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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
PRÓ-REITORIA DE PESQUISA E ENSINO DE PÓS-GRADUAÇÃO – PPG
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
SANTO ANTÔNIO DE JESUS - BAHIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA, MEMÓRIA E DESENVOLVIMENTO REGIONAL
CRISTIANE BATISTA DA SILVA SANTOS
CACAU NA CANOA, NEGROS NO RIO E CONTAS NO PESCOÇO:
Labutar, Festejar e Crer no
Camamuzinho - BA entre 1960 e 1990
Dissertação entregue ao Programa de
Pós-Graduação em Cultura, Memória
e Desenvolvimento Regional - UNEB,
sob a orientação da Prof. Dr. Rocio
Castro Kustner e de Co-orientação,
Prof. Dr. Wilson Roberto de Mattos.
SANTO ANTONIO DE JESUS-BAHIA
DEZEMBRO – 2008
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S237 Santos, Cristiane Batista da Silva.
Cacau na canoa, negros no rio e contas no pescoço: labutar,
festejar e crer no Camamuzinho-BA entre 1960 e 1990/ Cristiane
Batista da Silva Santos - 2008
160 f.: il
Orientador: Profa. Dra. Rocio Castro Kustner e Prof. Dr. Wilson Roberto de Matos.
Dissertação (mestrado) - Universidade do Estado da Bahia, Programa de Pós-
graduação em Cultura Memória e Desenvolvimento Regional, 2008.
1. Candomblé. 2. Comunidades. I. Kustner, Rocio Castro. II. Matos, Wilson Roberto
de. III. Universidade do Estado da Bahia, programa de pós-graduação em história regional
e local.
CDD: 299.673
Elaboração: Biblioteca Campus V/ UNEB
Bibliotecária: Juliana Braga – CRB-5/1396.
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FOLHA DE APROVAÇÃO
CRISTIANE BATISTA DA SILVA SANTOS
CACAU NA CANOA, NEGROS NO RIO E CONTAS NO PESCOÇO:
Labutar, Festejar e Crer no
Camamuzinho-BA entre 1960 e 1990
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Cultura, Memória e Desenvolvimento Regional
– Campus V, Santo Antônio de Jesus – Ba. UNEB.
Aprovada em de de 2009
Banca Examinadora
____________________________________________________________
Dr. Ana Claudia Cruz Silva
____________________________________________________________
Dr. Wilson Roberto de Mattos
____________________________________________________________
Dra. Carmélia Aparecida Miranda
DEDICATÓRIA
Uma negra forra abandonada pelo marido,
saiu do Recôncavo e veio para a beirada bandeirar cacau
e trabalhar numa fazenda de flores.
Andava longas léguas atrás de andores e/ou tambores.
Essa era minha bisavó.
De bens, só tinha as filhas pequenas; e
a menor delas tinha o pé amarrado com cipó
ao pé de mandioca para não sumir do alcance de suas vistas,
enquanto labutava na roça.
Quando esta fez sete anos recebeu sua enxadinha e aprendeu a capinar.
Essa era minha avó que
quando casou , fugindo da seca, soube que no sul,
o cacau era promissor e veio labutar entre cacauais e goiabeiras;
também teve uma menina que na roça, aos sete anos,
já trabalhava na lida.Essa é minha mãe.
E um pouco de todas elas, sou eu.
Nenhuma delas foi à escola, mas eu fui. Por isso,
esse trabalho tem muito dessas quatro memórias,
a despeito das injunções do tempo.
Às minhas ancestralidades negras femininas,
orgulhosa e inteiramente dedico.
AGRADECIMENTOS
À Deus, aos anjos e santos, cuja proteção ininterrupta me emociona e me move.
À minha mãe, meu amor, por tanta oração e compreensão.
Ao meu orientador, Prof.Drº Wilson Roberto de Mattos a quem tive a sorte de encontrar, aprender,
admirar e dele receber todo apoio, num brilhantismo admirável, paciente e solícito sempre; serei
eternamente grata.
À Professora Marise e ao Prof. Denílson por me terem aberto os olhos, caminhos e terem me
encaminhado a outros.
Aos Professores do Programa.
Aos meus amigos, colegas e conhecidos, também aos visíveis e invisíveis, sempre presentes.
Ao povo de santo do Camamuzinho, especialmente Antônia, Tuca (Cacalê), Carlos e Cristina e à
Viviane.
Ao povo do Camamuzinho por ter aberto as portas, a memória, os álbuns, o coração, dizendo sempre
que o “bom filho à casa torna”.
Aos colegas do curso que continuarão assim, colegas queridos, e aos outros que viraram amigos,
irmãos e amores, entre eles, Jeruza, Rute, Marconi, (Shane), Fabiane e Josi, e à família de Léo e Aline.
Às amigas - família que me alimentava a cada dia, de modos tão diferenciados quanto importantes: um
gesto, olhar, apoio, incentivos sempre verdadeiros, minha irmã Gal, Rutinha, Arlete e Talita.
Á Baísa,que chegou por último com jeito de quem veio que para ficar, por ter me acolhido
pacientemente.
Há outros que entenderam minhas ausências-presenças, e há outros cujo olhar de incentivo sempre
recebi. Quero dizer, muito obrigada!
RESUMO
Este trabalho consiste na abordagem da identidade como constructo relacional e étnico e busca
apreendê-la por meio das ações coletivas, práticas, negociações e conflitos que se estabelecem num
espaço-lugar definido por seus sujeitos como comunidade. Esta, o Camamuzinho, nascida no período
posterior à abolição marcada por mobilidades, figurando negras e negros beiradeiros e migrantes que
se entrecruzaram em novas relações sociais, culturais e religiosas nas terras do cacau. Esta pesquisa
objetiva discutir a identidade cultural da comunidade do Camamuzinho, distrito de Ibirapitanga, sul da
Bahia apreendida por meio das festividades e religiosidades afro-brasileiras, entre as décadas de 1960
e 1990. Sem a rigidez das balizas temporais, indo e vindo quando as memórias assim requereram, e
sem prender-se a rigidez de um campo teórico, dialoga também com muitas fontes e métodos, de
modo que as reflexões apresentadas tiveram na fluidez da identidade e no amparo da Memória e
História Oral. São os caminhos para esse vislumbrar as encruzilhadas onde se encontraram o vivido, o
rememorado e o representado. Emergiram lugares e espaços que foram problematizados dialogando
com tempos, culturas, resistências e as ações desses sujeitos. Os códigos de sociabilidade implícitos
no viver em comum desvelou acentuadamente mulheres negras como esteio dessa comunidade desde
o início, em atuações sócio-políticas nas diversas esferas comunitárias. Assentadas nessas reflexões,
decorreram os temas e problemas que orientaram essa pesquisa.
Palavras-chave: identidade, comunidade, festividade, religiosidade afro-brasileira.
ABSTRACT
This paper consists on the approach of identity as a construction of relations and ethnicity and aims to
apprehend it through collaborative effort, actions, negotiations and conflicts that take place at a space-
place defined by its subjects as a community. This one, the Camamuzinho, born on the posterior period
to the abolition of slavery, marked by mobility, starring male and female afro descendents, local and
migrants who merged into new social, cultural and religious relations, on the cocoa land. This research
has as an objective to discuss the cultural identity of the community of Camamuzinho, district of
Ibirapitanga, in the south of the state of Bahia, apprehended by the festivities and afro-Brazilian
religiosity, between the decades of 1960 and 1990. Without the rigidity of time frames, coming and
going as memory wishes, and without being attached to the rigidity of a theoretical campus, it dialogues
with sources and methods, in a way that the reflections presented had in the fluency of identity and in
the heart of Memory and Oral History the ways to foresee the corners where one can find the lived, the
remembered and the represented. Places and spaces bloomed, which were problematically studied
dialoging with time, cultures, resistance and the actions of these subjects. The implicit social codes in
the shared living field, has clearly revealed the afro-descendant women as the basis of this community
from the start, in socio-political actions in the several communal spheres. Based on these reflections,
themes and problems have emerged, which oriented this research.
Key-words: Identity. Community. Festivities. Afro-Brazilian religiosity.
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 01 - Negros, índios, beiradeiros-migrantes........................................................................ 31
Figura 02 - Praça Central: Símbolo de centro para a comunidade do Camamuzinho ...............33
Figura 03 - Território de identidade: entre o Médio Rio de Contas e o Litoral Sul... ......................34
Figura 04 - Na hora do voto diga não.............................................................................................36
Figura 05 - Simbiose: cacau e o homem de braços fortes para lida...............................................37
Figura 06 - O cacau e o dono de braço forte..................................................................................37
Figura 07 - Espírito associativo, o nascimento da associação sob as bênçãos de Antônio...........46
Figura 08 - A rota da destruição......................................................................................................51
Figura 09 - De mãos dadas pelo cacau..........................................................................................52
Figura 10 - Limite ou início? Separa ou une? Ponte que demarca Ubatã e Camamuzinho...........56
Figura 11 - Primeiro olhar: “A parabólica é que nos traz à atualidade............................................57
Figura 12 - Segundo olhar: a antiga Rua do Brega.........................................................................58
Figura 13 - Quem vê área não vê coração......................................................................................62
Figura 14 - Festas, memórias, rupturas e permanências................................................................66
Figura 15 - Ubatã x Ibirapitanga, segundo Raça e Religião, números da identidade.....................72
Figura 16 - A Festa do Padroeiro....................................................................................................77
Figura 17 - Cada noite, um grupo, uma representação..................................................................77
Figura 18 - Santo Antonio ou Ogum? No Ilê Axé de Logum Edé...................................................78
Figura 19 - A nós descei divina luz.................................................................................................82
Figura 20 - Na praça, uma pausa para a prosa..............................................................................83
Figura 21 - Depois de Santo Antônio, Vivas a São João!...............................................................84
Figura 22 - Enterro de anjo, cercado por anjos: vida e morte se encontram..................................85
Figura 23 - Na cruz, o cordão de São Francisco............................................................................ 88
Figura 24 - Uma cena num casebre do Cotovelo no Camamuzinho em mais um 13 de dezembro
dia de Santa Luzia...........................................................................................................................89
Figura 25 - Timbaleiros na Micareta de Ubatã reafricanizando a festa....................................... .100
Figura 26 - Forró da Elite, tradição da Micareta, reinventada a cada ano....................................103
Figura 27- O Rio, os negros e suas canoas............................................................................... .116
Figura 28 - Uma pausa na labuta, sem a rodilha, para a festa e a fé - Maria do Cheiro..............117
Figura 29 - Mãe do Carmo e a festa de Ogum de Lê: feijão, mariuô e obé...................................123
Figura 30 - Mãe Rosa, pluralidades e ancestralidades................................................................ .124
Figura 31 - Maestria na cozinha, na festa e na devoção a Santa Bárbara: de fato Beata!.......... .127
Figura 32 - Quintal de Mãe Rosa.............................................. ....................................................146
Figura 32 - Quintal de Mãe Do Carmo...........................................................................................146
LISTA DE ABREVITURAS
AP – Acervo Particular
CHESF – Companhia Hidrelétrica do São Francisco.
CERC - Centrais Elétricas do Rio de Contas
CEPLAC – Comissão do Plano Executivo da Lavoura Cacaueira
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
ICB - Instituto de Cacau da Bahia
SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais.
MCC - Movimento Comunitário do Camamuzinho
PMU – Prefeitura Municipal de Ubatã
SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS................................................................................................................. 11
CAPÍTULO l - A COMUNIDADE – DE BEIRADEIROS A BANDEIRADORES: MIGRAÇÃO, CACAU E
COMUNIDADE NA MICRORREGIÃO CACAUEIRA DO SUL DA BAHIA............................................ 20
1 - Uma viagem necessária, por léguas antes andadas................................................................. 20
1.1 - Da água do peito da mulher ao visgo do cacau: de Camamu a Camamuzinho...................... 24
1.2 - Cristal quebrado pelo concreto, lá vem a Barragem!.................................................................31
1.3 - O Camamuzinho como território de identidade: datar, medir, localizar, situar...................... 33
1.4 - O sentido de comunidade, o que ficou além do visível visgo do cacau................................. 36
1.5 - Respostas às ausências: resistências cotidianas................................................................... 40
1.6 - Notícias e Experiências no sul da Bahia: do patrão, o cacau, aos beiradeiros,
bandeiradores e eleitores......................................................................................................................48
1.7 - Lugares e seus olhares: Ubatã e Camamuzinho, caminhos e descaminhos de alteridade. 55
CAPÍTULO 2- A FESTIVIDADE – CÓDIOGOS DE SOCIABILIDADES NO COTIDIANO: NASCER,
FESTEJAR E MORRER ENTR SANTOS E ORIXÁS............................................................................ 64
1. Pente quente no cabelo, vestido de chita e rajada de fogos: é festa.......................................... 64
1.1 - Festejar do Cristal ao Camamuzinho: circulação de sentidos................................................. 65
1.2 - Que índios são esses e que festa é essa? Uma questão de Identidade................................ 70
2. Que seria de mim, Deus meu, sem a fé em Antônio?...................................................................73
3. Ladainhas e despedidas: agora e na hora de nossa morte amém!..............................................84
4. Índios, Sujos Timbaleiros e Elite: identidade e festividade no espaço do Outro....................... 91
5. Todo bloco de camisa/corda tem um pouco de navio negreiro................................................. 100
CAPITULO- 3 -RELIGIOSIDADE OJÁS LENÇOS E RODILHAS: NEGRAS MULHERES,
MALUNGAS, COMADRES E VIZINHAS............................................................................................. 107
1. Aventurar a sorte, vida e morte no Cristal: exercícios de sobrevivências femininas.............. 107
2. Labuta, sobrevivência e cotidiano ás margens do Rio de Contas............................................. 112
3. Memórias das ancestralidades negras feminina, as mulheres, seus santos, encantos e
desencantos........................................................................................................................................ 119
4. Inspirações na Literatura e mulheres negras: amadas que não eram as de Jorge e amadas que
eram de Morrisson.............................................................................................................................. 138
CONSIDERAÇÕES FINAIS...................................................................................................................147
FONTES E REFERÊNCIAS...................................................................................................................149
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
“Cada imagem do passado que não é reconhecida.
pelo presente como uma de suas preocupações
corre o risco de desaparecer irremediavelmente.
1
Quando voltei
2
ao Camamuzinho em 2006 encontrei um mapa, uma noção de tempo e história
com personagens e ações, elementos de uma narrativa rica e simbólica marcada tanto por estigmas
quanto poeticidades. Isso deu legitimidade à minha fala. A primeira vitória foi não incorrer em achar que
a História e visão que todos têm do Camamuzinho estava pronta para ser reproduzida. Ao contrário,
optei por ir pela contramão, na busca do que não entendo, do que não é visto, encaminhei-me contra o
senso comum e a favor das singularidades e problematizações.
Paulatinamente, o que se circunscrevia à memória, foi preciso dar-lhe espaço para
materializar-se pela escrita, pela fala que dotava de significados o mundo da comunidade. Afinal, os
mesmos elementos e objetos vistos de fora têm significados diferentes para quem vive no
Camamuzinho ou fora dele. Uma comunidade não é de maioria negra, nem tem espírito festivo,
associativo e fortemente afro-brasileiro, por acaso. Por conta disso, foram muitas idas e vindas e voltas
em círculos que me conduziam ao mesmo ponto, suspeitei da história certinha e linear que pareceu
sedutora a princípio, sem tensões e tendenciosa a homogeneizações. Sem me deparar com lacunas,
silêncios e entraves eram nítidos sinais de que ou o tempo, ou o objeto, ou o lugar ou a pesquisadora
estavam errados.
A abertura para uma história do lugar margeada por experiências significativas surgiu, a
exemplo de uma fala de um dos depoentes, “Ah, minha filha, esse povo daqui vem de longe”.
Constatado o erro, de considerar identidade, festividade, religiosidade nesse espaço e tempo
pensados, como se houvessem surgido do nada ou se fossem cristalizados no tempo, os caminhos da
pesquisa alargaram-se, surgiu um Camamuzinho protegido por Santo Antônio, de partos com Nanã, de
reinado de Ogum e com festas sacudidas pelo vento de Santa Bárbara.
Foram muitas léguas e águas até chegar ao Camamuzinho e não por acaso, em sua maioria
eram negros, pobres e trabalhadores, egressos da escravidão para as roças de cacau, o abriram
igrejas, mas roça, casa, salão, terreiro. As mãos vazias de negros migrantes que eram marcadas por
calos, trouxeram uma herança imaterial simbólica de carga tão grande, que em pleno século XXI a
encontramos vigorosa, reinventada.
1
In Benjamim, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política: Tese “Sobre o Conceito de História.
2
Voltei depois de ter estudado no primário, estagiado no segundo grau do magistério, atuado como professora no ensino
fundamental entre 1999 e 2005, na pesquisa de campo na pós em Antropologia, em 2006, e como mestranda, em 2007.
O tulo da dissertação poetizou e nasceu de três realidades metafóricas. Cacau na canoa,
Negros no rio e Contas no pescoço: labutar, festejar e crer no Camamuzinho entre 1960 e 1990, que se
traduzem por Cacau na canoa, momento de formação da comunidade que tinham nesta o meio de
escoá-lo; Negros no rio, em referência à labuta empreendida nas estratégias de sobrevivência por
homens, mulheres e crianças; e, por fim Contas no pescoço, numa alusão às heranças da cultura
africana, especificamente a religiosidade afro-brasileira e seus desdobramentos ressignificados nesse
espaço.
A proposta dessa reflexão nasceu da observância da relação ambígua, marcada por
negociações e conflitos, entre os moradores de Camamuzinho e os da cidade de Ubatã. Camamuzinho
é um distrito de Ibirapitanga, no sul da Bahia, que distante 17,5 km da sede, fica quase interligado à
cidade vizinha, Ubatã, cujos limites municipais se dão apenas por uma ponte sobre o ribeirão Dois
Irmãos. Ambas estão localizadas às margens da BR 330 e tem como outra margem o vale do Rio de
Contas, inseridas na micro região de Ilhéus e Itabuna.
Entre Ubatã e Camamuzinho deu-se a confluência desse jogo identitário, viabilizou-se a
questão alteritária que projetou o grupo, fez surgir problemáticas passíveis de um estudo. Assim,
delineou-se um problema em torno da identidade como eixo central. Em minhas reflexões, fica clara a
comunidade e quem voz a ela. Portelli
3
me traduz associando história oral e comunidade e a coloca
como um ‘desafio’. O que este texto em si tenta enfrentar, e explicar, é que “as comunidades não são
idealmente homogêneas e unidas são também palco de tensões e conflitos. Por isso,nosso trabalho
documenta ,por necessidade,esses aspectos,de formas que podem agradar a alguns de seus membros
e a outros,não”.
Esses desafios se dividem em temáticas: a comunidade e suas experiências em relação à
política; o trabalho no âmbito da região cacaueira que lhe feições históricas, singulares e
contextuais. E nas festividades ligadas ao grupo nos dois espaços: o da comunidade, o sagrado e suas
ressignificações no espaço do outro, o profano, como estratégia grupal de reafirmação da identidade,
mas sem a proposta de opô-los, apenas sinalizá-los.
Interessam,nessa pesquisa, as simbologias discursivas, do momento mais devocional do
padroeiro que congrega, ao bloco, que no espaço do outro se mostra, reafricanizando sua festa e a
visão sobre o grupo, reafirmando suas visões de mundo em novas conjunturas em que cordas e
camisas separavam classes na Micareta de Ubatã.
No que se refere à labuta cotidiana de cunho familiar, pelas solidariedades e no trato com a
memória coletiva da comunidade, cujos vínculos familiares são fortes. A pesquisa lembra um pouco o
3
PORTELLI, Alesandro. O que faz a história oral diferente. In: Cultura e Representação. Projeto História n 14. Revista do
Programa de Estudos Pós-Graduados em História e do Departamento de Historia da PUC/SP. Educ. Ferreiro 1997 P.31
que afirma Goubert
4
:“a maioria das pessoas nunca foi além dos limites dos seus distritos”. Este
estudo, pela natureza do objeto e por exigência do próprio problema, ancorou-se em diversas áreas do
conhecimento, a História Cultural e a Antropologia, - das suas brechas de perspectivas e vieses -, que
forneceram subsídios fundamentais para a reflexão, a análise e interpretação.
Aos pouco o leitor percebe que me espraiei pelas discussões sobre cultura e intercultura
querendo aproximações como o multiculturalismo e a diversidade, ou pelo menos a visão étnico-
cultural, que ganharam forte impulso nos anos de 1980 e abriram-se muitas propostas entre o fazer
histórico e identidade com ênfase nesses aspectos.
Cabe, porém, antes de me deter sobre os conceitos de identidade, pensar na cultura, que por
ser tão polissêmica, é considerada como uma rede de significados socialmente estabelecidos.
Definir
cultura e identidade, e as questões subjacentes como comunidade, festividade e religiosidade aqui se
deram no plano geral da cultura. Não só a polissemia, mas o risco de limitação conceitual me impeliram
a atentar ao que Burke
5
assinala quanto a este termo “de difícil definição, foi ampliado, através da
utilização do conceito que a antropologia faz do vocábulo, no qual Malinowski inclui as heranças de
artefatos, bens, processos técnicos, idéias, hábitos e valores”“. Ao longo do texto, essas idéias, hábitos
e valores se mostram e não daria para dissociá-los do simbolismo que permeia as discussões dos
historiadores
culturais, e neste sentido, aqui abriu brechas para se pensar nas nuances étnico-raciais.
Trouxe um sentido de comunidade nas acepções de Bauman (2003) e de Sodré (1999), na
escrita desta história, e mais uma vez considero Burke
6
, para o qual o conceito de comunidade passou
a desempenhar papel cada vez mais importante na escrita da história nos últimos anos. Ele completa
dizendo que: “O poder da memória, da imaginação e dos símbolos sobretudo a linguagem - na
construção de comunidades está sendo cada vez mais reconhecido.” A partir dessa segurança, as
compreensões e interpretações das entrelinhas das narrativas foram ganhando corpo, inclusive,
apareceram outras categorias de análise, posto que ‘existe uma relação dialética entre nossas
lembranças e nossa identidade” confirma Thomson
7
.
Sem cristalizar os temas e problemas, a identidade figura como processo de construção e
desconstrução de subjetividades, caminhos pelos quais encontrei sujeitos, mais acentuadamente
mulheres negras nos episódios de luta, mostrando a plasticidade da identidade e da sua natureza
situacional, manipulada, sempre em construção. Estudá-la associada à comunidade é perigoso, se
supusermos erroneamente “mesmidade” ou esquecermos que ela tem também a propriedade de
4
GOUBERT, Pierre. História Local. In: História & Perspectivas, Uberlândia, 6, p.45-47, Jan/Jun 1992.p.45.
5
BURKE, Peter. O que é História Cultural?Trad. Sérgio Góes de Paula. Rio de Janeiro: Zahar. 2005p. 43.
6
BURKE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo; Unesp, 2002, p.83- 85.
7
THOMSON, Alistair. Recompondo a memória: questões sobre a relação entre a história oral e as memórias. In
Projeto. História. São Paulo: PUC/SP, n.15, abr.1997 p.80.
mobilizar. Vê-se que nesse lugar não existiu poder sem resistência, antes, se mostra no confronto e
nas mobilizações grupais. Nesse vir-a-ser, influenciadas por essas relações de poder, mostra o Hall
(2003)
8
,afirma sobre identidade cultural e/ ou racial não se formaliza isoladamente e de forma
absoluta.
Na relação de alteridade entre a comunidade e os ubatenses, emergiu a dimensão do outro e
uma dimensão de poder onde “todos os termos da identidade dependem do estabelecimento de limites
definindo o que são em relação ao que não são”.
9
Além dessas proposições de Hall (2003), as
concepções de Silva (2000) foram pertinentes, por pesar e pensar na diferença, nos aspectos
simbólicos e discursivos e de poder que por via relacional ou contrastiva a identidade apresenta.
Na disputa pela identidade está envolvida uma disputa mais ampla por outros recursos
simbólicos e materiais da sociedade. A afirmação da identidade e a enunciação da diferença
traduzem o desejo dos diferentes grupos sociais, assimetricamente situados, de garantir o
acesso privilegiado aos bens sociais.
10
Como abordagem antropológica, a identidade é uma construção que se faz com atributos
culturais, caracterizada pelo conjunto de elementos adquiridos pelo indivíduo por herança cultural.
Assim, lidei com as heranças africanas e afro-brasileiras que vieram da beirada
11
, com migrantes, e até
hoje podem ser vistas em outra, na pele, na religião, na festividade, assim como na tentativa de
apreender um possível sentimento de identidade, “ancorado numa tradição”
12
, evidenciado pelas falas.
A Antropologia, no sentido mais interpretativo possível, veio pela natureza do objeto em que as
definições de Geertz
13
no trato com a cultura foram imprescindíveis. Seguindo esse caminho, a cultura
na comunidade do Camamuzinho, é tratada como um sistema de signos, significados, símbolos, ritos
da religiosidade até a festividade todos criados por eles. Destes, se constituíram os temas e subtemas,
fotografias, jornais, bilhetes, falas dialogando com a etnografia como descrição e interpretação do que
está implicitamente inscrito nessa cultura, bem ao modo de Geertz.
8
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Liv Sovik (org); trad. Adelaine La Guardia Resende et al.
Belo Horizonte: UFMG; Brasília: Representação da UNESCO no Brasil, 2003.
9
HALL, Stuart. Op.Cit 2003, p. 85.
10
SILVA, Tomaz Tadeu. A produção social da identidade e da diferença. IN Identidade e diferença: a perspectiva dos
estudos culturais. Stuart Hall e Kathryn Woodward. Tomaz Tadeu da Silva (org). Petrópolis: Rio de Janeiro: Vozes, 2000,
p.81.
11
Beirada é o termo usado pelos depoentes para referir-se à região litorânea de Camamu, Valença e Nilo Peçanha, origem
da maior parte dos moradores da comunidade.
12
No sentido aqui colocado Gilroy (p.351) corrobora em discutir o “poder hipnótico”, que a idéia de tradição parece exercer
sobre os pesquisadores, ao enfatizar que tradição não pode ser vista como “antítese da modernidade”, mas (p.358) “fornece
o laço crítico entre os tributos locais das formas e os estilos culturais e suas origens africanas”, não no sentido estático, mas
dinâmico, reinventado.
13
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S.A., 1989.
Os espaços foram concebidos nas expressões ‘dos mesmos’ e “do outro”, e mais que nomear,
traduzem a relação entre Ubatã e Camamuzinho. Em relação ao espaço, preferi pensar em
territorialidade. “O território aparece, assim, como um dado necessário á formação da identidade
grupal/individual, ao reconhecimento de si por outros.”
14
Embora território pressuponha numa primeira
instância o lugar físico, as fronteiras, áreas, etc. aqui abarca o simbólico.
Falando no binômio lugar x simbólico, implica nas reflexões de Sodré (1988) sobre
espacialidade e territorialidade
e, portanto, e os insere na esfera do lugar, na relação espaço-tempo,
singularizado e definido pelas práticas culturais, simbólicas. Esta, na pesquisa, assume nuances étnico-
raciais, e no que se refere á comunidade litúrgica, aqui também abarca a comunitária, “a história dá-se
num território, que é o espaço exclusivo e ordenado das trocas que a comunidade realiza na direção de
uma identidade grupal”
15
.Tem como pano de fundo uma comunidade, de maioria negra e de trocas
identidade tanto grupal quanto contrastiva reforçadas.
A escolha do marco espacial, o distrito de Ibirapitanga se na especificidade deste fazer
fronteiras geográficas e culturais com a cidade de Ubatã. De onde nasceu e deu à problemática um
espaço definido, acionador dessas perspectivas de análise e prima por uma desconstrução da
subalternidade grupal. Motivo pelo quais as considerações do multiculturalismo
16
estão timidamente
diluídas nessas reflexões, faço referências às roças de cacau, ao Cristal, ao Rio de Contas, a sede do
distrito, à Ubatã, às casas, cozinhas, quintais, igreja, terreiros, alpendres e praça, entrelaçando-os.
Maluf
17
e Bosi
18
lembram que o trabalho da lembrança não é um afastar-se para reviver o
passado tal como ele se deu (...) “e o trabalho do historiador é o de reconstruir significações pretéritas a
partir de seus condicionantes presentes”. O recorte temporal deu-se na consonância entre as rupturas
e permanências que o problema de pesquisa definiu. Ir e vir, passado e presente fizeram um diálogo
constante como inter-relação orgânica, sem rigidez
retrocedi ao Cristal, entre 1909 e 1959 quando foi
preciso, em outros momentos parti do presente para trazer o passado. Demarquei entre 1960 no
sentido em que o Camamuzinho se constituiu em distrito a e até a década de 1990, momento em que
rupturas econômicas com a crise provocada pela vassoura de bruxa na lavoura e na sociedade,
interferiram na cultura local.
Quanto às fontes utilizadas neste trabalho, lancei mão de jornais locais, reportagens e
fotografias, pois estas têm mais subjetividade do que se imagina. Além de possibilitar interpretações,
num contexto antropológico está impregnada do real, do imaginário, a partir do lugar discursivo da
14
GEERTZ, Clifford. Op.Cit. p.14.
15
SODRÈ, Muniz. O Terreiro e a Cidade. A forma social negro-brasileira. Rio de Janeiro: Imago; Salvador: Fundação
Cultural do Estado da Bahia, 2002. p.23.
16
No sentido de Hall (2003)
17
MALUF, Marina. Ruídos de memória. São Paulo, Siciliano, 1995, p.31.
18
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo, Cia.das Letras, 1992.
sociedade da qual que provém. Do momento de glória do cacau ao cotidiano simples, festivo da
comunidade, Estas serviram como relato, sistemas representacionais da cultura visível. Por isso, fé,
poder, identidade, que não puderam ser retratados, não concretizados, deixaram rastros pelas
imagens, e inseri-las foi com o intuito de apreendê-las.
No diálogo com essas fontes, as questões começaram aflorar e até notas de um caderno do
ex-administrador, um bilhete de um empresário local, etc, se constituíram em textos que suscitaram
indagações, análises. Lançando mão da história oral e do uso de mapas afetivos e/ou mnemônicos, fiz
conexões entre os lugares e as possíveis fontes.
Estas fontes transformadas em documentos, a partir da escolha teórico-metodológica a que me
propus. Quanto a isso, Le Goff
19
explica que as fontes, ao serem tomadas para análise da história,
transformam-se em documento/monumento, enquanto representação de materiais da memória coletiva.
Por esse prisma, “há que tomar a palavra documento’ no sentido mais amplo, documento escrito,
ilustrado, transmitido pelo som, a imagem, ou qualquer outra maneira”. A História Oral transformou o
depoimento em fonte, e mais, “trata da subjetividade, memória, discurso e diálogo”
20
.
Numa órbita maior, esta pesquisa entende que são documentos produzidos num processo de
lacuna regional, da história dos municípios invisibilisados, também das mulheres negras triplamente
invisibilisadas que compõem a região cacaueira sul baiana. O cacau, a migração, as relações sócio-
econômicas, as festividades e as mulheres aparecem aqui imbricados, contextualizados no cotidiano e
na religiosidade, tendo como pano de fundo uma identidade calcada na História Regional
21
na
perspectiva que essa pesquisa se insere e no âmbito da História Cultural ao lidar com as fontes, dando
a entender, segundo Pesavento
Que aquilo que chamamos de história é uma representação da passeidade (ou o ‘real
concreto’ que teve lugar um dia). [...] o historiador vai tentar recuperar o passado, tal como
ele chega até ele sob a forma de textos e imagens e, a partir daí, construir a sua versão.
(...)o de perseguir o resgate das sensibilidades passadas.
22
Esse resgate além da história, o das sensibilidades, será visto neste texto de modo quase
poético, com a interface da história local. É que a História Oral foi usada como fonte e método, abrindo
esse viés. E com toda a ‘ousadia’ dada por Thompson
19
LE GOFF. Jacques. História e Memória. 2 ed., Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1990, p12.
20
PORTELLI, Idem, p.26.
21
AMADO, J. História e região: reconhecendo e construindo espaços. In: SILVA, M. A. (Org.). República em migalhas:
história regional e local. São Paulo: Marco Zero, 1990, p. 12-13. Entendo aqui que “(...) o estudo regional oferece novas
óticas de análise do estudo de cunho nacional, podendo apresentar todas as questões fundamentais da História (como os
movimentos sociais, a ação do Estado, as atividades econômicas, a identidade cultural etc.) a partir de um ângulo de visão
que faz aflorar o especifico, próprio, o particular. A historiografia nacional ressalta as semelhanças, a regional lida com as
diferenças, a multiplicidade. A historiografia regional tem ainda a capacidade de apresentar o concreto e o cotidiano, o ser
humano historicamente determinado, de fazer a ponte entre o individual e o social.”
22
PESAVENTO, Sandra. J,1996, p.109.
Todas as fontes são falíveis e sujeitas a viés, e cada uma delas possui força variável em
situações diferentes. Em alguns contextos, a evidência oral é o que há de melhor; em outros,
ela é suplementar, ou complementar, à de outras na reinterpretação de documentos e no
preenchimento de suas lacunas e fraquezas
23
.
Além do ousar, foi preciso cuidado, pois depreendi que sendo o suporte fundamental de toda a
discussão, as falas dos moradores mais velhos, dos responsáveis pelas festas, dos filhos de santo, do
ex-vereador, foram ricas fontes sobre as quais me debrucei e que delinearam caminhos e descaminhos
dessa pesquisa. Os depoimentos foram tomados, muitas vezes, em momentos de euforia, lágrimas, ‘nó
na garganta’, nostalgias e rancores que exigiram gestos cuidadosos aos desnudá-los. Assim como a
cultura na experiência coletiva, afinal a oralidade é o elemento principal das comunidades, Thomson
24
nossa identidade molda nossas reminiscências”.
Na relação simétrica com os entrevistados, e permitindo o caráter seletivo da memória, busquei
incorporar ao texto os saberes, os costumes que circulam na comunidade. A história oral é construída
em torno das pessoas. Traz a história para dentro da comunidade e extrai a mesma de dentro dela
relacionando a História e Memória no trato com os depoimentos.
Para Benjamin, a memória é a “musa da narrativa”, amparados nelas é que sujeitos ganharam
voz, deram suas versões, um outro olhar sobre o olhar de fora que homogeneíza. Motivos pelos quais,
as narrativas individuais não foram aqui tomadas como discursos unilaterais, elas são lugares de
poder, de reminiscências, de herança africana, de identidade, de memória. “A experiência que passa
de pessoa a pessoa é a fonte a que recorrem todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as
melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores
anônimos”.
25
Intitulado ‘De beiradeiros a bandeiradores: migração, cacau e comunidade na microrregião
cacaueira do sul da Bahia, o capítulo I, discute a idéia de comunidade sem perder seu veio dinâmico,
berço da identidade grupal. Pensando na dimensão histórica, contextualiza o nascimento da
comunidade numa esfera maior, a da região cacaueira. E é importante atentar para a migração que
veio em busca do eldorado do cacau e trouxe para esse espaço as heranças africanas. Faço uma
breve, mas necessária viagem por léguas antes andadas, donde vieram os beiradeiros e fortes
mulheres negras, cujas reminiscências, na atualidade, me levaram a esse passado.
A efervescência política que acionou as mobilizações grupais, em experiências diversas ao
longo de quatro décadas, não perderam de vista as acepções foucualtianas, pois se poder é relações
23
THOMPSON, Paul. (1992). A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra 1998, p.176.
24
THOMSON, Alistair Op. Cit, p. 57.
25
BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e Técnica, Arte e política. São
Paulo: Brasiliense, 1993, p.198.
de poderes, podemos falar, então, deste na política familiar, dentro das mais variadas instituições, no
“festar”, nos atos religiosos etc. Na comunidade,foram elencados episódios tanto do poder como da
resistência. É no universo cotidiano que enfretamentos e labutas se desenrolam entre os espaços, em
notícias e experiências vividas no sul da Bahia. Contemplei ainda a dimensão do sagrado e os espaços
de memórias de mulheres, homens, crianças e orixás, unidos na luta pela sobrevivência do corpo e da
alma.
Uma faceta da identidade é seu caráter relacional, uma vez que o Camamuzinho teve a sua
gestada pelo contraste com Ubatã. Foi preciso perceber sob qual prisma e qual era o lugar desse outro
que fala, categoriza. Longe da vitimização, são apontados os supostos motivos e a ênfase é dada ao
modo o grupo reafirma sua postura identitária perante o outro, seja como tribo, índio, negro, pobre.
O II capítulo, Códigos de sociabilidades no cotidiano: nascer, festejar e morrer entre santos e
orixás traz em si o jogo representação, para depois se valer de outros, na correlação com fé,
reafirmação identitária e sátira inserindo significações plurais.
Assim, festividades no Camamuzinho são marcantes desde sua formação. Assumem posturas,
ocupam espaços diferenciados, são afirmações identitárias, identificação grupal. Quanto aos espaços,
sagrados e profanos, começam na comunidade, e tem centralidade na festa do padroeiro, o ápice.
Nascer e morrer com os santos e orixás, o cordão de São Francisco e o ‘retrato’ .Esses dois rituais,
nascimento e morte, guardavam simbologias. Ao nascer, pelas mãos de Nanã, esse orixá deu um lugar
de respeito na comunidade personificada por Mãe Rosa. Ainda trouxe os ‘encantados’ e seus remédios
para o socorro comunitário. A morte também reunia essa circularidade, o recorte desta se em duas
singularidades: o cordão de São Francisco realizado por sete mulheres da comunidade durante o
velório, e as fotografias dos mortos e dos vivos, antes do enterro.
No espaço do outro, as micaretas figuraram como a sátira, a afirmação grupal, étnica. A
comunidade conhecida como festeira, animada e unida traduziu em organizações e blocos um discurso
simbólico, grupal, contestador. De tal modo que frente aos blocos da elite, criaram outros.
O capítulo III,
Ojás, lenços e rodilhas: negras mulheres, malungas, comadres e vizinhas
discute o encontro entre o visível e o invisível, as heranças materiais e imateriais de mulheres que
vieram aventurar a sorte, vida e morte no Cristal com exercícios de sobrevivências femininas dando
territorialidade nesse espaço, através das práticas culturais e religiosas imbricadas.
A partir desse eixo, desdobra-se em quatro temáticas sem perder o foco da religiosidade, que
nos capítulos anteriores apareceu insistentemente entre um e outro aspecto do cotidiano. É mais uma
das nuances de identidade, com memórias de vidas e ancestralidades negras feminina, com seus
santos, encantos e desencantos, projeção da comunidade por esse viés. E, por fim, busquei
inspirações na literatura pensando em mulheres negras, as amadas que não eram as de Jorge e
amadas que eram de Morrison, na poética da memória da escritora afro-americana Toni Morrison que
intertextualmente fez história fazendo literatura”, lindamente, por sinal, tomando por empréstimo
palavras de Sevecenko.
26
A tradição religiosa afro-brasileira valoriza o papel da mulher e pela oralidade reúne uma
sabedoria guardada por elas como protagonistas da vida e como esteio de sua comunidade. Senti-me
à vontade para pensar tanto na relação dos orixás com essas mulheres como no modo como cultivam
uma rica e dinâmica relação com a natureza, o rio, a roça. Provoco, instigo e aponto caminhos, em
suma, longe de vitimá-las, sinto-me seduzida a mostrar suas vitórias nas inventividades e no poder
sócio-comunitário.
26
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como Missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2 ed. São
Paulo: Companhia das Letras, 2003.
CAPÍTULO I
De beiradeiros a bandeiradores: migração, cacau e comunidades no final do século XIX na
microrregião cacaueira do sul da Bahia
1. Uma viagem necessária por léguas antes andadas
Difícil pensar nas origens de um município sulbaiano desvirtuado das típicas cidades que
surgiram em função do cacau. Entre elas, Ubatã, Ibirapitanga, Camamuzinho e cidades
circunvizinhas
27
, que compartilham o Vale do Rio de Contas, a cultura cacaueira ou, pelo menos o
passado glorioso -, os nomes de origem indígena, o sangue migrante adubando o cacau, atividade que
desde 1850 passou a se expandir em nosso Estado.
Foi especialmente no período pós-abolição que as terras sul baianas eminentemente agrícolas
receberam um grande fluxo de migrantes vindos, sobretudo, do Recôncavo Baiano e de Sergipe. Os
primeiros que chegaram conseguiram estabelecer suas propriedades, para os que chegavam depois
tinham que se contentar em ser trabalhadores braçais. Por esse motivo, no Cristal encontrava-se uma
diversidade de sotaques, origens e motivos da migração, cada um tinha um caso para contar, a
epopéia da vinda ou o sonho que os moveu.
Por tantos elos, a história do sul da Bahia e a do cacau se confundem, fica difícil fazer
referência a uma sem falar do outro. Esse espírito “grapiúna” rendeu um elenco de historiadores,
memorialistas e escritores que têm se debruçado sobre o sul baiano no final do século XIX e início do
XX, e esses elementos suscitam vieses, memórias e análises plurais. De modo que brotaram ricas
produções de Silva Campos, Jorge Amado, Guerreiro de Freitas, Adonias Filho, Hilda Paraíso, Falcón e
Mahony; esta última, e sua tese de doutoramento nos oferece ricas informações sobre as condições
sociais, especificamente dos negros.
O culo XX nasceu fazendo convergir para as terras grapiúnas olhares de outras partes, de
outras regiões do Estado. Motivo? Sim, a lavoura! Implantada e expandida, estava requerendo braços
fortes. E se o cenário mudou, novas personagens também entram em cena, sujeitos como os novos
ricos, cujas fazendas passaram a produzir o ouro, o cacau. O sul tornou-se um lugar de ouro e de
negros, e depois de nordestinos fugidos da seca que vinham matar a sede, do dinheiro fácil e
abundante, fácil para o coronel e quase impossível para eles. Começava uma nova era no espaço da
outrora “Capitania dos Ilhéus”.
27
Texto extraído da publicação em três volumes, CIDADES DO CACAU, da CEPLAC, Ilhéus, Bahia, 1982.
Nesse espaço, a abolição e o cacau reconfiguraram as situações sócio-econômicas, e figurava
aos olhos dos proprietários de terras e escravos uma grande incoerência: estes agora seriam mais que
necessários, e a manutenção da escravidão poderia representar lucros extraordinários. E por tal
situação de exploração não ser aceitável, algumas situações causaram estranheza. Fazendeiros que
agiram à revelia de um processo que se iniciara recentemente. Alguns destes fatos viraram notícia:
Em Ilhéus, um fazendeiro é acusado de usar a força pública aquartelada em sua fazenda,
onde vinha cometendo “os maiores absurdos contra os ex-escravizados deste cidadão, que
se recusam a trabalhar sem salário, ou procuram receber a importância das suas plantações
de cacaueiro encravadas nas fazendas do seu ex-senhor e atual comandante da força
pública
.”
28
Os absurdos também se estendiam à exploração destes trabalhadores cada vez mais
numerosos. Segundo Falcón
29
, em média dezesseis mil famílias foram integradas à lavoura cacaueira
da Região Sul do Estado, principalmente no eixo Ilhéus - Itabuna, o que a diferenciava, nesse mesmo
período, da capital baiana nas primeiras décadas do século XX.
Sem aparecer nos jornais, mas movido pelo mesmo objeto de desejo, o cacau, Camamuzinho
nasceu como comunidade no período pós – abolição, e ficou como distrito de Camamu até 1962.
E foi preciso olhar para a situação de homens e mulheres negros nesse espaço antes das
ondas migratórias, de modo que, a título de contextualização, retrocede-se a Camamu. Se o faço é
para saber como nasceria Camamuzinho, vejamos, então, a situação de Camamu.
Camamu era uma vila,e o relato do viajante naturalista Von Martius no início do século XIX era
a seguinte: “Este lugar é sem dúvida o mais importante e o mais populoso da costa da Bahia, ao sul da
Capital. Conta-se na vila para mais de 6.000 pessoas.” E chegou a ser a segunda cidade mais
importante da Bahia e a maior exportadora de farinha de mandioca do país. E qual a situação ou qual
o perfil dos negros dessa vila? Desse conjunto sairiam os negros de Camamuzinho, daí ser útil
perguntar quais eram seus modos, suas marcas.
Um dado revelador é que Camamu estava, nesse período, com população predominantemente
negra, marcada por ações de liberdade movidas por escravos
30
no final do século XIX . No espaço
onde surgiriam depois todos esses pequenos municípios em virtude do cacau, estariam os negros
atuantes e sequiosos de espaço, inserção, liberdade. Estes homens e mulheres apoiavam-se na lei de
28
BPEB, Diário da Bahia, 28 de junho de 1888.
29
FALCÓN, Gustavo. Os Coronéis do Cacau. Salvador, Centro Editorial e Didático da UFBA, 1995, p.41.
30
SILVA, Ricardo Tadeu Caíres in Revista: www.afroasia.ufba.br/pdf/afroasia n.35 pp. 37_82_ ,o autor localizou, entre 1884
a 1888,22 ações de liberdade no APEBa, Seção Judiciária, Ação de Liberdade.
7 de novembro de 1831
31
,mas perceberam que, mesmo décadas depois de sua aprovação, ainda se
encontrava sem efeitos para muitos nos últimos anos da escravidão e mesmo depois dela.
Estas ações foram impetradas por escravos residentes nas propriedades situadas nas vilas de
Maraú, Barra do Rio de Contas, Santarém e Camamu, localizadas ao sul da Província da Bahia,
incluindo Taipus, local de desembarque de muitos cativos no processo do tráfico negreiro.
Interessante no estudo de Silva
32
foi a participação feminina de grande destaque nessas
ações, cuja força e iniciativas seriam muito úteis em outros espaços,os do cacau, na luta para ganhar a
vida, na labuta na roça, às margens do Rio de Contas ou na rua,vendendo comida numa profusão de
atividades como de fato aconteceu na comunidade.
Ao contrário de outras regiões, em que uma das tendências dos ex-escravos foi de migrar para
as cidades, no sul baiano, as roças atraíam os egressos da escravidão. Mahony
33
esclarece que “por
ocasião da abolição, em 1888,já haviam sido plantados cacaueiros em quantidade suficiente para
permitir que o sul da Bahia exportasse 13.000 toneladas de cacau em 1900 e se tornasse um dos
principais produtores mundiais.” Isso configura que as possibilidades de inserção no mundo do trabalho
do cacau atraíam esses homens e mulheres na passagem do século XIX ao XX.
Desse modo, foi esse o contexto cio-econômico que impeliu sujeitos a se embrenharem por
novos caminhos e rotas e, nesse recorte específico, surgiu às margens do Rio de Contas, o município
de Ibirapitanga, que seria considerado um dos maiores entre os dez municípios produtores de cacau.
Ibirapitanga, na época chamado de Cachoeira do Pau, - nascido dessas rotas do cacau-, e o distrito de
Camamuzinho era o Cristal, ambos integravam Camamu e lidavam com muito cacau.
Migrar, para muitos ex-escravos, foi um dos mais importantes exercícios de liberdade. Dentro
da região que pertencia a Camamu, houve um trânsito nesse sentido, as comunidades nascidas nesse
processo acabaram por se constituir a partir dessa população egressa.
O cacau transformou-se em signo ideológico para os lavradores e viabilizou a formação de
uma sociedade regional sequiosa por riqueza que permitiu a existência de classes e formas de vida
não registradas pela historiografia, principalmente no tocante à mulher negra. Elas estavam colhendo
cacau, pescando no rio, tratando fato e peixe, vendendo na feira, cuidando da saúde sica e espiritual
da comunidade.
31
MOURA, Clóvis. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2004.p.18.
32
SILVA, Ricardo Tadeu Caíres. Op. Cit.
33
MAHONY, Mary Ann. "Instrumentos necessários": escravidão e posse de escravos no Sul da Bahia no século XIX, 1822-
1889, Afro-Ásia. Salvador, Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO-FFCH) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), n.
25-26, 2001.
O valor atribuído ao vivido por cada um desses sujeitos e nas esferas sociais que compunham
fazendas, lugarejos, municípios, sede ao trabalho no Rio de Contas, desvelou relatos de miséria,
trabalho infantil, prostituição de mulheres e de suas filhas; e as doenças decorrentes do trabalho
insalubre no mundo do cacau no início do século.
Os sujeitos começaram a ganhar nome e suas histórias ganharam contextos. A História Oral,
as entrevistas com os antigos moradores do Cristal trouxeram essas denominações de beiradeiros – de
onde provinham- e de bandeiradores de cacau, no que se transformavam. Beiradeiros é referência aos
migrantes da região litorânea de Camamu, Valença e Nilo Peçanha, região hoje reconhecida como
sendo de remanescentes de quilombos que acabaram por conformar uma comunidade de maioria afro-
descendente nas terras já habitada por índios tupi.
As referências temporais advindas das memórias situaram 1909 como o período em que o
lugarejo estava estruturado para receber e despachar o cacau, abrigar as pessoas e suas práticas
culturais, tudo envolto em árdua lida. Permaneceu assim a 1959, baliza cronológica referente ao
momento em que os moradores são deslocados em virtude da construção de uma barragem e vão para
Camamuzinho, décadas mais tarde.
