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brasileira durante o período colonial, que contava com o auxílio do Tribunal do Santo Ofício
para “manter a ordem” e “preservar a fé”, punindo os desviantes, contribuiu enormemente
para acirrar o preconceito contra o judeu em terras brasílicas.
Nas culturas cristãs ocidentais, os judeus eram identificados com tudo o que se opõe à
cristandade. Devido a isso, a literatura das mais variadas nações representa a figura do judeu
de forma preconceituosa. Na literatura inglesa, por exemplo, em O mercador de Veneza, de
William Shakespeare, o protagonista Shylock, um judeu, é um sujeito audacioso e usurário
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; e
em O judeu de Malta, de Thomas Marlowe, Barrabás é apresentado como ambicioso e
vingativo. Partindo para a literatura portuguesa, temos Gil Vicente e toda uma gama de
personagens judeus representando um dos tipos encontrados na desorgânica engrenagem
social lusitana.
Celso Lafer, em sua obra O judeu em Gil Vicente (1963), faz uma análise detalhada de
algumas peças do dramaturgo português. Entre estas, destacam-se: Auto da Barca do Inferno,
Diálogo sobre a ressurreição, Farsa de Inês Pereira, Juiz da Beira e Auto da Lusitânia.
Segundo Lafer, essa importância demasiada atribuída ao judeu no teatro vicentino pode se
justificar pela numerosa presença judaica no Portugal de sua época, pois estima-se que pelo
menos 1/5 da população portuguesa era formada por judeus. Embora não coloque o judeu na
Barca do Inferno, devido à sua missão “divina” de bode expiatório, Gil Vicente também não
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Apesar do caráter anti-semita da peça, na qual o dramaturgo inglês cria um personagem caricaturado que traz
no próprio nome – Shylock em inglês pode ter o significado de emprestar dinheiro a juros extorsivos – o
estereotipo do judeu usurário; este, por sua vez, demonstra que é dotado, também, de dores e paixões. Prova
disso encontra-se em seu diálogo com Salarino, no qual ele esclarece o motivo pelo qual exigirá de Antônio o
pagamento da dívida, “uma libra de vossa bela carne”, de acordo com o contrato estabelecido: “SALARINO -
Ora, tenho certeza de que se ele não a resgatar no prazo certo, não haverás de tirar-lhe a carne, pois não? Para
que te serviria ela?/ SHYLOCK - Para isca de peixe. Se não servir para alimentar coisa alguma, servirá para
alimentar minha vingança. Ele me humilhou, impediu-me de ganhar meio milhão, riu de meus prejuízos, zombou
de meus lucros, escarneceu de minha nação, atravessou-se-me nos negócios, fez que meus amigos se
arrefecessem, encorajou meus inimigos. E tudo, por quê? Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos? Os judeus
não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? Não ingerem os mesmos alimentos, não se
ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se
aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos
espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos? E se nos
ofenderdes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a
esse respeito. Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um
judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo do cristão? Ora, vingança. Hei de por em
prática a maldade que me ensinastes, sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda.” (In:
SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. p. 73. Edição Ridendo Castigat Mores. Versão para
eBookeBooksBrasil.com. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/mercador.pdf. Acesso em 10
jan. 2008). Segundo Harold Bloom, “Somente um cego, surdo e mudo não constataria que a grandiosa e ambígua
comédia Shakespeariana O Mercador de Veneza é uma obra profundamente anti-semita. [...] Seria improvável
que o próprio Shakespeare fosse anti-semita, mas Shylock é um daqueles personagens Shakespearianos que
parecem transpor os limites das peças a que pertencem.” (BLOOM, Harold. Shakespeare: A Invenção do
Humano. Tradução José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 222).