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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural
DENUNCIAÇÕES E CONFISSÕES EM RITOS DE ALTERIDADE:
O Santo Inquérito de Dias Gomes
PATRÍCIA CONCEIÇÃO BORGES FRANCA FIALHO CERQUEIRA
Feira de Santana
2007
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural
DENUNCIAÇÕES E CONFISSÕES EM RITOS DE ALTERIDADE:
O Santo Inquérito de Dias Gomes
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Literatura da Universidade
Estadual de Feira de Santana, como requisito
parcial para obtenção do grau de Mestre em
Literatura e Diversidade Cultural, tendo como
Orientador o Professor Doutor Jorge de Souza
Araújo.
Feira de Santana
2007
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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE FEIRA DE SANTANA
DEPARTAMENTO DE LETRAS E ARTES
Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural
DENUNCIAÇÕES E CONFISSÕES EM RITOS DE ALTERIDADE:
O Santo Inquérito de Dias Gomes.
Patrícia Conceição Borges Franca Fialho Cerqueira
Dissertação submetida ao Programa de Pós-Graduação em Literatura e
Diversidade Cultural, da Universidade Estadual de Feira de Santana,
avaliada e aprovada por
Prof. Dr. Jorge de Souza Araújo (UEFS)
(Orientador)
Prof ª Dra. Lyslei de Souza Nascimento (UFMG)
(Membro da Banca Examinadora)
Prof. Dr. Eurelino Teixeira Coelho Neto (UEFS)
(Membro da Banca Examinadora)
Em 16/08/2007
Feira de Santana, agosto/2007
4
À minha avó Enedina Alves Franca (in memoriam), que
tinha o sonho de me ver formada, dedico mais esta
“formatura”.
5
AGRADECIMENTOS
Ao Eterno, pela vida, pela saúde e pelas bênçãos que me tem concedido, também pela
sabedoria e força que me deu para que alcançasse a realização deste trabalho. A Ele toda
honra e toda glória.
Ao professor Jorge de Souza Araújo pela sabedoria, dedicação e paciência demonstradas, e
pelo direcionamento dado ao trabalho.
À minha família e amigos pela força nos momentos difíceis e pela constante torcida.
A Marilton Miranda de Cerqueira, meu esposo, pelo amor, companheirismo, cuidado,
incentivo, paciência e dedicação durante todo esse tempo, sempre me ajudando a superar “as
barras mais pesadas que tivemos”.
Aos meus filhos Ysaac e Kevin, minhas maiores bênçãos, pela paciência nas ausências.
À minha mãe Olga, pelo amor, dedicação e cuidado nos momentos mais difíceis.
À minha sogra Aldanice, pelo carinho e apoio constantes.
À minha turma do Mestrado: Adriano, Ana Carolina, Clarissa, Eugênia, Idmar, Jecilma,
Naynara, Patrício, Valéria, Valquíria, pela força e apoio sempre demonstrados, pelas
conversas, pela troca de conhecimento sempre tão produtiva. Em especial, à Ìsis e Valquíria
pelos ‘passeios’ literários enriquecedores e pela ajuda nas correções.
Às “meninas” do PPGLDC: Lindinalva, Lúcia, Gislene e Joelma, pela pronta disponibilidade
em ajudar, sempre.
Aos professores Cláudio Cledson Novaes, pela gentileza no empréstimo de materiais para a
pesquisa e Rita Queiroz, pela orientação e ajuda na aquisição do livro Memórias de Branca
Dias.
A todos os professores do Programa de Pós-Graduação em Literatura e Diversidade Cultural
que, através das leituras, sugestões e ensinamentos, colaboraram para a confecção deste
trabalho.
À Marilva de Cerqueira Lima, pela ajuda nas correções.
A Wellington Vasconcelos, pela ajuda com o abstract.
Ao Doutor Edgar Marcelino de Carvalho, que, através do seu conhecimento e dedicação,
ajudou-me na recuperação da minha saúde (sem isso não teria conseguido terminar esse
trabalho).
Enfim, a Dias Gomes (in memoriam), por ter escrito O Santo Inquérito com tanto lirismo e
grandeza de espírito; por ter levado para os palcos e para a Tv o homem simples de nosso
povo; e por povoar a nossa imaginação com seus coronéis, poetas-lobisomens, pagadores de
promessas, heróis, santos, beatos, homens alados, etc.
6
CAPÍTULOS DE HISTÓRIA COLONIAL
BRANCA DIAS
Branca Dias
paixão de frade
em seu engenho
da Paraíba
repele o amor
pecaminoso.
O amor se vinga:
É acusada
de judaísmo.
Já vão prendê-la.
Atira jóias e prataria
na correnteza.
A água vira
Riacho da Prata.
Morre queimada
no santo lume
da Inquisição
em Portugal.
Reaparece
na Paraíba
em Pernambuco
sob o luar
toda de branco
sandálias brancas
cinto azul-ouro.
Branca Dias
– garantem livros –
nunca existiu,
é lenda pura
de lua cheia.
E a Inquisição
Provavelmente
outra ilusão.
(Carlos Drummond de Andrade)
7
RESUMO
Este trabalho faz um estudo da peça O Santo Inquérito, do escritor baiano Dias Gomes, que
está situada entre a ficção e a história, e gira em torno da prisão e execução de Branca Dias
pelo Tribunal do Santo Ofício, podendo ser lida, também, de maneira alegórica, como uma
denúncia indignada por parte do autor contra a repressão generalizada que se deu no Brasil
após o golpe militar, em 1964. Isso, devido às semelhanças existentes entre os sistemas, visto
que, ambas, tanto a Inquisição, quanto a Ditadura representam um poder extremamente
hegemônico, autoritário e centralizador. Desta maneira, este estudo tem como objetivo
analisar de que forma o julgamento e a condenação de Branca Dias ocorreram devido à
intolerância religiosa e também a intolerância à alteridade de pensamento, bem como verificar
de que maneira essa intolerância se estabelece contra aqueles que, de alguma forma, se opõem
aos sistemas pré-estabelecidos. Embora seja uma peça teatral, o texto em questão será
analisado enquanto literatura, dando o enfoque principal à palavra, à narrativa literária.
Também a abordagem histórica e filosófica dos temas tratados deverá ser feita de forma a
contextualizar e fazer emergir os elementos necessários para o bom entendimento do texto. A
metodologia utilizada tem como principal recurso a pesquisa bibliográfica das bases teóricas e
informativas, e também de pesquisadores e historiadores dos temas abordados, os quais darão
o suporte necessário para a análise da obra dramática O Santo Inquérito dentro dos requisitos
propostos.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura; Alteridade; Intolerância; Inquisição; cristãos-novos;
Ditadura.
8
ABSTRACT
This work studies the play O Santo Inquérito (The Holy Inquiry), by the Bahian writer Dias
Gomes, that is situated between fiction and history, and rotates around the prison and
execution of Branca Dias by the Sacred Office Tribunal. It can also be read in an allegorical
way as an angry denunciation on the part of the author against the generalized repression that
was felt in Brazil after the military coup, in 1964. That is due to the existent similarities
between the systems once both, the Inquisition and the Dictatorship, represent an extremely
hegemonic, authoritarian and centralizing power. This way, this study aims to analyze in
which ways the judgement and condemnation of Branca Dias happened due to religious
intolerance and also to the intolerance to thought alterity, as well as to verify in what way that
intolerance is established against those who, somehow, are opposed to the pre-established
systems. Although it is a play, the text in question will be analyzed as literature, giving the
main focus to the words, to the literary narrative. Also the philosophical and historical
approach of the treated subjects should be done in order to contextualize and emerge the
necessary elements for the good understanding of the text. The methodology used has as main
resource the bibliographical research of the theoretical and informative bases, and also of
researchers and historians of the approached themes, which will give the necessary support
for the analysis of the dramatic play O Santo Inquérito (The Holy Inquiry) inside the
proposed requirements.
KEYWORDS: Literature; Alterity; Intolerance; Inquisition; New Christians; Dictatorship.
9
SUMÁRIO
1
INTRODUÇÃO .............................................................................................
9
1.1 A origem do teatro ......................................................................................
9
1.1.1
O teatro no Brasil e na Bahia .....................................................................
10
1.2 Definindo o objeto de estudo ......................................................................
12
2
ENTRE A FICÇÃO E A HISTÓRIA .........................................................
17
3
FORMAS DE ARBÍTRIO E INTOLERÂNCIA .......................................
46
3.1 Intolerância política e intolerância religiosa. O caso Branca Dias ...........
46
3.2 Conflito: sagrado x profano x herético .......................................................
67
3.3 Branca Dias, Antonio Vieira, Domenico Scandella: a Inquisição e três
diferentes discursos .......................................................................................
79
4 AS REPRESENTAÇÕES DA VIDA/MORTE EM O SANTO
INQUÉRITO: a identidade resistência/rendição dos cristãos-novos ........
102
5 DIAS GOMES E O TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO: alegorias da
ditadura militar .............................................................................................
127
5.1 Apenas um subversivo ...................................................................................
127
5.2 As “Chamas de uma nova inquisição” .......................................................
136
5.2.1 Arte, engajamento e censura: a caça às bruxas no Brasil contemporâneo ....
145
5.3 Vivendo num tempo em que falar de árvores é quase um crime”: O
Santo Inquérito como alegoria da Ditadura Militar ..................................
156
6
CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................
171
REFERÊNCIAS ............................................................................................
174
10
1 INTRODUÇÃO
O teatro é ainda, por excelência, a arte da luta, do amor e da paixão do homem. (Dias Gomes)
1.1 A origem do teatro
A palavra teatro origina-se do latim <<theatrum>>, cuja raiz vem do grego
<<théatron>>, derivado de <<theaomai>> (ver). <<Théa>> = espetáculo, vista, visão + o
sufixo [-tron] = instrumento, lugar, ou seja, lugar de onde se o espetáculo”. Apesar de ter
florescido na Grécia Antiga, o teatro, como manifestação artística, já estava presente na
cultura de muitos povos. As representações dramáticas eram utilizadas para fins religiosos.
No Egito, um grande espetáculo popular falava sobre a morte de Hórus e a ressurreição de
Osíris (a história do assassinato do deus Osíris por Seth
1
, seu irmão, é a peça mais antiga que
se conhece; seu texto, escrito em papiro, é datado de 3.200 a.C., e foi descoberta por
arqueólogos em Luxor, em 1895). Também na China, durante a dinastia Hsia, que durou de
2205 até 1766 a.C., e, até mesmo, na Índia, o teatro foi estabelecido como forma de expressão
religiosa. Com o passar do tempo, além das celebrações religiosas, as conquistas militares e
outros acontecimentos passaram, também, a ser evocados.
A Grécia Antiga foi o lugar onde o teatro ocidental, com os elementos que
conhecemos na atualidade, teve seu início e florescimento. O teatro grego está fortemente
ligado aos mitos gregos e à própria religião grega. De acordo com Romualdo Rodrigues
Palhano, o teatro originou-se essencialmente de três festividades: dos mistérios de Delos; da
louvação às divindades Quintelanas - Elêusis, Demótes e Proserpina; e do culto a Dioniso.
Para os estudos históricos e antropológicos realizados, esta última é a mais provável. Na
Grécia, uma vez por ano, Dioniso
2
era homenageado com música de flautas, danças das
1
“Osíris, senhor dos mortos, é um dos deuses mais importantes do antigo politeísmo egípcio. Simbolizava o
poder criativo da natureza, desde o renascer da vegetação até as cheias anuais do Nilo. Segundo a versão mais
consagrada do mito, Osíris, casado com Ísis, gozava de grande prestígio. Isso despertou a inveja de Seth,
encarnação do espírito do mal, que esquartejou o corpo de Osíris em 14 partes e as espalhou por vários lugares.
Ísis conseguiu encontrar e enterrar todos os pedaços, menos o falo e deu nova vida ao marido, que permaneceu
no mundo subterrâneo como governante. Seth foi combatido e derrotado por Hórus, que ocupou o reino de seu
pai e se tornou o antecessor dos faraós, o que explica o título Hórus Vivo usado pelos reis egípcios. Sua morte e
ressurreição simbolizam a sucessão das estações e permitem aos homens esperar uma nova vida. Hórus era o
deus do céu, representava as forças da ordem triunfando contra a desordem. Filho de Osíris e Ísis, lutou contra
Seth, o deus da desordem, e ao se levantar triunfante ganhou o direito de governar o trono egípcio.” (Disponível
em: http://geocities.yahoo.com.br/lissafloripa/deuseshorus.htm. Acesso em: 04 fev. 2006)
2
Dioniso, (ou Dionísio) “divindade do vinho e da embriaguez, era na origem deus da vegetação, cultuado na
Trácia e na Frígia. Segundo a tradição clássica, era filho do deus Zeus com Sêmele, filha mortal do rei de Tebas.
Enciumada, Hera, esposa de Zeus, persuadiu Sêmele a pedir a ele que se mostrasse em todo o esplendor de sua
majestade. mele morreu fulminada pelos raios emitidos por Zeus, mas este salvou o filho que ela trazia no
11
bacantes, e havia também o sacrifício de um animal, geralmente um bode. Estas procissões
em homenagem a Dioniso também eram de caráter religioso.
No início, o teatro era representado pelo povo cantando ao ar livre, sendo, ao mesmo
tempo, o criador e o destinatário do espetáculo teatral. Tal encenação era chamada de “canto
ditirâmbico”, no qual as pessoas giravam em torno do altar do deus, agradecendo pela colheita
da uva e pelo sexo que significava a fertilidade da vida. “E foi exatamente desse coro, do
contraste entre o espírito Dionisíaco e Apolíneo, que nasceram a Tragédia e a Comédia. Ao
longo do tempo, foram se transformando.” (BOAL, 1983, s/p). O que no início era uma
manifestação popular, com o decorrer do tempo, transformou-se em grandiosas
representações da vida de Dioniso, nas quais os participantes dividiam-se em diferentes coros
cantados e se vestiam de bode (Dioniso transformado), bacantes (ninfas) e sátiros (metade
homem / metade animal). Tais coros eram divididos em semi-coros, que dialogavam entre si e
possuíam um líder chamado de corifeu. A história de Dioniso era narrada na terceira pessoa,
até que, em 534 a.C., Téspis, um corifeu, resolveu inovar e transformou a narração em um
discurso em primeira pessoa, encarnando o personagem Dioniso: “Eu sou Dioniso.” diz
Téspis. Acredita-se que, neste momento, nasceu historicamente o primeiro ator. No início de
sua história, o ator foi chamado de hypocrités (hipócrita), por fingir ser o que não era. A partir
da introdução do ator, a manifestação teatral deixou de ser um fenômeno meramente religioso
e passou a ser, também, uma representação dramática.
1.1.1 O teatro no Brasil e na Bahia
O teatro brasileiro nasceu no século XVI, logo no início da colonização e foi o
instrumento utilizado pelos jesuítas para catequizar os índios e, também, para advertir os
colonos. Os primeiros autos foram escritos por José de Anchieta e encenados pelos índios.
Durante o século XVII, houve um grande vazio na dramaturgia brasileira, com poucos textos
encenados durante festas comemorativas. Nesse período, destacam-se apenas duas peças de
Manuel Botelho de Oliveira (1637-1711), que foi o primeiro comediógrafo nascido em terras
brasileiras e o mais antigo poeta a editar suas obras. Porém, por escrever em espanhol,
ventre e enxertou-o em sua própria coxa. Quando Dioniso nasceu, para protegê-lo de Hera, Zeus enviou-o a
Nisa, onde cresceu e descobriu a vide e o fabrico do vinho. Depois realizou numerosas viagens para expandir seu
culto e ensinar aos homens a arte da vinicultura. Antes de subir ao Olimpo, desceu aos infernos para buscar a
mãe e levou-a consigo. Em Roma
, Dioniso foi identificado com Baco.” (In: Mitologia Grega: deuses gregos.
Dioniso. Disponível em: http://www.nomismatike.hpg.com.br/Mitologia/Dionisio.html. Acesso em: 10 jan.
2008)
12
imitando os autores peninsulares, de acordo com Sábato Magaldi (2001), Botelho não está
incluso em nossa literatura dramática.
A Bahia abrigou a primeira casa de espetáculo brasileira, erguida em Salvador, no
século XVIII, situada num dos recintos da Câmara de Vereadores, na Praça Municipal. Ali
eram apresentados os espetáculos que passavam pela cidade. o Teatro São João, criado em
1812, situava-se no antigo Largo do Teatro, hoje Praça Castro Alves, e foi o mais importante
teatro baiano no século XIX.
O Conservatório Dramático da Bahia foi fundado por Agrário de Menezes (1834-
1863), escritor de Calabar peça que narra a luta em que portugueses, negros e indígenas se
aliaram para expulsar do nordeste os holandeses, no século XVII –, com o propósito de
incentivar e amparar escritores e grupos dramáticos na cidade. O Conservatório funcionou no
Teatro São João entre os anos de 1857 até 1874. O Teatro São João servia também de ponto
de encontro para a aristocracia e intelectualidade baianas. Para Sábato Magaldi (2001),
Agrário de Menezes exemplifica o drama histórico nacional, ao lado de José de Alencar e
Castro Alves. O século XIX viu surgir importantes nomes do teatro baiano, como Xisto Bahia
(1841-1894), considerado um dos mais importantes artistas brasileiros da segunda metade do
século XIX, e Sílio Boccanera Júnior (1863-1928) que, por 34 anos, dedicou-se ao estudo da
história, das artes e das tradições baianas e escreveu também peças teatrais com um
importante teor de crítica social.
No início do século XX, o teatro baiano o era inteiramente regionalista, mas estava
voltado, também, para a comédia de costumes, o drama e a revista. Com esse teatro estavam
comprometidos autores como Silio Bocccanera Júnior, Francisco Borges de Barros, Eduardo
Carigé Baraúna, Amélia Rodrigues, Manuel Joaquim de Souza Brito, Climério Cardoso de
Oliveira, Antonio Pedro da Silva Castro, Altamirando Requião, Affonso Ruy de Souza, entre
outros. Esse último merece destaque também como historiador e pesquisador, tendo
publicado, em 1959, a História do teatro na Bahia.
Entre os autores teatrais baianos que se destacaram na segunda metade do século XX,
no Brasil, está Dias Gomes. Sua dramaturgia destaca-se pela crítica social e o profundo
engajamento político-ideológico presentes em sua obra, principalmente no que se refere à luta
contra a opressão e a censura. Contudo, esta temática não é exclusiva do autor baiano, mas a
característica de toda uma geração de dramaturgos que lutavam por mudanças sociais e
foram golpeados pela ditadura, enquanto a censura mutilava seus projetos teatrais.”
(MERCADO apud GOMES, 1989, p.12). Entre estes dramaturgos, podemos destacar
13
Vianinha (Rasga coração), Guarnieri (Um grito parado no ar), Lauro sar Muniz (Sinal de
vida), entre outros.
1.2 Definindo o objeto de estudo
Tratar de um tema como a Inquisição, nos dias de hoje, pode parecer, à primeira vista,
retrógrado ou antiquado. No momento em que os pós (modernismos, colonialismos, etc.)
fazem tanto sucesso, o que nos levaria a buscar no passado um tema para estudo? um
velho ditado que diz: “quem não conhece a história está fadado a cometer os mesmos erros”,
e, pensando assim, tentamos encontrar, no passado, respostas para problemas que ainda hoje
nos atingem diretamente. Para Anita Novinsky, o estudo acerca da Inquisição adquiriu nos
últimos tempos uma enorme atualidade:
A implantação de regimes totalitários em diversos países do mundo, a tortura aplicada por
numerosas nações, dissidentes políticos e sociais confinados em campos de concentração, o
isolamento de milhões de criaturas humanas proibidas de conhecer a história de suas origens e
de sua cultura, a miséria espiritual de homens condenados ao silêncio e à incomunicabilidade,
o recrudescimento do racismo mascarado em novas ideologias, são realidades do mundo de
hoje, e podemos buscar na Inquisição o seu mais perfeito modelo. (1982, p. 7)
A peça O santo inquérito (1966), do escritor baiano Dias Gomes, está situada entre a
ficção e a história, e gira em torno da prisão e execução de Branca Dias pelo Tribunal do
Santo Ofício. Dias Gomes, ao reconstituir a história de Branca Dias, tinha em vista não
apenas denunciar um problema existente em um passado remoto da nossa história – a
perseguição aos cristãos-novos face à intolerância por parte da igreja oficial mas também
trazer à tona, de maneira alegórica, um problema existente no país em sua época: a opressão
da ditadura militar no Brasil nos anos 60 do século XX, posto que ambos os sistemas
representaram um poder extremamente autoritário e centralizador.
A escolha do texto como objeto de estudo ocorreu devido ao interesse que a peça nos
despertou desde a sua primeira leitura, seis anos atrás. O lirismo que permeia toda a narrativa,
bem como o debate teológico que suscita, fizeram com que o texto se tornasse parte de uma
reflexão acerca do verdadeiro papel da Igreja, que já vinha sendo pensada anteriormente. Dias
Gomes, mesmo não sendo um teólogo, coloca diante de nós uma igreja dividida, entre aquilo
que deveria fazer seguindo os passos do seu mestre e aquilo que faz aderindo a uma
série de preceitos e dogmas que contrariam as leis divinas. Segundo Yan Michalski (in
GOMES, 1996), a Igreja, para Dias Gomes, teria que ser mais humana e justa, refletindo a
14
imagem de uma sociedade idealizada, com a qual o autor sonha e pela qual combate. Uma
sociedade tolerante, onde o homem ou a mulher possam “desfrutar livremente e em paz de
todas as maravilhas e dádivas da natureza, e transmitir aos seus semelhantes o impulso de
generosidade e amor que existe no fundo do coração de todos os homens de boa fé.” (p. 11).
O que enfatiza a luta por uma melhor ordem social, na qual os homens possam viver
dignamente, usufruindo de sua verdadeira liberdade.
Neste estudo, pretende-se analisar de que maneira a condenação de Branca Dias
ocorreu devido à intolerância à alteridade de pensamento, e também como essa intolerância se
estabelece contra aqueles que, de alguma forma, se opõem aos sistemas pré-estabelecidos.
Buscar-se-á averiguar se em O santo inquérito, a intolerância e os conflitos existentes na
perseguição aos cristãos-novos seriam representados através da prisão e execução de Branca
Dias; e se essa perseguição deveu-se à não aceitação da alteridade.
Vale salientar que o texto estudado, embora seja uma peça teatral, será analisado,
neste trabalho, enquanto literatura, dando o enfoque principal à palavra, à narrativa literária,
não desmerecendo, no entanto, os aspectos dramáticos quando estes forem importantes para a
compreensão do sentido daquilo que está sendo analisado. Deve-se ressaltar, também, que,
por se configurar um trabalho de base literária, a abordagem histórica e filosófica dos temas
tratados deverá ser feita de forma a contextualizar e fazer emergir os elementos necessários
para o bom entendimento do texto, não exigindo, portanto, uma análise mais detalhada dos
mesmos.
O título da dissertação, Denunciações e confissões em ritos de alteridade: O santo
inquérito, de Dias Gomes, busca retratar a maneira como as pessoas se comportavam em
relação ao “outro” num sistema que as obrigavam a confessar e denunciar seus semelhantes.
Denúncias e confissões arrancadas, em muitos casos, por meio de torturas e que, nem sempre,
correspondiam à verdade. Também alteridade”, vocábulo tão utilizado nesses tempos de
(re)flexão dos conceitos, entre estes, principalmente, o da intolerância, que traz até nós fortes
elementos para exame. À medida em que as sociedades se relacionam, a questão da alteridade,
ou seja, o que diz respeito ao “outro”, está cada vez mais presente. No entanto, nem sempre,
ou quase nunca, isso se de forma pacífica, devido à não aceitação das diferenças, o que faz
disso uma fonte geradora de grandes conflitos no decorrer da História. No texto em questão, a
não aceitação da alteridade se em dois planos: a intolerância étnica e religiosa sofrida por
Branca, ao ser descoberta sua ascendência; e a intolerância à alteridade de pensamento, visto
que ela é considerada uma herege por discordar do pensamento unívoco da Igreja.
15
Desta maneira, avaliar o comportamento dos personagens em relação aos “outros” é
fundamental para o entendimento do texto. Pois, tanto na Inquisição (contexto da peça),
quanto na Ditadura (contexto da escrita da peça) havia fortes indícios de que, em tais
períodos, não havia o menor respeito às diferenças. Sejam estas de caráter material, como as
diferenças étnicas e religiosas; ou de ordem abstrata, como as idéias e as opiniões. Fica
evidente, contudo, que as diferenças de pensamento são as que mais incomodam um poder
totalitário e hegemônico. Tanto que a Inquisição foi criada para combater as “heresias”,
enquanto a ditadura perseguia, principalmente, os “subversivos”, aqueles que ousavam
discordar do poder vigente.
O santo inquérito serviu de corpus para alguns estudos acadêmicos como: Tradição
da Intolerância - Estudo dos textos de O Santo Inquérito e O pagador de promessas, de Dias
Gomes, dissertação de mestrado de Eduardo Henrique Cirilo Valones, na UFPB, em 2000;
Repercussões do trágico e do social no teatro de Dias Gomes: Leitura comparativa entre
Antígona de Sófocles; O Pagador de Promessas, O Santo Inquérito e As Primícias de Dias
Gomes, tese de doutorado de Lourdes Kaminski Alves, na Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho/Assis, em 2003; O Inquérito da ordem do discurso em “O Santo
Inquérito” de Dias Gomes, dissertação de mestrado de Célia Maria Dias de Carvalho, na
Universidade Federal Fluminense, em 1994; O Santo Inquérito e Breviário das Terras do
Brasil: duas visões da Inquisição, dissertação de mestrado de Leiim Kou de Almeida Melo,
na UFPR, em 2000, bem como artigos, ensaios, entre outros. Apesar dos trabalhos citados, as
peças de Dias Gomes ainda são estudadas de forma escassa na academia, se compararmos os
estudos existentes relacionados à importância do autor no teatro brasileiro contemporâneo.
Face a isso, espera-se que este trabalho possa trazer alguma contribuição, não somente para a
fortuna crítica sobre o dramaturgo, como também, para o tema ora proposto.
A metodologia utilizada tem como principal recurso a pesquisa bibliográfica das bases
teóricas e informativas, bem como de pesquisadores e historiadores quanto aos temas
abordados, os quais darão o suporte necessário para a análise da obra dramática O santo
inquérito dentro dos requisitos propostos.
O presente trabalho está organizado em quatro capítulos. No primeiro, verificaremos
como O santo inquérito se situa “Entre a ficção e a história”. A análise da obra, sob a vertente
das teorias contemporâneas relativas ao estudo da ficção e da história, tem como base os
seguintes teóricos: Mario Vargas Llosa, La verdad de las mentiras (1990); Hayden White,
Meta-História a imaginação histórica do século XIX (1992); Georg Lukács, La forma
clásica de la novela histórica (1966); Benedito Nunes, O tempo na narrativa (1995) e Linda
16
Hutcheon, em Poética do pós-modernismo: política, teoria, ficção (1991), bem como a Arte
Poética de Aristóteles, entre outros.
Também buscaremos fazer um apanhado da representação do judeu e do cristão-novo
na literatura e na cultura brasileiras, de forma a contextualizar os personagens da peça na
história e no teatro brasileiros. Isto porque, de acordo com a história oficial, as três etnias
fundadoras do Brasil foram os portugueses, os negros e os índios. Essa conceituação, todavia,
deixa de revelar que povos de outras culturas também estiveram presentes na formação social
brasileira, a exemplo dos cristãos-novos, judeus convertidos ao catolicismo, que estiveram
presentes no Brasil desde o início do seu povoamento pelos portugueses e contribuíram, de
maneira significativa, para o desenvolvimento econômico, social e cultural do país. Contudo,
tais indivíduos não se encontram citados nos livros de História do Brasil e isto faz com que
sua contribuição para a nossa história seja diluída em meio à influência dos portugueses,
como se ambos fossem um só povo.
Dado a isto, este estudo buscará fazer a ligação entre a literatura e a história,
mostrando que alguns fatos “esquecidos” pela historiografia oficial não passam
desapercebidos pela literatura, e que, através da metaficção historiográfica, podemos rever a
história e encontrarmos mais de uma versão para os fatos. Ainda neste capítulo, falaremos da
figura mítica de Branca Dias, sua relação com a mímese aristotélica, assim como sua
afinidade com a tragédia antiga.
No segundo capítulo, “Formas de arbítrio e intolerância”, faremos um apanhado teórico
sobre a tolerância e a intolerância, situando-as no contexto histórico. Para isso, tomaremos
como base a Carta a respeito da tolerância, de John Locke e o Tratado sobre a tolerância, de
Voltaire; assim como, os artigos provenientes do Foro Internacional sobre a Intolerância,
ocorrido na Sorbonne, em 1997, que se encontram no livro A intolerância (2000), organizado
por Françoise Barret-Ducrocq.
Tal capítulo encontra-se dividido em três sub-itens, nos quais iremos analisar a
representação das formas de arbítrio e intolerância presentes na obra de Dias Gomes a partir
do caso Branca Dias; identificar os conflitos existentes entre o sagrado x profano x herético e
sua contribuição para gerar a intolerância, assim como fazer um confronto entre a figura de
Branca (profano) e o padre (sagrado) e suas inversões; e comparar os discursos de Branca
Dias, Antonio Vieira e Domenico Scandella, dito Menocchio, diante da Inquisição, buscando
perceber, nos discursos dos três, as semelhanças e as diferenças, tentando entender o que
levou Branca e Menocchio a serem condenados e Vieira a ser liberto. Neste último sub-item,
porém, não temos a intenção de fazer uma análise profunda do tema abordado, por reconhecer
17
ser este assunto bastante complexo, e que, sozinho, teria elementos suficientes para um
estudo mais detalhado.
O terceiro capítulo, “As representações da vida/morte em O santo inquérito: a
identidade resistência/rendição dos cristãos novos”, pretende estabelecer um contraponto
entre vida/morte real e simbólica, demonstrando que estes conceitos podem tornar-se
variáveis, dependendo das circunstâncias. Pois a morte real, ou biológica, a partir do momento
em que, através dela, o indivíduo perde sua integridade física, pode vir a ser uma libertação;
da mesma maneira, uma vida medíocre, na qual seja negado ao indivíduo o direito a ter sua
própria identidade e onde seus pensamentos o sejam respeitados, chegando a perder a
dignidade, é como se ele estivesse morto simbolicamente.
Para o estudo da identidade, tomamos como referencial teórico o conceito de
‘Identidade de resistência’ de Manuel Castells, em seu livro O poder da identidade (1999) e
Ricardo Foster, em Ficção marrana (2006), para falar sobre a identidade dos cristãos-novos.
Analisamos também a repercussão da morte de Branca Dias na peça, e como esta se tornou
um símbolo de libertação da opressão sofrida por todos aqueles obrigados a abdicar daquilo
que realmente são e acreditam. As representações da morte em O santo inquérito podem ser
analisadas de duas maneiras: primeiro, as perseguições da Inquisição colocavam os judeus
(cristãos-novos) entre duas escolhas: resistir e morrer na fogueira (Branca), ou abjurar,
deixando para trás sua identidade, sua memória, o que equivale à morte ideológica de sua
cultura e das suas crenças (Simão Dias).
No quarto e último capítulo, “Dias Gomes e o Tribunal do Santo Ofício: alegorias da
ditadura militar”, primeiramente, levantamos vida e obra do autor, tomando como fontes
principais a sua autobiografia Apenas um subversivo (1998) e a Coleção Dias Gomes (1989,
1990, 1992), na qual suas peças se encontram reunidas, trazendo comentários de estudiosos da
obra, artigos saídos na imprensa, bem como entrevistas com o autor. Logo após, fazemos uma
contextualização do período ditatorial no Brasil pós-64, em que verificamos o posicionamento
dos intelectuais e artistas frente à repressão e à censura, e a importância que obteve o teatro de
resistência no período. Por fim, verificamos de que maneira Dias Gomes escreveu O santo
inquérito como um texto de resistência e denúncia contra a ditadura militar, e de que forma
ele faz um recuo temporal, apropriando-se de um fato histórico do passado para criticar e
denunciar as opressões vividas no presente.
18
2 ENTRE A FICÇÃO E A HISTÓRIA
Los hombres no viven sólo de verdades; también les hacen falta las mentiras: las que inventan
libremente, no las que les imponen; las que se presentan como lo que son, no las
contrabandeadas con el ropaje de la historia. La ficción enriquece su existencia, la completa,
y, transitoriamente, los compensa de esa trágica condición que es la nuestra: la de desear y
soñar siempre más de lo que podemos realmente alcanzar. (Mario Vargas Llosa)
As relações entre literatura e história estão no centro do debate da contemporaneidade
e vêm se estabelecendo como uma das mais proveitosas no atual mapa das revisões históricas.
Este revisionismo histórico tem suscitado o interesse de autores em diversos cantos do
mundo. Entretanto, a ficcionalização da história não é um tema novo. Se retornarmos ao início
da teorização da arte no Ocidente, encontraremos Aristóteles estabelecendo uma dialética
entre a poesia e a história em sua Poética. Para ele, a poesia encerraria mais filosofia,
elevação e universalidade, por falar de verdades possíveis ou desejáveis. a história trataria
de verdades particulares, acontecidas, não universais:
O historiador e o poeta não se distinguem por escrever em verso ou prosa; caso as obras de
Heródoto fossem postas em metros, não deixaria de ser história; a diferença é que uma relata
os acontecimentos que de fato sucederam, enquanto o outro fala das coisas que poderiam
suceder. E é por esse motivo que a poesia contém mais filosofia e circunspecção do que a
história; a primeira trata das coisas universais, enquanto a segunda cuida do particular.
Entendo que tratar de coisas universais significa atribuir a alguém idéias e atos que, por
necessidade ou verossimilhança, a natureza desse alguém exige; a poesia, desse modo, visa ao
universal, mesmo quando nomes a suas personagens. Quanto a relatar o particular, ao
contrário, é aquilo que Alcibíades fez, ou aquilo que fizeram a ele. (ARISTÓTELES, 2000, p.
47)
Com o advento da modernidade e o avanço do racionalismo, a diferenciação entre a
poesia e a história, segundo a dialética aristotélica, é acentuada, provocando a ruptura entre a
poesia/ficção (imaginação) e a história (verdade). Desde então, a história se instaurou como
uma disciplina pretensamente científica. Linda Hutcheon, em Poética do pós-modernismo:
política, teoria, ficção (1991), afirma que: “no culo XIX, pelo menos antes do advento da
“história científica” de Ranke, a literatura e a história eram consideradas como ramos da
mesma árvore do saber, uma árvore que buscava “interpretar a experiência, com o objetivo de
orientar e elevar o homem” (Nye 1966, 123)” (HUTCHEON,1991, p. 141). No entanto, com a
separação dessas duas formas de conhecimento em disciplinas distintas, criou-se a idéia de
“verdade histórica” diretamente ligada à escrita da “observação factual” da realidade, e de
“mentira”, comumente relacionada à ficção ou literatura. Contudo, de acordo com Hutcheon:
19
é essa mesma separação entre o literário e o histórico que hoje se contesta na teoria e na arte
pós-modernas, e as recentes leituras críticas da história e da ficção têm se concentrado mais
naquilo que as duas formas de escrita têm em comum do que em suas diferenças. Considera-se
que as duas obtêm suas forças a partir da verossimilhança, mais do que a partir de qualquer
verdade objetiva. (HUTCHEON, 1991, p. 141).
Identificadas como “constructos lingüísticos”, história e ficção passaram a ser vistas,
então, como narrativas “altamente convencionalizadas” e “nada transparentes em termos de
linguagem ou de estrutura” (HUTCHEON, 1991, p. 141), o que equivale a dizer que ambas
“criam” ou “ficcionalizam” seus relatos.
Na atualidade, a suspeita acerca da redação da história é algo que vem se
concretizando e está presente nas obras de escritores como Dominick LaCapra e Hayden
White. Em seu “A poética da história” (1992), White considera o labor histórico como o que
ele manifestamente é, uma estrutura verbal na forma de um discurso narrativo em prosa, que
pretende ser um modelo, ou ícone, de estruturas e processos passados no interesse de explicar
o que eram representando-os. (1992, p.18). E que o historiador utiliza um certo grau de
“invenção” em suas operações, pois, A fim de imaginar o que realmente aconteceu, no
passado, portanto, deve primeiro o historiador prefigurar como objeto possível de
conhecimento o conjunto completo de eventos referidos nos documentos. Este ato
prefigurativo é poético,” (1992, p.45). A narrativa histórica implicaria, portanto, na
elaboração de um enredo com personagens, que são agentes da ação histórica, além da
elaboração de um argumento que vem imbricado de implicações ideológicas e pressupostos
filosóficos.
O conhecimento histórico torna-se, assim, a invenção de uma cultura particular, num
determinado momento, que, embora se mantenha colado aos monumentos deixados pelo
passado, à sua textualidade e à sua visibilidade, tem que lançar mão da imaginação para
imprimir um novo significado a estes fragmentos. A interpretação em história é a imaginação
de uma intriga, de um enredo para os fragmentos de passado que se tem na mão. Esta intriga
para ser narrada requer o uso de recursos literários como as metáforas, as alegorias, os
diálogos etc. Embora a narrativa histórica o possa ter jamais a liberdade de criação de uma
narrativa ficcional, ela nunca poderá se distanciar do fato de que é narrativa e, portanto,
guarda uma relação de proximidade com o fazer artístico, quando recorta seus objetos e
constrói, em torno deles, uma intriga. (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 1995, p. 11)
20
A história e a ficção sempre estiveram interligadas, e uma das formas dessa
interligação se deu através de escritos fronteiriços como, por exemplo, os relatos de viagens,
nos quais seus autores criavam uma narrativa que parecia tão verídica que, muitas vezes,
chegava a convencer alguns leitores acerca da sua “factualidade”, como é o caso de Robinson
Crusoé, de Daniel Defoe.
Umberto Eco (apud HUTCHEON, p.150) diz que três formas de narrar o passado:
a fábula, a estória heróica e o romance histórico; Hutcheon acredita que há uma quarta
maneira, que seria: a metaficção historiográfica. A diferença entre o romance histórico do
século XIX e a metaficção historiográfica, para Hutcheon, estaria no fato de que a ficção
histórica “segue o modelo da historiografia até o ponto em que é motivado e posto em
funcionamento por uma noção de história como força modeladora (na narrativa e no destino
humano)”. (1991, p.151). Enquanto a metaficção historiográfica se aproveitaria das
“verdades” e “mentiras” do relato histórico, refazendo, assim, uma nova versão para os fatos.
O romance histórico, segundo Lukács (1966), nasceu, se desenvolveu, alcançou seu
florescimento e decaiu, como conseqüência necessária das grandes revoluções sociais dos
tempos modernos. Seu aparecimento deu-se no início do século XIX, aproximadamente na
época da queda de Napoleão. A Revolução Francesa, a luta revolucionária, o auge e a queda
de Napoleão converteram a história em uma experiência de massas. Contudo, ainda nos
séculos XVII e XVIII, houve novelas de temáticas históricas que poderiam ser consideradas
precursoras do romance histórico, assim como as elaborações da história antiga e os mitos da
Idade Média. A obra de Walter Scott seria, portanto, uma continuação em linha reta do grande
romance social realista do século XVIII, porém, suas criações significaram algo
completamente novo se comparadas com a literatura anterior. O romance histórico começa a
tratar não somente dos nobres, mas mostra heróis que fogem das características estabelecidas
pela literatura romântica.
De acordo com Hutcheon, Lukács acreditava que o romance histórico “poderia
encenar o processo histórico por meio da apresentação de um microcosmo que generaliza e
concentra (1962, p.39). Portanto o protagonista deveria ser um tipo, uma síntese do geral e do
particular, de “todas as determinantes essenciais em termos sociais e humanos”
(HUTCHEON, 1991, p. 151) e a grandeza de Scott estaria, justamente, na representação
humana dos tipos histórico-sociais.
Já os protagonistas da metaficção historiográfica não são aquilo que pudéssemos
chamar de tipos, muito pelo contrário, são os “ex-cêntricos”, os marginalizados”, “as figuras
periféricas da história ficcional”. Mesmo os personagens históricos, quando surgem, assumem
21
um status distinto. No romance histórico, há uma intenção de resgatar o passado e os
personagens históricos apareceram na narrativa com o intuito de legitimá-la. Para tanto, ficção
e história conviverão, e os acontecimentos históricos são tidos como fatos. “Em muitos
romances históricos, as figuras reais do passado são desenvolvidas com o objetivo de
legitimizar (Sic) ou autenticar o mundo ficcional com sua presença, como se para ocultar as
ligações entre ficção e história” (HUTCHEON, 1991, p. 152).
Outra diferença marcante entre as duas formas de narrativa é o caráter auto-reflexivo
que possui a metaficção historiográfica, cuja preocupação com a contemporaneidade e com a
temática estão sempre presentes, como no caso do escritor português José Saramago, que tem
como projeto reescrever, de forma ficcional, a história de Portugal, e desta maneira, dar a sua
contribuição para que os portugueses repensem o seu presente. Em contrapartida, há, no
romance histórico, uma despreocupação com o presente. De acordo com Lukács, Walter Scott
raras vezes chega a falar de sua própria época. Não trata em seus livros sobre os problemas
sociais da Inglaterra de seu tempo, nem analisa o crescente agravamento da luta de classes
entre burguesia e proletariado.
Essa preocupação com o presente através da apropriação do passado é uma marca
fundamentalmente da literatura contemporânea. Tais obras fazem uma releitura
desconstrutora do discurso histórico oficial, a fim de confrontar seu autoritarismo, bem como
dar visibilidade àqueles que foram excluídos da narrativa histórica oficial. Dessa maneira, os
discursos historiográficos vigentes estão sendo desarticulados por elas.
O capital de Marx relido como um romance histórico sobre a barbárie do capitalismo; a vida
do Imperador narrada a partir das alcovas do seu fiel secretário, em Chalaça, romance-diário
de José Roberto Torredo; a escravidão e as colonizações das Índias Ocidentais revistas por
pescadores negros, em Omeros, do poeta caribenho Derek Walcott; as negociações culturais
entre Ocidente e Oriente nas andanças de anjos migrantes caídos; Londres, nos Versos
Satânicos, de Salman Rushdie; a poética da memória afro-descendente trazida à baila no
espaço de uma pobre família americana”, em Amada, de Toni Morrison; a aventura das
grandes navegações lusitanas recontadas pela vivência iniciática de um grumete judeu, em
Peregrinações de Barnabé das Índias, de Mário Cláudio; as “vagas descobertas” e a Invenção
do Brasil pelo olhar dos degredados e da arraia-miúda, no Auto do Descobrimento, de Jorge de
Souza Araujo, são alguns poucos exemplares... (BOTELHO, 2002, p. 7, 8)
Inserida nesse processo contemporâneo de ficcionalização da história, encontra-se a
peça dramática O santo inquérito, de Dias Gomes, escrita na década de 60 (sendo encenada
pela primeira vez em setembro de 1966) e construída a partir de um fato supostamente
histórico: a prisão e execução de Branca Dias pelos tribunais do Santo Ofício. Sendo Branca
22
Dias uma cristã-nova
3
, tornou-se vítima de preconceito e perseguição por parte da igreja
oficial, o que culminou com sua execução. Os cristãos-novos tiveram um importante papel no
povoamento e colonização das terras brasileiras e, conseqüentemente, influenciaram na
formação da identidade e da cultura nacionais. Mas, devido à intolerância e perseguição por
parte da igreja oficial durante a Inquisição, foram esquecidos pela historiografia oficial
brasileira.
A luta pela sobrevivência em terras estrangeiras começou, para os judeus, já a partir de
586 a.C., quando o imperador babilônico Nabucodonosor II invade o Reino de Judá, destrói o
Templo de Jerusalém e deporta a maioria dos habitantes para a Babilônia, iniciando a primeira
diáspora judaica. Em 539 a.C., os judeus começam a voltar à Palestina onde reconstroem o
templo e vivem breves períodos de independência, interrompidos por invasões estrangeiras.
Durante esse período, é construído o segundo Templo. No ano seis d.C., a região torna-se
província de Roma. Em 70 d.C., Jerusalém é invadida pelos romanos e o segundo templo é
arruinado. em 135 d.C., a cidade também é destruída, iniciando o segundo momento da
diáspora. Apesar de espalhados por todos os continentes, os judeus mantêm uma unidade
cultural e religiosa. Isso foi possível devido à observância que eles faziam da Lei Mosaica
em qualquer lugar para onde fossem. Agindo assim, reorganizaram a vida comunitária,
preservando seu patrimônio cultural: “A esse propósito, e referenciando a Torah, o escritor
Heinrich Heine chamou-a de a “Pátria Portátil”. (HEINE apud BASBAUM, 2004, p. 60)
A segunda Diáspora espalhou o povo judeu em torno do Mediterrâneo: África,
Europa, Oriente Médio. Os judeus que se assentaram na Península Ibérica ficaram conhecidos
como sefardi (espanhóis), e posteriormente como marranos. “Na Diáspora havia a
determinação de se assegurar a própria identidade histórica em quaisquer circunstâncias,
mantendo a observância voluntária de uma lei e de um ritual religioso rigorosos”.
(BASBAUM, 2004, p. 61).
Dessa maneira, a presença de judeus em Espanha remonta ao início da era cristã, e
mesmo ante às freqüentes perseguições, estes conseguiram se estabelecer e prosperar na
Península Ibérica. Contudo, em meados do século XIV, desencadeia-se em Espanha um
progrome que começa em Sevilha e alastra-se até Barcelona. Segundo Antonio José Saraiva:
3
Cristãos-novos era o nome dado aos judeus convertidos ao catolicismo, o que, muitas vezes, se dava através da
força. Eram chamados cristãos-novos para marcar a diferença entre eles e os cristãos-velhos, aqueles que tinham
sangue limpo, ou seja, não descendiam de judeus.
23
Milhares de judeus são assassinados, outros milhares convertem-se sob o terror. Massacres,
violências, leis discriminatórias, conversões em massa sucedem-se ao longo do séc. XV. Em
1449 é posta em vigor a primeira lei de <<limpeza de sangue>> proibindo o acesso de
descendentes de Judeus a inúmeros cargos, honras e profissões. (SARAIVA, 1985, p. 22)
Ao subirem ao trono, os reis católicos Isabel de Castela e Fernando de Aragão
encontraram dois grupos de judeus: os praticantes e os convertidos. Dentre os convertidos
havia ainda dois grupos diferentes: os cristãos-novos e os chamados criptojudeus.
Os cristãos-novos foram obrigados, devido a circunstâncias históricas, políticas e
sociais, a se converterem ao catolicismo e, como estratégia de sobrevivência, aderiam à nova
realidade. Sendo assim, adotavam não a nova religião, mas também todos os costumes e
cultura imbricados, deixando para trás toda a sua identidade e memória. Nesses casos, os
descendentes desses cristãos-novos, muitas vezes, nem tinham conhecimento da sua origem
judaica.
Os criptojudeus (que teoricamente também eram cristãos-novos), apesar de
aparentemente convertidos, não queriam romper os laços com o judaísmo. Viviam a religião
cristã diante da sociedade, mas no interior de sua casa e com sua família conservavam a
religião mosaica, sua cultura, sua memória, praticando em secreto os ritos judaicos.
Devido à resistência dos criptojudeus em assimilarem a nova religião, os reis
católicos, não conseguindo plenamente o intento de acabar com o culto judaico clandestino,
conseguem do papa, em 1478, uma bula instituindo a Inquisição em Castela. Em 1492,
Fernando de Aragão e Isabel de Castela expulsaram os judeus de Espanha.
O édito dos reis Fernando e Isabel, os Católicos, datado no dia 31 de março de 1492, provocou
o êxodo dos judeus espanhóis. A lei cominava a morte e o confisco a todos os judeus não
convertidos ao cristianismo, se não saíssem de Espanha até ao dia 31 de julho. Cerca de
oitocentos mil transpuseram as fronteiras ou embarcaram para Marrocos; e muitos milhares
vieram para o nosso país, autorizados por D. João II. (FERREIRA, 1951, p. 362)
D. João II acolheu a massa daqueles que foram expulsos de Espanha, exigindo uma
taxa de capitação
4
, que permitia aos judeus permanecerem no país por um período de oito
meses, mediante o pagamento de oito cruzados por cabeça, e com a promessa de que, passado
4
Capitação: imposto, tributo ou contribuição que se paga por cabeça. (In: FERREIRA, Aurélio Buarque de
Holanda. Novo Dicionário Eletrônico Aurélio versão 5.0. Edição eletrônica autorizada à POSITIVO
INFORMÁTICA LTDA. Regis Ltda, 2004.)
24
esse tempo, poderiam sair livremente. Mas, devido a interesses econômicos, não era
interessante para Portugal a emigração dos judeus. Então, D. Manuel I, sucessor de D. João II,
proibiu a saída dos judeus, e decretou a conversão forçada.
Em abril de 1497, foi dada a ordem de seqüestro dos filhos menores de 14 anos daqueles que,
relutantes à conversão ao catolicismo, preferissem sair do reino. Essas crianças judias
deveriam ser distribuídas pelas cidades e aldeias, para serem batizadas e criadas como
católicas por famílias católicas.
[...]
Uns optaram por converter-se, para não terem suas famílias despedaçadas. Muitos pais, sem
esperança e desesperados, preferiram matar seus filhos e em seguida se suicidarem, ao invés
de entregá-los aos oficiais do rei, para a apostasia.
[...]
Em Outubro de 1497, aglomerados em Lisboa se encontravam mais de 20 mil indivíduos da
nação hebréia, sob a ilusão alimentada pelo rei de que obteriam navios e mantimentos
para saírem de Portugal. Ali, a ‘gente miúda’, encabeçada por clérigos fanáticos e protegida
por oficiais do rei, forçaria também ao batismo os homens, mulheres e velhos judeus.
[...]
Aos resistentes lhes golpeavam a cabeça e arrastavam-nos à pia batismal. Deram-se assim os
chamados batismos em massa, reproduzidos em várias partes do Reino, e que fizeram cristãos
a todos os judeus que não puderam abandonar Portugal.
(DACOSTA, 2001, s/p)
Todavia, a conversão forçada e as novas leis que ditavam a vida dos cristãos-novos, no
intuito de promover a integração destes à sociedade portuguesa, não conseguiam retirar as
marcas anti-semitas existentes na memória coletiva da população, parte da qual continuava
dividida segundo a fé professada por seus antepassados.
Em 1531, o papa Clemente VII autorizou a Inquisição em Portugal. Porém, em 1532,
anulou a bula e proibiu a perseguição aos conversos. Mas o governo de Lisboa negou-se a
obedecer às determinações pontifícias. E em 1536, após a morte de Clemente VII, o seu
sucessor, Paulo III, instaurou a Inquisição em Portugal. Assim, como na Espanha, em
Portugal, a Inquisição representava as camadas dominantes, a nobreza e o alto clero. A
Inquisição portuguesa não visava apenas a perseguir os hereges, mas havia por trás desse
motivo, supostamente religioso, interesses políticos e principalmente econômicos. Foi assim
que todos os bens dos condenados foram confiscados pela Coroa.
25
Os cristãos-novos foram o maior alvo da Inquisição em Portugal. A este grupo em
ascensão foram atribuídas todas as misérias da nação, muitos foram acusados de praticar ritos
judaicos às escondidas, de profanar a hóstia e de deicídio. Os judeus convertidos eram
severamente perseguidos, acusados e condenados nos processos inquisitoriais. Tanto a
nobreza quanto o clero sentiam-se ameaçados pelos cristãos-novos, núcleo principal da
burguesia, que foram introduzidos no meio cristão através da conversão forçada.
Segundo Antonio José Saraiva (apud OLIVEIRA FILHO, 1993), a Inquisição na
Península Ibérica teria particularidades especiais dentro da história geral da instituição, pois
em nenhum outro lugar o poder inquisitorial foi tão bem organizado, centralizado e estável.
Como se sabe, a perseguição aos cristãos novos, encoberta por intenções religiosas, teve,
especialmente no caso de Portugal, não o intuito de espoliá-los de seus bens, mas também
o de impedir a ascensão de um numeroso grupo de letrados não-clericais à condição de
formadores da opinião pública da época. Pois, após a conversão de 1497, este grupo laico,
constituído em sua maioria por setores intelectuais hebraicos, começa a representar uma
ameaça para o setor intelectual cristão, detentor do monopólio da opinião e intermediário
exclusivo entre a aristocracia e o povo.
A descoberta do Brasil foi uma importante alternativa para os judeus e cristãos-novos
portugueses fugirem das garras da Inquisição. O Brasil tornou-se então um porto seguro para
onde eles se dirigiram em número expressivo. De acordo com Novinsky (1982), o número de
cristãos-novos vindos para o Brasil foi maior do que até agora se acreditava. No Rio de
Janeiro, Bahia e Minas Gerais, cerca de 25 a 30% da população branca livre era composta de
cristãos-
novos, judaizantes ou laicos.
Os cristãos-novos que vieram povoar o Brasil viviam um conflito identitário dentro
dessa nova sociedade, pois não eram aceitos pela comunidade judaica que tinham traído
a religião mosaica e também eram discriminados e tidos como párias pela sociedade cristã.
E nessa sociedade ainda havia claramente a marcação da identidade entre cristãos-novos e
velhos. Em seu ensaio “Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual”, Kathryn
Woodward diz que:
As identidades são fabricadas por meio da marcação da diferença. Essa marcação da diferença
ocorre tanto por meio de sistemas simbólicos de representação quanto por meio de formas de
exclusão social. A identidade, pois, não é o oposto da diferença: a identidade depende da
diferença. Nas relações sociais, essas formas de diferença a simbólica e a social são
estabelecidas, ao menos em parte, por meio de sistemas classificatórios. Um sistema
classificatório aplica um princípio de diferença a uma população de uma forma tal que seja
26
capaz de dividi-la (e a todas as suas características) em ao menos dois grupos opostos
nós/eles...; eu/outro. (2000, p. 39-40)
Foi justamente essa identificação pela diferença que marcou fortemente a vida dos
cristãos-novos. Para os cristãos-velhos, eles tinham o sangue infecto por descender de uma
“raça” deicida e avarenta, que vendeu o Filho de Deus por trinta moedas de prata, e, portanto,
deviam ser condenados a viver à margem da sociedade.
Numa sociedade como a do Brasil colonial, para onde, como se não bastasse o pecado original
da escravidão, se haviam transplantado os valores comuns às sociedades européias do Antigo
Regime, com a agravante da sua versão peninsular, caracterizada pela fenda étnica, social e
religiosa entre cristãos-velhos e cristãos-novos, a genealogia não podia constituir o
passatempo inofensivo que é hoje. Ela era, na realidade, um saber vital, pois classificava ou
desclassificava o indivíduo e sua parentela aos olhos dos seus iguais e dos seus desiguais,
contribuindo assim para a reprodução dos sistemas de dominação. (MELLO, 2000, p.13)
Cornelius Castoriadis, em sua obra A instituição imaginária da sociedade (1991),
parte do princípio de que todo enunciado sobre o social é também um enunciado histórico, e
que todo enunciado histórico é também um enunciado social. Para ele, a vida social é
significação. O social é o simbólico, e o imaginário não é mera reprodução deste simbólico,
mas a superação do universo de significações correntes e a criação de novos significados.
Durante muito tempo, a história oficial silenciou-se acerca da importante participação
dos judeus na colonização e povoamento do solo brasileiro. Na maioria das vezes, tais
historiadores generalizava-os como portugueses, como se dentro da sociedade lusitana não
houvesse distinção entre judeus e cristãos. Todavia, é na ficção que iremos encontrar a figura
do judeu e/ou cristão-novo como sujeito atuante na sociedade brasileira. Embora, algumas
vezes, tais textos, através de seus estereótipos, tenham servido para sedimentar na memória
popular a imagem negativa que judeus e cristãos-novos tinham diante da comunidade. Nas
sociedades que os acolhem, os judeus são vistos como indivíduos incapazes de assimilar a
cultura local, ficando vistos, portanto, como “o eterno estrangeiro”.
