. História e memória dos mocambos do baixo
Amazonas. In: Liberdade por um fio: história dos Quilombos no Brasil. João José e Flávio dos Santos Gomes
(org.) São Paulo. Cia. de Letras, 1996. p. 467.
34
PORTELLI, Alessandro. O que faz a História Oral diferente. In: Cultura e Representação. Projeto História,
Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de História PUC/SP, São Paulo,
nº 14, fev. l997. p. 27..
24
pontos onde a significação da vida se concentra,
35
um tempo que não está aprisionado no
calendário e tem uma duração/flutuação própria, podendo preservar, ressignificar, recriar ou
utilizar emblematicamente especificidades culturais, como marcas diacríticas no espaço do
encontro com outras culturas no ritmo cambiante da história.
Segundo a pesquisadora, é necessário considerar que na elaboração do passado a
memória é socialmente construída, existindo entre os narradores, uma tendência de criar
esquemas coerentes de narração e de interpretação dos fatos, verdadeiros „universos
discursivos‟, „universos de significação‟ que o ao material de base uma forma histórica
própria, uma versão consagrada dos acontecimentos”
36
.
Portanto, a memória pode representar a capacidade de trazer lembranças de um tempo
passado para o presente, sendo capaz de condensar o fruto de uma experiência vivida, uma
vez que existe uma tendência da mente em “remodelar toda experiência em categorias tidas,
cheias de sentido e úteis para o presente”
37
.
Concordando com Maluf, é possível perceber que este tempo de vivência emerso da
memória, reconfigurado através do relato, é uma interpretação de um real possível vivido pela
comunidade. Assim, para a autora, “a sobrevivência do passado no presente e a possibilidade
de sua reconstrução têm no grupo o suporte e a fonte de sentimentos e pensamentos mesmos
os mais pessoais”
38
. É neste sentido que o passado será tomado aqui, como a amálgama da
memória, da cultura e da história de Jatimane, uma vez que “o passado é, assim, matéria-
prima por excelência da memória e da história,”
39
e, através destas memórias, a análise
histórica pode tomar o passado como representação de um tempo vivido, servindo de base
para a compreensão do presente e também do futuro.
Ao referir-se ao trabalho de Ecléa Bosi, sobre a memória, Maluf afirma que “não sem
razão Ecléa Bosi escreveu que o trabalho da lembrança não é um afastar-se para reviver o passado tal
como ele se deu [...] intocável [...] lembranças guardadas de experiências vividas
40
.
Numa perspectiva similar, Peter Burke defende que as tradições culturais são mantidas
no cotidiano através da oralidade. Segundo o autor, as “tradições orais podem não fornecer
uma narrativa confiável sobre os acontecimentos, mas são evidências inestimáveis sobre as
reações a esses acontecimentos, para vê-los com a „visão dos vencidos‟”
41
.
35
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 3ª ed. São Paulo. Cia das Letras, 1994. p. 415.
36
Idem, 1994. p. 67.
37
MALUF, Marina. Ruídos da memória São Paulo: Siciliano, 1995. p. 419.
38
Idem, 1995. p. 37.
39
Idem, 1995. p. 41.
40
Id, p. 31.
41
BURKE, Peter. Hibridismo Cultural. São Leopoldo: Porto Alegre. Editora Unisinos, 2003. p. 112.
25
Além do mais, historicizar Jatimane, a partir da memória dos velhos contadores da
história local, é a possibilidade de conhecer singularidades da história destes sujeitos, suas
trajetórias, seus costumes, suas tradições culturais. Concordando com Bosi, é preciso
considerar que:
A conversa evocativa de um velho é sempre uma experiência profunda: repassada
de nostalgia, revolta, resignação pelo desfiguramento das paisagens caras, pela
desaparição de entes amados, é semelhante a uma obra de arte. Para quem sabe
ouvi-la, é desalienadora, pois contrasta a riqueza e a potencialidade do homem
criador de cultura
42
.
Dentro de Jatimane, essa cultura é expressa no cotidiano do “tirador” e da “catadeira”
de piaçava; uma cultura referendada numa tradição escrava; uma história registrada na
memória dos guardiões locais. Mas, ao discutir sobre memória, Halbwachs nos lembra que
esta é uma atividade mnêmica, de função social, que geralmente é exercida pelos mais velhos.
Segundo o autor, um velho pode ser estimado porque, tendo:
Vivido muito tempo, ele tem muita experiência e está carregado de lembranças.
Como, então, os homens idosos não se interessam apaixonadamente por esse
passado, tesouro comum de que se constituiriam depositários, e não se esforçariam
por preencher, em plena consciência, a função que lhes confere o único prestígio
que possam pretender daí em diante
43
.
Mas, essa memória torna-se ainda mais importante, porque, segundo o autor, “a
memória de uma pessoa está enlaçada à memória do grupo, que por sua vez está integrada à
memória mais ampla da sociedade a memória coletiva”
44
. Mas, como são relatos de
memória, Walter Benjamim esclarece que uma “narrativa não está interessada em transmitir o
„puro em si‟ da coisa narrada,”
45
mas em apresentar uma versão para a história do lugar.
Mesmo porque, o ato de contar história é uma interação social, e como tal incluída na
categoria da sociabilidade. De acordo com Simmel, uma “história perfeitamente contada se
mantém no feliz ponto de equilíbrio da ética sociável, no qual tanto o indivíduo subjetivo
como o conteúdo objetivo se dissolvem totalmente em prol da forma pura de sociabilidade”
46
.
Uma idéia de cultura como legado, uma herança construída a partir da “memória
coletiva [...] apontada como um cimento indispensável à sobrevivência [...] elemento de
42
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos, São Paulo Cia. de Letras, l994. p. 83.
43
HALBWACHS, apud, Bosi, Op. cit. p. 63.
44
HALBWACHS, apud, MALUF, Op. cit. p. 35.
45
BENJAMIM, Walter. Magia e técnica arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São
Paulo, Brasiliense. 1994. p. 205.
46
SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da Sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2006. p. 77.
26
coesão garantidor da permanência e da elaboração”
47
de uma moral que legitima formas de
expressões e comportamentos, modo de viver, sobreviver e celebrar do “tirador” e da
“catadeira” de piaçava. Para facilitar o entendimento, numa relação dialógica entre a imagem
e a escrita, algumas fotografias são utilizadas, para complementar informações sobre aspectos
culturais vivenciados pelos jatimaneses, visto que a imagem “possibilita conhecer os
costumes, os gostos, as formas e trabalhos e diferentes situações cotidianas”
48
.
A análise deste trabalho está baseada nos referenciais teóricos dos conceitos de cultura,
num estudo de interação dialógica entre História Cultural e Antropologia, o que permite o
“alargar” fronteiras destas áreas de conhecimento, ampliando a noção de cultura. Além do
mais, ambas consentem procedimentos investigativos e trabalho de campo através da história
oral; admitem a memória como objeto e, em determinados momentos, podem convergir
paralelamente para objetivos similares, a exemplo da busca por interpretação de sentidos e
(re) significados de experiências vivificadas por um determinado grupo social, ao mesmo
tempo em que torna possível o diálogo com outras áreas do saber.
Desta forma, nesta análise sobre as experiências culturais da comunidade de Jatimane,
concordamos com Peter Burke, para quem “... o terreno comum dos historiadores culturais
pode ser descrito como a preocupação com o simbólico e suas interpretações
49
. Assim,
cultura é um complexo processo construído nas relações sociais com seus significados, ao
mesmo tempo em que pode ser percebida como campo de enfrentamento de construção e
reconstrução de uma realidade, como também pode ser entendida como um espaço de troca.
Ainda por esta linha de pensamento, cultura “implica a idéia de certos tipos de conhecimentos
e habilidades legados por uma geração para a seguinte,”
50
cabendo ao historiador observar as
mudanças ocorridas e as singularidades históricas.
Uma decodificação de significados culturais específicos, que converge dialogicamente
com a perspectiva de Geertz, para quem cultura é uma linguagem que “veste” um todo social,
onde símbolos e significados são partilhados em determinado contexto. E ainda quando este
afirma que as culturas são sistemas entrelaçados de signos interpretáveis, onde [...] o homem
é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu”
51
.
47
SANTOS, Milton. O lugar e o cotidiano. In: A Natureza do Espaço. Técnica e tempo. Razão e Emoção. Ed.
Hucitec. São Paulo, 1996. p. 64.
48
MIRANDA, Carmélia Aparecida Silva. Vestígios recuperados: experiência da comunidade negra rural de
Tijuaçu BA. Tese de Doutorado em História Social. Pontifícia Universidade Católica da São Paulo, 2006. p.
34.
49
BURKE, Peter. O que é história cultura? Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed. 2005. p. 10.
50
BURKE, Op. cit. , 2005. p. 39.
51
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro. Jorge Zahar. 1990. p. 15.
27
Portanto, sujeitos históricos nascem imersos nas fontes de um “ethos”, de uma cultura,
pensada como uma “teia” de significados que, ao serem interpretados, podem revelar uma
multiplicidade de símbolos, valores, idéias e sentimentos que orientam uma existência
individual e social. Assim, percebemos a comunidade de Jatimane, como uma comunidade,
portadora de repertórios culturais marcados por especificidades locais, sedimentados na
história do agrupamento, na obliqüidade do mundo vivido, num processo de apropriação,
ressignificando aspectos culturais que aqui tentaremos decodificar.
Atendendo aos objetivos deste estudo, o texto aqui apresentado como prática
discursiva está dividido em três capítulos. No primeiro capítulo, intitulado História e memória
de Jatimane, focalizamos geograficamente a comunidade e analisamos a importância do lugar
na vida do jatimanense, um espaço em que a terra e a água são concebidos como um bem
material/espiritual, representando a vida dos jatimanenses. Na reconstituição da gênese do
lugar, a oralidade é a principal ferramenta, pois as narrativas internas recompõem fragmentos
de uma memória dos seus ancestrais e informam sobre a gênese do lugar. Um campesinato
negro que se identifica, ora com suas práticas laborais, ora como uma comunidade
quilombola, a partir dos elementos de um passado comum, enfatizando uma cultura de
resistência, com respeito à natureza e às tradições culturais. Os relatos de memória,
associados a uma pesquisa bibliográfica e uma documentação oficial, possibilitaram uma
reconstituição histórica deste espaço regional, afirmando a formação de uma tradicional
cultura de resistência quilombola, o que concorre para esclarecer a existência deste
campesinato negro com suas práticas culturais que, interpretadas à luz do Artigo 68,
apresentam características identitárias de uma comunidade remanescente de antigo quilombo.
No segundo capítulo, intitulado Variedades culturais: trabalho e sociabilidade, a
proposta é analisar o poder da cultura e sua influência sobre o comportamento dos
jatimanenses. A partir das narrativas, estamos apreciando os saberes locais aprendidos com os
mais velhos, internamente. Estes saberes são considerados como uma herança ancestral,
imbuída de valores que foram ensinados de geração em geração e ainda hoje são vivenciados
dentro da comunidade. São legados tratados como um bem imaterial, que se materializa numa
variedade de práticas laborais, fundamentando práticas de sociabilidades no cotidiano destes
tiradores/pescadores, e destas catadeiras/marisqueiras.
No terceiro capítulo, denominado Memórias e manifestações culturais, faremos uma
abordagem etnográfica, para melhor apreciarmos os elementos comunicacionais implícitos
numa linguagem cultural utilizada pelos jatimanenses ao celebrar e festejar suas tradições. O
diálogo com os elementos comunicacionais, presentes nestas manifestações culturais, permite
28
apreender aspectos de uma cultura de resistência, presente tanto na celebração da festa da
Queima das Palhas dos Presépios, quanto na espetacularização das comédias, desvelando um
processo de reatualização da memória capaz de recuperar e dar sentido às experiências
históricas e aos valores comportamentais auto-representados pelos jatimanenses.
29
1 HISTÓRIA E MEMÓRIA DE JATIMANE
Neste capítulo, situaremos a comunidade de Jatimane e apresentando as singularidades
geográficas, históricas e culturais que influenciaram na escolha do lugar para o assentamento
do arraial. A tradição oral registra uma memória local que permite apresentar uma história
para a gênese do lugar. Trata-se de uma comunidade negra rural que se identifica, ora com
suas práticas laborais multifuncionais, ora como uma comunidade quilombola considerando
os elementos de um passado comum e uma cultura de resistência e valoração dos elementos
da natureza.
Através de uma documentação oficial, associada a uma literatura histórica específica, é
possível fazer um registro histórico deste espaço territorial, favorecendo a argumentação, de
que uma tradicional cultura de resistência quilombola, gestou um campesinato negro que
ainda hoje sobrevive nesta região, a exemplo da comunidade de Jatimane, que apresenta
algumas características, que podem ser associadas ao Artigo 68 do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias instrumento legal para identificação de comunidades
remanescentes de quilombo.
Ao estudarmos a comunidade de Jatimane, estaremos trilhando o caminho de uma
análise cultural, na tentativa de apreender as experiências históricas e sua influência sobre
comportamentos humanos, buscando decodificar os significados que movem e validam
atitudes de sujeitos históricos, num espaço em que sistemas culturais específicos ajudaram a
manter a coesão e a legitimação moral da comunidade. Num espaço em que “a terra não é
apenas realidade física, antes de tudo; é um patrimônio comum e, enquanto tal, difere de
outras terras, de outros lugares e de outros grupos,”
52
pois em Jatimane, de maneira
pragmática, a terra é o palco das paixões humanas, estando associada à história da
comunidade, além de ser uma referência na vida dos jatimanenses, que tanto valoram os
elementos da natureza.
Este espaço territorial marcado por significados específicos, para os tiradores e
catadeiras de piaçava de Jatimane, transforma-se no que eles denominam por “meu lugar,” um
lócus de vivência, capaz de suscitar a memória destes trabalhadores da piaçava, o que propicia
o registro sobre a origem do grupo, consagrando uma versão para a história da comunidade.
Afinal, este é o lugar em que eles estes trabalhadores cultivam relações familiares, de
52
GUSMÃO, Neusa Maria Mendes. Herança Quilombola: Negros, Terras e Direitos. In: MOURA, Clóvis (Org).
Os Quilombos na Dimica Social do Brasil. Maceió: EDUFAL, 2001. p. 342.
30
vizinhança e de trabalho. Nesta inter-relação entre a memória e a história, o passado é
admitido como excelência, fonte de reconstituição das vivências, histórias, culturas e
tradições dos jatimanenses.
1.1 BAIXO SUL: UMA HISTÓRIA DE TRADIÇÃO
Para entendermos a história, a cultura e a tradição de Jatimane, é necessário
retornarmos o olhar para os primórdios desta região. Os guardiões de Jatimane relatam sua
história através da memória, e os documentos oficiais informam sobre a história da região. É
que vamos buscar pré-requisitos para entendermos aspectos de uma cultura de resistência,
materializada na conservação das práticas artesanais do extrativismo da piaçava, da atividade
pesqueira, no ideal de pertencimento observado dentro da comunidade, mesmo porque esta é
uma possibilidade de associar memória e história, ou seja: a partir da história da região,
podemos melhor compreender os relatos de memória, aqui apresentados pelos membros da
comunidade.
Desta forma, investigando o passado histórico do lugar, constata-se que a ocupação
territorial do Baixo Sul da Bahia remonta aos primórdios da colonização brasileira. A
caminho da capitania dos Ilhéus estavam as vilas de Camunu e Cairu. A região que pertencia
à vila de Cairu teve seu território desmembrado com a emancipação dos municípios de Nilo
Peçanha e Ituberá.
A povoação da área onde hoje está localizada a cidade de Nilo Peçanha teve início
com a Vila Santo Antonio de Boipeba, em 1565 e elevada à categoria de freguesia pelo bispo,
D. Constantino Barrada, no ano de 1618 com o nome de Divino Espírito Santo de Boipeba.
Em 1811, a freguesia tornou-se Vila de Nova Boipeba e em, 24 de dezembro de 1930, por
meio do decreto estadual nº. 7149, a antiga Vila de Nova Boipeba passou a chamar-se
município de Nilo Peçanha, em homenagem ao político fluminense que havia governado o
Brasil nos anos de 1909-1910
53
.
Histórico que se assemelha ao município de Ituberá, que teve início com a aldeia de
Santo André, construída pelos jesuítas, “em 1909, na data de 14 de agosto, em virtude da Lei
estadual nº759, a vila de Santarém recebeu a categoria de cidade”
54
, e posteriormente o nome
alterado para Ituberá. Portanto, o território ocupado pela comunidade de Jatimane, pertenceu
à vila de Cairu.
53
Enciclopédia dos municípios brasileiros. IBGE. Vol.XX. Rio de Janeiro. 1958. p. 83/86.
54
Idem. p. 343.
31
Nesta região, a fuga de negros podia ser facilitada por um ecossistema formado pelos
rios, mangues, florestas espaços ideais para rotas de fuga, esconderijo e fonte de
alimentos, a exemplo do arquipélago de Tinharé, com suas ilhas e regiões de beiradas. Um
espaço territorial marcado por formações quilombolas, mesmo que esses quilombos tivessem
as características de um “heroísmo da resistência branda, da invisibilidade social, da
capacidade de mimetizar-se”
55
com a natureza, buscando nas especificidades territoriais uma
forma de proteção e alternativa de vida em liberdade.
Uma documentação oficial informou que, em 1692, o Governador do Brasil e o
Desembargador, Dyonísio de Ávila, foram parabenizados pelo “zelo com que suplantaram o
levantamento dos negros em Camamú”
56
. Posteriormente, em 1696, as Ordens gias
informam sobre a criação do “... posto de Capitão-mor das entradas dos mocambos e negros
fugidos”
57
, para atuar na região sul da província baiana. Em 1722, “ordena o Rei não se
extingam os índios, mas se destruam os mocambos de negros”
58
do distrito de Cairu. Em
1806, novamente o registro dos Anais
59
divulga notícias de negros fugidos nesta região.
O historiador Schwartz “afirmou [a existência de] formação de mocambos estáveis na
região de Cairu e Camamu região sul da capitania da Bahia”
60
. Uma constatação que reforça
nosso argumento, de ser Jatimane uma das comunidades remanescentes de quilombo que
habita esta região.
Também o historiador baiano, João José Reis, assegurou que no espaço territorial do
Baixo Sul Baiano, desde o século XVII, existiam notícias de formações quilombolas. O
objeto da análise de Reis foi o quilombo do Oitizeiro, em Itacaré, onde negros foragidos
trabalhavam para homens livres e seus escravos, ambos assumindo o papel de protetores e
empregadores de quilombolas”
61
. Na análise de Reis, a população desta região mostrava-se
culturalmente “protetora” e “absorvente” ao fenômeno do quilombolismo. Um espaço
geograficamente propício a rotas de fuga, além de serem fontes de alimentos. Desta forma,
“aproveitando uma região despovoada e pouco guardada, os escravos formariam mocambos,
desde pelo menos o século XVII,
62
em Camamu, Cairu e Ilhéus.
55
CARVALHO, José Jorge de. (Org). O quilombo do Rio das s: histórias, tradições, lutas. Salvador -
EDUFBA, 1995. p. 66.
56
APEBA - Anais do Arquivo Público da Bahia, vol.III. Documento 96.
57
APEBA - Anais do Arquivo Público da Bahia, vol. XXXI. Fl.2. Filme 2.
58
APEBA - Anais do Arquivo Público da Bahia, vol.XXVIII. Documento nº 6.
59
APEBA Anais do Arquivo Público da Bahia, Ordens Régias, vol.101, doc.114.
60
GOMES, Flávio Santos. A Hidra e os Pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no
Brasil, ( Sécuos XVII XIX). São Paulo: Ed. UNESP: Ed. Polis 2005. p. 403 .
61
REIS, João José. Escravos e Coiteiros no Quilombo do Oitizeiro. In: Liberdade por um fio:História dos
Quilombos no Brasil.Reis,João José e Gomes Flávio, l996 . p. 332.
62
REIS. Op. cit., p. 339.
32
Em uma outra pesquisa de Reis, sobre fuga de escravos e posterior aquilombamento
dos cativos do Engenho de Santana, em Ilhéus, na Bahia, o autor afirmou que os escravos se
sublevaram e ocuparam “o engenho por 3 anos, de 1821 a 1824; neste último ano, parte deles,
fugindo de uma tropa punitiva, se internou nas matas dando origem a um quilombo. Em 1828,
os escravos que ficaram no engenho ameaçaram novo levante”
63
. Quanto ao resultado desta
“tropa punitiva,” o historiador informa que três focos quilombolas teriam sido destruídos, mas
capturaram seis escravos, entre os quais estavam dois homens, duas mulheres e duas
crianças
64
. Portanto, os demais escravos não capturados aquilombaram-se nesta região.
No mesmo texto, Reis constrói a hipótese que este aquilombamento teria se
aproximado de uma forma de produção camponesa, seu argumento tem base na produção
encontrada nos assentamentos quilombolas, “eles plantavam (mandioca, café, cana, algodão)
pescavam e teciam suas próprias roupas [...] certamente os quilombolas utilizaram sua
experiência no Santana, onde, além da cana se cultivava também „gêneros alimentícios‟ e
algodão e se manufaturava panos”
65
. Uma cultura quilombola como resultado de uma
experiência escrava gestou comunidades negras nesta região.
Na mesma perspectiva, argumentando sobre quilombos no Baixo Sul Baiano, Gomes
afirma que no passado,
... havia até mesmo uma tradição de formação de grandes quilombos, como foi o
caso de um em Cairu, em 1723, com „mais de quatrocentos negros‟. Naquele
contexto também podia estar se formando uma economia camponesa nos
mocambos e esta igualmente podia interagir e se integrar às macroeconomias
locais
66
.
A argumentação de Gomes nos encaminha para duas constatações: primeiro, uma
tentativa de aproximação entre a memória e história. Neste sentido, nos deparamos com a
formação de uma tradicional cultura de aquilombamento nesta região, o que pode ser
explicado como uma cultura de resistência, em que hábitos culturais, a exemplo da
preservação de suas práticas artesanais com a extração da piaçava, que não garantiram a
sobrevivência da comunidade, como também tornou-se uma atividade laboral
emblematicamente apresentada como um trabalho de tradição escrava. A segunda constatação
tem referência com a auto-representação identitária dos jatimanenses como remanescentes
63
REIS, João José. Resistência Escrava em Ilhéus: Um Documento inédito. Anais do Arquivo Público do
Estado da Bahia. Documento nº44. 1979. p. 285.
64
IDEM, ibidem.
65
REIS. Op. cit. , p. 290.
66
GOMES. Flávio Santos. A Hidra e os Pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no
Brasil, ( Sécuos XVII XIX). São Paulo: Ed. UNESP: Ed. Polis. 2005. p. 414.
33
quilombo desta região, o que nos leva a considerar que, habitando em locais parcialmente
isolados, em um ambiente protetor, os quilombolas teriam conseguido a invisibilidade
necessária à sua sobrevivência e liberdade, criando ao longo do tempo esta comunidade negra
rural.
Mas, a geografia natural do Baixo Sul Baiano propiciou camuflagens para práticas
ilegais. Num levantamento bibliográfico sobre a região, informação de tráfico negreiro
clandestino nestas águas. Ao traçar um histórico para a região, Luciana Souza informa que o
Morro de São Paulo, juntamente com Cairu e Boipeba, durante os séculos XVII e XVIII,
tornou-se uma espécie de zona franca, “... muito freqüentada pelos navegantes [...] não só para
os negócios lícitos [...] grande parte dos navios que procediam do reino de Angola faziam
negócios clandestinos em Morro de São Paulo, antes de entrarem na Baía de Todos os
Santos
67
.
Ao discutir sobre o tráfico ilegal de escravos e as estratégias de resistência escrava, no
Baixo Sul Baiano, Silva utiliza como objeto de análise, as ações judiciais, movidas com base
no dispositivo legal teorizado pelo artigo de novembro de 1831, que previa a liberdade dos
africanos introduzidos ilegalmente no país a partir desta data. O autor informa, sobre “o
desembarque ilegal de africanos ocorrido na baia de Camamu”
68
mais especificamente
Taipús, imediações de Barra Grande de Camamu, foi um local utilizado para a “desova” de
africanos contrabandeados. Uma informação que evidencia que neste espaço territorial, várias
foram as estratégias de luta utilizadas pelos escravos em prol da conquista de sua liberdade.
Assim, entendendo a história como uma interpretação do passado para uma melhor
compreensão do presente, facilitando elucidar questões culturais aparentemente enigmáticas,
o histórico aqui apresentado delineia uma cultura de resistência (mesmo que branda e
continuada) formada numa longa duração, e marcada por elementos fortes como: tráfico ilegal
de escravos, tradição em práticas de aquilombamento, baixa demografia, espaço geográfico
protetor - com floresta, arquipélago, regiões de beirada, em terras economicamente marginais.
67
SOUZA, Luciana Cristina Teixeira de, Morro de São Paulo/Cairu-Bahia: uma decodificação da paisagem
através dos diferentes olhares dos agentes socioespaciais do lugar. Dissertação de Mestrado em Geografia.
Câmara de Ensino de Pós-Graduação e Pesquisa. Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2002. p. 30.
68
SILVA, Ricardo Tadeu Caíres. Memórias do Tráfico Ilegal de Escravos: Ações de Liberdade: BAHIA,
1885-1888. Revista Afro-Ásia, nº35. 2007. p. 46.
34
1.2 SITUANDO A COMUNIDADE DE JATIMANE
A comunidade em análise está situada na Costa do Dendê, no Baixo Sul Baiano.
Segundo as informações técnicas da AMUBS
69
, Jatimane está há 23 km da sede do município
de Nilo Peçanha, seus 396 habitantes, residem entre as 90 casas existentes na comunidade.
Algumas dessas residências ainda são de taipa ou de madeira, a comunidade é assistida pelos
serviços básicos de saneamento.
A região em que a comunidade está situada é de predominância da Mata Atlântica,
fazendo parte de uma Área de Proteção Ambiental denominada APA do Pratigi, um espaço
que envolve 160 hectares, num total de cinco municípios, sendo estes: Ipirapitanga, Piraí do
Norte, Grapiúna, Ituberá e Nilo Peçanha. Esta área de proteção foi regulamentada pelo
Decreto nº. 7272, de 2 de abril de 1998, com área ampliada em 2001, pelo Decreto nº. 8036,
que prevê uma APA como uma,
... categoria de Unidade de Conservação em que se conciliam os interesses
econômicos e ambientais. É uma gestão do território com base nas suas características
ambientais, a partir das quais se estabelecem normas de convívio entre os
ecossistemas naturais e antrópicos
70
.
Analisando o mapa, cedido pelo Instituto de Desenvolvimento Integrado e Sustentável
do Baixo Sul, é possível visualizar a área de atuação da APA. Dentro desta área, estão
identificadas 52 comunidades rurais com diferentes perfis socioeconômicos, e mais três zonas
urbanas referentes aos municípios de Grapiúna, Ituberá e Nilo Peçanha. Dentro deste recorte
espacial, referências peculiares da diversidade socioeconômica são refletidas na conservação
ambiental presentes na natureza da APA do Pratigi, dividida em seus três ecopolos ou
ecossistemas. De acordo com a AGIR - uma organização não governamental, denominada
como Amigos do Pratigi é no ecopolo I, ou ecossistema I que estão agrupadas pequenas
comunidades rurais, trabalhando com agricultura de subsistência; no espaço territorial
caracterizado como ecopolo II concentra uma mistura de pequeno, médio e grande produtor
rural produzindo excedentes para o mercado; o ecopolo III, ou ecossistema III, tem como
destaque ser um território concentrado numa área litorânea e como principal atividade
econômica o extrativismo sustentável. Conforme podemos observar no mapa da APA da
69
Relatório técnico da AMUBS-Associação dos Municípios do Baixo Sul da Bahia. Cairu, Camamu, Igrapiúna,
Ituberá, Maraú, Nilo Peçanha, Piraí do Norte, Presidente Tancredo Neves, Taperoá e Valença. Pasta de
Comunidade Quilombolas do Baixo Sul. S/n.
70
CRA. Turismo e lazer em praias paradisíacas. Outubro-1999, s/n.
35
Pratigi, os ecopolos I e II apresentam escassez da mata atlântica, enquanto no ecopolo III o
verde é mais intenso, o que indica uma maior preservação da mata. É no ecopolo III, ou
ecossistema III, que está situado o município de Nilo Peçanha e, em sua fronteira com Ituberá,
esta a comunidade de Jatimane.
FOTO 1 - MAPA da APA do Pratigi, adaptado à fotografia do arraial de Jatimane.
FONTE: Acervo icnográfico do IDES, imagem de Eduardo Moody, s/d.
Por outro ângulo, e ainda em relação ao ecossistema III, uma micro escala o concebe
como dividido em cinco subzonas, sendo três delas classificadas como zonas sustentáveis,
uma zona em estado de preservação com maior incidência de vida silvestre e uma zona
extrativista vegetal, “em bom estado de conservação, com extrativismo de piaçava, utilizado
pelas comunidades tradicionais”
71
. Observando a cartografia da APA, é nesta subzona
extrativista em estado de “conservação” que está localizada Jatimane, um privilegiado espaço
territorial que se aproxima da idéia de um “corredor ecológico,” uma riqueza percebida na
fauna e flora, como também na história e cultura do lugar.
As observações de desenhos cartográficos, com suas demarcações simbólicas, ajudam
a localizar a comunidade de Jatimane. Mas, para uma análise cultural isto não é suficiente, é
preciso considerar que este espaço territorial é um palco em que se desenvolvem paixões
71
SEPLANTEC- PDU - Plano de Desenvolvimento Urbano de Nilo Peçanha. Relatório II. Bahia: Salvador, 21
de ago. de 2003, s/n.
36
humanas, ou seja, o espaço em que práticas sociais e culturais foram vivenciadas. Desta
forma, são os moradores locais, com suas leituras densas sobre Jatimane, que trarão sentido
para a história do lugar. O Sr. Nivaldo Rosário, por exemplo, ao recorre às suas lembranças de
infância para nos contar que...
[Seu] velho pai na hora da farinha, dizia: tudo começou com os negros fugidos, que
se arrancharam lá em Porto Velho, mais lá o “salgado” passou então eles não
puderam ficar, distorceram até encontrar água “positiva”, e vieram pra ‟qui, num
setor chamado Toco da Jaqueira, até o Campo do Tucum de Tabatinga, aqui perto é
o Baxó, acima está o Oiteiro Seco, vai até adiante, perto da cabeceira do rio, na
divisa de Barra dos Carvalhos, um lugar conhecido como tapera de Manuel
Cândido, que hoje faz divisa com Maria Ventura
72
.
Trata-se de uma localização singular, que independe das variações da cartografia
oficial, como: Baixo Sul Baiano, ou Costa do Dendê, ou APA do Pratigi. Mas, este
depoimento traz explícita uma gama de informações que precisam ser apreciadas. Como se
trata de uma investigação histórica é bom lembrar que, o sistema cultural do senso comum
baseia-se em realidades historicamente validadas por um determinado grupo, tratando-se de
“uma interpretação da realidade imediata [...] sujeito a padrões de juízo historicamente
definidos”
73
. No caso de Jatimane, o saber popular, está entrelaçado por significados locais,
compartilhados dentro da comunidade. Quanto à localização geográfica, lembrada por Sr.
Nivaldo Rosário, percebe-se que os limites territoriais da comunidade também são
demarcados simbolicamente. Mas, embora sejam divisas simbólicas, Toco da Jaqueira,”
“Campo do Tucum...,” “Oiteiro Seco,” são referências reais, que situam bem os jatimanenses.
Este “lugar é o quadro de uma referência pragmática [...] teatro insubstituível das
paixões humanas”
74
locais. Como palco teatral, a paisagem é geradora de um sistema de
representação do grupo, pois, ao que tudo indica, o espaço territorial está envolto em um
simbolismo de central importância na representação da origem do lugar. Assim, o território é
“referência pragmática” de um drama real, o espaço onde tudo começou, onde os negros
fugidos se arrancharam em busca de uma “nova” vida, uma vida em liberdade.
Certamente não foi fácil conquistar a tão sonhada liberdade e ter que sobreviver às
adversidades da selva tropical. É possível imaginar o drama da acirrada luta pela
sobrevivência na selva e da saga pela água doce, tentando vencer o “salgado” que passou,
72
Nivaldo Rosário, 78 anos, casado, tirador de piaçava aposentado, natural de Jatimane. Entrevista concedida a
autora, em Jatimane, no dia 04.01.2006.
73
GEERTZ, Clifford. O Saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis, Rio de Janeiro:
Vozes, 1997. p. 116.
74
SANTOS, Milton. O lugar e o cotidiano. In: A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção.
São Paulo, Ed. Hucitec, 1996. p. 258.
37
deixando a água imprópria para o consumo e eles não puderam ficar. O drama acontece
porque o arraial está localizado a um pouco mais de seis quilômetros da praia do Pratigi,
onde a força da maré sazonalmente invade o lençol freático formado pela água doce, tornando
a água imprópria para o consumo, provavelmente um fenômeno que a comunidade explica
como : “o fio de sal passou,” ou ainda o “ salgado passou.”
Ao dizer que “hoje” o arraial faz divisa com Maria Ventura, sugere que houve
mudanças nas fronteiras territoriais. Durante a entrevista, Sr. Nivaldo Rosário, retomando as
lembranças de seu pai, reflete sobre a estratégia para a escolha de Jatimane, como o lugar que
serviu de abrigo e ao mesmo tempo garantiu a invisibilidade dos Rosário, um espaço de mata
bravia, inicialmente com baixa demografia, que ao longo do tempo, ao ganhar novos
moradores, foi ampliando o território ocupado, e que “hoje” faz divisa com as terras de Maria
Ventura.
Portanto, associando o relato do Sr. Nivaldo Rosário aos documentos oficiais e a uma
bibliografia específica sobre formações quilombolas nesta região, podemos perceber que
Jatimane é um território apropriado pelos antepassados, compartilhado entre parentes e
agregados, onde dominam as formas de reprodução que garantem a sobrevivência material e
cultural, bem como a preservação dos próprios recursos naturais. É neste espaço territorial,
que tiradores e catadeiras de piaçava, dão uma dinâmica própria ao território por eles
ocupado, ao mesmo tempo em que este território emerge como signo de suas experiências
mais profundas, assemelhando-se a uma relação material/espiritual em que o espaço
transforma-se no “meu” lugar, um lugar onde a história se perpetua e a vida se desenvolve.
Mas, como sujeito histórico, o Sr. Nivaldo Rosário afirma ser este território uma antiga
conquista de negros fugidos, ao mesmo tempo, como homem do campo, de posse de sua
experiência, atribui significados específicos às frações deste espaço, e enfatiza sua cultura
camponesa. Assim, da frente de sua casa ponto mais alto do arraial, ele aponta no horizonte
as divisas do arraial e, de forma utilitária, complementa a informação ao indicar os tipos de
plantios mais adequados para esta ou aquela terra, falando de uma agricultura de subsistência,
como a mandioca, a abóbora, a melancia, o jiló, o abacaxi, o quiabo e, principalmente, a
banana.
Na fala do Sr. Nivaldo do Rosário, parece que cultura e meio ambiente se
complementam. Com base em seu conhecimento sobre o lugar, ele destrincha o espaço livre
entre uma e outra piaçaveira, ao enunciar:
38
Na direção do Baxó as terras são boas para plantar o abacaxi, mas também a
mandioca [...] a banana, ao redor das casas pra plantar, agora fazer uma rocinha
de jiló, tomate, abóbora, uns pés de aipim, pra plantar na clareira entre um
de piaçava e outro. E a gente vai se mantendo aqui no nosso Jatimane
75
.
Dando materialidade a aspectos de uma cultural local, o informante revelou-se um
conhecedor dos assuntos do campo, além de apresentar características de um narrador.
Segundo Walter Benjamin,
76
narradores natos geralmente apresentam a característica do senso
prático. Em mais de uma hora de filmagem, numa entrevista livre, Sr. Nivaldo Rosário
demonstrou ter uma boa memória, ao mesmo tempo em que ensinou sobre a agricultura de
subsistência e evidenciou sua idéia de posse coletiva do território. Um território conquistado
por negros fugidos que ali construíram uma alternativa de liberdade. Ao longo do seu relato,
aparece a denominação “nosso Jatimane”, expressão aqui interpretada, como um ideal de
posse coletiva da terra.
Em outra entrevista, é o Sr. João Palmeira quem ratifica e complementa a informação
sobre a localização de Jatimane, ao dizer:
... Sou bisneto de Cipriano Amaro Ferreira do Rosário, irmão de João Rosário.
