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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
FACULDADE DE EDUCAÇÃO
ProPEd – PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO
ALINHAVO DE NARRATIVAS: PRÁTICAS CURRICULARES
COTIDIANAS E FORMAÇÃO DE PROFESSORAS
GRAÇA REGINA FRANCO DA SILVA REIS
RIO DE JANEIRO
ABRIL- 2009
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2
FICHA CATALOGRÁFICA
REIS, Graça Regina Franco da Silva
Alinhavo de narrativas: práticas curriculares cotidianas e formação de professoras,
127 f. Dissertação de Mestrado Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação, abril, 2008.
Inclui referências bibliográficas.
1. Educação – Dissertação de Mestrado. 2. Estudos do cotidiano. 3. Formação de
Professoras. 4. Narrativas 5. Práticas pedagógicas.
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GRAÇA REGINA FRANCO DA SILVA REIS
ALINHAVO DE NARRATIVAS: PRÁTICAS CURRICULARES
COTIDIANAS E FORMAÇÃO DE PROFESSORAS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Faculdade de
Educação da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Educação.
Orientadora: Profª Drª Inês Barbosa de Oliveira
RIO DE JANEIRO
ABRIL – 2009
4
GRAÇA REGINA FRANCO DA SILVA REIS
ALINHAVO DE NARRATIVAS: PRÁTICAS CURRICULARES
COTIDIANAS E FORMAÇÃO DE PROFESSORAS
Dissertação apresentada como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em
Educação pela Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
UERJ
Banca Examinadora
________________________________________
Orientadora da Dissertação
Profª Drª Inês Barbosa de Oliveira
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
________________________________________
Prof. Dr Dirceu Castilho Pacheco
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
________________________________________
Prof Dr Elizeu Clementino de Souza
Universidade do Estado da Bahia
5
Dedico este trabalho à minha mãe que já saiu de cena
e de quem herdei uma vontade enorme de lutar pelos
meus desejos.
6
AGRADECIMENTOS
À Inês Barbosa de Oliveira, orientadora e amiga, por dividir os seus saberes sempre de
forma tão democrática. Pelas aulas de segunda-feira, que proporcionam saberes,
solidariedade e diálogos. Agradeço também pelo colo no momento mais solitário de
elaboração deste trabalho, a sua fase final.
Às colegasamigascompanheiras Maria Lucia, Carla e Sandra, pela generosidade.
Abriram para mim as portas de suas vidas, oferecendo-me um riquíssimo e apaixonante
material que tornou possível este trabalho.
Aos colegas do grupo de pesquisa Redes de conhecimento e práticas emancipatórias no
cotidiano escolar, que por meio de diferentes espaçostempos de encontros enriqueceram
as minhas reflexões.
À amiga Alê, sempre com a mão estendida e os ouvidos atentos.
Às amigas Luli, Regina e Denize pelas redes estabelecidas no grupo e fora dele.
Ao professor Dirceu Castilho Pacheco com quem compartilho o desejo da ousadia e da
inovação nas tantas aulas dadas no Ensino Fundamental e que, hoje, para minha
felicidade, é um dos membros da banca examinadora desta dissertação.
Ao professor Elizeu Clementino de Souza pela gentileza de compor a banca
examinadora desta dissertação de mestrado.
Ao Paulo Sgarbi, professor que se tornou amigo pelo caminho, por insistir em quebrar
as tantas certezas que eu tinha na época da minha graduação e que me apresentou a esse
tal de cotidiano escolar.
Aos professores(as)do ProPEd/UERJ pela rede de saberes que tecem com seus(suas)
alunos(as).
À Angélica, que de alguma forma me trouxe até aqui, pois um dia insistiu para que eu
fizesse o vestibular.
Aos meus tantos alunos e alunas que me ensinam o ofício de ser professora todos os
dias e que demonstram ter uma enorme paciência comigo.
Às Mulheres do Brownie, sempre dispostas a ouvir pacientemente o chororô das horas
de desespero e mostrando que em meio à crise, sempre há lugar para diversão.
7
Aos sobrinhos(as) Talita, Úrsula, Yasmin, Victor, Ana Carolina e Serginho que, de uma
forma ou de outra, e dentro do que lhes era possível, deram-me apoio.
Aos meus filhos Felipe e Rafael, por me amarem e por muitas vezes me puxarem de
volta ao chão nos meus momentos de absoluta entrega ao trabalho, gritando: e,
ainda precisamos de você.! E também pelo colo que já me deram muitas e muitas vezes.
À Helô e à Carla companheiras de coração dos meus meninos.
A todos os Franco Reis, Lopes Ribeiro e agregados pelas aventuras que vivemos e ainda
viveremos juntos por esses caminhos da vida. Sua torcida significou muito para mim,
em especial, Ana Lúcia, Guaraci, Mônica e Rita, o que seria de mim sem vocês?
Ao meu pai que a essa altura virou criança, mas que, certamente, tem orgulho das
minhas conquistas.
Ao Marcus, meu companheiro de 25 anos de percurso, que massageou muitas vezes
minha alma que tremia de medo de não dar conta do serviço. Você é especialíssimo.
8
RESUMO
Esta dissertação pretende discutir a formação de professoras e a criação cotidiana de
currículos por meio do estudo dos relatos de três professoras dos anos iniciais do Ensino
Fundamental, nos quais as entrevistadas narram suas aprendizagens e práticas tecidas ao
longo de suas vidas, como estudantes e como docentes. Pretende contribuir para o
entendimento de que a formação de professoras é tecida em rede, com aprendizagens
que vêm de diferentes espaçostempos, dentro e fora das escolas.
Para isso, traz um breve relato sobre a forma como a modernidade entende a construção
de conhecimento, argumentando que essa forma de entendimento deixa de lado o
singular, o pessoal, utilizando-se apenas do que é comum a todos e classificável como
objeto de estudo. Procura mostrar que as histórias de vida ocupam lugar importante na
busca de outras compreensões de mundo, sobre a educação.
Aponta os relatos pessoais como importantes documentos de pesquisa, entendendo com
isso que as histórias de professoras devem ser colocadas no centro do trabalho de
investigação nosdoscom os cotidianos, mostrando como cada uma (re)inventa
diariamente as propostas curriculares.
Usa elementos da pesquisa (auto)biográfica como perspectiva metodológica,
procurando pensar o cotidiano escolar a partir da experiência de sujeitos envolvidos em
processos de ensinoaprendizagem e, por isso, trabalha com as memórias dessas
professoras, entendendo-as como um potente elemento de compreensão dos processos
de formação e de manifestação das identidades docentes. Procura, dessa forma,
compreender quem são essas professoras, quais são os caminhos tecidos em sua
formação e de que forma tecem currículos para além das normas curriculares
formuladas pelas autoridades educacionais.
Palavras- chave:
NARRATIVAS MEMÓRIAS COTIDIANO ESCOLAR FORMAÇÃO DE
PROFESSORAS – PRÁTICAS CURRICULARES
9
ABSTRACT
This thesis intent to discuss the teacher education and everyday life practices on
curricula creation through the study of reports of three teachers from the initial series of
elementary school. On these reports the interviewees narrate their learning and practice
built throughout their lives as students and teachers. Contributes to the understanding
that the training of the elementary school teacher’s is developed in a network, as of
learning that came from different spaces and times within and outside school. Provides
a brief report on how the modernity meant the construction of knowledge, arguing that
this way of understanding leave out the unique, the staff, using only what is common to
all and classifiable as object of study. Therefore, show that the life stories occupy
important place in search of other understandings of the world on education. Indicates
the importance of the interviews and personal trajectories to qualitative research, to
understand how the stories of teachers should be placed in the center of the field work
and on everyday life studies, how each invented the proposals daily curricula. Looking-
for components of the auto-biography as a methodological perspective, the research
looks through the experiences of individuals involved in processes of apprenticeship on
the daily school, therefore works with the memories of teachers, considering them as a
powerful element of understanding of procedures for training and demonstration of
identities teachers. Demand, thus, to understand who are these teachers, what are the
ways on they tissues their own reality and knowledge and that its training curricula as
well as make the rules made by the educational curriculum.
Keuwords:
NARRATIVES - MEMORIES SCHOOL EVERYDAY LIFE - TEACHER
EDUCATION - CURRICULA PRACTICES
10
LISTA DE IMAGENS
Imagem 01 – Boletim Maria Lucia – 1 ...........................................................................21
Imagem 02 – Boletim Maria Lucia – 2 ...........................................................................21
Imagem 03 – Maria Lucia contando história – 1 ...........................................................60
Imagem 04 – Maria Lucia contando história – 2 ...........................................................60
Imagem 05 – Sandra na “formatura” do 1° ano...............................................................61
Imagem 06 – Carla no projeto Salvador Dali – Baby Garden.........................................61
Imagem 07 – Foto de escola – Maria Lucia ...................................................................64
Imagem 08 – A turma de 1970 – Maria Lucia................................................................65
Imagem 09 – Convite de formatura do Instituto de Educação - 1...................................66
Imagem 10 – Convite de formatura do Instituto de Educação - 2...................................66
Imagem 11 – Formatura...................... ...........................................................................73
Imagem 12 – Amigas do Curso Normal .........................................................................74
Imagem 13 – Convite de formatura – Júlia Kubitschek .................................................75
Imagem 14 – Dia da formatura – Curso normal .............................................................82
Imagem 15 – Formatura de Psicologia............................................................................82
Imagem 16 – Banho de alegria – um passeio inesquecível ............................................83
Imagem 17 – Com a turma na pista Claudio Coutinho .................................................84
Imagem 18 – Bilhetinho de amor....................................................................................85
Imagem 19 – Jogos cooperativos – aula de solidariedade 1 ..........................................96
Imagem 20 – Jogos cooperativos – aula de solidariedade 2 ..........................................96
Imagem 21 – Grades curriculares ...................................................................................98
Imagem 22 – Mural do Teste Assombroso....................................................................102
Imagem 23 – Festival de poesia ...................................................................................103
Imagem 24 – Medindo o tempo – aula de Matemática.................................................107
Imagem 25 – Árvore de livros – CAp...........................................................................116
Imagem 26 – A história original ...................................................................................118
11
SUMÁRIO
1. A CONSTRUÇÃO DE UM ENREDO OU SONHO A GENTE NÃO SONHA
SOZINHO.......................................................................................................................13
1.1. REDES DE FORMAÇÃO: MINHA HISTÓRIA, UM BREVE RELATO DE FICÇÃO 15
1.2. O INÍCIO DA TESSITURA, AFINAL É PRECISO DIZER QUE PESQUISA É ESSA 19
1.3. O PRIMEIRO RELATO A HISTÓRIA DE UM BOLETIM. 21
1.4. DOS PONTOS QUE ALINHAVAM O TECIDO: OS CAPÍTULOS DA PESQUISA 23
2. PESQUISANDO AS ESCOLAS NAS ESCOLAS: UMA DISCUSSÃO SOBRE
OS CAMINHOS METODOLÓGICOS DA PESQUISA...........................................26
2.1. SOBRE PROMESSAS E METODOLOGIAS: A MODERNIDADE ESTÁ EM CENA 33
2.2. NO MEIO DO CAMINHO TINHA UMA PEDRA 39
2.3. PESQUISA NOSDOSCOM OS COTIDIANOS, QUE HISTÓRIA É ESSA? 40
2.4. PERCEBENDO A COMPLEXIDADE, OUTRA FORMA DE OLHAR O MUNDO 45
3. EM BUSCA DE SI: COTIDIANO ESCOLAR E SUAS POSSIBILIDADES NA
VOZ DAS PROFESSORAS........................................................................................ 50
3.1. POR QUE ESSAS VOZES SÃO IMPORTANTES PARA AS PESQUISAS EM EDUCAÇÃO?...............................58
3.2.. FORMAÇÃO DE PROFESSORAS: O QUE ESTAS MENINASPROFESSORAS TÊM A NOS CONTAR?..............62
3.3.. PUXANDO UM FIO DO TECIDO OS CURSOS DE FORMAÇÃO.................................................................67
3.4. O SABER DA EXPERIÊNCIA: UM DIÁLOGO COM LARROSA..................................................................77
3.5. O SABER DA EXPERIÊNCIA ESTÁ NAS SALAS DE AULA? .....................................................................80
3.6. O SUJEITO DA EXPERIÊNCIA E A SUA RELAÇÃO COM O OUTRO: UM DIÁLOGO COM SKLIAR ...............86
4. PRATICANDO CURRÍCULOS NO COTIDIANO: AS PRÁTICAS
REESCREVENDO A HISTÓRIA DAS ESCOLAS..................................................92
4.1. MERGULHANDO NO COTIDIANO DAS ESCOLAS: UM ENCONTRO COM PRÁTICAS MAIS SOLIDÁRIAS ....94
4.2. AS GRADES CURRICULARES E A REBELDIA DO COTIDIANO................................................................97
4.3. TECENDO SABERES: A PRODUÇÃO DE CONHECIMENTOS, ONDE ESTÁ?.............................................100
4.4. PRATICANDO OS CURRÍCULOS DESEJADOS......................................................................................104
4.5. ARTEFATOS ESCOLARES: USOS E PONTOS DE VISTA ........................................................................108
4.6. UM BREVE DIÁLOGO.......................................................................................................................118
5. QUEM PARTE LEVA SAUDADE DE ALGUÉM: A HORA DO PONTO
FINAL..........................................................................................................................120
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................................123
12
Para início de conversa
Ao pegar um capítulo da minha pesquisa, Alê
1
olhou para o título, leu e me
perguntou:
- Onde eu já li esta expressão, pesquisando as escolas nas escolas?
Eu não soube responder. Fiquei, a princípio, agoniada com aquela possibilidade,
será que eu havia plagiado este título de alguém? Pensei em mudá-lo, mas percebi
que provavelmente isto aconteceria muito neste texto aqui escrito. A leitura de
diferentes textos e autores, as discussões no grupo de pesquisa e nas outras redes que
compõem a minha vida, tecem uma variedade de idéias e saberes na minha cabeça. Não
sei quais de fato são meus, aliás, não acredito mesmo nisso. Então escolhi começar esta
dissertação pedindo desculpas àqueles aos quais roubei descaradamente alguma fala ou
idéia e incorporei como minha. Não sei fazer de outra maneira.
Meu primeiro pedido de desculpas, então, é dirigido à Alexandra Garcia, pois,
juntas, descobrimos ser de sua autoria o título que deu início a esta discussão.
1
Alexandra Garcia, colega do grupo de pesquisa.
13
A construção de um enredo ou sonho a gente não sonha
sozinho
A grande paixão
2
Que foi inspiração
Do poeta é o enredo
Que emociona a velha-guarda
Lá na comissão de frente
Como a diretoria
Glória a quem trabalha o ano inteiro
Em mutirão
São escultores, são pintores, bordadeiras
São carpinteiros, vidraceiros, costureiras
Figurinista, desenhista e artesão
Gente empenhada em construir a ilusão
E que tem sonhos
Como a velha baiana
Que foi passista
Brincou em ala
Dizem que foi o grande amor de um mestre-sala
O sambista é um artista
E o nosso Tom é o diretor de harmonia
Os foliões são embalados
Pelo pessoal da bateria
Sonho de rei, de pirata e jardineira
Pra tudo se acabar na quarta-feira
Mas a quaresma lá no morro é colorida
Com fantasias já usadas na avenida
Que são cortinas, que são bandeiras
Razão pra vida tão real da quarta-feira
É por isso que eu canto.
2
Pra tudo se acabar na quarta-feira, música de Martinho da Vila.
14
E tudo teve início numa segunda-feira. O encontro do grupo e a leitura dos
textos. Para discuti-los havia gente e onde gente, rede. Cada um com a sua que se
encontrava com outras, formando novas redes. Gente cheia de idéias, pontos de vista,
todos artistas, em mutirão, razão para a vida tão real das segundas-feiras.
Conto aqui nesta dissertação meu enredo, que nasceu de minha curiosidade, das
discussões do grupo de pesquisa, das aulas que tive, das aulas que dei. Neste tecido
enredado que fui alinhavando ao longo dessas tardes um pouco de todos e de todas
que tecem e teceram comigo os fios que compõem estas múltiplas redes. Nesse alinhavo
tem também a Carla, a Maria Lucia e a Sandra, generosas colegas de profissão. Inês
Barbosa de Oliveira, Nilda Alves, Paulo Sgarbi, Dirceu Pacheco, Elizeu Clementino de
Souza, Marie-Christine Josso, Michel de Certeau, Boaventura de Sousa Santos, José
Machado Pais, Carlos Skliar, Jorge Larrosa e tantos outros que emprestaram suas vozes
e que serão encontrados por aqui, nas esquinas deste enredo.
Nesse momento saio para avenida, lembrando mais uma vez que tudo começou
numa tarde de segunda-feira e que este enredo, assim como numa escola de samba, foi
tecido em mutirão. São escultores, são pintores, bordadeiras, são carpinteiros,
vidraceiros, costureiras, figurinista, desenhista e artesão, gente empenhada em pensar a
educação.
Nesta hora, penso Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar na certa de
algum modo escrito em mim...
3
, pois aprendi com Boaventura de Sousa Santos (2006a)
que todo conhecimento é auto-conhecimento. Ele defende que os sentidos que
atribuímos ao conhecimento estão enredados em nossas histórias. Nossas trajetórias de
vida, crenças e valores, individuais e coletivos estão em tudo o que fazemos, não
como elaborarmos “descobertas” despidos de nós mesmos. Aquilo que buscamos
através das pesquisas não pode ser separado de nós, o conhecimento é criação. Acredito
com ele que não há outra possibilidade de produzir saber. Ele completa:
No paradigma emergente, o caráter auto-biográfico e auto-referencial da
ciência é plenamente assumido. A ciência moderna legou-nos um
conhecimento funcional do mundo que alargou extraordinariamente as
nossas perspectivas de sobrevivência. Hoje não se trata tanto de sobreviver
como de saber viver. Para isso é necessário uma outra forma de
conhecimento, um conhecimento compreensivo e íntimo que não nos separe
e antes nos una pessoalmente ao que estudamos (SANTOS, 2006a, p. 85).
3
Clarice Lispector
15
Afirmo, então, que tudo o que vai estar escrito nesta dissertação está impregnado
de mim. Por esse motivo, aqui segue um pouco da minha trajetória, contada por meio
das verdades que escolhi, ou que se escolheram para serem narradas.
Redes de formação: minha história, um breve relato de ficção
Em meu serestar
4
professora fui muitas, mesmo sendo uma só, passeei e
passeio pelas diferentes professoras que me habitam. Nesse movimento, teço e desteço
(in)certezas recriando-me numa busca constante de ser professora.
Esse vaivém me envolve, me enreda e faz com que a cada dia, em cada turma eu
seja, às vezes, outra. Busco me relacionar com aqueles e aquelas que habitam as salas
de aula por onde passei e passo de maneira única, puxando fios que nos entrelacem e
estabelecendo relações que façam diferença.
Assim, como a tecelã de Marina Colasanti, personagem de um livro infantil com
o qual trabalhei e adoro, que teceu seu destino e soube, com coragem, desfazer os
seus fios para mudar a sua história, ser professora, para mim, é realizar este movimento
todos os dias, tecendo a cada dia a história de cada turma, mas sendo capaz também de
destecer as certezas e as generalizações que pouco espaço têm nas diferentes salas de
aula.
Vou, então em busca dos caminhos da minha formação, numa tentativa de poder
me reinventar sempre, buscando aprender pelos caminhos que se apresentam, pois
aprendi com Deleuze (1988) que,
Aprender vem a ser tão somente o intermediário entre não-saber e saber, a
passagem viva de um para o outro. Pode-se dizer que aprender, afinal das
contas, é uma tarefa infinita, mas esta não deixa de ser rejeitada para o
lado da essência supostamente simples do saber como inatismo, elemento a
priori ou mesmo Idéia Reguladora. E, finalmente, a aprendizagem está,
antes de mais nada, do lado do rato no labirinto, ao passo que o filósofo
fora da caverna considera somente o resultado – o saber – para dele extrair
os princípios transcendentais (p.271).
Assim, como o rato no labirinto, caminho, entendendo que vivemos num mundo
de interações, onde todos, com suas singularidades, estão interligados, seja em pequenos
4
No capítulo intitulado Pesquisando as escolas nas escolas: uma discussão sobre os caminhos
metodológicos da pesquisa falarei sobre a opção de escrever as palavras desta forma.
16
ou grandes contextos. Cada fio é interligado a outros traçando múltiplos caminhos, não
há como dizer qual fio é mais importante, pois um não existe fora dos outros.
Assim, que fatores foram importantes ou determinantes em minha escolha? O
enredamento de todos eles seria a resposta mais verdadeira, pois um acontecimento leva
a outro e todos juntos tornaram concreto o fato de que hoje sou professora, ou pelo
menos me construo como tal a cada dia.
O que torna a minha história diferente de tantas outras? As singularidades que só
a ela pertencem e que me fazem sujeito único num contexto plural e, também
interligado nessas redes.
Histórias determinantes na minha formação são todas, penso eu, mas elegi
algumas para ilustrar a história que quero contar.
Fiz o curso normal e até hoje, ao pensar na pessoa que eu era aos 16 anos, não
sei explicar o porquê. Era ativa, contestadora em excesso e, de repente, me vi estudando
em um colégio de freiras e estudando para ser professora, o que representava tudo de
mais submisso que eu havia vivido a então. Pouco me lembro daqueles três anos.
Apenas um professor marcou minha passagem por aquele espaço, o de filosofia do
ano do curso. Guardei as provas que fiz com ele até pouco tempo atrás. Olhava
aquele sujeito que tinha um nome tão especial, Índio, e uma enorme paixão pelo que
fazia e sentia que com ele podia ousar, pensar, falar.
No meio do meu curso, fui para Rio das Ostras, meus pais se mudaram para lá,
terminei meu curso normal e comecei a dar aulas em uma escola estadual
5
. Peguei uma
turma de rie e ainda não me sentia professora, mas, de alguma forma, não sei dizer
qual, fui importante para aquelas crianças, pois quando as encontro hoje, pais e mães de
família, sou abraçada e lembrada com carinho.
Resolvi, então, fazer faculdade de Pedagogia na Faculdade de Macaé e me
encontrei
6
. Cursei até o período e adorava aquele lugar. Fui do Diretório Acadêmico
da faculdade logo no semestre e amava estar ali, discutindo questões de Filosofia,
Sociologia e Ética. Mas, com 21 anos, dois filhos pequenos e trabalhando o dia inteiro,
não consegui continuar.
5
Era funcionária municipal cedida para o estado.
6
Era o ano de 1984.
17
Naquele espaço ou naquele momento, comecei a pensar em educação, em como
fazer diferença ou fazer diferente. Sabia do que gostava: ler. E esse fio dentro da minha
rede, me aproximou do caminho que segui depois.
Adoro ler. Descobri essa paixão quando criança e sempre entendi que os livros
eram capazes de me levar a diferentes lugares. Através deles, estudo, descubro e posso
me situar neste mundo ou ainda ser transportada para lugares que desconheço e que me
encantam. Os livros foram e são tão importantes na minha formação que, por meio
deles, pude entender desde cedo a diversidade humana. Quando comecei a dar aulas,
carreguei comigo essa paixão e fiz contato com a literatura infantil, que se tornou um
eixo importante do meu trabalho.
Leio com meus alunos sempre! Lemos sozinhos, em grupo, em voz alta,
silenciosamente. Cada livro sugere discussões diferentes e a possibilidade de escutar o
que cada um tem a dizer sobre o lido, as formas pelas quais resignificam o texto de
acordo com os fios de suas redes. Nesse caminho, vejo a possibilidade de enxergar cada
um.
Logo compreendi que ninguém só ensina e ninguém só aprende, este processo se
dá em caminhos que se cruzam. Paulo Freire (2001) diz:
educadoras e educadores autoritários negam a solidariedade entre o ato
de educar e o ato de serem educados pelos educandos; eles separam o
ato de ensinar do de aprender, de tal modo que ensina quem se supõe
sabendo e aprende quem é tido como quem nada sabe. (p. 27)
Essa foi uma aprendizagem transformadora. Portanto, importante conquista para
a minha formação, pois a partir deste aprender pude trocar conhecimentos com meus
alunos de uma maneira democrática e, nesse processo, entendi que não sou detentora de
um saber que é estático, que precisa ser ensinado para aqueles que, a princípio, nada
sabem. Consigo compartilhar experiências, respeitar a individualidade de cada um e,
assim, tecer junto com meus alunos saberes que consideramos relevantes em nosso
cotidiano e, assim, ensinamos e aprendemos de forma mútua.
Trabalhei cinco anos na Prefeitura de Rio das Ostras, primeiro como professora
e depois como auxiliar de coordenação de um projeto pedagógico desenvolvido para
que as crianças saíssem da escola e passassem o resto da tarde desenvolvendo outras
atividades. Havia almoço, estudo dirigido, teatro e esportes.
18
Em 1990, voltei para o Rio de Janeiro, meu companheiro veio trabalhar aqui e
eu o acompanhei. Foi assim que em 1991, fui convidada a fazer parte do grupo de
trabalho do colégio Baby Garden, instituição de ensino particular situada na cidade do
Rio de Janeiro, escola onde trabalhei por 17 anos. Esse espaço faz parte da minha
história em todos os sentidos que isso possa ter.
Lá trabalhei envolvendo meus sentidos, emoções, sentimentos, intuições, saberes
e fazeres. O que mais me encantava naquele espaço era a autonomia que tínhamos em
sala de aula, aquele espaço era nosso e, nele, eu e meus alunos podíamos estabelecer
nossas regras e criar espaços de aprender da forma que mais tivéssemos vontade. Ali me
encontrei e, a cada ano que passou, me engajei mais no objetivo da instituição. Percorri
caminhos diferentes, sou inquieta o bastante para isso. Fui professora de série, de
série, fui professora da sala de leitura e supervisora pedagógica do 1° ao 9° ano durante
quatro anos.
Em 2001, fiz o vestibular para pedagogia na UERJ e, em 2002, iniciei o curso
chamado de Pedagogia II
7
. Essa foi a primeira vez em que ouvi falar de coisas como
escola real, cotidiano, fazeres entre outras marcas dos pesquisadores nosdoscom os
cotidianos. Estava o que eu queria, as muitas transgressões realizadas em minha sala
de aula encontravam eco, respaldo teórico naquilo em que eu acreditava. Não saí mais
deste espaço acadêmico e em 2006, fui aprovada para o mestrado do Programa de Pós-
Graduação da Faculdade de Educação. Esses caminhos enredados me trouxeram até
aqui.
Também em 2006, fui aprovada no concurso para professora do Colégio de
Aplicação da UFRJ. Tomei posse em junho de 2007 e hoje busco, junto a essa
instituição de ensino, um sentimento de pertencimento que somente o tempo e o
estabelecimento de relações com ela e seus sujeitos serão capazes de me trazer. dois
anos trabalho com a disciplina de Língua Portuguesa nas turmas de ano do Ensino
Fundamental.
Ao pensar o passado e rememorar minha formação, nas redes que a constituíram
e, é claro, constituem ainda, posso dizer que ela não tem nada de linear e que os
processos de formação acadêmicos aconteceram de forma inversa em minha vida.
voltei a cursar a Universidade aos trinta e sete anos, perto da minha aposentadoria.
7
Antigo CPM, Curso de Professores do Município na Faculdade de Educação da UERJ, matriz da
Habilitação em Magistério das Séries Iniciais.
19
Minha formação foi sendo tecida com a minha prática e com as minhas trocas. É nesta
formação que aposto, cheia de múltiplos caminhos e teias que me levam a pensar e a
transformar minha prática cotidiana, mas que também, pela necessidade que sentia de
compreender e buscar outros diálogos a partir dessa prática, me levaram de volta às
carteiras como alunaprofessora.
Gostaria de deixar claro, nesse momento, que nada disso que conto aqui pode e
nem deve ser visto como verdade única e absoluta. Essa é apenas uma das verdades
possíveis entre as tantas leituras possíveis das coisas vividas por mim. Arrisco a dizer
aqui que esta é apenas uma história de ficção e que se embalada por outro momento,
seria outra a história aqui descrita.
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo “como ele de
fato foi”. Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela
relampeja no momento de perigo (BENJAMIN, 1993, p. 224).
O início da tessitura, afinal é preciso dizer que pesquisa é essa
Ao entrar em contato com as idéias de alguns estudiosos do cotidiano como
Nilda Alves, Carlos Eduardo Ferraço, Inês Barbosa de Oliveira, Paulo Sgarbi, Dirceu
Castilho Pacheco, Michel de Certeau e José Machado Pais, entre outros, comecei a
perceber que eu poderia deslocar o olhar que tinha em relação à escola. Que ali havia
muito a ser mostrado e que eu poderia contribuir de alguma maneira para mostrar um
pouco da complexidade daquele espaçotempo.
Comecei a pesquisar as escolas a partir das práticas, minhas e de outras colegas
de profissão, que via emergir em muitas salas de aula. Práticas essas que não estavam
em consonância com aquilo que o discurso midiático vinha apontando. Via empenho,
dedicação, posturas políticas comprometidas e compromisso com a aprendizagem
daqueles e daquelas que habitam o universo escolar.
O que me interessou como possibilidade de pesquisa, foi ouvir professoras,
dialogar com elas e com as suasminhas práticas, pensando as possibilidades
emancipatórias (SANTOS, 1996) contidas no cotidiano, no entendimento de que o
mundo não é feito só de dominação e do que os dominantes permitem perceber.
Entendendo que é preciso desinvisibilizar (SANTOS, 2004) práticas, proporcionando
integração entre as vozes, para podermos encontrar formas de luta contra a
20
subalternidade e para que essas não permaneçam fechadas em si mesmas e possam ser
multiplicadas.
Meu desejo é criar aqui um espaço de interlocução entre diferentes vozes, para
que elas se integrem, pondo-as em diálogo e ampliando as possibilidades de ação dos
seus sujeitos.
Meu encontro com as professoras que narram aqui suas vidas com tanta
generosidade, possibilitando a realização desta pesquisa, não aconteceu por acaso.
Trabalhamos todas na mesma escola por um determinado tempo de nossas vidas.
O nosso lugar de encontro foi o Colégio Baby Garden. Todas nós trabalhamos lá
em algum momento da vida, nem sempre ao mesmo tempo. O período em que houve de
fato um entrelaçamento entre nossas idéias, foi nos anos de 1999 e 2000. Nessa época,
Maria Lucia, Carla e Sandra montaram um projeto para a Classe de Alfabetização
utilizando músicas, histórias e brincadeiras infantis. Eu acompanhei o projeto no
segundo ano de sua organização, quando Maria Lucia tomou posse no Colégio de
Aplicação da UFRJ, saindo então do colégio Baby Garden.
