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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Maurício Vaitsman Chiga
Senhores e escravos: tensões do paternalismo em Taubaté (1840-1870)
MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL
São Paulo
2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Maurício Vaitsman Chiga
Senhores e escravos: tensões do paternalismo em Taubaté (1840-1870)
MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora como exigência parcial
para obtenção do título de MESTRE
em História Social pela Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
sob a orientação da Prof.ª Doutora
Maria Odila Leite da Silva Dias.
São Paulo
2009
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Banca Examinadora
_________________________
_________________________
_________________________
_________________________
_________________________
AGRADECIMENTOS
Os agradecimentos são importantes, em especial àquelas pessoas que
estiveram próximas aguentando a falta de inspiração e as rabugices
decorrentes do excesso de trabalho e da ansiedade.
Obrigado Marta pelo amor e companheirismo, pela paciência e pelos
puxões de orelhas, obrigado, muito obrigado...
Muito obrigado dona Dulce e Roberto pelas caronas até a rodoviária (de
ida e volta), com seu apoio cheguei até aqui!
À minha orientadora, Professora Doutora Maria Odila Leite da Silva Dias,
o meu muito obrigado pela paciência nas correções, orientações e pelo seu
profissionalismo. Muito obrigado!
Devo sinceros agradecimentos às Professoras Doutoras Estefânia Fraga
e Maria Aparecida Papali pelas competentes orientações na banca de
qualificação. Muito obrigado.
Agradeço a todos que torceram e ajudaram de alguma forma para a
realização desta pesquisa. Todas as torcidas foram muito bem aproveitadas, a
vocês, meus amigos, muito obrigado!
Aos amigos Edu, Álvaro, Márcia, Zeli, Luciane, representantes de uma
lista bem maior, muito obrigado pelas dicas de leitura, apoio e verdadeira
torcida. Muito obrigado.
Recebi da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo uma bolsa
para o mestrado, sem a qual dificilmente iniciaria o curso. Muito obrigado.
Devo agradecimentos ao pessoal do Arquivo Municipal de Taubaté,
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté, lugar onde
sempre fui bem recebido pela pesquisadora e paleógrafa Lia Carolina. Muito
obrigado.
Agradeço aos professores do curso de mestrado em História Social do
programa da PUC SP, pela excelência e profissionalismo de suas aulas,
muito obrigado.
Obrigado Betinha! Foram muitos os pedidos atendidos. Eu diria que nossa
querida amiga resolveu todos os problemas burocráticos que enfrentei fora da
pesquisa, na sala do programa de História. Foi imenso o seu apoio para mim,
que sempre estive longe de São Paulo, muito obrigado!
Agradeço o apoio recebido, nestes trinta e seis meses, aos colegas de
três instituições de trabalho, aos da UNIVAP, aos do Estado e aos da ETEP.
Àqueles que lutaram comigo, muito obrigado.
Maurício Vaitsman Chiga “Senhores e escravos: tensões do paternalismo em Taubaté (1840-1870)”
RESUMO
O paternalismo, do senhor de escravos, existente em Taubaté do século
XIX foi pesquisado em documentos manuscritos como testamentos de última
vontade, escrituras de compra e venda de escravos, ações de liberdade e
processos criminais. Objetivou-se debater o encontro entre o poder do senhor
de escravos e o campo de tensões estabelecido pela ambiguidade da
escravidão. O período compreendido pelos anos de 1840 até 1870 foi o
estudado, foram cadas, no império do Brasil, onde se afirmaram as forças
políticas, econômicas e sociais conservadoras. O recorte temporal, pelo qual se
optou trabalhar, deveu-se em seu início (1840) pelas acentuadas pressões
sofridas pelo escravismo e, em seu término (1870) pelos choques do
desmoronamento do poder dos senhores na Lei Rio Branco (1871), além das
relações a que se submeteram os escravos e os senhores dentro de uma nova
perspectiva sobre a escravidão: a partir de 1871 passou a existir uma
possibilidade para o final da mão-de-obra escrava no Brasil. A perspectiva
norteadora da pesquisa foi a leitura interpretativa do cotidiano do escravo,
investigando-se a vivência do ser humano e a sua concretização de vida. É o
“fazer-se” do homem comum desenvolvido e estudado pelo historiador E. P.
Thompson que buscou nas próprias ações humanas as evidências de
comportamento e ação; foi através da compreensão da dinâmica do processo
vivido e das condições históricas que envolviam o “cidadão” que Thompson
mostrou a experiência de vida da pessoa transformando-a para a condição de
agente histórico.
-PALAVRAS-CHAVE: Paternalismo, Escravidão, Vale do Paraíba.
Maurício Vaitsman Chiga “Senhores e escravos: tensões do paternalismo em Taubaté (1840-1870)”
ABSTRACT
The main objects of this research are certain subtle and ambiguities
aspects of the slave holder’s paternalism as it existed in Taubaté during the last
decades of the 19
th
century. Our manuscripts sources were wills, registers of
purchases and sales of slaves, actions of freedom and criminal proceedings.
We selected the years between 1840’s and 1870’s in which to document the
growing tensions that threatened the survival of slavery. Tensions between the
slave owners’ rights and the new legal codes that tended to overwrite private
intenders of slave owners in behalf the state authority. We also documented
simultaneously with this process of a slow dilapidation the owner’s power, a
rising perception of the possibilities of attaining freedom that expressed itself in
the daily lives of slaves and enriched their experience as human beings
struggling for opportunities of survival.
- Key words: Paternalism, Slavery, Valley of the Paraíba.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................. 01
CAPÍTULO I “O ESCRAVO, SOB A VONTADE DO SENHOR”
1.1 O PODER DO SENHOR: “DEIXO FORRA E LIBERTA COMO SE DE
VENTRE LIVRE NASCIDA FOSSE...” ............................................................. 14
1.2 O PODER DA LEI: O IDEÁRIO JURISTA DO IMPÉRIO DO BRASIL. ...... 25
1.3 O PATERNALISMO EM TAUBATÉ. .......................................................... 33
1.4 AS ALFORRIAS CONDICIONAIS: A LIBERDADE SOB CONDIÇÃO E
ALGUNS ASPECTOS LEGAIS DO ESCRAVISMO......................................... 50
1.5 SOB CONDIÇÃO, SOB O JUGO DO SENHOR: “ZELO, AMOR,
FIDELIDADE...” ................................................................................................ 61
1.6 A VONTADE DO SENHOR. ...................................................................... 66
1.7 A INGRATIDÃO E A REVOGAÇÃO DA LIBERDADE. .............................. 69
CAPÍTULO II “O COTIDIANO ESCRAVO: ESPAÇO DE NEGOCIAÇÃO E
LUTA.”.............................................................................................................. 75
2.1 AS FUGAS; AS PRISÕES; A VIVÊNCIA. .................................................. 77
2.2 OS ESCRAVOS: ASSASSINOS, REBELDES E FUGITIVOS.................... 91
CAPÍTULO III “A EXPERIÊNCIA DA ESCRAVA JOSEFA”
3.1 AS RELAÇÕES SOCIAIS DE JOSEFA ..................................................... 99
3.2 A FESTA DA ESCRAVA JOSEFA ........................................................... 104
3.3 AS TESTEMUNHAS CONTRA JOSEFA ................................................. 108
3.4 OS INFORMANTES A FAVOR DE JOSEFA ........................................... 115
3.5 O DESTINO DE JOSEFA ........................................................................ 118
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................... 122
BIBLIOGRAFIA ............................................................................................. 125
1
INTRODUÇÃO
Para quem subia a Serra do Mar, o Vale do Rio Paraíba do Sul
descortinava-se em Mata Atlântica no relevo ondulante (um mar de morros) e
suave em direção ao leito principal daquele rio.
O ponto mais alto do espigão no sentido Noroeste de quem partia para a
serra pelo caminho de Paraty, mostrava uma verdejante paragem na época da
seca (no período da entrada do inverno desde o outono em meados de abril)
formada pelas grandes vargens de ambos os lados do sinuoso rio Paraíba do
Sul e os alagadiços pantaneiros na época das chuvas (que têm início em
meados de outubro com as chuvas da jabuticaba em plena primavera no
hemisfério Sul do planeta).
Entrando no largo e extenso vale, o viajante observaria a Serra da
Mantiqueira do lado oposto, é assim por toda a extensão deste grande rio, do
seu nascimento em plena Serra do Mar corre sentido oeste pelo interior (o rio é
consequência da junção de dois outros rios, o Paraibuna e o Paraitinga, a meio
caminho do vale ao Oceano Atlântico, a noroeste de Paraty) até a grande curva
que faz no terreno rochoso a Leste do Planalto Piratininga (no atual município
de Guararema). Daquele ponto em diante o Rio Paraíba do Sul segue
caudaloso entre as duas serras (a do Mar a sudeste e da Mantiqueira a
noroeste) no sentido nordeste até desembocar em forma de estuário do Norte
fluminense.
Traçando-se uma linha reta, a meio caminho entre a capital da Província
de São Paulo, à divisa com o Rio de Janeiro aparecia a cidade de Taubaté.
O povoado de o Francisco das Chagas de Taubaté foi fundado durante
o século XVII, não se sabe ao certo. Não sendo possível determinar com
precisão a data da formação do primitivo povoado de Taubaté, estudos
assinalam a Fundação do povoado entre 1639 e princípios de 1640.
Entre os primeiros colonizadores da região do Vale do Paraíba, observa-
se Jacques Félix, morador na vila de São Paulo, que adentrou o território
valeparaibano ao longo do quartel inicial do século XVII.
2
O ouvidor e alcaide-mor da Capitania de Itanhaém Antônio Barbosa de
Aguiar, por provisão de 05 de dezembro de 1645 elevou o povoado à categoria
de vila, tendo por orago São Francisco das Chagas.
A vila, sede do primeiro município formado no trecho paulista do Vale do
rio Paraíba do Sul, foi nos primórdios de sua fundação designada como vila de
São Francisco das Chagas de Taubaté. Pela Lei de 05 de outubro de 1842,
promulgada pelo Barão de Monte Alegre, alcançou a categoria de cidade.
Trabalhou-se o período compreendido pelos anos de 1840 até 1870
porque foram décadas, no império do Brasil, onde se afirmaram as foças
políticas, econômicas e sociais conservadoras.
Naquele tempo, os senhores desejavam sua perpetuação no poder com a
máxima exploração da mão-de-obra escrava; os escravos, por sua vez,
buscavam o convívio possível inseridos num ambiente opressor e se
relacionavam de maneira singular, quase sempre na busca pela sua liberdade.
A Taubaté, de meados do Oitocentos, contou com a força dos seus
barões e viscondes do café para lhe assegurar seu conservadorismo em
questões que visavam a ordem social, política, econômica.
O recorte temporal, pelo qual se optou trabalhar, deveu-se em seu início
(1840) pelas crescentes pressões sofridas pelo escravismo e pela restauração
do conservadorismo na política imperial, o segundo encontrava seus fortes
defensores escravistas no interior, como o Vale do Paraíba; em seu término
(1870) pelos choques do desmoronamento do poder dos senhores com a Lei
Rio Branco (28 de setembro de 1871), além de todas as relações cotidianas a
que se submeteram os escravos e os senhores dentro de uma nova
perspectiva sobre a escravidão: durante os trinta anos estudados até 1871
passou a existir uma possibilidade para o final da utilização da mão-de-obra
escrava no Brasil, verificadas nas experiências dos escravos, nas tentativas de
se colaborar com a liberdade por parte de abolicionistas ou mesmo nos
debates em círculos jurídicos da sociedade.
Estudar-se-á a escravidão como um processo da construção histórica na
sociedade, envolvendo todos seus agentes, desde os senhores e senhoras,
feitores, juízes e delegados, traficantes, abolicionistas, trabalhadores livres e
3
libertos (forros) e, principalmente os únicos prejudicados pelo sistema, os
próprios escravos
1
.
Segundo Aléxis de Toqueville
2
, referindo-se à situação da escravidão
francesa, o modo correto de abordar a situação escravista seria encarar a
abolição como necessidade política e social da época (Século XIX) e não como
uma injustiça.
No ideário da Revolução Francesa: “Liberté, Egalité, Fraternité”; a
liberdade, a igualdade e a fraternidade foram palavras de ordem revolucionária
na França (1789), mas o quão difícil foi, durante o século seguinte, libertar as
mentalidades dos colonos (e dos metropolitanos) franceses, para que
aceitassem a troca do escravo pela mão-de-obra livre
3
.
Todo proprietário de escravos, tanto na França quanto no Brasil, possuía
direitos e não admitia abrir mão deles, a mentalidade da época apontava para
observações unilaterais, não ouvindo o lado do cativo, como na afirmação do
próprio Toqueville:
(...) É pueril esforçar-se para tornar previdente quem
está na condição de não determinar sua própria
sorte e que vê o seu futuro nas mãos de outro
4
.
E o referido autor vai mais longe ao justificar, para os franceses, que a
abolição total deveria ser rápida e não gradual, para evitar um estado
transitório e tumultuoso na França, que reinava entre os escravos e que
traria danos para as colônias no futuro, sempre defendendo a idéia de que um
1
FONER, Eric. Nada além da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. P.17.
2
Toqueville dirigiu a Comissão do Governo Francês, no Século XIX, para a abolição em suas
colônias, expõe em seu livro a Emancipação dos Escravos” a trajetória e as discussões sobre
a emancipação nas colônias francesas.
3
Salienta-se que a substituição de mão-de-obra escrava pela livre, referida no texto, deu-se
nas colônias francesas espalhadas pelo mundo, que seriam os colonos franceses
diretamente afetados pela sua perda com a abolição.
4
TOQUEVILLE, Aléxis de. A Emancipação dos escravos. Campinas, SP: Papirus, 1994. P.32.
Toqueville mostrou aos políticos franceses que a emancipação simultânea oferecia menor risco
e perigo que a individual e gradual. Neste livro expõe suas conclusões após investigar os
acontecimentos das colônias inglesas, onde a emancipação gradual provocou grandes
prejuízos.
4
homem sabe o que é ser livre porque o é e, seria difícil dar a idéia de dignidade
moral a quem não é nada diante de si mesmo
5
.
A emancipação gradual foi muito debatida no Brasil Império,
principalmente a questão das indenizações aos senhores. Quando finalmente
implantada, em nosso país, anos após as determinações de Toqueville aos
franceses, acabou gerando muitos problemas no Brasil.
Diferente da França, onde a Comissão
6
de Toqueville, encarregada da
emancipação, afastou todo e qualquer laço ou ligação entre propriedade
escrava e outra propriedade privada protegida por lei, a posse de um homem
por outro foi considerada legítima no Brasil: o senhor de escravos tinha direitos
de propriedade e exigiria reembolso quando fosse solicitada a manumissão de
um cativo.
Na Corte Imperial de 1852, correu o projeto da “Extinção Progressiva da
Escravidão no Brasil”
7
, que vingou com a Lei Rio Branco (Ventre Livre), em 28
de setembro de 1871, que libertava o “ventre“ da escrava, mas garantia ao
senhor o serviço do ingênuo até vinte e um anos. O senhor educava-os (os
filhos de escravas) para a liberdade, inserindo-os na classe subalterna.
Para alguns jurisconsultos era “vergonhosa” a situação escravista
brasileira, principalmente nos círculos e relações internacionais, tanto que a
primeira Constituição da nação brasileira, em 1824, não definiu o assunto. Em
direção a Constituição apontavam os homens da elite mostrando o artigo 179,
o qual,
(...) garantia o direito de propriedade em toda a sua
plenitude, demonstrava plenamente seu “caráter
5
Idem, pp.33 e 36.
6
Embora a Comissão de Toqueville admitisse a indenização às emancipações nas quatro
colônias francesas, a diferença residia no auxílio aos colonos para possibilitar o pagamento da
mão-de-obra livre, além de instaurar uma etapa “transitória” de trabalho e reeducação, onde o
Estado deteria todos os poderes e responsabilidades perante os libertos, tornando-se inclusive
seu tutor.
7
PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial Jurisconsultos e a escravidão no Brasil do
século XIX. Tese de Doutorado. Campinas – SP, 1998. P.69.
5
escravista, uma vez que os escravos eram
reconhecidos como objeto de propriedade
8
.
Na elaboração do projeto do código civil brasileiro, a partir de 1855,
realizada por Augusto Teixeira de Freitas, contornou-se o assunto da
escravidão. Para Joaquim Nabuco de Araújo a concretização do escravismo
com leis positivas, pelo Código Civil Brasileiro
9
, colocaria o Brasil como um
país de bases escravistas para todo o mundo contemporâneo.
Em nossos tribunais o direito costumeiro apoiava as decisões sobre a
jurisprudência da propriedade privada de seres humanos por outros homens.
Embora essa propriedade fosse “imoral” diante de Deus, as leis positivas
legitimavam-na e, deveriam respeitar tais direitos, a escravidão foi apoiada pela
lei.
Esse direito à propriedade escrava ficou bem caracterizado na leitura dos
Livros de Escrituras de Venda de Escravos (1868-1874) no Arquivo Histórico
de Taubaté - SP, a sua caracterização é clara e objetiva na mentalidade
escravista do final dos anos oitocentos, pelo menos no que diz respeito ao Vale
do Paraíba paulista e, principalmente, a localidade de Taubaté.
Cobravam-se impostos, no século XIX, para a venda, troca e doação de
um escravo que ultrapassasse o valor de 200$000 reis, o negócio deveria
tramitar por uma escritura pública lavrada por Tabelião, Escrivão Cível ou
Escrivão de Paz, com a pena de perder sua validade
10
.
Imagine-se a história que segue:
Suava! Um misto de frio e calor percorria seu corpo, não sabia se de calor
ou desespero que conhecia bem aquele roteiro percorrido da fazenda, onde
nascera, pela estradinha à pé, descalça, até o centro da cidade.
Não se conheceu o local de sua venda, mas Leocadia conhecia algumas
das pessoas que por ali transitavam, os calçados e os descalços, os brancos e
8
Idem, p.57.
9
O primeiro Código Civil Brasileiro, iniciado com o projeto de Teixeira de Freitas, só foi
publicado pela República e em 1916.
10
MALHEIRO, Perdigão. A Escravidão no Brasil – Ensaio Histórico, Jurídico, Social. Petrópolis:
Editora Vozes, 1976. 3ª Edição. Vol. I. P.71.
6
os negros. Sabia que por perto ficava a Igreja, as paredes pintadas de azul e
branco, com seu sino que tocava sempre no final da tarde. Ainda era cedo,
mas não para quem levantara com os primeiros cantos do galo na roça, ainda
de madrugada.
Para Leocadia, seu estômago era quem gritava, agora, mas era
necessário aguentar, afinal aquele dia especial teria marcado o seu destino de
escrava, também não adiantava reclamar, para quem? Todos pareciam
compactuar com aquele estranho espetáculo de compra e venda, além do
mais, o feitor que a levara para a exposição era o mais insensível dos homens
que já conhecera.
Vendida, após vexamosa demonstração de seus dentes, braços e ancas
fortes, além do tornozelo fino e pele brilhante pelo suor. Nos idos de 1870 valia
muito dinheiro, quase como pedra preciosa, valeu um conto e duzentos mil
Réis, quase o preço de cinco juntas de bons bois de tração, cinco parelhas de
bois de carro.
Dias mais tarde, ao passar a escritura de venda da escrava, sua antiga
senhora registrou, nas escritas do escrivão que Leocádia, parda, crioula com
dezesseis anos de idade, fora comprada, transpassando toda justa posse e o
domínio, que na dita escrava tinha, ao novo proprietário, podendo gozar e
possuir como lhe conviesse.
Não se sabe como se deu a venda de Leocadia, a história contada é, em
parte, pura ficção, senão imaginação fértil (?) de leitor e pretenso narrador da
história de Leocádia. Fosse a história verdadeira ou não, a escrava passou por
experiência própria, alhures.
Observe-se o trecho da transcrição feita da escritura do livro 3, 2 do
Arquivo Histórico de Taubaté:
Escriptura de venda de uma escrava que faz D.
Francisca Maria D’Oliveira a Antonio Marques
Guimarães, na forma abaixo. (...) que era legitima
Senhora e possuidora de uma escrava de nome
Leocadia, parda, crioula de idade dezesseis annos a
qual possui livre de onus por isso vimos como de
facto a vendido tem por esta escriptura (...), ao
7
mesmo comprador a quem transpasso toda posse
jus e Dominio que na dita escrava tinha podendo
gozar e possuir como lhe convier
11
.
Para os termos da época: “... podendo gozar e possuir como lhe convier.”,
ficou registrado pelo escrivão de paz que o comprador da escrava Leocadia
teria, a partir daquele momento, plenos direitos de dono ou proprietário do ser
humano que acabara de adquirir.
Perdigão Malheiro
12
dizia que aquele homem aplicador indiscriminado de
todas as disposições da propriedade privada sobre o escravo estaria errado,
pois para ele era necessário distanciar a propriedade escrava do direito natural
e reiterar que foi criação do direito civil, a escravidão fora constituída pelas
relações sociais na história
13
.
No Direito Romano a utilização do escravo como coisa ou como animal
irracional era restrita, reconhecia-se sua humanidade e as relações sociais
porque no escravo havia um homem
14
.
No entanto, o referido jurisconsulto abolicionista mostrou-nos, em seu
livro, na seção 2, Questões Várias Sobre Escravidão, Art. I Direitos
Dominicais, no parágrafo 52:
(...) Como propriedade é ainda o escravo sujeito a
ser sequestrado, embargado ou arrestado,
penhorado, depositado, arrematado, adjudiciado,
correndo sobre ele todos os termos sem atenção
mais do que à propriedade no mesmo constituída. A
arrematação é feita em hasta pública, e, nos
negócios mercantis, pode sê-lo em leilão
15
.
11
FONTE: Livro de escritura de venda de escravo, 1868 a 1874. Livro 3, 2. Divisão de
Museus, Patrimônio e arquivo Histórico de Taubaté. SP. Transcrevemos trinta e seis
escrituras de dois livros (1 e 3) dos dezessete livros existentes naqueles arquivos.
12
Agostinho Marques Perdigão Malheiro foi um advogado e principalmente um jurisconsulto do
Império do Brasil, estudou a escravidão e desenvolveu teorias abolicionistas, inclusive
defendendo-as perante seus colegas do Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), inspirando a
Lei do Ventre Livre (1871) do Visconde do Rio Branco. MALHEIRO, op. cit.
13
Oliveira Lima, Apud MALHEIRO, Idem, p.13.
14
Idem, p.58.
15
Idem, p.72.
8
Perdigão Malheiro afirmou, ainda, que a escravidão poderia terminar: “...
pela morte natural do escravo; pela manumissão ou alforria; ou por disposição
da lei.”; que poderia findar por ato voluntário do senhor em vida ou em morte,
pelo bem da liberdade, em ato solene, com ou sem escritura, por qualquer
valor pecuniário e, também, pelo testamento
16
.
A utilização da mão-de-obra do escravo influenciou decisivamente o
Brasil, porque a historiografia brasileira oitocentista – no plano econômico,
social e cultural converge para o escravismo, que na visão de alguns
observadores, foi responsável por “... uma riqueza que não passa da doação
gratuita de raça que trabalha à que faz trabalhar
17
.”
Aqui, durante a pesquisa, se buscou um pouco a mais: as interpretações
das ações do escravo suscitaram uma riqueza não gratuita, ações
descortinadas quase sempre num campo de tensões dentro da cidade de
Taubaté.
Inseridos neste campo de tensões, muito frequente foi o aparecimento da
questão do poder senhorial e do seu uso na manutenção da escravidão,
simultaneamente à construção de redes de relacionamentos sociais a que
foram capazes alguns cativos.
Observou-se, em Taubaté, que a citação de um escravo em
contemplações, com doações em liberdade e dinheiro, em testamentos de
última vontade dos senhores, foi forjada dentro de complexas relações a que
se submeteram escravos e senhores.
A alforria foi mais do que uma “doação generosa” de alguns senhores,
quando a perspectiva da liberdade pudesse ser utilizada no contexto
paternalista pelos senhores da sociedade de Taubaté. Para esta região
convergiram muitas condições favoráveis à manutenção da escravidão, sendo
acentuadas as tensões em relações particulares de poder.
16
Idem, pp.82 e 86.
17
AZEVEDO, Antônio Carlos do Amaral. Dicionário de nomes, termos e conceitos históricos.
Nova Fronteira, 3ª ed, 1999. P.178.
9
O objetivo principal do presente trabalho foi analisar as possíveis
ocorrências das vivências escravas mesmo que submetidas ao poder do
senhor, relacionadas à desconstrução da escravidão em Taubaté, entre os
anos de 1840 e 1870, iluminando quadros de vidas desta cidade que foi um
dos centros nervosos do escravismo no Brasil Imperial, em anos de esplendor
da cultura cafeeira.
Reconhecer que é mais fácil narrar a história dos poderosos e dos
produtores dos documentos oficiais, assim como é muito difícil não se deixar
cair na leitura factual e de fácil discurso do material primário, foi a primeira
humilde aceitação das limitações desta pesquisa.
Outrora, acreditava-se, convictamente, no trabalho do historiador calcado
na sua imparcialidade; com o tempo se percebeu que a análise interpretativa
das fontes, para a elaboração das narrativas com finalidade histórica, é função
específica de constantes diálogos entre as fontes e a consciência do historiador
que está inserido na sua realidade atual
18
.
Portanto, buscou-se observar as realizações dos agentes sociais e, agora
históricos, em suas labutas cotidianas a partir da construção do conhecimento
histórico realizado no diálogo historiador, fontes e questionamentos
diversificados
19
.
A perspectiva inspiradora e norteadora da pesquisa foi a leitura
interpretativa do cotidiano do escravo, investigando-se a experiência do ser
humano e a sua concretização de vida.
É o “fazer-se” do homem comum desenvolvido e estudado pelo historiador
Edward P. Thompson que buscou nas próprias ações humanas as evidências
de comportamento e ação; foi através da compreensão da dinâmica do
processo vivido e das condições históricas que envolviam o “cidadão” que
Thompson interpretou a experiência de vida da pessoa, transformando-a para a
condição de agente histórico
20
.
18
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Hermenêutica do Cotidiano na Historiografia
Contemporânea. Revista Projeto História, n
o
17, novembro 1998. PUC-SP. P.234.
19
Idem.
20
THOMPSON, Edward Palmer. A Miséria da Teoria, ou um planetário de erros: uma crítica ao
pensamento de Althusser. Zahar Editores, Rio de Janeiro: 1984. Pp.180 a 200.
10
O cotidiano do escravo não foi facilmente interpretado, seu registro se
deve, quando existiu, às fontes manuscritas pelo mundo dos senhores,
situação que não prejudicou a pesquisa. Buscou-se resgatar, através das
narrativas, aquilo que não foi dito, porém, exigiu a leitura e a interpretação dos
documentos com o cuidado de buscar a construção da liberdade pelos próprios
escravos nas suas singularidades, nas entrelinhas das fontes
21
.
Como o escravo se fez agente histórico nas tramas da escravidão e quem
foram os sujeitos desta história?
Inicialmente, procurou-se analisar no primeiro capítulo o escravo
aparecendo em sua labuta diária sob a “vontade” de seu senhor, cativos
contemplados em testamentos de última vontade e em escrituras de compra e
venda de escravos.
Trabalhou-se o poder daqueles senhores de escravos, conservadores em
suas relações sociais e, como a convivência foi utilizada, por seus cativos, ao
se transformar, o escravo, em sujeito atuante na busca pela liberdade.
Contemplaram-se as formas de dominação senhorial particulares de
Taubaté inseridas no conceito de paternalismo conforme o estudado por
Eugene Genovese (1988) no sul Norte-americano e Sidney Chalhoub (1990) no
Brasil.
O paternalismo foi uma forma de dominação pessoal que se reconhece
em atitudes supostamente beneficiadoras para o escravo, mas apenas na ótica
do senhor, e que busca, com uma enganosa benevolência, expandir seu
campo com maior eficácia, dentro de relações sociais, o desgastado poder
de atuação senhorial no mando de trabalho aos escravos.
O conceito aqui utilizado contrapõe-se tanto ao pensamento da
escravidão branda, com o senhor amigo e benevolente no sentido de se
colocar e mostrar o escravo num estado de acomodação à rigidez do sistema
21
DIAS (1998), op.cit., p.244.
11
escravista, quanto ao sentido da escravidão violenta onde toda a ação do
escravo se deve a sua resistência à escravidão
22
.
Os sentidos da experiência escrava, em Taubaté, passaram pela diária
atuação do cativo no interior das residências e pelas ruas da cidade. Como os
escravos viviam e agiam para que os senhores necessitassem do uso do
paternalismo durante o período analisado?
Em pesquisa sobre os significados da liberdade e os “silêncios da lei” no
Sudeste brasileiro (nas Províncias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de
Janeiro), Hebe Maria Mattos de Castro concluiu, entre outras idéias, que a
ascendência dos senhores sobre os cativos foi bem administrada no controle
dos plantéis, pelos senhores.