Encontram-se nesses depoimentos múltiplas referências às condições de vida daqueles
sujeitos, como a alimentação frugal, muitas vezes à base de jaca
34
. O Sr. Pedro Barbosa Menezes
35
,
74 anos, um dos moradores mais antigos, vivenciou esse sofrimento quando, também migrante, veio
para o sul atraído pela fama do cacau. Emocionado, explicou que, entre outros sofrimentos, estava o
contrato,
36
que “era uma espécie de acerto que o fazendeiro fazia com o trabalhador para plantar
cacau, ficando o segundo com o direito de lavrar para si mandioca, feijão, milho (de comer), mas era
obrigado a devolver os cacaueiros quando eles estavam safrejando mediante pagamento por pé.
Sem nada receber pela lavoura de subsistência restante”. E não havia a quem reclamar, até o
delegado destacado era indicado pelo coronel.
Como as leis do cacau eram feitas pelos fazendeiros locais, foi comum que no Cristal
ocorresse de um lavrador de ir buscar sua parte e ser humilhado. Quase todos sabem contar de uma
forma de violência, mais econômica que física, que ainda causa dor e revolta ao ser narrada. Segundo
o Sr.Pedro, os fazendeiros penduravam os trintas réis a que o pobre do trabalhador tinha direito e
mandava ele ir lá pegar, na ponta da arma.Quem ia? Não tinha outro jeito e ele pegava sua família e ia
34
NETO, Euclides. Dicionareco das roças de cacau e arredores. Ilhéus: Editus, 1997, p.110. Conhecido como ‘tira-saldo’,
o trabalhador deixa para receber o dinheiro no fim da empreitada,quando a conclui,não gastando nada,alimentando-se
somente com a preciosa fruta.
35
Depoente anteriormente citado e identificado .
36
NETO, Euclides, Op. Cit, pág.59.
embora sem nada, procurar outra fazenda. Estas atuações nas esferas locais inseriam-se em um
universo regional, onde até metade do século XX ocorria o que Edgar Carone
37
contextualiza
Socialmente, o coronel exerce uma série de funções que o fazem temido e obedecido, aos
agregados, ele dispensa favores: dá-lhes terras, tira-os da cadeia e ajuda-os quando
doentes; em compensação exige fidelidade, serviços, permanência infinita em suas terras,
participação nos grupos armados, etc. Aos familiares e amigos ele distribui empregos
públicos, empresta dinheiro, obtém crédito, protege-os das autoridades policiais e jurídicas,
ajuda-os a fugir dos compromissos fiscais do Estado, etc. É o “juiz”, pois, obrigatoriamente, é
ouvido a respeito das questões de terras e ade casos de fugas de moças solteiras. [...] é
homem de fé, pois é quem anima as festas religiosas e as oficializa
.
Em torno dessas narrativas e ambigüidades personificando o coronel e seus feitos, projetou-se
a literatura do cacau, com seus ciclos, percalços, jagunços, etc., literatura que, além de vasta, é
carregada de possibilidades de se apreender o universo regional e local de sua formação.
A cultura afro-brasileira, neste espaço, remonta a essas origens e demarca sua territorialidade
dando ao lugar fama de poderoso, através de mães de santo muito procuradas, da fama dos bons
pratos da cultura africana, apreciados por muitos, e que por mãos de negras beiradeiras garantiam
subsistência da cultura material e simbólica. Cotidianamente a religiosidade era expressada pelas
casas de candomblé. Tem-se notícias de duas, o que era muito para um lugarejo que não tinha
nenhuma igreja; assim, no espaço não formalizado essas casas davam o amparo espiritual a esses
sujeitos.
1.1. Da água do peito da mulher ao visgo do cacau: do Cristal ao Camamuzinho
Aiyá em Iorubá significa peito da mulher, e para a cultura religiosa afro-brasileira ele é sagrado;
para os índios tupiniquins a água que esguicha do peito da mulher tem outro nome, chama-se
Camamu. Os nomes, sejam da cultura africana ou da língua tupi guarani, estão carregados de
historicidades e memórias, assim como os lugares. E como defini-los? Falar de um lugar é mexer com
“uma alma que compartilha quem vive experiências ali; assim, como se poderia pensar nesse
lugar?
Distrito, povoado, vila, arraial?Para defini-lo lancemos um olhar pelo lugar, por sobre casinhas
e casebres, praça, capela, tamboretes na porta ao entardecer onde pessoas idosas ainda são
consideradas sábias, comadres e compadres ouviram e contam lendas com imaginação em muitas
versões. Comportam, também, um louco, um bêbado, um centro e uma periferia, um político, uma
escola, enfim, lugares comuns de histórias singulares dentro de certa pluralidade, narrativas e
37
CARONE, Edgar apud SILVA, Francisco de Assis; BASTOS, Pedro Ivo de Assis. História do Brasil. São Paulo: Ed.
Moderna, 1976, p.173.
personagens de uma mesma história permeada de mortos e vivos, e de mortos ainda vívidos na
lembrança, heróis e vilões, anônimos,mas conhecidos na história local. Pensando assim, chega-se
perto da “alma” que habita o sentido de lugar.
Passa o tempo, ficam as histórias, memórias e suas visões sobre o comum, de modo
particularizado pelo olhar e lugar de quem fala,conta, rememora. Entre o individual e o coletivo, o limite
é tênue, estes são elementos denominadores comuns de vilas, distritos e povoados. Nesse caso,
muitos filhos que bebiam água do peito da grande mãe Baía de Camamu e que vieram para as águas
do Rio de Contas, de uma beirada para outra, literalmente.
Se no seu surgimento esses lugares receberam nomes ligados às suas configurações
geográficas ou naturais, como Cachoeira do Pau, Cristal, Dois Irmãos da Mata, etc., a partir do final da
década de 1950, estes nomes mudariam por motivos políticos, vinculados aos processos
emancipatórios, mas receberam nomes de acordo com aquilo que mais simbolizaria esse espaço, a
presença indígena.
A região que envolve hoje Camamuzinho e Ubatã era chamada de Aldeia de Funil onde
grande número de índios vivia às margens do Rio de Contas, daí a denominação Aldeia. Ibirapitanga
vem da língua Tupi-Guarani e significa Pau Brasil; Ubatã, Madeira Rija; e Camamuzinho é diminutivo
de Camamu, significa água do peito da mulher, pela semelhança dos esguichos de leite, que reunidos
no bico do peito se difundem para diversas partes. Retratava assim a Baía de Camamu e sua
imensidão de lugares, distritos, povoados.
É patrimônio aquilo que sentido e pertencimento aos sujeitos, através da oralidade, onde
pessoas, suas funções, suas festas apareceram nos diversos olhares sobre o mesmo objeto: o lugar.
Está nas falas e memórias de sujeitos que viveram lá, como esse trabalhador que concedeu entrevista
à pesquisadora Maria Luiza Nora de Andrade, cujo trecho destacado me ajuda a desnudar o cotidiano
nas primeiras décadas da comunidade. Ele o faz tão bem porque viveu lá, sabe melhor que ninguém. E
nos leva a um passeio pelo Cristal, a despeito do tempo:
Eu trabalhei numa região, de Ubatã, eu morava em Ubatã, mas eu tangia tropa, nesse
tempo não ia carro para Ibirapitanga, que antigamente era Cachoeira do Pau, essa mata
era uma coisa séria. A senhora via aqueles homens com cada um facãozão, naquelas
portas de venda, com uma pistola daquelas dois canos. Aquilo era uma ignorância que eu
vou dizer à senhora... Tinha um cara mesmo dessa região de Ibirapitanga, hoje é
Ibirapitanga, que antigamente era Cachoeira do Pau. Então tinha um cara nessa região
que era falado, eu morava aqui embaixo, em Banco Central, e não conhecia esse cara. Aí eu
fui pra Ubatã, né, foi quando eu fui pra Ubatã que apareceu esse cara, num lugarzinho
chamado Cristal, num comercinho que tinha lá, no município de Ibirapitanga mesmo,
município de Ibirapitanga não, era Camamu (Ibirapitanga era do município de Camamu,
agora emancipada, não é?), então, tinha um lugar por nome Cristal, esse lugar hoje
debaixo da represa da barragem, quer dizer que ficou debaixo da água esse lugar.
38
{grifos
nossos}
O relato informa, situa, problematiza, e mais, deixa entrever não os elementos étnicos e
econômicos, mas a violência, as referências dos lugares em comparação a outros e duas certidões de
nascimento: o Cristal de Camamu e o Camamuzinho de Ibirapitanga.
Como recortes, são mostradas duas versões sobre o Cristal sendo uma à moda antiga, um
bilhete, escrito por um empresário local, o Sr. Erotildes Herculano de Souza, 85 anos, dono de uma
siderúrgica no Camamuzinho, que teve negócios no Cristal, e em virtude de não querer dar seu
depoimento, preferiu enviar, através de sua filha, um bilhete com a declaração de que “ele gostou muito
de relembrar”. E dessas tessituras e memórias, ele também ajuda a apresentar o início da
Comunidade:
“O distrito de Cristal, na época era distrito de Camamu, havia aproximadamente mil
habitantes. Alguns nomes de moradores: Maneca Ferreira da Paz, soldado; Irineu Araújo,
delegado municipal; Furtado, ougueiro. Na época houve uma chacina da família Longo,
sendo o causador um soldado que se chamava Jesus. O movimento comercial: açougue,
padaria, armazém de compra de cacau, bar, farmácia, posto fiscal, pensão, cabaré
(proprietária Julitão esposa de Cícero);restaurante (proprietária Mulata e suas duas
irmãs).Na época também existia uma grande lagoa onde era freqüentada por muitas pessoas
da região para tomar banho.Foi desativada em 1961 com a inundação da barragem central
do Funil,onde inundou uma ponte construída pelo Dr.Eunápoles com a estrutura semelhante
à de Gongogi.O cemitério deste povoado era do outro lado do rio,na fazenda do Senhor
Antônio Querino,que era registrada no cartório com o nome de Fazenda Cristal que tinha
esse nome porque a cachoeira do Rio das Contas,com a queda d’água e a luz
solar,formavam uma luminosidade semelhante a de um Cristal.Daí então o nome do lugar e
do povoado
”.
Essas caracterizações feitas por quem viveu, em outra narrativa ganha ares de inspirações
amadianas e ficcionais e viraram crônicas na versão de Ferreira,
39
que romanceia essa fase, embora
no prefácio de seu livro deixe bem claro: “Esta não é uma obra de ficção”, e traz à memória antigas
denominações das vilas que compunham a região, além de narrar o cotidiano do Cristal, Camamuzinho
e suas relações com cidades circunvizinhas: Ubatã, Ibirapitanga, Gongogi, Ipiaú, e de trabalhadores do
cacau, atuação de fortes mulheres, até a construção da Barragem do Funil que encerra essa primeira
fase e então, e as atenções, populações e construções se voltam para o Camamuzinho. entram em
cena de modo mais acentuado, mulheres, trabalhadores, dono de venda, lavadeiras, fateiras, etc.
São histórias comuns, como o saldo sempre devedor do trabalhador que o prendia à fazenda
do coronel, as tocaias, os jagunços, as festas juninas, a Serra Pelada perto de Cachoeira do Pau, os
perigos da mata perto da Cachoeira do Funil, a cidade de Ilhéus como o grande centro e o seu porto
38
ANDRADE, Maria Luiza Nora de. Assim falaram os trabalhadores do cacau, pp.248- 249. in: Identidade cultural e
expressões regionais: estudos sobre literatura, cultura e turismo. Maria de Lourdes Netto Simões (Org.), Editus, 2006.
39
FERREIRA, Ivan Estevam. Ponte do Cristal. Edições UESB, Vitória da Conquista, 2001.
como a porta para se ganhar o mundo; as brigas a facão, as ‘vendas’ e botequins no Cristal como
ponto de encontro desses sujeitos e um candomblé com ampla participação popular, esses e outros
são retalhos de uma mesma colcha.
Ao narrar as sociabilidades, Ferreira detalha que “todo final de semana havia festa em uma
fazenda para distrair a juventude da região
40
”, animada com violão, sanfona e pandeiro e a vinda de um
sanfoneiro famoso de Rio Novo. Nada impedia o sucesso, nem a lama no meio da canela ou o burro
atolado. Havia festas também do outro lado do Rio, com o fifó
41
aceso para clarear a estrada, além dos
namoros na casa de farinha enquanto a festa corria num salão; maiores que estas festas, as do
candomblé onde todo mundo se encontrava novamente.
Esse cotidiano romanceado assusta e também confirma os relatos anteriores, - o bilhete e a
fala do trabalhador -, as chacinas, a violação de sepulturas, as cobras gigantescas. Outros relatos se
imbricam sempre citando nomes de mulheres de fibra ao lado de sofredores peões, alugados,
assassinos. Esse Camamuzinho romanceado não deixa de ser intertextual, ancorado nas histórias que
os mais velhos de fato contam.
Tanto no bilhete quanto no livro memorialista, os relatos referentes às estórias dentro da
história local acima elencados, deslindam como a História Oral pôde apreender “a experiência efetiva
dos narradores, mas também recolhem destas tradições e mitos, narrativas de ficção, crenças
existentes no grupo, assim como relatos que narradores de estórias, poetas, cantadores inventam num
dado momento”.
42
O exercício de olhar para o passado a partir do presente foi feito de modo que
Cristal, o Camamuzinho e Ubatã apareceram sempre à medida que a memória deles os trouxe com
caracterizações que persistem e parecem contemporâneas.
Para os que não eram egressos da escravidão, nesse espaço idealizado do sonho do cacau,
acreditava-se vencer o pesadelo da seca, e mais, a crença num futuro próspero, que a seca, maior
responsável pelas migrações nordestinas, havia roubado. E o tripé seca-exploração-migração se
corporifica no modo como o Sr. Pedro explica: “eu vim um pedaço de marinete, outro no pau de arara,
clandestino. Mas no começo peguei a linha do trem de ferro Nazadas Farinhas BA para Jequié -
BA, que passava três da tarde”. Ele se refere à Trans Road Nazaré, para lembrar, o caminho
inverso Cristal/Camamuzinho para Jequié - , era feito muitas vezes em lombo de burro das roças,
quase 90 km, lembrando que era comum que muitos fizessem longos trechos a pé.
40
FERREIRA, Ivan Estevam, Op. Cit. 2001, p.63.
41
Candeeiro ou zé gás, iluminação à querosene.
42
QUEIRÓS, Maria I. P. de Relatos orais: do indizível ao dizível. in : Von Simon, O. M. (org.) Experimentos com histórias
de vida (Itália- Brasil). Enciclopédia Aberta de Ciências Sociais. São Paulo: Vértice, 1988.1988, p. 19.
Quem recebia a notícia e vinha se aventurar no Camamuzinho tinha destinos previsíveis: a
construção da Barragem, a construção da BA- 02 ou o trabalho no cacau. A viagem era marcada por
longas baldeações que envolviam o trem e depois a marinete, caminhões ou pau de arara, que os
despejavam nas fazendas em volta do Camamuzinho. Esse era o ponto de encontro movimentado, de
chegada e partida, entre os que aqui estavam e os que se ‘mandava buscar’ usando as expressões
dos moradores mais antigos. Nessas encruzilhadas, as culturas também se encontravam,
reelaboravam-se.
A supervalorização desse lugar promissor figura na memória coletiva com riqueza descritiva
dos relatos. Mesmo muitas décadas depois da destruição física do Cristal, ainda se queixaram do
sonho do progresso trazido pelo cacau que foi interrompido, roubado pela barragem. Pollak
43
afirma
que essa “referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos”, assim entende-se a
supervalorização de um passado comum , quando com visível orgulho e saudosismo citam nomes dos
que ainda estão vivos e que “alcançaram o Cristal”, como se a vivência lá fosse um privilégio guardado.
Fica evidente que esses novos espaços de socialização e as pessoas remanescentes de um
espaço-lugar considerado tão importante acabaram contribuindo para a manutenção e o fortalecimento
das tradições trazidas na memória. E sobre isso, Halbwachs (1990) aponta essa apropriação comum
dos símbolos e dos significados, e a comunhão de noções que compartilhamos com os membros do
grupo social como aquilo que define o caráter social das memórias individuais.
Este "sentimento de realidade" é a base para a reconstrução de um passado marcado
fortemente pela cultura negra, não na cor, mas na religiosidade, hábitos, festas e sociabilidades,
intrínsecas nesse espaço-gênese, e se constituiu da apropriação pois “tempo, memória, espaço e
história caminham juntos”, salienta Delgado
44
,vez que as singularidades da cultura afro-brasileira que
a comunidade ainda hoje apresenta são frutos dessas primeiras construções simbólicas, culturais,
geográficas incrustadas na identidade.
Para os ex-moradores, esse arraial é como se ainda existisse, falam dele usando verbos no
presente. Quem tipifica isso é o Sr. Francisco José dos Santos, ou “seu Chico”,que tem 57 anos de
Camamuzinho, veio de Valença atraído pelas mesmas promessas, em 1949. O cacau estava dando
muito dinheiro”, e por causa dessa notícia veio ao encontro de Elói Gomes, seu tio, dono de uma
padaria aqui desde 1947. Sobre a origem dos beiradeiros e/ou o fato de a maioria ser negra ele
explicou: “Camamu é uma região muito antiga e quem trabalhava era o africano então era por isso
que quando esse povo veio para e aqui tem muito preto,ahoje”; e quando falam das heranças da
43
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos históricos. n.3, Rio de Janeiro, 1989,p.07.
44
DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História Oral e Narrativa: tempo, memória e identidades. ABHO, 2003, p.10.
cultura negra ou das características fenotípicas é para lá que se reportam assim como ele , o Sr.Pedro
explicou que o Camamuzinho “puxou pro lados dos negros né, vindo de dos lados de Camamu,
chegou aqui misturou com quem era índio, acabou de danar”, ressaltando a hibridez.
E esse elemento recebia um sobrenome, uma identificação e um novo vínculo, “o beiradeiro,” e
se tratavam e se reconheciam como originários de uma mesma identidade. No relato de Carlos Alberto,
37 anos de Camamuzinho, ele esclarece que não alcançou o Cristal, nasceu no Camamuzinho, mas
sentiu, entendeu essa identificação que sobreviveu sendo rememorada por muito tempo e em outro
lugar. E fala do que via
Quando alguém aqui queria encontrar uma pessoa e falava o nome e ninguém sabia quem
era logo completava: Manuel, o beiradeiro!Aí todos sabiam quem era. Porque eles da
beirada de Camamu, Valença ou pro lado de Nilo Peçanha tinham esse parentesco. Até
quando morria um beiradeiro parecia que era parente.
Quanto ao Cristal, as narrativas de Seu Chico foram muito esclarecedoras no tocante às
sociabilidades, pois morou entre 1951 e 1959. Com riqueza de detalhes, conta sobre o carnaval que
ele organizou em 1957, das festas que duravam até três dias, das chacinas, e o fato dos criminosos de
irem para Camamu, montados ou a para serem presos. Seu Chico disse que tem’ muito apreço
pela história do Cristal.Demonstrando grande saudosismo fez questão de se delongar em detalhes e
enfatizou sempre que lamenta a destruição em virtude da construção da barragem, o que ocorreu em
1959:
A minha família foi constituída no Cristal, tenho muito apreço por aquele lugar!É um lugar
bom, eu tinha comércio desenvolvido. que pena, começou o serviço da barragem. Tinha
uma cachoeira bonita as pessoas iam passar o domingo. tinha um movimento que não
tinha aqui. Era um povoado de algumas ruas e a ilustre família local de sobrenomes
importante do cacau, começaram com comércio Araújo e Matos também moravam lá. Corria
muito dinheiro, tinha farmácia, bar, loja, teve origem da Fazenda Funil. Se a barragem fosse
construída mais pra frente em outro lugar... Não teria acabado. E os destacamentos policiais
iam para lá. O comércio era bom!
Coletivamente, esse passado e esse lamento transcendem a individualidade de cada
lembrança e foram mostradas através de moradores, delegados, administradores, da mãe de santo,
mulheres que labutavam sozinhas ou com seus companheiros, o comerciante, enfim, sujeitos que
moravam e foram ouvidos. Divergiam sobre um ou outro dado, traziam novos detalhes, mas a saudade
e o lamento por um ‘progresso interrompido’ foi dado comum.
As memórias são compartilhadas socialmente no domínio da vida comum e cada pessoa
rememora saudosista as vivências e sociabilidades que são ancoradas na história individual que vai
emergindo à medida que são feitos os encadeamentos e as relações do que é manifestado nas
lembranças. Por esse caminho, a história local foi se desnudando e se articulando.
A cada depoimento, percebia-se a confirmação de Le Goff (1997), de que é nas novas leituras
do passado, de reinterpretação constante no eterno presente, que se situam as marcas do vivenciado e
as evidências de cada época. A identidade nascida e situada nessa junção entre lugar e identidade,
evidencia o que Sodré ressalta como esse entrelaçamento que ocorre entre os sujeitos e o espaço-
lugar onde sua história acontece, pois “(...) as afetações simbólicas que na cultura opera o espaço-
lugar, o território, enquanto força propulsora, enquanto algo que possa engendrar ou refrear ações”
45
.Dessa assertiva fica mais fácil enxergar a religiosidade afro-brasileira que, destoante dos lugarejos
circunvizinhos, engendrava ações aqui, estabeleciam territorialidade num espaço dado por aquele
contexto, também ações políticas, diante de uma sede distante.
Cotidiana e economicamente, recebiam cacau de muitos lugares para despachar nas canoas,
principalmente de Ubatã
46
e lá estabeleciam relações para vender e despachá-lo. O lazer na Cachoeira
era atração nos finais de semana, nas festas do candomblé e no carnaval.
A proximidade do rio assegurava-lhes não o suprimento das necessidades básicas, mas
para o próprio escoamento do cacau, ainda não se podia contar com boas estradas. As sacas de cacau
desciam no lombo das mulas e abarrotavam canoas até um ponto mais próximo de Ubaitaba, cidade
vizinha que na época contava com uma linha de trem que levaria o cacau ao porto de Ilhéus. O fato de,
na época, a BA-02 passar no meio do povoado, lhe dava uma dinâmica ainda maior, contribuía para
que o comércio crescesse: tropeiros, mascates, comerciantes, migrantes circulavam pelo Distrito. Era a
rota que levava a Ilhéus, ícone de progresso e dinheiro para essa região, a “capital do cacau”.
Luís
47
explica que “nessa época havia uma única rua, que se estendia às margens do rio,
desde a Comissão até a divisa do Ribeirão Dois Irmãos da Mata.” A fotografia retrata os migrantes-
beiradeiros, em sua maioria negros, construindo suas casas. É bom ressaltar que Camamuzinho,
nessa época, não existia com essa nomeação e o espaço que receberia esse nome -, em homenagem
a Camamu, - era uma fazenda da família Spínola, com umas 30 casas somente, relembra o Senhor
Maneca.
48
Munidos de pólvora, chumbo e sal e coragem, às margens do rio os descendentes de índios da
terra, e os negros beiradeiros começavam a vida aqui. Com determinação, foram transformando as
matas em espaços sociais, compondo o quadro de “marginalização, mando e obediência,” como
observado anteriormente
49
,em terras de índios, com a força do braço negro. Construíram as primeiras
45
SODRÉ, Muniz. O Terreiro e a Cidade. A forma social negro-brasileira. Petrópolis, Ed. Vozes, 1988, p.12.
46
Cidade limítrofe com o Distrito separada apenas pela ponte sobre o Ribeirão Dois Irmãos.
47
LUÌS. J. Memórias de Ubatã. (Editora Gráfica não discriminada). 1995, p, 21.
48
Manoel Ferreira da Paz, 93 anos, ex-vereador, delegado do Cristal e do Camamuzinho.
49
SANTOS, Cristiane Batista da Silva. O trabalhador no submundo do cacau: marginalização ,mando e obediência na
década de 20. Monografia de graduação, UESC, 2001 citada in, SOUSA, Antônio Pereira. Fragmentos de História, A
escrita da História no Sul da Bahia, Editora. T.Mais. Oito, Rio de Janeiro, 2008, p.152.
casas, vendas, armazéns, sempre às margens do rio, partindo da Comissão, Ruinha, o Camamuzinho
e terminava no Cristal.
Figura 01 – “Negros, índios, beiradeiros-migrantes”.
Fonte: Arquivo Público PMU – Prefeitura Municipal de Ubatã-Década de 20.
1.2 Cristal quebrado pelo concreto, lá vem a Barragem!
Por sobre a cachoeira do Cristal, o concreto, sobre o sonho do progresso com a terra, muita
água. O governo pregava a modernidade com a construção da Barragem, os moradores temiam perder
suas tradições, valor que as indenizações certamente não pagariam. Muitos funcionários, ônibus,
cimento e escavadeiras invadiram o lugar. A partir das escavações da usina, a rotina foi alterada assim
como a geografia do lugar e, claro, as relações sociais. A intrínseca relação entre a produção
cacaueira, a expansão da cidade de Ubatã e a construção da hidrelétrica criou uma nova teia de
relações sociais e econômicas.
Muitas histórias em torno da barragem começaram a circular no imaginário dos moradores,
alguns pensaram em vender suas casas mais baratas para fugirem, outros temiam inundações, até os
jornais noticiavam o que povoava e crescia no boca a boca. O jornal O Povo
50
destacou a organização
de um abaixo assinado em protesto, com quase mil assinaturas, contrárias à construção da barragem:
“Ubatã e Barra do Rocha em polvorosa com a perspectiva de inundação desses dois distritos pela
barragem do Funil.” Protestos e medo em vão; no final da década de 1950 foram iniciadas as obras de
construção da barragem, pelas Centrais Elétricas do Rio de Contas, CERC /AS. A cachoeira foi
substituída pela barragem e os moradores deslocados compulsoriamente, em sua maioria, para o
Camamuzinho. Ficaram enquanto puderam”!Foi assim que Dona Diana Almeida, 64 anos, ex-
50
Jornal O Povo, em 16 de março de 1950 p.03: Arquivo da CEPFCSA – Centro de pesquisa da Faculdade Santo
Agostinho – Ipiaú-Ba.
moradora do lugar esclareceu,dizendo que resistiam a sair e deixar tudo para trás. Enquanto olhava
para fotografias guardadas cuidadosamente, contou detalhes sobre esse processo.
Paralelo à construção, ocorreu a desapropriação de uma fazenda particular, para organizar o
Camamuzinho. D. Diana relata que ficou marcado foi esse dia, parece que tava tudo acabando,
quando um recebia indenização sabia que tava perdendo aquela vida toda lá.”
O modo como ela narra esse episódio remete à Pollak (1992), quando diz que na maioria das
memórias existem marcos ou pontos relativamente invariantes, imutáveis e é desse modo que as
pessoas se apropriam para apontar fatos que se tornaram marcos. E para os depoentes, a barragem é
um divisor de águas, os que haviam chegado sonhando com o eldorado do cacau, se voltaram para o
Camamuzinho, para reconstituir o que jamais deixaram de lado, voltaram a compartilhar o sonho de
trabalho e enriquecimento no sul da Bahia. Outros foram embora tentar a sorte na construção de
Brasília DF, que estava em curso, e as notícias que chegavam de eram promissoras, como
oportunidades de emprego. Ou foram para o trabalho de “meia” no cacau, ou ainda para a construção
das rodovias. Ao reconstruir seus espaços de tradição e religiosidade afro-brasileiras, a ação das
mulheres negras projetaram o lugar com muito trabalho, fé e crença nos orixás.
Ao sair do Cristal para o Camamuzinho trouxeram mais que suas bagagens, trouxeram a
experiência coletiva que reforçou o sentimento de grupo, identificação com a situação partilhada de
dificuldades, tropeços, deslocamento, recomeços. Há um tanto de Cristal, outro de Ibirapitanga, e mais,
de Ubatã na identidade cultural do Camamuzinho, na quantidade e no tom que a narrativa trouxe dos
depoentes, de suas memórias, fotografias, histórias, seus mapas mnemônicos compostos de fatos,
pessoas, lugares, datas nem sempre marcadas por cronologias, mas por significados.
O vivido e o sentido nas dimensões do eu e do grupo apareceram em desdobramentos
religiosos, econômicos, sócio-culturais, sempre eivados de história, em cada nome de rua, da praça
central, da igreja, da escola, etc. Depois, os protestos em nome do “povo de Camamuzinho” figuraram
como signos que na história local justificavam ações, até desfechos de violência, brigas e crimes, num
tempo em que todo tipo de gente se encontrava num mesmo lugar, movido pelo mesmo motivo, o
cacau, mas com ânsias diferentes.
O cabo, o delegado, o coronel, o padre, a curandeira, as beatas, as prostitutas, todos se
entreolhavam nas festas da praça, nos comícios de paixões acirradas. A pessoalidade da vida em
comum, como inferno e paraíso, faziam com que muitos personagens, cenários, acontecimentos, se
entrecruzassem na memória. Nascer, morrer, festejar é da conta de todo mundo, e cada um, do seu
lugar, pagava sua parte; quem estava, viu, de modo único, assim, atrás da sedutora homogeneidade -
que só os calos da caminhada etnográfica são capazes -, as singularidades desocultarem-se.
D. Diana concluiu dizendo que o povo do Cristal tirava fotos quando o retratista aparecia
porque eles sabiam que iria acabar. Mostra cada foto como a última imagem, disso, daquilo, e afirmou
emocionada, “mas a saudade e a lembrança não. tudo vivo como se fosse hoje ”,afirma ela e ela
não pensa sozinha, como pode ser percebido.
1.3 O Camamuzinho como território de identidade: datar, medir, localizar, situar
Uma narrativa pode ser um retrato que assim se mostra: nos finais de semana, o barulho e o
intenso movimento nos barzinhos e pontos de venda de acarajé, que são lotados, principalmente pelos
moradores de Ubatã, revelam que ali se trata do Camamuzinho. Durante a festa do padroeiro e os
festejos juninos, um ar tradicional é dado por bandeirolas, fogueiras, palhas de coco e barracas
enfeitadas. As festas na rua, a alegria de viver, as brigas regadas à bebida, as barracas de comidas e
diversas dão o sabor, o ritmo e a dinamicidade. É um lugar vivo!
A presença da Igreja de Santo Antônio e algumas igrejas evangélicas completam o movimento
semanal. Aos sábados, a comunidade, ainda pela madrugada, ruma com barracas, panacuns
carregados de produtos agrícolas, panelas de mingau, feijoadas e outros alimentos para serem
vendidos na feira em Ubatã. O que sobra é vendido na feirinha, aos domingos, na comunidade.
A ponte que separa os dois municípios ganha intenso movimento entre sete e oito da manhã
diariamente, pelo fluxo dos que vão ao Colégio Estadual ou das pessoas que trabalham em Ubatã. A
maioria vai a pé e nos lembra uma procissão cotidiana; além deste, o Distrito conta com um movimento
inverso, o fluxo dos professores ubatenses que trabalham lá. No final da tarde, a antiga Rua do Brega
volta a ficar movimentada pelos traunsentes.
Figura 02 - “Praça Central: Símbolo de centro para a comunidade do Camamuzinho”
Fonte: Arquivo da pesquisa de campo- Cristiane Batista - 2007
Todos passam pela Praça Central e pelo olhar dos mais velhos, que mantêm o costume de
sentar-se à porta de suas casas, em seus tamboretes, acompanhados de suas lembranças. São cenas
comuns, mas carregadas de singularidades, parecem querer evocar o passado a toda hora, dão um
retrato do presente, também captado pela imagem da câmera fotográfica.
A fotografia mostra a Praça Central do Camamuzinho, que recebeu o nome de um beiradeiro,
Ariston Diogo por alguns chamado de ‘o valentão’-, e tem nesta, o centro da comunidade enquanto
espaço
físico de sociabilidades e memórias, onde todos se encontram indo ou vindo,onde a vida se
desenrola. Localizada “às margens da BR 330 e próxima da BR- 101 tem como área total 472 km²,
altitude 12º53’0 e latitude 42º29’0”, ficando distante 576 km da Capital. Faz limites intermunicipais com
Igrapiúna, Camamu, Maraú, Gandu, Ubaitaba, Ubatã, Piraí do Norte.
Dentre esses dados, dois aspectos são significativos: a produção cacaueira e sua inserção
num território de identidade. Quanto ao primeiro, na década de 1980 estava entre os dez maiores
produtores de cacau e, segundo o censo, Ibirapitanga possuía uma população de 21.855, estando
4.755 deste total na zona urbana, 17.100 na zona rural, e 1881 no Distrito de Camamuzinho
51
. Esses
dados confirmam o caráter rural da sede e dos distritos ainda hoje, pois segundo o IBGE
52
, a
população total é de 22.177, e a maioria ainda vive na zona rural. E segundo o SEI 2008 assim se
apresenta:
Figura 03. “Território de identidade: entre o Médio Rio de Contas e o Litoral Sul”
51
Cidades do Cacau-23, 1981, p.10.
52
Fonte: Censo Demográfico IBGE, 2000.
Quanto ao segundo aspecto, pertencer a Ibirapitanga de direito, cidade que entre os 26
territórios de identidade, está localizada no Litoral sul, e estar localizada, de fato, no Médio Rio de
Contas, há uma longa discussão e 17,5 km que separam o distrito da sede, e mais uma vez percebe-se
um caráter híbrido, no sentido rico de trocas culturais, tendo características de ambas.
Em sentido de conceituação
53
, o território de identidade é “o conjunto de elementos que
configuram a fisionomia de um determinado território, elementos esses que resultam do processo
sócio-histórico de ocupação da região, das suas tecnologias produtivas, formas de sociabilidade,
convívio e produção material e imaterial”.
Camamuzinho fica entre fronteiras, a legal e a real, e estes são dados importantes na
caracterização espacial desse objeto, o que permite enquadrar Camamuzinho na fluidez que a
identidade possibilita. São dois indicativos, como Litoral Sul: dragada pela colonização do cacau (...) A
valorização econômica das terras expulsou os valentes indígenas locais e uma massa de migrantes
(nordestinos e de fora) formou (...). Além de significativo excedente econômico, formando ricaços e
dando emprego a milhares de pessoas nas roças” e também como Médio Rio de Contas, O Rio de
Contas passa bem ao centro dessa região, banhando municípios (...) Uma gama variada de
manifestações culturais é encontrável no território, indo do tradicional caruru de Cosme e Damião à
vaquejada..” e entre esses dois lugares, Camamuzinho criou a sua própria identidade, acatando ou
rejeitando, mas reelaborando-se.
Historicamente tem em sua trajetória uma não identificação com a sede, à qual pertence desde
1961. Em conturbados plebiscitos que faziam parte do processo emancipatório, muitas vilas passaram
a município. Um trecho da ata da reunião preparatória para a campanha de emancipação,
desmembrando de Camamu, detalha que se reuniram “as pessoas mais representativas da localidade,
a fim de tratar da emancipação política e administrativa da Vila de Ibirapitanga (...) enaltecendo o valor
da liberdade e da independência sempre almejada por todos os povos, cujos sentimentos não nos
devem faltar.” E ao final desse processo, Camamuzinho foi integrado como Distrito.
Depois desse ato, a Tribuna de Ibirapitanga, na década de 1980, 23 anos depois, comemora a
luta emancipatória, não sem antes enfatizar ser este o município que dava maior renda a Camamu em
arrobas de cacau e que era desassistida por este. Nesse período, Ibirapitanga encontrou dificuldades
em emancipar-se de Camamu que não queria perdê-la. Uma reportagem sobre o plebiscito e a pressão
da UDN pode traduzir essa relação, conforme nota abaixo,que rememorava com louvor a resistência
popular através do voto na sede e nos distritos, como sinônimo de povo valente, unido, vencedor.
53
Informações obtidas no site: http://www.cultura.ba.gov.br, acessado em 10. 11. 2008
Figura 04- “Na hora do voto diga não”
Fonte: Tribuna de Ibirapitanga - 1984
A imagem de um negro liderando a campanha contra a UDN e no propósito da emancipação
não poderia ser mais apropriada. E parece que a história se repete, pois o distrito de Camamuzinho
hoje se ressente da sede Ibirapitanga e são inúmeras as queixas da população. Como afirmou Zuleide,
54
“a gente quer é emancipar isso aqui”.
1.4.O sentido de comunidade, o que ficou além do visível visgo do cacau
A vida em volta do cacau evidenciou homens e mulheres com denominações tão plurais quanto
suas origens, mas assentados num tripé: comunidade-política-trabalho que desvelou sujeitos que se
percebem integrantes de uma dada realidade e se é grupo, tribo, lugar, comunidade, seja o nome
que atenda a esse conjunto de vivências nesses espaços, o certo é que possibilitou o nascimento de
uma identidade. Essas apropriações imbuídas de coletividade não anularam as diferenças, e essa
reflexão ao longo de três capítulos enseja pensá-los nos termos discursivos que foram usados por
quem viveu e vive lá, apesar das limitações de que as transcrições não podem dar conta.
55
Imagens também são textos e como tentativa de eternizar os momentos áureos, as pessoas
produzem imaterial e materialmente seu espaço. Uma história do distrito também pode ser contada e
recontada pelos lugares, praças, ruas, imóveis, esculturas e imagens cunhadas num espaço-tempo, e
foi preciso apropriar-se deste símbolo que deu nome a essa região, o cacau.
54
Zuleide Maria dos Santos, 48 anos, professora, há 27 anos mora na comunidade.
55
FENELON, Déa Ribeiro. Cultura e história social: historiografia e pesquisa. In: Projeto História: Revista do Programa
de estudos pós-graduados em História e do Departamento de História da PUC-SP. São Paulo – SP, 1981.
Figura 05-“Simbiose: cacau e o homem de braços fortes para a lida”
Fonte: Arquivo Particular – Cristiane Batista – Maio 2008
Uma leitura dessa imagem revela que existia uma apologia ao fruto de ouro, brotando dele, o
homem de braço forte que o cacau exigia para o trabalho na lida tão árdua, que em grande velocidade
desenhou o mapa sul baiano, lugares e territórios marcados por culturas diversas. Tido como ícone de
poder na região e projetando-a nacionalmente, a partir dele, as relações de identidade com o lugar, as
questões políticas, econômicas e sociais subjaziam a essa centralidade.
Um importante fazendeiro local pousa ao lado de um cacaueiro na Fazenda Boa Esperança, de
sua propriedade, no vale do Rio de Contas. Além das fotografias ,os artesanatos de barro reproduziam
miniaturas dos frutos de ouro, que a maioria das casas tinha penduradas na parede.
Figura 06 – “O cacau e o dono de braço forte”
Fonte: Arquivo particular – Florildo Ferreira da Silva, Fazenda Boa Esperança – 1970
Era assim fortalecido um imaginário iconográfico que pode ser visto como texto identitário, que
explica Bourdieu,
A procura dos critérios objetivos de identidade regional ou étnica não deve fazer esquecer
que, (...) os agentes investem os seus interesses e os seus pressupostos, e de
representações objetais em coisas (emblemas, bandeiras, insígnias, etc) (...) têm em vista
determinar a representação mental que em outros podem ter propriedades e dos seus
portadores, [grifos do autor]
56
Esse se constituiu num lugar cujo “cotidiano era compartido entre as mais diversas pessoas,
firmas e instituições - cooperação e conflito são a base da vida em comum”
.
57
Inclusive aparece como
elemento de territorialização, o modo como esses sujeitos imprimiam suas marcas em um determinado
espaço, desde a roça de cacau, até a cotidianidade num terreiro.
Tanto no espaço, como na idéia de território estão marcas estreitamente ligadas à questão da
identidade cultural servindo não como referência ao grupo, mas lhes dando sustentação. Neste
caso, foi instigada pela busca por afirmação, reafirmando a diferença destes em relação a outros ainda
que em situações étnico-raciais adversas. Pensar a comunidade no campo da História Cultural
assemelha-se a uma construção simbólica de sentido, que organiza um sistema compreensivo a partir
da idéia de pertencimento e reforça relações subjacentes, ora nos relatos, ora nos sentimentos.
Baumam quase a poetiza, assim:
As palavras têm significados: algumas delas, porém, guardam sensações. A palavra
‘comunidade’ é uma dessas. Ela sugere uma coisa boa: o que quer que ‘comunidade’
signifique, é bom ‘ter uma comunidade’, ‘estar numa comunidade’... Comunidade, sentimos,
é sempre uma coisa boa...‘Comunidade’ produz uma sensação boa por causa dos
significados que a palavra ‘comunidade’ carrega - todos eles prometendo prazeres e, no
mais das vezes, as espécies de prazer que gostaríamos de experimentar mas que não
alcança mais .
58
Pensar assim é considerar os aspectos identitários e, portanto relacionais, dialógicos, não de
modo fixo, mas fluido, dinâmico, e dessas inter-relações apareceu a condição de comunidade como
nomeação para o grupo, nas ações que estas pessoas fizeram, nas tensões, nas reuniões, e nas auto-
definições. As reflexões de Bauman
59
e Sodré
60
são importantíssimas aqui, o primeiro pela sua relação
com a visão que se tem de comunidade na contemporaneidade, e o segundo por concebê-la como um
lugar de territorialidade e de operações identificatórias.
56
BOURDIEU, Pierre. A identidade e a representação elementos para uma reflexão crítica sobre a idéia de região. In: O
poder simbólico. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p.112.
57
SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Hucitec, 1996. p.211.
58
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por uma segurança no mundo atual. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora,
2003, p.129.
59
BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit .Idem, 2003.
60
SODRÉ, Muniz. Claros e escuros. Identidade, povo e mídia no Brasil. Editora Vozes, 2ª Edição, 2000.
Longe da visão daquelas comunidades isoladas que tematizaram clássicas etnografias
antropológicas, Burke
61
nos lembra: “Não se pode supor que cada grupo seja permeado pela
solidariedade; as comunidades precisam ser construídas e reconstruídas. E não se pode ter por certo
que uma comunidade seja caracterizada por atitudes homogêneas ou esteja livre de conflitos – lutas de
classe, entre outros”; com essa ressalva e um olhar para o passado, percebe-se que do “festar” ao
labutar, votar e exigir, essas caracterizações de Burke se materializam sinalizando um entendimento
compartilhado, não necessariamente um consenso.
A memória coletiva esteve sujeita à preponderância da cultura oral, e a relação entre a história
e a comunidade não deve ter mão única em qualquer dos dois sentidos. Por isso, o foi a visão
categórica da pesquisa, mas os depoentes de diversos segmentos que encetaram-na, confirmando que
não é o fato de apenas viverem no mesmo Distrito que pressupõe comunidade, mas suas experiências
nesse espaço é que retro-alimentaram as lutas e as sociabilidades, como as relações pelas quais
somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam”, lembra-nos Hall
62
.
Quanto ao fio étnico-racial que envolve a comunidade, e no modo como ela é vista, como lócus
de uma cultura afro-brasileira fenotípica e religiosa, são pertinentes as discussões de Sodré, de que “na
palavra comunidade, por sua vez, ressoa a afinidade (territorial, lingüística, religiosa, etc.) que leva por
isso mesmo os indivíduos a se diferenciarem originariamente uns dos outros no interior do mesmo
grupo e, depois, de grupos diferentes”
63
,não se pensa num lugar de identidades estáveis,
cristalizadas, mas em diferenças em possíveis relações identitárias e contrastivas. Com esse pano de
fundo é que identidade e festividade subjazem a esse viés.
Na tentativa de apreender o substrato do imaginário e da identidade contrastiva, recorri às
experiências grupais, às memórias, às falas permeadas de sensibilidade por lembranças de lutas
compartilhadas. Sobressaiu que “a experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que
recorrem todos os narradores”
64
para compreensão dessas realidades e o que elas iam suscitando.
Quais fatores, práticas culturais, costumes definem esse território como comunidade? Em que medida
as nuances étnico-raciais estão presentes no modo como vivem?
Na década de 1990, a lavoura cacaueira estava em franca decadência e as relações
comunitárias foram afetadas, o que trouxe novas caracterizações sócio-econômicas. A vassoura-de-
bruxa varreu muitos moradores para fora do Estado e obrigou a introdução de novas soluções como,
61
BURKE, Peter. História e Teoria Social. São Paulo; UNESP, 2002, p 85.
62
HALL. Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro/RJ: DP&A, 2003, p.15.
63
SODRÉ, Muniz, Claros e escuros, identidade, povo e mídia no Brasil, Petrópolis, Vozes, 1999.
64
BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Kikolai Leskov. In: Magia e Técnica, Arte e Política, v. 1.
Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 198.
por exemplo, as fábricas de polpa de frutas que absorveu parte da mão – de- obra que não migrou para
o Sudeste, São Paulo e Rio de Janeiro, e que até hoje subsidiam a economia local.
Falaram de si mesmos, para nomear o lugar em que vivem, suas ações de luta, pois “para que
haja cultura, não basta ser autor das práticas sociais ou apenas identificá-los; é preciso que essas
práticas sociais tenham significado para aquele que as realiza,” sinaliza Certeau.
65
Por isso, os
embates e as inúmeras reivindicações emergiram em suas variáveis: políticas públicas por parte da
Prefeitura, o fim da discriminação por parte dos ubatenses, a emancipação do Distrito e tudo o que
suscita as reclamações atuais.
E nos momentos de “precisão”, como afirma Zuleide
66
, todos se uniam. Essa “precisão” que se
repetiu em depoimentos de outras mulheres, como Mãe Rosa, D.Regina, Carminha, mostra que o
discurso comunitário é acionado como artifício argumentativo de comunhão desses indivíduos em seus
respectivos grupos de interesses, face às ameaças ou necessidade de uma maior coesão que a
habitual.
1.5. Respostas às ausências: enfrentamentos cotidianos
Era a década de 1960, e tudo parecia novo aos agora camamuzinhenses –, o espaço, a
barragem, gente de fora e de muito longe, até de Paulo Afonso! E mais, a novidade, além do espaço e
dos sujeitos, era a administração, agora pertenciam à Ibirapitanga, e Camamu era caso passado.
A sede foi se mostrando distante em vários aspectos, mais do que os quase vinte quilômetros
que as separam. Tanto geográfica quanto em termos de políticas públicas, essa dupla ausência
causava um sentimento de não pertencimento a Ibirapitanga, ao passo que os ubatenses também
reforçavam cotidianamente que eles não eram de lá, e sim de fora, eram os índios pretos do
Camamuzinho.
Como forma de atuação, a Prefeitura de Ibirapitanga nomeava administradores e cargos na
polícia, para se fazer ouvida no Distrito, para os moradores, porém, as leis,notícias e decisões
chegavam verticalmente e pareciam combinar com o regime que se estruturava na política nacional e
regional, a da ditadura.
Não tardou para que as lacunas e ausências fossem sentidas na saúde, educação, trabalho,
moradia; eram pedidas providências que, ou não vinham ou não eram suficiente. Ao passo que estas
vivências eram compartilhadas, suscitavam inconscientemente, o sentimento de pertença e uma
resposta conjunta às ausências político-administrativas. A seguir, são elencadas situações em que
65
MICHEL de Certeau. A invenção do cotidiano: 1. artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994, p. 142.
66
Professora Zuleide Maria dos Santos, 47 anos, há 27 na comunidade.
poder e resistência, tensões e negociações deslindam o lugar, desvelam sujeitos, evidenciando a ação
feminina.
O que tensionava aquela sociedade e o que isso, em contrapartida, os levava a fazer?
Em relação a esses atos e a esse período, ocorre a rememoração do poder das mulheres que,
num dado momento da existência, saíram de suas cozinhas e sobressaíram no espaço coletivo. Uma
prova de que o afamado “matriarcado negro” não era só figura ilustrativa e da cultura popular baiana, ia
além de vender acarajés ou lidar com as casas de axé, - ambos, até, de fato, muito procurados no
Camamuzinho-, elas concentravam e veiculavam um poder comunitário de atuação no seio de suas
comunidades.
Benjamin
67
nos inspira a pensar nas possibilidades dadas pela memória, seu uso e abuso
pelos depoentes a colocam em cena, fazendo-a desempenhar um papel crítico nas falas, possibilitando
a emergência de determinadas experiências até então silenciadas e que vieram à tona, mostrando um
grupo ativo, disposto a reclamar, inventar, agir.
Próxima de uma identidade pensada
não como
“essências de uma pessoa ou de um grupo, mas
elementos constituintes de um complexo trabalho de elaboração, que se realiza por meio do confronto
de “valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem
grupos políticos diversos”, segundo Pollak
68
.
Esses valores aludidos eram movidos por aspirações decorrentes da vida cotidiana e do
suprimento desta, cujas ausências possibilitaram a mobilização e articulação, o que moveu a
comunidade num exercício de ação em comum, e as diferenças eram temporariamente suspensas em
favor do coletivo.
A percepção de si mesmos como um grupo heterogêneo, mas de vivências imbuídas de um
espaço-lugar comum, incitou homens e mulheres que se definiram e redefiniram, em suas práticas e
pensamentos, nas experiências de lutas. Nesse momento, os beiradeiros que, em sua maioria, viraram
bandeiradores do cacau, agora compartilhavam o espaço do bairro, do território, visto como de negros.
Para Bosi
69
“uma totalidade estruturada, comum a todos, que se vai percebendo pouco a pouco, e que
nos traz um sentido de identidade”.
