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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL
CAMPUS DE TRÊS LAGOAS
PROGRAMA DE MESTRADO EM LETRAS
CARLOS VINÍCIUS DA SILVA FIGUEIREDO
O DIREITO AO GRITO:
A HORA DO INTELECTUAL SUBALTERNO EM CLARICE
LISPECTOR
TRÊS LAGOAS - MS
2009
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2
CARLOS VINÍCIUS DA SILVA FIGUEIREDO
O DIREITO AO GRITO:
A HORA DO INTELECTUAL SUBALTERNO EM CLARICE
LISPECTOR
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Mestrado em
Letras da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Câmpus de
Três Lagoas, para obtenção do título de Mestre em Letras. Área de
Concentração: Estudos Literários
Linha de Pesquisa: Literatura e Estudos Regionais, Culturais e
Interculturais.
Orientador: Prof. Dr. Edgar Cezar Nolasco
Três Lagoas
Programa de Mestrado em Letras da UFMS
2009
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3
FICHA
CATALOGRÁFICA
Figueiredo, Carlos Vinícius da Silva
O direito ao grito : a hora do intelectual subalterno em
Clarice Lispector / Carlos Vinícius da Silva. 2009.
111 p. ; 30 cm.
Dissertação (mestrado) – Fundação Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul – Câmpus de Três
Lagoas, 2009.
1. Subalternidade intelectual. 2. Clarice Lispector.
I. Figueiredo, Carlos Vinícius da Silva. II. Fundação
Universidade de Mato Grosso do Sul – Câmpus
de Três Lagoas. III. Título.
CDD 410
4
Programa de Pós-Graduação Mestrado em Letras: Estudos Literários
Dissertação intitulada O direito ao grito: a hora do intelectual subalterno em Clarice
Lispector”, de autoria do mestrando Carlos Vinícius da Silva Figueiredo, aprovado pela banca
examinadora constituída pelos seguintes professores:
____________________________________________________
Prof. Dr. Edgar Cézar Nolasco - DLE/CCHS/UFMS
Orientador
_____________________________________________________
Profª. Dra. Alexandra Santos Pinheiro - FACALE
/UFGD
.
______________________________________________________
Prof. Dr. Wagner Corsino Enedino -
DED/CPTL/UFMS
______________________________________________________
Prof. Dr. ROGÉRIO VICENTE FERREIRA
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Letras
UFMS-CPTL
Três Lagoas, 14 de agosto de 2009
5
A minha mãe Donizetti Benedita da Silva Figueiredo
(in memoriam)
6
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela explosão da vida.
À minha família, Carlos, Sonia e João Vitor, fonte da vida e da alegria que me deram sustento
todos os dias.
À Francieli, por estar sempre ao meu lado.
Aos amigos, simplesmente amigos, estreitamente unidos apesar da distância, da pequena rua
Embú em Jales.
Aos amigos da PDA, Paulo, Danilo, Paulo e Betinho.
Ao grande responsável por minha caminhada acadêmica, Professor Edgar Cézar Nolasco, um
exemplo de determinação e paixão pela pesquisa, um amigo único.
A pessoas como Ricardo Sobreira e Marcos Cintra, incentivadores e conselheiros de um
sonhador.
À professora Nena, sempre disposta a ouvir-me e a dialogar com meus textos; o professor
Paulo Nolasco, um intelectual que realmente representa a Universidade brasileira; ao
professor Wagner Corsino, amigo e exemplo de vida; à professora Alexandra Pinheiro pela
leitura cuidadosa do trabalho, às Professoras Vânia Guerra, Celina Nascimento e Marlene
Durigam, pessoas que acreditaram em mim.
À PROPP, pelo apoio e incentivo a pesquisa.
7
Porque há o direito ao grito. Então eu grito.
Grito puro e sem pedir esmolas.
Clarice Lispector
8
FIGUEIREDO, Carlos Vinícius da Silva. O direito ao grito: A hora do intelectual subalterno
em Clarice Lispector. Três Lagoas: Campus de Três Lagoas da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul, 2009, 111 f. (Dissertação de Mestrado)
RESUMO
Por meio da trajetória de uma nordestina vivendo no Rio de Janeiro, a autora Clarice
Lispector, utilizando-se da voz de um narrador homem, que também é um escritor, reflete
sobre questões de escrita, sobre o contexto e uma nova proposta acerca do papel do
intelectual. Dessa forma, o objetivo central desta dissertação é contribuir para o debate
teórico-crítico sobre os Estudos da Subalternidade. Estudos esses que visam questionar o
colonialismo teórico dos grandes centros e dar voz e lugar àqueles que são silenciados pelo
poder hegemônico; tendo como pano de fundo a obra literária e a vida da intelectual Clarice
Lispector. Para cumprir tal proposição, percorremos um difícil caminho, marcado pela
escassez de materiais traduzidos e pouco difundidos em nosso país. de se deixar claro,
todavia, o quanto essa teoria nos ajuda a refletir sobre questões culturais e sociais existentes
no contexto latino-americano e que, por sua vez, pode contribuir para a análise das obras
literárias. A análise parte do texto literário enquanto matéria discursiva cultural e trata de
forma específica das questões sociais e culturais que permeiam a obra. Trata-se como
problema de pesquisa o questionamento do lugar e papel do intelectual na
contemporaneidade. Nossa tese é a de que A hora da estrela (1977) constitui a biografia
intelectual da ficcionista Clarice Lispector.
PALAVRAS-CHAVE: Subalternidade; Intelectual; Clarice Lispector.
9
ABSTRACT
Through the path of a Northeasterner living in Rio de Janeiro, the author Clarice Lispector
uses a narrator man's voice, that is also a writer, to contemplate on writing subjects, bringing
an entire reflection about the context and a new proposal concerning the intellectual's
objective of that time. In this way, the main objective of this work is to contribute to the
theorical debate about the Subaltern Studies, focusing on the life and book of the intellectual
Clarice Lispector. The research hypothesis is to question that Clarice Lispector was, in some
way, concerned with the political and cultural movements that were happening, to the point to
observe such events in the construction of her histories, turning them into a more realistic
stamp. It is aimed to discuss the intellectual's role of Clarice Lispector against the literary
production and its reflex through the society. Our thesis is that the book The hour of the Star
(1977) constitutes the fictionist Clarice Lispector’s intellectual biography.
Key-words: Subalternity; Intellectual; Clarice Lispector.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO:
Literatura e política em Clarice Lispector
.......................................11
CAPÍTULO I
Estudos subalternos: uma introdução
.................................................18
1. Teoria do subalterno: o sul asiático ......................................................................................20
1.2 Teoria do Subalterno na América Latina ...........................................................................31
CAPÍTULO II
O intelectual subalterno em A hora da estrela
...............................50
2. A hora da estrela e o Brasil de 70.........................................................................................58
2.1 O projeto do intelectual subalterno Rodrigo S.M./Clarice Lispector ................................62
2.2 O direito ao grito do subalterno em A hora da estrela........................................................68
2.3 O intelectual subalterno Rodrigo S.M. ...............................................................................76
CAPÍTULO III -
Uma biografia (auto) ficcional de Clarice Lispector
....................86
3. Relação vida x obra em A hora da estrela............................................................................87
3.1 Rodrigo S.M. é Macabéa que é Clarice Lispector .............................................................94
5- CONCLUSÃO:
A hora do subalterno na cultura brasileira
..................................100
6-REFERÊNCIAS ................................................................................................................107
11
INTRODUÇÃO
LITERATURA E POLÍTICA EM CLARICE LISPECTOR
Desde que me conheço o fato social teve em mim importância maior do que
qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito
antes de sentir "arte", senti a beleza profunda da luta. Mas é que tenho um modo
simplório de me aproximar do fato social: eu queria era fazer alguma coisa, como se
escrever para isso, por mais que a incapacidade me doa e me humilhe. O problema
da justiça é em mim um sentimento tão óbvio e tão básico que não consigo me
surpreender com ele e, sem me surpreender não consigo escrever. Clarice Lispector,
A descoberta do mundo, p.217.
O objetivo central desta dissertação é contribuir para o debate teórico-crítico acerca
dos Estudos da Subalternidade,
1
tendo como objeto de reflexão a obra literária e a vida da
intelectual Clarice Lispector. Para cumprir tal proposição, percorreu-se um difícil caminho,
marcado pela escassez de referências bibliográficas traduzidas e pouco difundidas, em nosso
País. de se deixar claro, todavia, o quanto essa teoria nos auxilia a refletir sobre questões
culturais e sociais existentes no contexto latino-americano e que, por sua vez, pode contribuir
para a análise das obras literárias.
Centra-se, a pesquisa, no estudo de problemas atuais, figurativizados em obra também
contemporânea e, mais do que isso, na articulação de temáticas que tocam o País e o mundo.
Acrescente-se que o texto de Lispector sugere um debate político e social, colaborando para a
diluição de certezas e submetendo as instituições a uma séria crítica.
Mas, por que Clarice Lispector? Porque em sua última obra despontam personagens
cujos comportamentos e cujo discurso projeta uma realidade social e cultural singular, em que
a autora expõe sua própria face diante da história, “porque há o direito ao grito,”
2
enfrentando
questões como a da injustiça social brasileira e diferenças culturais gritantes, como se a
1
Estudos da subalternidade correspondem a uma visada teórica que procura dar voz e lugar àqueles que estão
excluídos da cultura hegemônica ou fora do mundo letrado. Tal teoria e conceituação serão especificamente
tratadas no capítulo I “Estudos Subalternos: uma introdução” desta dissertação.
2
LISPECTOR. A hora da estrela, p.13.
12
escritora necessitasse exteriorizar suas angústias e frustrações a respeito da problemática
social e intelectual brasileira.
Lispector apresenta, nas breves páginas do livro A hora da estrela (1977), sua resposta
àqueles que a caracterizavam como excessivamente hermética, dando uma gargalhada a todo
saber instituído, todo conceito canônico, mormente o de Literatura, rediscutindo uma nova
prática de leitura cultural. Importa mencionar que aqui estamos pensando na escritora que
escreve a partir do final da década de 1960 e cujo projeto intelectual sofre uma guinada
significativa que não pode ser desconsiderado pela crítica.
Dessa forma, parece que os censores de direita e os militantes de esquerda não
conseguiam enxergar a mensagem contestadora e transformadora de Lispector, visto não
estarem preparados para entender que o poder do sujeito se condensa em sua percepção do
simples-puro, e que é por intermédio dessa percepção que as transformações podem
acontecer.
Nesse aspecto, surge o questionamento: por que Estudos da Subalternidade? Porque tal
referencial teórico possibilita compreender, de maneira mais pertinente, o “balbucio,”
3
nas
palavras de Hugo Achugar (2006), daqueles que não têm voz nem lugar na sociedade
contemporânea e que o excluídos dos grandes centros letrados. Nosso trabalho tem, pois,
ainda, um caráter introdutório, enveredando por uma teoria que tem muito a contribuir para o
debate no interior da universidade brasileira.
De acordo com John Beverly (2004), a perspectiva subalternista conduz à
possibilidade de nova política interpretativa, que possibilita sair das amarras europeia e
americanista, dando vida ao embate entre o latino-americanismo e a hegemonia americana,
desenvolvendo novas perspectivas para seus povos.
3
Apropriamos-nos do conceito de Hugo Achugar no livro Planetas sem boca (2006), mas pelo avesso,
expressando a tentativa de se dar voz / ouvir os marginalizados.
13
Isso explica o fato de a análise desta dissertação partir do texto literário como matéria
discursiva cultural e tratar de forma específica as questões culturais e sociais que permeiam a
obra, em que se busca ouvir o grito latino-americano na afirmação de sua cultura local. Um
saber local representado por seus próprios intelectuais, libertando-se de um colonialismo
teórico que vem caracterizando, há anos, os caminhos da crítica e da teoria literária.
Toda a história que percorremos durante nosso trabalho é acompanhada “pelo rufar
enfático de um tambor batido por um soldado e um narrador que sabe que escrever é duro
como quebrar rochas”, pois “voam faíscas para todos os lados.”
4
Tal rufar de tambor também acompanha o desenvolvimento deste trabalho, não como
o citado por Lispector nos tempos de repressão, mas um tambor que marca o tempo e a
necessidade de questionamento acerca de uma nova leitura sobre a identidade cultural
brasileira e, por extensão, latino-americana.
Insistimos pensar na articulação proposta neste trabalho, em que se procura ouvir o
que ficou, em parte, silenciado na História oficial, com relação aos excluídos,
correspondendo, metaforicamente, em “saber” ouvir/escutar o balbucio do tambor que, a seu
modo, não silenciou as reflexões de Lispector sobre o contexto da década de 1970 e o regime
militar instaurado no País.
5
Clarice Lispector apresenta-nos a personagem Macabéa, uma retirante alagoana, um
substantivo coletivo, representante de uma grande massa que vem tentar a sorte no sul do
País. Juntamente, o narrador-escritor Rodrigo S. M. que se diz no dever de contar a história da
moça, como tantas outras.
Para o narrador-escritor:
4
LISPECTOR. A hora da estrela, p.22.
5
O contexto histórico da década de 1970 será abordado no II capítulo “O intelectual subalterno em A hora da
estrela”.
14
[...] como a nordestina milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama
num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. E não notam sequer que são
facilmente substituíveis e que tanto existiriam como não existiriam.
6
A personagem Macabéa “nascera inteiramente raquítica, com dois anos de idade lhe
haviam morrido os pais de febres ruins no sertão de Alagoas,”
7
foi para Maceió com a tia
beata, única parenta sua no mundo e, finalmente, chegou ao tão sonhado Rio de Janeiro, para
trabalhar como datilógrafa. Trata-se de uma personagem ao quadrado, uma vez que, Lispector
cria um homem para criá-la.
Arrolada essa breve contextualização, Rodrigo S. M. torna pública a história de sua
anti-heroína Macabéa, que, por sua vez, é uma personagem subalterna, posicionando-se
enquanto intelectual que cumpre seu papel social.
Assim, acreditamos que a rubrica dos Estudos da Subalternidade, em diálogo crítico
com o livro de Lispector, permite que o momento de maior lucidez crítica e intelectual da
escritora seja visto, ainda que ela estivesse o tempo todo, de alguma forma, preocupada com
os movimentos políticos e culturais que estavam acontecendo, a ponto de tirar proveito de tais
fatos para a construção de suas histórias. Talvez, por isso mesmo, suas últimas obras, a
exemplo de A hora da estrela, tenham um estilo mais “realista.”
8
Reconhece-se, entretanto, que isso não impede que o seja lido em seu livro, ainda que
não fosse uma preocupação da própria Clarice, considerando-se o contexto da década de
1970, tomado pelo autoritarismo do regime militar e a biografia da autora. O referencial
teórico escolhido nos permite compreender melhor o grito reivindicado pelo intelectual
Rodrigo S. M., enquanto marginalizado e sem classe social, segundo ele mesmo. Enfatizamos
6
LISPECTOR. A hora da estrela, p.14.
7
LISPECTOR. A hora da estrela, p.28.
8
Toma-se o termo realista sob a perspectiva teórica de Antonio Candido, quando o conceitua como um
“realismo feroz” em seu texto “A nova narrativa”. Para Candido, o realismo feroz “corresponde à era de
violência urbana em todos os níveis do comportamento. Guerrilha, criminalidade solta, superpopulação,
migração para as cidades, quebra do ritmo estabelecido de vida, marginalidade econômica e social - tudo abala a
consciência do escritor e cria novas necessidades no leitor, em ritmo acelerado.CANDIDO. A educação pela
noite, p.212.
15
tal pensamento, pois é que se encontra a questão nodal de nossa pesquisa, uma vez que
encaramos Rodrigo S.M. como um intelectual subalterno e por extensão os personagens que
habitam a obra de Lispector como um todo.
Asseveram, tal proposição, as palavras de Edgar Cézar Nolasco, quando esse estudioso
afirma que “a literatura de Clarice erige-se apontada para a insatisfação do mundo. Movida
por uma técnica pessoal, a linguagem clariciana tenciona a realidade, no sentido de se exaurir
dentro do texto.”
9
Talvez, seja, por isso, que os textos da escritora venham realmente a
chegar a uma representação em que o real é confundido com o ficcional, e vice-versa, tanto
em sua obra quanto na sua vida. É por aqui, também, que o traço biográfico mais se mostra
para a sociedade, especialmente quando lembramos que o livro A hora da estrela (1977) pode
ser lido como a biografia ficcional da escritora, posto que sua narrativa traz, em pano de
fundo, a história da família Lispector, metaforizada na história dos foragidos macabeus
judeus.
Dessa forma, buscamos articular a formação de um referencial teórico sobre os
Estudos da Subalternidade e, por extensão, “demonstrar” esse conhecimento à análise do texto
literário de Clarice Lispector. Para tanto, a dissertação encontra-se dividida em três capítulos.
No primeiro, intitulado Estudos Subalternos: uma introdução, discutimos o conceito
de subalternidade pela perspectiva teórica proposta pelo Grupo Sul-Asiático e compartilhada
pelo Grupo Latino-Americano de estudos da subalternidade. Esse capítulo tem por objetivo
explanar sobre a origem, desenvolvimento e objetivos dos estudos da subalternidade e, por
sua vez, contribuir para a formação de uma fonte bibliográfica para futuras pesquisas, pelo
menos no âmbito da crítica brasileira sobre o assunto, uma vez que muito recentemente
vem se discutindo aqui sobre tal conceito. A referência teórica está em Ranajit Guha (1988),
em seu livro Selected Subaltern Studies, Gayatry Chakravorty Spivak (1988), em seu texto
9
NOLASCO. Restos de ficção, p.45.
16
seminal “Can the subaltern speak”, de John Beverley (2004), no livro Subalternidad y
Representacíon, de Walter Mignolo (2003), em Histórias locais/Projetos Globais, e Alberto
Moreiras (2001), com A exaustão da diferença, entre outros. O capítulo perpassará pelo
questionamento proposto por Spivak em seu texto “Os subalternos podem falar?” e chega à
discussão da hegemonia cultural americana na América-Latina e de que forma o “balbucio”
cultural e intelectual dos subalternos poderá ser ouvido.
O segundo capítulo, intitulado O intelectual subalterno em A hora da estrela, percorre
uma análise acerca do intelectual Rodrigo S. M., personagem que narra a história da pobre
nordestina Macabéa, analisado aqui como intelectual subalterno e procurará definir, sob a
rubrica de pesquisadores, como Edward Said (2005), Jean Paul Sartre (1994), Silviano
Santiago, Beatriz Sarlo (2005), entre outros, a possibilidade de reflexão sobre o intelectual e
sua função/papel na sociedade. É certo que tal discussão contribuirá para uma concepção que
toma a produção intelectual de Lispector não mais como “alienada” e “hermética”
10
, mas,
sim, como uma escritora que cumpriu seu papel social e cultural, transformando-se em uma
intelectual à frente de seu tempo. Em virtude de seu posicionamento crítico, a intelectual
contribui para a desmitificação e dissolução de ideologias utópicas com relação ao intelectual
brasileiro e latino-americano, vislumbrando, dessa forma, uma nova visão sobre ou um novo
perfil de intelectual na contemporaneidade. Postulamos ser porque se inscreve a figura de
intelectual subalterno em Clarice Lispector, tendo em Rodrigo S. M. nosso melhor exemplo.
O terceiro capítulo, Uma biografia (auto)ficcional de Clarice Lispector, explora a
hipótese de que a obra A hora da estrela é uma espécie de biografia ficcional da escritora
Clarice Lispector, o que culmina na relação vida versus obra, buscando a aproximação e o
enfrentamento entre a escritora e suas personagens Macabéa e Rodrigo S M. Valemo-nos,
10
Dizemos isso diante da crítica redigida por Álvaro Lins ao livro Perto do coração selvagem, quando diz: “Li o
romance duas vezes, e ao terminar só havia uma impressão, a de que ele não estava realizado, a de que estava
incompleto e inacabada a sua estrutura como obra de ficção. LINS. Os mortos de sobrecasaca, 1963.
17
para esta discussão, do que propõem os estudos da crítica biográfica, particularmente do que
têm discutido os autores: Eneida Maria de Souza (2002), Edgar Nolasco (2007).
Com isso, o que se propõe aqui é uma análise que envolve etnia, gênero, classe social
marginalizada e excluída da cultura hegemônica do País e do mundo, a exemplo da mulher
pobre, nordestina, marginalizada e órfã, Macabéa.
Isso posto, a relevância desta dissertação se revela em seu caráter inovador, que
analisa a figura e o lugar do intelectual, não como detentor cultural, inalcançável, provido de
intelligentsia, conceito elitista e fechado que se assina sob a rubrica de Cultura nos dias atuais,
propondo uma releitura dessa figura no mundo contemporâneo. A leitura da obra de Lispector
nos leva ao encontro do (não) enfrentamento atribuído a seu papel enquanto intelectual,
muitas vezes, deixado de lado pela crítica, mas que representou magistralmente a realidade do
País. Melhor dizendo: a boa crítica clariciana privilegiou uma Clarice moderna, quando,
conforme sinaliza sua produção da década de setenta, vamos encontrar uma autora que
gargalha da Clarice anterior, por ser modernista demais. Claro que, ali, Lispector estava
sendo fiel aos seus precursores, embora tal fidelidade não perdurasse por todo o decorrer de
seu projeto intelectual.
11
Afora isso, a contribuição de nosso trabalho está justamente em
encarar uma obra canonizada sob a rubrica de uma perspectiva totalmente nova, questionando
até que ponto conseguimos reivindicar o “nosso” direito ao grito.
É assim que a realização desta dissertação, além do incentivo à pesquisa, presta uma
homenagem aos 30 anos da morte da escritora (2007) e aos 30 anos de lançamento do livro A
hora da estrela, que continua atualíssimo, tanto na teoria quanto na prática da cultura
brasileira.
11
Ver NOLASCO. Caldo de cultura, particularmente o capítulo II, intitulado “Intelectual? Não”.
18
CAPÍTULO I
Estudos Subalternos: uma introdução
Nós não temos palavras para falar sobre nossa opressão, nossa angústia, nossa
amargura e nossa revolta contra o esgotamento, a estupidez, a monotonia, a falta de
sentido de nosso trabalho e de nossa vida [...]. E nós não temos palavras para dizer
tudo isso porque a classe dominante monopolizou não apenas o poder da tomada de
decisões e da riqueza material; eles também monopolizaram a cultura e a
linguagem. André Gorz
19
Antecedentes meus do escrever? sou um homem que tem mais dinheiro do
que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo desonesto. E
minto na hora exata da mentira. Mas quando escrevo não minto. Que mais?
Sim, não tenho classe social, marginalizado que sou. Clarice Lispector, A
hora da estrela, p.18.
O objetivo deste capítulo é contribuir para o debate crítico acerca da subalternidade,
cuja temática tem sido estudada de forma sistematizada, na América Latina, pelo Grupo
Latino-Americano de Estudos Subalternos que, por sua vez, mantém um diálogo teórico-
crítico com o Grupo Sul-Asiático, ressalvadas as diferenças históricas, culturais e sociais que
marcam os respectivos povos e locais.
Do Grupo Latino, sobressaem os críticos John Beverly, Robert Carr, Jose Rabasa,
Ileana Rodriguez, Javier Sanjines, como os fundadores desse grupo em 1992; já, do Grupo
Sul-Asiático, evidenciam-se Ranajit Guha, Gayatry Spivak e Dipesh Chakrabarty.
O termo “subalterno”, do latim subalternus, significa ‘aquele que depende de outrem:
pessoa subordinada a outra’. Neste estudo, tomamos “subalterno” como expressão que se
refere à perspectiva de pessoas de regiões e grupos que estão fora do poder da estrutura
hegemônica; daí o conceito de subalternidade exigir um espaço territorial definido e
demarcado, bem como àqueles que se encontram fora do pensamento hegemônico.
20
1.1 Teoria do subalterno: o sul asiático
A expressão “subalterno” começou a ser utilizada nos anos 1970, na Índia, como
referência às pessoas colonizadas do subcontinente sul-asiático, e possibilitou um novo
enfoque na história dos locais dominados, até então, vistos apenas do ponto de vista dos
colonizadores e seu poder hegemônico. Emergiria, assim, o nome “subalternidade” que, de
nome abstrato, teria seu sentido deslocado para certa concretude e visibilidade.