O uso indiscriminado de soluções paternalistas nas relações sociais entre
senhor e escravo foi percebido, pela referida autora, como “miragem de
alforria” utilizada pelos cativos e, aliada aos diversos significados de liberdade
construídos pelos próprios escravos ao longo do tempo, contribuiu, embora
pareça ambíguo, para o trânsito entre escravidão e liberdade
23
.
Manuela Carneiro da Cunha dirigiu-se para o caminho das leis, tanto as
leis do direito positivo quanto do direito costumeiro, debate junto a Perdigão
Malheiro a questão do direito à propriedade privada de um homem por outro
homem e, concluiu que o uso do costume nas áreas mais rurais do Brasil no
tocante às manumissões foi mais preservado. Até a Lei Rio Branco ou Ventre
Livre, em 28 de setembro de 1871, as alforrias dependiam exclusivamente da
vontade dos senhores
24
.
22
CHALHOUB (1990), Sidney. Visões da Liberdade. Uma História das últimas décadas da
escravidão na corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990. Pp.37, 38, 39 e 40. O autor trabalha com
uma crítica competente a tese da coisificação do escravo de Fernando Henrique Cardoso:
critica e contesta a teoria do escravo coisa” porque defendeu e perseguiu a idéia de analisar
os diferentes sujeitos históricos e seu entendimento por escravidão e liberdade, e sua atuação
no processo de produção dessas visões de liberdade. O autor mostra como está ultrapassada
a idéia de que as duras condições de vida do escravo o destituía da capacidade de “... pensar
o mundo a partir de categorias e significados sociais que não aqueles instituídos pelos próprios
senhores.”(p.249).
23
CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das Cores do Silêncio. Os Significados da Liberdade no
Sudeste Escravista – Brasil Século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. P.212.
24
CUNHA, Manuela Carneiro da.Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense, edição,
1987. Pp. 123 a 141.
12
No primeiro capítulo trabalharam-se as condições nas quais as alforrias
foram concedidas e como se deu as ações dos escravos neste sentido.
Analisaram-se os artifícios utilizados pelos senhores na manutenção da
escravidão e de sua ascendência social na região, as alforrias condicionais, as
revogações da liberdade em lei, dentro do costume e do poder privado dos
senhores.
As garantias legais para a perpetuação dos senhores no poder daquela
sociedade durante o século XIX apareceram no ideário jurista: o direito
nacional brasileiro em formação após a independência do Brasil, dentro de uma
economia mercantil escravista.
Procurou-se desvendar a legalidade do Sistema Escravista, o debatido
nos círculos jurídicos, associado as artimanhas senhoriais no desejo do melhor
aproveitamento da escravidão e, ao mesmo tempo, deixando brechas para
aparecimento do fecundo campo de tensões no caminho para a liberdade; e as
diferenças e interações entre o direito positivo e o direito costumeiro.
O uso do direito costumeiro, em Taubaté do século XIX, foi debatido por
Maria Helena Machado quando analisou, em sua pesquisa, a criminalidade na
referida cidade: existiram comportamentos específicos nos crimes de escravos,
levando-a à conclusão da existência de mobilidade social cativa, talvez
permitida costumeiramente pelo senhor, em torno da sociedade de Taubaté.
Esta mobolidade social dos cativos foi observada pela autora quando
verificou uma maior quantidade de troca de nomes, de endereços e de status
declarados pelos escravos nos processos criminais de fins do Século XIX
25
.
A narrativa da vivência escrava a partir das informações dos processos
criminais aparece no trabalho durante o segundo capítulo. O cotidiano do
escravo de Taubaté foi interpretado pelo tipo de crime realizado; a leitura dos
crimes objetivou a identificação da vivência do escravo nos processos criminais
que foram escritos pelos representantes da justiça da classe senhorial.
25
Maria Helena P. T. Machado. CRIME E ESCRAVIDÃO: Trabalho, Luta, Resistência nas
Lavouras Paulistas (1830-1888). São Paulo: Brasiliense, 1987. Pp. 47 a 54.
13
Trabalharam-se as fugas e as prisões como parte da ação escrava no
Vale do Paraíba durante o culo XIX. Perguntaram-se quais foram os motivos
e as representações das fugas para o cativo?
Existiu um campo de tensões entre os senhores e seus cativos: os
senhores fazendo a manutenção de seu poder e os escravos lutando pela sua
liberdade. Muitas vezes as escravas eram disputadas pelos senhores na
justiça, em outros momentos escravos fugiam devido a maus tratos de seus
senhores e, outras tantas vezes, o escravo sobrevivia: roubava, matava ou se
rebelava.
O terceiro capítulo é dedicado às interpretações do processo criminal a
que foi submetida a escrava Josefa. As possibilidades abertas, à análise, pelo
campo de tensões exposto nas relações sociais de Josefa mostraram a
experiência da escrava e sua convivência no mundo livre e pobre.
Josefa, de escrava se fez mulher atuante em seu bairro, organizando
festejos e convidando os seus amigos e vizinhos para compartilhar, com ela e
seus senhores, uma noite de rezas, danças e batuques. Ainda, se fez dona da
casa e agiu conforme tal, agredindo aquela que se intrometeu para estragar a
sua festa, a própria senhora.
Durante o terceiro capítulo, procurou-se um entendimento para a situação
fronteiriça em que se encontrava a escrava Josefa, vivia com uma família pobre
e o cotidiano seria compartilhado por todos, com pequenas distinções entre
senhores e escrava, pelo menos para a própria família e talvez alguns vizinhos.
Era considerada escrava pela justiça mas vivia com tanta liberdade que esteve
intimamente ligada à família a qual pertencia.
A sociedade taubateana não aceitou a situação da escrava Josefa com
“bons olhos”, encriminaram-na e durante todo o processo criminal mantiveram
o tratamento mais áustero o possível, talvez pela possibilidade em dar “bons
exemplos” à população de escravos existente na cidade.
14
CAPÍTULO I
“O ESCRAVO, SOB A VONTADE DO SENHOR”
1.1 O PODER DO SENHOR: “DEIXO FORRA E LIBERTA COMO SE DE
VENTRE LIVRE NASCIDA FOSSE...”
O significado da expressão “eu dou a minha palavra” provavelmente tem
sua origem no mundo senhorial e clientelístico do Século XIX. A palavra
empenhada era garantia do homem de caráter e de boa moral; e valia tanto
quanto promessa ou um contrato com muitas assinaturas: valia a sua própria
honra.
Consenso na historiografia brasileira, a questão da força do poder
senhorial foi extremamente importante para a manutenção do Sistema
Escravista brasileiro
1
.
Neste capítulo, abordar-se-á principalmente o poder da forma de atuação
do senhor de escravos e as tensões decorrentes, na sociedade do Vale do
Paraíba paulista nos anos entre 1840 e 1870, especificamente na cidade de
Taubaté.
Neste âmbito serão estudados, também, os significados da utilização do
poder costumeiro da época. Teria existido somente para a manutenção da
escravidão, ou o próprio costume se constituia em uma das possibilidades para
a aproximação do escravo com a liberdade?
Ao se iniciarem os trabalhos de pesquisa, no Arquivo Histórico de
Taubaté
2
, notou-se que a grande maioria dos documentos analisados e
transcritos, como os testamentos, inventários, escrituras de escravos e as
raríssimas ações de liberdade anteriores a 1871
3
, apresentava mais de uma
1
Sobre o tema vide: AZEVEDO (1987), CUNHA (1987), MACHADO (1987, 1988, 1994),
CHALHOUB (1990), GRINBERG (1994), ZANETTI (1994), CASTRO (1995), SCHWARCZ
(1997), PENA (1998), PAPALI (2001), FERREIRA (2003).
2
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté, SP
3
Maria Aparecida Papali localizou no Arquivo Histórico de Taubaté noventa (90) Ações de
Liberdade correspondentes aos anos entre 1871 e 1888. Após 1871 as Ações de Liberdade de
15
vez o direito pautado nas relações costumeiramente utilizadas pela sociedade
imperial.
Legalmente, o costume dos senhores vigorou pelo menos até a
implantação da Lei Rio Branco (Ventre Livre) em 1871, a qual colocaria em
risco a ascendência social dos senhores, ao introduzir o Estado como mediador
das relações entre senhor e escravo
4
.
Estavam em Taubaté, nos idos de abril de 1845, os escravos “criollos
5
Miguel e Delfina, assim como Maria de Nação
6
. Provavelmente não ficaram
felizes com a confecção do testamento de seu senhor, diferentemente da
também crioula Thereza, a qual foi “beneficiada” com a sua liberdade, ou, como
diziam, agraciada pelo seu “generoso e bondoso” senhor, que acabava de se
tornar um grande “bem-feitor” (para os seus próprios pares) e detentor de
grande poder de barganha para com seus escravos. (IMAGEM 1)
Taubaté foram amplamente estudadas pela autora durante seu trabalho de pesquisa. PAPALI,
Maria Aparecida Chaves Ribeiro. ESCRAVOS, LIBERTOS E ÓRFÃOS: A Construção da
Liberdade em Taubaté (1871 – 1895). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2003.
4
Idem.
5
“Criollos”, conforme escrita da época, significava escravo nascido no Brasil, provavelmente na
fazenda do senhor. Adotou-se, daqui em diante, a grafia atual “crioulo” para o mesmo fim.
6
Escravo de “Nação” foi aquele nascido na África: O grupo mais importante introduzido no
Brasil foi o sudanês, que dos mercados de Salvador, se espalhou pelo País. Deste grupo, a
etnia mais notável foram os Yorubás ou Nagôs, da Nigéria, e os Jêjes do Daomé, seguindo-se
os minas da costa norte-guineana, além dos Tapás, Bornus, Hauças, Fulas ou Fulanis e os
Malês ou Mandingas. Esta presença comum dos grupos de idioma yorubá explica a maior
influência desta cultura, principalmente nos segmentos religiosos . Dentro da própria África, a
cultura yorubá predominava do Golfo da Guiné ao Sudão. Ver LOVEJOY, Paul E. A escravidão
na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. No
Brasil ,durante o Império era usado para definir os escravos considerados livres por terem sido
trazidos depois da proibição formal da escravidão.Entre 1831 e 1888 pertenciam ao Estado que
os alugava a particulares como mão de obra pouco qualificada. Enidelce Bertin, Os meia-cara.
Africanos e livres em São Paulo no século XIX. Tese de doutorado. USP, 2006.
16
IMAGEM 1
Fonte: Christiano Júnior, José
Escravo da Nação Africana Moçambique, ca. 1865 albúmen e cartão de visita. Museu Histórico
Nacional (Rio de Janeiro, RJ)
Mas, será que seus escravos não percebiam tais artimanhas, de aparente
paternalismo, mesmo que não tivessem noção da dominação pessoal? Parecia
uma armadilha, na qual não estavam sujeitos os escravos daquele senhor
como qualquer outro cativo, de qualquer senhor, mesmo porque sabiam
conviver sob tal tipo de jugo.
Os escravos entendiam que precisavam sobreviver num mundo hostil aos
nascidos com outra cor de pele que não a branca; não se acostumavam com
os maus tratos, por isto sempre agiram, ainda que subrrepticiamente.
O uso, pelo senhor, da possibilidade de alforriar a escrava Thereza,
mesmo que em testamento, revelou a existência de algum interesse em suas
relações sociais que leva para longe da moral católica. Pode-se pensar na
relação cotidiana entre senhor, escrava e sociedade, vivências comuns
reveladoras de concentrações das tensões escravistas na cidade de Taubaté,
durante os anos oitocentos.
A artimanha da dominação pessoal paternalista, sobre a escrava Thereza,
mostrou a complicada armação em que estavam ligados escravos e senhores,
na cidade de Taubaté. Proprietários de escravos tentavam afirmar sua posição
privilegiada, talvez, por isto, lançavam mão de “doações” como a feita à
escrava; assim o seu próprio senhor deixou registrado:
17
(...) Deixo forra e liberta como se de ventre livre
nassida fosse minha escrava Thereza criolla em
remuneração aos bons servissos que nos prestara e
por isso meu testamenteiro dara Carta logo que eu
falesça e assim não faça a que jamais delle espero –
servirá de titullo esta minha verba – (...)
7
.
Após tanto tempo, ou melhor, uma vida, da escrava crioula em dedicados
trabalhos domésticos (cozinhando em fogão manchado do preto da lenha em
carvão, lavando louças e roupas nas gélidas águas encanadas das nascentes
da Serra da Mantiqueira; com sabão de cinzas delicadamente elaborado com
as cinzas do próprio fogão e do sebo de animais da fazenda e, passando com
aquele pesado ferro de brasas já muito gasto em seu bico, depois de gerações
de roupas de linho engomadas com muito esmero) finalmente a escrava
Thereza teria a tão desejada liberdade.
Foram apenas umas duas linhas escritas, as quais Thereza nem teria a
oportunidade de olhar, que não sabia ler ou escrever e não tinha o direito de
verificar os assuntos do senhor.
Contentar-se-ia Thereza com a palavra dita de seu senhor e das
testemunhas, redenção conquistada do homem branco e “bom” daquela
sociedade escravista? Estaria liberta, após a morte daquele seu senhor a quem
sempre serviu?
E, continuava a lhe servir. Provavelmente é o que fazia enquanto o
testamento estava sendo lavrado pelo Escrivão. No costume da época, seriam
sequilhos com café: este plantado, colhido, lavado, seco, torrado, coado
(passado na água quente em coador de pano à beira do fogão) e adoçado com
açúcar mascavo fabricado por escravos e escravas na própria fazenda.
No caso da partilha de bens, o escravo Miguel crioulo seria dividido
apenas entre dois filhos do testador, assim como a escrava Maria de Nação,
7
FONTE: Livro de Testamentos (1845 1847), p.35. Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo
Histórico de Taubaté, SP. Testamento do Sr. Antônio Vieira da Silva (26 de Abril de 1845).
18
porque pertencia, em seus valores (um conto de réis), a uma terceira filha do
senhor testador
8
.
certa regularidade do “bom uso” da vontade do senhor representada
no seu poder de dominação na cidade de Taubaté, principalmente no tocante à
manutenção do direito de propriedade escrava.
Esta pequena interpretação de Testamento
9
mostra um quadro de como
poderia ser utilizada a vontade dos senhores quando o testador, além de doar
alguns escravos aos parentes mais próximos, como se faz com quaisquer
mercadorias ou bens, doou a liberdade à sua escrava Thereza, pelos seus
bons serviços prestados
10
.
Os “bons serviços prestados” do cativo dificilmente aparecem registrados
pelos senhores. Por vezes, é necessário o garimpo desses dados em fontes
quase estéreis do cotidiano de escravos, como é o caso das escrituras de
compra e venda de escravos, para se encontrar a experiência vivida pelos
cativos.
Mas, afora todas as dificuldades na revelação de detalhes, em seu dia-a-
dia, certos escravos, na cidade de Taubaté, especializaram-se em
determinadas profissões.
Verificou-se, então, uma das possíveis interpretações da vivência
escrava; mais do que sobrevivência num mundo escravista, desenvolveram no
seu cotidiano a luta por uma vida melhor no aprimoramento de seu trabalho, o
que lhes possibilitou vislumbrar horizontes de expectativas com melhor
qualidade de vida. Muitos escravos tiveram a condição do “viver sobre si” que
sempre esteve atrelada “... à condição de pessoa livre...” colaborando para
desmanchar os conteúdos ideológicos de continuidade da escravidão
11
.
8
O Sr Antônio Vieira da Silva contemplou em vida uma terceira filha com o respectivo valor (e
dinheiro) dos referidos escravos. Veja Anexo I.
9
Testamento do Sr. Antônio Vieira da Silva.
10
Idem.
11
CHALHOUB, Sidney. Visões da Liberdade. Uma História das últimas décadas da escravidão
na corte. São Paulo: Cia das Letras, 1990. P.238.
19
Em Teatro dos Vícios, Emanuel Araújo (2008)
12
buscou, na época colonial
brasileira, os motivos para tantos “vícios” e fraquezas de nosso povo (falando
da população livre), que definiu como a “sociedade da aparência”, dividida em
três principais atitudes coloniais: o “horror ao trabalho” (aqui detectando a
preguiça, o ócio, a indolência e a ostentação); a “presunção de fidalguia”
(englobando desde riquezas como dinheiro, escravos, sobrenome, fidalguia ou
parentesco a genealogia, até o reconhecimento social em público,
vestimentas, perucas, casas, móveis e talheres); e o “festejar quando possível”
(na religião ou na vida civil).
13
A explicação da preguiça brasileira do século XIX vinha de épocas
coloniais, quando a difusão do trabalho escravo nas cidades era apontada
pelos viajantes
14
como sinônimo de prestígio social (quanto maior o número de
escravos mais aumentava o prestígio de seu proprietário) e, por vezes, os
próprios meios de sobrevivência para os seus senhores, principalmente
àqueles de vida mais modesta, como a utilização do aluguel, jornais
15
de seus
escravos ou colocando-os na rua como escravos do ganho
16
.
As escrituras de escravos de fins da década de 1860 foram reveladoras
de cotidiano e possibilitam a inserção de informações na discussão acerca do
trabalho escravo na Taubaté dos anos oitocentos, tais como: idade, origem,
família, gênero e profissão ou especialização do escavo.
Duas escravas vendidas em forma condicional, em 15 de janeiro de 1867,
foram legalmente passadas pela escritura de compra e venda em 2 de maio de
1869, em Taubaté. Sobre as escravas vendidas e escrituradas (com os
12
ARAÚJO, Emanuel. Teatro dos Vícios. Transgressão e transigência na sociedade urbana
colonial. José Olímpio Editora, 2008. 373p.
13
Idem, pp.85 e 86.
14
Idem, p.88. ARAÚJO (2008), refere-se à Tollenare em 1817, no Recife, que registrou em seu
diário que os Mestres de profissão (de obras, marceneiro, carpinteiro, ferreiro e pedreiro)
preferiam comprar de 1 a 3 escravos e ensinar-lhes a profissão (colocando-os na rua em
aluguéis e jornais para complementar sua renda), a que contratar mão-de-obra assalariada; a
Walsh em 1829, em Salvador, que criticou a situação de escravos trabalhando em profissões
de assalariados (trabalhadores livres), porque aquela situação fazia a população aumentar pela
falta de trabalho destinado ao homem livre;
15
Tarbalho por “jornal” significava trabalhar em períodos determinados, jornada ou empreitada
com valores estabelecidos pelo seu proprietário, trabalhava-se no campo e cidades.
16
“Escravo do ganho” ou “ao ganho” era uma modalidade de trabalho para o escravo fazendo
serviços e vendas diversos pela cidade e trazendo sua arrecadação diária ao seu senhor
20
impostos devidamente quitados) apenas são conhecidos seus nomes, idade,
condição matrimonial e profissão, como também o valor por elas arrematado
pelo seu antigo senhor.
A escrava Maria, de vinte e seis anos, de profissão, cozinheira, solteira,
fora vendida por um conto e quinhentos mil réis, mas levou consigo seu filho
Tobias, (vendidos mãe e filho). Maria Roza, de vinte anos, mucama, não se
sabe sua condição matrimonial, também vendida por um conto e quinhentos mil
réis.
Ambas renderam a seu senhor três contos de réis e ao Tesouro Imperial,
o imposto de meia siza
17
, tudo devidamente documentado e na presença de
duas testemunhas
18
.
Assim como no caso das referidas escravas, outros escravos foram
comprados ou vendidos entre os anos de 1869 e 1870, muitos com o registro
de alguma profissão ou especialização: Paula, 25 anos, preta crioula, mucama
de serviço doméstico por um mil réis; Damasio, 40 anos, preto crioulo, pedreiro,
solteiro por quinhentos réis; Benedito, dez anos, preto crioulo, de serviço
doméstico por um mil, cento e cinquenta réis; Eva, 15 anos, mulata crioula, de
serviço doméstico por seiscentos e cinquenta réis; José, 15 anos, preto crioulo,
sem profissão por um mil, seiscentos e cinquenta réis; Antonio, 11 anos, preto
crioulo, de serviço doméstico por um mil réis; José, 15 anos, preto crioulo, de
serviço de roça por quinhentos réis; Thomé, 40 anos, preto de Nação, de
serviço de roça por um mil e seiscentos réis; Joaquim, 28 anos, preto crioulo,
de serviço de roça, solteiro por um mil e quatrocentos réis; Paulo, 30 anos,
preto crioulo, serviço de mestiço e roça, vendido com seu filho Benedito de 10
anos, ambos por três mil réis; Henrique, 8 anos, preto crioulo por um mil réis;
Eva, preta crioula, vendida com seus filhos Epifânio, pardo, de 3 anos e
Evaristo preto de 1 ano por dois mil réis a prazo (letra para 12 meses); Izidoro,
18 anos, preto crioulo, de serviço de roça, solteiro, por dois mil réis; Sabina, 22
anos, preta crioula, de seviço doméstico por um mil e oitocentos réis; Maria, 24
anos, parda crioula por um mil e quatrocentos réis (setecentos réis a vista e
17
Este imposto sobre venda de escravos girava em torno de trinta mil réis por escravo durante
aquele ano.
18
Livro de Escrituras de Compra e Venda de Escravo, 1869-1870, livro 2 e 3.
21
setecentos réis no prazo de 2 meses); Leocádia, 16 anos, parda crioula por
setecentos réis (vendida apenas na parte, metade, de um dos proprietários);
Leocádia, 16 anos, parda crioula por um mil e duzentos réis; Joaquina, 25
anos, parda crioula, solteira vendida por um mil e trezentos réis. (TABELA 1)
Quando libertos, os escravos forros buscavam trabalho, com uma
profissão bem consolidada em seu dia-a-dia não demorava a conseguir
serviços.
A relação entre o acúmulo de experiência de trabalho e o crescimento dos
“pequenos negócios” nas cidades do século XIX é debatida na historiografia
com respeito ao trabalho do liberto
19
.
Entretanto, obseva-se que, a partir do aparecimento da inserção das
profissões, ou especializações de cativos, nas “escrituras de compra e venda
de escravos”, a possibilidade de se entender a experiência do escravo, com
trabalho especializado, como experiência concreta para a multiplicação das
condições propícias na sua busca pela alforria.
Viajantes da época, como a inglesa Maria Graham, em Recife de 1821 e
o francês Dampier, em Salvador de 1699, cada um em seu período, também
registraram que o trabalho escravo especializado (em profissões destinadas a
homens livres na Europa) ocupava as mentalidades e a práxis brasileira
20
.
Em determinado momento, o artesão tinha escravos, ensinava-lhes uma
profissão e tirava proveito financeiro do aluguel de seus serviços (essa era a
práxis!); em outros, formava-se um quadro de que este tipo de trabalho
tornava-se ofício detestável ao homem livre, já que era destinado aos escravos.
19
CASTRO, 1995; DIAS, 1984; WISSENBACH, 1998.
20
ARAÚJO (2008), op.cit., pp.93, 94, 95.
22
TABELA 1
-Livro de Escritura de Venda de Escravos nos anos 1869 – 1870:
n
º
ano Nome Idade Gênero Cor Nasc. Cidade Profissão Família $ mil Réis
1 1869 Maria 26 Feminino Preta _____ Taubaté Cozinheira Solteira +
filho Tobias
1$500
2 1869 Maria
Roza
20 Feminino Preta _____ Taubaté Mucama ______ 1$500
3 1869 Paula 25 Feminino Preta Crioulla
Villa
Caçapava
Mucama,
serviço
doméstico
______ 1$000
4
1869
Damasio 40 Masculino Preto Criollo Pindamo-
nhangaba
Pedreiro Solteiro $500
5 1869 Benedito 10 Masculino Preto Criollo Taubaté Serviço
doméstico
______ 1$150
6 1869 Eva 15 Feminino Mulata Crioulla
Villa
Caçapava
Serviço
doméstico
______ $650
7 1869 José 15 Masculino Preto Criollo São José
do
Parahyba
________ ______ 1$650
8 1869 Antonio 11 Masculino Preto Criollo Taubaté Serviço
doméstico
______ 1$000
9 1870 José 15 Masculino Preto Criollo Taubaté Serviço de
roça
______ $500
1
0
1870 Thomé 40 Masculino Preto Nação Resende Serviço de
roça
______ 1$600
1
1
1870 Joaquim 28 Masculino Preto Criollo Tauba Serviço de
roça
Solteiro 1$400
1
2
1870 Paulo 30 Masculino Preto Criollo Munic. De
São Luis
Serviço de
mestiço/roç
a
Filho
Benedito
(10 anos)
3$000
1
3
1870 Henrique 8 Masculino Preto Criollo Taubaté -------------- ---------- 1$000
1
4
1870 Eva ------ Feminino Preta Crioull Taubaté -------------- Filhos
Epifanio (3
anos,
pardo) e
Evaristo (1
ano, preto)
2$000
prazo,
letra de
12
meses.
1
5
1870 Izidoro 18 Masculino Preto Criollo Taubaté Serviço de
roça
Solteiro 2$000
1
6
1870 Sabina 22 Feminino Preta Crioulla
Taubaté Serviço
doméstico
_______ 1$800
1
7
1870 Maria 24 Feminino Parda Crioulla
Taubaté -------------- ---------- 1$400
($700
a vista
$700-
2
meses)
1
8
1870 Leocádia 16 Feminino Parda Crioulla
Taubaté -------------- ---------- metade
($700)
1
9
1870 Leocádia 16 Feminino Parda Crioulla
Taubaté -------------- ---------- 1$200
2
0
1870 Joaquina 25 Feminino Parda Crioulla
Taubaté -------------- Solteira 1$300
FONTE: Livro de Escrituras de Compra e Venda de Escravo, 1869-1870, livro 2 e 3.
23
Segundo Araújo (2008), o brasileiro João Severiano Maciel da Costa, em
1821, comentava em suas memórias sobre quem perdia com o trabalho
escravo: era a própria indústria que não prosperava; perdiam os próprios
brasileiros,
(...) O pior de tudo é que o trabalho industrial,
relegado à classe dos escravos, se aviltará aos
olhos da multidão, e por isso a classe livre o
detestará, como acontece já entre nós com o
trabalho agrícola, que na opinião geral é só para
escravos. ... E que esperança podemos ter de que
prospere a indúdtria em um país onde o trabalho,
alma dela e de toda a riqueza, é infame e
indecoroso?
21
Desta forma, aproveitando-se ao máximo das potencialidades do trabalho
escravo, constituía-se a sociedade brasileira dos anos oitocentos, a partir de
fortes raízes no escravismo e de suas complexas formas de relações sociais.
Maria Helena Machado (1994), em seu livro O Plano e o Pânico,
desenvolveu a idéia de que as margens de autonomia dos plantéis de escravos
diminuíam, próximo a década de 1880, tanto quanto novas regiões
cafeicultoras do Oeste paulista se desenvolviam. Grupos de escravos
reivindicavam o que entendiam por obrigações senhoriais:
(...) Um ritmo de trabalho próprio ao grupo, a
injustiça dos castigos, os direitos a folga semanal, a
alimentação e o vestuário, o recebimento de
estipêndios pelo trabalho realizado a mais e a
manutenção de uma economia independente na
forma das roças e do pequeno comércio foram,
muitas vezes, os argumentos que em seu conjunto
justificavam os ataques violentos dos plantéis contra
senhores e feitores
22
.
21
João Severiano Maciel da Costa, Memórias sobre a necessidade de abolir a introdução dos
escravos africanos no Brasil., p.22. Apud Araújo (2008), op.cit., p.96.
22
MACHADO. Maria Helena P. T.. O plano e o pânico. Os movimentos sociais na década da
abolição. São Paulo: Editora UFRJ/EDUSP.1994. 259p., p.25.
24
Maria Aparecida Papali (2003), ao dicutir as condições para a construção
da liberdade em Taubaté pelos escravos, a partir de 1871, observa que o
“trabalhar sobre si” foi uma prática experimentada pelos cativos que buscavam
a liberdade e “... Na vida, como no trabalho, os símbolos da liberdade
precisavam ser revividos, como num ritual, legitimando a reconstrução de um
novo tempo.”
23
.
Na cidade foco do presente estudo, Taubaté, alguns senhores verificados
em suas intenções relativas aos seus cativos, mesmo que em testamentos de
última vontade, relevaram importância ao bom trabalho de seus escravos e à
sua “profissão”.
A experiência escrava não foi garimpagem fácil nas fontes documentais
estudadas durante a pesquisa, mas uma difícil e trabalhosa leitura, acrescida
de um exercício interpretativo da escrita senhorial de onde “... restam
fragmentos, ecos surdos das suas tensões e confrontos com o sistema de
dominação, peneirados pela consciência hegemônica das fontes escritas,...
24
”.
Maria Odila (1995), em Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX,
cita tais desafios na leitura dos documentos escritos, embora construindo o
universo feminino de São Paulo no século XIX:
(...) Os papéis propriamente históricos das
mulheres podem ser captados nas tensões,
mediações, nas relações propriamente sociais que
integram mulheres, história, processo social, e
podem ser resgatados das entrelinhas, das fissuras
e do implícito nos documentos escritos. Isso requer
uma leitura paciente, um desvendar criterioso de
informações omissas ou muito esparsas, casuais,
esquecidas do contexto ou da intencionalidade
formal do documento
25
.