Parente ou não aqui todo mundo é uma irmandade, a história daqui começa em
Porto Velho, mas a água passava um fio de sal, não deu pra ficar por muito
tempo, daí um índio chamado Mane e outro de nome Conrado trouxe o pessoal aqui
pro Jatimane [...] que fica entre o Baxó, o Oiteiro Seco, o Oitizeiro e vai até fora
no campo da Tabatinga. Essa terra é da gente
77
.
O relato de Sr. João da Conceição Palmeira, inicia-se com a identificação de suas
credenciais genealógicas, ratificando os elos socioculturais que unem os jatimanenses. O Sr.
João não têm Rosário no sobrenome, ele vai “buscar” uma consangüinidade no seu bisavô,
“Cipriano Amaro Ferreira do Rosário”, uma forma encontrada para legitimar seu posterior
discurso sobre a comunidade, uma história que ele ouviu contar pelos seus antepassados e
terminou adquirindo o dom de narrá-la. Nesse momento, aparecem inalteradas as fronteiras
simbólicas que demarcam o espaço ocupado, ao tempo em que traz uma outra informação
significativa: trata-se da presença de índios que teriam auxiliado o grupo a procura de um
lugar “protegido” e com água potável.
Este espaço territorial “protegido” pela própria natureza, garantiu aos jatimanenses um
relativo isolamento geográfico, que por muito tempo, utilizaram como forma de deslocamento
75
Entrevista de Sr. Nivaldo Rosário, concedida em 04.01.2006.
76
BENJAMIN. Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense, 1994.
77
João Palmeira da Conceição, 80 anos, viúvo, aposentado, natural de Jatimane. Entrevista concedida a autora
em Jatimane, no dia 04.01.2006.
39
as trilhas na mata ou o transporte através das canoas, na simultaneidade dos espaços entre o
rio e o mar. Portanto, Jatimane foi um lugar escolhido pelos Rosário para se estabelecer, tendo
como referência a experiência indígena local, o que pode explicar a feliz coincidência de a
comunidade está localizada no encontro do mar/mangue/rio, incrustada num filão da Mata
Atlântica, emoldurada pela piaçaveira.
Segundo a história, o constante transporte em canoas, subindo e descendo os rios
dentro desta região, foi uma lição bem aprendida com os “numerosos grupos indígenas que ali
habitavam no alvorecer do século XIX”
78
. Neste sentido, argumentação favorável à
existência de “solidariedades [...] entre quilombolas e índios”
79
nesta região. Internamente, em
vários relatos, surgem referências sobre a presença indígena neste local, o que pode ser
entendido como uma visível influência da cultura indígena no Baixo Sul Baiano. Portanto,
esta constatação, associada aos relatos internos, convergem para uma idéia de dialogismo
cultural entre a experiência negra e indígena nesta região.
A estratégica localização do arraial de Jatimane e sua rota de deslocamento, utilizando
as canoas, através do rio até o estuário, pode bem representar uma lição aprendida com os
índios da região. O estreito “braço” do rio desemboca no estuário “velado” por uma mata
ciliar e frondosas árvores da Mata Atlântica, que parecem encortinar seus galhos entre a
passagem e a água, tornando este espaço protegido, resguardando-o para quem conhece a
região.
O Sr. João da Conceição Palmeira complementa a informação sobre a localização da
comunidade, ao afirmar que:
Um grupo veio para aqui e construiu o sítio de Jatimane, depois é que outras
famílias foram chegando e foram ficando. Agora... tem gente que está morando
aqui, e não é Rosário não, a família de João da Cruz chegou depois, os filhos
rapazes, a meninas eram pequenas e a filha caçula foi nascida aqui. Mas a gente
considera como parente
80
.
A narrativa de Sr. João Palmeira da Conceição faz parte de sua memória individual,
constituída por lembranças dos acontecimentos que presenciou como a chegada da família
Cruz. Uma memória individual que tece os “fios” da lembrança e se constitui numa versão
para a formação do agrupamento. Aos 80 anos de idade, lúcido e bem falante, o Sr. Palmeira é
78
REIS, João José, (Org.).Escravos e Coiteros no Quilombo do Oitizeiro. In: Liberdade por um fio: História
dos Quilombos no Brasil. São Paulo. Cia de Letras, 1996. p. 339.
79
GOMES. Flávio Santos. A Hidra e os Pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no
Brasil, (Séculos XVII XIX). São Paulo: Ed. UNESP: Ed. Polis, 2005. p. 405.
80
Sr. João Palmeira. Entrevista concedida a autora em 04.01 2007.
40
um dos informantes sobre a história de Jatimane, internamente é reconhecido como uma das
referências para contar as histórias dos mais antigos, lembrando o que nos diz Ecléa Bosi: “os
[...] memoriosos [...] são guias que percorrem com sabedoria os caminhos da história local”
81
.
Através de sua oralidade o narrador mantém viva a história do lugar, ao afirmar que “um
grupo veio para aqui” e se estabeleceu, o informante deixa-nos perceber nas entrelinhas que
os Rosário é um desdobramento de um grupo maior negros fugidos que buscavam na mata o
abrigo necessário para construção de uma em liberdade. Embora não descreva com exatidão o
acontecido, seu relato transmite uma evidência importante para a localidade: em algum
momento anterior a esta história, essas famílias já se conheciam
82
, uma vez que “chegaram de
canoa,” fazendo o sucessivo percurso rio/mar, o que reforça a idéia de uma precisão
geográfica do espaço que foi ocupado pela comunidade.
Ao mesmo tempo, o relato também esclarece o porquê da assunção da tradição escrava
não ser comungado por todos dentro de Jatimane. Em seu entorno social os Rosário são
percebidos como uma grande família, unida pela consangüinidade e/ou por afinidades
histórico-culturais, por portarem emblematicamente “características comportamentais
distintivas [...] do grupo,”
83
mas, na entrevista do Sr. João da Conceição Palmeira desvela-se
uma realidade vivenciada internamente pelos jatimanenses, uma idéia de hierarquização em
que “o sentimento do status de cada um e da inclusão na coletividade esta[va] ligado à vida e
às tradições”
84
de família. Assim, os Rosários desbravaram a área e construíram o sítio de
Jatimane dando início ao povoamento, e, posteriormente chegaram outras famílias, que
foram por eles acolhidas.
Esta narrativa nos deixa perceber, que nesta pequena comunidade o “espaço social é
construído de tal modo que os agentes [...] são distribuídos em função”
85
de sua
consangüinidade e, posteriormente, por suas afinidades histórico-culturais. Identificar os
Rosário como protagonistas de uma grande façanha os construtores do arraial e os seus
agregados como coadjuvantes sociais, fornece uma explicação sobre a hierarquia social que
organiza internamente a comunidade. Internamente, o sobrenome Rosário permite uma
distinção, como se os laços de consangüinidade estivessem distinguindo os parentes dos
81
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos, São Paulo: Cia. de Letras, l994. p. 420.
82
Ao pesquisar sobre a formação de comunidades negras no pós-abolição, Fraga Filho constatou que em vários
casos, os egressos da escravidão precisaram “contar com a ajuda e a solidariedade dos antigos parceiros”. Ver,
FRAGA, Filho. Encruzilhadas da Liberdade: história de escravo e liberto na Bahia (1870-1910), Campinas.
São Paulo, Ed. da UNICAMP, 2006. p. 296.
83
ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma
comunidade. Rio do Janeiro: Jorge Zahar Editora. 2000. p. 170.
84
ELIAS, Op.cit. , p. 25.
85
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, SP: Papirus. 1996. p.19.
41
agregados, sendo os primeiros os legítimos herdeiros das práticas culturais dos antepassados.
Além do que, podemos levantar a hipótese do sobrenome Rosário ser um auto-batismo
assumido pelas primeiras famílias que construíram o arraial de Jatimane, um nome
relacionado à Nossa senhora do Rosário, santa padroeira da antiga vila de Cairu, que no
passado detinha a administração política deste espaço territorial.
O Sr. João Palmeira prossegue informando sobre o território. Segundo ele, a meio de
caminho, entre Jatimane e Porto Velho, existe uma cachoeira denominada “Salto da prata”,
que ficou curiosamente apelidada de cachoeira do „Cheguevira‟. Ele conta que,
“os velhos, pilheriavam sobre a travessura de um menino que devia levar um grupo
de pessoas para o novo assentamento, em vez de acompanhar as pessoas, o menino
ensinava o caminho e dizia: vocês vão em frente até a cachoeira, chega e vira,
distorcem na mata e seguem até Jatimane.”
86
Segundo Sr. João Palmeira, o menino insistia na expressão, “você chega e vira”.
Analisando essa informação, podemos constatar que tanto Porto Velho quanto Jatimane eram
locais utilizados como esconderijo. O percurso entre esses assentamentos era trilhado através
da mata, onde a cachoeira era uma referência para mudança do caminho, aonde “chega e
vira”, distorcendo na mata, mudando o rumo da caminhada. Peraltice do garoto, “piléria” dos
mais velhos, mas a cachoeira da Prata ganhou o apelido de cachoeira do Cheguevira.
Relatos como estes induzem à percepção de que, em alguns lugares, a exemplo desta
cachoeira, o ambiente constitui um patrimônio cultural, um bem imaterial, referência na
comunidade de Jatimane, pois tem um papel na localização dos eventos históricos do grupo
social. Um espaço em que cultura, território e identidade se mesclam, e o lugar torna-se um
“veículo de acontecimentos emocionalmente fortes ou é percebido como símbolo”
87
, um
ambiente que é marco de significação, espaço que referenda uma história de resistência e
liberdade construída pelo grupo de Jatimane.
Considerando Constituição Brasileira, no seu Art. 216, podemos interpretar este espaço
da cachoeira do Cheguevira como uma área legalmente protegida como “patrimônio
cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial [...], portadores de referência à
identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”
88
. A
associação entre a cachoeira do Cheguevira e o dispositivo legal, enquadra-se mais
86
Entrevista do Sr.João Palmeira da Conceição. Em 04.01.2007.
87
TUAN, Yi-Fu. Topofilia. Um estudo da Percepção, Atitudes e Valores do Meio Ambiente. Difel/Difusão
S/A, São Paulo, 1980. p.107.
88
TÍTULO VIII. Da Ordem Social. Capítulo III. Seção II. Da Cultura. Artigo nº. 216, Constituição Federal do
Brasil. 2004. p.124.
42
especificamente ao parágrafo V deste referido Artigo que, textualmente inclui como
patrimônio cultural: “os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico,
arqueológico, paleontológico, ecológico e científico"
89
. Portanto, à luz deste Artigo
Constitucional, a cachoeira do “Cheguevira,” é um patrimônio ecológico e bem imaterial para
os jatimanenses, pois faz parte de uma das suas referências históricas e identitárias.
Se a entrevista de Sr. João da Conceição Palmeira começa com a apresentação de sua
credencial, pertinente também é sua afirmativa final “essa terra é da gente,” o que nos remete
a outra linha de investigação, dentro da questão territorial. Uma análise que requer a cautela,
pois a ancianidade na ocupação territorial é um dos critérios de identificação de uma
comunidade com descendência quilombola. Uma cautela necessária, uma vez que a questão
envolvendo terras quilombolas, tornou-se polêmica, suscitando diferentes interpretações, e, às
vezes, gerando conflitos com os seus vizinhos. Para entender as particularidades territoriais de
Jatimane, no relato do Senhor Anselmo do Rosário, ele nomeia a vizinhança do arraial, ao
enunciar:
Estamos na fronteira, a meio caminho entre Ituberá e Nilo Peçanha. Do lado de
Ituberá, fazemos divisas com as terras da Odebrecht, uma ponta das terras da
Odebrecht faz divisa com a gente. Desse lado tem as terras dos Nunes Edilzo e
Celso Nunes, também com meu filho Fernando Rosário, ele tem uma terra em
Ituberá, fazendo divisa aqui. Do lado de Nilo Peçanha, Jatimane faz divisa com as
terras dos Ventura- Francisco e Amaro Ventura. Deste lado, aqui perto, eu tenho
uma terra de nome fazenda Coquilho, que faz divisa aqui. São esses os vizinhos de
Jatimane
90
.
Analisando este relato, podemos refletir que, se no passado este espaço territorial era
“marginal”, pouco cobiçado para investimentos, hoje, a situação mudou, e o arraial faz divisa
com fazendeiros e empresários. Neste sentido, é esclarecedor a argumentação da geógrafa
Lourdes Carril. Discutindo sobre terras quilombolas, a autora argumenta que, em um
determinado tempo histórico, os quilombolas procuravam se localizar em áreas distantes e
isoladas, em regiões marcadas pelo baixo desenvolvimento demográfico e capital, áreas que
podiam ser consideradas como marginais em relação ao desenvolvimento industrial
91
. Em
outro trabalho, avaliando a questão da territorialidade quilombola, a geógrafa argumenta que a
expansão do capitalismo brasileiro, ora possibilitou uma articulação de algumas regiões do
país, em alguns casos envolvendo terras quilombolas, ora promovendo-as em uma
89
Idem Ibidem.
90
Sr. Anselmo do Rosário, 80 anos, natural de Jatimane, viúvo, aposentado, viúvo. Entrevista cedida a autora,
em Jatimane, no dia 23.09.2008.
91
CARRIL, Lourdes. Terras de negros: herança de quilombos. São Paulo: Scipione. 2001. p. 12 -13.
43
especulação e valorização territorial, ora implantando parques e áreas de proteção ambiental
nestas terras
92
.
O argumento de Carril nos ajuda a entender a dinâmica do espaço, dentro desta área.
No passado, os Rosários se estabeleceram em espaço territorial marginal, com a passar do
tempo, este espaço territorial tornou-se alvo de interesse e cobiça dos proprietários de terras
que ali se instalaram, tornado-se vizinhos dos jatimanenses. Atento a questão territorial, o Sr.
Anselmo do Rosário, nos informações mais precisas sobre á questão interna da
comunidade:
Olha, isso aqui era terra comum, o pessoal chamava de terra dos pretos, „os pretos
de Nilo Peçanha‟, aqui e em Boitaraca, era assim que chamavam a gente! Dessa
terra comum, eu não sei dizer quando, mas dividiu em onze partes, então Jatimane
foi dividida em onze partes, de herdeiros apropriados, tem herdeiro que tirou
documento de suas terras. Mas veja como as coisas acontecem: a terra de Jatimane
é uma só, não cresceu, mais o número de herdeiros aumentou, então aqui tem gente
com sua terra, com ITR ( Imposto Territorial Rural) de sua terra, como tem gente,
que não pode dividir que se fosse dividir o pedacinho de terra que tem, dava uma
área dois ou três pé de pau pra cada um
93
.
Quanto à questão territorial, o Sr. Otávio Rosário complementa:
É verdade, que quem tem tempo na terra, que é herdeiro, pode tirar o documento
da terra, e ficar pagando imposto, o ITR. Mas nem todo mundo liga pra tirar
documento, quem tem um pedacinho de terra, não tem nem como documentar, às
vezes não dá pra dividir. Mas quem pode vai ao sindicato e documenta
94
.
Através de suas entrevistas, os primos, Anselmo Rosário e Otávio Rosário expressam
particularidades da comunidade quanto à questão territorial e nos ajudam a entender porque
nas “falas” e “evidências” apresentadas ao longo dos depoimentos, a legalização das terras
ocupadas não se apresenta entre as principais preocupações dos jatimanenses. Estes se
referem à Jatimane como “nosso sítio”, “nossa terra”, como algo já consumado pelos
antepassados. A suposta despreocupação em relação à terra pode ser entendida como uso de
uma prerrogativa legal concedida pelo Governo do Estado, através do Centro de Recursos
Ambientais CRA. O recurso legal que vem sendo utilizado pelo CRA, para legalização
destas terras, ampara-se no Decreto nº23. 401, de 13 de abril de 1973, ratificado
posteriormente pela lei nº. 3.442, que no seu Art.3º define:
92
_______. Quilombo, favela e periferia: a longa busca da cidadania. São Paulo: Annablume; Fapesp. 2006. p.
227 228.
93
Sr. Anselmo do Rosário. Entrevista concedida em 23.09.2008.
94
Sr. Otávio do Rosário, 78 anos, natural de Jatimane, tirador de piaçava aposentado. Entrevista concedida a
autora, em Jatimane, no dia 23.09.2008.
44
Ao possuidor de terra devoluta de área não superior à do limite fixado na
Constituição Estadual, assim considerado o ocupante que a beneficiou e continua a
explorá-la, tornando-a produtiva pelo seu trabalho, o Estado assegurará
gratuitamente o domínio, outorgando o respectivo título de propriedade, desde que
o interessado prove.
95
Os títulos territoriais, emitidos pelo CRA, que têm favorecido os jatimanenses,
ampara-se no artigo citado, bastando ao interessado comprovar a posse mansa, continuada e a
prática de uma cultura com o beneficiamento da terra por mais de quinze anos situação
comprovável via sindicato rural, mediante o testemunho de cinco pessoas que possam afirmar
o período de ocupação e beneficiamento da terra. Trata-se da legalização de pequenas
propriedades rurais destinadas a uma agricultura familiar. Mesmo assim, talvez, este seja o
motivo de uma aparente despreocupação do Sr. Otávio Rosário, quanto à questão territorial.
Uma vez que nesta área territorial, o Estado baiano através do CRA, vem emitindo títulos de
propriedades individuais, à pequenos produtores, desde a década de 1970.
Essa aparente despreocupação é uma questão que pode ser entendida como uma
singularidade local e que, internamente, pode gerar controvérsia. Embora a comunidade de
Jatimane possua o título de auto-reconhecimento como Comunidade Quilombola
96
, o seu
registro final e posterior titulação territorial serão consumados após processo de
regularização efetuado pelo INCRA. Mas, esta segunda etapa do processo culmina com a
titularidade territorial coletiva, uma vez que o INCRA não permite a sobreposição de
titularidades em terras quilombolas, fato que não agradaria a todos, podendo até mesmo criar
um cisma interno, uma vez que uma parte destas pessoas possui o seu quinhão de terra
individual. Aí reside a aparente despreocupação da questão territorial em Jatimane e os
discursos internos se mantenham no nível de subjetiva valorização territorial.
O croquis do arraial, cedido pela assessoria técnica da AMUBS, permite uma visão
panorâmica da forma estrutural de Jatimane. A imagem a seguir, permite a visualização da
estrutura do arraial que segue o curso do rio. Neste sentido, um estudo recente feito pela Casa
de Angola
97
, detectou vários tipos estruturais de organizações quilombolas em território
brasileiro, entre os quais, podemos comparar o arraial de Jatimane, a uma estrutura
organizacional em padrão linear.
95
BAHIA. Decreto nº. 3.442, de 12 de dezembro de 1975. Diário Oficial do Estado da Bahia, Poder Executivo,
Salvador, Bahia, 13 dez. 1975, Seção, p. 1-2DIÁRIO Oficial. 13.12.1975.
96
BRASIL. Fundação Cultural Palmares, de 23 março de 2005. Diário Oficial da União. Poder Executivo,
Brasília, 19 de abr. de 2005. Seção 1, n. 74, fl. 03. sob o nº03- Registro 197- fls. 03.
97
FUNDAÇÃO Cultural Casa da Angola. Intercâmbio Cultural. Imprensa Oficial. 1999. p. 52-53.
45
FIGURA 2 Croquis do arraial de Jatimane.
FONTE: AMUBS. Fevereiro de 2008.
Dentro desta estrutura organizacional, pequenas casas contornam o rio, e, no único
largo central é marcante a presença da Igreja Católica e, na sua retaguarda, o cemitério, à
frente do qual, duas ruas oblíquas abrigam pequenas casas. Paralelo ao rio, do lado esquerdo
do pontilhão de concreto, um espaço pontilhado por choupanas onde parece que o tempo
adormeceu é o lugar onde as “catadeiras” e “penteadeiras” beneficiam a piaçava no espaço
do arraial.
Um quiosque localizado em frente ao largo central do povoado é um ponto de encontro,
freqüentado, majoritariamente pelo sexo masculino, onde as principais atividades são as
conversas e as partidas de dominó. No centro do arraial - no seu largo, é o palco onde
acontecem todos os eventos sócio-religiosos partilhados pela parentela. Destacada, em um dos
extremos do largo central da comunidade, está a igreja católica, que permanece diariamente
aberta, também é costume manter-se abertas as janelas das casas. Segundo o costume local,
janelas e/ou portas abertas arejam as casas e mantêm sadios os ambientes, Quanto à
46
distribuição das casas, estas são ladeadas umas às outras, existindo poucas casas com quintais
separados por cercas, em geral as casas têm um único e grande quintal.
Sobre o rio que atravessa o lugarejo, um pontilhão de concreto feito para travessia dos
carros que vão em direção à praia do Pratigi, convive lado a lado com tradicionais passarelas
de madeiras. Esse pontilhão de concreto permite a travessia sobre o rio, ao mesmo tempo em
que liga uma estrada da BA-001 à praia do Pratigi.
Portanto, este espaço territorial, marcado por uma beleza natural e esquadrinhado pelo
homem, em sua dinâmica social, é um elemento de referência cultural e simbólica para os
jatimanenses. Na entrevista do presidente da associação dos moradores de Jatimane, podemos
apreciar mais um discurso de identificação e valoração simbólica do território. Quando
questionado sobre a localização de Porto Velho, Sr. Miltaides Assunção do Rosário informa:
Se você quiser conhecer o lugar do antigo assentamento de Porto Velho, é simples, a
gente “pega” uma trilha... faz uma caminhada na mata, passa pela cachoeira, muda de
rumo e segue andando, você vai vê que lugar bonito que esse meu Deus fez pra gente!
na mata não tem erro, é fácil achar o lugar, ainda hoje tem muita abelha do tipo
“Jati”
98
.
De maneira metafórica, o morador transforma a paisagem em texto, um texto
culturalmente decifrável. O discurso informativo de Sr. Miltaides Assunção do Rosário é uma
interpretação positivada do lugar, um espaço territorial considerado inspirador de
significados, constituidor de um “elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico”
99
,
em sua narrativa, o informante edeniza o espaço, um lugar bonito feito por Deus “pra gente”.
De forma poética, ele utiliza uma política de pertença realçando traços distintivos do lugar.
Um espaço distinto, especialmente feito pelo Criador, é a visão que será contemplada por
aquele que percorrer o caminho entre Jatimane e Porto Velho.
Conforme os ensinamentos de Geertz
100
, a decodificação de uma cultura local tem
como referência sistemas simbólicos compartilhados por um grupo social, uma perspectiva de
análise que nos permite aflorar o pensamento e perceber no espaço territorial a materialização
ideográfica de um paraíso tropical, ao mesmo tempo em que nos seduz a captar os mistérios e
a beleza do lugar.
98
Miltaides Assunção do Rosário, natural de Jatimane, 50 anos, casado, presidente da associação dos moradores
de Jatimane. Entrevistas concedidas a autora em Jatimane, no dia 04.01.2007.
99
TUAN, Op. cit. p. 5.
100
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1990.
47
Assim, transformando o conceito geertziniano em habilidade, através do relato do Sr.
Miltaides Assunção do Rosário, podemos perceber que o meio ambiente natural e a visão do
mundo estão relacionados. Portanto, percorrer esta trilha, torna-se uma empreitada, uma
aventura na selva tropical, um espaço considerado como referência, um patrimônio
ambiental/cultural para os jatimanenses. Mas, a edenização do espaço não pára por aí: no
discurso de Miltaides são as abelhas quem sinalizam o lugar do antigo assentamento. Neste
momento, o território torna-se uma referência paradigmática, muito bem representada nos
diferentes discursos dos moradores locais. Um espaço territorial que pode ser entendido como
um sítio ecológico, de valor histórico, o que reforça a idéia de um patrimônio cultural
associado às referências identitárias dos jatimaneses.
Um outro ângulo de observação é fornecido pela imagem que retrata a comunidade de
Jatimane, fornecendo elementos para a interpretação de um lugar marcado pela exuberância
de verde, em seus variados matizes.
FOTO 3 - Vista aérea da comunidade de Jatimane.
FONTE: Acervo icnográfico do IDES, fotografia de Eduardo Moody, s/d.
48
Ainda em relação ao território, tendo como premissa o pensamento do geógrafo, sino-
americano Tuan
101
, para quem o lugar ou meio ambiente, pode ser inspirador de laços
afetivos, “por ser o lar, o lócus de reminiscências e o meio de se ganhar a vida”
102
. Este é o
espaço em que uma cultura de resistência dos jatimanenses se materializa em suas atividades
cotidianas, funções tradicionalmente assumidas nas atividades extrativistas da piaçava e da
pesca, através das quais os sujeitos do lugar retiram da natureza os elementos necessários para
sua sobrevivência. Fonte de vida e beleza para o ecossistema, este espaço territorial, que ao
longo do tempo garantiu abrigo e alimento, parece conspirar em favor da sobrevivência do
homem na terra, aproximando homem/natureza numa viva relação.
É neste espaço que os sujeitos históricos de Jatimane reconfiguram um discurso
repassado de geração para geração. Um espaço em que a memória coletiva é apontada como
um cimento indispensável à sobrevivência [...] elemento de coesão garantidor da permanência
e da elaboração,”
103
de saberes herdados e reafirmados pela memória local, onde o passado e
a memória guardam a história do grupo. No caso específico de Jatimane, este também é o
espaço territorial ocupado pela comunidade como palco de convivência harmoniosa com a
natureza, desde a “origem dos tempos”, tempo dos antepassados.
Considerado que o passado é matéria-prima tanto para a memória como para a história,
estes registros de memória, permitem historicizar a comunidade de Jatimane. Mas, neste
ponto de interseção entre a memória e a história, é preciso entender que a idéia de
temporalidade não segue um recorte cronológico, pois a relação tempo/memória torna-se
complexa, o tempo parece se libertar das amarras” de um recorte cronológico e,
paralelamente percorrer uma temporalidade própria. Conforme Ecléa Bosi, este é o momento
em que a memória se liberta de um recorte temporal e considera como ponto de significação
os momentos mais marcantes de nossa existência, eventos que ficam gravados na memória,
espaços em que a existência se concentra
104
.
A memória, como reconfigurante do passado, é aqui utilizada como fonte de
investigação, pois ela é raiz de onde brotam a história e a transmissão destas práticas culturais.
101
TUAN, Yi-Fu. Topofilia. Um estudo da Percepção, Atitudes e Valores do Meio Ambiente. São Paulo:
Difel/Difusão S/A, 1980.
102
Ibidem. p. 107.
103
SANTOS, Milton. O lugar e o cotidiano. In: A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção.
São Paulo: Ed. Hucitec. 1996. p. 264.
104
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos, São Paulo: Cia. das Letras, l994. p. 415.
49
1.3 O LEGADO DA MEMÓRIA: TECENDO A GÊNESE DO LUGAR
A memória pode representar a capacidade de trazer para o presente lembranças de um
tempo passado vivido, sendo capaz de “remodelar toda experiência em categorias nítidas,
cheias de sentido e úteis para o presente,”
105
reconfigurando, através do relato, a interpretação
de um real vivido pela comunidade. Para Maluf, “a sobrevivência do passado no presente e a
possibilidade de sua reconstrução têm no grupo o suporte e a fonte de sentimentos e
pensamentos mesmos os mais pessoais”
106
. Assim, ao rememorarmos fatos significativos de
nossa história, podemos, nos identificar com o que narramos.
Desta forma, o passado é tomado como matéria-prima da memória, uma memória tida
como um legado, raiz de onde brotam a cultura e a história de Jatimane. Uma memória,
capturada a partir da oralidade, permite a reconstrução desta história de Jatimane, a partir da
memória dos sujeitos locais, que no seu processo de conto e reconto, enfatizam determinadas
“verdades” que foram construídas, incorporadas e divulgadas, a exemplo do conto sobre a
origem do lugar. Neste momento, “passado e presente [...] são temporalidades que se
justapõem, porque ambos se nutrem de continuidade e descontinuidade”
107
. Portanto, podem
não ser histórias exatas, mas são representações de um passado significativo para o
agrupamento.
Mesmo dentro da comunidade, guardiões da história local percebem a efemeridade da
memória e temem que ela se perca. Numa visão onírica, o Sr. João da Conceição Palmeira,
comenta:
De uma outra vez, a senhora torna a voltar aqui pra gente continuar a prosa. É que
memória de velho é assim... como um sonho. Um dia você sonha e lembra de tudo,
em outro dia você sonha e esquece. Então é preciso “puxar” pela memória pra gente
lembrar
108
.
O informante percebe a mútua relação lembrança/esquecimento que pode vir agregada
à memória. Portanto, ele sugere “puxar” pela memória, numa tentativa de emersão no
passado. Isto não inviabiliza a reconstrução desta história a partir de uma memória local,
105
MALUF, Marina. Ruídos da Memória. São Paulo: Siciliano, 1995. p. 419.
106
MALU, Marina. Op.cit. p. 37.
107
SILVA, Valdélio Santos. Do Mocambo do Pau Preto ao Rio das Rãs: liberdade e escravidão na construção
da identidade negra, de um quilombo contemporâneo (Ensaio Etnográfico). Dissertação de Mestrado em
Sociologia. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal da Bahia. 1998. p. 19.
108
João da Conceição Palmeira, 78 anos. Morador de Jatimane. Entrevista concedida em 06.01.2006.
50
mesmo porque “lembrar não é reviver, mas re-fazer. É reflexão, compreensão do agora a
partir do outrora: é sentimento, reapropriação do feito e do ido, não mera repetição”
109
.
Uma outra forma de percepção da importância e da efemeridade da memória é
demonstrada por D. Maria Madalena Oliveira do Rosário. Dentro da comunidade ela se
destaca entre os memoriosos, sendo referendada pelos seus conterrâneos como uma guardiã
da memória local. Segundo Ecléa Bosi, “os nossos memoriosos narram com freqüência fatos
da vida dos avós, e até anteriores a eles,”
110
são guias que percorrem com sabedoria os
caminhos da história local. A Srª. Maria Madalena Oliveira do Rosário reconhece a
necessidade de manter viva a história da comunidade e, de forma prática, visando proteger
essa história da efemeridade da memória, tomou para si à missão de registrar em seu caderno
de anotações, a história do lugar. Ela e os outros guardiões da memória de Jatimane estão com
a idade avançada e reclamam que os mais jovens, embora conhecendo a história local, não se
interessam pela arte do reconto, por isso ela tomou para si a tarefa de registrar a memória
local.
Neste aspecto, Walter Benjamim esclarece que “contar histórias sempre foi a arte de
contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde
porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história”
111
. Neste sentido, D. Maria
Madalena Oliveira do Rosário, fia , tece, registra e conta a história de Jatimane. A informante
inicia seu relato, relembrando as histórias que foram contadas por sua madrinha, Dona Maria
do Amparo - filha de uma escrava da região que “falava com firmeza” sobre as histórias
daquele tempo. Uma narrativa faz parte de um repertório comum ao grupo, história de um
tempo vivido pelos seus antepassados. Uma saga registrada no espaço da memória dos
guardiões locais, uma rememoração que é referência na reconstituição do passado e de suas
contingências existenciais.
Em outra entrevista, é o Sr. Nivaldo Rosário, quem recorre à memória do grupo e lança
mão de uma lembrança de família, que o seu “velho pai contava na hora da farinha..., e
informa sobre a origem do lugar, ao mesmo tempo em que narra um pouco sobre a saga dos
irmãos Rosário. Rememora,
Meu velho pai e o irmão dele, Titino, contava pra gente: [...] que vieram pessoas
aqui pra se esconder, isso aqui era mata braba, eles se embrenharam na mata,
eram todos negros fugidos, mais quatros irmãos vieram de Porto Velho pra‟qui.
109
Bosi. Ecléa. Op. cit. p. 20.
110
Idem. p.420.
111
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São
Paulo: Brasiliense, 1994. p. 205.
51
Esses irmãos eram Honório, Mane André, Boaventura e Devoto do Rosário. Eles
vieram pra cá atrás de água boa para beber. Pouco mais fizeram amizade com um
índio daqui da região. E com a continuidade os irmãos foram ficando e se
estabeleceram. Bem ali, fizeram um ranchozinho, chamava de o rancho de André
do Rosário, daí então, veio a construir os ranchos dos outros irmãos. Uma
rancharia aqui, uma rancharia ali, foi assim que começou Jatimane
112
.
O relato de Sr. Nivaldo do Rosário pode ser entendido como um significativo
movimento de rememorização, que permite, através de uma revisão das percepções
familiares, a reconstrução do passado e da origem da comunidade. Em outro momento da
entrevista, ao rememorar suas relações familiares, o Sr. Nivaldo Rosário comenta:
Meu pai dizia que a mãe dele era uma índia dessas matas. Ele dizia que o cabelo
dela era bom, não dava uma volta, mais ela era uma mulher valente e nervosa.
Toda cismada conversava pouco e não gostava de ser contrariada. Se tivesse
contrariada, ela conversava de vançada. Meu pai mesmo, ela abriu a cabeça dele
com uma tampa de um caldeirão. Ele dizia que ninguém facilitava com ela. Ela era
valente! E a família é toda assim, é tudo calado e nervoso, o mais proseador sou
eu
113
.
A narrativa sobre as lembranças familiares do Sr. Nivaldo Rosário, elucida uma
questão que até aqui tinha ficado silenciada, trata-se da participação feminina na formação do
povoado. Em geral, os relatos dos guardiões, informam sobre os quatro irmãos Rosário que se
embrenharam na mata e formaram o quilombo, mas não se detêm em explicar como e com
quem estes homens, constituíram suas famílias. Ao relembrar seus causos de família, o Sr.
Nivaldo Rosário, esclarece que o seu avô Honório um dos quatro irmãos fugido - teria
constituído família com uma valente e cismada índia da região.
Assemelhados a um jogo de quebra-cabeça, a combinação destes relatos compõem a
história de Jatimane. Através da sucinta e curiosa narrativa feita pelo Sr. Otávio Oliveira do
Rosário, ficamos sabendo que “... desde a origem dos tempos [Jatimane] foi um quilombo.
Agora, eu não sei de onde eles vieram não, [...] tem uma conversa por aí, mas eu não sei de
nada não [...] dizem até que os negros foram trazidos para cá, de navio.”
114
Hipoteticamente,
podemos argumentar que o Sr. Otávio do Rosário utiliza fragmentos de uma memória
ancestral, supostamente uma história contada pelos mais velhos, sobre a presença de navios
negreiros, nestas águas do Baixo Sul. De forma específica, esta questão dos negreiros nesta
águas, será abordada mais adiante.
112
Nivaldo Rosário. 78 anos, natural de Jatimane, tirador de piaçava aposentado. Entrevista concedida a Maria
de Carmem Rodrigues Fernandes em Jatimane, no dia 06.01.2006.
113
Nivaldo Rosário. Entrevista concedida em 06. 01.2006.
114
Sr. Otávio Rosário, 78 anos, natural de Jatimane, tirador de piaçava aposentado. .Entrevista concedida a
autora em Jatimane no dia 07.05.2007.
52
Mas, estes relatos fazem parte de uma memória local que registra a origem do
agrupamento, de suas contingências existenciais. É na confluência destes relatos que a
memória tece a história e significado à cultura do lugar, a história contada por Dona
Madalena Oliveira do Rosário, confirmada por Sr. João da Conceição Palmeira da Conceição
e Sr. Otávio Rosário, é ratificada por Sr. Nivaldo Rosário, ao dizer:
Eu vou começar a contar pra vocês um pouquinho da história que minha madrinha
me contou...”
115
. “Isso aqui é um quilombo, desde a origem dos tempos um
quilombo”
116
, “...vieram pessoas aqui pra se esconder [...] eram todos negros
fugidos [...] havia muita dificuldade de água
117
. “Daí eles subiram se
arrancharam lá em Porto Velho, mais lá o “salgado” passou então eles não
puderam ficar, distorceram até encontrar água “positiva”, e com a continuidade
os irmãos foram ficando
118
.
Os relatos, aqui apresentados em fragmentos, são os registros de memória que contam
sobre as condições adversas da origem da comunidade, e são aqui entendidos como a história
do lugar. Nestes relatos de memória, em que se reconfigura “a recontagem das tradições
familiares, um renarrar de histórias repetidas incontáveis vezes, recordadas devido à [sua]
importância para contadores e ouvintes”
119
. Narrativas que precisam o espaço ocupado, mas
não definem cronologicamente o tempo. A temporalidade é marcada pelo corte
pretérito/presente, explícito em “desde a origem dos tempos”, tempos dos antepassados.
Narrativas que foram passadas de geração para geração, na tentativa de preservar a gênese do
lugar e registrar a história de Jatimane.