Os estudos subalternos, dessa forma, começaram no início dos anos de1980, com o
indiano Ranajit Guha,
12
como uma intervenção na historiografia sul-asiática, enquanto se
tornava um modelo para o subcontinente e, rapidamente, possibilitaria uma séria crítica ao
pós-colonialismo.
13
Alguns pensadores, como Ranajit Guha e Gayatry Spivak, utilizam o
termo “subalterno” para se referir a grupos marginalizados; grupos esses que não possuem
voz ou representatividade, em decorrência de seu status social. Cabe dizer que se trata de um
atributo geral relacionado à subordinação da sociedade, em termos de classe, casta, idade,
gênero e trabalho.
É válido lembrar, então, que uma importante prerrogativa para o desenvolvimento do
Grupo de Estudos Subalternos Sul-Asiáticos foi reescrever a trajetória da Índia colonial de um
distinto e separado ponto de vista, o das massas, promovendo uma história alternativa com
relação ao discurso oficial dos historiadores que se inscreviam na ideologia de suas alianças
políticas com a raj inglesa.
14
12
Ranaj Guha editou Subaltern Studies I-VI (1982-89). Suas publicações incluem A Rule of Property for Bengal:
An Essay on the Idea of Permanent Settlement (1963, 1982, 1996), Elementary Aspects of Peasant Insurgency in
Colonial India (1983), e Dominance without Hegemony: History and Power in Colonial India. Tem atuado como
professor e pesquisador em várias universidades da Índia, Inglaterra, Estados Unidos e Austrália.
13
s-colonialismo refere-se a um discurso intelectual que reúne um grupo de teorias ancoradas na filosofia,
ciência política e literatura; tais teorias são reações contra o legado colonial. Esse arcabouço teórico lida com a
literatura produzida em países que foram colônias
.
14
British Raj refere-se à dominação inglesa no subcontinente indiano entre os anos de 1858 e 1947, na região
comumente conhecida como Índia na contemporaneidade, possui áreas diretamente administradas pelo Reino
Unido. Cf.<www.wikiepedia.com>. Acesso em 10-01-09.
21
Gayatri Chakravorty Spivak,
15
no texto seminal “Can the subaltern speak?”, também
conhecida por seu empenho na questão da subalternidade, aponta para o termo “subalterno”,
não apenas como uma palavra clássica para o oprimido, mas como representação aos que não
conseguem lugar em um contexto globalizante, capitalista, totalitário e excludente, no qual o
“subalterno é sempre aquele que não pode falar, pois, se o fizer, já não o é.”
16
Spivak traz à tona a dualidade do termo representação, entre o “falar por” e a
“representação,”
17
afirma a autora que dois sentidos de:
[...] representação estão correndo juntos: representação como “falar por”, como na
política e representação como “re-presentar” como na arte ou filosofia. Uma vez que
a teoria também é apenas ação, o teórico não representa o (falar por) dos grupos
oprimidos. […] Este dois sentidos de representação dentro do estado de formação e
da lei, por um lado, e a predição do sujeito por outro lado, estão relacionados, mas
irredutivelmente descontínuas.
18
A condição de subalternidade é a condição do silêncio, para Spivak, ou seja, o
subalterno carece necessariamente de um representante por sua própria condição de
silenciado. Por um lado, observa-se a divisão internacional entre a sociedade capitalista regida
pela lei imperialista e, por outro, a impossibilidade de representação daqueles que estão à
margem ou centros silenciados. Sobressai aí o questionamento instigante de Spivak: os
subalternos podem falar? Para tanto, propõe-se a produção de uma história que represente a
narrativa da verdade dos subalternos. Contribuem, para essa discussão, os questionamentos
de John Beverly, que se encontram no livro Subalternidad y representacíon (2004), o qual
será detalhado adiante.
15
Gayatri Chakravorty Spivak (nascida em 24 de fevereiro de 1924) é uma crítica literária e teórica Indiana. É
conhecida mundialmente por seu artigo “Can the subaltern speak?”, considerado um texto de fundação do pós-
colonialismo. Atualmente é professora e pesquisadora na Universidade de Colúmbia, nos Estados Unidos.
16
Todas as traduções deste trabalho são de responsabilidade do autor. SPIVAK. Can the subaltern speak?, p.275.
17
SPIVAK. Can the subaltern speak? p.275.
18
Two senses of representation are being run together: representation as “speaking for”, as politics, and
representation as “re-presentation” as in art or philosophy. Since theory is also only action”, the theoretician
does not represent (speak for) the oppressed group. […] These two senses of representation-within state
formation and the law, on the one hand, and in subject-predication, on the other-are related but irreducibly
discontinuous. SPIVAK. Can the subaltern speak? p.275.
22
De acordo com Spivak (1988), escrevemos como povos que tiveram a consciência
formada como sujeitos coloniais e, negar isso, seria negar nossa história. Daí a autora analisar
como o tema do terceiro mundo é representado pelo discurso ocidental do primeiro mundo e
de que forma a produção do intelectual ocidental está atravessada pelos “interesses
econômicos internacionais,”
19
interpostos às leis do projeto imperialista que sufoca os
marginais e não lhes dá “permissão para narrar,”
20
razão de o projeto, de Spivak e de outros
pesquisadores, propor rever a historiografia da Índia colonial pela perspectiva de uma cadeia
descontínua das insurreições camponesas durante a ocupação colonial.
Nesse contexto, o diálogo marcado com Ranajit Guha, ressalta que:
A historiografia do nacionalismo indiano tem sido dominada por um longo tempo
pelo elitismo, colonialismo elitista e elitismo da burguesia nacionalista, [...]
nacionalismo este que compartilha o preconceito do desenvolvimento de uma
consciência nacionalista que confirma o processo de avanço exclusivamente ou
predominantemente da elite. Nas historiografias colonialista e pós-colonialista os
avanços são atribuídos a governantes coloniais ingleses, administradores, polícia,
instituições, e cultura; enquanto nas obras nacionalistas e pós-nacionalistas, são
atribuídas as personalidades da elite Indiana, instituições, atividades e idéias.
21
De acordo com Carvalho (2001), a perspectiva teórica mais importante da
pesquisadora indiana passa, também, pelo próprio hibridismo identitário que ela mesma faz
questão de manifestar. Ao tratar do trabalho de Spivak, afirma que:
Seu projeto teórico-político se relaciona com a sua necessidade biográfica de
desfazer o duplo lugar de fala subalterna que lhe foi imposto desde a infância, como
mulher numa nação colonizada.
22
19
SPIVAK. Can the subaltern speak? p.271.
20
Expressão utilizada por Edward Said.
21
The historiography of Indian nationalism has for a long time been dominated by elitism-colonialist elitism and
bourgeois-nationalist elitism… shar[ing] the prejudice that the making of the Indian nation and the development
of the consciousness-nationalism-which confirmed this process were exclusively or predominantly elite
achievements. In the colonialist and neo-colonislist historiographies these achievements are credited to British
colonial rulers, administrators, policies, institutions, and culture; in the nationalist and neo-nationalist writings-to
Indian elite personalities, institutions, activities and ideas. GUHA, apud SPIVAK. Can the subaltern speak?
p.283-284.
22
CARVALHO. O olhar etinográfico e a voz subalterna, p.4.
23
Spivak interessa-se em propor uma releitura sobre o que é tido como verdade e
transportar esse debate para outro lugar, discutindo a capacidade do subalterno de representar-
se. Dito de outra forma, teorizar quais são as possibilidades do subalterno de se subjetivar
autonomamente.
Spivak (1988), na esteira de Derrida, reflete sobre o perigo da apropriação do outro
pela assimilação, chamando a atenção para a reescrita da utopia estrutural. Por essa
perspectiva, toma-se como verdade o que é dito pelo outro, fazendo que tal discurso fique
enraizado na consciência do mais fraco; sinteticamente, trata-se de ouvir “a voz do outro em
nós.”
23
Ou seja, a representação do subalterno está atravessada pela hierarquia opressora
dominante.
Para a crítica indiana, “no primeiro mundo, sob a padronização e regimentação do
capitalismo socializado, embora pareça não ser reconhecida por eles.
24
Evidencia-se, pois, o
afastamento do centro com relação aos marginais, intrinsecamente enraizado no modo de
viver e pensar daqueles que não podem falar, de que vai derivar o questionamento: os
subalternos poderão falar em um mundo que não lhes o direito à voz? Arriscamo-nos aqui
a dizer que o, pois o esquecidos e postos à margem do poder. Daí a necessidade de se
reconceituar a relação entre Nação, Estado e povo. Cabe enfatizar que é nesse questionamento
que se centra a proposta dos estudiosos subalternistas.
Spivak (1988) privilegia, em seu trabalho, o projeto feminista, refletindo sobre a
consciência da mulher subalterna. Uma vez posta à margem da sociedade no contexto da
produção colonial em que o homem é o dominante, a mulher subalterna não tem história e não
pode falar, sendo colocada às sombras. A pesquisadora afirma que tal reflexão sobre a mulher
não pode ser reduzida a uma mera questão idealista, uma vez que ignorar o debate acerca da
mulher subalterna seria um gesto apolítico que, ao longo da história, tem perpetuado o
23
[…] the voice of the other in us. SPIVAK. Can the subaltern speak? p.308.
24
[…] in the First World, under the standardization and regimentation of socialized capital, thought they do not
seem do recognize this. SPIVAK. Can the subaltern speak? p.283.
24
radicalismo masculino. Dessa maneira, na busca por aprender a falar (ao invés de ouvir ou
falar por) historicamente, “o assunto emudecido da mulher subalterna é sistematicamente
esquecido pelo intelectual pós-colonial.”
25
Cabe aqui, trazermos nosso objeto de estudo para debatermos acerca da temática da
mulher subalterna. Tal passagem apresenta o momento em que o senhor Raimundo, chefe da
firma de representante de roldanas onde Macabéa trabalhava, avisa brutalmente que a demitirá
e que ficará com Glória, uma vez que, Macabéa errava demais, além de sujar
invariavelmente o papel. Naquele momento, Macabéa em sua incapacidade de argumentação
e lutar por seu direito ao grito, apenas responde “me desculpe o aborrecimento.”
26
Tal
passagem nos ajuda a entender o silenciamento da mulher, frente ao poder e imposição
masculina. Após ouvir as palavras de Macabéa, o chefe que já havia virado as costas, volta-se,
embora a contragosto, dizendo que a despedida não seria para e que poderia até demorar.
Então o que podemos refletir sobre essa passagem? Percebe-se que o chefe mesmo depois de
ser extremamente rude com Macabéa, impondo sua autoridade àquela mulher pobre e
residente de um cortiço, à margem da sociedade, fica com pena, dó, ao vê-la pedindo
desculpas.
A título de ilustração também podemos refletir sobre as três Marias que dividem o
quarto com Macabéa, mulheres humildes, trabalhadoras e que, de acordo com o narrador
Rodrigo S.M., não fariam falta a ninguém, tal como Madama Carlota, meretriz aposentada,
cartomante convertida.
Voltemos às palavras da pesquisadora indiana, ao enfatizar que “o subalterno feminino
não pode ser ouvido ou lido,”
27
o que implica conquistar um espaço de enunciação e garantir
um lugar de discurso, ou seja, posicionar seu locus cultural ou locus discursivo em face da
25
SPIVAK. Can the subaltern speak? p.295
26
LISPECTOR. A hora da estrela, p.25.
27
The subaltern as female cannot be heard or read. SPIVAK. Can the subaltern speak? p.308.
25
presença hegemônica masculina. Mais adiante, debatemos acerca do lugar, com base nas
reflexões do pesquisador brasileiro Edgar Nolasco.
Concluindo seu texto, Spivak afirma que o:
[...] subalterno não pode falar e que não nenhuma virtude em ter a mulher nos
textos globais como um item de piedade e que a intelectual feminina enquanto
intelectual tem uma tarefa circunscrita da qual ela não pode se manter como um
adorno.
28
Em suma, a autora apresenta uma discussão que tem, como pano de fundo, seu país, a
Índia, e, por extensão, a ideologia do Grupo de Estudos Subalternos Indianos, que procura
ouvir aqueles que estão à margem e posicionar-se em relação a eles, questionando o modo
como o pensamento europeu excluiu, também, numa relação de subalternidade, as demais
regiões do mundo, inclusive a América Latina.
Daí, talvez, o porquê de os estudos subalternos proporem “descarrilhar e perturbar a
vontade dos poderosos,”
29
unidos pela preocupação de escrever a história em uma
perspectiva pós-colonial, atuante e subalterna.
Para Edward Said,
30
tal empenho auxilia no entendimento de que “a história indiana
foi escrita por um ponto de vista colonialista e elitista, enquanto grande parte dessa história
tenha sido constituída pelas classes subalternas levando, consequentemente, à necessidade de
uma nova historiografia.”
31
Assim se percebe a necessidade, apontada por Said, de uma
história que realmente represente o povo indiano e, por extensão, aqueles que sofreram a
mesma forma de colonização, utilizando-se de fontes não convencionais ou negligenciadas,
28
The subaltern cannot speak. There is no virtue in global laundry lists with “woman” as a pious item. The
female intellectual as intellectual has a circumscribed task which she must not disown with a flourish. SPIVAK.
Can the subaltern speak? p.308.
29
Definição utilizada por Walter Mignolo no livro Histórias locais/projetos globais, p.271.
30
Edward Said, nascido em novembro de 1935, foi um teórico palestino de literatura americana, crítico cultural,
ativista político e um franco defensor dos direitos dos palestinos. Foi professor de inglês e Literatura Comparada
na Universidade de Columbia e um dos fundadores da teoria pós-colonial. Dentre seus trabalhos, cita-se o livro
Representações do intelectual.
31
[…] Indian history had been written from a colonialist and elitist point of view, whereas a large part of Indian
history had been made by subaltern classes, and hence the need for a new historiography. SAID. Selected
subaltern studies, p.5.
26
como a memória popular e o discurso oral. De acordo com o autor, esses seriam excelentes
exemplos para o desenvolvimento de uma História Alternativa
32
ao discurso oficial.
O fato é que essas mudanças funcionais são extremamente radicais, mesmo que
gradualmente estabelecidas, visto serem operadas somente pela força de uma crise. Uma crise
que propõe uma releitura histórica, cultural e social, possibilitando a participação daqueles
que, até então, estiveram silenciados pelo poder hegemônico.
Vale lembrar que essa discussão foi ratificada pelas palavras de Dipesh Chakrabarty,
33
ao assegurar que a Europa continua sendo o sujeito teórico soberano de todas as histórias e,
nesse sentido, a própria história “indiana” está em posição de subalternidade. se podem
articular posições de um assunto subalterno em nome da história.”
34
Chakrabarty (1988) também chama a atenção para o fato de que, enquanto os estudos
subalternos (na Índia e sobre a Índia) permanecerem dentro do domínio da História (enquanto
disciplina), eles serão subalternos, não apenas devido a seu interesse pela subalternidade, mas
porque sua própria prática disciplinar é subalterna.
O pesquisador asiático, Ranajit Guha, no prefácio do livro Selected Subaltern Studies
(1988), aponta que subalterno é um “nome para o atributo geral da subordinação na sociedade
Sul Asiática enquanto é expressa em termos de classe, casta, idade, nero e oficio ou de
qualquer outra forma.”
35
Podemos inferir que a expressão, “qualquer outra forma”, inclui a distinção entre
educado e não educado, que a aprendizagem, na academia, e o saber profissional conferem
àqueles que têm ou o acesso às informações. Eis uma forma de se verificar a fissura
existente entre subalterno e dominante.
32
Termo utilizado por Pandey no texto Peasant Revolt and Indian Nationalism.
33
Dipesh Chakrabarty é um historiador indiano que tem contribuido para o debate sobre a teoria pós-colonial e
os estudos da subalternidade. Atualmente é professor de História e Línguas e civilização sul-asíaticas na
Universidade de Chicago. Dentre seus trabalhos mais conhecidos, citam-se Rethinking Working-Class History e
Provincializing Europe.
34
CHAKRABARTY, apud MIGNOLO. Histórias locais/Projetos Globais, p.279.
35
[...] a name for the general attribute of subordination in South Asian society whether this is expressed in terms
of class, caste, age, gender and office or in any other way. GUHA. Selected subaltern studies, p.35.
27
Guha (1988) define seu próprio trabalho como o estudo do fracasso histórico da nação
para chegar à sua realização. O cerne de seu pensamento está na máxima de que as elites
representadas pela burguesia e/ou pela administração colonial são responsáveis por criar a
ideologia e a realidade do nacionalismo, ou seja, Guha está preocupado com a maneira pela
qual o sentido da história é convertido em um elemento de cuidado administrativo. Afirma, o
pesquisador:
É o estudo deste fracasso histórico da própria nação, um fracasso devido à
insuficiência da burguesia como também da classe trabalhadora para conduzir a uma
vitória decisiva sobre o colonialismo e uma revolução burguêsa-democrática, como
no século dezenove sobre da hegemonia da burguesia ou um tipo mais moderno de
revolução sobre a hegemonia de trabalhadores e camponeses, que formam uma nova
democracia - é o estudo deste fracasso que constitui a problemática central da
historiografia da Índia colonial.
36
Nessa perspectiva, o subalterno é concebido como alguém que carece de poder e de
autorrepresentação. Nega-se o “reconhecimento de sujeito da história e o próprio direito a um
projeto histórico totalmente próprio.”
37
Não seria exagero dizer que a reescritura da história
da Índia é uma extensão da luta entre os subalternos e a elite, e entre as massas hindus e o
império britânico.
Tal definição está atravessada pelos dois componentes que Guha utiliza para recuperar
a especificidade cultural e política de seu país. A primeira está em “identificar a lógica das
distorções na representação do subalterno na elite cultural ou oficial”; a segunda, em
36
It is the study of this historic failure of the nation to come to its own, a failure due to the inadequacy of the
bourgeoisie as well as of the working class to lead it into a decisive victory over colonialism and a bourgeois-
democratic revolution of either the classic nineteenth-century type under the hegemony of the bourgeoisie or a
more modern type under the hegemony of workers and peasants, that’s a new democracy’-it is the study o this
failure which constitutes the central problematic of the historiography of colonial India. GUHA. Selected
subaltern studies, p.43.
37
SAID. Selected subaltern studies, p. xii
28
“descobrir as semânticas sociais das estratégias e práticas culturais das insurreições
camponesas.”
38
Em outras palavras, o pesquisador indica que o subalterno é, por definição, um não
registrado ou registrável, incapaz de agir como um agente histórico da ão hegemônica, ou
seja, de estar presente nas dicotomias estruturais e na constituição dos heróis do drama
nacional, na escrita, na literatura, na educação, nas instituições, na administração da lei e na
autoridade, uma vez que tais produções estão atravessadas pelo olhar de formação do Estado.
É importante lembrar que Guha (1988) expõe o caminho para um possível
entendimento sobre a relação entre subordinação e dominação:
Nós reconhecemos certamente que a subordinação não pode ser entendida como um
dos termos constitutivos da relação binária no qual o outro é o dominante, para os
grupos subalternos sempre tema para as atividades de grupos regrados, mesmo
quando são rebeldes e ativistas.
39
Para o pesquisador indiano, a categoria que define a identidade do subalterno é a
negação, ou seja, uma “antítese necessária” de um sujeito dominante. Não se refere à negação
“dialética” superação-conservação, mas, sim, a uma inversão. Seu projeto centra-se em
recuperar ou representar o subalterno como um sujeito histórico, cuja identidade constitua-se
como uma práxis chamada rebelião.
O pesquisador conclui seu texto dizendo não estar nesse embate contra o elitismo,
visto saber da necessidade de novas pesquisas sobre a subalternidade na academia, apoiando,
assim, o empenho daqueles que lutam pela representação das minorias.
38
[…] identifying the logic of the distortions in the representation of the subaltern in the official or elite culture;
and uncovering the social semiotics of the strategies and cultural practices of peasant insurgencies themselves.
GUHA. Selected subaltern studies, p.37-43.
39
We recognize of course that subordination cannot be understood except as one of the constitutive terms in a
binary relationship of which the other is dominance, for ‘subaltern groups are always subject to the activity of
ruling groups, even when they rebel and rise up’. GUHA. Selected subaltern studies, p.35.
29
A alternativa subalterna representa, dessa forma, um conhecimento integrativo para
todas as lacunas, lapsos e ignorâncias conscientes que são apresentadas pelos líderes da
cultura dominante, dando voz àqueles que convivem com a realidade opressora e desigual.
É oportuno trazer para o debate, neste momento, o que Lispector faz, em A hora da
estrela (1977), ao reconhecer o direito de uma voz autoral que retrate a voz dos sem-vozes,
bem como questionar uma suposta autoridade que estaria condenada a representar uma voz da
verdade que sempre tem a nos dizer o que fazer, uma voz enraizada em um colonialismo
teórico. A escritora utiliza-se de três instâncias enunciativas, relacionadas, aqui,
metaforicamente: Lispector e Macabéa e, por extensão, Rodrigo S. M.
Clarice Lispector é uma intelectual que se mascara ao não se assumir enquanto tal,
dando a palavra a Rodrigo S. M., o narrador-escritor-criador, que almeja transfigurar-se em
sua criatura Macabéa.
Tentar representar o subalterno não é nossa intenção, pois, se o fizéssemos, estaríamos
rompendo com tudo o que foi dito até então. Essa observação implica que os estudos
subalternos não podem representar simplesmente um discurso “sobre” o subalterno, mas uma
práxis contínua de análise e reflexão sobre essa temática.
Os estudos subalternos surgem e se desenvolvem como uma prática acadêmica num
mundo contemporâneo, onde a globalização produz novos padrões de dominação e
exploração, fortalecendo outros, antes estabelecidos. Respondem pela pressão sobre a
universidade, a investigação e as políticas institucionais, para produzir os saberes apropriados
à tarefa de compreender e administrar melhor uma classe trabalhadora transnacional e
heterogênea.
Procuramos, até aqui, enfocar o desenvolvimento do Grupo de Estudos Subalternos
pela perspectiva Sul-Asiática e seu impulso formador em relação à comunidade indiana. A
30
seguir, trataremos do Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos, seus objetivos e
críticas confrontadas no contexto da América Latina.
31
1.2 Teoria do subalterno na América Latina
A moça que pelo menos comia não mendigava, havia toda uma subclasse de gente
mais perdida e com fome. Clarice Lispector. A hora da estrela, p.30.
Por meio de uma perspectiva que procura dar voz e lugar àqueles que estão excluídos
da cultura dominante, e que analisa as configurações de um contexto histórico colonial e suas
relações de classe, apresentadas pelo Grupo de Estudos Subalternos Sul-Asiáticos, busca-
se, neste item, conhecer o posicionamento do Grupo Latino-Americano de Estudos
Subalternos e a possibilidade de tematização da subalternidade no contexto das Américas.
Os Estudos Latino-Americanos têm-se envolvido com a temática da representação da
subalternidade, desde sua inauguração como campo (disciplina), em 1960. O estabelecimento
do campo teórico e, por extensão, do Grupo Latino em sua forma organizacional como uma
constituição interdisciplinar, corresponde ao modo como o Grupo Sul-Asiático conceituou o
subalterno, isto é, como uma temática que emerge, por ou em intercessões, de um espectro de
disciplinas acadêmicas e passa pela crítica filosófica da metafísica, da teoria literária e
cultural contemporânea, da história e das ciências humanas e sociais.
Já a Associação Latino-Americana de Estudos Subalternos foi, originalmente, formada
por cinco integrantes: John Beverly, Robert Carr, José Rabasa, Javier Sanjinés e Ileana
Rodrigues, cujo primeiro encontro ocorreu na George Mason University, em 1992. Dentre os
representantes do Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos, merece destaque o texto
de fundação do grupo, que se encontra na revista Boundary 2(1993), o livro organizado por
Ileana Rodríguez The Latin American subaltern studies reader (2001) e os trabalhos do
venezuelano John Beverly, em especial, seu livro Subalternidad y representacíon (2004). A
esses podem agregar-se os trabalhos dos entusiastas: Walter Mignolo, no livro Histórias
32
locais/Projetos Globais (2003), e Alberto Moreiras, no livro A exaustão da diferença: a
política dos estudos culturais latino-americanos (2001).