23
PAPALI, Maria Aparecida Chaves Ribeiro. Escravos, Libertos e Órfãos: A Construção da
Liberdade em Taubaté (1871 – 1895). São Paulo: Annablume: Fapesp, 2003, p.53.
24
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no século XIX. 2.ed.rev.
São Paulo: Brasiliense, 1995. p.20.
25
Idem, p.50.
25
Documentos senhoriais, tais como as cartas de alforrias condicionais e os
testamentos de última vontade, mostravam o uso do bem privado como melhor
conviesse, os quais, somados à utilização das leis costumeiras, foram
utilizados, por vezes, concomitantemente às leis positivas em favor do direito
da propriedade escrava.
1.2 O PODER DA LEI: O IDEÁRIO JURISTA DO IMPÉRIO DO BRASIL.
A partir de 1820, em Portugal, o Antigo Regime cedeu lugar ao
Liberalismo com o movimento constitucionalista em terras lusitanas. Iniciou-se,
conforme Neves (2000), o movimento pela promoção do “... poder do espírito
público em oposição ao individualismo monárquico.”
26
.
No Brasil, em 1823, ao dissolver os trabalhos da Constituinte, D. Pedro I
mandou apreciar seu projeto nas maras Municipais, e, consequentemente,
aprová-lo. Confirmavam-se as Câmaras Municipais como instância política e de
representação do Império, com o retorno à forma de representação do Antigo
Regime Absolutista português.
O novo Império do Brasil que se imaginava liberal dava voz a órgãos de
legitimação do poder antigo de Portugal. Durante o primeiro quartel do século
XIX ocorreram a interação e o confronto entre o velho e o novo na questão da
construção do Direito Nacional
27
.
O projeto de Nação que aparecia era baseado na construção do Estado
Nacional com um pretenso ideário liberal, mas com a herança portuguesa que
se prendia às relações sociais implícitas nos códigos costumeiros daquela
sociedade.
26
NEVES, Lúcia Maria Bastos. Por Detrás dos Panos: atitudes Antiescravistas e a
Independência do Brasil. In SILVA, Maria Beatriz Nizza (org.). Brasil: Colonização e
Escravidão. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. Pp.373 e 374.
27
LOPES, José Reinaldo de Lima. Iluminismo e Jusnaturalismo no ideário dos juristas da
primeira metade do século XIX. In: JANCSÓ, István (org.). Brasil Formação do Estado e da
Nação. São Paulo: Ed. Hucitec, 2003, p.195.
26
A formação do moderno Estado Nacional tinha em seu projeto uma
representação de como a sociedade seria organizada. No Brasil pós-
independência, o Estado Nacional foi refeito com a reconstrução do Direito
28
.
Em sua época, Joaquim Nabuco comentou que o primeiro projeto de
Constituição, anterior a 1824, previa um artigo (de JoBonifácio) em que se
estabelecia uma emancipação lenta, educação religiosa e industrial dos
negros.
Entretanto, a própria constituição do Império (1824) não contemplava a
questão da escravidão, a não ser pelo seu artigo 94 revogado, em que
aparecia o liberto como cidadão, mas sem direitos políticos. Assinalava, sim,
com o nefasto artigo 179, que dispunha sobre os direitos individuais do
proprietário
29
.
Os debates políticos refletiam a intenção de que a questão da abolição
não alienasse os senhores, mas representasse o escravo até o ponto de “ficar
livre” para encobrir a vergonha do País, que era, internacionalmente, a
escravidão africana.
Houve a criação de um ordenamento legislado do Direito Nacional e do
Português, existindo a incompatibilidade, na primeira Constituição – 1824, entre
o direito natural (com o jusnaturalismo e a liberdade de comércio) e o Estado
liberal.
No confronto entre o novo direito e o antigo direito, surgiu o conflito
jurídico que é típico das Revoluções Burguesas do século XIX: o direito novo
expressava a “igualdade perante a Lei” e o direito pré-liberal, direito antigo,
expressava “as diferenças e as desigualdades”. O poder centralizado foi
trocado pelo representativo (de soberania nacional) e a tradição foi negada na
Lei: trocou-se o costume pela Lei
30
.
Seguindo o pensamento jurídico do século XIX e as formas de
movimentos da cultura (a separação de poderes, o sistema que representa a
soberania popular, a centralização e o monopólio das fontes do direito, a
28
Elisa Reis, apud LOPES In: JANCSÓ (2003) (org.). Idem, p.297.
29
NABUCO, Joaquim. O Abolicionismo. Petrópolis: Vozes, 1988, p.56.
30
JANCSÓ (2003) (org.), op. cit., p.196.
27
polícia, a codificação do direito), foram três os movimentos que animavam os
juristas construtores do Estado Nacional: o constitucionalismo, a ilustração e o
direito natural moderno.
Os juristas construtores do pensamento jurídico refizeram o direito para
um direito nacional e até liberal. O direito moderno opõe-se ao direito comum,
tardo-medieval e tem um conjunto de normas (lei) e um comando ou ordem do
soberano (de caráter geral); é o sistema integrado e hierarquizado dentro de
princípios universais que está acima dos costumes, até mesmo revogando-
os
31
.
A partir da economia tipo mercantil e escravista, com a grande empresa
agroexportadora produzindo em larga escala, foi criada, em torno do latifúndio
escravista, uma organização autônoma com grande isolamento econômico em
relação a uma sociedade mais ampla. As relações sociais internas das grandes
fazendas cafeicultoras eram determinadas e dominadas pelo senhor, que tinha
poderes quase absolutos sobre os seus familiares, agregados e escravos
32
.
No interior (longe das grandes cidades) e nas grandes propriedades
agroexportadoras, o direito costumeiro prevaleceu entre senhores que se
apoiavam na honra pessoal e de “... modo geral, as relações sociais regravam-
se pelo sistema moral da troca de favores.”
33
.
Nos primeiros anos de nação, existiu o “direito herdado do regime pré
liberal, colonial ou de Reino Unido”. No constitucionalismo brasileiro não houve
processo revolucionário popular, mas o Direito público apareceu como
continuação do Antigo Regime Absolutista português com funções e
competências “... de administrar a vida do poder.”
34
.
Ideário constitucional no culo XIX foi assim fundado: a Carta de 1824
com o regime de direitos individuais à propriedade (art.179); o governo
monárquico hereditário não parlamentar; um corpo legislativo com assembléia
geral (escolhido de forma indireta); um senado vitalício (escolha do Imperador);
31
Idem, p.199.
32
KOERNER, Andrei. Judiciário e Cidadania Na Construção Da República Brasileira. São
Paulo: Hucitec, 1998, pp.48 e 49.
33
Idem, p.49.
34
JANCSÓ (org.), op.cit., p.201.
28
poder judicial (que não foi amplamente democrático ou liberal!); existia, ainda, a
liberdade de comércio, de profissões e de expressão.
A utilização pelo senhor, quando assim fosse necessário, do direito
positivo (leis escritas, elaboradas pelo Governo) e do direito costumeiro (leis
não-escritas, mas costumeiramente acionadas pela sociedade), proporcionava
condições de convivência ao cativo com o engendramento de intrincadas redes
de alianças, tecidas pelos escravos com outros escravos e, também, com
homens livres e senhores da sociedade do século XIX.
Tais alianças entre cativos, libertos e livres estariam em diferentes níveis
(da senzala, da casa grande, de vizinhos e da rua) trazendo proximidade e
possibilidade para as relações sociais que colocaram os cativos em contato
com a prática da liberdade.
Pode-se dizer que, muito provavelmente, esta convivência social foi uma
das experiências essenciais do cativo no trânsito da escravidão à liberdade
35
.
Nesta perspectiva, o interessante é que entre a lei escrita (positiva,
adotada pela Justiça Imperial) e a costumeira (não-escrita, adotada pela
sociedade de modo cotidiano), a segunda foi mais praticada, principalmente
longe das grandes cidades
36
, porque “... No interior, a lei era exercida pelos
poderosos, (...), indóceis às leis, habituados a fazerem justiça por suas próprias
mãos...”
37
.
Em uma análise dos Testamentos de 1842, conforme Tabela 2, verifica-se
que, do total de dezesseis escravos arrolados no ano em questão, apenas um
deles foi contemplado com a sua Carta de Liberdade Condicional
38
.
35
CASTRO, Hebe Maria Mattos de. Das Cores do Silêncio. Os Significados da Liberdade no
Sudeste Escravista – Brasil Século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. P.196.
36
CUNHA, Manuela Carneiro da. Antropologia do Brasil. São Paulo: Brasiliense edição,
1987. P.131.
37
TOLLENARE, 1956: 194, Apud CUNHA (1987), op. cit., p.131.
38
FONTE: Livro de Registros de Testamentos 04 (1842-1844), Cartório do Ofício.
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté, SP.
29
TABELA 2
Descrição
39
das contemplações de escravos em testamentos da cidade
de Taubaté, no ano de 1842.
ANO ESCRAVOS DADOS GERAIS (idade, profissão, doação...) PROPRIETÁRIO
1842 Anna Nada consta (NC) Theresa Maria da Conceição
1842 Manoel Jornaleiro Idem
1842 Domingos Jornaleiro Idem
1842 Maria Criollinha Idem
1842 Manoel NC Padre José de Abreu Guimarains
e Castro
1842 Pedro NC Idem
1842 João NC Idem
1842 Vicente NC Idem
1842 Matheos NC Idem
1842 Antonio NC Idem
1842 Maria Doada a Mariana Antônia (esposa do
proprietário)
Idem
1842 Florinda Doada a Joaquina (filha do proprietário) Idem
1842 Benedito Mulato, doado à afilhada Francisca Theresa Anna Maria de Jesus
1842 Maria Carta de Liberdade Condicional (revogada),
doada à afilhada Francisca Theresa
Idem
1842 Maria NC Maria Madalena do Espírito Santo
1842 Anna NC Maria Joaquina de Jesus
FONTE: Livro de Registros de Testamentos – Nº 04 – (1842-1844), Cartório do 2º Ofício.
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté, SP.
39
Os termos aqui utilizados foram transcritos conforme sua grafia original existente nos
documentos da época.
30
Este foi o caso da Escrava Maria
40
que, em testamento de sua senhora,
datado de 26 de setembro de 1842, recebeu a liberdade condicional e, no
mesmo documento, foi revogada sua Carta de Alforria.
41
Nas palavras de sua senhora, transcritas do Livro de Registros de
Testamentos nº04 (1842-1844), “(...) a mesma escrava deixou de servirme bem
e mesmo me abandonado em meo estado de velhice sinão faria merecedora
daquele beneficio (...)”
42
Qual o motivo da atitude desta senhora? A doação e a revogação da
alforria foram colocadas em um mesmo testamento, mas não há uma
explicação para a tal revogação, que a testadora declarou que a fez em
favor de sua afilhada Francisca Theresa, como sua última vontade.
Talvez a escrava trabalhasse na rua (escrava de ganho)
43
e daí o
abandono a sua senhora, que era bem pobre, conforme o seu testamento, no
qual deixou apenas poucas imagens de santos à sua afilhada (além da escrava
Maria). (IMAGEM 2)
IMAGEM 2
Fonte: Christiano Júnior, José
Sítio: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/
Escrava Vendedora Ambulante, ca. 1865 albúmen e cartão de visita. Museu Histórico
Nacional (Rio de Janeiro, RJ)
40
Propriedade de Anna Maria de Jesus que concedeu liberdade condicional à Maria. Idem,
ibid.
41
Idem.
42
Livro de Registros de Testamentos nº04 (1842-1844), folha 16v. Cartório do 2º Ofício.
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté – SP.
43
Escravo de ganho trabalhava com vendas de quitutes ou outros alimentos na rua, devendo
seus ganhos ao senhor.
31
Não se sabe exatamente as intenções da senhora de Maria, o que leva a
diferentes interpretações do ocorrido: primeiro, a senhora poderia usar do
testamento de sua última vontade para controlar a escrava, que provavelmente
não lia ou escrevia e deveria confiar no que sua senhora relatava sobre o
conteúdo do testamento, ou talvez a senhora tenha suprimido a parte da
revogação ao comentar o conteúdo com a escrava. Segundo, existia entre os
escravos de ganho um “certo tipo de autonomia e alternância entre os
trabalhos vigiados em casa e de “... relativa soltura do vender na rua...”
situação que proporcionava a construção de teias de relacionamentos e
oportunidades de convivência variadas aos escravos
44
.
Estes conflitos entre os serviços realizados por um mesmo escravo
somados a sua experiência social provocavam tensões nas relações entre
senhores e seus cativos.
Os outros quinze escravos citados em 1842, no total de 94%, não
obtiveram quaisquer tipos de liberdade, remuneração em dinheiro ou outra
doação que existisse
45
; foram apenas arrolados, nos testamentos, como
mercadorias humanas ou bens semoventes. (GRÁFICO 1.2)
Foram eles: Anna, Manoel jornaleiro, Domingos jornaleiro, Maria
crioulinha, Manoel, Pedro, João, Vicente, Matheos, Antonio, Maria (legada à
esposa do proprietário), Florinda (doada à filha do proprietário), Benedito e
Maria (legados à afilhada da proprietária), Maria e Anna.
44
DIAS, op.cit., pp.125 e 157.
45
Livro de Registros de Testamentos nº04 (1842-1844), folha 16v. Cartório do 2º Ofício.
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté, SP.
32
GRÁFICO 1.2
6%
94%
CONTEMPLAÇÕES DE ESCRAVOS
COM DOAÇÃO
SEM DOAÇÃO
FONTE: Livro de Registros de Testamentos – nº 04 – (1842-1844), Cartório do
2º Ofício. Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté, SP.
33
1.3 O PATERNALISMO EM TAUBATÉ.
Fonte: Militão Augusto de Azevedo
Sítio: http://www.cliohistoria.hpg.ig.com.br/bco_imagens/escravos/escravos.htm
O homem branco é o senhor, dono, proprietário dos cinco outros
homens negros e mulatos. Os outros se encontram atrás. O primeiro à
esquerda do senhor é mulato, está bem vestido. Ao contrário dos
outros, deixou o cabelo meio liso crescer, penteou-o, fez uma risca no
lado esquerdo, como o seu senhor. Mas não pode usar sapatos,
privilégio e marca distintiva dos livres e libertos. Tirar fotografia era uma
operação demorada. Ninguém podia se mexer durante quase dois
minutos. Outras tentativas já podiam ter falhado. O fotógrafo Militão, que
fez essa foto em São Paulo, deve ter reclamado. Por isso, ou por outras
razões mais secretas, o senhor está zangado, de cara amarrada. O
escravo situado à sua direita, assustado, encolheu-se. Na extrema
esquerda, o homem com a varinha na mão - pastor de cabras ou de
vaca leiteira na cidade - tem um olhar altivo, talvez porque traga nas
mãos o objeto de seu ofício, que o distingue dos outros cativos, paus
para toda obra. Na extrema direita, o homem de branco se mexeu:
estragou a foto da ordem escravista programada pelo seu senhor. Vai
apanhar. No seu rosto fora de foco vislumbra-se o medo. Vai apanhar
46
.
46
Luis Felipe de Alencastro-História da Vida Privada no Brasil, vol. 2, p. 18-19.
34
A cidade de Taubaté apresentou traços fortes de mentalidade escravista
muito enraizada durante o século XIX, como em toda a região na qual está
inserida, o Vale do Paraíba. Afinal, o seu sustento econômico dependia da
mão-de-obra escrava.
Para aqueles senhores que produziram café nas terras férteis do largo e
extenso vale do Rio Paraíba do Sul, nas encostas da Serra da Mantiqueira e do
Mar, o escravo fora imprescindível em todos os níveis da produção. Escravos
foram necessários às formas de trabalho, dentro das cidades e no campo; a
grande maioria das atividades pesadas e braçais foi realizada pelo cativo.
Mas, como eram tratados os seus trabalhadores? Quais as influências do
mundo do homem livre no controle do trabalhador cativo? Como viviam e eram
controlados homens, mulheres e crianças escravos na Taubaté dos anos
oitocentos?
Provavelmente, a palavra chave da condição escrava durante o século
XIX tenha sido o “controle” realizado pelos senhores e esperado pelo Império.
Talvez o sucesso em controlar seus escravos fosse (além do dinheiro para sua
compra) a condição sine qua non para o senhor conquistar a máxima
otimização de sua propriedade escrava e, quem sabe, até mesmo, para que os
senhores de pequenos plantéis conseguissem subsistir das rendas obtidas
pelos seus escravos na rua
47
.
Tais escravos que praticavam vendas ou trabalhavam em empreitadas
fora de casa muitas vezes deveriam garantir, não o pagamento ao senhor
mas, também, o próprio sustento como sua alimentação e até mesmo moradia.
Certas cenas do cotidiano, estudadas por Sidney Chalhoub (1990),
apontaram para a formação de redes de sociabilidades entre escravos de
ganho; nas grandes cidades, antes da lei de 28 de setembro de 1871, o direito
costumeiramente utilizado consagrou formas de pecúlio do escravo de ganho,
principalmente àqueles que moravam fora da residência de seus senhores
47
Referência ao escravo de ganho que deveria sair à rua para vender produtos diversos, de
quitutes e animais vivos como galinhas até objetos de uso cotidiano fabricados pelo próprio
cativo como cestos de bambu, por exemplo; ou escravo de aluguel que trabalharia por jornadas
de serviço fora da casa de seu senhor e ganhava por jornal realizado. Qualquer um destes
trabalhos deveria aumentar a renda da família do senhor.
35
porque deveriam controlar seus faturamentos entregando o exigido ao seu
senhor, alimentando-se e pagando moradia, entre outras necessidades
cotidianas como sapatos e roupas, símbolos da liberdade
48
.
Em grandes propriedades produtoras que trabalhavam com a “plantation”
o controle era realizado pelos feitores por meio do medo e de muita violência,
lançando mão dos castigos físicos, mas, em Taubaté se verificou o uso de uma
dominação senhorial que ultrapassava as formas tradicionais de se controlar o
escravo.
O paternalismo foi uma forma de dominação social tentadora aos
envolvidos, controladora de pensamentos e ações, provocou muitos danos às
relações sociais entre negros e brancos, durante o século XIX, um modo de
relação enganadora que colocava o senhor branco como um “bom” ser humano
entre seus pares.
O senhor que castigava, segundo sua própria ótica, o fazia em nome da
boa moral e dos bons costumes, de uma educação que deveria ser boa para
aquele que a recebia mas em benefício de quem a concedia. De acordo com
Sandra Lauderdale Graham (2005), seria permitido, jurídica e
costumeiramente, praticar castigos físicos como chefe de família em sua
autoridade particular:
(...) nada no código do paternalismo luso-brasileiro,
em sua forma civil ou religiosa, impedia o chefe da
família de punir corporalmente aqueles sobre os
quais, inclusive membros da família, ele exercia a
autoridade doméstica. Ao contrário, o Código filipino
promulgado em 1603 e base do direito civil no Brasil
até 1916, lhe permitia de modo expresso o direito de
“castigar” fisicamente sua família, seus
descendentes e escravos. (...)
49
48
CHALHOUB (1990), op.cit., pp.161, 217 e 218.
49
Embora, em sua pesquisa, a autora trabalhe a questão da ausência de registros de senhores
padrinhos dos seus escravos, lança luz às questões das possibilidades de negociações sociais
entre escravos e senhores, mesmo aqueles residentes em grandes plantéis como foi o caso da
negação à efetivação de seu casamento com o escravo Custódio, ou qualquer outro, da
escrava Caetana. GRAHAM, Sandra Lauderdale. Caetana diz não. História de mulheres da
sociedade escravista brasileira. São Paulo: Companhia Das Letras, 2005. Pp. 71 e 72.
36
Castigos, educação, amor fraternal, uma série de possibilidades para o
uso do paternalismo nas relações escravistas; todas estavam no caminho do
controle do cativo pelo senhor e no máximo aproveitamento econômico de sua
mão-de-obra.
Observando as relações escravistas no sul da América do Norte, Eugene
Genovese trabalhou a ambiguidade do paternalismo e da dominação imposta
pelos senhores da sociedade de “plantation” daquele país no século XIX
50
.
O escravo era como uma mercadoria “animada” sem direitos inerentes ao
homem e o “direito” do escravo era idéia pouco aceita pelos senhores dos
EUA, que preferiam as regras da lógica jurídica do escravismo. Portanto, se a
lei declarasse um escravo como pessoa, deveria admitir relações específicas
de uma classe com outra: o respeito a direitos elementares, como a família
(sem a possibilidade de venda em separado de elementos da família, de mão-
de-obra e de liquidez do capital); o senhor não poderia considerar a prática de
“... insistir em que um escravo estava moralmente obrigado a atuar como uma
extensão da vontade do amo.”. Por outro lado, nos tribunais considerava-se a
humanidade dos escravos com livre arbítrio, ou o cativo não poderia ser tido
como “... responsável por seus atos anti-sociais.”
51
.
No Brasil, a situação do sistema escravista não seria muito diferente: a
família escrava, quando existia, poderia desfazer-se e o senhor vendia seu
integrantes conforme a necessidade do mercado, situação provocadora de
muito desagrado, mas financeiramente rentável aos proprietários
52
.
Logo após a lei de 1850, com a proibição do tráfico de escravos pelo
Oceano Atlântico, escravos retirados de seus locais de origem como o
noerdeste brasileiro foram negociados pelo tráfico interno, interprovincial,
50
GENOVESE, Eugene D. A Terra Prometida O mundo que os escravos criaram. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, Brasília, DF: CNPQ, 1988. 497p.
51
Idem, p. 52.
52
FLORENTINO, Manolo e GÓES, José Roberto. A paz nas senzalas: famílias escravas e
tráfico Atlântico, Rio de Janeiro, c.1790 - c.1850. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
256p. Os autores trabalharam inventários post-mortem da capitania do Rio de Janeiro,
revelando importantes questões sobre o casamento, família e parentescos de escravos em um
período anterior a extinção do tráfico de escravos pelo Atlântico.
37
provocando o aumento das tensões no lugar de sua colocação, as fazendas de
café da região sudeste, principalmente a província de São Paulo
53
.
Intensificou-se o tráfico interprovincial, com o fim do tráfico Atlântico
decretado pelo governo do Brasil (Lei Eusébio de Queirós), quando os
cafeicultores do Sudeste passaram cada vez mais a adquirir cativos de outras
regiões do País.
De acordo com Hebe Maria Mattos de Castro (1995), os cativos
comprados de outras regiões buscavam igualdade de tratamento com os
instalados no “bom cativeiro”. Aqueles com relações comunitárias
estabelecidas almejavam ainda mais a liberdade. A perda de legitimidade da
instituição escravista intensificava-se, e a percepção do perigo de frustrar as
expectativas de muitos escravos no caminho à liberdade significava um perigo,
para o senhor, quando não controlada
54
.
No mundo escravista em geral, as relações de respeito à família, à
vontade e ao livre arbítrio não eram juridicamente obrigatórias ao senhores,
mas poderiam ser utilizadas para o controle dos plantéis e seu melhor
aproveitamento no trabalho.
Eric Foner (1988), afirmou que, na grande lavoura, o controle da mão-de-
obra negra (por meio das leis ou do paternalismo) provocou a dificuldade de
desenvolvimento de modos alternativos de organização social nas Américas do
Norte e Central
55
.
Até mesmo nas palavras de um juiz de direito norte-americano
apareceram idéias paternalistas, fazendo-se acreditar, aos escravos, que um
“bom” senhor servia para a sua proteção num mundo hostil, segundo
Genovese (1988):
(...) O escravo existe para servir o amo. Tudo está à
mercê do senhor: seu tempo, seu trabalho, suas
comodidades.; (... ) Os escravos são nossa mais
53
CHALHOUB (1990), op.cit., p.245.
54
CASTRO (1995), op.cit., p.216.
55
FONER, Eric. Nada Além da Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Brasília: CNPq, 1988.
38
valiosa propriedade. (...) Não há como calcular o
número de guardas interpostas entre ela
56
e homens
violentos e sem princípios. (...) O escravo deve ter
completa consciência de que o senhor é para ele (...)
uma perfeita segurança contra o malefício. Sendo
este o caso, a relação entre amo e escravo torna-se
igual à que existe entra pai e filho.”
57
.
A realidade cotidiana mostrava que o havia como negar a humanidade
do escravo e seus direitos naturais. Com ou sem lei, existiu no mundo
escravista uma proteção senhorial pequena, permitindo-se, por exemplo, o
cuidado com as hortas, conseguiu-se maior ganho psicológico e a possível
crença em direitos próprios, mas principalmente uma formação de uma
consciência dos usurpados
58
.
A supremacia branca restringiu os casamentos entre cativos, o não
branco fazia parte do sistema escravista como escravo, num sistema de
classes, que deixaria nas palavras de Stamp um “... preconceito de cor nos
costumes e no direito americano.”
59
.
Maria Cristina Cortêz Wissenbach (1998) apontou as contribuições de
Genovese (1988) que mostrou em suas pesquisas o poder do senhor como
controlador dos crimes de negros, trabalhou com vários processos judiciais nos
quais o escravo aparecia com significativa humanidade. A importância dos
trabalhos, de Eugene Genovese, foi inserir a resistência dos escravos (para
além do “repúdio ou negação” ao sistema escravista) numa dinâmica das
relações sociais a partir da perspectiva de ação social do escravo com sua
interação no mundo dos senhores e do escravismo
60
.
A palavra do escravo o podia ser considerada como válida no Tribunal.
O senhor utilizava a justiça e as leis apenas quando tinha problemas com seus
cativos. O Tribunal e as sentenças judiciais refletiam a opinião pública, o
56
“A propriedade escrava”; grifo do mestrando.
57
Genovese (1988), op.cit., p. 54.
58
MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e Escravidão. Trabalho Luta Resistência nas
Lavouras Paulistas (1830-1888). Ed. Brasiliense: SP, 1987.; GENOVESE, 1988, op.cit..
59
Apud Genovese (1988), op.cit., p.55.
60
Apud WISSENBACH, Maria Cistina Cortez. Sonhos Africanos, Vivências Ladinas Escravos
e Forros em São Paulo (1850 – 1880). São Paulo: HUCITEC, 1998. p.27.
39
comportamento pessoal esperado e a boa “conduta moral”, mas o “... caráter
geral do sistema jurídico do Sul” (ainda se referindo aos EUA) e a “... relação
entre a condição legal do escravo e sua posição (...) na prática extra-jurídica”
61
eram pautados pelas relações entre senhor e escravo; sempre existiram
diferenças entre direito e a prática dos costumes.
O distante convívio dos senhores norte americanos com seus escravos -
muitos residiam longe de suas fazendas administradas por profissionais
contratados para o serviço - colaborou com o uso do paternalismo
desenvolvido naquela sociedade. O controle era realizado pela força do
administrador e pela suposta “afetividade” de um senhor ausente que muito
enganava seus plantéis com discursos amigáveis.
No Brasil, durante o período do Império, a prática da manutenção dos
plantéis partia do controle realizado pelos feitores e por um senhor que residia,
na maioria dos casos, na fazenda. A violência dos castigos era para acalmar o
escravo insubordinado e dar exemplo aos demais, numa demonstração de
força e poder do senhor.
Os senhores mesmo em posição de conforto na sociedade necessitavam
de artimanhas para garantir a boa perpetuação do sistema escravista, existiam
problemas nas relações cotidianas para se manter um escravo, caso contrário
não utilizariam das alforrias condicionais, da ingratidão e dos castigos
62
.
As tensões tornavam-se mais complexas e prejudicavam a convivência
diária: por um lado, os trabalhadores acuados pelas correntes e pelo tronco
sempre à espera de alguma correção violenta pela chibata; e por outro, o
senhor e sua família, na tensão pela espera de alguma revolta dos seus
escravos e preparados para coibi-la com eficácia e violência quaisquer tipos de
insubordinação ou revolta.
O controle de seus cativos nas fazendas do Vale do Paraíba dava-se de
forma particular: o senhor mantinha a ordem pelo costume e boa moral mas,
quando julgava necessário, recorria à justiça imperial. Nas cidades existiam os
61
Genovese (1988), op.cit., p. 70.
62
ZANETTI, Valéria. CALABOUÇO URBANO Escravos e Libertos em Porto Alegre (1840-
1860). Porto Alegre: PUCRS, 1994. P.75.
40
calabouços (prisões) e os senhores não contavam com os feitores (talvez
pelo reduzido número de escravos), mas o controle se dava pelos castigos
físicos e pela dominação afetiva e pessoal do paternalismo.
Em lugares onde o número de escravos era maior que o de brancos,
como na América portuguesa, o medo da insurreição era maior do que o
possível humanismo dos senhores.
Em seus estudos, Maria Helena Machado
63
analisou uma hipótese de que
os senhores lidavam com as transgressões de seus escravos de modo
particular. Em processos criminais que envolvessem qualquer um de seus
escravos, com penas que prejudicassem sua propriedade, o senhor usava de
seu poder tradicional para corrigir e controlar seus cativos, aplicando castigos
mais leves para não “danificar” ou perder algum escravo
64
.
