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P
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OMES DO
V
ALE
A MULHER NAS PIADAS
DE ALMANAQUE:
ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS E
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
B
ELO
H
ORIZONTE
Faculdade de Letras da UFMG
2009
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R
ONY
P
ETTERSON
G
OMES DO
V
ALE
A MULHER NAS PIADAS DE ALMANAQUE:
ESTRATÉGIAS DISCURSIVAS E
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
Dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Letras:
Estudos Linguísticos, da Faculdade de
Letras da Universidade Federal de Minas
Gerais, como requisito parcial para a
obtenção do título de mestre em
Linguística.
Área de concentração: Linguística do Texto
e do Discurso.
Linha de pesquisa: Análise do Discurso.
Orientador: Prof. Dr. Renato de Mello.
B
ELO
H
ORIZONTE
Faculdade de Letras da UFMG
2009
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A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
15
Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG
Vale, Rony Petterson Gomes do.
V149m A mulher nas piadas de almanaque [manuscrito] : estratégias
discursivas e representações sociais / Rony Petterson Gomes do Vale.
– 2009.
135 f., enc. : il. p&b, tab., fac-sims.
Orientador: Renato de Mello.
Área de concentração: Lingüística do Texto e do Discurso.
Linha de Pesquisa: Análise do discurso.
Dissertação (mestrado) Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Letras.
Bibliografia: f. 102-105.
Anexos: f. 106-113.
Apêndices: f. 114-135.
1. Análise do discurso – Teses. 2. Humorismo brasileiro – História e
crítica Teses. 3. Personagens Mulheres Teses. 4. Mulheres na
comunicação de massa Teses. 5. Imaginário Aspectos sociais
Teses. 6. Silêncio Teses. 7. Almanaques farmacêuticos Teses. 8.
Discurso humorístico – Teses. 9. Estratégia discursiva Teses. I. Mello,
Renato de. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de
Letras. III. Título.
CDD : 418
Dissertação apresentada em 07 de agosto de 2009 à Banca Examinadora constituída
pelos seguintes Professores:
____________________________________________________
Profª. Dra. Mônica de Souza Santos de Melo
Universidade Federal de Viçosa
____________________________________________________
Profª. Dra Rosane Santos Mauro Monnerat
Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Renato de Mello
Universidade Federal de Minas Gerais
_____________________________________________________
Coordenadora do Poslin
Profª. Dra. Maria Antonieta Cohen
Universidade Federal de Minas Gerais
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UTATO NOMǏNE
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ABǓLA NARRATUR
...*
____________________
* De que estás rindo? É a ti que se refere a história, apenas com o nome trocado. (Horácio, Sátiras, I,
versos 69-70 apud RÓNAI, 1980, p.15 – tradução do autor)
Para meus pais, Paulo e Lucy, que, mesmo nos momentos
mais complicados,não me deixaram desistir dos estudos.
Para meus irmãos, Paula e Léo, que estiveram comigo,
sempre que possível, não importando o lugar e nem a distância.
A
GRADECIMENTOS
Primeiramente agradeço a Deus, pois, nos momentos mais complicados da vida, é a Ele
que peço discernimento para continuar, para compreender minhas fraquezas, para
entender a frustração, a angústia e o medo de não conseguir.
Agradeço à minha família: meu pai Paulo, minha mãe Lucy, minha irmã Paula e meu
primo Léo. O apoio incondicional dessas pessoas, muitas vezes sem saber o que eu
estava realizando, me fez ver que há coisas ligadas ao amor que nunca vamos conhecer
(e é melhor que não as conheçamos mesmo).
Ao professor Renato. Muito mais do que um orientador e profissional responsável, uma
pessoa em que pude confiar (muitas vezes não entendendo seus métodos) e com a qual
sempre compartilharei os lauréis desse trabalho. Hoje em dia não existem muitas
pessoas assim.
A professora Mônica, sem a qual nunca teria entrado em contado com o mundo da
Análise do Discurso. Modestamente, considero esse trabalho também um
prolongamento dos estudos dessa grande pesquisadora que um dia fez uma aposta num
futuro pesquisador. Hoje podemos dizer que tal aposta se confirma.
A cada um dos professores que tive durante toda minha vida. Vocês fizeram com que eu
soubesse escolher tanto as coisas que queria ser, quanto das quais eu deviria me afastar.
Aos meus amigos e colegas acadêmicos. Vocês me mostraram que muitas vezes eu
estava longe daquilo que realmente precisava ser e fazer.
Aos meus alunos do segundo período de Direito (2009) da Faculdade Doctum. A cada
um de vocês agradeço de coração por manterem a minha mente no caminho que escolhi
para minha vida: ser pesquisador e professor. O olhar de vocês procurando entender o
universo da argumentação me fez ver o quanto tenho que melhorar, mas também o
quanto tenho a oferecer àqueles que buscam conhecimentos.
L
ISTA DE FIGURAS
F
IGURA
1 Publicidade de Ankilostomina Fontoura no Almanaque Costumes
e Curiosidades, 1939, p.28..............................................................
p.21
F
IGURA
2 Quadro comunicacional de acordo com Mello (2004; 2006) ......... p.41
F
IGURA
3 Esquema da mise en scène triádica ................................................ p.56
F
IGURA
4 Quadro comunicacional de acordo com Charaudeau (2008) .......... p.72
F
IGURA
5 Quadro comunicacional de acordo com Mello (2004; 2006) ......... p.75
F
IGURA
6 Almanaque Costumes e Curiosidade de 1939 – Capa .................... p.133
F
IGURA
7 Almanaque Capivarol 1955 – Capa ................................................ p.133
F
IGURA
8 Almanaque Biotônico 1961 – Capa .................................................
p.133
F
IGURA
9 Almanaque Brasil 1966 – Capa ...................................................... p.134
F
IGURA
10 Almanaque Biotônico 1970 – Capa .................................................
p.134
F
IGURA
11 Almanaque Renascim Sadol 1982 – Capa ..................................... p.134
F
IGURA
12 Almanaque Renascim Sadol 2002 – Capa ...................................... p.135
F
IGURA
13 Almanaque Fontoura 2004 – Capa ................................................. p.135
F
IGURA
14 Almanaque Renascim Sadol – Capa on-line .................................. p.135
R
ESUMO
A presente dissertação tem como foco central a análise do discurso humorístico,
buscando desvelar as estratégias discursivas utilizadas nas piadas de almanaques
farmacêuticos (AFs) e também as representações da mulher nelas presentes. Nela
continuamos a estudar os atos de comunicação, levando em conta a problemática da
relação entre a linguagem e o seu contexto socio-histórico de produção. Com esse
intuito, nossa análise toma como base o aparato teórico-metodológico fornecido pela
Teoria Semiolinguística e os apontamentos de Charaudeau (2006b) sobre a análise do
ato de comunicação humorístico. Com efeito, o percurso de análise por nós percorrido
parte das características textuais das piadas de AFs (brevidade, personagens, discurso
direto e discurso indireto, didascálias e técnicas), passando pela descrição dos elementos
que compõem a mise en scène (sujeitos, contratos, visadas discursivas, modalidades
enunciativas etc.) desses textos, até chegar a uma revisão das situações de comunicação
entre os AFs, os leitores e as personagens presentes nas piadas. Esse percurso fez
evidenciar não somente um desdobramento das instâncias da mise em scène das piadas,
mas também a possibilidade de confluência entre os sujeitos do ato de comunicação a
partir do reconhecimento da existência da instância enunciativa de natureza cambiante:
o alvo. Essa instância, que forma conjuntamente com o locutor e o destinatário a mise
en scène triádica do ato de comunicação humorístico, deixa à mostra como o leitor do
AFs é chamado a partilhar certos imaginários e representações sociodiscursivas ao
entrar em conivência com as visadas discursivas do sujeito humorista. Seguindo essa
linha de raciocínio, nossa análise tem o potencial de desvelar, além do discurso
humorístico (ele próprio considerado uma estratégia discursiva capaz de ocorrer em
qualquer ato de comunicação), outras estratégias que se fazem presentes nas piadas de
AFs, a saber: a presença de uma variedade de ethé para representar a mulher; o uso do
silêncio com base em diferentes procedimentos discursivos e linguísticos; e a
construção de TU
d
com características de terceiro (tiers).
R
ÉSUMÉ
La présente dissertation a comme but l'analyse du discours humoristique, le dévoilement
des stratégies discursives utilisées dans les plaisanteries d'almanachs pharmaceutiques
(AFs) et aussi des représentations de la femme y présentes. On y recherche les actes de
communication en remarquant la problématique de la relation entre le langage et son
contexte socio-historique de production. Pour la consécution de ces buts, on utilise
l'appareil théorique-méthodologique fourni par la Théorie Semiolinguistique et les notes
de Charaudeau (2006b) sur l'analyse de l'acte de communication humoristique. En effet,
on part des caractéristiques textuelles des plaisanteries d'AFs (brièveté, personnages,
discours direct et discours indirect, didascalies et techniques), on passe par la
description des éléments qui composent la mise en scène (sujets, contrats, visées
discursives, modalités énonciatives etc.) de ces textes, et on arrive à une révision des
situations de communication entre les AFs, les lecteurs et les personnages présents dans
les plaisanteries. Ce paracours met en évidence pas seulement un dédoublement des
instances de la mise en scène des plaisanteries, mais aussi la possibilité de convergence
entre les sujets de l'acte de communication à partir de la reconnaissance de l'existence
de l'instance énonciative de nature changeante : la cible. Cette instance, qui forme avec
le locuteur et le destinataire la mise en scène triadique de l'acte de communication
humoristique, laisse voir la façon dont le lecteur de l'AFs est appelé à partager des
imaginaires et des représentations socio-discursives au moment il partage les visées
discursives du sujet humoriste. Ainsi, notre analyse a le but de dévoiler le discours
humoristique (lui-même considéré une stratégie discursive capable de se produire dans
tout acte de communication), ainsi que d’autres stratégies présentes dans les
plaisanteries d'AFs, à savoir : la présence d'une variété d'ethé pour représenter la femme
; l'utilisation du silence sur la base de différentes procédures discursives et linguistiques
; et la construction de TU
d
avec des caractéristiques de tiers.
S
UMÁRIO
R
ESUMO
..........................................................................................................
09
R
ÉSUMÉ
..........................................................................................................
10
I
NTRODUÇÃO
..................................................................................................
13
C
APÍTULO
1 – A
LMANAQUES
,
MULHERES E PIADAS
.......................................
18
1.1.
Os almanaques farmacêuticos: origem e definição ......................................
19
1.1.2.
O papel histórico e social dos almanaques ...................................................
20
1.2.
A imagem da mulher nos almanaques ..........................................................
22
1.3.
As piadas e os discursos controversos ..........................................................
25
1.3.1.
As propriedades textuais das piadas de AFs .................................................
26
1.3.1.1.
As técnicas nas piadas de AFs ......................................................................
30
C
APÍTULO
2 T
EORIA
S
EMIOLINGUÍSTICA
, D
ISCURSO
H
UMORÍSTICO E
R
EPRESENTAÇÕES SOCIODISCURSIVAS
............................................................
38
2.1.
A Teoria Semiolinguística: noções gerais ..................................................
39
2.1.1.
O quadro comunicacional e o conceito de Discurso .....................................
39
2.1.2.
Estratégias Discursivas e conceitos correlatos .............................................
43
2.1.3.
Os modos de organização do discurso (MODs) ...........................................
48
2.2.
O discurso humorístico: características e categorias de análise ...................
53
2.2.1.
A mise en scène do ato humorístico ............................................................ 54
2.2.2.
Algumas categorias para análise do discurso humorístico ..........................
58
2.2.2.1.
Categorias do humor ligadas ao “jogo enunciativo” ................................... 59
2.2.2.2.
Categorias do humor ligadas ao “jogo semântico” .......................................
61
2.2.3.
Os efeitos possíveis do ato humorístico e as visadas discursivas .................
63
2.3.
Algumas considerações sobre os conceitos de representações e
imaginários sociodiscursivos ........................................................................
66
C
APÍTULO
3 A
NÁLISE DE PIADAS DE
AF
S
:
DESVELANDO ESTRATÉGIAS E
REPRESENTAÇÕES
...........................................................................................
70
3.1.
Revisão da situação de comunicação nos AFs e nas piadas .........................
71
3.1.1.
A situação de comunicação entre os AFs e seus leitores ..............................
71
3.1.2.
A situação de comunicação entre os AFs e as personagens .........................
74
3.2.
O discurso humorístico na piadas de AFs ....................................................
77
3.2.1.
A Teoria Semiolinguística e os procedimentos linguageiros nas piadas de
AFs .............................................................................................................
78
3.2.1.1.
Os procedimentos discursivos ......................................................................
78
3.2.1.2.
Os procedimentos linguísticos ......................................................................
81
3.2.2.
Os efeitos de humor e as visadas discursivas ...............................................
86
C
ONSIDERAÇÕES
F
INAIS
................................................................................
93
R
EFERÊNCIAS
.................................................................................................
102
A
NEXO
...........................................................................................................
106
A
PÊNDICE
A ..................................................................................................
114
A
PÊNDICE
B .................................................................................................. 120
A
PÊNDICE
C .................................................................................................. 123
A
PÊNDICE
D ..................................................................................................
127
A
PÊNDICE
E ...................................................................................................
132
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
13
I
NTRODUÇÃO
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
14
I
NTRODUÇÃO
Aprofundamento de nossos estudos anteriores
1
, determinamos como foco dessa pesquisa
a análise do discurso humorístico, buscando desvelar as estratégias discursivas
utilizadas nas piadas de almanaques farmacêuticos (doravante AFs) e também as
representações da mulher nelas presentes.
Esse trabalho continua a levar em consideração a mesma problemática da relação do ato
de linguagem com os aspectos socio-históricos que o circunscrevem. Ao pensar nos
AFs, levamos em conta a sua função histórica, social e cultural como divulgador de
discursos portadores de costumes e hábitos preconizados pela sociedade brasileira em
diferentes épocas, além da sua relação com o público e da grande tiragem de exemplares
durante o século XX.
No que se refere à representação da mulher, é interessante ressaltar a atenção e o
interesse dados a essa questão pelos AFs. A mulher é percebida pelos almanaques como
fração importante de seu público, o que se pode notar pela grande quantidade de textos
destinados a ela. Em vários momentos, é à dona-de-casa, à mãe e à esposa (ou à futura
esposa) que eles os AFs – se dirigem. Nesses textos, de acordo com Casa Nova (1990,
p.118) ... classifica-se a mulher, receita-se à mulher”. Isso pode se dar de muitos
modos: por meio de dicas para o bom funcionamento da casa, pelos conselhos de saúde,
de beleza, de como cuidar do marido e dos filhos, e, principalmente, da organização e
segurança do modelo de família burguesa adotada no Brasil a partir da segunda metade
do século XX (PARK, 1999, p.92-95).
Quanto às piadas, justificam a sua análise, além da sua função voltada para o lúdico e
para o lazer, o seu papel estruturante nos AFs. De fato, elas podem ser consideradas um
1
Cf. VALE, R. P. G. A mise en scène nas piadas: uma análise das cenas enunciativas do gênero piada sob
a perspectiva da Teoria Semiolinguística. In: Anais do III Simpósio Internacional sobre análise do
discurso. Belo Horizonte: Faculdade de Letras/UFMG, 2008.; VALE, R. P. G. Dos manuscritos à
internet: a evolução dos almanaques farmacêuticos. Signum: revista de estudos linguísticos. Londrina,
v.11, n.1, p.257-277, jul. 2008.; VALE, R. P. G. Ethos, piadas e personagens femininas: identificando as
representações da mulher. In: SEVFALE (Semana de Eventos da Faculdade de Letras), 8, 2008, Belo
Horizonte. (Apresentação de Trabalho/Comunicação oral).; VALE, R. P. G. A evolução da representação
feminina nos almanaques farmacêuticos. Viçosa: Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa da UFV,
2007a. 88f. Relatório de Iniciação Científica.;VALE, R. P. G. Almanaques farmacêuticos: gênero ou
suporte? 2007b. 69f. Monografia (Licenciatura em Língua Portuguesa) – UFV, Centro de Ciências
Humanas e Artes, Departamento de Letras, Viçosa.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
15
dos gêneros com maior frequência e constância nos AFs, a exemplo das publicidades e
dos calendários (VALE, 2007b). Outro fator importante em relação às piadas diz
respeito à sua estrutura textual e discursiva. Textualmente, a estrutura das piadas se
baseia principalmente na brevidade e na presença de variados tipos de técnicas ou
mecanismos linguísticos utilizados para a formação do efeito de humor.
Discursivamente, pode-se dizer que as piadas possuem uma organização que, além de
possibilitar a passagem de dois ou mais discursos simultaneamente, é construída
sobre uma elaborada relação entre diferentes instâncias enunciativas.
Com o objetivo de colocar em relação os AFs, as piadas e as representações sociais,
selecionamos trinta e sete piadas, presentes em nove almanaques farmacêuticos de
diferentes épocas
2
, que possuem como característica básica a presença de um mesmo
tema, a mulher. Esse tema pode ser percebido ora na forma de personagens, ora como o
assunto dos diálogos entre as personagens (cf. anexo). Esses diálogos, enquanto
encenações dos diálogos do cotidiano, estão ligados, ao mesmo tempo, às circunstâncias
simuladas e ao contexto histórico dos almanaques. Por isso, pretendemos também
considerá-los dentro da problemática discursiva que envolve os almanaques, as
representações sociais e, sobretudo, as estratégias discursivas.
Sabendo dessas características do corpus, necessitávamos de um aparato teórico-
metodológico que nos proporcionasse descrever, analisar e discutir como as estratégias
discursivas são elaboradas nos AFs. Para esse fim, selecionamos a Teoria
Semiolinguística de Patrick Charaudeau. Nessa teoria, o conceito de “discurso” é um
dos principais escopos das análises. Nesse conceito, Charaudeau (1983) propõe a
existência de duas mises en scènes: uma externa ao ato de comunicação, onde se
encontram componentes como os contratos de comunicação, as finalidades, as visadas
discursivas, imaginários sociodiscursivos, representações sociais, saberes etc.; e uma
interna, relacionada às formas de língua utilizadas no ato. Daí se dizer que essa teoria
traz em seu bojo categorias tanto de alcance teórico (voltadas para as questões
fundamentais ligadas ao discurso e ao contexto socio-histórico dos atos de
comunicação) quanto de caráter formal-descritivo da língua.
2
Essas piadas se encontram distribuídas em nove almanaques farmacêuticos representativos dos anos de
1939, 1955, 1961, 1966, 1970, 1982, 2002, 2004 e 2005. Para maiores detalhes, ver lista dos almanaques
utilizados neste trabalho (apêndice E).
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
16
Ainda sobre as particularidades do discurso por nós analisado, esse exigia novas
categorias que proporcionassem maiores esclarecimentos sobre o ato humorístico. A
resposta a essa exigência também veio das colocações oriundas da Teoria
Semiolinguística. Em Charaudeau (2006b), encontramos, além de uma série de
categorias que se destinam à análise e à descrição do discurso humorístico, uma
proposta de análise que se adéqua aos propósitos da Análise do Discurso, evitando
problemáticas como, por exemplo, questões psicológicas ligadas ao “fazer rir”. Assim,
tais preceitos e categorias, aliadas a outros da Teoria Semiolinguística como, por
exemplo, os Modos de Organização do Discurso e as visadas discursivas, constituem a
base do método de descrição e análise dessa pesquisa.
Selecionados o corpus e o aparato teórico-metodológico, passamos a determinar os
objetivos da pesquisa. De modo geral, buscamos realizar uma análise das principais
estratégias discursivas utilizadas para a construção e reprodução das representações
sociais da mulher nas piadas de AFs. Para isso, nossa proposta visa, a partir do estudo
das estruturas textuais das piadas, abrir caminho para um maior e melhor entendimento
da organização discursiva das mesmas. Com esse intuito, pretendemos examinar as
condições e as circunstâncias que determinam as instâncias de produção e, também,
engendrar hipóteses sobre as instâncias de recepção dos discursos veiculados nesses
textos, o que se através de uma descrição dos componentes presentes na mise en
scène das piadas, a saber: os sujeitos envolvidos direta ou indiretamente, os contratos de
comunicação estabelecidos, as visadas discursivas, as modalidades enunciativas, entre
outros.
Como podemos notar, os objetivos arrolados procuram atingir resultados que, muitas
vezes, tangenciam uns aos outros. Por isso, tais objetivos se encontram misturados e
distribuídos ao longo do trabalho sem uma ordem linear rígida.
Por outro lado, a organização de nosso trabalho possui sua própria ordem, a saber: no
capítulo um, dedicamos espaço especial à revisão da literatura sobre os objetos que
compõem o corpus, ou seja, reconstituímos o percurso de alguns estudiosos sobre os
AFs e a representação feminina, e sobre as piadas, discutindo o alcance dessas
contribuições para nossa análise.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
17
No capítulo dois, esboçamos as características principais da Teoria Semiolinguística, os
postulados para a análise e descrição do ato humorístico e as questões ligadas às
representações sociais e aos imaginários sociodiscursivos.
No capitulo três, apresentamos como o aparato teórico-metodológico da Teoria
Semiolinguística é aplicado à análise do corpus. A escritura desse último capítulo exige
um esclarecimento: procuramos construir nele uma apresentação da análise das piadas
sem o compromisso de levá-la à exaustão, ou seja, selecionamos as principais piadas
que poderiam exemplificar a trajetória da coleta
3
de dados. Essa coleta foi realizada
através de grades elaboradas a partir das categorias relativas a cada objetivo, sendo os
dados expostos em conjunto nas tabelas nos apêndices do trabalho. Essa escolha
metodológica se justifica pelo fato de que, enquanto textos discursiva e textualmente
heterogêneos, as piadas são fluidas à padronização e à classificação
4
, podendo muitas
vezes se mostrar com características semelhantes ou dessemelhantes e formar ou não
grupos.
Por último, nas considerações finais, procuramos verificar à quais estratégias
discursivas os resultados obtidos nos levam.
Acreditamos que, ao final desse trabalho, poderemos dar um pequeno avanço aos
estudos discursivos principalmente no que diz respeito ao discurso humorístico, por
meio da análise das piadas e das representações sociais da mulher presentes nos AFs.
3
Essa coleta de dados, por sua vez, como se poderá visualizar nos apêndices do trabalho, foi
pormenorizada, detalhada, constituindo material não somente de apoio, mas também comprobatório das
afirmações contidas no capítulo três.
4
De acordo com Possenti (2008, p.27), uma tentativa de classificação a partir dos mecanismos
linguísticos seria até possível, porém acabaria por falhar, uma vez que as piadas podem, muitas vezes,
acionar um ou vários mecanismos ao mesmo tempo.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
18
C
APÍTULO
1
A
LMANAQUES
, M
ULHERES
E
P
IADAS
Hoje tem bastante livro.
É livro pra jardim, é livro de nome, livro de receita.
Cada um fala de uma coisa. [...]
O almanaque não.
Ele tem de tudo.
Muita coisa pra se saber e usar.
Pra passar o tempo também.
(PARK, 1999, p.186)
Os livros não são feitos para acreditarmos neles, mas para serem submetidos a investigações.
Diante de um livro não devemos nos perguntar o que diz mas o que quer dizer...
(ECO, 1986, p.361)
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
19
1.1. O
S ALMANAQUES FARMACÊUTICOS
:
ORIGEM E DEFINIÇÃO
Surgidos na Europa do século XV
5
, os almanaques eram publicações periódicas que
traziam em seu interior vários textos: de diferentes tipos de calendários (dos dias, das
fases lua, das estações, das épocas de plantio, das festas sacras) a simpatias, poemas,
contos, crônicas de humor etc. No Brasil, eles surgiram na segunda metade do século
XIX, veiculando informações a respeito tanto de Portugal quanto das principais cidades
brasileiras. No final desse século e no início do XX, uma aproximação entre os
almanaques e os laboratórios possibilitou a criação dos primeiros almanaques
farmacêuticos em território nacional.
6
Esses almanaques mantinham a mesma diversidade de textos característica dos
predecessores europeus: calendários, horóscopos, receitas, curiosidades, biografias,
dicas, jogos, tirinhas, adivinhas, cartas enigmáticas, piadas, dentre outros. Além disso,
eram incluídas as publicidades que divulgavam os medicamentos produzidos pelos
laboratórios da época. Atualmente, mesmo sendo poucos os almanaques que resistiram
às mudanças tecnológicas
7
, essa estratégia que alia comércio, informação e lazer
continua a ser empregada.
A distribuição desses periódicos acontecia, na maioria das vezes, na forma brinde ao
final de cada ano nas farmácias e, para uma diminuição dos custos com a publicação, os
laboratórios, que, a princípio, eram os responsáveis por toda elaboração editorial (das
ilustrações à redação), imprimiam seus almanaques em material de baixa qualidade
5
Park (1999) assegura que registros de almanaques manuscritos (em formato de cordel) na Europa
mesmo antes do século XV, mas é a partir do século XVIII que os almanaques serão tomados como
gênero editorial. Correia e Guerreiro (1986) apontam que essa mudança dos almanaques manuscritos para
os impressos se concomitantemente ao advento da imprensa, sendo o primeiro almanaque impresso
datado do ano de 1455, na Alemanha. Em Portugal, ainda explicam Correia e Guerreiro (1986), o
primeiro almanaque é datado em 1496: o almanaque Perpetuum, que continha informações sobre
astrologia, profecias e agricultura. No século XIX, influenciados pelo cientificismo, os almanaques
passam a ter características editoriais semelhantes às enciclopédias, trazendo temas como questões sobre
saúde e crítica literária.
6
Alguns dos principais almanaques e laboratórios desse período: Pharol da Medicina (1887), laboratório
Gramado; Iza (1912), laboratório Kraemer; Biotônico (1920), laboratório Fontoura; Renascim Sadol
(1946), laboratório Catarinense.
7
Destaque para os almanaques Shelton e Renascim Sadol. Este mantém os mesmos elementos
característicos dos antigos almanaques, mas se diferencia destes por ser o primeiro a alcançar o ambiente
da internet com sua versão on-line. aquele é produzido especificamente com finalidade de se tornar
brinde, servindo diretamente à relação farmácia-cliente (VALE, 2007b).
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
20
(papel jornal) em um formato semelhante ao de livros de bolso (36 páginas em brochura
de 18 x 13 cm).
Embora garantissem o sucesso dos AFs como literatura de massa
8
, essas características
(distribuição gratuita, material de baixa qualidade, formato prático e conteúdo, ao
mesmo tempo, atemporal e temporal) também fizeram dos almanaques farmacêuticos,
como sugere Park (1999), um gênero menor no que diz respeito ao seu valor como
documento histórico, o que acarretou um certo desinteresse pela sua preservação em
bibliotecas.
1.1.2. O
PAPEL HISTÓRICO E SOCIAL DOS ALMANAQUES
Os almanaques exerciam um papel civilizador na sociedade brasileira durante as
primeiras cadas do século XX. De acordo com Ferreira (2001), eles realizavam uma
espécie de integração nacional ao alcançar tanto as áreas urbanas quanto as rurais das
regiões mais remotas do País. Desempenhavam o papel de guia e conselheiro junto às
comunidades mais humildes, levando uma conjunção de magia e medicina àqueles que
não tinham acesso a serviços médicos. Segundo Meyer (2001, p.131):
... o almanaque era dirigido ao camponês, ao lavrador, à pequena
burguesia rural, às classes desfavorecidas, que, não tendo um médico e
nem livros à disposição, procuravam no almanaque informações
médicas, além de outras instruções úteis e práticas.
Da citação acima, infere-se um esboço do público-alvo dos almanaques: sujeitos de
baixa escolaridade, carentes de informação e de instrução. Essas necessidades
conduziram os almanaques a desempenhar um outro papel: o político-pedagógico:
No Brasil do século XX, os almanaques farmacêuticos assumem, como
alguns de seus precursores europeus, a tarefa de educação sanitária e
moral do maior número de pessoas. [...] no contexto do Estado Moderno,
8
Segundo Park (1999), entre as décadas de 30 e 70, alguns AFs como o Biotônico e o Renascim
alcançaram tiragens de dois a três milhões de exemplares, o que era muito significativo se comparados à
precariedade de recursos de impressão e de distribuição de periódicos no Brasil nesse mesmo período.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
21
eles são igualmente os portadores de um projeto de reforma e de
civilização identificado ao destino da nação e, para alguns, da raça.
(CHARTIER, 1999, p.10)
Somando-se essa função pedagógica à divulgação de medicamentos, criava-se, nos
almanaques, um elo entre comércio, normas familiares e projetos de higienização. Isso
pode ser evidenciado nos textos que compõem os AFs. Dentre esses textos, merecem
destaque as publicidades. Estas utilizam o antimodelo
9
para convencer seu público, ao
mesmo tempo, do poder dos medicamentos ali anunciados e da importância de uma
mudança de hábitos na população. Como salienta Casa Nova (1996), os AFs, valendo-se
dessa estratégia, mostravam uma imagem de pessoas tristes e doentes (na maioria das
vezes, pessoas pobres e do campo), um homem, uma mulher e/ou uma criança
descalços, maltrapilhos, fracos e feios. Aconselhava-se o uso de algum tônico estomacal
(genericamente, os “biotônicos”) ou outro medicamento (como no anúncio da figura 1),
ou descrevia-se um método pelo qual essas pessoas poderiam se tornar mais saudáveis.
Logo depois, mostrava-se uma outra imagem agora com pessoas fortes, bonitas e
saudáveis
10
.
Figura 1
9
Como ensinam Perelman e Olbrechts-Tyteca (2005, p.413-419), um modelo de conduta ou de
comportamento particulares pode levar a fundamentar e a ilustrar uma regra geral, resultando, daí, ações
e/ou condutas inspiradas nesse modelo. Por outro lado, tão eficaz quanto o modelo, ... a referência a um
contraste, a um antimodelo” permite criar um afastamento dessas ações.
10
Na figura 1, notar o quadro menor à direita: “Agora ele é outro menino! — Forte, sadio e bem
disposto!”.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
22
Essa abertura para o uso de antimodelo nas publicidades de medicamentos se dá aliada a
outra característica importante dos AFs: a ausências de fontes nas quais se baseiam os
textos. Não havia muita preocupação com a veracidade científica das afirmações
contidas nos textos dos almanaques. Como explica Park (1999), os almanaques aliavam
crendice popular e cientificismo não dogmático. Eles misturam cristã com mitologia
zodiacal (os horóscopos), medicina popular (as simpatias) com medicamentos de
laboratórios, procurando proporcionar felicidade e saúde a uma população carente de
médicos e de livros. O que importava era entreter, informar e, de certa maneira,
(re)formar a nação brasileira para o novo momento do país.