De acordo com Ileana Rodríguez,
40
o que uniu os pesquisadores do Grupo Latino-
Americano foi uma intuição partilhada com o Grupo Sul-Asiático de Estudos Subalternos, o
que, de certa forma, foi relevante para o trabalho, visto que compartilhavam e vivenciavam a
mesma herança colonial.
Rodríguez aponta que, “compartilhando o modelo do Grupo Sul Asiático, nós
decidimos ser um grupo descentralizado e democrático com um projeto acadêmico que
continuaria o legado de estudos politicamente comprometidos.”
41
A pesquisadora pontua que todos os membros do Grupo de Estudos Subalternos
Latino-Americano estavam envolvidos com a esquerda, nos anos mil novecentos e sessenta, e
que, por isso, estavam dispostos a refletir sobre os postulados do marxismo, dependência
teórica, etnicidade e feminismo, pois o mundo estaria prestes a uma revolução.
Como estudantes, os integrantes do grupo lutavam pela inclusão dos estudos marxistas
no currículo universitário e tentavam unir, especificamente, literatura e política. O cerne do
grupo, por sua vez, estava em manifestar-se como uma organização interdisciplinar com um
projeto acadêmico teoricamente consistente.
Para a Rodríguez, na esteira de Spivak, o Grupo Latino-Americano concebe os estudos
subalternos como “uma estratégia para nossos tempos,”
42
visto estar insatisfeito com a
representação dos marginalizados em face de suas próprias histórias, estando submissos a uma
narrativa que não lhes dava direito à voz.
Rodriguez aponta dois postulados essenciais na concepção do grupo:
40
Professora de Literatura e Culturas da América Latina no Departamento de Espanhol e Português da
Universidade do Estado de Ohio. Dentre suas publicações, encontram-se os livros Women, Guerrillas, and Love
e House/Garden/Nation: Space, Gender, and Ethnicity in Post-Colonial Latin American Literatures by Women.
Tem desenvolvido pesquisas sobre estudos da subalternidade, teoria pós-colonial e estudos femininos.
41
On the model of the South Asian Collective we decided to be a decentralized and democratic collective with
an academic project that would continue the legacy of politically committed scholarship. RODRIGUEZ. The
Latin American subaltern studies reader, p.1
42
SPIVAK, apud RODRÍGUEZ. The Latin American subaltern studies reader, p.3.
33
[...] o primeiro era continuar colocando nossa fé nos projetos dos marginalizados. O
outro era produzir um arcabouço teórico para demonstrar o fracasso de reconhecer o
marginalizado como um sujeito ativo social, político, e agentes construtores de seu
próprio conhecimento, conhecendo os limites e limiares de nosso presente
hermenêutico e condição política.
43
O texto, “Founding Statement”, publicado na revista Boundary 2 (1993), do Grupo
Latino-Americano de Estudos Subalternos, vem ratificar as palavras de Rodríguez, pois,
justamente em seu texto de fundação, apresenta-se a proposta de que “a redefinição da política
e espaço cultural da América Latina tem levado, recentemente, os estudiosos da região a
reverem epistemologias estabelecidas e previamente funcionais nas ciências sociais e
humanas.”
44
Dessa maneira, a tendência geral à democratização leva a priorizar o reexame do
conceito de sociedades pluralistas e das condições de subalternidade dentro dessas sociedades.
Para o grupo, a queda de regimes autoritários, na América Latina, o final do
comunismo, a contínua mudança dos projetos revolucionários no processo de
redemocratização e a nova dinâmica criada pelos efeitos da comunicação de massa e os
arranjos da economia transnacional, constituem-se desenvolvimentos que clamam por novas
maneiras de pensar e atuar politicamente.
Questiona-se, no texto, a visão compartilhada pelas elites coloniais e pós-
independentes acerca do subalterno, segundo a qual os paradigmas centrais, usados para
representar essas sociedades, estavam embebidos por práticas culturais de hegemonia que, por
sua vez, eram desenvolvidas pelos grupos de elite, presentificando-se no discurso disciplinar
das ciências humanas e sociais.
Na esteira do trabalho de Guha, o Grupo Latino-Americano afirma que o subalterno:
43
One was to continue placing our faith in the projects of the poor. The other was to find ways of producing
scholarship to demonstrate that in the failure to recognize the poor as active social, political, and heuristic agents
reside the limits and thresholds of our present hermeneutical and political condition”. RODRÍGUEZ. The Latin
American subaltern studies reader, p.3.
44
The redefinition of Latin American political and cultural space in recent years, in turn, impelled scholars of the
region to revise established and previously functional epistemologies in the social sciences and humanities.
LATIN AMERICAN SUBALTERN STUDIES GROUP. Founding Statement p.110.
34
[...] é somente efetivo (atuante), apesar da tendência dos paradigmas tradicionais o
verem como sujeito passivo ou “ausente” que pode ser mobilizado; ele também atua
para produzir efeitos sociais que são visíveis, se não sempre previsíveis ou
entendíveis por esses paradigmas, ou agências de regulação do estado e projetos de
pesquisa que eles autorizam.
45
Isso deixa visíveis os paradigmas relacionados a projetos sociais nacionais, regionais
e, ao mesmo tempo, a tentativa das elites internacionais de controlar assuntos populares.
Com isso, a força por trás do problema do subalterno, na América Latina, apresentada
pelo grupo dessa região, surge diretamente da necessidade de se reconceituar a relação Nação,
Estado e Povo e, por extensão, do consenso no tocante à democratização da ordem no mundo,
e do fato de o processo de redemocratização, na América Latina, impulsionar o trabalho dos
fundadores enquanto pesquisadores e professores. Para eles, as tradicionais configurações da
democracia e do Estado-Nação têm impedido as classes subalternas e grupos de participarem
ativamente de ambos os processos: o político e o de constituição do conhecimento acadêmico.
Ou seja, não reconheceram sua contribuição potencial como capital humano, exceto pela
miséria.
De acordo com as palavras de John Beverly (2004), a perspectiva dos estudos
subalternos não implica uma nova forma de produção autocrítica acadêmica, como,
também, conduz à possibilidade de uma nova forma de conceber o projeto de esquerda em
condições de globalização e pós-modernidade, ocasião que o desejo de democratização e
desierarquização cultural se faz presente.
Beverly (2004) afirma que “os estudos subalternos tratam sobre o poder, sobre quem o
tem e quem não o tem, quem está ganhando e quem está perdendo.”
46
Aloja-se a
dificuldade do debate acerca da representação do subalterno enquanto sujeito social dentro do
45
The subaltern is not only acted on, despite the tendency in traditional paradigms to see it as a passive or
“absent” subject that can be mobilized only from above; it also acts to produce social effects that are visible, if
not always predictable or understandable, by these paradigms or the states policies and research projects they
authorize. LATIN AMERICAN SUBALTERN STUDIES GROUP. Founding Statement, p.111-112.
46
los estúdios subalternos tratam sobre el poder, quem lo tiene y quién no, quién lo está ganando y quién lo está
perdiendo. BEVERLEY. Subalternidad y representación, p.23.
35
discurso hegemônico e dos muros da universidade, porque os estudos subalternos “não são
apenas novas formas de produção de conhecimento acadêmico, devem ser, também, formas
de interferir politicamente nessa produção.”
47
Podemos observar, com isso, o quanto o saber acadêmico está atravessado pela
construção social da subalternidade, e vice-versa, e como a emergência do debate, acerca do
subalterno em face da hegemonia, alterna esse saber. Para o crítico venezuelano,
[...] o subalterno é subalterno em parte porque não pode ser representado
adequadamente pelo saber acadêmico (e pela teoria) [...] porque esse saber é uma
prática que produz ativamente a subalternidade (a produz no ato mesmo de
representá-la.).
48
Por essa perspectiva, Beverley indica a dimensão além-fronteira do poder da elite
norte-americana que posiciona a América Latina “nas entranhas do monstro.”
49
Temos,
todavia, a representação de um local sendo falado por alguém que está em outro lugar. É o
que Spivak (1988) aponta ao dizer que a representação não é um problema de “falar sobre,
mas também de falar por.”
50
Tal proposição chega ao embate entre a hegemonia americana e
a busca por uma autorrepresentação latino-americana que possa fugir do colonialismo teórico
que responde por nossa cultura muito tempo. Cabe, então, afirmar a luta por um valor de
tradição literária e cultural latino-americana e a validez de um saber local, representado por
sua própria tradição intelectual, contra a imposição de padrões culturais e teóricos
americanistas.
Ao tocar na questão da representatividade, Beverly afirma que os estudos subalternos
implicam não só uma nova forma de falar sobre os subalternos, mas, ainda, a possibilidade de
47
[...] no son solo nuevas formas de producion de conocimiento acadêmico; deben ser también formas de
intervenir politicamente em esa produccíon, desde la perspectiva del subalterno. BEVERLY. Subalternidad y
representación, p.56.
48
el subalterno es subalterno em parte porque no puede ser representado adecuadamente por el saber acadêmico
(y por la “teoria”) [...] porque esse saber es uma pratica que produce activamente la subalternidad (la produce em
el acto mismo de representarla) BEVERLEY. Subalternidad y representación, p.23.
49
en las entrañas del mostro. MARTI, apud BEVERLY. Subalternidad y representación, p.24.
50
SPIVAK. Can the subaltern speak? p.308.
36
construir relações de solidariedade entre aqueles que estão no centro e os que estão à margem.
O subalterno é algo que está em outro lado de nossa posição, afirma o autor. Daí a
necessidade de uma visada teórica que, realmente, se posicione de acordo com o lugar de
onde esse discurso é produzido e não uma suposição do que se acredita que seja. Tal
discussão é contemplada no próximo capítulo, quando focarmos nossa análise à questão do
intelectual (subalterno), presente na obra A hora da estrela.
Para o crítico venezuelano, os estudos subalternos tratam de como o saber
institucionalizado, que produzimos e dividimos como acadêmicos, está estruturado pela
ausência, dificuldade ou impossibilidade de representação do subalterno. Em outras palavras,
reconhecer a inadequação fundamental desse saber das instituições e tomar conhecimento da
necessidade de uma troca radical em direção a uma ordem social mais democrática e
igualitária, ou seja, a representação por parte acadêmica e teórica ainda é ativamente
subalternista e excludente.
Tal posicionamento dialoga com o texto de fundação do Grupo Sul-Americano quando
aponta para o:
[...] reconhecimento dos limites da idéia de estudar’ o subalterno e o cuidado de
nossa parte em nos afastar para fazer isso. Nosso projeto, no qual um grupo de
pesquisadores e seus colaboradores da elite das universidades metropolitanas
querem descobrir a partir de documentos e da oralidade do mundo subalterno, a
presença estrutural do inevitável, indestrutível, e assunto efetivo que tem nos
provado que estávamos errados, e demonstrado que nós não os conhecemos, daí o
confrontar do dilema da resistência subalterna e a revolta contra as concepções da
elite.
51
Isso leva o autor a afirmar a necessidade de se (re) pensar a América Latina, uma vez
que esse pensamento equivale, conforme suas palavras, a:
51
[…] recognition of the limits of the idea of “studying” the subaltern and a caution to ourselves in setting out to
do this. Our project, in which a team of researchers and their collaborators in elite metropolitan universities want
to extricate from documents and practices the oral world of the subaltern, the structural presence of the
unavoidable, indestructible, and effective subject who has proven us wrong-she-he who has demonstrated that
we did not know them- must itself confront the dilemma of subaltern resistance to and insurgency against elite
conceptualizations. LATIN AMERICAN SUBALTERN STUDIES GROUP. Founding Statement, p.121.
37
[...] fundir a des-hierarquização, a abertura para a diferença e para as novas formas
de liberdade e identidade, a afirmação do latino-americano contra a dominação
norte-americana e o lado destrutivo da globalização
52
.
Beverly reflete acerca de até quando os países da América Latina terão uma relação de
dependência com a hegemonia cultural e econômica dos Estados Unidos, e até que ponto
poderão desenvolver-se individualmente como região ou civilização. Surge, assim, o embate
crescente da América Latina e a hegemonia Norte-Americana.
Nessa direção, o autor propõe que o subalterno não é uma categoria ontológica; mas
designa uma particularidade subordinada em um mundo onde as relações de poder estão
espacializadas; em outras palavras, trata-se de uma identidade (ou identidades) contingente e
sobredeterminada.
Acreditamos, na esteira de Beverly, que o enfrentamento não pode ser feito nem pela
burguesia ou pequena burguesia, nem pela tradição letrada e, muito menos, pela esquerda
tradicional, mas, sim, por aqueles que não compartilham com o projeto de modernidade, a
exemplo dos subalternos. Segundo Beverly (2004), tal redefinição-enfrentamento:
[...] requer uma intencionalidade política e cultural que nasce, propriamente, dos
“outros”, é dizer sobre o subalterno. Requer que os últimos sejam os primeiros, e os
primeiros, últimos, como diz o Evangelho.
53
A título de ilustração, podemos dizer que o grito desejado por Beverly é dado pelo
intelectual subalterno Rodrigo S. M., quando ele expõe suas críticas por intermédio de uma
personagem que não tem voz, nem lugar, no mundo em que vive. Ou seja, num mundo todo
feito contra ela.
52
[...] es mo fundir la desjerarquización, la apertura hacia la diferencia y hacia nuevas formas de libertad e
identidad, y la afirmacion de lo latinoamericano contra dominación norteamericana y el destructivo de la
globalización […] BEVERLEY. Subalternidad y representación, p.16-17.
53
[...] requiere uma intencionalidade política y cultural que nace propiamente de los “otros”, es decir, de lo
subalterno. Requiere que los últimos sean los primeiros y los primeros, últimos, como dice el Evangelio.
BEVERLY. Subalternidad y representación, p.17.
38
No momento, na esteira de Antonio Candido, busca-se averiguar quais fatores atuam
na organização interna da obra, de maneira a constituir uma estrutura peculiar, uma vez que
uma leitura que se queira integral deixa de ser unilateralmente sociológica, psicológica ou
linguística, para utilizar, livremente, os elementos capazes de conduzir a uma interpretação
coerente.
Achar, pois, que basta aferir a obra com a realidade exterior para entendê-la é correr o
risco de uma perigosa simplificação causal, uma vez que a construção literária exprime uma
visão coerente da sociedade, cabendo, assim, analisar a “intimidade” da obra e não propor um
mero juízo de valor. Uma análise que privilegie apenas a linguagem literária, ou seu
funcionamento discursivo textual, deixa de lado o papel social da literatura.
Sobressai, aí, o questionamento de Beverly sobre como imaginar uma nova versão do
projeto socialista sem estar ligada a uma teleologia da modernidade. Em termos políticos, não
se trata apenas de teorizar ou legitimar uma política da diferença, mas desenvolver uma visão
do Socialismo que tenha como meta uma sociedade ao mesmo tempo diversa e igualitária.
Para tanto, volta-se à expressão de que os estudos subalternos “são uma estratégia para
nosso tempo”
54
e, para chegarem ao objetivo de uma possível autorrepresentação Sul-
Americana, os estudos subalternos entram em cena como uma nova produção autocrítica, com
a tarefa de reconquistar o espaço de desierarquização cedida ao mercado e ao neoliberalismo.
Com isso, o desafio de articulação ideológica, dessa proposta de teoria cultural, equivale,
conforme palavras de Beverly (2004), a estarmos “conscientes da necessidade de deslocar o
capitalismo e sua institucionalidade tanto burocrática quanto cultural. ”
55
Continuando com as ponderações de Beverly, quando ele afirma que a ideia de estudar
o subalterno é autocontraditória, entende-se que a tentativa de sua prática constitui uma forma
de discurso acadêmico que fala de um lugar elitista atravessado pelo colonialismo e
54
[...] uma estratégia para nuestro tiempo. BEVERLY. Subalternidad y representación, p.29.
55
BEVERLY. Subalternidad y representación, p.16-17
39
dependência teórica e cultural. Tais discursos, produzidos pela universidade, na história, na
escrita, na teoria e na literatura, são cúmplices da produção social da subalternidade. Não seria
o fato de o subalterno não conseguir falar, mas de ele não poder falar tudo o que pensa, ou
gostaria de dizer.
Percebe-se, pois, a necessidade de os estudos subalternos enfrentarem e incorporarem
a resistência ao saber acadêmico, razão de o pesquisador afirmar que “a força que está por trás
do problema dos subalternos, na América Latina, pode ser dito, surge diretamente da
necessidade de reconceitualizar a relação entre Nação, Estado e povo.”
56
Relação essa que
ainda reclama por uma mudança política e teórica que realmente represente seu povo.
É válido salientar que, com isso, o fracasso de certas formas de pensamento,
associadas à ideia de modernidade, tem a ver, em termos gerais, com sua incapacidade de
representar adequadamente o subalterno. Para o autor, dentro desse contexto de produção da
subalternidade, uma tensão no interior dos estudos subalternos entre a necessidade de se
desenvolverem novas formas de pedagogia e prática acadêmica – na história, na crítica
literária, na antropologia, na ciência política, na filosofia, na educação, e a necessidade de se
desenvolver uma crítica do saber acadêmico como tal.
Em outras palavras, os estudos subalternos se oferecem como um instrumento
conceitual para recuperar e registrar a presença subalterna tanto historicamente quanto nas
sociedades contemporâneas. Mais uma vez, recorremos ao texto do grupo para sintetizar a
questão da representatividade do subalterno, e constatamos que:
56
la fuerza detrás del problema del subalternos en America Latina, puede ser dicho, surge directamente de la
necesidad de reconceptualizar relación entre nación, Estado y pueblo. BEVERLY. Subalternidad y
representación, p.29
.
40
[...] não é uma questão apenas de novos caminhos de ver o subalterno, novas e mais
poderosas formas de recuperação de informação, mas também de construir novas
relações entre nós mesmos e aqueles humanos contemporâneos que s sugerimos
como objeto de estudo.
57
Para representar melhor tal posicionamento sobre o subalterno, recorremos às palavras
de Rigoberta Menchú (1984), em seu famoso testemunho:
Eu continuo guardando segredo do que ninguém sabe, nem sequer um antropólogo
ou um intelectual, por mais que tenham muitos livros, não sabem distinguir todos
nossos segredos.
58
Percebe-se, por conseguinte, que o trabalho de Beverly trata menos da categoria do
“subalterno” enquanto sujeito social concreto, e mais dos “estudos” da dificuldade de rever o
subalterno nos discursos disciplinários dos intelectuais e em sua prática dentro da academia.
O pesquisador reconhece que os problemas, que dividem os estudos subalternos de seus
críticos Latino-Americanos, são menos importantes no largo prazo do que as preocupações
compartilhadas por todos.
Esse posicionamento de Beverly é sumamente importante para este trabalho,
contribuindo para a análise da figura de Macabéa, nossa subalterna, ao lado de Olímpico, e,
também, para refletir acerca da maneira como Macabéa é mostrada/narrada pelo intelectual
Rodrigo S. M., que, por sua vez, não é subalterno, pelo menos como aqueles, pois não ocupa
o lugar daquela resistente raça anã teimosa, o rebotalho da sociedade. Rodrigo S. M. ainda
está resguardado no lugar daqueles providos de representação e direito a voz.
57
[…] it is a question not only of new ways of looking at the subaltern, new and more powerful forms of
information retrieval, but also of building new relations between ourselves and those humans contemporaries
whom we posit as object of study Latin American subaltern group. LATIN AMERICAN SUBALTERN
STUDIES GROUP. Founding Statement, p.121.
58
Sigo ocultando lo que yu considero que nadie sabe, ni siquiera un antropólogo, ni un intelectual, por más que
tenga muchos libros, no saben distinguir todos nuestros secretos. MENCHU, apud BEVERLY. Subalternidad y
representación, p.59.
41
Walter Mignolo, em seu livro Histórias locais/Projetos Globais (2003), que tem como
tema principal a subalternização do conhecimento, traz contribuições efetivas para o debate
crítico e para desenvolvimento desta dissertação.
Mignolo (2003) tece uma crítica aos membros do Grupo Latino-Americano de Estudos
Subalternos, por serem acadêmicos Latino-Americanos vivendo nos Estados Unidos que,
talvez, por isso mesmo, apesar de terem tentado produzir um conhecimento alternativo e
radical, reproduziram o esquema epistêmico dos estudos regionais nos Estados Unidos.
Diálogo marcado, com o que diz Beverly (2004), ao afirmar que tal produção
representa uma espécie de colonialismo teórico, em que a configuração da América Latina e
suas culturas e sociedades se dão de maneira excêntrica e anômala. É oportuno, mais uma vez,
dizer da necessidade de produção de um saber local que represente a tradição intelectual
nacional e por extensão Latino-Americana.
Cabe voltar ao personagem Rodrigo S. M., peça-chave para os propósitos deste
trabalho, uma vez que ele representa essa tentativa de criação a partir de uma ideia
pressuposta, crítica áspera feita por Mignolo aos integrantes do Grupo Latino-Americano. O
personagem Rodrigo S. M. é o escritor-narrador que conta a história da pobre moça
nordestina Macabéa, em A hora da estrela (1977), daí nossa primeira constatação de que se
trata de alguém tentando contar a história de outra pessoa, mas que nunca ocupou o lugar
proposto a descrever, pois fala de um outro lugar. Ou seja, Rodrigo S. M. dispõe-se a
representar a personagem subalterna Macabéa, questiona-se até que ponto ele direito a voz
a essa personagem ou definitivamente não possibilita ouvi-la.
Voltando às palavras de Mignolo (2003), observa-se que:
[...] os Estudos Subalternos poderiam contribuir para descolonizar a pesquisa,
refletindo criticamente sobre sua própria produção e reprodução do conhecimento e
evitando a reinscrição das estratégias de subalternização.
59
59
MIGNOLO. Histórias locais/Projetos Globais, p.279.
42
Para Mignolo, uma exportação da intelligentsia norte-americana, pelos estudos ou
teorias culturais e pós-coloniais, que chegam, aos lugares, transformadas, transculturadas,
sendo percebidas como novas formas de colonização e não como novos instrumentos para
iluminar a inteligência de seus anfitriões.
Com isso, os estudos subalternos introduziram o nível de “ações afetivas como um
tipo de racionalidade,
60
em que “subalterno não constitui uma categoria, mas, sim, uma
perspectiva crítica ao modo de produção burguês ou capitalista em seus diferentes estágios.”
61
De acordo com Mignolo (2003):
[...] a diferença entre subalternidade interiores e exteriores estrutura-se em termos
legais e econômicos. Assim, trata-se na verdade de uma diferença de classe.
Entretanto, a diferença não é justificada em termos de classe, mas em termos de
etnia, gênero, sexualidade e, algumas vezes nacionalidade.
62
No decorrer de seu texto, Mignolo aponta para uma rede de conexões e hierarquias na
proporção entre a produção do saber e os locais geo-históricos, de um lugar geográfico com
uma história local particular. O pesquisador com desconfiança o fato de um Grupo Latino-
Americanista nos Estados Unidos, com formação em crítica literária e cultural, estar
apropriando-se da contribuição do Grupo do Sul da Ásia.
Entende-se, portanto, que a produção do conhecimento é indissociável das
especificidades do local geo-histórico e que os locais históricos no mundo colonial-moderno
foram moldados pela colonialidade do poder, que orienta e marca a reflexão daqueles que
procuram debater o assunto.
60
MIGNOLO. Histórias locais/Projetos Globais, p.259.
61
DAS, apud MIGNOLO. Histórias locais/Projetos Globais, p.259.
62
MIGNOLO. Histórias locais/Projetos Globais, p.243.
43
Para contribuir com o debate acerca do conceito de lugar, valemo-nos das
contribuições de Edgar Nolasco que, no ensaio “Para onde devem voar os pássaros depois do
último céu?”