Hoje, cada uma exerce sua profissão em espaços bastante diferenciados, escola
pública municipal, escola privada e escola pública federal. Entendo que essa diversidade
de práticas e de lugares onde elas se dão, pode proporcionar um espaço de interlocução
importante para o entendimento do que é a profissão. Como cada uma percebe seus
espaços de trabalho, que redes integram os seus fazeres pedagógicos, que relações
tecem com os outros das escolas em que trabalham, de que forma se relacionam com os
currículos escolares, como se constituem professoras e como se relacionam com este
serestar da profissão, são algumas questões que trago para esta investigação.
Neste enredamento entre suas vozes e suas práticas, me incluo, numa tentativa
de transformar esta dissertação num espaço de diálogos, memórias e tessitura de uma
rede entre nossas vozes e as dos muitos autores que trago aqui para dialogar conosco.
Busco narrar a vida e literaturizar a ciência (ALVES, 2008, p.43), optando por
escrever esta dissertação em primeira pessoa, certa de que a minha história de vida é
indissociável do contexto que estudo e que por isso, não como pensar qualquer
questão fora de mim mesma e das leituras que faço do meu “objeto”. Assim, nos
confundimos, ele e eu. Com Ferraço penso que em vez de perguntar que significa essa
atitude? Que quer dizer este cartaz? Que significa este texto? Qual o sentido dessa
21
fala? Devemos perguntar que leituras “eu” faço dessa atitude, cartaz, texto ou fala?
(FERRAÇO, 2003, p.160)
O primeiro relato – a história de um boletim.
Este boletim corresponde à 1ª série, eu acho. Eu sei que eu já estava
alfabetizada. Pelo ano, deve ser série. Eu tinha 6 anos. Eu ia fazer 7 em
maio.
Você já viu um boletim igual a este?
que o importante não eram as notas, o que me marcou é que esta
professora me olhava diferente, me lembro do olhar dela. Eu não me
lembro de um conteúdo, mas eu lembro da minha lapiseira, do meu estojo,
me lembro das minhas ponteiras, dos meus cadernos, e me lembro dela.
Não lembro dela dando aula, mas lembro do sorriso dela, eu me lembro
dela. Que coisa engraçada, né? Isso era nota de prova, eu tirava 10 mesmo,
ou pelo menos eu acho. Mas eu via nos olhos dela que ela gostava de mim.
Um espetáculo isso, né, tirar 10 em conduta e asseio!?!? Eu acho que isso
faz toda diferença na vida da gente, então, penso sempre nisso quando
estou preparando minhas aulas e quando convivo com meus alunos. O
olhar com que os outros nos olham será marcante para a nossa vida
sempre.
Ao ler esta história contada para mim pela professora Maria Lucia
8
posso
perceber que ela procura trazer para a sua prática aquilo que considerou importante em
8
As professoras desta pesquisa serão devidamente apresentadas um pouco mais na frente.
Boletim – Maria Lucia - 1
Boletim
Maria Lucia
-
2
22
sua vida de aluna. Tece sua identidade, trazendo para o seu fazer cotidiano, memórias
da sua história de criança, discente que foi. Esse é um fio da formação de Maria
Lucia, professora que não tem seu nome relacionado às grandes pesquisas realizadas no
campo da educação. É uma professora anônima, dentre muitas e, talvez, seja mais um
número nos discursos que mostram diariamente que a “escola vai mal”, “a escola do
meu tempo era melhor”, “os professores estão desmotivados”, “os alunos de hoje o
querem nada”.
Através dela, de Sandra e de Carla, e com elas, procuro trazer a complexidade da
formação de uma professora, discutindo os diferentes espaçostempos em que essa
formação se tece. Por meio de suas histórias, narradas por elas, da forma como elas a
enxergam, com os diferentes fios que integram suas redes, procuro evidenciar as redes
de aprenderensinar que vêm sendo tecidas nos espaçostempos escolares, procurando
compreender os processos de formação desses sujeitos e os usos cotidianos que fazem
da sua convivência com tudo aquilo que os cerca nas escolas; suas relações com outros
sujeitos, com os currículos e com os artefatos escolares.
Percebi nessas narrativas, traços sutis de resistência à hegemonia do
conhecimento. As táticas (CERTEAU, 1994) das quais se utilizam para dar conta das
práticas curriculares, que Maria Lucia denomina currículo desejado, algo que está para
além da sua formulação, que é tecido na prática, no diálogo.
Considerei o que foi dito e também o como foi dito. Sentada aqui, na frente
desse computador, ouvindo mais uma vez cada narrativa a fim de transcrevê-las, me
peguei rindo, vivendo com elas algumas das histórias contadas. Ao contar uma história,
o sujeito não usa só a sua voz, o olhar, o movimento do corpo, a imitação de vozes e
de trejeitos. Esse foi um processo muito enriquecedor para mim. Tenho pena de o
poder expor essas outras formas de “dizer” usadas pelas professoras desta pesquisa, pelo
simples fato da escrita ser limite à possibilidade de expressá-las com fidelidade.
Tentei romper com as formas de pesquisa pautadas nos ditames da ciência
moderna, buscando trabalhar com a idéia de que, ao produzir modelos abstratos de
representação do real, não consigo considerar a complexidade e a multiplicidade das
realidades das escolas. No entanto, percebo também os limites desta forma de pesquisa,
preciso respeitar as informações e a inferência que faço a partir das pistas e indícios
(GINSBURG, 1989) do que as narrativas me contam. Dessa forma, deixaremos de
praticar a mera confirmação de idéias preexistentes, tornando verdade aquilo que
23
gostaríamos que fosse, aquilo que nossas hipóteses iniciais previam que
encontraríamos (OLIVEIRA, 2008, p. 142).
Das discussões com o uso de artefatos, das histórias de vida, das narrativas das
práticas, emergem informações sobre a vida nas escolas, o fazer cotidiano, os sujeitos e
seus processos de ensinaraprender e de formação. Aprendendo com o real, podemos
pensar em formas de intervenção mais consistentes e mais competentes em relação às
escolas. As pistasentrevistas nesta pesquisa são indícios e, portanto, devem ser tratadas
com tal.
O caminho que faço em direção a essa busca de compreensão desses indícios é
que trago nesta dissertação. Por meio dos relatos de três professoras das séries iniciais
de Educação Básica, teço um diálogo entre suas narrativas - que falam de formação,
currículos, uso de artefatos e autores e autoras que discutem educação a partir do
cotidiano escolar, aproximando-se mais do real do que aqueles que se limitam às
análises estruturais.
Dos pontos que alinhavam o tecido: os capítulos da pesquisa
No primeiro capítulo, Pesquisando as escolas nas escolas: uma discussão sobre
os caminhos metodológicos da pesquisa, assumo o cotidiano como centralidade.
Num breve diálogo com Nilda Alves, refaço o caminho metodológico defendido
por ela como uma das múltiplas possibilidades de pesquisarmos os cotidianos. Defendo
a forma que encontrei para escrever e o uso dos suportes imagéticos utilizados nesta
pesquisa. Mergulho buscando entender as promessas da modernidade e a função que ela
atribui à escola. Dialogo com Boaventura de Sousa Santos, buscando aporte em suas
discussões sobre a produção da ciência na modernidade.
Em seguida, aponto minha escrita em direção aos estudos nosdoscom os
cotidianos, às possibilidades que entrevejo ao pesquisar assumindo o cotidiano como
centralidade. Uma aproximação real das práticas, das histórias de formação, dos usos
que cada professora faz das regras e dos seus saberesvalores, mostrando que esta leitura
nos possibilita encararpensar a complexidade que constitui os espaçostempos das
escolas.
Mesmo percebendo a impossibilidade de apreensão do que de fato se passa no
real, podemos começar a entender o que se passa na realidade cotidiana. Buscando
aquilo tudo que é considerado irrelevante quando se pretende pesquisar as
24
generalizações, podemos trançar redes de sentidos que nos façam mais próximos do que
de fato acontece nas escolas e suas salas de aula.
Meu segundo capítulo trata da questão das narrativas, da importância de trazer as
vozes das professoras para as pesquisas, vozes que narram sobre o que é considerado
resíduo nas grandes “pesquisas” quantitativas. Apresento oficialmente” as três
professoras que participam desta pesquisa e teço com Josso, um diálogo sobre as buscas
que encontramos em suas narrativas. Oliveira completa:
Se as pesquisas qualitativas em geral e, particularmente, as pesquisas
nos/dos/com os cotidianos trabalham com relatos de experiências, histórias
de vida, e outras técnicas semelhantes, isso se porque acreditamos, com
Morin (1995), que o todo está na parte do mesmo modo que a parte está no
todo e que o ser humano é único, sendo, portanto, impossível dissociar o
“sapiens do demens”. (OLIVEIRA, 2005, p.63)
Discuto, a partir dos relatos com que tive contato, as redes de formação. Percebo
que nas histórias contadas uma multiplicidade de espaçostempos onde a formação se
dá. Detenho-me nos espaçostempos dos cursos de formação e das práticas, realizando
uma pequena discussão com Larrosa e Skliar sobre o saber da informação, o saber da
experiência e a relação desses sujeitos com os outros das escolas, outros que são os
alunos e alunas que dialogam com a experiência e a prática das professoras pesquisadas.
No terceiro capítulo, meu diálogo se com os usos (CERTEAU, 1994) que
cada professora faz dos currículos na tessitura da sua prática e as possibilidades que
encontramos imbricadas nessas práticas. Uma busca por outros caminhos que tragam
aprendizagens e saberes mais solidários para os espaçostempos escolares. Como cada
uma caminha, de que forma suas histórias de vida estão presentes nas suas salas de aula,
como lidam com o conhecimento e o saber que não esnos textos curriculares papéis
oficiais das escolas - mas está nas salas, na voz de nossos alunos e nossas alunas. Em
seguida, faço uma breve discussão que, inicialmente, não fazia parte desta pesquisa
9
sobre três artefatos pedagógicos: o quadro-negro, o livro didático e os livros de
literatura infantil. Busco a história desses objetos, tentando entender as diferenças entre
a proposta para o seu uso e o uso que de fato é feito pelas professoras da pesquisa nos
espaçostempos das suas aulas, por entender que é uma discussão importante.
Termino esta conversa inicial com Antonio Porchia (apud LARROSA, 2001),
pois entendo que uma dissertação é formada de palavras, não contei quantas foram
usadas aqui. Sei que foram muitas e que as escrevi porque esse é o meu possível nesse
9
Falarei especificamente disto na discussão inicial do referido capítulo.
25
momento. Tentarei não levá-las tão a sério quando, no futuro, olhar para trás e perceber
que estou em outro lugar e que desse outro lugar minha visão é outra. Assim, muito
provavelmente as minhas palavras o serão também. Por isso, esclareço, O que dizem as
palavras não dura. Duram as palavras. Porque as palavras são sempre as mesmas e o
que dizem não é nunca o mesmo (PORCHIA, apud LARROSA, 2001, p.290).
26
Pesquisando as escolas nas escolas: uma discussão sobre os
caminhos metodológicos da pesquisa
Os cotidianos pulsam muito mais fortemente do que qualquer análise que façamos
“com” eles (FERRAÇO, 2003, p.173).
27
As narrativas das professoraspraticantes
10
aqui representadas pelas três
professoras envolvidasenredadas nesta pesquisa são o eixo norteador do trabalho. A
partir do que ouvisentivivi, busco trançar um diálogo entre suas histórias me utilizando
de um aporte teórico-metodológico que vem sendo tecido por pesquisadores e
pesquisadoras nosdoscom os cotidianos
11
, numa tentativa de olhar o que esta vida
ordinária deixada de lado pelas grandes pesquisas em educação tem a nos contar. Meu
interesse é pensar os anos iniciais do Ensino Fundamental, a partir da narrativa dessas
professoras. Meu diálogo com elas perpassa o campo da formação e das práticas,
investigando como se utilizam das normas e produtos neste caso, os currículos e
alguns artefatos escolares – no cotidiano das escolas.
Assim, trago aqui essas três praticantes anônimas e teço suas histórias a partir de
mim, pois assumo com Delory-Momberger (2008) que o leitor-leitora desta pesquisa
não está numa relação imediata, direta, com as professoras. Sua relação se dará através
do que delas em mim, num jogo de inter-relações que faz dessa narrativa não um
objeto unânime e identicamente decodificável, mas algo que está em jogo entre alguém
e mim, e entre mim e mim mesmo (p.59).
A fim de tecer esta pesquisa, utilizo-me da formulação de Alves (2008)
12
, onde a
autora identifica cinco aspectos centrais à pesquisa nosdoscom os cotidianos. São eles: o
sentimento do mundo, virar de ponta cabeça, beber em todas as fontes, narrar a vida e
lieraturizar a ciência e ecce femina. Em seguida, passo a apresentá-los um a a um.
O sentimento do mundo
Trabalhar a minha pesquisa utilizando-me desse primeiro aspecto significa o
poder mais ver o mundo do alto ou de longe. Para isso, o olhar para o meu “objeto” não
deve estar afastado e sim, mergulhado nele, compreendendo que não nenhuma
garantia de que tudo o que verei será real, pois poderei iludir-me em relação a ele. Nesse
sentido, coloco a impossibilidade de olhar a escola do alto ou de longe. Percebo a
10
Praticantes - termo usado por Certeau (1994) e do qual me apropriei para me referir às professoras
desta pesquisa e também a todas aquelas que estão nas salas de aula, praticando educação. A este termo,
entrelaço a palavra professora.
11
Que chamarei de cotidianistas, usando como referência Inês Barbosa de Oliveira, Nilda Alves, Dirceu
Castilho Pacheco, Paulo Sgarbi entre tantos outros pesquisadores nosdoscom com os cotidianos.
12
Em texto publicado no ano de 2001 e reeditado em 2008, Nilda Alves apresenta quatro aspectos que
julga serem necessários para se começar a compreender a complexidade da vida cotidiana. São eles: o
sentimento do mundo, virar de ponta cabeça, beber em todas as fontes e narrar a vida e literaturizar a
ciência. Mais tarde, apresenta um quinto movimento, que a seu ver havia sido deixado de fora, o ecce
femina. O texto em que apresenta este quinto movimento intitula-se: Sobre movimentos das pesquisas
nos/dos/com os cotidianos.
28
necessidade de estar mergulhada no seu cotidiano, observando como cada sujeito se
utiliza dos saberes e convivências, como cada um tece sua rede de viveres cotidianos a
partir daquilo a que tem acesso no espaço escolar.
...percebo que só é possível analisar e começar a entender o cotidiano
escolar em suas lógicas, através de um grande mergulho na realidade
cotidiana da escola e nunca exercitando o tal olhar distante e neutro que
me ensinaram e aprendi a usar. É preciso questionar e “entender” o cheiro
que vem da cozinha, porque isso terá a ver com o trabalho das professoras
e as condições reais de aprender dos alunos. É preciso “comer” um
sanduíche feito mais de doze horas antes, “ouvir” e “participar” de
conversas entre moças e rapazes para entender alguns “problemas” do
noturno e “sentir” o porquê dos alunos o freqüentarem, e cada vez mais.
Torna-se necessário, se quero trabalhar com o cotidiano escolar, entrar nas
salas de baixo desse prédio e sentir a falta de luz o cheiro de mofo. O que
deve sentir uma professora que ano após ano é escolhida para dar aula em
uma dessas salas? Viver com (conviver) essas questões, esses cheiros, esses
gostos, esses sons, essa luminosidade ou obscuridade, com os sentimentos
que aí são vividos, não é fácil. Mas é possível realmente compreender o que
se passa sem isto? Se continuo somente olhando do alto”, como os que
têm poder, vou compreendê-lo muito limitadamente, é preciso reconhecer.
(id. p. 20-21)
Trabalhando dessa forma, permito-me olhar para os outros que encontro sem o
olhar contaminado que predetermina quais as cores, os cheiros, os saberes, as formas
são possíveis, aguço os meus sentidos e de alguma forma busco desvendar as lógicas
cotidianas desses outros, estabelecendo relações entre eu e eles, procurando entrever o
que acontece nos espaçostempos cotidianos.
Ao incorporar o sentimento do mundo ao meu espaço de pesquisa, devo estar
atenta ao embate que se porá como desafio, a tensão entre o que entendo como outra
forma de olhar o mundo e os valores e preconceitos estruturados em mim.
Virar de ponta cabeça
Aqui a teoria é entendida como limite e não como verdade que funciona como
ponto de partida para a “construção de uma nova verdade”. Este outro olhar para as
teorias impossibilita pensá-las como verdades absolutas a serem confirmadas ou
substituídas por novas verdades. Pais (2003) nos fala que os conceitos e teorias devem
entender-se como instrumentos metodológicos de investigação ao serviço da
capacidade criadora de quem pesquisa (p. 31).
29
Seu limite está em que devemos vê-las não como hipóteses a serem confirmadas,
mas sim como limite, entendendo que é possível iniciarmos uma pesquisa sem idéias e
conceitos formulados previamente. As verdades pré-concebidas muitas vezes funcionam
como antolhos que não nos permitem olhar a criatividade cotidiana, a busca de soluções
para o enfrentamento das questões que se apresentam no dia-a-dia das tantas salas de
aula.
Alves nos fala sobre nos lançarmos no mergulho sem a bóia (ALVES, 2008, p.
p.26), sem as certezas pré-concebidas, o que nos deixa num lugar de pura instabilidade e
insegurança, porque é o fato que provoca a insegurança mas que ao mesmo tempo nos
possibilita aguçar o olhar, percebendo as redes de relações que se tecem nos diversos
espaçostempos.
Buscar pensar as escolas e as práticas cotidianas que nelas se desenvolvem sem
as “bóias” que o pensamento disciplinarizado e hierarquizado que a modernidade nos
oferece exigirá uma ruptura com saberes prévios a respeito das escolas e do que
pensamos já saber delas e sobre elas.
Beber em todas as fontes
O que pode ser aceito como fonte de conhecimento? O pensamento ocidental
moderno nos ensinou que a multiplicidade de formas de ver não cabe no que é
concebido como ciência. Neste caso não como olhar as diferenças a não ser como
algo que está para além do que é normatizado e dominante.
Como pesquisar o que para além dessa norma, para além do quantificável e
do previsível a não ser por meio do reconhecimento das múltiplas fontes e
possibilidades que se apresentam cotidianamente? Sentir, ouvir, olhar, percebendo tudo
o que se apresenta como fonte, trará outra possibilidade de entendimento a respeito do
que está nas escolas.
Perceber o que está além da repetição, além das semelhanças entre as aulas, os
conteúdos e as práticas docentes; as singularidades dos modos de fazer, requer outras
formas de ver, que nos contarão dos usos e dos significados dos cadernos, dos cartazes,
dos currículos, dos murais. Tudo o que acontece nas escolas, nas salas de aula tem uma
história e para investigá-la, a fim de tecer uma aproximação com o real, é necessário
beber em todas as fontes.
30
Para além daquilo que pode ser grupado e contado (no sentido de
numerado), como antes aprendemos, vai interessar aquilo que é “contado”
(pela voz que diz) pela memória: o caso acontecido que parece único (e que
por isto o é) a quem o “conta”; o documento (caderno de planejamento,
caderno de aluno, prova ou exercício dado ou feito etc.) raro porque
guardado quando tantos iguais foram jogados fora porque não eram
importantes” e sobre o qual se “conta” uma história diferente, dependendo
do trecho que se considera; a fotografia que emociona, a cada vez que é
olhada, e sobre a qual se “contam” tantas histórias, dos que nela aparecem
ou estão ausentes e da situação que mostra ou daquela que nos “faz
lembrar” (ALVES, 2008, p.28).
Narrar a vida e literaturizar a ciência
Buscar outra forma de “escrita” que o a do “paradigma dominante” se torna
necessário para a formulação do que for “aprendido” a partir daquilo que foi
apresentado até aqui. Talvez encontremos mais perguntas do que respostas, mas é
preciso enfrentar o desafio de outro modo de dizer este outro modo de fazer. O
enredamento tecido com os tantos fios puxados na pesquisa farão com que se diga e
depois desdiga (id. p.31) muito do que se disse, tornando inviável as conclusões
definitivas, daí se entender a provisoriedade das mesmas.
Como contar o que aprendi? No caso específico desta pesquisa, utilizarei os
relatos das narrativas das professoras envolvidas. Assim, tentarei dar conta de mostrar
alguma coisa da escola que o está escrita nos documentos oficiais, nem nos discursos
oficiais, mas sim estampado no discurso daquelas que praticamvivem os cotidianos das
escolas. Relatare o que está inscrito na memória dessas praticantes, ouvir os seus relatos
e buscar através deles chegar ao que as pesquisas generalizantes da área da educação
‘classificaram’ como os ‘restos’, o irrelevante, o que não é científico. Na memória o
como haver cientificidade. Não linearidade de fatos na narrativa, que um fio
puxa outro que puxa outro e esses vão se trançando e entrelaçando num movimento
sempre horizontal, construindo pontes de ligação entre as reminiscências, modificando-
as.
Pensando outras formas de escrita que dêem conta ou que pelo menos me
ajudem a registrar minhas investigações, tenho cuidado, nem sempre com sucesso,
com a escolha das palavras e expressões que uso, buscando não ser generalista ou
afirmativa demais, evitando dar a impressão de que existe uma verdade única e
universal que deve ser seguida. Pensando que as palavras nem sempre dão conta do que
31
gostaria de dizer, teço palavras, assim como outros(as) cotidianistas, numa tentativa de
reforçar o sentido do que quero dizer, ou ainda, outras vezes, numa tentativa de mostrar
que processos considerados antagônicos, dicotômicos, na verdade se completam. Esse é
o caso da palavra ensinaraprender, pois aprendi que não nada de dicotômico nesse
processo, e que não há ensinar onde não há aprender. Sgarbi (apud SUSSEKIND
VERÍSSIMO, 2007) diz que este é o ‘princípio da juntabilidade’ das palavras quando
duas ou mais palavras ao serem unidas na escrita (FERRAÇO, 2003) assumem
significado diferente daqueles que tinham quando separadas (p.25).
Nessa busca por outras formas de dizer, utilizo também as imagens, não para
tomá-las como evidências, mas como uma realidade intrincada e, portanto, não
desagregada de outras formas de expressão e de entendimento do real. O uso de
imagens permite preservar a complexidade do meio social e de sua história, uma vez
que imagens que as expressam enquanto a maioria dos textos não conseguem ou não
querem.
... um dos motivos porque o uso do material imagético é metodologicamente
importante na pesquisa no/do cotidiano reside, exatamente, no fato, de ele
conduzir às múltiplas realidades captadas pelas imagens, não traduzidas
em textos, sejam eles discursos e propostas oficiais ou de outros tipos. As
imagens são portadoras de possibilidades de compreensão ampliada do que
é e do que pode ser a prática pedagógica real, escamoteada e tornada
invisível a “olho nu” pelas normas e regulamentos da cientificidade
moderna, da hierarquia que esta estabelece entre teoria e prática e dos
textos produzidos neste contexto. (OLIVEIRA, 2003, p. 90)
Calado (1994) atribui à imagem dois poderes. O primeiro é o de convencer, pois
é tomada como evidência. O segundo é o de comover, pois prende o olhar, desperta o
prazer, desencadeia a evocação. A esses dois poderes tenho a ousadia de adicionar um
terceiro, que muito me interessa, o de olhar o presente e sonhar o futuro, pois a
fotografia é capaz de “contar” histórias sobre momentos que o texto, nem sempre, tem o
poder de registrar.
É a riqueza da imagem que me atrai com sua linguagem possuidora de vários
códigos. Uma imagem pode estar cercada de informações sobre como e onde ela se deu,
mas ela também revela outras informaçõesversõesemoções nas leituras que os sujeitos
fazem dela.
32
A polissemia da imagem deixa margens para a incorporação do paradigma
indiciário de Ginzburg, (1989) que propõe a caça às pistas como indícios que permitem
alcançar as identidades da cena investigada.
Capturar uma imagem, um momento, quantas vezes nos deparamos com esta
fala? Será possível essa captura? Que domínio podemos ter sobre uma imagem? Calado
(op.cit.) dá uma pista sobre esta questão ao dizer:
Agarrar a imagem não é fácil. Multifacetada e polivalente concreta e
abstrata, icônica e racionalizada, eficaz e mágica, estética e denotativa,
funcional e incontrolável ela escapa às visões analíticas, Às grelhas
quantificadoras, à matematização. (p.19-20)
Ecce femina
O quinto e último elemento proposto por Alves (2008), ao processo de
construção de metodologias para as pesquisas nosdoscom os cotidianos refere-se aos
praticantes.
Como deixar de fora os praticantes, ou mais especialmente as praticantes dessa
pesquisa, aquelas que nos contam a respeito do que de fato acontece nos anos iniciais do
Ensino Fundamental?
São elas que, muito generosamente, abrem as portas das suas salas de aula, que
permitem a observação de suas práticas, que contam suas histórias de vida, de formação,
seus casos de escola, suas relações com seus alunos(as), que burlam o que está
instituído, que usam de diferentes maneiras o que lhes é apresentado nos espaçostempos
escolares, sejam objetos materiais ou idéias e/ou imposições. São elas que tornam-se
diretoras, coordenadoras, alunas, parceiras, “sujeitos de pesquisa”.
Alves completa: ... o que de fato interessa nas pesquisas nos/dos/com os
cotidianos são as pessoas, os praticantes, como as chama Certeau (1994) porque as
em atos, o tempo todo (2008, p. 46).
É dando esse mergulho de ponta cabeça, tentando beber em todas as fontes, que
espero perceber os múltiplos que estão nos sujeitos, a fim de ampliar a visibilidade do
que acontece no cotidiano das escolas e de suas tantas salas de aula, atribuindo sentido
ao que não é “percebido”, trazendo à tona possibilidades que encontram-se
invisibilizadas pelas grandes pesquisas de educação. É esta a minha busca, ou talvez
possa dizer, o meu atrevimento. Não há aqui nenhuma certeza de que isto possa
proporcionar outras possibilidades de ação, mas acredito que isso é bom, a incerteza
33
cotidiana a respeito do que certo e do que não dá, com quem certo e com quem
não dá. Na voz de Sgarbi (2008):
Sem nenhum sentido de sentença conclusiva ou prescritiva, entendo que
uma epistemologia do cotidiano deve pautar-se por um espaçotempo de
contradição, ou melhor, um espaçotempo em que as contradições não sejam
resolvidas por decretos-lei desta ou daquela ciência da ciência ou por
argumento de autoridade, mas sim que sejam compreendidas e que possam
ser resolvidas [se for o caso] a partir de negociações de sentido [alerta que
nos faz Certeau]
13
em que o processo de comunicação assuma uma função
de encontro entre diferentes, e não de beligerância em que uma idéia tem,
necessariamente, que se sobrepor à outra (p. 166).
Sobre promessas e metodologias: a modernidade está em cena
Não posso negar, nasci sob a marca da modernidade e por mais que o queira
encontro-me repleta de modos de pensar que estão marcados pela lógica moderna.
Mesmo assim caminho, e nesse caminhar sinto necessidade de justificar a minha
escolha a partir do que entendo como uma incompletude, um vácuo deixado pela
modernidade. Assim, pergunto: o que o pensamento ocidental moderno deixou de fora?
O que produziu a ruptura entre o que era desejado na ou pela modernidade e o que de
fato aconteceu? Qual foi e ainda é o lugar da escola neste contexto social?
Deste modo, me debruço sobre o pensamento científico moderno, a fim de
caminhar tecendo uma rota inicial, pondo em questão o ideário dominante que,
sustentado pelas dicotomias e pelas hierarquias, enxerga os processos formais de
aprendizagem dissociados dos processos cotidianos.
... a partir da modernidade é possível transcender a modernidade. Se é
verdade que a modernidade não pode fornecer a solução para excessos e
défices por que é responsável, não é menos verdade que ela permite
desejá-la. De facto, podemos encontrar na modernidade tudo o que é
necessário para formular uma solução, tudo menos uma solução.
(SANTOS, 2005, p. 74-75).
Entre os séculos XV e XVI, no surgimento do que chamamos mundo moderno, o
homem busca romper os limites de tempo e espaço. Esse processo procura substituir o
mundo “velho” por um mundo considerado “novo”. O homem rompe com as verdades
medievais, surgindo assim um novo olhar para o céu, para a natureza e para o próprio
13
Grifo dos autores
34
homem. Essa revolução se em todos os campos: na ciência, no mundo do trabalho e
nas formas de organização da sociedade.
Nessa época, Francis Bacon revoluciona o mundo dizendo: “o homem pode
saber”, separando o que é de Deus do que é do homem. A partir daí, as coisas ditas
“divinas” ficam separadas das coisas do homem.
Um modelo de racionalidade constitui-se a partir desta revolução,
desenvolvendo-se nos séculos seguintes basicamente no campo das ciências naturais. O
êxito desse modelo permite a consolidação de um conceito único do que é considerado
ciência, construído com base especialmente na quantificação de dados. Esse modelo de
racionalidade tornou-se determinante e fundou as bases da unicidade metodológica da
ciência moderna, tornando-se assim, um conceito global.
Sendo global, essa nova racionalidade científica é também um modelo
totalitário, a partir do momento em que nega o caráter racional a todas as formas de
conhecimento que não estejam pautadas por suas regras metodológicas. Os
procedimentos básicos para a construção da ciência são a seleção, a organização, a
classificação e a transformação de tudo em dados quantitativos. Assim, uma opção
clara por tudo aquilo que se possa controlar e quantificar, criando a idéia de que
quaisquer outros dados são irrelevantes para a pesquisa científica.
Conhecer passa a significar quantificar, o rigor científico se de acordo com o
rigor das medições. O que não pode ser quantificado passa a ser desqualificado.
... a quantificação e sua ciência derivada, a estatística, acompanhadas da
necessidade de generalização que encontra na idéia de universalidade a
sua mais perfeita expressão, baniram do mundo das idéias os aspectos
singulares e qualitativos do real, não controláveis através dos estudos que
buscam regularidades que possam ser retraduzidas em “leis” (OLIVEIRA,
2003, p.49).
Esse processo alarga o campo científico, mas também abandona o aprender que
se dá cotidianamente, pois neste processo tudo o que não pode ser quantificado deixa de
ser considerado conhecimento. Assim se um processo de desqualificação do senso
comum e dos estudos humanísticos. De um lado, encontraremos os conhecimentos
reconhecidos e usados nas ciências, também chamados de “verdadeiros”, anteriores ou
basais; e, do outro, os entendidos como periféricos, superáveis, as chamadas crendices
ou senso comum (ALVES, 2000a)
35
a distinção entre sujeito e objeto e entre natureza e sociedade. O mundo é
reduzido a leis de causa e efeito, a quantificações matemáticas, deixando de fora a sua
complexidade, é um conhecimento desencantado e triste que transforma a natureza
num autômato (SANTOS, 2006a, p. 53). O homem é consagrado como sujeito do
conhecimento, mas é expulso enquanto sujeito empírico.