Desta forma, MACHADO (1987) percebeu o aparecimento, nas cidades
de Campinas e Taubaté do Século XIX, da “... subrrepresentação da
criminalidade do escravo...” apoiada pela grande diminuição das Ações
Criminais nas cidades citadas (de 1830 a 1888), acentuando, assim, o
paternalismo com a dominação senhorial nas áreas mais ruralizadas da
Província de São Paulo
65
.
As diferenças entre as cidades citadas, nas informações obtidas por Maria
Helena Machado, são as peculiaridades existentes no trato do senhor com os
crimes de seus escravos. Por exemplo, em Taubaté, a referida autora
encontrou crimes menos violentos de escravos em relação aos de Campinas,
mas com maior significado de expressão social, o que denuncia o largo bito
de mobilidade e convivências de escravos e senhores naquela sociedade
66
.
Segundo Perdigão Malheiro, importante jurista do século XIX e figura
marcante nas discussões sobre a escravidão durante o Império, o Brasil
necessitava suscitar os debates a respeito das possibilidades para o fim da
63
A referida autora trabalha em seu estudo sobre as Ações Criminais de Campinas e Taubaté
entre 1830 e 1888 a questão da sobreposição da vontade do senhor, e sua capacidade, no
controle de seus cativos sobre a própria lei do Império. MACHADO (1987), op.cit., pp.27 a 31.
64
Idem.
65
Idem.
66
Idem, pp.47 a 54.
41
escravidão, pois acreditava na liberdade e dizia que o direito natural seria a
favor da liberdade
67
.
As leis poderiam, também, ser utilizadas para proteção dos cativos que
conseguissem sua manumissão. MALHEIRO (1976) comenta:
(...) Por outro lado, protege o homem livre,
castigando aquele que o reduzir ou tentar reduzir à
escravidão, incumbindo às Autoridades procederem
mesmo ‘ex-officio’ por ser de acusação pública
semelhante delito.
68
Qualquer ato de libertar um escravo é passível de investigação por parte
do historiador, principalmente quando estes atos foram concebidos por figuras
da elite senhorial, que lucravam alto com o sistema escravista
69
.
Este foi o caso da Ação de Manutenção de Liberdade de Escravo, com
data de 5 de maio de 1857, movida por um senhor de Taubaté a favor do ex-
escravo Claudiano, contra o curador do próprio ex-escravo que o reduzira à
escravidão, já que o detinha sob sua responsabilidade.
70
O senhor José Francisco Monteiro requereu a certidão do ocorrido à
Justiça, talvez porque Claudiano fora reduzido ao cativeiro pelo próprio curador
senhor João Baptista de Paiva Baracho, conforme a Ação de Liberdade
movida:
(...) A questão é daquelas que a lei recomenda e
favorece, visto que diz respeito à liberdade Dum
homem e, por conseqüência, toda e qualquer
pessoa de povo tem direito a reivindicala. O suborno
67
MALHEIRO, Agostinho Marques Perdigão. A Escravidão no Brasil Ensaio Histórico,
Jurídico, Social. Petrópolis: Editora Vozes, 1976. 3 edição. Vol. I, p.68.
68
Idem, p.52.
69
Numa investigação do comportamento do senhor perguntar-se-ia por que libertou seu
escravo: por moralidade cristã, necessidade econômica, demonstração de paternalismo na
construção de redes clientelísticas entre libertos ou até mesmo imposição de seu poder na
sociedade...?
70
Sr. José Francisco Monteiro contra o Sr. João Baptista de Paiva Baracho, curador do
suplicante e escravo Claudiano (de propriedade de Pedro Pereira de Barros).
42
dos autos importa um crime, e com as
circunstancias aggravantes de ser com o fim de
reduzir para escravidão pessoa livre, e seu delicto
não admite fiança (...)
71
.
Desta forma, o escravo Claudiano conseguiu a certidão que necessitava
para exercer sua condição de forro, mesmo que para isto precisasse
pressionar, na Justiça, seu curador a partir de outro senhor
72
.
As intenções dos senhores poderiam rumar para diversos campos,
dependendo das condições que norteavam este rápido, mas importante,
Processo Cível.
O conjunto das informações desta Ação de Manutenção de Liberdade é
pequeno, mas podem-se analisar as intrigantes questões que aparecem no
teor de sua leitura.
O poder da cidadania de um homem rico, assim como sua ascendência
moral sobre outros homens livres da sociedade e, conseqüentemente, dos
cativos em geral, é um forte indício da posição do senhor Francisco Alves
Monteiro contra o curador do forro Claudiano, homem que crescia na cidade de
Taubaté como um próspero comerciante.
Por outro lado, esta ação margem para pensar que tal conduta, a de
Francisco Alves Monteiro, seria de ordem clientelística e também paternalista,
isto é, muito provavelmente este senhor buscou a Justiça Imperial para
reafirmar sua condição hegemônica dentro da sociedade, mesmo que para isso
fosse necessário lutar contra outro senhor.
O forro tornava-se motivo para disputas senhoriais? Tal função poderia
concretizar as relações sociais entre as diferentes classes? Além disto, o forro
Claudiano não viria a ser (na concepção do novo curador) um eterno devedor
daquele que o beneficiou?
71
Ação de Liberdade e Fundo de Emancipação 24.02 Caixa 132 (1725 1879), esta foi a
única Ação de Liberdade encontrada dentro do período estudado (1840 1870), no Arquivo
Histórico de Taubaté.
72
Para a Justiça imperial um escravo apenas se fazia presente pela figura de um curador.
43
Afinal, esta talvez seja uma possibilidade do uso do paternalismo
senhorial costumeiramente desenvolvido e aceito pela sociedade de Taubaté
em meados do Século XIX, apoiado, de fato, nas leis imperiais brasileiras.
Pode-se levantar a questão da comprovação de ações diferenciadas,
nesta cidade, colaboradora da construção de redes de alianças clientelísticas
entre senhores e seus subalternos.
Neste caso o paternalismo é latente, apareceu na disputa jurídica entre
senhores pela “posse” de um suposto forro, Claudiano que esteve nas sombras
do sistema escravista em Taubaté, oscilando entre escravo e liberto. Segundo
MACHADO (1987), algumas das cidades produtoras do café apresentavam
padrões similares de processos, na justiça, embora com “histórias específicas”:
(...) As disputas jurídicas relativas à condição legal
de uma parcela da população não-branca do
município taubateano parecem refletir uma realidade
social: o da existência de uma camada de indivíduos
que se encontrava, nas últimas décadas
precedentes à Abolição, nas franjas do sistema,
oscilando entre a liberdade e a escravidão
73
.
Por vezes, a morte de um senhor poderia se transformar no momento
para um escravo reclamar, na Justiça, a sua liberdade, pois conforme a
menção de sua manumissão, se verbal ou em testamentos, abrir-se-ia margem
para um questionamento da ordem escravista fortemente defendida em
Taubaté
74
.
Tais questões de tratamentos diferenciados a escravos, em Taubaté,
aparecem confirmadas na tese de Maria Aparecida Papali, que trabalhou, a
partir de 1871, com as Ações de Liberdade encontradas no Arquivo Histórico
da cidade citada
75
.
73
MACHADO (1987), op.cit., p.51.
74
PAPALI (2003), op. cit., pp.136 e 137.
75
Idem.
44
Pode-se identificar, na tese da referida autora, o caso da Ação de
Liberdade Litigiosa movida pelo libertando Agostinho, entre os anos de 1879 e
1880, a qual será analisada segundo a alegação do escravo Agostinho, na
Justiça Imperial, de que recebia certa quantia em dinheiro todos os meses de
seu senhor, desde a data de 1857, comprovada nos autos pelo reclamante
76
.
Entende-se que o requerente Agostinho, por meio de seu curador, disse
que o valor combinado com seu senhor não lhe foi entregue por inteiro, e em
vida, vindo, então, a reclamar pelo pagamento de seu pecúlio
77
sob a forma de
sua Carta de Alforria e o restante em dinheiro, após o falecimento do senhor.
A Ação de Liberdade de Agostinho mostra que, provavelmente, desde
1857 já existia, na cidade de Taubaté, uma:
(...) riqueza das relações desse mesmo escravo
com o mundo dos homens livres, suscitando a
possibilidade de ter o referido cativo muito mais
trânsito entre os homens da lei do que é possível
cogitar (...)
78
.
Além disto, surpreendente foi o desfecho da Ação, porque o libertando
Agostinho conseguiu enviar uma carta à Justiça, por intermédio de um cidadão
honrado na referida cidade, dizendo que a questão de sua Ação estava
resolvida e isso fora dos âmbitos judiciais, e, assim, proclamou-se cidadão
79
.
Ficou claro que, mesmo sendo a Ação de Liberdade do escravo
Agostinho após a Lei de 1871, que lhe permitiu tal reclamação, o mesmo
escravo estava muito tempo (desde pelo menos o ano de 1857, o qual
76
Idem, pp.142 e 143.
77
Após a Lei Rio Branco em 28 de setembro de 1871, uma das questões mais importantes
abordadas no tocante às manumissões foi a condição de se formalizar o direito ao pecúlio de
escravos e sua conseqüente possibilidade de compra da liberdade “... independente da
vontade do senhor.” PAPALI (2003), Idem, pp.142 e 143.
78
Idem, p.145.
79
Idem, p.146.
45
conseguiu comprovar) tecendo relações sociais dentro e principalmente fora do
cativeiro
80
.
As possibilidades do poder do senhor na manutenção da escravidão
passam pela necessidade de também manter a ordem da sociedade, criando
um sistema paternalista de dominação e garantindo o sustento da economia
dentro e fora da grande lavoura exportadora.
Até mesmo os pequenos proprietários de escravos contribuíam com o
sistema, forjando uma rede intrincada de atitudes e condutas que justificavam e
garantiam o bom funcionamento do escravismo. Aproveitavam-se da situação
os próprios escravos que viviam e conquistavam seus direitos.
Em Taubaté, isso não era diferente. Encontram-se muitos indícios nos
documentos analisados de que, para os senhores paternalistas, seria
proveitoso contribuir para a educação, disciplina e pela boa moral católica de
seus escravos, aplicando castigos moderados segundo seu contemporâneo
Perdigão Malheiro “... como os pais aos filhos, e os mestres aos discípulos.”
81
.
Este foi o caso de um testamento, que data de 7 de setembro de 1842
(ANEXO), no qual a senhora declara, neste trecho, que recebe os frutos das
“breganhas” de seus escravos,
(...) outro sim declaro que estes mesmos escravos,
rezervando as negras, que em casa me servem,
tenho recebido algum por mais e bem assim o
produto das breganhas que por meo consenço tem
feito, em meo proveito: dependendo de tudo, que
preciso de seos beins, sem que dos meos como
disse, se tenha utilizado, vindo por conseqüência,
eu, e alguns de meos filhos, (...)
82
80
Idem, pp.136 a 151.
81
MALHEIRO (1976), op. cit., p. 38.
82
Testamento de Theresa Maria da Conceição, Cartório do Ofício Livro de Registro de
Testamentos, nº 4 1842-1844. Arquivo Histórico de Taubaté. Divisão de Museus, Patrimônios
e Arquivo Histórico de Taubaté, SP.
46
Na concepção jurídica, que dava garantias ao senhor de usar o escravo
como bem o conviesse, seria justo o uso do cativo para o sustento da família
senhorial.
Mas, ao sair para trabalhar, por que o escravo o fugia? Muitos
poderiam fazê-lo, mas a liberdade foi, por vezes, baseada num ideal de vida
que teria se espelhado em diversos fatores como o exemplo de forros, livres
pobres e aa vida dos próprios senhores e, muito lentamente os escravos
foram formando os diversos significados de liberdade que os levariam ao
caminho da alforria. Então, mesmo esta suposta autonomia para fazer serviços
pagos na rua foi fundamental na transição entre escravidão e liberdade
83
.
Este trânsito do escravo ao homem livre foi tangenciado pelo
paternalismo senhorial, que proporcionava aos cativos, principalmente aos
nascidos no Brasil, à prática de “... relações pessoais horizontais e
dependência pessoal...”
84
, e a decisão da concessão da manumissão deveria
ser considerada muitas vezes união da vontade do senhor e da capacidade do
pagamento do seu valor pelo escravo.
Na análise dos testamentos de Taubaté
85
, correspondentes aos anos de
1843 e 1844, verifica-se que, do total de dezoito escravos citados pelos
Testamenteiros, apenas três escravas aparecem com algum tipo de doação em
dinheiro e/ou liberdade, das quais uma delas com a revogação da liberdade no
mesmo documento
86
e outra escrava, de tão velha, foi-lhe doada a liberdade.
(TABELA 3)
83
CASTRO (1995), op. cit., pp. 32 a 40.
84
Idem, p.195.
85
FONTE: Livro de Registros de Testamentos 04 (1842-1844), Cartório do Ofício.
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté, SP.
86
Análise realizada, na sequência deste capítulo, sobre as alforrias condicionais.
47
TABELA 3
Descrições das contemplações de escravos nos anos de 1843 e 1844:
ANO
ESCRAVO
DADOS GERAIS (idade, profissão,
doação,...)
PROPRIETÁRIO
1843
Joanna Negra velha, será liberta,
podendo ela ficar com qualquer dos
herdeiros
Anna Francisca de
Oliveira
1843
Benedito Crioulo doado para Marianna,
neta da Testadora
Idem
1843
Joaquina Carta de Liberdade revogada Idem
1843
Anna Crioulinha, com doação de
liberdade
Antônio José
Fernandes
1843
José Foi recebido na herança da
avó da Testadora
Anna Severina de
Nazaré
1843
Joaquina Idem Idem
1843
Policena Idem Idem
1843
Fortunata Idem Idem
1843
Prudente Idem Idem
1843
Laducena Idem Idem
1843
Maria Idem Idem
1843
Elleodora Idem Idem
1844
Bernardo Nada consta Florianna da
Fonseca Telles
1844
Maria A Testadora possui apenas
uma parte
Idem
1844
Rita Para o filho, Luis, da
Testadora
Maria Magdalena
de Jesus
1844
Luiza De Nação – Para o filho,
Francisco, da Testadora
Idem
1844
Martinho e
Emilia
Crioulo – Para o filho, Silvério,
da Testadora / Crioulinha – Para a
filha, Francisca, da Testadora
Idem
FONTE: Livro de Registros de Testamentos – Nº 04 – (1842-1844), Cartório do 2º
Ofício. Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté, SP.
48
Novamente, foi encontrada, em Taubaté, uma pequena porcentagem de
escravos citados (16,66%) com algum tipo de doação de alforria, entre os anos
de 1843 e 1844 (conforme GRÁFICO 1.3), mas não deixa de ser
significativamente maior do que o número de doações que se encontra no ano
de 1842, que foi de 6% de escravos contemplados em testamentos.
GRÁFICO 1.3
CONTEMPLAÇÃO DE ESCRAVOS
COM DOAÇAO
SEM DOAÇÃO
16,66
83,34
FONTE: Livro de Registros de Testamentos – nº 04 – (1842-1844), Cartório do 2º Ofício.
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico de Taubaté, SP.
Conforme observou Hebe Maria Mattos de Castro, ao estudar as Ações
de Liberdade das Províncias do Rio de Janeiro, o Paulo e Minas Gerais do
Século XIX, o maior número de alforrias incidiu sobre os crioulos, mulheres e
crianças
87
.
Este fato ocorreu, segundo referiu a autora, devido às relações familiares
que seriam mais acessíveis aos crioulos e às mulheres, indicando que a
87
CASTRO (1995), op. cit., p.195.
49
existência de famílias escravas e a proximidade desse segmento com a família
senhorial facilitavam os caminhos rumo à liberdade
88
.
As relações sociais entre livres e escravos, assim como a experiência de
relações familiares foram importantes conquistas dos cativos, quando
transformados em possíveis significados de liberdade construídos no processo
de abolição durante o Século XIX.
As alforrias foram conquistas dos cativos, mesmo quando motivadas por
interesses dos senhores em manter o trabalho escravo sob controle.
Em Taubaté, encontram-se “doações” de liberdade em Testamentos de
última vontade dos senhores que funcionaram como uma extensão da moral
católica e da possibilidade de domínio senhorial sobre os seus escravos. A
alforria fora praticada dentro do complicado processo de controle afetivo do
paternalismo, como seu braço forte.
Nos possíveis caminhos de sua existência, na Taubaté dos anos
oitocentos, os escravos emergiram no contexto da dominação senhorial,
valendo-se das fraquezas do próprio sistema, como a possibilidade de
relacionamentos sociais cotidianos entre senhores e escravos.
A sociedade escravista, com todos os seus atores e agentes, foi
MACHADO (1987), produtora de uma “... ampla rede de controle social, capaz
de combinar o augumento da força com outros mecanismos de dominação.”
89
.
A partir das ambiguidades de uma sociedade fundada no escravismo,
como, por exemplo, o paternalismo, os escravos se apropriaram das
possibilidades sociais, emotivas, morais e até mesmo jurídicas no caminho da
conquista de sua liberdade.
O escravo foi a propriedade humana de um senhor que imprimia muitos
esforços na sua obediência e no bom trabalho; ele devia seguir as vontades de
seu senhor mas, na condição de ser humano, podia se negar, mesmo
castigado fisicamente. Quando eram negadas as condições sicas de
88
Idem.
89
MACHADO (1987), op.cit., p.17.
50
subsistência ao escravo, muitos se rebelavam, daí recebiam alguma forma de
castigo.
No entanto, conviviam na sociedade vivendo da melhor forma possível
para suas condições cativas, entrenhando-se cotidianamente nas famílias
taubateenses, realizavam qualquer tipo de trabalho, ganhavam experiência e
buscavam a liberdade.
A busca pela liberdade deveria passar por uma carta de alforria concedida
pelo senhor e, em muitos momentos, utilizada de forma paternalista, com o
senhor “doando” a liberdade na concessão da alforria mas impondo condições
que o escravo deveria seguir quase sempre até a morte do senhor, caso
contrário, tal carta perderia seu valor legal.
1.4 AS ALFORRIAS CONDICIONAIS: A LIBERDADE SOB CONDIÇÃO E
ALGUNS ASPECTOS LEGAIS DO ESCRAVISMO
Durante o século XIX, o Império do Brasil legislou as questões relativas
ao escravo e à propriedade escrava no meio de disputas políticas entre liberais
e conservadores.
O direito costumeiro da sociedade foi arbitrado pelas relações de poder
pessoal e de seu equilíbrio: o senhor de escravos decidia sobre a liberdade ou
a escravidão dos seus escravos, naquela sociedade “... Para ser escravo ou
homem livre era preciso reconhecer-se e ser reconhecido como tal...”
90
.
Conforme CASTRO (1995) os principais agentes a falar em Ações de
Liberdade foram os curadores, advogados e juízes, que discutiam as “...
fronteiras legais entre escravidão e liberdade...”. O arcabouço legal pelo se
qual tentou formar um Estado Imperial com direitos positivo e civil, para
homens livres, dentro de uma sociedade escravista foi complicado e ambíguo.
90
CASTRO (1995), op. cit., p.194
51
Assim, torneava-se a justiça para legitimar a escravidão e, também, a liberdade
91
.
Desde o período colonial a Coroa interferia na relação do senhor com o
escravo, pela dificuldade em se obter uma concepção plena da propriedade
escrava e, porque suas muitas questões se davam em nome do costume da
sociedade.
Diferentes argumentos foram utilizados pelos senhores na manutenção
legal da escravidão, mas a maioria destas “armas” levava à relação da pessoa
do senhor com o cativo, convívio social e pesoal que se sobrepunha ao poder
privado e legalizado de tais senhores
92
.
A revogação das alforrias por ingratidão, mesmo as incondicionais, foi um
destes artifícios. Seguiam a idéia de não colocar nem a liberdade e nem a
propriedade escrava como direitos absolutos, que a sociedade era
naturalmente desigual, então nos conflitos o “... Rei deveria garantir a ordem e
o bem comum”
93
.
As leis imperiais existiam para situações nas quais o costume fosse
conflitante, as Ordenações Filipinas não encaravam a liberdade como natural.
Eram normas escritas que foram utilizadas para que “... possibilitassem a
arbitragem Real em prol do bem comum”
94
.
Tudo isso era justificável porque toda propriedade (escrava ou não),
posse, poder ou direito era uma concessão da autoridade do rei
95
.
A partir da Constituição Imperial de 1824, que pretendia legislar para um
Estado Liberal, os direitos de propriedade foram garantidos aos cidadãos, e
91
Idem, p.212.
92
As fronteiras entre a escravidão legítima e ilegítima como campo de atuação da extensão do
poder do senhor sobre seus escravos foram estudadas por Sílvia Hunold Lara em Legislação
sobre escravos africanos na América portuguesa. In: GALLEGO, Andrés (org.). Nuevas
aportaciones a la História jurídica de Iberoamérica. Colección Proyectos Históricos Tavera,
Madrid, 2000.
93
CASTRO (1995), op.cit., p.213.
94
Idem.
95
Idem.
52
cada vez mais o Estado buscava criar leis que dessem legitimidade a uma
Nação em construção.
Os direitos de propriedade escrava tenderam ao direito positivo, o
caminho entre escravidão e liberdade
96
foi visto como direito natural.
A cada discussão sobre a legitimidade do escravismo, acrescentavam-se
motivos para justificar a busca pela liberdade por um cativo. A Constituição de
1824 limitou a interferência da Coroa nas relações escravistas
97
.
Perdigão Malheiro, a partir da década de 1840, buscou, nos debates
jurídicos, a jurisprudência para uma definição entre a liberdade e a propriedade
escrava em questões, tais como:
(...) a situação civil do filho da liberta condicional (...),
ou o direito do escravo ao pecúlio e à compra de sua
própria liberdade (...) (negada até 1871)
98
.
A citação de Hebe Maria Mattos de Castro explica bem a questão:
A Escravidão foi um Regime Social que se
coadunava bem com o espírito patrimonial das
Ordenações Filipinas e muito mal com uma
tendência progressiva da lei
99
96
Idem.
97
Idem, p.214.
98
Idem.
99
Idem.
53
O Império se viu entre as tensões de dois direitos: a liberdade e a
propriedade escrava, que, quase sempre, foram resolvidas pelo costume nas
suas relações privadas do poder
100
.
Mas, se um escravo era propriedade de um senhor, como poderia
procurar a liberdade jurídica? Antes da Lei do Ventre Livre, em 28 de setembro
de 1871
101
, o escravo não tinha condição de reivindicar sua liberdade, não
poderia encaminhar um pedido de alforria à justiça
102
, situação que dependeria
totalmente da vontade do senhor
103
e, conforme Perdigão Malheiro:
Para dar alforria, é necessário, igualmente, que em
regra, o manumissor tenha capacidade, e livre
disposição. – Assim: 1º - o escravo não pode fazê-lo
por não ter capacidade civil; (...)
104
Manuela Carneiro da Cunha acredita que as leis positivas e as dos
costumes não se cruzavam e que no Século XVIII a sociedade brasileira foi um
conjunto do:
(...) escrito e o do não escrito, que não se cruzam,
um afirmando relações sem privilégios entre
100
Idem.
101
A Lei Rio Branco de 28 de setembro de 1871, mais conhecida como Lei do Ventre Livre, foi
elaborada para libertar os filhos de escravas nascidos a partir daquele ano, possuindo, em sua
essência, valor muito maior, pois concedeu ao escravo direito de pleitear a compra de sua
liberdade, com ou sem a permissão de seu senhor, além da garantia legal do pecúlio. Cf.
PAPALI (2003), op. cit.; PENA, op. cit.
102
GRINBERG, Keila. Liberata: a lei da ambiguidade – ações de liberdade da Corte de
Apelação do Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994. Pp.63 à 70.
103
WISSENBACH (1998), Maria Cistina Cortez, op.cit.: conforme sua tese os processos
criminais seriam as fontes oficiais que “... guardam vantagens significativas para a análise
social” (p.38), já que esclarecem as ambigüidades do universo dos escravos, sendo eles
inaptos (junto às mulheres, crianças, miseráveis e libertos) para posarem como requerentes
(autores) na Justiça Imperial, mas sempre, e somente assim, considerado com “...relativa
personalidade e plena responsabilidade...” (p.38) como réu, quando assim necessário.
Poderiam ser réus, mas não requerentes.
104
MALHEIRO (1976), op. cit., pp. 87 e 88.
54
cidadãos equivalentes, outro lidando com relações
particulares de dependência e de poder
105
.
Hebe Maria Mattos de Castro discorda de Manuela Carneiro da Cunha,
pois defende a idéia da sobreposição tanto da lei positiva sobre a costumeira
quanto o contrário, e até mesmo a sua utilização conjunta. Analisou Ações de
Liberdade que a levaram à conclusão de que, devido ao costume da tolerância
de relações sociais dentro do cativeiro, muitos cativos conseguiram o acesso à
Justiça Imperial
106
.
A utilização do direito costumeiro e do positivo nas lutas pelas alforrias
pôs os escravos na encruzilhada dos poderosos, local em que se encontrava,
também, a coroa brasileira. Quanto maior o controle sobre o tráfico de
escravos, pela coroa, menor a disposição à doação das alforrias pelo senhor.
A questão da manutenção da mão-de-obra escrava sofreu tremendas
pressões internas, promovidas pela elite senhorial brasileira
107
. As pressões
externas dos industriais ingleses visavam à substituição do escravo, em todo o
mundo, por mão-de-obra livre e assalariada, a qual poderia comprar os
produtos de sua indústria.
Por um lado, a coroa brasileira estimulava as manumissões; e, por outro,
o costume brasileiro importava escravos africanos pelo tráfico ilegal. Na
intersecção das forças estava o escravo buscando o seu possível espaço de
convivência.
Um Aviso Imperial comentado por Nabuco de Araújo dizia que, em
15.12.1831, a justiça deveria conseguir as manumissões por meios pacíficos e
de convencimento dos senhores, com o intuito de proporcionar aos escravos
105
CUNHA (1987), op.cit., p.141.
106
A referida autora trabalhou um conjunto de ões dos escravos que proporcionaram sua
colocação no universo de relações de livres, libertos e de escravos. Tais relações sociais
construíram experiências para um caminho à liberdade. CASTRO (1995), op. cit., p.191 e 192.
107
O senhor de escravos dependia daquele tipo de trabalho compulsório para sua
sobrevivênvia e mesmo que alforriasse um escravo o fazia em nome de sua generosidade, até
porque deveria manter sua ascenção sobre livres, libertos e escravos.
55
(que, por meio de curadores, acessassem a justiça) o caminho para a
alforria
108
.
Para Célia Maria Marinho de Azevedo (1997), em Onda Negra Medo
Branco: O negro no imaginário das elites, os costumes talvez funcionassem
porque estes direitos foram controlados pela opinião pública e, provavelmente:
(...) o que pressionasse sua implementação era o
temor, fortemente presente, da fuga ou do suicídio
de um escravo, frustrado em suas esperanças de
alforria
109
.
No período entre 1827 a 1837, o predomínio das práticas liberais no
Estado Imperial fez com que os tribunais deixassem de conceder alforrias aos
escravos na justiça, para não prejudicar o “exercício do direito” dos senhores,
determinado na lei
110
. O “exercício do direito” à propriedade escrava, em sua
plenitude, “... supunha o direito exclusivo de o senhor alforriar ou não seu
escravo, segundo sua exclusiva vontade.”
111
.
Segundo Andrei Koerner, as condições ideais aos senhores para dar
continuidade a este controle sociopolítico e econômico da sociedade foram as
garantias para a manutenção do poder político do novo Império do Brasil,
então:
(...) formou-se em torno da Coroa uma aliança de
proprietários rurais, comerciantes, traficantes e
funcionários, aliança que comandou, a partir 1837, a
108
NABUCO, Apud CUNHA (1987), op. cit., p.129.
109
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda Negra Medo Branco: O Negro no Imaginário das
Elites (Séc. XIX). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 116.
110
Idem, p.128. A Carta Outorgada de 1824 dizia que “... No campo jurídico, o argumento que
se opunha a estas propostas (do resgate compulsório do escravo que apresentasse seu valor)
era o direito de propriedade, garantido em ‘toda sua plenitude’... (art.179, 22)”. Idem.
111
Idem.
56
série de acontecimentos conhecidos como o
Regresso Conservador
112
.
No judiciário brasileiro, o Império atuava pelas mãos de seus magistrados
profissionais e autoridades policiais, que, após a Lei 261 de 03.12.1841,
dividiu o poder das autoridades locais, atendendo os senhores regionais e, ao
mesmo tempo, aos interesses da coroa na manutenção da ordem local. O
Império apoiava-se nesta ordem de “poder” para garantir os privilégios
senhoriais. Recebia, em troca, a estabilidade da sociedade
113
.
A partir de 1850, a Lei Eusébio de Queirós proibiu o tráfico negreiro
definitivamente no Brasil, continuando, porém, as pressões políticas externas
da Inglaterra para a abolição total dos cativos no País.
Fora fundamental para o Estado Imperial abrir os debates políticos sobre
o fim do escravismo (entre 1850 e 1871), aumentando o conceito político
externo do Brasil e preparando o terreno interno para um futuro país sem a
mão-de-obra escrava. É a partir de então que se intensificam os debates
políticos emancipacionistas no seio da sociedade.