Perante os relatos internos, o arraial de Jatimane foi construído por negros fugidos- os
irmãos Rosário- que, em sua luta pela sobrevivência, ocuparam este espaço territorial desde o
final do século XIX. Embora não seja possível precisar temporalmente o histórico desta
ocupação, podemos argumentar que maio de 1888 não deve ser tomado como um divisor de
águas, para legitimar a inclusão desta comunidade na categoria dos remanescentes de
quilombos, pois isto incorreria em escamotear as variadas formas de luta, não pela
liberdade, mas também pela sobrevivência material e cultural de cativos e ex-cativos, bem
como de seus descendentes, ao longo do território brasileiro. Pois, se até maio de 1888 a luta
dos negros era pela liberdade, após esse período a luta continuou, embora tendo um novo
enfoque: o da sobrevivência material e cultural, em que comunidades negras, fossem elas
115
D. Maria Madalena Oliveira do Rosário. Jatimane, numa entrevista concedida a autora, em 06.05.2006.
116
Otávio do Rosário. Jatimane, numa entrevista concedida a autora, em 06.01.2007.
117
D. Maria Madalena Oliveira do Rosário. Em 06.05.2006.
118
Sr. Nivaldo Rosário. Entrevista concedida em 06.01.2006.
119
RIOS, Ana Lugão. Memórias do Cativeiro: família, trabalho e cidadania no pós-abolição. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005. p. 9.
53
remanescentes de antigos quilombos ou egressas da escravidão, travaram uma resistência
branda.
Este alargamento do significado da palavra quilombo é mais coerente para tratar-mos
desta questão, na contemporaneidade, pois a sua denominação não fica reduzida a um passado
histórico, significando um grupo oriundo de fuga de escravos, mas, ampliando-se para abarcar
a complexidade das questões que envolvem as comunidades negras, sejam elas remanescentes
quilombolas ou descendentes de egressos da escravidão, que ocupam as terras de seus
ancestrais.
Ainda na tentativa de decodificar a tessitura de memória percebemos que, dos
entrevistados, o menos afeito a uma “prosa” é Sr. Otávio do Rosário. Analisando a sua fala,
percebemos que, no primeiro momento, ele afirma ser Jatimane um quilombo “desde a origem
dos tempos”. Em seguida, querendo desviar a conversa sobre a comunidade, informar sobre
outras formações quilombolas nesta circunvizinhança, quando diz: “tem umas conversas por
aí [...] tem um quilombo aqui perto”.
Problematizando a fala do Sr. Otávio do Rosário, e tentando -la nas entrelinhas, é
notável que em um primeiro momento ele não tenha dúvida em afirmar que Jatimane é um
quilombo desde o início dos tempos, assim, neste momento ele valida uma memória familiar.
Mas, o intrigante é que em seguida ele desconversa, ao informar sobre a possível existência de
uma formação quilombola nas proximidades. Assim percebemos que entrevistado reconhece a
existência de afinidades com um passado quilombola, mas mostra-se cismado com a incursão
de pesquisadores no local. Vale salientar, que o Sr. Otávio do Rosário está entre os pequenos
proprietários de Jatimane que têm o título individual de sua terra.
A partir destes relatos, dentro da comunidade, a extensiva família Rosário usa o
parentesco para fortalecer uma idéia de pertença, relacionando o reconhecimento de uma
origem comum a uma identidade manifestada. Esta crença de uma origem comum, a partir
dos quatro irmãos Rosário, torna-se um elemento aglutinador, marcador de uma distinção. Ao
que tudo indica, esses relatos se baseiam em fragmentos de uma memória ancestral, uma
informação partilhada entre as gerações e essencial para a sobrevivência identitária da
comunidade, alicerce que valida o ethos de pertencimento do grupo. “Uma história comum
cuja lembrança se mantém presente, [...] elemento de peso na configuração de possibilidades
de esse grupo [se] afirmar”
120
como descendentes de escravos fugidos. O conto e reconto
destes fragmentos de uma memória ancestral, sustentam a história de Jatimane ser uma
120
ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma
comunidade. Rio do Janeiro: Jorge Zahar, Editora, 2000. p. 172.
54
reminiscência quilombola, ao mesmo tempo em que alimenta o ideal de pertencimento
ostentado pelo seu povo.
A força destas narrativas nos leva a perceber a importância da oralidade na captura da
memória como forma de contar este lado da nossa história. A reconstituição da história de
uma comunidade quilombola, através da memória, foi demonstrado com maestria por Hebe
Mattos, ao pesquisar sobre o quilombo contemporâneo de São José da Serra, no Rio de
Janeiro.
Também o pesquisador Valdélio Silva, no seu estudo sobre a comunidade quilombola
do Rio das Rãs, em Bom Jesus da Lapa, destaca a importância do uso da memória na
preservação da história destes assentamentos quilombolas. Segundo o autor, o recurso à
história oral é uma possibilidade “para suprir as lacunas da documentação oficial e mesmo
alterar as interpretações”
121
até aqui desenvolvidas. Neste sentido, Funes afirma que “a
memória constitui elemento de significativa importância para a reconstituição do processo
histórico. Nas comunidades remanescentes de mocambos, ela está viva entre os velhos, netos
e bisnetos de mocambeiros, guardiões das histórias que seus antepassados lhes contavam”
122
.
As histórias sobre comunidades quilombolas construídas a partir de relatos de memória,
e apresentam uma trama, na qual o sujeito histórico tece e intercambia suas experiências. No
caso específico da comunidade de Jatimane, percebe-se que a memória dos mais velhos foi o
registro que fundamentou os discursos sobre a história e a identidade do grupo, porém, dentro
da comunidade esses discursos não são hegemônicos, e, por isso mesmo, carecem de maiores
explicações.
1.4 A POLIFONIA DOS DISCURSOS INTERNOS
Nos relatos que seguem, os informantes demonstram o significado da polifonia, quando
nos discursos entre os sujeitos de um grupo existe um conjunto de vozes diferentes, sem que
uma silencie a outra, vozes que soam simultaneamente, podendo apontar diferentes caminhos.
Desta forma, convergindo para os registros de memória sobre a história da comunidade de
Jatimane, ao ser entrevistado, o Sr. Eustáquio Francisco Damasceno
123
diz ser verdadeiro o
121
SILVA, Valdélio Santos. Rio das Rãs à luz da noção de quilombo. In: Afro - Ásia. Centro de Estudos Afro-
Orientais nº23. p. 8.
122
FUNES, Eurípides A. “Nasci na matas, nunca tive senhor” _ História e memória dos mocambos do baixo
Amazonas. In: Liberdade por um fio: História dos Quilombos no Brasil. João José Reis, Flávio Gomes. SP.
Cia. de Letras, 1996. P. 68.
123
Sr. Eustáquio Francisco Damasceno, 89 anos, natural da vizinha comunidade de Barra dos Carvalhos,
município de Cairu, viúvo, casado pela segunda vez com uma jatimanese. O entrevistado é neto de Rufino,
55
discurso dos guardiões locais, e afirma que pessoas mais velhas que ele, contavam histórias
sobre o cativeiro. Ao mesmo tempo, o informante reconhece uma descendência com a família
Rosário, ao confirmar:
Eu ouvia pessoas mais velhas contar essas histórias, é que o pai de minha mãe era
daqui [de Jatimane], ele se chamava Rufino João do Rosário, mas eu não assino
por Rosário, porque minha mãe casou com meu pai, no meu nome tem a
assinatura de meu pai e não de minha mãe. Também eu não sou daqui, eu nasci e
fui criado em Barra dos Carvalhos
124
.
O informante inicia seu relato confirmando a veracidade das informações divulgadas
pelos guardiões da memória local, prossegue justificando que “pessoas mais velhas”
contavam essa história sobre Jatimane. Através de uma memória familiar, identifica seu avô
Rufino João do Rosário como um dos quatro irmãos que teriam iniciado a formação da
comunidade de Jatimane, portanto, Sr. Eustáquio Francisco Damasceno se assume como um
dos membros da parentela. Mas, na contramão deste discurso, em 2004, Sr. Eustáquio foi o
protagonista de uma polêmica entrevista registrada no filme Quilombos do Bahia. Naquele
momento, quando entrevistado, ele negou uma possível descendência escrava e afirmou que
seu pai era descendente de português, ao dizer: “minha família é diferente, eu não sou nego da
costa não, por sinal eu não tenho cabelo enrolado [...] eu venho do ramo do português”
125
.
Analisando a fala do informante, ela é percebida como um jogo de identidade,
resultado de interesses. Quando convém, ele afirma seu parentesco com os Rosários,
reforçando os laços de família através do seu avô Rufino João do Rosário, pai de sua mãe,
afirmando sua pertença à família Rosário. Quando julga necessário, apresenta marcas
distintivas entre ele e a parentela, enfatizando o “ramo português” do qual ele diz descender
por parte do avô paterno. Ora, ao que tudo indica o Sr. Eustáquio Francisco Damasceno, faz
um jogo de identidade a partir de suas referências familiares, ora evocando seus laços
consangüíneos com os Rosário, reforçando uma estrutura familiar e ratificando os discursos
de Jatimane, ser considerada uma comunidade de negros fugidos, ora silenciando estes laços,
como se quisesse ocultar uma descendência escrava.
conhecido como Devoto pela sua devoção à Bom Jesus da Lapa. Segundo os relatos, desde que construíram o
sítio de Jatimane, todo o ano Devota ia à até a cidade da Lapa em agradecimento por uma graça
alcançada.Nenhum dos entrevistados soube esclarecer o quê Devoto agradecia. Entrevista concedida em
07.05.2008
124
Sr. Eustáquio Francisco Damasceno. O informante se apresenta como natural da vizinha comunidade de Barra
dos Carvalhos, terra de família de sua avó Ambrosina Conceição, casada com o seu avô Rufino João do Rosário.
Entrevista concedida em 07.05.2008
125
OLAVO, Antônio. Filme Quilombos da Bahia. Portifolium Laboratório de Imagens. 2004.
56
Mas, a entrevista de Sr. Eustáquio Damasceno traz outra possibilidade de interpretação,
quando afirma que nasceu e foi criado na comunidade de Barra dos Carvalhos, o informante
faz uma outra reivindicação identitária: ele nega uma pertença à comunidade de Jatimane e
identifica-se pela sua vivência na vizinha comunidade de Barra dos Carvalhos, um outro
espaço geográfico e cultural que estaria servindo de referência identitária na vida de Sr.
Eustáquio Damasceno.
Na polissemia destes discursos, um outro relato intrigante é do Sr. Manuel da Luz, que
afirma:
Eu não sou dos Rosários, eu sou de outra família, minha mãe casou com um dos
Rosário e eu fui criado lá em Jatimane, naquele tempo Jatimane era um arraialzinho
que ninguém ouvia falar, bem pequeninho. Eu não sei dizer nada de quilombo.
Ouvi falar que tivera escravo por aqui, mas não sei dizer nada não, sei que o
trabalho da piaçava era desde o tempo dos escravos, é um trabalho escravo, isso eu
também ouvia falar
126
.
Analisando a entrevista de Sr. Manuel da Luz, ele nega conhecer informações a
respeito de antigos quilombos naquela região. Em seguida ele afirma ter ouvido falar que
“tivera escravo por aqui, embora não saiba ou não queira informar nada sobre a questão.
Mesmo porque, ter ocorrido trabalho escravo na região não significa necessariamente a
existência de formação quilombola. Mas, também é estranho o informante ignorar as histórias
que circulam na comunidade que ele morou por trinta e dois anos, o que nos leva a
argumentar que a história sobre a origem da comunidade de Jatimane não foi significativa
para este informante, por isso não se reconhece como parte integrante da família e essas
histórias contadas e recontadas sobre a comunidade não são significativas para ele, não
servindo como referência identitária.
Segundo o pensamento de Marina Maluf, “a lembrança é uma tradução individual,
enraizada em múltiplas camadas de experiências sociais, que emerge através de uma
linguagem”
127
. Em mais de uma hora de entrevista gravada, o narrador fez sua “tradução
individual” a partir de sua experiência de vida. Aos 99 anos, Manuel da Luz tem a capacidade
126
Manuel da Luz, ex-morador de Jatimane. Srº Manuel da Luz, 99 anos de idade, viúvo, pescador aposentado,
casado pela segunda vez, pai de nove filhos, dono de uma voz “firme” e uma memória prodigiosa, sua entrevista
é rica em detalhes sobre o trabalho da piaçava. Ele inicia seu relato justificando que nasceu dia 8 de setembro dia
de Nossa Senhora da Luz, e como era costume na região, o seu sobrenome é uma homenagem ao santo do dia.
Nascido no arraial de Barra Grande, zona fronteiriça entre os atuais municípios de Nilo Peçanha e Cairu. O Srº
Manoel foi criado em Jatimane e atualmente mora na rua da Linha, zona urbana do município de Nilo Peçanha.
Entrevista concedida em 30.11.2007.
127
MALUF, Marina. Ruídos da memória. /Marina Maluf. São Paulo: Siciliano, 1995. p. 40.
57
de detalhar pontos significativos de sua vivência, retratada em uma narrativa rica em
informações.
Ao discutir sobre a memória, Bosi afirma que esta é dividida por um tempo social,
marcado sucessivamente por pontos de significação, espaços onde a vida se concentra, “a
memória de acontecimentos que permanecem como pontos de demarcação [em nossa]
história”
128
. Ao longo da entrevista concedida pelo Sr. Manuel da Luz, percebemos os pontos
significativos de sua existência: sua vivência em Jatimane, seu primeiro casamento, o parto
complicado seguido da morte de sua esposa e do seu primogênito, sua nova moradia em Nilo
Peçanha, sua luta laboral.
Ao analisar os relatos internos, entendemos que existe uma ênfase dos informantes em
demarcar uma idéia de parentesco a partir dos quatro irmãos Rosário. Mas, isto não ocorre na
entrevista do Sr. Manuel da Luz, ele inicia seu relato esclarecendo que não é um dos Rosários,
fato que foi marcante na vida de Sr. Manoel da Luz. Quando Ellen Woortmann discute sobre
parentesco, ela deixa claro que “duas pessoas são parentes quando uma descende da outra, ou
quando ambas descendem de um antepassado comum”
129
. A assertiva da autora sobre
parentesco, pode ser utilizada para entendermos a posição do Sr. Manuel da Luz dentro da
comunidade de Jatimane. O arraial parece ter uma organização social aliançada pela teia da
consangüinidade, talvez este seja o ethos, o sentido que alimenta a idéia de pertença e o status
social portado pelos Rosário. Analisando a entrevista do informante, concluímos que ele foi
um agregado dos Rosário, mas não se considera “da família”, foi criado em Jatimane desde os
dois anos de idade, quando sua mãe casou com um dos Rosário, e saiu de aos 32 anos,
após a morte de sua primeira esposa.
Portanto, o Sr. Manuel da Luz não partilha de uma identidade comum aos membros da
comunidade e nega afinidades congênitas com a extensiva família dos Rosário, quando
afirma: “eu fui criado lá...”, trinta anos de sua existência dentro do arraial convivendo com os
meios-irmãos e a parentela, não foi suficiente para Manuel da Luz, sentir-se “filho” de
Jatimane, incluído na extensa teia familiar, e querer demarcar que sempre foi um de fora da
família. Hipoteticamente, podemos argumentar que, o Sr. Manuel da Luz convivendo desde
criança no seio de uma destas famílias, tenha se ressentido com uma suposta subordinação
sofrida por ele, o que poderia justificar a omissão até mesmo em relação ao parentesco com os
seus meio-irmãos.
128
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 418.
129
WOORTMANN, Ellen F. Herdeiros, parentes e compadres. São Paulo-Brasília: Hucitec. Ednunb. 1995. p.
69.
58
Em outro momento, argüido sobre a atual condição de Jatimane estar sendo
considerada uma comunidade quilombola, o Sr. Manuel da Luz exclama:
Não sei de nada disso, não senhora! Não sei informar nada dessas modernagens. No
meu tempo não tinha nada disso, não posso dizer que sou de quilombo, eu sou é
pescador, me aposentei pela colônia, sempre fui pescador, agora eu também tirava
piaçava, todo mundo por aqui tirava piaçava
130
.
O informante não reconhece a propagada ascendência escrava nem mesmo nos
aspectos culturais, afirma que a tradicional prática laboral da extração da piaçava é comum a
todos da região, pessoalmente assume o desempenho de uma multiplicidade de funções, e
opta em se identificar com sua principal prática laboral, portanto, ele afirma ser um pescador
aposentado. A enfática negativa do Sr. Manoel da Luz nos leva a considerar a hipótese deste
sujeito histórico está silenciando elementos de um passado doloroso, que ele não deseja
relembra. Afinal, recordar é uma forma de reviver fatos de nossa vida.
Relato semelhante é do Sr. Paulo do Rosário, pois este confirma que o trabalho com a
piaçava é uma tradição que vem de antigos escravos da região, mas quando argüido sobre
uma possível descendência de família escrava, desconversa:
Não sei dizer nada de quilombo, ouço falar que por aqui teve escravo, mas não aqui
em Jatimane, o que a gente sabe dizer do cativeiro é que foi um tempo duro, a gente
assiste pela televisão, naquelas novelas que conta como foi [...] nessa região toda, o
trabalho que tem é com a piaçava, [...] ela já matou a fome de muita gente, a gente
ouve dizer que isso é uma tradição, desde o tempo dos escravos
131
.
Nestas duas entrevistas, tanto o Sr. Manuel da Luz como o Sr. Paulo do Rosário
ignoram o conto da origem do lugar, negam uma possível descendência com famílias escravas
da região, assumem uma prática laboral multifuncional, mas, ao que tudo indica, os depoentes
elegem na tradicional lida com a piaçava, uma marca cultural, símbolo de realce, marca
distintiva para os jatimanenses.
Para analisar a polifonia existente nestas duas entrevistas, é necessário considerar que o
ideal de pertencimento é um ato político, intencional, congrega vários interesses, portanto é
preciso atentar para o lugar social que o sujeito ocupa em um determinado grupo, levando em
conta que a negação de uma descendência escrava pode ser uma forma de reconstrução de um
“novo” espaço social. Assim, faz-se necessário ponderar que apesar da rica vivência nem o
130
Sr. Manuel da Luz. Entrevista concedida a autora, em Jatimane, no dia 23.09.2008.
131
Sr. Paulo Nascimento do Rosário, 80 anos, natural de Jatimane, tirador de piaçava e pescador aposentado.
Entrevista concedida a autora, em Jatimane, no dia 04.01.2007.
59
Sr. Manuel da Luz, nem o Sr. Paulo do Rosário, estão entre os guardiões da memória de
Jatimane, eles não se detêm a tecer histórias sobre a origem da comunidade. Esta função
social é reconhecidamente assumida por outros membros do lugar. Estes informantes optam
em narram o que lhes foi significativo, fatos que marcaram positivamente suas vivências,
ricas informações que expressam uma variedade de práticas laborais desempenhadas pelos
jatimanenses, assunto que discutiremos no próximo capítulo.
Como em uma orquestra polifônica, numa combinação diferentemente harmônica de
instrumentos, o Sr. Miltaides Assunção do Rosário revela em tom orgulhoso, seu sentimento
de pertencimento, ao afirmar que:
Minha mãe é de Jatimane e meu pai é de Boitaracá, eu acredito que tenho duas
raízes fortes, não sei se esses lugares foram formados antes ou depois do cativeiro,
o que meu pai me contou foi que o grupo se dividiu. Uma parte do pessoal ficou lá,
em Boitaracá e a outra parte veio pra Jatimane. Então a família Rosário ficou forte
aqui, e em Boitaracá ficou forte a família Assunção e a família Oliveira. Me sinto
fortalecido, tenho essas duas raízes de negros fortes
132
.
Como num jogo de vela/revela, o relato capta a experiência de um sujeito histórico e
descortina mais um fragmento da história do grupo. Ao narrar sobre aspectos de sua vida
familiar, discorrendo sobre suas referências identitárias, o Sr. Miltaides Assunção do Rosário,
ao fazer uma reelaboração de seus valores culturais, nos permite especular sobre
acontecimentos históricos da comunidade.
Embora o narrador tivesse a intenção de destacar suas “fortes raízes,ele nos pistas
da história local. A partir desta informação, podemos argumentar que, fugindo do cativeiro ou
logo após maio de 1888, um grupo de negros ou de famílias negras teria se embrenhado na
mata e ocupado estes dois espaços territoriais, atualmente conhecidos como Jatimane e
Boitaraca. Ainda com base em seu relato, tomamos conhecimento da ancianidade na
ocupação territorial. Estas famílias, em tempos “idos”, ocuparam um espaço de mata bravia,
no encontro de mar/mangue/rio, e, em terras devolutas, assentaram seus agrupamentos.
Ao afirmar que “o grupo se dividiu” ele nos uma idéia de anterior união entre o
grupo, mesmo que essa união fosse forjada pela dor do cativeiro, ou pelo ideal de liberdade,
ou ainda pelos novos horizontes
133
que se abriam, agora “irmanando” aquelas famílias em sua
luta pela sobrevivência. No caso específico de Jatimane, constatamos que, através da
memória, a análise histórica pode tomar o passado como representação de um tempo vivido,
132
Miltaides Rosário. Entrevista concedida a autora, em Jatimane, no dia 07.05.2008.
133
Sobre esta questão ver. FRAGA, Walter Filho. Nas Encruzilhadas da Liberdade. História de escravos e
libertos na Bahia (1870- 1910). Campinas, São Paulo: Editora da UNICAMP, 2006.
60
servindo de base para reelaboração de valores, aqui positivados, além de servir para a
compreensão da interpretação do presente, como também do futuro.
Na entrevista concedida pelo professor Joseildo Rosário, o Jô de Jatimane, ele afirma a
inexistência de um marco material ou documental sobre o lugar, mas, de forma subjetiva,
valida o registro da história pela memória, ao afirmar:
As pessoas de mais idade, as pessoas mais velhas, contam que aqui foi um refúgio
de negros, não começou exatamente aqui, aonde é Jatimane, um pouco mais
distante num lugar chamado Porto Velho. Desse lugar as pessoas foram subindo
procurando por água potável [...] desmataram um pouco desta área e começaram a
construir, outras famílias foram chegando. Diz os mais velhos, que alguns negros
vieram por um lugar chamado de Cova da Onça e se instalaram nesta região. s
não temos um marco que registre tudo o que foi dito, toda a história foi passada de
pai para filho, de avô para neto e para bisneto. É uma pena que não tenhamos um
marco, um registro material que realmente identifique Jatimane como um
quilombo. Nosso registro está nas lembranças dos mais velhos, na memória da
população local. Temos uma relação muito forte que está no sangue, está na alma,
está na nossa fisionomia, formamos uma grande família
134
.
O discurso de Joseildo Rosário, além de validar a memória como forma de transmissão
da história, reforça aspectos da cultura local, uma cultura reproduzida dialogicamente na ação
e interação, entendendo que a legitimidade desse reconhecimento encontra-se na memória
social do jatimanense, são “memórias que contam sua saga, revelam sua origem e desvendam,
além da própria trajetória, a vida em seu movimento”
135
. Uma história que o profº. Joseildo
Rosário ouviu contar e, sabe que faz parte de um conto e reconto dos guardiões da memória
local, e que ele, no intuito de preservar as tradições locais, ratifica a narrativa desses
guardiões.
Por outro ângulo interpretativo, considerando a etnicidade como uma forma de
linguagem cultural que veste um todo social, esta linguagem cultural é revestida por um ideal
político de pertencimento e pode ter um caráter manipulativo, forjando uma cultura de
contraste, o que tende “ao mesmo tempo a se acentuar, tornando-se mais visível, e a se
simplificar e enrijecer, reduzindo-se a um número menor de traços que se tornam
diacríticos,”
136
esta parece ser a perspectiva que reveste o discurso de Joseildo. Um discurso
impregnado pelo ideal de pertença. De forma explícita, ele afirma uma objetiva relação “no
sangue” e na “fisionomia”, além dos laços sanguíneos, ele reclama pelas marcas fenótipas
134
Joseildo Rosário, 38 anos, natural de Jatimane, casado, professor da escolinha local. Entrevista concedida a
autora em Jatimane, no dia 06.01.2007.
135
GUSMÃO, Neuza Maria Mendes: Negros, Terras e Direitos. In: Os Quilombos na Dinâmica Social do
Brasil. Clóvis Moura (Org.). Maceió: EDUFAL, 2001. p. 339.
136
CUNHA, Manoela Carneiro. Etnicidade: da cultura residual mas irredutível*.In: Antropologia do Brasil:
mito, história, etnicidade. São Paulo. Ed. Brasiliense, 1986. p. 99.
61
(cor, forma, estatura) para reforçar e legitimar uma coesão interna. Estas aparências
fisionômicas, ou fenotipia, “correspondem a manifestações variadas do patrimônio genético e,
ensejam a caracterização de „tipos físicos‟ ou „tipos étnicos‟ variados. [...] Explica a biologia
ser o fenótipo regido pelo patrimônio genético, que se transmite em apenas a metade de pai
para filho”
137
. Aplicando a explicação biológica, para demarcar as evidencia fenótipas dos
Rosário, podemos descrevê-los como negros, de pele brilhante, estatura mediana, fisionomia
assemelhada, rostos arredondados com as faces rosadas.
Esta pertença também é reclamada de forma subjetiva, quando o Sr. Joseildo Rosário
evoca a força da alma na formação de uma única e grande família. Uma família unida a partir
da performática saga dos quatro irmãos Rosário, e dos seus agregados, o que pode caracterizar
uma origem comum, uma espécie de “sistema de recrutamento de um grupo que representa a
si mesmo como uma comunidade étnica, que se dota geralmente de mecanismos culturais que
permitem traçar um parentesco,”
138
mesmo que este parentesco seja fictício, ou baseado em
afinidades histórico-culturais, permitindo aproximar ou irmanar estas famílias.
Mesmo sendo polissêmicos os discursos internos, eles convergem para a constatação
de ser a comunidade de Jatimane uma remanescência de um antigo quilombo da região do
Baixo Sul baiano. Dentro da comunidade podemos perceber e destacar alguns elementos
distintivos desta verificação, entre eles está a preponderância negra do grupo. Fato que levou
Sr. José de Anselmo do Rosário a afirmar: “aqui em Jatimane tinha negro, na verdade era
conhecida como terra de preto, se tivesse branco aqui, com certeza era de fora”
139
. O Senhor
Otávio do Rosário complementa dizendo: “hoje, a comunidade de Jatimane é visitada. [...] No
passado as pessoas não gostavam de vir aqui, diziam que aqui tinha canhambola, era terra
de preto, não gostavam de vir pra qui não”
140
.
Outra questão relevante é a ancianidade e o tipo de ocupação territorial, com o
equilíbrio do ecossistema e respeito ao meio ambiente, além desta ocupação territorial está
associada a uma possível prova histórica de sua identidade quilombola, uma vez que uma
literatura histórica específica afirma que “a formação de quilombos [...] permitiu a
reconstrução de sobrevivência física e cultural dos escravos”
141
. Assim, como cultura de
resistência, os jatimanenses mantiveram suas práticas cotidianas assentadas numa divisão
137
SODRÉ, Muniz. Claros e Escuros: Identidade, povo e mídia no Brasil. Petrópolis: Editora Vozes, 1999, p.
193/194.
138
POUTIGNAT, Philippe. Teoria da Etnicidade, Seguido de Grupos étnicos e suas fronteiras de Fredrik
Barth. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998. p. 160.
139
Sr. Anselmo do Rosário. Entrevista concedida a autora, em Jatimane, no dia 23.09.2008.
140
Sr. Otávio do Rosário. Entrevista concedida a autora, em Jatimane, no dia 23.09.2008.
141
CARRIL. Quilombo, favela e periferia: a longa busca da cidadania. São Paulo: Annablume; Fapesp.
2006. p. 61.
62
sexual de trabalho, tanto na lida com a piaçava como na atividade pesqueira, produtos que
eram comercializados com as cidades portuárias da microrregião, assunto que será discutido
no próximo capítulo. Internamente, a organização social da comunidade está baseada no
parentesco consangüíneo dos Rosário e entre os aparentados, ou assim considerados por
afinidades histórico-culturais.
Contudo, faz-se necessário destacar que, embora uma minoria dentro deste
campesinato negro opte em se identificar por suas práticas laborais, os guardiões da memória
acionam uma lembrança familiar e, através de um fragmento desta memória ancestral,
validam uma história para a comunidade de Jatimane, apresentando-a como uma organização
distinta do meio rural, como uma comunidade remanescente de antigo quilombo.
Assim, o discurso histórico, apresentado nesta análise cultural, utilizou os registros de
uma memória local, para interpretar a ação do homem no tempo. Concordando com Funes, “a
memória constitui elemento de significativa importância à constituição do processo
histórico,”
142
em uma comunidade remanescente de quilombo.
Portanto, não foi nos arquivos que encontramos o histórico da comunidade de
Jatimane, e sim na memória dos mais velhos do lugar, mesmo porque, como advertiu D.
Maria Madalena do Rosário, “você está procurando documento de negro fujão! Se negro fujão
deixasse rastro não seria fujão por muito tempo”
143
.
Neste capítulo, buscamos situar a comunidade de Jatimane, precisando seu espaço de
ocupação territorial, a vizinhança fronteiriça, e esquadrinhar a área interna do arraial. Um
espaço territorial vivido e valorizado pelos jatimaneneses, onde território e cultura tornam-se
metáfora que permitem contornos para identificação destes sujeitos históricos. Ao discutir
sobre cultura, Geertz nos lembra que sujeitos históricos nascem imersos em uma cultura,
reproduzem e evidenciam seus significados, valores e sentimentos, orientando sua existência
individual e social. Assim, a comunidade de Jatimane, portadora de repertórios culturais
marcados por especificidades locais, contou-nos uma versão para sua história. Relatos de uma
história que descortinam uma experiência cultural rica diversa, marcada pelo signo da
resistência e vivida na obliqüidade do mundo. Uma história que até aqui não está escrito nos
livros, mas foi registrada na memória destes guardiões de Jatimane.
142
FUNES, Eurípides A. Nasci nas matas, nunca tive senhor. História e memória dos mocambos do baixo
Amazonas. In: Liberdade por um fio: história dos Quilombos no Brasil. João José e Flávio dos Santos Gomes
(Org.) São Paulo: Cia. das Letras, 1996. p. 468.
143
D Maria Madalena do Rosário. Entrevista concedida em 04.01.2007.
63
2 VARIEDADES CULTURAIS: TRABALHO E SOCIABILIDADES
No capítulo anterior procuramos situar geograficamente a comunidade de Jatimane,
apresentando suas singularidades históricas e culturais. Nele, a partir dos registros de
memória, os jatimanenses apresentaram uma versão para a história da comunidade e
justificaram a polissemia existente nos discursos internos, quanto à identificação do grupo
como uma comunidade quilombola, ao mesmo tempo em que acenaram para a construção de
uma cultura de resistência.
Neste capítulo, tentaremos apreender o poder da cultura e sua influência sobre o
comportamento dos jatimanenses. Uma cultura entendida como fruto de conhecimentos e
habilidades repassados entre as gerações. Conforme Burke “a idéia de cultura implica a idéia
de tradição de certos tipos de conhecimentos e habilidades legados de uma geração para a
seguinte”
144
, dentro da pequena comunidade de Jatimane, esse legado cultural se
materializada numa tradicional variedade laboral, tanto em relação com a atividade pesqueira
como em relação ao extrativismo com a piaçava. Conhecimentos que foram preservados e
ensinados através do tempo. Por este ângulo, a interpretação desta complexidade cultural
enfatiza os saberes locais, enquanto legados repassados de uma geração para outra, legados
tratados como um bem imaterial, forjados a partir de uma memória local.
Em uma comunidade que ficou por muito tempo parcialmente fechada, tornou-se
comum as famílias, que ali permaneceram, viverem da mesma forma que seus antepassados,
pequenas foram as modificações. A cada nova constituição familiar, novas casas, construídas
em sistema de mutirão, concorrem para ampliar e povoar o arraial, aguçando relações de
sociabilidades que mesclam de forma utilitária, lazer e trabalho. Mesmo a terra continuou a
ser usada tradicionalmente, aos moldes das gerações passadas, envolvendo respeito e
valorização da natureza.
Neste espaço, a memória tornou-se uma herança, através da qual manteve-se viva a
história e as tradições orais tornaram-se mais estáveis, com o recurso do “testemunho
transmitido verbalmente de uma geração para outra,”
145
uma espécie de guia de
comportamento local, transmitido boca a boca entre as gerações, num processo em que os
mais velhos ensinam aos mais novos. São histórias contadas na hora da “cesta”, ao redor do
144
Burke, Peter. O que é História Cultural. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005. p. 39.
145
Vansina, Jan. A tradição oral e suas metodologias. In: KI-ZERBO, J. (Org). História Geral da África.
Metodologia e pré-história. Vol. I, São Paulo. Ática/Unesco, 1982. p.157.
64
clarão da fogueira nas noites de lua cheia ou no cotidiano da criação dos filhos, saberes
ensinados e disseminados entre os jatimanenses.
2.1 OS SABERES DE JATIMANE
O saber é uma luz que existe no homem. A herança de
tudo aquilo que nossos ancestrais vieram a conhecer...”
(Tierno Bokar).
146
Uma relação de participação Homem/Natureza, assemelhando-se à simbiose entre os
reinos animal e vegetal, é em Jatimane, vivida e entendida como um saber herdado dos
ancestrais. Discutindo sobre a idéia de herança ancestral, Tierno Bokar afirma que alguns
saberes podem ser considerados como “heranças de tudo aquilo que nossos ancestrais vieram
a conhecer” e foi registrado através da memória de “guardiões” locais, saberes transmitidos
pela oralidade ou aprendidos por uma observação contínua. Segundo Gusmão, uma “herança
quilombola resulta assim do fato de cada grupo negro ter desenvolvido práticas de resistência
na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado
lugar”
147
.
Observando a comunidade de Jatimane, refletimos sobre a afirmativa de Gomes de que
em “muitas regiões brasileiras, alguns quilombolas e grupos de fugitivos acabaram quase
reconhecidos como camponeses”
148
, apresentando como critério distintivo/identitário, uma
cultura de resistência como o desdobramento de uma herança ancestral, materializada em um
conjunto de práticas culturais, entre elas, a valorização de elementos da natureza, as trilhas na
floresta, a identificação de determinadas ervas, o plantio de uma determinada lavoura, a terra
certa para este ou aquele plantio. No caso de Jatimane, o tempo certo para a retirada da
piaçava, com suas sucessivas etapas de beneficiamento, e a necessidade em garantir a
sobrevivência mantiveram vivos vários saberes, a exemplo dos conhecimentos sobre as tábuas
de marés, a orientação astral em que a lua é referência, bem como a necessidade em conhecer
o curso das águas, envolvendo o rio/mar/mangue.
146
Apud, BÂ, Hampaté, Amadou. A tradição viva. In: A tradição oral e suas metodologias. KI-ZERBO, J
(org) História Geral da África. Metodologia e pré-história. Vol.I, São Paulo: Ática/Unesco, 1982. p. 181.
147
GUSMÃO, Neusa Maria Mendes. Herança Quilombola: Negros, Terras e Direitos. In: Os Quilombos na
Dinâmica Social do Brasil. Clóvis Moura (org.)- Maceió: EDUFAL, 2001. p.343.
148
GOMES, Flávio. A Hidra e o pântano: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil,
(Séculos XVII-XIX). São Paulo, UNESP, 2005. p. 33.
65
Desta forma, numa comunidade quilombola que tem suas raízes fincadas na terra, o
território emerge impregnado pela dualidade funcionalidade/subjetividade, e regido por
elementos culturais, historicamente compartilhados. Por estes critérios, o território em questão
é mais que um simples lugar, pois não é a morada do jatimanense na terra, ele é o “meu”
lugar, um lugar que passa a ser concebido como um patrimônio ambiental, e confunde-se com
sua própria vida. E a terra se torna “fundamental para reprodução de sua vida, sendo base para
sua sobrevivência tanto física quanto cultural”
149
, alicerçando uma idéia de “herança, mas
também um reaprendizado das relações profundas entre o homem e o seu meio”
150
. Mas esse
espaço ocupado não é simbólico-cultural, ele é também funcional, ou melhor,
multifuncional, o lugar de onde o homem explora os recursos naturais que garantem sua
sobrevivência material.
