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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Eduardo Antonio Estevam Santos
SÃO PEDRO: Foreiros ou arrendatários?
A lei e a experiência social na formação urbana da cidade de
Itabuna (1967-2002)
MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL
SÃO PAULO
2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP
Eduardo Antonio Estevam Santos
SÃO PEDRO: Foreiros ou arrendatários?
A lei e a experiência social na formação urbana da cidade de
Itabuna (1967-2002)
MESTRADO EM HISTÓRIA SOCIAL
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção do título de
Mestre em História Social, sob a orientação da
Prof.ª Dr.ª Heloísa de Faria Cruz.
SÃO PAULO
2009
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Banca Examinadora
__________________________________________________
__________________________________________________
__________________________________________________
Ao meu pai Francisco dos Santos, em memória.
A todos os moradores e moradoras do São Pedro, que, com suas narrativas,
contribuíram como peças fundamentais para esta dissertação. Pessoas simples e
humildes, que viveram e vivem a experiência de morar em um espaço repleto de
ambiguidades e ilegalidades de toda ordem. Por tudo isso, procuramos restituí-los
com o que descobrimos. São eles: Francisco Estevam Santos, Domingos Barbosa
dos Santos, Domingos Lourenço dos Santos, Germínio Cardoso dos Santos, Josefa
Emília Varjão, Laudelino Barbosa, Maria Albertina Santos, Paulino Bispo dos
Santos, Raimunda Alves Biano, Raimundo Bispo dos Santos, Raimundo Brito dos
Santos, Raimundo França dos Santos, Sebastião da Silva Santos, Vera Lúcia,
Manuel Raimundo Silva Santos, Alzira Maria e “Seu” Antonio “Bizunga”.
AGRADECIMENTOS
A minha gratidão:
À Prof.ª Dr.ª Heloísa de Faria Cruz, pela orientação em geral, pelas leituras específicas
e pelas críticas e discussões que resultaram neste estudo.
À minha companheira, pela paciência, apoio e sugestões.
Às professoras Maria do Rosário e Yvone Dias Avelino, pelas colocações pertinentes
realizadas na banca de Qualificação.
À colaboração discursiva do advogado Leonício José G. Santo, no campo do Direito.
Aos entrevistados que não residem no São Pedro: Prof.ª Junice, Osias Ernesto Lopes,
Everaldo Anunciação Farias e Leonício José G. Santo.
Aos meus colegas de turma, Jonas Rodrigues de Moraes e Elias Vera, pelo apoio,
incentivo e contribuições metodológicas.
À Fundação Ford, pela bolsa de estudos.
“Sua pesquisa não deve ser só mais uma pesquisa, sua pesquisa
deve estar relacionada à sua vida, à sua prática.”
(ANNA RACHEL MACHADO)
RESUMO
Nesta dissertação, analisam-se as narrativas de sujeitos que imprimiram um significado
diferente ao contrato jurídico que estabelecia as condições de posse e morada. Os significados
e as experiências sociais de vida foram analisados sob a ótica dos estudos culturais, corrente
historiográfica heterogênea em suas abordagens, mas que centraram nos sujeitos os sentidos
de suas ações e não nas estruturas. Este estudo tem sua baliza inicial em 1967, quando teve
início o loteamento São Pedro e as primeiras ocupações, e o seu desfecho em 2002, quando,
pela primeira vez, a Associação de Moradores organiza um seminário para discutir o fim do
aforamento. Dentro dos marcos da ilegalidade urbana, esses sujeitos edificaram suas casas,
dotaram o espaço de significado social e deram os passos (mutirão) fundamentais para a
urbanização do bairro. O trabalho discute, também, o poder e os limites da lei frente às ações
políticas dos agentes privados e do próprio Poder Público, que é o agente formulador de leis e
árbitro dos conflitos fundiários. Por meio da história oral, articula as impressões,
interpretações e sentidos do aforamento na experiência de moradia e na constituição do bairro
São Pedro. Analisa, ainda, a importância da história oral como instrumento de mudança, uma
vez que os depoimentos orais foram peças imprescindíveis para a publicação dos decretos que
proibiram a cobrança do foro.
Palavras-chave: Aforamento. Experiência. Cultura. Leis. História oral.
ABSTRACT
This dissertation analyzes the narratives of subjects who printed a different meaning to the
juridical contract that established the legal conditions for possession and housing. The
meanings and experiences of social life were analyzed from the cultural studies perspective,
historiographic current heterogeneous in their approaches, but it focused on the subject the
senses of their actions rather than it structures. It has its initial goal in 1967 when was created
the São Pedro settlement and the first occupations, and outcome in 2002, when, by the first
time, the association of people organized a seminar to discuss the end of Renting. Within the
framework of urban illegality, these individuals built their homes, provided the area of social
significance and gave the steps to urbanize the district. This study also discusses the power
and limits of the law against the political action of private agents and public power which is
the official laws formulator and arbiter of the land conflicts. Through oral history, it
articulates impressions, interpretations and meanings of Renting on the experience of housing
and the constitution of the São Pedro district. It also examines the importance of oral history
as an instrument of change, since the oral parts were essential to the decrees publication that
banned the collection of the forum.
Keywords: Renting. Experience. Culture. Law. Oral history.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
AATR Associação dos Advogados dos Trabalhadores Rurais
BNH Banco Nacional da Habitação
CEPLAC Comissão Executiva para o Plano da Lavoura Cacaueira
CIMI Conselho Indigenista Missionário
Coelba Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia
CUT Central Única dos Trabalhadores
FASE Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INCRA Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IPTU Imposto Predial e Territorial Urbano
MNU Movimento Negro Unificado
MST Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
NAIR Nova Escola Jurídica Brasileira
NEP Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos Humanos
PC do B Partido Comunista do Brasil
PLANARQ Planejamento Ambiental e Arquitetura Ltda.
PMN Partido da Mobilização Nacional
PT Partido dos Trabalhadores
PTB Partido Trabalhista Brasileiro
SFH Sistema Financeiro da Habitação
SPU Secretaria de Patrimônio da União
UDR União Democrática Ruralista
UESC Universidade Estadual de Santa Cruz
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................... 10
1 A TRANSFORMAÇÃO DE UM TERRITÓRIO RURAL EM URBANO ...................24
1.1 A linguagem como expressão da consciência: Arrendamento ou aforamento? ......40
2 AS EXPERIÊNCIAS DE MORADIA E AS AÇÕES EM COMUM ............................. 53
2.1 Rede de solidariedade: A enchente, a escola e a igreja ............................................. 73
2.2 Aqui é meu lugar .......................................................................................................... 82
3 LEGALIDADE E ILEGALIDADE FUNDIÁRIA URBANA: UM CONFLITO
POLÍTICO .......................................................................................................................... 86
3.1 A posse e o direito de propriedade ........................................................................... 103
CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................................. 111
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 116
FONTES ............................................................................................................................... 122
ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS ................................................................................ 126
10
INTRODUÇÃO
Agosto do ano de 2002, manhã de domingo, saio de casa em direção a mais uma
reunião política. No percurso até a reunião, encontro senhoras caminhando para a feira livre,
senhores com a camisa no ombro a papear na esquina e nos bares, e uma pequena multidão
que, como eu, se dirige para o Sítio do Menor Trabalhador, local do evento.
Durante a semana, um carro de som havia conclamado os moradores do bairro São
Pedro a participarem de um seminário para discutir a legalidade ou não do pagamento do foro
cobrado nos lotes do bairro
1
. No local do evento, uma área destinada à alimentação das
crianças, tem início a reunião política, na qual senhores, senhoras, jovens e algumas crianças
de colo acomodam-se para ouvir e opinar sobre a cobrança do aforamento.
Organizado pela Associação dos Moradores, o seminário contou com a presença de
um advogado e de lideranças
2
do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra), do
CIMI (Conselho Indigenista Missionário) e da FASE (Federação de Órgãos para Assistência
Social e Educacional). Sendo morador do bairro, membro do movimento negro Ação Negra,
estudante universitário, irmão do organizador do seminário, e sensível aos problemas políticos
do bairro, fui convidado a participar do evento, para contribuir com os meus recém-adquiridos
conhecimentos históricos.
No desenvolvimento da reunião, dentre as várias questões abordadas relativas à atual
situação dos moradores, destacou-se a proposta de não pagamento do foro dos lotes que
compõem o bairro São Pedro, e indagou-se sobre a legalidade dos títulos de propriedade
daquelas terras, levantando-se a hipótese de as mesmas serem terras devolutas, que foram
apropriadas ilegalmente por particulares.
Em meio aos discursos formais de militantes, técnicos e ativistas, e discursos dos
moradores resultantes da experiência vivenciada, os organizadores chegaram à conclusão de
que, a partir daquela data, o pagamento do foro deveria ser abolido.
1
A taxa de pagamento do contrato de aforamento é anual e sobre a posse de um bem imóvel. No caso do bairro
São Pedro, o cálculo é resultado da multiplicação da área de frente do terreno por uma taxa de R$ 6,00 (seis
reais) – valor atual. Tais valores encontram-se no laudêmio (documento que comprova o pagamento).
2
Como sinônimo de solidariedade na luta pela transformação social, é muito comum a participação ativa de
líderes de organizações que tenham experiência na luta pelo direito à terra, também pelo fato de esses líderes
comungarem a mesma agremiação partidária – o Partido dos Trabalhadores (PT).
11
O seminário nasceu da necessidade de muitos anos de luta. A luta já vinha há muitos
anos, mas não de uma forma organizada, cada um atirava pra um lado, e houve a
necessidade de um seminário pra gente detectar de onde vinha a questão pendente da
questão do aforamento. A questão pendente que eu falo e questões assim: Quem era
os donos da terra? Quando foram? De que maneira adquiriram as terras? Tudo isso
foi levantado no seminário a partir de uma perspectiva de transformação. Pra isso
nós convidamos algumas ONGs, como a FASE, para nos dar só uma orientação, não
pra dizer como seria feito, mas uma orientação. Também foi convidado o CIMI
[Conselho Indigenista Missionário] que já é uma entidade que trabalha a terra e
também o MST que tem uma história de luta, né, todas essas entidades contaram
sua história, não no mesmo dia, mas em domingos alternados [...]
3
.
É possível notar, no depoimento acima, que já existia um histórico de luta, mas sem
sistematização, ou seja, sem uma continuidade progressiva, pois “cada um atirava pra um
lado”.
O seminário não surtiu o efeito esperado. Até hoje, os moradores continuam a cumprir
o que julgam uma obrigação.
Naquele momento, as ideias sustentadas pelos militantes políticos, que indicavam que
aquelas terras seriam terras devolutas, apropriadas ilegalmente, transformaram-se, para mim,
em hipóteses, tornando-se a questão central que me motivou a realizar um estudo sobre o
loteamento São Pedro. A permanência do pagamento do “foro” também me intrigava.
Em 2003, ao ingressar no Curso de Especialização em História Regional da
Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), propus uma pesquisa intitulada “São Pedro: De
terras devolutas a terrenos aforados”. O aforamento não se constituía o foco da minha
problemática, mas passou a ser quando procurei entender o sentido e a permanência desse
instituto, o que me direcionou a buscar respostas nas experiências sociais vividas pelos
moradores, transformando o estudo em projeto de Mestrado, agora sim com foco no
aforamento.
O locus da pesquisa é o meu lugar de nascimento e trajetória de vida. Meus pais
chegaram em 1969, estabeleceram-se nesse lugar e, até o presente momento, continuam
moradores do São Pedro, permitindo-me algumas observações a respeito da cultura popular,
com uma visão por dentro, não no sentido da observação-participante (enquanto método de
pesquisa), mas de sentir de maneira irresistível a experiência de viver neste território. Talvez
isso tenha sido o que me fez entender melhor todas as conjecturas que se apresentam nesta
pesquisa, por meio desse amplo “guarda-chuva” chamado cultura.
3
Francisco Estevam Santos, 41 anos, mais conhecido como “Chico”. Fundador do Núcleo do Partido dos
Trabalhadores no bairro, participou da coordenação da Associação dos Moradores, em cinco gestões. Entrevista
concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
12
Ao estudar o loteamento São Pedro, a constatação de que, apesar da proposta da
reunião, os moradores continuavam com o pagamento, conduziu-me a colocar outras questões
e a buscar aprofundar minha pesquisa, levando em consideração a experiência dos habitantes
do local. Pude perceber a existência de um hiato, uma contradição, uma distância entre as
formas discursivas dos organizadores e a experiência dos moradores, que parecia explicar a
permanência do pagamento. O desenvolvimento da pesquisa me fez propor que o que está no
meio desse embate são as experiências sociais vividas e uma consciência oriunda de tal
prática, o que não foi levado em conta pelos organizadores daquela reunião.
Questão intrigante a ser explorada é a permanência da referência ao foro e ao
aforamento na prática dos moradores. Vale indicar que o termo que aparece no “contrato”
firmado e estabelecido entre o loteador e os moradores de São Pedro, que se entendem como
foreiros, é arrendamento, e não aforamento.
A pesquisa aponta que o termo aforamento, embora presente e arraigado no cotidiano
e na linguagem dos moradores, não consta dos documentos contratuais e, para o loteador, a
forma empregada para alugar terrenos para efeito de moradia foi por meio do termo jurídico
arrendamento. Esta é a primeira contradição. Tal fato me alertou que essa situação só pode ser
compreendida quando se historiciza o processo vivenciado por esses sujeitos. A questão não
era apenas jurídica, envolvia elementos culturais definidores e caracterizadores das práticas
dos moradores.
O termo aforamento, que se refere ao pagamento de uma taxa anual sobre a posse de
um bem imóvel, não é socialmente popular no meio urbano. Sua tradicional implementação
ocorre no meio rural, sendo também um instrumento jurídico em desuso, o que o faz soar
estranho aos citadinos, e até mesmo no meio acadêmico, onde tive que explicar reiteradas
vezes do que se tratava. O pagamento do foro nos dias atuais e em centros urbanos parece ser
paradoxal, e talvez resida, aí, tamanho estranhamento.
De acordo com o Código Civil de 1916, a enfiteuse ou aforamento constitui-se como
um “direito real sobre a coisa alheia, que autoriza o enfiteuta
4
a exercer sobre coisa imóvel
alheia todos os poderes do domínio mediante pagamento, ao senhorio direto, de uma renda
anual” (BRASIL, 1989, artigo 678). Sendo que o contrato de enfiteuse por tempo limitado
considera-se arrendamento, e, de forma perpétua, aforamento.
4
Pessoa que tem ou recebe por enfiteuse o domínio útil de um imóvel.
13
Na história do Brasil, o aforamento enquanto instrumento jurídico possibilitou a
formação e a expansão do espaço urbano
5
. Foi, na verdade, uma iniciativa de particulares e
nem sempre de interesse público. Os agentes foram a Igreja (através de ordens religiosas) e
particulares diversos.
Os primeiros moradores-ocupantes, formadores do bairro, muitos dos quais
permanecem até hoje, tinham a posse e não a propriedade plena dos lotes; sendo assim,
tinham a disponibilidade de uso, mas não o domínio pleno sobre os terrenos. um hiato
entre a lei e a prática social, que se traduz na manutenção de relações de exploração.
No bairro São Pedro, a propriedade é uma abstração, e a posse, uma realidade. As
manipulações flagrantes dos setores hegemônicos em Itabuna permitiram a permanência da
posse frente às mudanças constitucionais. No próprio contrato estabelecido entre o loteador e
os foreiros, o que se firma é o direito à posse
6
. Uma posse de caráter ambíguo e conflitivo.
Como indica a fala do “Seu” Raimundo Brito, a seguir transcrita, a instabilidade e a
insegurança dos moradores residem, basicamente, na ausência do direito de propriedade:
Eu vendo a benfeitoria. Eu não posso vender o terreno. Nem eu e nem ninguém. Por
enquanto aqui, que eu saiba, ninguém tem a escritura desses terrenos. Agora eu,
conversando com o Bastião, pouco tempo, até depois eu quero saber com
detalhes, se ele já pode agora, com tudo isso, se podem vender o terreno porque até
pouco tempo eles não podiam vender esse terreno
7
.
O bairro São Pedro tem uma formação recente, tendo em vista o surgimento da
maioria dos bairros de Itabuna, que datam do início do século XX. O município de Itabuna
situa-se ao sul do estado da Bahia, região que, até a década de 1960, era responsável por 60%
(sessenta por cento) de toda a arrecadação estadual.
Caracterizado pela lavoura do cacau, o município foi, no final do século XIX, palco de
uma corrida desenfreada pelos “frutos de ouro”, movimentação que provocou um crescimento
econômico, político e, principalmente, populacional, em um breve espaço de tempo.
5
A introdução do pagamento do foro (de forma aberta e clara, uma vez que, no primeiro momento, camuflava-se
no dízimo e, depois, desaparecia completamente da finalidade religiosa) ocorreu no sentido de aumentar o
controle e dinamizar a situação das apropriações. “Alterava, portanto, uma das características básicas do sistema
sesmarial, a gratuidade” (SILVA, L., 1996, p. 48).
6
Uma das condições do arrendamento no São Pedro é de que o arrendatário perderá o direito de posse no caso
de, até o vencimento, não ter construído ou efetuado novo pagamento.
7
Raimundo Brito dos Santos, 75 anos, carpinteiro, morador da região 38 anos. Entrevista concedida ao autor,
em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
14
Aos poucos, as terras começaram a ficar indisponíveis, originando conflitos pela
posse. “A terra adubada com sangue”
8
é uma metáfora perfeita para retratar os conflitos de
interesses agrários. O mandonismo e o coronelismo na região foram elementos políticos que
enfraqueceram a Justiça enquanto instituição legitimadora na resolução de conflitos.
No período compreendido entre 1890 e 1950, a cidade de Itabuna constituiu-se como
um grande centro urbano e produtor de cacau. Tal processo ganhou visibilidade, com a alta
densidade demográfica provocada pela imigração e pelas instalações de empresas locais e
estrangeiras para comercialização do cacau, e de sedes de órgãos públicos e estatais de
políticas agrícolas, tais como o Instituto de Cacau da Bahia, o Conselho Nacional dos
Produtores de Cacau e a Comissão Executiva para o Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac).
Sob os efeitos do processo de urbanização iniciado na década de 1940, a cidade de
Itabuna apresentou o surgimento de novos bairros. Foi uma urbanização expansionista,
concentradora de poder e de renda, gerando mais condições precárias de vida do que um
desenvolvimento integrador e equalizador das diferenças sociais. A sociedade itabunense
presenciou mudanças quantitativas, o que não se traduziu em aspectos qualitativos para os
grupos sociais dependentes de uma política habitacional efetiva.
Nacionalmente, em 1964, foi criado o Banco Nacional da Habitação (BNH), para
corrigir os efeitos (favelização) da urbanização e para promover habitações de interesse social
para as camadas da população de baixa renda. Ermínia Maricato (2000), ao analisar o
mercado habitacional e a intervenção estatal nesse processo, permite-nos constatar que os
mais pobres, devido ao seu baixo poder aquisitivo, estavam excluídos não do mercado
assim como dos projetos estatais de construção de casas.
É interessante notar que o mercado habitacional brasileiro, quando mais cresceu,
impulsionado pelo sistema SFH/BNH, esteve longe de constituir um mercado
capitalista concorrencial. Ele foi marcado por forte participação estatal. Inúmeros
estudos mostram como o mercado privado se apropriou da maior parcela do subsídio
habitacional favorecendo as classes médias urbanas e, até mesmo, participando de
sua consolidação, a qual cumpriu papel fundamental como apoio político ao regime
militar (MARICATO, 2000, p. 162).
Em 1972, a Prefeitura Municipal assumiu obrigações perante o Banco Nacional da
Habitação, na forma de contratos de financiamentos para a construção de unidades
residenciais. As condições de financiamento oferecidas não atingiram as classes baixas, o que,
em Itabuna, favorecia os loteamentos ilegais.
8
Essa frase constitui o prólogo da obra de Jorge Amado intitulada “Terras do Sem Fim”. Rio de Janeiro: Record,
1981.
15
Enquanto isso, o discurso oficial do prefeito e médico Simão Lecht Fiterman, falava
em melhoramentos:
Atualmente, tem-se procurado melhorar cada vez mais o aspecto da capital do cacau,
realizando obras de envergadura, como serviços de esgoto, calçamentos, meio-fio e
jardins. As obras de saneamento básico são aceleradas, construindo-se pontes,
abrindo-se ruas, alargando-se e encascalhando-se outras, principalmente no bairro
São Caetano
9
.
Itabuna nunca passou por grandes reformas urbanas. Os territórios eleitos para a
realização de obras eram os legalizados e habitados pela elite. Do loteamento irregular a
urbanização precária, o São Pedro nunca passou por um conjunto de ões urbanísticas da
envergadura do São Caetano. Para o governo municipal, o São Caetano devido sua
localização, era mais preemente para o embelezamento da capital do cacau.
O loteamento que deu origem ao bairro de São Pedro é formado na década de 1960.
Entre os anos de 1964 e 1967, o Senhor Pedro Carvalho Neves foi constituindo o seu
patrimônio territorial com fazendas. As terras do São Pedro foram adquiridas para se
constituir um loteamento popular, com terras que pertenciam, originalmente, ao produtor de
cacau Nicodemos Barreto. Parte das propriedades permaneceu em atividades agrícolas, e
outro conjunto foi destinado a loteamento popular, que, anos mais tarde, formou os bairros
São Pedro, Zizo e Pedro Jerônimo, todos atualmente sob a administração da sociedade
imobiliária Pedro Carvalho Neves, a qual é responsável pela cobrança dos foros sobre os
terrenos.
O São Pedro tem seus primeiros núcleos populacionais a partir de 1967. Vários fatores
explicam a migração para aquela localidade: ausência de uma política habitacional, o preço
dos aluguéis, e a enchente de 1967. Conforme o depoimento do “Seu” Sebastião: “[...] Em 67,
começamos a arrendar terrenos. Em 67, houve uma enchente, e daí começou a migração desse
povo do centro pra cá”
10
.
A prática de comercializarem-se terrenos destinados à moradia popular através da
cobrança do foro se tornou corrente e, aos poucos, se configurou socialmente a periferia da
cidade. E assim, nessas condições, “o barraco miserável prosperava, transformando-se pouco
9
Jornal Oficial do Município de Itabuna, publicado em 29 de julho de 1972, sem paginação.
10
Sebastião da Silva Santos, 70 anos, funcionário público aposentado, trabalhou para o Senhor Pedro Carvalho
Neves como agente arrecadador dos aforamentos durante os dez anos iniciais do loteamento popular. Entrevista
concedida ao autor, em maio de 2007 e em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para a realização
deste estudo.
16
a pouco numa casinha, as ruas acabavam sendo calçadas, um bairro popular nascia dentro da
cidade” (QUEIRÓS, 1978, p. 214).
O perfil cartográfico da cidade ganhou novos contornos a partir da política do
aforamento, que expandiu o perímetro urbano com o surgimento de bairros periféricos
situados nos limites entre o rural e o urbano. O aforamento foi um mecanismo profícuo para a
expansão urbana. Expansão desordenada e sem o mínimo de planejamento, em áreas de
fronteira entre o meio rural e o urbano.
Essa nova conjuntura não foi impulsionada apenas por fatores econômicos (assim
como a existência de uma legislação inócua), mas envolveu, também, diferentes sujeitos com
o desejo último de morar em uma casa e de ter um espaço próprio. A moradia era um
problema político-social intrínseco à urbanização que afetava milhares de pessoas em
condições sócio-econômicas desfavoráveis.
Uma das motivações para a realização deste estudo é, obviamente, resultado da minha
vivência no bairro
11
. A rua era a fração do espaço onde os laços de solidariedade se
afirmavam, onde a vida cotidiana individual tornava-se coletiva. Lembro-me de que, entre os
10 e 12 anos, nos primeiros anos da década de 1980, aos domingos, realizavam-se mutirões
para a instalação da rede de esgoto. Na Santa Maria, fazia-se feijoada, os adultos comiam
acompanhados da caipirinha, ao som de muita música (reggae) vinda da aparelhagem de som
que o Fio
12
, bem cedo, instalava na porta de sua casa. O som alto, a comida disponibilizada
ao coletivo e a interatividade faziam da urbanização uma festa.
Em dezembro de 1995, com a publicação do Decreto-lei Municipal 5.036,
considerou-se ilegal o loteamento São Pedro, pois não obedecia à legislação pertinente para
sua implantação (Lei Federal n° 6.766, de 19 de dezembro de 1979, e Lei Municipal n° 1.324,
de 20 de dezembro de 1984).
No loteamento São Pedro, constatamos que a prática da cobrança do foro sempre foi
intermitente, desde o nascimento do bairro até os dias atuais, mesmo com as reformulações
jurídicas que sofreu. Desta forma, permaneceu letra morta a lei que proibia tal pagamento
(Decreto-lei Municipal n° 5.036/1995).
Com a proliferação dos loteamentos, sua manutenção com a cobrança do foro, e as leis
recentes de ordenamento das terras urbanas, a ilegalidade urbana deixou de ser apenas um
problema de ordem jurídico-urbanística para tornar-se uma questão social que envolve todos
11
Hoje, tenho 34 anos, e minhas lembranças, comparadas às dos entrevistados, são muito recentes, mas me
permitem compartilhar com os demais.
12
Morador da Rua Santa Maria, a mesma em que residi tempos atrás.
17
os habitantes de uma cidade. Reflexo de uma sociedade contraditória e de interesses
conflitantes, a ilegalidade urbana tende a manter e regularizar privilégios infraestruturais e, ao
mesmo tempo, proliferar favelas sem a mínima condição humana de vida.
Raquel Rolnik sintetiza, de forma esclarecedora, as contradições da legislação e as
formas como são interpretadas as leis, citando Antonio Azuela de La Cueva:
Desse modo, não se pode falar de irregularidade como se fosse um atributo
intrínseco de um espaço urbano, como é sua topografia ou a composição de seu solo.
Não somente porque existem, na própria ordem jurídico-urbanística, muitos tipos de
irregularidade, mas também porque as normas jurídicas podem ter, na prática,
diferentes significados para os atores sociais, dependendo das condições políticas e
culturais prevalecentes (CUEVA apud ROLNIK, 1997, p. 182)
13
.
Diante desse cenário, o presente trabalho ampara-se nos avanços dos estudos
reflexivos da História Social e do Direito, entendendo que a conquista de direitos é produto
social e resultado de ritmos de processos sociais (LARA; MENDONÇA, 2006).
Nesta pesquisa sobre a experiência social de moradia em terrenos “aforados”,
pretende-se refletir sobre as interpretações na linguagem que os moradores atribuíram ao
regime jurídico empregado (arrendamento), e as irregularidades frente à ordem jurídico-
urbanística. Tudo isso, tendo em vista os modos de vida dos sujeitos envolvidos, seus
costumes e valores.
Perguntando sobre o significado do pagamento do foro anual, nos deparamos com os
seguintes depoimentos, ainda que heterogêneos, mas sempre convergindo para a legalidade do
pagamento, por constituir-se em uma obrigação contraída: dos que são a favor, “[...] até hoje,
o direito certo mesmo é pagar o aforamento”
14
. “Eu acho, que, quando a gente faz um
contrato, paga esse aforamento, a gente tem que cumprir com esse dever. Se lhe aforei, se
você me aluga uma casa, tem que pagar, né? Se alugo uma casa tenho que pagar, né? Eu
aforei, todo ano tenho que contribuir [...].”
15
E dos que são contra, mas continuam pagando:
13
Na obra A Cidade e a Lei: Legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo”. São Paulo:
Studio Nobel/Fapesp, 1997, Raquel Rolnik apresenta um conjunto de leis e normas urbanas que objetivava
regular o espaço da cidade de São Paulo, durante o período de 1886 e 1936, em consonância com os processos
políticos, econômicos e sociais.
14
Raimundo Bispo dos Santos, 76 anos, pedreiro, morador 38 anos. Entrevista concedida ao autor, em
dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
15
Domingos Lourenço dos Santos, 64 anos, pedreiro e fotógrafo, morador 30 anos. Entrevista concedida ao
autor, em janeiro de 2008, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
18
“eu sou, porque o bairro não tem benfeitoria nenhuma, que jeito né, tem gente aqui que nunca
pagou um ano, mas isso eu não faço [...]”
16
.
De origem rural em sua totalidade, e provenientes de fazendas que cultivavam cacau,
os entrevistados apresentam evidências comuns quanto a “uma visão consistente tradicional
das normas e obrigações sociais”
17
.
O que os organizadores do seminário não avaliaram em sua ação radical, porém
necessária, de acabar com o pagamento compulsório do aforamento foram os elementos
morais intrinsecamente associados. Não se trata da “defesa dos direitos e costumes
tradicionais”, mas de valores que podem explicar o atual comportamento dos foreiros. Os
foreiros sabiam e têm consciência das irregularidades urbanísticas, mas não seria com o
não pagamento do foro que se poderia iniciar qualquer ação contestatória. A Associação de
Moradores fez uma campanha contrária ao pagamento sem levar em consideração os modos
de vida dos sujeitos envolvidos.
Diante da aparente contradição que a continuidade do pagamento do foro pelos
moradores mesmo após o Decreto-lei Municipal de 1995 parecia revelar, algumas questões se
colocavam. Quais foram e como explicar as diferentes posições sociais, do loteador e dos
moradores, diante de um conjunto de leis urbanísticas e civis voltadas para regularizar,
ordenar e democratizar os espaços?
Durante 43 anos se paga pela posse de uma área repleta de irregularidades, que afronta
os padrões urbanísticos e que não obedece aos preceitos jurídicos e formais do Plano Diretor,
do Código Municipal de Obras, da Lei Orgânica Municipal, dos decretos-leis e da legislação
federal. Por que toda essa legislação esteve além das condições sociais do loteamento São
Pedro, e como os sujeitos envolvidos traduziram as leis, mesmo sabendo, algumas vezes, das
irregularidades urbanísticas?
No centro da indagação, estão a discussão sobre direitos e vida cotidiana, e a discussão
sobre como, na experiência concreta dos moradores de São Pedro, as diversas leis e normas
foram vividas nas relações sociais entre os moradores e o loteador.
De caráter privado e particular, a sociedade imobiliária Pedro Jerônimo deveria
oferecer uma maior infraestrutura para o bairro. A infraestrutura que o bairro recebeu não foi
16
Josefa Emília Varjão, 82 anos, moradora há 40 anos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por
ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
17
A categoria Economia Moral foi apresentada pela primeira vez no meio acadêmico por Edward Palmer
Thompson. Esse termo bastante polissêmico pode ser redefinido caso seja estendido a outro contexto, como
salienta o autor. Resumidamente, podemos entender a Economia Moral como “uma visão consistente tradicional
das normas e obrigações sociais, das funções econômicas peculiares a vários grupos na comunidade, as quais,
consideradas em conjunto, podemos dizer que constituem a economia moral dos pobres” (THOMPSON, E.,
1998, p. 152).
19
da empresa administradora dos lotes, e sim, do Poder Público municipal e da luta e
solidariedade (mutirão) dos moradores
18
. E as formas de participação do Poder Público
municipal são sempre controversas, como salienta o Manual de Regularização da Terra e
Moradia (2002, p. 19)
19
:
Dessa forma o poder público estabelece uma base política popular, de natureza
quase sempre clientelista, uma vez que os investimentos são levados às comunidades
como “favores” do poder público. As comunidades são assim convertidas em reféns,
eternamente devedoras de quem as “protegeu” ou “olhou pra elas”. Essa tem sido
uma das grandes moedas de troca nas contabilidades eleitorais, fonte de sustentação
popular de inúmeros governos.
Dessa forma, projeta-se a afirmação da democracia para um futuro longínquo,
impossibilitando os sujeitos envolvidos de exercerem sua cidadania plena.
Diante desse cenário, a presente pesquisa sobre o aforamento no bairro São Pedro
tenta analisar as práticas em torno da luta por direitos em um universo mais amplo, e situa o
Direito como campo de lutas e contradições.
Importa problematizar como, em seu cotidiano, sujeitos que não se encontram nos
registros oficiais interpretavam a política do aforamento e reagiam na luta por Justiça.
Aparentemente, todo o processo de luta pelo fim do aforamento poderia encerrar-se com a
abertura de um processo judicial. As distâncias entre as leis que regulam o espaço urbano e
suas formas de aplicação e uso são exemplos a serem apontados na história da apropriação
espacial dessa localidade.
O recorte temporal deste estudo justifica-se devido ao início dos processos de
transformação das fazendas em loteamentos, na década de 1960, permitindo o surgimento de
vários bairros populares, tais como o Zizo, Maria Pinheiro, Pedro Jerônimo, Fonseca, Parque
Boa Vista e Banco Raso, todos ainda hoje sob o regime jurídico do “aforamento”. Na década
de 1990, com a emergência de novos atores políticos e o resultado das pressões das
Associações de Moradores, é editado um conjunto de leis declarando ilegais os loteamentos
irregulares e o pagamento do foro.
18
Hoje, o bairro apresenta uma população de 6.155 habitantes, segundo os dados da Secretaria Municipal de
Saúde (o IBGE não apresenta dados específicos sobre o bairro). Toda a base cadastral foi realizada a partir das
consultas e visitas domiciliares dos agentes de saúde, através da Unidade de Saúde Simão Fitterman integrada ao
Sistema (Nacional) de Informação de Atenção Básica do Ministério da Saúde (SECRETARIA MUNICIPAL DE
SAÚDE DE ITABUNA, 2008).
19
Publicado pela Caixa Econômica Federal, este manual explicativo, elaborado por advogados, arquitetos,
urbanistas, procuradores e professores, objetiva informar aos líderes comunitários, presidentes de Associações de
Moradores, assim como a população em geral, a respeito da regularização fundiária; tudo em vista à aprovação
em 10 de julho de 2001, do Estatuto da Cidade.
20
Entre os anos de 1967 e 1979, não registros oficiais a respeito do loteamento São
Pedro. Para o Poder Público municipal, o loteamento não existia. As intervenções urbanísticas
no São Pedro começam a partir de 1979. As únicas fontes possíveis para o resgate da
história inicial do São Pedro foram os depoimentos orais e os documentos que os moradores
apresentaram. Através dos depoimentos orais, percebe-se que elementos simbólicos e
materiais constitutivos da linguagem apresentam-se de forma avessa aos postulados oficiais.
A historicidade desses sujeitos históricos poderia ser resgatada através da história oral. O
roteiro das entrevistas orais foi devidamente voltado, então, para captar a experiência social
de sujeitos na formação socioespacial do bairro São Pedro.
O uso constante dos pronomes de tratamento “Seu” e “Dona” estão relacionados ao
grau de proximidade e à vivência dos depoentes com o pesquisador: “[...] e os moradores se
reuniram quando pedia, por causa do seu pai mesmo [...]”; “teve um caso que aquela mulher
que mora perto de vocês [...]”. Tal aproximação gerou muitas receptividades e alguns receios.
O envolvimento do meu irmão mais velho, “Chico”, nas lutas contra o aforamento, fez-me
precisar bastante para os depoentes temerosos o caráter da entrevista e a que se destinava, pois
existe um conflito entre parte dos moradores e o loteador.