1.2. A
IMAGEM DA MULHER NOS ALMANAQUES
A mulher pode e deve fazer sport; andar sozinha; estudar nas universidades; trabalhar nos escriptorios;
mas pode e deve também conservar-se em tudo e antes de tudo – mulher. A sua maior força é a fraqueza,
o seu maior encanto a doçura, o seu maior atractivo a delicadeza. Os homens gostam de se sentir
superiores, mais fortes e protectores. Seja a mulher suave, simples, attenciosa e delicada
11
.
Por um lado, reiteram-se os papéis tradicionais que a mulher deve desempenhar na
sociedade: a esposa, a mãe, a mulher desprotegida, inferior em relação ao homem... Por
outro, de forma velada, são desencorajadas suas ambições de estudar, de trabalhar, de se
tornar independente...
Isso tudo parece condizer com o papel civilizador e pedagógico dos almanaques. Neles
são reforçadas as instituições como a família e o casamento e prescritos os
comportamentos sociais da mulher. Como consequência, a mulher é representada como
uma espécie de modelo ideal
12
que deve se adaptar aos padrões sociais vigentes. Nas
palavras de Casa Nova (1990, p.119):
11
Almanaque Costumes e Curiosidades, 1939, p.5.
12
Analisando a representação da mulher na imprensa feminina brasileira da origem à década de 1970,
Buitoni (1981) afirma que essa representação gira em torno de um ideal de mulher, baseado em
comportamentos e modelos culturais preconizados pela sociedade e sustentados por mitos, muitas vezes
caducos”. A mesma autora ressalta que tais modelos são muitas vezes tomados como sendo gicos e
naturais: “O eterno feminino sempre foi assim” (BUITONI, 1981, p.6).
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
23
Essa representação da mulher, que nos é trazida pelos almanaques
através de seu discurso, visa à formação de um modelo normativo de
feminilidade. Na verdade ela vai ser o centro de todo um espaço de
propagação de um ‘modelo imaginário de família, orientado para a
intimidade do lar, onde devem ser cultivadas as virtudes burguesas’.
Imobiliza-se e aprisiona-se a mulher em sua ‘natureza’. É para a família
que ela deve estar voltada...
Assim, percorrendo as páginas dos AFs, encontramos imagens recorrentes: a mãe (ou
esposa), no seu papel característico junto aos filhos (às vezes, amamentando) e ao
marido, desempenhando os afazeres do lar (daí as dicas de jardinagem, cozinha e
decoração); a noiva, preparando seu enxoval ou sendo aconselhada no modo como
deverá tratar seu futuro esposo; as profissões clássicas concedidas às mulheres: a
professora e seus alunos; a secretária sentada em seu birô ou obedecendo a seu patrão; a
criada doméstica sendo ridicularizada quanto à sua inteligência ou competência.
A saúde da mulher recebe destaque tanto na indicação de medicamentos e cuidados para
com as futuras mães quanto na valorização da preocupação com beleza das jovens (que
devem estar voltadas para casamento). A moral e os bons costumes são salientados nas
recomendações às senhoras quanto às formas de comportamento compatíveis com a sua
idade
13
. O aconselhamento às noivas e esposas chegava ao extremo de ser, como
afirmamos anteriormente, diretamente dirigido:
QUERES SER FELIZ COM TEU MARIDO?
Ama-o desde o dia do casamento.
Desde a Lua de Mel, estuda-lhe o carácter.
Se o vires triste, alegra-o.
Se o vires aborrecido, distrae-o.
13
Sobre esse ponto, observa-se o tema da relação entre sogras e genros. Segundo Park (1999), o ataque à
imagem da sogra, nos meio de empresa, é uma questão muito antiga e tem propósitos delimitados dentro
da sociedade brasileira. Citando as reflexões de Pedro (1997), Park explica que, na região sul do Brasil,
no final do século XIX, a cultura açoriana mantinha a tradição da filha e genro morarem com a sogra, o
que impedia a implantação da estrutura familiar nucleada e burguesa. Passa-se a caracterizar esse hábito
como não-civilizado e, a partir de então, “... a sogra passa a ser associada a características negativas,
sendo que os jornais publicam inúmeras matérias ridicularizando-a” (PARK, 1999, p.94).
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
24
Se quer brigar, evita-o disfarcadamente (quando um não quer, dois não
brigam...)
Se esta desanimado, dá-lhe coragem.
Se e um intellectual, não faças barulho quando estiver trabalhando.
Se tem tendências para beber, experimenta, com teu carinho, afastá-lo do vicio.
Nunca te mostres superior a elle.
Nunca lhe demonstres os teus ciúmes.
Nunca lhe perguntes o que esteves fazendo para chegar tarde.
Nunca o censures na vista de amigo e de criados.
Nunca o desautores [sic] quando elle repreender os filhos; se houver injustiça,
aconselha-o depois, à parte.
Nunca sejas desleixadas, deixando de te enfeitares.
Em resumo: Faze uma força da tua fraqueza e lembra-te sempre que as
mulheres que elle na rua são bonitas e gozam da vantagem de serem o
“fructo prohibido”...
14
Preceitos para o bom êxito de instituições como a família e o casamento, onde o maior –
talvez o único responsável é a mulher. Park (1999, p.92-94), resume isso ao falar das
virtudes de uma boa esposa para a década de 1950”. Segundo essa autora, nas páginas
dos AFs, pode-se perceber os anseios da sociedade da época em relação à mulher: sendo
um período de mudanças com a transição do eixo agrário para o urbano e o acelerado
processo de urbanização e industrialização do país, a implantação do modelo de família
nuclear burguesa torna-se apesar de tardio imprescindível para o sucesso do
capitalismo em terrae brasilis. Assim, a mulher se torna peça fundamental para o
reconhecimento social e para a consolidação desse novo tipo de estrutura familiar. Além
disso, ela própria é a imagem que representa essa família:
Como rainha do lar é indispensável que faça deste um lugar atraente. O
cardápio deve ser repleto de novidades, fugindo à rotina. Nos momentos
de folga deverá informar-se sobre os negócios do seu marido para poder
trocar ideias com ele. As adversidades devem ser suportadas com
coragem e resignação. A sogra e os parentes devem ser bem tratados.
14
Almanaque Costume e Curiosidades, 1939, p.24.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
25
Privilegiar a harmonia, acomodando-se às pequenas diferenças.
Atualizar-se com leituras, notícias para acompanhar seu marido e, além
de tudo isso, ao fazer um vestido, preocupar-se com o gosto do seu
marido em relação à cor e ao estilo! (PARK, 1999, p.92)
1.3. A
S PIADAS E OS DISCURSOS CONTROVERSOS
Como vimos anteriormente, o almanaque é uma espécie de suporte de diferentes textos:
calendários, horóscopos, receitas, poemas, piadas entre outros. Neste trabalho, daremos
mais atenção às piadas em virtude do seu papel estruturante nos almanaques e do seu
potencial para reproduzir os mais variados tipos de discurso, muitas vezes,
simultaneamente.
Tidas comumente como histórias curtas e engraçadas
15
, de final geralmente
surpreendente, que têm como fim causar o riso, a gargalhada, as piadas possuem como
característica básica a sua variedade de assuntos: profissões, políticos, minorias étnicas,
crianças, animais, entre outros. Nelas são encenadas as mais variadas situações do
cotidiano como discussões entre pai e filha, brigas entre marido e mulher, diálogos entre
familiares, situações de sala de aula, consultas médicas, entre outras, onde as
personagens representam diferentes tipos de relações sociais. Essas pequenas histórias,
ademais, esboçam, através do humor, temas que podem ser considerados vestígios de
diferentes discursos sobre um mesmo objeto. Isso se deve ao fato de que esses discursos
são construídos a partir imagens estereotipadas de pessoas, de situações, de instituições
etc. e de mecanismos linguísticos como a ambiguidade ou o duplo sentido.
Nos AFs, elas, enquanto piadas de salão, transformam o humor da rua em algo aceitável
para a hora das refeições, para as reuniões de família, ou seja, para o lar. Integra-se,
assim, o riso na vida familiar. Cabe ressaltar que, ao proporcionarem o humor e o
lúdico, as piadas instalam um espaço para a crítica. Como afirma Park (1999, p.52), a
15
Os dicionários normalmente elencam vários sinônimos para o termo “piada” como, por exemplo:
“chiste”, “pilhéria”, “anedota”, “dito espirituoso”, “gracejo”, “bufonaria”, entre outros. Adotaremos, neste
trabalho, também um sentido lato para o termo “piada”, uma vez que é próprio das piadas possuir uma
relativa liberdade quanto: a) à sua estrutura textual (indo desde uma simples narrativa a uma dramatização
de um diálogo do cotidiano); b) a ser ou não espirituosa; c) a estar ou não relacionada a personalidades
históricas etc.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
26
função das piadas é ... divertir, provocando através dele [do riso] a reflexão e a
crítica”. Contudo, esse espaço pode estar comprometido, se admitirmos que dois ou
mais discursos sobre um mesmo tema são potencialmente transmitidos.
Assim, se partimos da definição de interdiscurso como a propriedade de todo discurso
de manter uma relação multiforme com outros discursos”, implícita ou explícita, que
garante um “... sentido interdiscursivo’ tanto para as locuções ou os enunciados
cristalizados ligados regularmente às palavras, contribuindo para lhe dar ‘um valor
simbólico’ [...] quanto para unidades mais vastas (CHARAUDEAU;
MAINGUENGEAU, 2006, p.286), podemos pensar nas piadas, e mais especificamente
nas piadas de AFs que compõem o corpus deste trabalho, como fontes de discursos que
dialogam entre si sobre o mesmo assunto: mulher
16
.
Por isso, devemos ter em mente a diversidade de discursos que circulam ao mesmo
tempo nessas piadas sobre esse assunto como, por exemplo: o discurso religioso, que
incita ora a santidade da mulher enquanto mãe e esposa, ora uma misoginia exacerbada
contra a mulher sensual (o fructo prohibido); o discurso pedagógico, voltando para as
diferenças na educação das meninas; o discurso econômico, no qual o acesso ao
trabalho é colocado em conflito com os deveres familiares (e, até mesmo, os sexuais) da
mulher; o discurso científico, mais especificamente o da biologia sobre o corpo (sexo) e
a inteligência das mulheres; o discurso feminista, que anseia pela igualdade entre
mulheres e homens... Isso para citar apenas alguns.
1.3.1. A
S PROPRIEDADES TEXTUAIS DAS PIADAS DE
AF
S
Nesta seção, abordaremos as questões relacionadas à constituição textual das piadas, a
saber: a brevidade; a variedade temática; as personagens; o discurso direto e o discurso
indireto; as didascálias e as técnicas verbais capazes de evidenciar o efeito de humor.
Isso não nos impede, porém, de falar de outros pontos, que consideramos importantes,
como a questão da autoria e os laços temporais desses textos com o contexto socio-
histórico. Trataremos, em primeiro lugar, da constituição textual.
16
Em nossa pesquisa sobre a evolução da representação feminina nos almanaques (VALE, 2007a),
pudemos constatar que, em oitenta e três piadas de nove almanaques, a mulher é representada em trinta e
uma, o que equivale a aproximadamente 37% das piadas.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
27
A brevidade, enquanto característica textual nas piadas, não está somente relacionada à
pequena extensão do material verbal utilizado para expressar um determinado
pensamento sobre o mundo, mas também a um certo tipo de laconismo em termos de
construção de sentido. Daí algumas implicações que advêm com essa característica:
a) na descrição, por exemplo, uma predileção pela escolha de nomes comuns em
detrimento de nomes próprios, o que leva a uma generalização dos seres e das
situações;
b) na leitura, de modo a completar as lacunas de sentido, o acionamento de
conhecimentos particularmente baseados em estereótipos;
c) com relação às coerções do meio, a omissão de certos enunciados de modo a
impedir retaliações.
Em suma, a brevidade nas piadas tem como propósito fazer passar o que se quer dizer
sem o fazê-lo, ou seja, como assegura Lipps
17
(apud Freud, 2006, p.21), a respeito da
brevidade: “pode-se dizer tudo o que se tem a dizer não dizendo nada.
Anteriormente, comentamos de forma rápida sobre a variedade temática das piadas em
geral. Aqui, trataremos especificamente dessa variação dentro das piadas de AFs. Como
afirmamos, em nossa seleção privilegiamos as piadas que direta ou indiretamente
tratam da mulher enquanto tema
18
. Por conseguinte, a mulher pode ser apresentada ora
como personagem, ora como figura
19
. Outros temas, entretanto, também surgem nesses
textos, obedecendo sempre às restrições editoriais dos AFs
20
. Entre os temas mais
recorrentes, podemos citar a moral, a estética, a ganância, a caridade, a ignorância, a
17
LIPPS, T. Komik und humor. Hamburgo e Leipzig, 1898, p.90.
18
Tomamos, aqui, o termo tema num sentido de “... um investimento semântico, de natureza puramente
conceptual, que não remete ao mundo natural. Temas são categorias que organizam, categorizam,
ordenam os elementos do mundo natural: elegância, vergonha, raciocinar, calculista, orgulhoso, etc.”
(FIORIN, 1999, p.65)
19
Entendemos por “figura” o “... termo que remete a algo do mundo natural: árvore, vagalume, sol,
correr, brincar, vermelho, quente, etc. Assim, a figura é todo conteúdo de qualquer língua natural ou de
qualquer sistema de representação que tem um correspondente perceptível no mundo natural.” (FIORIN,
1999, p.65)
20
Por exemplo, devido a restrições editoriais presentes nos AFs, muito raramente são encontrados temas
relacionados às piadas ditas obscenas ou sujas.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
28
eficiência, a competência, a decência, o despeito, a polidez, entre outros. Todos, de
alguma forma, também relacionados à mulher.
As personagens que povoam as piadas de AFs acompanham a variedade de situações de
comunicação representadas nesses textos, formando um simulacro da realidade. Elas
representam seres humanos: suas paixões, suas ações, suas manipulações, sem a
obrigação de serem verídicos, mas sim verossímeis (SAVIOLI; FIORIN, 1996, p.193).
Devido à brevidade das piadas, essas personagens não possuem densidade psicológica,
desempenhando um único papel: são mães, esposas, filhas, sogras, professoras, alunos,
pais, médicos, veterinários, bêbados, clientes, pacientes, entre outros. Personagens que
mantêm entre si relações de hierarquia social. Relações estas que parecem ser respeitas
– ou não – nas falas.
No que concerne a essas falas, o texto das piadas aparece disposto ora com
características próprias da narrativa, ora do drama. Enquanto pequenas narrativas, as
piadas de AFs apresentam a presença de um narrador (em terceira pessoa) que constrói
um cenário mínimo para o desenrolar (geralmente em tempos pretéritos) dos diálogos
entre as personagens. Além disso, é ele quem distribui essas falas, indicadas nas formas
de discurso direto ou de discurso indireto.
Enquanto esquetes, as piadas de AFs trazem os seguintes componentes em sua estrutura
textual: o scriptor e as didascálias. Estas últimas são marcas paratextuais que aparecem
antes, ou no interior, das falas das personagens, indicando, por exemplo, quem tem o
direito ao turno de fala. Elas mostram como os atores leia-se personagens devem se
comportar (posição no palco, imposição de vocal, estado de espírito: irônico, sarcástico
etc.). Além disso, elas descrevem o cenário onde a cena deve se passar. O responsável
por essa voz à parte do texto, que surge nas didascálias, dá-se o nome de scriptor. Ele,
uma entidade essencialmente literária assim como o narrador, é quem põe em
funcionamento a ficção.
Aqui, abriremos um parêntese na discussão sobre a estrutura textual das piadas, para
falarmos sobre a relação desses textos com referentes no contexto discursivo: o autor e
os laços temporais. A questão da autoria nas piadas é semelhante à de textos como os
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
29
provérbios, as máximas, os causos, as lendas, as receitas entre outros. Tais textos, após
seu surgimento e sua circulação, passam a fazer parte do cancioneiro popular, o que
torna imprecisa a identificação de quem os elaborou. Nessa linha de raciocínio, Possenti
(2008, p.37) afirma que “... as piadas não tem autor”, logo “... elas devem ser
interpretadas sem a invocação de tal critério”. Para as piadas de AFs, é relevante
pensar essa questão em termos de apropriação de textos. A equipe editorial responsável
pelo almanaque seleciona tais textos (piadas, curiosidades, simpatias etc.) para um fim
determinado (no caso das piadas, aparentemente uma visada de “fazer-prazer”), o que
decididamente pode influenciar na interpretação e na análise desses textos.
Paralelamente à autoria das piadas, devemos levantar a questão da transitoriedade.
Como já foi dito, as piadas fazem parte de um conjunto de textos que circulam
livremente, na forma oral ou escrita, na cultura popular, independentemente da época
em que foram elaborados. Todavia, para algumas piadas, a transitoriedade se torna
relativa quando tratam especificamente de um vulto histórico, herói popular, político,
atores, personalidades da elite, ou de um fato ou uma passagem histórica (POSSENTI,
2008). O sucesso desse último tipo de piada está, pois, restrito ao reconhecimento da
personalidade ou do evento.
No caso das piadas de AFs, essas duas propriedades são relevantes e válidas. Nos AFs
podemos encontrar grupos de piadas atemporais e piadas temporais, pois o almanaque,
por definição, é:
... atemporal, seus assuntos, embora com enfoques diversos de acordo
com a época, perpassam aqueles de fundamental importância para a vida
cotidiana das pessoas. Repetem velhos temas: saúde, receitas, conselhos.
(PARK, 1999, p.18)
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
30
1.3.1.1. A
S TÉCNICAS NAS PIADAS DE
AF
S
Nosso interesse nas técnicas
21
presentes nas piadas, diz respeito à percepção dos efeitos
de humor. Em muitos casos, tais efeitos se dão pela ativação de um determinado tipo de
conhecimento
22
, que, por sua vez, acontece via essas técnicas. Ou seja, vislumbramos
nessas técnicas uma ponte (uma marca textual, um indício material) entre o discurso
humorístico das piadas e as mais diversas representações sociais ligadas à mulher.
Em Humores da língua, Possenti (2008) considera técnica como “... chaves
linguísticas que “... são o meio de desencadear o riso”. Para esse autor, são essas
chaves linguísticas aquilo que define um texto enquanto uma piada, ou seja, é a maneira
de apresentar um determinado tema, qualquer que seja ele, visando um efeito
perlocutório no ouvinte/leitor que evidencia uma piada:
Qualquer que seja o tópico, [...], o que faz com que uma piada seja uma
piada não é seu tema, sua conclusão, mas uma certa maneira de
apresentar tal tema, sua tese sobre o tema. [...] Se é certo que se necessita
de um tema, e, de certa forma, de um tema proibido ou controlado por
regras sociais de bom comportamento (evitar o preconceito, reprimir
desejos sexuais ou de eliminação do diferentes etc.), a menção do tema
não é necessariamente uma piada. (POSSENTI, 2008, p.46)
Como se infere, parece haver na proposta de Possenti uma necessidade do autor em
evidenciar uma certa preferência pelo estudo da técnica em detrimento do conteúdo.
Outra passagem do seu texto corrobora essa ideia:
21
Na literatura sobre piadas e sobre humor, são vários os conceitos relacionados ao termo “técnica”, a
saber: “chaves linguísticas”, “mecanismos linguísticos”, (POSSENTI, 2008) “gatilhos” (RASKIN, 1985
apud POSSENTI, 2008); “recursos cnicos”, “técnica verbal ou expressiva” (FREUD, 2006). Em nosso
trabalho, o termo “técnica” será tomado como um termo genérico para designar as marcas linguísticas e
discursivas responsáveis por possibilitar a percepção dos efeitos de humor nas piadas.
22
Segundo Kleiman (1989), durante o ato de leitura, a compreensão do texto se pela ativação
determinados tipos de conhecimento baseado no conhecimento prévio adquirido pelo leitor ao longo de
sua vida. Esse conhecimento prévio pode ser, de acordo com a autora: o conhecimento de linguístico,
ligado às formas da língua, regras de morfologia e de sintaxe, isto é, a gramática da língua; o
conhecimento de mundo, que pode ser adquirido de modo institucional ou não (daí poder se falar em
conhecimento enciclopédico); o conhecimento intertextual, que se pelo reconhecimento, por exemplo,
de outras vozes presente no texto; o conhecimento do contexto histórico (os locais e datas de produção do
texto). Esses conhecimentos, de acordo com Orlandi (1988), mantêm o texto num continuum de discurso,
comunicando uns com os outros, apontando uns para os outros.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
31
Certamente, se dissermos a alguém que achamos os nova-iorquinos mal
educados, que pouquíssimos são educados, a rigor, dois, etc., embora
se possa dizer que este é o conteúdo daquela piada, isso não provoca
nenhum efeito de humor. (POSSENTI, 2008, p.17)
Com isso Possenti (2008) prioriza, neste texto, uma análise das piadas de cunho mais
linguístico do que propriamente socio-histórico, cultural. De acordo com o autor, os
mecanismos linguísticos podem estar distribuídos pelos veis linguísticos: fonologia,
morfologia, sintaxe, léxico etc. Ele propõe, então, um esboço de uma enumeração das
chaves linguísticas que possa contribuir para a elucidação das piadas. Assim,
parafraseando Possenti (2008, p.27-36), vamos, sem a pretensão de exaustão, resumir a
sua descrição das principais chaves possíveis de ser encontradas nas piadas.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
32
N
ÍVEL
LINGUÍSTICO
C
HAVE LINGUÍSTICA
F
ONOLÓGICO
Baseia-se principalmente na diferença da “pauta acentual” de palavras e/ou
expressões para criar a possibilidade de duas ou mais leituras devido à alteração
da distribuição de acentos em sílabas de maior ou menor saliência fônica. Ex.:
para a palavra “danoninho” haveria as pronúncias: 1) “dànonínho”, com somente
um acento agudo marcando a tônica; e 2) “dánonínho”, com dois acentos agudos
marcando as tônicas e, por conseguinte, a existência de uma oração formada de
um verbo (“dá”), uma contração (“no”) e um substantivo (“ninho”).
M
ORFOLÓGICO
Fortemente ligadas ao nível fonológico, as chaves ditas morfológicas se
fundamentam no critério da divisão silábica (ou no “erro”: a silabada) e nos
processos de formação de palavras. Assim, o exemplo da palavra “danoninho”
pode ser analisado pelo viés morfológico, colocando-se os dois processos
presentes em evidência: danone + inho (processo de sufixação) e dar + no + ninho
(elisão decorrente da influência da oralidade na escrita, por isso a queda do “r
final do verbo “dar”).
L
ÉXICO
Possenti ressalta duas facetas do léxico: a) a questão do duplo sentido, que
acarreta as ambiguidades nas piadas; b) a possibilidade das palavras se referirem
às próprias palavras, numa espécie de metalinguagem, relacionado menção e uso.
D
ÊIXIS
Essa chave baseia-se na possibilidade de ambiguidade no uso de palavras ditas
dêiticas (normalmente os pronomes) em relação ao contexto situacional imediato.
S
INTAXE
Semelhantemente à dêixis, as chaves de sintaxe se fixam nas palavras que
exercem a função de retomadas anafóricas e catafóricas. Mesmo recorrendo ao
contexto linguístico, não é possível ao leitor/ouvinte evidenciar o “verdadeiro”
referente ao qual se reportam as anáforas e catáforas.
P
RESSUPOSIÇÃO
Chave linguística que se baseia no acionamento de pressuposições pelo léxico ou
pela sintaxe e nos laços entre essas pressuposições e o intertexto.
I
NFERÊNCIA
A partir de dados explícitos e implícitos – mas facilmente recuperados pelo
contexto tem-se a possibilidade de uma conclusão, por parte do leitor/ouvinte,
altamente sugestionada pelo texto.
C
ONHECIMENTO
P
RÉVIO
Para que o efeito de humor aconteça, juntamente à análise lexical das palavras
envolvidas é necessário o acionamento de conhecimentos sumários e, muitas
vezes, vagos sobre o contexto histórico. Este contribuirá com a ressignificação
das palavras na piada.
V
ARIAÇÃO
LINGUÍSTICA
Essa chave consiste no funcionamento de determinadas palavras dentro das
piadas (geralmente os “gatilhos”) com dupla pronúncia dependendo da variação
linguística: mais formal, mais informal, mais coloquial etc.
T
RADUÇÃO
Apesar de salientar a dificuldade de tradução de textos como as piadas, Possenti
garante que alguns mecanismos linguísticos como o duplo sentido, por exemplo,
conseguem resistir a uma tradução, proporcionando um determinado efeito de
humor na língua 2.
Quadro 1
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
33
Como podemos notar, as técnicas apontadas no quadro 1 não encerram o assunto por
completo nem era esse o objetivo do autor para que possamos descrever um grupo
mais heteróclito de piadas. O próprio Possenti (2008, p.142-143) a entender, ao
evidenciar a necessidade da técnica e questionar se esta é suficiente para o efeito de
sentido das piadas, que essa preferência pela forma deve ser atenuada. Isso porque as
características de algumas piadas (como, por exemplo, a escassez de manipulação
linguageira) apontam para questões mais ligadas ao discurso (como a violação das leis
discursivas e a exposição de temas secretos ou tabus), ou seja, apontam para questões
relacionadas à “... ocorrência de discursos que não são dito normalmente” (POSSENTI,
2008, p.142).
Pensando nas piadas de AFs, deparamo-nos com um grupo de piadas que fogem em
muito as técnicas clichês desse gênero textual como, por exemplo, a presença de
trocadilhos ou de duplos sentidos, apontadas por Possenti (2008). Encontramos casos
nos quais a ironia
23
é trocada por um sarcasmo abertamente admitido:
A espôsa: — Cite-me uma boa ação em sua vida se fôr capaz.
O marido: — Impedir que você morresse como uma velha solteirona
24
.
Torna-se necessário, então, perseguir novos caminhos que possam fornecer mais
explicações sobre as técnicas presentes nas piadas. Já que adotamos, neste trabalho, uma
definição lato sensu do termo piada, concedemo-nos o direito de vislumbrar o
pensamento freudiano sobre as técnicas presentes nos chistes. Nesse intuito, vejamos
uma citação na qual se discute o problema da relação entre pensamento e expressão
verbal:
Mas, se o que faz de nosso exemplo um chiste não é nada que resida no
pensamento, devemos procurá-lo na forma, na verbalização que o
exprime. Temos apenas que estudar a peculiaridade de sua forma de
expressão para captar o que se pode denominar técnica verbal ou
expressiva desse chiste, algo que deve estabelecer íntima relação com a
23
Entendida aqui no seu sentido restrito de figura retórica que diz o oposto daquilo que se quer dar a
entender.
24
Almanaque Biotônico, 1961, p.19.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
34
essência do chiste, já que, substituída por qualquer outra coisa, o caráter
e o efeito do chiste desaparecem. (FREUD, 2006, p.26)
Se retomarmos a posição de Possenti (2008) a respeito da necessidade da forma,
podemos perceber uma ligação entre a primazia da expressão verbal nas piadas e nos
chistes: ambos necessitam de certas manipulações do material linguístico para
proporcionarem seus efeitos. Daí se observar o interesse de Freud pela busca em piadas
e em anedotas das características essenciais dos chistes, o que o faz passar, num
primeiro momento, pela análise da forma. Em outra passagem, Freud (2006) ressalta:
A classificação [dos chistes] que encontramos na literatura descansa, por
um lado, nos recursos técnicos empregados (trocadilhos e jogos de
palavras) e, por outro lado, no uso que se faz deles no discurso (e.g.
chistes usados com o objetivo de caricatura, de caracterização, ou de
afronta). (FREUD, 2006, p.22)
Com efeito, podemos deduzir que por recursos técnicos devemos entender os recursos
linguísticos utilizados para expressar o pensamento nos chistes, ou seja, as técnicas.
Apesar de o objetivo de Freud ser buscar a relação entre os chistes e o inconsciente, o
que insere seu trabalho no âmbito do cognitivismo, sua análise se assenta primeiramente
sobre a estrutura textual e linguística de piadas o que cria um ponto tangencial entre o
nosso trabalho e os apontamentos de Freud. Diante dessa justificativa, apresentaremos
um quadro sinóptico das técnicas levantadas por Freud (2006, p.27-89), parafraseando e
resumindo tanto quanto possível as especificações de modo a termos um guia prático
para examinar as técnicas que as piadas de AFs venham a apresentar.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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35
T
ÉCNICA
D
ESCRIÇÃO
E
SPECIFICAÇÃO DA TÉCNICA
(a) com formação de palavra
composta, às vezes, “incompreensível”
C
ONDENSAÇÃO
Com o objetivo de expressar um
pensamento completo, que poderia
acarretar sanções, procede-se a uma
abreviação desse pensamento
seguida de uma associação de
ideias numa única representação ou
palavra.
(b) com modificação simples na forma
de expressão
(a) como um todo e suas partes
(b) em ordem diferente
(c) com leve modificação
M
ÚLTIPLO USO DO
MESMO MATERIAL
Essa técnica se baseia no uso de
uma mesma palavra, uma vez como
um todo e a outra vez segmentada
em sílabas separadas, que
apresentarão, assim separadas, um
outro sentido.
(d) com sentido pleno e sentido
esvaziado
(a) significado como um nome e como
uma coisa por ele denotada
(b) significados metafórico e literal
(c) duplo sentido propriamente dito: o
uso de um mesmo material verbal
numa perspectiva pragmática diferente
(d) double entendre: duplo sentido com
conteúdo sexual óbvio
D
UPLO SENTIDO
Ou jogo de palavras”. Refere-se à
possibilidade de uma palavra e/ou
expressão serem lidas e
interpretadas de duas maneiras. Isto
é, uma mesma palavra é passível de
ser portadora de dois significados.
(e) duplo sentido com uma alusão,
sendo o sentido sexual pouco óbvio
T
ROCADILHOS
Refere-se também a um jogo de palavras”, porém o duplo sentido aqui é
evocado por uma vaga similaridade que pode ser com base na estrutura geral
da palavra (fonética, principalmente), na assonância rítmica (repetição) ou no
compartilhamento de algumas letras iniciais.
D
ESLOCAMENTO
Essa técnica confere à réplica um caráter de deslocamento em relação a uma
possível reprovação por parte do interlocutor. Assim, procede-se a uma
repetição do mesmo material (idêntico, sem modificação ou duplo sentido)
presente no enunciado do “acusador” ou “questionador”. Contudo, nessa
réplica, há uma mudança no curso do raciocínio, podendo acarretar, por
exemplo, a omissão de premissas ou a tomada de partes isoladas de um
raciocínio que deveria ser tomado como um todo. Dessa forma, tem-se um
certo ocultamento de um cinismo que, de outra maneira, seria abertamente
admitido.