Enquanto o cacau abrigava milhares de trabalhadores no interior das fazendas, na zona urbana,
a construção da barragem acontecia e modificava a dinâmica cio-econômica local. A presença de
engenheiros e empregados da CHESF e suas famílias alteraram significativamente a Distrito. Mostrava
a rotina de pessoas com uma condição econômica superior circulando no cotidiano da comunidade.
Para eles, exclusivamente, a CHESF oferecia: escola, cinema, clube, transporte, moradia e ficava
67
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. Obras escolhidas. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
68
POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos históricos. N. 10, Rio de Janeiro, 1992, p. 5.
69
BOSI, Ecléa. O tempo vivo da memória: ensaios de Psicologia Social. Ateliê Editorial, São Paulo, 2003, p. 74.
patente aquilo de que a comunidade não dispunha, o que acentuava as diferenças de cor, classe,
interesses.
Observou-se a dependência econômica dos moradores em relação a esses novos sujeitos, com
um novo patrão, com uma nova alternativa de ganho. Os diferentes relatos dão a mesma versão: “não
tínhamos estudos, o saber ler e escrever era muito restrito e eles a concebem como a pré-condição
para melhores possibilidades, semelhante ao que Roche
70
discute ao pensar a leitura num cruzamento
com a dimensão do espaço, como sinônimo de poder. Aos moradores era reservado o subemprego, a
informalidade e, assim, lavar, passar, cozinhar, carregar.
O contexto da década de 1970, em plena ditadura militar, fez com que as questões políticas
fossem ainda mais conturbadas. Pela primeira vez, podia-se falar do “povo do Camamuzinho”, mas não
tinha quem falasse pelo povo. Ainda assim, resistências silenciosas nas reuniões, realizadas no salão
paroquial da Igreja, no quebra-quebra das festas motivadas por “questões políticas”, resultavam em
prisões e repressões pelos guardas municipais, que também praticavam desmandos.
A professora Zuleide Santos, líder em muitas ações, afirma que a partir da década de 1960
iniciou-se uma fase de lutas pela implantação de um colégio de Ensino Fundamental, vez que a
comunidade sempre trabalhou duro e não foi valorizada, e que ao contrário, sempre foi explorada pelos
políticos, fazendeiros e pelos empregadores de Ubatã. Assim ela detalha:
Camamuzinho cresceu e a Rua Beira Rio não dava mais para construir. Assim se
desenvolve Avenida Landulfo Alves. O povo começou a se manifestar por causa da energia
a motor. (Camamuzinho não tinha energia elétrica).Ora, se a Usina do Funil (que nos tirou na
época da barragem) oferecia energia a lugares mais distantes, por que Camamuzinho teria
que continuar com energia a motor?Depois dessa luta, em 1962, enfim chega a energia
elétrica.” Depois disso chegou a o sonhada energia elétrica e duas casas comerciais de
compra e vendas de cacau se instalam, pois o cacau estava com o preço em alta.
71
Pelo ano de 1962, em menos de dois anos habitando o lugar, fizeram protesto coletivo por
sentirem-se injustiçados; pela lógica deveriam ter sido os primeiros beneficiados pela Companhia, o
que ocorreu depois da manifestação. A cronologia dos fatos aqui contam mais que os números, são
resistências, enfrentamentos, datadas, inclusive, por diversas memórias, mãos, palavras e também por
silêncios locais.
Até o final da década de 1990, são muitos os episódios cujas leituras, ancoradas numa história
local, são narradas por sujeitos que não esconderam suas divisões internas, contra as resistências
externas. São questões políticas, protestos, brigas, votações, abaixo-assinados em episódios de
visível participação efetiva e afetiva dos indivíduos.
70
ROCHE, Daniel. As práticas de escrita nas cidades francesas do século XVIII. In CHARTIER, Roger (org.) Práticas
de leitura. São Paulo, Estação Liberdade, 1996, p.177.
71
Entrevista concedida em janeiro de 2007
A professora Zuleide fez uma cronologia dessas conquistas: a feira livre em 1972, uma escola
em 1975, um posto médico, a água encanada, o calçamento, a conclusão da BR 330, em 1979. As
construções revelavam conquistas materiais e simbólicas: o colégio, a igreja, a praça, o bairro novo
resultante da invasão, o posto de saúde, os terreiros. Cada lugar tem uma história de luta, fruto de
uma reclamação ou construção coletiva.
No governo da única prefeita, Silzuita Mimoso, e em virtude de deveres impostos, uma fazenda
próxima à área urbana do distrito foi desapropriada pela Prefeitura. A década de 1970 foi marcada por
lutas que a comunidade empreendeu em busca dessas terras e de melhores condições de
sobrevivência nesse espaço. Por eles é chamado de “Invasão à Fazenda de Délio”. Zuleide relata:
“Eu mesma participei dessa invasão. Muita gente morava de aluguel e estava precisando. A
população crescendo. A gente veio de madrugada, e o terreno pertencia à prefeitura e ela
não fazia nada com a terra. Era reunião da igreja e lá dentro a gente aproveitava e
organizava essas coisa. No dia da invasão, Adauto o soldado me engaiolou. Tinha umas 40
pessoas, a galera que tava invadindo na hora soube e desceu toda e foi por isso que me
soltou. A maioria conseguiu assim seu pedaço de terra
.”
A invasão e a divisão em lotes geraram disputas, prisões de parte do grupo, cujas reuniões
para a invasão foram feitas secretamente na Igreja local, depois das reuniões pastorais,
aproximadamente vinte pessoas de diferentes segmentos.
Quanto ao terreno, afirma o Sr.Chico, No governo de Dona Sizu Mimoso, a única prefeita
mulher, houve uma negociação com João Maia Spínola, dono do terreno, que devia muitos impostos à
prefeitura. o terreno foi desapropriado, tomado. Eu era vereador na época e ajudei.” Uma vez que
não foi loteado entre os moradores necessitados, ficou sem uso, enquanto a maioria não tinha casa
própria, e como as promessas também não eram cumpridas, organizaram uma invasão, o que impeliu
a ocupação. Ações como essa deram maior amplitude ao Camamuzinho e o local hoje é o Bairro Novo
originado nesse processo.
Anos depois, o problema continuava, assim como as promessas: Até certo ponto. A
construção de casas populares no Camamuzinho significa o início de uma arrancada que na sua
primeira etapa atenderá uma relativa parte da população que vem aguardando esse benefício desde
quando foi anunciada pelo Sr. Prefeito.”
72
Sabendo muito bem o terreno em que, literalmente, pisavam, a invasão pelos moradores foi
uma resposta precisa, uma vez que até hoje nenhuma casa popular prometida foi construída. Descasos
assim e outras dificuldades contribuíram para um incipiente “nascimento” da tomada de consciência,
pelo menos em parte, da condição de eleitores, entre o final dos anos 80 e o início da década de 90,
72
Fonte: Tribuna de Ibirapitanga, Junho de 1984.
impulsionando muitos a fazerem o título de eleitor em Ubatã,devido à proximidade e à falta de recursos
para ir à sede, Ibirapitanga, e pelo fato do fórum se constituir em sede da comarca eleitoral.
Em contrapartida, foi despertado o interesse dos políticos ubatenses por esses eleitores e as
cifras que representariam no aumento da arrecadação, que levou à tentativa de anexação por parte
desta e à organização de um projeto de lei que requeria, junto aos órgãos competentes, a anexação do
Distrito, encabeçado por alguns vereadores ubatenses.
Quando a notícia se espalhou, iniciou-se um período de tensas discussões dividindo a
comunidade. Para uns, legitimação e valorização do território, facilidade e acessos aos serviços
básicos. Para outros, descaracterização de suas origens, dominação, anulação. Zuleide explica o
episódio: Houve uma disputa territorial. que nós não queríamos pertencer a Ubatã como a gente
não quer até hoje pertencer a Ibirapitanga, o sonho da gente é emancipar isso aqui. ajuntamos um
grupo, eu, Maneca e uma turma para tomar as providências”.
Mais um entrave, e dessa vez dos
grandes, e precisariam unir forças; mais uma vez, integrados, puderam encontrar condições que não os
inibiram, mas potencializaram as lutas. O prefeito de Ubatã, junto com seu grupo de apoio, chamou a
TV Santa Cruz
73
e organizou um movimento pró-anexação desse distrito à Ubatã, com a proposta de
que a TV mostrasse a comunidade, e as ‘boas intenções’ desta prefeitura em ajudá-la.
No entanto, ao chegarem ao Camamuzinho, o Senhor Maneca, na época vereador novamente,
reagiu de modo violento, disparando tiros. Tudo foi transmitido ao vivo pela TV, assim como a correria e
a manifestação de repúdio dos moradores, que no dizer deles, “botaram eles pra correr”. O episódio
saiu também no jornal local, embora não existam mais cópias e nem quem precisasse a data e qual foi
o veículo de circulação.
Uma outra moradora, Dona Regina, que vive há quarenta anos na comunidade, diz que ajudou
“a vencer”e relata: Eu fui contra,assinei no abaixo assinado,pois assim a gente podia era virar a
favela de Ubatã,quase era”. E mais uma vez a mobilização da comunidade foi fundamental para que
essa questão fosse resolvida: reunião, abaixo-assinado, envio de representante da comunidade ao SEI
- Superintendência de Estudos Sociais e Econômicos /IBGE em Salvador, e depois uma reunião na
praça para que a discussão fosse participativa. O que o exclui as divisões internas, discussões,
xingamentos, pois, em contrapartida, também havia os defensores pró-anexação, como Sr. Pedro, que
defende seus motivos:
Havia dois grupos: os que queria pertencer a Ubatã e os que não queria. Camamuzinho ficou
dividido no meio certinho. Eu fui do grupo que queria. Não agüentava mais ver nosso distrito
como ponta de rua, casa desvalorizada, o povo é desvalorizado quando chega em cima.
Diz que a gente pertence a Ibirapitanga,da cabeça da ponte pra cá.Mas a gente faz tudo
em Ubatã e não recebe quase nada dessa prefeitura daqui.
73
Rede local afiliada à TV Bahia, Rede Globo, localizada na sede regional em Itabuna, a 92 km.
Por ser ano de eleições para deputado, cada grupo procurou recorrer aos velhos laços de
influência de interesses, tão típicos na região. O grupo que era a favor da anexação, liderado pelo Sr.
Pedro, procurou um fazendeiro local, Isaac Menezes, e pediu que ele interviesse junto a um deputado
que estava na cidade, Dr. Cleraldo Andrade.
Eu fiz parte da briga também, da confusão. A gente buliu com gente mais alta que nós em
educação, conhecimento. Tal e coisa. Ajuntamos mais uns dois aí, vamos fazer essa
campanha. Nós queria que passasse para Ubatã. Aqui era abandonado, ficava como ponta
de rua. Chegou na ponte,o era de Ubatã. Então a gente pensou, vamos fazer um jeito de
Camamuzinho pertencer a Ubatã logo. Aqui teve um grupo todo a favor. Isso rendeu, rendeu.
Na lei, né?
Seu Chico estava com Zuleide e a maior parte da comunidade, e se defende: “Na época eu era
vereador, fui contra,reuni, trouxe a câmara de vereadores, a gente se reuniu e foi aquela confusão”.E
por seu turno também procurou apoio.
Dias antes das eleições, como reza o costume local, os líderes e/ou representantes de
comunidade são convocados para reuniões de apoio, na sede. se foi Zuleide pedir ajuda de um
candidato a deputado, na época o Dr. Sérgio Gaudenzi, que não apresentou soluções imediatas, e a
proposta de solução veio por iniciativa da comunidade, ir à Capital significava saber quais seriam seus
direitos e como se defender, Zuleide esclarece
Fui (para o SEI e IBGE) com a ajuda de conhecidos sem nunca ter ido em Salvador. Todo
mundo ajudou. o rapaz me explicou com um mapa tudo direitinho, tirei foto, anotei, que
não seria fácil assim, que teria que mudar o Rio. Voltei e convoquei toda a reunião, e uma
reunião de praça pública com toda a comunidade e a comunidade foi, de microfone fiz um
palanque e todo mundo foi. O povo de Ubatã achou que era minha mentira e viram lá que eu
gosto de lutar pelos meus direitos e o da minha comunidade (...) A gente não ia ser a favela
de Ubatã.
E de fato não foi, a luta surtiu mais uma vez o efeito esperado, o processo foi encerrado, mas a
reflexão em torno do poder de representação política ganhou corpo, as discussões se materializaram
em protestos e greves, bem como pressões frente à prefeitura e incitou a candidatura de moradores à
vereança, muitos se habilitaram, mas sem dinheiro, e dado o número reduzido de eleitores locais, nem
sempre elegiam um vereador oriundo do Distrito.
A vivência de problemas se deu no meio de duas administrações municipais: a ubatense, mais
próxima, à qual recorriam e acabavam por utilizar seus serviços públicos, mas legalmente a ela não
pertenciam, em contrapartida, a ibirapitanguense a quem legalmente pertenciam, mas distante, e que
não os assistia.
No âmago do cotidiano, as práticas sociais e espaciais destes sujeitos se davam através da
capacidade de percepção do espaço vivido e da luta por transformá-lo, o que afetava qualitativamente
a experiência e se constituía em cerne da luta pela sobrevivência neste processo de lutas e disputas.
Resultante desse processo foi a criação do MMC Movimento Comunitário do Camamuzinho na
década de 1990.
A fotografia se tornou além de um resíduo do passado um testemunho visual do momento
produzido, retratando também a memória da sociedade sendo impossível dissociar esta da
memória, pois traz as recordações, as experiências dos homens em sociedade, retrata a
vida.
74
É com essa noção que essa fotografia foi guardada e com este mesmo propósito a trouxe
como testemunho de uma memória individual sobre a coletiva. A imagem revela a experiência de
sujeitos que, em um espaço específico, tinham, nessa aglutinação, um momento de organização pelo
menos oficial, primando pelo bem da comunidade ou da maior parte dela.
A trajetória para chegar até esse momento, como um ápice, foi um somatório de pequenas
resistências, que, analisado pelo recorte temporal e pela imagem, merece aqui uma análise maior: os
elementos presentes na imagem suscitam um texto coeso. A fotografia transcende o visível e
materializa um espírito associativo que pode ser resumido em duas palavras: identidade e comunidade.
Figura 07- “Espírito associativo, o nascimento da associação sob as bênçãos de Antônio”
Fonte: Arquivo Particular de Zuleide Maria dos Santos – 1990
O afã de dar voz a esses sujeitos é que enquadra a imagem do momento de criação do
MMCC. Fazem parte dessa reunião, além de Zuleide, como organizadora do movimento, que está no
centro, sujeitos que, naquele momento, representavam ali as vozes não isoladas, mas de uma
determinada categoria como: saúde, política, educação, serviço público, donas de casa, pessoas que
exigiam soluções para os problemas cotidianos.
74
KASSOY, B. Fotografia e história. São Paulo: Ática, 1989, p. 91.
O cenário da reunião é também revelador, a Igrejinha de Santo Antônio, lugar de reuniões para
os assuntos ligados à festa do padroeiro ou aos comunitários, cujo padre vinha esporadicamente
celebrar a missa; assim, nos intervalos, aconteciam reuniões dos grupos pastorais e da associação de
moradores.
Por conta dessas possibilidades de registro e de memória, a referida imagem possibilita a
perspectiva histórica, um resgate da memória, “O seu valor como documento histórico, de registro de
uma época ou de um acontecimento, de um grupo,
75
e se enquadra nesse contexto e cada sujeito, o
lugar e o motivo, são importantes.
Esse documento, no sentido de registro, traz consigo uma historicidade, o ‘espírito associativo’
e suas relações com a identidade, e é analisado a partir de um arcabouço teórico inspirado no
multiculturalismo de D’Adesky, para o qual a identidade grupal abarca o espaço de pertencimento e o
espaço de referências.
Dessa sorte, senti-me tentada a vê-los como “um grupo cujos membros possuem, segundo
seus próprios olhos e ante os demais, uma identidade distinta, enraizada na consciência de uma
história ou de uma origem comum, simbolizada por uma herança cultural comum (...) um território
comum, atual ou passado, ou ainda, na ausência deste, redes de instituições e associações, embora
alguns desses dados possam faltar.”
76
O autor se aproxima da conceituação de etnia e propõe uma compreensão da construção da
identidade negra, distinção e território comum marcado por esta, abre a possibilidade de encontrá-los
em suas angústias, historicidades e iniciativas.
O recorte étnico-racial intrínseco a essa discussão foca como objeto de estudo dois eixos
principais: identidade e comunidade, que, num viés multicultural, encontra não uma rica análise,
mas fala a favor de um diálogo intercultural em detrimento de discursos discriminatórios, ou da mera
descrição que seria desprovida de compromisso político contra o etnocentrismo que ainda subsiste em
estudos culturais de comunidade.
Para Thompson
77
, “estamos falando de homens e mulheres, em sua vida material, suas
relações determinadas, em sua experiência dessas relações, e em sua autoconsciência dessa
experiência”. Essa última, inclusive, é que possibilitou que em diversos momentos a unidade se
sobrepusesse à diversidade, e por falar nessa constância, ela ainda pode ser vista assim,
Manifestantes colocaram fogo na Secretaria de Educação da cidade de Ibirapitanga,
município a 87 km de Itabuna. No local, estavam todos os livros que seriam distribuídos nas
escolas públicas no ano que vem (...) O protesto é contra a possibilidade do prefeito retirar,
75
KASSOY, B. Op.Cit. p.92
76
D’ADESKY, Jacques. Pluralismo étnico e multiculturalismo: racismos e anti-racismos no Brasil. Rio de Janeiro: Pallas,
2001, p.191.
77
THOMPSON,
E. P.
1981, p. 111.
do Banco do Brasil, a folha de pagamento dos servidores. A Polícia Militar do município
solicitou reforço de Ubaitaba para conter os protestos.
78
Uma das mulheres mais festeiras e que costuma organizar eventos na comunidade, Carminha,
43 anos, desabafou sobre o passado e deu um exemplo do presente:
“Quem disse que somos bestas, ou pensa que estamos mortos? Não vê? Olha o que
aconteceu agora, no final do ano passado. O povo daqui foi mesmo! É igual agora, fui
várias vezes pedir um quebra mola e nada, nem quando eu falei que era para pôr em frente
á uma escola, agora mesmo estamos fazendo vaquinha para construir um, todo mundo
ajudando,mas eles vão ver só.”
E de fato viram, contrariando dois grupos no poder que se alternavam por muitos mandatos
sucessivos, acabaram de eleger um candidato semi-analfabeto, que vem da zona rural de um dos três
distritos, Itamarati, Antônio Conceição Almeida, conhecido por “Gude”. Os grupos que se revezavam no
poder, oriundos da sede, três décadas, mal puderam acreditar na figura simples de sandália de
dedo, calça de tergal e chapéu de palha. O curioso é que ele caminhou pela comunidade em
campanha e quem não o conhecia, não saberia distingui-lo entre os demais. Por que será?
1.6 Notícias e experiências no sul da Bahia: do patrão, o cacau, aos beiradeiros, bandeiradores e
eleitores
Uma região ou uma ‘religião’ cacaueira? Difícil precisar quando tudo girava em torno do e para
o cacau. Rezando por esse credo, pensei em ver como esse imaginário criado pelo cacau, na zona do
dito, do não-dito apareceu oficialmente pelas notícias veiculadas pelas Folhas, Tribunas, Diários que
surgiam em função da flutuação do cacau e como a comunidade se inseria nessa comunicação e na
escrita de si.
Segundo Barbosa
79
, esse processo data de 1901 e inaugurou uma fase em que jornais e
notícias mantinham estreitos vínculos ou eram controlados pelos coronéis. Em cidades pequenas, as
notas onde aparecia o nome do Distrito ou da Sede, Ibirapitanga, tinham muito destaque e poder, pois
o cacau movia não a economia, mas o imaginário, os feitos dos coronéis que se transformavam em
textos nos discursos e noticiários locais e regionais, numa construção de significados plurais compondo
elos de poder na República Velha.
Quanto à Historiografia regional, no final dos anos 1960 e início dos 1970, essa qualificação de
intensa produção dos “frutos de ouro” chamou a atenção de dois pesquisadores e há apenas, até o
presente, dois trabalhos, cujo objeto de pesquisa foi a mão-de-obra nas fazendas de cacau e condição
78
Fonte: TV Santa Cruz Programa exibido em /12/11/2007 - 19h40m.
79
BARBOSA, Carlos Roberto Arléo. Notícias Históricas de Ilhéus. Ed. do autor, 2003.
de vida do trabalhador, especificamente em Ibirapitanga, Camamuzinho e nos outros dois distritos. Um
deles é de Ferreira
80
,que tratou especificamente da condição da mão-de-obra abundante. E o outro é
de Vieira
81
que, seguindo a mesma linha temática, pesquisou os aspectos socioeconômicos
relacionados com a mão-de-obra nas fazendas de Ibirapitanga, os migrantes, trabalhadores,
bandeiradores, diaristas.
Esse discurso se proliferava e aparecia em notícias sobre o cacau. Nessa conjuntura, os
municípios que mais produziam, mais apareciam, e Ibirapitanga estava entre eles. Como nomes que
soavam bem, circulavam a Tribuna de Ibirapitanga, a Folha do Cacau, as edições de “Cidades do
Cacau”, esta última de organização da Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira - Ceplac ,
que serviram como fontes.
O contingente populacional, a dinâmica dada pelos migrantes requeriam comunicações entre o
sul e o resto do Estado. Ao procurar cartas para usá-las como fontes, deparei-me com relatos que as
colocavam como raras, porque raros eram os meios de mandá-las ou recebê-las. Ainda na década de
1930, o jornal O Republicano
82
alertava para a necessidade de rever os informes necessários para
que possa ser creada(sic) naquelle arraial uma agência postal”, e volta a insistir, meses depois,
afirmando que “um centro rico,possue um comercio grande e forte, rende cerca de uns setenta
contos de réis para este município,é uma terra culta e progressista(...) o correio e o Telegrapho justa
aspiração da gloriosa classe comercial”
83
; de fato o comércio crescia e com ele as necessidades de
comunicação.
Mais tarde, na década de 1960, comunicavam suas festas, enterros, presenças de ilustres
políticos ou autoridades através da voz da cidade, recorriam ainda à radio amadora que existia em
Ubatã, sendo que as linhas telefônicas seriam implantadas em 1979. Antes, porém, as notícias
tinham pernas mais curtas, o Sr. Pedro
84
explicou que “Para chamar algum parente, ou dar notícia para
longe, a gente procurava em Ubatã o sargento Lourival que mandava notícia pelo rádio amador.E
assim os parentes recebiam notícias, e vinham ao encontro ou desencontro de seus sonhos.
O rádio, por seu caráter popular, representava um ‘perigo’, formava opiniões, era por vezes a
única leitura do mundo que movida à pilha alcançava os s de cacau, as soleiras dos casebres no
80
FERREIRA, Jannet Lindo Ramos Freitas; Barros; Edgar de Vasconcelos; Universidade Federal de Viçosa. Departamento
de Economia Rural. A o-de-obra em fazendas de cacau: Ibirapitanga, Bahia, um reestudo. Viçosa, MG: [s.n.], 1981.
157f. Dissertação (Mestrado)-Universidade Federal de Viçosa, Departamento de Economia Rural.
81
VIEIRA, Jorge Raymundo Castro. Alguns aspectos socioeconômicos relacionados com a mão de obra em fazendas
de cacau, Ibirapitanga, Bahia. Brasil. Instituto Interamericano de Ciências Agrícolas da O.E.A.Centro de Ensino e
Investigação.Turrialba,Costa Rica.Janeiro,1969.
82
Jornal O Republicano, 15 de novembro de 1934, p.02.
83
O Republicano, Op.Cit. 10/03/1935, p.01.
84
Pedro Barbosa Menezes, 74 anos, capoteiro aposentado no Camamuzinho.
Camamuzinho ainda ao amanhecer e era companhia certa nas noites marcadas pelo cansaço da lida.
Os seus poderes ao lado dos jornais se constituíam em formadores de opiniões poderosíssimos para
uma população em que a maioria era de baixa ou nenhuma escolaridade. O significado social e os
discursos emanados do poder estavam incrustados nesses meios de comunicação e tinham peso de
verdade no Camamuzinho.
Outro veículo discursivo poderoso era a Voz da Cidade, gerando a expressão “botar na Voz da
Cidade” que aqui significava lutar pelos direitos, mostrar a verdade. Percebe-se, na fala das pessoas,
que tratam-na como uma “uma tradição da terra fundada em 8 de dezembro de 1948”
85
e figurava num
conjunto de significação: se ‘saiu no jornal’, ou ‘deu na rádio’ é verdade, pressupunha naquele contexto
uma notoriedade ímpar, eivada de um poder de ação, denúncia, reação.
As notas escritas viravam documentos guardados, passados de mão-em-mão, assim como as
notas da voz da cidade,oralmente repassadas de boca a boca, para quem na hora não ouviu, ou como
prova, na discussão e repercussão que estas causavam. Para dar ênfase à veracidade de um fato foi
comum que os entrevistados recorressem a falas como “pergunte a alguém, na época ela ouviu na
rádio ou eu vi no jornal”.
A importância desta reflexão nasceu, portanto, das notícias que em torno desta região
povoavam o imaginário em jornais regionais como o Agora, A Folha do Cacau de circulação na década
de 1980, aos quais tive contato através do Centro de Documentação da Universidade Estadual de
Santa Cruz CEDOC, e outro de cunho local, a Tribuna de Ibirapitanga. Este último aqui tão
contemplado, por considerá-lo tanto pelo tempo de circulação, como pela temática, mais próxima do
objeto de estudo, ao pensar em região como lugar de vivências, onde o vivido tem um signo bastante
evidente.
Ao lado de uma análise sobre o relacionamento das rádios e jornais com os poderes políticos
municipais instituídos, a visibilidade, que era tida como uma importante moeda de negociação, fazia,
destes, focos de interesse principalmente nos anos eleitorais. O Jornal Agora
86
, nos números
analisados, trazia várias notas sobre Ibirapitanga e seus distritos, enfatizando que a disputa pela
prefeitura de uma cidade de grande produção cacaueira despertava acirrado jogo de interesses entre
os políticos locais.
85
LUÌS, J. Memórias de Ubatã, p.45.
86
Números analisados no arquivo CEDOC/UESC – Referentes à década de 1980
A presença dos jornais na labuta da escrita do historiador é de muita importância, ainda mais
porque os jornais pequenos têm certa independência. Havia brechas para as reclamações populares
ou para o tom crítico dos seus escritores. Em Ibirapitanga e Ubatã estes tinham curta duração. A título
de exemplo, o Jornal de Ubatã circulou entre 1958 e 1959 e a Tribuna de Ibirapitanga de 1984 a 1986.
Em finais da década de 1980, as novas notícias sobre o binômio cacau x sul baiano eram como essas
que a Revista Veja
87
alarmava que “Derrubou a produção nacional para menos da metade,
desempregou cerca de 200.000 trabalhadores” e aponta Ibirapitanga como pólo detonador da crise.
Figura 08- “A rota da destruição”
Fonte: http://veja.abril.com.br/210606/p_060.html
Houve migração em massa das roças para a cidade e das pequenas cidades para os grandes
centros urbanos. Expulsos por conta da crise, muitos trabalhadores rurais experimentaram, em outros
estados, penosas situações, como esse relato:
Como alguém se torna escravo
88
87
Fonte: http://veja.abril.com.br/210606/p_060.html
88
Fonte: http://www.reporterbrasil.com.br/exibe.php?id=33/acessado em 15/02/08. Reportagem de 01/12/2003.
“Quando eu cheguei aqui, a coisa era muito diferente do que havia sido prometido”, conta
Uexlei Pereira. Nos últimos tempos, uma praga atingira as fazendas de cacau onde ele
trabalhava, no Sul da Bahia. Muita gente ficou sem serviço. Aliciado por um “gato”, ele saiu
de sua cidade, Ibirapitanga, com a oferta de um bom salário, alimentação e condições dignas
de alojamento. No Sul do Pará, Uexlei percebeu que havia sido enganado. Quando foi
resgatado, fazia dois meses que recebia comida. Não tinha idéia de quanto devia ao
gato, conhecido como Baiano, e nem quando iria receber. A sua história não é diferente da
dos demais trabalhadores que fogem do desemprego para cair na rede da escravidão.
o relato acima traz elementos cruciais dos efeitos sobre o Distrito no final dos anos 1980.
Nessa situação se insere o trecho da reportagem fruto de um espaço dialogal, intertextual entre sujeitos
e o lugar, cujas experiências definiram fases e marcos de atração e expulsão. Atração iniciada por uma
história de movimentos do final do século XIX, 1890-1899: era o visgo do cacau que atraía migrantes
em busca dos frutos de ouro
89
.
Expulsão e uma história que se repetiu iniciada no final do século XX, 1986 -1990, a crise na
monocultura cacaueira provocada pela ‘vassoura de bruxa’
90
repele trabalhadores, expulsa-os da
região e o fluxo agora é a região Sudeste, mais precisamente São Paulo, da roça de cacau às
construções urbanas das grandes cidades. Muitas famílias passaram a ser ainda mais numerosas no
tocante à chefia feminina, as que dividiam as despesas com seus maridos, em sua maioria, ficaram,
agora, sozinhas.
O peso da monocultura refletiu no tamanho da crise, que repercutiu de forma negativa sobre as
condições de vida da maioria da população da região, sobretudo daquelas residentes no eixo Itabuna e
Ilhéus, como o distrito de Camamuzinho, cujas rendas, mesmo baixíssimas, eram provenientes dessa
única possibilidade. A imagem do negro plantando cacau foi usada pela CEPLAC e o Sindicato Rural
de Ibirapitanga, como símbolo de alerta aos agricultores antevendo a crise, incitando a mobilização.
Figura 09- “De mãos dadas pelo cacau
Fonte: Tribuna de Ibirapitanga, 01 de junho de 1984, ano I, p 01.
89
FREITAS, Antônio F. Guerreiro de & PARAISO, Maria Hilda Baqueiro. Caminhos ao encontro do mundo: A capitania,
os frutos de ouro e a princesa do sul – Ilhéus, 1534-1940. Ilhéus: Editus, 2001, p.112.
90
Crinipellis perniciosa, responsável pela derrocada da elevada produtividade das lavouras (1989).
O alerta aos agricultores não contemplava a situação do trabalhador rural e de famílias inteiras
que poderiam sofrer as conseqüências mais pesadas. A crise causou ainda mais especulações e
notícias dos municípios sul baianos. A proliferação de jornais locais davam, entre os números e as
cotações do cacau, a possibilidade de leitura em entrelinhas que desvelavam características sociais e
culturais da região.
Além dos jornais, órgãos regionais como a criação do Instituto de Cacau da Bahia - ICB,
segundo Garcez
91
, serviram como “instrumento intermediário entre o Estado e a elite do cacau”. E uma
notícia que virou verdade era essa: “Se você não estudar vai bandeirar cacau”! Era a frase de efeito
mais significativo, das mães para incitarem seus filhos a ir à escola e ‘se formar’, para não passar
dificuldades. Bandeirar cacau! No Camamuzinho, até os anos 80 essa expressão era largamente
utilizada e significava trabalho árduo nas roças de cacau, por uma baixa remuneração e sem chances
de mobilidade social. Não seria preciso nem saber assinar o nome. E tinha uma tradição: o pai pobre e
analfabeto que não tivesse outra oportunidade legaria esse único meio de sobrevivência para seus
filhos, era uma sina, e por temê-la, muitas es matriculavam seus filhos nas escolas, no ensino
noturno como o Mobral.
Desde cedo, a falta de instrução da maior parte dos trabalhadores chamou a atenção de
escritores regionais e numa crônica de Humberto de Campos
92
, o “Elogio do Analfabetismo”, destaco a
afirmação seguinte: “Brasileiro que sabe ler o nome o pega mais no cabo da enxada, abandona a
lavoura, e vem para a cidade...” Ou seja, se analfabeto, sua permanência na roça de cacau era
pertinente, mas se fosse alfabetizado seu lugar seria na cidade. Ao longo da discussão, algumas
reportagens apresentaram uma maior possibilidade de apreensão desse universo, inclusive matérias
atuais que nos remontam aos problemas que se iniciaram na década de 1960, e continuam até a
atualidade, o que dá, ainda hoje, a esse grupo um caráter contestador.
Em contrapartida, a utilização de jornais pelos coronéis era um antigo meio de legitimação de
seus discursos, como constatou Ribeiro,
93
ao afirmar que “os jornais eram o espaço por excelência de
expressão dos valores da sociedade cacaueira”, permeados de uma identidade espacial, dos valores
ligados à rica região cacaueira da Bahia.
Esse universo era retratado desde o início do século passado pelo Diário da Tarde, de Ilhéus,
que foi fundado por Francisco Dórea, em fevereiro de 1928, A “capital do cacau”, - e falar de um
município ou distrito sem fazer referências ao pólo aglutinador que movia as negociações que davam a
91
GARCEZ, Op. Cit., p. 79
92
CAMPOS, Humberto. Crônicas da Capitania 1933, p.2 no dia 28 de março de 1933 “Elogio ao Analfabetismo”. In: Diário
da Tarde de Ilhéus, 1933, CEDOC/UESC.
93
RIBEIRO, André Luiz Rosa Memória e Identidade: Reformas Urbanas e arquitetura cemiterial na região cacaueira (1880-
1950). Ilhéus: Editus, 2005p. 53.
tônica econômica a esse lugar, é impossível. Sendo o pólo do comércio do cacau, não era de se
estranhar que o jornalismo empreendido nesse momento respondesse às necessidades políticas e
econômicas dos coronéis que lideravam a economia. E depois, abrisse caminho para os jornais locais,
narrativas cotidianas do mundo dinâmico do cacau.
A situação o mudou muito, cinco décadas depois, o jornal A Folha do Cacau
94
traz matérias
críticas como ‘Pobre região Rica’ ou ‘Cadê o ouro do cacau”? E manchetes como “A lavoura cacaueira
está querendo braços, trabalho bruto, não indivíduos mentalmente melhor instruídos”.
95
Nos números
analisados, a crise cacaueira era o principal assunto, além de algumas denúncias que serviram para
outros propósitos bem definidos, as mobilizações.
Beiradeiros-migrantes que viravam bandeiradores num universo social verticalizado, de difícil
mobilidade social, já que não tinham acesso à educação formal. Ou quando tinha a situação de
Ibirapitanga e distritos como o Camamuzinho era a seguinte: “a educação se transformou numa
máquina de votos (...) o ensino vai muito mal no município(...) falta de tudo desde carteiras, material,
pessoal,até água para as crianças beberem”.
96
A memória intervém na reconstrução do passado, tendo como referência o tempo presente, de
modo que os relatos mesclavam passado e presente, e de suas falas cheguei à seguinte reportagem,
que fala do histórico descaso municipal com a educação e, desta vez na atualidade:
Cerca de 300 pessoas, a maioria crianças, ocupam a Prefeitura de Ibirapitanga, distante 471
km de Salvador, estado da Bahia (região Nordeste). O grupo protesta contra a falta de
atenção da prefeitura com o ensino fundamental na zona rural, especialmente na Escola
Municipal Girassol, no Assentamento Paulo Jackson, situado próximo ao trevo de acesso à
cidade e onde estudam mais de 60 crianças numa casa improvisada. Os sem-terrinha não
encontram o prefeito Eraldo Assunção, que estaria em Salvador. Uma das lideranças
conseguiu falar com ele, por telefone, e combinar que uma comissão iria analisar a pauta de
reivindicações. À tarde, os manifestantes deixam a prefeitura e voltam para o clube, onde
estavam reunidos na Jornada dos sem-terrinha em defesa de educação de qualidade no
campo. Entre os participantes da atividade havia crianças de assentamentos e
acampamentos do baixo sul e do sul da Bahia. As crianças não estavam sozinhas, porque
mães e professoras acompanhavam o Movimento
97
.
Noticiadas em jornais e TV evidenciam realidades, dificuldades que a comunidade passa, e a
incansável necessidade de manifestação. A História Oral desvelou o campo político conflituoso e o
mais importante, como ensinou Foucault
98
, “onde poder resistência”, aqui não foi diferente.
Apreende-se, desses episódios, as microrresistências diluídas em lutas, ao longo de um espaço-tempo,
94
GASPARETTO, Agenor. Cacau, mitos e outras coisas mais. Prolan, 1985, em 23 de dezembro de 1985, p.2 p.65.
95
GASPARETTO, Agenor. Op. Cit.1985.
96
Tribuna de Ibirapitanga, 01/06/1984, p.04.
97
Fonte: BRASIL Cronologia do conflito social. Outubro 2007/acessado em novembro de 2007.
98
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 19 ed. São Paulo: Edições Graal, 2004.
protestos, reuniões grupais, associações comunitárias, enfrentamentos nas festas, labutas nas roças e
na rua, que deslocaram fronteiras de dominação.
A partir da segunda década do século XX, as rodovias que cortavam os pólos produtores de
cacau fortaleciam uma regionalidade, contribuindo para a construção de estradas. Conseqüentemente,
ocorreu a valorização do automóvel que fazia a ligação entre a sede e o distrito. E o Sr. Pedro
orgulhosamente relatou: O primeiro carro que entrou em Ibirapitanga foi nós que levamos empurrando
por dentro dos matos, era de Raimundo Pereira Mimoso
99
, um jipe americano, ano 1954, era tudo
estrada de chão”. Sobre as estradas e o atraso da construção de rodagem, numa região de intenso
fluxo comercial, a Tribuna de Ibirapitanga afirma:
Uma estrada das mais movimentadas da região cacaueira, sobretudo por ligar dois centro
comerciais da maior importância para a economia baiana, Ibirapitanga – Ubatã está a
merecer urgentemente as atenções do Sr.Governador do Estado a fim de dar uma solução
imediata por ser essa rodovia encascalhada que atrasou um elo econômico-social-financeiro
na região Sul do Estado
100
.
1.7. Lugares e seus olhares: entre Ubatã e Camamuzinho, caminhos e descaminhos de
alteridade
Se as imagens do cacau serviram para engrandecer, outras contribuíram para depreciar;
partindo desse pressuposto e olhando para o espaço físico, as imagens do fruto de ouro
intervêm/contribuem na reprodução das relações sociais. Assim, um olhar sobre os lugares foi pensado
tentando apreender a alteridade, vez que quando os sujeitos falam de si mesmos, revelam não
como são vistos pelos outros, mas como os vêem, como queriam ser vistos. Por esse recorte, faço um
convite a ver.
A escolha do que ver se deu por marcos eivados de significações no âmbito material como: a
ponte, a Rua do Brega e um estabelecimento comercial do Camamuzinho. Estes três espaços
surgiram como lugares referendados e a partir dos quais muitas lembranças foram extraídas ou
problematizadas a partir de demandas do presente.
101
A cidade, além de estar no bojo dos estudos sociológicos, como centralidade, oferece outras
possibilidades de olhares e interpretações históricas, de modo que entre Ubatã e Camamuzinho, os
lugares inseridos dão a ver as identidades engendradas ali.
99
Primeiro prefeito de Ibirapitanga.
100
Tribuna de Ibirapitanga em 1º de Maio de 1984, p.7.
101
No sentido de que “conceber o passado não é apenas selá-lo sob determinado significado, construir para ele uma
interpretação; conceber o passado é também negociar e disputar significados e desencadear ações” conforme BORDIEU,
Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.p.37.
Não se pode pensar que estigmas, contrastes ou negociações que não estejam imbuídos
do olhar de fora e do de dentro sobre si mesmos. Assim, ao denominar como lugar de pobres, negros,
índios ou macumbeiros, denominações também físicas, materializadas em cenários de interações, -
nas crenças, festas, trabalho, brigas -, desvelam os contornos que se mostraram contrastivos pelos
discursos internos e externos. Parti da premissa de que nem devia vitimizar os camamuzinhenses, nem
tornar carrascos os ubatenses, interessa mais perceber por quais caminhos e descaminhos estas
relações se deram e se ainda se dão.
Os lugares estão atrelados à produção de sentidos, e isto pode ser problematizado pelos
depoentes: a ponte que separa os dois municípios, a Rua do Brega, um armazém local e por fim, uma
fotografia aérea, que dada a ênfase, inseridas aqui, ensejam e conduzem essa reflexão,além de a
sustentarem visualmente.
Na investigação da identidade, um dos mais antigos moradores, Sr. Pedro, afirmaram que
morar no Camamuzinho lhes rendera rótulos dessa condição, e veemente afirmou que “acham a gente
ponta de rua, lugar de pobre, atrasado, para eles da cabeça da ponte pra nada presta, e que é com
a Rua do Brega que o Camamuzinho começa,mas lá pertence ainda à Ubatã”. Vê-se que esses lugares
mencionados condicionam/interferem na relação estabelecida com os outros, donde reforçou a
expressão ‘os de fora’, versus ‘os daqui’.
Figura 10- Limite ou início? Separa ou une? Ponte que demarca Ubatã e Camamuzinho
Fonte: Fotografia da pesquisa de campo – Cristiane Batista
O olhar de dentro sobre si mesmo que foi buscado por muitos olhares diferenciados- e o seu
relato de como se sente visto, se constitui no lugar e olhar da pesquisa, o inverso poderia também
acontecer, mas seriam outras teses, eivadas de uma alteridade que não suscitaram nem a
necessidade, nem as urgências tão caras a essa pesquisa. São feitas, a seguir, reflexões sobre três
espaços que apareceram nas falas como os símbolos dessas desculpas usadas para reforço dos
estigmas no tocante às comparações entre um grupo e outro. Vejamos a imagem que temos ao olhar
logo ao atravessar a ponte:
Figura 11 -. “Primeiro olhar: “A parabólica é que nos traz à atualidade”
Fonte: Cristiane Batista da Silva Santos - 2008
Querosene, cachaça, papel pardo, dendê, óleo de coco, café, vela, quase tudo se vendia a
retalho para quem não podia ou não queria comprar muito. Num primeiro momento, a imagem de um
armazém, o Santo Antônio, que é chamado de venda, na expressão local. Para os moradores significa
lugar de encontro e prova de confiança, ainda se compra pelo nome e confiança, anota-se na
caderneta, oferecem-se produtos variados em quantidades pequenas ou, a retalho e, mais que isso, a
pessoalidade.
O modo com são dispostos os produtos remontam ao culo passado e, por isso, apontados
pelos de fora como pobreza, atraso, falta de criatividade e essa não é a única, outras vendas, as
antigas, “secos & molhados”, ainda atendem à população local.
Imagens como essa oferecem meios para se tentar desvendar os entrecruzamentos desses
espaços com os estigmas impostos por suposições descontextualizadas de um olhar de fora e “por
fora”, bem como o entrelaçamento das práticas sociais desses indivíduos nos fornecem pistas de
grande valia.
Esses são espaços também de negociações, entre Ubatã e Camamuzinho, pois comportam
relações ambíguas de coesão, solidariedade, complementaridade e conflito. Prova disso é que os
moradores de Ubatã estão, nos finais de semana, nos barzinhos lotados, ou durante a semana fazendo
fila no ponto de venda dos acarajés, ou nas festas, quando acontecem, estão em sua maioria, de
carro e em grupos grandes, só para exemplificar.
Uma análise conjunta das narrativas supõe que os moradores do Distrito se sentem mal
interpretados. E persiste uma identidade mal resolvida para os de fora, que contraditoriamente afirmam
que estes ora são negros, ora são índios, são da tribo. E se estes caracteres são sinais de atraso, por
que procuram, freqüentam, continuamente, ao passo que depreciam?Se o olhar de fora homogeneíza,
rotula , ao passo que também procura, - consulta, come, dança, festeja, trabalha casa, - quando
necessário, está sendo instituída uma suposta comparação, que engloba vários pólos de referência e
contrastes com um parâmetro de poder instituído e errado.
Teríamos assim os padrões: as lojas são modernas, as pessoas brancas, ricas, católicas,
detentoras de oposições e posições melhores, não apenas diferentes. Por conta destes pressupostos é
que o olhar privilegiado para essa reflexão é pautado nos moradores do Camamuzinho, que, nesta
discussão, se constituem no principal suporte.
O lugar vai muito além de sua concretude física, permite representações das relações culturais
que singularizam um espaço e a visão referencial construída sobre ele. O discurso externo, não foi
deixado de lado, nas relações de trabalho e na labuta cotidiana, nem nas imbricações entre a
religiosidade e cultura do lugar. É comunidade e é de maioria negra, isso aqui é uma premissa, pois
são feitas muitas inferências invisíveis sobre o lugar e seus moradores assentadas em questões do
passado, do presente, em dimensões não materiais e imateriais, da forma como eles vivem e crêem.
Figura 12. “Segundo olhar: a antiga Rua do Brega”
Fonte: Arquivo de pesquisa de campo- Cristiane Batista - 2007
Um segundo olhar se volta para a Avenida Landulfo Alves, mais precisamente sua parte
limítrofe com o distrito de Camamuzinho. Afirmar que esta pertence a Ubatã é uma fala só dos
moradores do Camamuzinho, porque de fato esse trecho não pertence ao Distrito. Em contrapartida, os
ubatenses se referem a ela como o início do Camamuzinho, e rejeitam-na.
A Rua do Brega, como característica que demarcava o lugar, está na identidade social e atrai o
olhar constante da cidade e dos seus cidadãos, que elaboram um imaginário sobre a vida e
sociabilidade que se reflete nos moradores, em suas inter-relações e expressa sua identidade social e
a dos outros, a partir das qualidades e características do local em que moram ou de onde provêm.
Muitos sonhos moveram homens e mulheres e fizeram-nos trabalhar e desfrutar dos encantos
e ilusões das cidades do cacau, e entre os espaços de lazer oferecidos por estas, estavam as zonas de
prostituição. Nas histórias permeadas de exageros e boatos, esses lugares - também chamados de
cabaré, castelo, puteiro -, compunham o ícone por excelência dos preconceitos e da rejeição social nas
cidades pequenas.
As mulheres carregam o estigma, mesmo se tiverem freqüentado tais lugares no passado;
quanto aos homens, outras conotações eram inversamente atribuídas. A movimentação gestada por
fatores como o cacau, a construção da rodovia, a construção e manutenção da Barragem do Funil
sustentaram um fluxo de fazendeiros, trabalhadores, operários, prostitutas que deram à rua que
demarcava os limites intermunicipais o nome de Rua do Brega.
Informa-nos Dona Diana - sob os olhares atentos de seus filhos e netos, com um riso e um
poder que emana de sua posse do saudoso, atestado e vivido passado, e que, portanto, lhes dava
importância naquele momento -, que organizava festas onde as “putas” o entravam. E detalha o
cabaré é que recebia as prostitutas de todos os lugares e ficava exatamente junto à ponte, lugar de
maior trânsito, no dia de sexta-feira, muitos homens casados desciam para esse lugar, as mulheres de
fora vieram atraídas pela fama dos homens do Funil e do cacau que tinham dinheiro e davam muito
movimento
A depoente prosseguiu esclarecendo que, naquele tempo, era bem separado, ou a mulher
solteira era moça ou era puta, e uma não entrava nas festas que a outra freqüentava de jeito nenhum.
Todo mundo tinha isso como ponto de honra, e a que não ‘era mais moça’ era apontada como a que
“já se perdeu” ou “ saiu de casa”, seria a mulher de rua.
No mundo intertextual de Jorge Amado, em Cacau, prostitutas são aquelas defloradas pelos
coronéis, por seus filhos ou por homens ricos, e que, depois, são expulsas de suas casas e
desgraçadas cujo único destino é a rua da Lama. Lá, passavam a servir a toda sorte de homens que
trabalhavam nas roças ou eram os donos dessas roças:
Pobres mulheres, que choravam, rezavam e se embriagavam na rua da Lama. Pobres
operárias do sexo. Quando chegará o dia da vossa libertação? [...] Quantos mananciais de
carinho perdidos, quantas boas mães e boas trabalhadoras. Pobre de vós a quem as
senhoras casadas não dão direito nem ao reino do céu. Mas os ricos não se envergonham
da prostituição. Contentam-se em desprezar as infelizes. Esquecem- se de que foram eles
que as lançaram ali.
102
Atores sociais em lados opostos e intransponíveis, social e culturalmente, a Rua do Brega de
Ubatã ditava que mulher ‘direita’ passaria de dia, e caso se aventurasse a sair à noite, deveria
procurar uma rua paralela.
O fato é que as mulheres dessa rua, em sua maioria, eram migrantes, que vinham querendo
juntar dinheiro ou casar. A associação entre estas e as mulheres do Camamuzinho não era apenas
pela proximidade, ou pelo cacau que sustentava essas relações, era por atribuir que pela pobreza da
comunidade essa seria uma das formas de sustento delas. Da Matta
103
, sobre esses espaços
considerados problemáticos, como as regiões pobres e de meretrício, afirma que, geralmente, são
regiões periféricas escondidas por tapumes, jamais concebidas como permanentes ou complementares
às áreas nobres, mas como locais de transição. Aqui a rejeição de um se dava pela associação a
outros.