Para Alessandro Portelli (apud MONTENEGRO, 2007, p. 31):
La historia oral no es el lugar em donde la clase obrera hable por misma. La
afirmación contraria, por supuesto, no deja de tener fundamento: la narracion de
uma huelga a través de lãs palabras y memorias de los trabajadores em lugar de los
de la policía y los de la prensa dominada por la empresa ayuda obviamente (aunque
no automaticamente) a corregir una distorsión implícita en lãs fuentes tradicionales.
Por lo tanto, las fuentes orales son condición necesarias (si no suficiente) para uma
historia de lãs clases no hegemônicas
20
.
Em uma abordagem estrutural, essas experiências não seriam visíveis, se a pesquisa
percorresse os caminhos da política habitacional no modelo teórico do modo de produção
capitalista, onde tal processo seria meramente efeito das disfunções conjunturais da totalidade
capitalista brasileira, sofrendo meramente os efeitos de uma base infraestrutural. Mas optamos
por encontrar reflexões teóricas possibilitadoras de entendermos a ambiguidade e o conflito
político do aforamento na cultura.
20
Em português: A história oral não é o local onde a classe trabalhadora fala por si mesma. A afirmação
contrária, evidentemente, não deixa de ter fundamento: a narração de uma greve através das palavras e memórias
dos trabalhadores em vez das da polícia e da imprensa dominada pela empresa, obviamente, ajuda (mas não
automaticamente) a corrigir uma distorção implícita nas fontes tradicionais. Portanto, as fontes orais são
condições necessárias (se não suficientes) para uma história das classes não hegemônicas.
21
A síntese que a a Ribeiro Fenelon (2001, p. 26) faz do conceito de cultura
elaborado por Raymond Williams, ajuda-nos a problematizar o real, situando os sujeitos em
suas múltiplas dimensões:
Temos dito e repetido que queremos compreender a cultura como a maneira em que
os homens desenvolvem suas práticas sociais refletindo seus modos de viver, de
trabalhar, de morar, de morrer, de se divertir etc., isto é a cultura significando todas
as dimensões da vida, valores, sentimentos, emoções, hábitos, costumes, além da
promoção e o desenvolvimento de instituições e iniciativas do cotidiano, com todas
as formas de expressão e organização e de luta no social.
Uma história da cultura que não seja simplesmente resultado das transformações
econômicas, mas que também não seja “um modo de idéias desvinculadas das mesmas”
(O’BRIEN, 1992, p. 32).
Este trabalho tem um caráter exploratório. Baseia-se em uma documentação
fragmentada e dispersa, e tal fato evidencia, também, os problemas pertinentes às
irregularidades nos registros de imóveis, assim como os problemas arquivísticos existentes em
todo o Brasil.
Foram utilizadas fontes cartoriais (registro e cadeia sucessória da propriedade), fontes
de materiais impressos (jornais), fotografias e depoimentos orais. Os depoimentos perfizeram
um total de mais de vinte e cinco entrevistas, sendo utilizadas aqui neste estudo apenas vinte,
das quais quinze foram de moradores, duas de advogados, duas de ex-vereadores e uma de um
ex-secretário municipal.
Cada fonte obteve o rigor metodológico que lhe é pertinente e específico, mas,
sobretudo, foram entendidas enquanto produções humanas e sociais no campo das disputas e
lutas sociais.
Dentre as fontes ora citadas, duas ainda tentam ganhar o estatuto e a consolidação na
produção do conhecimento histórico, da mesma forma que o documento escrito se estabeleceu
tradicionalmente. São elas: a fotografia e as fontes orais.
A ampliação da noção de documento pelos historiadores da Escola dos Annales
possibilitou ao pesquisador do passado fazer uso da imagem (fotografia) como fonte de
análise. Analisaremos, metodologicamente, as fotografias em sua autossuficiência explicativa,
traçando analogias entre os diferentes momentos do bairro. As utilizadas como fonte de
pesquisa não são originais, de modo que se apresentam como fontes secundárias. Não sendo o
original, não foi possível “detectar em sua estrutura as características técnicas típicas da época
22
em que foi produzido”
21
, mas as reproduções contêm integralmente as informações dos
originais.
Os jornais de circulação comercial (Diário de Itabuna) e de circulação restrita (Jornal
Oficial do Município) também foram elementos constituintes do conjunto das fontes. Esses
materiais de imprensa foram entendidos não apenas como uma fonte informativa, onde se
coleta dados e informações, mas também “como força social ativa” (CRUZ; PEIXOTO, 2007,
p. 255), que expressa posições, ideologias e mitos no interior da luta social.
Este estudo apresenta três capítulos interligados por um fio condutor que é a
experiência de vida em um loteamento aforado. Tentaremos exaurir ao máximo as fontes
escritas, as fotografias e as narrativas dos sujeitos envolvidos, articulando-as aos contextos e
processos históricos pertinentes, e relacionando-as com os teóricos que entendem os
fenômenos sociais em suas dimensões políticas, econômicas, sociais e culturais, sem
determinismos e relações causais.
No primeiro capítulo, serão apresentadas e discutidas a visão e a percepção que os
moradores têm da formação inicial do loteamento São Pedro e do conflito campo-cidade na
dimensão do “aforamento”. Sob o título “A transformação de um território rural em
urbano: A formação de São Pedro como uma das experiências de constituição da
periferia fora da legalidade urbana de Itabuna”, buscaremos, neste capítulo, acompanhar o
movimento histórico que vai do loteamento ao bairro, do rural ao urbano, destacando as ações
dos moradores que permitiram mudar a configuração jurídica de loteamento para bairro,
através da linguagem do “aforamento”.
Neste particular, a intenção também é a de problematizar as condições contratuais, o
sentido jurídico do aforamento e do arrendamento como definido por lei, e sua apreensão no
universo da experiência social daqueles moradores. Aqui, interessa indagar sobre a força
social e representativa do “aforamento” na linguagem empregada pelos moradores e suas
articulações à permanência do pagamento do “foro”, mesmo frente a uma série de
determinações legislativas contrárias à cobrança.
No segundo capítulo, intitulado “As experiências de moradia e as ações em
comum”, procuraremos evidenciar as tensões e os sentimentos explicitados pelos agentes
sociais em suas narrativas de suas lutas para a construção de moradas e de condições
infraestruturais para o bairro. A solidariedade de grupo, tão presente, tão forte, e ao mesmo
tempo necessária, como se estabeleceu? Como se deu esta experiência social? Serão
21
Para uma análise profunda sobre o uso da fotografia enquanto documento histórico, ver KOSSOY (2001, p.
40).
23
analisadas a enchente de 1967 e suas implicações sociais, bem como a participação da Igreja
Católica e das Irmãs da Reparação, a primeira como espaço de reuniões e decisões políticas, e
a segunda pela criação de um fundo de financiamento público para os moradores construírem
suas casas.
Este capítulo ainda apanhará as imagens das aberturas de ruas, das ações de protesto
dos populares, dos comícios político-partidários, das construções de casas, da igreja, da
escola, assim como os momentos festivos e recreativos. Serão problematizados e refletidos, a
partir da memória materializada (fotografia), a experiência e o trajeto de vida dos moradores.
“Legalidade e ilegalidade fundiária urbana: Um conflito político” é o título do
terceiro e último capítulo. Qual o sentido de uma legislação procedente, mas que estava além
da realidade urbanística itabunense? Por que os decretos não mudaram a realidade? Por que
ainda permanece o pagamento do foro? Diante desses questionamentos, neste capítulo, será
analisada, por fim, por meio de depoimentos orais, a interpretação jurídica dos advogados
envolvidos com essa problemática e dos agentes públicos (Secretário Municipal e
Procurador), que também absorveram a linguagem do “aforamento” e o entenderam enquanto
tal.
24
1 A TRANSFORMAÇÃO DE UM TERRITÓRIO RURAL EM URBANO
“O lugar era feio.”
(“Dona” Olga, moradora do São Pedro)
Neste primeiro capítulo, procuramos analisar o loteamento São Pedro como uma das
experiências de constituição da periferia fora da legalidade urbana da cidade de Itabuna e o
seu processo de transição para um bairro urbano, transição inconclusa e complexa que ainda
faz persistir, na memória dos moradores, a ideia de um bairro rural. Apresentamos, ainda, a
trajetória de sujeitos que, ao se sedentarizarem no loteamento São Pedro, imprimiram na
linguagem uma interpretação radicalmente diferente do estabelecido em suas bases
contratuais, o que lhes possibilitou viver nesse espaço.
Dos quinze entrevistados, todos moradores desde os anos iniciais do loteamento, com
uma média de 40 anos de residência no São Pedro, 90% (noventa por cento) eram migrantes.
Evidencia-se em suas memórias a escolha de Itabuna para moradia-trabalho por uma visão
estritamente oriunda da necessidade. Necessidade de emprego, de sair do aluguel e de
construir suas moradas em bases sólidas.
A proeminência econômica da cidade, tornando-se o centro de comercialização de
cacau, reforçada por suas representações de “capital do cacau”, “terras do fruto de ouro” ou
“civilização do cacau”, foram os fatores condicionantes para tais pessoas se estabelecerem
nesse lugar. A descoberta do mercado de venda de lotes, os quais, na periferia da cidade,
configuraram-se como terrenos aforados, foi a possibilidade-chave para a construção de suas
casas.
O loteamento, tido tecnicamente como parcelamento do solo, concebido e idealizado
em pranchetas, ou seja, previamente planejado, possui uma função estrutural nas cidades. A
sua normatização e a fiscalização pelo Poder Público permitem democratizar os espaços,
tornando-os habitáveis e contemplando o direito à cidade para todos. No São Pedro, o caráter
funcional e os seus preceitos legislativos estavam distantes da realidade, e o que se configurou
como loteamento São Pedro fazia parte da cidade ilegal.
1967. Aqui começa a história de um loteamento que deu origem a um bairro e
aumentou o perímetro urbano da cidade de Itabuna, mas que não se limitou apenas aos
aspectos físicos. Os migrantes, por questões de opção (ou pela sua falta) de renda, de
25
segurança, de comodidade, ou ainda, voluntariamente, formaram e se formaram naquele
território, ou seja, parte de suas vidas foi marcada pelo viver e experienciar esse modo
particular de moradia.
[...] Não, isso aqui estava loteando, foi quando Pedro Jerônimo abriu isso aqui para
esse canto, aqui não tinha nenhuma casa, tinha uma casa ali que era Janaí, perto de
seu Cabloco, tinha um sítio ali. Depois, tinha dona Maria que tinha uma venda ali,
pra um pouco de seu Caboclo. Havia donde era igreja, que hoje em dia é a Igreja
Congregação do Brasil, morava seu José, tinha oito moradores, fez nove comigo.
Quando eu cheguei aqui, não tinha nem esgoto, não tinha luz, a gente não tinha onde
beber água. Bastião era o corretor aqui, nesse tempo vendia terreno
22
.
“Seu” Laudelino apresenta, acima, uma lembrança forte do início do loteamento, ao
mapear as primeiras habitações, suas posições e seus respectivos moradores. O número
reduzido de moradores, a ausência de infraestrutura e a presença de um sítio eram as
condições em que se apresentava o nascente loteamento. “Seu” Laudelino adquiriu um terreno
que ainda fazia parte da fazenda de Pedro Carvalho Neves
23
.
No terreno recém-loteado, ainda se encontravam os restos da antiga ocupação rural,
quais sejam “seis casas cobertas de telhas, sendo uma para o fabrico de farinha, com seus
respectivos utensílios, e cinco para a moradia, duas represas, pastos cercados por arames
farpados, quatro tarefas de cacaueiros frutíferos e matas”
24
.
O principal veículo de divulgação dos terrenos foram os próprios moradores. Os
primeiros a adquirir repassavam para seus amigos e/ou interessados as condições da compra e
do pagamento, sem nunca deixar de descrever os aspectos físicos do lugar. Maria Albertina,
mais conhecida popularmente como “Dona” Olga, lembra que soube desse loteamento devido
à amizade profissional do seu marido, que era eletricista da Coelba
25
, com o “Seu” Manuel,
motorista da mesma empresa. Tanto a “Dona” Olga quanto o “Seu” Manuel moravam de
aluguel. “Teve uma vez que passamos a dever três meses de aluguel.”
26
A descoberta de
“Seu” Manuel solucionou o problema do aluguel para ambos.
22
Laudelino Barbosa, 79 anos. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
23
Conhecido popularmente por Pedro Jerônimo, daqui por diante será apresentado como foi apelidado
socialmente.
24
Registro n° 10.097, 2º Ofício do Cartório de Imóveis de Itabuna.
25
Companhia de Eletricidade do Estado da Bahia, responsável pela iluminação pública.
26
Maria Albertina Santos, 73 anos, empregada doméstica aposentada, moradora 39 anos. Entrevista
concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
26
fazendo uma casa no São Pedro, mas leve sua mulher primeiro porque é longe e
é mato, numa capoeira, mas eu fazendo uma casa porque eu não posso
pagar aluguel. Manuel fez a casa dele primeiro, chegou aqui em setembro, quando
foi em outubro esse próprio Manuel trouxe nossa muda [móveis domésticos sendo
transportados] pra aqui, mas foi o próprio Manuel que encaminhou. Ele que tinha
esses terrenos aqui. Olha, eu fazendo uma casa no São Pedro, os terrenos é
bom, o preço é bom. No fim, Manuel tinha outros terrenos, ofereceu esse e ele
comprou, aí quando um dia, ele disse vamos lá, antes de construir, ele disse o lugar é
feio, mas...
27
.
O isolamento e as condições adversas foram as primeiras dificuldades reais
encontradas pelos primeiros moradores. O então loteamento São Pedro era parte de um
conjunto de terrenos, com área total de 80 hectares, de propriedade do Senhor Pedro Carvalho
Neves, mais conhecido como Pedro Jerônimo, e de sua esposa Josefa Soares de Carvalho.
A administração das propriedades ficava a cargo da sua empresa Pedro Jerônimo
Imobiliária, Agricultura, Comércio e Pecuária Ltda. com sede na Rua Ruy Barbosa, centro
da cidade de Itabuna. Essas terras foram resultado de aquisição por meio da compra das
fazendas Mutucugê I e II, pertencentes ao Senhor Nicodemos Barreto.
“Compostas de diversas partes, mas que formam um conjunto”
28
, a denominada
fazenda Mutucugê era parte do domínio de terras do estado da Bahia, terras devolutas que
foram adquiridas por meio da compra, por 80:000$000 (oitenta contos de réis), pela Senhora
Eufrásia Limôa Gonçalves, com expedição de título de propriedade em 1907, e registrada
em cartório em 1921.
Entre as décadas de 1910 e 1960, “pequenas” (uma vez que podiam constituir o
conjunto de propriedades) faixas de terras do Estado Federado da Bahia foram adquiridas por
particulares no lugar denominado Mutucugê. Assim como a Senhora Eufrásia Limôa
Gonçalves, o Senhor Aureliano Brandão também adquiriu 14 hectares, em 1929. A empresa
agrícola Jorge Hagge & Irmãos foi a que mais adquiriu terras nessa localidade, perfazendo um
total de 100 hectares, em 1936. O Senhor José Joaquim de Jesus adquiriu 16 hectares, em
1942. Todas as terras estavam voltadas impreterivelmente para o plantio do cacau.
No Mutucugê, registravam-se terras devolutas, que não se achavam sob o domínio
particular legítimo, e sesmarias, sendo estas últimas revalidadas pela Lei de Terras de 1850.
As terras devolutas do Estado foram, aos poucos, sendo apropriadas por particulares,
27
Maria Albertina Santos. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
28
Livro 3-B, 2º Ofício do Cartório de Imóveis de Itabuna.
27
conforme títulos expedidos e registros em Cartório, sendo que, hoje, nessa mesma localidade,
resta apenas uma estação de tratamento de esgoto como domínio do estado da Bahia
29
.
“Isso era terreno que vinha de sesmaria muito antiga que arrumava de um pra outro.
Ninguém sabia da onde nasceu e como é que era essa história, ninguém era dono disso.”
30
É
assim que “Seu” Raimundo Brito interpreta a história territorial dessa espacialidade, a
apropriação privada das terras públicas que nem sempre primava pela legalidade.
Quanto ao registro em Cartório das propriedades na região, nota-se que levava dez,
vinte, trinta anos (GARCEZ, 1977). De fato, até 1920, não existia Cartório de Registro de
Imóveis em Itabuna nem Delegacia de Registro de Terras. Observando nos registros cartoriais
a cadeia sucessória dos proprietários na localidade do Mutucugê até tornar-se loteamento São
Pedro, percebem-se métodos de demarcação e confrontação (os limites geográficos) bastante
imprecisos. Os exemplos são esclarecedores: “limitando-se, pela frente, com o rio cachoeira”,
ou “pelo lado direito, de quem olha do rio cachoeira para os referidos terrenos, com
Nicodemos Barreto”
31
.
A imprecisão tornava possível o apossamento privado das terras públicas, o que faz
“Seu” Raimundo Brito sustentar tal pensamento transcrito acima. O estado da Bahia era o
detentor originário das terras do Mutucugê.
Para Gustavo Falcón (1995, p. 40):
A excelente performance do cacau na pauta de exportação até 1910 valorizou
consideravelmente as terras existentes e aumentou bruscamente a procura de novas
práticas inescrupulosas de apossamento de terrenos devolutos e lutas pelas áreas
ocupadas incorporaram-se ao cotidiano da lavoura.
No plano geral, esse era o quadro em que se apresentava o apossamento fundiário. No
caso do São Pedro, percebe-se, no relato a seguir, de Carlos Jerônimo, filho de Pedro
Jerônimo, a aquisição das terras por meio das negociações. Nota-se, ainda, uma ênfase no
labor, na persistência, e um “espírito” empreendedor. Carlos Jerônimo utiliza-se das
29
As querelas envolvendo ocupações irregulares em terras públicas sob o domínio da União são comuns desde o
advento da República até os dias atuais. O Estado ora tem regularizado, ora tem destinado para fins de moradia
popular, negociando valores módicos com os ocupantes, ou concedendo títulos de direito real de uso, através da
Secretaria de Patrimônio da União (SPU), para os casos em se faça jus uma política social de habitação popular
(BRASIL, 2008). O governo deve arrecadar cerca de R$ 18.000.000,00 (dezoito milhões de reais) referentes a
taxas de aforamento na região de Alphaville e Tamboré, em Barueri e Santana de Parnaíba. Segundo a SPU,
cerca de 9 mil já pagam (Jornal da Tarde, Caderno Cidade, publicado em 28 de maio de 2008, p. 10).
30
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
31
Toda a cadeia sucessória da fazenda Mutucugê até o loteamento São Pedro foi coletada no 2º Ofício do
Cartório de Imóveis de Itabuna, nos registros de compra e venda de imóveis entre os anos de 1910 e 1965, nos
livros 3, 3-A 3-B, 3-H, 3-I.
28
representações sociais (solidamente edificadas pelos memorialistas e pela historiografia
tradicional) sobre a bravura e pioneirismo dos sergipanos na conquista das terras na região, e
procura relacionar, também, a trajetória do pai como a de mais um “desbravador” sergipano
32
que, na década de 1960, logrou sucesso nas terras do cacau. Para “Seu” França, morador, ele
“era um tipo de cigano”, que “pegava um terreno e trocava por animais”
33
, entre outras
coisas. Mas o filho assim o descreve:
Pedro Carvalho Neves, mais conhecido como Pedro Jerônimo, filho de sergipano.
Veio ele, o pai, a mãe e os irmãos aqui para o sul da Bahia, em busca de melhora
como sempre todo sergipano fez, e, aqui, meu avô comprou uma fazendinha e ele foi
trabalhar nessa fazendinha juntamente com meu avô e começou a vender lenha e
fazer carvão para vender, e através dessas vendagens de lenha e carvão foi
comprando um burrinho, um jeguinho, uma galinhazinha, botando no terreiro, até
que surgiu uma fazendinha. Ele comprou essa primeira fazendinha, fazendinha esta
que ele trocou numa melhorzinha, e veio lutando, vendendo carvão, vendendo lenha,
ao ponto de chegar a comprar essa área aqui da fazenda gaúcha, logo depois
comprou essa área aqui do bairro São Pedro. Pertencia à firma Nicodemos Barreto,
então o primeiro bairro a surgir foi o Pedro Jerônimo, depois ele veio a abrir esse
aqui, o bairro São Pedro
34
.
Pedro Jerônimo havia adquirido uma sólida experiência com as atividades rurais,
desde as tarefas do cotidiano de uma fazenda até a constituição da empresa agrícola e
imobiliária. O caráter imobiliário da empresa estava no comércio de terrenos.
O seu patrimônio era constituído basicamente por cinco fazendas, perfazendo um total
de 80 hectares. Em suas fazendas, encontravam-se pastos, coqueiros, laranjeiras, casas de
morada e pés de cacau novos e frutíferos.
Nessa localidade, denominada Mutucugê, as fazendas que faziam limites com a
propriedade de Pedro Jerônimo tinham de 12 a 15.000 pés de cacau, quantidade que permite
categorizá-lo como um produtor de porte médio, se entendido como apenas proprietário de
32
Atribui-se a Félix Severino do Amor Divino o caráter desbravatório na Vila de Tabocas (a futura Itabuna), o
que o motivou a convidar outros sergipanos. Atribui-se aos sertanejos e, principalmente aos sergipanos, o
desbravamento das terras e os primeiros contatos com os indígenas. Assim descreve o memorialista Adelindo
Kfoury Silveira (2002, p. 39): “deixando seu pequenino Estado, trouxe na bagagem a marca da coragem, a
bravura dos fortes e o destemor dos pioneiros”. “O incremento populacional na região cacaueira tornou-se maior
a partir de 1877 e 1879, quando grave seca atingiu o norte da Bahia e Sergipe, intensificando a chegada de
grandes levas de imigrantes” (FREITAS; PARAÍSO, 2001, p. 93). As adversidades da seca de 1877, que assolou
várias localidades da região Nordeste, inclusive o Estado de Sergipe, provocou uma forte imigração de
sertanejos. O dinamismo da cultura do cacau e seus reflexos na economia local e a disponibilidade de terras,
fixaram os migrantes em pequenas propriedades policultoras. Os anos finais da segunda metade do século XIX
foram marcados pela transição da pequena propriedade policultora para a grande propriedade monocultora de
cacau (GARCEZ, 1977, p. 111).
33
Raimundo França dos Santos, filiado e militante do PT desde a sua fundação, aposentado, morador há 30 anos.
Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de material para a realização deste
estudo.
34
Carlos Jerônimo, filho de Pedro Jerônimo e herdeiro das terras. Entrevista concedida ao autor, em agosto de
2008, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
29
uma única fazenda. Dentro da noção de conjunto
35
, a soma dessas produções médias
caracteriza um fazendeiro como grande produtor. Se compararmos ao perfil das grandes
empresas agrícolas com sede em Itabuna (FALCÓN, 1995), com 250.000 pés de cacau, e
deixarmos de lado o conceito de conjunto, essa produção (de 12 a 15.000) seria
indiscutivelmente pequena, se não irrisória.
Pedro Jerônimo adquiriu uma fazenda do Senhor Nicodemos Barreto, empresário e
líder político local (Coronel), que estava entre os vinte e cinco maiores emprestadores
36
e
entre os principais fazendeiros da região. Carlos Jerônimo, ao narrar a arrogância do Coronel
Nicodemos para com seu pai, guarda na memória a história a seguir, como força explicativa
da trajetória de sua família:
Ele morava ali no serrado, Ribeirão de Onça. Tocando os jeguinhos, chegou em
frente à sede da fazenda Progresso. O jeguinho com a força da lenha deitou no
portão. Aí, o finado Nicodemos Barreto mandou o segurança mandar ele tirar o
jegue. Ele tirou a carguinha de cima do jegue, botou embaixo, o jegue levantou, ele
botou a carga de novo, depois ele voltou para aqueles que estavam olhando ele fazer
isso e disse assim: “Um dia eu vou ser dono dessa fazenda!”. E aconteceu ele ser
dono dela mesmo. Dono da fazenda Progresso.
Essa é a cadeia sucessória da fazenda Mutucugê, quando a posse de Pedro Jerônimo
deu origem ao loteamento. O “aforamento” foi o mecanismo utilizado por Pedro Jerônimo
para auferir rendas a partir do parcelamento do solo que, processualmente, tornar-se-á um solo
urbano.
Quando se pensa em uma área a ser loteada, automaticamente imaginam-se traçados
retilíneos, pequenos quadrados (os lotes), intervalos entre um lote e outro, o que poderíamos
chamar de rua, e, enfim, uma visão nítida e geral dos terrenos a serem loteados. Ledo engano.
Querer arrastar essas formas visuais atuais de parcelamento do solo para o loteamento São
Pedro seria menosprezar a sua historicidade. E se formos ao que dita a lei (Decreto-lei 58,
de 10 de dezembro de 1937), seria mais enganoso ainda, pois esta fazia as seguintes
recomendações para o parcelamento do solo: “vias de comunicação e espaços livres, vias
públicas de comunicação”. O Código de Obras instituído em Itabuna em 1979, que tinha por
finalidade “estabelecer normas para as construções em geral, visando assegurar as condições
35
Quando se pensa em latifúndio, imagina-se uma vasta porção de terras em uma única propriedade. O latifúndio
na região do cacau apresentou uma característica diferente, podendo ser um conjunto de propriedades contínuas
e descontínuas, isto é, “compreender terras limítrofes ou glebas dispersas” (GARCEZ, 1977, p. 122).
36
A posse da terra era uma garantia que possibilita a realização de empréstimos. O conjunto de propriedades das
empresas agrícolas nacionais e estrangeiras constituía-se pela posse dos bens (terras) dos sujeitos que não
conseguiam honrar seus débitos. Tamanho controle, centralização e importância no cultivo, no comércio e
exportação do cacau, essas empresas eram as maiores latifundiárias no sul da Bahia (GARCEZ, 1977).
30
adequadas de habitação”
37
, descrevia um loteamento como: “divisão planejada de um terreno,
regularmente aprovada pela prefeitura, para construir uma pluralidade de lotes subordinados a
um sistema de arruamento, serviços públicos e comunais e áreas de uso social”
38
.
A narrativa de “Dona Josefa demonstra essa ausência total de planejamento
urbanístico: “isso aqui tudo era capim, dava para encher a barriga de um animal”
39
. Todas as
outras recomendações legislativas para o loteamento permaneceram como letra morta.
Interessante dialogar como a concepção do Poder Público sobre o crescimento da
cidade, assim como suas representações sobre as populações, naquele momento,
pressionavam o espaço por um lugar na cidade. A edição do Jornal Oficial de 29 de julho de
1972, em comemoração aos 62 anos da cidade de Itabuna, apresentou um artigo em que se
reconhecia a necessidade de um planejamento urbano. O governo municipal, através do seu
meio oficial de comunicação, compreendia a urbanização apenas em seus aspectos racionais,
desfocados das disfunções sociais, ou seja, das causas, dos fatores socioeconômicos que
impeliram esses sujeitos a viver indignamente (MARICATO, 2000)
40
. O texto é também
carregado de uma visão extremamente preconceituosa e desqualificadora das populações que
pressionavam a periferia:
Na periferia de Itabuna surgem favelas formadas por um crescente número de
subempregados que vivem de biscates, quitandas e quiosques, onde às vezes moram
e vendem cachaça, banana, açúcar, etc. Há urgência de ação racionalizadora que vise
organizar o processo de desenvolvimento de Itabuna, cuja evolução vem sendo
dificultada pela ausência de planejamento que permita melhor expansão urbana
dirigida
41
.
Urbanização era sinônimo de embelezamento e planejamento de racionalidade. Não
havia uma fiscalização quanto à abertura de lotes. Entre os anos de 1967 e 1978, não
qualquer indício de registro do loteamento São Pedro. Como afirma Villaça (apud
MARICATO, 2000, p. 137), “foi sob a égide do embelezamento que nasceu o planejamento
urbano brasileiro”.
37
Lei 1.198, de 14 de setembro de 1979, publicada no Jornal Oficial do Município de Itabuna, 2.036, de 22
de dezembro de 1979, sem paginação.
38
Idem.
39
Josefa Emília Varjão. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
40
Em seu artigo “As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias: Planejamento urbano no Brasil”. In:
ARANTES, Otília et al. A cidade do pensamento único: Desmanchando consensos. São Paulo: Vozes, 2000,
Ermínia Maricato apresenta a crise do planejamento modernista/funcionalista que teve seu auge entre os anos de
1945 e 1975 (“anos dourados”). O pensamento racionalista atribuía ao Estado um papel central no planejamento
urbano, bem como asseguraria o desenvolvimento econômico e social.
41
Jornal Oficial do Município de Itabuna, nº 1.905, de 29 de julho de 1972, sem paginação.
31
Preso a essa matriz de pensamento, o texto oficial segue: “atualmente, tem-se
procurado melhorar cada vez mais o aspecto da capital do cacau, realizando obras de
envergadura, como serviços de esgoto, calçamento, meio fio e jardins”
42
. A preocupação com
o lugar dos favelados não passava de um simples discurso.
A primeira imagem do loteamento que vem à memória dos depoentes é a de um
território coberto de vegetação. Enfrentar a capoeira
43
para consolidar suas moradas foi a
primeira ação realizada. “E começamos por botar fim na capoeira”
44
, esclarece “Seu”
Raimundo Brito, ao mencionar a necessidade de ações coletivas para transformar esse
território. “Era tudo capoeira”, relembra “Dona” Josefa
45
. “Ali era capoeira, uma mata”,
descreve “Seu” Domingos Barbosa
46
. E “Seu” Paulino
47
vai além: “Só umas picadas de
goiaba. Tanto que, na época, não tinha banheiro, a gente ia no mato, em qualquer lugar aí.
Tudo ali. Aqui era goiaba branca. Tinha carrapato, aqueles carrapatos miúdos. Ah! Uma
dificuldade imensa, não tinha água”.
O relato de “Seu” Paulino corrobora com os demais
quanto ao aspecto vegetativo predominante. O cenário era nitidamente de uma fazenda, nada
próximo a um espaço pronto para a construção de moradas.
por meio da memória compartilhada desses moradores é que podemos resgatar as
condições reais do loteamento em seu processo inicial, em 1967. Fazemos essa afirmação,
porque existe uma distância enorme entre o projeto de loteamento apresentado para aprovação
municipal e suas condições reais.
O memorial do loteamento aprovado pela Secretaria de Obras e Serviços Urbanos da
cidade de Itabuna apresentava condições ideais e não reais. Se nos detivéssemos apenas aos
registros oficiais, teríamos uma visão muito limitada das experiências de homens e mulheres
que, em um longo percurso, construíram suas casas e suas vidas nesse lugar.
42
Jornal Oficial do Município de Itabuna nº 1.905, de 29 de julho de 1972, sem paginação.
43
Capoeira é uma vegetação secundária composta por gramínias e arbustos esparsos. O termo, oriundo do tupi-
guarani, designa o mato que nasceu sob a vegetação cortada (WIKIPÉDIA, 2008).
44
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
45
Josefa Emília Varjão. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
46
Domingos Barbosa dos Santos, pintor, morador há 28 anos. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008,
por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
47
Paulino Bispo dos Santos, 76 anos, morador 42 anos. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2008,
por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
32
A planta e o memorial foram apresentados para registro
48
e cadastro, em 1979.
Para todos os efeitos oficiais e legais, esses sujeitos não existiam ou viviam perifericamente
fora da urbanidade desde 1967. O dado cadastral apresentado ao órgão competente
apresentava um loteamento com 381 lotes, divididos em 82 quadras, perfazendo uma área
total de lotes de 250.200 m
2
, com traçados e nomes de ruas. Confrontando esses dados com as
narrativas dos moradores, percebe-se que o projeto de loteamento estava apenas no campo
virtual.
O memorial foi apresentado doze anos depois do início do loteamento. Mas, a
apresentação aos órgãos competentes para aprovação caracterizava a sua concretude, pois
não havia nenhuma fiscalização. Para os moradores, existia capoeira, e, para o Poder
Público, um loteamento com arruamentos e quadras. Uma estratégia utilizada pelo
proprietário para burlar o processo burocrático e obter a aprovação, uma vez que os
loteamentos poderiam ser aprovados com a autorização prévia da Prefeitura. O loteamento
São Pedro surgiu sob a égide da ilegalidade urbana.
Nada de arquitetura. Aqui é aí, às vezes, o povo é quem faz, é quem mede, eles
mesmos fazem aquilo depois. Como a hoje mesmo. praticamente é a
Prefeitura que tem a participação, o benefício, mas a verdade é que ainda é isso aqui
é tudo fazenda. Isso aqui é conhecido pela lei do cartório como fazenda. Quer
dizer, isso ainda é o dono, ainda o imposto é da Prefeitura no INCRA. Está no
INCRA como fazenda
49
.
Os loteamentos, previamente planejados, possuem uma função estrutural nas cidades,
como afirmamos anteriormente
50
. “Seu” Raimundo Brito demonstra, em seu depoimento,
que a estruturação do São Pedro, a medição e o parcelamento do solo foram feitos pelos
próprios moradores. Concretização feita por sujeitos comuns que, sem a participação e a
interferência do planejamento urbano governamental, constroem seus próprios espaços
urbanos. A história não é diferente daquela comentada por Raquel Rolnik (2007, p. 07), com
48
É a própria Lei Federal 6.766/79 que regula os meios adequados ao parcelamento do solo urbano em seu
artigo , in verbis: “Art. 2°. O parcelamento do solo urbano poderá ser feito mediante loteamento ou
desmembramento, observadas as disposições desta Lei e das legislações estaduais e municipais pertinentes”.
Após a aprovação o loteamento, deve ser registrado no Cartório de Registro de Imóveis competente, nos termos
e na forma como dispõe o artigo 18 da mencionada lei. A execução das obras de infraestrutura se dará segundo a
respectiva aprovação.
49
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
50
“A cidade de São Paulo é um exemplo contundente dessa situação. Os nobres bairros de Pinheiros, Pacaembu,
Sumaré, apenas para citar alguns exemplos bem concebidos, foram formados por loteamentos, estruturados e
concebidos pela iniciativa privada. Portanto, como bem destaca o jurista Edésio Fernandes, os loteamentos não
são apenas a criação de lotes em lugar de grandes glebas, mas na verdade são cidades, ostentando toda a
problemática e complexidade delas” (SALLES, 2007, p. 152).
33
relação a inúmeros outros loteamentos urbanos em diversas cidades brasileiras nesse mesmo
período:
Excluídos do marco regulatório e dos sistemas financeiros formais, os
assentamentos irregulares se multiplicam em terrenos frágeis ou em áreas não
passíveis de urbanização, como encostas íngremes e áreas inundáveis, além de
constituir vastas franjas de expansão periférica sobre zonas rurais, eternamente
desprovido das infra-estruturas, equipamentos e serviços que caracterizam a
urbanidade. Ausentes dos mapas e cadastros de prefeituras e concessionárias de
públicos, inexistentes nos registros de propriedade nos cartórios, esses
assentamentos tem uma inserção no mínimo ambígua nas cidades onde se localizam.