63
, afirma:
[...] lugar é político por excelência, e falar é exercer seu lugar de direito. O sujeito
que não fala não existe. Às vezes quem não sabe que o sujeito e o lugar falam, por
comodidade, são o discurso acadêmico e a perspectiva disciplinar, que tem a
ancestral herança histórica ocidental de falar por eles. Também não sabem que o
lugar, os lugares, os limites, os locais, as fronteiras, as culturas, os regionalismos
(enfim, os conceitos todos) precisam de um espaço territorial geohistórico para
serem pensados desde dentro.
64
O pesquisador, na esteira de Ángel Rama e Canclini, que “um lugar é por
descendência uma ‘miniregião cultural’. Do lugar, do local, o Universal não passa de uma
história sonhada e esquecida no dia seguinte. [...] O local enquanto um lugar, ao mesmo
tempo está perto e está longe, é dentro e fora.”
65
O Grupo Latino-Americano contribui, com a introdução da dimensão pós-moderna
para os estudos da subalternidade, dando um grande passo para o entendimento da história
intelectual da América, mas a questão crucial para os estudos subalternos ainda está no pós-
colonial. Surge, pois, a possibilidade de o olhar do “mesmo” ver a América Latina como um
lugar a ser estudado e não um local de reflexão. Para representar melhor tal afirmação,
recorremos às palavras de Nolasco: “[...] o sujeito está condenado a reconhecer que seu lugar
está atravessado pela presença (histórica) do outro.”
66
Dialogando com Canclini (2004), ao dizer que “O local costuma estar em outro lugar”,
em decorrência de sua articulação com o nacional e o global, Nolasco assevera que “o local é
‘glocal’ sem deixar de ser local.”
67
63
Revista RAÍDO, Revista do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFGD. Jan-jun. 2008.
64
NOLASCO. Para onde devem voar os pássaros depois do último céu? p.68.
65
NOLASCO. Para onde devem voar os pássaros depois do último céu? p.70.
66
NOLASCO. Para onde devem voar os pássaros depois do último céu? p.72.
67
NOLASCO. Para onde devem voar os pássaros depois do último céu? p.70.
44
É importante esclarecer que a questão da territorialidade será abordada no capítulo a
seguir, quando se analisarão os personagens Olímpico e Macabéa como representantes da
subalternidade, retirantes e homeless, que tentam a vida na cidade maravilhosa do Rio de
Janeiro.
Para Mignolo (2003), a atual versão dos estudos subalternos, na América Latina, tem
sua visão de colonização como uma subalternização de povos e culturas, que uma das
principais preocupações é contrapor-se à modernidade e demonstrar que ela é um fenômeno
europeu.
Nessa perspectiva, a adoção dos pressupostos estabelecidos pelo Grupo de Estudos
Subalternos da Ásia pelos Latino-Americanos aponta a diferença entre a história colonial da
América Latina em contraponto com a da Ásia.
Com isso, torna-se de extrema importância a reflexão sobre o local das áreas a serem
estudadas e sobre as culturas de pesquisa “a partir das quais estudá-las”
68
, para que não haja o
posicionamento das outras culturas como culturas subalternas.
Quando se toca no ponto das “culturas subalternas”, tudo o que se situa num espaço
relacional será colocado “numa posição inferior”. Cita-se, como exemplo, a subalternização
das línguas espanhola e portuguesa: uma espécie de linguajamento
69
acontece, ocasião em
que a produção do conhecimento se estabelece em francês, inglês ou alemão, deixando de
lado a representatividade das línguas latinas.
O que se deveria explorar são as línguas e o linguajamento dos estudos subalternos
na/da Índia e os estudos subalternos no/dos Estados Unidos ou na/da América Latina, como
culturas a serem estudadas, sugere Mignolo. Percebe-se, dessa maneira, que uma diferença
colonial sobrevive com toda sua força, rearticulando-se nas novas formas globais da
colonialidade do poder.
68
MORSE, apud MIGNOLO. Histórias locais/Projetos Globais, p.267.
69
Neologismo utilizado por Mignolo para representar o ato de pensar e escrever entre línguas. Em inglês,
“languaging”.
45
Para tanto, os estudos subalternos, no contexto nas/das Américas, tornam-se uma
reflexão sobre a construção da subalternidade desde os estágios iniciais da globalização e
sobre as diversas temporalidades das Américas.
Alberto Moreiras (2001), em A exaustão da diferença, refletindo acerca da
problemática da subalternidade na América Latina, afirma que “o subalternismo constitui um
novo modelo para a interpretação da cultura Latino-Americana que irá se desenvolver de
maneiras não estritamente previsíveis,”
70
além de ser uma abertura e expansão das fronteiras
disciplinares, pois, para ele, o modo subalternista deve ser compreendido como uma ruptura
radical com um modo disciplinar prévio.
Tal perspectiva teórica possibilita um diálogo teórico-crítico entre as disciplinas,
oportunizando a abertura do campo de perspectivas sobre o cânone, e, por conseguinte, das
obras que não pertencem a esse seleto grupo; daí a busca pela expansão das fronteiras
culturais que, muitas vezes, esbarram nas barreiras impostas pelo colonialismo teórico que
tem dominado a América-Latina.
Moreiras afirma que os estudos subalternos Latino-Americanistas “são uma
consequência do colapso do sonho de modernizações Latino-Americanas, nacionalmente
integradas,”
71
e que:
[...] compreender a cultura latino americana em sua subalternidade crítica e
relacional, em que a subalternidade não constitui uma categoria fixa ou essencialista,
mas sim uma relação diferencial com o sujeito dominante da pós-modernidade
transnacional, parece ser o único caminho através do qual a mesma diferença pode
ter serventia epistemológica e crítica na época contemporânea.
72
O autor refere, também, que o subalternismo Latino-Americanista ainda usaria a
América Latina como um lugar vazio, pronto para a colonização cultural, porque os
70
MOREIRAS. A exaustão da diferença, p.201.
71
MOREIRAS. A exaustão da diferença, p.209.
72
MOREIRAS. A exaustão da diferença, p.200.
46
intelectuais subalternistas, com base nos Estados Unidos, ainda veriam a América Latina
como “um importador de produtos manufaturados dos centros.”
73
Somado a isso, o estudioso, na esteira de Chakrabarty, chama a atenção para dois
sintomas cotidianos da subalternidade das histórias o ocidentais de Terceiro Mundo. Tais
sintomas correspondem, naturalmente, a um mesmo mal-estar, uma “condição teórica”
74
derivada da expansão e transformação do capitalismo europeu em um sistema mundial, ou
seja, “os historiadores do terceiro mundo sentem necessidade de se referir a trabalhos sobre a
história europeia; os historiadores da Europa não sentem nenhuma necessidade de retribuir.”
75
Ainda citando Moreiras, convém ressaltar que o pensamento subalternista é
constituído de cinco aspectos: 1) “a noção (possível) de uma razão crítica que se torna
irruptiva e desruptiva, devido à aparente impossibilidade de qualquer irrupção ou desrupção”;
2) “a necessidade de tomar o pensamento como operação que está além da imanência
discursiva e dentro de práticas sociais, entendidas como o exterior constitutivo do discurso da
filosofia”; 3) “a necessidade de compreender a operação de se pensar como estando acima de
qualquer busca de reconstituí-la como uma forma de reconceitualização filosófica a serviço de
articulações hegemônicas”; 4) “a necessidade de se impedir que a operação de se pensar
retroceda, transformando-se em reconciliação ideológica”; 5) “a produção de um novo sujeito
filosófico, até mesmo de um sujeito sem sujeito, cujo “intelecto geral” possa sustentar o
empreendimento de um pensamento operacional, enquanto pensamento pós-hegemônico, na
época do pós-modernismo.”
76
Após utilizarmos uma leitura que tomou os estudos da subalternidade para se referir a
grupos marginalizados, que não possuem voz ou representatividade em seu status social,
enfatizamos que não se pode negar que escrevemos como povos cuja consciência foi formada
73
MORAÑA, apud MOREIRAS. A exaustão da diferença, p.287.
74
CHAKRABARTY, apud MOREIRAS. A exaustão da diferença, p.142.
75
CHAKRABARTY, apud MOREIRAS. A exaustão da diferença, p.143.
76
MOREIRAS. A exaustão da diferença, p.142.
47
como sujeitos coloniais. Ao fazermos isso, negamos nossa própria história, contudo, devemos
procurar lutar por uma representação própria que possibilite o direito ao grito daqueles que
estão à margem, lutar por uma visada teórica culturalmente comprometida com nossa
realidade.
O ensaio, “O direito ao grito da subalternidade na América Latina”, de Edgar Cézar
Nolasco, colabora para a discussão e conceituação do que seja subalternidade e auxilia-nos a
concluir de forma mais pontual nossa discussão sobre a subalternidade, pelo menos na
América Latina:
Talvez se devesse pensar o conceito de subalternidade na América Latina tendo em
mente que América é um substantivo feminino, logo historicamente subalterna por
excelência (no que pese a lembrança de um preconceito). Mas daí surgiria uma
primeira pergunta: subalternista aos olhos de quem? É-se subalterno, sempre, aos
olhos do outro, do de fora? se pode pensar em tal conceito numa perspectiva
comparatista dualista e hegemônica? Parece-me que não. Talvez o conceito de
subalternidade venha nos mostrar que é possível pensar no local, no próprio, no
regional, sem abrir mão, por exemplo, do atual contexto globalizante, capitalista,
totalitário e excludente no qual estamos vivendo, por mais que isso nos pareça
contraditório.
77
Dessa forma, cabe aos pesquisadores trazer a discussão para o interior dos muros da
universidade ou para fora dela, à medida que o discurso subalternista desconstrói o discurso
acadêmico e disciplinar e tenta propor caminhos para que exista, ou, se possível, ouça-se a
voz daqueles que estão à margem da sociedade. É oportuno enfatizar que esse é o ponto de
partida que move a leitura e o desenvolvimento desta pesquisa.
Pelo exposto, até aqui, vemos que os estudos subalternos, quando entram em cena,
proporcionam não uma nova forma de produção autocrítica acadêmica, como, também,
conduzem à possibilidade de uma nova forma de conceber o projeto de esquerda em
condições de globalização e pós-modernidade, uma vez que o grupo em sua essência
compartilhava com o projeto de esquerda os idéias de mudança social e cultural.
77
NOLASCO. O direito ao grito da subalternidade na América Latina. (no prelo)
48
Observa-se uma falta de perspectiva crítica entre os Latino-Americanistas sobre as
diferenças entre as duas Américas: temos a América Latina como um campo de estudos e não
como um lugar onde se produzem teorias e ideias. Talvez essa ideia ainda persista em virtude
do consistente bombardeamento de informações promovido pela globalização que dita o
desenvolvimento mundial, na contemporaneidade.
Como salienta Beverley (2004), os estudos subalternos não constituem apenas um
problema de representação” do subalterno, mas uma alternativa para compreender que o
trabalho na academia funciona ativamente produzindo e não produzindo subalternidade. Sobre
isso, estamos atentos para não proferir uma crítica injusta com relação ao nosso objeto de
estudo.
Concordamos com Beverley, quando ele diz que:
[...] deveríamos começar a pensar estrategicamente sobre as possibilidades de nosso
lugar na educação superior. Não forma de dizer de onde vêm os impulsos que
reviveram a esquerda, e não razão para supor de antemão que a universidade não
possa ser o que o idioma da velha esquerda chamava de ‘um setor chave’. Mas essa
possibilidade também significa assumir um novo tipo de responsabilidade pelo que
dizemos e fazemos.
78
Confessamos que afirmações como essa, que estampa a acuidade crítica do estudioso,
que, em parte, redime nossa dificuldade para tratar da teoria em questão.
Daí nosso objetivo de reivindicar o direito ao grito,
79
também proposto pelo
intelectual Rodrigo S. M. na obra de Lispector, enquanto escritor marginalizado e sem classe
social, para fazer emergir o debate crítico em torno da subalternidade na América Latina e,
por extensão, discutir sua própria construção cultural.
A luta que embasa o projeto intelectual da escritora Lispector e do escritor Rodrigo S.
M., bem como dos personagens que transitam pela obra, especialmente Macabéa e Olímpico
de Jesus, “está atravessada por uma lógica de dominação e subordinação, contradição e
78
BEVERLEY. Subalternidad y representación, p.212.
79
Referência a um dos quatorze possíveis subtítulos atribuídos por Clarice Lispector ao livro A hora da estrela.
49
negação que marca as identidades como subalternas,”
80
rediscutindo, assim, uma nova prática
de leitura cultural ao sistema estabelecido.
O capítulo a seguir tratará do projeto intelectual de Rodrigo S. M. sobre a marginal
Macabéa, questionando até que ponto o escritor-narrador é um intelectual subalterno. Por um
lado, Rodrigo S. M. pode ser encarado como um escritor marginal, uma vez que não
conseguiu escrever uma grande obra, sendo, assim, periférico com relação aos escritores
canônicos da literatura brasileira, por outro lado, não pode ser um marginal porque nunca
ocupou o lugar daquela resistente raça anã teimosa.
Observa-se que Rodrigo S. M. tem consciência de seu lugar, pelo menos em parte. O
narrador de A hora da estrela tenta se transmutar nos miseráveis Macabéa e Olímpico, fala
sobre eles, mas sabe que nunca poderá ocupar o lugar deles; almeja escrever sobre os
marginais e, por isso, tenta chegar o mais próximo possível de sua representação. Eis, pelo
menos em parte, nossa crítica ao intelectual Rodrigo S. M. que será abordada no próximo
capítulo.
Chega-se, assim, ao cerne do projeto intelectual de Lispector, no tocante ao livro em
estudo, que, para nós, está na representação da miséria pela linguagem literária, representação
essa tão almejada por Rodrigo S. M., conduzindo os leitores a refletir sobre as diferenças
culturais, sociais e étnicas tão gritantes de nosso País.
80
NOLASCO. O direito ao grito da subalternidade na América Latina. (no prelo)
50
CAPÍTULO II
O intelectual subalterno em
A hora da estrela
O exílio é um modelo para o intelectual que se sente tentado, ou mesmo assediado,
ou esmagado, pelas recompensas da acomodação, do conformismo, da adaptação.
Mesmo que não seja realmente um imigrante ou expatriado, ainda assim é possível
pensar como tal, imaginar e pesquisar apesar das barreiras, afastando-se sempre das
autoridades centralizadoras em direção as margens, onde se podem ver coisas que
normalmente estão perdidas em mentes que nunca viajaram para além do
convencional e do confortável. SAID, Representações do intelectual, p.70.
51
O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça
entre milhares delas. É dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a
vida. Clarice Lispector, A hora da estrela, p.13.
Visamos, neste capítulo, analisar a figura e o lugar do intelectual, não como detentor
cultural, inalcançável, provido de intelligentsia, conceito elitista e fechado que se assina sob a
rubrica de cultura, nos dias atuais. Propõe-se uma releitura dessa figura do intelectual no
mundo contemporâneo, tendo como pano de fundo a obra A hora da estrela, de Clarice
Lispector. Para tanto, faz-se necessário apresentar a visão que temos de intelectual e, a partir
daí, construir uma relação direta com o objeto de trabalho.
Vale lembrar que, para Edward Said (1988), a palavra subalterno, em primeiro lugar,
tem conotações política e intelectual,”
81
implicando novas proposições de análise em face do
poder hegemônico estabelecido. Isso concorre, ainda, para asseverar debates sobre o que é
dito como verdade. Questiona-se, por essa perspectiva, o papel do intelectual na sociedade e
de que forma esse intelectual ocupa seu lugar de questionador do status quo, facultando
direito a voz àqueles que representam a situação marginal. Daí a relação direta entre o
intelectual e a grande e teimosa raça anã que desfila pelas páginas do livro A hora da estrela.
As reflexões de Said, que se encontram no prefácio do livro Selected Subaltern
Studies, salientam que os “estudos subalternos representam uma travessia de limites, um
contra bandeamento de idéias entre linhas, incitando o intelectual e, como sempre, o
desvanecimento político.”
82
Nessa direção, Edgar Nolasco conclui, em seu livro Caldo de Cultura, que:
[...] o olhar pós-moderno pôs o intelectual à margem do saber instituído obrigando-
o, por conseguinte, a rediscutir conceitos canônicos como o de cultura e de
literatura, por exemplo. Daí ser escusado dizer ainda que esse mesmo intelectual não
pode mais se valer de conceitos nem de um olhar excludentes diante da sociedade.
83
81
The word “subaltern”, first of all, has both political and intellectual connotations. SAID, apud GUHA.
Selected subaltern studies, p.5.
82
Subaltern Studies represents a crossing of boundaries, a smuggling of ideas across lines, stirring up of
intellectual and, as always, political complacence. SAID, apud GUHA. Selected subaltern studies, p.10.
83
NOLASCO. Caldo de cultura, p.76.
52
É assim que este trabalho envereda na mesma direção do que propõe Said, em seu
livro Representações do intelectual (2005), à medida que esse autor aponta o papel público do
intelectual como um outsider, um “amador”, um perturbador do status quo, afirmando, ainda,
que uma das tarefas do intelectual é derrubar os estereótipos e as categorias redutoras que
tanto limitam o pensamento humano e a comunicação.
Seguindo essa linha de pensamento, o crítico pontua que “os verdadeiros intelectuais
devem correr o risco de ser queimados na fogueira, crucificados ou condenados ao
ostracismo. São personagens simbólicos, marcados por sua distância obstinada em relação a
problemas práticos.”
84
Lispector ressalta esses problemas em A hora da estrela, como se
necessitasse exteriorizar suas angústias e frustrações sobre a problemática brasileira. A autora
sempre esteve sensibilizada com o contexto da época, como afirma na seguinte passagem:
“Também sei das coisas por estar vivendo. Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe.
Assim é que os senhores sabem mais do que imaginam e estão fingindo de sonsos.”
85
Said (2005) procura falar de intelectuais, precisamente como figuras cujo
“desempenho público o pode ser previsto nem forçado a enquadrar-se num slogam, numa
linha partidária ortodoxa ou num dogma rígido.”
86
O autor sugere que:
[...] os padrões de verdade sobre a miséria humana e a opressão deveriam ser
mantidos, apesar da filiação partidária do intelectual enquanto indivíduo, das origens
e de lealdades ancestrais.
87
De acordo com o crítico palestino, “nada distorce mais o desempenho público do
intelectual do que os floreios retóricos, o silêncio cauteloso, a jactância patriótica e a apostasia
retrospectiva e autodramática,”
88
o que, muitas vezes, pode ser percebido no discurso de
84
SAID. Representações do intelectual, p.22.
85
LISPECTOR. A hora da estrela, p.12.
86
SAID. Representações do intelectual, p.12.
87
SAID. Representações do intelectual, p.12.
88
SAID. Representações do intelectual, p.12.
53
pseudointelectuais e políticos de nosso País, que se intitulam representantes da nação, sem,
contudo, lembrar-se de ouvi-la.
É nesse contexto que se uma nação subalterna, que não tem representatividade, e
tampouco a encontra naqueles que se intitulam seus representantes intelectuais. Tal discussão
pode ser ilustrada por meio do personagem Rodrigo S. M, ao posicionar-se contra “a tentação
de usar termos suculentos,”
89
quando sua produção trata de algo simples, mas de difícil
elaboração, embora pareça fácil, num primeiro momento. Podemos observar que se trata de
uma crítica feita por Lispector aos intelectuais de sua época que se deixavam levar pela
retórica discursiva que pouco retratava.
Edward Said, ao apresentar sua visão sobre o intelectual, categoriza-o como um
“exilado e marginal, como amador e autor de uma linguagem que tenta falar a verdade ao
poder.”
90
Posiciona-se como um questionador do nacionalismo patriótico, do pensamento
corporativo e do sentido de privilégio de classe, etnia ou gênero. Em outras palavras, o
principal dever do intelectual é a busca de uma relativa independência em face das pressões
do mundo contemporâneo.
O autor destaca que o intelectual é um exilado e está por apresentar um
posicionamento crítico e reflexivo sobre o que lhe é apresentado. Para ele, a condição de
exílio significa que o intelectual estará sempre à margem. Observa:
O exílio é um modelo para o intelectual que se sente tentado, ou mesmo assediado
ou esmagado, pelas recompensas da acomodação, do conformismo, da adaptação.
Mesmo que não seja realmente um imigrante ou expatriado, ainda assim é possível
pensar como tal, imaginar e pesquisar apesar das barreiras, afastando-se sempre das
autoridades centralizadoras em direção as margens, onde se podem ver coisas que
normalmente estão perdidas em mentes que nunca viajaram para além do
convencional e do confortável.
91
89
LISPECTOR. A hora da estrela, p.15.
90
SAID. Representações do intelectual, p.15.
91
SAID. Representações do intelectual, p.70.
54
Segundo o crítico, o intelectual deve alinhar-se aos fracos e aos que não têm
representação, pois não se trata de ser pacificador nem criador de consensos, mas de alguém
que empenha todo o seu ser no senso crítico, desafiando a autoridade imperfeita ou opressora.
Relação direta com as palavras do personagem Rodrigo S. M., quando diz “precisar falar da
nordestina senão sufoca, já que ela o acusa e o meio de se defender é escrever sobre ela.”
92
Na esteira de Said, há duas características essenciais da ação social: a primeira está em
promover a atividade humana e o conhecimento; a segunda, em saber como usar bem a língua
e quando intervir por meio dela. Segundo o autor:
Cada região do mundo produziu seus intelectuais, e cada uma dessas formações é
debatida e argumentada com a paixão ardente. Não houve nenhuma grande
revolução na história moderna sem intelectuais; de modo inverso, não houve
nenhum grande movimento contra-revolucionário sem intelectuais. Os intelectuais
têm sido os pais e as mães dos movimentos e, é claro, filhos e filhas e até sobrinhos
e sobrinhas.
93
Em suma, o trabalho de Edward Said insiste no fato de o intelectual ser um indivíduo
com papel público na sociedade, não podendo ser reduzido simplesmente a um profissional
sem rosto. O intelectual, por essa perspectiva, deve ser um indivíduo dotado de vocação para
representar, articular uma mensagem e dar-lhe corpo, um ponto de vista, uma atitude
filosófica. Esse posicionamento dialoga com o que aponta Gramsci: “todos os homens são
intelectuais, mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais.”
94
Também as palavras de Julien Benda (2007) ratificam o debate em A tradição dos
intelectuais, contribuindo para a concepção do intelectual na perspectiva que move este
trabalho. O autor denominou intelectual a classe de homens cuja atividade não visa fins
práticos, mas que busca alegria no exercício da arte, da ciência ou da especulação metafísica;
92
LISPECTOR. A hora da estrela, p.23.
93
SAID. Representações do intelectual, p.25.
94
GRAMSCI. Os intelectuais e a organização da cultura, p.7.
55
em outras palavras, na posse de um bem atemporal. Vale esclarecer que os principais valores
intelectuais são, para ele, a Justiça, a Verdade e a Razão, destacando-se três características:
estáticos, desinteressados e racionais. Para o pesquisador, o papel do intelectual “não é mudar
o mundo, mas permanecer fiel a um ideal cuja manutenção (lhe) parece necessária à
moralidade da espécie humana.”
95
Dessa maneira, é oportuno utilizar as palavras de Beatriz Sarlo (2005) quando ela
aborda o discurso do intelectual em seu livro Paisagens imaginárias. Para a autora, o discurso
do intelectual deve ser significativo para a sociedade e, especialmente, para os setores
populares; o discurso dos intelectuais deve representar o povo, o proletariado, o país ou até
mesmo o partido. Nessa perspectiva, o intelectual deve deslocar-se das questões parciais e
específicas para as perspectivas globais: instalar-se, consequentemente, na esfera pública e ali
construir sua interlocução.
Em suma, o intelectual deve estar pronto para transitar entre as esferas da ação e da
reflexão. Ação, essa, não como sinônimo de ativismo partidário, mas, sim, como resultado de
reflexões sobre o contexto.
As palavras de Eduardo Prado Coelho, em O papel do intelectual hoje, contribuem
para a síntese do pensamento até então apresentado neste texto:
Para aqueles que odeiam os intelectuais, qualquer intelectual é um pseudo: no fundo,
é alguém que comete a fraude de afirmar que pensa mais do que os outros, no fundo
é alguém que tudo em termos abstractos e ignora a complexidade do concreto; no
fundo, é alguém que sobrepõe as idéias ao saber que não tem; no fundo ainda, é
alguém que faz profissão de pensar quando todos pensam naturalmente sem fazer
disso ofício e acrescentam a esse hábito saudável o exercício honesto de uma
profissão.