Em suas pesquisas sobre as atitudes dos advogados para com a
libertação dos escravos no Instituto de Advogados do Brasil, Eduardo Spiller
Pena pesquisou a participação de advogados e jurisconsultos no processo de
elaboração de projetos de leis emancipacionistas. Os debates passavam pela
questão da possível perda da propriedade escrava e indenização de senhores,
o que se leva a entender as contradições entre os interesses do Império
114
.
No entendimento de Eduardo Spiller Pena, os debates entre os sócios do
IAB (Instituto de Advogados do Brasil) de 1840 a 1860 engajavam-se, em sua
maioria, na política Imperial de emancipação gradual dos cativos, reforma que
112
KOERNER, Andrei. Judiciário e Cidadania na Constituição da República Brasileira. São
Paulo: HUCITEC, 1998. p.33. Andrei Koerner explica a constituição do Poder Judicial durante o
período Imperial a partir da análise das leis imperiais.
113
Idem.
114
PENA, Eduardo Spiller. Pajens da casa imperial – Jurisconsultos e a escravidão no Brasil do
século XIX. Campinas – SP, 1998, p.14.., pp.30 a 40.
57
precisava passar pelas discussões de especialistas. Conforme palavras do
autor:
(...) instrumento da razão jurídica e da lei,
proporcionar a reforma ideal para o fim da
escravidão, com o objetivo predestinado de
aperfeiçoar, ou mesmo salvar a Nação Imperial
115
.
No centro das relações costumeiras da sociedade brasileira: de um lado
os cativos aprendiam negociando dentro do costume e do poder privado dos
senhores, transitando entre os livres e construindo expectativas de liberdade:
de outro, os senhores trataram de “... produzir fidelidades e potencializar o nível
de sua autoridade entre os cativos...”
116
.
Manuela Carneiro da Cunha, em Antropologia do Brasil
117
, expõe sua
hipótese de que a hegemonia das elites senhoriais era de ordem política, a
partir do segundo reinado brasileiro a política deveria continuar no rumo da
consolidação da monarquia e o sistema escravista era um dos pilares em que
se apoiava.
A proteção das elites senhoriais seria uma constante: em 1854, numa
seção de Justiça do Conselho do Estado Imperial Brasileiro, estabeleceu-se
que, mesmo sendo imoral negar a alforria paga pelo escravo em lei, tal atuação
seria necessária para deixar a escravidão controlada, deixando de ser vista
como perigosa, caso o escravo:
(...) só pudesse receber a liberdade das mãos de
seu senhor, não só se ressalvava o direito de
propriedade, mas não prejudicaria o sentimento de
obediência e subordinação do escravo para com o
115
Idem, p. 42.
116
CASTRO (1995), op. cit., p.214.
117
CUNHA (1987), op. cit., p. 132.
58
seu senhor, e a dependência em que dele devia ser
conservado
118
.
Tendo em vista a grande busca de escravos e forros, via curadores, por
acesso aos Tribunais, em Ações de Liberdade e Manutenção de Liberdade
119
,
devido às leis civis contraditórias ainda baseadas nas Ordenações Filipinas e
no Direito Romano, em meados do Século XIX, a “Associação Profissional de
Jurisconsultos e Advogados com Discussões Sobre a Escravidão”
120
,
reconhecida pelo Império, iniciou debates sobre as leis que levariam ao fim da
escravidão.
Os debates foram se intensificando e Francisco Acayabade
Montezuma (considerado por Joaquim Nabuco o primeiro abolicionista do
Brasil) defendeu a abolição sem indenização com um projeto de lei, em 1865,
que libertava escravos com 25 anos ou mais e dava prazo de 15 anos para
abolição geral, apoiado em princípios morais e divinos, mas “... não deixava de
respeitar o próprio direito legalmente constituído da escravidão...”
121
. Os
senhores deveriam aproveitar para repor seus investimentos com escravos
durante 15 anos. Tal projeto não foi aprovado, mas mostrou duas questões: a
primeira remete à abolição geral; e a segunda é a garantia dos direitos
constituídos pelos senhores de escravos.
Enquanto os jurisconsultos do Instituto de Advogados do Brasil debatiam
a continuidade da escravidão alguns colegas, talvez a maioria, julgasse a
propriedade privada do escravo algo tão legítimo que as discussões sobre as
indenizações passaram por incríveis projetos que levariam os ex-escravos a
118
ALMEIDA, 1870, 4º Livro das Ordenações: 1074. Apud CUNHA (1987), op. cit., p.132 e 133.
119
CASTRO (1995), op. cit., p.193. A autora fez um estudo baseado em trezentos e oitenta
Ações de Liberdade ou Escravidão da Corte de Apelação (Século XIX), que estão no Arquivo
Nacional, buscando mapear questões como a experiência do cativeiro do Século XIX e as
condições objetivas da autoridade senhorial e das possibilidades do caminho da escravidão à
liberdade.
120
PENA (1998), op. cit., p.6.
121
Idem, p.44. Em Pajens da Casa Imperial”, sobre as discussões no palco dos jurisconsultos
do Império, Eduardo Spiller Pena trabalha com os debates no IAB, como fonte para sua tese,
na qual expõe as posições jurídicas de diversos especialistas da época sobre questões
levantadas nos tribunais.
59
pagarem, pelo resto de suas vidas, altíssimas somas anuais em dinheiro (o
que, provavelmente, os bem sucedidos conseguiriam fazer) para um fundo
de emancipação que indenizaria os ex-senhores
122
.
O que parece coerente é constar da tese de Eduardo Spiller Pena,
evidências da existência de todo tipo de intenção e sentimentos no círculo
jurídico do Império sobre a questão:
(...) eles conceberam suas soluções jurídicas para
equacionar as pendências entre a escravidão e a
liberdade em moldes amenos e moderados., o (...)
que não deixou de garantir o respeito devido aos
direitos de propriedade – mesmo que escravistas
123
.
O debate a respeito da existência de uma lei positiva que determinasse a
garantia de alforria ao escravo que pagasse seu valor foi bem discutido por
Manuela Carneiro da Cunha
124
.
Analisando as informações utilizadas por diversos historiadores que se
remetiam ao engano histórico
125
iniciado pelo inglês Henry Koster, lavrador de
122
Devido ao demorado e complicado processo de abolição dentro da sociedade brasileira, os
escravos conquistavam a cada dia mais armas para questionarem a legitimidade de seu
cativeiro. A partir das situações reais observadas no dia-a-dia das cidades e campos, os
políticos brasileiros iniciaram discussões para realizar uma abolição lenta e gradual. Tais
debates foram constantes e até levaram às confecções de posteriores projetos de leis, alguns
impossíveis e ridículos para a situação, outros representando a vontade de se perpetuar ao
máximo o escravismo. Idem, pp.30 a 50.
123
Idem, pp.47 e 48.
124
CUNHA (1987), op. cit.
125
O Engano Histórico” iniciado pelo inglês Henry Koster remete-se às suas cartas, usadas
como fonte histórica, para fora do Brasil. Em tais documentos ele escreveu que seria de direito
do escravo obrigar o senhor a libertá-lo, desde que oferecesse o seu valor, isso em 1816. O
próprio Koster falou que a prática seria uma regulamentação” ou lei, feita em favor do escravo
e que o senhor poderia não respeitar, não cabendo reclamações do escravo devido a sua
condição jurídica e, segundo Koster, “... nesse país que torna quase impossível que um
escravo ganhe um processo.” Existiria a tal lei? Para Koster as leis eram “burladas”, em favor
do poder do dinheiro senhorial, mas ele não viu a lei e disse que ninguém duvidava de sua
existência. A partir disso, muitos usaram os erros de Koster como fonte de estudos, como os
seus contemporâneos o francês Tollenare, o inglês Robert Southey em 1819, os viajantes Carl
Seidler em 1835, os Reverendos Kidder e Flecther, em 1857, Sir Harry Johnston em 1910 e
60
cana em Pernambuco, no Século XIX, Manuela Carneiro da Cunha mostra o
parecer da Justiça do Conselho de Estado que diz, em 1855: “Não Lei que
obrigue o senhor a alforriar seu escravo.”
126
Tal questão, a1871, era defendida pelas leis costumeiras, o que mais
valia era a vontade do senhor. Para disputas anteriores à Lei Rio Branco
(Ventre Livre, 1871), o escravo não poderia reivindicar sua liberdade na justiça,
pois somente após a lei de 1871 é que foi disposto por escrito que um escravo
teria o direito de pagar a sua liberdade, “...independentemente da vontade do
seu senhor.”
127
!
A discussão acerca da abolição da escravidão no Brasil foi
exaustivamente debatida pelos políticos brasileiros até 1871 e, segundo Andrei
Koerner:
(...) A Lei do Ventre Livre resultou de negociação do
governo com os proprietários, os quais, ao incluir a
indenização pelo governo com a condição para a
liberdade dos ingênuos, salvaram o princípio da
intangibilidade da propriedade, de qualquer tipo que
fosse.
128
A Lei do Ventre Livre foi um dos maiores marcos do movimento
abolicionista. Buscava argumentos que levassem à liberdade. Esta lei significou
um corte significativo nas questões de liberdade que se encontravam na
sociedade da segunda metade do Século XIX.
A Lei do Rio Branco, do Ventre Livre, foi utilizada por ambos os lados
(escravo e senhor) nas mais diversas situações, embora se acredite que, em
Tonnenbaum em 1947. Todos citaram Koster como fonte para mostrar o “direito positivo, legal,
à alforria no Brasil”. Idem, pp.124 e 125.
126
Idem, p.129.
127
PAPALI (2003), op.cit..
128
KOERNER (1998), op. cit., p.87.
61
geral, mais facilitou que dificultou as alforrias
129
, e, além disso, também atingiu
definitivamente a ascenção social do senhor, ou seja, a coluna vertebral da
escravidão no Brasil.
1.5 SOB CONDIÇÃO, SOB O JUGO DO SENHOR: “ZELO, AMOR,
FIDELIDADE...”
O Estado Imperial brasileiro buscava controlar os homens livres
alforriados com alistamento militar forçado, processos criminais e prisões.
Interessava ao Estado e aos senhores o controle da população livre “de
cor”, que trabalhava na agricultura, lado a lado com escravos, como
trabalhadores dependentes de todos os tipos (sazonais assalariados, parceiros,
colonos...), para abastecimento interno e para a grande lavoura exportadora.
Manuela Carneiro da Cunha escreve sobre o controle de escravos pelos
senhores e a utilização de diferentes meios para atingirem seu objetivo: “... A
alforria dos escravos interfere ou cria diretamente a formação deste tipo de
mão-de-obra livre dependente...
130
.
Devido à ideologia da elite dominante, o senhor foi considerado, pelos
seus pares, como um protetor do cativo
131
. Perante a lei e o costume da
sociedade, o senhor concedia uma doação ao escravo, sua liberdade ou carta
de alforria:
129
Cf. CASTRO (1995), op. cit., pp.191 a 217. Segundo a autora, após 1871 a Jurisdição da
Relação da Corte fixou-se no Rio de Janeiro e as Ações de Liberdade tornaram-se mais
libertadoras, até mesmo nas áreas rurais o movimento da escravidão à liberdade vai além da
vontade senhorial e aparece de fato nos Tribunais lutando judicialmente para barrar a
legitimidade de tal poder privado.
130
CUNHA (1987), op. cit., p.136.
131
CHALHOUB (1990), op.cit., pp.134,135,136 e 137.
62
(...) mesmo naqueles que foram resultado de um
resgate, nunca se deixa de insistir preliminarmente
na generosidade ou na afeição do senhor pelo seu
escravo e, em contrapartida, na fidelidade e nos
bons serviços do cativo que o tornaram elegível para
a libertação
132
.
As histórias de senhores paternalistas bondosos e de escravos
completamente dependentes num sistema escravista benevolente, assim como
do caráter violento da escravidão para uma melhor organização do trabalho
escravo, há muito estão dismistificadas, pelo menos desde os estudos de
Emília Viotti e Florestan Fernandes durante a década de 1960
133
.
Sabe-se que as “cartas de liberdade condicional” foram utilizadas no Vale
do Paraíba paulista durante as décadas de 1840 e 1870. Em Taubaté, 30% dos
testamentos pesquisados no Arquivo Histórico da cidade continham a cláusula
de “Liberdade Condicional”.
Se antes de 1871 não existiu lei que regulasse a alforria, mas “... as
Ordenações Filipinas, (...), permitiam sancionar práticas costumeiras em nome
das mais fortes razões da liberdade.”
134
, então, por qual motivo tais práticas
foram comumente utilizadas?
No testamento do Sr. Francisco Alves Monteiro e de D. Theodora
Joaquina de Moura, datado de 1857, os testadores deixam assegurada a “boa
vontade” de vinte e dois escravos para com os herdeiros, conferindo-lhes a
liberdade condicional, a qual gozariam após a morte dos testadores aos
quais deveriam tratar com “zelo, amor, fidelidade e muitos préstimos nos seus
serviços”, caso contrário a mencionada doação de liberdade perderia seu efeito
com a negação de tais condições, ficando como sempre o foram, escravos
135
.
132
CUNHA (1987), op. cit., p.136.
133
CHALHOUB (1990), op,cit., pp.136 e 137.
134
CASTRO (1995), op. cit., p.206.
135
AZEVEDO (1987), op. cit., p.228.
63
(...) Declararão mais os testadores que em sua
terças tão bem dão liberdade condicional de vinte e
dois escravos, cujos nomes são os seguintes =
Marcelina de Nação = Joanna de Nação = Calisto,
dito, marido da mesma = Jorge de Nação =
Magdalena, dicta = Francisco, marcineiro = dito =
Américo, marceneiro, dito = Ricardo carpinteiro, dito
= Joãozinho, ferreiro, dito = Roque, dito = Manoel
Canbinda = Francisca crioula, mulher do dito =
Josepha de Nação = Jacinto de Nação = Thobias
dito = Rufino, dito = benedicto Cadete, crioulo =
Florinda crioula = João mulato = Benedicta crioula =
Justina, dita = e Domingos, mingale; os quaes só
poderão gozar a liberdade conferida depois de terem
fallecidos os testadores, aos quaes servirão com
zello, amor e fidelidade e prestes em todo o sentido
ao serviço que se lhe mandar fazer, e no caso de
que os ditos escravos se afastarem dos preceitos e
condições referidas, ficará a liberdade de nenhum
effeito, e tidas e havidas como escravos que são e
então ficarão sendo...
136
No testamento do Sr. Francisco Alves Monteiro e esposa o que garantiria
a intenção do senhor após sua morte? E, caso desejasse que fosse realmente
cumprida sua vontade, como chegariam os escravos a reclamar tais direitos?
Todas as disputas judiciais, entre os senhores e escravos deveriam seguir
o seguinte formato: ao escravo reclamante dever-se-ia nomear um curador,
homem livre e reconhecido pela sociedade para representá-lo nas esferas
legais
137
, que o cativo não exercia o direito de pedir sua manumissão em
nenhuma lei, mesmo depois de 1871
138
.
Durante a vigência do processo, o escravo seria tirado do poder de seu
senhor, sendo “depositado” junto a um curador da cidade ou região.
136
Testamento nº 1, datado de 1857. Cartório do 2º Ofício – Livro de Registros de Testamentos
1842-1844. Arquivo Histórico de Taubaté. Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico
de Taubaté – SP.
137
CASTRO (1995), op. cit., p.198.
138
Cf.: MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. “A arena jurídica e a luta pela liberdade”. In:
SCHWARCZ, Lilia Moritz, REIS, Letícia Vidor de Sousa. NEGRAS IMAGENS. São Paulo:
EDUSP, 1996. Pp.117 a 137.
64
Segundo Hebe Maria Mattos de Castro, depois de depositado junto a um
curador, o escravo aprendia que poderia viver fora da influência senhorial: o “...
restabelecimento da autoridade senhorial tornava-se difícil neste contexto.”
139
,
mesmo que o escravo perdesse a Ação.
Conforme a referida autora, a questão da “condição” de algumas alforrias
aparece nas Ações que chegavam à Corte de Apelação abrindo o caminho à
liberdade e às situações de tensão que provocavam entre o “... arbítrio e
legitimidade do poder senhorial...”
140
, de acordo com os curadores dos
escravos reclamantes, estes teriam condições para a liberdade, pois viviam
com laços familiares, haviam nascido no Brasil e, também, mantinham relações
sociais fora do cativeiro
141
.
O recurso da liberdade condicional foi amplamente usado pelo Sr.
Francisco Alves Monteiro, deixando mais quatro escravos para cada um de
seus filhos legatários, sendo a divisão por ele definida e com todas as
“condições” - na verdade, imposições - antes mencionadas para garantir-lhes o
bom uso da “propriedade” humana que receberiam:
(...) Declararão mais elles testadores que tão bem
em terça libertão condicionalmente a quatro
escravas cujos os nomes são os seguintes = Maria
Luiza, mulata = Carolina mulata = Isabel, mulata = e
Antonia, crioula =, cuja liberdade só poderão gozar
depois da morte dos testadores, e do fallecimento
dos seus quatro filhos, a saber: José Francisco, José
Felix, José Gabriel, e José Rodolpho, entendendo-se
que as ditas quatro escravas não servirão
juntamente, mas sim serão divididos cada úm pelos
quatro herdeiros que estes em concordância entre si
escolherem, e ficarão as mencionadas quatro
escravas sujeitas as condições impostas á aquelles
vinte e dois mencionados na declaração
antecedente, e as ditas condições observarão não
só para com os testadores mas também para com
139
CASTRO (1995), op. cit., p.198.
140
Idem.
141
Idem.
65
os quatro herdeiros a quem tem de servirem, sob a
mesma pena de ficarem sendo escravos, e elles
poderão dispor delles como taes = ...
142
Percebe-se que ficam atreladas às condições, as alforrias das escravas
Maria Luiza, Carolina, Izabel e Antônia, de “... os quaes poderão gozar a
liberdade conferida depois de terem fallecidos os testadores, aos quaes
servirão com zello, amor e fidelidade e prestes em todo o sentido ao serviço
que se lhe mandar fazer...”
143
. Para as referidas escravas se tornarem libertas,
deveriam continuar servindo como boas escravas e, quem sabe, um dia,
receberiam sua verdadeira liberdade.
Perdigão Malheiro citou que nem todas as determinações acerca da
escravidão no Direito Romano (Antigo ou Novo) eram satisfatórias ou
aceitáveis, devido às incompatibilidades entre aquele império, os dogmas
cristãos do século XIX e as jurisprudências abertas pela justiça
contemporânea. Mas a legislação Romana, assim como o Império brasileiro,
reconhecia que “... enquanto a liberdade não era perfeitamente conferida, isto
é, estava na mente do senhor, podia ser retirada, (...)”
144
.
Ao se tomar apenas um testamento, do senhor. Francisco Alves Monteiro
e dona. Theodora Joaquina de Moura, como amostra na década de 1850,
pode-se constatar o significativo aumento em que apareceram, na cidade de
Taubaté, as contemplações de escravos. Do total de trinta (30) escravos
arrolados neste testamento vinte e seis (26) o citados com algum tipo de
doação em Liberdade Condicional ou dinheiro.
Analisando os números obtidos na quantificação das contemplações de
escravos em forma de doações, nos testamentos da cidade de Taubaté, entre
os anos de 1842 e 1844, observa-se o significativo aumento percentual do uso
da estratégia senhorial, das doações de liberdade condicional, para a
manutenção da escravidão.
142
Testamento nº1, op. cit.
143
Trecho do Testamento n
o
1, op.cit.
144
MALHEIRO (1976), op. cit., p. 93.
66
As estratégias senhoriais para a manutenção da escravidão, em Taubaté,
obtiveram muito respaldo com o acentuado poder dos senhores da região, mas
tais atitudes não teriam sentido de existir, caso não sentissem as pressões
cotidianas dos cativos na acumulação de suas experiências dentro do sistema
escravista
145
.
O poder do senhor foi acentuado no uso de alforrias condicionais para a
garantia do bom trabalho escravo, mesmo imperfeitas (condicionais),
possibilitaram a construção dos significados da liberdade pelos escravos
146
.
Quando a convivência com estas estratégias senhoriais de controle
pessoal e aproveitamento da escravidão levou à sua gradual assimilação e
utilização, pelos cativos, no processo de sua conquista da liberdade, foram-lhes
exigidos o “... zelo, amor e fidelidade...”
147
, sempre sob o jugo do senhor com
suas intermináveis condições para a manumissão.
1.6 A VONTADE DO SENHOR.
No entanto, os testadores, senhor Francisco Alves Monteiro e dona
Theodora Joaquina de Moura deixam clara a intenção de libertar os vinte e dois
escravos citados. No caso da morte de um dos cônjuges e o sobrevivente
contrair novas núpcias, os quatro escravos restantes passariam à propriedade
imediata dos legatários.
(...) Declararão mais que no caso de fallecer
qualquer um dos cônjuges, e o sobrevivente
145
Referência aos crimes como fuga, assassinato, roubo e inssurreição analisados no capítulo
II.
146
CASTRO (1995), op. cit., pp.191 a 217.
147
Testamento nº1, op. cit.
67
contrahir segunda nupcias, aquelles vinte e dois
escravos não serão obrigados a servir o sobreviente,
e gozarão desde lógo de suas liberdades, tendo
cumprido aquellas condições de bem servirem e a
cada úm delles se dará cem mil reis em moeda
corrente, assim como tão bem aquelles quatro
escravos não prestarão seus serviços ao testador
que sobreviver, e novamente se case, e logo
passarão aos herdeiros legatarios para estes
gozarem dos serviços delles, na forma já
especificada = (...)
148
Qual seria a intenção deste gesto do senhor Francisco? Doar a Liberdade
Condicional para estes vinte e dois escravos deveria fortalecer os laços
paternalistas para com os cativos enquanto vivessem.
Controlar a conduta de seus escravos com os herdeiros seria igualmente
importante, ou pelo menos passível de tentativa por parte do senhor Francisco,
que a possibilidade de se criarem expectativas de liberdade em seus
escravos deveria vir de sua pessoa, dignificada na qualidade de homem
honrado, digno de favores e principalmente generoso para com os de sua
responsabilidade, conforme sua própria ótica
149
.
O sr. Francisco e dona Theodora ainda declararam em seu testamento
que doaram a seus filhos, desde a infância, quatro escravos a saber: a Jo
Francisco, o preto Ignácio; a Jo Felício, o escravo Ignácio (mais tarde
entendido por Bonifácio da Nação); a José Gabriel, o mulato Innocencio; e a
José Rodolpho, o crioulo José, todos com seus valores devidamente deduzidos
das terças dos testadores.
(...) Declararão mais elles testadores que de a muito,
e desde o tempo da infância de seus quatro filhos
148
Idem.
149
Cf.: CASTRO (1995), os diversos significados de liberdade construídos pelos cativos ao
longo dos séculos de escravidão passaram pela capacidade de o senhor manter o controle dos
cativos, e assim foram várias as formas de controle, como, por exemplo, as alforrias
condicionais.
68
José Francisco, José Felix, José Gabriel, e José
Rodolpho derão a estes quatro escravos, a saber: ao
primeiro, o preto Ignácio, no vallor de quinhentos mil
reis : ao segundo, o mulato Ignácio, no vallor de
quinhentos mil reis : ao terceiro, o mulato Innocencio
no mesmo vallor de quinhentos mil reis: de cujos
escravos estão de posse como seus que são, e ficão
sendo, podendo desporem delles como lhes
aprouver, e seus valores serão tirados da terça dos
testadores =
150
Este fato bem indica que a formação de futuros “senhores de escravos”
começava cedo na infância, e que não existia a possibilidade de qualquer
sentimento negativo a respeito da escravidão, a qual estava intrínseca na
mentalidade oitocentista, como conduta natural e corrente.
Os testadores privilegiaram os filhos que participavam da firma “Monteiro
e Filhos” até mesmo após a morte de qualquer um dos quatro, dando os
direitos do falecido aos outros seus eventuais herdeiros, garantindo-lhes seu
contrato social.
(...) Declararão mais que no caso da terça dos bens
dos testadores exceder os legados mencionados, o
remanecente da mesma deverá ser destribuido com
igualdade pelos quatro herdeiros José Francisco,
José Felix, José Gabriel, e José Rodolpho: e aquelle
destes legatarios que se achar ligado a sociedade
formada e effectuada n’esta data a qual gira sob a
firma – Monteiro e Filhos – fica-lhe o direito salvo de
escolher o seu quinhão que lhe tocar no
remanecente na parte d’aquelle testador que
fallecer, e que então fizer parte da firma social, pois
que elles testadores querem tudo e por tudo que
seja, e fique garantido aquelle contrato social, em
todas as suas partes e circunstancias n’elle
declaradas = (...)
151
150
TESTAMENTO nº 1, op. cit.
151
Idem.
69
Estes “homens bons” da sociedade souberam manejar muito bem a
“ingratidão” dos seus dependentes, mais do que revelar sua quase inexistente
gratidão aos serviços de toda uma vida dos escravos. Mas, na lógica escravista
dos oitocentos parecia não existir este sentimento de gratidão entre a grande
maioria dos detentores do poder.
Os referidos senhores da elite dominante ditavam as regras e a conduta,
cabendo aos cativos, por vezes, agir conforme o momento; ações às vezes
explícitas, por meio de fugas, rebeliões ou assassinatos de feitores e senhores.
Muitas vezes, tais ações, apareceram em forma de resistência manifestando-se
somente de maneira implícita, por intermédio de ações cotidianas
representadas por condutas nas quais se escondiam diversas formas de
resistência subrreptícia
152
.
A “gratidão senhorial”, tão enaltecida pelos dominantes, foi uma das
maneiras de se conseguir a manumissão, pareceu não ter rendido bons frutos
aos homens e mulheres escravizados.
No entanto, a “gratidão do elemento servil” seria muito bem explorada por
senhores e herdeiros (futuros senhores), utilizada ideologicamente até o fim da
vida de um proprietário de escravos, fosse ele senhor de muitos ou de poucos
escravos.
1.7 A INGRATIDÃO E A REVOGAÇÃO DA LIBERDADE.
Um laço moral de fundo histórico e ideológico que ligava um cativo ao seu
senhor ou ex-senhor para o resto de suas vidas era o suposto sentimento de
152
Cf.: PAPALI (2003), Maria A. C. R.; WISSEMBACH (1998), Maria C. C.: as autoras
trabalharam processos crime em suas teses para esclarecerem a análise social do universo
escravista.
70
gratidão do escravo, que também, na sua falta, foi amplamente utilizado com o
nome de ingratidão.
Tornou-se, acerto ponto, comum o uso do argumento da ingratidão nas
revogações de alforrias condicionais. Muitas dessas revogações de alforrias
até poderiam expressar atitudes de “ingratidão” do escravo para com seu
senhor, mas também expressavam o poder dos senhores nas suas relações de
convivência dentro da sociedade.
Conforme Manuela Carneiro da Cunha, as revogações de alforrias por
ingratidão vigorariam até a Lei Rio Branco (Ventre Livre, em 1871),
confirmando o que a autora chamou de “transitoriedade de direitos e deveres”
153
a todos os cativos e mesmo aos que estavam em liberdade condicional: “...
Isto supunha a existência de laços morais entre senhores e escravos, laços
que não deveriam cessar com a alforria ...
154
”.
Fixou-se a ideologia dominante: a proteção do senhor em troca da “...
gratidão e lealdade dos libertos...”, condição que deveria se perpetuar para
além da abolição, criando uma relação clientelística entre forro e ex-senhor
155
.
Perdigão Malheiro também abordou a questão e afirmou que existiam
“obrigações recíprocas” entre senhores e escravos, que o Direito Romano
determinava que o herdeiro natural do forro sem testamento era o ex-senhor.
156
O produzir expectativas de liberdade ao escravo (por parte do senhor),
talvez aumentasse o volume de insubordinações do cativo devido a sua
frustração em seus próprios anseios pela liberdade
157
.
O senhor que conseguisse manter acesa a chama da possibilidade de
alforria ao seu escravo poderia manter mais respeito e ordem ao seu redor.
Devido a variados interesses, a mesma “mão” que dava a alforria, a fazia
153
CUNHA (1987), op. cit., p.137.
154
Idem.
155
Idem.
156
Idem.
157
CASTRO (1995), op. cit., p.215.
71
condicionalmente e a revogava, quando assim fosse necessário ou vantajoso
para o senhor e sua família.
As manobras senhoriais para com os desejosos da compra de sua alforria
continuaram e apareceram acordos urbanos para compra parcelada de
alforrias
158
, que foram estratagemas senhoriais para a exploração continuada
do cativo:
(...) é reveladora da expectativa que pesava sobre
os libertos: que se tornassem clientes, empregados.
Uma espécie de agregação temporária, com
serviços a serem prestados durante certo número de
anos, era, aliás, cláusula comuníssima nas cartas de
alforria ditas gratuitas
159
.
O poder de alforriar como prerrogativa privada dos senhores, determinava
certo controle sobre os cativos e permitia a possível construção de uma classe
de libertos dependentes.