Do olhar sobre esses lugares problematizados emergiram aspectos relacionais contrativos, de
identidade e de lugar, e lugar de poder por ter nascido da comparação com um elemento padrão
oposto: aquele lugar tido supostamente como centro, de ricos, brancos e católicos. Inversamente,
fez/faz deste espaço-lugar, território de uma minoria, cuja característica marcante de organização
social é a auto-identificação enquanto grupo, a despeito das referências pejorativas que estabelecem e
nomeiam as fronteiras sociais.
Por não serem rígidos e nem neutros, os lugares restringem ou possibilitam a realização de
práticas sociais, de valorização ou desvalorização. Isso ficou visível num processo iniciado na década
de 1960 e que resultou numa espécie de representação sobre o Distrito no imaginário local. Chartier
(1990), quanto a isso, sinaliza para o modo como cada sujeito constrói o seu ponto de vista a partir de
sua leitura de mundo, a partir do que representam as relações de poder e de como o percebemos,
interpretamos e nos apropriamos da realidade. O que esse lugar é , como é visto por si e pelo outro de
fora, é um jogo de olhar sobre as alteridades.
Arrematando Chartier
104
, “(...) as representações do mundo social, que, à revelia dos actores
sociais, traduzem as suas posições e interesses objetivamente confrontados e que, paralelamente,
descrevem a sociedade tal como pensam que ela é, ou como gostariam que fosse”.Algumas
representações instituídas, sejam fenotípicas, comportamentais, como o fato de ser do Camamuzinho
102
AMADO, Jorge. Cacau. Record, 1998, p. 57.
103
MATTA, Roberto da. A casa & a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5. ed. Rio de Janeiro: Rocco,
1997.
104
CHARTER. Roger. Idem, p.19.
ou ser da tribo, o índio, refletem a concepção dos lugares pelos outros, que transmitem mensagens
em forma de ações, de sinais codificados em aceitação,rejeição,imposição.
Foi desse modo que os depoentes usaram o lugar, em referência às práticas e experiências
comunitárias nele vividas, especificidades estão implícitas na identidade. Sodré (1988) aproxima
espaço de lugar praticado, concebido, e sem se limitar ao aspecto físico, abarca o simbólico, o
relacional, assim como a idéia de território que está estreitamente ligada à identidade de um grupo que
acabou demarcando um espaço, estabelecendo a sua diferença em relação aos outros, aos ubatenses.
São mantidas vivas ações que, para esses sujeitos, são entendidas como tradições africanas
105
,
materializadas em ações cotidianas, crenças e práticas. O que esses sujeitos têm como identidade é a
luta contra o exílio da memória em relação às práticas, festas, aos costumes.
As negociações são múltiplas: e ao transpor os limites territoriais para festejar, rezar ou mesmo
‘consultar’, também na apreciação de iguarias como o acarajé cujo feitio é reconhecido como de
excelente qualidade neste espaço-lugar, as fronteiras são negociadas, as tradições são forjadas entre
um grupo e outro. É comum recorrer às expressões ‘sou da tribo ou ‘sou do Camamuzinho’ em
advertência clara e com o intuito de imprimir a este discurso força, valentia e exigência de respeito.
Reação, busca de auto-afirmação individual com amparo na identidade grupal?De tudo um pouco!
Os laços de sociabilidade fizeram destes uma família de valor territorial, amparadas na
coletividade e no sentimento de pertencer a um contexto maior, é o que Mafesoli (1984) chama de
“valor territorial” de natureza social, variando de acordo com regras e normas que conduzem às
fronteiras espaciais,
Essa relação entre comunidade, espaço e identidade se aproxima da concepção de Mattos
106
que utiliza a noção de territorialização como processo de relacionamento que define espaço e
identidade, transcendendo o limite do dado físico para referenciar-se, sobretudo, às formas como
grupos humanos específicos singularizam, prática e simbolicamente, a ocupação de um espaço físico,
ao mesmo tempo em que constroem seu significado histórico-social, os “espaços-territórios instituintes
de um universo cultural próprio, resistente às adversidades de uma conjuntura social e racial
desfavorável.”
Certeau
107
corrobora a necessidade de trazer à tona "as formas sub-reptícias que assume a
criatividade dispersa, tática e bricoleuse dos dominados”, com vistas a reagir à opressão que sobre
eles incide numa dimensão sócio-cultural nos seus aspectos simbólicos. O espaço não existe como
105
Por tradições africanas nesse espaço, os depoentes apontam, além da religiosidade, o fato de fazerem comidas muito
bem, as festividades, a comunidade unida, o gosto pela música de percussão, timbau, a cor, a sensualidade das mulheres,
o fato da comunidade ser procurada pelos de fora por esses motivos.
106
MATTOS, Wilson Roberto de. Negros contra a ordem: resistências e práticas negras de territorialização no espaço
da exclusão social – Salvador-Ba (1850-1888). São Paulo, 2000, p.27.
107
DE CERTEAU, Michel. (1994). Artes de fazer. A invenção do cotidiano. Petrópolis, Ed. Vozes 1994, p.41.
uma dimensão social independente e individualizada, antes perscruta a espacialidade, ora da
discriminação ora da negociação.
O modo como o espaço foi usado, como desculpa ou fronteira para separar em categorias de
melhor ou pior, revela a origem do discurso de quem nomeia esse outro, A construção material dos
espaços, bem como as divisões espaciais da cidade são, também, representações de construções
imaginárias e divisões entre identidades com estreita relação entre as condições sócio - econômicas.
A ausência de uma distância entre Camamuzinho e Uba se materializa no fato deste separar-se
desta última apenas por uma ponte. O que a fotografia da vista aérea abaixo pode comprovar, é que
fisicamente as ‘fronteiras’ quase inexistem.
CAM AM UZINHO
Ribeirão Dois Irm ãos da M ata
RIO DE CONTAS
UBATÃ
Figura 13 - “Quem vê área não vê coração”
Fonte: PMU – Prefeitura Municipal de Ubatã
Visualmente, os dois municípios dividem o mesmo espaço, Isto posto, é possível perceber que
os limites aparentemente demarcados pelo Ribeirão Dois Irmãos da Mata e três pequenas pontes não
os isolam, mas os intersectam e os aproximam, ao passo que pelas diferenças, os distanciam.
E suscitou um questionamento primeiro: Como espaços tão próximos diferem tanto em
aspectos étnico-raciais? Qual é o sentido que estes sujeitos atribuem aos seus espaços, aqueles em
que as diferenças e as identidades se revelam? As expressões que designam bairros e ruas exprimem
regiões sociais convencionais e locais, indicando antiguidade ou sugerindo segmentação social e
econômica.
Assim, podemos falar de identidade, cuja pluralidade ao mesmo passo que orbita em torno de
representações e nomeações como pretos, macumbeiros, índios, possibilita a vitória de uma outra
identidade, na definição cultural do confronto, em oposição à forma como são vistos pelos ubatenses:
valentes, unidos, trabalhadores, festeiros, criativos.
Norbert Elias (2000) pensa as relações de poder no cotidiano e a construção de identidades
sociais no interior de comunidades. As relações entre estabelecidos (no caso, os ubatenses) e outsider
(os moradores do Camamuzinho) têm sempre algo em comum, por isso mesmo seria inviável um
estudo dessa natureza que se limitasse à identidade social destes sem referências aos ubatenses.
Embora tenham muitas interseções, os conflitos não escondem que têm como origem as nuances
étnico-raciais. Chamá-los de índios e de moradores da tribo, que são macumbeiros, pobres e feios é
variação de um mesmo estigma de nomeação.
O diferente é o outro, e o reconhecimento da diferença é a consciência da alteridade: a
descoberta do sentimento que se arma dos símbolos da cultura para dizer que nem tudo é o
que eu sou e nem todos são como eu sou. Homem e mulher, branco e negro, senhor e
servo, civilizado e índio. O outro é um diferente e por isso atrai e atemoriza.
108
(grifos
nossos).
108
NEIBURG, Federico. A sociologia das relações de poder. In: ELIAS, Nobert. Os estabelecidos e os outsiders:
sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, p. 9.
Capítulo II – A festividade
Códigos de Sociabilidades no cotidiano: nascer, festejar e morrer entre santos e
orixás
1. Pente quente no cabelo, vestido de chita e rajada de fogos: é festa!
Pente quente e vestido de chita remetem-nos a aparatos femininos, isso porque muitas
atuações centrais na comunidade eram de mulheres negras aqui chamadas de santo, do candomblé, e
do santo, devotas do padroeiro. Além dessa característica, no Camamuzinho, festejar, seja por qual
motivo, fez desse um espaço, um palco no qual se defrontaram diferentes interpretações do viver em
grupo onde a comunidade faz a gestão dos espaços de fé e lazer.
Olhar a comunidade assim, é desnudá-la em suas formas simbólicas e padrões culturais
entrelaçados, interpretando, pelas memórias, o que ficou delas. É esse o objetivo principal desse texto,
ou, pelo menos, a tentativa insistente deste, por isso as falas são privilegiadas nessa análise.
A percepção dos valores culturais locais em manifestações como as festas, revela o modo de
ver como esse grupo se posicionou num determinado espaço, seja de natureza política, religiosa ou
sócio-cultural. Por serem ocasiões coletivas, as festas acontecem seguindo códigos de sociabilidades
inspiradas no cotidiano, criando e expondo signos identitários, ora contrastivos, ora étnico-territoriais.
Como o título desse recorte nos sugere, o tempo de festa movimentava a comunidade e, além
do espírito festivo, o corpo entrava em cena, afinal, os códigos sociais lembravam que a festa exigia
uma preparação. Sagrada ou profana movia corpos, cabelos, cozinhas, enfeites, sons e mãos, muitas
mãos. preponderava a atuação das mulheres que, além de organizar as festas, também alisavam o
cabelo a pente quente, - ainda mais numa comunidade de maioria negra.
Isso me remete às discussões de Hooks
109
acerca do sentido investido neste momento ritual.
Mulheres negras, seus corpos, suas estéticas na auto-preparação para festas, esses momentos são
marcados por memórias estritamente femininas, num espaço delas, suas intimidades, sonhos e
concepções de si e do seu corpo, assim como vestir-se de roupa nova, geralmente ‘a domingueira’.
Os fogos também anunciavam que o momento era festivo e solene. A festa e, junto com ela,
outros elementos identitários, vão nesse lugar mestiço, expondo nuances étnico-raciais diluídas em
vivências, redes de sociabilidades femininas, religiosas, comunitárias.
109
HOOKS, Bell. Alisando o nosso cabelo. Revista Gazeta de Cuba Unión de escritores y Artista de Cuba, janeiro-
fevereiro de 2005. Tradução do espanhol: Lia Maria dos Santos.
É de Hall
110
o conceito de identidade que se aproxima de algo historicamente construído, e a
festa é uma dessas construções na história local, cuja celebração se movimenta na fluidez que a
identidade comporta e, se, como ele diz, a identidade é formada e transformada continuamente, em
relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos
rodeiam, a festa foi uma escrita de si mesmos em seus espaços e nos espaços dos outros.
Caminhando no meio do entrecruzamento entre a História Oral e a etnografia, nos espaços da
festa e na manifestação da identidade, esta pôde desvelar, também, a relação entre festa e
religiosidade. De fato, ocorre o que afirma Geertz, “Na crença e na prática religiosa, o ethos de um
grupo torna-se intelectualmente compreensível porque demonstra representar um tipo de vida
idealmente adaptado ao estado de coisas atual que a visão de mundo descreve”;
111
eu completo
dizendo que esses estados podem ser de alegria, fé, sátira, etc
Esse ethos também se tornou objeto profícuo a partir do qual se desvelou a comunidade.
Preferi não incorrer na tarefa de defini-las como sagradas, profanas. Mas para que opô-las, ou
preocupar-se em delimitá-las?Interessa mais ver as nuances e riquezas que desvelaram.
1.1. Festejar do Cristal ao Camamuzinho: circulação de sentidos
Em quais sentidos as festividades circularam no Camamuzinho, por décadas, ganhando
reinvenções e apropriações por parte dos moradores do lugar? Como desocultá-las, uma vez que estas
ultrapassam a simples comemoração? Esse propósito perpassa pelas discussões historiográficas sobre
cultura e ancora-se na História sem se fechar às contribuições da Sociologia e da Antropologia.
Circulam vastas discussões teóricas que apontam para os sentidos da festa em diversas
direções objeto e conceito, desde a superação das distâncias entre os indivíduos, às vezes é tida
como uma pausa na fadiga, para outros é afirmação étnico-racial, é sagrada, é profana e, enfim, um
dos aspectos mais enfocados, é o ritual.
Para além de sua ritualização, as manifestações festivas se desvelaram numa geografia da
memória que desenhou os lugares de um modo singular, relacional. Revelou um Camamuzinho
dinâmico entre 1960 e 1990 nas esferas sagradas e profanas, deram nome, gênero, lugar às pessoas,
salvando-as das injunções do tempo. Um mapa mnemônico surgiu do entrecruzamento dos relatos,
assim resumido:
110
HALL, Stuart. Identidade Cultural na Pós-modernidade, 2004, p.13
111
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S.A. 1989.
Figura 14- “Festas, memórias, rupturas e permanências”
Fonte: Com base nos relatos, nos nomes e datas que surgiram ao relembrar.
Rupturas, permanências e recriações, como as vistas na tabela acima, estão permeadas da
cultura afro-brasileira, do catolicismo, da cultura popular
112
presentes nestes espaços, diluídos em
vivências, nomeados de acordo com a cultura local e engendrando redes de sociabilidades formadas e
transformadas, continuamente, em relação às formas pelas quais eram representados e no modo
como escolhiam para festar -, ou interpelados - no modo como os outros viam suas festividades-, nos
sistemas culturais que os rodeiam.
Relacionando as categorias de festa e memória, depreendem-se demarcadores de identidade,
pertencimento, afirmação e, crucialmente, houve elaboração não somente de uma, mas de várias
representações de si mesma: na igreja, na rua, na micareta, - participação estratégica e satírica-, na
festa do padroeiro, no interior das casas, em frente aos oratórios, altares domésticos, casas conhecidas
pela devoção anual da dona da casa.
No sul da Bahia, em lugarejos como Camamuzinho, formados na pós-abolição, esses sujeitos
de maioria negra não somente ocuparam, mas marcaram cultural e socialmente o espaço,
desenvolvendo atividades ligadas às suas tradições afro-brasileiras. A associação entre a fenotipia e a
crença religiosa ainda é muito vívida no interior baiano e percebida pelo olhar externo, que associa,
112
Cf. HALL. Stuart. “Notas sobre a desconstrução do popular” In: Da Diáspora – Identidades e Mediações
Culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
Entre 1909
e 1959
(Cristal)
Década
de 1960
Década de 1970 Década de 1980 Década de 1990
Candomblé
Burrinha
de
Prata
Reza de
Ladainha com e
sem caboclo
Ida a Bom Jesus
da Lapa em
romaria
Quadrilha
ensaiada/rainha do
milho
Carnaval
Enterro
do ano
novo
Ogum/Festa do
padroeiro/juninos
Ogum/Festa do
padroeiro/juninos
Ogum/Festa do
padroeiro/juninos
Missa
anual
Reisado
Caruru de
mabaço
Parquinho da Tia
Zula
Forró da Elite
Reza de
ladainha
Bumba-
meu-
boi
Bumba-meu- boi Bumba-meu- boi Bumba-meu- boi
Caruru de
Cosme
Caruru
de
Cosme
Caruru de
Cosme
Caruru de
Cosme
Caruru de Cosme
Festas de
salão
Bloco
dos
Índios
Bloco dos
Índios/Sujos
Bloco do Café
rotula, pré-concebe. Sodré
113
denomina esse espaço sico ocupado de um lugar de cultura, evocando
uma territorialização importante no processo de formação de identidade grupal/individual e de
reconhecimento de si por outros.
Sagradas, profanas, ou nas interfaces entre estas nuances? Segundo Priore (2000), a festa
possui espaços variados onde coexistem múltiplas trocas de olhares, leituras e funções políticas e
religiosas, transformando-se numa ponte simbólica entre o mundo sagrado e o profano. A aproximação
entre festa e identidade, conflitos e negociações significam, de modo análogo, rediscutir em certos
termos a natureza ritual destes modos de ir à festa. Protesto? Afirmação da identidade grupal?
Símbolos como suportes identitários?
Interessa perceber quais práticas reforçam a necessidade de afirmação de uma identidade
negra, em um espaço em contraste com um outro, que se como branco, e por isso contrastivo.
Afinal, Camamuzinho é visto como um lugar onde o negro e o afro-brasileiro materializaram signos de
sua identidade étnica. Pode-se mencionar Marta Abreu, quando diz que desafios para quem se
ocupa em estudar as festas, e alerta para a necessidade de percepção de alguns elementos que são
aqui observados:
(...) pensar os significados e mudanças das festas em sua própria historicidade, mas,
sobretudo, compreender a dinâmica relação das festas com a existência dos homens e
mulheres que as tornaram, em qualquer época e local, autênticas e concorridas.
114
Esta construção da identidade passa por um “enquadramento”
115
social dos indivíduos uma
vez que as festas - tanto as de santo como as do padroeiro e depois as de blocos de micareta - ,
permitiram que estes agentes construíssem, negociassem e demonstrassem como a memória é
entendida por eles.
Imbricando o poder ambíguo de esconder e revelar, um quê de sagrado e profano, e de
católico e afro-brasileiro alimentou as festas de santo no Cristal a às festas do padroeiro no
Camamuzinho. Tanto o carnaval no Cristal quanto a Micareta de Ubatã, ainda estão na memória,
porque delas “fica o que significa”, sinaliza Bosi
116
. Em quais encruzilhadas, a festa, a identidade e a
cultura afro-brasileira se encontraram? A seguir, retrocederei mais uma vez ao Cristal, por considerar
que as heranças afro-brasileiras festivas nasceram e fincaram raízes nesse contexto específico.
113
SODRÈ, Muniz. O Terreiro e a Cidade Op. Cit.
114
ABREU, Marta, O império do Divino. Rio de Janeiro: Nova Fronteira/São Paulo: Fapesp, 1999, p. 38.
115
Michael Pollak (1992: 210) indicava que os indivíduos também são agentes de narrativas e em suas ações fazem
também o enquadramento de seus quadros sociais da memória. Por enquadramento da memória compreende a integração
de tentativas “mais ou menos conscientes de definir e de reforçar sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre
coletividades de tamanhos diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações, etc” (Pollak,
1989: 3-15).
116
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade. Lembranças de velhos. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994.
Esmiuçando os diferentes momentos do nascimento de uma cultura festiva afro-brasileira na
comunidade, encontramos, no Cristal, um mosaico de negros beiradeiros, ‘índias pegas a dente de
cachorro’, sergipanos, nortistas, trabalhadores nas diversas lidas do cacau, mulheres que em sua
maioria cozinhavam, lavavam e passavam de ganho. A vida cotidiana no Cristal entre 1909 e 1959 era
árdua.
Carnaval, candomblé, festas de salão, ladainhas, carurus, assim a vida festiva acontecia e, na
afirmação do Senhor Maneca
117
,um dos mais velhos moradores do Distrito, hoje com 92 anos: “Lá no
Cristal tinha muita festa, candomblé, reza, tudo misturado. Pedro Grande cantava reis, eu e todo
mundo ia pros dois, pra tudo. Era muita festa.”
O “festar” é oriundo das casas de santo oficialmente atuantes na comunidade, eram elas que
moviam e davam tônus àquela gênese do Camamuzinho, sob o signo do comum, do tradicional, do
herdado. Naquele espaço onde ainda não havia uma igreja enquanto marco católico instituído, o
candomblé foi natural e, religiosamente, deu aos sujeitos o sentido de festa. Por isso que ao perscrutar
os sentidos das festas, encontramos a (re) construção da identidade negra bastante presente, graças à
ação feminina das mães de santo.
Quando o Senhor Maneca diz que todo mundo ia para tudo e para os dois”, nos traduz um
lugar marcado por essas festas de modo bastante expressivo. Esse universo no início do culo
remete-me a Priore quando, reportando-se ao tempo colonial diz:
Índios, negros, mulatos e brancos manipulam as brechas no ritual da festa e as impregnam
de representações de sua cultura específica. Eles transformam as comemorações religiosas
em oportunidade para recriar seus mitos, sua musicalidade, sua dança, sua maneira de
vestir-se e aí reproduzir suas hierarquias tribais, aristocráticas e religiosas.
118
Crucial para o entendimento de uma nascente dupla pertença religiosa, esse tipo de
acontecimento reforça o sentimento de pertença destes. E mais uma vez recorrendo a Priore
119
:
A alegria da festa ajuda as populações a suportar o trabalho, o perigo e a exploração, mas
reafirma igualmente laços de solidariedade ou permite aos indivíduos marcar suas
especificidades e diferenças. Alegria, trabalho, exploração, solidariedade. Tradução, resumo
das vivências num espaço pequeno, mas rico, dinâmico.
Não o binômio de oposição festa e trabalho” sustentam essa discussão, mas a busca por
apreendê-las, num momento especial, que era o da recente migração,a reafirmação dos valores
civilizatórios afro-brasileiros naquele espaço. Quais seriam as recriações cosmológicas ali? Assim me
esforço para não incorrer no erro sobre o qual Mattos
120
adverte: “Incorremos nas armadilhas dos
117
Foi delegado e veio como um destacamento como chefe da segurança no Cristal, foi também vereador.
118
DEL PRIORE, Mary. Festas e Utopias no Brasil Colonial. São Paulo: Brasiliense, 1984, 89. ( pp. 9-15; 29-62; 89-104).
119
DEL PRIORE Op. Cit. 2000, p. 10
120
MATTOS, Wilson Roberto de. Valores civilizatórios afro-brasileiros, políticas educacionais e currículos escolares.
Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. 19, p. 229-234, jan./jun. 2003, p.232.
essencialismos, na reprodução não refletida desses valores como conteúdos inalterados de uma
relação supostamente imune às injunções do tempo.” A partir desses sinais é que o retorno ao Cristal
através da memória, partindo de uma inquietação do presente. As experiências novas que nos
remetiam à sua origem no passado. O que de beiradeiro\Cristal resiste no Camamuzinho?
Não foi à toa que esse, frente aos ubatenses, aos poucos foi caracterizado como um lugar de
práticas negras. A memória como categoria de apreender essas experiências negras fez da oralidade
uma ponte entre passado e presente, trouxe o Cristal para Camamuzinho. Tal aspecto, mesmo estando
a comunidade sujeita às influências e novos valores externos, é entendido como sustentação da
identidade. E para isso trago as reflexões de Thomson:
Experiências novas ampliam constantemente as imagens antigas e no final exigem e geram
novas formas de compreensão. A memória gira em torno da relação passado-presente, e
envolve um processo contínuo de reconstrução e transformação das experiências
lembradas, em função das mudanças nos relatos públicos sobre o passado. Que memórias
escolhem para recordar e relatar (e, portanto, relembra), e como damos sentidos a elas são
coisas que mudam com o passar do tempo. (...) Esse sentido supõe uma relação dialética
entre memória e identidade. Nossa identidade (ou “identidades”, termo mais apropriado para
indicar a natureza multifacetada e contraditória da subjetividade) é a consciência do eu que,
com o passar do tempo, construímos através da interação com outras pessoas e com nossas
próprias vivências. “Construímos nossa identidade através do processo de contar história,
para nós mesmos como histórias secretas ou fantasias ou para outras pessoas, no
convívio social”
121
:
O nascimento do lugar tido como espaço de negros advém de experiências vividas que
perduraram, apesar da destruição física do lugar e das décadas que passaram. Podemos pensá-las,
tanto quanto sua memória, como eventos que ultrapassam as fronteiras específicas do espaço
122
e do
tempo em que estas aconteceram.
A festa no Cristal, como um momento de sociabilidade diante da imensa labuta do cacau, o
exclui dela outros significados. Não a limita como alternativa ao trabalho. São outros vieses, a marca de
uma religiosidade afro brasileira, a afirmação de uma identidade, momento de encontro onde as trocas
culturais, sob suas inúmeras facetas, aconteciam em diferentes sentidos.
O que foi aprendido e apreendido com o povo de santo ainda no Cristal, por exemplo,
contribuiu para que as festas de santo fossem respeitadas e freqüentadas anos depois no
Camamuzinho. Questionados sobre a vida e seu cotidiano no antigo arraial entre 1909 e 1959, além de
cacau, outra palavra não poderia ser mais apropriada que festa.
121
THOMSON, Alistair. Recompondo a Memória: questões sobre a relação entre história oral e a memória. In Projeto
História. São Paulo: PUC/SP, n.º 15, abr. 1997, p.57.
122
Ao utilizarmos a categoria “espaço” não me atenho ao sentido apenas físico, na concepção deste enquanto um lugar
ocupado, praticado(Certeau) socialmente e constituído por um sistema de signos onde há esferas de ações sociais,
etnicidades capazes de despertar memórias, reações, imagens e normas. O espaço concreto no qual o grupo vive, assim
como o tempo, possui um papel importante na memória coletiva, pois os aspectos e detalhes dos lugares possuem sentidos
para quem narra cada festa.
Os beiradeiros deixaram suas marcas através das festas de candomblé, tanto que os que
viveram por certo tempo, puderam contar suas memórias: Senhor Chico, Dona Anete e Dona Gilda.
Cada um desses depoentes enfatizou personagens diferentes de uma mesma história e convergiram
para um mesmo conjunto de palavras bastante revelador negros, beiradeiros, festas, candomblé,
carnaval.
Eu fui mesmo para o candombainda menina nova. O nome do pai de santo dessa casa
que eu ía era Freitas. Tinha muita festa, samba de caboclos. tinha mais gente de fora.
Havia também uma professora que organizava outros tipos de festa, de nome Solidade, uma
senhora que ensaiava para o carnaval. Havia as bailarinas e com porta estandarte. Eu
participei.
123
A identidade com a cultura afro-brasileira e negra continua a se manifestar, pois a memória
continua viva. Quem relembra esses acontecimentos é Dona Gilda, e para Dona Anete as festas de
candomblé eram muito bem freqüentadas por congregar pessoas de Ubatã, da roça e de Camamu,
origem da maior parte dos moradores daquela época. E detalha:
As festas duravam dias e vinha gente de Camamu para participar. Que ela trazia, parentes
de santo, não sei bem. Lembro daquelas panelas enormes, muita comida que ninguém podia
mexer só ela, Maria, uma negra que veio de lá dos lados de Camamu também
.
124
O candomblé acontecia entre os anos 1920 e 1940, numa fazenda chamada Vila Floresta na
casa de uma senhora, a “Dos Anjos,” que regularmente “tocava”. Nestes toques inclusive, o senhor
Chico
125
admitia ir sempre, porque sempre é: “Para o povo-de-santo, que se espelha nos orixás, que
vem ao mundo para dançar e festejar, o tempo de festa é sempre”. Porque a vida, quando se tem
saúde, alegria, amor, deve ser festejada. Não importa se o trabalho é duro, se a vida é difícil.”
126
A festa reinaugura, assim, no Camamuzinho, vidas e histórias, acompanhando o tempo,
transformando-se e recriando-se para manter-se viva enquanto prática presenciável no universo
dinâmico da cultura popular, festiva, católica, afro-brasileira, pulsante.
1.2 Que índios são esses e que festa é essa? Uma questão de Identidade
Pollak (1992) explicita que o três os elementos que servem de apoio à memória: os
acontecimentos vividos, as pessoas e os lugares. Nessa tríade, incluem-se os momentos festivos da
123
Gilda Miranda, 60 anos, dona de casa, reside em Ubatã e veio ainda criança morar no Cristal.
124
Anete Ferreira, dona de casa, ex-moradora do Cristal, mora no Camamuzinho desde 1960.
125
Depoimento cedido em janeiro de 2007.
126
AMARAL, Rita. Povo-de-santo, povo de festa. - O estilo vida dos adeptos do candomblé paulista. Dissertação de
Mestrado, USP, 1992.
comunidade, sejam estes religiosos, profanos, nos lares ou nas ruas. Embora, na atualidade, devido a
vários fatores, esses eventos estejam passando por profundas transformações, ainda assim, alguns
rituais trazem traços e elementos da tradição.
A festa do padroeiro ou a Micareta, ambas na rua, no espaço coletivo, são aproximações que
significam de modo análogo rediscutir em certos termos a natureza ritual destes modos de ir à festa.
Protesto? Afirmação da identidade étnica ou grupal? Símbolos como suportes identitários? Em meio à
relação entre uma identidade contrastiva ocorre a afirmação da identidade grupal e uma luta contra a
tentativa de exclusão, negação, negociação frente aos ubatenses. Eram, sim índios, negros, da tribo,
mas em acepções positivas.
Nas sociabilidades, as estratégias se materializam e as festas figuram como prática
articuladora da operatividade grupal e do jogo entre identidade e alteridade, ambas expressas no
cotidiano entre um grupo e outro, numa perspectiva que valoriza os percursos individuais, a criatividade
e a subjetividade.
Ao falar de alegrias, narraram as festas usando a memória, e como esta é seletiva, nem todos
os fatos ficam registrados, tendo os indivíduos recordações dos momentos a que dão determinada
importância e, por algum motivo, ficaram marcados. Subjetivamente, a ênfase em quais aspectos ou
festa abordar provém dessas considerações, subdivide esse capítulo e arremata o “festar” sagrado ou
profano da cotidianidade que foi importante e representa a memória festiva dessas pessoas de modo
que a festa do padroeiro aparece associada a fama, ampla participação, muitos visitantes e lucros.
Os índios, nesse caso, são negros, que já se vestiram de índios para aparecer na festa
considerada de branco ou que pelo menos se vêem assim-, e que décadas depois, em outras,
reafirmaram sua identidade afro-descendente. Suas festas se deram também em blocos na micareta de
Ubatã, com estilos e nomes que carregavam um discurso representativo.
Outro momento apontado como festivo era o do jogo de futebol aos domingos. Organizaram o
Grêmio, que também foi apelidado pelos ubatenses de ‘o Teimoso’, em virtude de não contar com
apoio nem financeiro e nem técnico, mas vencia os campeonatos em campos ubatenses, assim como
conseguia vitórias ininterruptas nas gincanas promovidas pelo colégio e depois pela Prefeitura de
Ubatã, entre as décadas de 1970 a 1990. Esses embates mostram quem são esses sujeitos e quais
eram suas atitudes e sempre reafirmam identidades.
Os enfrentamentos cotidianos diluem-se, também, nas narrativas através de Zuleide,
Robenajara, Carminha; enfocarei esses três especialmente por serem os organizadores das festas de
representação na rua e dos blocos, - além destes, somente D.Beata que, durante a década de 1960
comandava o Bloco dos Índios. Robenajara relembra momentos importantes da história local e enfoca
associações, festivas ou não.
Camamuzinho era muito unido. Sempre foi. A Associação de moradores mesmo, minha mãe
foi presidente, ela, Antonio curador e Zuleide. A associação lutou na tomada dos lotes de
terra em Délio. Olha que engraçado, da vez que queriam tomar Camamuzinho para fazer
parte de Ubatã. Discriminavam a gente daqui da comunidade, mas queria tomar a gente para
fazer parte deles. Quando ele nos chamava de índios na verdade, era pela nossa união.
Tínhamos muitos apelidos bem piores
127
Quanto ao fato de serem em sua maioria, negros, acrescentava: se são negros, são pobres e
macumbeiros. Por estes não aceitarem passivamente as provocações ou as formas de violência
simbólica e às vezes física, nos episódios de brigas e agressões, são chamados pejorativamente de
índios, e a comunidade, conseqüentemente, de tribo. Sobre o termo tribo e o que socialmente isso
acarretava, Robenajara relembra:
Esse tabu de nos chamar de índio acabou mais depois que o cacau acabou agora.. Sofri isso
e na escola, no colégio estadual. Tive que estudar em duas cidades para fugir do que eu
sofria: Ipiaú e Barra do Rocha. Eles diziam: ‘chegaram os índios, faziam questão de
discriminar dizer que era pobre, índio, do Camamuzinho. Quem não tinha condição de
estudar fora tinha que passar por isso aí. Por duas vezes me bateram no colégio. Faziam
assim: (o depoente bateu na boca imitando o som dos índios na tribo) quando a gente ia
chegando.
128
O relato do organizador do Bloco Timbaleiros, evidencia não o caráter associativo, mas o
modo como viam as investidas externas contra os moradores e aponta as dicotomias impostas. Nessa
perspectiva, a cor da pele aqui ganhou um caráter de estigma. O fator cor é levado em consideração
como sinal que aciona os dispositivos do racismo, ou dos diversos tipos de racismo. E nessa
comunidade, a maioria se constitui de portadores desses fenótipos, sendo, face aos ubatenses, que se
pensam brancos, considerados inferiores e, por conseqüência, marginalizados. O binômio, identidade e
comunidade, não perde de vista a classificação fenotípica como mediadora das relações sociais e
intergrupais, as pessoas olhavam para cor da pele e depois davam nome aos grupos ou associações
que a comunidade organizava; isso inclui as festividades. Olhemos sobre essa questão de
identificação:
Cidade/Religião
População
Católica Evangélica
Espírita Umbanda e
Candomb
Outras
Religiosidades
Ibirapitanga 22.177 67,31 14,99 ----------- 0,10 0,32
Ubatã 21.803 54,50 19,58 0,17 O, 14 3,68
Cidade/ Cor ou
Raça
Branca
Preta
Amarela
Parda
Indígena Sem
Declaração
Ibirapitanga 17,4 17,2 0,1 62,1 0,3 3,0
Ubatã 20,3 10,4 ----- 63,9 ---- 5,4
Figura 15- “Ubatã x Ibirapitanga, segundo Raça e Religião, números da identidade”.
Fonte: IBGE, Censo Demográfico - 2000 -
127
Robenajara dos Santos Moura em 29 de abril de 2007, organizador do Bloco Timbaleiros, reside no Camamuzinho.
Os dados acerca da religião e da cor declarados no censo, colocam em xeque as declarações
feitas no censo comum, embora o Distrito Camamuzinho não apareça destacado com dados
específicos da localidade, a auto-identificação das pessoas, conta muito quando o que se quer olhar é
a identidade. Duas observações são pertinentes, oficialmente, quanto à religião, a população ubatense
é menos católica e tem mais adeptos do candomblé ou umbanda; isso destoa do que é socialmente
naturalizado quanto à relação com a cor ou raça, pois a população negra é maior em Ibirapitanga, ao
passo que Ubatã constando menos brancos – apesar de superior a Ibirapitanga - declara maior número
de pardos.
E, por fim, ao pensar numa compreensão geral sobre as festas e os sujeitos que se vestiam de
certa identidade para inserir-se nelas, há uma totalidade que perpassa cada ação isolada, denominada,
mascarada. Dialogo com as acepções de Canclini
129
que para entender as celebrações festivas, é
preciso olhar para os sujeitos dentro das relações sociais, econômicas, culturais e políticas que
movimentam as suas comunidades. Ele vai além, as toma por produto das experiências cotidianas e
as nomeia como momento dos “relembramentos”.
E como a memória aqui é caminho e suporte, o autor traduz os negros/índios do
Camamuzinho, quando trazem à tona as lembranças do passado, faz com que sentimentos e
ressentimentos misturem - se, projetando na memória, na narrativa, mostrando suas mais verdadeiras
faces.E por certo, a face religiosa católica da comunidade era dada a ver nas festividades do mês de
junho que começavam com a trezena e terminavam em São Pedro.É o que vemos a seguir.
2. Que seria de mim, Deus meu, sem a fé em Antônio?
A em Antônio tem movido marias, josés e paulos, lotado a igrejinha e o largo em volta, é
festa antes e depois. quarenta anos, além da festa na igrejinha local, um outro elemento pode ser
visto ininterruptamente, é o Senhor “Paulo da Sanfona”, silenciosa e timidamente quase não fala nada,
apenas ri e toca, tornou-se parte da festa.
Imaginemos uma comunidade que, na década de 1980, contava apenas com 1.881
130
habitantes, de maioria negra, oficialmente declarada católica, de situação social marcada pela pobreza,
com o trabalho mal remunerado nas roças de cacau. Ela, uma vez ao ano, especialmente em junho,
além de triplicar a população, fazia com que todas essas dificuldades se encobrissem por uma festa
muito procurada. Assim era a festa do padroeiro para essa comunidade, tão esperada quanto cheia de
129
CANCLINI, Nestor G. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: Editora USP,
1997.
130
Dados do censo do IBGE em 1980, disponível em www.sei.ba.gov.
significados, para diversas categorias como visitantes, barraqueiros, fiéis. Até a Prefeitura que ficava
distante, na sede, costumava aparecer com sua comitiva e pousar para fotos.
A festa de Santo Antônio foi capaz de congregar pessoas dentro e fora da igreja, e mantinha
significações no cotidiano e na vida social, além de gerar uma riqueza de relatos e trocas culturais. Ao
indagar sobre o ciclo festivo da comunidade, despontou como o maior signo católico de acesso ao
sagrado. Isso não exclui os festejos profanos, nem a participação do povo de santo, e Brandão
131
afirma que a “bricolagem de ritos, folguedos e festejos de devoção e de pura e simples diversão”,
ocorre em festas como essas, de padroeiro.
Como um marco católico instituído, a construção da Igreja de Santo Antônio, na década de
1960, viabilizou que, além da missa, a festa do santo padroeiro despontasse como outro momento em
que a comunidade aparecesse, num dos seus sentidos mais plenos, os das solidariedades. O grupo
era consagrado pelos de fora como festeiros, em virtude das grandiosas festas de candomblé,
ladainhas, dos carurus de Cosme e Damião.
Olhando por um lado mais simbólico, não foi mera coincidência que o santo escolhido, Antônio,
fosse associado a Ogum, afinal quando o santo chegou Ogum reinava festejado nas casas, na força
e no axé de Mãe Rosa e de Maria do Carmo. Ao questionar o porquê de ser este o padroeiro, as
respostas foram vagas e divergentes, desde um fazendeiro rico ter doado a imagem ou o ex dono das
terras onde a comunidade foi construída ser devoto do santo. O certo é que não parece coincidência o
fato de Santo Antônio chegar onde Ogum já estava, e do lugar ter continuado.
A imagem de Santo Antônio é vista também no terreiro de Logum Edé na Praça Central do
Camamuzinho. Santo ou Orixá? Santo Antônio ou Ogum? No terreiro, na igreja, nos altares das casas,
os encontros com Santo Antônio se dão em espaços diferenciados, mas, muitas vezes com a
participação das mesmas pessoas.
Entre os muitos santos católicos, Santo Antônio está entre os que tiveram conhecida
importância no Brasil, cuja popularidade, ahoje é enorme. São muitos os poderes atribuídos a esse
santo, inclusive entre as comunidades negras de todo o país. Estes o desde sua capacidade de
curar doenças, encontrar objetos perdidos ou trazer fecundidade ou, mais popularmente, como
casamenteiro. No Camamuzinho as promessas eram tão variadas como as formas de pagá-las.
Como um momento aglutinador, apesar das heterogeneidades, os católicos e o povo de santo,
da comunidade urbana e zona rural, de Ubatã e das cidades circunvizinhas, se reuniam em torno da fé,
que extrapolava e ganhava novas dimensões. Também revelava espaços e relações, projetando a
comunidade, e mais, como festeira.
131
BRANDÃO, C. R. A Cultura na Rua. Campinas, SP: Papirus, 1989. p. 13.
Figura 17: “A Festa do Padroeiro”
Fonte: Tribuna de Ibirapitanga – Junho de 1984
A Tribuna de Ibirapitanga, em 1984, em edição destacada, evoca fama, movimentação,
tradição e alegria. Revela também a iniciativa, por parte de integrantes da comunidade, que, em forma
de comissão, se uniram para reivindicar, junto à Prefeitura e demais segmentos sociais, a ajuda
necessária para “fazer reviver com toda pompa tradicional” como diz a reportagem. Abaixo o livro da
festa do padroeiro mostra que a organização da festa exige mobilização e participação de várias
pessoas da comunidade.
Figura17 - “Cada noite, um grupo, uma representação”.
Fonte: Arquivo da Paróquia de Ubatã
É um mapa do que socialmente é reconhecido como organização, mobilização num olhar de
fora o padre para dentro da comunidade. Uma leitura da organização das noites nos um
panorama da participação destes devotos, garis, associações, viúvas etc - em forma de grupos
específicos ligados à realização da festa. A festa de largo não acontece mais nos moldes anteriores,
mas por iniciativa e benefício de moradores locais que aproveitam os treze dias movimentados para
aumentar suas rendas.
Rememorar essa festa, sem considerar a participação do povo de santo, seria uma etnografia
parcial, uma narrativa sem axé, que apenas ratificaria lacunas já existentes quando se trata das
culturas negras nas festas católicas da historiografia regional. No sul da Bahia e nesses lugarejos, os
eventos religiosos se transformam em festas que são esperadas ansiosamente o ano todo. Isso não
exclui que a ortodoxia católica acredite ser esta apenas religiosa e, portanto, católica. A festa do
padroeiro no Camamuzinho vai além, uma vez que sagrado e profano se aproximam, mas não se
misturam
132
, está entre o sagrado – católico e afro-brasileiro -, e o profano.
A fé unia sujeitos católicos e de “santo” nesses momentos, as brigas, intrigas, diferenças
políticas, se esvaneciam frente à necessidade de solidariedades para que a festa acontecesse no seu
modo mais pleno, revelador não do religioso, mas do grupo. Inclusive, na parte externa, vez que a
festa de largo é entendida como uma “ estrutura bipolarizada da festa de largo, na qual desempenhos
sagrados e profanos se opõem e se complementam como elementos de um único rito” esclarece
Serra
133
.
O grupo apareceria como coeso e organizado, contrariando os possíveis estigmas que os
desqualificavam, a duplicidade de motivos, resultando em lindas festas durante décadas. Tal
preocupação se traduziu na organização das treze noites, arrumação do altar, palhas de coco,
gambiarras, fogos, procissão, andor, cortejo de anjinhos, batizados, casamentos e, numa maior
dimensão, a festa de largo, que a cada noite no barracão da Igreja vendia pratos procurados
principalmente pelos visitantes, como sarapatel, feijoada, caruru, etc.
As representações mais autênticas da festa se davam quando os moradores inseriam nela
suas marcas mais simples, pois artefatos do seu próprio cotidiano eram emprestados: a imagem do
terreiro de mãe do Carmo, os instrumentos musicais emprestados da casa de Antônio curador,
algumas toalhas, grande caldeirões. Outra característica importante era a presença das mães de santo
na organização, na participação das festas de santo, cujo calendário paralelo festejava Ogum, que o
calendário da maior parte dos cultos afro-brasileiros é construído preponderantemente em cima do
calendário ocidental cristão.
132
ELIADE, M. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões. São Paulo, Martins Fontes, 2001.
133
SERRA Ordep. Op.Cit. p.227.
Desse modo, aos poucos, as heranças do “continuum civilizatório africano-brasileiro”
134
foram
se reafirmando, mesmo com a chegada da igreja e da festa de santo católico. É interessante o episódio
acontecido com Mãe do Carmo, que foi narrado por Dona Anete que cantava durante o trezenário e
fazia parte da comissão organizadora da festa:
Todos ajudavam como podia. Na hora mesmo da procissão, o santo vinha emprestado do
terreiro de Do Carmo, do altar dela. Na igreja ia para o andor e ele era enfeitado, todo mundo
ajudava. Foi assim por muitos anos até que veio o padre Valdir. E mudou tudo, proibiu. Ele
disse que era um grande erro pegar uma imagem do candomblé para botar na procissão.
Que não tava certo de jeito nenhum... deixaram de pegar a imagem dela. Mas ela sempre
cedia o que pedia pra novena.
135
No final da década de 1980, essa proibição não coibiu a participação de Mãe do Carmo e dos
filhos de santo de sua casa, mas dividiu a comunidade em discussões sobre a atitude do padre que,
por sua vez, chegou a ser hostilizado por alguns moradores. Não se tratava de confusão intelectual,
ignorância, ou inferioridade intelectual desses grupos diante da complexidade da religião católica, como
sempre se pressupõe,
136
mas uma vivência imbuída de elementos contextuais de aceitação e
valorização das pessoas, de suas crenças, sejam elas da umbanda, candomblé ou católicas.A imagem
do santo era , no andor, durante as procissões ,louvado da mesma maneira por todos.
Apesar de o Padre ter impedido o uso da imagem durante a procissão, outros elementos eram
usados no interior da igreja como, por exemplo, os instrumentos musicais, emprestados da casa de
Antônio curador. Isso demonstra uma típica desconsideração da Igreja face a um catolicismo popular e
aos códigos do viver.
Santo Antônio e Ogum dividem altares, súplicas e devoções; na explicação de Cacalê, Santo
Antônio para nós aqui é Ogum. A gente ia para festa de Santo Antônio também, e depois para a nossa
festa, no mesmo dia, se tinha toque em baixo. Tem imagem dele também lá, do santo
137
. A
equiparação de Ogum a Santo Antonio é feita em bases que não concernem ao simples
reconhecimento de uma identidade pessoal, nos termos da experiência cotidiana.
138
, mas religiosa.
A fala desse iniciado ao dizer “O santo para nós, a nossa festa,” lê-se desses usos, que existia
um paralelismo remete às discussões sobre um catolicismo negro discutido por Souza quando diz que
“(...) os africanos e seus descendentes recorreram aos santos católicos para neles imprimir elementos
134
Aqui entendido na acepção de Mattos (2003), que articula proposições éticas, relacionais e existenciais que respondem
por uma especificidade no interior da chamada civilização brasileira in: MATTOS, Wilson Roberto de. Valores civilizatórios
afro-brasileiros, políticas educacionais e currículos escolares. Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade,
Salvador, v. 12, n. 19, p. 229-234, jan./jun. 2003.
135
Entrevista concedida em 24 de outubro de 2007.
136
SOUSA NIOR, Vilson Caetano de. Orixás, santos e festas: encontros e desencontros do sincretismo afro-
católico na cidade de Salvador, Salvador, Ed. UNEB, 2003, p. 17.
137
Ubirajara Martins, digina Caçalê, auxiliar de cozinha, reside no Camamuzinho.
138
SERRA Ordep. Op. Cit. p.226.
de suas crenças tradicionais, utilizando-se dos espaços permitidos pela sociedade escravista”
139
.
Relata orgulhosa Carminha, da comissão de frente, que vinha gente de todo canto, era falada, o povo
vinha da roça de caminhão, do outro lado do rio de canoa, sem contar os que vinham de carro de
cidades próximas, o povo do candomblé também ajudava, trabalhava na festa”.
No sentido de reforço desse lugar como território rico de cultura negra, afro-brasileira, é
relevante salientar que estas estão mais nas origens do distrito do que o catolicismo instituído pela
igreja, e que essas pessoas souberam respeitar e ajudar nas festas que exigiam mobilizações. È claro
que os limites não são fixamente estabelecidos, entre uma fase de determinado tipo de festa e outra,
por exemplo, e não se excluem permanências, rupturas e paralelismos no modo de festejar, nos
espaços de sociabilidades desse grupo. Era assim que lidavam com o padroeiro e com o orixá.
Figura 18 – Santo Antonio ou Ogum? “No Ilê Axé de Logum Edé”
Fonte: Arquivo Particular – Cristiane Batista –Dezembro 2007
Uma simbologia tornada mais significativa nos faz perceber, ao ouvir esses relatos, e ver em
diferentes espaços do lugar, o que seria chamado popularmente de sincretismo religioso. Não é o
objetivo central discuti-lo, mas ele perpassa essa reflexão, e tomando por base o seu significado, pode-
se supor, que deve haver uma fusão entre as características, passando a constituir num novo símbolo
religioso. Vale lembrar das amplas discussões que Nina Rodrigues, Artur Ramos e Edison Carneiro
realizaram, e destes estudos, provém a idéia de um sincretismo entre as religiões africanas com o
catolicismo. E, depois, Sergio Ferreti
140
, traça um esquema das transformações que o termo
sincretismo sofreu no Brasil. São muitas as discussões em que ficam nítidas as afirmações de que
139
SOUZA, Marina de Mello e. CATOLICISMO NEGRO NO BRASIL: SANTOS E MINKISI, UMA REFLEXÃO SOBRE
MISCIGENAÇÃO CULTURAL. Afro - Ásia, 28 (2002), 125-146
140
Cf.FERRETTI, Sérgio F. Repensando o Sincretismo. São Paulo/São Luís: EDUSP/FAPEMA, 1995.
houve uma correlação entre santos católicos e divindades africanas, os orixás. Estes autores
costumam explicar que isso possibilitou a recriação dos ritos afro-descendentes nas terras brasileiras.
Prandi
141
nos faz pensar nessa relação de proximidade, e Serra
142
nos mostra que ambos
mantêm, em suas estruturas, elementos sincréticos. Por muito tempo, os próprios negros tiveram que
esconder o culto aos orixás, mas mesmo com o advento da República, os negros batizados e devotos
dos santos católicos cumpriam, além dos rituais de seus ancestrais, os ritos católicos. São ainda muitos
os que freqüentam terreiros, mas não o declaram, e sempre se identificam como católicos, mesmo que
poucos participem dos ritos da Igreja.