R
ÉPLICA DIRETA
De modo semelhante ao deslocamento, essa técnica se aplica à elaboração da
réplica, rearranjando as formas de raciocínio. Entretanto, não uma
preocupação em se evitar uma reprovação por parte do “acusador ou
“questionador”, o que se evidencia por um cinismo abertamente admitido.
Apesar disso, é importante ressaltar que a “réplica direta” não é uma resposta
a um possível ataque verbal.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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36
Quadro 2
25
Manipulação do material linguístico e textual (semelhante à paráfrase) que, adicionando um post-
scriptum à forma reduzida dos enunciados presentes nas piadas, possibilita explicar não somente a
técnica, mas também o sentido do chiste (Cf. FREUD, 2006, p.27).
A
UTOMATISMOS
“Uma pessoa que estava reagindo sempre da mesma forma, várias vezes em
sucessão, repete tal modo de expressão na ocasião seguinte, quando este é
inadequado e prejudicial às suas próprias intenções. Negligencia adaptar-se
às necessidades da situação, cedendo ao automatismo do hábito. [...] a ação
automática triunfa sobre a conveniente mudança de pensamento e
expressão.” (FREUD, 2006, p.69)
U
NIFICAÇÃO
Nessa técnica a similitude das palavras e expressões corresponde à similitude
de ideias, que mantêm entre si uma relação mutual. Essa associação entre
ideias e palavras contribui para a formação de um terceiro elemento comum: a
representação da síntese dessas ideias e palavras. Essa técnica se utiliza
frequentemente de outras como a condensação e o uso do mesmo material.
R
ESPOSTA PRONTA
Diante de uma situação de agressão verbal, a réplica de defesa se transforma
inesperadamente em ataque.
I
RONIA
Trata-se basicamente da ironia entendida no sentido aristotélico, ou seja, a
substituição ou representação pelo oposto”. Freud (2006, p.76) ressalva que
essa técnica sozinha não é capaz de explicar a natureza do chiste, porém não
se deve diminuir sua importância, pois, uma vez submetida à redução
25
, o
chiste desaparece.
E
XAGERAÇÃO
“... o ‘sim’ que ocorreria na redução é substituído por um ‘não’ que tem,
entretanto, a despeito de seu conteúdo, a força de um ‘sim’ intensificado, e
vice-versa. Uma negativa é um substitutivo para uma confirmação
exagerada.” (FREUD, 2006, p.75)
A
LUSÃO
Trata-se aqui da representação indireta por algo conexo ou correlacionado,
reconstituído por inferências e associações facilmente estabelecíveis”. Pode-
se dar por: a) alusão mais duplo sentido, quando uma palavra carrega dois
sentidos dos quais o menos proeminente evidencia a alusão; b) alusão sem
duplo sentido, quando a conexão é acionada por uma semelhança fônica
(semelhante ao trocadilho), mas que se entre expressões inteiras; c) alusão
mais omissão, quando “... a coisa mais óbvia na verbalização da alusão ou
do substituto que preenche parcialmente a lacuna seja a própria lacuna.”
(FREUD, 2006, p.80)
R
EPRESENTAÇÃO
POR ALGO PEQUENO
Pode ser considerada uma variante da alusão, onde a representação se “...
por algo pequeno ou mesmo muito pequeno que efetua a tarefa de dar
expressão completa a uma característica inteira através de um detalhe
insignificante.” (FREUD, 2006, p.82)
A
NALOGIA
É um tipo de comparação que se evidencia pela presença de clichês ou alusão
a estes. Pode, em muitos casos, tornar-se degradante quando justapõe “... algo
de alta categoria, algo abstrato [...] com algo muito concreto e mesmo de um
gênero baixo...” (FREUD, 2006, p.87)
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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37
Apesar de as técnicas descritas por Freud serem mais substanciais e de maior alcance do
que as apontadas por Possenti (2008) e, além disso, se apresentarem, à primeira vista,
mais semelhantes às presentes nas piadas de AFs, várias questões ligadas ao discurso
ainda continuam sem respostas como, por exemplo: qual o modo de se evidenciar a
mudança pragmática no uso de um mesmo material? Quais as representações sociais
acionadas pelas alusões? Quais as implicações do uso do duplo sentido, do
deslocamento ou da resposta pronta na relação entre as personagens e os sujeitos
enunciadores das piadas? etc. Diante disso, fica claro que, em nosso trabalho, a análise
das técnicas responsáveis pelo humor deve ser considerada como um meio, e não um
fim. Em outras palavras, ao operacionalizarmos como categorias as técnicas descritas
por Possenti e por Freud, temos como objetivo vislumbrar as características textuais
(indícios) que contribuam de algum modo tanto com a construção das estratégias
discursivas quanto com a transmissão das representações sociais relacionadas à mulher
nos AFs. Todavia, para atingirmos o(s) discurso(s) nas piadas de AFs, outras
ferramentas são necessárias. Acreditamos que a Teoria Semiolinguística, proposta por
Patrick Charaudeau, possa fornecê-las.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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38
C
APÍTULO
2
T
EORIA
S
EMIOLINGUÍSTICA
,
D
ISCURSO
H
UMORÍSTICO E
R
EPRESENTAÇÕES
S
OCIODISCURSIVAS
Bem longe de dizer que o objeto precede o ponto de vista,
diríamos que é o ponto de vista que cria o objeto...
(SAUSSURE, 2006, p.15)
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
39
2.1. A T
EORIA
S
EMIOLINGUÍSTICA
:
NOÇÕES GERAIS
Na perspectiva da Teoria Semiolinguística, é o estudo da relação entre a linguagem e as
condições socio-históricas que torna possível a construção de sentido nas trocas
linguageiras. O efeito de sentido se a partir da percepção do signo na sua realização
no discurso. Logo,
... uma análise semiolinguística do discurso é Semiótica pelo fato de que
se interessa por um objeto que se constitui em uma intertextualidade.
Essa última depende dos sujeitos da linguagem, que procuram extrair
dela possíveis significantes. Diremos também que uma análise
semiolinguística do discurso é Linguística pelo fato de que o instrumento
que utiliza para interrogar esse objeto é construído ao fim de um trabalho
de conceituação estrutural dos fatos linguageiros. (CHARAUDEAU,
2008, p.21)
A compreensão do signo dentro da situação de comunicação passa a ter, pois, um papel
de suma importância na análise dos atos de linguagem. Essa análise deve levar em conta
os componentes da situação como, por exemplo: os sujeitos envolvidos; os contratos
comunicacionais estabelecidos; as circunstâncias; os saberes partilhados; os modos de
organização da matéria linguística; e as estratégias discursivas.
No intuito de promover essa compreensão, a Semiolinguística disponibiliza um aparato
teórico-metodológico que visa proporcionar a descrição, a classificação e a
interpretação dos atos de linguagem. Entre os principais instrumentos de análise estão o
Quadro Comunicacional e os Modos de Organização do Discurso.
2.1.1. O
QUADRO COMUNICACIONAL E O CONCEITO DE
D
ISCURSO
Como coloca Charaudeau (1983), uma análise do discurso deve levar em conta as
condições de produção do ato de linguagem. Esse autor afirma que o discurso é um
objeto resultante do amálgama da percepção do mundo (como real construído), da
linguagem (enquanto forma-sentido) e da interação social. Propõe, então, uma
concepção de discurso na qual o termo assume dois sentidos:
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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40
1º) discurso está relacionado com a mise en scène du l’acte de langage;
2º) discurso está relacionado aos saberes partilhados em uma sociedade.
Assim sendo, deve-se considerar que a mise en scène do ato de linguagem é constituída
por dois circuitos: um externo, domínio do FAZER psicossocial (situacional); e um
interno, domínio do DIZER (cf. figura 2). A este domínio, Charaudeau confere o
primeiro sentido do termo “discurso”.
Dando prosseguimento ao raciocínio, Charaudeau salienta a existência da oposição
entre mise en scène langagière e mise en scène discursive, na qual a primeira engloba a
segunda; porém, esta última não se constrói de forma independente, mesmo possuindo
uma certa autonomia em relação à primeira. É essa relativa autonomia que permite ao
sujeito reconhecer os gêneros do discurso e realizar as estratégias discursivas. Todavia,
estes componentes estão diretamente ligados às circunstâncias de produção do ato de
comunicação.
O segundo sentido de discurso, afirma Charaudeau (1984), está relacionado aos saberes
partilhados, podendo se construir na maior parte do tempo ... de forma inconsciente
pelos indivíduos de um grupo social
26
(CHARAUDEAU, 1984, p.40 tradução
nossa). Assim, os discursos podem ser considerados resultantes de imaginários sociais.
Para melhor vislumbrar como isso se dá, a Teoria Semiolinguística disponibiliza o
chamado quadro comunicacional: uma representação da encenação do ato de linguagem
em que é possível caracterizar não somente os sujeitos envolvidos, mas também os
circuitos que compõem o discurso.
Na figura (2), temos o quadro que representa a mise en scène de textos caracterizados
por uma dupla enunciação como, por exemplo, o texto literário e o texto dramático
27
.
26
No original: ... de façon inconsciente par les individus d’un groupe social.
27
Em virtude das similitudes entre as piadas de almanaque e os esquetes, escolhemos usar uma adaptação
do quadro comunicacional para o texto literário proposta por Mello (2006, p.219). Isso, entretanto, não
quer dizer que nossa intenção é tratar da literariedade ou da ficcionalidade das piadas. Mas utilizar
instrumentos de análise que consigam dar conta da dupla enunciação também presente nas piadas.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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41
Isso – como explicaremos mais a frente – exige um desdobramento das instâncias
presentes na enunciação. Por ora, vejamos de que modo os circuitos são caracterizados.
Figura 2
No circuito externo, estão os sujeitos do mundo empírico. Eles são representados pelo
sujeito-comunicante-autor (EU
c
), responsável pela produção do ato de comunicação, e
pelo sujeito-interpretante-leitor (TU
i
), que reage e interpreta o ato do EU
c
. Como sugere
Charaudeau (2008), esses sujeitos são os parceiros do ato de linguagem: seres
psicossociais submetidos às coerções da situação de comunicação. Por esse motivo, é
nesse espaço que se estabelecem os contratos de comunicação.
No circuito interno, estão os seres de palavras. Eles são as projeções criadas pelo EU
c
com o objetivo de encenarem o ato de comunicação. Na figura (2), essas projeções
aparecem representadas pelo sujeito-enunciador-narrador (EU
e
), responsável pela
enunciação, e pelo sujeito-destinatário (TU
d
), uma imagem do destinatário ideal criada
pelo EU
c
. Esses sujeitos são os protagonistas do ato de linguagem. Ensina Charaudeau
(2008) que o nível do dizer é lugar no qual os protagonistas realizam os projetos de fala
do EU
c
. Portanto, é o espaço das estratégias discursivas.
Como podemos notar, no quadro da figura (2) outras instâncias que também
participam do ato de linguagem. De acordo com Mello (2006), o desdobramento dessas
instâncias é necessário, uma vez que:
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42
O narrador e as personagens são sujeitos de uma enunciação existente no
nível discursivo, em um projeto de fala do autor (EU-c). Este produz,
discursa e textualmente, um universo ficcional no qual é dada a palavra a
um narrador, que, por sua vez, também a palavra às personagens.
(MELLO, 2006, p.289)
Esse desdobramento cria uma diferença na interação entre os sujeitos, possibilitando a
existência de uma dupla enunciação:
Uma enunciação entre EU-comunicante e um TU-interpretante, entre um
sujeito autor e o leitor ambos sujeitos empíricos –, e a obra como
veículo de interação entre eles. Podemos dizer que esta interação se
no universo situacional ou no mundo real. A outra interação se no
universo discursivo, no mundo da ficção. É uma interação existente entre
as personagens no interior da própria obra. (MELLO, 2004, p.94)
Desse modo, fica justificada a presença de outras instâncias discursivas no quadro
comunicacional. Elas correspondem ao scriptor, ao narrador e às personagens, que
desempenham um papel específico no projeto de fala do EU
c
autor.
Segundo Mello (2004), o EU
c
autor e o scriptor podem representar o mesmo referente
no mundo empírico, sendo difícil diferenciá-los. Contudo, enquanto o primeiro, ser
psicossocial e historicamente constituído, pode exercer vários papéis em diferentes
situações linguageiras, o segundo exerce exclusivamente uma função literária. O
scriptor é a instância responsável por colocar a ficção em movimento. Ele é a ponte
entre o EU
c
autor e as personagens. Estas, por sua vez, são sujeitos enunciadores e
destinatários “... que imitam, que representam e ‘fingem’ estar no mundo real, com seus
interlocutores comunicantes e interpretantes.” (MELLO, 2004, p.94)
Para realização de nossos objetivos, esse quadro é providencial, pois as piadas de AFs,
além de criarem um simulacro da realidade, apresentam outras características que as
aproximam do texto literário/ficcional e do texto dramático. Nelas podemos encontrar:
a) personagens, que “encenam” diálogos do cotidiano; b) marcas paratextuais como as
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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43
didascálias, que evidenciam a presença de um scriptor; c) o discurso direto e o discurso
indireto, que deixam clara a existência de um narrador (cf. anexo, piadas 1, 19, 35).
Diante disso, é razoável afirmar que uma dupla enunciação também nas piadas: uma
situada no nível discursivo, envolvendo as personagens; outra, no nível da produção e
recepção, circunscrevendo os AFs e os seus leitores.
Esboçada a relação dos sujeitos dentro da mise en scène, Charaudeau propõe evidenciar
outros componentes desses circuitos que podem influenciar nas escolhas dos sujeitos
envolvidos. Devido aos objetivos de nosso trabalho, vamos iniciar pelos conceitos
relacionados à noção de estratégia discursiva.
2.1.2. E
STRATÉGIAS
D
ISCURSIVAS E CONCEITOS CORRELATOS
De acordo com Charaudeau e Maingueneau (2006), para que haja estratégias
discursivas, é necessário que existam certas coerções, que estão presentes em contratos
de comunicação. Estes, por sua vez, a cada situação de comunicação, desenvolvem-se
nos mais variados gêneros do discurso.
A noção de contrato de comunicação é definida por Charaudeau (2006a) como um
conjunto de condições necessárias para a realização de qualquer ato de linguagem. Elas
permitem prever o reconhecimento mútuo dos parceiros, das finalidades, das
circunstâncias e dos propósitos envolvidos em um ato de linguagem. Para Charaudeau e
Maingueneau (2006), essas condições correspondem aos princípios que regem o
contrato de comunicação, a saber: o princípio de alteridade; o de relevância; o de
influência e o de regulação.
Isso posto, deve-se considerar que o contrato de comunicação leva à percepção de um
quadro de coerções que se apresenta nos gêneros do discurso
28
. Essa percepção, como
aponta Charaudeau e Maingueneau (2006), proporciona articulações entre três tipos de
28
Não discutiremos a problemática com relação à classificação e à definição da noção de nero, pois
essa discussão teórica ultrapassaria os limites de nossa pesquisa. Simplesmente seguiremos a proposta de
descrição de gêneros de Charaudeau (2004), mantendo, assim, a coerência de nosso trabalho com relação
à Teoria Semiolinguística.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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44
coerções: 1) coerções situacionais determinadas pelo contrato global de comunicação;
2) coerções da organização do discurso; 3) coerções características das formas textuais.
A partir disso, Charaudeau (2004a, p.26-32) propõe um método de descrição de gêneros
considerando esses três tipos de coerções. Parafraseando o autor, podemos dizer que o
primeiro passo desse método é um levantamento dos componentes externos da situação
de comunicação: a finalidade, a identidade dos parceiros, os temas e subtemas e as
circunstâncias materiais (semiotização e o suporte verbal e/ou visual). Esses
componentes, por sua vez, determinarão o contrato de comunicação próprio do gênero.
Num segundo passo, são analisadas as restrições discursivas
29
evocadas a partir de uma
relação de causalidade com os componentes externos. Essas restrições evidenciarão os
procedimentos
30
de como dizer: os modos enuncivos (narrativo, descritivo,
argumentativo), os modos enunciativos (alocutivo, elocutivo, delocutivo), os de
tematização e os de semiologizacão da mise en scène. Tal seleção determinará as
rotinização das normas de uso do material linguístico e semiótico, constituindo o
terceiro e último passo da análise quando se chega à configuração textual do gênero.
É importante ressaltar aqui o papel das visadas discursivas na seleção dos
procedimentos. Elas “... correspondem a uma intencionalidade psico-socio-discursiva
que determina a expectativa (enjeu) do ato de linguagem do sujeito falante e, por
conseguinte da própria troca linguageira.” (CHARAUDEAU, 2004a, p.23)
Portanto, elas podem, de certo modo, sobredeterminar pragmaticamente a escolha dos
procedimentos em determinados gêneros, mesmo sem estarem ligadas a uma ancoragem
situacional
31
. Apesar disso, Charaudeau (2004a) afirma que os tipos de visadas podem
ser definidos de acordo com um duplo critério, que leva em consideração ... a intenção
pragmática do eu em relação com a posição que ele ocupa como enunciador na relação
29
“... conjunto de comportamentos possíveis entre os quais o sujeito comunicante escolhe aqueles que
são suscetíveis de satisfazer às condições dos dados externos.” (CHARAUDEAU, 2004a, p.27 grifos
nossos)
30
São os instrumentos a serviço da realização dessas restrições. Logo, os procedimentos selecionados
poderão evidenciar, ao mesmo tempo: 1) as restrições discursivas baseadas num modelo, ou seja, no
gênero e no contrato; 2) as estratégias discursivas baseadas na seleção de procedimentos ou na margem de
manobra do sujeito em relação ao contrato.
31
Isso proporcionaria, por exemplo, de modo generalizado, eleger a visada de “prescrição” a toda receita
médica, ou a visada de “fazer-prazer” a todo gênero pertencente ao discurso humorístico.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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45
de força que o liga ao tu; a posição que da mesma forma tu deve ocupar
32
.
(CHARAUDEAU, 2004a, p.23).
Com base nesse duplo critério, Charaudeau (2004a, p.23-24) nos fornece alguns
exemplos de visadas discursivas que reproduziremos
33
no quadro (3):
32
O que nos leva a hipostasiar uma relação entre as visadas e as modalidades enunciativas, buscando
perceber a “real intenção” do sujeito que enuncia dentro das piadas.
33
Acrescentaremos, aqui, a visada de fazer-prazer”. Segundo Lysardo-Dias (1998, p.21), essa visada
está centrada em “... despertar no outro [no “tu”] estados emocionais positivos”, isto é, “... atingir a
sensibilidade do sujeito interpretante através da satisfação e/ou através do lúdico.”
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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46
V
ISADA
I
NTENÇÃO PRAGMÁTICA DO EU
P
OSIÇÃO DO TU
P
RESCRIÇÃO
Quer “mandar fazer” (faire faire), e
ele tem autoridade de poder
sancionar.
“Tu” se encontra, então, em posição
de “dever fazer”.
S
OLICITAÇÃO
Quer “saber”, e ele está, então, em
posição de inferioridade de saber
diante do “tu”, mas legitimado em
sua demanda.
“Tu” está em posição de dever
responder” à solicitação.
I
NCITAÇÃO
Quer “mandar fazer” (faire faire),
mas, não estando em posição de
autoridade, como no caso da
prescrição, não podendo senão
incitar a fazer; ele deve, então,
“fazer acreditar” (por persuasão ou
sedução) ao “tu” que ele será o
beneficiário de sue próprio ato.
“Tu” está em posição de dever
acreditar” que, se ele age, é para o
seu bem.
I
NFORMAÇÃO
Quer “fazer saber”, e ele está
legitimado em sua posição de saber.
“Tu” se encontra na posição de
“dever saber” alguma coisa sobre a
existência dos fatos, ou sobre o
porquê ou o como de seu surgimento.
I
NSTRUÇÃO
Quer “fazer saber-fazer”, e ele se
encontra ao mesmo tempo em
posição de autoridade de saber
fazer e de legitimação para
transmitir o saber.
“Tu” está em posição de dever
saber-fazer”, segundo um modelo
(ou modo de emprego) que é
proposto por “eu”.
D
EMONSTRAÇÃO
Quer “estabelecer a verdade e
mostrar as provas”, segundo uma
certa posição de autoridade de
saber (cientista, especialista,
expert).
“Tu” está em posição de ter que
receber e “ter que avaliar” uma
verdade e, então, ter a capacidade de
fazê-lo.
Quadro 3
Deve-se ter sempre em mente, entretanto, que o ato de comunicação é um espaço tanto
de coerções e de visadas, que devem ser satisfeitas para que o contrato seja considerado
válido, quanto de possibilidades de o indivíduo jogar com as mesmas e, assim, elaborar
estratégias discursivas. Por conseguinte, tais estratégias devem ser relacionadas às
escolhas de possíveis operações linguageiras que os sujeitos têm à disposição para
encenar o ato de linguagem. Além disso, essas estratégias são passíveis de produzir
diferentes efeitos de sentido que, por sua vez, ocorrem pelo ajustamento entre “... a
enunciação do dizer [...] e a relação contratual do fazer (CHARAUDEAU, 2008,
p.31).
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
47
Com relação a esse ajustamento, Charaudeau (2001) explica que um mesmo enunciado
pode ter várias encenações linguageiras. Isso faz com que o efeito de sentido gerado por
esse enunciado não dependa exclusivamente da sua realização verbal, mas do ponto de
vista intencional evidenciado através das visadas pertencente aos sujeitos
envolvidos, podendo assegurar ou não tal efeito. Assim, por exemplo, se um sujeito
comunicante não quiser se comprometer com um ato de promessa, um enunciado do
tipo “Eu prometo ir à festa” poderá ser encenado da seguinte maneira: EUe promete,
mas TUd é chamado a não crer (presença de um índice que propiciará essa não-
crença). Se o TUi, por sua vez, não acreditar no que ouve, não haverá efeito
performativo. TUi será, então, conivente com EUc.” (CHARAUDEAU, 2001, p.34)
Nesse caso, a interpretação da promessa ficou comprometida pelo uso de uma
estratégia, ou melhor, de um índice que indicava ao destinatário ideal (TU
d
) a sua não
realização. Isso nos leva a concordar com Charaudeau quando diz que ... a realização
de uma ação enunciativa pode ser reduzida a diferentes estratégias discursivas, sendo
que algumas chegam a mascarar o fazer pelo dizer.” (CHARAUDEAU, 2001, p.35)
Como se vê, o efeito de sentido (e, por vezes, a determinação do sucesso ou fracasso de
certos atos de comunicação) é, muitas vezes, garantido pelo uso de certos indícios. Para
nós, a percepção desses indícios é fundamental porque se torna um caminho para
encontrarmos as estratégias nas piadas. Mas qual é a natureza desse indício? Como
podemos descrevê-lo? Qual é sua relação com as técnicas apontadas por Possenti (2008)
e Freud (2006)? Qual é sua contribuição para a realização do discurso humorístico nas
piadas de AFs?
No intuito de elucidar essas questões, devemos encontrar outros instrumentos de
análise. Acreditamos que os Modos de Organização do Discurso, enquanto categorias
discursivas que têm o poder de organizar a matéria linguística, possam, devido ao seu
poder de descrição, suprir essa necessidade.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
48
2.1.3. O
S MODOS DE ORGANIZAÇÃO DO DISCURSO
(MOD
S
)
Os Modos de Organização do Discurso são definidos como um conjunto de “...
procedimentos que consistem em utilizar determinadas categorias de língua para
ordená-las em função das finalidades discursivas do ato de comunicação...”
(CHARAUDEAU, 2008, p.74). Essas finalidades podem ser: enunciar, descrever, narrar
e argumentar. A cada uma delas corresponde respectivamente um modo de organização:
o Enunciativo, o Descritivo, o Narrativo e o Argumentativo. Esses modos podem se
combinar para formar alguns textos (por exemplo, o texto publicitário, o científico), ou
manter certa predominância em outros.
No que concerne às piadas, o fato de elas reproduzirem diálogos (stricto sensu) nos leva
a considerar uma certa predominância do MOD Enunciativo. Por uma questão de
economia, vamos ressaltar, aqui, algumas propriedades apenas desse MOD.
O Enunciativo é ... uma categoria discursiva que aponta para a maneira como o
sujeito falante age na encenação do ato de comunicação (CHARAUDEAU, 2008,
p.81). Por meio dele, pode ser definida a posição desse sujeito em relação ao outro, a ele
mesmo e ao mundo. Essa posição é demarcada pelo tipo de comportamento enunciativo
desse sujeito. Cada comportamento enunciativo determina as funções de base desse
modo de organização:
Ato alocutivo: permite estabelecer uma relação de influência entre locutor e
interlocutor;
Ato elocutivo: permite revelar o ponto de vista do locutor;
Ato delocutivo: permite retomar a fala de terceiros.
Cada uma dessas funções pode se materializar em procedimentos linguísticos diversos,
sendo a modalização a categoria que ... explicita os diferentes tipos de relação do
enunciativo (CHARAUDEAU, 2008, p.84). Essa categoria é representada por
subcategorias como, por exemplo, o aviso, a petição, a interrogação, a injunção, entre
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
49
outras
34
. Além de estarem relacionadas a cada ato enunciativo, essas subcategorias nos
permitem evidenciar mais claramente não as relações entre os sujeitos do ato de
linguagem, mas também as manobras discursivas por eles utilizadas como, por
exemplo, o uso da injunção. Esta corresponde a uma relação de força entre o locutor e o
interlocutor, na qual o primeiro impõe uma ação a ser realizada pelo segundo. Todavia,
deve-se levar em consideração que, fora de um contexto, essas modalidades
enunciativas não garantem o real funcionamento da visada que indicam, ou seja, uma
interrogação (“a porta está aberta?”) pode ser utilizada, por exemplo, com a finalidade
de realizar uma petição (“você poderia fechar a porta?”).
Portanto, a análise baseada no MOD Enunciativo e nas modalidades somente se fará
eficaz levando-se em consideração a situação de comunicação e os demais componentes
envolvidos. Daí a necessidade de entendermos o funcionamento e as propriedades
específicas do discurso humorístico, uma vez que é ele que, de certa maneira, organiza
as piadas, determinando a estrutura e a(s) visada(s) desses textos.
34
Ver adiante os quadros sinópticos das modalidades enunciativas de acordo com Charaudeau (2008,
p.86-105):
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
50
Q
UADROS SINÓPTICOS COM AS MODALIDADES
:
D
EFINIÇÃO
M
ODALIDADES
ALOCUTIVAS
L
OCUTOR EM SUA ENUNCIAÇÃO
I
NTERLOCUTOR EM SUA
RESPOSTA
I
NTERPELAÇÃO
Identifica o seu interlocutor, interpelando-o. Significa a sua presença ao
chamado.
I
NJUNÇÃO
Impõe um ato a se realizar.
I
NTERDIÇÃO
Impõe que um ato não deve se realizar.
Executa o ato exigido sob pena
de sanções.
A
UTORIZAÇÃO
Concede ao interlocutor o direito de
executar uma ação.
Utiliza ou não esse direito de
realizar ou não a ação.
A
DVERTÊNCIA
Anuncia uma ação/intenção que ele poderá
realizar com alguma condição.
Ignora ou não o ato; Pode estar
já prevenido.
J
ULGAMENTO
Postula que o interlocutor é responsável pelo
ato e o julga (aprovando ou reprovando).
Encontra-se qualificado pelo
julgamento do locutor.
S
UGESTÃO
Propõe ao interlocutor que execute uma ação
que descreve um meio para melhorar sua (do
interlocutor) condição.
É livre para utilizar ou não essa
proposta.
P
ROPOSTA
Oferece uma ação a se realizar em proveito
do interlocutor ou de ambos.
Pode aceitar ou recusar.
I
NTERROGAÇÃO
Pergunta ao interlocutor a respeito de um
“dizer” que esse último sabe.
Vê-se numa obrigação de
responder; mas sua ignorância
não acarreta em uma sanção.
R
EQUERIMENTO
Exige (com insistência) ao interlocutor uma
ação para melhorar sua (do locutor)
condição.
Pode não desejar (por algum
motivo) realizar essa ação.
Quadro 4
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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51
D
EFINIÇÃO
M
ODALIDADES
E
LOCUTIVAS
L
OCUTOR EM SUA ENUNCIAÇÃO
C
ONSTATAÇÃO
Reconhece um fato somente como observador/ objetividade;
exterioridade; se recusa a avaliar o fato.
S
ABER
/I
GNORÂNCIA
Pressuposta uma informação, diz se ele tem ou não o conhecimento a
respeito dessa informação colocada.
O
PINIÃO
Pressuposta uma informação, explicita o lugar que ocupa dentro de
“universo de crença”; avalia a verdade e revela seu ponto de vista.
A
PRECIAÇÃO
Avalia a verdade de uma proposição, revelando seus sentimentos;
afetividade; julgamento favorável ou desfavorável.
O
BRIGAÇÃO
Diz que é dever cumprir uma determinada ação, seja em razão de
contratos que cede a ele - mesmo (obrigação interna), seja sob a pressão
de uma ordem originada de uma instância de autoridade.
P
OSSIBILIDADE
Diz que tem uma aptidão ou uma disposição que lhe permite realizar
uma ação requisitada; pode ser interna (depende do locutor) ou externa
(depende de uma autorização).
Q
UERER
Diz que está em uma situação de necessidade que deveria ser preenchida,
o que significa que reconhece que a ação a se realizar o beneficiará.
P
ROMESSA
Supondo que a realização de uma ação, da qual ele é responsável, é
colocada em dúvida, ele se engaja em dizer que executará essa ação.
A
CEITAÇÃO
/R
EFUTAÇÃO
Supondo que a ele foi endereçada uma pergunta sobre o cumprimento de
um fato, responde favoravelmente ou desfavoravelmente.
A
CORDO
/D
ESACORDO
Pressupondo que a ele foi endereçada uma pergunta sobre aderir ou não a
uma verdade, ele pode responder que adere ou não a essa verdade.
D
ECLARAÇÃO
Possui um saber e, pressupondo que o interlocutor o ignora, diz que esse
saber existe dentro de sua verdade.
P
ROCLAMAÇÃO
Faz existir um ato no mesmo instante que ele profere sua fala;
Ele possui uma posição institucional que lhe garante autoridade para
fazer que isso aconteça.
Quadro 5
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
52
M
ODALIDADES
DELOCUTIVAS
D
EFINIÇÃO
A
SSERÇÃO
Corresponde, ponto por ponto, a maior parte das modalidades elocutivas; todavia,
um “apagamento” das marcas da responsabilidade do locutor, como por
exemplo:
Constatação: “É admitido que...”;
Evidência: “É evidente que...”;
Probabilidade: “É provável que...”;
Possibilidade: “É satisfatório que...”;
D
ISCURSO
RELATADO
Modalidade que depende da posição dos interlocutores, das maneiras de relatar
um discurso enunciado, e da descrição dos modos de enunciação de origem.