Para os escravos existia a esperança de liberdade com o incentivo da
poupança e do bom trabalho, acrescentava-se a possibilidade de liberdade às
relações entre escravos e senhores, criando dependências de gratidão e dívida
pessoal para com os seus senhores.
O caso de Joaquina, escrava de Dona Anna Francisca de Oliveira, a qual
lhe doou a carta de liberdade no dia 24.11.1838
160
, evidencia tal circunstância.
Na “realidade dos fatos”, segundo Perdigão Malheiro, que demonstrou a
inexistência da “doação” da liberdade, o campo das discussões deve estar na
história e não na natureza:
158
Idem.
159
MATTOS, 1982. Apud CUNHA (1987), op.cit., p. 138.
160
Testamento nº 6, Cartório do 2º Ofício – Livro de Registros de Testamentos: 1842 – 1844, nº
4, p.33.
72
(...) o senhor nada mais faz do que demitir de si o
domínio e poder que tinha (contr direito) sobre o
escravo, restituindo-o ao seu estado natural de livre,
em que todos os homens nascem.
161
Em seu testamento, Dona Anna afirma que doou a liberdade à sua
escrava Joaquina por escrito, em documento. Na análise do testamento, de
17.02.1843, portanto quase cinco anos depois da dita alforria, percebe-se que
a testadora passou à sua cativa uma “Escriptura de Liberdade”
162
, o que leva a
acreditar que não seria de liberdade condicional, mas alforria perfeita, e lavrada
em cartório.
Em seu leito de morte, em 21.02.1843, Dona Anna Francisca de Oliveira
revogou a liberdade “generosamente” concedida à escrava Joaquina e não
como saber quais foram as reações da escrava. Joaquina, que realmente
nunca havia se livrado do jugo de sua “ex-senhora”, pois continuava a servi-la.
Segundo relatado no testamento de Dona Anna, a escrava havia
abusado, nos últimos anos, daquele benefício concedido, não a tratando tão
bem quanto antes (mesmo que o fato não pudesse ser comprovado pela
testadora, o que valia era a sua palavra), além de dar a embriagar-se,
desmerecendo, por isso, a graça que lhe havia feito.
Declarou que em dezessete de fevereiro de 1843 revogava a
(...) escriptura de liberdade de que havia passado a
dita Escrava Joaquina como se nunca existice,
tornando ella ao captiveiro e em conseqüencia disso
faço doação as minhas Netas (...) e na mesma data
(...)
163
161
MALHEIRO (1976), 1986. Apud CHALHOUB (1990), op.cit., p.129.
162
Testamento nº 6, op.cit., p.33.
163
Testamento 6, Cartório do Ofício Livro de Registros de Testamentos: 1842 1844,
nº04, p.33.
73
Sob a posição de liberdade condicional, Joaquina continuou seus
trabalhos na casa de sua senhora, o que leva a crer que sua alforria era uma
manumissão “sob condição suspensiva” e, foi legalmente revogada pelo poder
de sua “ex-senhora”
164
.
Com essa vida, Joaquina provavelmente revoltou-se da maneira que
poderia ou que conseguiria; embriagava-se com frequência e passou a tratar
mal sua “ex-senhora”, ao menos estes foram os rápidos argumentos de Dona
Anna Francisca Oliveira ao “retornar” a ex-escrava Joaquina a seu antigo
estado de escrava
165
.
As Ordenações Filipinas e o Direito Romano previam a revogação por
ingratidão, que existia mais do que uma relação de propriedade entre senhor
e escravo, a qual não acabava com um pagamento,
(...) pressupunha deveres de fidelidade e lealdade
pessoais, que se perpetuavam mesmo após a
alforria, mesmo se estas fossem incondicionais e
onerosas
166
.
A Constituição Outorgada de 1824 deu direitos aos escravos crioulos e
aos africanos que conseguissem sua liberdade, mas não aos “libertos
imperfeitos”, condicionais, que deveriam cumprir as condições de suas cartas
de alforria
167
.
A revogação da carta de liberdade
168
parecia ser uma atitude aceita
naquela sociedade, acentuando ainda mais o poder senhorial na Taubaté
164
CHALHOUB (1990), op.cit., p.128. O autor analisou três casos de processos cíveis da Corte
(década de 1860) de alforrias condicionais nos quais a justiça agiu a favor da liberdade,
incluídos aí problemas de dimensão política.
165
TESTAMENTO nº 6, op.cit..
166
CASTRO (1995), op. cit., p.202.
167
Idem.
168
Cf. CASTRO (1995), Idem, p.203. O Direito de Propriedade aparece na Ordenação L.4, tit.
63 (das doações e alforrias que se podem revogar por causa da ingratidão).
74
oitocentista. Afinal, a questão do “controle dos escravos” sempre se manteve
prioritária quando o problema requeria conduta disciplinadora dos senhores. No
caso mencionado, a escrava Joaquina não estava bebendo?
Sidnei Chalhoub interpretou em Perdigão Malheiro uma simples
explicação para os condicionamentos dos libertos imperfeitos:
(...) a situação dos alforriados sob condição é
semelhante à dos menores, “que dependem de
certos fatos ou tempo para entrarem, emancipados,
no gozo de seus direitos e atos de vida civil”
169
.
Conforme Hebe Maria Mattos de Castro, o poder do senhor passou a
declinar a partir de meados do Século XIX. Segundo a autora, até o mundo
rural foi sendo paulatinamente atingido pela perda gradual de poder pelos
senhores. Considera que o aumento das Ações de Liberdade significou a ponta
do “iceberg” das pressões internas sofridas pela escravidão em trânsito à
liberdade.
170
Para os senhores, a alforria era uma “concessão senhorial” vinculada a
uma “dívida de gratidão” do liberto para com o senhor. Por isto, as alforrias em
massa no início de 1888 não funcionaram para criar subalternos. Os escravos
entenderam que seus direitos positivos colocavam em cheque “a legitimidade
do arbítrio senhorial”
171
no tocante às alforrias, direitos estes cada vez mais
assimilados pelos escravos desde a Lei Rio Branco em 28 de setembro de
1871.
169
CHALHOUB (1990), op.cit., p.130.
170
CASTRO (1995), op.cit., p.216.
171
Idem.
75
CAPÍTULO II
“O COTIDIANO ESCRAVO: ESPAÇO DE NEGOCIAÇÃO E LUTA.”
Os crimes de que se tem registros ocorridos durante o período analisado
na presente pesquisa foram variados em sua forma. Foram examinados
processos criminais do cartório de Segundo Ofício, caixa 136, do período entre
1827 e 1895, com vinte e seis processos em que se verificou a presença de
escravos.
Em busca de outros processos criminais em que poderiam constar
escravos, verificaram-se os conteúdos de processos vindos do cartório de
Registro de Imóveis, em diversas caixas 142, 144, 145, do período entre
1790 e 1886, com dezoito documentos, nos quais escravos apareceram
citados.
O aparecimento do cotidiano escravo num processo criminal elaborado
pelo mundo dos senhores pode, num primeiro momento, determinar que sua
fala deva compactuar com os mandos e ditos dos homens da elite dominante -
do escravismo. No entanto, o olhar mais atento e a interpretação bem realizada
fez que se percebessem, mesmo que nas entre linhas dos textos, a vivência do
cativo e a sua participação naquela sociedade durante o século XIX.
Em Sonhos Africanos, Vivências Ladinas, a historiadora Maria Cristina
Cortez Wissenbach discutiu o crime como “ato social”, um espaço de múltiplas
vivências,
(...) o seu estudo inscreve-se numa discussão mais
ampla relacionada à organização dos escravos sob
o regime da escravidão. Remete-se, portanto, às
discussões sobre a cultura escrava e às revisões
76
dos conceitos de resistência e acomodação que as
conduzem.
1
A leitura do crime realizado pelos escravos e a verificação de suas
experiências (com consecutiva interpretação nos autos criminais) foi um
trabalho de enorme empenho, que não foram interpretados a partir de um
conceito sobre o crime na atualidade.
Preferiu-se compreender o “crime” como parte de um processo da
resistência escrava
2
e analisá-lo como uma das condições ao escravo em seu
caminho para a construção dos sentidos da liberdade.
Segundo Robert Conrad (1975), os documentos que registram o mundo
escravagista foram escritos por meio de relatos e interpretações de não
escravos. Coube, neste trabalho, a tarefa de compreender suas vivências nas
entre linhas:
Todavia, até mesmo destes documentos, que
revelam, em muitos casos, uma forte tendência pró-
escravatura, torna-se fácil concluir que as vítimas da
escravidão não eram dóceis, tendo resistido
fortemente a seus opressores. É difícil determinar
até que ponto o espírito rebelde dos escravos
contribuiu para a abolição, mas este espírito foi
crucial, certamente, durante a última fase do
movimento antiescravatura
3
.
Observando os crimes realizados pelos cativos, percebeu-se que talvez o
ato criminoso impetrado levasse os escravos para que fossem mais agentes da
1
WISSENBACH (1998), op.cit., p.26.
2
Trabalhou-se no viés estudado por Eugene Genovese (1988), que em seu livro Terra
Prometida, reintegrou a resistência escrava aos estudos sobre a escravidão numa perspectiva
de interação do escravo ao mundo do senhor. Apud WISSENBACH (1998),op.cit., p.27.
3
CONRAD, Robert. Os Últimos anos da escravatura no Brasil: 1850-1888. Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 1975. P.18.
77
sua própria história do que da desordem social. O escravo construiu o seu viver
lutando no dia-a-dia com as mais diversas possibilidades, num mundo hostil
aos desterrados da África e seus descendentes
4
.
Durante a pesquisa percebeu-se que a violência (e a agressão)
5
foi o teor
mais citado nos processos criminais estudados, seguida de perto pelas fugas e
prisões diversas. Seriam casos de crimes comuns?
Perguntou-se se tais processos levariam ao crime comum e a conclusão
foi que sendo contra escravos, ou de alguma forma, com a participação de
algum escravo
6
, seriam crimes diferenciados para o estudo na História Social.
2.1 AS FUGAS; AS PRISÕES; A VIVÊNCIA.
Na região da Vila de São Francisco das Chagas de Taubaté, que esteve
na categoria de vila até 5 de outubro de 1842 quando se tornou cidade,
convergiram muitos escravos fugitivos das proximidades como Caçapava,
Paraibuna, São Jo dos Campos, Pindamonhangaba e São Luis do
Paraitinga.
Anunciados em jornal da região, aqueles escravos que fugiam foram
procurados por seus senhores em solicitações de apreensão com promessas
de gratificações até mesmo para notícias sobre seu paradeiro.
4
Reporta-se aos trabalhos de WISSENBACH (1988), op.cit., pp.31 e 32: a autora analisou o
crime do escravo sob duas dimensões: numa perspectiva da dominação escravista e de
violência; numa perspectiva integrada com vivências específicas “... permitindo a construção de
redes associativas no contexto da escravidão.”.
5
Na maioria dos casos, foram citadas as palavras violência e agressão em conjunto nos
processos criminais analisados.
6
Adotou-se a postura de interpretar o documento que contivesse escravos pela ótica da
compreensão de que ali estaria a possibilidade de leitura do seu cotidiano em forma da
resistência e da sua luta para sobreviver no mundo escravagista e violento.
78
Em julho de 1863, no jornal O Paulista foi anunciada a fuga de um
escravo pertencente ao senhor Joaquim Ferreira de Souza Leal, residente a
localidade de Barreiro. O escravo de nome Fernando possivelmente fugira para
Taubaté, lugar de origem de seu anterior proprietário e de suas relações
sociais mais duradouras, o próprio anúncio denuncia que era um escravo
velho. (IMAGEM 2.1)
Quando presos, alguns escravos declaravam à justiça serem cativos e
indicavam os nomes de seus senhores e senhoras nos Autos de Apreensão e
de Depósito, talvez na expectativa de retornarem ao poder de seus relaxados
proprietários e, quem sabe, fugirem novamente.
O que não se sabe são os motivos de suas fugas, que talvez não
interessassem ao delegado interrogador, ou tal questionamento não fizesse
parte do rol de perguntas do processo
7
. O provável é que, no mundo
escravagista, motivos para a fuga de um escravo não faltavam.
IMAGEM 2.1
Jornal “O Paulista”, julho de 1863
8
.
Imagem digital acervo pessoal do autor.
7
Sobre as possibilidades da homogeneidade de informações nos processos criminais e das
vantagens significativas destas fontes, verifique-se WISSENBACH (1998), op.cit., pp.38-48,
principalmente o item “A documentação judiciária e a história social da escravidão” no capítulo
I.
8
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
79
Instauraram-se processos nos quais apareceram escravos fugidos
apreendidos, como no caso de dois escravos presos e encontrados no Distrito
de São Luis do Paraitinga
9
.
Andavam fugidos, e estes não informaram o nome de seus donos. Sendo
levado preso à Taubaté, o escravo Joaquim de Nação Bengela tinha trinta
anos, de estatura alta e rosto comprido, olhos pardos, com nariz um pouco
chato e barba rala. Apresentava bons dentes! Possuía um perioma
10
comprido
ao do cotovelo do braço direito, resultado de um golpe de espada. Não
disse que fora devido a sua fuga, mas apresentava sinais de luta e tal
vitalidade demontrou sua indisposição ao cativeiro.
O outro escravo preso que aparece neste processo criminal tinha nome
de João, também de Nação Bengela, disse ter vinte e oito anos. Era cheio de
corpo, estatura ordinária, rosto redondo com olhos pretos e, grande testa. Seu
nariz era meio chato e o possuía muita barba. Dentes? Possuía muitos bons
dentes! Apresentava um defeito físico singular: faltava-lhe o dedo polegar da
mão esquerda.
Feridas realizadas pela espada e falta do dedo polegar denotam que tais
escravos poderiam sofrer castigos físicos e por isto andavam fugidos, como
também poderiam entrar em confrontos com homens livres na luta pela sua
sobrevivência. De qualquer forma, seria a demonstração da ação desses
escravos contra a situação de escravidão, conforme o anunciou em jornal José
Dutra de Faria: seu escravo Miguel, que possuia muitas marcas pelo corpo,
fugiu. (IMAGEM 2.2)
9
Processo Crime do Cartório de Segundo Ofício - Referência D1. Caixa 136, 1827-1895.
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
10
Perioma - termo médico utilizado para demonstrar cicatriz resultante de corte profundo
resultado de material cortante e de ferro, faca, facão, foice ou espada; provavelmente ferimento
que não foi costurado, portanto, apresenta-se com cicatrização grosseira e formando um alto
relevo na pele.
80
IMAGEM 2.2
Jornal “O Paulista”, janeiro de 1863
11
.
Imagem digital acervo pessoal do autor.
A referida prisão dos dois escravos, Joaquim e João, partira do princípio
de que um liberto deveria levar consigo seus documentos de soltura (alforria),
ou, então, se fossem cativos, precisavam portar uma autorização legal para
seu deslocamento.
Como os dois não possuíam quaisquer documentos, vagavam pelas
redondezas, lutando pela sobrevivência, foram presos.
Observou-se que os processos carregam mais as descrições dos
escravos do que sua real situação, entretanto tais informações são relevantes
para se formar um quadro da população negra da região do Vale do Paraíba
durante os oitocentos.
Num processo de Ramo de Cativos
12
, apareceram três escravos com a
seguinte descrição física:
Escravo preso no Distrito da Villa de Sam Luis,
Manoel Nação Caxange, vinte e cinco anos, estatura
11
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
12
Processo Crime do Cartório de Segundo Ofício - Referência D2. Caixa 136, 1827-1895.
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
81
baixa, rosto redondo e magro com um perioma do
lado direito ao pé da orelha, naris chato, olhos
pretos, bons dentes meio caindo, = Outro de nome
Joaquim Nação Moçambique, quarenta anos mais
ou menos, estatura alta, rosto comprido, olhos
pardos, naris bem feito, beiços grossos com falta de
dentes na frente de sima com marca de duas raias
na testa duas em cada fonte, e duas no rosto,
orelhas furadas com rombo grande com três raias de
marca no peito = Outro de Nação Caxange de nome
Pedro, com trinta anos, estatura ordinária, rosto
redondo e cheio, olhos pretos, pequeno naris chato
baixado, bons dentes, e alguns de cima limados,
com marca de duas raias no queixo com orelhas
furadas e marca nos peitos com riscos palmilhados e
tres raias pello cangote e pellas costas (...)
A prisão de escravos fugidos (qualquer um seria fugitivo, caso não
pudesse provar o contrário) esteve entre as principais obrigações da Justiça,
na cidade de Taubaté e arredores.
Outros escravos, quando apreendidos, se negavam a dizer quem seriam
seus donos (proprietários) ou mesmo se negavam a aceitar a escravidão,
fingindo não saber o nome de seu senhor ou admitindo a liberdade pela
distância temporal e espacial do cativeiro.
De um jeito ou de outro, o escravo insistia em não aceitar o escravismo, o
que se interpreta neste processo crime: “Auto de Apreensão Hum escravo
preso e achado no Districto desta Villa sem se saber quem he seu dono
andando fugido em Pindamonhangaba (...)”
13
.
Provavelmente, o escravo se movimentou contra o cativeiro de seu
senhor e fugiu, arriscou a prisão, e sua venda pelo Estado em outras praças,
mas não disse quem era seu senhor. Algum ato mais drástico de qualquer uma
13
Processo Crime do Cartório de Segundo Ofício - Referência D3. Caixa 136, 1827-1895.
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
82
das partes (senhor ou escravo) levou-o à fuga, provavelmente um senhor mais
violento aguardava sua captura e severos castigos “educativos” o esperavam
14
.
Numa situação dessas, o homem negro se indignou e fugiu (e o se
sabe qual foi o conteúdo da fuga...), perambulou vivendo e foi preso. Disse ao
delegado não saber seu nome, idade e, quem seria seu senhor, o que
dificultava ainda mais a reintegração de posse a quem quer que fosse seu
proprietário.
Tais reações foram de grande inteligência ao enganar, mesmo por certo
tempo, a Justiça do homem branco. Assim, podem-se compreender as
prioridades em sua vivência de liberdade.
Para aquele escravo, a liberdade passava pela possibilidade de escolher
que o desejava ficar sob a posse de determinado senhor, para tanto fugira e
quem sabe mais o que fizera isto para conseguir. Sua atitude foi explícita nas
poucas linhas do processo realizado com as perguntas e as interpretações do
homem branco: não deu informações, portanto, não colaborou com o sistema.
Este, também, foi o caso dos escravos Manoel e José, de Nação Munjolo,
presos andando fugidos no Distrito de Taubaté e sem saber quem eram seus
donos
15
.
Manoel era de estatura ordinária, com trinta anos, tocado a fula (de cor de
preta ou crioulo para amarelo), olhos pretos e dentes podres, possuía cicatriz
no canto da boca pela parte esquerda e beiços grossos. Seu nariz “ximbeva”
contrastava com as sobrancelhas abertas. Grosso de corpo e com pouca
barba, a barriga era pintada com sinais da Nação.
14
Conforme CONRAD (1975), op.cit., p.23, em seu estudo sobre os últimos anos da
escravatura no Brasil, muitos escravos aprisionados não queriam voltar aos seus donos, como
no caso do líder rebelde e quilombola da região de Sergipe, João Mulungu “... tinha cerca de
vinte e cinco anos de idade, sendo um crioulo de estatura média, um pouco astuto e insinuante,
resignado, agora, a seu destino e preferindo, contudo, ser enforcado na praça pública a ter
de regressar para a casa de seu dono.”
15
Processo Crime do Cartório de Segundo Ofício S/Ref. Caixa 136, 1827-1895. Divisão de
Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
83
José tinha estatura ordinária, entre vinte e seis e vinte e sete anos, de cor
preta, olhos pardos e grandes, nariz “ximbeva”, beiços grossos, rosto comprido
e fino de corpo. Não tinha sinais pelo corpo.
Ambos os escravos utilizaram a artimanha de não fornecer informações à
Justiça do homem branco, provavelmente eram de longe e a tempo estariam
fugidos, sabiam que, assim, aumentavam suas chances de escapar do jugo de
seus senhores, mesmo que somente até a sua prisão: a liberdade fora
conquistada! No mais, poderiam fugir novamente: experiência, já possuíam.
Maria Aparecida Papali, trabalhou a idéia da consciência do escravo na
luta e busca pela liberdade em Taubaté:
(...) Em relação às reivindicações individuais, ou
mesmo de casais ou famílias, na busca pela
liberdade ou por direitos, a luta dos escravos e
escravas de Taubaté foi notoriamente interessante,
dado que tais reivindicações evoluem do campo das
conquistas pessoais movidas por nexos ligados a
privilégios e concessões, ao campo do direito
adquirido, ampliando a outros escravos e com
características cada vez mais generalizantes
16
.
Mais tarde, durante a cada de 1880, a referida autora encontrou
indícios de que as fugas de escravos das fazendas de Taubaté foram, muitas
vezes, incentivadas por pessoas de fora do sistema escravista “... Em setembro
de 1887, tem-se notícia de fugas de fazendas de Taubaté lideradas por
agentes do movimento abolicionista radical.”
17
.
Nestas situações, PAPALI (2003) destacou que havia a impossibilidade
da divulgação dos nomes dos abolicionistas em jornais, principalmente longe
16
PAPALI (2003), op.cit., p.68.
17
Idem, p.69.
84
das grandes cidades, porque aqueles homens eram perseguidos pela política
local, e mesmo pelas autoridades, como pessoas indesejáveis
18
.
Diferente foi a situação de João Rabelo, de vinte anos, estatura baixa,
rosto redondo, olhos grandes e pardos, com testa pequena, nariz chato, de
rosto sem barba e bons dentes, preso nas áreas próximas da cidade de
Taubaté; escravo conhecido pela cidade, não lhe foi perguntado o porquê
estava fugido, ou se realmente estava fugido
19
.
Fazia algum serviço diferencidado e ilegal ao seu senhor ou outrem pelas
redondezas? Não aparecem, durante o processo, reclamações de seu senhor
sobre sua fuga, entretanto fora preso como fugido, que não portava
autorização de qualquer tipo. Desta forma, seu senhor não pagaria multas por
infração das posturas municipais, apenas à custa do processo.
Alguns escravos possuíam habilidades de oratória e mentiam quando não
convenciam os delegados. Os relatos de delegados sobre escravos fugitivos na
cidade de Taubaté foram consistentes, havia “... uma grande desenvoltura do
escravo em estar relatando e até mesmo omitindo alguns fatos e nomes
ligados ao acontecido.”
20
.
Este foi o caso do escravo Américo, que, conforme o estudado por
PAPALI (2003), foi instruído pelo advogado para não dar informações sobre
sua situação e de modo algum confessasse o nome de seu senhor para
resguardar sua posição duvidosa, entre escravo e forro
21
.
Encontraram-se, ainda, dois processos crimes com a prisão de duas
escravas, mas os motivos foram exclusivos: a escrava Anna Maria fora alugada
por seu senhor, o qual, passado o prazo do contrato, pediu um Mandado de
18
Idem, pp.62 à 67.
19
Processo Crime do Cartório de Segundo Ofício - Referência D4. Caixa 136, 1827-1895.
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
20
PAPALI (2003), op.cit., p.69.
21
Idem.
85
Levantamento da escrava ao locatário, o que resultou na entrega à Justiça e
prisão de Anna Maria
22
.
Quais experiências a escrava Anna Maria conquistou no mundo dos
senhores? Será que a escrava se fez tão necessária a dois senhores ao ponto
de irem à justiça pela sua posse? Fora negociada como mulher, provavelmente
por seus dotes femininos, entretanto, disputada como uma propriedade.
A experiência de vida da escrava Anna Maria trouxe à tona as diferentes
cumplicidades adquiridas na ordem escravagista, os relacionamentos com seus
pares e com os senhores resultou em um processo criminal com a sua prisão
23
.
Outro processo um tanto quanto curioso se deu em 1867, Processo de
Resistência com a prisão do senhor da parda Fortunata (Vicente Carlos
Rodrigues) que a retirou da prisão sem ordem judicial
24
. Fortunata foi presa
devido a insultos verbais à esposa do senhor Joaquim Mariano dos Santos
25
.
Estava embriagada, segundo os autos, e partira para cima da mulher
branca como se fosse agredi-la fisicamente, mostrando-se dona da situação e
perigosa, com uma fúria de animal. A parda Fortunata insultou com palavras
injuriosas a mulher de Joaquim e por isto fora presa?
26
Percebe-se que Fortunata transitou abertamente pela cidade de Taubaté,
situação que provavelmente não agradava homens e principalmente mulheres
livres da cidade, ao ponto de entrarem em confrontos verbais e quase físicos
com a escrava.
22
Processo Crime do Cartório de Segundo Ofício - Referência D12. Caixa 136, 1827-1895.
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
23
A idéia de se compreender o universo dos escravos na construção de diferentes
cumplicidades na ordem estabelecida aparece em: MOLINA, Sandra Rita. A morte da tradição:
a ordem do carmo e os escravos da Santa contra o Império do Brasil (1850-1889). Dissertação
de Mestrado. USP. 2006.
24
CASTRO, Sílvia Regina Lorenso de. Corpo e erotismo em cadernos negros: a reconstituição
semiótica da liberdade. Dissertação de mestrado. USP. 2007.
25
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis Referência D3. Caixa 146. Divisão de
Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
26
O Decreto Imperial 563 de 02/07/1850 definia injúrias verbais como crime passível de
prisão.
86
Para corroborar com esta idéia, o delegado mandou prender seu senhor,
porque a retirou da cadeia sem a devida autorização. Naquela situação, a
escrava Fortunata fêz-se senhora, afinal existiam outros meios de se tomar a
escrava da justiça, mas na vivência acumulada de Fortunata com aquela
família constituiu o “fazer-se” da escrava em seu círculo de relacionamentos,
obrigando o senhor Joaquim Mariano a cometer tal ato
27
.
A experiência cotidiana escrava apareceu no jornal “O Paulista”, em
janeiro de 1863
28
: trouxe um anúncio de Albino Barbosa de Vasconcelos Lima
sobre a fuga de sua escrava Florisbella, criuola de cor fula, de estatura alta,
corpulenta e robusta, apresentava boa dentadura e sinais de bexigas. A
escrava tinha desenvoltura ao falar e se expressar, “... é alegre e agradável, e
muito prestimosa...” conseguindo “alugar-se” como excelente cozinheira.
Intitulava-se forra. (IMAGEM 2.3)
IMAGEM 2.3
Jornal “O Paulista”, janeiro de 1863
29
.
Imagem digital acervo pessoal do autor.
27
E. P. Thompson trabalhou o processo histórico pelas ações de sujeitos sociais, que viviam
em constante experiência social. THOMPSON, E.P. O termo ausente: Experiência. In “Miséria
da Teoria ou um planetário de erros.”. Rio de Janeiro, Zaahr Editores, 1981. Pp.77 à 93.
28
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
29
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
87
Em recente dissertação de mestrado, Ynaê Lopes Santos (2006)
examinou os diversos arranjos de cativos, no Rio de Janeiro, do século XIX, em
relação a sua moradia e a complexidade das possíveis relações existentes
entre escravos, senhores e o estado nas condições para o “morar sobre si”
disseminadas por uma maior mobilidade escrava em grandes centros
urbanos
30
.
Em 15 de janeiro de 1863, o Dr. João Baptista da Silva Gomes Barata
anunciou a fuga de seu escravo de nome Miguel no jornal O Paulista. Disse ter
o escravo Miguel cerca de trinta anos de idade e protestou, ameaçando com o
rigor da lei, contra aquele que o acolhesse sem entregá-lo a seu legítimo
proprietário. (IMAGEM 2.4)
É possível que o Dr. João Baptista levantara apenas uma suspeita sobre
pessoas que acoutassem escravos fugidos, entretanto, existiu a problemática
caso contrário não gastaria espaço para tal declaração em jornal. Existia o
medo até mesmo do roubo do escravo, fugido, acolhido por alguém mal
intensionado e depois reduzido ao cativeiro em venda ilegal.
IMAGEM 2.4
Jornal “O Paulista”, janeiro de 1863
31
.
Imagem digital acervo pessoal do autor.
30
SANTOS, Ynaê Lopes. Além da senzala: arranjos escravos de moradia no Rio de Janeiro
(1808-1850). Dissertação de mestrado. USP. 2006. Pp.53 à 114.
31
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
88
Referindo-se aos trabalhos de Gilberto Freire (1963) e Mary C. Karasch
(1972), Robert Conrad (1975)
32
verificou a grandeza do problema das fugas de
escravos no Brasil como se os cativos procurassem “... a salvação na fuga.” a
qual se constituía em umas das possibilidades de liberdade na vida do escravo.
Escravos fugidos dirigiam-se aos quilombos ou com estes faziam
comércio, em bandos arrojados que promoviam roubos, comércios com
cidades e o abastecimento dos próprios quilombos
33
.
A faina diária do escravo, no Vale do Paraíba, foi observada nos
processos criminais trabalhados, que apontam para um sistema caótico de uso
da mão-de-obra escrava que demandava muito esforço físico e financeiro dos
senhores e da justiça do Estado para assegurar o direito à propriedade
escrava
34
.