143
. No entendimento da comunidade e de quem ia aos dois
espaços com sentidos diferenciados, como Carlos Alberto
144
está:
“A meu ver essa pessoas eram católicas, mas também freqüentavam os cultos, os
candomblés, sempre recebiam entidades nestas festas de caruru. Primeiro começava com a
reza primeiro, depois que a ladainha terminava, sim a partir daí. ia arrumar a mesa de
Cosme e na distribuição do caruru que começava a cantar e vinha as entidades, os erês
.terminavam as 4,5 horas da manha, tinha a parte da reza católica sim, tinha os dois”
As narrativas ensejaram um duplo pertencimento de lugares e altares reconhecidamente
distintos, mas nem por isso contrastivos. Isso responderia de modo mais aproximado às indagações
sobre o sentido do santo e de santo.
No Camamuzinho, Santo Antônio corresponde a Ogum, divindade que representa a força e a
coragem, mas os dois o se fundem nem se excluem. Santos (1977), ao discutir negritude versus
sincretismo, sinaliza:“Praticam-se duas liturgias: a cristã ou oficial na igreja, a negra ou não oficial,
praticada paralelamente nos templo, casas ou locais naturais, ou devidamente consagrados”
145
.
Encontra-se academicamente colocado o que as narrativas explicaram como espaço que permitiu que
um devoto do santo, ou um filho de santo, festejasse em seu espaço (terreiro) e no espaço do outro (o
padroeiro). A festa do padroeiro desvelou-se como um momento em que, ao lado da identidade grupal
fortalecida, um catolicismo popular com brechas para uma religiosidade plural coexistissem, pulsantes,
num lugarejo em que os convidados muitas vezes eram os mesmos.
Isso inclui, por exemplo, os filhos de Ogum do terreiro de Mãe do Carmo, que participavam da
festa na igreja e depois, mais tarde, iam para festa da casa. Ficou claro quando Cacalê explicou
146
,
íamos todos juntos para as festas, de pobre a rico da igreja de santo Antonio para o terreiro, da
devoção à obrigação”. Além disso, o calendário da maior parte dos cultos afro-brasileiros, é
141
PRANDI, Reginaldo. As Religiões Afro-Brasileiras e seus seguidores. Porto Alegre. Publicado em Civitas, Revista de
Ciências Sociais, PUC-RS, vol. 3, nº. 1, 2003, p.15.
142
SERRA Ordep. Águas do Rei.
143
SERRA Ordep. Op. Cit. p.223
144
Entrevista cedida em 11 de maio de 2007, em sua residência no Camamuzinho.
145
SANTOS, Juana Elbein. A percepção ideológica dos fenômenos religiosos: sistema Nagô no Brasil, negritude
versus sincretismo”. Revista de Cultura Vozes, n. 7, Vol. 71. Petrópolis: 1977, p.23-34.
146
Entrevista concedida em Janeiro; 2007.
construído basicamente em cima do calendário ocidental cristão. Ferreira ao analisar as festas baianas,
e como estas são uma marca forte no imaginário desse povo, as associa às heranças afro-brasileiras e
as relações com a festa de padroeiro, e elucida:
Foi a festa de caráter externo às igrejas que ajudou na promoção entre os orixás e os santos
católicos, pois ,muito cedo,tais manifestações se deixaram influenciar pela cultura
africana.Este detalhe foi definitivo para a disseminação,manutenção e permanência de
determinados festejos
147
.
Essas permanências às quais Ferreira se refere foram aqui expressas de diferentes maneiras
como: procissões, reza de ladainha, seguida sempre da distribuição de um prato típico como arroz-
doce, mugunzá de Oxossi ou caruru de Cosme. As festas de promessa, em sua na maioria aconteciam
no mês de setembro, com o caruru de Cosme e Damião, Bumba-meu-boi, festas de pagamento de
promessa, organização de comboio para a romaria de Bom Jesus da Lapa, ladainha, a flor do velho
148
,
o enterro do ano velho. O trezenário do padroeiro era organizado de modo a atrair visitantes e
circunvizinhos e até mesmo gente de longe, essas festas acabavam se estendendo pelo mês todo.
É possível verificar um intenso trânsito entre o sagrado e o profano nas muitas manifestações
religiosas e, nas festas, essa circularidade é contínua e de grande visibilidade. Para Reis
149
, essas
ocasiões representam rituais de intercâmbio entre homens e divindades em que os limites do profano e
do sagrado se tornam mais nues. A igreja de Santo Antonio, o terreiro de Ogum Marinho, a casa de
Mãe Rosa, a casa de Antônio Curador eram espaços que, na verdade, definiam o calendário festivo,
litúrgico da comunidade.
No imaginário desse grupo, tradições, festividades e devoções significam aprender e apreender
os códigos e signos emitidos, sobretudo por essas práticas culturais ao longo de mais de quatro
décadas. Até a década de 1980, aproximadamente, o número dessas festas religiosas era significativo,
sendo um universo permeado por relações de dupla participação no espaço da igreja e do terreiro,
como prática comum para esse grupo, e discriminatória por parte dos ubatenses, assim, mais uma
fronteira simbólica se erguia.
As memórias sobre os santos, passam pela memória das festas que fazem para eles, seja a
do padroeiro, ou as devoções particulares que eram seguidas e cultuadas por todos, sejam as festas
do povo de santo,entravam em cena nestes momentos as solidariedades, de modo que Carminha
150
relata:
147
FERREIRA, Edson Dias. e festa nos janeiros da Cidade da Bahia: São Salvador, 2004. Tese de Doutorado.
PUC/SP 2004.
148
SERRA Ordep. Op. Cit descreve o ritual que envolve pipocas num balaio em homenagem a Omolu.
149
REIS, J. J. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no século XIX. São Paulo: Companhia das Letras,
1991.
150
Entrevista concedida em maio de 2008.
Era assim, como vinha gente de tudo quanto era lugar, olha que moro aqui há 42 anos, nasci
e me criei, eu sei. Aí cada noite da festa do padroeiro tinha um cardápio e cada rua tinha que
fazer a comida e vender no barracão da Igreja. Mesmo quem era ou não era, ajudava o outro
e ficava tudo pronto. O povo do candomblé também participava, ajudava. E é assim até hoje
quando um tem um problema aqui, junta todo mundo pra ajudar
151
.
Assim, entre outros relatos de solidariedade, contou também que nas promessas de caruru de
Cosme, dos que a pessoa tem que dar todo ano como eu dei”, afirma ela, era muito comum a ajuda
dos conhecidos e vizinhos. Em seu relato, informa, em tom saudosista, o ir e vir do povo de santo; com
o colorido de bandeirolas e enfeites que as ruas iam ganhando; com as festas no terreiro, na igreja, na
rua.
É bom enfatizar que o tempo da festa católica, era também o da festa do povo de santo e,
além disso, Santo Antônio e Ogum dividiam altares, andores, axés e agogôs e, muitas vezes, os
mesmos convidados. Isso desnuda as singularidades dessa comunidade.
Um outro momento de encontro, no mês de junho, era o ápice da materialização de todas as
práticas de dupla pertença,ou seja a ida aos dois espaços igreja e terreiro, era a tradicional feijoada de
Ogum, esperada não só pelo povo de santo, mas por toda a comunidade. A escolha cuidadosa daquele
que a prepararia era o primeiro sinal de respeito pelo orixá. Quanto a isso, Lody explica:
Os filhos-de-santo, em volta dos pratos arrumados em esteiras no chão do terreiro,
aguardam a vinda dos orixás, e os atabaques tocam em honra de Ogum. (...)A feijoada de
Ogum é servida às doze horas, em data próxima ou no dia 13 de junho, dia de Santo
Antônio. Seu preparo é de alto significado ritual, representando a união do trabalho e da
152
.
A feijoada, mais que um ritual restrito ao interior da roça, apresenta sua função de sociabilidade
de saberes eminentemente orais. A religião afro-brasileira, a festa do santo padroeiro, contribuem para
recriação simbólica através da realização de eventos, ritos e festas e são fundamentais para a
transmissão desses saberes através do tempo e das gerações.
Como um momento aglutinador a despeito das heterogeneidades existentes, os católicos e o
povo de santo, da comunidade urbana e da zona rural, além de Ubatã e das cidades circunvizinhas, se
reuniam. A em Antônio, que extrapolava e ganhava novas dimensões, também revelava espaços e
relações, projetando esse distrito como comunidade e mais, como festeira.
Experiências como a festa do padroeiro local, demonstram que mesmo em face desse ranço
colonial por parte do catolicismo, de tentar separar sagrado e profano sem sucesso, a participação dos
católicos ou do povo de santo se manifestou através de momentos de aproximação e solidariedades.
O que está além do visível na festa do padroeiro, a , materializa-se nas devoções e dão uma
face, um nome e um sobrenome, ao lugar, por esse viés. São pessoas que, movidas por curas e
151
Maria do Carmo de Oliveira, chefe da merenda escolar, há 42 mora no Camamuzinho.
152
LODY, Raul. Santo também come. Rio de Janeiro, Pallas, 1998.
esperas, pagam promessas, carregam andores, velas, seguem descalças ou vestidas com véus e
roupas diferentes, como mortalhas, enfim, enfeitam e são enfeitadas, agradecem ou a esperam por um
milagre. Brandão
153
diz que “Longe de ser um fato excepcional, o milagre é um acontecimento
necessário, acessível, rotineiro e reordenador”.
Por isso as festas apresentavam dinâmicas e espaços plurais, sempre renovados por sujeitos
de múltiplos papéis, papéis que eram assumidos numa circularidade. A destacada ação feminina,
responsável, inclusive, pela organização da festa como um todo, deixava entrever um poder através do
cortejo processional; isso nos permite “ler” a hierarquia de prestígio e poder na organização festiva,
designando a cada um o lugar que lhe caberá ocupar: quem canta, arruma, lê, carrega, enfim,
congrega. Essas expressões de acabaram estabelecendo uma relação de reciprocidade entre os
devotos e o sagrado
154
no cotidiano.
Esse tempo de festejar contínuo era também momento de anunciar decisões da Prefeitura, as
novidades, de aproveitar o movimento. Bandeirolas e gambiarras com lâmpadas, externavam o sinal de
festa na praça. Toda essa movimentação gerava além de uma renda extra aos moradores, encontros,
namoros, fé, promessas pagas ou feitas, encontros com pessoas que andavam léguas da Ruinha,
Comissão, além dos que atravessam de canoa para as fazendas do outro lado do Rio de Contas
geralmente à noite. Sacrifícios que compensavam por um período tão esperado.
Figura 19- “ A nós descei divina luz”
Fonte: Fotografias da Pesquisa de Campo. Junho de 2007 – Cristiane Batista
153
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo: um estudo sobre a religião popular. São Paulo: Brasiliense,
1980, p 132.
154
ZALUAR, A. Os homens de Deus: um estudo dos santos e das festas no catolicismo popular. Rio de Janeiro:
Zahar, 1983.
No andor, o santo que não é mais o do terreiro, mas de modo igual festejado e esperado,
recebe honrarias e mesmo debaixo de chuva os fiéis não o abandonam, pelo contrário pareciam ainda
mais resignados, fervorosos. Cada flor, rojão de fogos adquiridos com os centavos dados em ofertas ao
longo de treze noites para o grande dia, a procissão se materializava ali, ao som, ao canto e pela mão
de cada um.
A festa também se transforma em encontros políticos, como momento que aglutinava
todos os políticos que apareciam para demarcar a crença e a presença. A fotografia retrata um
seminarista, o administrador do distrito, o povo, a praça principal, e traz muitas memórias. Senhor
Nérico Conceição Barbosa
155
mostrou que, além das fotografias, utilizava-se de um caderno, para
anotar o que ele chama de “registro importante” sobre as festividades na década de 1980. Ele diz
quanto aos devotos do santo que “todo mundo sabia quem era as pessoas e todo mundo respeitava.
Figura 20 - “Na praça, uma pausa para a prosa”
Fonte: Arquivo Particular do Senhor Nérico Conceição Barbosa – Década de 80
Homem de confiança do prefeito, apaixonado pelo lugar, sempre cuidou e zelou pelos
interesses locais. Entre saudosismos e detalhes sobre anos, datas e números, bem como sucessão
dos prefeitos e vereadores, Seu Nérico focou sua narrativa na festa de Santo Antônio, e a resumiu
como “o momento mais principal, esperado, que todo mundo gostava e muita gente de fora vinha ver.
Reunia todo mundo pra fazer a festa. Eu ia na Prefeitura e conversava com o prefeito para ajudar”.
Conforme a análise dos cadernos da administração, manuscritos e guardados cuidadosamente até
hoje, aparecem as listagens dos materiais e os pedidos da década de 1980, bem como de
profissionais, pedreiros, eletricistas, para ajudar a montar a estrutura grandiosa da festa de largo.
155
Ex administrador, ex vereador, aposentado e residente no Camamuzinho. Entrevista concedida em 31 de agosto de
2007.
Terminada a festa do dia 13 de junho com procissão, missa festiva e a festa de largo, as
movimentações começavam no dia seguinte como extensão do ciclo junino, pois agora seria São João
o homenageado. E para isso ensaiavam uma quadrilha, que também atraía espectadores, tamanha era
a organização e alegria de suas apresentações.
Figura 21-“Depois de Santo Antônio, Vivas a São João!”
Fonte: Arquivo Particular de Carminha - Década de 1980
A organizadora, Carminha,
156
explica que “depois da festa do padroeiro, o povo de fora
também vinha ver a nossa quadrilha, aproveitava e começava outra festa de novo no São João”.
Tradição, passado e lembrança, alinhavando o sagrado ao profano, solidariedades e (re) encontros na
representação da vida.
3. Ladainhas e despedidas: agora e na hora de nossa morte amém!
quanto tempo não ouvimos a palavra sentinela? Chamar uma vizinha para dar banho e
vestir a mortalha, colocar o caixão com os pés do defunto voltados para a porta da rua, tirar fotografias
do morto e dos vivos presentes naquele momento? Parece ecoar vozes de um passado distante e
morto, no Camamuzinho não. Mais vivos do que nunca, pelas memórias, entre os momentos de
sociabilidade e o rememorar sobre os acontecimentos marcantes na comunidade, as narrativas dos
mais velhos do lugar trouxeram o tema da morte e das rezas de ladinha. Seja para inserir nos
depoimentos a importância dos que se foram, seja para apontar rupturas e permanências nos dois
momentos, o de rezar e o de morrer.
156
Depoimento concedido em maio de 2008
Benjamim
157
e Bosi
158
nos dão suporte para compreender que, narradores por excelência, os
velhos e suas memórias, têm muito a nos contar. Foi dessa riqueza narrativa e nas ênfases dadas às
suas memórias que a identidade se mostrou em nuances e valores intrínsecos a esta comunidade.
Nem irmandades, nem confrarias, ou melhor, nem cemitério direito para enterrar seus mortos eles
tinham, primeiro os enterravam no Cristal, depois no Camamuzinho, foram proibidos de enterrá-los em
Ubatã. Ainda queixosa a despeito do tempo, Dona Diana explicou que “os moradores eram proibidos
de enterrar seus mortos em Ubatã, teriam que ir ao Cristal a por muitos quilômetros num antigo
cemitério que pertencia ao Cristal e que não foi alagado, era longe, cansativo e depois,
recentemente, o povo de Ubatã deixou a gente enterrar lá”.
Figura 22 -“Enterro de anjo, cercado por anjos: vida e morte se encontram”
Fonte: Arquivo Particular –Diana Almeida - 1960 logo após a saída do Cristal
E, para dar peso à sua fala, oferece uma prova de um desses momentos em que onde tiveram
que andar muito para enterrar um ‘anjo’, nome que se dava ao enterro de crianças. Se o espaço-terra
era difícil, o espaço-céu era a verdadeira preocupação destes, a ida ao purgatório, céu ou inferno, de
modo que santos e anjos povoavam a imaginação e incitavam as ações diante da morte. Emergiam
assim solidariedades e reforço de laços familiares e comunitários, que não se encerram com o
sepultamento, mas que eram especialmente dados a ver nestes momentos.
As crenças na vida pós-morte moviam os velórios, rituais e missas que começavam e
encerravam as despedidas, mas com a participação da maior parte do grupo, o que comprova as
157
BENJAMIN, W.O narrador considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e arte, Técnica e ciência. Obras
escolhidas. Vol I, São Paulo: Brasiliense, 1993.
158
BOSI, E. Memória e sociedade – lembranças de velhos. 9. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
reminiscências da morte sempre usadas como um significativo instrumento de catequese pelo
catolicismo.
Tentar entender identidade, festividade e religiosidade no seio de um grupo, ainda mais quando
se trata de História Oral e memória, é desvelar esses signos impressos na alma da comunidade local,
expressas em ajuda mútua e solidariedade, do nascer ao morrer, assim como olhar as fotos e as
festas. É a presença da parte o indivíduo, integrada ao todo, a comunidade.
Já é lugar comum afirmar que as fotografias servem para dar suporte à memória e à lembrança
no sentido de guardar o vivido para a posteridade. Nesta pesquisa,elas o utilizadas em diversos
momentos, de luta política, festa, vida e morte, e traduziram vivências que precisaram ser registradas.
Não importava a idade, e sim a condição financeira da família do morto que, dispondo de recursos,
fotografava anjinhos, adultos, idosos e, quando jovem, as moças eram enterradas vestidas de noiva.
E se a família pudesse, era costume fotografar o enterro para os parentes que não puderam
vir, mas, sobretudo, para os de casa mesmo, que guardavam essa última imagem entendida também
como última memória. O tom de saudosismo também marcou os relatos das fotos, dos velórios, sempre
com a ressalva que “antigamente se tinha respeito”, cuidado com corpo e a alma.
Nas reelaborações cotidianas o sagrado, a morte não poderia ser diferente. “Agora e na hora
de nossa morte”, o termo nossa é apropriado para trazer à tona o caráter coletivo que tem morrer numa
comunidade, entre os seus. Não por acaso, um elemento comum o as crianças numerosas, em
círculo e atentas nas fotos. Em comunidades pobres e pequenas, onde todos se conhecem, todo
mundo participa de festas e acontecimentos, do nascer ao morrer, assim como quase se torna parente.
O plano individual e o coletivo, assim como o visível e invisível se encontram, orum e aiê. O verdadeiro
bem ou testamento deixado ao morrer era o bom nome, quer dizer, limpo, honrado, que bens
materiais quase não se deixam, mas cuidava-se da memória que ia ficar.
Assim como nascer, viver e festejar, morrer, na comunidade, era também um momento de
aglutinação dos moradores em torno não da fé, mas das diferentes formas de religiosidade tocadas
pelo poder comum superior, a morte, a despeito do credo. A noção de pertencimento se sobrepunha à
de diferença religiosa entre candomblé e catolicismo ao longo de décadas. Esse era o momento raro
onde diferenças sociais, culturais e políticas praticamente desapareciam. Diz Siqueira a missa de
sétimo dia rezada pela alma dos que partiram, após a cerimônia do axexê”
159
comprova que os de
santo se resguardavam duplamente.
Em caso de morte, havia sempre as pessoas certas, acostumadas a preparar o morto, dar
banho e arrumá-lo para ter início a sentinela. Dona Gilda
160
relembra que muitas vezes o morto ficava
159
SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Agô Agô Lonan. Belo Horizonte: Mazza Edições, 1988. p.342
160
Depoente anteriormente identificada
esperando o caixão ser confeccionado por um marceneiro específico, e depois de forrado começava o
velório. Carneiro, em Trabalhos Fúnebres Populares (1972), oferece ricas contribuições de uma época
em que essas práticas eram vivas em comunidades como o Camamuzinho. Ele detalha:
De muitos modos e maneiras o povo exprime a sua reverência aos mortos. Pobres e ricos,
nas cidades populosas como nos lugarejos perdido do interior partilham das mesmas
crenças e práticas, umas propiciatórias da última viagem, como o banho e, para os mais
sofisticados, o embelezamento do morto, outras destinadas à preservação do cadáver com
os pés na direção da porta da rua e a limpeza da casa logo após a saída do caixão ou da
rede. Mas, se o velório, a vigília à moda católica, tem apenas rezas, choros e bocejos, a
guarda do morto, nas formas populares, tem a acompanhá-la cânticos especiais, quando não
passatempos coletivos, a que não falta cachaça e café. Celebram-se ofícios fúnebres,
desvinculados do catolicismo (...)." E, se a "excelência" pertencia a algum candomblé,
penetra na última morada dançando o caixão em ziguezigue, dois passos para frente, um
passo para trás, pois se sabe que voltará em breve com egun, materialização dos ancestrais
do povo nagô, a participar da sociedade dos vivos.No candomblé da Bahia as exéquias,
axexê para os nagôs, sirrum (sihun) para os jejes, tem lugar na noite seguinte ao enterro,
com os participantes vestidos de branco, em sinal (africano) de luto
161
.
No universo simbólico da morte, havia espaço também para os orixás, afinal, com Nanã
cortava-se o cordão umbilical ao nascer e com São Francisco, amarrava-se o cordão à cintura, sempre
de mortalha branca, ao morrer. No cruzeiro do cemitério, ao enterrá-los, esses ritos significativos e
coletivos davam o caráter mítico ao cotidiano. Nanã, a que fazia partos, tornou-se conhecida da
comunidade através de Mãe Rosa.
Nanã tem associação com uma velha cujos domínios e mistérios regem a vida e a morte, o
nascimento porque ela dá à luz a três entidades que lhe estão associadas Obaluaê, Oxumarê e Iroco, e
à morte porque ela, por ser da lama, na destruição do corpo, a putrefação é exatamente o domínio
dela. Mas, ao mesmo tempo, a putrefação fertiliza, aduba, e isso faz nascer em outras vidas. Em face
de costumes e crenças, os modos de lidar com os mortos envolviam especificidades, como o cordão de
São Francisco e as ricas narrativas que se constituem num texto cheio de detalhes.
Mulheres conhecidas pela devoção a Santo Antônio, com boas referências na comunidade,
diante da morte de um adulto, reuniam-se num grupo, composto por sete mulheres e davam início a um
ritual tradicional e esperado por todos. Este era feito na rua, em frente à casa do morto: eram dados
nós nos cordões durante as horas de oração, acompanhada por olhos e bocas atentos. A cada
dado, seguia-se uma reza ou jaculatória,
162
que era repetida por todos. Os novelos de cordão
comprados após a morte, eram abertos em grande círculo, não podiam parar de rezar até a formação
161
CARNEIRO, Edison. "Trabalhos fúnebres populares". O Globo. Rio de Janeiro, 29 de outubro de 1972.
162
Jaculatórias são pequenas orações ou invocações que os católicos incluem em suas orações, no começo ou final
dessas, ou no final de cada dezena do Rosário.
dos sete nós. E as pessoas creditavam nesse ritual, parte fundamental do ato fúnebre, da última
manifestação de religiosidade e encaminhamento desse morto.
Reis
163
explica dois signos presentes nos relatos, o primeiro quanto à mortalha que era
preferida pelos pobres e escravos, assim como no Camamuzinho, de cor branca, e afirma que “se o
branco é cor funerária africana, ele também se relaciona simbolicamente com a morte cristã”. Quanto
ao cordão, o mesmo autor detalha que havia um quadro do século XVIII na parede do consistório da
Igreja do convento onde as almas tentam se salvar agarrando-se ao cordão do hábito do santo e, de
acordo com uma tradição, “o cordão afasta o inimigo e serve aos anjos para puxarem o finado”.
164
Uma das integrantes desse seleto grupo, Dona Anete, mostrou a fotografia onde aparece o cordão
amarrado no cruzeiro.
Figura 23 “Na cruz, o cordão de São Francisco”.
Fonte: Arquivo Particular de Dona Anete – Enterro no cemitério de Ubatã - Década de 1970
Materializando a cosmovisão africana, cuja lógica se distanciava da ocidentalizada, é um
costume muito comum, no momento da morte, fotografar o morto junto aos parentes e amigos na porta
da casa. Na verdade, isso se constitui como um ‘registro’ que Luz
165
discute como “processo dinâmico
de restituição entre o aiê e o Orum”.
Morrer, hoje, na comunidade ganhou novas conotações; a prática do cordão foi abandonada, e
dela se fazem referências através da memória, lembrada como um tempo em que as pessoas
tinham mais fé. Outros apontam a chegada dos pentecostais ou evangélicos à comunidade que aos
poucos ‘fez a cabeça’ de muitos e que acabaram por abandonar o catolicismo, o candomblé, uma dupla
vivência e, mais que isso, enterraram as tradições.
163
REIS, João José A Morte é uma festa: Ritos nebres e revolta popular no Brasil do século XIX. 3 ed. São Paulo:
Companhia das Letras. 1999, p.118.
164
REIS, João José. Idem, p.117.
165
LUZ, Marco Aurélio. Do Tronco ao Opa Exim:memória e dinâmica da tradição afro-brasileira.-Rio de
janeiro:Pallas,2002,p.64.
Atualmente são os adeptos das religiões afro-brasileiras que mais mantêm as velas das
sentinelas acesas, são mais fiéis do que os católicos quando o assunto é tradição e ritos fúnebres.
Continuam fiéis ao seu modo: Os mortos são homenageados pela umbanda na linha das almas e, nos
terreiros de tradição nagô, na comunidade é angola, com seus eguns e axexês
166
, principalmente pela
cultura matriarcal do povo de santo. A ladainha era outro momento festivo esperado que congregava a
todos. Podiam ser dedicadas a Santa Luzia, Nossa Senhora do Bom Parto e Ossain, num mesmo dia e
altar. Cada um com seu motivo e pedido, mas reunidos pelo motivo maior, o da dona da casa ou da
reza. As pessoas se dispunham em círculo, em volta do altar, velhos, adultos e crianças todos negros
vizinhos e parentes esperavam que o puxador começasse. Foi interessante notar que as mesmas
pessoas que estavam num toque na casa de Ogum Marinho, de pai Domingos no caruru de Iansã,
dois atrás, 11 de dezembro de 2007, também estavam todos ali.
Figura 24 -“Uma cena num casebre do Cotovelo no Camamuzinho em mais um 13 de dezembro, dia de
Santa Luzia”
Fonte: Fotografia da pesquisa de campo em dezembro de 2007
Os tratamentos familiares variavam entre vó, vô, pai, mãe e comadre e compadre, que davam
idéia de circularidade, familiaridade. Na oportunidade, enquanto faltavam pessoas, discutiram o
próximo toque e a obrigação marcada para acontecer posteriormente, dia 16 de dezembro de 2007.
Não eram grandes nem a casa, nem o altar, mas, em compensação, a e a compenetração
das pessoas impressionavam. As crianças que compunham a mesa ‘de Cosmetambém mostravam
saber algumas repetições decoradas advindas do credo cristão, onde nem o português é falado
corretamente. Entrou em cena o latim pela boca do senhor Aurelino Arcanjo Santos, 81 anos, e de sua
166
Ritual fúnebre no candomblé
esposa, Dona Martinha Rezadeira. Ambos beiradeiros, ele de Nilo Peçanha e ela de Camamu, atraídos
pelo cacau, só sabem que chegaram ao Camamuzinho há mais de quarenta anos.
A filha Jocélia, a dona da reza, que estava pagando uma promessa e que também é iniciada no
candomblé-, havia preparado o arroz doce e com a reza completaria sua ‘obrigação’ que começara
com o caruru de Iansã de sua mãe biológica dia 11 de dezembro, dois dias atrás. As pessoas, não por
acaso, eram as mesmas do terreiro que entre toques e canções africanas, agora se ajoelhavam no ‘ora
pro nobis’ repetindo a ladainha católica.
Começou pela de Nossa Senhora, seguida da de Santa Luzia e Jocélia que é de Ossain
167
,
tomou a frente para responder às jaculatórias. Assim, agradeceram,pediram, comeram e beberam, era
também ali uma outra festa, sagrada por excelência, mesclada entre santos católicos e orixás. Aos
netos e bisnetos que estiveram nos dois espaços e nas duas festas, uma espécie de pedagogia
simbólica estava e estará continuamente acontecendo, pois, “a tradição oral, como as tradições de um
modo geral, está calcada na repetição”.
168
As rezas de ladainha para santo Antonio e são Roque vêm desde o início da comunidade, num
ambiente rural, consistindo em fé, sociabilidade e encontros. Mas, para outras situações, entravam em
cena as rezadeiras que, ao lado das famosas mães de santo, contribuíam para fazer a fama do lugar
no tocante ao poder feminino no trato religioso.
Quando alguém adoecia era tratado principalmente por elas ou pelas curandeiras, mesmo que
raramente e porventura se tivesse acesso aos serviços médicos, nos casos mais graves; de forma que
assumem contornos nítidos as duas esferas no trato do corpo e da alma no modo como no
Camamuzinho as pessoas buscam e acreditam na cura. É comum que em lugares assim “os rezadores
são substitutos de médicos ou farmacêuticos, constituindo-se como referência imediata para cura para
os mais carentes.”
169
Essas pessoas, que na comunidade ganhavam tal identificação, como, por exemplo, Antônio
Curador ou Filirmina Rezadeira, lidavam com diversos males, recebiam os de fora, os da rua e os da
roça. As rezadeiras eram procuradas para todos os tipos de males, até para acabar com pragas ou por
fim a incêndios nas roças de cacau, e na falta ou excesso de chuvas. A zona rural participava em peso
dos dois lugares: igreja e terreiros, batizados e toques. Era mantida uma regularidade principalmente
com os que moravam do outro lado do Rio, e que atravessavam de canoa. Casamento na roça, as
rezas ou batizados também recebia o movimento inverso.
167
Orixás das folhas e curas
168
ALBERTI, Verena. Tradição Oral e História Oral: proximidades e fronteiras. Revista de História Oral, v.8, n1, p.11-28,
jan - jun.2005, p.18.
169
Senhoras de Fé, histórias de vida e iniciação de benzedeiras, in PEREIRA, Edmilson de Almeida. Flor do não
esquecimento – Cultura Popular e processos de transformação. Belo Horizonte: Autêntica, 2002, p.145.
Reis
170
explica que “pessoas de todos os estratos sociais consultavam adivinhos e curandeiros
e compareciam a funerais, ritos de iniciação e festas que celebravam divindades específicas ao longo
do ano”. Inclusive por conta destas rezadeiras a comunidade se acostumou a ver gente de fora, carros,
pessoas da elite, desde fazendeiros para pedir rezas para apagar fogo nas roças de cacau, políticos
temerosos e filhos doentes dos ricos da região. A comunidade contava “rezadores conhecidos pela
cura de males e de rezadores considerados eficiente por provocá-los”.
171
E assim, seu poder era
comprovado pela casa cheia, quanto mais gente para ali acorresse, mais poder, respeito e fama eram
demonstrados .
“Festar” na hora do nascer, do morrer, mas, e principalmente, na vida, gozando de saúde. Por
isso a carnavalização da vida era, desde o Cristal um momento esperado que evoluiu dos cordões aos
blocos de micareta.
4. Índios, Sujos, Timbaleiros e Elite: identidade e festividade no espaço do outro
O carnaval do Cristal recebia muitos foliões entre as décadas de 1930 e 1950; desfiles,
cordões, pierrôs e colombinas carnavalizavam a vida. A partir de 1960, no atual Camamuzinho, a
participação era ativa e ininterrupta as Micaretas de Ubatã entraram para o calendário local, como
eventos esperados anualmente. O cacau estava em alta e não faltava dinheiro para a elite regional se
divertir. Depois das reflexões anteriores, sobre os festejos sagrados no espaço da comunidade,
encaminha-se para a percepção do festejar no espaço do outro, os ubatenses. É importante pensar
como Sodré:
Na exibição seja nas festas abertas das comunidades, seja nas formas processionais que
ganharam as ruas-, indivíduo e grupo revelam-se uma vez mais, a mesma coisa, com a
mesma mensagem ao espectador: somos outro, uma alteridade próxima e magicamente
sedutora
172
.
Uma vez que Sodré faz essa afirmação num contexto em que discute identidade, e tendo como
palco as Micaretas, essa reflexão se propõe a continuar concebendo a festa como elemento perceptível
de identidade, seja esta grupal,seja étnica. No último capítulo do seu livro, ao discutir, o lugar do Brasil
no Atlântico Negro, Sansone
173
diz que “a identidade étnica é aquela parcela da identidade que diz
respeito à expressão pública do sentimento de inserção num grupo social”, e mais adiante completa:
“Na verdade, não é preciso haver uma comunidade étnica para que haja uma identidade étnica.”
170
REIS, João José. Bahia de todas as Áfricas. Dossiê África Reinventada. Revista de História da Biblioteca Nacional.
Ano 1. Nº. 6. Dezembro de 2005, p.30.
171
PEREIRA, Edmilson. Op.Cit, p.118
172
SODRÈ, Muniz Op.Cit, 213.
173
SANSONE, Lívio. Negritude sem Etnicidade, Pallas EDUFBA, 2000 p 251 -252.
Essa expressão pública do sentimento de pertença grupal é fundamental nessa análise.
Centralizo dois focos nessa discussão: o primeiro numa identidade dos camamuzinhenses, que se
reveste do que lhes era imputado: pobre, preto, macumbeiro, índio; e segundo focando suas ações
grupais para responder\aparecer no cenário da festa, ao longo de décadas de Micareta em Ubatã.
As festividades são espaços de ressimbolização da vida e, nas cidades do interior da Bahia,
são típicos momentos carnavalescos de riso, inversão, diversão como campo múltiplo de relações de
diversas naturezas, as Micaretas. Desde a década de 1970 ao final de 1990, tomando o espaço da rua,
interessa, a esse recorte, a participação ativa dos moradores do Camamuzinho frente às festas
realizadas na cidade vizinha, Ubatã. As diferentes posturas frente a esta: sátira, diversão, ganho
econômico se constituíram, para esse grupo, como estratégia de resistência e participação, identidade
e alteridade no espaço do outro ao atentar para a perspectiva dos antagonismos e das negociações
entre dois grupos próximos e na nomeação do outro com termos pejorativos, em que a carga
discriminatória se esconde e/ou se desvela.
Desde a organização até a apresentação e/ou participação durante as Micaretas, tanto os
comportamentos como a música, a aparência, a dança, os códigos de honra deixaram visíveis marcas
da etnicidade, da economia, da sociedade que a forjaram. Essas marcas visíveis e imbricadas pelos
simbolismos das festas, e ancoradas nos relatos que lhes dão sustentação, mostram que a festa aqui,
não deixa de ser\ter também um discurso de cunho político, de afirmação grupal frente ao outro. Abreu
comunga dessa percepção e diz:
Exprimindo dor, esperança ou justiça, o canto, o riso e a dança dos descendentes de
escravos eram percebidos por lideranças como Rebouças e Du Bois, nos finais do culo
XIX e início do XX,como legítimas e importantes expressões políticas dos negros nas
Américas
174
.
Com efeito, ao irem a festa e serem recebidos como tal, comunidade de negros, de pobres e
chamados de índios, fantasiados ou não, se portaram de modo a suscitar canto, riso nesse caso, do
outro -, dança e nada que lembrasse inferioridade ou vitimização.
Ao discutir a festa como visão, concepção e maneira de também portar-se num determinado
mundo é preciso considerá-la pelo viés historiográfico que remonta às discussões em curso na década
de 70 do século passado no campo da História das Mentalidades e da História Cultural, sendo que
estas a inserem no contexto da cultura popular.
174
ABREU, Marta. Cultura política, música popular e cultura afro-brasileira: algumas questões para a pesquisa e o
ensino de História. In Culturas Políticas. Ensaios de história cultural, história política e ensino de história. - Rachel Soihet, M.
Fernanda Bicalho, M. de Fátima Gouvêa (org) - Editora Mauad - Apoio FAPERJ – 2005 p. 415.
Foi no espaço comunitário que foi criado, o cenário onde a festa despontou como caminho para
se conhecer a coletividade, a visão de mundo de pessoas que se traduzia pelas festividades, um modo
de filtrar representações culturais e simbólicas no seio de um grupo.
Isso se deu em contraposição à homogeneização, descrição ou categorização dada pelo ranço
positivista de folclorizar tudo, principalmente as festas populares e as de cultura africana. Ao despontar
como um objeto de estudo, a festa trouxe mais que análises descritivas; ela foi capaz de dar às
religiosidades das manifestações culturais um sentido mais amplo. Entre as críticas às limitações de
análises, Rachel Soihet
175
afirma que estas tinham uma posição bastante simplista, ignorando a
complexidade de manifestações que expressariam um universo de atitudes, valores e comportamentos
desses agentes sociais. Soihet enfatiza, ainda, que é dentro destas festas que podemos muitas vezes
encontrar características essenciais de culturas diversas, onde valores culturais dominantes se
entrelaçam com os dos populares influenciando-se reciprocamente.
Entre os que discutiram as múltiplas categorias de análise que a festa possibilita, Vovelle
176
a
concebe como “um maravilhoso campo de observação para o historiador” e continua explicitando seu
poder simbólico de representação.
É nesse contexto que grupos, como os moradores do Camamuzinho, ao serem estudados sob
o ângulo das festividades que marcaram época -, a memória, a identificação e um discurso grupal
sobre si mesmo e o outro numa relação de alteridade -, ganham sentido.
Para se falar em festa e cultura popular enquanto elementos importantes no conjunto das
sociabilidades é preciso considerar esses momentos como aparecem de modo claro no que discute
Minois
177
: “a visão cômica do mundo torna-se, assim o meio pelo qual a cultura popular afirma seu
caráter indestrutível e triunfante”.
Desse modo, a análise se dirige a um período de festas cujo caráter beira a sátira, e não
para ignorar o primado de Bakhtin, o riso rabelasiano, ainda mais quando é sabido que essa foi a
estratégia de um grupo: colocar a si mesmo e a sua representatividade perante o outro, (trata-se de
alteridade, discurso simbólico e identificação).
O historiador, ao enveredar pelo cotidiano, (re) costura tramas e histórias. Foi assim que a
pesquisa aproximou a festa da sátira, às estratégias utilizadas. Durante o rememorar das narrativas, foi
o riso que reapareceu como elemento que reafirmava a alteridade e também o preconceito. Por essas
duas vias, essa reflexão em torno das festas se tornou possível.
175
SOIHET, Rachel. A subversão pelo riso: estudos sobre o carnaval carioca da Belle Èpoque ao tempo de Vargas/
Rachel Soihet. Rio de Janeiro
176
MICHEL Vovelle, Ideologias e mentalidades, São Paulo, Brasiliense, 1987, p.246.
177
MINOIS, George. História do riso e do escárnio. São Paulo: Editora UNESP, 2003, p.272.
Afinal, vestir-se de modo a provocar o choque, a inversão e o riso, como foi o caso do Bloco
dos Sujos, e vestir uma camisa com o título “Sou da Elite” é o que Minois
178
afirma: “o riso como forma
de encarar a existência”, e no caso do Camamuzinho, o significado da festa na vida desses sujeitos,
tendo como palco para as análises e reflexões, as micaretas. A postura nestas encaminha-se pelo
sentido da resistência, do teor satírico como brecha para resistir, aparecer no cenário caro da Micareta
em Ubatã. E assim, sutilmente, conseguiam seu espaço com luta ”em torno do riso que a divisão e o
confronto se efetuam”, como lembra Minois.
179
Ao discutir a festa como conceito e objeto, Rita Amaral
180
afirma que “tudo indica que o
capitalismo cooptou as festas populares e foi cooptado por elas, mas também que o povo vem
reinventando suas festas nas novas condições de vida resultantes de novos contextos econômicos e
sociais”. Essa reinvenção, de que fala a autora, se materializou no Camamuzinho através da criação de
blocos que fugiam ao estereótipo dos grupos ‘brancos/ricos/caros’. Aproximaram-se de dois vieses: o
étnico - racial, com a criação dos de Índios e Timbaleiros, e do satírico, com Os Sujos e a Elite.
Não foi à toa que quando os blocos de camisa ganharam sinal de status de modo vertiginoso
nos anos 80, a comunidade não deixou de ir à festa, à sua maneira e de imprimir a esta um caráter
subversivo, satírico. Também é essa confirmação que a obra de Bakhtin
181
nos suscita, pois na sua
concepção as festas tiveram sempre um sentido profundo, exprimindo uma concepção de mundo,
vinculando-se ao mundo dos ideais.
Experiências de alteridade foram aparecendo nas narrativas, e o que elas apontaram como
‘tradição’, costume, apontam para o que observou Hall
182
, as tradições não são imutáveis, ao contrário,
são constantemente revisitadas e transformadas em resposta às novas experiências. Na história do
distrito, no tocante às festividades é possível perceber a dinamicidade de ações, interações,
sociabilidades e construção de identidade dos diferentes grupos sociais nas décadas analisadas.
São resquícios de uma cultura naquilo que Bosi
183
chama de simbiose, e afirma: “foi
prevalecendo em todos os campos da vida material e simbólica: na comida, na roupa, na casa, na fala,
no canto, na reza, na festa...”Essas características provam que a religiosidade e cultura popular
caminharam aqui , lado a lado, mas assumindo sentido próprio na rotina diária dos grupos sociais. "O
povo gosta de índio, nas diversas cidades do interior que se festejou o carnaval a fantasia que
178
MINOIS, George. Op.Cit, p.274
179
MINOIS, George Op. Cit, p.275
180
AMARAL, Rita. Festa como conceito e objeto. In site:
www.aguaforte.com/antropologia/festaabrasileira/AFestacomoObjetoecomoConceito
181
MIKHAIL, Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento; o contexto de François Rabelais, São Paulo,
Hucitec/Ed. Universidade de Brasília, 1987, p. 7.
182
HALL, Stuart. A Questão Multicultural. In Da Diáspora. Belo Horizonte: Humanitas, 2003, p. 51-100.
183
BOSI, Alfredo. Dialética da Colonização. São Paulo, Cia.das Letras, 1992, p.46.
predominou foi a indígena"
184
. Extraído do Jornal da Bahia no final dos anos 60, esse excerto reflete o
modo como a carnavalização da vida no interior da capital baiana acontecia. Mais precisamente no Sul,
e no mesmo período, a região cacaueira da Bahia tinha nas Micaretas momentos em que negros
vestidos de índios, davam um matiz étnico à festa.
Ao pensar na comunidade do Camamuzinho e na direta associação entre estas festas e as de
natureza religiosa, e mais acentuadamente nas do povo de santo, houve uma participação exterior ao
espaço do terreiro. Ganhou a rua vestida, enfeitada com inspiração indígena. Em seus estudos sobre
essas participações e as relações entre estas e o carnaval, Godi explica:
A temática indígena desde muito tempo esteve presente nos folguedos dos negros
brasileiros, incorporando até mesmo as manifestações coloniais dos Reis Congos (Calmon:
1982), que utilizavam também personagens índios em suas dramatizações. (...) Entre as
manifestações populares produzidas pelos negros no Brasil, a temática indígena desde muito
mostrou-se presente(...)Documentos baianos do século XVIII já apontam a existência desses
folguedos de negros vestidos de índios.
185
E foi nessa inter-relação entre negros, vestidos de índios e saídos de uma comunidade
chamada de tribo, que esse grupo apareceu como a primeira organização para ir à Micareta de Ubatã.
Naquele contexto, eram do bloco de caboclo\índio organizado por filhos de santo. Godi
186
afirma que
“surgiram os blocos de índios, inicialmente com a intenção de fazer o carnaval através do que melhor
conheciam”.
Na comunidade, estava estreitamente ligadas, a explicação de uma depoente, Rita Diogo da
Silva, mora no Camamuzinho há mais de 40 anos, participou do bloco nos anos em que este saiu e diz:
“Lembro bem que a gente ia com as roupas dos caboclos, da macumba mesmo. Tudo era do terreiro
de Dona Idália, que era da macumba na época. A gente subia tudo vestido de índio mesmo. Se o povo
já chamava de índio, aí pronto.
O que Rita conta sobre o bloco dos índios é o relato da primeira organização para a Micareta
sob a direção da enérgica Dona Beata. Esse vínculo que ela enfatiza, entre o bloco e o terreiro, me
remete às afirmações de Sodré
187
“Na verdade, os grupos de festas, cordões e blocos de carnaval, os
ranchos, sempre estiveram indiretamente (através dos músicos, compositores ou pessoas de
influência) ligados ao candomblé (...). Cada casa de culto tinha o seu bloco carnavalesco.”
No Camamuzinho, essa associação aludida pôde ser comprovada pela organização do Bloco
dos Índios que era ajudado por uma mulher de santo, Idália, que emprestava as roupas dos caboclos
para os moradores irem à festa em grupo, mas sob a organização de Dona Beata.Ali é que tudo
acontecia,e destacava-se o caráter festivo principalmente do povo de santo. Com ressalva para as
184
Jornal da Bahia, 21/02/69 (p.4).
185
GODI, Antônio J. V.dos Santos. De Índio a Negro, ou o Reverso. Cadernos do CRH. Salvador, 1991.p.51-70
186
GODI, Antônio J. V.dos Santos. Op. Cit. p. 07
187
Ibidem, p.135
devidas diferenças, no espaço do outro e sem a amplitude da capital baiana, a comunidade, quanto a
esse aspecto, se aproxima das conclusões de Godi
No carnaval baiano da década de sessenta, via de regra os negros assumem-se como índios
em animados blocos de samba. E os que se consideram brancos, e estão melhor situados
socialmente, fantasiavam-se de tudo, menos de negro. (...) apesar dos negros e mestiços
que compunham os blocos de índios serem representantes do segmento étnico mais
numeroso da cidade, e do imaginário ser marcado pela forte presença de símbolos ligados à
cultura negra, estes segmentos formavam a base da pirâmide social; ocupando, quando
muito, as mais ingratas profissões, e suportando formas variadas de discriminação e
preconceitos.
188
A Micareta fez com que o sentido múltiplo dado às práticas culturais pelos grupos sociais se
tornasse muito claro. Nas terras do cacau, nas cidades pequenas, principalmente, as micaretas,
189
além de serem momentos de diversão, aumentam a auto-estima dos moradores, movimentam cada
cidade e estimulam a economia local. No Brasil, o que é denominado "carnaval fora de época" deriva
de uma festa francesa, Micarême, e desde os anos noventa vem se espalhando por várias capitais e
cidades brasileiras.
Micarême era uma festa que acontecia na França, desde o século XV, em meio ao período de
quarenta dias de penitência da Igreja Católica. De origem francesa, a palavra significa literalmente
"meio da quaresma". No Brasil, a introdução da Micarême como festa urbana, ocorreu, primeiramente,
nas grandes capitais brasileiras, como Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Somente a partir de 1935,
através de um plebiscito feito pelo Jornal "A Tarde", houve a mudança do nome para Micareta, que
acabou significando, tanto na Bahia, como no Brasil, uma espécie de "segundo carnaval", que
acontecia depois da Páscoa.
Em Memórias de Ubatã, José Luís,
190
ao falar sobre as festas populares, ressalta: “o município
de Ubatã fora muito rico de manifestações folclóricas, entre as quais se destacavam a micareta.” O
autor um destaque a essa, como sendo a festa principal. em Cidades do Cacau
191
, a edição que
fala sobre Ibirapitanga de 1981, não cita o distrito de Camamuzinho especificamente, mas fala da
Micareta na sede, Ibirapitanga, e diz: “este ano atraiu gente de várias localidades circunvizinhas. A
animação ficou por conta de dois trios elétricos, cordões, batucadas e afoxés”.Essas eram as
modalidades ainda em vigor.
A distância da sede, bem como a falta de dinheiro e de uma política municipal que
disponibilizasse pelo menos o transporte até a festa, fazia com que poucos moradores do
Camamuzinho participassem ativamente destas, o que era reservado aos que tinham melhores
188
GODI, Antônio J. V.dos Santos. Op. Cit. p.12 -13.
189 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Micareta
190
LUÌS, J. Op. Cit, p.58.
191
Cidades do cacau. Ceplac. 1981, p.16.
condições financeiras, ou seja, poucas pessoas. Isso os aproximou mais de Ubatã, cuja micareta era
perto e oferecia também uma excelente oportunidade de ganhar dinheiro com aquilo que, para todos,
principalmente os de fora, eles sabiam fazer muito bem e que era muito procurado pelos ubatenses
lá no Camamuzinho: comida (acarajé, cuscuz, cocada, mingau, sarapatel).
Festas como essas são espaços de manifestações hibridizadas e nos fazem lembrar,
concepções nas quais os sentidos profanos e os religiosos se encontravam: roupas de caboclo ainda
que não fossem denominadas de grupo de afoxé, pelo menos nos relatos não essa auto-
identificação, atribuíram denominações como “bloco dos índios”.
Ao longo da década de 60, a nuance étnico-racial da comunidade era bastante acentuada, nas
diversas formas de sociabilidades, sejam elas nas festas do padroeiro, de santo ou naquelas tidas
como profanas. Assim, nos blocos-de-índio, a questão étnica se apresentava simbolicamente e
aglutinava nesse espaço, para aparecer num outro, através da identificação do negro com o índio.
Quando discute essas interações e inter-relações, Morales as detalha muito bem:
Mobilizadas para o carnaval, surgem ao longo deste século as agremiações negras
representadas pelos blocos, cordões, batucadas, afoxés, escolas-de-samba, blocos-de-índio
e finalmente os blocos-afro, sendo marcados por uma estética própria e um sólido laço
coletivo, fundados em maior ou menor grau na similitude de condição racial e no emprego
dos referenciais culturais afro-baianos
.