A reflexão da Raquel Rolnik esclarece muito bem o quanto a irregularidade deixa
invisível os sujeitos e os torna ausentes de políticas públicas urbanas. As irregularidades do
loteamento São Pedro apresentaram uma série de ambiguidades e problemas para os
moradores. A legislação dos loteamentos especifica claramente em que condições
infraestruturais o loteador deve entregar as glebas de terras aos compradores. Do ponto de
vista legislativo e político, parcelas de obrigações urbanísticas do loteador e do Poder
Público, este último responsável não só pela fiscalização do parcelamento do solo, como
também pelo ajustamento dos loteamentos ao conjunto da cidade.
Os pagamentos do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e do aforamento têm
naturezas jurídicas diferentes, mas o próprio movimento ambíguo e ilegal do loteamento
gerou esses impasses para os moradores. Os técnicos da Prefeitura nem sempre respondem
satisfatoriamente as questões postas pelos moradores.
Então, por causa de ilegalidade do terreno de muito tempo que vem passando de um
para o outro, e era sesmaria e vai aquela história, e a Prefeitura até então ninguém
se prontificou a desmembrar isso da propriedade, ou seja, do INCRA, e passar direto
para a Prefeitura
51
.
Continuando o relato acima, “Seu Raimundo Brito prossegue em sua análise
histórica, indo além da ilegalidade, trazendo os aspectos rurais (fazenda) do lugar, presentes
em sua cadeia sucessória. O registro das terras no Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA) as caracterizaria como zona rural.
Por estar localizado na periferia e por ser um loteamento irregular, o São Pedro não
fora alvo da Administração Pública nas décadas de 1960 e 1970. Pois, segundo o jornal Diário
de Itabuna, somente “os bairros da cidade têm sido alvo das mais sérias atenções
51
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
34
administrativas, vindo o prefeito Alcântara promovendo estudos no sentido de executar todos
os melhoramentos necessários, incluindo calçamento, esgotos, etc.”
52
.
A vegetação encontrada pelos moradores nos terrenos “arrendados” para fins de
morada era um aspecto físico que fazia parte da transição de uma zona rural para a zona
urbana. Esse movimento de transformação de fazendas de cacau para loteamentos foi
frequente e constante, a ponto de se baixarem normas disciplinares para o desmembramento
de imóveis rurais para a formação de cleos habitacionais urbanos. A Resolução Municipal
estabelecia que as áreas objeto de loteamento deveriam se “situar fora do perímetro urbano e
ter perdido suas condições de exploração agrícola”
53
.
Passaremos agora a analisar o movimento de transformação da fazenda a loteamento, a
partir dos sujeitos e da conjuntura do momento.
E o São Pedro, e Pedro adquiriu essa parte de cá, essa parte cá. Isso aqui era pastaria.
Foi quando houve essa discussão de Pedro ou cria um estábulo, porque havia a
pastaria, então já havia cerca. Era prático colocar! Fazer estábulo, né, aqui dentro da
cidade. Então veio a ideia de criar o loteamento. Pedro sempre foi aquele tipo no
chão, Pedro era uma pessoa pé no chão! Sem querer enaltecer, nem criar filosofia
como a pobreza, pode ser virtude, pode ser uma degradação político-social do nosso
meio. Vocês sabem disso, estudaram filosofia. Votambém, estuda história. Então,
são três pessoas que entendem. Ele sempre, então criou o loteamento popular em
forma de arrendamento. Que muita gente confunde arrendamento com aforamento.
Em termos de lotes populares de 120 metros. Nasceu a ideia de criar isso. Foi uma
ideia entre o estábulo e o arrendamento, e optou pela forma de arrendamento.
Mesmo que o estábulo era uma coisa prática, porque aqui tinha tudo. Tinha cerca,
tinha tudo aqui dentro da cidade, né? Mas ele também tinha essa coisa de lutar,
gostava de luta
54
.
Analisando as conversas entre “Seu” Sebastião (cunhado de Pedro Jerônimo, amigo e
corretor) e Pedro Jerônimo, percebe-se a possibilidade de se continuar mantendo as atividades
agrícolas
55
, uma vez que o local reunia todas as condições necessárias. Mas, a decisão final
ficou a cabo do Pedro Jerônimo, que preferiu empreender em loteamentos populares.
52
Diário de Itabuna, publicado em julho de 1967, sem paginação.
53
Diário de Itabuna, publicado em 10 de maio de 1967, sem paginação.
54
Sebastião da Silva Santos. Entrevista concedida ao autor, em maio de 2007 e em agosto de 2008, por ocasião
da coleta de material para a realização deste estudo.
55
O cacau sempre fora o principal produto agrícola da região sul da Bahia, da cidade de Itabuna, e das atividades
agropecuárias do Pedro Jerônimo. Na pauta de exportação, sendo Itabuna o principal centro de comércio do
cacau, não havia qualquer grande oscilação nos preços e, apesar dos abalos do mercado, a década de 1960 não
apresentou uma forte crise, geral, que abalasse a cadeia produtiva do cacau. “Depois de manter, durante alguns
dias, a sua posição em 22,34 cents, para embarque em agosto, o mercado do cacau sofreu uma alta repentina de
87 pontos, elevando seu preço para 23,41 e para o mesmo prazo de embarque.” Os jornais na década de 1960
apontavam uma queda no nível geral de exportação. “O jornal O Globo do Rio de Janeiro publicou em 3 deste
mês um artigo intitulado ‘Queda da exportação brasileira de cacau prejuízo de 268 milhões de lares’.” Esta
notícia provocou uma resposta do governo, transcrita, na íntegra, no jornal Diário de Itabuna. Assim respondeu o
diretor da CACEX (Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil): “A queda de receita registrada de 1961 a
35
O loteamento apresentava, assim, uma coexistência ambígua, preservando aspectos da
ruralidade em suas condições físicas e formação da urbanidade (aglomerações populacionais).
Nas décadas de 1960 e 1970, os órgãos da Prefeitura responsáveis pela regularização
fundiária enquadraram o loteamento São Pedro como rural.
O São Pedro localizava-se na zona limítrofe entre a cidade e o campo. Normas e
diretrizes de desenvolvimento urbano, estabelecidas em Códigos de Obras ou Plano Diretor,
procuram enquadrar aglomerações humanas periféricas simplesmente como rurais. Talvez a
fixidez do conceito (muito importante para a arrecadação dos tributos) não acompanhe os
processos de mudanças e não conta das interconexões e da sincronia das relações cidade-
campo. Esses conceitos (rural e urbano) fechados justificam-se mais para arrecadação de
tributos do que para o entendimento de processos sociais e históricos, que necessitariam de
um conceito mais elástico.
Na década de 1980, o Plano Diretor da cidade de Itabuna considerava como urbano “a
transformação de área rural em urbana” e a “construção destinada a fins urbanos”
56
. Todas as
construções realizadas pelos moradores, desde o início do loteamento, tinham finalidades
urbanas, assim como seus construtores, que estabeleceram amplas relações sociais e
econômicas com o centro urbano. Os parâmetros técnicos
57
dos projetos de regulação e
construção dos espaços urbanos não dão conta da dinâmica e dos múltiplos interesses dos
sujeitos, e dos processos inerentes a cada contexto.
Em nossos estudos, evidenciamos que a integração do São Pedro à urbanidade da
cidade de Itabuna ocorreu no final da década de 1980, quando da implantação dos serviços
públicos, de saneamento e urbanísticos, mas não fora suficiente para apagar da memória e do
pensamento social vigente os seus aspectos rurais ainda prevalecentes.
1965, no total de 268 milhões de lares em comparação com o qüinqüênio anterior, foi devida aos seguintes
fatores: a) queda dos preços internacionais do produto; b) queda na produção brasileira devido às condições
climáticas, adversas no sul do estado da Bahia, maior zona produtora de cacau do país; e c) agravamento da
queda de produção pela decadência das lavouras pouco resistente, portanto às variações climáticas e sujeitas a
maior incidência de pragas e doenças, com conseqüente baixa de produtividade”. O governo federal estava
presente na região do cacau por meio da CEPLAC (Comissão Executiva para o Plano da Lavoura Cacaueira), e
esta havia contribuído para a recuperação da receita. “Houve uma recuperação de receita que chegou a atingir 72
milhões de dólares em 1966, com estimativa de 80 milhões de 1967, contra a média de 49 milhões no período de
1961 a 1965” (Diário de Itabuna, publicado em 13 de julho de 1967, sem paginação). Ademais, o jornal Diário
de Itabuna, por meio de sucessivas matérias, criticava a especulação da Bolsa de Valores de Nova York (Diário
de Itabuna, publicado em 28 de abril de 1967).
56
Lei 1.324, de 20 de dezembro de 1984, publicada no Jornal Oficial do Município de Itabuna, em 26 de
janeiro de 1985, p. 02.
57
Estamos fazendo referência aos Códigos de Obras e Planos Diretores, abordados nesta pesquisa, que consistem
basicamente na regulação da construção de espaços urbanos.
36
Não contrastes tidos na relação campo-cidade
58
, no que tange ao loteamento São
Pedro. O mundo rural forneceu elementos para a urbanidade e o mundo urbano cedeu a
disciplinarização, a organização e as normas para dar sua inserção à cidade.
O pagamento do “aforamento” ao “proprietárioé uma outra dimensão real e presente
na relação campo- cidade. A figura social do proprietário também se contrapõe à do prefeito
municipal, o primeiro “dono” do bairro e o segundo responsável direto pela coisa pública.
Até hoje o direito certo mesmo é pagar o aforamento, quer dizer, que é de tanto que
a Prefeitura não pode forçar ninguém a pagar o IPTU e aí tanto teve que cancelar. E
vem passando para o outro lado, e passou o Fernando, e passou o Ubaldo, e passou o
Geraldo Simões, mas as melhoras assim: faz o esgoto, vai fazendo essas coisinhas
assim, que é de tanto que os moradores não têm força pra cobrar da Prefeitura tantos
benefícios por causa da renda [IPTU]. Não; nós temos que pagar o aforamento aos
proprietários
59
.
“Seu” Raimundo Brito apresenta, acima, enfaticamente, a ambiguidade latente no
bairro. Apresenta os dilemas e impasses do Poder Público no tocante às suas ações no bairro,
e a impotência dos moradores quanto a uma maior participação do mesmo. Para “Seu”
Raimundo, se os moradores pagassem o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU),
estariam reconhecendo que o bairro estava sob jurisdição urbanística da Prefeitura, que fez
apenas algumas “coisinhas”, o que não justificaria tal ação. Chegando à conclusão de que os
moradores devem suas obrigações ao “proprietário” e não à Prefeitura.
Para o herdeiro das terras, Carlos Jerônimo, os moradores deveriam pagar as duas
taxas: “o arrendamento, a pessoa tem obrigação de pagar, assim como tem a obrigação de
pagar o IPTU”
60
.
A empresa agrícola e imobiliária Pedro Jerônimo, detentora da posse das terras
loteadas, tem como atividade econômica principal a criação de gado e a lavoura do cacau, e
ainda administra os loteamentos Zizo e Pedro Jerônimo. Trata-se de uma empresa de natureza
jurídica rural.
58
Para a análise do paradoxo na própria caracterização oficial e técnica do loteamento “rural” São Pedro,
utilizamos as reflexões do Raymond Williams, que desconstrói posições generalizantes e cristalizadas do campo
e da cidade. “A realidade histórica, porém, é surpreendentemente variada. A ‘forma de vida campestre’ engloba
as mais diversas práticas – de caçadores, pastores, fazendeiros e empresários agroindustriais –, e sua organização
varia da tribo ao feudo, do camponês e pequeno arrendatário à comuna rural, dos latifúndios e plantations às
grandes empresas agroindustriais e fazendas estatais” (WILLIAMS, 1979, p. 11).
59
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
60
Carlos Jerônimo. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para a
realização deste estudo.
37
As ambiguidades entre ser registrado e legalizado pela Prefeitura, ou ainda pertencer
ao fazendeiro Pedro Jerônimo, aparecem constantemente nas narrativas dos moradores, sendo
um dilema muito presente.
Agora tem pessoas aí que pagam o IPTU. Agora eu mesmo, eu não pago porque não,
isso aqui não é lançado em Prefeitura e eu não vou pagar IPTU. Pra gente pagar o
IPTU eles têm que desmembrar do proprietário pra ficar com a Prefeitura. E, além
disso, rapaz, eu vou dizer uma coisa: pra gente pagar IPTU para a Prefeitura e não
for fazer nada, não interessa. Não interessa! Sou mais pagar o dono do terreno.
Assim se apresenta o impasse para os moradores: ou se paga o IPTU e se acaba de
uma vez com a cobrança do aforamento, com direito à escritura do terreno, ou se paga o
“aforamento” como habitualmente vem acontecendo. A cobrança do IPTU pela Prefeitura
significa o reconhecimento de suas intervenções no São Pedro e o pertencimento do bairro ao
perímetro urbano. O “aforamento” seria o oposto, a crença que os moradores têm de que o
loteamento é ilegal e não consta nos registros da Prefeitura.
Alguns pagavam o “foro” no escritório do “proprietário”: “Todo final de ano eu ia lá,
pagava lá na fazenda mesmo. Pagava lá mesmo”
61
.
Ao contrário da conceituação oficial, as relações campo-cidade e cidade-campo
complementam-se na configuração dos aglomerados urbanos. Apesar da predominância dos
aspectos campestres descritos nas narrativas dos depoentes, não é possível estabelecer uma
divisão nítida entre campo e cidade em termos do loteamento, do aluguel de terrenos
“urbanos”.
O São Pedro, bairro constituinte da cidade de Itabuna na década de 1980, se
tornara plenamente urbano quando se implantaram os serviços públicos e urbanísticos? O
pagamento do foro não seria um indício da persistência da interconexão entre cidade e
campo? As interpretações dos moradores sobre sua condição de moradia sugerem que os
decretos
62
de regularização fundiária não foram suficientes para interromper essa conexão. A
complexidade e os impasses foram frutos do próprio processo de desenvolvimento de
urbanização, com seus contrastes e configurações, principalmente no tocante às ilegalidades
urbanas e fundiárias.
61
Domingos Lourenço dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
62
Como foi dito anteriormente, o Decreto Municipal 5.036, publicado no Jornal Oficial do Município de
Itabuna, no dia 16 de dezembro de 1995, considerou ilegal o loteamento São Pedro, pois não obedecia, para sua
implantação, a legislação pertinente.
38
As intervenções urbanísticas do governo municipal, ainda que tardias, não foram
suficientes para abandonar de vez a presença de elementos rurais. O Imposto Predial e
Territorial Urbano, como seu próprio significado indica, por si também não retira dos
sujeitos a ideia e a imagem de ruralidade.
O urbano e o rural no São Pedro caracterizaram-se por meio das relações sociais que
incidiram nesse território. A primeira foi a relação social estabelecida sobre o termo e uso do
aforamento. Em segundo lugar, fazia parte das relações a obrigação do loteador dotar o lugar
de infraestrutura, abrindo caminho para a urbanidade. No próprio contrato de arrendamento,
estabelecia-se que era terminantemente proibido criar porcos. Para a Prefeitura, era um
loteamento rural, para os moradores, a persistência dos elementos rurais presentes entrou no
costume, daí a afirmação de que o São Pedro ainda é uma fazenda.
As relações aluguel-terreno e terreno-moradia foram os fatores condicionantes para os
sujeitos sociais dotarem o loteamento de sentido e expandirem o espaço urbano e o processo
de urbanização. O terreno era a unidade básica para a edificação da moradia.
Mas a cidade teve mais um elemento contrastante: a segregação espacial que
historicamente ficou reservada aos pobres. “Seu” Laudelino, um dos primeiros moradores,
relata e descreve o espaço em que passou a morar por 41 anos: “quando eu cheguei aqui, não
tinha água, não tinha esgoto, não tinha luz”
63
. Esses sujeitos viveram e sentiram a cidade de
forma diferenciada. A incorporação do São Pedro à cidade, nas primeiras décadas, dar-se-á
por meio das mobilizações dos moradores, e, somente a partir da década de 1980, o Poder
Público começa a fazer intervenções.
Atrelando o desenvolvimento urbano às normas e planos urbanísticos, em 1984,
instituiu-se um novo Plano Diretor urbano, apresentado pelo arquiteto e Secretário de Viação
e Obras Públicas do município, Ronald Kalid. Para os loteamentos, o plano apresentava mais
rigor técnico, documental, e uma maior preocupação com o meio ambiente.
Ao contrário do Código de Obras de 1979, as diretrizes do Plano Diretor apresentavam
um capítulo específico sobre o parcelamento do solo (loteamento) e inovavam ao visar “o
aprimoramento da qualidade de vida”. Em seu artigo 2°, o Plano Diretor descrevia, como
promoção do desenvolvimento urbano, a “regularização fundiária e urbanização específica de
63
Laudelino Barbosa. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para a
realização deste estudo.
39
áreas urbanas ocupadas por população de baixa renda”
64
. O rigor da lei estava apenas
impresso no papel; os loteamentos seguiam em passos firmes na ilegalidade.
O silêncio do governo municipal no tocante à regularização fundiária contrastava com
as mobilizações sociais contrárias ao pagamento do foro. Para Leonício José, advogado e ex-
vereador pelo PC do B (Partido Comunista do Brasil), as mobilizações foram fundamentais
para a publicação do decreto-lei em 1995.
Ubaldo Dantas era prefeito. Nós fizemos uma manifestação, na porta da
Prefeitura, eu era funcionário da Prefeitura, em 82. O PC do B ajudou a eleger
Ubaldo, naquela época nós éramos clandestino, nós éramos da tendência popular do
PMDB, e teve uma das lutas, que nós levamos Ubaldo lá. Uma das questões da
campanha foi levar Ubaldo no São Lourenço, onde ele se comprometeu nesta
reunião que resolveria o problema de aforamento não do São Lourenço, mas da
cidade, e não fez. E não fez, não fez nem no São Lourenço quanto mais na cidade,
então o que é nós fizemos? Fizemos uma manifestação
65
.
Osias Ernesto Lopes, advogado, responsável pela elaboração do decreto que tornou
ilegal o loteamento São Pedro em 1995, esclarece que o problema era muito amplo, afirmando
que: “Itabuna, até este ano de 95 e 96, só tinha um bairro regularizado”. E quanto ao
loteamento São Pedro, observa que: “Se o parcelamento é ilegal, se de alguma forma ocorreu
crime nesse parcelamento, em decorrência disso não como cobrar nem impor ao cidadão a
cobrança do aforamento”
66
.
A realidade não estava em consonância com a legislação. Essa é a primeira
irregularidade flagrante do loteamento São Pedro, e que perpetuou por certo tempo. Mas, a
irregularidade não estava na ordem do dia tanto para o loteador quanto para os futuros
arrendatários. O déficit habitacional e a ausência total de uma política habitacional para os
mais pobres impeliram esses sujeitos a enfrentar condições bastante adversas. Loteador e
moradores estavam articulados por relações e obrigações mutuamente contraídas e que se
definiram fora do espaço da legislação urbanística.
64
A Lei 1.324, de 20 de dezembro de 1984, aprovada pela Câmara de Vereadores, instituía e estabelecia
normas e diretrizes do desenvolvimento urbano (segundo o Jornal Oficial do Município de Itabuna, publicado
em 26 de janeiro de 1985, p. 02). Essa discussão estava sintonizada também com o debate de nível nacional na
década de 1980. A ideia de Plano Diretor existe no Brasil desde 1930. O urbanista francês Alfred Agache, ao
lançar o livro Cidade do Rio de Janeiro: Extensão, remodelação, belezamento”, introduziu, pela primeira vez
no Brasil, o plan directeur”, que passou a constar como obrigatoriedade para todas as cidades com mais de
20.000 habitantes, a partir da Constituição de 1988. Para uma reflexão crítica a respeito do Plano Diretor, ver
VILLAÇA (2005).
65
Leonício José G. Santo, advogado e vereador pelo PC do B entre os anos de 1992 e 1996. Entrevista concedida
ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
66
Osias Ernesto Lopes. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
40
1.1 A linguagem como expressão da consciência: Arrendamento ou aforamento?
Na reconstrução histórica da experiência social vivida por esses sujeitos nessa
localidade, não era possível fazer uso somente de uma documentação escrita (como observado
na Introdução desta dissertação), insuficiente para a reconstrução dessa história recente. A
documentação escrita apresentava uma série de limitações, não alcançava a problemática
sugerida e apenas auxiliava no esclarecimento de nuances.
O instituto jurídico utilizado pelo loteador para administrar e auferir rendas dos
terrenos foi o arrendamento, por meio de um contrato bastante módico. Os “arrendatários”
poderiam construir moradas, e nada a mais diferente dessa finalidade. Esse instrumento
jurídico
67
da enfiteuse, escolhido pelo proprietário, vinha passando por sérias
reformulações jurídicas, e até mesmo sua extinção foi preconizada do cenário nacional, na
década de 1940.
Foi para resguardar o pleno domínio da propriedade por todo o tempo, que o Senhor
Pedro Jerônimo fez uso da enfiteuse. A venda do domínio útil não implicaria na perda do
direito da propriedade. Mas, os moradores, em seu cotidiano, falam e entendem sua obrigação
contratual como aforamento, e não arrendamento
.
Olha, na época eu comprei, por sinal, mais de um terreno, porque na época ele tinha
um cidadão que chamava Otávio, que ele era o corretor que vendia [...] O corretor do
imóvel, ele vendia os terrenos de aforamento. E eu comprei um terreno e fui
pagando pra ele, só que ele não dava o dinheiro. Ele não passou pro Pedro Jerônimo,
67
A enfiteuse, enquanto instrumento jurídico, estava presente em várias localidades brasileiras, principalmente
em conjunturas de urbanização, provocando sérios impasses. “Com a decadência da economia agroexportadora,
a partir de 1940, enorme migração rural-urbana e, conseqüentemente, enorme demanda de moradia (em
1940, a cidade de Salvador tinha 393 mil habitantes; em 1950, passa a contar com 417 mil). Até então
predominava, no sistema habitacional, o aforamento de terras e o aluguel de casas, principalmente para as
camadas de renda média e baixa que ocupavam os cortiços nas áreas centrais degradadas. A cidade herdara uma
estrutura fundiária peculiar, com o solo nas mãos de poucos grandes proprietários e sob um sistema jurídico
arcaico, a enfiteuse, que bloqueava o mercado de terras” (GORDILHO apud PASTERNAK, 2008, p. 77). Na
exposição de motivos sobre a abolição da enfiteuse, publicada no Jornal Oficial do Município de Itabuna, em 16
de fevereiro de 1944, sem paginação, o Deputado Gurgel do Amaral, assim se manifestou: Acresce a
circunstância agravante de que essa sobrevivência feudal, além de significar, em muitos casos, a exploração do
lavrador, que nunca consegue ser proprietário da gleba que trabalha e valoriza com seu esforçose encontra em
grandes capitais como o Rio, Recife e Niterói, para citar os exemplos mais conhecidos, convindo lembrar
também Petrópolis, onde toda ou quase toda a cidade paga foro secularmente a uma família a Família
Imperial. Ademais, o projeto que cogita da extinção da enfiteuse, procura sanar grave irregularidade, encontrada
em quase todo território nacional e máxime nesta capital e em Niterói de subenfiteuse”. “[...] esses entre os casos
raros e, entre os que se encontram com assustadora freqüência, os esdrúxulos arrendamentos que assumem
caráter de perpetuidade e envolvem os outros requisitos caracterizadores da enfiteuse [...]” (LOPES, 1956, p. 72-
73). Até a Prefeitura de Itabuna aforou terrenos. A Lei 272, de 7 de novembro de 1956, autorizava o Poder
Executivo a vender, aforar ou arrendar terrenos do patrimônio municipal, doados pela Lei Estadual n° 692, de 13
de setembro de 1956 (Jornal Oficial do Município de Itabuna, publicado em 10 de novembro de 1956).
41
né? Quando eu fui descobrir, ele logo em seguida saiu batido, foi todo mundo
atrás de Pedro Jerônimo, porque aquelas pessoas que tinham o contrato de
aforamento na mão, ele é o dono do terreno e quem tivesse dívida de aforamento, já
era, perdeu! No meu caso, eu perdi. Ele num tinha me dado... Terminei de pagar ele
não me deu nada pra comprovar
68
.
“Seu” Paulino, um dos primeiros moradores do São Pedro, relembra, acima, que
sofreu um golpe ao negociar com um corretor não autorizado pelo Pedro Jerônimo. Conseguiu
construir sua casa porque havia comprado mais de um terreno, sendo que perdeu por completo
o dinheiro e o terreno adquirido a mais.
O que nos interessa, neste momento, é o uso constante, corriqueiro e tradicional do
termo “aforamento”. Analisaremos a venda de terrenos seguida da cobrança de “foro”, mais
adiante, no terceiro capítulo.
Apesar de o documento apresentar em seu tulo, expressamente, o termo
“Arrendamento”, “Seu” Paulino chama-o de “Contrato de Aforamento”. E o uso da expressão
“comprei” representa a posse, o domínio, a garantia do pertencimento da propriedade. Ao
questionar “Seu” Domingos Lourenço sobre o uso social do vocábulo aforamento e o
arrendamento, fui imediatamente interrompido e ouvi taxativamente: “arrendamento não!”
69
.
Toda a complexidade do “aforamento” no loteamento/bairro São Pedro requer um
entendimento da lei e de sua aplicação sob a ótica de práticas culturais dos sujeitos
envolvidos, que remetem ao aforamento propriamente dito, e, quando apurados e
aprofundados em suas evidências empíricas, nos deparamos com uma série de contradições.
Tamanha é contradição entre os documentos que comprovam o pagamento do
arrendamento e o aforamento em seu sentido lato, desde a criação do loteamento até os dias
atuais, que, neste estudo, analisaremos os conceitos jurídicos e discutiremos, em seguida, a
sua historicidade, seu sentido prático, suas representações sociais e a interpretação do Poder
Público e dos advogados a respeito.
Pois, no cotidiano, os moradores imprimiram na linguagem o termo “aforamento” de
forma tão usual que é possível perceber, de fato, que não se trata de aforamento, quando se
depara com os recibos
70
comprobatórios (únicos documentos da relação contratual) do
68
Paulino Bispo dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2008, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
69
Domingos Lourenço dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
70
As condições “contratuais” presentes no rodapé do recibo estabeleciam o seguinte: perderá o direito de posse
no caso de, até o vencimento, não ter construído ou efetuado novo pagamento, sendo também proibido criar
porcos. Reservado o direito de a firma arrendatária aumentar o valor do arrendamento, dentro dos limites
estabelecidos em lei.
42
pagamento do arrendamento. O uso consistente, habitual e consciente do termo jurídico
aforamento, e o pagamento do mesmo, permitiram, inclusive, tomadas de decisão coletivas
pelo seu fim. Tanto assim que até a Associação de Moradores, composta, em sua maioria, por
militantes políticos com larga experiência em mobilização popular, organizou o primeiro
seminário para tratar do aforamento e não do arrendamento. Assim dizia a convocatória aos
moradores:
A Associação de Moradores do bairro São Pedro, convida Vossa Senhoria para
participar do seminário, que será realizado no próximo dia 25 de agosto de 2002, no
Sítio do Menor, situado no bairro São Pedro, nesta cidade, com o tema Aforamento,
com a presença dos grupos Cativeiro, Encantarte, Ação Negra, Federação Santa
Bárbara
71
.
O arrendamento
72
é um instituto antigo, que remonta à Grécia Antiga, e que foi
sistematizado pelos romanos (Era Justiniana), de onde provém sua base jurídica. Foge às
nossas intenções dissecar, do ponto de vista do Direito, a natureza jurídica, a trajetória e as
concepções doutrinárias da enfiteuse. Ao longo do tempo, o instituto sofreu,
intermitentemente, várias configurações jurídicas de acordo com o momento, o lugar e as
conjunturas pertinentes. Para efeito de nossos estudos, analisaremos o estabelecido no Código
Civil de 1916
73
.
O arrendamento é uma forma de contrato que tanto pode ser utilizada por agentes
públicos quanto privados, podendo ser urbano ou rural. Tem a temporalidade como limite no
usufruto do imóvel, devendo o arrendatário pagar pelo seu uso. No loteamento São Pedro, o
arrendamento era de um ano, sendo renovado com a efetivação do pagamento. Como
esclarece Carlos Jerônimo, “o arrendamento só tem a obrigação de renová-lo todo ano! Então,
a pessoa tem até dia 31 de dezembro pra renovar o arrendamento”
74
.
Apesar da similitude do arrendamento com o aforamento, uma característica ímpar os
diferencia categoricamente: o caráter temporário, próprio para o primeiro, e o caráter perpétuo
para o segundo.
71
Conforme o “Informativo São Pedro: sem medo de ser feliz”. Itabuna, ano I, ago. 2002. Mimeografado.
72
No Brasil, para Felisbelo Freire, já nasceu sob prisma da ilegalidade: “o arrendamento, cujas origens
representavam um procedimento ilegal, dado que aos donatários não cabia o direito de subdividir suas
concessões”. Segundo a Carta-Régia de 1753, “não serem dadas as sesmarias senão para sesmeiros, que as
cultivassem, não para repartirem e darem a outros que a conquistem, roteiem e entrem a fabricar, o que é
permitido aos capitães e não aos sesmeiros” (FREIRE apud GUIMARÃES, 1963, p. 67).
73
O arrendamento encontra-se disciplinado não no Código Civil Brasileiro, artigo 1.211 até 1.215, como
também no Estatuto da Terra, artigos 92 a 95.
74
Carlos Jerônimo. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para a
realização deste estudo.
43
Em relação ao domínio (poder absoluto sobre a coisa possuída), o termo jurídico que
abrange tanto o aforamento quanto o arrendamento é o ato jurídico conhecido como enfiteuse.
A enfiteuse acontece quando o proprietário atribui a outrem o domínio do seu imóvel,
pagando o adquirente “uma pensão ou foro anual, certo e invariável, ao senhorio direto”,
segundo o artigo 678 do Código Civil de 1916 (BRASIL, 1989). É, então, o Direito Real
sobre a coisa alheia, que autoriza o enfiteuta a exercer sobre coisa imóvel alheia todos os
poderes do domínio, mediante pagamento, ao senhorio direto, de uma renda anual. Sendo que
o contrato de enfiteuse por tempo limitado é considerado arrendamento e, de forma perpétua,
aforamento.
O Congresso Nacional brasileiro, desde a década de 1940, havia discutido a
sobrevivência da enfiteuse no Direito Moderno, cujas funções e objetivos, segundo Serpa
Lopes (1956), não mais condizem com as necessidades passadas. Enquanto instrumento
jurídico, já não mais atende “ao serviço da cultura da terra”.
“A enfiteuse é, entre nós, mais freqüentemente dirigida aos terrenos destinados à
construção de edifícios, ao passo que na Itália, ela socorre aqueles que precisam de terras para
cultivar e os que necessitam de quem lhes cultive a terra” (LOPES, 1956, p. 70). Assim, no
século XX, a enfiteuse estava desvirtualizada de suas funções originais, quando atendia
preponderantemente o objetivo de tornar produtivas as terras incultas. Em 1943, temos o
primeiro grande debate no sentido de extinguir a enfiteuse, sendo elaborado até um
anteprojeto de lei para a sua extinção.
Por que os moradores falam em aforamento, sendo o “contrato” de arrendamento?
Apesar de o primeiro administrador dos terrenos, “Seu” Sebastião, insistir no contrário: “Ele
[Pedro Jerônimo] sempre, então criou o loteamento popular em forma de arrendamento. Que
muita gente confunde arrendamento com aforamento. Em termos de lotes populares de 120
metros”
75
.
Os que advogaram e lutaram contra essa forma de cobrança trabalharam em cima do
termo aforamento. Candidatos a vereadores fizeram campanhas políticas pela regularização
fundiária falando em aforamento. O Poder Público municipal decretou o fim do aforamento e
não do arrendamento. O fim do que não existe? A similitude permite confundir um com o
outro? A forma contratual empregada arrendamento apresenta uma série de
irregularidades; então, por que não o fim do arrendamento dos terrenos ao invés do
aforamento?
75
Sebastião da Silva Santos. Entrevista concedida ao autor, em maio de 2007 e em agosto de 2008, por ocasião
da coleta de material para a realização deste estudo.
44
Não encontramos nenhum processo judicial movido pelos moradores. Mesmo sob
jurisprudência, uma tomada de decisão judicial menosprezaria o sentido representativo dado
pelos moradores, e tal decisão incidiria sobre o termo constante na documentação:
arrendamento.
Tais indagações podem ser entendidas quando se historiciza e analisa a dimensão
temporal desses institutos jurídicos, suas relações com o conjunto da sociedade e como os
sujeitos a interpretam.
A questão temporal não é o cerne da problemática, apesar de elucidar a questão. É no
campo da luta política que esse conflito se insere. Tanto o loteador quanto os moradores
utilizaram-se de diferentes estratégias políticas para garantir seus interesses. Para o primeiro,
o uso do termo aforamento não chegou a constituir um problema, uma vez que tinha o
interesse em preservar para sempre o direito de propriedade sobre as glebas de terras; para os
moradores, significava a possibilidade de concretização de suas moradas.
A presença do termo aforamento na linguagem e no discurso dos moradores
corresponde ao aforamento em si, e não ao seu paralelo (arrendamento). Na essência, o
princípio do aforamento é o que se mantém quando criticam a temporalidade do pagamento
“porque não é justo pagar um valor pelo terreno e passar o resto da vida pagando novamente
com a taxa do aforamento”. Essa preocupação em passar o resto da vida pagando remonta às
características do foro, que tem, em sua base, o caráter perpétuo.
Se procurarmos entender a persistência no cotidiano do termo aforamento na
linguagem, notamos que essa representação não opera no vazio. Vimos que, no Brasil, de
norte a sul, de leste a oeste, tivemos terras aforadas. “A linguagem é o meio por excelência
através do qual as coisas são ‘representadas’ no pensamento, sendo, portanto, o meio no qual
a ideologia é gerada e transformada. Porém, na linguagem, a mesma relação social pode ser
distintamente representada e inferida” (HALL, 2003, p. 262).
Procuramos abordar a linguagem dos moradores no âmbito da cultura popular, não de
forma binária, dicotomizada e estanque, mas na cultura popular dinâmica, no quadro da luta
de classes, que absorve e reelabora os elementos urbanos e rurais, que traduz as injustiças nem
sempre por meio da violência, mas na sua linguagem e nas suas interpretações do mundo das
leis. A partir de seus valores e suas experiências, os populares dão um sentido diferente aos
conceitos jurídicos sacramentados, tendo em vista seu modo de vida. E assim o entendem e
definem.
45
A experiência cotidiana das camadas populares, muitas vezes recria e atribui aos
conceitos uma conotação e uma denotação muito mais abrangente do que se tem
estabelecido oficialmente. O código lingüístico adquire uma densidade significativa,
em função dos embates com a realidade, que transcende as formas contumazes de
representação, recriando e projetando outros imaginários (MONTENEGRO, 2007,
p. 40).