No inconsciente coletivo brasileiro, a imagem do judeu está extremamente
influenciada por razões de ordem religiosa, bem como pela herança histórico-cultural
portuguesa
5
. A atuação da Igreja Católica como um poder hegemônico sobre a população
5
Algumas das informações acerca da representação do judeu na literatura e na cultura brasileiras tomou como
fonte de pesquisa a tese de doutorado Representações do judeu na cultura brasileira: imaginário e
história.”, de Célia Czniter, 2002.
27
brasileira durante o período colonial, que contava com o auxílio do Tribunal do Santo Ofício
para “manter a ordem” e “preservar a fé”, punindo os desviantes, contribuiu enormemente
para acirrar o preconceito contra o judeu em terras brasílicas.
Nas culturas cristãs ocidentais, os judeus eram identificados com tudo o que se opõe à
cristandade. Devido a isso, a literatura das mais variadas nações representa a figura do judeu
de forma preconceituosa. Na literatura inglesa, por exemplo, em O mercador de Veneza, de
William Shakespeare, o protagonista Shylock, um judeu, é um sujeito audacioso e usurário
6
; e
em O judeu de Malta, de Thomas Marlowe, Barrabás é apresentado como ambicioso e
vingativo. Partindo para a literatura portuguesa, temos Gil Vicente e toda uma gama de
personagens judeus representando um dos tipos encontrados na desorgânica engrenagem
social lusitana.
Celso Lafer, em sua obra O judeu em Gil Vicente (1963), faz uma análise detalhada de
algumas peças do dramaturgo português. Entre estas, destacam-se: Auto da Barca do Inferno,
Diálogo sobre a ressurreição, Farsa de Inês Pereira, Juiz da Beira e Auto da Lusitânia.
Segundo Lafer, essa importância demasiada atribuída ao judeu no teatro vicentino pode se
justificar pela numerosa presença judaica no Portugal de sua época, pois estima-se que pelo
menos 1/5 da população portuguesa era formada por judeus. Embora o coloque o judeu na
Barca do Inferno, devido à sua missão “divina” de bode expiatório, Gil Vicente também não
6
Apesar do caráter anti-semita da peça, na qual o dramaturgo inglês cria um personagem caricaturado que traz
no próprio nome – Shylock em inglês pode ter o significado de emprestar dinheiro a juros extorsivos o
estereotipo do judeu usurário; este, por sua vez, demonstra que é dotado, também, de dores e paixões. Prova
disso encontra-se em seu diálogo com Salarino, no qual ele esclarece o motivo pelo qual exigirá de Antônio o
pagamento da dívida, uma libra de vossa bela carne”, de acordo com o contrato estabelecido: “SALARINO -
Ora, tenho certeza de que se ele não a resgatar no prazo certo, não haverás de tirar-lhe a carne, pois não? Para
que te serviria ela?/ SHYLOCK - Para isca de peixe. Se não servir para alimentar coisa alguma, servirá para
alimentar minha vingança. Ele me humilhou, impediu-me de ganhar meio milhão, riu de meus prejuízos, zombou
de meus lucros, escarneceu de minha nação, atravessou-se-me nos negócios, fez que meus amigos se
arrefecessem, encorajou meus inimigos. E tudo, por quê? Por eu ser judeu. Os judeus não têm olhos? Os judeus
não têm mãos, órgãos, dimensões, sentidos, inclinações, paixões? o ingerem os mesmos alimentos, não se
ferem com as armas, não estão sujeitos às mesmas doenças, não se curam com os mesmos remédios, não se
aquecem e refrescam com o mesmo verão e o mesmo inverno que aquecem e refrescam os cristãos? Se nos
espetardes, não sangramos? Se nos fizerdes cócegas, não rimos? Se nos derdes veneno, não morremos? E se nos
ofenderdes, não devemos vingar-nos? Se em tudo o mais somos iguais a vós, teremos de ser iguais também a
esse respeito. Se um judeu ofende a um cristão, qual é a humildade deste? Vingança. Se um cristão ofender a um
judeu, qual deve ser a paciência deste, de acordo com o exemplo do cristão? Ora, vingança. Hei de por em
prática a maldade que me ensinastes, sendo de censurar se eu não fizer melhor do que a encomenda.” (In:
SHAKESPEARE, William. O mercador de Veneza. p. 73. Edição Ridendo Castigat Mores. Versão para
eBookeBooksBrasil.com. Disponível em: http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/mercador.pdf. Acesso em 10
jan. 2008). Segundo Harold Bloom, “Somente um cego, surdo e mudo não constataria que a grandiosa e ambígua
comédia Shakespeariana O Mercador de Veneza é uma obra profundamente anti-semita. [...] Seria improvável
que o próprio Shakespeare fosse anti-semita, mas Shylock é um daqueles personagens Shakespearianos que
parecem transpor os limites das peças a que pertencem. (BLOOM, Harold. Shakespeare: A Invenção do
Humano. Tradução José Roberto O’Shea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p. 222).
28
atribui a ele a honra de entrar na Barca da Glória, devido ao caráter e natureza com que
estavam associados ao demoníaco. Até mesmo no purgatório sua presença foi negada,
restando ao judeu vicentino, como representante de todo seu povo, o não-lugar, seu destino
sendo a condenação de ficar “à tona nas águas”, juntamente com o bode, símbolo dual de sua
obstinação diabólica, assim como de sua função expiatória. Essa situação de entre-lugar se
adequou perfeitamente à condição de excluídos dos cristãos-novos.
Na literatura brasileira, encontramos muitos personagens judeus e cristãos-novos,
principalmente no teatro. O início das atividades teatrais no Brasil deu-se com a chegada dos
portugueses. De acordo com o padre Serafim Leite, antes da chegada dos jesuítas ao Brasil, os
primeiros colonizadores já tentavam fazer, ao seu modo, algumas representações teatrais. Mas
foi através dos jesuítas, no século XVI, que este gênero se desenvolveu em solo brasileiro. O
objetivo dos jesuítas, já que vinham para representando a Igreja Católica, era o de educar e
converter os índios. Para isso, eles utilizavam as encenações como obra de catequese, e,
através delas, tentavam passar para os índios as mensagens a serem absorvidas. Logo em
seguida, os próprios indígenas passaram a fazer parte dessas encenações. José de Anchieta,
nascido nas Canárias, escreveu e representou os primeiros autos compostos no país. Embora
escrevesse em tempos renascentistas, o teatro de Anchieta filia-se à tradição religiosa
medieval. Segundo Sábato Magaldi, seus autos ajustavam-se perfeitamente aos intuitos
catequéticos, sofrendo influência dos milagres dos culos XIII e XIV, assim como dos autos
vicentinos. Desta maneira, assim como na Grécia, o Brasil viu nascer o seu teatro das
festividades religiosas.
Em seu artigo “A máscara do judeu no teatro brasileiro”, Jacó Guinsburg traça a
trajetória da personagem do judeu e do cristão-novo no teatro brasileiro, desde o teatro
jesuítico até os dias atuais. As imagens detectadas variam de acordo com o momento histórico
e estético analisado.
As peças de Anchieta dão início também à configuração da representação do judeu em
terras brasileiras. Nelas, o judeu aparece enquanto personagem bíblico. Contudo, a partir dos
séculos XVII e XVIII, há uma desvinculação entre o judaísmo e as entidades bíblicas. Devido
ao grande vazio durante períodos na dramaturgia brasileira, reencontraremos a personagem
judia no século XIX, momento em que se intensifica a produção teatral brasileira. É também
nesta época que as primeiras expressões do teatro romântico no Brasil despontam, tendo como
marco inaugural a encenação da peça António José, o poeta e a Inquisição, de Gonçalves de
Magalhães. Segundo o próprio autor, essa peça seria a primeira tragédia escrita por um
brasileiro e única de assunto nacional”. O drama é apoiado em fatos históricos nos quais o
29
protagonista António José da Silva
7
é perseguido pela Inquisição e acusado de práticas
judaizantes.
A imagem predominante do judeu que irá se configurar nesse período se cristaliza na
comédia O Usurário e no drama Vitiza, ou o Nero da Espanha, ambas de Martins Pena, onde
as personagens judias são retratadas através de aspectos negativos como a usura, a falsidade e
a vingança. Esse perfil do judeu ganancioso e corruptor irá se repetir em outras peças
brasileiras como A Jóia, de Artur Azevedo, Os Cáftens, de Augusto Lopes Cardoso, A
vingança do judeu, Augusto Vampré. José de Alencar escreveu duas peças que apresentam
versões antagônicas do judeu. Em O Jesuíta uma referência positiva, enquanto em O
crédito incorporam-se os estereótipos tradicionalmente aplicados a esta figura.
O perfil do judeu no teatro brasileiro apresenta duas versões antagônicas. A primeira,
que vigorou durante o século XIX e até meados do século XX, na maioria dos textos
representados, evidencia a imagem do judeu de maneira preconceituosa e estereotipada tanto
no âmbito profissional, como nas tradições e cultura em geral. no século XX, o judeu é
apresentado de duas maneiras diferentes: ora aparece como sionista
8
e capitalista, como em O
homem e o cavalo, de Oswald de Andrade e Ódio e raça, de Henrique Adri; ora aparece
ligado ao comunismo como em A Patética, de João Ribeiro Chaves Neto, que aborda as
circunstâncias da morte de Vladimir Herzog. A partir de então, predomina uma maior ênfase
na representação do judeu como indivíduo que quer se manter fiel às suas tradições e à sua
religião mesmo em face das adversidades. De acordo com Guinsburg, “o perfil do judeu no
teatro brasileiro ainda é determinado, em grande parte, por concepções padronizadas e traços
mítico-religiosos.” (GUINSBURG, 1992, p.41)
Não a figura do judeu foi representada de maneira preconceituosa no teatro
brasileiro. Pois, até o século XX, não se fazia distinção entre judeus e cristãos-novos, e a
imagem destes últimos se projetava principalmente como dissimulados, indivíduos que
fingem ser o que na realidade não são, que continuam apegados às práticas judaicas
7
“Entre as vítimas brasileiras da Inquisição portuguesa, na fase da sua mais nefanda atuação, figura Antônio José
da Silva, nascido no Rio de Janeiro, em 1705, e que, por consenso geral, é considerado descendente de judeus...
seu espírito criador enriqueceu a literatura portuguesa de numerosas peças teatrais de singular valor, galgando ele
os mais altos degraus da fama e da popularidade. Como de suas peças, genialmente arquitetadas, com freqüência
extravasasse um sarcasmo sem rebuços contra a torpe atividade da Inquisição, esta o marcou e não mais descansou
no afã de eliminá-lo. E ela conseguiu o seu intento, não obstante o prestígio imenso do poeta... E assim,
inapelavelmente condenado à pena capital em 11 de março de 1739, foi Antônio Joda Silva - cognominado "O
Judeu" - queimado, em 21 de outubro do mesmo ano, na praça pública.” (In: SEREBRENICK, Salomão;
LIPINER, Elias. Breve história dos judeus no Brasil. Rio de Janeiro: Biblos, 1962.)
8
Sionismo: movimento político e religioso judaico, iniciado no século XIX, que pretendia o brestabelecimento
de um Estado judaico na Palestina, e que concretizou seu intento em maio de 1948, quando foi proclamado o
Estado de Israel.
30
secretamente, mas que, por questão de sobrevivência, se mascaram de cristãos. A falsidade e a
dissimulação religiosa atribuída ao cristão-novo se estende também à sua relação com a
sociedade de modo geral. Sendo assim, ele era visto de forma discriminatória, principalmente
no que se refere a suas relações sociais e profissionais, e em especial ao comércio. Sendo
dotado de tantas características negativas, o cristão-novo era freqüentemente denunciado ao
Tribunal do Santo Ofício por cristãos-velhos, pois alguns acreditavam que, assim fazendo,
estariam lutando contra a heresia e preservando a fé católica. Posto que, além das qualidades
negativas referidas, o cristão-novo era visto também como um indivíduo voltado a práticas
sobrenaturais e diabólicas, como em O santo inquérito, de Dias Gomes, em que a personagem
Branca Dias é acusada de demonismo e feitiçaria, o que acirrava ainda mais o temor e a
aversão dos cristãos-velhos contra os cristãos-novos.
O rompimento com estas representações estereotipadas, tanto dos judeus, como dos
cristãos-novos, se evidencia a partir de peças como O santo inquérito, de Dias Gomes;
Liberdade-Liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel; bem como As confrarias, de
Jorge Andrade, visto que tais textos situam historicamente as personagens judias, buscando
perceber sua condição e vivência enquanto ser individual, ou mesmo em coletividade.
Mas não foi apenas no teatro que o judeu e o cristão-novo foram representados na
literatura brasileira. Ainda no século XVII, o Padre Antonio Vieira denunciou em suas cartas
as perseguições sofridas pelos judeus e cristãos-novos através do Tribunal do Santo Oficio.
Machado de Assis, escritor do século XIX, mencionou a figura do judeu em algumas de suas
obras, das quais podemos destacar o poema “A cristã-nova”, no qual a personagem Ângela,
que vive com seu pai, um velho judeu que não consegue assimilar a nova religião e a nova
cultura e que, olhando a Baía de Guanabara, sonha com Jerusalém. Mas Ângela, que é fiel
devota do cristianismo, não consegue se livrar do estigma de seu povo, e é presa, juntamente
com o pai, pelo Tribunal do Santo Ofício. Outra obra de Machado de Assis que merece
atenção é Ahasverus, o judeu errante. Essa figura do judeu errante retratada por Machado é
bastante recorrente na literatura brasileira. Segundo Anita Novinsky, Ahasverus é o símbolo
do judeu cansado de sofrer e perambular pelo mundo, que amaldiçoa a vida e quer morrer. Em
Machado de Assis, assim como em Castro Alves, em “Ahsaverus e o Gênio”, a conotação
dessa lenda
9
não é antijudaica, mas apresenta, de maneira profunda, a luta e os impulsos da
9
O Judeu Errante é um personagem mítico, que faz parte dos mais remotos ciclos de tradições orais cristãs. “O
Judeu Errante é um velho alto e magro, barbado, de cabelos compridos, vestindo um manto escuro e que aparece
durante a Quinta-Feira Maior e a Sexta-Feira da Paixão quando a morte de Jesus está sendo comemorada. Dizem
que o Judeu Errante era um sapateiro de Jerusalém, chamado Ahasverus, que estava em sua tenda de trabalho e,
31
vida e da morte. Também na contemporaneidade encontraremos no poema “A incômoda
companhia do judeu errante”, de Carlos Drummond de Andrade, uma versão modernizada
para o mito.
Na prosa brasileira moderna podemos verificar autores que trazem em suas obras a
representatividade da figura do judeu ou do cristão-novo: Judeu Nuquim, de Octávio Mello
Alvarenga; Outra Inquisição, de Uilcon Pereira; Santo Ofício na praia, de Orígenes Lessa;
Um sonho no caroço do abacate, de Moacyr Scliar; o conto “A velha”, de Guimarães Rosa;
Pessach, a travessia, de Carlos Heitor Cony. Merece destaque ainda o romance Olhai os lírios
dos campos, de Érico Veríssimo, que mostra os preconceitos enfrentados pelo personagem
Simão, no meio social, por ser descendente de judeu.
Apesar de o enfoque deste trabalho não ser a representação do judeu ou do cristão-
novo na literatura e/ou cultura brasileira, fez-se necessário a contextualização dessa
personagem para melhor entendermos os motivos que levaram o dramaturgo Dias Gomes a
escolher uma cristã-nova como protagonista de sua peça.
Nascida da indignação do autor e do seu desejo (ou dever) de denunciar a repressão
generalizada, em particular no campo das idéias durante o período da ditadura militar pós
1964, a peça O santo inquérito tem como tema central a prisão e execução de Branca Dias
pelo Tribunal do Santo Oficio na Paraíba, utilizando a figura histórico/lendária de Branca
Dias e sua perseguição pela Inquisição lusitana. Desta maneira, Dias Gomes apropria-se de
um acontecimento do passado remoto do Brasil, para falar, de maneira subliminar, acerca do
presente, a opressão vivida no Brasil durante o período da ditadura militar, uma vez que o
processo político vigente nesse período em muito se assemelha à atuação da Inquisição no
Brasil Colônia.
Durante o aludido regime, proibir a encenação de peças, cortar partes de textos e
espetáculos, eram métodos comumente empregados pelas autoridades. A lista dos livros
proibidos chegou a mais de 500, em 21 anos de censura, o próprio Dias Gomes teve sua casa
revistada à procura de livros subversivos. Também era assim a prática da Inquisição em O
quando Jesus passou por sua porta, ele parou o trabalho para empurrar o Salvador, gritando: - "Vai andando! Vai
logo!" E Jesus respondeu: - "Eu vou e tu ficarás até minha volta!" E Ahasverus ficou, até hoje, errando pelo
mundo, sem caminho certo, sem morrer, sem descanso, esperando a volta do Senhor.” (In: Dicionário de folclore
para estudantes Letra J. Disponível em: http://www.soutomaior.eti.br/mario/paginas/dic_j.htm. Acesso em 10
jan. 2008).
32
santo inquérito, com Branca Dias tendo seus livros confiscados. Eis o depoimento de Dias
Gomes sobre o episódio:
Tendo minha casa invadida pelo Exército à procura de livros “subversivos (durante a
constrangedora revista, um oficial chegou a abrir uma bolsa de Janete, que protestou com
veemência), indiciado em vários Inquéritos Policiais Militares, os famigerados IPMs,
novamente desempregado, eu vinha desenvolvendo imperiosa necessidade de revidar de
alguma forma, de denunciar o barbarismo que se instalava. Um texto direto, dando nome aos
bois, era impossível. Teria que apelar para uma metáfora. (GOMES, 1998, p. 212)
NOTÁRIO
(Entra com a pilha de livros. Como se encontrasse uma bomba.) Livros!
BRANCA
Meus livros! São meus! Que vai fazer com eles?
VISITADOR
Sabe ler?
BRANCA
Sei.
VISITADOR
Por quê?
BRANCA
Porque aprendi.
VISITADOR
Para quê?
BRANCA
Para poder ler.
VISITADOR
Mau.
BRANCA
Não são livros de religião, são romances, poesias...
NOTÁRIO
Amadis de Gaula! (Passa o livro ao Visitador.)
VISITADOR
Amadis!
[...]
NOTÁRIO
E uma Bíblia – em português!
33
[...]
VISITADOR
(Entrega os livros ao Notário.) Todos esses livros são reprovados pela Igreja; vamos levá-los.
(O santo inquérito, 1996, p. 64, 65)
Desta forma, a peça pode ser lida alegoricamente como uma metáfora acerca da
ditadura militar no Brasil pós-64, sendo que, em ambas as épocas da história do país, tanto
durante a Inquisição quanto durante a Ditadura, uma nítida situação de adversidade, de
tortura e perseguição àqueles que, de alguma forma, se posicionavam contra o regime
arbitrariamente instaurado. Dessa maneira, o grande tema da obra é atemporal, recaindo na
análise crítica da relação entre opressores e oprimidos, entre os que têm o poder e impõem as
suas leis e aqueles que a elas se submetem.
Dias Gomes encontrou em sua arte uma maneira de protestar contra as injustiças. Os
temas abordados na peça O santo inquérito, ambientada em 1750, período que, segundo
Salomão Serebrenick (1962), a perseguição aos cristãos-novos atingira seu apogeu – dialogam
diretamente com o momento histórico e social de sua escrita e encenação, a década de 60 do
século XX, no Brasil. A trajetória de Branca Dias no enredo, assim como as falas de Augusto
Coutinho – em determinados momentos da peça percebe-se claramente que esta personagem é
alter-ego de Dias Gomes que, através da fala de Augusto Coutinho, chama a atenção para os
desmandos da Igreja e sua luta por um mundo mais justo deixam transparecer toda uma
retórica combativa e contestadora por parte do escritor. Branca Dias, vista como símbolo do
oprimido, tornou-se um marco no conjunto de personagens teatrais brasileiras e revelou a
urgente necessidade de se repensar situações onde a intolerância pode levar mesmo aqueles
que pensam estar fazendo algum bem a cometer atrocidades. Logo no primeiro ato da peça
temos a fala do Padre Bernardo marcada por um forte argumento de autoridade:
PADRE BERNARDO
Aqui estamos, senhores, para dar início ao processo. Os que invocam os direitos do homem
acabam por negar os direitos da e os direitos de Deus, esquecendo-se de que aqueles que
trazem em si a verdade têm o dever sagrado de estendê-la a todos, eliminando os que querem
subvertê-la, pois quem tem o direito de mandar tem também o direito de punir. É muito fácil
apresentar esta moça como um anjo de candura e a nós como bestas sanguinárias. Nós que
tudo fizemos para salvá-la, para arrancar o Demônio de seu corpo. E se não conseguimos, se
ela não quis separar-se dele, de Satanás, temos ou não o direito de castigá-la? Devemos deixar
que continue a propagar heresias, perturbando a ordem pública e semeando os germes da
anarquia, minando os alicerces da civilização que construímos, a civilização cristã? Não
vamos esquecer que, se as heresias triunfassem, seríamos todos varridos! Todos! Eles não
teriam conosco a piedade que reclamam de nós! E é a piedade que nos move a abrir este
inquérito contra ela e a indiciá-la. Apresentaremos inúmeras provas que temos contra a
34
acusada. Mas uma é evidente, está à vista de todos: ela está nua! (O santo inquérito, 1996, p.
31)
Percebemos claramente, através da fala do padre Bernardo, que seu discurso é
sintomaticamente atemporal, posto que, se o contextualizássemos em qualquer tempo, bem
que poderia ter sido pronunciado por um representante de qualquer governo totalitário:
“aqueles que trazem em si a verdade têm o dever sagrado de estendê-la a todos, eliminando os
que querem subvertê-la, pois quem tem o direito de mandar tem também o direito de punir”,
“Devemos deixar que continue a propagar heresias, perturbando a ordem pública e semeando
os germes da anarquia, minando os alicerces da civilização que construímos...?”. Se
pudéssemos examinar o discurso de quase todos os regimes totalitários, verificaríamos que,
nesses casos, passa a valer a máxima de Maquiavel de que “os fins justificam os meios”. Pois,
ao sentir-se ameaçado, qualquer sistema se utiliza de todos os recursos, até os ilícitos, para
manter a sua hegemonia.
A Inquisição interferiu, durante mais de três culos, em todos os setores da vida.
“Procurou hereges nos reinos e nas colônias, perseguiu, torturou, puniu homens e mulheres de
todas as classes sociais e de todas as idades, por crerem, pensarem ou se comportarem de
maneira diferente dos padrões morais e religiosos impostos pela Igreja”, assegura-nos
Novinsky (1982, p. 8). Assim como a Inquisição, a ditadura militar brasileira também
censurava, prendia e punia os seus “hereges”, os subversivos. Segundo Magalhães,
Com o advento da ditadura militar no Brasil, e em nome da Segurança Nacional, instalou-se
um complexo sistema repressivo para combater a subversão e, ao mesmo tempo, reprimir
preventivamente qualquer atividade considerada suspeita por se afigurar como potencialmente
perturbadora da ordem.” (1997, p.203)
As principais semelhanças entre os dois sistemas são: a prática da tortura, a vigilância
sobre o cotidiano das pessoas, um consolidado sistema de informações, a proibição de livros
considerados subversivos e, principalmente, a não liberdade de expressão e pensamento que
ambas impunham aos seus subordinados. A Inquisição “Modificou o linguajar. E,
imperceptivelmente, mudou até a própria maneira de falar. Surgiram novas palavras e
forjaram-se novas locuções. Várias expressões alteraram seu sentido” (LIPINER, 1977, capa).
Não só a falta de liberdade de expressão, mas também a distorção daquilo que era falado,
eram práticas comuns aos interesses de tais sistemas. De acordo com Lipiner, a arma dos
regimes totalitários dos quais fazem parte a Inquisição, as Ditaduras e o Nazismo é, antes de
35
qualquer forma de tortura, a manipulação da palavra, pois, através dela, a opinião publica é
moldada, bem como o comportamento das pessoas. Desta maneira, era preciso todo o cuidado
em tudo que se falasse, uma vez que as palavras poderiam ser interpretadas à maneira mais
conveniente para o acusador. Em O santo inquérito, as palavras de Branca Dias, ditas ao
padre Bernardo, e posteriormente ao Visitador do Santo Ofício, foram distorcidas e tomadas
como prova de heresia:
NOTÁRIO
Essa medida foi tomada com base nas denúncias e provas que temos contra ela.
BRANCA
Denúncias e provas? De quê?
VISITADOR
De heresias e prática de atos contra a moralidade.
BRANCA
(Mostra-se perturbada com a acusação.) Heresia... Atos contra a moralidade... Talvez essas
palavras tenham outra significação para os senhores. Pelo que eu entendo que querem dizer,
não posso, de modo algum, aceitar a acusação.
O Notário tem um gesto de reprovação.
PADRE
Branca, pense bem no que está fazendo, meça com cuidado suas palavras e atitudes...
(O santo inquérito, 1996, p. 75)
Em relação ao tema e ao seu tratamento na peça O santo inquérito, Lourdes Kaminski
Alves (2005) diz que o próprio autor exibe um princípio de composição. Em Apenas um
subversivo, Dias Gomes relata: “seguimos a lenda, procurando harmonizá-la, sempre que
possível, com a verdade histórica e subordinando ambas aos interesses maiores da obra
dramática” (GOMES, 1998, p. 78). Desta maneira, o reaproveitamento da lenda, adotado
como cerne da narrativa, “reatualiza o mito de Branca Dias, conferindo-lhe novos
significados, estratégia que remete ao princípio de composição das tragédias antigas; muitas
delas foram escritas a partir de lendas e de mitos que haviam sido contados, por exemplo,
pelos poetas épicos.” (ALVES, 2005, p.199). Olhando por esse aspecto, Dias Gomes
modificou o mito de Branca Dias, dando-lhe um sentido pessoal de cunho ideológico, que é a
luta pela liberdade de pensamento:
36
Em minhas pesquisas de folclore para o programa radiofônico Todos Cantam sua Terra, eu
me havia deparado com a figura de Branca Dias que, segundo a lenda muito difundida na
Paraíba, fora queimada pela Santa Inquisição. A semelhança entre os processos da Santa
Inquisição e os IPMs (a caça às bruxas, a pressuposição de culpa sem direito de defesa, a
manipulação de dados e a deturpação do sentido das palavras e dos gestos) fornecia-me a
metáfora de que eu necessitava. Uma pesquisa mais aprofundada levara-me à conclusão de
que, embora seu sacrifício num Auto de Fé possa ser historicamente contestado, a judia
convertida, cristã nova Branca Dias realmente existira e fora perseguida pela Inquisição; a
mim, como dramaturgo, era isso que importava. Não iria escrever uma peça histórica, mas
uma obra de ficção baseada numa lenda, tomando, mesmo, liberdades poéticas, que alguns
idiotas poderiam mais tarde acusar de “inverdades históricas”. O que importava, sobretudo,
era que Branca Dias era uma personagem emblemática, simbolizava a criatura em defesa de
sua integridade e seu direito de ser. E, como a peça se passava no século XVIII, a Censura não
teria como proibir. De tal artifício lançara mão Arthur Miller, quando escreveu The
Crucible, visando a condenar o macartismo. (GOMES, 1998, p. 212)
Em O santo inquérito, entrelaçam-se não ficção e história (a primeira como
metáfora ou alegoria da segunda), mas também mito (narrativa do passado) e crônica (do
presente). Há, em O santo inquérito, uma reinterpretação mítica (literária) da história, pois, ao
utilizar o fato histórico, Dias Gomes não o reescreve como tal, mas como a poetização
dramática no sentido (ideal) da literatura. Para ele:
o que interessa é que Branca existiu, foi perseguida e virou lenda. A verdade histórica, em si,
no caso, é secundária; o que importa é a verdade humana e as ilações que dela possamos tirar.
Se isto não aconteceu exatamente como aqui vai contado, podia ter acontecido, pois sucedeu
com outras pessoas, nas mesmas circunstâncias, na mesma época e em outras épocas. E
continua a acontecer. (GOMES, 1996, p. 13)
Segundo Álvaro Manuel Machado e Daniel-Henri Pageaux (1988), mito é uma
narrativa que um sentido ao universo. Sua formulação “coincide com a constituição de um
grupo em sociedade que pretende tornar o mundo inteligível e organizado, dando um sentido
às relações interindividuais.” (p. 125)
Para Mircea Eliade, o mito, nas sociedades arcaicas, representa uma “história
verdadeira”, possuindo um “caráter sagrado, exemplar e significativo.” (1978, p. 7). Em tais
sociedades, a narrativa mítica cumpre um papel dentro da estrutura social, apartando-se do
sentido de simples fábula. Portanto, para Eliade, o mito seria como a narrativa de uma
criação:
O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial,
o tempo fabuloso do “princípio”. Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos
Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou
37
apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma
instituição. (ELIADE, 1978, p. 11)
Lévi-Strauss (1993), falando acerca da “morte dos mitos”, ao analisar as alterações
que eles vêm sofrendo ao longo do tempo, verificou duas formas degenerativas do mito: a
lenda e a elaboração romanesca. Nestas formas, o mito perde o caráter fundador, para assumir
outros papéis, como, no caso da lenda, o de legitimador da história. Todavia, o
enfraquecimento da formação mítica não traz o seu total desaparecimento. Logo, alguns
elementos característicos do mito continuam, mais ou menos explícitos, em muitas
elaborações da ficção moderna.
Na literatura moderna, o tratamento tico de um tema pressupõe, portanto, sempre
um conflito existencial, a reflexão sobre a condição do homem no mundo. O escritor busca no
mito a matéria para sua obra; contudo, ao apropriar-se da história coletiva, muitas vezes, ele é
obrigado a modificar esse mito, dando-lhe uma feição pessoal, assegurando-se de que
histórias, figuras míticas sobretudo as que herdamos da tradição greco-latina cuja
exemplaridade inspira periodicamente a imaginação poética, a imaginação criadora.
cenários míticos que são susceptíveis, devido a certas circunstâncias históricas, culturais, até
pessoais, de reactivação poética. O mito pode tornar-se também para o escritor uma explicação
possível de si próprio, numa tentativa mais ou menos perfeita de identificação com o mito, ou
então motivo de violenta recusa. O mito pode, portanto, funcionar na obra de um escritor
como metáfora de uma circunstância existencial. Mais simplesmente, mais freqüentemente,
surge como meio de investigação psicológica. O mito, criação coletiva, é, portanto, também
criação individual para o escritor, e nesse sentido o deve interpretar o investigador.
(MACHADO; PAGEAUX, 1988, p. 129)
Em A poética do mito, Mielietinsky assegura que “a literatura está geneticamente
relacionada com a mitologia”. (1987, p. 329). Para ele, há várias formas de utilização dos
temas da mitologia na literatura. Já na Idade Média, a mitologia cristã suplantou o paganismo
antigo, no entanto, o Renascimento trouxe de volta os motivos pagãos, e estes serviram como
“um arsenal de metaforicidade poética, uma fonte de temas e uma singular ‘linguagem’
formalizada da arte.” (MIELIETINSKY, 1987, p. 331). Já nos séculos XVI e XVII são
criados “tipos literários não tradicionais de imensa força generalizadora.” (MIELIETINSKY,
1987, p. 331), os quais representam comportamentos universalmente humanos e que se
tornaram mitos literários, como Hamlet, D. Quixote, D. Juan, entre outros.
Entre os séculos XVIII e XX, houve o abandono dos temas tradicionais e
conseqüentemente a desmitologização na literatura. Apesar disso, duas novas maneiras de se
relacionar com a mitologia surgiram: uma nova visão antropocêntrica, da qual surge o novo
38
“mito burguês” (MIELIETINSKY, 1987, p. 324) e a tentativa de uma nova mitologia que
revelasse a relação entre o espírito humano e natureza. Podemos verificar ambas as formas de
relação com a mitologia tanto na corrente literária romântica, quanto na realista. Mielietinsky
chama a atenção para o fato de que a nova mitologia romântica, que varia entre o místico e o
fantástico, foi um dos caminhos pelos quais o romance do século XX chegou ao mitologismo.
No século XX, o romance mitológico sofreu, entre outras influências, a da psicanálise,
a qual deslocou a atenção das circunstâncias sociais para o interior do indivíduo: “a psicologia
estritamente individual é ao mesmo tempo universalmente humana, o que abre o caminho
para a sua interpretação em termos simbólico-mitológicos.” (MIELIETINSKY, 1987, p. 352).
Mielietinsky fez uma criteriosa análise contrastiva da obra de James Joyce e Thomas Mann,
segundo ele “ambos representativos da poética da mitologização”. Após este estudo, o
semiólogo russo enumerou uma série de elementos repetitivos no romance mitológico, tais
como: oposição entre a psicologia universal e a história; sincretismo mitológico e pluralismo;
ironia e travestimento; repetição rito-mitológica cíclica para expressar arquétipos universais;
elaboração de papéis facilmente substituíveis para representar a rotatividade das personagens.
Ainda para Mielietinsky, o realismo mágico é uma outra forma de mitologização. Nele
o mitologismo nasce na relação dos temas crítico-sociais com os da tradição folclórico-
mitológica local. Tal modalidade literária é recorrente entre latino-americanos e afro-
asiáticos, cuja situação histórico-cultural possibilita “a coexistência e a interpenetração, que,
às vezes, chega à síntese orgânica, de elementos de historicismo e mitologismo, realismo
social e folclore autêntico.” (MIELIETINSKY, 1987, p. 433, 434)
Acerca da figura mítica de Branca Dias, Bruno Feitler, em seu artigo “Duas faces de
um mito” (2004), diz que existem duas Brancas Dias: uma real, outra imaginária. A “real” que
é conhecida através dos documentos históricos e os estudos escritos a seu respeito; e a
outra, a “imaginária”, que chegou até nós através dos romances e peças de teatro inspirados na
personagem histórica. Em Branca Dias de Apipucos (1879), Joana Maria de Freitas Gamboa
situa Branca Dias no episódio da Guerra dos Mascates (1710-1715). Outros afirmam que ela
tenha vivido na Paraíba, onde existe uma loja maçônica, fundada em 1918, com seu nome.
Outras obras abordando a vida de Branca Dias são Livro de Branca Dias (1905), de José
Joaquim de Abreu, que é escrito sob forte influência da doutrina espírita de Alan Kardec; O
algoz de Branca Dias (1922), de Carlos Dias Fernandes; Nos tempos de Branca Dias (1993),
de José Joffilly, no qual o autor afirma a veracidade de sua história através do estudo dos
textos anteriores sobre Branca Dias, chegando a dar-lhes o valor de documentos (o que é
contestado por outros estudiosos); a minissérie A muralha (2000), veiculada pela TV Globo,
39
baseada no romance homônimo de Dinah Silveira de Queiroz, traz a personagem Ana
(personagem vivida por Letícia Sabatella), uma cristã-nova perseguida pela Inquisição, que
pode ser vista como uma referência à figura mítica de Branca Dias, valendo salientar, porém,
que tal personagem não existe no original A muralha, mas foi criada por Maria Adelaide
Amaral ao adaptar a história para a TV. A peça Senhora de Engenho: entre a Cruz e a Torá
(2005), de Miriam Halfim, mostra as agruras de Branca Dias devido à intolerância religiosa e
seus conflitos enquanto mulher e guardiã da Torá. Baseada numa minuciosa pesquisa histórica
por parte da autora, a peça ficou como melhor texto teatral (2004) dos Prêmios Literários
Cidade do Recife, concurso nacional promovido pela Prefeitura local. No recém lançado
Branca Dias: o martírio (2006), de Arnaldo Niskier, o autor faz um passeio pelas várias
versões da vida da “heroína” lastreado pela história dos judeus na península Ibérica, sua
chegada ao Brasil, bem como sua presença na formação desta sociedade.
Entre os escritos contemporâneos que abordam a vida da emblemática cristã-nova,
podemos destacar o livro Memórias de Branca Dias (2003), do escritor português Miguel
Real. Nele, Branca Dias aparece como uma das matriarcas de Pernambuco no século XVI, a
primeira mulher a praticar “esnoga” e a primeira “mestra laica de meninas” em solo brasileiro.
O romance foi escrito baseado em documentos históricos inquisitoriais do século XVI e XVII
e dos relatos de historiadores como José Antônio Gonsalves de Mello, José Alexandre
Ribemboim e, principalmente, Evaldo Cabral de Mello em O nome e o sangue, uma fraude
genealógica no Pernambuco colonial. Por meio da metaficção historiográfica, o escritor
português reinventa essa antiga história em todos os seus detalhes, buscando mostrar, através
da vida de Branca Dias, a luta de todo um povo para sobreviver numa sociedade exclusivista,
e seu empenho para preservar sua identidade.
Impondo-se a Lenda à História, Branca Dias, porventura devido à vulgaridade do nome,
metamorfoseou-se em três: Branca Dias de Camaragibe, Branca Dias de Apipucos e Branca
Dias da Paraíba, reflectindo as três a eterna imagem feminina e castigada que, como modo de
sobrevivência, enquanto mulher e crente se obriga a esconder as suas convicções, mas nunca a
negá-las ou esquecê-las. (REAL, 2003, p. 9)
Na apresentação do seu livro, Miguel Real fala que, historicamente, quase nada é
conhecido sobre a vida de Branca Dias. O que se sabe, portanto, viria de fontes indiretas,
nomeadamente da prisão de alguns dos seus filhos e netos, enviados para Lisboa após a estada
do primeiro visitador da Inquisição em Olinda, Heitor Furtado de Mendoça (Sic), nos finais
do século XVI. Real diz que a figura de Branca Dias foi ressuscitada para a História através
40
dos estudos de José Antônio Gonsalves de Mello e de José Alexandre Ribemboim, contudo,
foi no relato do historiador Evaldo Cabral de Mello sobre Branca Dias que iria encontrar a
síntese das informações que o inspiraram a criar seu texto.
Por encantamento que só a Literatura concede, transfiguramos em cerca de uma centena e
meia esta página de Cabral de Mello, envolvendo Branca Dias no universo colonial da
emergência da açucarocracia pernambucana do século XVI (portugueses, negros e índios), que
é o mesmo que dizer, na mentalidade imperial portuguesa da época, tentando assim que, como
é seu dever, a Ficção não reproduza a História, segundo o antigo modelo do romance
histórico, mas a ilumine. (REAL, 2003, p. 11)
No livro O nome e o sangue: uma fraude genealógica no Pernambuco colonial,
Evaldo Cabral de Mello diz que Branca Dias, natural de Viana da Foz do Lima (Minho), veio
para o Brasil – fugida da Inquisição Portuguesa, por ter sido denunciada como judaizante pela
própria mãe e uma irmã – a fim de encontrar seu marido Diogo Fernandes. Aqui estabelecida,
Branca Dias abriu em casa, na cidade de Olinda, um pensionato para moças onde ensinava as
‘prendas domésticas’. Mais tarde foram essas ex-alunas que a denunciaram ao visitador Heitor
Furtado de Mendonça, por prática de judaísmo. Cabral de Mello diz ainda não haver dúvida
de que Branca Dias e o marido judaizaram ao longo da sua vida em Pernambuco e de que
ambos morreram na religião herdada dos pais. Contudo, não ficaram fiéis à exigência
endogâmica. Isso demonstra que, mesmo permanecendo fiel à sua antiga crença, Branca Dias,
tentando disfarçar, casou quase todas as filhas com cristãos-velhos. O que não a impediu de
segundo relatos manter uma sinagoga em sua própria casa, onde os judeus se reuniam a fim
de celebrarem as solenidades de sua antiga religião.
No Kipur rezávamos todos em conjunto, Camaragibe enchia-se dos judeus de Pernambuco,...
Eram dias lindos, de festa e de felicidade, jejuávamos, comíamos, rezávamos, dávamos as
mãos, ajudávamos-nos, combinávamos negócios. Algumas das famílias permaneciam em
Camaragibe por várias semanas, era aqui também que celebrávamos a festa da Sacot,
(Memórias de Branca Dias, 2003, p. 121, 122)
Através do fluxo de consciência, a narradora-personagem Branca Dias rememora sua
vida, desde a infância no Minho até a velhice em Olinda. Essa estratégia narrativa faz o tempo
do romance variar entre todos os períodos da sua vida, sem uma seqüência linear ou
cronológica. Em alguns momentos, ela chega a relatar acontecimentos que só ocorreriam após
sua morte. Em Memórias de Branca Dias, o narrador utiliza-se predominantemente do
41
discurso indireto livre, característica presente não apenas no texto de Miguel Real, mas
também nos de outros escritores portugueses contemporâneos como, por exemplo, José
Saramago e Lobo Antunes.
Embora não dando voz a todos os personagens, ficamos conhecendo as “histórias”
destes através da visão e do relato de Branca. Através das lembranças de Branca, percebemos
a luta de um povo não apenas para sobreviver, escapando das garras da Inquisição, como seu
empenho em preservar sua memória e identidade, deixando-as como legado para as gerações
seguintes.
O Dicionário Mulheres do Brasil: de 1500 até a atualidade, biográfico e ilustrado
(2000), traz diferentes versões para a figura de Branca Dias. Além das já citadas, existem
outras que trazem diferentes histórias para sua vida. Entre estas, podemos destacar a do
historiador pernambucano Francisco Pereira da Costa, que chegou a afirmar que, tendo sido
denunciada à Inquisição, Branca Dias foi presa e enviada para Portugal, onde acabou sendo
queimada na fogueira. também a lenda difundida em Pernambuco de que Branca Dias,
uma judia fina e rica, vivia tranqüilamente no Recife até a chegada do Tribunal do Santo
Ofício. Dona de uma magnífica prataria, ao sentir que seria apanhada pela Inquisição, atirou
todos os seus objetos de prata num riacho próximo. Pouco depois de julgada e condenada pela
Inquisição alguns anos após sua morte, começou a correr boatos de que o tal riacho estaria
assombrado, logo ligando-se o fato a Branca Dias, que diziam, estaria ali para guardar seu
tesouro. Por isso o curso d´água ficou conhecido como Riacho da Prata.
10
ainda a lenda na
qual se baseou Dias Gomes, escrita por Ademar Vidal, que traz as datas do nascimento de
Branca Dias em 15 de julho de 1734, na capital da Paraíba, e morte em 20 de março de 1761,
no auto-de-fé, às seis horas da tarde, em Lisboa, “no lugar onde demora o Limoeiro” (VIDAL
apud GOMES, 1996, p.13). Diz a lenda que “em noites de plenilúnio, quando o nordeste
sopra na copa das árvores, Branca desliza pelas ruas silenciosas da capital paraibana e vai
visitar o noivo prisioneiro e torturado nos subterrâneos do Convento de São Francisco”
(GOMES, 1996, p.17).
Um fato recorrente em todas essas versões é que Branca Dias aparece sempre como
uma cristã-nova que, real ou ficcionalmente, simbolizou a opressão inquisitorial no Brasil
Colônia e que, ainda hoje, é representante da luta contra qualquer tipo de opressão. Devido a
10
A versão da vida da Branca Dias rica, que joga toda sua prataria no riacho, afim de que esta não caia nas mãos
dos inquisidores e, mesmo depois de morta, volta para guardar o seu tesouro, assombrando o riacho, só reforça o
estigma do judeu avarento e ávido por riqueza.
42
isso, o mito não demorou a se firmar e a figura de Branca Dias continuaria viva na memória
coletiva da população, sedimentando-se cada vez que havia um novo caso de perseguição.
Ao apropriar-se da figura de Branca Dias e da sua história de vida, Dias Gomes não
estava preocupado com as verdades” históricas, como ele mesmo falou, mas com a verdade
humana, assim como na mímese aristotélica, na qual, ao mesmo tempo em que se reproduz o
real, também se o modifica, o aprimora, o enriquece, recriando-o. Através da elaboração dos
mitos dá-se a mímese das ações humanas buscando um aperfeiçoamento das mesmas. Na
diferenciação dos gêneros poéticos, Aristóteles analisará primeiro a tragédia nos capítulos 7 a
11 de sua Arte Poética. , a tragédia é analisada através da compreensão do mito, não
tratando os acontecimentos reais aleatoriamente, pois o poeta conta, em sua obra, não o que
aconteceu e sim as coisas as quais poderiam vir acontecer, e que sejam possíveis tanto na
perspectiva da verossimilhança como da necessidade.” (ARISTÓTELES, 2000, p.47)
Na Poética, o termo mímese é constantemente utilizado para designar o processo de
composição do mito que não é cópia ou reprodução de acontecimentos ou coisas pré-
determinadas. O mito é mímese de ações: "o princípio e como que a alma da tragédia". "A
mímese é a poiesis própria do mito, o processo de exposição da verdade objetivada na obra de
arte que é o mito encenado na tragédia". Tal verdade não se encontra previamente assegurada,
pois que não diz respeito a uma forma de agir científico. Aristóteles, garantindo tal distinção
mediante a separação com o mundo das Idéias, busca compreender a produção do saber que
ela (mímese) engendra. O sentido produtivo da mímese fica claro, conseqüentemente, pelo
fato de sua verdade, enquanto obra, nascer da composição interna de seus elementos; resultado
da lógica interna do processo, conquistada pelo critério da verossimilhança (verdade
originária). (CAPELATO, 1998, s/p)
Aristóteles chama a atenção para a importância da ação na elaboração das tragédias.
Segundo ele, “a tragédia não é imitação de pessoas e sim de ações, da vida, da felicidade e da
desventura (...) as personagens, na tragédia, não agem para imitar os caracteres, mas adquirem
os caracteres para realizar as ações. Desse modo, as ações e a narrativa constituem a
finalidade da tragédia e, de tudo, a finalidade é o que mais importa.” (2000, p.44). E não tendo
a intenção de reproduzir a realidade, a tragédia idealiza os seus personagens, ou seja, muitas
vezes representa-a superiores à realidade. A Branca Dias de O santo inquérito é idealizada,
pois foi criada por Dias Gomes para responder aos anseios de lutar por justiça. Por esta forma,
a personagem possui características do herói clássico: virtude, pureza, abnegação e, acima de
tudo, dignidade; sem perder, contudo, sua humanidade comum.
43
Ao considerarmos a mímese em função do tempo, podemos verificar que ela, como
um reflexo de sua própria época, reafirma o presente, mas também, pode ultrapassar os limites
do seu tempo transcendendo-o para a “eternidade”. Pois a narrativa de ficção não está
preocupada com o tempo histórico, cronológico, mas com a atemporalidade das verdades
humanas.
Em seu texto “As relações opositivas na peça O santo inquérito: uma aproximação
com a tragédia grega”, Lourdes Kaminski Alves faz um estudo comparativo, sob o viés da
intertextualidade, entre Antígona (442 a.C.), de Sófocles e O santo inquérito, buscando
verificar a presença e a transformação do gênero trágico no teatro contemporâneo. A peça foi
analisada enquanto literatura enfocando “a arte da palavra dramatúrgica como preservação e,
ao mesmo tempo, como revelação dos dizeres e do fazer do homem imaginário, com
fundamento na prática social.” (ALVES, 2005, p. 193-194). O estudo da peça refletiu o
sentido do teatro como elemento capaz de projetar as preocupações sociais do autor e de seu
processo de criação, “conduzindo para a interpretação de como a peça absorve a história e de
como a representa, não como uma unidade, mas como um jogo de confrontações, que pode
ser observado no plano da linguagem escrita, convergindo para os aspectos literários do texto
dramático.” (ALVES, 2005, p. 194)
O santo inquérito foi apresentada pela primeira no Teatro Jovem do Rio de Janeiro e
dirigida por Ziembinski. A ação se passa na Paraíba, no século XVIII, ano de 1750. Tem
como personagens: Branca Dias, Padre Bernardo, Augusto Coutinho, Simão Dias, o Visitador
do Santo Ofício, o Notário e o Guarda. A peça é dividida em dois atos, sendo que a ação
dramática se inicia com o julgamento de Branca Dias e, aos poucos, através de flashbacks,
vai-se tomando conhecimento dos acontecimentos, o tempo da peça se alternando entre as
idas ao passado e os retornos ao presente (momento do julgamento). De acordo com Benedito
Nunes, “o tempo da ficção liga entre si momentos que o tempo real separa. Também pode
inverter a ordem desses momentos ou perturbar a distinção entre eles, de tal maneira que será
capaz de dilatá-los indefinidamente ou de contraí-los num momento único.” (1995, p. 25).
Ainda, para Nunes:
o retrospecto é feito numa exposição separada interrompendo a ação principal, que volta ao
seu curso quando aquela termina. O recuo pela evocação de momentos anteriores, como
também o avanço pela antecipação de momentos posteriores aos que estão sendo narrados, são
denominados por Genette, respectivamente de analepse (retrospecção) e prolepse
(prospecção), enquanto “formas de discordância entre as duas ordens temporais” do discurso e
da história. (1995, p. 32)
44
De acordo com as marcações, no primeiro ato de O santo inquérito, a mudança de luz
marca as apresentações dos quadros nos quais são mostrados o perfil das personagens e o
conflito entre a ideologia da Igreja, representada pelo Padre Bernardo e a fé simples e pura de
Branca Dias, moça sincera e ingênua, que se diante de um rigoroso inquérito, no qual foi
envolvida através de numa terrível trama e de um perigoso jogo de palavras. Ao tribunal ela
deve confessar e arrepender-se de crimes contra a fé, crimes estes que ela nem mesmo sabe do
que se trata.
Ao modo da tragédia antiga, aparecem os agôns, que são representados pelas discussões entre
o Padre e Branca. O conflito entre a concepção de Deus da protagonista, e a concepção de
Deus do antagonista, é um dos agôns centrais da peça. (ALVES, 2005, p. 196)
Através dos flashbacks, os acontecimentos que levaram Branca diante do tribunal vão
sendo reconstituídos, merecendo destaque o episódio em que o Padre Bernardo, ao se afogar
no rio Paraíba, é salvo por Branca, que lhe faz respiração boca-a-boca para salvar-lhe a vida.
Enquanto para ela tal episódio não passa de um ato de amor ao próximo, para o Padre
Bernardo, começa seu martírio, pois apaixonara-se por Branca. A partir desses conflitos de
interpretação se instala entre os dois um forte laço de amizade, e, em nome da gratidão que
diz sentir por Branca por ter salvo sua vida, Padre Bernardo passa a sentir a necessidade de
“protegê-la” e “livrá-la das tentações”. Ele a visita freqüentemente no engenho do pai, Simão
Dias, onde conversam e discutem sobre vários aspectos da vida e das convicções de Branca.
Para Alves (2005), “O motivo central da peça gira em torno da dualidade expressada pelo
modo com que a personagem Branca Dias concebe o humano e o divino, em confronto com o
pensamento ortodoxo religioso de Padre Bernardo” (p.195). O padre fica conhecendo fatos
sobre a vida de Branca que podem comprometê-la, como é o caso dos costumes e ritos
judaicos preservados por sua família, bem como o episódio em que, numa noite de muito
calor, banhou-se nua no Paraíba. Tal revelação choca o Padre Bernardo, acentuando a
tentação que já sente por Branca, o que o leva a insistir na necessidade de a mesma preservar-
se dos perigos e da tentação do demônio. Ao ser convidado para celebrar o casamento de
Branca com seu noivo Augusto Coutinho, o Padre Bernardo, enciumado, e no ade resgatar
sua alma, a denuncia ao Santo Ofício, onde ela é interrogada e acusada de heresia. Também
são presos e torturados, seu pai, Simão Dias, e Augusto Coutinho, seu noivo.
No segundo ato, ocorrem os momentos mais dramáticos da peça que são: o anúncio da
morte de Augusto Coutinho, a abjuração de Simão Dias, e, por fim, a negação de Branca Dias
em reconhecer crimes que não cometeu, preferindo morrer a viver sem dignidade.
45
No decorrer da peça há uma preocupação de Dias Gomes em montar um texto no qual,
tanto através tanto da linguagem quanto da forma, enfática e questionadora, pudesse
comunicar-se com um público que estava sofrendo as opressões da ditadura militar. Para
Alves (2005), o enredo dramático é construído de maneira a chamar as personagens a reviver
o acontecido diante de testemunhas contemporâneas que estão reunidas no teatro, que neste
momento “se transforma em um tribunal”. De acordo com Pierre-Aimé Touchard, “ao lado
do texto e do ator, o público é um dos três elementos fundamentais do teatro, talvez o mais
importante e verdadeiramente indispensável.” (apud ALVES, 2005, p. 197). Dessa maneira,
em O santo inquérito, Dias Gomes trabalha a platéia como extensão do palco, como se esta
estivesse como testemunha ocular dos eventos ali ocorridos. “Ao modo do teatro grego, a
peça conclama a platéia para que não seja meramente espectadora, mas participante.”,
conforme afirma Alves (2005, p. 200). Por isso, em dados momentos, as personagens se
dirigem ao público como para envolvê-lo na trama: “Padre Bernardo Aqui estamos,
senhores, para dar início ao processo... Apresentamos inúmeras provas que temos contra a
acusada. Mas uma é evidente, está à vista de todos: ela está nua.”, “Branca Dias Vejam,
senhores, vejam que não é verdade! Trago as minhas roupas, como todo mundo. Ele é que não
as enxerga!” (O santo inquérito, 1996, p. 31)
Com relação à peça O santo inquérito, ainda de acordo com Alves (2005), o perfil da
personagem Branca Dias, no que se refere à integridade moral e ética, aproxima-se do herói
trágico, particularmente ao defender seus princípios éticos e sua crença adquirindo força para
enfrentar a morte trágica. Devido a isso, Alves (2005) aproxima-a de Antígona, pois, assim
como esta, na tragédia grega de Sófocles, foi perseguida por Creonte ao contrariar as leis do
Estado, Branca Dias foi perseguida pelo Tribunal do Santo Ofício ao contrariar as leis da
Igreja. Também como Antígona, Branca Dias, num momento inicial, apavora-se diante da
morte iminente e se dispõe a admitir seus “pecados” e arrepender-se, cumprindo a penitência
prescrita pelo tribunal. Todavia, ao tomar conhecimento de que Augusto Coutinho, seu noivo,
não resistiu às torturas e preferiu morrer a ter de acusá-la, assim como da abjuração de seu
pai, que preferiu salvar-se a qualquer preço, mesmo que este preço fosse sua própria
dignidade, Branca muda de atitude e aceita a morte na fogueira, sabendo que não será a
primeira e nem a última a sofrer esse tipo de injustiça.
O fim trágico de Branca Dias aproxima-a do caráter do herói que, ao perder o poder
terreno, aniquilando-se fisicamente, consegue elevar-se espiritualmente. E, “À custa do
próprio sangue, torna-se mensageiro do passado para o futuro(ALVES, 2005, p. 206). Ao
morrer lutando contra a injustiça e a opressão de um poder totalizador, arbitrário e intolerante,
46
Branca Dias deixa para as gerações vindouras a mensagem atemporal de que “Há um mínimo
de dignidade que o homem não pode negociar, nem mesmo em troca da liberdade. Nem
mesmo em troca do sol.” (O santo inquérito, 1996, p.100)
47
3 FORMAS DE ARBÍTRIO E INTOLERÂNCIA
(...) todos os totalitarismos, seja em que tempo for, só podem levar à deterioração e ao aviltamento
das sociedades humanas.
(ANITA NOVINSKY)
3.1 Intolerância política e intolerância religiosa. O caso Branca Dias
A intolerância, tema cada dia mais estudado no Brasil e no mundo, tem chamado a
atenção de diversas organizações internacionais a exemplo da Unesco e da Academia
Universal das Culturas; é também objeto de estudo para o LEI (Laboratório de Estudos da
Intolerância), criado pela professora e pesquisadora Anita Novinsky; e tem sido discutido em
eventos, dentre os quais podemos destacar: o “Encontro sobre a Tolerância na América Latina
e no Caribe”, em 1994, no Rio de Janeiro; o “Foro Internacional sobre a Intolerância”, na
Sorbonne, em 1997; e o Colóquio “Direitos Humanos no Limiar do Século XXI”, na USP,
também em 1997. Nesses eventos, a nova concepção de intolerância é concebida a partir da
discussão acerca das culturas e a diversidade dos povos ex-colonizados, entre eles os latino-
americanos e os caribenhos, que foram, durante os últimos 500 anos, explorados e
marginalizados. Percebemos, portanto, que, apesar de a intolerância ser um problema surgido
há séculos, continua nos afetando hoje e servindo de elemento ameaçador à paz mundial, pois
a intolerância étnica, política e/ou religiosa é uma das nuances causadoras dos constantes
conflitos e guerras que temos presenciado em nossos dias.