192
O uso de fantasias e máscaras que ele afirma como costume tradicional europeu, aqui se
multifaceteia. Ganha no Camamuzinho, entre as décadas de 1960 e 1970, um sentido maior, pois seus
moradores se apropriam, então, do nome de “índio” que lhes era dado pejorativamente e vão á festa
vestidos com as roupas de caboclo, “do terreiro mesmo, da roça de dona Idália”, como afirma Rita
193
em entrevista. E completa: e se nos abusasse xingando, a gente era índio no outro sentido também e
ali mesmo a briga começava”.
A própria escolha da ‘fantasia’ era na intenção de produzir um sentido simbólico, um momento
de troca, um discurso. Sodré
194
enfatiza que, para essas festas, era de grande importância a
participação feminina na organização e , cita o nome de diversas mulheres que se tornaram parte
integrante da festa e as chama de “mães-de-santo e filhas-de-santo festeiras”. Isso confirma aquilo que
as entrevistas evidenciaram sobre a organização dos blocos e também da participação das mulheres,
como organizadoras e mantenedoras da “tradição festiva” e do caráter que o bloco de determinada
época assumiria e desfilaria em Ubatã.
192
MORALES, Ana Maria. BLOCOS NEGROS EM SALVADOR: reelaboração cultural e símbolos de baianidade. Cadernos
do CRH. Salvador, 1991, p 04.
193
Entrevista cedida em 23 de novembro de 2007.
194
SODRÉ, Muniz, Op.Cit, p.135.
Desde a época do Cristal, primeira constituição da comunidade (entre 1909-1959) e depois no
Camamuzinho a partir de 1960, as memórias do lugar no tocante às festas trazem nomes de mulheres
que no seio da comunidade organizavam as festas de Santo e do santo padroeiro, das sagradas às
profanas.
Na “carnavalização” da vida, cujo grande momento era a micareta de Ubatã e toda organização
que a comunidade tinha em relação a este o esperado evento, vem sempre a associação entre um
bloco e uma moradora do lugar, Dona Regina.
195
Quanto a essas organizações, Dona Regina as
generaliza de “o bloco do Camamuzinho” e detalha as fases, as organizadoras, o bloco organizado por
Dona Beata, que também vendia mingau. E explica: “Saía o bloco do Camamuzinho. Ave-Maria! Era o
maior sucesso que fazia! A gente se divertiu muito; o mais organizado era o daqui, era famoso. Foi
assim por muitos anos.
O modo como se uniam ou brigavam entre si diz respeito a como aparecer “lá em cima, no
carnaval de Ubatã”. O lá em cima, bem como a denominação de Ubatã,evidenciava a visão deles sobre
o outro, enfatizavam a nítida separação social entre ambos e a necessidade de uma determinada
‘postura’ no terreno do outro. As festas também significam a destruição das diferenças entre os
indivíduos ou o momento de exaltação destas.
O que faltava em dinheiro para o abadá e/ou mortalha, sobrava em animação e criatividade. O
fato, é que, sob o signo de homens negros, macumbeiros e índios, eram definidas estratégias de
participação que primavam pelo reconhecimento da interação com outros grupos visando à
participação nos blocos de corda. Sobravam em animação, organização grupal e eles se destacavam
em cima, sua animação legou à memória o título de bloco mais animado e que chamava atenção
por muitos anos”, conta orgulhosamente Dona Regina.
196
Para entender a ênfase que é dada a essa festa e a razão porque as diferentes posturas nesta
são reveladoras de identidade é preciso pensar na questão da atribuição categorial, bem como na
dialética exógeno/endógeno de nomeação que teve papel fundamental na postura de “grupo” perante a
festa como nos lembra Poutignat
197
.
Na memória dos que vivenciaram essas festas, é vívido o fato de que sob a influência seja de
negros, macumbeiros e/ou principalmente ‘índios’, havia uma espécie de luta simbólica; desse modo é
que se dava, tanto pelo reconhecimento, através da ativa participação, como através da interação com
o outro grupo, uma espécie de negociação. Os blocos, os grupos, a organização, a apresentação nas
ruas e as facetas eram exploradas a cada micareta.
195
Entrevista cedida em 13 agosto de 2007.
196
Anteriormente identificada.
197
POUTIGNAT, Philippe e STREIFFFENART, Jocelyne. Teorias da etnicidade, seguido de grupos étnicos e suas
fronteiras de Fredrik Barth. São Paulo: UNESP, 1998.
Por este viés, estabeleciam-se fronteiras formadas a partir da seleção de elementos diacríticos
que se fortaleciam e se tornavam seus traços definidores, que também faziam o “povo do
Camamuzinho” marcar sua presença na festa de modo a reforçar não sua participação, e dar a
essas festas um caráter de momentos ímpares para a observação das estratégias identitárias
possibilitando a existência de um discurso onde vários símbolos identitários faziam-se presentes.
Essa organização de ‘blocos’ também figurava como reação à festa da elite do cacau, branca,
que se auto percebia como isenta de estigmas: ressaltava a identidade grupal que entre identidade e
identificação aos poucos se delineava. Para ir à micareta, o Bloco dos Índios, vestidos de caboclos com
as roupas dos santos do terreiro de Dona Idália, se aproximaram do “segredo” de que nos fala Sodré,
transitando entre o sagrado dos caboclos e o segredo daquela organização que escondia uma
‘aparente obrigação’.
Na década de 80, um patrocínio mudou o nome e o sentido do bloco, que passou a se chamar
o bloco do Café Lobo, mas por um curto período de tempo, e logo voltou a ser como antes:
independente de ajuda financeira externa.
Outra organização-reação face à micareta de Ubatã se deu numa fase em que era preciso ter
muito dinheiro para comprar os abadás (mortalhas) e que excluía o Bloco dos Sujos
198
,formado no
Camamuzinho pelos moradores locais que costumavam ir à Micareta fantasiados e em blocos. Quanto
a essa organização, explica Zuleide
199
: “Era roupa bem rasgada e bem suja. Depois com o tempo,
acabou” Cada organização grupal, para comparecer à festa à caráter na época e na situação do grupo
dava uma resposta aos “desafios” que lhes eram impostos.
O período da sátira correspondeu a uma provocação à elite cacaueira que sofisticava os blocos
de camisa. Minois
200
traz a idéia do riso como forma de contestação e uma arma a nosso favor, e diz
que “o riso é bom para todos e que aquele que sabe provocá-lo no momento e no lugar certo é digno
de elogios”. Nas três principais narrativas que deram suporte a esta reflexão, foi possível constatar que
o riso é traço comum. Houve questionamento sobre o Bloco dos Sujos e o porquê de sua organização
justamente naquele momento.
Esses blocos de sujos
201
, quanto às músicas, seguiam o recém chegado trio elétrico ou a
banda que estivesse tocando para todos,e não as marchinhas, como era comum nesse tipo de bloco
em outras cidades. Alguns blocos de sujo satirizam a política nacional com faixas e cartazes, sempre
198 Obtido em http://pt.wikipedia.org/wiki/Blocos_de_sujo
199
Entrevista concedida em setembro de 2007.
200
MINOIS, George. Op.Cit,, p.309
201
Fazem referência às manifestações populares típicas do carnaval de rua no Brasil, onde o improviso e a desorganização
são a tônica: foliões com fantasias improvisadas, ou mesmo de roupa comum, se reúnem no carnaval e ao som de
instrumentos, também improvisados,desfilam pelas ruas da cidade, cantando e sambando marchinhas carnavalescas e
sambas-enredo. Obtido em http://pt.wikipedia.org/wiki/Blocos_de_sujo
em tom de ironia e deboche, com a marca do humor.Aqui, no Camamuzinho , fica claro o objetivo pela
postura, pelos relatos: a sátira!
5. TODO BLOCO DE CAMISA/ CORDA TEM UM POUCO DE NAVIO NEGREIRO?
A festa emergiu para esse grupo também como a oportunidade para questionar e/ou afirmar os
valores vigentes na sociedade. Vieira Filho
202
nos a dimensão da africanização na festa e Bacelar
203
nos suporte para sondar se não haveria nesses blocos de corda um pouco de navio negreiro. Ao
discutir sobre Modernização e Cultura dos Negros em Salvador, principalmente sobre a expansão
criativa dos negros a partir de 1970, ele sinaliza dimensões de uma festa que tem cor, corda, limites.
Se as festas aqui não são tratadas apriorísticamente como momentos alternativos ao trabalho,
elas podem revelar bem mais: identidade grupal, étnico-racial, protesto, críticas, expressões negras.
Pensar desta maneira me remete a uma discussão realizada por Natalie Davis e E. P.
Thompson quando discutem sobre as manifestações dos charivaris. Natalie Davis salienta que, em vez
de mera “válvula de escape” desviando a atenção da realidade social, - ou entretendo numa pausa
entre uma labuta e outra-, a vida festiva pode, por um lado, perpetuar certos valores da comunidade
(até garantido sua sobrevivência) e, por outro, fazer a crítica da ordem social
204
.
Figura 25 - “Timbaleiros na Micareta de Ubatã reafricanizando a festa”
Fonte: Arquivo Particular – Nérico Conceição Barbosa - 1990
202
VIEIRA FILHO, Raphael R. 1995 A africanização do carnaval de Salvador-BA - a recriação do espaço carnavalesco
(1876-1930). Dissertação (Mestrado) Pontifícia Universidade Católica/SP.
203
BACELAR, Jeferson. A hierarquia das raças. Negros e brancos em Salvador. Rio de Janeiro, Editora Pallas, 2001.
204
DAVIS, Natalie. Culturas do povo. Sociedade e cultura no início da França Moderna. Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1990. THOMPSON, E. P. Costumes em comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo, Cia das
Letras, 1998.
Pensando além, entendo que ao ir à Micareta de Ubatã, de quatro modos diferenciados ao
longo de décadas, a afirmação da identidade teve outros nomes que seguiam o momento, e o que a
capital ditava: Timbalada, timbaleiros, olodum, blocos de camisaa caras separadas por corda. A
televisão transmitia o maior carnaval do mundo, e os lugarejos os recriavam à sua moda e ritmo.
Nesse contexto, a micareta organizada pela prefeitura de Ubatã e com os resquícios da renda
do cacau, ainda permitiu que uma “elite”cacaueira seguisse a moda da festa na capital baiana.Assim,
blocos de camisa,separados por cordeiros e para quem tivesse dinheiro, marcaram as posições
sociais na festa de cidades pequenas e pobreza grande.
Duas novas organizações foram pensadas: os Timbaleiros e a Elite, de modo que os relatos
dos dois organizadores,Robenajara
205
com os Timbaleiros e Carminha
206
com a Elite foram
importantíssimos nessa reflexão. “Tomando como base analítica o carnaval, podemos vislumbrar que
ele não é como a década de 1970, ou seja, um campo de subversão simbólica do poder” afirma
Bacelar
207
e traz à tona o caráter subversivo da festa.
A população do interior via na televisão, o carnaval e suas modificações, assim não eram só as
músicas e os ritmos que eram copiados, mas todo o processo simbólico da festa. Bacelar
208
, diz quea
organização oficial do desfile pauta-se em linhas marcantes de distinção social articuladas com o
critério racial na formação de grupos: de um lado,” os blocos de trio” (popularmente conhecidos como
blocos de barões”, de brancos); do outro, os blocos dos pobres e negros, ou seja, os afoxés, os
blocos-afro, os blocos de índio etc.
Era o início da cada de 1990,e muitas bandas de axé faziam sucesso.A elite ubatense
organizou dois blocos de camisa, que, na verdade,eram réplicas das que aconteciam em Salvador,com
insipirações até nos nomes. Robenajara, o organizador, explica o contexto dos Timbaleiros assim:
Morei em Salvador nos anos 80 e vim de no tempo em que as idéias de bloco tavam
mudando. Sempre que Camamuzinho participava dos eventos de Ubatã o povo tentava
separar... As pessoas me cobravam, vamo montar um bloco, vamos montar um bloco do
Camamuzinho. Trouxe idéias de Salvador que eu morei em Salvador e participei de blocos
lá. Eu ia muito ao pelourinho assistir os ensaios de Olodum. Como podemos montar um
bloco para concorrer com os Pintas e Eu vou em Ubatã.Que na época trouxe Chiclete
com Banana e Ivete Sangalo,revelação da Bahia?Como eu sabia que o timbau é importante,
sagrado. E pensando na Timbalada, botamos o nome de Timbaleiros.
A partir desse momento, a participação da comunidade voltou a ter um acentuado cunho
étnico-racial.De camisas e com o corpo pintado com motivos étnicos as pessoas se animavam, não
pelo trio ou pela banda famosa,mas pela coreografia e danças afro ao som de timbaus. E o choque na
205
Robenajara dos Santos Moura em 29 de abril de 2007, organizador do Bloco dos Timbaleiros, micro empresário, reside
no Camamuzinho.
206
Anteriormente Identificada.
207
BACELAR, Jeferson. Op. Cit.190.
208
BACELAR, Jeferson. Op. Cit, p.196.
população local foi visível.Ele diz que parece que estavam gritando de fato sua cultura negra. E
detalha:
Ninguém queria participar dos Timbaleiros. Nós conseguimos comprar instrumentos de
percussão, timbau etc. Passamos dois meses ensaiando. Nós fizemos uma pequena
apresentação. Primeiro o pessoal de fora. Tinha um pessoal aqui. O povo de fora, da CHESF
que comprou a camisa e começou a valorizar o trabalho. surgiu o povo de Ubatã no outro
ano querendo comprar camisa. Veja só...Sim, ainda tive a idéia de jogar uma camisa nossa
pra Bel do Chiclete com Banana que eles trouxeram.Bel gritou o nosso nome e gostou do
Timbaleiros,todo mundo aí nos respeitou.
Uma vez que a elite ubatense se reunia em torno de dois blocos caros e excludentes,cujo
abadá e/ou mortalha era de poder aquisitivo acessível a poucos,divididos em “Os Pintas” e o “Eu vou”.
Também participante destas festas, Zuleide explicou o quanto eram descriminados e maltratados pela
elite, frontalmente. E para exemplificar,relembra um dos momentos mais claros dessa
discriminação,assim como outros depoentes, e usa justamente a festa de micareta como o maior sinal
visível e relembra :
Os grupos ficavam mais separados.O de Camamuzinho de um lado e eles lá do outro.Fomos
muito discriminados e andadávamos em grupo.Quando tinha o micareta de ubatã naquela
época que era muito,muito “coisado”só andávamos em grupo,era briga na certa,houve até
morte.Achavam que a gente era índio, que era muito violento.Quando eles nos viam nas
festas para provocar diziam: ó o índio,ó a índia”.Aí pronto era o mesmo que dar um murro na
gente.
209
Eram episódios, das festas, de briga e confusão, semelhante aos das gincanas,muito comuns
nas décadas de 80 e início de 90, o grupo do Camamuzinho “se matava” para vencer pela
oportunidade de mostrar que eles tinham valor. E nas micaretas, este valor poderia ser demonstrado
através da sátira com o bloco dos sujos que era um modo de contradizer o discurso da elite.
O caro abadá dos Pintas e do Eu Vou dividia atençaõ e olhares com as roupas bem rasgadas e
sujas do Camamuzinho, ou com a camiseta escrita “Eliteque, segundo eles, era tão animado que
chamava a atenção do povo e subvertia a ordem, satirizava com a idéia de que não era preciso ter uma
fortuna para pagar o abaque garantiria alegria,diversão. Carminha diz que a idéia da Elite partiu de
cinco amigas, que organizaram um novo bloco para ir à Micareta, com o propósito de instigar,
contrariar, divertir.
Pedimos ajuda ao prefeito e organizamos o bloco, ele deu as camisa. tinha escrito “Elite”
e fomos para lá.Não saímos mais anos por que a Micareta acabou, e foi divertido ver a cara
de todo mundo lá.Nós era a elite da festa.Tanto foi bom, que depois que acabou a Micareta
nós fazemos a festa da elite aqui todo ano, o forró da elite.Vem gente de tudo que é canto.
210
209
Idem, depoimentos concedidos em 2007.
210
Carminha diz que a idéia da Elite partiu de cinco amigas, mulheres que organizaram um novo bloco para ir á Micareta. O
sentido era o de instigar, contrariar, divertir.
Figura 26 - “Forró da Elite, tradição da Micareta, reinventada a cada ano.”.
Fonte: Arquivo Particular de Carminha
-
Essa idéia bakhtiniana de carnavalização da vida, Ferreira discute muito bem e nos apresenta
o modo concebido por Bakhtin: a esse conjunto de comportamentos ele deu o nome de
“carnavalização”. Quer dizer, para Bakhtin, a “carnavalização não está ligada somente ao período do
carnaval e a suas festas (...) acaba por concluir que onde tem festa, onde tem exagero, onde tem
inversão também tem carnaval
·”.
Dentro desse conjunto citado, enriqueço com Minois,
211
para quem o “riso não é divino nem
diabólico; é uma arma, e todas as armas são boas contra os adversários da verdadeira fé” no tocante
ao contexto em o que o bloco dos Sujos foi criado, com a proposta de chocar pelo riso a sociedade
ubatense de blocos de camisa excludentes e fechados.
A arma utilizada foi a da sátira, rasgões diante da cara camisa, sujeira diante do extremo
cuidado com a aparência da ‘elite’.Eles se viram forçados a “se virar” e isso lembra o que Brandão
escreve sobre a festa “Ela toma a seu cargo os mesmos sujeitos e objetos, quase a mesma estrutura
de relações do correr da vida, e os transfigura. A festa se apossa da rotina e não rompe, mas excede
sua lógica, e é nisso que força as pessoas ao breve ofício da transgressão”.
212
Não interessava também a esse grupo sair na “Pipoca
213
”, afinal havia dois momentos cruciais
em que eles s deveriam se “proteger” e não ficar isolados: a reunião no espaço da própria
comunidade,na praça principal , onde se encontravam-se num horário marcado e, segundo Dona
211
MINOIS, George. Op.Cit. 297
212
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A cultura na rua. Campinas, SP: Papirus, 1989, p.09.
213
Foliões que ficam na festa fora dos blocos, independentes de grupos.
Regina, que diz ter saído no bloco todos os anos, subiam juntos e permaneciam juntos,se bulisse
com um,ia todo mundo em cima”;isso acontecia religiosamente todos os anos na praça do
Camamuzinho antes de ir á festa,lá em cima. E a reunião em torno de um grupo grande e coeso ,lá na
festa,na praça de Ubatã.Andavam,bebiam,dançavam e brigavam juntos. Segundo Zuleide, esse era o
“comportamento” durante a festa, sempre ficávamos em grupo para se proteger, eu que muitas vezes
saía para vender comida, quando acabava eu voltava”.
As brigas, xingamentos e disputas em termos de animação, espaço, ordem de apresentação,
etc, eram muitos. Como nos lembra Sodré,
214
essa sociabilidade festiva comportava aspectos
violentos, tipificados nos sangrentos encontros entre grupos rivais.” São muitos os episódios relatados
durante as entrevistas que associam a micareta a momentos também de conflitos, principalmente de
humilhação de um grupo contra outro o que acabava em agressão física.
Essas memórias traduzem todo um universo complexo e plural, marcado também por
diferenças e desigualdades do cotidiano, que os remetia a outros conflitos que desde a década de
1960 eram visíveis entre os grupos, mas que apareciam na diversidade das festas: "negro x branco x
índio ( também negro)", "pobre x rico", “ubatenses x tribo”, católicos x macumbeiros”.
Estes conflitos, na verdade, alimentavam e davam maior riqueza às festas.Não acabavam
depois delas, mas se auto-renovavam e reafirmavam as marcas grupais, a cada nova faceta que o
bloco assumia para garantir sua entrada e participação na festa do outro.
Nessa via de mão dupla também se dava o uso dos estigmas: macumbeiro, negro, índio e
tribo, garantindo assim o caráter polissêmico da festa: dos índios aos sujos, a ordem era subverter a
ordem e geralmente eram organizadas a partir de relações de vizinhança no bairro popular, de relações
de companheirismo cujas vivências e experiências dos diferentes sujeitos faziam ,da festa, sinônimo de
vida.Dona Regina
215
lembra que o pai dela dizia esse povo do Camamuzinho sempre foi assim,
festeiro, trabalhador, labutador”. A micareta era então o ápice do acontecimento social fora do espaço
destes.
Ao irem em grupo à micareta de Ubatã,seja para vender , dançar ou desfilar em blocos ( índios
nos anos 70,Café Lobo nos anos 80, Bloco dos Sujos e Timbaleiros nos anos 90 e Elite nos anos 90),
além da afirmação identitária,reconheciam que no espaço e na festa do outro, mesmo num período
curto de tempo e espaço carnavalizados,prevaleciam certas hierarquias: entre os “índios”, o povo da
tribo e os de “lá de cima”,os ubatenses,donos da festa.
214
MUNIZ, Sodré. Op.Cit, p.138.
215
Anteriormente identificada.
Para Dona Regina, Rita e Zuleide
216
, esse era, para a comunidade, um momento de mostrar-
se, de valorização do bloco, do lugar, do povo, principalmente. Destacar-se pela animação,pois no
dizer de Dona Regina: “era famoso, animado, o bloco do Camamuzinho”.A fala suscita uma “inversão
temporária de hierarquias” e, nesse contexto, durante a micareta, aproxima-se do sentimento grupal,o
que também explica a nica de tanta animação e coesão durante a festa no espaço do outro, que
criticava,estigmatizava. A entrada dos “índios” na festa organizada pela elite do cacau, ainda que a
participação fosse anual e esteticamente destoante, soava como “ingredientes de uma estética
carnavalesca” nos lembra Sodré
217
.
Essas polarizações fizeram acentuar o que, desde a década de 1970, a comunidade ao
passo que experienciava, respondia com formas organizacionais de identidade. Bacelar assinala o
nascimento das marcações rígidas: brancos, negros, ricos e pobres, separados pelas cordas durante o
carnaval e\ou, neste caso, festas de micareta.
Aos poucos, tornou-se tanto visível como delimitada a interação societária entre os grupos,
sendo as cordas o marco físico de cada fronteira. Amesmo em cidades pequenas o uso das cordas
foi também imitado,assim como os cordeiros que numa menor proporção, não deixavam de ter a
mesma conotação. A palavra "cordeiro" se refere às pessoas, homens e mulheres, na sua maioria
negras, moradoras dos subúrbios da cidade, que durante o carnaval de Salvador sustentam as cordas
que delimitam o espaço a ser ocupado pelos blocos nas ruas”.
218
Segundo Bacelar
219
,“para alicerçar
ainda mais as fronteiras, procuram dar realce ao sentido de segurança intra-muros”, pela distinguível
barricada de proteção (nas cordas)... de negros.”. O branco não quer mistura.
Os Timbaleiros e a Elite, até o final dos anos 90, marcaram a última fase daquilo que
Duvignaud
220
chama de festa de participação como categoria na qual se deu a participação coletiva.
Depois dessas organizações, as micaretas acabaram por falta de iniciativa da Prefeitura local.
Foi possível perceber que o sentido da festa, para esses sujeitos, ultrapassou o de simples
comemoração., As diferentes posições no ambiente da festa, fruto também de uma endodefinição ao
longo das décadas entre 1970 e 1990, mantiveram nítidos sinais diacríticos: da fantasia dos índios ao
período do Bloco dos Timbaleiros e do Elite , quando a opulência dos blocos de camisa e da festa
paga da elite cacaueira, procurava se espelhar no modelo estrutural do carnaval da capital.
A reflexão em torno desta temática evidenciou tudo o que as narrativas orais haviam suscitado.
As estratégias de um grupo cuja identidade étnica pôde ser materializada na festa e para além desta. E
216
Depoentes anteriormente identificadas.
217
SODRÈ, Muniz. Op. Cit, p.191
218
Resenha retirada do site www.aldeianago.com.br \publicada em 27 janeiro 2008 e acessada em maio de 2008
219
BACELAR,Jeferson,Op. Cit., p. 197.
220
Cf. DUVIGNAND, Jean. Festas e Civilizações. Fortaleza, Tempo Brasileiro/UFCE, 1983.
mais, a maneira como diante das mudanças conjunturais, esse grupo não se adaptou, mas
reelaborou sua participação de modo a se aproximar do que Canclini (1983) discute sobre a festa, e
afirma que as celebrações festivas sintetizam a totalidade da vida dos sujeitos dentro das relações
sociais, econômicas, culturais e políticas que movimentam as suas comunidades. Assim se pode ter
uma compreensão geral das estratégias de representação e participação do povo do Camamuzinho
nas festas de micareta de Ubatã.
Por fim, o que vimos ao longo deste capítulo é que a comunidade ao se posicionar em
diferentes espaços, imbricaram sentidos e demarcaram um território simbólico, despontaram em cena
como atores atuantes dividindo os espaços, os sentidos e as identidades da cidade.
CAPÍTULO III
Ojás, lenços e rodilhas: negras mulheres malungas
221
, comadres e
vizinhas
1. Aventurar a sorte: vida e morte no Cristal, exercícios de sobrevivência feminina
A historiografia brasileira, nas últimas décadas, tem se mostrado muito instrumentalizada pelos
aportes dos estudos de gênero e culturais que, paulatinamente, têm se debruçado sobre a temática da
mulher negra e suas dimensões de atuação. Mas ainda falta muito, e isso impõe novas preocupações
teóricas, além de acentuar também quais as lacunas e quais devem ser os avanços para a construção
da história da mulher negra no Brasil. No caso deste trabalho, dará uma contribuição explanando esta
temática por um viés regionalista e local, no sul da Bahia.
Junto com os estudos culturais, em fins da cada de setenta do século XX, as questões de
gênero passam de debates às ricas investigações temáticas. No trabalho, na festa ou na literatura, o
papel feminino na construção da identidade negra mostrou-se, ao longo dessa pesquisa, como
processo intrínseco de percepção desse grupo no espaço e tempo abordados.
Até aqui, eu me detive em discutir as interfaces entre identidade e comunidade nas esferas da
lida, vida, festas e outras formas de religiosidade. Nesse terceiro momento proponho-me a pensar na
participação feminina negra no bojo das sociabilidades e ações coletivas. Considero ser esta a melhor
forma de fechamento das discussões propostas.
Uma lacuna que persiste no tocante à historiografia regional diz respeito ao tripé: cor, credo e
gênero. Como espaço de formulações materiais e simbólicas, procurei pensar na mulher negra de
religiosidade afro-brasileira. O tempo, nesse contexto, era o período da Pós-Abolição (transição do
século XIX para o XX), pois a dinâmica da região cacaueira atraiu migrantes, de etnias distintas, mas
estes estão presentes na historiografia recente da região cacaueira. No entanto, quanto à mulher
negra na lida das roças de cacau, nas roças de axé
222
e na comunidade, existe uma lacuna e a
historiográfica persiste inserindo-a na perspectiva da subalternidade.
Adquiriu centralidade, nesta pesquisa, as discussões sobre identidade, e, desde as primeiras
reflexões, apareceram sujeitos de “carne e osso”, e muita luta em torno da epopéia cacaueira do Cristal
ao Camamuzinho. Duas esferas de grande importância: identidade e religiosidade trouxeram as
221
Companheiras.
222
Termo que a maioria dos adeptos das religiões afro-brasileiras usa para referir-se às casas de candomblé.
representações em torno da presença feminina como símbolo de força, trabalho e poder político de
cunho cio-comunitário. Como expressão de luta e de labuta, as mulheres negras fizeram histórias
singulares colocando-se em destaque num espaço de trabalho em torno do cacau que tinha como traço
característico e evidente, o trabalho masculino.
Ao adentrar nesse universo cotidiano às margens do Rio de Contas, o que me incitou, a partir
do local, a buscar um reviver de personagens ainda inexploradas, e suas formas de atuação? O faro de
serem coadjuvantes, invisíveis? Além de Gabriela e das ricas mulheres brancas, católicas devotas, as
dos coronéis, onde estão as Marias, Rosas, Terezas e Antônias?
Os nomes de batismo são muitas vezes trocados por uma identificação fenotípica e pela
função desempenhada naquele espaço. Foi comum encontrar a divisão em escala cromática conforme
nos explica Estanislau
223
“escurinha, pretinha, moreninha, roxinha, mulata, morena, escura, roxa preta,
parda”. Além da cor, as funções serviam também para nomeá-las e identificá-las na comunidade que,
com suportes étnicos, abarcavam as negras, cuja cor da pele costumava vir junto da função que
desempenhavam na comunidade: Maria Rezadeira, Joana Parteira, por exemplo. Dentre estas,
algumas eram ainda conhecidas como de santo, ligadas aos orixás, ou do santo, referindo-se às
devotas do padroeiro, às rezadoras de ladainha. Todas estas habitavam, enfim, a região sul baiana,
esquecidas na historiografia, encobertas de nódoas de cacau, ou debaixo de enormes trouxas de
roupa.
A princípio, uma inquietação muito grande me moveu: De onde essas mulheres vieram para
morar, trabalhar, casar, vender, pescar, lavar, cozinhar e festejar no Cristal? Durante o deslocamento,
em virtude da barragem, como atuaram no recomeço, em Camamuzinho? E nos protestos frente à
sede, associações, invasão de terreno? E nas festas, na igreja e no terreiro, nas ruas e do outro lado
da ponte, em Ubatã, nas micaretas? Encontrei-as nos excessivos verbos, pronomes e adjetivos usados
em sua quase totalidade no feminino pelos narradores. Halbwachs
224
diz que, “um grande número de
lembranças reaparecem porque nos são recordadas por outros homens”; aqui foi mais dos homens e
seus relatos sobre essas mulheres, e por algumas mulheres sobres suas companheiras, comadres,
irmãs que foram lembradas.
Ao explorar as possibilidades da memória, esses questionamentos foram surgindo e
encontrando respostas, ou suscitando novas perguntas. Estas sugeriram diferentes sendas que
puderam enriquecer as possibilidades de reflexão sobre identidade, festividade e religiosidade afro-
brasileira, tomando por um último viés a ação das mulheres na comunidade, desde sua formação até o
223
ESTANISLAU, Lídia Avelar. Feminino plural. Negras do Brasil. In Brasil, afro-brasileiro, In: Maria Nazaré Fonseca;
Jussara Santos. (Org.). Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte, Autêntica, 2000.p.218.
224
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.
final da década de 1990, depreendendo daí uma participação ativa em uma circularidade de papéis, e a
construção narrativa através da memória não se esquivou de acontecer.
Dessa sorte, múltiplos significados deram passagem para que num universo de bravos homens
do cacau, inversamente, fossem sobressaindo nomes de mulheres. Em cada uma das iniciativas
grupais anteriormente discutidas, esse, é por excelência, um território feminino no sentido de
inventividade e iniciativa em prol do coletivo. Quando as palavras cartografaram essas vivências a
partir de um tempo ausente, que se tornou presente pela lembrança, percebi que essa especificidade –
o da força feminina atuante, embora não esteja em registros escritos contribuiu para o reforço dos
laços de solidariedade.
Muitos lares contavam com três gerações vivendo na mesma casa: mães, filhas e netas.
Algumas delas eram descendentes diretas de escravos, filhas e netas, migrantes, em virtude da saga
cacaueira, com ou sem maridos, para trabalhar na lida ou na ‘vida’, na zona do cacau. Outras de
origem indígena, pegas a dente de cachorro”, expressão aqui comum para falar das índias, além das
negras vindas da beirada
225
. Através de jornais, literatura, fotografias e memória, e pelos relatos de
pessoas que trabalhavam para estes, surgiram histórias dentro desta História.
Recorrendo á História Oral, as entrevistas desvelaram homens e mulheres que haviam migrado
para essas terras no vale do Rio de Contas na transição entre um século e outro. As referências
temporais e orais situaram 1909 como o período em que o lugarejo estava estruturado para receber e
despachar o cacau, abrigar as pessoas e suas práticas culturais envoltos na árdua lida em torno deste.
Aliando trabalho, diversão e solidariedade, improvisava-se papéis, assim a pobreza exigia, e
incitava a busca por estratégias de sobrevivência às margens do Rio de Contas. Os homens, depois de
uma viagem, em busca de melhores condições de vida, paravam em terras sul baianas, naquele
tempo.
Além do trabalho nas roças de cacau, no Cristal as mulheres começaram tanto no axé
226
quanto na venda de pratos típicos, da cultura africana, procurados por todos, fonte de sobrevivência.
Estes foram rememorados pelos depoentes, como o restaurante de uma negra conhecida por Mulata, e
suas duas irmãs. Diversos pratos eram também vendidos nas barracas e, em alguns casos, com a
rodilha
227
e o caldeirão na cabeça, pelas ruas. As mesmas que eram do axé também vendiam comida
para garantir a sobrevivência. Respeitando as diferenças contextuais, assemelham-se ao que descreve
225
Região litorânea de Camamu, segundo termo dos depoentes.
226
Poder mítico-sagrado, elemento constituinte do sistema dinâmico da tradição, conteúdo fundamental para a vida das
comunidades de terreiro que presentificam a linguagem abstrato-conceitual e cognitivo-emocional da nossa ancestralidade,
atualizando num aqui e agora nossas origens africanas. Expressa a força que assegura a existência e é transmitida por
meios materiais simbólicos que podem ser adquiridos por introjeção ou contato com seres humanos ou objetos.
227
Pano torcido em círculo para amortecer e apoiar o peso sobre a cabeça.
Lody
228
“as mulheres, tradicionalmente, conseguem dinheiro com a venda de alimentos nas bancas e
quitandas de rua, oferecendo, nos seus tabuleiros, quitutes sicos à base de azeite-de-dendê”; era
exatamente esse o quadro cotidiano na origem da comunidade. Mais tarde, isso continuaria nas festas
de largo, nas feiras, no dia-a-dia de Camamuzinho, atraindo apreciadores diversos.
As mulheres não compravam chitas para seus vestidos, iam além, e organizavam as festas,
as lidas, as comidas, davam aula na escola do Cristal, organizavam o carnaval, em fevereiro. Acolhiam
o padre que ia apenas no mês de setembro,enquanto isso rezavam ladainha para São Roque, Santo
Antônio e davam caruru de Cosme ou de mabaço
229
.
Esse último é um traço comum e congregador, dar caruru de Cosme para quem era iniciado ou
não, católico ou não, enfim, encontrei muitos significados, desde pagamento de promessas, o fato de
ter tido filhos gêmeos, até agradecimento por graças alcançadas. E até hoje, não um mês de
setembro sem que ocorra, não um, mas diversos carurus na comunidade. Para os de santo adeptos
do candomblé – Cosme e Damião “são deuses familiares, guardiões de grupos, garantindo a fertilidade
das mulheres”
230
. Traço comum é que essa devoção nesse espaço é encabeçada por mulheres.
Lideravam também negócios lucrativos, sendo donas de pensão, de cabaré, de vendas, além
de darem assistência espiritual e, muitas vezes, médica. Em outros momentos, são figuras centrais no
tocante ao candomblé, como a conhecida Mãe Maria de Camamu, dentre outras. Existiam também as
festas de Reis cantadas por Pedro Grande, e o bumba-meu boi, cujos estreitamentos entre esta e o
terreiro iam reafirmando o legado africano. Siqueira afirma que “o bumba meu boi tem articulações
explícitas com rituais de candomblé, homenageando as entidades, os orixás, os voduns, os inquices,
caboclos e eguns”
231
As mulheres são rememoradas em diversos papéis, bandeirando cacau ou na sabedoria da
realização dos partos, as chamadas parteiras e comadres. Ferreira destaca mulheres também como
migrantes que aqui se davam bem no comércio, dentre elas “Dona Isaltina que chegou para o Cristal
antes da construção do Funil, veio das matas de Gandu aventurar a sorte na região do Cristal”.
232
Essa diversidade de funções foi lembrada por Lody
233
, mostrando a força das chamadas
“mulheres de gamela, caixa e tabuleiro”, são as baianas de rua, vendedoras de quitutes, de sabão da
costa e dos produtos de culto utilizados no candomblé. São também chefes de domicílio, mães de
santo, líderes de suas comunidades. Mais à frente, tento mostrar como incorporaram um poder informal
228
LODY, Raul. Candomblé, religião e resistência cultural. Editora Ática, 1987, p.34
229
Mabaço no Camamuzinho tem o mesmo sentido de gêmeos, tanto referente a crianças, quanto aos orixás.
230
LODY, Raul. Op. Cit.p.59.
231
SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Siyavuma: uma visão africana do mundo. Ed. Autora, Salvador, 2006, p.09.
232
FERREIRA, Istvan. Op. Cit. p.101.
233
Raul Lody, O povo do santo: religião, história e cultura dos orixás, voduns, inquices e caboclos, Rio de Janeiro,
Pallas, 1995, p. 32-36.
através de sociabilidades de cunho sócio-político, mostrando essa liderança na comunidade como Lody
destaca.
Como num cortejo de deusas africanas gordas, negras, de lábios carnudos e seios fartos, com
ojás, lenços e rodilhas nas cabeças, essas mulheres deram alma ao Camamuzinho. No terreiro, no
trabalho diário, nas festas ou de rodilhas carregando peso sobre suas cabeças como trouxas, latas
d’água, feixes de lenha, bacias e panacuns
234
. A circularidade de papéis dessas mulheres reavivava
entre elas os laços de solidariedade, transformavam-nas em malungas termo usado na roças de
cacau, como explica Neto
235
-, companheiras, comadres por seus filhos, vizinhas por suas
vivências, irmãs – por suas crenças, imbuídas de olhares e posições, expostas a seguir.
Festejar e labutar, celebrar a vida na rua, na Igreja e nos terreiros; seja no Cristal, como no
início dessa comunidade, ou no Camamuzinho, como continuação que se deu em outro espaço, são
formadas faces e estórias dentro da História do distrito, cujos termos precisam ser colocados no
feminino, os sujeitos até aqui apontados, beiradeiras, bandeiradoras, trabalhadoras, mães, iás
236
,
comadres, malungas com histórias de alegrias e sofrimentos.
Por sua multiplicidade, não apenas suas histórias de vida interessam nesse recorte, mas o
modo como a memória da comunidade evidenciou narrativas de atuação religiosa e política através do
rememorar, nomes que se repetiram natural e respeitosamente pelos depoimentos com detalhes,
histórias que ouviram contar sobre elas, mas não sabem se foi de fato como contam ou já se
aumentaram pontos na sujeição que a oralidade tem.
A ancestralidade africana assumia corporeidade nos retalhos do cotidiano de mulheres
simples, batalhadoras pela sobrevivência, criando estratégias de sobrevivência num tempo de cacau
fácil e vida difícil. A insubordinação aos preceitos patriarcais que pregavam uma mulher submissa se
deu muitas vezes por meio de lutas individuais ou ao lado de maridos que o representaram
obstáculos para essas mulheres, sobretudo as religiosas mães de santo
237
.
No geral, encontram-se mulheres envelhecidas pelo trabalho árduo, baixa remuneração e
ainda com ânimo para não deixar morrerem as sociabilidades, a fé, a parceria ou a liderança familiar.
Era essa a realidade da maioria delas no Camamuzinho. A rigor, procurei analisar como estas
mulheres articulavam-se entre os seus e os da comunidade. Elas seriam mais um elemento no mosaico
dos que compõem a microrregião cacaueira -, se não fossem suas especificidades, que saltam aos
234
Cesto confeccionados de cipós para carregar objetos.
235
NETO, Euclides. Dicionareco das roças de cacau e arredores. p.86.
236
O mesmo que mãe.
237
Utilizo o termo mãe-de-santo o invés de ialorixá porque é esse o nome que usaram para se referir a estas neste espaço,
sem, no entanto estar carregado de carga pejorativa.
olhos de quem as conhece: o forte sentimento de identidade que pode ser atribuído a diversos fatores,
entre eles o caráter emblemático da religiosidade e a fama do lugar.
Além da religiosidade, é propósito buscar compreender as estratégias empreendidas pelas
mulheres negras em diferentes espaços, a luta pela sobrevivência da alma e da matéria, numa região
marcada pelo dogmatismo católico fortalecido pelo coronelismo cacaueiro. Oficialmente, na história da
comunidade, constam apenas uma prefeita em Ibirapitanga e uma vereadora oriunda do distrito. Mas
na fala dos que ouvi, pluralidade de nomes e papéis que ganham vulto no tocante aos mais
importantes acontecimentos, nomes e registros de mulheres comuns que em diversos aspectos
sobressaíram na história local, e são muitas: mãe Rosa, Do Carmo, Mãe Boneca, Maria do Cheiro,
Zuleide, Regina, Linda, Carminha, Dona Beata. Ao lado de cada nome, um sobrenome, não o de
batismo, mas de identificação social: a parteira, a benzedeira, a lavadeira, a fateira, a professora. São
presenças marcantes na oralidade, no respeito, nos laços comunitários. Ouvi pessoas simples, as mais
antigas em relação ao tempo de morada e à idade, verificando a importância de que tanto nos fala
Bosi
238
sobre as memórias dos velhos.
Sabedoria, força, resistência se escondiam junto com suas cabeças encobertas com ojás
239
,
rodilhas ou lenços, - escolhi esses três aparatos que carregavam em suas cabeças como símbolos de
seus afazeres plurais. Figuravam numerosas no rio, nas ruas, nas roças de cacau com seus
bodocos
240
, na venda de comida, nas casas de santo, nas festas do santo padroeiro e nas dos de
casa, em seus oratórios e altares.
2. Labuta, sobrevivência e cotidiano às margens do Rio de Contas
As mulheres sempre inventaram e reinventaram modos de ganhar a vida na Bahia. Bernardo
241
aponta os estudos percussores de “Verger (1992); Moreira Soares (1996); e Ferreira Filho (1998)”, que
mostram como elas saíram de casa para sustentar suas famílias, principalmente a mulher negra, cuja
legitimação familiar era dada pela mulher e seus filhos. Com efeito, a necessidade de ganhar a vida e
dureza da pós-abolição colocaram as negras na rua enquanto que as mulheres brancas, em sua
maioria, permaneciam no interior de seus lares.
238
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. 2. ed. São Paulo: T.A.Queiroz; Edusp, 1987.
239
Pano branco que as mulheres iniciadas no candomblé usam durante as cerimônias ou quando estão no terreiro
realizando atividades diversas. O ojá é definidor da hierarquia feminina no interior do terreiro, isto é, quanto mais alto o
cargo da filha de santo, mais trabalhado e repleto de detalhes ele será. Quando as filhas de santo incorporam as divindades
o ojá é retirado da cabeça, sendo amarrado no peito destas.
240
Pedaço de facão com que se quebram as cabaças de cacau, geralmente função feminina.
241
BERNRARDO, Terezinha. Negras, mulheres e mães. Lembranças de Olga de Aleketu. SP/EDUC, RJ/Pallas, 2003.
p.40.
Fora de casa, os cortejos de mulheres e seus filhos e filhas seguiam três caminhos: o das
roças de cacau próximas ao distrito como diaristas, ou do Rio de Contas lavando de ganho e, por fim,
das cozinhas em Ubatã, como domésticas. Do trabalho das crianças (meninos e meninas) também
advinha o sustento da família. Socialmente considerado naturalizado e, - cuja lei da sobrevivência
ignorava as leis institucionais dos estatutos hoje vigentes - o trabalho pesado transformava essas
crianças em adultos precocemente. Também acontecia de muitas famílias ubatenses mandarem vir das
roças meninas, filhas de seus empregados trabalhadores rurais, para ‘estudar e ajudar’ na rua, modo
como os depoentes se referem ao espaço da cidade. Na verdade iam mesmo era trabalhar duro,
muitas vezes sem salário, apenas em troca da moradia e do acesso à escola, geralmente noturna.
Tomei como reflexão aqui o Rio de Contas, maior espaço em expressão de trabalho braçal na
comunidade, como congregador de atividades múltiplas. O Rio de Contas hoje, não tem as mesmas
águas, nem peixes em quantidade e da qualidade de outrora. Poluído, assoreado, desassistido, foi, no
passado, espaço de trabalho, sociabilidades em cenas como a abaixo retratada por Soihet:
242
“Era nos largos e nas praças que as mulheres costumavam reunir-se para conversar, discutir
ou se divertir, da mesma forma que se aglomeravam nas bicas e chafarizes brigando por sua
vez. Em grande proporção, responsáveis pela manutenção da família, a liberdade de
locomoção e permanência nas ruas e praças era vital para as mulheres pobres, que
cotidianamente improvisavam papeis informais e forjavam laços de solidariedade”.
Faço alusão a esse espaço descrito acima como o Lajedão às margens do Rio de Contas,
lugar que a memória trouxe à tona por todas as pessoas quando falaram em trabalho feminino. Essa
era a parte preferida pelas numerosas lavadeiras entre 1960 e 1990. Além do cacau, essa ocupação
advinha de uma demanda das famílias ubatenses, que requeriam esses serviços em grande
quantidade, e havia também os funcionários da CHESF, que recorriam a estes serviços a custos
baixíssimos.
A labuta se deu em dois espaços predominantes: nas roças de cacau e nas margens do rio,
mas é difícil tentar separar os homens, na roça, das mulheres, no rio. Esses espaços imbricavam-se
pela necessidade e força feminina, onde homens e mulheres, com ajuda de crianças, labutavam
cotidianamente. As trocas simbólicas nos cantos, nas histórias, nas atividades, nas panelas de pirão de
água fria dividido, passado de mão em mão, debaixo de um pino de sol, na oralidade que ensinavam às
novas gerações que desde os sete anos costumavam ajudar suas mães se configuravam lugares
de ricas trocas e encontros femininos com sua ancestralidade, a natureza, as águas, a força.
242
SOIHET, Raquel. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. História das mulheres no Brasil. Ed. Contexto. São
Paulo, 2002, p.367.
Nas margens do rio e no coração da comunidade, os narradores suscitaram os nomes das
mulheres aqui apontados e a teia de sentidos
243
que cada uma engendra. Nesse recorte, apropriei-me
do cotidiano ao ouvir relatos, ler os espaços através das sociabilidades, trabalho e religiosidades. O
Lajedão foi desnudado como um lugar marcado pelo cotidiano de lavadeiras, fateiras e donas de casa,
por mulheres que sozinhas sustentavam suas casas e filhos.
A cotidianidade apareceu para enriquecer os entrelaçamentos, ao articular narrativa e história
oral na descrição de episódios de solidariedade social no nascer, festejar, morrer; da vida entre
parentes de sangue e de ‘consideração’; das atividades coletivas de caráter econômico, ritual, laboral
que vieram à tona. Aos poucos, o mundo da labuta abriu espaço para um viés de análise, a do
parentesco por consideração, e do trabalho como fator que fortaleceu além do compadrio, os laços de
solidariedade. Esse pôde ser apreendido com a percepção de Certeau:
O cotidiano é aquilo que nos é dado cada dia (ou que nos cabe em partilha), nos proporciona
dia após dia, nos oprime, pois existe uma opressão do presente. Todo dia, pela manhã,
aquilo que assumimos, ao despertar, é o peso da vida, a dificuldade de viver, ou de viver
nesta ou noutra condição, com essa fadiga, com este desejo.
244
O cotidiano é o território do contraditório, do relativo e do dinâmico ou, como afirma
Gaurinello
245
, devemos pensar “o cotidiano não como uma dimensão particular da existência humana,
mas como o tempo concreto de realização das relações sociais”. Olhar para ele é acionar códigos que
estão permeados de cultura, vivências e memórias.
Dias
246
faz uma reflexão que somada aos depoimentos, observações e contextos etnográficos,
sedimentou as possibilidades de apreender através dessas memórias do cotidiano, os processos
históricos concretos de sujeitos que fizeram a vida ser ação com suas especificidades: negras e mães,
solteiras ou casadas, mas sempre no trabalho.
Os relatos descreveram essas mulheres como fortes, cujas presenças marcam a história local.
Elas detêm um poder informal, construindo poderosas redes de sociabilidades, solidariedades, atuando
em diversos papéis, muitas vezes grávidas ou amamentando. Foram responsáveis pela manutenção da
cultura material e simbólica, principalmente em dois momentos ímpares, num processo primeiro que
remonta à formação do distrito, período pós-abolição, quando se acentuam numerosas mães sozinhas
243
Em alusão à teia de significados com a qual devemos interpretar como afirma Geertz.
244
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Op. Cit, p. 31.
245
GUARINELLO, N. L (2001). Festa, trabalho e cotidiano. In. Festa cultura e sociabilidade na América Portuguesa. São
Paulo: Ed. Hucitec. /Edusp, p.971.
246
DIAS, Maria Odila Leite. Hermenêutica do cotidiano na historiografia contemporânea”. In: Projeto. História.
Trabalhos da memória. São Paulo. nº.17, nov.1998.
com seus filhos. E, no segundo momento, quando, com a decadência cacaueira, a maioria dos homens
migra para São Paulo e deixa suas mulheres na comunidade, chefiando seus lares.
Ao dar voz a esses sujeitos, essas mulheres emergiram como atuantes na educação, religião,
luta política, nas festas, onde seus micro-poderes diluíam-se em diferentes dimensões, e estas são
reveladoras de identidade. Distinguem-se por suas experiências, pela situação familiar, pela condição
social, pela cor, por suas trajetórias e seus ofícios. Além disso, elas não deixaram de ser canais de
comunicação sócio-política.