Os sujeitos do nosso estudo apresentam uma baixa escolaridade, o que não os impede
de entender, ao longo dos anos, o título expresso no recibo e as condições contratuais que o
mesmo apresenta. Entendemos, também, que, em meio às conversas do dia a dia, dos
encontros nos fins de semana para bater papo, ou em meio aos mutirões realizados, as dúvidas
e esclarecimentos seriam sanadas entre os próprios moradores.
A prática da pesquisa histórica envolvendo a história oral permitiu-me perceber o
quanto é rica a capacidade de expressão dos depoentes. Em suas narrativas, aparecem o
conflito e, principalmente, uma consciência da questão jurídica e social estabelecida. Há
muito tempo, os pesquisadores (educadores), influenciados por Basil Bernstein, entendiam
que as classes populares não conseguiam se expressar e entender o mundo devido ao seu
vocabulário restrito (THOMPSON, P., 1992, p. 41).
“Seu” Raimundo foi um dos depoentes que expressava de forma crítica e perspicaz
todo o dilema do “aforamento” no São Pedro.
Não, não existe limite; não existe limite de tempo. existe limite de tempo o
seguinte: se eles puder vender o terreno, tem condições de vender pra pessoa que
comprar e agora desmembrar e ser escriturado. Desse aforamento que o camarada
pagou entra também, segundo eles, entra em conta dessa conta. Mas até agora eu
nem sei como é que ele anda. “Velho, eu vou comprar uma [inaudível]”, mas
quando você ia ver... Você tinha o direito de assim. Mas o é uma escritura, você
não compra. “Isso aqui vendeu aqui”, mas é a mesma coisa de aforado. Não tem
direito de vender a escritura
76
.
Questionado a respeito das condições contratuais, “Seu” Raimundo Brito esclarece,
acima, como se daria a venda de um terreno depois de pago o aforamento. A ausência da
escritura dá-se em função do contrato de “aforamento”, que não tem limite de tempo.
Conhecimento e experiência se expressam na linguagem de “Seu” Raimundo.
O proprietário, o Senhor Pedro Jerônimo, aceitava e reafirmava o uso do termo
aforamento, e, ainda assim, abusava da má-fé, ao prometer a titularidade da propriedade aos
moradores. O relato de “Seu” Laudelino elucida bastante o comportamento de Pedro
76
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
46
Jerônimo: “Aí ele disse assim: ‘Eu tô vendendo, mas quando vocês pagarem vinte anos de
aforamento ficam isentos! Não tem mais aforamento!’”
77
.
O aforamento permanece em nossa análise histórica, mas de forma inter-relacionada,
complexa, em que os sujeitos destoaram de sua configuração jurídica abstrata. O caráter
arcaico do aforamento dá-se pela sua prevalência no passado, sendo ele reconhecido,
contemporaneamente, como instrumento jurídico do passado.
Novamente, utilizaremos as reflexões de Raymund Williams (1979), para entendermos
a problemática em questão. Dentro do processo cultural dominante, ou seja, quanto aos
instrumentos jurídicos de uso, produção, comercialização, aluguel da terra, e as formas hoje
empregadas e adotadas, o aforamento aparece como um resíduo cultural, uma vez que surge
relacionado com formações sociais anteriores, como descrito na Introdução deste trabalho
dissertativo, e o seu significado e valor original foram gestados nessas formações.
Sabemos que o monopólio da terra é um traço intrínseco na história fundiária
brasileira
78
, e o aforamento sempre esteve sob a direção de senhores de terras e/ou
instituições (Igreja) igualmente dominantes, muitas vezes cometendo arbítrios, e à margem de
quaisquer garantias legais.
A análise da experiência desses sujeitos e da história de seu relacionamento com a
propriedade sobre as terras do São Pedro indica que o aforamento foi um resíduo mantido
como estratégia de garantia de direitos estáveis sobre os usos daqueles terrenos. Entender e
afirmar que pagam o foro transforma-se em um caminho para a manutenção de seus direitos
sobre as pequenas glebas de terras nas quais construíram suas moradas. Ao utilizarem os
termos foro e aforamento, esses moradores parecem afirmar, cotidianamente, suas
reivindicações ao direito perpétuo de uso dos terrenos.
A representação criada sobre o aforamento conserva a tradição histórica das práticas
do aforamento em regiões de forte tradição agrícola, a exemplo da região sul da Bahia. Uma
representação de grande significado, com poder de interpretar a realidade, pois, na prática, o
pagamento indeterminado do “arrendamento” caracteriza-se como aforamento. Ganhou força
77
Laudelino Barbosa. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para a
realização deste estudo.
78
Utilizamos a reflexão de Alberto Passos Guimarães (1963, p. 33), apesar das generalizações, pois corrobora
com a nossa análise sobre o papel exercido pelos latifundiários. “Graças a esse tipo de relações coercitivas entre
os latifundiários e seus ‘moradores’, ‘agregados’, ‘meeiros’, ‘colonos’, ‘camaradas’ e mesmo assalariados,
estendendo-se também aos vizinhos de pequenos e médios recursos, alguns milhões de trabalhadores brasileiros
vivem, inteiramente ou quase inteiramente, à margem de quaisquer garantias legais ou constitucionais e sujeitos
à jurisdição civil ou criminal e ao arbítrio dos senhores de terras. Estes últimos determinam as condições dos
contratos de trabalho, as formas de remuneração, os tipos de arrendamento, as lavouras e criações permitidas, os
preços dos produtos, os horários de trabalho, os serviços gratuitos a prestar, ditam as sentenças judiciais e
impõem as restrições à liberdade que lhe convêm, sem o mínimo respeito às leis vigentes.”
47
social. Na prática, no cotidiano, o que se realizava era o aforamento e não o arrendamento.
“Eu não posso vender o terreno. Nem eu e nem ninguém. Por enquanto, aqui, que eu saiba,
ninguém tem a escritura desses terrenos.”
79
A hegemonia da classe dominante tem na tradição um segmento ativo, uma escolha
seletiva de práticas, de “um passado significativo” (WILLIAMS, 1979, p. 119). Temos,
assim, a prática do aforamento no São Pedro. Essa prática do aforamento foi articulada no
presente, reinventada, no sentido de que não guarda grandes semelhanças com o foro dos
tempos coloniais
80
. Para Pedro Jerônimo, uma escolha significativa (uma vez que aceita o uso
social do aforamento e caracteriza os terrenos como aforados) para garantir a propriedade das
terras e realçar poder e prestígio.
A permanência da posse e não do direito efetivo, e a ausência de títulos de escritura
são tensões e instabilidades que partem da interpretação do aforamento e que correspondem à
sua realidade concreta. O aforamento enquanto signo não desvirtua os moradores do
entendimento e compreensão de todo o dilema do loteamento “arrendado”. Assim esclarece
Williams (1979, p. 46):
O verdadeiro elemento significativo da linguagem deve, desde o início, ter uma
capacidade diferente: tornar-se um signo interior, parte de uma consciência ativa e
prática. Assim, além de sua existência social e material entre pessoas reais, o signo é
também parte de uma consciência constituída verbalmente, que permite aos
indivíduos utilizá-lo por iniciativa própria, seja em atos de comunicação social, seja
em práticas que, não sendo manifestamente sociais, podem ser interpretadas como
pessoais ou privadas.
A forte presença da oralidade como expressão maior de comunicação entre os
populares em Itabuna é atribuída à influência direta da presença das culturas negras e
79
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
80
O foro vai se constituir como um elemento burocrático de controle da apropriação territorial para a Coroa
portuguesa. Os particulares também se utilizaram desse mecanismo jurídico em outra dimensão: para auferir
rendas, tendo a Igreja (ordens religiosas) como agente modelador do espaço urbano. Fania Fridman (1999, p. 41)
afirma ser o patrimônio religioso responsável pela formação urbana brasileira. A experiência do foro como
mecanismo de renda data dos séculos XVIII e XIX, quando os “foros e aluguéis recebidos pelas propriedades,
localizadas no núcleo antigo da cidade, superaram os rendimentos de seus engenhos”. “Entre 1810 e 1821, a
Santa Casa da Misericórdia adquiriu prédios na rua da misericórdia e requereu a posse do terreno da chácara do
Hospital Real Militar para ampliar seu cemitério, em troca da garantia de sepultamentos gratuitos aos militares.
Segundo uma listagem preparada em 1838, suas propriedades de raiz somavam mais de duas centenas de casas
de sobrado e casas térreas, além de 78 terrenos aforados” (FRIDMAN, 1999, p. 47). Essas propriedades eram
pertencentes às ordens e confrarias cariocas. O comércio de aluguel de terrenos por particulares, permitindo
apenas a posse (o uso), constituiu um elemento fundante para a proliferação de edificações de casas e,
consequentemente, aberturas de ruas, o que denota uma expansão urbana.
48
indígenas (kamakã-mongoió, pataxó)
81
e seus contatos (trocas culturais) que se deram ao
longo de anos. No século XX, com o advento da urbanização em Itabuna, mais precisamente
na década de 1940, a periferia foi o lugar social para os excluídos: dos índios destribalizados,
em função da perda da terra; dos negros, tendo em vista o caráter conservador da abolição;
dos brancos, pobres e sertanejos. Todos se amalgamaram enquanto grupo social explorado em
sua força de trabalho.
Dessa forma, trata-se uma região marcada por uma estrutura latifundiária e
monocultora, que tem, no seu processo de urbanização, elementos do mundo agrário. Os
impulsos e as forças do mercado e seus agentes conduziram a uma urbanização orientada
pelos interesses particulares e imobiliários, ficando o Poder Público municipal itabunense à
mercê dos interesses privados, sem poder parar, conter, frear ou planejar essas ações.
Não procuramos entender a permanência social do aforamento na linguagem das
classes populares sob a ótica de um modelo cultural homogêneo, ou de uma cultura sempre
“imposta” a elas. Se utilizássemos esses modelos, não compreenderíamos tal fenômeno.
No Brasil, o aforamento foi originário do poder oficial da Coroa portuguesa, da cultura
dominante e apropriada por diferentes sujeitos sociais. A própria existência do pagamento in
natura do foro, em algumas localidades do Brasil, é um exemplo tácito da apropriação da lei
em um sentido radicalmente diferente da sua forma original
82
. O aforamento foi assimilado,
também, de acordo com os modos de vida dos sujeitos. É nesse movimento dinâmico e
circular da cultura que entendemos o aforamento.
Com muita freqüência idéias ou crenças originais são consideradas, por definição,
produto das classes superiores, e sua difusão entre as classes subalternas um fato
mecânico de escasso ou mesmo de nenhum interesse; como se não bastasse,
enfatiza-se presunçosamente a “deterioração”, a “deformação”, que tais idéias ou
crenças sofreram durante o processo de transmissão (GUINZBURG
, 2006, p. 12).
Carlos Guinzburg (2006, p. 10), ao defender o conceito de circularidade cultural
dentro de uma estrutura social dicotomizada (cultura hegemônica e a cultura popular), não
considera que, nas transmissões e/ou assimilações culturais, haja por si um
empobrecimento cultural, e sim “influências recíprocas”. A apropriação dá-se de forma
81
Antonio Guerreiro de Freitas e Maria Hilda Baqueiro Paraíso (2001), a partir das observações descritas e
narradas dos viajantes naturalistas Spix, Martius e Wiedneuwied, confirmam a presença dessas etnias na região
de Ferradas, local de surgimento dos primeiros núcleos populacionais de Itabuna, no século XIX.
82
Para Felisbello Freire (apud GUIMARÃES, 1963, p. 19), o foro originalmente representou: “uma grande
revolução que se operou no direito de propriedade territorial, que na zona agrícola do país passou, como em
muitas vilas e cidades, ao simples domínio útil. O proprietário agrícola, que até então tinha sobre suas
propriedades direito pleno, transformou-se em enfiteuta do Estado”.
49
diferenciada, de acordo com o modo de vida de cada grupo, reinterpretando de acordo com os
contextos históricos. O aforamento ganha assim, diferentes contornos, sentidos e significados
a partir das “influências”.
As práticas sociais desses sujeitos revelam modos culturais que explicam suas ações,
pensamentos e condutas frente ao loteamento “aforado”. De fato, não encontramos evidências
empíricas documentais nem nas narrativas dos entrevistados a respeito de grandes
manifestações (exceto o seminário de agosto de 2002, que não conseguira abolir o
pagamento) contrárias ao pagamento do foro, desde o surgimento do loteamento “popular”.
Como descrevem os moradores, o pagamento não chegava a ser irrisório, mas era um
valor que “dava pra pagar”
83
. No entanto, não era muito substancial. Hoje, se paga R$ 36,00
(trinta e seis reais), valor referente à metragem da testada (frente do terreno), que, em média,
mede 6 metros. O foro é cobrado apenas tendo a testada como referência. O valor corresponde
a um botijão de gás
84
.
Quando notamos que os sujeitos das classes populares atribuem determinado valor à
moradia, estamos indo muito além da sua importância física e habitacional, chegando ao
significado construído historicamente ao ato de morar. Constituiu-se em um direito humano
fundamental, presente na cultura social, enquanto estrutura cognitiva, enquanto valor de uso e
não de troca, valor social e não de mercado, principalmente por aqueles em condições
socioeconômicas desfavoráveis, em constantes situações de vulnerabilidades. Valor criado e
aceito por todo o conjunto social, valor universal, com características condizentes com o
modo cultural e a condição de classe. Hoje, a moradia, além de valor, é um direito
constitucional básico.
Percebe-se, por meio da trajetória dos sujeitos, o fim último em construir uma casa,
uma morada, uma residência fixa. Dos que trabalhavam em fazendas e, por motivos de
desemprego e/ou pessoais, vieram para a cidade, dos que casaram e constituíram família, dos
que moravam de aluguel
85
e queriam sair do pagamento mensal, dos que possuíam uma renda
baixíssima e não poderiam morar de outra forma que não fosse pela construção de um mísero
barraco.
A memória de “Dona” Josefa é elucidativa quanto ao esforço e a realização do seu
sonho, ao descrever, também, o material usado por seus vizinhos na construção de suas casas:
83
Germínio Cardoso dos Santos, 75 anos, aposentado, morador 30 anos. Entrevista concedida ao autor, em
dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
84
Utilizamos o gás de cozinha de 15 quilos como referência, por ser um utensílio doméstico acessível às classes
populares.
85
Supomos que um aluguel não abarque menos do que 20% (vinte por cento) a 30% (trinta por cento) das rendas
dos moradores.
50
“Os barraquinhos cobertos de palha, de taipa e Jesus me ajudou. Lavei de ganho [lavar roupa
para terceiros] em Coaraci que foi 41 anos. Minhas patroas aqui me ajudaram e sei que fiz
minha casinha”
86
.
Nem pensar! Quando eu vim pra qui, isso aqui foi feito de pau-a-pique [parede feita
de ripas ou varas entrecruzadas e barro; taipa]. Essas madeiras aqui que eu trouxe
pra fazer isso aqui eu não tive nem condições de ter carro. Eu tinha o carro pra
trazer as madeiras, mas não dava pra vim até o local. E sempre parava em Santa,
mas de 300 metros de distância. De o carro deixava a madeira, o madeiramento.
De lá pra cá a gente conduzia na força bruta mesmo
87
.
O esforço, a luta, o material rudimentar empregado, isso é o que se interpreta da
memória de “Seu” Paulino. Enfim, todos apresentam o aluguel do terreno no loteamento
como ponto de partida para uma moradia condizente com suas realidades e possibilidades
econômicas. Excluídos totalmente do mercado formal, a informalidade foi a solução. O
“aforamento” foi um meio possível, que conciliou o valor atribuído à moradia urbana
(habitação) às possibilidades financeiras apresentadas.
Os recibos são os únicos documentos que podemos definir como contrato. Ainda que
as condições contratuais fossem precárias, nenhum morador apresenta um contrato formal de
arrendamento. Formalidade segundo as recomendações legislativas, ou seja, registro em
Cartório. As condições formuladas, estabelecidas e aceitas entre loteador e loteados
apresentaram-se, na prática, para os moradores, como garantia ao direito real de uso sobre a
coisa alheia. A temporalidade do contrato não podia ser estabelecida, devido às condições
econômicas, já que a construção da casa levava anos e não era possível estipular o seu
término.
Tal realidade conduzia para o regime jurídico conhecido como aforamento ou
enfiteuse, como já confirmado anteriormente, que “confere a alguém, perpetuamente, os
poderes inerentes ao domínio, com obrigação de pagar ao dono da coisa uma renda anual e a
de conservar-lhe a substância” (GOMES, 1958, p. 397). Uma vez entendido e representado na
linguagem e consciência enquanto direito de uso, gozo e disposição dos frutos, não haveria
outra oportunidade para a construção de suas moradas.
Através das narrativas, percebemos que as contestações referem-se mais à falta de
infraestrutura, que ora seria responsabilidade do loteador, ora da Prefeitura, do que ao
86
Josefa Emília Varjão. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2008, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
87
Paulino Bispo dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2008, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
51
pagamento do foro. O valor atribuído ao morar, residir, habitar
88
estava em primeiro plano, e,
em segundo, ficavam as questões infraestruturais e o pagamento do foro. Isso não significa
afirmar que todos os que se candidataram a morar no loteamento São Pedro se sujeitaram a
seguir o primeiro e segundo planos nessa sequência e ordem, ou foram conformistas. A priori,
os moradores não tinham conhecimento do conjunto de ilegalidades do loteamento, a ponto de
julgá-las e tomar uma posição contrária. Sustentamos que o inverso também não mudaria a
postura tomada pelos que migraram para aquele território. Qualquer pensamento apressado
que venha a atribuir uma posição de acomodação para esse processo inicial seria
desconsiderar os valores e a historicidade do loteamento.
Eu nunca participei de protesto contra o aforamento. Até porque eu não posso negar
que a mim nunca [...] Eu parei de pagar, eu continuei pagando, paguei, paguei. Eu
não deixei de pagar, eu deixei de pagar porque começaram a falar que tal, que é
injusto... Que tal, que veio com aquelas conversas que disseram que iam passar pra
vende o terreno e tal, mas eu não sei, ninguém passou pra vende terreno
89
.
O não pagamento do foro por alguns moradores pode ser interpretado como uma
forma de resistência, se a entendermos como atitudes ou posições contrárias a uma
determinada ordem vigente ou a uma lógica estabelecida. A tradição política historiográfica
nos acostumou a ver as resistências, sempre por meio de revoltas e convulsões sociais, como
se fossem uma regra, uma relação causal imediata. As memórias apresentadas pelos
moradores denotam múltiplas resistências em sua vida cotidiana. “Porque tem pessoas que
não pagam o aforamento. Nem pagam o IPTU e nem pagam o aforamento.”
90
Na década de 1980, com a consolidação do loteamento em termos infraestruturais, os
moradores passaram a se organizar e se mobilizaram por melhorias no São Pedro. Na cidade
de Itabuna, o São Pedro foi o primeiro bairro a criar uma organização associativa de luta por
políticas sociais e urbanísticas no bairro, a Associação de Amigos do Bairro
91
. Nos anos
finais da década de 1980, com o debate público sobre os direitos sociais e a implementação
constitucional da função social da propriedade, aceleraram-se as discussões a respeito da
88
“Um dos temas da Exposição Mundial de 1889 não é a história da ‘casa através dos tempos’? Das cavernas da
pré-história aos tipos-modelos de casas operárias, todos são convidados a seguir o pressuposto da vida privada
como uma das conquistas da Humanidade. Progressivamente constrói-se a imagem da home como signo e
condição indispensável da felicidade – uma lareira e um coração” (PERROT, 1988, p. 124).
89
Paulino Bispo dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2008, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
90
Raimunda Alves Biano, 77 anos, moradora 30 anos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007,
por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
91
Segundo o “Informativo São Pedro: sem medo de ser feliz”. Itabuna, ano I, ago. 2002. Mimeografado.
52
legalidade do “aforamento”. Mas, em condições gerais em termos de comportamento político,
as reações individuais mais comuns eram as das contestações apenas no discurso cotidiano.
Também ao calar-se diante do inimigo, ou outras ações aparentemente
“conformistas” podem ser tomadas como parte importante das estratégias de luta e
sobrevivência, por que podem garantir um fôlego extra para que esses moradores
repensem suas estratégias diante da incerteza do despejo, da prisão e da
impossibilidade de negociações dos lotes (GONZALES, 2005, p. 11).
As inquietações mais agudas dos moradores do bairro São Pedro, seus
questionamentos, suas dúvidas, o uso inadequado ou não do termo aforamento e as atuais
suspeitas quanto ao pagamento do “foro” partiram do presente, remetendo-nos a uma busca de
respostas no passado e um retorno ao presente, para oferecer uma interpretação. Presente-
passado-presente estão em constante movimento: são os motores do conhecimento histórico.
A história do aforamento deve ser entendida como processo, onde um conjunto de
atividades inter-relacionadas em temporalidades diferentes pode suscitar conflitos e ritmos de
vida diferenciados.
O foro enquanto instrumento jurídico é histórico e apresentou vários sentidos a
depender do contexto social que lhe fora pertinente. Uma vez assimilado pelos diferentes
sujeitos, ganhou corpo e transformou-se em um mecanismo não de auferimento de renda,
como também contribuiu para a formação do espaço urbano.
O aforamento no Brasil teve vários significados e correspondeu às dinâmicas das
atividades econômicas e imobiliárias, tanto rurais quanto urbanas. Este estudo procurou
abordar uma legislação vista como processo, que não se prendeu à “estrutura”, pois seus usos
e seu movimento ultrapassaram as funções primárias a que estavam submetidos. Os sujeitos
históricos em Itabuna deram a este instituto jurídico, o foro, uma interpretação diferente, ao
associarem-no ao arrendamento.
53
2 AS EXPERIÊNCIAS DE MORADIA E AS AÇÕES EM COMUM
“A capelinha veio junto com o bairro.”
(“Seu” Raimundo, morador do São Pedro)
Neste capítulo, apresentamos a mobilização e as experiências de vida dos moradores
do São Pedro na luta pela construção do bairro como pedaço do espaço urbano que se
constitui em matriz da vida social e lugar de realização do vivido. Buscamos acompanhar as
práticas políticas, religiosas e culturais que fizeram com que os moradores levassem adiante
suas necessidades, aspirações, vontades e desejos. O sentido do aforamento, neste capítulo,
aparece nas práticas, uma vez que a posse duradoura permitia a construção de suas casas.
A experiência social foi a categoria-chave por meio da qual analisamos os materiais e
problematizamos a produção de sentidos e significados atribuídos pelos moradores ao vivido.
Sujeitos que, por meio de suas intenções conscientes, moldaram o regime jurídico e o espaço,
conforme seus modos de vida. Intenções que não foram um mero reflexo de uma conjuntura
de mercado imobiliário excludente ou da negligência política governamental.
Essa experiência, que é humana e histórica, de trabalhadores urbanos e rurais,
autônomos e desempregados, esteve intrinsecamente relacionada à cultura dos moradores.
Sendo assim, fazemos uso das reflexões teóricas de Edward Palmer Thompson (1981, p. 189),
que afirma que eles “também experimentam sua experiência como sentimento e lidam com
esses sentimentos na cultura, como normas, obrigações familiares e de parentesco, e
reciprocidades, como valores ou (através de formas mais elaboradas) na arte ou nas
convicções religiosas”.
Em termos gerais, a história do bairro São Pedro não é muito diferente da história de
espaços de moradia das classes pobres no Brasil, em diferentes momentos e regiões. Percebe-
se um quadro quase imóvel no Brasil, com pequenas mudanças quanto ao direito à cidade e à
moradia, desde o Congresso Brasileiro de Habitação, em 1931, em que se denunciaram as
péssimas condições de moradia dos trabalhadores. Anteriormente ao Congresso, os operários
também haviam denunciado e conclamado por casas populares.
Os tipos de materiais usados nas construções foram (e ainda são) os mais diversos
possíveis, assim como os espaços ocupados para esse feito. Então, constrói-se em áreas
inóspitas, sobre o mar (favelas flutuantes, palafitas), em áreas de encostas, de proteção e de
54
reserva ambiental (manguezais), morros, à beira de ferrovias e rodovias. As condições
econômicas e a ineficácia de políticas habitacionais impelem os moradores a adaptarem-se
aos espaços mais inóspitos possíveis.
A cidade aparece como um mosaico, onde os mais pobres ficam altamente segregados.
As primeiras casas construídas no São Pedro eram “barracos”
92
, “barraquinhos”, “casas de
taipas”
93
, construídas em meio às “capoeiras”
94
. Os primeiros moradores do São Pedro
superaram as condições inóspitas em favor da moradia. no final da década de 1980 foi que
os materiais empregados nas construções passaram a ser predominantemente blocos.
Não são poucos os escritos a respeito da moradia e da habitação, e, talvez, a princípio,
este trabalho constitua mais um escrito. Mas, se atentarmos para a singularidade da
experiência vivenciada por esses sujeitos, nota-se que os mesmos não foram passivos e que,
apesar de não terem conhecimentos jurídicos profundos, interpretaram essa experiência de
moradia ao seu modo, o que possibilitou algumas ações políticas a seu favor (como o decreto-
lei já citado e que será discutido no terceiro capítulo).
A passagem de um bairro notadamente rural para um bairro urbano, assim o
configurando, foi fruto das intermináveis intervenções dos moradores em suas ações coletivas,
em busca de um espaço habitável e socialmente digno.
Não foi sob a rubrica do direito à moradia (condição quase sempre abstrata no Brasil),
ou sob o efeito de uma política habitacional objetiva, que essas pessoas exerceram o direito de
morar. a partir do momento em que enfrentaram os imperativos socioeconômicos, por
meio de esforços individuais e coletivos, é que foi possível concretizar a construção de suas
moradas. A experiência compartilhada viabilizou solucionar questões que outrora o loteador e
o Poder Público municipal não solucionaram.
Afirmamos ser ímpar essa experiência, porque esses sujeitos nunca vivenciaram isso
antes. Os seus relatos indicam as mais diversas localidades e regiões de onde migraram, sendo
que nenhum dos entrevistados morou anteriormente em loteamentos ou algo assemelhado.
92
Josefa Emília Varjão. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
93
Domingos Lourenço dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
94
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
55
Muitos vieram de cidades próximas à Itabuna: “Nasci ali em Lomanto Júnior, no Barro
Preto. E aí, depois, eu fui morar na roça, e depois eu vim pra cá”
95
. “De Coaraci, meu pai era
empregado de uma fazenda.”
96
“Eu nasci em Inema, Distrito de Ilhéus, Fazenda de
Cacau.”
97
“Eu vim de Jequié aqui pra Itabuna.”
98
Dos que moravam na cidade ou em distrito muito próximo: “Eu morava aqui mesmo.
Morava no Fátima”
99
. “Eu nasci em Ferradas. Eu nasci numa fazenda que pertencia a
Ferradas.”
100
E, ainda, dos que vieram de cidades mais distantes e experienciaram morar em outras
localidades até chegarem ao São Pedro:
Eu nasci em um lugar entre Itagibá e Aiquara, nas fazendas. Depois, eu fui para
Ipiaú, passei bastante tempo . Cheguei em Ipiaú, me casei em 1956. Em 59, eu
tornei a voltar para Campolina, perto de Itagibá, pra fazenda desse povo aí de Dr.
Lomanto, Dr. Lélis Brito. Passei uns tempos, de fui para São Paulo, passei 5
anos em São Paulo, depois voltei para Ipiaú e de fui para Jequié. Quando foi em
Jequié, em 1967, naquela enchente grande, eu trabalhava aqui, mas tava morando
em Jequié. Eu tava trabalhando aqui, porque eu vendia confecção aqui, em Ilhéus e
Uruçuca, mas a família estava em Jequié. E depois eu cheguei aqui em 14 de março
de 67
101
.
Migrações e instabilidades são constantes nas narrativas, com trajetórias sociais
marcadas por diferentes domicílios. Mudavam de domicílio porque mudavam de emprego,
porque estavam desempregados, porque casavam, porque queriam se livrar dos aluguéis.
A maioria dos moradores nasceu em fazendas, teve passagens em outros municípios
circunvizinhos, ou até mesmo em São Paulo, adquirindo outras experiências e habilidades
profissionais.
95
Germínio Cardoso dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
96
Josefa Emília Varjão. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
97
Domingos Lourenço dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
98
Domingos Barbosa dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
99
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
100
Raimunda Alves Biano. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
101
Laudelino Barbosa. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para
a realização deste estudo.
56
Mapa 01: Localização da cidade de Itabuna e das cidades circunvizinhas, no sul do estado da Bahia.
Fonte: PLANARQ (2001, p. 15).
De todas as narrativas que ouvimos, nenhum dos depoentes apresentou tamanha
trajetória quanto o “Seu” Laudelino. Acreditamos ser resultado dessas vivências, a construção
de sua olaria, seu primeiro empreendimento no São Pedro, fundamental para as construções
das casas. A passagem dos barracos para as casas de tijolos contou com o material de
57
construção produzido nas olarias de “Seu” Laudelino. “A maior parte das casas desse bairro
foram construídas com o meu tijolo. O meu tijolo é um tijolo igual a aço, muitas alvenarias
foram feitas com o meu tijolo.”
102
No tocante às migrações, uma história semelhante à de “Seu” Laudelino é a do “Seu
Domingos Barbosa. Nasceu em Amargosa, foi para Jequié e depois chegou a Uruçuca, onde
trabalhou em fazendas e “aí, depois, eu vim descendo, né?”, chegando à cidade de Itabuna em
1962, onde morou nos bairros Mangabinha, São Caetano e Banco Raso. Trajetória que o
mesmo descreve como descida, da região norte da Bahia para o sul.
Em meio às migrações, “Seu” Raimundo Brito aprendeu uma profissão, e fez uso dela
para a construção de sua própria casa, de casa de amigos e da igreja. Nasceu em Rio Real,
norte da Bahia, depois veio para Itabuna trabalhar em roças, e depois passou a morar em
bairro Fátima. “Depois eu fui trabalhar de servente de pedreiro e foi onde eu aprendi [a
profissão]. Quando eu morei no bairro de Fátima, eu tinha família. Foi quando em 68 [...]
comprei e comecei a fazer o barraquinho e vim pra cá.”
103
Para muitos, o desempenho econômico movido pela produção em alta do cacau e a
imagem de “capital do cacau” foram elementos convidativos para a promessa de uma vida
melhor. Itabuna era um polo maior, tinha mais aquela questão comercial e aquela coisa
toda, né, escoamento maior de relação comercial.”
104
Este foi o quadro econômico-social que
atraiu “Seu” França.
Esses diferentes sujeitos, de trajetórias distintas, encontraram-se no mesmo lugar,
foram se conhecendo ao longo de meses, anos, e passaram a interagir na luta pela construção
de suas casas. Morar em um bairro “aforado” não só foi a solução para o problema da
moradia, como, também, a principal forma encontrada por esses sujeitos, constituindo-se em
uma tomada de ações coletivas para enfrentar as condições inóspitas em que se depararam.
Não era o que esperavam, mas tornou-se a única solução possível. A solidariedade e o
compartilhamento nas ações foram resultados dessa experiência que, aliada à cultura desses
sujeitos, configurou-se nas atitudes que vamos passar a analisar em todo este capítulo.
O loteamento não apareceu para esses sujeitos como efeito de uma propaganda
massiva, mas sim, por informações soltas, esporádicas, e pelo impacto da enchente de 1967.
102
Laudelino Barbosa. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para
a realização deste estudo.
103
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
104
Raimundo França dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
58
O aluguel de terrenos foi apenas o ponto de partida para a concretização da moradia;
foi necessário compartilhar a solidariedade para contornar as dificuldades apresentadas. A
solidariedade surgiu da necessidade comum e pertinente a todos, dadas as condições do
loteamento, tanto para a construção de suas moradas quanto para facilitar as vias de acesso ao
bairro e a iluminação. “Seu” Germínio recorda muito bem o quanto se empenhou para
construir sua casa:
Aí depois, a comunidade emprestava dinheiro pra gente comprar o material e fazer a
casa. Ainda tomei dinheiro. Tinham quatro pedreiros, todos os quatro amigos. Eles
me ajudaram aqui em dia de domingo pra gente fazer. E eles vinham e me ajudava.
Aí, construí todinha dessa forma. Eles me ajudaram até na metade da casa e o resto
da casa eu mesmo sem ser pedreiro, mesmo eu... dei uma ajeitada (risos). Levei 10
anos trabalhando com carro-de-mão. Porque naquele tempo não entregava em
domicílio. Quem comprava mercadoria tinha que pegar no armazém. Eu trabalhei
uns 10 anos. Nessa época foi quando eu tomei o dinheiro pra construir isso aqui e
paguei todinho trabalhando com carro-de-mão. Todo mês eu pagava a prestação.
Paguei tudo trabalhando com carro-de-mão
105
.
A ação solidária dos amigos e o trabalho nos dias de folga foram fundamentais para a
construção de sua casa. “Seu” Germínio também compartilhou sua solidariedade ao se
lembrar de que também ajudou:
Ajudei. Teve em cima nesse lado de lá. em cima, teve uns mutirões pra fazer
casa. A Prefeitura dava o material
106
para o povo construir. E ajudei muito em
cima no alto
107
. Tudo de graça. Um ajudava um e o outro ajudava o outro e, por fim,
nós ainda construímos muita casa lá em cima
108
.
Essas ações não são resultado apenas da contingência econômica a que esses sujeitos
estavam impelidos. Fruto da luta pessoal e coletiva, as construções das casas através do
regime de mutirão nasceram da experiência social vivida nesse loteamento repleto de
irregularidades e regido por um instituto jurídico complexo que os moradores pouco
procuraram conhecer em seu sentido lato. A função social da moradia enquanto espaço
necessário para todos e um direito urbano é acentuada no regime de mutirão, na colaboração e
na ajuda recíproca.
105
Germínio Cardoso dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
106
“Projeto Unidos Teremos Casas”. Lei Municipal 1.492, de 28 de junho de 1990, publicada no Jornal
Oficial do Município de Itabuna, sem paginação.
107
O alto se refere à outra parte do bairro, de altitude mais elevada, um morro.
108
Germínio Cardoso dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
59
Seguindo as inovações nos estudos das lutas sociais realizados por Eder Sader (1988),
não procuramos captar a dinâmica das construções das casas apenas pelas condições objetivas
que se apresentavam para os moradores (política salarial “achatada”, inflação, mercado de
aluguéis inacessível), mas analisar especificamente seus imaginários, identificando o que os
singulariza na sociedade.
Alguns estudos marxistas (ortodoxos) procuraram analisar o lugar da moradia apenas
como a base para a reprodução da força de trabalho, o lugar de recomposição das energias dos
trabalhadores. Estamos de acordo com a observação e a orientação dos estudos de Maria Célia
Paoli (1984, p. 100), ao “incluir a reprodução da vida operária como cultura, como política,
como sociabilidade – e não apenas como reposição estrita da energia física do trabalhador”. O
nosso estudo apresenta experiências sociais vivenciadas no espaço da moradia, em que lutas,
disputas, reuniões e mutirões foram realizados no tempo de recomposição física dos
trabalhadores.
