1.1 A linguagem como expressão da consciência: Arrendamento ou aforamento?
Na reconstrução histórica da experiência social vivida por esses sujeitos nessa
localidade, não era possível fazer uso somente de uma documentação escrita (como observado
na Introdução desta dissertação), insuficiente para a reconstrução dessa história recente. A
documentação escrita apresentava uma série de limitações, não alcançava a problemática
sugerida e apenas auxiliava no esclarecimento de nuances.
O instituto jurídico utilizado pelo loteador para administrar e auferir rendas dos
terrenos foi o arrendamento, por meio de um contrato bastante módico. Os “arrendatários” só
poderiam construir moradas, e nada a mais diferente dessa finalidade. Esse instrumento
jurídico
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da enfiteuse, escolhido pelo proprietário, já vinha passando por sérias
reformulações jurídicas, e até mesmo sua extinção foi preconizada do cenário nacional, na
década de 1940.
Foi para resguardar o pleno domínio da propriedade por todo o tempo, que o Senhor
Pedro Jerônimo fez uso da enfiteuse. A venda do domínio útil não implicaria na perda do
direito da propriedade. Mas, os moradores, em seu cotidiano, falam e entendem sua obrigação
contratual como aforamento, e não arrendamento
.
Olha, na época eu comprei, por sinal, mais de um terreno, porque na época ele tinha
um cidadão que chamava Otávio, que ele era o corretor que vendia [...] O corretor do
imóvel, ele vendia os terrenos de aforamento. E eu comprei um terreno e fui
pagando pra ele, só que ele não dava o dinheiro. Ele não passou pro Pedro Jerônimo,
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A enfiteuse, enquanto instrumento jurídico, estava presente em várias localidades brasileiras, principalmente
em conjunturas de urbanização, provocando sérios impasses. “Com a decadência da economia agroexportadora,
já a partir de 1940, há enorme migração rural-urbana e, conseqüentemente, enorme demanda de moradia (em
1940, a cidade de Salvador tinha 393 mil habitantes; em 1950, passa a contar com 417 mil). Até então
predominava, no sistema habitacional, o aforamento de terras e o aluguel de casas, principalmente para as
camadas de renda média e baixa que ocupavam os cortiços nas áreas centrais degradadas. A cidade herdara uma
estrutura fundiária peculiar, com o solo nas mãos de poucos grandes proprietários e sob um sistema jurídico
arcaico, a enfiteuse, que bloqueava o mercado de terras” (GORDILHO apud PASTERNAK, 2008, p. 77). Na
exposição de motivos sobre a abolição da enfiteuse, publicada no Jornal Oficial do Município de Itabuna, em 16
de fevereiro de 1944, sem paginação, o Deputado Gurgel do Amaral, assim se manifestou: “Acresce a
circunstância agravante de que essa sobrevivência feudal, além de significar, em muitos casos, a exploração do
lavrador, que nunca consegue ser proprietário da gleba que trabalha e valoriza com seu esforço – se encontra em
grandes capitais como o Rio, Recife e Niterói, para citar os exemplos mais conhecidos, convindo lembrar
também Petrópolis, onde toda ou quase toda a cidade paga foro secularmente a uma só família – a Família
Imperial. Ademais, o projeto que cogita da extinção da enfiteuse, procura sanar grave irregularidade, encontrada
em quase todo território nacional e máxime nesta capital e em Niterói de subenfiteuse”. “[...] esses entre os casos
raros e, entre os que se encontram com assustadora freqüência, os esdrúxulos arrendamentos que assumem
caráter de perpetuidade e envolvem os outros requisitos caracterizadores da enfiteuse [...]” (LOPES, 1956, p. 72-
73). Até a Prefeitura de Itabuna aforou terrenos. A Lei n° 272, de 7 de novembro de 1956, autorizava o Poder
Executivo a vender, aforar ou arrendar terrenos do patrimônio municipal, doados pela Lei Estadual n° 692, de 13
de setembro de 1956 (Jornal Oficial do Município de Itabuna, publicado em 10 de novembro de 1956).