É enquanto traço também das heranças africanas presentes na ancestralidade que as associo
neste espaço, sustentando a força e a inventividade. Perrot
247
diz que “as mulheres souberam tirar
partido dos espaços que lhes eram confiados ou deixados, para dar a si mesmas prazeres próprios e
contrapoderes eficazes, usando armas para fazer o seu lugar”. Afinal, elas precisavam viver e
sobreviver em meio a grandes dificuldades numa comunidade pobre, sem oportunidades de emprego
formal, educação e assistência médica, retrato muito comum entre 1960 e 1990 da região sul baiana.
A relação com o lugar tem uma grande importância nessa pesquisa, na medida em que amplia,
mostra ou limita as estratégias de sobrevivência. Entre as roças de cacau, as margens do rio e o
espaço do sagrado, as mulheres transitavam nos dois planos: físico e espiritual, que, a rigor, o
cotidiano não se desvincula do mundo mítico, da fé, da ancestralidade.
Para Mãe Rosa
248
, num momento em que se reportou ao trabalho braçal onde suas
companheiras de lida, ela resume: labutava os dois, os homens e os encantados”, o Orum e o A
249
,
as labutas eram diferentes e complementares, os negros iam ao rio, dar e receber. Desde o Cristal, o
trabalho especificamente no rio, nas canoas, era uma constante, o ir e vir das fazendas, a pesca, a
areia. A proximidade fazia com que o intercâmbio também acontecesse com os que de fato
residissem , assim como os que saíam de madrugada e retornavam no final da tarde, os diaristas.
Os contornos dessa mulher camamuzinhense mostraram que ela criou suas rotas entre
canoas, areia e pesca cuja proximidade do rio fez com que a apropriação do meio natural facilitasse a
profusão de diversas ocupações. Homens e mulheres que não estavam no labor do cacau
encontraram, no rio, um meio de sobrevivência; construíram um universo, dinâmico e solidário. Mais
próxima do rural ou do urbano, maiores diferenças caracterizaram as pessoas ou os grupos neles
incluídos. Faziam farinha, cultivavam hortas, complementavam a renda ou essa era única. Se a fama
das negras do lugar começou pelo poder religioso oriundo do candomblé, isso não as exclui de serem
classificadas como indivíduos pertencentes aos estratos mais baixos e carentes.
247
PERROT, Michele. As mulheres e os silêncios da história. São Paulo: EDUSC, 2005, p. 485.
248
Anteriormente Identificada.
249
Processo de interação entre os homens e entre o mundo visível (aiê, em nagô) e o invisível (o orum). SODRÉ, 1998, p.
21
Os homens que passavam o dia nas margens do Rio de Contas eram quase em sua totalidade:
areeiros, canoeiros e pescadores, tiravam areia para vender e a colocava secando à espera das
encomendas, ou a vendia ali mesmo, fato que atraía compradores de diversos lugares, inclusive de
Ubatã.Ao longo das margens do rio e separados com troncos deitados, o que delimitava os “lotes” dos
areeiros locais, era possível ver os montes de areia reluzindo, enfileiradas ao sol, enquanto
prosseguiam as vendas. Serviço paralelo era o dos canoeiros, estes se ocupavam mais do transporte
de cacau, da areia e das pessoas que moravam no outro lado do rio, nas fazendas.
Figura 27- “O Rio, os negros e suas canoas”
Fonte: Arquivo Particular – Cristiane Batista – Janeiro 2008
Além destas duas categorias, muitos homens eram pescadores e suas famílias eram sustentadas
com a venda de peixes, camarão, curuca e pitu. As pescas diárias, na maioria das vezes realizadas
pelas madrugadas afora garantiam o sustento e envolviam a participação da família na pesca e no trato
dos peixes, e este produto envolvia muitas modalidades de venda: a corda de peixe chamada de
“enfieira
250
”, a venda de camarão pequeno no prato e no litro, e do pitu que era, na maior parte das
vezes, por ser mais caro, vendido aos quilos. O trabalho era árduo e envolvia bater tarrafa, pescar de
anzol e jererê.
251
Depois, adultos e crianças saíam vendendo pelas ruas de Ubatã e Camamuzinho.
As mulheres acompanhavam seus maridos e eram acompanhadas de filhos e vizinhos no trabalho
no rio, cotidianamente, também havia as fateiras, que tratavam o fato na beira do rio. Ali mesmo
montavam seus caldeirões, acendiam fogo improvisado e saíam com o fato fresco ou salgado. Para
250
Corda confeccionada de plantas ou cipós, para venda de peixe.
251
Instrumento de pesca.
as lavadeiras não era diferente, saíam também com a roupa seca no final do dia, prontas para passar.
Numa sexta à tarde, a movimentação na beira do rio se no sentido de preparar-se para a feira do
sábado. Encontrei meninos que cuidavam da chama depois que um porco acabara de ser pelado, era
uma sexta-feira à tardezinha e iriam vendê-lo na feira de sábado, mas o fogo continuava aceso, para
que o fato fosse limpo depois de tratado. O labor no rio conta muito com a ajuda das crianças e é um
traço da família numerosa, que precisa da colaboração de todos. Além das fateiras, as lavadeiras
contavam com a ajuda dos filhos. A memorialista Hildegardes Viana descreve um cenário que, em
muitos aspectos, poderia ser o do Camamuzinho:
Era fácil identificar uma lavadeira. A visão de uma mulher descalça com uma trouxa de roupa
à cabeça, nos dias de segunda-feira, era trivial. Andava pelas ruas, saias meio arregaçadas
seguidas a curta distância por um filho ou filha de pouca idade, carregando galhos secos
miúdos ou pontas de madeiras de desmancho reunidos num feixe. Esta era a mulher que
levava roupa para a fonte, tipo que está gradativamente desaparecendo. Era a lavadeira,
profissional de um dos mais duros e penosos trabalhos que se possa imaginar.
252
Figura 28 - “Uma pausa na labuta, sem a rodilha, para a festa e a fé”. - Maria do Cheiro Lavadeira
Fonte: Arquivo Particular de Dona Anete – “Maria do Cheiro Lavadeira”
Se a saúde impediu Maria do Cheiro, a comunidade falou por ela com destaque entre as biografias
exemplares da comunidade, como a mais famosa lavadeira de Camamuzinho. Também pegou água de
ganho, vestiu a elite cacaueira com as roupas alvas e engomadas no Lajedão, num tempo em que o
Senhor Pedro relembra Não tinha água, nem luz, nem nada. Só uma cisterna que ainda ali na
252
VIANA, Hildegardes. As lavadeiras faziam assim, 1998. Disponível no site: http: / jangadabrasil.com.
br/novembro/of31100a.htm>; acesso em 23\05\08.
praça, na Saluse”. Afinal, para sustentar os 19 filhos, ‘entre os vivos e mortos’ no dizer local, e marido
ausente e violento, seria necessário mesmo muita força.
Seja para elite ubatense, os fazendeiros locais, os funcionários da Chesf, as mulheres que
lavavam, passavam, cozinhavam e vendiam também movimentavam a praça, com o ir e vir , - muitas
subiam com as roupas e voltavam com o pão, a farinha, a carne - suas trouxas ou com montanhas de
peças alvas e engomadas. Na fala de Carlos
253
, os detalhes surgem como alguém que vivenciava esse
cotidiano por freqüentar o lugar; colocavam roupa para quarar no Lajedo e usavam quarana para
clarear ou biriri
254
para tirar manchas, as pedras cobertas de roupas, eram muitas, parecia uma feira.
Tinham muito que fazer, conversar, cantar.
O ápice era de fato o dia de sábado, na feira livre de Ubatã, que se tornava um lugar por
excelência de trocas entre essas mulheres, filhos, vizinhos e parentes. É assim que Bernardo
255
explica
que a “feira não possibilita somente a complementaridade econômica, ela é o lócus privilegiado de
outras trocas, além de bens materiais, nas feiras trocam-se bens simbólicos: notícias, modas, receitas,
músicas, danças. Estreitam-se relações sociais.” Um encontro do Camamuzinho em solo ubatense,
junto com carros, burros, mulas e jegues que traziam e levavam, antes do sol nascer, pessoas e
coisas. Na memória destas, prevalece o momento de vender o peixe, os produtos das roças e dos
quintais e, principalmente, a comida caseira e simples vendida em barracas muito procuradas, tais
como: mingau, sarapatel, rabada, cozido, bolo de puba e de aipim, feijoada, entre os pratos mais
procurados; assim como o momento de comprar ou, como dizem “fazer a feira” com o dinheiro obtido
na própria feira.
Esse ‘ganha-pão’ profundamente determinado pelas relações de gênero, que embora
responsáveis, as mulheres, pelo cuidado com a prole e o lar, obrigando-as a exercer diversos papéis,
na roça de cacau, na rua, nas cozinhas e na feira, vendendo e comprando. Informa-nos Priore que,
durante o período colonial no Brasil, não houve trabalho que a mulher escrava não executasse, por isso
a ‘faz de tudo’ inspirou-se em suas ancestrais, de onde retiram força de suas histórias perpassadas
através da oralidade.
Na faina agrícola, labutavam com a foice e a enxada, desde pequenas, semeavam, catavam
ervas daninhas, enfeixavam as canas. Nos engenhos, eram encarregadas de moer as canas
e cozer o melado, agrupadas em torno de infernais panelões de cobre. Manufaturavam o
açúcar, descaroçavam algodão e descascavam mandioca, base de sua alimentação.
Ocupavam-se das tarefas domésticas na casa-grande, onde cozinhavam, lavavam, coziam e
arrumavam, assim como na senzala, onde se responsabilizavam pela manutenção de
maridos, companheiros e filhos. Também na senzala algumas delas, graças aos inúmeros
253
Carlos Martins, 38 anos, chef de cozinha e auxiliar administrativo escolar.
254
Planta de fruto azedo cuja semente é utilizada para retirar manchas das roupas.
255
BERNARDO, Terezinha. Op. Cit. p. 34 .
conhecimentos transmitidos oralmente o chamado “saber fazer” tornavam-se parteiras,
benzedeiras e temidas feiticeiras
.
256
Os resquícios coloniais se dão em outros tempos, lugares e com outras pessoas, mas é a
mesma a força com que enfrentavam a vida. Sobre esses saberes de que acima nos fala Priore,
emergem no Camamuzinho as cozinheiras, parteiras, benzedeiras e temidas feiticeiras cujos nomes,
histórias e pluralidades são desnudadas a seguir.
Ainda hoje é possível de vê-las a lavar roupas e a tratar fato de boi no Camamuzinho. que, em
virtude das mudanças naturais e econômicas, e pesa nisso o fato de o rio ter sido assoreado,
transformado com o lixo e a poluição, são extremamente reduzidas em relação ao período áureo entre
os anos 1960 e 1990, onde essas atividades convergiam para o grande momento que era o dia de
sábado.
Hoje o fluxo de águas do Rio de Contas está baixíssimo, contornando toda a área de Ubatã e
Camamuzinho, constata-se que o volume de águas que propiciou vida e subsistência no passado, hoje
é mais composto por vegetação, com esparsas e disputadas vazões de água pelos moradores. Assim,
muitas possibilidades de renda também se reduzem.
3. Memórias das ancestralidades negras femininas, as mulheres, seus santos, encantos e
desencantos
Nas metáforas da cotidianidade, a dor ou a poesia, a festa ou a faina foram recontadas com
lembranças boas e dolorosas, mas sempre no afã de rememorar o vivido, imbuídos de tom, cor e o
modo como haviam se dado as representações no coletivo.Procurei dar voz aos sujeitos em suas
descrições com as imagens do passado sendo rememoradas fielmente.Vejamos como essas mulheres
ressurgiram: Uma preta bem preta, gordona, famosa que todo mundo gostava dela, muito procurada,
falada e poderosa”, com essas adjetivações Dona Diana, o Senhor Pedro e Dona Regina se referiram
ao lembrar das mulheres negras do candomblé. Usaram essas descrições para pessoas diferentes:
Mãe Maria, no Cristal, e Mãe Boneca Dois de Ouro, Mãe Rosa, Mãe Maria do Carmo. Para os
depoentes, “a fama de Camamuzinho começou assim.” Dona Regina que diz ter vivido todo esse
cotidiano de perto relembra delas como se fosse hoje e continua a explicar:
“Mamãe Boneca era uma bem preta, bonita e gordona que veio de Camamu”. Foi o primeiro
candomblé que se tem notícia no Camamuzinho e depois dela veio logo Dona Santa, com
esta, a polícia mandou fechar sua casa, pois era proibido naquele tempo. Pessoas do centro
da comunidade reclamaram do batuque, da zoada e a polícia veio fechar a casa dela. E ela
256
PRIORE, M. Del. Mulheres: o Brasil colonial. São Paulo, Contexto, 2000, p. 18.
foi reclamar com o prefeito em Ibirapitanga, pediu uma carta para abrir sua casa e não
fechou logo porque ela lutou. ”E a casa ficou aberta.”
Um ex-delegado do distrito, o Senhor Chico, ouvi a confirmação do nome desta Mãe Santa
aludida acima, como mais uma personagem do axé; ele informou que ela era “danada”, repito o
adjetivo por ter sido no sentido de perseverante e forte, tanto que nem a pressão de uns vizinhos, pois
sua casa era localizada no centro uma vez que entendiam que devia estar afastada, na periferia -,
nem do delegado que foi em nome dos vizinhos, a abalaram. Mãe Santa foi direto ao prefeito em
Ibirapitanga e exigiu um alvará de funcionamento.
Os sentidos de mãe que busquei não foram os de mãe de santo, tem outros
desdobramentos para contemplar e dar conta dessa complexidade que envolve as esferas do lar, do
trabalho, do espaço coletivo, da posição religiosa. e, na comunidade, o é quem pariu, mas
quem cuidou, espiritual e fisicamente, por isso o termo se repetiu para falar das es de santo, de
leite, parteiras, madrinhas, mães de “pegação”, de rezar de olhado, de criação.
Essas mulheres foram capazes de reorganizar todo um arcabouço religioso e cultural, dando
territorialidade à cultura negra a seu modo, afinal não projetaram o lugar como atuaram na
manutenção da tradição oral, dos valores afro-brasileiros neste espaço, com suas casas simples, mas
sempre dotadas de muito respeito. Meu ponto de partida foram as representações sociais sobre as
mulheres negras nesse cenário, pois com esse intuito foi que eu trouxe os relatos, as histórias de vida
à luz da cosmovisão africana.
Afinal, para o povo de santo do Camamuzinho, a história da religiosidade afro-brasileira tem
gênero e cor e os estudos sobre gênero e candomblé mostram que eles favorecem à inclusão e
valorização da mulher, que associo ás heranças recriadas na diáspora, ao espírito de iniciativa que as
mulheres nagôs tiveram na África, relacionado-as às atividades de direção e administração, que
agora em terras sul baianas.
257
O Candomblé, no Camamuzinho, ficou associado a uma linha, chamada de nação Angola, uma
das nações africanas que teve influência significativa na cultura baiana, especialmente na Região Sul,
com destaque para a cidade de Ilhéus.
258
E somente no caso do terreiro de Mãe do Carmo é que ela
dizia ser de umbanda.
O comum era que as tratassem por termos como macumbeiras, feiticeiras, “como nos núcleos
urbanos contemporâneos a função sacerdotal de yalorixá/babalorixá (mãe/pai-de-santo) costuma ser
257
Cf. VERGER, Pierre Fatumbi. A contribuição especial das mulheres ao candomblé do Brasil. In: ______. Artigos. São
Paulo: Corrupio, 1992.
258
Mãe do Carmo mantinha estreitas relações com uma ialorixá de Ilhéus indo por muitos anos com um ônibus lotado para
a virada do ano, saudar Iemanjá. Além de ter deixado recomendação expressa de que o axexê na sua casa depois de sua
morte seria feita por essa senhora de lá.
designada por feiticeira (o)
259
. Por desconhecimento, se referiam como um todo homogêneo, quando
se tratava de adeptos da religião afro-brasileira. Nesse espaço, ao perguntar por essas pessoas
respondiam-me com uma pergunta : Antônio Curador ou Maria Curandeira ?
As duas linhas tiveram, similitudes quanto às significações sociais ao modo como as pessoas
fora do espaço do terreiro viam a procura da comunidade pelos de fora, a fama do lugar, o respeito de
todos por estas mulheres, o que resultou em algo parecido com o que Dias
260
explica, inclusive essa
importância que elas adquiriram vem de longe, começou a ser gestada no período de vigência da
escravidão, de modo que
[...] gozavam de prestígio e influência entre os próprios escravos, tornando-se líderes no seu
convívio social e religioso: no seu quotidiano de trabalho e de lazer, alternavam-se cantos
estratégicos de comércio ambulante, com a intensidade de “pontos” mágico-religiosos dos
seus cultos improvisados. Adquiriam fama como curandeiras e mães de santo.
Através desse viés, o do poder religioso, é possível perceber que uma comunidade
estigmatizada e pobre, ganha valorações por parte da gente de fora, gente de dinheiro , mas com
“precisão”,e um novo olhar, o da credibilidade nos remédios e curas receitadas pelos Encantados e por
Ogum de Ronda e de
261
, através do poder representativo feminino de fazer e desfazer “feitiço,
macumba, ebós”,como fala o censo comum.
Antes de apresentá-las como personagens centrais em tempos coexistentes e heterogêneos
da memória, gostaria de fazer um adendo sobre os espaços de poder e atuação destas na rua e em
casa como pólo de referências. Não como oposição, mas em dimensões como o terreiro, o rio, a
comunidade, a igreja, em espaços de complementaridade.
Por pensar assim, não contemplei os ilês
262
onde
as mães de santo atuaram ao longo da história do distrito, mas as elaborações sócio-políticas que de saíam, tendo à
frente mulheres que fizeram destas casas religiosas, casas de moradia, de acolhimento, assim como de prestação de
serviços, assistência médica, organização das sociabilidades.
Em seu entorno, ocorria também a junção entre a
casa e as redes de parentesco, influências que ao redor delas se construíam, de reconhecidas
centralidades plurais. Decidi por abordá-las primeiro individualmente e, logo em seguida, promover um
encontro nas encruzilhadas das memórias, analisando-as conjuntamente. Vejamos a primeira história.
Memória I:Ogum de Lê e Maria
259
ESTANISLAU, Lídia Avelar. Op. Cit. p. 223.
260
DIAS, Op. Cit. DIAS, 1984, p. 119
261
Ogum de Ronda através de Mãe Rosa e Ogum de por Maria do Carmo eram os patronos de suas casas. Quanto a
essas variações de nome, Ronda e , segundo Oxum (1999), o orixá Ogum, na Umbanda, possui vários falangeiros Cf.
OXUM, Dalva da. Os Senhores dos Caminhos: Exu – Ogum – Oxossi. 3
a
Edição. Pallas, RJ, 1999.
262
Ilês, o mesmo que casa de candomblé.
Se sua fama era de poder em virtude de fazer bons trabalhos para os de fora, para os de
‘dentro’ sua fama também era a de socorrer os pobres da vizinhança, da Pinguela e da Rua do Brega.
Migrante também, como muitas outras, Maria do Carmo dos Santos veio de Jequitinhonha-MG,
com sua mãe, que mesmo muito jovem, bebia demais. Uns trechos de carona outros a pé, mas sempre
motivadas pelo cacau no sul baiano. “Um senhor buliu com ela” e teve o primeiro filho aos 12 anos em
Jequié - BA. Nesse período foi trabalhar na casa de um médico que a ensinou a fazer partos; a partir
daí seu dom aflorou de modo muito rápido e forte. Veio para o Camamuzinho e tornou-se, pouco
depois, Mãe do terreiro de Umbanda que fez fama pela força de Ogum de Lê, aberto por cinco décadas
e fechado pelo próprio Ogum,o que foi anunciado dias antes de sua morte.
O marido não era de santo, mas apoiava a mulher sem interferir. Enquanto isso, ela ficou
famosa por fazer trabalhos e resolver problemas, recebia “gente de fora”, São Paulo, Salvador, das
roças, cidades vizinhas, Ibirapitanga, Dois Riachão e dos bairros periféricos de Ubatã: Comissão,
Ruinha, Londrina. Vinha gente de todo canto procurá-la, a casa estava sempre cheia. Até hoje tem
filhos de santo no Camamuzinho e entre os biológicos e os adotivos não houve quem desse
prosseguimento aos seus afazeres religiosos. A casa ainda tem roncó, o quarto do Tempo e de Exu
estão intocados no quintal à espera do axexê, assim como o salão e o quarto do santo onde ela
raspava, curava, catulava
263
. A freqüência de Mãe do Carmo às missas, festas do padroeiro sua
participação ativa, as romarias à Bom Jesus da Lapa e às procissões, assim como a virada do ano na
praia em Ilhéus ao qual ia com um uma comitiva ,suas iniciativas eram tão notadas pela comunidade
quanto sua fama de “boa”. Ficou famoso o empréstimo da imagem de Santo Antônio para as
procissões da Igreja, - este ainda está enfeitando a sala, aparece nas fotos dos rituais- até que um
novo padre proibiu.
Ela pedia licença aos vizinhos para realizar seus toques, em caso de doença de um deles,
respeitava o silêncio, ajudava com os remédios, também pagava semanalmente à polícia local para ter
sua casa aberta e muitas vezes podia dar toque aos sábados e domingos. Ajudava a saciar a fome
do corpo, além da do espírito, e distribuía comida. Cuidava de um senhor que mora em frente à sua
casa, o mais velho morador do lugar, não deixando que lhe faltasse nada. Aos 105 anos, tive o prazer
de encontrá-lo, infelizmente hoje está cego, surdo de um dos ouvidos, mas goza de boa saúde para
sua idade e é muito risonho. Oscar Pinheiro dos Santos, ex-coveiro, ex-guarda municipal, aposentado e
aos cuidados de uma vizinha. Entre a dificuldade de ver e ouvir me tranqüilizou com um gesto
apontando com o dedo indicador para sua cabeça dizendo está tudo ainda aquie assim rememorou
emocionado quando se reportou à Mãe do Carmo
263
Catular - Cortar o cabelo com tesoura, preparando para o ritual de raspagem para iniciação.
Maria do Carmo? Não parece que tem quatro anos que ela morreu. Cuidava de mim, me
dava de tudo, ela era muito boa. Eu cheguei aqui antes dela, vi tudo. Ela comprou uma
casinha do lado e depois que foi para essa grande em frente. Eu batia tambor na casa
dela por muitos e muitos anos. E tem uma canção que eu cantava com ela assim “ca
meus irmãos cadê/que não vem brincar mais eu”)?”
Figura 29 - “Mãe do Carmo e a festa de Ogum de Lê: feijão, mariuô e obé
264
Fonte: Arquivo particular de Maria do Carmo do Santos – 1990
Além de centrar na sua figura feminina a faceta lutadora, dela ficaram a bondade, a festividade
e a força de uma mulher que sempre acudia aos outros. Ajudava muito às prostitutas da Rua do Brega,
cuja proximidade lhe permitia acudi-las nos partos,nos remédios e até mesmo dando comida. O relato
emocionante de Cristiane, sua filha adotiva de 27 anos, criada por ela desde os 15 dias de nascida,
conta que ela Era magia branca e de Ogum de Lê, cabeça
265
dela, sua mãe de santo era Rosália de
Nazaré das Farinhas”. Muitos filhos perderam sua mãe, seu Oscar perdeu uma filha e a casa de Ogum
de fechou as portas, no dia 09 de abril de 2004,quando aos 72 anos, com a casa cheia, ela foi para
264
Mariuô - folha de dendezeiro nova e desfiada e o obé, facão de mina larga como qual Ogum guerreia e sempre é
vitorioso. Conforme Lody, Op. Cit. p. 58
265
Ter o orixá de cabeça que é o mesmo que Ori. Para os iorubanos, o ori tem status de divindade e recebe cultos
complexos. No Brasil, o rito de dar comida à cabeça preservou-se como primeira etapa da iniciação e é "O culto à
individualidade do homem, à cabeça, o que está dentro da cabeça. O ritual de dar comida a cabeça é o bori" ,Prandi, 1991p.
124.
o Orum. Ainda no Aiê, uma outra mulher negra, de Ogum e Nanã, nos oferece mais uma bela história,
a de Mãe Rosa.
Memória II: Nanã e Rosa
Aos 87 anos mora no Cotovelo, cria um neto, não lida mais no axé, lida com as vacas e
criações que tem no quintal. É chamada por todos de Mãe Rosa e em virtude da excelência na arte de
partejar, foi entrevistada por alunas do curso de enfermagem da USP para o Projeto Rondon.
Figura 30 – “Mãe Rosa, pluralidades e ancestralidades”.
Fonte: Fotografias do trabalho de campo. Cristiane Batista - 2007
Desfazer o mal, fazer nascer o bem, essa mulher negra tinha muitos papéis: parteira,
enfermeira, macumbeira, poderosa, forte, famosa também por “desfazer trabalhos”. Com o poder e a
força de Ogum de Ronda, seu cabeça,
266
junto com os “encantados”. Rosa Carvalho dos Santos, 84
anos, abriu muitas vezes suas portas para quem ia em busca de desfazer trabalhos e voltar ao
equilíbrio, ou para dar à luz. Não tinha idade, sexo, condição social ou tipo de problema, as pessoas
iam ao “Cotovelo”, periferia do Camamuzinho, esperançosas porque já tinham ouvido falar de seu axé.
Dona Rosa veio recém-casada morar na comunidade, acompanhando seu marido, Antônio, que veio
trabalhar na construção da Barragem do Funil.
Casou-se aos 13 anos e fez o parto do primeiro menino aos 14, filho de uma irmã. Nessa
ocasião ela sabia que seu orixá a guiava, embora sua cabeça ainda não tivesse sido feita, o que
ocorreu anos depois em Nazaré das Farinhas - Ba. Suas funções na comunidade ainda estão vivas na
memória e os diversos relatos a nomeiam: mãe de leite, de pegação, enfermeira, “médica” e
266
Idem à nota anterior, quanto ao significado aqui utilizado.
macumbeira. Conhecida pela dualidade: extremamente generosa como mãe, temível nos seus
“castigos” com a força dos orixás. Fez o parto dos seus próprios filhos, sete no total e acolheu em sua
casa mais seis, de parentes e vizinhos.
Nas suas festas famosas são descritos pormenores: primeiro rezavam as ladainhas, com arroz
doce de copo e de prato. Depois da reza longa, Mãe Rosa sambava, os “encantados desciam”,
sambavam, brincavam, davam recado, assim também acontecia nos carurus, com os toques de
candomblé, em que a casa ficava lotada. Ela citou nomes de políticos, fazendeiros, de gente da elite
ubatense e regional que o faltavam todos os anos, mandavam presentes, dinheiro, vinham
pessoalmente ajudar.
Conta que os mesmos companheiros da igreja iam à sua casa em busca de “fazer trabalhos” e
ela recusava, sua especialidade era desfazer trabalhos, ajudar ao próximo. E nesse intuito, o espaço
de sua casa foi refeito com muitos quartos para “hospedar” as mães que vinham parir e ficar para
receber os cuidados dela; assim como os que vinham se tratar, desfazer trabalhos, da casa dela
saíam quando estavam curados. Poderiam pagar ou não, com dinheiro, presente ou algum tipo de
ajuda. Assim sua fama correu a cidade, a região e outros Estados.
Quanto às pessoas ricas, mesmo em face da advertência da simplicidade de sua casa,
aceitavam hospedar-se sem restrições. A sua face do mal, segundo ela, aparecia sempre que lhe
faziam mal ou lhe faltavam com o respeito, “se roubassem do meu quintal peru, galinha e porco ou
desfizessem de minha casa, o meu encantado me contava, meu guia era muito forte, eu sabia ase
era menino ou menina em ver a mãe detalha. Foi chamada para trabalhar na maternidade de
Ubatã, perdeu a conta de quantos meninos pegou, mas uma conta ela faz com certeza não perdi
nenhum na minha mão”. Finalizava uma briga no Camamuzinho apenas com sua presença e seu olhar
firme, temiam sua desaprovação, distribuía leite de suas vacas, que cria até hoje no quintal para as
crianças que passavam fome, além de dar comida aos vizinhos.
Essa capacidade em prover e acudir me fez ver nessa mulher regida por Ogum, aspectos
mitológicos que Prandi aponta em relação a esse orixá, quando diz que “ao criar as ferramentas s
fim à fome, proporcionando fartura e abundância para todas as pessoas.
267
Depois do falecimento do
seu marido, passou por muitas dificuldades, e em relação a sua vida de intensa labuta narrou,
emocionada:
Eu fazia de tudo, que nem todos os homens. Meu marido morreu no trabalho e por dois anos
antes da pensão minha vida era assim: batia tarrafa no rio, no quintal de 2 às 4 da
manhã.As 7 eu tava de pé, ia quebrar pedra, brita. Quando isso acabou fui para o Mato
Seco fazer caieira, fazia carvão pra vender, minha filha. Toda quarta-feira eu fazia farinha,
saía de madrugada e voltava a noite com ela no saco. Ensinei a todos seis: pescar, fazer
carvão e farinha. Vendiam o peixe de corda de dia aí eu trocava o dinheiro e comprava
267
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, p.91 -100 ,2001.
comida, até que a pensão saiu. Mas não pense que eu deixei de pegar menino ou fazer
minha obrigação para o santo não, era tudo com Ogum.(...) E na hora dos partos botava a
saia e vinha Nanã, vinham os guias. No resto do tempo era eu que aplicava injeção, ninguém
aqui nem sabia o que era isso, atendia os outros, desfazia os trabalho, entregava a pessoa
sã.”
Embora ajudasse a curar através da natureza, Mãe Rosa era avançada, aplicava injeção,
receitava os remédios num tempo em que as pessoas tinham quase ou nenhum acesso a isso.
Vejamos a história de outra malunga.
Memória III: Oiá e Beata, a guerreira, a dona do mercado, da festa
Hoje: Um sítio de nome Santa Bárbara uma vela é acesa para as almas todas as segundas-
feiras em cumprimento de sua devoção, o caruru em 04 de dezembro dado por muitos anos, cestas
básicas que o distribuídas no dia 04 de dezembro, um nome que se repetiu insistentemente quando
o assunto era organização de festa e blocos: Maria Libânea de Jesus.
Quase ninguém no Camamuzinho sabe de quem é esse nome, Dona Beata, sim, soa como
lembrança boa. Um lugar que seria de natural submissão, a cozinha, para Dona Beata representou o
contrário, a liberdade, a possibilidade de sustento e trabalho. Responsável também pela manutenção
da cultura material e simbólica, bem como pelas festas, cozinhas, atuação na comunidade mediando
entre os políticos seus amigos, clientes, conhecidos e a comunidade.
Dona Beata veio da Ruinha de Ubaitaba-BA para o Camamuzinho, viúva, depois de uma
vida de sofrimentos, maltratada pelos pais adotivos e depois, mais ainda, pelo marido. Teve sete filhos
e morreram seis, com a única filha sobrevivente veio atraída pela mesma notícia, a de um lugar
promissor em virtude do cacau e da Usina do Funil, que gerava movimento, o Camamuzinho. Assim,
trocou a Fazenda Pedra Preta, que havia feito “à mão”, por uma casa no centro da comunidade.
Montou a Pensão e Restaurante Bonfim, num lugar que não tinha ainda quase nada e criou a filha,
duas sobrinhas, as filhas destas, as de sua irmã que faleceu e os dois netos que foram os depoentes.
Negra, analfabeta, famosa por sua culinária, pela organização das festas nas décadas de 1960
e 1970, era muito conhecida em Ibirapitanga e, sua casa tornou-se o centro, o ponto de encontro. As
pessoas comiam e se hospedavam até quase um mês, quase moravam lá. Políticos, fazendeiros, só se
reuniam, dormiam ou comiam na casa dela, nas épocas de eleição a casa virava um comitê, único
lugar onde os dois partidos opostos se encontravam sem brigas. Pedia ajuda a eles, intercedia pelos
que precisavam de favores, pelos moradores do Camamuzinho, usava da proximidade e do respeito
que ela gozava junto a eles. Sua casa era o pólo a partir do qual circulava o que movia a comunidade,
a construção da BA 02, os funcionários da Usina do Funil, os políticos, coronéis e os viajantes, além
dos que viviam do cacau.
Figura 31 -“Maestria na cozinha, na festa e na devoção a Santa Bárbara: de fato Beata!”
Fonte: Arquivo particular de Helton Luís de Almeida -
Dona Beata dava caruru de Cosme, anualmente, durante o dia e à noite rezava, distribuía mingau, a
comunidade participava em peso, com gosto e fé. Foi assim por muitos anos. E perto de morrer que
se desassossegou insistindo que deveria urgentemente dar um caruru em 04 de dezembro de 1991;
dias depois faleceu. Era devota de Santa Bárbara, mas o ia ao candomblé, tinha imagens destes
santos em casa, acendia uma vela para as almas todas as segundas - feiras, devoção que seu neto
mantém até hoje. A sua história de vida fazia supor que era uma mulher guerreira. Segundo seus
netos
268
, era vaidosa e costumava dizer que “quem nasceu só para comer era porco”, devia-se festejar.
Festeira, organizada, respeitada, ainda é lembrada pela maneira como organizava as festas boas.
Nesses momentos, sua casa virava uma oficina, com a construção de roupas, sapatos, enfeites,
principalmente as roupas de índios. Coordenava também a escolha das músicas e num tempo em que
não havia os trios elétricos, o sambão era ensaiado por Toin Preto com participação dos homens,
responsáveis pelos ensaios da batucada.
Algumas mulheres que ainda vivem na comunidade como Dona Mercedes, a professora Tatá,
Rita do Bar, sua neta Helma, relatam que até os sapatos de quem iria sair no bloco passava pelo olho
dela”, assim como as posições de cada uma ,as alas, os tecidos. Por muitos anos o bloco de índios
268
Helma, Helton Luís de Almeida, 43 anos.
transcorreu segundo sua organização, sempre com temática indígena. E sua neta tenta explicar: ela já
veio com isso, já trouxe essa festa de lá de onde veio”.
Entre “festar”, articular e trabalhar, ela adoeceu de um tipo de reumatismo provocado pela
alternância de temperaturas depois de décadas no do fogão, sofreu uma espécie de derrame que
deixou suas mãos limitadas, encolhidas. Ainda assim, sentava-se e ia dizendo o modo de proceder
com os temperos e alimentos, afinal era dessa renda que sustentava a família. Ensinava os temperos
sem poder mais manusear aquilo cuja fama e sabor lhes permitia sobreviver. No Início da década de
1970, com a conclusão da BA 02 e da usina do Funil, muitos moradores foram para Ubatã, bem como
foi preciso reduzir o quadro para as funções permanentes, o que fez com que o movimento do Distrito
diminuísse. Mais uma vez a cozinha a salvou, pela sua força e inventividade de boa vendedora e
ganhadeira. Usando um apropriado termo de Soares,
269
ao referir-se ao modo como era tradicional a
maneira como as mulheres negras negociavam para ganhar a vida, as ganhadeiras.
O que antes era distribuído apenas depois da reza, o mingau, fez sua fama no Camamuzinho e
ganhou as ruas de Ubatã, a venda de mingau e milho cozido. Foi esse o meio de sustentar a família:
duas vezes ao dia seu neto, Helton, saía com o caldeirão e uma rodilha na cabeça pelas ruas da
cidade até o final da década de 1980.
A festa acabou em 30 de dezembro de 1991, quando ela faleceu aos 86 anos e nem mesmo a
doença grave a abateu. Ela nunca reclamou, estava sempre bem-humorada. O programa de rádio local
“Canta Viola” fez uma homenagem a Dona Beata, falou de sua trajetória e o locutor Olival a denominou
de mulher guerreira. Guerreira também é o adjetivo usado para Iansã, que é sincretizada com Santa
Bárbara que, por sua vez, também é festejada no dia 04 de dezembro. Coincidências à parte, Dona
Beata e suas múltiplas faces e muitas histórias.
Em quais encruzilhadas de memórias essas mulheres se entrecruzam? Intencionalmente deixei
para refletir sobre isso depois de mostrá-las com as faces que as memórias trouxeram. O que vimos
anteriormente além de Maria do Carmo, Mãe Rosa e Dona Beata? Ogum, Nanã e Iansã humanizados,
próximos das pessoas e distantes do exotismo que a cultura ocidental prega,pois os encontramos em
afazeres simples, comuns do cotidiano,e essa foi a intenção.
Depois de três lindas histórias de vida, que se aproximam e se encontram numa encruzilhada
de memórias tripartidas em três narrativas que revelaram algumas das muitas mulheres fortes no
Camamuzinho, similitudes e diferenças à parte, imiscuíam-se de poder representativo, religioso e
festivo.
269
SOARES, M. Cecília. "As ganhadeiras: mulher e resistência negra em Salvador no século XIX". In: Afro-Ásia, vol.
17. Salvador, CEAO-UFBA,1996 .
Como angulação privilegiada no trato dessas fontes, a memória serviu à história que por sua
vez, desvelou mulheres líderes, e suas representatividades no interior do grupo, o que pode ver por
suas dimensões nestes espaços. Pensar o poder representativo comunitário dessas mulheres através
das memórias foi o modo que pensei e pesei nesta abordagem como a mais adequada tentativa de
apreensão.
Os relatos anteriores mostram-nas pela boca de outras, não são suas histórias, é o poder
que delas emana indiferentes às injunções do tempo, mais que histórias de vida, são dimensões
políticas e religiosas de atuação feminina.
Nesse fazer histórico por via etnográfica procuro lançar mão do recurso estilístico que se
aproxima de metáforas, mais do que um reforço do dito, é esforço em buscar o não dito, o não
formalizado nas falas, o que está nas entrelinhas e nos silêncios de quem narra, relembra. Por esse
motivo as articulações e os recortes de abordagem partem do material empírico, falas, imagens,
silêncios e nuances tanto teóricos quanto narrativos, provém desse caráter a associação entre estes
sujeitos e os orixás.
Senti-me extremamente à vontade em relacionar essas mulheres aos orixás por compreender
que, além da que professavam, existe em seus modos de atuação no espaço coletivo da
comunidade um imbricamento na maneira como as pessoas as vêem, como dualidades, amparo,
exemplos tão bons quanto temidos, - assim como aos orixás e caboclos.
Urgiu definir quem é quem nessa labuta que se constitui numa região fronteiriça entre história,
etnografia, narrativas e memórias. E, nessa proposta, aos poucos esses elementos foram
metaforicamente sendo desvelados: a credibilidade que as mulheres negras conseguiram legar ao seu
nome ao longo de décadas, via religiosidade afro-brasileira e ação comunitária, de modo a serem
sinônimos de poder, resposta, respeito no trato com o visível e o invisível.
Mãe Rosa destacou-se pela quantidade imensa de partos realizados e pelo fato de em sua
casa não fazer trabalhos, apenas curava, desfazia, com o poder de Ogum de Ronda e dos remédios
que os encantados lhe ensinavam; por seu turno, Mãe do Carmo era poderosa no fazer bons trabalhos,
fazia-os de todos os tipos, com o poder de Ogum de Lê e dos caboclos que lhe acompanhavam,e Dona
Beata, pelas festas,por sua cozinha, sua devoção a Santa Bárbara, se tornou de igual modo querida,
famosa, respeitada.
Três Mães, três décadas, três histórias e vimos assim os símbolos de muitas Marias. Mãe
Maria no Cristal e depois Mãe Boneca Dois de Ouro, depois dela veio Mãe Santa, Mãe Rosa e Mãe do
Carmo. Essas mães garantiram o intercâmbio religioso, a manutenção do calendário litúrgico festivo.
A fama do Camamuzinho como lugar onde se resolvia tudo, a vinda de pessoas de São Paulo
confirmava um acontecimento que valia a pena a viagem longa na certeza da cura. As semelhanças
não param por aí, soma-se a isso o fato de que duas delas faziam suas obrigações em Nazaré das
Farinhas - BA e mantiveram com essas casas, além de suas obrigações, visitas e auxílio, num tempo
em que essa viagem lhes conferia uma maior credibilidade, como frutos de uma árvore boa, confiável.
Eram tão temidas quanto amadas, com a ajuda de seus orixás e inquices estabeleceram limites
através da fé, da cura e do medo. As três hospedavam, tinham na comida generosidade ou forma de
subsistência, em múltiplas esferas essas mulheres podem figurar; e com suas histórias de vida, labuta
e ação fizeram com que orixás como Ogum e Nanã, assim como Cosme e Damião e Santa rbara,
pudessem ser respeitados pela comunidade. Suas casas também ganharam outra dimensão simbólica,
como um espaço-lugar de socorro, festa, ajuda e seriedade que se traduziram na circulação constante
de pessoas.
As mulheres no Camamuzinho detiveram o poder religioso, motivo pelo qual o lugar ganhou
notoriedade. Ogum emergiu como um orixá que junto com os caboclos, encantados são considerados
como poderosos e infalíveis; a associação entre Nanã e um parto seguro se dava pelo fato de Nanã, -
orixá relacionado à vida, uma vez que “deu à luz” a mais três orixás, Obaluaê, Oxumarê e Iroco, - estar
sempre em Mãe Rosa na hora dos partos.
Mães de muitos filhos, paridos, pegados, feitos, criados, os do ventre, os do parto feito, os
feitos no santo, os adotivos por generosidade de modo que as semelhanças vão além da cor, negras;
além do santos, orixás; além do lugar, Camamuzinho.
Os maridos, se presentes na vida, estavam ausentes no professar da o que ambas as
biografias comprovaram-, eu diria que foram coniventes, silenciosos. A fama além do lugar, a casa
cheia, os hóspedes de fora, de muito longe, em busca de respostas, a distribuição de comida para a
vizinhança pobre não as comidas das festas, eram alimentos principalmente o feijão e o leite-,
uma postura de respeito que impunha medo ao mesmo tempo que confiança, quando procuradas para
prestar socorro, seja na hora do parto, ao que chega, na hora da morte, ao que vai. O tratamento
comunitário de mãe não poderia ser melhor utilizado e assim abarca muitas dimensões,pois
preencheram lacunas onde o poder instituído não agia, o político inoperava.
A circularidade de papéis dessas mulheres durante o trabalho de campo levou-me a
estabelecer comparações: Mãe Rosa e Mãe do Carmo, como um recorte, e outras, como Dona Beata,
a cozinheira, festeira, política, mediadora. Rezadeiras e benzedeiras, como destaque na organização
das festas do padroeiro, Santo Antônio, e enfim nas várias formas de religiosidade, a presença
feminina foi de suma importância.
O lugar do qual falo, é o de quem ouviu memórias através dos relatos orais e, nestes, estas
mulheres apareceram em lugar de honra,com admiração e saudosismo, da boca da própria Mãe Rosa
o que se constituiu em cada encontro em aulas de vida e força, pois anos eu o a ouvia- e de
Mãe do Carmo, por duas de suas filhas, uma adotiva e outra biológica. No entanto, antes de ouvi-las
elas apareceram em todos os relatos, de uma forma ou de outra, que selecionados, vão corporificando
a trajetória, a visão que têm destas neste espaço ao longo de décadas. Esses arranjos de vida definiam
a modalidade de vivências, relações e sociabilidades de modo que
No que concerne às funções, a sobrevivência das casas femininas pobres passa por uma
mobilização (pelas mulheres) de seus próprios laços familiares, bem como de suas relações
"quase-familiares" (apadrinhamento, circulação das crianças etc.) e de vizinhança, isto
resulta numa distribuição das funções residenciais, reprodutoras e socializadoras num
espaço familiar e de sociabilidade que ultrapassa largamente o espaço doméstico.
270
Justamente por transcender os afazeres domésticos e a relação onde a palavra do marido era
a primeira e última, foi interessante perceber como a figura masculina, nos três casos destoava da
maioria repressora. Dos nomes dos maridos delas quase ninguém se lembrou, ou não foram nem
citados em suas referências. Descobri maridos que se encontravam no lo inverso ao que ditava o
patriarcado, estes acompanhavam cúmplices e com temor as suas esposas, nesses recortes as
narrativas contam que eles a seguiam, obedeciam e elas tinham a palavra final.
Nascer de parteira e com alguém que estava com Nanã tornou-se algo natural, e depois
tomar a bênção, e mais prometer que seus filhos fossem pegos ainda por ela, ritualmente se repetia
nos casebres de taipa e nos barracos do lugar. É algo imbricado na história e identidade local e
congrega conhecimentos variados, dos religiosos aos científicos, que diluídos em experiências comuns,
na invocação, dos santos aos orixás, do conhecimento de plantas, dos ensinamentos orais, desvela
também o papel social da mulher como símbolo da oralidade e do conhecimento sobre a tradição do
“cuidar” da saúde do grupo, espiritual e fisicamente, na solidariedade que perpassa e ultrapassa os
laços consangüíneos.
É importante salientar que a comunidade rural não tinha acesso aos serviços médicos, nem à
assistência religiosa de um padre, o que ocorria praticamente uma vez por ano. Na ausência desses
“amparos”, a comunidade se valia dos conhecimentos e saberes populares. A era manifestada na
cotidianidade com o auxílio dos orixás, mais próximos, habituais e acessíveis, no anonimato e na força,
e elas sustentavam suas famílias, algumas até bandeirando cacau, o que se aproxima do que Priore
271
entende ao dizer que “no Brasil ' família' vale ler ' mães sós' que compunham a grande maioria,
sobretudo nas classes subalternas
”.
São vistas pela comunidade do modo como Siqueira traduz essa
experiência em palavras, a própria personificação dessas mães negras e de santo:
270
AGIER, Michel. AS MÃES PRETAS DO ILÊ AIYÊ: nota sobre o espaço mediano da cultura in: Afro-Ásia, 18 (1996),
p. 189-203.
271
DEL PRIORE, Mary. A mulher na história do Brasil: raízes históricas do machismo brasileiro, a mulher no imaginário
social, "lugar de mulher é na história". São Paulo: Contexto, 1989.p 55.
Este sentimento de intimidade da mulher negra com a mitologia e com a ritualidade religiosas
afro-brasileiras abre caminhos para que ela conhecendo, ampliando, recriando e
transformando, numa forma de poder socialmente construído, assumindo papéis que vão se
redefinindo a cada passo: ora mãe, ora educadora, ora curadora, estabelecendo relações
sociais, políticas e mesmo diplomáticas.
272
À sua maneira, no cotidiano e no trabalho essas mães parteiras, de leite, de santo, de labuta
têm sido fortes sinais e exemplos, e m influenciado fortemente o local onde sua prática cotidiana
acontece. Assim, rememoram sua ancestralidade, de suas avós, bisavós, num legado de
reminiscências africanas na força dos orixás que souberam tão bem representar, e isso antecede ao
Cristal. Bernardo
273
afirma que:
As características de proteção e afeto maternos intensos, acrescidas à de provedora, que a
mulher africana e afro-descendente também detém como foi discutido anteriormente,
possibilitam a vivência da matrifocalidade na sociedade brasileira. No entanto, todos esses
aspectos culturais, sócio-econômicos e históricos elencados não explicam a ocorrência
somente de um tipo de família, mas dão indícios fundamentais para o entendimento do fato
peculiar da mulher surgir como a detentora do poder religioso, a grande sacerdotisa do
candomblé.
As narrativas dos moradores sobre o cotidiano é que trouxeram os temas, problemas, objetos,
e as protagonistas desta reflexão, a partir da qual, o caminho etnográfico ganhou contornos, me
encaminharam a pensar também no poder da palavra, na força que ela suscita.
Ogum é líder, centralizador de poder e hábil estrategista, e as mulheres cujas cabeças lhe
pertenciam provaram e mostraram-se como tal na comunidade. Ter axé no Camamuzinho é ter
mironga, poder, ou, como explicou Agrimaldo, 42 anos, pai de santo do terreiro de Logum Edé na praça
central do Camamuzinho, “Mãe do Carmo tinha mironga, axé mesmo, igual a Mãe Rosa no tempo dela
aqui ”.Desse modo, ganharam amplitude mesmo na fala de gente comum, que indiferente ao
conhecimento específico das origens dos termos, sabiam que eram coisas de negro, de terreiro.
Em suma, excetuando a carga pejorativa da coisa de negro, destaco a carga simbólica e
representativa do que se constitui em herança da língua africana preservada e disseminada pela
religiosidade afro-brasileira nesse espaço, principalmente pela língua de santo e através do axé
feminino.
Geralmente os terreiros são vistos como espaço de conservação de tradições e por excelência,
dos falares africanos a partir da religiosidade, no modo como foram atuantes na cotidianidade, os
falares oriundos das casas de Mãe Rosa e Mãe do Carmo. Junto com elas, nomes tão populares
272
SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Iyami, Iyá Agbás. Dinâmica da espiritualidade feminina em templos afro-baianos. p. 443.
273
BERNARDO, Terezinha. O candomblé e o poder feminino. Disponível em
www.pucsp.br/rever
Revista Eletrônica
Rever - ISSN 1677-1222 acessado em 01/08/07.
quanto desconhecidos para a maioria das pessoas não adeptas das religiões afro-brasileiras, como os
orixás Nanã e Ogum.