Na antropologia, a distância empírica entre o sujeito e o objecto era
enorme. O sujeito era o antropólogo , o europeu “civilizado”, o objecto era
o povo “primitivo” ou “selvagem”. Neste caso, a distinção, empírica e
epistemológica, entre o sujeito e o objeto era tão gritante que a distância
teve de ser encurtada através do uso de metodologias que obrigavam a uma
maior intimidade com o objecto, nomeadamente o trabalho de campo
etnográfico e a observação participante. Na sociologia, pelo contrário, era
pequena ou mesmo nula a distância empírica entre o sujeito e o objecto:
eram cientistas “civilizados” a estudar os seus concidadãos. Neste caso, a
distinção epistemológica obrigou a que esta distância fosse aumentada
através do uso de metodologias de distanciamento: por exemplo, os
métodos quantitativos, o inquérito sociológico, a análise documental e a
entrevista estruturada (SANTOS, 2005, p.82).
Apenas no século XIX podemos ver a emergência das ciências sociais. Estas
emergem abrindo-se em duas vertentes. A primeira consiste na aplicação de todos os
princípios epistemológicos relacionados aos estudos das ciências naturais às ciências
sociais, considerando estes princípios como os únicos válidos. Nesta vertente, acredita-
se que é possível estudar os fenômenos sociais da mesma maneira com que se estuda os
fenômenos naturais, reconhecendo que no caso das ciências sociais o conhecimento a
que se chega é menos rigoroso, mas não se percebe diferença qualitativa entre o
processo científico que preside as duas ciências Ao reduzir os fenômenos sociais ao
status dos fenômenos naturais, é necessário observá-los e mensurá-los, observando
apenas algumas de suas dimensões, reduzindo-os.
Assim, as pesquisas relacionadas às escolas procuram as causas do que
denominam fracasso escolar não nas subjetividades dos sujeitos ou mesmo nas redes
que os entrelaçam e compõem, mas sim em características externas como o meio
familiar, o grau de instrução da família, a situação econômica dos sujeitos, criando
assim estereótipos generalizantes do tipo: “Luisinho não vai bem na escola porque sua
família não tem instrução e, assim não pode apoiá-lo”, ou ainda, Beth vem de uma
família de baixa renda o que é determinante para o seu fracasso na escola, pois precisa
ajudar sua mãe realizando tarefas domésticas”.
36
Ernest Nagel (apud SANTOS, 2006a) aponta os obstáculos da aplicação do
método das ciências naturais nas ciências sociais e busca apontar para oposição entre
ciências naturais e ciências sociais, demonstrando que esta oposição não é tão linear
quanto parece e que os obstáculos podem ser superados. A idéia central em sua
discussão é a de que um atraso sim nas ciências sociais, mas que esse pode ser
superado com o uso do tempo e do dinheiro.
Eis alguns dos principais obstáculos: as ciências sociais não dispõem de
teorias explicativas que lhes permitam abstrair do real para depois buscar
nele, de modo metodologicamente controlado, a prova adequada; as
ciências sociais não podem estabelecer leis universais porque os fenômenos
sociais são historicamente condicionados e culturalmente determinados; as
ciências sociais não podem produzir previsões fiáveis porque os seres
humanos modificam o seu comportamento em função do conhecimento que
sobre ele se adquire; os fenômenos sociais são de natureza subjectiva e
como tal não se deixam captar pela objectividade do comportamento; as
ciências sociais não objectivas porque o cientista social não pode libertar-
se, no acto de observação, dos valores que informam a sua prática em geral
e, portanto, também a sua prática e cientista (p. 36).
A segunda vertente reivindica para as ciências sociais um estatuto
epistemológico e metodológico próprios, alegando que os obstáculos apontados acima
são intransponíveis e que as ações humanas são subjetivas, não podendo ser descritos ou
explicados de acordo com características exteriores e mensuráveis. Esta vertente
defende que as ciências sociais serão sempre ciências subjetivas e portanto não
quantificáveis ou mensuráveis, pois o que será determinante dos fenômenos sociais são
os sentidos dados às ações pelos sujeitos.
Nesse caso, os métodos de investigação a serem utilizados deverão ser
qualitativos em vez de quantitativos, a fim de obter um conhecimento mais subjetivo,
descritivo e compreensivo. É importante salientar aqui, que mesmo reconhecendo que
esta segunda vertente busca um outro olhar para as ciências sociais que não aquele dado
às ciências naturais, os dois modelos partilham as dicotomias próprias do pensamento
ocidental moderno. a distinção entre natureza e ser humano, natureza e cultura, ser
humano e animal.
Vimos até aqui que o projeto da modernidade entende o conhecimento como
construção. É preciso observar, formular uma hipótese, experimentar, concluir e
generalizar, para assim construir um “novo” conhecimento a partir de outro, como numa
37
escala de crescimento. Uma verdade se sobrepõe a outra verdade construída e assim
sucessivamente.
Alves (2000a) denomina essa forma de “construção” de conhecimento de “grafia
em árvore”, para se chegar às flores, folhas e frutos, aqueles/as que nos permitem
respirar, poetizar e comer, é preciso primeiro passar pelo tronco, caminho obrigatório,
único, linear e hierarquizado (p.113). A partir dessa idéia, a modernidade nos ensina
que está melhor quem chega ao topo, quem sabe mais e só a esses é “dado” o direito de
comer, respirar e poetizar.
A “construção”
14
do conhecimento escolar, especialmente nos dois últimos
séculos, coerente com todo o processo como se pensava e se construía a
sociedade, desenvolve-se dentro da grafia de árvore (ALVES, 2000),
permitindo a organização de estruturas sociais hierarquizadoras e
fragmentadoras, tais como: a seleção (dos mais e dos menos “aptos”; a
hierarquização (dos que “podem” mais e são ”superiores” aos que podem
“menos” e ocupam lugar inferior); a disciplinarização (com as disciplinas
teóricas sempre entendidas como as mais importantes e as práticas sociais
ignoradas ou secundarizadas como espaço tempo de criação de
conhecimentos); a normalização (permitindo o surgimento dos normais e
dos anormais, que deveriam ser excluídos dos processos comuns e
colocados em lugares especiais); a grupalização ( a sociedade passa a ser
vista como grupos isolados de pessoas, tais como: os homens, as mulheres,
os homossexuais; as crianças, os jovens, os adultos e os velhos; os que
sabem e os que não sabem; os que trabalham com as mãos e os que
trabalham com a cabeça). Nessa forma de pensar a sociedade, os processos
e as relações são superados pela necessidade de estruturação dessa
hierarquização e separação (ALVES, 2002, p.13-14).
A modernidade trouxe a promessa do conhecimento para todos como forma de
se atingir um estado de igualdade entre os sujeitos, a idéia é que todos podem chegar ao
topo da árvore. Para isso, a escola
15
moderna, instituição que tem marcadamente o
objetivo de guardartransmitir os princípios e conhecimentos produzidos pela sociedade.
A ordem, a disciplina dos corpos e do pensar garantem” a esse espaço um
desenvolvimento pretensamente harmonioso..
O sistema educativo moderno é moldado, então, a partir da idéia de que o
conhecimento científico é o único. Sua eficácia é pautada num modo hegemônico de
14
Construção vai grafada em itálico para informar que é o autodenominado processo moderno de criação
do conhecimento na ciência, que se opõe ao processo de criação de conhecimento no cotidiano, que é a
tessitura (nota da autora).
15
Nesse momento da escrita, optei por usar o termo “a escola”, no singular por entender que é essa escola
que o cientificismo crê existir.
38
racionalidade e na transformação material da realidade em dados teóricos. Desse modo,
sua estrutura tem como base as disciplinas teóricas, pois entende-se que à teoria cabe
um papel central na explicação do mundo e a prática é aquela que vem depois. Isto nos é
mostrado pela própria maneira como essa relação é enunciada teoria/prática e não
prática/teoria, quando sabemos que a dialética nos faria dizer prática/teoria/prática
(Alves, 2000a p. 112). A hierarquia de determinados saberes é notadamente
reconhecido.
Nas sociedades capitalistas, são facilmente percebidos esses processos de
hierarquização. Há hierarquia nas relações de trabalho, nas relações sociais, nas relações
entre saberes e entre culturas, dando origem a relações que inferiorizam ou não
reconhecem como válidos, conhecimentos e modos de estar no mundo de alguns
sujeitos e grupos sociais. Santos (1995) identifica essas relações como relações de troca
desigual, que no caso dos conhecimentos produz epistemicídios e, do ponto de vista
cultural, configura o etnocentrismo. O único modo de conhecer o mundo considerado
válido é o conhecimento científico. Nesse sentido, tudo o que não se provar ou não se
originar de bases cientificas é automaticamente desconsiderado. Essa forma de olhar o
mundo provoca o epistemicídio, pois torna inexistentes epistemologicamente outras
formas de conhecer.
Com relação às culturas e modos de estar no mundo, na medida em que os
padrões da burguesia européia branca são reconhecidos como legítimos, cria-se o
conceito de inferioridade. O reconhecimento mútuo da validade cultural dos “outros” de
cada cultura seria o caminho para superação dessa troca desigual.
Os processos apontados acima por meio do pensamento de Boaventura de Sousa
Santos precisam ser levados em consideração quando pensamos a modernidade, suas
promessas e as esperanças nela postas.
Precisamos, para isso, lançar mão de uma outra perspectiva
epistemológica, que supere as dicotomias hierarquizantes e reduções
ordenadoras que caracterizam o pensamento moderno e que levaram à
desqualificação dos conhecimentos não-científicos, dos fazeres que deles
derivam e dos sujeitos que deles se servem, reforçando e legitimando
processos de exclusão social. (OLIVEIRA, 2003, p. 53)
39
No meio do caminho tinha uma pedra
16
No meio do caminho da modernidade pedras. gente, há redes de
subjetividades, diferenças e diferentes. Nem tudo acontece como previsto. O século
das descobertas científicas é também o século das guerras, da desordem. O homem não
conta com a desobediência do homem. As coisas saem do lugar. Os problemas sociais e
políticos não podem ser resolvidos por meio da técnica, com neutralidade. a ciência,
a ordem, o senso comum, o caos, assim, tudo junto e ao mesmo tempo, (FERRAÇO,
2007) sem espaços para redução a dicotomias.
A escola moderna não se concretiza apenas da forma prevista pelo modelo.
Olha-se para a escola esperando que preserve a “cultura” (branca, eurocêntrica), que
incuta valores (católicos, cristãos, brancos) no sentido de aprimorá-los, que mantenha a
ordem, que cumpra seus “currículos” imóveis, de forma que todos que por ela passem,
possam ter acesso a esses saberes e valores mantendo a sociedade homogênea. No
entanto, a escola nos mostra duas faces, há a imagem oficial, construída por um discurso
dominante e aquela que vemos cotidianamente, que tece múltiplas relações entre os
sujeitos, os saberes, as culturas, revelando nossos comprometimentos, enquanto sujeitos
irremediavelmente lincados em suas redes, bem como apresenta as possibilidades da
revelação desse envolvimento e, fundamentalmente, demonstra o oportuno
desvelamento de muitas de nossas contradições (VICTORIO FILHO, 2002).
A partir do meio do século XX, três movimentos de ordem e potencialidades
diferenciadas (ALVES, 2000a) ganham força e vêm questionar a forma de se construir
conhecimento como grafia de árvore. A discussão que trago sobre eles diz respeito à
escola, espaço por mim pesquisado.
O primeiro deles discute a divisão de conhecimento que se estabeleceu na
modernidade e que se faz presente na escola, por meio da organização das grades
curriculares e do aprisionamento do fazer pedagógico nelas, que têm em papel central
algumas disciplinas tradicionalmente entendidas como importantes. Esse movimento
entende que o conhecimento se dá por meio de pontes e fusões (id, p.115) e não
aprisionado em grades.
16
Carlos Drummond de Andrade em Revista de Antropofagia, 1928 .
40
O segundo movimento substitui a idéia de que a construção do conhecimento se
somente por um único caminho, vertical, como na grafia em árvore, mostrando que
ele pode se dar de forma horizontal, e não linear, dando a idéia de rede ou de rizoma,
nos quais os fios são ligados uns aos outros e a prática é colocada no mesmo plano da
teoria e não mais abaixo dela, pois fica claro que ela traz conhecimentos não “tecidos”
na teoria.
O terceiro movimento se com a noção de subjetividade, que se expressa em
sujeitos individuais e coletivos (id. p.116). Uns e outros se desenvolvem e desenvolvem
conhecimentos em redes, não como consumidores passivos, mas sim fazendo uso
(Certeau, 1994) daquilo que é criado pela ciência e pela técnica, no papel de criadores.
Esses usos colocam os sujeitos num lugar para além da passividade e da disciplina.
Assim, as formas de pensarfazerusar, trazem o cotidiano para o centro das discussões
teóricas, procurando nele e por meio dele respostas para problemas concretos que
necessitam de resoluções.
Segundo Santos (1996),
O fato de um modelo de aplicação técnica da ciência continuar até hoje a
subjazer ao sistema educativo só é compreensível por inércia ou por fé,
ou por ambas: pela inércia da cultura oficial e das burocracias educativas,
pela da institucionalidade capitalista que utiliza o modelo de
aplicação técnica para ocultar o caráter político e social da desordem que
instaura (p.20).
Dessa forma, reafirmo que em meu serestar professora, quero ter o direito de
conviver com as diferenças sem pensá-las como algo que desqualifica os sujeitos. A
vida pulsa para além das normas, regulamentos e fracionamentos e tudo indica que ela
não faz todo dia tudo sempre igual como canta Chico Buarque, pois a vida cotidiana
tem nos mostrado que não é apenas lugar de repetição e de reprodução de uma
“estrutura social” abstrata que, além de explicar toda a realidade, a determinaria,
como supõem, ainda hoje, alguns (OLIVEIRA, 2001a, p.43).
Pesquisa
nosdoscom
os cotidianos, que história é essa?
Para além daquilo que à ciência é permitido organizar e definir em função de
estruturas e permanências, uma vida cotidiana. maneiras de fazer, de utilizar o
que está posto historicamente que são tecidas em redes reais (OLIVEIRA, 2001a) e que
41
não são mera repetição das estruturas nas quais se inscrevem. Entendo, com isso, que a
tessitura das redes das práticas sociais se através dos usos que os praticantes
(Certeau, 1994) inserem na vida de todo dia.
O grupo de praticantes que trago nessa pesquisa é formado por professoras das
séries iniciais do Ensino Fundamental. Meu objetivo é ouvir suas vozes, colocando-as
em interlocução, umas com as outras, entendendo que suas histórias e práticas carregam
saberes e que estes saberes podem dialogar com outros. A rede criada nessa busca de
interseções poderá trazer outras formas de pensarmos e estarmos nas escolas,
percebendo que a criatividade e a pluralidade inseridas por essas praticantes modificam
as regras e as relações entre o poder da dominação e a vida dos que a ele estão,
supostamente, submetidos (OLIVEIRA, 2001a, p. 44).
Nos estudos relacionados à educação, muitos pesquisadores têm se utilizado
apenas de categorias abstratas, o que talvez possa impossibilitar um estudo confiável de
práticas escolares complexas e mais próximas do real. Essas categorias abstratas são
obtidas através da reprodução de uma estrutura social abstrata, que pretende explicar a
realidade, determinando-a. Assim, essas pesquisas se referem sempre à escola, assim, no
singular, deixando de fora a pluralidade e a diversidade das diferentes realidades que
estão presentes em cada escola, ou ainda em cada sala de aula.
Por esse motivo, pesquisar as escolas como entidades únicas dificulta o
entendimento do que acontece nelas cotidianamente. É necessário pensá-las no plural,
tentando traduzir (SANTOS, 2006b) as múltiplas escolas que encontramos no interior
de cada prédio destinado a ser um espaço escolar e encontrando nessas escolas espaços
e discursos singulares que nos permitam pensar num diálogo mais justo na luta contra a
subalternidade.
Quantas vezes vivemos situações em que buscamos apoio em verdades genéricas
que não conseguem dar conta da especificidade de cada turma e da cada sujeito que a
integra? Muitas vezes, ao depararmos com um(a) aluno(a) que não consegue aprender
aquilo que nos propusemos a “ensinar”, buscamos compreendê-lo(a) utilizando
pesquisas realizadas, encaixando-o(a) em lugares preestabelecidos e, muitas vezes,
criando rótulos predeterminados. Buscamos dados para compreender o seu processo,
mas procuramos em outros lugares que não no próprio sujeito. Transformamos esse
sujeito em objeto e damos a ele classificações que foram feitas anteriormente a partir
42
de outros sujeitos que também foram transformados em objetos. Assim, reproduzimos
uma série de discursos nas escolas numa tentativa de dar conta do que acontece em
nossas salas de aula.
Em vez de pensarmos a escola, no singular, é importante pensarmos as escolas,
assim, no plural, no entendimento de que não possibilidade de se pesquisar esse
espaçotempo tão complexo tentando reduzi-lo a um objeto único. Tentar compreender
as escolas com seus alunos(as), professores(as) e problemas reais significa, então,
compreender as múltiplas e diversas realidades que fogem à organização social e
curricular, freqüentemente negligenciados por sua irrelevância científica (OLIVEIRA,
2001a).
Podemos pensar que uma multiplicidade de vias (PAIS, 2003, p.45) possíveis
que podem nos ajudar a compreender o que se passa dentro das muitas salas de aula, das
múltiplas escolas, nos levando a uma pluralidade de hipóteses. o irrelevância
científica, muitos pontos de vista e diferentes formas de olharmos o mundo que nos
cerca. No lugar da certeza, a dúvida, o descompromisso com dogmas que apenas
engessam nosso olhar. A vida cotidiana não se encaixa na rigidez dos modelos, na
imobilidade das fórmulas ou nos quadros teórico-conceituais que pretendem objetivar e
imobilizar os aspectos flexíveis da vida social. É necessário, para isso, que nosso olhar
para a vida cotidiana seja outro e esteja direcionado para além do que é repetição ou
rotina. Pensando com Pais (id)
As raízes etimológicas de rotina apontam para outro campo semântico,
associado à idéia de rota (caminho), do latim via, rupta, donde derivam as
expressões “rotura” ou “ruptura”: acto ou efeito de romper ou
interromper; corte, rompimento, fractura (p.29).
É nesse outro olhar que caminha da rotina para a ruptura que aposto, um olhar
investigador, que nesse caminhar em direção a uma ruptura, perceba detalhes e olhe
para os outros como legítimos outros (MATURANA, 1999), entendendo que há ali mais
do que podemos perceber, a princípio, com nossos olhares generalizantes e
generalizadores. Um olhar que perceba para além da regularidade, entendendo que na
vida cotidiana não há promessas de continuidade e nem de ordem.
Essa ruptura com velhos olhares foge às metodologias clássicas de pesquisa,
porque inclui sujeitos reais, deixando de lado a estrutura social que os iguala e os
padroniza (OLIVEIRA, 2001a, p. 43).
43
Pesquisar o cotidiano, no cotidiano e com o cotidiano, é uma mudança de
paradigma que não abandona o objeto de estudo, mas o humaniza, o que faz toda a
diferença. O diálogo com o sujeito é fundamental, e não mais o distanciamento que
antes julgava-se “necessário”. O que de novo é que agora todos são sujeitos no
processo, o sujeito que pesquisa e o sujeito pesquisado. um entrelaçamento de
subjetividades, a consciência da impossibilidade do distanciamento.
Então, me pergunto: como pensar as escolas, seus saberes e currículos de fora
das escolas, olhando do alto e de cima? Em meu entendimento não possibilidade de
se pesquisar as escolas sem um mergulho, tornando-se desta forma impossível pesquisar
sobre as escolas, de fora delas. Isso porque acredito que não é possível captar a sua
complexidade estando de longe, separada dela. A pesquisa faz sentido se for
produzida no cotidiano, partindo do cotidiano e com o cotidiano. Ferraço (2003) nos
diz:
Ao nos assumirmos como nosso próprio objeto de estudo, se coloca para
nós a impossibilidade de se pesquisar ou de se falar “sobre” os cotidianos
das escolas. Se estamos incluídos, mergulhados, em nosso objeto,
chegando, às vezes, a nos confundir com ele, no lugar dos estudos “sobre”,
de fato, acontecem os estudo “com” os cotidianos. Somos, no final de tudo,
pesquisadores de nós mesmos, somos nosso próprio tema de investigação
(p.160).
E completa:
De modo geral, uma metodologia de análise a priori nega a possibilidade
do "com", do "fazer junto". Resulta em uma metodologia que antecede, que
pensa antes o que poderá acontecer. Possível, mas não passam de
previsões, como as do tempo... (id., p.162)
Assim me proponho a dar um mergulho, no entendimento de que as teorias
pensadas ahoje só poderão dar conta do meu estudo até um determinado lugar e que
daí para a frente, meus sentidos precisam estar aguçados, utilizando-me de lógicas
diferentes daquelas pensadas pelos pensamentos totalizantes e comuns na modernidade,
pois para pesquisar o cotidiano, no cotidiano, é necessário entender que
multiplicidade, provisoriedade, dinamismo e imprevisibilidade (OLIVEIRA, 2003).
Então, os estudos nosdoscom os cotidianos vêm elaborando um conhecimento
específico nasdas escolas. As pesquisas são feitas numa busca de narrarcontarrelatar o
que se vive na escola todo dia.
44
Certeau (1994) diz que o cotidiano é uma invenção, algo que está sendo
inventado a cada momento por seus praticantes, isto é, podemos pensá-lo como algo
fluido, repleto de possibilidades e de movimento. Não há, assim, como nos
conformarmos com as explicações sobre uma escola homogênea e homogeneizante.
Podemos pensá-la a partir de outro lugar, de onde podemos perceber práticas
heterogêneas que a permeiam e se entrecruzam, retirando desse espaçotempo essa idéia
de homogeneidade.
A fim de pensar as escolas a partir de outro lugar, é necessário, então, reeducar
os sentidos, reaprender a perceber o mundo, muitas vezes tendo que desaprender o que
era certeza, tecendo outras (não necessariamente novas) formas de compreender os
processos complexos que habitam essa cotidianidade.
Num diálogo com Ginzburg (1989), entendo que as práticas cotidianas nos
oferecem pistas e indícios que podem se apresentar como possibilidades de
compreensão e formas alternativas de ação para “olharmos” o cotidiano de outro lugar.
Decifrando pistas: comportamentos, gestos, falas, escritos e imagens que produzem
professoras, alunos(as) e outros sujeitos dessas redes que formam as escolas e suas salas
de aula, temos outras possibilidades de captar as realidades que, a priori, nem
consideraríamos.
Ginzburg apresenta o paradigma indiciário como alternativa metodológica que
emerge enquanto outra possibilidade de pensarmos as ciências humanas. Essa
alternativa consiste na interpretação sobre os resíduos, sobre os dados marginais
considerados reveladores (id, p. 143 e 149), o que podemos pensar como possível se
reeducarmos nossos sentidos, a fim de que possamos perceber aquilo que em outras
pesquisas seria considerado negligenciável. Nesse sentido, é importante reafirmar a
importância da aproximação do pesquisador e seu objeto. Sobre isso o autor afirma. A
tendência a apagar os traços individuais de um objeto é diretamente proporcional à
distância emocional do observador (id. p. 163).
A tomada de consciência de que uma impossibilidade de apreensão do que de
fato se passa no real torna-se condição necessária para entendermos alguma coisa do
que se passa no cotidiano (PAIS, 1993, p. 108) Portanto, buscar interpretar resíduos e
dados marginais, aquilo tudo que é considerado irrelevante quando se pretende
45
pesquisar o generalizável, pode nos ajudar a trançar redes de sentidos que nos façam
mais próximos daquilo que acontece nas escolas e suas salas de aula.
Oliveira (2003) nos alerta, então, sobre a necessidade de entendermos que
muitas teorias construídas na educação negam a existência de um cotidiano, ou melhor
dos cotidianos, como algo diferente daquilo que a estrutura previu. Por isso devemos
olhá-las como limites e não como verdades, pois,
aquilo que acreditamos saber em relação a qualquer assunto dificulta
nossa percepção de elementos que nos são desconhecidos, levando-nos a
fechar as portas para aqueles que não se encaixem em nossas crenças
anteriores. As certezas são, desse ponto de vista, inimigas da aprendizagem
(OLIVEIRA, 2003, p. 71-72).
Podemos, então, pensar que idéias pré-concebidas criam o que a autora
denomina nós cegos que impossibilitam a articulação de saberes, tirando da pesquisa
possibilidades de perceber o real tal como ele se apresenta. Maturana (1999) se refere a
esses nós cegos como antolhos que nos ajudam a permanecer cegos frente a outras
possibilidades que os cotidianos apresentam. Seguindo a lógica desse pensamento, a
autora recorre a Von Foerster (apud OLIVEIRA, 2007) que inverte uma xima
conhecida dizendo que é necessário crer para ver, o que nos possibilita pensar uma
determinada realidade a partir do que nela é transgressão em relação ao que já é
conhecido por nós. A autora desenvolve a idéia de que em cada um de nós uma
cegueira epistemológica associada à parcialidade de nossa visão. Ela defende que somos
sempre parcialmente cegos e não o sabemos (p.56), o que não nos permite
verperceberentender outras formas de compreensão do mundo nem outros valores.
vemospercebemosentendemos aquilo que reconhecemos culturalmente. Por isso,
reafirma a importância de se produzir conhecimento coletivamente, pois a cegueira de
uns pode ser minimizada pela capacidade de “ver” do outro (p.56).
Inspirando-me nessas miudezas e fazendo com elas uma identificação, busco
compreender e pesquisar os cotidianos percebendo-os como espaçostempos complexos
carregados de permanência e singularidades.
Percebendo a complexidade, outra forma de olhar o mundo
46
Quando falamos na complexidade desses espaçotempos que são as escolas,
estamos falando de algo para além de um pensamento generalizante e linear, algo que
problematiza e inquieta os modos de ver, sentir e estar no mundo.
A palavra complexidade expressa a ideia de qualidade do que é complexo e no
dicionário
17
encontramos: 1. Que abrange ou encerra muitos elementos ou partes. 2.
Observável sob diferentes aspectos. 3. Confuso, complicado, intricado. 4. Grupo ou
conjunto de circunstâncias que têm qualquer ligação ou nexo entre si. Ao ler estas
definições, podemos perceber que o pensamento complexo é alguma coisa que congrega
elementos que constituem o todo. O todo, então, é uma unidade complexa e o se
reduz à mera soma das partes, é mais do que isto, pois cada parte apresenta suas
especificidades que se interligam e se modificam quando entram em contato umas com
as outras. Assim, modificam-se as partes e o todo.
Morin (1996) afirma que o reconhecimento da complexidade implica em
assumir que o processo social é um círculo produtivo ininterrupto no qual, de algum
modo, os produtos são necessários à produção daquilo que os produz. (p. 182). Isto
porque a complexidade não é só um fenômeno empírico (...) é também um problema
conceitual e lógico que confunde as demarcações e as fronteiras bem nítidas dos
conceitos como “produtor” e produto”, “causa” e “efeito”, “um” e “múltiplo”
(idem, p. 183).
O autor (1985, p. 14, apud PETRAGLIA, 1995) assim define o pensamento
complexo:
É a viagem em busca de um modo de pensamento capaz de respeitar a
multidimensionalidade, a riqueza, o mistério do real; e de saber que as
determinações – cerebral, cultural, social, histórica – que se impõem a todo
o pensamento co-determinam sempre o objecto de conhecimento. É isto que
eu defino como pensamento complexo (p.46).
Morin opõe-se ao pensamento linear, reducionista e disjuntivo, propondo um
pensamento que une todos os aspectos presentes no universo. Considera a incerteza e as
contradições como parte da vida e da condição humana. Aponta a necessidade de
rompermos com a idéia de um saber composto de partes que não se completam e nem se
interligam. Em seu pensamento a idéia de que nenhum saber é completo em si, cada
um tem sentido nas redes que se tecem com os demais em diferentes circunstâncias.
17
Dicionário Aurélio
47
Sugere a transdisciplinaridade como a maneira de se romper os limites entre as
disciplinas que fragmentam o saber e a visão de educadores e alunos.
O paradigma da complexidade deve ser entendido como desafio e luta contra a
mutilação, na medida em que a ambição da complexidade é prestar contas das
articulações despedaçadas pelos cortes entre disciplinas, entre categorias cognitivas e
entre tipos de conhecimento (Morin, 1996, p. 176-177) e não como resposta e nem
completude.
Pensar as escolas em sua complexidade, então, seria pensá-las como totalidades,
repletas de partes que se interligam e que ganham significado na teia que as une e os
modifica. Não como olhar para ela, de dentro dela a partir de um pensamento que
isola e aprisiona, determinando limites, ao que deve ser olhado. Precisamos olhá-las
como espaçostempos complexos, lugar onde a vida circula em abundância, onde
relações de saberes são tecidas independentemente do que é predeterminado pelos
currículos. Espaçotempo de rede, onde tudo acontece sem a previsibilidade que o
modelo pensa existir. Essa forma de pensar as escolas só será possível se incorporarmos
os acontecimentos e saberes cotidianos que circulam por esse espaço.
Assim, vou tecendo a minha teia, enredando as escolas, suas praticantes e as
pesquisas nosdoscom os cotidianos, com a tranqüilidade de quem percebe que o
uma verdade a encontrar e que as verdades nas quais um dia acreditei podem ser, hoje,
substituídas, não por novas verdades definitivas, mas por outros argumentos e pontos de
vista.
Nunca acreditei em verdades únicas. Nem nas minhas, nem nas dos outros.
Acredito que todas as escolas, todas as teorias podem ser úteis em algum
lugar, num determinado momento. Mas descobri que é impossível viver sem
uma apaixonada e absoluta identificação com um ponto de vista. No
entanto, à medida que o tempo passa, e nós mudamos, e o mundo se
modifica, os alvos variam e o ponto de vista se desloca. Num retrospecto de
muitos anos de ensaios publicados e idéias proferidas em vários lugares,
em tantas ocasiões diferentes, uma coisa me impressiona por sua
consistência. Para que um ponto de vista seja útil, temos de assumi-lo
totalmente e defendê-lo até a morte. Mas, ao mesmo tempo, uma voz
interior nos sussurra: "Não o leve muito a sério. Mantenha-o firmemente,
abandone-o sem constrangimento” (BROOK, 1995, p. 15).
48
Deixo aqui, então, um presente, uma história onde a coragem de destecer os
desejos e verdades que não nos servem mais. E caminhando com coragem em direção à
defesa do meu ponto de vista, mas sabendo que posso deslocá-lo ou mesmo abandoná-
lo no percurso da minha vida, passo à segunda parte desta pesquisa.