Pode se apresentar na forma de:
Citação: discurso direto com ou sem o uso de aspas ou dois pontos;
Integração: o discurso original é integrado parcialmente por meio de um discurso
indireto e o indireto livre;
Narrativizado: o discurso original é integrado totalmente por meio de
transformações morfológicas, entre elas a nominalização;
Alusão: artifício que reproduz na linguagem verbal o “como se diz” da linguagem
oral, remetendo a um dizer às vezes popular; caracteriza-se pelo uso de aspas,
travessões ou parênteses.
Quadro 6
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
53
2.2. O
DISCURSO HUMORÍSTICO
:
CARACTERÍSTICAS E CATEGORIAS DE ANÁLISE
De acordo com Charaudeau (2006b), a questão da análise dos atos humorísticos pode
ser encontrada em escritos de várias áreas do conhecimento (retóricos, estilísticos,
filosóficos, psicológicos, entre outros), o que criaria um quadro teórico possuidor de
uma infinidade de definições e categorias muitas vezes pouco operatórias. Refletindo
sobre isso, esse autor propõe, a partir de parâmetros oriundos da Análise do Discurso,
elaborar/elencar categorias que possibilitem a descrição e a caracterização desse tipo de
ato linguístico, numa perspectiva discursiva.
Antes, entretanto, Charaudeau ressalta a necessidade de expor algumas dificuldades na
caracterização dos atos de humor:
1) A questão do riso. Para Charaudeau, não devemos levar em consideração a
questão do riso na análise do ato humorístico admitindo que aquele seja garantia
deste, pois “... se o riso tem a necessidade de ser acionado por um fato
humorístico, este último não é desencadeado necessariamente pelo riso”
35
(CHARAUDEAU, 2006b, p.20 tradução nossa). Desse modo, evita-se entrar
numa problemática psicológica que acarretaria pensar que o fato humorístico
tem o objetivo de “fazer rir”.
2) A escolha dos termos para designar o humor. Charaudeau salienta, neste ponto,
a imprecisão das definições fornecidas pelos dicionários para o termo “humor”,
o que leva a uma variedade de sinonímias e definições flutuantes.
36
3) As categorias retóricas. Dificuldade semelhante à anterior é apontada por
Charaudeau no que se refere às categorias retóricas, principalmente quanto à
ironia. Segundo esse autor, a confusão entre os termos “humor” e “ironia”,
encontrada em vários dicionários de poética e literatura, ora aproximando esses
termos, ora afastando-os, não leva em conta a diversidade de definições para a
35
No original: Si le rire a besoin d’être déclencpar un fait humoristique, celui-ci ne déclenche pas
nécessairement le rire.
36
O termo humor também nos dicionários de língua portuguesa possui uma certa fluidez quanto à sua
definição como, por exemplo: “estado de espírito”; “comicidade”; “graça”; “jocosidade”; “expressão
irônica”; “ironia delicada e alegre”; “veia cômica”; “engenhosidade de espírito” etc.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
54
“ironia”, que pode ir desde a definição aristotélica
37
até as noções de “ironia do
destino”, “paradoxo” e “sarcasmo”.
Diante disso, Charaudeau (2006b, p.21 tradução nossa) propõe empregar o termo
“humor” para designar “... uma noção genérica [...] que pode se fazer objeto de
diversas caracterizações.”
38
2.2.1. A
MISE EN SCÈNE DO ATO HUMORÍSTICO
Antes de iniciarmos essa seção, devemos dar alguns esclarecimentos sobre as
colocações de Charaudeau exposta em seu artigo “Des catégories pour l’humour”.
Nesse texto de 2006, o autor retoma algumas categorias da Teoria Semiolinguística e as
adapta à análise do ato de comunicação humorístico. Com esse intuito, Charaudeau
propõe uma “mise en scènce” triádica na qual se encontram três sujeitos: o locutor, o
destinatário e o alvo. Dentre esses sujeitos, destacamos a instância enunciativa do alvo
(cible). Em Charaudeau (2006b), essa instância deve ser considerada uma instância
cambiante que ora pode representar um sujeito indiretamente presente durante o ato de
linguagem, ora se fundir tanto ao locutor (no caso da autoironia) ou ao destinatário
(tornando-o cúmplice ou vítima do ato). Isso nos leva a pensar que existem similitudes
entre o alvo e a categoria de terceiro (tiers), pois ambas dizem respeito a uma instância
presente, ainda que indiretamente, no ato da enunciação: aquela de quem se diz. Além
disso, não devemos confundir a instância do alvo como o TU
d
, mesmo que esse seja
considerado uma espécie de expectativa, aposta, escopo para locutor. Devido a isso,
deve ficar claro que o alvo tem seu valor como categoria operacionalizada
exclusivamente nesse esboço de problematização da análise do discurso humorístico,
isso porque os postulados de Charaudeau (2006b) estão desenvolvidos de forma não
totalmente conclusiva, ou seja, abertos a discussões e a reformulações.
Cientes disso, nesta seção, apresentaremos a descrição daquilo que Charaudeau (2006b,
p.21) denomina “mecanismo da mise en scène do discurso humorístico”, seus
37
Definição na qual a ironia é vista como uma “... antifrase que consiste em dizer o contrário daquilo
que se pensa (CHARAUDEAU, 2006b, p.21 tradução nossa do original: ... une antiphrase qui consite
à dire le contraire de ce que l’on pense.)
38
No original: ... une notion générique qui [...] peut faire l’objet de diverses catégorisations.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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55
principais componentes e a sua relação com as diversas situações de comunicação nas
quais um ato humorístico pode aparecer.
Segundo Charaudeau (2006b), o ato de comunicação humorístico não constitui a
totalidade de uma situação de comunicação, o que implica considerar que esse ato pode
fazer parte de qualquer tipo de situação, inserido potencialmente numa diversidade de
contratos: publicitário, midiático, conversacional etc. Isso leva o teórico a postular que o
ato humorístico é ... uma certa maneira de dizer no interior de diversas situações, um
ato de enunciação com fins de estratégia para fazer de seu interlocutor um cúmplice”
39
(CHARAUDEAU, 2006b, p.22 – tradução nossa).
Ressalta-se, ainda, que a análise do ato humorístico deve ir além da descrição dos jogos
de palavras, que evidenciariam somente uma atividade lúdica. Assim, com o objetivo
de estudar o ato de comunicação humorístico, devemos, seguindo Charaudeau,
descrever:
a) A situação de comunicação;
b) A temática predominante;
c) Os procedimentos linguageiros colocados em funcionamento;
d) Os efeitos suscetíveis de serem produzidos no auditório.
Em (a), o ato humorístico deve ser considerado como uma mise en scène onde se
encontram três sujeitos
40
:
39
No original: Il est plutôt une certaine manière de dire à l’intérieur de ces diverses situations, un acte
d’énonciation à des fins de stratégie pour faire de son interlocuteur un complice.
40
Como todo modelo esquemático, esse esboço da mise en scène triádica não deve ser considerado como
estanque e rígido em relação à quantidade de sujeitos envolvidos, uma vez que os sujeitos podem se
desdobrar em outras instâncias como postula a Teoria Semiolinguística.
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56
Figura 3
O locutor sujeito que produz o ato humorístico numa determinada situação de
comunicação, na qual ele levará em conta dois fatores: as coerções e a forma de
enunciação. Quanto às coerções, esse sujeito deve saber se ele possui
autorização para produzir tal ato, ou seja, se é legitimado, uma vez que esse ato
pode ferir o interlocutor, tornando este uma tima. Em outros casos, o ato de
humor visa a atingir um outro, levando o interlocutor a se tornar uma espécie
cúmplice. Quanto à forma de enunciação, o locutor pode contar uma história
engraçada (histoire drôle), trazendo para cena personagens-enunciadores que
possuem certas identidades (papéis sociais) sobre as quais repousa o sucesso do
ato de humor.
O destinatário o sujeito chamado a participar da mise en scène do ato
humorístico assumindo ora papel de cúmplice, ora de vítima. Enquanto
cúmplice, o locutor busca sua conivência, chamando-o “... a partilhar a visão
decalcada do mundo que propõe o enunciador, além do julgamento que esse
coloca sobre o alvo”
41
(CHARAUDEAU, 2006b, p.23 – tradução nossa). É
transformado, desse modo, numa espécie de “testemunha” do ato comunicação
do locutor. Enquanto vítima, esse sujeito é tornado, ao mesmo tempo, o
destinatário e o alvo, podendo assumir duas posições: 1) aceitar rir de si mesmo;
ou 2) fazer “ouvidos de mercador”. Sua réplica, no entanto, se existir, terá,
provavelmente, um caráter semelhante à agressão sofrida.
O alvo é a entidade sobre a qual o ato de humorístico recai. “Pode possuir
natureza de pessoa (coletiva ou individual), na posição de terceiro protagonista
41
No original: ... il est appelé à partager la vision décalée du monde que propose l’énonciateur, ainsi que
le jugement que celui-ci porte sur la cible.
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57
da cena humorística, na qual se coloca em censura o comportamento
psicológico ou social, sublinhando os defeitos ou os ilogismos dentro suas
maneiras de ser e de fazer aos olhos de julgamento social de normalidade...”
42
(CHARAUDEAU, 2006b, p.23 tradução nossa). Além disso, “é por
intermédio do alvo que o ato humorístico questiona as visões normatizadas do
mundo procedendo aos desdobramentos, às disjunções, às discordâncias, às
dissociações dentro da ordem das coisas”
43
(CHARAUDEAU, 2006b, p.24
tradução nossa).
Em (b), devemos tratar mais especificamente de definir o “domínio” ou o “universo” de
discurso sobre o qual o ato de comunicação humorístico está fundado. Apesar das
dificuldades em circunscrever tais domínios
44
, Charaudeau (2006b) sugere uma
distinção simples no interior desses com a finalidade de determinar quais são os
domínios de discurso partilhados pelos protagonistas do ato humorístico. Isso porque é
sobre essa distinção que repousam os tipos e os possíveis efeitos de humor baseados em
visões decalcadas do mundo. O locutor do ato humorístico “joga” com essas visões,
esperando que elas sejam partilhadas pelo seu destinatário. Disso resulta a questão de
saber se se pode fazer humor sobre tudo, ou seja, determinando-se a temática,
vislumbrar-se-ão as possíveis coerções impostas ao locutor.
Em (c), Charaudeau (2006b) afirma que os procedimentos linguageiros podem ser
divididos em dois tipos: 1) os linguísticos; e 2) os discursivos. Quanto aos primeiros,
são definidos como procedimentos que “... dependem de um mecanismo léxico-
sintático-semântico que concerne ao explícito dos signos, sua forma e seus sentidos,
42
No original: La cible est ce sur quoi porte l’acte humoristique ou ce à propos de quoi il s’exerce. Ce
peut être une personne (individu ou groupe), en position de troisième protagoniste de la scène
humoristique, dont on met à mal le comportement psychologique ou social en soulignant le défauts ou les
illogismes dans ses manières d’être et de faire au regard d’un jugement social de normalité...
43
No original: C’est par l’intermédiaire de la cible que l’acte humoristique met en cause des visions
normées du monde en procédant à des dédoublements, des disjonctions, des discordances, des
dissociations dans l’ordre des choses.
44
Segundo Charaudeau (2006b), várias tentativas de circunscrever esses domínios, realizadas por
disciplinas como antropologia, sociologia, filosofia, ciências da linguagem etc. Estas possuem cada uma
suas categorias próprias, criando dificuldades nessa “caracterização”, uma vez que esta última poderá
variar dependendo, ao mesmo tempo, “... dos modos de vida cultural e da maneira de observar uma
sociedade” (CHARAUDEAU, 2006b, p.24 tradução nossa). No original: ... des modes de vie culturels
et de la façon dont on regarde une société.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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58
assim como à relação forma-sentido”
45
(CHARAUDEAU, 2006b, p.25 tradução
nossa). Além disso, destaca Charaudeau, esses mecanismos não são em si portadores de
valor humorístico, podendo ser utilizados em diferentes gêneros sérios como a poesia.
Quanto aos procedimentos discursivos, estes dependem mais diretamente dos
mecanismos de enunciação do ato humorístico: dos sujeitos e de suas posições
assumidas; do contexto; e dos domínios temáticos partilhados.
Em (d), Charaudeau (2006b, p.35) considera os efeitos possíveis do ato humorístico
como resultantes de “mise en cause” (questionamento) de uma visão do mundo,
buscando uma conivência (que pode ser lúdica, crítica, cínica, de derrisão, ou
“plaisanterie”
46
) do destinatário.
A partir do exposto, conclui-se que, para uma análise profunda do discurso humorístico,
são necessárias categorias que nos possibilitem vislumbrar os componentes ligados
tanto à superfície do enunciado quanto à sua enunciação. Dessa forma, elencaremos
algumas categorias de análise propostas por Charaudeau (2006b), além de apresentar os
efeitos do ato humorístico e a sua relação com as visadas discursivas, visando criar um
quadro para a descrição do corpus de nossa pesquisa.
2.2.2. A
LGUMAS CATEGORIAS PARA ANÁLISE DO DISCURSO HUMORÍSTICO
Charaudeau (2006b) inicia sua discussão
47
sobre as categorias do humor pela distinção
entre as categorias ligadas à enunciação e as categorias do enunciado. As primeiras,
segundo o autor, fazem parte de um “jogo” com o que é dito explicitamente e aquilo que
é deixado a entender (implícitos). As segundas categorias, por sua vez, estão ligadas ao
semantismo das palavras que possibilita a dissociação de isotopias. Feita essa distinção,
45
No original: Les procédés linguistiques relèvent d’un mécanisme lexico-syntaxique-sémantique qui
concerne l’explicite des signes, leur forme et leurs sens, ainsi qui les rapports forme-sens.
46
Em português, literalmente, brincadeira. Termo de difícil tradução no contexto do artigo, pois deve ser
assumido no sentido restrito de um comentário colocado sobre um enunciado que acabou de ser dito,
diminuindo, assim, seu caráter sério: “estava só brincando”.
47
Não nos aprofundaremos nas problemáticas questões teóricas levantadas por Charaudeau em relação às
categorias de análise, por limitação de espaço nessa dissertação. Todavia, devemos destacar que, para
esse autor, as categorias do ato humorístico devem ser tomadas de modo que possam ser combinadas
entre si em prol da análise, pois o próprio ato humorístico pode ser ao mesmo tempo irônico, lúdico,
cínico etc. Assim, levando-se em consideração essa possibilidade, essas categorias devem ser entendidas
como operatórias e não essencializantes.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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59
Charaudeau (2006b, p.27-34) propõe definições para essas categorias, visando à
descrição e à classificação dos atos humorísticos e de suas particularidades.
Apresentaremos, a seguir, essas definições e o modo como devem ser entendidas na
enunciação e no enunciado.
2.2.2.1. C
ATEGORIAS DO HUMOR LIGADAS AO
JOGO ENUNCIATIVO
Como ensina Charaudeau (2006b, p.27 – tradução nossa), o “jogo enunciativo”:
... consiste para o locutor em colocar o destinatário dentro de uma
posição onde ele deve calcular a relação entre o que é dito explicitamente
e a intenção escondida que recobre o explícito. Segue-se uma dissociação
entre o sujeito enunciador (aquele que fala explicitamente) e o sujeito
locutor que se encontra atrás cuja intenção deve ser descoberta.
48
Partindo dessa descrição, o autor passa a discutir as propriedades necessárias para
realização do ato humorístico que se baseia no procedimento da enunciação. Para isso,
ele tomará como ponto inicial a definição de ironia, entendida enquanto categoria
enunciativa na qual “... o dito (julgamento positivo) mascara o não-dito (julgamento
negativo), mas [que] ao mesmo tempo se desfaz desde que se descubra o que está dado
a entender...”
49
(CHARAUDEAU, 2006b, p.32 tradução nossa). Apesar de possuir
características diferentes com relação a outras categorias como a sátira, o sarcasmo, a
autoironia, o pastiche e a paródia, a ironia mantém com estas últimas similitudes no
processo discursivo que devem ser evidenciadas. Assim, seguindo Charaudeau (2006b,
p.27-29), devemos atentar para algumas dessas características
50
da ironia antes de
definir as demais categorias:
48
No original: ... le jeu énonciatif consiste pour le locuteur à mettre le destinataire dans une position
il doit calculer le rapport entre ce qui est dit explicitement et l’intention cachée que recouvre cet
explicite. Il s’ensuit une dissociation entre le sujet énonciateur (celui qui parle explicitement) et le sujet
locuteur qui se trouve derrière dont l’intention doit être découvert.
49
No original: ... le dit (julgament positif) masque le non-dit (julgament négatif), mais même temps se
détruit dès que l’on découvre ce qui est donné à entendre...
50
As implicações teórico-filosóficas das afirmações sobre essas características fogem aos objetivos desse
trabalho.
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60
1ª. O ato de enunciação produz uma dissociação entre o que é dito e o que é
pensado, no sentido de discordância ou mesmo contrário daquilo que é dito pelo
EU
e
e o que é pensado pelo EU
c
;
2ª. A enunciação faz coexistir o que é dito e o que é pensado, ou seja, de certa
maneira deixar transparecer para um destinatário ideal o que é pensado apesar de
não dito. Daí a presença dos índices (ou indícios) para que o destinatário possa
realizar a conversão;
3ª. “O enunciado dito pelo enunciador se apresenta sempre como uma
apreciação positiva mascarando a apreciação que é pensada pelo autor, e que é
então negativa”
51
(CHARAUDEAU, 2006b, p.28 – tradução nossa).
Diante disso, Charaudeau cria lista de categorias tendo como centro a ironia e as
nuances de diferenças em relação às características acima descritas. Resumiremos as
categorias mais diretamente ligadas ao ato humorístico enquanto diálogo do cotidiano
52
:
Sarcasmo ou raillerie”diferentemente da ironia, que prevê que o julgamento
negativo recaia sobre o interlocutor, no sarcasmo é o alvo o objetivo desse
julgamento, enquanto o interlocutor é chamado a ser um cúmplice. Todavia,
pode acontecer de interlocutor e alvo estarem fundidos numa mesma entidade, o
que evidenciará uma desvalorização ou até mesmo uma agressão ao primeiro.
Ainda sobre a diferença entre a ironia e “raillerie” (gracejo/zombaria),
Charaudeau (2006b, p.30-31) considera que nesta última o que é dito é
explicitamente um julgamento negativo, enquanto que naquela o que é uma
expressão de um julgamento positivo. Isso, continua o teórico, acarreta, por um
lado, a não percepção da discordância entre o que é dito e pensado (ambos, na
“railleirie”, negativos); por outro, pode-se constatar um exagero no que é dito
em relação o que é pensado, numa espécie de hiperbolização do julgamento
negativo.
51
No original: ... l’énoncé dit par l’énonciateur se présent toujour comme une appréciation positive
masquant l’appréciation qui est pensée par l’auteur, et que donc est toujour négative.
52
Para não fugir aos objetivos de nossa pesquisa, vamos nos abster de discutir as categorias que
Charaudeau considera ligadas aos processos de citação, a saber: a paródia, a sátira e o pastiche.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
61
Autoironia nesse ato de enunciação, o locutor que está provavelmente numa
situação de desvalorização dirige seu julgamento negativo sobre si mesmo,
constituindo-se em uma espécie de “cible-interlocuteur-soi-même” (alvo-o
próprio interlocutor). Contudo, como afirma Charaudeau, deve-se ter em mente
que esse locutor se encontra de algum modo dédouané” (desdobrado, afastado,
distanciado) nesse ato.
2.2.2.2. C
ATEGORIAS DO HUMOR LIGADAS AO
JOGO SEMÂNTICO
Como afirma Charaudeau (2006b), as formas de humor construídas a partir dos
procedimentos linguísticos se baseiam na polissemia contida em palavras que podem
levar a dois ou vários níveis ou universos de leitura (isotopia
53
). O jogo semântico diz
respeito, pois, aos diferentes tipos de variação de sentido existente nas palavras, ou
mesmo em construções frásticas, o que Charaudeau vai denominar de incohérences
(incoerências). Diante disso, o autor (2006b, p.32-34 tradução nossa) define as
principais categorias de análise dessa espécie de humor, das quais apresentaremos uma
síntese no quadro (7):
53
Tomaremos o conceito de isotopia como a existência de uma certa homogeneidade no plano de leitura
de um texto em oposição à pluri-isotopia (ou alotopia), que está ligada à heterogeneidade de sentidos ou
à possibilidade de haver ambiguidades em um dado texto (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2006).
O conceito de pluri-isotopia contribui para evidenciar tanto as mudanças no plano de leitura quanto as
estratégias discursivas relacionadas, por exemplo, ao “silenciamento” de determinados discursos. Ela é
caracterizada por determinados procedimentos linguísticos ligados à “... permanência [ou não] de um
sentido ao longo da cadeia do discurso(BERTRAND, 2003 apud LARA, 2008, p.63): os conectores de
isotopias, que dizem respeito tanto à isotopia X quanto à isotopia Y, ou seja, podem ser lidos e
interpretados proporcionando sentido em ambas; e os desencadeadores de isotopia, elementos que “... se
encaixa[m] mal em uma dada leitura e leva[m] à ‘descobertade uma outra isotopia.” (BARROS, 2004,
p.208).
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
62
I
NCOERÊNCIA
C
ARACTERÍSTICAS
L
OUFOQUERIE
54
“Os universos colocados em relação são completamente estranhos uns aos
outros, nada tem a ver uns com o outros.”
55
(p.32);
A narrativa surge de uma relação entre objetos construída aparentemente sem
sentido (“hors-sens”), fora da lógica humana, o que a aproxima das histórias
de loucos;
“... não julgamento de valor como dentro da ironia ou da “raillerie”
porque se está mergulhado num mundo sem laços lógicos entre os eventos,
um mundo, como se diz, louco.”
56
(p.33)
I
NSÓLITA
Esse procedimento liga dois universos diferentes entre si, mas que não são
completamente estranhos um ao outro;
A ligação entre esses universos não se de forma natural, ou seja, ela se
torna perceptível devido à narrativa ou à situação onde os universos são
chamados a se relacionar, o que justifica a própria ligação;
Na incoerência insólita, uma espécie de transferência de sentido (“trans-
sens”) entre os universos e, diferentemente da loufoquerie, é possível
explicar
57
essa transferência evidenciando, por exemplo, a polissemia dos
termos, um acidente dentro da narrativa, um traço comum abstrato etc.
P
ARADOXAL
“Trata-se da relação de contradição entre duas lógicas dentro da mesma
isotopia”
58
(p.34);
Esse tipo de incoerência ataca a própria lógica; não a lógica universal, mas
aquela que é garantida pela norma social, criando, desse modo, uma
antinorma social;
O resultado produzido com essa incoerência é uma contradição inaceitável
dentro do mesmo universo de leitura porque se cria um “contre-sens”,
ligando normalmente elementos antinômicos entre si.
Quadro 7
De posse dessas categorias, acreditamos poder construir uma descrição que nos leve a
melhor evidenciar os possíveis efeitos de humor nas piadas de AFs. Todavia, ainda é
necessário discutir esses efeitos e a sua relação com as visadas discursivas de modo que
54
Termo de difícil conversão para o português. Tem sentido próximo de “loucura”, “doideira”, “coisa
estapafúrdia”.
55
No original: ... les univers mis en relation sont complètement étrangers l’un à l’autre, n’ont rien à voir
l’un avec l’autre.
56
No original: ... il n’y a pas de jugement de valeur comme dans l’ironie ou la raillerie puisque l’on est
plongé dans un monde sans liens logiques entre les événements, un monde, comme on dit, loufoque.
57
De acordo com Charaudeau (2006b), é possível diferenciar a incoerência “loufoquerie” da insólita não
pela existência de um laço entre os universos envolvidos, mas pela possibilidade de percepção mais ou
menos fácil da existência desse laço.
58
No original: Il s’agit de rapports de contradiction entre deux logiques dans une même isotopie.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
63
isso nos mostre não somente os alvos (cibles) das piadas, mas também como os AFs,
utilizando-se destas, procuram captar seu interlocutor.
2.2.3. O
S EFEITOS POSSÍVEIS DO ATO HUMORÍSTICO E AS VISADAS DISCURSIVAS
O efeito possível de um ato humorístico, de acordo com Charaudeau, é ... a resultante
de um tipo de mise en cause” (questionamento) sobre o mundo e de um contrato de
chamado à conivência que o humorista propõe ao destinatário, exigindo que este tome
partido em relação à causa.”
59
(CHARAUDEAU, 2006b, p.35 – tradução nossa)
Dessa forma, tem-se no interior desse contrato um sujeito locutor que possui uma
intencionalidade, na forma de um efeito visado, e um sujeito destinatário do qual se
busca uma conivência relacionada com um efeito de prazer. Como postula Charaudeau,
não garantia de coincidência entre o efeito visado e o efeito produzido. Daí se falar
em efeitos possíveis. Estes evidenciariam, por um lado, os efeitos visados pelo sujeito
locutor que, como podemos perceber, mantêm uma relação de especificação com as
visadas discursivas e, por outro, corresponderiam a diferentes tipos conivências
exigidas ao sujeito destinatário. No quadro (8), apresentaremos alguns tipos de
conivências e os efeitos visados a elas relacionados propostos por Charaudeau (2006b,
p.36-39 – tradução nossa):
59
No original: L’effet possible est la résultante du type de mise en cause du monde et du contrat d’appel
à connivence que l’humoriste propose au destinataire, et qui exige de celui-ci qu’il adhère à cette mise en
cause.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
64
C
ONIVÊNCIA
D
ESCRIÇÃO
E
FEITO VISADO
L
ÚDICA
“... é um alegramento por ele-mesmo
dentro de uma fusão emocional do autor
e do destinatário, livre de todo o
espírito crítico, produzido e consumido
dentro de uma gratuidade de
julgamento como si tudo fosse
possível.”
60
(p.36)
“... busca fazer partilhar uma visão
decalcada sobre as bizarrices do
mundo e das normas do julgamento
social, sem sugerir algum
engajamento moral, mesmo si, [...],
uma ‘mise en cause’ das normas
sociais se encontre em
subjacência...
61
(p.36)
C
RÍTICA
“... propõe ao destinatário uma
denúncia de um “falso-parecer” de
virtude que esconde valores negativos.
[...] Contrariamente à conivência
lúdica, a crítica possui um carga
particularizante podendo tornar-se
agressiva com relação ao alvo.”
62
(p.36)
“Ela é polêmica (o que a torna
diferente da conivência lúdica), como
se houvesse uma contra-
argumentação implícita, pois busca
fazer partilhar o ataque a uma ordem
estável denunciando falsos valores.”
63
(p.36)
C
ÍNICA
“... possui um efeito destruidor. [...]
Aqui, não a mesma contra-
argumentação implícita, como dentro
da conivência crítica. Além disso, o
sujeito humorista ostenta que ele
assume essa destruição dos valores,
avesso e contra todos.”
64
(p.37)
“... busca fazer partilhar uma
desvalorização dos valores que a
norma social considera positivos e
universais.”
65
(p.37)
D
ERRISÃO
“... visa desqualificar o alvo,
rebaixando-o, isto é, fazendo-o descer
do pedestal sobre o qual ele esteja.”
66
(p.37)
“A conivência de derrisão tem em
“... a conivência de derrisão busca
fazer partilhar a insignificância do
alvo quando esse se crê importante
(ou quando se crê que ele se crê
importante). De forma mais geral, ela
busca fazer partilha uma ‘mise à
60
No original: ... est un enjouement pour lui-même dans une fusion émotionnelle de l’auteur et du
destinataire, libre de tout esprit critique, produite et consommée dans une gratuité du jugement comme si
tout était possible.
61
No original: Elle cherche à faire partager un regard décalé sur le bizarreries du monde et le normes du
jugement social, sans qu’elle suppose un quelconque engagement moral, même si, comme pour tout acte
humoristique, une mise en cause des normes sociales se trouve en sous-jacente.
62
No original: La connivence critique propose au destinataire une dénonciation du faux-semblant de
vertu qui cache des valeurs négatives. [...]. Contrairement à la connivence ludique, la critique a une
portée particularisante pouvant devenir agressive à l’endroit de la cible.
63
No original: Elle est donc polémique (ce que n’est pas la connivence ludique), comme s’il y avait une
contre-argumentation implicite, car elle cherche à faire partager l’attaque d’un ordre établi en
dénonçant de fausses valeurs.
64
No original: La connivence cynique a un effet destructeur. [...] Ici, il n’y a même pas contra-
argumentation implicite, comme dans la connivence critique. De plus, le sujet humoriste affiche qu’il
assume cette destruction des valeurs, envers et contre tous.
65
No original: ... elle cherche à faire partager une dévalorisation des valeurs que la norme sociale
considère positives et universelles.
66
No original: La dérision vise à disqualifier la cible en la rabaissant, c’est-à-dire en la faisant
descendre du piédestal sur lequel elle était.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
65
comum com conivência crítica a
desqualificação sobre uma pessoa ou
um ideia, mas diferentemente da crítica,
ela não procede nem chama nenhum
desenvolvimento argumentativo. A
derrisão desqualifica brutalmente, sem
apelar, sem defesa possível. Ao
contrário, a crítica supõe que se possa
justificá-la.”
67
(p.38)
distance’ às vezes mesmo um certo
desprezo referente ao que, de uma
maneira ou de outra, está
supervalorizado.
68
(p.37-38)
“P
LAISANTERIE
“... consiste em pontuar aquilo que
acabou de ser dito por um comentário
para tirar do proposto seu caráter de
sério...”
69
(p.38)
“Esse direito reivindicado a
troçar/zombar ou dizer não importa o
que é uma maneira de convidar o
interlocutor a partilhar um momento
de pura “brincadeira a
brincadeira pela brincadeira –, que
não engaja em nada, não carrega
nenhum julgamento sobre o mundo
nem sobre o outro, coloca tudo em
causa através da linguagem mas de
maneira gratuita. Evidentemente, isso
é somente aparência, pois a maior
parte do tempo, permanece uma
crítica. No entanto, aqui o jogo
consiste em fazer como se ela fosse
(pelo menos provisoriamente)
anulada.”
70
(p.38-39)
Quadro 8
67
No original: La connivence de dérision a en commun avec celle de critique la disqualification d’une
personne ou d’une idée, mais à la différence de la critique, elle ne procède ni n’appelle aucun
développement argumentatif. La dérision disqualifie brutalement, sans appel, sans défense possible. En
revanche, la critique suppose que l’on puisse la justifier.