O termo tolerância, apesar da conotação positiva na qual costuma ser empregado, traz
em seu bojo uma série de problemas. Uma de suas muitas dificuldades é o seu relacionamento
com outros termos tais como: diferença, igualdade, alteridade, identidade, intolerância.
Etimologicamente ‘tolerar’ deriva de tolerare, tolere (tirar), termo latino que tem o sentido
original de suportar, permitir, condescender, aceitar com indulgência. O termo tolerância
surgiu com a intenção de se opor à barbárie, ao fanatismo, ao ódio, à ‘militarização das idéias
e das consciências’; bem como, favorecer a convivência pacífica entre os homens.
Historicamente, a palavra tolerância apareceu na época das guerras religiosas entre
protestantes e católicos durante o século XVI; católicos e protestantes passaram, então, após
muitos conflitos, a “tolerarem-se” reciprocamente. No século XIX, a tolerância foi tema de
48
estudo e reflexão para livres pensadores
11
, chegando a ser abordada em várias obras deste
período. O século XX foi marcado pelos flagelos trazidos por duas guerras mundiais,
principalmente, a Segunda Guerra, que teve como uma de suas maiores conseqüências o
genocídio praticado pela Alemanha nazista, o qual chegou a exterminar mais de seis milhões
de judeus nos campos de concentração. Devido a isso, neste século, o termo tolerância passou
a fazer parte dos acordos internacionais, com o intuito de tentar promover a paz e a boa
convivência entre os povos, a exemplo disso temos a Carta aos Direitos Humanos, de 1948.
Embora o termo não consiga abranger a complexidade das relações existentes entre a
alteridade e a diversidade, limitando-se a denotar uma coexistência “pacífica” entre os
diferentes. Maldonato (2003), afirma que
Apesar da incompletude de sua conceituação (...) não podemos perder de vista seu caráter
emblemático e de valor de resistência ao arbítrio e à perseguição, à violência política e
privada, à inquisição judiciária e policial. Dentro de precisos limites históricos, teóricos e
éticos, ela significou liberdade religiosa e política, embora nunca tenha se tornado a liberdade.
(p. 1)
Vale salientar que a palavra tolerância, apesar de todas as contradições e problemáticas
que possa abranger, nos remete a um sentido de resistência a tudo que vise o cerceamento à
liberdade, a repressão, a discriminação, etc; assim como, chama a atenção para a necessidade
de respeito às diferenças humanas, sejam estas de origem, étnica, cultural, religiosa, etc.
Todavia, o termo tolerância tende, cada vez mais, ao desuso. Rouanet (2003), acredita
que a implantação de uma cultura de tolerância é uma tentativa de apaziguamento na guerra
das diferenças, mas não traz a paz, pois as diferenças não devem ser apenas ‘toleradas’, o que
levaria a um relacionamento mecânico reduzido à comunicação nos espaços públicos; além de
pressupor que há uma relação vertical, entre desiguais, na qual, aquele que se julga superior
ao outro, faz concessões ao inferior, tolerando-o. Dessa maneira, o termo passa a produzir um
sentimento negativo, se levarmos em conta que é preciso tolerar o que nos é desagradável,
porém, inevitável, com o intuito, apenas, de preservar a ordem social. Por essa razão, Rouanet
(2003), afirma que “A tolerância foi uma das mais úteis conquistas da espécie, mas deve ser
vista como passagem para um estágio mais civilizado e menos mecânico de convívio das
diferenças.” Este ‘novo relacionamento’ seria alicerçado no respeito, “uma prática interativa
com a tendência de integrar as pessoas com todas as suas diferenças naturais, formando um
11
Mais adiante, trataremos, mais detalhadamente, de alguns filósofos que refletiram e escreveram sobre a
tolerância, como: John Locke, Voltaire, entre outros.
49
grupo diferenciado, um ‘nós’ que não iguala, mas que, ao contrário, oferece todas as
possibilidades de individualização”. (LIETHÜUSER, 2001, p. 443)
O sociólogo Norberto Bobbio, no livro A era dos direitos, refletindo sobre o conceito
de tolerância, diz que, dependendo do contexto em que estiver sendo usado, seu significado
pode ser diferente. Desta forma, podemos entender a tolerância em, pelo menos, dois sentidos
diferentes: primeiro, o sentido historicamente predominante, o qual trata da convivência de
crenças políticas e/ou religiosas; e, também, o sentido no qual é usado hoje em dia, que fala
sobre os problemas das minorias étnicas, lingüísticas, de gênero, etc. Para Bobbio,
uma coisa é o problema da tolerância de crenças e opiniões diversas, que implica um discurso
sobre a verdade e a compatibilidade teórica ou prática de verdades até mesmo contrapostas;
outra é o problema da tolerância em face de quem é diverso por motivos físicos ou sociais, um
problema que põe, em primeiro plano, o tema do preconceito e da conseqüente discriminação.
(1992, p. 203)
Conseqüentemente a isso, as formas de intolerância para estes dois contextos são
também diferentes. A intolerância, gerada a partir de opiniões políticas e/ou religiosas
diferentes, resultaria da certeza de se possuir a verdade; a intolerância para com os
“diferentes” brotaria do (pré)conceito, no sentido lato da palavra, ou seja, “uma opinião ou
conjunto de opiniões que são acolhidas de modo acrítico passivo pela tradição, pelo costume
ou por uma autoridade cujos ditames são aceitos sem discussão.” (BOBBIO, 1992, p. 204).
Na contemporaneidade, o conceito de intolerância está relacionado ao segundo sentido
falado por Bobbio, pois trata da alteridade, da identidade e da diversidade cultural. Visto que
a intolerância com o diferente está sendo um dos maiores geradores de conflitos entre os
povos. Rouanet afirma que:
... a intolerância pode ser definida como uma atitude de ódio sistemático e de agressividade
irracional com relação a indivíduos e grupos específicos, à sua maneira de ser, a seu estilo de
vida e às suas crenças e convicções. Essa atitude genérica se atualiza em manifestações
múltiplas, de caráter religioso, nacional, racial, étnico e outros. (2003, s/p)
Para Hélène Joffe (1998), a palavra “outro” geralmente se aplica apenas àqueles
excluídos que, implicitamente, estão subordinados ao grupo de indivíduos que se consideram
detentores e donos das idéias dominantes. A representação das diferenças do “outro” tende a
ser intensificada em períodos de crise, principalmente no que se refere às características
negativas, o que leva esses “outros” a, freqüentemente, tornarem-se “bodes expiatórios”. A
50
exemplo do que aconteceu aos judeus no curso da história, que, devido à sua política de não
assimilação ou diferenciação nas sociedades nas quais viviam, eram sempre apontados como
responsáveis pelos males ocorridos naquela comunidade. Joffe diz ainda que uma das
maneiras de a sociedade dominante controlar seu medo é por meio da degradação do “outro”,
e, se determinados indivíduos podem ser entendidos como formas inferiores de vida, o
respeito exigido pela cultura ocidental em relação aos humanos pode ser negligenciado. “A
degradação pode ser conseguida através da desumanização, que implica usar categorias de
criaturas valorizadas negativamente, como os demônios (Bar-Tal 1990).” (p. 110)
A última estratégia, particularmente, representa o “outro” como o mal, e o banimento permite
a eliminação simbólica dessa força profana. Os textos nazistas que dominaram o pensamento
alemão entre 1933 e 1945 fornecem um exemplo claro desse mecanismo (Bar-Tal 1990). Eles
descrevem o povo judeu como “vermes”, “bactérias”, “pestes”, “pragas internacionais”, e
também como “satânico”, “diabos” e “demônios”. Tais textos foram construídos tendo como
pano de fundo uma imensa crise econômica. Diante de situação extremamente ameaçadora,
que tornou o povo alemão aberto a sentimentos de fraqueza e vulnerabilidade, um “outro”
execrado se transformou no bode expiatório. As pessoas são escolhidas como bodes
expiatórios sob o pretexto de que são diferentes, ou deficientes, em relação ao normal
(Douglas 1995). Os períodos de mudanças geram insegurança, que por sua vez produz defesas
para contrabalançar a ansiedade provocada. As representações depreciativas são uma dessas
defesas. Elas possuem uma conseqüência interessante, pois uma vez depreciado por associar-
se com animais e instintos, o objeto das representações se torna imbuído de poderes sexuais e
instintivos. Construindo uma teoria mais geral do que a que se refere a europeus e orientais,
Hall (1991) afirma que o racismo, bem como o preconceito num sentido mais geral, tende a
ser uma combinação de degradação, inveja e desejo. (JOFFE, 1998, p. 110, 111)
Devido a isso, a disseminação do preconceito se torna uma das principais armas da
repressão, de acordo com Naffah Neto (1985), pois, através disso, obtém-se o apoio da
população, ratificando, assim, seus atos de intolerância. “... os inimigos potenciais do regime
são postos como inimigos da Nação, agentes internacionais, pessoas a quem é preciso destruir
para que a paz no país possa ser restaurada.” (p. 22). Nesses momentos, os atos de tortura são,
muitas vezes, justificados como atos de defesa, a fim de restabelecer a ordem e a paz.
A discussão acerca da intolerância política e/ou religiosa foi tema para muitos
pensadores tais como: Montaigne, Erasmo de Rotterdam, Spinoza, John Locke, Voltaire e
Rousseau. De acordo com Canto-Sperber (2000), do século XVII ao XVIII, todos os
escritores que trataram acerca da tolerância se opuseram à perseguição religiosa, posto que,
segundo eles, na medida em que as opiniões religiosas pertencem apenas à consciência, por
mais perniciosas que pareçam, nenhuma repressão poderia ter utilidade ou justificativa.”
(CANTO-SPERBER, 2000, p. 90).
51
Voltaire, no Tratado sobre a tolerância, fala da tolerância num âmbito universal ao
invés de focar na diversidade religiosa e/ou política. “A natureza diz a todos os homens: Fiz
todos vós nascerem fracos e ignorantes, para vegetarem alguns minutos na terra e adubarem-
na com vossos cadáveres. Já que sois fracos, auxiliai-vos; que sois ignorantes, instruí-vos e
tolerai-vos.” (VOLTAIRE, 1993, p. 42). Seus argumentos são fundados na razão iluminista.
Para ele a tolerância religiosa é imprescindível às sociedades civilizadas, por isso ele escolhe
como ponto de partida de sua luta contra a intolerância, e a perseguição religiosa, o drama
vivido pela família de Jean Calas. Acusado de assassinar seu próprio filho, a fim de evitar que
o mesmo se convertesse ao catolicismo, Jean Calas foi condenado à morte pelo suplício da
roda, ou seja, quebrado vivo, além de ingerir forçadamente dez moringas de água, seguido de
estrangulamento e, por fim, queimado na fogueira. Os juízes esperavam que, com o
sofrimento, Jean confessasse o crime, mas esperaram em vão. Em 10 de março Jean Calas não
pára de professar sua inocência e, no cadafalso, repete que morre inocente. A comunidade
protestante, que vinha sofrendo atos brutais de intolerância
12
, se abala fortemente e entrega
o caso a Voltaire. Contudo,
O processo de Calas teve, decerto, uma conseqüência nos fatos. Acabou-se com as
execuções de pastores, com a prisão em massa de huguenotes “no Deserto” para abastecer as
galés. Mas não modificou em nada a lei. Podia, portanto, ser a qualquer momento reativada.
Foi somente em 1787 que Luís XVI decidiu promulgar um Édito de tolerância, em favor de
seus súditos que não pertenciam à religião católica (o texto não especifica se a medida era
aplicável também aos judeus).” Vinte e quatro anos depois do Tratado de Voltaire, o rei
adotava-lhe as recomendações. Restituía aos protestantes o estado civil. Tolerância,
portanto, e nada mais. (...) a Declaração dos direitos do homem de 1789 institui que “todos
os cidadãos [...] são igualmente admissíveis a todas as funções graduadas, colocações e
empregos públicos [...] sem outras distinções além daquelas de suas virtudes e de seus
talentos”. Assim termina a exclusão dos protestantes, (VOLTAIRE, 1993, p. XXII)
Spinoza, filosofo judeu, dizia que a violência e a opressão não promoviam a fé.
Contudo, ele mesmo foi vítima da intolerância dentro da sua própria comunidade, na qual foi
12
Ao subir ao trono, Luís XV continuou a tentativa de extirpar a heresia protestante da França. Com isso, as
antigas leis voltaram a vigorar: pena capital aos pastores surpreendidos no exercício do ministério; os
protestantes pegos praticando o culto eram condenados às galés perpétuas para os homens e prisão perpétua para
as mulheres. Os protestantes em geral eram sujeitos a medidas discriminatórias: não tinham estado civil (era-lhes
negado o direito à cidadania), seus nascimentos e casamentos não eram legalmente reconhecidos por se darem
fora da Igreja; seus filhos eram considerados bastardos, portanto não tinham direito à herança. Devido a isso, a
maior parte dos protestantes se “convertiam” apenas formalmente ao catolicismo. (In: VOLTAIRE. Tratado
sobre a tolerância: a propósito da morte de Jean Calas. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes,
1993).
52
acusado de ateísmo, devido às suas idéias, chegando a ser “excomungado” pelos rabinos.
Afastado dos seus, ele passa a viver à margem do judaísmo institucionalizado. Para ele, todos
devem ter o direito de usar livremente sua razão, bem como ninguém pode dizer o que se deve
aceitar como verdade ou rejeitar como erro. Por isso, sua experiência nos leva a refletir acerca
de um problema existente em qualquer sistema religioso e/ou político face à intolerância, que
é a necessidade da liberdade de expressão e pensamento.
Vivendo no mesmo século de Spinoza, John Locke escreve a sua Carta acerca da
tolerância. Nela defende que o magistrado não pode, nem deve, tomar para si a função de
definir a crença dos indivíduos. Pois sendo a Igreja uma sociedade voluntária dos homens,
que se reúnem por vontade própria, a fim de cultuar a Deus, é livre, que ninguém nasce
membro de qualquer instituição religiosa. Portanto, nenhum homem está submisso a qualquer
igreja ou seita, porém todos devem juntar-se voluntariamente à sociedade na qual acreditam
ter encontrado a confissão e o culto verdadeiramente aceitável a Deus. Assim, sendo o
objetivo de uma sociedade religiosa o culto público à divindade e, através disso, a entrada
para a vida eterna, nesta sociedade não se pode, nem deve, tratar de qualquer assunto
envolvido com a posse de bens civis ou mundanos. Pois nela não se pode, em nenhuma
ocasião, usar-se a força, porque o uso da força compete ao poder do magistrado civil, bem
como a posse de quaisquer bens exteriores sob sua jurisdição.
Nesse sentido, Locke pensa a religião cristã separada do poder estatal, arraigada numa
sociedade contratualista e fundada nos princípios civis. Ele considera necessário distinguir
exatamente a função do governo civil em relação à da religião, estabelecendo claros limites
entre uma e outra: “... porque cuidar das almas não incumbe ao magistrado civil nem
tampouco a quaisquer outros homens. (...) o Padre Eterno não concedeu autoridade a qualquer
homem sôbre (sic) outro, para que o obrigasse à religião que professasse.” (LOCKE, 1964, p.
9-10). Conseqüentemente, a separação entre o poder do estado e a religião garante uma
liberdade religiosa mais ampla, a qual engloba as religiões cristãs e as não-cristãs. Ele ressalta
também que o poder público não dispõe de meios para atingir as consciências, pois não se
podem mudar crenças religiosas através de ameaças, castigos ou imposições.
Se alguém sustentar que se devem obrigar os homens por fogo e espada a seguir certas
doutrinas, conformando-se a este ou àquele culto exterior, sem que se dispense qualquer
consideração à moral deles; se alguém se esforçar por converter os que estão errados para com
a fé, forçando-os a professar aquilo em que não acreditam e permitindo-lhes a prática do que o
Evangelho não aprova, não é possível duvidar que tal pessoa deseje ver a si reunidas muitas
pessoas que lhe acompanhem a confissão; mas é inteiramente inacreditável que tencione
principalmente por êsses meios constituir igreja verdadeiramente cristã. (LOCKE, 1964, p. 7)
53
Para Locke, a tolerância deve ser a característica distintiva principal da verdadeira
igreja entre os cristãos nas suas diversas confissões religiosas. E a um verdadeiro cristão não
pode faltar caridade, brandura e boa vontade em geral para com todos os homens, mesmo para
os que não forem cristãos. Locke lembra que o Evangelho afirma que os verdadeiros
discípulos de Cristo sofrem perseguição, contudo não é possível encontrar em nenhum dos
livros do Novo Testamento que a Igreja de Cristo perseguisse a outros ou devesse forçá-los
através de “fogo” e “espada” a abraçar-lhe a e a doutrina. Pois “Se tivermos de dar crédito
ao Evangelho e aos apóstolos, ninguém pode ser cristão sem caridade, e sem a que atua,
não pela força mas pelo amor.” (LOCKE, 1964, p. 4)
Não é a diversidade de opiniões (que é inevitável) mas a recusa da tolerância para com os que
professam opinião diversa (que se poderia permitir) que deu origem a tôdas as bulhas e
guerras que se têm manifestado no mundo cristão por causa da religião. Os chefes e líderes da
igreja, levados pela avareza e desejo insaciável de domínio, fazendo uso da ambição
imoderada de magistrados e da crédula superstição da multidão aturdida, os incensaram e
animaram contra os que discordam dêles, pregando contrariamente às leis do Evangelho e aos
preceitos da caridade, que é preciso expulsar das suas posses a cismáticos e hereges,
destruindo-os. E dessa forma misturaram e confundiram duas instituições que em si são mui
diversas, a igreja e a comunidade. (LOCKE, 1964, p.61)
Em O santo inquérito, ao ser interrogada pelo Visitador, Branca Dias defende a
posição de que ninguém pode ser convertido através de perseguições: Se alguém converteu-
se, sem estar de fato convicto, é que foi obrigado a isso pela força. (Repete as palavras do
pai.) O ódio não converte ninguém.” (1996, p.76). Também Augusto Coutinho, seu noivo,
trava uma batalha ideológica contra a intolerância. Vejamos uma conversa sua com Branca
Dias acerca de um homem condenado ao degredo:
AUGUSTO
Padre Bernardo... acho que já ouvi falar dele.
BRANCA
Já?
AUGUSTO
Era padre adjunto do visitador do Santo Ofício, em Pernambuco, quando Pero da Rocha foi
condenado.
BRANCA
Condenado, por quê?
AUGUSTO
54
Por trabalhar aos domingos e negar a virgindade de Nossa Senhora. Degredo por dois anos, foi
a pena; tendo antes que andar por todo o Recife, com grilhão e baraço, apontado à execração
pública.
[...]
Concordo com o degredo, não concordo com a humilhação. Pero da Rocha é um herege, mas é
um homem... Eu estava no Recife e o vi passar, com o baraço no pescoço, tangido como um
cão, entre insultos e pedradas de uma multidão que ria e incentivava a violência. E nunca
esquecerei o seu olhar. Parecia dizer: “Isto que aqui vai, é um homem. Um ser feito à
semelhança de Deus”. (O santo inquérito, 1996, p. 39)
A idéia de intolerância teve suas raízes nas sociedades cujos contextos histórico e
social traziam em seu bojo algum tipo de disputa política e/ou religiosa, ou ambas. Segundo
De Romilly (2000), nas sociedades politeístas, a tolerância teve seus dias de glória, a exemplo
da democracia ateniense, que permitia aos cidadãos expressar livremente suas idéias e
opiniões. Dentre as religiões existentes, aquelas que são monoteístas costumam ser as mais
intolerantes, pois, ao acreditar que o seu deus é o único e o verdadeiro, tais religiões tendem a
crer que o as únicas com o direito de existir. Em contraponto, as religiões politeístas, como
as da Roma Antiga, não tinham problema em aceitar os deuses das outras religiões, desde que
não trouxessem conflitos à ordem política e/ou social. Eles chegavam a ter em seu panteão um
lugar reservado aos deuses desconhecidos. “De modo geral, a intolerância religiosa era
desconhecida na Antiguidade Clássica, politeísta e, portanto, hospitaleira aos deuses de outras
nações.” (ROUANET, 2003, s/p). Contudo, foi na Grécia onde ocorreu a condenação de
Sócrates, ato de intolerância que se tornou célebre. Sócrates foi acusado de não ter os mesmos
deuses que a Polis. Vemos, portanto, que mesmo em sociedades ditas democráticas, como a
grega, houve intolerância e que esta freqüentemente encontrava-se ligada a questões
religiosas.
Sob o domínio romano, os judeus tiveram, no início, sua religião tolerada enquanto
aceitaram a submissão, mas, ao se rebelarem contra o governo, devido às suas expectativas
messiânicas, tiveram sua religião transformada em ilegal. O mesmo se deu com o
cristianismo. A princípio, os cristãos eram vistos como mais uma facção do judaísmo, porém,
ao começarem a ganhar identidade própria e a serem percebidos pelos romanos como uma
“ameaça” à estabilidade política e social do império, estes começaram a ser perseguidos e
mortos. Um dos maiores motivos geradores de polêmica entre os cristãos e os romanos era o
fato de aqueles se recusarem a adorar o imperador romano como Dominus et Deus (Senhor e
Deus), e de sua recusa até mesmo a chamá-lo pelo título Kyrios (Senhor), que é um título
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colocado em substituição do nome ao Senhor e do título hebraico Adonai, na Septuaginta e no
Novo Testamento. Portanto, dizer César é Senhorseria reconhecer a divindade de César,
algo inadmissível para os cristãos.
Em 313 A.D., a Igreja Cristã obteve liberdade religiosa através do Edito de Milão,
emitido por Constantino e Licínio. Com o advento do cristianismo, e, posteriormente, com a
expansão do catolicismo, que rejeitava toda e qualquer interpretação do texto sagrado
divergente da sua, bem como qualquer forma de pensamento fora de suas tradições e dogmas,
adveio um tempo em que a intolerância imperou. O cristianismo tornou-se, então, intolerante
com os erros e fraquezas humanas, distanciando-se do ideal de Cristo, passando a se julgar
detentor da verdade e, conseqüentemente, da liderança entre os povos. E assim, aqueles que
eram perseguidos, passaram a perseguir e condenar em nome de Deus. Para Rouanet (2003):
A intolerância só se tornou possível com o advento do cristianismo, que afirmava a existência
de um Deus e de uma revelação para a humanidade inteira. As medidas de intolerância
ativa começaram no século 13, quando a Idade Média transformou-se numa sociedade fundada
na rejeição e exclusão principalmente dos judeus e dos heréticos. (s/p)
Contudo, a noção de tolerância/intolerância surgiu, segundo Le Goff (2000), no
século XVI, e uma das suas primeiras utilizações públicas pode ser encontrada no Edito de
tolerância, de 1562, no qual é concedida a liberdade de culto aos protestantes. Mas a partir
do final do século XVII ela é amplamente utilizada.
Para Le Goff, foi na época medieval, mais precisamente entre os séculos V ao XV, que
se formou “a essência do sistema de valores e de comportamento do Ocidente.” (2000, p. 38).
Houve, nesse período, dois grandes acontecimentos que marcaram uma ruptura em relação
aos anteriores: o estabelecimento do cristianismo e a chegada dos povos bárbaros. A Alta
Idade Média foi uma época de relativa tolerância devido às conversões e à aculturação que
levavam a um certo grau de integração religiosa, política, social e jurídica. O que resultou na
cristianização da população e na constituição de Estados cristãos e do Império Carolíngio,
bem como no nascimento da sociedade feudal. Nesse momento, há uma certa coabitação entre
judeus e cristãos.
Em contrapartida, dos séculos XI ao XIV, a perseguição passa a imperar na sociedade.
“Beneficiada por um grande desenvolvimento demográfico, econômico, militar, político e
cultural, ela quer defender suas conquistas contra aqueles que lhe parecem ameaçá-las;” (LE
GOFF, 2000, p. 39), por isso adotando instrumentos agressivos para a repressão. Suas
56
primeiras vítimas são, como não poderia deixar de ser, os judeus e os mulçumanos. Mas,
dentre os excluídos, os mais perseguidos são os heréticos. Nesse momento, surgem as heresias
de massa, como a dos cátaros ou albigenses
13
, que passam a ser vistos pela Igreja como uma
ameaça à unidade cristã, sendo massacrados numa das guerras mais bárbaras da história,
ordenada pelo papa Inocêncio III, o que culminou na extinção completa da religião.
É para deter os “traidores de Deus” que a Igreja cria a Inquisição. Tal tribunal tinha em
vista a constituição de uma sociedade cristã ‘pura’, “expurgada de elementos considerados
inassimiláveis, geralmente designados por uma mácula de impureza infamante, suscetível de
contaminar o conjunto da sociedade.” (LE GOFF, 2000, p. 40). Para Le Goff, esse processo
de intolerância foi reforçado por alguns fatores como a constituição de Igreja em monarquia
pontifícia, a construção dos Estados modernos e o crescimento dos nacionalismos nascidos na
França e na Inglaterra durante a Guerra dos Cem Anos.
Com a identificação entre religião e política, entre as diferentes facções do cristianismo
(católicos, protestantes, anglicanos etc.) e os respectivos governos representativos dos
Estados-Nações, a perseguição aos dissidentes é intensificada e também motivada pelos
interesses políticos em disputa. A inquisição espanhola, por exemplo, foi usada para “forjar a
unidade nacional”. (...) Com a formação e consolidação dos Estados nacionais modernos, a
intolerância vincula religião e política, identificando uma à outra. O herege religioso é visto
como um desafiante da ordem política monárquica; o dissidente político é encarado como um
desafiador do dogma religioso adotado pelo Estado-nação. (SILVA, 2004, s/p)
No final do século XV, surge, na Espanha, juntamente com a “nova” Inquisição, a
idéia racista da “pureza de sangue”. E é neste mesmo século que se instaura o moderno
sistema de intolerância. A busca pela “pureza”, algumas vezes, levou o homem a agir de
forma brutal com seus semelhantes. Paul Valéry dizia que “A intolerância seria uma terrível
virtude dos tempos puros.” (apud LEPENIES, 2000, p. 115). Após refletir sobre todas as
contradições que ditam a cultura e a política da modernidade, Valéry concluiu que a
intolerância é uma “virtude” dos tempos “puros” da história humana. Podemos observar que
sua afirmação tem sentido ao relembrarmos sistemas religiosos e/ou políticos, a exemplo do
nazismo, fascismo, integralismo e a Inquisição, que primavam por uma “pureza”, seja ela
religiosa, racial, nacionalista, etc.
O tribunal português do Santo Ofício foi criado cinqüenta anos depois do espanhol e,
desde o seu início, teve um grande apoio das autoridades civis e a centralização política do
Reino. Em 1541, surgem as primeiras petições, quando da criação dos tribunais em Coimbra,
13
Seita maniqueísta implantada na França meridional.
57
Lamego, Porto e Tomar. A criação da Inquisição portuguesa, bem como a perseguição que se
seguiu aos judeus, provocaram uma onda de emigração, primeiro para Amsterdã, e logo em
seguida para os Países Baixos e Brasil. Ao chegarem às terras brasílicas, tanto os judeus,
quanto os cristãos-novos tentaram se integrar à vida da nova sociedade. Laura de Mello e
Souza (1986) afirma que seria errado dizer que os judeus e cristãos-novos radicados no Brasil
continuaram vivendo de forma intensiva a religião judaica. Eles ingressaram no clero, foram
mordomos das Misericórdias, membros de irmandades religiosas; e dentre os presos pela
Inquisição entre 1619 e 1644, era baixo o índice de religiosidade judaica. Pelo menos os que
se declaravam judeus. Para ela, tudo leva a crer que os elementos do judaísmo se fundiram no
conjunto das práticas sincréticas que faziam parte da religiosidade popular da colônia,
compondo uma de suas muitas faces.
Entretanto, desde o início da colonização, houve uma intolerância muito forte no seio
da sociedade brasileira no que se refere aos cristãos-novos e judeus. Souza (1986) diz que:
“Por grande parte das lágrimas vertidas, dos temores, dos medos de perseguições foi
responsável o Tribunal do Santo Ofício nas suas visitas à colônia brasileira.” (p. 100).
Segundo ela, durante todo o período colonial, o Brasil esteve sujeito ao Tribunal de Lisboa,
que respondia pelas causas coloniais. Todavia, a distância existente entre metrópole e colônia
contribuía para aumentar a morosidade dos procedimentos do Santo Ofício. Fora os períodos
das visitações, que se deram na Bahia, Pernambuco e Grão-Pará, eram os comissários e os
familiares do Santo Ofício que farejavam no meio da população colonial as culpas as quais
deveriam ser enviadas ao Tribunal de Lisboa. Por isso a intolerância contra os judeus se
intensifica nesse período.
Os éditos, documentos publicados nas igrejas e nas praças públicas, geralmente
durante a Quaresma, impunham um período para denúncia, assim como concediam o período
de “graça”, o que colocava a vida da população sob terror. “O pregão obrigava, sob pena de
excomunhão, a população com mais de doze anos a comparecer à missa maior do domingo
seguinte, onde seria lido o édito e pregado o sermão da fé.” (BETHENCOURT, 2000, p. 153).
Através desses “mecanismos arbitrários”, a Inquisição constrangia a população a denunciar
e/ou confessar seus crimes” e, de certa maneira, por medo ou fanatismo, a apoiar o Tribunal
do Santo Ofício.
Anualmente, no primeiro domingo da quaresma, fazia-se ler e afixar nas igrejas do Reino e
dos domínios ultramarinos um edital que estabelecia as culpas sujeitas à alçada inquisitorial.
Ficava assim aberto o canal às denúncias e à delação. O medo das Visitações no Brasil gerou
denúncias até de mortos. (SOUZA, 1986, p. 296)
58
O medo de ser pego pela Inquisição, das torturas, assim como de perder a salvação
levava muitos a denunciar amigos e parentes, mas principalmente os desafetos. A própria
Branca Dias, histórica, foi denunciada primeiro por sua mãe e irmã, ainda em Portugal, e,
posteriormente, por suas ex-alunas, depois de morta.
Joanna Fernandes contra Branca Dias
e denunciando dixe que averá trinta e quatro ou trinta e cinquo annos que indo ella aprender a
coser e lavrar a casa de Branca Dias cristaã nova ora defunta; ... ella denunciante vio no
ditto tempo que na sua casa andou aprendendo que seria espaço de hum anno que a ditta
Branca Dias guardava os sabbados, (Primeira visitação do Santo Ofício às partes do Brasil;
Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-1595, p. 30)
As acusações do Tribunal aos sentenciados eram absurdas. Baseadas em depoimentos
obtidos pela coação, tais acusações brotavam, muitas vezes, de lábios impulsionados pelo
medo e/ou pelas torturas. Souza (1986) afirma que, através de mecanismos arbitrários, o réu
era enredado numa teia impossível de ser desembaraçada. O Tribunal Português admitia o
testemunho de pessoas que não presenciaram os fatos relatados, mas apenas ouviram falar.
Sem contar que não exigia idoneidade das testemunhas, valendo até mesmo o depoimento de
crianças. Contudo, a maior parte das denúncias ocorreria por parte de parentes, amigos e
vizinhos.
Outro fator que acirrava ainda mais o absurdo das acusações era chamado ‘o segredo
do processo’. Neste, o preso não podia conhecer os nomes dos seus denunciantes – antes tinha
que adivinhar quem o acusara e nem as circunstâncias, o local ou o tempo dos crimes que
lhe eram imputados. O prisioneiro, então, muitas vezes, desesperado e pressionado, começava
a delatar todos aqueles que conhecia, na esperança de se livrar dos castigos e das torturas.
Nesses casos, o acusado assumia toda a responsabilidade caso ocorresse algo mais grave
durante as sessões de tortura. Augusto Coutinho foi obrigado (como era de costume) a assinar
uma declaração responsabilizando-se e, assumindo a culpa, por tudo que viesse a lhe
acometer.
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NOTÁRIO
É verdade, antes de ter início a tortura, ele assinou a declaração de praxe. Tenho-a aqui.
(Mostra um papel, que lê, depois de engrolar algumas palavras.) “... e declaro que se nestes
tormentos morrer, quebrar algum membro, perder algum sentido, a culpa será toda minha e
não dos senhores inquisidores. Assinado: Augusto Coutinho.” (O santo inquérito,1996, p. 85)
Tais atos arbitrários nos permite verificar o quanto o Tribunal que se auto-intitulava
‘santo’ era moralmente desqualificado e arbitrário, desde que buscava determinar os destinos
das pessoas para assim satisfazer sua sede de poder. O engajamento da Contra-Reforma em
sua luta contra o crescimento da Revolução Luterana, aliado aos interesses econômicos da
Inquisição, culminou no sofrimento e morte de milhares de pessoas durante mais de três
séculos. “Com efeito, toda a história dos tribunais (...) é uma história de lutas constantes para
manter seu poder e seu prestígio em face das outras instituições, sobretudo ante à Coroa.”
(BETHENCOURT, 2000, p. 300)
Apesar de aliados, o Estado e a Igreja nem sempre comungavam de objetivos comuns.
Os cristãos-novos estiveram, algumas vezes, no cerne dessa desavença. Jogando com as
dificuldades tanto da Coroa Portuguesa como da cúria romana, eles encaminharam suas
petições de perdão geral, livre saída do reino e mesmo de isenção de confiscos de bens, em
troca de generosas doações. A Inquisição, por sua vez, acirrava a perseguição àquela camada
da população que ascendia socialmente e, por conseguinte, possuía um grande volume de
riquezas.
Anita Novinsky, em Cristãos-Novos na Bahia 1624-1654, analisa a Inquisição a
partir de um viés marxista. Para ela, o Tribunal do Santo Oficio criou o mito do herege,
criptojudeu ou judaizante, com o intuito de encobrir seu verdadeiro motivo, que era a luta de
classes. A religião serviu como pretexto para deter o avanço da classe burguesa em ascensão,
que tinha como núcleo principal indivíduos de origem judaica. Nesse sentido, a luta da
Inquisição não seria contra a religião judaica, mas contra uma força de oposição que vinha
crescendo, principalmente, através do não conformismo religioso.
A Inquisição trouxe consigo, além de outras coisas, medidas proibitivas que puniam
como crime a liberdade de pensar e se expressar. No século XVI, o Concílio de Trento
nomeou a Comissão de Bispos que publicou o Index Librorum Prohibitorum, o qual
estabelecia que os governos católicos da Europa deveriam fazer sua censura de acordo com a
Igreja. O primeiro Index português data de 1547, o qual iniciou uma série de catálogos de
livros proibidos. O édito do tribunal de Lisboa, de 12 de fevereiro de 1594, e publicado no
auto-da-fé do ano seguinte, traz consigo algumas inovações, as antigas formulações são
60
substituídas por pontos precisos que caracterizam em pormenores as crenças e práticas
desviantes: as crenças protestantes; a descrença e o ceticismo; as proposições heréticas; o
pacto com o demônio; pontos sobre outras religiões, especificando, principalmente, o
islamismo e o judaísmo; e, por fim, a referência aos livros proibidos. Os éditos de proibições
de livros muito difundidos em Espanha e Portugal, inicialmente, proibiam, sob as ordens do
Papa, os livros luteranos, acrescentando posteriormente à sua lista uma quantidade mais vasta
de livros. Tal controle sobre os livros foi transferido, em 1798, para a Real Mesa Censória,
uma instituição centralizada onde se encontravam inquisidores, pois todos os livros tinham
que ser aprovados pelo Santo Ofício.
Anita Novisnky (2002), numa conferência denominada “Os regimes totalitários e a
censura”, proferida na abertura do módulo “Minorias silenciadas”, que fez parte do Colóquio
Direitos humanos no limiar do século XXI, em abril de 1997, na USP, diz que “A censura é a
mais forte arma que os regimes totalitários têm utilizado, desde a antiguidade, para impedir a
propagação de idéias que podem pôr em dúvida a organização do Poder e o seu direito sobre a
sociedade.” (p. 25). Para ela, em todos os tempos, os detentores da direção de um Estado se
valem da força para fazerem cair os que contestam a sua legitimidade. São os subversivos, os
hereges, os desviantes. A intolerância contra os que pensavam diferente vem desde épocas
remotas: Pitágoras foi acusado de ateísmo e teve seus escritos destruídos; as obras de Tito,
Tibério e Cássio foram destruídas por Augusto; as obras dos cristãos foram destruídas por
Diocleciano, e os pagãos tiveram as suas destruídas por Constantino ao converter-se ao
cristianismo. Contudo, Novisnky afirma que foi o surgimento da imprensa que deu início a
uma real e verdadeira preocupação acerca da censura prévia e as medidas repressivas contra
os infratores foi intensificada.
A proibição de livros toca, sobretudo, em outro elemento de intolerância existente em
terras brasileiras, que foi a vigilância no que se refere à liberdade de expressão e pensamento,
que, no Brasil-Colônia, a censura foi absoluta e durou cerca de três séculos. Pois, como diz
Canto-Sperber (2000), de nada adianta a liberdade de opinião se esta não estiver
acompanhada da liberdade de falar, tentar convencer e publicar. Escritores como Gil Vicente,
Luís de Camões, João de Barros, entre outros, tiveram seus livros censurados. Até mesmo a
leitura da Bíblia era proibida. Com a desculpa de proteger os homens da influência das idéias
heréticas, que certamente iria tirar-lhes a salvação, “a Igreja criou a mais intolerante e
poderosa censura conhecida até os tempos atuais.” (NOVINSKY, 2002, p. 30). No entanto,
quanto mais crescia a proibição, mais aumentava o número daqueles que se encorajavam a
resistir.
61
Branca Dias, em O santo inquérito, possuía em sua casa vários livros que faziam parte
daqueles censurados pela Inquisição: livros de religião, romances, poesias, histórias de
cavalaria como Amadis de Gaula, Ovídio, mitologia, paganismo, além de uma Bíblia na
língua vernácula. Seu noivo, Augusto Coutinho, lhe presenteara com os exemplares, além de
ter-lhe ensinado a ler e escrever. Entretanto, aquilo que fora feito como um gesto de amor,
acabou sendo usado pela Inquisição para complicar mais ainda a situação dela perante o
Tribunal do Santo Ofício.
PADRE
(Mostra a bíblia apreendida.) E este livro, é também calúnia?
AUGUSTO
Este livro é uma bíblia e fui eu quem lhe deu de presente.
PADRE
Uma bíblia em português. Não sabia que estava lhe dando um livro proibido pela Igreja?
AUGUSTO
Para mim a bíblia é a bíblia, em qualquer língua.
VISITADOR
O que está afirmando é uma grave heresia.
PADRE
Não se arrepende de tê-la arrastado a essa heresia?
AUGUSTO
Não. Não me arrependo porque assim a fiz conhecer a sabedoria e a beleza dos Evangelhos.
PADRE
Rebela-se então contra uma determinação da Igreja?
AUGUSTO
Não me parece que seja uma determinação da Igreja, mas de alguns prelados, que não são
infalíveis. (O santo inquérito,1996, p. 86)
René Remond (2000) afirma que “toda civilização forte, quando não é contrariada pela
razão e pela determinação, tende à intolerância, por um movimento quase natural.” (p. 82), e
que as grandes religiões, impregnadas da certeza de deterem a verdade absoluta, não admitem
o erro, pois a neutralidade entre a verdade e o erro é para elas inaceitável. Nesta perspectiva,
podemos constatar que todo fundamentalismo
14
tende a ser intolerante. No decorrer da
14
O fundamentalista defende seus dogmas como sendo a verdade absoluta, indiscutível, não abrindo, portanto,
premissa ao diálogo, nem aceitando a opinião alheia. O termo fundamentalismo, segundo o Dicionário Aurélio,
62
história, todas as sociedades que decretaram como oficial uma religião e/ou visão política, não
dando aos seus cidadãos liberdade de escolher ou divergir destas, tornaram-se intolerantes.
Ricouer (2000) diz que nas relações sociais podemos encontrar elementos necessários para
cristalizar a intolerância através da desaprovação das idéias, hábitos, costumes e crenças do
outro e do poder para impelir que o outro escolha seu modo de vida. O ser humano tende a
afastar-se e até mesmo a rejeitar aquilo que lhe é estranho ou diferente, e, se essa tendência
não for trabalhada através da conscientização pode servir como agente catalisador da
intolerância. Para Mereu (2000), a intolerância alimenta-se da certeza de se deter a verdade
absoluta, e no dever de impor a todos os indivíduos por meio da força. Sendo assim, seria
necessário levarmos em consideração o conceito da intolerância institucionalizada, pois sem
isso torna-se impossível explicar todos os meios de tortura utilizados, bem como os
instrumentos de morte. Também sem esse conceito “não se podem compreender a Inquisição
e seus processos, o Santo Ofício, o Index dos livros proibidos, bem como todas as censuras
contra a liberdade de pensamento, então chamada de heresia.” (MEREU, 2000, p. 42-43),
partindo do conceito de heresia como toda opinião contrária à fé.
De acordo com Mereu, a Igreja Católica foi a primeira organização que transformou o
conceito de em uma instituição jurídica, na qual, o fiel, servo devoto, deveria obedecer às
ordens de um chefe inspirado por Deus ou escolhido pelo povo. Dessa maneira, a intolerância
entrou na instituição a partir de uma determinação legal, justificada pelas projeções
ideológicas de: violência justa, “é a que é empregada por todos aqueles que estão à frente de
uma instituição dominante contra qualquer tipo de oposição. Ela é dignificada e dignificante,
santificante, merecedora de aplausos e nçãos.” (MEREU, 2000, p. 43); e de violência
injusta, “é a que é empregada pelos heréticos contra a instituição ou contra seus fiéis. É uma
violência monstruosa, sacrílega, execrável, que deve ser punida com a morte ou com os mais
atrozes castigos.” (MEREU, 2000, p. 43). Percebemos a ironia com a qual Mereu se refere a
esses dois tipos de violência, pois fica bem clara a maneira desigual como eram tratados
aqueles que ousavam desafiar a instituição. Havia sempre dois pesos e duas medidas.
Segundo Naffah Neto (1985), a primeira mudança para a implantação de um regime de
Terror é a eliminação de quaisquer normas ou leis da vida social, ou seja, a criação de um
espaço de total arbitrariedade.” (p. 20). As leis e as normas que passam a vigorar são aquelas
denota à “observância rigorosa às crenças religiosas tradicionais, (...) que enfatizam a interpretação literal das
escrituras” (In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio versão 5.0.
Edição eletrônica autorizada a Positivo Informática Ltda. Regis Ltda, 2004.)
63
que fazem parte da vontade dos seus dirigentes. Nesse espaço tudo é possível, as decisões dos
seus líderes passam a ter um caráter de onipotência, sendo regido puramente pelo arbítrio.
A violência justa e a violência injusta encontram-se representadas na peça estudada
por meio dos personagens do Padre Bernardo e de Branca Dias. na primeira fala da peça
ele tenta justificar a intolerância, injustiça e violência à qual é submetida a personagem cristã-
nova.
PADRE BERNARDO
Aqui estamos, senhores, para dar início ao processo. Os que invocam os direitos do homem
acabam por negar os direitos da e os direitos de Deus, esquecendo-se de que aqueles que
trazem em si a verdade têm o dever sagrado de estendê-la a todos, eliminando os que querem
subvertê-la, pois quem tem o direito de mandar tem também o direito de punir. É muito fácil
apresentar esta moça como um anjo de candura e a nós como bestas sanguinárias. Nós que
tudo fizemos para salvá-la, para arrancar o Demônio de seu corpo. E se não conseguimos, se
ela não quis separar-se dele, de Satanás, temos ou não o direito de castigá-la? Devemos deixar
que continue a propagar heresias, perturbando a ordem pública e semeando os germes da
anarquia, minando os alicerces da civilização que construímos, a civilização cristã? Não
vamos esquecer que, se as heresias triunfassem, seríamos todos varridos! Todos! Eles não
teriam conosco a piedade que reclamam de nós! E é a piedade que nos move a abrir este
inquérito contra ela e a indiciá-la. (O santo inquérito, 1996, p. 31)
Em contrapartida, ao tentar se defender, Branca Dias é acusada de seduzir o padre e de
estar possuída pelo demônio:
PADRE
Sim, o Demônio pode não falar, mas é ele quem a empurra para o rio e a obriga a despir-se!
[...]
(Chegando ao máximo da exacerbação.) Se não estava possuída pelo Demônio, por que
aproveitou-se do meu desmaio para beijar-me na boca?!
[...]
BRANCA
Fiz isso para que não sufocasse, para que não morresse!
PADRE
(Grita.) Cínica! Foi esse o pretexto que Satanás arranjou para o seu pecado!
[...]
(Sua voz desce a um tom de oração.) Branca, você está diante do visitador do Santo Ofício.
Ele tem autoridade para puni-la. Leve ou duramente depende de você. (O santo inquérito,
1996, p. 82, 83)
64
ainda a violência legal, representada pela intolerância institucionalizada e que se
tornou operante através das leis, como, por exemplo, a bula Licet ab initio de Paulo III, de
1542, a partir da qual a legislação passa a ter como centro o princípio intolerante Extra
Ecclesia nulla salus
15
. Daí em diante tudo passou a organizar-se sob o poder das
congregações, sendo que a primeira foi a do Santo Ofício, e que se encarregou do controle do
pensamento, o qual fez várias vítimas durante esse período, entre elas destacando-se três
intelectuais: Galileu, que foi torturado e condenado, além de obrigado a abjurar de suas idéias;
Tommaso Campanella, que passou vinte e sete anos na prisão; e Giordano Bruno, que
percorreu a Europa discutindo suas idéias sobre a pluralidade dos mundos, da natureza de
Deus e da ordenação das forças naturais e foi queimado no Campo dei Fiori, em Roma. o
podemos esquecer de Joana D’Arc que, apesar de não ser intelectual, foi vítima da
intolerância política e religiosa, acusada de bruxaria e heresia, e foi condenada à morte na
fogueira pela Inquisição Inglesa.
Em todos os países onde a Igreja Católica era majoritária, ela se opôs à liberdade de
pensamento e à liberdade de culto. Para ela, segundo Rémond (2000), o liberalismo era a
fonte dos erros e dos males existentes na sociedade, pois trazia ao povo o exercício do livre
exame, sendo por isso que a Igreja reprovava os três R: Renascença, Reforma, Revolução. O
personagem do Visitador de O santo inquérito traz essa intolerância em sua fala:
VISITADOR
A Igreja, Branca, a sua Igreja, está diante de um perigo crescente e ameaçador. Toda a
sociedade humana, a ordem civil e religiosa, construída com imensos esforços, toda a
civilização e cultura do Ocidente, estão ameaçados de dissolução.
[...]
Não é você isoladamente; são milhares que, como você, consciente ou inconscientemente,
propagam doutrinas revolucionárias e práticas subversivas. Está o protestantismo, minando
os alicerces da religião de Cristo. Estão os cristãos-novos, judeus falsamente convertidos,
mas secretamente seguindo os cultos e a lei de Moisés. (O santo inquérito, 1996, p. 76)
O escritor português José Saramago denomina essa intolerância fundamentada em
valores religiosos como “O Fator Deus”, para ele
15
Fora da Igreja não há salvação.
65
De algo sempre haveremos de morrer, mas já se perdeu a conta aos seres humanos mortos das
piores maneiras que seres humanos foram capazes de inventar. Uma delas, a mais criminosa, a
mais absurda, a que mais ofende à simples razão, é aquela que, desde o princípio dos tempos e
das civilizações, tem mandado matar em nome de Deus. (2001, s/p)
Podemos verificar a relevância da fala de Saramago relembrando alguns episódios de
intolerância que ficaram marcados na História, como as Guerras de Religião que foram
desencadeadas na França, em 1562, por um massacre de protestantes. Tais guerras se
caracterizaram por atrocidades sem precedentes, a exemplo da noite de São Bartolomeu,
massacre ocorrido na França na madrugada de 24 de agosto de 1572, dia de São Bartolomeu,
planejado por Catherine de Médicis, tencionando o assassinato em massa dos líderes
huguenotes
16
que se encontravam em Paris para o casamento de Marguerite (filha de
Catherine) com Henri de Navarre. O massacre se repetiu por toda a França e é estimado que
tenham morrido cerca de 20.000 huguenotes em apenas dois dias. Estas perseguições contra a
religião da Reforma só tiveram um fim após Henrique IV assinar o Édito de Nantes, em 1598,
o qual concedia liberdade de culto aos protestantes. Mas, infelizmente, a intolerância e a
perseguição contra os reformistas não se encerraram. Em 1685, o Édito de Nantes foi
revogado, por Luís XIV e os protestantes tiveram seus templos demolidos, suas assembléias
proibidas, além de cerca de 300 mil protestantes terem sido emigrados à força.
A caça às bruxas fenômeno existente na Idade dia e que adentrou ao início do
período Moderno da história da Europa (entre 1450-1750) levou milhares de pessoas, em
sua maioria mulheres, a serem processadas pelo crime de bruxaria, e pelo menos metade
desses indivíduos foram mortos, na maioria das vezes, pelo fogo. Tais julgamentos foram
executados, a princípio, nos tribunais eclesiásticos da Europa. Contudo, a partir de meados de
1550, passaram a ser conduzidos nos tribunais seculares.
A caça às bruxas implicava identificação de indivíduos que se acreditava estarem envolvidos
em alguma atividade secreta. (...) Essa tarefa era desempenhada por diferentes indivíduos,
geralmente autoridades judiciárias, mas às vezes caçadores de bruxas profissionais. Agindo
com base em acusações, denúncias ou mesmo meros boatos, tais indivíduos detinham pessoas
cujos nomes fossem trazidos à sua atenção, interrogavam-nas e faziam todo o possível para
lhes extrair confissões. Algumas vezes, as autoridades judiciais davam prosseguimento à
investigação forçando as bruxas confessas a nomearem seus cúmplices, procedimento legal
que melhor se associa à expressão “caça às bruxas” de hoje em dia. O estágio final da caça às
bruxas consistia, na maior parte dos casos, na condenação formal do acusado, seguida de sua
execução, banimento ou prisão. (LEVACK, 1988, p. 2)
16
Nome dado aos protestantes na França.
66
Segundo Von Thaden (2000), “não se pode falar de intolerância sem mencionar o
fundamentalismo.” (p. 78). Mas, independente do que é divulgado pela mídia, o pensamento
fundamentalista não se restringe aos países do Oriente Médio, nem à religião muçulmana.
Muito pelo contrario, ele está espalhado nas comunidades cristãs das mais diversas formas.
Como o fundamentalismo quase sempre está ligado à intolerância, podemos verificar que, até
mesmo os Protestantes, que lutaram contra o domínio de Roma, praticaram atos de
intolerância, como, por exemplo, a execução do médico espanhol Michel Servet, que, com a
aprovação de Calvino, foi condenado à morte pelo tribunal de Genebra; e a falta dos direitos
políticos dos católicos na Inglaterra até o século XIX.
O fundamentalismo protestante se caracteriza por valorizar unicamente a autoridade
do texto sagrado, sem levar em conta o contexto histórico-social no qual foi escrito, fazendo
assim uma interpretação literal da Bíblia. Por isso ele cede lugar a grupos intolerantes como
os puritanos, grupo adepto das idéias de Calvino e de outras correntes religiosas radicais,
receberam esse nome porque queriam “purificar” a Igreja Anglicana dos elementos católicos
existentes em sua estrutura. Contudo, a perseguição do rei James I contra eles levou-os a
partir para a América em busca da terra prometida. Mas, no Novo Mundo, os puritanos que,
no geral, podiam ser vistos como uma gente simples e devota, devido ao fanatismo em torno
da fé, torna-se um grupo altamente intolerante. Para eles, Deus controlava com mãos de ferro
a vida de cada crente, castigando e punindo. Devido a isso tinham uma forte consciência de
pecado e lutava contra ele de maneira implacável. Tudo isso vai desencadear na perseguição
àqueles que não comungavam de sua maneira de viver, culminando no episódio da caça às
bruxas, em Salém, no estado de Massachusetts, no qual cerca de vinte pessoas foram
enforcadas, na sua maioria mulheres.
A Ku Klux Klan, organização racista e assassina fundada no Tennessee, em 1865, que
se levantou contra a revolução social de libertação e integração dos escravos, através de
inúmeros linchamentos, estupros, castrações, incêndios e enforcamentos. Ela esteve presente
em vários estados americanos e tinha como membros indivíduos brancos, anglo-saxões e
protestantes, entre eles ex-generais sulistas que contavam com o financiamento de
agricultores, prejudicados pela alforria. Em 1882, a Ku Klux Klan finalmente foi reconhecida
como uma entidade terrorista e acabou banida pelo governo americano, voltando a surgir
durante o século XX e passando a perseguir não apenas os negros, mas também os católicos,
os judeus e os hispânicos.
É interessante perceber que contrários a todas as barbáries praticadas em nome de
Deus estão os ensinamentos de Cristo. Se analisarmos o Novo Testamento, principalmente os
67
Evangelhos, iremos descobrir um Cristo altamente benévolo com todos os que se
aproximavam dele, mesmo aqueles que, para a sociedade, eram tidos como párias. Ele
atendeu prontamente a todos, sem distinção de sexo, religião, nacionalidade, posição social.
Apesar de as mulheres serem, naquela sociedade, seres submissos e discriminados,
Jesus mostrou respeito a todas elas: pediu água à samaritana, que, além de mulher, fazia parte
de um povo que era tido pelos judeus como impuros (João 4:27); num gesto de bondade
incondicional, cura uma mulher de hemorragia (Mc 5:34); julga com eqüidade uma adúltera
(João 8); estando em casa de um fariseu, permitiu que uma pecadora o tocasse e o ungisse (Lc
7:38). Também os pecadores, beberrões, cobradores de impostos, estrangeiros, leprosos,
aleijados, todos eles sempre encontraram, nas palavras e gestos de Cristo, amor e
generosidade. Infelizmente, os homens, a fim de atingir seus interesses pessoais, além da gana
pelo poder, têm usado há mais de dois mil anos o nome de Cristo para destruir, matar, enganar
os seus semelhantes. Contrariando, assim, os ensinamentos daquele a quem chamam de
mestre.
Em O santo inquérito, Dias Gomes utiliza a figura histórica/lendária de Branca Dias,
símbolo da intolerância inquisitorial portuguesa, para criar um libelo contra toda forma de
opressão. A própria figura de Branca Dias prefigura uma luta contra o obscurantismo, a
repressão e a censura, e a favor da liberdade de pensar, sentir, agir, enfim, ser feliz, e sentir
prazer com todas as coisas boas que a vida lhe oferece. “Deus deve estar onde mais
claridade, penso eu. E deve gostar de ver as criaturas livres como Ele as fez, usando e
gozando essa liberdade, porque foi assim que nasceram e assim devem viver.” (O santo
inquérito, 1996, p. 33)
Assim, do fundo comum da origem cristã-nova e da perseguição inquisitorial, a matriarca
judaizante dos primórdios da colonização de Pernambuco, uma personagem histórica,
transformou-se na linda e virgem Branca Dias perseguida pelo obscurantismo, no símbolo e
arquétipo da liberdade. Dois retratos de um mesmo fantasma que assombrava a sociedade
brasileira. (FEITLER, 2004, p. 48)
Vivendo num século em que a destruição, o ódio, a violência e a intolerância
marcaram, de maneira profunda, toda a nossa sociedade, Branca Dias não cessa de inspirar
tanto a história, quanto as artes e a literatura. Nem mesmo um dos nossos poetas maiores,
68
Carlos Drummond de Andrade, fazendo um “mix” das várias versões da sua vida, deixa de
homenageá-la em seu poema “Branca Dias”
17
.