Neste sentido, discutindo sobre a importância da terra, em comunidades quilombolas,
Gusmão afirma que,
A relação com a terra estrutura diferentes visões de mundo e constitui o direito de
nela estar e nela permanecer. A terra-território torna-se um valor de vida, um
espaço de sentido, investido pela história particular de cada grupo, tornando-se
polissêmica, a dinâmica e mutável. A terra não é apenas realidade física, antes de
tudo; é um patrimônio comum, e, enquanto tal, difere de outras terras, de outros
lugares e de outros grupos
151
.
Assim, em Jatimane, o elemento terra passa a ser referência em várias dimensões:
materialmente é base de sustentação, que garante a sobrevivência do grupo, através de uma
lavoura de subsistência e do extrativismo da piaçava. Em uma outra dimensão, a terra é
revestida por um significado simbólico, alicerçando a singular história dos jatimanenses, bem
como o seu ideal de pertencimento ao lugar, um espaço territorial positivado e reverenciado
onde está alicerçada uma raiz cultural de matriz africana, que tradicionalmente consideravam
a terra um bem imaterial.
Desta forma, a manutenção da terra é condição para a existência comunal, garantia de
sobrevivência na “lida” com a piaçava, mantém viva uma tradição escrava na divisão sexual
de papéis, na cultura de subsistência e nas suas referências simbólicas. Um espaço territorial
onde a posse e fixação à terra parecem ter sido resolvidos em um tempo distante, pelos
antepassados e o chão é vivido em coletividade com base em fronteiras imaginárias, segundo
149
Idem. p. 223.
150
SANTOS. Milton. Milton O lugar e o cotidiano. In: A Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e
Emoção. São Paulo, Ed.Hucitec, 1996. p. 261.
151
GUSMÃO. Op. cit. p. 342.
66
as quais o espaço se tornou um “todo” amplo e variado entre a terra, o mar, o mangue e o rio,
e os saberes aprendidos com os ancestrais são ali considerados como uma herança imaterial.
Ao lado da terra, a água é outro importante elemento na vida do jatimanenses. De forma
metafórica, especialmente os mais velhos do lugar, referem-se às águas com a expressão a
água é a vida de Jatimane”. Uma metáfora que resume a importância da água para a
comunidade. Água, que vindo das “nascentes” no entorno da mata, tem como finalidade
prática abastecer o uso doméstico, matar a sede, limpar o corpo. Num arraial que nasceu e se
desenvolveu entre as águas, entre a praia do Pratigi e as águas do rio, a água representa uma
“mãe”, que alimenta o jatimanense e de onde ele retira parte do seu sustento, como os
variados tipos de peixes e mariscos.
Mas a água do rio, em especial a cachoeira da prata o Cheguevira, é referência na
história do grupo e, como vimos, está presente na explicação histórica do lugar. Águas que
viabilizaram o intercâmbio social e comercial com cidades vizinhas. Por muito tempo esta
comunidade ficou parcialmente isolada, tendo como formas de deslocamento “trilhas” na
mata, e as canoas que faziam o percurso para cidades litorâneas em rotas simultâneas entre o
rio e o mar, transportando mercadorias e pessoas. Desta forma, os dois elementos da natureza,
terra e água, estão diretamente relacionados à sobrevivência do jatimanense.
FOTO 4 - Rio Jatimane.
FONTE: Acervo icnográfico do IDES. Imagem de Eduardo Moody, s/d.
Na fotografia, imagem do Jatimane, às suas margens, os dois símbolos da ocupação
laboral destes sujeitos históricos. Ao lado esquerdo, um mondongo de piaçava a espera das
67
mãos hábeis das catadeiras para beneficiá-lo; ao lado direito as canoas “esperaram
tranqüilamente” a hora certa da maré, para navegar com o pescador em mais uma labuta diária
pela sobrevivência.
Ao lado das águas doces, o mar, não só tem uma reconhecida funcionalidade, associada
à luta pela sobrevivência material do homem, como também recebe uma valoração subjetiva,
que pode ser evidenciada nas narrativas de algumas experiências locais, como a do Sr.
Miltaides Assunção do Rosário, quando ele nos explica sobre a importância da água do mar:
Aqui no nosso Jatimane a gente tem uma devoção com o mar. Você sabe, num sítio
assim, um pouco afastado, sempre tem uma parteira, mas se o parto complicava a
gente dava logo uma solução de botar a mulher numa canoa ou num barco... dava
uma providência de levar pra cidade mais perto. Mas se não desse tempo, e a
criança nascesse no mar, ou mesmo se nascesse no hospital, mas o mar de alguma
forma ajudou a salvar aquela vida, por uma questão de devoção, de agradecimento,
a mãe sabia: botava o nome „mar‟ no nome da criança. Aqui nós temos Elcimar,
Luzimar, Marismar
152
.
Uma singularidade cultural que nos remete à afirmação de Burke, segundo o qual, o
terreno comum dos historiadores culturais pode ser descrito como a preocupação com o
simbólico e suas interpretações”
153
, afinal cultura pode ser entendida como um sistema de
representação que nexo aos comportamentos sociais. Por esta linha de abordagem, cabe ao
historiador da cultura, perceber os sistemas de significados que fundamentam valores e
comportamentos do grupo social.
Analisada desta perspectiva, a narrativa do Senhor Miltaides do Rosário expõe a
importância da água presente no imaginário do grupo, um momento em que o mar assume a
função de caminho para a salvação daquela nova vida. Esse mar que de “alguma forma” ajuda
a salvar vidas, tem em contrapartida a gratidão do homem simples, que reconhece na natureza
uma aliada e, em sinal de respeito e devoção, ao batizar seus filhos e filhas, realça
distintivamente o nome do padrinho, “mar”. A exemplo de “Elcimar”, “Marismar”,
“Luzimar”.
Dentro da pequena comunidade de Jatimane, além da harmoniosa relação com a
natureza, um outro saber que merece ser destacado é a prática da sociabilidade. Segundo
Simmel, o fenômeno da sociabilidade é percebido a partir de uma existência em grupo,
proporcionando um estado de “ser com” que marca “um exercício livre de todos os conteúdos
152
Sr. Miltaides Assunção do Rosário, natural de Jatimane, 50 anos, casado, pai de três filhos, proprietário de um
quiosque na comunidade, presidente da associação dos moradores de Jatimane. Entrevista concedida em
09.05.2007.
153
BURKE, Peter. O que é história cultura? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. p. 10.
68
materiais; esse é justamente o fenômeno da sociabilidade”
154
, um ato de interação entre os
indivíduos, uma maneira prazerosa de preencher a vida, um momento em que o homem entra
em contato com os outros, numa relação de convivência. Essas relações pessoais como atos
sociáveis, evidenciam conjuntos de interações, cujo prazer pode estar apenas no ato de
interagir.
Nesta perspectiva, na pequena comunidade de Jatimane observamos que a vida social
envolve o universo das relações entre a parentela e a vizinhança, o que aumenta a idéia de
pertença, tornado mais constante o fluxo das “relações sociais entre si, na forma de obrigações
recíprocas, devidas a laços de parentesco e a relação de vizinhança”
155
. Acontecimentos
cotidianos que tecem uma rede de sociabilidade mais ampla, proporcionando uma maior
integração e conviviabilidade entre estes parentes/vizinhos. Seria o que Castel
156
denomina
sociabilidade primária, elemento aglutinador de pequenas comunidades camponesas.
Portanto, tendo em vista a satisfação que a sociabilidade pode proporcionar aos
parentes/vizinhos, membros da comunidade de Jatimane, este fenômeno social pode ser
detectado em vários espaços, inclusive nas águas do rio.
O rio Jatimane, também metaforicamente associado à vida dos jatimanenses, vem
garantindo a sobrevivência dos sujeitos do lugar, através da atividade pesqueira. Além disso,
as águas do rio também são espaço de socialização, freqüentado cotidianamente pelas
crianças, que se banham e brincam em suas águas, enquanto suas mães beneficiam a piaçava,
em uma área próxima às suas margens. Também nos finais de semana e nos feriados, às águas
do rio, bem como suas cachoeiras, tornam-se ponto de encontro de homens, mulheres e
crianças. Em período de férias, esse espaço é socializado também pelos veranistas que, ao
retornarem da praia do Pratigi, procuram a cachoeira para se banharem.
O rio como espaço de interação, onde são tecidas relações de trabalho e de
sociabilidades entre os jatimanenses, tem a particularidade local de promover uma inter-
relação do homem com a natureza. Ao indicar a localização da cachoeira mais utilizada para a
ludicidade dos banhos, o Sr. João Palmeira diz:
Daqui de minha casa você vai em frente, cruza a ponte e segue pela beira do rio,
mais adiante, no Porto de Leonor, você vê uma clareira, é o lugar em que a
meninada joga bola, você segue pela clareira, entra em uma trilha que tem na mata,
154
SIMMEL, Georg. Questões Fundamentais da Sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2006. p. 60.
155
CARVALHO, José Jorge de. (Org). O quilombo do Rio das Rãs: histórias, tradições, lutas. Salvador-
EDUFBA, 1995. p. 200.
156
Apud, MOTA, Dalva Maria da. Trabalho e sociabilidade em espaços rurais. Fortaleza. Banco do Nordeste,
2005. p. 66.
69
e aí você retoma a beira do rio, na segunda clareira é a cachoeira, você vai gostar, lá
é bonito. Quem vai até lá gosta!
157
De maneira positivada, o informante apresenta a cachoeira, denominada como
“Sonrisal,” e de forma curiosa faz sua localização. Um caminho percorrido entre a beira do
rio, o Porto de Leonor, e as clareiras na mata. Mas, no trabalho de campo, constata-se a
inexistência de porto dentro da área da comunidade, indicando, portanto que o mapa traçado
pelo Sr. Manoel Palmeira contém informações simbólicas e que a decodificação deste
simbolismo implica em depurar a dualidade significado/significante. Afinal, tendo como
prerrogativa que uma análise cultural assemelha-se a um texto, este deve ser lido e
interpretado, e no caso específico da cultura, esta deve ser interpretada no contexto.
Mas, esta interpretação conta com a colaboração de outros moradores locais. Neste
sentido, o profº. Joseildo Rosário esclarece:
Aqui em Jatimane, nós temos um costume. É coisa muito antiga, mais que ainda
hoje prevalece. Perante o nosso costume, cabe a cada dona de casa, que tem sua
moradia em frente ao rio, zelar do rio, como zela de sua própria casa. Ao limpar sua
casa, estende a limpeza à rua e ao rio em frente sua casa. Então, o porto de D.
Leonor é o espaço do rio em frente à casa de D. Leonor, o porto de D. Coló, é a
área do rio em frente à casa de D. Clotildes, e assim vai. O rio pertence a todos, mas
cada senhora zela por sua área
158
.
Ao complementar a fala do Sr. João Palmeira, o relato do profº. Joseildo do Rosário
possibilita que cotejemos experiências sociais tecidas entre os jatimanenses, bem como a
singularidade da vivência destes sujeitos históricos que cotidianamente sobrepõe cultura e
natureza. Tratam-se de experiências a partir das quais o meio ambiente é valorado,
assemelhando-se a uma idéia de um patrimônio comum que deve ser preservado. Neste
contexto, os olhares internos informados por um comportamento consuetudinário, percebem o
espaço do rio com divisões particularizadas, sendo dever de cada zeladora cuidar da limpeza
de “sua” parte do rio. Mas, esse mesmo espaço é percebido de forma una, quando às águas do
rio tornam-se o ponto da sociabilidade. Afinal, muitos são os conteúdos que proporcionam
uma forma de sociabilidade, “na qual os indivíduos, em razão de seus interesses [se]
desenvolvem conjuntamente em direção a uma unidade no seio da qual esses interesses se
realizam.”
159
157
Sr. João da Conceição Palmeira. Entrevista concedida a autora em Jatimane, no dia 23.09.2008.
158
Profº. Joseildo Rosário. Entrevista concedida a autora, em Jatimane, no dia 23.09.2008
159
SIMMEL, Georg. Questões Fundamentais da Sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2006. p. 61.
70
Em outra narrativa, de D. Josenilda Ferreira do Rosário, a categoria da sociabilidade
aparece como cerne da relação cultural entre trabalho e natureza, ao enfocar a atividade de
zeladora:
De uns tempos pra cá, Jatimane teve alguns benefícios, um deles foi a energia, o
outro foi a água. Hoje todas as casas m água nas torneiras, isso é um benefício.
Mais antes, ninguém ficava sem água boa para beber. Você veja, eu fui uma
escolhida, moro lá do outro lado do rio e no fundo do quintal rebentou um minador,
uma água transparente. De manhã, o sol batia e a água parecia um tom de azul,
de tão boa e pura que era a água. No finzinho da tarde, a água diminuía, o minador
parecia perder a força, na manhã seguinte ele brotava com vontade. As pessoas
chamavam esse minador de „o poço da Nida‟, era aqui que as pessoas da
comunidade pegavam água para beber e cozinhar. Mas o minador saiu justamente
no fundo do meu quintal, então era função minha zelar por esse minador. Não
importa o que eu tinha para fazer, primeiro eu tinha que cuidar do minador, deixar a
área limpa, manter as pedras ao redor para não sujar a água. E no dia seguinte de
manhã bem cedo as pessoas estavam aqui para pegar água. Faziam até fila, era um
converseiro só!
160
Rememorando o ocorrido, o profº. Joseildo Rosário diz:
Toda de manhã a gente vinha buscar água no poço da Nida, era um ponto de
encontro, a gente ficava sabendo quem ia pegar a canoa para viajar, quem ia pegar a
canoa para pescar. E, para aqueles que ia pescar os que ficavam em terra fazia a
encomenda do peixe. Então o pescador saía do poço da Nida, com a água de
beber e com a encomenda do peixe, que ia trazer para a comunidade, no final da
pescaria
161
.
O relato de D. Josenilda Ferreira do Rosário inicia com a constatação dos benefícios de
uma política de serviços públicos às comunidades rurais, como a instalação de luz elétrica,
água encanada, e o acesso a outros serviços. Mas, no momento, cabe-nos investigar outros
significados deste relato.
Segundo Gusmão, a vida vivida por “negros camponeses, através dos tempos, revela a
condição humana singular e a dimensão política de que se revestem suas trajetórias [...]
compostas de múltiplas e diversas realidades”
162
. É essa condição humana singular, que
estamos esmiuçando, a partir dos relatos anteriores.
As narrativas informam sobre acontecimentos cotidianos que revelam aspectos
fundamentais da sociabilidade de Jatimane e demonstram o poder da cultura e sua influência
nos comportamentos dos habitantes da comunidade. Analisada sob a ótica de Simmel,
segundo o qual o homem é tido como um complexo de possibilidades, respondendo a variadas
160
D. Josenilda Ferreira do Rosário. Natural de Jatimane, 52 anos, viúva, marisqueira e catadora de piaçava.
Entrevista a autora, em Jatimane, em 23.09.2008.
161
Profº Joseildo Rosário. Entrevista concedida em 23.09.2008
162
GUSMÃO, Neuza Maria Mendes de: Herança quilombola: Negros, Terras e Direitos. In: Clóvis Moura.
(Org.) Os Quilombos na Dinâmica Social do Brasil. Maceió: UFAL, 2001. p. 337.
71
motivações, podemos interpretar que a água potável do poço da Nida representava um
elemento motivador e aglutinador da comunidade, que ao amanhecer já teria o primeiro
encontro marcado para acontecer no quintal de D. Josenilda Ferreira do Rosário, cujo objetivo
inicial seria o acesso à água potável. Posteriormente, este seria um espaço singular de
sociabilidade, ou seja, interações sociais concretas estariam acontecendo por meio de uma
determinada finalidade.
Mas, o relato de D. Josenilda Ferreira do Rosário a D. Nida- evidencia o poder da
cultura sobre os comportamentos. A informante, de maneira orgulhosa, afirma ter sido uma
escolhida pela natureza para zelar do minador que brotou no seu quintal. Ao que parece, estas
atividades relacionadas à preservação da natureza, além de ser uma prática cultural necessária
à sobrevivência dos jatimanenses, é também uma função social, ou ainda, garantem um status
social ao protagonista da ação. Se por muito tempo o “poço da Nida” teve a funcionalidade de
abastecer a comunidade com água potável, após a instalação dos serviços blicos de energia
e água encanada o poço perdeu sua função objetiva. Mas continuou a ser preservado como um
bem subjetivo, um patrimônio comum.
Ao discutir sobre a construção ideológica de um espaço social e do espaço simbólico,
Bourdieu constatou que podemos captar a gica de um determinado mundo social ao
submergirmos na particularidade de sua realidade empírica, historicamente situada e
datada
163
. Por este ângulo de análise, percebemos que podem ser variadas as formas de poder.
Analisando os fragmentos das narrativas, faz-se necessário enfatizar que os
informantes rememoram uma época anterior aos benefícios da instalação de energia elétrica e
água encanada dentro de Jatimane. Portanto, trata-se de uma época de maior dependência
entre os sujeitos históricos e os recursos naturais. Neste contexto, numa comunidade que tem
sua sobrevivência associada às fontes de recursos naturais, ter um minadouro, com água pura
e potável, brotando no fundo do quintal, pode representar uma forma de poder e de status
social. Cabe salientar que, o rio que passa pela comunidade é invadido pela força da maré rio,
tornando sua água salobra, e, portanto, impróprias para o consumo. Esta circunstância
obrigava os jatimanenses a irem buscar água doce na fonte da prata, perto da cachoeira do
Cheguevira. O “poço da Nida” era a garantia de água pura e de fácil acesso para todos.
Está claro que, culturalmente, existe uma forte relação destes sujeitos com a natureza
circundante. Mas, neste caso em particular, uma outra questão distintiva precisa ser
considerada: ao que tudo indica estas atividades relacionadas à preservação da natureza
163
BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Campinas. São Paulo: Papirus, 1996. p. 15 .
72
podem ser consideradas como uma função social, tendo como moeda de troca o
reconhecimento interno, mas também pode ser analisada como uma questão de poder. O
elemento água - vital para a sobrevivência humana - é zelado pela senhora bondosa que no
espaço do seu quintal, cotidianamente recebe a população, que busca a água para matar a
sede.
Significando status social ou um exercício de poder, essas atividades, desenvolvidas
em espaços socializados da comunidade dão a essas pessoas as zeladoras- uma maior
visibilidade, propiciando uma projeção individual, um descolar da comunidade como um
todo. Afinal, o espaço social comporta uma hierarquia de status, sendo estas invisíveis
divisões, individuais e/ou coletivas, construídas histórica e culturalmente.
Mas, o relato de D. Josenilda Ferreira do Rosário finaliza com a afirmação de que as
pessoas faziam fila para buscar água e neste momento era um converseiro ”. O profº.
Joseildo Rosário afirma que até mesmo a encomenda de um pescado era acertada ali, no
“poço da Nida”. Analisando os fragmentos das narrativas, argumentamos que as pessoas
tecem relações sociais de forma lúdica e não lúdica, a sociabilidade acontece em vários
momentos, quando laboram, rezam, divertem-se, negociam, conversam, trocam experiências
de suas vivências cotidianas. De acordo com Simmel, o fenômeno mais típico da
sociabilidade é a conversa, “na vida sociável, o discurso se torna um fim em si mesmo [...] na
conversa puramente sociável o assunto é somente o suporte indispensável do estímulo
desenvolvido pelo intercâmbio vivo de discurso”
164
.
A conversa, como fenômeno típico da sociabilização, acontece em vários espaços
dentro da comunidade, em geral as pessoas passam o dia livre a conversar com os parentes,
nos mais variados espaços. Nas manhãs de domingos, feriados e dias santificados, um dos
pontos de encontro é a igreja, freqüentada não para rezar, como também para saudar os
santos, arrumar o altar, combinar a próxima leitura do evangelho, e também para a
conversação.
Focalizando a satisfação que o exercício da conversação pode proporcionar aos
membros da comunidade, percebemos neste bate-papo, que acontece no espaço público do
quiosque uma forma legítima da sociabilidade simmeliana. O quiosque é um espaço livre,
guarnecido por uma cobertura feita com os pentes de piaçava, fica localizado no meio do
único largo que tem no arraial. No centro do quiosque, duas pequenas mesas de madeira e
pedaços de troncos envernizados, improvisando assentos, que compõem o mobiliário daquela
164
SIMMEL, Georg. Questões Fundamentais da Sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar. 2006. p. 75.
73
espécie de rústico coreto. Este é o ponto de encontro, não para conversar, mais também
para jogar dominó, ou apenas apreciar o canto dos passarinhos. É freqüentado por pessoas de
todas as idades, os mais jovens, em sua hora de folga os aposentados, nos mais variados
horários. Um assíduo freqüentador deste espaço é o Sr. Eustáquio Francisco Damasceno, que
nos diz:
Toda manhã, depois do café eu vou à igreja agradecer ao meu Bom Jesus da Lapa,
por eu estar vivo e com saúde. Quando volto, sento aqui pra descansar as pernas,
quentá o sol, e conversar com os parentes, aqui todo mundo é parente, quem o
tem o mesmo sangue, é parente de contra-travessa, [...] é casado com um dos
parentes. Aqui, agente fica aqui jogando conversa fora. Agora, tem dias que eu não
estou pra conversa não, sento aqui só mesmo pra quentá o sol!
165
A narrativa aponta o processo de sociabilidade desfrutado cotidianamente pelo Sr.
Eustáquio Damasceno, que admite freqüentar regularmente o coreto, mesmo quando não quer
conversar. De acordo com o conceito se sociabilidade de Simmel, aí está a idéia do “ser com”,
em que a sociabilidade como fenômeno mais puro, é aquela interação que ocorre entre os
iguais
166
. Portanto, mesmo sem querer conversar, o narrador tem satisfação em estar junto
com os seus.
De uma maneira mais ampla, a relação entre os jatimanenses e a forte relação destes
com os elementos da água e da terra são explicada por uma questão cultural associada a uma
questão de sobrevivência. A metáfora a água é a vida do lugar, usada pelos jatimanenses,
pode muito bem ser ampliada para a natureza é a vida de Jatimane, uma vez que as principais
atividades que garantem a sobrevivência dos jatimanenses é resultado de condições naturais e,
ainda hoje, constituem a “base material de sua existência do grupo”
167
.
Este sentimento de fusão com a natureza, é mais que uma metáfora, pois se materializa
numa viva relação com ela, e num estado de equilíbrio e sustentabilidade, evidentes na
resistência cultural baseada no extrativismo da piaçava e na atividade pesqueira, que
garantiram a sobrevivência dos jatimanenses. Desta maneira, entre a água e a terra, a natureza
orienta e organiza o cotidiano dos jatimanenses.
165
Eustáquio Francisco Damasceno, 89 anos, natural da vizinha comunidade de Barra dos Carvalhos, município
de Cairu, viúvo, casado pela segunda vez com uma jatimanense. Entrevista concedida a autora em Jatimane, no
dia 23.09.2008.
166
SIMMEL. Op. cit. p. 71.
167
SANTOS, Milton. O lugar e o cotidiano. In: A Natureza do Espaço. Técnica e tempo. Razão e Emoção.
São Paulo: Ed. Hucitec, 1996. p. 187.
74
2.2 HABILIDADES LABORAIS
Jatimane é uma comunidade alianhaçada pelos invisíveis fios da vizinhança e do
parentesco consangüíneo. Na prática, estas relações se confundem, “na medida [em] que os
vizinhos de um indivíduo qualquer são na maior parte das vezes, seus parentes”
168
. De uma
maneira geral, a vida comunitária é estável, a estratégica localização da comunidade propicia
o desempenho de práticas laborais multifuncionais - com a realização de uma agricultura
familiar de subsistência, associada à tradicional atividade extrativista da piaçava - e uma
oficial e preponderante atividade pesqueira, que ainda hoje serve como base de sustentação
comercial entre o arraial e a circunvizinhança litorânea. Os dados oficiais atestam uma
tradicional e variada função desenvolvida pelos jatimanenses, ao afirmar que “a população [de
Jatimane] vive da pesca e da extração da piaçava”
169
, funções estas, aprendidas e
desenvolvidas entre as gerações, cabendo ao jatimanense optar pela prática laboral que melhor
o identifica.
Segundo esses dados oficiais, a atividade pesqueira é a função laboral de
representatividade social do jatimanense, uma atividade “que envolve crianças, jovens,
mulheres, homens e idosos nas várias etapas do processo pesqueiro.”
170
Uma informação que
é complementada pelo Sr. Antônio Carlos Marques de Souza, presidente da Colônia de pesca
Z73, da cidade de Nilo Peçanha. Ele afirma que,
Como uma comunidade de beirada, Jatimane se dedica à atividade pesqueira, seus
membros estão associados nesta colônia Z73, sendo que 65% dos seus associados
são homens e 45% são mulheres, em geral os homens dedicam-se à pesca e as
mulheres à mariscagem. A mulher procura trabalhar o mais próximo possível do
seu local de residência, por causa dos afazeres domésticos e da criação dos filhos
menores, por isso suas atividades são associadas ao beiradeiro. Uma região de
beirada onde podem mariscar, associando a atividade comercial ao trabalho
doméstico
171
.
Podemos supor que, diante das singularidades de suas variadas práticas laborais, o
jatimanense tem a opção de escolher entre se associar à colônia de pesca ou ao sindicato dos
trabalhadores rurais. Em ambos os casos o trabalhador recolhe um percentual mínimo de 2%
168
CARVALHO, José Jorge de. (Org). O quilombo do Rio das Rãs: histórias, tradições, lutas. Salvador-
EDUFBA, 1995. p. 201.
169
SEPLANTEC. PDU - Plano de Desenvolvimento Urbano de Nilo Peçanha. Relatório II. 21.08.2003, s/n.
170
CRA - Área de Proteção Ambiental do Pratigi Plano de Manejo. Zoneamento-Ecológico-Econômico.
Plano de Gestão. 0050/7. Salvador. 09.01.2004. p. 298.
171
Antônio Carlos Marques Souza. Presidente da Colônia de Pesca Z73. Entrevista concedida a Maria de
Carmem Rodrigues Fernandes, em Nilo Peçanha, em 05.04.2008.
75
sobre o salário e tem direito previdenciário. Ainda segundo o CRA, o extrativismo da piaçava
é uma tradicional ocupação dos jatimanenses
172
. Portanto, a escolha em se reconhecer como
pescador/marisqueira, ou como lavrador tirador/catadeira de piaçava é, antes de tudo, uma
questão identificação pessoal com a função exercida.
Nos relatos que seguem, a sabedoria popular faz uma tessitura entre a valorização da
natureza e das práticas laborais desenvolvidas internamente na comunidade. É D. Dilma
Assunção do Rosário quem nos conta sobre a relação do jatimanenses com a natureza:
Aprendi com meus antepassados a lidar com a natureza, a natureza é boa deu tudo
pra gente. Por muito tempo, nós ficamos praticamente isolados, pra sair era de
canoa ou andando pelas matas, a gente tinha que viver da natureza, e a natureza deu
tudo que a gente precisava. Você veja que planta maravilhosa, a piaçava sempre
deu tudo pra gente, as “tiras” com suas fibras e cascas, a gente trabalha e vende,
ninguém botou nada não, ela nasce sozinha na mata, o coco da piaçava, eu vou
dizer... trabalho, mas agente faz mingau pra menino, faz canjica.Se você tiver
uma dor de cabeça , dor de barriga, um ferimento, o remédio ta aí, tem folha certa
pra tudo. Eu acho uma falta de respeito tomar um comprimido, é o mesmo que está
relegando tudo que nossos antepassados ensinaram
173
.
O relato de D. Dilma inicia reverenciando os conhecimentos adquiridos com os seus
antepassados, em seguida, ela faz uma exaltação à natureza que é descrita em suas variadas
funções: abrigar, alimentar e curar. D. Dilma do Rosário usa as ervas com finalidades
fitoterápicas e alimentícias, afirmando ser este um ensinamento passado entre as gerações,
como está em um trecho do seu depoimento:
Se minha mãe é boa cozinheira, minha tia era melhor ainda com as ervas, ela ia
certinho na erva que ia curar uma dor ou sarar uma ferida. Ela aprendeu com minha
bisavó, que era raçada com índio. Minha tia aprendeu com ela, [a avó da tia ], e eu
aprendi com minha tia. Agora eu vou dizer uma coisa, essa aprendizagem é coisa de
raiz... mas, também depende muito do interesse, minhas irmãs nunca se dedicaram
a essa herança
174
.
Aqui, D. Dilma do Rosário enfatiza o suporte que a natureza ao homem do campo.
Em seguida faz uma referência aos seus conhecimentos fitoterápicos. Ao discutir sobre
comunidades quilombolas, Carril constatou que, para o homem do campo, a valorização e a
utilização dos recursos da natureza constituem a essência do seu modo de vida camponês, em
específico a utilização destes recursos com objetivos fitoterápicos. A geógrafa observa que
172
CRA. Op. cit. p. 309.
173
D. Dilma Assunção do Rosário, natural de Jatimane, 50 anos, rezadeira e quituteira local. Entrevista
concedida a autora, em Jatimane, no dia 06.01.2006.
174
D. Dilma Assunção do Rosário. Entrevista em 06.01.2006.
76
“os remédios caseiros e as ervas medicinais são utilizados tradicionalmente”
175
, numa prática
de medicina popular. Uma observação da autora converge para a constatação de Santos
176
,
que analisou os diferentes aspectos da prática popular de cura, no espaço do Recôncavo
Baiano, como resultado de um imbricamento cultural, somatório de diversos saberes,
principalmente dos costumes de populações negras. Ao pesquisar sobre a comunidade
quilombola do Pascoval, no Amazonas, Funes afirmou que “remédios para diarréia, dores de
cabeça [...] e outros medicamentos contra outros males [eram] extraídos da mata, que
representa um grande laboratório farmacêutico, sempre utilizado por essas comunidade”
177
fazem parte uma medicina popular, característica de populações rurais.
Analisando a narrativa de D. Dilma do Rosário, sob a perspectiva benjaminiana,
podemos observar que “o narrador retira da experiência o que ele conta”
178
, mas essa história
contada deve descrever uma seqüência de ações vivenciadas pelos sujeitos históricos,
personagens da trama. Na entrevista concedida por D. Dilma do Rosário, ela demonstra ser
uma boa narradora, seu discurso é de valorização da natureza e dos saberes ensinados pelos
antepassados, um discurso em que os saberes ganham um significado de herança, um bem
imaterial, um ensinamento que foi passado através das gerações e faz parte da bagagem
cultural da narradora. O seu relato também segue um encadeamento lógico, que termina por
suscitar uma discussão necessária sobre esses saberes herdados. Mas, comecemos por
investigar esta reverência com a piaçaveira, essa “planta maravilhosa”.
A piaçava é uma planta nativa da região e, em Jatimane é uma fonte de sobrevivência.
Além disso, a “lida” com a piaçava é um saber que foi tradicionalmente herdado pelas
diferentes gerações. Em um estudo recente, sobre a área de manejo da APA do Pratigi, foi
constatado que a comunidade de Jatimane, “originada de um antigo quilombo formado no
século passado, sempre se apoiou na extração de piaçava e na produção da farinha como
forma de sobrevivência”
179
. No relatório do Plano de Manejo da APA do Pratigi, o CRA
afirma ser Jatimane uma comunidade remanescente de quilombo desta região, ao mesmo
175
CARRIL, Lourdes. Terras de negros: herança de quilombos. São Paulo: Scipione, 2001. p.23.
176
SANTOS, Denílson Lessa. Nas Encruzilhadas da Cura. Crença, saberes e diferentes práticas curativas.
Santo Antônio de Jesus- Recôncavo Sul- Bahia (1940-1980). Dissertação de Mestrado do Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal da Bahia, Salvador. 2005.
177
FUNES, Eurípedes A. Nasci nas matas, nunca tive Senhor. História e memória dos mocambos do baixo
Amazonas. In: Liberdade por um fio: História dos Quilombos no Brasil. São Paulo: Cia de Letras, 1996. p. 481
178
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo:
Brasiliense, 1994. p. 201.
179
CRA - Área de Proteção Ambiental do Pratigi Plano de Manejo. Zoneamento-Ecológico-Econômico.
Plano de Gestão. 0050/7. 09.01.2004. p. 309.
77
tempo em que reconhecer suas formas econômicas de produção, identificadas como o
extrativismo da piaçava e do fabrico de farinha de mandioca.
Esta afirmativa ratifica a constatação histórica de que uma das fundamentais
características das antigas formações quilombolas seria a gestação de comunidades negras
rurais, uma vez que,
Uma característica fundamental dos quilombos foi, para a maior parte deles, a
paulatina gestação de uma economia de base camponesa. Os quilombos
procuravam fixar-se não muito distante de locais onde pudessem efetuar trocas
mercantis. Mesmo quando procuravam refúgios em [...] florestas, não permaneciam
isolados. Desenvolviam atividades econômicas que se integrariam à economia
local
180
.
No caso específico da comunidade de Jatimane, a piaçava, assim como a atividade
pesqueira foram os elementos tradicionalmente utilizados nas regulares trocas mercantis, entre
os jatimanenses e o seu entorno social. E, internamente, o trabalho com a piaçava é entendido
como uma marca culturalmente distintiva para o grupo.
No primeiro capítulo vimos que várias unidades familiares dos Rosários têm ou
ocupam tradicionalmente um pedaço de terra. Estes, os que têm terra, trabalham para
terceiros quando esgotam a extração de suas piaçaveiras. Ratificando esta argumentação, o
plano de manejo da APA do Pratigi diz que “aqueles que não dispõem de propriedade se
ocupam eventualmente com a extração da piaçava em pequenas unidades de produção no
próprio povoado”
181
ou em áreas vizinhas.
Mas, a piaçava ou piaçaba é a palmácea nativa, cientificamente denominada por Palmal
ou Attaba funifera, uma espécie endêmica, que predomina nesta região sob forma de
bosque
182
. Ao longo do tempo, o processo de extração e processamento desta planta nativa
garantiu o sustento dos jatimanenses e estabeleceu uma divisão sexual de papéis.
Nesta atividade, de extração e processamento da piaçaveira, ocorre uma tradicional
divisão sexual de funções. Assim o “tirar” e o “apanhar” piaçavas são funções masculinas,
relacionadas à suposta superioridades de força dos homens, que desenvolvem “o trabalho de
corte, enfadamento, amarro e transporte,”
183
um trabalho artesanal e perigoso, que requer
rapidez e habilidade. Na observação in loco, percebe-se que esta é uma atividade de risco,
180
GOMES. Flávio. A Hidra e o pântano: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no Brasil,
(SéculosXVII-XIX). São Paulo, UNESP, 2005. p. 33.
181
Área de Proteção Ambiental do Pratigi. Plano de Manejo. Zoneamento-Ecológico-Econômico (Plano de
Gestão).2004. p. 308.
182
Idem, 2004. p.308.
183
Idem, 2004. p. 254.
78
baseada na conservação de técnicas corporais, legado transmitido de uma geração para outra.
A imagem que segue, propicia uma melhor compreensão desta realidade vivenciada pelos
trabalhadores da piaçava.
FOTO 5 Transportador de mondongos de piaçava. FOTO 6 - Tirador de piaçava.
FONTE - Acervo da Cooprap, s/d. FONTE - Acervo icnográfico da Cooprap, s/d.
Depois de concluída a extração em uma árvore, o “tirador” passa para a árvore seguinte.
Esta é a parte mais arriscada do trabalho. Com base em sua experiência e destreza, o “tirador”,
deita uma ou duas talas da piaçaveira, e como um exímio equilibrista, anda sobre estas talas
até a árvore seguinte.
Ao falar sobre o trabalho com a piaçava, e o Sr. Nivaldo Rosário nos diz:
Minha profissão era de lavrador, fui tirador de piaçava, comecei a trabalhar com a
idade de seis anos, ia pra mata ajudar a meu pai, aprendi com ele. Com a idadezinha
mais avançada, uns 12 anos, já comprei um animal e fui trabalhar por conta própria,
pra um cidadão de nome Francilino Monsés e depois fui trabalhar pra Cristóvão. E
hoje, estou aqui forte graças a Deus! Tenho 10 filhos, e os quatros homens são
tiradores de piaçava assim como eu, é uma tradição de pai pra filho, vem desde o
tempo dos escravos. É uma tradição escrava
184
.
No relato de Sr. Nivaldo Rosário fica claro, que dentro de Jatimane, o tradicional
trabalho do tirador de piaçava, é uma atividade cultural, um conhecimento que passou de
geração em geração. Ao afirmar que “aprendi com meu pai” ou, ainda, ao ratificar que “os
184
Nivaldo Rosário. Entrevista concedida a autora em Jatimane, no dia 04.01.2006.