68
No original: ... la connivence de dérision cherche à faire partager cette insignifiance de la cible lorque
celle-ci se croit importante (ou lorsqu’on croit qu’elle se croit importante). Plus généralement, elle
cherche à faire partager une mise à distance parfois même un certain mépris vis-à-vis de ce qui,
d’une façon ou d’une autre, est survalorisé.
69
No original: ... consiste à ponctuer ce qui vient d’être dit par un commentaire pour ôter au propos son
caractère sérieux...
70
No original: Ce droit revendiqué à blaguer ou dire n’importe quoi est une façon d’inviter
l’interlocuteur à partager un moment de pure plaisanterie la plaisanterie pour la plaisanterie –, qui
n’engage à rien, ne porte aucun jugement sur le monde ni sur l’autre, met tout en cause à travers le
langage mais de façon gratuite. Évidemment, cela n’est qu’apparence, car la plupart du temps, demeure
sous-jacente une critique. Il n’empêche, ici le jeu consiste à faire comme si celle-ci était (du moins
provisoirement) annulée.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
66
Exposto esse quadro teórico que engloba categorias de análise e efeitos possíveis, ficam
as perguntas: como esses elementos devem ser aplicados às piadas de AFs? Será que o
contrato dessas piadas corresponde exatamente ao proposto por Charaudeau para o
discurso humorístico em geral? Em que contribuirá saber sobre efeitos visados e efeitos
produzidos com relação às representações sociais da mulher nas piadas de AFs? A essas
questões propomos não uma resposta definitiva, acabada, mas uma discussão
fundamentada numa análise minuciosa do corpus, na qual rios conhecimentos devem
entrecruzar-se para que possamos vislumbrar e apontar as estratégias discursivas
predominantes existentes nas piadas de AFs.
Antes, entretanto, devemos levantar algumas considerações sobre os conceitos de
representações sociais e de imaginários sociodiscursivos dentro do quadro teórico da
Análise do Discurso e, mais especificamente, dentro da Teoria Semiolinguística.
2.3. A
LGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE OS CONCEITOS DE
R
EPRESENTAÇÕES E
I
MAGINÁRIOS
S
OCIODISCURSIVOS
.
De natureza cognitivo-discursiva, as “representações sociodiscursivas” veiculam
imagens mentais pelo discurso, configurando-se explicitamente (palavras e expressões)
ou implicitamente (alusões) (CHARADEAU; MAINGUENEAU, 2006, p.433). Elas são
mecanismos de construção do real, isto é, são maneiras de ver e julgar a realidade
71
que
engendram saberes (CHARAUDEAU, 2006c, p.197). Esses saberes, por sua vez, são
maneiras de dizer que contribuem para a construção de sistemas de pensamento sobre o
mundo. Assim, essas representações podem estabelecer as crenças numa determinada
sociedade, orientar as condutas aceitas numa dada época e desempenhar o papel de
responsáveis pela constituição do sujeito com fins de adaptação ao meio ambiente e de
comunicação com o outro (CHARAUDEAU, 2006c, p.194-195).
71
Segundo Charaudeau (2007, p.50-51 tradução nossa), “... a realidade corresponde ao mundo
empírico através de sua fenomenalidade, como lugar a-significante (e ainda a-significado) se impondo
ao homem em seu estado bruto e esperando por significado. Em oposição, o real se refere ao mundo da
linguagem tal qual é construído, estruturado, pela atividade do homem através do exercício da
linguagem...” No original: ... ‘la réalité’ correspond au monde empirique à travers sa phénoménalité,
comme lieu a-signifiant (et encore a-signifié) s’imposant à l’homme dans son état brut en attendant
d’être signifié. Par opposition, ‘le réel’ réfère au monde tel qu’il est construit, structuré, par l’activité
signifiante de l’homme à travers l’exercice du langage...
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
67
No quadro da Semiolinguística, podemos dizer que essas representações e esses saberes
também constituem um ponto central, pois para firmar contratos de comunicação, por
exemplo, são necessários os conhecimentos sobre a situação de comunicação e sobre as
circunstâncias nas qual um ato de linguagem acontecerá. O problema é que esses
saberes, em muitos casos, se apresentam de forma implícita, ou seja, são saberes
pressupostos e, ao mesmo tempo, não-tematizados.
Para resolver esse problema, Charaudeau (2006c; 2007) propõe a utilização da categoria
de imaginário sociodiscursivo como forma de descrever os saberes partilhados explícita
e implicitamente pelos participantes do ato de linguagem.
Charaudeau (2007) ressalta que o termo imaginário apresenta diferentes sentidos de
acordo com a sua aparição no decorre do pensamento filosófico: a) diferente de
fantasioso, no pensamento clássico; b) a intersecção entre a dualidade do eu, isto é, eu-
individual e o eu-coletivo; c) como os diversos discursos testemunham uma determinada
sociedade. Por sua vez, o conceito de imaginário sociodiscursivo, afirma Charaudeau
(2006c), tem suas bases no conceito de imaginários sociais de Cornelius Castoriades
que coloca os imaginários como a capacidade de simbolização da realidade por um
determinado domínio de prática social (artísticas, política, jurídica etc.) por um grupo
social. Contudo, Charaudeau (2007) vai reformular o conceito dentro de campo da
Análise do Discurso:
... o imaginário pode ser qualificado de sociodiscursivo na medida em
que se constrói a hipótese de que o sintoma de um imaginário é o
discurso. Em efeito, o imaginário resulta de uma atividade de
representação que constrói universos de pensamento, lugares de
instituição de verdades, e essa construção se faz pelo viés da
sedimentação de discursos narrativos e argumentativos propondo uma
descrição e uma explicação dos fenômenos do mundo e dos
comportamentos humanos
72
(CHARAUDEAU, 2007, p.54 – tradução
nossa).
72
No original: ... cet imaginaire peut être qualifié de socio-discursif dans la mesure ou on fait l’hypothèse
que le symptôme d’un imaginaire est la parole. En effet, celui-ci résulte de l’activité de représentation qui
construit des univers de pensée, lieux d’institution de vérités, et cette construction se fait par le biais de la
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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68
O que se coloca, portanto, é a importância da construção desses imaginários nos
discursos e a sua relação com o real construído também através do discurso. Partindo
disso, Charaudeau (2006c) afirma que o analista do discurso deverá verificar como se dá
a constituição desses imaginários, onde eles surgem, suas formas de materialização etc.
Desse modo, Charaudeau caracterizará o conceito de imaginário social de maneira a
transformá-lo numa categoria formal no quadro da Teoria Semiolinguística,
esclarecendo que a estrutura do conceito de imaginário sociodiscursivo se a partir de
um engendramento de saberes realizado pelas representações sociais
73
. Essas
representações sociais, segundo o autor, dizem respeito às formas de organização dos
“... esquemas de classificação e de julgamento de um grupo social e [que] lhe permitem
[aos saberes] exibir-se através de rituais, de estilizações de vida, de signos simbólicos.”
(CHARADEAU, 2006c, p.196). Ou seja, elas não são um subconjunto dentro dos
imaginários. Elas, como destacamos anteriormente, organizam os saberes por meio de
uma semelhança semântica relativamente estável. Os saberes, por sua vez, são as
maneiras de dizer essas representações. Eles é que dão fundamento às representações.
Charaudeau (2006c) os classifica em:
Saberes de conhecimento: procuram estabelecer uma verdade sobre o mundo,
constituindo um saber exterior ao homem. Desse modo, o mundo se impõe ao
homem como realidade por si mesmo. Esse saber pode ser subdivido em: savant
(próximo do saber científico; da ordem do que pode ser provado) e de
experiência (próximo de um conhecimento que pode ser experimentado);
Saberes de crença: procuram também estabelecer uma verdade sobre o mundo,
mas por meio de avaliação e julgamento, daí um engajamento daquele que
enuncia em relação ao conhecimento enunciado. Com isso, o homem se impõe
ao mundo, que passa por um filtro interpretativo do sujeito. Pode se apresentar
na forma de uma revelação (semelhante às verdades doutrinais) e de opinião
(marcadas por um engajamento do sujeito).
sédimentation de discours narratifs et argumentatifs proposant une description et une explication des
phénomènes du monde et des comportements humains.
73
Conceito elaborado pela Psicologia Social, as representações sociais são consideradas como as
maneiras de se compreender a realidade. Com elas, “... a sociedade se exprime simbolicamente em seus
costumes e instituições através da linguagem, da arte, das ciências, da religião, assim como através das
regras familiares, das relações econômicas e políticas.” (MAUSS, 1974 apud MINAYO, 1995, p.92)
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
69
Com os tipos de saberes expostos, ainda é necessário mostrar como os imaginários
podem ser materializados e como eles podem ser percebidos pelos sujeitos. De acordo
com Charaudeau (2006c) os imaginários sociodiscursivos podem materializar-se de
diversas formas, entre elas: em comportamentos sociais (rituais); em diferentes tipos de
produção cultura e tecnológica; e em construção de símbolos. No entanto, afirma o
mesmo autor, para que haja uma materialização discursiva dos imaginários, é necessária
uma racionalidade discursiva que se encontra nos textos orais ou escritos e nos “...
enunciados de diversas configurações, mas com núcleo semântico estável”
(CHARAUDEAU, 2006c, p.206-207). Por sua vez, a percepção dos imaginários
depende do número de sujeitos envolvidos, o que concede uma especificação diferente
para os imaginários:
Imaginário pessoal: quando diz respeito à percepção individual do sujeito em
relação a determinado imaginário. Este pode ser, segundo Charaudeau (2007),
julgado ou sentido de acordo com história íntima do sujeito;
Imaginário social: quando diz respeito a uma atividade de simbolização do
mundo dentro de domínios de práticas sociais (artística, política, jurídica,
religiosa, educativa etc.)
Além disso, cabe salientar que essa percepção dos imaginários sociodiscursivos
acontece em situações de comunicação nas quais parece haver uma problematização a
respeito desses imaginários, ou uma comparação dos imaginários com imaginários
estrangeiros; mas a maior parte dos imaginários parece mesmo estar imersa no
inconsciente coletivo, numa memória coletiva, tecido através da história.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
70
C
APÍTULO
3
A
NÁLISE DE PIADAS DE
AF
S
:
DESVELANDO
ESTRÁTEGIAS E
REPRESENTAÇÕES
O humor é uma forma criativa de descobrir, revelar e analisar criticamente o homem e a vida.
É uma forma de ‘desmontar’, através da imaginação, um falso equilíbrio anteriormente sustentado
pela própria imaginação. Seu compromisso com o riso está na alegria que ele provoca
pela descoberta da verdade. Não é a verdade em si que é engraçada.
Engraçada é a maneira com que o humor nos faz chegar até ela.
O humor é um caminho.
(Ziraldo)
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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71
3.1. R
EVISÃO DA SITUAÇÃO DE COMUNICAÇÃO NOS
AF
S E NAS
P
IADAS
Como adiantamos no capítulo 2, a análise das piadas de AFs a partir das categorias
propostas pela Teoria Semiolinguística não poderia acontecer sem uma visão das
características de base do discurso humorístico. Essas características nos levam a (re-)
problematizar a situação de comunicação tanto na relação entre os AFs e os seus leitores
quanto na relação entre as personagens dentro das piadas. Desse modo, podemos
afirmar que cada componente (sujeitos, contratos, estratégias, modalidades etc.) que
contribui para elucidar o discurso nesses textos também deve ser (re-) visto de maneira
especial. Logo, nesse capítulo, vamos revisitar a(s) situação(ões) de comunicação nas
piadas de AFs, observando no quadro comunicacional, proposto pela Semiolinguística e
adaptado por Mello (2004; 2006), a presença e a posição da instância enunciativa do
alvo, de acordo com os postulados de Charaudeau (2006b). De posse dessas
informações, poderemos, então, passar à análise do discurso humorístico, buscando
desvelar as estratégias utilizadas nas piadas de AFs e também as representações da
mulher nelas presentes.
3.1.1. A
SITUAÇÃO DE COMUNICAÇÃO ENTRE OS
AF
S E SEUS LEITORES
Sempre que pensamos nos AFs devemos ter em mente que eles são uma espécie de
suporte
74
de textos, o que faz existir uma relação de influência mútua entre ambos.
Diante disso, é possível dizer que esses textos internos carregam, de certo modo, uma
parte do discurso político-pedagógico dos AFs, podendo este ser transmitido de forma
predominante ou não. Todavia, cada um desses textos possui sua mise en scène
discursive que, por sua vez, tem relativa independência em relação à mise en scène
langagière. Dito de outra forma, cada texto pode ao mesmo tempo transmitir o discurso
do almanaque e o seu próprio discurso. Daí dizermos que cada texto dos AFs deve, ao
74
Segundo Marcuschi, devemos considerar suporte como uma espécie de “... portador de texto, mas não
no sentido de um meio de transporte ou veículo, nem como um suporte estático e sim como um locus no
qual o texto se ‘fixae que tem repercussão sobre o nero que suporta” (MARCUSCHI, 2003, p.7).
Dessa categoria, segundo o autor, devem ser ressaltadas as seguintes características: a) é um lugar sico
ou virtual isto é, deve possuir materialização real; b) tem formato específico “não são informes, nem
uniformes” e, além disso, “... o fato de ser específico significa que foi comunicativamente produzido para
portar texto e não é um portador eventual” (2003, p.8); c) serve para fixar e mostrar texto os gêneros
têm preferência de se manifestarem em determinado suporte e não em outros. Ainda afirma o mesmo
autor (2003, p.10), a discussão sobre o suporte deve levar em conta que este não é neutro e que os “...
gêneros não são indiferentes a ele”.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
72
se descobrir o discurso predominante que o “comanda”, passar por uma análise a partir
das características do mesmo.
É o que acontece com as piadas de AFs: nelas o discurso dos AFs se mescla ao discurso
humorístico típico do gênero, ou seja, elas são a materialização física desses discursos.
No entanto, outros discursos podem ser transmitidos nas piadas: uma possibilidade
aberta pelo próprio discurso humorístico que, como garante Charaudeau (2006b, p.22),
apresenta-se mais como um modo de dizer, uma estratégia para tornar o interlocutor
uma cúmplice em diversas situações. Isso nos leva a pensar nas piadas como uma das
materializações de um ato humorístico dentro dos AFs. Cientes disso, buscaremos,
nesse primeiro momento, evidenciar a confluência das instâncias enunciativas presentes
no quadro comunicacional, proposto pela Teoria Semiolinguística, com os sujeitos da
mise en scène triádica: locutor, destinatário e alvo:
Figura 4
Tem-se, desse modo, no circuito externo:
EU
c
instância enunciativa compósita formada pela união de vários sujeitos que
mantêm, direta e indiretamente, interesses com a publicação dos AFs: os
proprietários dos laboratórios farmacêuticos, a agência publicitária responsável
pelo organização, editoração e a redação dos AFs; os outros anunciantes de
produtos não necessariamente farmacêuticos etc.
TU
i
representa qualquer pessoa que venha a entrar em contato com os
almanaques.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
73
E no circuito interno:
EU
e
– sujeito humorista ou sujeito narrador
75
;
TU
d
– público idealizado pelos AFs;
Alvo – entidades, instituições, pessoas e comportamentos aos quais os AFs,
segundo nossa hipótese, procura atingir e, por consequência, modificar.
Como se percebe, as instâncias enunciativas da mise en scène triádica se desdobram em
vários sujeitos. Assim, o locutor do ato humorístico vê-se desdobrado em EU
c
e EU
e
.
Por sua vez, o destinatário se subdivide em TU
d
e TU
i
. o alvo, devido à sua natureza
cambiante, pode ser fusionada a cada uma das demais instâncias desdobradas ou
desenvolver uma papel semelhante a de um terceiro (tiers). Por isso, a presença do alvo
não aparece marcada no quadro comunicacional.
Essa potencial existência do alvo nos induz a pensar sobre as visadas discursivas
presentes nas piadas de AFs. Podemos hipostasiar, com base nas características dos dois
discursos
76
que consideramos predominantes nos AFs, que duas visadas
77
predominantes também, mas não as únicas – coexistem, determinando a finalidade
desses textos: a visada de “fazer-prazer”, diretamente ligada ao discurso humorístico; e
a visada de “incitação”, ligada ao discurso político-pedagógico dos AFs.
A relação entre essas visadas discursivas, entretanto, nem sempre é simples de se
perceber, pois uma pode estar mascarando a outra, ou seja, o que a princípio se mostra
com o objetivo de “fazer-rir” o que, em muitos casos, não é fácil de se verificar –, na
verdade busca a adesão dos leitores contra determinados comportamentos sociais.
Colabora para essa não percepção da principal finalidade das piadas o fato de que o
locutor (desdobrado em EU
e
) pode contar uma história engraçada (histoire drôle) e,
nesta, não somente trazer outros sujeitos, as personagens com suas vozes e identidades,
75
Quando há o desdobramento da cena para as histórias engraçadas.
76
O que não quer dizer que outros discursos não se façam presentes nos AFs. Para efeito de análise,
optamos por trabalhar em termos de predominância de modo a melhor evidenciar a articulação desses
dois discursos.
77
Da mesma forma, outras visadas se fazem presentes nos textos dos AFs, porém nos concentramos,
nessa etapa da análise, em circunscrever essas duas visadas em termos de predominância.
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74
mas também construir um simulacro da realidade, no qual novas situações demandarão
novos contratos e, por conseguinte, novos componentes, entre eles diversas visadas.
Por esse motivo, torna-se necessário discutir como essas situações de comunicação
ficcionais são construídas, de que natureza são seus componentes e como se relação
entre os sujeitos do ato humorístico no nível ficcional, levando-se em conta o
desdobramento das instâncias enunciativas proposto por Mello (2004; 2006).
3.1.2. A
SITUAÇÃO DE COMUNICAÇÃO ENTRE AS PERSONAGENS NAS PIADAS DE
AF
S
Para discutir essas situações de comunicação que comportam as personagens nas piadas,
tomaremos a piada 10 (cf. anexo):
— Quem é a mulherzinha bonita, que cozeu [sic] o bolso do marido?
— E que é o que a mulherzinha bonita andou procurando no bolso do marido?
Como podemos perceber, esse texto pode ser considerado uma história engraçada,
como prevê Charaudeau (2006b), em formato de esquete. O que interessa aqui é
destacar a reprodução num nível ficcional de uma situação de comunicação cotidiana,
isto é, um diálogo entre marido e mulher, “carregado” de segundas intenções. A
pergunta que cabe aqui é: haverá um alvo também nesse nível ficcional?
Se tomarmos a proposta de Charaudeau (2006b) para a descrição e análise do discurso
humorístico, deveremos, então, considerar que a mise en scène triádica também se
desenvolve nesse nível. Dentro da história engraçada ou da cena interna ficcional
(como passaremos a denominá-la), encontramos personagens que simulam estar no
mundo real. Suas falas são estruturadas também de forma a representar enunciados do
mundo real, o que já foi anteriormente verificado de acordo com os postulados de Mello
(2004; 2006). Contudo, se seguirmos aplicando o raciocínio de Charaudeau (2006b), a
existência dessa mise en scène ficcional deverá possibilitar-nos a reinterpretação da
natureza dos sujeitos envolvidos. Desse fato, podemos postular para as personagens
classificações semelhantes às dos sujeitos da cena interna não-ficcional, ou seja, elas
poderão se constituir enquanto locutor, destinatário (cúmplice ou vítima) e alvo,
assumido, assim, todas as características dessas entidades.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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75
Desse modo, para o nosso exemplo (piada 10), teríamos um marido (EU
e
no plano
ficcional) que, de certo modo, ataca seu destinatário, sua “mulherzinha”, (TU
d
’ também
no plano ficcional), tomando esse destinatário como vítima de seu ato de comunicação.
Além disso, nessa ação, tem-se a confluência do destinatário com o alvo. Se pensarmos
na ação do EU
e
(o narrador no plano não-ficcional), há uma espécie de chamado do TU
d
(também do plano não-ficcional) a partilhar desse ataque representado na história
engraçada, constituindo um novo alvo (também no plano não-ficcional). Como
veremos adiante, esse desdobramento do alvo abre a possibilidade de que ele possa se
fusionar (ou não) com as outras instâncias enunciativas presentes no ato humorístico.
Esse encaixotamento de cenas e essa superposição de sujeitos podem ser melhor
visualizados na figura 5
78
:
Figura 5
Isso nos leva a pensar nessas entidades como lugares a serem preenchidos de acordo
com as necessidades do ato humorístico. Esses espaços, por sua vez, ao serem
preenchidos, trazem implicações, devido à sua própria natureza, para as representações
sociodiscursivas utilizadas nessa ação. Assim, no nosso exemplo (piada 10), admitindo-
se uma fusão entre TU
d
(tornado vítima) e o alvo, tem-se uma representação da mulher
baseada na ganância feminina por dinheiro ou na desconfiança sobre fidelidade do
marido. Recai sobre essa representação o ataque do EU
e
’(personagem marido), e a
busca da conivência do leitor-ideal dos AFs (TU
d
) a compartilhar desse ataque.
78
Novamente devemos ressaltar a não marcação no quadro comunicacional do alvo devido à sua natureza
cambiante.
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76
Com base nessa proposta exposta até aqui, cabe a nós, então, descrever o corpus de
modo a: 1) evidenciar os componentes contratuais, levando em consideração as
propriedades da mise en scène triádica no plano das personagens; 2) transcrever os
enunciados capazes de evidenciar o ato humorístico; e 3) criar hipóteses sobre as
representações sociodiscursivas referentes à mulher decorrentes dos tópicos 1 e 2. Para
tanto, utilizamos uma grade
79
construída a partir das categorias de análise propostas pela
Teoria Semiolinguística.
C
ONTRATO DE COMUNICAÇÃO
P
IADA
I
DENTIDADES
DAS
PERSONAGENS
F
INALIDADE
(
VISADA
PREDOMINANTE
)
P
ROPÓSITO
(
TEMA
)
C
IRCUNSTÂNCIAS
M
ODALIDADES
(
PRESENTE NOS
ENUNCIADOS
DESENCADEADORES
DO EFEITO DE
HUMOR
)
R
EPRESENTAÇÃO
S
OCIODISCURSIVA
(10)
Marido/
mulher
Solicitação
“Esperteza”
Dialogal in
præsentia;
Conversa
ordinária
Modo Alocutivo:
Injunção
(mascarada): “E que
é o que a
mulherzinha bonita
andou procurando
no bolso do
marido?”
Desconfiança e/ou
ganância
feminina.
Grade 1
De posse desses dados, acreditamos poder fundamentar a análise do discurso
humorístico propriamente dito, buscando: num primeiro momento, descrever as
características desse tipo de discurso (os procedimentos linguageiros: discursivos e
linguísticos), sua abertura para outros discursos (pluri-isotopias) e os possíveis efeitos
humor evidenciados nas piadas; num segundo momento, analisar as modalidades
enunciativas que possam evidenciar nossas hipóteses sobre as representações
sociodiscursivas referentes à mulher e suas implicações na leitura desses textos; e, por
último, entrecruzando essas informações, lançar nossas considerações finais sobre as
estratégias discursivas utilizadas para elaborar e transmitir as representações
sociodiscursivas nas piadas de AFs.
79
Os dados gerados por esse modelo de grade podem ser visualizados na tabela 1 (apêndice A).
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77
3.2. O
DISCURSO HUMORÍSTICO NAS PIADAS DE
AF
S
Nessa seção, analisaremos os atos de comunicação humorísticos presentes nas piadas de
AFs. Consideraremos, primeiramente, que esses atos dizem respeito às enunciações das
personagens, ou seja, os atos humorísticos serão tidos como resultados da interação
entre personagens que “fingem” estar num mundo real, uma vez que lidamos com textos
que contêm “histórias engraçadas”, seguindo o pensamento de Charaudeau (2006b).
Cientes disso e antes de passarmos à análise dos discursos presentes nas piadas,
devemos visualizar as atitudes das personagens, levando-se em conta esse “fingimento”.
Para tanto, vamos operacionalizar como categorias de análise as técnicas
80
apontadas
por Freud (2006), buscando evidenciar os comportamentos
81
apresentados no texto e no
discurso dessas personagens que simulam praticar, voluntária ou involuntariamente,
atos humorísticos. Vejamos a piada 31 (cf. anexo):
— Por favor, me ajude. A minha sogra quer pular pela janela do décimo
andar!!!
— Meu senhor, aqui é uma serralheria e não o bombeiro.
— Eu sei, é que a janela está emperrada.
Seguindo Freud (2006), podemos dizer que o diálogo entre essas personagens é
marcado por pela técnica do deslocamento, pois um desvio no curso do raciocínio
apresentado na fala da personagem genro de modo a evitar uma reprovação do seu
equívoco (confundir corpo de bombeiros com uma serralheria) por parte do serralheiro.
Mesmo ciente de seu equívoco, a personagem genro não o admite, uma vez que seu
desejo é o sucesso da ação da sogra, ou seja, seu enunciado é pertinente se levarmos em
consideração todo o histórico sobre as relações conflituosas entre genros e sogras.
Ainda de acordo com Freud (2006), podemos afirmar que o genro oculta um cinismo,
não em relação à personagem serralheiro, mas direcionado ao alvo, isto é, a sogra.
80
Cf. capítulo 1, p.35-36.
81
Ainda que essa primeira análise esteja baseada em Freud (2006), não nos propomos a fazer uma análise
psicológica ou cognitiva dos comportamentos, sejam eles atribuídos às personagens ou aos seres humanos
reais, mas visualizar como tais comportamentos estão reproduzidos (descritos ou narrados) e colocados
em evidência no texto e no discurso das piadas através das atitudes (físicas e enunciativas) das
personagens.
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78
Essa análise preliminar baseada em Freud (2006), apesar de funcional e produtiva
82
, não
nos fornece as garantias científicas – no nosso caso, evidências linguageiras – das
afirmações que desenvolvemos sobre as piadas de AFs. Logo, essa análise deve ser
considerada como um ponto de partida com caráter acessório, subsidiário, parcial e não
uma análise definitiva, totalmente completa. Sua função é fornecer dados
complementares e até mesmo comparativos aos obtidos com as categorias providas pela
Teoria Semiolinguística. Essas últimas, sim, é que devem explicar e expandir,
corroborar ou retificar nossa primeira visão sobre as técnicas presentes no corpus.
3.2.1. A T
EORIA
S
EMIOLINGUÍSTICA E OS PROCEDIMENTOS LINGUAGEIROS NAS PIADAS DE
AF
S
Como dissemos na seção anterior, aqui demonstraremos como, a partir das categorias
propostas por Charaudeau (2006b), podemos analisar as características linguageiras
presentes nos enunciados
83
que apresentam (carregam) as marcas do ato de humor nas
piadas de AFs
84
. Iniciaremos discutindo os procedimentos discursivos; em seguida, os
procedimentos linguísticos; e, por último, evidenciaremos os efeitos de humor
85
e as
visadas discursivas em relação ao leitor dos AFs (TU
d
).
3.2.1.1. O
S PROCEDIMENTOS DISCURSIVOS
A análise dos procedimentos discursivos, como afirma Charaudeau (2006b), leva em
consideração a tentativa do locutor de tornar seu destinatário um cúmplice, visando
atacar um determinado alvo, por meio de índices que mascaram o dito e que
82
Para uma visualização das cnicas encontradas nas piadas de AFs, ver a tabela 2 (apêndice B) na qual
apresentamos de forma sintética nossa aplicação das técnicas baseadas em Freud (2006), descritas no
capítulo 1, ao corpus. Constatar-se-á que, em muitos casos, algumas piadas poderão apresentar uma ou
mais técnicas. Essas podem ser encontradas juntas num processo de sucessão, uma vez que “... nada
impede à técnica do chiste utilizar-se simultaneamente de vários métodos; s é que conseguimos
conhecê-los um a um...” (FREUD, 2006, p.34, nota 2).
83
Esses enunciados se encontram evidenciados na tabela 1 (apêndice A).
84
Lembramos que, sempre que houver necessidade, faremos referência às técnicas apontadas por Freud
(2006) e identificadas por nós na tabela 2 (apêndice B).
85
Essa separação dos procedimentos e efeitos é simplesmente metodológica, o que poderá muitas vezes
fazer com que nosso texto pareça redundante. Isso se deve ao fato de que tais procedimentos, técnicas e
efeitos ocorrem de forma simultânea nas piadas.
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79
possibilitam a passagem (transmissão) do não-dito
86
. A questão que se coloca é trazer
aos olhos os responsáveis por essa intenção (no caso, essa visada discursiva). Logo,
devemos evidenciar como esse jogo enunciativo se desenvolve nas piadas de AFs.
Porém, como afirmamos antes, as piadas dentro dos AFs reproduzem diálogos do
cotidiano com personagens simulando seres humanos, o que implica o desdobramento
das cenas enunciativas (ver figura 5). Assim, num primeiro instante, devemos procurar
evidenciar como a enunciação da personagem-sujeito-humorista, representada pelo
EU
e
’, busca a cumplicidade do TU
d
’ contra um alvo. Num segundo, devemos identificar
qual a categoria predominante presente na fala do EU
e
’, tomando como base os
apontamentos de Charaudeau (2006b). Para exemplificar essa etapa da análise, tomemos
a piada 1 (cf. anexo):
Mulher: — Geralmente falando, as mulheres estão...
Marido: — (que está distraído) Estão sim...
Mulher: — Estão, o quê?
Marido: — Geralmente falando.
Nessa piada, a personagem marido busca a cumplicidade de seu TU
d
’, representado pela
personagem mulher, utilizando-se do conjunto de enunciados
87
: “Estão sim...
Geralmente falando”. A questão que salta aos olhos é a reação da personagem mulher
que, de certo modo, indica uma indignação. A partir disso, podemos hipostasiar que o
alvo, atacado por esse enunciado, mantém uma relação com a classe das mulheres (“As
mulheres estão sempre falando...”). Daí assumirmos que o TU
d
e o alvo se
funsionaram, o que proporciona uma desvalorização (ou até mesmo uma agressão) do
TU
d
’. Essa desvalorização, como a ressalta Charaudeau (2006b, p.30-31), leva-nos a
proceder à classificação desse ato humorístico na categoria do sarcasmo, pois a
personagem marido expressa explicitamente um julgamento negativo, não havendo
discordância entre o dito e o não-dito (como acontece na ironia). De certo modo, isso
pode se comprovar pelo uso da técnica resposta pronta nesse enunciado.
86
Tomamos licença aqui por usar os termos de Oswald Ducrot consagrados pela literatura da área.
87
Os procedimentos linguísticos presente nas piadas que comprovam essa tese serão discutidos na seção
3.2.1.2.
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80
Vejamos outras características dos procedimentos discursivos a partir da leitura da piada
2 (cf. anexo):
O pae, falando severamente:
como póde ser, Lucia, que hontem à noite houvesse um doce inteiro na
dispensa e hoje só há uma parte?