3.2 Conflito: sagrado x profano x herético
Segundo o dicionário Aurélio, a palavra SAGRADO pode significar: 1. Que se sagrou
ou que recebeu a consagração; 2. Concernente às coisas divinas, à religião, aos ritos ou ao
culto; sacro, santo; 3. Inviolável, puríssimo, santo, sacrossanto; 4. Profundamente
respeitável; venerável, santo; 5. Que não deve ser tocado, infringido, violado; 6. A que não se
pode faltar; que não se pode deixar de cumprir. PROFANO quer dizer: 1. Não pertencente à
religião; 2. Contrário ao respeito devido a coisas sagradas; 3. Não sagrado; 4. Secular,
leigo.
Mircea Eliade afirma que a primeira definição que podemos dar do sagrado é que ele
se opõe ao profano. “O homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se
mostra como qualquer coisa de absolutamente diferente do profano.” (s/d, p. 25); o sagrado
manifesta-se como uma realidade de uma ordem diferente daquelas das realidades “naturais”,
enquanto que o profano é tudo aquilo que é natural, não sagrado, des-sacralizado. O homem
das sociedades arcaicas vivia o máximo possível em contato com o sagrado ou com os objetos
consagrados, pois, para ele, o sagrado equivalia ao poder, à realidade. Já o homem das
sociedades modernas, privado de sentimento religioso, vive num mundo des-sacralizado,
“profano na sua totalidade” (ELIADE, s/d, p. 27).
... o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo, duas situações
existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história. (...) Em última instância, os
modos de ser sagrado e profano dependem das diferentes posições que o homem conquistou
no Cosmos, e, por conseqüência, interessam não ao filósofo mas também a todo o
investigador desejoso de conhecer as dimensões possíveis da existência humana. (ELIADE,
s/d, p. 29)
Émile Durkheim, em seu livro As formas elementares da vida religiosa, diz que todas
as crenças religiosas conhecidas apresentam um caráter semelhante e
17
Este poema faz parte do livro Discurso de primavera e algumas sombras, 1977 (In: ANDRADE, Carlos
Drummond. Poesia Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006. p. 838), e encontra-se na epígrafe deste
trabalho.
69
supõem uma classificação das coisas, reais ou ideais, que os homens concebem, em duas
classes, em dois gêneros opostos, designados geralmente por dois termos distintos que as
palavras profano e sagrado traduzem bastante bem. A divisão do mundo em dois domínios
que compreendem, um, tudo o que é sagrado, outro, tudo o que é profano, tal é o traço
distintivo do pensamento religioso” (DURKHEIM, 1996, p. 19)
Estes dois mundos, sagrado e profano, são tidos como completamente opostos,
inimigos, hostis. Por isso o profano não pode sequer tocar impunemente naquilo que é
sagrado. As coisas tidas como sagradas costumam ser consideradas superiores tanto em
dignidade quanto em poderes em relação às coisas profanas e também ao homem. As
proibições protegem e isolam as coisas sagradas das profanas, mantendo a distância devida
entre elas. “As crenças religiosas são representações que exprimem a natureza das coisas
sagradas e as relações que elas mantêm, seja entre si, seja com as coisas profanas. Enfim, os
ritos são regra de conduta que prescrevem como o homem deve comportar-se com as coisas
sagradas.” (DURKHEIM, 1996, p. 24)
Em O santo inquérito, existe um forte conflito entre o sagrado e o profano
representado pelas personagens Padre Bernardo e Branca Dias. Enquanto Padre Bernardo é o
representante da Igreja Católica e da Santa Inquisição, defendendo os princípios sagrados;
Branca Dias, com sua origem cristã-nova, é a representante do profano. Essa oposição gera
um conflito de caráter emocional, moral e religioso entre os personagens.
As vidas dos Padres do Deserto apresentam freqüentemente o topos da mulher tentadora, seja
como metamorfose do diabo, seja como mulher de carne e osso. A tentação provocada pelo
diabo transformado em mulher acaba por si própria uma vez que o eremita consegue afastá-
la, o episódio está concluído. Por outro lado, se se trata de uma mulher verdadeira, a questão
complica-se apesar de continuar a ser o diabo a agir por intermédio do corpo físico da
prostituta ou da mulher perdida, um dos deveres do santo é tentar recuperar a sua alma para
Deus ou, pelo menos, dar a conhecer à mulher a terrível punição divina infligida pelo seu
pecado de luxúria. (PILOSU, 1995, p. 34)
Ao salvar o Padre Bernardo de um afogamento, Branca Dias lhe faz respiração boca-a-
boca, contrariando o princípio de distância que deve existir entre o sagrado e o profano.
Contudo, ela não sai impune a isso, pois o Padre fica perturbado por sentir-se atraído por ela,
e esta atração assume, para ele, um caráter de tentação. A paixão proibida do Padre Bernardo
por Branca Dias desencadeia toda uma rede de denúncias e culpas. Primeiro, ele quer protegê-
la, depois, impelido pelo ciúme, ao ser convidado para celebrar seu casamento com Augusto
Coutinho, a denuncia ao Santo Ofício como herege e demoníaca.
70
BRANCA
Vamos lá em casa, o senhor tira a batina e eu ponho pra secar. Posso lhe arranjar uma roupa de
meu pai, enquanto o senhor espera.
PADRE
(A proposta parece assumir para ele uns aspectos de tentação.) Não... isso não é direito...
[...]
PADRE
(Murmura) Senhor, ajudai-me. Ela precisa de mim e eu devo protegê-la. Ela tem tão pouca
noção das tentações que a cercam, que será uma presa fácil para o Demônio, se não a
guiarmos pelo caminho que a levará até Vós. Dai-me forças e defendei-me também de toda e
qualquer tentação. Amém. (O santo inquérito, 1996, p. 36; 45)
Ao ficar sabendo que numa noite de muito calor Branca banhou-se nua no rio Paraíba,
o Padre Bernardo fica chocado e a tentação que sente por Branca aumenta, e isto o leva a
acusá-la de ter parte com o demônio: “Ela tem tão pouca noção das tentações que a cercam,
que será uma presa fácil para o Demônio, se não a guiarmos pelo caminho que a levará até
Vós.” (O santo inquérito, 1996, p. 45), “Sua arrogância mostra que o Demônio ainda não a
abandonou” (O santo inquérito, 1996, p. 95), “A tentação que está em você, o pecado que está
em você, a obstinação demoníaca que está em você.” (O santo inquérito, 1996, p. 91). Por
isso, ele sente a necessidade de afastar-se dela para fugir da tentação e do pecado: “Você
contaminou outras pessoas (...) E continuará contaminando muitas outras, porque basta
aproximar-se de você para cair em pecado.” (O santo inquérito, p.91, 92).
A mulher parece, portanto, ser tida, na maior parte dos casos, como um perigo para os
homens, por causa da sua natureza espiritual e porque lhes proporcionava a oportunidade de
desencadear os seus instintos mais baixos e de cair assim no pecado carnal. Até o simples
contato físico com uma mulher é visto como um perigo por aqueles que desejam manter
intacta a sua castidade. (PILOSU, 1995, p. 60)
Na sociedade portuguesa e, conseqüentemente, na sociedade colonial brasileira, a
religião foi um dos fatores que mais contribuiu para a demonização da mulher. A igreja,
tomando como base alguns textos bíblicos, usou-os de forma a colocar a mulher em um lugar
desprivilegiado e submisso. Mary Del Priore diz que
A mulher estava condenada, por definição, a pagar eternamente pelo erro de Eva, a primeira
fêmea, que levou Adão ao pecado e tirou da humanidade futura a possibilidade de gozar da
inocência paradisíaca. (DEL PRIORE, 1997, p. 46)
71
A religião contribuiu fortemente para o estado de escravidão ideológica vivenciado
pelas mulheres durante muitos séculos e inclusive no Brasil-Colônia. Pois, ‘desde que Eva
pecou e abriu espaço para as forças do mal, logo, todas as mulheres tinham fatalmente uma
predisposição para o mal, e para a transgressão, carregando em seu corpo todos os
precedentes para um contato com o maligno’. Foi com esse pensamento, que a religião
conseguiu imprimir na sociedade a necessidade de colocar as mulheres sob controle,
obrigando-as assim a viver de maneira “pura e santa”.
O Malleus maleficarum (O martelo das feiticeiras), um célebre tratado de
demonologia e manual oficial da Inquisição para a caça às bruxas, durante quase quatro
séculos, escrito em 1484 por dois dominicanos alemães, Heinrich Krämer e Jakob Sprenger,
foi um dos maiores responsáveis pela disseminação da idéia da demonização do corpo
feminino. Dessa forma, as mulheres tinham seus corpos tratados como objeto do mal, o que,
conseqüentemente, as colocavam diante da memória coletiva como seres atemorizantes,
principalmente no que se referia às suas partes íntimas, pois havia uma forte associação entre
bruxaria e a sexualidade, para os inquisidores: “Toda bruxaria tem origem na cobiça carnal,
insaciável nas mulheres. Ver Provérbios 30: “Há três coisas insaciáveis, quatro mesmo que
nunca dizem basta!” A quarta é a boca do útero. Pelo que, para saciarem a sua lascívia,
copulam até mesmo com demônios.” (KRÄMER; SPRENGER, 1484, p. 121).
Entretanto, é importante salientar que, no texto citado, há uma visível má interpretação
da passagem bíblica, posto que esta nos traz a seguinte advertência: “(...) três coisas que
nunca se fartam; sim, quatro que nunca dizem: Basta; o Seol, a madre estéril, a terra que não
se farta d`água, e o fogo que nunca diz: Basta.” (Pv. 30: 15,16). Podemos verificar, portanto,
que o texto bíblico, na sua forma literal, não deixa nenhuma margem para interpretações
remetam à bruxaria, à lascívia ou à demonização da mulher. Mas, devido às apropriações
indevidas dos textos sagrados, estes foram usados para validar os interesses dos opressores.
Sendo assim,
a mulher era ainda estigmatizada com a pecha da insaciabilidade. Seu sexo assemelhava-se a
uma voragem, um rodamoinho a sugar desejos e fraquezas masculinos. Unindo, portanto, o
horrendo e o fascinante, a atitude ameaçadora da mulher obrigava o homem a adestrá-la. Seria
impossível conviver impunemente com tanto perigo, com tal demônio em forma de gente.
(DEL PRIORE, 1993, p. 35)
Por muito tempo o corpo da mulher foi um enigma, o que levava tanto religiosos
quanto médicos a tentarem, segundo as teorias e crenças da época, explicar que mistério
envolvia a mulher. Segundo Del Priore,
72
Nos primeiros tempos da colonização, homens e mulheres acreditavam que a doença era uma
advertência divina... Num cenário em que doença e culpa se misturavam, o corpo feminino era
visto ... como um palco nebuloso e obscuro no qual Deus e o Diabo se digladiavam. (DEL
PRIORE, 1997, p. 78)
Mesmo aquela mulher que não tinha nenhum contato com a bruxaria era
estigmatizada, e tinha sua sexualidade vigiada e controlada. E a melhor forma de ter o
controle sobre ela é tendo um homem sempre como seu dominador. Sendo assim, as mulheres
que durante a vida inteira eram tidas como propriedade do pai, depois do casamento passavam
a ser propriedade do marido. Sua educação se restringia a aprender a ler e escrever, visto que
“melhor livro é a almofada e o bastidor.” (MELO, 1651 apud PRIORE, 1997, p. 50)
Segundo Duby, os ritos do casamento foram instituídos para assegurar dentro da ordem social
medieval a repartição das mulheres pelos homens; para disciplinar, em torno do elemento
feminino, a competição masculina; para oficializar a procriação e refrear a sensualidade
feminina; para ordenar a desigualdade proclamada pela narrativa mítica da criação; e, por
último, para fundar as relações de parentescos, móvel da sociedade como um todo. A evolução
do casamento é traçada a partir do intenso processo de cristianização da sociedade. A Igreja
tentou circunscrever a união conjugal a determinados interditos e regras para disciplinar a
sexualidade dos indivíduos. Da sua condenação até a sua aceitação como um sacramento, o
matrimônio passou por várias etapas. Justificado pelo ato da procriação, ele foi aos poucos
enquadrado numa estrutura ideológica maior, moralizando os costumes e comportamentos
sexuais de todos aqueles propícios aos crimes da carne, principalmente a “mulher tentadora”.
(LEITE, 1999, p. 43)
Aos 12 ou 13 anos, uma menina podia contrair matrimônio, e este também era
decidido pelo pai, o que, na maioria das vezes, servia para fortalecer os laços familiares e
viabilizar interesses econômicos e patrimoniais.” (RUSSEL-WOOD, 1977, apud VAINFAS,
1997, p. 102). Ainda segundo Vainfas, este era o momento em que mais se prestava atenção
às mulheres, as quais, pressionadas socialmente, desde cedo se apavoravam com a
possibilidade de não se casarem e ficarem solteironas. As que obtinham êxito no
empreendimento de casar tinham agora até mesmo sua vida conjugal controlada pela Igreja.
Desde que o ato sexual era destinado apenas para procriação, não havia lugar para excessos,
erotismo ou prazer. Portanto, o centro de alegria na vida da mulher deveria ser a maternidade,
através da qual ela se afastava do estigma de Eva e se aproximava da pureza de Maria.
Branca Dias foge a este estigma, pois sabe ler e escrever muito bem: “... Sei ler e
escrever. E Augusto diz que faço ambas as coisas melhor do que qualquer escrivão de ofício.”
(O santo inquérito, 1996, p. 37). E, apesar de querer casar, como todas as mulheres do seu
tempo, o relacionamento entre ela e Augusto Coutinho, seu noivo, é cheio de amor,
73
companheirismo e prazer. Contrariando a visão que se tinha de amor sagrado e amor profano
(Eros x Ágape).
AUGUSTO
(...) Ele toma a mão dela e beija, calorosamente. Branca cerra os olhos, seu corpo parece
invadido por um gozo infinito. (...)
[...]
PADRE
(Não como uma acusação, como notação apenas.) – Durante a sua confissão, você pronunciou
sete vezes o nome desse homem.
BRANCA
(Surpresa.) – O senhor contou?
PADRE
Contei.
BRANCA
Bem... eu o amo.
[...]
PADRE
Não pensou em seu noivo nessa noite?
BRANCA
É possível. Eu penso nele todas as noites, todos os dias. Tudo que me acontece de bom, eu
penso em compartilhar com ele, tudo que me acontece de mau, eu acho que não seria tão mau
se ele estivesse a meu lado. (O santo inquérito, 1996, p. 40; 43-45)
Branca Dias, devido à sua condição de cristã-nova, sofria de um processo duplo de
discriminação: tanto na esfera social como também no âmbito religioso. Num primeiro
momento, Branca é colocada sob suspeita, devido ao fato de ser mulher e servir de tentação
para o Padre, sendo acusada de “prática de atos contra a moralidade”. Porém, depois que vem
à tona a revelação da sua ascendência judaica, complica mais ainda a sua situação,
intensificando o conflito entre sagrado e profano existente entre ela e o Padre Bernardo. Este,
para fugir da tentação que representava o amor de Branca, encontra na sua ascendência cristã-
nova o motivo que precisava para entregá-la à Inquisição e ela passa a ser acusada também de
heresia.
74
PADRE
Temo, sinceramente, que o Diabo tenha já avançado demais...
BRANCA
Padre!
PADRE
Temo por você, como temo por mim, Branca. Acredite! (Ela sente que ele arrancou essas
palavras da própria carne, rompendo barreiras que até então haviam resistido.)
BRANCA
(Timidamente.) O Senhor também se julga em perigo?
Ele não responde. Cerra os olhos, como se procurasse recompor-se intimamente. Por fim,
avança para ela e põe-lhe a mão sobre a cabeça, escorregando-a depois, lentamente, pelo rosto,
como fazem os judeus para abençoar as crianças. Branca ri.
PADRE
Por que se riu?
BRANCA
O senhor agora me fez lembrar o meu avô. Quando eu era pequena, ele costumava pôr a mão
na minha cabeça e escorregá-la pelo meu rosto, como o senhor fez agora.
PADRE
Seu avô, fale-me dele.
BRANCA
Oh, era um bom homem. Me levava para chupar cajus na roça, depois fazia um enorme colar
com as castanhas, pendurava no meu pescoço e dizia: “Branca, és mais rica do que a rainha de
Sabá!” (Ri.) Eu não sabia quem era essa rainha de Sabá, e a imaginava então cheia de
colares de castanhas de caju em volta do pescoço.
PADRE
(Olha-a com tristeza e preocupação.) Que mais?
BRANCA
Não me lembro de muitas coisas mais. Eu tinha seis anos quando ele morreu.
PADRE
Lembra-se desse dia?
BRANCA
Não gosto de me lembrar. Foi o meu primeiro encontro com a morte. Toda vez que me
recordo, sinto a mesma coisa...
PADRE
Quê?
BRANCA
Um cheiro ativo de azeitonas e um frio acima do estômago. Mas nunca vou poder esquecer...
era um velho cheio de manias. Pediu que botassem uma moeda na sua boca, quando morresse.
PADRE
75
E cumpriram a sua vontade?
BRANCA
Sim, meu pai me deu uma pataca e eu coloquei sobre seus lábios.
PADRE
(Murmura.) Virgem Santíssima!
BRANCA
(Estremece e treme.) Fiz mal?
Padre Bernardo, ereto, cabeça levantada, leva as mãos em garras ao rosto, escorrega-as pelo
pescoço, até o peito, como se dilacerasse a própria carne, num gesto de suprema angústia.
PADRE
Branca, o visitador da Santa Inquisição acaba de decretar um tempo de graça. Durante quinze
dias, os pecadores que espontaneamente confessarem as suas faltas e convencerem o
inquisidor da sinceridade de seu arrependimento, receberão somente penitências leves.
BRANCA
Por que está me dizendo isso?
PADRE
Para que você medite e se aproveite da misericórdia do Tribunal do Santo Ofício. (O santo
inquérito, 1996, p. 58-60)
Devido à liberdade do seu comportamento, Branca se torna uma dupla ameaça: tanto
para a Igreja, pois suas palavras são tidas como heresia; quanto para o padre, que os seus
atos como uma ameaça à moralidade. A maneira como Branca Dias e Padre Bernardo
entendem as relações entre o humano/divino, e o sagrado/profano é completamente
diferenciada. Para Branca, Deus é sinônimo de liberdade, de alegria, de luz. Ela as coisas
de maneira simples e pura, sua religião é quase panteísta.
BRANCA
O mais importante é que eu sinto a presença de Deus em todas as coisas que me dão prazer.
No vento que me fustiga os cabelos, quando ando a cavalo. Na água do rio, que me acaricia o
corpo, quando vou me banhar. No corpo de Augusto, quando roça no meu, como sem querer.
Ou num bom prato de carne-seca, bem apimentado, com muita farofa, desses que fazem a
gente chorar de gosto. Pois Deus está em tudo isso. E amar a Deus é amar as coisas que Ele
fez para o nosso prazer. (O santo inquérito, 1996, p. 33)
Padre Bernardo é preso aos grilhões da religiosidade, ele está impregnado da ortodoxia
e do dogmatismo da igreja. Sua religiosidade é feita de temor e sombras.
76
PADRE
Então?
BRANCA
Não me sinto bem.
PADRE
Não se sente bem na Companhia de Jesus?
BRANCA
Falta sol. Claridade. Deus é luz. Não é?
PADRE
É também recolhimento. Você precisa habituar-se à sombra, ao silêncio e à solidão... A
solidão é necessária para se ouvir a voz de Deus. (...). (O santo inquérito, 1996, p. 41)
Em O santo inquérito, os personagens que representam o sagrado e o profano têm,
muitas vezes, os papéis invertidos. Tal inversão é marcada principalmente pelo
comportamento dos personagens: Branca Dias que, como representante do profano, arrisca a
própria vida para salvar o padre de um afogamento, demonstrando que cumpre uma das
máximas do evangelho que é “amar ao próximo como a si mesmo”. o Padre Bernardo,
representante da Igreja, e que deveria ser um mensageiro de Deus na Terra, para se livrar de
sua culpa, entrega Branca para o Santo Ofício, e conseqüentemente para a morte na fogueira.
BRANCA
Não foi querendo agradar a Deus que eu me atirei no rio para salvá-lo. Foi porque isso me
deixa satisfeita comigo mesma. Porque era um gesto de amor ao meu semelhante. E é no amor
que a gente se encontra com Deus. (...) (O santo inquérito, 1996, p. 36)
PADRE BERNARDO
Aqui estamos, senhores, para dar início ao processo. (...) E é a piedade que nos move a abrir
este inquérito contra ela e a indiciá-la. Apresentamos inúmeras provas contra a acusada. Mas
uma é evidente, está à vista de todos: ela está nua!
BRANCA
(Desce até o primeiro plano.) Não é verdade!
PADRE BERNARDO
Desavergonhadamente nua! (O santo inquérito, 1996, p. 31)
Sábato Magaldi afirma que
77
Dias Gomes jogou na trama, também, uma tintura psicanalítica, difusa em muitas obras
literárias e teatrais. Se Branca é a personificação da pureza intocada, que a marca da
divindade no seu amor pela vida e pela natureza, Padre Bernardo, ao contrário, reprimiu em si
qualquer expansão espontânea do instinto, e inconscientemente se empenha em punir com a
morte o amor que tem por Branca. Uma derivação de Abigail de As feiticeiras de Salém (The
Crucible), de Arthur Miller, heroína que, por ressentimento do amor frustrado, acusa John
Proctor e obtém sua criminosa condenação. (1977, p. 13)
O próprio Santo Ofício que deveria ser uma instituição promotora da reconciliação
para os desviados da fé, pois, de acordo com Bethencourt, “os principais argumentos sobre a
legitimidade do tribunal organizam-se em torno da sacralidade de sua fundação, da inspiração
divina de sua ação, de sua utilidade espiritual, social e política.” (2000, p. 356), acaba
cometendo atrocidades em nome desta mesma fé, inflige aos suspeitos todo tipo de tortura e
maus tratos, contrariando, assim, as leis do evangelho.
Augusto Coutinho é torturado pelo Santo Ofício, para que acuse Branca: “Deitaram-
me numa cama de ripas e me amarraram com cordas, pelos pulsos e pelas pernas. Apertavam
as cordas, pouco a pouco, parando a circulação e cortando a carne. (...)” (O santo inquérito, p.
88), mas ele se nega a colaborar com as mentiras das acusações feitas contra ela e, não
resistindo às torturas, acaba morrendo:
BRANCA
Como? (Ela percebe.) Que fizeram com Augusto?
SIMÃO
(Faz uma pausa. As palavras custam a sair.) Ele não resistiu...
BRANCA
(Num sussurro.) Morreu! (Mais forte.) Eles o mataram! (...) (O santo inquérito, 1996, p. 97)
Para Rubem Alves: “As religiões criaram gaiolas. As gaiolas criadas pelas religiões
são feitas com palavras. Elas têm o nome de dogmas. Dogmas são gaiolas de palavras que
pretendem prender o Pássaro.” (2004, p. 9). Em seu livro Dogmatismo e tolerância, ele diz
que a história do Cristianismo está cheia de gaiolas, e muitos foram mortos “pelo crime de
pensar diferente”, de discordar do que havia sido pré-estabelecido pelas instituições,
“pássaros que se recusaram a ficar dentro das gaiolas. Os hereges”. (2004, p.10)
No dicionário Aurélio, temos a definição de heresia como: “Doutrina contrária ao que
foi definido pela Igreja em matéria de fé; ato ou palavra ofensiva à religião; e, idéia ou teoria
contrária a qualquer doutrina estabelecida”. Esta última definição é a que mais nos interessa,
78
pois os desviantes ou subversivos são vistos pelas instituições como hereges, posto que
contestam uma visão de mundo, e os erros destas instituições, bem como propagam suas
idéias com a intenção de “recriar” o mundo ao seu redor.
A heresia, portanto, na medida em que ela implica uma contestação de verdades cristalizadas
por uma instituição, pressupõe o exercício do livre exame. O herege é aquele que crê na voz
da sua consciência, assumindo o risco da liberdade. E esse risco se exprime na coragem de se
desviar da normalidade cognitiva social. (ALVES, 2004, p. 115)
Desta forma, qualquer instituição que possua meios de identificar e eliminar o desvio
está comprometida com a eliminação do livre exame e, portanto, da liberdade. Ao criar o
estigma de “herege” a instituição eclesiástica tinha em vista preservar a sua unidade cognitiva,
não deixando lugar para pluralismos ou divergências. Contudo, o herege é aquele que as
contradições existentes entre as Sagradas Escrituras e os dogmas, as doutrinas cristalizadas
pela instituição eclesiástica. Em O santo inquérito, essas contradições são mostradas através
da fala de Augusto Coutinho. Ele critica aqueles que, contrariando os ensinamentos de Cristo,
utilizam a religião com o fim de atender a interesses próprios.
Não é o Santo Ofício. É que em nome dele, em nome da Igreja, do próprio Deus, às vezes
cometem-se atos que Ele jamais aprovaria. Em nome de um Deus-misericórdia, praticam-se
vinganças torpes, em nome de um Deus-amor, pregam-se o ódio e a violência. Os rosários são
usados para encobrir toda sorte de interesses que não são os de Deus, nem da religião. (O
santo inquérito, 1996, p. 39, 40)
O “herege” não o é do seu ponto de vista, pois, para ele, a instituição, e não ele, é que
está errada por ter se desviado do caminho certo. Augusto Coutinho se coloca na posição de
cristão e sente o dever de praticar a essência daquilo que deveria ser o cristianismo: o amor.
“Sou apenas cristão. E no momento talvez possa dizer, sem blasfêmia, que sou mais cristão do
que Sua Santidade, o Papa, porque tenho o coração repleto de amor.” (O santo inquérito,
1996, p. 40). Partindo deste pressuposto, podemos considerar suas palavras como heréticas.
No decorrer da história, percebemos que a diferença entre ortodoxos aqueles que
detêm a verdade , e hereges aqueles que contestam a verdade –, é que, os primeiros são
aqueles que estão no poder, e os segundos os que se opõem a este poder. Para Alves: “Os
hereges são sempre os vencidos e os ortodoxos, os vencedores.” (2004, p. 115). Alves diz
ainda que a verdade de uma instituição eclesiástica foi formulada e imposta por aqueles que
tinham o monopólio do poder político desta instituição, e que se a situação fosse oposta, ou
79
seja, “se os perdedores tivessem sido vitoriosos, o seu pensamento teria sido imposto como
verdade e ortodoxia, e o de seus oponentes como heresia.” (p. 115). Assim sendo, o que
ocorre, na verdade, a disputa pela verdade absoluta no seio religioso nada mais é do que “a
face ideológica das realidades do poder político” (p. 116). Por isso a ortodoxia segue sempre
aliada à intolerância, pois à medida que ela se diz detentora da verdade absoluta não pode
admitir divergentes em seu meio. Foi justamente isso que ocorreu com a Inquisição. Desde o
seu início, o Tribunal do Santo Ofício esteve aliado com o Estado, formando assim um poder
difícil de contrariar, posto que cercava o cidadão em todas as estâncias da vida, tanto a
material como a espiritual.
A Inquisição nunca foi um tribunal meramente eclesiástico; sempre teve a participação (e
participação de vulto crescente) do poder régio, pois os assuntos religiosos eram, na
Antigüidade e na Idade Média, assuntos de interesse do Estado; a repressão das heresias
(especialmente dos cátaros, que pilhavam e saqueavam as fazendas) era praticada também
pelo braço secular, que muitas vezes abusou de sua autoridade. Quanto mais o tempo passava,
mais o poder régio se ingeria no tribunal da Inquisição, servindo-se da religião para fins
políticos. Dois casos significativos a tal propósito foram: 1) em 1312, a condenação dos
Templários, contra os quais o rei Felipe IV, o Belo da França (1285-1314), moveu a
Inquisição desejoso de possuir os bens da Ordem dos Templários, quando condenada e
abolida; 2) em 1431, a condenação de Joana d’Arc, a jovem guerreira que incomodava a coroa
da Inglaterra pelo seu zelo cristão e patriótico.
Aliás, quanto mais a história avançava, tanto mais absolutistas se tornavam os reis do
Ocidente europeu, de tal modo que não podiam tolerar outra instância judiciária autônoma (a
eclesiástica) ao lado da instância judiciária civil; esta deveria mais e mais valer-se dos
tribunais eclesiásticos para implantar os interesses dos monarcas. A prepotência começou com
Felipe IV, o Belo da França, e atingiu o seu auge na Espanha e em Portugal a partir do século
XVI: o desejo de unificar a população da península ibérica, composta de cristãos, judeus e
muçulmanos, levou os reis daqueles dois países a pedir e obter do Papa a instalação da
Inquisição em seus territórios; os soberanos acionavam a Inquisição segundo seus propósitos,
mediante homens por eles nomeados, provocando sérios conflitos com a Santa Sé, que mais de
uma vez se recusou a reconhecer o procedimento da Inquisição na península ibérica; aliás, no
final da vigência desta instituição, já não se dizia Inquisição Eclesiástica, mas sim Inquisição
Régia. (GONZAGA, 1993, p. 15)
Tendo sido criado para combater as heresias, o Tribunal do Santo Ofício considerava
como tais os crimes de: cerimônias judaicas ou islâmicas, opiniões heréticas (das quais
estavam incluídos o luteranismo, bem como a rejeição e incredulidade dos dogmas e
sacramentos da Igreja), a feitiçaria, a bigamia. Branca Dias, apesar de se declarar uma cristã,
“Eu sou uma boa moça, cristã, temente a Deus. Meu pai me ensinou a doutrina e eu procuro
segui-la (p. 32), acaba caindo nas garras da Inquisição sob a acusação de heresia e atos
contra a moralidade.
80
E se levarmos em conta o conceito de heresia dado por Rubem Alves, Branca é
mesmo uma herege, pois por não se dobrar aos dogmas e ao sistema pré-estabelecido, ela
rompe com as cadeias da religiosidade programada na qual os conceitos e o consenso de
homens passam a ter valor divino e sagrado.
De acordo com Le Goff, “nos textos da Idade Média, o herege é freqüentemente
indicado como um louco, a heresia é uma insânia”. Isso fazia com que as pessoas daquela
época manifestassem pelas heresias um forte sentimento de intolerância.
Para os homens desse tempo, a existência no seio do corpo social de uma minoria dissidente,
da heresia, provoca uma reação profunda, quase viceral, de intolerância. Não se pode senão
recusar-lhe o direito à existência, procurar eliminá-la pela persuasão, se possível, pela
violência, se preciso, como o organismo procura eliminar um germe nocivo. (op. cit., págs. 52-
53).” (LE GOFF apud GONZAGA, 1993, p. 110)
Na Idade Média, o amor à podia se considerado como o esteio da vida espiritual, e
qualquer forma de deturpação da fé era tida como heresia, e esta era vista como um dos piores
crimes que alguém pudesse cometer. Dessa forma, a Inquisição encontrou devido ao clima
religioso, formação cultural, condições de vida – terreno fértil nas mentes e nos corações para
aceitar o regime totalitário e esmagador o qual ela impunha.
3.3 Branca Dias, Antonio Vieira, Domenico Scandella: a Inquisição e três diferentes
discursos
As condições de produção do discurso, segundo Indursky (1997), mostram o contexto
no qual o discurso foi produzido, e quais são suas contradições. Assim, ao produzir seu
discurso, o sujeito está imbricado com toda rede de informações e relações que fazem parte do
seu grupo social. Para Pêcheux (apud INDURSKY, 1997), a formação discursiva é
constitutivamente invadida por elementos que m de outro lugar, isto é, de outras formações
discursivas, e se repetem nela. Isso nos remete ao dialogismo bakhtiniano, e a
intertextualidade teorizada por Kristeva, a qual diz que todo texto é um mosaico de outros
textos. Neste caso, todo discurso seria, portanto, um mosaico das ideologias defendidas e
discutidas pelo grupo social ao qual pertence o sujeito do discurso. Cabe salientar, porém, que
a mesma formação ideológica pode dar lugar a diferentes formações discursivas, pois é
preciso verificar de que maneira os elementos externos ao discurso foram interiorizados e
81
absorvidos, para então serem reconfigurados e posteriormente tornarem-se discurso
novamente. “Desse modo, uma FD deve ser entendida como dois ou mais discursos em um
só, estabelecendo a contradição como seu princípio constitutivo.” (INDURSKY, 1997, p.35)
António José Saraiva (1985), em seu livro Inquisição e cristãos-novos, levanta alguns
questionamentos em relação aos documentos inquisitoriais, e chama a atenção para o fato de
que tais documentos poderiam ser “autênticos”, sem que, necessariamente, fossem
“verdadeiros”. É importante salientar que, na maioria das vezes, a vítima prestava depoimento
sob um alto grau de pressão psicológica, e muitas vezes, torturas físicas. Nessas
circunstâncias, a vítima confessava tudo aquilo que fosse necessário para se livrar das torturas
e conseguir uma pena mais branda. Portanto, a veracidade daquilo que está lavrado nos
documentos inquisitoriais fica comprometida.
Outro fator que compromete a narrativa da história, de acordo com Durval Muniz de
Albuquerque Jr., em seu ensaio “História: a arte de inventar o passado”, é que o historiador
conta uma história a partir de consultas a arquivos, textos, imagens deixadas pelas gerações
passadas, mas, no entanto, essa história é reescrita e revista sob o ponto de vista do presente.
“O acontecimento, o evento em história não é, pois, um dado transparente, que se oferece por
inteiro, ou em sua essência, mas é uma intriga, um tecido que vai ser retramado e refeito pelo
historiador”. (ALBUQUERQUE JR., 1995, p. 11).
Para Foucault (apud Indursky, 1997), a prática discursiva consiste em um conjunto
de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no espaço e no tempo, as quais
definiram, em uma época específica e em uma era social, econômica, geográfica ou
lingüística dada, as condições do exercício da função enunciativa.” (p. 20). Levando em
consideração a teoria foucaultiana, o discurso passa a ser visto como parte de um sistema de
formações sociais. Para Maldidier, a prática discursiva é “resultante de um conjunto de
determinações regradas em um dado momento por um conjunto complexo de relações com
outras práticas discursivas e não-discursivas.” (apud INDURSKY, 1997, p. 20)
Desta maneira, entendemos o discurso em suas relações extradiscursivas.
Maingueneau (apud INDURSKY, 1997) afirma que a prática discursiva designa a
reversibilidade essencial entre as faces social e textual do discurso. Na prática discursiva está
em voga não apenas a formação discursiva do indivíduo, mas a formação do grupo social ao
qual pertence tal indivíduo, em cujo interior foi produzido o discurso. Isto é, o discurso do
indivíduo reflete e representa a relação que o seu grupo tem com o mundo. Em O santo
inquérito, as falas de Branca Dias refletem de forma significativa os seus diálogos com
Augusto Coutinho.
82
Os discursos autoritários têm a característica de, segundo Orlandi (1996), ter a
“verdade” imposta e determinada pelo locutor. Deixando de lado o embate entre as possíveis
interpretações, a interpretação do locutor se torna a única possível. Por conseguinte, examinar
o discurso da Inquisição implica necessariamente em analisar o funcionamento de um
discurso autoritário. Para ela, o discurso religioso pode ser considerado, em termos
tipológicos, na perspectiva do discurso autoritário, ou seja,
regras estritas no procedimento com que o representante se apropria da voz de Deus: a
relação do representante com a voz é regulada pelo texto sagrado, pela Igreja, pelas
cerimônias... Uma vez que obscuridade, sempre a possibilidade das diferentes
interpretações (leituras) das palavras (do texto), mas essas diferenças observam um
regulamento categórico: além de um certo limite, elas são consideradas transgressões,
instituem novas seitas, são cismas, etc... A interpretação própria da palavra de Deus é, pois,
regulada. Os sentidos não podem ser quaisquer sentidos: o discurso religioso tende fortemente
para a monossemia. No cristianismo, enquanto religião institucional, a interpretação própria é
a da Igreja, o texto próprio é a Bíblia, que é a revelação da palavra de Deus, o lugar próprio
para a palavra é determinado segundo as diferentes cerimônias. (ORLANDI, 1996, p. 245,
246)
Era esse tipo de apropriação do discurso religioso, como discurso autoritário e
centralizador do poder e do saber, que a Inquisição determinava. E todo aquele que se
opusesse a tal sistema cometia uma transgressão. “A transgressão, por sua vez, pode ser ou
uma quebra das regras do jogo tal como a blasfêmia, a heresia, o pecado ou a usurpação
do lugar, tal como o pacto com o diabo.” (ORLANDI, 1996, p. 254). Para a Inquisição, tudo
aquilo que divergia da estrutura tradicional poderia ser considerada uma heresia. Pois, dessa
divergência, ou seja, dessas heresias poderiam surgir novas interpretações, gerando assim um
desmembramento da religião original, ou uma profunda reestruturação de suas bases. Por isso,
a Igreja Católica agiu de forma severa com aqueles que eram considerados hereges.
Logo, a apropriação do poder através do discurso religioso era a maneira que a Igreja
encontrava para manter a população sob o seu controle, evitando assim qualquer tipo de
“desordem”. Tanto a igreja, quanto a elite precisavam manter o domínio ideológico, evitando,
dessa forma, que houvesse levantes, ou mesmo, movimentos contrários aos seus dogmas,
como a Reforma Protestante. Em O santo inquérito, o Visitador, ao falar com Branca, em seus
últimos momentos, demonstra esse tipo de controle:
83
(...) Sua obstinação e sua arrogância provam que tem absoluta consciência de seus atos. (...)
Como todos os que pretendem enfraquecer a religião e a sociedade pela subversão e pela
anarquia.
[...]
O poder civil, a quem cabe defender a sociedade e o Estado, vai julgá-la segundo as leis civis.
Nós lamentamos ter de declará-la separada da Igreja e relaxada ao braço secular. (O santo
inquérito, 1996, p. 101)
Segundo Hayden White, “Por “ideologia” entendo um conjunto de prescrições para a
tomada de posição no mundo presente da práxis social e a atuação sobre ele (seja para mudar
o mundo, seja para mantê-lo no estado em que se encontra);” (1992, p. 36, 37). A Inquisição
procurava, por meio de coação ideológica, manter o mundo no estado em que se encontrava.
Sendo que ela mesma acusava, julgava e condenava seus perseguidos.
Dentre os perseguidos pela Inquisição houve três que, ao nosso ver, se destacaram pela
resistência e perspicácia com que encararam as acusações sofridas pelo Tribunal do Santo
Oficio: Branca Dias e Padre Antonio Vieira, perseguidos pela Inquisição Ibérica e Domenico
Scandella ou Menocchio, vítima do Tribunal Italiano. Tais indivíduos, apesar de apresentarem
três diferentes discursos ante a Inquisição, tem em comum o fato de terem enfrentado, com
coragem e determinação, todos os sofrimentos que lhes foram infligidos. Cada um a sua
maneira.
Em O santo inquérito, a personagem Branca Dias salva o Padre Bernardo de um
afogamento, estabelecendo a partir daí uma relação de amizade com o mesmo, na qual ele
passa a ser o confidente da moça, tendo acesso ao conhecimento dos seus mais puros
sentimentos, como: as recordações da infância, a sua maneira de se relacionar com Deus e o
amor por seu noivo. Mas os sentimentos do Padre vão além da sua dedicação a uma
paroquiana. Ele, ao se ver apaixonado, deseja para Branca a punição, pois, desta maneira,
poderá também aplacar suas próprias culpas, e o faz denunciando-a ao Tribunal do Santo
Ofício.
BRANCA
Padre, muitas pessoas se aproximam de mim sem que eu tenha sobre elas a menor influência.
O senhor mesmo já foi várias vezes à minha casa, fez-se meu confessor e meu amigo...
PADRE
Eu sei o quanto isso me custou!
84
BRANCA
(Surpresa.) Padre!
PADRE
(Arrepende-se.) Não devemos falar nesse assunto.
BRANCA
Que assunto, padre? Eu lhe fiz algum mal? É preciso que me diga, pois assim talvez eu
compreenda alguma coisa.
PADRE
Veja... (Mostra os lábios descarnados.)
BRANCA
Que foi isso? Seus lábios descarnados...
PADRE
Queimei-os com água fervendo. Os lábios, a língua, o céu da boca, para destruir o sentido do
gosto.
BRANCA
E por que fez isso?
PADRE
Para eliminar o gosto impuro dos seus lábios. Mas o gosto persiste. Persiste. (Caiu de joelhos,
com o rosto entre as mãos). (O santo inquérito, 1996, p.92)
De posse das confidências de Branca, traindo seu ofício e ministério da confissão
auricular, Padre Bernardo passa a apropriar-se das palavras da moça, dando a elas o sentido
que mais lhe apraz. Numa conversa com ele acerca do seu casamento, Branca lhe diz que
confia em Augusto como confia em Deus, parafraseando um dito popular que diz “confio nele
como confio em Deus”. Contudo, o padre distorce as palavras dela, e se mostra chocado com
esta declaração, como se Augusto fosse um empecilho para que Branca se aproxime de Deus
e da Igreja.
Há outros momentos nos quais as palavras de Branca são distorcidas pelo padre, como
no momento em que ela confessa ter se banhado nua, no rio, numa noite de muito calor; e
também, quando demonstra interesse em salvar as formigas do veneno. Padre Bernardo usa
estas declarações para, mais tarde, acusá-la de bruxaria e atos contra a moralidade. Da mesma
maneira, utiliza as lembranças que Branca tem da infância, para acusá-la do crime de
judaísmo. Devido à sua sinceridade, Branca acaba traída pelo próprio discurso, e através das
suas palavras se condena: “Eu era uma criança... faria tudo que me mandassem ... agora
mesmo eu o faria, se alguém me pedisse!” (O santo inquérito, 1996, p. 78)
85
Branca não pode expressar livremente aquilo que pensa e é coagida a se calar, pois
tudo aquilo que ela diz se volta contra ela mesma: “Cuidado com as palavras, Branca! (...) O
que você acaba de insinuar, Branca, é uma grande heresia. o deve repetir.” (O Santo
Inquérito, 1996, p.79, 80). Este diálogo denota bem a relação existente entre opressor e
oprimido no que tange à esfera da Inquisição, e em qualquer esfera onde um regime
autoritário e totalitário.
Orlandi, ao refletir sobre o sentido literal, diz que “não um centro, que é literal, e
suas margens, que são os efeitos de sentido. margens. Por definição. Todos os sentidos
são possíveis e, em certas condições de produção, a dominância de um deles. O que existe,
então, é um sentido dominante que se institucionaliza como produto da história: o literal”
(apud INDURSKY, 1997, p. 26). A autora diz ainda que essa institucionalização de um
sentido dominante, apesar de lhe atribuir o prestígio da legitimidade fazendo com que se fixe
como o sentido literal (oficial), não elimina os demais sentidos possíveis. Desta maneira,
Indursky (1997) destaca que é por meio do embate entre o sentido explícito e os sentidos
implícitos que ocorre a interiorização do ideológico no discursivo.
Branca havia sido advertida anteriormente por Augusto acerca da possibilidade de
mais de uma interpretação para as palavras. Depois de uma conversa com seu pai, Simão
Dias, na qual ele lhe fala sobre sua origem cristã-nova e sobre sua preocupação em relação às
indagações do Padre Bernardo, Branca se sente insegura e perturbada. Então ela pede a ajuda
de Augusto e este lhe demonstra que tudo é uma questão de interpretação.
AUGUSTO
Por que me mandou chamar com tanta urgência?
BRANCA
Não sei... De fato, não é urgente.
AUGUSTO
Aconteceu alguma coisa?
BRANCA
Não... realmente, não aconteceu nada. Não sei explicar. Mas de um momento para o outro, eu
me senti tão só, tão desamparada. me aconteceu isso uma vez, quando eu era menina e
alguém me disse que a Terra se movia no espaço. Não sei que sábio havia descoberto. Até
então, a Terra me parecia tão sólida, tão firme... de repente, comecei a pensar em mim mesma,
uma pobre criança, montada num planeta louco, que corria pelo céu girando em volta de si
mesmo, como um pião. E tive medo, pela primeira vez na vida. Uma sensação de insegurança
me fez passar noites sem dormir, imaginando que durante o sono podia rolar no espaço, como
uma estrela cadente.
86
AUGUSTO
(Sorri.) E que quer você que eu faça? Que pare a Terra, como Josué parou o Sol?
BRANCA
E se Josué parou o Sol, é porque é o Sol que se move e não a Terra.
AUGUSTO
É o que dizem as Sagradas Escrituras.
BRANCA
E pode um texto sagrado mentir?
AUGUSTO
Talvez seja uma questão de interpretação. Josué não parou o Sol, mas a Terra. Estando na
Terra, teve a impressão de que foi o Sol que parou. O sentido é figurado. Do mesmo modo que
quando nos afastamos do porto, num navio, temos a impressão de que é a terra que foge de
nós. (O santo inquérito, 1996, p. 50)
No início da narrativa, Branca possui um discurso meio que desarticulado, devido ao
fato de repentinamente ter sido retirada do estado de pureza, no qual vivia junto ao seu pai,
em meio à natureza, aos rebanhos e brincadeiras com as formigas, para adentrar no espaço
trágico da Inquisição, por meio da denúncia sofrida por ela junto ao Santo Ofício. Esse
processo sofrido por Branca é pautado em suas próprias palavras, usadas de forma distorcida.
VISITADOR
Toma banho às sextas-feiras?
BRANCA
Todos os dias...
VISITADOR
E se enfeita?
BRANCA
Também...
VISITADOR
Quanto tempo leva enfeitando-se?
NOTÁRIO
Quanto tempo?
TODOS
Quanto tempo? Quanto tempo?
Saem todos, exceto Branca.
87
BRANCA
Não sei, não sei, não sei... Oh, a minha cabeça... Por que me fazem todas essas perguntas, por
que me torturam? (O santo inquérito, 1996, p. 32, 33)
O coro (Todos) também entra no jogo das perguntas como para ratificar o
interrogatório. Branca se sente confusa e torturada pelas insistentes perguntas do Visitador e
tenta se defender dirigindo-se à platéia “Eu sou uma boa moça, cristã, temente a Deus”. (O
santo inquérito, 1996 p. 33). Tenta explicar também a sua maneira de ver Deus, mas esta
maneira se distancia completamente do Deus autoritário e iracundo pregado pela Igreja.
Branca Deus em tudo o que lhe prazer, nas coisas simples da vida, na natureza e
principalmente no amor. Por isso, suas idéias não são bem vistas, primeiro pelo Padre
Bernardo e depois pelo Tribunal.
Dias Gomes cria, dessa forma, uma personagem ingênua, que possui uma pureza
imaculada pelas corrupções “mundanas”. Para isso, ele se apropria da persona
mítico/histórica de Branca Dias, pois ela reúne em si o ideal de beleza, juventude, justiça e
dignidade, coisas que façam o público/leitor refletir sobre as ‘verdades’ que existem no
mundo, independente de tempo e espaço. Todavia, no decorrer da ação, o discurso de Branca
passa a perder um pouco dessa pureza e a tomar consciência de que tudo o que falar poderá
ter dupla interpretação. Ao mesmo tempo em que Padre Bernardo tenta minar de Branca sua
força e liberdade através de novas ideologias, as quais ele traz para ela:
BRANCA
Eu lhe agradeço. Mas não acho que mereça tantos cuidados de sua parte. Sou uma criatura
pequenina e fraca, sim, mas não me sinto cercada de perigos e tentações.
PADRE
A segurança que você diz isso já é, em si, um perigo. Prova que você ignora as tentações que a
cercam.
BRANCA
Talvez eu não ignore, mas aceite como uma coisa natural.
PADRE
Pior ainda. Ninguém pode aceitar o Demônio como companheiro de mesa.
[...]
Se aceitamos a sua existência como coisa natural, acabamos por admiti-lo como parceiro.
Porque, não tenha dúvidas, o Diabo está a todo o momento a nos rondar os passos, a se
insinuar e a se infiltrar... (O santo inquérito, 1996, p.42, 43)
88
Num dado momento, a estratégia do padre chega a dar certo, Branca passa a ficar
abalada e confusa diante dessa “nova” maneira de encarar o mundo. “Sim, Padre Bernardo
deve ter razão, toda criatura humana está em perigo!” (O santo inquérito, 1996, p. 53), “Não
me pergunte, eu não saberia responder. sei que o mundo, que me parecia tão simples,
começa a ficar muito complicado para mim. Eu mesma não me entendo...” (O santo
inquérito, 1996, p. 53). Mas através dos diálogos com seu noivo, Augusto Coutinho, ela
consegue rever posições e restaurar as forças.
Diante da Inquisição, Augusto mantém uma postura firme, sem negar suas convicções,
e acaba pagando um alto preço por elas:
VISITADOR
Augusto Coutinho, sabe que está ameaçado de excomunhão?
AUGUSTO
Sei.
VISITADOR
Como cristão, isso não o apavora?
AUGUSTO
Apavora mais não ter a fibra dos primeiros cristãos.
VISITADOR
Para que desejava ter a fibra dos primeiros cristãos?
AUGUSTO
Para resistir às torturas.
VISITADOR
Ordenei a tortura pela sua obstinação em esconder a verdade. (O santo inquérito, 1996, p. 84)
Para Authier, “um discurso é constitutivamente atravessado pelo discurso do outro”
(apud INDURSKY, 1997, p. 40). Ele fala então de dois tipos de heterogeneidade: a mostrada,
a qual indica a presença de um outro no discurso de forma direta (discurso direto e indireto,
aspas); a constitutiva, a qual implicitamente vem diluída no discurso através do
“interdiscurso”. Como, por exemplo, as falas de Branca refletem as idéias de Augusto
Coutinho. Ele tem sobre Branca uma influência fundamental no desenrolar dos
acontecimentos. Podemos verificar isso quando Branca, após um breve momento de fraqueza
no qual decide abjurar, ao ficar sabendo da morte de Augusto, encontra no seu discurso
consciente e ideológico, forças suficientes para encarar e vencer as adversidades.
89
BRANCA
É inútil, senhores. Não vou abjurar coisa alguma. O que quero, o que espero dos senhores é
minha absolvição.
[...]
VISITADOR
Branca, você não se disse disposta a abjurar?
BRANCA
Disse, num momento de fraqueza. Mas não posso reconhecer uma culpa que sinceramente não
julgo ter. Se sou inocente, se nada podem provar contra mim, o que devo suplicar a este
Tribunal é que reconheça a minha inocência. (O santo inquérito, 1996, p.100, 101)
O discurso de Branca perante a Inquisição passa a ser então de resistência e defesa às
injustiças sofridas por ela “Mas senhores, eu não pretendi nada disso! Nunca pensei senão em
viver conforme a minha natureza e o meu entendimento, amando a Deus à minha maneira;
nunca quis destruir nada, nem fazer mal algum a ninguém!” (O santo inquérito, 1996, p.100)
Por fim, Branca, aos moldes da tragédia grega clássica, embora sem consciência,
“comete involuntariamente a hamartía (erro), caminha para a desmedida, vai cumprindo, por
meio de seu discurso, decodificado deliberadamente às avessas pelos outros, todas as etapas
que a conduzem à fogueira.” (SILVA, 2006, s/p)
Em O queijo e os vermes, Carlo Ginzburg traz à tona a figura de Domenico Scandella,
dito Menocchio, um moleiro friulano que, após uma vida de anonimato, foi denunciado ao
Santo Ofício, o que, de certa forma, permitiu que ele entrasse para a História. Os dois
processos inquisitoriais movidos contra Menocchio foram encontrados por Ginzburg no
Arquivo da Cúria Episcopal de Udine, em 1962. O fato que mais chamou a atenção do
historiador foi que uma das acusações feitas ao “réu era a de que ele sustentava que o mundo
tinha sua origem na putrefação” (GINZBURG, 1996, p. 11). Pesquisando as documentações
dos processos, Ginzburg teve indicações sobre a vida de Menocchio e sua família, suas
atividades econômicas, suas idéias, sentimentos, fantasias e aspirações, além de uma lista
parcial de suas leituras. Apesar de todas as informações obtidas, Ginzburg não pôde fazer uma
reconstrução exata da vida de Menocchio. Devido ao fato de que, sua principal fonte, os
processos inquisitoriais, se encontrarem, de certa forma, “contaminados” pelo discurso
ideológico vigente da Inquisição.
90
Ginzburg traz até nós a história de Menocchio, que não foi, de forma alguma, um
camponês típico. Pois, apesar de seu pouco nível de instrução, ele sabia ler e escrever, o que
não era comum entre os camponeses, o que o colocava numa posição privilegiada. Através da
leitura, ele pôde entrar em contato com realidades diferentes da sua, o que o levou a pensar e
questionar a opressão à qual ele e seus conterrâneos eram submetidos. Em suas leituras,
encontramos, além das obras já difundidas na época, também obras proibidas pela Igreja,
entre elas O Decameron e o Alcorão. Essas leituras o levaram a fomentar o seu discurso
contra a Igreja. A invenção da imprensa e a Reforma protestante permitiram a Menocchio
pensar e agir da maneira como ele o fez: a imprensa deu-lhe acesso às leituras que o levaram
a conhecer pensamentos, lugares e crenças até então desconhecidos para ele; e a Reforma o
“liberou” para comunicar seus pensamentos aos seus conterrâneos e até mesmo ao padre do
vilarejo. “Menocchio era, então, uma típica ameaça ao poder da Igreja, um indivíduo que
estava disposto a desenvolver sua própria visão de mundo tendo como base conteúdos
extraídos de diversas fontes literárias.” (VALÉRIO XR, 2000, s/p). Devido ao seu
comportamento pouco convencional, “Menocchio foi denunciado ao Santo Ofício, sob a
acusação de ter pronunciado palavras “heréticas e totalmente ímpias sobre Cristo”. Não se
tratara de uma blasfêmia ocasional: Menocchio chegara a tentar difundir suas opiniões,
discutindo-as” (GINZBURG, 1996, p. 41).
Encontramos no discurso de Menocchio idéias que circulavam na memória coletiva
dos camponeses, que incluíam desde elementos cristãos até rudimentos de uma cultura que se
manteve pagã em seus valores, mesmo sob uma aparência cristã. Muito embora Menocchio
reelabore estas idéias e dê a elas uma visão totalmente pessoal.
Apesar de ter sido enquadrado como herege pela Inquisição, Menocchio fugia a
qualquer modelo pré-estabelecido de heresia. Suas idéias, mesmo assemelhando-se em alguns
momentos com as idéias de grupos como os anabatistas ou os luteranos, acabavam sempre
divergindo destas em algum ponto.
De início, fizeram Menocchio notar as contradições em que caíra; depois, tentaram reconduzi-
lo ao caminho certo; por fim, em vista de sua obstinação, renunciaram a qualquer tentativa de
convencê-lo e se limitaram a perguntas exploratórias, como se desejassem chegar a um quadro
completo de suas aberrações. E, unanimemente, declararam Menocchio “non modo formalem
hereticum [...] sede etiam heresiarcam” (não um herético formal [...] mas também um
heresiarca). (GINZBURG, 2005, p. 155)
91
Em seu discurso, Menocchio travava no âmbito religioso uma luta também política
contra a opressão e alienação sofrida pelos camponeses. “Os padres nos querem debaixo de
seus pés e fazem de tudo para nos manter quietos, mas eles ficam sempre bem” (GINZBURG,
1996, p.41).