79
quatro filhos homens são tiradores assim como eu”. O narrador apresenta um saber
transmitido como herança cultural, que pode ser percebida como uma “forma de comunicação
do indivíduo e do grupo com o universo, é uma herança, mas também um reaprendizado das
relações profundas entre o homem e o seu meio”
185
. Em outra entrevista, ele ratifica a
existência de outra atividade tradicional do lugar, ao afirmar: “pescar aqui todo mundo pesca,
não precisa ninguém ensinar, menino cresceu um pouquinho ta na água, vai mariscando
aqui, vai pescando ali, ninguém ensina. Daí a pescar é um pulo”
186
.
Na rememoração de suas lembranças, o narrador comprova suas práticas laborais ao
mesmo tempo em que apresenta diferenças na iniciação destas atividades. Segundo o
entrevistado, o extrativismo da piaçava é fruto de um ensinamento passado dos mais velhos
para os mais moços, enquanto a atividade pesqueira é fruto de um processo de socialização do
homem com a natureza, em que a criança aprende de maneira difusa, observando os mais
velhos e em contato direto com a água. Esta narrativa também evidencia o drama vivido pelas
crianças pobres da zona rural, o menino que começou a ir para mata com o pai desde os seis
anos. O que nos leva a crer que esta foi a sua fase de iniciação ao trabalho, pois aos 12 anos
trabalhava por conta própria.
Sabemos que as relações humanas são complexas, estão envoltas em uma teia de
significados particulares, um emaranhado cultural, nem sempre fáceis de serem decodificados.
Assim, seguindo pistas de Geertz, num processo de observação participada do cotidiano
destes trabalhadores da piaçava, encontramos justificativas etnográficas para esta precoce
iniciação ao trabalho.
Não se trata simplesmente de uma questão social, e sim, de uma questão moral. Não
podemos inserir esta iniciação ao trabalho como uma forma fria e racional de cooperação
familiar, com finalidade de acentuar a mais valia para a unidade de produção camponesa ou
pesqueira. Esta inserção da criança no espaço de trabalho dos pais parece ter uma lógica
própria dentro da comunidade, mais que uma forma de aprendizado, este é o espaço de
socialização entre os parentes e momento propício para transmissão de valores de uma
geração para outra, fortalecendo o ideal de cooperação e a coesão familiar e grupal, bem como
o aprendizado de um ofício. Neste sentido, num espaço em que as oportunidades de trabalho
são escassas, o sucesso tanto no extrativismo da piaçava, quanto na atividade pesqueira estão
185
SANTOS, Milton. Natureza do Espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo: Hucitec, 1996. p.
261.
186
Entrevista do Sr. Nivaldo Rosário. Entrevista concedida a autora em Jatimane, no dia 23.09.2008.
80
diretamente associados à destreza e à habilidade profissionais destes trabalhadores artesanais
adquiridas desde a infância.
Em uma outra entrevista, é o Sr. Paulo Nascimento do Rosário que nos fala sobre sua
variada prática laboral:
Aprendi a lidar com a piaçava desde cedo, com meu pai, a gente ia pro mato com
ele pra tirar piaçava e acabava aprendendo, mais eu também plantava roça de
mandioca, aipim, abóbora, abacaxi cana, muita banana, maxixe [...] tinha que
plantar pra comer, também vendia algumas e plantei muito de meia, [...] tirei
piaçava de meia também, mais eu também pescava, já pesquei muito peixe, tanto
pescava quanto pegava caranguejo e aratu, vendia aqui na região. Minha luta era
braba
187
.
O Sr. Paulo Nascimento Rosário afirma que a aprendizagem da extração da piaçava foi
herança de um saber paterno, nos conta sobre sua luta pela sobrevivência, uma “luta braba,
diz ele. Pai de uma família numerosa, muito trabalhou para garantir a sobrevivência da
família. Entre a terra e a água, exerceu diversas funções, além de uma agricultura de
subsistência. Como tirador de piaçava, ele mesmo encarriava, ou seja, ele cortava a planta e
no final do dia, depois da derruba, ele mesmo fazia os mondongos - denominação para os
amontoados das fibras, depois de amarrados. Sr. Paulo termina informando sobre as várias
etapas do trabalho com a piaçava, o cortar, enfadar, amarrar e transportar as fibras da piaçava,
informação que é tecnicamente ratificada pelo Plano de manejo da região.
188
Esta forma de
trabalho artesanal continua a ser praticada dentro da comunidade e ainda hoje os mondongos
são transportados no lombo de um animal até o arraial, onde a piaçava é processada.
A entrevista do Sr. Paulo Nascimento Rosário, traz outra informação, ao afirmar que
também “tirava” piaçava de meia. A piaçava produz várias vezes no ano, e enquanto a
natureza recompõe as piaçaveiras na mata do entorno da comunidade, é comum o tirador
oferecer sua força de trabalho em outras propriedades da região. “No sistema de exploração
da piaçava, o dono da terra tanto pode pagar para fazer a coleta como vende „no pé‟, usando
uma expressão regional. Neste caso, considera vantajoso porque ganha o dinheiro e não se
envolve com questões trabalhistas”
189
. Este é o serviço de meia a que o Sr. Paulo do
Nascimento Rosário se refere, uma contratação informal da mão-de-obra do tirador de
piaçava, baseado no lucro repartido, ou seja, 50% do produto colhido fica como forma de
187
Sr. Paulo do Nascimento do Rosário. Entrevista concedida a autora em Jatimane, no dia 04.01.2007.
188
CRA. Centro de Recursos Ambientais. Plano de Manejo- Ecológico Econômico. Plano de Gestão.
Salvador, 2004. p. 254.
189
Idem, 2004. p.342.
81
pagamento da mão-de-obra do tirador de piaçava, e os outros 50% do produto colhido fica
para o proprietário da terra.
O relato também informa sobre as variadas atividades exercidas pelos jatimanenses,
pois em todos os depoimentos, a arte da pesca aparece como uma atividade praticada em
paralelo à extração da piaçava. Aqui vale ressaltar que, embora o extrativismo da piaçava seja
considerado uma tradição dentro de Jatimane, a pescaria é a atividade de representatividade
oficial da comunidade e precursora de um constante comércio com a região circunvizinha, o
que nos leva a “reconhecer as divisões do trabalho sobrepostas, num mesmo momento
histórico,”
190
variedades atividades laborais que se complementam, na luta pela sobrevivência
dos jatimanenses.
Em outra entrevista, é o Sr. Otávio Rosário quem dá a sua versão para esta diversidade
laboral:
Desde os 15 anos eu trabalho com a piaçava, aprendi com meu pai, eu tirava até
duas arroubas por dia, mas eu também pescava. Pescava e vendia, mas as coisas
mudam. Hoje os pescadores daqui vendem peixe por quilo, no meu tempo, agente
vendia peixe na cuia de coité, ou cabaça, e a mesma coisa, era assim que a gente
vendia. Da piaçava estou aposentado, mas ainda levo um peixe pra casa
191
.
No relato do Sr. Otávio Rosário, o trabalho com a piaçava aparece também como uma
aprendizagem que passou de pai para filho, a exemplo dos outros entrevistados, ele atesta ter
se dedicado, às duas principais atividades de sobrevivência local: tirador de piaçava e
pescador. Numa comunidade ribeirinha, é natural a majoritária presença de pescadores. Para
o informante, a pesca foi uma atividade comercial e hoje está presente em sua vida como uma
atividade de subsistência. Complementa seu relato afirmando a existência de uma
simultaneidade na utilização dos múltiplos recursos naturais disponíveis, o que nos leva a
perceber que existem temporalidades específicas e diferentes entre o extrativismo da piaçava
e a pescaria.
As distintas atividades laborais têm uma orientação temporal própria, que não se
deixam guiar pela marcação do relógio. Trata-se de um tempo marcado por um ritmo
particular. Para o tirador este ritmo temporal é regido pelo fenômeno dia/noite, levanta ao
amanhecer do dia para o trabalho na mata, enquanto que para o pescador esse tempo é regido
pela variação das tábuas das marés. São manifestações temporais visíveis e diferentes,
190
SANTOS, Milton, Op. cit. p.109.
191
Senhor Otávio Rosário. Entrevista concedida a autora, em Jatimane, no dia 07.12.2007 e em 10.09.2008.
82
“podemos dizer que cada divisão do trabalho cria um tempo seu próprio [e] diferente”
192
, que
parecem se completar no cotidiano destes trabalhadores.
Mas, essa dupla função tirador/pescador se repete ao longo de outras entrevistas. O Sr.
Manoel da Luz nos diz:
Aprendi a tirar piaçava com os outros, sempre trabalhei “de ganho”. Todo mundo
por aqui tirava piaçava, pra vender ou pra fazer tilisquinha. Com a tilisquinha a
gente fazia camboa. Eu cansei de tirar pra vender [...] toda a vida eu trabalhei pros
outros. Tirei muita piaçava “de ganho”, e ainda tinha que levar de canoa pra
Santarém. Agora [...] o que eu plantava pra mim era roça: de abacaxi, de aipim, de
banana, de mandioca
193
.
A entrevista do Sr. Manoel da Luz foi longa e rica em informações. Nas entrevistas
com os demais “tiradores” de piaçava, eles afirmam que aprenderam com o pai ou usam a
denominação “aprendi com os mais velhos”, mas, o senhor Manuel diz que aprendeu a “tirar
com os outros,” ele é um dos agregados da família Rosário, não conheceu seu pai e a mãe
casou com um Rosário. Por isto quando diz que “aprendeu a trabalhar com os outros,”
podemos supor que aprendeu com a parentela, embora o Sr. Manuel da Luz assuma
características de uma cultura local na “lida” com a piaçava, percebemos que no seu discurso,
sempre que possível, ele realça diferenças entre a parentela dos Rosário e os seus agregados.
Uma outra informação que aparece na entrevista do Sr. Manuel da Luz, trata-se das
citadas trocas comerciais com as cidades portuárias, a exemplo da cidade de Santarém,
atualmente denominada por Ituberá. A este respeito, o informante revela:
Duas ou três vezes na semana eu levava meu peixe pra vender, também levava a
piaçava que tirava. O melhor porto pra venda, era mesmo Ituberá. O dinheiro
apurado pelo peixe era muito pouco, mal dava pra comprar o café e o açúcar,
quando ainda levava a piaçava, tinha uma farturazinha
194
.
Nas duas entrevistas, o narrador ratifica o tradicional comércio entre a comunidade de
Jatimane e as cidades portuárias da circunvizinhança. Embora este relato seja fruto de uma
lembrança individual, traduz uma realidade que foi compartilhada pelos demais jatimanenses.
Assim, esta lembrança está “enraizada em múltiplas camadas de experiências sociais”
195
ao
tempo em que confirma a singularidade de suas variadas práticas laborais como fruto da
necessidade numa luta pela sobrevivência. O relato também informa sobre as principais
192
SANTOS, Op. cit. p. 109.
193
Sr. Manuel da Luz. Entrevista concedida a autora, em Nilo Peçanha, no dia 30.11.2007.
194
Manuel da Luz. Entrevista 23.09.2008.
195
MALUF, Marina. Ruídos da memória/ Marina Maluf. São Paulo: Siciliano, 1995. p. 40.
83
mercadorias envolvidas nestas trocas comerciais: a venda do peixe, da piaçava e a compra do
café e do açúcar.
Mas, o relato do Sr. Manoel da Luz suscita uma decodificação mais cautelosa quanto
aos seus significados culturais, pois em sua narrativa ele afirma que tirava “tilisquinha para
fazer “camboa”. Aqui, é necessário cautela, pois uma análise cultural, ou uma “história
cultural também é uma tradução cultural da linguagem”
196
não do passado, como também
do presente. Os termos utilizados por Sr. Manoel da Luz, são recorrentes de sua época de
pescador, mas ainda hoje têm significado material na região. Conforme observação in loco, a
tilisquinha é, artesanalmente, confeccionada com as fibras mais longas da piaçava, estas são
utilizadas em uma espécie de trançado. Várias tilisquinhas formam uma esteira rígida, que
compõe “partes” de um cercado que deve ser “plantado” no leito do rio, um tipo de armadilha
utilizada para atrair e aprisionar os peixes denominado por camboa. Outro artefato de pesca
utilizado pelo pescador jatimanense, é a rede. Ambos, camboa e rede, mantêm o equilíbrio
ecológico e permitem um momento de conciliação e complementaridade entre as duas
principais funções exercidas pelos jatimanenses, ou seja, a prática da pesca e o extrativismo
da piaçava.
No tradicional trabalho com a piaçava, verificamos uma divisão sexual de atividade.
Assim, após o corte, enfadamento e amarro, a piaçava é transportada para dentro do arraial, e
tem início o trabalho de processamento do vegetal. Um segundo momento do trabalho com a
piaçava, é a fase do beneficiamento do produto. Uma função feminina, que compreende uma
variedade de atividades desempenhadas pelas “catadeiras” e “penteadeiras” de piaçava.
Nesta etapa é realizada a separação limpeza e seleção das fibras da piaçava que são
classificadas como de qualidade (curtinha) e de qualidade (toco), utilizadas na
fabricação de vassouras. O subproduto denominado de casca da piaçava (fita ou
pente) vem experimentando um crescimento significativo na demanda, sobretudo
regional, para utilização na cobertura de quiosque
197
.
Dentro do arraial de Jatimane, o beneficiamento da piaçava é executado em área livre,
espaços denominados por catador. As maiorias destes catadores estão localizados na beirada
do rio, em outros casos, o catador é adaptado a uma área doméstica, um terreiro ou o quintal
de uma casa. As catadeiras ganham por produção, em uma atividade que termina por envolver
a unidade familiar. Para melhor entendermos sobre esta etapa do processamento da piaçava,
196
BURKE, Peter. Variedades de história cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2000. p. 245.
197
CRA Centro de Recursos Ambientais. Plano de Manejo-Ecológico-Econômico. Plano de Gestão. 0050/7.
09.01.2004. p. 254.
84
recorremos aos relatos das pessoas locais, que nos dão informações mais específicas sobre
esta fonte de saber.
Intercambiando suas experiências, D. Luzimar do Rosário nos diz que em Jatimane,
este trabalho da catadeira” e “penteadeira” de piaçava, se aprende ainda criança: “aprendi
vendo minha mãe catar e pentear a piaçava”
198
, diz a informante. Perante esta informação,
percebemos que o trabalho de processamento da piaçava, é uma função feminina, mas termina
por envolver os filhos menores que, ao acompanharem a mãe na sua labuta diária, absorvem
de maneira difusa, um conhecimento prático. Quanto ao processamento da piaçava, a
informante nos diz:
Quando a piaçava chega, a gente separa as fibras por tamanho, as fibras compridas,
agente “cata” em pé, elas são as piaçavas de primeira, fazem parte do primeiro
corte, as fibras menores a gente chama de “toco, ela é o resultado de um segundo
corte, essas nós separamos para serem “catadas” depois. depois é que a gente
desembaraça as fibras maiores com um “pente”. Eu também sou marisqueira, mas
aqui neste trabalho, eu sou rápida, cato e penteio até cinco arroubas da fibra maior
por dia, as fibras menores, pesam menos, agente faz até duas arrouba por dia, mas
nem tudo „mundo‟ faz isso não. A gente ganha por produção e recebe R$ 2,50 por
arrouba. Mas é assim: meu marido tem um pedaço de terra, quando tem piaçava nas
terras dele, a gente trabalha e depois entrega, ou no depósito de Ituberá ou em
Valença, a gente ganha um pouco mais. Na maior parte do tempo, meu marido
contrata serviço em outras terras, corta a piaçava e traz pra gente tratar
199
.
Ao enunciar suas habilidades, D. Luzimar do Rosário informa que o catar e o pentear
a piaçava são atividades sucessivas de uma mesma função, e que o seu desempenho e
produção estão diretamente relacionados com a prática. Informação ratificada e
complementada pela jovem Arline Ferreira Rosário, que ao narrar sobre sua experiência como
catadora de piaçava, ela explica:
Aqui as catadeiras ganham por produção, não importa em que catador estejamos
trabalhando, o ganho é por produção, depois de separada, a arrouba da piaçava
custa R$ 3.00. Mais é assim: a gente separa a casca da fibra, mas recebe pelo
peso da fibra, pela casca a gente não recebe nada não. A casca é trabalhada, com
elas são feitos os pentes, utilizados para cobertura de casas, quiosques, barracas de
praia
200
.
198
D. Luzimar do Rosário, 48 anos, natural de Jatimane, catadeira/penteadeira de piaçava e marisqueira.
Entrevista concedida a autora em Jatimane, no dia 05.07.2007.
199
Idem. Em 05.07.2007.
200
Srtª. Arline Ferreira do Rosário. Natural de Jatimane, 26 anos, solteira, catadeira/penteadeira de piaçava.
Entrevista concedida a autora em Jatimane, no dia 23.09.2008.
85
As imagens que seguem, utilizadas como fonte, complementam a informação, por nos
permitir uma visualização do trabalho de separação entre as fibras e as cascas da piaçava. Nas
imagens de nº7 e nº8, Arline Ferreira do Rosário demonstra o trabalho de “catar” a piaçava. É
o momento de limpar a piaçava, separando fibra da casca, ou seja, separando o produto do
subproduto.
FOTO 7 - Catando piaçava-1 FOTO 8 Catando piaçava-2
FONTE - Acervo icnográfico do IDES, fotografia de FONTE - Acervo icnográfico do IDES, fotografia de
Eduardo Moody, s/d. Eduardo Moody, s/d.
Mas, conforme os relatos, o beneficiamento da piaçava é um processo composto por
duas etapas: o catar e o pentear as fibras da piaçava. Após catar as fibras da piaçava
separando-as da casca, tem início a segunda etapa do processo de beneficiamento: a fase de
pentear as fibras. Nesta etapa, as fibras mais longas são desembaraçadas com um „pente‟. Um
instrumento artesanalmente adaptado para facilitar a execução desta etapa do trabalho.
após pentear, desembaraçando as fibras, é que o trabalho de beneficiamento está consumado.
Ajudando-nos a compor o ambiente cultural, em que se processa o beneficiamento da
piaçava, as imagens que seguem em seus congelados fragmentos- operam de forma a retratar
um breve momento das atividades laborais destas catadoras/tiradoras de piaçava. De forma
objetiva, a imagem nº. 9 congelou um fragmento do ato de pentear as fibras da piaçava,
enquanto a imagem nº11 retrata o ambiente improvisado de um catador de piaçava, com suas
artesãs.
86
FOTO 9 - Penteando piaçava. FOTO 10 Mondongos de fibras de piaçava.
FONTE - Acervo icnográfico do IDES, fotografia de FONTE - Acervo icnográfico do IDES, fotografia de
Eduardo Moody, s/d. Eduardo Moody, s/d
FOTO 11 Mulheres beneficiando a piaçava, no espaço de um catador.
FONTE Acervo icnográfico do IDES, fotografia de Eduardo Moody, s/d.
A utilização destas imagens, com suas mensagens codificadas, são acréscimos às
informações ditas, pois elas permitem que vejamos os sujeitos históricos em seu espaço
cultural, além de fornecer uma dimensão da realidade destes sujeitos históricos, a imagem
também aguça nossas percepções.
87
O relato da Srtª. Arline Ferreira do Rosário traz implícita uma outra questão: embora a
casca da piaçava tenha valor comercial, sendo utilizado na confecção de pentes para cobertura
de casas e quiosques, as catadoras não recebem pela casca separada, recebem exclusivamente
pela arrouba das fibras catadas. Uma situação que pode ser analisada como uma extração de
mais valia do trabalhador, o que basicamente consiste na exploração de um trabalho feito e
não remunerado. Segundo informações locais, o trabalho não remunerado, da separação do
subproduto da piaçava é um costume que nunca foi contestado. Desta maneira, como é de
costume, as cascas pertencem ao dono da piaçava, portanto, ao terceirizar o serviço de corte e
beneficiamento da piaçava, fica subtendido que casca será entregue ao contratante do serviço,
e estes a repassam para os artesões de pente de piaçava.
A imagem 12 permite visualizar o ambiente cultural do artesão dos pentes de piaçava.
Em um espaço livre, a céu aberto, o jovem trança o pente de piaçava. Na imagem 13, os
mondongos da casca, amontoados, esperam a sua vez de serem trançados.
FOTO 12 Artesão do pente da piaçava. FOTO 13 Mondongos das cascas da piaçava.
FONTE - Acervo icnográfico do IDES, fotografia: FONTE - Acervo icnográfico do IDES, fotografia:
Eduardo Moody, s/d. Eduardo Moody, s/d.
De acordo com o CRA, este subproduto da piaçava tem conseguido mercado, as cascas
são aproveitadas como matéria-prima para a confecção de pentes. Dentro de Jatimane, esta é
uma atividade essencialmente desenvolvida pelos mais jovens. Ao justificar a opção pelo
trabalho da confecção dos pentes, o jovem Janilton Luz do Rosário esclarece:
Meu pai é tirador de piaçava, minha mãe é funcionária aqui da escolinha Nossa
Senhora das Graças, minha mãe também cata piaçava. Eles querem que eu estude
88
que eu tenha outra profissão, meu pai diz que o trabalho dele é duro. Por isso, eu
estudo de manhã, faço o segundo grau no colégio estadual de Nilo Peçanha, e na
parte da tarde eu ganho algum dinheiro fazendo os pentes de piaçava. A gente
ganha por produção e não empata estudar
201
.
Uma informação complementada pelo jovem Ivanildo Assunção do Rosário, que
afirma:
A gente tem em casa um pai, um tio, ou um aque é tirador de piaçava, a gente
sabe que é um trabalho duro, não é fácil passar o dia, em cima de uma piaçava,
cortando suas fibras. Nós queremos uma vida melhor que a de nossos pais, hoje é
tudo mais fácil, temos mais oportunidades, de manhã vamos pro colégio, lá na sede
(Nilo Peçanha), meio dia quando a gente chega, vai pra casa bater um rango.
então, na parte da tarde, e que vem trançamos os pentes de piaçava, no
fim da tarde a gente pega um baba, depois cai no rio, toma um banho e vai pra casa.
Pra fazer o pente de piaçava é fácil, a gente ganha pelo que produz você pode
trançar seu pente sozinho ou em grupo. A gente reúne um grupo, pega um lugar de
sombra, liga um som e vai traçar os pentes. Uma arrouba da casca de piaçava faz
até doze pentes. O pente é trançado em ripas de dois metros do comprimento, a
gente recebe R$ 0,40 por cada pente
202
.
Notamos que os dois relatos apresentam, em comum, uma mudança de mentalidade,
entre a juventude da comunidade de Jatimane. Os relatos explicitam que eles não querem
trilhar o caminho seguido pelos mais velhos, percebem o quanto é duro o trabalho de um
tirador de piaçava e buscam estratégias que garantam uma sobrevivência mais amena. Embora
o subproduto da piaçava, utilizado na confecção de pentes, seja uma alternativa de geração de
renda para os jovens jatimaneneses, nas entrevistas, eles demonstram interesse em mudar de
vida, em buscar novas oportunidades de trabalho, e não prosseguir com a tradicional atividade
de um tirador de piaçava, como seus pais.
Neste sentido, argumentamos que esta dinâmica de percepção está influenciada pelo
capital cultural da escola. Nos relatos, existe uma ênfase na importância do papel da escola
associada à perspectiva de dias melhores para os que se dedicam aos estudos. Mas, estas
mudanças também estão relacionadas à construção de uma estrada vicinal que permite o fácil
acesso dos moradores de Jatimane ao meio urbano dos municípios vizinhos. A importância da
estrada, como um elemento de ruptura dentro da comunidade, carece de maiores informações,
sendo discutida na próxima subseção.
Na fala dos jovens, ficou clara a dinâmica da produtividade na confecção dos pentes de
piaçava. Organizam-se voluntariamente, podendo trabalhar sozinho ou em grupos que têm
201
Janiltom Luz do Rosário, 17 anos, morador de Jatimane. Entrevista concedida a autora, num grupo focal, em
Nilo Peçanha, em 05.05.2008.
202
Ivanildo Assunção do Rosário, 21 anos, morador de Jatimane, Entrevista concedida a autora, num grupo
focal, em Nilo Peçanha, em 05.05.2008.
89
afinidades. No trabalho de campo, constata-se que embora seja uma atividade produtiva, estes
jovens artesões, aproveitam também este espaço para a interação, enquanto trabalham,
conversam e ouvem música, intensificando a relação de convivialidade entre os parentes. No
final da tarde, a lógica competitiva da produtividade é superada por uma momentânea forma
de cooperação, movida pela primazia da ludicidade dos jovens artesões. Ao cair do sol, na
hora do jogo de bola, os artesões mais lentos, são auxiliados pelos colegas mais rápidos, de
forma a consumar a confecção do pente já iniciado e não atrasar o jogo de bola.
As narrativas analisadas propiciam o entendimento de que as práticas laborais dos
jatimanenses estão atreladas ao elemento da sociabilidade. Ao narrar sobre o aprendizado de
sua prática laboral, D. Antônia de Jesus informa o valor do trabalho como um processo de
socialização entre as crianças da comunidade.
Desde menina sou “catadeira” aprendi com minha mãe, com ela também aprendi a
mariscar, enquanto mamãe “catava” piaçava, eu e meus irmãos menores
ajudávamos. Quando a gente cansava, ia por rio brincar, foi brincando no rio que eu
aprendi a mariscar, é mariscando que eu ajudo meu marido a botar comida em casa.
Também cato piaçava, com a piaçava eu ganho dinheiro, do rio eu tiro o alimento
de minha família, eu marisco: ostra, gaiamum, caranguejo, aratu, qualquer um, o
que interessa é levar comida pra casa
203
.
D. Antônia de Jesus nos informa sobre aspectos culturais dos jatimanenses e sobre o
papel desempenhado pela mulher nesta comunidade, no momento em que os homens se
ausentam, vão para a mata e passam o dia trabalhando, e quando retornam ainda vão tirar
suas redes ou camboas do rio, ou do estuário. Diante do exposto, percebemos que é primordial
o papel da mulher jatimanenses na criação dos filhos, os menores, com idades tenras. Estes,
necessariamente vão juntos com a mãe para a “cata” da piaçava ou ainda para a mariscagem,
uma atividade desenvolvida nos arredores da comunidade.
Para as crianças, nestes espaços da convivência materna é que também se fase
inicial de sua aprendizagem, não só de uma atividade material, como também de um conjunto
de valores, em que o trabalho se torna o elemento central de um processo de socialização
infantil. Afinal, nascemos imersos em uma teia cultural, e é na fase inicial de nossa existência
que estes elementos culturais são fixados, através de um conjunto de valores, transmitido
entre as gerações.
203
D. Antônia de Jesus. Natural de Jatimane, 55 anos, associada a colônia de pesca Z73. Entrevista concedida a
autora em Jatimane, no dia 05. 07.2007.
90
Em outro relato, D. Josenilda Ferreira do Rosário, a partir de suas lembranças de
infância, evidencia a vida dura de quem ficou órfã logo cedo e termina tecendo um
comentário mais específico sobre a arte da mariscagem:
Perdi meus pais logo cedo, aos doze anos fiquei com meus quatro irmãos para criar,
todo mundo aqui é parente todo mundo ajudava, mais como irmã mais velha a
responsabilidade era minha. Então eu posso dizer que o foi o mangue que
alimentou a mim e aos meus irmãos e depois, quando casei, ajudou a alimentar os
meus seis filhos. Dizem que eu sou a marisqueira mais rápida daqui. Mariscar é
fácil. Quando a maré é morta, que está devagar, é boa para pegar o siri na toca. O
siri não anda muito, porque a maré não tem força para alagar o mangue todo, aí eles
ficam na beira do mangue, e agente já sabe, vai mariscar na beirada. Mas, quando a
maré é grande, maré cheia, você anda o mangue todo e aí se encontra o siri na poça,
no buraco, na toca. Pra mim não tem diferença de maré, eu sou rápida vou e
pego. Mais também pego o caranguejo, o gaiamum, a ostra, o aratu, e ainda pesco.
Sem falar, que aqui em Jatimane, todo mundo sabe lidar com a piaçava
204
.
A rememoração de D. Josenilda Rosário é marcada por pontos de significação, pontos
centrais que parecem ter marcado a memória da informante, acontecimentos que
permanecem como pontos de demarcação em sua história”
205
, em sua vida, a exemplo: da
morte dos pais, a aprendizagem da arte de mariscar, a necessidade em trabalhar para sustentar
os irmãos, o casamento, a criação dos filhos. Neste discurso, o trabalho aparece como
elemento necessário, fluindo entre o passado/presente. No passado, o trabalho significa a
necessidade em laborar cedo para cumprir a dura tarefa de sustentar os irmãos. No presente, a
longa experiência no trabalho é associada ao status social de ser a mais rápida marisqueira.
Analisando o somatório das narrativas aqui apresentadas, a recorrência das
experiências laborais, com sua multiplicidade de funções, masculinas e femininas, não
parecem evocar tristezas. Estas narrativas nos encaminham para a compreensão, por tratar-se
de uma dinâmica relação validada por uma tradição cultural materializada no comportamento
dos jatimanenses, em sua luta pela sobrevivência.
Por isso, ao trafegarmos pelo campo de uma análise cultural, faz-se necessário observar
a magnitude da influência da cultura: “não apenas [na] arte, mas [na] cultural material, não
apenas o escrito, mas o oral, não apenas o drama, mais o ritual, não apenas a filosofia, mas as
mentalidades das pessoas comuns”
206
. É justamente na vivência destas pessoas, em seu
relacionamento com o real, que os entrevistados demonstraram estar percorrendo um caminho
validado pela tradição cultural. Uma cultura de resistência, marcada pela multiplicidade de
204
D. Josenilda Ferreira do Rosário. Entrevista concedida a autora em Jatimane, no dia 23.09.2008.
205
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança dos velhos. São Paulo. Companhia das Letras, 1994. p.
418.
206
BURKE, Peter. Variedade de história cultural. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira. 2000.p. 247.
91
práticas laborais e a valorização da história e dos recursos naturais, completam o modo de
vida camponês, singular aos jatimanenses.
Ainda, ao narrar sua luta pela sobrevivência, D. Josenilda Ferreira do Rosário nos
uma visão parcial do cardápio local: ostra, gaiamum, caranguejo, aratu, além do peixe. Uma
informação que ela complementa:
Minha luta foi dura, mas eu não tenho do que reclamar, primeiramente agradeço a
Deus por ter me dado forças para criar meus irmãos menores, e ter dado uma
natureza tão boa pra gente, quando eu entrava na mata e encontrava uma raiz de
quiçara, o café da semana toda, estava abençoado. A paçoca de quiçara é gostosa e
fácil de fazer: de véspera, vobota a raiz no fogo, no dia seguinte você rala a
quiçara, mistura com um pouco de açúcar e coco ralado, e está pronto um prato
simples, delicioso e que mata a fome. Quem come da paçoca de quiçara, gosta!
207
Na luta pela sobrevivência, a sintonização do homem com a natureza, gerou outras
singulares receitas, a exemplo do satim, uma espécie de polvilho extraído do fruto da piaçava
e utilizado como base em variadas receitas, entre elas: mingaus, manjares e cocadas. Sobre
esta especiaria, D. Josenilda Rosário informa:
O satim é custoso de fazer. Ele é uma receita dos mais velhos, de um período em
que tudo era mais difícil, e você tinha que sobreviver, então a gente se virava com o
que tinha por aqui. Hoje, a gente faz o satim de época em época. É assim: pega os
frutos da piaçava, descasca e coloca na água de molho por cinco ou seis dias.
Depois a gente rala o fruto, a massa que fica, é coada e colocada de molho para
decantar por mais oito dias. Neste período a água renovada e escorrida para retirar a
acidez do fruto. Depois, essa massa é colocada pra secar, e está pronto o satim. Se
for usar no mingau ou na canjica, você tanto pode misturar com o leite do coco,
como pode usar o coquinho que tem dentro do fruto da piaçava
208
.
Outro exemplo de adaptação dos jatimanenses às adversidades vividas é a especiaria da
tainha defumada, o prato típico de Jatimane, mais apreciado no entorno social da comunidade.
Esta especiaria gastronômica faz parte de uma tradição local que traz implícita uma inovação
na técnica de conservação de alimentos. Comentando sobre essa mudança, o Sr. Manuel da
Luz informa que eles salgavam as sobras do peixe e da caça, explicando “salgou, temperou,
conservou.
209
Era assim que se conservava alimentos. Aliás, esta prática de conservação de
alimentos, através das “salgas” não é uma peculiaridade exclusiva dos jatimanenses,
discutindo sobre a necessidade de conservação dos alimentos, Funes observou que na
207
D. Josenilda Ferreira do Rosário. Natural de Jatimane, 52 anos, viúva, mãe de seis filhos, marisqueira e
catadora de piaçava. Entrevista concedida em 23.09.2008.
208
Idem. Entrevista em 23.09.2008
209
Sr. Manuel da Luz. Entrevista concedida em 23.09.2008.
92
comunidade do Pascoval, o peixe era um alimento cotidiano, sendo costume daqueles
mocambeiros fazerem “grandes salgas para se alimentarem nos períodos em que o pescado
escasseava”
210
.
Em Jatimane, esta técnica de conservação foi aprimorada, o Sr. Nivaldo do Rosário
comenta que, por muito tempo, não existia energia elétrica na comunidade, portanto eles não
tinham acesso ao gelo, mas eram inventivos e adaptaram o uso de defumadores para conservar
alimentos, afirmando que a utilização desta técnica de conservação é antiga, pois faz parte das
lembranças do seu tempo de criança, quando a salga dos peixes, era feito a céu aberto,
estendidos uma espécie de quaradouro, denominados por “giraus”, técnica esta, que inspirou a
utilização dos atuais defumadores. Hoje, o defumador é um utensílio comum no arraial,
embora seja propriedade de uma determinada família, o seu uso é socializado com os
vizinhos/parentes.
Essa singular culinária, fruto da necessidade de adaptação do homem às adversidades
da natureza, tem seu cardápio alongado, a partir do relato de D. Dilma Assunção do Rosário.
Mesmo antes da construção da estrada, aqui ninguém nunca passou necessidade.
Eu digo que a gente enfrentava dificuldades, para entra e sair de Jatimane. Tinha
que esperar a maré encher pra sair de canoa, e fora, esperar outra maré cheia pra
voltar pra casa. Mais necessidade ninguém nunca passou, se tem tudo na
natureza. Aqui sempre se plantou mandioca pra fazer farinha, uma época que
faltasse a farinha, a gente substituía pela banana. Fazia o pirão de banana: você
pega a banana madura, machuca no pilão, e lava ao fogo pra cozinhar,com um
pouco do caldo da moqueca que você estiver fazendo, fica tão bom, quanto o pirão
feito com farinha de mandioca. Olha! você não sabe, mas com a banana d‟vez a
gente faz até farinha. Sem falar, que um dos pratos típicos, que o povo da região
mais gosta é a moqueca de guaiamu com banana. Eles não sabem da verdade!
Pedem este prato como uma novidade, mas na verdade a banana a gente usava pra
crescer a moqueca, e encher barriga dos meninos
211
.
A cultura, como um conjunto de manifestações transmitidas através das gerações,
pode ser percebida como um legado que o indivíduo adquire em uma teia social, envolvendo
bens materias e imateriais que consubstanciam as práticas humanas e suas inovações.
Portanto, seria equivocado e demasiado simplista apenas classificarmos essa culinária como
nativa. Mais do que isto, ela é fruto de uma prática intercambiável do homem com ele próprio,
estando atrelada à realidade histórica da comunidade, que em sua saga pela sobrevivência, de
forma racional e objetiva, necessitou fazer adaptações, inovando alguns aspectos culturais.
210
FUNES, Eurípides A. “Nasci na matas, nunca tive senhor” _ História e memória dos mocambos do baixo
Amazonas. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: História dos Quilombos
no Brasil. São Paulo. Cia. de Letras, 1996. p. 481.
211
D, Dilma Assunção do Rosário. Entrevista concedida a autora em Jatimane, no dia 04.06 2007.
93
2.3 A ESTRADA: UM SÍMBOLO DE MUDANÇA
Uma estrada é antes de tudo infra-estrutura em uma localidade, um incentivo ao
desenvolvimento e viabilidade de acesso aos serviços básicos de saúde e educação.
Discutindo uma proposta de desenvolvimento para o Baixo Sul da Bahia, Fischer, afirma que
“há um entendimento entre estudiosos e analistas de que existe forte relação entre
investimentos em infra-estrutura econômicos [...] e o crescimento...”
212
. Deste entendimento
inferimos que a construção de estradas se tornou crucial para a integração e desenvolvimento
das diferentes regiões do país.