Um território também constrói uma identidade, lugar onde “o sujeito constitui espaços
e é constituído por eles” (ROLNIK apud PUC-SP, [s.d.], p. 07). Para Michel de Certeau, Luce
Giard e Pierre Mayol (1996, p. 40):
Ora, o bairro é, quase por definição, um domínio do ambiente social, pois ele
constitui para o usuário uma parcela conhecida do espaço urbano na qual, positiva
ou negativamente, ele se sente reconhecido. Pode-se, portanto apreender o bairro
como esta porção do espaço público em geral (anônimo de todo o mundo) em que se
insinua pouco a pouco um espaço privado particularizado pelo fato do uso quase
cotidiano desse espaço.
Nessa parcela do solo urbano, estabelecem-se também relações de identidade,
sentimento de pertença, de posse, e a base constituinte das relações sociais.
Assim como sinalizam os estudos de Michelle Perrot sobre os operários franceses no
final do culo XIX, os homens e mulheres que migraram para o São Pedro, a partir de 1967,
“atribuíram mais valor à moradia do que à cidade” (VERRET apud PERROT, 1981, p. 101).
A moradia era uma condição fundamental para a construção e a reconstrução de uma vida
urbana.
A princípio, a inserção social localizava-se no bairro, e o direito à cidade e o acesso
aos serviços urbanos, colocados como metas, foram obtidos através de pressões e lutas. A
cidade de Itabuna não apareceu, em sua forma completa e total, dotada de condições
infraestruturais que atendessem às expectativas sociais dos migrantes.
60
De início, para esses sujeitos, a irregularidade fundiária sob o regime jurídico de um
instituto arcaico era o que a cidade ofertava. Foi na negociação, no conflito, nas ações ilegais,
na solidariedade e na experiência que os sujeitos e o espaço foram transformados. Diferentes
temporalidades, conflitos e tensões estavam presentes na cidade. Sentir-se integralmente
pertencente à cidade foi um longo processo. A expressão “vou à cidade”, utilizada
cotidianamente por moradores de bairros periféricos, evidencia muito bem o quanto
determinado lugar não se sente constituinte do espaço urbano.
“Não tinha nada. Era capoeira mesmo. Poucos moradores tinham no bairro. [...] Eu
mudei e cheguei aqui em 1970, mas não tinha rua cortada, não tinha luz
109
. Para o Poder
Público municipal, o loteamento não passava de uma favela sem o mínimo de organização,
ocupada por sujeitos muito pobres. Até as primeiras intervenções da Administração Pública,
que datam do fim da década de 1970, o bairro não era bairro e não existia para o Poder
Público municipal.
Tal temporalidade vivenciada por esses sujeitos denota a ausência de quase tudo,
contra a cidade que evolui e cada vez mais é dotada de bens e serviços. É quase impossível
pensar a cidade da segunda metade do século XX sem energia elétrica, a grande estandarte da
modernidade, principalmente se aquela se autodenomina a “capital do cacau”. Até o início da
década de 1980, no São Pedro, não tinha luz, e a integração da cidade à iluminação, e aos
bens e serviços que esta oferecia, sempre foi inconclusa. restavam a solidariedade e o
trabalho em conjunto, como relata “Seu” Raimundo Brito:
E começamos por botar fim na capoeira [vegetação rasteira] e os moradores se
reuniram quando pedia por causa do seu pai mesmo, que foi um dos primeiros
moradores que chegou aqui, contratou e que chegou aqui. Seu Francisco, Tonho
Pituba, uma série de funcionários da Prefeitura, da Coelba, de todo mundo. O que se
faz? E a Coelba diz: “e se ficar tudo no escuro?Nós ajuntamos e como é que faz
com a Coelba através dos funcionários de da própria Coelba com o grupo que já
estava chegando e fazendo barraquinhos, se habitando, fazendo estala, se arranjasse
os postes ela puxava a gambiarra
110
.
Quanto aos postes, “Seu” Raimundo Brito aponta que um candidato a prefeito
“prontificou-se pra passar aqui, mas andou descabelando aí uns pouquinhos de votos”
111
.
Havia, no início da década de 1970, um número significativo de moradores que
trabalhavam em empresas públicas estatais prestadoras de serviços públicos, tais como de
109
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
110
Idem.
111
Idem.
61
água e luz. Além da mobilização coletiva, tinha também o empenho desses funcionários,
experientes profissionais de eletrificação, pressionando e articulando junto aos seus diretores.
Evidencia-se que, em suas lutas por melhores condições de vida e de acesso a direitos e aos
serviços urbanos, esses moradores não só se valem de seus conhecimentos – saber fazer
bloco, ensinar a subir parede, fazer a ligação elétrica como também das relações e conexões
informais que mantêm com a cidade legal. Assim, por exemplo, a conquista de iluminação
para o bairro deveu-se muito mais ao fato de vários dos moradores serem empregados em
concessionárias de luz e de outros serviços do que à luta via solicitação formal dos serviços.
Nesse caso, foram as conexões informais com a cidade legal que, socializadas, se constituíram
como caminho para a conquista de direitos.
Nota-se que empresas públicas e Poder Público municipal atuaram conjuntamente em
um loteamento que, oficialmente, não existia nos marcos da legalidade. para termos uma
dimensão temporal do descaso para com os moradores do São Pedro, o bairro da Conceição,
vizinho ao São Pedro, estava incluso no serviço de ampliação da iluminação pública em
1936.
Na época, foi um candidato, mas ele perdeu para o finado Miltinho. Ele era um
comerciante aí e o pessoal aí começou pedir, a juntar e pedir. Foi fazendo postes [...]
Aí, foi ajuntando morador e foi quando veio. Esse foi o que mais trouxe luz pro
lado de cá. Começou a decidir e aumentar o lado de cá. Foi o Oduque.
meteu as máquinas e foi puxando e foi pedindo, foi fazendo “gambiarra”, e foi
quando a Valdeci, quando a Prefeitura, que nós entramos pra Prefeitura cortar as
ruas, ela vinha e instalava a luz. Isso foi junto naquele tempo a união dos moradores.
Não tinha política suja como está tendo hoje de todo lado. E nós chegamos a um
ponto que adquirimos luz [...]
112
.
Aqui surge a primeira menção narrativa à intervenção do Poder Público no São Pedro.
O prefeito José Oduque Teixeira (Zé Oduque)
113
governou entre os anos de 1973 a 1977. A
articulação entre os moradores e a Prefeitura, segundo “Seu” Raimundo Brito, seria pela via
direta, por meio da união dos moradores por um objetivo comum. Os benefícios poderiam ser
também moeda de troca: em troca das intervenções, o voto, uma vez que os moradores se
tornavam potenciais eleitores. Mas, “Seu” Raimundo parece deixar claro que esse esquema
não funcionava.
112
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
113
Candidato novamente a prefeito em 1992, ficou em segundo lugar obtendo 19.159 votos, 25,09% (vinte e
cinco vírgula zero nove por cento) dos votos válidos pelo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), segundo o
Cartório da 28º Zona Eleitoral da cidade de Itabuna (Fonte: PREFEITURA MUNICIPAL DE ITABUNA.
Itabuna em números. Itabuna: Prefeitura Municipal-Coordenadoria de Governo e Assuntos Estratégicos, 1996, p.
82).
62
Geograficamente, a morfologia do bairro apresenta um relevo montanhoso, sendo que
a parte plana (que desde o início do loteamento foi destinada a uma praça pública) fica entre
dois morros. A primeira fase da ocupação deu-se na parte de menor altitude. Essa explicação
técnica é para entendermos que, na parte de maior altitude (morro, que os moradores
denominaram de Alto do Urubu), as dificuldades para morar e urbanizar foram muito maiores.
De ocupação mais tardia, mas, ainda assim, sem a atenção devida do Poder Público
municipal em suas sucessivas administrações, a parte de maior altitude também encontrou,
nas ações dos moradores, a sua urbanidade. A iluminação pública só chegou através da
mobilização, que segundo “Seu” Domingos Lourenço, teve a participação de todos:
Iluminação veio depois também. Outra etapa. Outra etapa. A iluminação foi a
Coelba. Eu fiz um abaixo-assinado aqui no bairro, todo mundo assinou pedindo uma
ligação, né? Aí, eu não me lembro do doutor, acho que Doutor Renato, gerente da
Coelba. Lembro da mulher que chamava dona Romilda. levou um ano, e dona
Romilda falou: “Seu Domingos, vou sair de férias, mas o senhor vai tá de parabéns”.
Eu disse “Por que, dona Romilda?“Porque segunda-feira o carro da Coelba vai
lá pra cavar o buraco
114
.
O abaixo-assinado encaminhado pelo “Seu” Domingos revela o quanto a expansão
elétrica para o bairro foi dificultada devido ao seu aspecto ilegal. “Todos do bairro assinavam.
Fiz um abaixo-assinado chamando uns 100 moradores, todos assinaram.”
115
A presença dos
serviços públicos nas áreas ilegais foi resultante da mobilização dos ocupantes. Dona”
Vera
116
também reivindica para si a ação de ter trazido luz elétrica, desta forma encontramos
uma memória individual em disputa. Em disputa pelo seu papel social no presente.
“Seu” Domingos notou que a simples entrega do abaixo-assinado não resultaria na
concretização do sonho. Depois de alguns meses aguardando a resposta da companhia de
eletrificação, ele foi lá, e constatou o estado da burocracia:
Tava embaixo. Tinha pelo menos umas 20 por cima ainda. Pego de baixo e boto
em cima. Tiro os de cima, boto embaixo. Segunda-feira o carro ia estar lá. Aí,
quando chego segunda-feira, eu fui confirmar, né? Eu sabia que ela tava de férias.
Chego segunda-feira. “Doutor Renato, como é que anda o abaixo-assinado do São
Pedro, do outro lado de lá?” “Deixa eu olha aqui também”. Ele não sabia o que tinha
acontecido, e disse “Domingos, o senhor de parabéns!” Digo: “Por quê?”. “Já
aqui em cima”. Digo: “Não acredito!” Segunda-feira o carro vai ta lá”. Aí, né,
segunda-feira o carro tava lá cavando buraco, tirando tudo
117
.
114
Domingos Lourenço dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta
de material para a realização deste estudo.
115
Idem.
116
Vera Lúcia, ex-presidente da Associação dos Moradores do São Pedro. Entrevista concedida ao autor, em
agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
117
Idem.
63
nesse momento, o Poder Público, por meio dos seus materiais impressos,
estimulava a formação de organizações populares, porque entendia isso “como uma
prioridade de qualquer administração pública, democrática e, que valoriza a participação da
comunidade nas decisões diretamente ligadas a esta mesma comunidade”
118
. A valorização se
dava também pelo acompanhamento do processo das disputas eleitorais para presidente de
bairro.
Para se ter uma idéia da amplitude de um trabalho de uma associação de bairro,
basta que se observe o valor dado a uma eleição para escolha de sua diretoria. O
processo utilizado é o mais democrático possível e isto faz com que as pessoas
confiem na viabilização das propostas de renovação
119
.
Nesses materiais oficiais distribuídos pelo Poder Público municipal, as melhorias
aparecem como resultado da parceria (participação) das comunidades. Apesar de a primeira
Associação de Moradores ter surgido no São Pedro no ano de 1981, isso não significa que não
havia outras formas organizativas no bairro. As lembranças de “Seu” Raimundo, “Seu”
Germínio, “Dona” Raimunda e “Seu” Domingos provam que existia um grupo, e reuniões e
deliberações a partir das discussões coletivas.
Antes da criação da Associação dos Amigos do Bairro, se havia consolidado, no
local, uma tradição associativa e reivindicatória. Na década de 1980, surgiu uma organização
formalizada, registrada e conduzida por novos atores sociais. A participação do Poder Público
junto à comunidade no processo urbanizatório foi fruto de um longo processo de luta e
reivindicação, em um espaço que nasceu sob o auspício da ilegalidade e repleto de carências
infraestruturais.
Para os moradores, o bairro foi se fazendo com os mesmos, como na expressão de
“Seu” Raimundo Brito: “a capelinha veio junto com o bairro”
120
, em uma relação sincrônica.
Quando o Poder Público esteve presente, já havia encontrado uma base infraestrutural, que
possibilitou outras obras.
A década de 1980 foi o período da consolidação urbanística e da extensão dos serviços
públicos. O governo do prefeito Ubaldo Dantas (1983 a 1988) imprimiu a marca do trabalho
em equipe, tendo as organizações populares como parceiras para a promoção de obras e
serviços públicos. Foi o governo dos mutirões, das ões em conjunto com os moradores.
118
Jornal Oficial do Município de Itabuna, publicado em agosto de 1983, sem paginação.
119
Idem.
120
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
64
Para o prefeito, em sua avaliação sobre a infraestrutura do município, devido à escassez dos
recursos era necessária uma ação racional com o desenvolvimento de trabalhos conjuntos com
a população, “apoio recíproco entre o Poder Público e a comunidade”
121
.
A Associação dos Moradores do Bairro São Pedro, sob a presidência de “Dona” Vera
Lúcia, na época, foi, em toda a administração de Ubaldo Dantas, uma das grandes parceiras
desse governo municipal.
A elevação do grau de consciência política do povo tem contribuído para o
surgimento de associações de moradores em diversas áreas da cidade, inclusive na
periferia. Estas entidades são porta-vozes das reivindicações das camadas mais
carentes. Hoje, obras consideradas um sonho para muita gente tornaram-se
realidade, pois elas foram materializadas da luta conjunta das pessoas
122
.
Essa forma de governar, em que se reconheciam apenas as associações organizadas
como porta-vozes oficiais, excluía as comunidades (periferia) que não possuíam métodos
organizativos formais reconhecidos pela Prefeitura. Essas relações bairro-Administração
Pública, que efetivamente aconteceram, nem sempre se deram pelo caráter democrático: a via
da cooptação e do clientelismo sempre estiveram presentes.
A própria “Dona” Vera Lúcia relatou como se aproximou do “mundo político” e do
prefeito Ubaldo Dantas. Com apenas seis meses de residência, foi convidada pelo primo,
militante do PT (Partido dos Trabalhadores), para uma reunião da Sociedade Amigos do
Bairro, realizada na Escola Padre Carlos Salério. Nessa reunião, estaria presente o prefeito
Ubaldo Dantas. Vera notou que a reunião seria também para destituir o “Seu” Jovelino da
presidência. Lá, em meio às discussões, percebeu que havia um movimento contrário ao
“Seu” Jovelino, e resolveu se posicionar em sua defesa.
[...] quem nunca errou que jogue a primeira pedra nesse homem. Que eu senti aquele
homem um Cristo e aquela turma querendo derrotar, e ali Ubaldo, de olho, quando
me viu, pensou que eu era já envolvida em política. Vim pra casa, oito dias depois
Ubaldo manda me chamar na Prefeitura, me convida pra ser presidente do bairro. Eu
disse a ele que não tinha experiência, que eu não queria. um dia, ele tornou a
insistir, insistir, insistir [...]
123
.
Os presidentes das Associações de Moradores foram porta-vozes do prefeito ou um
elo entre a comunidade e a Prefeitura. Quando eles tinham fortes ligações orgânicas com o
121
Jornal Oficial do Município de Itabuna, publicado em agosto de 1983, sem paginação.
122
Idem.
123
Vera Lúcia. Ex-presidente da Associação dos Moradores do São Pedro. Entrevista concedida ao autor, em
agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
65
governo municipal, ações governamentais tímidas eram superdimensionadas. Aparecem como
moeda de troca: as associações organizadas e disciplinadas tinham o apoio do governo e, em
troca, o governante tinha livre espaço para publicizar, manifestar e contar com o apoio
eleitoral e propagandístico. Mas isso não significa que toda a comunidade absorvia
ideologicamente essas ideias e posturas.
Formalizadas e oficializadas, as Associações de Moradores, enquanto canal de
participação e articulação junto à Prefeitura e demais instituições, passam a trilhar por
relações que foram se constituindo de acordo com as ideias, visões e concepções políticas dos
seus diretores e as conjunturas políticas estabelecidas.
A luta dos moradores não estava imune a relações “estreitas” com a Prefeitura. Para
Maria Célia Paoli (1995, p. 52), quando fazemos insurgir a presença constante do Poder
Público (Prefeitura), pactuando com o movimento social (Associação dos Moradores), para
nós é menos importante o potencial da possibilidade/impossibilidade da gestão dos recursos
para o saneamento, mas, atentamos para “ali se inaugurar o aprendizado da cidadania e do
conflito legítimo”.
A fragilidade do nosso processo democrático estaria na persistência dessas relações
políticas. “A existência ou não da cooptação também está na esfera desse aprendizado, é
como a cultura política brasileira necessitasse constantemente desse recurso” (PAOLI, 1995,
p. 51-52).
Primeiro, a gente reunia todo mundo pra ver o que ia discutir, de que nós
precisávamos de primeiro. E quando convidava o senhor fulano, quando ele
chegava, quem abria a reunião era nós. Doutor, prefeito, deputado e quem viesse [...]
Não estamos chamando aqui pra exagerar não. Estamos mostrando a necessidade
que nós temos e necessitamos
124
.
“Seu” Raimundo Brito, em sua minuciosa narrativa transcrita acima, afirmava que, nas
reuniões políticas realizadas na Capelinha do São Pedro, na década de 1970, não havia espaço
para interesses políticos personalistas; não se dava espaço a discursos superficiais e
eleitoreiros. A nova conjuntura, o novo contexto e a emergência de novos sujeitos políticos no
São Pedro, na cada de 1980, fizeram mudar o processo de negociação e articulação (canal
político) com o Poder Público municipal.
Aos poucos, o grupo de “Seu” Raimundo foi perdendo a centralidade nas discussões e
tomada de ações, para se concentrar nas atividades religiosas, principalmente na organização
124
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
66
da Festa de São Pedro (padroeiro do bairro). Estava surgindo uma nova forma de organização
e mobilização social em todo o Brasil.
Como atesta Maria Célia Paoli (1995, p. 32):
Se esta discussão foi aberta, em seu lado mais visível, pelo movimento operário, foi
também nos anos 70 que surgiram mobilizações locais de moradores pobres das
cidades brasileiras, com reivindicações organizadas em relação à moradia,
transporte, custo de vida, saúde, água e canalizações, educação, creches, segurança.
Eles formariam os “movimentos sociais urbanos”, tão importantes (no mundo
inteiro) que chegaram a confundir-se com a própria designação de “novos
movimentos sociais”.
Assim, na década de 1980, no São Pedro, entram em cena novos atores políticos. O
que antes fora resultado da solidariedade, das ações em comum e das experiências individuais,
cede lugar para o movimento social. Houve influência da conjuntura política nacional, dado o
novo contexto que se configurava.
A Associação de Moradores tornou-se a porta-voz das reivindicações, pela qualidade
de vida frente às precariedades urbanísticas. A Associação passa a ser um instrumento de
negociação com o Poder Público. Com base nem sempre em ideias de esquerda ou do Partido
dos Trabalhadores (PT), a plataforma de reivindicações, de protestos e de denúncias passou a
ser discutida na sede provisória da Associação e não mais na igreja, e a pauta política,
entregue e discutida diretamente na Prefeitura, ao contrário da espera pelo prefeito no bairro
para os moradores serem ouvidos.
Tido socialmente como o “partido” dos movimentos sociais, o Partido dos
Trabalhadores também teve atuação marcante na história do bairro São Pedro. Os militantes
do partido residentes no bairro conheceram e se filiaram a partir de experiências e contatos
firmados nesse território, o que nos possibilita afirmar que a luta contra o aforamento também
fazia parte de sentimentos e vivências experienciadas
125
. O surgimento do PT no bairro
coincide com o seu próprio nascimento oficial e nacional. Apesar de os militantes do partido
nem sempre estarem na direção e/ou presidência da Associação dos Moradores, disputaram a
maioria das eleições para presidente.
Quando da criação da Associação
126
, em 1981, “Seu” França relata que a filiação e a
presença do PT no bairro se deram pela experiência e pelos contatos. “Seu” França, nascido e
125
Os embates dos militantes do PT pelo fim do aforamento serão discutidos, mais adiante, no próximo capítulo
deste trabalho.
126
Originalmente, era a Sociedade Amigos do Bairro, e podiam fazer parte dela pessoas de bairros adjacentes,
pois não apenas discutia as questões específicas do São Pedro, como também dos bairros circunvizinhos.
67
criado em Ibicaraí, vai a São Paulo em busca de emprego, devido à crise do cacau na fazenda
do seu pai, e lá tem contato e participação em movimentos operários:
Eu tinha uma visão socialista, vinha participando dos movimentos em São
Paulo, do movimento do sindicato dos rodoviários, movimento dos sindicatos dos
comerciários, mas aqui eu não tinha ainda, até porque eu tinha pouco conhecimento
aqui, né? Quando a Associação foi iniciada aqui, eu tinha dois a três meses
[morando em Itabuna], foi de imediato, assim que nós chegamos, nós formamos
logo a Associação de Amigos do Bairro, o PT veio no meu conhecimento. Logo
depois, mais ou menos seis meses depois, foi quando me filiei ao PT
127
.
Fotografia 01: Militantes do PT nas ruas do bairro.
Fonte: Acervo pessoal de Ronaldo Gomes (2008).
A foto mostra um grupo de moradores do bairro, militantes do PT, em campanha pela
presidência da Associação dos Moradores, na época próxima às eleições. Nem todos que
aparecem com a bandeira e a camisa do PT eram residentes do bairro; alguns eram
sindicalistas e militantes de outras localidades, que contribuíam por meio de suas
127
Raimundo França dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
68
participações, de acordo com o relato do “Chico”
128
. O “Chico” está à frente, com a bandeira
sobre o ombro, lendo (fazendo uso de um microfone) as propostas de campanha da Chapa 06.
A rua, bastante íngreme ao fundo, é uma das partes mais elevadas do bairro, que os
moradores chamam de morro ou Alto do Urubu. O uso de carro com sistema de som e
microfone era necessário para que os moradores de áreas de difícil acesso ouvissem as
propostas. Nota-se, por meio da foto, que, até o ano de 2001, não existia asfalto na maior
parte das ruas do bairro e algumas nem sequer arruamento tinham. A foto expressa, também,
o clima de movimentação e disputa política, já existente no bairro.
A filiação ao partido, a posição ideológica e o ativismo desse grupo imprimiram na
disputa pela presidência do bairro a presença e o apoio de um partido político, de forma plena
e aberta. Nesse momento, a campanha contrária ao pagamento do foro ganhava as ruas,
carregada de posições ideológicas.
A presença do Partido dos Trabalhadores no São Pedro se deu a partir de “Seu” Dudu.
Aurélio Laborda, dico e membro fundador do PT em Itabuna, ao realizar consultas e
exames em seu paciente, “Seu” Dudu, morador do bairro, convenceu o mesmo a se filiar ao
partido. “Seu Dudu tinha um problema de saúde e fazia consulta com Laborda. Conversando,
pegaram amizade, Seu Dudu trouxe Laborda praqui, apresentou à Kaluca, Kaluca
apresentou a Doroteu, apresentou à Dona Lurdes, e foi assim...”
129
Longe de se estabelecer como um grupo hegemônico, apesar de sua luta para tal, o
grupo dos petistas que conduzia a Associação sofreu sua primeira derrota eleitoral para
“Dona” Vera Lúcia. Inaugura-se o surgimento de novos atores sociais no São Pedro, assim
como os conflitos e disputa pelo poder (presidência da Associação).
“Dona” Vera Lúcia era sobrinha de Nicodemos Barreto. “O São Pedro era uma
fazenda da gente.”
130
Nicodemos Barreto foi aquele que vendeu as terras para Pedro
Jerônimo. Crises de ordem econômica e pessoal, o levaram a comprar um terreno no São
Pedro, em sua parte mais pobre e de difícil acesso.
“Dona” Vera Lúcia, moradora da parte mais elevada do bairro (morro), trilhou por
caminhos políticos diferentes do grupo de “Seu” Raimundo, ou seja, o “grupo da igreja”; e
não se deixou influenciar pelo grupo dos petistas, muito menos pelas ideologias socialistas.
Quando esteve à frente da Associação de Moradores, sua trajetória se deu por via individual e
128
Francisco Estevam Santos. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
129
Idem.
130
Vera Lúcia. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para a
realização deste estudo.
69
em constante articulação com os moradores do morro, o que a caracterizou como uma mulher
de “pulso” e de traços personalísticos fortes.
Uma das pessoas de maior destaque político, se não a de maior destaque na história do
bairro São Pedro, foi a “Dona” Vera, a Vera do São Pedro. Mulher, casada, mãe de quatro
filhos, teve que conciliar a vida política com a vida familiar. Nesta última eleição (ano de
2008), candidata pelo PMN (Partido da Mobilização Nacional), não conseguiu uma vaga no
pleito eleitoral para a Câmara de Vereadores. Mas, em seu currículo, há três mandatos
consecutivos, de 1983 a 1989, à frente da Associação de Moradores do Bairro São Pedro.
Esteve à frente de várias atividades sociais, culturais, e na luta e concretização de uma creche
para o bairro
131
.
“Dona” Vera, por meio de suas articulações com os empresários de ônibus e a
Prefeitura Municipal, conseguiu ampliar o serviço de transporte coletivo (ônibus) local. O
percurso do ônibus interligava o bairro a outros bairros e ao centro da cidade.
A “Vera do São Pedro” era maior do que a Associação dos Moradores. Dentre os
serviços prestados à comunidade, organizou (com apoio da Prefeitura), em 1983, uma festa no
Dia das Crianças, onde contou com mais de 2.000 pessoas (segundo o Jornal Oficial), com
distribuição de brindes e doces.
Para a presidente da Associação, o objetivo do evento era “trazer momentos de
recreação e lazer para todos”. Os presentes, brindes e doces foram pagos pela Prefeitura. Em
meio à festa, houve a inauguração da rede de água potável na Avenida Pedro Jorge (maior
avenida do bairro), com a participação do prefeito, vice e secretários.
Entretenimento e inauguração de obras: uma mistura perfeita para governos de
práticas assistencialistas.
131
Informações coletadas a partir do material da campanha eleitoral de 2008.
70
Fotografia 02: Distribuição de alimentos na praça do São Pedro.
Fonte: Fotografia reproduzida a partir do material de campanha eleitoral de 2008.
Essa fotografia, cujo fotógrafo é desconhecido, foi encomendada por “Dona” Vera, e
tem, em seu plano central, personagens da política itabunense. Não foi possível precisar o ano
de acontecimento desse fato; por isso, situamos entre os anos de 1989 a 1992, período do
governo de Fernando Gomes.
Algumas informações iconográficas da imagem permitem entender melhor o contexto
social e o sentido político das ações de “Dona” Vera. O caminhão está atravessado no centro
da praça, e o fotógrafo se posicionou em uma parte mais elevada do terreno, para obter um
ângulo amplo, sendo que é possível ver algumas pessoas olhando para a lente fotográfica,
como se lhe chamasse a atenção. Pessoas ao fundo do caminhão, em um plano distante, estão
também observando o evento na praça, do alto da rua e nas portas das casas. O material a ser
entregue a população, dentro dos sacos, são alimentos. Em cima do caminhão, estão o prefeito
Fernando Gomes (de microfone na mão), a secretária de governo Maria Alice (ao lado do
prefeito e segurando uma sacola a ser distribuída), e “Dona” Vera, que está na ponta esquerda
(entre o conjunto das três mulheres), olhando em direção à multidão, a escolher ou indicar
uma pessoa para receber a “doação” das mãos da secretária municipal.
Apresentaremos agora algumas questões que vão além das informações iconográficas.
“Dona” Vera nunca se envolveu em discussões a respeito do aforamento. Todo o seu
potencial de mobilização e articulação política esteve voltado para práticas assistencialistas.
“Presidente de bairro igual a mim nunca vai existir [...] eu dei pro povo macarrão, peixe. Eu
71
recebi um caminhão de peixe, mil quilos de peixe que recebi de um deputado.”
132
A imagem
acima e o seu próprio relato caracterizam, por completo, sua forma de conduzir a presidência
da Associação de Moradores. Para “Dona” Vera, o aforamento não se constituía em um
problema político, e, por isso, estava fora do seu campo de ação. E acreditamos que o seu
envolvimento com lideranças políticas e empresariais de grande envergadura conservadora
não levaria a cabo esse conflito político-fundiário.
Mas o fato de todos lutarem por melhores condições de habitabilidade e urbanização
não exclui a existência de grupos com posições divergentes. Os caminhos políticos que
permitiam um canal de interlocução com o Poder Público municipal eram diversos. Não
existiam grupos homogêneos e hegemônicos no São Pedro. Os grupos da Capelinha, do PT e
da “Dona” Vera tinham posições políticas contrastantes entre si.
Quando Beatriz Sarlo (apud FENELON, 2001) aponta que, em relação ao passado se
deve colocar a dissidência no centro do foco, chama a atenção para as disputas em jogo, as
relações de poder, o conflito. Através das narrativas e das releituras das suas experiências, as
lideranças apresentam, em suas memórias, uma disputa. Uma disputa pela iniciativa, pela
melhor forma de organização e conduta política.
Analisando o papel social das mulheres no São Pedro, estas se apresentaram de forma
ativa na história do loteamento/bairro “aforado”, com participação direta nos mutirões e
movimentos reivindicatórios. Da assinatura do contrato de “aforamento”, passando pela
colaboração na construção das moradas, idealizando e participando da construção da igreja e
da escola, e até presidindo a Associação dos Moradores e compondo sua diretoria. Mulher e
política não eram mais coisas separadas, como apareciam nas visões mais tradicionais
(SOUZA, 1995).
Em nossas análises, estamos primando por considerar as ações dos sujeitos, pessoas
comuns, na condução do processo por melhores condições infraestruturais de habitabilidade.
Sem minimizar a participação e os projetos político-administrativos municipais, mas o fato é
que essas ações não se deram sem que os moradores se mobilizassem.
132
Vera Lúcia. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para a
realização deste estudo.
72
Fotografia 03: Inauguração da linha de transporte coletivo no bairro.
Fonte: Jornal Oficial do Município de Itabuna, nº 2.085, publicado em agosto de 1984, sem paginação.
No Jornal Oficial da gestão do prefeito Ubaldo Dantas, a fotografia acima foi a
principal imagem do dia do evento em que se inaugurou a linha de transporte coletivo no
bairro. O prefeito (em passeata pelas principais ruas do bairro) aparece no centro, ao lado de
secretários e empresários de ônibus; à frente, crianças.
O texto que acompanha a fotografia não faz menção aos moradores (talvez o fato não
tivesse tanta importância para o governo e, realmente, os moradores quase não aparecem na
foto). Entre a comitiva do prefeito e secretários, restam apenas pouquíssimos moradores. O
apoio e a reciprocidade da população não se mostraram no mesmo peso do discurso do
governante. Um meio de transporte tão importante e fundamental para o translado casa-
trabalho não mobilizou espontaneamente os moradores para o ato.
O fotógrafo registrou o prefeito caminhando cabisbaixo, ao final de um ato político
que adentrou à noite. Sua presença nesse local aforado foi apenas para ampliar o sistema de
transporte em um bairro que vivia a ambiguidade de ter um “proprietário” e, ao mesmo
tempo, pertencer à Administração Pública. Mais um prefeito que fez do silêncio uma resposta
para a permanência do “aforamento”.
73
Cumpre ressaltar que o Jornal Oficial do Município de Itabuna, longe de o tratarmos
como simples fonte objetiva e imparcial, o entendemos como produto social (CRUZ;
PEIXOTO, 2007), como campo de força e disputa. Apesar de ter um público leitor restrito e
específico (por circular somente em órgãos públicos, não havendo comercialização), são
publicações que apresentam posições políticas explícitas e têm a função de registrar
(memória) as posições, as ões e decisões políticas e governamentais, e os atos do Poder
Executivo e Legislativo, sendo um espaço privilegiado para se estabelecer a hegemonia
política institucional.
Em nosso estudo, aparecem como fonte, mas fonte enquanto resultado da construção
social, fruto de determinada conjuntura e contexto, e com objetivos claramente definidos. Seu
silêncio, na década de 1980, sobre as irregularidades do loteamento São Pedro, assim como
seus artigos a respeito das obras naquele território, são expressões de sua posição política e de
sua visão sobre o mesmo.
2.1 Rede de solidariedade: A enchente, a escola e a igreja
A enchente de 1967 foi mais um elemento, apesar de não ser o determinante, que
promoveu a migração de populares para o loteamento São Pedro. A maior enchente de todos
os tempos registrada na cidade deixou milhares de pessoas sem casa, o que motivou ações
dos governos municipal, estadual e federal, de entidades filantrópicas, e de pessoas comuns
motivadas pela comoção e solidariedade.
A dimensão e a extensão da enchente
133
podem ser notadas pelos números. Um
fenômeno natural jamais visto na cidade: 30 mil pessoas desabrigadas. O rio transbordou,
atingindo imediatamente as populações ribeirinhas, chegando até a Avenida do
Cinquentenário (principal centro comercial e empresarial da cidade), que ficou
completamente inundada.
Os danos foram os mais amplos possíveis, envolvendo tanto os despossuídos quanto
os mais abastados comerciantes, sendo que, para os primeiros, restava reconstruir suas
vidas em loteamentos ilegais. A cidade de Itabuna foi a mais atingida pelas cheias.
133
Os jornais Diário de Itabuna e Diário da Tarde fizeram uma ampla cobertura, na época, com manchetes como:
“Ano de 1967 se finda com maior enchente de todos os tempos na região” (Diário da Tarde). “Rio Cachoeira
ameaça a população itabunense” (Diário de Itabuna).
74
Do governo federal, veio um navio de guerra da Marinha, trazendo 50 toneladas de
feijão, farinha e outros gêneros alimentícios para os flagelados. “Esses gêneros serão
distribuídos de Ilhéus para toda a região assolada”
134
, afirmou o prefeito de Ilhéus. Veio,
ainda, um helicóptero, a bordo de um avião cargueiro, trazendo uma grande quantidade de
medicamentos e material de salvamento. O governador do estado, Luís Viana, abriu um
crédito de 200 milhões de cruzeiros, para socorrer os flagelados.
Pela narrativa de “Seu” Laudelino, percebe-se que a cheia do rio Cachoeira ocorreu de
forma muito rápida, o que assustou a todos:
Quando fui em Jequié, em 1967, naquela enchente grande, eu já trabalhava aqui,
mas tava morando em Jequié. Eu saí daqui um dia de segunda-feira para ir para
Jequié e quando eu cheguei lá de tarde tava dando no rádio que aqui em Itabuna tava
arrasando, a água chegou lá em cima na Mangabinha, desceu no Jardim do Ó,
passou no Cinquentenário, a água deu em cima das portas... Aquilo ali virou um mar
[...]
135
.
De imediato, perguntei a “Seu” Laudelino como ficou a Vila Zara
136
, bairro vizinho
ao São Pedro, mas muito próximo ao rio Cachoeira. De resto, ele retrucou: “Ave-maria!
Aquilo ali acabou tudo”
137
.
Fotografia 04: Cheia do rio Cachoeira, 1967.
Fonte: Site Itabocas (2008).
134
Jornal Diário de Itabuna, publicado em 29 de dezembro de 1967, sem paginação.
135
Laudelino Barbosa. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para
a realização deste estudo.