O discurso de Menocchio, mesmo se partia do seu caso pessoal, acabava por abraçar um
âmbito muito mais vasto. A exigência de uma Igreja que abandonasse seus privilégios, que se
fizesse pobre com os pobres, ligava-se à formulação, na esteira dos Evangelhos, de um
conceito diferente de religião, livre de exigências dogmáticas, resumível a um núcleo de
preceitos práticos: “Gostaria que se acreditasse na majestade de Deus, que fôssemos homens
de bem e que se fizesse como Jesus Cristo recomendou, respondendo àqueles judeus que lhe
perguntaram que lei se deveria seguir. Ele respondeu: ‘Amar a Deus e ao próximo.’ ”
(GINZBURG, 1996, p. 52)
Como porta-voz de seu povo, ele se valia da própria religião usada como
instrumento de alienação e dominação – para retaliar contra o dominador, e fazer-se ouvir. “E
me parece que na nossa lei o papa, os cardeais, os padres são tão grandes e tão ricos, que tudo
pertence à Igreja e aos padres. Eles arruínam os pobres. Se têm dois campos arrendados, esses
são da Igreja, de tal bispo ou de tal cardeal” (GINZBURG, 1996, p. 51). Menocchio desafiou
os dogmas mais poderosos de sua época, que eram os religiosos, e teve a coragem de
contestar a visão hegemônica e autoritária da igreja, declarando
recusar todos os sacramentos, inclusive o batismo, por serem invenções dos homens,
“mercadorias”, instrumentos de exploração e opressão por parte do clero: “Acho que a lei e os
mandamentos da Igreja são só mercadorias e que se deve viver acima disso”. ... “Ir se
confessar com padres ou frades é a mesma coisa que falar a uma árvore”. (GINZBURG, 1996,
p. 52, 53)
Ele tendia a uma religião de caráter prático, efetivo, reduzida a um vínculo moral e
político:
no dia do Juízo [...] não nos perguntarão outra coisa senão se demos de comer aos famintos, de
beber aos sedentos, se vestimos os sem-roupas, visitamos os enfermos, demos pouso para os
que passavam [...], sendo esses os fundamentos da caridade”. [...] Uma tendência, claramente
detectável, em reduzir a religião à moralidade aflora com freqüência em seus discursos. [...]
Para ele, o amor ao próximo permanecia como um preceito religioso, ou melhor, o verdadeiro
coração da religião. (GINZBURG, 1996, p. 96, 97)
92
As heresias de Menocchio feriam diretamente algumas dos dogmas reafirmados pela
Igreja durante o Concílio de Trento, o qual foi realizado pela Igreja Católica em reação à
Reforma Protestante. Entre as Teorias (heresias) de Menocchio estão: a denúncia das
injustiças sociais: “Na minha opinião, falar latim é uma traição aos pobres. Nas discussões, os
homens pobres não sabem o que estão dizendo e são enganados. Se quiserem dizer quatro
palavras, têm que ter um advogado.” (GINZBURG, 1996, p. 51); a origem do mundo através
da “putrefação”: ...tudo era caos, isto é, terra, ar, água e fogo juntos, e de todo aquele
volume em movimento se formou uma massa, do mesmo modo como o queijo é feito do leite,
e do qual surgem os vermes, e esses foram os anjos.” (GINZBURG, 1996, p. 46); o Espírito
Santo: Menocchio não entendia bem o que significava o Espírito Santo, freqüentemente
confundido com o espírito num sentido mais simples, nada mais do que um “sopro”, um “ar”:
“acho que o Espírito Santo é maior que Cristo, que era homem, enquanto o Espírito Santo
veio pelas mãos de Deus...” ( GINZBURG, 1996, p. 54); a salvação para todos, “A majestade
de Deus distribuiu o Espírito Santo para todos: cristãos, heréticos, turcos, judeus, e tem a
mesma consideração por todos, e de algum modo todos se salvarão. (GINZBURG, 1996, p.
52); a virgindade de Maria “O que é que vocês pensam, que Jesus Cristo nasceu da Virgem
Maria? Não é possível que ela tenha dado à luz e tenha continuado virgem. (GINZBURG,
1996, p. 44); visão panteísta de Deus “O ar é Deus [...] a terra, nossa mãe”, “Tudo que se vê é
Deus e nós somos deuses”, “O céu, a terra, o mar, o ar, o abismo e o inferno, tudo é Deus”
(GINZBURG, 1996, p. 44).
Menocchio viveu o conflito de estar entre um sistema autoritário e centralizador e a
necessidade da liberdade individual de pensamento. Para consegui-lo, ele teve a coragem de
contestar e desafiar esse poder hegemônico, chegando a morrer por isso. “Meu espírito era
elevado e desejava que existisse um mundo novo e um novo modo de viver”. (GINZBURG,
1996, p. 57). Para Renato Janine Ribeiro, “Menocchio é um herói, ou mártir da palavra”.
Pode ser que ele seja as duas coisas. Pois se portou como um herói ao falar diante das
autoridades eclesiásticas tudo aquilo que pensava, denunciando os desmandos da igreja e a
opressão a que os pobres eram submetidos. Mas também foi um mártir da palavra, pagando
com a própria vida a ousadia de falar o que pensava. Ele próprio já tinha dito que “Falaria
tanto que iria surpreender... Se me fosse permitida a graça de falar diante do papa, de um rei
ou príncipe que me ouvisse, diria muitas coisas e, se depois me matassem, não me
incomodaria”. (GINZBURG, 2005, p. 205). Ao resgatar o caso de Menocchio da obscuridade
dos arquivos inquisitoriais e trazê-lo à luz da história, Carlo Ginzburg finalmente deixa ecoar
para nós tudo aquilo que Menocchio queria tanto falar.
93
Desde o início da sua carreira, o padre jesuíta Antonio Vieira, se indispôs com a
Inquisição e vice-versa. Um dos motivos para essa divergência era a desavença existente entre
a Companhia de Jesus e a Ordem dos Dominicanos, a qual era ligada ao Tribunal do Santo
Ofício; o outro motivo, e não improvavelmente o mais forte, era a persistência de Vieira em
favor dos judeus e cristãos-novos. Este último motivo colocou Vieira sob as suspeitas
inquisitoriais: de que ele comungaria dos ideais e sentimentos judaicos, os quais a Inquisição
abominava.
Vieira dava uma forma material à Inquisição sob o aspecto de um grande monstro, um polvo
gigantesco, como o pintou no Sermão de Santo Antônio aos Peixes, “ornado de capelo, como
um monge, e parecendo com aqueles seus raios estendidos uma estrela, com aquele não ter
osso nem espinha a mesma brandura, a mesma mansidão e sendo, debaixo desta aparência tão
modesta, ou desta hipocrisia tão santa, o maior traidor do mar! E que assim se crie, se
conserve e exercite, com tanto dano do bem público, um monstro tão dissimulado, tão fingido
e tão conhecidamente traidor!” (NISKIER, 2004, p. 87)
O zelo foi-se e ficou a capa de zelo. E quantas maldades se cometem debaixo desta honrada
capa! Por fora não há mais que zelo; mas dentro há cobras e lagartos; há basilicos e serpentes;
monstros e monstruosidades, coisas que estão fechadas a três paredes. Elias por fora,
idolatrias por dentro. Se houvesse quem rompesse paredes, oh! Quantas coisas havia de ver o
mundo! (Sermão de Santo Antônio aos Peixes apud NISKIER, 2004, p. 87)
Com a morte de D. João IV, Vieira perde seu protetor. E quando se depara com o
Santo Ofício em 1661, não possui a influência que usufruíra anteriormente. Em 1663, os
jesuítas perdem a jurisdição temporal no Maranhão e Grão-Pará, no que diz respeito aos
assuntos indígenas, e passam a dividir a jurisdição espiritual com as outras ordens. Nesse
ínterim, Vieira é proibido de regressar ao Maranhão.
Em janeiro de 1649, o padre Martim Leitão dera parte de Vieira ao Santo Ofício,
dizendo ter este em seu poder dois livros de profecias que parecera ao padre pouco católicos.
A denúncia ficou arquivada esperando novas acusações para que se juntassem a esta. Em
outubro do mesmo ano, frei Antônio Serpa, chegando em Coimbra, regressando da França,
declarou ante a Inquisição que estando em Paris ouvira Vieira declarar que era conveniente
que Portugal tivesse sinagogas públicas, e que o segredo do processo deveria ser suprimido.
Também em dezembro do corrente ano, o padre Pedro Alvarez entrou no Estaus e informou
que um amigo seu, um tal Sardinha, vira Vieira proferir palavras heréticas.
A Inquisição tomou como pretexto para processar o jesuíta a carta que este escreveu e
enviou ao Bispo do Japão para consolar a rainha D. Luíza de Gusmão pela morte do seu
marido, D. João IV, falando acerca da ressurreição reinol prevista nas profecias de Bandarra,
94
a propósito de D. Sebastião. Tal missiva, intitulada Esperanças de Portugal, Quinto Império
do mundo”, é datada de fins de 1659, e foi escrita a caminho de Belém do Pará, quando Vieira
retornava de uma expedição missionária com os índios Nnhengaíbas, do Marajó.
No primeiro exame, Vieira é interrogado sobre a carta “Esperanças de Portugal”, e
como ele considera Bandarra verdadeiro profeta. Mesmo assumindo a autoria da carta, Vieira
nega-lhe qualquer sentido censurável, declarando que fora interpretado de maneira
equivocada pelo Tribunal e, desta forma, as proposições que escrevera não teriam, portanto,
sido ainda julgadas. Por esta razão, o jesuíta afirma aceitar as censuras e qualificações feitas
às suas proposições, todavia, no verdadeiro sentido no qual elas foram escritas.
Além da carta citada, no segundo exame, também o interrogaram acerca das suas
pregações, bem como das suas pretensões em relação à escrita, devido a uma denúncia do
Padre Jorge de Carvalho sobre um livro o qual Vieira pretenderia escrever. Vieira então expõe
seu desejo de escrever um livro no qual pudesse mostrar suas concepções teológicas, as quais
ajudariam a esclarecer e compreender algumas profecias obscuras tanto do Antigo quanto do
Novo Testamento. Tal livro seria intitulado Clavis Prophetarum (Chave dos Profetas).
Aqui, porém, o fato não é concreto, mas como dizia Vieira “Que o dito chamado livro,
verdadeiramente de nenhum modo é, nem foi, nem se pode chamar de livro, senão
pensamento de livro, e pensamento retratado, e totalmente deixado, por haver mais de onze
anos que tinha desistido do sobredito pensamento:” (VIEIRA, 1998, p. 8). E, baseado neste
argumento, o jesuíta constrói toda sua defesa.
Diz que, embora o livro de que lhe argúem o significado não exista, nem nunca tenha existido,
obedecendo às perguntas que lhe fazem escreverá o que nele constaria se tivesse vindo a
existir. Ou seja: considerando que não lhe perguntam se foi ou não autor de um delito, Vieira
exige que a Inquisição, conforme seus próprios enunciados, interrogue-o apenas sobre se havia
ou não uma intenção criminosa de sua parte quando pensara em escrever o livro. A esta
suspeita, Vieira responde pela própria composição do pretenso livro: exige o direito de
escrever o livro que teria escrito para que a Inquisição possa julgar se nele havia alguma
afirmativa contrária à pela qual pudesse ser suspeito de erros ou culpas. Por meio desse
edifício dialético Vieira se outorga o direito de legitimamente o escrever, na medida em que o
reveste do estatuto de resposta às questões que a Inquisição lhe faz. (MUHANA, 1996, s/p)
Ao ser inquirido sobre os “fundamentos e proposições com que provava o assunto e
matéria” do seu livro, o jesuíta responde que tais fundamentos são matérias vastíssimas, e que
ele não se atreveria a repeti-las naquela mesa. Dessa maneira, Vieira requer junto ao tribunal a
95
permissão para escrever sua defesa, remetendo às proposições da carta “Esperanças de
Portugal”.
O processo da Inquisição contra Antonio Vieira versa, sobretudo, acerca dos erros
contra a fé, devido às sentenças proferidas que, para o Tribunal, cheiravam a heresia e a
judaísmo, além do fato de que, dependendo de como as sentenças foram proferidas, se escritas
ou orais, se publicadas, em conversas particulares ou em falas públicas, se em textos privados,
tudo isso denotaria a intenção do autor. A Inquisição tentou definir as sentenças vieirinas
como aquelas que possuíam culpas intencionais, enquanto o autor se defendia definindo-as
como inculpáveis. Conhecedor dos critérios utilizados pelo Tribunal, desde o primeiro exame,
Vieira define sua carta, “Esperanças de Portugal”, como um escrito privado endereçado ao
Bispo do Japão, a fim de discutir “verdades” numa conversa de doutos, e que desta maneira,
ali se poderia achar erros involuntários, porém o possuiria culpas intencionais. Percebemos
portanto, que desde o início, o conhecimento que Vieira possuía acerca do funcionamento dos
critérios retórico-jurídicos do Tribunal do Santo Ofício auxiliou-o no sentido de direcionar o
seu discurso para melhor se defender. Vieira conhecia o sistema da Inquisição e por isso sua
fala perante o interrogatório “era dialecta cheio de confiança no poder comunicativo duma
convicção arquitectada com tanto saber e tanto esforço lógico.” (CIDADE in VIEIRA, 1957,
p. XVI)
O processo durou de 1663 a 1667. Para defender-se Vieira redige duas longas representações.
O tribunal não se convence e o submete a exames pontuais cada vez mais apertados, aos quais
o réu responde esgrimindo a sua retórica temerária que se engenha em tornar crível o
impossível, provável o apenas possível, e absolutamente certo o apenas provável. (BOSI in
VIEIRA, 1998, p. XII)
É com incrível inteligência e perspicácia que Antonio Vieira transforma o objeto da
sua acusação em argumento para sua defesa. Como diz Muhana (1996),
Ao mesmo tempo, tal livro, que ainda não fora escrito, era (e será) justamente aquilo que
faltava (e falta) para explicitar o sentido da Carta e a legitimidade de suas proposições e
demonstrar por conseguinte a inocência do seu autor. Em suma, tal livro não escrito acerca do
qual é acusado é sua própria defesa. (s/p)
Em abril de 1664, ele é acusado judicialmente e ao mesmo tempo autorizado a
escrever a sua defesa. Mas, nesse ínterim, encontra-se enfermo e tem o prazo para entrega da
96
defesa adiado para setembro de 1665. Findo o prazo, a Inquisição retém todos os papéis que
ele tinha escrito até aquele momento, sem, no entanto, tê-los concluído. Vieira não se
conforma com o seqüestro dos seus escritos e, sem saber de onde viera a ordem para o
recolhimento da sua defesa, apela ao Conselho Geral da Inquisição em Lisboa, exigindo que a
Inquisição de Coimbra devolva-lhe os papéis recolhidos, pois, devido ao fato de estarem
inconclusos, não o poderiam defender. Porém, sendo o próprio tribunal de Lisboa quem dera a
ordem para o recolhimento dos papéis, este expede uma ordem para que a Inquisição de
Coimbra possa encarcerá-lo.
Vieira é preso e permanece um ano sem ser chamado para nenhum interrogatório,
período no qual escreve sua Defesa perante o tribunal do Santo Oficio. Em outubro de 1666,
as sessões de interrogatório são reiniciadas, acrescidas das acusações retiradas dos papéis que
foram recolhidos. Nesta nova fase dos exames, Vieira é acusado constantemente de suspeitas
de judaísmo, o que é negado sempre por ele, afirmando que:
determinou… de compor o livro do Quinto Império de que nesta Mesa tem dado conta… não
porque lhe parecesse, nem pelo pensamento lhe passasse em tempo algum que tinha o dito
assunto a mínima semelhança ou aparência de que se pudesse suspeitar, o que agora vê se lhe
tem arguido acerca do Messias e esperanças judaicas. (VIEIRA apud MUHANA, 1995, p.
233)
O inquisidor, Alexandre da Silva, porém, não se convence e continua a acusá-lo de
judaísmo, chegando a falar em odor judaico: redolet sensum judaicum. Sendo, contudo,
contradito pelo jesuíta, que se defende ao argumentar que obedeceu apenas às ordens da
Inquisição expondo os fundamentos e o sentido do livro que tencionara escrever, mas que
desistiria de defendê-las se estas fossem declaradas não legítimas por teólogos com
conhecimento e autoridade maiores que os seus. Foi o que aconteceu no vigésimo oitavo
exame, quando foi informado, pelo inquisidor Alexandre da Silva, de que Sua Santidade
aprovara as censuras dadas em Roma por ordem da Congregação do Santo Ofício.
Para Vieira, contudo, essas obras são a própria legitimação de sua vida — de cortesão, orador,
teólogo, profeta e missionário. Defendê-las é defender-se, redigindo para si uma narrativa de
vida outra que não a dos inquisidores. O que Vieira denuncia é que a Inquisição conspira
contra suas sentenças neste momento e nesses anos porque, apesar da meticulosidade com que
registram-nas impessoalmente, censuram a ele, e não a outrem, por tê-las proferido: “De duas
cousas me vi principalmente arguir [sic] nos exames: A primeira é de suspeito na Fé, a
segunda de presumido no engenho” (Defesa do intitulado Quinto Império apud MUHANA,
1996, s/p)
97
A sentença de Vieira é dada em dezembro de 1667, após quatro longos anos de
interrogatórios. Sua pena:
ser privado para sempre de voz ativa e passiva, e do poder de pregar, e recluso no Colégio, ou
Casa de sua Religião, que o Santo Ofício lhe assinar, donde, sem ordem sua não sairá; e que
por termo por ele assinado, se obrigue a não tratar mais das proposições de que foi argüído no
discurso de sua causa, nem de palavra, nem por escrito. (VIEIRA apud MUHANA, 1996, s/p)
Mas não era do feitio de Vieira aceitar pacificamente tal condenação, logo ele que
viveu a vida inteira de fazer uso da palavra. Não conformado com sua situação, no ano
seguinte segue para Roma e, utilizando a sua habilidade política, consegue em 1675, com o
papa Clemente X, um breve que o isenta para sempre de ser subordinado à autoridade da
Inquisição lusitana.
Embora poupado das violências físicas e das torturas que eram lugar-comum nos
processos inquisitoriais, o jesuíta amargou a solidão e o abandono no cárcere. Segundo
Theodoro (1987), a cena inquisitorial de Vieira transcorreu em meio a negociações
sustentadas por sua primorosa defesa diante do Tribunal. E embora não tenha tido a “glória”
dos heróis (a morte), teve a chance de poder rever seus escritos e poder produzir um precioso
trabalho “cujo poder de reflexão mantém sua obra viva até os dias de hoje.” (THEODORO,
1987, s/p)
O discurso de Vieira era religioso com certeza, mas sem destoar de suas intenções
políticas. Araujo (1999) afirma que “O móvel do discurso vieirino será sempre político,
adaptado a assunto, tema ou pretenso objeto religioso. (...) Em Vieira, pregação e política não
são contraditórias, antes se complementam na tarefa comum de sacralização do século” (p. 25;
69). Sua conduta e posicionamento, a favor da “gente da nação”, incomodaram aqueles que os
perseguiam. Mas Vieira avaliava o prejuízo econômico e social sofrido por Portugal devido às
atividades persecutórias contra os cristãos-novos. Suas preocupações de caráter político
serviram para acirrar ainda mais a contenda existente entre ele e a Inquisição.
Em sua defesa, Vieira manipulou a linguagem, derrubando os argumentos e
desconcertando aqueles que tentavam provar suas culpas. Ele criava dúvidas no interlocutor
fazendo com que afirmações aparentemente justas pudessem ser interpretadas também como
injustas, através da variação das ordenações dadas às frases. Também escreveu de maneira
que seus inquisidores obtivessem dele as respostas que gostariam de ouvir. Para que pudesse,
assim, se livrar das acusações a ele proferidas. Desta maneira, ele trabalhou o texto de sua
98
defesa dentro da lógica que a Inquisição desejava. “Vieira decompõe as proposições,
esclarece os motivos, responde às objeções de forma espelhada. Espelha com seu texto tudo o
que o tribunal desejava ouvir... Seu texto permite aos inquisidores vê-lo como cativo, cativo
no texto.” (THEODORO, 1987, s/p).
Não he meu intento nem foy nunca (como por muitas vezes tenho declarado) defender as ditas
Proposiçoens. Porque o que pretendo & desegei sempre he mostrar a sogeição, rendimento,
& obediencia, que professo & devo à Igreja & seus ministros & muito particularmente aos
deste sagrado Tribunal, cujas resoluçoens são, & serão para mym o mayor, mais efficaz, &
mais evidente motivo de tudo o que ouver de crer, seguir, approvar, e ter por mais acertado. E
se acazo (sem o pretender) me tenho appartado em alguma cousa do caminho ou modo da
resignação, com que mais se pode ou deve manifestar o dito obséquio, veneração &
submissão, conforme os estilos do Santo Officio, he por eu não ter noticia alguma dos ditos
estilos, nem quem neste ponto mos declarasse ou insinuasse, avendo pedido por muitas &
repetidas instancias se me dissesse o modo com que podia & devia mostrar o dito obséquio
mayor & summo, porque isso era só o que queria, dezejava & pretendia. E em conformidade
desta disposição de meu animo & juizo, digo que se da representação dos motivos, que aqui
determino fazer, se segue alguma presunção minima, de querer defender ou contrariar não
as resoluçoens, senão os acenos deste Sagrado Tribunal; desde logo cedo & desisto, & retrato
tudo o que neste papel estiver escrito, nem quero que se veja ou tenha effeito algum; porque
mais estimo & mais quero mostrar me obediente, que innocente." (VIEIRA, 1957, tomo I, p.
3)
No processo, a retórica vieirina transforma-se num jogo de espelhos, os quais refletem
os desejos do Santo Ofício. O Antonio Vieira que aparece nos textos da defesa traz consigo a
“obediência” e “abnegação” exigidas pelo Tribunal. Sua retórica, anteriormente ornada de
figuras de linguagem e ambigüidades, dá lugar a um texto claro e objetivo no qual ele “conta
sua história”. Seu conhecimento da linha de pensamento e argumentação do “inimigo” lhe
proporcionou a oportunidade de construir seus argumentos de maneira que refletissem a
imagem daquilo que os acusadores gostariam de ver e ouvir.
Theodoro (1987) afirma que refletir, ainda hoje, acerca da defesa de Vieira diante da
Inquisição significa recuperar a palavra como forma capaz de dissolver o desejo de violência.
E, com engenho e arte, Antonio Vieira, na contramão dos heróis, não morreu em nome dos
seus ideais, mas soube, como poucos, defendê-los através da genialidade da sua oratória. E
isso numa época em que saber o que falar e a hora certa para tal era fazer a diferença entre a
vida ou a morte.
Observando a postura dos três us diante do Tribunal do Santo Oficio, podemos
verificar que existem algumas semelhanças tanto nos processos sofridos por eles, como na
99
resistência e na força com que se portaram diante da intolerância praticada pela Inquisição. O
posicionamento deles era o de lutar contra o absurdo das acusações proferidas, contra eles,
por um tribunal desqualificado que julgava de maneira arbitrária, acusava sem provas e
condenava à morte, podendo esta ser real ou simbólica. Branca e Menocchio chegaram a ser
interrogados quanto à sua crença em relação à salvação daqueles que professassem outras
religiões. Branca titubeia ao ser surpreendida pelo padre:
BRANCA
Se somos sinceros em nossos sentimentos isto é que Deus deve considerar em primeiro
lugar.
PADRE
Mas os judeus e os mouros também são sinceros em sua lei e em sua religião. Acha você que
eles podem se salvar, como os cristãos?
Ela, atônita, sentindo que caiu numa armadilha, não sabe o que responder.
PADRE
Responda, Branca. Os judeus e mouros podem salvar-se?
BRANCA
Não sei... Confesso que não sei... (O santo inquérito,1996, p. 56)
Entretanto, em outro momento da peça O santo inquérito, Branca é ironicamente
questionada pelo padre se deixou de procurá-lo por estar muito ocupada com as formigas, isso
devido a ela ter dito, anteriormente, gostar e proteger essas criaturas. Ela responde que as
formigas são também criaturas de Deus, mas ele rebate dizendo que são seres daninhos, que
somente destroem e que trabalham em beneficio próprio, sem nenhuma outra utilidade.
Branca discorda. Para ela: “Se Deus deu às formigas o beneficio da vida, elas têm o direito de
conservá-lo, não acha? Da maneira que Deus ensinou.” (O santo inquérito, 1996, p. 54).
Se entendermos essa observação acerca das formigas, metaforizando-as naquelas
pessoas que possuem uma diferente da professada pelo padre, simbolicamente estaremos
estabelecendo um debate sobre a intolerância, pois, enquanto para Padre Bernardo as formigas
(os não cristãos) são apenas seres daninhos que não possuem utilidade, para Branca, todos
foram criados por Deus e, por isso, têm, também, o direito à vida.
Menocchio, após admitir perante o Tribunal, durante o segundo processo, que
“nascera cristão e que por isso queria continuar cristão, mas, se tivesse nascido turco, ia
100
querer continuar turco” (GINZBURG, 2005, p.100), continuou sua declaração contando
detalhadamente a lenda medieval dos três anéis ao inquisidor que o estava julgando:
Conceda-me a graça de me ouvir, senhor. Um grande senhor declarou seu herdeiro aquele que
tivesse um certo anel precioso; aproximando-se da morte, mandou fazer outros dois anéis
parecidos com o primeiro e, como tinha três filhos, deu a cada um deles um anel. Cada um
deles julgava ser o herdeiro e ter o verdadeiro anel, mas, dada a semelhança, não se podia
saber ao certo. Do mesmo modo, Deus possui vários filhos que ama, isto é, os cristãos, os
turcos e os judeus, e a todos deu a vontade de viver dentro da própria lei e não se sabe qual
seja a melhor. Mas eu disse que, tendo nascido cristão , quero continuar cristão e, se tivesse
nascido turco, ia querer viver como turco”. O senhor acredita então”, insistiu o inquisidor,
“que não se saiba qual seja a melhor lei?” Menocchio respondeu: “Senhor, eu penso que cada
um acha que a sua seja a melhor, mas o se sabe qual é a melhor; (GINZBURG, 2005,
p.101)
Menocchio retoma aqui um pensamento de Locke, no qual se afirma que “cada igreja
é ortodoxa para consigo mesma; para as outras, errônea ou herege. Por que seja no que for que
qualquer igreja acredite, acredita ser verdadeiro; e o contrário condena como erro.” (LOCKE,
1964, p. 20). Ginzburg comenta que este é um momento extraordinário num processo como
esse, no qual os papéis foram invertidos e Menocchio, tomando a palavra, tenta convencer o
inquisidor. A lenda é uma verdadeira declaração a favor da tolerância entre as religiões, ao
mostrar que todos dizem seguir o mesmo Deus, mas, além de divergirem entre si o que para
Locke é inevitável , cada religião quer ser a verdadeira. Para Menocchio, a melhor saída é
cada um continuar na religião que nasceu, sem tentar interferir na religião do outro,
antecipando, dessa forma, um critério de tolerância ao multiculturalismo, surgido muitos
séculos depois.
Vieira, ao tomar partido dos judeus e cristãos-novos, perante a coroa portuguesa,
desafia a intolerância existente contra tais indivíduos, na sociedade lusitana, principalmente
por parte da Igreja, representada pelo Santo Ofício. Niskier (2004) afirma que, à medida em
que sentia aumentar sua influência junto ao monarca, Vieira atacava com maior veemência o
problema dos cristãos-novos. E em 3 de julho de 1643 “foi divulgada a Proposta feita a el-rei
D. João IV (1604-1656), em que se lhe representava o miserável estado do Reino e a
necessidade que tinha de admitir os judeus mercadores que andavam por diversas partes da
Europa.” (NISKIER, 2004, p. 47)
101
Por todos os reinos e províncias da Europa está espalhado grande número de mercadores
portugueses, homens de grandíssimos cabedais, que trazem em suas mãos a maior parte do
comércio e riquezas do Mundo.
Todos estes, pelo amor que têm a Portugal, como pátria sua, e a Vossa Majestade, como seu
rei natural, estão desejosos de poderem tornar para o Reino e servirem a Vossa Majestade com
suas fazendas, como fazem aos reis estranhos.
[...]
Primeiramente, favorecer aos homens de nação ou admiti-los neste Reino, na forma que se
propõe, não é contra lei alguma, divina nem humana, antes é muito conforme aos sagrados
cânones, doutrina dos Santos Padres e resoluções de muitos concílios gerais e particulares, que
não ponho aqui, por não embaraçar este discurso, e se alegarão, sendo necessário.
[...]
Finalmente, o Sumo Pontífice, Vigário de Cristo, não só admite o que nós chamamos cristãos-
novos (entre os quais e os velhos nenhuma diferença se faz em Itália), senão que, dentro da
mesma Roma e em outras cidades, consente sinagogas públicas dos judeus que professam a
Lei de Moisés.
Pois se na cabeça da Igreja se consentem homens que professam publicamente o Judaísmo,
por que não admitirá Portugal homens cristãos batizados, de que só pode haver suspeita, que o
não serão verdadeiros?
(VIEIRA apud NISKIER, 2004, p. 51)
Ainda que os argumentos utilizados por Vieira para justificar uma tolerância a favor
dos judeus e cristãos-novos soem apenas a interesses econômicos e, ainda que não tenha se
posicionado contra a intolerância a outras religiões de maneira tão geral como Branca e
Menocchio, o jesuíta demonstra coragem e determinação. Segundo Niskier (2004), a
campanha do padre Vieira provocou uma forte oposição no reino e até mesmo entre os
jesuítas houve temor de represálias. Mas, mesmo ante as afrontas, em 1646, ele “dá à luz” um
novo documento: “Proposta que se fez ao Sereníssimo Rei D. João IV a favor da gente da
nação”. Aqui ele pede mudança dos “estilos” nos interrogatórios dos acusados, pela
Inquisição, de judaísmo ou heresia. Pois, para ele, “(...) O modo de processar na Inquisição os
apóstatas era iníquo. Devia abolir-se o segredo das testemunhas e, como nos processos
comuns, declarar-se aos réus quem eram seus acusadores e qual a acusação.” (VIEIRA apud
NISKIER, 2004, p. 55)
Todavia, em meio às semelhanças, há, nos discursos dos três, diferenças cruciais, as
quais fizeram com que seus processos tivessem desfechos distintos. O discurso de Branca e
Menocchio são bastante parecidos: ambos são pessoas do campo, ligados à natureza e que,
diferenciando-se dos seus companheiros, são letrados – coisa bastante incomum tanto para um
102
moleiro, quanto para uma mulher naquele tempo. Também, ambos possuem livros proibidos
pela Inquisição e têm suas idéias influenciadas por essas leituras.
Diante da Inquisição, tanto um quanto o outro, após um breve momento de negação
das suas convicções e tentativa de abjurar, falam tudo aquilo que pensam de maneira sincera,
e por isso chegam a um fim trágico. Menocchio chega a ser solto depois de demonstrar-se
arrependido, mas isso não dura muito tempo, e logo ele retoma seu antigo discurso.
Os interrogatórios terminaram em 12 de maio. Menocchio foi levado mais uma vez para o
cárcere. Alguns dias se passaram. Por fim, em 17 de maio recusou o advogado que lhe fora
oferecido e entregou uma longa carta aos juízes, na qual pedia perdão pelos erros do passado
(...)
Deus pai e patrão; que “faz e desfaz”; Cristo homem; os Evangelhos obra dos padres e frades
ociosos; a equivalência das religiões. Portanto, apesar do processo, da infâmia da abjuração,
do cárcere, das clamorosas manifestações de arrependimento, Menocchio recomeçara a
defender suas velhas opiniões, que evidentemente seu coração jamais renegara. (GINZBURG,
2005, p. 149; 165)
o arrependimento de Branca, não poderia ser chamado bem assim, pois, ela própria
tem consciência que irá confessar “crimes” que não acredita ter cometido: “... Sim estou
arrependida. Mas o meu arrependimento terá valor, se não estou convencida de ter praticado
esses pecados?” (O santo inquérito, 1996, p. 83)
Vieira se diferencia dos dois. Apesar de ter sido, como ambos, alvo da intolerância
religiosa e política da Inquisição, ele vem de um contexto completamente diferente. O lugar e
a situação do seu discurso são privilegiados. Homem de letras, orador exímio, Vieira sabe
muito bem interpretar tudo o que a Inquisição queria dele, e usou o seu dom com a palavra
para contornar os fatos. Contudo, isso não quer dizer que ele se rendeu aos caprichos dos
inquisidores, mas apenas usou as armas que tinha ao seu alcance para se defender, neste caso,
as palavras. Por isso, diferente de Menocchio e Branca Dias, Antonio Vieira não foi
condenado pelas palavras, mas salvo por elas. Pois, como está escrito: “porque pelas tuas
palavras serás justificado, e pelas tuas palavras serás condenado.” (Mateus 12:37).
103
4. AS REPRESENTAÇÕES DA VIDA/MORTE EM O SANTO INQUÉRITO: a
identidade resistência/rendição dos cristãos-novos
Os judeus têm sido através dos tempos estereotipados como subversivos e os marranos eram vistos
como um elemento perigoso da sociedade. Traziam novos conceitos de justiça e liberdade para uma
sociedade impregnada de fanatismo, de crendices e superstições. Foram subversivos Spinoza, Garcia
da Orta, Damião de Góes. Foi subversivo Bento Teixeira, Antonio José da Silva e também outros. A
maior glória do regime totalitário português foram seus subversivos. (Anita Novinsky)
A história da morte se confunde com a história de muitas vidas diluídas e esquecidas
nas ‘estantes do tempo’, afirma Chrispino (1994), no capítulo introdutório do seu livro
Conversando sobre a morte, onde diz ainda que: “Com toda certeza, na história das mortes, as
circunstâncias que mais marcaram a humanidade ocidental foram aquelas que envolveram a
implantação e desenvolvimento do Cristianismo, ainda na sua pureza doutrinária.”
(CHRISPINO, 1994, p.13).
em seus primórdios, o Cristianismo teve um forte envolvimento com a morte, a
começar por Cristo que, segundo a doutrina cristã, morreu para expiar os pecados da
humanidade; passando pelos apóstolos: Estévão, Pedro, Tiago, Bartolomeu, Mateus, entre
outros, todos eles – menos João, o “discípulo amado” –, morreram como os primeiros mártires
da nova aliança
18
. Logo após o período inicial de formação da nova religião, os cristãos
passaram a ser perseguidos por Roma. Perseguição duradoura que levou à morte milhares de
crentes
19
.
Saindo do panorama religioso e adentrando no histórico, encontramos uma série de
acontecimentos que nos leva a refletir como a morte está presente em nossa sociedade.
Em 914, Hatto II, Arcebispo de Mainz, Alemanha, com o pretexto de dar de comer aos
famintos e miseráveis, reunidos em um celeiro de grandes proporções, após trancar as portas e
demais saídas, ateou fogo.
Basílio II, de Constantinopla, em 1014, decidido a terminar com (Sic) a guerra com os
búlgaros, que já durava 40 anos, mandou cegar os 15.000 prisioneiros, exceto 150, que
18
As pessoas que morriam em prol da propagação do Cristianismo (Nova Aliança) eram chamadas de ‘mártires’.
Tal termo vem do grego e significa “testemunha”. Em Atos 6:7, temos o relato da morte do diácono Estévão que,
aproximadamente em 36 d.C., foi apedrejado por uma multidão, tornando-se o primeiro mártir registrado nas
Escrituras.
19
Os cristãos foram vítimas de diversas perseguições por parte do Império Romano, principalmente nos três
primeiros séculos de existência do Cristianismo, quando milhares de adeptos foram mortos devido à sua crença.
Essas perseguições só terminaram após a promulgação do Édito de Milão ou Édito da Tolerância, o qual
concedia aos cristãos a liberdade de culto.
104
perderam apenas um olho. (...) O chefe dos exércitos búlgaros,... ao presenciar tal quadro, teve
um derrame e morreu dois dias depois. Por esse feito, Basílio II é conhecido como o “matador
de Búlgaros”.
Em 1209, na cruzada santa contra os albingeneses, o exército francês tomou a cidade de
Beziers, próxima à costa do Mediterrâneo e como não sabiam distinguir os heréticos dos
cristãos, Simão IV deu a seguinte solução: “Matem todos, pois o Senhor saberá reconhecer os
que lhe pertencem.” Morreram algumas dezenas de milhares de homens, mulheres e crianças.
Entre os séculos XIII e XVIII, pelo menos 100.000 pessoas foram julgadas por bruxaria e
mortas na fogueira, só na Alemanha.
Os espanhóis estimam em 1,5 milhão de índios mortos no “Novo Mundo” após seu
descobrimento por Cristóvão Colombo.
Em 1191, os cruzados conseguiram conquistar a cidade de Acra, a 129 km de Jerusalém, com
um saldo de 100.000 mortos.
Samuel Sewall, em 1692, um dos juízes que condenou à morte 19 pessoas por bruxaria na
cidade de Salém, disse que as sentenças tinham sido um grande erro. O povo de Salém, na
década de 1600, julgou e condenou à morte na fogueira 150 bruxos e bruxas.
[...]
Em 1871, em plena ofensiva prussiana sobre Paris, 17.000 pessoas oposicionistas do governo
Adolphe Thiers foram executadas pelo exército francês.
Na Grande Guerra morreram aproximadamente 60 milhões de pessoas. Mais de 33% deste
total foram de russos. De 18 a 26 milhões de civis, prisioneiros dos campos de concentração
nazistas.
O ataque atômico a Hiroshima teve aproximadamente 80.000 vítimas fatais, enquanto o ataque
a Tóquio, com bombas incendiárias, teve um número superior a 180.000. (CHRISPINO, 1994,
p. 16, 18)
A história está cheia de massacres como os que foram relatados, isso sem contar as
inúmeras vítimas das guerras religiosas, políticas e da própria Inquisição que, durante mais de
três séculos, condenou e matou milhares de pessoas. O homem, em todos os tempos e lugares,
para encarar a morte, sempre precisou se apegar a um conjunto de atos, os quais podem ser
considerados como ritos
20
. “Esta técnica ou conjunto de atos estão ligados à maneira com que
o grupo interpreta o fenômeno morte, enfim, seu universo cultural.” (CHRISPINO, 1994, p.
27, 28). Esses ritos teriam como objetivo marcar a passagem da vida para a morte e, desta
20
S
egundo Durkheim, os ritos têm o caráter da sacralidade, ou seja, é a prática relativa às coisas sagradas. (In:
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. Tradução
Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.20)
105
forma, permitir que tais indivíduos (os mortos) sejam, de certa forma, “reintegrados” à
sociedade, já em sua nova condição.
É dito que se pode abjurar toda uma vida na escolha da morte. Essa afirmação pode ter
um duplo sentido, dependendo de como podemos encarar a vida e a própria morte. Nos
regimes totalitários, onde são costumeiras as práticas de tortura, viver ou morrer pode ter um
significado mais amplo e contraditório do que costumamos imaginar. Por isso Naffah Neto
(1985) afirma que:
Descrever as múltiplas significações que assumem a Vida e a Morte na situação de tortura
implica, num primeiro lance, considerá-las como intrinsecamente articuladas à estrutura de
Poder que circunscreve e configura o espaço em questão, à lógica que lhe é própria e às
diferentes formas através das quais esse Poder se mostra à vivência do torturado, ora plasmado
numa submissão imposta, ora lutando com unhas e dentes pela sua sobrevivência, enquanto
ser humano. (p. 239)
No espaço da tortura, trava-se uma luta crucial, na qual a Vida e a Morte se alternam e
mudam de sentidos, que vão desde a dimensão biológica dos termos ‘vida’ e ‘morte’, até a
simbólica. A primeira reação do preso é, sem dúvida, a de conservar, de lutar pela própria
vida. Branca Dias, em O santo inquérito, ao ser aprisionada pela Inquisição, teve o ímpeto de
tentar fugir “Mas não... eu não irei... não irei...” (p.66), e tentar negar qualquer culpa: “Houve
um equívoco! Não sou eu a pessoa!” (p.67). Mas, em muitos casos, a morte acaba fazendo sua
aparição grotesca e, mesmo quando a vida sucumbe à morte, esta não está presente com um
significado apenas biológico. E, nesse sentido,
podemos dizer como Merleau-Ponty ou Lacan que as vivências do ser humano estão
irremediavelmente marcadas pela Ordem Simbólica que as constitui, onde, mesmo que a
percepção antecipe essa abertura virtual como afirma o primeiro é somente pelo seu
desdobramento em linguagem que as significações tomam corpo e nitidez. Nesse sentido, é
impossível se pensar, mesmo numa situação como a tortura, em significações puramente
biológicas para vivências como Vida ou Morte. (NAFFAH NETO, 1985, p. 240)
Os torturadores querem, através do seu comportamento brutal, arrancar as informações
necessárias para, por meio destas, poder calar as vozes daqueles que, de alguma maneira, os
desafiam e incomodam. Eles buscam a delação por parte do acusado e, para isto, cometem
todo tipo de atrocidades, lutando contra a resistência do prisioneiro a o limite das suas
forças ou, em muitos casos, chegando a extrapolar este limite, levando o interrogado à
106
morte
21
. Na Inquisição, a prática da tortura era o método mais utilizado quando queriam
arrancar de alguém “denúncias e confissões”. É o que acontece com Augusto Coutinho,
torturado para que acuse Branca, “Mas que espécie de verdade querem que eu diga? (...) Não,
podem arrancar-me um braço, uma perna, mas não me arrancarão uma palavra que não seja
verdadeira” (p. 85, 86). Ele recusa-se a denunciá-la e, não resistindo, morre. Branca: Que
fizeram com Augusto?”, “Simão: ... Ele não resistiu...” (p. 97).
Gonzaga (1993) nos diz que a Justiça agia sobre o corpo de alguém de diversas
maneiras: pelo recurso processual da tortura, a fim de apurar a verdade; como medida
repressiva única ou como providência punitiva acessória, que antecedia à pena de morte; e,
por fim, existiram as medidas corporais com finalidade acautelatória.
Os castigos físicos eram variadíssimos. O corpo, em todas as suas partes, era alvo de
açoites e mutilações. Os dentes dos condenados eram arrancados; cegavam-nos com ferro
incandescente; pés ou pernas, mãos ou braços eram cortados e esmagavam-se membros. A
pena podia consistir também na amputação das orelhas, do nariz, da língua ou dos lábios,
superiores e inferiores. O sofrimento do condenado era algo a ser conseguido. Em
conseqüência, observava Calamandrei: “a morte, em vez de se apresentar como o castigo mais
terrível, se convertia no almejado fim de outros tormentos muito mais cruéis, com os quais se
procurava manter com vida o condenado e lhe prolongar a agonia, para fazê-lo sofrer mais”.
(apud GONZAGA, 1993, p. 43).
Ao decidir pela resistência em detrimento à delação/abjuração, o preso superava a
“morte/degradação”. Neste caso, o torturado, quando conseguia suportar os castigos, tinha a
sensação de que era esta resistência – única arma que ele possuía para continuar lutando – que
mantinha sua vida e dignidade. Sobre isto, é fácil concordar com Naffah Neto quando ele
afirma: “Muitos prisioneiros, na situação-limite, optam por morrer resistindo. Para eles, o
sentido da vida consegue transcender, de forma absoluta, o seu significado biológico e
assumir em caráter mais amplo e coletivo o de mediação a outras Vidas.” (1985, p. 243).
Em O santo inquérito, Augusto Coutinho assegura que “Por uma causa qualquer,
grande ou pequena, alguém tem que sofrer. Porque nem de tudo se pode abrir mão. um
mínimo de dignidade que o homem não pode negociar, nem mesmo em troca da
liberdade. Nem mesmo em troca do sol.” (O santo inquérito, 1996, p. 90)
21
Nos regimes autoritários, era comum a presença de um dico que examinava o torturado para detectar suas
condições clínicas e, até quando ele poderia resistir aos castigos. Todavia, em alguns casos, o prognostico dava
errado e o preso acabava morrendo.
107
Nesse sentido, a vida/morte biológica e vida/morte simbólica se contradizem, pois,
para manter a vida/dignidade, muitas vezes, é necessário sacrificar a vida biológica, ou vice-
versa. Pois, “... resistir é viver, mas é também, no seu limite, morrer pela Vida. Não-resistir é
morrer; sucumbir enquanto ser humano, mas é também manter-se vivo.” (NAFFAH NETO,
1985, p. 242). Simão Dias, o pai de Branca, opta por salvar a própria pele, para se livrar da
tortura e da condenação e abjura confessando tudo o que o Tribunal deseja:
SIMÃO
É uma loucura pensar que, num momento desses, se possa salvar alguma coisa além da vida.
Desde o primeiro momento compreendi que devia aceitar tudo, confessar tudo, declarar-me
arrependido de tudo. Vamos nós discutir com eles, lutar contra eles? Tolice. Têm a força, a lei,
Deus e a milícia – tudo do lado deles. Que podemos nós fazer? De que adianta alegar
inocência, protestar contra uma injustiça? Eles provam o que quiserem contra nós e nós não
conseguimos provar nada em nossa defesa. Bravatas? Também o adiantam. Eu vi o que
aconteceu com Augusto. (O santo inquérito, 1996, p. 90)
Branca é condenada a abjurar, entretanto, não se conforma de ser acusada de “crimes”
que não cometera, pelo menos, não conscientemente e, incorporando o discurso de Augusto,
cria forças para resistir e prefere morrer a perder sua dignidade. Sua morte é real, mas adquire
um poder simbólico, pois, através dela, Branca passa a representar algumas centenas ou
milhares de pessoas que, como ela, preferiram a morte à abjuração da sua fé ou de seus ideais.
Nesse sentido, analisaremos a representação dos cristãos-novos em O santo inquérito
a partir do pressuposto de vida/resistência/dignidade ou morte/rendição/negação da
identidade, pois aqueles cristãos-novos que se rendiam ao sistema e perdiam sua identidade
era como se morressem simbolicamente; contrariamente, aqueles que resistiam, mesmo que
morressem fisicamente, conservavam sua dignidade, sua memória e tradições.
Em O santo inquérito, Dias Gomes traz, fortemente apresentados, temas como a
intolerância, a injustiça e, principalmente, o rebaixamento da dignidade humana. Através de
personagens como Branca e Simão Dias, podemos verificar a representação da morte/vida
considerada em termos reais ou simbólicos dos cristãos-novos no seio da sociedade
brasileira ainda na época colonial. Na peça, os cristãos-novos reagem de diferentes maneiras
diante da perseguição: o ade Branca é mbolo da resistência passiva, da qual uma grande
parte dos cristãos-novos ou criptojudeus fizeram parte; Simão Dias, como alguns cristãos-
novos, abjura e perde sua identidade, o que resultou no “esquecimento” da sua história pela
sociedade e cultura brasileira; Branca Dias resiste e, conseqüentemente, é exterminada.
108
Como metáfora de seu povo, Branca resiste e sua morte assume uma simbologia
indispensável à manutenção da memória e história deste, pois, aqueles cristãos-novos que não
foram mortos pelas chamas da fogueira “santa”, mesmo após um período de resistência
passiva, tiveram sua memória, identidade e representações culturais silenciadas e/ou
esquecidas, o que corresponde à morte ideológica de toda uma cultura.
O texto é construído em um tempo psicológico, ou seja, não obedece a uma seqüência
cronológica para compor a narrativa. Sendo assim, somente através dos flashbacks é que
ficamos a par dos acontecimentos e conhecemos a identidade dos personagens, como ocorre
na seguinte passagem, onde, por meio de um diálogo entre Branca e seu pai, logo após uma
visita do padre Bernardo ao engenho, ficamos conhecendo a verdadeira origem da família:
BRANCA
Por que? O senhor parece preocupado. Teme alguma coisa?
SIMÃO
O temor é um legado de nossa raça.
BRANCA
Somos cristãos.
SIMÃO
Cristãos-novos, ele frisou bem.
BRANCA
Que tem isso? Jesus nunca fez distinção entre os velhos e os novos discípulos.
SIMÃO
Eles não confiam em nós, em nossa sinceridade. Estamos sempre sob suspeita.
BRANCA
Meu avô não era um cristão convicto?
SIMÃO
O ódio não converte ninguém. Uma coisa é um Deus que se teme, outra coisa é um Deus que
se ama. E não nada mais próximo do ódio que o amor dos humildes pelos poderosos, o
culto dos oprimidos pelos opressores. (O santo inquérito, 1996, p. 49)
Branca, que até então não tinha consciência de ser uma cristã-nova, através desse
diálogo, toma conhecimento de sua identidade. Embora no texto possamos perceber indícios
de que a incorporação da nova religião por parte de sua família é superficial e que eles
continuaram praticando os ritos judaicos às escondidas.
109
Para Manuel Castells (1999), a identidade é a fonte de significado e experiência de um
povo, com base em atributos culturais relacionados que prevalecem sobre outras fontes. Não
se deve confundi-la com papéis, pois estes determinam funções e a identidade organiza
significados. A legitimação da identidade sempre ocorre em um contexto marcado pelas
relações de poder. “A construção de identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela
história, geografia, biologia, instituições produtivas e reprodutivas, pela memória coletiva e
por fantasias pessoais, pelos aparatos de poder e revelações de cunho religioso”.
(CASTELLS, 1999, p. 23)
Castells propõe uma distinção entre três formas e origens de construção de
identidades: Identidade legitimadora: introduzida pelos dominantes para expandir e
racionalizar sua dominação em relação aos atores sociais; Identidade de resistência: criada por
atores em posições subalternas ao poder dominante, criando uma barreira de resistências e
sobrevivência com base em princípios diferentes ou opostos à sociedade; Identidade de
projeto: quando os atores, usando a comunicação, constroem uma nova identidade para
redefinir sua situação na sociedade, buscando uma transformação na estrutura social.
No entanto, enfatizaremos a identidade destinada à resistência, visto que foi o tipo de
identidade que marcou os cristãos-novos. Essa identidade “dá origem a formas de resistência
coletiva diante de uma opressão que, do contrário, não seria suportável” (CASTELLS, 1999,
p. 25). Para os cristãos-novos, nem sempre foi possível que a identidade de resistência fosse
feita de forma declarada, devido à posição na qual eles se encontravam na sociedade
portuguesa e, posteriormente, na brasileira. Desta forma, a resistência era feita nos bastidores
do teatro social.
O ade Branca nunca se convertera de fato ao Cristianismo. Como o próprio Simão
Dias afirma, ele fora “convertido à força e despojado de todos os seus bens” (O santo
inquérito, 1996, p. 49) e, “o ódio não converte ninguém” (O santo inquérito, 1996, p. 49).
Prova disso é que ele passou para sua neta, Branca Dias, de maneira sutil, as tradições e as
histórias de seu povo: ao abençoar a menina à maneira judaica: Quando eu era pequena, ele
costumava pôr a mão na minha cabeça e escorregá-la pelo meu rosto, como o senhor fez
agora.” (O Santo Inquérito, 1996, p. 58); ao falar sobre a história das Escrituras sagradas:
“Branca, és mais rica do que a rainha de Sabá
22
(p. 58); ao pedir que se cumprissem em seu
22
Segundo o livro de I Reis 10: 1-13, a rainha de Sabá foi uma soberana dos sabeus, que habitavam a parte sul
da península arábica. Ela viajou 2.000 quilômetros de camelo para visitar o rei Salomão, a fim de conhecer o seu
reino e prová-lo com perguntas difíceis. (In: A BÍBLIA ANOTADA. Texto bíblico: Versão Almeida, revista e
atualizada, com introdução, esboço, referências laterais e notas por Charles Caldwell Ryrie. Tradução Carlos
Oswaldo Cardoso Pinto. São Paulo: Mundo Cristão, 1994, p. 460)
110
enterro o rito judaico de colocar uma moeda na boca do morto, para que pudesse pagar a
primeira pousada no outro mundo; bem como o costume de comer azeitonas durante os
velórios. Para o Tribunal, a verificação desses fatos serviu para comprovar os indícios de
heresia que pairavam sobre a família de Branca: “Tudo isso quer dizer, Branca, que seu avô,
cristão-novo, continuava fiel aos ritos judaicos. E que os praticava em sua própria casa.” (O
Santo Inquérito, 1996, p. 79). Ele representa, portanto, aqueles cristãos-novos que, não tendo
alternativa, resolveram resistir às perseguições de maneira passiva. Estes criptojudeus, muitas
vezes, astutamente, escondiam-se por trás do disfarce de verdadeiros cristãos e, embora
aparentemente aceitassem a conversão ao catolicismo, continuavam guardando a lei de
Moisés e a fé num único Deus.
A intolerância trouxe para a sociedade brasileira conseqüências funestas. A
necessidade de se esconder e de mentir sobre sua própria identidade fazia de grande parte da
população pessoas dissimuladas. Anita Novinsky afirma que o cristão-novo “Não aceita o
Catolicismo, não se integra ao Judaísmo do qual está afastado há quase dez gerações. É
considerado judeu pelos cristãos e cristão pelos judeus. (...) Internamente é um homem
dividido...” (NOVINSKY, 1972, p. 162)
No prefácio do livro A ficção marrana: uma antecipação das estéticas pós-modernas,
a professora Lyslei Nascimento (In FOSTER, 2006) fala acerca da complexa persona que é o
marrano
23
:
A compreensão da figura ex-cêntrica do marrano o judeu convertido ao cristianismo que,
ocultamente, mantém sua e sua prática religiosa assume, (...), uma espécie de paradigma
altamente proveitoso no estudo das imposturas, simulações e deslocamentos da
contemporaneidade, não do marrano, no tempo histórico em que ele está inscrito, mas
também do sujeito que, entre as dobras do discurso, agora é atravessado pela nova história,
pela antropologia, pela filosofia e pela psicanálise. (NASCIMENTO in FOSTER, 2006, p. 7)
Para Foster (2006), “O marrano constitui-se como uma ficção. A peripécia de sua vida
estará marcada, desde sua metamorfose inicial, pela multiplicação da sua infinita capacidade
de fazer dessa existência uma lógica do simulacro.” (p. 9). O marrano prefigura o homem pós-
moderno, descentralizado e com a identidade flutuante. No começo da era moderna, tempo
23
Segundo o Dicionário Aurélio, o termo “Marrano” se refere a uma designação injuriosa dada anteriormente
aos mouros e judeus que significa indivíduo excomungado, sujo, imundo, porco. (In: FERREIRA, Aurélio
Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio versão 5.0. Edição eletrônica autorizada a Positivo
Informática Ltda. Regis Ltda, 2004.).
111
inicial de uma nova história do Ocidente, é possível verificar a existência de uma figura dúbia
e esquiva: o marrano. Foster afirma que “sua personalidade entrará em colisão com o projeto
de uma modernidade articulada em torno de práticas unificadoras, cuja preocupação principal
será silenciar as vozes da diferença.” (2006, p. 10)
O marrano vive uma polissemia camuflada, “a de ser um em muitos, sendo muitos em
um.” (FOSTER, 2006, p. 10), representando, desta forma, aquilo que não é e,
simultaneamente, sendo o que não pode representar. Para Foster, este é um conflito de difícil
resolução, para não dizer impossível, neste árduo esforço por manter uma judeidade secreta,
faz com que tal indivíduo desenvolva uma identidade sempre “descentrada, itinerante, fugidia,
esfacelada, mas intensamente consciente de suas carências e de seus desejos que não deixam
de espicaçá-lo.” (FOSTER, 2006, p. 11)
Simular, habitar as passagens secretas de uma cultura tornada invisível, ocupar, ao mesmo
tempo, o centro e a margem, falar publicamente de determinada maneira para poder
permanecer fiel à palavra sagrada na obscuridade de práticas clandestinas constitui a essência
desgarrada dessa figura, (FOSTER, 2006, p. 11)
Na derrota do marrano, no silenciamento que o enclausura, encontra-se uma trilha que
deveríamos percorrer, em direção ao passado, se quisermos interrogar a falha do começo. Ler
a contrapelo, como Benjamin assinalava programaticamente em suas “Tesis de filosofia de la
historia”, implica percorrer os fios secretos de uma trama civilizatória que fez o impossível
para ocultar suas origens. Supõe, também, dar voz àqueles cujo emudecimento representa o
gesto instituinte que permitiu ao poder abrir seus recursos político-discursivos para nós,
oferecendo um relato do acontecido cujo efeito imediato é o de fazer desaparecer aquelas
biografias consideradas intoleráveis. (FOSTER, 2006, p. 12)
O marrano sofria da dialética hamletiana, to be or not to be. Mas, diferentemente do
drama shakespereano, aqui é o próprio personagem quem escreve seu roteiro. No romance
Memórias de Branca Dias, de Miguel Real (2003), a fragmentação da identidade marrana é
representada através da fala da protagonista: “Nunca fui cristã, fui quase cristã; nunca fui
judia, fui quase judia; nunca fui portuguesa, fui quase portuguesa; nunca fui brasílica, fui
quase brasílica,” (Memórias de Branca Dias, 2003, p. 30)
De acordo com Foster (2006), o que aparece na ficção marrana é a dualidade entre os
desígnios do ator-escritor e as aventuras de uma existência que tornará impossível esse desejo.