A moça Tecelã
18
Acordava ainda no escuro, como se ouvisse o sol chegando atrás das beiradas
da noite. E logo sentava-se ao tear.
Linha clara, para começar o dia. Delicado traço cor de luz, que ela ia passando
entre os fios estendidos, enquanto lá fora a claridade da manhã desenhava o horizonte.
Depois lãs mais vivas, quentes lãs iam tecendo hora a hora, em longo tapete que
nunca acabava.
Se era forte demais o sol, e no jardim pendiam as talas, a moça colocava na
lançadeira grossos fios cinzentos de algodão mais felpudo. Em breve, na penumbra
trazida pelas nuvens, escolhia um fio de prata, que em pontos longos rebordava sobre o
tecido. Leve, a chuva vinha cumprimentá-la à janela.
Mas se durante muitos dias o vento e o frio brigavam com as folhas e
espantavam os pássaros, bastava a moça tecer com seus belos fios dourados, para que
o sol voltasse a acalmar a natureza.
Assim, jogando a lançadeira de um lado para o outro e batendo os grandes
pentes do tear para frente e para trás, a moça passava os seus dias. Nada lhe faltava.
Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe
estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a cor de leite que
entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila.
Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que queria fazer. Mas tecendo e
tecendo, ela própria trouxe o tempo em que se sentiu sozinha, e pela primeira vez
pensou como seria bom ter um marido ao seu lado. Não esperou o dia seguinte. Com
capricho de quem tenta uma coisa nunca conhecida, começou a entremear no tapete as
lãs e as cores que lhe dariam companhia. E aos poucos seu desejo foi aparecendo,
chapéu emplumado, rosto barbado, corpo aprumado, sapato engraxado. Estava
justamente acabando de entremear o último fio da ponta dos sapatos, quando bateram
à porta.
Nem precisou abrir. O moço meteu a mão na maçaneta, tirou o chapéu de
pluma, e foi entrando na sua vida.
Aquela noite, deitada contra o ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos que
teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade.
E feliz foi, durante algum tempo. Mas se o homem tinha pensado em filhos, logo
os esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas
coisas todas que ele poderia lhe dar.
- Uma casa melhor é necessária. - disse para a mulher. E parecia justo, agora
que eram dois. Exigiu que escolhesse as mais belas lãs cor de tijolo, fios verdes para os
batentes, e pressa para a casa acontecer.
Mas pronta a casa, já não lhe pareceu suficiente. – Para que ter casa, se
podemos ter palácio? perguntou. Sem querer resposta, imediatamente ordenou que
fosse de pedra com arremates em prata.
18
História de Marina Colasanti que já contei em sala de aula, muitas, muitas e muitas vezes.
49
Dias e dias, semanas e meses trabalhou a moça tecendo tetos e portas, e pátios e
escadas, e salas e poços. A neve caía fora, e ela não tinha tempo para chamar o sol.
A noite chegava, e ela não tinha tempo para arrematar o dia. Tecia e entristecia,
enquanto sem parar batiam os pentes acompanhando o ritmo da lançadeira.
Afinal o palácio ficou pronto. E entre tantos cômodos, o marido escolheu para
ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre.
- É para que ninguém saiba do tapete.- disse. E antes de trancar a porta à
chave, advertiu: - Faltam as estrebarias. E não se esqueça dos cavalos!
Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os
cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo o que fazia. Tecer era tudo o que
queria fazer.
E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua tristeza lhe pareceu maior que
o palácio com todos os seus tesouros. E pela primeira vez pensou como seria bom estar
sozinha de novo.
esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com
novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre,
sentou-se ao tear.
Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao
contrário, e, jogando(a) veloz de um lado para o outro, começou a desfazer o seu
tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu
os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. E novamente se viu na sua
casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou e,
espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela desfazia o desenho
escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o
nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E
foi passando(a) devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na
linha do horizonte.
50
Em busca de si: cotidiano escolar e suas possibilidades na voz das
professoras
As narrativas conferem sentido ao mundo. Tudo o que existe e tudo o que passa
pela experiência sensível, ou tudo o que se deseja, se teme, se crê e se sonha, é expresso
pela linguagem e dotado de um significado. (PESAVENTO; 2006; p.31)
51
As histórias e relatos trazidos por professoras
19
, que eu aprendi com Certeau
(1994) a chamar de praticantes, têm surgido como uma busca de alternativas para a
produção de outros conhecimentos sobre professoras e suas práticas.
E como pensarmos nessas práticas a o ser pela voz de suas praticantes? É
preciso ouvir o que elas têm a dizer. Essa pode ser uma maneira de burlar o que está
instituído, aproximando-nos do que acontece cotidianamente nas muitas salas de aula.
O trabalho com
20
as memórias surge como um potente elemento de compreensão
dos processos de formação e de manifestação das identidades docentes. Assim,
ampliando nossa compreensão sobre quem são essas professoras, podemos contribuir
com o desenvolvimento do campo nos processos de formação docentes e dos estudos
curriculares, no que se refere aos currículos reais, praticados por professoras reais nas
escolas reais para além das normas curriculares formuladas pelas autoridades
educacionais (OLIVEIRA, 2003, p. 80) e tantos outros entendimentos relacionados ao
que acontece nas escolas.
Ao trazer a fala de sujeitos praticantes, seja através da observação de suas
práticas ou da sua voz, percebo que possibilidade de maior interação entre
subjetividades próprias dos sujeitos pesquisados e as dos sujeitos que pesquisam. É isso
o que me interessa como possibilidade de olhar as práticas que acontecem
cotidianamente, uma aproximação, uma espécie de mergulho que me permita perceber
minúcias e detalhes. Percebo com Ginzburg (1989) que é importante olhar o universo
micro, local, investigando os contextos através de pistas, indícios, marcas, sinais que
nem sempre são perceptíveis imediatamente. Indícios que informam o não dito, os
processos ocultos. Pistas que nos permitem escutar o silêncio, percebendo o quanto das
relações não é dito. Sinais a que o investigador deve estar atento para a compreensão de
uma história complexa. Na percepção dos detalhes estão os indícios aos quais devemos
estar atentos.
19
A palavra professora, assim no feminino, será utilizada neste texto primeiro porque as três praticantes
pesquisadas são todas do sexo feminino e segundo porque nos meus quase 25 anos de passagem pelo
Ensino Fundamental não encontrei nenhum professor do sexo masculino dando aulas nas turmas dos anos
iniciais, o universo com o qual dialogo neste momento.
20
As palavras e seus sentidos ganham muita importância numa perspectiva cotidianista, então vejo a
importância de ressaltar que a minha pesquisa não é sobre professoras, mas sim realizada com as
professoras.
52
Mergulhando na vida de um grupo com o intuito de desvendar as redes de
significados produzidos e comunicados nas relações, nossos olhos e ouvidos devem
estar atentos aos silêncios e códigos produzidos.
Entender o que sujeitos praticantes “aprenderam” nas inúmeras experiências que
tiveram ao longo da vida, o que levou cada uma à escolha desta profissão, de que forma
se relacionam com o mundo e com as práticas escolares: relação professora/aluno (a),
papel da professora na escola e na sociedade, entre outros elementos que delas fazem
parte. Perceber o quanto das muitas ações cotidianas não são planejadas, mas são as
marcas daquilo que aprenderam/aprendemos no mundo: gestos, modos de vestir, formas
de falar e as muitas respostas que têm/temos e que nem sabem/sabíamos saber.
Assim, no caso do sujeito da docência, cada um de nós, antes de termos o
direito legal de sermos professores/professoras, que muitas vezes nem
mesmo é adquirido em nosso país, “aprendemos o ofício” nas inúmeras
“aulas” assistidas e compartilhadas durante toda a trajetória que nos levou
a “escolher a profissão”, em múltiplos contextos cotidianos (ALVES,
2000b, p.10).
Como cada uma se faz professora tem a ver com a sua convivência no mundo e
com as redes e saberes tecidos com as diferentes aprendizagens em todos os
espaçostempos que constituem relações. Dessa forma, percebemos por meio de
rememoração, como as identidades são formadas e modificadas em rede. Assim como
Hall (2005), penso na identidade do sujeito pós-moderno formada e transformada
continuamente (p.13). Um espaço sem fronteiras demarcadas, que permite uma
movimentação entre tudo o que somos e que nos constitui.
Então, não devemos pensar que existe a possibilidade de sermos professoras
independentemente da forma como compomos nossas subjetividades. De acordo com
Santos (1995) :
Somos um arquipélago de subjetividades que se combina diferentemente sob
múltiplas circunstâncias pessoais e coletivas. Somos de manhã cedo
privilegiadamente membros de família, durante o dia de trabalho somos
classe, lemos o jornal como indivíduos e assistimos ao jogo de futebol da
equipe nacional como nação. Nunca somos uma subjetividade em exclusivo,
mas atribuímos a cada uma delas, consoante as condições, o privilégio de
organizar a combinação com as demais. À medida que desaparece o
coletivismo grupal, desenvolve-se, cada vez mais, o coletivismo da
subjetividade. (p.107)
53
Em diferentes momentos, algumas ilhas” desse arquipélago parecem maiores,
mas jamais se separam, interagindo sempre. Esses movimentos marcam momentos e
também fases de nossas vidas que são constituídas de diferentes “ilhas”, onde as
múltiplas facetas do eu se encontram marcando o que se pode chamar de nossos tempos
históricos, aqueles que fazem com que uma determinada “ilha” se torne maior em um
dado momento, de acordo com o que está sendo mais importante na escrita de nossa
história naquele instante de nossa vida.
As abordagens que tomam como perspectiva explorar aspectos das redes de
subjetividades de professores e professoras buscam romper com os métodos
convencionais de investigação, contribuindo para a superação da racionalidade técnica
que engessa as práticas cotidianas em modelos empobrecidos.
Ao registrar aqui as histórias de algumas professoras trazendo seus relatos de
vida, busco entender um pouco como se dão as redes de formação docente e as práticas
e alternativas curriculares que circulam dentro das escolas, no entendimento de que
uma possibilidade de captar um pouco da complexidade das redes de
saberesfazeresvalores tecidas nesses espaços.
Por outro lado, sabemos que o registro da memória permite ao sujeito reconstruir
os seus caminhos, reinventando o que viveu no passado, hoje, no presente,
possibilitando um intercâmbio com o que está por vir. A distância do fato vivido
possibilita uma reinvenção das memórias. Podemos dizer que a memória se aproveita
das ocasiões produzindo uma outra memória daquilo que buscamos rememorar. Vista
assim, a memória pode ser entendida como reorganizadora de ações e espaços.
No exercício de rememorar não compromisso com o tempo cronológico, a
linearidade dos fatos não importa. Cada narradora vive um tempo diferente. É um tempo
dentro do tempo. É o tempo da intensidade, da significação do vivido. (JESUS, 2000,
p.22)
A memória é viva e assim como uma tecelã que a cada ponto tece um pedaço do
todo que será o seu tecido, a memória é tecida ponto a ponto, formando uma história.
Nem sempre essa história será idêntica ao real, aliás, nunca será, pois ao recontá-la
somos outros sujeitos, não mais aqueles do momento vivido. No exercício de narrar, as
54
lembranças nos transbordam, pois o pensamento parece uma coisa à toa, mas como é
que a gente voa quando começa a pensar
21
.
As narrativas são palavras e as palavras não são os fatos, a vida narrada não é a
vida (DELORY-MOMBERGER, 2008, p.95). É importante termos sempre em mente
esse fato que apesar de parecer tão simples, é difícil levarmos em conta, em função do
realismo aparente que a linguagem nos apresenta. (id.). As narrativas que registro neste
texto, portanto, são o (re)viver de cada uma das professoras desta pesquisa no momento
da entrevista. Provavelmente suas narrativas serão outras amanhã, não problema,
pois o meu interesse é perceber a complexidade que envolve suas formações e as suas
experiências curriculares cotidianas, estudando a elaboração que elas fazem de suas
subjetividades e das suas vivências. Suas histórias estãoestarão sempre vivas e em
movimento, enquanto forem sendo escritasfaladasouvidas.
Nilda Alves propõe que ao compor sua história o/a professor/professora tem a
necessidade de tecer um passado com o qual possa conviver (2000b, p. 13), dando
assim um sentido à sua busca como profissional.
Trago aqui, então, um relato que muito chamou a minha atenção pela forma
como Maria Lucia
22
expõe sua memória de sala de aula, nesse momento tão próximo de
sua aposentadoria. Ela fala sobre o que lhe vem à mente ao se referir a uma sala de aula.
Ser professora é o que eu sei ser. Isso está me fazendo um mal esse ano!!!
Quando eu falo em me aposentar, penso, “tudo bem, vou dar aula
particular” eu lembro que nunca mais vou ter uma turma e fico
apavorada, tenho medo, penso, como vou ficar sem rir?” Porque quando
eu penso em turma eu não lembro do conteúdo em si eu penso em rir, em
brincadeira, isso me alimenta. Eles acabam até com o meu mau-humor e eu
sou muito mal-humorada. Penso em prova, em outras coisas também, mas...
a alegria vem na frente. Eu posso até estar doente, entro em sala e um
aluno fala uma bobagem que me faz rir e eu nem lembro se estava com a
pressão alt. As, as crianças são extremamente felizes, fazem umas
besteiradas. Parece que eles descobrem quando você está naqueles dias
ruins. Eu não estou lidando bem com isso, essa coisa de aposentar. Como é
que vai ser isso?
A arte de lembrar remete Maria Lucia à recriação da sua memória, redesenhando
para si mesma o universo de suas vivências (OLIVEIRA, 2003, p.79). Assim, ela
articula diferentes espaçostempos com suas lembranças, possibilitando uma narrativa
21
Música de Lupicínio Rodrigues
22
Professora que fez parte da pesquisa e que apresentarei em maiores detalhes mais a frente nesse texto.
55
das suas experiências. Sua memória articula o passado com o presente, criando outros
espaçostempos de vivências. Souza (2006) completa:
Tempo, memória e esquecimento. Uma trilogia para pensar a arte de
lembrar, para estruturar um olhar sobre si, para revelar-se. A memória é
escrita num tempo, um tempo que permite deslocamento sobre as
experiências. Tempo e memória que possibilitam conexões com as
lembranças e os esquecimentos de si, dos lugares, das pessoas, da família,
da escola e das dimensões existenciais do sujeito narrador (p. 102-103).
Segundo Josso (2004), as narrativas evidenciam buscas: a busca da felicidade, a
busca de si e de nós, a busca de conhecimento ou busca do “real” e a busca de sentido
(p. 88). Estas nem sempre conscientes, mas tecidas nos diferentes relatos, de forma
desordenada, combinando-se sob diferentes circunstâncias.
Nessa busca por um lugar a atingir, assim pode ser visto o que chamamos de
felicidade, procuramos deslocamentos para preservarmos os nossos territórios de
felicidade conquistados (p. 90), pois a nossa acumulação de experiências nos mostra
a fragilidade e a inconstância de busca. Na voz de Maria Lucia (o relato feito
anteriormente) se torna evidente como ela o faz em sua profissão. Ela não rememora
momentos tristes ou difíceis, tece uma narrativa somente com lembranças felizes.
Talvez a proximidade da aposentadoria tenha sido fundamental para esse relato, ou não,
talvez Maria Lucia tenha sempre se lembrado de sua sala de aula assim. Não pretendo
engessar seu relato dentro de categorias, apenas constatar ali a presença dessa busca.
A busca de si é também a busca de nós. Narramos nossas histórias junto com os
outros que nos acompanham: família, amigos, colegas de profissão, militantes do
partido, do sindicato. Portanto, é na busca que se de maneira individual e coletiva,
inseparável do olhar que o outro tem a respeito de quem somos ou buscamos ser.
Machado Pais em entrevista à Revista Lusófona de Educação diz:
...a afirmação do eu não significa apenas um conhecimento de si próprio
mas um reconhecimento de si por parte dos outros. São os outros que falam
de mim sem que eu o saiba, que me objectivam encerrando-me numa
imagem que é mais real do que a realidade de quem sou (apud TAVARES,
2006).
Na procura incansável do saber-amar, do saber-pensar, do saber-fazer ou do
saber-ser sociocultural (JOSSO, 2004,p. 97), está a busca de conhecimento ou busca do
56
“real”, que se no cotidiano, em diferentes espaçostempos. Com Oliveira (2001b)
entendi que aprendemos muitas coisas desde que nascemos sem saber de onde essas
aprendizagens vêm. Isso acontece na vida cotidiana de maneira desordenada e a partir
de diversas experiências. Esses aprenderes formam o que sabemos e pensamos sobre
diferentes temas, contribuindo para nossas ações. Essas o as aprendizagens que vão
nos transformar naquilo que somos.
Quando alguma informação chega até nós, precisa entrar em contato, dialogar
com nossas redes de subjetividades, para se tornar um novo conhecimento. Isso é
possível se este for incorporado às nossas redes, trançando-se em nossas experiências,
valores e conhecimentos anteriores.
Ao contrário do que o saber científico hegemônico preconiza, aprendemos de
forma não controlada, esse é um movimento que não pode ser determinado, não
como dizer como, quanto ou quando um sujeito irá aprender. Esse movimento se repete
nas escolas. Por mais que se prescreva, nos currículos, o que deve ser aprendido, todos
os envolvidos no processo de aprenderensinar, aprendem-ensinam de maneira não
linear e de forma diferente uns dos outros, pois cada um possui uma história única e irá
incorporar novos conhecimentos de acordo com suas vivências e as redes que venha a
tecer. Isso é o que permite que todos estejam no mundo como sujeitos e que
ensinemaprendam coletivamente.
Aprendemos, mas também ensinamos, com os contatos que mantemos nos
diferentes espaços em que convivemos e pelo simples fato de estarmos no mundo.
Santos (2000) nos fala sobre a existência de seis espaçostempos estruturais nas
sociedades capitalistas contemporâneas. São eles: o espaço doméstico, o da produção, o
do mercado, o da comunidade, o da cidadania e o mundial. Nesses espaços se o
processos reais de ensinoaprendizagem de forma dinâmica e ininterrupta. Através das
relações que estabelecemos neles e com eles, formamos nossas redes de subjetividades
individuais e coletivas.
Assim, buscamos conhecimento, tecendo aprendizagens no campo do “real”, em
rede e de forma coletiva.
Quanto à busca que se faz por um sentido, opto por dialogar com o que Josso
denomina como segunda possibilidade. Nesse caso, percebo nas narrativas um encontro
de significações e de orientações para as ões dos sujeitos, centrado em aspectos mais
57
internos ou das suas relações com o mundo. Trago, então, um trecho de um relato de
Sandra
23
, onde marcadamente percebemos essa busca de sentido.
Gostaria de destacar a educação como transformadora. Uma educação que
atua na minha trajetória desde o início e que me deu muitos olhares,
valores, concepções e conquistas de vida e para a vida.
Acredito nesta educação, uma educação que constrói, reconstrói e
modifica.
Foi através dela que me senti verdadeiramente humana e é através dela que
podemos interagir, participar, colaborar e trocar aprendizagens essenciais
e necessárias para todos nós, como cidadãos que compartilham o mesmo
papel de existência na humanidade.
Ou ainda,
O meu maior desejo é participar de projetos que prestem serviços para a
comunidade, talvez uma alfabetização para adultos... Algo que seja capaz
de acrescentar e transformar, é o que acredito ser verdadeiramente a
educação. Tenho muitos sonhos.
Percebo que as narrativas das experiências vividas estão marcadas por diferentes
buscas: busca por uma formação, que está enredada na busca pelo conhecimento, que
faz parte da busca pela felicidade, tecida no seu projeto de vida, que por sua vez está
enredado na busca de si que não é solitária, e que por sua vez esenredada no sentido
que busca dar a tudo o que vive.
Poderia começar o parágrafo anterior de novo, de trás para a frente, do meio para
trás, de um lado para o outro, não faria diferença, porque o que importa nessa discussão
é que todos esses movimentos estão imbricados uns nos outros, formando um tecido
complexo que não pode ser dividido em compartimentos estanques com fronteiras
rígidas e imutáveis.
Assim, encontramos trançadas nas vozes das meninas
24
suas buscas. Não
pretendo qualificar cada uma dando a elas títulos ou lugares predeterminados. Apenas
aponto que elas estão aí, presentes, fazendo parte das suasnossas vidas.
23
Professora que fez parte da pesquisa e que apresentarei em maiores detalhes mais a frente nesse texto.
24
A cada contato que tenho com cada uma das professoras desta pesquisa, vejo-as mais e mais como as
meninas que foram e são ainda, cheias de sonhos e expectativas em relação ao que escolheram como
profissão.
58
Por que essas vozes são importantes para as pesquisas em educação?
Assumindo-me “cotidianista”, pesquisadora nosdoscom os cotidianos, procuro
neste espaço dialogar com as praticantes que se encontram nos espaçostempos
escolares, na crença de que é no campo da experiência que se o entrelaçamento
práticateoriaprática e que o diálogo nesse campo, pode trazer um enriquecimento para
as pesquisas na área educacional, fazendo um movimento diferente do que está posto,
de forma a enriquecer, complementar os conhecimentos produzidos, mas não de opor ou
dicotomizar. Assim, procuro trazer para este trabalho a discussão sobre a importância
das histórias de vida e de formação profissional de praticantes para o melhor
entendimento do que efetivamente acontece nas escolas e nas tantas salas de aula das
escolas brasileiras.
Uso elementos da pesquisa (auto)biográfica
25
como perspectiva metodológica,
procurando pensar o cotidiano escolar a partir da experiência de sujeitos envolvidos em
processos de ensinoaprendizagem.
Trago aqui as palavras de três personagens, três praticantes, docentes, autoras de
tantas práticas que fazem acontecer as escolas cotidianamente e que permanecem
silenciadas, esquecidas pela dia e pelas pesquisas quantitativas em educação. Assim
como elas muitas outras professoras anônimas, seus nomes não fazem parte das
“grandes pesquisas”, não há métodos com seus nomes, nem escolas, nem livros editados
sobre o seu saber escolar, mas estão ali, diariamente, reinventando as escolas, os
saberes. É delas que tomo emprestadas as narrativas, tentando entender sua formação e
o olhar que têm sobre suas práticas. Pacheco (2008) entende que a vida dessas
professoras de vida comum que agem nos cotidianos das salas de aula (p.51), não se
constituem como “campo” de interesse para muitos(as) pesquisadores(as) em função do
que ele denomina como dupla discriminação (p.51).
A primeira discriminação se refere ao fato de que uma crença generalizda de
que a essas professoras cabe apenas a “função” de reproduzir as propostas oficiais
formuladas nas “altas” instâncias do poder ou mesmo por educadores(as)
consagrados(as). Em função desse fato, não para essas
professoraspraticantescotidianas um lugar na história.
25
No primeiro momento utilizo a história oral e no segundo, a análise temática.
59
A segunda discriminação tem a ver com os saberes tecidos na prática que
“ocupam”, nos discursos das pesquisas hegemônicas, um lugar de menor importância
em relação à teoria, numa clara alusão a dicotomia teoria-prática, conhecimento senso
comum ou saber-fazer, consagrada pelo pensamento moderno (p.51).
Esta personagem banal, por assim dizer, tido como um indivíduo sem
nenhum prestígio, reputação ou relevante contribuição à educação, não
pode possuir o direito à imortalidade, aqui pensada no sentido metafórico
do reconhecimento, do respeito e dignidade que deveria ser atribuída ao
seu saberfazer – aos seus conhecimentos, à sua produção, pois que se
naturaliza a noção de que a ela cabe a reprodução e de que nada de
original está presente em suas práticas e/ou nos múltiplos registros
dispersos e fragmentados que compõem seu arquivo pessoal. Assim, estão
condenados/as ao silêncio, ao esquecimento de suas histórias de vida e
formação (p.52).
Com Pacheco, indo na contramão desse discurso discriminatório, acredito que
no lugar da memória de cada praticante trazida até esta pesquisa estão explicitadas as
práticas cotidianas, lugar de acontecimento de saberes e de redes trançadas nos
múltiplos espaçostempos das escolas reais. Por isso fui buscar os seus relatos e procuro,
por meio deles uma aproximação daquilo que é tecido de forma complexa e aleatória
sem a preocupação de desvelar verdades únicas e definitivas. Minha pesquisa se
numa expectativa de poder trazer algumas evidências de redes de aprenderensinar que
vêm sendo tecidas nos espaçostempos escolares, procurando compreender os processos
de formação desses sujeitos e os usos cotidianos que fazem da sua convivência com
tudo aquilo que os cerca nas escolas; suas relações com outros sujeitos, com os
currículos e com os objetos escolares.
Trabalhei de duas maneiras na hora de colher os relatos. Num primeiro
momento, pedi que escrevessem seus memoriais pensando a sua formação. Depois de
ler esse material, comecei a me reunir com as meninasprofessoras
26
e ouvir e gravar os
relatos de suas práticas. A partir desse momento, comecei a reunir, também, um acervo
de imagens que elas foram trazendo para os encontros. Esses, sem dúvida, foram os
melhores momentos da elaboração desta pesquisa, não os encontros, mas também os
momentos em que transcrevi cada um deles, pois lembrava-me do que não está fazendo
parte do corpo deste texto: os olhares, as vozes, os trejeitos que acompanham cada
narrativa.
26
Esta é a sensação que ficou em mim.
60
Em função disso, trago para este texto os relatos sem interrupção ou análise de
cada um. Optei por fazer uma discussão onde cada autor que puxo para dentro do texto
possa interagir muito diretamente com a fala de cada uma. Espero com isso, estar
interferindo o menos possível na relação entre cada leitor, Sandra, Carla e Maria Lucia.
Trago, então, neste momento, uma pequena apresentação de cada uma dessas
professoras. Alguns podem perguntar, mas somente agora? Afinal algumas vozes
apareceram nesta pesquisa! Reitero, como cotidianista que sou: a linearidade não
aparece como fator determinante nesta pesquisa.
Inicialmente apresento,
Maria Lucia Brandão, professora formada pelo Instituto de Educação, está em
sala de aula há 34 anos, divididos entre o colégio Baby Garden, no bairro da Tijuca. Rio
de Janeiro e o Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro, situado
no bairro da Lagoa Rodrigo de Freitas, zona sul da cidade do Rio de Janeiro. Maria
Lúcia deu entrada em seu pedido de aposentadoria, tendo, então o ano de 2008, sido o
seu último ano completo na escola, pois deverá estar como professora de turma somente
até o final do primeiro semestre de 2009.
Seguem aqui duas imagens de Maria Lucia no ano de 2008, contando histórias
para as suas turmas.
Maria Lucia contando história
-
1
Maria Lucia contando história
-
2
61
Nesse momento, trago,
Sandra Maria Rocha de Arruda, professora da
Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro e do
Colégio Baby Garden, onde atua desde o ano de 1991,
sua primeira experiência de sala de aula.
Está há quinze anos, dentre os dezoito de sala de
aula, em classes de alfabetização, tanto na escola
municipal onde atua, quanto no Colégio Baby Garden.
E por fim apresento,
Carla Cristina dos Santos De Faria. É professora de uma escola da rede
particular de ensino da cidade do Rio de Janeiro
27
. Terminou seu curso de formação de
professoras– antigo curso Normal– em 1990 no colégio Julia Kubitschek
28
. Atuou em
diferentes turmas, não só de Ensino Fundamental, como também de Educação Infantil.
27
O nome da escola onde trabalha não será posto neste texto a pedido da professora.
28
Ela e Sandra fizeram seus cursos de formação de professores na mesma escola, no mesmo ano, mas em
turmas diferentes, fato que só vim a descobrir por conta do convite de formatura.
Carla no projeto Salvador Dali
Baby Garden
Sandra na “formatura” do 1° ano
62
Formação de professoras – o que estas
meninasprofessoras
têm a
contar?
Ser professora, fazer-se professora, constituir-se professora. São muitas as
formas de falarmos dessa formação. Mas como ela se ? Que instrumentos são
necessários para que alguém possa formar-se professora?
No dicionário
29
encontrei algumas definições para a palavra formar, tais como:
criar, dando forma; dar certa configuração a; fabricar, fazer, tomar o aspecto, a forma
de; concluir o curso de uma faculdade; educar-se; instruir-se. Estas muitas definições
nos ajudam a pensar que o tema formação de professoras deve ser visto de múltiplos
jeitos e lugares, abordando diferentes maneiras de formar-se professora.
Alves (2002, p.18) afirma que a formação de professoras precisa ser
compreendida segundo múltiplos contextos: da formação acadêmica, das propostas
oficiais, das práticas pedagógicas cotidianas, das culturas vividas e das pesquisas em
educação.
O contexto da formação acadêmica, acontece nos diferentes cursos existentes, e
o das propostas oficiais, não deve ser confundido com o contexto da formação
acadêmica, que as propostas oficiais são ‘percebidasde maneiras diferentes em cada
espaçotempo.
Podemos pensar nos usos (Certeau, 1994) que cada um faz daquilo que lhe é
imposto. Assim, podemos entender que cada curso de formação acadêmica se apropria
de forma diferente das chamadas propostas oficiais de formação, ou melhor, cada
professor
30
dos cursos de formação se apropria de formas diferenciadas daquilo que as
propostas oficiais impõem.
O contexto das práticas pedagógicas cotidianas, espaço onde cada profissional
aprende por meio da experiência das suas tantas salas de aula. Nesse caminho, Sandra
nos diz: – me descobri professora sendo professora.
O espaço do coletivo, das articulações e convivência e também do contato com
as tecnologias, Alves denomina de contexto das culturas vividas. Podemos voltar a
29
Dicionário Koogan / Houaiss da Editora Delta.
30
Neste caso, utilizo o masculino como espaço de neutralidade, que o número de profissionais dos
cursos de formação não se reduz apenas a um grupo feminino.
63
Josso e ao que ela denomina como busca de si e de nós, espaço dos encontros, das
trocas. Para esse diálogo trançado aqui, convido Pacheco (2004) que diz:
Conversas entre professores/as sobre suas experiências cotidianas nas
salas de aula, incluindo, sem grandes formalidades, algumas declarações
catárticas, ocorrem nos diferentes espaçostempos da escola. Essas
conversas, que ocorrem entre uma e outra aula, na hora do recreio, da
entrada ou da saída, demonstram que o aprender e o ensinar são partes de
um mesmo processo, que não exclui o professorado; ao contrário, amplia e
ressignifica seus saberes construindo e orientando sua formação, tecida
pelas e nas redes de relações/interações vivenciadas no cotidiano (p. 44).
Cada professora, não importa quanta experiência tenha, traz consigo a sua
história e o seu fazer em sala de aula e, de alguma forma, contribui na formação da
outra. Entendo que a relação práticateoriaprática preside a formação dessa rede de
saberesfazeres, fonte dos relatos, das vivências e buscas de soluções narradas pelas
professoras. Nesse processo todas as redes se enriquecem.