136
Segundo o Jornal Oficial do Município de Itabuna, 1.905, publicado em 29 de julho de 1972, a população
da cidade era de 91.202 habitantes, estando a Vila Zara com 1.964 habitantes. Nesse quadro da população de
Itabuna distribuída por bairros e logradouros, o São Pedro não aparece sob nenhuma indicação.
137
Laudelino Barbosa. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para
a realização deste estudo.
75
A imagem acima faz parte de um acervo disponível na Internet, sendo uma reprodução
da fotografia original, que foi tirada bem próxima do local. O recorte central para o fotógrafo
foi a cheia do rio atingindo a superfície da ponte, por onde passam os pedestres. O rio em seu
leito normal fica “inteiramente descoberto”
138
e apresenta um “juncado de pequenas poças,
cujas águas, esverdeadas e cheias de detritos em decomposição, representando sério risco para
a saúde pública”
139
.
Percebe-se, pela informação visual e pela descrição do Jornal Diário de Itabuna a
respeito do rio em suas condições normais, que o mesmo, em dezembro de 1967, elevou-se
por demais. Bem ao fundo, fora do foco principal, vê-se uma população ribeirinha, no lugar
denominado Vila Zara. Com a enchente, só restava a essa população morar em um local mais
seguro e condizente com suas rendas.
Indo além do recorte do fotógrafo, pois não encontramos fotos do loteamento São
Pedro em seus anos iniciais, temos o loteamento São Judas
140
, que fica entre a Vila Zara e o
São Pedro, e que também estava sendo loteado em 1964, mas com custo não muito acessível
para essas pessoas. O loteamento São Pedro era o lugar mais acessível e mais próximo depois
do São Judas
141
.
Para Carlos Jerônimo, o São Pedro foi fruto da enchente:
Ele comprou o São Pedro e iniciou em 1967. Foi quando deram as enchentes e
houve, com isso, aquilo que eu chamo aquele “pessoal da enchente”. O pessoal da
enchente começou a comprar terreno aqui e aí vivendo aqui próximo, nasceu o
bairro São Pedro. Aí começou a história, pronto
142
.
Entre nossos depoentes, nenhum deles foi afetado pela enchente a ponto de se
transferir para o loteamento São Pedro.
A Escola Padre Carlos Salério
143
, que 40 anos atua como principal instituição de
ensino no bairro, foi uma realização condicionada pelos efeitos da enchente de 1967. A
Professora Junice, pessoa de muito carisma e respeito devido à sua atuação por mais de 30
anos como diretora da escola, relata como os primeiros moradores sentiam a necessidade de
uma escola para os seus filhos. O depoimento da Professora Junice se revelou como mais um
138
Jornal Diário de Itabuna, publicado em 03 de fevereiro de 1967, sem paginação.
139
Idem.
140
Segundo os arquivos das Seções de Cadastro de Lançamento e Departamento de Obras e Serviços Públicos,
da Secretaria da Prefeitura Municipal de Itabuna, 1964.
141
Hoje, o São Judas é um bairro de classe média alta.
142
Carlos Jerônimo. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para a
realização deste estudo.
143
Escola pertencente à rede estadual de ensino.
76
elemento intrínseco da nossa problemática, ao afirmar que o loteamento, sob o regime do
“aforamento”, foi o lugar de sedentarização dos mais pobres em Itabuna. A criação de uma
escola afirmaria ainda mais essa sedentarização.
Teve uma enchente forte em 1967, tinham umas Irmãs da Reparação que estavam
chegando naquela época e que se prontificaram e deram para ajudar as pessoas que
ficaram desamparadas porque perderam as coisas, perderam tudo que tinham. Então,
nós demos aqui nos fim de semana e feriados a ir para para ajudar o povo e assim
eles começaram a pedir uma escola porque eles perderam as casas e aí ficou sem ter
onde estudar. Aí o que os pais falavam era isso, pediam uma escola. nós
começamos a fazer a escola aparecer. nós fomos aqui à Secretaria de Educação,
na Direc [Diretoria de Ensino, representante da Secretaria Estadual de Educação] e
começamos a negociar a possibilidade de construir a escola
144
.
Sem esperar uma ação política governamental, quase impossível em um loteamento
ilegal, os moradores irromperam em suas habilidades profissionais e começaram a construir a
escola, como se vê na fotografia a seguir.
Fotografia 05: Construção da Escola Padre Carlos Salério.
Fonte: Acervo da Escola Padre Carlos Salério (2008).
144
Professora Junice, aposentada e ex-diretora da Escola Padre Carlos Salério. Entrevista concedida ao autor, em
dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
77
Na fotografia acima, é possível ver homens e mulheres trabalhando, e algumas
crianças (ao fundo). Apesar de o prédio ter sido construído pelas Irmãs da Reparação, ainda
era necessário realizar mudanças para adaptar as salas de aula.
Não se toda a escola na fotografia, apenas a parte que estava sendo ampliada; o
foco estava voltado para o esforço e empenho dos moradores na construção. Percebem-se, ao
seu lado, casas sem rebocos e em construção; do lado oposto às casas e à escola, uma
vegetação ainda não afetada pelas construções de moradas. Nota-se, também, a existência de
posteamento; a fase da eletrificação já havia se consolidado.
A foto é da primeira metade da década de 1970, e, possivelmente, esse mutirão para a
construção da escola ocorreu em um domingo.
Nessa mobilização, não estão presentes apenas voluntariedade e espontaneidade, mas
também, o desejo último de uma formação escolar cidadã aos filhos dos moradores. Um
futuro diferente para os filhos que talvez não fora alcançado pelos pais.
Tendo as condições infraestruturais descritas pelos primeiros moradores, com a
chegada de novos por força da enchente, o cenário era de desolação. A solicitação da escola
foi a primeira reivindicação dos moradores. Essa instituição educou e formou gerações em
seus bancos escolares.
As Irmãs da Reparação construíram um pequeno Convento no São Pedro, mas
moravam no bairro Conceição (bairro vizinho ao São Pedro e muito mais estruturado), e, nos
fins de semana, iam até construir a escola. Ampliaram o prédio, através de mutirões com a
participação de moradores, criando, então, a Escola Padre Carlos Salério. Elas também se
envolveram no processo de construção de casas, através de empréstimos à comunidade.
Conseguiram recursos por meio da articulação com movimentos filantrópicos católicos
italianos. Esses recursos foram empregados na construção da escola, da igreja, e emprestados
à comunidade para a construção de moradias. Na comunidade daqui do bairro de São Pedro,
eles emprestavam dinheiro pra gente comprar o material e fazer a casa. Porque isso aqui,
quando eu comprei na mão do senhor Joaquim, era uma casa de taipa.”
145
Junice, professora e católica, nasceu e viveu durante toda a sua vida no bairro da
Conceição. De formação e valores cristãos, as ações práticas da professora se conjugaram. “A
gente trabalhava em comum, a gente ajudava um e ajudava a outro, fazendo tudo junto.”
146
145
Germínio Cardoso dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
146
Professora Junice. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
78
O relato da Professora Junice evidencia, mais uma vez, a necessidade da solidariedade
e da ajuda mútua, dadas as condições de precariedade urbanísticas e de serviços do bairro:
Teve um caso que aquela mulher que mora perto de vocês, Dona Sônia, na época ela
estava grávida, então o pessoal estava carregando tijolo para fazer parede, uma
pessoa disse para ela que não pegasse não, que ela estava grávida, e ela falou: “é
para ele mesmo, daqui a uns dias ele estará estudando”
147
.
A escolha desse relato, entre outros que poderiam ser mencionados, revela que a
memória é um mecanismo de seleção (HOBSBAWN, 1990, p. 23) e não apenas de gravação.
A escolha feita pela professora, de contar a história de “Dona” Sônia em seu estado de
gravidez carregando tijolos, foi para elevar o momento histórico da construção da escola e a
participação coletiva da comunidade. E ela fica feliz com o resultado da experiência que
envolveu a maior parte da sua vida: “me felicidade quando eu vejo. Agora mesmo é época
em que eu fico vendo os jornais para ver os ex-alunos que hoje estão [...] que são alguém, isso
me dá uma felicidade tão grande! É como se fosse meu filho que está ali se formando”
148
.
O problema da ilegalidade também atingia (e atinge) o prédio da Escola Padre Carlos
Salério, o que deixa a Professora Junice insegura quanto ao direito de propriedade do prédio:
O prédio era das Irmãs da Restauração. É delas até hoje. Estão querendo tomar, mas
naquele tempo não tinham essa facilidade, não tinham leis para legalizar o que
precisava para casa receber a escritura. ficou até agora, na mesma situação,
porque não tem papéis, não tem documentos
149
.
O terreno foi doado, sendo isento do pagamento do “foro”. O loteamento era
totalmente ilegal, a escritura era impossível. O tempo foi passando, e não se resolveu o
problema.
Entendemos que o conjunto de ações (urbanísticas e de serviços) preconizadas pelos
moradores estavam também articuladas, ainda que subjetivamente, com o regime jurídico por
eles interpretado como aforamento.
Ermínia Maricato, ao analisar os problemas de moradia na década de 1990, em regiões
de litígio, observa, nessa década, a insegurança dos moradores e os constantes conflitos para
se manterem no local. “É freqüente esse conflito tomar a seguinte forma: os moradores
instalados nessas áreas, morando em pequenas casas onde investiram suas parcas economias
147
Professora Junice. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
148
Idem.
149
Idem.
79
enquanto eram ignorados pelos poderes públicos, lutam contra um processo judicial para
retirá-los do local” (MARICATO, 2000, p. 163).
A ausência de grandes conflitos
150
, tanto na fase do loteamento quanto do bairro (São
Pedro), foi resultado da segurança da posse, das condições “contratuais” estabelecidas.
Mesmo em momentos de atraso de pagamento não se consumou a perda do domínio.
“Comigo nunca deu pressão, porque sempre, eu mesmo que eu atrase assim, mas depois a
gente se combina muito bem. [...] Porque sempre eles cobram, mas cobram legal, explorando
de ninguém.”
151
Nunca houve ação de despejo, ou melhor, nenhuma ação judicial de ambos
os lados. O que possibilitava aos moradores construírem suas casas com segurança, sem
limite de tempo para se retirarem dos terrenos.
Entre os moradores mais antigos, alguns estabeleceram, no início, laços com o
loteador, devido às dificuldades econômicas, e as relações se mantiveram com o tempo. “Seu”
Domingos Lourenço relata que tomava café com ele (Pedro Jerônimo), e que, no momento da
aquisição do terreno, encontrava-se com dificuldades, e pediu a “Seu” Pedro que lhe
anistiasse do pagamento do “foro” nos primeiros anos. Então, o Pedro Jerônimo lhe
respondeu: “Domingos, pode fazer sua casa. Quando tiver sua casa, quando tiver dentro da tua
casa, o senhor vem aqui”
152
.
Essas relações foram estabelecidas nos anos iniciais do loteamento, na fase mais aguda
e adversa de invisibilidade do loteamento. O outro Domingos, “o Domingos Pintor”, também
criou laços com o loteador. Durante a realização de um serviço de pintura em seu escritório,
“Seu” Domingos indagou que estava precisando de um terreno para construir sua morada e
sair do aluguel. De pronto, Pedro Jerônimo pediu que procurasse “Seu” Sebastião (o
administrador dos lotes) para que se fizesse a medição do terreno
153
.
Ele era uma pessoa muito apegada ao social. Ele se preocupava com o pobre
mesmo! Ele acreditava na boa vontade do ser humano! Então, quando ele via que era
pessoa com dificuldade, ele procurava ajudar da melhor maneira possível. Coisa que
hoje, nesse país, poucas pessoas o fazem. Motivo pelo qual você de que forma se
encontra essa nação brasileira, porque o social não está mais existindo
154
.
150
Os sentidos dos conflitos em termos da lei e da exploração social a que esses sujeitos estavam submetidos
serão analisados no próximo capítulo deste trabalho.
151
Germínio Cardoso dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
152
Domingos Lourenço dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
153
Domingos Barbosa dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
154
Carlos Jerônimo. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para a
realização deste estudo.
80
O filho, Carlos Jerônimo, referenda, acima, a atenção do pai com as pessoas em
dificuldades para a aquisição dos terrenos. Essa narrativa se apresenta de forma contrastante
com a memória de outros moradores. Segundo “Seu” Laudelino, “Seu” França e “Dona
Vera, ele fazia pequenas negociações, ou seja, trocava o terreno por relógios, rádios, peças de
ouro. Mesmo isentando alguns moradores do pagamento do “foro” por alguns anos, o loteador
sabia que, mais tarde, receberia o pagamento, devido ao caráter perpétuo do contrato. Os
moradores tinham ciência de que levariam anos para construir e tinham sólidas convicções de
que passariam muito tempo naquela localidade. Não se encontra, em nenhum depoimento,
uma doação de terreno com isenção total do pagamento do “foro” (exceto nos casos da igreja
e da escola).
Tais relações constituídas ajudaram a construir uma imagem “positiva” do loteador,
por parte de alguns moradores, podendo explicar um pouco a ausência de grandes conflitos.
Relações essas que os ajudam a compreender como o pagamento do “foro” não se tornou
injusto para a maioria dos moradores.
Visão diferente tiveram os organizadores do seminário de luta contra o pagamento do
foro, que viam o loteador como inimigo: um capitalista que deveria ser processado por se
utilizar de má-fé e pelas irregularidades. “Chico” relata que “eles esperaram terminar o
seminário para intensificar a cobrança do aforamento. [...] Nós temos prova que tem pessoas
que pagavam 400 e passaram a pagar 800”
155
.
Pagar o “foro” sem a existência material da casa ou construção não tinha sentido para
os moradores, enquanto sujeitos que, ao colocarem em prática suas formações culturais e
valores, experienciaram ações com finalidades em comum. A aquisição do terreno
significava, de imediato, a intenção e o início da construção da morada. O pagamento do
“foro” se “justificava” pelas benfeitorias, pela existência de uma casa.
A construção da igreja e a presença de terreiros de Candomblé foram ações que
contribuíram para o exercício da vida religiosa, construções necessárias para se retirar daí
benefícios simbólicos e sociais. A participação dos moradores nessas ações foi além das
necessidades materiais e das condições jurídicas apresentadas. Firmar-se em determinado
espaço e transformá-lo significava, também, dotá-lo de espiritualidade.
“A capelinha veio junto com o bairro”
156
. Com essa afirmação, “Seu” Raimundo Brito
descreve a importância social para os moradores da construção da capelinha que, aos poucos,
155
Francisco Estevam Santos. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
156
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
81
tornou-se uma igreja. No terreno doado pelo Pedro Jerônimo, a Madre Lina e a Professora
Junice deram o pontapé inicial e contaram com a ajuda da comunidade, segundo “Dona”
Raimunda. “Aí elas trabalhando junto e junto com a comunidade e a comunidade foi
crescendo, e foi se espalhando no bairro, e o bairro foi crescendo, e foi quando teve a
igreja.”
157
Nas entrevistas, a menção à igreja e seu papel no processo de desenvolvimento do
bairro aparecem quase que espontaneamente entre os depoentes mais velhos. Não é preciso
nem perguntar sobre a mesma. Comunidade e igreja aparecem como elementos indissociáveis.
“Seu” Laudelino aponta que os tijolos para a construção da igreja foram de sua olaria; a maior
parte foi vendida, mas, às vezes, ele dava uma “contribuiçãozinha”
158
.
A igreja teve também sua função social, como local de reuniões e decisões em prol de
melhorias para o bairro. Mas, sem espaço para a “politicagem”:
Todas essas reuniões no início do bairro tudo foi feito dentro da capelinha de São
Pedro. Era o ponto onde se reunia. Chapinha era o prefeito, mas se chamava na
intenção não politicamente que nós mesmos quando chegava pedia. Não é lugar de
ninguém pedir voto. Nós estamos precisando de pavimentação pra poder nós sair,
porque não tinha pra onde sair. No início, se você chegasse ali na rua e dissesse: “ah,
um táxi pra ir no bairro de São Pedro”: “Aonde que é isso? Ah, eu não vou nada”. E
não vinha mesmo. E aí, com o passar do tempo, foi melhorando. O bairro foi
crescendo, os moradores se reunindo e foi chegando o prefeito e chegou um ponto
que aí agora já entrou toda a história voltou politicamente, né?
159
.
A presença de políticos, candidatos ou eleitos não era aceita se fosse apenas para pedir
votos e fazer campanhas político-eleitorais ao invés de discutir os problemas do bairro. A
escolha da igreja para discutir os problemas do bairro era um pressuposto básico para
manter um debate ético com os políticos-candidatos, pois significava respeito ao espaço
sagrado.
A igreja tornou-se um espaço sagrado e social. Durante anos, foi o lugar de articulação
com o Poder Público municipal, lugar de luta e conquista de direitos e serviços para o bairro.
Os moradores procuravam se organizar autonomamente, sem clientelismos e paternalismos
políticos.
157
Raimunda Alves Biano. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
158
Laudelino Barbosa. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para
a realização deste estudo.
159
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
82
A igreja de São Pedro não tinha padre, pertencia à Paróquia Nossa Senhora da
Conceição, que designava um padre para a realização de missas apenas aos domingos e uma
vez por mês. Com o passar dos tempos, o bairro foi crescendo demograficamente, e com as
constantes intervenções do Poder Público municipal, a igreja foi deixando de ser o local
exclusivo para as reuniões políticas do bairro.
O regime jurídico adotado pelo loteador (arrendamento) e representado pelos
moradores como aforamento, o processo de urbanização e a construção da escola e da igreja
foram resultados da junção dos modos culturais desses sujeitos, que, devido às necessidades e
interesses comuns, possibilitaram superar as condições inóspitas que se apresentavam no
início.
2.2 Aqui é meu lugar
Hoje, o bairro não apresenta os gravíssimos problemas das duas décadas iniciais. Na
memória dos moradores, ficaram marcados os momentos da luta, da disputa e da mobilização
frente aos problemas objetivos enfrentados. Eles reconhecem que a união foi necessária, mas,
com a densidade demográfica, os interesses se multiplicaram e divergiram. “O bairro cresceu
muito. Agora está tendo muito morador aqui no bairro São Pedro.”
160
As reivindicações
continuam.
A ausência de luz e arruamento provocava medo aos visitantes e aos pretensos
moradores. “Tinha medo de vir pra cá porque também não tinha rua não. Eu mesmo quando o
carro veio me trazer uma madeira aqui na porta veio num carreiro. Não tinha a rua não. Agora
é que está tendo a rua aí. Só está abandonado também porque o prefeito não liga, né?
161
Os moradores reconhecem que muita coisa mudou, mas admitem que o bairro ainda
precisa de uma maior atenção dos governantes ou da ação dos moradores. “Devia estar em
outro patamar se os moradores fossem unidos.”
162
Essa crítica de “Dona” Raimunda quanto à
falta de “união” dos moradores está estritamente relacionada ao passado, em que seu grupo
(relativamente homogêneo) se reunia na igreja e discutia e encaminhava ao Poder municipal
160
Raimunda Alves Biano. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
161
Idem.
162
Idem.
83
os problemas do bairro. Nesse passado, teria conquistado mais benefícios do que nos dias
atuais, ou seja, suas articulações foram mais eficazes.
“Seu” Raimundo Brito insiste em demonstrar, na sua narrativa, que as ações conjuntas
de antes eram melhores do que as de hoje, pois não havia interesses políticos eleitorais. É
importante destacar que o grupo de “Seu” Raimundo, pioneiro nas articulações com o Poder
Público, tinha posições diferentes da Associação de Amigos do Bairro. Com o surgimento da
Associação, esse grupo foi perdendo a centralidade política.
Naquele tempo, quando começou era uma coisa que, no início, não tinha política de
certos tipos aqui. O bairro é um bairro bom. Não tem, hoje não tem, os moradores
que tem. uma coisa é certa: quando cresce politicamente é que intuito
eleitoreiro. O impacto é disso e o povo começa a dividir-se contra si mesmo sem
saber a quem ele apoia. Veem que no início cresceu porque todo mundo, o objetivo
era o benefício de todo mundo
163
.
A crítica de “Seu” Raimundo à atual forma de organização e condução (das lideranças)
da Associação de Moradores, por meio da expressão “no início não tinha política de certos
tipos aqui”, refere-se aos interesses pessoais e personalísticos daqueles que, quando “crescem
politicamente”, logo se candidatam a vereador ou se utilizam da instituição (Associação) para
práticas “eleitoreiras”.
A união tão requerida pelos moradores mais antigos, tais como “Seu” Raimundo,
“Dona” Raimunda, “Seu” Germínio, aparece na memória como uma articulação que foi eficaz
para os anos iniciais do loteamento e ainda é necessária no presente, para enfrentar as novas
questões urbanísticas. Ao mesmo tempo em que evocam essas lembranças e reconhecem sua
importância no presente, os moradores descaracterizam as outras formas, principalmente pela
falta de avanços nas questões estruturais.
Diante de depoimentos céticos como o de “Seu” Raimundo, acima transcrito, temos o
depoimento de “Seu” Domingos Lourenço, menos crítico e mais apaixonado:
Eu gosto muito desse bairro, por isso que eu vendendo minha casa ali, mas não
pra sair desse bairro. Pra separar minhas coisas, né? Vou vender ali, mas vou fazer
outro ali em cima. Desse bairro aqui pra outro eu não saio não. Se Jesus permitir,
vou morrer nesse bairro aqui, não vou ser enterrado porque vou ser enterrado no
cemitério. Cresceu muito mesmo, mas bom. Só tem gente boa. Tem um [...]
algumas pessoas ruim, mas o povo da gente, o povo que é da gente. Mas muito
bom mesmo, só tem morador bom
164
.
163
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
164
Domingos Lourenço dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
84
O sentimento de pertença, o gosto, o sonho e os serviços conquistados permitem
avaliar positivamente o bairro, sem deixar de criticar quando necessário. A passagem por
outros estados, cidades, bairros, fazendas, sítios e roças, não foram tão marcantes quanto a
permanência no bairro. Os moradores mais antigos, os que estão hoje entre os 70 a 80 anos,
com mais ou menos 40 anos de residência, passaram a ter um gosto pelo bairro, fato que se
deu no longo processo de urbanização e dotação de serviços, iniciado pelos mesmos.
Michel de Certeau, Luce Giard e Pierre Mayol (1996, p. 44) registram essa passagem
como uma assinatura que certifica uma origem, de tal sorte que o bairro se inscreve na história
do sujeito como sendo a marca de uma pertença indelével, na medida em que é a configuração
primeira, o arquétipo do processo de apropriação do espaço como lugar da vida cotidiana
pública.
O uso das narrativas, neste estudo, foi muito importante para entendermos a
experiência dos moradores em um bairro “aforado”. Foi além do plano técnico (gravação de
entrevistas). Usadas como método de história oral, as narrativas não informaram, assim
como explicaram o quanto a linguagem do aforamento permitiu a sedentarização, a
construção de moradas e a segurança da posse.
Mesmo com o uso das fontes escritas (Jornal Oficial do município e jornais locais), as
narrativas que contaram as trajetórias individuais (memória individual), em meio às ações
coletivas de saneamento, eletrificação, construção da escola e da igreja, foram as fontes
basilares da pesquisa, uma vez que sua natureza e importância para este estudo foram
imprescindíveis, constituindo o núcleo da investigação.
Como toda dominação social precisa ocultar as diversas memórias
165
para ser
hegemônica, as memórias dos moradores foram ofuscadas pelas memórias oficiais, das
sucessivas administrações municipais. Suas ações, enquanto agentes sociais e sujeitos
políticos por excelência, desapareceram em meio às memórias dos governos, que se centraram
na figura personalizada dos prefeitos. Como se as mudanças fossem fruto de apenas uma
pessoa e não de grupos sociais.
165
Sobre o discurso que se pretende ser hegemônico por meio da produção da memória histórica, ocultando os
agentes sociais divergentes, ver DECCA (1997). Interessante observar, ainda, a perspectiva de memória
abordada por Verena Alberti (2005, p. 167): “Durante muito tempo, a memória foi tratada, mais uma vez, de
forma polarizada. Falava-se da oposição entre ‘memória oficial’ e ‘memória subordinada’ ou ‘dominada’. Hoje
já há um consenso de que é preciso ter em mente que há uma multiplicidade de memórias em disputa”.
85
Dessa forma, procuramos recuperar os moradores do São Pedro não como vítimas,
mas como sujeitos históricos, como agenciadores de suas vidas, mesmo em condições
adversas e em meio aos conflitos políticos. O discurso da vitimização” (LARA, 1988, p.
355) tira desses sujeitos sua capacidade de criar, de agenciar e de ter uma consciência política
diferenciada.
86
3 LEGALIDADE E ILEGALIDADE FUNDIÁRIA URBANA: UM CONFLITO
POLÍTICO
“Somos sujeitos da história.”
(“Chico” Estevam, morador do São Pedro)
As disputas relacionadas ao aforamento proporcionam o fio condutor de toda esta
pesquisa. No primeiro capítulo, analisamos a dimensão social da representação jurídica do
aforamento na linguagem e na ideologia. No segundo, as ações dos sujeitos na construção de
suas moradas e na dotação de condições mínimas infraestruturais no loteamento.
Neste terceiro capítulo, pretendemos problematizar o percurso da legislação sobre a
questão, acompanhando as disputas em torno da legalidade/ilegalidade da situação fundiária
do bairro de São Pedro. Interessa acompanhar a trajetória de diversos atores políticos, de
vereadores, do Poder Executivo em geral, e de outros entes nas disputas sobre a situação
fundiária do bairro.
Um dos nossos objetivos é também refletir sobre como, no processo social, impõem-se
defasagens entre a norma e a regulação e a apropriação efetiva da terra urbana pelos
moradores, o que coloca em pauta os limites das posições políticas e legislativas contrárias ao
aforamento. Qual o sentido de uma legislação procedente para a realidade urbanística
itabunense? Por que os decretos não mudaram a realidade? Por que ainda permanece o
pagamento do foro?
Aqui, o intuito é retomar a indagação proposta no título desta pesquisa e o
estranhamento frente à tensão entre a norma escrita, que designa os contratos entre o loteador
e os moradores como sendo de arrendamento, e o uso corrente e persistente entre os
moradores do termo aforamento, para a denominação do pagamento devido e a descrição da
relação contratual com o loteador. Para ir além da documentação contratual, os depoimentos
orais permitiram conduzir indagações sobre o sentido do aforamento empregado pelos
moradores ao que, de fato, ele significa.
Do ponto de vista da legislação municipal, o loteamento/bairro São Pedro esteve sob
“controle” de três grandes reformulações que normatizaram as construções dos espaços. A
primeira foi o Código Municipal de Obras de 1979, visivelmente apoiado na Lei Federal
6.766, de 19 de dezembro de 1979. A segunda, a Lei Municipal 1.324, de 20 de dezembro
87
de 1984, agora sob o efeito de pressões da Associação de Moradores, determinava uma
função social para a propriedade e estabelecia as condições de ilegalidade dos loteamentos,
criando as prerrogativas para a criação de um novo diploma legal na década de 1990.
Na década de 1980, o governo de Ubaldo Dantas foi o primeiro a fazer intervenções
nos bairros de forma restrita, como observa o advogado Osias Ernesto Lopes:
Especificamente essa questão de Itabuna, eu imagino que seja o problema de todos
os municípios. Itabuna, até este ano de 95 e 96, tinha um... Itabuna tem o quê, 80
a 90 bairros, e tinha um bairro regularizado, era o bairro Zildolândia, mesmo
assim porque tinha havido uma intervenção no governo Ubaldo, onde foram feitas
correções e adaptações, de forma que o bairro se tornou enquanto bairro, enquanto
parcelamento do solo. ele ficou regularizado, de resto nenhum bairro, nem esse
que eu moro é regularizado [...]
166
.
A terceira e última intervenção legislativa foi o Decreto-lei 5.036 de 16 de
dezembro de 1995, que passaremos a analisar daqui por diante.
Os decretos que objetivavam regularizar a estrutura fundiária de toda a cidade foram
fruto de mobilizações de moradores residentes em áreas de terras de aforamento e dos debates
conflitantes na Câmara Municipal. “Essa bandeira já era da Associação dos Amigos do
Bairro”
167
, desde o início da década de 1980. Segundo “Seu” França, a Associação de
Moradores do São Pedro havia entrado na justiça para fazer a desapropriação, mas não teve
êxito.
O conflito político-fundiário chegou ao Legislativo na década de 1990, dada a
desordem urbanística vigente. De um lado, vereadores militantes de partidos progressistas e
engajados em lutas sociais, e, de outro, o próprio Carlos Jerônimo, eleito vereador para o
período de 1993 a 1996, fazendo a defesa de sua “propriedade” privada. “Na lei que nós
fizemos na Câmara, começou a disputa interna, porque nós tínhamos Carlos Jerônimo, que
era vereador e era o dono das terras. Fomos vereador juntos”, lembra Everaldo Anunciação,
ex-vereador pelo Partido dos Trabalhadores (PT)
168
.
A questão do aforamento fez parte da plataforma de campanhas eleitorais tanto por
candidatos de partidos de direita quanto de esquerda. Mas poucos se envolveram em todo o
166
Osias Ernesto Lopes. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
167
Raimundo França dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
168
Everaldo Anunciação Farias, vereador pelo Partido dos Trabalhadores (PT), entre os anos de 1993 a 1995, e
Secretário Municipal de Agricultura, Abastecimento e Meio Ambiente, de 1995 a 1996. Entrevista concedida ao
autor, em fevereiro de 2009, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
88
processo que resultou na produção do Decreto-lei 5.036 de 1995, o qual reconheceu a
prática do aforamento na regulação das relações contratuais no loteamento.
Algumas pessoas
169
se utilizaram de seu envolvimento político com o aforamento e se
candidataram a vereador ou vereadora, na década de 1990, ora utilizando-o como plataforma
de campanha, ora como discurso apelativo para garantir votos. Para Leonício José, advogado
e ex-vereador pelo PC do B (Partido Comunista do Brasil), apenas alguns se envolveram de
fato: Zenaide Magalhães, Carlito do Sarinha, Everaldo Anunciação e Carlos Jerônimo.
Identificamos que vereadores de partidos como o PT e o PC do B foram os mais
próximos do impasse do aforamento que infligia os moradores, e os mais expressivos na luta
política. Mas, o aforamento não estava na ordem do dia nas agendas dos partidos nem
constituía um conteúdo programático.
Na década de 1990, Leonício José foi o primeiro vereador de partido de esquerda a dar
início, no Legislativo, à luta pelo fim do aforamento, seguido por Everaldo Anunciação, no
mandato seguinte.
Para Leonício José e Everaldo Anunciação, a vivência pessoal e a aproximação com o
problema foram os elementos iniciais propulsores para conduzir a luta pelo fim do aforamento
no Legislativo.
Eu iniciei minha atividade no movimento popular. Depois, eu fazia o movimento
estudantil e também o movimento comunitário, e eu acompanhava a primeira
Associação de Moradores daqui de Itabuna, que foi fundada por nós, que foi a do
São Lourenço. Lá no São Lourenço, então, eles tinham esse problema do
aforamento. E como toda questão do aforamento, sempre existe um dono, ou são
famílias. E no São Lourenço, tinha a família, e era essa família que dominava e
cobrava o aforamento. No bairro do São Pedro também não é diferente
170
.
Percebe-se na narrativa de Leonício José, que sua formação política se deu no embate
cotidiano da luta contra o aforamento, experiência que não só foi significativa para o exercício
de seu mandato legislativo como também para a escolha profissional do curso de Direito.
no caso de Everaldo Anunciação, também eleito vereador na década de 1990, o
aforamento estava mais próximo da sua vida:
169
Davidson Magalhães (PC do B), Zenaide Magalhães (PC do B), Carlos Veridiano (PT), Carlito do Sarinha
(PTB).
170
Leonício José G. Santo, advogado e vereador pelo PC do B entre os anos de 1992 e 1996. Entrevista
concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
89
Eu nasci em Ilhéus, num bairro aforado, Bela Visão na Conquista. O aforamento era
cobrado pela família Berbert de Castro, uma fazenda né, de Miguel Alves. Convivi
minha infância, minha adolescência com esse processo de cobrança [...] Depois, em
contato muito com a CUT [Central Única dos Trabalhadores], com a militância, com
o movimento social, contato com França, Chico e os moradores do São Pedro, que já
desenvolvia uma luta da Associação [...]
171
.
Quanto à trajetória política de Carlos Jerônimo, ela estava, de certa forma,
sedimentada. Em sua memória, o seu pai, o Pedro Jerônimo, projetou o loteamento com
objetivos sociais, para ajudar os flagelados. Então ele ficava preocupado em ajudar e
preocupado, ao mesmo tempo, em deixar a pessoa em falta.”
172
Carlos Jerônimo segue narrando os laços de solidariedade: “Meu pai quando fazia a
doação de um terreno, ele dizia logo em seguida: ‘Oh, mi aguarde que eu vou aparecer em sua
casa pra tomar um cafezinho com você!’”
173
.
A enchente de 1967 teria motivado Pedro Jerônimo a criar um loteamento com uma
“função social”. “Foi quando deram as enchentes e houve, com isso, aquilo que eu chamo
‘aquele pessoal da enchente’ [flagelados].”
174
Na narrativa de Carlos Jerônimo, filho do
proprietário fundador, os primeiros moradores eram todos flagelados, o que não corresponde
aos depoimentos dos mesmos. Muitos vieram de cidades próximas à Itabuna, conforme
observamos nos relatos constantes do capítulo anterior deste estudo.
A memória de Carlos Jerônimo tenta projetar um papel social imprescindível, se não
paternalista, para os sujeitos que procuraram o loteamento para construir suas moradas.
Uma doação pode ter vários significados, e é no político que situamos esse ato
generoso. abordamos nos capítulos anteriores que a doação de terrenos não implicava no
não pagamento do foro. A doação enquanto valor implica em receber uma obrigação de
retribuição, “como uma responsabilidade política de natureza ética” (ROLNIK, 1997, p. 170).
Filantropia traduzida em clientelismo político, os votos para a eleição de Carlos
Jerônimo viriam dos foreiros. “Orgulho maior dele foi quando me lançou candidato a
vereador desta cidade. E que, infelizmente, não teve oportunidade dele me ver vereador desta
cidade.”
175
171
Everaldo Anunciação Farias. Entrevista concedida ao autor, em fevereiro de 2009, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
172
Carlos Jerônimo. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para a
realização deste estudo.
173
Idem.
174
Idem.
175
Idem.
90
Historicamente, tem sido comum as comunidades residentes em espaços ilegais
ficarem reféns de quem “as protegeu” ou “olhou por elas”. No caso do São Pedro, as
evidências demonstraram que, tanto o loteador quanto os administradores públicos fizeram
uso desse mecanismo político. Não sendo uma comunidade homogênea, com interesses
diversos e posições políticas heterogêneas, tais práticas políticas se depararam também com
oposições.