Ele é marcado pela hybris
24
de ser secretamente um judeu que tenta se manter fiel à lei
24
Excesso, descomedimento. “Na tragédia grega, o orgulho, a arrogância do herói, responsáveis por sua queda.”
(In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário eletrônico Aurélio versão 5.0. Edição
eletrônica autorizada a Positivo Informática Ltda. Regis Ltda, 2004.)
112
mosaica, mas cristianizado em seu exterior, o que acaba de qualquer maneira influenciando no
seu comportamento. Como foi citado no capítulo anterior, Laura de Mello e Souza (1986)
diz que os judeus e cristãos-novos radicados no Brasil não continuaram vivendo intensamente
a religião judaica, pois tudo leva a crer que os elementos do judaísmo se fundiriam no
conjunto das práticas sincréticas que compunham a religiosidade popular da colônia,
constituindo uma de suas muitas faces. Foster acredita que:
Talvez – e disso se trata o incômodo que, desde sempre, tem gerado a presença do marrano – o
que se mostra é aquilo que deveria permanecer selado: a travessia da consciência, chave que
funda a narração moderna, enfrenta-se com uma figura que lhe diz que naquilo que busca
encontrará não a segurança nascida da certeza identitária, do domínio do projeto de uma
euidade auto-suficiente, mas o inimaginável de si mesmo, seu radical inacabamento que se
entrelaça com a descoberta de um fundo obscuro contra o qual teque batalhar de forma
infrutífera. O marrano torna-se o alter ego do sujeito cartesiano, antecipa, talvez, o
descentramento freudiano, dizendo-lhe que a duplicidade, a simulação, o estranhamento de si
mesmo, o exercício de uma memória que vai exercendo também a lógica do olvido, escapam à
decisão do sujeito, quebram sua centralidade abrindo-lhe a dimensão de um vazio da origem,
porque aquilo que remetia ao verdadeiro converteu-se em relato mítico. O marrano
testemunho da ausência de fundamento, mostra, com sua existência incompleta e descentrada,
com esse habitar, num mesmo ato, o centro e a margem, sendo e não sendo, encenando e
sendo verdadeiro, ao mesmo tempo que a razão aspira um impossível, que o espelho no qual o
sujeito se olha não é o de uma consciência auto suficiente, mas o de sua própria cisão.
(FOSTER, 2006, p. 14)
A cisão do marrano, porém, se diferencia do dualismo cartesiano, que tencionava
sujeitar o corpo a uma racionalidade legisladora. A cisão marrana tenta juntar os pedaços
fragmentados de identidade e por meio deles criar uma imagem harmônica, idealizada naquilo
que se deseja. E nessa busca nasce a experiência traumática que se coloca no seio da vida
marrana, “a permanente sensação de desconforto, de estar fora de lugar, de permanecer à
margem do jogo, de não ter um rosto definido, de estar em falta.” (FOSTER, 2006, p.), de
viver sempre sob suspeita: “O temor é um legado de nossa raça. (...) Eles não confiam em nós,
em nossa sinceridade. Estamos sempre sob suspeita.” (O Santo Inquérito, 1996, p. 49)
Miguel Torga (1996), no conto “O abafador”, mostra a identidade de resistência
levada ao extremo através da figura do Alma-Grande. Ele traz à tona essa complexa
personagem que entrava em cena para antecipar a morte do indivíduo antes que ele, devido à
proximidade do fim, falasse acerca do criptojudaísmo de sua comunidade e assim denunciasse
a todos como hereges.Vejamos um trecho do conto:
113
Na destreza com que se desenvencilham do interrogatório, o quem possa desconfiar que
por detrás da sagrada cartilha está plantado em sangue o Pentateuco. Mas está. E à hora da
morte, quando a um homem tanto lhe importa a Thora como os Evangelhos, antes que o abade
venha dar os últimos retoques à pureza da ovelha e receba da língua moribunda e cobarde a
confissão daquele segredo – abafador.
Desses servos de Moisés, encarregados de abreviar as penas deste mundo e salvar a honra do
convento, o maior de que há memória é o Alma-Grande.
(TORGA, 1996, p. 17)
O abafador, segundo Elias Lipiner (1977), era uma pessoa que tinha, supostamente, a
missão de estrangular no leito os moribundos cristãos-novos ou judeus, para que, em sua
inconsciência, não traíssem sua comunidade nas práticas judaizantes. Porém, Lipiner não tem
essa figura como autêntica, mas como uma lenda que se originou nos primórdios
inquisitoriais. Ela, apesar de sua característica macabra, revela os aspectos heróicos e
dramáticos da atormentada vida dos cristãos-novos que, no momento da morte, demonstravam
toda a aversão que sentiam contra a religião imposta, através de atitudes e gestos heréticos,
como é o caso de Ana Roiz que, certa vez, estando adoentada, suas filhas mostraram-lhe o
crucifixo, mas ela não o quis encarar e bradou: “Tirai-o lá”, pedindo a ajuda do filho para se
livrar do incômodo causado pelo símbolo cristão.
É triste a constatação de que “A arte do simulacro constitui um exercício que definirá,
como a nenhum outro personagem histórico, aquele que, insistindo em sua origem, tem que
protegê-la negando-a” (FOSTER, 2006, p. 15). Ao usar da dissimulação, o marrano pretendia,
ou pelo menos tentava, manter-se fiel a uma identidade original que lhe permitia, pelo menos
interiormente, sentir-se em paz com a sua consciência.
No Brasil colonial existiram algumas sinagogas clandestinas. Todavia, seus cultos
eram realizados de maneira precária devido à falta de conhecimento das leis e cerimônias
mosaicas por parte dos conversos, bem como à vigilância a qual estes eram submetidos.
Também “o distanciamento do período inicial de conversão levaria a um processo de
assimilação do catolicismo e abandono das práticas, ritos e crenças judaicas por boa parte dos
cristãos-novos e seus descendentes, cada vez mais desconhecedores da antiga fé.” (ASSIS,
2002, s/p). Devido à necessidade de sobrevivência em um ambiente hostil, o culto hebraico
foi ganhando novos contornos e novas tradições: as circuncisões foram substituídas pelas
orações e vigílias domiciliares; o jejum veio a substituir algumas festas como a do Ano Novo
114
Pentecostes, bem como outras que não tinham tanta importância no judaísmo tradicional
ganharam maior destaque na resistência marrana, como o “Jejum de Ester
25
”.
A participação feminina, que até então fora limitada no judaísmo ortodoxo, ganhou
uma nova roupagem no marranismo. A proibição de manifestar sua publicamente levava os
cristãos-novos/criptojudeus a praticá-la no interior de seus lares, onde a mulher era a principal
responsável, ficando assim, para elas, a responsabilidade de passar às gerações futuras as
práticas e cerimônias religiosas, tentando garantir, dessa forma, a sobrevivência das suas
crenças.
Em relação à guarda dos costumes judaicos, as mulheres cristãs-novas tiveram um
importante papel nessa empreitada, pois serviram como elemento de resistência para a
preservação dessa memória e identidade. Como o espaço da mulher era o lar, foi ela quem
conseguiu de forma mais significativa contribuir para a preservação das tradições do seu
povo. Mesmo que, através do tempo, poucos ritos permanecessem “puros” ou livres da
influência da religião vigente, como nos mostra Genebaldo Ribeiro (2003) em Não sabia que
era coisa de judeo: os cristãos-novos, sua história, seus espaços, suas
resistências/permanências:
Os Livros das Confissões e Denunciações da Bahia estão repletos dos passos, das vivências e
das trajetórias daquelas mulheres que, guardando as devidas proporções, tiveram a mesma
determinação e objetivo das mulheres da Antigüidade hebraica / judaica, no sentido de
preservarem a identidade de sua etnia... O papel de divulgadora, viabilizadora, preservadora e
mantenedora da fé mosaica passou a ser seu. (p. 108; 110)
Também, Ângelo Adriano Faria de Assis, em seu artigo “Inquisição, religiosidade e
transformações culturais: a sinagoga das mulheres e a sobrevivência do judaísmo feminino no
Brasil colonial — Nordeste, séculos XVI-XVII”, nos relata que:
Dentre os cristãos-novos delatados, chama a atenção o significativo número de mulheres, o
que aponta para a intensa participação destas como baluartes da resistência judaica no
ambiente colonial, difusoras da cultura e tradições hebraicas para as novas gerações.
Responsáveis pela criação dos filhos e muitas vezes catapultadas à posição de cabeça da
família, pela ausência dos homens, as mulheres tornavam-se peças primordiais para a
manutenção da crença mosaica, propagadoras do judaísmo secreto, sincrético e diminuto que
25
Ester foi uma judia que escondeu sua origem ao próprio marido, o rei Assuero, que reinou desde a Índia até a
Etiópia. Os acontecimentos narrados no livro de Ester cobrem o período de (483-473), do reinado de Xerxes I
(nome grego do rei Assuero). (Et. 2:1-20) (In: A BÍBLIA ANOTADA. Texto bíblico: Versão Almeida, revista e
atualizada, com introdução, esboço, referências laterais e notas por Charles Caldwell Ryrie. Tradução Carlos
Oswaldo Cardoso Pinto. São Paulo: Mundo Cristão, 1994, p. 646)
115
se tornara possível e (até certo ponto) seguro após as proibições de livre crença vividas no
mundo português, quando as residências passariam a representar papel preponderante na
divulgação e sobrevivência das antigas tradições dos filhos de Israel, repetindo-as por
gerações, ensinando-as aos filhos e praticando-as em casa, longe dos olhares curiosos da
população. Os lares passariam então a ocupar lugar de destaque na propagação e continuidade
judaicas. Todavia, a pouca privacidade existente na colônia levaria muitas destas mulheres a
serem acusadas de práticas heréticas e processadas pelo Santo Ofício.
(2002, s/p)
Assis (2002) afirma ainda que as cristãs-novas apresentaram em terras brasileiras uma
resistência passiva e deliberada ao catolicismo, faziam proselitismo recebendo e transmitindo
as mensagens orais que influenciavam as gerações mais novas e realizavam um “rabinato”
feminino e oral que, embora em alguns aspectos contrariasse a lei mosaica, garantiu-lhe a
sobrevivência. Dentre as mulheres que fizeram esse tipo de resistência, podemos destacar as
figuras de Ana Rodrigues, na Bahia e de Branca Dias (histórica), em Pernambuco. Esta última
veio para o Brasil – fugida da Inquisição Portuguesa, por ter sido denunciada como judaizante
pela própria mãe e uma irmã encontrar seu marido Diogo Fernandes. Aqui estabelecidos e
assumindo a identidade de resistência, eles mantiveram uma sinagoga em seu engenho, a
famosa “esnoga de Camaragibi”, onde os judeus se reuniam a fim de celebrarem as
solenidades religiosas como a do Yom Kippur, como podemos verificar no romance de Miguel
Real, que recria, através da ficção, a vida da cristã-nova:
Quando vim para Camaragibe disse logo ao Diogo, temos que fazer esnoga ... o Jorge Dias de
Cajá, o calceteiro, nas vésperas dos dias santos saía pela rua com uma atadura no direito e
uma espada na cintura, os judeus sabiam que no dia seguinte deviam dirigir-se a
Camaragibe;... Nos tentávamos disfarçar, tudo era feito em segredo e em silêncio, (Memórias
de Branca Dias, 2003, p. 118, 119)
No Kipur rezávamos todos em conjunto, Camaragibe enchia-se dos judeus de Pernambuco,...
Eram dias lindos, de festa e de felicidade, jejuávamos, comíamos, rezávamos, dávamos as
mãos, ajudávamos-nos, combinávamos negócios. Algumas das famílias permaneciam em
Camaragibe por várias semanas, era aqui também que celebrávamos a festa da Sacot,
(Memórias de Branca Dias, 2003, p. 121, 122)
O livro nos mostra também como Branca Dias procurou passar aos seus filhos os
ensinamentos do judaísmo:
Nunca mais voltei a Camaragibe, passei a celebrar o shabat em casa, junto com minhas filhas
e o Manuel Afonso, tudo muito quieto, muito discreto, a matula nova, a candeia escondida
num vaso, a casa varrida, a roupa lavada, a comida preparada à sexta-feira,... Adonai que a
116
Beatriz tinha muita finura para isso e como era a mais velha eu queria que ela fixasse a
tradição e a passasse; (Memórias de Branca Dias, 2003, p. 114; 134)
A identidade dos cristãos-novos era marcada através dos costumes e dos ritos que eles
guardavam, mesmo que secretamente. Alguns traços da cultura judaica como hábitos
alimentares, higiênicos e, principalmente, a guarda do sábado, foram, em alguns casos,
preservados pelos cristãos-novos. Estes não permitiam que seus escravos trabalhassem no
engenho aos sábados, tinham suas lâmpadas limpas e abastecidas de óleo e pavios novos todas
as sextas-feiras e preparavam uma comida diferente, uma iguaria de cor amarelada composta
de grãos, cebolas e temperos. No entanto, aquilo que eles desejavam tanto guardar, essa
essencialidade judaica, foi lentamente contaminada, sofrendo as influências exteriores e
modificando-se através das nuances do sincretismo.
Rita Miranda Soares (2001), em um artigo denominado “A influência dos judeus
‘cristãos-novos’ na cultura mineira”, faz o levantamento de alguns hábitos e expressões de
origem judaica que se incorporaram na cultura brasileira, principalmente em Minas Gerais:
“Lamparina” é um ritual judaico e persiste no interior do estado. Ainda de uso doméstico,
acendia-se a lamparina de azeite no quarto da parturiente porque a criança, antes de ser
batizada ou passar pela circuncisão, não pode ficar no escuro. [...]. Aos sábados, acendia-se
diante do oratório uma vela, que deveria arder até o fim do dia, costume judaico que se
cristianizou [...]; os sábados eram ainda os dias de vestir roupa lavada”. O sinal de
hospitalidade mais sensível, revelador de especial atenção para com um viajante, e a primeira
coisa a fazer antes de qualquer alimento, era mandar-lhe ao aposento uma bacia de água
morna para lavar os pés. Recordação milenar dos desertos da Ásia, transformada em cortesia.
Além disso, a “religião de verniz” ou o “ir para a igreja sem convicção interior”, atribuída pelo
clero católico aos brasileiros em geral, é originária, talvez, do comportamento dos cristãos-
novos que, por circunstâncias ou displicência, ficavam anos embrenhados nas matas, sem
comungar e confessar. A posição espiritual do brasileiro, que se mantém relativamente
indiferente nas discussões religiosas, pode ser fruto do conturbado ambiente sócio-religioso-
colonial (MIZRAHI, 1999) da época.
[...]
Passar a mão na cabeça: isto é, relevar, perdoar, acarinhar, ignorar uma falta de alguém. É a
bênção judaica.
Jurar pelo eterno descanso de um morto querido: juro pela alma do meu pai, ou da minha mãe,
e assim por diante. É resíduo de um rito judaico.
Deus te crie: ante o espirro de uma criança. Herança da frase hebraica – Hayim Tovim.
Amuletos: usado muito no interior, os signos de Salomão ou de David (a estrela de seis
pontas) e até mesmo nas porteiras e muros das casas, embora para o judeu não seja amuleto,
mas seu significado foi deturpado entre os descendentes assimilados.
117
Varrer a casa: da porta para dentro das casas, costume arraigado até os dias de hoje.
Passar mel na boca: quando da circuncisão, o Rabino passa o mel na boca da criança para
evitar o choro. Daí a origem da expressão: “Passar mel na boca de fulano”.
Siza: vem do hebraico “Sizah”, quando vai pagar o imposto. Pagar a siza.
Massada: palavra muito usada pelos mineiros para explicar uma tragédia: “foi uma massada”.
A fortaleza de Massada, perto do Mar Morto, foi destruída pelos romanos nos anos 70 d.C.,
quando pereceram mais de 800 judeus, segundo afirma Flávio Josefo.
Lavar os mortos: largamente usado no interior das Minas Gerais. Usado ainda, em algumas
regiões. Está bem desaparecido.
Para o santo: o hábito sertanejo de, antes de beber, derramar uma parte do cálice, tem raízes no
rito hebraico milenar de reservar, na festa do pessach (páscoa), copo de vinho para o profeta
Elias (representando o Messias que ainda virá).
Punhado de terra: costume de jogar terra no caixão quando ele é descido na sepultura.
Mesuras: fazer mesuras, reverências. Talvez venha do Mezuzah hebraico colocado nas portas,
ao qual os judeus, antes de entrar, fazem uma reverência.
Carapuça: a expressão “fulano de tal pôs a carapuça”, ou “esta carapuça não serve para mim”,
vem dos tempos da Inquisição, quando o réu era obrigado a colocar uma carapuça sobre a
cabeça, assumindo a culpa.
Judiar: vem dos tempos da Inquisição, em que se maltratavam e perseguiam os judeus
significa atormentar e torturar os judeus.
Mesa de mineiro tem gaveta para esconder a comida quando chega visita: esse costume,
conhecido dos mineiros e relacionado à sovinice, tem outra raiz. É o costume que tinham os
cristãos-novos e que passou aos seus descendentes, de guardar a comida que estavam
comendo quando chegava um visitante normalmente um cristão-velho. Para isso, as mesas
da copa tinham gavetas. A raiz desse costume é que muitos cristãos-novos, apesar do batismo
forçado, continuavam praticando secretamente a sua religião. E no judaísmo, a comida deve
ser kasher, ou seja, a comida recomendada pela Torah, na qual existem alimentos proibidos
aos judeus Levíticos 11 como, por exemplo, a carne de porco, peixe sem escama, etc.
Dentro desse preceito, receitas tipicamente judaicas. E se um cristão-velho chegasse de
repente à casa e visse essa comida típica, fatalmente o cristão-novo seria reconhecido e
denunciado. Por isso, eles guardavam o que estavam comendo nas gavetas, e ofereciam outra
coisa ao visitante, como o queijo minas, por exemplo. Esta é a raiz desse costume, que muitos
mineiros até brincam a respeito, mas que não está relacionado à sovinice e sim ao medo da
delação.
Lenda da Verruga: como se sabe, o dia no judaísmo começa na véspera. Então, o “shabat”
descanso judaico no Sábado, começa na véspera com o nascimento da primeira estrela. Se um
judeu apontasse para o céu quando visse a primeira estrela para anunciar o início da festa do
Shabat, como cristão-novo ele estaria se denunciando. O adulto poderia se controlar, mas o
que se diria para as crianças? “- Não aponta que se nasce verruga”. Era a única maneira de
poder controlá-las, para que a família não fosse descoberta e perseguida pela Inquisição.
Ficaram a ver navios: era a época de ouro da Península Ibérica. O rei Dom Manuel precisava
dos judeus portugueses, pois eram toda a classe média e toda a mão-de-obra, além da
influência intelectual. Se Portugal os expulsasse logo, como fez a Espanha, o país passaria por
118
uma crise terrível. Então o rei fingiu marcar uma data de expulsão, que era a Páscoa. No dia
marcado, estavam todos os judeus no porto esperando os navios que não vieram. Todos foram
convertidos e batizados à força, em pé. Daí a expressão: “ficaram a ver navios”. O rei então
declarou: não há mais judeus em Portugal, são todos cristãos (cristãos-novos). Era 1492.
Durante mais ou menos 30 anos, eles continuaram praticando o judaísmo por debaixo do pano,
às escondidas, mas com tolerância portuguesa, até a chegada da Inquisição. Com a Inquisição,
veio a vigilância, a perseguição, a intolerância e foi aí que muitos vieram para o Brasil fugindo
dela. (SOARES, 2001, s/p)
ainda outras tradições que são de origem judaica como o casamento consangüíneo
por longas gerações e a tradição de seguir as fases da lua, correlacionando-as com o ciclo
agrícola. Entre as práticas judaizantes podemos destacar também:
Deixar um resto de grãos nas lavouras para os pobres catarem ou colherem é também uma
tradição bíblica e judaica;
Tradição e costume de não jogar nada fora e aproveitar tudo, não havendo desperdício de
nada. É uma tradição do povo judeu;
Faziam questão de manterem-se unidos, herdando a tradição de celebração de festas em
família. Educavam-se seus filhos nos melhores colégios, normalmente, de irmandades
religiosas. Tal costume é muito antigo, desde o tempo da perseguição inquisitória em Portugal.
A fim de despistar sua identidade judaica, afirmando-se que eram verdadeiros cristãos-novos,
colocavam seus filhos em escolas católicas;
Mesmo quando se ocupavam do comércio e da agricultura, mantinham certos traços de fina
educação e cultura. Era costume da época também contratar professores e mestres particulares
para a educação dos filhos. Gostavam de andar bem vestidos e compravam suas roupas
importadas ou nos grandes centros comerciais, como na cidade do Rio de Janeiro. Sempre e
até hoje os judeus se destacam na medicina, física, astrofísica e na ciência em geral;
Era um povo de fé, mas não de santos e nem imagens. No judaísmo o ato de idolatria, segundo
a bíblia, é totalmente abominável a Deus. (Êxodo 20:3-5). Pedir benção e abençoar é uma
típica tradição bíblica e judaica;
Matar o animal sangrando, isto é, drenando todo o sangue. Um dos mandamentos mais
praticados no judaísmo é não comer sangue (Levítico 7:26; Deuteronômio 12:16; Atos 15:20,
etc.).
Entrar e sair pela mesma porta para trazer felicidade;
Lavar as mãos quer no sentido de inocência ou quer no sentido de higiene antes das refeições
são preceitos bíblicos e judaicos (Dt 21:6-7;Sl 73:13; Mt 15:2). (GUIMARAES, 2001, s/p)
Embora tenha havido por parte dos cristãos-novos toda uma preocupação em
preservar a identidade judaica, em meio a todas as dificuldades históricas e sociais que
ocorreram, houve também uma parcela dessa população que se rendeu ao processo de
rendição/conversão à nova religião. Em Memórias de Branca Dias (2003), temos o exemplo
de Manuel Vaz, um cristão-novo que participava, juntamente com os outros, das cerimônias
119
religiosas secretas, mas que, ao casar-se com uma cristã-velha, não apenas deixou a antiga
crença e adentrou completamente na nova, como também passou a denunciar as práticas de
seus antigos companheiros de fé, como mostra o trecho:
...hoje o Manuel Vaz é ouvidor-mor de Olinda, até já se esqueceu de que é judeu, rasteja pelas
ruas de Olinda na procissão de Nossa Senhora do Carmo como um bode velho, quero ver
quando chegar o Visitador como é que ele explica o seu sangue judeu, se calhar denuncia
todos os outros judeus para se livrar da prisão, mas o livra, que o Santo Ofício não nasceu
ontem. (Memórias de Branca Dias, 2003, p. 130)
A opressão e a luta pela sobrevivência, em meio a uma sociedade hostil, fizeram com
que muitos dos cristãos-novos baixassem suas armas de defesa, e por fim se rendessem ao
sistema. Em O santo inquérito é Simão Dias quem dá sinais dessa rendição:
SIMÃO
Branca! (Ele traz, pregada à roupa, no peito e nas costas uma grande cruz de pano amarelo.).
BRANCA
Pai!
SIMÃO
- (Corre para abraçá-la.) Filhinha! Eles a maltrataram?
BRANCA
- Não muito. E o senhor, está bem?
SIMÃO
Estou vivo, pelo menos. E é isso que importa, não acha? (O santo inquérito, 1996, p. 95, 96)
Simão não suportou as pressões e as torturas da Inquisição e decidiu abjurar, tentando,
dessa maneira, evitar o seu relaxamento ao braço secular, bem como maiores prejuízos de
ordem material. Ao ser questionado por Branca sobre o motivo de ele não ter ajudado
Augusto durante as sessões de tortura, Simão demonstra que se acovardou e não quis se
prejudicar para tentar salvá-lo: “Eles têm leis muito severas para aqueles que ajudam os
hereges. Eu estava com a minha situação resolvida, ia ser posto em liberdade...” (O santo
inquérito, 1996, p. 97). Simão pensou apenas em salvar a própria vida em detrimento da vida
de Augusto, quis evitar que sua família e sua reputação ficassem prejudicadas: Você
preferiria que eu morresse também, que tivéssemos todos os nossos bens confiscados ou que
120
fôssemos punidos com uma declaração de injúria até a terceira geração?” (O santo inquérito,
1996, p. 98)
Aqueles que eram condenados pela Inquisição, além de perder a vida, tinham todos os
seus bens confiscados. Gonzaga (1993) afirma que, nas sanções patrimoniais, inscreviam-se a
pena de multa e a temida confiscação de bens. Nesta, todos os haveres do sentenciado
passavam para o Tesouro real: “Pena cruel, porque, com ela, ficavam reduzidos à miséria não
só o delinqüente, mas também todos aqueles que dele dependiam economicamente.” (p. 40). E
como se não bastasse, seus descendentes eram proibidos de exercer diversos cargos e
profissões.
Havia também a chamada morte civil. Com ela o condenado era “transformado” num
morto/vivo. Pois, se não lhe era tirada a vida biológica, destituíam-no de todos os direitos
civis e, para todos os efeitos jurídicos, ele era tido como um homem/mulher morto.
Nestes termos a descreve Cuello Calón: “Nenhuma pena privativa de direitos chegou à
monstruosidade da que as antigas legislações instituíram com o nome de <<morte civil>>.
Quem a sofria era considerado morto para a sociedade, sua participação na vida política e civil
cessava por completo. Essa bárbara ficção desatava os laços de família, desapareciam a
autoridade marital e o pátrio poder; o condenado deixava de ser cidadão e até perdia seus
direitos patrimoniais, abria-se sua sucessão a favor dos herdeiros naturais; tampouco podia
adquirir título gratuito, por doação entre vivos, nem por testamento, nem podia dispor dos
bens que adquirisse com seu trabalho. Esta pena foi suprimida em toda parte, não por ser
imoral, mas também por lesar os direitos de pessoas inocentes, violando assim o princípio o
firmemente proclamado da personalidade das penas. Não obstante sua inconcebível injustiça,
chegou até quase à metade do século XIX; em França, por exemplo, esteve em vigor aà lei
de 5 de maio de 1854, que a aboliu” (op. cit., pág. 257). (apud GONZAGA, 1993, p. 40)
Pressionados e oprimidos cada dia mais, os descendentes dos cristãos-novos passaram
a assimilar não a nova religião, mas também toda ideologia que essa nova forma de viver
trouxe consigo. E, no século XVIII, podemos encontrar tais indivíduos arraigados no tecido
social da população brasileira, lutando de todas as formas para esconder quaisquer vestígios
de ‘impureza de sangue’, pois bastava uma gota de sangue infecto para manchar toda a honra
de uma família. Como nos afirma o historiador Evaldo Cabral de Mello em O nome e o
sangue: uma fraude genealógica no Pernambuco colonial:
Para ele (Felipe Pais Barreto) e toda a sua parentela, era um golpe cuja rudeza é difícil ao
leitor do século XX aquilatar. A honra da família estava em jogo... quando se instalam no
coração da sociedade peninsular a Inquisição, a distinção entre cristãos-velhos e cristãos-
novos e o intrincado sistema de discriminação contra as ‘infectas nações’, a honra passou a
121
definir-se também como ‘limpeza’ ou ‘pureza de sangue’, a inexistência de ascendentes
judeus, cristãos-novos, negros ou mouros. No século XV, ainda mais no XVI, chegando ao
paroxismo no XVII, os ‘estatutos de pureza de sangue’ estendem-se celeremente dos cabidos
catedralícios, onde haviam sido inicialmente adotados, ao clero regular e secular, às ordens
militares, câmaras municipais, confrarias, irmandades, magistratura, etc.
O ingresso em qualquer destes corpos ficava sujeito a um exame prévio sobre a ascendência
do candidato, o qual, em princípio, limitava-se aos pais e quatro avós, mas que em caso de
dúvida ou suspeita podia subir indefinidamente pela sua árvore de costados, até onde
alcançasse a memória genealógica.(2000, p. 27, 28)
Dessa maneira, os descendentes de cristãos-novos foram “obrigados” a destituir-se de
sua identidade se quisessem conservar a vida e/ou ascender socialmente, coisa que não seria
possível se houvesse defeito de sangue’.Quem não passasse pelo estatuto de limpeza de
sangue não teria acesso a nenhum tipo de cargo religioso, militar ou de magistratura. Com
isso, os cristãos-novos ficavam relegados à atividade do comércio, o que serviu para
cristalizar na memória coletiva a figura do judeu como o comerciante avarento e acirrar o
preconceito. A figura do cristão-novo era dotada de todo tipo de traços morais negativos, o
que fazia com que os cristãos-velhos que os denunciasse tivessem a consciência de que
estavam prestando um bem à humanidade, livrando-a de um herege. Essa discriminação
impiedosa levou-os à negação da própria identidade e chegou a tal ponto que “A atribuição de
ancestral cristão-novo criava para quem a fazia inimizades irreconciliáveis e até querelas
judiciárias suscetíveis de severas penas”. (MELLO, 2000, p. 90). Em O santo inquérito essa
negação é explicitada através da fala do pai de Branca Dias: Em primeiro lugar, o homem tem a
obrigação de sobreviver, a qualquer preço; depois é que vem a dignidade...” (O santo inquérito, 1996,
p. 96)
Esta atitude de negação em relação ao seu povo, às suas tradições e costumes
contribuiu grandemente para o esquecimento e/ou silenciamento da enorme contribuição que
os cristãos-novos deram à cultura brasileira. Pois ao terem sua identidade apagada, tais
indivíduos não apenas morreram simbolicamente, como colaboraram com a morte ideológica
de toda uma cultura.
Por isso, indivíduos com a postura de Branca Dias foram necessários para que a
identidade do seu povo não fosse totalmente banida. E mesmo ante as negações e ao
“genealogicídio”
26
praticado por estudiosos das origens das famílias locais, a fim de tentarem
26
Mello (2000) diz que Lipiner denunciou o que denominou como “genealogicídio” cometido por Jaboatão, na
Bahia, e por Borges da Fonseca, em Pernambuco, consistentes em esconder as reais origens cristãs-novas de
linhagens nobres de ambas as capitanias.
122
limpar sua origem “impura”, o mito de Branca Dias foi consolidado. Feitler (2004) afirma que
a memória da matriarca, durante muito tempo, oscilou entre o desejo da elite pernambucana
de apagar os vestígios de sua descendência cristã-nova e a constante lembrança do resto da
população. Para ele, isso se deve talvez ao fato de ela ter sido uma persona dos tempos
iniciais da colonização e de ter deixado uma grande descendência que fez parte da elite local.
Os descendentes de Branca Dias deram início a muitas famílias importantes de Pernambuco e,
“Ainda no século XVIII, o fantasma da cristã-nova quinhentista e impenitente continuava bem
vivo na memória genealógica.” (MELLO, 2000, p. 94)
Em seu texto “Memória e esquecimento”, Benedict Anderson discute de que maneira
tanto a memória quanto o esquecimento são necessários para a formação da nação. Mostra
como fatos que desonram a nação são “esquecidos” propositalmente forçando uma ruptura
radical com este passado; bem como, aqueles fatos que são motivos de orgulho ficam
gravados na memória. Para Ortiz “A construção da memória nacional se realizará através do
esquecimento. Ela é o resultado de uma amnésia seletiva. Esquecer significa confirmar
determinadas lembranças, apagando os rastros de outras mais incômodas e menos
consensuais.” (ORTIZ, 1994, p. 139). A história de Branca Dias está situada entre a memória
e o esquecimento, pois, devido às perseguições e ameaças, seus descendentes foram
“obrigados” a “esquecer” suas origens. Contudo, sua fé, coragem e determinação romperam
as barreiras do tempo e do espaço para se consolidar na memória coletiva do povo brasileiro.
Em O santo inquérito, Branca Dias opta por resistir até o fim, mesmo após ser acusada
de heresia, levada ao Tribunal do Santo Ofício e ter sua vida passada por uma verdadeira
devassa na qual toda a sua origem é reconstituída vindo à tona o fato de que descende de
cristãos-novos e de ter seu pai Simão Dias considerado também como herege e seu noivo
Augusto Coutinho preso, torturado e morto.
Branca se desespera ante a morte de Augusto e recusa-se a tornar-se cúmplice de seus
assassinos, o que a leva a não abjurar, pois se o fizesse estaria colaborando, mesmo que de
maneira indireta, com aqueles que levaram Augusto à morte. Para Dias Gomes, este é ao
mesmo tempo um “gesto de protesto e também de desespero” (GOMES, 1996, p. 16). Ela não
admite dever a vida a quem Augusto deve a morte: “BRANCA: Se eu abjurar... o senhor quer
que eu seja também cúmplice” (O santo inquérito, 1996, p. 99)
Alves (2005) assegura que a personagem Branca Dias, de acordo com sua
configuração na ação dramática, pode ser compreendida como uma variante do arquétipo de
morte e renascimento, ou como parte do arquétipo da crucificação, de acordo com a teoria de
J. Frazer “O corolário do rito do sacrifício era, na antiguidade, o arquétipo do “bode
123
expiatório” (FRAZER, 1982 apud ALVES, 2005, p. 195), havendo vestígios desse mito no
mundo civilizado”, como, por exemplo, no prazer irracional que alguns povos têm
perseguindo grupos minoritários como os judeus e os negros, como bodes expiatórios; e,
“muitas vezes justificado por sentimentos de salvação da alma, conforme registros históricos
da Santa Inquisição.” (BETHENCOURT, 2000, p. 25)
A diferença entre o comportamento de Branca e o de Simão Dias é que ela se
comporta como uma heroína no sentido clássico, ao contrário de seu pai, que se mostra
covarde e não possui a dignidade necessária para encarar a morte como expiação, sendo,
portanto, um não-herói. Seu comportamento provoca aversão em Branca e a prepara para
enfrentar o sacrifício:
SIMÃO
Minha filha, eu compreendo o seu sofrimento. Eu também sinto muito. Mas não é justo que
você se volte contra mim. Não foi eu quem matou Augusto. Foram eles. Os carrascos, a
Inquisição.
BRANCA
O senhor também matou. E o que mais me horroriza é que o senhor é um homem decente.
SIMÃO
Branca, você não sabe o que está dizendo!
BRANCA
O senhor é tão culpado quanto eles.
SIMÃO
Não, ninguém pode ser culpado de um ato para o qual não contribuiu de forma alguma.
BRANCA
O senhor contribuiu.
SIMÃO
Não matei, não executei, não participei de nada!
BRANCA
Silenciou.
SIMÃO
Também por sua causa. Por nossa causa. Era um preço que teríamos que pagar.
BRANCA
Preço de quê?
SIMÃO
É uma ilusão imaginar que poderíamos sair daqui, todos, sem que nada nos tivesse acontecido.
Alguém teria de ser atingido mais duramente.
124
BRANCA
E o senhor acha que só ele o foi.
SIMÃO
Digo diretamente.
BRANCA
E imagina que com isso matou a sede de violência, resgatou a nossa quota.
SIMÃO
De certo modo, acho que sim. Devo apenas levar esta cruz na roupa durante um ano. É
humilhante, mas ainda é uma sorte. Se você abjurar, pode ser que lhe dêem pena semelhante e
estaremos livres.
BRANCA
Se eu abjurar... o senhor quer que eu seja também cúmplice.
SIMÃO
Cúmplice de quê?
BRANCA
Da morte de Augusto.
SIMÃO
Absurdo! Você não tem nada com isso!
BRANCA
Tenho. Todos nós temos. Quem cala, colabora. (O santo inquérito, 1996, p. 98-100)
O mito do herói, para Carl Jung (1964), é o mais comum e o mais conhecido no
mundo inteiro. Podemos encontrá-lo na mitologia clássica da Grécia e de Roma, na Idade
Média, no Extremo Oriente e entre as tribos primitivas contemporâneas, aparecendo também
em nossos sonhos. Possui uma força de sedução dramática evidente e, apesar de menos
aparente, detém uma profunda importância psicológica. São mitos que, apesar de variarem
nos seus detalhes, se assemelham na estrutura e guardam uma forma universal mesmo quando
desenvolvidos por grupos ou indivíduos sem qualquer contato cultural entre si, como as tribos
africanas e os índios norte-americanos, os gregos e os incas do Peru. A história do herói se
repete sempre: o nascimento humilde, mas milagroso; força sobre-humana precoce; sua rápida
ascensão ao poder e à notoriedade; sua incessante luta contra as forças maléficas; “sua
falibilidade ante a tentação do orgulho (hybris) e seu declínio, por motivo de traição ou por
um ato de sacrifício ‘heróico’, onde sempre morre.” (JUNG, 1964, p. 110)
Gazolla afirma que “Os heróis trágicos já levantam questionamentos aos deuses e suas
determinações, mesmo sabendo-se sujeitos a eles” (2001, p.50). Branca Dias questiona as
determinações “divinas” do Tribunal do Santo Ofício:
125
Isto eu entendi; o que não entendo é por que estou aqui. Não fui convertida, nasci cristã e
como cristã tenho vivido até hoje. Cristãos de nascimento o também meu pai e meu noivo,
que também estão presos, afastados de mim. Na verdade, senhores, não entendo coisa alguma.
(O Santo Inquérito, 1996, p. 77)
Gazolla diz ainda que, na finalização da tragédia, o éxodos
27
apresenta-se em tom
aconselhativo e espera-se, assim como nos ritos, “a confirmação do aguardado e conhecido
final, em geral cenas de sacrifício com morte.” (2001, p. 55), assim como acontece em
Medéia, quando a heroína sacrifica os próprios filhos; n’As Bacantes, com a morte de Penteu
e em Antígona, onde várias mortes ocorrem. O santo inquérito não se diferencia nesse aspecto
e, ao final, Branca Dias morre, dignamente, ardendo na fogueira “santa”:
BRANCA
Mas senhores, eu não pretendi nada disso! Nunca pensei senão em viver conforme a minha
natureza e o meu entendimento, amando a Deus à minha maneira; nunca quis destruir nada,
nem fazer mal algum a ninguém!
VISITADOR
(Corta-lhe a palavra com um gesto.) Seu caso já não é conosco, Branca. O tribunal eclesiástico
termina aqui a sua tarefa. O braço secular se encarregará do resto.
BRANCA
(Receosa.) Que resto, senhor?
VISITADOR
(...) Nos lamentamos ter de declará-la separada da Igreja e relaxada ao braço secular. (...) À
acusada foram oferecidas todas as oportunidades de defesa e de arrependimento. Dia após dia,
noite após noite, estivemos aqui lutando para arrancar essa pobre alma às garras do Demônio.
Mas fomos derrotados. Desgraçadamente. (...).
BRANCA
Os senhores foram derrotados... E eu?
PADRE
Você, Branca, vai amargar a sua vitória.
BRANCA
Eu sei. E sei também que não sou a primeira. E nem serei a última.
27
Para o teatro, na Grécia antiga, éxodo significa “o último episódio da tragédia, após o canto de despedida do
coro, bem como, na comédia, a saída festiva do coro.” (In: FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo
dicionário eletrônico Aurélio versão 5.0. Edição eletrônica autorizada a Positivo Informática Ltda. Regis Ltda,
2004.)
126
Os guardas entram e amarram-na pelos pulsos e pelo pescoço com cordas e baraço e a
arrastam assim por uma rampa para o plano superior, onde surgem os reflexos avermelhados
da fogueira. (...) (O santo inquérito, 1996, p. 101, 102)
Para Rosenfeld (1996), Branca Dias é uma heroína representativa que tem como
características principais: a coragem, o caráter e a dignidade, além de ser engrandecida
poeticamente pelo recuo temporal e pelo contexto “mítico-badalesco”. Em certo momento de
fragilidade, mostra-se disposta a admitir seus pecados e cumprir a penitência prescrita, mas a
morte de Augusto – que não cedeu às torturas, para que denunciasse Branca –, e a reprovação
pelo comportamento de seu pai, Simão Dias, que covardemente negou ajuda a Augusto,
fazem com que ela mude de atitude e, lembrando-se das palavras do noivo, prefira a morte a
ter de abjurar. Ela vai para a fogueira, sem renegar nada e sem de nada se arrepender. Para
Rosenfeld, este,
É um ato de liberdade sublime, cujo sentido se poderia formular em termos de Schiller:
quando vemos o herói negando todos os interesses vitais e naturais de autoconservação em
favor do imperativo moral, afirma-se um princípio mais alto que a natureza. Em meio das leis
férreas da natureza e da determinação causal, instaura-se, superando-as, o reino da liberdade, a
presença de uma determinação superior, espiritual. O herói, através do seu auto-sacrifício,
torna-se testemunha de um universo superior de que, virtualmente, todo ente humano
participa. Por isso, sofrendo embora com o holocausto do protagonista, rejubilamo-nos com a
sua grandeza que, não sendo a nossa que não somos heróis, é, apesar disso, nossa, já que
somos seres humanos como ele. (ROSENFELD, 1996, p. 76)
Alves (2005) confirma que o perfil de Branca Dias, no que se refere à moral e à ética,
aproxima-se do herói trágico que representa o mundo totalitário da sociedade grega e cuja
alma encontra-se em harmonia com o mundo. Ela defende seus princípios éticos e sua crença
e isso lhe forças para enfrentar sua trágica morte. Mas, ao morrer, torna-se espiritualmente
elevada e prova que sua integridade e perseverança são superiores à tragédia enfrentada: “A
sua morte é a exaltação final, e o seu momento de grandeza trágica, já que o herói é que
conhece a si próprio, mesmo tendo um fim trágico” (ALVES, 2005, p. 207)
Branca não foi sacrificada em vão, pois, apesar de a peça mostrar que o poder pode
vencer pela força, não pode, contudo, destruir os ideais do lutador. Dessa forma, todas as
vezes que alguém não negocia sua dignidade, mas luta com todas as suas forças na defesa dos
seus ideais, é como se Branca Dias ressuscitasse, retomando a variante do arquétipo de morte
e renascimento, o que a torna uma heroína atemporal, que pode locomover-se no tempo e no
127
espaço, sem fronteiras. Dessa maneira, ela pode representar todos aqueles que, diante de um
poder intolerante capaz de oprimir e deturpar o discurso alheio, lutam por sua liberdade.
128
5 DIAS GOMES E O TRIBUNAL DO SANTO OFÍCIO: alegorias da ditadura militar
O que se deve exigir do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem do seu
tempo e do seu país, ainda quando trate de assuntos remotos no tempo e no espaço. (Machado de
Assis)
5.1 Apenas um subversivo
Nascido em Salvador, em 19 de outubro de 1922, Dias Gomes foi romancista, contista,
teatrólogo e autor de novelas e minisséries. Órfão de pai aos três anos de idade, encontrou em
seu irmão Guilherme Dias Gomes
28
um modelo a ser imitado: “as minhas primeiras
experiências literárias foram determinadas pelo desejo de imitar meu irmão(GOMES, 1998,
p.23). Em 1935, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro e, aos 15 anos, escreveu sua
primeira peça, A comédia dos Moralistas (1937), que ganhou o primeiro lugar no Concurso
do Serviço Nacional de Teatro em 1939.
Apesar do talento precoce para o teatro, Dias Gomes confessa que, até então, nada
conhecia de teatro além de algumas operetas e nunca tinha assistido a uma comédia ou drama.
Aos 19 anos já havia escrito mais duas peças: Ludovico e Amanhã seoutro dia. A primeira
nunca seria encenada; já a outra foi oferecida a Jayme Costa – ator de grande talento
histriônico, que disputava a popularidade com Procópio Ferreira – que, apesar de gostar muito
da peça, ficou receoso em encená-la por tratar-se de um drama antinazista. Os palcos
brasileiros dessa época estavam alienadamente dominados pelas comédias francesas e pelas
chanchadas nacionais, e escrever um drama antinazista, num momento em que Getulio Vargas
mantinha relações diplomáticas com o eixo Roma-Berlim, exigia, entre outras coisas, uma
grande dose de ousadia.
Jayme Costa, então, encomendou a Dias Gomes uma espécie de réplica de Deus lhe
pague, de Joracy Camargo, peça que era considerada uma obra-prima do teatro social, além
de ser o maior sucesso do teatro brasileiro da época, e carro-chefe de Procópio Ferreira. Desta
empreitada nasceria de Cabra. Mas como Jayme Costa não se decidia em encenar a peça,
Dias Gomes resolveu procurar Procópio Ferreira para mostrar a este Amanhã será outro dia.
Contudo, o ator teve os mesmos receios que Jayme Costa em relação ao drama, mas gostou de
28
Apesar de seguir a carreira de medicina, por determinação paterna, Guilherme Dias Gomes era poeta, contista
e romancista, fazendo parte da Academia dos Rebeldes, da qual também participavam escritores como Jorge
Amado, Edison Carneiro e Dias da Costa.
129
de Cabra e decidiu encená-la. Pé-de-cabra, no entanto, estrearia uma semana após a
data prevista, pois fora proibida pelo D.I.P. (Departamento de Imprensa e Propaganda do
Estado Novo).
Além de escrever precocemente, Dias Gomes foi também proibido precocemente. A
respeito disso, ele diz: “E o mais curioso é que a justificativa da proibição era que a peça era
marxista, quando eu, até aquele momento, ainda não havia lido uma linha de Marx.”
(GOMES, 1990, p. 549). O gosto amargo da censura despertou no jovem autor o sentimento
de desamparo que todo cidadão tem ao se deparar com um poder castrador, além de fazê-lo
descobrir a extrema importância de o indivíduo poder pensar e se expressar livremente. Tal
descoberta o levaria a lutar, por toda a vida, em prol desta liberdade.
Contratado por Procópio Ferreira para escrever com exclusividade, Dias Gomes
produziu peças como: João Cambão, Zeca Diabo, Doutor Ninguém, Um pobre Gênio e Eu
acuso o céu. Esta última, cujo tema era a seca no nordeste, teria sido, segundo ele, muito
influenciada pelo dramaturgo americano Eugene O’Neill. Dias Gomes, contudo, não seguiu o
estilo de Joracy Camargo, que escrevia anteriormente para Procópio, mas desenvolveu sua
própria temática. O contrato com Procópio, além de fazer com que ele ingressasse na carreira
de dramaturgo, dera-lhe, finalmente, sua independência financeira.
Mas, o ano de 1943 não lhe reservara apenas alegrias. Guilherme, seu irmão, após
sofrer um mal súbito, morre aos 30 anos de idade. Foi uma dolorosa perda: “Custei a me
refazer desse golpe. Senti-me como se de repente houvesse perdido todas as referências.
Guilherme era a minha bússola, o meu pé de apoio.” (GOMES, 1998, p. 84)
Findo o contrato com Procópio Ferreira, Dias Gomes recebe de Oduvaldo Vianna (pai)
um convite para integrar o quadro de redatores da Rádio Pan-Americana, recém inaugurada.
A princípio, não achou boa a idéia de sair do Rio de Janeiro, que era a principal praça
teatral brasileira e onde estava surgindo uma nova proposta para a dramaturgia nacional com
grupos como o “Teatro do Estudante” e “Os comediantes”. Fazer isso era correr o risco de
perder um espaço conquistado. Mas, sem escolha, que agora era arrimo de família, parte
para São Paulo, onde ficaria por dez anos.
Na Rádio Pan-Americana, Dias Gomes escrevia semanalmente uma radiopeça,
programa que manteve no ar durante 20 anos (de 1944 a 1964) e que levou para outras
emissoras, chegando a fazer cerca de 500 adaptações de textos literários. O que, segundo ele,
proporcionou-lhe um apreciável conhecimento da literatura universal. Durante este período,
ele se afastou totalmente do teatro, mas tal afastamento foi encarado como uma perda de
identidade, que nem o trabalho com o rádio, nem a literatura (durante esse período ele
130
escreveu três romances) conseguiram suprir. Tentou, sem sucesso, fazer contato com o recém
criado Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), mas a proposta deste grupo era a montagem de
textos estrangeiros, aproximando-se da qualidade de textos apresentados em Paris e Nova
York.
Em São Paulo, conheceu sua primeira mulher, Madalena, de quem se separou para
ficar com aquela que seria sua companheira por mais de 30 anos, Janete Clair, com quem teve
três filhos: Denise, Alfredo e Guilherme. Após a morte de Janete, em 1983, Dias Gomes
casou-se com Bernadeth Lysio, com quem teve Mayra e Luana.
Em 1953, fazendo parte do Partido Comunista e trabalhando na Rádio Clube, Dias
Gomes recebeu um convite para integrar uma delegação de escritores que iria à União
Soviética participar das comemorações do de maio. Isso, em plena Guerra Fria e durante o
governo Vargas, soava como um ato “literalmente subversivo”. Tal viagem teve péssima
repercussão aqui no Brasil e, antes mesmo do seu retorno, o jornal Tribuna da Imprensa
estampava, na primeira página, sua foto carregando uma coroa de flores na Praça Vermelha,
cuja manchete dizia que o diretor da Rádio Clube (Dias Gomes) levava flores para Stálin com
o dinheiro do Banco do Brasil.
Dias Gomes pagou alto preço por sua ‘aventura’. A viagem tornou-se o estopim para
sua demissão da Rádio Clube e sua entrada numa lista negra, juntamente com seu
companheiro de viagem Cláudio Santoro, o que o prejudicou grandemente, pois, durante
algum tempo, ele tentou emprego em jornais, revistas, emissoras de rádio e tv, mas todas as
portas lhe eram fechadas. “Quando voltei, fui sumariamente demitido. Sofri uma espécie de
macartismo no Brasil entrei para uma lista negra, ninguém me dava emprego” (GOMES,
1999, s/p). Tendo seu nome sempre recusado e precisando se manter, passou, então, a
escrever artigos, programas humorísticos, teleteatros, shows, os quais eram assinados e
negociados por três amigos: sua esposa Janete Clair, Moisés Weltman e Paulo de Oliveira.
Essa barreira seria quebrada quando a Standard o contratou para escrever um teleteatro
semanalmente.
No ano seguinte, começou a produzir um programa para a Rádio Nacional
denominado Todos cantam sua terra, que tinha como tema o folclore de cada estado, o que o
obrigava a fazer pesquisas que futuramente serviriam para a criação de peças e personagens,
como foi o caso de Branca Dias, de O Santo Inquérito, O Pagador de promessas e As
primícias.
Em final dos anos 50, O Pagador de promessas se encontrava em processo de
gestação; segundo o autor, nesta peça ele se colocava por inteiro, toda a sua vivência, suas
131
certezas e incertezas, sua visão de mundo, suas angústias, tudo o que ele tinha “represado na
mente”. Esta peça marcou a volta de Dias Gomes ao teatro. Volta que ocorreu, diga-se de
passagem, em grande estilo.
Após O pagador de promessas (1959) obter uma projeção nacional e internacional, ser
coroada por 17 prêmios, entre eles a Palma de Ouro, no Festival de Cannes, em 1962, em sua
adaptação cinematográfica, a obra de Dias Gomes ganhou notoriedade. Aplaudida pelo
público e pela crítica, tanto no Brasil quanto no exterior, a peça, segundo J. Broszkiewicz
(1963), é uma das “mais notáveis da dramaturgia contemporânea mundial, (...) de grande
beleza poética e surpreendente fluidez de imagens cênicas.” (apud GOMES, 1989, p. 451)
Miguel Sanchez Astudillo (apud GOMES, 1989), da Academia Equatoriana, afirma
que O pagador de promessas é uma obra de enorme força dramática e humana, com projeções
sociais frondosas e comuns às circunstâncias de toda a América Latina; para Ruggero Jacobbi
(1973, apud GOMES, 1989), as razões desse sucesso são a “revelação do mundo sul-
americano numa de suas componentes mais complexas e fascinantes, o sincretismo religioso”
(p. 465), além da exemplar habilidade dramatúrgica de Dias Gomes e a clareza da narrativa
que realiza um tipo perfeito de espetáculo popular.
A crítica americana diz que Dias Gomes é um “mestre de muitos gêneros”. Sua obra é
diversificada, passando pelo teatro, rádio, cinema, literatura e televisão. Para Antonio
Mercado (1989), as vigas mestras do amplo edifício ficcional de Dias Gomes estão
firmemente plantadas na reflexão sobre a integridade e a dignidade humanas, no
questionamento acerca do autoritarismo e da opressão, na denúncia das injustiças que
permeiam as estruturas sociais, na redescoberta da autenticidade do brasileiro e na promoção
da liberdade e da vida. As temáticas predominantes, mas não exclusivas, na obra do escritor
baiano são: os heróis vencidos (O pagador de promessas, O Santo Inquérito), os falsos mitos
(A revolução dos Beatos, O Bem-amado, O berço do Herói), os caminhos e descaminhos da
revolução (A Invasão, Amor em campo minado, O túnel e Campeões do mundo). Esta divisão
temática serviu de referencial para a organização da sua obra na Coleção Dias Gomes, que
possui sete volumes.
Acerca do tratamento da crítica à sua obra, Dias Gomes revela que, apesar de os
críticos brasileiros terem sido sempre benevolentes consigo, estes se equivocaram a seu
respeito. Ele acreditava que “o verdadeiro crítico é aquele que apreende as intenções do autor
e analisa a obra a partir daí.” (GOMES, 1990, p. 557). Dias Gomes considera que “um crítico
tem que ser faccioso, tem que ser parcial, no sentido de que deve ter uma opinião.” (1990, p.
557). Para ele, o verdadeiro crítico deve detectar o sentido da História refletido no fazer
132
artístico e colocar-se a seu favor. Por isso, embora se agradasse bastante do estudo que Anatol
Rosenfeld fez da sua obra, este não o satisfazia, confessando que, em sua opinião, sua obra
fora analisada com maior profundidade pelos críticos estrangeiros do que pelos nacionais.
Desde o início da sua carreira como escritor, Dias Gomes revelou as inquietações
temáticas que mais tarde iriam se aprofundar pela maturidade, experiência e leituras a que ele
teve acesso posteriormente, como o marxismo. Os textos mais representativos deste
período são: Pé-de-Cabra, Eu acuso o céu e Os cinco fugitivos do Juízo Final.
Um dos temas mais evidentes na obra de Dias Gomes é o dos “heróis vencidos”,
trazendo como principais representantes Zé-do-burro em O pagador de promessas e Branca
Dias, em O santo inquérito, dois de seus maiores sucessos, tanto de crítica quanto de público.
Apesar de sofrerem uma derrota momentânea Zé-do-burro, que, depois de morto, adentra a
igreja pelos braços do povo e, Branca Dias, que supera a morte na fogueira, permanecendo
viva na memória popular –, estes “heróis vencidos” tornaram-se símbolos da luta pela
liberdade.
Para Rosenfeld (1989), a obra de Dias Gomes distingue-se pela unidade fundamental,
unidade que reside no esforço conseqüente e contumaz por valores político-sociais, valores
humanos. Não satisfeito com a realidade do Brasil e do mundo, o escritor a analisa
criticamente, aferindo-a de acordo com a imagem que julga mais perfeita, bem como as
normas morais e sociais que julga mais humanas.
Desde seu início, a história cênica ocidental sempre produziu peças que tiveram um
engajamento político; em Os persas, Ésquilo visava não apenas comemorar a vitória dos
gregos sobre os persas, mas também adverti-los de que sua política expansionista poderia
levá-los a um desastre. Também Eurípedes, em As troianas, acusa o povo de terríveis
crueldades. Shakespeare, em Macbeth, contrapõe a imagem do usurpador à do bom estadista.
Em The crucible, Arthur Miller faz uma analogia entre a caça às bruxas em Massachussets, no
século XVIII, com o macartismo, movimento político que perseguiu os comunistas nos
Estados Unidos, no século XX. E assim por diante.