Não se percebeu o desmoronamento de alguns mitos da escravidão,
como se compreenderam as lutas escravas, conforme Emília Viotti da Costa
(1966):
A idealização da escravidão, a idéia romântica da
suavidade da escravidão no Brasil, o retrato do
escravo fiel e do senhor benevolvente e amigo do
escravo, que acabaram por prevalecer na literatura e
na história, foram alguns dos mitos forjados pela
sociedade escravista na defesa do sistema de que
não julgava possível prescindir
35
.
A fuga formou outra qualificação para os crimes realizados em Taubaté do
século XIX, observou-se que sua concretização se deu em nível doméstico e
32
CONRAD (1975), op.cit., pp. 19 e 20.
33
Idem, pp. 23 e 24.
34
Robert Conrad mostrou os prejuízos e desconfortos aos senhores brasileiros causados pelas
fugas de seus escravos. As fugas demandavam noticiar em jornais, oferecerem recompensas
de captura e o gasto com o próprio tempo de trabalho desperdiçado, quando não perdiam o
escravo. Op.cit., p.20.
35
COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo, 1966. P.280.
89
público, abriram-se processos criminais para fuga de escravos amesmo da
cadeia municipal.
A realização de uma fuga da cadeia municipal mostra coragem e arrojo do
escravo “criminoso”. Aqui, observaram-se apenas as fugas de escravos,
ajudados por outrem ou o, compreendendo-se a disposição do cativo em
seguir seu caminho rumo à liberdade.
Não foram notados, durante a pesquisa, casos de reincidência nos crimes
de escravos, não se encontrou mais de um processo crime do mesmo cativo.
Tal observação pode indicar relevância na questão do motivo pelo qual
um escravo aparecia apenas em um processo criminal. É possível que o cativo
não apresentasse coragem e, portanto, não cometesse crimes novamente (ou
pelo menos não fora incriminado), indicação da eficiência do castigo doméstico
realizado pelo seu senhor e das sentenças judiciais, pelo Estado.
Por outro lado, a fuga indica grande disposição do escravo em se manter
livre. Quando realizava a fuga e não o capturavam, o cativo passava a usufruir
da liberdade e evitava as cidades para sua sobrevivência.
Os artifícios utilizados para a sobrevivência do escravo fugido não
constam dos autos processuais, mas a ocorrência da fuga mostra a luta pela
liberdade em seu cotidiano, os seus significados no mundo dos cativos e o
processo de se fazer livre na vivência do homem negro escravizado.
A fuga, que por vezes era confundida com o roubo de escravo, poderia
corroborar nas indisposições e acusações entre senhores e seus desafetos. No
processo criminal abria-se prerrogativa para lavrar a fuga ou o roubo do
escravo.
Em 1844, o escravo de nome Joaquim de Nação, de estatura baixa,
cabeça grande e pescoço curto e vasto, olhos grandes, cabelos unidos à nuca,
90
braços curtos e pernas grossas com pés pequenos, no auge de seus dezoito
anos fugiu de seu senhor na cidade de Taubaté
36
.
Tempos antes, novamente nas cercanias de Taubaté, fugiam os escravos
José e Joaquim de Nação da herança de João Simões da Silva
37
. Desta vez
foram ajudados em seu ato por JoGamahil da Veiga Cabral numa atitude
arriscada na busca pela liberdade.
Ambos os escravos, José e Joaquim, foram entregues a um tal preto
Domingos, escravo de João Severino da Silva, na região do sul das Minas
Gerais e do mesmo escravo Domingos, retirados quando José Gamahil foi
preso.
Durante o processo, foi estipulada fiança para José Gamahil e para o
escravo Domingos de $1000 mil réis.
A sentença: JoGamahil foi condenado a pagar multa de $600 mil réis
acrescidos das custas e metade da fiança cobrada. O curioso foi a falta de
perguntas sobre o motivo do auxílio aos escravos fugidos, o processo não
acusou os dois envolvidos de roubo dos escravos, mas sim de colaborarem na
sua fuga.
Valia arriscar até mesmo a vida numa fuga em direção à liberdade? Qual
o teor desta liberdade conquistada à custa de uma fuga?
A construção cotidiana da liberdade, mesmo simbólica, para estes
escravos fugidos poderia incluir uma gama de significados presentes no mundo
do homem branco e do homem negro: a constituição de família; o ir e vir o
livre trânsito pela cidade; a possibilidade de reunir pecúlio; o não admitir
castigos físicos ou psicológicos; o não se admitir como propriedade de outro
homem.
36
Processo Crime do Cartório de Segundo Ofício Referência D16. Caixa 136. Divisão de
Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
37
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis Referência D23. Caixa 144. Divisão de
Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
91
Aconteciam também fugas em Taubaté, na primeira metade do século
XIX, e, quando presos, os escravos passavam por processos criminais que
nem sempre traziam muitas informações sobre sua pessoa.
2.2 OS ESCRAVOS: ASSASSINOS, REBELDES E FUGITIVOS.
A ação contra o escravismo foi grande por parte dos escravos. Por vezes
não se conseguem evidências documentais que a comprovem mas, a
importância das interpretações de suas vivências nestes mesmos documentos
é fator fundamental na elaboração de quadros da vida escrava e das
negociações, lutas, artimanhas e relações sociais a que se submetiam para
conviverem no sistema ou, quem sabe, ultrapassarem as fronteiras da
escravidão.
Os caminhos da liberdade foram marcados pela camuflagem das
insurreições, principalmente durante a década de 1880, conforme PAPALI
(2003), “... onde situações conflituosas eram geralmente escamoteadas através
das brechas de uma política senhorial paternalista, observada nas relações
cotidianas entre senhores e escravos.”
38
.
Os castigos aos escravos acusados de crimes poderiam passar ao âmbito
particular de seus senhores, principalmente se estes castigos ameaçassem a
integridade física de suas propriedades.
Os levantes de escravos poderiam representar uma fragilidade ao
sistema, combatido severamente mesmo antes da década decisiva ao
abolicionismo no Brasil, a de 1870.
38
PAPALI (2003), op.cit., p.67.
92
Em 4 de maio de 1852
39
, na cidade de Taubaté, relatou nos autos o
Promotor Público da Comarca Antônio José da Veiga Cabral: vindo ao seu
conhecimento que pelas quatro horas da madrugada, do dia 5 de abril do
mesmo ano, um escravo, do senhor Bento Vieira de Moura, de nome Joaquim
Antônio Moçambique, de trinta anos de idade, bexigoso, sem barba, de tipo alto
e espigado, com a perna direita mais curta ao ponto de não poder assentar o
calcanhar, assassinou “barbaramente” ao seu feitor Flávio José dos Santos.
O ocorrido se deu na fazenda do referido Bento Vieira de Moura,
denominada Paratigal, no distrito da Freguesia de São João de Caçapava. O
corpo foi levado à vila de Santo Antônio de Paraibuna, onde foi realizado o
exame de corpo de delito no morto por dois cidadãos não médicos nomeados
para o serviço e na presença do escrivão; o médico não estava presente na
cidade.
O auto do exame de corpo de delito determinou que a morte se deu por
assassinato de vários ferimentos à faca que foram descritos com termos
comuns e não médicos.
A partir da constatação do assassinato, expediu-se a intimação para a
prisão do escravo Joaquim Antônio. Aconteceu que o senhor Bento Vieira disse
ao delegado que o escravo fugiu assim que matou o feitor, aparecendo alguns
dias mais tarde, também morto. Estava enforcado nas redondezas da fazenda.
O processo criminal não foi concluído; o réu, o escravo Joaquim Antônio
fugiu e apareceu enforcado. Alguns anos depois, em 1872, a Justiça procurou
dar continuidade ao grave processo sem solução, mas, com o senhor do réu
também já falecido, o processo criminal foi encerrado.
Conforme o trabalho de Maria Helena Machado (1994), que comprovou
altos índices de criminalidade na cidade de Taubaté do século XIX, é possível
verificar os relacionamentos mantidos entre senhores, feitores e escravos na
região. A autora observou que tais relações se fizeram necessárias para a
39
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis Referência D22. Caixa 145. Divisão de
Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
93
manutenção do escravismo no final do século XIX, junto ao estratagema
paternalista no funcionamento do sistema.
O escravo Joaquim Antônio deixou marcado pelo suposto assassinato de
seu feitor que as relações entre eles eram tensas e “... que o conflito de
interesses nunca esteve ausente nem das mais convictas possibilidades de
negociação”
40
.
No Auto Sumário Crime, de de outubro de 1836
41
, mandou fazer o Juíz
de Paz Suplente o Tenente João Moreira de Souza Almeida o exame de corpo
de delito sobre o ferimento feito no cadáver do morto Domingos, escravo de
Dona Catharina de Senne e Moura, da villa de Nossa Senhora do Bom
Sucesso de Pindamonhangaba. Mandou, também, inquerir as testemunhas no
número de cinco (três presenciaram o crime e duas escutaram dizer) e, como
numa orquestra afinada, disseram a mesma história à Justiça.
O ocorrido se deu conforme o relato no processo criminal da seguinte
forma: em quinze de setembro aconteceu um levante de escravos na Fazenda
da Dona Catharina de Moura
42
, entraram três ou quatro escravos da mesma
senhora, sobre a madrugada, todos armados pela casa adentro, com o objetivo
de matarem seu irmão e administrador Fernando de Moura.
Aconteceu um levante realmente?
Quais seríam os motivos de se identificar um levante?
A própria senhora disse nos autos que seu irmão e feitor, o réu Fernando
de Moura, acabada a reza na madrugada, mandou que os escravos pegassem
o escravo Domingos para o surrarem, quando este irrompeu sobre o feitor com
um porrete.
40
MACHADO (1994), apud PAPALI, 2003, p.67.
41
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis S/Ref. Caixa 145. Divisão de Museus,
Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
42
Nesta Fazenda produzia-se cana-de-açúcar e em seu engenho era refinado o açúcar.
94
Estabeleceu-se uma confusão, as ordens do feitor não foram cumpridas,
os outros escravos ficaram na retaguarda enquanto o Domingos investia contra
sua figura. Não apareceu a informação sobre o motivo para a ordem de
prender e castigar o escravo Domingos, mas aparentemente suas atitudes
desagradaram o feitor.
Os rebeldes deixaram quase morto, por uma pancada na cabeça, João
Francisco de Sousa oficial de carapina
43
, que ali se achava, passando a
ameaçar o dito administrador dentro de casa.
Não encontrando meios para escapar, Fernando de Moura disse-lhes em
altas vozes que se retirassem, caso contrário, morreriam. Respondeu-lhe
Domingos que ali se encontrava um homem e gritou pelos companheiros para
que viessem ajudar com as foices. Percebeu que o escravo Domingos,
vestindo um poncho onde escondia um porrete, lhe tiraria a vida.
Depois de tomar umas duas bordoadas, o réu Fernando de Moura, que se
viu encurralado numa sala e não encontrando outra arma senão sua
espingarda, em defesa da própria vida fez tiro ao mesmo escravo Domingos,
que caiu morto. Os demais fugiram, todos, sem serem reconhecidos.
Por que foram relatadas apenas versões idênticas e beneficiadoras ao
réu, homem branco e representante da “boa” sociedade? Poderia o réu
apresentar ameaças físicas aos escravos da fazenda?
Em 25 de outubro de 1836, visto a decisão do Juri, o Juíz Manoel Alves
Alvim absolveu o réu Fernando de Moura Rangel do crime, com baixa na culpa,
e ordenou sua soltura, para que se fosse em paz da prisão.
Afinal, todas as testemunhas foram a seu favor, agiu em legítima defesa
com arma de fogo contra o escravo Domingos, perigoso e armado de porrete.
Em Campos da Violência, Sílvia Hunold Lara (1988), debate a idéia da
violência no regime escravista sobre dois pontos de vista, sendo um pela
caracterização de uma escravidão branda e outro, por uma escravidão cruel
44
.
43
Ofício de carpinteiro.
95
LARA (1988), expõe o ponto comum de grande parte da bibliografia
referente à questão da escravidão: é o aparecimento da violência, que foi
negada pelo paternalismo ou suavizada pela crença da democracia racial, mas
sempre apareceu como necessária (típica do sistema capitalista, que se
apropriou do excedente do trabalho e mesmo do trabalhador como sua
propriedade) ou como repressão das lutas e resistências dos escravos
45
.
Embora o estudo da referida autora se ambiente no período colonial
brasileiro, serve como caminho para o entendimento da questão da violência
na presente pesquisa. A autora inicia sua obra com a apresentação da
conversa de dois homens: um letrado, advogado de Lisboa com tendências
abolicionistas e humanistas, e outro um mineiro brasileiro e escravocrata;
apresenta o viés de dois pontos polêmicos na escravidão, sobre a idéia de
caracterização de uma escravidão branda ou de uma escravidão cruel. A sua
forma branda passa pela idéia de escravos submissos e de senhores amigos
sem a ocorrência de manifestações de rebeldia (demonstrada pela comparação
de leis e de instituições), a escravidão na sua forma cruel é proposta pela
máxima exploração do escravo por um senhor severo que não permitiria os
vícios e a indolência (demonstrada pela grande oferta de mão-de-obra escrava
e de retorno a curto prazo do investimento).
A discussão a respeito da conversa entre o mineiro (escravista) e o
advogado de Lisboa (de intenções humanísticas) mostra que a violência foi um
ingrediente da ambiguidade do escravismo no Brasil, embora desumana,
garantia obediência e mantinha certa tranquilidade aos senhores, a partir de
castigos. Quando partia dos escravos, a violência tinha caráter de transgressão
do poder senhorial.
A escravidão poderia ser vista desta forma, por alguns, à época; mas não
se pode restringir os estudos à questão da humanidade (por parâmetros sociais
e ideológicos do escravismo) e da violência (por parâmetros econômicos e
44
LARA, Sílvia Hunold. Campos da Violência: escravos e senhores na Capitania do Rio de
Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
45
Idem, p.19.
96
coloniais do escravismo) e entre a ideologia daqueles dois agentes da história
(o português e o mineiro brasileiro).
De acordo com LARA (1988), estes dois níveis de entendimento para a
questão não são suficientes para entendê-la:
(...) variam no tempo, dependem de agentes
históricos em movimento, que se fazem e se
refazem cotidianamente em sua vida material, em
suas relações determinadas e nas experiências e
consciências destas relações
46
.
A violência contra os escravos se deu até mesmo em crimes de roubo dos
próprios escravos, situação em que poderia aparecer rapto ou sequestro, e
chegou como processo criminal de roubo ou furto de escravo, como de
qualquer outro bem, como era corriqueiro à época.
Em 7 de novembro de 1845
47
, João da Costa Oliveira disse ao delegado
que era morador de Taubaté e que, no dia 14 de setembro de 1845,
desapareceu-lhe um escravo crioulo de nome Ignácio preto, o qual o suplicante
procurou e, após muita busca e pesquisa, descobriu que fora roubado por
Manoel Marques Vianna, homem ambulante e sem domicílio.
Depois de conservar o escravo por três dias em um rancho no mato, o tal
Manoel Marques Vianna o conduziu à sua residência e o manteve sob prisão,
quase sempre oculto debaixo de uma cama. Naqueles dias tentou vendê-lo
para um cigano de nome Luiz, que se achava em marcha a um lugar de nome
Contagem, sem sucesso. O senhor de Ignácio, escravo roubado, pediu
providências com a prisão de Manoel Marques Vianna.
46
Idem, ibid, p.22.
47
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis S/Ref. Caixa 145. Divisão de Museus,
Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
97
Determinados roubos de escravos estiveram relacionados a compradores
que os levariam para outras regiões. Este foi o caso do preto Vicente que,
interrogado em 2 de maio de 1846
48
, sendo perguntado pelo Sub-Delegado se
era forro ou cativo respondeu, sem delongas, que era cativo do senhor Capitão
Domiciano da vila de São Luis do Paraitinga.
Vicente disse, ainda, que andava fugido umas quatro semanas mais
ou menos, na maior parte como cativo na casa de Manoel Moreira. Contou que
vinha fugido com muita fome e que o preto Jeremias o cunduzira até a casa de
seu senhor a título de o alimentar. O senhor Manoel Moreira o colocou em um
quarto para não ser visto até que fosse vendido para um boiadeiro no seu
retorno à cidade.
Preso na mesma data, o preto Jeremias de Nação Monjolo, disse ser
solteiro e não saber sua idade, nem ler ou escrever, era escravo da senhora
Clara Maria de Jesus. Por seu curador, foi nomeado o Alferes Francisco de
Paula Oliveira que acompanhou o interrogatório:
(...) qual era o motivo de sua prisam = Respondeu
que foi por causa de um rapas de nome Vicente =
aonde encontrara com este preto que diz chamar
Vicente = Respondeu que encontrara na estrada e
perguntando que andava fazendo resondeu o dito
Vicente que estava com fome e que o levava a casa
de seu senhor moço Manoel Moreira e que deixando
o preto em casa de seu senhor moço recolheuce
para a casa de sua senhora e dahi a oito dias mas
ou menos encontraram-se para ocasião em que foi
preso e nada mais (...)
49
48
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis S/Ref. Caixa 145. Divisão de Museus,
Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
49
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis S/Ref. Caixa 145. Divisão de Museus,
Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
98
Foi preso, também, Manoel José Moreira que, em seu interrogatório, disse
ter encontrado o preto Vicente com a informação de ser forro, quando lhe deu
comida e lhe mandou embora.
a testemunha Joaquim Pereira do Nascimento (homem branco) relatou
que foi dar busca de um escravo fugido de João Bonifácio da Moura na casa de
Manoel Moreira.
Encontrou por lá sua mulher e um Francisco Rosa que lhe disseram que o
Manoel Moreira não estava e que tinha um escravo fugido escondido. A
testemunha encontrou com Manoel Moreira em sua roça no lado de Quiririm
(em Caieiras) e perguntou sobre o preto fugido e disse que sua esposa era
uma tola.
Foi preso à cadeia, voltaram à sua casa e a mulher acordou que, se o
marido fosse solto, lhes mostraria o lugar onde ocultou o preto fugido. Quanto
ao escravo Jeremias, disse saber que ele levara Vicente para casa de seu
senhor moço e depois levaria mantimentos ou comida.
Outra testemunha, João Jacinto de Aguiar, assitiu a uma negociação
entre Manoel Moreira e um boaiadeiro para a venda de um escravo por $700
mil réis: acertaram por $300 mil réis para fecharem na volta da viagem do
boiadeiro.
O encerramento do processo se deu com as Conclusas de prisão dos
réus. Em 3 de julho de 1846, a senhora de Jeremias, Clara Maria Rodrigues,
pediu ao Juíz que soltasse seu escravo por estar privada de seus serviços por
sete meses...
50
50
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis S/Ref. Caixa 145. Divisão de Museus,
Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
99
CAPÍTULO III
“A EXPERIÊNCIA DA ESCRAVA JOSEFA”
3.1 AS RELAÇÕES SOCIAIS DE JOSEFA
A cidade de Taubaté foi palco, em 1862, de um crime que revelou
relações cotidianas e provavelmente chocou os escravistas mais convictos do
interior do Império.
O crime foi cometido pela escrava Josefa e ganhou alcance na sociedade
não pelo seu teor, mesmo porque foi julgado severamente e a escrava
condenada conforme os trâmites legais, mas pelo desenrolar dos
acontecimentos durante todo o processo mostrando às pessoas daquela
sociedade o envolvimento social entre ela e os seus senhores.
Em Taubaté existia o medo da formação da “cidade negra” existente na
Corte, todos os escravos na rua eram suspeitos (totalizavam quase cem mil
indivíduos em meados dos oitocentos, na cidade do Rio de Janeiro) e os
problemas de controle social dos escravos eram sérios
1
.
Exigiam-se mudanças na política de domínio tradicional da escravidão na
Corte, muitos cativos foram vendidos após 1850 para regiões do interior como
o Vale do Paraíba, próspera região na plantação do café
2
.
O convívio próximo de senhores pobres a seus escravos permitiu o
desvelamento de um cotidiano específico, de um viver que possibilitou à
escrava Josefa organizar uma festa” em homenagem ao nascimento do
menino Jesus na noite de 24 para 25 de desembro de 1862.
O encontro foi idealizado como o intuito de se fazer a reza católica e
depois os batuques e danças africanas até tarde da madrugada.
1
CHALHOUB (1990), op.cit., p.191.
2
Idem, p.198
100
Foi no momento das danças e batuques africanos no terreiro, pela
madrugada, na presença de vizinhos e escravos de vizinhos que, a senhora de
Josefa, Dona Anna Francisca da Motta saiu de sua casa exigindo que
acabassem com aquele barulho todo porque estava com dores de cabeça e
desejava dormir.
Embriagada, a escrava Josefa saltou enfurecida sobre sua senhora e a
esmurrou, deu unhadas e arranhões, puxou seus cabelos, jogou-a ao chão e
lhe apertou o pescoço, agredindo-a até que resolveu pegar uma foice para
acertar sua senhora.
Neste momento seu senhor, Antônio Ferreira dos Santos Borges, pediu-
lhe que não fizesse aquilo, dando chance para a esposa Anna Francisca fugir
para a casa de um vizinho.
A “cidade negra” existia, Josefa a representava naquele momento e
deveria ser perseguida para se efetuar um controle da população de escravos
e forros da região.
Na concepção de Sidney Chalhoub (1990), em Visões de Liberdade, a
formação da “cidade negra” foi percebida nas suas próprias cenas:
(...) é o engendramento de um tecido de significados
e de práticas sociais que politiza o cotidiano dos
sujeitos históricos num sentido específico, isto é, no
sentido da transformação de eventos aparentemente
corriqueiros no cotidiano das relações sociais na
escravidão em acontecimentos políticos que fazem
desmoronar os pilares da instituição do trabalho
escravo
3
.
É neste contexto de agressão à senhora que a escrava foi presa e
julgada, conforme a Lei de 10 de Junho de 1835 que mandava punir com ferros
e açoites qualquer escravo que ameaçasse com agressões ao senhor e outras
pessoas afins no universo do senhor.
3
Idem, p.186.
101
A historiadora Maria Helena Machado (1987), no livro Crime e Escravidão,
mostrou as tendências da criminalidade escrava em Campinas e Taubaté,
durante o século XIX, referindo-se a homicídios e lesões corporais como
aproximadamente 38% pronunciados em artigos da lei de 10 de junho de 1835:
(...) uma vez que o texto da lei tinha como objetivo
primordial coibir e castigar exemplarmente, através
da pena de morte, os cativos que ousassem infringir
o estatuto básico da sociedade escravista
4
.
Pode-se inferir que Josefa se sentiu ofendida pela intromissão da senhora
em sua festa, não poderia permitir que acabasse com o divertimento dela e de
seus convidados, embriagada ou não, partiu para a agressão.
Sabe-se, ainda, que durante o processo o senhor Antônio Ferreira dos
Santos Borges tentou amenizar o acontecido nas diferentes tentativas de soltar
da cadeia a escrava Josefa. Situação costumeira, difundida entre senhores, se
o atentado fosse sobre a propriedade (furtos e roubos), poderia-se resolver
particularmente e sanar os prejuízos
5
.
Antônio Ferreira bem que tentou: pedindo fiança à escrava presa dado o
alcance das leves ofensas conforme o exame de corpo de delito, negada mais
de uma vez pelo juíz; concedendo-lhe carta de alforria e solicitando sua soltura
que não era mais escrava, também negada porque a sentença havia sido
divulgada pelo jure; e, solicitando sua soltura devido ao seu estado de saúde e
as más condições de higiene na cadeia onde se encontrava a quase um ano.
O foco da interpretação que se pretende fazer é observar os motivos
pelos quais fora permitido a uma escrava elaborar uma festa com convidados e
os contornos da possibilidade e da efetivação de uma agressão.
A partir da leitura do processo criminal aberto contra Josefa, que não
mostra tais porquês mais foca no ato criminoso acontecido, percebeu-se o viver
4
MACHADO (1987), op.cit., p.65.
5
Idem, p.44.
102
e a construção de modos de convivência entre o elemento cativo e o mundo
livre do senhor.
Apareceram alguns questionamentos durante sua leitura: como a escrava
Josefa conseguiu tal penetração naquele universo com regras elaboradas
pelos possuidores de outros seres humanos como ela? Qual era seu poder de
barganha com seus senhores? O quanto poderia transitar na sociedade
taubateense sem incomodar os senhores e senhoras poderosos? Qual sua
influência nas relações com outros escravos e forros?
Sem apresentar todas as respostas facilmente, o processo de Josefa, de
certo mostra uma mulher forte, não apenas pela agressão à sua senhora, mas
porque muitos dos depoimentos testemunhais a consideraram com respeito
desde o de seu senhor até o de escravos e forros, os dois últimos preferiram
dizer que não presenciaram o ato da agressão.
O desenrolar do processo e julgamento de Josefa mostrou o receio da
sociedade em deixá-la sem a punição máxima para tal crime, as testemunhas
brancas arroladas durante o processo contaram a versão da agressão e
tentativa de assassinato, mesmo que por ouvir dizer de outrem. Os homens da
justiça não pouparam negações a todas as tentativas de seu senhor em libertá-
la. Os participantes do juri a condenaram rigidamente, como era de se esperar
dos representantes dos grandes senhores daquela sociedade.
Neste caso o poder pessoal do senhor de Josefa não sobrepujou e nem
foi reo para a Justiça de Taubaté, provavelmente os interesses coletivos dos
poderosos interferiu na consideração do costume senhorial
6
.
A interpretação das leis acontecia conforme seu caráter político, na
dimensão da linguagem cada um dos envolvidos, curador, advogado ou juíz,
fez sua contribuição na ação com as próprias colocações e interpretações
legais, provocando a compreensão do sentido atribuído à lei. Na sociedade
brasileira dos oitocentos, muitos casos não foram ditados por nenhuma lei
prescrita
7
.
6
Idem, p.47.
7
GRINBERG (1994), op.cit., p.92.
103
Então, vamos aos fatos processuais. O Delegado de Polícia Suplente em
exercício o Doutor Joaquim Pereira da Fonseca mandou prender, em segredo
de justiça, Josefa, escrava de Antônio Ferreira dos Santos Borges, em 12 de
janeiro de 1863
8
.
A escrava agrediu sua senhora, Dona Anna Francisca da Motta, como a
própria ofendida contou ao delegado, dezoito dias depois do acontecido: na
noite do dia 24 para 25 de dezembro de 1862 a escrava Josefa maltratara com
pancadas sua senhora Dona Anna Francisca da Motta a ponto de com uma
foice querê-la assassinar
9
.
Anna Francisca da Motta era casada com Antônio Ferreira dos Santos
Borges, tinha trinta anos de idade e era dona de casa.
O exame de corpo de delito na ofendida foi marcado para 14 de janeiro de
1863 e fora realizado por dois peritos, o Dr.Emílio Winther e o farmaceutico
Carlos Adolfo Leonardo, às onze horas, na sala da Câmara Municipal de
Taubaté
10
.
No auto de prisão, em 12 de janeiro, o escrivão Joaquim Manoel
D’Assumpção Vianna servindo de oficial de justiça dirigiu-se ao bairro
Pamacuã, termo da freguesia do Paiolinho em Taubaté, para efetuar a prisão
da escrava Josefa como mandou o delegado de polícia. (IMAGEM 3.1)
Acompanhado do pelo Inspetor de Quarteirão João Francisco de Araújo,
de uma escolta com cinco praças de Tropa de Linha e seis guardas policiais
efetuaram a diligência: ao amanhecer, depois de cercar a casa de Antônio
Ferreira dos Santos Borges bateram à porta onde atendida pelo proprietário lhe
foi lido o mandado com a intimação para a entrega da escrava, a preta
Josefa
11
.
8
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis S/Referência. Caixa 145, 1863. Divisão
de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
9
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis S/Referência. Caixa 145, 1863. Divisão
de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté. FL.02.
10
Idem, ibid.
11
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis – S/Referência. Caixa 145, 1863. Divisão
de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté. FL.3v.
104
Deveria estar correndo pelas s bocas que aquele senhor de Josefa
apresentaria qualquer tipo de resistência na entrega de sua escrava. Afinal,
após a suposta agressão, continuou vivendo sobre o mesmo teto com a cativa.
IMAGEM 3.1
Jornal “O Paulista”, janeiro de 1863
12
.
Imagem digital acervo pessoal do autor.
3.2 A FESTA DA ESCRAVA JOSEFA
O senhor entregou a ré, Josefa, que foi conduzida pela escolta e recolhida
à cadeia pública de Taubaté.