A metáfora da rede implica pensar, desde um ponto de vista epistemológico,
na possibilidade de interação de diversidades, isto é, em buscar as formas
de articulação entre o local e o global, entre o particular e o universal,
entre a formação realizada coletivamente pelos professores de uma mesma
escola e programas mais amplos, inclusive aquela propiciada pelos cursos
de formação. (MANHÃES, 2001, p. 71)
E, por fim, o contexto das pesquisas em educação, que em alguns casos, vêm
buscando uma aproximação do que é produzido nas academias com o fazer pedagógico
cotidiano. Aponto aqui a importância do Programa de Pós-Graduação da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, na área de cotidiano escolar.
31
Para Alves, reconhecer essa multiplicidade de contextos é que poderá nos
permitir compreender as muitas possibilidades encerradas no ato de formar professoras,
entendendo ainda que esses contextos são tecidos conjuntamente, não como
espaçotempos estanques e separados, mas combinando-se em múltiplas circunstâncias,
trançados como uma grande rede.
Passo aqui a um relato de Maria Lucia, no qual podemos perceber claramente a
diversidade dos espaçostempos de formação.
31
Outras universidades vêm também realizando estudos nesse sentido. Minha escolha em apontar a UERJ
se dá pelo fato de ser o meu local de pesquisa neste momento.
64
Para falar porque eu fui fazer normal eu tenho que falar da minha série.
Naquela época tinha admissão e tinha concurso pra Aplicação
32
, Pedro II,
Instituto de Educação, etc. Acontece que a minha família era de lugar,
lugar de Instituto, de Colégio Militar. A gente fazia um tal de curso Grajaú
que era admissão, lá tinha prova toda sexta-feira, imagina, prova toda
sexta-feira pra criança de 10 anos! E de acordo com a sua nota você ficava
nas turmas A, B, pela manhã ou C e D à tarde. Mudavam você de turma ou
até mesmo de horário durante a semana, dependendo da sua nota. Minha
mãe não admitia que a gente saísse da turma A, tinha que ser aquela turma
o ano inteiro.
o diretor do tal curso cismou que eu ia tirar lugar no concurso,
cismou, que estava garantido que eu era o primeiro lugar do concurso
para o Instituto de Educação. Para meu azar, na véspera do concurso eu
estava na porta de casa esperando o Delson (meu tio que me levava para a
escola e para o curso) quando o diretor passou e falou para a minha mãe:
Deixa que eu levo a Brandão! só, ele me chamava pelo
sobrenome.
Aí, no carro, ele começou a me dizer, nunca me esqueço, que era pra eu não
ficar nervosa que era fazer a prova com calma no dia seguinte que eu ia
tirar o primeiro lugar.
Ele dizia:
Olha, eu quero lhe falar que estou aguardando para ver o seu nome no
jornal no resultado do Instituto
Sabe o que aconteceu? No dia seguinte amanheci com cinco tersóis, a
minha vista não abria, eu não abria o olho, o meu organismo arranjou uma
maneira de eu não consegui ler. Meu medo era tanto de fazer a prova e não
conseguir que eu apareci com cinco tersóis, eu não enxergava.
32
As escolas apontadas acima: Colégios de Aplicação (UERJ e UFRJ), Colégio Militar, Pedro II e
Instituto de Educação, todas situadas na cidade do Rio de Janeiro, eram reconhecidas, na época citada por
Maria Lucia, como escolas de excelência. O acesso se dava por meio de provas, semelhantes a mini
vestibulares.
Foto de escola
Maria Lucia
65
Aí, claro, eu não passei, tirei 40, 50, sei lá, eu não consegui ler o texto!!!!.
Em Matemática, que a prova foi depois, tirei 82, lembro até hoje da nota,
mas Português que eu era até mais forte, eu não passei.
Tudo bem, foi aquela decepção familiar, isso percorreu a minha vida toda.
As minhas grandes amigas foram pra escola Paulo de Frontin, meu grupo
de amizade até hoje.
Eu fui também, mas quando eu acabei o Paulo de Frontin
33
eu resolvi por
conta própria fazer prova pro Instituto. A única coisa que eu não queria
ser na vida era professora,eu queria ser arquiteta, mas eu fiquei com essa
história na minha vida, na minha família, eu não passei no Instituto.
Eu comecei a estudar sozinha. Eu queria passar e poder falar:
– Passei, mas não quero ir.
Avisei a minha mãe que tinha feito a inscrição.
Bem, naquela época fazer a prova do Instituto era “tudo”, era dificílimo!!!
Tinha um negócio de colocar santo na roupa, eu fui fazer a prova cheia de
santo dentro da roupa que a minha mãe colocou. Tinha vendedor de santo
na porta. Eu sei que eu fiz a prova nervosa, mas tão sem compromisso...
Resultado, eu que era boa aluna, na primeira e na segunda prova eu fiquei
em segundo lugar. Eu fiquei numa alegria tão grande, eu não esperava
passar lá na frente. Mas na terceira prova que era de História e de
Geografia, que eu sou péssima até hoje, eu fui para o trigésimo lugar.
Alguma coisa assim.
Mas tudo bem, eu passei. Eu nem liguei para isso de passar em trigésimo
lugar, eu queria era passar, fiquei numa alegria tão grande!!! E então,
pensei “devo ser uma boa aluna, vou fazer esse negócio aí”.
que eu não aprendi nada no Curso Normal, eu aprendi a gostar de
literatura e algumas técnicas de arte, tive professoras fracas, sem brilho,
não lembro de nenhuma professora de estágio olhando um planejamento
comigo, nada!!!! Eu lembro que os professores eram fracos. Acho que dei
33
Término do 4º ano ginasial.
A turma de 1970
Maria Lucia
66
azar, foi um tempo confuso no Instituto, muita reforma, muita didática. E
olha que eu gosto de didática, eu gosto de um livro de didática.
Eu só passei por lá, eu digo que o Instituto só serviu para tirar um pouco do
meu hábito de estudo, eu perdi muito desse bito no Instituto. Não sei
também se a forma como passei influenciou, eu não ia ser professora,
né?
Eu ia ser ARQUITETA!! Também tem isso, a importância que eu deixei de
dar, o que eu deixei de ver.
Você sabe do que eu gostava, além das matérias que mencionei? Do
estágio. Eu adorava o estágio!!! Minhas colegas reclamavam, diziam que
achavam aquilo “um saco”, mas eu adorava!!! Ficava lá assistindo àquelas
professoras dando aula e achava maravilhoso!!! Meu normal valeu pelo
estágio. Aí fui fisgada!!!
Convite de formatura do Instituto
de Educação
-
1
Convite de formatura do Instituto
de Educação
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2
67
Fiz meu estágio , no 3º ano, como iria me casar em breve, resolvi trabalhar.
Procurei, então, uma escola. Meio expediente e, além disso, auxiliando a
diretora, que tinha a sua turma. A escola era diferente de tudo que eu
vira.
A diretora era diferente de tudo que eu esperava de uma diretora-
professora. Era jornalista, historiadora... Começava a conversar com as
crianças sobre um assunto e ia construindo elos para o mundo todo. Seu
quadro era desorganizado, mas a organização de um assunto ali exposto
era admirável. Ela era uma pessoa enorme, mas se emocionava como uma
criança. Falava de música, de arte, de alegria, de tristeza, da vida... Era
extremamente lógica, sem ser enfadonha. Descobri, então, que meu Curso
Normal se iniciava ali. Aquilo era instigante.
A Carmem
34
me dava um livro e falava assim:
– Maria Lucia, este é um manual de leitura, vai pra salinha de leitura, você
tem 10 minutos pra ler este pedaço do manual de leitura e dar uma aula.
Parecia que Hitler estava falando comigo.
Vou te falar, eu aprendi de verdade a dar uma aula de leitura de tanto ler
aqueles passos de leitura. Eu lia mil vezes, estudava, ela fazia isso a toda
hora. Eu achava que aquela mulher era uma enciclopédia, ela começava
uma aula de leitura que falava de um rio e acabava na África, o quadro
dela ia se enchendo, tinha desenho, esquema, caminhos, escrita, aquilo era
uma enciclopédia. Eu não podia passar vergonha, então estudava igual a
uma louca.
Bem, naquele momento da história posso afirmar que uma arquiteta ficou
para trás e começou a surgir uma PROFESSORA.
No ano seguinte, ela me deu um presente: confiou-me a sua turma.
Ainda fiz a faculdade de arquitetura até a metade, mais ou menos, mas
acabei abandonando tudo e fazendo o curso de Pedagogia. Não houve jeito.
Trinta e quatro anos de sala de aula... Congressos, seminários, cursos,
aperfeiçoamento, anos de supervisão, leitura, leitura, leitura... achando, às
vezes, que tudo sei, que nada me parece muito novidade, mas outras
vezes achando que nada sei, pois tudo parece precisar ser desvendado.
Maria Lucia vai buscar sua entrada no curso Normal do Instituto de Educação
na sua infância, na sua não entrada no primeiro ano do antigo Curso Ginasial. Tece sua
história nos dizendo o tempo inteiro que esta não era a sua escolha.
Puxando um fio do tecido, os cursos de formação
É interessante observar que, nos dias atuais, muito se discute a formação de
professoras. Essas discussões vão ao encontro do discurso que explicita a idéia de que a
34
Diretora da escola onde Maria Lucia foi estagiar, que era, também professora da turma em que ela
estava estagiando.
68
problemática da educação escolar da contemporaneidade está ligada à formação
dessas profissionais
35
, mais especificamente aos cursos de formação de professoras.
Vamos aqui caminhar tentando olhar esses cursos, discutindo a importância da relação
práticateoriaprática defendida por muitos pesquisadores e pesquisadoras do cotidiano
das escolas. Maria Lucia diz:
Trinta e quatro anos de sala de aula... Congressos, seminários, cursos,
aperfeiçoamento, anos de supervisão, leitura, leitura, leitura... achando, às
vezes, que tudo sei, que nada me parece muito novidade, mas outras
vezes achando que nada sei, pois tudo parece precisar ser desvendado.
A formação docente esteve calcada durante muitos anos na idéia do “dom”,
acreditava-se, ou fazia-se crer, que a professora nascia professora. As noções
relacionadas à vocação e ao sacerdócio estavam impressas na profissão de professora.
Outra idéia historicamente presente é a do magistério como profissão feminina e o
discurso da resignação e da dedicação fazem parte do imaginário que envolve os cursos
de formação de professoras.
36
Percebo que essa idéia, persiste em diferentes discursos até hoje. Carla inicia
assim sua narrativa e repete muito em nossas conversas: Eu não quis ser professora.
Eu sabia que tinha nascido professora, precisava estudar para ganhar a licença
para dar aulas.
A partir da década de 1970, o discurso vai explicitar a idéia da identidade
profissional de professor como construção, afirma Cardoso (2003, p. 30). A partir daí,
então, os cursos de formação vão começar a “preparar” professoras,”ensinando-lhes”
técnicas que organizam suas salas de aula. O centro do processo de ensino deixa de ser
o sujeito e passa a ser a técnica. Reorganiza-se o processo educativo no sentido de
torná-lo objetivo e operacional. As escolas burocratizam-se. Dissemina-se o uso das
máquinas de ensinar, testes de múltipla-escolha, do tele-ensino e múltiplos recursos
35
O entendimento das escolas como espaçostempos complexos, enredados por múltiplas teias que não se
tecem necessariamente ali dentro”, nos leva a perceber que esta problemática está para além dos cursos
de formação e da má formação destas profissionais.
36
Como o é objetivo dessa pesquisa aprofundar o que era estudado nos cursos de formação nessa
época, trago apenas para esse espaço o resultado da minha curiosidade ao sair perguntando para algumas
normalistas daquela época o que elas estudaram em seus cursos. Descobri que o Instituto de Educação do
Rio de Janeiro, por exemplo, se preocupava com a “formação geral”, humanista, numa busca de
implementação das reformas pedagógicas propostas pelo ideário da Escola Nova.
69
audiovisuais. A didática passa a ter um papel central no processo de formação das
professoras.
Para essa tendência, o importante era bem planejar os objetivos – que
deveriam ser comportamentais, em uma visão behaviorista, desenvolvidos
nos três domínios da taxionomia de Bloom [...] O importante era, também,
saber fazer boas provas objetivas, nas quais se pudessem obter bons scores
de fidedignidade ( ALVES, 1998, p. 21).
O ensino da técnica se torna assim, fundamental nos cursos e formação. Maria
Lucia registra,
Eu detestei o Instituto, foram os piores três anos da escola pra mim. Eu não
gostei de nada. Tinha muita didática, que coisa chata. No ano que eu passei
pro Normal foi o ano de uma reforma educacional, a Lei 5692/71, eu tinha
muita didática, acho que umas 18. Tinha didática de Educação Física, de
higiene, didática disso, daquilo. Eu detestava aquilo tudo, eu não tinha nem
mais caderno! Eu fazia anotações das aulas de Literatura e realizava os
trabalhos de Artes Plásticas, A professora dessa disciplina mostrava meus
trabalhos para os outros, para mostrar como era a técnica.
Eu não lembro de ver um material concreto
37
, nunca fui apresentada a um
material concreto. Eu não lembro de ouvir uma história na aula de didática
da literatura infantil. Olha isso, aula de didática da higiene, quer pior do
que isso?
Neste contexto, a professora tem seu espaço de atuação bastante reduzido, a
figura do técnico ganha espaço, pois entende-se que a formulação e o desenvolvimento
dos currículos devem ficar a seu cargo, assim como a supervisão e a administração o
ensino.
A partir dos anos 80 uma ruptura (como estudiosa do cotidiano entendo que
não se dá por decreto, ou imposição dos estudiosos da área) na tendência acadêmica que
está presente na forma de pensar essa formação.
Evidenciam-se concepções que destacam a necessidade de um profissional com
consciência crítica, que poderia interferir e transformar a escola, a educação e a
sociedade. uma busca de superação da hierarquia entre professoras e especialistas,
no sentido da recuperação da autonomia docente. uma tentativa de democratização
das relações de poder da escola e para a construção de novos projetos coletivos.
As teorias críticas do currículo ganham força com o pensamento de Louis
Althusser, seguido por outros autores como Henry Giroux, e Michael Apple. Começa-se
a pesquisar o espaçotempo da escola como algo que espelha a sociedade e as relações
37
Maria Lucia traz em sua fala sua história marcadamente tecnicista.
70
sociais do trabalho, com funções reprodutoras. Entende-se que uma ligação entre
educação e ideologia As críticas a essa escola, entendida como espaço de reprodução,
são apoiadas no pensamento de Marx, Bourdieu e Passeron, que caminham pensando o
conceito de “reprodução”, mas em direções diferentes.
As teorias pós-críticas trazem para o campo da discussão uma teorização que se
baseia em formas textuais e discursivas de análise (SILVA, 1999, p. 145). Discute-se o
currículo multiculturalista, as relações de gênero, o currículo como narrativa étnica e
racial, o fim das metanarrativas: o pós-modernismo, o pó-estruturalismo. Emergem os
estudos culturais que entendem que todo conhecimento, na medida em que se constitui
num sistema de significação, é cultural (id, p. 139). Há, então, uma diminuição das
fronteiras (p. 139) do que é entendido como conhecimento acadêmico, conhecimento
cotidiano e conhecimento da cultura de massa.
Na voz de Corazza (2002),
Nas teorias pós-críticas dos estudos culturais, feministas, ecológicos,
étnicos, pós-colonialistas, pós-marxistas que formulam e expressam os
problemas sociais contemporâneos –, os/as/ educadores/as buscaram uma
fonte poblematizadora para trabalhar, com seus/suas alunos/as, a
insatisfação com o mundo moderno, que todos/as ajudamos a produzir (p.
61).
Mais recentemente, a necessidade de uma abordagem reflexiva em relação à
idéia de formação das professoras é introduzida nos cursos. Surgem as pesquisas que
indicam a necessidade de formar professoras críticas, reflexivas, pesquisadoras de sua
própria prática. O cotidiano escolar ganha espaço nas pesquisas de educação.
O século XXI chega em meio às críticas aos modelos de racionalidade
hegemônicos na contemporaneidade. Cursos de formação buscam caminhos diferentes
dos já percorridos numa tentativa de entender o que Cardoso (2003, p.11) vai denominar
de crise de confiança no conhecimento profissional, aquele conhecimento considerado
necessário para o exercício de uma profissão, portanto socializado nos cursos de
formação e nas práticas cotidianas dos diferentes profissionais.
Apesar dessas muitas críticas encontramos nos cursos de formação atuais, grades
curriculares com disciplinas que são “transmitidas” de maneira descontextualizada, pois
“ensinam-se” as disciplinas relacionadas à teoria, depois as disciplinas relacionadas à
prática e, por último, a aluna realiza seu estágio, geralmente isolado das disciplinas
71
teóricas, pois este é entendido como “momento de treinamento” para a ação de “ser”
professor.
Assim, ao assumir uma sala de aula, as professoras percebem o nível de
distanciamento entre os saberes “adquiridos” na sua formação e a sua prática, pois os
questionamentos surgidos na prática não podem ser compreendidos a partir daquela
teoria estudada de forma isolada atrás. Começa aí um conflito marcado pela ausência
de diálogo entre teoria e prática. Os dilemas se transformam em perplexidade
paralisando o movimento. (ESTEBAN, ZACCUR, 2002, p. 20)
A dicotomia e a hierarquia criadas pela racionalidade moderna entre o saber
acadêmico-científico e o saber docente, têm privilegiado a teoria em detrimento da
prática. Essa maneira de olhar o mundo tem levado ao entendimento de que os que
pensam e os que executam, estando a professora de Educação sica no lugar daqueles
que o produzem conhecimento, apenas executam o que foi pensado por outros. Os
cursos de formação se propõem a formar profissionais de educação de acordo com esse
modelo preestabelecido, numa relação de transmissãorecepção de um conhecimento
produzido anteriormente, deixando de lado a relação práticateoriaprática fundamental
no processo de formação de professoras. É preciso que percebamos essa relação como
um movimento permanente e não como alguma coisa que passe da teoria para a prática.
A prática sinaliza as questões e a teoria pode propor alternativas para o
desenvolvimento de novas práticas. A prática pode, então, ser entendida como ponto de
partida, cada professora pode ser uma pesquisadora do seu próprio cotidiano, com as
especificidades de sua sala de aula.
O que vemos em muitos dos discursos relacionados à formação de professoras é
que esta formação vem sendo pensada apenas em torno de dois contextos: o dos cursos
de formação, ensino médio e/ou universitário e o da atualização permanente dos
profissionais de educação, chamado de formação continuada.
38
38
A Formação Continuada, termo utilizado na declaração de Genebra, em 1996, documento elaborado
por educadores. (Perrenoud, 2000), tem entre outros objetivos, propor novas metodologias e colocar os
profissionais a par das discussões teóricas atuais, com a intenção de contribuir para as mudanças que se
fazem necessárias para a melhoria da ação pedagógica na escola e consequentemente da educação. A
formação continuada deve constituir-se um espaço de produção de novos conhecimentos, de troca de
diferentes saberes, de repensar e refazer a prática do professor, da construção de competências do
educador. Fonte: http://www.anped.org.br/reunioes/24/P0850042428659.doc, versão em HTML, p.1-2).
72
Alguns desses cursos de atualização, que fazem parte do contexto da formação
continuada
39
, se apresentam com o objetivo de reciclar, o que, segundo Oliveira
40
se
faz com lixo e professoras. Uma das alegações feitas para que seja necessário “reciclar”
professoras é a de que isso é preciso para evitar a repetição, o todo dia ela faz tudo
sempre igual
41
, como se o cotidiano pudesse ser pensado apenas pela ótica dos
conteúdos.
Na realidade do dia-a-dia, nunca repetimos as mesmas coisas que fazemos,
do mesmo jeito. Historicamente, aprendemos que relevante no nosso fazer é
o “quê”, que pode ser medido, quantificado, regulamentado e controlado,
e não o “como” que varia de modo mais ou menos anárquico e caótico, não
sendo, portanto, passível de análise quantitativa, nem de controle
normativo, nem mesmo de regulamentações precisas, apesar das muitas
tentativas nesse sentido que foram desenvolvidas ao longo da história
(OLIVEIRA, 2003, p.51).
O que não está inserido no discurso de que as professoras fazem tudo sempre
igual é o fato de que ninguém, mesmo que queira, conseguirá dar a mesma aula duas
vezes, pois no cotidiano, o como, a forma, aquilo que é singular. Como podemos
pensar que há possibilidade de darmos a mesma aula duas vezes?
Propostas de mudança vêm sendo apresentadas pelas secretarias de educação:
novas metodologias e novos currículos são propostos e começam as distribuições de
culpa para justificar os resultados, nem sempre considerados positivos: as professoras
são apontadas como resistentes às mudanças e os teóricos apresentados como aqueles
que não estão dentro das salas de aula e que, por isso, são incapazes de apresentar
propostas que ajudem as professoras a enfrentar suas realidades.
Muito esforço, muitos profissionais envolvidos, muito financiamento, mas...
de resultados nem sempre avaliados de forma positiva por seus
idealizadores, realizadores e participantes. Costuma instalar-se um rculo
vicioso de culpabilização: os idealizadores acusam os realizadores de não
ter captado a filosofia da proposta; ambos acusam os participantes de
serem resistentes às inovações e/ou de não ter base teórica suficiente para
captar o proposto; os participantes reagem afirmando que o conteúdo não
correspondeu às suas expectativas, que as propostas e/ou os conteúdos
39
Há um grupo que denomina de formação em serviço, alegando que os conteúdos desta formação
surgem das próprias "situações" do cotidiano do trabalho docente os quais são levantados, sistematizados
e planejados pelo coletivo da instituição escolar.
40
Fala do III Seminário Internacional “As redes de conhecimento e a tecnologia: professores/professoras:
textos, imagens e sons”, realizado na Universidade do Rio de Janeiro, no ano de 2005.
41
Música de Chico Buarque já citada nesta pesquisa.
73
apresentados e/ou discutidos não lhes servem para enfrentar suas
realidades. (ALVES, AZEVEDO, 2004, p. 9)
Nesse jogo de enfrentamento encontramos outros grupos que assistem e
participam do processo: pais, mães, alunos, alunas, imprensa, que, ao se referirem ao
processo, acusam “a escola” de incompetente.
Inúmeras são as pesquisas no campo da educação que apontam caminhos; novos
métodos, propostas curriculares diferenciadas, mas a maioria por meio de
generalizações, deixando de lado as especificidades. É preciso pensar que as realidades
são muitas; diferentes escolas, diferentes salas de aulas, diferentes fazeres e saberes.
A prática docente não pode ser vista como algo dado e homogêneo. Ela se
realiza em situações específicas nas relações sujeito-sujeito, sujeito-escola. Então como
é possível pensar que os cursos de formação podem fornecer às
moçassprofessoraspraticantesdadocência, conhecimentos capazes de responder e dar
conta de um universo amplo e diverso como os espaçostempos escolares?
As escolas reais com seus alunos, alunas, professores e professoras reais
(OLIVEIRA, 2003, op. cit.), exigem que os teóricos da educação levem para suas
pesquisas o cotidiano das salas de aula. Cada professora, com seu fazer pedagógico, é
fundamental na busca de soluções. Essas singularidades não podem estar de fora das
teses em educação. As vozes, as práticas e as experiências das tantas professoras podem
contribuir para um outro entendimento do que efetivamente acontece no interior das
escolas.
É inegável que as tantas práticas exercidas nas diferentes salas de aula
reescrevem o que é proposto oficialmente. As inovações trazidas pela vivência de cada
professora são novas práticas que configuram o processo ensinoaprendizagem dos
alunos nas diferentes salas de aula.
Assim, trago nesse momento da pesquisa, a voz de Sandra, pensando a sua
formação. Podemos perceber que a história trançada entre práticateoriaprática está
sendo fundamental no que ela chama de sua “identidade de atuação”.
Sou filha mais nova de pais com formação até o primeiro segmento do
Ensino Fundamental que vieram para o Rio de Janeiro em busca de
melhores condições de vida. Minha mãe, de Minas Gerais, verbalizava que
a sua satisfação e desejo era que todas as filhas, já que éramos três,
concluíssem o Ensino Médio. Isso para ela bastava. Meu pai, de
74
Pernambuco, não demonstrava sonhos e
desejos pela nossa formação acadêmica.
Éramos três irmãs ávidas por aprender e
conhecer mais, por isso, aproveitamos
o“incentivo” para concluir a formação até o
Ensino Médio. Todas nós estudamos em escola
pública. Minhas irmãs se formaram também
em universidades públicas. Uma delas na
UERJ (Estatística) e outra na UFRJ (Química).
Eu, por desejo da minha mãe que achava
importante realizar o Ensino dio com um
curso profissionalizante, no caso a formação
de professores, ingressei no curso Normal do
Júlia Kubitschek.
Fui sempre compromissada e empenhada em
realizar o melhor.
Muito tímida, me destacava pelo bom rendimento (destaque de toda a
escola no Curso Normal), tendo inclusive alguns professores (de Química,
de Física) que tentaram me convencer a largar o curso normal e ir para o
CEFET que estava em grande destaque na época.
Apesar da escolha inicial quanto à minha carreira profissional ter partido
da minha mãe, me destaquei no curso e fui convidada pela professora de
Didática Geral para fazer estágio no colégio onde ela era supervisora, um
colégio particular na Tijuca, que logo depois me contratou.
Na verdade, é muito complicado escolher tão cedo uma profissão para a
sua vida. Fui impulsionada pelo desejo da minha mãe em ter, pelo menos,
uma das filhas professora. E assim, me descobri professora sendo
professora.
Nesse novo universo, trabalhando em uma escola que trabalhava com uma
sobrecarga de projetos e o compromisso de realizá-los com eficiência tendo
que adequar o tempo sempre curto com o cumprimento dos conteúdos
programáticos, me dediquei exclusivamente a ela. E toda a sua dinâmica
“exigia” isso. Principalmente para mim, que estava começando.
Formatura
Amigas do Curso Normal
75
Sou professora desde 1991, além dos dois anos de estágio. Meu início foi
difícil, como todo início, a insegurança gera atitudes de constantes ensaios
e erros. Foi assim, como uma aprendizagem, (o que não deixa de ser)
experimentando, levantando hipóteses, que me apropriei de uma identidade
de atuação. Estou mais solta, mais segura, feliz!
Hoje tenho maturidade para perceber meus erros e acertos, defeitos e
qualidades, por isso posso falar com propriedade que me considero boa
professora. Porque consigo respeitar e perceber o caminhar de cada
aprendiz, consigo aflorar o que há de melhor e tento desenvolver suas
competências, transformando-os em protagonistas do processo. Consigo
entendê-los e tenho segurança no trabalho que realizo. O conhecimento te
traz isso. Mas tenho muito, muito o que aprender ainda. Com as crianças,
com os seres humanos de uma forma geral.
tive momentos de desmotivação pela desvalorização profissional e até
desejo de mudar. Mas quando me encontrava vibrando com uma descoberta
de um aluno, me emocionando com textos, palestras, deos sobre
educação, concluía que nasci para ser professora.
Mas mesmo com tudo isso que eu estou te dizendo, sei que a valorização do
meu trabalho nunca é explícita. Percebo que sou valorizada pela forma
como me “tratam”, na maneira como se dirigem a mim. Na escola
particular, ser valorizada é sinônimo de sobrecarga de trabalho,
delegações de maiores tarefas, sendo vista, muitas vezes, como uma
“punição”. Acredito que tomam essa postura na certeza de que o trabalho
vai ser bem realizado, gerando o resultado que desejam. A valorização na
rede pública é explícita, se você é boa é valorizada e pronto. Talvez na
minha concepção, a valorização do trabalho esteja diretamente ligada ao
local de trabalho, à instituição em si.
Tornei-me mãe cedo, fato que adiou mais ainda os planos de ingressar na
universidade.
Nesse período me tornei também professora concursada da rede municipal
de ensino, me casei, me divorciei e casei novamente. Hoje tenho três filhos e
trabalho em uma escola da rede municipal da cidade do Rio de Janeiro e
Convite de formatura
-
Júlia Kubitschek
76
permaneço na mesma escola particular onde iniciei o meu trabalho em
1991.
Em 2006, senti o desejo e a necessidade de ingressar na universidade, por
mim e pelo próprio mercado de trabalho. Percebi que não a experiência
seria necessária para conquistar novos caminhos. Precisava também de
uma formação.
Sendo assim, ingressei no curso de Pedagogia da Universidade Veiga de
Almeida, nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental. Depois, migrei para a
licenciatura com o objetivo de sair com uma formação mais completa,
tendo um acréscimo na sua conclusão de mais seis meses.
Para mim, voltar a estudar abriu um leque de novas possibilidades e
conhecimentos, gerando maior segurança em mergulhar mais e mais em
novas descobertas. Estou totalmente apaixonada pelos estudos.
Hoje percebo mudanças nas relações pedagógicas, o professor precisa
estar sempre atualizado para conseguir acompanhar esse novo aluno que
está em sua sala de aula. Com as mudanças nas relações familiares, a
escola e o professor têm o compromisso de educar em todos os sentidos.
Esse papel está sendo delegado para a escola pela nova sociedade que se
constrói. Por causa disso, acredito que devemos estudar sempre, não só nos
cursos que fazemos, mas estudar cada aluno e cada turma, na tentativa de
buscar soluções que nos ajudem a pensar o que eu estou chamando de nova
sociedade.
Assim, Sandra caminha em sua busca. No meu entendimento, não importa o que
ela encontrará, o que importa é o movimento de busca que tece um bordado inteiro de
possibilidades. Rancière (2004) vem ao meu encontro e de Sandra falando a respeito de
desejo e busca.
Quem busca, sempre encontra. Não encontra necessariamente aquilo que
buscava, menos ainda aquilo que é preciso encontrar. Mas encontra
alguma coisa nova, a relacionar à coisa que conhece. O essencial é essa
contínua vigilância, essa atenção que jamais se relaxa sem que venha a se
instalar a desrazão (...). O mestre é aquele que mantém o que busca em seu
caminho, onde está sozinho a procurar e o faz incessantemente. (p. 57)
As histórias aqui contadas, as vozes aqui narradas, os diálogos aqui tecidos,
fazem parte de uma colcha de patchwork que venho alinhavando ponto por ponto.
Um bordado coletivo, uma colcha de retalhos, uma rede de pescador. Cada
ponto, cada tecido, cada linha é importante nesse alinhavo. Assim, essendo tecido
este texto coletivo, porque um galo sozinho não tece uma manhã, como nos indica João
Cabral de Melo Neto (1986).
77
TECENDO A MANHÃ
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
O saber da experiência: um diálogo com Larrosa
O que venho investigando e propondo ao longo desta pesquisa é podermos
pensar os processos de formação e de práticas que envolvem as professoras aqui
representadas, compreendendo-os como processos complexos e que envolvem múltiplos
espaçostempos.