Lucia, olhando pela janella:
E como pode ser papae, que ainda noutro dia houvesse uma lua inteira no
céo, emquanto que hoje só há um pedaço?
Nessa piada, a personagem Lucia enuncia, em resposta a seu pai, buscando a adesão
deste último contra um alvo: a própria lógica do enunciado. Ou seja, cria-se um absurdo
na relação pergunta-resposta na qual a resposta transforma-se numa nova pergunta, o
que caracterizaria uma resposta pronta nos termos de Freud (2006) se não houvesse
outra técnica predominante: o deslocamento. Este último se refere à mudança provocada
no curso do raciocínio, proposta por Lucia, de modo a evitar uma reação desfavorável
da personagem pai. Diferentemente da piada 31, não na piada 2 uma motivação
explicita para a agressão, no sentido de desvalorização, no ataque contra o alvo, mas
uma busca do lúdico, da brincadeira.
O problema que se coloca aqui é classificar esse ato humorístico presente na piada 2
enquanto sarcasmo, uma vez que não há uma expressão negativa ou hiperbolizada para
um pensamento também negativo, ou mesmo uma expressão positiva, se fosse o caso de
uma ironia. Como vimos anteriormente (capítulo 2), Charaudeau (2006b, p.30) propõe
não fazer uma diferenciação entre os termos raillerie (gracejo/zombaria) e sarcasme
(sarcasmo). Todavia, em português, esses termos podem assumir significados distintos
de acordo com a sua relação com a propriedade da hilaridade. De acordo com o Houaiss
(2002), tanto gracejo quanto zombaria podem assumir significados como “... dito
engraçado, espirituoso, ou que pretende sê-lo, graça”; por outro lado, sarcasmo
apresenta conotações ligadas a uma ironia cáustica, agressiva, que nem sempre se
dispõe para a hilaridade. Assim, para uma análise mais detalhada dos atos humorísticos
nas piadas de AFs, consideraremos, quando necessário, essa diferença de sentido entre
gracejo e sarcasmo, assumindo no significado do segundo termo a existência de uma
visada implícita voltada para a agressão que, de certo modo, está ausente no primeiro.
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81
Desse modo, classificaremos o ato humorístico analisado na piada 2 como gracejo, no
qual o interesse está mais voltado para o lúdico.
Ainda nos resta destacar que essa verificação dos procedimentos discursivos sob as
categorias de sarcasmo, na piada 1, e gracejo, na piada 2, leva em consideração os
procedimentos linguísticos presentes nos enunciados analisados. No entanto, nossa
intenção, nesse momento, é colocar em evidência os primeiros passos para a
determinação das categorias dentro dos enunciados desencadeadores do ato de humor a
partir da relação entre as personagens. Nesse intuito, submetemos esse mesmo tipo de
análise a todas as piadas do corpus, aplicando uma grade de coleta de dados
88
baseada
nas categorias
89
propostas por Charaudeau (2006b).
P
APÉIS
ASSUMIDOS
PELAS
PERSONAGENS
EUe’ TUd’ Alvo I
NCOERÊNCIA
C
ATEGORIA
PREDOMINANTE
C
ONIVÊNCIA
VISADA
C
ONFLUÊNCIA
ENTRE
alvo
E
TUd’
Piada (01) Marido Mulher
(vítima)
Mulheres Insólita Sarcasmo Derrisão Derrisão x
Grade 1
3.2.1.2. O
S PROCEDIMENTOS LINGUÍSTICOS
Os procedimentos linguísticos, como afirma Charaudeau (2006b), estão ligados à
capacidade dos enunciados de possibilitarem a abertura para um ou mais níveis de
leitura ou isotopias. Essa abertura, por sua vez, pode se realizar pelos mais variados
recursos linguísticos: do duplo sentido dos vocábulos aos trocadilhos fonéticos e/ou
morfológicos. Por conseguinte, a análise desses procedimentos deve ser realizada caso a
caso de modo a determinar os conectores e os desencadeadores isotopias (em muitos
casos, diretamente ligados às técnicas proposta por Freud (2006) e aos mecanismos
linguísticos em Possenti (2008)) e o que Charaudeau (2006, p.32) chama de “jogo
semântico” baseado nos tipos de incoerências. Além disso, é relevante assumir nessa
seção que entre os procedimentos acima arrolados também a modalização, representada
88
Para uma visão completa dessa coleta de dados, ver tabela 3 (apêndice C).
89
As considerações sobre algumas categorias presentes na grade 2 ainda serão discutidas nas seções
3.2.1.2. e 3.2.2.
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82
pelas modalidades locutivas (CHARAUDEAU, 2008, p.86-105), também se constitui
como importante categoria de análise para a explicação de mudança de isotopia.
Assim, nossa tarefa aqui é descrever essa abertura proporcionada por recursos
linguísticos que, em muitos casos, podem evidenciar a presença de discursos outros nas
piadas de AFs. Tomemos um exemplo:
A professora: Fale-me alguma cousa, sobre a vida de Irene, Imperatriz de
Bizancio.
A alumna: — Ora, professora, não costumo fallar da vida dos outros
90
.
Iniciamos a análise dessa piada detectando a existência do conector de isotopia, no caso
o verbo “falar”. No texto, esse verbo assume duas de suas acepções de sentido
91
. Em
“fala-me alguma coisa...”, o verbo falar, tomado no sentido de declarar, dizer, fazer
uma relato sobre alguma coisa (logo, transitivo direto e pronominal), é utilizado numa
modalidade enunciativa alocutiva interrogação, colocando o interlocutor na posição de
dever responder, na qual qualquer tentativa de não excussão está sob o risco de sanções
(no caso, por parte da professora). Por outro lado, em “... não costumo fallar da vida
dos outros...”, o mesmo verbo é utilizado numa modalidade enunciativa elocutiva de
recusa, o que, na situação de comunicação analisada, implicaria as sanções negativas
90
Cf. piada 3 (anexo).
91
O dicionário eletrônico Houaiss (2002) elenca para esse verbo cerca de dezenove acepções diferentes
de acordo com a regência: 1 rg.mt. exprimir por meio de palavras <falou(-lhes) a verdade> <pouco lhes
falava> < nos últimos tempos de sua vida, mal falava> 2 rg.mt. expor pensamentos; discorrer,
conversar, contar <falaram trivialidades> 3 t.d.,t.i.int. e pron. fig. fazer(-se) compreender; demonstrar
<os olhos falavam o que a boca não dizia> <os fatos falam por si> 4 t.d.,t.i.,bit. e pron. saber exprimir(-
se) em outro idioma que não o seu <fala inglês fluentemente> <o tempo todo falou(-lhes) numa língua
desconhecida> <falavam-se em alemão> 5 t.d. ling comunicar-se com outro(s) falante(s) segundo um
sistema definido próprio de uma comunidade linguística, ou seja, por meio de uma determinada língua <f.
português> <f. vários idiomas> 6 t.i.int. dirigir um discurso; discursar <falou a um auditório
extremamente atento> <no comício, falaram diversos candidatos ao senado> 7 t.d.bit. entrar em acordo;
combinar, ajustar <foi exatamente o que se falou (com ele)> 8 t.d.bit. B dizer, declarar <ele (nos) falou
que vinha> 9 int. ter prioridade, exercer influência <os interesses falaram mais alto> 10 int. dar ordem;
comandar <a razão desaparece quando o coração fala> 11 int. contar a verdade, revelar <por fim, o
criminoso falou> 12 int. B dar a palavra definitiva <falou está falado> 13 t.i. dizer mal (de alguém) <fala
até da própria mãe> 14 t.i. e pron. ser namorado, namorar <João fala com Maria há dois meses> <eles já
se falam algum tempo e agora estão pensando em casar> 15 rg.mt. dizer, comentar <falam que ele
fugiu> <falou do assunto> <falou com a mãe que a irmã foi reprovada> 16 t.d.,t.i. pregar, anunciar,
ensinar <f. a palavra de Deus> <Jesus falava aos humildes> 17 pron. dialogar; encontrar-se <estamos
sempre nos falando> 18 pron. estar em (razoalmente) boas relações com alguém <eles brigaram, mas
se falam> 19 int. p.ana. remedar a fala humana (diz-se de papagaio, gaio, mainá, cacatua e aves
semelhantes).
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83
para a personagem aluna. Contudo, o verbo falar é tomado no sentido de falar mal
(logo, transitivo indireto) de alguém ou de alguma coisa. A sanção negativa reverte-se
num ato de agressividade contra a professora. Isso nos leva a pensar na técnica da
réplica direta, na qual há um rearranjo do material verbal, mas diferentemente da
resposta pronta, não se evidencia uma resposta a um possível ataque
92
. Ainda nesse
mesmo ato, a aluna novamente desconsidera a situação de sala de aula, atacando seu
TU
d
constituído como vítima. Essa atitude pode ser percebida pela marca linguística
ora
93
presente no enunciado da personagem aluna, por meio da qual ela admite seu
cinismo
94
. Desse modo, e de acordo com Charaudeau (2006b), temos para essa piada
uma incoerência insólita, na qual os universos de leitura ou as isotopias relacionadas
não são estranhos entre si: é possível como fizemos detectar uma transferência de
sentido por meio dos procedimentos linguísticos: o duplo sentido que assume o verbo
falar. Como podemos perceber, esses procedimentos abrem as portas para os
imaginários sociodiscursivos sobre a mulher: as picuinhas entre professoras e alunas,
exposta pelo desrespeito às hierarquias; e o não admitir falar da vida alheia
(coloquialmente, fofocar).
Ainda pensando em termo de incoerência insólita, podemos retornar à piada 1. Nesta,
mostramos como se dava o diálogo entre marido e mulher, e como esses possuíam a
natureza de locutor, destinatário/vítima respectivamente (ver seção 3.2.1.1.). Aqui
evidenciaremos como a expressão “geralmente falando” se constitui em um conector de
isotopias. No enunciado Geralmente falando, as mulheres estão...”, “geralmente
95
falando” (por excelência, modal) é usado em uma modalidade enunciativa delocutiva
que corresponde a uma asserção de opinião (suposição), no sentido de “falando de
modo vago” perceba-se o escopo do advérbio que no caso é o restante do enunciado:
92
É uma réplica direta e não uma resposta pronta, pois não um ataque por parte da professora. Isso é
evidenciado pelo uso da modalidade de interrogação (pedido de dizer) no enunciado da professora (que
fingi ignorar a resposta).
93
“Ora”, de acordo com Houaiss (2002), pode significar, entre outra coisa, uma espécie de interjeição
com que se “exprime impaciência, menosprezo, espanto, dúvida; ara. Ex.: “ora, não me importunes!”;
“ora, que absurdo nos estás dizendo!”
94
Como vimos na seção 3.2.1.1., Charaudeau (2006b) vai considerar essa atitude de agressividade contra
o interlocutor não enquanto cinismo, no sentido apontado por Freud (2006), mas como sarcasmo. Por
cinismo, Charaudeau (2006b, p. 37) postula uma atitude destruidora de valores e normas sociais, na qual
o sujeito humorista se mostra avesso a tudo e a todos, não possibilitando uma contra-argumentação.
95
Bechara (2006, p.293) coloca que advérbios de base nominal formados com “-mente” estão no meio do
caminho entre a derivação e da composição (locução). Logo, podemos decompô-los pela noção que
carregam seus nomes como, por exemplo, “geralmente” (= de modo geral, genérico, comum, vago).
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
84
“as mulheres estão...”. Por sua vez, no excerto Estão sim... Geralmente falando”, esse
conector é utilizado em uma modalidade enunciativa elocutiva de confirmação,
mudando o sentido do material verbal para “... elas estão comumente falando” o
escopo do advérbio não é mais o restante do enunciado, mas sim o verbo falar, ou seja,
agindo de acordo com a função básica de um advérbio. Isso parece pertinente com a
técnica Duplo Sentido (c) com o uso do mesmo material verbal numa perspectiva
pragmática diferente, apontada por Freud (2006). Há, pois, uma mudança de isotopia:
muda-se de um plano que foi silenciado (correspondente à fala da personagem mulher
interrompida pela fala do marido) para um segundo plano baseado num imaginário
sociodiscursivo onde é concedido um papel de faladeira às mulheres em geral. O que
nos leva a pensar na incoerência insólita (trans-sens).
As incoerências, no entanto, podem ainda se dar de modo a aparentar não ter sentido
(hors-sens) ou mesmo não admitir uma mudança, mas dois sentidos contrários dentro de
uma mesma isotopia (contre-sens). Para demonstrar isso, retomaremos a análise da
piada 2 (ver seção 3.2.1.1.). Nessa piada, as personagens pai e Lucia conversam sobre
assuntos que parecem dispares entre si, o que a princípio torna o diálogo próximo do
absurdo. Não conector de isotopia aparente. Todavia, se pensarmos em termo de
técnicas, veremos, pois, que há um uso múltiplo do mesmo material (c) com leve
alteração (Freud, 2006), no caso, alteração de palavras mantendo-se uma estrutura
semelhante entre a fala da personagem Lucia e da personagem pai. Essa semelhança de
estrutura também se evidencia no tipo de modalidade locutiva dos enunciados: ambos
sendo interrogações. Seguindo o raciocínio de Charaudeau (2006b), podemos
classificar esse tipo de incoerência no que ele chama de loufoquerie, na qual os
universos são completamente diferentes um do outro, sem laços lógicos, e, por
conseguinte, sem a possibilidade de ironias ou de sarcasmos (CHARAUDEAU, 2006b,
p.33).
Nosso último exemplo sobre procedimentos linguísticos e incoerências traz a discussão
sobre a possibilidade do contra-senso dentro de uma mesma isotopia, ou no dizeres de
Charaudeau (2006b), a incoerência paradoxal:
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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85
MARIDO FIEL?
No hipermercado dois caras batem os respectivos carrinhos de compras. Ambos
se desculpam e um deles fala ao outro:
— Desculpe, me distraí porque estava procurando minha mulher!
— Que coincidência! Também estou procurando a minha!
— Como é a sua mulher?
Ela é loura, alta, olhos azuis, pernas bem torneadas, seios salientes e lábios
carnudos. Usa um vestido vermelho justinho, decotado e bem curto.
— E a sua como é?
— Que se lixe a minha. Vamos procurar a sua!!!
96
Nessa piada, podemos depreender que o ato humorístico gira em torno do tema beleza
feminina, apresentando o imaginário ocidental de padrão de mulher bela, ou seja, a
Helena dos tempos modernos com suas formas perfeitas e roupas sensuais. Na
contramão desse modelo de beleza, um outro é apresentado de forma silenciosa por
meio da técnica alusão, caracterizada pela omissão da descrição da segunda esposa.
Complementando essa omissão, outra técnica presente no enunciado “... que se lixe a
minha” evidencia um rearranjo no curso do raciocínio (procurar minha esposa; a sua é
bonita; a minha é feia; vou ser humilhado; não vamos mais procurar a minha, mas a sua)
de modo a evitar uma retaliação e, assim, usa-se uma réplica direta. Ou seja, apesar de
o texto se manter dentro de uma mesma isotopia, há um contra-argumentação a respeito
de normas sociais aqui falamos de padrões de beleza que são impostos e que se
excluem mutuamente. Todavia, como se vê, é esse discurso silenciado que fornece
subsídios para a criação e para a manutenção da contra-argumentação dentro da piada.
Como a tarefa de analisar cada procedimento linguístico e evidenciar os tipos de
incoerências nas piadas do corpus tomaria grande parte desse trabalho e, por vezes, faria
da leitura uma ação repetitiva e enfadonha, preferimos dispor os resultados de nossos
“cálculos” na tabela 2 (apêndice B) e na tabela 3 (apêndice C). Além disso, fica claro
que é por meio do entrecruzamento dos dados referentes às técnicas, às situações e às
incoerências que conseguimos desenvolver tais análises.
96
Cf. piada 36 (anexo).
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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86
3.2.2. O
S EFEITOS DE HUMOR E AS VISADAS DISCURSIVAS
De modo a precisar a descrição e a análise dos atos humorísticos nas piadas de AFs, faz-
se necessário verificar os possíveis efeitos de humor que procuram atingir os sujeitos
dentro desse ato, e as visadas discursivas correlacionadas. Para Charaudeau (2006b),
esses efeitos estão relacionados ao chamado que o locutor direciona ao seu destinatário,
ou seja, juntamente com efeito do ato humorístico existe a busca de uma conivência do
interlocutor contra um determinado alvo. Assim, tem-se para cada efeito possível uma
visada correspondente. Por exemplo, durante um ato humorístico em que se pretenda
um efeito de derrisão, que objetiva desqualificar o alvo sem a possibilidade de uma
contra-argumentação, coexistirá uma visada de derrisão, que procura fazer com que o
destinatário partilhe de uma certa insignificância do alvo, isto é, o locutor faz partilhar
seu desprezo para com o alvo, que se acredita supervalorizado (CHARAUDEAU,
2006b, p.37-38).
Essa correspondência entre os efeitos e as visadas discursivas, entretanto, deve ser
entendida como relativamente biunívoca, pois pode acontecer de um efeito que está
voltado para uma determinada conivência do destinatário não corresponder diretamente
à visada (efeito) direcionada ao alvo como, por exemplo, na piada 2 (cf. anexo), na qual
a personagem Lucia tem como objetivos: 1º) buscar a conivência da personagem pai por
meio de um efeito lúdico (na forma de um gracejo), ou melhor dizendo, uma conivência
lúdica (a princípio sem pretensão de engajamento moral); e 2º) atingir seu alvo, a
própria lógica do seu enunciado, ao desmitificá-la, escapando assim de uma reprovação
por parte de seu “acusador-pai”. Logo, podemos dizer que o efeito é direcionado ao
destinatário, buscando sua conivência; a visada, por sua vez, procura atingir um alvo de
alguma maneira. Em muitos casos, poderemos encontrar uma correspondência
biunívoca entre efeito e visada; em outros, essa correspondência poderá ser diferente ou
mesmo múltipla
97
.
Até aqui, essas colocações parecem pertinentes em relação às atitudes enunciativas das
personagens. Contudo, devemos expandi-las de modo a evidenciar que tais efeitos e
visadas podem transcender as situações ficcionais, atingindo o alvo e/ou o TU
d
no plano
97
Cf. na tabela 3 (apêndice C), a classificação dos efeitos possíveis nas piadas 15, 34, 35, 36.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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87
não-ficcional. Essa transcendência é possível devido à possibilidade de fusão entre os
sujeitos dentro do ato humorístico. Desse modo, além da natureza dos sujeitos
pertencentes à mise en scène discursiva, evidenciaremos essa possibilidade de
confluência entre os sujeitos dos planos ficcional e não-ficcional a partir das marcas
discursivas e linguísticas. Vejamos alguns exemplos:
M
AL DE UNS
...
dias eu disse à minha mulher uma frase com tanta infelicidade que ela
deixou de falar comigo.
— Oh! E não podes me dizer o que foi, para eu repetir à minha?
98
Nessa piada, o plano ficcional é formado por uma mise en scène triádica na qual
podemos perceber duas personagens cujos traços de identidade são definíveis como:
sexo (masculino), idade (adulto), estado civil (casado ou amasiado)
99
. Essa duas
personagens constituem para o ato humorístico, respectivamente, o locutor e o
destinatário. O alvo, apesar de não presente na cena, pode ser inferido pelos dizeres de
ambas as personagens ao assumirem que possuem companheiras. Esse alvo é deduzido
a partir da análise do enunciado desencadeador do ato humorístico
100
, a saber: Oh! E
não podes me dizer o que foi, para eu repetir à minha?”. Nesse enunciado, locutor
(EU
e
’), por meio da modalidade alocutiva “interrogação”, demanda uma informação
contida na frase dita pela primeira personagem que de alguma forma evitaria um hábito
feminino baseado no imaginário social de que as mulheres falam demais. Por meio
desse enunciado sarcástico, esse locutor busca uma conivência de derrisão do seu
destinatário, tornando-o cúmplice, ao mesmo tempo em que expõe sua visada de
derrisão contra o alvo.
No plano não-ficcional, podemos dizer que esse alvo se fusiona com uma outra
entidade, aparentemente ausente na cena, no momento em que se percebe uma
sobremodalização do enunciado Oh! E não podes me dizer o que foi, para eu repetir à
minha? pela modalidade elocutiva “apreciação favorável”. Essa sobremodalização
98
Cf. piada 5 (anexo).
99
Nos casos onde os traços de identidade são restritos, procuramos identificar as identidades das
personagens pelos símbolos e , nas tabela 1 e 3.
100
Esses enunciados foram transcritos e parcialmente analisados na tabela 1 (apêndice A).
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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88
indica a posição do sujeito falante a respeito da alusão ao sucesso da informação contida
na frase que a primeira personagem disse à sua esposa. Isso é corroborado pela
percepção do uso da técnica da réplica direta, que modifica o raciocínio esperado para
essa situação de que tal informação que induz a um rompimento de relacionamento deve
ser evitada. Daí deduzirmos que há um EU
e
(narrador da história engraçada) que
objetiva a cumplicidade (conivência de derrisão) do TU
d
(leitores do AFs) contra um
alvo, de mesma natureza do alvo presente na cena ficcional (as esposas ou
companheiras que falam demais).
C
ONSULTA MÉDICA
Uma senhora mal-humorada entra no consultório médico.
— Então, o que está sentindo D. Maria?
— O que? Não é seu trabalho descobrir?
A senhora aguarda um instante, vou chamar o veterinário, só ele consegue
fazer um diagnóstico sem falar com os pacientes.
101
A mise en scène triádica da piada 37 pode ser descrita da seguinte forma: um locutor,
representado pelo médico, se dirige a um destinatário, a D. Maria, proferindo um
enunciado de cunho sarcástico de forma a atingir um alvo: a própria D. Maria. Desse
modo, temos um destinatário que, fusionado com o alvo, torna-se vítima. Tanto o efeito
quanto a visada, ambos de derrisão, proporcionados pelo enunciado A senhora
aguarda um instante, vou chamar o veterinário, ele consegue fazer um diagnóstico
sem falar com os pacientesprocuram derrubar a personagem D. Maria de uma suposta
superioridade na relação médico-paciente, fazendo o destinatário compartilhar, por meio
das técnicas de resposta pronta e alusão, um desprezo pelo comportamento dessa
senhora. Ainda sobre a técnica da alusão, esta pressupõe que seres tratados por um
veterinário são animais. Isso é desencadeado pelo enunciado O que? Não é seu
trabalho descobrir?”, que contraria de forma clara o contrato de comunicação
pressuposto para uma consulta médica. Pensando em termo de imaginário
sociodiscursivo, podemos dizer que o enunciado de D. Maria reflete a rabugice atribuída
às mulheres de mais idade.
101
Cf. piada 37 (anexo).
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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89
A piada 37 é interessante para evidenciarmos a diferença entre os dois planos (ficcional
e não-ficcional) dentro das piadas de AFs. Por meio dela, podemos demonstrar que,
apesar da confluência entre alvo e TU
d
’, os sujeitos no plano não-ficcional mantêm uma
relação diferente na mise en scène triádica. O locutor (EU
e
-narrador) busca a conivência
do TU
d
(os leitores) contra um alvo. Este último, se atentarmos para a construção das
personagens pelo EU
e
, é caracterizado por uma qualificação
102
de cunho subjetivo
(“senhora mal-humorada”) e por um enunciado (“O quê? Não é seu trabalho
descobrir?”), a princípio, modalizado de forma alocutiva como uma “interrogação”,
mas que é sobremodalizado pela modalidade elocutiva “apreciativa desfavorável”,
dentro do domínio pragmático com relação ao trabalho do médico. Ou seja, esse alvo
(presente na cena não-ficcional) se confluencia com o alvo (da cena ficcional) ao
representarem, ambos, um discurso marcado pela ignorância e pela rabugice. Todavia, o
destinatário do plano não-ficcional (TU
d
) assume uma natureza diferente daquela do
destinatário do plano ficcional (TU
d
’). Ele é chamado, desta vez, a ser cúmplice do EU
e
e compartilhar o seu desprezo pelas senhoras com comportamentos semelhantes aos da
personagem D. Maria.
Por conseguinte, a análise dessa sobremodalização deve também ser realizada caso a
caso. Para isso, elaboramos uma nova grade de coleta de dados
103
que visasse, desta vez,
evidenciar como: os enunciados constituintes das piadas possibilitam essa
sobremodalização; a natureza do alvo nesse nível; e o efeito possível em relação ao
leitor dos AFs.
P
IADA
N
ATUREZA
DO
A
LVO
E
FEITO
POSSÍVEL
(
CONIVÊNCIA
DO LEITOR
)
M
ARCAS DISCURSIVAS E RESPECTIVAS
M
ARCAS LINGUÍSTICAS
(37) Senhoras
de idade
Derrisão Qualificação de cunho subjetivo: “senhora mal-humorada”
Modo Alocutivo: Interrogação: “O quê? Não é seu trabalho descobrir?” sobremodalizada
pela modalidade elocutiva Apreciativa Desfavorável, dentro do domínio pragmático, em
relação ao trabalho do médico.
Grade 3
102
Categoria do MOD descritivo que evidencia um juízo de valor por parte do sujeito enunciador sobre
determinado fato do mundo.
103
Para uma visão completa dos dados coletados a partir dessa grade, ver tabela 4 (apêndice D).
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90
ATRIZ NÃO!
Pai Minha filha, você esta proibida de ser atriz! Se fôr [sic] trabalhar no
cinema, eu a matarei.
Filha – Mas, papai, eu arranjarei um pseudônimo.
Pai – Pois matarei os dois!
104
Nesse texto, as personagens pai e filha, respectivamente locutor e destinatário no plano
ficcional, discutem sobre o futuro profissional da filha. No enunciado Pois matarei os
dois!produzido pela personagem pai, percebe-se um ataque ao alvo que, no caso, é
múltiplo, ou seja, o ataque recai sobre a filha (transformada em vítima) e sobre a própria
lógica do enunciado, uma vez que não se pode matar uma categoria lexical, um
pseudônimo. Logo, tem-se uma confluência parcial entre o TU
d
e o alvo. Novamente,
tanto o efeito quanto a visada são de derrisão.
no plano não-ficcional, podemos tirar esse ataque do âmbito do absurdo, pois o
contexto histórico dessa piada (década de 50) evidencia uma preocupação dos pais de
família contra determinados tipos de trabalhos que uma mulher poderia/deveria assumir.
A preocupação é garantir que a personagem filha não desvie de um caminho trilhado
pela tradição: ser uma mulher casada, mãe prestativa e, no máximo, secretária ou
professora. Daí dizermos que o ataque, nesse plano, se dirige à ideia de trabalho
feminino numa época em que ele compete com um imaginário sociodiscursivo
constituído como o mais correto (ser atriz, em 1950, era comparado a ser uma
prostituta). O TU
d
é chamado a partilhar da intenção do EU
e
baseada no desprezo por
uma profissão não desejada para a época. Isso pode ser confirmado pela modalização
demais enunciados da personagem pai, a saber: a “proibição” em Minha filha, você
está proibida de ser atriz!” e a “ameaça” em “Se for trabalhar no cinema, eu a
matarei.”. Isso nos leva a perceber que análise da modalização deve ser realizada caso a
caso, como mostram as tabelas 3 e 4 (apêndice C e D, respectivamente).
Os exemplos analisados e os dados obtidos com as tabelas 3 e 4 (cf. apêndices C e D)
mostram a variação de efeitos e visadas dependendo do plano (ficcional ou não-
ficcional) analisado. Nelas é possível também perceber as várias possibilidades de
104
Cf. piada 16 (anexo).
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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91
combinação para a confluência dos sujeitos (EU
e
’, TU
d
e alvo) presentes nas piadas de
AFs. Todavia, fica a seguinte questão: até que ponto o TU
d
(leitor ideal dos AFs) está
envolvido nesses textos, uma vez que, como destinatário do ato humorístico, ele
também pode ser chamado não somente a ser cúmplice mas também vítima e, desse
modo, fusionar-se com o alvo. Para responder a essa questão, devemos levantar uma
reflexão sobre as atitudes do sujeito falante em relação ao sujeito ouvinte/leitor.
Charaudeau (1998) discute as diferenças entre narrativa e argumentação de acordo com
as atitudes que o sujeito falante, ao construir seu texto, pode adotar. Essas atitudes,
diferentes, mas complementares, são orientadas, de acordo com Charaudeau (1998, p.2-
3), para o outro, de modo a: a) na atitude projetiva: permitir que o outro se identifique
com as personagens da narração; b) na atitude impositiva: fazer com que o outro, por
meio de argumentos e raciocínios, entre em um certo esquema de verdade que explicam
o porque e o como dos fatos. Ainda segundo o mesmo autor, essa duas atitudes podem
se mesclar; porém, uma pode se tornar predominante dependendo do ato de
comunicação.
Para o ato de comunicação humorístico analisado nas piadas de AFs, podemos dizer que
essas atitudes se interpenetram de tal maneira que determinar a predominância de uma
delas seria, até certo ponto, desnecessário, pois, como demonstramos, a construção e a
organização discursiva das piadas parecem jogar com essas possibilidades em prol de
um objetivo maior: transmitir o discurso político-pedagógico dos AFs. Assim, o TU
d
é
chamado: a) a se identificar com as personagens
105
das piadas por meio da generalidade
da construção textual representada pelas qualificações mínimas das personagens e das
situações comuns do dia-a-dia; b) a adotar como verdades certos imaginários
sociodiscursivos em relação à mulher.
Pelo exposto até aqui, devemos colocar que as estratégias discursivas utilizadas para
desempenhar o objetivo dos AFs têm como ponto fulcral o discurso humorístico,
entendido como um modo de dizer dentro de diferentes situações de comunicação.
105
Para Charaudeau (2008, p.156), em algumas formas de narrativa como, por exemplo, as piadas “... o
destinatário não é induzido a fundir-se numa palavra sagrada, nem a projetar-se num herói ideal, mas a
olhar e observar seres e vidas com os quais pode estabelecer relações de atração, de rejeição (ou as duas
ao mesmo tempo) e que o auxiliarão, durante o tempo da narrativa, a exorcizar seu ‘mal de ignorância.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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92
Contudo, e o que pretendemos evidenciar em nossas considerações finais, a organização
discursiva das piadas de AFs, baseada no ato humorístico, nos leva a perceber a ação de
outras estratégias, principalmente, no que tange à representação sociodiscursiva da
mulher, a saber: a) a criação de ethé femininos a partir das enunciações das personagens
femininas; b) o uso do silêncio na construção textual das piadas referente aos discursos
sobre a mulher; c) a construção de um TU
d
com características de tiers (terceiro), na
mise en scène discursiva, chamado a julgar um determinado modelo, ou antimodelo, de
comportamentos femininos.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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93
C
ONSIDERAÇÕES
F
INAIS
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94
Como se pode notar nos capítulos anteriores, nossa análise veio se construindo de modo
a ser possível desvelar as principais estratégias discursivas para construção e reprodução
da representação da mulher nas piadas de AFs. reiteramos também que o próprio
discurso humorístico pode ser considerado mais como uma estratégia discursiva do que
um discurso a exemplo do discurso político ou o discurso religioso. Assim, nosso papel
nessas considerações finais será evidenciar as outras estratégias a partir dos resultados
obtidos com a análise das piadas de AFs, tendo sempre em mente a influência do
discurso humorístico na interpretação desses resultados.