Mas, para a comunidade de Jatimane, a estrada tem uma outra conotação. Em várias
narrativas, a estrada é mencionada como um elemento que propiciou mudanças de
comportamento, demarcando rupturas internas, podendo ser entendida como um elemento
ambivalente, operando uma momentânea transição de comportamentos dos “tiradores” e
“catadeiras”, que através da estrada dão saída rápida à sua produção, ao mesmo tempo em que
o fácil acesso à comunidade propicia novos contatos sociais, a estrada também facilita um
rápido acesso da comunidade à zona urbana dos municípios vizinhos. Através das falas dos
entrevistados podemos avaliar o significado dessas mudanças para a comunidade.
Segundo as averiguações, no meado da década de 1980, grandes proprietários do
Pratigi ampliaram uma trilha que ia até Itaberoé distrito de Ituberá, transformando-a numa
estrada de “chão,” permitindo o tráfego de carros em época de verão. Em entrevista, o Sr.
Fernando Rosário esclarece:
Estrada, energia e telefone sempre fizeram parte das reivindicações de Jatimane,
primeiro veio uma estrada de chão, que pouco resolveu os problemas da
comunidade, que continuou a se deslocar pelo rio e mar. A estrada de chão, e a
trilha na mata eram usadas como uma outra opção. No inverno e no período de
chuvas, nas três baixas, que ficam no caminho, os riachos transbordavam e não
davam passagem nem para carro com “tração”, nem para gente. Sem falar no
atoleiro que tomava conta de toda a estrada. Entre os anos de l985 e l986 nós
lutamos e, graças a Deus, fomos atendidos com um programa de energia elétrica.
Mas você veja, os postes vieram um a um de barco, pois na época a estrada não
dava passagem, nem para carro de tração. Portanto, a gente continuava a pedir a
construção de uma estrada
213
.
49- FISCHER, Fernando (Org.). Baixo Sul da Bahia: uma proposta de desenvolvimento territorial. Salvador:
CIAGS/UFBA. 2007. p. 156.
213
Sr. Fernando do Rosário. Natural de Jatimane, 56 anos, casado, vereador ocupando o terceiro mandato e
presidente da Câmara Legislativa do município de Nilo Peçanha. Entrevista concedida a Maria de Carmem
Rodrigues Fernandes, em seu gabinete, em 05. 04. 2008.
94
Do seu lugar social, como político local, o Sr. Fernando do Rosário enfatiza que a
comunidade sempre esteve organizada em torno de suas reivindicações e atenta para
interesses particulares nas proximidades do arraial. A dimensão político-social toma corpo no
discurso de Sr. Fernando Rosário, ao relatar a visão que a comunidade tem de si, ao mesmo
tempo em que afirma não ser novidade à existência de interesses particulares na área do
Pratigi.
Confirma que a implantação da energia elétrica de fato melhorou a vida da
comunidade, e a construção da estrada era um equipamento de infra-estrutura muito tempo
desejado pela comunidade. Por motivos diferentes, este seria um empreendimento também
desejado pela prefeitura de Ituberá que, em aliança com o Governo do Estado e em nome do
desenvolvimento local, firmou um convênio para construção da estrada, percebida no meio
político como uma vitoriosa empreitada, segundo discurso oficial, a construção desta estrada
propiciaria “... o aceleramento do movimento turístico regional, servindo a todo o Baixo sul
da Bahia... dando condições para o tráfego de veículos até aquela praia...”
214
. A estrada em
questão é um trecho vicinal, denominado de RL264, com 20,1 km de asfaltamento, interligada
por três pontilhões de concreto, entre a BA 001 e a praia do Pratigi. Conforme Decreto
municipal, esta estrada foi inaugurada em 30 de março de 1998
215
, um momento de
importância para a região, festejado politicamente com feriado municipal e comitiva de
autoridades estaduais. A importância do fato se justifica pela construção desta estrada
significar uma iniciativa para o desenvolvimento regional sustentável e para a abertura do
Pratigi ao incrementando fluxo turístico previsto para a região.
FOTO 14 Mapa da estrada BL 264.
FONTE: Acervo do DERBA Departamento de Estrada e Rodagem da Bahia, d/s.
214
APCMI - Livro de Ata nº. 14. Poder Legislativo de Ituberá, p. 60.
215
APMI - Decreto nº.l.683. Prefeitura Municipal de Ituberá.
95
Esta rodovia 264 é mais que um caminho pavimentado em direção ao Pratigi, ela pode
ser percebida como um momento de mudanças internas em uma comunidade, que por muito
tempo ficou parcialmente isolada. Mas, as mudanças começaram a acontecer antes mesmo
que a estrada passasse no meio do arraial. Logo, na fase inicial de sua construção, a estrada
propiciou rupturas na comunidade.
Organizados numa grande parentela, os Rosários e seus agregados vivem
harmoniosamente. Entretanto, a estrada desejada e idealizada pela comunidade, mas
consumada em atenção a uma proposta de desenvolvimento regional, cujo projeto chegou
pronto e previa movimentação de terras dentro do arraial, provocou um pequeno cisma
interno. O movimento, denominado “corta rio”, causou estranheza e “ribuliço” entre os
parentes/vizinhos.
No projeto inicial para a construção da estrada, estavam previstos três pontilhões,
sendo um deles localizado exatamente no meio de Jatimane, uma vez que a comunidade foi
assentada numa baixa, às margens do rio, que tinha como recorte natural um acentuado zig-
zag. Esse “serpenteado” do rio em época de chuvas causava o transbordo das águas, alagando
o arraial. Por isto, estava previsto que a construção da ponte, dentro do arraial, implicaria no
aterramento do eixo central da comunidade, para “receber” a estrada num ponto mais alto e
interligá-la ao referido pontilhão, evitando o alagamento da comunidade em períodos das
“cheias”. Pelas marcações iniciais, o arraial perderia a estética e ficaria dividido em duas
partes. Ao comentar sobre a situação, Sr. Eustáquio Francisco Damasceno rememora:
O corta rio... eu lembro, não dá para esquecer. Nunca vi Jatimane em ribuliço como
vi desta vez. Uma conversada. Onde se viu uma coisa dessas, mudar o curso do
rio. Eu era contra, mas o pessoal ficava dizendo que a estrada não ia passar em
Jatimane por causa da gente
216
.
Segundo os relatos internos, o movimento de oposição ao “corta-rio” não teve uma
liderança explícita, mas os mais velhos consideravam um absurdo uma comunidade que
sempre teve a natureza como aliada, agora querer mudar o formato natural das coisas, ainda
mais que se tratava de mudar o curso do rio, que para eles, “é a vida de Jatimane”.
iniciada a obra, enquanto os engenheiros marcavam e demarcavam a posição da
estrada, a comunidade debatia-se, em constantes reuniões, sobre a possibilidade de uma
proposta alternativa que evitasse o aterramento que dividiria Jatimane, geograficamente, ao
meio. A solução encontrada foi o desvio do rio, uma alternativa que dividiu as opiniões dentro
216
Sr. Eustáquio Francisco Damascenos. Entrevista concedida a autora, em Jatimane, no dia 07.05.2007.
96
da comunidade. Segundo a contraproposta, o rio deveria ser parcialmente desviado para
minimizar suas curvas, o que evitaria as enchentes, um pequeno aterro completaria o desvio,
que deveria ser reforçado por um cais de contenção.
Mas, o breve conflito do “corta-rio,” evidenciou duas formas distintas de atuação
política na comunidade. Primeiro, o poder político partidário, ali representado pelo Sr.
Fernando Rosário, que sempre se mostrou organizado e mobilizado em prol dos interesses da
comunidade, preferiu se ausentar da questão, no conflito do “corta-rio”, por entender que este
não seria o fórum adequado para resolvê-lo. Ao justificar esta intencional ausência na questão,
o informante afirma que “... a estrada foi uma conquista da Prefeitura de Ituberá, não caberia à
Prefeitura de Nilo Peçanha interferir”
217
.
Conforme o julgamento do Sr. Rosário, a participação de um representante político do
município de Nilo Peçanha poderia causar um “mal-estar” intermunicipal e atrapalhar
possíveis soluções para a questão da construção da estrada. Então, decidiu não aparecer no
processo de negociação, para que o mesmo não se tornasse uma questão política partidária.
Analisada por este ângulo, a justificativa do Sr. Fernando do Rosário procede: no âmbito
partidário
218
, a estrada foi um empreendimento do Governo Estadual da Bahia, concedido ao
município de Ituberá e, portanto, fora de sua área de atuação, uma vez que exercia mandato de
vereador no município de Nilo Peçanha. Embora o vereador tenha expressado possuir um
bom relacionamento pessoal, com o então prefeito de Ituberá o Sr. Érico Leite, naquele
momento, pertenciam a bases partidárias diferentes, o que poderia contribuir para agravar a
situação. Assim, de forma conveniente, preferiu não se envolver na questão.
Segundo Bourdieu, um espaço social é construído histórica e culturalmente por uma
determinada sociedade e pode ser comparável a “um campo de forças, cuja necessidade se
impõe aos agentes que nele se encontram envolvidos”
219
. Analisando brevemente a polêmica
do “corta-rio”, pela invisível divisão do seu espaço social, podemos observar que a mesma foi
retirada da cena política partidária, mas, em contrapartida, acionou as redes de uma política
local, baseada na idéia de pertença, talvez mais legítima para tratar a questão naquele
momento.
Segundo informação dos entrevistados, após “muita falação,” e não chegando a
nenhuma definição objetiva, ficou acertado entre eles que a história do desvio do rio iria para
217
Sr. Fernando Rosário. Entrevista concedida a autora em Nilo Peçanha, no dia 05.04 2008.
218
Este é um momento de transição política, período de eleições estaduais, o então Governo baiano, comandado
pelo PFL, contava com o apoio do Prefeito de Ituberá, enquanto o Sr. Fernando Rosário estava filiado ao PMDB,
partido que nem sempre compunha a base aliada do Governo estadual.
219
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas. São Paulo: Papirus, 1996. p. 50.
97
votação. No dia previsto, para a esse espécie de plebiscito, dos 283 moradores apenas 72
apareceram, no local combinado, para votar pelo desvio do rio. Interpretando estes números,
supomos que mesmo os que eram contra o desvio do rio se omitiram em votar, talvez por não
existir uma melhor alternativa, ou para evitar o prolongamento daquele “mal-estar” interno.
Ou, ainda, por acreditarem que não poderia interferir numa decisão estabelecida entre o
município vizinho e o Governo do Estado.
Mesmo com a adesão de um pequeno grupo, após a votação ficou resolvido que, em
nome da comunidade, seria negociada uma alteração no projeto inicial da estrada, de forma
que a quantidade de aterro previsto para o seu nivelamento a altura do alicerce da ponte fosse
substituído por um corte no rio e um cais de contenção. À frente desta polêmica, estava o
atual presidente da associação dos moradores de Jatimane, o Sr. Miltaides Rosário, que dá sua
versão para o ocorrido:
A gente sempre quis essa estrada, mais da forma que eles mediram e na altura que
ia pegar o aterro para passar a ponte, ia ficar ruim. Então, esse lugar é dá gente. E a
gente ia ficar prejudicado? Ao mesmo tempo, não podia brigar, pra eles não
desviarem a estrada, e passar por outro lugar. Então o jeito era desviar o rio. Só que
os mais velhos começaram a fazer burburinho achando que era falta de respeito
com a natureza. Mas não foi falta de respeito não. Ao contrário, a gente respeita a
natureza, e sobrevive dela.
220
A partir das várias entrevistas já concedidas pelo Sr. Miltaides Rosário, através de suas
falas já analisadas, percebemos que é um hábito seu interpretar positivamente o espaço
territorial de Jatimane, ao mesmo tempo em que enfatiza suas idéias de pertença. Neste caso
específico, parece que o informante entendeu que o corta-rio seria a melhor opção para
conciliar os interesse da comunidade com os interesses do município vizinho.
Embora não existam documentos escritos sobre o ocorrido, o “corta rio” ficou
registrado na memória do grupo, e aqui foi investigado como um episódio que separou e
distinguiu formas diferenciadas de atuação no espaço social.
Por outro lado, analisando a geografia da estrada, percebemos a sinuosidade de suas
curvas. Dos três pontilhões projetados para interligar a estrada, apenas o que passa em
Jatimane não sofreu movimentação de terras, seguindo o desenho natural do lugar,
acompanhando a baixa do terreno, descendo até o arraial e, em baixo, “recebe” a ponte e,
logo após, torna a inclinar-se levemente para cima. A imagem, a seguir, permite uma
visualização panorâmica da estrada cruzando o espaço do arraial de Jatimane.
220
Entrevista com Miltaides Assunção do Rosário. Em 07.05.2007.
98
FOTO 15 - Visão da estrada dentro do arraial de Jatimane.
FONTE: Acervo icnográfico do IDES, imagem de Eduardo Moody, s/d.
Estrada também é memória, ou melhor, pode despertar a memória. Assim que foi
concluída a estrada RL264, as trilhas na mata foram praticamente desativadas, mesmo para
quem fosse se deslocar a pé, numa costumeira caminhada, melhor seria que esse
deslocamento fosse trilhado pela estrada. É a partir do momento da construção da estrada, que
as trilhas na mata foram desativadas, ficando em desuso, passando a pertencer ao campo da
memória, quando as caminhadas que antes duravam cerca de duas horas de viagem, tornaram-
se lembranças de viagens pitorescas. Um momento em que, no ato da rememoração, o
narrador tem sempre algo curioso para agregar ao conto de sua viagem. Ao comentar sobre a
estrada, Sr. Eduardo Rosário relembra:
Andar pelas trilhas, na mata não tem problema. Era não perder a hora do sol! Um
dia, no fim da tarde, fiquei em Itaberoé conversando um pouco mais com os
camaradas, quando dei por mim, o sol estava indo embora, me aprecei a chegar até
o caminho... e vamos andar. Quando menos espero tinha um Jaracuçu enrolado no
meio do caminho. Ai eu pensei! E agora? Não dava pra voltar. Também era tarde pra
„tucalhar‟ o bicho. Desviei do caminho, entrei pela mata e corri quanto mais ouvia as
folhas mexer, mais eu corria. Só parei de correr quando cheguei aqui no sítio
221
.
221
Sr. Eduardo Jesus do Rosário. 58 anos, natural de Jatimane, casado, pescador e tirador de piaçava. Entrevista
concedida a autora, em Jatimane, no dia 07.05.2007.
99
Neste sentido, ao percorrer o trecho da estrada, numa agradável viagem de carro, D.
Elenita de Jesus aflora sua lembranças. Lembranças de um outro tempo, guardado na
memória, que ela narra da seguinte forma:
Antes não tinha rodagem, a gente ia a pra Itaberoé, e de a gente tomava um
carro pra Ituberá. Eu não reclamava em andar nos caminhos da mata, estava
acostumada, nunca vinha só, tinha sempre uma camarada, a gente vinha
conversando
222
.
O percorrer da estrada parece que fez aflorar as lembranças de D. Elenita de Jesus,
lembranças de suas caminhadas pela trilha na mata. Segundo Ecléa Bosi, entre os sustentos da
memória podemos destacar “as paisagens sonoras típicas de uma época e de um lugar,”
223
uma idéia que nos leva a refletir sobre a possibilidade de uma determinada paisagem poder
aflorar lembranças, e de certa forma, emitir uma comunicação que deixa marcas profundas em
nossas relações. No caso de Jatimane, em determinados momentos essas marcas são afloradas,
como, exemplo, ao ouvir os sons familiares da água do rio, em uma das baixas” a caminho
do arraial ou, ainda, o som emitido pelo vento, ao “acariciar” os coqueiros de piaçava dentro
da mata. É o que nos sugere o processo de afloramento das lembranças de D. Elenita de Jesus.
De forma mais objetiva, os dois depoimentos que seguem expõem a percepção interna
entre o “antes” e o “depois” da estrada. Para o Sr. Anselmo Rosário, “a estrada era necessária,
antes dela, pra gente sair de Jatimane, era preciso duas marés, uma maré alta pra sair e outra
pra voltar. Depois da rodagem, tudo melhorou”
224
. O próprio Miltaides Assunção do Rosário,
que se envolveu de forma decisiva no episódio do corta rio, é categórico ao afirmar:
Nós sabemos com toda certeza que a estrada melhorou o local, mas atrás da
melhora vem a dificuldade, a gente agora fica preocupado, pode entrar qualquer
carro... não temos mais tranqüilidade, mas o desenvolvimento também vindo aí,
não tem jeito, onde tá o bom, tá o ruim
225
.
É positiva a percepção de Sr. Anselmo Rosário em relação à construção da estrada,
mas a fala de Miltaides Assunção do Rosário é mais cética, ele lutou pela construção da
estrada e atesta a percepção de mudanças locais a partir do seu advento, são mudanças boas,
mas tem consciência de que nada é perfeito. Daí a sua conclusão, segundo a qual “... onde tá o
bom, tá o ruim”. Ao discutir sobre o senso comum Geertz nos diz que existe uma sabedoria
222
D.Elenita de Jesus, 68 anos, aposentada, ex-moradora de Jatimane. Entrevista concedida a autora, em
Jatimane, no dia 06.01.2008.
223
BOSI. Ecléa. Memória e Sociedade: lembranças de velhos. São Paulo. Cia. de Letras. 1994. p. 445.
224
Sr. Anselmo do Rosário, 80 anos, natural de Jatimane, aposentado, viúvo, pai de seis filhos. Em 07.05.2008.
225
Sr. Miltaides Assunção do Rosário. Entrevista concedida a autora, em Jatimane, no dia 07.05.2007.
100
coloquial, com pé no chão, que julga e avalia (sua) realidade”
226
. Nesse sentido o Sr.
Miltaides Assunção do Rosário tem consciência de quanto a estrada facilitou a vida da
comunidade, mas sabe que junto à facilidade veio a insegurança.
Nestes depoimentos sobre a estrada, existe um ponto em comum que articula o breve
conflito do “corta rio” à viagem pitoresca do Sr. Eduardo Rosário, à rememoração de D.
Elenita de Jesus, à informação de Sr. Anselmo Rosário e à avaliação de Miltaides Assunção
do Rosário. Este ponto comum é a reapresentação simbólica da estrada como elemento de
mudanças comportamentais dentro da comunidade.
Antes mesmo de sua conclusão, a estrada gerou mudanças. Momentaneamente,
desagregou a parentela que se dividiu entre “contra” e “a favor” do desvio do rio. De maneira
simbólica, “transferiu” as trilhas das matas, que hoje sobrevivem nas lembranças dos mais
velhos do lugar. De forma mais concreta, o advento da estrada mudou comportamentos:
desativou o transporte marítimo dentro da comunidade, não sendo mais necessário entrar e
sair do arraial no ritmo das marés, ficando as canoas restritas a atividade pesqueira. Mesmo o
simples deslocar-se, internamente no arraial, sofreu influência da estrada, no seu espaço
geograficamente demarcado pela “manta” de asfalto; a costumeira malemolência do corpo,
com o seu ritmo lento, descansado, adquiriu uma cadência mais dinâmica ao atravessar a
estrada, principalmente nos finais de semana de verão, quando aumenta a freqüência dos
carros na direção da praia do Pratigi.
Ao ser decodificada, esta mudança de ritmo sinaliza a mudança dos tempos. Geertz nos
lembra que sujeitos históricos nascem imersos em uma cultura, reproduzem e evidenciam seus
significados, valores e sentimentos, uma cultura que se materializa no cotidiano destes
sujeitos históricos, que cultura orienta tanto sua existência individual quanto social.
Concordando com Geertz, entendemos que a análise cultural é uma abordagem
interpretativa, intrinsecamente incompleta, e quanto mais profunda, menos completa.
Portanto, esta análise cultural pode ser entendida como uma estrutura de representação,
metáfora de uma determinada realidade, uma das abordagens possíveis para interpretar as
variedades laborais e as práticas de sociabilidades dos jatimanenses.
226
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa / Clifford Geertz; tradução
de Vera Mello Joscelyne. Petrópolis. RJ: Vozes. 1997. p.115.
101
3 MANIFESTAÇÕES CULTURAIS E MEMÓRIAS
No capítulo anterior, buscamos enfocar uma análise sobre a variedade das práticas
laborais dos jatimanenses, uma cultura marcada por uma sua forte ligação com a terra e a
preservação do meio ambiente. Uma forma de viver própria destes sujeitos históricos, que
pode ser interpretada pelo viés culturalista do artigo 216 da Constituição Brasileira, que prevê
a proteção ao patrimônio cultural de um determinado grupo social. Portanto, esta forma de
fazer e viver singular dos jatimanenses considerada um bem imaterial, uma herança cultural
deixada pelos seus antepassados.
Mas, este legado cultural não se restringe apenas ao trabalho, pois em nome de suas
crenças e de seus valores, estas pessoas celebram e festejam suas tradições. Mesmo
entendendo que, em território brasileiro, o universo destas manifestações culturais pode ser
percebido como um resultado dialógico das variadas raízes culturais africana, ameríndia e
européia. No caso específico deste trabalho, as manifestações culturais dos jatimanenses são
abordadas sob o enfoque da perspectiva de uma cultura de resistência.
Conforme Gusmão “manifestações culturais e tradições, [...] têm servido para preservar
o espaço físico e social, [...] daqueles que primeiro instituíram a comunidade quilombola,”
227
assim o desvendar das manifestações culturais dos jatimanenses nos permite cotejar os
múltiplos significados e mensagens envolvidas na ludicidade de suas expressões culturais,
como o festejo da Queima das palhas dos presépios uma variação da festa aos Reis Magos
que tradicionalmente é celebrado pela comunidade de Jatimane. Uma outra forma de
manifestação cultural são as peças teatrais as comédias- que trazem em sua temática
ensinamentos sobre valores comportamentais dos jatimanenses, aqui entendidas como uma
forma lúdica de reatualização da memória que, o se limitando à oralidade dos mais velhos,
se apropria de outras formas de comunicação, a exemplo destas expressões artísticas que
atuam na interface entre a ludicidade e a memória. Afinal, uma linguagem cultural pode
assumir várias formas de comunicação.
227
GUSMÃO, Neuza Maria Mendes de: Herança quilombola: Negros, Terras e Direitos. In: MOURA Clóvis
(Org.) Os Quilombos na Dinâmica Social do Brasil. Maceió: EDUFAL, 2001. p. 346.
102
3.1 A TEMÁTICA DA FESTA
Como uma das formas de expressão cultural, a temática da festa tem instigado
pesquisadores contemporâneos que têm se debruçado sobre este objeto de estudo, sejam estas
festas de caráter cívico, familiar, religioso, institucional, ou popular.
Ao discutir sobre Festa à Brasileira
228
, Rita do Amaral destaca o espaço festivo como
uma forma de expressão cultural que, ao ser decodificado, permite captar especificidades
deste fenômeno, que tem na essência uma diversidade de signos e sentidos. Na análise de
Amaral, o espaço festivo desponta como um local privilegiado que faz intercâmbio entre
passado/presente/futuro, ao mesmo tempo em que mede diferentes dimensões, como a
fantasia e a realidade, ou o sagrado e o profano, podendo transcender as esferas da “política,
lazer, estética, tradição, trabalho etc. Em alguns casos pode ser também uma forma de
resistência [...]. Nosso sistemático festejar, longe de ser um problema, pode ser uma
solução”
229
. De forma intencional, fizermos aqui uma clivagem na temática da festa, para
focalizarmos o lugar das festas religiosas e a sua ressignificação dentro da cultura negra
brasileira.
Segundo Martha Abreu, na historiografia brasileira a temática da festa é um “atraente
caminho para se conhecer uma coletividade,”
230
e, de maneira específica, as “festas religiosas
emergiram dos estudos de história cultural como um local privilegiado para se pensar o
exercício da religiosidade popular e sua relação dinâmica, criativa e política,”
231
permitindo
observar valores, comportamentos de uma determinada coletividade. Desta perspectiva, a
autora discute que no Brasil a religiosidade colonial tornou-se uma herança cultural, e ainda
hoje existem resquícios deste legado, explícitos numa prática católica marcada pela
espetacularização com missas pomposas, danças, músicas, fogos de artifícios. “Tais festas
costumavam misturar e confundir as práticas sagradas com as profanas, tanto nas
comemorações externas como nas que eram realizadas dentro das igrejas”
232
, tornando-se
importante elemento de adesão à religião do colonizador, servindo de atrativo para uma
228
AMARAL,Rita. Festa à Brasileira.In:<http:www.antropologia.com.br/tribo/sextafeira/pdf/num2/a.htm>
alternativa+Rita+do+Amaral+Festa+%C3%A0+Brasileira&hl=pt BR&ct=clnk&cd=10&gl=br.
229
Idem, p.5.
230
ABREU, Martha. O Império do Divino: festas religiosas e cultura popular do Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1999. p. 38.
231
ABREU, Op. cit., p.37.
232
ABREU, Op. cit., p.34.
103
população negra, escrava ou liberta, que não perdia a oportunidade para mostrar suas
musicalidades e danças performáticas.
Analisando festas religiosas no Brasil colonial, Del Priore destaca a teatralização da
religião e a mistura entre o sagrado e o profano, um encontro explícito entre práticas
religiosas e pagãs no espaço da festa. Segundo Vainfas, aqui, na América portuguesa, as
festas religiosas eram “lugar de sociabilidade, de circulação de informações, de lazer, de
suspensão das tensões, de revivificação de tradições, de piedade católica e práticas gicas,
da ordem e da desordem, do controle e dos excessos”
233
, enfim um espaço fértil para uma
diversidade das relações culturais.
Ao discutir sobre festas negras, o historiador João José Reis argumenta que “a festa
foi vivida pelos escravos baianos com diversos fins, sentidos e resultados [como uma]
oportunidade para a celebração de valores culturais trazidos pelos africanos e de outros aqui
criados,”
234
sendo o calendário católico um importante espaço de celebração da vida e dos
valores negros. Este universo festivo, vivenciado pelos escravos baianos e seus descendentes,
tinha um caráter polissêmico e polimorfo. Culturalmente, representavam uma multiplicidade
de sentidos, congregando uma variedade de significados étnico-culturais. De maneira geral,
“toda festa negra, embora umas mais que outras, constituíam um meio de expressão da
resistência escrava e negra, portanto motivo de preocupação branca,”
235
que interpretava estes
festejos de forma dúbia, oscilando entre a concessão e a repressão a estas festividades, pois
“os diversos sentidos e as várias formas da festa no mundo da escravidão freqüentemente
confundiam os responsáveis por seu controle, conforme retifica o autor, ainda na mesma obra
e página citadas.
236
Para uns, estas festas negras eram interpretadas como anti-sala para
rebeliões escravas, para outros, estas festividades podiam servir como anestésico às tensões
sociais escravistas.
De maneira dinâmica, estas festas resistiram ao tempo, ressignificando alguns dos seus
elementos culturais. Miranda destaca que, desde tempo idos, o espaço da “festa era o espaço
das representações das diferentes culturas africana e portuguesa e possibilitava a construção
233
VAINFAS, Ronaldo. Brasil de todos os santos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002. p. 60.
234
REIS, João José. Tambores e Temores: A Festa Negra na Bahia na Primeira Metade do Século XIX. In:
M.C.P. Cunha (Org.) Carnavais e outras festas. Ensaios de história social da cultura. Campinas, São Paulo:
Unicamp, 2002. p. 101.
235
REIS, João José, Batuque negro: repressão e permissão na Bahia oitocentista. In: Jancsó, Istvánr, Íris Kantor.
Festa: Cultura & Sociabilidade na América Portuguesa. São Paulo. Hucitec, Fapesp, Imprensa Oficial, 2001.
p. 340.
236
Idem, p. 340.
104
das diferenças de identidades culturais e étnicas africanas, era um espaço de liberdade e de
continuidade dos festejos africanos,”
237
aqui na América portuguesa.
Ao estudar sobre os percursos das festivas manifestações negras da Bahia, Nogueira as
associa à religiosidade - percebendo-as como um bem imaterial, símbolo que compõe o
patrimônio cultural do povo baiano - e afirma que a “religião católica foi o ponto nodal [...]
das expressões afro-brasileiras. Através dos processos sincréticos, entre a Igreja católica e
religiões da África centro-ocidental, ocorreu”
238
uma mítica recriação de elementos africanos
presentes nas festividades negras baianas.
No espaço dialógico da festa, a população baiana escrava ou forra se apropriou de
valores da religiosidade ocidental portuguesa e adicionou suas singularidades, mesmo porque
sabemos da insistência dos negros em fazer um mundo seu do lugar e hora de festejar, um
mundo que desejavam sempre mais ampliado em tempo, espaço, formas gestos, jeitos, com
abundância de dança, música, comida, dádivas e deuses”
239
.
Um exemplo desta recriação afro-brasileira de festejar é a Queima das palhas dos
presépios, uma das variações da celebração aos Santos Reis na América Portuguesa, que, na
Bahia, tornou-se um momento de interação cultural. Neste sentido, ao registrar as tradições
populares na América Portuguesa, Mello Moraes
240
argumenta que a comemoração religiosa
da festa de Reis é uma das práticas devocionais advinda do calendário litúrgico, apropriada
pelo catolicismo, de origem luso-brasileira e reapropriada pela população, gerando uma
variedade de interpretações, a exemplo das pastorinhas, dos cucumbis, das cheganças, do
bumba-meu-boi e dos ranchos nômades.
O memorialista Nelson Araújo registra que no município de Conceição do Almeida, no
Recôncavo Baiano, era tradição encerrar “o ciclo das festas natalinas com a desmontagem dos
presépios ou lapinhas, celebrando-se e cantando a queima da palhinha”
241
. Semelhante
registro desta tradição popular é encontrado na memória dos mais velhos moradores da
237
MIRANDA, Carmélia Aparecida Silva. Vestígios recuperados: experiência da comunidade negra rural de
Tijuaçu BA. Tese de Doutorado em História Social. Pontifícia Universidade Católica da São Paulo, 2006. p.
136.
238
NOGUEIRA, Rodrigo Muniz Ferreira. A Festa negra na Bahia: do medo á apoteose. CULTUR - Revista
de Cultura e Turismo, Artigo, ano 02 n.01- jan/2008. In: <http www.uesc.br/revista/culturaeturismo htm>. p.
109.
239
REIS, João José. . Tambores e Temores: A festa negra na Bahia na Primeira metade do século XIX. In: M. C.
P. Cunha (Org.) Carnavais e outras festas. Ensaios de história social da cultura. Campinas. Ed. da Unicamp,
2002. p. 102.
240
MORAES Filho, Mello de. Festas e Tradições Populares do Brasil. São Paulo: EDUSP, 1979.
241
ARAÙJO, Nélson. Pequenos Mundos. Um Panorama da Cultura Popular da Bahia. TOMO I - O Recôncavo.
Fundação Casa de Jorge Amado, 1986. p. 147.
105
comunidade negra rural de Dom Vidal um grupo assumidamente formado por egressos da
escravidão, situado no município vizinho de Dom Macedo Costa.
Empiricamente, o festejo da Queima das Palhas é encontrado como uma tradição viva
nas comunidades negras rurais da microrregião do Baixo Sul, a exemplo das comunidades
remanescentes de quilombo de Jatimane e Boitaraca, assim como na comunidade negra rural
de São Francisco. Resguardando as particularidades culturais destas comunidades, elas
apresentam em comum o fato de considerarem este festejo como fruto de uma experiência
escrava vivida na Microrregião. Uma constatação que nos leva a concordar com o historiador
Flávio Gomes que afirma ser a cultura quilombola uma extensão da cultura escrava
242
. Assim
sendo, podemos afirmar que o festejo das Queima das Palhas é uma recriação cultural a partir
de elementos referenciais do imaginário escravista.
Dentro da comunidade de Jatimane, a manifestação cultural da Queima das palhas dos
presépios é uma festividade tecida no cotidiano destes trabalhadores da piaçava, que
inspirados numa tradição religiosa e cultural reinventam aspectos significativos desta
celebração natalina. Esta festividade é internamente assumida como uma tradição escrava, e
aqui é investigada a partir de uma leitura contextual, buscando compreender que “símbolos,
conscientes ou não, podem ser encontrados em todos os lugares, da arte à vida cotidiana
243
sem perder de vista que uma tradição cultural é dinâmica, estando em constante
ressignificação, na tentativa de adaptar-se às novas situações.
3.2 A QUEIMA DAS PALHAS DOS PRESÉPIOS
O festejo da Queima das palhas dos presépios pode ser entendido como uma cultura de
resistência. Trata-se de uma etapa plasmada da celebração natalina, que foi apropriada pela
comunidade de Jatimane e perfilhada pelos festejos profanos recheados pelos elementos
africanos presentes na música, na dança, e nos cânticos da festa, marcando um encontro
cultural entre a e a festa. Este dialogismo cultural envolve as etapas da celebração ao Deus
Menino numa mescla de cultura e devoção.
242
GOMES. Flávio Santos. A Hidra e os Pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no
Brasil, (Séculos XVII XIX) São Paulo: Ed. UNESP: Ed. Polis, 2005. p. 270/271.
243
BURKE, Peter. O que é História Cultural. Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 2005. p.10.
106
Da celebração natalina, marcada por uma essência cristã católica, descola uma festa
marcada pelo colorido da cultura afro-brasileira, segundo momento de celebração que aqui
será analisado. A descrição que segue antecipa ao leitor a composição deste festejo,
denominado de Queima das palhas dos presépios: no dia 06 de janeiro, em um acentuado
estado de sociabilidade, característico dos dias festivos, em que a rotina diária é rompida, os
jatimanenses desarmam os presépios, recolhendo as palhinhas na igreja onde são armazenadas
até à hora da festa. Durante o dia, o entra e sai de casa em casa marca a inquietação das
matronas, que soma às suas atividades laborais o preparo do banquete que será saboreado por
todos, no ápice da comemoração. À noite acontece o congraçamento na Igreja e, logo em
seguida, a festa ganha a rua. No largo central do arraial, os jatimanenses dançam e cantam ao
redor do fogo, onde queimam as palhas dos presépios. Neste mesmo espaço, uma “fartura de
comida e bebida, um grande banquete
244
é servido à comunidade, enquanto uma saraivada de
fogos sobe aos céus, anunciando que é dia de festa.
Neste sentido, Gusmão enfatiza que “festas, danças, rezas, mantêm e atualizam a
memória histórica, a identidade pessoal e coletiva, além de ensinar aos mais novos o
significado e a razão da vida partilhada com a terra e com os parentes
245
, o que reforça os
elementos de uma cultura de resistência explícita no espaço da festividade jatimanense, local
oportuno para reforçar valores locais expressos nas atitudes, nos gestos e comportamentos dos
jatimanenses. Numa análise cultural, é necessário decodificar as etapas da festa e captar seu
significado. Para este intento são esclarecedoras as palavras do professor Joseildo do Rosário,
ao assegurar que,
Aqui em Jatimane, seguimos o calendário litúrgico, então armamos o presépio na
igreja, na terceira semana de dezembro, junto com o período do advento. Assim a
gente arma o presépio - que é a representação do nascimento do Menino Jesus - e a
liturgia vai estar falando na vinda do Salvador. Um presépio maior é armado na
igreja com a participação da comunidade. Agora, aquelas pessoas que armam seu
presépio em casa, nem sempre seguem a liturgia, armam logo nos primeiros dias de
dezembro. Este é um período de congraçamento, que vai ao dia seis de janeiro,
com a queima das palhas. Uma tradição que nos mantemos na comunidade. A
queima das palhinhas é um costume antigo, as pessoas mais velhas diziam que era
uma tradição. Outros diziam que era um costume, desde o período da escravidão.
246
244
REIS, Op. cit. p. 106.
245
GUSMÃO, Neuza Maria Mendes de. Herança quilombola: Negros, Terras e Direitos. In: MOURA, Clóvis
Moura (Org.) Os Quilombos na Dinâmica Social do Brasil. Maceió: EDUFAL, 2001. p. 346.
246
Profº. Joseildo Rosário. Entrevista concedida a autora em Jatimane, no dia 06.01.2007.
107
Conforme o entrevistado, em Jatimane, os presépios são armados segundo a liturgia,
ou seja, a partir da segunda semana de dezembro período do advento, e recolhido seis de
janeiro, com a festa aos Reis Magos. Liturgicamente, esta ocasião representa a Epifania dia
de guarda no calendário religioso, sob influência dos povos mediterrâneos. Portanto,
inicialmente, é uma celebração natalina marcada pelo catolicismo, porém o seu encerramento
é celebrado com base na tradição local.