Os caminhos que cada professora vem narrando até aqui são desenhados por
inúmeras redes, formadas por diferentes tempos, espaços, modos de olhar o mundo,
experiências, que por sua vez vão tecendo os sujeitos, seus sentimentos, valores e idéias.
Neste diálogo que venho alinhavando, através das histórias de vida dos sujeitos
pesquisados, percebo a formação de um tecido que pode nos ajudar a compreender
quem somos nós, professoras dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental; o que fazemos,
o que sabemos, o que sentimos e o que contamos. Essa rede envolve outras redes e esta
tessitura vai revelando os modos de ser, as táticas, as circunstâncias e as ocasiões
(CERTEAU, 1994) utilizadas pelos sujeitos para definir quem são.
Cada uma vai contando suas histórias e através delas busco encontros com
autores e autoras que possam me ajudar a dialogar com cada pedaço de vida narrada.
Assim, ao ler esse trecho do relato de Sandra, busquei ajuda no texto de Larrosa
para compreender o saber que Sandra chama de experiência.
Ela diz:
78
Percebi que não a experiência seria necessária para conquistar novos
caminhos. Precisava também de uma formação. Na última LDB
42
, havia um
artigo que dizia que até 2010, as professoras de primeiro segmento do
Ensino Fundamental, teriam que ter nível superior, cursar uma faculdade
de Pedagogia. Eu comecei a perceber que eu estava ficando para trás, isto
é, eu, com tantos anos de experiência não tinha a mesma valorização que
uma porção de meninas recém-formadas porque elas tinham faculdade e eu,
não. Depois ficou esclarecido que isso não era verdade, mas aí, eu já estava
na faculdade e já estava adorando.
Ou seja, tendo um curso de formação ela parece mais competente porque
conhece mais teorias sobre educação. Há, portanto, um imaginário de que as
aprendizagens por meio das experiências são menoreseinferiores às formais.
Volto, então, ao significado da expressão, práticateoriaprática, que considero
fundamental para o entendimento do que são esses saberes. É importante declarar aqui
que ao falar sobre saberes da prática, estou me referindo a um saber tecido a partir dela
e configurado no enredamento entre fazerpensar, pois compreendo que não prática
desvinculada de teoria, não fazer sem pensar. Por isso, reafirmo que essa discussão
emerge de idéias que se tecem e não que se opõem.
Nessa perspectiva, as professoras são produtoras de saberes específicos; saberes
que dizem respeito ao ofício de ser professora. São sujeitos do conhecimento, dos
saberes que envolvem a experiência advinda da sua própria ação.
Para além dessa discussão, que se passa no campo da prática e da sua relação
com a teoria, Larrosa nos aponta um outro lugar para nos ajudar a pensar a educação,
ele toma como eixo para a sua análise a dialética entre as palavras
“experiência/sentido”, a partir dos seus significados em diferentes contextos (SOUZA,
2006, p.93).
No texto intitulado Notas sobre a experiência e o saber de experiência (2002),
Larrosa caminha refletindo a respeito da diferença entre o saber da informação e o saber
da experiência. Para isso, aponta questões e as esmiúça uma a uma. É um diálogo com
essas informações que tranço agora. Não na ordem em que ele as apresenta. Dou-me ao
direito de começar e caminhar pelos espaços na ordem em que eles surgem da minha
rede de conhecimentos.
42
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
79
Vivemos numa sociedade da informação, conectados ao mundo em tempo
integral, mergulhados nas informações. Informações que deixam pouco espaço para que
possamos experienciar
43
vivências. Como sujeitos da informação, sabemos muitas
coisas, buscamos muita informação, mas vivemos poucas experiências. Dessa forma,
deixamos que poucas coisas nos aconteçam, nos toquem. As informações apenas
passam por nossa vida.
Se não percebermos que algo entre a informação e a experiência, estaremos
compactuando com o discurso hegemônico que nos impõe o conhecimento apenas como
informação, determinando que aprender nada mais é do que processar informação.
Nessa perspectiva, a formação de professoras deve dar conta de preparar para a
docência todas as professoraspraticantes somente com um aporte teórico, o aporte da
informação, que vem seguido da necessidade de opinião. Nesse processo, é importante
opinar
44
sobre aquilo que se conhece, a informação recebida. Processo que se torna
perverso, na medida em que somos forçados a opinar. No caso da educação, a opinião
ocuparia, então, o lugar das provas, das medidas, das avaliações.
Pensando mais especificamente a formação de professoras, imagino que a lógica
de funcionamento seja essa: a teoria (informação) é transmitida, os processos de
avaliação (opinião) são postos em prática, os estágios (informação) e seus relatórios
(opinião) são cumpridos e a professora, então, está apta a dar aulas em qualquer sala de
aula de qualquer localidade, lidando com qualquer aluno(a), mesmo que o(a) aluno(a)
apresentado pela informação seja um(a) aluno(a) idealizado(a).
Isso tudo envolvido pela velocidade dos acontecimentos, algo que também
captura e leva embora a nossa possibilidade de experiência. A rapidez com que tudo se
passa, reduzindo nossos estímulos a instantes fugazes, instantâneos e efêmeros. Nesse
mundo da modernidade somos obsessivos pelas novidades, impedindo inclusive nossa
memória, pois substituímos tudo com muita rapidez. Nesse sentido, somos
consumidores vorazes de informações, notícias, novidades. Somos curiosos e
eternamente insatisfeitos.
43
Utilizo essa palavra, numa tentativa de aproximá-la da discussão de Larrosa, diferenciando-a da palavra
experimentar.
44
Opinião se opondo à idéia de saber. Para o autor o saber é algo que advém da experiência, do ato de
experienciar, portanto opina-se quando se tem a informação, mas não se experiencia o processo.
80
Vemos tudo isso refletido em nossa vida acadêmica. Temos pressa e os aparatos
que envolvem os tecidos educacionais parecem moldados para tornar impossível a
experiência, uma quantidade enorme de informações e de opiniões que precisam ser
dadas. Currículos gigantes, avaliações, provas, cobranças, avaliações nacionais.
Cada vez estamos mais tempo na escola (e a Universidade e os cursos de
formação do professorado são parte da escola) mas cada vez temos menos
tempo. Esse sujeito da formação permanente e acelerada, da constante
atualização, da reciclagem sem fim, é um sujeito que usa o tempo como um
valor ou como uma mercadoria, um sujeito que não pode perder tempo, que
tem sempre que aproveitar o tempo, que não pode protelar qualquer coisa,
que tem que seguir o passo veloz do que se passa, que não pode ficar para
trás, por isso mesmo, por essa obsessão por seguir o curso acelerado do
tempo, este sujeito não tem tempo. E na escola o currículo se organiza
em pacotes cada vez mais numerosos e cada vez mais curtos. Com isso,
também em educação estamos sempre acelerados e nada nos acontece
(LARROSA, 2002 p. 23).
A experiência exige o encontro, o que Josso vai chamar de busca de si e de nós,
algo que pode acontecer se nos permitirmos a troca de experiências. a necessidade
de nos encontrarmos com o outro, no outro, através do olhar do outro. O saber da
experiência se quando abrimos espaço para que algo nos aconteça e nos toque
(Larrosa,id, p. 24).
O saber da experiência está nas salas de aula?
De acordo com o caminhar de Larrosa, não! Percebo que ele defende a questão
da experiência num sentido mais amplo da vida do sujeito, talvez em oposição à idéia de
que o trabalho é o formador privilegiado das identidades. No entanto, para o que
interessa nesta dissertação, que é discutir como a professora se forma vivenciando,
percebo na formulação de Larrosa uma grande contribuição. Sou desobediente e
entendo que a professora aprende quando se deixa atravessar pela sua prática. Por isso
teimarei em não concordar com ele. Vou ainda mais longe, num lugar onde
provavelmente minhas mãos não alcançam quando uso as suas próprias palavras para
trançar um diálogo que caminha num outro sentido.
Apropriando-me de uma frase da professora Nilda Alves, digo: Defendo e não
estou sozinha que o saber da experiência, na profissão de professora, se tece no campo
do trabalho. Vou de encontro ao pessoal que Larrosa define como aparentemente
progressista (id. p.23), no campo educacional que gostaria de ver o espaço acadêmico
81
homologando formas de crédito para a experiência e para o saber da experiência tecido
no trabalho. Vou de encontro ao que ele põe como impossibilidade, que seria encontrar
o saber da experiência no campo do trabalho, para dizer que exatamente por encontrar
muito do que ele diz nas salas de aula por onde andoandeiandarei é que acredito que
está o saber da experiência.
A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque,
requer um gesto de interrupção, um gesto que é quase impossível nos
tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar
para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, e escutar mais
devagar; parar para sentir, sentir mais devagar, demorar-se nos detalhes,
suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o
automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza, abrir os olhos e os
ouvidos, falar sobre o que nos acontece, aprender a lentidão, escutar aos
outros, cultivar a arte do encontro, calar muito, ter paciência e dar-se
tempo e espaço (id, p.24).
Em seguida trago Carla, professora que acredita no dom de ser professora. Nesse
espaço, ela dialoga com a sua experiência de criança para nos contar sobre a sua
profissão. Carrega na sua experiência possibilidades de tecer sensações com seus
alunos(as), permitindo, ou melhor dizendo, criando possibilidades para que eles vejam,
cheirem, toquem, sintam...
Ela nos conta...
Eu não quis ser professora. Eu sabia que tinha nascido professora,
precisava estudar para ganhar a licença para dar aulas e quando comecei
a trabalhar, comecei a trazer à tona algumas lembranças de quando fui
aluna. Lembro-me do meu primeiro colégio, era um colégio montessoriano,
tudo ficou inesquecível: os joguinhos de madeira, as esteiras, as almofadas,
os cheiros. Toda vez que trabalho com argila, lembro-me de um tanque
cheio onde eu entrava descalça e pegava a quantidade que queria daquela
massa, depois era só usar a imaginação e tudo era valorizado.
Fui aprendendo nessa escola o valor do que eu era capaz de fazer, até que
com quatro anos e meio me alfabetizei. Minha família achou melhor eu
mudar de escola e começar o Ensino Fundamental numa escola tradicional.
Entrei para a Classe de Alfabetização e desde então, começou um novo
momento para mim. Lembro-me de episódios em que eu tinha que “ficar
quieta” em sala, enquanto o que eu mais queria mesmo era estar brincando
com as crianças da minha idade. Fui crescendo e sempre correndo “atrás”
das outras crianças.
Perdi o interesse pelo estudo e o que eu fazia era decorar para passar de
ano, mudei de escola mais uma vez, estava indo para a terceira série. Fui
para uma escola católica, minha família achava que ia dar jeito. Continuei
correndo atrás de todos, decorando matéria, não entendendo o que
realmente estava fazendo ali, mas enfim, sabia que tinha que estudar. Até
82
que na sétima série, fiquei reprovada em Matemática, não entendia o
porquê era necessário decorar tantas fórmulas e fórmulas. Foi a melhor
coisa que aconteceu no meu Ensino Fundamental, não precisava decorar
tanta coisa, acho que tinha amadurecido um pouco e entendia o que os
meus colegas falavam, entendia as
brincadeiras e até fiquei mais sociável.
Então, voltei a ter gosto pelo “estudo”,
estudava com prazer, estudava para
aprender e esta mesma escola se
tornava agradável para mim. Continuei
estudando até completar o Ensino
Médio.
Quando cheguei ao terceiro ano, resolvi
ser professora. Fui estudar numa Escola
de Formação de Professores, antigo
“Curso Normal”.
Fiz estágios em Escolas Municipais,
brincava com aquelas crianças como se
fosse uma delas! Ia todo dia na escola,
mesmo sem ser necessário para o meu
estágio, me sentia bem...Ajudava a
professora a rodar as folhas no
mimeógrafo, achava que a minha
presença naquele momento era imprescindível, pois aquelas crianças
precisavam das folhas mimeografadas, dos enfeites que eu fazia nos
cadernos, das balas que levava, de um simples gesto de carinho. Era assim
que eu me sentia, como uma professora realizada!
Consegui me formar e depois de tanto estágio, cismei que queria trabalhar
com crianças especiais e então resolvi fazer Faculdade em Psicologia.
Paralelo à faculdade, estava trabalhando como professora na Educação
Infantil, da rede particular de ensino. Isso
aconteceu em 1992. E era incrível ver na
prática algumas teorias. Fui me
encantando cada vez mais por essa
profissão, a de professora. Até que um dia
me decepcionei com uma escola que se
dizia ser “Escola Natural”.
Abandonei o colégio e fui ser psicóloga,
trabalhei em recrutamento e seleção de
diversos profissionais. Todo dia a mesma
rotina, as mesmas dinâmicas, as mesmas
avaliações, tudo a mesma coisa... Decidi
voltar a ser professora, até que tive sorte!
Entrei numa escola muito diferente de tudo
que tinha “vivido” até aquele momento.
Uma escola com profissionais alegres,
Dia da Formatura
Curso Normal
Formatura de Psicologia
83
dedicados, uma escola que realmente levava a educação a sério. Trabalhei
lá até o início de 2008 e aprendi muito, mas precisei sair. Hoje, trabalho em
uma escola muito tradicional, preciso do salário que me pagam,
Trabalhei em muitas outras escolas também, precisava acrescentar o meu
orçamento. Todas serviram para criar o meu “perfil” como professora.
Sabia o que eu queria fazer e acreditava e em quê eu não acreditava.
Todas as escolas que eu procurava se diziam “construtivistas”, ou melhor,
diziam isto porque estava na moda, acho eu. Em todas elas eu ficava
chateada, indignada, pois se eram realmente construtivistas, por que me
colocavam para fazer sempre a mesma coisa? Por que eu tinha que usar
aquelas folhas de exercícios preparadas por alguém que nem conhecia a
minha turma? Por que eu tinha que ser como a professora tal? Por que
minha turma tinha que ter o mesmo aprendizado da outra? Tive grandes
problemas, pois continuava fazendo o que eu acreditava.
Uma vez li em algum lugar algo que sempre levo comigo, fala mais ou
menos assim; "A educação é uma coisa admirável. Mas é sempre bom
lembrar, de tempos em tempos, que nada daquilo que realmente vale a pena
saber pode ser ensinado" de Oscar Wilde.
Então, depois de dezessete anos de formada, procuro ensinar o que
realmente vale a pena, continuo brincando com os alunos, caprichando na
forma de passar exercícios, na forma de escrever no quadro, na maneira
carinhosa de falar com as crianças, acho que todo conteúdo programático
deve ser lançado com muito estímulo, curiosidade, deve levar a criança a
pensar, só assim, teremos o verdadeiro aprendizado.
Banho de alegria – um passeio inesquecível
84
Sou uma professora que procura ver o potencial de cada um, respeito e
valorizo a individualidade e o trabalho em grupo. Gosto da possibilidade de
mudar algo previamente planejado, gosto de desafios e acho que é isso que
nos faz aprender e aprender cada vez mais. Depois de tantos desafios,
tantos trabalhos, tantas vivências, continuo acreditando na verdadeira
função do professor, a de fazer crianças cada vez mais felizes e estimuladas
para a vida. É realmente o que acredito, em crianças FELIZES!
Carla relata que sua formação está vinculada ao que viveu em sua escolaridade,
sua experiência de criança teceu a professora que está sendo hoje. Suas sensações de
criançaaluna parecem ser determinantes para que possa proporcionar saberes
Com a turma na Pista Claudio Coutinho – Praia Vermelha
85
relacionados à experiência, ou, pelo menos, uma tentativa de fazer da escola um lugar
da experiência.
Traz ainda outros indícios, ela fala sobre aprender coisas que valem a pena. Que
coisas serão essas? Serão estes saberes da experiência? Será que esses outros saberes
estão presentes na prática de Carla? Serão esses saberes que ela diz valerem à pena?
Percebo também em sua narrativa um dado referente às escolas que somente os
sujeitos envolvidos nela podem perceber Nesses espaçostempos circulam afetos,
emoções e exacerbação de sentidos que se tornam parte dos sujeitos que ali circulam.
Esses sentimentos, cheiros característicos e lembranças, vão estar guardados em suas
memórias de uma forma significativa, muito mais do que os conteúdos
formais, porque dizem respeito à solidariedade, cumplicidade, mudanças de vida, de
coisas positivas, ou não. Essas marcas
da escola muito dificilmente serão
removidas. Carla evidencia essa
produção de saber que não está
presente nos currículos nem nas
avaliações ao contar das suas
inesquecíveis experiências, como tudo
ficou inesquecível: os joguinhos de
madeira, as esteiras, as almofadas, os
cheiros....
Indo em busca de caminhos que me ajudem a tecer esse diálogo, encontro Souza
(2006, p. 93) que diz, o saber da experiência articula-se, numa relação dialética, entre
o conhecimento e a vida humana. É um saber singular, subjetivo, pessoal, finito e
particular ao indivíduo ou ao coletivo em seus acontecimentos.
Entendo, então, que o saber da experiência está no caminho, no movimento, na
busca de si e no diálogo que possibilitamos quando partimos para esta busca. Carla, no
seu cuidado com o outro, abrindo possibilidades de diálogo, de escuta, de respeito ao
silêncio, nos mostra ser um sujeito da experiência. Assim como provavelmente é muitas
outras coisas também, pois o cotidiano nos mostra todos os dias: não somos uma
subjetividade em particular, somos muitas. Com Santos (1995) vimos o arquipélago de
Bilhetinho de amor
86
subjetividades que somos e que se combina diferentemente sob diferentes circunstâncias
pessoaise coletivas.
O sujeito da experiência e a sua relação com o outro: um diálogo com
Skliar
Larrosa (2002) define o sujeito da experiência em função da sua passividade,
não como oposição à atividade, mas uma passividade feita de paixão, de padecimento,
de paciência, de atenção, como uma receptividade primeira, como uma disponibilidade
fundamental, como uma abertura essencial (p. 24)
Em nossos cursos de formação temos a informação de que devemos ser este
sujeito da passividade. Devemos olhar, ouvir, ter atenção, paciência. Aprender com o
outro e experimentar “sobre” ele e não “com” ele. Temos a informação, a teoria, mas
não temos a experiência do outro, com o outro. Somente o outro, numa relação de
alteridade, pode nos ajudar a sermos sujeitos da experiência. Vou chamar de
praticantesdocentesdaexperiência, àquelas que diariamente, em suas salas de aula,
exercitam a sua paixão, a sua paciência, a sua receptividade, a sua disponibilidade e a
sua atenção.
E como essas praticantesdocentesdaexperiência lidam com o outro que é seu
aluno ou sua aluna?
Tentando entender quem é esse outro e porque temos necessidade de nomeá-lo
tranço um diálogo com Carlos Skliar.
Podemos perceber que o discurso da diversidade no pensamento moderno tem-se
apoiado nas relações dicotômicas, nas concepções de alteridade que permitiram
estabelecer as “razões” para a dominação e negação do outro.
Nessa categorização, esbarramos na produção de um “outro”, desqualificado. E
isso é feito de forma cruel, pois não uma desqualificação visível e explícita, mas
algo que está implícito nas relações e hierarquizações. Nesse embate, não
possibilidade de diálogo, apenas a afirmação sutil de que na escola não espaço para
as diferenças. Nesse sentido, reforçamos a idéia de que o outro precisa ser enquadrado.
Entra em cena a nossa necessidade de orientação dentro daquilo que conhecemos,
87
atribuindo ao desconhecido uma série de culpas que visam a justificar o “fracasso” do
processo. Precisamos do outro para poder justificar o que somos e o que não somos. Em
síntese:
O outro diferente funciona como depositário de todos os males, como o
portador das falhas sociais. Este tipo de pensamento supõe que a pobreza é
do pobre; a violência, do violento; o problema de aprendizagem, do aluno;
a deficiência, do deficiente; a exclusão, do excluído ((DUSCHATZKY E
SKLIAR, 2001, p. 119).
Nesse embate dicotômico, pensamos numa imagem do outro que é portador de
uma marca identitária particular (ele é o violento, o pobre, o feio) e oposta a tudo o que
somos. É um outro diferente e oposto. Essas imagens são concebidas o tempo inteiro,
num processo de criação de novos outros que justifiquem o que somos.
Skliar (2005) traz para a discussão o que ele entende como diferença e obsessão
pelos diferentes, acusando as escolas de se preocuparem apenas com esta obsessão,
deixando de lado a discussão que deveria estar, de fato, nos currículos escolares, a
diferença.
Ele diz:
Não temo em afirmar que a Educação em geral não se preocupa com as
diferenças, senão com aquilo que poderíamos denominar como certa
obsessão pelos “diferentes”, pelos “estranhos”, ou talvez em um outro
sentido, pelos “anormais”
(...)
Os “diferentes” respondem a uma construção, uma invenção, quer dizer,
são um reflexo de um longo processo que poderíamos chamar de
“diferencialismo”, isto é, uma atitude sem dúvida de tipo racista de
categorização, separação e de diminuição de alguns traços, de algumas
marcas, de algumas identidades, de alguns sujeitos, em relação ao vasto e
por demais caótico conjunto de diferenças humanas.
As diferenças não podem ser apresentadas nem descritas em termos do
melhor e/ou pior, bem/mal, superior e/ou inferior, positivas e/ou negativas,
maioria e/ou minoria etc. São, simplesmente porém não
simplificadamente – diferenças (p. 52).
Nessa obsessão pelo outro, ficamos obstinados em apontar nossos dedos para
aqueles que denominamos como os diferentes, mostrando porque são taxados como
diferentes. Assim, se tornam oposição àquilo que chamamos de “normal”, e seus
espaços são delimitados a priori. Ao nos posicionarmos desta forma, esperamos que o
outro não perturbe nossas identidades. O outro torna-se assim a “coisa” a tolerar.
88
Como pensarmos, então, esse outro que é nosso aluno? Isto somente será
possível se o olharmos entendendo suas práticas e seus modos de estar no mundo como
legítimos.
Nem sempre fazemos isso. Vemos, hoje, uma enorme quantidade de crianças na
escola, mas vemos também a exclusão daquele que agora o esmais do lado de fora,
mas dentro do processo. Maria Lucia conta uma história,
Beto
45
freqüenta esta escola desde os seus cinco anos. Está fazendo o 5º ano
pela segunda vez. Seus movimentos e atitudes demonstram muita raiva pelo
que a escola representa em sua vida. Acho que aqui o seu saber de menino
que sabe soltar pipa, andar de bicicleta, de moto... não tem espaço. Os
saberes da escola não são para ele. Assim ele diz.
Gosta de ler, mas só consegue assumir que gosta quando é pego desarmado
de seu discurso. Nesse momento é capaz de rir e de mostrar que é criança.
Ele diz que a escola não é para ele, ou melhor, que aquela escola não é
para ele. Este é o seu modo de dizer as coisas. Percebo que não sei lidar
com ele e que não consigo puxá-lo para dentro. Luto comigo mesma, penso
no meu próprio discurso. Minha prática e minha teoria não dão conta dele
nesse momento.
Conselho de classe, coordenador, SOE, professoras, somos sete, ninguém se
sente capaz. Não sei se aquela ou qualquer escola nesses moldes é para ele.
Ela desabafa,
Eu acabei o ano mal porque eu não consegui levar o Beto, era o meu último
ano inteiro de trabalho. Ele rasgou o caderno de Matemática. Picar o
caderno significou tirar aquilo da vida dele, ele não queria aquilo na vida
dele. Eu tenho a sensação de que ele ficou com muita raiva de mim. Eu
tinha uma sensação de perda. Isso nunca havia acontecido comigo, eu
geralmente conquisto os meus alunos, sei respeitar cada um, olhar para
eles enxergando que são pessoas diferentes. Eu não peço que ninguém seja
igual a ninguém. Não sei o que aconteceu, mas acho que foi a maior
derrota da minha vida. Eu não sei que expectativa ele tinha, é como se eu
tivesse decepcionado ele, foi muito ruim.
Coisa horrível de dizer, mas aquela escola não era para ele. O CAp não era
para ele, como não é para um monte de crianças, mas ao mesmo tempo as
crianças capianas têm um quê que é específico do CAp, o vocabulário, a
leitura, o entendimento das coisas do mundo. Ser do CAp toda a vida é
muito determinante, tem a Oficina da Palavra, o trabalho da biblioteca.
Parece uma coisa de cumplicidade entre eles e a biblioteca, como se aquilo
não fosse da nossa alçada, uma cumplicidade assim bonita, é uma ida e
vinda de livros o dia inteiro.
As crianças falam assim:
– Merilu
46
, vou na biblioteca devolver um livro, tá?
É deles e da biblioteca, isso faz diferença no Português deles.
45
Nome fictício.
46
Forma com a professora Maria Lucia é reconhecida no Colégio de Aplicação.
89
Vemos muitos Betos e muitas Marias Lucias pelas escolas. Eles querendo sair,
sentem que ali não é seu espaço, elas lutando para que eles fiquem, mas percebendo que
suas vivências, os seus saberes e aquela escola não dão conta de lidar com esses alunos.
O conflito de Maria Lucia é claramente exposto quando diz que esta escola que o é
para todos, tem qualidades, atende a muitas crianças e, por isso, é uma escola em que
ela acredita, mas também assume que sua experiência não é capaz de dar conta daquele
menino, naquele momento.
Exclusão de dentro, Skliar (2005) chama esse processo de inclusão excludente.
Tenho a sensação de que para os Betos, é dito diariamente que as escolas são para
alguns. Como se os saberes importantes” do mundo devessem ser resguardados e que
os deles o têm valor naquele espaço. Tenho a sensação de que o lugar dessas pessoas
no mundo está reservado e eles não precisam freqüentar uma escola, ou pelo menos,
não precisam aprender o que esta se propõe a “ensinar”.
Apontadas como lugares da mesmidade e da linearidade pelos críticos, as
escolas têm por função preservar a ordem e transmitir os saberes e valores hegemônicos.
O saber das escolas é um saber que não permite que o mesmo e o outro estejam no
mesmo espaço, é hierárquico. O outro aparece nos currículos, nas datas
comemorativas, no folclore ou em outro lugar de inferioridade. Esse outro, então, não
tem lugar nas escolas? Que olhar está nos faltando para percebê-lo? Seria um olhar de
criança? Olhar de quem tudo pela primeira vez? Olhar de aprender com tudo e com
todos que se cruzam nesse espaço? Olhar do complexo, da perplexidade diante do que
se vê e do que se ouve? Olhar de experiência?
Pensando as escolas, Skliar (2003, p.200) propõe uma pedagogia da
perplexidade, uma pedagogia onde a ordem seja desordenada, onde os saberes possam
começar do zero, ali, na discussão, onde os fins não justifiquem os meios, aliás, onde os
meios é que sejam o lugar da aprendizagem, onde haja interlocução, diálogo, onde as
diferenças sejam apenas diferenças e não obsessão, onde o outro não precise ser
oposição, seja somente outro, uma pedagogia que leve a um futuro incerto.
Nesta (re)significação da pedagogia, percebo a emancipação social
47
como
possível, o através de leis e decretos, mas sim através das práticas que muitas
professoras incorporam ao seu cotidiano. Práticas que possibilitam o diálogo e que,
47
A emancipação a que me refiro é aquela pensada pela perspectiva de Boaventura de Souza Santos.
90
mesmo não institucionalizadas, fazem parte de diferentes salas de aula e de diferentes
escolas. Quantas professoras criam e proporcionam o encontro entre saberes em seus
espaços de trabalho? Buscando desenvolver uma ação educativa mais efetiva,
professoras reinventam cotidianamente os currículos escolares legitimando modos
contra-hegemônicos de estar no mundo e de produção de práticas educativas. Dessa
forma, inserem na estrutura socialcurricular pluralidade, modificando relações entre o
poder instituído e a vida cotidiana.
Pensar as escolas a partir do outro e de suas práticas, levando em conta a
diversidadede de culturas presentes nas salas de aula e “permitindo”, “proporcionando”
um diálogo mais horizontal entre elas pode ser um caminho possível para pensarmos um
projeto de emancipação social.
Carla completa:
Não acredito que haja aluno difícil. O que há, somos nós professores (me
incluo também) que não conseguimos trabalhar com as crianças que não
respeitam as regras de jeito nenhum. Na verdade somos nós que queremos
que ele se adapte. Afinal quem é difícil? Nós adultos ou ele criança?
Trago aqui um trecho do livro “A Casa da Madrinha” de Lygia Bojunga Nunes
(1983, p.28). Uma metáfora da relação da escola
48
com o outro diferente que ali circula.
A sala do Curso Filtro era cor-de-rosa e tinha cheiro de pasta de dente bom
mesmo da gente ficar ali.
Pegaram o Pavão e escovaram bastante as penas dele. Pra puxar o brilho. E
pra mostrar como tratavam ele bem. O Pavão adorou.
Na mesa, no chão, nas paredes, em toda parte tinha filtro. Grande, pequeno, de
pé, de parede, de prateleira, de metal, de barro, de acrílico, tinha filtro bem antigo e
tinha filtro bem pra frente. O Pavão ainda gostou mais do Curso: achou que tanto filtro
só podia ser uma coleção pra brincar. Começou a examinar todos eles. Perguntaram:
–Qual que você quer pra você?
O Pavão se espantou: puxa vida, tudo tão bom e ainda por cima davam filtro?
Desconfiou.
–Mas pra quê que vocês querem me dar um filtro?
–Pra filtrar teu pensamento: pro teu pensamento ficar bem limpinho.
[...]
Não deixaram ele falar mais nada. Seguraram ele com força, abriram a cabeça
dele, botaram o filtro bem na entrada do pensamento, puxaram pra e pra
ajeitando bem pra não entrar nenhuma idéia na cabeça do Pavão sem antes passar
pelo filtro, e deixaram a torneira um tiquinho aberta. Coisa à-toa, não dava pra
quase nada.
48
Neste caso entendo que essa escola é aquela citada no primeiro capítulo, que tem como objetivo
guardartransmitir os princípios e conhecimentos produzidos no que identificamos como mundo
moderno.
91
Educar o olhar que lançamos à Educação, buscando as práticas, as histórias de
vida que habitam o cotidiano escolar e relacioná-las a um contexto social mais amplo,
pode nos ajudar a perceber o que muda, o que não é espaço de repetição. Podemos
comparar essa busca a uma arqueologia das lembranças que habitam a memória e a
busca do eu, do nós, dos sentidos do que fazemos, nós, professoras, reescrevendo essa
história, a partir de um outro lugar, um pouco mais próximo do que acontece
cotidianamente nas escolas.