E ficou visível “um respeito pelos espíritos que se expressam através de rituais do reviver da
mitologia em momentos vitais da história da comunidade: o nascimento de uma criança (...)” assim,
Siqueira
274
comprova essa influência. Mesmo quem não é de santo, tem histórias de vivências com o
povo de santo da comunidade, ou sambou num samba de caboclo, ou teve filho pego pelas mãos
dessas parteiras, ou tomou remédios de um encantado, comeu caruru de Cosme ou mabaço, usando
termos comuns que os relatos trouxeram.
Paralelo à atividade da imensa maioria masculina, acentuadamente nas roças de cacau, desde
essa fase, a religiosidade afro-brasileira atuava nas brechas de uma igreja católica que formalmente ia
rezar uma missa uma vez ao ano no Cristal, e depois de batizar e casar, quando o padre finalizava sua
missão anual, a ação diária das mães de santo junto aos problemas cotidianos, começava.
Importante atentar para essa especificidade uma vez que esse foi o solo fértil que propiciou a
projeção do lugar, a manutenção da cultura afro-brasileira de modo muito forte nas festividades,
sociabilidades, na aproximação entre as pessoas e os orixás de modo acentuado, respeitoso. É esse
um dos motivos da cultura afro-brasileira estar tão enraizada desde a gênese da comunidade, numa
circularidade de valores afro-brasileiros naturalizados, incrustados no modo de ser e viver dessas
pessoas.
Lavando roupas, pescando, vendendo mingau, cuscuz, sarapatel, plantando hortas,
bandeirando cacau, pegando menino, rezando de olhado, organizando o toque do candomblé, as
heranças ancestrais das mulheres trabalhadoras do Cristal se entremeavam a seus saberes, fazeres,
linguagens e memórias. As comidas e os costumes de uma recente pós-abolição contribuíam para
disseminar as palavras africanas. Além do dendê, as moquecas de folhas, os chás, os angus,
compunham esse mosaico rico de saberes e sabores. Somadas a estes, os falares litúrgicos
completava e reafirmava essa memória ancestral e ao mesmo tempo tão nova na medida em que se
incorporava ao cotidiano.
Indiferente ao conhecimento da origem, as palavras além de inseridas no cotidiano reforçavam
a representação da cultura afro-brasileira: afinal, como exemplo podemos citar que vendia-se acarajé,
abará; na igreja do Camamuzinho se tocava o agogô e atabaque emprestados de um terreiro vizinho,
gradativamente a associação de palavras africanas e de terreiro, ganharam espaço na identidade
grupal, pois ao Camamuzinho sempre se creditou o título de lugar onde a religião e a cultura afro-
brasileiras eram a “cara daquele povo”. Esse era um modo de demarcação de território simbólico.
274
SIQUEIRA, Maria de Lourdes. Siyavuma: uma visão africana do mundo. Ed. Autora, Salvador, 2006, p.63.
E como traço característico, o caráter de natureza comunitário, coletivo, de bens socialmente
compartilhados: o Rio, a labuta, a religiosidade, recriavam valores afro-brasileiros onde na vida
humano-social-cultural-religiosa não se pode pensar a pessoa fora de sua comunidade, o Cristal até
1959, e o Camamuzinho a partir de 1960, com a atuação socializadora da mulher negra e a partir dela
um modo de crer, comportar-se e falar, ligado às religiões afro-brasileiras.
O ritual simbólico que confere poder a essas mulheres negras veio do interior de suas casas de
santo, terreiro, e se estendeu à comunidade porque suas ações não se limitavam às práticas religiosas.
Antes, estas serviam como caminho para que, conscientes da pobreza e das limitações em volta,
atuassem como solidárias e generosas: curando, plantando, colhendo, pescando, vendendo, doando.
Ogum, Nanã e Iansã, para quem vive na comunidade, esses são velhos conhecidos que fizeram o
bem, curaram de um mal, fizeram um parto, e para isso usaram como caminho duas mulheres negras
da comunidade. Ogum de ou de Ronda, Nanã, os Encantados, os Caboclos, o axé, a curandeira.
Estes termos, dentre outros, são heranças africanas na comunidade diluídas em práticas de fé,
inseridas como palavras oriundas do universo religioso afro-brasileiro que permeiam o cotidiano da
comunidade como signo de credibilidade, amparo, cura, festividade e por isso, símbolo de identidade.
Esta se deu através dessas mulheres negras, mães da comunidade que aproximaram orum e aiê, a
valorização destes que se desdobraram não nos trabalhos ligados ao espiritual, mas ao amparo
material.
O mito iorubano da criação lega ao orixá Nanã uma grande importância no processo de criação
do ser humano. O nome Nanã significa mãe, e está associada à lama, ao barro, e na cultura ocidental
judaico-cristã, foi também desse material que o homem foi feito. O que sobressai dessas acepções é a
associação entre Nanã e o início de tudo.
No Camamuzinho não foi diferente. Nos relatos sobre os nascimentos entre 1960 e 1990, do
grupo de depoentes que essa pesquisa contemplou, não houve um único caso de alguma mulher que
não tenha tido pelo menos um filho nascidos por parteira, e o nome de Mãe Rosa foi apontado em 90%
dos casos. A confiança no axé se dava na materialização de todo um ritual que envolvia a parteira, a
mãe e a criança, desde as dores do parto ao resguardo com observâncias como a proibição do
recém –nascido sair do quarto antes dos sete dias, por exemplo.
Cabe fazer parênteses explicando alguns elementos, primeiro sobre estas duas mulheres
negras, mães de santo, filhas de Ogum e com uma autoridade e poder tanto religioso quanto político no
seio da comunidade. Recebiam Nanã e socorriam mulheres num tempo em que médico numa
comunidade tão pobre e desassistida era muito raro. Quanto à comunidade, não tinha nem um posto
médico, somente poucos conseguiam transporte para atendimento em Ubatã e, nos casos mais graves,
buscavam-no em Ilhéus e Itabuna.
Mãe Rosa mora, desde 1960, no Cotovelo, a parte mais pobre de um Distrito pobre, na
periferia. Isso dava a ela “um lugar de ‘maior precisão mesmo”, onde era maior a pobreza. Quanto às
mães, estas eram tanto do Camamuzinho quanto das roças de cacau próximas ou mesmo das
distantes. Algumas de Ubatã também mandavam chamá-la, o que se deve ao fato de Mãe Rosa não ter
perdido nenhum filho de “pegação” e mais, a crença de parir com alguém que “estava” com Nanã, era
sucesso e garantia de uma ‘boa hora’.
Quanto à Mãe do Carmo, situada bem na fronteira entre Ubatã e Camamuzinho, em frente à
antiga ponte da Pinguela, onde tinha sua casa aberta, terreiro do Senhor Ogum de Lê, por quarenta
anos até seu falecimento, em 09 de abril de 2004. Por estar com sua casa situada em uma zona de
prostituição, a famosa Rua do Brega, era muito comum que Mãe do Carmo socorresse muitas
prostitutas, as mulheres da rua ,e também as da roça, ou as muito pobres que moravam ali em volta
com vários tipos de doenças.
Dividindo o distrito com seus trabalhos em lugares diferentes, ambas estavam na mesma
esfera, a da ajuda e da solidariedade. A longa saia que Mãe Rosa vestia quando ia fazer o parto
simbolizava que Nanã ia chegar, para as que seriam atendidas era uma segurança, uma força e
figurava no imaginário da comunidade que aquela saia era uma espécie de ritual pelo qual o poder
chegava. Ubirajara ou Cacalê,
275
conta: depois que ela vestia a saia, pronto era Nanã mesmo que
tava ali” e o filho biológico de Mãe Rosa, Paulo Carvalho ,me explicou: “Quando mãe vestia a saia eu já
sabia que não era mais ela, eu nem falava nada, uma vez quando eu era menino fui avisar a ela que eu
ia e ela tava de saia e me disse, pera que acabando daqui a pouco ela volta; depois desse dia eu
entendi de vez.” Quando Nanã terminava, mãe Rosa voltava e cumpria seu ritual do primeiro banho.
Cabe lembrar que nascer de parteira, comer o escaldado de parida, oferecer cachaça
temperada às visitas, esperar os sete dias para que o menino pudesse sair do quarto, ter a casa cheia
de vizinhos e cada um dar uma ajuda, era parte de um todo, o ritual de nascimento numa comunidade
que depois da década de 1990 vem perdendo espaço no lugar, o corpo expropriado da mulher,
na tradição judaico-cristã ,
276
era valorizado na procriação como um dom divino ritualizado,calcado na
tradição e partilhado entre suas companheiras, ainda que a pobreza fosse grande.
Muito comum, era, também, escolher o nome do menino em homenagem ao santo do dia, em
suma se constituía num momento festivo, congregador. As relações de parentesco e a vizinhança eram
enriquecidas e estreitadas pelo compadrio. A que pegou seria eterna comadre, o menino seria filho de
275
Digina, nome como filho de santo ou Ubirajara Martins morador da comunidade há 28 anos.
276
Cf. THEODORO, Helena. Mito e Espiritualidade: mulheres negras. Rio de Janeiro: Pallas, 1996.
pegação e a mãe geralmente obrigava o menino a pedir a bênção a esta pessoa. Até o início dos anos
1990 e mesmo com o advento da maternidade em Ubatã, Mãe Rosa e Mãe do Carmo eram solicitadas.
Quanto ao Posto de Saúde, esse ficava reservado ao momento da vacinação, e quando dispunha
delas.
A comparação entre as histórias de vida, tão caras ao valor da mulher negra e de santo na
comunidade, suas trajetórias de vida validaram outros aspectos, deram seriedade à religião afro-
brasileira, trouxeram os orixás para o cotidiano.
Naqueles tempos havia um ditado de que no Camamuzinho “tudo se resolvia com macumba”, o
que corria à boca pequena, com certo orgulho ao ser contado no boca à boca; afinal a comunidade
estava sendo reconhecida como um lugar “poderoso” o que destoava da estigmatização imposta pelos
moradores vizinhos ubatenses no que dizia respeito às suas formas de religiosidade.
Algumas palavras que se repetiram nos testemunhos serviram como ponto de partida para uma
tentativa de compreensão desse cotidiano. E em torno de verdades estabelecidas socialmente é que
essa reflexão se ancora, entre Santa Bárbara e devoção. A temporalidade também despontou como
traço marcante, para se referir ao passado, os depoentes partiram sempre do presente, das casas que
hoje são abertas, de como eram no passado, de como o lugar hoje é visto com (clientelismo, mistura) e
de como era vista (fé no axé, precisão, fidelidade aos ritos),e muitas vezes viagens longas exigindo fé,
obrigação e devoção.
Portadoras de muito axé preservaram a cultura de origem africana através das religiosidades
afro-brasileiras e fizeram de suas casas um espaço público acolhedor e agregador das pessoas da
comunidade, de fora, das roças de cacau próximas ou até mesmo de longe. Desse modo, as memórias
e os relatos em torno de ambas são sempre num tom de respeito e saudosismo. “Entre os africanos e
seus descendentes, a utilização das folhas simultaneamente à força da palavra, muitas vezes tem o
sentido de cura (...) colocando lado a lado Omulu e Ossaim, senhor bosques e das ervas”.
277
Dessa
força nos fala Bernardo, a da palavra associada à ação, aos remédios e curas através do
conhecimento ancestral africano, através de mulheres e sua memória é que muitas comunidades
puderam encontrar ajuda, socorro. Foi assim desde os tempos coloniais, continua assim principalmente
em comunidades pobres do interior do Sul da Bahia. Alguns rituais chamados por eles de ‘tradição’, se
renovam pela ação de mulheres negras que, em sua maioria, não são simples curiosas, mas
sacerdotisas portadoras de axé e sabedoria.
277
BERNARDO, Terezinha. Op. Cit.,p. 76.
É nesta esfera que os saberes do terreiro, este como maior depositário do legado africano,
ganha dimensões comunitárias e as mães de santo são portadoras de um axé que circula entre ações,
festas, curas.
No terreiro estão presentes as representações do aiyé (terra) e do orum (espaço
transcendental), representado nos assentamentos dos Orixás e Eguns, Exu e Caboclo. Destes
provinham as forças, as providências, e essa era a face que a comunidade via, da qual falava,à qual
tinha acesso.
Benzer, tomar chás e banhos, procurar ajuda para diversos tipos de males nos terreiros no
interior da Bahia ainda é muito comum, é grande a recorrência e são muitas as crenças nessas
práticas, o que a essas mulheres simples, lugar de extrema importância, pois o reconhecidas,
valorizadas, estão na memória. E ao pensar nesta circunstância, elementos que parecem ser do
domínio individual, são também coletivos e com a experiência passada, também se misturam às
experiências presentes, o que nos possibilita perceber hoje essa dimensão de valor, de rememoração.
E foi a partir desses elementos encontrados nas narrativas de hoje que essas mulheres negras, seus
falares e signos vieram à tona. “A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que estão,
agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual”,
explica Bosi
278
.
A generosidade de suas ações trouxe uma face dos orixás distante da satanização - imposta
pela cultura judaico-cristã ocidentalizada católica e, a partir da década de 1980, evangélica que de
modo contrário figurava como ajuda, incorporava-se ao falar cotidiano. Isso reporta ao que Castro
(1990), chama de “influência sociolingüística da mulher negra no desempenho de “mãe-preta” na
intimidade da família colonial”, que aos poucos introduziu e naturalizou palavras de origem africanas no
cotidiano, na esfera sócio-religiosa do grupo. Enquanto a pesquisa caminha, novos termos e temas
vêm á tona, mas têm como denominador comum a herança cultural africana na linguagem, memória e
história local.
Ogum, e as ancestralidades negras femininas, Nanã, Iansã, no Camamuzinho, estão atreladas
ao vivido. Pensá-los neste contexto além do religioso, foi também como via de perceber o caráter
emblemático de resgate das inter-ralações com a história local. Esta perpassa a narrativa de história de
vida - nesse caso seriam muitas mulheres retratadas - de mais uma comunidade incrustada na região
sul baiana. Ao delinear os recortes necessários para abragência dessa pesquisa, tomei como símbolos
três mulheres cuja representação social comunitária, em diversos relatos era apontada como ícone, ora
de sociabilidade, ora de força, religiosidade afro-brasileira, cura, ajuda comunitária, políticas e
sobrevivências.
278
BOSI, Ecléa. Op. Cit 2001, p. 55.
Entre estas, suas similitudes vão além da cor, do gênero e do lugar comum, ambas emergem
de interações do vivido e rememorado por cada sujeito e de suas correlações com o grupo social.
Estão tão no bojo da história do lugar através de suas representações que posso chamar de
denominadores comuns do relembrar, quando o assunto foi: mulher negra, a vida no coletivo,
sacralizações, sociabilidades, sentimentos.
Ao analisar essas informações,percebo que elas foram capazes de traduzir as tradições, as
crenças, às manifestações culturais e as práticas de trabalho sempre relacionadas à mitologia africana.
De modo que pude fazer esta escolha intencionalmente como um dos caminhos para pensar a mulher
na comunidade do Camamuzinho uma vez que, em cada história, havia sempre uma inspiração,
devoção e obrigação com um dos santos
279
; recorri à Literatura
280
e às narrativas, memórias e
oralidades que estão nas tessituras do imaginário local.
O imaginário patriarcal sempre foi definidor dos papéis e advém da literatura sobre o cacau,
que abarca ciclos, percalços, coronéis, jagunços, etc., é vasta e densa, carregada de possibilidades de
apreender o universo regional da dita civilização cacaueira da Bahia.
4. Inspirações na Literatura e mulheres negras: amadas que não eram as de Jorge e amadas que
eram de Morrisson
A literatura tem grande participação no relato das identidades e memórias. O que a literatura
sul baiana e amadiana ainda não puderam contemplar, estava encoberto pelas folhas dos cacauais,
pelas baronesas à beira do Rio de Contas ou no interior de casas simples, enfileiradas, margeando-o?
O que a ficção regional esqueceu de tematizar fora do âmbito das Gabrielas foram as mulheres plurais
simples, guerreiras, mães, negras que atendem pelo nome de Marias, Rosas, Mães, comadres,
mulheres comuns e nas suas singularidades e contextos, incomuns. Estas se aproximam dos eixos
marginais da sociedade.
Como elementos-chave da preservação da cultura afro-brasileira na comunidade, sofrem pela
historiografia regional, dupla exclusão por serem mulheres e por serem negras, sem contar que por
destoar de uma cultura cacaueira branca, católica fica ainda mais difícil encontrar menções a estas
mulheres que não estiveram foram da oralidade, memória e história local.
280
Muitas são as discussões teóricas acerca da relação entre História e Literatura. Una vez que este trabalho não objetiva
amarrar essas relações conceituais primo pelas ricas contribuições e aproximo-me do que discute Luis Filipe Ribeiro.
Literatura e História: uma relação muito suspeita. -
Geometrias do Imaginário. Santiago de Compostela: Edicións Laiovento,
2000 in: http://revistabrasil.org/revista/geometria/historia.html acessado em outubro de 2007.
Na literatura regional além do mundialmente conhecido, Jorge Amado, encontram-se outros
ilustres escritores como Adonias Filho
281
, Hélio Pólvora, Cyro de Mattos, Euclides Netto que trataram
vastamente a região cacaueira como palco rico e dinâmico de acontecimentos que têm o cacau como
epicentro de tudo: vida e morte, chegada e partida, homens e mulheres, sobretudo homens.
A dita “civilização cacaueira”,usando expressão à moda Adoniana, não pôde abarcar, em sua
historiografia, a totalidade do vivido, os espaços de vivências e memórias em comunidades pobres
nascidas da dinâmica do cacau na transição dos séculos XIX para o XX, nem as mulheres que
compuseram esse mosaico, tanto de lugares como de povos, sotaques, credos e medos recém-
chegados aqui. Cabe enfatizar que tenho a modesta intenção de colaborar para que parte desta lacuna
seja preenchida. Proponho apresentar uma contribuição a este setor ainda carente de maiores estudos
com os dados reunidos até aqui, a fim de inseri-los nas incursões que a História Regional tem feito
nesse sentido.
Abrimos um parêntese para Jorge Amado que no romance Cacau, eivado de suas influências
comunistas, retrata uma mulher simples que na labuta junto com a família ao lado de crianças, mostra
que a mão-de-obra feminina e infantil está presente nos enfrentamentos de uma rotina pesada
embrenhada nas fazendas sul-baianas. Assim,
“O nascimento de uma filha recebiam-no com alegria. Mais duas mãos para o trabalho. Um
filho, ao contrário, consideravam-no um desastre. O filho comia, crescia e ia embora para os
cafezais de S. Paulo ou para os cacauais de Ilhéus, numa ingratidão incompreensível”.
282
A idéia de ter se conformado com o seu “destino” comprova a situação sub-reptícia de muitas
mulheres que mesmo se casando continuavam submersas no mundo do cacau de modo que
parecessem elas mesmas e seus filhos, extensões destes. As obras amadianas sofreram influência de
Gilberto Freire justamente a partir de 1958, quando mais vende tematizando as mulheres. A
apropriação dessas mulheres como símbolos da realidade as coloca num espaço sensualisado,
marcada ora pela cozinha, ora pela venda do corpo.
Pensar nas mulheres amadas que não eram as de Jorge e tentar encontrá-las, no entanto, na
historiografia regional é praticamente impossível fora da Gabriela - nesse caso a encarnação da mulata
exaltada -, ou das baianas do acarajé ou de uma Dona Flor que cozinha bem. Há uma zona do não-
dito. O braço feminino que colhia cacau o dia inteiro e voltava à tarde a pé, ou atravessava o Rio de
Contas de canoa para voltar para seus lares, ou mesmo depois de extensa labuta às margens deste,
não contam, não constam oficialmente, o cacau aparecia e as obscurecia.
281
Adonias Filho e Euclides Neto retrataram mulheres simples e guerreiras, a lacuna ao qual faço alusão está relacionada
atuação de mulheres como estas e que também são tanto do candomblé, quanto da comunidade, esteios, lideranças.
282
AMADO. Jorge. Op.Cit p. 12.
Essa diversidade de papéis permanece inexplorada pela historiografia regional, que na
centralidade da economia cacaueira, deixou religiosidades, práticas culturais, papéis femininos e
legado africano e afro-brasileiro aqui nestas terras, tão utilizados no cotidiano quanto esquecidos na
produção historiográfica regional. A cultura local tem seus aspectos sociais e religiosos fortemente
ligados ao universo das roças de cacau, as pessoas falam, usam, comem, bebem, festejam em
continuação ou reelaboração do viver na roça, na confluência dos índios tupis que aqui estavam e com
a chegada da maioria de negros na pós-abolição e posterior migração do litoral para o Camamuzinho.
Vale lembrar que a região cacaueira que aparece nos textos literários era oficialmente branca e
católica. Enquanto isso, as religiões afro-brasileiras pulsantes e escondidas, recebiam coronéis em
busca de soluções, previsões para os problemas corriqueiros, resolução de negócios com terras,
heranças, trocas.
Na historiografia baiana, não estudos precedentes que retratem a vida destas mulheres no
período e lugares tomados aqui
283
. A discussão em torno do papel que elas exerciam, - quando
aparecem -, estava centralizado no aspecto privado, retratando as mulheres de cor branca e que
faziam parte da elite da época. Em sua maioria ao lado de grandes sobrenomes à altura que as
extensões de suas fazendas permitiam.
O imaginário coletivo sobre a mulher negra no Brasil só recentemente tem aberto espaços para
diálogos em âmbitos regionais e locais. Excluídas em múltiplas esferas: mulheres, negras,
trabalhadoras, religiosas aos poucos ressurgem nos estudos que envolvem memória, oralidade, história
local, dando nome e cor às personagens tão centrais em suas comunidades quanto esquecidas.
Assim, procurei analisar as múltiplas Marias também por um recorte literário, o afro-americano.
Por pensar na poética da memória, na mulher negra e nas suas relações com a comunidade, pretendo
contribuir para romper com a invisibilidade feminina em um dos capítulos da história regional, a local.
Ao olhar de Giraudo
284
e de Morrison
285
somo o meu, pela via e possibilidade que a comunidade do
Camamuzinho no tocante à mulher negra me encaminhou, é o que ensaio fazer a seguir sem perder as
possibilidades que me trouxeram Ricouer
286
ao afirmar que “a ficção é quase história, tanto quanto a
história é quase ficção”. As inspirações de um romance abriram caminho por via de um recorte até
onde os percursos etnográficos me permitiram ir. O texto etnográfico
287
é ao mesmo tempo, uma
283
O que não desconsidera que Jorge Amado era respeitado no candomblé por sua contribuição, pelo respeito à
religiosidade afro-brasileira em suas obras.
284
GIRAUDO, José Eduardo Fernandes. Poética da memória. Uma leitura de Toni Morrison. Porto Alegre. Editora da
Universidade / UFRGS, 1997.
285
MORRISON, Toni. Beloved. New York: Signet, 1989.
286
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tomo III, 1997, p. 329.
287
GOMES, Nilma Lino. Caminhando com Ruth Landes pela Cidade das Mulheres. In: Maria Nazaré Fonseca; Jussara
Santos. (Org.). Brasil afro-brasileiro. Belo Horizonte, Autêntica, 2000, p.23.
narrativa e um discurso. Nessa perspectiva, o escritor etnógrafo pode lançar o de recursos
estilísticos ao compor o seu texto: a ironia, a retórica, o uso de imagens, as metáforas, etc.”
Trago de Portelli a assertiva de que “o trabalho por meio do qual as pessoas constroem e
atribuem o significado à própria experiência e à própria identidade, constitui por si mesmo o argumento,
o fim do discurso”.
288
Um detido olhar sobre a literatura como testemunho histórico, sinaliza concepções da época
em que foi produzida, são narrativas de estatutos diferentes, mas com proximidades, vislumbradas
especialmente em termos de recursos técnico-narrativos aos quais os historiadores também recorrem.
A ficção é historicamente condicionada.
A literatura brasileira, se nos detivermos sobre a figura feminina negra, tem seguido em muito
o que Freire
289
apontou e tripartiu os papéis: “a negra no fogão, a mulata na cama e a branca no altar”.
Se Gabriela e Rita Baiana, não se valessem dos seus atrativos físicos compostos de sensualidade,
cravo e canela estariam no rol de Bertoleza, entre as outras.
A articulação do discurso aqui pretendida é específica, pensar em retirar de Beloved, o
exemplo das personagens negras femininas e sua atuação no seio da comunidade. Essa força
retratada, bem como o uso da memória e da lembrança de mulheres negras fortes no cotidiano, isso o
romance oferece fartamente.
Além do mais, pensei em buscar de Beloved, o modo como a
representação é abordada se referindo às mulheres, ao modo como o vistas e como se poderia
pensar nas narrativas ,memória e o discurso oral.
A tradução de Beloved do inglês para o português significa Amada, cujo nome é uma das
personagens centrais da quinta obra de Toni Morrison, retratada também pelo cinema emprestando o
mesmo nome ao filme. Esta escritora afro-americana, renomada, foi a primeira mulher negra a ganhar
o prêmio Nobel da Literatura em 1993.
Essa viagem que relaciona esta literatura e os meus sujeitos é garantida não só pelos estreitos
caminhos entre História e Literatura, mas na concepção de que o texto ficcional, como o histórico,
constrói identidades e a missão de atribuir significados à trajetória humana.
Ao tomar um aspecto de Beloved para pensar num estudo de comunidade, acredito que o
processo de produção do texto histórico também possa ser interpretado à luz da experiência literária. E
Morrison faz isso muito bem com as heranças da escravidão. Aqui penso na cultura africana que, no
288
PORTELLI, Alessandro. A Filosofia e os fatos: narração, interpretação e significado nas memórias e nas fontes
orais. In: Tempo: Revista do Departamento de História. Vol. 2. UFFE. Rio de Janeiro: Relune Dunara, Dezembro/ 1996,
p.60.
289
FREIRE, Gilberto. Casa-grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. Rio de
Janeiro: José Olímpio, 1975, p.104.
processo diaspórico, se dilui na nossa cotidianidade e na forma como a mulher negra a mantém,
reelabora, lhes dá ares tão sobrenaturais quanto próximos da realidade.
Desse modo achei brechas para essa ponte, oriundas das ricas releituras de Toni Morrison
numa estrutura narrativa pós - moderna, mas sem perder perfeitas articulações com o passado, a
memória e história dos resquícios da escravidão. O sofrimento de suas ancestrais é visto como algo
comum, cada uma tem um elo na história maior que é de todas. No Camamuzinho, esse sentido
remonta ao período da pós-abolição e migração para as terras do cacau. A metaficção historiográfica
também resgata e reelabora representações do feminino plural: negra, batalhadora, esteio da
comunidade, guardiã de tradições, no trato com o sobrenatural. Hutcheon
290
(1988/1993) traz um
conceito de "metaficção historiográfica", que insere romances como Beloved, no que ela chama de
obras de ficção pós-modernas que partem de um fato histórico para a sua ficcionalização e
reinterpretação.
Assim, personagens femininas de Morrison, retratadas em Beloved ganham similitudes com
outras em tempo e espaço diferenciados, mas inseridas na condição de mulher, na sua atuação, na
congregação comunitária onde mesmo com suas ausências, - algumas mesmo depois de sua morte -,
são presenças constantes trazidas pela memória. Cabe uma apresentação dessas personagens, pois o
foco da relação pretendida centra-se no sentido arquetípico que trago para as mulheres do
Camamuzinho. São elas: uma xamã e ex-escrava, Baby Suggs, Denver, Sethe, a protagonista ex-
escrava, dessas sacerdotisas como Mãe Rosa, Mãe do Carmo e outras cujo trabalho pesado se
destaca, como Dona Beata. Delas emana uma visão muito positiva sobre a mulher na comunidade.
Os subtextos psíquicos estão presentes em Beloved e ao narrar os fatos dão conta do
cotidiano, do sofrimento das mulheres e aqui os comparo aos relatos que ouvi no Camamuzinho,
associando os nomes Mãe Rosa, Dona Beata ou Mãe do Carmo a signos como religiosidade, festa,
cura, nascimento e morte. Essas mulheres, como a velha Baby Suggs, espiritualizam o grupo,
semelhante ao que faz mulher negra afro-americana que é retratada, que nunca se rende, cuja força é
ainda mais reforçada por ser de Ogum e ter Nanã dando-lhe um ar materno, ou na festividade e
maestria na cozinha como Dona Beata. Em torno delas a família é gerida, como um esteio, alternam
fortaleza e sensibilidade.
Pensar a história como processo interpretativo, fazendo links entre a literatura, a história, a
memória e a cultura africana é mapear os processos constitutivos da identidade grupal. Giraudo
291
em
seus estudos sobre Tony Morrison, aponta o modo como ela trata especificamente sobre as
290
HUTCHEON, Linda. Poética do Pós-Modernismo. Historia teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz. Rio de Janeiro: Imago,
1991.
291
GIRAUDO, José Eduardo Fernandes. Poética da Memória. Uma leitura de Toni Morrison. Porto Alegre. Editora da
Universidade / UFRGS, 1997.
genealogias femininas entre as escritoras afro-americanas, abarcando lares matricêntricos, ou herstory,
o ritual de contar sua própria história.
Outro ponto de interesse na inter-relação com essa obra é a intertextualidade, de um fato real,
a leitura de um artigo cujo drama real lhe chamou a atenção, tragédia de Margareth Garner, escrava
fugida em 1855, Toni Morrison encontrou inspirações tristes para o mundo ficcional de sua narrativa,
em Beloved. Assim não deixa de perceber os elementos históricos e os enreda, inserindo na ficção, o
que restava de traumas e entraves devido à escravidão, faz uma espécie de negociação da memória:
não poderia nem se perpetuar e nem ser esquecido. Depreendi dessa forma de tratar a história, um
Camamuzinho marcado por chacinas, desmandos dos fazendeiros e a vida dura do cacau, a situação
de mando e obediência.
Inseridos nesse contexto também estão as formas de resistência que o Distrito precisou
elaborar tendo mulheres negras geralmente à frente dessas iniciativas: frente a sede, Ibirapitanga, ou
em relação ao ubatenses. Desde o Cristal e durante todo o período estudado elas estiveram nas
lideranças dessas mobilizações, como eixos a partir dos quais teceram suas relações pessoais e
coletivas.
Entrelaçar História, memória, e experiências é lidar com um recorte temporal. Morrison faz os
acontecimentos rememorados dar a seqüência e demarcar os tempo presentes, passado e futuro que
estão interligados. Assim entendi porque nos relatos sobre as mulheres que vieram da Beirada e foram
para o Cristal e por fim para o Camamuzinho, Ibirapitanga, as pessoas narraram sem prender-se as
datas, mas sim às suas memórias e às do grupo.
O que aparece nesses relatos e nos relatos das personagens a que Morrisson vida são
criações e recriações da vida no ade prover o sustento físico e espiritual da família, muitas vezes
amamentando nas pausas da lida do cacau, no rio, na cozinha, fazendo ou desfazendo trabalhos,
pegando menino ou ajudando a encaminhar na hora da morte. Esse conjunto de vivências composto
por dor e escravidão, mulher negra e comunidade, aproxima-se do que Gilroy
292
chama de ‘sublime’ e
Mattos
293
esmiúça colocando-nos à par dessa dimensão de modo bastante claro
Paul Gilroy codificou conceitualmente como o “sublime”, ou seja, a dimensão redentora da
dor ou a capacidade criativa que as populações negras tinham, na escravidão, e têm, ainda
hoje, de transformar a experiência da exclusão social, da opressão, do preconceito e da
discriminação racial, em substrato cultural-existencial vivido, voltado para a afirmação
positiva e celebração da vida, principalmente através da inventividade nas formas de
expressão criativas
.
292
GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Editora 34, 2001.
293
MATTOS, Wilson Roberto de. Valores civilizatórios afro-brasileiros, políticas educacionais e currículos escolares.
Revista da FAEEBA: Educação e Contemporaneidade, Salvador, v. 12, n. 19, p. 229-234, jan./jun. 2003.
Criar apesar da dor, celebrar apesar das tristezas, contar e cantar para não esquecer são
outros aspectos observados em comum com Morrison: o tema da dor, a articulação do sobrenatural
com a vida real remete-me à freqüência com que as pessoas ‘de fora’ procuravam os terreiros, a
presença dos ricos, validava socialmente o lugar, dando-lhe fama e projeção. Internamente, o ambiente
criado pela crença nos orixás, cujos conhecimentos da tradição oral acabaram por compor as festas, os
nascimentos, as mortes e o cotidiano tornou-os também além de mito, auxílio, assistência.
As dores compartilhadas pelas mulheres em Beloved são vozes que dialogam entre si na
tessitura do texto e remetem-me a essa comunidade, também de maioria negra, cujos papéis femininos
desempenhados figuram na memória da comunidade. Semelhante a Sethe, Baby Suggs e Denver, três
gerações de mulheres negras marcadas pela vida em comunidade, resquícios na pele e no sofrimento
dos horrores e das memórias da escravidão, que estes o lembrados cotidianamente pelo estigma
fenotípico que ainda impunham por serem negras e mais ainda por serem mulheres, pobres e do
Camamuzinho.
ainda para depreender e associar à tradição oral, onde as histórias o passadas assim,
seja por meio do cotidiano na casa de santo, pois os personagens, em Beloved, contam suas histórias
de dor para voltar a viver, aqui para a manutenção dos mitos do cacau, as chacinas no Cristal e os
terrores a que os fazendeiros submetiam os trabalhadores; essas negras, enquanto lavavam roupa de
ganho no Lajedão do Rio de Contas, tratavam fato ou dividiam a lida no Cacau: os homens colhiam, as
mulheres bandeiravam, eles partiam e elas descaroçavam e despejavam no panacum, daí iam para as
barcaças secar, entre as tarefas de maior predominância feminina nas roças de cacau.
A saída de Denver do quintal, do espaço da casa para ganhar a rua, mudar a sorte do que
parecia azar e sofrimento, comparo à saída do fogão, da trouxa de roupas, das roças de cacau, de lidar
com as forças sobrenaturais com o na terra, no enfrentamento. Essa grande metáfora entendo que,
por fim, Toni Morrison nos faz um convite à reflexão, ao entrelaçar mulheres diferentes em espaços e
contextos, mas iguais em cor, força e herança africana .A inspiração de Beloved é na verdade para
reafirmar as discussões sobre identidade, comunidade e mulher negra a que me propus. Assim ao
invés de estarem apenas circunscritas ao espaço do lar, encontrei-as em lugares e espaços fora e
dentro de casa, mas sempre em destaque.
No final do romance, Morrison retrata a tristeza de Sethe depois que o fantasma da filha
Amada vai embora. Sentindo-se vazia, não reage, não trabalha isolada em casa, quando enfim a
hostilidade da comunidade contra a família assombrada por um fantasma é superada quando sua filha
Denver sai de casa. A saída é o começo, a incitativa gera mudanças positivas, gera uma lição para
outras mulheres; as retratadas aqui ganharam significação no espaço do distrito porque saíram de
casa, para fazer história na rua.
A solidariedade dos vizinhos em Beloved assinala que entre a comunidade isso é uma
constante. No Camamuzinho, as palavras de mulheres que organizaram as sociabilidades e
religiosidades confirmam essa postura, na doença, nas festas de santo e do santo, no nascer, no
morrer. Um casamento simbólico mantido por laços de ofensas, perdões e, mais, solidariedades que se
sobrepunham sem anular as diferenças, mas contra a pobreza, a estigmatização.
Não tinham roças de cacau, tinham quintais: fonte mais do que plantas, folhas e hortas como é
comum em lugarejos que produzem no quintal seus chás, temperos e proteções, com árvores e rituais
como umbigos enterrados e um pedaço da natureza preservado. Esse espaço feminino por excelência
ainda guarda coentro largo, alfavaca grosa e fina, cidreira, arruda, pinhão roxo e tantas outras plantas e
temperos, foi e ainda é, de valores o simbólicos quanto constructos familiares e ancestrais. Criavam-
se galinhas, porcos, umbigos, plantavam-se e colhiam-se frutos, faziam-se obrigações e devoções
dando aos mais novos uma sensação de continuidade de suas ancestrais.
No quintal e/ou jardim da casa, além do trabalho, ele aparece como uma metáfora que
Morrison utiliza para falar daquele espaço de criação e recriação das diferentes gerações femininas
num mesmo lar, os limites da casa, o seguro, conhecido. Transpô-los é arriscar-se, e a maioria ou é
impedida por seus maridos, seus medos ou seus credos ou, a ele se limitaram. Num dado momento
Sethe está paralisada e sua filha Denver segue os conselhos de Baby Suggs e sai do quintal. Isso se
traduz em ir à luta reagir, resistir para prover a subsistência da casa, sem esquecer que o conselho dos
mais velhos incita e inspira os mais novos, é escudo nas lutas cotidianas.
No Camamuzinho as tradições eram repassadas também no hábito que as mulheres tinham de
colocar tamboretes às suas portas, principalmente entre as sete e oito horas da noite, aqui são
chamados de passeio e ali trançar cabelos, contar casos reais e sobrenaturais da comunidade,
reclamar da vida ou organizar novas atuações da vida. Enquanto isso as crianças ouviam tudo
enquanto brincavam no ‘terreiro’. Neste ato de contar e trocar informações compartilhada por filhos e
netos circulam além da cumplicidade, saberes que não foram herdados aleatoriamente, mas sim num
processo em cadeia de suas ancestrais, cujas palavras são testemunhos vivos, evocando ação
quando há necessidade. Como Bosi
294
afirma ” recordar é sempre um ato de criação.”
Daí provêm as falas saudosistas “minha avó, ou uma senhora contava...” e assim contavam e
cantavam de tudo, pela oralidade as riquezas eram trocadas, era na prática a cultura negra agarrando-
se à memória e à oralidade familiar. É assim que Morrisson faz com a figura de uma velha da
comunidade, retratada na tradição oral, tem nestas figuras, amarras familiares e cultura negra lutando
contra o esquecimento que a diáspora não destruiu.
294
BOSI, Ecléa. Tempo vivo da memória: Ensaios de Psicologia Social. Petrópolis, Vozes, 2003, p. 22.
No entanto, a destruição do indivíduo, do eu, causada pela escravidão é recuperada a partir da
solidariedade da comunidade, assim também poderíamos pensar em fome, doença física ou espiritual
e no Camamuzinho poderiam contar com as “Babys Suggs” do cotidiano, sejam elas de ojás, lenços,
rodilhas ou aventais, para lembrar de Dona Beata, mais uma negra de festa, cozinha e estratégia
política, que a memória do lugar não deixa as Marias, nesse caso, muito amadas, morrerem. Sair do
quintal, do espaço da casa e atuar na rua, na dimensão coletiva era reafirmar, silenciosa as
territorialidades que, em diversos espaços e por diversas mães e Marias, foram
engendradas como
estratégias e que teceram paulatinamente o seu território de fé, magia e trabalho.
Concluo pensando em Hutcheon
295
, quando fala da coexistência de diferentes vozes nesse
caso das mulheres negras - composta por fragmentos de memória - coletiva, individual, social-,
histórias compartilhadas na coletividade ou recontadas algum tempo depois. Essas vozes, saindo da
subalternidade e alternando-se, constroem e reconstroem acontecimentos do passado,
problematizando-os a partir de demandas do presente, ancoradas na oralidade. Ouso pensar no futuro.
Figura 31-Quintal de Mãe Rosa –
Fonte : Arquivo de pesquisa de campo- Cristiane Batista -207
Figura 32-Quintal de Mãe do Carmo–
Fonte -Arquivo Particular Familiar -1990
295
HUTCHEON, Linda. Op.Cit.
CONCLUSÕES
A expressão “observador participante” pode dar origem a interpretações apressadas. Não
basta a simpatia (sentimento fácil) pelo objeto de pesquisa, é preciso que nasça uma compreensão
sedimentada no trabalho comum
296
.Temi estes riscos alertados por Bosi, mas a plasticidade inerente à
identidade e cultura me lembra que conclusões e múltiplos questionamentos caminham juntos.
Todavia, a grande preocupação que permeou todo o trabalho foi deixar claro o objetivo
proposto: o entrelaçamento entre identidade, e a partir desta, perceber o sentido do viver em
comunidade, as festividades e religiosidade afro-brasileiras como marcadores grupais na relação
consigo mesmos e com o outro. A natureza destas relações e pautada pelas narrativas e memórias
foram sinalizados os caminhos, me fazendo abandonar roteiros ou sinalizar outros recortes temporais,
temáticos.
Foram inúmeras as abordagens, e é essencial compreender que as conclusões, além de
parciais, são provisórias, seletivas, ao passo que são histórias nascidas e tecidas em verdades
oriundas de um lugar e cotidianos construídos por heterogeneidades. Ao longo do texto, intersectaram-
se histórias de vida e história do lugar, desvelando experiências de sujeitos que, em suas diversidades,
dinamizam aquilo que a subjetividade contemporânea entende por comunidade, pertença grupal, onde
as tensões e os conflitos foram contemplados nessa dimensão. A fala foi usada assim, além de evocar
a memória foi tomada como discurso e lugar de poder. Por isso sempre me preocupou em como os
depoentes veriam o fruto final do trabalho, como passar pelo crivo de seus olhares múltiplos, exigentes.
Desvelar também uma face negra de um município, quando se trata do cenário sulbaiano,
branco e católico é desafiador. A identidade desta região mitificadamente cacaueira, projetada pela
ficção amadiana e Historiografia Regional, ainda não contempla abordagens multiculturais e locais por
vieses como este, o que não preenche, mas desvela ainda mais as lacunas.
Nesse sentido, articulei informações parciais, recorri à seletividade da memória partilhada
297
evocada pelas lembranças e oralidade
298
. As interpretações, mais que descrições, foram interpretações
que tentaram adentrar a zona do não, ou o dito em entrelinhas; assim os silêncios também falaram
para que o conhecimento histórico de fato se estruturasse.
296
BOSI, Ecléa. O Tempo vivo da memória: Ensaios de Psicologia Social, Ateliê Editora, São Paulo, 2003, p.152.
297
FENTRESS, James e Wickham, Chris Memória social. Lisboa, Editorial Teorema. 1994, p. 112.
298
FENELON, Déa Ribeiro. O Papel da História Oral na Historiografia Moderna”. In: MEIHY, José Carlos Sebe Bom.
(Org.) Anais do Encontro Regional de História Oral Sudeste/Sul. São Paulo: 1995 p.26. Para Fenelon, deve-se reconhecer o
uso da fonte oral como uma fonte documental a mais para o trabalho do historiador, e como tal, sujeita aos mesmos
cuidados que dedicamos a outros materiais, reconhecendo sua potencialidades e colocando sempre as questões advindas
de nossas problemáticas de investigação”.
Eu não procurei um tema, sempre estive diante de um grande problema que não conseguia
entender. Por que uma comunidade é o estigmatizada? Por que a ela são legados os termos mais
pejorativos? Por que, se tão próxima, parece tão distante ao atravessar de uma ponte, e então estamos
em outro território?Por que ser do Camamuzinho é ser da tribo, chamado de índio e, se negro, de
macumbeiro? Essas verdades estabelecidas e naturalizadas pelo contraste a Ubatã, ao longo de
quatro décadas resultaram nessa pesquisa.
Se na graduação a pesquisa começou com o trabalhador nas roças de cacau, voltei para os
terreiros pela pós em Antropologia, e fiquei de vez pela dissertação. ‘Exorcizar o familiar’, foi a tarefa
mais difícil, a linha tênue ficou mais tênue.
Este trabalho passeia por essas conceituações e nas relações entre estes, partindo sempre do
material empírico Os sujeitos não podem escapar a determinadas contingências como seres de ação e
intencionalidade, interpretam prática e discursivamente a sua experiência, nas ações e nas narrativas
em torno delas. Capazes de agir individual e coletivamente, sobre as circunstâncias mais diversas e
adversas e ao tematizar a identidade, o relacional é gritante: na identidade, nas iniciativas que
desvelaram um traço comum aos três capítulos, a mulher negra como sustentáculo ora evidente, ora
escondida, mas sempre atuante. Nessa perspectiva, os fatos e as possibilidades foram considerados.
Trago sujeitos com cor, nome e ações que desvelaram valores, códigos, signos e experiências.
Para si ou para o outro, elaboraram estratégias nas festas e labutas, num movimento dinâmico de
tecer, sentimentos e representações. Identidades contrastivas situacionais, relacionais?Difícil precisar,
mas quanto às conclusões, é possível afirmar que os temas na história são tão díspares e acima de
tudo, as conclusões são tão controversas
299
”!
Depois de 49 anos submerso pelas águas do Rio de Contas, o Cristal ressurgiu nas memórias,
com detalhes minuciosos do visível e do invisível cultural. E por fim, suscitou queum outro universo
à espera de ser perscrutado como desdobramento dessa pesquisa. Partindo de um questionamento:
Como se dá a escrita de si dessas mulheres através de seus modos de vida e trabalho e em que
medida elas se entrecruzam e se distanciam levando-se em conta suas trajetórias de vida?
Visíveis
nos cadernos do administrador que registra a metade do valor pago aos homens pelo mesmo serviço,
invisíveis na literatura amadiana sensualisada,
livro e folhas de pagamentos das fazendas e da
Prefeitura, registros no sindicato rural e CEPLAC. O ir e vir entre presente e passado desvela
possibilidades de pesquisas, problemas e temas que ainda estão no futuro. Essas mulheres, com a
ascensão e queda do cacau, com ou sem marido, de ojás, lenços ou rodilhas, mas na folha de
pagamento tem muito a dizer... Mas aí já são cenas dos próximos capítulos!
299
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FONTE,APÊNDICE
Orais:
Ana Rita Diogo da Silva, 50 anos, comerciante no Camamuzinho, entrevista em 20 de junho de
2008.
Anete Ferreira, ex-moradora do Cristal, reside na comunidade há 50 anos, dona de casa,
entrevista cedida em 24 de outubro de 2007 e junho de 2008.
Carlos Alberto dos Santos, Chef de Cozinha, auxiliar administrativo, 38 anos, residente no
Camamuzinho, entrevista cedida em 11 de maio de 2007.
Diana Almeida, aposentada, 64 anos, residente à Rua beira Rio, Camamuzinho entrevista
cedida em setembro de 2008.
Francisco José dos Santos, ex-delegado, administrador e vereador, entrevistado em 06 de
fevereiro de 2007.
Gilda Duarte Miranda, 65 anos, dona de Casa, residente em Ubatã, centro, ex-moradora do
Cristal, entrevista cedida em 03 de abril de 2008.
Helton Luís de Almeida, ex-vereador, gerente administrativo, atualmente reside em Ubatã.
Nérico Conceição Barbosa, 74 anos, aposentado, ex-administrador do distrito, entrevista cedida
em 31 de outubro de 2006 e 20 de junho de 2008.
Pedro Barbosa Menezes, 75 anos, capoteiro aposentado, residente na praça central do
Camamuzinho.
Regina Maria de Andrade, auxiliar administrativa, Residente á rua beira Rio camamuzinho,
entrevista cedida12 de setembro de 2006.
Robenajara dos Santos Moura Entrevistado em 29 de abril de 2007, organizador do Bloco
Timbaleiros, reside no Camamuzinho onde tem uma micro empresa.
Zuleide Maria dos Santos, 47 anos, professora, residente no Bairro Novo, mora na comunidade
há 27 anos.
Manoel Ferreira da Paz, 93 anos, ex-delegado, ex-vereador, aposentado.
Rosa Carvalho, Aposentada, ex-parteira, Outubro/janeiro 2006.
Maria do Carmo de Oliveira, chefe da merenda escolar, 42 anos, mora no Camamuzinho.
Oscar Pinheiro dos Santos, 105 anos, aposentado ex-coveiro, ex-guarda municipal e mora há
80 anos na comunidade.
Escritas:
a) Jornais
Jornal Tribuna de Ibirapitanga ano 1984 - Fonte: Arquivo Particular
Jornal O Povo - Fonte: Arquivo da CEPFCSA – Centro de pesquisa da Faculdade Santo
Agostinho/ Ipiaú - BA
Jornal Folha do Cacau in: “Cacau, mitos e outras coisas mais” de Agenor Gasparetto, 1985.
Jornal O Republicano Fonte: Arquivo da CEPFACSA – Centro de pesquisa da Faculdade
Santo Agostinho/ Ipiaú - BA
Jornal Agora - Fonte: CEDOC/UESC
Jornal da Bahia, 21/02/69 P. 04 – Fonte: Arquivo Particular.
b) Fotográficas.
FOTOGRAFIAS
Acervo fotográfico de particulares.
Fotografias da pesquisa de campo.
Acervo fotográfico da Prefeitura Municipal de Ubatã
Acervo fotográfico
c) Arquivos
Fontes Memorialísticas - Memórias de Ubatã – J. Luís, 1995.
Secretaria de Planejamento e Tecnologia do Estado da Bahia SEPLANTEC –
Biblioteca do SEI – Salvador – BA
- Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Volume XX - Camamu, Rio de Janeiro, 1958.
- Enciclopédia dos Municípios Brasileiros. Volume XXI - Ubatã, Rio de Janeiro, 1958.
d) Meios Eletrônicos/sites:
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