96
Coelho (2004) define o papel dos intelectuais como aqueles que, numa sociedade,
geram a matéria simbólica e têm responsabilidades em relação a ela, isto é, em relação ao uso
95
BENDA, apud MATTOS. O perfil do escritor pós-moderno Silviano Santiago, p.113.
96
COELHO, apud MARGATO & GOMES. O papel do intelectual hoje, p.13.
56
e manipulação dos símbolos. Convém destacar que esses símbolos não são mais relativos à
Igreja, visto tratar-se de intelectuais da Universidade, que é a Universidade que lhes
aquela plataforma de autoridade na qual um intelectual se apoia.
Cabe dizer que, por essa perspectiva, a Universidade é um espaço de liberdade e razão
crítica, não se tratando de formar as pessoas apenas para o saber, mas de formá-las na sua
humanidade pelo próprio saber, mesmo que isso, às vezes, seja tão difícil de ser alcançado.
Por isso, o pseudo-intelectualismo que, frequentemente, ronda os muros da Universidade,
deve ser combatido. Seguindo tal raciocínio, cabe a todos nós marcar o lugar de onde falamos
como um lugar que comprove um saber local e que validade a uma cultura que não
obedece aos moldes internacionais.
É nesse sentido que Coelho (2004) assevera que o que define um intelectual é a
capacidade de dizer o, isto é, tornou-se uma marca do intelectual conseguir negar o
existente. Daí remetermos nosso olhar a Lispector e perceber que ela diz não ao narrador
tradicional e transformar-se em uma “tradutora”
97
da cultura nacional. Uma tradução que a
coloca como testemunha do universal, responsável pelos valores fundamentais da humanidade
e possibilita-lhe traduzir as linguagens entre as culturas. Em suma:
[...] aquilo que podemos defender como um novo papel para os intelectuais é
precisamente o de tradutor, no sentido amplo do termo: isto é, aquele que procura
manter espaços em comum através de uma intervenção que estabeleça pontes entre
os diversos códigos por vezes extremamente diferenciados.
98
Para Coelho (2004), “essa postura que os intelectuais precisavam assumir para
cumprirem a sua missão, confronta-se hoje com um clima de relativismo, com a ausência de
sujeitos históricos com dimensão universal.”
99
Dessa maneira, a escritora Clarice Lispector
97
A respeito dessa temática, conferir especificamente o trabalho de Edgar Nolasco “Clarice Lispector tradutora”,
na Revista Cerrados do Programa de Pós-Graduação em Literatura n.24 da UNB.
98
COELHO, apud MARGATO & GOMES. O papel do intelectual hoje, p.21.
99
COELHO, apud MARGATO & GOMES. O papel do intelectual hoje, p.21.
57
pode ser vista como uma intelectual que aceitou sua missão de subversão profética
100
e
mudança política, em nome da autonomia e dos valores específicos de um campo de produção
cultural, deixando bem marcado seu lugar de intelectual comprometida com o momento
histórico.
Acreditamos, assim, que a produção de Lispector ganhou muito, na medida em que
seus escritos não tinham, obrigatoriamente, compromisso imediato com o presente, pois sua
obra pode ser comparada ao vinho, que com o passar do tempo amadureceu, trazendo consigo
reflexões atemporais sobre nosso País. Esse fato é comentado por Rodrigo S. M. na
passagem:
Quero acrescentar, à guisa de informações sobre a jovem e sobre mim, que vivemos
exclusivamente no presente pois sempre e eternamente é o dia de hoje e o dia de
amanhã será um hoje, a eternidade é o estado das coisas neste momento.
101
Dessa forma, entendemos que o intelectual é aquele que abre espaço através da
reflexão, para que o outro tenha lugar, para que o que foi silenciado venha a ser falado.
Trataremos, a seguir, do projeto intelectual subalterno de Rodrigo S. M. /Clarice Lispector,
refletindo sobre o fato de que tal postura pode ser vista como uma crítica ao sistema vigente
no País, em um contexto histórico tomado pela repressão do regime militar, uma vez que, “o
objetivo da atividade intelectual é promover a liberdade humana e o conhecimento.”
102
Isso
nos responde ao questionamento sobre o porquê de concebermos o intelectual Rodrigo S.M.
como um subalterno.
100
BOURDIEU, apud SILVA. Podemos dispensar os intelectuais? p.40.
101
LISPECTOR. A hora da estrela, p.18.
102
SAID. Representações do Intelectual, p.31.
58
2. A hora da estrela e o Brasil de 70
103
Para tratarmos da temática do lugar seria impossível separá-la do seu contexto, dessa
forma, grosso modo, tratar-se-á aqui a respeito do contexto histórico-cultural do País, a partir
da década de 1930, até o foco de maior discussão sobre o regime militar, a década de 1970.
É conveniente lembrar que, no período de 1930-1945, tanto a literatura quanto as artes
plásticas, no Brasil, foram essencialmente “ideológicas”, voltadas que estavam para a
discussão dos problemas brasileiros. Em 1945, terminada a Segunda Guerra Mundial e, no
Brasil, a ditadura de Vargas, o mundo passara a viver a Guerra Fria e, nosso País, um período
democrático e desenvolvimentista, que chegaria à euforia no governo de Juscelino Kubitschek
(1956-1961).
Foi em plena instalação do regime militar (1964-1985) - período esse em que toda
liberdade de expressão e idealismo foi abarcado por um poder opressor - que Clarice
Lispector atingiu seu ápice com a publicação das obras: A paixão segundo GH (1964) e A
Legião Estrangeira (1964).
A respeito de tal regime, o livro História do Brasil, de Boris Fausto, expressa com
clareza a imposição ditatorial:
O movimento de 31 de Março de 1964 tinha sido lançado aparentemente para livrar
o país da corrupção e do comunismo e para restaurar a democracia, mas o novo
regime começou a mudar as instituições do país através de decretos, chamados de
Atos Institucionais (AI). Eles eram justificados como decorrência “do exercício do
Poder Constituinte, inerente a todas as revoluções.”
104
No País, com o passar dos anos, tornava-se cada vez mais difícil manter os princípios
básicos da democracia, inclusive “os estudantes que tinham tido um papel de relevo no
período Goulart foram, especialmente, visados pela repressão.”
105
Assim, com o início da
103
Uma primeira versão deste texto encontra-se publicada no livro Espectros de Clarice: uma homenagem,
organizado pelo professor Dr. Edgar Cézar Nolasco.
104
FAUSTO. História do Brasil, p.465.
105
FAUSTO. História do Brasil, p.467.
59
década de 1970, década, aliás, da publicação de A hora da estrela, as manifestações sociais se
tornaram mais evidentes, constituindo-se a prova de força contra o governo, no qual “um
verdadeiro clima de terror político, que se refletiria num forte controle da produção cultural
do país.”
106
A partir disso, a música ufanista voltou à cena, lembrando os tempos de Estado Novo e
de Ari Barroso, em Aquarela do Brasil (1939) e Eu te amo meu Brasil (xenofobia e auto-
elogio ao regime militar).
107
Com a chegada do “sesquicentenário”, em 1972, o Brasil completou 150 anos de
independência política e, em meio a essa euforia, a esperança fora amplamente disseminada
por ações e slogans, como: Brasil: ame-o ou deixe-o. De acordo com Brandão e Duarte, no
livro já mencionado:
[...] a palavra de ordem era “integração nacional”, tanto para o governo militar, que
precisava legitimar o seu poder a todo o custo, para os grandes meios de
comunicação, que precisavam atingir todos os mercados consumidores do país para
oferecê-los aos anunciantes.
108
Criou-se, assim, uma espécie de agência de massificação e sofisticaram-se os meios de
apropriação de uma cultura popular que abarcasse a população a uma integração nacional a
partir de certos padrões culturais.
Todavia, essa tentativa de massificação cultural sofreu os reflexos da contracultura, ou
seja, “cultura marginal”, “arte marginal”, “arte contracultural”, que tratava do inconformismo
diante da repressão e do conservadorismo vigentes no País, sendo difundida através das
publicações de jornais e revistas, como o Pasquim, Flor do mal, Bondinho, dentre outros.
Dessa forma, as forças populares em processo de reorganização voltam a se expressar através
de manifestações estudantis (1977) e greves que, a partir de 1978, agitavam o ABC Paulista,
106
FAUSTO. A história do Brasil, p.479.
107
BRANDÃO & DUARTE. Movimentos culturais da juventude, p.12.
108
BRANDÃO & DUARTE. Movimentos culturais da juventude, p.8.
60
reivindicando aumentos salariais e liberdade de organização sindical que, por sua vez,
impulsionaram a busca pela abertura política, que se concretizaria nos anos 1980. Dito isso, é
fácil encontrar nas obras de Clarice Lispector toda essa saga pela luta social e cultural que
perdurou por toda década de 1970.
De acordo com Silviano Santiago, no livro Nas malhas da letra, uma das funções da
literatura, naquele momento histórico e cultural, era:
[...] refletindo sobre a maneira como funciona e atua o poder, a literatura brasileira
pós-64 abriu campo para a crítica radical e fulminante de toda e qualquer forma de
autoritarismo, principalmente aquela que, na América Latina, tem sido pregada pelas
forças militares quando ocupam o poder, em teses que se camuflam pelas leis de
segurança nacional.
109
Clarice Lispector, em seu livro A hora da estrela, de forma magistral, articula a
descrição do ambiente e as condições vividas por suas personagens: o tão sonhado “milagre”
brasileiro (1969-1973), período marcado pelo extraordinário crescimento econômico,
deixando de lado os setores de saúde, educação e habitação.
A autora evidencia as mazelas sociais existentes na época ao apresentar o contexto
social da retirante nordestina Macabéa, perdida na cidade grande toda feita contra ela:
O quarto ficava num velho sobrado colonial da áspera rua do Acre, entre prostitutas
que serviam os marinheiros, depósitos de carvão e de cimento em , não longe do
cais do porto. O cais imundo dava-lhe saudade do futuro, Rua do Acre. Mas Que
lugar. Os gordos ratos da rua do Acre. é que não piso, pois tenho terror sem
nenhuma vergonha do pardo pedaço de vida imunda.
110
Marcada, assim, por um contexto tomado pela insegurança, a autora se cercada pela
força do regime militar e pela imposição do AI-5, que assombrou toda a década, vivendo uma
espécie de neurose militar, em que a alegria de escrever que impulsionava a vida da escritora
era abarcada pela profunda tristeza de relatar o que acontecia com o País. Foi dessa forma que
Lispector conseguiu tratar de subalternidade em nossa língua, sem, no entanto, ser subalterna.
109
SANTIAGO.
Nas malhas da letra
, p.15.
110
LISPECTOR. A hora da estrela, p.30.
61
De acordo com Antonio Candido, “a ditadura militar - com violência repressiva, a
censura, a caça aos inconformados-certamente aguçou por contragolpe, nos intelectuais e
artistas, o sentimento de oposição, sem com isto permitir a sua manifestação clara”
111
.
Tomemos como exemplo a seguinte citação:
Devo dizer que ela era doida por soldado? Pois era. Quando via um, pensava com
estremecimento de prazer: seque ele vai me matar? Se a moça soubesse que minha
alegria também vem de minha profunda tristeza e que tristeza era uma alegria falhada.
Sim, ela era alegrezinha dentro de sua neurose. Neurose de guerra.
112
Pode-se dizer, então, que Lispector posicionou-se, enquanto intelectual que
questionava seu lugar e tempo; mostrou sua face diante da história tomada pela repressão da
ditadura, sem precisar, jamais, filiar-se a algum partido ou levantar bandeira, para que sua
opinião fosse ouvida ou vista.
Na esteira de Candido (1972), pensar que basta aferir a obra com a realidade exterior
para entendê-la é correr o risco de uma perigosa simplificação causal, uma vez que a
construção literária exprime uma visão coerente da sociedade. Cabe, assim, analisar a
intimidade da obra e não propor uma mera questão de valor, como também sugeriu Bakhtin: o
“conceito de estético não pode ser extraído da obra de arte pela via intuitiva ou empírica”.
113
Para atestar tal interesse na relação literatura e história, tomam-se as palavras de
Walter Benjamin, em análise sobre o conceito de história: “articular historicamente o passado
não significa conhecê-lo ‘como ele de fato foi.’ Significa apropriar-se de uma reminiscência,
tal como ela relampeja no momento de um perigo,”
114
quando, então, se analisa o texto
literário como representante de uma época, a fim de refletir sua relação de
enfrentamento/concordância com o discurso histórico.
111
CANDIDO. A educação pela noite, p.212
112
LISPECTOR. A hora da estrela, p.38.
113
BAKHTIN. Questões de Literatura e Estética, p.16.
114
BENJAMIN. Magia e Técnica, Arte e Política, p.224.
62
2.1. O projeto do intelectual subalterno Rodrigo S. M. / Clarice Lispector
Mas é que o erro das pessoas inteligentes é tão mais grave: elas têm os argumentos
que provam. Clarice Lispector, O erro dos inteligentes.
Por meio do personagem Rodrigo S.M. (na verdade Clarice Lispector), a autora nos
faz pensar sobre o papel, condição social e cultural do intelectual e, por extensão, dos seres
marginalizados que percorrem a narrativa, a exemplo de Macabéa e Olímpico.
A análise do personagem Rodrigo S. M. leva-nos a descentrar o posto, a posição
classista e “elitista” que a figura do intelectual sempre ocupou na sociedade. Edgar Nolasco
pontua que:
[...] pôr-se à posição de margem, como fez o autor de Macabéa, é aceitar o desafio
corajoso e pessoal de abrir mão de sentir o bom gosto do lugar confortável
resguardado pela tradição literária ao intelectual.
115
Como afirma Rodrigo S.M., “abandonar sentimentos antigos confortáveis”
116
significa abandonar sentimentos românticos, destruir conceitos confortáveis e sentir-se no
direito de questionar a falta de bom gosto estético. Para Nolasco (2007), “a consciência crítica
de Clarice Lispector, interposta à persona de Rodrigo S.M., é tão exacerbada, tão pública,
diria, que funciona como uma gargalhada debochada e não menos irônica que ela dá à própria
sociedade.”
117
Tal posicionamento crítico pode ser observado quando Rodrigo S. M. observa
“que talvez eu tivesse que me apresentar de modo mais convincente às sociedades que muito
reclamam de quem está neste instante mesmo batendo a máquina.”
118
Ao se discutir o papel intelectual de Lispector, pode-se entender melhor seu projeto
literário e de que forma seu trabalho apropria-se da definição de Said e outros pesquisadores,
115
NOLASCO. Caldo de cultura, p.40.
116
LISPECTOR. A hora da estrela, p.26.
117
NOLASCO. Caldo de cultura, p.41.
118
LISPECTOR. A hora da estrela, p.26.
63
que vêm o intelectual como um questionador do status quo. Para tanto, cabe enfatizar sua
função de intelectual diante da sociedade: um agente do saber prático cuja contradição maior
o leva a juntar-se ao movimento pela universalização das classes desfavorecidas. Classes
essas que desfilam, especialmente pela última obra de Lispector e obtêm notoriedade, ou, pelo
menos, lhe é dado o direito de um “balbucio”
119
ante suas necessidades.
Chama-se a atenção para o diálogo explícito, nas palavras do personagem Rodrigo
S.M. e o intelectual Jean Paul Sartre, acerca do lugar do intelectual. Para Sartre (1994), não há
dúvida de que o intelectual não pode “fazer parte de uma elite, pois não dispõe, no início, de
nenhum saber e, em consequência, de nenhum poder.”
120
Sartre afirma que o intelectual é
banido pelas classes privilegiadas e posto em dúvida pelas classes desfavorecidas - por causa
da própria cultura que põe a sua disposição. Nessa direção, o personagem-escritor de
Lispector afirma:
E eis que fiquei agora receoso quando pus palavras sobre a nordestina. E a pergunta
é: como escrevo? [...] Antecedentes meus do escrever? Sou homem que tem mais
dinheiro do que os que passam fome, o que faz de mim de algum modo desonesto. E
minto na hora exata da mentira. Mas quando escrevo o minto. Que mais! Sim,
não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um
monstro esquisito, a média com desconfiança de que possa desequilibrá-la, a baixa
nunca vem a mim. Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas
voam faíscas e lascas como aços espelhados.
121
Ainda sobre as ponderações de Sartre, tem-se o intelectual como um “suspeito às
classes trabalhadoras, traidor para as classes dominantes, recusando sua classe sem jamais
poder se livrar totalmente dela.”
122
O escritor-autor Rodrigo S. M. encontra-se trancado,
segundo ele mesmo, num cubículo de onde tem a “veleidade de querer ver o mundo, ou mais
precisamente, a vida-mundo de Macabéa.”
123
Trata-se, portanto, de uma narrativa conduzida
119
Termo utilizado por Hugo Achugar em seu livro Planetas sem boca.
120
SARTRE, apud MATTOS. O perfil intelectual do escritor pós-moderno Silviano Santiago, p.54.
121
LISPECTOR
.
A hora da estrela,
p.24.
122
SARTRE, apud MATTOS. O perfil intelectual do escritor pós-moderno Silviano Santiago, p.55.
123
LISPECTOR. A hora da estrela, p.22.
64
por um escritor-personagem preso a seu trabalho com a escrita e que, às vezes, perde-se em
suas divagações. Lispector possui interesses precisos e os deixa expostos ao mascarar-se nesse
narrador para contar a história da pobre moça Macabéa, visto que “uma escritora mulher
poderia lacrimejar piegas.”
124
Daí poder-se apontar que a escritora, nas entrelinhas desse
discurso, começa a posicionar-se e apontar preconceitos contra a mulher e a escrita feminina.
Valendo-se do escritor-personagem Rodrigo S. M., Lispector zomba, brinca, gargalha
ironicamente na figura do narrador masculino de toda tradição narrativa brasileira anterior a
ela.
Reinterpreta os lugares prontos do feminino e do masculino, no imaginário cultural
patriarcal, revendo, assim, o conceito de sujeito autoral.
Questionada, em entrevista,
125
sobre qual seria o papel do intelectual na década de
1970, no Brasil, Lispector respondeu: “o de falar menos possível”, deixando clara sua posição
àqueles que criticavam sua postura em face do contexto da época, pois se entende que a
preocupação com a realidade social e cultural brasileira sempre esteve embasando o
pensamento da intelectual, repercutindo, de uma forma ou de outra, em todo seu projeto
literário.
Para tanto, Lispector realmente exemplifica a definição de intelectual sugerida por
Said: “os intelectuais são indivíduos com vocação para a arte de representar, seja escrevendo,
falando, ensinando ou aparecendo na televisão.”
126
Retoma a afirmação de Said ao dizer que
“uma das tarefas do intelectual reside no esforço em derrubar os estereótipos e as categorias
que tanto limitam o pensamento humano.” E Lispector o faz magistralmente no momento em
que se interpõe ao personagem Rodrigo S. M.
Pode-se tomar, como exemplo, a epígrafe deste capítulo, “sim, não tenho classe social,
marginalizado que sou,” em que o intelectual põe-se na condição e lugar descritos por Said
124
LISPECTOR. A hora da estrela, p.20.
125
Entrevista concedida ao programa Panorama cultural da TV Cultura em 1977, sob compromisso de que essa
entrevista fosse exibida apenas após o falecimento da escritora.
126
SAID. Representações do intelectual, p.27.
65
anteriormente, ou seja, a produção cultural de Lispector não responde “à lógica do
convencional, e sim ao risco da ousadia, à representação da mudança, ao movimento sem
interrupção.”
127
Rodrigo S. M. tenta falar por Macabéa e Olímpico, mas nunca sentiu na pele o que é
realmente ser um marginal e subalterno. Tal literatura da margem, proposta por Lispector, nos
faz rever e descentrar o olhar do centro (urbano) e das margens geopolíticas da nação. Não é
em vão que os personagens citados parecem nascidos condenados a viver e estar na condição
de marginais, isto é, à margem do centro letrado.
Dessa forma, o conceito de margem e, por extensão, do sujeito marginal, tem tido um
sentido cultural depreciativo no País. Para o pesquisador Edgar Nolasco, os grandes centros
urbanos, por exemplo, encarregam-se de excluir, preconceituosa e naturalmente, as margens.
Podemos observar, todavia, que, em se tratando da realidade brasileira, de hoje, “a margem
(ou margens) se desfez, o centro implodiu, e as fronteiras não estão tão nítidas.”
128
Continua Nolasco:
Literatura da margem, sem ser necessariamente marginal, literatura regional, sem ser
obrigatoriamente universal, o exemplos que nos obrigam a descentrar o olhar do
centro (urbano) e rever as margens geopolíticas da nação.
129
Para tanto, Clarice Lispector põe-se como intelectual na posição defendida por Hélio
Oiticica (2007), numa “posição de margem,”
130
que procura “colocar no sentido social bem
claro a posição do criador, que não denuncia uma sociedade alienada de si mesma, mas
propõe, por uma posição permanentemente crítica, a desmistificação dos mitos da classe
dominante, das forças de repressão [...]”
131
127
SAID. Representações do intelectual, p.70.
128
NOLASCO. Caldo de cultura, p.78.
129
NOLASCO. Caldo de cultura, p.78.
130
OITICICA, apud NOLASCO. Caldo de Cultura, p.80.
131
OITICICA, apud NOLASCO. Caldo de Cultura, p.80.
66
Em outro momento, o escritor Rodrigo S. M. aponta seu posicionamento crítico diante
da realidade brasileira: “Porque direito ao grito. Então eu grito. Grito puro e sem pedir
esmola. Sei que moças que vendem o corpo, única posse real, em troca de um bom jantar
em vez de um sanduíche de mortadela.”
132
Observa-se, nesse momento, o quanto a escritora
cumpre seu papel de intelectual preocupada com a realidade do País e joga para que todos
vejam as mazelas existentes na sociedade brasileira.
Personagens subalternos, que saem do nordeste do País para tentar a vida no sul, não
são meramente expostos pela escritora; cumprem seu papel crítico, marcando o discurso
questionador de Lispector, fiel a seu projeto intelectual. Segundo Rodrigo S. M., “se é pobre,
não estará me lendo porque ler-me é supérfluo para quem tem uma leve fome permanente.
Faço aqui o papel de vossa válvula de escape e da vida massacrante da média burguesia.”
133
Em suma, por que afirmamos que Rodrigo S. M. é um intelectual subalterno? Talvez
por ele escrever sobre uma subalterna, talvez por ser ele um latino-americano, talvez porque,
ao escrever sobre Macabéa, ele se liberta e ganha seu direito ao grito.
Tais colocações poderiam responder a esse questionamento, entretanto, acreditamos
que Rodrigo S. M. seja um intelectual subalterno justamente porque ele está à margem da
literatura nacional, trata-se de um intelectual que não conseguiu escrever uma grande obra, e
dessa forma, não ocupa um lugar no cânone. Ou seja, o narrador escritor Rodrigo S. M. é um
operário da palavra que não conseguiu elevar seu lugar e, por isso, está fora do poder
hegemônico.
Por outro lado, podemos dizer que Rodrigo S. M. não é um subalterno porque nunca
ocupou o lugar daqueles que ele tenta representar. Daí, talvez, entendermos o quanto o
contexto social influenciou na produção da obra, uma vez que, transvestida no personagem
132
LISPECTOR. A hora da estrela, p.13.
133
LISPECTOR. A hora da estrela, p.30.
67
narrador, Lispector critica não só o contexto da época, mas o posicionamento de todos aqueles
que se intitulavam intelectuais naquele momento histórico.
Por fim, entendemos, na esteira de Antonio Candido, que a literatura de Lispector,
representa a literatura do contra. Contra a escrita elegante, antigo ideal castiço do País, contra
a convenção realista, baseada na verossimilhança e o seu pressuposto de uma narrativa, isto é,
a concatenação graduada das partes pela técnica da dosagem dos efeitos; finalmente, contra a
ordem social, sem que, com isso, os textos manifestem uma posição política determinada
(embora o autor possa tê-la). Diálogo encontrado com as palavras de Silviano Santiago “o
intelectual trabalha sobre o presente. Ele, raras vezes, trabalha com o presente”, o que nos
permite observar que o intelectual depende de sua ação reflexiva, para melhor pensar o
mundo.