92
Praticando currículos no cotidiano: as práticas reescrevendo a
história das escolas
Parece que a escola do século XXI
ainda se mantém como uma
instituição central na vida das
sociedades e das pessoas. Ela não
carece de vitalidade. Seu propalado
anacronismo parece ser seu
catalisador, como uma Fênix que
renasce da modernidade não se
sustenta mais, ela se transmuta, se hibridiza em múltiplos cruzamentos e se reproduz
nos infinitos discursos que sobre ela enunciam. Ela certamente não é de um único jeito,
não toma uma só forma. Ela própria já começa a se reconhecer como território da
diversidade, contorcionista da incerteza, prisioneira dos poderes que a dobram. Mas
uma escola que fala a língua do seu tempoespaço poderia continuar fazendo a
diferença no processo de socialização e educação dos humanos (COSTA, 2003, p.22).
93
Partindo da epígrafe, inicio este capítulo entendendo que nunca se perguntou
tanto “sobre” as escolas. Diversos são os questionamentos. O que estão “produzindo”?
Quem são os alunos-alunas que ali chegam? Como lidar com as diferenças que habitam
seus espaços? Um tempo de perguntas e de busca por respostas.
Nessa direção, procuro refletir sobre a produção de conhecimentos que se tece
nos espaçostempos escolares por meio de questionamentos que dão um sentido ao meu
caminhar. Não tenho a pretensão de respondê-los definitivamente. Meu objetivo é
caminhar em busca das descobertas possíveis no percurso. Nesse caminho encontro
riqueza, criação, diversidade, invenção. Vejo a apropriação dos espaçostempos
escolares nas práticas curriculares das professoras, evidenciando saberes diferentes
imprevisíveis, imprevistos.
Percebo em minhas caminhadas, que nas escolas, espaços marcados pela
diversidade, diferentes relações sociais e diferentes discursos se cruzam na vida
cotidiana. A polissemia surge como um traço marcante nas relações e interações. Mas
como tem se dado a convivência dos sujeitos da escola com as propostas que parecem
atribuir legitimidade a um único conjunto de conhecimentos com significado único?
Meu interesse em particular é pensar o currículo e suas ltiplas possibilidades
e usos. Não em função daquilo que está escrito nos documentos oficiais, refletindo
sobre objetivos e conceitos, mas algo para além, o que OLIVEIRA (2003) denomina de
currículos praticados, repleto dos múltiplos conhecimentos que circulam no cotidiano
escolar, tecidos e expressos por cada sujeito do processo.
É com Certeau que vamos, mais uma vez, buscar a compreensão das formas
de criação de alternativas curriculares, tentando evidenciar as "artes de
fazer" daqueles a quem foi reservado o lugar da reprodução. (...) O
cotidiano (...) aparece como espaço privilegiado de produção curricular,
para além do previsto nas propostas oficiais (OLIVEIRA, 2003, p. 68).
Em Sacristán (1995) encontro uma contribuição que me ajuda a pensar o que são
esses currículos que ele chama de currículos reais, algo para além dos documentos nos
quais temos escritos os objetivos e planos que devemos alcançar e seguir.
Uma análise refinada da realidade escolar e das práticas cotidianas torna
claro que aquilo que os alunos aprendem no contexto escolar e aquilo
que deixam de aprender é mais amplo que a acepção de currículo como
especificação de temas e conteúdos de todo tipo. Isto é, o currículo real é
mais amplo do que qualquer "documento" no qual se reflitam os objetivos e
94
planos que temos. Na situação escolar se aprendem mais coisas,
dependendo da experiência de interação entre alunos e professores, ou
entre os próprios (...) dependendo das atividades concretas desenvolvidas.
Por isso se diz que o currículo real, na prática, é a conseqüência de se viver
uma experiência e um ambiente prolongado que propõem - impõem - todo
um sistema de comportamento e de valores, e não apenas de conteúdos de
conhecimentos, a assimilar. Essa é a razão pela qual aquele primeiro
significado de currículo como documento ou plano explícito se desloca para
um outro, que considere a experiência real do aluno na situação de
escolarização (Sacristán 1995, p.86, apud FERRAÇO, 2007, p.75).
Mergulhando no cotidiano das escolas: um encontro com práticas mais
solidárias
Entendo, portanto, que o cotidiano é espaço privilegiado de produção de práticas
curriculares e que os currículos avançam para muito além do que podemos compreender
por meio dos textos que definem e explicam as propostas das escolas. Nesse sentido, é
preciso buscar as marcas da vida de todo dia que são tecidas nas práticas e que dão vida
às propostas curriculares.
Criando modos de caminhar, ler, produzir, falar e de utilizar as propostas
curriculares preestabelecidas, as professoras tecem redes de ações que não são mera
repetição de uma proposta curricular preestabelecida e explicada no abstrato. Assim,
inserem na estrutura social/curricular criatividade e pluralidade, modificadores das
regras e das relações entre o poder instituído e a vida dos que a ele estão,
supostamente, submetidos (BARBOSA, 2001, p.184).
Numa discussão sobre um possível projeto educativo emancipatório, Santos
(1996) aponta a importância de se reconhecer o espaço da sala de aula como lugar que
se assente em emoções, sentimentos e paixões que conferem aos conteúdos curriculares
sentidos inesgotáveis (p.18). Afirma que o saber não existe distante das práticas e dos
diálogos e conflitos entre os diversos saberes.
Então, compreender concretamente essas múltiplas e complexas realidades das
escolas reais nos coloca diante do desafio de mergulhar nos cotidianos, buscando neles
outras marcas das professoras que, em processos reais de interação, dão vida e corpo às
propostas curriculares (id.,p.186).
Isso significa dizer que, nas nossas atividades cotidianas, os currículos que
criamos misturam elementos das propostas formais e organizadas com
95
possibilidades que temos de implantá-las. Por sua vez, tais possibilidades se
relacionam com aquilo que sabemos e em que acreditamos, ao mesmo
tempo que são definidas na dinâmica de cada turma, dos saberes dos
alunos, das circunstâncias de cada dia de trabalho (OLIVEIRA, 2003,
p.82).
Assim, entendo que as propostas curriculares são contaminadas pelas formas de
inserção social, história, crenças e valores das professoras que atuam nas salas de aula,
transformando continuamente os currículos. Não há, dessa forma, como pensar em
generalizações ou mesmo identificações entre as diferentes práticas, ou seja, cada
conteúdo de ensino, repetidamente ensinado ano após ano, turma após turma, vai ser
trabalhado diferentemente por professores diferentes, em turmas diferentes, em
situações diferentes (OLIVEIRA, 2003, p.82).
A valorização das práticas e a discussão sobre valores e culturas que circulam
nos espaçostempos das escolas podem nos encaminhar em direção a um diálogo mais
horizontal entre as diversas culturas presentes nesse espaçotempo. A superação da
dominação cultural que dá credibilidade a um único saber, a um único modo de estar no
mundo é fundamental se quisermos pensar na busca por conhecimentos mais solidários
e emancipatórios, onde o outro não seja objeto, mas alguém a ser reconhecido numa
relação de alteridade.
Questões relacionadas ao convívio social são, então, incorporadas às propostas
curriculares, possibilitando uma forma de compreensão do mundo mais ampliada
(OLIVEIRA, 2006). Incorporadas a essas questões estão valores e crenças de
professoras e alunos(as), tecendo, muitas vezes, saberes mais solidários, que nos levam
a perceber as escolas e a sociedade como espaçostempos de possíveis práticas de caráter
emancipatório e democrático.
Numa tentativa de ilustrar o que entendo por essa ampliação dos modos de
compreensão do mundo, não vou me furtar a relatar aqui trechos de uma experiência
vivida por Carla.
Na escola em que eu trabalhava, tinham duas turmas no turno da tarde,
uma turma de alfabetização e uma de segunda série. Nós, eu e a professora
da C.A., resolvemos fazer com eles um projeto de jogos cooperativos. A
idéia era a de unir as turmas. O bom dos jogos cooperativos é que eles
jogam uns com os outros, ao invés de uns contra os outros. Nesse caso,
crianças de diferentes idades se misturaram e trabalharam juntas.
96
Eles fizeram várias atividades, esta da foto é da dança das cadeiras. A
gente vai tirando as cadeiras, como na brincadeira original, mas ninguém
sai do jogo e eles têm que dar um jeito de se ajudar para que ninguém fique
sem sentar. Olha que interessante!!! Eles se juntaram e ninguém podia sair
da posição, porque estavam ligados entre si pelo toque dos corpos, como se
fossem um só.
Neste outro caso aqui, a idéia é basicamente a mesma. Eles têm que mudar
de arco e procurar salvar quem ficou de fora. Ninguém pode sobrar
sozinho.
O interessante desses jogos é que a solução nunca é a que a gente espera. A
gente imagina que vá acontecer de uma forma e eles buscam novas formas
de fazer o que é proposto.
Jogos Cooperativos – aula de solidariedade - 1
Jogos Cooperativos
aula de solidariedade
-
2
97
Quando eles não conseguiam resolver um problema, a gente parava o jogo
e conversava com eles. Eles iam falando:
Não deu certo porque fulano não fez a sua parte, ou eu não consegui
fazer a minha..
A gente discutia sobre o que havia dado errado e aí, não era mais problema
na etapa seguinte. Eles iam tentando descartar o que não dava certo. E iam
buscando soluções.
Outra coisa boa desses jogos, eu acho, é que na sala eles podem começar a
perceber que não tem um jeito certo de fazer as coisas, têm vários jeitos,
eles podem ir tentando resolver as questões que aparecem de várias formas,
que o bom está em tentar, não em acertar e que nem sempre a solução
está em fazer igual ao do outro. Ah, acho que pra olhar o mundo de
outras formas, de jeitos que eles ainda não tinham olhado antes, sei lá.
Quantas outras aprendizagens foram acontecendo ao longo do processo? Quanto
cada um aprendeu ou recolheu para si daquilo que estava estudando e descobrindo? Não
podemos responder. Carla não “mediu” o conhecimento de cada um, o era este o seu
objetivo. Avaliar comportamento humano, por mais e melhores instrumentos que
possamos utilizar, nem sempre é possível nem mensurável por meio de resultados
imediatos e quantificáveis. (LEITE, 2002, p. 116). No entanto, podemos dizer que a
experiência pode ter modificado alguns, desejando que aquele processo de descobertas
tenha tocado os seus sentidos e que um conhecimento mais solidário e questionador
aflore em suas vidas.
Essa experiência é apenas uma dentre tantas formas de trabalho possíveis em
busca de um currículo mais aberto, complexo e de relações entre saberes mais
democráticas, ampliando as formas e possibilidades de ver e pensar o mundo, trazendo
para dentro dessas formas de viversentirestarolhar, mais solidariedade. Assim, penso
que agindo sobre as lógicas pretendidas, podemos revertê-las, criando espaços para
aquilo que não está escrito, previsto, buscando com isso o desenvolvimento de um
trabalho mais de acordo com nossas crenças e valores. Tecemos assim currículos para
além das regras, como um conjunto de ações e maneiras de estarmos no mundo.
As grades curriculares e a rebeldia do cotidiano
As escolas na modernidade são organizadas de forma que a “construção” do
conhecimento seja entendida como hierarquizada, num modelo de grafia em árvore.
Vimos, no primeiro capítulo, que essa forma de organização permite que as escolas
sigam estruturas sociais hierarquizadoras e fragmentadas em seus modelos. Entendidas
98
como instituições que têm a missão de salvaguardar os princípios do que conhecemos
como modernidade, pretendem preparar para a autonomia e para a cidadania, num
projeto que visa ao alcance de algo que está no futuro, assumindo a criança como tábula
rasa e “projeto” de cidadão. Em seus modelos, pretendem enquadrar os modos de ser
dos corpos e do pensar no paradigma moderno. No entanto, as escolas são, também,
espaçotempos formados pela diversidade de sujeitos, pela complexidade das relações
que se cruzam em seu interior e fora dele, o que as torna locais de troca, produção e
disseminação de idéias, valores e conhecimentos não autorizados. As famílias, as
histórias e trajetórias pessoais de alunos(as), professoras e de todos os outros que
constituem esses espaçostempos se cruzam, tecendo subjetividades, produzindo
conhecimentos que não estão nos textos curriculares oficiais.
Esses textos pretendem determinar o que deve ser aprendidoestudadoensinado
em sala de aula e o que deve ser excluído. Uma frase repetida pelo professor Bessa
49
diz: quem organiza o que devemos lembrar, também organiza o que devemos esquecer.
Achei que esta frase vinha ao encontro do que é proposto pela escritura dos currículos
escolares, aproximando-os da idéia de “grades curriculares”, algo que pretende
determinar e aprisionar o que deve ser aprendidoestudadoensinado nas salas de aula. A
montagem de fotos abaixo é uma provocação. Tem a intenção de levar o leitor a atribuir
significados múltiplos às “grades curriculares”. Acreditando na riqueza e na polissemia
da imagem, dos significados a serem atribuídos às informações e emoções nela
possivelmente presentes, opto por essa forma de expressão, pretendendo comover mais
do que convencer.
49
Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro da cadeira de Educação Indígena.
Grades curriculares
99
Essas grades, nas quais os conhecimentos são apresentados de modo
fragmentado, se configuram, ou pretendem se configurar como formas de controle sobre
aqueles que a elas sãoestão submetidos, nesse caso, alunos(as) e professoras. Nas
palavras de Oliveira, referindo-se a Arroyo (BARBOSA, 2001),
A compreensão do Professor Arroyo a esse respeito nos remete à
problemática da legitimidade dos saberes, na medida em que o palestrante
nos alerta para o fato de que “as grades curriculares são, não para que
o conhecimento escolar permaneça na escola, mas também para que os
saberes de fora não entrem na escola” (p.185).
Minha intenção neste texto não é a de desconsiderar essas grades da escola, do
currículo, mas buscar desinvisibilizar formas e usos que permitem aos sujeitos da escola
pensarfazer um saber mais solidário, criativo e participante, permitindo perceber a vida
além da norma, superando ou minimizando a cegueira epistemológica (Oliveira, 2007)
da qual nossa inserção na modernidade ocidental nos dotou. Assim, entendo que o
desejo da uniformização dos currículos, mas também a rebeldia da vida cotidiana,
diante das regras que tentam controlá-los, pois desobedientes que são, as professoras
criam formas e modos de, taticamente, utilizarem desses “produtos”, dando a eles outras
formas que fogem ao modelo.
A produção curricular cotidiana que se nas escolas, então, envolve diferentes
saberesfazeres, invenções e inovações que mesmo sendo consideradas como meras
adaptações metodológicas do ponto de vista formal, podem nos remeter a outra maneira
de pensar os currículos.
Veiga-Neto (2002, p. 59) diz que os currículos devem ser entendidos numa
dimensão que vai muito além de um simples conjunto ordenado de conhecimentos que
são ensinados na escola. São também produtos das práticas, dos diálogos entre saberes
que atravessam e são atravessados pela complexidade do mundo, tornando as escolas
espaçostempos de circulação e criação de conhecimentos.
Sandra conta.
Fujo dos currículos impostos pelas escolas onde trabalho senão
enlouqueço. Preciso produzir também o que as crianças desejam e o que eu
também desejo. Neste ano, no entanto, na escola particular, senti falta deste
espaço. Quase não tivemos tempo pra cumprir nem os currículos formais!!
Muitos projetos... Além do esgotamento, gera uma sensação de que faltou
alguma coisa, trabalho incompleto.
100
No entanto, tive a oportunidade de fazer um trabalho que adorei na escola
pública onde leciono. Este trabalho mostra bem o que significa para mim
trabalhar com o desejo das crianças. Trabalhei uma reportagem do jornal
O Globo que destacava o pai de uma aluna, hoje dono de um quiosque em
Ipanema, que através do seu empreendedorismo, relação interpessoal e
valorização do humano, conquistou o seu espaço na vida. A reportagem
gerou debates e exploração de outras reportagens, destacando valores de
superação de obstáculos, garra, persistência, ética, respeito e valorização
pelas diferentes profissões. Fizemos um de “De conversa em conversa
(uma roda de conversa) com esse pai da turma e saboreamos as suas
batatas gratinadas, sucesso também no quiosque.
Tecendo saberes: a produção de conhecimentos, onde está?
Romper com o paradigma da ordem e da obediência é importante quando nos
propomos a compreender o currículo como algo inventado todos os dias por alunos(as)
e professoras num movimento constante de tessitura de conhecimentos.
Porém, e sempre um porém, professoras e alunos(as) não se limitam ao que é
determinado. Aprendem e ensinam, numa relação que os permite ir além do que é
proposto. Este aprenderensinar que acontece por dentro dos muros escolares é aquele
que ultrapassa as propostas curriculares. As práticas educativas vão além dos conteúdos
formais, incorporando outros saberes, conversas, negociações. Inúmeras m sido as
invenções cotidianas, que alteram as propostas curriculares [e] redesenham as relações
professor-aluno (BARBOSA, 2001, p. 186).
De que invenções a autora está nos falando? Daquelas que alteram as propostas
curriculares, redesenhando as relações ensinoaprendizagem, pois enredam valores,
saberes e novas possibilidades de intervenção (BARBOSA, 2001, p.186). Que dizem
respeito ao como os conteúdos e currículos são “trabalhados”. O uso das notícias de
jornal que trazem a Geografia do mundo para dentro da sala de aula, das sucatas em
Matemática, são formas particulares e criativas que as professoras buscam para
“enriquecer” os processos de ensinoaprendizagem para muito além do que vemos nos
textos oficiais. Sandra reforça.
A utilização do material dourado em Matemática é um dos melhores
exemplos que tenho para relatar aprendizagens que deram certo em minhas
turmas. Desenvolvendo um trabalho certa vez, percebi que havia uma
enorme dificuldade do grupo em compreender a formação dos números.
101
Bem, não sei se aprenderam as coisas da maneira que deveriam, mas sei
que as crianças se encantaram com as descobertas e com o material em si.
Aquele se tornou o “objeto” (mascote) preferido do grupo.
Não poderia deixar de destacar também o lançamento de fração com barras
de chocolate. Foi uma aprendizagem deliciosa. O saber com sabor.
Mas há também as atividades que preparamos com materiais que nos dão o
maior trabalho e que podemos dizer que não dão certo, não da forma que
pensamos, estas são as atividades onde nossos alunos estão a nos dizer:
– Eu não quero isso pra mim, ou não quero isso neste momento. – Sei lá.
Aí, temos que reformular, procurar as respostas do que fazer e como fazer
nas próprias crianças. A aula, o material, tudo se transforma...
Certa vez, numa turma da classe de alfabetização, construí com a turma
uma caixinha individual com o objetivo de guardar palavras de histórias
ouvidas ou lidas para serem utilizadas em composições e outras criações. A
história lida, apesar de um tema interessante, não estimulou o grupo e eles
não quiseram escrever nenhuma palavra para guardar na caixinha. Sugeri
que escrevessem, então, outras palavras de sua escolha e interesse. Bem,
a aula aconteceu, palavras foram aparecendo e nós fomos registrando. No
final estávamos com um vocabulário enorme e demos um jeito de “amarrá-
lo” para montar uma história. Ficou demais!!!
Muitos outros materiais e abordagens possibilitam uma infinidade de aprenderes
que vão além dos textos oficiais. A noção de tática trazida por Certeau (1994) ajuda a
compreender essas invenções cotidianas e a situá-las em relação a normas e prescrições
curriculares.
A tática é movimento “dentro do campo de ação do inimigo” como dizia
Von Büllow, e no espaço por ele controlado. Ela não tem, portanto a
possibilidade de dar a si mesma um projeto global nem de totalizar o
adversário num espaço distinto, visível e objetivável. Ela opera golpe por
golpe, lance por lance. Aproveita as ocasiões e delas depende, sem base
para estocar benefícios, aumentar a propriedade e prever saídas. O que ela
ganha não se conserva. Este não-lugar lhe permite sem dúvida mobilidade,
mas numa docilidade aos azares do tempo, para captar no vôo as
possibilidades oferecidas por um instante. Tem que utilizar, vigilante, as
falhas que as conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder
proprietário. Aí vai caçar. Cria ali surpresas. Consegue estar onde ninguém
espera. É astúcia. (p.100-101)
As professoraspraticantes se apropriam das ocasiões e possibilidades
encontradas nas escolas e se tornam autoras, autônomas e legítimas produtoras de
conhecimentos nos espaços das diferentes escolas por onde passam. Produzem,
cotidianamente, currículos aproveitando as diferentes ocasiões que aparecem em suas
salas de aula para criar o que a circunstância pede e possibilita.
102
Maria Lucia conta.
Eu fazia o “Teste assombroso” quando eu fui assistir a uma palestra
daquele professor da UERJ, o Dirceu.
50
Aí eu, pensei que eu já tinha
conversado com aquele cara. Juro por Deus! Olha a minha pretensão, eu
pensei, “esse cara conversou comigo, porque ou ele estava roubando
umas idéias minhas, ou eu roubando as idéias dele, a gente fazia mil coisas
parecidas. Eu me senti altamente iluminada.
Eu ouvia e pensava:
“É isso mesmo, temos que tirar essas idéias terroristas da prova. Eu penso
assim também”. Isso me fortaleceu muito. Eu só ouvi esse professor falando
uma vez. Para mim foi o grande destaque do encontro dos CAps naquele
ano.
Gosto dessas idéias, primeiro porque essas provas que nós fazemos
debocham das provas tradicionais. Que história é essa de prova que
assombra, que amedronta? Então, vamos encher de lagartixa, de aranha,
de rato... Bimestralmente eu mudo o bloquinho do Teste Assombroso, tem
música, o cajado que eu bato no chão.
Segundo porque serve para
brincar com a tabuada, fixar a
tabuada. Eu faço esse teste toda
semana, é muito bom.
As crianças estudam a tabuada
que é a coisa mais cafona do
mundo com o maior prazer. É
uma festa toda semana.
Esse ano eu fiz um concurso e
uma mãe fez uma coletânea,
tem um cd com a música do
filme Tubarão
51
, do filme
Psicose
52
,
entre outras.
A situação acima relatada indica o que existe para além das prescrições, pois ao
mesmo tempo em que a professora utilizou um dos meios de avaliação mais comuns,
criou uma forma de fazê-lo inovadora, buscando tornar essa atividade, vista como algo
assustador no imaginário daquelas crianças, uma atividade prazerosa. Procurou suscitar
meios de aliviar a tensão que normalmente é gerada antes de se fazer uma prova, e
também durante a sua realização. Ou seja, uma tentativa de criar uma nova maneira
de gerir essa atividade tão comum que é a aplicação de prova, instituindo uma ruptura
com o que é costumeiro: aplicação de uma avaliação como algo “chato” e tenso.
50
Professor e atual vice-diretor da Faculdade Educação da UERJ.
51
Fime de 1975 de Steven Spielberg
52
Filme produzido em 1960 de Alfred Hitchcock
Mural do teste Assombroso
103
Oliveira (2003) nos ajuda a entender esta prática quando se refere ao uso de
mecanismos por parte dos professores cujo intento seria o de diminuir os efeitos
negativos costumeiros que às vezes são causados pelas normas.
As idéias colocadas neste trabalho até agora são o resultado do caminho que
venho percorrendo em quase 25 anos de magistério e dos estudos que venho fazendo,
um caminho de reflexões acerca dos meus e de outros fazeres docentes, que me levam a
perceber o quanto somos levadas a crer que não criamos saberes, quando
cotidianamente os estamos produzindo, mesmo sem a intenção de combater relações de
poder e dominação existentes. Somos levadas a crer que nossa participação nos
currículos restringe-se quase que somente à sua execução quando, na verdade, mesmo
que não tenhamos participado de sua elaboração formal, os modificamos e
experimentamos em nossa prática de sala de aula. Muitas pesquisas e textos sobre as
escolas desqualificam os saberes experenciais das professoras, enquadrando o fazer
docente em leituras formais, limitadas ao conjunto de orientações e regras marcadas
pela racionalidade técnico-experimental hegemônica na modernidade.
Segundo Sandra.
Não sei que nome daria para esse saber que o professor produz, mas vejo
que ele existe e está ligado ao conhecimento tácito. Através de ensaios e
erros, você vai construindo conhecimentos não explícitos. Conhecimentos
construídos através de todas as aprendizagens que fazem a ponte com o
saber. Um saber em cima da união dos saberes, que põe sua marca, a sua
impressão como uma digital. Esse saber que rege a sua prática, e que é seu,
a sua identidade de atuação. As experiências e vivências produzem um
conhecimento próprio, empírico.
Festival de poesia
104
Praticando os currículos desejados
Conforme afirmei anteriormente,entendo que a escola, espaço aonde o aluno vai
para aprender e a professora para ensinar (assim é determinado), que se pretende formal
e disciplinar, é também espaço de descobertas e aprenderes que não estão escritos
oficialmente. Pensar em uma escola e estar em uma escola são coisas muito diferentes.
Os usos que professores e alunos fazem desse espaço, muitas vezes o são aqueles
pretendidos oficialmente.
Carla relata,
Hoje tenho que seguir muitos conteúdos, burlo os resultados. A escola
onde trabalho vigia tudo, caderno de criança, nota, teste ... Mas como acho
que sei o que as crianças realmente precisam aprender na série, faço do
meu jeito (risos). Várias vezes burlei o currículo em sala de aula,
principalmente em Matemática. Para que saber raiz quadrada, potência e
tantas coisas mais deste tipo? Burlo tudo. Quando tem uma supervisora no
meu tomando conta, registro tudo no caderno dando as respostas. E nos
testes também dou cola.
Percebo que coisas como o respeito à individualidade do outro, do respeito,
do coleguismo dentro da sala, são de fato importantes e devem ser
aprendidas, arrisco até a dizer que são os saberes mais importantes.
Carla nos indica que nos espaçostempos das escolas há muito mais do que aquilo
que está escrito nos textos currículos oficiais. Ali circulam afetos, segredos, emoções,
calor humano e discórdias, típicos dos sujeitos, e que esses sentimentos, cheiros
característicos, lembranças estarão guardados nas memórias de alunos(as) e professoras.
É isso o que percebemos dentro das escolas. Apesar dos currículos pensados por
minorias e da necessidade de os colocarmos em debate, podemos perceber nas muitas
salas de aulas, espaços, modificações e usos que estão para além do que é pensado.
Trago, então, aqui, uma declaração de Maria Lucia que fala sobre os currículos
que o tecidos no cotidiano das salas de aula e que não constam nos textos de
propostas curriculares dos espaçostempos escolares.
Para mim existe o currículo DESEJADO, que às vezes fica aquém, mas às
vezes vai além. E isso quem me a temperatura certa é a minha turma,
por isso digo que, com freqüência, fujo dos currículos determinados pela
escola. Isto para mim é possível porque procuro desenvolver com as
minhas turmas; parceria, cumplicidade, afetividade, a alegria no dia-a-dia.
105
Pensar as escolas a partir do que Maria Lucia chama de currículo desejado e
Oliveira de currículos praticados é uma tentativa de perceber as escolas em sua
realidade, como elas são concretamente para além do discurso a respeito do que não
nelas.
Ela continua.
Quando eu me lembro que eu participei de um grupo que fazia provas
iguais que deveriam ser aplicadas em todas as séries sem o professor ver,
eu fiz isso, fui obrigada a fazer isso. Eu, que não gosto que ninguém
interfira no meu trabalho, fiz isso. Isso era para medir conteúdo, briguei
muito por causa disso! Era para ver como o professor estava dando o
conteúdo, era uma coisa altamente invasiva no trabalho do professor.
A gente evoluiu em termos de conteúdo dentro do colégio que eu
trabalhava, a cada ano a gente discutia e refazia. Eu acho que um colégio
sem conteúdo não existe, mas a minha visão é muito diferente hoje.
Hoje, a minha visão de conteúdo é muito mais tranqüila. Quanto tempo a
gente perdia acelerando alguma coisa porque achava que tinha que
entregar a turma com aquele conteúdo, mesmo sabendo que a turma não
estava preparada pra isso. Na verdade, a gente estava só perdendo tempo, o
nosso e o das crianças.
Acho que todas nós já fizemos isso em algum momento.
Agora eu não consigo mais trabalhar assim, a idade me deu isso, eu não
consigo dar um conteúdo se eu achar que uma parte da turma não está
pronta, não está entendendo. Eu me sinto covarde, acho que é uma
covardia.
Eu acho que a gente tem que ter um conteúdo, mas tem que tecer com a
turma, gosto dessa palavra. Acho que tem que ser ela mesma, tecer, isso é
respeito ao aluno, então a gente vai tecendo conforme vai acontecendo.
Não é não planejar, você sabe que eu sou cafona, tenho caderno de plano,
pesquiso, preparo muito as minhas aulas, mas tem que ir no ritmo deles
Ao percebermos que na vida cotidiana não como prevermos os
acontecimentos, pois não há relação de causalidade linear entre o que é feito e os
resultados do que é feito, estamos vendo como Maria Lucia encaminha seu trabalho de
acordo com o que a turma vai “pedindo” ou “permitindo”, não como pensarmos que
há possibilidade de determinar o que vai ser aprendido ou não, de que forma será
aprendido e quando. Essa imprevisibilidade, característica da vida cotidiana,
impossibilita qualquer forma de aprisionamento dos currículos.
O que existe, e pode ser percebido quando mergulhamos nos cotidianos das
escolas para pesquisar ou quando, como no caso desta dissertação, ouvimos narrativas
de professoras a respeito de suas práticas, são currículos sendo modificados numa
106
relação de tensão permanente entre o prescrito e o feito. o conteúdo oficial, os
aprenderes desordenados, a ordem e o caos, tudo ao mesmo tempo (FERRAÇO,
2007).
Diante desse estudo, podemos dizer que os saberes tecidos nas salas de aula se
apresentam de diferentes maneiras. Cada conteúdo trabalhado será diferente a cada vez
que for trabalhado, Heráclito
53
nos dizia que o podemos entrar duas vezes no
mesmo rio, pois o rio ao correr é sempre outro. Da mesma forma cada sujeito irá tecer
suas redes de aprendizagens de acordo com as suas subjetividades, e essa experiência
será sempre individual, ao mesmo tempo que coletiva, pois é com outros e por meio de
trocas que aprendemos.
Assim, nos percebemos diante de práticas curriculares cotidianas de professoras
em salas de aula que não podem ser apreendidas dentro de documentos e papéis oficiais.
Alves e Oliveira (2005) completam:
É nesse sentido que entendemos as práticas curriculares cotidianas como
“multicoloridas”, pois suas tonalidades vão depender sempre das
possibilidades daqueles que as fazem e das circunstâncias nas quais estão
envolvidos (p.97).
Para ilustrar um pouco essa discussão, conto aqui a história de uma prática
vivida e relatada pela professora Maria Lucia.
Tem uma coisa que eu quero falar. Eu não tenho o menor problema em
ressignificar a aula de alguém. Eu acho que aula boa a gente tem que
aplaudir e utilizar.