O Auto de Interrogatório da ofendida Anna Francisca da Motta mostra o
nível das relações sociais a que estavam submetidos os envolvidos na festa:
12
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
105
(...) Perguntada como se tinha dado o facto
constante da portaria de folhas duas= Respondeo
que no dia vinte e quatro de dezembro proximo
passado, vespera de natal sua escrava de nome
Josepha foi fazer uma festa em louvor do senhor
Menino, e para isso convidara os escravos Benedito
escravo de João da Palma, Severino escravo de
Manoel Gomes Vieira, e as mulheres libertas Aninha
Luciana, Marianna digo duas Marianas de Tal, huma
de nome Maria todas moradoras no mesmo bairro na
distancia de legoa e meia e principiarão em
companhia de seo marido Antonio Ferreira dos
Santos derão principio a diversas cantorias e danças
durante a noite inteira e que ella interrogada de
madrugada saindo ella de seo quarto onde tinha
passado a noite veio pedir à sua escrava que
acabasse com aquella dansa e cantoria para ella
interrogada poder dormir tendo ella por resposta da
mencionada sua escrava a preta Josepha a agarrar
lhe pelos cabelos atira la ao chão, e dar lhe muitas
murradas, unhadas, deixando a toda arranhada e
que afinal passando a mão em huma foice disse em
altas vozes deixem acabar com essa diaba = e que
então nesse acto seu marido Antonio Ferreira dos
Santos Borges passou a pedir à própria preta que
não a matasse, e que a fez conter de executar seus
desejos debaixo de muitos ralhos e gritaria e nesse
interim ella interrogada teve tempo de correr para a
csa de um vizinho cousa de meio quarto de legoa no
dia seguinte foi se recolher á casa de um seo
parente antonio Firmino Gomes de Araujo onde até
hoje se conserva. (...)
13
A dimensão da agressão ultrapassou as poucas e leves ofensas como a
“feridinha e arranhadela” localizadas pelos peritos do exame de corpo de
delito
14
.
Para Anna Francisca, a “leve” agressão foi uma ameaça de morte,
principalmente porque ofendeu sua honra de senhora, mesmo após a
permissividade da festa com a coniviência do casal de senhores.
13
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis – S/Referência. Caixa 145, 1863. Divisão
de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté. FL.05.
14
Idem, FL.07.
106
Como poderia conviver com a escrava Josefa, em casa, após a
agressão? Fugiu para a casa de um vizinho e no dia seguinte Dona Anna
Francisca refugiou-se na moradia de um parente chamado Antonio Firmino
Gomes de Araújo e por lá ficou até 12 de janeiro de 1863.
A dona da casa fugiu, ficou abrigada em outra casa por mais de quinze
dias até que desse queixa ao delegado para que a escrava agressora fosse
presa à delegacia.
E o marido, o senhor Antônio Ferreira dos Santos Borges como reagiu?
Estranhamente, o senhor da agressora, a escrava Josefa, continuou em
sua casa convivendo com a mesma escrava sem a presença de Dona Anna
Francisca até o dia da prisão de Josefa.
Talvez, por ser um senhor de poucas posses Antônio Ferreira tinha
apenas uma escrava e, como era comum, aumentava seus ganhos no aluguel
por jornal da cativa ou mesmo com as suas vendas de quitutes na rua. Não é
certo o trabalho de vendas, ao ganho, de Josefa pelas ruas de Taubaté, porém
a escrava apresentava valor, dizia-se experiente nas lides de roça e de casa.
Que outro valor, além o de seu trabalho e o de seu próprio preço, fazia
Josefa tão valiosa a Antônio Ferreira a ponto dele ficar ao lado da escrava e
não de sua esposa?
Antônio Ferreira chegou até a amenizar, diante do delegado de polícia, a
agressão ocorrida em sua esposa revelando que foram apenas ofensas leves
“... considerados leves os ferimentos, ou contusões...”, constatadas pelos
exames médicos e que não havendo parte acusadora o delegado não
procedesse com os trâmites legais e desse ordem de soltura em favor de sua
escrava Josefa
15
. (FL.10)
Pela ótica da escrava, conquistara por direito costumeiro seu espaço
numa relação de obrigações mútuas e legítimas. Pela visão da senhora, aquela
15
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis – S/Referência. Caixa 145, 1863. Divisão
de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté. FL10.
107
ligação por “nexos orgânicos”
16
à escrava poderia relacionar-se a alguma troca
devido a bons serviços e compensações justas em trabalhos de Josefa
17
.
Josefa era muito importante mesmo: organizar uma festa em louvor ao
menino Jesus, com seus convidados, na casa de seus senhores,
proporcionando-os rezas católicas e, além disso, danças e batuques africanos,
acrescentados de bebidas e talvez comidas, deveria ser privilégio para poucas
escravas, a não ser que ocupasse espaços além de escrava em suas relações
sociais particulares. Poderia servir aos caprichos sexuais do senhor, ou ser
algum tipo de líder de cultos religiosos africanos?
Entretanto, além dos batuques e danças nada mais aparece no processo
criminal sobre a sua religiosidade ancestral. Por outro lado, o papel de mulher
usada ou amada (?), pelo senhor, aflorou durante o ano em que Josefa ficou
presa até o final de seu julgamento.
O que se sabe é que para a sociedade taubateense (pelo menos à
camada social mais rica e tradicional) a preta Josefa era considerada perigosa,
uma mostra disso foi quando o delegado não aceitou as solicitações iniciais do
senhor Antonio Ferreira, logo no primeiro mês de prisão de Josefa, mesmo
após suas contínuas alegações de ferimentos leves e pedidos para que fosse
tratada pela lei de 1
o
de setembro de 1860 a qual permitia que se requerisse o
arquivamento do processo e a soltura da ré.
Sucederam-se negações de soltura pelo delegado suplente e juíz Dr.
Joaquim Pereira da Fonseca, em suas conclusas abriu inquérito e intimou
diversas testemunhas da sociedade e informantes (menores de idade,
escravos e libertos) e, também, o advogado Manoel Eufrásio de Toledo como
procurador da ré.
1616
MACHADO (1987), op.cit., pp. 101, 102.
17
Maria Helena P.T. Machado enfatiza que as ligações entre senhor e escravos por “nexos
orgânicos” se deram em nível da grande lavoura, principalmente quando se fazia necessária
maior otimização do uso da mão-de-obra escrava em períodos de colheita ou falta de
trabalhadores. Seria assimilado um sistema contratual de justa compensação pelo trabalho
escravo a partir da ótica do próprio escravo. Idem, op.cit., pp.111, 112.
108
Acabara a festa de Josefa, durante os dezoito dias entre a festa
propriamente dita e a manifestação de Dona Anna Francisca na justiça a
escrava viveu com Antônio Ferreira, apenas os dois até sua prisão.
Não se sabe qual o motivo da senhora agredida demorar tantos dias até
sua denúncia, já que em seu interrogatório foi enfática em afirmar que a
escrava Josefa tentou assassiná-la, com uma foice, além da agressão física.
Provavelmente sofreu pressões de seu marido para que não efetuasse a
denúncia e, também, de seus familiares para efetivar a denúncia porque fora
expulsa de sua própria casa por uma escrava que aparentemente tomara seu
lugar.
3.3 AS TESTEMUNHAS CONTRA JOSEFA
Josefa, escrava de Antonio Ferreira dos Santos Borges e sua esposa
Anna Francisca da Motta, era filha de Maria escrava de Manoel da Motta.
Contava com a idade de 35 anos e disse não ter profissão específica, nem
sabia onde havia nascido mas que chegara muito pequena na cidade. Sua
nacionalidade era crioula e confirmou ser solteira. Não sabia ler, nem
escrever
18
.
Em 18 de fevereiro de 1863 as testemunhas iniciaram seus depoimentos,
alternando-se entre pessoas livres pobres, libertas e escravas.
Manoel Gomes Vieira, branco, casado, natural e morador de Taubaté,
vivia das lavouras em sua fazenda. Disse ter quarenta e um anos de idade e
que era parente de terceiro grau da ofendida Anna Francisca.
Seu depoimento foi o mais longo e com maiores detalhes embora não
fosse testemunha ocular, mas sabia do acontecido por “ouvir dizer” na casa de
18
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis – S/Referência. Caixa 145, 1863. Divisão
de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté. FL.07.
109
seu irmão Antônio Firmino Gomes onde se encontrava abrigada Anna
Francisca
19
.
Este primeiro testemunho revelou que tal festa, naqueles dias de
dezembro, era comum pelas roças da região. Iniciava-se com rezas e orações
durante a noite e como era de costume levavam o resto da noite em um grande
batuque.
Em relação à agressão, Manoel Gomes ainda aumenta os traumas
descritos pela parenta ao:
(...) avançar se a ella a sua escrava Josefa pegando
lhe pelos cabelos, deitando-a ao chão, dando lhe
grandes murros pelo rosto, apertando-lhe o pescoço
para melhor a maltratar com os ditos murros, e que
depois de a ter sovado bastante avançara a pegar
huma foice dizendo que melhor era acabar com a
feiticeira, e que nesse acto o marido dela Anna
Francisca passou a pedir a preta Josefa que não
praticasse aquilo porque todos ficarão perdidos, a
que pelo seo arrebatamento, ella escrava ainda
chegou a dar um bofetão no próprio senhor ...
20
O depoente soube, por ser público no bairro, que a escrava Josefa em
nada queria obedecer aos seus senhores, não vivendo em boa harmonia com
eles, segundo seu testemunho.
Foi o único depoimento que afirmou agressão por “bofetão” ao senhor
Antônio Francisco; mesmo não tendo presenciado o ato ou participado da festa
a disposição de Manoel Gomes foi muito grande, em declarar com detalhes os
nomes das pessoas que lá estavam.
Apontou seu escravo Severino e os escravos de João da Palma Pereira
de nomes Benedito e Adriano; a mulher e duas filhas de Luciano de Tal; a
mulher de Salvador; o enteado de Antônio Cangira; a mulher e filho de Joaquim
telheiro.
19
Idem, FL.14.
20
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis – S/Referência. Caixa 145, 1863. Divisão
de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté. FL.15.
110
A boa convivência se fazia necessária, tanto em grandes plantéis quanto
para casas de senhores pobres, as relações entre escravos e senhores foram
instáveis e tensas. MACHADO (1987), exprimiu as dificuldades de tais
relações:
Acomodação e resistência, cooptação e ruptura
descreveram assim movimentos pendulares,
conformando um mundo social, marcado pelo
equilíbrio instável, perpassado de tensões. Nele,
senhores e escravos constituíram relações sociais
diversificadas, mas que, no entanto, refletiaram a
realidade básica do sistema, expressando, com
outros segmentos sociais constitutivos da sociedade
escravista, os antagonismos dessa relação social
21
.
A singularidade da relação social entre Josefa e Antônio Ferreira esteve
na periferia das esferas constitutivas do escravismo quando a escrava deu um
bofetão no senhor, mesmo que a informação não fosse verdadeira, a sua
possibilidade colocou aquela família em situação limítrofe, na visão da
sociedade escravista, da racionalidade senhorial.
A segunda testemunha a depor foi Antônio Firmino Gomes de Araújo, com
trinta e seis anos, casado, vivia de suas lavouras, era da família de Anna
Francisca e revelou que a mesma pedira para:
(...) ali demorar se por alguns dias pois que havia
sahido de sua casa por ter sido espancada pela sua
escrava Josefa a vista do próprio marido della
ofendida, que por ver o pouco caso que seo mesmo
marido havia mostrado com este acontecimento ella
fugira ...
22
21
MACHADO (1987), op.cit., p.60.
22
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis – S/Referência. Caixa 145, 1863. Divisão
de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté. FL.21v.
111
Este depoimento também confirmou a versão de Anna Francisca, afinal foi
dela que os dois irmãos escutaram a versão, além do mais eram seus
parentes.
Contudo, o mais relevante aqui foi a mostra da passividade de Antônio
Ferreira com as atitudes da escrava, primeiro levou uma bofetada de Josefa e
depois fez pouco caso da esposa, ignorando o acontecimento.
Pelo visto, nos dois depoimentos, de “ouvir dizer” da própria Anna
Francisca, seus parentes exprimiram a raiva e decepção da senhora contra a
escrava e seu marido.
Existiu algo a mais na relação entre o senhor Antônio Ferreira e sua
escrava Josefa?
A terceira testemunha Anna Maria de Jesus, parda, casada, natural de
Mogi e moradora de Taubaté, disse viver de trabalho doméstico e ter cinquenta
anos mais ou menos.
Fora convidada pela Dona Anna Francisca para a festa que, pela
madrugada, esquentara entre sua anfitriã e a escrava Josefa, quando a
primeira disse para acabarem com aqueles brinquedos por se achar
incomodada com o barulho. Na ocasião, Josefa deu-lhe um empurrão e sua
senhora se retirou para dentro.
Anna Maria mesmo sendo convidada por Dona Anna Francisca não
compactuou com a versão da agressão, informou apenas um desentendimento
com empurrão. Mostrou, sim, o envolvimento da senhora com a festa da
escrava, tornando a relação naquela casa ainda mais complexa.
A conivência da Dona Anna Francisca com a festa de 24 de dezembro
tornou-se explícita e inequívoca. Poderia ser uma festa corriqueira, mas a
situação singular foi ser organizada pela escrava e com a participação dos
senhores e convidados.
112
Rezaram e festejaram com batuques e danças no terreiro, todos juntos
escravos, libertos, senhores e esposas com seus filhos. Até o tempo esquentar
entre senhora e escrava ninguém contestava aquela festa de Josefa
23
.
O próximo a depor foi Joaquim Francisco de Lima, branco, casado com
Mariana da Conceição, natural de Queluz e morador de Taubaté onde vivia de
suas lavouras e de fazer telhas. Tinha a idade de cinquenta anos mais ou
menos.
Disse que apesar de ter outros afazeres fora de sua residência e não
comparecer à casa de Antônio Ferreira para assistir o “brinquedo ou festejos”
ao menino Jesus, naquela noite mandou sua mulher Mariana que lhe contou
que o brinquedo acabara mais cedo do que pensava por haver um certo
“barulho” entre Josefa e a sua senhora.
Então, por “ouvir dizer” ficou sabendo do acontecido no dia seguinte e sua
esposa Mariana ignorava se aquele “barulho” findara em pancadas.
Em seu depoimento, Mariana Maria da Conceição, branca, natural de
Queluz, com quarenta anos de idade mais ou menos, moradora de Taubaté
onde vivia com seu marido Joaquim Francisco de Lima, acrescentou que foi
convidada por Antônio Ferreira dos Santos Borges e sua escrava Josefa para
festejar em companhia deles o nascimento do menino Jesus:
(...) estiverão em rezas e brinquedos até alta noite e
que ahi então aparecera a senhora de Josefa
dizendo que se achava encomodada e por isso
pedia que acabassem com brinquedo ahi então
Josefa esquentada do juizo déra um empurrão em
sua senhora D. Anna Francisca e ahi então as
pessoas que se achavão prezentes pegarão em
Josefa para que não fosse o caso mais adiante
24
.
23
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis – S/Referência. Caixa 145, 1863. Divisão
de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté. FL.22.
24
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis – S/Referência. Caixa 145, 1863. Divisão
de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté. FL.29.
113
Mariana Maria, convidada de Josefa e seu senhor, revelou os limites da
convivência na família de Antônio Ferreira deixando claro que foi convidada
pelos dois e se retirou da festa quando se deu o “barulho” entre a esquentada
da Josefa e a sua senhora. Ao que parece, a convidada presenciou o empurrão
de Josefa em Dona Anna Francisca, porque acrescentou que outros
convidados seguraram a escrava “... para que o caso não fosse mais
adiante...”.
O empurrão de Josefa em Anna Francisca significava sua indignação
contra o fim de sua diversão, a festa, e, provavelmente foi uma humilhação
frente seus convidados que começaram a se retirar com as ordens da senhora.
Por que será que todos se divertiam exceto a senhora Anna Francisca?
Ou, então, estava realmente cansada da reza e dos brinquedos,
necessitando descansar sem os batuques barulhentos?
As duas hipóteses levantadas levam para o mesmo viés de análise: a
primeira mostra a possibilidade da realização de uma festa pela escrava
Josefa, com seus convidados, rezas católicas (quem sabe?), danças e
batuques africanos.
Como será que Josefa conquistou tal privilégio junto aos seus senhores?
se sabe que a escrava não transbordava sua obediência, sendo fato
conhecido pelos vizinhos do bairro Pamacuã sua notada insubordinação.
Então, por agradar seus senhores pela obediência não conseguiria autorização
para uma festa.
a possibilidade da festa o ser de sua competência, mas porque
será, então, que mais da metade dos depoentes, entre testemunhas e
informantes, disseram ou insinuaram serem convidados pela escrava?
É muito mais provável que a festa fosse da escrava Josefa, afinal,
terminara em danças e batuques. Além do mais, a própria senhora Dona Anna
Francisca disse claramente em seu depoimento que “... vespera de natal sua
escrava de nome Josepha foi fazer uma festa em louvor do senhor Menino...”
25
.
25
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis – S/Referência. Caixa 145, 1863. Divisão
de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté. FL.05.
114
A segunda questão levantada é sobre a participação dos senhores na
festa, o que é bem plausível, desta forma se pode montar um quadro de
convívio diário não entre as pessoas dos senhores e escrava, mas também,
e principalmente da participação mútua nas tradições africanas como as
danças e batuques.
Desta forma, o senhor e a senhora de Josefa, ou melhor Antônio Ferreira,
Anna Francisca e Josefa partilhavam o mesmo teto, vizinhos e amigos, além de
alegrias e discórdias. Realizaram a festa para convidados como senhores e
parentes, libertos e escravos, todos rezando com muita fé até o final do culto
para depois caírem na dança com muitos batuques.
O processo criminal não revelou quais as rezas efetuadas naquela noite,
mas que após o seu término os presentes caíram na dança e fizeram
“brinquedos” com muito barulho dos batuques pela noite adentro.
A reza deveria tornar a todos mais católicos mas será que a sica
africana os deixava mais livres? O razoável é perceber que festejavam em
família e até discordavam como uma. Não uma família para os padrões
católicos, porque até a fuga de Anna Francisca, seríam duas mulheres e um
homem.
O último testemunho foi de Estevão Alves dos Santos, branco, solteiro,
natural e morador de Taubaté, cinquenta e seis anos de idade. Era vizinho da
festa, proprietário da casa onde a senhora Anna Francisca buscou abrigo
imediato após a gressão:
(...) e que pela alta noite foi acordado por lhe bater
na porta a qual abrindo achara ser Dona Anna
Francisca da Motta mulher do dito Borges que
queixando se a elle testemunha que tinha sahido de
sua casa por ser ameaçada de sua escrava Josefa e
que elle testemunha mandara huma mulher
acompanha la para para a casa de Antonio
Firmino...
26
26
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis – S/Referência. Caixa 145, 1863. Divisão
de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté. FL.29.
115
Estevão reafirmou a versão de Anna Francisca em relação ao seu medo
na ameaça de morte por parte de Josefa e que daí pedira abrigo depois de
fugir de sua casa.
Revelou coisa mais importante: a fuga da dona da casa! Como foi
possível a escrava ameaçar a senhora em sua própria casa e Anna Francisca
não receber o apoio de seu marido, necessitando “bater em retirada” para a
casa de vizinhos...?
A humilhação foi dupla, pelas ofensas da escrava e o pouco caso do
marido ao ficar em casa com Josefa. A senhora fugiu e a escrava tomou posse
de sua casa.
3.4 OS INFORMANTES A FAVOR DE JOSEFA
Severino, escravo de Manoel Gomes Vieira, crioulo, de vinte e quatro
anos de idade, foi inquerido sobre os fatos ocorridos, do dia 24 para 25 de
dezembro de 1863, na casa de Antônio Ferreira.
O informante disse que dias antes do Natal a esposa de Antônio Ferreira
dos Santos Borges o convidara para a reza na noite do dia de Natal e, que na
vépera, sua escrava Josefa também o convidara.
Após o final da reza principiaram um grande batuque e na alta noite
apareceu a Dona Anna Francisca, mulher de Borges, dizendo que podiam
acabar com aquela bagunça porque queria dormir e se achava com muitas
dores de cabeça.
Neste momento, Severino protegeu Josefa ao colocar que não
presenciara os fatos como seu senhor declarara em outro depoimento:
(...) elle informante nesse acto desamparara a
sociedade e se recolhera para a casa de seo senhor
e que no dia seguinte foi que então ouvira falar
sobre as pancadas dadas por Josefa em sua
116
senhora Anna Francisca da Motta e que esta fugira
para a casa de Antônio Firmino Gomes de Araújo...
27
Seria comum escravos inventarem fatos, diminuírem ou aumentarem
versões das histórias para a proteção de familiares ou parceiros. No mesmo
raciocínio, acreditar que Severino não presenciou o empurrão de Josefa em
sua senhora seria muito simples, mas ele viu tudo, porque contou a seu senhor
que depôs na delegacia como testemunha de “ouvir dizer”.
Severino selou uma aliança com Josefa, revelou um senso de
comunidade escrava que geralmente aparecia no trabalho do eito (na roça),
nesta situação não se sabe o nível de envolvimento entre eles mas, foi
descortinada uma consciência e coesão escrava na fragilidade do sistema
escraivsta
28
.
O escravo de João da Palma Pereira, de nome Benedito, era crioulo e
disse ter trinta anos de idade. Foi inquerido a informar sobre os fatos e
respondeu que convidado na véspera de Natal por Josefa, fora assistir a reza e
depois de terminada, por não querer a senhora desta que se brincasse mais,
retirou-se e esperou por Severino na estrada para juntos rumarem para suas
casas.
Novamente, um escravo escondeu os fatos para amenizar a situação de
sua amiga Josefa. Implicitamente, ao escapar de seu depoimento o escravo
Benedito, assim como Severino, colaborou com Josefa. Embora suas
informações não valessem como testemunho revelaram uma harmonia entre
escravos vizinhos daquele bairro de Taubaté.
A terceira informante foi Maria das Dores, branca, solteira, de treze anos
de idade, natural e moradora de Taubaté onde vivia em companhia de seus
pais. Acrescentou bem pouco, ou nada, aos outros depoimentos, disse sobre
sua participação na reza na casa de Antônio Ferreira e depois se retirou para
dormir, acordando no outro dia sem de nada saber.
27
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis – S/Referência. Caixa 145, 1863. Divisão
de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté. FL.16.
28
MACHADO (1987), op.cit., p.96.
117
Os informantes, a favor de Josefa, pouco a ajudaram no processo. A
direção do inquérito levou apenas para a confirmação da agressão, embora
pequena, com leves ferimentos como arranhadelas e feridinhas, nenhuma das
testemunhas ou informantes a confirmaram.
Na realidade, os três informantes conseguiram mostrar que Josefa não
cometera uma agressão, desentendimento ou “barulho” sim, talvez um
empurrão, mas agressão não.
Portanto, estes depoentes ajudaram a resgatar a história da escrava
Josefa que conquistara seu espaço na casa de Antonio Ferreira, realizando
uma festa e proporcionando, aos seus convidados, uma continuidade mesmo
após o anúncio de seu fim pela senhora Anna Francisca.
Para que isso se tornasse realidade Josefa organizou tudo, até mesmo os
convites antecipadamente aos que fizeram seus senhores. Pensou em quase
todos os ingredientes para uma boa festa, não contava com a falta de
paciência, ou “dores de cabeça” e insônia, de Anna Francisca.
Provavelmente àquela altura da noite o “encanto” foi quebrado pela
mágica da feiticeira; talvez a metáfora medieval o seja apropriada para
situações do mundo escravista brasileiro, mas como pensar uma vida de servir
compulsoriamente outras pessoas em todas as suas vontades e direitos e,
ainda, mesmo em raros momentos de felicidade e autonomia se obrigar a
obedecer?
É possível que a festa fosse uma das maneiras encontrada pelo casal de
senhores, para garantir a boa convivência e o trabalho da escrava Josefa. De
qualquer forma, o que transborda nesta relação entre senhores e escrava é a
proximidade interpessoal em seu convívio diário, é a possibilidade de Josefa
crescer na relação e até galgar espaços prestigiados na família e vizinhança.
118
3.5 O DESTINO DE JOSEFA
Em seu depoimento realizado no dia doze de março de 1863, a escrava
Josefa declarou conhecer a todos os depoentes, entre testemunhas e
informantes, a muito tempo e em nada tinha a depor contra eles.
E, quando perguntada se existia algum fato a alegar ou provas que
justifique ou mostre sua inocência, respondeu que somente dara um empurrão
em sua senhora e:
(...) isto por se achar muito embriagada e que logo
fora puchada pela testemunha quinta e que tenha
para justificar do que se ter dito que ella havia dado
em sua senhora murros e pegado hum foice para dar
lhe com ella, quando não passou de um empurrão
como assim já disse...
29
Somente um empurrão foi o necessário para a escrava ser presa e
posteriormente, condenada. Talvez dada à falta de expressão social e pobreza
de seu senhor. Quem sabe para servir de exemplo a outros possíveis casos
mais graves, ou mesmo para manter os cativos da região em alerta contra seus
desejos agressivos em relação aos senhores.
A acusação realizada por libelo crime acusatório contra a Josefa, que
praticou ferimentos leves em sua senhora, foi de artigo único, e pediu a
condenação da na pena de açoites, conforme o disposto no artigo 1
o
da lei
de 10 de junho de 1835.
Em quinze de março de 1863 foram sorteados os doze jurados dentre os
quarenta e oito convocados por intimação (nota de jornal IMAGEM 3.2) , para a
formação do Tribunal do Juri
30
.
29
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis – S/Referência. Caixa 145, 1863. Divisão
de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté. FL.30.
30
Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis – S/Referência. Caixa 145, 1863. Divisão
de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté. FL.39v.
119
No Tribunal do Juri, a sentença dada à escrava Josefa foi a condenação à
pena de duzentos açoites (vinte e cinco por dia) e o uso de ferros no pescoço
por trinta dias. (nota de jornal IMAGEM 3.3 e 3.4)
IMAGEM 3.2
Jornal “O Paulista”, março de 1863
31
.
Imagem digital acervo pessoal do autor.
31
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
120
IMAGEM 3.3
Jornal “O Paulista”, março de 1863
32
.
Imagem digital acervo pessoal do autor.
32
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
121
IMAGEM 3.4
Jornal “O Paulista”, março de 1863
33
.
Imagem digital acervo pessoal do autor.
Numa tentativa desesperada de não perder ou prejudicar sua escrava,
Antônio Ferreira passou carta de alforria à Josefa, dando-lhe “plena” liberdade
e, a partir da condição de liberta, pediu ao juíz sua soltura, que lhe foi negada
novamente, assim como a fiança, porque a sentença havia sido proferida.
(nota de jornal IMAGEM 3.5)
O juíz mostrou a realidade escravista do interior quando negou os pedidos
do (ex)senhor mas encaminhou a decisão de soltura para outras instâncias,
como o governador imperial que não se pronunciou até o início de junho de
1863.
A última tentativa do (ex)senhor de Josefa em libertá-la se deu com um
atestado do Dr. Winter sobre a saúde da forra que se prejudicava pelas
condições de higiene a que estava sujeita e pelas reais possibilidades de sua
morte na cadeia. (nota de jornal IMAGEM 3.5)
33
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
122
IMAGEM 3.5
Jornal “O Paulista”, 06 de junho de 1863
34
.
Imagem digital acervo pessoal do autor.
34
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de Taubaté.
123
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A experiência escrava em Taubaté, durante o século XIX, foi intensa.
Analisada em diferentes documentos, como livros de registros de compra e
venda de escravos, livros de testamentos de última vontade, ações e
processos criminais, a ação do escravo, na região estudada, mostrou na
vivência cotidiana o engajamento em suas relações sociais, precionado
coercitivamente pelos senhores de uma sociedade escravista.
Escravos com profissões específicas que trabalhavam arduamente e
conquistavam vagarosamente seu espaço social apareceram nos arranjos
necessários para sua sobrevivência diária, demonstrados em possíveis
contemplações, em testamentos de última vontade, em dinheiro ou mesmo em
doação de sua liberdade.
As ações do escravo no mundo escravista taubateano o levou à
construção de redes de relacionamentos sociais conflitantes com as fronteiras
do poder de atuação senhorial, inserindo senhor e escravo num campo de
tensões dividido por dois grupos de interesses opostos que disputavam
espaço: a manutenção da escravidão em seu máximo aproveitamento do
trabalho escravo com o máximo controle possível sobre ele; e a efetivação da
autonomia escrava, com melhores condições de vida na busca pela sua
liberdade.
Entendeu-se como se deu a atuação do cativo em sua convivência
cotidiana com senhores paternalistas e como foi a construção dos significados
124
de liberdade perpassada por crimes (como fugas, agressões, assassinatos,
levantes e roubos), por relações de vizinhança, por amores e dissabores.
A partir da percepção da existência do campo de tensões entre senhor e
escravo, em Taubaté, interpretou-se que as muitas possibilidades da
experiência do ser humano escravo foi muito além da resistência ou
acomodação frente ao sistema escravista.
Verificou-se como o cativo agiu frente às expectativas de liberdade que
criava no seu cotidiano. A escrava Josefa mostrou como se fazia uma festa
com convidados, rezas, danças e batuques. Josefa demonstrou sua força e
posição cosial conquistada na família e vizinhança, até que esbarrasse no
poder dos poderosos da cidade.
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1827-1895. Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura
Municipal de Taubaté.
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1827-1895. Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura
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1895. Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura
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146. Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal
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144. Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal
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145. Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal
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- Processo Crime do Cartório de Registro de Imóveis – S/Ref. Caixa 145.
Divisão de Museus, Patrimônio e Arquivo Histórico da Prefeitura Municipal de
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