A narrativa do professor revela um diálogo entre elementos culturais e os valores
católicos da festa, adaptados à sobrevivência de uma tradição local, um antigo costume de
escravos da região, ou seja, a dinâmica interação de um elemento da cultura luso-européia,
incorporado às práticas culturais assumidas pela comunidade, como uma tradição escrava.
Outro relato explicita a essência católica da festa, ao mesmo tempo em que nos permite
entender sua intensidade para os jatimanenses. Em sua narrativa, o Sr. Nivaldo afirma:
Aqui nós somos católicos, sempre fomos católicos, eu tenho muita em Nossa
Senhora, aqui em Jatimane nosso padroeiro é São Bom Jesus da Lapa. Aqui s
gostamos de comemorar o dia de Natal, porque é um dia religioso em devoção ao
Menino Deus. Um período de satisfação, a gente se sente feliz. Uma satisfação que
tá no fundo da alma. É um momento de pensar no renascimento do Divino Menino
Jesus. Então para nós permanecermos assim, todo mundo junto, em harmonia, a
gente faz o presépio como uma forma de marcar a comemoração. Uma
comemoração que tem muita utilidade, você comemora o nascimento do Divino e
tem harmonia para viver com a família. Então, é coisa séria, quem faz o presépio
uma vez continua fazendo até o fim da vida. Quem fez o primeiro ano tem que
segurar a devoção até os dias finais! E no dia 06 de janeiro, a gente faz uma festa
bonita. A festa das palhinhas. Desde que eu nasci, que eu me entendo por gente,
encontrei essa festa das palhinhas, meu velho pai dizia que era festa de tradição,
desde o tempo dos negros fugidos. A festa existe, mas não é mais como no meu
tempo!
247
As informações culturais, contidas nesta narrativa, expressam a mescla de valores que
validam os comportamentos destes sujeitos históricos. No primeiro momento, ratifica a
influência de valores luso-brasileiros, simbolizados numa assunção católica dentro da
comunidade. Não se trata de um catolicismo “puro”, pois no Brasil de vários povos e crenças
tudo se misturou, mas em algum momento da história houve uma conversão, uma mudança na
cosmovisão deste povo, que optou ou foi forçado, através da catequese, a mudar a sua relação
com o sagrado, mas este catolicismo não foi absorvido “puro”, “intacto”, foi ressignificado.
Esta “assunção católica” faz parte de uma longa duração da história de alguns grupos
étnicos africanos, e quem nos ajuda a entendê-la é Marina Mello Souza que, no seu estudo
247
Srº Nivaldo do Rosário. Entrevista concedida a autora em Jatimane, no dia 06.01.2006.
108
sobre a religiosidade de comunidades afro-brasileiras, focaliza o catolicismo negro, chamando
atenção para a importância da religião cristã católica na África Centro-ocidental entre os
séculos XVI a XVIII, como resultado de um processo evangelizador empreendido pelo reino
português. Sobre esta conversão católica, a autora esclarece:
Se em territórios africanos [...] ocupados pelos portugueses [...] o catolicismo
deixou discretos vestígios no período pré-colonial, na América portuguesa os
africanos muitas vezes a ele se renderam, não sem recheá-los de contribuições de
suas religiões tradicionais
248
.
Inicialmente, este catolicismo ressignificado teria sido fruto de um encontro de duas
religiões, uma fusão de elementos do cristianismo dinamicamente combinado a diferentes
elementos cosmológicos dos povos bantos. Um “catolicismo africano,” termo cunhado por
John Thornton, que assim define “as religiões que se formaram por missionação empreendida
por Portugal, Espanha e Roma, havendo uma incorporação à moda banta de alguns ritos,
símbolos e explicações católicas.” A partir destas evidências, Souza argumenta que no
momento da forçada diáspora, este elemento religioso fazia parte da bagagem cultural de
muitos africanos escravizados e trazidos para o Brasil. E, concebendo cultura como um
espaço de luta e apropriação, faz-se necessário perceber que “o mundo da cultura e das
práticas culturais é (e sempre foi) repleto de contradições e conflitos, [...] esquecer estes
conflitos, ou as interações e tolerâncias que sempre existira, é perder de vista as possibilidades
de compreensão das práticas culturais.”
249
Neste mesmo sentido, Miranda argumenta que os
“valores e padrões culturais herdados da África incorporaram-se aos padrões religiosos da
América portuguesa
250
, portanto, dentro de uma lógica própria, a cultura popular construiu
novas alternativas, algo que pode ser entendido na simultaneidade das dimensões onde
resistência e contradição alimentaram o imaginário do negro, dando formato a uma nova
realidade para determinados grupos sociais com suas práticas culturais.
Um embate que adquiriu contornos mais significativos no território brasileiro onde o
afro-catolicismo criou raízes e frutificou, numa cultura dinâmica, em que ao longo do tempo,
indivíduos e grupos de indivíduos de várias procedências investiram em novos significados,
ao realçarem suas diferenças culturais.
248
SOUZA, Marina de Melo. Catolicismo Negro no Brasil: Santos e Minkisi, uma reflexão sobre Miscigenação
Cultural. In: Revisto Afro - Ásia. Salvador, EDUFBA, nº. 28/2002. p. 143.
249
ABREU, Marta. Ensino de História: conceitos, temáticas e metodologia. São Paulo, Casa da Palavra.
2003.p. 89.
250
MIRANDA, Carmélia Aparecida Silva. Vestígios recuperados: experiência da comunidade negra rural de
Tijuaçu BA. Tese de Doutorado em História Social. Pontifícia Universidade Católica da São Paulo, 2006. p.80
109
A afirmação deste catolicismo africanizado também foi observada por Funes, em sua
pesquisa sobre comunidades quilombolas do Pascoval, no Amazonas. Em suas observações, o
autor constata a forte marca da religiosidade nestas comunidades negras e a predominância de
um aparente catolicismo. A aparência explica-se porque,
A benzedura, [e] a prática do curandeirismo [...] fazem parte de um universo
cultural caracterizado pelo sincretismo religioso, [como] também faziam parte da
vida dos quilombos, festas [em homenagem aos santos] em que o sagrado e o
profano se confundem
251
.
Fato semelhante foi verificado por Carvalho, em seu estudo sobre a comunidade
remanescente de quilombo do Rio das Rãs, localizada no centro-oeste baiano, onde os
moradores locais “diziam praticar o que se convenciona denominar de catolicismo „popular‟,
estando suas festas relacionadas com as dos santos do hagiológio da Igreja Católica
Romana”
252
. Estes exemplos evidenciam uma fluida reafirmação do afro-catolicismo, num
processo de ressignificação de elementos culturais.
A narrativa do Sr. Nivaldo do Rosário evidencia uma prática afro-católica, ou
catolicismo popular, pois, posteriormente à celebração católica, a festa é perfilhada pela
comunidade, com o tradicional festejo da queima das palhinhas, com suas canções e comidas
típicas. O que nos encaminha à argumentação de um encontro de culturas, ou seja, um
dialogismo cultural entre valores portugueses e afro-brasileiros, explícito no espaço desta
manifestação cultural. Interpretação que converge para o pensamento de Miranda a respeito
da cultura negra, segundo a qual “o negro reinventou em terras distantes, modos de vida, que
foram transformados em linguagens extremadas através do canto, música, festa, alegria,
diversão e lazer
253
. Uma reinvenção atualizada através de um processo culturalmente
criativo/interativo, que muito bem define o festejo da queima das “palhinhas” de Jatimane.
Ainda em relação à fala do Sr. Nivaldo do Rosário, em um segundo momento, a
análise da narrativa evoca mais que uma celebração religiosa, o informante demonstra
conceber essa devoção de forma utilitária, um espaço de troca, o que nos leva a notar uma
relação entre o mundo metafísico e o físico, ou seja, uma relação de troca entre os homens que
celebram o Deus Menino e têm como recompensa a harmonia familiar. Segundo a crença do
251
FUNES, Eurípides A. “Nasci na matas, nunca tive senhor” _ História e memória dos mocambos do baixo
Amazonas. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: História dos Quilombos
no Brasil. São Paulo. Cia. de Letras, 1996. p. 476.
252
CARVALHO, José Jorge de (Org). O Quilombo do Rio das Rãs: Histórias, Tradições, Lutas. Salvador -
EDUFBA, 1995. p. 155.
253
MIRANDA, Op. cit. p. 84.
110
informante, uma vez estabelecido este contrato entre o sagrado e o terreno a devoção
precisa ser mantida até os “dias finais,” para garantir a continuidade do ambiente harmônico
entre a parentela, sentimento mais aflorado neste período de congraçamento natalino.
Essa lógica desnuda a importância da estrutura familiar no universo camponês, o que
pode ser explicado pela concepção de Cardel, ao afirmar que
O trabalho familiar é o sustento do campesinato [e] o cleo familiar não é uma
unidade isolada. [E sim, articulada]... com relações de parentesco, de amizade e,
principalmente, eslocalizada no interior de uma comunidade e fundamentado em
um coletivismo
254
.
Uma estrutura social semelhante foi observada por Carvalho, na comunidade
remanescente de quilombo do Rio das Rãs. Segundo o autor, nesta comunidade, a lógica de
coesão moral tem como cerne “o sentido de unidade, advindo da comunidade de parentesco,
[que] funde-se com o sentimento de unidade, advindo da comunidade de vizinhança”
255
.
Esta mesma lógica de coesão moral foi observada na comunidade remanescente de
Jatimane. De acordo com as narrativas, percebemos que este princípio moral é aguçado no
momento natalino. Afinal, este é um espaço oportuno para intensificar o fenômeno da
sociabilidade, pois, concordando com Miranda, “é no espaço das comemorações que as
relações sociais se entrelaçam e se aguçam,”
256
fortalecendo a convivialidade, concorrendo
para estreitar laços de sociabilidade entre os parentes/vizinhos, fortalecendo a estrutura de
sustentação social da comunidade de Jatimane, ao mesmo tempo em que mantém viva esta
manifestação cultural.
A memória coletiva dos jatimanenses registra este festejo como uma tradição. Os
relatos que seguem nos permitem cotejar experiências individuais que expressam significados
coletivos. Um dos mais ricos relatos de memória foi concedido por D. Zilda Merice do
Rosário, conhecida carinhosamente como D. Moça. Ao falar da festa, a narradora fez uma
emotiva viagem ao passado, com os olhos fechados, um sorriso entre os lábios e um visível
arrepio no corpo, ela diz:
Ui! Fui longe, essa conversa me fez voltar a um tempo bom. Que eu vivia a cantar. E,
da festa do Menino Deus eu fazia a minha festa. Coló cuidava das coisas da igreja,
254
CARDEL, Lídia Maria Pires Soares. A Concepção do Trabalho no Universo Camponês: um processo de
socialização. Bahia Análise & Dados, Salvador, SEI, v.6, 1, p.jun./96. p. 46.
255
CARVALHO, José Jorge de (Org). O Quilombo do Rio das Rãs: Histórias, Tradições, Lutas. Salvador
- EDUFBA, 1995. p. 200.
256
MIRANDA, Op. cit. p.131.
111
armava o presépio, e eu cuidava da festa, das cantigas, das danças. A minha festa
começava antes mesmo da festa do povo. Eu ia de casa em casa, combinar quem ia
o bolo, o cuscus, o peixe, o licor. Essa é festa antiga, festa de tradição. Antes eu
participava hoje eu assisto. Antes era eu e Coló que organizávamos a festa, hoje
quem organiza é Valda, e Déia. Mais eu lembro que eu gostava de cantar, hoje eu
ainda canto, mas não tenho peito para dá o tom grave. Antes eu fazia presépio em
casa, hoje, como não enxergo direito, colaboro com o presépio da igreja. Quem não
arma mais o presépio em casa, ajuda a montar o presépio da igreja. O presépio da
igreja sempre foi o maior. A gente visita os presépios de casa em casa, pega o
catecismo e o bendito. Quando passa a festa de aniversário do Senhor Menino, a
gente faz uma festa e queima as palhinhas dos presépios, cantando e dançando
257
.
Ao falar da festa, D. Zilda Merice do Rosário se assemelha ao sujeito benjaminiano e,
ao mergulhar no oceano de suas memórias, trabalhando numa vasta temporalidade, vai ao
encontro de outras fazes de sua vida, numa relembrança dos registros significativos da sua
experiência como festeira. Em sua narrativa, uma comparação entre as temporalidades da
festa, no passado - organizada pela informante em parceria com Dona “Coló”, no presente,
“Valda, Jô e Déia”, simbolizam uma nova geração de festeiros na organização do evento. Em
outra narrativa é Dona Amaurina Oliveira do Rosário que informa sobre o festejo:
Sou natural da comunidade de Boitaraca, casei cedo e vim morar em Jatimane.
Jatimane e Boitaraca são comunidades irmãs, as pessoas daqui e de têm hábitos
parecidos. A festa das palhinhas é muito antiga, não sei dizer quando começou... no
dia 06 de janeiro a gente desarma os presépios, junta todas as palhas que usou na
ornamentação dos presépios, leva para a igreja, junta com as palhinhas do presépio
maior que é armado na igreja. À noite, após a reza na igreja, a gente leva as
palhinhas para rua e põe fogo para queimar as palhas, neste momento a gente canta
e dança se despedindo do presépio, e como em toda festa tem comida e bebida. É
um momento de diversão
258
.
O relato de Dona Amaurina é complementado pela informação de Sr. Otávio do
Rosário, que diz:
Toda essa região aqui comemora o Menino Deus e os Reis. E aqui segue a tradição
de fazer a queima das palhas, os antigos diziam que esse costume era do tempo dos
escravos. A festa das palhas é uma tradição dos mais antigos. No dia de desarmar o
presépio, você junta as palhas que abrigou o Deus Menino, leva para a igreja e à
noite, depois de agradecer ao Senhor, é que essas palhas devem ser queimadas.
Você sabe, é como se essas palhinhas tivesse protegido o Menino Divino, então
elas não podem ser jogadas fora. Então, aqui a gente queima essas palhas, elas
viram cinza, e você pode espalhar essas cinzas. Algumas pessoas até guardam
um pouco das cinzas
259
.
257
D. Zilda Merice do Rosário. 77 anos, natural de Jatimane, catadeira e marisqueira aposentada. Entrevista a
Maria de Carmem Rodrigues Fernandes, em Jatimane, no dia 10.12.2008.
258
Amaurina Oliveira Rosário. 45 anos, natural da comunidade de Boitaraca, funcionária pública municipal.
Entrevista concedida a autora, em Jatimane, no dia 06.05.2006.
259
Sr. Otávio do Rosário. Entrevista concedida a autora em Jatimane, no dia 06.01.2007.
112
As narrativas ratificam que a celebração ao Menino Deus e aos Santos Reis é uma
tradição cultural, mas também é uma atitude manifestada pelos sujeitos jatimanenses no curso
de suas interações sociais com as outras comunidades dentro desta microrregião. Como disse
o Sr. Otávio do Rosário, “toda essa região [...] comemora o Deus Menino e os Reis”,
declaração que ratifica a forte influência dos hábitos culturais regionais, na comunidade de
Jatimane. Os dois municípios, Nilo Peçanha e Ituberá, com suas zonas rurais e urbanas, têm
uma tradição em celebrar o encerramento do período natalino com uma festa católica aos
Santos Reis. Fato semelhante ocorre na comunidade de Jatimane, onde a celebração católica é
apropriada e enriquecida com o distintivo elemento cultural de uma tradição escrava que
confere um caráter peculiar à festa dos jatimanenses.
Segundo os informantes, a festa é uma tradição interna da comunidade. Os relatos
sinalizam para a distintiva idéia de ser este um festejo de tradição que remonta a antigas
comemorações do “tempo dos negros fugidos”. Ao discutir sobre tradições, Hobsbawm
260
afirma que estas podem ser inventadas, buscando estabelecer e simbolizar uma coesão social,
podendo expressar uma idéia, valor ou padrão de comportamento que representam a
comunidade. Corroborando com esta discussão, Williams esclarece que “de toda uma possível
área do passado e presente, numa cultura particular, certos significados e práticas são
escolhidos para ênfase e certos outros significados e práticas são postos de lado, ou
negligenciados”
261
. Portanto, a idéia de tradição permite enfatizar alguns valores culturais em
detrimento de outros, a exemplo da festividade da queima das palhas dos presépios de
Jatimane, que é internamente valorizada e considerada uma tradição escrava, uma
manifestação cultural, deliberadamente escolhida como marca diacrítica da comunidade.
Neste aspecto, sobre cultura quilombola, o historiador Flávio Gomes sugere que esta
deve ser considerada como valor egresso do universo cultural dos escravos, em um dinâmico
processo de “recriação ou reinvenção”
262
. Assim, é necessário considerar que desde o Brasil
escravista “os negros insistiam na saudável idéia de celebrar intensamente a vida,”
263
e
aproveitavam o calendário católico para promover suas próprias celebrações, fossem estas
sincréticas, ou afro-católicas. Argumentação histórica que converge para a afirmação nos
relatos dos informantes, de que esta festa é considerada uma tradição para a comunidade de
260
HOBSBAWM, Eric e Terence Ranger. A Invenção das Tradições. Rio de janeiro: Paz e Terra, 1997, p. 21.
261
WILLIAMS, Raymond. Marxismo e Literatura. Rio de Janeiro: Zahar. 1979. p. 118.
262
GOMES, Flávio Santos. A Hidra e os Pântanos: mocambos, quilombos e comunidades de fugitivos no
Brasil, (Séculos XVII XIX) São Paulo: UNESP: Ed. Polis. 2005. p. 270.
263
REIS, João José. Tambores e Temores: A Festa Negra na Bahia na Primeira Metade do Século XIX. In:
M.C.P. Cunha (Org.) Carnavais e outras festas. Ensaios de história social da cultura. Campinas. Unicamp,
2002. p. 134.
113
Jatimane, reforçando a idéia de apropriação cultural. Negros: quilombolas, com o seu afro-
catolicismo, teriam, em algum momento da história, se apossado da festa de Reis,
transformando-a numa mescla de celebração católica e festejo africano, evidenciando uma
cultura de resistência.
Assim, observamos que nesta festividade, formada pela multiplicidade de práticas
culturais, ganham ênfase os significados específicos da africanidade brasileira, fundamentados
na “tradição escrava”. Trata-se de uma distinção cultural, emblematicamente utilizada como
realce, um ato político intencional, visto pela antropologia como marca diacrítica que
fundamenta o ideal da etnicidade. E, como a etnicidade é uma comunicação cultural que
possibilita o sentido de “pertença”, ela se caracteriza, entre outros elementos, pelo
reconhecimento de vínculos históricos de um determinado grupo social, utilizados como
símbolos de diferenciação.
A informação trazida por D. Amauriana Oliveira do Rosário mais o relato de D. Zilda
Merice do Rosário, todos apresentados anteriormente dão suporte para listarmos uma
multiplicidade de elementos culturais que compõem o festejo: a visitação, a musicalidade -
com seus cantos e danças, e o banquete.
3.2.1 A visitação
Dentro de uma pequena comunidade camponesa, a idéia de pertença e o ideal de
sociabilidade estão presentes como princípios organizatórios que são aguçados em tempos
festivos. De maneira específica, dentro do festejo da Queima das Palhas dos Presépios de
Jatimane, este momento de intensificação da sociabilidade pode ser identificado no ato das
visitações dos presépios que, além de representar uma “acolhida” ao Menino Divino, é
também o espaço para receber os irmãos para a visitação. Período em que tem início a folia.
Sobre este aspecto é pertinente a narrativa de D. Valda Conceição do Rosário. Ela nos
diz:
Veja só!Você faz um presépio bonito com toda devoção, claro que você vai querer
que seu presépio seja visitado. É assim que acontece: quem faz o presépio recebe a
visitação da comunidade para a reza do terço. É um período de muita alegria. Eu
termino armando dois presépios, porque eu, Jô e Déa somos responsáveis pelo
presépio da Igreja e também pela organização da festa. No dia 06, cada qual
desarma seu presépio e recolhe as palhinhas na Igreja. Logo cedo nós abrimos e
arrumamos a Igreja, recebemos e guardamos as palhinhas e voltamos para nossas
114
atividades. A essa altura, vamos confirmar os pratos combinados. À noite nos
reunimos na Igreja, Jô faz a pregação e em seguida fazemos a festa na rua
264
.
Dentro da concepção católica, a reza do terço é concebida como uma prece em família
em louvor ao santo celebrado. No caso específico da comunidade de Jatimane, essa família é
ampliada pela extensiva parentela da consangüinidade e da afinidade cultural, o que concorre
para reforçar o entrosamento e a sociabilidade entre os membros da comunidade, neste
período das visitações, ao mesmo tempo em que esta prática sociável converge os
jatimanenses para o ideal fraterno da mensagem católica natalina.
Conforme a narrativa, dentro da comunidade, é no período natalino que a sociabilidade
tem seu ápice, no auge da festa. No dia 06 do “ano novo”, acontece a culminância da festa;
dia movimentado com o desarmar dos presépios, o separar das palhas que serão queimadas e
o confirmar e preparar as iguarias, que serão ofertadas ao “divino” e degustadas entre os
“irmãos” em ritmo de festa, rezas, danças e cantorias.
À noite, no espaço da igreja, acontece o ato litúrgico, congregando a população
católica em louvor a Deus Menino. Este é o espaço simbólico que induz a uma idéia de
aproximação entre o homem e o sagrado, estreitando os laços entre dois mundos: o do homem
e o de Deus. Ao mesmo tempo, também simboliza um congraçamento comunal, estreitando os
laços de fraternidade e de sociabilidade entre os “irmãos”.
Outro diferencial percebido é a irreverência do ato litúrgico, comandado por um
membro da localidade, que naturalmente assume a parte litúrgica da festa. Aqui, estamos
diante de uma permanência de comportamentos na história da comunidade. Como foi antes
esclarecido por Dona Maria Madalena Rosário, “... no passado, um padre para chegar até
aqui, vinha montado no lombo de um animal, de Barra dos Carvalhos para cá, pela praia,
aproveitando a maré baixa...”
265
. Segundo a entrevistada, a presença de um padre na
comunidade era um evento que causava alvoroço, podendo mesmo ser considerado um dia
festivo, mas no geral a própria comunidade sempre assumiu a liturgia local. Portanto, não
causa estranheza que, ainda hoje, a liturgia da festa da Queima das Palhas seja comandada
por um membro da comunidade sem a presença de um padre.
264
D. Valda Conceição do Rosário. Natural de Jatimane, 48 anos, casada, doméstica. Entrevista concedida a
Maria de Carmem Rodrigues Fernandes em Jatimane, no dia 10.12.2008.
265
D. Maria Madalena Oliveira do Rosário. Entrevista concedida a autora 04.01.2006.
115
3.2.2 A musicalidade
No último momento da comemoração, a festa ocupa o espaço da rua. É o momento em
que os elementos culturais afro-brasileiros se apossam da festa; a roda que se arma em volta
do fogo é animada por ladainhas, versos ritmados por palmas e acompanhados pelos acordes
do cavaquinho e pela percussão do pandeiro e do atabaque. Neste espaço, tiradores e
catadeiras de piaçava, com sua musicalidade, compõem um ambiente formado por uma
mescla de unidades sonoras emitidas pelos acordes musicais, somados aos repiques do sino.
Paralelamente, inicia-se o degustar do banquete e os foguetes “pipocam” no céu, anunciando
que a noite é de festa.
Ao relatar sobre o festejo, D. Luzimar do Rosário explicita qual a sua canção
predileta e diz: “a música da festa, que eu mais gosto, é também a mais tocada, o nome é
„Adeus Presépio‟, a gente canta e dança e vai fazendo as tiras, vejamos:”
266
Adeus Presépio
Refrão: Adeus Presépio, adeus meu amor.
Adeus folinhas que o fogo queimou.
Quadra: Meu senhor, meu Deus Menino.
Eu não tenho o que lhe dá,
Eu só dou meu coração,
Pra Jesus abençoar.
Refrão: Adeus Presépio, adeus meu amor.
Adeus folinha que o fogo queimou.
Quadra: Jatimane não tem nome
Eu agora vou botar
Terra dos jardins e das flores
Bom Jesus que mora nele.
Na toada, a musicalidade estabelece uma afinada relação entre o ritmo tocado e os
versos cantados, uma sonoridade que contagia o ambiente, congregando todos nesta paisagem
sonora. Uma sonoridade percebida na dualidade sensitiva auditivo-visual, um som doce,
contagiante, formado por vozes e instrumentos, que estabelece um elo entre musicalidade e os
homens, animando-os a dançar. O cântico de exaltação ao festejo, no refrão, um coro de
266
D. Luzimar Oliveira do Rosário. 35 anos, filha de D. Maria Madalena Oliveira do Rosário, catadeira de
piaçava e marisqueira colonizada. Entrevista concedida em: 05.07.2008.
116
várias vozes canta a despedida dos presépios, louvando o seu significado. Nas quadras,
marcadas pelo improviso, o solista puxa o verso em agradecimento ao santo, ratifica a entrega
do homem à Deus e afirma que na antiga morada das abelhas, hoje brotam flores onde mora o
Bom Jesus, o coro responde com o refrão.
Uma outra toada nos é ensinada pela festeira D. Zilda Merice do Rosário:
Queimando as palhinhas
Quadra: Fogo mais fogo, fogo de arrasar.
Fogo mais fogo, fogo de arrasar.
Levanta Deus Menino e bota no altar.
Levanta Deus Menino e bota no altar.
Quadra: Fogo mais fogo, fogo de arrasar.
Fogo mais fogo, fogo de arrasar.
Queimando as palhinhas.
De Deus Menininho.
Quadra: Estamos queimando porque chegou o dia.
Estamos queimando porque chegou o dia.
Queimando as palhinhas com muita alegria
Queimando as palhinhas com muita alegria.
Estas quadras fazem referência ao fogo que queima as palhinhas que
ornamentaram os presépios em louvor ao Deus Menino. Numa perspectiva simbólica, o
fogo remete ao elemento festivo da cultura pagã dos povos celtas que, através da fogueira,
foi incorporado ao cristianismo católico. Conforme a reflexão do historiador Robert
Slenes,
267
o fogo também representava um elemento presente na cosmovisão banto-
africana, significando a continuidade de uma linhagem familiar, sendo capaz de fortalecer
laços com a ancestralidade, simbolizando a preservação dos minkisi espíritos
representados por estatuetas que teriam como principal finalidade manter viva a idéia de
“ventura”.
Assim, no plano simbólico, o fogo que queima as palhas dos presépios é um
elemento presente na dualidade afro-católica. E, de maneira concreta, o fogo “esquenta” os
ânimos na festa das “queima das palhas” em Jatimane, pois é ao redor do fogo que se
organiza um círculo onde as pessoas dançam e cantam ladainhas. Mas, o fogo está presente
também nos fogos que sobem ao céu, com seu clarão em um “pipocar” estridente
anunciando o festejo. Embora o fogo seja um elemento simbólico de dupla pertença, num
267
SLENES, Robert. W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava
Brasil, Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro. Ed. Nova Fronteira, 2000.
117
festejo de tradição quilombola, uma roda de dança, ao redor do fogo, realça o “colorido”
africano presente na festa.
Observando esta musicalidade, percebemos aquilo que Paul Gilroy
268
definiu como a
“sublime”, a capacidade dos negros de superar seus sofrimentos através de expressões
criativas, como a dança que celebra a festa e os valores culturais da população negra.
Remete-nos a Burke, em sua afirmação de que “a dança, quer a religiosa quer a secular, era
uma forma de arte particularmente importante na África tradicional.”
269
No ritmo do corpo,
também o palmear acompanha a música, e juntos desvelam um universo cultural negro,
heterogêneo e multifacetado, demonstrando que estas expressões artísticas podem
metaforicamente ser comparadas a uma marca digital que imprime sentido e significados em
uma existência social.
A música, como uma linguagem que ratifica valores, é percebida como um veículo de
comunicação em dimensão horizontal e vertical. De forma horizontal, observamos que os
jatimanenses acompanham o ritmo da ladainha, seguindo o curso da melodia, unindo os
integrantes “numa mesma pulsação que será a base para os movimentos corporais de suas
danças e melódicos de seu canto, o que faz da música, assim, um dos sinais de coesão do
grupo.
270
Essa textura musical cria uma atmosfera mística, que nos faz lembrar que nos
“rituais religiosos africanos, música e dança são essenciais à condução dos rituais,
indispensáveis à experiência religiosa.”
271
Desta forma, a musicalidade, como linguagem,
estabelece uma comunicação entre o homem e o sagrado, ao mesmo tempo em que ajuda a
fortalecer a coesão entre os homens.
3.2.3 O banquete
Outro elemento de conotação simbólica, aqui analisado, é a fartura presente no
banquete ao ar livre. Historicamente, o “banquetear” é um costume verificado em diversos
lugares e, quase sempre, esteve relacionado às comunidades agrícolas que festejam momentos
de fartura e boas colheitas. O memorialista Câmara Cascudo afirma que na América
Portuguesa era comum, nas festas em louvor aos Santos Reis, “... o hábito de se trocarem
268
GILROY, Paul. Atlântico Negro: modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Kniple Moreira. São
Paulo: Ed. 34ª; Rio de Janeiro: Universidade Candido Mendes, Centro de Estudos Afro--Asiáticos, 2001.
269
BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Tradução de Leila Souza Mendes. São Leopoldo. Editora Unisinos.
Coleção Aldus, 2003. p. 36.
270
LUCAS, Op. cit. p. 71.
271
Idem. p. 74.
118
presentes sob a forma de comestíveis”
272
. O historiador João Reis observou que era comum,
na Bahia imperial, festas negras regadas a banquetes, a exemplo dos festejos que ocorriam na
vila de Cairu, no Baixo Sul Baiano, em celebração à São Benedito. Naqueles festejos, o
“catolicismo africanizado” era explícito, com ritual católico, coroação de reis negros, danças
e, após a “missa, os foliões saíam de casa em casa bebendo, até o momento da procissão
solene”
273
. Através da observação de João Reis, percebemos que o “banquete” foi um
elemento importante nas festividades afro-católicas oitocentistas e no baixo sul baiano, um
ambiente receptivo às festas de Reis e suas variações, ainda hoje faz parte da festa.
Em Jatimane, o banquete é o momento da festa em que as especiarias doadas ao
santo são redistribuídas numa oferenda comunal. Sobre este aspecto, D. Jesenilda Ferreira do
Rosário diz: “... toda festa tem comes e bebes, então! São os pratos mesmo da gente, não tem
nem um doce diferente. É um mungunzá, um arroz doce, um bolo, uma canjica, um licor, um
guaraná. Isso pra meninada, é uma festa.”
274
A narrativa lista as principais iguarias
oferecidas no banquete que é posto sobre uma grande mesa, decorada por uma toalha branca e
ornada com folhas e flores nativas.
Segundo D. Valda Conceição do Rosário, logo cedo as matronas confirmam os
pratos que serão ofertados. No momento da festa, percebemos que elas se gabam das
especiarias ofertadas como se estivessem disputando seus dotes culinários, sem disfarçar a
satisfação pelo reconhecimento de serem boas quituteiras. Este banquete, ao ar livre, remete
às idéias de solidariedade e igualdade entre os membros da comunidade e, certamente, de
hospitalidade, posto que os visitantes também são convidados a participar. Uma redistribuição
de alimentos que expressa um ideal de solidariedade, segundo o qual os recursos alimentícios
socialmente acumulados são compartilhados pela parentela de forma igualitária, reforçando a
idéia de uma ceia oferecida ao santo e dividida entre os irmãos.
Concordando com Lucas, observamos que a festa “é o momento de reatualização da
memória.”
275
Assim, na perspectiva de uma cultura de resistência, a celebração da Queima
das Palhas dos Presépios reflete nítidos contornos da africanidade brasileira. E, através de
registros orais, e/ou numa reminiscência de memória, a comunidade informa os valores e
272
Apud, MORAES, Filho Mello. Festas e Tradições Populares do Brasil. Belo Horizonte. São Paulo, Itatiaia/
EDUSP, 1979. p. 210.
273
REIS, João José. Tambores e Temores: A festa negra na Bahia na Primeira metade do culo XIX. In: M. C.
P. Cunha (Org.) Carnavais e outras festas. Ensaios de história social da cultura. Campinas. Ed. da Unicamp,
2002. p. 117.
274
D. Josenilda Ferreira do Rosário. Natural de Jatimane, 52 anos, viúva, mãe de seis filhos, marisqueira e
catadora de piaçava. Entrevista concedida em 10.12.2008.
275
LUCAS, Glaura. Os sons do Rosário. O Congado mineiro dos Arturos e Jatobá. Belo Horizonte. Ed. UFMG.
2005. p. 71.
119
significados culturais implícitos no espaço da festa, ao mesmo tempo em que aproxima os
tempos da história, favorecendo a uma reatualização de seus valores culturais.
3.3 REATUALIZANDO A MEMÓRIA ATRAVÉS DAS MANIFESTAÇÕES CULTURAIS
Uma antiga forma de manifestação cultural que só agora vem ganhando notoriedade são
as “comédias” de Jatimane. Trata-se de uma atividade lúdica desenvolvida pela comunidade,
congregando seus atores infanto-juvenis. Como expressão cultural, estas peças podem ser
interpretadas como um procedimento comunicacional, num processo de reatualização da
memória. Através destas expressões artísticas, os jatimanenses se tornam porta-vozes de si,
pois seus scripts enfatizam seus principais eventos e/ou comportamentos, uma forma de
recuperar e transmitir elementos significativos de suas experiências históricas.
A comunidade percebe a visibilidade e o reconhecimento destas manifestações
culturais, constatação que concorre para fortalecer a auto-estima e o interesse dos jovens
jatimanenses pelos aspectos da sua cultura. Tal questão é evidente no relato da Srtª. Pedrina
Ferreira do Rosário:
Tenho orgulho em pertencer à comunidade remanescente de quilombo de Jatimane,
coordeno um grupo cultural que a gente chama de “renovação”. . Na verdade o
grupo tenta perpetuar nossa cultura, aquilo que nossos antepassados viveram que
para não ser esquecido, e, para não perder o sentido, precisa ser executado. Nosso
grupo tem vinte componentes, dividido em duas faixas etárias, em várias comédias
educativas
276
.
A narrativa explicita o processo em que memória e ludicidade tecem e fortalecem
aspectos da cultura local, recuperando experiências históricas em temáticas educativas
adaptadas à espetacularização performática. Ao mesmo tempo, essas manifestações culturais
concorrem para aguçar as sociabilidades entre jatimanenses, uma vez que os ensaios das peças
teatrais aglutinam os jovens atores, constituindo-se em momentos de satisfação. No relato do
jovem Jamilton Luz do Rosário, um destaque para os momentos de sociabilidades propiciados
nestes ensaios:
Tenho orgulho em participar das comédias que falam sobre a cultura do meu povo,
conta um pouco da nossa história. Participo das comédias desde cedo, antes fazia
276
Srtª. Pedrina Ferreira do Rosário. Natural de Jatimane, 21 anos, solteira, estudante. Entrevista concedida a
Maria de Carmem Rodrigues Fernandes, em Jatimane, no dia 10.12.2008.
120
parte do grupo infantil, hoje faço parte do grupo juvenil, tenho na ponta da língua
cada fala, cada cantiga. O legal mesmo é participar dos ensaios, junta todo o grupo
para ensaiar na pracinha ou no bar de D. Nida. Quando erra a fala ou se perde na
cantiga, é uma azoarão, a galera se diverte
277
.
Baseado em interesses específicos, o jovem Jamiltom Luz do Rosário destaca, em
interpretação, que o momento de maior satisfação propiciado por estas comédias é o “estar
com”, ou seja, a interativa relação vivenciada no momento dos ensaios, em que os jovens
atores demonstram sentir prazer em interagir, e os acertos, bem como os erros na
dramatização, servem de alavanca para aguçar a sociabilidade, expressa na azoarão e no
divertimento do grupo.
Dentre várias expressões lúdicas culturais, destacamos duas peças para análise, nas
quais os jatimanenses se tornam porta-vozes de si: O casamento de Epifânio uma comédia
de curta duração, que retrata o primeiro casamento oficial ocorrido dentro da comunidade de
Jatimane, apresentada em momentos festivos, como a abertura na dança do samba de roda; e a
moça na varanda, manifestação cultural que se expressa através da ludicidade. Uma espécie
de comédia, cantada em versos que refletem os códigos culturais dos jatimanenses.
Assim, refletida em cena, no mundo da expressividade, uma auto-representação da
cultura local, o que nos permite abrir um flanco de diálogo com a etnocenologia, uma área do
conhecimento aproximada da etnologia, que tem
Como objeto de estudo as formas de manifestações culturais que são próprias de
um povo, ou seja, tudo aquilo que faz parte das formas elaboradas de espetáculos,
da memória coletiva, [...] para a abordagem etnocenológica
278
.