Durante todo o seu mandato, o vereador Carlos Jerônimo se concentrou em fazer
pedidos de providência para melhorias infraestruturais dos bairros São Pedro, Pedro Jerônimo
e Zizo (todos de sua propriedade e sob o regime do aforamento). Em todo o seu mandato,
encontramos os seguintes requerimentos encaminhados ao Poder Executivo, solicitando:
“canal de esgoto no bairro Pedro Jerônimo, que liga a Rua São Bento ao bairro São Pedro”;
“uma quadra polivalente na praça Pedro Jorge, na avenida Pedro Jorge, no bairro Pedro
Jerônimo”; “construção de escadarias nas ruas Santa Barbosa, Santa Maria, São Luís, Nossa
Senhora Aparecida, no bairro de Zizo”
176
. Todos os pedidos de solicitação de obras ao
Executivo municipal concentravam-se nos bairros de sua “propriedade”.
Pelo Decreto-lei 5.036 de 1995, o loteamento foi considerado ilegal, justamente
porque o loteador não havia realizado uma infraestrutura mínima, ficando a mesma a cargo do
Poder Público, que “implementou no loteamento infra-estrutura urbana água, luz,
esgotamento sanitário, arruamentos, pavimentação além de manter estrutura para serviços
públicos de saúde, educação e transportes, mesmo não estando o loteamento legalmente
constituído”
177
.
O que deveria ser da responsabilidade pública foi conduzido, planejado e executado
por particulares, pelos moradores, como demonstrado no capítulo anterior. E o vereador,
Carlos Jerônimo, tentava se eximir mais ainda da responsabilidade, ao tentar se utilizar do
Legislativo para ampliar a infraestrutura do bairro.
Desde a criação do loteamento, mesmo dispondo de instrumentos legais para intervir
na situação dos loteamentos irregulares, seja por meio da legislação federal, do Código de
Obras ou do Plano Diretor Urbano, não se observa qualquer intervenção dos sucessivos
governos nas décadas de 1970 e 1980. Nesses anos, não se localizou qualquer ação política ou
judicial inibidora de práticas ilegais de loteamento.
176
Pedidos de Providência 113,116 e 267, datados de 1997, constantes dos arquivos da mara Municipal de
Itabuna.
177
Decreto n° 5.036, de 16 de dezembro de 1995, publicado no Jornal Oficial do Município de Itabuna, em 16 de
dezembro de 1995, p. 03.
91
Em 1994, Itabuna tinha uma população de 185.277 habitantes, 45 bairros e 57
loteamentos
178
. Osias, ex-Procurador-Geral do Município e coordenador do Departamento de
Regularização Fundiário na gestão do Partido dos Trabalhadores, recorda que, até o ano de
1995, havia um bairro regularizado, o Zildolândia (bairro de classe média alta). A cidade
ilegal era maior do que a cidade legal.
O Decreto Municipal 4.977, de 26 de abril de 1995
179
, anterior ao diploma legal
que proibia a cobrança do aforamento, definia como áreas de interesse social, para fins de
regularização fundiária, os seguintes bairros: São Lourenço, Santa Inês, São Pedro, Zizo,
Pedro Jerônimo, Maria Pinheiro, Daniel Gomes, Nova Itabuna, São Roque, Corbiniano Freire,
Fonseca, Fátima, Califórnia, Emanuel Leão, Rua de Palha e Vila Paloma.
a partir do governo municipal sob a administração do Partido dos Trabalhadores é
que a questão da reforma urbana de caráter popular passou a fazer parte da pauta de governo
da cidade de Itabuna. Vimos acima que metade da cidade era loteada, e os loteamentos, em
sua maioria, eram ilegais. Isso nos faz pensar no que poderia acontecer se as autoridades não
fossem complacentes com as irregularidades. Para aonde iriam todas essas pessoas?
180
Mas isso não significa que a “solução” seja a complacência. A ilegalidade demonstra
não só os limites da lei frente às forças dos poderes privados, como também um meio
possível, se não imprescindível, para a aquisição da morada.
Com o objetivo de realizar uma reforma urbana, inibir a especulação imobiliária e
garantir a função social da propriedade, ao arbítrio da ilegalidade, o prefeito Geraldo
Simões
181
, por meio desses postulados constantes no decreto-lei, encaminhou à Câmara
Municipal o projeto de lei que concedia o direito real de uso em loteamentos populares. Foi
criado um Departamento de Regularização Fundiária
182
, o qual, através de pesquisas, estudos
e, sobretudo, por meio dos depoimentos orais dos moradores de áreas aforadas, produziu um
projeto de lei que foi encaminhado à Câmara Municipal.
178
Fonte: PREFEITURA MUNICIPAL DE ITABUNA. Itabuna em números. Itabuna: Prefeitura Municipal-
Coordenadoria de Governo e Assuntos Estratégicos, 1996, p. 23-24.
179
Publicado no Jornal Oficial do Município de Itabuna, em 13 de maio de 1995, p. 02.
180
Essa pergunta foi feita por Ermínia Maricato (2000, p. 161), ao analisar criticamente o déficit habitacional e a
política urbana.
181
Eleito prefeito municipal pelo Partido dos Trabalhadores (PT), para o mandato de 1992 a 1996, obteve
30,28% (trinta vírgula vinte e oito por cento) dos votos válidos. Fonte: PREFEITURA MUNICIPAL DE
ITABUNA. Itabuna em números. Itabuna: Prefeitura Municipal-Coordenadoria de Governo e Assuntos
Estratégicos, 1996, p. 64.
182
Segundo o Jornal Oficial do Município de Itabuna, publicado em 11 de março de 1995, p. 07: Competia ao
Departamento de Regularização Fundiária: “I - desenvolver o programa de regularização fundiária procedendo
ao cadastramento das áreas de ocupação e sua legalização através de títulos; II - estabelecer procedimentos de
inibição da especulação imobiliária e da legalização dos loteamentos clandestinos e irregulares, como das áreas
de arrendamento; III - executar a política de assentamentos das populações de baixa renda em lotes
urbanizados”.
92
O conjunto de decretos compõe o projeto político de regularização fundiária para a
cidade de Itabuna, considerando que o sentido prioritário de intervenção do Poder Público
municipal era estabelecer um programa de “elevado alcance social, que assegure o direito à
terra e a habitação aos ‘sem teto’, aos moradores de ‘invasões’ e bairros populares nas
periferias da cidade”
183
.
Em 1994, teve início o projeto político fundiário do governo do PT (Partido dos
Trabalhadores), que consistia no processo de concessão de direito real de uso em
assentamentos urbanos populares. Foram entregues 2.357 escrituras aos ocupantes de lotes, de
acordo com situações específicas, não incidindo sobre a totalidade de um bairro
184
. Por
exemplo, no bairro Sinval Palmeiras foram entregues 427 escrituras em apenas onze ruas. Os
técnicos da Prefeitura faziam um levantamento prévio e seletivo, procurando lotes em que se
caracterizasse a posse
185
, com ocupantes com uma renda inferior a três salários mínimos.
Aos poucos, a democratização do espaço urbano foi deixando de ser uma abstração
jurídica para se tornar uma realidade. Através de ações políticas práticas foi possível colocar
na agenda pública medidas de caráter democrático.
Para os moradores do São Pedro, nem sempre os espaços institucionalizados foram o
caminho para a afirmação de direitos e de lutas individuais e coletivas.
O Decreto-lei 5.036 não trazia nenhuma novidade jurídica, mas da forma que se
apresentava para a realidade fundiária da cidade trazia elementos de transformação e
procurava, também, se ajustar à legislação federal e municipal. Dentre as leis urbanísticas, o
decreto-lei atendia a uma especificidade local, ao contrário das outras, que eram de caráter
geral.
“No sul fizera muito isso, inclusive o que pessoal implantou aqui foi copiado de
algumas experiências petistas no sul do país [...]”
186
, ressalta Osias Lopes, Procurador-Geral
do Município na época do lançamento do decreto-lei. Mas, foi uma atitude política salutar.
O texto era longo (destacaremos apenas uma parte) e pontuava as condições de
ilegalidade do loteamento São Pedro
187
:
183
Jornal Oficial do Município de Itabuna, publicado em 13 de maio de 1995, p. 02.
184
Fonte: PREFEITURA MUNICIPAL DE ITABUNA. Itabuna em números. Itabuna: Prefeitura Municipal-
Coordenadoria de Governo e Assuntos Estratégicos, 1996, p. 166.
185
Projeto de Lei nº 21/95 (Arquivo da Câmara Municipal de Itabuna).
186
Osias Ernesto Lopes. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
187
O decreto-lei em análise foi criado especificamente para o São Pedro. Para cada caso, publicava-se um
decreto direcionado ao loteamento considerado ilegal.
93
Fica reconhecida e decretada a ilegalidade do Loteamento conhecido por “BAIRRO
SÃO PEDRO”, implantado clandestinamente na área da antiga Fazenda Gaúcha, de
propriedade da Pedro Gerônimo Imobiliária, Agricultura, Comércio e Pecuária Ltda.
Considerando que o loteamento São Pedro não obedeceu para a sua implantação a
legislação pertinente e ainda assim constitui-se como bairro da cidade, tendo os
ocupantes dos lotes, edificado suas residências, sobre os mesmos enquanto foreiros,
arrendatários ou posseiros
188
.
Depois da aprovação do decreto-lei, as coisas no São Pedro continuaram semelhantes
ao período anterior. Houve um recuo na pressão da cobrança, mas não o fim definitivo do
aforamento.
A frequência da aplicação do decreto-lei foi quase nula, se não de uso bastante
esporádico. Não encontramos evidências de seu uso. Ao abordarmos todos os depoentes
residentes no São Pedro, inclusive ex-presidentes da Associação dos Moradores, a respeito da
lei, nos deparamos com um desconhecimento total. Quase ninguém tinha familiaridade com a
lei fora dos círculos jurídicos (advogados e legisladores).
A prática da cobrança do foro sempre foi intermitente desde o nascimento do bairro, e
não foi a existência do decreto-lei que cessou com o pagamento. Dessa forma, permanecera
letra morta a lei que proibia tal pagamento, dado o desconhecimento dos moradores e a falta
de publicização e empenho do Poder Público. Essa valiosa informação era desconhecida até
pelos organizadores do seminário de agosto de 2002.
Podemos notar pelos depoimentos orais coletados, ou melhor, pela ação subjetiva dos
sujeitos, que o decreto-lei foi criado em virtude de tal ação, do aforamento
189
presente na
linguagem, e não do arrendamento presente na documentação.
Os moradores sabiam das estruturas legais invisíveis, aquelas que colocavam o
loteamento e o loteador na ilegalidade, como bem apontou “Seu” Raimundo Brito, em seus
depoimentos. “Mas aqui nessa região eles levantaram o [inaudível], levantaram essa história
porque eles fazem isso sem vínculo com a Prefeitura nem com o Estado e nem com nada.
Loteiam aí por conta própria e ficam.”
190
A retórica da lei fala em indenização e reparação, e dos procedimentos técnicos,
administrativos e jurídicos necessários à regularização do loteamento, com um caráter
universalizante (para todos os espaços onde incidissem o aforamento) e igualitário, como toda
lei.
188
Decreto n° 5.036/1995. Jornal Oficial do Município de Itabuna, publicado em 16 de dezembro de 1995, p. 03.
189
Por isso, neste capítulo, deixamos de usar o termo aforamento entre aspas.
190
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
94
“As formas e as retóricas da lei adquirem uma identidade distinta que, às vezes,
inibem o poder e oferecem alguma proteção aos destituídos de poder” (THOMPSON, E.,
1987, p. 358). É justamente essa distinção que se observa no São Pedro. Acostumados a ver as
leis incidirem de cima para baixo, os moradores de áreas aforadas foram indiretamente
protagonistas do decreto-lei. Essa proteção legislativa ficou apenas na retórica.
Perguntados sobre a pouca efetividade da lei no São Pedro e no conjunto da sociedade
itabunense, Osias Lopes e Everaldo Anunciação (ambos responsáveis pela produção do
decreto-lei), insistem que faltou uma maior participação popular, uma maior pressão das
Associações de Moradores, e, uma vez que era fim de governo, não foi possível levar à frente
a concretude do decreto-lei.
Everaldo Anunciação, quando aponta a inação da administração do PT, refere-se à
falta de negociação com os loteadores, inclusive com a família Jerônimo: “Não houve
disposição do Poder Público, do Executivo, em sentar para ter uma negociação, um
entendimento, o que era realmente de direito desse proprietário [...] e essa luta não passou a
ser absorvida pela Associação [...]”
191
.
Aqui, encontramos uma memória dividida, pois para Leonício, ex-vereador pelo PC do
B (Partido Comunista do Brasil):
Ele precisaria, além de declarar ilegal, precisaria que o Poder Público conduzisse
essa luta. Dizer “olha, já que é ilegal, qual é a medida que nós vamos fazer?”. É uma
desapropriação por interesse público? então isso, o decreto foi até aí. E veja que
eu terminei o mandato em 96, houve, entre 95 e 96, a expectativa, incentivamos
isso, basicamente como minha atuação estava mais voltada pro São Lourenço, nós
entramos com João Marisco lá, tanto que lá não paga mais, lá acabou, é tudo
escritura.
A pressão popular pela legalidade do loteamento teve sua origem com o próprio
nascimento do bairro. Dessa forma, o Poder Público contava com o apoio popular; que outro
apoio seria necessário? A reforma urbana prevista no decreto-lei requeria ações firmes diante
da especulação imobiliária. Estava previsto na lei uma desapropriação de interesse público.
Vimos, nos capítulos anteriores, que, processualmente, a Associação de Amigos do
Bairro São Pedro se constituiu em um mecanismo legítimo de representação pública,
estabelecendo relações com o Poder Público que foram além das formas reivindicativas,
construindo e negociando novos direitos (SILVA, A., 1995, p. 59). Entendemos a publicação
191
Everaldo Anunciação Farias. Entrevista concedida ao autor, em fevereiro de 2009, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
95
do decreto-lei como a concretização, ainda que limitada, do direito à cidade. Mas a resolução
dos conflitos político-fundiários não se encerra só com a lei.
O PT surgira na cidade de Itabuna no mesmo momento em que surgiu a Associação de
Amigos do Bairro São Pedro. Um número significativo de seus integrantes e militantes
moravam no São Pedro.
Geraldo Simões
192
, político jovem, que havia acumulado em seu currículo político
direção sindical e um mandato de deputado estadual, era promessa de um “modo petista de
governar”
193
. Com forte vínculo com os sindicados e as Associações de Moradores, e
respaldado na atuação nacional do partido
194
, nas eleições de 1992, derrotou os ex-prefeitos
Ubaldo Dantas e José Oduque. O ex-prefeito Fernando Gomes, de forte empatia com as
massas, rendeu apoio ao candidato Ubaldo Dantas, mas não obteve sucesso. Mas, o que mais
chamou a atenção da população grapiúna (itabunense) foi a promessa de um Orçamento
Participativo, onde se teria maior transparência pública com os recursos e maior participação
popular.
O objetivo do Orçamento Participativo era obter a intervenção da população na
elaboração do orçamento municipal, juntamente com os técnicos da Prefeitura. Segundo os
dados do governo de Geraldo Simões, constantes das publicações do Jornal Oficial do
Município de Itabuna, foram realizadas várias audiências públicas, reuniões nos bairros da
cidade e um congresso que reuniu 450 pessoas representantes de Associações. As reuniões
foram em 55 bairros, perfazendo um total de 5.000 participantes.
O Orçamento Participativo foi o grande estandarte político da administração do
Partido dos Trabalhadores, na esperança de uma participação popular ativa e direta. Para o
sociólogo e analista político grapiúna, Agenor Gasparetto (2000):
Faltou a essa iniciativa maior amadurecimento e maior crença no seu potencial. Esse
programa se constituiu, levado às últimas consequências, num poderoso instrumento
de legitimação do uso de recursos por parte do poder público. Mais do que isso,
192
Novamente eleito para o período de 2001 a 2004, pelo mesmo partido.
193
“O PT advogou, então, que houvesse maior ênfase na divulgação das experiências das administrações
municipais conduzidas pelo partido, ampliando a idéia de um ‘modo petista de governar’, apregoou a realização
de uma ‘revolução democrática’ e um programa de governo que contemplasse uma ‘proposta abrangente de
transformações da sociedade e do Estado brasileiro” (MARTINEZ, 2007, p. 262). Ainda assim, nunca houve
experiências administrativas homogêneas, por isso não estamos querendo afirmar que o PT da cidade de Itabuna
tenha se aproximado ou se distanciado de um modelo abstrato ideal.
194
Paulo Henrique Martinez (2007, p. 262) sintetiza as resoluções de encontros e congressos (1979 a 1998) do
partido da seguinte forma: “O PT ingressou na vida política e partidária reivindicando a constituição de uma
alternativa de poder político e econômico na sociedade brasileira, que assegurasse a liberdade de expressão, de
organização e de participação dos trabalhadores na condução dos rumos do país. A luta contra o capital e o ideal
de uma sociedade sem explorados e sem exploradores foram referências em seu manifesto, no programa e em
proclamações públicas do partido em seus primeiros anos de atuação”.
96
seria uma forma consistente de neutralizar a ofensiva de importantes segmentos da
imprensa, na fase final de sua administração, melhorando as suas condições de
legitimação do exercício do poder, que precisa ser renovado permanentemente. O
projeto do Orçamento Participativo, de começo tímido, foi perdendo forças e, na
prática, acabou agonizando no descrédito.
O Orçamento Participativo enquanto mecanismo político que direciona os recursos
públicos conforme as demandas sociais poderia ser um instrumento profícuo para o processo
de regularização fundiária.
A cidade não era mais aquela do surgimento do loteamento; passara por
transformações, com múltiplas temporalidades. O loteamento saiu da invisibilidade,
potencializando os sujeitos à conquista de direitos.
Fotografia 06: Prefeito assina decreto de desapropriação do bairro São Lourenço.
Fonte: Fotografia de Valdenir Lima, publicada no Jornal Oficial do Município de Itabuna, 2.325, em 16 de
março de 1996, sem paginação.
Escolhemos a imagem acima por ser elucidativa e assim nos ajudar, como os demais
documentos, a ampliar o conhecimento desse passado que ora analisamos. Poderia ser a
fotografia do São Pedro, mas o fato de não ter sido também explica os limites do projeto
97
político fundiário do governo do PT no tocante ao exercício pleno de direito à propriedade e o
cumprimento da sua função social. A manchete do jornal chama a atenção do público,
principalmente dos moradores em geral de áreas aforadas, ao colocar ênfase no fim do
aforamento.
A imagem nos permite obter algumas informações. Um olhar apressado ou desatento
não perceberia alguns detalhes que nos ajudam em nossa problematização. O local da foto não
é o referido bairro, como pode sugestionar o título da manchete, mas sim uma das salas do
Poder Executivo ou da Câmara Municipal. As hastes com as bandeiras do estado da Bahia e
do município de Itabuna confirmam o local. Atrás do prefeito, que está inclinado e fazendo a
assinatura, encontram os vereadores; nas laterais, moradores e representantes de comunidades.
Geraldo Simões, como se na foto, está ao centro, pondo fim a um instituto que
impedia o direito à propriedade. Ao seu lado esquerdo, encontra-se Everaldo Anunciação, que
sentiu na “pele” o que era morar em bairro aforado. Leonício José, também estava presente
no ato, apesar da ausência de visibilidade. Populares do próprio bairro estavam ao redor, para
dar um significado político-social amplo.
A foto pode expressar o fim dos conflitos fundiários, mas o São Lourenço apenas foi
uma referência política. A lei funcionou enquanto lógica da igualdade, mas não “transcendeu
as desigualdades do poder de classe”
(THOMPSON, E., 1987, p. 360). Tarefa muito complexa
para se encerrar com uma simples assinatura.
“Inibir a especulação imobiliária”. Esse postulado constante do decreto-lei constituía
uma missão difícil para uma região marcada pelo latifúndio. A maioria dos loteamentos foram
resultados de mudanças de atividades econômicas empreendidas por antigos fazendeiros. De
fazendas a bairros loteados, assim se constituiu o perfil fundiário da cidade.
A publicização da lei deveria ir além dos círculos propagandísticos, poderia despertar
a opinião pública contra o domínio fundiário de algumas famílias, contras as formas
impeditivas e entravadoras da reforma urbana. “Produzimos panfletos e houve recuo na
pressão de cobrança”
195
do aforamento; essa foi uma das ações do governo, como forma
mobilizadora social. Embora fundamental, foi insuficiente para pôr fim nos aforamentos da
cidade.
A promessa do prefeito de que os bairros São Pedro, Pedro Jerônimo e Santo Antônio
seriam igualmente legalizados (com entrega de escrituras) não aconteceu. No palanque, diante
dos moradores e representantes de outros bairros aforados, o prefeito fez o seguinte
195
Everaldo Anunciação Farias. Entrevista concedida ao autor, em fevereiro de 2009, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
98
depoimento: “Vamos garantir a todos os moradores o direito de propriedade dos lotes porque
é injusto que continuem sendo cobrados aforamentos a um passo do novo milênio”
196
. A
retórica apenas indicava o atraso temporal do aforamento na cidade e a sua
descontextualização com a reforma urbana implementada pelo PT. O direito à cidade ficou
circunscrito apenas ao São Lourenço.
Vale notar que a lei não veio acompanhada de um orçamento específico para a
execução das regularizações fundiárias (loteamentos ilegais), ficando presa apenas ao
arcabouço jurídico e técnico.
Em seu artigo 2°, o decreto-lei estabelece os seguintes critérios:
Fica a coordenação de Regularização de Terras instituída pelo decreto 4.977, de
26 de abril de 1995, e a Procuradoria Geral do Município, com a incumbência de
adotar os procedimentos cnicos, administrativos e jurídicos, necessários à
regularização do loteamento, de forma a reparar as faltas cometidas pelo loteador,
adequando-o aos padrões urbanísticos requeridos por lei e garantindo os direitos dos
ocupantes dos lotes, a qualquer título
197
.
Para Leonício José, o melhor caminho seria o da conjugação de interesses entre os
loteados e o loteador: “Precisa vir se juntar à luta dos moradores”
198
. Para se resolver esse
impasse, os dois lados precisariam do Poder Público, sendo que ambos sairiam beneficiados.
“Eles precisam juntos exigir do Poder Público municipal uma solução que possa, por
exemplo, beneficiar a eles, ao dono do terreno e resolver um problema cá, um problema
habitacional. E o pessoal tá lá, eu não tenho dúvida disso.”
199
Essa observação é um tanto romântica. Se tal postura fosse “benéfica” para o
proprietário das terras, ele teria tomado e o conflito não chegaria ao ponto de se editar uma
lei para regular o impasse. Tais acordos poderiam ser feitos no governo posterior, o do
Fernando Gomes, uma vez que a família Jerônimo era aliada do prefeito. Entendemos que o
melhor momento para a resolução desse conflito político-fundiário foi na administração do
PT, dado o seu programa político partidário. Interesses não apenas econômicos, como também
políticos, estavam a preponderar para o loteador.
196
Segundo o Jornal Oficial do Município de Itabuna, 2.325, publicado em 16 de março de 1996, sem
paginação.
197
Decreto-lei 5.036, publicado no Jornal Oficial do Município de Itabuna, em 16 de dezembro de 1995, p.
03.
198
Leonício José G. Santo. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
199
Idem.
99
A família Jerônimo não aceitou qualquer negociação com o governo de Geraldo
Simões. O próprio Leonício José lembra que, anos depois de publicado o decreto-lei, houve
uma reação dos proprietários:
É o pessoal da família Jerônimo, tal, Carlos Jerônimo, o pessoal todo. É tanto que
logo em 2002, 2003 por aí, ou antes um pouquinho, houve um enxurrada de ações na
justiça no Tribunal de Pequenas Causas. E não teve uma ação sequer que tivesse
êxito por parte dos proprietários
200
.
Hoje, o bairro tem quase 7.000 moradores. Não temos dados estatísticos para a década
de 1990, mas também no decorrer desses anos não aconteceu nenhum surto demográfico
significativo. O valor anual do foro é cobrado de acordo com a testada (metragem da frente do
terreno), que, em média, é de 6 metros. Os bairros São Pedro, Zizo e Pedro Jerônimo são de
“propriedade” da família Jerônimo, sob a coordenação geral do Carlos Jerônimo.
Não temos também um cálculo preciso de quanto foi arrecadado no ano do decreto-lei,
mas, sob todas as hipóteses possíveis, as rendas obtidas, deduzidas das inadimplências, ainda
são suficientes para manter a empresa agrícola e imobiliária Pedro Jerônimo ativa, uma vez
que nenhuma empresa sobrevive sob déficits consecutivos. Devemos observar, ainda, que a
propriedade sobre essas terras dá prestígio e poder ao loteador.
No caso do bairro de São Lourenço, a negociação política suplantou as leis anteriores
que colocavam o loteamento na ilegalidade e prescreviam punições. Os herdeiros do espólio
de João Meira de Souza receberam o valor acertado com a Prefeitura
201
. Para “Seu” França, o
custo foi baixo, visto que, nos dias atuais, “qualquer gestor que tiver interesse pode fazer [...]
Foi assim que Geraldo fez no São Lourenço [...]”
202
.
A pesquisa indica que, no decorrer dos anos, se desenvolveu uma relação política entre
a família Jerônimo e muitos dos moradores do bairro. Os loteadores angariaram prestígio
social frente a uma parcela dos moradores, criando uma relação política do tipo
assistencialista e clientelista.
A doação de terrenos, a anistia do pagamento do foro e o parcelamento de pagamentos
em atraso foram mecanismos políticos pertinentes para a dominação social de Pedro
200
Leonício José G. Santo. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
201
Segundo o Jornal Oficial do Município de Itabuna, 2.325, publicado em 16 de março de 1996, sem
paginação.
202
Raimundo França dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
100
Jerônimo, os quais foram mantidos por seu filho. O exemplo mais evidente foi a eleição de
Carlos Jerônimo para o cargo de vereador.
Por tudo isso, concluímos que a família Jerônimo não desistiria do capital
investido
203
. Outra prova contundente disso está presente na própria memória de Leonício
José, ao lembrar de que, após o decreto-lei, Carlos Jerônimo foi ao Juizado de Pequenas
Causas “inventando ações de cobranças”, não obtendo êxito, pois não havia amparo legal
204
.
Passado o governo do Partido dos Trabalhadores, volta ao poder, no ano de 1996,
Fernando Gomes do PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), aliado político da família Jerônimo
e eleito prefeito pela terceira vez. Todo o avanço político regulatório da estrutura fundiária do
município voltava, então, à estaca zero.
A empresa Pedro Jerônimo Agropecuária e Imobiliária Ltda. requereu ao
Departamento de Habitação e Licenciamento a certidão de aprovação, ou seja, de legalidade,
dos loteamentos São Pedro e Pedro Jerônimo
205
. O requerimento foi favorável e o documento
foi assinado pelo Secretário de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente.
A declaração da certidão pautou-se na Lei Federal 6.766, de 19 de dezembro de
1979, e, para os agentes administrativos da Prefeitura, não apresenta nenhuma ilegalidade.
Com certeza, pautaram-se apenas no registro do imóvel em Cartório, que, de fato, foi
realizado, mas com uma planta virtual, com apenas um desenho geométrico sem
correspondência com a realidade, passando por cima da Lei Municipal 1.324 de 1984 e do
Decreto-lei 5.036 de 1995, o qual está sendo analisado. Este último nem sequer aparece na
certidão que “legaliza” os loteamentos São Pedro e Pedro Jerônimo, na qual se percebe uma
franca manipulação, um desdém de toda a legislação precedente. A certidão não tinha
fundamentação jurídica e era um retrocesso social.
Dessa forma, o Poder Público não é apenas conivente com a ilegalidade, como
também produtor da mesma. Ao fornecer licenciamento a um loteamento carregado de
irregularidades e se sobrepor a toda uma legislação fundiária que disciplina o uso, a ocupação
e sua função social, servindo apenas e tão somente aos interesses privados, o Poder Público
203
Partindo da análise da produção capitalista do espaço urbano, utilizamos a metáfora a seguir para
fundamentar ainda mais nossa divergência do advogado Leonício José: “Haverá uma moral para os capitalistas,
na história de como os índios pegam macacos, contada por Arthur Morgan? ‘Segundo a história, tomam de um
coco e abrem-lhe um buraco, do tamanho necessário para que nele o macaco enfie a mão vazia. Colocam dentro
torrões de açúcar e prendem o coco a uma árvore. O macaco mete a mão no coco e agarra os torrões, tentando
puxá-la em seguida. Mas o buraco não é bastante grande para que nele passe a mão fechada, e o macaco, levado
pela ambição e gula, prefere ficar preso a soltar o açúcar” (HUBERMAN, 1962, p. 338).
204
Leonício José G. Santo. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
205
A certidão se encontra no Cartório do 2º Ofício de Registro de Imóveis de Itabuna.
101
comportou-se como um agente que realimentava o patrimonialismo, uma estrutura de
dominação formada e gestada com o advento da produção do cacau, grupo de interesses
agrários que sempre se beneficiou com as políticas burocráticas.
Entre o jogo de vantagens e interesses do loteador e do Poder Público municipal, fica o
cidadão, aquele que lançou as bases infraestruturais do loteamento e que percebe a
participação dinâmica e sistemática do Poder Público no momento da cobrança de impostos
(IPTU). Peça fundamental na elaboração da retórica discursiva, o cidadão morador de áreas
periféricas aparece aos olhos de políticos inescrupulosos como moeda de troca, sendo o voto o
elemento central dessa política.
No ano 2000, volta ao Poder Executivo o ex-prefeito do Partido dos Trabalhadores,
Geraldo Simões, que, com as forças de esquerda locais, derrota Fernando Gomes. Nesse
segundo mandato, abandona por completo o projeto político fundiário iniciado em 1994, e as
novas ações já não alteram a estrutura da ilegalidade.
Anos depois, os moradores reagiram diante de tamanhos abusos e passividade. Em
agosto de 2002, a Associação de Moradores do São Pedro organizou um seminário, que durou
três dias. Os encontros foram em três domingos consecutivos. A escolha do dia favorecia a
participação dos trabalhadores e trabalhadoras.
Discutiu-se bastante e decidiu-se pelo fim do aforamento, por meio de uma nova
batalha jurídica, conduzida e orientada pelos moradores, sem a participação do Poder Público,
apenas com o apoio de algumas organizações sociais, como a Associação dos Advogados dos
Trabalhadores Rurais (AATR) e o Movimento Negro Unificado (MNU). “Chico” aponta que
os efeitos do seminário se deram ao longo do tempo, pois a quantidade “de moradores que
pagam aforamento não passa de 10% [dez por cento]
206
.
A experiência do São Lourenço foi um modelo exemplar. “No São Lourenço acabou
porque a Associação foi bem organizada, ela foi muito bem organizada. É o caminho que nós
estamos traçando, quando a administração [governo do PT] chegou e encontrou com muita
gente participando, com muita pressão, é aí que acabou.”
207
“Chico” acredita que, agora, mesmo a força organizativa e participativa da
comunidade para solucionar esse impasse. Tanto “Seu” França quanto “Chico” preferem
atribuir a situação à ausência de organização da Associação de Moradores a tecer críticas à
administração municipal do Partido dos Trabalhadores.
206
Francisco Estevam Santos. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
207
Idem.
102
Foi o seminário de agosto de 2002 que me fez pensar em mexer com o passado.
Interpretá-lo para entender o presente e ter uma perspectiva do futuro. Walter Benjamin
(1994, p. 224) nos aponta caminhos metodológicos de grande significação política: “Articular
historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi’. Significa apropriar-
se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
O sonho e a mudança estão presentes no imaginário dos moradores. “Seu” França,
morador do São Pedro mais de 30 anos, um dos fundadores da Associação de Moradores e
dirigente da mesma em três gestões, filiado e militante ativo do Partido dos Trabalhadores,
encerrou sua narrativa apostando na luta política e acreditando em seu sonho: “acho que é
uma luta importante, acho que vai ser uma vitória pra gente quando a gente conseguir
realmente o desapropriamento desse bairro”
208
.
Nesse ponto, parece importante retomar as indicações de Raquel Rolnik (1997, p. 13),
quando indica que, a legislação que define a legalidade urbana “o conjunto de decretos e
normas urbanísticas e de construção que regulam a produção do espaço da cidade” –, é
implementada em um terreno impregnado de posições políticas, ora para manter a ordem, ora
para atender a grupos de interesses. Em diversas situações, quando a legalidade passa a
beneficiar os grupos marginalizados, encontra uma série de pressões do mercado imobiliário
impedindo sua concretização.
Nas discussões sobre Direito e História Social, foi importante levar em conta as
proposições de Edward Palmer Thompson (1987, p. 354), quando indica que:
Se a lei é manifestamente parcial e injusta não vai mascarar nada, legitimar nada,
contribuir em nada para a hegemonia de classe alguma. A condição prévia essencial
para a eficácia da lei, em sua função ideológica, é a de que mostre uma
independência frente a manipulações flagrantes e pareça ser justa.
Com essa afirmação, Thompson sintetiza muito bem os mecanismos ideológicos
presentes em uma sociedade dividida em classes, que impedem o direito de posse efetiva, ou o
direito de propriedade, por alguns sujeitos. Se os mecanismos utilizados pela elite fundiária
fossem totalmente visíveis, os sujeitos condicionados a morar nesse lugar, teriam agido de
forma contestatória ao tamanho abuso dos latifundiários.
O Direito, como expressão de processos sociais, tem inovado bastante os estudos
historiográficos. “Deixando de ser entendido como algo decorrente de idéias e filosofias, ou
208
Raimundo França dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
103
que se configura como simples instrumento de dominação, o direito passou a ser concebido
como um campo simbólico, como práticas discursivas ou como dispositivos de poder”
(LARA; MENDONÇA, 2006, p. 09)
209
.
Os loteamentos sempre tiveram uma legislação específica, tendo em vista o
ordenamento do crescimento horizontal das cidades. Para Raquel Rolnik (1997, p. 13), a
legalidade urbana tem grandes implicações políticas e sociais, ao afirmar que, com “formas
permitidas e proibidas, acaba por definir territórios dentro e fora da lei, ou seja, configura
regiões de plena cidadania e regiões de cidadania limitada”.
3.1 A posse e o direito de propriedade
A questão do aforamento no São Pedro não poderia ser interpretada apenas no campo
do Direito. Apesar de serem bastante informativos e explicativos, os modos de vida são muito
complexos para serem reduzidos ao campo jurídico.
Percebemos, ao longo deste estudo, que um conjunto de leis urbanísticas tentou
disciplinar a ocupação do espaço urbano, e, ao mesmo tempo, regular os conflitos fundiários,
o que não obteve grandes efeitos para os moradores de bairros considerados ilegais. Assim, as
leis tiveram diferentes significados para os sujeitos envolvidos. As condições políticas e
culturais foram condicionantes para moldar os comportamentos dos moradores e do loteador.
Nesse campo de disputas pelo direito à terra, prevaleceram, na correlação de forças, os
interesses fundiários do loteador.
Desde a sua formação, o São Pedro não se enquadrava nas formas da lei. O critério de
ocupação estava baseado em valores e na situação econômica em que se encontravam os
ocupantes; o registro da propriedade (elemento básico para a sua aquisição) era uma
preocupação secundária. A aquisição e a utilização das glebas de terras eram mais importantes
do que o registro em Cartório das mesmas.