Poderíamos, assim, resumir o trabalho magistral de Lispector em A hora da estrela
com as palavras de Candido “a negação implícita sem afirmação explicita da ideologia,”
134
retomando uma das citações pertinentes de Clarice: “não estrague as entrelinhas com
palavras.”
134
CANDIDO. A educação pela noite, p.212.
68
2.2 O direito ao grito do subalterno em A hora da estrela
135
A pobreza é feia e promiscua. Clarice Lispector, A
hora da estrela, p.22
.
Após apresentar o intelectual, seu papel e função no contexto histórico, atravessado
pela análise de A hora da estrela, objetivamos, aqui, apresentar a contribuição da intelectual
Clarice Lispector para a diluição de certezas, uma vez que fecha seu projeto literário com uma
obra síntese, expondo a face subalterna do País. Talvez, seja, por isso que, para Lispector,
suas últimas personagens sejam todas consideradas subprodutos, “rebotalhos da sociedade”, a
exemplo de seu apontamento na dedicatória do livro A hora da estrela:
Esta história acontece em estado de emergência e de calamidade pública. Trata-se de
livro inacabado porque lhe falta a resposta. Resposta esta que espero que alguém no
mundo ma-dê.
136
Eneida Maria de Souza (2002), no ensaio “A teoria em crise”, ao discutir a crise
evidenciada pelo título, lembra-nos que:
[...] não se trata mais de considerar a literatura na sua condição de obra
esteticamente concebida, ou de valorizar os seus critérios de literariedade, mas de
interpretá-la como produto capaz de suscitar questões de ordem teórica ou de
problematizar temas de interesse atual, sem se restringir a um público específico.
137
Dessa forma, pensar a obra de Clarice Lispector sem estar preparado para uma
reflexão interior (pessoal) e, ao mesmo tempo, do real (social), é perder a chance de conhecer
uma visão crítica do mundo, antes pouco explorada na sua produção, e que ainda tem muito a
contribuir para o debate teórico-crítico.
135
Uma primeira versão deste texto encontra-se publicada na 4ª ed. da Revista Travessias sob o título “O
intelectual revisitado em A hora da estrela de Clarice Lispector”. Disponível em www.revistatravessias.com.br
136
LISPECTOR. A hora da estrela, p.10.
137
SOUZA. Crítica cult, p.68.
69
Entendemos que Lispector, ao tratar de forma tão específica de questões sociais,
políticas e culturais do País, contribuiu, sobremaneira, na busca por um momento mais digno
da população brasileira. Para Jaime Ginzburg (2003), é nesse momento que “se encontra na
produção da autora, abordagens de temas ligados à precariedade da constituição individual e a
dificuldade da sociedade brasileira em sustentar e viabilizar um projeto burguês de
modernização.”
138
Rosani Umbach (2001) constata que Clarice Lispector parece querer
denunciar uma forma de literatura socialmente descomprometida, que glorifica a simplicidade
das classes humildes do povo, questionando o papel da literatura em um contexto social
autoritário.”
139
Corrobora com o que tentamos demonstrar neste trabalho, a afirmação de
Lispector quando ainda vivia em Recife: “em Recife eu ia aos domingos visitar a casa de
nossa empregada nos mocambos. E o que eu via me fazia como que me prometer que não
deixaria aquilo continuar. Eu queria agir.”
140
Vemos que Lispector realmente agiu, ao pegar no ar o olhar perdidos das pessoas que
vieram tentar a vida no clã do sul do país, transformando-se assim na saga da retirante
Macabéa na obra A hora da estrela.
A estrela, de que trata o pequeno livro, é comparada a uma estrela de cinema, que
alcança notoriedade na hora da morte, como um gran finale de um filme, transformando,
assim, a história da pobre moça Macabéa na história de tantas outras pessoas que estão à
margem da sociedade, mas que, na hora da morte, são apenas mais um número nas estatísticas
do esquecimento.
141
Dizemos isso, pois, a personagem Macabéa tinha grande admiração pelas artistas do
cinema hollywoodiano, Marylin Monroe e Greta Garbo. Essa fascinação ressalta o alcance da
138
GINZBURG. Clarice Lispector e a razão antagônica, p.86.
139
UMBACH. Em busca de Christa T. e a Hora da estrela, p.119.
140
LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice fotobiografia, p.87.
141
Tal análise sob a vertente dos estudos culturais sobre a obra A hora da estrela, encontra-se publicado sob o
título “Literatura e cultura: o mercado cultural em A hora da estrela de Clarice Lispector” no livro O objeto do
desejo em tempo de pesquisa: projetos críticos na pós-graduação, organizado pelo professor Dr. Edgar Cezar
Nolasco.
70
cultura produzida para as massas, fomentado pela indústria cultural e propagado pelos ícones
de consumo, a exemplo de carros como o Mercedes e refrigerante Coca-cola. Parecer com
Marylin Monroe era um ideal, não para Macabéa, como para milhares de jovens que viam
naquela mulher a representação do mundo perfeito e a tão sonhada felicidade:
No banheiro da firma pintou a boca toda e até fora dos contornos para que seus
lábios finos tivessem aquela coisa esquisita dos lábios de Marylin Monroe. Depois
de pintada ficou olhando no espelho a figura que por sua vez a olhava espantada.
142
Dessa forma, não é em vão que Lispector escolhe justamente uma grande estrela para
tirar a vida da personagem Macabéa, “uma pessoa grávida de futuro,”
143
que é atropelada por
um Mercedes amarelo. Lispector faz emergir, não uma crítica ao esquecimento daqueles
que estão à margem da sociedade, mas, também, um questionamento sobre a influência
estrangeira em nosso País. Por que exatamente um Mercedes? Questiona-se, aqui, até onde os
bens de consumo guiam ou não nossas decisões, se lembrarmos que, naquele momento
histórico, tínhamos a ascensão da companhia Mercedes Bens, no Brasil.
Para melhor expor esse questionamento, trazemos a afirmação do narrador Rodrigo S.
M. ao tocar na temática da influência cultural dos bens de consumo:
O registro que em breve vai ter que começar é escrito sob o patrocínio do
refrigerante mais popular do mundo e que nem por isso me paga nada, refrigerante
esse espalhado por todos os paises. Apesar de ter gosto do cheiro de esmalte de
unhas, de sabão Aristolino e plástico mastigado. Tudo isso não impede que todos o
amem com servilidade e subserviência. por que essa bebida que tem coca é hoje.
Ela é um meio da pessoa atualizar-se e pisar na hora presente.
144
Cabe lembrar que Macabéa sempre esteve em busca dos produtos oferecidos pelo
mercado e estendidos aos bens simbólicos e culturais, mas nunca teve a oportunidade de
alcançá-los, pensamento estendido a suas companheiras de quarto: Maria da Penha, Maria da
142
LISPECTOR. A hora da estrela, p.62.
143
LISPECTOR. A hora da estrela, p.79.
144
LISPECTOR. A hora da estrela, p.23.
71
Graça, e a terceira, apenas Maria, que trabalhavam nas Lojas Americanas”, mas não podiam
ter os produtos que vendiam.
Mesmo que não fosse uma preocupação da própria Clarice, reconhecemos, entretanto,
que não se pode impedir que isso seja lido em seu livro, se considerarmos o contexto da época
e a biografia da escritora. No livro, Restos de ficção, Edgar Cézar Nolasco, tecendo uma
análise biográfica que toma vida e obra na mesma proporção, conclui que:
[...] no início de seu projeto literário, o ficcional seria o lugar onde o traço biográfico
se escondia; no decorrer desse projeto acontece justamente o oposto: agora é o
ficcional que vai ficar “colocado ao vivido, confundindo-se com ele. O vivido
passa a ser ficção.
145
Remetendo nossa análise ao posicionamento crítico, mencionado, da escritora, ela parece
tratar de questões sociais com uma verdadeira vontade de fazer justa, como confirma a cnica
de 16 de setembro de 1967, na qual aborda a probletica da fome: assunto nunca tão discutido
como nos dias atuais, no País, seja por meio do projeto Fome-Zero do governo, seja por meio da
dia que informa que crianças morrem de desnutrão pelo mundo afora.
Questionada se saberia calcular o Brasil “daqui a vinte e cinco anos” (este é o título da
crônica), responde que nem daqui a vinte e cinco minutos, embora já previsse, naquela época,
que a busca por uma situação econômica mais digna “de um povo estava por se desenrolar,
pois o povo já havia dado mostras de ter maior maturidade política do que a maioria dos
políticos.”
146
Na crônica, parece-nos evidente que a autora desejava que o problema da fome se
resolvesse, pois o povo, que sempre estivera à espera de práticas sociais mais justas por parte
do governo, não poderia esperar mais.
Dando um salto para nosso objeto de estudo, Rodrigo S. M. lembra-nos de forma nua e
crua que, se por um lado Macabéa não mendigava comida, por outro, “havia toda uma
145
NOLASCO. Restos de ficção, p.78.
146
Grifo da autora.
72
subclasse de gente mais perdida e com fome.”
147
Não mendigava comida nem nada mais;
que não é demais lembrar que às vezes, antes de dormir sentia fome e ficava meio alucinada
pensando em coxa de vaca. O remédio então era mastigar papel bem mastigadinho e engolir.”
148
Como se vê, a questão da fome foi uma constante na vida da autora. Nesse sentido, o
livro A hora da estrela faz justiça ao projeto da intelectual, visto que todas aquelas questões
referentes à injustiça social, que ficaram em pano de fundo na narrativa clariciana, agora
estampam a superfície textual.
Com isso, Lispector deseja alcançar a cura para esse tão temido câncer social. E espera
que “os líderes que tiverem como meta a solução econômica do problema da comida serão tão
abençoados por nós como, em comparação, o mundo abençoará os que descobrirem a cura do
câncer”
149
. “Esse quem será que existe?”
150
Seria essa mais uma previsão de Clarice Lispector? Metaforicamente, o contexto
político atual ilustra bem o que descrevia a escritora, uma vez que o Brasil tem na presidência
da república, Luís Inácio Lula da Silva, um político que saiu das massas e alcançou o posto
mais alto da nação. Na mesma crônica, a autora afirma que o povo terminaria liderando os
líderes, o que significa tratar-se da figura de um subalterno que alcançou o seu direito ao
grito, saindo, assim, de uma situação subalterna para participar da produção cultural do País.
Surge, dessa forma, um representante que advém da margem para ocupar seu lugar no centro
e dar voz ao subalterno, dando um salto da ficção para a realidade.
Na esteira de Edgar Nolasco, enfatizamos, se, por um lado, Lispector acertou em cheio
no tocante à sua previsão do líder político do povo brasileiro, por outro lado seu desejo,
menos do que previsão, continua sem solução, apesar de o assunto estar na agenda do trabalho
147
LISPECTOR. A Hora da estrela, p.37.
148
LISPECTOR. A Hora da estrela, p.39.
149
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.26.
150
LISPECTOR. A hora da estrela, p.14.
73
do referido presidente da nação, seja como no citado programa Fome Zero e como na bolsa
alimentação.
Vejamos, então, as palavras de Lispector:
[...] posso intensamente desejar que o problema mais urgente se resolva: o da fome.
Muitíssimo mais depressa, porém, do que em vinte e cinco anos, porque não há mais
tempo de esperar: milhares de homens, mulheres e crianças são verdadeiros
moribundos ambulantes que tecnicamente deviam estar internados em hospitais para
subnutridos.
151
Tal engajamento, observado nas palavras da escritora, é tão atual e latente na sociedade
brasileira, que, conforme observou Ligia Chiappini, bem “poderia servir de mote à campanha
do combate à fome do governo Lula.”
152
Esse problema da fome é tão persistente na
consciência crítica da escritora que, retomando suas palavras na crônica já citada, ilustra a real
situação da fome em nosso País, podendo ser vista, hoje, como uma epidemia, pois afeta
todo o País sem distinção regional:
[...] a fome é a nossa endemia, está fazendo parte orgânica do corpo e da alma. E,
na maioria das vezes, quando se descrevem as características físicas, morais e
mentais de um brasileiro, não se nota que na verdade se estão descrevendo os
sintomas físicos, morais e mentais da fome.
153
Cabe, aqui, trazer à tona o que o governo diz sobre sua atuação no programa modelo
para acabar com a fome:
[...] o Fome Zero é uma política pública que visa á erradicação da fome e da
exclusão social. É uma política pública porque expressa a decisão do governo
federal de enquadrar o problema da fome como uma questão nacional central e não
como uma fatalidade individual. O estado está alocando recursos humanos e
financeiros em praticamente todas as suas áreas de atuação com o objetivo de
estender os direitos de cidadania a milhões de brasileiros excluídos.
154
151
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.25-26.
152
CHIAPPINI, apud PONTIERI (Org.) Leitores e leituras de Clarice Lispector, p.240.
153
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p. 26. É ilustrativo lembrar que em matéria do Fantástico exibida no
dia 05-01-2006 pessoas expunham placas na beira das rodovias, onde se lia: “precisamos de comida”.
154
Disponível em: http://www.fomezero.gov.br Acesso em: 05-04-2008.
74
Como vemos, trata-se de um texto muito bonito, mas que ainda não cumpriu seu
devido papel social, talvez, porque continuamos a ver nos noticiários e jornais o que se faz
com o dinheiro público, a exemplo do quanto é gasto com viagens, despesas e castelo de
deputados e senadores que representam a nação, enquanto aqueles que realmente necessitam
mantêm-se excluídos e marginalizados nessa sociedade hipócrita.
Entendemos que, apesar de Lispector negar em toda sua vida intelectual, que não
escrevia sobre problemas sociais, seu projeto intelectual vem desmenti-la, uma vez que ele se
arquiteta com base nos traços biográficos-sociais inerentes à trajetória e à condição de vida de
sua mentora. À pergunta que ela mesma teria feito sobre sua participação nos problemas da
vida nacional, respondeu:
[...] como brasileira seria de estranhar se eu não sentisse e não participasse da vida
de meu país. Não escrevo sobre problemas sociais mas eu os vivo intensamente e, já
em criança, me abalava inteira com os problemas que via ao vivo.
155
Caberia aqui refletir como o traço biográfico contribuiu para o desenvolvimento da
obra de Lispector e até que ponto a vida se confunde com a obra e vice-versa. Tal análise será
explorada no próximo capítulo, pois antes privilegiaremos o cerne de nossa pesquisa que
aponta o personagem Rodrigo S.M. como um intelectual subalterno.
Para tanto e com objetivo específico de chamar a atenção ao posicionamento crítico de
Lispector, recorremos, mais uma vez, as palavras do escritor-personagem Rodrigo S.M.
quando trata do poder que a palavra tem: “Conheço adjetivos esplendorosos, carnudos
substantivos e verbos tão esguios que atravessam agudos o ar em vias de ação, que palavra
é ação, concordais?
156
Em outro momento: “Apaixonei-me subitamente por fatos sem
literatura - fatos são pedras duras e agir está me interessando mais do que pensar, de fatos não
155
LISPECTOR. A descoberta do mundo, p.480.
156
LISPECTOR. A hora da estrela, p.14.
75
como fugir.”
157
Fatos esses, como a fome e a problemática social e cultural, que ainda
perpetuam a subalternidade de nosso país em oposição ao centro mundial e nos deixam à
margem da produção intelectual.
157
LISPECTOR. A hora da estrela, p.16.
76
2.3 O intelectual subalterno Rodrigo S. M.
Dedico-me à saudade de minha antiga pobreza, quando tudo era
mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido lagosta. Clarice
Lispector, A hora da estrela, Dedicatória do autor.
Após discutir de que maneira entendemos Clarice Lispector em seu papel de
intelectual, tanto na cultura quanto na sociedade nacional, a exemplo do questionamento da
fome, vemos que a autora expôs sua resposta àqueles que a caracterizavam como
despreocupada com a temática social em suas obras, culminando seu projeto intelectual ao
reescrever sua vida na obra A hora da estrela (1977). Essa afirmação, talvez, possa chocar
alguns leitores, todavia, mostraremos, neste capítulo, o quanto a última obra de Lispector
mantém-se atualíssima, tanto na teoria quanto na prática social, étnica e cultural brasileira.
Comecemos com o seguinte questionamento: em que medida o narrador de A hora da
estrela é um subalterno? Para responder a tal pergunta, recorremos às palavras de Regina
Dalcastagnè, no livro, Entre fronteiras e cercado de armadilhas (2005), especificamente em
sua análise comparatista sobre as obras A rainha dos cárceres da Grécia, (1986), de Osman
Lins, e A hora da estrela, de Clarice Lispector.
De acordo com a ensaísta, a obra A hora da estrela traz em seu bojo uma reflexão
sobre o ato de criação, ou seja, suas personagens são extraídas de sua miséria, de sua mudez e
fome, para representar um emaranhado “tecido de simulações”.
158
Para Dalcastagnè, a obra
se configura numa espécie de testamento literário, estreitando as fronteiras entre criação e
vida, a partir de um posicionamento ético.
Dalcastagnè toca em um ponto crucial para nosso trabalho, ao afirmar que:
158
LINS, apud DALCASTAGÈ. Entre fronteiras e cercado de armadinhas, p.35.
77
Ouvir essas personagens não quer dizer transcrever-lhes a fala - isso seria fraudar
suas existências, destruir as intenções de seus autores. Elas não são Carolina Maria
de Jesus, a favelada, catadora de lixo e negra dos anos 1960 conseguiu impor sua
voz com a publicação de seus diários. Tampouco Clarice Lispector e Osman Lins
aceitariam tornar-se ventríloquos de uma classe social a qual não pertenciam.
Macabéa não tem voz dentro do texto que a constitui, muito embora se recuse a
aceitar tão pacificamente o discurso sobre si. [...] É que, para gente como elas,
resta ser falada, ou tomar uma fala de empréstimo.
159
Essa temática, levantada por Dalcastagnè, nos permite entender e posicionar o
narrador Rodrigo S. M. diante de sua criatura Macabéa, pois ela não tem nada a dizer sobre si
mesma, sua existência humilde e alienada, porém diz muito sobre seu autor e sobre a elite
intelectual brasileira. Essa elite, “muitas vezes insensível ao que não lhe parece dizer respeito,
também se debate, vez ou outra, com a desconfortável necessidade de tomar uma posição
diante de nossa realidade social. Ou, ao menos, de explicitar o próprio desconforto.”
160
Posicionamento já evidenciado, neste trabalho, a partir das ponderações de Edward Said.
161
De acordo com Dalcastagnè, Lispector buscava em sua obra o indizível e procurava no
“outro” que se perde nas ruas de uma grande cidade, a expansão de sua escrita, enfatizando o
quanto a relação entre o intelectual e o povo é difícil, no Brasil.
Por essa perspectiva, vemos que Macabéa ocupa o lugar do “outropara Rodrigo S.
M.; daí, talvez, o desprezo na relação entre ambos. Macabéa é o outro, é a massa, que nunca
chegará ao mesmo lugar ocupado por Rodrigo S. M. Da mesma forma, trazemos o
personagem Olímpico, retirante nordestino, que vivia de favor, em construções, tendo como
objetivo ser um deputado: “seu destino era o de subir para um dia entrar no mundo dos outros.
Ele tinha fome de ser outro.”
162
Essa massa é composta por seres de matéria amorfa, habitados pelo vazio,
conformados, subalternos que não têm direito a voz ou representatividade; também é
composta por um público alfabetizado, consumidor, ávido de bens culturais, ampliando,
159
DALCASTAGÈ. Entre fronteiras e cercado de armadinhas, p.36.
160
DALCASTAGÈ. Entre fronteiras e cercado de armadinhas, p.36.
161
Conferir especialmente o capítulo “O intelectual subalterno em A hora da estrela”.
162
LISPECTOR. A hora da estrela, p.65.
78
assim, a necessidade de distinção do intelectual, já que “as marcas anteriores - a começar pelo
mero domínio do mundo letrado-não são mais suficientes.”
163
Vale a pena lembrar que a personagem Macabéa não é somente uma homeless,
miserável e subalterna, mas é alguém que e escreve, mesmo que com dificuldades, vai ao
cinema, bebe coca-cola, come cachorro-quente, consome anúncios e quer saber o que
significa a palavra cultura. Personagem, essa, totalmente diferente dos que costumavam ser
evocados pelos intelectuais brasileiros, que agora enfrentam um público que exige das
indústrias fonográficas e emissoras de televisão produtos cada vez mais degradados.
Ao apresentar Macabéa, por essa perspectiva da massa, Rodrigo S. M. assinala, a todo
o momento, a distância cultural que os separa, pois precisa diferenciar-se da criatura que ele
cria e, ao mesmo tempo, construir a si mesmo. Para Dalcastagnè:
Rodrigo é o escritor sofisticado, o intelectual que está acima dessas manifestações
miúdas de sentimentalismo. É aquele que reflete, pondera, o que indaga o mundo
com perguntas adequadas. Bem ao contrário dos parvos como Macabéa, que não
sabem nem o que não sabem.
164
Observa-se, dessa forma, na esteira de Dalcastagè, que Rodrigo S. M. paira sobre o
mundo, escapando à contaminação de seres, como Macabéa, pois ele acredita na própria
superioridade, em sua inata capacidade de entender o mundo sem fazer parte dele, ou seja,
Rodrigo S. M. expõe as entranhas de seres que vivem do lado de fora da narrativa.
Daí, talvez, o porquê de Lispector utilizar-se da figura de um narrador masculino para
contar a história da pobre moça, uma vez que, ao fazê-lo, ela se exime de todas as relações e
comparações com o personagem. Em contrapartida, também expõe as suas entranhas. “Apesar
de eu não ter nada a ver com a moça, terei que me escrever todo através dela por entre
163
DALCASTAGÈ. Entre fronteiras e cercado de armadinhas, p.38.
164
DALCASTAGÈ. Entre fronteiras e cercado de armadinhas, p.39.
79
espantos meus. Os fatos são sonoros, mas entre os fatos um sussurro. É o sussurro que me
impresiona.”
165
Dalcastagè afirma que “despossuída de tudo (dinheiro, inteligência, beleza) a jovem
nordestina é usada para, por meio do contraste, oferecer identidade a Rodrigo.”
166
A partir
daqui, poderíamos esboçar o primeiro ponto que nos faz afirmar que Rodrigo S. M. é um
intelectual subalterno: ele o é porque, ao tentar escrever sobre uma subalterna, ele procura
alcançar o lugar de onde a subalternidade é vista. Lugar esse que não é nominado e nem
reconhecido perante aqueles que estão falando de um lugar estável, centralizado. Ou seja, ao
tentar representar um marginal, ele se marginaliza, conforme suas palavras:
[...] para falar da moça tenho que não fazer a barba durante dias e adquirir olheiras
escuras por dormir pouco, só cochilar de pura exaustão, sou um trabalhador manual.
Além de vestir-me com roupa velha rasgada. Tudo isso para me pôr no nível da
nordestina.
167
Observamos, dessa forma, que Rodrigo S. M., quando escreve sobre Macabéa, tenta
libertar-se de seu cativeiro pessoal, um cativeiro ocupado por intelectuais que estão
habituados ao pedestal intocável que essa figura ocupava, expondo, assim, sua opinião como
intelectual comprometido com a realidade cultural do País, pois, para ele: “o que escrevo não
pede favor a ninguém e não implora socorro.”
168
Na esteira de Dalcastagné, vemos Rodrigo S. M. como aquele que possui
conhecimento, enquanto sua criatura Macabéa tem informação. Em outras palavras,
Rodrigo ocupa seu lugar de escritor, reconhecido e legitimado pela sociedade, pois ele detém
os bens simbólicos, enquanto Macabéa sobrevive com o rebotalho de informações que
encontra no Jornal matutino O Dia, anúncios comerciais que coleciona recortando-os
cuidadosamente e os ensinamentos transmitidos pela Rádio Relógio.
165
LISPECTOR. A hora da estrela, p.24.