Assim, a trama da vida real serve de inspiração para jatimanenses, ao mesmo tempo em
que a auto-representação, reelabora valores, atualizando a memória.
3.3.1 O casamento de Ephifânio
Nesta tecedura, o processo de reatualização da memória é percebido na análise
etnocenológica e reforçado nas falas dos moradores locais, a exemplo da narrativa da jovem
Aridenis Ferreira do Rosário que, ao lado da irmã Pedrina, resolveu reativar a peça teatral
sobre um casamento que aconteceu na comunidade. É Aridenis quem nos conta:
277
Jamiltom Luz do Rosário. Entrevista concedida num grupo focal, em 07.05.2008.
278
p. SUZART, Cleverson. Contribuição para uma definição de Etnocenologia, Chérif Khaznadar. Parte I, 27
p. Disponível em < http://teatro.ufba.br/gipe/files/cadern_01doc> Acessado em 20.01.2009.
121
Quando menina, sempre participei das comédias, eu fazia o papel da noiva
Celvira, na comédia “O casamento de Epifânio”. Antônio fazia o papel do noivo
Epifânio. [...] Geraldo fazia o padre. Nós três representávamos a celebração do
casamento de Sr. Epifânio e D. Celvira e, depois do casório, convidávamos o
povo para dançar abrindo o samba de roda. Quem deu a idéia da peça sobre a
festa do casamento foi Sr. João Palmeira e Dona Maria Madalena, eles diziam
que o casamento de Sr. Epifânio com Dona Celvira foi uma festona aqui na
comunidade. Depois eu fui pra Valença, fazer o 2º grau, Antônio, que fazia o
papel do noivo, foi embora procurar trabalho em uma cidade maior. Dona
Madalena mudou de religião e deixou de ensaiar as comédias. Agora que eu
voltei para Jatimane. Eu e minha irPedrina estamos ensaiando a peça do
casamento com as crianças daqui. A gente conta com as informações do Sr. João
Palmeira pra ensaiar a peça do casamento
279
.
Mesmo que a informante descreva uma cena que se assemelha à tradicional
apresentação junina do casamento na roça, no script, a temática é reelaborada enfatizando
uma experiência histórica vivenciada pela comunidade. Portanto, mais que uma atividade
lúdica, a peça teatral sobre o casamento de Epifânio tem uma função informativa para os
jatimanenses, pois se baseia em um fato real, episódio de importância para a comunidade.
Trata-se do primeiro casamento oficial ocorrido na comunidade de Jatimane, um evento
percebido, internamente, como um marco significativo, uma vez que os casamentos anteriores
eram de fato uniões estáveis, posteriormente abençoadas por um padre, em época de missões
religiosas. Sobre este aspecto, D. Maria Madalena, ao recorrer às lembranças de sua juventude
- uma época em que sua madrinha, Dona Maria do Amparo contava as histórias sobre a
comunidade de Jatimane, histórias essas que ela pontuou em seu “caderno” de memórias-,
esclarece:
Esse casamento não foi do meu tempo. Mais eu lembro que os mais antigos
falavam que esse foi o primeiro casamento que existiu aqui. Minha madrinha dizia
que este foi o primeiro casamento que existiu aqui, casamento mesmo com festa e
tudo. Tem diversas pessoas casadas aqui, porque vivam juntos, tinham seus filhos,
e, um dia eram abençoados por um padre, [...] mas um padre pra vir aqui era de
tempo em tempo, dependia de andar pela trilha da mata, em lombo de animal, ou de
canoa através do rio. Quando acontecia chegar um padre aqui, eram três dias de
festa: fazia missa, batizava todo mundo, casava todo mundo. Mas eu não sei como
foi o casamento, eu não sei se foi civilmente ou foi na igreja o que eu lembro, é que
minha madrinha contava que Dona Celvira casou com Sr. Epifânio, e que eram
pessoas bem antigas daqui. E existiu sim o casamento, mas o casal é falecido. O
casal já Deus chamou
280
.
O registro civil encontrado ratifica a existência do casamento entre O Sr. Epifânio
Marcelino dos Santos, comerciante e natural da comunidade de Jatimane, e D. Maria
279
Aridenis Ferreira do Rosário, 20 anos, moradora de Jatimane, faz parte do grupo Renovação. Entrevista
concedida a Maria de Carmem Rodrigues Fernandes, em Jatimane, no dia 06.01.2008.
280
D. Maria Madalena Oliveira do Rosário. Entrevista concedida a autora em 04.01.2006.
122
Claudemira de Araújo, doméstica e natural da cidade de Ituberá. Portanto, a informação de D.
Maria Madalena do Rosário confirma nossa argumentação desta manifestação cultural ser um
processo de reatualização da memória dos jatimanenses, pois traz no seu bojo elementos
comunicacionais sobre um evento local, sendo ao mesmo tempo instrumento potencializador
de socialização dos valores dos jatimanenses, que, de forma lúdica, se apropriam deste
episódio social permitindo que, metaforicamente, a linguagem artística reproduza e enfatize
uma releitura do seu passado. Nesta perspectiva, a etnocenologia prevê que fatos
significativos e elementos culturais de um povo tornem-se referência para uma auto-
representação espetacularizada.
Em outra entrevista, o casamento de Epifânio aparece como ponto de referência,
utilizado como divisor temporal na comunidade. Uma “memória que mesmo narrada de forma
individual, expressa lembranças coletivas da comunidade”
281
. Assim, ao narrar sobre a
assunção católica do grupo, Sr.Nivaldo Rosário retoma as lembranças do seu pai, e diz:
Meu pai dizia que desde o início do sítio de Jatimane foi construída uma igrejinha.
Uma igreja improvisada, feita de taipa, coberta com palhas, mas com devoção e
muito empenho o pessoal teria melhorado esta construção. Mesmo assim, meu
tempo de criança, é que igreja foi refeita como está hoje, toda de material de
construção, feita de pedra e cal. Esta construção nova foi inaugurada com o
casamento e Epifânio. Foi uma festa grande, a festa do casamento e da inauguração
da igreja. A igreja de nosso Senhor Bom Jesus de Jatimane
282
.
Assim refletimos que, dentro de uma comunidade de assunção católica como Jatimane,
a construção de uma igreja foi literalmente um marco de significação na memória dos seus
guardiões. A inauguração ganha ênfase ao ser associada ao primeiro casamento oficial
ocorrido dentro da igreja o casamento do Sr. Ephifânio com D. Celvira. Uma festividade,
que passou a ser retratada como uma expressão artística de Jatimane, e aqui, é entendido
como um daqueles pontos de significação sobre os quais Ecléa Bosi nos adverte. Segundo a
pesquisadora, alguns pontos da vida podem concentrar maiores significações de nossas
lembranças, uma “... mudança de casa ou de lugar, morte de um parente, formatura,
casamento...”
283
. Portanto, argumentamos que esta é uma data significativa para a
comunidade de Jatimane, um fato que aparece em diferentes entrevistas, servindo de pontos
significativos para variadas relembranças. Mesmo porque, memória é um múltiplo de
281
FUNES, Eurípides A. “Nasci na matas, nunca tive senhor”. História e memória dos mocambos do baixo
Amazonas. In: REIS, João José; GOMES, Flávio dos Santos. Liberdade por um fio: História dos Quilombos
no Brasil. São Paulo. Cia. de Letras, 1996. p. 468.
282
Retomando a entrevista do Sr. Nivaldo Rosário. 80 anos, morador de Jatimane, casado, pai de dez filhos,
tirador de piaçava aposentado. 04.01.2008.
283
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança dos velhos. São Paulo. Cia. das Letras. 1994. p. 415.
123
vivências individuais e coletivas a um tempo, e a narrativa de Sr. Nivaldo do Rosário
evidencia que, aquilo que o narrador lembra, como e quando lembra, é uma construção
coletiva, que se faz a partir de quadros sociais da sua memória, recuperada e reatualizada
através de referências vividas. E, neste caso específico, a lembrança dos mais velhos é o
suporte que traz, ao palco, o retrato de uma trama da vida real.
Considerado internamente como um ponto significativo da história local, o casamento
de Epifânio volta a emergir em outra entrevista. Ao relatar sobre sua vida, o Sr. Manuel da
Luz apóia suas lembranças em datas referenciais, entre as quais está o referido casamento. Em
seu relato, ele desabafa:
[...] saí de Jatimane quando minha mulher morreu de parto, meu filho morreu junto,
ainda hoje eu lembro do meu primeiro casamento, foi quase na mesma época do
casamento de Ephifânio. No casamento de Ephifânio teve dois dias de festa,
ninguém trabalhou
284
.
Este é um registro de memória individual, apoiada em pontos significativos da vivência
do Sr. Manuel da Luz. O seu primeiro casamento, a morte da esposa, a morte do seu
primogênito, são estímulos sobre os quais afloram suas lembranças, entre as quais está a festa
do casamento de Epifânio. A memória, como um espaço multifacetado, apresenta uma
releitura de pontos significativos das lembranças individuais do narrador, fluindo rapidamente
ao percorrer várias etapas de um passado vivido.
São relatos individuais, vivenciados ou não pelos sujeitos, que dão conta da história do
grupo e sobre o grupo. Na entrevista concedida pelo Sr. João Palmeira, ele associa um
mutirão feito dentro da comunidade para a construção de novas casas, logo após o casamento
de Epifânio:
[...] juntou todo o pessoal, para derrubar umas árvores e abrir um espaço para
construir novas casas para as novas famílias que vieram para [...] isso aconteceu
logo depois do casamento de Epifânio com Celvira, não lembro se foi em 1914
ou em 1915
285
.
Segundo Dona Maria Madalena Rosário, a idéia de transformar a data significativa do
referido casamento em um marco de representação local, foi do Sr. João Palmeira, um dos
guardiões da memória de Jatimane. Mas, provavelmente, esta memória não é sua. Pode ter
sido uma narrativa de seus pais, que Sr. João Palmeira incorporou à sua memória. Segundo
284
Sr. Manuel da Luz: Entrevista concedida a autora em 30.11.2008.
285
Sr. João Palmeira. Entrevista concedida a autora em 06.05.2007.
124
Bosi,
286
é possível que alguns memoriosos narrem fatos vivenciados pelos seus pais. Além do
mais, Sr. João Palmeira se embaraça num desvio de memória, um deslocamento temporal,
pois, segundo sua narrativa, ele não lembra se o referido casamento teria ocorrido em 1914 ou
1915.
O intrigante é que o informante nasceu em 1929 e a certidão do casamento civil de
Epifânio Marcelino dos Santos e Maria Claudemira de Araújo, data de 07 de outubro de
1932
287
. Portanto, no período desta celebração, o informante estaria com três anos de idade, o
que nos encaminha para a idéia de uma lembrança familiar incorporada por Sr. João Palmeira.
Estas narrativas, apoiadas em lembranças, podem caracterizar um fenômeno situado na
fronteira entre a cultura e a memória dos jatimanenses. Cultura evidenciada nos relatos que
informam sobre os comportamentos de Jatimane: o empenho das pessoas para construção da
igreja; a solidariedade presente também na preparação do terreno e na construção de novas
casas; casamentos à base de uniões estáveis, com posterior benção do padre; a valorização de
um casamento consagrado que se tornou um marco de significação dentro da comunidade e
que, até por isso, passou a ser espetacularizado, ao ser representado nas peças de teatro - as
comédias.
Mas, estas narrativas também são registros da memória, uma memória considerada
como um legado deixado pelos antepassados, observando que, eventualmente, estas memórias
podem incorrer em desvios temporais ou distorções factuais. Ao retomar as lembranças de seu
pai, o Sr. Nivaldo Rosário nos diz que a nova sede da igreja teria sido inaugurada com o
casamento do Sr. Ephifânio, cuja representação da celebração religiosa foi incentivada por Sr.
João Palmeira. Mas, Dona Maria Madalena Rosário complementa esta informação: ela tem
registrado em seu “caderno” de memórias que este foi o primeiro casamento oficial dentro da
comunidade, mas diz não poder afirmar se se tratava de um casamento civil ou religioso.
Aqui, cabe assinalar que, embora o casamento seja representado como uma celebração
religiosa, o documento encontrado é de um casamento civil, o que não invalida a
possibilidade de uma grande festa, dentro da comunidade, a festa da qual o Sr. Manuel da Luz
diz ter participado por dois dias, em que ninguém trabalhou.
Desta forma, a comédia sobre o casamento de Ephifânio tornou-se uma expressão
artística, uma auto-representação, que ao ser decodifica revela eventos sociais significativos
para a comunidade de Jatimane, ao mesmo tempo em que desvela a criatividade deste grupo
286
BOSI. Op. cit.
287
Comarca de Santarém, Registro Civil, livroº03. Nivaldo Rosário. 80 anos, morador de Jatimane, tirador de
piaçava aposentado. Entrevista concedida em 04.01.2007.
125
social em transformar elementos de sua trama real em um lúdico espetáculo que concorre para
reatualizar a memória dos jatimanenses.
3.3.2 A moça na varanda
Uma outra expressão lúdica, que reatualiza valores e comportamentos dos
jatimanenses, é a comédia musical. A moça na varanda, de forma metafórica, usa a linguagem
artística para expressar os próprios códigos culturais da comunidade, mesmo que a peça não
seja original dos jatimanenses. A comédia é apresentada na versão infantil e/ou juvenil, e
conta com a participação ativa de três atores, que representam os personagens do pai, a filha, e
o seu pretendente, trazendo um diálogo cantado, em que tematizam a rejeição do pai ao vê sua
filha cortejada por um rapaz de fora da comunidade. Nesta peça musical, executada em tom
cômico, as falas cantadas pelos atores são embaladas pela sonoridade do cavaquinho e do
pandeiro, e acompanhadas pelo ritmo das palmas, num processo de interação com os
espectadores. A toada diz:
A Moça na Varanda
O moço: Bom dia, boa tarde moça da varanda.
Bom dia, boa tarde moça da varanda.
A moça: O meu pai não está em casa, pode ir se arretirar.
O meu pai não está em casa, pode ir se arretirar.
Chega o pai da moça: Oh, papai aqui tem um moço que veio me falar.
Oh, papai aqui tem um moço que veio me falar.
O pai responde: Lá na sala tem cadeira, manda ele se sentar.
Lá na sala tem cadeira, manda ele se sentar.
O moço diz: Eu não quero me sentar vim falar um particular.
Eu não quero me sentar vim falar um particular.
Vim falar a sua filha para comigo casar.
Vim falar a sua filha para comigo casar.
A reação do pai: Eu não quero casamento em terras alheias.
Eu não quero casamento em terras alheias.
Casamento que tenho pra ela ta aqui na minha pea.
Casamento que tenho pra ela ta aqui na minha pea.
A reação da moça: Oh, papai não fale isso e nem torne a repetir.
Oh, papai não fale isso e nem torne a repetir.
Se tornar a repetir arrumo a roupa pra fugir.
Se tornar a repetir arrumo a roupa pra fugir.
126
Para uma análise cultural, em diálogo com a etnocenologia, segundo Pradier,
288
o
estudo da peça deve considerar a espetacularização da comunidade e sua relação como parte
integrante no mundo, indo ao encontro de uma hermenêutica da ação, que analisa como o
homem pensa e age com o corpo em uma situação performativa, bem como dimensiona seus
discursos, valores e símbolos culturais.
Para além da leitura de uma peça escrita, num simples roteiro, através de uma leitura
etnocenológica em que o contexto é lido com o auxílio dos sentidos e também dos registros de
memória, confrontada com uma pesquisa empírica, constatamos que a categoria tempo flui
rapidamente, fundamentando valores e comportamentos de uma época, retratados nesta
manifestação cultural, através da ludicidade. A toada representa valores de um tempo pretérito
em que era forte a idéia de preservação da unidade familiar através dos casamentos
endogâmicos, rechaçando a corte de rapazes de fora às belas moças jatimanenses.
Conforme nos ensina Pradier, é preciso abrir “nossos sentidos e inteligência para o
mundo”.
289
Por este ângulo, a decodificação da toada da comédia A moça na varanda passa a
apresentar marcas indeléveis da memória da comunidade, e mostra uma mensagem subliminar
em sua canção, que nos induz a uma reflexão muito significativa sobre a reação do pai da
moça à corte feita pelo rapaz. A quadra enfatiza:
Eu não quero casamento, em terras alheias.
Eu não quero casamento, em terras alheias.
Casamento que tenho pra ela ta aqui na minha pea.
Casamento que tenho pra ela ta aqui na minha pea.
Percebidas como uma auto-referência, essas inscrições devem ser lidas a partir de
referências históricas e culturais da comunidade. Assim, a análise desta estrofe, que se refere
ao casamento em terras alheias, também desvela o ideal de pertencimento, assegurando os
direitos territoriais dos filhos, netos, bisnetos, e assim por diante, transformando a
comunidade de Jatimane num local fechado, onde pessoas estranhas, de outras terras, não
deviam se casar com indivíduos que compunham a comunidade de Jatimane. Mesmo porque,
o ideal de pertencimento demarca “a forte ligação com a localidade [e] expressa a identidade
étnica e o sentimento de pertencer à terra...”
290
que foi dos seus antepassados.
288
PRADIER, J. M. Manifesto da Etnocenologia: Performáticos, Performance & Sociedade. J. G. Teixeira.
Brasília, 1996. UnB/Transe: p.21-22.Disponível em<http://books.google.com.br/book ?id=8EqCTki84C&pq=
PA17&dq=manifesto+da+etnocenologia>. Acessado em: 20.01.2009.
289
PRADIER. Op. cit. , p. 28.
290
CARRIL, Lourdes. Terras de negros: herança de quilombos. São Paulo: Scipione. 2002. p. 19.
127
Neste sentido, ao pesquisar sobre a comunidade remanescente do Rio das Rãs,
Carvalho constatou que inicialmente a comunidade era fechada, constituída a partir de uma
“parentela pessoal”, e só posteriormente algumas pessoas de fora passaram a integrar a
comunidade “através de sua relação de parentesco com alguém casado dentro da
comunidade.”
291
Uma constatação que nos leva a pensar que as uniões realizadas dentro da
comunidade de Jatimane, entre a parentela, garantiram uma união estável e o amparo da
futura prole. É importante salientar, que estas reflexões ficaram evidenciadas após a leitura de
uma bibliografia específica e relatos de moradores locais, colhidos durante a pesquisa.
Conforme os relatos, averiguamos que existia uma preocupação dos pais em relação ao
amparo de suas filhas, e o casamento endogâmico era bem visto, pois significava a garantia de
proteção familiar.
Sobre este aspecto, o Sr. Nivaldo da Rosário é categórico:
Eu sempre disse às minhas filhas, o que ouvia meu pai dizer às minhas irmãs:
„Minhas filhas, uma moça deve agradecer a Deus pela família que tem, e pedir um
bom casamento, assim a moça vai estar amparada‟. Pois, isso mesmo eu dizia a
minhas filhas
292
.
Analisar a estrofe, considerando a fala do informante e o diálogo com a etnocenologia,
permite que reconheçamos, na espetacularização, uma alternativa de comunicação estimulada
a partir de uma capacidade diversificada de leitura do mundo. Pelo viés interpretativo da
etnocenologia, é possível decifrar elementos textuais inscritos ao longo das experiências
cotidianas de cada indivíduo, bem como de sua comunidade. Eventos específicos que, ao
serem auto-representados, desvelam valores que motivaram vivências individuais e sociais
dentro da comunidade.
Vale salientar que, na mesma comédia, existe uma outra quadra que chama a atenção
por se referir à reação feminina frente à atitude autoritária do pai. A estrofe diz:
Oh, papai não fale isso e nem torne a repetir.
Oh, papai não fale isso e nem torne a repetir.
Se tornar a repetir arrumo a roupa pra fugir.
Se tornar a repetir arrumo a roupa pra fugir.
291
CARVALHO, José Jorge de (Org). O Quilombo do Rio das Rãs: Histórias, Tradições, Lutas. Organizado
por José Jorge de Carvalho, Sigila Zambrotti Dória e Adolfo Neves de Oliveira Jr. Salvado- EDUFBA, 1995.p.
202.
292
Sr. Nivaldo Rosário. Entrevista concedida a autora em Jatimane, no dia 05.07.2008.
128
Ao solicitar de D. Josenilda Ferreira do Rosário um comentário sobre essa estrofe, ela
diz: “Essa brincadeira não é da gente? Então!... fala das coisas da gente”
293
. Após uma breve
pausa para meditação, a informante prossegue esclarecendo:
Eu Reconheço que os pais tinham o maior cuidado com suas filhas, na verdade,
tinham medo que elas pegassem a namorar com rapazes de fora, e embarrigassem,
sem ter um pai para assumir o filho. Mais as moças daqui eram danadas, se quisesse
namorar com rapazes de fora não tinha pai certo. Hum! Quantas vezes a gente
armou uma brincadeira de repente, para acobertar o namoro de uma moça daqui
com um rapaz de fora. E aqui a gente teve alguns casos da moça fugir com o
namorado e só voltar casada
294
.
A fala de D. Josenilda do Rosário destaca a reação feminina em oposição ao
comportamento patriarcal quanto à restrição à corte dos rapazes de fora da comunidade.
Numa reflexão pertinente, observamos que a precoce labuta diária das mulheres jatimanenses,
em suas multiplicidades de funções laborais e sociais, deixa-as fortalecidas para os
enfrentamentos das adversidades da vida, respeitando o pátrio poder sem com isso sucumbir
à sujeição que anularia suas próprias vontades.
A força e determinação da mulher jatimanense refletem um legado imaterial assumido
da sua raiz africana, que concebia a mulher de forma, positivamente, valorada, traduzida na
prática, no reconhecimento da sabedoria dos ancestrais, na coragem de enfrentar os
infortúnios da vida cotidiana, superando seus limites e descobrindo suas potencialidades.
Como um reflexo da cultura local, as manifestações culturais geridas pela comunidade
de Jatimane, e aqui analisadas, atuam como uma forma de reatualização da memória, em que
tanto a celebração da festa da Queima das palhas dos presépios, quanto a espetacularização
das comédias tornaram-se elementos comunicacionais capazes de recuperar e dar sentido às
experiências históricas e aos valores comportamentais auto-representados pelos jatimanenses.
293
D. Josenilda Ferreira do Rosário. Entrevista concedida a autora em Jatimane, no dia 10.12.2008.
294
Idem.
129
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em tempos pretéritos, o espaço territorial do Baixo Sul Baiano foi um ambiente
acolhedor para formações quilombolas. Homens e mulheres que não se conformaram com a
aviltante condição que lhes foi imposta pela sociedade escravista, buscaram uma alternativa
de sobrevivência em liberdade nas matas e nas regiões de beirada do arquipélago do Tinharé.
Por certo, nos meandros deste espaço territorial, os quilombolas encontraram adversidades a
serem superadas, mas também a complexa geografia do lugar foi um abrigo que alimentou e
garantiu a necessária invisibilidade aos mocambeiros, que ali gestaram um campesinato
negro, que ainda hoje sobrevive nesta região, a exemplo da comunidade de Jatimane, que aqui
foi tomada como objeto de estudo.
Os passos metodológicos descritos na introdução deste texto visaram superar o desafio
de registrar a história desta comunidade através dos relatos de memória de seus guardiões.
Reminiscências, ora individuais, ora familiares, através de uma tradição oral, informaram
sobre a história e os saberes locais, delineando uma cultura de resistência. Uma resistência
construída, não pelo heróico enfrentamento, mas pela adaptação destes sujeitos históricos às
adversidades.
Consideramos a memória como principal legado da comunidade, raiz de onde brotaram
sua história e a transmissão dos ensinamentos de sua cultura. Neste espaço, os guardiões da
memória local, assim como os demais herdeiros, concebem este território como apropriado
pelos seus antepassados, internamente legitimado pela saga dos Rosário que, fugindo da
escravidão, lutaram incessantemente por um espaço de sobrevivência, se apossando deste
território e compartilhando-o entre a parentela e seus “irmanados” por afinidades sócio-
culturais.
Ao decodificarmos as manifestações culturais da comunidade negra rural de Jatimane,
sua história e raízes culturais emergiram envoltas num simbolismo fincado na terra. Neste
espaço, o território ressurgiu carregado de subjetividade, positivamente valorado, sendo aqui
interpretado como um patrimônio ambiental/cultural para os jatimanenses. Se a história local
fundamentou uma interpretação deste território como um patrimônio cultural, os elementos da
terra e água são, ainda hoje, condições necessárias à sobrevivência destes sujeitos históricos, e
o palco onde eles, através de seus valores, celebram a vida, com suas labutas, festas e
tradições. Aqui, percebemos a capacidade deste grupo de se apropriar de valores e
manifestações culturais, circunstancialmente hegemônicos, e transformá-los em fascinantes
traduções de manifestações “originais,” Ao analisarmos parte do ritual da Queima das Palhas
130
dos Presépios e das comédias de Jatimane, percebemos que a experiência histórica e cultural
da comunidade de Jatimane é enaltecida e valorizada, o que fortalece o ideal de pertencimento
dos jatimanenses. Ao mesmo tempo, através do convívio de valores de culturas diferentes, as
referências simbólicas da festa, enfatizam os nítidos contornos de uma africanidade brasileira
da qual eles também são guardiões. Através da memória, a comunidade informou a história de
um espaço onde os valores e significados simbólicos, implícitos nas atividades laborais
cotidianas, na sociabilidade e, principalmente, na festa, aproximaram os tempos da história.
131
FONTES:
I - ORAIS
Amaurina Oliveira Rosário, 48 anos, funcionária pública municipal, nascida na comunidade
de Boitaraca e após o casamento passou a morar em Jatimane: entrevista [maio, 2006].
Entrevistadora: Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo Peçanha-Bahia, 2006.
1 DVD (30 min), color. Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa intitulado Jatimane: um
espaço de memórias e manifestações culturais, do Curso de Pós-Graduação em Cultura,
Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus
V.
Anselmo do Rosário, 80 anos, natural de Jatimane, aposentado, viúvo, pai de seis filhos.
Entrevista [set.2008].Entrevistadora: Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo
Peçanha-Bahia, 2007. 2 cassetes sonoros (120 min). Entrevista concedida ao Projeto de
pesquisa intitulado Jatimane: um espaço de memórias e manifestações culturais, do Curso de
Pós-Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB), Campus V.
Antonio Carlos Marques Souza, 62 anos, Presidente da colônia de pesca Z73-Nilo Peçanha.
entrevista [dez. 2007]. Entrevistadora: Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane:
Nilo Peçanha-Bahia, 2007. 2 cassetes sonoros (120 min). Entrevista concedida ao Projeto de
pesquisa intitulado Jatimane: um espaço de memórias e manifestações culturais, do Curso de
Pós-Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB), Campus V.
Aridenis Ferreira do Rosário, 20 anos, moradora de Jatimane, junto com a irmã e a e
assume um barzinho no quintal de sua casa. Entrevista [dez. 2008]. Entrevistadora: Maria de
Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Bahia, 2007. 2 cassetes sonoros (120 min).
Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa intitulado Jatimane: um espaço de memórias e
manifestações culturais, do Curso de Pós-Graduação em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus V.
Carlos José dos Santos, 45anos. Presidente do sindicato dos trabalhadores rurais de Nilo
Peçanha. Entrevista [dez. 2007]. Entrevistadora: Maria de Carmem Rodrigues Fernandes.
Jatimane: Nilo Peçanha-Bahia, 2007. 2 cassetes sonoros (120 min). Entrevista concedida ao
Projeto de pesquisa intitulado Jatimane: um espaço de memórias e manifestações culturais,
do Curso de Pós-Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus V.
132
Clausete Rosário, 25 anos, natural de Jatimane. Entrevista [dez. 2007]. Entrevistadora:
Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo Peçanha-Bahia, 2007. 2 cassetes
sonoros (120 min). Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa intitulado Jatimane: um
espaço de memórias e manifestações culturais, do Curso de Pós-Graduação em Cultura,
Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus
V.
Dilma Assunção do Rosário, 50 anos, natural de Jatimane, prima e esposa do Sr. Miltaides
Assunção do Rosário, rezadeira e quituteira local. Entrevista [jan. 2007]. Entrevistadora:
Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo Peçanha-Bahia, 2006. 2 cassetes
sonoros (120 min) e 1DVD(30 min) color. Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa
intitulado Jatimane: um espaço de memórias e, color manifestações culturais, do Curso de
Pós-Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB), Campus V.
Eduardo Jesus do Rosário, 58 anos, natural de Jatimane, casado, pescador e tirador de
piaçava. Entrevista [maio 2007]. Entrevistadora: Maria de Carmem Rodrigues Fernandes.
Jatimane: Nilo Peçanha-Bahia, 2006. 2 cassetes sonoros (120 min). Entrevista concedida ao
Projeto de pesquisa intitulado Jatimane: um espaço de memórias e manifestações culturais,
do Curso de Pós-Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da
Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus V.
Elenita de Jesus: 68 anos, natural da comunidade, ex-moradora de Jatimane. Entrevista [jan.
2008]. Entrevistadora: Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo Peçanha-
Bahia, 2006. 2 cassetes sonoros (120 min). Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa
intitulado Jatimane: um espaço de memórias e manifestações culturais, do Curso de Pós-
Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da
Bahia (UNEB), Campus V.
Eustáquio Francisco Damasceno: 87 anos, nascido em Jatimane, é neto de Rufino Rosário,
conhecido como “Devoto” um dos quatro irmãos que teria “levantado” o sítio de Jatimane.
Entrevista [jul. 2007; set. 2008; dez. 2008]. Entrevistadora: Maria de Carmem Rodrigues
Fernandes. Jatimane: Nilo Peçanha - Bahia, 2007-2008. 2 cassetes sonoros (120 min).
Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa intitulado Jatimane:um espaço de memórias e
manifestações culturais, do Curso de Pós-Graduação em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus V.
Fernando do Rosário: Natural de Jatimane, 56 anos, casado, pai de 4 filhos vereador
ocupando o terceiro mandato pelo município de Nilo Peçanha. Entrevista [abr. 2008].
Entrevistadora: Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo Peçanha-Bahia, 2008.
2 cassetes sonoros (120 min). Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa intitulado
Jatimane: um espaço de memórias e manifestações culturais, do Curso de Pós-Graduação em
Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB),
Campus V.
133
Ivanildo Assunção do Rosário, 21 anos, morador de Jatimane, aluno do do Ensino Médio
do Colégio Estadual Adelaide Souza, entrevista concedida num grupo focal [abr. 2008]
Entrevistadora: Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo Peçanha-Bahia, 2008.
2 cassetes sonoros (120 min). Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa intitulado
Jatimane: um espaço de memórias e manifestações culturais, do Curso de Pós-Graduação em
Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB),
Campus V.
Janilton Luz do Rosário: 17 anos, morador de Jatimane, entrevista concedida num grupo
focal [abr. 2008]. Entrevistadora: Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo
Peçanha-Bahia, 2008. 2 cassetes sonoros (120 min). Entrevista concedida ao Projeto de
pesquisa intitulado Jatimane: um espaço de memórias e manifestações culturais, do Curso de
Pós-Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB), Campus V.
Joseildo Rosário: 38 anos, natural de Jatimane, casado, professor da escolinha local.
Entrevista [jan. 2007; jul. 2007; set. 2008; dez. 2008]. Entrevistadora: Maria de Carmem
Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo Peçanha-Bahia, 2007-2008. 1 DVD (30 min), color.
Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa intitulado Jatimane: um espaço de memórias e
manifestações culturais, do Curso de Pós-Graduação em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus V.
João Palmeira da Conceição, 78 anos, aposentado, morador de Jatimane. Entrevista [jan.
2006; abr./2007]. Entrevistadora: Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo
Peçanha-Bahia, 2006. 1 DVD (30 min), color. Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa
intitulado Jatimane: um espaço de memórias e manifestações culturais, do Curso de Pós-
Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da
Bahia (UNEB), Campus V.
Josenilda Ferreira do Rosário: Natural de Jatimane, 52 anos, viúva, mãe de seis filhos,
marisqueira e catadora de piaçava entrevista [set./dez. 2008,]. Entrevistadora: Maria de
Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo Peçanha-Bahia, 2008. 2 cassetes sonoros (120
min). Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa intitulado Jatimane: um espaço de
memórias e manifestações culturais, do Curso de Pós-Graduação em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus V.
Luzimar Oliveira do Rosário: 35 anos, catadeira de piaçava e marisqueira colonizada.
Entrevista [jul. 2008]. Entrevistadora: Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo
Peçanha-Bahia, 2008. 2 cassetes sonoros (120 min). Entrevista concedida ao Projeto de
pesquisa intitulado Jatimane: um espaço de memórias e manifestações culturais, do Curso de
Pós-Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do
Estado da Bahia (UNEB), Campus V.
134
Maria Madalena Oliveira do Rosário: 68 anos, casada, catadeira de piaçava e marisqueira
aposentada. Entrevista [jan. 2006; maio2007; nov. 2007]. Entrevistadora: Maria de Carmem
Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo Peçanha - Bahia, 2006-2007. 1 DVD (30 min), color.
Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa intitulado Jatimane: um espaço de memórias e
manifestações culturais, do Curso de Pós-Graduação em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus V.
Manuel da Luz, 99 anos, pescador aposentado, viúvo, casado pela segunda vez, ex-morador
de Jatimane. Entrevista [nov.2007; jul.2008; set.2008]. Entrevistadora: Maria de Carmem
Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo Peçanha-Bahia, 2008. 2 cassetes sonoros (120 min).
Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa intitulado Jatimane: um espaço de memórias e
manifestações culturais, do Curso de Pós-Graduação em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus V.
Mitaildes Assunção do Rosário: 50 anos, presidente da associação dos moradores de
Jatimane. Entrevista [jan. 2006; maio 2007]. Entrevistadora: Maira de Carmem Rodrigues
Fernandes. Jatimane: Nilo Peçanha-Bahia, 2006-2007. 2 cassetes sonoros (120 min).
Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa intitulado Jatimane: um espaço de memórias e
manifestações culturais, do Curso de Pós-Graduação em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus V.
Otávio do Rosário: 78 anos nascido e criado em Jatimane, pescador e tirador de piaçava
aposentado como lavrador: entrevista [jan. 2006, maio 2007 e set. 2008]. Entrevistadora:
Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo Peçanha-Bahia, 2007. 2 cassetes
sonoros (120 min). Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa intitulado Jatimane: um
espaço de memórias e manifestações culturais, do Curso de Pós-Graduação em Cultura,
Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus
V.
Nivaldo do Rosário, 80 anos, morador de Jatimane, tirador de piaçava aposentado. Entrevista
[jan.2007; set. 2008]. Entrevistadora: Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo
Peçanha-Bahia, 2008. 1 DVD (30 min), color. Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa
intitulado Jatimane: um espaço de memórias e manifestações culturais, do Curso de Pós-
Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da
Bahia (UNEB), Campus V.
Paulo Nascimento do Rosário, 80 anos, tirador de piaçava e pescador aposentado. Entrevista
[jan. 2007]. Entrevistadora: Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo Peçanha-
Bahia, 2008. 2 cassetes sonoros (120 min). Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa
intitulado Jatimane: um espaço de memórias e manifestações culturais, do Curso de Pós-
Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da
Bahia (UNEB), Campus V.
135
Pedrina Ferreira do Rosário, 21 anos, moradora de Jatimane, funcionária do IDES, dirige
um grupo de teatro infantil dentro da comunidade. Entrevista [dez. 2008]. Entrevistadora:
Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Bahia, 2007. 2 cassetes sonoros (120
min). Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa intitulado Jatimane: um espaço de
memórias e manifestações culturais, do Curso de Pós-Graduação em Cultura, Memória e
Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), Campus V.
Valda Conceição do Rosário, 48 anos, casada, natural de Jatimane. Entrevista [dez. 2008].
Entrevistadora: Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane: Nilo Peçanha-Bahia, 2008.
2 cassetes sonoros (120 min). Entrevista concedida ao Projeto de pesquisa intitulado
Jatimane: um espaço de memórias e manifestações culturais, do Curso de Pós-Graduação em
Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do Estado da Bahia (UNEB),
Campus V.
Zilda Merice do Rosário, 77 anos, natural de Jatimane, catadeira e marisqueira aposentada.
Entrevista [dez. 2008]. Entrevistadora: Maria de Carmem Rodrigues Fernandes. Jatimane:
Nilo Peçanha-Bahia, 2008. 2 cassetes sonoros (120 min). Entrevista concedida ao Projeto de
pesquisa intitulado Jatimane: um espaço de memórias e manifestações culturais, do Curso de
Pós-Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional da Universidade do
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