Ainda que a supressão da posse e a efetivação do direito pleno à propriedade sejam um
direito político a conquistar e que sua permanência revele o quanto é instável a democracia
brasileira, os moradores apresentam uma interpretação diferente, contrária à ordem jurídica
vigente.
209
Para um panorama dos estudos relacionais da História e do Direito, ver LARA; MENDONÇA (2006),
BOURDIEU (1989) e FOUCAULT (1999).
104
Para “Seu” França, nenhum morador deve pagar nem se sentir inseguro: “Tem o
usucapião, que vai nos dar direito a isso. Somos donos, quando compramos o terreno já
compramos o direito de posse”
210
. O que não significa um abandono da luta pela escritura dos
terrenos. A escritura (legalidade) pode gerar outras possibilidades e condições, como por
exemplo, poder “usar a escritura para obter empréstimo”.
O documento abaixo extrapola os efeitos meramente ilustrativos e informativos desta
pesquisa, constituindo-se como elemento central da problemática por mim desenvolvida.
Apresenta uma série de informações que dizem respeito não ao loteamento, como também
ao processo de urbanização da cidade e, obviamente, traz, em seu título, a questão jurídica tão
discutida neste estudo.
O texto do documento ênfase ao termo posse, adjetivando-o de direito. Ao longo de
28 anos, período compreendido entre o surgimento do loteamento e a publicação do decreto-
lei, o termo permaneceu inabalado. Não registros de perda da posse por falta de
pagamento.
Figura 01: Recibo de comprovação de pagamento do arrendamento.
Fonte: Acervo pessoal de Maria Albertina Santos (moradora do São Pedro).
210
Raimundo França dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
105
A compra do terreno era o primeiro passo aquisitivo para o domínio da posse,
processo feito por todos os moradores que consolidaram o loteamento. Mas a compra do
terreno não encerraria o pagamento do foro? Toda a literatura jurídica caracteriza o
pagamento anual (pensão) do foro como cessão para aquisição do domínio (posse). O São
Pedro constitui um paradoxo ao apresentar, simultaneamente, a compra do terreno e o
pagamento anual do foro.
Um fato singular para Leonício José: “Porque você acaba pagando o terreno, o aluguel
de um terreno que você não tem ele como proprietário, você tem todas as outras despesas e o
mais grave, você é quem beneficia, você que valoriza o terreno”
211
. Esse pagamento anual
nunca foi revertido em benefício do loteamento; não se justificava, não se criou nenhum
parâmetro ou critério. O pagamento do laudêmio
212
servia para aumentar os rendimentos
da empresa agrícola de Pedro Jerônimo.
Tudo isso fazia parte do oceano de ilegalidades a que estava submetido o loteamento
São Pedro. “Seu” Raimundo Brito, um dos primeiros moradores e que viveu em outros
bairros, explica a dimensão do problema: venda de terrenos sem escritura acontece em
aforamentos ilegais.
Em alguns lugares esses tem essa política, por que em outros lugares e fora como
eu conheço, a pessoa já compra o terreno, próprio e passa a escritura, mas aqui
nessa região eles levantaram, sabido levantaram essa história, por que eles fazem
isso sem vinculo com a Prefeitura, nem com Estado, nem com nada, loteiam por
conta própria...
213
Outro aspecto paradoxal presente no contrato é a estipulação do prazo de renovação do
“arrendamento” a cada ano. O proprietário tinha total ciência de que as pessoas procuravam
os lotes para construir casas e se estabilizar no local, por anos a fio. Segundo o artigo 679 do
Código Civil Brasileiro de 1916, o contrato não será considerado arrendamento, e sim,
enfiteuse (aforamento), quando o tempo for indeterminado. Foi com base nessa
indeterminação que os moradores passaram a usar o termo aforamento.
211
Leonício José G. Santo. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
212
Pagamento devido ao senhorio direto, quando da alienação de propriedade imobiliária usufruída em regime de
enfiteuse (FERREIRA, 2004, p. 1.187).
213
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
106
Apesar de haver um receio social pela compra
214
de casas em bairros onde vigora o
aforamento, o comércio de compra e venda de imóveis operava normalmente entre os
moradores. O que se vende de fato são as benfeitorias à casa edificada, ficando a cargo do
adquirente o pagamento do foro. O proprietário nunca se pronunciou a respeito, cobrando
apenas do adquirente um novo “foro”. No momento da venda, o vendedor pode esclarecer a
situação jurídica do terreno, cabendo ao adquirente pagar ou não o foro. Para Leonício José,
nesse momento, se pode ter um aliado político contra o aforamento
215
.
A ausência de um direito de propriedade e de uma política pública urbana democrática
implicava nas arbitrariedades cometidas pelos agentes privados, ávidos por lucros
imobiliários, condicionando os cidadãos a exercerem sua cidadania por meio de estratégias e
resistências.
Historicamente, as leis não têm sido favoráveis aos grupos despossuídos, mas isso não
significa que não se tenham ganhos legislativos.
A lei sempre emana do Estado e permanece, em última análise, ligada à classe
dominante, pois o Estado, como sistema de órgãos que regem a sociedade
politicamente organizada, fica sob o controle daqueles que comandam o processo
econômico, na qualidade de proprietários dos meios de produção (LYRA FILHO,
2006, p. 08).
O autor dessa afirmação foi o proeminente professor da Universidade de Brasília,
Roberto Lyra Filho. Essa forma de pensar o Direito ainda é muito forte no pensamento
sociojurídico brasileiro
216
.
Tais estudos têm sempre em sua base generalizações, um viés marxista ortodoxo, não
procurando analisar a sociedade de forma multifacetária e dinâmica, com realidades e
conjunturas heterogêneas, evidenciando apenas o resultado da equação: domínio econômico é
igual ao domínio da lei.
214
Segundo a legislação, o enfiteuta, ou foreiro, não pode vender nem dar em pagamento o domínio útil, sem
prévio aviso ao senhorio direto, para que este exerça o direito de opção; e o senhorio direto tem 30 (trinta) dias
para declarar, por escrito, datado e assinado, que quer a preferência na alienação, pelo mesmo preço e nas
mesmas condições. Se, dentro no prazo indicado, não responder ou não oferecer o preço da alienação, poderá o
foreiro efetuá-la com quem entender. Compete igualmente ao foreiro o direito de preferência, no caso de querer
o senhorio vender o domínio direto ou dá-lo em pagamento. Para este efeito, ficará o dito senhorio sujeito à
mesma obrigação imposta, em semelhantes circunstâncias, ao foreiro. Esta condição jurídica nunca foi comum
no São Pedro. Artigos 678 a 694 do Código Civil de 1916 (BRASIL, 1989).
215
Leonício José G. Santo. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
216
Atualmente, o Direito Achado na Rua é uma linha de pesquisa do Núcleo de Estudos para a Paz e Direitos
Humanos (NEP). Baseado na Nova Escola Jurídica Brasileira (NAIR), o Direito Achado na Rua é o encontro
entre os Novos Movimentos Sociais e o Direito, indo além do legalismo, procurando encontrar o Direito na
“rua”, no espaço público, nas reivindicações do povo.
107
Para Boaventura de Souza Santos (2006, p. 175), o Estado contemporâneo não tem o
monopólio da produção e distribuição do Direito, apesar de ser dominante sua juridicidade,
que nem sempre emana do mesmo: “ele coexiste na sociedade com outros modos de
juridicidade, outros direitos que com ele se articulam de modos diversos”.
Estudos empíricos realizados pelo pesquisador/professor Boaventura de Souza Santos
permitiram ao mesmo chegar às conclusões acima defendidas. Comunidades pobres da cidade
do Rio de Janeiro, na década de 1970, se utilizavam de um direito informal não oficial, o
profissional, conduzido pela Associação de Moradores, “que funcionava como instância de
resolução de litígios entre vizinhos, sobretudo nos domínios da habitação e da propriedade da
terra” (SANTOS, B., 2006, p. 175).
A respeito das discussões sobre o caos urbano no Brasil, ele se apresenta não apenas
como resultado da urbanização, historicamente excludente. No cerne dos processos históricos
de formação urbana, temos um emaranhado de leis que estão além da realidade
socioeconômica brasileira. No tempo presente, temos assistido ao recrudescimento de
ocupações de moradias urbanas, com um grande número de atos de violência. Os conflitos,
nas últimas décadas, m evidenciado que mudanças são necessárias na política urbana
brasileira. Tornar realidade concreta a efetivação da função social da propriedade urbana é o
que almejam os sem-teto.
Nos dias atuais, o regime de enfiteuse foi substituído pelo Direito de Superfície. Esse
direito é menos draconiano do que o contrato de aforamento, pois limita o tempo, acabando,
assim, com o caráter perpétuo do pagamento do foro. Estabelece o artigo 1.369 do Novo
Código Civil brasileiro que o proprietário pode conceder a outrem o direito de construir ou de
plantar em seu terreno, por tempo determinado, mediante escritura pública devidamente
registrada no Cartório de Registro de Imóveis (BRASIL, 2007).
Atualmente, o debate posto na sociedade civil reside no direito efetivo e pleno da
propriedade e na garantia de sua posse em caráter perpétuo, permitindo ao cidadão a
construção de sua morada em um terreno próprio e não de outrem.
Uma das transformações de grande impacto no mundo agrário e urbano provocada
pelos debates públicos e pelas organizações de luta por reforma agrária foi a mudança no
regime jurídico da propriedade. Nesse jogo de forças, venceram os setores que entendem que
a realidade socioeconômica demandava por mudanças.
A noção, o conceito e os fins da propriedade não poderiam estar presos apenas à
produção e ao mercado, como anteriormente vigorava. Em seu artigo 5º, a Constituição
brasileira, promulgada em 1988, estabeleceu que “a propriedade atenderá a função social”
108
(BRASIL, 2007). Conclui-se que a propriedade não é uma função social, mas um direito, que
tem uma função social (PINTO, 2005).
Setores conservadores
217
e neoconservadores, não aceitando o movimento da história,
queriam negar o sentido social da propriedade. Presos a matrizes teóricas iluministas e
positivistas, que absolutizavam o direito de propriedade exclusivamente ao plano individual e
positivo (COMPARATO, 2001), os representantes das ideias liberais, hoje neoliberais, foram
derrotados nesse pleito jurídico-social. O direito contemporâneo, como resultado das
expressões sociais, deu um cunho social ao direito de propriedade, e os interesses coletivos e
públicos estão presentes nessa nova norma jurídica.
Apesar dos avanços constitucionais, a posse ainda é uma realidade no Brasil. A
permanência social da posse, nos dias atuais, é um fato que nega aos sujeitos sociais
desfavorecidos o direito à propriedade. As mudanças e permanências se apresentam de forma
ambígua, diversa e plural, no curso do processo histórico brasileiro. Ora lentas, ora dinâmicas;
ora retrógradas, ora reacionárias; ora conservadoras, ora progressistas. Sempre de acordo com
uma configuração social dada, dentro da disputa de hegemonia em uma sociedade de
interesses sociais divergentes.
Os conceitos de posse e propriedade na história da apropriação territorial brasileira
têm significados diferentes a partir de cada conjuntura histórica dada; não são estáticos,
apresentando significados de acordo com os processos agrários, políticos, econômicos e
sociais envolvidos.
Os primeiros ocupantes (e ainda hoje) formadores do bairro tinham a posse e não a
propriedade, sendo assim, tinham a disponibilidade de uso, mas não o domínio pleno sobre os
terrenos. Há um hiato entre a lei e a prática social, que se traduz na manutenção de relações de
exploração. No São Pedro, a posse tem sido reiteradamente validada.
O governo municipal, sob a administração do prefeito Fernando Gomes
218
do PTB
(Partido Trabalhista Brasileiro) promoveu, em 1990, um projeto habitacional
219
restrito, no
qual o São Pedro se enquadrava, sendo que um dos critérios para participação dos moradores
217
Os representantes constituintes dos grandes proprietários de terras foram rotulados de “bancada ruralista”.
Sua origem remonta ao lobby exercido pela União Democrática Ruralista (UDR), durante a Assembleia Nacional
Constituinte (1987/88), para impedir que a nova Constituição facilitasse a realização de uma reforma agrária
(COMPARATO, 2001).
218
Eleito pela segunda vez para o mandato, de 1989 a 1992.
219
Lei Municipal 1.492, publicada no Jornal Oficial do Município de Itabuna, em 28 de junho de 1990, sem
paginação: “Artigo 1°. A Prefeitura Municipal de Itabuna, através da sua Secretaria de Viação, Obras e
Urbanismo, fornecerá gratuitamente, projeto de construção, reforma ou ampliação de imóveis de até 72m
2
(metros quadrados), considerados populares com fornecimento do respectivo alvará. Para aquisição do projeto,
os interessados instruirão o pedido com documento de posse ou propriedade do terreno”.
109
era a comprovação da posse ou propriedade do terreno. No São Pedro, imperava a posse e,
dessa forma, o governo municipal concebia o projeto público habitacional apenas em seus
aspectos construtivos.
A permanência da posse é um elemento impeditivo para uma política habitacional
ampla. Desde a década de 1980 que os planos (Plano Diretor) associam as construções de
residências à qualidade de vida e ao direito de propriedade.
Regularização fundiária e projeto habitacional público eram duas faces da mesma
moeda.
Em resumo, toda a problemática do aforamento até aqui estudada e analisada,
apresenta-se sob diferentes posições por parte dos moradores. Os mais antigos não apresentam
grandes protestos contra o pagamento do foro, enquanto a geração de moradores da década de
1980, basicamente os ex-coordenadores da Associação de Moradores que também eram
militantes do Partido dos Trabalhadores, postula posições contundentes contrárias ao
pagamento.
Aqueles que foram pioneiros na construção de suas moradas, ou seja, os que residem
desde os anos iniciais do loteamento, apresentaram as seguintes respostas, ao serem
questionados sobre o pagamento do foro: “Pago. Agora mesmo parece que está atrasado dois
anos, mas eu pago direto”
220
. “Seu” Raimundo Brito procura não atrasar: “Aqui não tem
atrasado”
221
. “Seu” Domingos Lourenço tem o pagamento como uma obrigação:
Pior que... que quando... a gente faz um contrato, sabe que neste aforamento é que a
gente tem que cumpri com aquele dever, né? Se eu alugo uma casa, alugado, né?
Eu tenho que cumpri com todo mês de paga, né? E o tal do aforamento, né? Eu
aforei, todo ano tem que contribuir, né? Não pode! Eu aforei...
222
“Dona” Josefa, antes mesmo de dar início à entrevista para este estudo, logo me
perguntou: “Mas isto não vai me prejudicar não, né?
223
. O medo de estar envolvida em mais
uma campanha política contrária ao pagamento do foro, de sucesso duvidoso, a fez ter receio
das respostas que poderia dar. Mas, ela continua pagando assiduamente o foro.
220
Germínio Cardoso dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
221
Raimundo Brito dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
222
Domingos Lourenço dos Santos. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta
de material para a realização deste estudo.
223
Josefa Emília Varjão. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material
para a realização deste estudo.
110
Para esses sujeitos, o pagamento do foro não se configura como uma injustiça, pois
garante a posse. Como informamos no primeiro capítulo desta dissertação, o valor anual do
foro era cômodo ao orçamento dos moradores, mas isso não é suficiente para uma explicação
mais ampla.
Os sensos de realidade foram sendo construídos a partir das percepções e do
desenrolar das disputas políticas pelo direito pleno à propriedade. O que está em jogo são as
diferentes perspectivas pelo fim do aforamento; são as experiências traduzidas em valores que
norteiam tais posições. Para os que têm posições político-partidárias, o fim da cobrança do
aforamento faz parte de um campo programático de luta política; para os moradores mais
antigos, uma melhor infraestrutura urbana é o que esperam do Poder Público.
Como se vê, a legalidade tem diferentes significados para o conjunto dos moradores:
sinônimo de desapropriação para uns; melhor atenção urbanística por parte do Poder Público,
para outros. Não queremos afirmar que os moradores mais antigos não querem ver o fim da
cobrança do foro. Quem não seria a favor do fim do pagamento de uma “obrigação”
contraída? Mas esses moradores mais antigos querem afirmar que sua estabilidade, sua
morada fixa e segura, e por que não, seu bem-estar, tem uma precedência frente aos lucros do
loteador.
Quanto à lucratividade do loteador em virtude das rendas dos terrenos aforados, isso
não parece ser uma afronta para os moradores. No conjunto de tudo isso há um peso moral
224
.
Por isso fomos buscar na cultura a explicação para a permanência do pagamento do foro no
São Pedro há mais de 40 anos. Normas não monetárias estão a preponderar entre os
moradores, o que faz existir diferentes ações por políticas públicas em favor do bairro.
224
O sentido aqui empregado é o da categoria Economia Moral. Além das obrigações contratuais estabelecidas e
aceitas por ambos (loteador e moradores), podemos compreender melhor o comportamento dos moradores
categoricamente na Economia Moral, procurando entender o direito à moradia enquanto valor. A categoria
Economia Moral foi amplamente estudada e discutida por Edward Palmer Thompson (1998, p. 258), ao perceber
que: “[...] muitas relações ‘econômicas’ são reguladas segundo normas não monetárias nas comunidades
industriais e camponesas. Essas normas existem como um tecido de costumes e usos, até serem ameaçadas pelas
racionalizações monetárias e adquirirem a autoconsciência de ser uma economia moral”. Thompson (1998, p.
258) salienta, ainda, que tais “descobertas” foram aplicadas dentro do contexto de uma formação histórica, e se
houver seu uso indiscriminado (ampliado) sem uma relação contextual, ou seja, se forem observados os valores e
estes por si constituírem a Economia Moral, “vamos encontrar economia moral por toda parte”. Assim,
podem-se obter resultados não muito definidos.
111
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo procurou desvendar o sentido da permanência do pagamento do foro no
São Pedro, que, a princípio, não pode ser atribuído apenas à falta de informação jurídica por
parte de alguns moradores. Reduzir à falta de informação todo esse emaranhado político-
fundiário e jurídico é uma forma simplista e vaga de entendimento dessa história local.
O aforamento foi se constituindo e se estabelecendo ao longo do processo de
construções de moradas e, ao mesmo tempo, apresentando os elementos de sua contradição.
Percebi, então, que a comunidade não era tão coesa e uniforme em sua luta contra o
aforamento. Havia dinâmicas e estratégias de diferentes grupos dentro da comunidade.
A existência de comportamentos compartilhados, que legitimam a continuidade do
pagamento do foro, estava mais presente no grupo de moradores que formaram o núcleo
inicial do loteamento. Embora esses primeiros moradores proviessem de áreas rurais, em sua
totalidade, tal fato não evidenciou que os mesmos tivessem experiência com o aforamento. Na
década de 1980, esse grupo, em contato com uma nova geração de moradores militantes do
Partido dos Trabalhadores (PT), entrou em conflito pela disputa do poder político da
Associação de Moradores.
As diferentes percepções existentes na comunidade do São Pedro foram fruto das
diversas experiências que se constituíram em posições políticas diferenciadas. Dessa forma,
enquanto o grupo dos militantes do Partido dos Trabalhadores via no fim do aforamento a
possibilidade de transformação e mudança, para o grupo dos moradores mais antigos isso não
se constituía em um problema primário, de modo que agiam com base em uma certeza moral.
Elegemos a cultura como força explicativa para todo este estudo. Edward Palmer
Thompson e Raymond Williams foram dois historiadores da cultura, dos quais procuramos
fazer um uso contextualizado e atualizado de algumas de suas categorias (experiência,
economia moral, residual e cultura), para a compreensão da realidade histórica do São Pedro.
Aguçar a visão sobre as narrativas do conjunto dos moradores do bairro, onde se
percebem diferentes comportamentos e atitudes a respeito do aforamento, permitiu-nos
concluir que essa comunidade não era uniforme nem homogênea e que a luta política dos
moradores pelo fim do aforamento teve diferentes perspectivas. Assim, entendemos melhor
por que algumas pessoas participavam, enquanto outras condenavam ou ofereciam uma
aprovação tácita e inativa.
112
O poder da lei, estruturado e estruturante para a resolução dos conflitos e normatização
dos espaços, configurou-se na cidade de Itabuna, de forma invisível, incólume e simbólica.
Posições políticas pontais, como demonstrado no caso do São Lourenço, possibilitam-nos
perceber que, na hegemonia, também há a possibilidade para as “classes inferiores de limitar e
reformular essas imposições culturais” (DESAN, 1992, p. 81). Os estudos revelaram que o
conflito não reside apenas na lei, mas enquanto elemento de mediação mostrou-se inoperante
e figurativo.
Nesse sentido, também corroboram as análises do historiador francês Pierre Villar
(2006, p. 27), quando afirma que o direito “tende a congelar, a cristalizar relações sociais
existentes e, por vezes, permanências”. Este estudo tentou mostrar o quanto uma legislação de
cunho social e includente, apesar de ser favorável a grupos sociais excluídos, pode ser
inoperante.
Em 10 de julho de 2001, uma nova legislação urbanística entrou em cena. O
planejamento territorial dos municípios brasileiros passou a ser regulamentado pela Lei
Federal 10.257, denominada de Estatuto da Cidade. A garantia do direito à cidade,
principalmente aos habitantes das “cidades ilegais”, foi o grande objetivo do Estatuto. Com
esse instrumento, a cidade e a propriedade urbana passaram a ter uma função social. O
Estatuto apresentava uma série de diretrizes norteadoras para a regularização fundiária de
áreas ocupadas irregularmente.
Em relação ao arcaico aforamento, o Estatuto apresentava o Direito de Superfície, em
seu artigo 21: “o proprietário urbano poderá conceder a outrem o direito de superfície do seu
terreno, por tempo determinado ou indeterminado, mediante escritura pública registrada no
Cartório de Registro de Imóveis”. Mas, o solo (superfície) continua a pertencer ao
proprietário. Creio ser o desejo dos moradores não mais estarem submetidos a qualquer
instrumento jurídico que limite os seus direitos à propriedade plena.
Considerado inconveniente para a realidade urbanística atual, o Novo Código Civil
deu um golpe decisivo no aforamento
225
, conforme o artigo 2.038:
Fica proibida a constituição de enfiteuses e subenfiteuses, subordinando-se as
existentes, até sua extinção, às disposições do Código Civil anterior, Lei n° 3.071, de
1° de janeiro de 1916, e leis posteriores (BRASIL, 2007).
225
A partir de 2003, não são mais possíveis novos contratos de enfiteuse.
113
Para entender o aparecimento do aforamento no loteamento São Pedro e as
contradições do contrato jurídico que vigorava no local, a história oral foi imprescindível. No
desenvolvimento da reflexão, foi de grande importância trabalhar com os depoimentos orais,
observando como os diferentes atores (moradores, advogados, vereadores e o governo
municipal) interpretaram o contrato vigente entre moradores e o loteador.
Foram esses depoimentos que possibilitaram refletir sobre as defasagens encontradas
na documentação escrita e na prática social. Sem maiores pretensões, este estudo atende a
uma demanda de um grupo social que reclama seu direito à cidade desde 1967. Com isso não
estamos querendo dizer que estamos fazendo uma história “de baixo”, em um sentido
dicotômico ou polarizado
226
, ou seja, versus uma história “de cima”, mas sim que a
problemática em questão e sua relevância social para os moradores e o conjunto da sociedade
itabunense a faz ser prioritária com os de “baixo” na escala social.
A ausência de documentos contratuais na relação de compra e venda dos terrenos e
melhores detalhes das condições do “arrendamento” fazem dos depoimentos não fontes
orais, como também evidências de provas para embates jurídicos. A força persuasiva das
narrativas por meio da memória são elementos necessários para a reconstrução de uma
história que possibilite tomada de ações jurídicas e políticas e que repercuta em mudanças
sociais.
Percebemos, por meio dos depoimentos, que o proprietário era conivente com o uso
social do termo aforamento, e os acordos verbais muitas vezes anulavam o “contrato” formal.
Alguns moradores tinham a esperança de que um dia não pagariam mais o aforamento.
Atentamos para a observação de Ian Mikka (apud AMADO; FERREIRA, 2006, p.
xiv), quando salienta que:
O testemunho oral representa o núcleo da investigação, nunca sua parte acessória;
isso obriga o historiador a levar em conta perspectivas nem sempre presentes em
outros trabalhos históricos, como por exemplo, as relações entre escrita e oralidade,
memória e história ou tradição oral e história.
No último capítulo desta dissertação, procuramos desenvolver uma interpretação,
tendo por base a segurança argumentativa que os moradores tinham com o aforamento.
Notamos que o aforamento permitiu ganhos não materiais, com a possibilidade de
construção de casas, como também a possibilidade inconclusa de integrar-se à cidade.
226
Verena Alberti (2005, p. 159) nos adverte que polarizações contribuem “para diluir a própria especificidade e
relevância da história oral – ou seja –, a de permitir o registro e o estudo da experiência de um número cada vez
maior de grupos, e não apenas dos que se situam em uma posição ou outra na escala social”.
114
Por isso privilegiamos o uso da história oral, pois ampliou a possibilidade de
interpretação desse passado.
Na relação entre a história que estamos interpretando e analisando e a memória dos
sujeitos envolvidos, notamos a presença de ltiplas memórias. No primeiro e no segundo
capítulos, percebemos uma memória compartilhada, no sentido de que os moradores
selecionaram e organizaram seus relatos que evidenciavam e concentravam características do
grupo, momentos que lhe davam unidade. Temos também uma memória dividida, em vários
momentos, principalmente quando foi ideologicamente mediada por suas posições políticas
partidárias atuais
227
, do presente, da conjuntura política que se apresentava no momento da
realização das entrevistas.
Essas narrativas constituem um processo social ativo (THOMPSON, P., 1992, p. 185),
que caracteriza as atitudes e os comportamentos dos moradores no passado, refletindo esse
passado e modelando suas posições no presente.
Nessa direção, preocupados em compreender como esses processos se formam,
criando significações que atuam como pressões e limites, dialogamos com o passado a partir
de questões que colocamos no presente, buscando explicações sobre modos segundo os quais
hegemonias se constroem e se realimentam, mas também, como sofrem contestações e
resistências.
Isso implica em uma noção de memória como um campo impregnado de disputas, não
como passado cristalizado, mas como um processo ativo de atribuição de significados a esse
passado a partir de um presente vivido como tensão.
Dessa forma, reafirmamos que, a análise da experiência desses sujeitos e da história de
seu relacionamento com a propriedade sobre as terras de São Pedro indica que o aforamento
foi um resíduo mantido como estratégia de garantia de direitos estáveis sobre os usos daqueles
terrenos.
Entender e afirmar que pagam o foro transforma-se em um caminho para a
manutenção de seus direitos sobre as pequenas glebas de terras nas quais construíram suas
227
O momento da realização da entrevista com Leonício José foi o da campanha eleitoral para eleição do prefeito
municipal. O PT (Partido dos Trabalhadores) lançara ao Executivo municipal a candidata Jussara Feitosa, esposa
de ex-prefeito Geraldo Simões, e o PC do B (Partido Comunista do Brasil), partido do Leonício, fazia parte da
aliança. Carlos Jerônimo declarou apoio pessoal e empenho à candidatura da Jussara Feitosa, chegando até a me
convidar (ao fim da entrevista) para uma das reuniões de campanha eleitoral. Quanto aos depoentes filiados ao
Partido dos Trabalhadores, até o ano de 2009, Everaldo Anunciação ocupa o cargo de Diretor de Organização do
Diretório Estadual do PT no estado da Bahia, e Osias Ernesto Lopes, ex-Procurador-Geral do município de
Itabuna ocupava (até a realização da entrevista) o cargo de diretor da Agência de Defesa Agropecuária vinculada
à Secretaria da Agricultura do Estado da Bahia.
115
moradas. Ao utilizarem os termos foro e aforamento, esses moradores parecem afirmar,
cotidianamente, suas reivindicações ao direito perpétuo de uso dos terrenos.
Essa história contemporânea, do “tempo quente” está ainda para se desenrolar.
Avaliamos os seus efeitos até o recorte temporal estabelecido, mas ela ainda está em curso, e
os seus efeitos ainda não podem ser vistos.
116
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2º OFÍCIO DO CARTÓRIO DE IMÓVEIS DE ITABUNA. Certidão de legalidade dos
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______. Registros de compra e venda de imóveis. Livros 3, 3-A 3-B, 3-H, 3-I. Itabuna,
período de 1910 a 1965.
PREFEITURA MUNICIPAL DE ITABUNA. Itabuna em números. Itabuna: Prefeitura
Municipal-Coordenadoria de Governo e Assuntos Estratégicos, 1996.
SECRETARIA DA PREFEITURA MUNICIPAL DE ITABUNA. Arquivo. Itabuna, Seções
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SECRETARIA MUNICIPAL DE SAÚDE DE ITABUNA. Arquivo. Itabuna, 2008.
LEGISLAÇÃO
BRASIL. Código Civil de 1916 (Lei n° 3.071, de 1° de janeiro de 1916). Organização dos
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______. Código Civil (Lei n° 10.406, de 10 de janeiro de 2002) e Constituição Federal. São
Paulo: Saraiva, 2007.
124
BRASIL. Decreto-Lei Federal n° 58, de 10 de dezembro de 1937. Dispõe sobre o
loteamento e a venda de terrenos para pagamento em prestações. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccIVIL_03/Decreto-Lei/1937-1946/Del058.htm>. Acesso em: 20
maio 2009.
______. Estatuto da Cidade (Lei Federal n° 10.257, de 10 de julho de 2001). Direito de
Superfície. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Leis/LEIS_2001/L10257.htm>. Acesso em: 15 maio
2009.
______. Estatuto da Terra (Lei Federal n° 4.504, de 30 de novembro de 1964). Artigos 92 a
95. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/L4504.htm>. Acesso em: 10 maio
2009.
______. Lei Federal nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979. Parcelamento do Solo Urbano.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L6766.htm>. Acesso em: 12 jun.
2009.
ITABUNA (Município). Código Municipal de Obras (Lei nº 1.198/1979). Das Condições da
Habitação. Publicada no Jornal Oficial do Município de Itabuna, nº 2.036, de 22 de dezembro
de 1979, sem paginação.
______. Decreto-lei Municipal nº 5.036/1995. Considera ilegal o Loteamento São
Pedro. Publicado no Jornal Oficial do Município de Itabuna, em 16 de dezembro de 1995,
p. 03.
______. Decreto Municipal nº 4.977, de 26 de abril de 1995. Cria a Coordenação de
Regularização de Terras. Publicado no Jornal Oficial do Município de Itabuna, em 13 de maio
de 1995, p. 02.
______. Lei Municipal nº 1.492/1990. Estabelece o Projeto Habitacional. Publicada no
Jornal Oficial do Município de Itabuna, em 28 de junho de 1990, sem paginação.
______. Lei Municipal nº 1.324, de 20 de dezembro de 1984 (Plano Diretor). Estabelece
Normas e Diretrizes do Desenvolvimento Urbano. Publicada no Jornal Oficial do Município
de Itabuna, em 26 de janeiro de 1985, p. 02.
125
WEBGRAFIA
BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. 2008. Disponível em:
<www.planejamento.gov.br>. Acesso em: 20 jan. 2008.
GASPARETTO, Agenor. Balanço da Administração de Geraldo Simões: 1993-1996.
Itabuna, 2000. Disponível em: <www.socio-estatistica.com.br>. Acesso em: 19 maio 2009.
ITABOCAS. Acervo de fotos. 2008. Disponível em: < www.itabocas.com>. Acesso em: 28
jan. 2008.
VILLAÇA, Flávio. As ilusões do Plano Diretor. 2005. Disponível em:
<www.flaviovillaca.arq.br>. Acesso em: 30 jun. 2009.
WIKIPÉDIA. Capoeira. 2008. Disponível em: <http://www.wikipedia.org/>. Acesso em: 20
jan. 2008.
126
ENTREVISTAS E DEPOIMENTOS
Carlos Jerônimo, filho de Pedro Jerônimo e herdeiro das terras. Entrevista concedida ao
autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
Domingos Barbosa dos Santos, pintor, morador 28 anos. Entrevista concedida ao autor,
em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
Domingos Lourenço dos Santos, 64 anos, pedreiro e fotógrafo, morador 30 anos.
Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para a
realização deste estudo.
Everaldo Anunciação Farias, vereador pelo Partido dos Trabalhadores (PT), entre os anos
de 1993 a 1995, e Secretário Municipal de Agricultura, Abastecimento e Meio Ambiente, de
1995 a 1996. Entrevista concedida ao autor, em fevereiro de 2009, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
Francisco Estevam Santos, 41 anos, mais conhecido como “Chico”. Fundador do Núcleo do
Partido dos Trabalhadores no bairro, participou da coordenação da Associação dos Moradores
em cinco gestões. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de
material para a realização deste estudo.
Germínio Cardoso dos Santos, 75 anos, aposentado, morador 30 anos. Entrevista
concedida ao autor, em dezembro 2007, por ocasião da coleta de material para a realização
deste estudo.
Josefa Emília Varjão, 82 anos, moradora 40 anos. Entrevista concedida ao autor, em
dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
Laudelino Barbosa, 79 anos. Entrevista concedida ao autor, em agosto de 2008, por ocasião
da coleta de material para a realização deste estudo.
Leonício José G. Santo, advogado e vereador pelo PC do B entre os anos de 1992 e 1996.
Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de material para a
realização deste estudo.
Maria Albertina Santos, 73 anos, empregada doméstica aposentada, moradora 39 anos.
Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta de material para a
realização deste estudo.
127
Osias Ernesto Lopes, advogado, responsável pela elaboração do decreto que tornou ilegal o
Loteamento São Pedro em 1995. Entrevista concedida ao autor, em dezembro de 2007, por
ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
Paulino Bispo dos Santos, 76 anos, morador há 42 anos. Entrevista concedida ao autor, em
janeiro de 2008, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
Professora Junice, aposentada e ex-diretora da Escola Padre Carlos Salério. Entrevista
concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material para a realização
deste estudo.
Raimunda Alves Biano, 77 anos, moradora 30 anos. Entrevista concedida ao autor, em
dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
Raimundo Bispo dos Santos, 76 anos, pedreiro, morador há 38 anos. Entrevista concedida
ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material para a realização deste
estudo.
Raimundo Brito dos Santos, 75 anos, carpinteiro, morador da região 38 anos. Entrevista
concedida ao autor, em dezembro de 2007, por ocasião da coleta de material para a realização
deste estudo.
Raimundo França dos Santos, filiado e militante do PT desde a sua fundação, aposentado,
morador 30 anos. Entrevista concedida ao autor, em janeiro de 2009, por ocasião da coleta
de material para a realização deste estudo.
Sebastião da Silva Santos, 70 anos, funcionário público aposentado, trabalhou para o Senhor
Pedro Carvalho Neves como agente arrecadador dos aforamentos durante os dez anos iniciais
do loteamento popular. Entrevista concedida ao autor, em maio de 2007 e em agosto de 2008,
por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
Vera Lúcia, ex-presidente da Associação dos Moradores do São Pedro. Entrevista concedida
ao autor, em agosto de 2008, por ocasião da coleta de material para a realização deste estudo.
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