No final do capítulo três, dissemos que nossa análise apontava para determinadas
estratégias discursivas. Retomaremos, aqui, essas estratégias para depois tecer
considerações sobre o papel desempenhado por cada uma delas na constituição das
piadas de AFs:
a) A criação de uma variedade de ethé femininos a partir das enunciações das
personagens femininas;
b) O uso do silêncio na construção textual/discursiva das piadas;
c) A construção de um TU
d
com características de tiers (terceiro), na mise en
scène discursiva, chamado a julgar um determinado modelo, ou
antimodelo, de comportamentos femininos.
Em (a), podemos dizer que a relação entre as representações da mulher e as
modalidades enunciativas
106
cria determinadas imagens das personagens femininas, o
que nos leva a pensar no ethos
107
enquanto estratégia discursiva produtiva dentro do
106
Cf. tabela 1 (apêndice A).
107
A categoria de ethos remonta à Antiguidade Clássica, mais propriamente à Retórica Antiga. Em seu
sentido aristotélico, ethos era considerada uma das provas retóricas juntamente com o logos e o pathos,
funcionando como um argumento persuasivo em favor do orador. Por meio desse argumento, o orador
poderia se mostrar portador de qualidades como a prudência (phronesis), a virtude (aretê), e a
benevolência (eunóia). Desse modo, para Aristóteles, o ethos era tido como o caráter ou a imagem que o
orador, em seu discurso, mostra ou constrói, objetivando aumentar a adesão de um determinado auditório.
Vemos, portanto, que o ethos para Aristóteles está diretamente preso ao discurso. Ainda na Antigüidade
Clássica, como aponta Amossy (2005), os romanos, dedicando-se aos estudos retóricos, retomaram o
conceito de ethos, mas ligaram-no à vida do orador (sua origem familiar, suas posses etc.), o que
acarretou uma reformulação do conceito que passa a ser, agora, externo ao discurso. Essa problemática da
especificidade intra/extra discursiva do ethos, como ressalta Amossy (2005), transpassará pelos estudos
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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95
discurso das piadas. Desse modo, antes de demonstrarmos como os ethé femininos são
construídos nas piadas de AFs, vejamos alguns apontamentos sobre essa estratégia.
Para Maingueneau (2006), o ethos pensado a partir de Aristóteles possui um caráter
híbrido, pois, por definição, constrói-se através do discurso que, por sua vez, necessita
de uma situação de comunicação e de parceiros. Isso leva o ethos a se desenvolver em
uma determinada conjuntura histórica, na qual a identidade dos parceiros será peça
fundamental no desempenho/sucesso da argumentação do orador. Pensando dessa
maneira, além de mostrar que a categoria de ethos depende de outras categorias, como
os gêneros do discurso, Maingueneau ressalta que o ethos pode assumir características
diferentes, dependo da forma como for apresentado pelo sujeito falante. Ao fazer isso,
Maingueneau (2006) tira a exclusividade da pertença dessa categoria à arte retórica e
passa a aplicá-la aos estudos dos diferentes discursos como, por exemplo, o literário.
Além disso, como ferramenta de análise, Maingueneau (2006) propõe que o ethos pode
possuir um caráter discursivo ou pré-discursivo
108
.
A partir dessa colocação, pode-se perceber que o ethos é uma construção complexa que
se não somente através dos enunciados do sujeito falante, mas também de
enunciados de outrem: destinatários ou terceiros. Com efeito, também o que se diz do
sujeito falante pode contribuir para a construção do ethos. Isso porque, de acordo com
Charaudeau (2006c), parte das informações necessárias para a construção de alguns ethé
pode ser fornecida pela mídia, a partir da história dos sujeitos e de suas identidades, ou
seja, ... identidades discursiva e social fusionam-se no ethos (CHARAUDEAU,
2006c, p.116). Disso, Charaudeau (2006c) propõe a possibilidade da construção de uma
tipologia de ethé, não exaustiva, em relação ao discurso político, baseada nas
características sociais, psicológicas e físicas dos seres humanos, a saber: seriedade,
virtude, potência, caráter, competência, inteligência, humanidade, solidariedade. A
nosso ver, essas características arroladas por Charaudeau devem também ser vistas pelo
seu lado oposto, a partir da falta ou do excesso, ou seja, que elas possam indicar
da retórica medieval, adquirirá um enfraquecimento durante o movimento romantismo e chegará aos
estudos discursivos no século XX.
108
De acordo com Amossy (2005, p.124), a categoria de ethos pré-discursivo corresponde a um “... saber
prévio que o auditório possui sobre o orador”, anterior ao momento em que este toma a palavra. Todavia,
esse saber se constitui também em um discurso, ou seja, um discurso que fornece suporte a esse ethos.
Desse modo, para essa autora, devemos considerá-lo como ethos prévio.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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96
(mostrar), por exemplo, um ethos de incompetência ou de fraqueza etc., pela falta de
competência ou excesso de solidariedade.
Nas piadas de AFs, é possível perceber, a partir da modalização e das modalidades
enunciativas, essa construção de diferentes ethé referentes às personagens femininas.
Vejamos como isso pode ser exemplificado.
O médico: — Applicaram direitinho os remedios que aconselhei?
A esposa do doente: Sim, doutor. Mas o coitado teve uma indigestão
terrivel...
O médico: — Como assim?
A esposa do doente: As cataplasma elle ainda enguliu bem. Mas as
sanguessugas nós tivemos de refogar com ovo... E elle bebeu tanta agua em
cima...
109
O enunciado Mas as sanguessugas nós tivemos que refogar com ovo... corresponde à
fala da personagem esposa sobre a aplicação de uma receita recomendada pela
personagem médico. A modalidade emprega é declaração de confissão, que
corresponde a um saber que o sujeito falante escondia, mas que, ao transmitir esse saber
ao interlocutor, o sujeito falante reconhece sua culpa (CHARAUDEAU, 2008). Esse
enunciado, modalizado dessa maneira, evidencia a ignorância da esposa em relação aos
sentidos da palavra aplicar e ao fato de que sanguessugas eram utilizadas em
procedimentos de sangria. Podemos considerar, então, que essa ignorância de
determinados saberes e a declaração de culpa correspondem à ideia de um ethos de
incompetência (aplicando e expandindo, assim, o pensamento de Charaudeau (2006c)
sobre a classificação dos ethé).
Tomando como base essa articulação
110
entre modalidades e representações, acreditamos
ser possível evidenciar outros tipos de ethé. Todavia, essa tarefa vai além dos objetivos
desse trabalho, podendo constituir matéria para futuras pesquisas. Para esse momento, o
109
Ver piada 4 (anexo).
110
Na tabela 1 (apêndice A) o apresentadas caso a caso as modalidades e as representações sociais
inferidas.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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97
importante é demonstrar que essa articulação constitui um caminho para análise do
ethos enquanto estratégia discursiva dentro das piadas de AFs.
Em (b), devemos retomar a ideia de que nas piadas dois ou mais discursos podem ser
reproduzidos simultaneamente. Além disso, é importante ressaltar que algumas
características textuais das piadas indicam uma espécie de laconismo como, por
exemplo, a brevidade. Isso significa dizer que existe uma estratégia discursiva que
proporciona fazer passar o não-dito juntamente com o dito. Daí pensarmos que as
técnicas e os procedimentos linguageiros, próprios do discurso humorístico, contribuem
de algum modo para que tal estratégia possa ser efetivada. Seguindo esse raciocínio,
deparamo-nos com a questão do uso do silêncio em textos ficcionais.
Mello (2002) procura verificar as formas de evidenciar os empregos do silêncio
enquanto algo significante no discurso, pois o considera um elemento essencial na
comunicação textual. Dessa forma,
Ele [o silêncio] não somente expressa diretamente o seu significado, mas
leva, por sua própria natureza, a interpretações e significações múltiplas.
Torna-se forma eloqüente e clara de comunicação, à medida que se
infiltra na estrutura do texto, tornando-se fundamental na enunciação.
(MELLO, 2002, p.89)
Ainda segundo Mello (2002), podemos colocar que o silêncio mantém uma relação de
complementaridade com a palavra, isto é, enquanto a palavra é legível e visível, o
silêncio exige do leitor um maior esforço, uma vez que não é visível, mas simplesmente
passível de percepção. Isso nos leva à consideração dos implícitos presentes no texto, o
que Mello (2002) define como silêncios implícitos. De acordo com esse autor,
Entendemos como silêncio implícito, as diversas formas de dizer sem
falar, de calar sem se silenciar. Estamos falando, por exemplo, dos
subentendidos, das alusões, das ironias, enfim, dos tropos e suas relações
diretas com os implícitos. (MELLO, 2002, p.107 – grifo do autor)
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
98
Entendido dessa forma, as técnicas e os procedimentos linguageiros presentes no
discurso humorístico parecem corroborar a constituição do silêncio como estratégia
discursiva produtiva nas piadas de AFs, pois, de acordo com a definição proposta por
Mello (2002), o silêncio implícito pode ser caracterizado como o objetivo do uso de tais
técnicas e procedimentos, sendo estes vestígios, marcas da presença do silêncio nas
piadas. Desse modo, propomos discutir a relação do silêncio com as categorias do
discurso humorístico, apontando para os discursos relacionados à imagem da mulher
que foram silenciados nas piadas.
Com relação às categorias ligadas ao jogo enunciativo, a tabela 3 (apêndice C) mostra
uma produtividade da categoria do sarcasmo (19 ocorrências). Essa categoria, como
definida por Charaudeau (2006b), não procura mascarar o não-dito pelo dito, muito
menos ocultar um pensamento negativo por meio de uma expressão positiva
(características típicas da ironia). Pelo contrário, ele diz abertamente um pensamento
negativo por meio de uma expressão também negativa, na maior parte das vezes
hiperbolizada. Apesar de possuir essas características básicas, o que queremos colocar
aqui é que o sarcasmo, estando relacionado ao silêncio, implica um ocultamento de
outro discurso que não foi dito. Logo, agride-se abertamente para se fazer passar outro
discurso que está silenciado, isto é, essa agressão esconde supostamente uma visada de
incitação ligada ao discurso dos AFs, como ocorre no exemplo a seguir:
O marido: É verdade, querida, que vivemos com grande fartura, mas também há
muita gente rica que passa a vida chorando.
A espôsa: Acredito. Mas eu prefiro chorar num Cadillac a chorar num
bonde...
111
Aqui, vemos que o sarcasmo serve para caracterizar a personagem esposa enquanto uma
mulher gananciosa. Contudo, isso não é dito. Ao contrário, ataca-se abertamente esse
antimodelo, esperando-se que o leitor ideal (TU
d
) se identifique com uma representação
oposta a este antimodelo ou que se afaste dele.
111
Cf. piada 14 (anexo).
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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99
Quanto aos procedimentos ligados ao jogo semântico, podemos perceber, em relação ao
conceito de isotopia, uma certa produtividade no uso da incoerência paradoxal (20
ocorrências)
112
. Essa incoerência, de acordo com Charaudeau (2006b), prevê uma
contradição entre duas lógicas dentro de uma mesma isotopia. Em termos de silêncio,
podemos salientar que, enquanto um discurso passa explicitamente, um outro, que
mantém uma relação contraditória com o primeiro, se torna menos evidente, mas
passível de ser percebido:
Meus dois genros são completamente diferentes. Um não presta pra nada, o
outro é capaz de tudo
113
.
Nessa piada, é claro o sarcasmo da personagem sogra em relação aos genros. O ataque
se dirige a uma norma social que diz respeito a um imaginário sociodiscursivo no qual a
existência de uma relação conflituosa entre sogras e genros é garantida. Se pensarmos
em termos de derrisão, esta se volta contra esse modelo de relação familiar e, por
conseguinte, contra esse antimodelo de sogra. O leitor ideal (TU
d
) novamente é
chamado a partilhar dessa derrisão, ou seja, de um desprezo pelas atitudes da
personagem sogra. Logo, apesar de a sogra agredir os genros no plano ficcional, no
plano não-ficcional a derrisão recai sobre ela, transformando-a em um antimodelo do
qual o TU
d
deve se afastar. Diante disso, infere-se que o(s) discurso(s) nas piadas é
(são) construído(s) por um jogo no qual o silêncio e o dito se encontram imbricados.
Para a discussão da estratégia proposta em (c), devemos antes ressaltar algumas
características do TU
d
vislumbradas a partir da análise da mise en scène das piadas de
AFs no que se refere à posição assumida por TU
d
após o desdobramento das instâncias
enunciativas proposta para o texto ficcional. Com esse desdobramento, duas instâncias
se apresentam com definições semelhantes, a saber: TU
d
e TU
d
’. Ambas representam o
sujeito destinatário-ideal do ato de comunicação: uma no plano não-ficcional, outra no
plano ficcional. Todavia, ao analisarmos as piadas enquanto um ato humorístico,
percebemos uma diferença na natureza do TU
d
em relação ao TU
d
’, devido à
caracterização das instâncias enunciativas de acordo com a mise en scène triádica:
112
Cf. tabela 3 (apêndice C).
113
Cf. piada 9 (anexo).
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
100
locutor, destinatário e alvo. Enquanto o TU
d
pode ora assumir posição de destinatário
(cúmplice ou vítima), ora fusionar-se com o alvo
114
o que pode ser comprovado por
marcas linguísticas
115
–, não marcas textuais e/ou discursivas que possam provar que
o TU
d
das piadas e dos AFs se constitui como destinatário (do ato humorístico) ou que
ele se fusiona com algum alvo. Diante disso, podemos dizer que esse TU
d
presencia o
diálogo das personagens, podendo ou não aderir ao chamado do EU
e
para estabelecer
um julgamento sobre os hábitos e comportamentos expostos nas piadas. Todavia, essa
adesão por parte do TU
d
não é possível de ser percebida dentro do texto das piadas de
AFs.
Como colocamos no final do capitulo três, ao TU
d
é dado o direito de assumir duas
atitudes: uma projetiva, na qual ele pode se identificar com as personagens ou se afastar
delas; ou uma impositiva, na qual ele admite por meio da lógica os argumentos em prol
de uma verdade sobre os fatos. Ainda assim, no texto das piadas, o que se pode inferir
sobre essas atitudes diz respeito ao TU
d
e não ao TU
d
: são as personagem que falam,
que verbalizam suas opiniões sobre os fatos do mundo. Com efeito, devido à condição
de leitor-ideal ausente na situação de comunicação, esse TU
d
das piadas pode ser
considerado um sujeito presente-ausente (CHARAUDEAU, 2004b, p.20). Ele parece
assumir, pois, características semelhantes às de um terceiro (tiers) que ... está em
posição de escutar, de testemunhar, mas não de ter direito à palavra...
116
(CHARAUDEAU, 2004b, p.23 tradução nossa). Ainda de acordo com Charaudeau
(2004b), esse terceiro pode reagir ao ato de comunicação por meio, por exemplo, do
riso.
É de suma importância dizer aqui que essa aproximação entre o TU
d
e o terceiro (tiers)
proposta por nós não é de modo algum absoluta, uma vez que esse terceiro definido por
Charaudeau (2004b, p.23) diz respeito a um dispositivo onde se encontram três
parceiros: dois em situação dialógica como co-enunciadores em alternância e um em
posição de terceiro que é chamado a avaliar as questões colocadas no ato de
114
Na tabela 3 (apêndice C) podemos notar a produtividade dessa confluência (19 ocorrências) entre TU
d
e o alvo no plano ficcional.
115
Na tabela 1 (apêndice A), pode-se perceber os enunciados os quais servem de base para análise do ato
humorístico realizada na tabela 3 (apêndice C).
116
No original: … est en position d’écoute, de témoin, mais n’a pas droit à prendre la parole…
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101
comunicação. Nossa proposta é simplesmente mostrar que tais características são
assumidas pelo TU
d
dentro das piadas, devido às características particulares do discurso
humorístico. Desse modo, acreditamos que esse debate da questão do tiers vai além das
possibilidades dessa pesquisa, mas que pode constituir material para trabalhos futuros.
Como mostram nossas considerações finais, as estratégias discursivas se imbricam,
construindo uma trama que envolve as propriedades textuais e os componentes
discursivos e linguísticos da mise en scène das piadas, as propriedades do discurso
humorístico, as representações e os imaginários sociodiscursivos. Cientes disso,
acreditamos que as estratégias aqui discutidas não esgotam a possibilidade da existência
de outras estratégias. Nosso intuito foi procurar nas piadas de AFs parâmetros que
garantissem desvelar essas estratégias discursivas predominantes e, ao mesmo tempo,
apresentar meios de verificar a presença das representações sociais da mulher dentro dos
almanaques.
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102
R
EFERÊNCIAS
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
106
A
NEXO
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
107
A
NEXO
- C
ORPUS
117
Piada 1 – ALMANAQUE COSTUMES E CURIOSIDADE, 1939, p.5.
Mulher: — Geralmente falando, as mulheres estão...
Marido: — (que está distraído) Estão sim...
Mulher: — Estão, o quê?
Marido: — Geralmente falando.
Piada 2 – ALMANAQUE COSTUMES E CURIOSIDADE, 1939, p.5.
O pae, falando severamente:
— como póde ser, Lucia, que hontem à noite houvesse um doce inteiro na dispensa e hoje só há uma
parte?
Lucia, olhando pela janella:
— E como pode ser papae, que ainda noutro dia houvesse uma lua inteira no céo, emquanto que hoje
há um pedaço?
Piada 3 – ALMANAQUE COSTUMES E CURIOSIDADE, 1939, p.32.
NA ESCOLA
A professora: — Fale-me alguma cousa, sobre a vida de Irene, Imperatriz de Bizancio.
A alumna: — Ora, professora, não costumo fallar da vida dos outros.
Piada 4 – ALMANAQUE COSTUMES E CURIOSIDADE, 1939, p.32.
O médico: — Applicaram direitinho os remedios que aconselhei?
A esposa do doente: — Sim, doutor. Mas o coitado teve uma indigestão terrivel...
O médico: — Como assim?
A esposa do doente: As cataplasma elle ainda enguliu bem. Mas as sanguessugas nós tivemos de
refogar com ovo... E elle bebeu tanta agua em cima...
Piada 5 – ALMANAQUE CAPIVAROL, 1955, p.12.
MAL DE UNS...
— Há dias eu disse à minha mulher uma frase com tanta infelicidade que ela deixou de falar comigo.
— Oh! E não podes me dizer o que foi, para eu repetir à minha?
Piada 6 – ALMANAQUE CAPIVAROL, 1955, p.12.
DIAGNÓSTICO
Esta bossa que o amigo tem aqui na testa diz um frenólogo, examinando a cabeça de um cliente é
indício certo de que seu caráter é colérico.
Nada disso, caro doutor: o caráter é de minha mulher, e essa bossa é indício de que ela me atirou,
dias, um prato à cabeça!
117
Procuramos manter a ortografia original na transcrição de todas as piadas. Contudo, indicaremos com
sicos casos nos quais o sentido do texto pode estar comprometido pela inadequação da grafia ou da
pontuação.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
108
Piada 7 – ALMANAQUE CAPIVAROL, 1955, p.22.
A IDADE DA MADAME
Uma senhora perguntou a Bernard Shaw:
— Que idade represento ter?
A julgar pelos seus dentes, dou-lhe 18 anos; a julgar pelos seus cabelos, 19 e a julgar pelo aspecto
geral, 14.
— Muito obrigada! Porém ainda não me disse que idade represento ter...
— Some os 18, mais os 19 e mais os 14 e a resposta será 51 – disse Shaw.
Piada 8 – ALMANAQUE CAPIVAROL, 1955, p.22.
NA ESCOLA
— Manoelzinho, diga alguma coisa sobre o Tiradentes.
— O Tiradentes foi um homem que morreu enforcado.
— Mas só isso? – perguntou a professôra.
— E a senhora ainda acha que foi pouco?...
Piada 9 – ALMANAQUE CAPIVAROL, 1955, p.27.
— Meus dois genros são completamente diferentes. Um não presta nada, o outro é capaz de tudo.
Piada 10 – ALMANAQUE CAPIVAROL, 1955, p.28.
— Quem é a mulherzinha bonita, que cozeu (sic) o bolso do marido?
— E que é o que a mulherzinha bonita andou procurando no bolso do marido?
Piada 11 ALMANAQUE BIOTÔNICO, 1961, p.6.
— Senhorita, apresento-lhe o Sr. Leão.
— Desculpe, meu nome é Carneiro.
— Oh! Perdoe o engano. Mas eu sabia que se tratava de um animal.
Piada 12 – ALMANAQUE BIOTÔNICO, 1961, p.15.
— Casei-me com uma datilógrafa e nasceram três filhos!
— Já sei: um original e duas cópias.
Piada 13 ALMANAQUE BIOTÔNICO, 1961, p.19.
A espôsa: — Cite-me uma boa ação em sua vida se fôr capaz.
O marido: — Impedir que você morresse como uma velha solteirona.
Piada 14 – ALMANAQUE BIOTÔNICO, 1961, p.32.
O marido: É verdade, querida, que vivemos com grande fartura, mas também muita gente rica que
passa a vida chorando.
A espôsa: Acredito. Mas eu prefiro chorar num Cadillac a chorar num bonde...
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
109
Piada 15 – ALMANAQUE BRASIL, 1966, p.21.
PONTO DE VISTA
Do primeiro amigo: Mulher magra é rabugenta, mulher gorda é preguiçosa; mulher loira é ciumenta;
mulher morena é teimosa; mulher baixa é barulhenta; mulher alta é buliçosa; mulher feia é bolorenta;
mulher bonita é vaidosa; mulher môça é tagarela; mulher velha fujam dela; mulher solteira eu persigo;
mulher casada é um perigo; mulher viúva é funesta...
Conclusão: nenhuma presta.
Do segundo: pois se achas que é assim, deixa-as tôdas para mim...
Piada 16 – ALMANAQUE BRASIL, 1966, p.30.
ATRIZ NÃO!
Pai – Minha filha, você esta proibida de ser atriz! Se fôr [sic] trabalhar no cinema, eu a matarei.
Filha – Mas, papai, eu arranjarei um pseudônimo.
Pai – Pois matarei os dois!
Piada 17 – ALMANAQUE BRASIL, 1966, p.30.
DISTRAÍDO
A criada – Patrão! Patrão! Acabo de perder o seu menino, na Pracinha.
O patrão – Está bem, está bem, vou descontar no seu ordenhado.
Piada 18 – ALMANAQUE BIOTÔNICO, 1970, p.18.
Pergunta a menininha: — Tia, por que passa ruge no rosto?
Responde a tia: — Para ficar bonita, minha filha.
Volta a menininha: — E por que não fica?
Piada 19 – ALMANAQUE BIOTÔNICO, 1970, p.18.
O padre perguntou à boa senhora:
— faz tempo que seu marido não vem à missa. Será por comunismo ou ateísmo?
Responde a senhora:
— É coisa bem pior, seu padre, é por reumatismo.
Piada 20 – ALMANAQUE RENASCIM SADOL, 1982, p.9.
DA MESMA OPINIÃO
— Por que você briga tanto com seu marido? As opiniões são diferentes?
— Não. Brigamos bastante porque as opiniões são iguais. Ele quer mandar em casa e eu também.
Piada 21 – ALMANAQUE RENASCIM SADOL, 1982, p.18.
QUE CORAGEM
A mulher apressadinha passa o sinal vermelho e o guarda a obriga a parar.
— Quer me dar sua carta, por favor?
Como? ela exclama furiosa o senhor ainda tem a coragem de me pedir a carta? Logo o senhor que
a tomou no mês passado?
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
110
Piada 22 – ALMANAQUE RENASCIM SADOL, 2002, p.7.
UM IRMÃOZINHO?
Ao chegar em casa, o garoto diz a mãe:
— Não vou à aula amanhã. A professora disse que não preciso ir porque ganhei um irmãozinho.
— Que bom! – diz a mãe.
— Você contou que tive gêmeos?
— Eu não! Guardei o outro para a semana que vem.
Piada 23 – ALMANAQUE RENASCIM SADOL, 2002, p.10.
Um casal vinha por uma estrada do interior sem dizer uma palavra.
Uma discussão anterior havia levado a uma briga, e nenhum dos dois queria dar o braço a torcer.
Ao passarem por uma fazenda em que havia mulas e porcos, o marido sarcástico:
“– Parentes seus?”
“– Sim, respondeu ela. Cunhados”.
Piada 24 – ALMANAQUE RENASCIM SADOL, 2002, p.13.
MEDICANICO
Um médico entrou num quarto de hospital e disse ao marido da paciente para esperar do lado de fora,
enquanto fazia o exame. Alguns minutos depois, o medico saiu e pediu a assistente de enfermagem para
lhe arranjar um alicate. Ela obedeceu e ele voltou ao quarto da paciente. Cinco minutos depois, tornou a
sair e pediu uma chave de fenda. Quando saiu pela terceira vez e pediu um martelo, o marido, aflito,
perguntou o que havia com sua esposa.
— Ainda não sei – disse o médico.
— Não consigo abrir a minha maleta.
Piada 25 – ALMANAQUE RENASCIM SADOL, 2002, p.13.
O CENSO
Dez anos depois, a moça do censo voltou àquela cidadezinha longínqua do sertão e constatou que a
população não havia nem aumentado nem diminuído.
— Minha senhora – perguntou ela à mulher mais velha do lugar – como isso pode acontecer?
ö simples. Toda vez que nasce um bebe, um rapaz foge da cidade.
Piada 26 – ALMANAQUE RENASCIM SADOL, 2002, p.23.
O COVEIRO
Viajando num ônibus, disse o bêbado para sua mulher:
— Eu fui coveiro muito tempo e já faz muitos anos!
A mulher ficou atônita e perguntou:
— Então você já enterrou muita gente?
Respondeu o marido:
— Não, eu vendia ‘couve’ na rua! Há, há, há...
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
111
Piada 27 – ALMANAQUE FONTOURA, 2004, p.3.
Pedrinho chega na escola e a professora pergunta:
— Por que você falhou ontem?
ö que eu levei uma picada de marimbondo fessora.
— Mas onde o marimbondo te picou?
— Não posso falar professora.
— Então vá se sentar.
— Também num posso fessora.
Piada 28 – ALMANAQUE FONTOURA, 2004, p.5.
A professora pergunta para os alunos:
— De que vocês têm medo?
Um menino diz:
— Eu tenho medo do bicho papão.
O outro diz:
— Eu tenho medo da cuca.
E Joãozinho diz:
— Eu tenho medo do “MALAMEM”.
A professora curiosa pergunta:
— Malamem? Quem é o malamem?
Então o Joãozinho fala:
Olha professora, como ele é eu não sei, mas sempre que a minha mãe reza, no fim ela pede para o
Papai do céu “Mas livrai-nos do malamem”.
Piada 29 – ALMANAQUE FONTOURA, 2004, p.7.
O marido pergunta: — Benzinho, o que você quer de presente de aniversario?
A mulher responde: — Ah! Eu quero um radinho!
O marido fica surpreso com o pedido simples da mulher: — Um radinho???!!!
A mulher confirma: — Isso um radinho daqueles pequenos que vem com um carrão importado por fora.
Piada 30 – ALMANAQUE FONTOURA, 2004, p.12.
Joãozinho chega perto da cama do avô e pede:
— Vovô! Feche os olhos um pouquinho!
— Mas por quê, Joãozinho?
— É que eu ouvi a mamãe falar que quando o senhor fechar os olhos nós vamos ficar ricos!
Piada 31 – ALMANAQUE FONTOURA, 2004, p.13. – grifos do autor.
— Por favor, me ajude. A minha sogra quer pular pela janela do décimo andar!!!
— Meu senhor, aqui é uma serralheria e não o bombeiro. .
— Eu sei, é que a janela está emperrada.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
112
Piada 32 – ALMANAQUE FONTOURA, 2004, p.19.
O bêbado entra no ônibus e vai cambaleando, quando de repente, o motorista uma brecada e ele cai em
cima de uma senhora que fica furiosa:
— O senhor vai para o inferno...
Então o bêbado apressadamente grita:
— Motorista, motorista!!! Pare que eu peguei o ônibus errado...
Piada 33 – ALMANAQUE RENASCIM SADOL, 2005, p.8.
BÊBADO
Bêbado pode estar embriago do jeito que for. Com aquela manguaça! Ele pode cair e arrebentar todo, mas
se tiver com um litro de “pinga” na mão, o litro não quebra...
Um bêbado vinha pela rua catando cavaco e o litro de marvada, embaixo do braço... Tava próximo a um
buraco, foi indo, cambaleando, querendo esquivar-se, até que não mais conseguindo equilibrar-se, acabou
caindo mesmo no buraca. Ao longe, uma senhora vendo tudo, correu para acudir o bêbado e perguntou
ligeiramente assustada:
— Machucô?
Ele titubeando, levantou-se cambaleando e mais que depressa ergueu o litro que tinha na mão e respondeu
à velhinha já aflita de preocupação:
— Nem trinco!
Piada 34 – ALMANAQUE RENASCIM SADOL, 2005, p.10.
RINDO NO VELÓRIO
No meio da tristeza de um velório, a mulher olha para uma amiga e começa a rir.
— O que é isso, Zoraide? – pergunta a amiga aflita.
— Estou rindo daquele arranjo de flores em forma de coração em cima do caixão.
Qual o problema? retruca a amiga Isso é uma homenagem que os amigos médicos fizeram ao
falecido. Ele era o melhor cardiologista da cidade!
Pois então... É disso mesmo que eu estou rindo! Quero ver como é que vai ser quando o meu
marido morrer. Ele é o melhor ginecologista da cidade!
Piada 35 – ALMANAQUE RENASCIM SADOL, 2005, p.12.
JOÃO E O CÃO VIRA-LATA
Certo dia, João levantou-se bem cedo, pegou o cachorro e o levou ao veterinário, pedindo-lhe que
cortasse o rabo do cachorro no último gominho.
O veterinário, [sic] insistiu dizendo que em cachorros vira-latas não se corta o rabo, mas tanta foi a
insistência de João que o veterinário acabou cedendo. que antes, gostaria de saber porque queria que
cortasse o rabo do cachorro no último gominho. João respondeu dizendo:
— É que minha sogra está para chegar e eu não quero a mínima manifestação de alegria!