De acordo com Eric Bentley (apud GOMES, 1989), o artista pode ser definido como
“rebelde sadio” ou “homem não ajustado”. Dias Gomes se enquadra nestas definições ao fazer
de sua obra um foco de ‘perturbação’, a qual proporciona aos expectadores espetáculos que
suscitam insatisfação, tirando-os do conformismo. Para isso, Dias Gomes utiliza uma
diversidade de processos dramáticos. Rosenfeld (1989) classifica a obra do dramaturgo como:
tragédia, quase no sentido clássico do termo (O pagador de promessas e O santo inquérito);
tragicomédia de forte caráter farsesco (O bem-amado e O berço do herói); parábola política
133
(O túnel); peça psicológica (Vamos soltar os demônios); peças que se apóiam em tipos
tradicionais de espetáculos brasileiros populares, como o carnaval (Dr. Getúlio) e o Bumba-
meu-boi (A revolução dos Beatos), esta última imbuída de uma forte crítica à maneira como a
política é conduzida no país, principalmente por parte daqueles que se aproveitam da
ingenuidade e fraquezas do povo para conquistar votos.
Apesar dessa variedade, suas peças têm em comum o teor popular e o fato de ser uma
dramaturgia ‘em favor do povo’. Seus personagens, conflitos e problemas alcançam quase
sempre um significado universal, sem deixar, entretanto, de figurarem eminentemente
brasileiros. A nacionalidade de tais personagens se apresenta através dos costumes, sua
condição e, também, das situações e problemas levantados. “As peças transpiram vida popular
brasileira de todos os poros, também graças à linguagem saborosa, direta, rica de
regionalismos, expandindo-se num diálogo espontâneo e comunicativo” (ROSENFELD apud
GOMES, 1989, p. 39). Sobre isso, o autor confessa que:
Meu teatro procura partir do povo e pretende ser um teatro do ponto de vista do povo, ou
melhor, que entenda esse ponto de vista, que respeite esse ponto de vista. Procuro entender a
realidade brasileira e, desde cedo, quis que o povo fosse o grande personagem de minhas
peças. (GOMES in CAMPEDELLI, 1982, p. 103)
Apesar de ter começado a escrever para o teatro quando morava no Rio de Janeiro,
Dias Gomes possui, em sua obra, diversas características em comum com outros autores
baianos. As temáticas populares e a crítica social, assim como o apanhado histórico em alguns
de seus personagens, estão presentes nas obras de escritores baianos, e também na obra de
Dias Gomes. Entre outros autores baianos a que podemos comparar com Dias Gomes está
Sílio Boccanera Júnior (1863-1928).
Nascido em Salvador, engenheiro, homem de letras, dramaturgo, jornalista e
historiador do teatro local e nacional, Sílio Boccanera Júnior escreveu várias obras, as quais
retratam a história das Letras e das Artes baianas, e também peças teatrais que se
caracterizavam por um forte teor de crítica social. em 1912, satirizava a política brasileira
através das suas peças, a exemplo de Como se fabrica um deputado, na qual ele critica a
politicagem e os desmandos dos parlamentares. Através de uma linguagem bastante direta,
Sílio Boccanera Júnior denuncia os desmandos que os políticos cometem ao se encontrarem
no poder, elaborando projetos que beneficiarão apenas a si próprios, enquanto os interesses e
necessidades do povo são colocados em último plano, e, mesmo os benefícios adquiridos a
134
duras penas, como o acesso à arte, à cultura e à educação, correm o risco de desaparecerem,
pois não é interessante para tais políticos que o povo aprenda a pensar.
Como se fabrica um deputado, de Boccanera Júnior, encontra eco na comédia O bem
amado, de Dias Gomes. Em O bem amado, a política é concebida como uma atividade
corrupta e demagógica, desenvolvida à base de irregularidades, conforme expresso nas ações
dos personagens, e, principalmente, nas ações de Odorico Paraguaçu, prefeito da cidade de
Sucupira, espelho do político interiorano, que tem como objetivo de governo inaugurar o
cemitério construído. Mas, como ninguém morre, ele é obrigado a “encontrar” um morto. Para
isso, ele elege, como delegado da cidade, um famoso cangaceiro, pois, como ele mesmo dizia,
“os finalmentes justificam os não obstantes” (GOMES, 1990, p. 213). Em O bem amado, fica
clara a crítica ao sistema político que impera em nosso país, pois, como disse Dias Gomes,
“Eles existem e continuarão existindo, com maior ou menor extroversão, porque são frutos,
não da prática da democracia, mas da alienação e do oportunismo dos governantes, eleitos ou
nomeados, escolhidos ou impostos.” (GOMES, 1990, p. 213)
Ariovaldo Matos é outro autor baiano no qual podemos perceber alguma analogia com
o teatro de Dias Gomes. Nascido em Salvador, em 1926, Ariovaldo Matos tornou-se jornalista
e escritor. E, assim como Dias Gomes, foi perseguido e censurado pela ditadura militar. Em
1964, foi preso e recolhido ao Quartel do Barbalho, e em seguida ao 19BC, por protestar
contra a invasão da sua casa e a destruição do seu jornal. Em 1970, condenado pela Justiça
Militar, é recolhido à Casa de Detenção por nove meses, período em que reescreve As
aventuras do senador Tônio Petrucci, com título definitivo: Os dias do medo e publica o
volume Teatro, com os textos das peças O desembestado e A engrenagem. Cinco anos depois,
a Censura Federal veta integralmente sua peça O ringue, que será transformada no livro de
contos Anjos no ringue.
O componente político pode ser percebido em a toda obra de Ariovaldo Matos. Seu
livro de estréia, Corta-braço, já traz essa característica. Guido Guerra (2006), escrevendo
sobre Ariovaldo Matos, afirma que “em qualquer dos seus textos, do mais inexperiente ao mais
maduro, o componente político associa-se ao legado ficcional, como se um não existisse sem o
outro” (p.11). Seu teatro também é politicamente engajado, suas peças falam de problemas
sociais. A escolha ou O desembestado, peça que ganhou o prêmio Jorge Amado de
dramaturgia, traz à cena Tancredo, personagem emblemático, que, no início da peça, se mostra
generoso, querendo ajudar seu amigo Albano e sua mulher Zulnara. Contudo, no decorrer da
trama, revela-se um sujeito revoltado com a pobreza que passou, e que agora, devido à
riqueza que conquistou, julga-se capaz de manipular a vida de todos à sua volta:
135
Esta noite sou eu, príncipe encantado Tancredo Batista, quem dou as cartas. Estou com um
“big” Impala-conversível embaixo, minha comitiva veio comigo, vocês mudam de roupa, se
enfarpalam, e iremos todos a um grande restaurante, depois a uma grande boate, e explicarei
meu grande plano para o total desembestamento de vocês. (MATOS, 1967, fl. 10)
Além de achar que pode controlar os outros, Tancredo demonstra, também, que está
totalmente comprometido com o sistema capitalista: “... fumo cigarro inglês, minha cueca é de
linho belga, meus sapatos são italianos, meu papel higiênico vocês pensam que é de onde? É
da Suíça! Da Suíça!” (MATOS, 1967, fl. 9). Através dos personagens, Ariovaldo Matos
discute a vida política e social do país e como o sistema oprime e convence mesmo aqueles
mais recalcitrantes. Othon Jambeiro, falando sobre Ariovaldo Matos, diz que
seu comportamento político, os livros e contos, as peças teatrais traziam a mesma compreensão
da vida, da sociedade, dos homens. A expressão do teatrólogo estava na política, assim como a
expressão do escritor estava nas peças teatrais, e assim como o político se esparramava às vezes
nas linhas, às vezes nas entrelinhas de tudo que produzia. (JAMBEIRO, 2005, s/p)
O engajamento político da obra de Ariovaldo Matos, além de sua “permanente defesa
do homem e seus valores essenciais, o atávico compromisso com o ser, jamais com o ter”
(GUERRA, 2006, p. 14), mantém características em comum com a obra de Dias Gomes, pois,
este, em toda a sua obra, tem uma luta a favor da liberdade e contra a dominação. Também em
comum têm eles o fato de, nem sempre, devido a problemas políticos, poderem assinar seus
textos. Isso acontecera a Dias Gomes quando da sua volta da União Soviética e, também a
Ariovaldo Matos que, quando fez a adaptação do drama O Gonzaga, de Castro Alves, não
pôde assiná-la e, por conseguinte, esta obra não figura entre os dados do autor.
Apesar de toda essa baianidade” presente nas peças de Dias Gomes, Afrânio
Coutinho, em seu livro A literatura no Brasil, situa-o no teatro paulista, isso devido ao
contexto no qual ele escreveu suas peças. Entretanto, nas duas vezes que seu teatro esteve em
alta estava mais ligado à dramaturgia carioca.
O teatro de Dias Gomes, apesar de politicamente engajado e de o autor se declarar
marxista, não pode ser considerado panfletário, pois busca trabalhar com a realidade do
indivíduo sem, contudo, esquecer da sua humanidade. Segundo Anatol Rosenfeld (apud
GOMES, 1989), na obra de Dias Gomes uma unidade fundamental que reside no empenho
conseqüente e pertinaz por valores político-sociais, valores humanos a serviço da visão crítica
de alguém que não está satisfeito com a realidade do Brasil e do mundo.
136
Esse conflito entre o indivíduo e poder, essa luta pela liberdade é uma constante, realmente
você pode achar isso, principalmente na minha literatura dramática, porque é uma situação que
vivo. Estou sempre em conflito com o poder, as limitações, a censura, com todo tipo de coerção
e cerceamento e com a falsa noção de liberdade permanente em nosso sistema, que é a
liberdade do regime capitalista. Você pode casar com quem quiser contanto que case com a
Maria. Esse tema aparece várias vezes na minha dramaturgia e os personagens que simbolizam
esse conflito são realmente personagens que acabam sendo emblemáticos. (GOMES, 1999, s/p)
Além disso, em entrevista a Flavio Marinho (in GOMES, 1990), ao ser perguntado se
a abordagem de um tema político numa peça é o suficiente para que ela seja considerada
como boa, ele discorda e declara que condiciona a eficiência política de uma peça à sua
eficiência dramática: “eu acho que se o teatro não é eficiente como arte, ele deixa de ser
eficiente, também como política. (...) um dramaturgo tem que ser, antes de mais nada, um
dramaturgo. E, então, colocar sua técnica a serviço da política.” (GOMES, 1990, p. 601)
Antonio Mercado (1980), no prefácio de Campeões do mundo, comenta que “não será
por acaso que Dias Gomes é o dramaturgo brasileiro mais estudado no exterior, em artigos,
ensaios, teses universitárias e até mesmo cursos monográficos.” (In: GOMES, 1980, p. 7)
Para ele, a distância geográfica e o estranhamento cultural permitiram que os teatrólogos
estrangeiros percebessem que “Dias Gomes é indiscutivelmente o mais representativo autor
do que se convencionou definir como ‘o moderno teatro brasileiro’”. (In: GOMES, 1980, p. 7)
A representatividade de Dias Gomes pode ser percebida em sua temática, como
também no conteúdo e no modo de expressão dramática. Pois, ao tempo em que, através da
continuidade, mantém sua coerência ideológica sem se deixar influenciar por “modismos” e
“movimentos”; ao mesmo tempo, por meio da integração, “teve a sabedoria de fazer-se
sensível às mudanças da conjuntura econômica, social e política, assim como às inovações
surgidas na literatura, no teatro e no cenário artístico-cultural.” (MERCADO in GOMES,
1980, p. 8)
A sua dramaturgia condensa as principais características do teatro moderno brasileiro,
afirma Mercado (1980), ao pôr em cena o homem tipicamente nacional, com todas as suas
particularidades e expressões, assim como suas contradições e incompatibilidades, sem,
contudo, enfocá-lo como indivíduo isolado, mas, mostrando-o como sujeito inserido num
processo sócio-histórico determinado.
Estas postulações simples e gerais, reconhecíveis ao longo de toda a dramaturgia de Dias
Gomes, poderiam ser tomadas como o programa básico, o denominador comum daquilo que o
moderno teatro brasileiro procurou realizar desde a reviravolta dos anos 40. Não porque o
autor de O pagador de promessas formulasse tais itens como um ideário prévio a ser seguido
137
por seus companheiros de geração, mas sim porque soube captar e integrar ao seu teatro e às
suas opções de cidadão e de artista os temas e idéias mais marcantes do seu tempo”
(MERCADO in GOMES, 1980, p. 9)
Na década de 50, a preocupação com as questões sociais deixou fortes marcas nos
textos teatrais. Autores como Nelson Rodrigues despertam polêmica com textos como:
Perdoa-me por me traíres, Beijo no asfalto, Bonitinha, mas ordinária, que são considerados
escandalosos. Jorge Andrade mostra a decadência da aristocracia rural paulista em A
moratória e a ascensão das novas classes em Os ossos do barão. Ariano Suassuna destaca-se,
no nordeste, com as comédias O auto da Compadecida e O santo e a porca, que trazem uma
temática folclórica nordestina.
Nos anos 60, a censura prévia foi objeto de sofrimento para a arte em geral. Desta
maneira, devido ao engajamento político-social, tanto o teatro brasileiro quanto a imprensa
foram alvos das perseguições da ditadura militar. Devido a isso, Dias Gomes foi demitido da
Rádio Nacional, em de abril de 1964, por ocasião da ocupação de repressores militares,
tendo muitas de suas peças censuradas. Começa então uma das fases mais obscuras da
História do Brasil, os chamados “anos de chumbo”.
5.2 As “Chamas de uma nova inquisição”
Para se discutirem as mudanças sociais ocorridas no Brasil, nos anos 60, a análise de
pelo menos dois aspectos são fundamentais: o golpe militar e a efervescência cultural
existente no período.
O golpe de 64, que deu início à Ditadura Militar, iniciou no Brasil um dos períodos
mais tristes da sua História. O contexto social e econômico brasileiro, anterior ao golpe, era
de grande turbulência. Grandes mobilizações por parte dos operários, estudantes e
camponeses em busca de reformas políticas e institucionais, marcaram este período. O país
enfrentava um período de crise desde a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. Em
setembro, João Goulart assume a presidência da República, mesmo à revelia da oposição que
o enxergava como um perigo comunista devido à sua ligação com o partido trabalhista e os
movimentos sociais. Dado a isto, Jango, como era chamado, governou boa parte do seu
mandato sob o sistema parlamentarista. A decisão pelo parlamentarismo tinha em vista
diminuir os poderes presidenciais.
138
Em 1963, por meio de um plebiscito, o presidencialismo foi restaurado, devolvendo os
poderes presidenciais a Jango. O presidente propôs a formulação de um programa que trazia
uma série de reformas de base: reforma agrária, reforma urbana, reforma bancária, reforma
tributária, reforma eleitoral, reforma do estatuto do capital estrangeiro e reforma universitária.
Contrariava, assim, os setores conservadores da sociedade e, principalmente, os interesses dos
grupos e das empresas estrangeiras. No governo de Jango, estudantes, organizações populares
e trabalhadores ganharam espaço, causando a preocupação das classes conservadoras como,
por exemplo, os empresários, banqueiros, Igreja Católica, militares e classe média. Todos
receavam uma virada do Brasil para o lado socialista, “isso ameaçava gravemente os
propósitos do imperialismo, aqui, e feria gravemente os interesses estabelecidos e que haviam
criado o clima de “guerra fria”. “Para o imperialismo, o avanço democrático no Brasil era
uma ameaça terrível.” (SODRÉ, 1984, p. 32)
Em 13 de março de 1964, realizou-se, no Rio de Janeiro, um comício que contou com
a presença de cerca de 200 mil pessoas. Neste, Goulart anunciou as propostas das reformas, as
quais remeteria ao Congresso, começando pela reforma agrária. Tal medida tocou no
calcanhar de Aquiles das classes dominantes, que é, justamente, o direito de propriedade.
Provocando, assim, uma intensa reação conservadora a qual articulou o golpe para derrubar o
governo.
Para deter o avanço em busca de uma conquista plena da democracia no Brasil, foi
implantada na população a necessidade de se preservar a pátria das garras do comunismo, um
perigoso inimigo que estaria prestes a devorá-la. Desta forma, uma semana após o comício de
Goulart, realizou-se em São Paulo a “Marcha pela Família com Deus pela Liberdade”. Nessa
manifestação ficava clara a tríade sobre a qual se estabeleceria a ditadura militar brasileira:
a “família” (representando parte da classe média e burguesia que não queria perder seus
privilégios), a Igreja e os militares.
Em 31 de março de 1964, os chefes militares, apoiados pela burguesia nacional e com
grande influência e contribuição do capitalismo estrangeiro, principalmente dos Estados
Unidos da América, consolidaram o golpe que daria início a um dos períodos mais obtusos da
nossa História. Jango, buscando evitar uma guerra civil, deixou o país, refugiando-se no
Uruguai. Os militares, então, tomaram o poder.
Antes dessa data, as Forças Armadas haviam atuado na política brasileira, durante a
proclamação da República (1889) e, também, na instauração do Estado Novo (1945), entre
outros. Contudo, todas as vezes que os militares tiveram que intervir na vida política do país,
logo após a “ordem” ser restabelecida, entregavam o poder do Estado aos civis. Entretanto,
139
após o golpe de 1964, fundamentados na Doutrina de Segurança Nacional (DSN), eles
assumiram “o papel de condutores dos negócios do Estado, afastando os civis dos núcleos de
participação e decisão política, transformando-se em verdadeiros atores políticos” (BORGES,
2003, p. 16), tornando-se, dessa forma, dirigentes autoritários e hegemônicos.
Segundo Borges (2003), a tomada do poder pelos militares foi feita de maneira bem
orquestrada de política de desestabilização, envolvendo empresas nacionais e transnacionais,
o governo americano, bem como setores das Forças Armadas provenientes da Escola Superior
de Guerra. Ele afirma que:
Seguindo à risca os preceitos da Doutrina de Segurança Nacional, na qualidade de força
dirigente, as Forças Armadas assumiram a função de partido da burguesia, manobrando a
sociedade civil, através da censura, da repressão e do terrorismo estatal, para promover os
interesses da elite dominante, assegurando-lhe condições de supremacia em face do social.
Enquanto o aparelho militar fortalecia o Estado, neutralizando as pressões sociais e buscando
atingir um elevado crescimento econômico, as Forças Armadas atingiam um alto grau de
autonomia institucional. O núcleo do poder militar estava embutido naquilo que chamavam de
sistema: um órgão informal que agrupava os generais do Alto Comando Militar. (BORGES,
2003, p. 21)
Tal sistema tinha a tarefa de decidir sobre as questões políticas internas e externas.
Devido a isso, os partidos civis, estando divididos entre os partidos do governo (Arena-PDS)
e da oposição (MDB), ficavam relegados a “meros coadjuvantes no cenário político”
(BORGES, 2003, p. 22), sendo vetada a eles, pelas Forças Armadas, a transferência dos
centros de decisão política.
A ditadura militar no Brasil pode ser dividida em três períodos: o primeiro que se
inicia com o golpe, em 1964; nessa fase, havia a possibilidade de a “revolução” ter um caráter
provisório, pensamento descartado por aqueles que acreditavam num processo revolucionário
permanente o que se confirmou no governo Costa e Silva, após a publicação do AI-5. A
publicação do ato institucional número 5 deu início ao segundo período da ditadura militar,
que se prolonga aa sua revogação; essa é a fase na qual são intensificadas as perseguições
por parte do sistema de informação e segurança da ditadura militar, bem como as práticas de
tortura aos presos políticos. Na terceira fase, o governo Figueiredo continuidade à
liberalização iniciada no governo Geisel, e que prosseguiu até a reversão do “processo
revolucionário”, quando ocorreu também o arrefecimento da censura. Foi nessa última fase,
com o desaparecimento do AI-5, que se deu o processo de “devolver” o poder aos civis,
“desde que em bases confiáveis.” (BORGES, 2003, p. 23)
140
O Serviço Nacional de Informações (SNI) exerceu papel de destaque durante o regime
militar, baseado na Doutrina de Segurança Nacional, sendo o responsável pela repressão
organizada e generalizada deste período. De acordo com Borges, “o SNI vai reduzir suas
ações terroristas quando o general Geisel demite o comandante do II Exército, após a morte,
por tortura, de dois presos políticos, um jornalista e um operário.” (2003, p. 23). Isso
demonstra que, a partir dessa época, havia uma preocupação por parte do regime em
redirecionar o SNI à ocupação de ser apenas um órgão de informação do governo, a fim de
obter-se “uma efetiva contenção das Forças Armadas como um aparelho de intervenção no
domínio político.” (GOÉS, 1984, p.371 apud BORGES, 2003, p. 23)
A Doutrina de Segurança Nacional, que serviu como base do Golpe de 64, foi
originada dos Estados Unidos, fruto da Guerra Fria, e objetivava estruturar um Estado forte ou
uma determinada ordem social. Sua ideologia dominante é a de uma permanente guerra entre
o comunismo e os países ocidentais, afirma Borges (2003). Também o Serviço Nacional de
Informações (SNI), criado durante o governo Castelo Branco, teve, ao longo do regime, a
função não apenas de obter informações, mas também de contribuir com a repressão política.
Através dos Atos Institucionais, a Ditadura se fez soberana, não apenas usurpando o
poder através do golpe, como também concentrando todos os poderes e funções do Estado
elemento necessário para a manutenção do regime. Para isso, os aparelhos de segurança e
informações foram de suma importância.
Para Borges (2003), a geopolítica dos militares latino-americanos tem como meta,
além do estabelecimento dos limites geográficos, trabalhar também com as fronteiras
ideológicas. Tais fronteiras teriam como objetivo separar as pessoas dentro de uma mesma
nação. Isto nos recorda uma peça de Bertolt Brecht, chamada Cabeças redondas, cabeças
pontudas (1932-1935), a qual foi criada por ele para fazer uma sátira ao nazismo que se
encontrava no seu auge.
A peça é situada no fictício reino de Jahoo, no qual os ricos proprietários apelam para
ajuda de Iberin, temendo que camponeses endividados se rebelem. Sabedor da pouca
tendência do povo para abstrações, Iberin procura desviar a atenção deles da real crise que
estão enfrentando através de um mito. Para isso, ele os aponta um inimigo “real”, “palpável”,
e começa a revelar ao povo a existência de um antagonismo no seio da comunidade: as
pessoas de cabeça redonda versus as pessoas de cabeça pontuda, sendo que estas últimas
seriam responsáveis por toda a crise atravessada pelo reino. Desta maneira, através da
repetição, ele direciona aos cabeças pontudas toda a frustração e o ódio acumulados devido
aos problemas sociais e econômicos enfrentados. O estratagema coloca, desta forma, uns
141
contra os outros, e desviando-os dos seus reais problemas e objetivos. Devido a isso, Iberin
passa a ser o conselheiro, o líder, aquele que tem a solução para todos, independente da classe
social. Ele é aquele que vem restabelecer a ordem. Contudo, para que isso aconteça, é preciso
extirpar o mal dentre eles, e este mal está, justamente, naquelas pessoas de cabeças pontudas,
as quais pagarão um preço alto para que a sociedade seja “purificada”. Muitos serão presos,
exilados, torturados e até mesmo assassinados em nome da ordem e do progresso do reino.
Para Sodré (1984)
o maior milagre desse reinado de cabeças redondas é de ordem semântica: o nazismo será
apelidado de democracia; a espoliação dos que possuem pouco será chamada
desenvolvimento; a impostura será conhecida como cultura; a verdade será a mentira e a
mentira consagrada como verdade. É a degradação da linguagem. (SODRÉ, 1984, p. 8)
No contexto do regime militar ditatorial, “toda a política nacional (...) é reorientada em
função da segurança, sendo que as esferas militar e política são indissoluvelmente ligadas, de
maneira que a política deixa de ser uma arte civil para se transformar em arte militar.
(BORGES, 2003, p. 28). Passa-se, portanto, a viver uma guerra no interior da nação, na qual a
eliminação do inimigo interno deve ser prioridade em nome da segurança nacional. “A guerra
interna é, pois, uma guerra total e permanente, o que vai atribuir um forte papel, na sociedade
civil, aos aparelhos de segurança e informações que agem, preferencialmente, pela violência,
com suas táticas de guerra e métodos desumanos” (BORGES, 2003, p. 28). Há, nesses termos,
a implantação da violência “legal” ou “justa”.
Não podemos esquecer da violência psicológica que se instaura nesse processo e, por
meio da qual, é imposto todo esse projeto político. Neste tipo de violência ocorre a tentativa
de aniquilamento moral do “inimigo”, assim como de seu distanciamento dos demais
cidadãos, para que não venha a “contaminá-los” com suas idéias subversivas.
A DSN se servia dos meios de comunicação e das técnicas psicossociais para
influenciar as massas. Ela visava “a desmoralizar o inimigo, a produzir deserções, a criar o
silêncio, a fazer cooperar (delatar) e a fazer aderir às políticas do Estado.” (BORGES, 2003,
p. 28). O terror era utilizado com o objetivo de intimidar o inimigo e dissuadir os indecisos;
para isso, os órgãos de segurança não limitavam o uso da tortura, de prisões arbitrárias, do
desaparecimento de pessoas e até mesmo de assassinatos. Para Borges (2003), a essência da
DSN residiria no ajuste da sociedade às exigências de uma guerra interna, física e psicológica,
de características anti-subversivas contra o inimigo comum. Segundo ele,
142
... não resta a menor dúvida de que a Doutrina põe em risco a defesa dos direitos humanos,
pois exclui os pressupostos mínimos da cidadania. Quando “é impossível determinar com
exatidão quem deve ser tido como inimigo do Estado e que atividades serão consideradas
permissíveis ou toleráveis, já não haverá garantias para o império da lei, o direito de defesa ou
a liberdade de expressão e associação. Mesmo que sejam mantidos na Constituição, tais
direitos formais existem, na prática, segundo o arbítrio do aparato repressivo do Estado de
Segurança Nacional. Todos os cidadãos são suspeitos e considerados culpados até provarem
sua inocência” (Alves, 1984, p. 40). (BORGES, 2003, p. 30)
Os AIs (Atos Institucionais), publicados durante o regime militar, foram criados para
legitimar e legalizar as ações políticas dos militares, ao mesmo tempo em que estabelecia para
eles poderes que, sem esses mecanismos, seriam considerados inconstitucionais. Entre os anos
de 1964 e 1969, 17 Atos Institucionais foram decretados e regulamentados por 104 atos
complementares. A justificativa dada pelo governo era que seu objetivo seria o combate
contra a subversão e a corrupção. Já no primeiro ato publicado, o AI-1, redigido em 9 de abril
de 1964, pela junta militar, dava ao governo poderes para alterar a Constituição, suspender
direitos políticos dos cidadãos, cassar mandatos legislativos, demitir, aposentar ou colocar em
disponibilidade aqueles que eles acreditassem estar atentando contra a segurança do país.
Para Borges (2003), os direitos políticos e civis foram os que mais sofreram com a
ação do regime. O direito ao habeas corpus foi suspenso para crimes políticos, o que resultou
na total perda de cidadania. “Prisões eram feitas sem mandado judicial, os presos eram
mantidos isolados e incomunicáveis, sem direito a defesa.” (CARVALHO, 2001, p. 193 apud
BORGES, 2003, p. 40)
A tortura física e psicológica, praticada de maneira bárbara, era uma constante. Não
havia privacidade de domicílio e o segredo de correspondência era violado. As escutas
telefônicas eram utilizadas sem qualquer consentimento judicial. A censura prévia a todos os
meios de comunicação acabou com a liberdade de imprensa. Os estudantes ficaram privados
de qualquer atividade política e não havia liberdade de expressão, nem mesmo para os alunos
reivindicarem seus direitos. “O brasileiro se transformou em cidadão de terceira classe, cujos
pleitos não podiam ser dirigidos ao Judiciário, reduzido que foi pelos atos de exceção.”
(BORGES, 2003, p. 41)
Em Vida e morte da ditadura: 20 anos de autoritarismo no Brasil, Nelson Werneck
Sodré estabelece as condições para a implantação do regime militar, que ele denomina como
fascista, no Brasil. O golpe teria como pano de fundo o plano “imperialista” de controle dos
países latino-americanos, impedindo que estes fossem contaminados pelo comunismo, como
ocorrera em Cuba. Após a revolução cubana, os Estados Unidos criaram uma verdadeira
143
obsessão por impedir que o mesmo se repetisse em outros países latinos. Obsessão agravada
pelas derrotas sofridas na Coréia e no Vietnã.
O anticomunismo fornecido a granel a tais áreas consistiu, sumariamente, em doutrinação
simplista: o mundo estava dividido em duas partes, ou hemisférios, inconciliáveis: o ocidental,
“democrático”, cristão”, livre”, e o oriental, socialista, a que eram atribuídos malefícios
numerosos; o comunismo representava o materialismo mais grosseiro, a violência, a violação
de todos os princípios humanos, a agressão, a catástrofe, uma espécie de inferno bíblico.
Como os dois hemisférios haviam atingido altíssimo nível de antagonismo, não havia
possibilidade de conciliação. Conseqüentemente a guerra era inevitável e, nela, não havia
lugar para neutros ou para posições não-alinhadas. Os países geograficamente situados no
Ocidente jamais se fixou um meridiano que separava as duas áreas antagônicas estavam,
por isso mesmo, obrigados a acompanhar a liderança norte-americana. Qualquer dúvida
representava uma traição à pátria, à religião e à família. (SODRÉ, 1984, p. 23)
Devido a isso, Sodré (1984) afirma que, durante o período de maior tensão entre EUA
e URSS, os países latino-americanos ficaram proibidos de manter relações diplomáticas com a
União Soviética e seus aliados. Foi criada aqui a Escola Superior de Guerra com o intuito de
doutrinar os altos chefes militares das Forças Armadas, funcionários graduados dos
ministérios, das instituições estatais e paraestatais, assim como os grandes empresários. E,
depois de doutrinados, eles estariam aptos para interpretar, “adequadamente e
solidariamente”, os acontecimentos políticos, assim como proveriam o aparelho do Estado
mantendo o status quo. Sodré ressalta que, para eles: “Se a situação apresentasse algum
perigo, a solução consistiria em estabelecer governos fortes, exercidos por militares filtrados
naquela cuidadosa preparação.” (1984, p. 24)
Tal doutrina de segurança alterou profundamente a doutrina militar brasileira,
estabelecendo que o inimigo permanente da nação estaria no seu interior e seria brasileiro.
Dessa forma, “os próprios brasileiros (...) são tratados como inimigos nessa doutrina. São
aqueles que, não esposando a doutrina, se constituem em “subversivos”. (SODRÉ, 1984, p.
25). A guerra passa a ser “revolucionária” e empreendida no interior da própria nação. Os
subversivos, os revolucionários, que contestam o regime estabelecido passam a ser apontados
como “responsáveis” por todos os males da nação, tornando-se bodes expiatórios.
Contra esse inimigo, as forças armadas estão em guerra, guerra implacável, guerra sem
tréguas: as ações policiais e repressivas, iniciadas em 1964 e que prosseguiram ao longo dos
anos e culminaram após o Ato Institucional nº 5, o famigerado AI-5, funcionando os tribunais
militares como cortes marciais e únicas, definem os traços dessa guerra de tipo novo, na qual
as forças armadas, a partir de 1964, estão empenhadas. (SODRÉ, 1984, p. 26)
144
Para levar a termo o seu intento de estabelecer um governo militar, foi divulgada a
idéia de que o Brasil estava prestes a passar por uma revolução socialista. E, por meio de um
sofisticado aparato de propaganda, o golpe conseguiu convencer boa parte da população de
que era preciso um controle enérgico da situação enquanto era tempo. Agindo assim,
dispersou as resistências e se aliou aos pilares fortes da sociedade: as famílias, a Igreja e os
militares. Ao obter o triunfo, o regime, então, passou a condenar todos aqueles que ousassem
contestá-lo.
Uma inversão dos valores foi estabelecida; o termo ‘patriotismo’ tomou uma nova
conotação, e todos aqueles que lutavam a favor da pátria e pela melhoria de vida para os
brasileiros passaram a ser chamados de subversivos. Sodré (1984) relata que professores
foram presos, por ensinarem a conhecer e amar o Brasil; pesquisadores, porque conheciam os
problemas existentes e passavam tal conhecimento adiante; jornalistas, porque reivindicavam
a liberdade de opinião; e intelectuais, por defender, pintar ou cantar a nossa cultura.
“Patriotismo passou a ser encarado como sentimento clandestino, fora da lei, punido com os
rigores do IPM e com o cárcere e a tortura.” (SODRÉ, 1984, p. 62)
O golpe militar de 64 difere dos anteriores por meio de características como: “o
massacre dos seus oponentes, a destruição física das pessoas e de organizações, o
estabelecimento de uma nova normalidade, a “de forjar a marteladas um novo regime”
(SODRÉ, 1984, p. 33), a adequação do regime às finalidades do imperialismo, a disseminação
do pânico entre a população, principalmente a burguesia. Entretanto, os participantes nem
sempre tinham consciência do complexo processo no qual estavam envolvidos. Eles, na sua
maioria, foram “arrastados pela lavagem cerebral que consiste em fazer crer naquilo que os
meios de comunicação repetem a cada minuto e que, pela repetição, se fixa como
incontestável verdade.” (SODRÉ, 1984, p. 33)
Acreditando estar salvando a nação, o uso da força seria, portanto, indispensável. Por
isto:
Em defesa da Constituição, foi rasgada a Constituição; para preservar o advento de alterações
democráticas, privou-se uma geração inteira do elementar direito de votar; para defender os
interesses do imperialismo, vedou-se ao judiciário a apreciação dos atos ditatoriais e
estabeleceu-se gida censura que destruiu o teatro, ameaçou gravemente o cinema, calou a
oposição, impediu os jornais e revistas de revelarem a verdade e estabeleceu a “ordem”, isto é,
o clima pantanoso do conformismo, agravado quando as prisões se encheram, o exílio se
estabeleceu como norma para os adversários e, em último caso ou não, o massacre apareceu
como necessidade salvadora. (SODRÉ, 1984, p. 35)
145
Contrariando seu discurso de posse, no qual prometeu ao povo brasileiro democracia,
diálogo, ordem jurídica estável e reformas, o Presidente Costa e Silva, em 13 de dezembro de
1968, baixa o Ato Institucional número 5, ou AI-5. Tal ato pode ser considerado o mais atroz
do regime militar, considerado por alguns autores como “o golpe dentro do golpe”. Tomando
como pretexto o discurso do deputado Márcio Moreira Alves, que foi considerado ofensivo às
Forças Armadas, o AI-5 foi decretado com um diferencial dos anteriores: não vinha com
vigência de prazo. O congresso foi colocado em recesso, bem como seis assembléias
legislativas estaduais e dezenas de câmaras de vereadores em todo o país, e mais de 69
parlamentares foram cassados, até mesmo Carlos Lacerda, governador da Guanabara e um
dos principais articuladores civis do golpe. “O resultado de todo esse arsenal de Atos,
decretos, cassações e proibições foi a paralisação quase completa do movimento popular de
denúncia, resistência e reivindicação, restando praticamente uma única forma de oposição: a
clandestina.” (ARNS, 1985, p. 62)
No ano seguinte, o Congresso Nacional é reaberto para referendar o nome do General
Garrastazzu Médici, indicado para a presidência da República. Médici inicia, em 30 de
outubro de 1969, aquele que seria o período mais repressivo e violento da ditadura. Um
aparato dos órgãos de segurança com características de poder autônomo desenvolve-se,
levando aos cárceres da ditadura milhares de cidadãos. Nesse momento, a tortura e o
assassinato transformam-se em rotina no Brasil.
Alguns setores da sociedade que, no início, apoiaram o golpe, a exemplo da Igreja
Católica, passaram a ser, também, vítimas de repressão, principalmente aqueles clérigos que
eram acusados de estar envolvidos com os movimentos populares. Devido a isso, sacerdotes e
freiras foram presos, conventos cercados, templos invadidos. O exemplo mais contundente é o
do Frei Tito de Alencar, preso em São Paulo, em 1969, submetido a prolongadas torturas pelo
DOPS, e mesmo após sair para o exílio, estando em Paris, não conseguia se livrar do medo e
das assombrosas lembranças deixadas pelas torturas, chegando ao ponto de se enforcar em
1974.
A pesquisa do projeto “Brasil nunca mais” revelou quase cem diferentes modos de
tortura aplicados aos presos políticos brasileiros, a exemplo da pressão psicológica, a agressão
física e a utilização dos mais variados instrumentos. O livro Brasil nunca mais (1985) traz
uma série de depoimentos parcialmente transcritos que demonstram quais os principais modos
e instrumentos de tortura adotados pela repressão no Brasil. Entre eles: O “pau-de-arara”; o
choque elétrico; a “pimentinha” e dobradores de tensão; o “afogamento”; a “cadeira de
146
dragão”; a “geladeira”; a utilização de insetos e animais, produtos químicos, lesões físicas,
palmatória, tortura chinesa, etc.
Isso deixa claro que, durante os vinte anos de regime militar, o governo ignorou o
artigo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada pelo Brasil, que reza:
“Ninguém será submetido à tortura, nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou
degradante.” (apud ARNS, 1985, p. 34). A violência e a arbitrariedade do governo
ultrapassou os limites da perseguição aos grupos organizados de esquerda, intelectuais e
estudantes e a obsessão no combate aos “subversivos” fez com que muitos “inocentes” fossem
incriminados, espalhando um clima de insegurança, intranqüilidade e medo em toda a
sociedade.
5.2.1 Arte, engajamento e censura: a caça às bruxas no Brasil contemporâneo
Segundo Roberto Schwarz, em seu texto “Cultura e política, 1964-1969”, “... Houve
um tempo em que o país estava irreconhecivelmente inteligente”, com “Política externa
independente”, “reformas estruturais”, “libertação nacional” etc. (apud HOLLANDA, 1990,
p. 8). Tal afirmação de Schwarz deve-se ao fato de que, no período que antecedeu ao golpe,
ou seja, a partir da campanha pela legalidade a favor da posse de João Goulart, intensificaram-
se as discussões sobre os rumos políticos e ideológicos do país. As esquerdas se sentiram
fortalecidas e a luta política e ideológica passou a envolver rios setores da sociedade, entre
eles os trabalhadores, uma parte do contingente militar e, também, estudantes e intelectuais
29
.
Algumas esferas da sociedade organizaram-se em sindicatos, a exemplo do Comando Geral
dos Trabalhadores (CGT), entidades estudantis como a União Nacional dos Estudantes
(UNE), organizações como o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e o Comando
dos Trabalhadores Intelectuais (CTI).
29
A figura do intelectual como aquele indivíduo que defende as causas universais e transgride a ordem vigente,
surgiu no século XIX com Zola, durante o caso Dreyfus. No século XX aparece em cena o chamado intelectual
engajado, ou seja, o “intelectual que intervém publicamente se colocando à esquerda no espectro político e tendo
como horizonte o ideal de uma sociedade justa e igualitária – a sociedade socialista.” (CHAUÍ, Marilena.
Intelectual engajado: um ser silente ou animal em extinção? Disponível em:
http://www.ufrr.br/novo/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=906. Acesso em: 28 maio 2007.)
147
Este processo intenso de transformações, de reorganização das estruturas políticas e
ideológicas e, principalmente, o condicionamento do Estado a esse processo, propiciou o
surgimento de novos atores na cena política e cultural do país. Pois na medida em que a
politização da sociedade se fazia no sentido de reafirmar um caráter nacional (antiimperialista)
dessa participação, ela também se declarava “autenticamente” popular – buscando no conceito
de cultura a sua justificação. Essa justificação por meio de noções como “nacional”,
“popular”, “autenticidade”, entre outras, se deu não somente em função do arranjo das
ideologias em torno do aparelho estatal, mas sobretudo pela reformulação das ciências sociais
no Brasil no final dos anos 50 e da sua participação na formulação de um projeto nacional.
(CZAJKA, 2004, p. 41,42)
Favoráveis às reformas estruturais, estudantes e intelectuais passaram a desenvolver
uma intensa atividade de militância política e cultural. Toda essa efervescência abriu, para os
intelectuais e artistas, a possibilidade de intervir na vida política e ideológica do país. uma
intensificação na preocupação de formar uma cultura nacional e popular agora partindo de
pressupostos sociais e filosóficos. Neste projeto, destacam-se duas entidades: O ISEB e a
UNE (em especial seu Centro Popular de Cultura, o CPC). Tais organizações tornaram-se
centros nos quais os rumos do nacionalismo de esquerda eram discutidos. A ordem do dia era
“a definição de estratégias para a construção de uma cultura ‘nacional, popular e
democrática’. Atraindo jovens intelectuais, os CPCs (...) tratavam de desenvolver uma
atividade conscientizadora junto às classes populares” (HOLLANDA, 1990, p. 9). A produção
intelectual e artística dos seus integrantes era evidente, segundo Ferreira Gullar:
havia um grupo que era ligado anteriormente ao Iseb, à Editora Civilização Brasileira, e um
segundo grupo formado no próprio CPC, que era um grupo mais jovem. Do primeiro grupo,
por exemplo, surgiram os colaboradores dos Cadernos do Povo Brasileiro (1962), os
organizadores do Comando dos Trabalhadores Intelectuais (1963) e o Conselho da Revista
Civilização Brasileira (1965) e do segundo grupo saiu o Teatro Opinião (1964). Percebe-se
que o Iseb influenciava muito setores da produção cultural e intelectual antes do golpe militar
de 1964. O pessoal do CPC da UNE tinha ainda Carlos Estevão Martins, que era ligado ao
Iseb (...). Nesse sentido, o ISEB trazia um certo suporte, uma visão crítica da sociedade
burguesa brasileira, a luta antiimperialista, e colocava uma série de questões que até essa
intelectualidade jovem não tinha conhecimento, e bebeu isso no Iseb. (apud CZAJKA, 2004,
p. 43)
Também o Partido Comunista Brasileiro (PCB), que se encontrava na ilegalidade
desde 1947, neste momento, segundo Czajka (2004), vem se estruturando politicamente, em
função das determinações do XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (1956),
da Declaração de Março corroborada por Krushev (1958), do V Congresso do PCB (1960) e
da fundação do PC do B (1962), constituindo uma dissidência no próprio PCB. Tais
148
mudanças na forma política, nas concepções e métodos com o desencadeamento do processo
renovador irão permitir ao PCB “uma inserção crescente e contínua na vida sócio-política
brasileira até 1964 (...) e isso implicou em que o PCB passasse a ter responsabilidades e papel
destacado e marcante nos principais episódios e acontecimentos do período em questão”
(SEGGATO, 1995 apud CZAJKA, 2004, p. 44). Isso pode ser evidenciado através de uma
declaração de Luís Carlos Prestes a uma estação de TV paulista: “não estamos no governo,
mas estamos no poder”. (CARONE, 1982. p. 3)
Em início de abril de 1964, um mês após a declaração de Prestes, ocorre o golpe
militar e o General Castelo Branco assume a Presidência da República. O golpe de 64 trouxe a
intervenção militar imediata nas instituições organizadas, vindo a desestruturar a maior parte
delas. O ISEB foi fechado, a UNE foi colocada na clandestinidade e teve sua sede no bairro
de Botafogo (RJ) incendiada.
No entanto, os projetos fomentados por tais instituições não foram totalmente
abandonados e novos espaços foram criados para a articulação e o debate em torno das
questões nacionais. Criou-se o Comando dos Trabalhadores Intelectuais (CTI), no qual se
aglomeravam cineastas, atores, escritores, artistas plásticos, jornalistas, professores, cientistas,
etc, que era presidido por Ênio Silveira, editor e proprietário da Editora Civilização Brasileira.
De acordo com Czajka (2004), o CTI tinha como finalidade: congregar trabalhadores
intelectuais, na sua mais ampla e autêntica conceituação; apoiar as reivindicações específicas
de cada setor da cultura brasileira, fortalecendo-as dentro de uma ação geral, efetiva e
solidária; participar da formação de uma frente única, democrática e nacionalista, com as
demais forças populares, arregimentadas na marcha por uma estruturação melhor da
sociedade brasileira.
Neste período, o papel exercido pelos intelectuais engajados foi de suma importância.
Seu posicionamento, quase sempre, foi de oposição e resistência ao regime estabelecido.
Devido a isso, eles se tornaram alvo de todo tipo de censura, perseguições, seqüestros,
torturas, assassinatos. Muitos foram obrigados a deixar o país, outros, impedidos de continuar
suas atividades. Qualquer um poderia sofrer retaliações arbitrárias, o que ocasionou uma
desestruturação em universidades, na produção acadêmica e na vida político-partidária.
Todavia, mesmo impelidos a parar de produzir, os intelectuais brasileiros não interromperam
suas criações, mas procuraram subterfúgios para continuar falando aquilo que a nação
necessitava ouvir, ficando a criação artística do período bastante marcada pelo contexto da
ditadura.
149
Durante o ano de 1964, a perseguição a trabalhadores, estudantes, intelectuais, além do
expurgo a professores e funcionários públicos crescia e se intensificava, provocando, assim,
uma reação de resistência por parte da imprensa. Thereza Cesário Alvim, no livro intitulado O
golpe de 64: a imprensa disse não, reúne textos escritos durante o primeiro ano do golpe por
escritores como Alceu Amoroso Lima, Antonio Calado, Carlos Heitor Cony, Carlos
Drummond de Andrade, Otto Maria Carpeaux, Marcio Moreira Alves, Rubem Braga, entre
outros. Tais textos mostram como estes intelectuais perceberam, desde o início, a verdadeira
face do regime, o embuste dominador que se escondia atrás da capa de democracia para
implantar no país um regime autoritário e hegemônico.
Descreveremos a seguir trechos desses textos publicados no ano de 64 em alguns dos
jornais de grande circulação no país, nos quais as injustiças e as arbitrariedades cometidas
pelo novo sistema são denunciadas:
Hora de provar
O maior erro de um Presidente da República, em nosso sistema de governo, está em
considerar-se dono do País e de seus habitantes. Esquece-se de que é um servidor um
servente, que ajuda no trabalho como outros, e até mais tolhido e desamparado do que os
outros, em seu período limitado de exercício e na imensidão de obrigações que deveriam
assustá-lo em lugar de enchê-lo de arrogância. É preciso muita lucidez, muita polícia íntima,
para que o presidente se ponha no seu lugar, aparentemente mais alto de todos e, no sentido
moral, tão frágil e escravizado à lei quanto o de um mata-mosquito.
[...]
É com tristeza misturada a horror que, ao longo da vida, tenho presenciado generais depondo
presidentes, por piores que estes fossem. Será que jamais aprenderemos a existir
politicamente? Não haverá jeito para o Brasil? [...]
(Carlos Drummond de Andrade – C.M. 4 jun. 64)
Res Sacra Réus
A SOI-DISANT Revolução de de Abril pode ter alguns aspectos simpáticos. A subida do
marechal Castelo Branco ao poder seria um destes aspectos simpáticos. Mas o que prevalece
são os aspectos não apenas antipáticos, mas repulsivos. E para sabermos qual aspecto mais
antipático ou mais repulsivo – o páreo é duro. De minha parte, não tenho dúvidas em apontar a
pior faceta do 1º de abril: o ilegal e violento desrespeito à dignidade humana.
Perdoa-se a confusão, os equívocos, as precipitações. E estou sendo generoso ao não
mencionar as perseguições e as vinganças que também se institucionalizam nesta súbita e
medieval caça às feiticeiras que estamos vivendo.
[...]
Pois no Brasil de 1964 não se respeita nada. Cassam mandatos sem que os réus tenham a
oportunidade de abrir a boca. Suspendem direitos políticos e nem os punidos sabem por que
crime, por que omissão ou ação perderam seus direitos.
Quem está por trás de toda esta aberração jurídica, deste estupro moral em que se violenta toda
a Nação? Não sabemos: O que vemos aqui fora é estarrecedor. Quem parece ditar as leis e os
modos à Revolução são alguns histéricos e analfabetos [...]
150
[...] Respeitem ao menos a dignidade dos acusados. As prisões estão lotadas, sujas de vômitos
e de sangue. Essa nódoa será lavada, um dia, mas os homens que a toleram, os homens que a
aumentam, esses ficarão com o estigma para sempre. E pagarão um dia a ignomínia e a
violência. Serão eles os seus próprios verdugos diante do povo e da História.
(Carlos Heitor Cony – C.M. 28 abr. 64)
A farsa desfeita
A farsa de apresentar, como revolução, a quartelada de abril já se acha completamente desfeita
e desmoralizada.
Não era preciso um movimento revolucionário, se fosse o caso, para combater a subversão e a
corrupção. Além do mais, tanto o conceito de corrupção como o de subversão não ficaram
devidamente esclarecidos pelos governantes atuais.
Corruptos conhecidos, de escala internacional, orgulhosos de serem o que são, exerceram e
exercem uma poderosa influência na constituição e na vida do governo.
E que dizer dos subversivos? Tudo aquilo de que eles eram acusados de pretender executar foi
posto em prática, sem a menor cerimônia, pela nova situação. Tivemos a Constituição violada,
o Congresso coagido, o Poder Judiciário ameaçado, sem falar nos atentados aos direitos
políticos e à legalidade democrática e, finalmente, o adiamento das eleições de 65 com a
prorrogação do mandato presidencial.
[...]
Mas o que vemos? A interrupção do processo democrático, com o estabelecimento de uma
ditadura disfarçada. E quais as conseqüências dessa ditadura? O país estagnado e sem saída
imediata. As medidas tomadas, até agora, no campo econômico e financeiro, cerraram as
portas até mesmo para as soluções de emergência.
[...]
A vida política do País está ameaçada pelos civis e militares da direita, que continuam a
conspirar para impedir que o Brasil possa reencontrar o caminho de sua verdadeira revolução.
(Edmundo Moniz – C.M. 29 jul. 64)
Obrigado, Marechal
Foi preso anteontem o cidadão José Leite Lopes quando, na Chefatura da Polícia, tratava de
seu passaporte. Este indivíduo, se bem que não seja ladrão, assassino ou fabricante de bombas
Molotov, é, no entanto, perigosíssimo criminoso. Estão, portanto, de parabéns a polícia, a
revolução e o preclaro marechal que a chefia, sr. Humberto de Alencar Castelo Branco, por
terem livrado a sociedade (embora provisoriamente) de tão nociva figura.
O cidadão José Leite Lopes é um contraventor da boçalidade. Infringe, sistematicamente, a lei
revolucionária que estabeleceu severas punições para os que pensam por conta própria nesta
Terra de Vera Cruz. E não contente em praticar sozinho o feio vício do pensamento, comete-o
de público, todos os dias, nas aulas que na Faculdade de Filosofia, onde é catedrático. [...]
E vai mais longe, pois exporta essa atividade abjeta para todos os cantos do mundo, através de
conferências, livros e trabalhos que são publicados por entidades subversivas como a
Sorbonne, Cambridge, Gottingen ou Harvard. Em resumo, o horrendo espécime que a polícia
em boa hora pôs atrás das grades, enxovalha fora o traço de caráter mais estimado por
nossos amos revolucionários, que é a beocidade.
(Marcio Moreira Alves – C.M. 6 ago. 64)
(ALVIM, 1979, p. 54, 62, 72; 142)
151
Neste contexto, todos aqueles que ousassem falar a verdade e enfrentar o poder
vigente foram apontados pelo sistema assim como Cabeças redondas, cabeças pontudas
(peça de Brecht citada) e pagaram caro por tal comportamento. Em seu ensaio “Cinco
dificuldades no escrever a verdade”, Brecht (1967) nos alerta que, nos dias atuais, aqueles que
quiserem lutar contra a mentira e a ignorância e escrever a verdade teriam que superar cinco
dificuldades: ter a coragem de escrever a verdade, mesmo que ela se encontre escamoteada
em toda parte. Para isso o escritor não pode suprimir ou silenciar a verdade, nem curvar-se
ante os poderosos, nem enganar os fracos; ter a inteligência de reconhecê-la, ainda que esteja
disfarçada; deve saber manejá-la como uma arma; ter a capacidade de discernir em quais
mãos ela será eficiente; deve ter astúcia de propagá-la entre os escolhidos. Mas isso não é
tarefa fácil e vai exigir daquele que se propuser a cumpri-la uma generosa dose de dedicação,
desprendimento e principalmente amor à causa.
Apesar de toda perseguição que já sofriam nesse primeiro momento do golpe, os
artistas continuaram a produzir uma arte engajada, cujo principal objetivo era o protesto. Para
Eric Bentley, “a literatura engajada é radical; é uma literatura de protesto, não de aprovação,
de violência , e não de louvor.” (1969, p. 155). A produção cultural floresceu, entraram em
cartaz filmes como: Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, Os fuzis, de Ruy
Guerra, Vidas secas, de Nelson Pereira dos Santos. Também foram publicadas pela
Civilização Brasileira duas obras consideradas contestadoras: O ato e o fato, de Carlos Heitor
Cony e Canto para as transformações do homem, de Moacyr Felix; seria lançada também a
Revista Civilização Brasileira que serviu como veículo de mobilização para os intelectuais até
a vigência do AI-5.
Os novos atores e diretores teatrais passam a dar preferência aos textos nacionais e às
montagens simples. A preocupação com temáticas sociais cresceu e o teatro passou a ser visto
como uma ferramenta política, capaz de contribuir para mudanças na realidade brasileira.
Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes (ex-integrantes do CPC, que
naquele momento havia sido posto na ilegalidade) criaram o espetáculo Opinião, que estreou
no Rio de Janeiro, em dezembro de 1964, e foi a primeira reação teatral ao golpe militar. De
acordo com Cacciaglia, “As vicissitudes do teatro no Brasil estão intimamente ligadas ao
desenvolvimento específico da história do país” (1986, p.1). Sendo assim, no espetáculo
predominavam o espírito de resistência e a denúncia das novas condições vigentes. Subiam ao
palco dois compositores de origem popular, o carioca ti e o maranhense João do Vale,
juntamente com a garota de classe média de Copacabana, Nara Leão, posteriormente,
152
substituída por Maria Bethânia. A idéia do grupo, ainda influenciado pela ideologia do CPC,
era a de que
a arte é “tanto mais expressiva” quanto mais tenha uma “opinião”, ou seja, quanto mais se faça
instrumento para a divulgação de conteúdos políticos; a idealização, um tanto problemática, de
uma aliança do artista com o “povo”, concebido como a fonte “autêntica” da cultura; e um
certo nacionalismo, explícito na referência de indisfarçável sotaque populista às “tradições de
unidade e integração nacionais”. (HOLLANDA, 1990, p. 23)
O Opinião foi um marco para a cultura pós-64. Reunindo um público jovem, parecia
interpretar o sentimento daquela geração que sofria com a realidade opressora do poder
militar e tentava, através da fala, da música, expressar toda a sua indignação contra o
autoritarismo. O espetáculo, além de inspirar artistas plásticos a organizarem as mostras
Opinião 65 e 66, colaborou também para que a canção de protesto, a exemplo de
Caminhando, de Geraldo Vandré, fosse difundida.
Outros projetos, também considerados contestadores, como o Teatro de Arena, se
desenvolviam, dando início a um teatro-denúncia, que tinha por objetivo diminuir a distância
que separava o artista do resto do público. Com a ideologia de que o artista deveria ser
alguém que fizesse parte do público, ou alguém do público que eventualmente fizesse teatro.
Inaugurado em outubro de 1967, com a peça de Dias Gomes O santo inquérito, o
Arena atuou como um núcleo de resistência cultural durante a ditadura militar. Eles possuíam
conotações nitidamente políticas, assim como o Grupo Opinião, do Rio de Janeiro, obteve
grande sucesso com Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come, de Oduvaldo Vianna
Filho. Encenaram novos dramaturgos como: Augusto Boal (Marido magro, mulher chata),
Gianfrancesco Guarnieri (Eles não usam black-tie) e musicais como Arena canta Tiradentes e
Arena canta Zumbi, que projetou Paulo José e Dina Sfat.
Entre as peças realizadas pelo Teatro de Arena, podemos destacar também Liberdade,
liberdade, de Millôr Fernandes e Flávio Rangel, que foi encenada pelo Grupo Opinião. Sendo
uma das obras pioneiras do teatro de resistência, reunia uma antologia de textos do
pensamento político-liberal do ocidente para falar sobre um direito que estaria sendo
seqüestrado, a liberdade.