Essa aula que eu vou contar eu vi num programa que eu acho que era na
TVE, não sei, sei que era de manhã. Nem imagino qual era o nome do
programa, mas sei que era assim, os professores chegavam na sala dos
professores e falavam de um tema. Aí, alguém dava sugestões de aula para
o tema.
Bem, assisti à aula e guardei aquilo na minha cabeça. , um dia, quando
eu fui trabalhar tempo, resolvi usar essa aula. Durante um mês eu deixei um
cuco na sala. A cada vez que o cuco cantava as crianças pulavam e eu
também. Não interessava a aula que fosse, eles podiam estar fazendo até
redação. Era uma delícia, a gente sempre gritava. Uma coisa é marcar o
tempo, outra é ver concretamente o tempo passar.
53
Heráclito - filósofo pré-socrático, recebeu o cognome de "pai da dialética". Problematiza a questão do
devir (mudança).
107
Depois de um mês de aula com cuco, eu dividi a turma em grupos pra fazer
um trabalho de pesquisa e dei para cada grupo uma vela toda dividida por
alfinetes e uma caixa de fósforos. Quando eu falei já, todos os grupos
acenderam suas velas e começaram o trabalho que eu passei. Conforme a
vela ia queimando, os alfinetes iam pulando e as crianças gritavam:
- Caiu um alfinete!!!! Caíram dois...
Quando eles acabassem a atividade tinham que apagar a vela. O mais
interessante é que quem era mais rápido não era quem tinha gasto mais
vela, mas sim quem tinha gasto menos vela, isso é, tinha gasto menos
tempo.
Só que o tempo, ele derretia, eles viram o tempo passando, derretendo.
Nós marcamos os tempos gastos nos cucos e depois fizemos um mural com
estas descobertas, comparando os tempos com os alfinetes caídos. Se eram
tantos alfinetes em cada tempo, então cada caída de alfinete equivalia a
tantos minutos... tantos segundos...
Foi muito mágico!!!
Nesse dia, a minha turma ficou tão entretida que o sinal bateu e a turma
não se mexeu para sair. Ficou todo mundo lá, montando o mural com os
registros das descobertas. A diretora subiu e entrou aos berros na minha
turma, ela ia me dar uma bronca, gritou:
– Professora!!!!
Ou pelo menos ia começar a dar quando olhou pro mural e perguntou o que
era aquilo.
Eu expliquei, ela então, olhou, olhou e falou assim:
– Eu nunca vi um trabalho tão bonito!!!!
Medindo o tempo – aula de Matemática
108
Sabe, o tempo parece ser fácil de entender, mas não é, é uma coisa muito
difícil pra eles!!!
Esta foi uma aula inesquecível para mim.
Importa destacar aqui o modo como o trabalho levou à mobilização da turma
para algo novo, que lhes despertou o interesse, evitando a mera repetição, e que ainda
contou com a contribuição dos(as) alunos(as) na produção do trabalho que seria exposto
na parede da sala de aula. Atividades como essa
trazem à tona a riqueza do cotidiano escolar e as “misturas” que fazem os
professores de métodos e técnicas artísticas e de ensino na busca do
desenvolvimento de uma prática pedagógica adequada às suas
possibilidades e valores, bem como às de seus alunos. Negligenciar esses
fatos, reduzindo o cotidiano a modelos das práticas pedagógicas associados
aos modelos de escola - tradicional, escolanovista, progressista,
construtivista etc. pressupõe ignorar não os fazeres reais dos
professores, mas também, e sobretudo todos os saberes de que dispõem e
que não se enquadram nos modelos (Oliveira, 2003 p.128-129).
Ao longo dessa busca por histórias e criações curriculares cotidianas, tive a
oportunidade de ouvir Maria Lucia, Sandra e Carla referirem-se ao uso de alguns
artefatos escolares.
Como aprendi com minha amiga Luli
54
que uma tese é como um porco, tudo se
aproveita (ECO, U., apud SÜSSEKIND VERÍSSIMO, 2007, p. 20), resolvi trazer essas
falas para dentro da minha dissertação. Inicialmente, esses relatos não faziam parte
deste trabalho, mas quanto mais olhava para eles, mais pensava na possibilidade de
trançá-los com a minha discussão.
Sentei, pensei, escrevi e trouxe, acreditando que este é mais um fio da rede que
alinhavei nesta pesquisa.
Artefatos escolares: usos e pontos de vista
Do ponto de vista de uma minhoca, um prato de espaguete é uma orgia.
(GALEANO, 2007, p.33)
54
Maria Luiza Süssekind Veríssimo, colega do grupo de pesquisa.
109
As histórias narradas até aqui nos contaram sobre formação e práticas
curriculares. Sobre usos que professoras fazem nas ocasiões e circunstâncias cotidianas
(Certeau, 1994) dos currículos escolares. Podemos pensar que esses usos e apropriações
se dão também no campo da cultura material, isto é, do uso que os sujeitos fazem
daqueles objetos que fazem parte do cotidiano das escolas. São eles: cadernos, mapas,
livros, quadros, cadeiras, mesas entre tantos outros que ali circulam.
Compreender a complexidade dos cotidianos das escolas a partir dos usos
(CERTEAU, 1994) que cada uma das professoras desta pesquisa inventa a cada dia para
os tantos materiais que ali se encontram é a minha proposta.
Considerando e evidenciando a singularidade irredutível dos praticantes da
vida cotidiana, esse tipo de pesquisa permite validar a idéia de que toda
padronização tenderá a ser usada de modo plural, ou seja, que “cada um
com seu cada qual” compreendeas normas a seu modo e delas se servirá
de forma própria e única, diferentemente daquela que está ao seu lado
(OLIVEIRA, 2008, p.141).
Dialogo aqui com Fernandes (2005), quando ele diz que a cultura da escola se
desdobra em duas vertentes: uma que conta a sua história através dos objetos e
instrumentos utilizados no processo ensinoaprendizagem e outra que narra a escola
através da voz dos sujeitos que ali se encontram.
Neste momento, vou ao encontro da primeira vertente por ele defendida. Parto
então, para um breve diálogo acerca do uso de alguns materiais que estão presentes no
cotidiano escolar das três praticantes desta pesquisa. Para isso, pedi que cada uma delas
elegesse um material da escola e contasse porque ele é importante, ou de que forma ele
é utilizado.
Eis aqui os meus achados,
O quadro-negro
Ao pedir que Carla elegesse um material específico e falasse sobre ele, obtive o
seguinte relato:
Acho que não existe um material didático mais importante que o outro,
acho que existe um conjunto de materiais didáticos importantes: o quadro-
negro, os livros didáticos, os cadernos, os jogos, as brincadeiras, os
passatempos, as exercícios xerocados. Mas destes todos, se eu tivesse que
escolher um que não pudesse faltar em sala, acho que o quadro-negro. É
110
um apelo visual muito forte, as crianças adoram um quadro bem colorido,
cheio de informações, com organização e é um recurso momentâneo.
Podemos escrever o que queremos naquele momento.
Pedi que falasse um pouco mais sobre o quadro-negro. Por que “acha” que o
quadro-negro dentre todos, pode ser o mais importante? Relatou que o quadro-negro lhe
a liberdade de fazer o que quer. No momento em que ali escreve, não precisa estar
seguindo nada predeterminado, como sente que acontece ao usar o livro didático, por
exemplo. Sinto que o quadro-negro me enche de possibilidades e de liberdade de
trabalhar com as crianças de acordo com o que eu e elas desejamos.
Que liberdade será essa que Carla tanto almeja? Percebo em seu discurso que
sempre esta preocupação em sua prática. Trabalhar de acordo com o que sua turma pede
e necessita.
...por que me colocavam para fazer sempre a mesma coisa? Por que eu
tinha que usar aquelas folhas de exercícios preparadas por alguém que nem
conhecia a minha turma? Por que eu tinha que ser como a professora tal?
Por que minha turma tinha que ter o mesmo aprendizado da outra? Tive
grandes problemas, pois continuava fazendo o que eu acreditava.
Ao procurar entender o valor que Carla ao quadro-negro, estabeleço mais
uma vez um diálogo com Certeau (1994) e ao uso que é dado a determinados objetos
que foram pensados para o cumprimento de objetivos bem diferentes daqueles que os
praticantes buscam em suas salas de aula.
Para um melhor entendimento desta fala fui buscar um pouco da história do
quadro-negro e do conceito que encontramos nos dicionários e enciclopédias a respeito
desse material da escola.
Encontrei na enciclopédia virtual Wikipédia
55
:
Quadro, Quadro-Negro ou Lousa é uma superfície reusável onde se
escrevem textos ou desenhos que são feitos com giz ou outros marcadores
apagáveis. Os quadros são usados geralmente para ensinar o uso da
escrita, dúvidas, cálculos, atividades e anotações diversas, pertinentes ao
assunto estudado no momento. As marcas do giz podem se limpar
rapidamente com um pano úmido ou um apagador, para escrever neles é
altamente recomendavel o uso de "giz processado" feito de uso especial
para quadros negros, com várias cores como: branco, azul, verde etc. Estes
não são feitos realmente de rocha de giz, mas de gesso.
55
Pesquisa realizada no site pt.wikipedia.org/wiki no dia 19 de julho de 2007.
111
No passado, os quadros-negros eram usados apenas em escolas. Este nome
deve-se ao serem fabricados a partir de uma pedra preta ou cinza escura a
ardósia. Assim, ficava fácil de escrever e apagar com o giz. Com o tempo,
surgiram novos materiais, mais baratos, claros, fáceis de manusear e menos
frágeis. Os quadros poderiam ser fabricados de qualquer cor, mas o verde
foi uma escolha popular. Além de ser mais confortável para os olhos,
destacava melhor as cores dos gizes.
Como utilizar adequadamente o quadro:
•Limpá-lo totalmente antes de qualquer utilização;
•Começar a escrever na parte de cima da lousa;
•Repartir a lousa em três partes: na primeira, fazer uma síntese do assunto
do dia e nas outras passar o conteúdo;
•Usar o apagador de cima para baixo.
Ao ler esta definição fiquei a pensar se Carla o conhece desta maneira e se, em
suas aulas de didática, aprendeu a utilizá-lo. Bem, certamente ela o usa com prazer, não
sei se tem a preocupação de apagá-lo de cima para baixo, ou se reparte o mesmo em três
partes. Isso provavelmente não interessa mais a ela, pois aprendeu a usá-lo na prática e
faz à sua maneira um uso bem particular.
Ao pensarmos que o quadro negro foi introduzido à medida que se introduz o
método simultâneo e que as suas vantagens residiam na possibilidade de o professor
utilizar-se deste material para o ensino simultâneo das primeiras lições de leitura e
escrita (BASTOS, 2006), fico a imaginar o quadro-negro como suporte pedagógico para
a aprendizagem coletiva.
Leio a afirmativa acima de duas formas: a primeira diz respeito a uma
aprendizagem que abrange e abraça um maior número de estudantes e a segunda diz
respeito a deixar de lado a individualidade do aluno, em tornar o ensino uma prática de
massa (sem nenhum tom de crítica em relação a esse fato) sem o olhar para o que é
único e individual em cada aluno(a). Podemos observar quando Carla fala sobre o seu
processo de formação, o quanto este ensino massificado a incomodava quando era uma
aluna do Ensino Fundamental.
O que eu fazia era decorar para passar de ano, mudei de escola mais uma
vez, estava indo para a terceira série. Fui para uma escola católica, minha
família achava que ia dar jeito. Continuei correndo atrás de todos,
decorando matéria, não entendendo o que realmente estava fazendo ali,
mas enfim, sabia que tinha que estudar. Ninguém olhava para mim,
olhavam para a turma, se eu não acompanhava os conteúdos, problema
meu.
112
Em minha caçada, percebo que Carla utiliza-se do quadro-negro imaginando
para ele uma possibilidade muito diferente desta. Ela diz: Sinto que o quadro-negro me
enche de possibilidades e de liberdade de trabalhar com as crianças de acordo com o
que eu e elas desejamos.
Certeau (1994) nos diz que a tática utiliza vigilante, as falhas que as conjunturas
particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. vai caçar. Cria ali
surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia. (p.101). Carla alça vôos e
caça suas possibilidades nas falhas das conjunturas ao utilizar-se do quadro-negro para
fugir ao que é predeterminado pelos currículos escolares.
Voltei, então à narrativa de Maria Lúcia e encontrei,
O livro didático
Existem muitos encantos numa sala de aula, o próprio dia-a-dia: a
construção do afeto (construção mesmo!), o conteúdo que se desenvolve a
partir dos projetos surgidos de diferentes momentos e desejos da turma, a
cumplicidade, o não uso dos livros didáticos e sem didatizar as histórias
infantis...
Sua fala sobre o uso de um material específico chama a atenção porque está na
negativa. Ela fala sobre o “não” uso do livro didático. Posso entender, a partir desta fala,
que Maria Lucia não acredita que o seu uso seja importante para guiar suas aulas.
Pensando nos livros didáticos como publicações diversas, utilizadas em
situações escolares por professoras para orientação, estudo, leitura e exercícios
(Fernandes, 2004), percebo que Maria Lucia não sente necessidade dessa orientação
específica. De que forma encaminha suas aulas? Ela nos uma dica quando diz que se
utiliza dos desejos da turma para encaminhá-las.
Maria Lucia, ao fazer a sua negativa, aponta a importância que a não utilização
do livro didático tem em sua prática de sala de aula.
Falemos um pouco desse material.
O livro didático, segundo Bittencourt (1993, p.3) é um depositário dos
conteúdos educacionais, neste sentido ele tem valor no resgate de conhecimentos e
técnicas considerados importantes em determinadas épocas da história. Segundo
Zilberman (1998), ele é livro, mas não é literatura. Tem seu conteúdo completamente
relacionado ao que se pretende que seja ensinado nas escolas. De modo geral, o livro
113
didático é desvalorizado depois de seu uso por cumprir uma função específica na vida
dos indivíduos, ou seja, é intrínseco ao contexto escolar, tornando-se descartável e sem
valor fora de seu contexto original.
Fato que é reforçado em relação ao seu uso nos dias de hoje, pois a
impossibilidade do aluno em guardá-lo, pois os livros distribuídos pelo Ministério da
Educação são “não-consumíveis” e precisam ser devolvidos à escola para que outro(a)
aluno(a) possa utilizá-lo no ano seguinte. Existem campanhas veiculadas na mídia
reforçando isto.
56
Em Cassiano (2005), encontrei informações curiosas a respeito desse objeto da
escola: Em 1998, dos 369 milhões de livros produzidos no Brasil, 244 milhões eram
livros didáticos. Em 2001 o Brasil foi o país que teve o maior programa de
fornecimento de livros do mundo entrando para o Guiness
57
. A partir dessas
informações podemos inferir que, a cada ano, mais crianças estão freqüentando as
escolas brasileiras. Poderíamos iniciar aqui uma discussão nesse sentido, mas esse não é
o meu objetivo para o momento.
Bem, certamente Maria Lucia não faz parte do grupo de professoras que, junto
com seus (suas) alunos(as), engrossa esses números a cada ano. Ela complementa:
Eu uso o livro didático sim, mas não diretamente com meus alunos. Tenho
um monte de livros na minha casa. Eles servem de apoio para o meu
trabalho, como fonte de consulta. O que eu não gosto, sou contra mesmo, é
essa obrigação que o professor tem de usar o livro didático com os alunos.
Se eu acredito que o conteúdo tem que ser tecido junto com as turmas, como
posso achar que um livro didático é capaz de dar conta do que meus alunos
querem aprender? Eu estaria sendo uma grande mentirosa, não acha?
Mais uma vez, percebemos na prática, a possibilidade de outros usos para os
materiais das escolas.
O livro de literatura infantil
Fui, então, atrás de Sandra e recortei este trecho:
Como aluna do ensino fundamental, área onde atuo, não me recordo com
nostalgia de professores que fizeram parte desse momento da minha
história, muitos eram tradicionais, por isso, busquei atuar de forma
56
Esta não é uma crítica, mas antes de tudo, uma simples constatação, pois compreendo a importância
desta tomada de atitude, já que essa utilização, a priori garante que mais pessoas possam ter acesso aos
livros didáticos.
57
Livro dos Recordes.
114
bastante diferente com meus alunos. Pensando em como fazer diferente,
busquei ajuda na literatura infantil.
Meu material indispensável é o livro de literatura infantil, que é um
mecanismo que faz nascer e renascer histórias que todos nós temos
guardadas. Ele não dá a existência, mas prepara para existir. Tece, borda e
costura a essência de cada um de nós, construindo e transformando o fio de
nossa história, que desperta sentimentos e prepara para situações de
vida, além de estimular a imaginação (a própria aprendizagem de
conteúdos programáticos).
Sandra uma dica sobre a pergunta que fiz acima, acredita no trabalho que
realiza e mais, ela indica ao final de sua narrativa que acredita na educação como
transformadora. E como não acreditar? Seria possível trabalhar mostrando desejo sem
acreditar naquilo que faz? Não sei responder, mas imagino que não.
Sua fala é essencialmente poética, seria esse o resultado do convívio com a
literatura? Gostaria de pensar que sim, que assim como sua fala, suas aulas e histórias
estejam repletas dessa poesia.
Sandra traz também uma fala sobre seus professores tradicionais e de seu desejo
em fazer diferente. Que vivências terão sido essas que a levam a fazer questão que
sejam diferentes das que leva para suas salas de aula? A que posturas tradicionais ela se
refere?
Ao encontrar-me com sua narrativa, lembrei:
Era professora por vocação e estava doidinha por ensinar meninos
inteligentes como eles, com vontade de aprender (...) Ela falou da beleza
que era saber ler , viajar com os livros, suas personagens e histórias
encantadas. O gostoso que era sair por descobrindo palavras em tudo
que há: televisão, cartazes, livros, bilhetes, cartas e até coisas feias nos
muros. A turma foi rindo com ela, gostando dela (JOSÉ, 1994).
Sandra, de alguma forma, lembrou-me esta professora alfabetizadora retirada da
mente de Elias José. Assim como ele, de acordo com o título da história, eu também
gostaria de ter estudado numa escola assim.
Parto para uma breve fala sobre os livros de literatura infanto-juvenil. Para isso,
volto ao meu passado. Afinal, depois de tantas reminiscências sinto-me tentada a fazê-
lo, lembrando de de minha mãe, leitora voraz de livros de literatura. Ela contava sempre
da sua infância em Porto Velho, capital do estado de Rondônia, quando lia escondida à
luz de velas livros que não eram destinados às crianças. No início do século passado, as
115
crianças brasileiras não tinham muita opção: a literatura que começava a aparecer para
elas era quase que exclusivamente importada e, mesmo assim, de acordo com o relato
de minha mãe, não era comum.
Preocupado com a falta de produção brasileira no gênero, Monteiro Lobato
escreveu a "História do peixinho que morreu afogado". Em 1921, depois do sucesso da
sua primeira história infantil, Lobato publicava "A menina do narizinho arrebitado". A
editora, que pertencia a ele mesmo, rodou mais de cinqüenta mil exemplares. Ele doou
quinhentos exemplares às escolas, o livro agradou tanto aos estudantes que chamou a
atenção do governo do estado, que comprou trinta mil exemplares para que a obra
chegasse às mãos das crianças de todas as escolas paulistas. Em poucos meses o restante
da edição foi vendido, e a história de Narizinho marcou o início da história da literatura
infanto-juvenil produzida no Brasil.
De lá para cá, outros grandes autores de literatura infanto/juvenil surgiram,
como: Ziraldo, Ruth Rocha, Pedro Bandeira, Ana Maria Machado, Sylvia Orthof e
outros, marcando a entrada definitiva desse tipo de literatura no mercado editorial
brasileiro.
Na década de 80, sob a influência do discurso da crise da leitura e do apontar de
caminhos para a sua solução havia a preocupação com o incremento da leitura “livre”
entre as crianças e adolescentes a produção de livros de literatura infanto-juvenil
sofreu enorme incremento (SILVEIRA, 2002). Dados da Folha de São Paulo
58
mostram
que a publicação desta literatura específica dobrou entre os anos de 1991 e 1996,
somente contando as publicações de novos títulos. O governo brasileiro, em 1996
distribui 3,4 milhões de livros de literatura infanto-juvenil para escolas públicas com
turmas do anos finais do Ensino Fundamental, assim como 9 milhões para as escolas
públicas de anos iniciais do Ensino Fundamental na Região Nordeste do Brasil.
Dito isto, nos resta esperar que estes livros cheguem à mão dos tantos sujeitos
das escolas e que seus usos gerem possibilidades para: alfabetizar- assim como Sandra,
para simplesmente ler, ou apenas para,
(...) Passemos ao leitor. Porque, mais instrutivos ainda do que os modos de
tratar os livros, são os modos de os ler. Em matéria de leitura, nós, os
58
Retirados das matérias Escrever para crianças não é brincadeira, de Lia Regina Abbud, edição de 28 de
setembro de 1997, e Governo aposta em não-didáticos, de Daniela Falcão, edição de 26 de fevereiro de
1997.
116
"leitores" temos todos os direitos, a começar pelos que recusamos aos
jovens que pretendemos iniciar na leitura.
1) O direito de não ler.
2) O direito de saltar páginas.
3) O direito de não acabar um livro.
4) O direito de reler.
5) O direito de ler não importa quê.
6) O direito de amar os "heróis" dos romances.
7) O direito de ler não importa onde.
8) O direito de saltar de livro em livro.
9) O direito de ler em voz alta.
10) O direito de não falar do que se leu (PENNAC, 2003).
Deixo aqui a imagem da árvore de livros montada pelo projeto de Pesquisa Ler,
Ouvir e Contar, desenvolvido por professoras do CAp/UFRJ e que suscitou a seguinte
dúvida,
Ah, é assim que nasce o
livro? Eu sabia que ele
era feito da árvore, mas
não que nascia na
árvore.
Aluno do ano da
Educação Fundamental
– CAp/2008
Árvore de livros - CAp
117
Percebo que entre as três professoras ouvidas o desejo de fazer diferente.
Carla com o seu quadro-negro e sua procura por ensinar o que realmente vale a pena,
Maria Lucia com o conteúdo que se desenvolve a partir dos projetos surgidos de
diferentes momentos e desejos da turma e por fim, Sandra e sua paixão pela literatura
infantil, fazendo questão de pontuar que faz diferente daquilo que viveu e que considera
tradicional.
Mesmo os materiais didáticos apresentados, possuem possibilidades de uso
diferenciadas, o que nos mostra, mais uma vez, que todo dia elas não fazem tudo sempre
igual.
Trago, assim, uma última história, na qual estive pessoalmente envolvida.
No ano de 2008, dividi uma turma com a professora Maria Lucia. Eu, com a
disciplina Língua Portuguesa e ela com a disciplina de Matemática. A história que deixo
de presente aqui foi produzida em uma das minhas aulas de Língua Portuguesa e conta
sobre a magia de uma professora. A professora relatada na história é Maria Lucia, ou
melhor, Merilu, como é conhecida pelos(as) alunos(as) no Colégio de Aplicação.
O guarda-chuva da professora
59
Maria Eduarda
60
Um dia Merilu vinha para o CAp a e na chuva com suas quinhentas mil
sacolas. Dentro das sacolas ela trazia um monte de perucas de várias cores, tamanhos
e estilos diferentes. As perucas eram brindes, mas isso não vem ao caso.
De repente começou um vendaval (capaz de causar uma avalanche no
Himalaia) e o guarda-chuva da Merilu se abriu e ela levantou vôo. Bem no alto,
naquela confusão as quinhentas mil sacolas da Merilu viraram, e todo mundo achou
que estava chovendo perucas. Merilu foi indo, indo, indo, até que chegou na Disney!
Lá, pensaram até que ela era a Mary Poppins.
Depois de muito voar, pousou nos ponteiros do Big Ben, ficou maravilhada e
pensou que poderia falar sobre isso na aula de Matemática. De repente, ela chegou em
Paris, acabou passando por um varal e viu que estava com um lindo vestido de
59
A escrita da história foi mantida na forma original.
60
Mantive o nome real da criança, mas optei por não colocar o seu sobrenome.
118
bolinhas. Depois de muito voar, chegou no CAp e viu que estávamos de peruca Ela
ficou confusa e nós explicamos que pegamos elas na chuva”. Todos caíram na
gargalhada!
Um breve diálogo
As narrativas das professoras envolvidas nesta pesquisa e a leitura que delas
pude fazer permitem, certamente, reconhecer a presença da criatividade e do múltiplo
A história original
119
nas escolas. Cada uma trabalhando com a sua realidade observem que elas são bem
diferentes e todas parecendo acreditar naquilo que fazem e, como diz Carla, correndo
por diferentes escolas para poder fazê-lo! Suas formações são diferentes, suas histórias
de vida, também, mas mesmo assim, carregam anos de profissão com enorme orgulho
pelo que fazem.
Ponho-me a pensar... Três histórias diferentes, em escolas diferentes, se que
fui assim tão beneficiada? Pensando no que os grandes estudos e a mídia trazem hoje
como retrato da educação neste país...
Possivelmente, eu diria provavelmente, essas estatísticas e generalizações
foram produzidas e são repetidas a partir de múltiplas realidades
observadas por alguém das quais se extraiu, escolheu, selecionou o que as
tornava similares, com o objetivo de viabilizar a construção de uma
compreensão mais global do mundo e da estrutura da sociedade em que
vivemos. Porém, ao fazer isso, esses estudos abdicaram da pluralidade e da
diversidade, dentre outras especificidades das realidades concretas e de
seus processos reais de construção (OLIVEIRA, 2001a, p. 39-40).
Essas histórias são apenas algumas histórias de professoras, aquelas que me
foram contadas. Certamente, Carla, Maria Lucia e Sandra têm muitas outras milhares de
histórias para contar. Afinal, juntas, somam quase setenta anos de sala de aula! Outras
milhares de professoras teriam outras milhares de histórias para contar. Essas histórias
tecem, ou alinhavam uma memória da escola, ou melhor, de escolas.
Acredito que essa memória que se alinhava, tecendo uma memória coletiva pode
contribuir para
recuperar o autoconceito positivo e um sentimento de potência criadora,
que um dia as professoras tiveram, já que hoje se assiste a uma ação
orquestrada de desmoralização a partir da falsa idéia de que a escola
risonha e franca morreu e que agora é preciso eficiência que acompanhe a
lógica do mercado (GARCIA, R.L., 2001. p. 45).
120
Quem parte leva saudade de alguém: a hora do ponto final
Quadro nenhum está acabado,
disse certo pintor;
se pode sem fim continuá-lo,
primeiro, ao além do outro quadro
que, de certa forma,
tem na tela, oculta, uma porta
que dá acesso a um corredor
que leva a outra e a muitas outras.
(MELO NETO, 1997, p.77)
121
A epígrafe acima aponta para o meu primeiro conflito deste capítulo final, a
infinidade de caminhos que podemos percorrer na pintura tessitura de quadros e/ou
textos. A última pincelada, assim como o ponto final tornam-se, em função dessa
infinidade, quase impossíveis, pois há sempre mais a dizer.
Cada releitura que faço desta minha escritura parece me levar para mais longe da
possibilidade de trazer para ela um ponto final. Há tanto ainda a dizer!
Mas diante da impossibilidade de escrever este trabalho ad infinitum, ou como
dizem meus alunos(as), para sempre, terei que deixá-lo como está, mesmo sabendo que
muito do que tenho a dizer o está aqui presente: Pára de pensar, garota!!! Tenho
que dizer a mim mesma.
Assim, chego ao meu segundo conflito. Não como pensar que um único
capítulo possa trazer em seu corpo as “conclusões” do que me propus a estudar. Meu
caminho foi tecido em redes de diálogos. Minhas “descobertas” foram sendo
alinhavadas pelo caminho, na pesquisa e na escritura do texto. Nesse momento tudo
parece adquirir um significado especial e, ao mesmo tempo, tudo parece já ter sido dito,
ou ainda, nada parece estar no lugar, pois muito do que poderia ou deveria ter sido dito
não o foi.
Bem, o que de fato me parece não poder faltar aqui é o entendimento de que nas
histórias de vida, de práticas, nos causos (SGARBI, 2004, p. 27) está a história das
escolas. Não uma história de passividade diante do que se apresenta nos espaçostempos
escolares, mas uma história de usos e apropriações.
Maria Lucia, Sandra e Carla nos mostraram que as meninasprofessoras não são
simples reprodutoras do que lhes é apresentado, são rebeldes e desobedientes. Produzem
conhecimentos tecidos com seus(suas) alunos(as), numa relação práticateoriaprática.
Apontaram para um cotidiano repleto de criatividade e inventividade, mostrando
que na vida de todo dia não como se fazer tudo sempre igual, porque o cotidiano é
algo para além das ações rotineiras. Assim, mostraram a impossibilidade de pensarmos
as salas de aula, como espaçostempos de repetição.
Estas meninasprofessoras inventam-se a cada dia e assim, (re)inventam formas
únicas de trabalhar cada conteúdo. Suas práticas reescrevem os currículos das escolas.
122
Junto com elas me (re)inventei também. Pude compreender a riqueza do
cotidiano e perceber o quanto o pensamento generalizante traduz o seu olhar no
engessamento das práticas. Ao mergulhar com elas em suas histórias, com meus
sentidos a solta, pude ver e sentir o que não é mostrado pelas pesquisas generalizantes e
nem pela mídia (que parece gostar muito de falar mal das professoras), o multicolorido
(OLIVEIRA, 2003) das práticas cotidianas, algo que depende das possibilidades dos
sujeitos envolvidos nos espaçostempos das salas de aula.
A riqueza dessa forma de pesquisa, da qual acredito fazer emergir contribuições
para as pesquisas que se relacionam às escolas, está nas imprevisibilidades, fugacidades
e singularidades dos sujeitos. Sujeitos que narraram suas vidas, (re)inventando o seu
passado e permitindo que a complexidade que envolve suas formações e as suas
experiências curriculares cotidianas fosse “investigada’.
Neste espaço, mais uma vez agradeço à generosidade de Maria Lucia, Carla e
Sandra. Abriram as portas de suas memórias para mim, por meio dos relatos, dos
memoriais, das fotografias e documentos que deixaram em minhas mãos.
Tivemos encontros maravilhosos! Puxei muitos fios, costurei alguns outros,
esperando com isso ter contribuído para o entendimento de como se dá, em diferentes
espaçostempos, a formação de professoras e as práticas curriculares cotidianas.
Está chegando a hora, o dia já vem raiando meu bem, eu tenho que ir embora.
61
Assim me despeço deste enredo que teci por meio das narrativas de Maria Lucia,
Sandra e Carla e dos muitos encontros com outros tantos sujeitos que, de diferentes
maneiras, me ajudaram a alinhavar os diálogos que se apresentam na escrita desta
dissertação.
61
Marchinha de carnaval, letra de carnaval de Rubens Campos.
123
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