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
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Piada 36 – ALMANAQUE RENASCIM SADOL, 2005, p.16.
MARIDO FIEL?
No hipermercado dois caras batem os respectivos carrinhos de compras. Ambos se desculpam e um deles
fala ao outro:
— Desculpe, me distraí porque estava procurando minha mulher!
— Que coincidência! Também estou procurando a minha!
— Como é a sua mulher?
Ela é loura, alta, olhos azuis, pernas bem torneadas, seios salientes e lábios carnudos. Usa um vestido
vermelho justinho, decotado e bem curto.
— E a sua como é?
— Que se lixe a minha. Vamos procurar a sua!!!
Piada 37 – ALMANAQUE RENASCIM SADOL, 2005, p.21.
CONSULTA MÉDICA
Uma senhora mal-humorada entra no consultório médico.
— Então, o que está sentindo D. Maria?
— O que? Não é seu trabalho descobrir?
A senhora aguarda um instante, vou chamar o veterinário, ele consegue fazer um diagnóstico sem
falar com os pacientes.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
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A
PÊNDICE
A
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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115
T
ABELA
1 – A
NÁLISE DOS CONTRATOS DE COMUNICAÇÃO NAS CENAS FICCIONAIS DAS PIADAS
C
ONTRATO
P
IADA
I
DENTIDADES DAS
PERSONAGENS
F
INALIDADE
(
VISADA
PREDOMINANTE
)
P
ROPÓSITO
(
TEMA
)
C
IRCUNSTÂNCIAS
M
ODALIDADES
(
PRESENTE NOS ENUNCIADOS
DESENCADEADORES DO EFEITO DE HUMOR
)
R
EPRESENTAÇÃO
S
OCIODISCURSIVA
(
DESENCADEADA PELO ATO DE
COMNUNICAÇÃO HUMORÍSTICO
)
(01) Marido/mulher Solicitação “Competência” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Confirmação:Estão sim... Geralmente
falando.
O hábito de “falar muito” atribuído às
mulheres
(02) Pai/ filha Solicitação “Competência” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Alocutivo: Interrogação: “E como pode ser papae,
que ainda outro dia houvesse uma lua inteira no céu,
enquanto hoje só há um pedaço?”
Dissimulação atribuída ao gênio feminino
(03) Professora/ aluna Solicitação “Decência” Dialogal in praesentia;
Questionamento em sala
de aula
Modo Elocutivo: Recusa: “Ora, professora, não costumo
fallar da vida dos outros.”
Ignorância (no sentido de agressividade
verbal) atribuída às mulheres
(04) Médico/ cliente Solicitação “Competência” Dialogal in praesentia;
Consulta médica
Modo Elocutivo: Aceitação: “sim, doutor.” Modo
Delocutivo: Declaração de Confissão: “Mas as
sanguessugas nós tivemos que refogar com ovo...”.
Ignorância (no sentido de falta de
conhecimento) atribuída às mulheres
(05) Dois homens Solicitação “Relacionamento
conjugal”
Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Alocutivo: Interrogação: “Oh! E não podes me dizer
o que foi, para eu repetir a minha?”
O hábito de “falar muito” atribuído às
mulheres
(06) Médico/ cliente Demonstração “Comportamento” Dialogal in praesentia;
Consulta médica
Modo Elocutivo: Discordância: “Nada disso, caro doutor: o
caráter é de minha mulher, e essa bossa é indício de que ela
me atirou, há dias, um prato à cabeça!”
Cólera atribuída ao temperamento de
mulheres casadas
(07) Bernard Shaw/
Senhora
Solicitação “Estética” Dialogal in praesentia
Conversa ordinária
Modo Alocutivo: Sugestão: “Some os 18, mais os 19 e mais
os 14 e a resposta será 51.”
Desprezo por mulheres mais velhas e/ou
feias e a impertinência dos questionamentos
dessas sobre sua beleza.
(08) Professora/ aluno Solicitação “Decência” Dialogal in praesentia;
Questionamento em sala
Modo Alocutivo: Interrogação: “E a senhora ainda acha
que foi pouco?...”
Ignorância (no sentido de falta de
conhecimento) atribuída às mulheres
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
116
de aula
(09) Duas senhoras Informação (fazer-
saber)
“Decência/
competência”
Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Apreciação Desfavorável: “Meus dois
genros são completamente diferentes. Um não presta nada,
o outro é capaz de tudo.”
Rabugice atribuída à mulher com relação à
problemática das relações de parentesco
adquiridas com o casamento: sogras,
genros, noras, cunhados etc.
(10) Marido/ mulher Solicitação “Esperteza” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Alocutivo: Injunção (mascarada): “E que é o que a
mulherzinha bonita andou procurando no bolso do
marido?”
Desconfiança e/ou ganância feminina.
(11) Uma mulher e dois
homens
Informação “Polidez” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Saber: “Oh! Perdoe o engano. Mas eu
sabia que se tratava de um animal.”
-
(12) Dois homens Informação “Planejamento
familiar”
Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Saber: “Já sei: uma original e duas
cópias.”
Crítica à relação mulher e trabalho.
(13) Marido/ esposa Solicitação “Competência” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Constatação: “Impedir que você morresse
como uma velha solteirona.”
Desprezo por mulheres mais velhas e/ou
feias;
(14) Marido/ esposa Informação “Riqueza” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Discordância: “Mas eu prefiro chorar num
Cadilac a chorar num bonde...”
Ganância atribuída às mulheres;
(15) Dois amigos Demonstração “Juízos de valor” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Discordância: “pois se achas assim, deixa-
as todas para mim...”
Mulher enquanto objeto de posse do
homem.
(16) Pai/ filha Prescrição (“fazer-
fazer”)
“Decência” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Alocutivo: Aviso: “Pois matarei os dois.” Preconceitos relacionados a determinadas
profissões femininas confundidas com
prostituição em determinadas épocas.
(17) Patrão/ criada Informação (“fazer-
saber”)
“Eficiência” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Alocutivo: Julgamento Negativo: “Está bem, está
bem, vou descontar no seu ordenado.”
Incompetência atribuída a muitas
empregadas domésticas
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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T
ABELA
1 (
CONT
.) – A
NÁLISE DOS CONTRATOS DE COMUNICAÇÃO NAS CENAS FICCIONAIS DAS PIADAS
C
ONTRATO
P
IADA
I
DENTIDADES DAS
PERSONAGENS
F
INALIDADE
(
VISADA
PREDOMINANTE
)
P
ROPÓSITO
(
TEMA
)
C
IRCUNSTÂNCIAS
M
ODALIDADES
(
PRESENTE NOS ENUNCIADOS
DESENCADEADORES DO EFEITO DE HUMOR
)
R
EPRESENTAÇÃO
S
OCIODISCURSIVA
(18) Tia/ sobrinha Solicitação “Estética” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Alocutivo: Interrogação: “E por que não fica?”
sobremodalizada pela modalidade elocutiva Apreciação
Desfavorável (concernente à estética)
Desprezo por mulheres mais velhas e/ou
feias e a impertinência dos questionamentos
dessas sobre sua beleza.
(19) Padre/ senhora Solicitação “Demência” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Discordância: “É coisa bem pior, seu
padre, é por reumatismo.”
Ignorância (no sentido de falta de
conhecimento) atribuída às mulheres
(20) Esposa/ interlocutor
de identidade não-
determinável
Solicitação “Relacionamento
conjugal”
Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Confirmação: “Ele quer mandar em casa
e eu também.”
Autoritarismo atribuído às mulheres no
casamento
(21) Guarda/ motorista Prescrição “Competência” Dialogal in praesentia;
Repreensão policial
Modo Alocutivo: Julgamento Negativo: “Como? [...] o
senhor ainda tem a coragem de me pedir a carta? Logo o
senhor que a tomou no mês passado?”
Incompetência na condução de veículos
atribuída às mulheres
(22) Mãe/ filho “Fazer-crer” “Esperteza” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Discordância: “Eu não”; Declaração de
Confissão: “Guardei o outro para a semana que vem.”
Complacência das mães para com as ações
dos filhos.
(23) Marido/ Mulher Solicitação “Caráter” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Concordância: “Sim [...]”; Declaração de
Confirmação: “Cunhados”.
Rabugice atribuída à mulher com relação à
problemática das relações de parentesco
adquiridas com o casamento: sogras, genros,
noras, cunhados etc.
(24) dico/ cliente Informação Competência Dialogal in praesentia;
Consulta médica
- -
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
1
18
T
ABELA
1 (
CONT
.) – A
NÁLISE DOS CONTRATOS DE COMUNICAÇÃO NAS CENAS FICCIONAIS DAS PIADAS
P
ROPRIEDADES DO
C
ONTRATO
P
IADA
I
DENTIDADES DAS
PERSONAGENS
F
INALIDADE
(
VISADA
PREDOMINANTE
)
P
ROPÓSITO
(
TEMA
)
C
IRCUNSTÂNCIAS
M
ODALIDADES
(
PRESENTES NOS ENUNCIADOS DESENCADEADORES DO EFEITO DE HUMOR
)
R
EPRESENTAÇÃO
S
OCIODISCURSIVA
(24) Médico/ cliente Informação Competência Dialogal in praesentia;
Consulta médica
- -
(25) Censora/ senhora Solicitação “Decência” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Delocutivo: Asserção de Evidência: “É simples. Toda vez que
nasce um bebê, um rapaz foge da cidade.”
Ingenuidade atribuída às mulheres
em relação ao sexo e à concepção.
(26) Marido/ mulher Informação Competência Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Discordância: “Não...”; Declaração de Confissão: “eu
vendia ‘couve’ na rua! Há, há, há...”
-
(27) Professora/ aluno Solicitação “Esperteza” Dialogal in praesentia
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Recusa: “Também num posso fessora.” -
(28) Professora/ alunos Solicitação “Medo” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Ignorância: “Olha professora, como ele é eu não sei...”;
Declaração de Revelação: “mas sempre que minha reza, no fim ela pede
para o Papai do céu ‘Mas livrai-nos do malamem’”.
-
(29) Marido/ Mulher Solicitação “Ganância” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Delocutivo: Asserção de Confirmação: “Isso um radinho daqueles
pequenos que vem com um carrão importado por fora.”
Ganância atribuída às mulheres;
(30) Avô/ neto Incitação “Ganância” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Delocutivo: Discurso Relatado: “É que eu ouvi a mamãe falar que
quando o senhor fechar os olhos nós vamos ficar ricos!”
Ganância atribuída às mulheres;
(31) Senhor/
serralheiro
Incitação Despeito” Dialoga in ausentia;
Demanda de serviço
Modo Elocutivo: Constatação de Saber: “Eu sei...”; Declaração de
Confirmação: “é que a janela está imperada”
Qualificação de estorvo atribuída às
sogras pelos genros.
(32) Bêbado/ senhora
de idade
“Fazer-fazer” e/ou
“fazer-saber”
“Educação” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Alocutivo (Injunção) ou Elocutivo (Constatação): “O senhor vai
para o inferno...”
Rabugice atribuída às mulheres de
mais idade.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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119
(33) Bêbado/ senhora Solicitação “Caridade” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Constatação: “Nem trinco!” -
(34) Duas amigas Informação Decência” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Declaração Revelação: “Quero ver quando o meu
marido morrer. Ele é o melhor ginecologista da cidade.”
-
(35) Veterinário/
cliente
Incitação Despeito” Dialogal in praesentia;
Consulta veterinária
Modo Elocutivo: Querer (Exigência): “É que minha sogra está para
chegar e eu não quero a mínima manifestação de felicidade.”
Qualificação de estorvo atribuída às
sogras pelos genros.
(36) Dois homens Solicitação “Estética” Dialogal in praesentia;
Conversa ordinária
Modo Elocutivo: Apreciação Negativa (domínio estético): “Que se lixe a
minha.” Modo Alocutivo: Proposta: “Vamos procurar a sua.”
Desprezo por mulheres mais velhas
e/ou feias.
(37) Médico/ cliente Solicitação “Ignorância” Dialogal in praesentia;
Consulta médica
Modo Delocutivo: Asserção de Evidência: “... vou chamar o veterinário,
só ele consegue fazer um diagnóstico sem falar com os pacientes.”
Rabugice atribuída às mulheres de
mais idade.
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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PÊNDICE
B
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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121
T
ABELA
2 – T
ÉCNICAS UTILIZADAS NAS PIADAS DE
AF
S
T
ÉCNICA
P
IADA
D
ESLOCAMENTO
U
SO MÚLTIPLO DO
MESMO MATERIAL
(
C
)
D
UPLO
SENTIDO
(
C
)
D
UPLO
SENTIDO
(
B
)
D
UPLO
SENTIDO
(
A
)
R
ÉPLICA
DIRETA
T
ROCADILHO
RESPOSTA
PRONTA
A
LUSÃO
A
UTOMATISMO
(
RACIOCÍNIO FALHO
)
C
ONDENSAÇÃO
(
A
)
01 x x
02 x x x
03 x x
04 x
05 x
06 x
07 x x
08 x
09 x x
10 x x
11 x
12 x x
13 x
14 x
15 x x
16 x x
17 x
18 x x
19 x
20 x
21 x
22 x
23 x x
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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122
T
ÉCNICA
P
IADA
D
ESLOCAMENTO
U
SO MÚLTIPLO DO
MESMO MATERIAL
(
C
)
D
UPLO
SENTIDO
(
C
)
D
UPLO
SENTIDO
(
B
)
D
UPLO
SENTIDO
(
A
)
R
ÉPLICA
DIRETA
T
ROCADILHO
RESPOSTA
PRONTA
A
LUSÃO
A
UTOMATISMO
(
RACIOCÍNIO FALHO
)
C
ONDENSAÇÃO
(
A
)
24 x
25 x
26 x
27 x
28 x
29 x x
30 x x
31 x
32 x x
33 x x
34 x
35 x x
36 x x
37 x x
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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PÊNDICE
C
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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124
T
ABELA
3
- A
NÁLISE DO DISCURSO HUMORÍSTICO NA CENA INTERNA FICCIONAL
P
APÉIS ASSUMIDOS
PELAS
PERSONAGENS
EUe’ TUd’
Alvo
I
NCOERÊNCIA
C
ATEGORIA
PREDOMINANTE
E
FEITO POSSÍVEL EM
RELAÇÃO AO
TUd’
(C
ONIVÊNCIA
)
E
FEITO POSSÍVEL EM
RELAÇÃO AO
alvo
(
VISADA
)
C
ONFLUÊNCIA
ENTRE
alvo
E
TUd’
Piada (01) Marido Mulher (vítima) Mulheres Insólita Sarcasmo Derrisão Derrisão x
Piada (02) Filha Pai (cúmplice) Lógica “Loufoquerie” Gracejo Lúdica Derrisão x
Piada (03) Aluna Professora (vítima) Professora Insólita Sarcasmo Derrisão Derrisão x
Piada (04) Esposa Médico Lógica Insólita Gracejo Lúdica Lúdica -
Piada (05) (cúmplice) Esposa Paradoxal Sarcasmo Derrisão Derrisão -
Piada (06) Paciente Frenólogo (cúmplice) Esposa Paradoxal Gracejo Derrisão Derrisão -
Piada (07) Bernard Shaw Senhora (vítima) Senhora Paradoxal Sarcasmo Derrisão Derrisão x
Piada (08) Aluno Professora (vítima) Professora Paradoxal Sarcasmo Derrisão Derrisão x
Piada (09) Sogra Senhora (cúmplice) Genros Paradoxal Sarcasmo Derrisão Derrisão -
Piada (10) Marido Esposa (vítima) Esposa Paradoxal Sarcasmo Derrisão Derrisão x
Piada (11) (vítima) Insólita Sarcasmo Lúdica Derrisão x
Piada (12) (cúmplice) Trabalho feminino Insólita Gracejo Lúdica Derrisão -
Piada (13) Marido Esposa (vítima) Esposa Paradoxal Sarcasmo Derrisão Derrisão x
Piada (14) Esposa Marido (cúmplice) Humildade Paradoxal Sarcasmo Derrisão Derrisão -
Piada (15) (vítima) Homens preconceituosos Paradoxal Gracejo Derrisão/Lúdica Derrisão x
Piada (16) Pai Filha (vítima) Filha/lógica Insólita/
“Loufoquerie”
Sarcasmo Derrisão Derrisão x
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
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125
P
APÉIS ASSUMIDOS
PELAS
PERSONAGENS
EUe’ TUd’
Alvo
I
NCOERÊNCIA
C
ATEGORIA
PREDOMINANTE
E
FEITO POSSÍVEL EM
RELAÇÃO AO
TUd’
(C
ONIVÊNCIA
)
E
FEITO POSSÍVEL EM
RELAÇÃO AO
alvo
(
VISADA
)
C
ONFLUÊNCIA
ENTRE
alvo
E
TUd’
Piada (17) Patrão Criada (vítima) Criada Paradoxal Sarcasmo Derrisão Derrisão x
Piada (18) Menininha Tia (vítima) Tia Paradoxal Sarcasmo Derrisão Derrisão x
Piada (19) Esposa Padre (cúmplice) Lógica Insólita Gracejo Lúdica Derrisão -
Piada (20) Esposa Identidade não-
determinável (cúmplice)
Marido Paradoxal Sarcasmo Derrisão Derrisão -
Piada (21) A motorista Guarda (vítima) Guarda Paradoxal Sarcasmo Derrisão Derrisão x
Piada (22) Garoto Mãe (cúmplice) Frequência escolar Paradoxal Gracejo Lúdica Lúdica -
Piada (23) Esposa Marido (vítima) Marido Paradoxal Sarcasmo Derrisão Derrisão x
Piada (24) Médico Marido (cúmplice) Lógica Insólita Gracejo Lúdica Derrisão -
Piada (25) Velha Censora (cúmplice) Sexo fora do casamento Paradoxal Gracejo Derrisão Derrisão -
Piada (26) Bêbado Esposa (cúmplice) gica Insólita Gracejo Lúdica Lúdica -
Piada (27) Pedrinho Professora (cúmplice) Pudor Insólita Ironia Lúdica Lúdica -
Piada (28) Joãozinho Professora (cúmplice) Lógica Insólita Gracejo Lúdica Lúdica -
Piada (29) Mulher Marido (cúmplice) Marido Paradoxal Gracejo Lúdica Derrisão x
Piada (30) Joãozinho Avô (cúmplice) Avô Insólita Ironia Lúdica Lúdica x
Piada (31) Genro Serralheiro (cúmplice) Sogra Insólita Ironia Lúdica Derrisão -
Piada (32) Senhora Bêbado (vítima) Bêbado Insólita Ironia Derrisão Derrisão x
Piada (33) Bêbado Senhora (cúmplice) Lógica Insólita Gracejo Lúdica Lúdica -
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
126
P
APÉIS ASSUMIDOS
PELAS
PERSONAGENS
EUe’ TUd’
Alvo
I
NCOERÊNCIA
C
ATEGORIA
PREDOMINANTE
E
FEITO POSSÍVEL EM
RELAÇÃO AO
TUd’
(C
ONIVÊNCIA
)
E
FEITO POSSÍVEL EM
RELAÇÃO AO
alvo
(
VISADA
)
C
ONFLUÊNCIA
ENTRE
alvo
E
TUd’
Piada (34) Zoraide Amiga (cúmplice) Pudor Insólita Ironia Derrisão/Lúdica Derrisão -
Piada (35) João Veterinário (cúmplice) Sogra Paradoxal Sarcasmo Derrisão/Lúdica Derrisão -
Piada (36) (cúmplice) Esposa Paradoxal Sarcasmo Derrisão/Lúdica Derrisão -
Piada (37) Médico Senhora (vítima) Senhora Paradoxal Sarcasmo Derrisão Derrisão x
A mulher nas piadas de almanaque: estratégias discursivas e representações sociais.
Rony Petterson Gomes do Vale, 2009.
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4 – A
NÁLISE DO ATO DE COMUNICAÇÃO HUMORÍSTICO NA CENA INTERNA NÃO
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(01) Mulheres Derrisão Modo Delocutivo: Probabilidade Forte (correspondente à Modalidade Elocutiva Opinião por Suposição): “Geralmente falando, as mulheres
estão...” somada ao apagamento da predicação pela interrupção do marido.
(02) Filhas Derrisão Sobremodalização da fala da personagem “pai” pelo advérbio “severamente”.
(03) Alunas Derrisão Modo Alocutivo: “Ora (Julgamento Negativo), professora (Interpelação),...” evidenciando a agressividade da aluna que, desrespeitando o
contrato estabelecido em sala de aula, desaprova o ato, ou seja, a pergunta feita pela professora.
(04) Esposas Derrisão Modo Delocutivo: Declaração de Confissão:Mas as sanguessugas nós tivemos que refogar com ovo...”, evidenciando a “ignorância” da esposa
em relação aos procedimentos indicados pelo médico.
(05) Esposas Derrisão Sobremodalização de “Oh! E não podes me dizer o que foi, para eu repetir a minha?” pela modalidade elocutiva Apreciação Favorável, devido
ao uso técnica plica direta.
(06) Esposas Derrisão Sobremodalização de “Nada disso, caro doutor: o caráter é de minha mulher, e essa bossa é indício de que ela me atirou, dias, um prato à
cabeça!” pela modalidade elocutiva Apreciação Desfavorável, devido ao uso da técnica réplica direta.
(07) Velhas Derrisão Sobremodalização de “Some os 18, mais os 19 e mais os 14 e a resposta será 51” pela modalidade elocutiva Confissão, devido ao uso da técnica
“réplica direta”.
(08) Professoras Derrisão Sobremodalização de “E a senhora ainda acha que foi pouco?...” pela modalidade elocutiva Recusa, devido à técnica “resposta pronta”.
(09) Sogras Derrisão Modo Elocutivo: Apreciação Desfavorável: “Meus dois genros são completamente diferentes. Um não presta nada, o outro é capaz de tudo.”.
Concernente, num primeiro momento, ao domínio pragmático e, num segundo, ao domínio ético.
(10) Esposas Derrisão Sobremodalização de “E que é o que a mulherzinha bonita andou procurando no bolso do marido?” pela modalidade alocutiva Julgamento
Negativo, devido à técnica plica direta.
(11) Sobrenomes derivados
denominações de espécies
de animais
Lúdica Antropônimos derivados de nomes de animais: “Sr. Leão.”; “Carneiro”.
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(12) Trabalho feminino Derrisão Sobremodalização de “... uma original e duas cópias.” pela modalidade elocutiva Constatação, devido à técnica réplica direta (rearranjo do
raciocínio: dedução aparentemente defeituosa, devido à mudança de isotopia).
(13) Esposas Derrisão Sobremodalização de Impedir que você morresse como uma velha solteirona.” pela modalidade elocutiva Confissão, devido ao uso da técnica
resposta pronta.
(14) Esposas Derrisão Sobremodalização de “Mas eu prefiro chorar num Cadilac a chorar num bonde...” pela modalidade elocutiva Confissão, devido ao uso da
técnica réplica direta.
(15) Mulheres Derrisão Modo Elocutivo: Declaração (afirmação): Mulher magra é rabugenta, mulher gorda é preguiçosa; mulher loira é ciumenta; mulher morena é
teimosa; mulher baixa é barulhenta; mulher alta é buliçosa; mulher feia é bolorenta; mulher bonita é vaidosa; mulher môça é tagarela; mulher
velha – fujam dela; mulher solteira eu persigo; mulher casada é um perigo; mulher viúva é funesta...”
Modo Delocutivo: Asserção de Apreciação Desfavorável: “nenhuma presta.”
(16) Trabalho feminino Derrisão Modo Alocutivo: Proibição: “Minha filha, você está proibida de ser atriz!”
Modo Alocutivo: Ameaça: “Se for trabalhar no cinema, eu a matarei.”
(17) Serviçais Derrisão Modo Elocutivo: Declaração (Confissão): “Patrão! Patrão! Acabo de perder o seu menino, na Pracinha.”
(18) Mulheres feias Derrisão Modo Elocutivo: Afirmação: “Para ficar bonita, minha filha!”
(19) Esposas Derrisão Modo Elocutivo: Discordância: “É coisa bem pior, seu padre, é por reumatismo.”
(20) Esposas Derrisão Modo Alocutivo: Interrogação: “Por que você briga tanto com seu marido? As opiniões são diferentes?”.
(21) As motoristas Derrisão Qualificação de cunho subjetivo: “apressadinha”
(22) Mães Derrisão Modo Elocutivo: Apreciação Favorável: “Que bom!” concernente ao domínio ético (no sentido de “Você agiu corretamente, meu filho!”).
(23) Esposas Derrisão Modo Elocutivo: Concordância: “Sim [...]”; Declaração de Confirmação: “Cunhados” demonstrando um movimento de autodefesa.
(24) Lógica Lúdica Desencadeadores de isotopia: “alicate”; “chave de fenda”; “martelo” => elementos estranhos à isotopia de serviços médicos.
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(25) Mães solteiras Derrisão Sobremodalização de “É simples. Toda vez que nasce um bebê, um rapaz foge da cidade.” pela modalidade elocutiva Apreciação Desfavorável,
devido ao uso da técnica da alusão.
(26) Lógica Lúdica Colocar a denominação “coveiro” (aquele que presta serviços funerários) como vendedor de “couve” (verdura) por analogia com “leite/leiteiro
ou “pão/ padeiro” etc.
(27) Pudor Derrisão A resposta “Também num posso fessora”, devido à técnica da alusão com omissão, deixa uma lacuna que, por ela própria, se deduz outra coisa,
ou seja, a palavra “bunda” ou “assento”, relacionadas ao local onde a personagem “Pedrinho” foi picada pelo marimbondo. Essa omissão é uma
forma de evitar um ataque direto (por isso o uso dessa forma de “ironia”) ao pudor na situação de comunicação escolar.
(28) Lógica Lúdica Modo Elocutivo: Ignorância: “Olha professora, como ele é eu não sei...”; Declaração de Revelação: “mas sempre que minha reza, no fim ela
pede para o Papai do céu ‘Mas livrai-nos do malamem’”.
(29) Mulheres Derrisão “O marido fica surpreso com o pedido simples da mulher”. Essa didascália indica um imaginário contrário ao normalmente esperado, ou seja, que
as mulheres sempre pedem coisas mais complicadas de serem realizadas.
(30) Noras, filhas e herdeiras
em geral
Derrisão Modo Delocutivo: Discurso Relatado: “É que eu ouvi a mamãe falar que quando o senhor fechar os olhos nós vamos ficar ricos!”. O discurso da
personagem “mãe” é sobremodalizado pela modalidade da “possibilidade externa” que indica que “ficar rico” depende da ação de “fechar os
olhos” do avô (sogro).
(31) Sogras Derrisão Sobremodalização de “Por favor, me ajude. A minha sogra quer pular do décimo andar!!! modalidade alocutiva de petição de socorro que,
devido ao uso da técnica do deslocamento, passa ser entendida como um pedido de ajuda no sentido acelerar/facilitar a morte da velha.
(32) Velhas Derrisão Modo Elocutivo: Constatação: “Motorista, Motorista!!! Pare que eu peguei o ônibus errado...” sobremodalizada pela modalidade elocutiva
Apreciação Desfavorável, indicando uma discordância em relação ao enunciado da senhora.
(33) Lógica Lúdica Verbo trincar (em seu sentido de verbo intransitivo, esse verbo está relacionado a objetos com o traço semântico [+ material]. Ex: o copo trinco
[rachou]; ou a lâmina trincou [tinir, fazer ruído metálico]) relacionado ao mesmo tempo ao corpo da garrafa e o do bêbado.
(34) Pudor Lúdica Modo Elocutivo: Declaração Revelação: “Quero só ver quando o meu marido morrer. Ele é o melhor ginecologista da cidade.”
(35) Sogras Derrisão Modo Elocutivo: Querer: “É que minha sogra está para chegar e eu não quero a mínima manifestação de felicidade.” Sobremodalizada pela
modalidade elocutiva Apreciação Desfavorável sobre o fato da chegada da sogra.
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(36) Esposas Derrisão Modo Elocutivo: Apreciação Negativa (domínio estético): “Que se lixe a minha”.
(37) Senhoras de idade Derrisão Qualificação de cunho subjetivo: “senhora mal-humorada”
Modo Alocutivo: Interrogação: “O quê? Não é seu trabalho descobrir?” sobremodalizada pela modalidade elocutiva Apreciativa Desfavorável,
dentro do domínio pragmático, em relação ao trabalho do médico.
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E – Lista dos almanaques farmacêuticos consultados
Figura 6
Almanaque Costumes e Curiosidades
Ano de publicação: 1939
Editora: Warner International Coorporation
Cidade: Rio de Janeiro
Formato: 19 x 13,5 cm; 36 páginas
Obs.: Fonte consultada: xérox
Figura 7
Almanaque Capivarol
Ano de publicação: 1955
Editora: Impress
Cidade: São Paulo
Formato: 18 x 13,5 cm; 32 páginas
Obs.: Fonte consultada: xérox
Figura 8
Almanaque Biotônico
Ano de publicação: 1961
Editora: Bloch Editora S/A
Cidade: Rio de Janeiro
Formato: 19 x 14,5 cm; 36 páginas
Obs.: Fonte consultada: xérox
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Figura 9
Almanaque Brasil
Ano de publicação: 1966
Editora: Gráfica Muniz S/A
Cidade: Rio de Janeiro
Formato: 18 x 13,5 cm; 36 páginas
Obs.: Fonte consultada: original
Figura 10
Almanaque Biotônico
Ano de publicação: 1970
Editora: Departamento de Propaganda do Biotônico
Cidade: São Paulo
Formato: 17 x 13,5 cm; 36 páginas
Obs.: Fonte consultada: original
Figura 11
Almanaque Renascim Sadol
Ano de publicação: 1982
Editora: Gráfica do Laboratório Catarinense S/A
Cidade: Joinville
Formato: 18 x 13 cm; 36 páginas
Obs.: Fonte consultada: original
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Figura 12
Almanaque Renascim Sadol
Ano de publicação: 2002
Editora: Gráfica do Laboratório Catarinense S/A
Cidade: Joinville
Formato: 18 x 13 cm; 36 páginas
Obs.: Fonte consultada: original
Figura 13
Almanaque Fontoura
Ano de publicação: 2004
Editora: Shelton do Brasil Ind. E Com. Ltda
Cidade: Marília
Formato: 18 x 13 cm; 36 páginas
Obs.: Fonte consultada: original
Figura 14
Almanaque Renascim Sadol
Ano de publicação: 2005
Editora: Gráfica do Laboratório Catarinense S/A
Cidade: Joinville
Formato (virtual): 18 x 13 cm; 36 páginas
Obs.: Edição on-line disponível no site
www.labcat.com.br
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