Em São Paulo, José Celso Martinez Correa desenvolveu trabalho semelhante com o
Grupo Oficina; eles montaram Os pequenos burgueses, de Gorki, Galileu Galilei, de Brecht, e
Andorra, de Max Frisch. O Oficina encenou também o texto O rei da vela, escrito por Oswald
de Andrade em 1937 e proibido pelo Estado Novo. O espetáculo tornou-se um marco para a
153
cultura brasileira ao desencadear o surgimento do Tropicalismo, estreando no mesmo ano em
que Caetano Veloso e Gilberto Gil agitavam a MPB com as canções Alegria, alegria e
Domingo no parque.
Merece destaque também a peça Roda viva, de Chico Buarque, encenada pelo Oficina,
criticando a alienação da sociedade brasileira através da destruição dos mitos criados pela
cultura de massa. O espetáculo fez grande sucesso mesmo após a crítica condenar sua
violência. Mas foi durante sua segunda montagem que a obra virou símbolo de resistência
contra a ditadura. Na noite de 18 de junho de 1968, em São Paulo, a peça foi condenada por
ser subversiva e um grupo de cerca de 110 pessoas do Comando de Caça aos Comunistas
(CCC) invadiu o Teatro Galpão, espancou artistas e depredou o cenário. O episódio, porém,
só fez aumentar o sucesso de Roda viva. Mas ao ser encenada, novamente, em Porto Alegre, a
agressão contra o espetáculo se repetiu e, em meados de 1968, a peça foi censurada
juntamente com O rei da vela.
À medida em que a ditadura se firmava, a repressão em torno do teatro ia crescendo e,
como acontece em épocas de opressão, os artistas passam a ser vistos como subversivos e
perturbadores da ordem. Censura, perseguição, prisão e exílio passaram a ser vocábulos
comuns entre os intelectuais e artistas.
Complementando todo o aparato político e ideológico da ditadura para a preservação
da segurança nacional e a conservação da família brasileira, foi instalada a censura, que teve
sua ação estendida em todas as áreas, seja em livros, jornais, revistas, filmes, televisão,
músicas, ensino e, principalmente, o teatro.
Para que uma peça fosse liberada, o texto era submetido à leitura de censores que,
despreparados culturalmente, poderiam liberá-la com cortes ou proibi-la. Além da censura do
texto, a peça passava ainda pela censura do espetáculo, que poderia ser cortado, mesmo tendo
sido aprovado o texto. Como aconteceu em julho do mesmo ano, quando Dias Gomes teve O
berço do herói proibido às vesperas da estréia, mesmo o texto tendo sido aprovado
anteriormente pela censura. Mais tarde, o autor ficaria sabendo que o responsável pela
proibição fora o governador Carlos Lacerda, que considerara a peça pornográfica e
subversiva. Também A invasão, de Dias Gomes, foi impedida de estrear em Leopoldina,
Minas Gerais, pois algumas autoridades locais consideraram a peça "pornográfica".
Dadas as circunstâncias, Dias Gomes, assim como outros escritores da sua geração,
decidiu não se calar, mas, de maneira subliminar, continuar contestando a realidade brasileira.
Através do Teatro de Resistência, eles passaram a tratar os problemas sociais apelando para
episódios históricos ou situações simbólicas através do uso da alegoria e da metáfora.
154
Assuntos históricos tornaram-se temas para: Gianfrancesco Guarnieri, em Castro Alves pede
passagem, e Ponto de partida; Ruy Guerra e Chico Buarque, em Calabar; Oduvaldo Vianna
Filho, em Papa Highirte; Carlos Queiroz Telles, em Frei Caneca; e Dias Gomes, em O Santo
Inquérito, entre outros.
A minha geração, violentamente castrada, enfrentou a estranha situação de a própria realidade
ser considerada subversiva pelos militares, pois ela era injusta, o governo sabia disso e a
proibiu nos palcos. Restaram duas opções: ou você se adaptava ao regime e não questionava
nada ou partia para um texto de metáforas, caminho que alguns autores encontraram para
continuar resistindo e denunciando. (GOMES apud AMORIM, s/d, s/p)
Segundo Flora Sussekind (2004), o regime militar utilizou-se de diferentes estratégias
para conseguir seus objetivos de controlar a cultura. Para ela, até 1968, houve uma certa
“tolerância” para apresentações engajadas. No entanto, não era permitido que esse tipo de arte
chegasse até as massas, como acontecia anteriormente com o CPC, que buscava o público nas
portas das fábricas, favelas, etc. Seu campo de ação ficou limitado a estudantes e intelectuais.
Os artistas ficavam restritos, portanto, a falarem ao “próprio espelho”, ou seja, poderiam falar
contanto que não falassem para as massas. Ao povo caberia um outro interlocutor, menos
questionador e mais cordato com o governo: a televisão.
Aproveitando esse filão, Dias Gomes, em 1969, entra efetivamente para a TV, onde
sua mulher Janete Clair trabalhava. Por essa atitude, ele foi criticado por alguns colegas
militantes de esquerda por ter aderido à produção de textos considerados como inferiores,
além de estar servindo a uma emissora que era tida como um dos sustentáculos do governo.
Ao que ele se defende:
Eu levei para a televisão a minha temática, o meu universo teatral, único modo que tinha de
me conservar fiel a mim mesmo, sem me deixar dominar pelo monstro televisivo. Foi uma
linguagem que tive que aprender levando em conta que a televisão é um meio linear,
superficial, efêmero. Quase todas as novelas que fiz foram, basicamente, extraídas de minhas
peças: O bem-amado é uma peça teatral, Bandeira 2 foi tirada em parte de A invasão, Quando
os homens criam asas virou Saramandaia, Roque Santeiro é O berço do herói. Mesmo o que
escrevi diretamente para a TV nunca se afastou do meu universo teatral. A televisão é um
veículo que mostra uma realidade da qual é produto, por isso não tenho preconceito algum em
trabalhar nela, aliás, se tivesse o teria ido. Mas se eu pudesse escolher, passaria a vida toda
escrevendo para o teatro. Fui para a televisão num momento em que todas as minhas peças
estavam sendo proibidas e eu precisava sobreviver economicamente. Por outro lado, dentro
das minhas convicções sociais, achei importante encarar essa platéia gigantesca. Toda a minha
geração sonhou com o teatro popular. A televisão me oferecia esse meio de expressão popular.
Fui para a Rede Globo e me senti à vontade porque, naquela época, nunca alguém mudou uma
vírgula dos meus textos, nem me disse o que escrever. Meus textos eram alterados pela
censura militar. Várias vezes a censura pediu a minha cabeça e a de outros autores comunistas,
155
mas a Globo não concordou. Apenas mais recentemente a censura interna da emissora
interferiu num texto meu, mudando diversas coisas na nova versão, para a TV, que eu tinha
feito de O pagador de promessas. (GOMES, 1999, s/p)
Mesmo sendo alvo de intimidações, censura e controle, é interessante perceber como
Dias Gomes driblou a censura dentro de um veículo que servia ao regime militar. Assumindo,
dessa forma, a identidade de resistência e, de maneira pacífica, chamando a atenção de todo o
Brasil para os problemas políticos do país, assim como suas estruturas sociais injustas. Para
isso ele fez diversas adaptações para que os textos pudessem ir ao ar, mas sem deixar de
mostrar as crendices e mitos do povo brasileiro, a politicagem e a demagogia dos seus
governantes e das elites. Sem trair seus temas.
A perseguição aos artistas, intelectuais e a todos aqueles que não comungassem com o
pensamento estabelecido pelo sistema se acirrou. Em fevereiro de 68, a classe teatral decidiu
fazer uma concentração, na porta do Teatro Municipal, para protestar contra a censura que
estava proibindo inclusive autores internacionais como: Gorki, Brecht, Tenesse Williams e
Feydeau. Até mesmo o dramaturgo inglês William Shakespeare teve uma de suas peças
submetida a cortes pelo Serviço de Censura do Governo Carlos Lacerda; em seguida entraram
em greve e, por três dias, foram suspensos todos os espetáculos do Rio de Janeiro e São
Paulo; durante esse tempo, os artistas permaneceram em vigília cívica nas escadarias do
Teatro Municipal.
Todo esse clima de repressão transformou o país em um “campo minado”. Os
movimentos de protesto surgiam por toda a parte, principalmente entre os estudantes. A
situação chegou ao ápice quando uma passeata programada para sair do restaurante
Calabouço, no Rio de Janeiro, foi impedida violentamente por uma invasão policial,
resultando na morte do estudante Édson Luiz de Lima Souto, que nada tinha a ver com os
protestos. Sua morte desencadeou uma série de movimentos de protestos contra o regime
militar em todo o país.
Dentre as manifestações existentes, a que mais repercutiu foi a Passeata dos Cem Mil,
que, em 26 de junho de 1968, ocupou as ruas do centro do Rio de Janeiro e realizou o mais
importante protesto contra a ditadura militar. Os manifestantes cobravam do governo uma
postura em relação aos problemas dos estudantes e demonstravam o descontentamento que
crescia em relação ao governo. Participaram da passeata estudantes, intelectuais, artistas,
padres e grande número de mães.
156
Todavia, tais protestos só fizeram com que o governo endurecesse mais ainda o regime
e, em dezembro deste mesmo ano, foi publicado o famigerado AI-5. A edição do AI-5 foi o
marco da estratégia repressiva que, de maneira violenta, cancelou as liberdades individuais
dos cidadãos brasileiros, expurgando professores e funcionários públicos, apreendendo livros,
discos, filmes, peças, tudo aquilo que pudesse se opor ao regime; houve também uma
intensificação das prisões e torturas, “A partir de 1968, trata-se de aprender a viver sob o
império da censura, do arbítrio” (SUSSEKIND, 2004, p. 28). Instala-se o domínio do medo, o
clima é de total insegurança.
A censura imposta pelo governo militar chega ao auge nos anos 70. Uma matéria
publicada pela Tribuna da Bahia, em 1975, fala sobre a ação da censura no Brasil, registrando
vetos a 400 textos teatrais de 1968 até aquele ano. Os autores, então, são obrigados a
encontrar uma linguagem que seja fácil para o espectador, mas que drible os censores. Nesse
momento, surgem jovens dramaturgos que irão se consolidar durante as décadas de 70 e 80,
entre eles estão: Mário Prata (Bésame mucho), Fauzi Arap (O amor do não), Antônio Bivar
(Cordélia Brasil), Leilah Assunção (Fala baixo senão eu grito), Consuelo de Castro
(Caminho de volta), Isabel Câmara (As moças), José Vicente (O assalto), Carlos Queiroz
Telles (Frei Caneca), Roberto Athayde (Apareceu a margarida), Maria Adelaide Amaral (De
braços abertos), João Ribeiro Chaves Neto (Patética), Flávio Márcio (Réveillon), Naum
Alves de Souza (No Natal a gente vem te buscar).
Tudo isso nos leva a refletir sobre a função social do teatro, bem como o seu papel de
transformação da ordem vigente. O teatro deve ser um espaço aberto, onde haja liberdade para
falar, contestar, denunciar e onde a principal função do artista seja manter o seu espírito de
contestação e mudança; espírito este que o impulsione a reconhecer os problemas sociais,
participar das lutas de seu povo, com o ideal supremo da conquista da liberdade, fazendo
oposição aos mecanismos de controle que tentam tolher o pensamento, a liberdade e até
mesmo a dignidade humana. Por isso, para Dias Gomes:
Talvez o Teatro não possa, realmente, transformar o mundo; mas, através dele, podemos, sem
dúvida, transmitir a consciência da necessidade de transformá-lo. E, ao contrário do que
julgam os que defendem para a arte uma atitude irresponsável perante a História, isto não
constitui em abastardamento, mas o reconhecimento de um humanismo sem o qual ela carece
de qualquer sentido.(GOMES apud BRECHT, 1967, orelha do livro)
157
5.3 Vivendo num tempo “em que falar de árvores é quase um crime”: O santo inquérito
como alegoria da Ditadura Militar
“Que tempo é este, em que falar de árvores é quase um crime, pois importa calar sobre
tantos horrores.” (Bertolt Brecht). Esta frase de Brecht, escolhida por Dias Gomes como
epígrafe de O santo inquérito, ilustra de maneira primorosa o tempo em que a peça foi escrita.
Tempo este em que o teatro teve que recorrer à linguagem metafórica e alegórica para poder
se comunicar e continuar vivo.
Para continuar escrevendo e ao mesmo tempo contestar sua realidade, Dias Gomes
procurou, no passado do nosso país, algo que pudesse representar o momento que ele estava
vivendo. Para isso, operou um recuo temporal, enfocando o Brasil do século XVIII, que vivia
sob o domínio da Inquisição. Achou na figura de Branca Dias a representação ideal das
pessoas que estavam sendo presas, torturadas e até mesmo mortas, pelo “crime” de discordar
da ideologia dominante. Decidiu, então, criar O santo inquérito, um texto alegórico, no qual
ele estabelece uma série de analogias que relacionam a Inquisição ao regime ditatorial vivido
no Brasil pós-64. Acerca da escolha de Branca Dias como personagem simbólica, ele relata:
Parece fora de qualquer dúvida que Branca Dias, realmente, existiu e foi vítima da Inquisição.
Segundo a lenda, bastante conhecida no Nordeste, Branca foi queimada, como Joana d’Arc. A
história não é tão precisa. controvérsia. [...] E se Branca, que segundo Ademar Vidal "era
jovem de boniteza excepcional", não terminou seus dias numa fogueira, bem poderia ter tido
essa sorte, pois os autos-de-fé de meados do século XVIII, em Lisboa, registram a condenação
de cerca de quarenta mulheres procedentes do Brasil. Aqui mesmo, na Bahia, em fins do
século XVI, a octogenária Ana Roiz foi queimada simplesmente "por ter, doente, tresvariando,
dito desatinos". Alguém (um ancestral dos modernos dedos-duros) ouvira e denunciara. [...]
Enfim, história e estória entram em choque e esta é uma briga para historiadores e
folcloristas. A mim, como dramaturgo, o que interessa é que Branca existiu, foi
perseguida e virou lenda. A verdade histórica, em si, no caso, é secundária; o que
importa é a verdade humana e as ilações que dela possamos tirar. Se isto o aconteceu
exatamente como aqui vai contado, podia ter acontecido, pois sucedeu com outras
pessoas, nas mesmas circunstâncias, na mesma época e em outras épocas. E continua a
acontecer. (GOMES, 1996, p. 13, grifo nosso)
Niskier (2006) chama a atenção para o fato de que a peça-protesto de Dias Gomes,
ironicamente, baseou-se amplamente num texto fantasioso e açucarado de Ademar Vidal, o
livro Lendas e superstições, publicado em 1950. Foi também Ademar Vidal, nesta publicação,
quem estabeleceu, sem revelar as fontes, que Branca Dias seria filha de Simão Dias e Maria
Alves Dias, nascida na capital da Paraíba em 15 de julho de 1734 e queimada na fogueira,
158
vítima da Inquisição lusitana, no auto-da-fé do dia 20 de março de 1761, às 6 horas da tarde,
em Lisboa. Ademar Vidal descreve Branca Dias em seu livro desta forma:
jovem de boniteza excepcional, pois ela, nas longas noites de luar, quando a serenidade
domina o ambiente, costuma surgir, assim de repente, andando na terra ou voando nas nuvens.
A leveza do vulto tem qualquer coisa de etérea. A imaginação depara Branca Dias vestida de
roupão muito alvo, os cabelos longos e soltos sobre os ombros, os pés com a sandália blica,
cinto de ouro e azul, enquanto as mãos nitentes são postas em cruz sobre o peito. Pelo aspecto
se sente o ar seráfico de anjo bom que teve atuação definida e definitiva ao transitar
fugazmente pelo mundo material de tantas e tamanhas desventuras.” (VIDAL apud NISKIER,
2006, p. 15)
Para Niskier (2006) não é difícil de entender o fascínio que a lenda de Branca Dias
exerceu sobre Dias Gomes, sendo ele um defensor incondicional dos direitos humanos e da
liberdade.
O dicionário Aurélio traz a definição de “alegoria” como: exposição de um
pensamento sob forma figurada; ficção que representa uma coisa para dar idéia de outra;
seqüência de metáforas que significam uma coisa nas palavras e outra no sentido;
simbolismo concreto que abrange o conjunto de toda uma narrativa ou quadro, de maneira
que a cada elemento do símbolo corresponda um elemento significado ou simbolizado.
Etimologicamente, a palavra alegoria” vem do grego αλλος, allos, “outro”, e αγορευειν,
agoreuein, “falar em público”, e significa “dizer o outro”, “dizer alguma coisa diferente do
sentido literal”. Já a definição de “metáfora” vem como: Tropo que consiste na transferência
de uma palavra para um âmbito semântico que não é o do objeto que ela designa, e que se
fundamenta numa relação de semelhança subentendida entre o sentido próprio e o figurado;
translação. Etimologicamente a palavra vem do grego metaphorá ("mudança, transposição").
De acordo com Carlos Ceia, “a alegoria é um dos recursos retóricos mais discutidos
teoricamente ao longo dos tempos” (2007, s/p). Os retóricos antigos distinguiam a alegoria
da metáfora. Para eles, enquanto esta considera apenas termos isolados, aquela amplia-se a
expressões ou textos inteiros. Para Henri Corbin (apud CHEVALIER; GHEERBRANT,
1988), “a alegoria é uma operação racional que não implica passagem a um novo plano de ser
nem a uma nova profundidade de consciência; é a figuração, em um mesmo nível de
consciência, daquilo que pode ser bem conhecido de uma outra maneira.” (p. XVI)
Em regra geral, a alegoria refere-se a uma situação ou a uma história que denotem um
sentido duplo e figurado, podendo ocorrer tanto num texto pequeno como um poema ou até
mesmo em um romance inteiro. Ceia (2007) salienta que “a decifração de uma alegoria
depende sempre de uma leitura intertextual, que permita identificar num sentido abstracto um
159
sentido mais profundo, sempre de carácter moral” (s/p), sendo necessário, contudo, que as
abstrações que determinam o sentido alegórico sejam de imediata compreensão. E, para que a
compreensão das possibilidades significativas da alegoria seja possível, é necessário que as
exegeses não estejam presas aos colégios hermenêuticos
30
, mas livres para serem
interpretadas pelos leitores.
Entre os exemplos clássicos de alegorias, podemos citar: o mito da caverna na
República, de Platão; o mito de Orfeu e Eurídice; as parábolas do Novo Testamento, a
exemplo de Mateus 13:1, que relata a parábola do semeador e do joio; a Divina Comédia, de
Dante ; as Morality plays inglesas e as Moralités francesas, do século XV; alguns autos de Gil
Vicente, como o Auto da Alma; o Pilgrim´s Progress, de John Bunyan; o Sermão de Santo
Antônio aos peixes, de Antonio Vieira; Gulliver´s travels, de Jonhatan Swift. No século vinte,
a alegoria contou com escritores como Virginia Woolf (Between the Acts), George Orwell
(Animal farm) e Kafka (O processo e O castelo). O próprio Dias Gomes trabalhou também
com a alegoria em outras peças suas, a exemplo d’As primícias, peça lírica e sensual, que
apresenta um parentesco com O santo inquérito, pois, num sentido metafórico, denuncia o
abuso do poder, seja ele político ou sexual.
Ceia (2007) afirma que o próprio exercício da crítica e da teoria literária tem se
servido de processos alegóricos. Freud e Jung interpretaram de maneira alegórica os sonhos e
mitos; James Frazer, em Golden Bough (1911-1915) fornece interpretações alegóricas de
mitos primitivos; o próprio Walter Benjamim, em seu ensaio “O narrador”, faz
alegoricamente a distinção dos dois tipos ideais de narrador, que seriam: o marujo, que nos
leva a lugares distantes e exóticos e o velho camponês que conta histórias antigas; Northrop
Frye, em Anatomia da crítica (1957), defende que toda a análise literária deve ser alegórica.
Segundo a Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda, a alegoria tem dois
planos: o da representação figurada, literal e visível, e o da significação encoberta. Os
elementos da representação figurada correspondem aos da realidade ocultada, e a
correspondência entre os dois planos se dá pelo princípio da analogia.
De larga aplicação na literatura, as analogias podem se estabelecer entre textos,
personagens, estilos, idéias, conceitos, autores, etc. Esta capacidade de instaurar um princípio
de identidade entre coisas que, genericamente, são diferentes, a analogia aproxima-se de
figuras como a alegoria, a comparação, a metáfora e o símile. Um texto é análogo de outro
quando se estabelece entre ambos uma determinada correspondência. (CEIA, 2007, s/p)
30
Hermenêutica é a arte de interpretar o sentido das palavras e dos textos.
160
Em O santo inquérito, podemos encontrar tanto a alegoria, que o texto como um
todo é uma; como as analogias, as quais são construídas ao longo do texto. no prefácio da
peça, no texto intitulado “O que sabemos e o que pensamos das personagens”, o autor
compara a Inquisição aos regimes de Hitler, Franco e MacCarthy, mostrando que, nestes
sistemas, os opressores estão convencidos de que seus fins justificam os meios e utilizam esse
argumento para tentar defender suas atrocidades. Padre José Bernardo, no livro A Inquisição
História de uma Inquisição controvertida, argumenta que:
... tanto o Estado como a Igreja se viam em face de um perigo crescente e ameaçador. Toda a
sociedade humana, a ordem civil e religiosa, construída com imensos esforços, toda a
civilização e cultura do Ocidente, o progresso, a união e a paz estavam ameaçados de
dissolução. (apud GOMES, 1996, p. 14)
Para defender seu poderio, embora contrariando a lei dos Evangelhos, eles se
referendavam em teólogos que defendiam o pensamento que aqueles que “contrariassem” a
ordem vigente deveriam ser punidos. Em A verdade sobre a Inquisição, Henrique Hello cita
Tomás de Aquino, um dos doutores da Igreja, para legitimar as arbitrariedades cometidas pelo
Tribunal:
Conforme São Tomás, todo aquele que tem o direito de mandar, tem também o de punir, e a
autoridade que tem o poder de fazer leis tem também o de lhes dar a sanção conveniente. Ora,
as penas espirituais nem sempre bastam. Alguns as desprezam. É por isto que a Igreja deve
possuir e possui o direito de infligir também penas temporais. (apud GOMES, 1996, p. 14)
Durante o julgamento de Branca Dias, Padre Bernardo utiliza o argumento de Tomás
de Aquino para justificar a punição contra ela:
Aqui estamos, senhores, para dar início ao processo. Os que invocam os direitos do homem
acabam por negar os direitos da e os direitos de Deus, esquecendo-se de que aqueles que
trazem em si a verdade têm o dever sagrado de estendê-la a todos, eliminando os que querem
subvertê-la, pois quem tem o direito de mandar tem também o direito de punir. (O santo
inquérito, 1996, p. 31)
neste trecho da peça, percebemos como o autor joga com o duplo sentido das
palavras. Padre Bernardo estava falando diante de um Tribunal do Santo Ofício, mas usando
palavras que poderiam ser ditas em outros contextos, como a Ditadura, ou em outras situações
onde o regime fosse hegemônico: “Padre Bernardo – Devemos deixar que continue a propagar
161
heresias, perturbando a ordem pública e semeando os germes da anarquia (...)?(O santo
inquérito, 1996, p. 31). São usadas também palavras que estão fora do contexto inquisitorial,
como “anarquia” e, mais adiante, “doutrinas revolucionárias” e “práticas subversivas”,
deixando uma brecha para adentrarmos as dúbias intenções, ou finalidades alegóricas do
texto.
Para Indursky (1997), “examinar o funcionamento do discurso presidencial do regime
militar brasileiro implica necessariamente analisar o funcionamento de um discurso
autoritário” (p. 15). Não apenas o discurso do regime militar, mas os discursos de sistemas
hegemônicos como a Inquisição, o nazismo, o macartismo, entre outros, são muito parecidos
por tratar-se, sempre, de um discurso autoritário e centralizador, no qual o “outro”, o
interlocutor, não tem o direito de argumentar, nem de discordar de nada que está sendo dito,
não tendo, em muitos casos, nem mesmo o direito de se defender.
No prefácio da peça, Dias Gomes traça um paralelo entre as ações do Tribunal do
Santo Ofício e a criação dos tribunais anti-comunistas nos Estados Unidos, nos anos 50.
Tribunais que, contrariando todo o discurso democrático americano, julgaram necessário
proteger sua sociedade contra uma suposta desintegração. Para isso, começaram a denunciar
os comunistas declarados “por pregarem uma ideologia revolucionária, com o fim confessado
de derrubar a ordem existente e a constituição democrática... Este proceder contra os
comunistas é uma genuína restauração dos princípios inquisitoriais da Idade Média.”
(GOMES, 1989, p. 279, 280).
Devido aos comentários de Dias Gomes sobre o macartismo, podemos concluir que,
quando decidiu escrever O Santo Inquérito, ele conhecia a peça de Arthur Miller, The
Crucible (As bruxas de Salém), na qual o autor lançara mão da metáfora para falar acerca de
acontecimentos contemporâneos.
Tendo em vista a responsabilidade do teatro e a função do artista na sociedade, Arthur
Miller escreveu The Crucible, como um texto alegórico no qual faz várias analogias entre o
tribunal de MacCarthy e a caça às bruxas ocorrida durante a colonização do solo americano.
Desejando exprimir as tensões próprias de sua época e lugar, “A motivação do autor incluía
claramente tomar uma atitude pública contra as inquisições autoritárias e o histerismo das
massas”, diz Gassner (1960, p. 351). Ao tomar conhecimento das perseguições sofridas por
intelectuais americanos pelo comitê anticomunista, Miller, que conhecia o fato histórico de
162
Salém
31
, ocorrido três séculos antes, logo o associou aos inquéritos de Washington. Resolveu,
então, ir a Salém consultar os autos originais do processo e conhecer o local dos
acontecimentos. Pois, segundo ele:
gradualmente, com o passar das semanas, uma ligação viva entre mim e Salém e entre Salém e
Washington formou-se na minha mente pois, fossem o que fossem aquelas audiências em
Washington, para mim elas eram profundamente e, até, confessadamente, ritualistas.
(MILLER, 1987, p. 313)
A intertextualidade entre as peças chamou a atenção de alguns críticos brasileiros e
estrangeiros, a exemplo de Peter J. Schoenbach, para quem: (...) Na linha d´As feiticeiras de
Salém, de Arthur Miller, a condenação d´O santo inquérito constitui um ataque aberto a uma
similar “caça às bruxas” no Brasil contemporâneo.” (apud GOMES, 1989, p. 473); Ilka
Marinho Zanotto assim analisa:
Em 1952, Arthur Miller escrevia The Crucible (As feiticeiras de Salém), que evocava a
perseguição movida na Massachusets do século XVII, contra os membros da sociedade
puritana da época, que praticavam orgias noturnas. (...) Diz Miller: “A caça às bruxas é uma
manifestação perversa do pânico que se estabelece entre todas as classes quando a balança
começa a inclinar-se para uma maior liberdade individual.” (...) O tema de O santo inquérito,
de Dias Gomes, é exatamente o mesmo: o processo persecutório que a Inquisição Portuguesa
levou a efeito no Brasil do século XVII, como extensão da histeria que invadira a Península
Ibérica, e por ocasião da vinda de um visitador-mor à Colônia. (...) Evidentemente e está
explícito no programa em palavras do autor – não visa o espetáculo a ser um ataque à Igreja de
hoje no Brasil, que trava uma luta antiobscurantista e em prol do nosso aperfeiçoamento social
– mas visa a uma condenação mais ampla de qualquer tipo de opressão. (apud GOMES, 1989,
p. 484)
Ambas as peças podem ser lidas em dois contextos: o passado remoto de seus países
e/ou o do presente de seus autores, pois focalizam e trabalham alegoricamente com os fatos
históricos. A intolerância religiosa e política também estão presentes nas duas peças. No texto
de Dias Gomes, a intolerância religiosa contra o criptojudaísmo de Branca Dias e sua família
é um dos motivos mais evidentes para a sua condenação; a peça de Miller mostra como a
bruxaria era tida como um crime sujeito à pena de morte.
Em relação à intolerância política, como foi dito anteriormente, The Crucible, ao
mesmo tempo que relata a caça às bruxas em Salém no século XVII, representa a perseguição
31
Uma onda de intolerância e fanatismo religioso tomou um vilarejo de Salém, um pouco mais ao norte de
Boston, na colônia americana da Nova Inglaterra, nos finais do século XVII. O desencadear dessa literal “caça às
bruxas” vitimou quase vinte pessoas.
163
anticomunista nos Estados Unidos da América no século XX; ao passo que O santo inquérito
utiliza a execução de Branca Dias pela Inquisição no culo XVII para retratar as atrocidades
cometidas durante a Ditadura Militar no Brasil do século XX. Dessa forma, a intolerância
religiosa é um simulacro para falar-se da intolerância política, pois, por trás de toda
intolerância religiosa, sempre uma questão política. A religião, devido ao poder que pode
proporcionar, é usada como arma para atingir fins quase nunca divinos.
Em contestação a toda essa intolerância, Dias Gomes demonstra sua indignação ao
questionar: “Até (...) quando forjarão mártires como Branca e Augusto, ou criminosos por
omissão, como Simão Dias? Até quando as fogueiras reais ou simplesmente morais (...) serão
usadas para eliminar aqueles que teimam em fazer uso da liberdade de pensamento?”
(GOMES, 1996, p. 15). Através da fala de Branca, o autor levanta também a discussão em
torno da alienação sofrida por aqueles que estão submetidos aos regimes totalitários, como é o
caso da Inquisição e da ditadura militar: Está errado... Cada pessoa conhece apenas uma parte da
verdade. Juntando todas as pessoas, teríamos a verdade inteira. E a verdade inteira é Deus. Por isso as
pessoas não se entendem, por isso há tantos equívocos.” (O santo inquérito, 1996, p. 68)
Também durante o regime militar, a única verdade que poderia prevalecer era a do
sistema e tudo o que fosse contrário a ele era taxado de subversivo. Em O santo inquérito
muitas analogias que evidenciam as semelhanças existentes entre a Inquisição e a ditadura
militar. Henrique Hello, citado por Dias Gomes no prefácio da obra, através da sua fala,
mostra como a Inquisição defendia a pena de morte em casos de heresia: “É, portanto,
justíssimo que a pena de morte seja aplicada aos que, propagando a heresia com obstinação,
perdem o bem mais precioso do povo cristão, que é a e, por divisões profundas, semeiam
nele graves desordens.” (apud GOMES, 1996, p.14). Convém lembrarmos que, entre os Atos
Institucionais publicados durante o regime militar, o AI-14 estabelecia a modificação do
artigo 150 da Constituição, permitindo a aplicação da pena de morte em casos de guerra
externa, psicológica adversa, revolucionária ou subversiva.
O santo inquérito inicia-se com o julgamento de Branca Dias, fazendo referência aos
IPMs (Inquéritos policiais militares) sofridos pelos indivíduos que eram perseguidos e presos,
muitas vezes, devido a uma denúncia infundada ou, apenas, a uma suspeita (o próprio Dias
Gomes foi indiciado em vários IPMs). A fala do Padre Bernardo é a primeira, e ele reivindica
o direito que a Igreja tem de punir aqueles que, estando submissos a ela, se afastam do seu
caminho. Ao mesmo tempo em que defende a instituição, dizendo que tudo fizeram para
salvar Branca, e que, se não a punissem, estariam permitindo que ela semeasse os germes da
anarquia, os quais acabariam destruindo a civilização cristã construída tão arduamente. Tal
164
afirmação encontra eco naquilo que estava sendo propagado no período que antecedeu o golpe
militar, de que o país estava para passar por um tempo de grande desordem, o qual seria
marcado
pela subversão dos princípios e dos valores, inclusive os religiosos. A idéia de que a
civilização ocidental e cristã estava ameaçada no Brasil pelo espectro do comunismo
ateu invadiu o processo político, assombrando as consciências. (REIS, 2002, p. 27)
Desta maneira, não seria um erro afirmar que a Inquisição estava para a ditadura,
assim como a Contra-Reforma estava para o golpe militar de 64. Pois, do mesmo modo como
a Contra-Reforma “ressussitou” a Inquisição para combater os hereges e frear a propagação
do protestantismo, judaísmo, entre outros, o golpe de 64 estabeleceu um regime ditatorial para
dar um fim à onda de reformas socialistas que “ameaçavam” dominar o país. Dado a isso, a
Inquisição cometeu uma série de arbitrariedades em nome de Deus, da mesma maneira como
o regime militar oprimiu, perseguiu e cerceou a liberdade dos brasileiros em nome da
democracia.
Branca é interrogada e todos os seus atos são investigados, tendo aqueles considerados
suspeitos usados para acusá-la de práticas heréticas e imorais. No entanto, a única coisa que
ela queria era poder viver livremente, amando seu noivo e ajudando o próximo. A pureza e a
ingenuidade de Branca simbolizam a juventude brasileira que precisava ser protegida e
afastada das “garras do demônio”, neste caso, o comunismo. Mas, ao tornar-se suspeita de
envolvimento com ele, necessitava ser punida para não contaminar outros. Pois, para o
regime, os jovens estavam mais propensos a se deixarem ludibriar pelo inimigo. As
estatísticas mostram que 38,9% dos que foram processados pela ditadura tinham idade igual
ou inferior a 25 anos, ou seja, cerca de 2.868 jovens, sendo que, dentre estes, 91 ainda não
haviam atingido 18 anos. Em O santo inquérito, Padre Bernardo adverte:
Porque, não tenha dúvidas, o Diabo está a todo momento a nos rondar os passos, a se insinuar
e a se infiltrar. E é principalmente os ingênuos , os sem maldade, como você, que ele escolhe
para seus agentes. É um erro imaginar que Satanás prefere os maus, os corruptos, os ateus.
Engano. Satanás escolhe os bons, os inocentes, os puros, porque são eles muito úteis e
insuspeitos na propagação de suas idéias. Repare que as grandes heresias surgem sempre de
pessoas que pretendem salvar a humanidade. (O santo inquérito, 1996, p. 43)
Esta fala do Padre Bernardo é uma clara alusão ao possível recrutamento dos jovens
para as causas socialistas. A preocupação que Branca demonstra em salvar as formigas pode
165
ser comparada com a juventude que estava engajada às causas sociais e se preocupava com as
desigualdades sofridas pelo povo. Para o Padre, as formigas não passavam de “seres daninhos,
que somente destroem, (...) e cuja existência nenhum bem, nenhuma utilidade representa.” (O
santo inquérito, 1996, p. 54). Será que, muitas vezes, não é este o pensamento que as elites
têm das minorias, daqueles que, por não possuírem riquezas, são considerados seres
inferiores, sem nenhuma serventia?
A influência que Augusto Coutinho exercia sobre Branca tornou-se uma preocupação
para o Padre, que Augusto era aquele que trazia até ela as idéias “subversivas”: ensinando-
lhe a ler, a ter acesso ao mundo da informação através dos livros proibidos pela Igreja, com os
quais ele mesmo a presenteara.
O regime militar também proibiu vários livros, principalmente, aqueles que fossem
considerados subversivos, contra o regime ou pornográficos, contra as famílias. Ênio Silveira,
proprietário da editora Civilização Brasileira, foi preso várias vezes e teve mais de 30 títulos
apreendidos. O “Ministro da Educação Flávio Suplicy de Lacerda organizou pessoalmente o
expurgo de bibliotecas, queimou livros de Eça de Queiroz, Sartre, Graciliano Ramos, Guerra
Junqueiro, Jorge Amado, Paulo Freire, Darcy Ribeiro” (REIMÃO, s/d, p. 4). A censura às
publicações tornou-se ainda mais acirrada após a promulgação do AI-5. Acerca da repressão e
da censura, Beatriz Kushnir declara que “Nesses períodos, a repressão à informação é
sinônimo e expressão da força do Estado sobre seus cidadãos.” (2002, p. 557)
Em O santo inquérito, Augusto Coutinho é o intelectual engajado idealizado. Ele tem
idéias consideradas heréticas e as divulga, fazendo novos discípulos. Através de sua
personagem, Dias Gomes levanta questionamentos os quais colocam o público para refletir
sobre o momento histórico que estão vivendo: ao questionar as verdades estabelecidas,
“Augusto - Talvez seja uma questão de interpretação.” (O santo inquérito, 1996, p. 50); ao
denunciar os desmandos da Igreja, “em nome (...) do próprio Deus, às vezes cometem-se atos
que Ele jamais aprovaria.” (O santo inquérito, 1996, p. 39); prefere resistir às torturas do que
denunciar seus companheiros (no caso Branca); se nega a confessar uma “verdade” criada
pelos repressores; não nega suas convicções; conserva sua dignidade até o fim.
Assim como nos IPMs, nos quais, em geral, as denúncias eram vagas e imprecisas,
“muitas vezes ineptas, reticentes, e até mesmo ardilosas” (ARNS, 1985, p. 179), aos
denunciados pelo Tribunal do Santo Ofício não era permitido saber do que estavam sendo
acusados e nem conhecer os nomes dos denunciantes.
166
VISITADOR
(Enigmático.) Recebemos uma denúncia. Temos de apurar.
[...]
BRANCA
Quem nos denunciou?
VISITADOR
O Tribunal do Santo Ofício não permite revelar o nome dos denunciantes.
[...]
BRANCA
De que nos acusam?
VISITADOR
De alguma coisa. (O santo inquérito, 1996, p. 61)
Assim como na Inquisição, as confissões dos inquéritos policiais eram obtidas através
da coação e da tortura. Devido a isso, em inúmeros casos as confissões não eram verdadeiras,
posto que os interrogados teriam que “confessar” aquilo que as autoridades queriam ouvir e
que estivesse de acordo com as informações existentes sobre ele. Para Arns (1985), os
métodos adotados nos interrogatórios e o sistema processual baseados na DSN pareciam advir
da Inquisição medieval, visto que esta também instigava a delação entre parentes, aceitava
delações anônimas e reduzia o número de testemunhas.
Arns (1985) relata ainda que “a suspeita de subversão estendia-se a familiares e
amigos das pessoas procuradas pelas forças policiais-militares. (...) Assim, os que se
encontrassem ao lado da pessoa visada (...) eram indistintamente atingidos” (p. 78). Branca
Dias teve seu pai e seu noivo presos e torturados para que a denunciassem.
Na Inquisição, muitos denunciados não resistiam aos sofrimentos fisicos e
psicológicos provocados pelo interrogatório e pelas torturas e acabavam confessando até
aquilo que não aconteceu, além de entregar as atividades e os nomes de seus companheiros,
assim como fez Simão Dias. Alguns dos presos pelo regime militar também não conseguiam
resistir diante das torturas e acabavam delatando os nomes dos companheiros, bem como as
atividades exercidas por eles.
Nos regimes autoritários é perceptível a maneira como eles criam novas leis para
driblar aquelas existentes. A criação dos AIs permitiu que a Constituição brasileira fosse
violada. Também “Ao longo do Regime Militar houve inúmeras alterações na legislação que
estabelecia normas para o andamento dos inquéritos” (ARNS, 1985, p. 169). A Inquisição
167
passava por cima dos ensinamentos da Bíblia, lei a qual eles diziam estar protegendo. Em O
Santo Inquérito, o Visitador, ao exigir que Branca se ajoelhe perante ele, quebra o
mandamento de que somente diante de Deus o homem pode se prostrar.
VISITADOR
Ajoelhe-se.
BRANCA
Ajoelhar-me diante de vós? Com ambos os joelhos?
VISITADOR
Sim, com ambos os joelhos.
BRANCA
Perdão, mas não posso fazer isso.
[...]
Porque ninguém deve ajoelhar-se diante de uma criatura humana.
[...]
Foi o que aprendi na doutrina cristã: somente diante de Deus devemos nos ajoelhar com
ambos os joelhos.
[...]
VISITADOR
Aqui se trata de um costume do Tribunal. O réu deve estar de joelhos quando é examinado
sobre a doutrina e também quando é lida a sentença. (O santo inquérito, 1996, p. 73)
Sodré (1984) chama a atenção para o fato de que o nazismo, em qualquer forma que se
apresente, busca a verdade com vigilância ofídica. E para isso utiliza todo o aparato técnico
disponível, como: a escuta telefônica, a violação da correspondência, a censura; vale-se
também do aparelho repressivo e policial, passando por cima da lei e de qualquer respeito
pela criatura humana. Esses princípios se aplicam a outros regimes autoritários.
O Guarda, personagem de O santo inquérito, é uma peça do sistema que cumpre as
ordens que recebe sem questionar sobre o seu papel naquela engrenagem e sem carregar
qualquer sentimento de culpa pelos seus atos. Num diálogo com Branca, ele diz:
GUARDA
(...) Os denunciantes denunciam, os juízes julgam, os guardas prendem, somente. O mundo é
feito assim. E deve ser assim, para que haja ordem.
168
BRANCA
E os inocentes?
GUARDA
Devem provar sua inocência, de acordo com a lei.
BRANCA
Mas não está certo.
GUARDA
Se não está certo, não me cabe a culpa. Sou guarda. E não foram os guardas que fizeram o
mundo. (O santo inquérito, 1996, p. 68)
Stanley Milgran, psicólogo americano, chegou à conclusão de que uma pessoa pode
cometer atos considerados como bárbaros para nossa civilização, desde que este indivíduo
deva uma obediência cega a alguém que socialmente é percebido como autoridade. “Tal
questão liga-se aos treinamentos que marcam a história das Forças Armadas e das Polícias
Militares” (COIMBRA, 1998, s/p).
Também o Notário se comporta de maneira mecânica para não impedir o bom
funcionamento da “máquina” a qual pertence. Mesmo se irritando ao perceber que Branca não
compreende a gravidade do processo ao qual está submetida, não consegue se desvincular do
sistema a ponto de se prontificar a ajudá-la. “Notário Perdeu a cabeça? Não que está
diante do visitador do Santo Ofício, representante do inquisidor-mor?” (O santo inquérito,
1996, p. 72)
Branca se considera inocente: “o que não entendo é por que estou aqui. Não fui
convertida, nasci cristã e como cristã tenho vivido até hoje.” (O santo inquérito, 1996, p. 77).
Assim como Branca, muitos inocentes foram presos, torturados e até mesmo mortos apenas
por serem “confundidos” com os “rebeldes”. Como exemplo, podemos citar o estudante
Edson Luís Lima Souto, morto pela polícia durante uma manifestação contra o fechamento do
restaurante Calabouço. Também os estudantes Gildo Macedo Lacerda, Idalísio Soares Aranha
Filho, José Carlos Novaes Mata Machado e Walkíria Afonso Costa, homenageados
recentemente pela UFMG, que, em memória dos estudantes mortos, criou uma exposição
denominada “Liberdade, essa palavra”, celebrando a resistência do movimento estudantil,
bem como um monumento no gramado da Biblioteca Universitária, materializado por quatro
troncos cortados, simbolizando as vidas ceifadas pelo autoritarismo.
Apesar de ter sido citada anteriomente, o podemos deixar de mencionar a tortura,
que esta foi uma constante em ambos os regimes e tinha o objetivo de arrancar dos
169
suspeitos as denúncias e confissões necessárias à sua condenação. Para trazer à tona esse
problema, Dias Gomes utiliza a personagem Augusto Coutinho, torturado até a morte para
que denunciasse sua noiva. Durante a ditadura, no Brasil, a tortura foi aplicada
indiscriminadamente, não importando a idade, sexo, situação moral, física ou psicológica dos
torturados,
Não se tratava apenas de produzir, no corpo da vítima, uma dor que a fizesse entrar em
conflito com o próprio espírito e pronunciar o discurso que, ao favorecer o desempenho do
sistema repressivo, significasse sua sentença condenatória. Justificada pela urgência de se
obter informações, a tortura visava imprimir à vítima a destruição moral pela ruptura dos
limites emocionais que se assentam sobre relações efetivas de parentesco. Assim, crianças
foram sacrificadas diante dos pais, mulheres grávidas tiveram seus filhos abortados, esposas
sofreram para incriminar seus maridos. (ARNS, 1985, p. 43)
Branca Dias, como representante do povo oprimido e desamparado, ao tomar
consciência da importância de seus atos para o desenvolvimento da História, decide se
posicionar frente aos opressores e resistir até o fim. Pois neste contexto histórico no qual O
santo inquérito foi construído, era importante que fosse criada uma heroína que motivasse o
povo a resistir às arbitrariedades pelas quais estavam sendo submetidos. Sua revolta diante da
passividade de seu pai que viu as atrocidades cometidas contra Augusto, mas preferiu se
calar, preservando, assim, sua “integridade” é uma chamada para que a sociedade brasileira
tome uma atitude de enfrentamento, e não de passividade, ante as barbaridades que estavam
sendo cometidas pelos militares.
BRANCA
(...) ... o senhor quer que eu também seja cúmplice.
SIMÃO
Cúmplice de quê?
BRANCA
Da morte de Augusto.
SIMÃO
Absurdo! Você não tem nada com isso!
BRANCA
Tenho. Todos nós temos. Quem cala, colabora. (O santo inquérito, 1996, p. 100)
170
Desta maneira, Dias Gomes proporciona ao público um momento de identidade entre
ele e o que está sendo encenado. Pois, ao contemplar a idoneidade de Branca e Augusto, o
público poderia com eles identificar-se, repudiar a atitude de covardia de Simão Dias, bem
como perceber as atrocidades cometidas pelo Tribunal do Santo Ofício, tomando consciência
e entrando em sintonia com o momento histórico vivido, além de libertar-se através de uma
catarse. Para Jauss (1979), Katharsis, seria “aquele prazer dos afetos provocados pelo
discurso ou pela poesia, capaz de conduzir o ouvinte e o expectador tanto à transformação de
suas convicções, quanto à liberação de sua psique.” (p. 80)
Embora sejamos levados a analisar a peça através da dialética do ‘bem’ (Branca Dias)
versus ‘mal’ (Tribunal do Santo Ofício), devemos perceber, porém, que a implicação pode ser
bem mais complexa, pois Branca Dias não fora morta apenas pela Igreja, mas por todo um
sistema intransigente que, por meio de uma sociedade injusta, hostil e repressora, é capaz de
desintegrar valores humanos imprescindiveis como a integridade e a dignidade, ou de
exterminar aquelas pessoas que não se adequam a ela.
Vale salientar, no entanto, que o caráter ideológico da peça analisada não diminui seu
valor estético, evidenciado através do “humanismo e nas situações éticas vividas pela
personagem” (ALVES, 2005, p. 209), o que faz emergir todo o trabalho criativo do autor.
Para quem “a obra é tanto mais política quanto mais artística ela for, ou seja, em primeiro
lugar você tem que fazer uma obra de arte e, se for válida como obra de arte, ela será
politicamente, senão, não será nada.” (GOMES apud SILVA, 2001, p. 128)
Para que o drama se mantenha atual, segundo John Gassner (1965), as idéias devem
ser transfiguradas por um bom escritor teatral que seja verdadeiro poeta. Lembremos-nos da
definição aristotélica de que a poesia ultrapassa os limites do histórico e expande-se para o
universal, “a poesia, (...), visa ao universal, mesmo quando nomes a suas personagens.”
(ARISTÓTELES, 2000, p. 47). Desta maneira, O santo inquérito, sendo vista como uma
tragédia lírica, rompe com os limites históricos tornando-se profética
32
e analógica para
qualquer situação em que o direito do ser humano de ter suas próprias idéias e a liberdade de
expressá-las e vivê-las esteja sendo desrespeitado.
Segundo Walter Benjamin, a narrativa “não se entrega. Ela conserva suas forças e,
depois de muito tempo, ainda é capaz de se desenvolver.” (1994, p. 204). Sendo assim, devido
ao seu caráter atemporal, O santo inquérito é capaz de transcender seus propósitos originais
32
Profética no sentido bíblico de descobrir a verdade e anunciá-la.
171
vindo a falar de verdades humanas, que podem acontecer em qualquer tempo e em qualquer
lugar. Pois,
cada dramaturgo dirige-se ao público de sua época, sem se esquecer de que as grandes obras
dramáticas atendem também a um público virtual, de qualquer tempo e lugar, pois conseguem
atingir o universal humano. Daí a perene modernidade de Ésquilo, Sófocles, Eurípides,
Shakespeare, Corneille, Racine, Ibsen, Pirandello, dentre outros.” (ALVES, 2005, p. 197)
Assim sendo, podemos dizer que, a obra dramática de Dias Gomes se insere num
momento histórico de mudanças e conflitos ideológicos assinalados pelo complexo século
XX, o qual foi, em grande parte, vivenciado pelo autor (1922-1999) e acirrado pela censura
do regime militar no país. Sua dramaturgia nos apresenta a um mundo no qual os conflitos e
pressões exigem de nós uma tomada de posição, por meio da qual possamos preservar os
valores humanos inerentes a uma sobrevivência plena. Porque, “Há um nimo de dignidade
que o homem não pode negociar, nem mesmo em troca da liberdade. Nem mesmo em troca
do sol.” (O santo inquérito, 1996, p. 100)
172
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta dissertação teve como objetivo analisar a obra dramática O santo inquérito, do
escritor baiano Dias Gomes, que tem como enfoque central a perseguição da Inquisição contra
a paraibana Branca Dias, no século XVIII. A peça pode ser lida, também, de maneira
alegórica, como uma denúncia indignada por parte do autor contra a repressão generalizada
que se deu no Brasil no período da ditadura militar.
A intolerância e os conflitos existentes, na perseguição contra os cristãos-novos e os
judeus, foram representados, no texto, através da prisão e execução de Branca Dias. Desta
maneira, ao longo dos capítulos, buscou-se averiguar se tais perseguições ocorreram devido à
intolerância religiosa, bem como à intolerância que se estabelece contra todos aqueles que, de
alguma forma, se opõem aos sistemas pré-estabelecidos. Pois, além de possuir o “sangue
infecto” dos seus ancestrais judeus Branca tornou-se uma “ameaça” para a Igreja devido às
suas idéias “heréticas”. Além do enfoque às questões de intolerância racial e religiosa, a peça
chama a atenção, principalmente, para a intolerância à alteridade de pensamento, para o
direito que todo ser humano tem de poder pensar e se expressar livremente, e que, muitas
vezes, não é respeitado.
Ao estudarmos a questão das identidades, e, principalmente, da identidade nacional,
percebemos que um dos grandes geradores dos conflitos existentes, dentro das nações, ou
entre as nações, é a não aceitação à alteridade. E essa “resistência” à alteridade acaba gerando
todo tipo de intolerância: racial, cultural, religiosa, política, entre outras.
A religião, sendo uma das principais formas de expressão cultural entre os povos,
possui ritos considerados sagrados, invioláveis, tabus. Entretanto, devido às diferenças
culturais e históricas, determinados elementos que são considerados sagrados para um povo
podem ser considerados profanos para outros. Esta discrepância entre o que é sagrado e o que
é profano, muitas vezes, torna-se objeto de disputa entre povos e, quase sempre, produz algum
tipo de intolerância, podendo mesmo chegar a ser um fator determinante para a geração de
conflitos e até mesmo de guerras. Devido a essas diferenças de crenças e costumes, os judeus
foram, durante toda a Idade Média, Moderna e até a Contemporânea, vítimas de todo tipo de
preconceito e intolerância.
Em O santo inquérito os conflitos entre o sagrado e o profano são representados,
principalmente, por meio das personagens Branca Dias e Padre Bernardo e da maneira como
eles se relacionam com o mundo e com Deus. Mas essas representações são variáveis e, em
173
alguns momentos, o sagrado e o profano se alternam e se diluem; os papéis se invertem, na
medida em que as falas e as ações dos personagens são contrapostas. Branca, apesar de
representar o profano, com sua pureza e ingenuidade, tem atitudes que podem ser vistas como
sagradas: por exemplo, salvar o padre do afogamento, o amor que sente por Deus e pela
natureza. o Padre, representante do sagrado, devido ao seu dogmatismo e à sua
religiosidade exacerbada, tem atitudes pouco sagradas, como, contrariar a própria lei que
defende (a Bíblia) para alcançar propósitos pessoais: entrega Branca ao Tribunal, a fim de
aliviar sua culpa, mesmo sabendo que ela pode ser morta.
Os cristãos-novos e os judeus, devido à perseguição do Santo Oficio, assumiram
diferentes tipos de identidade, ou maneiras de lutar contra a opressão. No texto de Dias
Gomes, esses diferentes papéis “identitários” são representados por Augusto Coutinho e
Branca Dias (o enfrentamento), o avô de Branca (a identidade da resistência passiva) e Simão
Dias (a rendição). Contudo, as diferentes “identidades” que os personagens assumem diante
da opressão não se restringem à narrativa literária, pois, podemos vê-las em diferentes
contextos, todas as vezes em que haja pessoas sendo perseguidas.
Diante da opressão, o indivíduo se vê, muitas vezes, sem alternativa de “salvação”,
pois, qualquer que seja a sua escolha, poderá produzir conseqüências lamentáveis. Ao optar
pelo enfrentamento, em grande parte dos casos, encontrará iminentemente a morte real; se
preferir a rendição, poderá até poupar sua vida biológica, contudo, negará sua identidade, suas
memórias e ideologias e estará se condenando a uma morte simbólica, além de apagar os
vestígios identitários que serviriam de herança cultural para as futuras gerações. Assim como
aconteceu aos cristãos-novos no Brasil, que, devido ao silêncio que lhes fora imposto, tiveram
escamoteada toda a sua contribuição econômica, social e cultural para a sociedade brasileira.
O santo inquérito, ao ser escrito, tinha como objetivo representar um protesto e, ao
mesmo tempo, um chamamento à população brasileira para que tomasse conhecimento das
barbáries que estavam acontecendo no país, em nome da ordem e do progresso, e para que
deixasse de lado a passividade, a acomodação e começasse a se empenhar na verdadeira
defesa da nossa pátria. Pois, em primeiro lugar, todo cidadão tem direito a uma vida digna,
direito de ser respeitado e, principalmente e prioritariamente, direito de ser livre, de pensar e
se expressar, afinal não nos foi dado, desde a criação, o direito ao livre-arbítrio?
A intolerância dos opressores contra os oprimidos tem levantado em todo o mundo
uma série de reações por parte daqueles que, durante anos, ou até mesmo séculos, sofreram
calados as agruras de um sistema hegemônico e etnocêntrico. As ex-colônias estão levantando
sua voz para denunciar seus “antigos” opressores, os anos de sofrimento e barbárie vividos; os
174
Estados Unidos da América, grande potência mundial do século XX, vivem com medo dos
ataques terroristas, que advêm como resposta à cobiça desenfreada e à suposta superioridade
do Ocidente sobre o Oriente; no Brasil, as guerras entre as gangues nas favelas descem o
morro e vêm para as áreas nobres do Rio de Janeiro e de São Paulo, assustando os moradores
da classe média e da alta burguesia. Tudo isso nos leva a refletir e perceber que, no mundo de
hoje, não há mais lugar para regimes totalitários, nos quais as vozes dos excluídos são
silenciadas pela opressão. Pois cada cultura anteriormente excluída luta para recuperar sua
voz e seu espaço.
As discussões levantadas neste trabalho não esgotam as possibilidades de exame dos
assuntos debatidos. Sugerem, no entanto, uma série de reflexões sobre os temas abordados,
uma vez que, ainda em nossos dias, percebe-se a intolerância em relação à alteridade, a
opressão dos fortes contra os fracos e o desrespeito à liberdade do outro, o que continua
gerando conflitos, desacordos, guerras e mortes.
Por tudo isso, acreditamos que as questões aqui levantadas podem produzir futuros
desdobramentos do trabalho acadêmico, servindo para germinar idéias que hoje se encontram
apenas em fase embrionária. Como exemplo, podemos citar um estudo comparativo entre
Dias Gomes e o dramaturgo americano Arthur Miller, visto que ambos foram contemporâneos
e escreveram preocupados com a realidade social e política de seus respectivos países.
175
REFERÊNCIAS
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