166
DALCASTAGÈ. Entre fronteiras e cercado de armadinhas, p.41.
167
LISPECTOR. A hora da estrela, p.19.
168
LISPECTOR. A hora da estrela, p.17.
80
Segundo Dalcastagnè:
Essa é talvez a diferença fundamental entre informação e conhecimento - enquanto a
primeira participa da ordem prática da vida, acessível às mentes mais tacanhas, o
segundo se transforma numa espécie de qualidade que pode, ou não vir a ser
utilizada.
169
Podemos refletir, também, que Rodrigo S. M. é um intelectual que fala de um lugar
subalterno com relação à produção intelectual e cultural mundial, ele fala de seu lugar, a
América Latina. Daí podermos chamar a atenção a mais um ponto que o caracteriza como um
intelectual subalterno, pois ele não fala direto de um grande centro hegemônico, por extensão,
fala da periferia mundial e, por sua vez, o seu lugar de fala o denuncia.
Após essas considerações, perguntamo-nos: quais são os lugares do subalterno?
Recorremos ao texto de Ileana Rodríguez “Hegemonia y Domínio: subalternidad, um
significado flotante,” para responder tal questionamento. Para a pesquisadora subalternista,
dois pontos se destacam na busca por uma contextualização do lugar do subalterno: o
primeiro está em re-pensar a relação centro-periferia (dentro/fora; local/global), o segundo
está em uma discussão sobre a relação intelectual/estado (poder). Dessa forma, falar dos
lugares do subalterno, de acordo com a pesquisadora, pressupõe saber quem é subalterno e se
ele tem um lugar marcado, pois se trata de um conceito escorregadio. Para ela, a
subalternidade se constitui a partir da relação do sujeito com seu contexto histórico, inscrita
dentro dos meios de produção. Em uma possível relação, poderíamos ter Rodrigo como
representante do centro e Macabéa como a margem, mas que ambos ainda falam de um lugar
periférico com relação à hegemonia cultural e do poder americanista e europeu.
Rodriguez afirma que:
169
DALCASTAGÈ. Entre fronteiras e cercado de armadinhas, p.42.
81
‘O homem pensa como vive’, dizem em Cuba. Para Gramsci, o sujeito também
pensa como vive. E dado que o sujeito subalterno é um sujeito dominado, o
pensamento sobre e a partir dele aparece em primeiro plano como uma negação, um
limite.
170
Para Rodriguez, a subalternidade se constitui em um lugar epistemológico apresentado
como um limite, negação e enigma. Na esteira de Spivak, trata-se de um limite absoluto ou
lugar onde a história se narrativiza como lógica. Rodriguez continua, dizendo que uma
multi-localização dos lugares teóricos da subalternidade, e que esses lugares não devem ser
perdidos de vista, e, sim, enfatizar as agências subalternas desses lugares.
Rodriguez aponta que:
O lugar do subalterno ou da subalternidade, assim concebidos, conduz hoje ao
estudo da história em termos de formação de legalidades. A subalternidade se
discute agora através dos significados dos conceitos de cidadanias, hegemonias,
subordinações, sociedade civil, espaço público, e governabilidades. A meu ver, esse
é um dos propósitos dos estudos subalternos: reconhecer o protagonismo do estado
Moderno Europeu como princípio ordenador e norma da história; de estudar a
história como escola política, uma disciplina que, uma vez institucionalizada como
curriculum dentro do sistema de ensino, cumpre a função de organizar hegemonias
(homogeneidades) na esfera pública dos países centrais, e domínios
(heterogeneidades) através das elites nos países ou espaços periféricos.
171
Observamos, na esteira de Rodriguez, que o intelectual sempre foi discutido dentro da
categoria das elites e que os subalternos estiveram do lado de fora, dominados, à margem da
história e da elite pensante. Como aponta Beverly, quando diz que “o subalterno não pode ser
170
‘El hombre piensa como vive’, dicen em Cuba. Para Gramsci, el sujeto también se piensa como vive. Y dado
que el sujeto subalterno es um sujeto dominado, el pensamiento sobre y desde él aparece em primer plano como
una negación, un limite. RODRIGUEZ. Revista de Investigaciones Literárias y Culturales, p.36.
171
El lugar del subalterno o de la subalternidad, así concebidos, conduce hoy al estúdio de la historia em téminos
de formación de legalidades. La subalternidad se discute ahora a través de los significados de los conceptos de
ciudadanías, hegemonias, subordinaciones, sociedad civil, espacio público, y gobernabilidades. A mi ver, esse es
uno de los propósitos de los estúdios subalternos: reconocer el protagonismo del estado Moderno Europeo como
principio ordenador y norma de la historia; de estudioar la historia como escuela política, uma disciplina que,
uma vez institucionalizada como curriculum dentro del sistema de enseñanza, cumple la función de organizar
hegemonias (homogeneidades) em la esfera pública de los países centrales, y domínios (heterogeneidades) a
través de las elites em los países o espacios periféricos. RODRIGUEZ. Revista de Investigaciones Literárias y
Culturales, p.41.
82
representado adequadamente pelo saber acadêmico porque esse saber é uma prática que
produz ativamente a subalternidade.”
172
Rodriguez mantém diálogo direto com o que aponta Silviano Santiago, em seu texto,
O entre lugar do discurso latino americano, no qual, o crítico refere que a maior contribuição
da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de
unidade e de pureza onde o elemento híbrido reina. Aponta Santiago:
Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão ao
código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a
expressão - ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de
clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana.
173
Local esse que acreditamos ser ocupado por Rodrigo S. M. ao tentar contar a história
da pobre moça nordestina Macabéa, e mesmo sabendo de seu fracasso enquanto escritor, ele
tenta sua última cartada para deixar algo à sociedade.
Continuando com as observações de Silviano, que contribuem sobremaneira para o
nosso trabalho, a América transforma-se em cópia, simulacro que se quer mais e mais
semelhante ao original, quando sua originalidade não se encontraria na cópia do modelo
original, mas em sua origem, apagada completamente pelos conquistadores. Ou seja,
encontramos nas palavras de Rodriguez e Santiago, que o subalterno (colônia) está sempre à
margem da produção cultural da metrópole pensante (hegemônica).
Santiago resume bem a agonia daqueles que ocupam o lugar a margem e sofrem com a
crítica que está atravessada pela força européia e americanista:
Tal discurso reduz a criação dos artistas latino-americanos à condição de obra
parasita, uma obra que se nutre de uma outra sem nunca lhe acrescentar algo de
próprio; uma obra cuja vida é limitada e precária, aprisionada que se encontra pelo
brilho e pelo prestigio da fonte, do chefe da escola.
174
172
BEVERLY. Subalternidad y representacíon, p.23.
173
SANTIAGO. Uma literatura nos trópicos, p.26.
174
SANTIAGO. Uma literatura nos trópicos, p.18.
83
Voltamos, agora, para o porquê de encararmos Rodrigo S. M. como um intelectual
subalterno. Acreditamos que Rodrigo S. M. não alcançou seu lugar desejado, ele ainda está
periférico com relação aos escritores da literatura nacional, escreve em um momento histórico
de perseguição e repressão, em que existe falta de perspectiva e desamparo intelectual.
Podemos evidenciar tal reflexão na seguinte passagem: “[...] ouço passos cadenciados na rua.
Tenho um arrepio de medo.”
175
Embora o medo de que Rodrigo fala não o limitou a escrever
o que pensava sobre a questão social e cultural que marcava o País no período de regime
militar.
Entendemos que o escritor-personagem está fora do cânone, daí o porquê de o
caracterizarmos como subalterno, pois se o pensássemos como aquele que está silenciado, a
exemplo de Macabéa, estaríamos nos contradizendo. Para nós, Rodrigo fala sobre uma
subalterna, tenta colocar-se no lugar dela e se limita, humildemente, a “contar as fracas
aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela.”
176
Para Rodrigo S. M:
[...] desconfio que toda essa conversa é feita apenas para adiar a pobreza da história,
pois estou com medo. Antes de ter surgido na minha vida essa datilógrafa, eu era um
homem até mesmo um pouco contente, apesar do mau êxito de minha literatura.
177
Ciente de sua incapacidade de ser um escritor reconhecido, Rodrigo coloca-se no
mesmo lugar subalterno que Macabéa ocupa, dizendo: “É o seguinte: ela como uma cadela
vadia era teleguiada exclusivamente por si mesma. Pois se reduzira a si. Também eu, de
fracasso em fracasso, me reduzi a mim [...]”
178
Continua Rodrigo: “Escrevo por não ter nada
a fazer no mundo: sobrei e não há lugar para mim na terra dos homens.”
179
175
LISPECTOR. A hora da estrela, p.20.
176
LISPECTOR. A hora da estrela, p.21.
177
LISPECTOR. A hora da estrela, p.17.
178
LISPECTOR. A hora da estrela, p.18.
179
LISPECTOR. A hora da estrela, p.21.
84
O escritor nos a entender que ele também não ocupa um lugar no centro, por
extensão, podemos pensar, criticamente, que Lispector procura aludir à temática da escrita
feminina, em que a mulher sempre esteve subalterna perante a hegemonia masculina, tanto na
literatura nacional quanto mundial. Ao analisarmos a obra por esse prisma, encontramos uma
escritora mulher e sem “lacrimejar piegas,” a história da ante-heroína de dezenove anos e sem
resquício aparente de novela romântica, é uma história explícita, real, nua e crua, que não
permite que ninguém tenha piedade da protagonista. “Só eu, seu autor, a amo.”
180
Nas palavras de Silviano Santiago, a leitura do livro de Lispector pode ser vista “como
a mais alta traição ao que a autora tinha inaugurado na literatura brasileira, mas pode também
ser dado como uma gargalhada na cara da tradição afortunada.”
181
Para nós, Macabéa é o exemplo vivo da subalternidade, uma personagem que não tem
voz nem lugar em sua própria história e Rodrigo S. M., ao tentar ocupar o posto dessa
resistente raça anã teimosa, subalterniza-se a ponto de dizer que não tem lugar na sociedade:
“Não tenho classe social, marginalizado que sou. A classe alta me tem como um monstro
esquisito, a média com desconfiança de que eu possa desequilibrá-la, a classe baixa nunca
vem a mim.”
182
Talvez seja por isso que o subalterno nunca poderá ser representado;
primeiro, porque o outro não pode ocupar seu lugar e, segundo, porque o subalterno não pode
ser representado por um saber acadêmico, pois tal discurso produz ativamente a
subalternidade.
Parece-nos que, por toda a narrativa, Rodrigo tenta nos dizer o quanto seu trabalho,
enquanto escritor, é falho, passagens como “se minha pobreza permitir, limito-me
humildemente.” Talvez por isso mesmo, o escritor-personagem diga: “E eis que fiquei agora
receoso quando pus palavras sobre a nordestina,”
183
pois ele sabe o quanto é difícil falar por
180
LISPECTOR. A hora da estrela, p.34.
181
SANTIAGO. O cosmopolitismo do pobre, p.15.
182
LISPECTOR. A hora da estrela, p.17
183
LISPECTOR. A hora da estrela, p.18.
85
alguém ou tentar representá-lo, diálogo direto com o que propõe os estudos subalternos ao
tocar na temática da representação como altamente produtora de subalternidade.
De todo o exposto sobre a temática do posicionamento crítico da intelectual Lispector,
o terceiro capítulo, desta dissertação, explorará a hipótese de que a obra A hora da estrela é
uma espécie de biografia ficcional da escritora, o que culminará na relação vida versus obra,
buscando a aproximação e o enfrentamento entre Clarice e suas personagens subalternas,
Macabéa e Rodrigo S.M.
86
CAPÍTULO III
UMA BIOGRAFIA (AUTO) FICCIONAL
DE CLARICE LISPECTOR
[...] se a produção de Clarice Lispector ocupa hoje um lugar indiscutível no cenário
da literatura brasileira e mundial, entendemos que tal produção não nos permite
fazer as leituras críticas mais variadas possíveis, como também convida-nos a
revisitar, criticamente, a própria crítica a ela instituída. Levando-se em conta,
sempre, o fato de que vida e obra se dizem e se completam, mesmo que de forma
fluida e escassa, tanto quanto a própria imagem que Clarice procurou nos legar no
decorrer e ao cabo de seu projeto literário. NOLASCO. Restos de ficção, p. 200.
87
3. Relação vida x obra em A hora da estrela
Da vida à obra e do texto da ficção ao texto da vida, a imagem do próprio, tanto da
escritora quanto do texto, é rasurada, como forma de lembrar-nos, talvez, de que a
propriedade do que quer que seja em Clarice Lispector está sempre aquém da vida e
além da ficção. NOLASCO. Restos de ficção, p. 200.
No dia 10 de dezembro de 1920, na cidade de Tchetchelnik, uma aldeia da Ucrânia,
pertencente à Rússia, nasce Haia Lispector, a terceira filha do casal Pinkouss e Mania
Lispertor, para compor, juntamente com suas irmãs, Leia e Tânia, a família Lispector. O
nascimento ocorre durante a viagem de emigração da família em direção à América, uma vez
que os pais, judeus que moravam em Savran, decidem emigrar, três anos após a Revolução
Bolchevique, de 1917, acuados por sucessivas guerras internas e constante perseguição anti-
semita.
Em março de 1922, a família Lispector chega ao Brasil, trazida pelo navio Cuyabá, à
cidade de Maceió. No Brasil, adotam novos nomes por iniciativa do pai Pinkouss, e Haia
passa a ser chamada de Clarice. É oportuno contar um pouco da história do primeiro nome de
Lispector para, daí, mais adiante, traçar algumas reflexões importantes sobre A hora da
estrela.
Haia, em hebraico, significa vida ou clara e que, de acordo com Nolasco:
A pequena que nascera trazia em seu nome a esperança de um futuro melhor para a
família judia que emigrava pelo mundo e também a promessa de curar a mãe de
doença. Se a esperança se cumpriu com a família chagando e se instalando em terras
brasileiras, o mesmo não aconteceu com a mãe, que fica cada vez mais enferma,
vindo a falecer poucos anos depois.
184
Observa-se, ainda na esteira de Nolasco, que Lispector sempre procurou ocultar tal
informação sobre seu nome, a escritora “procurou, a todo custo, esconder sua condição de
judia, ou, pelo menos, não tratou da questão; evitou, o quanto pode, falar de sua mãe, como
184
NOLASCO. Restos de ficção, p.17.
88
forma de esconder seu estrangeirismo.”
185
Entretanto, cremos que nada disso adiantou, pois,
como mostraremos neste capítulo, a relação vida x obra fica latente na escrita de Lispector, no
qual, “o fato de pertencer àquele passado fez com que o mesmo continuasse ensombrando sua
vida e sua escrita, por meio de algumas imagens e gestos da autora que acabaram tendo efeito
contrário.”
186
Para entender melhor as facetas que compõem o trabalho de Lispector na produção da
obra e, por extensão, confirmar nossa hipótese de que A hora da estrela corresponde à
biografia autoficcional da autora, recorremos ao que a teoria da crítica biográfica tem a nos
dizer.
Diana Klinger, em seu livro Escritas de si, escritas do outro (2007), explora o termo a
escrita de si, termo esse elaborado por Foucault, correspondendo não apenas a um registro do
eu, “mas que constitui o próprio sujeito, performa a noção de indivíduo”.
187
Contudo, o
caminho para esse autoconhecimento não é o da história, pois como afirma Michael Foucault,
“a história nos cerca e delimita; não diz o que somos, mas aquilo de que estamos em vias de
diferir; não estabelece nossa identidade, mas a dissipa em proveito do outro que somos.”
188
Continuando com as contribuições de Klinger, é necessário atentar para o fato de que
toda contemplação da vida está ligada a uma rede de relações sociais, por essa razão, a escrita
de si passa, necessariamente, pela escrita do outro. Deve-se entender que apesar de um relato
expressar uma época e uma sociedade, ele não é capaz de compor uma identidade; por outro
lado, não é possível se pensar um eu solitário, fora de sua rede de comunicação.
Miguel Chaia, no artigo “Biografia: método de reescrita da vida,” aponta que “a
expressão artística, na qual o sujeito tenciona ao máximo a individualidade para compreender
a realidade, a si mesmo e ao outro, configura-se como a mais contundente possibilidade
185
NOLASCO. Restos de ficção, p.18.
186
NOLASCO. Restos de ficção, p.18.
187
KLINGER. Escritas de si, escritas do outro, p.26
188
DELEUZE. Conversações, p.119.
89
biográfica.”
189
Portanto, a realização de biografias, do ponto de vista cultural, pressupõe uma
rede de relações sociais.
Daí podermos dizer, nessa relação vida x obra, que uma se constitui enquanto tal
imitando a outra, porque ambas nada mais são do que “tecidos de signos” imaginariamente
criado e vivido.
190
Barthes afirma, ainda, que o romancista inscreve-se em sua ficção como
uma personagem desenhada em sua escrita, fazendo de sua vida uma “fábula concorrente com
a obra.”
191
Por essa perspectiva, acreditamos, na esteira de Nolasco, que fazer da vida uma
fábula concorrente com a obra é mais do que ler a vida da escritora Lispector como um texto
(“bio-grafia”), mas perceber o valor em si de vida e obra e lê-las simultaneamente.
Se, em um primeiro momento, Clarice tenta esconder o traço biográfico, como
havíamos dito, ao longo de sua obra acontece o oposto, “agora é o ficcional que vai ficar
colado ao vivido,” até mesmo confundindo-se com ele. Edgar Nolasco afirma que:
A autora não fez de sua vida matéria para a ficção, como se tornou, de forma
singularíssima, seu próprio tema ficcional. Muitos de seus textos, por exemplo, vão
ter como pano a memória da infância vivida, e de suas reminiscências para a
construção de sua ficção. Nessa visita ao passado, tentativa de reconstituir fatos
que ficaram perdidos na sua história pessoal, ficcionaliza extrapolando, em muito, os
limites do acontecido.
192
Nesse sentido, Eneida Maria de Souza constata que:
Ao se considerar a vida como texto e suas personagens como figurantes deste
cenário de representação, o exercício da crítica biográfica irá certamente responder
pela necessidade de diálogo entre a teoria literária, a crítica cultural e a literatura
comparada, ressaltando o poder ficcional da teoria e a força teórica inserida em toda
ficção.
193
189
CHAIA. Biografia: método de reescrita da vida, p.80.
190
BARTHES, apud NOLASCO. Restos de ficção, p.22.
191
BARTHES, apud NOLASCO. Restos de ficção, p.22.
192
NOLASCO. Restos de ficção: a criação biográfico-literária de Clarice Lispector, p.78 - 79.
193
SOUZA. Crítica cult, p.119 - 120.
90
É a partir dessa experiência de vida que salta aos olhos na escrita de Lispector que
procuramos apresentar como a construção da biografia ficcional da autora, almejando, assim,
contar a história da pobre moça Macabéa e seu idealizador Rodrigo S. M., na história da
escritora Clarice Lispector.
Logo de início, deparamo-nos com Rodrigo, justificando como conhecia a história da
pobre moça Macabéa: “É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance o
sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina.”
194
E continua trazendo à tona uma
referência biográfica: “Sem falar que eu em menino me criei no Nordeste. Também sei das
coisas por estar vivendo.”
195
Podemos encontrar, aí, a tentativa de Lispector de esconder seu
passado humilde enquanto filha de imigrantes no Nordeste brasileiro, mas ela nos deixa
escapar isso se levarmos em consideração sua biografia, como já exposto no início.
Em outra passagem:
Pretendo, como insinuei, escrever de modo cada vez mais simples. Aliás o
material de que disponho é parco e singelo demais, as informações sobre os
personagens são poucas e não muito elucidativas, informações essas que
penosamente me vêm de mim para mim mesmo [...]
196
Percebemos, por essas palavras, que Lispector procura buscar, em sua memória, em
seu passado, dentro de suas relações mais íntimas, as informações necessárias para construir a
narrativa da pobre moça, que, por hora, tentou esconder durante sua produção, mas que, em A
hora da estrela, emergiu como uma válvula de escape. De acordo com Rodrigo: “O que me
proponho contar parece fácil e à mão de todos. Mas a sua elaboração é muito difícil. Pois
tenho que tornar nítido o que está quase apagado e que mal vejo.”
197
Assim, é por meio da
escrita biográfica que a ficção produz a vida de um escritor ou permite que esta seja relida na
194
LISPECTOR. A hora da estrela, p.12.
195
LISPECTOR. A hora da estrela, p.12.
196
LISPECTOR. A hora da estrela, p.14.
197
LISPECTOR. A hora da estrela, p.19.
91
ficção. E os traços biográficos que constituem a vida do escritor são de extrema importância,
devendo ser tomados como parte desse conjunto que redesenha vida e obra.
Em um trecho de uma carta de Lispector, ao então Presidente da República, Getúlio
Vargas, de 3 de junho de 1942, ela solicita dispensa do prazo de um ano que se exigia para a
obtenção da naturalização:
Quem lhe escreve é [...] Uma russa de 21 anos de idade e que está no Brasil 21
anos menos alguns meses. Que não conhece uma só palavra de russo, mas que
pensa, fala, escreve e age em português, fazendo disso sua profissão e nisso
pousando todos os projetos do seu futuro, próximo ou longínquo.
198
Lispector continua, afirmando que “o que tudo fiz tinha como núcleo minha real união
com o país e que não possuo, nem elegeria, outra pátria senão o Brasil.”
199
Daí podermos
observar o quanto a temática nacional sempre ocupou lugar de destaque na produção da
escritora, a exemplo da seguinte citação:
Desde que me conheço o fato social teve em mim importância maior do que
qualquer outro: em Recife os mocambos foram a primeira verdade para mim. Muito
antes de sentir "arte", senti a beleza profunda da luta. Mas é que tenho um modo
simplório de me aproximar do fato social: eu queria era “fazeralguma coisa contra
a injustiça social, (como se escrever não fosse fazer), por mais que a incapacidade
me doa e me humilhe. O problema da justiça é em mim um sentimento tão óbvio e
tão básico que não consigo me surpreender com ele e, sem me surpreender não
consigo escrever.
200
Com base no exposto, Edgar Cézar Nolasco lembra-nos que “a literatura de Clarice
erige-se apontada para a insatisfação do mundo. Movida por uma técnica pessoal, a linguagem
clariciana tenciona a realidade, no sentido de se exaurir dentro do texto.”
201
Na esteira de
Nolasco, Rodrigo e Lispector nos dão a entender que Macabéa é a própria “realidade”, sem
enfeite nenhum. A realidade nua e crua exposta em uma obra singular que fecha o projeto
198
LISPECTOR, apud Gotlib. Clarice fotobiografia, p.147.
199
LISPECTOR, apud Gotlib. Clarice fotobiografia, p.147.
200
LISPECTOR. A hora da estrela, p.25.
201
NOLASCO. Restos de ficção, p.45.
92
literário de Lispector e nos faz enxergar as mazelas sociais de nosso País. Daí
compreendermos a necessidade, quase desesperada de Rodrigo S. M., quando diz precisar
falar da nordestina, senão sufocaria, que ela o acusa e o meio de ele se defender é escrever
sobre ela. De acordo com Antonio Candido, “a brutalidade da situação é transmitida pela
brutalidade do seu agente (personagem), ao qual se identifica a voz narrativa, que, assim,
descarta qualquer interrupção ou contraste crítico entre narrador e matéria narrada.”
202
Percebemos que, ao criar Macabéa para se mostrar, Rodrigo S. M. tira tudo de si e
enfatiza sua decadência enquanto ser social. É aí que encontramos a sobreposição de autorias,
igualmente empregada para colocar em evidência aquele que fala e, por sua vez, denunciando
sua perspectiva ou o lugar dessa fala.
Mais do que expor as mazelas da sociedade, o discurso de Lispector está preocupado
em tocar na ferida aberta desse País, onde há milhões de brasileiros que estão em condição de
penúria e abandono e, por extensão, como essas pessoas foram retratadas na literatura.
Como já dito anteriormente, Lispector sempre procurou esconder seu traço estrangeiro
ou, talvez, de alguém “fora do lugar”, mas, ao retomarmos a relação intrínseca existente entre
a personagem Macabéa e a família de Lispector, podemos vê-la como uma alegoria do
passado sofrido da família da escritora. A travessia retirante de Macabéa espelha, de forma
especular, tanto a travessia bíblica dos Macabeus,
203
quanto a travessia pessoal da própria
escritora Clarice Lispector, reconhecemos que a travessia biográfica da escritora se
encontra, historicamente falando, dentro da travessia dos judeus/macabeus, ou seja,
enfatizamos que o livro, A hora da estrela (1977), pode ser lido como a biografia ficcional da
escritora, posto que sua narrativa traz, em pano de fundo, a história da família Lispector
metaforizada na história dos foragidos macabeus judeus, exemplo da passagem: “Juro que
este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silencia. Este livro é
202
CANDIDO. A educação pela noite, p.212.
203
Ver BÍBLIA SAGRADA, p.855-511: Macabeus (livro I e II)
93
uma pergunta.”
204
Poderíamos estender tal fotografia, para a fotografia da vida de Lispector,
fotografia do real, de uma imagem nua e crua da sociedade brasileira, diria mais, de um auto
retrato da pobreza do povo brasileiro. De acordo com Rodrigo S. M.: “Ainda bem que o que
vou escrever já deve estar na certa de algum modo escrito em mim. Tenho é que copiar.”
205
204
LISPECTOR. A hora da estrela, p.17.
205
LISPECTOR. A hora da estrela, p.17.
94
3.1 Rodrigo S.M. é Macabéa que é Clarice Lispector
[...] meu poder é só mostra-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve por causa da
esvoaçada magreza. Clarice Lispector, A hora da estrela, p.19.
Continuemos, agora, com mais uma questão: Em que medida Rodrigo S. M. é
Macabéa que, por sua vez, é Clarice Lispector? Para responder tal questionamento,
recorremos aos livros: de Edgar Cezar Nolasco, intitulado Caldo de Cultura: a hora da estrela
e a vez de Clarice Lispector e Clarice: uma vida que se conta, de Nádia B. Gotlib que nos
ajudam a refletir melhor sobre o bio de Lispector.
Em A hora da estrela, salvo as poucas diferenças, vemos que a escritora constrói o seu
próprio retrato bioficcional. Tal retrato é constituído de uma face dupla; uma, representada
por Rodrigo S. M. e, a outra, o reflexo de Macabéa, ou seja, é a própria Lispector se tecendo e
destecendo por meio das biografias do autor-narrador-personagem e da anti-heroína. Nas
palavras de Dalcastagnè, trata-se de uma espécie de “testamento literário, que estreita as
fronteiras entre criação e vida a partir de um posicionamento ético.”
206
Nolasco, ao tratar do
posicionamento do crítico literário contemporâneo, aponta que:
O critico biográfico não é aquele que decifra o enigma do texto, ou do autor, mas
aquele que sabe articular o texto com o paratexto, a ficção com a não-ficção, a obra
com a vida e vice-versa, na tentativa detetivesca de alargar a produção daquilo a que
chamamos leitura. A escrita do imaginário biográfico relembra os fatos da vida em
seu processo e os reinventa, dando a eles uma marca de verdade até então não
percebida.
207
Ao tratarmos de crítica biográfica, não poderíamos deixar de lado as contribuições de
Eneida Maria de Souza, que se encontram no texto “Notas sobre a crítica biográfica”, de
acordo com Souza, “a crítica biográfica, por sua natureza compósita, englobando a relação
complexa entre obra e autor, possibilita a interpretação da literatura além de seus limites
206
DALCASTAGNÈ. Entre fronteiras e cercado de armadilhas, p.36.
207
NOLASCO. Restos de ficção, p.88.
95
intrínsecos e exclusivos, por meio da construção de pontes metafóricas entre o fato e a
ficção.”
208
Para Souza, os fatos da experiência, ao serem interpretados como metáfora e como
componentes importantes para a construção de biografias, se integram ao texto ficcional sob a
forma de uma representação do vivido. Dessa forma, ao se considerar a vida como texto e
suas personagens como figurantes desse cenário de representação, o exercício da crítica
biográfica irá, certamente, responder pela necessidade de diálogo entre a teoria literária, a
crítica cultural e a literatura comparada, ressaltando o poder ficcional da teoria e a força
teórica inserida em toda ficção.
Na esteira de Souza, a articulação entre obra e vida desloca o lugar exclusivo da
literatura como corpus de análise e expande o feixe de relações culturais. Os limites
provocados pela leitura de natureza textual são equacionados em favor do exercício de
ficcionalização da crítica. Em suma, a crítica biográfica ocupa um entre-lugar (teoria/ficção-
documento/literatura), que permite que se construa a biografia ficcional do autor, feita pelo
leitor, que não deixa de ser do leitor, sendo esse nosso objetivo com relação à obra A hora da
estrela de Lispector.
De acordo com Nolasco, o fato de o livro A hora da estrela ter, por escritor-narrador,
o autor Rodrigo S. M., logo de início, remete-nos para a figura da escritora Clarice Lispector,
uma vez que o livro traz uma “dedicatória do autor” (na verdade, Clarice Lispector) que
metaforiza a relação entre ambos. Para representar tal relação, inicialmente, Nolasco escolhe a
expressão “nós somos um”, na qual se pode observar que, se nós somos um, logo Rodrigo S.
M. é Clarice Lispector, que é Macabéa metaforicamente.
Tal expressão também pode ser relacionada ao slogan do nosso governo atual, “Brasil
um país de todos”. Como levantado o debate, encontramos, ocupando o posto mais alto de
208
SOUZA. Crítica cult, p.111.
96
nosso País, alguém que, um dia, já passou fome, que saiu de um lugar subalterno e alcançou o
seu direito ao grito. Por essa perspectiva, cada cidadão, que também está à margem da
sociedade, pode se ver representado na figura do presidente; logo, se o Brasil é um País de
todos, todos somos um na figura do presidente. Todavia, estamos cientes da diversidade
partidária que constitui nossa sociedade e a oposição existente entre elas, e que nossa leitura
procura não fazer alusão a favor ou contra a política do País e, embora esse debate nos agrade,
não teríamos como explorá-lo com a profundidade que ele merece neste momento.
Nas páginas iniciais de A hora da estrela, momento em que o narrador se prepara para
começar a contar a história de Macabéa, Rodrigo S. M. nos apresenta um retrato mal falado de
sua figura, enquanto escritor, intelectual. O escritor-personagem começa por apresentar-se
dizendo que, “em menino, se criou no Nordeste,”
209
como também Macabéa e Olímpico. Daí
nossa primeira relação que une Lispector e seus personagens, uma vez que é sabido que
Lispector e sua família vieram para o Brasil e passaram parte da vida no nordeste. Segundo
Lispector:
E a história é a seguinte: nasci na Ucrânia, terra de meus pais. Nasci numa alteia
chamada Tchechelnik, que não figura no mapa de tão pequena e insignificante.
Quando minha mãe estava grávida de mim, meus pais estavam se encaminhando
para os Estados Unidos ou Brasil, ainda não haviam decidido: pararam em
Tchechelnik para eu nascer, e prosseguiram viagem. [...] De Kichinev a Galatz a
Bucarest, de Bucarest a Budapest, os prazos de permanência se esgotando,e, agora,
não dos Estados Unidos, como também do Brasil, para onde haviam apelado,
tardavam as cartas de chamada[...] As cartas do Brasil vieram, afinal.
210
Ao tratar da família de Lispector, lembramos, biograficamente, que a própria escritora
teve uma infância difícil, não que tenham passado fome, mas, em virtude de melhores
condições de trabalho para o pai, a família se mudou para Recife e, mais tarde, para o Rio de
Janeiro. Não obstante, lembramos que essa é a mesma trajetória da personagem Macabéa que,
assim que perde os pais no sertão de Alagoas, muda-se com a tia beata para Maceió, vindo,
209
LISPECTOR. A hora da estrela, p.18.
210
LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice fotobiografia,p.34-43.
97
mais tarde, para o Rio de Janeiro. Temos, aqui, o ponto de partida para a construção da
biografia ficcional de Lispector.
Não é escusado lembrar que, no prefácio da obra, escrito por Eduardo Portela,
encontramos o seguinte questionamento: “Devemos falar de uma nova Clarice Lispector,
“exterior e explícita”, o coração selvagem comprometido nordestinamente com o projeto
brasileiro?”
211
Tal questionamento nos permite observar, na esteira de Portella, que Lispector
sempre foi uma escritora brasileira, capaz de transpor o simplesmente figurativo ou apenas o
folclórico, e pedir um “Brasil desde dentro,”
212
em que “a narrativa de agora se amplia numa
alegoria regional, que é também a alegoria da esperança possível.”
213
Esperança, essa, que
move centenas de milhares de pessoas, aquela resistente raça ateimosa, a deixarem sua
terra para tentar a sorte no ambicionado clã do sul do país. Confirma as palavras de Portela a
afirmação de Lispector em entrevista ao Museu da Imagem e do Som no dia 20 de outubro de
1976, ao falar de Macabéa: “[...] ela é nordestina e... eu tinha que botar para fora um dia o
nordeste que eu vivi.”
214
Edgar Cezar Nolasco resume de forma pertinente o que objetivamos apresentar:
No início de seu projeto literário, o ficcional seria o lugar onde o traço biográfico se
escondia; no decorrer desse projeto acontece justamente o oposto: agora é o
ficcional que vai ficar “colocado ao vivido, confundindo-se com ele. O vivido
passa a ser ficção.
215
O pesquisador afirma que, em se tratando de Clarice Lispector, não se pode esquecer
do fato de que ela fez de sua vida matéria para sua ficção. Em carta, à própria autora, sobre o
livro Água viva (nessa época intitulado Objeto gritante), José Pessanha observou:
211
PORTELLA, apud LISPECTOR. A hora de estrela, p.9.
212
PORTELLA, apud LISPECTOR. A hora de estrela, p.9.
213
PORTELLA, apud LISPECTOR. A hora de estrela, p.9.
214
LISPECTOR, apud GOTLIB. Clarice fotobiografia, p.439.
215
NOLASCO. Restos de ficção, p.78.
98
E, se como você mesma sabe, fazer literatura nunca significou para você o que
geralmente significa para o literário “profissional” – é seu modo de sobreviver
adiando abismos, como Xerazade que inventa estórias para adiar com palavras as
ameaças aquela inerência do escrito ao vivido talvez crie impasses de que você
terá que ter consciência para superar (quer do lado vivido, quer do lado da atividade
literária).
216
Continua Pessanha: “Tento me explicar melhor: você se transcendia e se ‘resolvia’ em
termos de criação literária: agora a ‘literatura’ desce a você e fica (ou aparece) como imanente
ao seu cotidiano; você é seu próprio tema”. Asseveram as palavras de Pessanha, a biógrafa
Nadia Gotlib, quando afirma que: “embora afirme não ser essa a sua intenção, insere,
também, um passado seu, inclusive literário, através de textos diversos que produziu e
publicou anteriormente: contos, crônicas, capítulos ou trechos de romance.”
217
Podemos entender perfeitamente porque o narrador carrega consigo toda a culpa do
mundo. E por que ele não consegue nunca se afastar do seu personagem central, a moça, ou
de seu personagem predileto, a morte, culminando com aquela constatação final, onde os três
se reúnem e se abraçam para sempre: “A moça me matou.”
218
Dessa forma, vemos que, tanto a escritora Lispector, Rodrigo S. M. e Macabéa
ocupam um lugar ainda à margem da cultura hegemônica, como levantamos anteriormente.
Tomando as palavras de Santiago, encontramos: “o escritor latino-americano nos ensina que é
preciso libertar a imagem de uma América Latina sorridente e feliz, o carnaval e a fiesta,
colônia de férias para turismo cultural.”
219
De todo o exposto, Clarice Lispector, com sua última produção, vira do avesso seu
projeto anterior tradicional e moderno, por excelência, voltando-se contra qualquer visada de
binarismo hegemônico, centrada na lógica do sistema dominante imperante. Pelo contrário, a
luta que embasa o projeto intelectual da escritora Clarice Lispector e do escritor Rodrigo S.
M., bem como de todos seus respectivos personagens, principalmente de Macabéa e de
216
PESSANHA, apud NOLASCO, Clarice Lispector: nas entrelinhas da escritura, p.24.
217
GOTLIB. Clarice: uma vida que se conta, p.375.
218
LISPECTOR. A hora da estrela, p. 27.
219
SANTIAGO. Literatura nos trópicos, p.26.
99
Olímpico de Jesus, -se atravessada por uma lógica de dominação e subordinação,
contradição e negação que marca as identidades como subalternas.
Podemos dizer que, em A hora da estrela, a autora assinala o problema social
dicotômico entre elite/subalterno, subalternidade e hegemonia, propondo uma discussão
crítica da sociedade e da cultura brasileira como um todo, ao invés de tentar transcender, ou
escamotear tal problema.
É perfeitamente entendível o que diz Spivak, embora, de nosso ponto de vista, hoje, no
mínimo discutível, principalmente quando se leva em conta a heterogeneidade latino-
americana. Talvez a proposição da crítica indiana se aplique melhor à realidade cultural e
social da Índia. Mas, em se tratando da América latina, múltipla, heterogênea, misturada etc.,
queremos arguir que, na verdade, ainda não se deu conta de entender, de escutar como se
deveria as diferenças culturais, raciais, linguais, que pululam e embaralham qualquer
conceito, inclusive o de subalternidade, formalizado a priori. Nesse tocante, deve-se levar em
conta que a própria crítica latino-americana, às vezes, apresenta-se preconceituosa e
sumariamente excludente, principalmente quando não leva em consideração as diferenças de
línguas, de países e suas respectivas produções culturais na formalização dos conceitos que
melhor nos auxiliariam a pensar a própria América Latina.
100
CONCLUSÃO
A hora do subalterno na cultura brasileira
101
É preciso que se ouça o grito contido no silêncio.
Eduardo Portella, apud LISPECTOR, A hora da estrela, p.11.
Mais de 30 anos se passaram e a literatura de Lispector ainda tem muito a contribuir,
tanto para a teoria literária quanto para a reflexão de nossa cultua. Mesmo ao tratarmos de
uma escritora canônica, pertencente ao seleto grupo de escritores de nosso País, objetivamos,
aqui, dar nossa contribuição para uma nova leitura diante de uma obra magistral. Talvez fosse
necessário entender o tempo que se passou entre a morte de Lispector, a publicação do livro
em 1977 e o fim do regime militar, para que as pessoas pudessem ver na obra da autora o seu
posicionamento crítico com relação ao contexto.
Como vimos, na esteira do Grupo de Estudos Subalternos Sul Asiático e do Grupo
Latino Americano, os Estudos da subalternidade correspondem a uma visada teórica que
procura dar voz e lugar àqueles que estão excluídos da cultura hegemônica ou fora do mundo
letrado. O que chamamos a atenção, para este trabalho, não é apenas o fato de o subalterno
não poder falar, mas de ele não poder falar tudo o que pensa, ou que gostaria de dizer. Daí os
Estudos da Subalternidade nos auxiliarem a refletir sobre uma mudança política e teórica que,
realmente, represente o povo, o subalterno.
Levantamos o questionamento de até que ponto o subalterno é ouvido e reconhecido
em nossa literatura, e até que ponto o intelectual tem o direito de representar seres
marginalizados como eles se a sociedade em si não os ouve. Acreditamos que, mesmo
tratando de subalternidade, não podemos produzir a subalternidade e, ao mesmo tempo, nossa
língua não pode ser subalterna diante do colonialismo teórico europeu e americanista que tem
dominado nosso pensamento.
Dessa forma, acreditamos que a contribuição dos estudos da subalternidade nos ajude
a romper com a barreira histórica de uma hegemonia intelectual europeia que tem dominado a
102
cultura nacional e sul-americana e, por sua vez, aqueles que estão à margem do mundo letrado
possam ser ouvidos e seus lugares reconhecidos.
Mas até que ponto reconhecemos o subalterno em nossa cultura? Será que realmente
ouvimos o seu balbucio diante da pressão cotidiana que nos envolve? Questões como essas
estampam o quanto a obra de Lispector nos possibilita refletir sobre nosso papel enquanto
atuantes sociais e até onde cumprimos esse papel. Ao expor a precariedade da vida de
Macabéa e Olímpico, Lispector expõe nossa mesquinhez diante daqueles que estão a margem
da sociedade e o quanto somos subalternos frente àqueles que realmente questionam o status
quo.
Podemos, aqui, trazer o contexto nacional para refletir sobre tais questionamentos
levantados. Em primeiro plano, temos um regime militar que dita normas e procura controlar
a produção intelectual da nação; em segundo plano; encontramos uma obra que representa a
miséria e a subalternidade do povo brasileiro diante de sua incapacidade de viver em um País
todo feito contra o pobre, marginalizado.
A hora da estrela representa a hora de encararmos o subalterno brasileiro, e sua
cultura, expondo as barreiras da hegemonia cultural dominante e dando voz ou, pelo menos,
abordando a temática em um contexto social tão deturpado. De acordo com Lispector: “[...]
ouço passos cadenciados na rua. Tenho um arrepio de medo.”
220
Coube a Lispector revelar, por meio de sua própria história de vida, a história daqueles
que estão à margem da sociedade, sujeitos sociais concretos, mas que passam despercebidos
por aqueles que não podem enxergá-los, por estarem preocupados demais com seus afazeres.
Sujeitos subalternos, como Macabéa, “que na certa está tão viva como eu”
221
e podem ser
encontrados nas ruas, debaixo de pontes e sinais de trânsito, pedindo um pouco de dignidade.
Dessa forma, não é à toa que Lispector faz um pedido: “Cuidai dela porque meu poder é
220
LISPECTOR. A hora da estrela, p.20.
221
LISPECTOR. A hora da estrela, p.19.
103
mostra-la para que vós a reconheçais na rua, andando de leve por causa da esvoaçada
magreza.”
222
. Esperamos que tal pedido seja ouvido pelos governantes de nosso País para
que, um dia, o grito do subalterno seja ouvido.
De todo o exposto, procuramos discutir o conceito de subalternidade pela perspectiva
teórica proposta pelo Grupo Sul-Asiático e compartilhada pelo Grupo Latino-Americano de
estudos da subalternidade. Explanamos sobre a origem, desenvolvimento e objetivos dos
estudos da subalternidade e, por sua vez, objetivamos contribuir para a formação de uma fonte
bibliográfica para futuras pesquisas, pelo menos no âmbito da crítica brasileira sobre o
assunto, uma vez que só muito recentemente discute-se sobre tal conceito. Passamos, também,
pelo questionamento proposto por Spivak, em seu texto, “Os subalternos podem falar?”, e
chegamos à resposta que não, uma vez que o subalterno não consegue falar porque ele não
pode, visto estar silenciado diante da hegemonia cultural dos países que parecem, ainda,
desenvolver um colonialismo teórico diante dos países sul-americanos.
Ao tratarmos do intelectual Rodrigo S. M., personagem esse que narra a história da
pobre nordestina Macabéa, nós o posicionamos como um subalterno. Subalterno porque
falava de um lugar à margem, estava em um entre-lugar, pois, de acordo com ele mesmo, não
foi capaz de escrever uma obra reconhecida pelo cânone.
Procuramos contribuir para uma concepção que toma a produção intelectual de
Lispector, não mais como “alienada” e “hermética”, mas, sim, como uma escritora que
cumpriu seu papel social e cultural, transformando-se em uma intelectual muito além de seu
tempo, pois, “de fatos não como fugir.”
223
Em virtude de seu posicionamento crítico, a
intelectual contribuiu para a desmitificação e dissolução de ideologias utópicas com relação
ao intelectual brasileiro e latino-americano, vislumbrando, dessa forma, uma nova visão sobre
o perfil de intelectual, na contemporaneidade.
222
LISPECTOR. A hora da estrela, p.19.
223
LISPECTOR. A hora da estrela, p.16.
104
Por fim, exploramos a hipótese de que a obra A hora da estrela é uma espécie de
biografia ficcional da escritora Clarice Lispector, uma espécie de testamento literário” nas
palavras de Dalcastagnè, o que culminou na relação vida versus obra, aproximando o
enfrentamento entre a escritora e suas personagens Macabéa e Rodrigo S. M.
É oportuno dizer que Lispector, enquanto intelectual, esteve na condição e lugar de
exilada e marginalizada, pois suas produções culturais não respondem à lógica do
convencional, e sim ao risco da ousadia, à representação da mudança, ao movimento sem
interrupção, como aponta Edward Said. A escritora descentra o posto, a posição classista e
elitista que a figura do intelectual sempre ocupou na sociedade, aceitando o desafio de abrir
mão do lugar confortável resguardado pela tradição literária ao intelectual e apresentar-se
num lugar de margem. “Como é ruim ser paciente, como eu tenho medo de ser uma
"escritora" bem instalada, como eu tenho medo de usar minhas próprias palavras, de me
explorar...” Afirma Lispector.
Ao concluir este trabalho, retomamos as palavras de Rodrigo S. M., ao dizer que sabe
da história de Macabéa por estar vivendo, pois, quem vive, sabe, mesmo sem saber: “assim é
que os senhores sabem mais do que imaginam e estão fingindo de sonsos.”
224
Ou seja, ele
cobra de seu intelocutor-leitor e, por extensão, da sociedade como um todo, por saber da
existência dos marginalizados e por fingir que não sabe que eles existem.
Para Portella, A hora da estrela é:
[...] o corte grotesco- humano, demasiado humano, tão humano que i- expôs sem
complacência as lesões que a moça alagoana trazia no corpo e na alma. O retrato
sem retoque é a decidida renuncia ao sublime. O nordeste
conheceu o sublime
nas bandejas de prata dos banquetes coloniais.
225
224
LISPECTOR. A hora da estrela, p.18.
225
PORTELLA, apud LISPECTOR, A hora de estrela, p.11.
105
Dessa forma, encontramos uma Clarice Lispector realmente consciente de seu
processo criativo e do contexto social e cultural em que se insere, uma vez que a autora não
poderia ignorar como nunca ignorou os rumos da ficção brasileira atravessados por um
contexto de desamparo intelectual e falta de perspectivas, em virtude da opressão militar.
De acordo com Nolasco:
[...] com esse último “livrinho” publicado em vida a intelectual Clarice Lispector
passa a limpo a aula inaugural sobre o Brasil antes proferida por intelectuais de valor
indiscutível como Mario de Andrade, Euclides da Cunha e Guimarães Rosa. É do
Brasil e de suas mil e uma misérias, marcado por diferenças sociais gritantes e classe
cultural excludente, que ela profere seu grito tímido mas ousado.
226
Concluímos que, mesmo tendo de se transvestir de escritor homem-Rodrigo S.
(substantivo) M.(masculino),
227
e alegar que escritora mulher pode lacrimejar piegas,
Lispector alcança o seu direito ao grito, trazendo, na agenda, a lembrança de que Macabéa
não pertencia ao ambicionado clã do sul do País, mas que, apesar de tudo, pertencia a uma
resistente raça anã teimosa que um dia vai talvez reivindicar o direito ao grito. Ao dar vazão
e voz a figuras subalternas e marginais, em outras palavras, a figuras excluídas da sociedade e
da cultura dominante, A hora da estrela alegoriza a ornamentação que ilustra o enredo do
desenvolvimento da condição sociopolítico cultural do País.
Contudo, até onde o subalterno pode ser representado? Ou, até que ponto ele quer ser
representado? uma vez que, retomando as palavras de Spivak, subalterno é sempre aquele que
não pode falar, pois, se o fizer, já não o é.
Questionamentos como esses servem como mote para o desenvolvimento de futuras
pesquisas e estampam o quanto a obra clariciana tem a nos oferecer. Pretendemos, no entanto,
que o nosso trabalho tenha sido útil para elucidar questões inerentes aos estudos da
subalternidade e, por extensão, à obra de Lispector. Talvez, seja essa uma das novas
226
NOLASCO. Caldo de cultura, p.70.
227
Silviano Santiago foi quem primeiro chamou a atenção para tal denominação.
106
perspectivas que permita entender melhor o pensamento contemporâneo, o multiculturalismo,
hegemonia cultural e, assim, repensar o lugar do outro em nossa sociedade.
107
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